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 1

indice

Tftulo original: THE CONSTITUTION OF SOCIElY.

Copyright © Anrhony Giddens, 1984.
Copyright © 1989. Livraria Martins Fontes Editora Ltda ..
Sao Paulo, para a presenu edifao

1" edi9io
outubro de 1989
2' edi~ao
junho de 2003
Prefaeio IX
Abreviaturas XI
Tradu~o
Introduriio XIII
ALVARO CABRAL

Revisao da tradu~o I. Elementos da teoria da estrutura~iio I

Mitsue, Morissawa
Revisao gratica
o agente, a agencia . 6
Coordenafiio de Mauricio Balthazar Leal Agencia e poder . 17
Produ~io gnifica
Gaaldo Alves
Estrutura, estrutura~iio . 19
Pagina~iolFoto1itos A dualidade da estrutura . 29
Studio 3 Desenvolvimenro Editorial
Formas de institui,ao . 33
Tempo, 0 corpo, encontros 40
Dado.'> lntemacionais de Ca~ na PubJical;:iio (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SF, Brasil)
Giddens, Anthony
II. Consciencia, self e encontros sociais 47
A conslirui~iio da socicdadc I Anthony Giddens : tradu~iio Alva- Reflexividade, consciencia discursiva e pnitica 47
ro Cabral, - 2' cd. - Sao Paulo: Martins Fontes, 2003. _ (Biblioteca
universal)
o inconsciente, tempo, memoria . 51
Titulo original: The constilution of society.
Erikson, ansiedade e confian,a 59
Bibliografia. Rotiniza,ao e motiva,ao . 69
ISBN 8S-336-1781-X
Presen,a, co-presen,a e integra,ao socia!.. . 75
1. Estrutura social 2. Institui~Oes sociais 3. Sociologia 4.
Sociologia polftica 1. Titulo. II. Strie.
Goffinan: encontros e rotinas 79
Serialidade 85
03-2751 CDD-301
indices para catlilogo sistematico:
Fala, reflexividade 91
1. Sociedade : Sociologia 301 Posicionamento ,.. ", .. " , , ,.. ,.. , , . 97
Notas eritieas: Freud sobre lapsus linguae . 109
Todos os direitos desta edir;ao para 0 Brasil reservados J
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 3301340 01325-000 Sao Paulo SP Brasil
III. Tempo, espa~o e regionaliza~iio . 129
Tel, (11) 32413677 Fax (11) 3105.6867 Tempo-geografia . 129
e-mail: [email protected] http://www.martinsjomes.com.br Comentarios cnticos ,.. ,.. ,.. , ,.. " .. ,, .. 136
 I

Contradic;ao e 0 estudo empirico do conflito . 366

Modos de regionalizac;ao . 140
Estabilidade e mudanc;a institucional 377
Regi5es da frente, regi5es de tras 144
Juntando os fios da meada: teoria da estruturac;ao e
Abertura e self . 149
formas de pesquisa 385
Regionalizac;ao generica . 153
Conhecimento mutua versus senso comum 394
Tempo, espac;o, contexto 155
Generalizac;6es em ciencia social 404
Contra 0 "micro" e 0 "macro": integra98.o social e
As conotac;5es praticas da ciencia social 409
de sistema 163
Notas eritieas: eieneia social, histaria e geografia ... 418
Notas eritieas: Foucault sabre distribuir;iio de tem-
po e de espar;o 171
Glassario de terminologia da teoria da estruturar;iio . 439
IV. Estrutura, sistema, reproduc;ao social Bibliografia 445
191
Sociedades, sistemas sociais 192
Estrutura e coerc;iio: Durkheim e outros . 199
Tres sentidos de "coerc;ao" 205
Coerc;ao e reificac;ao 211
o conceito de principios estruturais 213
Estruturas, propriedades estruturais 218
Contradic;ao 227
Fazendo a hist6ria . 235
Notas eritieas: "soeiologia estrutural" e individua-
lismo metodolagieo 243
Blau: uma versao da sociologia estrutural... . 243
Vma altemativa? Individualismo metodo16gico . 251

V. Mudauc;a, evoluc;ao e poder 267

Evo1ucionismo e teoria social........... 269
Adaptac;ao 274
Evoluc;ao e Hist6ria 278
Analise da mudanc;a social....................................... 287
Mudanc;a e poder 30 I
Notas eritieas: Parsons sabre evolur;iio 310

VI. A teoria da estruturac;ao, pesqulsa empirica e cri-

tica social 331
Vma reiterac;ao de conceitos basicos 331
A analise da conduta estrategica 339
Conseqiiencias impremeditadas: contra 0 funciona-
1ismo 345
A dualidade da estrutura............................................ 351
o problema da coerc;ao estrutural.............................. 358
Prefacio

Venho procurando hi algum tempo, e atraves de numero-

sas publica95es, estabelecer uma abordagem da ciencia social
que se afaste de maneira substancial das tradi95es existentes
do pensamento social. Este volume fornece urn agregado des-
ses escritos anteriores, apresentando-os no que espero seja
uma forma desenvolvida e coerente. a termo vago "aborda-
gem" da ciencia social realmente transmite muito bern 0 que
entendo como sendo as implica95es metodol6gicas da teoria
da estrutura9ao. Na ciencia social, pelas raz5es consideravel-
mente detalhadas nas piginas que se seguem, os esquemas
conceptuais que ordenam e informam processos de investiga-
9ao da vida social sao, em grande parte, 0 que e e para que
serve a "teoria". Nao quero dizer com isso, obviamente, que a
finalidade da teoria social nao seja elucidar, interpretar e
explicar caracteristicas substantivas da conduta humana. En-
tendo que a tarefa de estabelecer e validar generaliza95es -
nao diria "leis" - e apenas uma entre virias outras prioridades
ou metas da teoria social. A tarefa de construir conjuntos de
generaliza95es estavelmente firmadas, que e (talvez) a liga-
~ao entre as esfon;os das ciencias naturais, nao e uma ambi-
9aO de grande importiincia para esta. au, pelo menos, e 0 que
proponho.
Muitas pessoas foram bastante generosas para examinar e
comentar os primeiros rascunhos do livro ou contribuiram, de
outro modo, muito diretamente para dar-lhe a forma final. Gos-
taria de manifestar minha gratidao em particular as seguintes:
Sra. D. M. Barry, John Forrester, Diego Gambetta, Helen Gib-
x A CONSTITW9AO DA SOCIEDADE

son, Derek Gregory, David Held, Sam Hollick, Geoffrey Ingham,

I
I
Abreviaturas

Robert K. Merton, Mark Poster, W G. Runciman, Quentin

Skinner, John B. Thompson e Jonathan Zeitlin.

A.G.
janeiro de 1984

CCHM A Contemporary Critique of Historical Materialism,

vol. 1 (Londres, Macmillan/Berkeley, University of
California Press, 1981)
CPST Central Problems in Social Theory (Londres, Mac-
millan/Berkeley, University of California Press, 1979)
CSAS The Class Structure ofthe Advanced Societies, edi91io
revista (Londres, Hutchinson/Nova York, Harper &
Row, 1981)
NRSM Ni?W Rules ofSociological Method (Londres, Hutchin-
son/Nova York, Basic Books, 1976)
PCST Profiles and Critiques in Social Theory (Londres, Mac-
millan/Berkeley, University of California Press, 1982)
SSPT Studies in Social and Political Theory (Londres, Hut-
chinson/Nova York, Basic Books, 1977)

Todos de autoria de Anthony Giddens

Introdufiio

o pano de fundo deste livro deve ser encontrado numa

serie de significativos desenvolvimentos ocorridos nas cien-
cias sociais ao longo dos ultimos quinze anos. Eles concentra-
ram-se, em parte substancial, na teoria social e relacionam-se
especialmente com a mais denegrida e mais provocadora das
ciencias sociais: a sociologia. Por sua propria natureza, a so-
ciologia e propensa apolemica. Entretanto, durante urn perio-
do consideravel apos a Segunda Guerra Mundial, sobretudo
no mundo de lingua inglesa, houve urn amplo consenso a res-
peito de sua natureza e tarefas, bern como as das ciencias so-
ciais como urn todo. E possivel dizer que houve urn terreno
central compartilhado tambem por perspectivas rivais, urn ter-
reno no qual podiam ser travadas batalhas intelectuais. Nesse
lapso de tempo, a sociologia foi urna area de crescimento aca-
demico, urn t6pico com reputa~ao crescente, apesar de se con-
servar notoriamente impopular em muitos circulos. No plano
intemacional, era dominada pela sociologia norte-americana,
e na teoria social a influencia de Talcott Parsons foi acentua-
da'*. 0 prestigio desfrutado pelas ideias de Parsons pode ser
retrospectivamente exagerado - muitos consideravam desinte-
ressante seu gosto pela abstra9iio e pela obscuridade, e ele teve
contra si urn razoavel contingente de criticos e detratores.
Entretanto, The Structure ofSocial Action, cuja primeira edi-
9iiO data do final da decada de 1930, mas so se tomou ampla-
mente conhecida no periodo do pos-guerra, foi em mais de urn

* As referencias podem ser encontradas a pp. XLI-XLII.

 I
XIV A CONSTITUly40 DA SOCIEDADE INTRODUr;10 XV

aspecto uma obra fundamental para a forma,ao da sociologia Entretanto, mesmo nos limites dos debates que derivam
moderna. Nela, Parsons estabeleceu uma linbagem sistemati- diretamente dos escritos de Parsons, algumas das mais destaca-
ca para a teoria social, baseada numa interpreta,ao do pensa- das contribui,oes foram europeias. 0 marxismo tern sido hit
mento europeu do seculo XIX e come,os do atual. As obras de muito tempo urna influencia bern mais importante na cultura
Durkheim, Max Weber e Pareto preponderavam, mas Marx de- intelectual europeia do que na norte-americana, e alguns dos
sempenbava um papel deveras secundario. Os escritos da ge- mais argutos criticos de Parsons inspiraram-se tanto em Marx
ra,ao de 1890-1920 tinbam supostamente superado Marx em quanto em leituras de Weber, bern diferentes daque1as que Par-
todos os aspectos importantes, filtrando 0 que era valioso e sons fizera. Dahrendorf, Lockwood, Rex e outros, de visoes
descartando 0 refugo. semelhantes, consideraram 0 conteudo teorico da obra de Par-
o livro tambem estabeleceu urn enfoque da teoria social sons muito mais seriamente do que seus criticos radicais norte-
de um tipo muito defmido, combinando uma versao refinada americanos (C. Wright Mills e, depois, Gouldner). 0 primeiro
de funcionalismo e uma concep,ao naturalista de sociologia. grupo considerou as contribui,oes de Parsons de grande im-
Os escritos subseqiientes de Parsons desenvolveram essas ideias portfmcia, mas unilaterais, por desprezarem fenomenos que ele
com considerave1 minucia, enfatizando que, embora a a9iio hu- reputava primordiais em Marx: divisao, conflito e poder de
mana tenba atributos muito especiais e distintivos, a ciencia classes. Seus membros nao eram marxistas, mas admitiam a
social compartilha, de urn modo geral, a mesma estrutura logi- possibilidade de uma fusao de conceitos de Parsons com outros
ca da ciencia natural. Escrevendo e trabalhando ele proprio de Marx. Embora houvesse muitas inova,oes importantes den-
num contexto americana, a tentativa de Parsons de localizar de tro do marxismo durante esse periodo - como 0 ressurgimento
forma precisa as origens de seu pensamento na teoria social do interesse no "jovem Marx", as tentativas de fusao do mar-
europeia serviu realmente para refor,ar a posi,ao dominante xismo com a fenomenologia e, subseqiientemente, do marxis-
da sociologia norte-americana. Pois Durkheim, Weber e Pareto rnO com 0 estruturalismo -, elas nao eram muito conhecidas
foram considerados precursores do desenvolvimento do "siste- por aqueles que se intitulavam "sociologos", inclusive na Eu-
ma de coordenadas da a,ao", que ganbaria sua plena expressao ropa. Os que se consideravam sociologos e marxistas eram pro-
em Parsons e seus colegas. A sociologia pode ter suas princi- pensos a partilhar os pressupostos basicos do funcionalismo e
pais origens teoricas na Europa, mas a elabora,ao ulterior da do naturalismo, 0 que constitui uma das razoes de se ter encon-
materia foi uma tarefa amplamente transferida para 0 outro trado um terreno comum tao ample para debate.
lado do Atlfmtico. Curiosamente, esse resultado foi obtido it As fissuras nesse terreno comum se abriram de modo no-
custa do reconbecimento concomitante da importfmcia das con- tavelmente subito, no final da decada de 1960 e come,o da de
tribui,oes norte-americanas para a teoria social; G. H. Mead 1970, para logo se aprofundarem muito. Nao hit duvida de que
recebeu pouquissima aten,ao em The Structure ofSocial Action, suas origens foram tanto politicas quanto intelectuais. Mas,
como Parsons viria mais tarde a admitir. Ate hoje, porem, exis- quaisquer que tenbam sido, tiveram 0 efeito de dissolver, em
tern compendios de teoria social ou "teoria sociologica" prove- grande parte, todo consenso que tivesse existido antes acerca
mentes dos Estados Unidos, que come,am com os pensadores do modo como a teoria social devia ser abordada. Em seu lugar
europeus classicos, mas depois dao a impressao de que a teoria surgiu uma desconcertante variedade de perspectivas te6ricas
social na Europa estancou subseqiientemente - qualquer novo concorrentes, nenbuma delas capaz de reconquistar plenamen-
progresso nessa area e visto como um assunto puramente norte- te a preeminencia desfrutada antes pelo "consenso ortodoxo",
americana. Tornou-se evidente para os que trabalham em sociologia que,
XVI A CONSTlTUJ<;A-O DA SOCIEDADE INTRODU<;AO XVII

durante todo esse tempo, tinba havido, de fato, menos consen- das em sua rejei,ao da tendimcia do consenso ortodoxo de ver
so sobre a natureza da teoria social do que muitos imaginavam. o comportamento humane como 0 resultado de for,as que os
Algumas tradi,oes de pensamento, como 0 interacionismo atores nao controlam nem compreendem. Ademais (e isso
simb6lico, tinbam gozado sempre de consideravel apoio, sem inclui 0 estruturalismo e 0 "pos-estruturalismo"), elas atribuem
necessidade de tomar de assalto a cidadela do consenso orto- um papel fundamental a linguagem e as faculdades cognitivas
doxo. Outras escolas de pensamento, que se desenvolveram em na explica,ao da vida social. 0 usa da linguagem esta embuti-
grande parte separadamente do corpo principal das ciencias do nas atividades concretas da vida cotidiana e, num certo sen-
sociais, foram levadas a serio pela primeira vez, incluindo a tido, e parcialmente constitutivo dessas atividades. Finalmente,
fenomenologia e a teoria critica dos fil6sofos de Frankfurt. reconbece-se que 0 declinio da importancia das filosofias
Algumas tradi,oes que pareciam agonizantes receberam um empiristas da ciencia natural tem implica,oes profundas tam-
novo impulso. Embora Weber tivesse side influenciado pela bem para as ciencias sociais. Nao se trata apenas do caso de as
tradi,ao hermeneutica e incorporasse a sua obra 0 principal ciencias social e natural estarem muito mais distantes uma da
conceito por ela postulado, 0 de verstehen, a maioria dos pen- outra do que imaginavam os defensores do consenso ortodoxo.
sadores ligados a sociologia certamente nao consideraria a Vemos agora que uma filosofia da ciencia natural deve levar
"henneneutica" como parte de seu lexico. Mas, parcialmente em conta justamente aqueles fenomenos em que as novas esco-
em conjunto com a fenomenologia, as tradi,oes interpretativas las de teoria social estao interessadas - em especial, a lingua-
no pensamento social voltaram de novo ao primeiro plano. gem e a interpreta,ao de significado.
Finalmente, outros estilos de pensamento, como a filosofia da Ecom esses tres conjuntos basicos de questoes, e suas co-
linguagem, foram adotados e inseridos de varias maneiras na nexoes mutuas, que se ocupa a teoria da estrutura,ao, tal como
teoria social. a exponbo no presente livro. "Estrutura,ao" e, na melhor das
Com esses desenvolvimentos, 0 centro de gravidade no hipoteses, um termo detestavel, embora seja menos deselegan-
tocante as contribui,oes inovadoras para a teoria social voltou te no contexte galico donde provem. Nao fui capaz de pensar
a deslocar-se para a Europa*' Tornou-se obvio que uma impor- numa palavra mais cativante para as ideias que desejo transmi-
tante parcela do trabalho teorico mais interessante estava sendo tiro Ao elaborar os conceitos da teoria da estrutura,ao, nao pre-
ai desenvolvida - e em sua maioria em outras linguas que nao 0 tendo apresentar uma ortodoxia potencialmente nova para
ingles. A teoria social europeia estava, e esta, nao s6 viva, mas substituir a antiga. Mas a teoria da estrutura,iio e sensivel as
pulsando com grande vigor. Equal e 0 resultado desses movi- deficiencias do consenso ortodoxo e a significa,ao dos desen-
mentos? Pois a perda do terreno central antes ocupado pelo volvimentos convergentes acima citados.
consenso ortodoxo deixou aparentemente a teoria social numa No caso de haver qualquer duvida acerca da terminologia
irremediavel desordem. Nao obstante a balbtirdia criada por aqui usada, permito-me sublinbar que emprego a expressao
vozes te6ricas rivais, e passivel discernir em meio a ela certos "teoria social" para abranger questoes que sustento serem do
temas comuns. Um deles liga-se ao fato de a maioria das esco- interesse de todas as ciencias sociais. Essas questi5es relacio-
las de pensamento em questiio - com notaveis exce,oes, como nam-se com a natureza da a,ao humana e do self atuante; com
o estruturalismo e 0 "pos-estruturalismo" - enfatizar 0 carater o modo como a intera,ao deve ser conceituada e sua rela,ao
ativo, reflexivo, da conduta humana. Quer dizer, elas estao uni- com as institui~5es; e com a apreensao das conota90es pniticas
da analise social. Em contrapartida, entendo que a "sociologia"
• Vernota app. XLI-XLII. nao e uma disciplina generica que se ocupa do estudo das so-
XVIII A CONSTITUl(:A'O DA SOCIEDADE
r
I INTRODU(:AO XIX

social digna de credito. Pelo contrano, 0 prosseguimento da

ciedades humanas como um todo, mas aquele ramo da ciencia pesquisa social pode, em principio, tanto projetar luz sobre
social que concentra seu foco particularmente sobre as socie- controversias filos6ficas quanto fazer justamente 0 inverso.
dades modemas ou "avan,adas". Tal caracteriza,ao disciplinar Em particular, pense ser errado inclinar a teoria social de um
subentende uma divisao intelectual de trabalho, nada mais do modo excessivamente inequivoco para 0 lado das questoes abs-
que isso. Conquanto existam teoremas e conceitos que perten- tratas e altamente generalizadas de epistemologia, como se qual-
cern distintamente ao mundo industrializado, nao ha como algo quer desenvolvimento significativo em ciencia social tivesse
chamado de "teoria sociologica" possa distinguir-se com clare- que aguardar uma solu,ao efetiva daquelas.
za dos conceitos e preocupa,oes mais gerais da teoria social. Sao necessanas algumas considera~oes sabre a "teoria"
Em outras palavras, a "teoria sociologica" pode, se assim se em teoria social. Existem certos sentidos freqiientemente atri-
quiser, ser considerada, mais genericamente, wn ramo da teoria buidos a "teoria" nas ciencias sociais dos quais pretendo man-
social, sem manter contudo uma identidade totalmente separa- ter uma consideravel distancia. Ha uma concep,ao que gozava
da. Este livro esUi escrito com uma nitida inclinayao sociologi- de popularidade entre alguns dos participes do consenso orto-
ca, no sentido de que minha tendencia 6 concentrar-me em ma- doxo, embora ja nao seja tao amplamente sustentada hoje em
terial especialmente relevante para as sociedades modemas. dia. Trata-se da id6ia - infJuenciada por certas versoes da filo-
Mas, como uma introdu,ao a teoria da estrutura,ao, ele tam, sofia 16gico-empirista da ciencia natural - de que a Unica for-
bern se propoe ser, em substancial grau, uma formula,ao das ma de "teoria" digna desse nome 6 aquela exprimivel como um
tarefas da teoria social em geral e, no mesmo sentido, 6 "teo- conjunto de leis ou generaliza,oes dedutivamente relaciona-
ria". Quer dizer, 0 foco incide sobre a compreensao da "agen- das. Esse tipo de no,ao acabou sendo de aplica,ao muito limi-
cia" humana e das institui90eS sociais. tada, mesmo no ambito das ciencias naturais. Se 6 que pode ser
"Teona social" DaD e uma expressao que tenha alguma realmente sustentada, sera apenas no que diz respeito a certas
precisao, mas, apesar de tudo, 6 muito util. Tal como a repre- areas da ciencia natural. Quem desejar aplica-Ia a ciencia
sento, a "teoria social" envolve a anillise de questoes que reper- social deve reconhecer que (por enquanto) nao existe teoria
cutem na filosofia, mas nao 6 primordialmente um esfor,o nenhuma; sua constru,ao 6 uma aspira,ao adiada para urn fu-
filos6fico. As ciencias sociais estarao perdidas se nao forem turo remoto, um objetivo a ser perseguido antes de constituir
diretamente relacionadas com problemas filos6ficos por aque- parte concretadas buscas atuais das ciencias sociais.
les que as praticam. Pedir aos cientistas sociais que estejam Embora essa ideia tenha alguns adeptos mesmo hoje, esta
atentos para as questoes filosoficas nao e 0 mesmo que lan,ar muitissimo distante de qualquer coisa a que, em meu entender,
a ciencia social nos bra,os daqueles que poderiam pretender ser a teoria social poderia ou deveria aspirar - por razoes que se
ela inerentemente mais especulativa do que empirica. A teoria apresentarao com bastante clareza no corpo do presente livro.
social tern a tarefa de fomecer concep,oes da natureza da ativi- Mas existe uma versao mais fraca dessa ideia que ainda exerce
dade social humana e do agente humane que possam ser colo- inegavel infJuencia sobre urn grande contingente de seguidores
cadas a servi,o do trabalho empirico. A principal preocupa,ao e que pede uma discussao urn pOlleD mais extensa, meSilla oes-
da teoria social e identica as das ciencias sociais em geral; a te contexto introdutorio. Trata-se da ideia de que a "teoria" em
elucida,ao de processos concretos da vida social. Sustentar teoria social deve consistir essencialmente em generaliza,oes
que os debates filos6ficos podem contribuir para essa empresa para possuir urn conteUdo explanat6rio. De acordo com tal
nao significa supor que tais debates necessitam ser resolvidos ponto de vista, muito do que passa por ser "teoria social" con-
de modo concludente antes que se possa iniciar uma pesquisa
 r
I

xx A CONSTITUII:;AO DA SOCIEDADE INTRODU9AO XXI

siste mais em esquemas conceptuais do que (como deveria ser) apenas pela generaliza,ao nesse segundo sentido - na verdade,
em "proposi,oes expIanat6rias" de urn tipo generalizante. e isso 0 que se pretende dizer quando se afirma que a "teoria"
Dois problemas tern de ser aqui separados. Urn diz respei- em teoria social deve compreender generaliza,oes explanat6-
to it natureza da explica,ao nas ciencias sociais. Considerarei rias. Mas 0 primeiro sentido e tao fundamental para a ciencia
ponto pacifico que a explica,ao e contextual, 0 esclarecimento social quanto 0 segundo, e cada forma de generaliza,ao e va-
de indaga,oes. Ora, poder-se-ia sustentar que as Unicas inda- riavel com rela,ao it outra. As circunstilncias em que as genera-
ga,oes competentes na ciencia social sao as de urn tipo muito liza,oes sobre 0 que "acontece" aos agentes prevalecem sao
generico, as quais, portanto, s6 podem ser respondidas por re- mutaveis no tocante ao que eles podem aprender a "fazer acon-
ferencia a generaliza,oes abstratas. Mas tal ideia tern pouco tecer" de modo inteligente. Disso deriva 0 (logicamente aber-
que a recomende, urna vez que nao ajuda a aclarar a importan- to) impacto transformativo que as ciencias sociais podem ter
cia explicativa de muito do que os cientistas sociais (ou, a res- sobre 0 seu "objeto de estudo". Mas dai tambem decoITe 0 fato
peito disso, os cientistas naturais tambem) fazem. A maioria de que a descoberta de "leis" - isto e, de generaliza,oes do se-
das perguntas "por que?" nao necessitam de urna generaliza,ao gundo tipo - e apenas urna preocupa,ao entre outras que sao
para serem respondidas, nem as respostas implicam logica- igualmente importantes para 0 conteudo te6rico da ciencia
mente que deva existir alguma generaliza,ao ao aleance das social. Entre essas outras preocupa,oes destaca-se 0 forneci-
vistas, que poden; ser invocada para servir de suporte a elas. mento de meios conceptuais para analisar 0 que os atores sa-
Tais observa,oes tornaram-se lugar-comurn na literatura filo- bern acerca das razoes por que atuam como atuam, especial-
sMica, e nao tentarei alongar-me sobre elas. Muito mais con- mente quando ou ignoram (discursivamente) que as conbecem
troversa e urna segunda proposi,ao que defendo e desenvolvo ou, em outros contextos, carecem de tal conbecimento. Essas
neste livro: a de que a descoberta de generaliza,oes nao e a tarefas revestem-se de urn carater primordialmente hermeneuti-
totalidade nem a finalidade suprema da teoria social. Se os pro- co, mas constituem parle inerente e necessaria da teoria social.
ponentes da "teoria como generaliza,ao explanat6ria" confina- A "teoria" envolvida na "teona social" nao consiste apenas, nem
ram estreitamente demais a natureza da "explica,ao", eles agra- mesmo primordialmente, na formula,ao de generaliza,oes (do
varam ainda mais 0 eITO quando deixaram de efetuar uma in- segundo tipo). Tampouco os conceitos desenvolvidos sob a
vestiga,ao suficientemente acurada do que e, e deve ser, a ge- rubrica "teoria social" sao constituidos somente por aqueles
neraliza,ao em ciencia social. que podem ser inseridos em tais generaliza,oes. Muito pelo
As generaliza,oes tendem para dois pOlos, com urna esca- contrano, esses conceitos devem ser relacionados com Qutros
la e variedade de possiveis tonalidades entre eles. Algumas referentes it cognoscitividade dos agentes, aos quais estao ine-
sustentam-se porque os pr6prios atores as conbecem - sob al- vitavelmente vinculados.
gurna forma - e as aplicam em seu desempenbo. 0 observador A maioria das controversias estimuladas pela chamada
cientista social nao tern, de fato, de "descobrir" essas generali- "conversao lingiiistica" (linguistic turn) em teoria social e pelo
za,oes, embora possa dar-Ihes urna nova forma discursiva. Ou- surgimento de filosofias da ciencia p6s-empiristas tern sido de
tras generaliza,oes referem-se a circunstilncias, ou aspectos de carater fortemente epistemol6gico. Por outras palavras, inte-
circunstilncias, as quais sao ignoradas pelos agentes e que ressam-se de forma predominante por questOes de relativismo,
"atuam" efetivamente sobre estes, independentemente do que os problemas de verifica,ao e falsifica,ao etc. Por mais significa-
agentes possam acreditar que tern pela trente. Aqueles a que tivas que elas possam ser, a concentra,ao nas questOes episte-
chamarei de "soci610gos estruturais" tendem a interessar-se mol6gicas desvia a aten,ao dos interesses mais "ontoI6gicos"
 -,-

XXII A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE

INTRODUi;:JO XXIII
da teoria social, e e primordialmente nestes que a teoria da es-
trutura,ao se concentra. Em vez de se preocuparem com dispu- duta social sao cronicamente reproduzidas atraves do tempo e
tas epistemologicas e com a questao de saber se qualquer coisa do espa,o. A estrutura,ao de institui,ces pode ser entendida
como "epistemologia", em sua acep,ao consagrada pelo tem- em fun,ao de como acontece de as atividades sociais se "alon-
po, pode ou nao ser realmente formulada, sugiro itqueles que garem" atraves de grandes extensces de espa,o-tempo. In-
trabalham em teoria social que se empenhem, em primeiro Ju- corporar 0 espa,o-tempo no iimago da teoria social significa
gar e acima de tudo, na reeJabora,ao de concep,ces de ser hu- repensar algumas das divisces disciplinares que separam a
mano e de fazer humano, reprodu,ao social e transforma,ao sociologia da historia e da geografia. 0 conceito e analise de
social. De primordial importitncia a esse respeito e urn dualis- historia e particularmente problemitico. Na verdade, este li-
mo que estit profundamente estabelecido na teoria social, urna vro poderia ser corretamente descrito como uma extensa refle-
divisao entre objetivismo e subjetivismo. 0 objetivismo era urn xao sobre urna celebre e frequentemente citada frase que se
terceiro -ismo caracterizando 0 consenso ortodoxo, em conjun- encontra em Marx. Comenta Marx que "os homens [permi-
to com 0 naturalismo e 0 funcionalismo. A despeito da termi- tam-nos dizer imediatamente: os seres hurnanos] fazem sua
nologia de Parsons do "quadro de referencia da a,ao", nao ha propria historia, mas niio a fazem como querem; nao a fazem
duvida de que em seu esquema teorico 0 objeto (sociedade) sob circunstancias de sua escolha..."*. Bern, assim acontece.
predomina sobre 0 sujeito (0 agente humano cognoscitivo). Mas que diversidade de problemas complexos de analise so-
Outros, cujas iMias poderiam ser associadas a esse consenso, cial acaba sendo desvendada por esse pronunciamento aparen-
foram muito menos sofisticados a esse respeito do que Par- temente inocuo!
sons. Ao atacarem 0 objetivismo - e a sociologia estrutural _,
aqueles influenciados pela hermeneutica ou pela fenomenolo- * A frase encontra-se nos panigrafos iniciais de a 18 Brumario de Luis
gia puderam por a nu importantes deficiencias desses pontos Bonaparte. Foi escrita Duma veia polemica; aqueles que sao ignorantes de
de vista. Mas, por sua vez, inclinaram-se nitidamente para 0 hist6ria, diz Marx, podem ser condenados a repeti-Ia, talvez ate em tomjoco-
subjetivismo. 0 divisor conceptual entre sujeito e objeto social so. A cita9ao exata no original ea seguinte: "Die Menschen machen ihre eige-
permanecia tao profundo como sempre. ne Geschichte, aber sie machen sie nieht aus freien Stlicken, nieht unter
selbstgewahlten, sondem unter unmittelbar vorgefundenen, gegebenen und
A teoria da estrutura,ao baseia-se na premissa de que esse uberlieferten Umstanden. Die Tradition aller toten Geschlechter lastet wie ein
dualismo tern de ser reconceituado como dualidade - a duali- Alp auf dem Gehime der Lebenden. Und wenn sie eben damit bescha.ftigt
dade da estrutura. Embora recouhecendo 0 significado da "con- scheinen, sich und die Dinge urnzuwiilzen, noch nicht Dagewesenes zu schaf-
versao lingiiistica", nao se trata de uma versao de hermeneutica fen, gerade in solchen Epochen revolutioniirer Krise beschworen sie angstlich
ou de socioJogia interpretativa. Embora admitindo que a socie- die Geister der Vergangenheit zu ihrem Dienste herauf, entlehnen ihnen
Namen, Schlachtparole, Kostiim, urn in dieser alterhrwiirdigen Verkleidung
dade nao e cria,ao de sujeitos individuais, esm distante de qual-
und mit dieser erburgten Sprache die neue Weltgeschichtsszene aufzufiihren"
quer concep,ao de sociologia estrutural. A tentativa de formu- (Marx e Engels. Werke. Berlim, Dietz Verlag 1960, vol. 8, p. 115). ["Os ho-
lar urna descri,ao coerente da atividade hurnana e da estrutura mens fazem sua propria historia, mas nao a fazern como querem; nao a fazem
exige, porem, urn considenlvel esfor,o conceptual. Vma expo- sob circunstancias de sua escoIha, senao sob aquelas com que se defrontam di-
si,1[o dessas ideias e oferecida no capitulo de abertura, para ser retamente, apresentadas e transmitidas pelo passado. A tradicao de todas as
mais desenvolvida ao longo do livro. Conduz diretamente a geracoes mortas aflige como urn pesadelo 0 cerebro dos vivos. Ee precisamente
quando parecem ocupados em revolucionar-se a si mesmos e as coisas, em criar
outros temas principais, em especial 0 que envolve 0 estudo de algo que nunea existiu, justamente nessas etJocas de crise revoluciomiria, os ho-
rela,ces de tempo e espa,o. As propriedades estruturais dos mens chamam angustiadamente em seu socorro os espiritos do passado, apos-
sistemas sociais so existem na medida em que formas de con- sando-se dos sens nomes, gritos de guerra e trajes, a tim de se apresentarern
nessa linguagern ernprestada nanova cena da hist6ria universal."] (N. do T.)
 XXIV A CONSTITUU;:AO DA SOCIEDADE INTRODUr;:AO XXV

Ao formular esta descri9ao da teoria da estrutura9ao, nao dos principais conceitos envolvidos na teoria da estrutura9ao,
tive a menor relutancia em apoiar-me em ideias oriundas de dou inicio, no segundo capitulo, it parte mais substantiva do
fontes completamente divergentes. [sse podera parecer a al- volume com uma discussao sabre a consciencia, 0 inconsciente
guns urn ecletismo inaceitavel, mas eu nunca consegui temer e a constitui9ao da vida cotidiana. Os agentes ou atores hurna-
esse tipo de obje9ao. Existe urn inegavel conforto em trabalhar nos - uso indistintamente urn e Dutro termo - tern, como aspec-
dentro de tradi90es estabelecidas de pensamento - sobretudo, to inerente do que fazem, a capacidade para entender 0 que fa-
talvez, em face da grande diversidade de abordagens com que zem enquanto 0 fazem. As capacidades re£lexivas do ator hu-
se defronta correntemente quem esta fora de urna tradi9ao qual- mana estao caracteristicamente envolvidas, de urn modo conti-
quer. 0 conforto de pontos de vista estabelecidos pode, entre- nuo, no £luxo da conduta cotidiana, nos contextos da atividade
tanto, servir faci/mente de cobertura para a pregui9a intelec- social. Mas a re£lexividade opera apenas parcialmente num
tual. Se as ideias sao importantes e esclarecedoras, muito mais nivel discursivo. 0 que os agentes sabem acerca do que fazem
importantes do que sua origem e estar capacitado para delinea- e de por que 0 fazem - sua cognoscitividade como agentes -
las de modo a demonstrar a utilidade delas, mesmo nurn qua- esta largamente contido na consciencia pratica. Esta consiste
dro de referencia que podera ser inteiramente diferente daquele em todas as coisas que os atores conhecem tacitamente sobre
que ajudou a engendra-las. Assim, por exemplo, admito a exi- como "continuar" nos contextos da vida social sem serem ca-
gencia de que 0 sujeito seja descentrado e considero isso bisi- pazes de lhes dar urna expressao discursiva direta. 0 significa-
co para a teoria da estrutura9ao. Mas nao aceito que isso impli- do de consciencia pratica e urn dos temas principais do livro, e
que a evapora9ao da subjetividade nurn universo vazio de si- curnpre distingui-la da consciencia (discursiva) e do incons-
nais. Pelo contnmo, consideramos que as pniticas sociais, ao ciente. Embora aceitando a importiincia de aspectos inconscien-
penetrarem no espa90 e no tempo, estiio na raiz da constitui9ao tes da cogni9ao e da motiva9ao, nao penso que possamos estar
do sujeito e do objeto social. Admito 0 significado central da satisfeitos com algumas das ideias mais convencionalmente
"conversao linguistica" introduzida especialmente pela feno- estabelecidas a esse respeito. Adoto uma versao modi(icada da
menologia hermeneutica e pela filosofia da linguagem ordina- psicologia do ego, mas empenho-me em relaciona-Ia direta-
ria. Ao mesmo tempo, porem, sustento que essa expressao e, mente com 0 que, sugiro eu, e urn conceito fundamental da teo-
em certa medida, enganadora. Os mais importantes desenvol- ria da estrutura9ao - 0 conceito de rotiniza,Go.
vimentos no tocante it teoria social nao estao Jigados a urna A rotina (tudo 0 que e feito habituaJmente) constitui urn
conversao em dire9ao it linguagem quanta a urna visao alterada elemento bisico da atividade social cotidiana. Uso a expressao
da interse9ao entre dizer (ou significar) e fazer, oferecendo "atividade social cotidiana" num sentido muito literal, nao na-
urna nova concep9ao de praxis. A transmuta9ao radical da her- quele mais complexo e, em meu entender, mais ambiguo, que
meneutica e da fenomenologia iniciada por Heidegger, e as se tomou fami,1iar atraves da fenomenologia. 0 termo "cotidia-
inova90es do Wittgenstein do ultimo periodo constituem os dois no" condensa exatamente 0 cariler rotinizado que a vida social
principais marcos de urn novo caminho. Mas avan9ar nesse adquire it medida que se estende no tempo e no espa90. A natu-
caminho significa precisamente recha9ar qualquer tenta9ao reza repetitiva de atividades empreendidas de maneira identica
para tomar-se urn discipulo de corpo e alma de urn ou outro dia apos dia e a base material do que eu chamo de "cariler
desses pensadores. recursivo" da vida social (nome que, segundo entendo, designa
Permitam-me oferecer agora urn resurno da organiza9ao a recria9ao constante das propriedades estruturadas da ativida-
deste livro. Tendo apresentado no primeiro capitulo urn esb090 de social - via dualidade de estrutura - a partir dos proprios
 XXVIII A CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE INTRODU9AO XXIX
vidade decorrentes de propriedades fisicas do corpo e dos am- "macroestruturais". 0 chamado estudo "microssocio16gico"
bientes em que os agentes se movimentam. A referencia a esses nao se ocupa de uma realidade que e, de certa maneira, mais
fatores e apenas urn dos aspectos em que a sociologia pode substancial do que aquela que interessa a analise "macrosso-
obter proveito dos escritos de geografos. Urn outro e a interpre- ciologica". Mas tampouco, pelo contrario, a intera,ao em
ta,ao do urbanismo, 0 qual, argumento eu, tern urn papel bisi- situa,oes de co-presen,a e simplesmente eremera, em contras-
co a desempenbar na teoria social; e, e claro, urna sensibilidade te com a solidez de institui,oes em grande escala ou estabeleci-
geral a espa,o e lugar e de impOitincia ainda maior. das de longa data. Cada ponto de vista tern seus proponentes,
Goffinan da considecivel importfulcia a regionaliza,ao de mas eu vej 0 essa divisao de opiniao como vazia, e como uma
encontros, e, para mim, a no,ao de regionaliza,ao e urna das versao ligeiramente mais concreta do dualismo em teoria
mais significativas para a teoria social. Ela foi sempre urna social ja mencionado. A oposiyao entre "micro" e "macro" e
preocupa,ao principal dos escritos de geografos, mas desejo melhor reconceituada no que se refere ao modo como a intera-
encara-la como urn conceito nao tao puramente espacial como ,ao em contextos de co-presen,a esta estruturalmente implica-
eles habitualmente a veem. A natureza localizada da intera,ao da em sistemas de ampla distancia,ao de tempo-espa,o - por
social pode ser utilmente examinada em rela,ao com os dife- outras palavras, ao modo como tais sistemas abrangem grandes
rentes locais atraves dos quais as atividades cotidianas dos setores espa,o-temporais. E isso, por sua vez, e melhor investi-
individuos sao coordenadas. Os locais nao sao apenas lugares, gada como urn problema da conexao entre a integra,ao social e
mas cenarios de intera,ao; conforme Garfinkel demonstrou, a integra,ao de sistema, tal como defino esses termos. Mas urn
de modo particularmente persuasivo, os cenarios sao usados corolario vital tern de ser adicionado a isso. A rela,ao entre
cronicamente - e, em grande parte, de maneira tacita - por ato- integra,ao social e integra,ao de sistema nao pode ser apreen-
res sociais para confirmar 0 significado em atos comunicati- dida num nivel puramente abstrato; a teoria do urbanismo e-lhe
vos. Mas os cenanos tamb"m sao regionalizados de forma que essencial, pois so com 0 advento das cidades - e, em tempos
influenciam substancialmente 0 carater serial dos encontros e modernos, com 0 urbanismo do "ambiente criado" - torna-se
sao influenciados por este. A "fixidez" de tempo-espa,o tam- possivel urn desenvolvimento significativo da integra,ao de
bern significa normalmente fixidez social; 0 carater substan- sistema.
cialmente "dado" dos milieux fisicos da vida cotidiana entrela- Eprecise realmente ter muito cuidado com 0 conceito de
,a-se com a rotina e e profundamente influente nos contornos "sistema social" e a no,ao associada de "sociedade". Eles soam
da reprodu,ao institucional. A regionaliza,ao tamb"m tern for- inocentes e sao provavelmente indispensaveis se usados com
te ressonancia psicologica e social no que diz respeito ao medidas adequadas de cautela. "Sociedade" tern urn util signi-
"ocultamento" a visao de alguns tipos de atividades e de pes- ficado duplo, no qual me ap6io - descrevendo urn sistema li-
soas, e a"revelayao" de outros. Encontramos aqui de novo urn mitado e a associa,ao social em geral. A enfase sobre a regio-
importante ponto de conexao entre ideias aparentemente dispa- naliza,ao ajuda a lembrar que 0 grau de "sistemidade" em sis-
res: as de Goffinan e as de Foucault. Ambos atribuem grande temas sociais efiuito variavel e que as "sociedades" raramente
importancia as linbas social e historicamente flutuantes entre tern fronteiras facilmente especificaveis - ate, pelo menos, in-
ocultamento e revela,ao, confinamento e exposi,ao. gressarmos no mundo modemo das na,oes-Estados. 0 funcio-
Penso ser urn engano considerar os encontros em circuns- nalismo e 0 naturalismo tendem a encorajar a aceita,ao irrefle-
tancias de co-presen,a como sendo, de algum modo, a base tida das sociedades como entidades claramente delimitadas e
sobre a qual se constroem propriedades sociais maiores ou dos sistemas sociais como unidades dotadas de elevada inte-
xxx A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE
-r INTRODU!;:A-O
XXXI

podem ser destacadas na hist6ria humana: culturas tribais, so-

gra,ao interna. Pois tais perspectivas, mesmo quando rejeita- ciedades divididas em classes e na,oes-Estados modemas as-
das as metaforas orgiinicas diretas, tendem a ser intimas aliadas sociadas a ascensao do capitalismo industrial.
de conceitos biol6gicos; e estes tern sido geralmente formula- A men,ao de hist6ria relembra a senten,a de que os seres
dos com referencia a entidades claramente derivadas do mundo humanos fazem a Hist6ria. 0 que e exatamente isso que des
que as circunda e dotadas de evidente unidade interna. Mas, fazem - 0 que significa "hist6ria" neste caso? A resposta nao
com muita freqiiencia, as "sociedades" nao sao nada disso. Para pode ser expressa numa forma tao convincente quanto a maxi-
ajudar a explicar isso, proponho as expressoes "sistemas inter- ma original. Existe, e claro, uma diferen,a entre Hist6ria como
sociais" e "extremidades do tempo-espayo", em referencia a eventos que transcorrem e hist6ria como registro escrito des-
diferentes aspectos de regionaliza,ao que atravessam sistemas ses eventos. Mas isso nao nos leva muito longe. Hist6ria, no
sociais reconhecivelmente distintos como sociedades. Uso primeiro sentido, e temporalidade, eventos em sua dura,ao.
essas no,oes extensamente tambem na avalia,ao de interpreta- Somos propensos a associar a temporalidade a uma seqiiencia
,oes de mudan,a social, no capitulo 5. linear, e assim, a Hist6ria, pensada dessa maneira, e associada
Ao formular a teoria da estrutura,ao, desejo furtar-me ao a movimento numa dire,ao discemivel. Mas isso pode muito
dualismo associado com 0 objetivismo e 0 subjetivismo. Mas bem ser uma forma culturalmente criada de pensar 0 tempo;
alguns criticos ponderaram que nao e dado suficiente peso a mesmo que nao seja, temos ainda assim de evitar a equa,ao de
fatores enfatizados pelo primeiro desses conceitos, sobretudo a "hist6ria" com mudan,a social. Por essa razao vale a pena falar
respeito dos aspectos coercitivos das propriedades estruturais de "historicidade" como um sentido definido de vida num
de sistemas sociais. Para mostrar que nao e esse 0 caso, indico mundo social constantemente exposto a mudan,a, no qual a
com algum detalhe 0 significado atribuivel a "coer,ao" em maxima de Marx e parte de uma consciencia cultural geral, nao
teoria social e como os varios sentidos que podem ser dados ao um teorema peculiar a pensadores sociais especialistas. A his-
termo sao entendidos na teoria da estrutura,ao. 0 reconheci- t6ria como registro escrito da Hist6ria tambem apresenta seus
mento da natureza e importiincia da coer,ao estrutural nao im- pr6prios dilemas e enigmas. Tudo 0 que terei a dizer a respeito
plica sucumbir as atra,oes da sociologia estrutural, mas tam- deles e que nao se caracterizam pela precisao; nao nos permi-
pouco aceito, como procurei deixar claro, um ponto de vista tern efetuar distin,oes claras, bern definidas, entre hist6ria e
pr6ximo do individualismo metodol6gico. Na conceitua,ao da ciencia social. Problemas hermeneuticos envolvidos na descri-
teoria da estrutura,ao, "estrutura" significa algo diferente de ,ao exata de formas divergentes de vida, a interpreta9i!o de tex-
seu uso habitual nas ciencias sociais. Apresento tambem um tos, a explica,ao de a,ao, institui,oes e transforma,ao social -
conjunto de outros conceitos que gravitam em tomo do de tudo isso e compartilhado por todas as ciencias sociais, incluin-
estrutura, e esfor,o-me por mostrar por que sao necessanos. 0 do a hist6ria.
mais importante deles e a ideia de "principios estruturais", que Como deveremos, pois, abordar 0 estudo da mudan,a so-
sao caracteristicas estruturais de sociedades globais ou totali- cial? Procuro mostrar que a busca de uma teoria de mudan,a
dades sociais; tambem procuro mostrar que e atraves da no,ao social (quando "teoria" significa, neste caso, a explica,ao da
de principios estruturais que 0 conceito de contradi,ao pode mudan,a social por referencia a um s6 conjunto de mecanis-
ser especificado, de maneira mais proveitosa, como pertinente mos, como os velhos favoritos evolucionistas de adapta,ao e
it analise social. Essas n090es, uma vez mais, nao podem ser sele,ao diferencial) e uma tarefa condenada. Esta contaminada
expressas de forma puramente abstrata, de modo que as exami- pela mesma especie de deficiencias 16gicas que se associam
no com referencia a tres importantes tipos de sociedade que
XXXII A CONSTITU1(:AO DA SOCIEDADE INTRODU<;AO
XXXIIl

mais geralmente a suposi9ao de que as ciencias sociais podem de "episodio" e 0 de "tempo mundial" (0 primeiro e devido a
descobrir leis universais de conduta humana. As especies de Gellner, 0 segundo a Eberhard). Toda a vida social pode ser re-
entendimento ou conhecimento que os seres humanos tern de presentada como uma serie de episodios; os encontros em cir-
sua propria "historia" sao, em parte, constitutivas do que essa cunstancias de co-presen9a tern certamente uma forma epis6-
hist6ria e e das influencias que atuam para muda-Ia. Contudo, e dica. Mas, neste contexto, refiro-me principalmente a proces-
importante dar especial aten9ao critica ao evolucionismo por- sos de mudan9as em grande escala, nos quais existe algum tipo
que, em uma versao OU Dutra, foi muito influente nUIna varie- de reorganiza9ao institucional, como a forma9ao de cidades
dade de areas da ciencia social. Entendo por "evolucioni-Bmo", em sociedades agranas ou ados primeiros Estados. as epis6-
quando aplicado as ciencias sociais, a explica9ao da mudan9a dios podem certamente ser proveitosamente comparados entre
social em termos de esquemas que envolvem as seguintes ca- si, mas sem se abstrair por completo 0 contexto de suas ori-
racteristicas: uma serie irreversivel de estlidios atraves dos quais gens. A influencia do tempo mundial e importante precisamen-
as sociedades se modificam progressivamente, ainda que nao te para se apurar ate que ponto os epis6dios sao, de fato, com-
se sustente que cada sociedade deve passar por todos eles a fim paniveis. 0 "tempo mundial" diz respeito as conjunturas varia-
de atingir os superiores; uma certa liga9ao conceptual com as veis na Hist6ria que podem afetar as condi90es e os desfechos
teorias biol6gicas da evolu9aO; e a especifica9ao de direciona- de episodios aparentemente similares e a influimcia do que os
lidade ao longo dos estactios indicados, quanta a urn dado crite- agentes envolvidos sabem sobre tais condi90es e desfechos. Pro-
rio ou a criterios, como crescente complexidade ou expansao curo indicar 0 valor analitico dessas n090es, usando como ilus-
das for9as de produ9ao. Vma serie de obje90es pode ser apre- tra9ao teorias de forma9ao do Estado.
sentada contra essas ideias, tanto a respeito de seus demeritos A teoria da estrutura9ao nao sera de muito valor se nao
intrinsecos quanta em termos de implica90es secundanas que ajudar a esclarecer problemas de pesquisa empirica, e no capi-
o evolucionismo quase inevitavelmente tende a trazer em sua tulo final abordo essa questao, que sustento ser inseparavel das
esteira, embora nao sejam logicamente ocasionadas por ele. a implica90es da teoria da estrutura9ao como uma forma de criti-
"materialismo historico", penso eu, e uma versao do evolucio- ca. Nao tento empunhar um bisturi metodologico, isto e, nao
nismo de acordo com esses criterios, em pelo menos uma das acredito que exista qua/quer coisa na 16gica ou na substiincia
muitas maneiras como esse discutido termo tern sido entendi- da teoria da estrutura9ao que proiba de alguma forma 0 uso de
do. Se interpretado desse modo, 0 materialismo hist6rico ma- certas tecnicas especificas de pesquisa, como os metodos de
nifesta mais geralmente muitas das limita90es principais e se- coleta de dados, questionanos etc. Algumas considera90es apre-
cundarias das teorias evolucionistas, e tern de ser rejeitado pe- sentadas sao importantes para 0 modo de aplica9ao de determi-
las mesmas razoes. nadas tecnicas a questoes de pesquisa e para a interpreta9ao de
Como nao penso ser possivel comprimir a "Hist6ria" nos resultados, mas este e um assunto urn tanto diferente. as pon-
tipos de esquemas favorecidos pelo evolucionismo, em geral, tos de liga9ao da teoria da estrutura9ao com a pesquisa empiri-
ou pelo materialismo hist6rico, mais especificamente, falo ca dizem respeito a elabora9ao das implica90es 16gicas do
antes de desconstrui-los do que de reconstrui-Ios. Quero dizer estudo de uma "materia" da qual 0 pesquisador ja e uma parte e
com isso que as descri90es de mudan9a social tern de adotar a elucida9ao de conota90es substantivas das n090es essenciais
uma forma substancialmente diferente do evolucionismo; nao de a9ao e estrutura. Alguns dos pontos que formulei no nivel
M merito algum em tentar meramente remodela-Ias urn pouco. abstrato de teoria aplicam-se diretamente no nivel de pesquisa.
Alem dos conceitos ja apresentados, fa90 uso de dois outros: 0 Vma parte consideravel da teoria social, em especial a associa-
XXXIV A CONSTfTUIr;A-O DA SOCIEDADE INTRODUr;AO XXXV

da a sociologia estrutural, tratou os agentes como muito menos preender os atrativos do funcionalismo a esse respeito, embora
cognoscitivos do que realmente sao. Os resultados disso po- continuando a sustentar que, no plano conceptual, sua influen-
dem ser facilmente discernidos no trabalho empirico, no tocan- cia foi sobremaneira perniciosa. 0 funcio~alismo enfatizou
te ao fracasso em obter informa,ao que permita 0 acesso a total fortemente 0 significado das conseqiiencias impremeditadas
cognoscitividade dos agentes de pelo menos duas maneiras. 0 da a,ao, sobretudo na medida em que estas ocorrem de modo
que os atores estao aptos a dizer acerca das condi,oes de sua regular e estao envolvidas, portanto, na reprodu,ao de aspectos
a,ao e da de outros e sintetizado se os pesquisadores nao reco- institucionalizados de sistemas sociais. Os funcionalistas esti-
nbecerem a possivel importiincia de uma gama de fenomenos veram inteiramente certos em promover essa €mfase. Mas e
discursivos a que eles proprios, como atores sociais, certamen- perfeitamente possivel estudar conseqiiencias impremeditadas
te prestariam aten,ao, mas que sao com freqiiencia simples- sem 0 uso de conceitos funcionalistas. Alem disso, a designa-
mente desprezados na pesquisa social. Trata-se de aspectos do ,ao do que nao e premeditado ou intencional com rela,ao as
discurso que, na forma, sao refrata-rios it sua tradw;ao como conseqiiencias da a,ao so pode ser empiricamente apreendido
enunciados de cren,a proporcional ou que, como hurnor ou de forma adequada se os aspectos premeditados ou intencio-
ironia, derivam seu significado menos do conteudo daquilo nais da a,ao forem identificados, e isso significa, urna vez
que e dito do que do estilo, modo de expressao ou contexto de mais, operar com uma interpreta,ao de agencia mais refinada
verbaliza,ao. Mas curnpre adicionar a isso urn segundo fator do que e normalmente admitido por aqueles que se inc1inam
de maior importancia: a necessidade de reconhecimento do para as premissas funcionalistas.
significado da consciencia pnitica. Quando 0 que os agentes Na teoria da estrutura,ao, considera-se "estrutura" 0 con-
conhecem a respeito do que fazem esta restrito ao que eles po- junto de regras e recursos implicados, de modo recursivo, na
dem dizer sobre isso, em qualquer estilo discursivo, urna area reprodu,ao social; as caracteristicas institucionalizadas de sis-
muito vasta de cognoscitividade e simplesmente subtraida da temas sociais tern propriedades estruturais no sentido de que as
visao. 0 estudo da consciimcia pratica deve ser incorporado ao rela,oes estiio estabilizadas atraves do tempo e espa,o. A "es-
trabalho de pesquisa. Seria urn erro supor que os componentes trutura" pode ser conceituada abstratamente como dois aspec-
nao-discursivos da consciencia sao necessariamente mais difi- tos de regras: elementos normativos e codigos de significa,ao.
ceis de estudar empiricamente do que os discursivos, muito Os recursos tambem sao de duas especies: recursOS impositi-
embora os proprios agentes, por defini9iio, nao possam comen- vos, que derivam da coordena,ao da atividade dos agentes hu-
ta-Ios diretamente. 0 inconsciente, por outro lado, apresenta manos, e recursos alocativos, que procedem do controle de
urna ordem inteiramente diferente do problema, exigindo, por produtos materiais ou de aspectos do mundo material. 0 que e
certo, tecnicas de interroga,ao distintas das envolvidas na pes- especialmente util para a orienta,ao da pesquisa e 0 estudo,
quisa social descritiva. primeiro, das interse,oes rotinizadas de praticas que consti-
o funcionalismo foi surnamente importante nas ciencias tuem os "pontos de transforma,ao" nas rela,oes estruturais; e,
sociais, devido nao s6 asua preeminencia como urn tipo de teo- segundo, dos modos como as praticas institucionalizadas esta-
riza,ao, mas tambem ao estimulo empirico que forneceu. As belecem a conexao entre a integra,ao social e a integra,ao de
origens do trabalho de campo em antropologia sao mais ou me- sistema. Quanto ao primeiro desses temas de estudo, para dar
nos conterminas ao impacto do funcionalismo, e na sociologia urn exemplo, pode-se demonstrar como a propriedade privada,
tambem 0 pensamento funcionalista ajudou a gerar urn corpo urn conjunto de direitos de posse, pode ser "traduzida" em au-
significativo de trabalho de pesquisa. Penso ser essencial com- toridade industrial, ou modos de sustenta,ao do controle admi-
 XXXVI A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE
1 INTRODUr;:AO XXXVII

nistrativo. Em reIa,ao ao segundo, 0 que tern de ser empirica- e urn caso especial de urn fenomeno muito mais generico nas
mente determinado e ate que ponto as praticas localizadas e es- ciencias sociais. E urna intera,ao interpretativa mutua entre
tudadas nurna determinada gama de contextos convergem en- ciencia social e aquelas cujas atividades constituem seu objeto
tre si de modo a ingressarem diretamente na reprodu,ao do sis- de estudo - urna "dupla hermeneutica". As teorias e descober-
tema. E importante, neste caso, estar atento para 0 significado tas das ciencias sociais nao podem ser mantidas totalmente
dos locais como cemirios de interse,ao; nao ha razao nenhurna separadas do universo de significado e a,ao de que elas tratam.
para que os sociologos nao adotem algurnas das tecnicas de Mas, por sua parte, as atores leigos sao te6ricos sociais, cujas
pesquisa estabelecidas pelos geografos, inclusive as tecnicas teorias ajudam a constituir as atividades e institui,Des que sao
graficas de tempo-geografia, a fim de estuda-los. o objeto de estudo de observadores sociais especializados ou
Se as ciencias sociais sao entendidas como eram durante 0 cientistas sociais. Nao existe urna clara linha divisoria entre a
periodo de dominio do consenso ortodoxo, suas realiza,Des reflexao sociologica esclarecida levada a efeito por atores lei-
nao impressionam, e a importiincia da pesquisa social para ques- gos e as diligencias similares por parte de especialistas. Nao
toes pniticas parece razoavelmente escassa. Pais as ciencias na- quero negar que existam linhas divisorias, mas elas sao inevita-
turais ou, pelo menos, as mais avan,adas dentre elas, possuem velmente vagas, e as cientistas sociais nao tern urn monopolio
leis precisamente especificadas e geralmente aceitas, em con- absoluto sobre as teorias inovadoras nem sobre as investiga-
junto com urn ample repertorio de observa,Des empiricas in- ,Des empiricas do que estudam.
discutiveis que podem ser explicadas em termos dessas leis. A Talvez tudo isso possa ser tornado por certo. Mas talvez
ciencia natural articulou-se com capacidades tecnologicas nao se possa aceitar, a partir desses comentarios, a ado,ao de
espantosas, tanto destrutivas quanta construtivas. Aos olhos da- uma visao das realiza,Des e do impacto das ciencias sociais
queles que adotariam diretamente para a ciencia social 0 mode- distinta da acima indicada. Como poderia ser seriamente suge-
10 da ciencia natural, a primeira e certamente superada de lon- ride que a ciencia social tern tido tanta ou mais influencia sobre
ge pela segunda. Tanto cognitiva quanta praticamente as cien- o mundo social quanta a ciencia natural sobre 0 mundo mate-
cias sociais parecem nitidamente inferiores as ciencias natu- rial? Penso, de fato, que esse ponto de vista pode ser mantido-
rais. Mas, ao se aceitar que a ciencia social nao deve mais con- embora, e claro, tal compara,ao nao possa ser precisa, em vir-
tinuar sendo uma especie de replica da ciencia natural e que, tude das proprias diferen,as entre 0 que esta envolvido em
em certos aspectos, e urn empreendimento de natureza inteira- cada caso. A questao e que a reflexao sobre processos sociais
mente divergente, pode-se entao defender uma visao muito di- (teorias e observa,Des sobre eles) continuamente penetra, sol-
ferente de suas realiza,Des e influencia relativas. Nao existem ta-se e tarna a penetrar 0 universo de acontecimentos que eles
leis universais nas ciencias sociais nem haven! nenhuma - nao, descrevem. Nao existe tal fenomeno no mundo de natureza
antes de tudo, porque os metodos de verifica,ao empirica se- inanimada, 0 qual e indiferente a tudo 0 que os seres hurnanos
jam urn tanto inadequados, mas porque, como ja assinalei, as possam pretender saber a seu respeito. Considerem-se, por
condi,Des causais envolvidas em generaliza,Des sobre a con- exemplo, as teorias de soberania formuladas pelos pensadores
duta social humana sao inerentemente instaveis com reIa,ao ao europeus do seculo XVII. Elas resultaram da reflexao sobre - e
proprio conhecimento (ou cren,as) que os atores tern sobre as do estudo de - tendencias sociais nas quais foram, por sua vez,
circunstiincias de sua propria a,ao. A chamada "profecia auto- realimentadas. Eimpossivel aponlar urn moderno Estado sobe-
realizadora", a concretiza,ao de algo como simples efeito de rano que nao incorpore urna teoria discursivamente articulada
ter sido esperado, a cujo respeito Merton e outros esCreveram, do moderno Estado soberano. A tendencia aCentuada a urna
 XXXVIII A CONSTITUlr;:AO DA SOCIEDADE

expansao da "automonitora,ao" politica por parte do Estado e

l INTRODUr;:JO XXXIX

Ie de variaveis, il replica de observa,oes e outros dilemas meto-

caracteristica da modemidade no Ocidente em geral, criando 0 dologicos em que as ciencias sociais podem encontrar-se. As
clima social e intelectual a partir do qual discursos especializa- teorias na ciencia natural sao originais, inovadoras etc., ate 0
dos, "profissionais", da ciencia social se desenvolveram, mas ponto em que colocam em queslilo aquilo em que tanto atores
que ambos tambem expressam e fomentam. Certamente poder- leigos quanta cientistas profissionais acreditavam previamente
se-ia fazer algum tipo de argumenta,ao favoravel il pretensao acerca dos objetos ou eventos a que elas se referem. Mas as
de que essas mudanps, nas quais a ciencia social esteve cen- teorias nas ciencias sociais tern de ser de algum modo baseadas
tralmente envolvida, se revestem de urn carater muito funda- em ideias que (embora nao necessariamente formuladas por
mental. Ao lado delas, as transforma,oes da natureza realiza- elas em termos discursivos) ja sao sustentadas pelos agentes a
das pelas ciencias naturais nao parecem tao maci,as. que se referem. Uma vez reincorporadas na a,ao, sua qualida-
Refletindo urn pouco mais sobre tais considera,oes, pode- de original podera perder-se; elas podem tomar-se excessiva-
mos ver por que motivo as ciencias sociais podem parecer nao mente familiares. A no,ao de soberania e teorias associadas do
gerar urna soma considenivel de conhecimentos originais, e Estado eram surpreendentemente novas quando foram formu-
tambem por que teorias e ideias produzidas no passado podem ladas pela primeira vez; hoje, tomaram-se em certa medida
conservar, de modo aparentemente paradoxal, urna pertinencia parte integrante da propria realidade social que ajudaram a
aos dias de hoje que as concep,oes arcaicas das ciencias natu- estabelecer.
rais nao possuem. As melhores e mais interessantes ideias nas Mas por que algumas teorias sociais conservam seu vi,o
ciencias sociais a) participam na promo,ao do clima de opi- muito depois de passadas as condi,oes que ajudaram a produ-
niao e dos processos sociais que lhes dao origem, b) eslilo em zi-Ias? Por que, agora que estamos familiarizados com 0 con-
maior ou menor grau entrela,adas com teorias em usa que aju- ceito e a realidade da soberania do Estado, as teorias seiscentis-
dam a constituir aqueles processos e c) e improvilvel, portanto, tas do Estado continuam a ter tanta relevilncia para a reflexao
que sejam claramente distintas da reflexao ponderada que ato- social ou politica hodiema? Por certo, exatamente porque con-
res leigos empregam, na medida em que discursivamente arti- tribuiram para a constitui,ao do mundo social em que vivemos
culam, ou se aperfeic;oam sabre, teorias em uso. agora. 0 que chama nossa aten,ao e 0 fato de que sao reflexoes
Esses fatos tern conseqiiencias, sobretudo para a sociolo- sobre urna realidade social que elas tambem ajudam a consti-
gia (il qual eles sao na maioria nitidamente pertinentes), que tuir e que esta distanciada, e ao meSilla tempo permanece sen-
afetam 0 prosseguimento da pesquisa empirica e a formula,ao do parte, de nosso mundo social. As teorias nas ciencias natu-
e recep,ao de teorias. No tocante il pesquisa, eles significam rais, que foram substituidas por outras que curnprem melhor a
que e muito mais dificil do que no caso da ciencia natural "sus- mesma fun,ao, nao interessam il pritica corrente da ciencia.
tentar" a aceita,ao de teorias enquanto se buscam meios de as Nao pode ser esse 0 caso quando essas teorias ajudaram a cons-
comprovar apropriadamente. A vida social segue em frente; tituir 0 que elas interpretam ou explicam. A "historia de ideias"
teorias, hipoteses ou descobertas interessantes ou potencial- talvez possa ser justificadamente considerada de importancia
mente praticas podem ser levantadas na vida social de tal modo marginal para 0 cientista natural praticante, mas e muito mais
que as bases originais em que poderiam ser testadas tenham se do que tangencial para as ciencias sociais.
alterado desta ou daquela maneira. Hil muitas e complexas per- Se sao corretas, essas pondera,oes levam diretamente a
muta,oes possiveis de mutua sustenta,ao neste caso, as quais uma considera93.0 da ciencia social como critica - como envol-
se combinam tambem com as dificuldades inerentes ao contro- vida de maneira pratica com a vida social. Nao nos podemos
 XL
A CONSTITUf(;:A'O DA SOGEDADE INTRODUr;:A'O XLI
contentar com a versao "tecnoI6gica" da critica proposta pelo Referencias
consenso ortodoxo, uma concep,ao que deriva do modelo da
ciencia natural. A visao tecnol6gica da critica pressup6e que a 1. Seria urn eITO, eclaro, supar que a influencia de Parsons esta confi-
"critica interna" da ciencia social - as avalia90es criticas que nada no passado, imaginar que esse autor foi esquecido como ele
aqueles que trabalham nas ciencias sociais fazem das opini6es proprio certa vez sugeriu ter acontecido a Spencer pOlleD depois de
uns dos outros - gera sem complicayoes uma "critica externa" sua morte. Pelo contrario, uma das tendencias mais visiveis oa teo-
das cren,as leigas que podem ser a base da interven,ao social ria social hodierna e0 papel primordial desempenhado por concep-
r;oes inferidas mais ou menos diretamente de Parson~. Poderiamos
pnitica. Mas, dada a significa,ao da "dupla hermeneutica", as
citar, a titulo de exemplo, os escritos de Luhmann e Habermas, oa
coisas sao muito mais complexas. A formula,ao da teoria criti- Alemanha, Bourricauld, na Fran9a, e Alexander e outros, nos
I
ca nao e uma oP9iio; as teorias e descobertas nas ciencias Estados Unidos. Nao pretendo discutir em detalhes essa literatura,
sociais sao suscetiveis de ter conseqiiencias pniticas (e politi- i'
I
mas talvez valha a pena explicar urn pouco por que nao simpatizo
cas) independentemente de 0 observador sociol6gico ou 0 es- muito com aqueles aspectos de tais autores que se basearam forte-
trategista politico decidir que elas podem ou nao ser "aplica- mente em ideias de Parsons. Todos os escritores em questao criti-
das" a uma dada quesmo pnitica. cam veementemente as conexoes de Parsons com 0 funcionalismo,
do qual Luhmann procurou provavelmente reter mais do que os
o presente livro nao foi nada facil de escrever e, ate certo outros. Neste aspecto, estou de acordo com eles, como este livro
deveci deixar bastante claro. Mas, em outros, por razoes que tam-
ponto, provou ser refratano a ordena,ao normal de capitulos. A
bern serno docurnentadas extensamente nas piginas que se se-
teoria da estrutura,ao foi formulada, em parte substancial, guem, penso ser necessario fazer uma ruptura radical com teore-
atraves de sua pr6pria "critica intema" - a avalia,ao critica de mas parsonianos. Urn importante aspecto disso refere-se ainfiltra-
uma variedade de escolas de pensamento social geralmente 9ao da influencia de Max Weber atraves dos escritos de Parsons.
concorrentes. Em vez de deixar alguns desses confrontos criti- Tenho side freqiientemente qualificado de "weberiano" por cnti-
cos se imiscuirem nas principais se,6es do texto, tratei de in- cos que consideram isso urna especie de defeito irreparivel. Ao
clui-Ios como apendices aos capitulos com os quais se relacio- contrmo deles, nao encaro 0 termo como urn estigma, urn rotulo
nam mais diretamente. (Do mesmo modo, as notas associadas desonroso, mas tampouco 0 aceito como corretamente aphcado a
a cles seguem-se as que pertencem aos capitulos pertinentes.) meus pontos de vista. Se me apoio em Weber, e de urn iingulo bern
diferente daquele adotado pelos autores acima citados. Assim, 0
o leitor que queira acompanhar a linha principal de argumento Weber de Haberrn.s (t.lvez surpreendentemente) tende • ser de
do livro sem interrup,6es pode saltar os apendices e suas res- urn estilo parsoniano, preocupado sobretudo com a racionaliza9ao
pectivas notas. Entretanto, eles sedo de interesse para quem de valores e com a "diferencial social", retratadas como processos
estiver interessado em apreciar como os pontos de vista que de- generalizados de desenvolvimento. A vida social nao e descrita
fendo diferem dos de outros ou na elabora,ao de temas trata- aqui atraves das lentes que eu preferiria tomar emprestadas de We-
dos de forma condensada no ceme de cada capitulo. Vma va- ber, quando se interessa pelas multiplas priticas e lutas de atores
riedade de neologismos e usada no livro, os quais constam do concretamente localizados, pelo conflito e choque de interesses
glossano colocado no final. secionais, e pela territorialidade e violencia de forma90es politicas
au Estados.
Parsons considerava-se urn "teorico d.a a9ao" e chamou asua
versao de ciencia social 0 "quadro de referencia da a9ao". Mas,
como procurei mostrar minuciosamente em outro trabalho (ver
NRSM, capitulo 3), a que eu aceitaria como concep,ao satisf.t6ri.
 I
XLII A CONSTlTUlr;:A-O DA SOCIEDADE i Capitulo I
de 39.3.0 (e outras noc;oes afins, especialmente as de intenc;oes e Elementos da teoria da estruturariio
razoes) nao sera encontrado oa obra de Parsons. IS50 nao se deve,
como alguns eritices sugeriram, ao fato de uma enfase ulterior
sabre 0 funcionalismo e a teona de sistemas ter ameac;ado sufocar
uma preocupac;ao anterior com 0 "voluntarismo". 0 motivo esta
em que a ideia de voluntarismo apresentava-se viciada desde a ori-
gem. No pensamento de Parsons, 0 voluntarismo sempre esteve
vinculado aresolw.;ao do "problema da ordem", por ele concebido
como a coordenac;ao de vODtades individuais potencialmente de-
sintegradoras. A resolw;ao se da atraves da demonstrac;3.o de que
os atores internalizarn, como motivos, as valores compartilhados
de que depende a coesao social. 0 pedido de uma explica~ao da
Ao oferecer uma exposi9ao preliminar dos principais con-
a~ao acaba fundindo-se com a exigencia de ligar uma teoria "psi-
cologica" de motiva~ao com uma interpreta~ao Hsociologica" das ceitos da teoria da estrutura9ao'* sera util come9ar pelas divi-
caracteristicas estruturais de sistemas sociais. Pouca ou nenhuma soes que separaram 0 funcionalismo (inclusive a teoria de sis-
margem conceptual e deixada para 0 que eu enfatizo como a cog- temas) e 0 estruturalismo, par urn lado, da hermeneutica e das
noscitividade de atores sociais,'enquanto constitutiva, em parte, de varias formas de "sociologia interpretativa", por outro. 0 fun-
pr:iticas sociais. Nao penso 'Llle qualquer ponto de vista que seja cionalismo e 0 estruturalismo tem algumas semelhan9as nom-
fortemente ancorado em Parsons possa enfrentar satisfatoriamente veis, apesar dos contrastes de outro modo acentuados existen-
essa questao, no proprio amago dos interesses da teoria social, tes entre eles. Ambos tendem a expressar urn ponto de vista na-
segundo eu os concebo neste livro. turalistico e se inclinam para 0 objetivismo. 0 pensamento fun-
Se aqueles que tern grande debito para com Parsons hoje nao cionalista, de Comte em diante, via particularmente a biologia
se consideram funcionalistas e rejeitaram a inclina~ao funcionalis-
como a ciencia que fornece 0 modelo mais pr6ximo e mais
ta do pensamento parsoniano em maior ou menor grau, eles ainda
encampam outras ideias relacionadas amaioria das versoes do fun- compativel para a ciencia social. A biologia foi considerada for-
cionalismo. Estas incluem: urn fascinio pelo "consenso de valor" necedora de urn guia para conceituar a estrutura e 0 funciona-
ou pelas ordens simbolicas, acusta dos aspectos pr:iticos mais coti- mento de sistemas sociais, assim como para analisar processos
dianos da atlvidade social; a tendencia a supor que as sociedades de evolu9ao via mecanismos de adapta9ao. 0 pensamento es-
sao unidades facilmente distiilguiveis, a semelhan~a dos organis- truturalista, especialmente nos escritos de Levi-Strauss, foi
mos biol6gicos; e a predile~ao por teorias de estilo evolucionista. hostil ao evolucionismo e isento de analogias biol6gicas. Neste
Considero cada uma dessas enfases seriamente enganosa e apre- caso, a homologia entre ciencia social e ciencia natural e pri-
sentarei fortes reservas a respeito delas. Nao pode haver duvidas mordialmente cognitiva, na medida em que se supoe que cada
sobre 0 refinamento e a importancia da obra de alguns autores que uma expressa caracteristicas similares da constitui9aO global
atualmente se empenham em desenvolver a obra de Parsons por
da mente. 0 estruturalismo e 0 funcionalismo enfatizam forte-
novos caminhos, especialmente Luhmann e Habermas. Mas penso
ser tao necessano repudiar as novas vers5es do parsoniapismo mente a preeminencia do todo social sobre suas partes indivi-
quanto as variedades, estabelecidas h:i mais tempo, da sociologia duais (isto e, seus atores constituintes, sujeitos hurnanos).
estrutural nao-parsoniana. Em tradi90es hermeneuticas de pensamento, e claro, .as
ciencias sociais e naturais sao consideradas radicalmente dis-

* As referencias podem ser encontradas a pp. 44-6.

L
 2 A CONSTITUIt;A-O DA SOCIEDADE

crepantes. A hermeneutica foi a base daquele "humanismo"

1
i ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAt;AO

natureza, sao recursivas. Quer dizer, elas nao sao criadas por
3

contra 0 qual os estruturalistas se opuseram de modo tao vigo- atores sociais mas continuamente recriadas par eles atraves dos
roso e persistente. No pensamento hermeneutico, tal como proprios meios pelos quais eles se expressam como atores. Em
apresentado por Dilthey, 0 abismo entre sujeito e objeto social suas atividades, e atraves destas, os agentes reproduzem as
alean,a sua amplitude maxima. A subjetividade e 0 centro pre- condi,oes que tornam possiveis essas atividades. Entretanto, a
viamente constituido da experiencia de cultura e historia, e como especie de "cognoscitividade" apresentada na natureza, na forma
tal fornece 0 fundamento basico das ciencias sociais ou huma- de programas codificados, e distante das aptidoes cognitivas
nas. Fora do dominic da experiencia subjetiva, e alheio a ela, exibidas por agentes humanos. E na conceitua,ao da cognosci-
esta 0 mundo material, governado por rela,oes impessoais de tividade humana e em seu envolvimento na a,ao que procuro
causa e efeito. Enquanto para aquelas escolas de pensamento tomar para uso proprio algumas das principais contribui,oes
que tendem para 0 naturalismo a subjetividade foi encarada das sociologias interpretativas. Na teoria da estrutura,ao, um
como uma especie de misterio, ou quase como um fenomeno ponto de partida hermeneutico e aceito na medida em que se
residual, para a hermeneutica 0 mundo da natureza e que e reconhece que a descri,ao de atividades humanas requer fami-
opaco - 0 qual, diferentemente da atividade humana, somente liaridade com as formas de vida expressas naquelas atividades.
pode ser apreendido desde fora. Nas sociologias interpretati- E a forma especificamente reflexiva da cognoscitividade
vas, e concedida primazia it a,ao e ao significado na explica,ao dos agentes humanos que esta mais profundamente envolvida
da conduta humana; os conceitos estruturais nao sao notavel- na ordena,ao recursiva das praticas sociais. A continuidade de
mente conspicuos e nao se fala muito de coer,ao. Para 0 funcio- praticas presume reflexividade, mas esta, por sua vez, so e pos-
nalismo e 0 estruturalismo, entretanto, a estrutura (nos sentidos sivel devido it continuidade de praticas que as tornam nitida-
divergentes atribuidos ao conceito) tern primazia sobre a a,ao e mente "as mesmas" atraves do espa~o e do tempo. Logo, a "re-
suas qualidades restritivas sao fortemente acentuadas. flexividade" deve ser entendida nao meramente como "auto-
As diferen,as entre esses pontos de vista sobre a ciencia consciencia", mas como 0 carater monitorado do fluxo conti-
social tern sido freqiientemente consideradas epistemologicas, nuo da vida social. Ser um ser humane e ser urn agente inten-
quando, de fato, sao tambem ontologicas. A questao e como os cional, que tern razoes para suas atividades e tambem esta apto,
conceitos de a,ao, significado e subjetividade devem ser espe- se solicitado, a elaborar discursivamente essas razoes (inclusi-
cificados e como poderiam ser relacionados com as no,oes de ve mentindo a respeito delas). Mas termos tais como "proposi-
estrutura e coer,ao. Se as sociologias interpretativas se assen- to" ou "inten<;8.o", "razao", "motivo" etc. tern de ser tratados
tam, por assim dizer, num imperialismo do sujeito, 0 funciona- com cautela, porquanto 0 seu uso na literatura filosOfica tern
lismo e 0 estruturalismo, por seu lado, propoem urn imperialis- sido muito freqiientemente associado a um voluntarismo her-
mo do objeto social. Uma de minhas principals ambi,oes na meneutico, e porque eles retiram a a,ao humana da contextua-
formula,ao da teoria da estrutura,ao e por urn fim a cada urn lidade de espa,o-tempo. A a,ao humana ocorre como uma du-
desses esfor,os de estabelecimento de imperios. 0 dominic ba- rtie, um fluxo continuo de conduta, it semelhan,a da cogni,ao.
sico de estudo das ciencias sociais, de acordo com a teoria da A a,ao intencional nao se compoe de um agregado ou serie de
estrutura,ao, nao e a experiencia do ator individual nem a exis- inten,oes, razoes e motivos isolados. Assim, e util falar de re-
tencia de qualquer forma de totalidade social, mas as praticas flexividade como algo assentado na monitora,ao continua da
sociais ordenadas no espa,o e no tempo. As atividades sociais a,ao que os seres humanos exibem, esperando 0 mesmo dos
I humanas, it semelhan,a de alguns itens auto-reprodutores na outros. A monitora,ao reflexiva da a,ao depende da racionali-

.[
 l
!

