O Sex Appeal Do Inorgânico Reflexões Sobre A Moda e Fetichismo Sexual em Walter Benjamin - Doc.warley Dias VERSAOFINAL
O Sex Appeal Do Inorgânico Reflexões Sobre A Moda e Fetichismo Sexual em Walter Benjamin - Doc.warley Dias VERSAOFINAL
O Sex Appeal Do Inorgânico Reflexões Sobre A Moda e Fetichismo Sexual em Walter Benjamin - Doc.warley Dias VERSAOFINAL
Ildenilson Meireles
Doutor em filosofia pela UFSCar, professor do departamento de filosofia e do Programa de
Pós-Graduação em História da Unimontes, Montes Claros, MG, Brasil, e-mail:
[email protected]
Resumo
O presente artigo consiste em uma análise do fenômeno da moda na modernidade, no âmbito
da crítica benjaminiana àquele fenômeno que Marx, no primeiro livro de O Capital,
denominara de “o caráter fetiche da mercadoria”. Walter Benjamin interpreta a moda como
uma forma de “entronização” da mercadoria, um fetichismo ascendente e globalizante que vai
do micro ao macrocosmo e a tudo envolve, desde o mundo objetivo das coisas até a esfera
mais íntima da subjetividade humana: o domínio do corpo, do desejo e da sexualidade.
Partindo de alguns apontamentos das Passagens de Walter Benjamin, analisamos a correlação
que se estabelece, na modernidade ocidental, entre moda e sexualidade, a fim de mostrar em
que medida o desenvolvimento da indústria do luxo vem mobilizando o desejo humano em
função da mercadoria, instituindo-a na qualidade de um objeto sexual. Nas Passagens, o
filósofo procura apontar indícios de como a sexualidade humana seria impelida, pela moda
moderna, a uma transformação radical. Essa transformação evidencia-se no campo mais
tradicional da moda: o vestuário. Por sua capacidade de reinventar a aparência humana, o
vestuário constitui-se como uma espécie de “segunda beleza”, uma sensualidade inventada,
permanentemente, sobre a pele. Essa transmutação do desejo sexual pela moda é conceituada
por Benjamin por meio da expressão “sex-appeal do inorgânico”. Sex-appeal do inorgânico
define o apelo erótico que certos objetos inanimados, oriundos da indústria da moda, exercem
sobre o mundo humano. Ao liberar o sex-appeal do inorgânico, a moda prostitui o corpo vivo
degradando ao mundo inorgânico e institui a mercadoria como novo móbil da sexualidade.
Abstract
This article is comprised of an analysis about the fashion phenomenon in the Modern time,
under a Walter Benjamin standpoint about the phenomenon that Marx, in the first book of
Capital, named the "commodity fetish character." Walter Benjamin understands fashion as a
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Georg Lukács detecta, com bastante perspicácia, esse problema vislumbrado por Marx. Em sua obra História e
consciência de classe, Lukács procura explicitar o modo como, na sociedade capitalista, as próprias faculdades
subjetivas humanas, e não apenas as relações sociais, assumem o caráter de “coisas”, como uma espécie de
introjeção psicológica das relações fetichistas que fundamentam a mercadoria. Diz Lukács (2003, p. 222-223):
“A metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma objetivação fantasmática não pode limitar-se à
transformação em mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das necessidades humanas. Ela
imprime sua estrutura em toda a consciência do homem; as propriedades e as faculdades dessa consciência não
se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como ‘coisas’ que o homem pode possuir e
vender, assim como os diversos objetos do mundo exterior.”. Tal é o fenômeno que Lukács denominou de
reificação.
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Wolfgang Fritz Haug, em sua obra Crítica da Estética da mercadoria, desenvolve uma análise sobre o
fetichismo próxima às intuições e especulações de Lukács e Benjamin. Trata-se, para Haug (1997, p. 68),
de pesquisar “de que maneira e de que forma as sensações humanas são moldadas pela estética da mercadoria,
como elas interagem e como a estruturação das necessidades e dos impulsos se altera em contato com as
constantes modificações e submetida às ofertas de satisfação feitas pelas mercadorias”.
