Resenha - Subjetividade, Trabalho e Ação (Lucas M.)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 6

Trabalho, Corpo e Saúde

Resenha - Texto 1 - Subjetividade, trabalho e ação


Aluno: Lucas Moraes de Araújo

A clínica do trabalho é um campo amplo, situada dentro do escopo geral da


psicologia do trabalho. É um campo relativamente recente e surgiu na França à
partir da década de 1960 onde destacam-se os trabalhos de Sivadon e Le Guillant,
inaugurando a atenção ao trabalho utilizando-se dos instrumentais da clínica.
Considero um campo teórico ainda em construção e sem muita solidez
epistemológica, mas com forte inserção prática e com prolíferas contribuições, e que
já encontra eco no Brasil. É um campo onde realiza-se ainda bastante esforço para
produção de um referencial teórico mais estável, apesar de já encontrarmos muitos
princípios e paradigmas bem assentados desde o início, dada a originalidade das
referências francesas nesse campo e das respectivas filiações teóricas dos seus
proponentes. Atualmente subjazem nesse campo diversas abordagens distintas,
onde poderíamos destacar a psicossociologia (também chamada de psicologia
social clínica ou sociologia clínica), a sociopsicanálise de G. Mendel, a clínica da
atividade de Y. Clot, e a psicodinâmica do trabalho de C. Dejours. Nessa resenha
nos ateremos especialmente à psicodinâmica de Dejours, comentando o artigo
“Subjetividade, trabalho e ação” de sua autoria.
Para situarmo-nos aqui, podemos salientar de início que a psicodinâmica do
trabalho é uma abordagem clínica que trata das relações entre trabalho e saúde
mental, afastando-se, entretanto, da tradição clássica em psicopatologia do trabalho.
Ela situa-se na interseção da psicopatologia do trabalho e da ergonomia francesa,
tendo como horizonte doutrinal a psicanálise. Se apóia, no entanto, em uma teoria
do sujeito que engloba a psicanálise e a teoria social. Dejours busca expor em seu
artigo as contribuições da psicodinâmica do trabalho para a análise das relações
entre o trabalho e a subjetividade, ou mesmo do ”trabalho com a vida”, como diz.
Nesse sentido a psicodinâmica de Dejours e a clínica da atividade de Yves Clot têm
em comum a preocupação em olhar o trabalho como um desafio psíquico decisivo
para o sujeito, situando-se nesse interstício entre o trabalho e a subjetividade, e
refletindo sobre a possibilidade da ação. Nesse artigo, relativamente curto e
sintético, Dejours comenta sobre os conceitos de trabalho, real do trabalho,
sofrimento, inteligência, subjetividade, corpo, ação, coordenação, cooperação, e
outros. Comentaremos sobre alguns desses conceitos a seguir.
O trabalho é um conceito controverso entre as várias disciplinas. Para a
psicodinâmica consiste em gestos, em um saber-fazer, um engajamento do corpo.
Envolve a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de
reagir às situações. É o poder de sentir, de pensar e de inventar, etc. O trabalho não
é o emprego, ou a relação salarial. O trabalho é o “trabalhar”: um certo modo de
engajamento da personalidade para responder a uma tarefa delimitada por pressões
(materiais e sociais).
A psicodinâmica do trabalho herda da ergonomia francesa a diferenciação
entre os conceitos de trabalho prescrito e trabalho real: Essa distinção nasce da
constatação que é impossível atingir a qualidade do trabalho, ou mesmo a sua
viabilização, se as prescrições que o regulam forem respeitadas escrupulosamente.
Existe uma dimensão do imprevisível que subjaz a qualquer tipo de atividade
humana, e que demandam uma margem de improviso, ou de criatividade,
demandam a mobilização de um esforço para superar obstáculos iminentes. A
própria realidade, ou o real, é imprevisível, e nela nos deparamos com limites, com
obstáculos. O trabalho real circunscreve a dimensão do trabalho real onde ocorrem
acontecimentos inesperados: panes, incidentes, anomalias de funcionamento,
incoerência organizacional, imprevistos da matéria, das ferramentas, das máquinas
e também dos trabalhadores, da equipe, da hierarquia, etc.
Trabalhar, portanto, é preencher a lacuna entre o prescrito e o real. E o que é
necessário para isso não pode ser antecipado ou previsto. Para isso é necessário
inventar, descobrir. É necessário que o trabalhador acrescente de si mesmo às
prescrições para suprir essa lacuna. O sujeito que trabalha reconhece essa distância
sempre sob a forma de fracasso. Desperta um sentimento de impotência, de
irritação, raiva, decepção ou esmorecimento. O mundo real, com suas
imprevisibilidades, confronta o sujeito como um efeito surpresa e que é percebido
negativamente, de um modo afetivo. O real do mundo é percebido sempre
afetivamente. A experiência de mundo é produto de uma relação primordial de
sofrimento. O sofrimento, portanto, é uma experiência absoluta inerente à relação