4 A CONSTfTUJr:;A-O DA SOCfEDADE ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAr:;AO 5

za,iio, entendida aqui mais como urn processo do que como oferecern discursivamente para 0 que fafem podem divergir da
urn estado, e como inerentemente envolvida na competencia racionaliza,ao da a,iio quando realmente envolvida no fluxo
dos agentes. Uma ontologia de tempo-espa,o como constituti- de conduta desses atores.
va de priticas sociais e basica para a concep,iio de estrutura- Essa circunstancia tern sido urna freqiiente fonte de preo-
,iio, a qual comera a partir da temporalidade e, portanto, nurn cupa,iio para fil6sofos e observadores da cena social - pois
certo sentjdo, da "hist6ria". como poderemos ter a certeza de que as pessoas nao dissimu-
Essa abordagem s6 muito parcimoniosamente pode apoiar- lam a respeito das razoes para suas atividades? Mas isso e de
se na filosofia anaHtica da a,iio, entendida a "a,iio" no sentido interesse relativamente pequeno comparado com as vastas
comurnente dado pela maioria dos autores anglo-americanos "areas cinzentas" existentes entre dais estratos de processos
contemporaneos. A "a9ao" DaD e uma comhina.;ao de "atos"; inacessiveis a consciencia discursiva dos atores. 0 grande vo-
os "atos" sao constituidos apenas por urn momento discursivo lume dos "estoques de conhecimento", na frase de Schutz,ou
de aten,iio a duree da experiencia vivida. Tampouco se pode que eu prefiro designar por conhecimento mutuo incorporado
discutir a "a,iio" do corpo, de suas media,oes com 0 mundo em encontros, nao e diretamente acessivel a consciencia dos
circulante e da coerencia de urn self atuante. Aquilo a que atores. A maior parte desse conhecimento e pritico por nature-
chamo de urn modelo de estratificariio do selfatuante envolve za: e inerente a capacidade de "prosseguir" no ambito das roti-
tratar a monitora,iio reflexiva, a racionaliza,iio e a motiva,iio nas da vida social. A linha entre consciencia discursiva e cons-
da a,iio como conjuntos de processos incrustados2 • A raciona- ciencia pratica e flutuante e permeavel, tanto na experiencia do
lizaryao da a.;:ao, referente a"'intencionalidade" como processo, agente individual quanta no que se refere a compara,oes entre
e, como as Gutras duas dimensoes, uma rotina caracteristica da atores em diferentes contextos da atividade social. Contudo,
conduta hurnana exercida de forma reconhecida. Em circuns- DaD ha barreira entre estes, como as que se observam entre 0
tancias de intera,iio - encontros e epis6dios - a monitora,iio inconsciente e a consciencia discursiva. a inconsciente inclui
reflexiva da a,iio incorpora tipicamente, e uma vez mais roti- aquelas formas de cogni,ao e de impulsao que estao au total-
neiramente, a monitorar;ao do cemirio cude essa intera<;3.0 se mente impedidas de consciencia ou somente aparecem na
desenrola. Como indicarei mais adiante, esse fenomeno e basi- consciencia de forma distorcida. Os componentes motivacio-
co para a interpola,ao da a,ao dentro das rela,oes espa,o-tem- nais inconscientes da ar;ao, como sugere a teoria psicanalitica,
porais do que designarei por "co~presen,a". A racionaliza,ao possuem urna hierarquia intema que lhes epr6pria, uma hierar-
da a,iio, dentro da diversidade de circunstancias de intera,iio, quia que exprime a "profundidade" da hist6ria de vida do ator
constitui a principal base sobre a qual a "competencia" genera- individual. Ao dizer isto, nao quero dar a entender urna aceita-
lizada dos atores e avaliada por outros. Deve ficar claro, po- ,iio incondicional dos teoremas-chave dos escritos de Freud.
rem, que a tendencia de alguns fil6sofos de equiparat razoes e Devemos estar prevenidos contra duas formas de reducionismo
"compromissos normativos" tern de ser combatida: tais com- que esses escritos sugerent ou promovem. 'vma delas e uma
promissos abrangem somente urn setor da racionaliza,iio da concepYiio redutiva das institui,oes, a qual, ao procurar mos-
a,iio. Se isso nao for entendido, niio compreenderemos que as trar 0 fundamento das institui!;oes no inconsciente, nao deixa
normas se apresentam como fronteiras "fatuais" na vida social, campo suficiente para a opera,ao de for,as sociais autonomas.
para as quais siio possiveis varias atitudes manipulat6rias. Urn A segunda forma e urna teoria redutiva da consciencia, a qual,
aspecto de tais atitudes, embora relativamente superficial, querendo mostrar quanta da vida social e govemado por cor-
encontra-se na observa,ao banal de que as razoes que os atores rentes sombrias fora do alcance da consciencia dos atores, niio
 6 A CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAr;AO 7
pode apreender adequadamente 0 nive! de controle que os agen- fratura na competencia que poderia, de fato, ser intencionaI.
tes estao caracteristicamente aptos a manter de modo reflexivo Assim, nao perguntaremos comurnente a urna outra pessoa por
sobre sua propria conduta. que se empenha nurna atividade que e convencional para 0
gropo ou cultura de que 0 individuo e membro. Tampouco e
costume pedir urna explica9ao se OCOrre urn lapso para 0 qual
o agente, a agencia parece improvavel que 0 agente possa ser tido por responsavel,
como os trope90s na adrninistra9ao do corpo (ver a discussao
o modelo de estratifica9ao do agente pode ser representa- de "Upa!", pp. 95-6) ou 0 lapsus linguae. Se Freud esta certo,
do como na Figura I. 0 monitoramento reflexivo da atividade e entretanto, esses fenomenos poderiam ter urn fundamento logi-
uma caracteristica cronica da a9ao cotidiana e envolve a con- co, se bern que isso so raramente seja percebido pelos perpetra-
duta nao apenas do individuo mas tambem de outros. Quer di-
dores desses atos falhos ou por outros que os presenciam (ver
zer, os atores nao so controlam e regulam continuamente 0
pp. 109-23).
fluxo de suas atividades e esperam que outros fa9am 0 mesmo
Eu distingo a monitora9ao reflexiva e a racionaliza9aO da
por sua propria conta, mas tambem monitoram rotineiramente
a9ao de sua motiva9ao. Se as raz5es se referem aos motivos da
aspectos, sociais e fisicos, dos contextos em que se movem. Por
a9ao, estes, por sua vez, referem-se as necessidades que a insti-
racionaliza9ao da a9ao entendo que os atores - tambem rotinei-
gam. Entretanto, a motiva9ao nao esta tao diretamente vincula-
ramente e, na maioria dos casos, sem qualquer alarde - man-
da a continuidade da a9ao quanto sua monitora9ao reflexiva ou
tern urn continuo "entendimento teorico" das bases de sua ati-
racionaliza9ao. Ela refere-se mais ao potencial para a a9ao do
vidade. Como mencionei, possuir tal entendimento nao deve
que propriamente ao modo como a a9ao e cronicamente exe-
ser equiparado a apresenta9ao discursiva de razoes para deter-
minados itens de conduta, nem mesmo a capacidade de especi- cutada pelo agente. Os motivos tendem a ter urna influencia
ficar tais raz5es discursivamente. Entretanto, 0 que agentes direta na a9ao apenas em circunstiincias relativamente inco-
competentes esperam dos outros - e esse e 0 principal criterio muns, situa95es que, de algum modo, quebram a rotina. Em
de competencia aplicado na conduta cotidiana - e que os atores sua grande maioria, os motivos fornecem pIanos ou programas
sejam habitualmente capazes de explicar a maior parte do que globais - "projetos", na terminologia de Schutz - no litnbito
fazem, se indagados. Perguntas freqiientemente formuladas por dos quais urna certa gama de condutas sao encenadas. Muito
filosofos acerca de inten95es e raz5es sao normalmente apre- de nossa conduta cotidiana nao e diretamente motivada.
sentadas por atores leigos apenas quando alguma conduta e Embora atores competentes possam quase sempre infor-
especificamente enigmatica ou entao quando hi urn "lapso" ou mar discursivamente sobre suas inten95es ao - e raz5es para -
atuar do modo que atuam, podem nao fazer necessariamente 0

condi90es

da 898:0
.
nao-reconhecldas :
(1* mOn!t ora 9ao reflexlVa da 898:0

raclonallzar;ao da aQao
~
'VI
: ?onsequ~~cias
: Impremedltadas
da aQao
mesmp no tocante a seus motivos. A motiva9ao inconsciente e
uma caracteristica significativa da conduta hurnana, embora eu
indique mais adiante algumas reservas a respeito da interpreta-
, , 9aO de Freud da natureza do inconsciente. A n09ao de cons-
~, motlvaQao da 8980
, I ciencia pratica e fundamental para a teoria de estrutura9ao. E
~--------------------, aquela caracteristica do agente ou sujeito hurnano para a qual 0
estruturalismo tern sido particularmente cego'. Mas 0 mesmo
Figura 1 tern acontecido com outros tipos de pensamento objetivista.
 8 A CONSTITUf(;:/lO DA SOCIEDADE
-]
. ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURA(:/lO 9

Somente na fenomenologia e na etnometodologia, dentro das ator que implicam 0 "mim". 0 completo dominio das rela,oes
tradi,oes sociologicas, encontramos detalhados e sutis trata- de "eli", "mim", "til", quando aplicadas reflexivamente no dis-
mentos da natureza da consciencia pratica. Com efeito, siio es- curso, e de importancia decisiva para a competencia em forma-
sas escolas de pensamento, em conjunto com a filosofia da lin- ,iio de agentes que estiio aprendendo a linguagem. Uma vez
guagem ordinaria, as responsaveis pelo esclarecimento das que niio uso 0 termo "ego", e evidentemente preferivel dispen-
deficiencias das teorias ortodoxas da ciencia social a esse res- sar tambem "superego" - urn termo de todo modo tosco. A
peito. Niio pretendo que a distin,iio entre consciencia discursi- expressao "consciencia moral" serve perfeitamente bern como
va e consciencia pratica seja rigida e impermeavel. Pelo con- seu substituto.
trario, a divisiio entre as duas pode ser alterada por nurnerosos Todos esses conceitos referem-se ao agente. E 0 que dizer
aspectos da socializa,iio e das experiencias de aprendizagem da natureza da agencia? Isto pode ser ligado com uma nova
do agente. Niio ha barreiras entre esses dois tipos de conscien- questiio. A duree da vida cotidiana ocorre como urn fluxo de
cia; ha apenas as diferen,as entre 0 que pode ser dito e 0 que,
a9ao intencional. Entretanto, os atos tern conseqiiencias im-
de modo caracteristico, e simplesmente feito. Existem barrei-
premeditadas; e, como foi indicado na Figura I, estas podem
ras, porem, centradas principalmente na repressiio, entre a cons-
ciencia discursiva e 0 inconsciente. sistematicamente realimentar-se para constituirem as condi-
,oes niio reconhecidas de novos atos. Assim, uma das conse-
qiiencias normais de eu falar ou escrever de urn modo correto
consci€mcia discursiva
A em ingles e contribuir para a reprodu,iio da lingua inglesa
consci€mcia pratica como urn todo. 0 fato de eu falar Ingles corretamente e in-
~
motivos (nconscientesJcogniyao tencional; a contribui,iio que dou para a reprodu,iio da lingua
niio e. Mas como formularemos 0 que siio as conseqiiencias
Conforme e explicado em ouira parte do livro, proponho impremeditadas?
esses conceitos em lugar da tradidonal triade psicanalitica de Admite-se com freqiiencia que a agencia hurnana so pode
ego, superego e id. A distin,iio freudiana de ego e id niio pode ser definida em termos de inten,oes, ou seja, para que urn item
dar conta tranqiiilamente da analise da consciencia pratica, a do comportamento seja considerado urna a,iio, e preciso que 0
qual carece de abrigo teorico na teoria psicanalitica, assim realizador tenha a inten,iio de 0 manifestar, caso contrario 0
como nos outros tipos de pensamento social previamente indi- comportamento em questiio e apenas urna resposta reativa.
cados. 0 conceito de "pre-consciente" talvez seja a no,iio mais Essa visiio deriva certa plausibilidade, talvez, do fato de haver
proxima da consciencia pratica no repertorio conceptual da alguns atos que niio podem ocorrer a menos que 0 agente tenha
psicanalise, mas, em seu uso geral, significa claramente algo essa inten,iio. 0 suicidio e urn caso ilustrativo. Malgrado os es-
diferente. Em lugar de "ego" e preferivel falar de "eu" (como for,os conceptuais de Durkheim em contrario, so e possivel
fez Freud, e claro, no alemiio original). Esse uso niio impede 0 dizer que 0 "suicidio" ocorreu quando se constatou algum tipo
antropomorfismo, no qual 0 ego e retratado como urna espe- de inten,iio de precipitar a autodestrui,iio. Uma pessoa que sai
eie de mini-agente; mas, pelo menos, ajuda'a come~ar a reme- do meio-fio da cal,ada e e atropelada por urn carro niio pode
dia-lo. 0 uso de "eu" desenvolve-se a partirdo posicionamento ser qualificada de "suicida" se 0 evento foi acidental; e algo
do agente em encontros sociais e esta-Ihe associado dai em que acontece ao individuo e niio algo que 0 individuo faz.
diante. Enquanto urn termo de tipo predicativo e "vazio" de Entretanto, 0 suicidio niio e tipico da maioria dos atos huma-
conteiido, em compara,iio com a riqueza das autodescri,oes do nos, no que se refere a inten,oes, na medida em que se pode di-
10 A CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE
T ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAC;:AO 11

zer que ocorreu somente quando seu perpetrador quis que ocor- de modo diferente. 0 que quer que tenha acontecido nao 0 teria
resse. A maioria dos atos nao tern essa caracteristica. se esse individuo nao tivesse interferido. A a,ao eurn processo
Alguns fil6sofos argumentaram, porem, que para urn continuo, urn fIuxo, em que a monitora,ao refIexiva que 0 indi-
evento que envolve urn ser hurnano ser considerado urn exem- viduo mantem e fundamental para 0 controle do corpo que os
plo de agencia e necessario, pelo menos, que 0 que a pessoa faz atores ordinariamente sustentam ate 0 fim de suas vidas no dia-
possa ser descrito como intencional, mesmo que 0 agente este- a-dia. Sou 0 autor de muitas coisas que nao tenho a inten,ao de
ja enganado acerca dessa descri,ao. Urn oficial nurn submari- fazer e que posso nao querer realizar, mas que, nao obstante,
no puxa urna alavanca com a inten,ao de mudar 0 curso, mas, fat;o. Inversamente, pode haver circunstiincias em que pretendo
em vez disso, tendo acionado a aIavanca errada, afunda 0 realizar alguma coisa, e a realizo, embora nao diretamente atra-
Bismarck. Ele fez algo intencionalmente, embora nao 0 que yes de minha "agencia". Tomemos 0 exemplo do cafe derrama-
imaginara, mas desse modo 0 Bismarck foi a pique atraves de do. Supondo-se que urn individuo, A, era urn espirito malicioso
sua agemcia. Se alguem derrama intencionalmente cafe, pen- e pregava urna pe,a, colocando a xicara nurn pires num tal
sando erradamente tratar-se de eM, derramar 0 cafe e urn ato angulo que, quando alguem a pegasse, 0 mais provavel e que 0
dessa pessoa, ainda que nao cometido intencionalmente; sob cafe derramasse. 0 individuo B pega a xicara, que logo entor-
wna Dutra descri~ao, como "derramar 0 chei", e intencional4 . na. Seria correto dizer que 0 que A fez provocou 0 incidente ou,
(Na maioria dos casas, "derramar" alguma coisa tende a suge- pelo menos, contribuiu para sua ocorrencia. Mas A nao derra-
rir que 0 ato nao e intencional. Eurn deslize no decorrer de uma mou 0 cafe; foi B quem 0 derramou. 0 individuo B, que nao
a,ao em que a pessoa esm procurando fazer algo totalmente di- pretendia derrama-Io, 0 fez, foi 0 agente ativo; 0 individuo A,
ferente, por exemplo, passar a xicara de eM para as maos de que pretendia ver 0 cafe derramado, nao 0 derramou.
outra pessoa. Freud afirrna que quase todos esses deslizes com- Mas 0 que e fazer alguma coisa nao intencionalmente? E
portamentais, como 0 lapsus linguae, sao na realidade incons- diferente de provocar conseqiiencias nao intencionalmente?
cientemente motivados. Isso, e claro, coloca-os sob descri,5es Considere-se 0 chamado "efeito de acordeao" da a,ao'. Urn in-
intencionais vistos de urn outro angulo.) dividuo aciona urn interruptor para ilurninar urn Auarto. Em-
Mas ate mesmo 0 ponto de vista segundo 0 qual, para ser bora seja urn ato intencional, 0 fato de que acender a luz alerta
considerado urn exemplo de "agencia", urn evento deve ser in- urn gatuno nao e. Supondo que 0 gatuno fuja rna abaixo, seja
tencional somente sob uma ou outra descri,ao e errado. Ele interceptado por urn policial e, depois de processado, passe urn
confunde a designa,ao de "agencia" com a dota,ao de descri- ano na cadeia para cumprir senten,a por arrombamento de
,5es de atos'; confunde a monitora,ao continua de urna a,ao domicilio, tudo foi conseqiiencia nao intencional do ato de
que os individuos executam com as propriedades definidoras acionar 0 interrnptor da luz? Quais foram as coisas que 0 indi-
dessa a,ao como tal. "Agencia" nao se refere as inten,5es que viduo "fez"? Mencionarei urn exemplo adicional, extraido de
as pessoas tern ao fazer as coisas, mas a capacidade deras para uma teoria de segrega,ao etnica'. Urn padriio de segrega,ao
realizar essas coisas em primeiro lugar (sendo por isso que etnica poderia desenvolver-se, sem qualquer dos envolvidos
"agencia" subentende poder: cf. uma defini,ao de agente do pretender que isso acontecesse, da seguinte maneira, que pode
Oxford English Dictionary como "alguem que exerce poder ou ser ilustrada por analogia. Imagine-se urn tabuleiro de xadrez
produz urn efeito"). "Agencia" diz respeito a eventos dos quais que tern urn jogo de pe,as de 5 pence e urn jogo de pe,as de 10
urn individuo e 0 perpetrador, no sentido de que ele poderia, pence. Elas estao distribuidas ao acaso no tabuleiro tal como
em qualquer fase de urna dada seqiiencia de conduta, ter atuado individuos poderiam estar nurna area urbana. Presume-se que,
 12 A CONSTITUIi;A-O DA SOCIEDADE
-r
ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAi;AO 13
embora nao sintam hostilidade em relayao ao outro grupo, os Penso ser possivel dizer que todas as coisas acontecidas ao
membros de cada grupo nao querem viver num bairro onde assaltante depois de acendida a luz foram consequencias im-
estao etnicamente em minoria. No tabuleiro de xadrez cada premeditadas do ato, urna vez que 0 individuo em questiio
peya e movimentada ate encontrar-se numa posiyao tal que ignorava a presenya do ladrao e, por conseguinte, iniciou a
pelo menos 50% das peyas vizinhas sejam do mesmo tipo. 0 sequencia nao intencionalmente. Se existem complexidades
resultado e urn padrao de extrema segregayao. As peyas de nisso, elas tern a ver com 0 fate de urn ate aparentemente trivial
10 pence acabam sendo uma especie de gueto no meio das de poder deflagar eventos cada vez mais distanciados dele no
5 pence. 0 "efeito de composiyao" e urn resultado de urn agre- tempo e no espayo, e nao com a premeditayao ou nao dessas
gada de atos - sejam os de movimentar peyas no tabuleiro ou consequencias pelo perpetrador do ate original. Geralmente e
os de agentes nurn mercado de im6veis -, cada urn dos quais e verdade que quanta mais as consequencias de urn ate se distan-
intencionalmente executado. Mas 0 resultado final nao e pre- ciam no tempo e no espayo do contexte original desse ato, me-
tendido nem desejado por ninguem. E, por assim dizer, urn nos provavel e que essas consequencias sejam intencionais -
feito de todos e de ninguem. mas isso, evidentemente, e influenciado pelo alcance da cog-
Para compreender 0 que e fazer algo de forma nao inten- noscitividade que os atores possuem (ver pp. 105-8) e pelo po-
cional, temos de deixar claro, em primeiro lugar, como "inten- der que sao capazes de mobilizar. 0 habitual seria pensarmos
cional" deve ser entendido. Defino esse conceito como 0 que sdbre 0 que 0 agente "faz" - em contraste com as consequen-
caracteriza urn ato que seu perpetrador sabe, ou acredita, que cias decorrentes do que foi feito - em termos dos fenomenos
teni uma determinada qualidade ou desfecho e no qual esse que 0 agente tern mais ou menos sob seu controle. Na maioria
conhecimento e utilizado pelo autor para obter essa qualidade das esferas da vida, e das formas de atividade, 0 ambito do po-
ou desfecho". Se a caracterizayao de "agencia" dada acima e der de controle limita-se aos contextos imediatos de ayao ou
correta, temos de separar a questao do que urn agente "faz" interayao. Assim, diriamos que acender a luz foi algo que 0
daquilo que e "pretendido" ou os aspectos intencionais do que agente fez, e provavelmente tambem alertar 0 ladrao, mas que
e feito. "Agencia" refere-se a fazer. Acionar 0 interruptor da nao causou a captura deste pela policia nem a condenayiio a urn
luz foi algo que 0 agente fez, e alertar 0 ladrao foi tambem algo ano na cadeia. Embora fosse possivel que tais eventos nao
que 0 agente fez. Nao foi intencional se 0 ator ignorava que 0 tivessem acontecido naquele momento e local sem 0 ate de
acionar 0 interruptor, sua ocorrencia dependeu de muitos outros
ladrao estava na casa ese, por alguma razao, embora soubesse
resultados contingentes para eles serem algo que 0 ator original
da presenya do ladrao, 0 agente nao desejou usar esse conheci-
tenha "feito".
mento para alertar 0 intruso. Atos nao intencionais podem ser
Os fil6sofos consumiram grandes quantidades de tinta
conceptualmente separados das consequencias involuntarias
tentando analisar a natureza da atividade intencional. Mas, do
das ayoes, embora a distinyiio nao importe sempre que 0 foco
ponto de vista das ciencias sociais, e dificil exagerar a impor-
de interesse seja a relayao entre 0 intencional e 0 nao intencio- tiincia das conseqiiencias involuntarias de uma conduta inten-
nal. As consequencias do que os atores fazem, intencionalmen- cional. Merton fomeceu a que talvez seja a discussao classica
te ou nao, sao eventos que nao teriam acontecido se eles tives- da questao". Sublinha ele, de forma inteiramente correta, que 0
sem se comportado de modo diferente, mas cuja realizayao nao estudo das conseqiiencias impremeditadas e fundamental para
esta ao alcance do poder do agente (independentemente de o empreendimento sociol6gico. Urn dado item da atividade
quais eram suas intenyoes). pode ter conseqiiencias a) nao significativas ou b) significati-
 r
14 A CONSTlTU1I:;AO DA SOClEDADE ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAr;AO 15
vas, e c) singularmente significativas ou d) multiplamente sig- dida, pois ela propria nao e a resposta. A rela,ao entre A e B nao
nificativas. 0 que e julgado "significativo" dependeri da natu- e anatoga a rela,ao que existe entre carencias ou necessidades
reza do estudo em empreendimento ou da teoria em desenvol- e inten,oes no ator individual. No individuo, as carencias cons-
vimento". Entretanto, Merton prossegue depois conjugando as titutivas dos impulsos motivacionais do ator geram urna rela-
conseqiiencias involuntirias com a analise funcional, uma ini- ,ao dinamica entre motiva,ao e intencionalidade. Nao e esse 0
ciativa conceptual que, embora convencionalmente aceita na caso dos sistemas sociais, exceto quando os atores se compor-
literatura sociologica, desejo rejeitar. E importante entender, tam com conhecimento do que entendem por necessidades
em especial, que a analise de conseqiiencias impremeditadas sociais l2 •
nao torna compreensiveis (ao contrario do que Merton afirma) Depois destas observa,oes, nao hi como discordar da en-
as formas ou padroes aparentemente irracionais de conduta fase de Merton sobre a importilncia de conectar conseqiiencias
social. Merton contrasta a atividade intencional (fun,oes mani- impremeditadas da a,ao com priticas institucionalizadas,
festas) com suas conseqiiencias impremeditadas (fun,oes la- aquelas que estao profundamente enraizadas no tempo e no es-
tentes). Urn dos objetos da identifica,ao de fun,oes latentes e pa,o. Isso representa 0 mais importante entre tres principais
mostrar que atividades sociais aparentemente irracionais po- contextos de pesquisa - separiveis uns dos outros apenas ana-
dem, no fim de contas, nao ser tao irracionais assim. Is80 e 0 liticamente - nos quais a influencia das conseqiiencias impre-
mais provavel de acontecer, segundo Merton, no caso de ativi- meditadas pode ser analisada. Urn e 0 tipo de exemplo acender
dades ou priticas duradouras. Estas podem freqiientemente ser a luz/alertar 0 assaltante/causar a fuga do assaltante/etc. 0 inte-
rejeitadas como "supersti90es", "irracionalidades", "mera iner- resse do pesquisador, neste caso, esta na acurnula,ao de even-
cia de tradi,ao" etc. Entretanto, na opiniao de Merton, se des- tos derivados de urna circunstancia iniciadora, sem a qual essa
cobrimos que elas possuem urna fun,ao latente - urna conse- acumula,ao nao teria sido observada. A analise de Max Weber
qiiencia ou conjunto de conseqiiencias impremeditadas que dos efeitos da batalha de Maratona sobre 0 desenvolvimento
ajudam a assegurar a continua reprodu,ao da pritica em ques- subseqiiente da cultura grega, e, por conseguinte, da fprma,ao
tao -, entao demonstramos que nao sao tao irracionais. da cultura europeia em geral e urn caso pertinente, assim como
Assim, urn cerimonial, por exemplo, "pade cumprir a fun- sua discussao das conseqiiencias do disparo da bala que matou
,ao latente de refor,ar a identidade do grupo ao propiciar urna o arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo". A preocupa-
ocasiao peri6dica em que seus membros dispersos se relinem ,ao e com urn conjunto singular de eventos, remontados ate as
para realizar uma atividade comum"ll. Mas e urn equivQco su- origens e analisados contrafatualmente. 0 pesquisador pergun-
por que tal demonstra,ao de urna rela,ao funcional fornece tao "0 que teria acontecido aos eventos B, C, D, E. .. se A nao
urna razao para a existencia de urna pratica. 0 que esta sendo tivesse ocorrido?" - procurando assim identificar 0 papel de A
mais ou menos sub-repticiamente introduzido aqui e urna con- na cadeia ou seqiiencia.
cep,ao de "razoes da sociedade" com base nas necessidades Urn segundo tipo de contexto que podera ser focalizado
sociais imputadas. Assim, se entendemos que 0 grupo "neces- pelo analista social e aquele em que, em vez de urn padrao de
sita" do cerimonial para sobreviver, consideramos que a manu- conseqiiencias impremeditadas, iniciadas por urn tiDieD evento,
ten,ao deste ultimo deixa de ser irracional. Mas dizer que a existe urn padriio resultante de urn complexo de atividades indi-
existencia de urn estado social A necessita de urna pritica so- viduais. A discussao sobre a segrega,ao etnica, mencionada
cial B para ajuda-lo a sobreviver em forma reconhecivelmente acima, e urn exemplo disso. Ai, urn "resultado final" definido e
semelbante e colocar urna questao que tera entao de ser respon- considerado 0 fenomeno a ser explicado, e demonstra-se que
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16 A CONSTITUH;:AO DA SOClEDADE 17
ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAr;:AO

esse resultado final deriva como conseqiiencia impremeditada Agenda e poder

de urn agregado de cursos de conduta intencional. 0 tema da
racionalidade tende a emergir novamente aqui, embora desta Qual e a natureza da conexao 16gica entre a,ao e poder?
vez nao exista nenhuma obje,ao l6gica a fazer-Ihe. Como os Embora as ramifica,oes da questao sejam complexas, a rela-
te6ricos do jogo sublinharam de modo convincente, 0 resultado ,ao basica envoIvida pode ser facilmente apontada. Ser capaz
de urna serie de a,oes racionais, empreendidas separadamente de "atuar de outro modo" significa ser capaz de intervir no
por atores individuais, pode ser irracional para todos eles". Os mundo, ou abster-se de tal interven,ao, com 0 efeito de in-
"efeitos perversos" sao apenas urn tipo de conseqiiencia impre- fluenciar urn processo ou estado especifico de coisas. Isso
meditada, embora seja verdade, sem duvida, que as situa,oes pressupoe que ser urn agente e ser capaz de exibir (cronica-
em que eles ocorrem revestem-se de particular interesse". mente, no fluxo da vida cotidiana) urna gama de poderes cau-
o terceiro tipo de contexte em que podem ser tra,adas as sais, incluindo 0 de influenciar os manifestados por outros. A
conseqiiencias impremeditadas e aquele apontado por Merton: a,ao depende da capacidade do individuo de "criar urna dife-
quando 0 interesse do analista recai sobre os mecanismos de ren,a" em rela,ao ao estado de coisas ou curso de eventos
reprodu,ao de pniticas institucionalizadas. Neste caso, as con- preexistente. Urn agente deixa de 0 ser se perde a capacidade
seqiiencias impremeditadas da a,ao formam as condi,oes re- para "criar uma diferen9a", isto e, para exercer alguma especie
conhecidas de a,ao ulterior nurn cicio de feedback nao reflexi- de poder. Muitos casos interessantes para a analise social gra-
vo (la,os casuais). 18. sublinhei que nao e suficiente isolar as vitam em torno dos limites do que pode ser considerado a,ao -
rela,oes funcionais a fim de explicar por que ocorre esse feed- quando 0 poder do individuo e limitado por uma gama de cir-
back. Como acontece, entao, que ciclos de conseqiiencias nao cunstancias especificaveis". Mas e de primordial importancia
intencionais realimentem-se para promover a reprodu<;ao so- reconhecer que as circunsHincias de coeryao social, em que as
cial por longos periodos de tempo? De maneira geral, isso nao individuos "nao tern escolha", nao podem ser equiparadas com
e dificil de analisar. Atividades repetitivas, localizadas num a dissolu,ao da a,ao como tal. "Nao ter escolha" nao significa
contexto unico de tempo e espa,o, tern conseqiiencias regulari- que a a,ao foi substituida por rea,ao (como quando uma pes-
zadas, impremeditadas pelos que se empenham nelas, em con- soa pestaneja se urn movimento rapido e feito perto de seus
textos espa,o-temporais mais ou menos "distantes". 0 que olhos). Isso poderia parecer tao 6bvio que nao precisaria se-
acontece nessa segunda serie de contextos influencia, portanto, quer ser dito. Mas algumas escolas muito proeminentes de teo-
direta ou indiretamente, as condi,oes ulteriores de a,ao no con- ria social, associadas principalmente com 0 objetivismo e com
texto original. Para entender 0 que esta acontecendo, nao sao a "sociologia estrutural", nao reconheceram essa distin,ao.
necessarias outras variaveis explanat6rias alem daquelas que Elas partiram do pressuposto de que as coer,oes atuam como
explicam por que os individuos sao motivados a empenhar-se for,as na natureza, como se "nao ter escolha" fosse equivalente
em pr<iticas sociais atraves do tempo e do espa,o, e que conse- a ser irresistivel e incompreensivelmente impelido por pres-
qiiencias advem. As conseqiiencias nao intencionais sao regu- soes mecanicas (ver pp. 247-50).
larmente "distribuidas" como urn subproduto do comporta- Colocando essas observa,oes de urn outro modo, pode-
mento regularizado reflexivamente sustentado como tal por mos dizer que a a,ao envolve logicamente poder no sentido de
seus participantes. capacidade transformadora. Nesse sentido, pelo significado
mais abrangente de "poder", 0 poder e logicamente anterior it
subjetividade, it constitui,ao da monitora,ao reflexiva da con-
 -/
18 A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE
ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURA9AO 19
duta. Vale a pena enfatizar esse ponto, porque as concep90es
mas de dependencia oferecern alguns recursos por meio dos
de poder nas ciencias sociais tendem a refletir fielmente 0 dua-
quais aqueles que sao subordinados podem influenciar as ativi-
lismo de sujeito e objeto a que nos referimos antes. Assim,
dades de seus superiores. E a isso que chamo de dialhica do
"poder" e definido, com muita frequencia, em termos de inten-
controle em sistemas sociais.
9ao ou de vontade, como a capacidade de obter resultados de-
sejados e pretendidos. Outros autores, por contraste, entre eles
Parsons e Foucault, veem 0 poder como, acima de tudo, urna
Estrutura, estrutura9ao
propriedade da sociedade ou da comunidade social.
A questao nao e eliminar urn desses tipos de concep9ao a Passemos agora ao ceme da teoria da estrutura9ao: os
custa do outro, mas expressar a rela9ao entre eles como urna
conceitos de "estrutura", "sistema" e "dualidade de estrutura".
caracteristica da dualidade da estrutura. Em minba opiniao,
A n09ao de estrutura (ou "estrutura social"), e claro, goza de
Bachrach e Baratz estao certos quando, em sua muito conheci- grande destaque nos escritos da maioria dos autores funciona-
da discussao do assunto, dizem que 0 poder tern duas "faces"
listas e emprestou seu nome as tradi90es do "estruturalismo".
(nao tres, como declara Steven Lukes)". Eles representam es-
Mas em nenburn caso isso e conceituado de urna forma mais
sas faces como a capacidade de atores de colocar em vigor
bern adaptada as exigencias da teoria social. Os autores funcio-
decisoes que preferem, por urn lado, e como a "mobiliza9ao de
nalistas e seus criticos deram muito mais aten9ao a ideia de
tendencias" que esta embutida nas institui90es, por outro. Isso
"fun~ao" do que ade "estrutura" e, conseqiientemente, esta ul-
nao e totalmente satisfat6rio porque preserva urna concep9ao
tima tendeu a ser usada como urna n09ao recebida. Mas nao
de poder soma-zero. Em vez de usar a terminologia deles, po-
pode haver duvida sobre 0 modo como "estrutura" e usualmen-
demos expressar a dualidade de estrutura nas rela90es de poder te entendida pelos funcionalistas e, de fato, pela vasta maioria
da seguinte maneira. Os recursos (focalizados via significa9ao dos analistas sociais - como uma especie de "padronizac;ao"
e legitima9ao) sao propriedades estruturadas de sistemas so-
das rela90es sociais ou dos fenomenos sociais. Com frequen-
ciais, definidos e reproduzidos por agentes dotados de capaci-
dade cognoscitiva no decorrer da intera9ao. 0 poder nao esta
cia, isso e ingenuamente concebido em termos de imagens vi-
suais, analogas ao esqueleto ou morfologia de urn organismo
intrinsecamente ligado a realiza9ao de interesses secionais.
, ou as vigas-mestras de urn edificio. Tais concep90es estao inti-
Nessa concep9ao, 0 uso do poder nao caracteriza tipos especi-
mamente ligadas ao dualismo de sujeito e objeto social: "estru-
ficos de conduta, mas toda a a9ao, eo poder nao e em si mesmo
tura" apresenta-se nesse caso como "externa" a a9ao humana,
urn recurso. Os recursos sao vefculos atraves dos quais 0 poder como uma fonte de restri9ao a livre iniciativa do sujeito inde-
e exercido, como urn elemento rotineiro da exemplifica9ao da
pendentemente constituido. Tal como foi conceituada no pen-
conduta na reprodu9ao social. Nao devemos conceber as estru-
samento estruturalista e p6s-estruturalista, por outro lado, a
turas de domina9ao firmadas em institui90es sociais como se n09ao de estrutura e mais interessante. Ela e caracteristicamen-
de algurna forma produzissem laboriosamente "corpos d6ceis"
te concebida, ai, niio como urna padroniza9ao de presen9as, mas
que se comportam como os autonomos sugeridos pela ciencia
como urna interse9ao de presen9a e ausencia; os c6digos subja-
social objetivista. 0 poder em sistemas sociais que desfrutam
centes tern de ser inferidos de manifesta90es superffciais.
de certa continuidade no tempo e no espa90 pressupoe rela90es
Essas duas ideias de estrutura talvez pare9am, a primeira
regularizadas de autonomia e dependencia entre atores ou cole-
vista, sem nenhuma relac;ao entre si, mas, de fato, ambas se
tividades em contextos de intera9ao social. Mas todas as for-
relacionam com importantes aspectos da estrutura9ao de rela-
 20 A CONSTITUlr;:A'O DA SOCIEDADE
l ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAr;:AO 21

,oes sociais, aspectos que, na teoria da estrutura,ao, sao apreen- ca urn evidente risco de interpreta,ao erronea devido a certos
didos mediante 0 reconhecimento de uma diferencia,ao entre usos dominantes de "regras" na literatura filosOfica.
os conceitos de "estrutura" e "sistema". Ao analisar rela,oes
sociais, temos de reconhecer tanto urna dimensao sintagmati- I) As regras sao pensadas freqiientemente em liga,ao com
ca, a padroniza,ao de rela,oes sociais no tempo-espa,o envol- jogos, como prescri,oes formalizadas. Aquelas envolvidas
vendo a reprodu,ao de praticas localizadas, quanta urna dimen- na reprodu,ao de sistemas sociais nao sao geralmente desse
sao paradigmatica, envolvendo uma ordem virtual de "modos / tipo. Mesmo as que sao codificadas como leis estao sujeitas,
de estrutura,ao" recursivamente implicados em tal reprodu,ao. de forma caracteristica, a urna diversidade muitissimo maior
Nas tradi,oes estruturalistas, M habitualmente ambigiiidade de contesta,oes do que as regras de jogos. Embora 0 uso
sobre se as estruturas se referem a uma matriz de transforma- destas ultimas, como 0 xadrez etc., enquanto prototipico das
,oes admissiveis dentro de urn conjunto ou a regras de trans- propriedades governadas por regras de sistemas sociais, seja
forma,ao que govemam a matriz. Eu trato a estrutura, pelo freqiientemente associado a Wittgenstein, mais importante e
menos em seu significado mais elementar, como referente a o que Wittgenstein tern a dizer sobre os jogos de crian,as
tais regras (e recursos). E enganoso, porem, falar de "regras de enquanto exemplifica,ao das rotinas da vida social.
transforma,ao", porque todas as regras sao inerentemente trans- 2) As regras sao freqiientemente tratadas no singular, como se
formacionais. Assim, a estrutura refere-se, em analise social, pudessem estar relacionadas com exemplos ou casos especi-
as propriedades de estrutura,ao que permitem a "delimita,ao" ficos de conduta. Mas isso e sumamente enganoso se enca-
de tempo-espa,o em sistemas sociais, as propriedades que pos- rado como anaIogo ao funcionamento da vida social, na qual
sibilitam a existencia de praticas sociais discemivelmente se- as pniticas sao sustentadas em associa.;:ao com conjuntos
melhantes por dimensoes variaveis de tempo e de espa,o, e lhes mais ou menos livremente organizados.
emprestam uma fanna "sistemica". Dizer que estrutura e uma 3) As regras nao podem ser conceituadas separadamente dos
"ordem virtual" de rela,oes transformadoras significa que os recursos, os quais se referem aos modos pelos quais as rela-
sistemas sociais, como praticas sociais reproduzidas, nao tern \ ,oes transformadoras sao realmente incorporadas a produ-
"estruturas", mas antes exibem "propriedades estruturais", e ,ao e reprodu,ao de praticas sociais. Assim, as propriedades
que a estrutura s6 existe, como presen,a espa,o-temporal, em estruturais expressam formas de daminariia e pader.
suas exemplifica,oes em tais praticas e como tra,os mnemicos 4) As regras subentendem "procedimentos met6dicos" de inte-
orientando a conduta de agentes hurnanos dotados de capacida- ra,ao social, como Garfinkel, em especial, deixou bern cla-
de cognoscitiva. Isso nao nos impede de conceber as propriedades ro. Elas entrecruzam-se tipicamente com praticas na contex-
estruturais como hierarquicamente organizadas em termos de tualidade de encontros localizados: a gama de considera-
extensao espa,o-temporal das praticas que eles recursivamente ,oes ad hoc que esse autor identifica esta cronicamente en-
organizam. As propriedades estruturais mais profundamente em- volvida com a exemplifica,ao de regras e e fundamental
butidas, implicadas na reprodu,ao de totalidades sociais, chama para a forma de tais regras. Todo ator social competente,
de principias estruturais. Aquelas praticas que possuem a maior acrescente-se, e ipso Jacta urn te6rico social no nlvel da
extensao espa,o,temporal, dentro de tais totalidades, podem ser consciencia discursiva e urn "especialista metodo16gico"
designadas como instituiroes. nos nlveis de consciencia pratica e discursiva.
Falar de estrutura enquanto "regras" e recursos, e de estru- 5) As regras possuem dois aspectos, e e essencial distingui-Ios
turas enquanto conjuntos isolaveis de regras e recursos, impli- conceptualmente, urna vez que alguns escritores filosOfi-
 22 A CONSTITU1I:;AO DA SOCIEDADE

cos, como Winch, sao propensos a fundi-los. Por urn lado,

f ELEMENTOS DA TEORJA DA ESTRUTURA(:AO

Muitos outros exemplos poderiam, eclaro, ser oferecidos,

23

as regras relacionam-se com a constitui,ao de significado e, mas estes servirao no presente contexto. No exemplo 3, re_ H

por outro, com 0 sancionamento dos modos de conduta gra" e mais ou menos equivalente a habito ou rotina. 0 sentido
social.
de "regra" e bastante fraco, porquanto nao pressupae geral-
mente algurna especie de preceito subjacente a que 0 individuo
Apresentei 0 usa acima de "estrutura" para ajudar a desfa- esta obedecendo nem qualquer san,ao aplicavel para escorar
zer 0 carater fixo ou meciinico que 0 termo epropenso a ter no
esse preceito; esimplesmente algo que a pessoa faz de maneira
usa sociologico ortodoxo. Os conceitos de "sistema" e de "es-
trutura,ao" curnprem muito da fun,ao que geralmente e atri- habitual. 0 habito e parte da rotina, e darei muita enfase a
buida a "estrutura". Ao propor urn emprego de "estrutura" que importancia da rotina na vida social. As "regras", tal como as
podera parecer, a primeira vista, muito distante das interpreta- entendo, certamente incidem sobre numerosos aspectos da pril-
,aes convencionais do termo, nao pretendo sustentar que ver- tica rotineira, mas uma pnhica rotineira nao euma regra.
saes mais vagas sejam completamente abandonadas. "Socie- Os casos I e 4 pareceram a muitos representar dois tipos de
dade", "cultura" e uma gama de outras formas da terminologia regra: a constitutiva e a reguladora. Explicar a regra que gover-
sociologica podem ter usos duplos que criam dificuldades na 0 xeque-mate no xadrez edizer algo sobre 0 que participa da
somente em contextos em que ha uma diferen,a na natureza propria cria,ao do xadrez como jogo. A regra de que os operil-
das declara,aes que os empregam. Do mesmo modo, nao te- rios devem bater 0 ponto a urna determinada hora, por outro
nho qualquer obje,ao especial a se falar de "estrutura de clas- lado, nao ajuda a definir em que consiste 0 trabalho; ela especi-
se", "a estrutura das sociedades industrializadas", etc., quando fica como este deve ser exercido. Como diz Searle, as regras
essas expressaes se propaem indicar, de urn modo geral, carac- reguladoras sao comurnente parafraseadas na forma "Fazer X"
teristicas institucionais relevantes de urna sociedade ou g~ma ou "Se Y, fazer X". Algumas regras constitutivas terao esse ca-
de sociedades.
rilter mas a maioria tera a forma "X vale como Y" ou "X vale
Uma das principais proposi,aes da teoria da estrutura,ao
como Y no contexto C"I8. A existencia de algo suspeito nessa
eque as regras e os recursos esbo,ados na produ,ao e na repro- distin,ao, como referente a dois tipos de regra, e indicada pela
du,ao da a,ao social sao, ao mesmo tempo, os meios de repro-
du,ao do sistema (a dualidade de estrutura). Mas como inter- inadequa,ao etimologica do termo "regra reguladora". Afinal,
pretar essa afirma,ao? Em que sentido e Hcito afirmar que, a palavra "regulador" ja subentende "regra": sua defini,ao no
quando me dedico as minhas tarefas cotidianas, minhas ativi- dicionilrio e "0 que controla por meio de regras". Eu diria que I
dades incorporam e reproduzem, digamos, as institui,aes glo- e 4 expressam, na verdade, antes dois aspectos de regras do que
bais do capitalismo moderno? Que regras estao sendo aqui dois tipos variantes de regra. 0 exemplo I e certamente parte do
invocadas, em todo 0 caso? Consideremos os seguintes exem- que 0 xadrez e, mas, para os enxadristas, ele tern propriedades
plos possiveis do que sao regras: sancionadoras ou "reguladoras"; refere-se a aspectos do jogo
que devem ser observados. Mas 0 exemplo 4 tarnbem possui
I) "A regra que define 0 xeque-mate no xadrez e..."; aspectos constitutivos. Talvez nao participe da defini,ao do que
2) Uma formula: an = n' + n - I; seja "trabalho", mas certamente entra na de urn conceito como
3) "Como regra, R levanta-se todos os dias as 6 horas"; "burocracia industrial". Os exemplos I e 4 dirigem a nossa aten-
4) "E uma regra que todos os operilrios devem bater seu ponto ,ao, na realidade, para dois aspectos das regras: seu papel na
as 8 horas da manha".
constitui,ao do significado e sua estreita conexao com san,aes.
 24
"O~'=''-'O ~'~D' I "f~~'"'
D'
o exemplo 2 podera parecer 0 menos promissor como urna
forma de conceituar "regra" que possua alguma rela9ilo com
ITO",' 0"",_,-,"
dos seguidores de Wittgenstein. As regras "enunciadas" como os
25

exemplos I e 4 silo interpreta90es de atividade, assim como se

"estrutura". Na verdade, argumentarei, trata-se do mais apropria- relacionam com tipos especificos de atividades: todas as regras
do entre os quatro. Nilo quero com isso dar a entender que a vida codificadas adotam essa forma, uma vez que conferem expres-
social possa ser reduzida a urn conjunto de principios matema- silo verbal ao que supostamente e feito. Mas as regras silo pro-
ticos, 0 que esta muito longe de meu modo de pensar. Quero cedimentos de a9ilo, aspectos da praxis. E por referencia a isso
dizer que esta na natureza das formulas 0 fato de podermos que Wittgenstein resolve 0 que ele, em primeiro lugar, estabe-
revelar do melhor modo qual e 0 sentido analiticamente mais Ieee como urn "paradoxo" de regras e acompanhamento de re-
efetivo de "regra" em teoria social. A formula an ~ n 2 + n - I e gras. 0 paradoxo esta em nilo se poder dizer que algum curso
extraida do exemplo de Wittgenstein de jogos nurnericos". Uma de a9ilo e guiado por urna regra, porque todo curso de a9ilo pode
pessoa escreve uma seqiiencia de numeros; uma segunda ela- ser tra9ado de modo a concordar com essa regra. Entretanto, se
bora a formula, fornecendo os numeros que se seguem. 0 que e esse e 0 caso, tambem e verdade que se pode fazer com que
urna formula desse tipo e 0 que significa entende-Ia? Entende- todo e qualquer curso de a9ilo conflite com essa regra. Temos
la nilo e expressa-Ia. Pois uma pessoa poderia expressa-Ia sem aqui urn mal-entendido, uma confusilo entre a interpreta9ilo ou
entender' a serie; alternativamente, e possivel compreender a expressilo verbal de uma regra e a obediencia a ela".
serie sem ser capaz de dar expressilo verbal a formula. Com- Encaremos as regras da vida social, portanto, como tecni-
preender nilo e urn processo mental acompanhando a solU9 ilo cas ou procedimentos generalizaveis aplicados no desempe-
do enigma que a seqiiencia de numeros apresenta - pelo me- nho/reprodu9ilo de prliticas sociais. As regras formuladas -
nos, nao e urn processo mental no sentido em que 0 e ouvir aquelas que recebem expressilo verbal, como canones de lei,
uma melodia ou trase declamada. Esimplesmente ser capaz de normas burocrliticas, regras de jogos etc. - silo, pois, interpre-
aplicar a formula no contexto e do modo corretos, a fim de con- ta90es codificadas de regras como tais. Devem ser aceitas nilo
tinuar a serie.
como regras exemplificadoras em geraI, mas como tipos espe-
Uma formula e urn procedimento generalizavel: generali- cificos de regra formulada, os quais, em virtude de sua formu-
zavel porque se aplica a uma vasta gama de contextos e oca- la9ilo aberta, assumem varias qualidades especificas".
sioes; urn procedimento porque permite a continua9ilo metodi- Ate agora, essas considera90es oferecern apenas urna abor-
ca de uma seqiiencia estabelecida. Silo as regras lingiiisticas dagem preliminar do problema. Como e que as formulas se re-
assim tambem? Penso que sim - muito mais do que os tipos de Iacionam com as praticas de que os atores sociais se ocupam, e
regra de que nos fala Chomsky. E isso parece tambem harmo- em que tipos de formulas estamos mais interessados para os
nizar-se com os argumentos de Wittgenstein ou, de qualquer a
fins gerais de analise social? Quanto primeira parte da per-
forma, com uma possivel interpreta9ilo dos mesmos. De acor- gunta, podemos dizer que a consciencia de regras sociais, ex-
do com Wittgenstein, "compreender uma Iinguagem significa pressa sobretudo na consciencia prlitica, e 0 proprio >imago da-
dominar uma tecnica"20. Isso pode ser traduzido da seguinte quela "cognoscitividade" que caracteriza especificamente os
maneira: 0 usa da Iinguagem e primordialmente metodologico, agentes humanos. Como atores sociais, todos os seres hurnanos
e as regras da linguagem silo procedimentos metodicamente sao altamente "instruidos" no que diz respeito ao conhecimen-
aplicados que estilo envolvidos nas atividades prliticas da vida to que possuem e aplicam na produ9ilo e reprodu9ilo de encon-
cotidiana. Esse aspecto da linguagem e muito importante, em- tros sociais cotidianos; 0 grande volume desse conhecimento e,
bora quase nunca receba grande destaque por parte da maioria em sua maioria, de carliter mais prlitico do que teorico. Como
 26 A CONSTITUl<;A-O DA SOCIEDADE
I ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURA<;AO 27
Schutz e muitos outros sublinharam, os atores empregam es- "prosseguir". A formula~ao discursiva de uma regra ja euma
quemas simbolizados (formulas) no decorrer de suas atividades interpretariio dela e, conforme assinalei, pode em si e de si
diarias para resolver rotineiramente as situa90es da vida social. mesma alterar a forma de sua aplica9ao. Entre as regras que
a conhecimento do procedimento, ou 0 dominio das tecnicas nao sao apenas discursivamente formuladas, mas formalmente
de "fazer" atividade social, e metodologico por defini9ao. Quer codificadas, 0 caso tipico e 0 das leis. As leis, e claro, estao en-
dizer, tal conhecimento nao especifica todas as situa90es que tre os tipos mais fortemente sancionados de regras sociais, e
um ator podera defrontar, nem poderia faze-Io; ele proporciona nas sociedades modemas elas tern grada90es formalmente des-
a capacidade generica de reagir a uma gama indeterminada de critas de retribui9ao. Contudo, seria um grave erro subestimar
circunstilncias sociais e de influencia-Ias. a for9a de san90es informalmente aplicadas em rela9ao a uma
as tipos de regras que se revestem da maior importilncia variedade de praticas cotidianas corriqueiras. A parte tudo 0
para a teoria social estao circunscritos a reprodu9ao de praticas mais que se possa pensar ter sido demonstrado pelos "experi-
institucionalizadas, isto e, praticas mais profundamente sedi- mentos com confian9a" de Garfinkel, uma coisa pelo menos e
mentadas no tempo-espa90". As principais caracteristicas das certa: eles mostram a for9a extraordinariamente irresistivel e
regras pertinentes as questoes gerais de analise social podem convincente de que estao investidas caracteristicas aparente-
ser descritas da seguinte maneira:
mente secundarias da resposta coloquial".
intensivo tacito informal fracamente sancionado
As qualidades estruturadoras das regras podem ser estru-
turadas, em primeiro lugar, em rela9ao a forma9ao, manuten-
superficial discursivo formalizado fortemente sancionado
9ao, termino e reconstitui9ao de encontros. Embora uma varie-
Por regras de algum modo intensivas entendo as formulas dade impressionante de procedimentos e taticas seja usada pe-
constantemente invocadas no decorrer das atividades do dia-a- los agentes na constitui9ao e reconstitui9ao de encontros, e
dia, que entram na estrutura9ao de grande parte da textura da possivel que os particularmente importantes sejam os envolvi-
vida cotidiana. As regras da linguagem tern esse carater. Mas dos na manuten9ao da seguran9a ontologica. as "experimen-
tambem e 0 caso, por exemplo, dos procedimentos utilizados tos" de Garfinkel sao certamente relevantes nesse aspecto. Eles
por atores na organiza9ao do revezamento em conversa90es ou indicam que as prescri90es envolvidas na estrutura9ao da inte-
em intera9ao. Eles podem ser contrastados com regras que, ra9ao diaria sao muito mais fixas e restritivas do que possam
embora tenham talvez urn escopo mais amplo, tern urn impacto parecer, dada a desenvoltura com que sao ordinariamente obe-
apenas superficial sobre boa parte da textura da vida social. decidas. Isso se deve certamente ao fato de as respostas ou atos
Esse contraste e importante, quando menos pelo fato de ser desviantes que Garfinkel ensinou a seus "experimentadores"
comumente aceito como ponto pacifico pelos cientistas sociais terem perturbado 0 senso de seguran9a ontologica dos "sujei-
que as regras mais abstratas - por exemplo, a lei codificada _ tos" pela corrosao da inteligibilidade do discurso. Violar ou
sao as mais influentes na estrutura9ao da atividade social. Eu ignorar regras nao e, evidentemente, a Unica maneira pela qual
proporia, entretanto, que muitos procedimentos aparentemente podem ser estudadas as propriedades constitutivas e sanciona-
triviais seguidos na vida diana exercem uma influencia mais doras de regras intensivamente invocadas. Mas nao ha duvida
profunda sobre a generalidade da conduta social. As demais ca- de que Garfinkel ajudou a desvendar um campo extraordina-
tegorias devem ser mais ou menos obvias. A maioria das regras riamente rico de estudo - realizando a "alquimia do sociologo",
envolvidas na produ9ao e reprodu9ao de praticas sociais sao a "transmuta9ao de qualquer fragmento de atividade social co-
apenas tacitamente apreendidas pelos atores: eles sabem como mum numa esclarecedora publica9ao"".
 28 A CONSTITUl9AO DA SOCIEDADE

Distingo "estrutura" como termo generico de "estruturas"

no plural e ambas das "propriedades estruturais de sistemas so-
r '~M,~m 'm=~", DmOM' ill

abrangentes influencia fortemente 0 impacto mesmo de sua

29

conduta mais habitual sobre a integra,ao das totalidades so-

ciais"26. "Estrutura" refere-se nao s6 a regras envolvidas na pro- ciais. Neste ponto, atingimos os limites de exemplos lingiiisti-
duc ao e reproducao de sistemas sociais, mas tambem a recur- cos que poderiam ser usados para ilustrar 0 conceito da duali-
sos (sobre os quais eu nao disse muito ate agora, mas 0 farei em dade de estrutura. E possivel obter consideravel esclarecimen-
breve). Como acontece comurnente com seu uso nas ciencias to para os problemas de analise social a partir do estudo das
sociais, 0 termo "estrutura" tende a ser ligado com os aspectos quantidades recursivas da fala e da linguagem. Quando produ-
mais duradouros dos sistemas sociais em mente, e nao quero zo urna expressao gramatical, ap6io-me nas mesmas regras sin-
perder essa conotacao. Os mais importantes aspectos da estru- taticas que essa expressao ajuda a produzir. Mas falo a "mes-
tura sao as regras e os meios recursivamente envolvidos em rna" linguagem dos outros locutores de minha comunidade lin-
instituicoes. As instituicoes sao, por definicao, os aspectos giiistica; todos compartilhamos das mesmas regras e praticas
mais duradouros da vida social. Ao falar das propriedades es- lingiiisticas, oferecernos ou tomamos uma gama de varia,oes
truturais dos sistemas sociais refiro-me as suas caracteristicas relativamente secundirias. NaG e necessariamente esse 0 caso
institucionalizadas, proporcionando "solidez" atraves do tem- das propriedades estruturais de sistemas sociais em geral. Mas
po e do espaco. Uso 0 conceito de "estruturas" para chegar as esse e urn problema que nao esta relacionado com 0 conceito
relac oes de transformacao e mediacao que constituem as "cha- de dualidade da estrutura como tal. Relaciona-se com 0 modo
ves de circuito" subjacentes as condicoes observadas de repro- como devem ser conceituados os sistemas sociais, especial-
ducao de sistema. mente as "sociedades".
Responderei agora a pergunta que formulei originalmen-
te: de que maneira e possivel dizer que a conduta de atores
individuais reproduz as propriedades estruturais de coletivida- A dualidade da estrutura
des maiores? A questao e, ao mesmo tempo, mais facil e mais
diffcil de responder do que parece. Nurn nivel16gico, a respos- Estrutura{s} Sistema(s) Estruturayao
ta nao passa de urn truismo. Quer dizer, embora a existencia Regras e recursos, au Relacoes reproduzidas Condicoes governando
continuada de grandes coletividades ou sociedades nao depen- conjuntos de rela90es entre atores ou a continuidade ou
de transformacao. coletividades, 1ransmuta9ao de
da, evidentemente, das atividades de qualquer individuo em organizados como organizadas estruturas e, portanto,
particular, elas manifestamente deixariam de existir se todos os propriedades de como praticas sociais a reprodu9ao de
sistemas sociais regulares sistemas sociais
agentes envolvidos desaparecessem. Num nivel substantivo, a
resposta a pergunta depende de questoes ainda por tratar - as
concernentes aos mecanismos de integracao de diferentes tipos
Resumamos nossa argurnenta,ao ate aqui. A estrutura,
de totalidade social. E sempre 0 caso de que a atividade cotidia-
como conjuntos de regras e recursos recursivamente organiza-
na de atores sociais ap6ia-se e reproduz aspectos estruturais de dos, esta fora do tempo e do espa,o, exceto em suas exemplifi-
sistemas sociais mais amplos. Mas as "sociedades" - como
cayoes e coordenar;ao como trar;os mnemicos, e e marcada por
deixarei claro - nao sao necessariamente coletividades unifica- uma "ausencia do sujeito". Os sistemas sociais em que a estru-
das. A "reproducao social" nao deve ser equiparada aconsolida- tura esta recursivamente implicada, pelo contrano, compreen-
cao da coesao social. A localiza,ao de atores e de coletivida- dem as atividades localizadas de agentes humanos, reproduzi-
des em diferentes setores ou regiOes de sistemas sociais mais das atraves do tempo e do espa,o. Analisar a estrutura,ao de
 30 A CONSTfTUl9A'O DA SOCIEDADE
r ELEMENTOS DA TEORJA DA ESTRUTURA9A'O 31
sistemas sociais significa estudar os modos como tais sistemas, suem nao e secundario para a padroniza,ao persistente da vida
fundamentados nas atividades cognoscitivas de atores localiza' social, mas faz parte dela. Esta enfase e absolutamente neces-
dos que se apoiam em regras e recursos na diversidade de con- saria para evitarem os erros do funcionalismo e do estruturalis-
textos de a,ao, sao produzidos e reproduzidos em intera,ao. mo, erros que, suprimindo ou reduzindo as razoes dos agentes
Crucial para a ideia de estrutura,ao e 0 teorema da dualidade - a racionaliza,ao da a,ao como cronicamente envolvida na
da estrutura, 0 qual esta logicamente subentendido nos argu- estrutura,ao de praticas sociais -, procuram as origens de suas
mentos acima apresentados. A constitui,ao de agentes e estru- atividades em fenomenos que esses agentes ignoram28 • Mas e

I
turas nao sao dois conjuntos de fenomenos dados independen- igualmente importante evitar cair-se no equivoco oposto de
temente - urn dualismo -, mas representam uma dualidade. De abordagens hermeneuticas e de varias versoes da fenomenolo-
acordo com a no,ao de dualidade da estrutura, as propriedades gia, as quais tendem a considerar a sociedade a cria,ao plastica
estruturais de sistemas sociais sao, ao mesmo tempo, meio e de sujeitos humanos. Cada uma dessas abordagens e versoes e
fim das praticas que elas recursivamente organizam. A estrutu- uma forma ilegitima de redu,ao derivada de uma falta de con-
fa nao e"extema" aos individuos: enquanto traltOS rnnemicos e ceitua,ao adequada da dualidade da estrutura. De acordo com
exemplificada em praticas sociais, e, num certo sentido, mais a teoria da estrutura,ao, 0 momenta da produ,ao da a,ao e
"intema" do que extema as suas atividades, num sentido dur- tambem um momenta de reprodu,ao nos contextos do desem-
kheimiano. Estrutura nao deve ser equiparada a restri,ao, a penho cotidiano da vida social, mesmo durante as mais vioIen-
coer,ao, mas e sempre, simultaneamente, restritiva e facilita- tas convulsoes ou as mais radicais formas de mudan,a social.
dora. Isso, e claro, nao impede que as propriedades estrutura- Nao e correto encarar as propriedades estruturais de sistemas
das de sistemas sociais se estendam, no tempo e no espa,o, para sociais como "produtos sociais",ja que com isso tende-se a su-
alem do controle de quaisquer atores individuais. Tampouco gerir que atores pre-constituidos se reUnem, de alguma forma,
compromete a possibilidade de que as teorias de sistemas so- para cria-Ias". Ao reproduzirem propriedades estruturais, para
ciais dos proprios autores, que eles ajudam a constituir e a re- repetir uma Frase usada anteriormente, os agentes tambem
'constituir em suas atividades, possam reificar aqueles siste- reproduzem as condi,oes que tomam possivel tal a,ao. A estru-
mas. A reifica,ao das rela,oes sociais, ou a "naturaliza,ao" tura nao tern existencia independente do conhecimento que os
discursiva das circunstancias e produtos historicamente contin- agentes possuem a respeito do que fazem em sua atividade
gentes da a,ao humana, e uma das principais dimensoes da cotidiana. Os agentes humanos sempre sabem 0 que estiio fa-
ideologia na vida sociaF'.
zendo no myel da consciencia discursiva, sob alguma forma de
Ate as mais rudimentares formas de pensamento reifica- descri,ao. Entretanto, 0 que eles fazem pode ser-Ihes inteira-
do, entretanto, deixam intata a significa,ao fundamental da mente desconhecido sob outras descri,oes, e talvez conhe,am
cognoscitividade de atores humanos, pois esta baseia-se menos muito pouco sobre as conseqiiencias ramificadas das ativida-
na consciencia discursiva do que na consciencia pritica. 0 co- des em que estao empenhados.
nhecimento de conven,oes sociais, de si mesmo e de outros A dualidade da estrutura e sempre a base principal das
seres humanos, pressuposto na capacidade de "prosseguir" na continuidades na reprodu,ao social atraves do espa,o-tempo.
diversidade de contextos da vida social, e detalhado e impres- Por sua vez, pressupoe a monitora,ao reflexiva (e a integra,ao)
sionante. Todos os membros competentes da sociedade sao de agentes na duree da atividade social cotidiana. Mas a cog-
imensamente talentosos nas realiza,oes priticas de atividades noscitividade humana e sempre limitada. 0 fluxo da a,ao pro-
sociais e habeis "sociologos". 0 conhecimento que eles pos- duz continuamente conseqiiencias que nao estavam nas inten-
 33
ELEMENTOSDA TEORIA DA ESTRUTURA(:AO
32 A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE
textos da vida social ocorrem processos de "filtragem de infor-
,oes dos atores, e estas tambem podem formar condi,oes nao- ma,ao seletiva", pelos quais atores estrategicamente colocados
reconhecidas de a,ao, nos moldes de um feedback. A historia procuram reflexivamente regular as condi,oes globais de re-
humana e criada por atividades intencionais, mas nao constitui produ,ao do sistema, seja para manter as coisas como estiio,
um projeto deliberado; ela se esquiva persistentemente dos es-
seja para muda-Ias30 •
for,os para coloca-la sob dire,ao consciente. Contudo, essas A distin,ao entre la,os causais homeostaticos e auto-reI
tentativas sao continuamente feitas por seres humanos, que agem la9i\o reflexa na reprodu,ao do sistema deve ser complementa
sob a amea,a e a promessa da circunstiincia de serem Unicas par mais uma e ultima: aquela entre integra,ao social e Integ -
criaturas que fazem sua "historia" no conhecimento desse fato. ,ao de sistema" . 0 termo "integra,ao" pode ser entendido co
A teoriza,ao de seres humanos acerca de sua a,ao signifi- implicando reciprocidade de praticas (de autonomia e depen-
ca que, assim como a teoria social nao foi uma inven,ao de teo- dencia) entre atores ou coletividades". Portanto, integra,ao so-
ricos sociais profissionais, tambem as ideias produzidas por cial significa "sistemidade" no nivel da intera,ao face a face. A
esses teoricos tendem inevitavelmente a ser realimentadas den- integra,ao de sistema refere-se a conexoes com aqueles que es-
tro da propria vida social. Urn aspecto disso e a tentativa de tao fisicamente ausentes nO tempo ou no espa,o. Seus meca-
monitorar e, por esse meio, controlar condi,oes altamente ge- nismos certamente pressupoem os da integra,ao social, mas eles
neralizadas de reprodu,ao do sistema - urn fenomeno de gran- sao tambem distintos, em alguns aspectos-chave, daqueles en-
de importancia no mundo contemporaneo. Para se apreende- volvidos em rela,oes de co-presen,a.
rem conceptualmente tais processos monitorados de reprodu-
,ao, temos de fazer certas distin,oes pertinentes ao que sao sis- )\ Integra980 de sistema
Integratyao social
temas sociais enquanto praticas reproduzidas em cenarios de \ Reciprocidade entre atores au
intera,ao. As rela,oes implicadas ou tomadas reais em siste- Reciprocidade entre atores em coletiv"ldades atraveS do tempo-
contextos de co-presenga
mas sociais sao, e claro, amplamente variaveis em termos de \ espago ampliado

seu grau de "imprecisao" e permeabilidade. Mas, uma vez ad- \

mitido isso, podemos reconhecer dois niveis no que diz respei- )1

to aos meios pelos quais urn elemento de "sistemidade" e obtido

na intera,ao. Urn deles e 0 geralmente manifesto no funciona- Formas de institui,ao
lismo, como foi anteriormente mencionado, quando a interde-
A divisao das regras em modo de constitui,ao significati-
pendencia e concebida como urn processo homeostatico seme-
va au intencional e em sam;5es normativas, junto com 0 can-
lhante aos mecanismos de auto-regula,ao que operam no inte- !
ceito de recursos - fundamental para a conceitua,ao de poder-,
rior de urn organismo. Nao pode haver obje,ao a isso enquanto~
acarreta varias implica,oes que precisam ser explicitadas".
for reconhecido que a "imprecisao" da maioria dos sistemas
Aquilo a que chamo de as "modalidades" da estrutura,ao serve
sociais toma muito remoto 0 paralelo orgiinico e que esse modo
para esclarecer as principais dimensoes da dualidade da estru-
relativamente "'mecanizado" de reprodu~ao de sistema nao e 0 tura em intera,ao, relacionando as capacidades cognoscitivas
Unico encontrado em sociedades humanas. A reprodu,ao do e
dos agentes a caracteristicas estruturais. Os atores ap6iam-s
sistema homeostatico na sociedade humana pode ser vista co- nas modalidades da estrutura,ao na reprodu,ao de sistemas de
mo envolvendo a opera,ao de la,os causais, em que uma gama intera9ao , reconstituindo, justamente por isso, suas proprieda-
de conseqiiencias impremeditadas da a,ao realimenta-se para des estruturais. A comunica9i\o de significado em intera,ao,
reconstituir as circunstiincias originadoras. Mas em muitos con-
 34
A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAr;:AO 35
cumpre sublinhar, so analiticamente e sepanivel da opera,ao com todos os aspectos da contextualidade da a,ao, nao tern de
de san,oes normativas. 1sso e obvio, por exemplo, na medida ser vista meramente como acontecendo "no" tempo-espa,o. as
em que 0 proprio usa da linguagem e sancionado pela propria agentes incorporam rotineiramente caracteristicas temporais e
natureza de seu carater "publico"". A propria identifica,ao de espaciais de encontros em processos de constitui,ao de signifi-
atos ou de aspectos da intera,ao - sua descri,ao precisa, her- cado. A comunica,ao, como elemento geral de intera,ao, e um
meneuticamente baseada na capacidade de urn observador de conceito mais abrangente do que inten,ao comunicativa (isto e,
"prosseguir" numa forma de vida - implica 0 entrela,amento o que um ator "quer" dizer ou fazer). Vma vez mais, existem
de significado, elementos normativos e poder. 1sso fica mais duas formas de reducionismo a evitar aqui. Alguns filosofos
do que evidente nos nao raros contextos da vida social em que tentaram derivar teorias globais de significado ou comunica-
os fenomenos sociais "sao" e 0 modo como sao conveniente- ,ao a partir da inten,ao comunicativa; outros, em contraparti-
mente descritos sao contestados. A consciencia de tal contesta- da, supuseram que esta ultima e, na melhor das hipoteses, mar-
,ao, de caracteriza,oes de atividade divergentes ou sobrepos- ginal it constitui,ao das qualidades significativas da intera,ao,
tas, e uma parte essencial do "conhecimento de uma forma de sendo 0 "significado" regido pela ordena,ao estrutural de sis-
vida", embora isso nao fique claro nos escritos de autores temas de signos. Na teoria da estrutura,ao, porem, ambos os
como Winch, que trata as formas de vida como unificadas e conceitos sao considerados de interesse e importiincia equiva-
consensuais 35 .
lentes, aspectos mais de uma dualidade do que de um dualismo
mutuamente exclusivo.
estrutura
I signiflcaqao k"·,,,,·,,·:.-1 dominay.3.o k...__ m __ . ) I legitimaq.9.o I A ideia de "responsabilidade" no ingles cotidiano oferece
l' uma expressao convincente it interse,ao de esquemas e normas
(modalidade) -·esq~~-m~-·
interpretativo
.. *.
t:\

~!c:?i'!~~:!~:
'"

~
[norm-a:
interpretativos. Ser "responsitvel" pelas proprias atividades e
---._;;;::------- l' ----0---- expor as razoes para elas e fornecer as bases normativas pelas
o quais elas podem ser "justificadas". Componentes normativos
o
interayao Icomunicacao 1<-.. _ m __ . . ·>1 poder!<-.. o
-...._;) Isanyao I de intera,ao sempre gravitam em torno das rela,oes entre os
direitos e as obriga,5es "esperadas" dos participantes numa
Figura 2 gama de contextos de intera,ao. as corligos formais de conduta,
como, por exemplo, os encerrados em lei (nas sociedades con-
temporiineas, pelo menos), exprimem usualmente alguma es-
As dimensoes da dualidade da estrutura estao retratadas pecie de simetria alegada entre direitos e obriga,oes, sendo uns
na Figura 2". as atores humanos sao capazes nao so de moni- ajustifica,ao de outras. Mas tal simetria nao existe necessaria-
torar suas proprias atividades e as de outros na regularidade da mente na prittica, fen6meno que importa sublinhar, pois tanto 0