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A expressão é de Baudrillard. Cf. BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Edições
Loyola, 1996, p. 121.
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correlaciona moda e sexo. Nas Passagens, o filósofo procura apontar indícios de como a
sexualidade humana seria impelida, pela moda, a uma transformação radical. Tal alteração
consiste, fundamentalmente, em que a moda tenderia a deslocar a sensualidade dos domínios
orgânicos do corpo para o território artificial da vestimenta e dos adereços. Essa
transformação evidencia-se no campo mais tradicional da moda: o vestuário. É de supor
assim, junto com Benjamin, que a vestimenta não tem apenas a função corriqueira de
envolver o corpo e encobrir o sexo. Ora, ela pode, pelo contrário, ostentar ainda mais o sexo,
tornando a própria sensualidade objeto de uma invenção engenhosa e perversa. O vestuário
atavia o corpo, torna-o mais charmoso, mais sensual e mais belo, mas nessa operação as
próprias peças do vestuário vêem-se investidas de charme e erotismo. A conclusão que se
chega é, pois, essa: O corpo já não mais sensual sem os artigos da moda. Mas a própria
sensualidade humana já não é mais a mesma. Ao suplantar a aparência sensível humana, a
moda inventa uma sensualidade artificial.
Nas Passagens, Benjamin não se preocupa em fazer um balanço histórico deste
fenômeno, mas busca assinalá-lo como o paradigma capital da moda moderna. “Sugerir um
corpo que jamais conhecerá a nudez total”, eis, segundo Benjamin (2006, p. 106), a marca da
moda de então. No século XIX, o vestuário adquiriu um grande poder sobre o corpo, um
poder que às vezes beira ao excêntrico. É a época das crinolinas, dos babados e drapeados,
dos arranjos florais e dos chapéus, como testemunham, de uma maneira memorável e
encantadora, as séries de pinturas e aquarelas de Constatin Guys (Fig. 1 e Fig. 2).
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Essa apoteose estética do artigo de moda parece instituir, segundo Benjamin, uma
nova forma de sexualidade e sensualidade que não se inscreve na ordem natural, mas que se
opõe a ela. Não é por acaso que Benjamin caracteriza a moda como uma espécie de
“perversão” sexual:
Em cada moda há um quê de amarga sátira ao amor; em cada uma delas delineiam-
se perversões da maneira impiedosa. Toda moda está em conflito com o orgânico.
Cada uma delas tenta acasalar o corpo vivo com o mundo inorgânico. [...] O
fetichismo que subjaz o sex-appeal inorgânico é o seu nervo vital. (BENJAMIN,
2006, p. 117).
.
Essa transmutação do desejo sexual pela moda, Benjamin a conceitua por meio da
expressão “sex-appeal do inorgânico”. Julgamos, assim, que a elucidação dessa expressão
conceitual é peça-chave para se compreender o modo como Benjamin interpreta o fenômeno
do fetichismo da mercadoria, no âmbito da cultura capitalista. Sabe-se que a expressão inglesa
“sex-appeal” (em tradução literal apelo sexual) é usualmente dirigida a seres humanos, para
qualificar o poder de atração que certos indivíduos exercem sobre o sexo oposto. De uma
maneira geral, o termo pode ser entendido como charme ou sensualidade. Contudo, com o
conceito de sex-appeal do inorgânico, Benjamin dá a essa expressão um uso diferente do
convencional. Pois a expressão sex-appeal não é empregada aí por Benjamin para designar
uma qualidade própria de indivíduos humanos ou de seres vivos, mas refere-se a uma
propriedade de objetos inanimados. Sex-appeal do inorgânico define, desta forma, a atração
erótica que certos objetos inanimados exercem sobre o mundo dos vivos ou ainda a relação de
desejo que resulta da associação entre tais objetos, de caráter inorgânico e o corpo vivo
humano. No fragmento B 3,8 das Passagens, Benjamin escreve:
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Uma análise positiva do fetichismo é oferecida por Mario Perniola, em sua obra O Sex-appeal do inorgânico.