com o real. É, também, para a subjetividade, um ponto de partida de sua ação,
visando a transformação desse sofrimento para a superação da resistência do real.
O sofrimento está simultaneamente na origem da experiência do real, e do
movimento de superá-lo. Este movimento parte da resistência e se transforma em
vontade e desejo, se concretizando como inteligência e poder de transformar o
mundo. É o movimento que está na base da subjetividade e também de sua ulterior
transformação.
Quando o sujeito sofre, é um sofrimento que se dá na dimensão psíquica e na
dimensão corporal. A relação da subjetividade como o mundo, no trabalho, produz
uma dissociação por conta da experiência do fracasso. A familiaridade com o objeto
do trabalhar se dá às custas da introjeção do sofrimento enquanto parte constituinte
da subjetividade fundada no trabalho. É, no entanto, essa familiaridade que torna
possível a engenhosidade, a criatividade, a genialidade. Essa definição de trabalho
torna possível a compreensão de que ele não é reduzido ao tempo cronológico que
se dedica à alguma atividade. Precisa ser entendido de forma ampliada, como
estruturante e mobilizador da personalidade por completo.
O sofrimento é a origem da inteligência. A inteligência é a substância do
trabalhar, e por isso o trabalho não é da ordem da objetividade. Podemos assim
concluir que nós não podemos avaliar o trabalho, e que ele é inacessível à
quantificação. O trabalho não é redutível à uma atividade de produção no mundo
objetivo. Portanto o trabalho é invisível. Ser inteligente no trabalho implica um
distanciamento do prescrito. Ser inteligente significa o bem lidar com as
imprevisibilidades, com o improviso, e portanto, com alguma infringência das
recomendações. A inteligência do trabalho é essencialmente a inteligência do corpo.
E na falta de consciência que o trabalhador tem do próprio corpo, talvez por um
déficit na nossa própria língua, a inteligência sempre está à frente do que o
trabalhador sabe de si mesmo.
O corpo é o suporte concreto das experiências. A experiência subjetiva só é
experimentada à partir de um corpo, em uma corporeidade única e singular. A
psicodinâmica entende também que, para além disso, é pelo seu corpo que o sujeito
transforma o mundo. O corpo é a sede da inteligência e da habilidade no trabalho. A
inteligência do corpo não é algo inato, ela é formada pelo próprio trabalho e no
trabalho. A habilidade técnica supõe previamente a toda performance um processo
de subjetivação da matéria e dos objetos. Ou seja, a idéia de corpo que se trata aqui
é um corpo que integra a dimensão subjetiva. O corpo de que trata a psicodinâmica
não é o corpo biológico. É o corpo que inclui a experiência, o corpo que se engaja na
relação com o outro, envolvendo também coisas como o gestual, o modo como nos
comportamos, o modo como nos expressamos, etc. É um corpo que envolve um
sentido. Inclui também aquilo que a psicanálise entende como corpo erógeno, um
segundo corpo, subjetivo, que se desenvolve a partir do corpo biológico.
A teoria do sujeito em que se apoia a psicodinâmica é a psicanálise. E o que
está no centro do sujeito psicanalítico é a sexualidade. Na teoria psicodinâmica, o
desenvolvimento da subjetividade passa pela relação entre o sofrimento e o real,
mas também envolve a sexualidade. Podemos falar em um paradoxo, o paradoxo da
dupla centralidade, ou seja, a centralidade do trabalho e da sexualidade. Para
resolver esse problema seria necessário encontrar um denominador comum no
trabalho e no corpo, que fizesse uma ponte entre o sofrimento e a pulsão. Seria
necessário uma consubstancialidade entre trabalho e subjetividade. Incorreria-se
portanto na fronteira entre a teoria política e a subjetividade, em um problema
filosófico de amplas dimensões. Dejours aposta em uma teoria da ação que poderia
ser o elo de ligação teórica entre esses dois domínios, apostando na possibilidade
de uma leitura do conceito de pulsão em Freud sob a categoria do trabalho. O
trabalho seria não é apenas uma atividade material, mas também, segundo a
psicanálise, uma exigência psíquica que partiria das exigências do corpo.
Quanto a dimensão social, o real do trabalho é o real do mundo objetivo
assim como o real do mundo social. O mundo humano é caracterizado por relações
de desigualdade, de poder e de dominação. Um mundo hierarquizado, ordenado,
coercitivo, perpassado pela luta para a dominação. O real da tarefa é aquilo que se
dá a conhecer ao sujeito pela sua resistência a ser dominado. Trabalhar é fazer a
experiência da resistência do mundo social. Assim, o ressurgimento da inteligência
no trabalho demanda a compensação dos riscos de conflito e contradição entre as
inteligências mediante a coordenação das inteligências.