1
conduta cotidiana, mas tambem de "monitorar essa monitora- "funcionalismo normativo" de Parsons quanta 0 "marxismo es-
95.0" na consciencia discursiva. as "esquemas interpretativos" truturalista" de Althusser exageram 0 grau em que as obriga-
sao os modos de tipifica,ao incorporados aos estoques de ,5es normativas sao "internalizadas" pelos membros de socie-
conhecimento dos atores, aplicados refIexivamente na susten- dades". Nem um nem outro ponto de vista incorpora uma teoria
ta,ao da comunica,ao. as estoques de conhecimento a que os de ~ao que reconhe,a os seres humanos como agentes dotados de
atores recorrem na produ,ao e reprodu,ao de intera,oes Sao os capacidade cognoscitiva, monitorando refIexivamente 0 fIuxo
mesmos mediante os quais estao aptos a fazer contas, apresen- de intera,ao reciproca. Quando os sistemas sociais sao conce-
tar razoes etc.". A comunica,ao de significado, como OCorre bidos primordialmente do ponto de vista do "objeto social", a
 36 A CONSTITUIr;:A'O DA SOCIEDADE
ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAr;:ifo 37
enfase aeaba reeaindo sobre a influencia penetrante de wna As estruturas de significa9ao tern sempre de ser apreendi-
ordem legitima normativamente coordenada como wn deter- das em conexao com domina9ao e legitima9ao. Vma vez mais
minante global ou "programador" de conduta social. Tal pers- ~ isso conduz a influencia penetrante do poder na vida social.
pectiva mascara 0 fate de que os elementos normativos de sis-
Existem certas posi90es que tern de ser cuidadosamente defini-
temas sociais sao alega90es contingentes que tern de ser sus- !
das aqui. Assim, algumas questoes pertinentes foram postas
tentadas e "levadas em conta" atraves da mobiliza9ao efetiva
em evidencia pela critiea de Habermas a Gadamer e subse-
de san90es nos contextos de encontros reais. As san90es nor-
qiientes debates". Entre outras coisas, Habermas criticou a
mativas expressam assimetrias estruturais de domina9ao, e as
rela90es daqueles que lhes estao sujeitos nominalmente podem coneep9ao de Gadamer de "tradi90es" lingiiisticamente satura-
ser de vanas especies diferentes de expressoes dos compromis- das por nao ter conseguido demonstrar que redes de significa-
sos que essas normas supostamente engendram. do incorporam diferenciais de poder. A critica e bastante vali-
A concentra9ao na analise das propriedades estruturais de da, mas Habermas desejou desenvolver 0 ponto no sentido de
sistemas sociais, cumpre destacar, e urn procedimento valida mostrar a importiincia de formas "sistematicamente distorci-
somente se for reeonhecido como colocando wna epoche na _ I
das" de comunica9ao. Nessa base, porem, ele foi incapaz de
mantendo em suspensao a - conduta social reflexivamente mo- integrar satisfatoriamente 0 conceito de poder com wna teoria
1
nitorada. Sob tal epoche, podemos distinguir tres dimensoes es- institucional. "Domina9ao" nao e 0 mesmo que estruturas de
truturais dos sistemas sociais: significa9ao, domina9ao e legiti- significa9ao "sistematicamente distorcidas" porque a domina-
ma9ao. As conota90es da analise dessas propriedades estrutu- 9aO - como eu a concebo - e a pr6pria condi9ao de existencia
rais sao indicadas no quadro seguinte. A teoria da codifica9ao de cOdigos de significa9ao"'. "Domina9ao" e "poder" nao podem
pressuposta no estudo de estruturas de significa9ao deve vol- ser considerados unicamente em termos de assimetrias de dis-
tar-se para os extraordinarios avan90s em semi6tica registrados tribui9ao, mas tern de ser reconbecidos como inerentes na as-
em decadas recentes. Ao mesmo tempo, temos de estar preve- socia9ao social (ou, diria eu, na a9ao hwnana como tal). Assim
nidos contra a associa9ao da semi6tica com 0 estruturalismo e - e neste ponto devemos tambem levar em conta as implica-
com as deficiencias deste Ultimo em rela9ao aanalise da agen- 90es dos escritos de Foucault -, 0 poder nao e wn fenameno
cia hwnana. Os signos s6 "existem" como 0 veiculo e 0 resulta- inerentemente nocivo nem apenas a capacidade de "dizer nao";
do de processos comunicativos em intera9ao. As concep90es a domina9ao tampouco pode ser "transcendida" em alguma es-
estruturalistas da linguagem, em comwn com discussoes simi- pecie de suposta sociedade do futuro, como tern sido aspira9ao
lares de legitima9ao, tendem a considerar as signos como as caracteristica de, pelo menos, algumas correntes do pensamento
propriedades dadas da fala e da eserita, em vez de examinar seu socialista.
embasamento recursivo na comuniea9ao de significado. Quais sao as conota90es da alega9ao de que a semantica
tern prioridade sobre a semi6tica e nao 0 inverso? Elas podem
Estrutura(s) Dominic te6rico Ordem institucional
ser apontadas, penso eu, atraves de wna compara9ao entre as
Significagao I Tearia da codificatyao I Ordens simb61icasIModos de dis- concep90es estruturalista e p6s-estruturalista de significado,
curso por wna parte, e aquela que pode ser derivada do Wittgenstein
Dominar;80 I Tearia da autorizatySo de recursos I Institui90es politicas dos ultimos tempos, por outra". A base de wna teoria do signi-
Teana da aJocalfao de recursos InstituiyCies econ6micas
ficado na "diferen9a", na qual, segundo Saussure, nao existem
Legitima9ao I Tearia da reguJac;:ao normativa I Instituic;:oes legais "valores positivos", leva quase inevitavelmente a wna concep-
9ao que acentua a primazia da semi6tica. 0 campo de signos,
 38
A CONSTfTUI9AO DA SOCfEDADE
ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURA9AO 39
as grades de significado, sao criados pela natureza ordenada de
A partir do caso da ideologia, podemos ver que as estrutu-
diferen,as que compreendem c6digos. a "mergulho no c6digo" ras de significa,ao sao separaveis da domina,ao e da legitima-
- donde e dificil ou impossivel reemergir para 0 mundo da ati- ,ao s6 analiticamente. A domina,ao depende da mobiliza,ao
vidade e do evento - e uma tatica caracteristica adotada por auto- de dois tipos distinguiveis de recurso. as recursos alocativos
res estruturalistas e p6s-estruturalistas. Esse mergulho, porem, referem-se a capacidade - ou, mais precisamente, a formas de
e inteiramente desnecessario se entendermos 0 carater relacio- capacidade transformadora - gerando controle sobre objetos,
nal dos c6digos que geram significado a ser localizado na orde- bens ou fen6menos materiais. as recursos autoritirios refe-
na,ao de praticas sociais, na pr6pria capacidade de "prosseguir" rem-se a tipos de capacidade transformadora gerando controle
na multiplicidade de contextos da atividade social. Essa e uma sobre pessoas ou atores. Pode ser que algumas formas de recur-
descoberta que 0 pr6prio Wittgenstein seguramente fez, embo- sos alocativos (como materias-primas, terra etc.) pare,am ter
ra contra urn pano de fundo filosMico muito diferente, quando uma "existencia real" de urn modo que, segundo afirmei, as
ele abandonou alguns dos principais parametros de seus escri- propriedades estruturais como urn todo nao possuem. No senti-
tos iniciais. Enquanto sua analise anterior de linguagem e sig- do de ter uma "presem;a" espa90-temporal, de certa maneira e
nificado termina em paradoxa - urna especie de truque indiana esse obviamente 0 caso. Mas sua "materialidade" nao se rela-
da corda, retirando a escada depois que ela foi escalada _, sua ciona ao fato de que tais fen6menos convertem-se em recursos,
concep,ao ulterior cinge-se ao terreno das praticas sociais roti- da forma como emprego aqui 0 termo, somente quando incor-
neiras. Ate mesmo as rela,oes semi6ticas mais complicadas porados a processos de estrutura,ao. a carater transformacio-
nal dos recursos e logicamente equivalente a, assim como ine-
tern urn embasamento nas propriedades semiinticas geradas pelas
rentemente vinculado a exemplifica,ao de, c6digos e san,oes
propriedades govemadas por regras das atividades cotidianas.
normativas.
Na terminologia indicada no quadro a pp. 36, os "signos"
A classifica,ao de ordens institucionais acima oferecida
implicitos em "significa,ao" nao devem ser equiparados a "sim-
depende da resistencia ao que tern sido, por vezes, qualificado
bolos". Muitos autores tratam os dois termos como equivalentes, como conceitos "substantivistas" das institui90es "econ6micas",
mas eu considero os simbolos, interpolados em ordens simb6- "politicas" e outras. Podemos conceber da seguinte maneira as
licas, como urna dimensao principal do "agrupamento" de ins- rela,oes envolvidas:
titui,oes". as simbolos coagulam os "excedentes de significa-
do" implicitos no carater polivalente dos signos; eles unem S-D-L Ordens sirnb61icas/modos de discurso
aquelas interse,oes de c6digos que sao especialmente ricas em o (aut)-S-L Insti1uiyoes politicas
o (aloc)- S-L Institui90es econ6micas
diversas formas de associa,ao de significados, operando ao L-D-S Ins1itui yoes legais
lange dos eixos da metafora e da metonimia. As ordens simbO- sendo S =signific8yao, D = dominayao, L =legitimayao
licas e os modos de discurso associados sao urn importante
locus institucional da ideologia. Entretanto, na teoria da estru-
lura,ao, a ideologia nao constitui urn "tipo" particular de ordem As concep90es "substantivistas" pressupoem diferencia-
simb6lica ou forma de discurso. Nao se pode desligar "discurso ,ao institucional concreta dessas viirias ordens. Quer dizer,
ideol6gico" de "ciencia", por exemplo. A "ideologia" refere-se sustenta-se, por exemplo, que a "politica" s6 existe em socie-
unicamente aquelas assimetrias de domina,ao que ligam a sig- dades que possuem formas distintas de aparelho do Estado, e
nifica,ao alegitima,ao de interesses secionais". assim por diante. Mas 0 trabalho de antrop610gos demonstra de

l
r
/
40

modo bastante efetivo que existem fenomenos "politicos"-

41

a usar uma tenninologia da mals assustadora

relacionados com a ordena,iio das rela,oes de autoridade _ em idade. Mas 0 tempo, ou a constitui,ao da experiencia no
todas as sociedades. 0 mesmo se aplica as outras ordens insti- 'tempo-espa,o, e tambem um aspecto banal e evidente da vida
tucionais. Temos de ser especialmente cuidadosos na conceitua- humana cotidiana. A verdadeira essencia da enigmatica nature-
,ao do "economico", mesmo tendo sublinhado que isso nao za do tempo reside, em parte, na falta de "ajustamento" entre
pressupae a existencia de uma "economia" claramente diferen- nossa lida nao problematica com a continuidade da conduta
ciada. Verificou-se uma forte tenctencia, em parte da literatura atraves do espa,o-tempo e seu carater inefavel quando con-
economica, a "extrair" conceitos de culturas tradicionais que frontado filosoficamente. Nao tenbo qualquer pretensao espe-
s6 possuem significado no contexto das economias de merca- cial de elucidar esse assunto, 0 "problema de Santo Agostinho".
do. 0 "economico" nao pode ser adequadamente definido, pelo Mas a questao fundamental da teoria social, como eu a entendo
menos de fonna generica, como referente a lutas por recursos - 0 "problema de ordem" concebido de um modo totalmente
escassos". Isso seria algo como definir 0 poder unicamente por alheio a fonnula,ao de Parsons quando cunhou essa expressao -,
referencia a lutas secionais. A principal caracteristica do "eco- consiste em expor como as limita,oes da "presen,a" individual
nomieo" nao e a escassez de recursos como tal, e muito menos sao transcendidas pela "extensao" das rela,oes sociais atraves
ainda as lutas ou divisoes secionais em tomo da distribui,ao. A do tempo e do espa,o.
esfera do "economico" e dada, antes, pelo papel inerentemente A duree da vida cotidiana, nao e fantasioso demais afir-
constitutivo dos recursos alocativos na estmtura,ao de totali- I' mar, funciona de modo algo semelhante ao que Levi-Strauss
dades sociais. Outras notas de advertencia devem ser acrescen- chama de "tempo reversivel". Se 0 tempo "como tal" (seja isso
tadas nesta altura. Ao sustentar-se que todas as sociedades vi- o que for) e reversivel ou nao, os eventos e rotinas da vida coti-
vern amea,adas pela possibilidade de escassez material, fica-se diana nao possuem urn f1uxo de mao linica. As expressaes "re-
apenas a urn passo de se supor que os conflitos em tomo de produ,ao social", "recursividade" etc. indicam 0 carater repeti-
carencia de recursos constituem 0 motor fundamental da mu- tivo da vida cotidiana, cujas rotinas sao fonnadas em termos da
dan,a social, como acontece em pelo menos algumas versaes interse,ao de dias e esta,aes passageiros (mas continuamente
do materialismo hist6rico e tambem em muitas teorias nao- retomando). A vida cotidiana tern uma dura,ao, um f1uxo, mas
marxistas. Mas esse pressuposto e logicamente deficiente, de- nao leva a parte nenhuma; 0 pr6prio adjetivo "cotidiano" e seus
pendendo geralmente de uma fonna especiosa de raciocinios sinonimos indicam que 0 tempo, neste caso, e constituido ape-
funcionais, e empiricamente falso". nas em repeti,ao. A vida do individuo, em contraste, e nao s6
finita mas irreversivel, "ser para a morte". "18to emorte, marrer
e sabe-lo. Isto e a Viuva Negra, morte" (Lowell). 0 tempo, neste
Tempo, 0 corpo, encontros caso, e 0 tempo do corpo, uma fronteira de presen,a muito
diferente da evapora,ao do tempo-espa,o inerente a dura,ao
Para concluir esta resumida exposi,ao de abertura, pode- da atividade cotidiana. Nossas vidas "passam" em tempo irre-
mos retomar ao tema do tempo e da Hist6ria. Como a finitude versivel com a passagem da vida do organismo. 0 fato de que
do Dasein e como "a infinitude do surgimento do ser partir do falamos do "ciclo vital" subentende a existencia de elementos
nada", 0 tempo talvez seja 0 aspecto mais enigmatico da expe- de repeti,ao tambem ai. Mas 0 cicio vital e realmente urn con-
riencia humana. Nao foi por nada (sic) que 0 fil6sofo que tentou ceito que pertence a sucessao de gerac;oes e, assim, a terceira
enfrentar 0 problema da maneira mais fundamental, Heidegger, dimensao de temporalidade acima indicada. Eo a duree "supra-
 40 A CONSTITUIr;:A-O DA SOClEDADE

modo bastante efetivo que existem fenomenos "politicos" _

I ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURAr;:AO 41

foi compelido a usar uma terminologia da mais assustadora

relacionados com a ordena,ao das rela,oes de autoridade - em obscuridade. Mas 0 tempo, ou a constitui,ao da experiencia no
todas as sociedades. 0 mesmo se aplica as outras ordens insti- tempo-espa,o, e tambem urn aspecto banal e evidente da vida
tucionais. Temos de ser especialmente cuidadosos na conceitua- hurnana cotidiana. A verdadeira essencia da enigmatica nature-
,ao do "economico", mesmo tendo sublinbado que isso nao za do tempo reside, em parte, na falta de "ajustamento" entre
pressupoe a existencia de uma "economia" claramente diferen- nossa lida nao problematica com a continuidade da conduta
ciada. Verificou-se uma forte tendencia, em parte da literatura atraves do espa,o-tempo e seu carater inefavel quando con-
economica, a "extrair" conceitos de culturas tradicionais que frontado filosoficamente. Nao tenbo qualquer pretensao espe-
s6 possuem significado no contexto das economias de merca- cial de elucidar esse assunto, 0 "problema de Santo Agostinbo".
do. 0 "economico" nao pode ser adequadamente definido, pelo Mas a questao fundamental da teoria social, como eu a entendo
menos de forma generica, como referente a lutas por recursos - 0 "problema de ordem" concebido de urn modo totalmente
escassos". Isso seria algo como definir 0 poder unicamente por alheio a formula,ao de Parsons quando cunbou essa expressao-,
referencia a lutas secionais. A principal caracteristica do "eco- consiste em expor como as limita,oes da "presen,a" individual
n6mico" nao e a escassez de recursos como tal, e muito menos sao transcendidas pela "extensao" das relar;:oes sociais atraves
ainda as lutas ou divisoes secionais em torno da distribui,ao. A do tempo e do espa,o.
esfera do "economico" e dada, antes, pelo papel inerentemente , A duree da vida cotidiana, nao e fantasioso demais afir-
constitutivo dos recursos alocativos na estrutura,ao de totali- 1/ mar, funciona de modo algo semelhante ao que Levi-Strauss
dades sociais. Outras notas de advertencia devem ser acrescen- chama de "tempo reversivel". Se 0 tempo "como tal" (seja isso
tadas nesta altura. Ao sustentar-se que todas as sociedades vi- o que for) e reversivel ou nao, os eventos e rotinas da vida coti-
vern amea,adas pela possibilidade de escassez material, fica-se diana nao possuem urn fluxo de mao linica. As express6es "'re-
apenas a urn passo de se supor que os conflitos em torno de prodw;:ao social", "recursividade" etc. indicam 0 canlter repeti-
carencia de recursos constituem 0 motor fundamental da mu- tivo da vida cotidiana, cujas rotinas sao formadas em termos da
dan,a social, como acontece em pelo menos algumas versoes interse,ao de dias e esta,oes passageiros (mas continuamente
do materialismo hist6rico e tambem em muitas teorias nao- retornando). A vida cotidiana tern urna dura,ao, urn fluxo, mas
marxistas. Mas esse pressuposto e logicamente deficiente, de- nao leva a parte nenhuma; 0 pr6prio adjetivo "cotidiano" e seus
pendendo geralmente de urna forma especiosa de raciocinios sin6nimos indicam que 0 tempo, neste caso, e constituido ape-
fuocionais, e empiricamente falso". nas em repeti,ao. A vida do individuo, em contraste, e nao s6
finita mas irreversivel, "ser para a morte". "Isto e morte, morrer
e sabe-lo. Isto e a Viuva Negra, morte" (Lowell). 0 tempo, neste
Tempo, 0 corpo, encontros caso, e 0 tempo do corpo, urna fronteira de presen,a muito
diferente da evapora,ao do tempo-espa,o inerente a dura,ao
Para concluir esta resurnida exposi,ao de abertura, pode- da atividade cotidiana. Nossas vidas "passam" em tempo irre-
mos retornar ao tema do tempo e da Hist6ria. Como a finitude versivel com a passagem da vida do organismo. 0 fato de que
do Dasein e como "a infinitude do surgimento do ser partir do falamos do "ciclo vital" subentende a existencia de elementos
nada", 0 tempo talvez seja 0 aspecto mais enigmatico da expe- de repeti,ao tambem ai. Mas 0 cicio vital e realmente urn con-
riencia hurnana. Nao foi por nada (sic) que 0 fil6sofo que tentou ceito que pertence a sucessao de geral;oes e, assim, aterceira
enfrentar 0 problema da maneira mais fundamental, Heidegger, dimensao de temporalidade acima indicada. E a duree "supra-

1l.2, ._
 42
A CONSTITUH;AO DA SOCIEDADE
ELEMENTOS DA TEORlA DA ESTRUTURA (:AO 43
individual" da existencia a longo prazo das institui,oes, a lon-

I
gue duree do tempo institucional. xiva da conduta, fixada na consciencia prMica. As rela,oes em
condi,oes de co-presen,a consistem no que Goffinan denomi-
nou apropriadamente enconfros, esvaindo-se atraves do tempo
duree da experiencia cotidiana: "tempo reversive!" t e do espa,o. Ninguem analisou os encontros mais argutamente
tempo de vida do individuo: "tempo irreversive!" que 0 proprio Goffinan, e apoiar-me-ei substancialmente em
sua obra em algo do que se segue. A importiincia da obra de
longue duree de institui90es; "tempo reversivel" t Goffinan deve-se, em nao pequena medida, it sua preocupa,ao
com a ordena,ao temporal e espacial da atividade social. Ele e
o tempo reversivel das institui,oes e a condi,ao e 0 resul- urn dos poucos autores sociologos que tratam as rela,oes
tado das pniticas organizadas na continuidade da vida diana, a tempo-espa,o como fundamentais para a produ,ao e reprodu-
principal forma substantiva da dualidade da estrutura. Nao ,ao da vida social, em vez de erguer "fronteiras" para a ativida-
seria verdadeiro, entretanto, Como ja mencionamos, dizer que de social, uma tarefa que pode ser seguramente deixada para
as rotinas da vida diana constituem 0 "alicerce" sobre 0 qual as "especialistas" - geografos e historiadores. Mas aqueles que
formas institucionais da organiza,ao social sao edificadas no trabalham na area nominalmente separada da geografia deram
tempo-espa,o. Pelo contrano, cada uma participa na constitui- suas proprias contribui,oes independentes. Assim, proporei
,ao da outra, assim como ambas entram na constitui,ao do self nao so que 0 tempo-geografia de Hiigerstrand (com apropriada
atuante. Todos os sistemas sociais, nao importa quao formida- corrigenda critical oferece formas de analise significativas para
veis ou extensos, expressam-se e sao expressos nas rotinas da a teoria da estrutura,ao, mas tambem que algumas das ideias
vida social cotidiana, mediando as propriedades fisicas e sen- envolvidas complementam as concep,oes de Goffinan mais
soriais do corpo humano.
diretamente.
Essas considera,oes sao de grande importfulcia para as As rela,oes com aqueles que estao fisicamente ausentes,
ideias expostas nas partes subseqiientes deste livro. 0 corpo e como eu disse, envolvem mecanismos sociais distintos do que
o "locus" do self ativo, mas 0 self nao e, obviamente, apenas esm envolvido em contextos de co-presen,a. Temos de tratar aqui
uma extensao das caracteristicas fisicas do organismo que e 0 de algumas questoes basicas acerca da estrutura,ao das insti-
seu "portador". Teorizar 0 selfsignifica formular uma concep- tui,oes. Elas apresentam um aspecto "lateral" destas - espe-
,ao de motiva,ao (ou sera essa a minha tese) e relacionar a
cialmente no mundo modemo, dada a tremenda expansao do
motiva,ao com as conexoes entre as qualidades inconscientes e
distanciamento tempo-espa,o da atividade social na era con-
conscientes do agente. 0 self nao pode ser entendido fora da
temporiinea. Mas tambem suscitam, uma vez mais, 0 problema
"Historia"- significando "Historia", neste caso, a temporalida_
de "historia", uma vez que os outros ausentes incluem gera90es
de de prMicas humanas, expressas na interpola,ao mutua das
tres dimensoes que distingui. passadas cujo "tempo" pode ser muito diferente do daqueles
que sao, de algum modo, influenciados pelos residuos de suas
Apresentei anteriormente a no,ao de co-presen,a com
referencia especifica it integra,ao social. 0 estudo da intera,ao atividades. Essas questoes serao 0 alvo de meu interesse nos
em circunstiincias de co-presen,a e um componente basico da capitulos finais.
inclusao do tempo-espa,o numa so categoria, que e condi,ao e
resultado da associa,ao social humana. A "sistemidade" e aqui
obtida em grande parte atraves da rotineira monitora,ao refle-
 44
A CONSTITUI(:A'O DA SOCIEDADE
ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURA9AO 45
Referencias
15. Boudon, R. The Unintended Consequences ofSocial Action, cit.,
1. Para discussoes mais detalhadas dos conceitos basicos da teoria cap. 2.
da estrutura9ao, remeto 0 leitor para as NRSM, especialmente os 16. Para desenvolvimento deste ponto, ver: "Power, the dialect of
caps. 2 e 3; os CPST; e a CCHM, caps. I e 2. control and class structuration".ln: Giddens, Anthony e Macken-
2. CPST, pp. 56-7. zie, Gavin. Social Class and The Division ofLabour. Cambridge
3. CPST, cap. 1. University Press, 1982.
4. Davidson, Donald "Agency". In: Essays on Actions and Events. 17. Bachrach, Peter e Baratz, Morton S. "The two faces of power".
Oxford, Clarendon Press, 1980, p. 45. American Political Science Review, vol. 56, 1962; Power and
5.NRSM,cap.2. Poverty. Nova York, Oxford University Press, 1970; Likes, Ste
6. Feinberg, Joel. "Action and responsibility". In: Black, Max. Phi- ven. Power, a Radical View. Londres, Macmillan, 1974. Para dis-
losophy in America. Ithaca, Cornell University Press, 1965. Sobre eussiio adicional desses pontos, ef. CPST, pp. 88-94.
o problema do que sao "conseqiil~ncias", ver: Bergstrom, Lars. The 18. Searle, John R. Speech Acts. Cambridge, Cambridge University
Alternatives and Consequences ofActions. Estocolmo, Almqvist, Press, 1969, pp. 34-5.
1966.
19. Wittgenstein, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford, Black-
7. Schelling, Thomas. "On the ecology of mieromotives". The Pu- well, 1972, p. 59.
blic Interest, vol. 25, 1971; "Dynamic models of segregation". 20. Ibidem, p. 81.
Journal ofMathematical Sociology, vol. 4, 1971. Ver tambem 0 21. Ibidem.
estudo de Boudon, Raymond. The Unintended Consequences of 22. Ibidem.
Social Action. Londres, Macmillan, 1982, pp. 43 ss. 23. CPST, pp. 80 ss.
8. NRSM, p. 76.
24. Garfinkel, Harold. "A conception of, and experiments with, 'trust
9. Merton, entretanto, e favoravel ao tenne "imprevistas", em vez de as a condition of stable concerted actions". In: Harvey, O. 1. Mo-
conseqiiencias "nao-intencionais" au "impremeditadas". Em minha tivation and Social Interaction. Nova York, Ronald Press, 1963.
analise, "intenc;:ao" pressup6e 0 conhecimento das provaveis con- 25. Goffman, Erving. Frame Analysis. Nova York, Harper, 1974, p. 5.
seqiiencias da ac;:ao e, portanto, previsao. E claro, pode-se prever 26. Em NRSM, eu niio tinha apreeiado a necessidade de distinguir
que alguma coisa aconteceni sem se premeditar seu acontecimento, "estrutura" de «estruturas", e usei este ultimo tenno de forma dis-
mas nao se pode pretender 0 acontecimento de algo sem sua pre- plicente, como sinonimo do primeiro.
visao. Merton, R. K. "The unanticipated consequences ofpurpo-
27. CPST, pp. 195-6.
sive social action". American Sociological Review, vol. 1, 1936;
28. Cf. Bhaskar, Roy. The Possibility ofNaturalism. Brighton, Har-
idem, "Manifest and latent functions". In: Social Theory and So-
cial Structure. Glencoe, Free Press, 1963. vester, 1979, cap. 2.
10. Merton, R. K. "Manifest and latent functions", cit., p. 51. 29. Ibidem, p. 48.
11. Ibidem, pp. 64-5. 30. Cf. ibidem, pp. 78-9. Distingo ai tres niveis de "sistemidade" que
12. Para uma discussao mais compJeta, ver CPST, cap. 6. para fins de simplificac;:ao, foram aqui reduzidos a dois.
13. Weber, Max. The Methodology of the Social Sciences. Glencoe, 31. Essa distinc;:ao foi introduzida na literatura por David Lockwood,
Free Press, 1949. que, no entanto, empregou-a de urn modo algo diferente do meu;
14. Olson, Mancur. The Logic ofCollective Action. Cambridge, Mass., cf. Lockwood, David. "Social integration and system integra-
Harvard University Press, 1965; Boudon, R. The Unintended Con- tion".ln: Zollschan, George Z. e Hirsch, W. Explorations in Social
sequences of Social Action, cit.; Elster, Jon. Logic and Society, Change. Londres, Routledge, 1964.
Contraditions and POSSible Worlds. Chichester, Wiley, 1978; Elster, 32. Minha formula~ao do conceito de "integra~ao de sistema" em
Jon. Ulisses and the Sirens. Cambridge, Cambridge University CPST, p. 77, era ambigua. Nao deixei claro se a separac;:ao da
Press, 1979.
integrayao social da integrac;:ao de sistema dependia de uma dis-
tinc;:ao entre co-presen~a e ausencia em relac;:5es sociais, Oll entre
 46
A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE Capitulo II
vinculos que ligam os atores em contraste com os que ligam cole- Consciencia, self e encontros sociais
tividades. Tal como a usc agora, a novae refere-se ao primeiro
desses dais conjuntos de contrastes, mas, em todo 0 caso, eles
sobrepoem-se em boa parte, de modo que a falba nao tern maiores
conseqilencias.
33. CPST, cap. 2.
34. Cf Ziff, Paul. Semantic Analysis. Ithaca, Cornell University Press,
1960.
35. Cf Pitkin, Hanna F. Wittgenstein and Justice. Berkeley, Univer-
sity ofCalifornia Press, 1972, pp. 241-64.
36. Para este estilo de representa~ao dessas rela<;6es, sou devedor a
Derek Gregory; ver seu livro: Regional Transformation and In-
dustrial Revolution. Londres, Macmillan, 1982, p. 17. Neste capitulo procurarei curnprir varios objetivos. Em
37. Marsh, Peter et alii. The Rules ofDisorder. Londres, Routledge, primeiro lugar, examinarei alguns problemas conceptuais basi-
1978. P. 15 passim. cos apresentados pela conexao entre os principais conceitos da
38. NRSM, pp. 108-10. teoria da estrutura9ao e urna interpreta9ao da natureza do in-
39. Habennas, liirgen. Zur Logik der Soziaiwissenschafien. Tubin- consciente. Eles giram em tomo de questoes sobre qual sera a
gen, Siebeck & Mohr, 1967; "On systematically distorted com- melhor maneira de conceituar 0 self, especialmente 0 "eu" do
munication". Inquiry, vol. 13, 1970. agente reflexivo. Passarei em seguida para urna descri~ao de
40. Cf 0 meu "Harbermas' critique ofhermeneutics", em SSPT. como podem ser representadas as bases psicol6gicas do entrela-
41. Ver CPST, pp. 33-8.
9amento de consciente e inconsciente, utilizando em particular
42. RicoeUf, Paul. "Existence and hermeneutics". In: The Conflict of os escritos de Erikson. Mas urna parte importante de meu argu-
Interpretations. Evanston, Northwestern University Press, 1974.
mento sera 0 fato de essa descri~iio suscitar imediatamente
43. Para urna elabora~iio desta posi~iio, ver CPST, cap. 5. As ordens e
os modos simb6licos do discurso constituem os aspectos "eulturais" questoes de natureza social relacionadas com 0 caniter rotinizado
de sistemas sociais. Mas, como no caso de "sociedade" e "hist6- da vida cotidiana. Mediante uma analise de "situa90es cnticas",
ria", recorro ao tenno "cultura" para preencher uma dupla obriga- nas quais as rotinas siio radicalmente rompidas, tentarei indicar
(fao. Assim, falarei de "cuIturas", de urn modo geraI, como urn como a monitorac;ao reflexiva de encontros em circunstancias
tenno intercambiavel com "sociedades", se bern que em alguns de co-presen~a coordena-se geralmente com componentes in-
contextos tenha de ser conferida rnais precisao a esses tennos. conscientes da personalidade. Isso levara diretamente a urn exa-
44. Cf. Polanyi, Karl et alii. Trade and Market in the Early Empires. me de alguns dos insights que podem ser extraidos de Goflinan
Nova York, Free Press, 1957, pp. 243-70 passim. acerca da intera9ao entre agentes co-presentes. A preocupa~ao
45. Minhas razoes para essas alegal;oes sao apresentadas com certo com 0 corpo, enquanto 0 locus do selfatuante e posicionado em
detalhe em CCHM, sobretudo na "Introdu~iio" e no cap. 3. tempo-espa~o, e 0 tema de concatena9ao decisivo do material
discutido e analisado.

Reflexividade, consciencia discursiva e pratica

I Freud divide a organiza~iio psiquica do individuo em tres,

divisoes essas representadas em ingles pelos infelizes termos
I

1'1
'II
11.l=
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A CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 49
"id", "ego" e "superego". Nao acredito que esses termos sejam
particularmente iiteis e por isso os substitui pela triplice divi- teriza9ao mais geral de Freud das tarefas do ego. 0 ego tern a
sao sugerida no modelo de estratifica9ao; sistema de segur 9a tarefa de "autopreserva9ao", que ele executa "aprendendo a
an produzir mudan9as no mundo externo em seu proprio benefi-
basica, consciencia pnitica e consciencia discursiva. Nao quero
dizer que essas expressoes fazem paralelo direto com as no- cio"'. Mas que self 0 ego defende? Sua vantagem e tambem a
90es freudianas. Os pIanos intersecionais dos esquemas e nor- minba vantagem?
mas interpretativos que os atores utilizam na constitui9ao de Ora, urna tatica tradicional entre os interpretes de Freud e
sua conduta esmo inseridos em todas as tres dimensoes da per- aceitar a existencia de enganosos usos antropomorficos nos es-
sonalidade. Mas certarnente 0 "eu" (das Ich) esta no niicleo do critos de Freud, mas sustentando que eles podem ser dissipados
que a consciencia discursiva engloba e exige conceptualmente se entendermos 0 id, ego e superego como referentes a "proces-
consideravel aten9ao. Podemos abordar as questoes envolvidas sos" ou "for9as". Mas isso, na realidade, nao ajuda muito, pois
descrevendo algumas das dificuldades apresentadas pela divi- tais conceitos nao nos permitem apreender adequadarnente a
sao freudiana da personalidade, especialmente na medida em natureza da agencia hurnana. Freud, obviarnente, menciona
que elas apontam para problemas de "agencia"'*. fluxos hidraulicos, bloqueios de energia etc. Mas tais conceitos
Freud, e claro, considerou 0 individuo como agente, mas, evocam 0 tipo de concep9ao mecimica das origens da conduta
Com freqiiencia, tarnbem falou do id, ego e superego como hurnana associada as mais simplistas formas de objetivismo.
agencias dentro do individuo. Em seus escritos anteriores a Parte do problema e 0 usa dos termos ego, superego e id (quer
decada de 1920, Freud usou freqiientemente as expressoes das em sua formula9ao alema original ou em sua versao inglesa),
Ich para referir-se a pessoa total, bern como para designar uma cada urn dos quais tern alguma conota9ao de agencia; cada urn
parte da mente. Essas mudan9as de usa tarnbem se aplicam ao e urn mini-agente no interior do agente como tal. Descartar os
"superego", as vezes diferen9ado de uma outra n09ao, a de termos "id" e "superego" ajuda, mas isso tern de ser comple-
"ego-ideal". Inconsistencias e transi90es terminologicas pare- mentado pelo reconhecimento do carilter distintivo de das Ich,
cern indicar aqui algumas complica90es conceptuais bern mais o "eu".
significativas. Suponbarnos que das Ich seja uma subdivisao Poderiamos supor que 0 "eu" e 0 agente. Entretanto, isso
da mente. Como pode entao Freud dizer coisas tais como 0 ego constitui cerlamente urn equivoco, ainda que figure como pres-
"decide sobre 0 repiidio da ideia incompativel"'? Sen! a deci- suposto ou proposi9ao central de escolas inteiras de filosofia,
Sao do ego uma especie de processo em miniatura da decisao incluindo 0 cartesianismo e a filosofia mais recente de G. H.
do agente? Isso, por certo, nao faz muito sentido. Freud tarn- Mead. Os escritos de Mead certamente ajudarn a elucidar os
bern escreve, por exemplo, sobre 0 "desejo de dormir" do ego, processos que culminam no surgimento de urn "self" como urn
se bern que, enquanto 0 sono ocone, ele "permanece de servi- ~'mim". Mas 0 "eu" aparece nos escritos de Mead como 0 DU-
90" a fim de se proteger contra as piores emana90es do incons- cleo determinado da agencia e, por conseguinte, suas origens
ciente, de "vigiar" 0 sono do sonhante. E suscitada a mesma
permanecem sempre obscuras. Para relacionar 0 "eu" a agen-
especie de questOes. De quem e 0 sono que 0 ego deseja? 0 do
cia, e necessario seguir 0 desvio sugerido pelos estruturalistas
agente? 0 seu proprio? De quem e 0 despertar que 0 "vigia"
com rela9ao a descentra9ao do sujeito, sem chegar a conclu-
protege? E assim por diante. Considere-se, finalmente, a carac-
soes que tratam 0 sujeito simplesmente como urn signa dentro
de urna estrutura de significa9iio. A constitui9iio do "eu" so
* As referencias podem ser encontradas a pp. 123-8. ocone mediante 0 "discurso do Outro" - isto e, atraves da aqui-
si9ao da linguagem -, mas 0 "eu" tern de ser relacionado ao
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A CONSTfTU1f;:A-O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 51
corpo enquanto esfera de a9iio. A palavra "eu" e, em termos lin-
giiisticos, um "cambiante": a contextualidade do "posiciona- funcionamento, e e pressuposta pelos conceitos de consciencia
mento" social determina quem e um "eu" em qualquer situa9iio tanto pratica quanta discursiva.
de conversa. Embora possamos ser propensos a pensar no "eu" A palavra "consciente" e llsada, algumas vezes, em refe-
como relacionado com os mais ricos e mais intimos aspectos de rencia a circunstancias nas quais as pessoas prestam aten9ao a
nossa experiencia, e, de certo modo, um dos vocabulos mais eventos que se desenrolam a volta delas de maneira a relacio-
vazios na linguagem'. Pois 0 "eu" refere-se unicamente a quem na-Ios com sua atividade, Por outras palavras, refere-se amoni-
esta falando, 0 "sujeito" de uma senten9a ou elocu9iio. Urn agen- tora9iio reflexiva da conduta por agentes humanos, amplamen-
te que dominou 0 uso de "eu", como diz Mead, tambem domi- te no sentido do que tenho chamado de consciencia pratica,
nOll 0 usa de "mim" - mas s6 atraves do dominic concomitante Assim, por exemplo, um professor pode estar "consciente" do
de uma linguagem sintaticamente diferenciada. Pois tenho de que as crian9as nas primeiras filas da sala estao fazendo, mas
saber que sou um "eu" quando falo para "voce", mas que voce e "inconsciente" em rela93.0 as outras, nag filas do fundo, que
urn "eu" quando fala para "mim", e que eu sou urn "voce" quan- come9aram a tagarelar umas com as outras. 0 professor pode
do fala para mim... e assim por diante. A questiio niio e apenas estar sendo desatento, mas nao esta inconsciente naquele senti-
que esses usos pressup5em aptid5es lingiiisticas de uma especie do do individuo que "perdeu a consciencia". Se esse sentido de
muito complicada, mas tambem que eles acarretam um controle "consciente" tern sua contraparte entre animais, nao e definido
ramificado do corpo e um conhecimento desenvolvido de como de modo tao sem ambigiiidade quanta no sentido mais elemen-
"prosseguir" na pluralidade de contextos da vida social. tar de consciencia acima citado. Urn terceiro sentido de "con-
o reconhecimento da importfuJcia essencial da monitora9iio ciente", rotulado por Toulmin como "expressividade", corres-
reflexiva da conduta na continuidade cotidiana da vida social ponde aproximadamente a consciencia discursiva'. Usando 0
niio significa refutar 0 significado das fontes inconscientes de exemplo dado por Toulmin, pode-se dizer que urn homem de
cogni9iio e motiva9iio. Mas envolve prestar alguma aten9iio a neg6cios, que obtem dinheiro de urn cliente com falsos pretex-
diferencia9iio que separa "consciente" de "inconsciente". tos, comete uma "fraude deliberada e consciente", Por outro
o uso na linguagem inglesa comum fomece-nos, pelo me- lado, se a mesma conseqiiencia resulta de forma muito inad-
nos, uma orienta9iio geral para isso. Referimo-nos a conscien- vertida das atividades do homem de neg6cios, sem que este es-
cia, por vezes, como equivalente do que poderiamos chamar de teja ciente disso, ele tornau-se "inconscientemente" 0 instru
"sensibilidade"'. Assim, alguem que adormece ou leva uma pan- mento do transtomo financeiro do outro. Neste caso, 0 agente
cada na cabelYa "cai na inconsciencia" ou "fica inconsciente". tern de "pensar" sobre 0 que esta fazendo para que a atividade
Neste caso "inconsciente" significa algo diferente de seu uso seja levada a efeito "conscienternente". Neste sentido, "cons-
freudiano ortodoxo, e a "consciencia" com a qual e contrastado ciencia" pressup5e estar 0 sujeito apto a fazer um relato coeren-
tern urn sentido muito amplo. Ser "consciente", nesse sentido, te de suas atividades e das raz5es que as motivaram.
e registrar uma gama de estimulos circundantes. Nada existe de
especificamente reflexivo quanto aconsciencia assirn entendida.
a sentido no qual as seres humanos "perdem" e "recuperam" a o inconsciente, tempo, memoria
consciencia e diretamente aplicavel tambem aos animais supe-
riores. Essa n09iio de consciencia refere-se evidentemente aos Eclaro que 0 sentido psicanalitico de "inconsciente" tern
mecanismos sensoriais do corpo e a seus modos "normais" de algo a ver com um contraste Ira,ado entre ele e esse terceiro
significado de "consciente", um contraste com aquilo que defi-
I

I
k
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A CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 53
ni como consciencia discursiva. Consciencia discursiva signi- Essas observa,oes indicam que memoria e percep,ao es-
fica ser capaz de por coisas em palavras. 0 "inconsciente" na tiio intimamente Iigadas. Vale a pena subIinhar que as teorias
teoria psicanalitica refere-se ao oposto disso - ser incapaz de da percep,iio tendem a dividir-se em torno de urn eixo de sub-
dar expressiio verbal aos impulsos da a,iio.
jetivismo versus objetivismo. Urn tipo de ponto de vista tende
Para exemplificar ainda melhor, entretanto, a no,iio de a enfatizar, de modo quase kantiano, 0 papel do perceptor como
"inconsciente" como "0 inconsciente", enecesscirio fazer alguns processador do que, de Dutra maneira, sena urn vazio informe 7 .
comentarios sobre memoria, urna vez que memoria e lingua- Uma opiniiio oposta sustenta que a percep,ao e organizada
gem siio manifestamente muito proximas. Proponho defender pela forma previamente dada do mundo objetiv0 8• As tentativas
a tese de que "0 inconsciente" so pode ser entendido em termos de superar essa divisiio destacaram a importancia do tempo, e
de memoria, e de que isso, por sua vez, significa examinar da diferencia,iio espacial, na percep,iio. Tal como as inten,oes,
muito cuidadosamente 0 que e memoria. Reaparecem aqui to- razoes etc., a percep,iio nao e urn agregado de "percep,oes"
das as questiies de teoriza,iio da temporaIidade sobre cujo sig- distintas, mas urn fluxo de atividade integrada com 0 movi-
nificado insisti antes.
mento do corpo no tempo-espa,o. A percep,ao e organizada
atraves de esquemas de previsao, mediante os quais 0 indivi-
I) Prima facie, pOder-se-ia supor que memoria refere-se sirnples- duo preve a nova informa,iio que chega enquanto, simultanea-
mente ao passado - a experiencias preteritas, cujos vestigios ou mente, procede it digestiio mental da velha. Ela envolve nor-
tra,os permanecem, de algum modo, no organismo. A a,iio malmente 0 continuo movimento ativo dos olhos e geralmente
OCOITe enlilo na espacialidade do presente, apoiando-se em da cabe,a, mesmo quando 0 corpo est" em repouso. Como os
lembranps do passado, sempre que elas se fa,am necessarias esquemas sao previsoes, eles constituem, como diz urn autor,
ou desejadas. Uma reflexiio de momento demonstraci a inade- "0 veiculo por meio do qual 0 passado afeta 0 futuro", 0 que e
qua,iio desse ponto de vista. 0 "presente" niio pode ser dito ou "identico aos mecanismos subjacentes da memoria"'. Pode
escrito sem que se desvane,a no passado. Se 0 tempo nao e muito bern ser que 0 tato, habitualmente considerado 0 mais
lUna sucessao de "presentes", mas "estar presente" [presen- hurnilde dos sentidos e certamente 0 menos estudado de todos,
cingJ no sentido atribuido por Heidegger a essa expressiio, en- forne,a a maioria das pistas para 0 entendimento da percep,iio
lilo a memoria e urn aspecto do estar presente. em geral. 0 tato niio possui urn locus perceptivo claramente
2) Poder-se-ia imaginar que a memoria e, sobretudo, urn dispo- deIimitado, como 0 olho; a informa,iio tatil que chega nao e
sitivo de lembran,a - urn modo de recuperar informa,iio ou ordenada atraves de qualquer mecanismo especifico no siste-
de "relembrar". Este ponto de vista e inteiramente compati- ma nervoso; 0 uso do tato e parte obvia do movimento manipu-
vel com a ideia de que 0 passado esm claramente separado latorio do corpo nos contextos de sua a,iio. Uma caracteristica
do presente, porque a memoria pode entiio ser considerada impressionante da maior parte da Iiteratura sobre percep,ao
como chamar 0 passado de volta ao presente. Mas se descar- sensorial, alem disso, e tratar os sentidos como se eles funcio-
tarmos esta visiio niio sera mais plausivel definir a memoria nassem separados uns dos outros. Foi observado que virtual-
como a recorda,iio de coisas passadas. 0 titulo de Proust mente todos os estudos experimentais da percep,iio envolvem
deve certamente ser lido como urn comentario ironico justa- somente urn sentido'". A artificiaIidade disso e demonstrada ate
I mente a esse tipo de concep,iio ingenua. Recordar niio e pelo mais superficial eXame da natureza da vida cotidiana, na
irrelevante, obviamente, para a memoria, mas DaD designa 0
I que amemoria e.
qual a continuidade de atividades integra persistentemente os
varios sentidos.
I:I

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A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE
CONSCIl:NCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 55
A percep,ao depende, pois, da continuidade espacial e tem-
poral, ativamente organizada como tal pelo perceptor. a princi- perceptivas, mas nao indica sua conexao com as designa<;5es
pal ponto de referencia nao tern de ser 0 sentido singular nem 0 conceptuais de objetos, as quais provavelmente sao cultural-
perceptor contemplativo, mas 0 corpo em seus envolvimentos mente variaveis.
ativos com os mundos material e social. as esquemas percepti- Se a percep,ao for entendida como urn conjunto de dispo-
vos sao formatos neurologicamente baseados mediante os sitivos de arranjo temporal, formado pelos movirnentos e orien-
quais a temporalidade da experiencia e continuamente proces- ta,6es do corpo, e formando-os, nos contextos de seu compor-
sada. Tal processamento pode, por sua vez, ser entendido como tamento, poderemos entender, por conseguinte, a importiincia
inerentemente envolvido na monitora,ao reflexiva da a,ao em da aten,ao seletiva na conduta cotidiana. Em todo e qualquer
geral. Parece impossivel negar que 0 bebe recem-nascido pos- contexto de atividade, estao se passando muito mais coisas do
sui urn equipamento perceptivo inato. Por outras palavras, ele que aquilo a que 0 ator assiste, acontecirnentos ou qualidades
tern nao so os orgaos sensoriais como esquemas neurologica_ que the escapam it aten,ao. Como ocorre isso? A resposta
mente estabelecidos, que the permitem responder seletivamen_ comum e que 0 material redundante e filtrado. Mas isso e intei-
te ao mundo circundante, mesmo que essa seletividade seja ramente enganoso, pois sugere uma tentativa ativa de rejei,ao
relativamente rudimentar em compara,ao com a que se desen- do material redundante. Entretanto, a sele,ao e urn processo
volve mais tarde. Existe urn considemvel nUmero de provas de mais positivo do que negativo; expressa os envolvirnentos ati-
que os bebes respondem com movimentos da cabe,a na dire,ao vos de agentes com seus respectivos ambientes. Consideremos
de sons, seguem visualmente objetos em movimento e esten- o seguinte e muito debatido experimento". As grava,oes em fita
dem os bra,os para eles. "Olhar na dire,ao dos sons"ja envolve, de duas mensagens faladas separadas e diferentes sao fomeci-
e claro, a integra,ao dos sentidos". as recem-nascidos ja ava- das simultaneamente a sujeitos experimentais, urna para cada
liam isso em termos de urna diferen,a de tempo entre respostas ouvido e com igual volume de som. as sujeitos sao instruidos
acusticas nos dois ouvidos, levando ao movimento da cabe~ para para escutar somente uma das mensagens e repeti-la it medida
urna ou outra dire,ao. Tais respostas, e claro, tomam-se mais que a ouvem. Eles nao tiveram dificuldade em fazer isso e, em
precisas com 0 desenvolvimento psicologico e motor subse- geral, nao "ouviram" nada da mensagem altemativa. A situa-
qiiente; as crian,as levam muito tempo para aprender as artes ,ao experimental e interessante porque espelha 0 que os agen-
de lidar conceptualmente com objetos que sairam do campo de tes fazem a maior parte do tempo quando co-presentes com
visao. Denominar ou identificar objetos nao e, evidentemente, outros em situa90es nas quais mais de uma conversa esta se
apenas urna questao de dar rotulos a fen6menos cujas qualida- desenrolando. as resultados experimentais foram amplamente
des ja sao conhecidas. Denominar alguma coisa corretamente e interpretados em termos de filtros de informa,ao negativa".
estar apto a falar sobre ela corretamente, 0 que significa carac- Por outras palavras, a informa,ao redundante e supostamente
terizar suas propriedades: relaciona-Ia com urna especie de obje- impedida de chegar aos centros corticais superiores - tern sido
tos comparaveis, diferenciando_os de outras especies". Com sugerida a existencia de mecanismos neurais definidos que
rela,ao a isso, podemos entender os atrativos e as Iimita,6es do controlariam esse processo. Mas acontece que esse tipo de teo-
conceito de Gibson de "propicia,ao". Segundo Gibson, todos ria nao so trata 0 individuo como urn receptor de input essen-
os usos ou atividades que os objetos possibilitam _ propiciam cialmente passivo, como tambem depende de uma dissocia,ao
ao ator hurnano - sao diretamente perceptiveis. Esse ponto de insustentavel entre percep,ao e memoria, pois supoe-se que,
vista tern a vantagem de sublinhar 0 canlter pmtico de atividades embora percebamos tudo em nosso ambiente, em qualquer mo-
mento dado, boa parte do que e percebido e "bloqueado" - muito
i

L
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A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 57
rapidamente "esquecido"". Como sublinhou Neisser, a suposi-
,ao e de que qualquer uso de informa,ao alguns milesimos de negativa de algum tipo inibindo sua incorpora,ao nao-mediada
segundo apos ter sido registrada ja nao depende mais da per- na monitora,ao reflexiva da conduta e, mais particularmente,
cep,ao, mas da memoria. Essa opiniao nao e conceptualmente na conseiencia discursiva. As origens da barreira sao de dois
convincente nem empiricamente plausivel. Se a percep,ao e Con- tipos afins. Em primeiro lugar, como as mais primitivas expe-
siderada 0 que os agentes fazem, como parte de Suas atividades rieneias do bebe, dando forma ao sistema de seguran,a basico,
temporal e espacialmente situadas, nao M a necessidade de pos- por meio do qual a ansiedade e canalizada ou controlada, ante-
tular a existencia de qualquer mecanisme de bloqueio. datam a competencia lingiiistica diferenciada, e provavel que
permane,am dai em diante "fora dos limites" da conscieneia
Os organismos sao ativos: eles fazem algumas coisas e dei- discursiva. Em segundo lugar, 0 inconsciente contem recalca-
xam outras por fazer. Para collier uma mar;a cia irvore nao precisa- mentos que inibem a formula,ao discursiva.
mos descartar todas as outras; simplesmente nao as apanbamos. No que diz respeito it defini,ao conceptual, estas observa-
Uma teona cia coleta da mar;a teria muito a expIicar (Como e que ,oes estao moderadamente de acordo com 0 uso caractenstico
decidimos qual delas queremos? Como guiamos a mao ate ela? de Freud de "consciente" e de "0 inconsciente". Mas a tese de
Como a colhemos?), mas DaD teria de especificar, em absoluto, urn que a maioria das atividades cotidianas nao sao diretamente
mecanismo para manter longe das maos as mar;as nao desejadas. 16 motivadas significa questionar 0 modelo de motiva,ao com
que Freud tipicamente trabalhou. Para Freud, todas as ativida-
Se 0 "presente" nao e cortado do fluxo de a,ao, a "memo-
des humanas sao motivadas, inc1uindo (por exemplo) banalida-
ria" nada mais pode ser senao urn modo de descrever a cognos-
des ou "erros" aparentes como 0 /apsus linguae. Ele se interes-
citividade de agentes humanos. Se a memoria nao designa a
sou, com freqiiencia, precisamente em demonstrar que feno-
"experiencia passada", tampouco a consciencia (em qualquer
menos supostamente "acidentais" tern sua origem, de fato, em
dos tres sentidos acima mencionados) expressa 0 "presente".
motivos (inconscientes). Nao existe nenhuma razao para se
Aquilo de que uma pessoa esta "conscia" nao pode ser fixado
questionar a qualidade esc1arecedora dos inSights de Freud em
num determinado ponto no tempo. Precisamos distinguir, por-
tais materias. Mas pretender que todo e qualquer ate ou gesto e
tanto, entre consciencia, como conhecimento sensorial (0 primeiro
motivado - significando que the pode ser associado urn "moti-
e mais geral sentido do termo acima mencionado), memoria,
vo" definido - nao faz mais sentido do que tratar a a,ao como
como a constitui,ao temporal da consciencia, e recorda,ao, co-
envolvendo urna seqiiencia de inten,oes ou razoes. Ha urna
mo 0 meio de recapitular experiencias passadas de modo a fo-
falha logica, aqui, na no,ao simplificada da natureza da a,ao
caliza-las na continuidade da a,ao. Se a memoria se refere a
esse dominio temporal tao inerente na experiencia humana, en- hurnana. Como tenho dito com freqiiencia, a a,ao nao pode ser
conceituada satisfatoriamente como urn agregado de atos. Con-
taD a consciencia discursiva e a pnltica referem-se a mecanis-
mos psico/6gicos de recordm;iio, conforme utilizados em eon- centrando-se principalmente em "segmentos" demarcados es-
textos de a,ao. A consciencia diseursiva implica as formas da pecificos do comportamento (sintomas neuroticos), os escritos
recorda,ao que 0 ator e capaz de expressar verbalmente. A cons- de Freud tendem, de modo inevimvel, a expressar urna concep,ao
eieneia prMica envolve a recorda,ao a que 0 agente tern acesso tao deficiente de a,ao. Mas, em vez de supor que todo "ato"
na duree da ac;ao, sem ser capaz de expressar 0 que assim tern urn "motivo" correspondente, temos de compreender 0
"sabe". 0 inconsciente refere-se a modos de recorda,ao a que termo "motivac;ao" como processual. 0 significado concreto
o agente nao tern acesso direto porque existe uma "barreira" disso e que 0 inconsciente so raras vezes incide diretamente so-
bre a monitora,ao reflexiva da conduta. E as conexoes envolvi-
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A CONSTITUIr;A'O DA SOCIEDADE CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 59
das tampouco dependem unicamente de mecanismos psicolo- selftern. 0 self, entretanto, nao e uma especie de mini-agencia
gicos dentro da personalidade do ator individual; elas sao me- dentro do agente, E a soma daquelas formas de recorda9ao por
diadas pelas rela90es sociais que os individuos mantem nas meio das quais 0 agente caracteriza reflexivamente "0 que"
priticas de rotina de suas vidas cotidianas. esta na origem de sua a9ao, 0 self e 0 agente enquanto caracte-
Vma pequena elabora9ao desse ponto fomece algo como rizado pelo agente. Self, corpo e memoria estao, portanto, inti-
uma transi9ao entre a discussao desenvolvida ate aqui, neste mamente relacionados.
capitulo, e 0 que se segue mais adiante. Os principais teoremas
que desejo propor dizem 0 seguinte. A vida comum do dia-a-
dia - em maior ou menor grau, de acordo Com 0 contexto e os Erikson: ansiedade e confian9a
caprichos da personalidade individual - envolve uma seguran-
fa ontol6gica, que expressa uma autonomia do controle corpo- As teorias que salientam os elementos inconscientes do
ral no ambito de rotinas previsiveis. As origens psicologicas da comportamento humano tendem freqiientemente a adotar pers-
seguran9a ontologica serao encontradas nos mecanismos de pectivas objetivistas. Nao e dificil perceber por que, pois 0
controle da ansiedade basica (conforme indicado por Erikson, objetivismo, como muitas explica90es do inconsciente, trata a
cujas ideias discuto no proximo subcapitulo), hierarquicamen_ monitora9ao reflexiva da a9ao como mera espuma na superfi-
te ordenadas como componentes da personalidade. A g era9ao cie da atividade humana, cujas verdadeiras origens estiio situadas
de sentimentos de confian9a nos outros, como 0 elemento mais em outra parte. Ao apresentar uma descri9ao (algumas caracte-
profundo do sistema de seguran9a basica, depende substancial- risticas) do inconsciente e das rela90es sociais, nao acompa-
mente de rotinas previsiveis e diligentes, estabelecidas por fi- nharei aquelas versoes da psicanaJise estruturalista, associadas
guras parentais. Desde muito cedo, a crian9a da e recebe con- especialmente a Lacan, que estiio agora em yoga em alguns
fian9a. Quando se torna mais autonoma, entretanto, a crian9a meios. Embora os escritos de Lacan contenham inegavelmente
aprende a importiincia do que sao, nos termos de Goffinan, os algumas ideias de grande interesse, em minha opiniao elas ex-
"dispositivos protetores", os quais sustentam a mutualidade pressam uma concep9ao empobrecida do agente semelhante a
implicita na confian9a atraves do tato e de outras formulas que gerada pelo "marxismo estruturalista"". Lacan foi um dos que
preservam a aparencia extema dos outros. A seguran 9a ontolo- estiveram a frente dos ataques contra a obra dos chamados "psi-
gica e protegida por tais dispositivos, mas mantida de modo cologos do ego" dentro da psicanalise. Essas polemicas tiveram
mais fundamental pela propria previsibilidade da rotina, algo exilo num grau substancial, uma vez que a obra de Sullivan,
que e radicalmente perturbado em situa90es criticas. A anula- Horney, Erikson, Kardiner e outros encontra-se agora como que
9ao de moldes habituais de atividade pela angustia, que nao numa certa obscuridade. Penso que algumas das contribui90es
pode ser adequadamente contida pelo sistema de seguran9a ba- desses autores, entretanto, conservam uma importancia muito
sica, e especialmente uma caracteristica de situa90es criticas. consideravel e nelas me apoiarei em algo do que se segue.
eriticar a terminologia de Freud de "agencia" e self com- Criticas, "revisionismos" e "ortodoxias" autoprofessadas
tern proliferado na teoria psicanalitica desde os primeiros anos
porta numerosas implica90es. 0 "eu" e uma caracteristica es-
deste seculo, a exemplo do que tern acontecido com 0 marxis-
sencial do monitoramento reflexivo da a9ao, mas nao deve ser
mo, Os psicologos do ego, porem, associaram-se a dnas princi-
identificado com 0 agente nem com 0 self Entendo por "agente"
pais linhas de desenvolvimento no que conceme as formula-
ou "ator" 0 sujeito humano total, localizado no tempo-espa90 90es "classicas" da psicanaJise nos escritos de Freud. Por um
corporeo do organismo vivo. 0 "eu" nao tern imagem, como 0 lado, adotaram a perspectiva promovida por Anna Freud, isto e,
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A CONSTITU/(;:Jo DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 61
argumentaram que a preocupa,ao de Freud com a repressao e 0
inconsciente levou-o a subestimar os componentes mais cogni- esclareceu suficientemente 0 limiar essencial no desenvolvi-
tivos, racionais, do agente. Por outro lado, foram influenciados mento da crian,a que deriva da fase do dominio sintatico da
pelos escritos de analistas sociais, sobretudo dos antrop6logos, linguagem, uma transi,ao na vida do individuo, como Chomsky
os quais demonstram a nitida diversidade de modos humanos demonstrou, cujas conseqiiencias podem ser identificadas com
de vida social. Os escritos culturais de Freud - seja qual for a bastante facilidade, mas cujas origens permanecem torturante-
importiincia que ainda possam conservar, em alguns aspectos _ mente obscuras,
estavam essencialmente ligados ao evolucionismo da antropo- Em todas as sociedades, 0 cuidado inicial da crian,a e do-
logia do seculo XIX. Estar conscio dessa diversidade significa minado por urn s6 agente, quase sempre a mae biol6gica. As fa-
tambern reconhecer a variedade de diferentes formas de orga- ses iniciais do desenvolvimento da personalidade podem ser
niza,iio da familia, e, por conseguinte, de socializa,ao primitiva, caracteristicamente associadas as resolu,oes de necessidades
existentes. 0 reconhecimento desses dois conjuntos de fatores, ou tensoes decorrentes de tra,os fisicos do organismo. Mas pa-
considerados a urn tempo, significa fazer substanciais desvios rece quase certo que Freud comprimiu-as num esquema exces-
das no,oes mais tradicionais da teoria psicanalitica, embora sivamente determinista, e requer-se Dutro, mais flexivel, para
nao acarrete adotar um relativismo cultural desenvolvido; hii dar conta das varia,oes entre e dentro das sociedades, Podemos
processos de desenvolvimento da crian,a e de personalidade dizer que a mais antiga intera,ao entre 0 bebe e sua mae esta
adulta comuns a todas as sociedades humanas. Erikson expres- inserida no desenvolvimento do "inconsciente": nem 0 "movi-
sa isso em Childhood and Society da seguinte maneira: mento corporal" nem 0 "controle corporal" sao muito seme-
lhantes aos sentidos em que ambos sao envolvidos na "ayao",
A psicamilise esta implementando na atualidade 0 estudo no caso do membro adulto da sociedade. Se concordamos com
do ego [...]. Esta transferindo a importincia que atribuia ao estu- Erikson, podemos distinguir tres sucessivas polaridades asso-
do concentrado das condi~5es que entorpecem e deformam 0 ciadas a transforma,ao do corpo num instrumento de atua,ao
ego individual para 0 estudo das raizes do ego na organizacyao no mundo. A primeira polaridade, e a mais antiga, e a de "con-
social. [...] A longa infancia faz do hornem urn virtuose tecnico e fianya basica" versus "desconfianya basica". a recem-nascido
mental, mas tambem deixa nele urn duradouro residue de imatu-
ridade emocional. 18 e urn feixe de impulsos, que tern certos mecanismos homeosta-
ticos de ajustamento geneticamente dados, existente num am-
biente estranho; as atividades da mae proporcionam assistencia
Erikson e Sullivan sao talvez as duas figuras mais destacadas
e prote,ao. A "confian,a" (concebida aqui como urn tra,o de
entre aquelas que preservaram certos elementos universais da
descri,ao original de Freud das fases de desenvolvimento psi- personalidade) e entendida como tempo-espa,o psicologica-
cossexual, embora adotando, ao mesmo tempo, contribui,oes mente vinculat6rio pelo despertar inicial de urn sentido de que
derivadas das ciencias sociais. Ap6io-me nas ideias deles _ em- ausencia nao significa deser,ao, A diniimica psicol6gica subja-
bora parcimoniosa e criticamente - no que se segue. Baseado cente a interse,ao de presen,a e ausencia tern seu ponto de ori-
tanto em seu trabalho clinico quanto no estudo a que procedeu gem no corpo, nas necessidades corporais, em seus modos de
de uma gama de culturas, Erikson distinguiu uma serie de eta- sacia,ao e controle,
pas do desenvolvimento da personalidade num periodo que cai Como Erikson comenta, "a primeira realiza,ao social da
desde a inrancia ate a idade adulta. Sua discussao da natureza crianya e, portanto, sua disposiyao de perder a mae de vista sem
das inclina,oes motivacionais e capacidades mentais da crian- que isso the cause angustia ou raiva desmedidas, pelo fato de a
,a pequena e extremamente persuasiva. Mas penso que ele nao mae ter se tornado tanto uma certeza interna quanta uma previ-
sibilidade externa". Previsibilidade, continuidade, uniformidade
 62
A CONSTlTUI9A-O DA SOCIEDADE CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 63
fornecem ''urn sentimento rudimentar de identidade do ego que Becker, e "0 sentimento positivo de cordialidade pessoal volta-
depende [...] do reconhecimento de que existe urna popula,ao do para a inquiri,ao e sabotagem potencial dos outros"'".
interna de sensa,5es e imagens recordadas e previstas firme-
Como base de urn sistema de administra,ao de tensao, a
mente correlacionadas com a popula,ao exterior das coisas e
polaridade confian,a/desconfian,a e organizada em torno de
pessoas conhecidas e previsiveis"". "Confian,a" iguala-se aqui
rela,5es entre proje,ao e introje,ao como mecanismos da per-
a seguran,a e, desde muito cedo, sugere Erikson, traz urna mu-
sonalidade. A introje,ao infantil, segundo Freud, assimila a bon-
tualidade explicita a ela; ha, pelo menos, urn sentimento inci-
piente de "ser digno de confian,a" associado a extensao gene- dade externa e a certeza interna; a proje,ao trata urn dano inter-
ralizada da confian,a ao outro. Nao, e claro, que a forma,ao no como malevolencia externa21 • Esses mecanismos, baseados
inicial de confian,a ocorra sem conflito ou tensao. Pelo contri- eles proprios na identifica,ao, acabam sendo recobertos por
rio, realiza-se contra urna base de anglistia difusa, cujo contro- varias formas psiquicas mais maduras. Mas retornam ao pri-
Ie se insinua como a mais generalizada origem motivacional da meiro plano em situa,5es de extrema amea,a ou crise. Subse-
conduta hurnana. A intera,ao entre 0 bebe e a mae insere 0 indi- qiientemente, a matura,ao fisica do corpo prepara 0 terreno
viduo humano em crescimento num nexo do qual, para melhor para a transi,ao a urna nova fase do desenvolvimento. Erikson
ou para pior, nao ha dai em diante como escapar. A mae e urn sugere que a melhor maneira de entender isso nao e em termos
agente Gi urn representante do "outro generalizado") que, ao de urn deslocamento de zonas de prazer na superficie do corpo,
cuidar do bebe, implicita urn direito social nisso, que prenuncia como queria Freud, embora as fixa,5es possarn vir a centrar-se
as san,5es normativas associadas a forma,ao subseqiiente de nelas. "Agarrar" e "soltar" sao obviamente aplicaveis ao con-
rela,5es sociais. A anglistia da ausencia dissolve-se atraves das trole de excre,5es corporais, mas expressam-se de urn modo
recompensas da co-presen,a, deitando as bases da dialetica do muito mais generico atraves das maos e dos bra,os. "Agarrar"
compromisso e do descompromisso em que a diversidade dos e "soltar" sao os correlatos comportarnentais da principal polari-
encontros se fundamenta. A expansao da autonomia da crian,a, dade em que essa nova etapa se centra: autonomia versus duvida
ancorada no controle do corpo como urn veiculo de a,ao (que ou vergonha. Tal como na fase anterior, com a qual pode manter-
sofre urna transforma,ao maci,a com 0 dominio da linguagem),
se nurna rela,ao de tensao generalizada, a polaridade pode ser
amplia e integra simultaneamente essa dialetica. Cada indivi-
resolvida de urn modo relativamente benigno ou mais dilacera-
duo tern 0 direito - variando em contelido de mUltiplas manei-
dor. Agarrar como urn modo ivido de reten,ao pode representar
ras em diferentes contextos - de manter urna dismncia dos ou-
urna auto-absor,ao cruel ou ser urn padriio de cuidado expressan-
tros, preservando a privacidade corporal e integridade do self.
Mas 0 self tern de submeter-se ao compromisso social, dado do autonomia. Do mesmo modo, soltar pode ser urna expressao
que isso e feito com a devida deferencia ao reconhecimento hostil de impulsos agressivos ou urna atitude rnais descontraida
ajuizado das necessidades dos outros. A crian,a ainda ignora de "deixar passar", de "deixar acontecer". Parece importante en-
isso, bern como Sua conexao com a face*. A face, como diz fatizar 0 significado da psicodinfunica da vergonha em contraste
com a culpa. Multos psicanalistas, seguindo as sugest5es dadas
por Freud, trataram a vergonha como especificarnente ligada ao
* Talvez seja oportuno Iembrar que, a1em de sinonimo de "rosto", "cara", medo de exposi,ao genital. Isso ajuda certarnente a indicar urn
"fisionomia", "expressao fisionomica", "aparencia extema", "fachada" etc"
comum a ambos as idiomas, face tern em ingles conota~aes inexistentes em aspecto da ansiedade, acerca da "aparencia" corporal, que (como
nosso idioma, as quais 0 autor faz referencia: arnor-proprio, dignidade, presti- sern indicado brevemente) Goffinan mostrou ser tao importante.
gia, como em express6es Correntes como to lose jace (perder prestigio),face Mas 0 fenomeno da vergonha e certarnente multo rnais penetran-
saving (salvar as aparencias) etc. (N. do T.)
te do que os comentirios de Freud nos levariam a crer".
 64
A CONSTITWr;:Jo DA SOCIEDADE
CONSCIPNCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 65
o predominio de sentimentos de vergonha ou duvida e
indicado pela freqiiencia com que estar "envergonhado" e ter- terior/ posterior do corpo. Manter a "frente" (as aparencias) na
mos companlveis ("mortificado", "hurnilhado" etc.) ocorrem na vida social significa evitar as ansiedades provocadas pela ver-
conversa9iio comum. A ideia, sugerida por alguns autores, de gonha, e a perda da "frente" (do amor-proprio) leva precisamen-
que a culpa e "privada" enquanto a vergonha e "publica" pare- te avergonha ou constrangimento. Para a crianya, "atnis" sig-
ce dificil de sustentar. A vergonha penetra nas raizes da auto- nifica "0 traseiro":
estima e e evidente que esta intimamente relacionada com a
experiencia algo mais moderada de "embara90" ou "constran- o continente negro do pequeno ser, uma area do calpa que pade
ser magicamente dominada e efetivamente invadida per aqueles
gimento". Vergonha e constrangimento estiio localizados psi-
que poderiam atacar-lhe 0 pader de autonomia... Essa etapa,
cologicamente na interse9iio de compromisso e descompro_
portanto, passa a ser decisiva para a proporc;ao de arnOT e odio,
missa, 0 fracasso em "reaIizar" certos aspectos do desempenho de cooperac;ao e voluntariedade, de liberdade de auto-expressao
por ter sido "apanhado" em descuido ou negligencia de varias e sua supressao. De urn sentimento de autocontrole sem perda
maneiras. Diferente da "culpa", a "vergonha" e 0 "constrangi_ de amor-pr6prio resulta urn sentimento duradouro de boa vonta-
mento" captam ambos os lados dos encontros; quer dizer, os de e orgulho; de urn sentimento de perda do autocontrole e de
dois ultimos termos podem ser usados pelo individuo a respeito supercontrole extemo resulta wna propensao duradoura para a
de Sua propria conduta ou da de outros. Eu posso estar enver- duvida e a vergonha. 23
gonhado de mim mesmo, de algo que fiz, ou constrangido com
isso. Mas tambem posso envergonhar_me da conduta de outrem, A terceira fase, aquela que culmina no dominio (e coincide
assim como ficar constrangido em raziio disso. Parecemos de- com ele) da linguagem sintaticamente desenvolvida, focaliza
tectar aqui urna diferen9a entre as duas em090es. Estar enver- uma polaridade de iniciativa versus culpa. Ea fase da transi9iio
gonhado com 0 comportamento de uma outra pessoa indica a edipiana, a qual, sejam quais forem suas obscuridades e comple-
existencia de urn vinculo com ela, assinalando urn certo reco- xidades, apresenta-se como uma fase universal de crise no de-
nhecimento de associa9iio com ou ate de responsabilidade por senvolvimento psicologico hurnano. No que se refere ao corpo,
ela. Ficar constrangido por alguem, em vez de expressar urn e marcada pelo dominio de uma postura ereta e do movimento
alheamento em rela9iio a sua conduta, revela, na verdade, urna ambulatorio nessa postura, bern como pelo amadurecimento da
certa curnplicidade com ele, urna simpatia por alguem que foi genitalidade infantil. 0 potencial dramarico dessa fase, para 0
desnecessariamente "exposto". desenvolvimento posterior da personalidade, e dado pela con-
E especialmente interessante, a luz da preocup a9ilo de jun9iio da exigencia de repressiio do apego inicial a miie (nos
Goffinan com acontecimentos anaJogos, assinalar que Erikson rapazes e nas meninas) com as capacidades que se tornam par-
liga a vergonha na crian9a (com fortes tra90S residuais no siste- te desse processo, na medida em que coincide com urn enorme
ma de seguran 9a do adulto) a postura corporal e as regioes saIto para a frente nas aptidoes lingiiisticas. E urna fase de ini-
"frontal" e "posterior" do corpo. Podemos ver ai urn modo pelo ciativa, porque a realiza9iio da transi9iio edipiana permite a crian-
qual a teoria de reten9ilo anal, de Freud, pode ser expressa nu- 9a 0 controle interno necessario para se aventurar longe dos
rna forma muito mais socializada. As regioes "da frente" e "de confins imediatos da familia e estabelecer rela90es com seus
tras", em que os encontros ocorrem, e em cujo contexto as pares. Mas isso e conseguido ao pre90 da repressiio, que, em
ocasi5es sociais sao encenadas, talvez se relacionem direta- certos individuos e em algumas circunstancias, pode acarretar
mente com a experiencia mais primitiva da regionaliza9iio an- mutila90es em formas de ansiedade derivada da culpa.
 66
A CONSTITW9AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 67
Pais aqui a crian~a divide-se para sempre. Os fragmentos
do instinto, que antes haviam intensificado 0 desenvolvimento
A Figura 3 indica que as sucessivas fases pressupoem pro-
de seu corpo e de sua mente infantis, tomam-se agora divididos por90es variaveis de independencia e dependencia, combina-
em uma conformac;ao infantil, que perpetua a exubenincia dos 90es de modos corporais e mecanismos psicoI6gicos. Se esti-
potenciais de desenvolvimento, e uma confonnac;ao parental, vesse em debate a descri9ao de diferen9as individuais, isso
que sustenta 24e aumenta a auto-observac;:ao, a auto-orientac;:ao e a implicaria refletir sobre 0 conteudo dos retangulos vazios, os
autopunic;:ao.
quais seriam preenchidos na medida em que fixa90es ou
modos de regressao infantis exercem uma influencia profunda
Em cOnjunto, essas tres fases representam um movimento sobre a motiva9ao do comportamento.
progressivo na dire9ao da autonomia, que deve ser entendida A investiga9ao sobre 0 desenvolvimento infantil sugere,
como 0 estabelecimento da capacidade de monitora9ao reflexi- com certa enfase, que a forma9ao de capacidades de a9ao aut5-
va da conduta. Mas "autonomia" nao significa abandonar os noma combina-se estreitamente com a compreensao dos outros
estimulos provocadores de ansiedade ou os modos de enfrentar como agentes. Tres etapas principais na forma9ao de conceitos
ansiedade que compreendem 0 sistema de seguranp da perso- de "agencia" podem ser distinguidas, coincidentes com as fases
nalidade adulta. Os componentes motivacionais da personali- descritas por Erikson. Uma e a do reconhecimento do que foi
dade infantil e da adulta derivam de uma orienta9ao generaliza- denominado "agencia simples" - a de que outros podem inter-
da para a evita9ao da ansiedade e a preserva9ao da auto-estima vir causalmente numa seqiiencia de eventos ao ponto de os mo-
contra a "enchente" de vergonha e culpa. Podemos pressupor dificar25 • A percep9ao pela crian9a de que seu corpo e um locus
que os mecanismos do sistema de seguran9a permanecem num
de a9ao acompanha a atribui9ao de qualidades identicas aos
nivel inconsciente, porque sao pre-lingiiisticos _ embora a fase
corpos de outros. Desde muito tema idade, ela reage de modos
edipiana seja precisamente 0 periodo em que a crian9a aprende
a constituir-se como urn "eu". diferentes em sua intera9ao com os outros "que Ihes parecem
agentes", embora os aspectos da conduta de tais figuras, as quais
responde, sejam relativamente simples e nitidos26 • Outros agen-
tes, entretanto, ainda sao tratados instrumentalmente, como
III Locomotor
Genital iniciativa uma especie de objeto no meio ambiente, e nao como seres
versus fisicamente separados do self, que podem ir embora e retomar.
culpa
A competencia emocional associada a confian9a parece estar
intimamente ligada a compreensao cognitiva de "agencia" co-
II Muscular autonomia
Anal mo uma propriedade de distintos seres. Mas a generaliza9ao de
versus
vergonha, dUYida propriedades especificamente "humanas" antes atribuidas so-
mente a determinadas figuras parentais, aos agentes humanos,
J Oral confianya basica
marca a transi9ao para uma terceira etapa.
Sensorial versus Vigotski, entre outros, demonstrou a estreita rela9ao en-
desconfianya
tre habilidades locomotoras (0 dominio do corpo como locus
. 2 3
de a9ao) e 0 dominio sint<itico da linguagem. Sua obra responde
muito pouco ao "problema chomskyano" - como e que a crian-
9a, de modo relativamente subito, consegue coordenar estrutu-
Figura 3
ras sintaticas com hito? -, mas elucida importantes aspectos
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A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE
CONSClENClA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 69
da associa,ao de agencia e fala. 0 usa da linguagem, de forma
foi elaborada por Freud ou por muitos de seus epigonos; "0
diferenciada, depende da expansao da "inteligencia pratica" da
conceito de organizariio social e sua rela,ao com 0 ego indivi-
crian,a - por outras palavras, de aspectos definidos da cons-
dual" foi "posto de lado pelos encomios em defesa da existen-
ciencia pnitica". Pode-se sugerir que 0 desenvolvimento da
cia de 'fatores sociais"'''. 0 conceito do ego foi assim estabele-
"inteligencia prMica" acelera-se a partir do periodo da resolu-
cido por Freud, sublinha Erikson, em rela,ao a seus opostos na
,ao da terceira fase no esquema de Erikson, porquanto envolve
natureza ca6tica da massa enos instintos primevos do id. A fim
a explora,ao do corpo como urn veiculo de a,ao. Mas 0 surgi- de tentar levar em conta a sensibilidade moral escudada dos
mento inicial da "inteligencia pnltica" data dos primeiros seres hurnanos, Freud introduziu 0 conceito de superego ou ego
movimentos explorat6rios do bebe; 0 dominio da fala sintMica ideal- concebendo-o, lambem, entretanto, em termos, princi-
converge com 0 aurnento do dominio pnitico na fase decisiva palmente, de urn fardo que 0 ego tern de suportar. Erikson quis
de desenvolvimento. E impressionante verificar ate que ponto contrabalan,ar essa enfase unilateraL Em vez de nos concen-
se assemelham algumas das observa,oes de Vigotski, sobre 0 trarmos no que e negado a crian,a pela organiza,ao social,
que para urn adulto pareceria ser uma "dissocia,ao" entre fala deveriamos interessar-nos tambem em apurar como a crianya
e conduta, e as feitas por Merleau-Ponty, a respeito de pacien- se beneficia dela e conceder maior aten,ao a influencia de
tes portadores de lesao cerebral (ver pp. 75-9). Por exemplo, urna tipos diferenciados de organiza,ao sociaL A no,ao de Erikson
crian,a pode ser capaz de executar urna tarefa bastante comple- de identidade do ego tern 0 prop6sito de completar os concei-
xa somente com a condi,ao de ir descrevendo verbalmente tos psicanaliticos tradicionalmente estabelecidos".
cada movimento a medida que prossegue. As crian,as, como Estou francamente de acordo com os comentarios criticos
muitos "doentes mentais", nao tern a menor relutiincia em falar de Erikson a respeito de Freud. Mas 0 termo "identidade do ego"
para si mesmas em publico - fenomeno esse que tern de ser dis- nao e dos mais satisfat6rios. 0 termo "ego", conforme indi-
tinguido da identifica,ao piagetiana de "fala egocentrica". quei, realiza urn excessivo trabalho conceptual em teoria psica-
Tendo recorrido consideravelmente a Erikson, talvez deva nalitica. 0 de "identidade do ego" tende apenas a avolurnar as
deixar claro que a apropria,ao que fiz de algumas de suas confusoes ja existentes. 0 pr6prio Erikson admite que 0 termo
ideias pretende ser estritamente limitada e idonea. Penso que as tern pelo menos quatro conota,oes. Por vezes, refere-se a urn
areas menos interessantes da obra de Erikson sao justamente sentido "consciente" de identidade individuaL Tambem pode
aquelas pelas quais ele talvez tenha ganho maior celebridade _ significar "empenho inconsciente por urna continuidade do cara-
as relacionadas com a forma,ao da "identidade do ego" e com ter pessoal", Urn terceiro significado e "urn criterio para os pro-
a importiincia das etapas de desenvolvimento da personalidade cedimentos silenciosos de sintese do ego". Urn quarto sentido e
que se estendem ate a adolescencia e mais alem. Erikson critica "a manuten,ao de urna solidariedade interior com os ideais e a
a formula,ao de Freud acerca do "ego" e suas rela,oes com a so- identidade do grupo"31, Poder-se-ia assinalar que nenhurna dessas
28
ciedade • Isso deve-se em parte as suas inadequabilidades so- acep,oes, tomadas isoladamente, e especialmente compreensivel
ciol6gicas. Freud apoiou-se em textos sociol6gicos surnamente -muito menos 0 conceito que engloba todas elas!
inadequados (como as discussoes de seu tempo em torno da
psicologia de massa) em seus escritos. Ao mesmo tempo, 0
metodo psicanalitico era baseado em hist6rias de casos indivi- Rotiniza,iio e motiva,iio
duais. Entre uma coisa e outra existe urn grande abismo. Ne-
Em vez do conceito de identidade do ego, usarei no que se
nhurna descri,ao satisfat6ria de urna sociedade diferenciada
segue as iMias de Erikson sobre as origens e a natureza da
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A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 71
autonomia corporal e da confian9a. Sugerirei que um sentido
de confian9a na continuidade do mundo objetivo e no tecido da de substancial de individuos, situa90es que amea9am ou des-
atividade social depende de certas conexoes especificaveis en- troem as certezas de rotinas institucionalizadas. Estou interes-
tre 0 agente individual e os contextos sociais atraves dos quais sado, neste ponto, nao na analise das origens sociais de tais eir-
esse agente se movimenta no deeorrer da vida cotidiana. Se 0 cunstfulcias, mas em suas conseqiiencias psico16gicas e no que
sujeito so pode ser apreendido atraves da constitui9ao reflexiva essas conseqiiencias indicam acerca da generalidade da vida
de atividades dimas em priticas sociais, nao podemos entender social rotineira. Como analisei situa90es criticas de forma bas-
a mecanica da personalidade separada das rotinas da vida do tante detalhada em outro trabalho", mencionarei aqui apenas
dia-a-dia, atraves das quais 0 corpo passa e que 0 agente pro- uma delas - uma famosa descri9ao de um episOdio infame da
duz e reproduz. 0 conceito de rotinizarao, baseado na cons- historia recente. E a descri9ao e analise de Beltelheim, em The
cieneia pritica, e vital para a teoria da estrutura9ao. A rotina Informed Heart, das experiencias do autor e de outras em Da-
faz parte da continuidade da personalidade do agente, na medi- chau e Buchenwald. Nos campos de coneentra9ao, escreve ele,
da em que percorre os caminhos das atividades cotidianas, e "'vi ocorrerem fapidas mudan9as, e nao so no comportamento
das institui90es da sociedade, as quais so 0 sao mediante sua como tambem na personalidade; incrivelmente mais rapidas e,
continua reprodu9ao. Um exame da rotiniza9ao, devo afirmar, com freqiiencia, muito mais radicais do que qualquer que fosse
dota-nos de uma chave-mestra para explicar as formas caracte- possivel por tratamento psicanalitico"33. A experiencia do cam-
ristieas de rela9ao do sistema de seguran9a bisica com os pro- po de eoncentra9ao nao foi mareada apenas pelo confinamen-
cessos reflexivamente constituidos inerentes ao cariter episo- to, mas tamb"m pela extrema ruptura de formas habituais de
dico dos encontros. vida cotidiana, decorrente das condi90es brutalizadas de exis-
Podemos sondar a natureza psicologica da rotina conside- tencia, da sempre presente amea9a ou realidade da vioIencia
rando os resultados de situa90es em que os modos estabelecidos dos guardas, da escassez de alimento e outras provisoes ele-
de vida diaria habitual sao drasticamente abalados ou rompi- mentares para a manuten9ao da vida.
dos - estudando as que podemos ehamar de "situa90es criti- As mudan9as de personalidade descritas por Beltelheim -
cas". Ha um sentido no qual as situa90es criticas, para indivi- vivenciadas por todos os prisioneiros que estiveram intemados
duos espeeificos ou grupos de individuos, estao elas mesmas no campo de concentra9ao por alguns anos - obedeciam a uma
inseridas na regularidade da vida social pela propria natureza certa seqiiencia de estagios. Essa seqiiencia era com muita evi-
da interse9ao entre 0 processo ou "cicIo" vital do individuo, a dencia regressiva. 0 proprio processo de prisao inicial era trau-
duree da atividade, por um lado, a longue duree das institui- mitico para a maioria dos reclusos. Arrancados ao convivio da
0 familia e dos amigos, geralmente com pouca ou nenhuma adver-
9 es, por outro. Sao essas as crises tipicamente marcadas por
ritos de passagem, come9ando para 0 individuo com 0 nasci- tencia previa, muitos prisioneiros foram submetidos a tortura
mento e terrninando com a morte. Entretanto, na medida em que durante seu transporte para os campos. Os de classe media ou
formam uma parte intrinseca da continuidade da vida social, profissionais liberais, que em sua maioria nao tinham tido
muito embora sejam descontinuidades para os individuos, tais qualquer contato anterior com a policia ou com 0 sistema de
situa90es tendem a revestir-se de um cariter definitivamente prisao, tiveram a maior perturba9ao nas fases iniciais de trans-
rotinizado. porte e de "inicia9ao" na vida do campo de concentra9ao. Se-
Entendo por " situa90es critieas" as eircunstancias de dis- gundo Beltelheim, os suicidios que ocorreram na prisao e no
un transporte confinaram-se principalmente a dse grupo. A vasta
j 9ao radical de tipo imprevisivel, que afetam uma quantida-
maioria dos recem-aprisionados, entretanto, procurava distan-
'1