Cf. PERNIOLA, Mario. O sex appeal do inorgânico. São Paulo: Studio Nobel, 2005. Como é de supor, o livro
tem uma inspiração declaradamente benjaminiana.
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Os românticos animavam as palavras. A moda, por seu turno, anima a matéria (leia-
se: mercadorias), investindo-a de empatia e sensualidade. Em suma: a moda institui a
mercadoria como objeto-fetiche, faz dela um novo móbil da sexualidade. Tal como no
fetichismo sexual, o corpo humano é a instância das mediações dialéticas, das trocas
simbólicas e das transmutações. A moda, diz Benjamin (2006, p. 45), “se encontra em conflito
com o orgânico, unindo o corpo vivo ao mundo inorgânico e fazendo valer no corpo vivo os
direitos do cadáver.”. Revestindo a pele com uma série de mercadorias, a moda prostitui o
corpo vivo degradando ao mundo inorgânico.
É necessário esclarecer que não se trata, na moda moderna, apenas de um
acasalamento do corpo à matéria inorgânica, mas de uma verdadeira mimese do inorgânico.
Como destaca Susan Buck-Morss (2002, p. 135) o próprio corpo humano vivo passa a imitar
o mundo inorgânico: “através dos cosméticos, a pele tenta conseguir a cor-de-rosa tafetá, saias
de crinolina fazem as mulheres virarem ‘triângulos’ ou [...] ‘sinos ambulantes’”.
Essa mimese do inorgânico invocada pela moda tem seu ápice na aparição das
“bonecas manequins”. Nas Passagens, Benjamin (2006, p. 1005) anota: “mobilização do
inorgânico através da moda, seu triunfo na boneca (Puppe)”. As bonecas manequins passaram
a ser largamente empregadas na indústria e no comércio da moda do século XIX. Segundo um
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testemunho de Gröber, citado por Benjamin: “As engenhosas parisienses [...] para divulgar
mais facilmente sua moda, lançavam mão de uma reprodução especialmente atraente de suas
novas criações, a saber, as bonecas manequins [...]”. (GRÖBER, 1927, p. 31-32 apud
BENJAMIN, 2006, p. 733). Uma interpretação psicológico-sexual do culto dessas bonecas
era intencionada por Benjamin em seu projeto das Passagens. Seu objetivo era mostrar como
o manequim adquiriu, na modernidade, o status de símbolo do desejo, instituindo-se como
novo modelo do corpo belo e sensual. A moda moderna institui o manequim como modelo do
corpo ideal. Como escreve Henri Pollès em L’art du commerce. “Imitam-se manequins e a
alma se faz à imagem do corpo” (POLLÈS, 1937 apud BENJAMIN, 2006, p. 116). Ressalta-
se, contudo, que não se trata, no manequim, de um ideal de corporeidade viva e orgânica, mas
antes, um modelo negativo de corpo, um corpo-inorgânico, um corpo-coisa marcado pela
fragmentação e pela padronização, e que está bem mais próximo do cadáver do que de um
corpo vivo humano.