Para que o processo de trabalho funcione, é preciso reajustar as prescrições e afinar
a organização efetiva do trabalho, diferente da organização prescrita. Todavia, dada
a distância entre o trabalho prescrito e o real, existe uma dificuldade de organizar o
trabalho nessas condições.
À partir daí ocorre a criação das regras de ofício, e as diferenças de cada
trabalhador, desde a personalidade até os estilos e níveis de habilidades diferentes,
o que produz um distanciamento diferente com relação aos procedimentos. Os
acordos entre os trabalhadores sempre tem em parte um objetivo de eficácia, à nível
técnico, e em outro um objetivo social, em nível ético. A cooperação sempre
pressupõe um compromisso ao mesmo tempo técnico e social. O viver social
pressupõe sempre uma limitação à experiência da inteligência e da singularidade, na
medida em que pressupõe uma renúncia de parte do potencial subjetivo individual
em prol do coletivo, da cooperação, da ética.
A visibilização do trabalho está bastante relacionada a isso. A psicodinâmica
defende que o individualismo leva a conflitos, violência, e pode arruinar as condições
éticas e sociais. Ele torna o trabalho frustrante, adoecedor, e contribuidor para a
destruição da subjetividade. Esse é um motivo pelo qual renunciamos a ele, e
aceitamos cooperar. O coletivo pode fornecer recursos específicos para se
aprimorar as subjetividades singulares. E é mediante a visibilização de nossas
experiências que alcançamos o reconhecimento dos outros. Somente mediante o
combate da invisibilidade do trabalho alcançaremos o reconhecimento do
trabalhador. É graças ao reconhecimento que se alcança o respeito e o convívio
com as diferenças. O reconhecimento é condição para haver um coletivo, para
alcançar uma solidariedade fundamental entre a experiência subjetiva e a implicação
coletiva. Dessa forma torna-se possível um compromisso entre a subjetividade
singular e ações coletivas.
Uma ação só é racional se ela considerar o destino da subjetividade no
trabalho, e se ela se considerar aquilo que, no trabalho, vêm da subjetividade. A
ação coletiva é racional se ela considerar a luta contra a injustiça e a celebração da
vida mesma. Melhorar a organização do trabalho é estabelecer uma continuidade
entre a vida e a cultura, e mesmo a civilização. O intuito da política é a celebração
da vida, e não o culto do poder. A luta contra a dominação tem como finalidade a
celebração da vida, e não o gozo do poder ou a promoção do individualismo
consumista. A ação e luta têm como meta fazer da organização do trabalho um
objetivo prioritário da deliberação política.
Para a psicodinâmica, no entanto, o essencial do trabalho está na
subjetividade. O erro, a fonte do mal estar na nossa cultura está, dessa forma,
especialmente nas formas atuais de organização do trabalho. Os princípios por trás
das formas de organização do trabalho contemporâneas levam a sacrificar a
subjetividade em nome da rentabilidade e da competitividade. Nelas se faz recurso
sistemático à avaliação quantitativa e objetiva. Então, dentro dessa estreita
compreensão do que é o trabalho, as avaliações funcionam como um meio de
intimidação e dominação. E, principalmente, funcionam para afastar a subjetividade
das discussões sobre trabalho. Nelas também predomina uma lógica de
individualização, que tem como consequências o isolamento de cada indivíduo, a
solidão e a desagregação do viver junto. Afasta dos indivíduos o contato com aquilo
que possuem em comum, e que se encontra no alicerce da confiança dos homens
uns nos outros. Os modos de organização do trabalho contemporâneos privilegiam a
produtividade e a riqueza, em detrimento da subjetividade e a vida no trabalho.
O principal recurso da psicodinâmica do trabalho é o exame dos sistemas de
defesa psicológicos pelos quais os sujeitos tentam suportar a realidade. Os sistemas
de defesa podem, através da conjuração do sofrimento, resultar em prazer se esse
trabalho psíquico é reconhecido na organização, mas se isso não acontece esses
sistemas podem se voltar contra os sujeitos na forma de um adoecimento. Como diz
Dejours, a proteção propiciada por essas defesas se tornam uma anestesia, e os
indivíduos sucumbem aos conflitos com o real, que se realizam em criações
mórbidas. As defesas autorizam uma negação do real. Essas defesas geram
sintomas, e esses sintomas podem ser interpretados. E a interpretação dessas
defesas, enquanto manifestações de um sofrimento proporcionar a possibilidade de
expressão desse sofrimento, realizado pela fala.

Referência:
Lhuilier, D. ; COSTA, M. F. ; CRUZ LIMA, Suzana Canez da . A intervenção em
psicossociologia do trabalho (tradução). In: Moraes, R.D.; Vasconcelos, A.C.. (Org.).
Trabalho e emancipação: A potência da escuta clínica. 1ed.Curitiba: Juruá, 2015, v. ,
p. 25-46.

Você também pode gostar