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A CONSTITUlr;:A-O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 73
ciar-se psicologicamente das pavorosas pressoes da vida no
campo, tentando manter os modos de conduta associados its suas tudo 0 que 0 futuro pudesse reservar-Ihes. Deixavam de se com-
vidas pregressas. Mas isso provou ser impossive!. A "iniciati- portar como agentes hurnanos, evitando 0 contato de olhar com
va", que Erikson diz estar no mlcleo da autonomia de a9ao hu- DutrOS, fazendo apenas movimentos corporais primarios e
mana, foi muito rapidamente corroida; a Gestapo, em certa arrastando-se para andar. Esses homens e mulheres nao tarda-
medida, for90u deliberadamente os prisioneiros a adotarem urn ram a morrer. Somente as prisioneiros que conseguiram man-
comportamento infantil. ter algurna pequena esfera de controle em suas vidas diitrias,
que ainda consideravam como "'suas", puderam sobreviver.
A grande maioria dos prisioneiros perambulava pelo campo Como diz Bettelheim, eles preservaram "0 principal suporte de
sem uma flagela9iio publica, mas a ameaca gritada de que iriam urna humanidade radicalmente reduzida, mas ainda presente".
receber 25 chicotadas nas costas soava em seus ouvidos muitas Nao obstante, eram incapazes de evitar urna serie de atitudes
vezes por dia... Amea9as como essas, e tambem as impressoes infantis, uma diminui9ao muito acentuada do senso de tempo,
lan9adas aDS prisioneiros tanto pelos SS como pelos capatazes da capacidade de antever, bern como oscila90es bruscas de hu-
prisioneiros, relacionavarn_se quase excIusivamente aesfera anal.
mor em resposta a acontecimentos inteiramente triviais.
"Merda" e "eu" eram tao comuns que raramente urn prisioneiro
era tratado de Dutra fenna.34 Todas essas coisas referem-se ao comportamento de pri-
sioneiros que tinham estado em campos de concentra9ao por
nao mais de urn ano (inclusive 0 proprio Bettelheim). Os "pri-
Os guardas exerciam urn controle rigoroso, mas delibera-
damente ernitico, sobre a higiene pessoal, no sentido tanto da sioneiros veteranos", sobreviventes de varios anos nos campos,
elimina9ao quanto do asseio gera!. Todas essas atividades eram apresentavam urn comportamento diferente. Haviam perdido
efetuadas em publico. Os campos de concentra9ao destruiram por completo qualquer orienta9ao quanta ao mundo la fora e
virtualmente toda a diferencia9ao entre regioes da "frente" e de tinham, por assim dizer, se reconstituido como agentes inte-
"tras", convertendo a segunda, fisica e socialmente, nurna preo- grando-se na vida do campo como participantes dos proprios
cup a9ao central da vida no campo. rituais de degrada9ao que, quando prisioneiros recem-chega-
Bettelheim atribui especial enfase it imprevisibilidade geral dos, haviam considerado tao abjetos. Com freqiiencia, eram
dos eventos nos campos de concentra9ao. 0 sentimento de auto- incapazes de recordar nomes, lugares e eventos de suas vidas
nomia da a9ao que os individuos POSsuem nas rotinas comuns pregressas. 0 resultado final, observado na maioria dos velhos
da vida cotidiana, em contextos sociais ortodoxos, era quase prisioneiros, mas nao em todos, era urna personalidade recons-
completamente dissolvido. 0 sentido de "futuro", em que a duree trulda, que se baseava na identifica9ao com os proprios opres-
da vida social ordinariamente ocorre, era destruido pelo carater sores, os guardas do campo. Os velhos prisioneiros macaquea-
manifestamente contingente ate mesmo da esperan9a de que 0 yam as atividades de seus carcereiros, nao meramente para pro-
dia seguinte chegaria. Por outras palavras, os prisioneiros vi- curar agradar-lhes mas tambem, sugere Bettelheim, por causa
viam em circunstitncias de radical inseguran 9a ontologica: de uma introje9ao dos valores normativos dos SS.
"eram as tarefas absurdas, a falta de tempo para si mesmos, a Como devemos interpretar esses acontecimentos? A se-
incapacidade de fazer pIanos devido its subitas mudan9as nas qiiencia de estitgios parece bastante clara (embora nao apresen-
normas do campo, que eram tao profundamente destrutivas 35 • tada desse modo pelo proprio Bettelheim). A ruptura e 0 ata-
Alguns prisioneiros tornavam-se "cadaveres ambulantes" (os que deliberadamente sistemittico its rotinas habituais da vida
chamados Muse/miinner) porque se rendiam fatalisticamente a produzem urn alto grau de ansiedade, urna elimina9ao das res-
postas socializadas associadas it seguran9a da administra9ao
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A CONSTlTUI9A-O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 75
do corpo e a wna estrutura previsivel da vida social. Tal sUTto de
ansiedade expressa-se em modos regressivos de comportamen_ ou seguran9a ontol6gica em cujo iimbito podem ser canaliza-
to, atacando os alicerces do sistema de seguran9a bisica funda- das e administradas as tensoes mais primitivas. Epor essa razao
do na confian9a manifestada em rela9ao aos outros. Aqueles que se pode dizer que muitas das caracteristicas especificas do
que estao mal equipados para enfrentar essas pressoes sucwn- encontro cotidiano nao sao diretamente motivadas. Pelo con-
bern e afundam. Alguns sao capazes de manter wna esfera mi- trano, existe wn compromisso motivacional generalizado de
nima de controle e auto-estima que lhes permite sobreviver por integra9ao de pniticas habituais atraves do tempo e do espa90.
wn periodo mais longo. Mas, finalmente, pelo menos na maio-
ria dos prisioneiros veteranos, tern lugar wn processo de "res-
socializa9ao" em que wna atitude de confian9a (limitada e su- Presen9a, co-presen9a e integra9iio social
mariamente ambivalente)", envolvendo a identifica9ao com
figuras de autoridade, e restabelecida. Vma tal seqiiencia de As rotinas da vida cotidiana sao fundamentais ate mesmo
inlensificada ansiedade, regressao, seguida de wna reconstru- para as mais elaboradas formas de organiza9ao da sociedade.
9ao de padroes tipicos de a9ao, apresenta-se nwna gama de No decorrer de suas atividades diarias, os individuos encon-
situa90es criticas em contextos muito diversos, como as rea- tram-se uns com os outros em contextos situados de intera9ao
0 - intera9ao com outros que estao fisicamente co-presentes.
9 es a estar sob fogo inimigo, no campo de batalha, durante
prolongados periodos de tempo, interrogat6rios for9ados e tor- As caracteristicas sociais de co-presen9a estao estribadas
tura em prisoes e outras condi90es de extrema pressao". na espacialidade do corpo, em orienta9ao para os outros e para
A vida social cotidiana normal, em contraste _ em maior o pr6prio self experienciador. Goffman dedicou consideravel
ou menor grau, de acordo com 0 contexto e os caprichos da aten9ao a analise desse fenomeno, especialmente com referen-
personalidade individual -, envolve wna seguran9a ontol6gica cia a "face", mas talvez as reflexoes mais significativas sobre 0
fundada nwna autonomia do controle corporal, dentro de roti- assunto se encontrem em Merleau-Ponty. Passarei a conside-
nas e encontros previsiveis. 0 caniter rotinizado dos caminhos ra-las, ja que elas nos levam diretamente as observa90es de
que os individuos Jiercorrem no tempo reversivel da vida coli- Goffman. 0 corpo, sublinha Merleau-Ponty, nao "ocupa" tem-
diana simplesmente DaD "acontece". E"feito acontecer" pelas po-espa90 exatamente no mesmo sentido em que os obj etos ma-
modos de monitora9ao reflexiva da a9ao que os individuos sus- teriais 0 fazem. De acordo com ele, "0 contoroo do meu corpo
tentam em circunstancias de co-presen9a. A "submersao" de e wna fronteira que as rela90es espaciais comuns nao crn-
modos habituais de atividade pela ansiedade, que nao pode ser zam"". Isso se deve ao fato de que 0 corpo, e a experiencia do
adequadamente contida pelo sistema de seguran9a bisica, e movimento corporal, e 0 centro de formas de a9ao e de percep-
especificament~ wna caracteristica de situa90es criticas. Na 9ao que realmente definem sua unidade. As rela90es espa90-
vida social ordinana, os atores tern urn interesse motivado em temporais de presen9a, centradas no corpo, nao estao ajustadas
manter as formas de tato e "repara9ao" que Goffinan analisa com a wna "espacialidade de posi9ao", nas palavras de Merleau-
tanta acuidade. Entretanto, isso nao se deve ao fato de a vida Ponty, mas a wna "espacialidade de situa9ao". 0 "aqui" do cor-
social ser wna especie de contrato mutuamente protetor que os po nao se refere a wna serie determinada de coordenadas, mas
individuos celebram voluntariamente, como sugere Goffman a situa9ao do corpo ativo orientado para suas tarefas. Numa
ocasionalmente. 0 tato e wn mecanismo por meio do qual os linha de ideias semelhantes a de Heidegger, diz ele: "Se meu
agentes estao aptos a reproduzir as condi90es de "confian9a" corpo pode ser uma 'forma' e se pode haver, diante dele, figu-
ras privilegiadas contra pIanos de fundo indiferentes, isso ocorre
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em virtude de ele estar polarizado por suas tarefas, de sua exis-
Tal atividade do corpo, no f1uxo da a9ao, e imediatamente
/lincia em dire,ao a elas, de seu enfeixamento de si mesmo na
envolvida na seguran9a ontol6gica ou atitude de "confian9a"
persegui9ao de seus objetivos; a imagem do corpo e, em ultima
para com a continuidade do mundo e do selfimplicita na duree
instancia, urna maneira de afirmar que meu corpo esta no
mundo."39 da vida cotidiana. 0 paciente com lesao cerebral requer urn
minucioso exame fisico de urn objeto antes de este poder ser
As observa90es de Goldstein e outros sobre pacientes com
identificado como, digamos, uma "chave". Os individuos nor-
lesoes
40
cerebrais fornecem uma ilustra9ao concreta de como e
isso • Assim, alguns desses individuos nao sao capazes de exe- mais s6 se dedicariam a urn tal exame de urn objeto em cir-
cutar movimentos que abstraiam do milieu visualmente presen- cunstiincias incomuns - quando, por exemplo, estivessem par-
te. Vma pessoa pode apontar para uma parte do corpo somente ticipando de urna brincadeira na qual ha razoes implicitas para
se puder observar 0 movimento executado e tocar realmente super que os objetos talvez nao sejam 0 que parecem. A conti-
essa regiao. A partir de observa90es como essas torna,se evi, nuidade da vida ordinaria seria impossivel se tentassemos sub-
dente que, embora sejam ambos fenomenos aparentemente "po- meter todos os objetos a tao detalhada inspe9ao. Por ai vemos
sicionais", "toear" DaO e 0 meSilla que "apontar". A diferen.;:a que a "cl;iusula de et cetera" de Garfinkel aplica-se nao apenas
indica a importiincia do espa90 Corporal como urn campo lilinguagem ou Ii conversa9ao, mas tambem a atividades cor-
extraordinariamente complexo de matrizes de a9ao habitual. 0 porais em rela9ao fisica com 0 mundo externo. Tudo isso esta,
paciente com lesao cerebral, solicitado a realizar urn dado mo- por sua vez, intrinsecamente envolvido com 0 tempo e 0 senti-
vimento do corpo, assume uma posi9ao geral do corpo todo a do de tempo. Permitam-me citar de novo Merleau-Ponty:
fim de executar a tarefa. Esta nao se reduz, como no individuo
normal, a urn gesto minimo. Assim, solicitado a fazer urna sau- Enquanto, na pessoa normal, todD acontecimento relacio-
da9ao, 0 paciente assume uma postura formal do corpo todo _ nado a movimento OU impressao tatil faz a consciencia eviden-
o individuo s6 consegue fazer 0 gesto adotando a situa9ao ge- ciar grande numero de intem;:6es que carrem do carpa, como
neralizada a que 0 movimento corresponde. 0 individuo nor- centro de a<;ao virtual em dire<;ao seja do proprio corpo, seja do
mal, em contrapartida, ve a situa9ao como urn teste ou urna objeto, no paciente, por Dutro lado, a impressao tatil permanece
opaca e encoberta. [...] A pessoa normal conta com 0 passivel,
representa9ao. De acordo com Merleau-Ponty, ele esta "usando
que adquire assim, sem abandonar sua posic;ao de possibilidade,
o corpo como urn meio de representar"". E0 dilema do paciente
algo como uma realidade. No caso do paciente, porem, 0 campo
que fornece mais insight sobre a integra9ao ordinaria do corpo
da realidade limita-se ao que e encontrado na forma de contato
na duree de atividade, pois este s6 opera, e e entendido como efetivo ou esta relacionado a esses dados por algum processo ex-
urn "corpo" por seu possuidor, nas contextualidades da a9ao. A plicito de deduc;ao. 42
pergunta de Wittgenstein: "Qual e a diferen9a entre eu erguer 0
bra90 e meu bra90 subir?", gerou aqui muitas dificuldades, in- o corpo, evidentemente, nao e uma unidade indiferencia-
dependentemente de ele ter querido ou nao que a pergunta da. Aquilo a que Gehlen chama de postura "excentrica" dos
atraisse nossa aten9ao, pois ela parece tratar como tipico ape- seres humanos - mantendo-se ereta e "voltada para fora" em
nas esse caso de teste ou de representa9ao; e a teoria da a9ao
dire9ao ao mundo - e 0 resultado, sem duvida, da evolu9ao
pode entao ser considerada, de maneira equivocada, dependen-
biol6gica. Nao precisamos transpor 0 bio16gico nurna forma
te de contrastes entre "movimentos" e "a<;5es", enquanto ope-
presurnidamente paralela de evolu9ao social para ver as impli-
ra90es distintas, e nao da contextualidade espa90-temporal da
atividade corporal no f1uxo da conduta diaria. ca90es disso para os processos sociais humanos em circunstan-
cias de co-presen9a. Nos seres hurnanos, a face nao e simples-

lk
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CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 79
mente a origem fisica aproximada da fala, mas a area dominante
do corpo na qual estao escritas as complexidades da experien- As condi,oes chamadas por Goffinan "condi,oes plenas de co-
cia, do sentimento e da inten,ao. De maneiras banais, mas muito presen,a" sao encontradas sempre que os agentes "sentem es-
significativas, nas rela,oes sociais humanas a face intluencia a tar suficientemente proximos para serem percebidos em sua
distribui,ao espacial dos individuos em circunstiincias de co- a,ao, seja esta qual for, incluindo sua experiencia de rela,ao
presen,a. a posicionamento "em face" do outro oli de outros com outros, e para serem percebidos nesse sentir ser percebi-
que estao sendo objetivados assume nitida importiincia, quan- dos"". Embora as "condi,oes plenas de co-presen,a" existam
do comparado com 0 posicionamento na maioria das socieda- somente no contato nao-mediado entre aqueles que estao fisi-
des animais. as nillneros de pessoas que podem participar dire- camente presentes, na era moderna sao possibilitados contatos
tamente de encontros face a face sao inerentemente estritamen- mediados, que permitem algumas das intimidades da co-pre-
te limitados, exceto naqueles tipos de situa,ao em que um ou sen,a, pelas comunica,oes eletronicas, mais destacadamente
poucos individuos se dirigem a uma multidao ou a um publico pelo telefone". Nas sociedades contemporaneas, e em diferen-
a sua frente. Mas tais circunstancias, e claro, exigem que os tes formatos em outras culturas, 0 espa,o contido numa sala _
que estao na multidao ou no publico renunciem ao continuo com exce,oes, como as recep,oes, em que toda a casa pode ser
contato face a face entre si. A primazia da face como meio de "aberta" - define usualmente as fronteiras de co-presen,a. E
expressao e de comunica,ao tern implica,oes morais, muitas das claro que existem muitos "lugares publicos", como as multi-
quais foram argutamente dissecadas por Goffinan: Voltar as cos- does que se acotovelam nas mas etc., em que nao existe uma cla-
tas a alguem que esta falando e, na maioria das sociedades (tal- ra circunscri,ao fisica das condi,oes de co-presen,a.
vez em todas?), urn gesto de indiferen,a ou de desdem. Alem
disso, a maioria das sociedades (todas?) tendem a reconhecer
uma semelhan,a lingiiistica entre a face enquanto referente it Coffman: encontros e rotinas
fisionomia, e a face que concerne it manuten,ao da auto-esti_
rna. Sem duvida, existe uma serie de culturas, como a chinesa Como Goffman se dedicou tao persistentemente it analise
tradicional ou setores dela, que conferem especial enfase it pre- das rotinas da vida cotidiana, seus escritos oferecem muitos
serva,ao da face na maioria dos contextos. Sem duvida, tam- esclarecimentos acerca do carater da integra,ao social. Muitos
bern, isso pode ter algo a ver com a famosa diferencia,ao feita equivocos em rela,ao aos escritos de Goffinan precisam ser
por Benedict e outros entre as cUlturas da "vergonha" e da rebatidos antes de seus insights serem desenvolvidos mais pro-
"culpa", ainda que essa diferencia,ao pare,a ter side tra,ada veitosamente. Ele tern de ser resgatado aqui do importuno
de forma excessivamente tosca. Mas aspectos da preserva,ao e cerco de seus admiradores. Goffman e freqiientemente consi-
salva,ao da face sao quase certamente genericos para toda uma derado um observador idiossincratico da vida social, cuja sen-
diversidade de contextos transculturais de encontros sociais. sibilidade para as sutilezas do que eu chamei de consciencia
as temas gemeos do controle do corpo em campos de pratica e consciencia discursiva deriva mais de uma combina-
a,ao em co-presen,a e da intluencia penetrante da face sao ,ao de inteligencia penetrante e de um estilo leve, um tanto
essenciais para os escritos de Goffinan como um todo. Como brincalhiio, do que de uma abordagem coordenada da analise
devemos entender 0 termo "co-presen,a"? De acordo com socia145 • Essa visao e sumamente enganadora e uma das razoes
Goffinan, e tambem com meu emprego aqui, Co-presen,a esta de Goffinan MO ser geralmente reconhecido como um teorico
estribada nas modalidades perceptivas e comunicativas do corpo. social de consideravel estatura. Quero afirmar, em todo caso,
que os escritos de Goffinan possuem um carater altamente sis-
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mente a origem fisica aproximada da fala, mas a area dominante As condi90es chamadas por Goffinan "condi90es plenas de co-
do corpo na qual estao escritas as complexidades da experien- presen9a" sao encontradas sempre que os agentes "sentem es-
cia, do sentimento e da inten9ao. De maneiras banais, mas muito tar suficientemente proximos para serem percebidos em sua
significativas, nas rela90es sociais humanas a face influencia a a9ao, seja esta qual for, incluindo sua experiencia de rela9ao
distribui9ao espacial dos individuos em circunstancias de co- com outros, e para serem percebidos nesse sentir ser percebi-
presen9a. a posicionamento "em face" do outro OIi de outros dos"". Embora as "condi90es plenas de co-presen9a" existam
que estao sendo objetivados assume nltida Importancia, quan- somente no contato nao-mediado entre aqueles que estao fisi-
do comparado com 0 posicionamento na maioria das socieda- camente presentes, na era moderna sao possibilitados contatos
des animais. as nUmeros de pessoas que podem participar dire- mediados, que permitem algumas das intimidades da co-pre-
tamente de encontros face a face sao inerentemente estritamen- sen9a, pelas comunica90es eletronicas, mais destacadamente
te limltados, exceto naqueles tipos de situa9ao em que um ou pelo telefone". Nas sociedades contemporiineas, e em diferen-
poucos individuos se dirigem a uma multidao ou a um publico tes formatos em outras culturas, 0 espa90 contido numa sala -
Ii sua frente. Mas tais circunstancias, e claro, exigem que os com exce90es, como as recep90es, em que toda a casa pode ser
que estao na multidao ou no publico renunciem ao continuo "aberta" - define usualmente as fronteiras de co-presen9a. E
contato face a face entre sl. A primazia da face como meio de claro que existem muitos "lugares publicos", como as multi-
expressao e de comunica9ao tern imp1ica90es morais, muitas das does que se acotovelam nas mas etc., em que nao existe uma cla-
quais foram argutamente dissecadas por Goffinan: Voltar as cos- ra circunscri9ao fisica das condi90es de co-presen9a.
tas a alguem que esta falando e, na maioria das sociedades (tal-
vez em todas?), urn gesto de indiferen9a ou de desdem. Alem
disso, a maioria das sociedades (todas?) tendem a reconhecer Goffman: encontros e rotinas
uma semelhan9a lingiiistica entre a face enquanto referente Ii
fisionomia, e a face que concerne Ii manuten9ao da auto-esti- Como Goffman se dedicou tao persistentemente Ii analise
rna. Sem duvida, existe uma serie de culturas, como a chinesa das rotinas da vida cotidiana, seus escritos oferecern muitos
tradicional ou setores dela, que conferem especial enfase Ii pre- esclarecimentos acerca do carater da integra9ao social. Muitos
serva9ao da face na maioria dos contextos. Sem duvida, tam- equivocos em rela9ao aos escritos de Goffman precisam ser
bern, isso pode ter algo a ver com a famosa diferencia9ao feita rebatidos antes de seus insights serem desenvolvidos mais pro-
por Benedict e outros entre as culturas da "vergonha" e da veitosamente. Ele tern de ser resgatado aqui do importuno
"culpa", ainda que essa diferencia9ao pare9a ter sido tra9ada cerco de seus admiradores. Goffman e freqiientemente consi-
de forma excesslvamente tosca. Mas aspectos da preserva9ao e derado urn observador idiossincritico da vida social, cuja sen-
salva9ao da face sao quase certamente genericos para toda uma sibilidade para as sutilezas do que eu chamei de consciencia
diversidade de contextos transculturais de encontros sociais. pritica e consciencia discursiva deriva mais de uma combina-
as temas gemeos do controle do corpo em campos de 9ao de inteligencia penetrante e de um estilo leve, um tanto
a9ao em co-presen9a e da influencia penetrante da face sao brincalhao, do que de uma abordagem coordenada da analise
essenciais para os escritos de Goffinan como um todo. Como socia145 . Essa visao e sumamente enganadora e uma das razoes
devemos entender 0 termo "co-presen9a"? De acordo com de Goffinan nao ser geralmente reconhecido como um teorico
Goffinan, e tambem com meu emprego aqui, co-presen9a esta social de consideravel estatura. Quero afirmar, em todo caso,
estribada nas modalidades perceptivas e comunicativas do corpo. que os escritos de Goffinan possuem um carater altamente sis-
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tematico, e e isso, em nao pequeno grau, que lhes da sua for,a as vidas das pessoas. Nao se pode dizer que tal acusa,ao a
intelectual. Urn outro equivoco, que 0 proprio Goffman se em- Goffman - na medida em que e urna acusa,ao - seja inteira-
penhou arduamente em desfazer, esta em considerar seus escri- mente injustificada. Mas a critica de Gouldner tambem revela,
tos importantes apenas para Ulna forma de "'microssociologia", urna vez mais, exatamente aquele dualismo que, como sugeri
que pode ser nitidamente separada das quest5es "macrossocio- anteriormente, e tao predominante nas ciencias sociais. A fixi-
logicas". Urn modo muito mais interessante de abordar as dez das formas institucionais nao existe a despeito, ou fora, dos
obras de Goffman e trata-las como estando empenhadas em encontros da vida cotidiana, mas esta irnplicita nesses rnesrnos
mapear detalhadamente as interse,oes de presen,a e ausencia encontros.
na intera,ao social. Os mecanismos de integra,ao social e de A evanescencia dos encontros expressa a temporalidade
sistema, repetimos, interligam-se necessariamente. Os escritos da duree da vida cotidiana e 0 carater contingente de toda a
de Goffman sao, sem duvida, importantes para ambos, mesmo estrutura,ao. Mas Goffman apresenta alega,oes muito persua-
que ele mantenha uma atitude cautelosa em rela,ao aos pro- sivas favoraveis a tese de que 0 "desvanecimento" inerente a
blemas do processo ou desenvolvimento institucional a Iongo ordena,ao sintagmiitica da intera,ao social e coerente com uma
prazo. fixidez de forma muito marcada na reprodu,ao social. Em-
Finalmente, supoe-se com freqiiencia que os escritos de bora, ate onde chega meu conhecimento, ela nao afirme isso
Goffman estao nao so confinados, em sua relevancia, as socie- em parte alguma, penso que seus escritos revelam caracteristi-
dades contemporaneas, mas expressam diretamente caracteris- cas de co-presen,a encontradas em todas as sociedades, por mui-
ticas de conduta peculiarmente modemas, ate mesmo distinti- to pertinentes que esses mesmos escritos possam ser, de fato,
varnente norte-americanas. Assim, Gouldner, comentando a obra para a identifica,ao de novas caracteristicas na era contempo-
de Goffman, diz: ranea. A obra de Goffman contem urn espelho que reflete mui-
tos mundos, nao apenas urn. Ao usar ideias nela formuladas,
ela fusa 0 epis6dico e ve a vida somente como ela evivida numa nao quero, porem, endossar in toto as enfases do proprio autor.
estreita circunferencia interpessoaI, a-historica e nao-institucio- Os escritos de Goffman abrangem urna importante contri-
nal, uma existencia para a16m da Hist6ria e da sociedade. (... J bui,ao para a explora,ao das rela,oes entre a consciencia dis-
reflete 0 novo mundo, no qual uma camada da nova classe me-
cursiva e a consciencia pnltica nos contextos de encontros. En-
dia ja deixou de acreditar que 0 trabalho irduo seja uti! ou que 0
tretanto, ele tern muito pouco a dizer acerca do inconsciente, e
exito depende da aplica93.0 diligente. Nesse novo munde existe
urn sensa aguda de irracionalidade das rela90es entre a realiza- pode ate, de fato, rejeitar a ideia de que tal fenomeno tern quaI-
<tao individual e a magnitude da recornpensa, entre a contribui9ao quer importancia na vida social. Alem disso, suas analises de
real e 0 ajuste social. E 0 mundo dos astros de alto pre90 de encontros pressupoem a existencia de agentes motivados, em
Hollywood e dos mercados de a90es, cujos pre90S geram escas- vez de investigar as origens da motiva,ao hurnana, segundo a
sa rela9ao com seus ganhos. 46 queixa de muitos de seus criticos. A omissao e seria e constitui
urna das principais razoes (sendo a outra 0 desinteresse nos pro-
Gouldner contrasta explicitamente esse ponto de vista cessos a longo prazo de transforma,ao institucional) de a obra
com 0 que ele chama de uma abordagem "estrutura!", em detri- de Goffman suscitar como que urna sensa,ao de "vazio". Pois
mento do primeiro. 0 mundo social que Goffman retrata nao e qual seria 0 motivo de os agentes, cuja monitora,ao reflexiva
apenas culturalmente especifico, mas ocupa-se apenas do tran- da conduta e descrita com tanta sutileza, obedecerem as rotinas
sitorio, nao das formas institucionais duradouras que moldam que seguem? A pergunta poderia ser respondida, ate certo ponto,
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CONSCI!;NCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 83
se fosse 0 caso de os individuos retratados por Goffinan serem
representados, de maneira voluntarista, como agentes cinicos empenhou mais do que ninguem em elucidar, dificilmente pode
ser exagerada". Assim, os Iingiiistas tern procurado, com muita
que se adaptam a determinadas circunstiincias sociais de modo
puramente calculado e tatico. Mas, embora muitos tenham in- freqiiencia, analisar problemas semiinticos ou em f\ml'ilo da com-
petencia Iingiiistica "interna" de locuto~es individuais, ou exa-
terpretado Goffinan dessa maneira, nilo e essa a principal im-
plical'ilo que desejo extrair do terreno de estudo que ele inau- mirnndo as propriedades de atos isolado~ da fala, mas 0 "fecha-
gurou. A enfase sobre a prevaIencia do tato em encontros so- mento de significado" das terminologias polivalentes da lin-
ciais, a reparal'ilo de tensoes no tecido social e a manutenl'ilo guagem cotidiana realizado no discurso s6 pode 'ser apreendido
da "confianl'a" sugerem, sobretudo, urna preocupal'ilo predo- se estudarmos a ordenal'ilo contextual de conversas inteiras.
minante com a protel'ilo da continuidade social, com os meca- As reunioes podem ter urna forma muito imprecisa e tran-
nismos intimos da reprodul'ilo social. sit6ria, como a de urna troca fugaz de "olhares amistosos" ou
de saudal'oes nurn corredor. Aos contextos mais formaiizados
Goffinan desenvolve urna tipologia dos contornos de inte-
ral'ilo, e eu empregarei muitos de seus conceitos, modifican- em que ocorrem,reunioes pode ser dado 0 nO)lle de ocasioes
do-os urn pouco, no que se segue. A gama de conceitos pode ser sociais. Estas envolvem urna pluralidade de individuos. Silo
apresentada assim: tipicamente limitadas com bastante nitidez no tempo e no espa-
1'0, e empregam, com freqiiencia, formas especiais de equipa-
[co-presencaJ mento fixo: disposil'oes formalizadas de mesas e cadeiras etc.
reuni6es
ocasi6es sociais Vma ocasiilo social propicia 0 "contexto social estruturador"
interacao nao-focalizada (expressilo de Goffinan) em que muitas reunioes "silo susceti-
jnteratyao focaJizada:
encontros (envolvimentos face a face) veis de se formar, dissolver e re-formar, enquanto urn padrilo
rotinas (epis6dios)
de conduta tende a ser reconhecido como 0 apropriado e (fre-
qiientemente) 0 oficial ou propositado"'". Toda urna variedade
As reunioes referem-se a agrupamentos de pessoas, com-
de aspectos rotinizados da vida diaria, como 0 dia de trabalho
preendendo duas ou mais, em contextos de co-presenl'a. Por
"contexto" (Goffinan prefere 0 termo "situal'ilo") entendo aque- numa fAbrica ou escrit6rio, faz parte desse genero. Mas tam-
las "faixas" de tempo-espal'o no ambito das quais as reunioes bern existem muitas ocasioes sociais mais irregulares, incluin-
do festas, bailes, eventos esportivos e urna grande diversidade
ocorrem. Quem quer que ingresse nessa faixa de tempo-espal'o
torna-se "disponivel" para entrar na reuniilo ou pode ate for- de outros exemplos. Obviamente, urn setor do espal'0 fisico
pode simultaneamente ser 0 local de diversas ocasioes sociais,
ma-la, se ela for de carater didatico. As reunioes pressupoem 0
monitoramento reflexivo mutua da conduta na, e atraves da, cada uma delas envolvendo multiplas ·reunioes. Mas e muito
Co-presenl'a. A contextualidade das reunioes e vital, de maneira mais freqiiente a existencia de "uma ocasiilo social'predomi-
muito intima e integral, para tais processos de monitoral'ilo. 0 nante" normativamente sancionada II qual outras estilo suposta-
contexto inc1ui 0 ambiente fisico de interal'ilo, mas nilo e mera- mente subordinadas num determinado setor do tempo-espal'o.
mente algo "em que" a interal'ilo ocorre (ver pp. 138-40). Ao As caracteristicas contextuais de reuniOes, quer estas ocor-
constituirem a comunical'ilo, os atores ap6iam-se rotineira- ram ou nilo em ocasioes soci~is, podem ser divididas em duas
mente em aspectos do contexto, inc1uindo a ordem temporal de formas principais. A interal'ilo nao focalizada refere-se a todos
gesto e conversal'ilo. A importancia disso para a formulal'ilo do aqueles gestos e sinais que podem ser comunicados entre indi-
"significado" em gestos e na conversal'ilo, como Garfinkel se viduos simplesmente por causa de sua co-presenl'a nurn con-
texto especifico. Nesse caso, as propriedades fisicas do corpo e
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o alcance limitado do posicionamento da face constituem im- do corpo quanto da manuten,ao ou regras ou conven,oes. Em
portantes restri,oes. A consciencia generalizada da presen,a terceiro lugar, os encontros sao sustentados, sobretudo, pela
de outros por parte dos atores pode variar sutilmente numa fa/a, pela conversa,ao cotidiana. Na analise da comunica,ao de
vasta extensao espacial, incluindo ate os que estao atras deles. significado em intera,ao, mediante 0 uso de esquemas inter-
Mas tais "sugesWes do corpo" sao muito difusas em compara- pretativos, 0 fenomeno da fala tern de ser considerado com mui-
,ao com as possiveis, e sao cronicarnente utilizadas na intera- ta seriedade, porquanto esta constitutivarnente envolvido em en-
,ao face a face. A intera,ao focalizada, por seu turno, Ocorre contros. Em ultimo, deve ser examinada a organiza,ao contex-
quando dois ou mais individuos coordenam suas atividades tual dos encontros, uma vez que a mobiliza,ao de tempo-espa,o
mediante urna continua interse,ao da expressao facial e da voz. e 0 "fundamento" de todos os elementos acima. Empreenderei
Por muito que os participantes possarn monitorar tudo 0 mais esta ultima tarefa em termos de varias no,oes basicas, as de
que esta acontecendo na reuniao mais vasta, a intera,ao focali- "presen,a-disponibilidade", de "local" e a de rela,ao de "ocul-
zada em algurna parte introduz urna divisoria entre eles e todos tarnento/revela,ao". Nao examinarei estes ultimos tres concei-
os outros co-presentes. Vma unidade de intera,ao focalizada e tos no presente capitulo; prefiro ocupar-me deles mais adiante.·
urn envolvimento face a face ou urn encontro. as enContros sao
o fio condutor da intera,ao social, a sucessao de envolvimentos
Com outros ordenados no ilmbito do cicio diario de atividade. Serialidade
Embora Goffinan nao inclua isso formalmente em seu esque-
ma de conceitos, penso ser muito importante enfatizar 0 fato de
as encontros sao fenomenos seqiienciados, interpolados
que os encontros ocorrem tipicamente como rotinas. 18to e, 0 na serialidade da vida cotidiana e, no entanto, conferindo for-
que pelo angulo do momento fugaz poderia parecer breves e ma a essa mesma serialidade. As propriedades sistematicas de
triviais permutas assume muito mais substiincia quando visto
encontros podem ser atribuidas a duas principais caracteristi-
como inerente a natureza interativa da vida social. A rotiniza- cas: abertura e encerramento, e altemancia. Examinarei breve-
,ao de encontros e de grande significa,ao na medida em que
mente cada uma delas. A duree da vida diaria, tal como e vivida
vincula 0 encontro fugaz areproduc;ao social e, assim, it "fixi- por cada individuo, e urn fluxo continuo de atividade, somente
dez" aparente das institui,oes.
interrompida (mas com regularidade) pela relativa passividade
Defini a integra,ao social Como sistemidade em circuns- do sono. A duree da atividade pade ser "parentetizada"ou "con-
tiincias de co-presen,a. Vanos fenomenos se propoem como os
ceptualmente segmentada", como diz Schutz, por urn momento
mais imediatarnente relevantes para a constitui,ao da integra,ao
reflexivo de aten,ao por parte do sujeito. Eo isso 0 que acontece
social assim definida. Em primeiro lugar, a fim de se apreender
quando alguem e solicitado por urn outro a fomecer "uma ra-
a conexao dos encontros com a reprodu,ao social estendendo_ zao" ou "razao" para, ou de algurn modo explicar, certas carac-
se ao longo do tempo e do espa,o, cumpre destacar como os teristicas de sua atividade. Mas a duree da vida cotidiana tam-
encontros sao formados e reformados na duree da existencia bern e "parentetizada" pela abertura e pelo encerrarnento de en-
diana. Em segundo lugar, devemos procurar identificar os contros. Nas palavras de Goffinan, "pode-se falar, pois; de abrir
principais mecanismos da dualidade da estrutura por meio dos
e fechar parenteses temporais e de demarcar parenteses espa-
quais os encontros estao organizados em - e atraves de _ inter-
ciais"". Aficionado como e do uso de metaforas e analogias
se,oes da consciencia pratica e da consciencia discursiva. 1sso, dramal1irgicas, Goffinan fomece como exemplo os expedientes
por sua vez, tern de ser explicado em termos tanto do controle
empregados na abertura e encerrarnento de espetaculos tea-
 86
A CONSTITW(:AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 87
trais. Para assinalar 0 inicio de uma pe,a teatral, soa uma cam- que e intrinsecamente significativa - como urn modelo sabre 0
painha, as luzes apagam-se e 0 pano de boca sobe. Na conclu- qual sao marcadas as transforma<;:oes para divertimento, sirnula-
silo, as luzes do audit6rio acendem de novo enquanto 0 pano cai. 9aO, experimento, repeti<;:ao, sonha, fantasia, ritual, demonstrar;ao,
A maioria das ocasi5es sociais apresenta algum tipo de expe- analise e caridade. Essas sombras vividas de acontecimentos sao
diente para indica,ilo formal de abertura e encerramento _ uma ajustadas adequadamente ao mundo em curso, mas naa do modo
caracteristica de ocasi5es rituais tanto em culturas tradicionais estreito que se verifica na atividade literal, ordinaria. 51
quanta na grande variedade de ocasi5es sociais mais seculares
que caracterizam as sociedades contemporiineas. A parenteti- A maioria dos encontros que compreendem a serialidade
za,ilo de .cerim6nias de inicia,ilo, por exemplo, assinala tipica- da vida social tern lugar ou fora (no tempo-espa,o) ou contra 0
mente uma mudan,a dramittica na forma de conduta dentro do PanO de fundo das reuni5es observadas em ocasi5es sociais. Os
quadro da ocasiilo - indicando os marcadores, por assim dizer, envolvimentos face a face em muitos desses contextos nilo im-
uma transferencia do profano para 0 sagrado. Caillois demons- plicam fechamentos claros que eliminem toda a intera,ilo com
trou isso em rela,ilo aos paralelos entre as esferas da religiilo e nilo-participantes. Em tais circunstiincias, a monitora,ilo refle-
do "drama", bern como das influencias diretamente hist6ricas xiva do corpo, do gesto e do posicionamento e caracteristica-
exercidas sabre essas esferas50. mente usada para produzir um "fechamento convencional do
Pode-se arriscar a conjetura de que os parenteses tendem a envolvimento"52. Quer dizer, wna "barreira" normativamente san-
ser considerados pelos atores cotidianos particularmente im- cionada separa os envolvidos no encontro dos outros que estilo
portantes quando as atividades que Ocorrem durante 0 encon- co-presentes. E urn trabalho cooperativo, no qual os participan-
tro, ou numa ocasiilo social, silo tratadas pelas partes envolvi- tes no envolvimento face a face e os circunstantes - freqiiente-
das como particularmente divergentes das expectativas nor- mente envolvidos, e claro, em seus pr6prios compromissos com
mais da vida cotidiana. Goffinan da 0 seguinte exemplo: para outros grupos - mantem uma especie de "inaten9ao cortes" em
fazer um exame medico, ou para servir de modelo numa aula rela,ilo uns aos outros. Goffinan indica varios modos como
de arte, 0 individuo nilo COStuma se desnudar ou tomar a se ves- isso pode ser realizado e como pode ser deslocado. Como em
tir na presen,a dos outros. 0 ato de se despir e de se vestir, em todas as areas de mutua monitora9ao da intera9ao, existem ca-
particular, permite que 0 corpo seja subitamente exposto e es- racteristicas de extraordinaria complexidade ate mesmo na ma-
condido, marcando assim as fronteiras do epis6dio e transmi- nifesta,ilo de "inaten,ilo". Assim, espera-se geralmente dos
tindo a mensagem de que as a,5es estilo claramente separadas circunstantes que nilo s6 nilo explorem uma situa,ilo de proxi-
de conota~5es sexuais ou outras que, de outro modo, poderiam midade de presen,a, por meio da qual poderiam acompanhar 0
ser-lhes athbtiidas. Isso faz parte do que Goffinan chama de que esta acontecendo em outros envolvimentos face a face,
"fixa,ilo do tom" dos encontros e sugere uma estreita conexilo mas que tambem demonstrem ativamente a inaten,ilo.lsso pode
com as discuss5es de Wittgenstein sobre 0 entrela,amento de ser problematico. Pois se a inaten,ilo for excessivamente estu-
formas de vida. A ocorrencia de encontros, assinalados e dota- dada 0 efeito podera sugerir que 0 individuo estara, de fato,
dos de urn "matiz" ou ethos social definido, leva em coma as bisbilhotando.
transforma,5es de uma multiplicidade de epis6dios em "tipos" E possivel todo tipo de complica,ilo desses fen6menos.
divergentes.
Em muitas circunstancias urn individuo padenl estar interessa-
do em escutar 0 conteUdo de urn encontro e, para tanto, simular
Nos (e urn numero considenivel de eles) temos a capacida- muito deliberadamente a inaten,ilo. Contudo, esse comporta-
de e a inc1inac;:ao para usar a atividade concreta, real _ atividade mento corre 0 risco de ser notado, devido a urn artificialismo
 88 A CONSTITUI(,:A-O DA SOCIEDADE CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 89
de postura ou a uma serie de outros tra<;os passiveis de denun- e, por conseguinte, falar ate mais alto do que 0 fariam em outras
ciar 0 que esta acontecendo. Nao se deve interpretar os comen- circunstancias.
tanos acima como uma sugestao (0 que muitos interpretes de Os encontros envolvem "abrir espa<;os", no que se refere
Goffinan sao propensos a fazer) de que a maioria das comple- tanto it posi<;ao dos corpos em rela<;ao um ao outro, dentro e
xidades maravilhosamente sutis da intera<;ao sao estudadas ou fora da regiao do envolvimento face a face, quanto ao espa<;a-
cinicamente manipulativas. A situa<;ao e justamente a oposta. mento serial das contribui<;5es para 0 encontro, em termos de
o impressionante nas habilidades de intera<;ao exibidas pelos serialidade ou altemitncia. A abertura de espa<;os colaborativa
atores na produ<;ao e reprodu<;ao de encontros e seu embasa- nurn local e obviamente relevante para a segmenta<;ao de en-
mento na consciencia prMica. Inerente it estrutura<;ao de en- contros (e, como tentarei indicar mais adiante, esta sujeita ao
contros e 0 tato e nao 0 cinismo. Embora 0 conteUdo do que e que Hagerstrand chama de "restri<;5es de acoplamento" e "res-
tido como "prova de tato" possa variar imensamente, a impor- tri<;5es de acondicionamento"). As san<;5es normativas genera-
tancia do tato em sociedades ou culturas de resto muito dife- lizadas que influenciam a proximidade aceititvel de individuos
rentes e incontestavel. Acordo conceptuallatente entre partici- em lugares publicos variam transculturalmente, tal como as que
pantes em contextos de intera<;ao, 0 tato parece ser 0 principal afetam os limites do contato corporal aceitavel entre pessoas
mecanismo a sustentar a "confian~a" ou seguran<;a onto16gica em diversos contextos". Mas 0 espa<;amento pode ser efetiva-
durante longos periodos de tempo-espa<;o. 0 tato na sustenta- mente organizado somente dentro dos limites da facilidade de
<;ao do fechamento do envolvimento convencional toma-se cla- comunica<;ao - nao tao amplo, a ponto de os participantes terem
ramente acentuado em circunstancias que amea<;am romper tal de gritar, nem tao proximos que os tra<;os da expressao facial,
encerramento. Assim, em espa<;os muito restritos, como os ele- que ajudam a monitorar a sinceridade e autenticidade da fala,
vadores, e virtualmente impossivel manter uma postura de nao nao possam ser observados. Os envolvimentos face a face, quan-
do Dutros estao co-presentes, ocorrem quase sempre com urn
ouvir. Na sociedade anglo-americana, pelo menos, a tendencia
certo desvio do corpo em rela<;ao aos que nao estao participando
em tal situa<;ao e de suspender a comunica<;ao, com apenas, tal-
no envolvimento, e a disposi<;ao dos corpos e tal que nao existe
vez, urn comentario ocasional que indica estar 0 encontro sus-
barreira fisica para a livre troca de olhares ou contato visual.
penso e nao desfeito. Do mesmo modo, se tres pessoas estao
lsso pode ser dificil de conseguir em situa<;5es de aglomera<;ao,
falando e urna e interrompida para atender urn chamado telefO-
nas quais ha muito movimento - por exemplo, numa festa ou
nico, as outras nao podem simular completa desaten<;ao e po-
nurn trem superlotado. Em tais contextos, pode ocorrer urn
dem prosseguir com uma especie de conversa<;ao hesitante, ca-
certo relaxamento transitorio das san<;5es que ordinariamente
penga". Contextos de encontros como esses podem expressar
controlam a excessiva mobilidade dos membros do corpo. Uma
diretamente assimetrias de poder. Assim, se, digamos, dois in- pessoa pode, de maneira bem aceitavel, balan<;ar 0 corpo nessa
dividuos nurn elevador prosseguem em sua conversa, indiferen- situa<;ao, se ao mesmo tempo fica claro para os outros que 0
tes ao ambiente de proximidade manifestamente estreita com faz com a finalidade de manter 0 contato ocular nurn envolvi-
outros passageiros, pode muito bem ser que eles assim de- mento em que 0 posicionamento dos outros amea<;a bloquear a
monstrem itqueles que sao seus subordinados ou inferiores sua visao. Tais movimentos podem ser executados de forma exage-
indiferen<;a it manuten<;ao de cortes inaten<;ao num tal contex- rada, de fato, indicando assim aos outros que 0 ator esta cons-
to. Entretanto, poderiio, apesar de tudo, trair urna certa preocupa- cio de que esse movimento corporal seria geralmente conside
<;ao pelo desvio de uma norma que seria comumente observada rado insolito ou extravagante. A alternancia em encontros tem
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A CONSTITW9AO DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 91
sido muito estudada por autores de tendencia etnometodol6gi_
urn onibus, pode ser usado para demonstrar 0 acoplamento
ca", cuja obra e freqiientemente considerada trivial, avalia9ao
mutuo de rela90es espa90-temporais de presen9a e ausencia:
essa deveras miope. A altemancia, contudo, tern suas raizes nas
propriedades mais genericas do corpo hurnano e expressa, por
Esses individuos isolados formam urn grupe, na medida
conseguinte, aspectos fundamentais da natureza da intera9ao. em que esmo todos na mesma calr;ada, a qual os protege do tnifego
Alem disso, ela e urna caracteristica importante do carater se- que cruza a prar;a em diversas direr;oes, na medida em que eles
rial da vida social, estando assim ligada ao carater geral da re- estao agrupados em toma do mesma ponto de 6nibus etc. [... J
rodu
p 9ao social. Trata-se de urna forma de "restri9ao de aco- TOdDS, OU quase todas, sao trabalhadores e usuarios regulares do
plamento", resultante do simples mas elementar fato de que 0 servir;o de 6nibus; conhecem os honirios e a frequencia dos oni-
principal meio de comunica9ao dos seres humanos em situa- bus dessa linha; e, por conseguinte, aguardam 0 mesmo 6nibus,
90es de co-presen9a - a fala - e urn veiculo de "ordem sim- digamos, 0 das 7:49. Esse objeto, na medida em que dependem
ples". A conversa desenrola-se sintagmaticamente no fluxo da dele (avarias, atrasos, acidentes), eo alvo do interesse atual des-
duree da intera9ao e, como apenas urna pessoa pode falar de cada ses individuos. Mas esse interesse atual - urna vez que todos
vez para que 0 intuito comunicativo seja realizado, as contri- vivem no mesmo bairro - remete a estruturas mais completas e
mais profundas de seu interesse geral: melhorias nos transportes
bui90es para os encontros sao inevitaveImente seriais. Assi-
publicos, congelamento do pre<;o das passagens etc. 0 onibus
nale-se que 0 estudo empirico de conversas mostra que elas tern
que eles aguardam une-os, sendo 0 interesse deles, como indivi-
uma forma muito menos simetrica do que se poderia SUpor. A duos que nessa manha tern assuntos a tratar na rive droite; mas 0
condu9ao da altemancia raramente acontece de tal maneira que fato de ser 0 das 7:49 e de interesse deles como usuarios; tudo
os participantes concluam suas frases. Verifica-se uma pletora esta temporahzado: 0 viajante reconhece-se como urn residente
de fenomenos de hesita9ao; os Iocutores interrompem urn ao (quer dizer, reporta-se aos cinco ou dez anos previos) e, depois,
outro no que estao dizendo, de modo que nao existem divisoes o onibus toma-se caracterizado por seu etemo retorno diario (e
claras assinalando quando e a vez de cada urn falar etc." realmente a mesmo 6nibus, com os mesmos motorista e cobra-
A altemancia pode aplicar-se tanto il serialidade de encon- dor). 0 objeto assume uma estrutura que supera sua pura exis-
tros quanto il intera9ao entre agentes dentro de encontros, e tencia inerte; como tal, e dotado de urn futuro e de urn passado
tambem estar estreitamente ligada a diferenciais de poder. To- passivos, e estes fazem-no apresentar-se aos passageiros como
urn fragmento (insignificante) do destino deles. 57
das as organiza90es envolvem a coordena9ao da intera9ao em
fluxos de rela90es espa90-temporais "canalizados" atraves de
contextos e locais regularizados (ver pp. 140 ss). Assim, 0 pro-
Fala, reflexividade
cesso de organiza9ao de julgamentos na vida cotidiana do tri-
bunal tern urn carater serial formalizado, em que urn caso e ou-
As contribui90es mais notaveis de Goffman para 0 enten
vido, e segmentado como uma ocasiiio social definida, enquanto
dimento da sustenta9iio e reprodu9iio de encontros tratam da
as partes envolvidas nos casos seguintes fazem fila na sala de
espera adjacente. Ha inlimeros exemplos semeIhantes em so- rela9iio entre 0 controle reflexivo do corpo - isto e, a automoni-
tora9iio reflexiva de gestos, movimentos e posturas corporais -
ciedades de amplo distanciamento espa90-temporal. Neste pon-
e a coordena9iio mutua da intera9iio atraves do tato e do respei-
to, a discussiio da serialidade por Sartre tern uma conexiio dire-
to pelas necessidades e solicita90es de outros. A prevalencia do
ta com as aparentes triv;Alidades da altemancia coloquial. Ele
tato, confian9a ou seguran9a ontologica, e obtida e mantida por
assinala que urn exemplo banal de serialidade, a fila para tomar
uma desconcertante gama de habilidades que os agentes exi-
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A CONSTITU[I;AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 93
bern na produ,ao e reprodu,ao da intera,ao. Tais habilidades A preocupa,ao com a aparencia e manifesta, por exemplo, no
alicer,am-se, primordialmente, no controle normativamente re- esmero com que urn individuo seleciona e combina tipos de
gulado dos que poderiam parecer ser, ainda mais do que a alter- vestuario ou adomos em rela,ao a participa,ao em determina-
nancia, os mais insignificantes e minusculos detalhes do movi- dos contextos de atividade, Mas seria urn grande equivoco
mento ou da expressao corporal. Isso e facilmente demonstra- supor que esse esmero e 0 modo prototipico de sustenta,ao da
do quando essas habilidades estao ausentes ou comprometidas, linguagem corporal. Mais bisica, mais complexa, e a monito-
genericamente, nos "doentes mentais", e transitoriamente nos ra,ao cronica do arranjo da roupa, em rela,ao a postura corpo-
lapsos corporais e verbais.
ral, na presen9a de outros. Assim, os "pacientes mentais" podem
Para Goffman, a "doen,a mental", inclusive as mais serias sentar-se descuidadamente, as roupas em desalinho e amassa-
formas de "distilrbio psicotico", esti exemplificada sobretudo das; as mulheres podem nao observar a expectativa geral nas
pela incapacidade, ou relutancia, de aceitar a diversidade de mi- sociedades ocidentais de manter as pernas unidas quando ves-
nusculas (embora nada triviais) formas de monitora,ao do mo- tern saias, e assim por diante. Hi uma diferen,a fundamental
vimento e do gesto corporais, os quais constituem 0 nucleo entre os boemios ou vagabundos, que desprezam ou zombam
normativo da intera,ao cotidiana. A loucura e urn agregado de das conven,oes da sociedade em suas formas de vestir e modos
"impropriedades situacionais"'". 0 comportamento psicotico di- de conduta, e os "doentes mentais". Isso porque as expectativas
verge da (ou colide ativamente com a) ordena,ao publica de normativas em que se baseiam 0 controle e aparencia corporais
rela,oes tempo-espa,o atraves do corpo e seus veiculos, por meio nao dizem respeito simplesmente aos adomos ou aos parame-
dos quais os seres humanos "se entendem mutuamente" em tros gerais do comportamento motor, mas precisamente a espe-
circunstancias de co-presen,a. 0 "doente menta]" nao se ajusta cie de "controle sistematico" que simultaneamente "'sustenta"
ao extremamente firme (e continuo) controle corporal exigido e demonstra agencia.
de "individuos normais"; ele nao respeita as complexidades das o fato de essa automonitora,ao cronica ser necessaria e
formulas que regem a forma,ao, manuten,ao e quebra ou sus- denunciado pela importancia difundida das "regioes posterio-
pensao de encontros nem contribui para as multiplas formas de res" - observada em contextos variaveis em todas as socieda-
tato que preservam a "confian,a"". Raramente se espera que os des -, nas quais 0 controle da postura corporal, dos gestos e do
individuos estejam "apenas" co-presentes em reunioes, e nunea vestuario pode ser, num certo grau, relaxado. Mas ate mesmo
Ihes e permitido atuar desse modo em encontros. A monitora- quando esti sozinho urn individuo pode manter a apresentabili-
,ao reflexiva da a,ao, em contextos de co-presen,a, exige uma dade, pois alguem que seja inadvertidamente surpreendido em
especie de "vigilancia controlada": na expressao de Goffinan, "desapromo" revela aos outros certos aspectos do self que tal-
os atores tern de "exibir presen,a". Isso e exatamente 0 que nao vez so sejam revelados em tais momentos". A questao e que
fazem muitos "pacientes mentais" - desde aqueles em estado manter a condi,ao de "ser visto como urn agente capaz" e in-
de evidente estupor catatonico ate os que se movimentam so- trinseca aquilo que a agencia e, e que os motivos que promo-
mente de modo meciinico, como se fossem impelidos por algu- vern e refor,am essa conexao como inerente a reprodu,ao das
rna fanta, em vez de serem agentes humanos comuns 60 priticas sociais sao os mesmos que ordenam a propria reprodu-
A exibi,ao de presen,a assume formas engenhosamente ,ao. 0 cariter fortemente sancionado desses fenomenos e des-
deliberadas, mas esti indiscutivelmente exemplificada, em pri- tacado com nitidez nas seguintes observa,oes:
meiro lugar, na consciencia pritica. Considerem-se a aparencia
A linguagem corporal, portanto, e discurso convencionali-
pessoal e as marcas visiveis de vestuirio e adomos corporais.
zado. Devemos ver que e, alem disso, normativo. Ou seja, existe

../'---
 94 ,f
A CONSTITUlf:;:A-O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 95
tipicamente lima obrigayao de transmitir certa informa<;ao quan-
atividades em tome de solu,oes heterodoxas para perguntas
do na presen<;a de Dutros e Dutra de nao transmitir outras impres-
soes. [...] Embora urn individuo possa pararde falar, ele nao pade como "Em que sentido sou urna pessoa?", "0 mundo s6 existe
parar de cornunicar atraves da linguagem do corpo. [...] Para- na medida em que eu 0 percebo?" etc," Mas a maioria das "ati-
doxalmente, 0 modo como ele pade dar 0 minima de informa<;ao vidades experimentais" do louco relacionam-se, de modo sig-
sabre si mesmo - embora isso ainda seja apreciavel _ consiste nificativo, com as disposi,oes e as san,oes normativas associa-
em ajustar-se e atuar como se espera que as pessoas de seu gene- das as complexidades do controle corporal nas imedia,oes dos
ra atuem. 62
encontros, Os "experimentos com a confian,a" de Garfinkel
duplicam alguns dos sentimentos dissonantes de inquieta,ao
Muitos "pacientes mentais" desprezam ou tern dificuldade que os individuos "normais" vivenciam quando as rotinas da
em adotar as normas associadas a abertura e encerramento de vida diaria sao questionadas 64 ,
encontros. Assim, urna pessoa na enfermaria de urn hospital Muitas dessas considera,oes aplicam-se a fala como 0 vei-
psiqui<itrico pode reter urn dos enfermeiros nurn encontro, por culo discursivo do prop6sito comunicativo em contextos de co-
mais que 0 enfermeiro de indica,oes de que deseja afastar-se. presen,a, 0 exame de "gritos de rea,ao" (formas de elocu,ao
o paciente pode perseguir 0 enfermeiro de perto, por mais de- que nao sao fala) pode proporcionar urna transi,ao apropriada
pressa que este caminhe, e ate tentar acompanM-lo ao transpor para 0 estudo da fala, Tais gritos demonstram urna vez mais que
a porta na extremidade da enfermaria, cujo regime e de isola- as caracteristicas aparentemente triviais e "espontiineas" da con-
mento. Nesse ponto, 0 enfermeiro podera ter de impedir fisica- duta humana sao, na verdade, rigorosa e normativamente orde-
mente 0 paciente de agami-Io e segui-Io talvez escapando com nadas. Os gritos de rea,ao transgridem as san,oes normativas
energia a preensao do outro. Tais eventos, caracteristicos da vida contra nao se falar soziOOo em pUblico. Considera-se "Upa!"".
cotidiana nas enfermarias, tendem a contradizer 0 pressuposto Poderiamos ter "Upa!" como puro reflexo, urna resposta medi-
de comunidade geraI de interesse que a administra,ao deseja nica como urna piscada de olbos quando alguem aproxima brus-
ordinariamente apresentar. 0 precipitado afastamento final do camente a mao do rosto de outrem. Mas essa rea,ao aparente-
enfermeiro exemplifica circunstiincias que, no mundo exterior, mente involuntaria presta-se a urna detalhada analise em termos
s6 tern probabilidade de ocorrer quando 0 individuo que tenta
de ~ao e do corpo, Quando alguem exclama "Upa!" ao deixar
desvencilbar-se nos mesmos moldes esm demonstrando rejei,ao
cair ou ao derrubar alguma coisa, poderia parecer, a primeira
a urn forte vinculo moral - por exemplo, urna rela,ao de amor
vista, que 0 som anuncia urna perda de controle, atraindo assim
- reivindicado pelo perseguidor. Obviamente, uma implica,ao
a aten,ao para urna inferencia indesejada, urna perturba,ao nas
como essa nao esta necessariamente ausente no "paciente men-
formas rotineiras de controle que indicam a a,ao reflexivamen-
tal" da enfermaria do hospital psiquiatrico. De fato, muitos ele-
te monitorada. Na verdade, a excIama,ao mostra a outros que a
mentos aparentemente bizarros de encontros entre 0 individuo
ocorrencia em questao e urn mera acidente, pelo qual 0 indivi-
sao e 0 louco parecem representar "experimentos" que 0 ulti-
duo nao pode ser responsabilizado. Ela e usada pelo agente
mo executa nos quadros de referencia usuais dos encontros.
para indicar que 0 lapso e tao-somente isso, urn evento momen-
Como diz R. D. Laing, os "esquizofrenicos" talvez sejam apro-
tiineo e contingente, e nao a manifesta,ao de uma incompeten-
priadamente considerados aqueles que, no nivel da consciencia
cia mais generalizada ou de algum intento opaco. Mas por tras
pratica e em sua conduta real, encaram seriamente algumas das
disso ha tambem uma serie de outras sutis grada,oes e possibi-
questoes que os fil6sofos formulam hipoteticamente na solidao
lidades. A excIama,ao e usada - e sabe-se disso - somente em si-
de seus estudos. Eles preocupam-se realmente e constroem suas
tua,oes de urna falha de somenos importiincia, nao naquelas de
 b

96
A CONSTlTU1<;A-O DA SOCIEDADE CONSClENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 97
grave calamidade. Por conseguinte, por mais espontanea e ime-
que indica que as conversa90es sao episodios com come90 e
diata que possa ser, ela demonstra cuidado e aten9ao para as im-
lica fim no tempo-espa90. As normas da fala dizem respeito nao so
p 90es da ocorrencia subita e indica, pois, competencia total ao que e dito, a forma sintitica e semiintica das elocu90es, mas
que sobrepuja 0 que e por isso exibido como urn simples deslize.
tambem as ocasioes rotinizadas da fala. As conversa90es, ou uni-
Mas hil mais. "Upa!" pode ser interpretado como urn aviso dades de fala, envolvem dispositivos padronizados de abertura
aos outros. As casualidades sempre OCorrem num milieu de co-
e encerramento, assim como dispositivos para proteger e exibir
presen9a, e e aconselhilvel que os outros nas vizinban9as tomem
as credenciais que dao aos locutores 0 direito de contribuir para I I

cuidado. Quando alguem sofre urn acidente de pouca monta, a

o dialogo. 0 proprio termo "parentetizar" representa urna inser-
exclama9ao pode partir, as vezes, de urn participante e nao do
9aO estilizada de fronteiras na escrita. Permitam-me deixar com
individuo que 0 sofreu. Ela soa talvez como uma advertencia,
Goffman a ultima palavra no parentese que esta se9ao consti-
transmitindo ao mesmo tempo a garantia de que 0 deslize nao
tui. 0 que e fala, do ponto de vista da intera9ao? "E urn exem-
sera tratado pelo observador como algo que compromete a Com-
plo daquele arranjo pelo qual os individuos se juntam e alimen-
petencia do outro como agente responsave!. Trata-se normal-
tam assuntos que exigem uma aten9ao ratificada, conjunta e
mente de urn Som breve e rispido. Mas, em algumas situa90es, 0
corrente, exigencia que os instala e os reline numa especie de
"u" podera ser mais prolongado. Assim, alguem pode ampliar
mundo mental e intersubjetivo."67
o Som para cobrir parte de uma tarefa ou empreendimento em
que urn momento Particularmente arriscado tern de ser supera-
do para que sua execu9ao seja coroada de exito. Ou urn pai
Posicionamento
pode emitir urn prolongado "Upa!" quando brinca com 0 filho
pequeno, jogando-o e apanhando-o no ar; 0 som serve para
Conforme enfatizei, os sistemas sociais estao organizados
cobrir a fase em que a crian9a pode sentir urna perda de controle,
como praticas sociais regularizadas, mantidas em encontros
tranqiiilizando_a e, ao mesmo tempo, ajudando-a talvez a faci-
que se dispersam no tempo-espa90. Entretanto, os atares cuja
litar Sua compreensao crescente dos gritos de resposta".
conduta constitui essas praticas estao "posicionados". Todos os
Resulta, portanto, que essa eXclama9ao nao esta tao dis-
atores estao posicionados ou "situados" no tempo-espayo, viven-
tante da fala quanto se poderia Supor inicialmente, ja que ela
do ao longo do que Hiigerstrand chama de seus percursos espa-
Participa exatamente daquele cariter publico da comunica9ao,
90-temporais, e tambem no plano relacional, como a propria
ocorrendo com praticas, 0 qual Wittgenstein identificou como
expressao "posiyao social" sugere. Os sistemas sociais 56 exis-
fundamento do usa linguagem. A luz da discussao precedente
te na - e atraves da - continuidade de pniticas sociais, esvain-
neste capitulo, deve ficar claro que a contextualidade da lin-
do-se no tempo. Mas algumas de suas propriedades estruturais
guagem ordinaria nao e urn "problema" para falantes leigos
sao bern caracterizadas como rela90es "posi9ao-pratica"'". As
nem para a analise filosOfica. A contextualidade da fala, tal
posi90es sociais sao constituidas estruturalmente como inter-
como a da postura corporal, do gesto e do movimento, e a base
se90es especificas de significa9ao, domina9ao e legitima9ao
sobre a qual tais fenomenos sao coordenados como encontros
que se relacionam com a tipifica9ao dos agentes. Uma posi9aO
que se estendem no tempo-espa90. Falar e urna caracteristica
social envolve a especifica9ao de urna "identidade" definida nu-
intrinseca de quase todos os encontros e tambem apresenta
rna rede de rela90es sociais, sendo essa identidade, porem, uma
semelhan9as de forma sistemica. A fala manifesta-se usual-
mente como conversa9ao. "Conversa9ao" admite urn plural, 0
"categoria" it qual uma certa gama de sanyoes normativas e
concemente.
 98
A CONSTITUI(:A-O DA SOCfEDADE
CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 99
Desde Linton, 0 conceito de posi9iio social passou a ser
mentar da estrutura9iio de encontros. Ele envolve aqui muitas e
comumente associado ao de papel, e este ultimo tern recebido
sutis modalidades de movimento corporal e gesto, assim como
muito mais considera9iio e anaIise do que 0 primeiro". Niio
o movimento mais geral do corpo atraves de setores regionais
pretendo recapitular essa discussiio, mas apenas enfatizar algu-
de rotinas diarias, 0 posicionamento de atores nas regiaes de
mas reservas acerca da n09iio de papel. 0 conceito esta relacio-
seus cursos espa90-temporais cotidianos e, evidentemente, seu
nado com dois pontos de vista aparentemente opostos, cada urn
posicionamento simultiineo no ambito da regionaliza9ao mais
dos quais provoca em mim certo constrangimento. Urn e 0 de
ampla de totalidades sociais e dentro de sistemas intersociais
Parsons, em cuja teoria 0 papel e fundamental como 0 ponto de
cujo alcance de difusao converge com a distribui9iio geopoliti-
liga9iio entre motiva9iio, expectativas normativas e "valores".
ca dos sistemas sociais em escala global. A importiincia do po-
Essa versao do conceito de papel esta por demais vinculada ao
sicionamento nesse sentido muito rudimentar esci estreitamente
teorema parsoniano da dependencia da integra9ao social em
Iigada, como e obvio, ao nivel de distanciamento espa90-tem-
rela9iio ao "consenso de valor" para ser aceitavel. 0 outro e 0
poral das totalidades sociais. Naquelas sociedades em que a
ponto de vista dramatUrgico defendido por Goffinan, sobre 0
integra9ao social e a de sistema siio mais ou menos equivalen-
qual voltaremos a falar no proximo capitulo, pois atingimos
tes, 0 posicionamento esta apenas tenuemente graduado. Mas
aqui 0 limite de suas ideias. As duas concep90es poderiam pa-
nas sociedades contemporiineas os individuos sao posiciona-
recer antaganicas, mas, na realidade, possuem uma afinidade
dos nurna gama cada vez mais ampla de zonas - em lares, 10-
bern definida. Ambas tendem a enfatizar 0 carater "dado" dos
papeis, servindo assim para expressar 0 dualismo de a9iio e es- cais de trabalho, bairros, cidades, na90es-Estados e urn sistema
trutura caracteristico de tantas areas da teoria social. 0 roteiro mundial -, todas elas apresentando caracteristicas de integra-
9aO de sistema que relacionam de forma crescente os detalhes
esta escrito, 0 palco montado e os atores desempenham 0 melhor
secundarios da vida cotidiana com os fenamenos sociais de ex-
que podem os papeis preparados por eles. A rej ei 9iio de tais
tensiio tempo-espa90 maci9a.
pontos de vista nao significa prescindir inteiramente do concei-
to de papel, mas implica aceitar 0 "posicionamento" dos atores
o posicionamento nos cursos espa90-temporais da vida
dima, para todos os individuos, e tambem 0 posicionamento den-
como ideia mais importante. Para fins de defini9ao, adotarei a
tro do "cicio vital" ou curso vital. A forma9ao de um "eu" tal-
formula9iio que ofereci nurna obra anterior. Uma pos i9iio so-
cial pode ser considerada urna "identidade social" portadora de vez seja baseada no narcisismo original de uma "fase de espe-
lho" no desenvolvimento da personalidade. A crian9a forma a
uma certa gama (urn tanto difusamente especificada) de prer-
rogativas e obriga90es que 0 ator, ao qual e conferida essa iden- capacidade de tomar-se um agente reflexivo mediante 0 posi-
cionamento do corpo em rela9iio Ii sua imagem, A propria co-
tidade (ou a quem "incumbe" essa posi9iio), pode ativar ou
nota91io do "eu" como um deslocador relaciona necessariamen-
executar: essas prerrogativas e obriga90es constituem as pres-
cri90es de papel associadas a essa posi 9ao". te 0 self com 0 posicionamento dentro da serialidade de discur-
so e a91io, 0 posicionamento ao longo do curso vital esci, e claro,
o termo "posi9ao" explica-se mais como ''posicionamen_ sempre intimamente relacionado com a categoriza91io da iden-
to", 0 que da ao segundo a condi9ao de explorar urn rico filiio
tidade social. "lnIancia" e "idade adulta", entre algumas outras
de significados. Os atores estiio sempre posicionados em rela-
9iio aos tres aspectos da temporalidade em tomo dos quais esta
formas passiveis de gradua91io etaria, sempre combinam crite-
rios biologicos e sociais de envelhecimento. 0 posicionamento
construida a !eoria da estrutura9iio. 0 posicionamento dos agen-
tes em circunstiincias de co-presen9a e urna caracteristica ele- diferencial no curso vital e a mais importante condi91io restriti-
va influenciando a importancia fundamental da familia na con-
 100
A CONSTITUI9A'O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 101
juga9ao de reprodu9ao fisica a social. Vma sociedade humana
te, a importancia da obra de Goffman para a teoria da estrutura-
em que todos os membros nascessem como uma unica coorte
9ao. Toda intera9ao social e urna intera9ao situada - situada no
etilria seria impossivel, urna vez que 0 bebe humano tern urn
espa90 e no tempo. Pode ser entendida como a ocorrencia irre-
periodo tao longo de dependencia mais ou menos completada
gular mais rotinizada de encontros, esvaindo-se no tempo e no
ajuda de seus familiares mais velhos".
espa90, e nao obstante reconstituida constantemente em dife-
Mas e a interse9ao entre essas formas de posicionamento e
rentes areas do tempo-espa90. As caracteristicas regulares ou
a assurnida na longue duree das institui90es que cria a estrutura
rotineiras de encontros, tanto no tempo quanto no espa90, re-
basica global do posicionamento social. Somente no contexto
presentam caracteristicas institucionalizadas de sistemas sociais.
dessa interse9ao, dentro de priticas institucionalizadas, podem
A rotina funda-se na tradi9ao, costume ou babito, mas e urn
ser adequadamente apreendidos os modos de posicionamento
grave erro supor que esses fenomenos nao precisam de expli-
espa90 -te mporal, em rela9ao a dualidade da estrutura. Parece
ca9ao, que sao simplesmente formas repetitivas de comporta-
que em todas as sociedades os criterios mais abrangentes de
mento executadas "sem pensar". Pelo contrilrio, como Goffman
atribui9ao de identidade social sao a idade (ou faixa etaria) e 0
(juntamente com a etnometodologia) ajudou a demonstrar, 0
genero. Mas embora seja comum na literatura sociologica falar
carater rotinizado da maior parte da atividade social e algo que
de papeis proprios da idade, papeis proprios do genero etc., de
tern de ser continuamente "trabalhado" por aqueles que a ali-
urn modo generico, nao seguirei esse uso. A identidade social
mentam em sua conduta no dia-a-dia. Vma das mais gritantes
conferida por idade ou genero - e outras caracteristicas supos-
lacunas nos escritos de Goffman e a ausencia de uma descri9ao
tamente "atributivas", como a pigmenta9ao da pele - tende a
da motiva9ao. Nas se90es precedentes, procurei remediar isso
ser 0 foco de tantos aspectos da conduta que empregar 0 termo
sugerindo que confian9a e tato, como propriedades basicas que
"papel" para descreve-los e enganador e superficial". A n09ao
os participantes levam para os encontros, podem ser interpreta-
de papel, conforme foi sublinhado por intimeros criticos de seu
dos em termos da rela9ao entre urn sistema de seguran9a basi-
emprego generalizado nas ciencias sociais, so possui alguma
ca, a manuten9ao (na praxis) de um senso de seguran9a ontolo-
precisao conceptual se aplicada em contextos de intera9ao so-
gica, e a natureza rotineira da reprodu9ao social que os agentes
cial, nos quais estao formulados Com relativa clareza os direi-
habilidosamente organizam. A monitora9ao do corpo, 0 con-
tos e obriga90es normativos associados a urna identidade espe-
trole e uso do rosto no face work, eis os fatores fundamentais
cifica. Como suas origens dramarurgicas indicam, e valido
para a integra9ao social no tempo e no espa90.
falar de papel somente quando existem cenilrios estabelecidos
de intera9ao, nos quais a defini9ao normativa de modos "espe-
E de primordial importii.ncia sublinhar 0 fato de que uma
teoria da rotina nao tern de ser considerada igual a urna teoria
rados" de conduta e fortemente pronunciada. Tais cenilrios ou
da estabilidade social. A preocupa9ao da teoria da estrutura9ao
ambientes de intera9ao sao sempre virtualmente dotados de urn
e com a "ordem" como a transcendencia do tempo e do espa90
local ou tipo de local especifico, no qual ocorrem encontros re-
nas rela90es sociais hurnanas; a rotiniza9ao tem urn papel
gularizados em condi90es de co-presen9a". Cenilrios desse
essencial na explica9ao de como isso ocorre. A rotina persiste
tipo tendem a ser associados a urn circulo mais delineado e mais
atraves da mudan9a social ate a de tipo superlativamente dra-
fechado de rela90es do que se verifica em sistemas sociais co-
mourntodo. matico, mesma que, evidentemente, alguns aspectos de rotinas
tidos como certos possam ficar comprometidos. Os processos
o "posicionamento" atinge 0 que chamarei de as contex- de revolu9ao, por exemplo, sem duvida perturbam habitual-
tualidades da intera9ao e permite-nos compreender, diretamen-
mente as atividades cotidianas de multidoes de pessoas que sao
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102
A CONSTITUlr;:A'O DA SOCIEDADE CONSCItNCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 103
envolvidas pelo fervor da revolta ou sao as vitimas infelizes de cunstancias e situa,oes, de modo a poderem responder da ma-
eventos sociais em cuja deflagra,ao nao participaram. Mas e
neira apropriada a tudo que "esteja acontecendo". Alguem que
naquelas circunstiincias em que 0 tecido da vida cotidiana e descobre que 0 que esta acontecendo num determinado tempo
ftontalmente atacado e sistematicamente deformado _ como
e lugar e, digamos, uma festa podera adotar uma conduta do
nos campos de concentra,ao - que 0 poder da rotina softe uma tipo conveniente, mesmo que alguns aspectos dos contextos nao
quebra substancial. Mas ate mesmo nesses casos, como Bet- lhe sejam familiares. A maior parte da obra de Goffinan trata
telheim demonstra tao bern, as rotinas, incluindo as abomimi- das regras que permitem a realiza,ao de transi,oes entre estru-
veis, acabam sendo restabelecidas.
turas primcirias e secundarias. Assim, as "chaves" em transfor-
E esclarecedor ver as regras implicitas em encontros, ma,oes sao as formulas por meio das quais uma atividade que
como Goffinan sugere, agrupadas em estruturas ou "esque- ja e significativa numa estrutura primaria recebe urn significa-
mas". E possivel considerar que a estrutura,ao fomece a orde- do numa secundaria". Por exemplo, uma luta pode ser "brinca-
na,ao de atividades e significados por meio dos quais a segu- deira", urn comentano aparentemente serio, uma '"piada". Mas
ran,a ontologica e mantida no desempenho das retinas diarias. exatamente 0 mesmo tipo de analise poderia ser feito para indi-
As estruturas sao conjuntos de regras que ajudam a constituir e car as regras envolvidas em transi,oes entre diferentes estrutu-
regular as atividades, definindo-as como de uma certa especie
ras primarias.
e sujeitas a uma determinada gama de san,oes. Sempre que os
Nao seria pertinente continuar detalhando neste contexto
individuos se reunem num contexto especifico, deftontam-se
a anaIise de Goffman da estrutura,ao. Em vez disso, considera-
(e, na grande maioria das circunstiincias, respondem sem a
rei brevemente 0 significado que a formula,ao discursiva de
menor dificuldade) com a pergunta: "0 que esta acontecendo
regra pode ter, recorrendo a urn trabalho diferente, 0 de Wieder,
aqui?" E improvavel que essa pergunta admita uma resposta
sobre "dar 0 cOdigo"". A pesquisa de Wieder descreve os re-
simples, visto que em todas as situa,oes sociais pode haver
sultados de urn estudo de observa,ao participante numa unida,
muitas coisas "acontecendo" simultaneamente. Mas os partici-
de residencial para reabilita,ao de prisioneiros em regime de Ii-
pantes da intera,ao a formulam caracteristicamente no nivel da
berdade condicional. Os reclusos falaram da existencia de regras
prlitica, orientando Sua conduta para ados outros. Ou, se a for-
de conduta a que chamavam de "cOdigo". 0 cOdigo era explici-
mulam discursivamente, e em rela,ao a um aspecto particular
tamente verbalizado, mas, e claro, nao tinha a formaliza,ao es-
da situa,ao que parece intrigante ou perturbador. A estrutura,ao,
crita, dado ser estabelecido e coordenado pelos presos, nao
como constitutiva de encontros (e limitada por estes), incute
pelos funcionanos. Ao que parece, nenhum recluse podia reci-
um "sentido" as atividades em que os participantes se envolvem,
tar todas as maximas que compunham 0 cOdigo, mas todos eram
tanto para eles quanta para outros. Isso inclui a compreensao
capazes de mencionar algumas, e discutia-se 0 cOdigo com fre-
"literal" de eventos, mas tambem os criterios pelos quais se expli-
qiiencia. Era constituido por regras como: nao "dedurar"
ca que 0 que esta acontecendo e humor, recrea,ao, teatro etc.
(denunciar outros reclusos aos funcionanos); nao admitir culpa
As estruturas primanas da atividade diana podem ser vis-
ou confessar a responsabilidade por um ate definido como ile-
tas como aquelas que geram linguagens "literais" de descri,ao
gitimo pelos funcionarios; nao roubar de outros reclusos; re-
tanto para participantes leigos em encontros quanta para obser-
partir com os outros quaisquer presentes ou beneficios que
vadores sociais. Elas variam amplamente em Sua precisao e
pudessem ser recebidos, e assim por diante. Os funcionarios
fechamento. Seja qual for seu nivel de organiza,ao, permitem
tambem conheciam 0 cOdigo e faziam usc dele em suas rela-
aos individuos classificarem uma pluralidade imensa de cir-
,oes com os reclusos. Como diz Wieder, ele "era usado como
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A CONSTITUI9A-O DA SOC/EDADE CONSC/ENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 105
um esquema de interpreta9ilo de grande amplitude, que 'estru- porais de atividade. As rela90es sociais dizem respeito ao "po-
turava' 0 ambiente em que viviam"76. Mas, como 0 autar tam- sicionamento" dos individuos dentro de um "espa90 social" de
bern sublinha, sua verbaliza9ilo significava que era invocado de categorias e vinculos simb6licos. As regras envolvidas em po-
maneiras como as regras implicitamente formuladas nilo podem si90eS sociais tratam normalmente das especifica90es de direi-
ser. Formava um "vocabulario de motivo", mediante 0 qual tos e obriga90es importantes para as pessoas com determinada
funcionarios e reclusos interpretavam a90es, especialmente as identidade social ou pertencentes a uma certa categoria social.
desviantes ou problematicas. Nilo era tratado simplesmente Os aspectos normativos de !ais regras, por outras palavras, silo
como uma descri9ilo do que era tacitamente reconhecido; pelo particularmente pronunciados, mas todas as caracteristicas
contnirio, as circunstancias em que se recorria ao c6digo po- previamente enunciadas das regras tambem Ihes silo apliciiveis
diam ser alteradas pelo fato de invoca-Io. "Dar 0 c6digo" signi- Elas podem, por exemplo, ser tacitamente obedecidas em vez
ficava, como soa a frase, nilo s6 dar informa90es sobre 0 que de discursivamente formuladas. Existem muitos casos desses
era 0 c6digo, mas tambem repreender severamente quem 0 na literatura antropol6gica, entre eles 0 das culturas em que
transgredisse; esse fato exibia 0 c6digo como um mecanismo existe casamento de primos cruzados unilaterais. Embora os
de controle, sendo essa exibi9ilo parte da maneira como, de membros dessas culturas tenham obviamente algumas ideias
fato, ele funcionava como tal. Eu sugeriria que isso e caracte- que poem em vigor a respeito de quem casa com quem, as re-
ristico das "interpreta90es de regras" discursivamente ofereci- gras de elegibilidade a que estilo, de fato, obedecendo em seu
das em muitos contextos sociais.
comportamento silo mais tacitas do que explicitas.
As regras aplicadas reflexivamente em circunstancias de Goffinan demonstra que a integra9ilo social depende de
co-presen9a nunca silo limitadas em suas implica90es a encontros procedimentos reflexivamente aplicados de agentes cognosci-
especificos, mas servem Ii reprodU9ilo dos padroes de encon- tivos, mas nilo indica, de modo efetivo, os limites dessa cog-
tros atraves do tempo e do espa90. As regras da linguagem, da noscitividade nem as formas que esta assume. Quero apresentar
estrutura9ilo primaria e secundaria, da conduta da intera9ilo aqui uma pergunta: em que sentido os agentes silo "cognosciti-
interpessoal, aplicam-se todas a vastos setores da vida social, vos" acerca das caracteristicas dos sistemas sociais que produ-
embora nilo possam ser interpretadas como necessariamente zem e reproduzem em sua a9ilo?
coextensivas com qualquer "sociedade" dada. Neste ponto, te- Vamos pressupor que "conhecimento" seja igual a uma
mos de prestar alguma aten9ilo Ii diferencia9ilo conceptual consciencia acurada au valida - nao me refiro a "convic9ao",
entre "intera9ilo social" e "rela90es sociais" (embora eu nem porque as convic90es silo apenas um aspecto da cognoscitivi-
sempre seja particularmente cuidadoso em separa-las no que se dade. Nilo faz sentido tratar a consciencia priitica como exaus-
segue). A intera9ilo social refere-se a encontros em que os indi- tivamente constituida por convic90es ou cren9as propositivas,
viduos se envolvem em situa90es de co-presen9a e, por conse- embora alguns elementos assim pudessem, em principio, ser
guinte, Ii integra9ao social como um nivel dos elementos biisi- formulados. A consciencia priitica consiste no conhecimento
cos por meio dos quais as institui90es dos sistemas sociais silo das regras e taticas mediante as quais a vida social e constituida
articuladas. As rela90es sociais estilo certamente envolvidas na e reconstituida atraves do tempo e do espa90. Os atores sociais
estrutura9ilo da intera9ilo, mas tambem constituem os princi- podem estar errados uma parte do tempo sobre 0 que possam
pais elementos na edifica9ilo, em tomo dos quais as institui- ser essas regras e taticas - caso em que seus erros podem vir Ii
90es se articulam em integra9ilo de sistema. A intera9iio depende tona como "impropriedades situacionais". Mas, se realmente
do "posicionarnento" dos individuos nos contextos espa90-tem- existe alguma continuidade na vida social, a maioria dos atores
 106
A CONSTITU19A-O DA SOCIEDADE
CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 107
deve estar certa a maior parte do tempo; quer dizer, eles sabem cursiva. Nao existe aqui diferen9a logica entre os criterios de
o que estao fazendo e comunicam com hito seu conhecimento
validade em termos dos quais as afirma90es de cren9as ou con-
a outros. A cognoscitividade incorporada as atividades pr:lticas vic90es (hipoteses, teorias) serao julgadas por membros leigos
que constituem a maior parte da vida cotidiana e uma caracte- da sociedade e por observadores sociais.
ristica constitutiva (juntamente com 0 poder) do mundo social.
Quais sao - num plano geral, pelo menos - os tipos de cir-
o que e conhecido do mundo social por seus atores constituin- cun.stiincia que tendem a influenciar 0 nivel e a natureza da "pe-
tes nao esta separado do mundo deles, como no caso do conhe-
netra9ao" dos atores sociais nas condi90es de reprodu9ao do
cimento de eventos ou objetos na natureza. Comprovar exata-
sistema? Eles incluem os seguintes fatores:
mente 0 que e que os atores conhecem, e como aplicam esse
conhecimento a sua conduta pratica (empreendida tanto por
1) os meios de acesso dos atores ao conhecimento, em virtude
atores leigos quanta por observadores sociais), depende do uso
de sua localiza9ao social;
dos mesmos materiais - uma compreensao de prMicas recursi- 2) os modos de articula9ao do conhecimento;
vamente organizadas - donde sao derivadas as hipoteses sobre
3) as circunstiincias referentes a validade das afirma90es de
esse conhecimento. A medida de sua "validade" e fomecida crenr.;a interpretadas como "conhecimento";
pela avalia9ao do quanto os atores sao capazes de coordenar
4) os fatores relacionados com os meios de dissemina9ao do
suas atividades com outros, de tal maneira que os objetivos
conhecimento disponivel.
visados por seu comportamento sejam atingidos.
Existem, e claro, diferen9as potenciais entre 0 conheci-
Obviamente, 0 fato de todos os atores se movimentarem
mento das regras e tMicas da conduta pratica nos milieux em
em contextos localizados, dentro de totalidades mais amplas, li-
que 0 agente se movimenta e 0 conhecimento daquelas que se
mita seu conhecimento de outros contextos, dos quais nao pos-
aplicam em contextos remotos de sua experiencia pessoal. Ate
suem uma vivencia direta. Todos os atores sociais conhecem
que ponto as habilidades sociais do agente !he permitem a
muito mais do que tiveram alguma vez a possibilidade de vi-
desenvoltura imediata em contextos culturalmente estranhos e
venciar diretamente, em virtude da sedimenta9ao da experien-
algo obviamente variavel, certamente como 0 e 0 entrela9amen-
cia na linguagem. Mas os agentes cujas vidas se passam num
to de diferentes formas de conven9ao que expressam fronteiras
s6 tipo de milieu podem ser mais ou menos ignorantes do que
divergentes entre culturas ou sociedades. Nao e apenas no co-
acontece em outros. Isso aplica-se num sentido nao so "lateral"
nhecimento - ou nas afirma90es de cren9a -, que conseguem
- no sentido de separa9ao espacial -, mas tambem "vertical"
formular discursivamente, que os agentes mostram possuir uma
em sociedades mais vastas. Assim, aqueles que pertencem a gru-
consciencia de condi90es mais amplas da vida social do que
pos de elite podem conhecer muito pouco a respeito de como
aquelas em que suas proprias atividades ocorrem. Freqiien-
vivem outros em setores menos privilegiados e vice-versa. En-
temente, ena maneira como as atividades de rotina sao executa-
tretanto, vale a pena mencionar que a segrega9ao vertical de
das, por exemplo, que atores em circunstiincias de acentuada
milieux tambem e quase sempre uma segrega9ao espacial. No
inferioridade social tomam manifesto seu conhecimento cons-
item 2 acima, pretendi referir-me tanto a ate que ponto as afir-
ciente de sua opressao. Os escritos de Goffman estao repletos
ma90es de cren9a sao ordenadas em termos de "discursos" glo-
de comentarios sobre esse tipo de fenameno. Mas, em outros
bais quanta a natureza de diferentes discursos. Caracteristico
aspectos, quando falamos do "conhecimento que os atores tern de
das pretensoes mais cotidianas, mais senso comum, de conhe-
suas sociedades" (e de outras), a referencia e a consciencia dis-
cimento e serem elas formuladas de urn modo fragmentario,
 108 A CONSTlTUl9AO DA SOCIEDADE Notas criticas: Freud sabre lapsus linguae
deslocado. Nao e apenas 0 "primitivo" que e urn bricoleur:
grande parte da fala do dia-a-dia entre membros leigos de to-
das as sociedades baseia-se em pretensoes de conhecimento
que sao dispares ou nunca foram examinadas. Entretanto, 0
surgimento de discursos da ciencia social influencia claramente
todos os niveis de interpreta,ao social nas sociedades em que
ela se tornou influente. Goffinan tern urn vasto publico que nao
se limita a seus colegas profissionais da sociologia.
No que se refere ao item 3, e suficiente sublinhar que os
individuos podem operar com falsas teorias, descri,oes ou ex-
plica,oes tanto dos contextos de sua pr6pria a,ao quanta das
caracteristicas de sistemas sociais mais abrangentes. Existem Como exemplo de algumas das no,oes analisadas neste
fontes 6bvias de possivel tensao entre consciencia pcitica e cons- capitulo proponho considerar interpreta,oes de lapsus linguae
ciencia discursiva. Elas podem ser de origem psicodinamica, em discurso. Aquilo a que Freud chama de "parapraxis" (Fehl-
em repressoes que separam ou confundem as razoes pelas leistungen) refere-se nao s6 a deslizes verbais, mas a toda uma
quais as pessoas agem como agem e 0 que elas estao inclinadas serie de atos sintomaticos, tais como escrever, ler e ouvir errado,
ou aptas a dizer acerca dessas razoes. Mas, obviamente, podem e 0 esquecimento temporario de nomes e outros itens. Freud
existir pressoes sociais mais sistematicas, que podem influen- trata esses atos como pertencentes a uma s6 classe, parcial-
ciar 0 tanto que as falsas cren,as sao sustentadas pelos mem- mente porque os termos que os designam tern urna raiz similar
bros de uma sociedade acerca das caracteristicas dessa socie- em alemao, come,ando todos com a silaba rer- (Versprechen,
dade. Particularmente influentes com respeito ao item 4, e Verlesen, Verhoren, Vergessen). Todas as parapraxis envolvem
quase desnecessario dizer, sao as rela90es existentes, hist6rica erros, mas a maioria deles sao aparentemente sem importancia
e espacialmente, entre a cultura oral e os veiculos de comuni- e sem significa,ao duradoura nas atividades dos individuos
ca,ao escrita, impressa e eletr6nica. Todas estas ultimas moda- que os cometem. Segundo Freud, "s6 raramente urn deles,
lidades influenciaram nao s6 os estoques de conhecimento dis- como a perda de urn objeto, atinge algurn grau de importincia
ponivel, mas tambem os tipos de conhecimento produzidos. pratica. Tambem por essa razao, eles atraem pouca aten,ao,
nao ocasionam mais do que tenues emol;oes etc."I*. De fata,
ele tenta demonstrar que essas infra,oes corriqueiras fornecem
indica,oes de caractensticas essenciais da psicodinamica da
personalidade.
Se as parapraxis formam realmente uma Unica classe de
erros ou nao, eis algo que nao me preocupo em discutir aqui.
Concentrar-me-ei somente no lapsus linguae. Empregando urna
classifica,ao estabelecida pelo lingiiista Meringer e por Mayer,
urn psiquiatra (de cujas opinioes, quanta ao mais, discorda),
Freud menciona os seguintes tipos de erro verbal: transposir;oes

* As referencias podem ser encontradas a pp. 128.