Chama a atenção, nesse aspecto, a associação alegórica, mesmo provocativa, que
Benjamin estabelece entre a matéria inorgânica, mobilizada pela moda e figurada na “boneca
manequim”, e a imagem do cadáver. 5 Essa associação, é preciso esclarecer, não se trata de
uma simples metáfora benjaminiana. Na biologia, a organicidade é o elemento que distingue a
vida da morte: a inorganicidade, por sua vez, é a qualidade própria ao domínio das coisas
mortas. Estaria a moda, então, demasiada próxima a morte? Uma “pulsão” de morte parece
se instalar na moda moderna. Escreve Benjamin:
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Pois ela, a moda, projeta o desejo não sobre o corpo vivo, mas sobre o cadáver, ela faz de
Eros o escravo sexual de Thanatos,6 canalizando a libido em direção à erótica estéril da
mercadoria. Dito de outro modo: por meio da moda, a sexualidade (a força produtiva natural
humana) é mobilizada em prol da produção técnica, uma mobilização que, no veredicto de
Benjamin, só pode resultar na vitória da esterilidade e no avanço ainda mais acentuando do
fetichismo da mercadoria.
Referências
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão.
Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
6
Ao analisar essa passagem benjaminiana, Lehmann (2000, p. 222) observa que “for Benjamin eros and thanatos
coexist within it” Este é, talvez, o ponto em que Benjamin parece ter recebido uma influência direta de Freud.
Em sua obra Além do princípio de prazer, Freud detecta nos instintos do ego uma oposição entre uma pulsão
(Trieb) voltada para a reprodução e conservação da vida, manifesta na sexualidade, e uma pulsão contrária,
voltada para a neutralização e aniquilação da vida, em direção a um estado anterior de coisas, o estágio
inorgânico. Na visão de Freud, esse conflito entre o impulso de autoconservação e um impulso de destruição,
fundamenta-se na coexistência, no sujeito, de duas pulsões primordiais: a pulsão de vida (Eros) e a pulsão de
morte (Thanathos). Benjamin certamente conhecia essa tese de Freud. Em vários de seus escritos, o filósofo cita
trechos de Além do princípio de prazer. Além disso, no Arquivo Z [A boneca, o autômato] das Passagens,
encontramos registrada a problemática psicanalítica do conflito entre Eros e Thanatos em uma citação do
antropólogo francês Roger Callois: “A literatura (...) conhece, no capítulo das mulheres fatais, a concepção de
um mulher-máquina artificial, mecânica, que nada tem em comum com as criaturas vivas, e que é, sobretudo,
assassina. A psicanálise certamente não hesitaria em interpretar essa representação como uma maneira particular
de encarar as relações entre morte e sexualidade, e mais, precisamente, com um precisamente, como um
pressentimento ambivalente de encontrar uma na outra.” (CALLOIS, 1937, p. 110 apud BENJAMIN, 2006, p.
736). Não se pode saber até que ponto, Benjamin foi influenciado por essa tese de Freud e se ele concordava
inteiramente com ela. Não obstante essas semelhanças, é preciso salientar que, em Benjamin, como podermos
perceber, o confronto entre a sexualidade a morte é compreendido no âmbito das transformações culturais
resultantes da recente força produtiva técnico-industrial e da concomitante propagação do fetichismo das
mercadorias, e não, por uma remissão à vida biológica, como o faz Freud (1969, p. 53 e ss.) em Além do
princípio de prazer.
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FREUD, Sigmund. “Além do princípio do prazer”. In: FREUD, Sigmund. Volume XVIII
(1920-1922): Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. Tradução
de Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
GRÖBER, Karl. Kinderspielzeug aus alter Zeit: Eine Gerschicte der Spielzeugs. Berlim,
1927.
LEHMANN, Ulrich. Tigersprung: fashion in modernity. Massachusetts: The MIT Press, 2000.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Trad.
Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
PERNIOLA, Mario. O sex appeal do inorgânico. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Studio
Nobel, 2005.
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Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 2, pp. 142-157, 2015.
Referências Iconográficas
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Fig. 2: GUYS, Constatin. Deux femmes aux amples crinoline. Aquarela. Museu do Louvre,
Departamento de Artes Gráficas. Disponível em <http://arts-
graphiques.louvre.fr/fo/visite?srv=mipe&idImgPrinc=1&idFicheOeuvre=123915&provenanc
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