 110
A CONSTITUl9AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS III

("Milo de Venus" em vez de "Venus de Milo"); pre-sondncias correta por uma pessoa, reconheceu-o imediatamente sem a me-
ou antecipOl;oes (es war mir aufder Schwest... aufder Brust so nor hesita~ao. 0 esquecimento nao deve ser explicado em termos
schwer - Schwest e uma palavra inexistente); p6s-sondncias de qualquer coisa distinta sobre 0 proprio nome do pintor ou de
ou persevera,oes (ich fordere Sie auf, auf das Who! unseres qualquer aspecto psicologico do contexto no qual Freud estava
Cheft auftutossen, em vez de anzustossen); contamina,oes (er tentando recordlt-lo. Este estava tao familiarizado com urn dos
setzt sich aufden Hinterkopf, urna combina~ao de er setzt sich nomes substitutos, "Botticelli", quanta com "Signorelli", e muito
einen KopfaufCom er steUt sich aufdie Hinterbeine); e substi- mais familiarizado com "Signorelli" do que com 0 outro nome
tui,oes (ich gebe die Priiparate in den Briefkasten, em vez de equivocado que the ocorreu, "Boltraffio". Esse fato aconteceu
Briitkasten)'. durante urna conversa casual com urn estranho, nurna viagem de
Meringer tentou explicar esses tipos de erros em termos de Ragusa, na Dahruicia, para urn local da Herzegovina.
fases de excita~ao neural. Quando urn emissor profere a pri- Freud fez a seguinte analise do fenomeno. 0 esquecimento
meira palavra de uma frase, deflagra-se urn processo de excita- do nome estava relacionado com 0 tema precedente da conver-
~ao, ligado it expectativa da forma da elocu~ao. Esse processo sa. Antes de Orvieto ser mencionado, ele e seu companheiro de
tern, por vezes, 0 efeito de perturbar sons subseqiientes da elo- viagem falavam a respeito dos costumes das popula~oes turcas
cu~ao. Alguns sons sao fisicamente mais intensos e podem que viviam na Bosnia e em Herzegovina. Freud descrevera ao
afetar outros sons ou palavras. Para descobrir a fonte do !apsus outro a atitude fatalista com que os turcos abordam a doen~a e
linguae temos, portanto, de procurar aqueles sons ou verbali- a morte. Se urn medico lhes diz que nada pode ser feito para
za~oes de valencia flsica mais alta. Urn modo de fazer isso, de salvar alguem que esti doente, a resposta deles e: "Herr [Se-
acordo com Meringer, e considerar 0 que esti envolvido na bus- nhor], que posso eu dizer? Sei que, se pudesse, 0 senhor 0 sal-
ca de uma palavra esquecida, como 0 nome de alguem. 0 pri- varia.") As palavras "Bosnia", "Herzegovina" e Herr possuem
meiro som a retomar it consciencia e sempre aquele que apresen- uma associa~ao inconscientemente gravada com "Signorelli",
tava maior intensidade antes de a palavra ter sido esquecida. "Botticelli" e "Boltraffio". Urn segundo episodio e inteiramen-
Trata-se, com freqiiencia, por exemplo, do som critico na palavra te ligado ao primeiro na mente de Freud. Em contraste com sua
ou na vogal que e particularmente acentuada. Freud nao conside- resigna~ao diante da morte, os turcos dao mostras de grande
rou isso muito importante. No caso de palavras esquecidas, rara- agitac;ao e desespero quando sofrem transtomos sexuais. Assim,
mente e verdade que 0 som inicial ou a vogal acentuada seja 0 urn deles the dissera: "Sabe, Herr, se isso acabar, a vida deixa
primeiro a ser recordado. as emissores podem, por vezes, acre- de ter qualquer encanto." Freud suprimira esse episodio de seu
ditar ser esse 0 caso mas, de fato, estao geralmente errados; relato, por nao desejar discorrer sobre urn assunto tao delicado
Freud afIrma que, na grande maioria dos casos, 0 som inicial com urn estranho. Por isso desviou sua aten~ao de pensamen-
que 0 locutor profere ao tentar recordar a palavra e 0 errado. tos que poderiam ter sido suscitados em sua mente pelos temas
Como exemplo desse ultimo fenomeno ha a famosa dis- da morte e da sexualidade. Ele recebera recentemente uma noti-
cussao feita por Freud a respeito de seu proprio lapso de me- cia deveras lamentavel, durante uma breve estada em Trafoi,
moria relativo ao nome do pintor Signorelli. Falando a respeito urna pequena aldeia do Tirol. Urn de seus pacientes, a quem
dos afrescos das "Quatro Ultimas Coisas", Ressurrei~ao dos dedicara consideravel aten~ao e que padecia do que costumava
Mortos, Juizo Final, Infemo e Ceu, na catedral de Orvieto, Freud referir-se como uma "perturbac;ao sexual incunivel"\ suicida-
viu-se incapaz de recordar 0 nome do artista. Em vez de desco- ra-se. A semelhan~a das palavras "Trafoi" e "Boltraffio" indi-
brir 0 nome de que estava tentando lembrar-se, so podia pensar cou que esse evento se fizera sentir psicologicamente, apesar
nos nomes "Botticelli" e "Boltraffio". Ao ser-lhe dito 0 nome de sua decisao de nao 0 mencionar.
~

112
A CONSTITUIr;:Jo DA SOCIEDADE CONSCI!;NCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 113
Tendo estabelecido essa conexao, afirma Freud, jf! nao era
Urn mecanismo semelhante a esse, continua Freud, existe
mais possivel considerar 0 esquecimento de "Signorelli" urna
nos casos de lapsus linguae. Os erros verbais podem ser do tipo
ocorrencia acidental; tratava-se de algo (inconscientemente)
analisado por Meringer e Mayer, quando urn componente de
motivado. 0 elemento que Freud optou deliberadamente por
uma frase influencia urna outra, ou do exemplo analisado por
nao mencionar foi deslocado para urn outro elemento, 0 nome
do pintor. Freud, em que as influ€mcias que produzem 0 erro provem de
fora da frase pronunciada e de suas circunstancias imediatas.
As conex5es estabelecidas neste caso' indicam que 0 no-
Ambos os tipos de erros tern suas origens nurna especie de
me "Signorelli" se dividira em dois. Urn dos pares de sflabas,
"elli", Ocorre de forma inalterada nurn dos dois nomes que acu-
"excitayao", mas, num casa, ela e interior it frase ou asitua<;ao
em que as palavras sao proferidas, no outro, e-lhes exterior.
diram it mente de Freud. 0 outro envolveu-se numa cadeia de
liga,5es por meio da tradu,ao de "Signor" por "Herr". Ocor- Somente no primeiro existe qualquer possibilidade de explicar 0
feu um deslocamento entre os nomes "Herzegovina e Bosnia" lapsus linguae em termos de urn mecanismo ligando mutua-
- dois lugares freqiientemente citados juntos na mesma frase. mente sons e palavras, de modo que influenciem a articula,ao.
A maioria das conex5es que produziram 0 esquecimento foi Alem disso, sujeito a urn exame mais minucioso, 0 primeiro, de
forjada abaixo do nivel da consciencia. 0 tema suprimido e os fato, evapora-se. Os lapsos verbais que parecem, it primeira
fatores que fizeram acudir it mente os nomes substitutos nao vista, ser simplesmente 0 resultado de urn "efeito de contato de
tern quaisquer liga,5es manifestas. As semelhan,as envolvidas sons", na realidade mostram, numa investiga,ao mais ampla,
dependem em parte de sons comuns que as palavras pOssuem, depender de influencias externas (isto e, motivadas).
mas que s6 podem ser conjugados quando compreendemos que Freud enurnera muitos exemplos de lapsos verbais, incluin-
o esquecimento e urn resultado da repressao. Nem todos os ca- do os seguintes:
sos de esquecimento de nomes, e claro, sao dessa especie: "A
par de casos simples, em que nomes pr6prios sao esquecidos, 1) Por parte de uma paciente: "Fecho-me como urn Tassenmes-
existe urn tipo de esquecimento motivado por repressao.'" cher [palavra inexistente]. .. quer dizer, Taschenmesser (ca-
nivete)." Freud reconhece a existencia de dificuldades de
articula,ao com a palavra, mas aponta 0 erro it paciente e as-
~tticelli
Signorlelli
80 Itraffio socia-o com urn nome que suscita angustias inconscientes.
2) Uma outra paciente, indagada sobre como estava seu tio,
Her)zegovina e @"snia responde: "Nao sei, agora s6 0 vejo inflagranti." A frase que
ela pretendia era en passant. A expressao usada erradamen-
te relacionava-se, como ficou provado, com urn epis6dio no
Herr,) que posso eu dizer? etc.
passado da paciente.
3) Umjovem dirige-se a urna senhora na rna com estas palavras:
TrafOi
Marte e sexualidade
~
"Se me permite, Madame, eu gostaria de a begleit-digen."
Ele quer acompanhf!-la (begleiten) mas receia que sua pro-
posta a ofenda (beleidigen). Tal como no caso "Signorelli",
(Pensamentos reprimidos)
uma inten,ao oculta - nao ser a solicita,ao inteiramente ino-
cente por parte do homem - redunda num lapsus linguae in-
Figura 4 conscientemente motivado.
 114 A CONSTlTU/(:A-O DA SOCIEDADE CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS liS
4) Durante uma reuniao ardorosamente disputada, 0 presidente Ce qu'on con~oit bien
diz: "Varnos agora slreiten (discutir) 0 ponto quatro da agenda" S' annonce clairement
(em vez de schreiten = passar para). A verdadeira ideia do Et les mots pour Ie dire
orador, que ele intenta suprimir, manifesta-se em seu equi- Arrivent aisement. 8*
voco verbal.
S) Perguntam a alguem: "Em que regimento seu filho esta ser- A motiva9ao inconsciente existira em todos os casos de
vindo?" A resposta e: "No 42? de Marder" (assassinos), em lapsus linguae? Freud acredita que sim, "pois toda vez que se
vez de "Marser" (morteiros). investiga urn exemplo de lapsus linguae logo surge uma expli-
6) Vma senhora exprimiu certa vez, numa roda social, a se- ca9ao desse tipo"'.
guinte opiniao: "Sim, uma mulher tern de ser bonita, se qui- Comparemos agora essa visao de Freud do lapsus linguae
ser agradar aos homens. 0 homem tern muito mais sorte. com a de Goffinan da fala radiofOnica" - uma compara9ao que
Desde que tenha seus cinco membros em ordem, nao precisa poderia parecer nada promissora, mas e realmente muito ins-
de mais nada!" Este e urn dos numerosos exemplos do que trutiva para a teoria da estrutura9ao. Os interesses de Goffinan
Meringer e Mayer charnararn de contarnina90es, mas que em seu exame sao muito divergentes dos de Freud e, em vez de
Freud considera serem casos ilustrativos do processo psico- seguir os temas de sua propria argumenta9ao, tentarei dissecar
logico de condensa9ao. A declara9ao constitui a fusao de suas implica90es para uma avalia9ao dos pontos de vista de
dois modos semelhantes de expressao: "Desde que tenha Freud sobre erros de fala. A !ocu9ao de radio e TV e substancial-
seus quatro membros direitos" e "Desde que tenha todos mente diferente da conversa9ao comum, mas justamente por
os seus cinco sentidos". Assinala Freud que, como no caso de essa razao permite consideravel insight naquelas circunstan-
tantos lapsos verbais, 0 comentario da boa senhora poderia cias. Os locutores nao sao os autores dos scripts que declamarn
passar muito bern por um chiste. A diferen9a reside simples- ao microfone. Sua fala ocorre como parte de seqiiencias pre-
mente em se a pessoa proferiu conscientemente ou nao as viamente planejadas, das quais nao tern liberdade de afastar-se,
palavras emitidas. salvo em pequenos detalhes. Ao mesmo tempo, espera-se que
7) ReanaIise de urn dos exemplos de Meringer e Mayer: Es war transmitarn uma impressao de "fala original", mantendo viva
mir aufder Schwest... aufder Brust so schwer. Isto nao pode uma impressao de espontaneidade no que dizem. Satisfazer es-
ser adequadamente explicado pela expectativa de sons. 0 ses requisitos inconsistentes e dificil, uma vez que eles tern de
lapsus linguae deve ser provavelmente interpretado em fun- recitar seus textos de modo tecnicarnente livre de erros. A tare-
9aO de uma associa9ao inconsciente entre Schwester (irma), fa do locutor e "a produ9ao de uma fala espontanea aparente-
Bruder (irmao) e talvez Brust der Schwester (seio da irma). mente impecavel"ll.
Entretanto, os locutores de radio e TV cometem 0 lapsus
Conclui Freud: "Deve existir uma razao para todos os erros linguae. Entre os exemplos citados por Goffinan e f<icil encon-
cometidos ao falar.'" Isso inclui outras formas de perturba9ao trar alguns casos enumerados por Meringer e Mayer:
da fala, alem dos lapsos verbais, como a gagueira. Todos esses
fenomenos sao sintomas de conflito interno que se manifesta I) "Ao encerrar nosso 'TV Church of the Air', permitarn-me
como deforma90es da fala. Freud afirma que os disturbios da lembrar a todos os nossos telespectadores que 0 tempo fere
fala nao se manifestam em circunstancias em que 0 individuo
esta fortemente empenhado, como num discurso bern prepara-
* "0 que e bern concebido ! Anuncia-se claramente / E as palavras para
do ou numa declara9ao de arnor.
dize-lo! Chegam facilmente." (N. do T.)
 116 117
A CONSTITUIi:;AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS

todas as curas" (em vez de "cura todas as feridas"; transpo- mal pronunciadas ou substituidas nao parecem simplesmente
si,ao ou troca acidental de letras ou palavras). alternativas nao-especificas para aquelas que deveriam ter sido
2) "Voces estiio ouvindo a mucous de Clyde Lucas" (mucous em proferidas. Sao embara,osas em rela,ao aopiniao que, em prin-
vez de music; pre-sonancia). cipia, 0 locutor devera veicular; algumas tern '''conota90es
3) "E agora entra em campo pelos Reds 0 numero 44, Frank demasiado verdadeiras", para as quais Freud chama a aten,ao;
Fuller,futiliry infielder" (em vez de utiliry infielder, base re- e outras possuem urn carater obviamente sexual. Mas conside-
serva no beisebol; persevera,ao). remos duas outras formas de deslizes na fala radiof6nica:
4) "Esta e a rede Dominio da Canadian Broad Corping Cas-
tration" (em vez de Canadian Broadcasting Corporation; I) "As senhoras que tiverem a amabilidade de vir ate aqui e drop
contamina,ao). off suas roupas receberao pronta aten,ao" (drop off tanto
5) "Acaba de nos chegar a noticia de que uma blonde [Ioura] de pode significar "deixar suas raupas", numa lavanderia, por
fabrica,ao caseira explodiu esta manha no Teatro Roxy" exemplo, como "tirar suas roupas"; portanto, esta segunda
(blonde em vez de bomb; substitui,ao). conotal;ao significaria urn convite as "senhoras para se des-
pirem, em cujo caso receberiam pronta aten9ao").
Ha tambem numerosos exemplos proximos daqueles enu- 2) "Gente, experimente nossas confortaveis camas! Eu pessoal-
merados por Freud, como: mente stand behind qualquer que vendemos" (stand behind
tanto pode significar "responsabilizar-se" como "ficar atras").
I) "Viceroys... se voce aprecia a good chocke" (= uma boa sufo- 3) "0 produto do saque e 0 carro foram arrolados como rouba-
ca,ao, em vez de a good smoke = urn born cigarro). dos pela Policia de Los Angeles" (em vez de "0 produto do
2) "Bata a gema do ovo e depois adicione leite, depois va acres- saque e 0 carro foram arrolados pela Policia de Los Angeles
centando aos poucos a farinha peneirada. A medida que for como roubados").
mexendo, podera ver como a mistura esta sickening" (= re- 4) "E aqui em Hollywood corre 0 boato de que a antiga estrela
pugnante, em vez de is thickening = ficando espessa). esta esperando seu quinto filho num mes" (em vez de "E
3) "E agora, telespectadores, aqui esta 0 convidado especial de aqui em Hollywood... esta esperando para dentro de urn mes
'TV Matinee', que todos estivamos aguardando -0 autor, con- seu quinto filho").
ferencista de fama mundial, um homem do mundo, 0 ele-
gante senhor... hum... 0 senhor... Oh! Como e, diabos, 0 seu I) "Tums Ihe darn alivio instantfuleo e Ihe garantira uma noite
nome?" sem indigestiio nem mal-estar... Por isso experimente Tums e
4) "E assim, amigos, nao deixem de fazer uma visita ao restau- va dormircom um grande... [0 locutorvira a pagina] sorriso."
rante de Frankie, para um jantar com elephant food" (= co- 2) "Chegou 0 momento, senhoras e senhores, de apresentar
mida de elefante, em vez de elegantfOod = comida refinada). nosso eminente convidado desta noite, a notivel conferen-
cista e lider social, Sra. Elma Dodge [intromete-se a ima-
Muitos desses deslizes sao humoristicos" e refor,am ade- gem do Super-Homem] ... que e capaz de transpor edificios
quadamente a tese de Freud de que os chistes e os lapsos ver- num Unico saito."
bais tern estreita afinidade. Embora nao seja possivel demons- 3) Uma emissora local de TV, transmitindo uma luta de boxe no
trar isso diretamente, tais exemplos ajustam-se de muito perto Madison Square Garden, interrompeu 0 programa para anun-
a interpreta,ao que ele faz da parapraxis verbal. As palavras ciar a morte de um politico local. Ao cortar de volta para a
 ~

118 A CONSTITUJ(;XO DA SOCIEDADE CONSClENClA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 119

luta, 0 narrador estava dizendo: "Nao foi urn golpe muito foram da situa,ao terapeutica. No fim de contas, 0 encontro te-
forte, amigos!" rapeutico dificilmente podera ser considerado um exemplo de
discurso comum melhor do que a fala radioffinica. As palavras
Nestes casos nao M lapsus linguae envolvido, mas eles do paciente sao tratadas como tendo uma significa,ao especial,
assurnem tambem a forma de parapraxis. Algo saiu errado no a ser cuidadosamente investigada. Em segundo lugar, os locuto-
que 0 locutor pretendia dizer. a segundo grupo de exemplos e res de radio e TV sao especialistas na produ,ao de [ala impeca-
interessante porque, se nao conhecessemos as circunstancias vel, e espera-se que 0 sejam pela propria natureza da profissao
em que ocorreram, pareceria que continham apenas tipicas de- deles. A principal tarefa do apresentador e recitar 0 script que
clara,oes "demasiado francas". Nenhurn motivo pode ser impu- lhe e fornecido de modo claro e fluido. Somente quando reco-
tado para elas, a menos que os editores dos programas respon- nhecemos ate que ponto e distinta e incomurn essa fala relati-
saveis pelos cortes de urn programa para urn outro tivessem or- vamente impecavel, e que podemos come,ar a apreciar as con-
ganizado de algurn modo (conscientemente ou nao) as seqiien- tingencias da fala corrente do dia-a-dia. Participantes leigos e
cias, a fim de se obterem os efeitos observados. A primeira cate- lingiiistas consideram geralmente a fala cotidiana muito mais
goria de deslizes e mais dificil de interpretar. Pode ser que se "perfeita" e "ordenada" do que de fato e. Resurnindo 0 trabalho
trate de ambigiiidades inconscientemente motivadas. Mas isso recente sobre 0 estudo empirico de conversa,oes, Boomer e La-
parece improvavel. A maior probabilidade esta em que seu ca- ver comentam:
rater ambiguo passasse despercebido por locutores e ouvintes
se elas fossem proferidas no ambito de conversas correntes, no Eimportante reconhecer que, na fala "normal" nao significa
dia-a-dia. A questao nao e apenas a de seus significados ambi- "perfeito". A nonna para a fala espontinea e demonstravelmente
imperfeita. A conversa<;ao caracteriza-se per freqiientes pausas,
guos nao serem evidentes de imediato, mas a de, na conversa-
sons de hesita<;ao, falses comer;os, articula<;oes erroneas e corre-
,ao cotidiana, outros significados que nao os pretendidos pelos <;oes. [...] Em circunstancias cotidianas, simplesmente nao Quvi-
interlocutores tenderem a ser eliminados pelas caracteristicas mes muitos dos nossoS proprios lapsos verbais nem os cometidos
contextuais da conversa. as locutores, no caso, esmo aptos a di- pelos Qutros. So epossivel discemi-los na fala corrente se adotar-
rigirem-se a pessoas especificas com quem estao envolvidos, mes urn modo especializado de escuta de "revisor de provas". 13
pre-selecionando palavras e frases, para evitar a inclusao de
leituras alternativas possiveis. Mas os de radio e televisao nao Na maioria das circilllstancias das conversas no dia-a-dia
podem fazer isso, porque falam para urna audiencia generalizada, e muito dificil, de [ato, distinguir os lapsos verbais da natureza
nao estando essa audiencia co-presente com eles. fragmentada de virtualmente todo discurso que se desenrola.
Ora, seria claramente um erro considerar a fala radiofoni- Como sublinha Goffinan, para que urna deterrninada expressao
ca como tipica da fala em geral. Ha duas razoes para explicar oral seja testada como "falha" ou "defeituosa", ela tern de ser
por que os lapsos verbais se destacam muito mais na fala radio- de urn tipo que 0 locutor alteraria se come,asse a proferi-la de
ffinica do que nas conversas do dia-a-dia. Em primeiro lugar, 0 novo (ou, e claro, uma que realmente e alterada ou "corrigi-
discurso nao tern lugar entre comunicantes co-presentes. Desem- da"). Nao adianta identificar lapsos verbais por referencia a urn
bara,ado de outros sinais, 0 que e dito torna-se urn fenomeno modelo idealizado de enuncia,ao OU discurso. Alem disso,
mais "testemunhavel" do que quando esta inserido nas ativida- para entender 0 carater da [ala cotidiana, temos de atenlar para
des cotidianas. Isso tambem e verdadeiro no caso de muitos outros tipos de [altas que podem intervir. Quais sao as implica-
exemplos de lapsos verbais dados por Freud, filtrados como ,oes disso?
120 A CONSTITUlt:;AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 121

Em primeiro lugar, no tocante aos lapsos verbais, pode ser relativamente rara, em parte porque muitas imperfei,oes que
argumentado que Meringer e Mayer nao estavam tao longe da sao deslizes fonol6gicos ou sintaticos, quando julgados a partir
verdade quanta Freud tendia a indicar. Fromkin demonstrou de urn modelo gramatical idealizado, nao sao ouvidos como
que a pronuncia,ao errada de palavras manifesta propriedades tais, mas, tambem em parte, porque 0 tata eexercido a respeito
semelhantes as caracteristicas da produ,ao verbal "correta"". do que poderia ser interpretado como incompetencia dos locu-
Isso nao prova que essas falhas nao sejam provocadas por esti- tores. 0 trabalho corretivo realizado por estes diz quase sempre
mulos inconscientes, mas sugere nao haver geralmente "inter- respeito mais as dificuldades de revezamento do que aos lap-
rup,ao" na monitora,ao reflexiva da produ,ao da fala que ne- sos de linguagem.
cessite for,osamente ser invocada para explicar os lapsos ver- Estas observa,oes dizem-nos muita coisa sobre a natureza
bais. Os fen6menos de pre-soniincias e persevera,oes, segundo da conversa cotidiana e confirmam-nos que as parapraxis ver-
se presume, tambem estao diretamente vinculados a monitora- bais nao podem ser interpretadas contra urna concep,ao ideali-
,ao reflexiva da fala. As palavras devem ser caracteristicamente zada de fala "correta", A fala dos locutores radiofOnicos difere
transferidas do cerebro para a articuIa,ao como agrupamentos do uso cotidiano da linguagem, na medida em que se aproxima
ordenados de modo sintagrruitico, pois caso contrario tais pertur- dessa concep,ao. A fala e as atividades dos locutores de radio e
ba,oes da fala nao ocorreriam. televisao, quando estao no ar, avizinham-se, de fato, de como a
Uma segunda e vasta categoria de falhas nao se refere a vida social hurnana seria se realmente fosse como os retratos
produ,ao verbal individual, mas ao revezamento dos interlocuto- que os cientistas sociais objetivistas fazem dela. A maior parte
res. Urn locutor pode come,ar a falar antes que 0 outro conclua do que e dito foi programado antes da transmissao ou da apre-
o que esta dizendo, "sobrepondo-se-Ihe" ou interrompendo-o senta,ao nO video, e s6 pode ser modificado marginalmente
diretamente; os dois participantes poderao come,ar a falar si- pelo agente que obedece ao script. 0 ator apresenta-se, neste
multaneamente; cada urn deles podera recuar ligeiramente em caso, meramente como urn "portador" de padr5es previamente
sua fala, produzindo urn hiato indesejavel no fluxo convencio- estabelecidos de organiza,ao social - ou, como diz Goffinan,
nal. Tal como no caso dos erros de verbaliza,ao individual, a urn "animador", uma "caixa de ressonancia da qual saem as
maloria de tais disjun,oes passa completamente despercebida falas"", A vasta maioria de situa,oes de fala (e de intera,ao ver-
por locutores envolvidos em conversa,ao ordinaria. Eles s6 sao bal) nao sao, simplesmente, desse tipo. 0 carMer "solto" ou
"ouvidos" quando, por exemplo, urn segmento de fala e regis- defeituoso da fala do dia-a-dia, ou do que se apresenta como tal
trado para que se Ihes possa deliberadamente prestar aten,ao. quando comparado com urn modelo idealizado, e realmente
Tambem nesse caso a conversa do dia-a-dia difere da fala ra- generico em seu carMer, na medida em que se insere na praxis
diof6nica, em que sobreposi,oes, duplos sentidos etc. sao mui- hurnana. Por outras palavras, 0 notavel nao e a falta de poli-
tos perceptiveis. Nas conversas, a sobreposi,ao ocorre com gran- mento tecnico na fala, mas 0 fato de as conversas e a (sempre
de freqiiencia, de modo que urn interlocutor esta come,ando a contingente) reprodu,ao da vida social nao terem absolutamen-
falar enquanto 0 outro esta terminando. Mas os participantes fil- te nenhuma simetria de forma, Na intera,ao do dia-a-dia, os
tram-nas para que as contribui,oes de cada urn para a conversa elementos normativos envolvidos na comunica,ao verbal como
sejam ouvidas como segmentos separados de discurso. a produ,ao de "boa fala" dificilmente constituirao alguma vez
Em terceiro lugar, a fala defeituosa que e reconhecida como o principal interesse instigador dos participantes. Pelo contra-
tal envolve usualmente procedimentos corretivos iniciados seja rio, a fala esta saturada com as solicita,oes e exigencias prati-
pelo locutor, seja pelos ouvintes. A corre,ao por outros parece cas da alua,ao rotineira da vida social.
 I
122 A CONSTITUI<;:AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 123

Aceitar isso significa remodelar a concep~ilo de Freud, o que e dito, A rotiniza~ilo, envolvendo 0 continuo e repetido
Segundo este, todo lapsus linguae tem uma origem motivada e "sulcar" de procedimentos familiares em circunstancias de subs-
poden;, em principio, ser explicado, se dispusermos de sufi- tancial seguran~a ontol6gica, e a principal condi~ilo da efetiva
ciente conhecimento da constitui~ilo psicol6gica do individuo monitora~ilo reflexiva pelos seres humanos de suas atividades.
em questilo, Discernimos claramente ai um quadro implicito de A ansiedade a respeito da forma real do discurso s6 sera inten-
fala bem ordenada, da qual os lapsos verbais levam 0 locutor a sificada quando 0 ator tiver interesse especifico em que aquilo
afastar-se. 0 ponto de vista que eu defendo inverte, com efeito, que tem a dizer seja "exatamente correto", lsso e 0 que os locuto-
essa concep9ao. A fala "bern ordenada", no contexte das con- res de radio e televisilo tem de fazer, Provavelmente e esse 0
versa~oes do dia-a-dia, pelo menos, e orientada para os envol- caso nurna declara~ilo de amor, diferentemente da suposi~ilo de
vimentos motivacionais gerais dos locutores no decorrer de Freud. Podemos facilmente compreender 0 exemplo de "Signo-
suas atividades pniticas. A "fala carreta", em cornum com mui- relli" e 0 esquecimento de nomes pr6prios geralmente como
tos outros aspectos de tais atividades, nile e em geral motivada um fenomeno motivado. Os nomes pr6prios tem urna signifi-
diretamente - a menos que 0 individuo seja urn locutor de radio ca~ilo especial que outras palavras nile possuem. Pronunciar
ou televisilo, Cumpre sublinhar, entre parenteses, que a pertur- erradamente 0 nome de alguem ou chamar alguem pelo nome
ba~ilo da fala pode ocasionalmente ser assim motivada. Em cir- errado causa urna ofensa pessoal, 0 que nile sucede no caso de
cunstilncias de luto, por exemplo, uma pessoa enlutada que outras extravagiincias de pronuncia, Assim, existe urna valori-
mantivesse padroes ordinarios de produ,ilo verbal poderia ser za,iio especial em mencionar nomes de forma correta, e isso
considerada urn cora~ilo empedemido e sem sentimentos. talvez signifique que recordar nomes incide mais imediata-
Quando existem san~oes sugerindo que as pessoas devem ma- mente sobre as fontes de ansiedade do que outros itens lingiiis-
nifestar agita~ilo emocional, as perturba~oes ou as altera,oes ticos. Conforme sublinhei, algo semelhante aplica-se tambem
na normalidade da fala podem ser uma forma de "revelar" tais ao encontro terapeutico.
estados 16 •
Se a maioria das formas particulares de uso da linguagem
Referencias
nile silo diretamente motivadas, entilo segue-se que a maioria
dos lapsos verbais nile podem ser atribuidos a motiva~ilo in- Consciencia, self e encontros sociais
consciente. Onde e que isso nos deixa, pois, a respeito da teoria
de Freud das parapraxis verbais? Eu faria a seguinte sugestilo: 1. Uma analise especialmente litil dessas dificuldades encontra-se
a interpreta~ilo de Freud s6 se aplica provavelmente em cir- em: Thalberg, Irving. "Freud's anatomies of the self'. In: Wolheim,
cunstancias algo diferentes daquelas que ele tinha em mente Richard. Freud, A Collection of Critical Essays. Nova York,
quando a formulou. Na opiniilo dele, os lapsos verbais tendem Doubleday, 1974. Uma versao revista desse ensaio foi publicada
a ocorrer sobretudo em situa~oes fortuitas ou rotineiras, quando em: Wolheim e Hopkins, James. Philosophical Essays on Freud.
nada de importante esta na dependencia do que e dito, Em tais Cambridge, Mass., Cambridge University Press, 1982.
2. Citado em Thalberg, "Freud's anatomies ofthe self", cit., p. 156.
ocasi5es, e muito provavel que ocarra, por assim dizer, uma
3. Freud, S. An Outiline ofPsychoanalysis. Londres, Hogarth, 1969,
"iITUp~ilo" do inconsciente, perturbando as falas produzidas por
pp.56-7.
urn locutor. Eu sustento que, nessas ocasioes - as quais consti- 4, Strawson, P. F. The Bounds ofSense. Londres, Methuen, 1966, pp.
tuem a maior parte da vic'la social-, as elementos inconscientes 162-70; Anscombe, G. E. M. "The first person". In: Guttenplan,
silo, na realidade, os menos propensos a influenciar diretamente Samuel. Mind and Language. Oxford, Blackwell, 1972; Mackie,
 124 A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE
I CONSCIENCIA. SELF E ENCONTROS SOCIAlS 125

J. L. "The Transcendental 'I'''. In: Van Straaten, Zak. Philosophi- 23. Erikson, Childhood and Society, cit., p. 251.
cal Subjects. Oxford, Clarendon Press, 1980. 24. Ibidem, p. 256.
5. Toulmin, Stephen. "The genealogy of 'consciousness'''. In: Se- 25. Wolf, Dennie. "Understanding others: a longitudinal case study of
cord, Paul F. Explaining Human Behaviour. Beverly Hills, Sage, the concept of independent agency". In: Fonnan, George E. Action
1982. pp. 57-8. and Thought. Nova York, Academic Press, 1982.
6. Ibidem, pp. 60-1. 26. Brazelton, T. B. et alii. "The origins of reciprocity". In: Lewis, M.
7. Ver: Bruner, 1. S. Beyond the Information Given. Nova York, e Rosenblum, L. The Infant's Effects on the Caregiver. Nova York,
Norton, 1973. Wiley, 1974.
8. Gibson, J. S. The Ecological Approach to Visual Perception. 27. Vigotski, L. S. Mind in Society. Cambridge, Harvard University
Boston, Houghton Mifflin, 1979. Press, 1978. pp. 20 ss.
9. Neisser, Ulric. Cognition and Reality. Sao Francisco, Freeman, 28. Erikson, Erik H. Identity, Youth and Crisis. Londres, Faber & Fa-
1976, p. 22. Ver tambem idem. Memory Observed. Sao Francisco, ber, 1968, cap. 5 [Edi<;ao brasileira: Identidade,juventude e crise.
Freeman, 1982; Shotter, John. "Duality of structure' and 'inten- Trad. de Alvaro Cabral, Zahar Editores, 1972.]; idem. Identity and
tionality' in an ecological psychology". Journalfor the Theory of the Life Cycle. Nova York, Intemational Universities Press, 1967.
Social Behaviour, vol. 13, 1983. 29. Erikson, Identity and the Life Cycle, cit., p. 19.
10. Neisser, Cognition and Reality, cit., p. 29. 30. Ver ibidem, cap. 3: "The problem ofego-identity".
11. Wertheimer, M. "Psychomotor coordination of auditory and vi-
31. lbidem,p. 102.
sual space at birth". Science, vol. 134, 1962.
32. Ver CPST, pp. 123-8.
12. Neisser, Cognition and Reality, cit., p. 72. 33. Bettelheim, Bruno. The Informed Heart. Glencoe, Free Press, 1960,
13. Cherry, E. C. "Some experiments on the recognition of speech, p. 14. a trabalho de Goffman sobre "institui,5es totais" coincide
with one and two ears". Journal of the Accoustical Society of em muitos pontos com a amilise apresentada por Bettelheim. Ver:
America, vol. 25,1953.
Goffman. Asylums. Harmondsworth, Penguin, 1961. [Edi<;ao bra-
14. Treisrnan, A. M. "Strategies and models of selective attention".
sileira: Manicomios, prisoes e conventos. Trad. de Dante Moreira
Psychological Review, vol. 76, 1969.
Leite. Editora Perspectiva, 1974.]
15. Deutsch, J. A. e Deutsch, D. "<Attention': some theoretical consi-
34. Bettelheim, The Informed Heart, cit., p. 132.
derations". Psychological Review, vol. 70, 1963.
16. Neisser, Cognition and Reality, cit., pp. 84-5. 35. Ibidem, p. 148.
17. CPST, pp. 120-3. 36. "Como os velhos prisioneiros tinham aceito, ou sido foryados a
18. Erikson, Erik H. Childhood and Society. Nova York, Norton,
aceitar uma dependencia infantil da SS, muitos deles pareciam
1963, pp. 15-16. [Edi,ao brasileira: Infdncia e sociedade. Trad. querer sentir que pelo menos algumas das pessoas que estavam
de Gildasio Amado. Zahar Editores, 1971.] aceitando como figuras onipotentes eramjustas e bondosas." (ibi-
19. Ibidem, p. 247. dem, p. 172).
20. Becker, Emest. The Birth and Death of Meaning. Nova York, 37. Ver os exemplos coligidos em: Sargant, William. Battlefor the
Free Press, 1962, p. 95. Mind. Londres, Pan, 1959.
21. Ver lambom: Erikson, Childhood and Society, cit., p. 249; Sullivan, 38. Merleau-Ponty, M. Phenomenology ofPerception. Londres, Rout-
Harry Stack. The Interpersonal Theory of Psychiatry. Londres, ledge, 1974. [Ediyao brasileira: Fenomenologia da percep9Q,o.
Tavistock, 1955, cap. 4. Nao aceito a assen;ao de Erikson de que Trad. de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Livraria Martins
esses fen6menos psico16gicos podem ser diretamente relaciona- Fontes Editora Ltda., I ~ edi<;ao, 3~ tiragem, 1999.]
dos com a forma de instituivoes sociais. 39. Ibidem, p. 101.
22. Piers G. e Singer, M. B. Shame and Guilt. Springfield, Addison, 40. Goldstein, L. Language and Language Disturbances. Nova York,
1963. Repito aqui algumas observayoes originalmente feitas em Grune & Stratton, 1948.
rela,ao it teoria do suicidio; cf. SSPT, p. 393, nota 32. 41. Merleau-Ponty, Phenomenology ofPerception, cit., p. 104.
 --l

126 A CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE CONSCIENCIA, SELF E ENCONTROS SOCIAlS 127

42. Ibidem, p. 109. 57. Sartre, Jean-Paul. Critique ofDialectical Reason. Londres, New
43. Goffman, Erving. Behaviour in Public Places. Nova York, Free Left Books, p. 259.
Press, 1963, p. 17; idem. Interaction Ritual. Londres, Allen Lane, 58. Goffman,Interaction Ritual, cit., pp. 141 ss.
1972,p.1. 59. Habennas, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt,
44. Cf. Pool, Ithie1 De Sola. The Social Impact of the Telephone. Suhrkamp, 1981, voU, se<;ao 3.
Cambridge, Mass., MIT Press, 1981. [Edi<;ao brasileira: Os efei- 60. Goffinan, Behaviour in Public Places, cit., p. 25.
tos sociais do telefone. Trad. de Hamar Faul. In: 0 telefone: 61. Cf. a discussao geral de polidez em: Brown, Penelope e Levinson,
Stephen. "Universals in language use: politeness phenomena". In:
ontem, hoje e amanhd. Ed. de Telecomunica90es Brasileiras S.A.
- Te1ebras, 1979.] Goody, Esther N. Questions and Politeness. Cambridge, Mass.,
Cambridge University Press, 1978.
45. Parece ser essa a n09ao predominante, por exemplo, na maioria
62. Goffinan, Behaviour in Public Places, cit., p. 35. Cf. Blacking,
das contribui90es para: Ditton, Jason. The View from Goffman.
John. The Anthropology of the Body. Londres, Academic Press,
Londres, Macmillan, 1980. Vertambem: Macintyre, A1asdair. After
1978.
Virtue. Londres, Duckworth, 1981, pp. 108-9. Cf. Harre, R. e Se-
63. "Considero privadas diversas sensa90es fisicas. Se queimei 0 bra-
cord, P. F. The Explanation ofSocial Behaviour. Oxford, Blackwell,
90, considero pessoal a dor e publica a visao da queimadura. Nem
1972, cap. 10.
sempre e assim. Ha quem julgue poder realmente sentir a dor
46, Gou1dner, Alvin W. The Coming Crisis of Western Sociology. alheia ou pensar diretamente os pensamentos alheios, e creia que
Londres, Heinemann, 1971, pp. 379-81.
outras pessoas possam senti! 0 que ela sente fisicamente, ou pensar
47. CPST,pp. 83-4passim.
seus pensamentos." Laing, R. D. Selfand Others. Londres, Penguin,
48. Goffinan, Behaviour in Public Places, cit., 18. 1971, p. 34. [Edi<;ao brasi1eira: 0 eu e os outros. 4 '. ed. Trad. de
49, Goffinan, Erving. Frame Analysis. Nova York, Harper, 1974, p. 252. Aurea Weissenberg. Editora Vozes, 1978.]
50. Caillois, Roger. Man, Play and Games. Londres, Thames & Hud- 64. Garfinkel, Harold. "A conception of, and experiments with, 'trust'
son, 1962; ver tambem a famosa obra de: Huizinga, Jan. Homo as a condition of stable concerted actions". In: Harvey, O. 1. Mo-
Ludens. Londres, Routledge, 1952. tivation and Social Interaction. Nova York, Ronald Press, 1963.
51. Goffman, Frame Analysis, cit., p. 560. Nao discutirei aqui as 65. Goffman, Erving. Forms of Talk. Oxford, Blackwell, 1981, pp.
questoes epistemo16gicas mencionadas, mas dificilmente resolvi- 101 ss.
das nesse livre de Goffrnan. Elas tern muito em comum com as 66. Ibidem, p. 103.
pondera90es de Schutz sobre a natureza das "realidades multi- 67. Ibidem, pp. 70-1.
plas" e com muitas outras correntes da filosofia modema a respei- 68. Bhaskar, Roy. The Possibility of Naturalism. Brighton, Harves-
to das implica90es aparentemente relativistas da media9ao de ter, 1979,pp. 51-2.
estruturas de significado. Ver NRSM, cap. 4. 69. Para urn exemplo recente - entre muitissimos outros - ver: Biddle,
52. Goffinan, Behaviour in Public Places, cit., pp. 156 ss. Bruce 1. Role Theory. Nova York, Academic Press, 1979.
53. Ibidem. 70. CPST, p. 117.
54. Esse tema, e claro, tern side rnuito explorado. A obra mais conhe- 71. Ibidem.
cida e a de Hall, Edward T. The Silent Language. Nova York, 72. Urn ponto frequentemente sublinhado na controversia sobre teo-
Doubleday, 1959; ver tambem, do mesmo autor: The Hidden Di- ria do papel na Alemanha, duas decadas atras. Uma contribui93.0
mension. Londres, Bodley Head, 1966. que conserva seu interesse e: Tenbriik, F. H. "Zur deutschen Re-
55. Sacks, Harvey e Schegloff, Emmanuel A. "A simplest systema- zeption der Rollenana1yse". Kainer Zeitschriftfur Soziologie, vol. 3,
tics for the organization of tum-talking in conversation". Langua- 1962.
ge, vol. 50, 1974. 73. Cf. Thrift, Nigel. "Flies and germs: a geography of knowledge".
56. Cf. Psathas, George. Everyday Language: Studies in Ethnometho- In: Gregory, Derek e Urry, John. Social Relations and Spatial
dology. Nova York, Irvington, 1979. Structures. Londres, Macmillan, 1984.
 128 A CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE Capitulo III

74. Cf. Labov, William. "Rules for ritual insults". In: Sudnow, David. Tempo, espafo e regionalizaftio
Studies in Social Interaction. Nova York, Free Press, 1972.
75. Wieder, D. Lawrence. "Telling the code". In: Turner, Roy. Ethno-
methodology. Hannondsworth, Penguim, 1974.
76. Ibidem, p. 149.

Notas eri/leas: Freud sabre lapsus linguae

I. Freud, S. Introductory Lectures on Psychoanalysis. Harrnonds-

worth, Penguin, 1974, 1975 p. 51.
2. Meringer, R. e Mayer, C. Versprechen und Ver/esen. Vierra, 1895.
Tempo-geografia
3. Freud, S. The Psychopathology ofEveryday Life. Hannondsworth,
Penguin, 1975, p. 39.
4. Ibidem, p. 40 [po 15]. No capitulo precedente, concentrei-me na especifica9ao
5. Originahnente publicado no artigo de Freud: "The physical mecha- de certas qualidades psicologicas do agente e na analise da
nism offorgetfulness" (1890); vera Standard Edition, vol. 3. intera9ao em situa90es de co-presen9a. 0 posicionamento dos
6. Freud, S. The Psychopathology ofEveryday Life, cit., p. 44 [pp. atores em contextos de intera9ao e 0 entrela9amento desses
16-7]. contextos sao elementares para tais propositos. Mas, para mos-
7. Ibidem, p. 135 [po 107]. trar como essas materias se relacionam com aspectos mais
8. Boileau, Artpohique, apud ibidem, p. 148. amplos de sistemas sociais, e necessario considerar como a
9. Freud, Introductory Lectures on Psychoanalysis, cit., p. 71.
teoria social deve enfrentar - de urn modo filosOfico mais con-
10. Goffinan, Erving. "Radio talk: a study of the ways of our errors".
In: Forms ofTalk. Oxford, Blackwell, 1981. creto do que abstrato - a "situabilidade" da intera9ao no tempo
II. Ibidem, p. 242. enoespa90.
12. Foram selecionados, sem duvida, por essa razao. A maior parte do A maioria dos analistas sociais trata 0 tempo e 0 espa90
material de Goffman provem de coler;5es de "mancadas" organi- como meros ambientes de a9ao e aceita irrefletidamente a con-
zadas por Kennit Schafer, como Prize Bloopers (Greenwich, cep9ao de tempo que, enquanto tempo cronometravel, e carac-
Fawcett, 1965). teristico da modema cultura ocidental. Com a exce9ao dos re-
13. Boomer, Donald S. e Laver, John D. M. "Slips of the tongue". centes trabalhos de geografos - sobre os quais voltaremos a
British Journal ofDisorders ofCommunication, vol. 3, 1968, p. 2. falar daqui a pouco - os cientistas sociais nao foram capazes de
14. Fromkin, Victoria A. "'The non-anomalous nature of anomalous
construir seu pensamento em tomo dos modos como os siste-
utterances". Language, vol. 47,1971.
15. Goffinan, Forms ofTalk, cit., p. 226. mas sociais sao constituidos atraves do espa90-tempo. Confor-
16. Conforme indicado por Goffman, ibidem, pp. 223 ss. me indiquei antes, a investiga9ao dessa questao e urna impor-
tante tarefa imposta pelo "problema de ordem", tal como foi
conceituado na teoria da estrutura~ao. Nao eurn tipo Oil "area"
especifica da ciencia social que pode ser explorada ou descar-
tada avontade. Trata-se da propria essencia da teoria social, tal
como interpretada a partir da n09ao de estrutura9ao, e tambem
deve ser vista, por conseguinte, como de importfulcia muito con-
 130 A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE TEMPO. ESPAr;:O E REGIONALIZAr;:AO 131
siderivel para a conduta da pesquisa empirica nas ciencias 2) A finitude da dura,iio da vida do agente humano como um
sociais.
"ser para a morte". Esse elemento essencial da condi,iio
Felizmente, niio precisamos abordar novamente essas ques- humana da origem a certos parametros demogrMicos inevi-
tOes. Nestes ultimos anos, ocorreu uma notavel convergencia taveis de intera,iio no tempo e no espa,o. Por essa raziio,
entre a geografia e as outras ciencias sociais, em resultado do
seniio por outra, 0 tempo e urn recurso escasso para 0 ator
que os geografos, apoiando-se nas vanas tradi,oes estabelecidas
individual.
da teoria social, deram contribui,oes significativas para 0 pen-
3) A capacidade limitada dos seres humanos de participar em
samento social. A bern da verdade, cumpre dizer que a maior
mais de uma tarefa simultaneamente, conjugada ao fato de
parte de tais escritos, embora contenham ideias de aplica,iio
geral, permanece desconhecida da maioria dos que trabalham que toda tarefa possui uma dura,iio. A altemancia exempli-
nas restantes ciencias sociais. Algumas dessas contribui,oes fica as implica,oes desse tipo de limita,iio.
encontram-se na obra de Hagerstrand, mas niio esmo confinadas, 4) 0 fato de que 0 !I).ovimento no espa,o e tamb"m movimento
em absoluto, a seus escritos e aos de seus colegas imediatos'* no tempo.
Em analises anteriores da teoria da estrutura,iio, mencionei 0 5) A limitada "capacidade de acondicionamento" do tempo-es-
significado dessa abordagem sem a confrontar diretamente ou pa,o. Dois corpos humanos nunca podem ocupar 0 mesmo
tentar sublinhar suas limita,oes. Mas e 0 que farei agora nesta espa,o ao mesmo tempo; os objetos fisicos tern essa mesma
exposi,iio ampliada. caracteristica. Portanto, qualquer zona de tempo-espa,o pode
o tempo-geografia, tal como formulado por Hagerstrand, ser analisada em fun,iio de restri,oes impostas aos dois ti-
adota como ponto de partida 0 proprio fen6meno que tenho pos de objeto que podem ser acomodados dentro dela.
enfatizado bastante: 0 carater rotinizado da vida cotidiana. Por
sua vez, isso esm ligado a caracteristicas do corpo humano, Essas cinco facetas da "realidade tempo-geografica", se-
seus meios de mobilidade e comunica,iio, e sua trajetoria atra- gundo Hagerstrand, expressam os eixos materiais da existencia
Yes do "cicio vital" - e, portanto, ao ser humane como "projeto humana e estiio subjacentes em todos os contextos de associa-
biogrMico". Conforme mencionei antes, 0 estudo de Hager- ,iio em condi,oes de co-presen,a'. Examinados como recursos
strand baseia-se principalmente na identifica,iio das fontes de (e assim, diria eu, implicados na gera,iio e na distribui,iio de
cerceamento da atividade humana produzido pela natureza do poder), tais fatores condicionam as redes de intera,iio formadas
corpo e pelos contextos fisicos em que a atividade ocorre. Esse pelas trajetorias da vida diaria, semanal, mensal e total dos in-
cerceamento fornece as "fronteiras" globais que limitam 0 dividuos em suas intera,oes reciprocas. As trajetorias de agen-
comportamento no tempo-espa,o. Hagerstrand formulou-as de tes, de acordo com Hagerstrand, "tern de se acomodar sob as
vanas maneiras diferentes, mas sua enfase caracteristica recai pressoes e as oportunidades que decorrem de sua existencia
sobre os seguintes fatores 2:
comum no espa,o e tempo terrestre"4.
I) A indivisibilidade do corpo humane e de outras entidades vi- A concep,iio de tempo-geografia generalizada de Hager-
vas e inorganicas nos milieux da existencia humana. A cor- strand originou-se numa serie de estudos de lange prazo de urn
poralidade impoe limita,oes estritas as capacidades de mo- distrito na Suecia. A area em questiio dispunha de estatisticas
vimento e de percep,iio do agente humano. demogrMicas abrangentes, habilitando-o a localizar todos os
individuos que ali tinham vivido e os que tinham entrado e
saido da area durante um periodo de cerca de cern anos. Orde-
* As referencias podem ser encontradas a pp. 187-90. nando esses dados como biografias, Hagerstrand procurou ana-
 132 A CONSTITUlr:;:AO DA SOCIEDADE

lisa-los como se compusessem trajet6rias de vida no tempo-

1
1 TEMPO, ESPAr:;:O E REGIONALlZAr:;:AO

urn individuo especifico sao registradas, e facil construir uma

133

espa 90, que podiam ser mapeadas usando-se uma forma parti- caracteriza9ao grosso modo delas, na medida em que elas com-
cular de nota9ao. Os padroes tipicos de movimento de indivi- preendem trajet6rias no tempo e no espa90. Como retrato de
duos, por outras palavras, podem ser representados como a uma trajet6ria de vida, isso envolveria padroes generalizados de
repeti9ao de atividades de rotina atraves dos dias ou de perio- movimento espa90-temporal dentro do "cicio vital". Uma pes-
dos mais longos de tempo-espa90. Os agentes movimentam-se soa pode viver na casa de seus pais, por exemplo, ate estabelecer
em contextos fisicos cujas propriedades interagem com suas uma nova residencia ao casar. Isso pode estar associado com
capacidades, dadas as restri90es acima apontadas, ao mesmo uma mudan9a de emprego, de tal modo que 0 lar e 0 local de
tempo que aqueles interagem uns com os outros. As intera90es trabalho, como "esta90es" ao longo da trajet6ria diaria, sofrem
de individuos movendo-se no tempo-espa90 compoem "feixes" uma altera9ao. A mobilidade dentro do mercado habitacional,
(encontros ou ocasioes sociais, na terminologia de Goffman) a separa9ao marital ou a progressao na carreira, entre outros
que se re(mem em "esta90es" ou localiza90es espa90-temporais inlimeros fatores possiveis, podem influenciar as trajet6rias de
definidas, dentro de regioes circunscritas (por exemplo, casas, vida tipicas.
mas, cidades, estados, sendo 0 limite externo do espa90 terres- Os encontros em que os individuos participam nas trajet6-
tre a Terra como um todo - exceto para 0 esporadico viajante rias de vida dianas estao sujeitos a restri90es derivadas da lista
espacial na era atual de alta tecnologia). Os dinamicos "mapas acima indicada. Hiigerstrand reconhece, e claro, que os agentes
espa90-temporais" de Hiigerstrand sao de interesse definitivo e nao sao meros corpos dotados de mobilidade, mas seres inten-
fornecem uma forma grMica de releviincia para situa90es mui- cionais com prop6sitos ou 0 que ele chama de "projetos". Os
to alem daquelas para que foram usadas ate agora. projetos que os individuos procuram realizar, para que sejam
As Figuras Sa e Sb mostram isso em sua forma mais sim- concretizados, tern de utilizar os recursos inerentemente limi-
ples. Dois individuos, digamos, vivem urn quilometro afasta- tados de tempo e espa90 a fim de superar as restri90es que
dos urn do outro num bairro; seus percursos esp a 90-t emporais defrontam. As "restri90es de capacidade" sao as do tipo acima
ao longo do dia poem-nos em contato num encontro de curta indicado, Algumas afetam primordialmente a distribui9ao de
dura9ao, digamos, num restaurante ou cafe, ap6s 0 que as res- tempo: por exemplo, a necessidade de dormir ou de comer a in-
pectivas atividades divergem de novo. Se as atividades dianas de tervalos regulares assegura certos limites para a estrutura9ao
das atividades cotidianas, As "restri90eS de acoplamento" refe-
rem-se aquelas que condicionam as atividades empreendidas
.",----------"/i com outros. 0 volume de tempo-espa90 disponivel para um in-
" ... I ,," I
... " , /' I
dividuo num dia e urn prisma delimitando a prossecu9ao de
':.._--:--- - - - - -(' I
, , I projetos. Os prismas de conduta diana nao sao apenas fronteiras
I I I
i I r
geograficas ou fisicas, mas tern "paredes espa90-temporais por
todos os lados". Suas dimensoes, e claro, tambem sao fortemen-
te influenciadas peio grau de convergencia tempo-espa90 nos
espayo
meios de comunica<;ao e transforma<;ao acessiveis aos agentes.
Co-Joca<;.9.0 no tempo-espa«d Tempo-espayo tridimensional A n09ao de convergencia de tempo-espa90 foi introduzida
por outro ge6grafo, Janelle, para referir-se a "retra9ao" de distiin-
Figura Sa Figura 5b cia em fun9ao do tempo necessano para mover-se entre dife-
 134 A CONSTlTUJ(;JO DA SOCIEDADE TEMPO. ESPAC;O E REGJONALIZAC;JO 135
r
rentes localiza,oes·. Assim, 0 tempo preciso para viajar da Cos- tern de ir apanhar seu filho no meio da tarde, antes de a creche
ta Leste para a Costa Oeste nos Estados Unidos, em termos de fechar, e esta por isso efetivamente restringida a urn emprego
meios existentes, pode ser calculado da seguinte maneira. Ape, de meio periodo. Suponhamos que ela tenha dois empregos
a viagem levaria mais de dais anos; a cavalo, oito meses; em para escolher, urn mais bern pago e oferecendo a oportunidade
diligencia ou carro,a, quatro meses; por estrada de ferro, em de usar urn carro (T z) que Ihe possibilitara levar 0 filho a urna
1910, quatro dias; pelas linhas aereas regulares de hoje, cinco creche (C z) mais distante de casa. Ao optar pelo emprego mais
horas; pelo mais veloz transporte a jato, pouco mais de duas bern remunerado, ela descobre que 0 tempo consurnido condu-
horas. A convergencia de tempo-espa,o pode ser plotada para zindo 0 carro ate II creche, indo e vindo do trabalho e depois
descrever os limites exteriores de prismas diarios. Entretanto, e voltando para casa (L), e superior ao que necessita para realizar
obvio que existem importantes discrepancias entre e dentro de outras tarefas imprescindiveis, como fazer compras, cozinhar e
comunidades sociais em fun,ao das restri,oes II mobilidade e co- cuidar da casa. Portanto, ela pode sentir-se "for,ada" a deixar 0
munica,ao que afetam diferentes grupos e individuos. A seria- emprego, aceitando urna alternativa menos bern paga, de meio
lidade e 0 revezamento esmo incorporados na maioria <las formas periodo, mas muito perto de casa (T ,).
de transporte. Assim, por exemplo, urn trem expresso pode ligar
duas cidades num tempo de tres horas. Mas a disponibilidade
de lugares pode ser limitada, mesmo para aqueles que podem e tempo

n~
estao dispostos a pagar. Alem disso, se urna pessoa perde urn
trem, e possivel que por varias horas so haja trens locais ate
passar 0 proximo expresso, dando II convergencia de tempo-
espa,o urn carater "palpitante"'. Finalmente, para os que vivem
na maioria das sociedades, e para a maior parte dos dias na vida '... --....
de urn individuo, a mobilidade tern lugar dentro de prismas de T, Cj L C2 T2 espayo
tempo-espa,o relativamente restritos.
Palm e Pred fornecem urn exemplo, entre muitos que exis- Figura 6
tern na literatura, de aplica,ao das ideias de Hiigerstrand: ao
prisma diario de "Jane", urna mae solteira". A Figura 6 oferece
urna representa,ao do prisma das atividades cotidianas de Jane. Hiigerstrand realizou urn esfor,o especial no sentido de
Esta nao pode sair de casa para 0 trabalho antes de urna certa empregar 0 tempo-geografia para apreender a serialidade das
hora do dia, porque seu filho depende dela para a alimenta,ao trajetorias de vida ou "biografias" dos individuos. Uma biogra-
e outras necessidades, e porque a linica creche acessivel ainda fia, diz ele, e composta de "experiencias e eventos mentais in-
nao esm aberta. Nao tendo carro, por conseguinte, ela enfrenta temos", "relacionados com a intera9ao entre corpo e fenome-
severas limita,oes de capacidade e de combina,ao para atingir nos ambientais"'. A conduta da vida cotidiana de urn individuo
as duas "esta,oes" da creche (C I ) e de seu local de trabalho acarreta que ele se associe sucessivamente com conjuntos de
(T I)' Sua escolha de empregos e condicionada por essas restri,oes entidades procedentes dos cenarios de intera,ao. Essas entida-
e, reciprocamente, 0 fato de ela ter poucas chances de adquirir des sao: outros agentes, objetos indivisiveis (qualidades mate-
ou manter urna ocupa,ao bern paga refor,a as outras restri,oes riais solidas de milieu de a,ao), materiais divisiveis (ar, agua,
que defronta no percurso de seu caminho ao longo do dia. Ela minerais, produtos alimentares) e dominios. Os dominios refe-
 136 A CONSTITUlr;:A-O DA SOClEDADE 137
TEMPO, ESPAr;:O E REGIONALlZAr;:AO

rem-se ao que eu prefiro chamar de regionaliza9ao do tempo- pessoa comum" sobre a organiza9ao total de sistemas sociais",
esp a 90: 0 movimento de trajet6rias de vida atraves de cenanos Mas 0 tempo-geografia tern algumas deficienci.s muito niti-
de intera9ao que tern vanas formas de demarca9ao espacial. das, algumas das quais, assim espero, foram postas em eviden-
Mas as propriedades dos dominios podem ser submetidas a es- cia no que foi ate agora discutido neste livro.
tudo direto em termos de limita90es de combina9ao que urna As principais reservas que se deve ter acerca do tempo-
dada distribui9ao de "esta90es" e "feixes de atividade" cria para geografia sao as seguintes. Em primeiro lugar, ele opera com
a popula9ao total, cujas atividades estao concentradas nesses urna concep9ao simplista e deficiente do agente hurnano. Ao
dominios. Assim, a natureza dos padroes sociais em intera9ao sublinhar a corporalidade do ser hurnano em contextos de tem-
dentro dos dominios de tempo-espa90 e limitada pela organiza- po-espa90 estruturados, as ideias de Hiigerstrand condizem es-
9aO global das limita90es de capacidade e combina9ao. Exis- treitamente com as que procurei desenvolver antes. Mas ele
tern limita90es "ecoI6gicas" que, como Carlstein tentou mos- tende a tratar os "individuos" como constituidos independente-
trar em detalhe, derivam de tres modos de "acondicionamento": mente dos cenanos sociais em que passam suas vidas cotidianas.
Os agentes sao considerados seres intencionais, no sentido de
0 acondicionamento de materiais, artefatos, organismos e po-
1)
que suas atividades sao guiadas pelos "projetos" que se esfor-
pula~6es humanas em assentamentos espar;o-temporais;
9am por realizar. Mas a natureza e origem dos projetos fica por
2) 0 acondicionamento de atividades consumidoras de tempo
em escalas de tempo da popula<;3.o; explicar. Em segundo lugar, as analises de Hiigerstrand ten-
3) 0 acondicionamento de feixes de varios tamanhos, quantida- dem, portanto, a recapitular 0 dualismo da a9ao e da estrutura,
des e dura96es no sistema de popula93.0, ista e, fonnar;3.o de embora de forma bastante original, devido a sua preocupa9ao
grupos devido as limita<;oes aindivisibilidade e continuidade primacial com 0 tempo e 0 espayo. "Esta90es", "dominios" etc.
dos individuos. 1O sao tidos como dados, como a resultado de processos nao-in-
terpretados de forma9ao e mudan9a institucional. Nao causa
estranheza que, nesse tipo de ponto de vista, seja dada pouca en-
Comentarios criticos fase ao carater essencialmente transformador de toda a9ao hurna-
na, mesmo em suas formas mais completamente fotinizadas.
o interesse do tempo-geografia para a teoria da estrutura- Em terceiro lugar, nao se justifica ficar exclusivamente con-
9a O e evidente, por certo". 0 tempo-geografia diz respeito as centrado nas propriedades restritivas do corpo, em seu movimen-
restri90es que dao forma as rotinas da vida cotidiana e compar- to atraves do tempo-espa90. Como eu disse, todos os tipos de
tilha com a teoria da estrutura9ao uma enfase sobre a impor- restri9ao constituem tamb"m tipos de oportunidade, meios de
tancia do cariter pritico das atividades dianas, em circunstan- possibilitar a a9ao, 0 modo especifico pelo qual Hiigerstrand
cias de co-presen9a, para a constitui9ao da conduta social. se inclina a conceituar "restri9ao" denuncia, alem disso, a exis-
Estamos aptos a come9ar dissecando a estrutura9ao de tempo- tencia de urn certo elemento de dependencia cultural em seus
esp a 90 dos cenanos de intera9ao que, por mais importantes pontos de vista. Pois as limita90es de capacidade, de conjuga9ao
que sejam os escritos de Goffinan, tendem a apresentar-se nes- etc. sao tipicamente discutidas por ele em termos de seu fun-
ses escritos como milieux dados da vida social. A concentra9ao cionamento como recursos escassos. Nao e dificil ver aqui,
de Hiigerstrand sobre as priticas sociais cotidianas e muito urna vez mais, urna possivelliga9ao com urna versao do mate-
pronunciada e clara; ele deseja USar 0 tempo-geografia, insiste rialismo hist6rico. Ha mais do que urna sugestiio, nos escritos
em afirmar, para compreender "0 impacto do dia normal da de Hiigerstrand, da n09ao de que a .loca9ao de recursos escas-
 138
, com=,<:,o 0' ='~D'
sos do eorpo e seus meios tern urn efeito determinante sobre a
I '~ro. '~'<;O "'",0",=<:'0

mente depende dos fenomenos especialmente destacados por

139

organiza9ao de institui90es sociais em todos os tipos de socie- Hiigerstrand: 0 corpo, seus meios de mobilidade e comunica9ao,
dade. Em minha opiniao, isso s6 e urna proposi9ao viavel no em rela9ao as propriedades fisicas do mundo cireundante. Os
caso de sociedades contemporaneas, nas quais se estimula e va- locais asseguram boa parte da "fixidez" subjacente as institui-
loriza 0 uso "eficiente" de recursos". Finalmente, 0 tempo-geo- 90es, embora nao exista urn sentido claro no qual eles "deter-
grafia envolve apenas urna teoria do poder debilmente desen- minem" essa "fixidez". E usualmente possivel designar locais
volvida. Hiigerstrand fala de "limita90es de autoridade", que em fun9ao de suas propriedades fisieas, seja como caracteristi-
associa as de capacidade e eombina9ao. Mas elas sao formula-
cas do mundo material ou, mais comumente, como combina-
das em termos vagos e invocarn urna concep9ao de soma-zero
90es destas com artefatos humanos. Mas e urn erro supor que
de poder como fonte de limita90es a a9ao. Por outro lado, se 0
os locais podem ser descritos exclusivamente nesses termos - a
poder e concebido como generativo, as "limita90es" de que fala
mesma forma de erro cometido pelo behaviorismo a respeito
Hiigerstrand sao todas modalidades para engendrar e sustentar
as estruturas de domina9ao. da descri9ao da a9ao humana. Uma "casa" e apreendida como
Para desenvolver tais ideias mais adequadamente em rela-
tal somente se 0 observador reconhecer que e urn Hdomicilio"
com urna serie de outras propriedades especificadas pelos modos
9ao a considera90es exploradas nos capitulos anteriores deste
livro, teremos de atentar de novo para a n09ao de "Iugar", tal de sua utiliza9ao na atividade hurnana.
como e usada comumente pelos ge6grafos. 0 tempo-geografia Os locais podem variar desde urn quarto nurna casa, a es-
de Hiigerstrand sugere urna critiea muito efetiva de "Iugar", no quina de urna rna, 0 pavimento de urna fabrica, aldeias e cida-
que se refere a demonstra9ao da importiincia, ao estudar-se a des, ate as areas territorialmente demarcadas e ocupadas por
conduta social hurnana, da analise da organiza9ao do tempo- na90es-Estados. Mas eles sao, tipicamente, regionalizados em
esp a90 . Mas ele se ocupa muito mais com a integra9ao da tem- seu interior, e as regi5es sao de importancia crucial na consti-
poralidade na teoria social; nao submete as n090es de lugar ou tui9aO de contextos de intera9ao. Permitam-me desenvolver urn
localiza9ao a urn rigoroso exame conceptual e usa esses termos pouco mais a n09ao de contexto. Uma das razoes para 0 usa do
de modo relativarnente superficial. 0 termo "Iugar" nao pode ser termo "local" em vez de "Iugar" esta em que as propriedades
usado em teoria social simplesmente para designar urn "ponto dos cenarios sao empregadas de modo cronico por agentes na
no espa90", como tarnpouco podemos falar de pontos no tem- constitui9ao de encontros atraves do espa90 e do tempo. Urn
po como urna sucessao de "agoras". 0 que isso significa e que elemento 6bvio disso e 0 aspecto fisico do que Hagerstrand
o conceito de presen9a - ou, melhor, de mutualidade de presen- designa por "esta90es" - isto e, "lugares ou pontos de parada",
9a e ausencia - tern de ser explicado em termos tanto de sua es- nos quais a mobilidade fisica das trajet6rias dos agentes e sus-
pacialidade quanta de sua temporalidade. Ao desenvolver a teo- pensa ou reduzida por toda a dura9ao de encontros ou ocasioes
ria da estrutura9ao, apresentei duas n090es que se revestem de sociais - enquanto locais em que se cia a interse9ao de atividades
algurna importancia aqui: refiro-me aos conceitos de local e de de rotina de diferentes individuos. Mas as caracteristicas dos
acessibilidade da presen~a envolvidos nas rela90es entre inte- cenarios tambem sao usadas, rotineiramente, para constituir 0
gra9ao social e integra9ao sistemica14. conteudo significativo da intera9ao: a demonstra9ao das mUlti-
Os locais referem-se ao usa de espa90 a fim de fomecer os plas maneiras como isso ocorre situa-se entre as mais impor-
cenarios da interar;ao; estes, por sua vez, sao essenciais para tantes contribui90es de Garfinkel e de Goffman. Assim, 0 con-
especificar sua contextualidade. A constitui9ao de locais certa- texto liga os componentes mais intimos e detalhados da intera-
 -,.

140 A CONSTITUlI:;AO DA SOCIEDADE

,ao its propriedades muito mais amplas da institucionaliza,ao

r "WO, ,,,'CO "romN,=a,
90S de emergencia incessantemente disponiveis, como guinchos
141

da vida social. de autom6veis, chaveiros, juizes de turno para arbitrar fian'1as,

linhas diretas para assistencia a drogados, envenenados e suici-
das. Embora diferentes individuos participem nesses eventos em
Modos de regionaliza,30 turnos, as organiza~5es envolvidas estao continuamente ativas. 15

A "regionaliza,ao" deve ser entendida nao meramente co- o estudo de Zerubavel da organiza,ao de tempo de urn
mo localiza,ao no espa,o, mas como referente ao zoneamento hospital moderno, onde 0 zoneamento e rigorosamente contro-
do tempo-espa,o em rela,ao its pritticas sociais rotinizadas. As- lado, e pertinente neste ponto. A maioria dos servi,os de assis-
sim, uma casa particular e urn local que constitui uma "esta- t':ncia medica no hospital que ele estudou e executada por pes-
,ao" para urn vasto conjunto de intera,aes no decorrer de urn soal de enferrnagem em regime rotativo. A maioria dos enfer-
dia tlpico. Nas sociedades contemponmeas, as casas estao re- meiros trabalha por periodos fixos em alas diferentes, percor-
gionalizadas em andares, corredores e camodos (salas e quar- rendo sucessivamente os diversos setores hospitalares, e sendo
tos). Mas os varios camodos da casa estao zoneados de modo tambem escalados para trabalhar em turnos diurnos e noturnos
diferente no tempo e no espa,o. Os camodos do andar terreo alternados. 0 cicio de movimento entre enferrnarias coincide
sao caracteristicamente mais usados nas horas do periodo diur- com 0 cicio de trabalho entre dia e noite, de modo que quando
no, ao passo que os quartos de dormir sao para onde os indivi- alguem muda de plantao, muda tambem para outro setor. A
duos se "retiram" anoite. A divisao entre dia e noite, em todas programa,ao dessas atividades e complexa e detalhada. Enquan-
as sociedades, costumava ser talvez a mais fundamental de- to 0 trabalho do pessoal de enfermagem e regulado em perio-
marca,ao de zonas entre a intensidade da vida social e sua des- dos padronizados de quatro semanas, 0 rodizio de internos e
contra,ao - ordenada tambem, obviamente, pela necessidade residentes e variavel. Os rodlzios das enferrneiras come,am
do organismo hurnano de periodos regulares de sono. 0 perio- sempre no mesmo dia da semana, e como sao de 28 dias, nao
do noturno era uma "fronteira" de atividade social tao demar- coincidem com meses do calenditrio. As atividades das equipes
cada quanta qualquer fronteira espacial terit alguma vez sido. de auxiliares, por outro lado, sao organizadas em fun,ao dos
Continua sendo, por assim dizer, urna fronteira que s6 estit meses do calendario e, portanto, principiam em diferentes dias
esparsamente estabelecida. Mas a inven,ao de modos podero- dasemana.
sos e regularizados de ilumina,ao artificial ampliou notavel-
As zonas semanais e diarias tambem sao meticulosamente
colocadas em categorias. Muitas rotinas ocorrem a intervalos
mente as potencialidades de cenarios de intera,ao durante 0 pe-
riodo noturno. Como assinalou urn observador: precisos de sete dias, especialmente as que envolvem pessoal
de enferrnagem. As "folgas" das enfermeiras tambem sao cal-
A ultima grande fronteira da imigracao humana esta ocor- culadas contra urna tabela semana!. Elas podem ser distribui-
renda no tempo: uma ampliacao da atividade vigil do come90 ao das em varios segmentos tornados separadamente, mas cada
fim das 24 horas do dia. Ha mais trabalho fabril com multiplos um destes tern de ser urn multiplo de sete dias, come,ando nurn
turnos, mais cobertura policial, mais usa do telefone a qualquer domingo e terrninando nurn sabado, a fim de se coordenar com
hora do dia ou da noite. Ha mais hospitals, farrnacias, voas de a rotatividade das atividades de trabalho. Entretanto, os "dias
aviao, moteis, restaurantes "abertos 24 horas", pastas de gasoli- da semana" naD sao identicos aos dias do "fim de semana" por-
na, ofieinas mecanicas, servicos de locacao de autom6veis, boli- que, embora funcionando numa base continua, muitos tipos de
ches e emissoras de radio em atividade permanente. Hi mais servi- servi,o sao reduzidos no hospital durante 0 final da semana.
 '\

142 A CONSTITUJ(;AO DA SOCIEDADE

TEMPO. ESPAr;O E REGIONALIZAr;AO 143
Como os laboratorios estao fechados, por exemplo, 0 pessoal
indicadores podem permitir que regiiies adjacentes sejam per-
do hospital sabe que nao pode obter alguns tipos de analises.
meadas por urn maior ou menor nfunero de caracteristicas de
Procura-se admitir 0 menor nfunero possivel de pacientes e
"presen,a". Como foi mencionado, em reuniiies sociais a regio-
evita-se iniciar novos programas de tratamento para os intema-
naliza,ao de encontros e usualmente indicada apenas pela pos-
dos existentes, nos fins de semana. Sabados e domingos sao
tura e posicionamento do corpo, pelo tom da voz etc. Em mui-
geralmente dias "sossegados"; a segunda-feira e 0 mais atare-
tas dessas reuniiies, como episodios regionalmente circunscri-
fado. No dia-a-dia da vida hospitalar, a altemancia de "dia" e tos, os encontros podem ser quase todos de dura,ao muito
"noite" assemelha-se it divisao da semana em dias da semana e
curta. Paredes entre quartos, por outro lado, podem demarcar a
fim de semana. Como 0 autor assinala, devido ao fate de que regionaliza,ao de tal modo que nenhurn dos meios ordinarios
trabalhar it noite ainda e considerado incomurn e requer urn de co-presen,a pode penetrar. E claro que onde as paredes sao
esfor,o excepcional, 0 termo usado para Ihe fazer referencia e finas podem ocorrer varias especies de interrup,iies ou emba-
night duty. Nao existe 0 termo correspondente day duty". ra,os ao fechamento de encontros. Aries, Elias e outros apon-
taram as maneiras como a diferencia,ao intema das casas da
grande massa da popula,ao, desde 0 seculo XVIII, estiveram
inter-relacionadas com aspectos em mudan,a da vida familiar
e da sexualidade". Antes daquele seculo, as casas dos pobres,
na Europa ocidental, tinham freqiientemente urn linico ciimo-
do, quando muito dais, nos quais eram vistas varios arranjos
para uso comum, inclusive para dermir. As imponentes casas
da aristocracia tinham nurnerosos saliies e quartos, mas estes
duragao habitualmente eram ligados diretamente, sem os corredores que,
nas casas modemas, permitem tipos de privacidade dificeis de
obter outrora em todas as classes da sociedade.
A regionaliza,ao pode incorporar zonas de grande varia,ao
em extensao e escala. Regiiies de grande extensao sao aquelas
que se dilatam amplamente no espa,o e profundamente no tem-
po. Eclaro, a interse,ao de "extensiies" de espa,o e tempo pode
variar, mas as regioes de considenivel extensao tendem neces-
sariamente a depender de urn alto grau de institucionaliza,ao.
Todas as regiiies, tal como sao aqui definidas, envolvem exten-
Figura 7
sao tanto no tempo quanto no espa,o. Por vezes, "regiao" pode
ser usada em geografia para referir-se a urna area fisicamente
demarcada num mapa das caracteristicas fisicas do meio am-
Uma classifica,ao util dos modos de regionaliza,ao pode-
biente material. Nao e esse 0 significado que atribuo ao termo,
ra ser oferecida pela Figura 7. Entendo por "forma" de regiona-
o qual, conforme usado aqui, envolve sempre a conota9ao da
liza,ao a forma das fronteiras que definem a regiao. Na maio-
estrutura,ao da conduta social atraves do tempo-espa,o. Assim,
ria dos locais, as fronteiras que separam regiiies tern indicado-
existe urn forte grau de diferencia,ao regional, em termos de
res fisicos ou simbolicos. Em contextos de co-presen,a, esses
rela,iies de classe e de varios outros criterios sociais, entre 0
 144 A CONSTITUIt:;A-O DA SOCIEDADE TEMPO, ESPAt:;O E REGIONALlZAt:;AO 145

Norte e 0 SuI na Gra-Bretanha. 0 Norte nao e apenas uma area aoteriormente como caracteristica da era moderna, Mas a sepa-
geograficamente delimitada, mas tambem uma area dotada de ra9ao mais radical de relevancia na hist6ria moderna (cujas
tra90S sociais distintos e estabelecidos desde longa data. Por implica90es estao hoje muito longe de estar esgotadas) foi a
"carater" de regionaliza9ao entendo os modos como a organi- que ocorreu entre os meios de comunica9ao, gra9as ao desen-
za9ao tempo-espa9 0 de locais e ordenada dentro de sistemas volvimento dos sinais eletronicos, e os meios de traosporte,
sociais mais abraogentes. Assim, em muitas sociedades, 0 "Iar", tendo estes Ultimos envolvido sempre, de uma forma ou de outra,
o domicilio, foi 0 foco fisico de rela90es de familia e tambem a mobilidade do corpo humano. A inven9ao do telegrafo ele-
de produ9ao, esta levada a efeito ou em setores do pr6prio do- tromagnetico por Morse marca uma transi9ao tao distintiva no
micilio ou em hortas ou parcelas de terra de cultivo. Entre- desenvolvimento cultural humaoo quanta aroda ou qualquer
tanto, 0 desenvolvimento do capitalismo modemo acarretou Dutra inovac;ao tecnica.
urna diferencia9ao entre 0 lar e 0 lugar de trabalho, diferencia- Os diferentes aspectos da regionaliza9ao de locais acima
9ao essa que teve consideraveis implica90es para a organiza9ao indicados configuram de varias maneiras a natureza da dispo-
global dos sistemas de Produ9aO e outras importantes caracte- nibilidade de presen9a. Assim, os camodos de uma casa podem
risticas institucionaisdas sociedades contemporaneas. assegurar a manuten9ao de encontros em diferentes partes do
edificio sem intromissaes mutuas, propiciaodo uma simetria
particular, talvez, com as rotinas do dia para aqueles que as de-
Regiiies da frente, regiiies de tras sempenham. Mas a vida em estreita proximidade dentro da casa
tarnbem significa, obviamente, elevada disponibilidade de pre-
Urn aspecto do carater da regionaliza9ao e 0 nivel de dis- sen9a: a co-presen9a e obtida e maotida com muita facilidade.
ponibilidade de presen9a (presence-availability) associada a Prisoes e manicomios sao freqiientemente associados a con-
formas especificas de local. A n09ao de "disponibilidade de tinuidade for9ada de co-presen9a entre individuos que nao es-
tao normalmente acosturnados a tais rotinas de vida cotidiana.
presen9a" e urn complemento essencial da de co-presen9a. 0
Os reclusos que compartilham a mesma cela raras vezes esta-
"estar junto"da co-presen9a requer meios pelos quais os atores
do livres da presen9a urn do outro dia e noite, Por outro lado, 0
sociais possam 'Juntar-se". 0 tempo-geografia de Hiigerstraod
"pader disciplinar" das pris5es, manicomios e outros tipos de
charna nossa aten9ao para alguns dos fatores tipicamente
"institui9ao total" baseia-se no rompimento da engrenagem de
envolvidos aqui. As comunidades de elevada disponibilidade
disponibilidade de presen9a nas rotinas de trajet6rias dimas
de presen9a em todas as culturas, antes de apenas alguns secu-
"de fora". Assim, aos mesmos reclusos que sao fon;:ados aco-
los atras, eram agruparnentos de individuos em estreita proxi-
presenc;a continua nega-se 0 acesso a encontros faceis com QU-
midade fisica. A corporalidade do agente, as limita90e s a
tros grupos na prisao, muito embora esses outros possam estar
mobilidade do corpo nas trajet6rias da duree da atividade dia- fisicarnente apenas do outro lado das paredes da cela, 0 "isola-
ria, juntarnente com as propriedades fisicas do espa90, assegu- mento" for9ado de presos em rela9ao ao "mundo exterior", li-
ravam que isso assim fosse. Os meios de comunica9ao eram mitando as possibilidades de co-presen9a para os que se encon-
sempre identicos aos de transporte. Mesmo com 0 usa de cava- tram dentro de urn unico local, e, evidentemente, urna caracte-
los velozes, navios, marchas for9adas etc., a grande distilncia ristica definidora de uma "instituic;ao total".
de espa90 significava sempre longa distilncia de tempo. A A importilncia da regionaliza9ao para a estrutura9ao de
mecaoiza9ao do transporte foi 0 principal fator que levou as sistemas sociais pode ser ainda mais salientada se observarmos
formas espetacuiares de convergencia tempo-espa90 apontada como 0 zoneamento e realizado em diferentes cenarios, "Face"
 146
A CONSTfTUlr;A-O DA SOCfEDADE TEMPO. ESPAr;O E REGIONALlZAr;AO 147

regiao da frente quencias da falta de urna interpreta,ao geral da motiva,ao das

rotinas da vida cotidiana. Se os agentes fossem apenas atores
nurn palco, escondendo seus verdadeiros eus atras das mascaras
que adotassem para a ocasiao, 0 mundo social estaria, na ver-
dade, em grande parte, vazio de substancia. De fato, por que
abertura deveriam dar-se ao trabalho de dedicar a aten,ao que dedicam
fechamento a tais performances? Os atores no teatro autentico tern, afinal,
urna motiva,ao para impressionar as plateias com a qualidade
de seus desempenhos, uma vez que, como profissionais, sao
especialistas nessas performances. Mas essa e urna situa,ao mui-
to particular, nao uma que seja, de fato, tipica da vida social.
Considera-la como tal e cometer 0 mesmo erro que 0 proprio
Goffman identifica ao analisar a fala. A "fala sem erros" do lo-
cutor de telejomal e excepcional e esta vinculada il suposta des-
Figura 8
treza de alguem que se especializa na produ,ao de fala fluente;
na maioria dos contextos da vida cotidiana, os agentes nao es-
e "frente"estao relacionadas, antes de mais nada, com 0 posicio- tao motivados para produzir esse tipo de fala.
namento do corpo em encontros. A regionaliza,ao do corpo, tao A manuten,ao da seguran,a ontologica nao poderia ser
importante para a psicanaIise - a qual, na frase de Lacan, ex- conseguida se as regiiies frontais nao fossem mais do que fa-
plora "aberturas na superficie" do corpo -, tern uma contrapar- chadas. Toda a vida social seria, no dizer de Sullivan, uma bus-
tida espacial na regionaliza,ao dos contextos de intera,ao. A ca desesperada de montar "opera,aes de seguranp" que recupe-
regionaliza,ao encerra zonas de tempo-espa,o, permitindo esse ram urn sentido de auto-estima na encena,ao de rotinas. Aqueles
fechamento que sejam mantidas rela,aes distintivas entre as que sentem dessa maneira exibem, de forma caracteristica,
regiaes "da frente" e "de tras", as quais sao empregadas pelos moldes de ansiedade de urn tipo extremo. E precisamente por-
atores na organiza,ao da contextualidade da a,ao e da manu- que existe, em geral, urn profundo, embora generalizado, en-
ten,ao da seguran,a ontologica. 0 termo "fachada" ajuda, em volvimento afetivo nas rotinas da vida cotidiana, que os atores
algum ponto, a designar as conexaes entre regiaes da frente e (agentes) nao se sentem ordinariamente atores (artistas), ape-
de tras'". Sugere, porem, que os aspectos frontais da regionali- sar da semelhan,a terminologica entre esses termos. 0 teatro
za,ao sao inerentemente inautenticos e tudo 0 que e real ou pode desafiar a vida social por sua propria imita,ao em panto-
substancial esta escondido atras da fachada. A discussao de mima. E presumivelmente isso 0 que Artaud quis dar a enten-
Goffman sobre as regiaes da frente e de tris tambem tende a der ao dizer: "0 verdadeiro teatro sempre me pareceu 0 exerci-
apresentar a mesma implica,ao: tudo 0 que esta "encoberto" ex- cio de urn terrivel e perigoso ato, no qual, ademais, esta erradi-
pressa os sentimentos reais daqueles que desempenham urn cada a ideia de teatro e de performance [.. .]"19. Considere-se
papel "de frente". Embora, obviamente, possa ser com frequen- tambem a discussao que Laing faz sobre 0 histerico:
cia esse 0 caso, penso que esbarramos aqui nas limita,aes do
A menos que a pessoa esteja deprimida, sao os Qutros que se
modelo dramamrgico utilizado por Goffinan, especialmente em
queixam de sua falta de autenticidade ou sinceridade. Econside-
seus primeiros escritos, e verificamos uma vez mais as conse- rado patognomonico da estrategia caracteristica do histerico que
 148 A CONSTITUl9A-O DA SOClEDADE TEMPO. ESPA90 E REGIONALIZA9AO 149

5uaS ac;5es sejam falsas, histri6nicas, teatralizadas. Por DutrO lade, Abertura e self
o histerico insiste com freqiiencia em que seus sentimentos sao
reais e sinceros. Somas nos que os achamos irreais. E 0 histerico As regioes de tras envolvidas em ocasioes sociais rituali-
quem insiste na seriedade de sua inten<;ao de suicidar-se, en- zadas talvez se assemelhem muito, com freqiiencia, aos "basti-
quanta nos falamos de urn mero "gesto" suicida sem conseqiit~n­ dores" de urn teatro ou as atividades off-camera das produ,oes
cias. Ele queixa-se de sentir-se despedac;ado. E ejustamente na
cinematograficas e televisivas. Mas esses bastidores podem
medida em que nao 0 sentimos despedac;ado, mas simulando au
dando a entender issa, que nos 0 designamos histerico. [... )20 muito bern ser 0 "proscenio" no que se refere a extensao das
rotinas comuns da vida social e as conven,oes sociais ordina-
Assim, a diferencia,ao entre regioes da frente e de tras nao rias. Pois esses tipos de ocasiao envolvem desempenhos fixos
coincide, em absoluto, com a divisao entre 0 fechamento (en- para publicos, embora nao haja a necessaria implica,ao de que
cobrimento, oculta,ao) de aspectos do selfe sua abertura (reve- os que estao nas regioes de tras sejam capazes de moderar as
la,ao, divulga,ao). Esses dois eixos da regionaliza,ao operam usuais cortesias de tato ou "repara,ao". 0 nivel de fechamento
num complicado nexo de possiveis rela,oes entre significado, entre regioes da frente e de IDS e, entretanto, provavelmente mui-
normas e poder. As regioes de tras formam claramente, com to elevado, ja que ele implica, muitas vezes, que quanto mais
freqiiencia, urn significativo recurso que tanto os poderosos ritualizada for a ocasiao, mais tera de ser apresentada como urn
quanto os menos poderosos podem utilizar reflexivamente para conjunto aut6nomo de eventos, no qual os acessorios dos basti-
manter urn distanciamento psicologico entre suas proprias dores sao mantidos inteiramente fora das vistas do publico ou
interpreta,oes dos processos sociais e as prescritas por normas dos observadores. E importante sublinhar que a distin,ao entre
"oficiais". Tais circunstancias sao suscetiveis de se aproxima- atividades "privadas" e "publicas" envolve muito mais do que
rem consideravelmente daquelas em que os individuos sentem se podera depreender da natureza dessas categorias, que apa-
estar representando papeis em que realmente nao "acreditam". rentemente se excluem umas as outras. As ocasi5es rituais sao,
Mas e importante separar dois tipos de situa,ao em que isso distintivamente, eventos prototipicamente publicos, envolvendo
pode subsistir, porque apenas urna deJas se aproxima bastante com freqiiencia "figuras publicas". Mas seus bastidores nao
da metMora teatral. Em todas as sociedades existem ocasioes constituem urna "esfera privada": as principais figuras do even-
sociais que envolvem formas rituais de conduta e expressao oral, to talvez fiquem ainda menos a vontade quando, ao deixarem a
nas quais sao fortes as sansoes normativas que regulam 0 "de- arena cerimonial, se movimentarem entre seus inferiores, os
sempenho correto". Esses episodios sao de ordinario regional- individuos que estao meramente "nos bastidores".
mente separados do resto da vida social e diferem desta especifi- As ocasioes rituais parecem, em sua maior parte, nitida-
camente por requererem homologia de desempenho de ocasiao mente diferentes da gama de circunstilncias nas quais as regioes
para ocasiao. Parece que, especialmente nessas circunstlncias, os de tras sao zonas onde os agentes recuperam formas de autono-
individuos sao passiveis de sentir que estao "desempenhando mia que sao comprometidas ou tratadas em contextos frontais.
papeis" nos quais 0 self est:\ apenas marginalmente envolvido. Sao freqiientemente situa,oes em que sao impostas san,oes
Nesse caso, h:\ grande probabilidade de que ocorra tensao no esti- aos atores cujo compromisso com aquelas normas e marginal
10 e continuidade do desempenho, e 0 eslilo pode ser muito mais ou inexistente. As formas de fechamento e abertura que permi-
acentuado do que na maior parte da atividade social cotidiana. tern aos agentes desviarem-se dessas normas, ou desrespeita-Ias,
sao importantes caracteristicas da dialetica de controle em si-
tua,oes que envolvem vigiliincia. Conforme sublinhei em outra
 150 A CONSTITUIr;AO DA SOCIEDADE TEMPO, ESPAr;O E REGlONALlZAr;AO 151

parte, a vigilancia liga dois fen6menos afins: 0 cotejo de infor- 10 era divertido abe9a. Urn dos colegas viu 0 cara cair e parou a
ma~ao usada para coordenar atividades sociais de subordina- linha. 0 supervisor veio correndo. "Quem mandou parar a linha?"
dos e a supervisao direta da conduta desses subordinados. Em Pos a linha em funcionamento de novo e tivernos de trabalhar.
cada urn desses aspectos, 0 advento do Estado modemo, com Com menos urn. Levaram urn tempao para tirar 0 cara dali. Nao
sua infra-estrutura capitalista-industrial, distinguiu-se por urna conseguiam fazer a maca chegar ate onde ele estava. Mais de
vasta expansao da vigilancia". Ora, por sua propria natureza, a meia hora se passou antes de 0 apanharem. Ali estava ele estira-
do ao comprido, abrindo vez por outra urn olho para espiar rapi-
"vigilancia" envolve abertura, tornar visivel. A acumula~ao de
damente asua volta: "0 que e que esta acontecendo?"22
informa~ao revela os padroes de atividade daqueles aos quais
essa informa~ao se refere, e a supervisao direta mantem aber-
As atitudes derrogatorias para com os individuos investi-
tamente tal atividade sob observa~ao a fim de a controlar. A
dos de autoridade sao, e claro, extremamente comuns em tais
minimiza~ao ou manipula~ao de condi~oes de abertura esta,
situa~oes. Entretanto, 0 incidente acima descrito sublinha 0 fato
pois, de ordinario, nos interesses daqueles cujo comportamen-
de que urna a~ao maliciosa desse tipo nem sempre esta confi-
to esta sujeito a vigilancia - cuja extensao depende do grau de
nada a regiao de tras, a atividades realizadas longe da presen~a
desinteresse ou nocividade que ha no que esses individuos sao
daqueles que sao os alvos.
chamados a fazer em tais cenarios.
o zoneamento regional de atividades em muitos contextos
As regioes de tras em, digamos, cenarios de se~oes fabris desse genero relaciona-se estreitamente com a serialidade dos
incluem "recantos acess6rios" - cantinas, banheiros, etc. -, as- encontros no tempo-espa~o. Mas, repetimos, nao converge cla-
sim como as intricadas zonas de deslocamento do contato com
ramente com urna divisao entre atividade privada e atividade
supervisores, que os opecirios podem conseguir mediante movi-
publica. 0 operario nao fez a menor tentativa de esconder de
mentos e posturas corporais. As descri~oes do usa de tal zo- seus colegas que 0 ate de simula~ao de acidente grave tinha por
neamento a fim de controlar acessorios do cenario (e assim objetivo escapar temporariamente as pressoes da linha de mon-
sustentar moldes de autonomia nas rela~oes de poder) sao inu- tagem. Tais diferencia~oes frente/atras - as quais ocorrem co-
meras na literatura da sociologia industrial. Por exemplo, aqui murnente em circunstfulcias de acentuados desequilibrios de
esta urn operario falando a respeito de urn incidente caracteris- poder - podem distinguir-se, em geral, daquelas em que as
tico nurna fabrica de automoveis:
conven~oes situacionais da intera~ao estao enfraquecidas ou se
permite que degenerem. Essas sao as situa~oes em que a frente,
Eu estava trabalhando em urn dos lades do carro, e a tampa os detalhesde controle corporal e alguns procedimentos de "re-
do porta-malas fechou de repente, provocando apenas escoria-
para~ao" da solicitude para com os outros podem ser todos
90es na cabeca do colega que trabalhava aminha frente. Ecomo
se estivesse venda agora a cena. Ele parou de trabalhar e olhOll a relaxados. Pelo menos urna conota~ao de "privacidade" e0 iso-
sua volta para ver se alguem 0 estava observando. Eu fingi nao lamento regional de urn individuo - ou de individuos, pois a
estar oIhando para ele... e ele entao agarrou a cabeca. A gente privacidade nao parece implicar inevitavehnente' a solidao - das
podia ver 0 que 0 camarada estava pensando: "Born, vou cair exigencias ordinarias da monitora~ao de a~ao e:gesto, median-
fora e descansar urn pOlleD de tudo isto." Cambaleou e pude ve- te 0 qual a expressao de tipos "infantis" de conduta pode ocor-
lD olhando asua volta. Voce sabe como eaquila na seeao de pin- rer. 0 zoneamento do corpo parece estar associado na maioria
tufa. E tinta por tudo quanto e lado. Ele nao era trouxa para cair das sociedades (em todas?) ao de atividades no tempo-espa~o
no meio da tinta... de modo que foi cambaleando mais uns dez nas trajetorias do dia dentro de determinados locais. Assim, 0
metros ate cair corn urn gemido sobre alguns fardos. Tudo aqui- ate de comer OCOffe geralmente em cenarios definidos em tem-
 152 A CONSTlTUI<;AO DA SOClEDADE TEMPO. ESPA<;O E REGIONALlZA<;AO 153

pos definidos, e tambem e "publico" no sentido estrito de en- Regionaliza,ao generica

volver reunioes de membras da familia, amigos, colegas de tra-
balho etc. Vestir-se ou enfeitar-se pode nao ser universalmente As diferencia,oes entre fechamenfo e abertura, regi5es da
tratado como atividade "privada", mas pelo menos na maioria frente e de tras, aplicam-se a grandes periodos de tempo-espa,o,
das culturas assim parece ser considerado. Apesar das afirma- nao so nos contextos de co-presen,a. Evidentemente, e impra-
,oes de Elias de que a atividade sexual era realizada aberta- vavel que sejam reflexivamente monitorados de forma direta
mente na Europa medieval", a sexualidade genital parece estar por aqueles a quem afetam, embora isso possa acontecer. A
~oneada em todos os lugares como urn fenomeno da regiao de regionaliza,ao dentra de areas urbanas, em sociedades con-
tras, com muitas varia,oes, e claro, em moldes de comporta- temporaneas, tern sido bastante estudada desde 0 trabalho pio-
mento publico e privado intersecionados. neiro dos sociologos Park e Burgess, de Chicago. Na maioria
Erazoavel supor que as interse,oes entre regionaliza,ao e das sociedades ocidentais, 0 zoneamento das cidades em bair-
as expressoes de cuidado corporal estao vinculadas intricada- ras com caracteristicas sociais acentuadamente diferentes e
mente a manuten,ao do sistema de seguran,a basica. As regioes fortemente influenciado pela opera,ao dos mercados imobilia-
de tras, que permitem ao individuo 0 isolamento completo da rios e pelas separa,oes entre moradias de propriedade indivi-
presen,a de outros, podem ser menos importantes do que aque- dual e setores habitacionais controlados pelo Estado. as bair-
las que permitem a expressao do "comportamento regressivo" ras podem nao ser tao simetricamente zoneados quanta sugeri-
em situa,oes de co-presen,a. Essas regiOes podem permitir ram alguns dos analistas urbanos "ecologicos", mas sua distri-
bui,ao tern a conseqiiencia de criar varios tipos de contrastes
irreverencia, comentarios sexuais abertos, formas elaboradas de frente/atras. As areas industriais, nas cidades setentrionais da
malestar, [... Jvestuario informal e chocante, postura relaxada em
Inglaterra, foram outrora as configura,oes mais visiveis do
pe ou sentado, usc de linguagem dialetal ou de cala-a, resmungar
e gritar, agressividade jocosa e zombaria infantil, falta de respei-
ambiente construido - por assim dizer, fabricas e usinas orgu-
to pele Dutro em atos secundarios mas potencialmente simb6li- lhosamente exibidas. Mas a tendencia do planejamento urba-
cos, auto-envolvimentos fisicos banais, como sussurrar, assobiar, no, em allOS recentes, tern side a de encarar essas areas como
mascar, mordiscar, arrotar e flatulencias 24 • desagradaveis a vista, como regioes de tras a serem escondidas
em enclaves fechados ou transferidas para os arredores das
Longe de representar urna diminui,ao de credito, esses tipos de cidades. as exemplos podem ser facilmente multiplicados. a
comportamento poderao ajudar a refor,ar a confian,a basica acesso daqueles que vivem em setores mais prosperas dos mer-
na presen,a de intimos, construida originalrnente em rela,ao as cados imobiliarios a transferencia relativamente facil de pra-
figuras parentais. Eles sao man:ados nao So pela especie de priedade esta subentendido na "fuga para os subUrbios", con-
surto de ansi'ldade pravocado por situa,oes criticas, mas tam- vertendo os centros das cidades de regioes de exibi,ao frontal
bern pelo inverso - a dissipa,ao de tensoes resultantes das exi- em regioes de tras, caracterizadas pela decadencia urbana, evi-
genciaS de rigido contrOle corporal e gestual em outras esferas tadas pelas "classes respeitaveis". E possivel tomar "invisi-
da vida cotidiana. veis" as areas de gueto por seu fechamento regional em bairros
de taxas muito baixas de transferencia de prapriedade e de mo-
bilidade diaria para dentro e para fora. Como sempre, vitios
tipos de fenomenos tempo-serie estiio subentendidos em tal re-
gionaliza,ao espacial.
 154 A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE TEMPO, ESPA90 E REGIONALIZA9AO 155

A regionaliza9ao atraves de grandes extensoes de tempo- distancia de outros que sao efetivamente tratados como inferio-
esp a90 tern sido analisada por nurnerosos autores em termos de res ou "estranhos".
no~6es familiares, como "desenvolvimento desigual" e de dis- l As na90es industriais "estabelecidas" do "nucleo" ociden-
tin90es entre "centro" (ou "nucleo") e "periferia", Essas no- tal mantem urna posi9ao central na economia mundial, com
90es, entretanto, podem ser aplicadas a toda a gama dos cena- base em sua precedencia temporal sobre as sociedades "menos
rios de locais, dos grandes aos pequenos, Em vez de examinar desenvolvidas", A regionaliza9ao geopolitica do sistema mun-
aqui 0 tema do desenvolvimento desigual, farei a diferencia9ao dial pode ser cambiavel - com, por exemplo, as transferencias
de centro e periferia relacionando-a com a inser9ao no tempo, de centros de produ9ao manufatureira para zonas outrora peri-
Se a economia mundial e as cidades tern seus centros, isso tam- fericas no Oriente -, mas 0 fator de prioridade no tempo influen-
bern ocoue com as trajet6rias dimas de atores individuais, Em ciou ate agora de forma decisiva a preeminencia no espa90, Em
sociedades modernas, pelo menos para a maioria dos indivi- na90es-Estados, a regionaliza9ao centro/periferia parece estar
duos do sexo masculino, 0 lar e 0 local de trabalho formam os associada em toda parte it existencia de "estabelecimentos" que
dois principais centros em que as atividades do dia tendem a se situam no nucleo da estrutura9ao das classes dominantes",
estar concentradas, Os locais tambem tendem a estar regional- Obviamente, existe uma variedade de rela90es complexas en-
mente centrados, Alguns comodos nurna casa, como os quartos volvidas nesses fenomenos, e eu ofere90 esses exemplos como
para h6spedes, por exemplo, podem ser usados apenas "perife- puramente ilustrativos,
ricamente"~
As distin90es centro/periferia tendem com freqiiencia a
ser associadas it continuidade do tempo", Aqueles que ocupam Tempo, espa90, contexto
centros "estabelecem-se" como tendo controles sabre recursos
que lhes permitem manter diferencia90es entre eles pr6prios e Permitam-me a esta altura oferecer urn resurno dos princi-
os que estao nas regioes perifericas, Os estabelecidos podem pais pontos tratados ate aqui neste capitulo, Estivemos focali-
empregar varias formas de fechamento social" para manter a zados na contextualidade da vida social e das institui90es so-
ciais. Toda a vida social ocoue em - e e constituida por - inter-
se~6es de presenc;a e ausencia no "escoamento" do tempo e na
I estabelecidos I "transforma9ao gradual" do espa90. As propriedades fisicas do
corpo e os milieux nos quais ele se movimenta inevitavelmente
conferem a vida social urn carater serial, e limitam os modos
de acesso a outros "ausentes" atraves do espa90, 0 tempo-geo-
regi6es regi6es grafia fornece urn importante modo de nota9ao da interse9ao
centrais perifericas de trajet6rias tempo-espa90 na atividade do dia-a-dia. Mas ele
precisa ser inserido numa teoriza9ao mais adequada tanto do
agente quanta da organiza9ao dos cenarios de intera9ao. Ao
propor as ideias de local e de regionaliza9ao, quero formular
estranhos urn esquema de conceitos que ajudem a classificar a contextua-
I I lidade como inerentemente envolvida na conexao de integra-
Figura 9 9aO social e de sistema28 •
 156 A CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE
l ."

TEMPO. ESPAr;O E REGlONALlZAr;AO 157

percursos espa90-temporais diarios
ficios que Ihe estao associados. A "abertura" do dia e, pois, um
distribuiry8,O de encontros tempo para sair, quando as pessoas deixam suas casas a fim de
trabalhar nos campos. Levantar cedo significa colocar-se sob
regionallza9ao de locais
auspicios favoraveis, "homar os anjos". Nao significa apenas
contextualizaryao de regi6es uma transi,ao no tempo, mas tambem uma regulariza,ao de
eventos e praticas. Nao obstante, 0 potencial criativo do dia deve
intersecao de locais
ser fomentado pela magia, ou oUtras for,as malignas podem
intervir, sobretudo apos 0 zenite da ascensao do sol, ja que,
depois disso, 0 dia entra em declinio, assinalando 0 retorno imi-
As tecnicas grificas desenvolvidas em tempo-geografia ja
nente da decadencia e deteriora,ao da noite, "0 paradigma de
provaram sua fecundidade em muitas areas de pesquisa. Nao
todas as formas de declinio"".
existe razao alguma para que aqueles que trabalham numa
Com esse exemplo em mente, permitam-me desenvolver
gama de campos nas ciencias sociais nao adotern e adaptem 0
algumas das principais no,oes consideradas neste capitulo,
metodo de nota,ao de Hiigerstrand. Mas as limita,oes de tem-
adotando como ilustra,ao a escolaridade em sociedades con-
po-geografia, como indicamos acima, tambem devem certa-
temporaneas. Nao hi duvida de que 0 mapeamento dos padroes
mente ser levadas em conta. Alem disso, 0 "tempo marcado pelo
de tempo-espa,o obedecido por alunos, professores e pessoal
re16gio" nao deve ser aceito simplesmente como uma dimen-
administrativo numa escola e um recurso topologico util com 0
sao indiscutivel da constru,ao de modelos topogrificos, mas
qual come,ar 0 estudo dessa escola. Contudo, em vez de usar
ser ele proprio considerado uma influencia socialmente condi-
as formas exatas de representa,ao formuladas por Hiigerstrand
cionada sobre a natureza das trajetorias de tempo-espa,o per-
e seus colaboradores, proponho enfatizar 0 "tempo reversivel"
corridas por atores em sociedades modernas. Essa questiio tal-
da conduta rotineira cotidiana. Hiigerstrand retrata habitual-
vez pare,a ser uma banalidade, mas realmente esta muito longe
mente as trajetorias tempo-espa,o como tendo um movimento
de 0 ser. 0 que se coloca nao sao apenas diferentes meios de
"linear" ao longo do dia. Mas uma representa,ao mais apurada
calcular e medir 0 tempo, mas formas divergentes da estrutura-
do carater repetitivo da vida social cotidiana sera fornecida se
,ao das atividades diarias.
considerarmos que a maioria dos trajetos de espa,o-tempo dia-
Considere-se, por exemplo, 0 amplamente conhecido es- rios envolvem um "retorno". Em vez de se adotar a forma da
tudo de Bourdieu do tempo e da medi,ao do tempo em Cabilia. Figura lOa, poderiamos tomar como exemplar a da Figura lOb.
Nessa regiao, considera-se que 0 ano corre do outono para 0
A Figura lOa e do tipo preferido por Hiigerstrand, no qual
verao e 0 dia das primeiras horas da noite para 0 meio-dia. Esse olhamos 0 tempo-espa,o "lateralmenle" e a seta do "tempo"
esquema expressa, porem, uma concep,ao de tempo como eter- tra,a uma sequencia temporal especifica (geralmente equiva-
na recorrencia, 0 que, par sua vez, e parte da composir;ao basi- lente ao dia de trabalho). Proponho que nao se abandone esse
ca das atividades do dia-a-dia. A noite e, simbolicamente, um tipo de nota,ao, mas que seja complementado - conceptual-
tempo de morte, marcado por tabus regulares - contra tomar mente, por certo, se nao figurativamente - com a Figura lOb,
banho, entrar em contato com extensoes de agua, olhar num na qual olhamos, por assim dizer, "de cima para baixo" em vez
espelho, nntar os cabelos ou tocar em cinzas29 • A manha nao e de lateralmente. As linhas marcadas com as setas referem-se
apenas 0 "romper do dia", mas um triunfo na luta entre 0 dia e ao montante de tempo, medido cronologicamente, consumido
a noite: estar "na manha" e estar aberto para a luz, para os bene- no movimento entre "esta,oes", no decorrer de um determina-
 158 A CONSTITUIr;:A-O DA SOCfEDADE TEMPO. ESPAr;:O E REGIONALlZAr;:AO 159
tempo aspectos basicos: a distribui,ao de encontros atraves do tempo
espayo
c/o

espal(o
\jJ' e do espa,o ocorrendo dentro dela, a regionaliza,ao interna que
exibe e a contextualidade das regioes assim identificadas.
As escolas modernas sao organiza,oes disciplinares, e seus
tra,os burocraticos claramente influenciam e sao influenciados

~
pelas regioes que elas contem. Como todas as formas de orga-
niza,ao disciplinar, elas funcionam dentro de fronteiras fecha-
espayo
espar;o das, estando seus limites fisicos claramente separados da inte-
ra,ao cotidiana que se desenrola do lado de fora. Uma escola e
Figura lOa Figura lOb
urn "recipiente", que gera poder disciplinar. A natureza fechada
da vida escolar possibilita uma estrita coordena,ao dos encon-
tros seriais em que os escolares estao envolvidos. as segmen-
do dia, por um individuo tipico; 0 grau de alongamento dos
tos de tempo consumidos pelas crian,as em seu interior estao
blocos indica quanta tempo e consumido num local especifico.
espacial e temporalmente fechados por completo a encontros
Assim, 0 dia de uma crian,a durante 0 ano letivo assemelha-se
exteriores potencialmente importunos. Mas isso tambem e ver-
ao esquema indicado no diagrama. A crian,a pode passar tres
dade, pelo menos habitualmente, com rela,ao as divisoes entre
periodos distintos no lar (L) - dormindo ai, desde a noite ate de
diferentes classes. As escolas estiio internamente compartimen-
manha cedo, ai regressando depois da escola (E), no fim da
tadas. Pode haver nelas algumas areas, e alguns momentos, em
tarde, e regressando ai de novo apes ter ido ao cinema (C), no
que tendem a ocorrer formas heterogeneas ou imprecisas de
come,o da noite. Alguns aspectos do dia da crian,a sao, sem
intera,ao - por exemplo, no inicio e no final de uma aula. Mas,
dtivida, marcadamente rotinizados (a viagem de ida e volta da
na maior parte, a distribui,ao dos encontros contrasta de ma-
escola), ao passo que outros (ida ao cinema), nao tanto. as
neira notoria com ados setores da vida social em que a regula-
tipos de atividades mais rotinizados podem ser representados
,ao normativa de atividade e mais solta. A distribui,ao espa-
como um perfil de trajetos tempo-espa,o inseridos em tempo
reversivel. cial disciplinar faz parte do carater arquitetural das escolas,
tanto na separa,ao das salas de aula quanta nos intervalos regu-
Nos termos de Hiigerstrand, uma escola e uma "esta,ao" lares entre as carteiras que freqiientemente se verificam dentro
situada nos percursos convergentes tra,ados por grupos de
delas. Nao M dtivida de que divisoes espaciais desse genero
individuos no decorrer do dia. Ele esta certo ao sublinhar que
facilitam a especifica,ao e a aloca,ao rotinizada de tarefas.
as condi,oes que possibilitam aos individuos reunirem-se num
a horario escolar e fundamental para a mobiliza,ao de
tinico local nao podem ser aceitas como cabais, mas precisam
espa,o como trajetos espa,o-temporais coordenados. as admi-
ser examinadas diretamente. Mas um local e, evidentemente,
nistradores escolares nao enfrentam normalmente os mesmos
mais do que urn mero ponto de parada. A tendencia das "esta-
problemas de "acondicionamento" de seus congeneres em hos-
90es" ede serem caixas-pretas, por assim dizer, no tempo-geo- pitais. Mas, como todas as organiza,oes disciplinares, as esco-
grafia, porque 0 principal foco recai sobre 0 movimento entre
las operam com uma economia precisa de tempo. E certamente
elas. A escola, vista como um tipo de organiza,ao social, con- correto apontar as origens da disciplina escolar, em parte, na
centrada num local de caracteristicas fisicas definidas, tern
regula,iio de tempo e espa,o possibilitada por uma transi,iio
caracteristicas que podem ser entendidas em fun,ao de tres
generalizada para 0 "tempo cronometrico". A questiio nao esta
160 A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE
T
i TEMPO. ESPAr;:O E REGIONALIZAr;:AO 161

em que 0 uso geral de relogios facilita as divisoes exatas do sala. As que chegaram par ultimo conversam, trocam figurinhas
de futebolistas, olham ocasionalmente de soslaio para 0 professor.
dia, mas, isso sim, em que 0 tempo entra nas atribui,oes de cal-
PROFESSOR: - Muito bern, vamos fazer a chamada. Apres-
culo da autoridade administrativa.
sem-se e tratem de sentar-se, voces, maniacos do futebol... JiI. sei
As caracteristicas contextuais das salas de aula, enquanto que 0 Manchester United voltou a perder.
principais "areas de aplica,ao" do poder disciplinar, variam mui- TORCEDORES DO MANCHESTER UNITED: - Ah, sim?
to, obviamente. Mas em formas mais rigidas de distribui,ao Mas e1es ainda sao melhores do que 0 Liverpool.
espacial, a especifica,ao de posicionamento do corpo, movi- PROFESSOR (tom sarcastico na voz): - Reahnente? Deve
menta,ao e gestos, esta geralmente organizada com precisao. ser todo 0 espinafre que eles nao comem. Born... Martin... Doreen...
o posicionamento espacial de professor e alunos, no contexto Alan... Mark ifaz a chamada e as crian{:Qs vGo respondendo).
de urna sala de aula, e muito diferente do da maioria das outras Uma crian<;a chega atrasada, expressao cabisbaixa, e cami-
situa,oes em que ocorrem envolvimentos face a face. Com nha para 0 seu lugar.
efeito, ele denota que haveria urn colapso do controle do pro- As outras olham para ela e nem.
fessor se assim nao fosse. As aparentes minucias de postura e CRIANCA: - Ei, Duncan, 0 que e que estil. fazendo?
mobilidade corporal para as quais Goffinan chama a aten,ao PROFESSOR: - Duncan, venha ate aqui. Voce esti atrasa-
estao, urna vez mais, longe de ser incidentais neste caso. do de novo; tres minutos de atraso para ser exato. Por que?
DUNCAN: - Desculpe, senhar.
A sala de aula, tal como a escola, e urn "recipiente de po-
PROFESSOR: - Eu perguntei "Por que?"
der", mas nao urn que meramente produza "corpos doceis" em
DUNCAN: - Adormeci.
grande quantidade. Os contextos de co-presen,a, conforme ja PROFESSOR: - Bern, e agora, esti icordado?
enfatizei, podem ser descritos como cenarios, e estes tern de (As Gulras crian{:Qs riem).
ser reflexivamente ativados por figuras de autoridade no pro- DUNCAN: - Estou, sim senhor.
cesso de fazer com que essa autoridade conte. A disciplina atra- PROFESSOR: - Nesse case, ficaril mais tres minutos depois
Yes da vigiW.ncia constitui urn veiculo importante para gerar 0 das quatro, e espero que nao adorrne<;a outra vez depois disso.
poder; nao obstante, ela depende de urna complacencia mais Mais risos. Duncan senta-se. 0 professor terrnina a cha-
ou menos continua daqueles que sao seus "suditos". A obten- mada31 •
93:0 dessa complacencia e, em si mesma, urn cometimento fni-
gil e contingente, como todo professor sabe. 0 contexto discipli- o que e que estil acontecendo neste caso? Temos de reco-
nar da sala de aula nao e apenas urn "pano de fundo" para 0 que nhecer, como 0 professor, que a chamada reveste-se de urn sig-
se desenrola na classe; estil mobilizado dentro da dialetica de nificado particular para a ordena,ao das atividades do dia. E
controle. Vma classe escolar e urn envo1vimento face a face que urn indicador que assinala a abertura dos parenteses num
tern de ser reflexivamente administrado, como qualquer outro. encontro e a primeira salva disparada numa batalha diariamen-
Considere-se 0 seguinte fragmento de intera,ao, descrito e te travada entre professor e aluno. Aquele reconhece ser essa a
discutido por Pollard: primeira ocasiao para testar 0 estado de ilnimo das crian,as, e
estas fazem 0 mesmo a respeito dele. A manuten,ao do contro-
Soa a campainha das nove haras; cerca de meia classe esta Ie de dire,ao pelo professor depende de se assegurar que as
presente, a maioria lendo livros. 0 professor entra com passos fir- crian,as assurniram as rotinas envolvidas no cenario da sala de
mes: "Born dia... ah, excelente,ja retiraram os livros." 0 profes-
aula. Espera-se que as crian,as, ao entrarern pela manha, sen-
sor senta-se asua mesa, acomoda-se, retira a lista de presen9as. tem-se nos lugares que Ihes foram designados, retirem de suas
Nesse meio tempo, a maior parte das outras crian9as entrou na
 162 A CONSTITUII;:AO DA SOCIEDADE TEMPO, ESPA<;:O E REGIONALIZA<;:A-O 163
bolsas os livros de leitura e os coloquem sobre os tampos das 9ao interna da escola e em sua situa9ao de local dentro de
carteiras, e respondam a chamada. Pollard interpreta os grace- outros locais. Dentro da escola, a concentra9ao de autoridade
jos e provoca90es do professor como urna performance frontal, disciplinar em salas de aula isoladas e a condi9ao do alto nivel
com a qual pretende fixar 0 tom do dia como de trabalho coo- de controle sobre 0 posicionamento corporal e a atividade que
perativo. Entretanto, essa estrategia tem seus riscos, como e pode ser realizada. Mas essa circunstancia tambem atua contra
indicada pela resposta a entrada tardia de urna das crian9as. a supervisao direta do inspetor. 0 diretor esta investido de
Um outro sente-se capaz de "mexer" com 0 retardatitrio. 0 pro- "autoridade" sobre 0 pessoal docente, mas essa autoridade nao
fessor reconhece imediatamente ser esse 0 primeiro teste do pode ser exercida nos mesmos moldes em que os professores se
dia, com respeito ao qual sua autoridade superior deve ser de- empenham em controlar a conduta das crian9as em suas clas-
monstrada. A reprimenda a Duncan em tom bem-hurnorado ses. Portanto, as escolas tendem a possuir urna "linha dupla"
mescla urn apelo com a firmeza, urna tMica que os risos das nitidamente oposta de autoridade. 0 controle que os professo-
crian9as provaram ser bem-sucedida. Assim, os acontecimen- res procuram exercer sobre seus alunos e imediato, envolvendo
tos do dia tiveram seu prosseguimento. Se 0 professor tivesse a continua presen9a face a face do professor com as crian9as. A
sido mais abertamente disciplinador e punido com muito rigor supervisao da atividade dos professores, entretanto, e necessa-
o faltoso, a rea9ao teria sido julgada severa demais pelo resto riamente indireta e processa-se por outros meios. Pode-se ar-
das crian9as. Entao, 0 resultado poderia ter sido urna escalada de riscar a conjetura de que somente em organiza90es em que uma
amea9a e puni9ao menos eficaz do que 0 "pacto de esfor90s" considenivel soma de autonomia e concedida em rela9ao a su-
que professor e alunos concluiram implicitamente como parte pervisao direta torna-se possivel manter uma linha graduada de
de uma atmosfera de maior coop era9ao. autoridade. A natureza fechada da escola, e sua clara separa9ao
A propria natureza das salas de aula, nas quais a maioria em tempo e espa90 do que se passa em locais circunjacentes,
das coisas que professores e alunos fazem sao visiveis a uns e tambem inibe, porem, 0 controle oriundo do exterior. Assim,
outros, indica que as regioes de tris possuem geralmente uma inspetores podem visitar as escolas regularmente para fiscali-
forte defini9ao temporal e espacial. Para crian9as, elas situam-se zar seu funcionamento; juntas de curadores e associa90es de
algures, ao longo das estreitas fronteiras temporais entre clas- pais podem fazer sentir seu peso para influenciar orienta90es
ses, quer estas envolvarn ou nao 0 movimento fisico de urna politicas que ajudem a modelar a vida da escola. Mas e intrin-
sala de aula para outra. Embora 0 peso da disciplina normal- seco do poder disciplinar que 0 que se passa no "recipiente de
mente recaia sobretudo sobre as crian9as, ele e por vezes sentido poder" da escola possui urn grau significativo de autonomia
de maneira mais opressiva pelos professores. Estes contam em rela9ao as proprias agencias exteriores cujas caracteristicas
normalmente com urna regiao de tras para a qual podem reti- e atitudes expressa.
rar-se, a sala dos professores, na qual as crian9as ordinaria-
mente nao entram. A sala dos professores e, sem duvida, urn
lugar para desabafar e relaxar, mas, tambem, onde as tMicas de Contra 0 "micro" e 0 "macro":
ensino tendem a ser interminavelmente discutidas, formuladas integra9iio social e de sistema
e reformuladas.
Eda natureza das organiza90es disciplinares que a intensi- As considera90es acima revestem-se de certa importiincia
dade da vigiliincia interna iniba 0 controle direto do exterior. no exame das rela90es entre integra9ao social e integra9ao de
Isso constitui urn fen6meno que pode ser visto na regionaliza- sistema. Nao emprego os termos mais familiares, estudo "mi-
 -I
164 A CONSTITU[(;AO DA SOCIEDADE TEMPO. ESPA90 E REGlONALlZA9AO 165
crossociol6gico" e estudo "macrossocioI6gico", por duas raz5es: Sublinha esse autor que 0 cisma entre abordagens micro e ma-
uma, porque esses dois generos de estudo silo com freqiiencia crossociol6gicas, tal como estes termos silo ordinariamente en-
mutuamente contrapostos, com a implica,ilo de que temos de tendidos, acentuou-se muito ao longo da Ultima decada. Enquanto
escolher entre eles, considerando que urn e, de algum modo, que a teoria social era dominada pelo funcionalismo e pelo mar-
mais fundamental do que 0 outro. Na recusa deliberada de xismo, ou por alguma combiml,ilo de ambos, as rela,oes so-
Goffinan de se preocupar com quest5es de organiza,ilo e hist6- ciais em situa,oes de co-presen,a silo tipicamente vistas como
ria social em grande escala, por exemplo, parece despontar a determinadas, de forma substancial, por fatores inais amplos,
ideia de que a realidade essencial da vida social sera encontra- "estruturais". Entretanto, liderada em especial pela etnometodo-
da no que ele designa as vezes por microssociologia. Por outro logia, a microssociologia converteu-se nurn vicejante campo
lado, os defensores de abordagens macrossociol6gicas silo pro- de interesse, no qual os pressupostos das abordagens acima tern
pensos a considerar que os estudos da atividade social no dia-a- sido analisados de maneira bastante radical. Na opiniilo de
dia silo dedicados a aprecia,ilo de trivialidades; as questoes Collins, "a mais recente microssociologia radical e, epistemo-
mais siginificativas silo as de mais amplo espectro. Mas esse l6gica e empiricamente, muito mais completa e profunda do
tipo de confronto e certamente urna guerra simulada, se e que que qualquer metodo previo. [...] Eu sugeriria que 0 esfor,o
chegou a ser ao menos isso. De qualquer modo, nilo penso que coerentemente desenvolvido para reconstituir a macrossocio-
caiba discutir se urn estudo tern prioridade sobre 0 outro. Uma logia sobre microfunda,oes radicalmente empiricas e 0 passo
segunda razilo pela qual a divisilo micro/macro tende a suscitar crucial na dire,ilo de urna ciencia sociol6gica mais bem-suce-
associa,oes infelizes esta em que, mesmo quando nilo existe dida"33.
conflito entre as duas perspectivas, urna lamentavel divisilo de Segundo Collins, 0 caminho adequado para esse avan,o e
trabalho tende a produzir-se entre elas. Considera-se que a mi- atraves de urn programa de "microtradu,ilo" de "fen6menos es-
crossociologia esta interessada nas atividades do "agente livre", truturais". Ede esperar que essa tradu,ilo resulte em teorias com
cuja elucida,ilo pode ser seguramente confiada a pontos de urna base empirica mais forte do que as macrossociol6gicas
vista tais como os do interacionismo simb6lico ou da etnome- existentes. Aqueles que se preocupam com as questoes macros-
todologia; ao passo que se pressupoe ser 0 dominio da macros- sociol6gicas silo convidados a nilo abandonar seus esfor,os,
sociologia 0 da analise das restri,oes estruturais que fixam mas reconhecendo que seu trabalho e teoricamente incompleto.
limites a livre atividade (ver pp. 246 ss). Deixei anteriormente Aos olhos de Collins, existem apenas tres "macrovariaveis pu-
bern claro qu~ tal divisilo de trabalho leva a conseqiiencias que, ras": tempo, espa,o e numero. Assim, urn conceito como "cen-
na melhor das hip6teses, silo sumamente enganosas. traliza,ilo da autoridade" pode ser traduzido para explica,oes
Por que seria considerada tilo problematica, por tantos au- de microssitua,oes - de que modo atores sociais situados exer-
tores, a questilo da rela,ilo entre os estudos "microssocioI6gico" cern realmente a autoridade em contextos descritiveis. Entre-
e "macrossocioI6gico"? Presumivelmente, 0 principal motivo e tanto, as "macrovariaveis puras" participam como 0 nUmero de
a divisilo conceptual de trabalho a que acabei de fazer referen- situa,oes desse tipo, no tempo e no espa,o. "Por conseguinte,
cia. Refor,ada por urn dualismo filos6fico, requer urna refor- resulta com freqiiencia que as variaveis estruturais silo a sim-
mula,ilo mais radical da teoria do que a maioria dos autores ples quantidade de pessoas em vanos tipos de microssitua,oes.""
pode ou esta disposta a considerar. Sera uti! para 0 desenvolvi- A "realidade social" e, portanto, "microexperiencia"; sao as
mento deste ponto urna aprecia,ilo breve de uma das mais inte- agrega,oes temporais e especiais nurnericas dessa experiencia
ressantes analises recentes da questilo, a oferecida por Collins". que constituem 0 nivel macrossociol6gico de analise. As quali-
 'IV'

166 A CONSTITUlI;AO DA SOCIEDADE TEMPO, ESPAI;O E REGIONALlZAI;AO 167

dades "estruturais" de sistemas sociais sao, diz Collins, os "re- implicita as - atividades intencionais de agentes humanos. Nao
sultados" da conduta em microssitua,oes, na medida em que se segue dai, porem, que 0 que e descrito como 0 "macronivel"
nao dependem de nfunero, tempo e espa,o. tenha uma existencia um tanto posti,a, Isso apenas nos leva de
Embora 0 conceito de Collins de "variaveis estruturais" volta a guerra simulada. As institui,oes sociais nao sao expli-
seja algo semelhante ao defendido por Blau (ver pp. 243-6), caveis como agregados de microssitua,oes" nem totalmente des-
Collins questiona, com toda a razao, a especie de versao de critiveis em termos que se referem a tais situa,oes, se entender-
"sociologia estrutural" proposta por aquele e muitos outros au- mos estas como circunstancias de co-presen,a. Por outro lado,
tores, Mas, em outros aspectos, 0 ponto de vista de Collins e os padroes institucionalizados de comportamento estao pro-
deficiente. Como tenho sistematicamente acentuado, tratar 0 fundamente implicados ate nas mais fugazes e limitadas das
tempo e 0 espa~o como "variaveis" erepetir 0 erra caracteristi- "microssituac;oes".
co da maior parte das formas de ciencia social ortodoxa. Alem Exploremos essa linha de pensamento indicando por que
disso, por que pressupor que a "estrutura" e relevante somente motivo a distin,ao micro/macro nao e particularmente util. 0
para as questoes macrossociol6gicas? Tanto na acep,ao mais que e uma "microssitua,ao"? A resposta poderia ser esta: e
precisa quanto na mais vaga do termo que distingui, a atividade uma situa,ao de intera,ao confinada no espa,o e no tempo -
em microcontextos tern propriedades estruturais fortemente aparentemente, 0 ponto de vista de Collins, Mas isso nao ajuda
definidas. De fato, reputo ser essa uma das principais teses sus- grande coisa. Pais nao s6 as encontros "deslizam" no tempo,
tentadas com exito pela pesquisa etnometodol6gica, Ademais, mas tambem, assim que come,amos a nos interessar em apurar
por que sustentar que 0 tempo, como "variftvel", so erelevante como eles sao conduzidos por seus atores participantes, fica
para as preocupa,oes macrossociol6gicas? A temporalidade e tao claro que nenhum fragmento de intera,ao - mesmo que aberta-
inseparavel de urn pequeno segmento de intera,ao quanto da mente isolado num parentese temporal e espacial - pode ser
mais longa das longues dUrlies. Finalmente, por que propor que entendido de forma independente. A maioria dos aspectos de
as propriedades estruturais consistem apenas em tn,s dimen- intera,ao esta sedimentada no tempo e s6 se lhes pode atribuir
soes: tempo, espa,o e nfunero? A razao, suponho, esta em que urn sentido se considerarmos seu carater rotinizado e repetitivo.
Collins ainda tern em mente que a "estrutura" deve referir-se a Alem disso, a diferencia,ao espacial do "micro" e do "macro"
algo "fora" das atividades de agentes sociais para que tenha torna-se imprecisa logo que come,amos a examina-Ia, pois a
algum sentido na ciencia social. A dispersao no tempo e no es- forma,ao e a re-forma,ao de encontros ocorre necessariamen-
pa,o parece ser 0 OOico fenomeno que resta, dado que Collins te em extensoes espaciais mais vastas do que as envolvidas em
aceita boa parte das criticas formuladas por aqueles a quem ele contextos imediatos de intera,ao face a face. Os trajetos tra,a-
chama de "microssoci61ogos radicais" contra os conceitos co- dos por individuos no decorrer do dia rompem alguns contatos
letivos com que seus antagonistas macrossociol6gicos usual- ao deslocarem-se espacialmente para formar outros, os quais
mente operam, sao depois desfeitos, e assim por diante.
Mas a mais importante confusao na abordagem de Collins Aquilo de que normalmente se fala sob a epigrafe de pro-
eo pressuposto de que os "macroprocessos" sao os "resultados" cessos micro/macro e 0 posicionamento do corpo no tempo-
da intera~ao em "microssitua~oes". Segundo ele, 0 "macronf- espa90, a natureza da intera9ao em situa95es de co-preselll;a e a
vel" consiste apenas em "agrega90es de microexperiencias". conexao entre essas situac;5es e influencias "ausentes", rele-
Ora, pode-se concordar em que as generaliza,oes nas ciencias vantes para a caracteriza,ao e explica,ao da conduta social.
sociais sempre pressupoem - e fazem, pelo menos, referencia Esses fenomenos - as preocupa,oes basicas, de fato, da teoria
 168
A CONSTITUJI;:AO DA SOClEDADE

da estrutura<;ao - sao mais bern considerados como referentes

r TEMPO, ESPAC;:O E REGIONALlZAC;:AO

as sociedades, realmente, ate pouco mais de urn seculo atras).

169

as rela<;oes entre a integra<;ao social e a integra<;ao de sistema. Refiro-me, simplesmente, a que todos os contatos entre mem-
Ora, algumas das questi5es em pauta no debate micro/macro bros de diferentes comunidades ou sociedades, nao importa
sao problemas conceptuais relacionados com a velha contro- sua extensao, envoIvern contextos de co-presen<;a. Uma carta
versia em torno do individualismo metodologico. Vou deixa- podera chegar de urn outro ausente, mas, e claro, tern de ser
las de lado ate 0 proximo capitulo. Outros aspectos, entretanto, fisicamente levada de urn lugar para outro. Viagens muito lon-
nao repousam em considera<;oes unicamente conceptuais. Eles gas eram realizadas par categorias especializadas de pessoas -
so podem ser resolvidos mediante a analise direta de tipos par- marinheiros, militares, comerciantes, misticos e diversos aven-
ticulares de sociedade. Como as sociedades diferem em seus tureiros - no mundo tradicionaI. Sociedades nomades erravam
modos de articula<;ao institucional, tam1?em e licito esperar que atraves de extensas areas de terra. As migra<;oes populacionais
variem os modos de interse<;ao de presen<;a e ausencia que eram comuns. Mas nenhum desses fenomenos ahera 0 fato de
intervem em sua constitui<;ao. Farei urna breve introdu<;ao des- que os contextos de co-presen<;a eram sempre os principais
se assunto aqui, apresentando ao mesmo tempo material a ser "contextos veiculadores" da intera~ao.
mais amplamente abordado no proximo capitulo. o que tornou possivel a maior "extensao" espa<;o-tempo-
A integra<;ao social diz respeito a intera<;ao em contextos ral envolvida no que chamarei de sociedades divididas em classes
de co-presen<;a. As conexoes entre as integra<;oes social e de foi, sobretudo, 0 desenvolvimento das cidades. Estas estabele-
sistema podem ser tra<;adas no exame dos modos de regionali- cern urna centraliza<;ao de recursos - especialmente os admi-
za<;ao que canalizam, e sao canalizados por, percursos tempo- nistrativos - que propicia maiar distanciamento tempo-espa<;o
espa<;o adotados pelos membros de urna comunidade ou socie- do que era 0 caso dpico nas ordens tribais. A regionaliza<;ao de
dade em suas atividades cotidianas. Tais percursos sao forte- sociedades divididas em classes, por muito complicada que
mente influenciados por (e tambem reproduzem) parametros possa ser em seus detalhes, forma-se sempre em torno das co-
institucionais basicos dos sitemas sociais em que estao impli- nexoes, tanto de interdependencia quanto de antagonismo, entre
cados. As sociedades tribais (ver pp. 214, 218) tendem a apre- a cidade e 0 campo,
sentar uma forma densamente segrnentar, sendo a comunidade Somos propensos a usar 0 termo "cidade" de modo abran-
aldea, de muito longe, 0 mais importante local em cujo ambito, gente em referencia tanto aos povoamentos urbanos em socie-
os encontros sao constituidos e reconstituidos em tempo-espa- dades tradicionais quanta aos, convergentes com a forma<;ao e
<;0. Nessas sociedades, as rela<;oes de co-presen<;a tendem a expansao do industrialismo capitalista. Mas esse uso obscurece
dominar as influencias de uma especie mais remota. Faz senti- o termo, se tornado para significar simplesmente que, nos tem-
do dizer que existe nessas sociedades algo como urna fusao das ·pos modernos, isso e mais verificado - isto e, que 0 urbanismo
integra<;oes social e de sistema. Mas, obviamente, essa fusao de hoje constitui apenas urna versao mais densa e mais espraiada
nunca e completa: virtualmente todas as sociedades, nao im- do que havia antes. As contextualidades de cidadestradicionais
porta quaD pequenas ou aparentemente isoladas, existem em sao, em muitos aspectos, diferentes das do urbanismo moder-
no. Rykwert, por exemplo, destaca a forma simbolica que mui-
conexao pelo menos frouxa com '''sistemas intersociais" mais
vastos. tas cidades tinham, em partes m\lito afastadas do mundo, antes
dos tempos modernos:
Como vivemos hoje nurn mundo onde a comunica<;ao ele-
tronica e tida como certa, vale a pena enfatizar a que e, alias,
E dificil [para nos hoje] imaginar uma situar;ao oode a Of-
uma caracteristica obvia das sociedades tradicionais (de todas dem formal do universo pudesse ser reduzida a urn diagrama de
 170 A CONSTITUJ(;AO DA SOCIEDADE Notas criticas: Foucault sobre distribuifiio
de tempo e de espafo
duas coordenadas que se cruzam num ponto. Entretanto, foi exa-
tamente isso que aconteceu na Antiguidade: 0 romano, ao cami-
nhar ao lange do cardo, sabia que seu caminho era 0 eixo em
tome do qual 0 Sol girava, e que se ele seguisse 0 decumanus,
estava acompanhando 0 curso do Sol. Todo universo e seu signi-
ficado podiam ser conjeturados a partir de suas institui90es civi-
cas - de modo que ele se sentia em casa nele. 35

Poderiamos dizer que tais cidades nao existem mais em tempo

e espa<;o comodificados". A compra e venda de tempo, en-
quanto tempo de trabalho, e certamente uma das caracteristicas
mais distintivas do capitalismo modemo. As origens da regula- As varias discuss6es feitas por Foucault sobre as origens
<;ao temporal precisa do dia talvez se encontrem ao repicar do do poder disciplinar demonstram uma persistente preocupa<;ao
sino do mosteiro, mas e na esfera do trabalho que sua influen- com a distribui<;ao temporal e espacial. Segundo ele, 0 poder
cia se enraizou de tal maneira que se propagou a sociedade disciplinar tern como foco a manipula<;ao do corpo, considerado
como urn todo. A co-modifica<;ao do tempo, orientada para os essencialmente como urna rruiquina que pode ser primorosamente
mecanismos da produ<;ao industrial, elimina a diferencia<;ao de afinada. As formas de administra<;ao associadas as organiza-
cidade e campo caracteristica das sociedades divididas em <;6es disciplinares que proliferaram do seculo XVIII em diante
classes. A industria modema e acompanhada pela propaga<;ao sao diferentes da mobiliza<;ao maci<;a de for<;a de trabalho veri-
do urbanismo, mas seu funcionamento nao e fixado em qual- ficada nos projetos em grande escala nas civiliza<;6es agrarias.
quer tipo particular de area. Por outro lado, a cidade tradicional Esses projetos - constru<;ao de estradas, de templos, de monu-
constitui 0 principal/oeus de poder disciplinar em sociedades mentos publicos etc. - envolveram freqiientemente imensos
divididas em classes e, como tal, e separada do campo - com contingentes de pessoas. Mas suas atividades eram coordena-
muita freqiiencia, fisica e simbolicamente separada pelas mu- das apenas de forma rudimentar. As novas formas de disciplina
ralhas citadinas. Em conjunto com a transforma<;ao do tempo, sao precisamente talhadas na medida dos movimentos, gestos e
a co-modifica<;ao do espa<;o estabelece urn "meio ambiente atitudes do corpo individual. Em vez da disciplina monastica,
criado", de caniter muito distinto, expressando novas formas que e urn de seus principais precursores historicos, as novas
de articula<;ao institucional. Essas novas formas de ordem ins- tecnicas de poder ligam a disciplina diretamente com a utilida-
titucional alteram as condi<;6es da integra<;ao social e sistemica de. 0 controle do corpo e parte da nova "anatomia politica" e,
e mudam, portanto, a natureza das conex6es entre 0 proximo e como tal, diz Foucault, aurnenta 0 rendimento corporal en-
o remoto no tempo e no espa<;o.
quanta reduz tambem a independencia de orienta<;ao do corpo.
A disciplina so pode avan<;ar atraves da manipula<;ao do
tempo e do espa<;o. Requer habitualmente fechamento, uma es-
fera de opera<;6es completamente fechada. Foucault explora
muito 0 conceito de "confinamento", a separay3.o mais ou me-
nos for<;ada de individuos do resto da popula<;ao nos primeiros
hospitais, em manicomios e em prisoes. Entretanto, outras or-
ganiza<;6es disciplinares menos abrangentes envolvem tambem
 172 A CONSTlTUI<;A-O DA SOCIEDADE

o fechamento. Os fatores que levam ao estabelecimento de

areas fechadas podem variar, mas 0 resultado final e semelhante
r ,,~,,~"O "''''''OM''" 173

e fixados horarios para as visitas. Assim, 0 "espa90 terapeuti-

co" foi desenvolvido a partir da distribui9ao do espa90 "admi-
em todas elas, em certa medida porque modelos semelhantes nistrativo e politico"'*'
foram seguidos pelos individuos e pelas autoridades responsa- A compartimenta9ao do espa90 ocorreu em circunstiincias
veis por estabelece-Ias. 0 fechamento e uma base generalizada algo diferentes nas fabricas do final do seculo XVIII. Neste
de poder disciplinar, mas por si so insuficiente para permitir a caso, a tendencia foi tambem a de distribuir os individuos nurn
administra,ao detalhada dos movimentos e atividades do corpo. espa90 demarcado, mas essa distribui9ao tinha de ser dirigida
Isso so pode ser realizado atraves da divisao regional ou "com- para a coordena9ao de maquinaria. Assim, a disposi9ao dos
partimenta,ao" interna. Cada individuo tern seu "lugar proprio" corpos no espa90 devia corresponder as exigencias tecnicas da
em qualquer momento particular do dia. A compartimenta,ao produ9ao. Mas essa "articula9ao do espa90 de produ9ao" tam-
do tempo-espa,o disciplinar tern, pelo menos, duas consequen- bern pode ser comprovadamente impregnada de poder disci-
cias: ajuda a evitar a forma,ao de grandes grupos, que poderiam plinar. Foucault cita a manufatura Oberkampf, em Jouy, como
ser uma fonte de forma,ao de vontade independente ou de opo- urn exemplo. Ela foi construida como urna serie de oficinas
si,ao, e propicia a manipula,ao direta de atividades individuais, identificadas de acordo com 0 tipo de opera,ao de produ9ao.
evitando 0 fluxo e a indetermina,ao que os encontros casuais Toussaint Barre projetou 0 maior dos edificios, 0 qual tinha
tendem a manifestar. 0 que esta aqui envolvido, segundo Fou- lID metros de comprimento, com tres andares. No terreo exe-
cault, e urn "espa,o analitico", no qual os individuos podem ser cutava-se a xilogravura. Havia 132 mesas, instaladas em duas
observados e avaliados, e suas qualidades, medidas. A compar- mas no sentido do comprimento da oficina; dois empregados
timenta,ao do espa,o analitico pode ter sido influenciada pelo trabalhavam em cada mesa. Os supervisores circulavam para
exemplo da cela monastica, mas tambem se originou, com fre- cima e para baixo no corredor central, estando assim aptos a
quencia, das formas arquiteturais que foram estabelecidas para fiscalizar 0 processo de fabrica9ao, em geral, e as atividades de
fins puramente praticos. Na Fran,a, 0 hospital naval em Ro- cada trabalhador individual, em particular. Os trabalhadores
chefort serviu de modelo. Foi instalado como parte de urna ten- podiam ser comparados por sua rapidez e produtividade, e suas
tativa para enfrentar as molestias contagiosas disseminadas num atividades eram mutuamente correlacionadas. Distribuindo os
porto apinhado de nurnerosos grupos de pessoas envolvidas na trabalhadores de acordo com estritos principios de classifica-
guerra ou no comercio. Controlar a propaga,ao de doen,as 9ao, cada parte da tarefa podia ser caracterizada e relacionada
implicava outras especies de regulamenta9ao fiscalizadora de com distintos movimentos do corpo. As doutrinas de Frederick
popula95es em triinsito - 0 controle dos militares sobre os de- Taylor nao sao muito mais do que urna formula9ao tardia do
sertores e da administra,ao local sobre 0 fluxo de mercadorias, poder disciplinar que acompanhou a ascensao da industria em
ra9 5es e materias-primas. Isso redundou na pressao pelo rigo- grande escala hit mais de urn seculo.
roso controle do espa90, 0 que envolveu primeiramente os cui- o carater do espa,o disciplinar, segundo Foucault, deriva
dados a serem dispensados a mercadorias valiosas, em vez da primordialmente nao da associa9ao de uma organiza9ao com
organiza,ao dos seres hurnanos. Mas a pratica de etiquetar mer- urn peda90 especifico de territorio, mas do arranjo espacial.
cadorias, classificando-as e controlando sua distribui9ao, foi Linhas, colunas, intervalos murados e medidos sao suas carac-
mais tarde aplicada a pacientes. Registros de casos come9aram teristicas distintivas. Nao e qualquer parte particular do edifi-
a ser arquivados. 0 numero total de pacientes era cuidadosa-
mente regulado; foram impostas restri95es a seus movimentos * As referencias podem ser encontradas a pp. 190.
 174 A CONSTITWr;:A-O DA SOCIEDADE TEMPO. ESPAr;:O E REGIONALlZAr;:A-O 175
cio que importa, mas sua fonna relacional global. A sala de "disciplinados". Entretanto, nas for9as armadas, passou a ser
aula exemplifica esse fenomeno. No seculo XVIII, na Fran9a e aplicado tao ordinariamente quanta e hoje, mais relacionado
em outros paises, as classes passaram a ser divididas, de modo com urn modo global de regulamenta9ao do que com 0 proprio
intervalado, em filas delimitadas com clareza e separadas ex- processo de instru9ao'.
ternamente por urn sistema de corredores de liga9ao. Trata-se A cronometragem das atividades e mais do que sua subor-
de divisoes tanto curriculares quanta espaciais. Os individuos dina9ao a intervalos temporais medidos. E talvez a condi9ao
movem-se atraves de tais compartimentos, nao s6 no decorrer mais basica da "coordena9ao do corpo e do gesto". 0 poder
do dia como tambem durante suas carreiras educacionais. disciplinar nao consiste unicamente na imposi9ao de controle
sobre gestos especificos, mas e maximizado quando os gestos
Ao organizar "celulas", "lugares" e "filas", as disciplinas se relacionam com 0 posicionamento do corpo como urn todo.
eriam espa<;:os complexos que sao simultaneamente arquitetu-
rais, funcionais e hienirquicos. Sao espa<;os que fornecem posi-
o uso eficiente do corpo significa que nada permanece ocioso
ou em uso; a aten9ao deve ser totalmente concentrada no ato
'foes fixas e permitem a circula<;:ao; eriam segmentos individuais
e estabelecem liga<;:6es operacionais; marcam Iugares e indicam em que 0 individuo esta envolvido. Urn corpo disciplinado e
valores; garantem a obediencia de individuos mas tambem uma urn corpo treinado: nesse sentido, poderiamos dizer que persiste
melhor economia de tempo e gesto. 2 a acep9ao tradicional de "disciplina". 0 posicionamento do
corpo e 0 principal fator mediador entre duas sequencias tem-
A disciplina depende da divisao cautelosa do tempo, as- poralmente articuladas. Uma e a dccomposi9ao do gesto numa
sim como do espa90. Afinal de contas, 0 mosteiro foi urn dos serie cronometrada de movimentos, especificando as partes do
primeiros lugares a ter 0 dia temporalmente regulado de ma- corpo a serem usadas. Assim, Mauricio de Orange decompos 0
neira precisa e ordenada. As ordens religiosas foram mestres no manuseio do mosquete nurna serie de 43 movimentos separados,
controle met6dico do tempo, e sua intluencia, difusa ou mais o do pique em 23, coordenados no ambito de urna fonna9ao de
direta, era sentida por toda a parte. Como na maioria dos as- soldados numa unidade de batalha'. Entretanto, as varias partes
pectos do poder disciplinar, 0 exercito fornece urna iIustra9ao dos objetos manuseados tambem sao especificadas e integra-
adequada. Os soldados foram desde longa data treinados para das com 0 gesto. A cronometragem e essencial para isso, uma
marchar em fonna90es regulares. Os holandeses foram pionei- vez que os armamentos e a maquinaria passaram a ser cada vez
ros na cronometragem precisa de manobras militares'. No final mais projetados para operar de modo sequencial, sendo cada
do seculo XVI, desenvolveu-se urn metoda no exercito holan- passo em sua opera9ao um requisito previo para 0 que sera feito
des mediante 0 qual as tropas eram treinadas de fonna progra- a seguir. 0 poder disciplinar depende nao apenas da explora9ao
mMica para manobrar ordenadamente, enquanto mantinham de materiais previamente dados, mas tambem do estabeleci-
urn ritmo certo e continuo de fogo. Isso era conseguido gra~s mento de urn "elo coercitivo com 0 aparelho de produ9ao".
il medi9ao do tempo requerido para os varios movimentos do A cronometragem tambem se estende atraves da progres-
corpo. 0 metodo foi mais tarde aplicado aos gestos envolvidos sao de carreiras. Foucault compara duas fases no desenvolvi-
para carregar, disparar e voltar a carregar as armas, e a muitos mento da escola-fabrica dos Gobelinos. A manufatura foi cria-
outros aspectos da organiza9ao militar. De fato, foi em rela9ao da por decreto real de 1667; urna escola para aprendizes foi pla-
a esses desenvolvimentos que 0 tenno "disciplina" sofreu uma nejada como parte do esquema. 0 superintendente dos edificios
mudan9a de significado. Em seu sentido original, referia-se a reais selecionaria sessenta crian9as bolsistas para participa9ao
urn processo de aprendizagem e era considerado urn tra90 dos na escola, sendo 0 processo educacional organizado de acordo
 176 A CONSTITUJ(;:JO DA SOCIEDADE TEMPO, ESPAr;:O E REGIONALIZAr;:AO 177

com as diretrizes tipicas da aprendizagem de corpora9ao. as 2) As fases separadas de treinamento e a "carreira" - palavra
alunos eram, em primeiro lugar, responsabilidade de urn mes- que desse modo abrange apenas seu sentido modemo - sub-
tre-artesao, cumprindo depois urn aprendizado de seis aoos. sequente podem ser orgaoizadas de acordo com urn plaoo
Seguiam-se mais quatro anos de servi90 de aperfei90amento, global. A educa9ao tern de ser libertada da dependencia per-
ao termino dos quais eles eram submetidos a urn exame; se sonalizada que a rela9ao entre mestre e aprendiz acarreta. a
aprovados, estavam aptos a instalar suas proprias oficinas. Ravia plano educacional tern de ser formulado em termos impes-
ai urn processo difuso de traosmissao de conbecimento, envol- soais, sempre que possivel desmembrado em suas opera90es
vendo urna permuta de servi90S entre mestres e aprendizes. A mais elementares, as quais sao enilio facilmente aprendidas
orgaoiza9ao temporal das vidas dos aprendizes - pelos padroes por quem estiver recebendo a instru9ao.
do que se seguiria - era moderada. Cerca de setenta anos apos a 3) Cada urn dos segmentos temporais deve ser concluido com
cria9ao da escola, urn novo tipo de treinamento foi iniciado para urn exame, 0 qual nao so garante que todos os individuos se
os aprendizes; era, aotes de tudo, complementar dos modos de submeterao ao mesmo processo de instru9ao, mas tambem
procedimento usados; baseava-se nurna cuidadosa organiza9ao os diferencia em termos das capacidades relativas de cada
serial do tempo. As criao9as frequentavam a escola duraote duas urn. as varios exames envolvidos na busca de urna carreira
horas por dia. Dividiam-se as classes de acordo com a habilida- sao graduados para que cada urn possa ser realizado com
de e a experiencia previa. As tarefas distribuidas eram executa- exito antes de 0 aprendiz poder passar a urn outro.
das de forma regular, avaliadas pelo professor, e os mais aptos 4) Tambem podem ser designados diferentes niveis de treina-
recebiam premios. as resultados dos exames a que todos os mento para a realiza9ao de oficios hierarquizados. Assim, na
alunos se submetiam definiam 0 progresso de uma classe a conclusao de cada serie, alguns individuos podem ser con-
outra, e registrava-se 0 comportamento diario num livro contro- tratados e encaminbados para urn determinado grau, enquao-
lado por professores e seus assistentes que era periodicamente to outros continuarao para obter graus superiores. Cada in-
examinado por urn inspetor. dividuo esta envolvido nurna serie temporal par meio da
A escola dos Gobelinos foi urn exemplo de urna tendencia qual seu cargo ou nivel e definido.
geral na educa9ao setecentista; nas palavras de Foucault, urna
expressao de uma "nova tecnica para encarregar-se do tempo A "seriac;ao" de atividades sucessivas torna passivel todo
das existencias individuais". As disciplinas "que analisam 0 es- urn investirnento de dura,ao pelo poder: a possibilidade de urn
p a90, decompoem e reorgaoizam as atividades" tambem tern contrale detalhado e de uma intervenc;ao regular (de diferencia-
de ser concentradas de modo a possibilitar "a soma e a capitali- c;ao, correc;ao, puni9ao, eliminac;ao) em carla momento do tem-
za9ao do tempo"'. Quatro metodos podem ser usados para isso: po; de caracterizac;ao e, portanto, de usc dos individuos de acor-
do com 0 nivel nas series per que tern de passar; de acumulac;ao
de tempo e atividade, de sua redescoberta, totalizada e utilizavel
I) A divisao das vidas cronologicamente, de modo que fases de
nUID resultado final, que ea capacidade fundamental de urn indi-
desenvolvimento sejam especificamente cronometradas. As-
viduo. A dispersao temporal e anulada para produzir urn lucro,
sim, 0 periodo de treinamento pode ser separado com clareza dominando assim uma durac;ao que de Dutro modo escaparia a
de urna carreira propriamente dita. Dentro dele podem ser apreensao de cada urn. a poder e diretamente articulado com 0
demarcadas etapas de evolu9ao, em cuja seqiiencia todos os tempo, assegura 0 seu controle e garante 0 seu uso. 7
que recebem instru9ao devem progredir.
 178 A CONSTITUl9A-O DA SOC/EDADE TEMPO. ESPA90 E REGIONALIZA9A-O 179

Assim, os metodos disciplinares refletem uma compreen- analisados de forma direta; 0 Estado e examinado "sintomati-
sao especifica do tempo, que constitua urna escala de intervalo camente", mediante formas aparentemente mais marginais de
igual. Na seria,ao do tempo, propoe Foucault, existe urn proce- organiza,ao, hospitais, manicnmios e prisoes. Entretanto, em
dimento que corresponde ao mapeamento de espa,o comparti- cada autor hi urna forte enfase sobre 0 surgimento de novos
mentado para atividades corporais: isso e "exercicio". Exercicio tipos de poder administrativo, gerados pela organiza,ao con-
e a imposi,ao de treinamento fisico regular e graduado do corpo, centrada de atividades hurnanas atraves de sua especifica,ao e
objetivando urn estado final de aptidao - "aptidao" referente ao coordena,ao precisas. A primeira vista, 0 tema da transforma-
estado de prepara,ao do corpo, mas tambem a uma capacidade ,ao do tempo e do espa,o parece estar ausente nos escritos de
generalizada de execu,ao das tarefas designadas. A ideia e a Weber, e vale a pena indicar de que modo e possivel mostrar
pratica de exercicio tiveram origens religiosas, porem conver- que suas ideias 0 incorporaram. Reconhece-se que ele e mais
teram-se num tema secular da maioria das organiza,oes disci- latente do que manifesto. Considere-se primeiro 0 tratamento
plinares. 0 exercicio exige participa,ao regular ao longo do tem- de Weber da natureza da modema empresa capitalista. 0 que
po e atua sobre partes especificas do corpo. Expressa direta- diferencia 0 "capitalismo racional" das formas precedentes? E,
mente 0 significado do controle do corpo, em rela,ao a outros sobretudo, seu carater eslivel, regular. Os tipos preexistentes de
corpos, 0 que e essencial para a disciplina como urn todo. 0 empresa capitalista tern lugar de maneira esporadica, vacilante,
corpo e tratado como uma parte movente num composto mais atraves do tempo e do espa,o. 0 capitalismo racional envolve a
amplo. A disciplina, em surna, demonstra as seguintes caracte- forma,ao de rel"9oes regularizadas de mercado atraves do es-
risticas principais: e "celular" (em termos de distribui,ao espa- pa,o, algo que so pode vir a tomar-se bern desenvolvido com a
cial); e "organica" (codificando as atividades de acordo com constitui,ao de urn Estado burocratico, 0 qual garante nao so
procedimentos programados); e "genetica" (com rela,ao as fa- os direitos de propriedade, mas tambem outras institui,oes essen-
ses seriais); e e "combinatoria" (unindo atividades humanas ciais, mais destacadamente uma forma regularizada de cambio
como os trajetos de uma maquina social). Foucault cita Guibert: de papel-moeda.
Mas 0 controle do tempo e igualmente necessario. A em-
o Estado que descrevo tera uma administra<;ao t'mica, id6- presa capitalista racional e aquela que esta apta a funcionar de
nea e facilmente controlada. Sera semelhante aquelas grandes modo estavel e ordenado. A enfase de Weber sobre a importiincia
maquinas que, por meios que nada tern de complicados, produ- da contabilidade por partidas dobradas para 0 desenvolvimento
zero grandes efeitos; a for9a desse Estado brotani de seu proprio do capitalismo modemo e facilmente compreensivel nesses ter-
vigor e sua prosperidade, de sua propria prosperidade. Reprova- mos. Essa forma de escritura,ao possibilita a continua contabi-
rei aquele preconceito comum segundo 0 qual SOmas levados a liza,ao de capital, durante longos periodos de tempo, a qual
imaginar que as imperios estao sujeitos a uma lei imperiosa de consiste na avalia,ao e verifica,ao de oportunidades de lucro.
declinio e mina. Isso significa proceder a uma avalia,ao comparativa do ativo do
come,o de urna transa,ao ou empreendimento com 0 de uma
Ha urna semelhan,a obvia entre a visao de Foucault do po- data posterior. A lucratividade depende, entre outros fatores,
der disciplinar e a analise de Max Weber da burocracia moder- da capacidade de predizer eventos futuros e de os sujeitar a cil-
na. 0 foco de seus respectivos escritos e diferente, por certo. culos. A contabilidade por partidas dobradas e urna especie de
Weber concentra-se na "area estrategica crucial" da burocra- maquina do tempo, porque expressa e simultaneamente permi-
cia: 0 Estado e seus escritorios administrativos. Na obra de Fou- te a quantifica,ao de unidades por referencia as quais 0 desem-
cault, por outro lado, os mecanismos do Estado raramente Sao penho de urna empresa pode ser julgado em "tempo ordenado"".
 I

180 A CONSTITUII;AO DA SOCIEDADE 181

TEMPO. ESPA90 E REGIONALIZA9AO

o controle do tempo e caracteristico da burocracia em ge- cenario, para moldar e refletir padroes sociais, deve refletir so-
ral, nao apenas das empresas de capital. A contabilidade por bre a posi,ao da "City" na Gra-Bretanha. Sua separatividade
partidas dobradas e urn expediente que "empilha" eventos pas- espacial em rela,ao ao centro da "industria" e sua concentra-
sados, assim como preve os futuros. As regras burocriticas ,ao absoluta nurna area especifica expressam importantes ca-
tambem sao urn modo de fazer isso. As burocracias modemas, racteristicas institucionais da sociedade da qual ela e parte (ver
afirma Weber, nao poderiam existir sem 0 cotejo de documen- pp. 377-85).
tos que sao registros do passado e prescri,oes para 0 futuro _ Poderemos agora retomar a Foucault. Nesta breve disserta-
os "arquivos". Estes nao sao apenas docurnentos dos procedi- ,ao, nao estou interessado em avaliar os erros e acertos hist6ri-
mentos burocniticos; eles exemplificam esses procedimentos e cos de sua exposi,ao ou em sondar as deficiencias te6ricas que
possibilitam 0 funcionamento continuo e regular do qual depen- possam ser percebidas nas ideias gerais em que ela se ap6ia.
de a disciplina burocnitica. Costumam ser organizados dentro Quero apenas acrescentar urn ponto ou dois it sua interpreta,ao
de escrit6rios especificos e fazem parte do que confere a cada da rela,ao do poder disciplinar com modalidades de tempo e
escritorio, numa burocracia, seu caniter distinto. Urn "'escrit6- espa,o. Come,arei com as considera,oes apresentadas no para-
rio" eurn cena-rio fisico, assim como urn patamar numa hierar- grafo precedente em referencia a Weber. Foucault trata as orga-
quia administrativa. Embora Weber quase nao toque nesse niza,oes disciplinares tal como sao sintetizadas pela prisao e
ponto, a distribui,ao fisica de escrit6rios nas burocracias e uma pelo manicomio - "institui,oes totais", na frase de Goffinan;
caracteristica distintiva de tais organiza,oes. A separa,ao fisi- "institui,oes completas e austeras", na caracteriza,ao que Fou-
ca deles, em se,oes ou reparti,oes, isola cada urn de todos os cault adotou de Beltard. "A prisao", como observa Foucault, "nao
outros e confere urn certo grau de autonomia aos que traba- tern exterior nem brechas; nao pode ser interrompida, exceto
lham em seus recintos; e tambem serve como poderoso indica- quando a tarefa esta totalmente concluida; sua a,ao sobre 0 in-
dor de hierarquia. dividuo deve ser ininterrupta: urna disciplina crescente [...]
Weber tambem sublinha a importiincia da separa,ao entre confere poder quase total sobre os prisioneiros; possui seus me-
o escrit6rio Ii 0 domicilio do trabalhador'. Uma das principais canismos intemos de repressao e puni,ao: uma disciplina des-
caracteristicas da burocracia esta no fato de a vida profissional potica"lO. Eibricas, escrit6rios, escolas, quarteis e Dutros contex-
do funcionario ser segregada do lar e da vida familiar. As f6r- tos onde a vigiliincia e 0 poder disciplinar atuam nao sao, em
mulas impessoais de disciplina burocrMica sao aplicadas muito sua maioria, como aquelas institui90es, admite Foucault, sem
mais efetivamente quando somas de dinheiro e equipamentos desenvolver esse ponto. Entretanto, trata"se de urna observa,ao
incorporados Sao mantidos separados das posses privadas dos com certa importiincia, porquanto as "institui,oes completas e
funcionarios, quando os vinculos pessoais ou de parentesco nao austeras" sao mais a exce,ao do que a regra dentro dos princi-
sao a base de tomadas de decisoes OU de nomea,oes, e quando pais setores institucionais das sociedades modemas. Nao se
os assuntos referentes it familia e it casa se distinguem dos as- infere dai que, pelo fate de as prisoes e manicomios maximiza-
suntos de neg6cios. Weber deixa bern claro que a separa,ao rem 0 poder disciplinar, tais institui,oes expressam mais clara-
completa entre 0 lar e 0 local de trabalho s6 se verifica no Oci- mente a natureza desse poder do que outras organiza,oes menos
dente modemo. Mas tambem poderiamos assinalar a importiin- abrangentes.
cia da diferencia,ao de locais para fazer a distin,ao entre as A viagem para 0 trabalho (ou a escola) provavelmente in-
esferas de opera,ao de varios tipos de organiza,ao burocrMica. dica tanto acerca do carater institucional das sociedades mo-
Quem duvidar da influencia da diferencia,ao entre espa,o e demas quanto as organiza,oes carcerarias. A separa,ao tempo-
182 A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE TEMPO. ESPAr;:OE REGIONALlZAr;:AO 183

espayo de diferentes setores da vida social pode, na verdade, ser tamento" a essas circunstancias irnplica e, de ordinario, conduz
a condiyao do funcionamento em grande escala do poder disci- diretamente a urn processo de degradayao do self, pelo qqal 0
plinar. A maioria das crianyas freqiienta a escola apenas duran- recluso e despojado de todos os sinais de identidade pessoal, ao
te uma parte do dia e em certos periodos do ano. Alem disso, mesmo tempo que os componentes ordinarios da autonomia de
dentro do dia escolar, a disciplina e freqiientemente observada ayao sao maciyamente restringidos. Cumpre dizer que as "ins-
em suas formas mais severas somente naqueles periodos defi- tituiyoes totais" expressam aspectos de vigilancia ~ disciplina
nidos de tempo em que ha "liyoes" ou "aulas". Nao ha duvida encontrados em outros contextos nas sociedades modernas e,
de que 0 poder disciplinar s6 pode ser sistematicamente gerado no entanto, tambem se colocam em relevo contra estes. As
pela "aglomerayao" de seres humanos em cenarios especificos "instituiyoes totais" envolvem geralmente 0 que Goffman cha-
e fisicamente demarcados. Mas certamente Weber esta com a ma de "morte civil" - a perda do direito de voto e de envoIvi-
razao quando diz que a disciplina administrativa e mais eficaz mento em outras formas de participayao politica, de deixar
quando outros aspectos das vidas dos individuos sao separados dinheiro em testamento, preencher cheques, contestar uma
dela, pois ela envolve a aplicayao regularizada de criterios de ayao de div6rcio ou adotarurn filho. Mas, alem disso, os reclu-
conduta que nao se coadunam com a realizayao de atividades sos nao possuem, simplesmente, esferas separadas de atividade
em outras esferas da vida. Isso nao se deve apenas aos fatores em que as recompensas negadas nurn setor possarn ser busca-
que ele menciona, mas tambem anatureza "automatica" da dis- das num outro. 0 comentario de Goffman sobre a questao e
ciplina. Foucault depara dificuldades a esse respeito. A questao muito pertinente:
nao consiste somente em que os seres humanos resistem a ser
tratados como automatos, 0 que Foucault aceita; a prisao e urn Portanto, existe incompatibilidade entre as instituic;oes to-
tais e a estrutura basica de pagamento pelo trabalho de nossa
local de luta e resistencia. Trata-se sobretudo do fato de que os
sociedade. As instituic;oes totais sao tambem incompativeis com
"corpos" de Foucault nao sao agentes. Ate as mais rigorosas Dutro elemento decisivo de nossa sociedade: a familia. A vida
formas de disciplina pressupoem que os que lhes estao subme- familial e as vezes contrastada com a vida solitilria, mas, na rea-
tidos sao agentes humanos "capazes", senda essa a razao de lidade, urn contraste mais adequado poderia ser feito com a vida
eles terem de ser "educados", ao passe que as ffiaquinas sao me- em grupo, pois aqueles que comem e dormem no trabalho, com
ramente projetadas. Mas, a menos que estejam sujeitos a mais urn gropo de companheiros de servi90, dificilmente podem man-
extrema privayao de recursos, os agentes capazes sao susceti- ter uma existencia domestica significativa. ll
veis de se submeterem a disciplina unicamente durante partes
do dia - geralmente como uma concessao em troca de recom- Foucault considera os procedimentos de investigayao do
pensas que derivam de se ficar liberto dessa disciplina em outros direito penal, da psiquiatria e da medicina como ilustrativos da
periodos. natureza do poder disciplinar em geral, especialmente quando
Nesse aspecto, a leitura de Goffman sobre "instituiyoes aplicados no ambito das organizayoes carcerarias. Mas, uma
totais" pode ser mais instrutiva do que a de Foucault, pois 0 pri- vez mais, as "instituiyoes totais" destacam-se neste aspecto
meiro sublinha que 0 ingresso em prisoes ou manicomios e como diferentes dos percursos da vida cotidiana dos que estao
comprovadamente diferente de se movimentar entre outros ce- do lado de fora. Aquilo a que Goffman chama de "territ6rios do
nilrios em que 0 individuo podera passar partes do dia. As "ins- self" sao ali violados de urn modo que nao se aplica aos que vi-
tituiyoes totais", em virtude de seu carater abrangente, impoem vern fora de seus muros. Quatro caracteristicas principais das
uma disciplina totalizante aos que ne1as sao intemados. 0 "ajus- "instituiyOes totais" podem ser mencionadas em relayao a isso.
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184 A CONSTITU[(;AO DA SOClEDADE I TEMPO, ESPA(:O E REGIONALlZA(:AO 185

1) Os metOdos de interrogat6rio transgridem freqiientemente 0 te reduzida. As formas de controle que os reclusos procuram
que a maioria da popula,ao encara como legitima prerroga- exercer sobre suas vidas no dia-a-dia tendem a concentrar-se
tiva de "reserva de informa,ao" acerca do eu e acerca do sobretudo na prote,ao contra a degrada,ao do self. A resisten-
corpo. Por outras palavras, os dados sobre as caracteristicas cia e certamente urna dessas formas e, sem davida, uma ques-
e a conduta preterita dos reclusos - os quais seriam freqiien- tao importante que, em certa medida, se impoe, seja qual for a
temente considerados desabonadores ,por eles e pelos ou- politica que 0 pessoal administrativo adote na implementa,ao
tros, e protegidos pela supressao ou pelo tato - sao compila- dos procedimentos disciplinares. Mas varias outras formas de
dos em dossies it disposi,ao do quadro administrativo. rea,ao podem ser identificadas. Elas incluem 0 que Goffman
2) Ha urna dissolu,ao das fronteiras entre fechamento e abertura chama de "coloniza,ao", a constru,ao de urn mundo toleravel
que ordinariamente servem para proteger urn sentimento de nos intersticios do tempo e espa,o administrados, e de "afasta-
seguran,a ontol6gica. Assim, pode ser que a excre,ao, a ma- mento situacional", a recusa, por assim dizer, em continuar com-
nuten,ao da higiene e da aparencia nao s6 tenbam de ser rea- portando-se como se espera de urn agente capaz. Mas prova-
lizadas publicamente, mas tambem fiquem sujeitas ao con- velmente 0 mais cornuro entre prisioneiros, assim como entre
trole de outros. os "doentes mentais", e simplesmente "ficar frio" e "se virar
3) Com freqiiencia, hi rela,oes for,adas e continuas com outros. como puder". Goffman descreve adequadamente essa condu-
Por conseguinte, assim como para as atividades relaciona- ta como "uma combina,ao algo oportunista de ajustamentos
das com 0 asseio pessoal, tampouco existem regioes de tras secundarios, conversao, coloniza,ao e lealdade para com 0 gru-
em que setores da vida social possam estar livres das exi- po de internados. [...]""
gencias disciplinares feitas em outras regioes. Tal como Nao hi davida, como multos estudos sociol6gicos demons-
Bettelheim, Goffman assinala que, em "institui,oes totais", traram, de que tais grupos de reclusos podem exercer conside-
os seres humanos sao reduzidos a estados de dependencia ravel controle sobre as atividades do dia-a-dia, mesmo nas or-
infantil 12 • ganiza,oes carcerarias mais rigorosamente disciplinadas. Mas
4) A seria,ao temporal de atividades, a curto e a longo prazo, e os moldes de controle exercidos por subordinados em outros
especificada e controlada. Os reclusos, os internados, nao contextos, como 0 do trabalho, sao possivelmente mais nume-
possuem "tempo livre" ou "urn tempo s6 deles", como os rosos devido a uma forma adicional de contraste desses con-
trabalhadores. Alem disso, aqueles que se submetem a exa- textos com os carceranos, que esta no interesse dos superiores
mes seriais ou passaro por esta.gios seriais de uma carreira hierarquicos em submeter ao seu controle autoritario as ativi-
no mundo exterior tambem esmo aptos, nonnalmente, a com- dades desses subordinados para a execu,ao de tarefas designa-
pensa-los com outras unidades temporais de padrao diferente. das. Em prisoes ou manic6mios, a "disciplina dos corpos" e
A distribui,ao temporal de casamento e cria,ao dos filhos, quase uma descri,ao do que ocorre; 0 pessoal administrativo
por exemplo, e iniciada separadamente daquelas pertencen- nao esta preocupado em produzir urn esfor,o de colabora,ao
tes a outras esferas da vida. com vistas it atividade produtiva, ao contrario do que acontece
nos locais de trabalho e nas escolas, em que os gerentes tern de
Em organiza,oes carcerarias, 0 significado da dialetica do obter por meios persuasivos urn certo nivel de performance dos
controle ainda e consideravel. Existem contextos em que essa trabalhadores. Neste caso eles se preocupam nao s6 com a dife-
autonomia especificameute caracteristica do agente humano - rencia,ao de tempo-espa,o e com 0 posicionamento dos cor-
a capacidade de "ter atuado de outra maneira" - esta seriamen- pos, mas tambem com a coordena,ao da conduta dos agentes,
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186 A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE TEMPO, ESPA90 E REGIONALIZA9AO 187

cujo comportamento precisa ser canalizado de formas definidas minismo e 0 pensamento modemo sao incapazes de conceber
para produzir resultados cooperativos. Os corpos de Foucault de qualquer outro modo salvo como "nao-razao". Nas culturas
nao tern rostos. Em circunstancias de vigiliincia no local de tra- tradicionais ou, pelo menos, na Europa medieval, afolie conti-
balho - onde a vigiliincia significa supervisao direta, em qual- nha sua propria razao, permitindo algo como urn acesso direto
quer caso -, a disciplina envolve urna soma consideravel de a Deus. Mas em meados do seculo XVII e dai em diante, "a
"trabalho face a face" e 0 exercicio de estrategias de controle loucura deixou de ser, nas margens do mundo, do homem ou da
que tern, em parte, de ser elaboradas por agentes no proprio morte, uma figura escatologica; a escuridao em que os olhos
ato. 0 "acondicionamento" no tempo-espa,o de agrupamentos da loucura foram treinados, da qual nasceram as formas do im-
de individuos em locais confinados, onde pode ser efetuada uma possive!, evaporou-se [...]"". Mas talvez essa concep,ao invis-
supervisao continua em circunstancias de co-presen9a, tern ta a !oucura de uma grandeza que ela nao tern e nunca teve. Ao
obviamente enorme importiincia para a gera,ao de poder disci- colocar a loucura como a outra face da razao, ela pode expres-
plinar. Mas a exigencia de trabalharem em colabora,ao para sar apenas aquelas teses iluministasque simula depreciar. Pode
conseguirem algurn tipo de resultado produtivo da aos agentes muito bern ser que as pistas para 0 carater da loucura ou, em
uma base de controle sobre as opera,5es cotidianas do local de suas roupagens modemas, da "doen,a mental" nao se encon-
trabalho que pode enfraquecer a eficacia da supervisao. Super- trem na extravagiincia de falsas cren,as, alucina,5es, vis5es de
visores e gerentes estao lilo conscientes disso quanto qualquer outros mundos, mas nas caracteristicas muito mais comuns da
urn e, com freqiiencia, ap6iam-se nessa consciencia para 0 tipo impropriedade corporal e gestual. A incapacidade social, nao
de politica disciplinar que adotam". Algumas das formas de urn misterioso acesso a urn continente perdido de nao-razao,
controle acessiveis aos trabalhadores num espa,o disciplinar podera expressar sua natureza real.
solidamente integrado (par exemplo, a possibilidade de inter-
romper ou paralisar todo urn processo de produ,ao) nao existe
onde uma for,a de trabalho esta desagregada no tempo e no
Referencias
espa,o.
Permitam-me apresentar urn comentario final sobre Fou- Tempo, espar;o e regionalizar;a.o
cault e Goffinan. Ambos os autores tern como urn dos temas
predominantes de suas respectivas obras 0 posicionamento e a 1. Ver Hagerstrand, T. "Space, time and human conditions". In:
disciplina do corpo. Tal como Foucault, Goffman tambem ex- Karlqvist, A. Dynamic Allocation of Urban Space. Farnborough,
plorou extensamente as questoes sabre a natureza da "loucura". Saxon House, 1975; Gregory, Derek. Ideology, Science and Hu-
A preocupa,ao comurn de ambos com as organiza,5es carcera- man Geography. Londres, Hutchinson, 1978; "Solid geometry:
rias poderia levar-nos a perder de vista as diferen,as em suas notes on the recovery of spatial structure" .In: Carlstein, T. et alii.
respectivas concep,5es da loucura. A perspectiva de Goffinan Timing Space and Spacing Time. Londres, Arnold, 1978; Carlstein,
questiona radicalmente a de Foucault no que diz respeito as rela- T. Time Resources, Society and Ecology. Lund, Department of
Geography, 1980; Pred, Alan. "The choreography of existence:
,5es entre "insanidade" e "razao". Foucault argumenta que aqui-
comments on Hagerstrand's time-geography". Economic Geo-
la a que chamamos de "loucura" - OU, acompanhando 0 triunfo graphy, vol. 53,1977; Parkes, Don e Thrift, Nigel. Times. Spaces
da metMora medica, "doen,a mental" - foi criado em tempos and Places. Chichester, Wiley, 1980; Thrift, Nigel. "On the determi-
relativamente recentes. Loucura e 0 lado sombrio, suprimido, nation of social action in space and time". Society and Space, vol. 1,
seqiiestrado, da consciencia e da paixao hurnanas, que 0 llu- 1982.
 188 A CONSTITUIr;A'O DA SOCIEDADE 189
TEMPO, ESPAr;O E REGIONALIZAr;A'O

2. Hagerstrand, T. "Space, time and human conditions", cit.; cf. tarn- University of Chicago Press, 1981. Poderiamos assinalar que,
bern: Parkes, Don e Thrift, Nigel. Times, Space and Places, cit., enquanto "ano", "mes" e "dia" tern vinculos com eventos naturais,
pp,247-8, "semana" nao tern; cf. Colson, F. H. The Week. Cambridge, Cam-
3. Pred, Alan. "The impact of technological and institutional inno- bridge University Press, 1926.
vations of life content: some time-geographies observations". 17. Aries, P. Centuries ofChildhood. Harmondsworth, Penguin, 1973;
Geographical Analysis, voL 10, 1978.
Elias, Norbert. The Civilising Process. Oxford, Blackwell, 1978.
4. Hagerstrand, T. Innovation as a Spatial Process. Chicago, Chica-
18. Hall, Edward T. The Hidden Dimension. Londres, Bodley Head,
go University Press, 1967, p. 332; cf. tambom: Hawley, Amos H.
1966, p. 98.
Human Ecology. Nova York, Ronald Press, 1950, caps. 13-5;
19. Artaud, Antonin. Le theatre et la science. Paris, SeuiI, 1947, p. 98.
Ericksen, E. Gordon. The Territorial Experience. Austin, Uni-
20. Laing, R. D. Self and Others. Harmondsworth, Penguim, 1971,
versity ofTexas Press, 1980.
p. 52. [Edi9ao brasileira: 0 eu e os outros, Editora Vozes, 4~ edi-
5. Segundo Parkes, Don e Thrift, NigeL Times, Spaces and Places,
cit., p. 245. ,ao,1978.]
6. Janelle, D. G. "Spatial reorganisation: a model and concept". Annals 21. CCHM,p. 169.
a/the Association ofAmerican Geographers, vol. 58,1969, e ou- 22. Benyon, Huw. Working for Ford. Londres, Allen Lane, 1973,
tros artigos pelo mesmo auter. p.76.
7. Forer, P./n: Carlstein, T. et alii. Timing Space and Spacing Time, 23. Elias, Norbert, op. cit., vol. 1.
cit. 24. Goffman, Erving. The Presentation of Seif in Everyday Life.
8. Palm, R. e Pred, A. "A time-geographic perspective on problems Nova York, Doubleday, 1959,p.128.
of inequality for women". In: Lanegran, D. A. e Palm, R. An In- 25. Cf. Elias, N. e Scotson, J. The Established and the Outsiders. Lei-
vitation to Geography. Nova York, McGraw-Hill, 1978. cester, University of Leicester Press, 1965.
9. Hagerstrand, T. "Survival and arena: on the life-history ofindivi- 26. Weber, Max. Economy and Society. Berkeley, University of Ca-
duals in relation to their geographical environment". In: Carlstein, lifornia Press, 1978, vol. 1, pp. 341-4.
T. et alii. Timing Space and Spacing Time, cit., vol. 2, p. 123. 27. CSAS, cap. 9.
10. Carlstein, T. "Innovation, time-allocation and time-space pac- 28. CCHM, cap. 5 passim.
king", ibidem, p. 159; Carlstein, T. Time Resources, Society and 29. Bourdieu, Pierre. Outline of a Theory of Practice. Cambridge,
Ecology, cit. Cambridge University Press, 1977, pp. 143-52.
11. Cf. Carlstein, T. "The sociology of structuration in time and 30. Ibidem, p. 153.
space: a time-geographic assessment ofGidden's theory". Swedish 31. Pollard, Andrew. "Teacher interests and changing situations of
Geographical Yearbook, Lund, Luod University Press, 1981. survival threat in primary school classrooms". In: Woods, Peter.
12. Hagerstrand, T. "What about people in regional science?". Papers Teacher Strategies. LondIes, Croom Helm, 1980.
ofthe Regional Science Association, vol. 24, 1970, p. 8. 32. Collins, Randall. "Micro-translation as a theory-building strategy".
13. CCHM, capitulo 5. In: Knorr-Cetina, K. e Cicourel, A. V. Advances in Social Theory
14. Ibidem, pp. 161 ss.; CPST, pp. 206-10. and Methodology. Londres, Routledge, 1981. Ver lambom: idem.
15. Melbin, M. "The colonisation of time". In: Carlstein, T. et alii. "On the micro-foundations of macro-sociology". American Jour-
Timing Space and Spacing Time, cit., vol. 2, p. 100. nal ofSociology, vol. 86,1981. Para os pensamentos de Goffman
16. Zerubavel, Evitar. Patterns ofTime in Hospital Life. Chicago, Uni- sobre 0 assunto - apresentados numa conferencia que, lamentavel-
versity ofChicago Press, 1979, p. 22; cf. lambem: Clark, P. A. "A mente, ele nao viveu 0 bastante para proferir - ver: "The interac-
review of the theories of time and structure for organisational tion order". American Sociological Rc;.view, vol. 48, 1973.
sociology". University ofAston Management Centre Working Pa- 33. Ibidem, p. 82.
pers, n. 248, 1982; ZerubaveI, Evilar. Hidden Rythms. Chicago, 34. Ibidem, p. 99.
 ,
e!

190 A CONSTITUf(;:A-O DA SOCIEDADE

Capitulo IV
Estrutura, sistema, reprodufiio social
35e Rykwert, Josephe The Idea oja Towne Londres, Faber & Faber,
1976, p. 202.
36. CCHM, cap. 5.

Notas criticas: Foucault sabre distribuit;iio de tempo e de espat;o

I. Foucault, M. Discipline and Punish. Harmondsworth, Penguin, 1979,

pp. 143-4.
2. Ibidem, p. 148.
3. Cf. Feld, Maury D. The Structure oj Violence. Beverly Hills,
Sage, 1977, pp. 7 SSe Tentarei aqui assegurar-me de que as principais linhas do
4. Ibidem, p. 7. presente estudo nao fiquem desagregadas dernais na mente do lei-
5. Doom, Jacques van. The Soldier and Social Change. Beverly tor, resurnindo 0 proposito geral das se90es precedentes do livro.
Hills, Sage, 1975, p. II.
Na tearia da estrutura9ao, urna serie de dualismo ou oposi90es
6. Foucault, M. Discipline and Punish, cit., p. 157.
7. Ibidem, p. 160. fundamentais para outras escolas de pensamento social sao re-
8. Weber, Max. Economy and Society. Berkeley, University ofCa-
conceituados como dualidades. 0 dualismo "individuo" e "so-
lifomia Press, 1978, pp. 86-94. ciedade", em particular, e reconceituado como a dualidade agen-
9. Ibidem, p. 957. cia e estrutura. Ate 0 momento, concentrei-me principalmente
10. Foucault, M. Discipline and Punish, cit., pp. 235-6. no desenvolvimento de urna serie de conceitos que servem para
II. Goffin'll, Erving. Asylums. Harmondsworth, Penguin, 1961, p. 22. elucidar a que 0 "individual' e como agente reflexivo, ligandol
[Edi~iio brasileira: Manicomios, prisoes e conventos. Editora Pers- reflexividade com posicionamento e co-presen9a. Entretanto, a
pectiva, 1974, p. 22.J discussao da regionaliza9ao come9a apontando 0 caminho no
12. Ibidem, p. 33 [po 31 da edi9ao brasileira].
sentido de mostrar como esses interesses se entrecruzam com 0
13. Ibidem, p. 64 [po 62 da edi9ao brasileira].
estudo de sistemas sociais estendidos sobre vastos lapsos de
14. Cf. Friedman, Andrew L. Industry and Labour. Londres, Mac-
millan, 1977. tempo-espa90. Portanto, 0 passo seguinte consiste em observar
15. Foucault, M. Folieetderaison. Paris, Pion, 1961, p. 51. A preocupa- em maior detalhe 0 conceito de sociedade, considerado por
<;ao de Foucault com exclusao, seqiiestra9ao etc. nao eacompanhada muitos a principal unidade de analise nas ciencias sociais. 0 ter-
de uma preocupa<;ao com os proprios excluidos, que aparecem mo precisa ser examinado cuidadosamente, e proporei a conve-
apenas como figuras indistintas. Assim, em sua analise do caso niencia de evitar alguns usos por completo.
do homicida Pierre Riviere, 0 proprio personagem mal se destaca do Em certas tradi90es da teoria social, 0 conceito de socie-
°
depoimento discutido, qual e tratado apenas como urn "episodio dade esta caracteristicamente ligado de modo direto ao de coer-
discursivo". A descri9ao de Carlo Ginzburg da cosmologia de Men-
9ao. De fato, a tendencia dos defensores da sociologia estrutural
nochio, urn herege do seculo XVI, oferece uma compara9ao sig-
e de considerar a coer9ao de alguma forma como a caracteristi-
nificativa a esse respeito. Ver: Foucault, M. et alii. Moi, Pierre
Riviere... Paris, PIon, 1973; Ginzburg, Carlo. The Cheese and the ca definidora dos fenomenos sociais. Rejeitando esse ponto de
Worms. Londres, Routledge, 1989, pp. xvii-xviii passim. vista, tentarei esclarecer a asser9ao de que as propriedades es-
truturais dos sistemas sociais sao simultaneamente facilitadoras
e coercivas, e especificarei como deve ser entendida a "coer9ao
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192 A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;:AO SOCIAL 193

estrutural". 1880, por sua vez, envolve indicar como muitos con- facilmente definiveis foi influenciada por numerosos e nocivos
ceitos associados com 0 de "estrutura" poderiam ser mais bern pressupostos nas cii'mcias sociais, Urn deles e a propensao para
formulados. Contudo, essa formula,ao nao pode ser desenvolvi- entender "sistemas sociais" em estreita rela,ao conceptual com
da inteiramente num nlve! conceptual. Assim como forneci os sistemas biologicos, os corpos de organismos biologicos.
alguma substiincia a discussao de agencia e self na forma de Sao muito poucos os que hoje usam analogias orgiinicas diretas na
uma descri,ao da motiva,ao, apresentarei tambem uma classi- descri,ao de sistemas sociais, como era a tendencia de Durkheim,
fica,ao e interpreta,ao de tipos sociais para substanciar a ana- Spencer e muitos outros pensadores sociais do seculo XIX.
lise de propriedades estruturais. Isso, par sua vez, leva-nos de Mas os paralelos implicitos continuam sendo muito comuns,
volta a questaes de "historia", 0 que preparara 0 caminho para mesmo entre aqueles, por exemplo, que falam de sociedades
urn exame de problemas de analise da mudan,a social no capi- como "sistemas aberlos". Urn segundo fator e a preponderiin-
tulo seguinte. cia do que eu chama de "modelos desdobraveis" ou "endoge-
Urn livro tern urna forma sequencial, que pode ser superada, nos" nas ciencias sociais 1*, os quais pressupoem que as princi-
em certa medida, "circulando para dentro e para fora" de urna se- pais caracteristicas estruturais de uma sociedade, governando
rie de questaes encadeadas, mas que tern, inevitavelmente, cada tanto a estabilidade quanto a mudan,a, sao internas a essa so-
urna delas, seu proprio espa,o de apresenta,ao. A luz da aborda- ciedade. E bastante evidente a razao pela qual isso se liga com
gem que fiz no Capitulo I, penso que, embora as se,aes sobre frequencia ao primeiro tipo de concep,ao: imagina-se que as
agente e co-presen,a precedam no texto as relacionadas com sis- sociedades tern propriedades analogas as que controlam a for-
temas sociais mais amplos, nao se presurnira que estou concep- ma e 0 desenvolvimento de urn organismo. Finalmente, cum-
tualmente "come,ando com 0 individuo" ou que para mim os pre mencionar a tendencia generalizada de estender a todas as
individuos sejam reais de urn modo que as sociedades nao 0 sao. formas de totalidade social caracteristicas que, de fato, sao es-
Nao aceito qualquer desses pontos de vista, como as "Notas criti- pecificas das sociedades modernas enquanto na,aes-Estados.
cas" em apendice a este capitulo devem deixar bern claro. As na,aes-Estados tern fronteiras territoriais clara e precisamen-
te delimitadas, mas outros tipos de sociedade, de muito longe
as mais numerosos na Historia, nao as tem2 .
Sociedades, sistemas sociais A resistencia a esses pressupostos pode ser facilitada se
reconhecermos que as totalidades sociais so sao encontradas
E facil ver que, no uso comurn, 0 termo "sociedade" tern dentro do contexto de sistemas intersociais distribuidos ao lon-
dois sentidos principais (entre outras coisas, enquanto "socieda- go das extremidades do tempo-espa~o (ver pp, 287-9). Todas
de" na acep,ao de "alta sociedade"): urn abrange a conota,ao as sociedades sao sistemas sociais e, ao mesmo tempo, consti-
generalizada de intera,ao ou "associa,ao social"; 0 outro e a tuidas pela interse,ao de multiplos sistemas sociais. Estes podem
no,ao de que "urna sociedade" constitui urna unidade, com fron- ser totalmente "internos" as sociedades ou transpor as linhas
teiras que a distinguem de outras que a circundam, A ambigui- divis6rias entre 0 "interior" e 0 "exterior", fonnando uma diver-
dade do termo envolvendo esses dois sentidos emenos infeliz do sidade de possiveis modos de conexao entre totalidades sociais
que parece, pois as totalidades sociais nem sempre tern frontei- e sistemas intersociais. Os sistemas intersociais nao saO imagi-
ras claramente demarcadas, embora estejam tipicamente asso-
ciadas a formas definidas de local. A tendencia a supor que as
sociedades, como totalidades sociais, sao unidades de estudo * As referencias podem seT encontradas a pp. 260-3.
1 I

194 A CONSTITUIr;:A'O DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;:AO SOCIAL 195

mirios e envolvem caracteristicamente formas de rela9ao entre com clareza, separando-os de outros. a grau de "sistemidade"
sociedades de diferentes tipos. Jodas estas podem ser estudadas e muito variavel. "Sistema social" tendia a ser uma expressao
como sistemas de domina9ao'em termos de rela90es de auto- favorita dos funcionalistas, que raramente abandonaram por
nomia e dependencia vigentes entre eles. As "extremidades do completo as analogias organicas, e dos "teoricos do sistema",
tempo-espa90" lJ'ferem-se a jnterconexoes, e a diferenciais de po- que tinham em mente ou sistemas fisicos OU, uma vez mais,
der, encontrados entre distintos tipos sociais, incluindo os sis- alguns tipos de forma9ao biologica. Admito que urna das prin-
temas intersociais. cipais caracteristicas da teoria da estrutura9ao seja considerar
Em suma, as "sociedades" sao, pais, sistemas sociais que problematicos a extensao e 0 "fechamento" de sociedades no
"se destacam" em baixo-relevo de urn fundo constituido por tempo e no espa90.
toda uma serie de outras rela90es sistemicas, nas quais elas es- A tendencia a adotar as na90es-Estados como formas
tao inseridas. Destacam-se porque principios estruturais defi- "tipicas" da sociedade, por referencia as quais outras podem
nidos servem para produzir urn "aglomerado de institui90es" ser avaliadas, e tao forte na literatura da teoria social que vale a
global especificavel atraves do tempo e do espa90. Esse aglo- pena desenvolver este ponto. as tres criterios acima mendona-
merado e a primeira e mais bisica caracteristica identificadora dos aplicam-se diferencialmente em varios contextos sociais.
de uma sociedade, mas foram assinaladas outras tambem'. Es- Considere-se, por exemplo, a China tradicional nurna data rela-
tas incluem: tivamente recente, cerca de 1700 da nossa era. E comurn entre
os sinologistas falar-se de "sociedade chinesa" nesse periodo.
I) Vma associa9ao entre 0 sistema social e urn local ou territo- Sob esse rotulo, os estudiosos analisam fenomenos como as
rio especifico. as locais ocupados por sociedades nao sao institui90es do Estado, a pequena nobreza rural, unidades eco-
necessariamente areas fixas. As sociedades nomades erram nomicas, padroes de familia etc., considerando tudo isso con-
em percursos tempo-espa90 de tipos variaveis. vergente com urn sistema social global especificavel, a "China".
2) A existencia de elementos normativos que envolvem a pre- Mas a "China", assim designada, refere-se apenas a urn peque-
no segmento do territorio que urn funcionario do govemo teria
tensao de legitima ocupa9ao do local. as modos e estilos de
considerado a terra dos chinese';.. De acordo com sua perspecti-
tais pretensoes de legitimidade podem, e claro, ser de muitos
va, existia somente uma sociedade na Terra, centrada na "Chi-
tipos e ser contestados em maior ou menor grau.
na" enquanto capital da vida cultural e politica, mas dilatando-
3) A preponderiincia, entre os membros da sociedade, de senti-
se de modo a incluir urna diversidade de barbaros nas areas lim!-
mentos de que possuem alguma identidade comum, COmo
trofes exteriores. Embora estes ultimos atuassem como se fos-
quer que esta se expresse ou se revele. Esses sentimentos sem agrupamentos sociais distintos dos chineses, eles eram
podem ser manifestos tanto na consciencia pritica quanta na considerados oficialmente pertencentes a China. as chineses
consciencia djscursiva e nao pressup5em urn "consenso de de 1700 incluiam no conceito de "China" 0 Tibete, a Birmania
valor". as individuos podem estar conscios de pertencer a e a Coreia, porquanto estavam, em certos aspectos, ligados ao
urna coletividade determinada sem concordar em que isso centro. Existe urna base para a n09ao mais restrita de "China"
seja necessariamente correto e apropriado. adotada pelos historiadores e cientistas sociais ocidentais. Mas
mesmo a aceita9ao de que havia urna "sociedade chinesa" dis-
E importante voltar a enfatizar aqui que a expressao "sis- tinta em 1700, separada do Tibete etc., significa geralmente
tema social" nao deve ser entendida como designando somente colocar sob essa designa9ao varios milhOes de grupos etnica-
feixes de rela90es sociais cujas fronteiras estao assinaladas mente dist!ntos do sui da China. Essas tribos consideravam-se
 196 A CONSTITUII:;AO DA SOClEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr:;AO SOCIAL 197

independentes e detentoras de seus proprios orgaos de govemo. nao tivessem tais contatos tratariam os de alem-fronteira como
Elas eram, contudo, continuamente molestadas por represen- membros de seu proprio povo e nao como estrangeiros de um
tantes governamentais chineses, que as tratavam como perten- outro estado. Suponhamos, porem, que encontrassem alguem da
centes ao Estado central. provincia de Kan-su, no noroeste do Estado T' o-pa, Essa pes-
As modernas na,oes-Estados ocidentais sao unidades admi- soa seria tratada como completamente estranha, mesmo que
nistrativas altamente coordenadas no plano intemo, quando estivesse trabalhando ao !ado deles nos campos, falaria outra
comparadas as sociedades agrarias em maior escala. Levemos lingua (provavelmente urn dialeto mongol ou tibetano), vestir-
agora 0 exemplo urn pouco mais para mis, para a China do se-ia de maneira diferente e teria costumes distintos. Tanto 0
seculo V, e indaguemos que vinculos sociais poderiam existir campones qlianto 0 forasteiro provavelmente nao teriam cons-
entre urn campones chines da provincia de Ho-nan e a classe ciencia de que ambos fossem "cidadaos" do imperio T' o-pa,
dominante T' o-pa. 0 campones estava no mais baixo nivel da Os sacerdotes budistas da epoca tambem representavam
ordem hirarquica, do ponto de vista dos membros da classe algo fora do comum. Mas, com a exce,ao de uma pequena
dominante. Mas suas rela,oes sociais eram muito distintas do minoria, diretamente nomeada pela nobreza T' o-pa, a fim de
mundo social do T' o-pa. A maioria de seus contatos seria com servir em seus templos oficiais, eles tinham da mesma forma
outros, na familia nuclear e extensa: muitas aldeias compu- escasso contato com a classe dominante. 0 local deles, onde
nham-se unicamente de membros da linhagem. Os campos suas vidas estavam concentradas, era 0 mosteiro, mas apresen-
estavam costumeiramente organizados de tal modo que os tavam extensas redes de re!a,oes sociais, que iam desde a Asia
membros de grupos de linhagem raras vezes se encontravam Central ate 0 suI da China e a Coreia, Os mosteiros abrigavam
com alguem que nao fosse seu afim no decorrer do dia de tra- pessoas de origem etnica e lingiiistica muito diferente, reuni-
balho. 0 campones teria visitado aldeias vizinhas, e talvez uma das por seus objetivos religiosos comuns. Sua erudi,ao distin-
cidade da regiao, apenas em duas ou trIOs ocasioes por ano. Na guia essas pessoas de outros agrupamentos sociais, Os sacer-
pra,a do mercado de uma aldeia ou cidade vizinha, ele teria dotes budistas cruzavam as fronteiras estaduais sem restri,oes,
encontrado outras classes ou categorias de pessoas - artifices, indiferentes aqueles de quem eram nominalmente "suditos".
mercadores, artesaos e urn funcionilrio subaltemo da adminis- Contudo, nao eram considerados estranhos a sociedade chine-
tra,ao estatal, a quem ele pagaria os impostos. Durante toda a sa, como aconteceu a comunidade arabe de Cantao no periodo
sua vida, com toda a probalidade, nunca tera visto um T' o-pa. T' ang, A admipistra,ao estatal lratava essa comunidade, em al-
Os funcionarios locais, que visitavam a aldeia, teriam de rece- guns aspectos, como pertencente a sua juridis,ao, requerendo
ber quotas de cereal ou tecido. Mas 0 aldeao provavelmente dela 0 pagamento de impostos e instalando reparti,oes espe-
evitaria quaisquer outros contatos com 0 funcionalismo dos ciais para lidat com seus membros, Mas tambem se reconhecia
escaloes superiores, se algum dia eles fossem iminentes, pois que ela pertencia a uma ordem social separada e, por conse-
poderiam potencialmente significar escaramu,as com a justi- guinte, nao estava no mesmo nivel de outras dentro do dominio
,a, prisao ou servi,o militar for,ado.
do Estado, Urn exemplo final:
As fronteiras reconhecidas pela administra,ao T' o-pa nao
teriam coincidido com a extensao das atividades do agricultor, No seculo XIX, encontramos na provincia de Yun-nan 0 do-
se este estivesse em certas areas no Ho-nan. Durante todo 0 minic politico de uma burocracia que era controlada por Pequim
periodo T' o-pa, numerosos camponeses e agricultores manti- e representava 0 govemo "chines". Havia aldeias e cidades nas
veram contatos com membros de seus clas que viVlam do outro planicies, habitadas por Qutros chineses que interatuavam com
lado da fronteira, nos estados meridionais. Mas aqueles que os representantes do govemo e, em certa medida, se identificavam
198 A CONSTITUI<;AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODU<;AO SOCIAL 199

com este. Mas nas encostas das montanhas havia outros gropos, "sociedades". A regionaliza9ao de amplo espectro nao deveria
teoricamente tambem suditos cia China, mas vivendo suas pr6- ser tratada como simplesmente composta de rela90es agrega-
prias vidas, ate onde Ihes era permitido, e tendo seus proprios das entre "sociedades". Esse ponto de vista possui alguma vah-
valores e institui90eS, inclusive seu proprio sistema economico. dade quando aplicado ao mundo modemo de na90es-Estados
A intera<;ao com os chineses que viviam no vale era minima e internamente centralizados, mas nao quando se fala de eras an-
restrita avenda de Ienha e compra de sal e texteis. Finalmente, teriores. Assim, para alguns fins, toda a zona afro-eurasiana pode
havia com freqiiencia urn terceiro gropo no topa das montanhas, ser tratada como urna unidade. A "civiliza9ao", de 6000 a.c.
tarnbem com suas pr6prias institui<;oes, lingua, valores e reli- em diante, nao se desenvolveu apenas enquanto cria9ao de cen-
giao. Podemos, se quisennos, contornar essas condi<;oes qualifi-
tros divergentes; foi, em certos aspectos, uma continua expan-
cando essa gente de "minorias". Entretanto, quanta mais recua-
do for 0 periodo estudado, mais se verifica que essas aparentes sao de "para fora" da zona afro-eurasiana como urn todo'.
minorias eram, oa verdade, sociedades auto-suficientes, autono-
mas, apenas vagamente ligadas entre si, as vezes, por vinculos
econornicos e ocasional intera9aO; 0 relacionarnento dessas so- Estrutura e coer9ao: Durkheim e outros
ciedades com 0 poder dorninante era tipicamente 0 de urn sudito
com 0 conquistador no fmal de uma guerra, seodo minimos os A maioria das formas de sociologia estrutura1, de Durkheim
contatos de ambos os lados. 4 em diante, foram inspiradas pela ideia de que as propriedades
estruturais da sociedade formam influencias coercivas sobre a
Ao pensar em unidades maiores do que Estados imperiais, a9 ao . Em contraste com essa concep9ao, a teoria da estrutura-
temos de evitar cair no etnocentrismo, algo tao facil de aconte- 9ao baseia-se na proposi9ao de que a estrutura e sempre tanto
cer. Somos hoje facilmente propensos a falar da "Europa" como facilitadora quanta coerciva, em virtude da rela9ao inerente
urna entidade sociopolitica distinta, por exemplo, mas isso fre- entre estrutura e agencia (agencia e poder). Esui tudo muito
qtientemente resulta de uma leitura da Hist6ria as avessas. Co- bern, poderia dizer urn crhico ~ e alguns, de fato, disseram' -,
mo sublinharam muitos historiadores interessados em perspec- mas essa concep9ao nao sacrifica, de fato, qualquer coisa se-
tivas mais amplas do que as concentradas em na90es ou mesmo melhante a "coer9ao" estrutural no sentido dado por Durkheim?
"continentes", se 0 complexo de sociedades que se estendem Falar de estrutura como coerciva e facilitadora nao sen! fazer
por toda a Afro-Eurasia fosse dividido em dois, nao faria muito seu elogio sem substancia? Pois na teoria da estrutura9ao a
sentido urna separa9ao entre a Europa como uma por9ao (0 "estrutura" e definida como regras e re<:ursos. Talvez seja facil
"Ocidente") e 0 resto como 0 "Oriente". A bacia mediterranica, ver como a estrutura, nesse sentido, est:! implicada na gera9ao
por exemplo, era urna unidade hist6rica antes do Imperio Ro- de a9ao, mas as coisas nao sao rno evidentes quando a coer9ao
mano e durante centenas de anos subseqtientemente. A india, intervem, pois parece nao haver maneira de sustentar a "exter-
deslocando-se para 0 Oriente, marcou urna disjun9ao cultural nalidade" dos fen6menos sociais em rela9ao a atividade indivi-
maior do que a das varias terras do Oriente Medio com aquelas dual. Essa n09ao deve ser defendida, poder-se-ia sugerir, sejam
que confinam com a "Europa"; e houve urna descontinuidade quais forem as lacunas nos escritos dos principais responsaveis
ainda maior com a China. Como expressou laconicamente urn por afirma-Ia. Assim, Carlstein observa:
historiador, "0 Himalaia foi ainda mais eficaz do que 0 Hindu-
Kush"'. As diferen9as entre importantes "areas culturais" eram, urn importante inconveniente no paradigma de Giddens e que os
com freqtiencia, nao muito menos marcadas do que as existen- aspectosfacilitadores cia estrutura nao sao suficientemente con-
tes entre as unidades que reconheceriamos ordinariamente como trabalan9ados pelos aspectos coercivos. as principios de limita-
 I
200 A CONSTITUIr;AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA. REPRODUr;AO SOCIAL 201
vaa sao pouquissimos e, ao dizer isto, nao me refiro simplesmen- das figuras parentais. Em seus primeiros escritos, Durkheim
te as coer~5es morais-Iegais-normativas de natureza social enfa- enfatizou os elementos coercivos da socializa,ao, mas depois
tizadas por Durkheim e Parsons, isto e, as estruturas de legitimi-
ele passou, de fato, a perceber com clareza cada vez maior que
<;:ao. Refiro-me, outrossim, as coer~oes basicas de mediafQO e
a socializa,ao funde a coer,ao com a facilita,ao. [sso e facil-
limitafQO de recursos que tern suas ralzes em certas realidades
mente demonstrado no caso da aprendizagem de uma primeira
bi6ticas e fisicas da existencia. Sem duvida, a estrutura tambem
deve implicar limites a varia<;:ao e a contingencia em sistemas lingua. Ninguem "escolhe" sua lingua patria, embora aprender
sociais (sistemas socioambientais). E claro, existe margem para a fali-la envolva elementos definitivos de submissao. Como
a varia<;:iio e a criatividade humana. A Hist6ria provou repetidas qualquer lingua cerceia 0 pensamento (e a a,ao) no sentido de
vezes como a aplica<;:ao de ideias e inven<;:oes em todos os domi- que pressupoe uma serie de propriedades articuladas e gover-
nios da pratica altera a estrutura recebida. Mas esta ultima e nadas por regras, 0 processo de aprendizagem lingiiistica fixa
maci<;:amente inclinada para 0 passado e impoe uma severa sele- certos limites a cogni,ao e a atividade. Mas, na mesma ordem
9ao as coisas que sao produzidas e reproduzidas. [... ]8 de ideias, a aprendizagem de uma lingua tambem expande imen-
samente as capacidades cognitivas e praticas do individuo.
Argumentarei aqui, porem, que a teoria da estrutura,ao Urn segundo contexto em que Durkheim tende a falar de
nao minimiza, de maneira nenhuma, a importancia dos aspec- coer,ao tampouco oferece dificuldades l6gicas para a teoria da
tos coercivos da estrutura. Mas a "coer,ao", tal como e discuti- estrutura,ao. Entretanto, temos de ser cuidadosos para evitar
da na sociologia estrutural, tende a apresentar numerosos senti- alguns dos dilemas que as pr6prias analises de Durkheim fazem
dos (a terminologia de Durkheim, com 0 valor que tern, oscilou surgir nesse ponto. As totalidades sociais, sublinha ele, nao s6
realmente entre os termos contrainte' e coercition); e a "coer- preexistem e sobrevivem aos individuos que as produzem em
,ao" nao pode ser considerada a unica qualidade definidora de suas atividades, mas tambem se expandem no espa,o e no tem-
"estrutura". po para alem de qualquer agente considerado singularmente.
Na teoria da estrutura,ao, a estrutura sempre foi concebi- Nesse sentido, as propriedades estruturais dos sistemas sociais
da como uma propriedade dos sistemas sociais, "contida" em sao certamente exteriores as atividades do "individuo". Na teoria
priticas reproduzidas e inseridas no tempo e no espa,o. Os sis- da estrutura,ao, 0 essencial desse ponto pode ser assim apre-
temas sociais estiio organizados hienirquica e lateralmente den- sentado. As sociedades humanas, au as sistemas sociais, nao
tro de totalidades sociais, cujas institui,oes formam "conjuntos existiriam, em absoluto, sem a agencia humana. Mas nao se
trata de que os agentes, ou autores, criam sistemas sociais: eles
articulados". Se esse ponto for ignorado, a no,ao de "estrutura"
os reproduzem ou transformam, refazendo 0 que ja esta feito na
na teoria da estrutura,ao revela-se mais idiossincrasica do que
continuidade da praxis'. A medida de distanciamento tempo-
realmente e. Uma das circunstancias que Durkheim geralmente
espa,o e importante aqui. De modo geral (embora, por certo,
associa a coer,ao (tambem sugerida na cita,ao de Carlstein)
nao universalmente), e verdade que quanto maior for 0 distan-
depende da observa,ao de que a longue duree de institui,oes
ciamento tempo-espa,o de sistemas sociais - quanto mais suas
tanto precede quanto ultrapassa as vidas dos individuos nasci-
institui,oes se fixam com firmeza no teplpo e no espa,o - tanto
dos numa determinada sociedade. [sso nao s6 e inteiramente
mais eles resistem a manipula,ao ou mudan,a por qualquer
compativel com a teoria da estrutura,ao, como tambem inerente agente individual. Esse significado de coer,ao tambem esta
em sua pr6pria formula,ao - embora a "socializa,ao" do indi- acoplado a facilita,ao. 0 distanciamento tempo-espa,o fecha
viduo na sociedade deva ser vista como envolvendo urn proces- algumas possibilidades de experiencia humana, ao mesmo tempo
so temporal mutuo, conectando os "ciclos vitais" da crian,a e que abre outras.
f

202 A CONSTITUJ(;AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;AO SOCIAL 203

A formula,ao dessa questao pelo proprio Durkheim, porem, sentimentos e sinto a realidade deles dentro de mim, esta nao dei-
e insuficiente, porque enunciada na terminologia do que viria a xa de ser objetiva, pais esses deveres nao foram estabelecidos
ser chamado por numerosos autores de as "propriedades emer- por mim. [... ]11
gentes", Assim, Durkheim comenta:
o ponto aqui e que os "fatos sociais" tem propriedades
A dureza do bronze naq vern do cobre, do estanho ou do que confrontam cada individuo particular como caracteristicas
chumbo, que serviram para fonmi-Io e sao corpos moles e due- "objetivas" que limitam 0 ambito de a,ao desse individuo, Eles
teis, mas sim de sua mistura. A fluidez da agua, suas proprieda- nao sao apenas externos mas tambem externamente definidos,
des de slistento e olltras nao se encontram nos dais gases que a incorporados no que outros fazem ou no que consideram certo
compoem, mas na substancia complexa resultante de sua asso- e adequado fazer,
ciac;ao. Apliquemos esse principia a sociologia. Se, como nos Certamente ha algo de correto quanta a essa pretensao,
daD par certo, essa sintese sui generis que constitui teda socie-
mas Durkheim foi impedido de expressa-Ia de modo satisfato-
dade da origem a fenomenos novos, diferentes dos que ocorrem
nas consciencias isoladamente, e fon;oso admitir que esses fatos
rio por causa das ambiguidades acerca da no,ao de externali-
especificos residem na propria sociedade que os produz e nao dade, Ao ligar externalidade e coer,ao, sobretudo em seus es-
em suas partes, quer dizer, em seus membros. Sao, portanto, nes- critos mais antigos, ele quis refor,ar uma concep,ao naturalista
se sentido, exteriores a consciencia dos individuos enquanto tais, de ciencia sociaL Por outras palavras, quis buscar apoio para a
do mesmo modo que os aspectos distintivos da vida sao exteriores ideia de que existem aspectos discerniveis da vida social go-
as substancias quimicas que compoem 0 ser vivo. IO vernados por for,as analogas as que operam no mundo mate-
riaL E claro, a "sociedade" nao e manifestamente externa aos
Transcrevi esta passagem com alguma extensao porque e atores individuais exatamente no mesmo sentido em que 0 meio
muito conhecida e tem sido frequentemente citada como uma Ihes e externo, Assim, 0 paralelo resulta ser, na melhor das
formula,ao particulannente persuasiva, Os sistemas sociais hipoteses, um tanto vago, e uma preocupa,ao a respeito subsis-
possuem propriedades estruturais que nao podem ser descritas tiu incomodamente na obra subsequente de Durkheim, de par
em termos de conceitos pertinentes aconsciencia dos agentes. com 0 reconhecimento de que a "faticidade" no mundo social
Mas os atores humanos, como "agentes competentes" reconhe- e, em certos aspectos basicos, um fenomeno muito diferente da
civeis, nao existem separados uns dos outros como 0 cobre, 0 "generosidade" da natureza.
estanho e 0 chumbo, Eles nao se reunem ex nihilo para formar Durkheim concentrou-se sobretudo nas coer,oes sociais
uma nova entidade gra,as a sua fusao ou associa,ao, Neste em suas varias discussoes da natureza da sociologia. Entretan-
ponto, Durkheim confunde uma concep,ao hipotetica de indi- to, como Carlstein sublinhou muito corretamente - e como eu
viduos num estado natural (oilo maculados pela associa,ao com acentuei antes, apoiando-me no tempo-geografia de que ele pro-
outros) com processos reais de reprodu,ao sociaL prio se ocupa -, as coer,5es fundamentais sobre a a,ao estao
Uma terceira circunstancia em que a '''coen;ao'' aparece associadas as influencias causais do corpo e ao mundo mate-
nos escritos de Durkheim esta em justaposi,ao com 0 escopo riaL Ja assinalei que essas coer,5es sao consideradas de impor-
de a,ao do agente. Ele da 0 seguinte exemplo, entre outros: tancia essencial na teoria da estrutura,ao, Capacidade e restri-
Quando fa90 meu papel de innao, marido ou cidadao, quan- ,5es de acoplamento, dentro de cenarios materiais definidos,
do satisfaco os compromissos que assumi, cumpro deveres que "selecionam" (como ele disse) de fato as possiveis formas de
estiio definidos, para alem de mim e de meus atos, no direito e atividade em que os seres humanos se envolvem, Mas esses
nos costumes. Mesmo quando esmo de acordo com meus proprios fenomenos tambem sao, ao mesmo tempo, caracteristicas faci-
I
204 A CONSTITUJ(;JO DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODU,AO SOCIAL 205

litadoras de a~ao. Alem disso, como acentuei, existem importan- abrir certas possibilidades de a~ao, ao mesmo tempo que res-
tes deficiencias nas formula~5es usuais de tempo-geografia. tringem ou negam outras. E importante enfatizar esse ponto,
Os aspectos acima de coer,ao/facilita~ao nao sao a mes- porque mostra que aqueles (incluindo Durkheim e muitos ou-
rna coisa que (nem sao redutiveis a) opera,5es de poder na vida tros) que alimentaram a esperan~a de descobrir urna identidade
social. De fato, a sociologia de Durkheim pode ser considerada distintiva para a "sociologia" na identifica~ao da coer~ao es-
irremediavelmente falha a respeito da ausencia de uma concep- trutural envolveram-se nurn empreendimento inutil. Explicita-
~ao de poder distinta das propriedades coercivas generalizadas mente ou nao, a tendencia desses autores foi de enxergar na
dos "fatos sociais". Consideremos uma ultima e celebre passa- coer~ao estrutural uma fonte de causa~ao mais ou menos equi-
gem de Durkheim, Diz ele que a coer,ao e valente a opera,ao de for~as causais impessoais na natureza, 0
raio de "a,ao livre" dos agentes e restringido, por assim dizer,
intrinsecamente uma caracteristica dos fatas [sociais]. [...] a pro- por for,as externas que fixam limites estritos ao que eles po-
va disso e que ela se afirrna assim que teota resistir. Se teota vio- dem realizar, Quanto mais a coer~ao estrutural esti associada a
lar as regras do direito, elas reagem contra mim de modo a impe- urn modelo da ciencia natural, paradoxalmente, maior a liber-
dir minha ac;ao, se aioda for passivel. Altemativamente anulam dade do agente - dentro de qualquer espa~o de a,ao individual
ou tomarn minha ac;ao ajustada it nonna, case ja tenha sido exe- deixado aberto pela interven,ao da coer,ao, Por outras pala-
cutada, mas seja reparavel; ou fazem corn que eu seja punido por vras, as propriedades estruturais dos sistemas sociais sao como
ela, se nao hOllver fonna de reparac;ao. [...] Noutros casas, a
as paredes de urn quarto de onde 0 individuo nao pode fugir,
coen;:ao e menos violenta, mas nao deixa de existir. Se nao me
mas em cujo interior ele consegue movimentar-se a vontade, A
submeto as convenc;5es ordinarias, se meu modo de vestir nao
leva em conta os costumes seguidos em meu pais e em minha teoria da estrutura~ao substitui esse ponto de vista por outro
classe social, 0 riso que provoco e 0 distanciamento em que me que sustenta estar a estrutura implicita nessa mesma "liberdade
coloco produzem, ainda que de maneira mais atenuada, os mes- de a~ao" que e tratada como categoria residual e inexplicada
mos efeitos de uma puni9ao propriamente dita 12 • nas virias formas de "sociologia estrutural",

A coer~ao refere-se aqui a estrutura~ao de sistemas sociais

como formas de poder assimetrico, em conjun,ao com 0 qual Tres sentidos de "coefl;ao"
uma serie de san,5es normativas podem ser aplicadas contra
aqueles cuja conduta e condenada, ou desaprovada, por outros. Considerarei, em primeiro lugar, 0 significado de coer~ao
Como indica 0 enunciado de Durkheim, as coer,5es geradas com respeito a coer~ao material e a associada a san~5es, e pas-
por diferentes tipos de recurso podem variar desde a coer~ao sarei depois a estrutural. 0 que e coer,ao quando falamos dos
fisica nua e crua ate os metodos muito mais sutis de produzir aspectos coercivos do corpo e de sua localiza,ao em contextos
submissao. Mas nao traz beneficio nenhum fazer com que esse do mundo material? 0 termo refere-se, nesse caso, evidente-
significado da coer,ao se mescle aos outros, Alem disso, como mente, aos limites que as capacidades fisicas do corpo huma-
sublinhei com firmeza, 0 poder nunca e meramente uma coer- no, somadas as caracteristicas relevantes do ambiente fisico,
~ao, mas esti na propria origem das capacidades dos agentes imp5em as op~5es viiveis ao dispor dos agentes. A indivisibi-
de realizar as a~5es pretendidas. lidade do corpo, a finitude do tempo de dura,ao da vida e as
Cada uma das virias formas de coer~ao tambem e, pois, dificuldades de "acondicionamento" no tempo-espa~o, desta-
de diversas maneiras, urna for~a de facilita~ao. Elas servem para cadas por Hiigerstrand, sao outros tantos exemplos de tais limi-
 206 A CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADE
ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;JO SOC/AL 207
tes. As capacidades sensoriais e comunicativas do corpo huma- parada sob 0 jugo de outra ou de outras. Todas as outras san-
no sao ainda outros. Estamos tao habituados a trata-Ias como 90eS, par mais opressivas e abrangentes que possam ser, reque-
qualidades facilitadoras que e necessario proceder como que a rem algum tipo de aquiescencia por parte daqueles que se Ihes
urna reviravolla conceptual para deixar claro que tambem sao suhmetem - 0 que e a razao para 0 alcance mais ou menos uni-
coercitivas. Obviamente essas coer90es nao sao totalmente versal da dialetica de controle. Esse e urn terreno bastante
"'dadas", de uma vez por todas; a inven9ao da comunicayao ele- familiar. Ate mesmo a amea9a de morte e desprovida de qual-
tronica, por exemplo, alterou a rela9ao preexistente entre a pre- quer peso, exceto no caso de 0 individuo assim amea9ado valo-
sen9a e os meios sensoriais do corpo. Entre as categorias acima rizar, de algurna forma, a vida. Dizer que urn individuo "nao
mencionadas, a coen;:ao, nesse sentido, e a (mica que nao den- tinha outra allemativa que agir de tal e tal maneira", numa si-
va do impacto que as atividades ou liga90es sociais dos atores tua9ao tal significa, evidentemente: "Dado 0 seu desejo de nao
exercem sobre as de outros atores. A capacidade fisica e as res- morrer, a unica altemativa que the restou foi agir como agiu." E
tri90es de acoplamento sao limites para as vidas sociais viaveis claro, quando a amea9a apresentada por urna san9ao nao e tao
que as pessoas podem levar. letal, a submissao podera depender mais de mecanismos da cons-
a procedimento tempo-geogrifico, de come9ar a analise ciencia do que do medo de qualquer san9ao - algo, de fato, a
social partindo da identifica9ao de coer90es fisicas, e certa- que Durkheim conferiu consideravel enfase ao falar sobre
mente util se determinadas qualifica90es forem levadas em conta. "san.;oes marais". No caso das san90es, existem, obviamente,
Uma, como ja disse, esta em que as propriedades fisicas do importantes assimetrias na rela9ao coer9ao/facilita9ao. A coer-
corpo e seus milieux materiais de a9ao sao tanto facilitadores 9ao de uma pessoa e a facilita9ao de urna outra. Entretanto,
quanta coercivos, e esses dais aspectos tern de ser estudados como foi demonstrado pelas criticas as teorias de soma-zero,
juntos. Uma outra esta em que a identifica9ao de coer90es fisicas tais assimetrias nao esgotam, em absoluto, 0 aleance do con-
nao fomece combustivel para alimentar e defender urna inter- ceito de poder.
preta9ao materialista da vida social. Todos os seres humanos Devemos ter em mente, por urn lado, 0 sentido urn tanto
tern de defrontar as coer90es do corpo, seus meios de mobili- vago que os tennos como "aquiescencia", "complacencia" ou
dade e comunica9ao. Mas disso nao se segue que os modos de "submissao" tendem a ter e, por outro, 0 fato de que, de forma
enfrentar essas coer90es tenham, de algurn modo, uma influen- alguma, toda "aquiescencia" nurn dado conjunto de rela90es de
cia mais fundamental sobre a atividade social do que a de poder e diretamente motivada. Aquiescer nurn determinado curso
outros tipos de coer9ao. .-/ de a9ao poderia ser interpretado como a aceita9ao consciente
Voltando ao poder enquanto fonte de coer9ao, curnpre su- deste e ate mesmo a aceita9ao "voluntiria" das rela90es de poder
blinhar que ele e 0 meio de conseguir que as coisas sejam fei- mais amplas nas quais ele se insere. Entendida desse modo, a
aquiescencia cobriria apenas urna pequena e relativamente mar-
tas; em definitivo, e tanto facilitador quanto coercivo. as as-
ginal propor9ao de casos em que a conduta de urn ator ou agrega-
pectos coercivos do poder sao experimentados como sanr8es
do de atores se adequa ao desejo ou interesse de outros. Geral-
de vinos tipos, indo desde a aplica9ao direta da for9a ou da vio-
mente as san90es so sao muito "visiveis" quando algum tipo de
lencia, ou a amea9a disso, ate a expressao moderada de desa-
transgressao especificada realmente ocorre ou e percebida como
prova9ao. As san90es so muito raramente assurnem a forma de
suscetivel de ocorrer. Com freqiiencia, as rela90es de poder estao
compulsao a que aqueles que as sofrem sao totalmente incapa-
profundamente enraizadas em modos de conduta tidos por certos
zes de resistir, e mesmo isso pode acontecer apenas por urn breve
por aqueles que os adotam, muito especialmente no comporta-
momento, como quando uma pessoa fica fisicamente desam- mento rotinizado, 0 qual e apenas difusamente motivado.
 T
208 A CONSTITUII;AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;A-O SOCIAL 209
Coer y8.0 material Sam;ao (negativa) Coerr;ao estrutural tao poden\ ser tratada como 1\nica ou como urn conjunto multiplo
Coen;:ao resultante do Coerc;:eo resultante de de possibilidades, Ou seja, urn trabalhador pode ter a sua esco-
Coerc;:ao resultante da
carater do mundo respostas punitivas por conteldualidade da ac;:ao, Iha mais de uma oferta de emprego no mercado de trabalho. 0
material e das parte de alguns agentes ista e, do carater "dado",
qualidades ffsicas em relayao a outros ponto de vista de Marx, porem, e de que essas 0P90es sao efeti-
de propriedades
do corpo
es1ruturais vis~a-vis com vamente de urn s6 tipo. No que concerne as recompensas que
alares situados
oferecern ao trabalhador e de outras caracteristicas da rela9ao
o que e, pois, a coer9ao estrutural? Vma vez que a coer9ao trabalhador-empregador, todo trabalho assalariado e efetiva-
resultante de san90es forma urna categoria a parte, os outros pon- mente 0 mesmo - e supostamente se torna ainda mais assim
tos de Durkheim fundem-se nurn s6, se forem minuciosamente com 0 crescente desenvolvimento do capitalismo.
examinados. Dizer que a sociedade preexiste as vidas de cada urn Todas as propriedades estruturais de sistemas sociais tern
de seus membros individuais, em qualquer momenta dado, signi- uma "objetividade" similar vis-a-vis com 0 agente individual.
fica apenas identificar urna fonte de coer9ao, na medida em que o grau em que essas qualidades sao coercivas varia de acordo
sua preexistencia limita, de certo modo, as possibilidades abertas com 0 contexto e a natureza de qualquer sequencia dada de
a eles. Enfatizar que os individuos estao contextualmente situa- a9ao ou segmento de intera9ao. Por outras palavras, as 0P90es
dos em rela90es sociais de maior ou menor extensao significa viaveis ao alcance dos agentes podem ser maiores do que no
apenas, similarmente, identificar urna fonte de coer9ao, quando caso do exemplo do contrato de trabalho. Permitam-me reafir-
se mostra ate que ponto isso limita suas capacidades, Em cada mar uma vez mais 0 teorema segundo 0 qual todas as proprie-
caso a coer9ao provem da existencia "objetiva" de propriedades dades estruturais dos sistemas sociais sao tanto facilitadoras
estruturais que 0 agente individual e incapaz de mudar. Tal como quanta coercivas, As condi90es do contrato de trabalho capita-
no caso das qualidades coercivas das san90es, a coer9ao estrutu- lista podem favorecer substancialmente os patroes em compa-
ral e mais bern descrita como a JlXar;iio de limites gama de a ra9ao com os trabalhadores, Mas estes, como ficaram despro-
opr;oes a que urn ator, ou pluralidade de atores, tern acesso numa vidos de propriedade, dependem dos recursos que os patroes
dada circunstdncia au tipo de circunstancia. fornecem. Ambos os lados derivam seu sustento da rela9ao ca-
Consideremps 0 exemplo dado por Durkheim, 0 do cum- pital-trabalho assalariado, por mais assimetrica que ela possa ser.
primento de obriga90es contratuais, ou de urn tipo particular de Esta analise nao invalida os tipos de alega90es que os cien-
contrato, como 0 de trabalho. 0 contrato obviamente envolve tistas sociais e os historiadores podem fazer ao falarem de "for-
san90es legais rigorosamente definidas, mas deixemo-las con- 9as sociais" sem referencia as raz5es au intenl;oes dos agentes.
ceptualmente de fora. As rela90es contratuais da industria mo- Na analise institucional e licito estabelecer conexoes regulari-
derna colocam 0 individuo diante de urn conjunto de circUnS- zadas que sao colocadas de maneira "impessoal", Suponhamos,
tincias que limitam as 0P90eS disponiveis de a9ao. Marx diz a titulo de ilustra9ao, que isolemos uma rela9ao entre mudan9a
que os trabalhadores "devem vender-se" - ou, mais exatamen- tecnol6gica e padroes de organiza9ao administrativa em firmas
te, vender sua for9a de trabalho - aos patroes. Esse "devem" da comerciais. 0 uso crescente da tecnologia de microchips, diga-
frase expressa urna coer9ao que deriva da ordem institucional mos, poderia ser comprovadamente associado a urna dissolu-
da moderna empresa capitalista que 0 trabalhador defronta. Ha 9ao parcial de formas mais rigidas de autoridade hierirquica. A
apenas urn caminho de a9ao aberto para 0 trabalhador destitui- "for9a social" envolvida neste caso nao e como urna for9a da
do de propriedade: vender sua for9a de trabalho ao capitalista. natureza. As generalizac;oes causais nas ciencias sociais pres-
Quer dizer, existe para ele uma 1\nica op<;ao viavel, dado que supoem sempre uma "mistura" tipica de conseqiiencias preme-
possui a motiva9ao de desejar sobreviver. A "oP9ao" em ques- ditadas e impremeditadas de a9ao, com base na racionaliza9ao
 210 A CONSTITUlr;:AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL 211

da conduta, "implicada" no nivel da consciencia discursiva au interse,ao com aspectos facilitadores e coercivos dos contex-
no da consciencia pr:itica. A mudan,a tecnol6gica nao e algo tos social e material desse comportamento. Duas restri,oes
que ocorre independentemente dos usos dados a tecnologia precisam ser acrescentadas a essa observa,ao: uma relacionada
pelos agentes, dos modos caracteristicos de inova,ao etc. Ees- com 0 caniter historicamente mutavel da coen;ao; a Dutra, com
tranho que muitos soci610gos estruturais, que estao perfeita- o fenomeno da reifica,ao.
mente aptos a aceitar isso - que a tecnologia nao muda em e de
si meSma (como poderia ser?) -, nao parecem enxergar que
exatamente 0 mesmo se aplica as for,as sociais que vinculam a Coer,ao e reifica,ao
mudan,a tecnol6gica a fenomenos tais como as hierarquias
gerenciais. Seja como for, se como resultado principalmente de A natureza da coer,ao ehistoricamente variavel, bern como
urn planejamento consciente ou se de urn modo mais ou menos as qualidades facilitadoras geradas pelas contextualidades da
completamente impremeditado por qualquer dos envolvidos, a,ao humana. E variavel em rela,ao as circunstancias materiais
os atores modificam sua conduta e a de outros de tal forma a
e institucionais da atividade, mas tambem as formas de cog-
remodelar os modos de rela,oes de autoridade - supondo-se que
noscitividade dos agentes acerca dessas circunstancias. A com-
a conexao e, de fata, genuinamente causal.
preensao disso e uma das principais proezas do pensamento
Por que e que algumas for,as sociais tern urn aspecto apa-
marxista, quando nao reincidiu no objetivismo. Quando isso
rentemente '''inevitavel'' para eles? Eporque, em tais situa<;oes,
ocorreu, tomou-se apenas, do ponto de vista metodol6gico, mais
ha poucas op,oes abertas aos atores em questao, supondo-se
que se comportam racionalmente - neste casa, "racionalmente" uma versao da sociologia estrutural, insensivel aos multiplos
significa alinbar de modo efetivo os motivos com os resultados significados que, cumpre reconbece-Io, a coer,ao possui em
finais da conduta envoivida, seja ela qual for. Quer dizer, eles analise social. Por que existe tal insensibilidade? A resposta,
tern "boas razoes" para 0 que fazem, razoes que os soci610gos penso, e muito clara. Esta geralmente associada aqueles tipos
estruturais provavelmente aceitam mais implicitamente do que de pensamento social que supoem ser a finalidade das ciencias
explicitamente atribuir-lhes. Como essas boas razoes implicam sociais desvendar leis da atividade social que tenham urn status
uma escolha entre altemativas viaveis muito limitadas, a con- semelhante ao das leis cientificas naturais. Presume-se que
duta dos atores podera parecer impulsionada por algurna for,a procurar as fontes da "coen;ao estrutural" e mais au menos a
implacavel semelhante a uma for,a fisica. Existem muitas for- mesma coisa que apurar as condi<;oes regidas por leis, as quais
,as sociais a que os atores, numa acep,ao expressiva dessa estabelecem limites aliberdade de a,ao. Isso, para muitos auto-
frase, "sao incapazes de resistir". au seja, nada podem fazer a res, e exatamente onde'a "sociologia" encontra seu papel en-
respeito delas. Mas "nada podem" significa, neste caso, que eles quanta empreendimento distintivo entre as outras ciencias so-
nao sao capazes de fazer outra coisa que se sujeitarem as ten- ciais. Mas, de acordo com 0 ponto de vista aqui sugerido, produz
dencias em questao, sejam elas quais forem, dados os motivos uma forma de discurso reificado inadequado as reais caracte-
ou as metas que lhes inspiram a a,ao. risticas dos agentes hurnanos.
Admito como uma das principais implica,oes dos pontos A "reifica,ao" tern sido entendida de formas muito diver-
precedentes a inexistencia de urna entidade que constitua urn sas na literatura da teoria social. Entre esses usos divergentes,
tipo distinto de "explica<;ao estrutural" nas ciencias sociais; ta- tres sentidos caracteristicos podem ser mais comurnente dis-
das as explica,oes envolverao, pelo menos, referencia implici- cemidos. Urn deles e urn sentido animista, em que as rela,oes
ta ao comportamento deliberado, racional, dos agentes e a sua sociais sao atribuidas caracteristicas personificadas. Uma ver-
 •

212 A CONSTITUlf:;AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr:;AO SOCIAL 213

sao disso encontra-se na celebre analise de Marx do "fetichis- o conceito de principios estrutnrais
mo da mercadoria", na qual compara as rela90es da mercadoria
com as "regioes nebulosas do mundo religioso", Tal como na As implica90es das se90es precedentes deste capitulo po-
religiao, "as produ90es do cerebro humano se apresentarn como dem ser descritas da seguinte maneira. A coer9ao estrutural nao
seres independentes dotados de vida e estabelecem rela90es se expressa em termos das implacaveis formas causais que os
entre eles e com a ra.;a humana", 0 mesma ocorre no "mundo,das sociologos estruturais tern em mente quando tanto enfatizam a
mercadorias" com os "produtos saidos das maos dos homens"", associayao de "estrutura" com "coen;ao". As coer90es estrutu-
Urn outro sentido em que 0 termo reifica9ao e freqiientemente rais nao operam independentemente dos motivos e razoes dos
empregado refere-se as circunstancias em que os fen6menos agentes para 0 que fazem. Nao podem ser comparadas com 0
sociais tomam-se dotados de propriedades caracteristicas de efeito de, digamos, urn tenemoto que destroi uma cidade e seus
coisas, que eles, de fato, nao possuem. Uma vez mais, existe habitantes sem que eles possam fazer nada. Os 1\nicos objetos
uma respeitavel extra9ao dessa cunhagem em Marx: "No valor moventes em rela90es sociais humanas sao os agentes indivi-
de troca, a conexao social entre pessoas e transformada numa duais, que empregam recursos para fazer as coisas acontece-
relayao entre coisas. [... ]"14 Finalmente, 0 termo "reificar;ao" e rem, intencionalmente ou nao. As propriedades estruturais de
usado, por vezes, para designar caracteristicas das teorias so- sistemas sociais nao atuam ou "agem sobre" alguem como as
ciais que tratam os conceitos como se fossem os objetos a que for9as da natureza, para "compelir" 0 individuo a comportar-se
se referiram, ao atribuir propriedades a esses conceitos, de urn modo particular. (Para discussao mais ampla dos proble-
o segundo desses sentidos e 0 que adotarei, mas ele nao e mas da pesquisa empirica, ver pp. 358-66.)
aceitavel tal como se apresenta, porque subentende que a quali- Entretanto, existe uma serie de n090es adicionais perti-
dade de ser "proprio de coisa" nao necessita de qualquer expli-
nentes aquestao da "estrutura" em analise social, e elas reque-
ca9ao adicional e porque nao esclarece que a reifica9ao e uma
rem especial considera9ao. Examina-las-ei abordando pela ordem
n09ao discursiva. 0 conceito nao deve ser entendido simples-
as seguintes questoes: como deve ser desenvolvido 0 conceito
mente em referencia a propriedades dos sistemas sociais que
de "principio estrutural"? Que niveis de abstra9ao podem ser
sao "objetivamente dadas" no tocante a atores situados, especi-
distinguidos no estudo das propriedades estruturais de sistemas
ficos. Pelo contririo, ele deve ser visto como referente a for-
sociais? De que modo os diversos sistemas sociais se articulam
mas de discurso que tratam essas propriedades como "objetiva-
mente dadas" do mesmo modo como 0 sao os fen6menos natu- dentro de totalidades sociais?
rais. Isto e, 0 discurso reificado refere-se a "faticidade" com Na identifica9ao dos principios estruturais, 0 exame tern
que os fen6menos sociais confrontam os atores individuais de de retroceder do frontal para 0 mais substantivo. Lembrarei,
modo a ignorar como sao produzidos e reproduzidos atraves da para come9ar, urn dos elementos principais da teoria da estru-
agencia humana 15 • Assim, a reifica9ao nao deve ser interpreta- tura9 ao , apresentado no primeiro capitulo, 0 "problema da or-
da como 0 significado de "proprio de coisa" em tal conota9ao; dem" nessa teoria e 0 problema de como se cli, nos sistemas
antes, diz respeito as conseqiiencias de pensar nesses termos, sociais, a "liga9ao" de tempo e espa90, incorporando e inte-
quer esse pensar perten9a aqueles que se intitulam cientistas grande presen9a e ausencia. Is80, por sua vez, esta intimamente
sociais ou a membros leigos da sociedade. 0 "modo reificado" vinculado a problemitica do distanciamento tempo-espa90: 0
deve ser considerado uma forma ou estilo de discurso, no qual "estendimento" dos sistemas sociais ao longo do tempo-espa-
as propriedades dos sistemas sociais sao vistas como tendo a 90 , Assim, os principios estruturais podem ser entendidos
mesma fixidez pressuposta nas leis da natureza. como os principios de organiza9ao que permitem formas reco-
 214 A CONSTfTUIr;A-O DA SOCfEDADE ESTRlYTURA. SISTEMA. REPRODur;1.0 SOCIAL 215
nhecivelmente consistentes de distanciamento tempo-espa90 preponderantemente da intera9ao nos cenirlos de locais de alta
com base em mecanismos definidos de integra9ao social. Apoian- disponibilidade de presen9a. Eo claro que varios subtipos dife-
do-me numa serie de estudos comparativos e historicos", pro- rentes de sociedade podem ser distinguidos dentro dessa cate-
ponho uma classifica9ao de tipos de sociedade em tres: goria geral. Devo enfatizar que nao e minha pretensao apresentar
essa classifica9ao como um esquema evolucionista sub-repti-
cio. As culturas orais nao devem ser entendidas como socieda-
SOC1EDADE TRIBAL Tradiyao (praticas (FusaO das des em que a integra9ao de sistema "ainda nao" se desembara-
(culturas orais) comunitarias) integrac;:oes
90U da integra9ao social. Como Levi-Strauss, mais do que nin-
{ Parentesco social e de
Sanc;:oes grupais sistema) guem, fez por deixar bern claro, as sociedades tribais - nas quais
Organizar;ao de focal
a humanidade tern vivido, salvo numa pequena fra9ao de sua
Bandos ou aldeias
dominante: historia - sao substancialmente divergentes das "civiliza90es"
de qualquer tipo. A inven9ao da escrita, tao estreitamente liga-
saCIEDADE DIVIDfDA TradiC80 (praticas (Diferencia9ao
EM CLASSES
da it forma9ao de Estados e classes, altera 0 carater do tempo
comunitarias) das integra90es
Parentesco social e de
como experiencia vivida, pelos proprios meios com que permi-
Politica - poder militar sistema) te uma expansao do distanciamento tempo-espa90.
ESTADO{
Interdependencia
economica (baixa
o principio estrutural dominante da sociedade dividida
integrac;:ao lateral em classes - a qual, obviamente, inclui tambem uma serie de
e vertical) subtipos - encontra-se ao longo de um eixo que correlaciona as
OrganiZ8r;ao de local dominante: Simbiose de cidade e campo areas urbanas com seus hinterlands rurais. A cidade e muito
mais do que urn mero milieu fisico. Eo urn "recipiente de arma-
SOCIEDADE DE Rotinizac;:ao
CLASSES
(DiferenCia9ao zenagem" de recursos administrativos em tomo do qual sao
Parentesco (familia) das integra90es
(Capitalismo) Fiscalizacao social e de
construidos os Estados agririos. A diferencia9ao de cidade e
ESTADO
Politica - poder militar sistema) campo e 0 instrumento da separa9ao entre integra9ao social e
Interdepend€mcia
de sistema, embora uma e outra nao sejam necessariamente
economica (elevada
integrac;:ao lateral coincidentes, pois a rela9ao simbiotica de cidade e campo pode
e vertical) assumir varias formas'8. Nas sociedades divididas em classes,
Organizar;ao de local dominante: o "meio ambiente criado" as priticas tradicionais e as rela90es de parentesco, ate mesmo as
identifica90es tribais, mantem-se muito preeminentes. 0 Es-
tado nao consegue penetrar profundamente em costumes loca-
Esse esquema e descrito com algum detalhe em A Con- lizados, e 0 poder militar puro e simples constitui urn dos prin-
temporary Critique ofHistorical Materialism; farei agora ape- cipais esteios do oficialismo para "conter" as regioes mais afas-
nas um rapido comentario a respeito". Em sociedades tribais tadas, onde 0 controle administrativo direto e especialmente
ou pequenas culturas orais, 0 principio estrutural dominante fraco. A sociedade dividida em classes e marcada, entretanto,
opera ao longo de um eixo que relaciona tradi9ao e parentesco, por um certo destrin9amento das quatro esferas institucionais
inserindo-se no tempo e no espa90. Nessas sociedades, os meios anteriormente distinguidas (p. 39). A organiza9ao do Estado,
de integra9iio social e de sistema sao os mesmos, dependendo com seus funcionirios, e separada em parte dos procedimentos
caracteristicos da atividade economica; existem codigos for-
216 A CONSTITUlr;A-O DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;AO SOCIAL 217

mais de leis e puni9ao, e fazem-se sentir modos de coordena- Sociedades 1ribais ] Sistemas "pre-hist6rico" e fragmentario
9ao simbolica, baseados em textos escritos. Sociedades divididas em ]
o capitalismo moderno nao e urn tipo de "civiliza9ao" en- Sociedades tribais Sistemas mundiais imperiais classes
tre Guffos, e nao assinala urn desenvolvimento evolucionista "a
Sociedades capitalis1as
partir" das sociedades divididas em classes. Como 0 primeiro Sociedades divididas Economia mundial capi1aJista
tipo genuinamente global de organiza9ao social em toda a Ris- em classes primitiva
]
toria, ele tem suas origens nurna dupla descontinuidade no de- Sociedades tribais
senvolvimento do Ocidente. Existem divergencias de lange prazo Sociedades capitalista's
Bloeos de [
na forma9ao do Ocidente, em compara9ao com as outras prin- superpo- Sociedades socialistas
cipais "civiliza90es", durante urn periodo de uns dais milenios; tencias estatais
a Europa continuou sendo um "sistema de Estados", e nenhurn
"Parses em Economia capi1alista mundial
centro imperial dominante foi restabelecido em seu seio apos a desenvolvimento" contemporanea (sistema
desintegra9ao do Imperio Romano. Dentro dessa ampla diver- mundial de naryoes-Estados)
$ociedades divididas
gencia, entretanto, foi introduzida uma serie de grandes des- em classes
continuidades em rela9ao a outros tipos de sociedade, em vir- $ociedades tribais
tude das revolu90es politica e industrial interligadas a partir do
seculo XVIII em diante. 0 principio estrutural distintivo das so-
ciedades de classes do capitalismo moderno sera encontrado na Cumpre assinalar que esta classifica9ao nao e simetrica
separayao das institui90es estatais e econ6micas, ainda que em rela9ao a cronologia historica. A menor categoria figurati-
estas se mantenham interligadas. 0 tremendo poder economico vamente - os sistemas de sociedades tribais - e de longe a
gerado pela utiliza9ao de recursos de aloca9ao para urna ten- maior em termos de dura9ao. Os sistemas intersociais envol-
dencia generica no sentido do progresso tecnico e acompanha- vendo sociedades tribais, entretanto, sempre foram relativa-
do por uma enorme expansao do "a1cance" administrativo do mente fragmentarios, no sentido de que ficaram confinados no
Estado. A fiscaliza9ao - a codifica9ao de informa9ao pertinen- tocante as suas configura90es no tempo-espa90. Dominaram 0
te a administra9ao das popula90es suditas, mais a supervisao mundo durante a maior parte da historia humana, mas nao for-
direta por funcionarios e administradores de todos os tipos - maram "sistemas mundiais" na acep9ao de Wallerstein l9 . Quer
torna-se urn mecanismo decisivo para favorecer 0 abandono do dizer, as "civiliza90es" desenvolveram centros de poder que
sistema baseado na integra9ao social. As priticas tradicionais
influenciaram vastos segmentos do globe e "dispararam" 0 pro-
foram dispersadas (sem desaparecerem por completo, e claro)
cesso de rapida mudan9a social. Contudo, os sistemas mundiais
sob 0 impacto da penetra9ao de procedimentos administrativos
imperiais so existiram em rela9ao instavel com urna diversida-
codificados na vida cotidiana. Os locais que fornecem os cena-
de de formas de sociedades tribais e, com freqiiencia, sucumbi-
rios para a intera9ao em situa90es de co-presen9a passam por
ram aos ataques ou pressoes de tais sociedades. A fase de eco-
urn importante conjunto de transmuta90es. A antiga rela9ao ci-
nomia mundial capitalista primitiva foi transitoria na Ristoria,
dade-campo e substituida pela expansao crescente de urn "meio
ambiente criado" ou fabricado. nao durando mais de dois seculos. Entretanto, existiu nela uma
10: possive! formular urna classifica9ao de sistemas inter- variedade maior de tipos de sociedade inter-relacionadas do
sociais - de um modo geral, pelo menos - em termos de classi- que em qualquer outro periodo antes ou depois. Pois desde
fica9ao de tipos de sociedade dada acima, como segue: entao a crescente ascendencia das sociedades capitalistas oci-
218 A CONSTITUl<;A-O DA SOCIEDADE

dentais, desafiada somente pelas de socialismo de Estado", em

i ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODU<;AO SOCIAL

de analise institucional. Quer dizer, a analise desses principios

219

tennos de seu poder industrial e militar, destruiu ou corroeu refere-se a modos de diferencia9iio e articula9iio de institui90es
implacavelmente as sociedades tribais e divididas em classes, as atraves do tempo-espa90 de maior "profundidade". 0 estudo de
quais talvez estejam desaparecendo para sempre da face da Terra. conjuntos estruturais, ou estruturas, envolve 0 isolamento de dis-
o sistema mundial contemporiineo, pela primeira vez na historia tintos "grupos" de rela90es de transfonna9iio/media9iio impli-
hurnana, e aquele em que a ausencia no espa90 ja niio impede a citos na designa9iio de principios estruturais. Os conjuntos es-
coordena9iio de sistema. Sera necessario sublinhar, uma vez mais, truturais siio fonnados pela mutua conversibilidade das regras
que 0 desenvolvimento do sistema mundial de na9iio-Estado nao e dos recursos envolvidos na reprodu9iio social. As estruturas
e coetiineo com a expansiio da coesiio e do consenso? Pois os podem ser analiticamente distinguidas dentro de cada urna das
mesmos desenvolvimentos que criaram de imediato essa fonna tres dimensoes de estrutura9iio, significa9iio, legitima9iio e do-
distintivamente modema de sociedade, a na9iio-Estado, e seu en- mina9iio, ou atraves de todas estas. Apresentarei alhures uma
volvimento nurn sistema global de novo tipo, tambem geraram, ilustra9iio" sobre a qual farei agora urn comentario algo mais
ao mesmo tempo, cismas que, na era nuclear, amea9am a propria extenso. Trata-se do exemplo de propriedade privada na analise
sobrevivencia da hurnanidade como urn todo". de Marx do capitalismo moderno.
Consideremos 0 que esta envolvido no seguinte conjunto
estrutural:
Estruturas, propriedades estruturais

Conforme enfatizei antes, 0 conceito de estrutura pode ser propriedade privada : moeda :capital: contrato de trabalho : lucro
usado de urn modo tecnico e de urn modo mais geral. Entendida
como regras e recursos, a estrutura esta repetidamente suben-
tendida na reprodu9iio de sistemas sociais e e totalmente fun- As rela90es estruturais aqui indicadas demarcam urna das
damental para a teoria da estrutura9iio. Se usada de urn modo mais fundamentais transmuta90es envolvidas no surgimento
mais impreciso, pode-se falar dela em referencia as caracteris- do capitalismo e, por conseguinte, contribuem significativa-
ticas institucionalizadas (propriedades estruturais) das socie- mente para a estrutura9iio global do sistema. No feudalismo
dades. Em ambos os usos, "estrutura" e urna categoria generica (em minha tenninologia, urn entre outros tipos de sociedade
envolvida em cada urn dos conceitos estruturais abaixo indicados: dividida em classes), a propriedade privada dos meios de pro-
dU9iio baseava-se predominantemente na posse de terra, e esta
I) principias estruturais: principios de organiza9iio de totali- era limitada por numerosas restri90es no que concerne a alie-
dades sociais; nabilidade. Naquilo que diz respeito a essas rela90es de con-
2) estruturas: conjuntos de regras e recursos envolvidos na ar- versiio, elas estavam confinadas a setores marginais da econo-
ticula9iio de sistemas sociais; mia. No capitalismo, em contrapartida, a propriedade privada
3) propriedades estruturais: caracteristicas institucionalizadas dos meios de produ9iio assume urna farma diferente - a terra
dos sistemas sociais, estendendo-se ao longo do tempo e do passa a ser somente urn tipo entre outros recursos mobilizados
espa90 . dentro da produ9iio - e urna diversidade de bens torna-se livre-
mente alienavel. Essencial nesse processo, demonstrou Marx,
A identifica9iio de principios estruturais, e suas conjuntu- e a universaliza9iio da forma de mercadoria. A condkiio para
ras em sistemas intersociais, representa 0 nivel mais abrangente
 220 A CONSTITUIC;AO DA SOCIEDADE
1
,
ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUC;AO SOCIAL 221
tal universaliza,ao e urn desenvolvimento completo de urna
forma oposta, D-M-D, a moeda nao e despendida; ela e "passa-
economia moneta-ria. A maeda, diz Marx, e"a forma metamor-
da adiante" - 0 segredo da transforma,ao da moeda em capital.
foseada de todas as outras mercadorias, 0 resultado da aliena-
,ao geral deJas"". A moeda (ou dinheiro = D) representa, porum Na forma M-D-M, 0 mesmo elemento monetario muda de
lado, urna mercadoria vendida (M) e, por outro, urna mercado- lugar duas vezes, completando a transa,ao. Mas ocorre 0 con-
ria a ser comprada. D-M e uma compra, mas, ao mesmo tempo, trario na rela,ao D-M-D: neste caso, nao e a moeda que muda
e M-D, urna venda: "a metamorfose final de urna mercadoria e duas vezes de mao, mas a mercadoria. A transmuta,ao de moeda
a primeira metamorfose de outra" ou, como disse Quesnay em capital depende da renova,ao da opera,ao, de seu "reflu-
sabre a mesma coisa em suas Maximes generales, "vendre est xo", 0 qual somente a reJa,ao D-M-D possibilita. Assim, D-M-
acheter" [vender e comprar]. A diferencia,ao de mercadorias D deveria ser mais precisamente escrito como D-M-D', como
em mercadorias e dinheiro nao dissolve as diferen,as materiais urn processo expansionista. A circula,ao de mercadorias pas-
entre mercadorias; desenvolve, diz Marx, urn modus vivendi, sou a estar desligada neste caso de uma rela,ao direta com 0
"urna forma em que podem existir lado a lado"". valor de uso. 0 capital nao transaciona em valores de usa, mas
M-D-M, a mais simples forma de circula,ao de mercado- em valores de troca.
rias, constitui 0 ponto de partida do capital. Em contraste com a Entretanto, D-M-D' tanto pode representar capital mer-
propriedade fundiaria do feudalismo, 0 capital adota primeiro a cantil como capital industrial. Por conseguinte, e tao-somente a
forma do dinheiro - 0 capital do comerciante e do usmmo. A pri- "formula geral do capital". Vma rela,ao estrutural adicional
meira distin,ao entre dinheiro e capital e simplesmente uma esta subentendida no desenvolvimento do capital industrial ou
diferen,a na rela,ao de transforma,ao envolvida, expressa como manufatureiro, aquele que, tal como a natureza alterada da pro-
D-M-D. Esta formula expressa a transforma,ao de dinheiro em priedade privada, pressupoe urn importante processo de mudan-
mercadorias e de mercadorias de novo em dinheiro - por outras ,a social. Essa rela,ao e a possibilidade da transforma,ao do
palavras, comprar a fim de vender. 0 dinheiro que sofreu essa capital em trabalho e vice-versa, algo que pressupoe urna ex-
transforma,ao passou a ser capital. Tal como a outra rela,ao, a propria,ao maci,a dos trabalhadores do controle de seus meios
D-M-D envolve duas fases ligadas de transmuta,ao. Na primei- de produ,ao, de modo que eles tern de oferecer sua for,a de
ra, 0 dinheiro e convertido numa mercadoria; na segunda, a mer- trabalho para venda no mercado a fim de obter seu sustento. A
cadoria volta a ser convertida em dinheiro. Mas a combina,ao for,a de trabalho e uma mercadoria que tern, entre outras ca-
dessas fases, argumenta Marx, "constitui lUll s6 momento", pelo racteristicas, a de ser uma fonte da cria,ao de valor. 0 contrato
qual urna mercadoria e comprada para ser vendida. Poderia pare- de trabalho capitalista esta inerentemente envolvido na trans-
cer como se tivesse ocorrido urna simples troca de moeda por forma,ao da moeda num equivalente da for,a de trabalho. "Es-
moeda - mais ou menos, de acordo com 0 exito ou nao da transa- sa rela,ao nao tern uma base natural, e tambem sua base social
,ao. Mas quando a moeda se transformou em capital, passou por nao e comum a todos os periodos historicos. E claramente 0
urn "movimento caracteristico e original" de tipo muito distinto resultado de urn desenvolvimento historico passado, 0 produto de
daquele de, digamos, urn campones que vende trigo e usa muitas revolu,oes econ6micas, <:fa extin,ao de toda urna serie
dinheiro assim adquirido para comprar roupas. As transforma-
de formas mais antigas de produ,ao social."" Assim, 0 isola-
,oes envolvidas em D-M-D, comparadas com M-D-M, diferem
mento de tal conexao ajuda a diagrl.osticar UTI\a das caracteristi"
muito mais do que na mera diferen,a na "dire,ao" da troca.
cas estruturais essenciais da nova forma institucional constitui-
A diferen,a esta em que, na rela,ao M-D-M, a moeda e
da pelo capitalismo. 0 fato'de a for,a de trabalho ser uma mer-
convertida num valor de usa, 0 qual e entao "consurnido". Na
cadoria nao e especificado na "formula geral do capital".
 222 A CONSTITUlf:;:AO DA SOCIEDADE
1 ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUi;AO SOCIAL 223

·-0 contrato de trabalho capitalista pressup6e que empre- 0 Marx procura mostrar que a divisao do trabalho esta inti-
gador e 0 trabalhador "encontram-se no mercado" em circunstan- mamente vinculada a natureza da manufatura e, portanto, as
cias em que cada urn e "formalmente livre". Esse e um aspecto rela,6es estruturais descritas nos paragrafos precedentes deste
basico das rela,5es de classe do capitalismo. Urn e comprador, capitulo. A divisao do trabalho liga as caracteristicas estrutu-
o outro urn vendedor da for,a de trabalho. 0 "dono" desta ven- rais mais amplas do capitalismo, conforme previamente identi-
de-a somente por urn periodo definido, e assim tambem 0 em- ficadas, com a organiza,ao mais proxima da empresa industrial.
pregador a "adquire". A escravatura, em que algumas pessoas A manufatura, uma caracteristica saliente do capitalismo que
sao donas de outras, nao permite a mercadorifica,ao da for,a avan,ou para alem do comercio, esta associada a dois modos
de trabalho. 0 valor desta, em comum com 0 de outras merca- de surgimento de oficinas. Urn e a reuniao, sob 0 controle de
dorias, e governado pelo tempo de trabalho envolvido em sua urn determinado empregador, de trabalhadores com diferentes
produ,ao e, por conseguinte, pelo que e solicitado para garantir qualifica,6es num local especifico. Estas sao coordenadas na
a sobrevivencia fisica daqueles que fornecem trabalho. A trans- fabrica,ao de urn so produto. Mas tal coordena,ao tende tam-
forma,ao do aluguel da for,a de trabalho em lucro depende, e bern progressivamente a retirar aspectos das qualifica,6es ori-
claro, da gera,ao de mais-valia. 0 "tempo de trabalho necessa- ginalmente possuidas pelos trabalhadores, culminando na frag-
rio" e 0 cedido para a manuten,ao da fonte de for,a de traba- menta,ao de tarefas em processos "detalhadps", "cada urn dos
lho, 0 trabalhador; 0 trabalho excedente e a fonte de lucro. quais se cristaliza na fun,ao exclusiva de urn determinado tra-
balhador, sendo a manufatura, como urn todo, executada pelos
l' princfpios es1ruturais
homens em conjunto"". Urn segundo modo em que a manufa-
tura se produz e, de certa forma, 0 inverso disso. :E a reuniao
nlvel de ;,'09ra,'o
abstrayao
conjuntos estru1urais (estruturas) num local de um numero de trabalhadores que executam todos
social/sistemica
] a mesma tarefa, fabricando cada trabalhador 0 artigo completo.
I elementos J eixos de estruturayao
Entretanto, as "circunstancias externas", diz Marx, levam a
mudan,as na mesma dire,ao daquelas que ocorrem no primei-
Nao existe um ponto definido de separa,ao entre os tres ro tipo de cenario. Portanto, 0 trabalho e redistribuido; em vez
niveis de abstra,ao distinguidos no diagrama acima. A especi- de trabalhadores todos ocupados da mesma forma lado a lado,
fica,ao de conjuntos estruturais, conforme indicado anterior- as opera,6es sao decompostas em tarefas detalhadas, organiza-
mente, e de importancia bilsica para a elabora,ao de principios
das de modo cooperativo. A forma final e, assim, a mesma em
estruturaisglobais, mas uma tarefa funde-se obviamente com a
ambos os casos: "um mecanismo produtivo cujas pe,as sao se-
outra. 0 mesmo vale para 0 mais baixo nlvel de abstra,ao, 0
res humanos"28.
isolamento de elementos ou eixos de estrutura,ao. Distinguir
A divisao do trabalho detalhada e de suma importilncia para
elementos de estrutura,ao preserva a epoche da analise institu-
cional, mas traz 0 nivel de estudo para mais perto do exame a organiza,ao da empresa capitalista sob multiplos aspectos.
direto de rela,6es de co-presen,a. A fim de preservar a conti- Aumenta as oportunidades de fiscaliza,ao direta da for,a de
nuidade com a discussao precedente, prosseguirei examinando trabalho e a consolida,ao da disciplina de trabalho. Mas tam-
o ponto de vista de Marx a respeito de uma importante caracte- bern expressa e possibilita a conexao do trabalho, como fon;a
ristica da produ,ao capitalista: a divisao do trabalho. E uma de trabalho, com a tecnologia da produ,ao mecanica. Pois 0 "tra-
analise com a qual estou predominantemente de acordo, embo- balhador encarregado do detalhe" executa urn numero circuns-
ra meu principal proposito seja aqui ilustrativo". crito de opera,6es repetitivas que podem ser coordenadas com
 224 A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE
ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL 225
os movimentos de processos mecanizados de produ,ao. A divi-
de social para um outro. 0 que "deve acontecer" para ocorrerem
sao do trabalho dentro da empresa nao e simplesmente urn as-
certas condi,5es de reprodu,ao do sistema coloca-se como
pecto ou extensao da existente fora dela. A "divisao do traba-
uma questao contrafatual, nao como uma versao dissimulada de
lho na sociedade" depende da compra e venda de produtos de
funcionalismo.
diferentes setores da industria, ao passo que a de dentro da em-
Urn circuito de reprodu,ao pode ser esbo,ado num dia-
presa deriva da venda da for,a de trabalho de uma pluralidade
grama (ver a Figura 11):
de trabalhadores a urn empregador que a aplica de forma coor-
denada.

A divisao do trabalho dentro de uma oficina implica a au- I

I
toridade absoluta do capitalista sabre os hornens, estes simples
membros de urn mecanisme total que lhe pertence; a divisao
I
II monitora98,O reflexiva
da a98,O
H propriedades estruturais:
media9ao/lransforma98,O
H principios estruturais:
dominios institucionais
social do trabalho pressupoe produtores de mercadorias inde-
pendentes, que apenas reconhecem a autoridade da concorren-
cia. [...] Emuito caracteristico [acrescenta Marx, de modo caus-
tieD] que os apologistas entusiastas do sistema fabril nao tenham
nada mais condenatorio contra a organizacao geral de trabalho dualidade de
estrutura
social do que 0 fato de esta parler tamar a sociedade uma imensa
fabrica. 29
Figura 11
Analisar a divisao do trabalho desse modo e elucidar um
eixo de estrutura,ao que vincula a forma interna da empresa
'com aspectos mais amplos da totalidade social, indicando ao A reintrodu,ao da dualidade da estrutura significa aban-
mesmo tempo contrastes com a "divisao do trabalho na socie- donar 0 tempo-espa,o virtual da analise institucional, reen-
dade". Evidentemente, essas rela,5es poderiam ser explicadas trando desse modo na "Hist6ria". Todas as propriedades estru-
com muito maior detalhamento. Na amilise institucional, isso turais de sistemas sociais, para repetir urn tema dominante da
envolve pormenorizar as rela,5es de transforma,ao/media,ao teoria da estrutura,ao, constituem 0 veiculo e 0 resultado das
implicadas no "agrupamento" de pniticas institucionalizadas atividades contingentemente realizadas de atores situados. A
atraves do espa,o e do tempo. Entretanto, uma vez que abando- monitora,ao reflexiva da a,ao em situa,5es de co-presen,a e a
namos a epoche da analise institucional, todas as rela,5es estru- principal caracteristica de ancoragem da integra,ao social,
turais acima indicadas, em qualquer nivel, tern de ser examina- mas tanto as condi,5es quanta os resultados da intera,ao si-
das como condi,5es de reprodu,ao do sistema. Elas a ajudam a tuada estendem-se muito alem dessas situa,5es enquanto tais.
Os mecanismos de "estendimento" sao variaveis, mas nas so-
selecionar caracteristicas basicas dos circuitos de reprodufao
ciedades modernas tendem a envolver a pr6pria monitora,ao
implicitos no "estendimento" de institui,5es ao longo do espa,o
reflexiva. Isto e, compreender as condi,5es da reprodu,ao do sis-
e do tempo. Analisar circuitos de reprodu,ao, deve ficar claro,
tema passa a ser parte daquelas condi,5es de reprodu,ao do
nao e equivalente Ii mera identifica,ao de fontes de estabilidade
sistema como tais.
social. Serve, na verdade, para indicar algumas das principais
Podemos pesquisar essas observa,5es mais concretamen-
formas de troca envolvidas na transi,ao de urn tipo de totalida-
te retornando ao conjunto estrutural discutido antes. As duas
 226 A CONSTITUIi;:AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUi;:AO SOCIAL 227
transfonna,oes opostas mas complementares, M-D e D-M, so sar em tais circuitos como tendo alga em comum com os cir-
ocorrem, e claro, atraves das atividades de compradores e ven- cuitos eletranicos, os quais podem ser tra,ados num display
dedores atuando numa serie de cenarios divergentes. Segundo visual - as tecnicas graficas de tempo-geografia poderiam, de
Marx, a rela,ao M-D-M coloca tres drama/is personae em cor- fato, ser relevantes neste ponto. Os circuitos de reprodu,ao
rela,ao. 0 dono de uma mercadoria entra em contato com urn associados ao conjunto D-M-D' - como 0 proprio Marx deixa
detentor de dinheiro, tornando-se 0 dinheiro "sua fonna-equi- claro - dependem realmente de longos processos de mudan,a
valente transitoria". A moeda, 0 "tenno final da primeira trans- nao apenas no interior das sociedades mas tambem numa esca-
muta,ao", e a origem da terceira, a compra de uma outra mer- la internacional. A concentra,ao da popula,ao em areas urba-
cadoria30 , Mas, como Marx afirma, isso e insatisfat6rio, pais as nas de recente expansao (e internamente transformadas) cons-
rela,oes estruturais nao sao isomorficas para os atos de indivi- titui urn desses processos de mudan,a. Mas tao importante
duos correspondentes que os personificam. Ejustamente nessas quanta qualquer desses processos e a mecaniza,ao do trans-
tendencias da argumenta,ao de Marx que se pode ver donde porte, a tremenda expansao dos meios de comunica,ao a partir
Althusser deriva a corrobora,ao textual para a visao de que os do final do seculo XVIII e 0 desenvolvimento da comunica,ao
agentes humanos nac:la mais sao do que "suportes" para os mo- eletranica desde a inven,ao do codigo Morse,
dos de produ,ao. Alem disso, tambem e facil ver como seme-
lhante estilo de analise resvala no funcionalismo. Pois se as re-
la,oes entre propriedades estruturais, uma vez isoladas, sao tra- Contradi9ao
tadas como tendo SUa propria "dinfunica interna", mais como
necessidades funcionais do que como condi,oes continuamente Observa-se comumente que 0 conceito de contradi,ao
reproduzidas, as atividades de individuos historicamente situa- deveria pennanecer urn conceito logico, em vez de ser aplicado
dos parecem, de fato, algo redundantes. As condi,oes globais a analise social. De fato, e possivel ver consideravel justificati-
de reprodu,ao do sistema nao sao, em absoluto, "garantidas" va para tal julgamento, porque 0 tenno e freqiientemente
pelas rela,oes estruturais de que dependem (de modo contrafa- empregado de modo tao vago que nao tern qualquer liga,ao
tual). A analise dessas rela,oes no tempo-espa,o virtual tampou- com a contradi,ao em logica. Entretanto, uma vez usado com
co explica por que ocorrem. Isso significa que e sumamente certo cuidado, penso que ele e indispensavel em teoria social.
importante mudar a orienta,ao conceptual quando se passa de Proponho usa-lo em dois sentidos: 0 de "contradi,ao existen-
tal analise para 0 estudo das condi,oes de reprodu,ao do sistema. cial" e 0 de "contradi,ao estrutural". Cada urn deles preserva
Entendo por circuitos de reprodu,ao os "trajetos" clara- alguma cojJtinuidade com 0 uso logico do tenno, embora nao
mente definidos de processos que realimentam suas fontes, seja uma extensao direta desse uso,
quer tal feedback seja ou nao reflexivamente monitorado por Por contradi,ao existencial refiro-me a urn aspecto ele-
agentes em posi,oes sociais especificas. Quando Marx usa 0 mentar da existencia humana em rela,ao com a natureza ou
tenno "circuitos de capital" parece ter algo desse tipo em com 0 mundo material. Poder-se-ia dizer que existe urn antago-
mente; contudo, quero referir-me as condi,oes reais de repro- nismo de opostos no proprio amago da condi,ao humana, no
du,ao social, ao passo que ele usa as vezes 0 termo em referen- sentido de que a vida esta implieada na natureza e no entanto
cia ao que chamei de conjuntos estruturais. Os circuitos de nao e dela e e destacada dela. Os' seres humanos emergem do
reprodu,ao podem sempre ser utilmente examinados em ter- "nada" da natureza inorg1inica e desaparecem de volta a esse
mos da regionaliza,ao de locais. Nao hoi mal nenhum em pen- estado estranho do inorg1inico. Isso poderia parecer ser urn tema
 ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;AO SOCIAL 229
228 A CONSTITUJr;A-O DA SOCIEDADE
uma outra"32. A "mundivisao" ffiitica e os modos de representa-
francamente religioso e, como tal, pertencer ao dominio priva- ,ao que emprega servem para estabelecer homologias entre
tivo da teologia e nao ao da ciencia socia!. Mas considero-o, de c~di95es naturais e sociais OU, mais exatamente, possibilitam
fato, de grande interesse analitico, embora nao tente desenvol- a equipara,ao de contrastes significativos encontrados em di-
ver aqui essa asser,ao. ferentes pIanos: 0 "geografico, meteorologico, zoologico, bo-
A contradi,ao estrutural refere-se as caracteristicas consti- tanicD, tecnico, social, ritual, religioso e filos6fico"33.
tutivas das sociedades hurnanas. Sugiro que os principios estru- Os mitos sao mediadores cognitivos da contradi,ao exis-
turais operam em contradi,ao. 0 que quero dizer com isso e que tencia!. Isso significa que, no mito, os temas de incesto, de se-
eles funcionam em termos reciprocos mas, no entanto, tambem xualidade, de vida e morte sao explorados e "explicados" para
se contraditam". Nesse sentido, a "contradi,ao" pode ser ainda aqueles que os contam e aqueles que os escutam. Se as socie-
dividida em duas. Por contradi,5es primarias refiro-me aquelas dades tribais sao culturas frias - que nao sao apanhadas num
que entram na constitui,ao de totalidades sociais; por contradi- fluxo de mudan,a no qual suas institui,5es estao engrenadas -
,5es secunditrias entendo as que dependem de contradi,5es pri- naG e porque estejam parcamente "adaptadas" a natureza, co-
marias ou se originam nestas. Nao pretendo com isso apresentar mo diriam as teorias evolucionistas, Pelo contrario, e porque
simplesmente urna serie abstrata de distin,5es; elas tern de ser essas institui,5es se entremisturam com a natureza de modo
relacionadas com 0 estudo dos tipos de sociedade acima descri- imediato e envolvente. A contradi,ao existencial expressa-se
tos. 0 conceito de contradi,ao estrutural faz referencia a urna diretamente, por assim dizer, naquelas institui,5es em virtude
caracteriza,ao especifica do Estado. Exceto no caso da socieda- do papel fundamental do parentesco e da tradi,ao. As rela,5es de
de tribal, 0 Estado e considerado 0 foco (embora nao, como tal, parentesco sao 0 principal formato em torno do qual se cons-
tambem a origem) da contradi,ao estrutural primaria. troi aquela "'apreensao' concreta" dos individuos de que fala
Dos tres tipos de sociedade que distingui, as sociedades Levi-Strauss, Tambem constituem 0 meio pelo qual a vida e
tribais sao as que vivem em mais intima rela.;:ao com a nature- produzida - ou, no sentido original do termo, reproduzida, A
za. Nao me refiro com isso a seu desenvolvimento tecnologico tradi,ao, por outro lado, e a fonte da inje,ao de significado
OU, pelo menos, naa so a ele. Nas sociedades tribais, as seres moral no tempo reversivel da vida cotidiana; imersa nela, a fi-
hurnanos vivem intimamente uns com os outros, em condi,5es nitude da existencia individual e interpolada dentro de uma di-
de co-presen,a e dentro dos ritrnos da natureza em sua conduta mensao de intemporalidade mora!. Nao ha necessidade de re-
cotidiana; mas tambem integram 0 mundo natural cognitiva- tratar tais circunstancias da vida social como urn idilio a la
mente com suas atividades. Do ponto de vista das civiliza,5es - Rousseau; 0 ponto e que, quer na vida pastoril e bucolica pri-
em especial a do Ocidente moderno - isso e algo para ser visto mitiva, quer em culturas orais, expressa diretamente a proximi-
apenas negativamente, urn fracasso em ascender a urn nivel su- dade de humanidade e natureza.
perior nurna escala cognitiva. Levi-Strauss expressa esse fato
muito bern quando comenta: "Podemos dizer que a Antropologia SOCIEDADE TRIBAL
Preeminencia da con1radi~ao exis1encial
Ausencia de Estado
[...] interessa-se por sociedades nao"civilizadas, sem urn sistema (Cul1uras orais)
de escrita e pre ou nao-industrial em tipo." Entretanto, em al- SOCIEDADE DIVIDIDA EM CLASSES Contradi~ao estrulural/contradi~ao
guns aspectos, as sociedades "modemas" e que deviam ser existencial
Forma de Estado: rela~ao c"ldadelcampo
definidas em termos negativos. Nossas rela,5es mutuas sao
SOCIEDADE DE CLASSE Preeminencia da con1radiyao estrutural
agora apenas ocasional e fragmentariamente baseadas na "ex- Forma de Estado: nayao·Estado
(Capi1alismo)
periencia generica", na "apreensao" concreta de uma pessoa "por
 r
230 A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;:AO SOCIAL 231

As culturas tribais sao de cariter segmentado, Quer dizer, o Estado pretende representar a sociedade como urn todo e 0
consistem em centros multiplos de alta disponibilidade de pre- menor. 0 poder deste nao perdeu sua conexao com a contradi-
sen,a, em que as fronteiras entre diferentes "sociedades" nao ,ao existencial e esti simbolizada em forma persistentemente
sao usualmente assinaladas com clareza. Nesses sistemas des- religiosa. 0 Estado pode ter escapado il tradi,ao no sentido de
centralizados, a contradi,ao estrutural inexiste. A contradi,ao estar apto a inovar mediante 0 uso do poder consolidado. Mas
existencial delineia os contornos do mundo natural. A contra- deve, nao obstante, submeter-se continuamente il tradi,ao de
di,ao estrutural e assinalada pela ascensao do Estado, 0 qual, urn outro modo, porque as cren,as e priticas tradicionais con-
por sua vez, esta associado sobretudo il forma,ao de cidades. servam sua influencia por toda parte, fora dos principais cen-
Nao estou dizeIido que 0 Estado se baseie simp)esmente "na" tros de concentra,ao das agencias estatais. Na medida em que
cidade. Pelo contrario, as cidades sao recipientes de poder que, o poder do Estado depende da vigilancia, esta concentra-se pri-
em conjun,ao COm suas rela,oes com 0 campo, geram 0 nexo mordialmente nos locais fisicos das agencias estatais: 0 pala-
estrutural da forma do Estado. A contradi,ao existencial e en- cio, os templos e os edificios administrativos.
fraquecida pela introdu,ao da contradi,ao estrutural, mas nao o surgimento de sociedades baseadas no Estado ahera
inteiramente dissolvida. A cidade eurn milieu estraMo il natu- tambem 0 ambito e 0 ritmo da "Hist6ria" ao estimular contra-
reza e, portanto, ajuda a promover atitudes e sistemas simbOlicos di,oes secundarias. 0 Estado da origem ou, pelo menos, acen-
discrepantes dos que se aliam a elementos e eventos naturais. tua grandemente as rela,oes sociais ao longo de consideriveis
Sua muralha pode simbOlica e materialmente isolar 0 milieu ur- extensoes de tempo e espa,o. [sso significa que, ao mesmo tem-
bano do exterior. Mas as cidades tradicionais s6 poderiam exis- po que geram e consolidam 0 poder centralizado, "atraindo"
tir por meio de suas transa,oes com seus hinterlands agnirios. varios aspectos da atividade socikl para seu ambito, os Estados
Seus tra,ados internos e arquitetura ainda mantinbam estreitas estimulam 0 desenvolvimento de outros vinculos e interliga-
conexoes COm 0 ambiente natural, geralmente em conjunto ,oes que atravessam os dominios social e territorial sobre os
com simbolos tradicionalmente estabelecidos. Em cidades tra- quais reivindicam soberania. Nesse contexto, a contradi,ao
dicionais, como se mencionou antes, a distribui,ao de areas e 0 estrutural refere-se il soberania do Estado sobre urna dada area
alinbamento de edificios expressavam, com freqiiencia, distin- territorial, que e antagonica e, no entanto, depende de proces-
,oes cosmol6gicas sagradas. sos que atravessam aquela esfera de jurisdi,ao e envolvem di-
Nao me proponbo oferecer aqui urn exame do Estado ou ferentes mecanismos. Estes incluem as rela90es extemas com
das origens do poder estatal". Basta dizer que sustento ser 0 "Es- outros Estados, mas tambem a existencia de empresas comer-
tado primitivo" uma forma,ao contradit6ria na acep,ao se- ciais, grupos religiosos, comunidades intelectuais etc. entre-
guinte. 0 Estado, expressando a rela,ao cidade-campo, repre- cruzados.
senta urn novo tipo de principio estrutura! que contradiz 0 antigo, As contradi,oes secundarias associadas il forma,ao das
embora dependendo ainda dele. A rela,ao simbi6ticalantagoni- modernas na,oes-Estados, cujo desenvolvimento esti entrela-
ca entre cidade e campo e a forma especifica dessa contradi,ao ,ado com 0 do capitalismo industrial enquanto estilo de empre-
estrutura!. Como recipientes de poder, as cidades geram dina- sa economica, sao substancialmente diferentes das de eras pre-
mismo potencial de urn novo tipo na "Hist6ria", ou seja, rom- vias. A conexao entre capitalismo e na,ao-Estado, como argu-
pem com 0 carater "a-hist6rico" das culturas frias. Nas socie- mentei nurn outro trabalho", nao e meramente fortuita. Para
clades divididas em classes, a "economia" nao e, de modo tipico, expressar a questiio de modo bern simplificado, as na,oes-Es-
claramente distinta da organiza,ao politica, e 0 sentido em que tados sao os novos recipientes de poder quesubstituem as cida-
 232 A CONSTITUII;XO DA SOCIEDADE
ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODUC;:XO SOCIAL 233
des. A transforma,ao da rela,ao cidade-campo mediante 0 sUf-
tensao entre a internacionaliza,ao do capital (e dos mecanis-
gimento de "ambientes criados" - exemplificados 'pelo (mas
mos capitalistas como urn todo) e a consolida,ao interna das
nao limitados ao) "meio ambiente construido" do urbanismo
na,oes-Estados. E provavelmente porque essa tensao gera im-
moderno - e parte integrante da forma,ao da na,ao-Estado. 0 pulsos em dire,oes diferentes que a maioria das escolas de teo-
carater transmutado do espa,o e do tempo e essencial para a ria social considerou as conexoes entre capitalismo e na,ao-
forma,ao politica do Estado e para a "economia" diferenciada. Estado nada mais do que urn acidente hist6rico. De fato, a ten-
Esse processo de transmuta,ao separa a contradi,ao estrutural dencia dominante no pensamento social foi a de ver as na,oes-
da existencial, e a primeira adquire agora primazia sobre a segun- Estados como pouco mais do que epifenomenos de (ou como
da. Em poucas palavras, isso significa que a organiza,ao social meros impedimentos para) a propensao natural da produ,ao
humana deixa de ter qualquer simetria com a natureza; esta capitalista de dissolver diferen,as poiiticas e culturais. Nao e
torna-se urn meio para a expansao da produ,ao. A supressao de dificil detectar as origens desse tipo de concep,ao no pensa-
questoes e problemas existenciais nao e, nem pode ser, inteira- mento social do seculo XIX. Elas estao na economia poiitica
mente completa. Na verdade, sao fundamentais para as contra- classica e em seu principal oponente, 0 marxismo. Para ambos,
di,oes estruturais introduzidas pelo capitalismo e fazem parte apesar de suas importantes divergencias em outros aspectos, as
do que Ihes confere seu potencial peculiarmente explosivo36. rela,oes economicas desvendam a verdadeira origem das for-
A contradi,ao primaria de (na,ao-)Estado capitalista sera ma,oes poiiticas, e a mudan,a economica e a fonte primordial
encontrada no modo pelo qual uma esfera "privada" da "socie- de transforma,ao do mundo moderno. Essa concep,ao nao ve
dade civil" e criada pela esfera "publica" do Estado, mas sepa- que a separa,ao do "economico", como urna esfera de continua
rada desta e em tensao com ela. Eurn eITO supor que a socieda- e rapida mudan,a, tern como sua condi,ao necessaria 0 poder
de civil constitui tudo 0 que se situa fora da al,ada do Estado, do Estado moderno. 0 Estado moderno e intrinsecamente, nao
se a definirmos como 0 conjunto de institui,oes que precedem apenas contingentemente, uma na,ao-Estado, existindo nurn
o dominio do poder do Estado e nao estao incorporadas a este. mundo de outras na,oes-Estados.
As origens do Estado moderno sao tambem as origens da esfe- Qual e a rela,ao, analiticamente expressa, entre contradi-
ra da sociedade civil- pelo menos e 0 que desejo afirmar, em- ,ao e conflito, urna vez que ambos os termos sao usados com
bora deixe aqui expressa essa ideia como mera asser,ao por agora. freqiiencia simultaneamente? Entendo por conflito a luta real
A sociedade civil e 0 setor dentro do qual OCOITe a acurnula,aQ de
capital, alimentada pelos mecanismos de pre,o, lucro e investi- Conflito Luta entre atores au coletividades expres-
mento nos mercados de trabalho e de bens. Portanto, considOro sas como praticas sociais definidas

que a contradi,ao entre sociedade civil e Estado esta, pelo Contradiyao Disjunryao de princfpios estruturais
(estrutural) da organiz8yao do sistema
menos, em paralelo com a formula,ao classica da contradi,ao
capitalista entre "apropria,ao privada" e "produ,ao socializada".
o Estado capitalista, enquanto urn centro "socializante" repre-
sentando 0 poder da comunidade em geral, depende de meca- entre atores ou grupos, qual seja a forma em que possa ser tra-
vada.ou as fontes mediante as quais possa ser mobilizada. Se a
nismos de produ,ao e reprodu,ao que ele ajuda a criar mas Ihe
sao contrapostos e antagonicos. contradi,ao ~ urn conceito estrutural, 0 conflito nao 0 e. Con-
flito e contradi,ao tendem a coincidir porque este segundo
A contradi,ao secundaria, na nova ordem global introdu- conceito expressa as principais "linhas de fratura" na constitui-
zida pelo advento do capitalismo moderno, esta concentrada na ,ao estrutural dos sistemas sociais. A razao para essa coinci-
 234 A CONSTITUIr;:AO DA SOClEDADE
r ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL 235

dencia esta em que as contradi90es tendem a envolver divisoes Fazendo a hist6ria

de interesses entre diferentes agrupamentos ou categorias de
pessoas (incluindo classes, mas nao limitadas a elas). As con- Distinguirei dois tipos principais de coletividade, de acor-
tradi90es expressam estilos de vida e distribui90es de oportuni- do com a forma das rela90es que participam de sua reprodu9ao.
dades de vida diverg~ntes em rela9ao a possiveis mundos que 0 Chama-Ias-ei de associat;8es e organizat;8es, e separa-Ias-ei
mundo real revela como imanentes. Se a contradi9ao nao gera dos movimentos sociais. Nas associa90es, como em todos os
inevitavelmente conflito, e porque sao variaveis ao extremo 'IS sistemas sociais, a reprodu9ao social ocorre na (e por meio da)
condi90es em que os atores esmo nao somente ,oljscientes de conduta regularizada de agentes capazes. Os cenanos de intera-
seus interesses, mas tambem aptos e motivados para agir de 9ao em que ocorrem os encontros de rotina sao reflexivamente
acordo com eles. E correto dizer, por exemplo, que a existencia monitorados por seus atores constituintes na reprodu9ao de re-
da divisao de classes pressupoe oposi9ao de interesses (assim la90es de papel mutuamente vinculadas. Mas embora tal moni-
como interesses comuns). Mas as condi90es em que 0 conflito tora9ao seja a condi9ao de sua reprodu9ao, ela nao assume a
de classes ocorre nao sao, por certo, diretamente inferidas des- forma de uma tentativa ativa de controlar ou de alterar as cir-
sa observa9ao. Assim, em Estados agrarios ou sociedades divi-
°
didas em classes, conflito entre classes dominantes e classes
cunstiincias de reprodu9ao. A tendencia e de existir urna estreita
conexao entre modos tradicionais de legitimidade e 0 predomi-
subordinadas e relativamente raro; isso se deve principalmente
nio de associa90es. A tradi9ao e mais do que urna forma parti-
ao fato de haver muito pouco contato entre elas que fomecesse
cular da experiencia de temporalidade; representa a ordem mo-
os contextos em que 0 conflito poderia realmente ocorrer".
De acordo com as concep90es que delineei acima, a pree-
ral "do que se passou antes" na continuidade da vida cotidiana.
minencia da contradi9ao existencial e caracteristica daquelas Eurn erro supor que a tradi9ao, mesmo na mais fria das cultu-
sociedades mergulhadas nurn tempo reversivel tradicional: ras frias, seja inteiramente refratana a mudan9a ou a diversifi-
mente sancionado - sociedades que "nao tern hist6ria". 0 sur- ca9ao da conduta. A caracteriza9ao que Shils faz da tradi9ao e
gimento da contradi9ao estrutural (cujas origens nao estou preo- provavelmente muito apropriada: ele a ve como "0 movimento
cupado em tentar explicar aqui) "aquece" processos de mudan- de gotas de chuva nurna vidra9a. [...] urna corrente ondulat6ria de
9a social. Mas e apenas com 0 desenvolvimento do capitalismo agua, deslizando obliquamente vidra9a abaixo, entra em conta-
modemo que esses processos ficam "incandescentes". Compa- to com urna outra corrente que se desloca nurn Angulo diferente.
rados com 0 mundo modemo, com seus extraordinarios indices Fundem-se, por breves momentos, numa unica corrente, que se
de prolongada transforma9ao social, os imperios tradicionais e decompoe em duas outras, cada qual podendo dividir-se de novo,
outros tipos de Estado parecem marcados mais por urna ausen- se a vidra9a for suficientemente grande e a chuva bastante in-
cia de mudan9a do que 0 inverso. 0 que Marx considerou ser tensa"39. 0 que a metafora nao transmite, porem, e 0 proprio
caracteristico do "modo asiatica de produy,ao" e mencionou, aspecto de tradi9ao que alicer9a a rotina em "sociedades tradi-
num tom desdenhoso, como estagna9ao social e econ6mica, e cionais". A esse respeito, Levi-Strauss esta certamente correto
de fato urna caracteristica distinta de todas as sociedades agra- ao enfatizar que a tradi9ao e 0 veiculo do tempo reversivel que
rias de grande escala de todo tipo. Como foi assinalado por urn liga a duree da vida cotidiana alongue duree das institui90eS.
observador, He a ausencia relativamente dominante de impor- A distin9ao entre associa90es, por urn lado, e entre as or-
tantes mudan<;as sociais e econ6micas" que caracteriza as for- ganizac;oes e os movimentos sociais, por Dutro, coincide com
mas variantes de sociedade existentes na face da hist6ria mun- uma Dutra nos modos de reproduc;ao, que descrevi no primeiro
dial ate uns dois ou tres seculos atras". capitulo. Organiza90es e movimentos sociais sao coletividades
~
236 A CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;AO SOCIAL 237

em que a regula,ao reflexiva das condi,oes de reprodu,ao do No que se refere it "Hist6ria", vale a pena reverter, neste
sistema prepondera na continuidade das praticas cotidianas. ponto, it senten,a de Marx segundo a qual os seres humanos
Organiza,oes e movimentos sociais encontram-se caracteristi- "fazem Historia". Nao foi meramente uma extravagancia inda-
camente em segmentos das sociedades divididas em classes - gar antes 0 que e que e "feito" aqui, conforme nos mostra 0
e, com efeito, marcam em certa medida sua separa,ao das so- debate entre Sartre e Levi-Strauss. Todos os seres humanos
ciedades tribais. Pois a auto-regula,ao reflexiva, como proprie- vivem na Historia, no sentido de que suas vidas se desenrolam
dade das coletividades, depende do cotejo de informa,ao que no tempo, mas isso elas tern em cornum com tadas as coisas
pode ser controlada de modo a influenciar as circunstancias de existentes. Como pratica reflexivamente fundada, a sociedade
reprodu,ao social. 0 controle da informa,ao, por sua vez, de- humana e distinta da animal, mas isso dificilmente explica, em
pende da armazenagem de informa,ao de uma especie distinta si e por si mesma, 0 que e"Hist6ria" au 0 que existe de especi-
daquela a que se tern acesso pela recorda,ao individual, nos fico na historia humana. Sugerir que uma resposta a essas
mitos au hist6rias contadas au na consciencia pnitica da "tradi- questoes tern de ser "historica" nao contem qualquer paradoxo,
,ao vivida". A inven,1io da escrita, 0 modo principal de cotejo visto que, e claro, a palavra "historia" aproveita-se de dois sig-
e a armazenagem de informa,ao em sociedades divididas em nificados: a ocorrencia de eventos no decorrer do tempo e a
classes, marca uma disjun,ao radical na Historia. [sso e verda- narra,ao ou explica,ao desses eventos. 0 fato de hoje em dia
de nao so porque as formas de armazenagem e recupera,ao de sermos propensos a elidir os dois sentidos expressa algumas
informa,ao geradas pela escrita permitem uma expansao do caracteristicas fundamentais da era contemporanea e indica no-
distanciamento tempo-espa,o, mas tambem porque a natureza vamente que extraordinarias complexidades subjazem it propo-
da "tradi,ao" se alterou, mudando 0 sentido em que os seres si,ao inocente de que os seres humanos "fazem Historia". Pois
humanos vivem "na" Historia. As sociedades divididas em clas- sua elucida,ao pressupoe uma descri,ao filosMica do tempo.
ses sempre mantiveram uma base fortemente tradicional, 50- Retornamos aqui a algumas das questoes que abordei logo nas
bretudo fora da esfera relativamente restrita das cidades. As se,oes iniciais deste livro, em rela,ao it teoria da estrutura,ao.
obras de filosofos da China pre-Ch'in conceberam a interse,ao A analise de Levi-Strauss do "pensamento selvagem" iden-
de passado e presente como uma rel~ao moveI, na qual nao so tifica com argucia algumas das questoes relevantes. Em To-
o "presente" penetra no "passado" e vice-versa, mas tambem a tem/sm, ele mostra um paralelo entre 0 conceito de Bergson da
Historia e mais "plana" do que linear. Quer dizer, ela penetra duree e as ideias "comuns a todos os Sioux, desde os Osage, no
lateralmente no tempo, em vez de "para tras". A vida era repre- suI, ate os Dakota, no norte, de acordo com as quais coisas e
sentada como governada pelos Ii, ou rituais tradicionais, conti- seres nada mais sao do que formas materializadas de continui-
nuamente transmitidos. Segundo Hsun Tzu, "passado e presen- dade criativa"41. A tentativa de Bergson de formular uma filoso-
te sao a mesma coisa. As coisas sao as mesmas em especie, fia do tempo, tal como as no,oes mais poderosas de Heidegger,
embora prolongadas num extenso periodo, e continuam tendo pode ser considerada um esfor,o para escapar it concep,ao
o mesmo principio"". Nao obstante, a introdu,ao da escrita "linear" ou "unitaria" de tempo expressa na Weltanschauung
significa que a tradi,ao torna-se visivel como "tradi,ao", um da moderna cultura ocidental. Bergson quer apreender a duree
modo especifico, entre outros, de fazer coisas. A "tradi9ao" que como algo que une 0 continuo e 0 descontinuo, a ordem de
e conhecida como tal deixou de ser uma base de costume con- diferen9as que constitui a "realida5ie". Do mesma modo, na cos-
sagrado pelo tempo para converter-se num fenomeno discursivo mologia dos Sioux, tal como e descrita numa can,ao:
aberto it interroga,ao.
 238 A CONSTITUJ(;:AO DA SOCIEDADE r ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;:AO SOCIAL 239
Tudo que se movimenta, de vez em quando, aqui e ali, faz chama de "tentativa do proprio Vico para atribuir ao processo
paradas. 0 passaro, quando vaa, para num Jugar para fazer seu
ninho e num outro para repousar de seu VQo. Urn homem, quan-
uma inteligibilidade ciclica", preferindo concentrar-se em "sua
do caminha, para quando quer. E assim deus parou. 0 sol, que e expressao soberba de processo" quando argurnentar ser "esse
tao brilhante e bela, e urn dos lugares oode ele parou. A lua, as ponto donde todo 0 pensamento hist6rico sistematico deve par-
estrelas, as mentes, com elas esteve. As arvores, os animais, to- tir"", Mas a "inteligibilidade ciclica" e fundamental para as con-
dos sao onde ele parou. [...J42 cep90es de Vico, e so urn "pensamento historico" relativamen-
te recente adotou como seu ponto de partida a "Hist6ria como
Nessa versao de "hist6ria", como explical;ao de eventos, 0 tem- processo".
po e associado nao a mudan9a social, mas a repeti9ao; nao a Organiza90es e movimentos sociais modernos operam
capacidade dos seres humanos de transformar 0 mundo ou num mundo social em que a retirada dos deuses e a dissolu9aO
transfonnarem-se a si mesmos, mas a seu envolvimento com a da tradi9ao criam as condi90es em que a auto-regula9ao refle-
natureza. xiva se manifesta como Hist6ria - e como sociologia, A era
Se "hist6ria", na frase "as seres humanos fazem Historia", modema, dominada pela ascensao do capitalismo no Ocidente,
significa a conjun9ao de urna concep9ao linear de tempo com a nurn escasso periodo de poucos seculos, esta marcada pelo pre-
ideia de que, atraves da expansao do conhecimento de seu pas- dominio da historicidade, percep9ao consciente do "movimen-
sado, os agentes podem mudar seu futuro, trata-se de urna to progressivo" da sociedade, moldado por essa mesma cons-
n09ao que se origina em Vico. Com efeito, os escritos de Vico ciencia, aquela "intui9ao de historia do mundo", a cujo respeito
poderao ser vistos como 0 tra90 de uniao entre uma compreen- escreveu Spengler, 0 cotejo, analise e recupera9ao de informa-
sao mais antiga de tempo e continuidade, e urna, mais nova, 9aO que estimula e expressa a historicidade sao possibilitados,
emergente. Assim, numa celebre passagem - citada e endossa- em primeiro lugar, pelo desenvolvimento da imprensa e da al-
da por Thompson" - Vico afirma: fabetiza9ao em massa; e, em segundo lugar, pela inven9ao dos
meios eletronicos de comunica9ao. Cada urn desses processos
Foram os pr6prios homens que fizeram este mundo de na- expandiu 0 distanciamento tempo-espa90 pela "aliena9ao" da
\=oes, embora sem 0 pleno conhecimento dos resultados de suas
comunica9ao em circunstiincias de co-presen9a, Qualquer tex-
atividades. No entanto, ele e este mundo, provindo sem duvida
alguma de uma mente freqiientemente diversa e, por vezes, to escrito ficou distanciado de seu autor; a imprensa e, em sua
totalmente contraria e sempre superior a esses fins particulares maior parte, urna extensao quantitativa de tal distanciamento.
que os pr6prios homens se tinham prefixado. [...] 0 que feztudo Os meios eletronicos separam a presen9a no tempo da presen9a
isso foi na verdade a mente, dado que 0 fizeram os homens com no espa90, urn fenomeno de importancia decisiva para as for-
inteligencia. Nao se trata de destino, porque 0 fizeram por escolha. mas contemporiineas de coletividade.
Nem foi acaso, porque, assim sempre agindo, chegam perpetua- As organiza90es e os movimentos sociais sao 0 que Tou-
mente aos mesmos resultados44 . raine chama de "unidades de tomada de decisao"", utilizando
certas forynas tipicas de recurSOs (autoritarios e alocativos) no
Thompson esta certo, sem duvida, ao ver nisso uma antecipa- ambito de formas discursivamente mobilizadas de f1uxo de in-
9ao de Marx, como muitos outros viram. Mas considerar Vico forma9ao. 0 estudo dos movimentos sociais tern estado nitida-
urn precursor direto de Marx significa ignorar caracteristicas mente sub-representado dentro das ciencias sociais, em com-
de seu pensamento que preservam urna visao divergente de para9ao com a vasta literatura dedicada as numerosas elabora-
tempo e de "experiencia". Thompson rejeita de passagem 0 que 90es concorrentes da "teoria da organiza9ao". Parece haver pou-
 238

p~adas.
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0 passaro, quando voa, para num lugar para fazer seu
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239
chama de "tentativa do proprio Vico para atribuir ao processo
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estrelas, as mentes, com elas esteve. As arvores, os animais, 'to- e
tir"4S. Mas a "inteligibilidade ciclica" fundamental para as con-
dos sao onde ele parou. [... ]42 cep90es de Vico, e so urn "pens~ento historico" relativamen-
te recente adotou como seu ponto de partida a "Historia como
Nessa versao de "historia", como explical;aO de eventos, 0 tem- processo".
po e associado nao a mudan,a social, mas a repeti,ao; nao a Organiza,oes e movimentos sociais modernos operam
capacidade dos seres hurnanos de transfonnar 0 mundo ou num mundo social em que a retirada dos deuses e a dissolu,ao
transforrnarem-se a si mesmos, mas a seu envolvimento com a da tradi,ao criam as condi,oes em que a auto-regula,ao refle-
natureza. xiva se manifesta como Hist6ria - e como sociologia. A era
Se "hist6ria", na frase "os seres humanos fazem Historia", moderna, dominada pela ascensao do capitalismo no Ocidente,
significa a conjun,ao de uma concep,ao linear de tempo com a nurn escasso periodo de poucos seculos, esta marcada pelo pre-
ideia de que, atraves da expansao do conhecimento de seu pas- dominio da historicidade, percep,ao consciente do "movimen-
sado, os agentes podem mudar seu futuro, trata-se de urna to progressivo" da sociedade, moldado por essa mesma cons-
no,ao que se origina em Vico. Com efeito, os escritos de Vico ciencia, aquela "intui,ao de hist6ria do mundo", a cujo respeito
poderao ser vistos como 0 tra,o de uniao entre uma compreen- escreveu Spengler. 0 cotejo, analise e recupera,ao de infonna-
sao mais antiga de tempo e continuidade, e uma, mais nova, ,ao que estimula e expressa a historicidade sao possibilitados,
emergente. Assim, numa celebre passagem - citada e endossa- em primeiro lugar, pelo desenvolvimento da imprensa e da al-
da por Thompson" - Vico afirma: fabetiza,ao em massa; e, em segundo lugar, pela inven,ao dos
meios eletr6nicos de comunica,ao. Cada urn desses processos
Foram os pr6prios homens que fizeram este mundo de na- expandiu 0 distanciamento tempo-espa,o pela "aliena,ao" da
90es, embora sem 0 pleno conhecimento dos resultados de suas comunica,ao em circunstancias de co-presen,a. Qualquer tex-
atividades. No entanto, ele e este mundo, provindo sem duvida
to escrito ficou distanciado de seu autor; a imprensa e, em sua
alguma de uma mente freqiientemente diversa e, por vezes,
maior parte, urna extensao quantitativa de tal distanciamento.
totalmente contraria e sempre superior a esses fins particulares
que os proprios homens se tinham prefixado. [...] 0 que fez tudo Os meios eletr6nicos separam a presen,a no tempo da presen,a
isso foi na verdade a mente, dado que 0 fizeram os homens com no espa,o, urn fen6meno de importancia decisiva para as for-
inteligencia. Nao se trata de destino, porque 0 fizeram por escolha. mas contemporaneas de coletividade.
Nem foi acaso, porque, assim sempre agindo, chegam perpetua- As organiza,oes e os movimentos sociais sao 0 que Tou-
mente aos mesmos resultados44 • raine chama de "unidades de tomada de decisao"", utilizando
certas fOl:mas tipicas de recursos (autoritanos e alocativos) no
Thompson esta certo, sem duvida, ao ver nisso uma antecipa- ambito de formas discursivamente mobilizadas de fluxo de in-
,ao de Marx, como muitos outros viram. Mas considerar Vico fonna,ao. 0 estudo dos movimentos sociais tern estado nitida-
urn precursor direto de Marx significa ignorar caracteristicas mente sub-representado dentro das ciencias sociais, em com-
de seu pensamento que preservam urna visao divergente de para,ao com a vasta literatura dedicada as nurnerosas elabora-
tempo e de "experiencia". Thompson rejeita de passagem 0 que ,oes concorrentes da "teoria da organiza,ao". Parece haver pou-
 240 A CONSTiTUH;AO DA SOClEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;AO SOCIAL 241

ca justificativa para isso, nurn seculo em que as revolu90es e os cas acima e, e claro, 0 milenarismo nao desaparece com 0 fim
choques de doutrinas rivais orientadas para a mudan9a social da Idade Media. Mas podemos dizer, com alguma confian9a,
radical tern sido tao proeminentes, e nao se pode deixar de con- que a maioria dos movimentos sociais mais recentes difere de
cordar com Touraine e outros quando afirmam corretamente todas elas, com exce9ao da segunda e, nao raras vezes, da ter-
que as n090es de organiza9ao e movimento social sao de impor- ceira49 • Os movimentos sociais modemos sao quase exclusiva-
tancia equivalente na era modema. as movimentos sociais po- mente deste mundo e de car:\ter invariavelmente oposicionista.
dem ser conceptualmente diferenciados dos movimentos popu- Eles estao situados nos mesmos "campos de historicidade" das
lacionais, migra90es etc. precisamente porque supoem urn alto organiza90es e associa90es que defrontam.
grau de auto-regula9ao reflexiva. as movimentos sociais po- a movimento dos trabalhadores pode nao fornecer a solu-
dem ser convincentemente definidos como "empreendimentos ~ao para "0 enigma da Historia", como Marx previu, mas, em
coletivos para estabelecer urna nova ordem de vida"". Dife- certos aspectos, e prototipico dos movimentos sociais contem-
rentemente das organiza~oes, as movimentos sociais DaD ope- poraneos. No circuito da reprodu9ao capitalista anteriormente
r examinado, a "forc;a de trabalho" aparece como uma mercado-
ram, de modo caracteristico, dentro de locais fixos, e 0 posicio-
namento dentro deles nao possui a clareza de defini9ao asso-
ciada a "papeis".
I ria a ser "traduzida" em outras mercadorias. Entretanto ela nao
e, evidentemente, uma mercadoria como qualquer outra, as
A caracteriza9ao de movimentos milenarios na Europa movimentos dos trabalhadores tern sua origem nas formas de
medieval feita por Cohn ajuda a indicar alguns dos elementos "controle defensivo" por meio das quais os operarios procuram
distintivos dos movimentos sociais no periodo moderno. Se- obter urn certo grau de dominio sobre as circunstancias em que
gundo ele, esses movimentos sao inspirados pela fantasia de Ihes sao negados direitos de participa9ao nas decisoes que os
urna salva9ao que sera afetam. Na medida em que os movimentos dos trabalhadores
foram impregnados de socialismo, e mais particularmente de
a) coletiva, no sentido de que tern de ser fruida pelos fieis co- marxismo, eles incorporaram a historicidade de modo direto
mourn grupo; no ambito de suas atividades, Esses movimentos foram anima-
b) terrena, no sentido de que tern de ser realizada na Terra e dos pelo mesmo nexo de ideias das organiza90es capitalistas
nao em algurn ceu de outro mundo; contra as quais se op6em. Reformistas ou revolucionarios, preo-
c) iminente, no sentido de que tern de chegar em breve e subi- cuparam-se em promover, embora de urn modo igualit:\r:io, aque-
tamente; las mesmas for9as de produ9ao que seus oponentes procuram
d) total, no sentido de que e para transformar profundamente a desenvolver mediante a acurnula9ao de capita!. E neste ponto,
vida na Terra, pelo que a nova gra9a nao sera uma simples porem, em que 0 movimento dos trabalhadores deixa de exem-
melhoria no presente, mas a propria perfei9ao; plificar os movimentos sociais modernos em gera!. Para Marx
e) realizada por agencias conscientemente vistas como sobre- ele devia acarretar urna reforma completa da totalidade social,
naturais48 . aluando em nome do interesse geral contra os interesses secio-
nais expressos pelas divisoes de classes. as limites dessa visao
A obra de Cohn tern sido citada com tal freqiiencia que tomaram-se cada vez mais evidentes, nao s6 por causa do fra-
urna certa cautela se faz necessaria contra 0 excesso de genera- casso do proletariado em fazer a revolu9aoso ou da tendencia de
liza9ao baseada nela. Nem todos os movimentos sociais medie- reduzir todos os interesses secionais, mas exatamente devido
vais podem ser facilmente descritos em fun9ao das caracteristi- ao desvendamento das raizes historicas da propria historicida-
 242
A CONSTITUI9Jo DA SOCIEDADE Notas criticas: "sociologia estrutural" e
individualismo metodoltigico
de. Nossa era e urna que alimenta duvidas radicais acerca das
realiza95es guiadas pela ciencia e pela inova9ao tecnol6gica,
urna era em que a historicidade perde sua antiga e indiscutida
preeminencia.
Do mesmo modo, a empresa capitalista e, em alguns as-
pectos, tipica das organiza95es modemas e uma das principais
fontes de inova9ao gerando as circunstiincias em que elas nas-
ceram. Tal como analisado por Marx, 0 capitalismo e urn modo
de p rodu9ao em que a auto-regula9ao reflexiva dentro da empre-
sa - fen6meno elucidado pela demonstra9ao de Weber do sig-
nificado da contabilidade por partidas dobradas para a firma
capitalista - nao e acompanhada por urn controle reflexivo so- Blau: uma versao da sociologia estrutural
bre a vida econ6mica como urn todo. Entretanto, como Weber
tambem fez mais do que ninguem por esclarecer, a auto-regu- Existem fortes conex5es entre uma enfase sobre a "abor-
la9 ao reflexiva adquire impulso em muitos setores da vida dagem estrutural", tal como e usada pelos que escrevem fora
social. Ai teside uma das mais profundas quest5es que defron- das tradi95es do estruturalismo, e 0 objetivismo nas ciencias
tamos hoje. Sera a expansao de uma diversidade de diferentes sociais. Alguns temas afloram continuamente nas obras daque-
formas de organiza9ao - em que as condi95es de rep rodu9ao les que julgam ter adotado tal abordagem. Ai se incluem, em
sao reflexivamente monitoradas - urn meio de emancip a9ao especial, as ideias durkheimianas de que "as sociedades sao
dos modos preestabelecidos de domina9ao exploradora? Nao mais do que a soma de seus individuos constituintes" e (uma
ha duvida de que Marx acreditava ser esse 0 caso no contexto concep9ao que ja critiquei) as propriedades estruturais sao
de sua previsao da derrubada revolucionaria do capitalismo qualidades de sistemas sociais que devem ser definidos exclu-
pelo socialismo. Mas os criticos e os adversarios de Marx, de sivamente em fun9ao de sua influencia coerciva sobre os atores
Weber a Foucault, fomeceram excelentes motivos para tratar sociais. As "abordagens estruturais" tambem tendem a subli-
esse principio basico do marxismo com cautela, quando nao nhar a dura9ao no 'tempo e a extensao no espa90. As estruturas
com franco ceticismo. sao "supra-individuais" no sentido de que sobrevivem ao agen-
te individual e se expandem muito alem do ambito da atividade
de agentes individuais '*. Estas considera95es, obviamente, so-
brep5em-se consideravelmente aos temas de minha analise
precedente neste livro. Mas ha tambem algo de urn elemento
epistemol6gico freqiientemente envolvido. Pois muitas vezes e
sustentado, ou suposto, que examinar caracteristicas estrutu-
rais da atividade social e demonstrar influencias causais sobre
a conduta humana anaIogas its que operam na natureza.
Assim, Wallace identifica a "diferen9a crucial" entre 0 que
ele designa por "teoria estruturalista social" e "teoria acionista

* As referencias podem ser encontradas a pp. 263-5.

 244 A CONSTITUIr;A'O DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUr;AO SOCIAL 245

social" da seguinte maneira: "a teoria estruturalista social trata Assim, falamos da estrutura etaria de uma popula<;ao, da
a intencionalidade e outros fatores orientacionais subjetivos co- estrutura de parentesco de uma triba, da estrutura de autoridade
mo, no minima, secundarios e, no maximo [?], irrelevantes para de uma organiza<;3.o, da estrutura de poder de uma comunidade e
a explicac;ao de fen6menos sociais. [...]"'. A rudeza com que da estrutura de classes de uma sociedade. NaG se trata de tipos de
estrutura social, mas tao-somente de seus elementos analiticos,
esse ponto de vista e expresso nada tern de incomum. Atente-se
distinguindo posi<;oes sociais numa unica dimensao. As diferen-
para urna recente exposic;ao apresentada por Mayhew de acor- tes posi<;oes geradas por urn 56 para.metro sao necessariamente
do com essa mesma orientac;ao. Ele identifica os interesses pro- ocupadas por diferentes pessoas - urn individuo ehomem ou mu-
prios da sociologia como "estruturais". As estruturas referem-se lher, velho ou jovem, rico ou pobre -, mas 0 caso difere para po-
a redes de relac;6es, e tais redes podem e devem ser analisadas sh;5es geradas por varios parametros, pOfque a mesma pessoa
sem qualquer alusao as caracteristicas dos individuos. Diz ele: "na ocupa simultaneamente posi95es em diferentes parametros. [... J
sociologia estrutural, a unidade de analise e sempre a rede social, As estruturas sociais refletem-se em diversas formas de diferen-
7
nunca 0 individuo"'. Uma "abordagem estrutural" esti aqui vin- cia9ao, as quais devem ser mantidas analitfcamente distintas.
culada, como ocorre freqiientemente, ao endosso de urna forma
urn tanto rudimentar de behaviorismo. Mayhew argumenta que os A tarefa de estudar parametros estruturais, segundo Blau, de-
estruturalistas "nao empregam conceitos subjetivistas como in- limita 0 interesse distintivo da sociologia.
tenc;ao ou finalidades em suas analises'''. E possivel distinguir dois tipos de parlimetro estruturaL
Blau desenvolveu uma versao mais sofisticada de ideias Os "parametros nominais" sao laterais, separando uma dada
semelhantes em varias publicac;6es recentes, e seus pontos de populac;ao em categorias, como genero, religiao ou rac;a; os "pa-
vista sao, sem duvida, representativos de urn segmento subs- rlirnetros graduados" sao hierarquicos, diferenciando os indivi-
tancial da opiniao sociologica'. Tal como a maioria dos autores duos ao longo de uma escala e incluem, por exemplo, riqueza,
sociologicos anglo-sax6nicos, ele nada tera de comum com a renda e educac;ao. Urn dDs principais objetivos do estudo estru-
concepc;ao de estruturalismo de Levi-Strauss ou com pontos de tural consiste em examinar a relac;ao entre esses parlimetros, na
vista afins. Entretanto, tambem esta cuidadosamente separado medida em que estao associados a grupos de interac;ao. Quando
do funcionalismo, propondo urna noc;ao de estrutura "despojada existe consideravel diferenciac;ao ao longo de urn ou outro
de suas mais amplas conotac;6es culturais e funcionais ate ficar parametro, a possibilidade de se formarem tais grupos de inte-
reduzida as suas propriedades essenciais"'. Aceitando que 0 rac;ao sera menor. Assim, os pariimetros podem ser analisados
conceito de "estrutura" tern sido usado de varias maneiras por de modo a explicar as formas e os graus de diferenciac;ao e
diferentes autores, ele sublinha que em geral todos concordam integrac;ao sociaL Blau descreve como urn "determinista estru-
em que, em sua acepc;ao mais elementar, 0 termo refere-se, de tural", alguem "que acredita que as estruturas das posic;6es so-
algum modo, a posic;6es sociais e a relac;6es entre posic;6es so- ciais objetivas entre as quais as pessoas est1io distribuidas exer-
ciais. Conforme foi especificado por Blau, a ciencia social es- cern influencias mais fundamentais sobre a vida social do que os
trutural interessa-se pelos parametros de distribuic;6es popula- valores e normas culturais"", Seu proposito e explicar as varia-
cionais, nao pelos atores como tais. Urn "panlmetro estrutura}" c;6es nas caracteristicas estruturais das sociedades, nao os fato-
e qualquer criterio de categorizac;ao de agregados de indivi- res pertinentes as atitudes, crenc;as ou motivos individuais. A ana-
duos pertinente a posic;6es sociais que os individuos poderiam lise estrutural, nesse sentido do termo, assinala Blau, pode ser
ocupar. Ele explica isso da seguinte maneira: realizada sem se investigarem as caracteristicas globais de
sociedades.
i
246 A CONSTITWr;:A-O DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:A-O SOCIAL 247
Entretanto, ele representa algumas asser90es que sao apli- As concep90es de Blau sao, em alguns aspectos, idiossin-
caveis a essas caracteristicas. Assim, por exemplo, observa que crMicas, mas, em sua maior parte, exemplificam as ambi90es
em pequenas culturas orais 0 parentesco e 0 principal eixo estru- da "sociologia estrutural", de urn modo geral. Ele expressa de
tural coordenador de diferencia9ao e integra9ao. As sociedades forma convincente 0 sentimento persistente compartilhado por
industrializadas, em contrapartida, caracterizam-se pela "hete- muitos de que a sociologia pode e deve ser separada de maneira
rogeneidade multiforme", a interse9ao complexa de parame- clara de outras disciplinas vizinhas, em especial da psicologia.
tros estruturais, produzindo diversas formas de associa9ao e Defende com energia a tese de que 0 que da distintividade a
grupos de intera9ao. Na era atual, acrescenta Brau, verifica-se sociologia e sua preocupa9ao especifica nao s6 com a estrutura
uma considenivel consolida9ao estrutural nas sociedades oci- social mas tamb"m com as formas pelas quais propriedades
dentais - de fato, de acordo com sua versao pessoal da crescente coercivas da estrutura se fazem sentir no tocante a conduta dos
amea9a de uma ordem social "unidimensional"". individuos. De acordo com Brau, tanto a formula9ao da analise
Com base nesses conceitos, Blau tenta formular 0 que ele estrutural quanta a explica9ao estrutural nao precisam fazer
chama de uma teoria dedutiva da estrutura social, que parte de referencia a "valeres ou normas". Neste ultimo aspecto, ele
proposi90es envolvendo dados analiticos muito simples (por parece divergir de Durkheim, mas em outros 0 que tern a dizer
exemplo, 0 tamanho de agregados ou grupos) e sobre essa base poderia ser considerado uma versao recente de um manifesto
constr6i generaliza90es mais complexas. Alguns dos pressu- durkheimiano. 0 exame das deficiencias de seu ponto de vista
postos envolvidos, diz ele, dependem de "principios essencial- serve simultaneamente para reiterar caracteristicas da teoria da
mente psicoI6gicos". Cita, como exemplo, a generaliza9ao de estrutura9ao antes mencionadas e para ajudar a assinalar as-
que as pessoas preferem associar-se a outras que tern tra90S pectos da "estrutura" e das "propriedades estruturais" segundo
semelhantes aos delas. As propriedades estruturais analisadas desejo entender esses conceitos.
nao podem, porem, ser diretamente derivadas de tais teoremas Existem alguns tra90s interessantes e instrutivos nas ideias
psicol6gicos. A teoria dedutiva de Blau e urn neg6cio compli- de Blau. Ele contoma 0 funcionalismo e evita identificar a ana-
cado, envolvendo muitas dezenas de generaliza90es acerca dos lise estrutural com alguma influencia inexplicada que a socie-
"efeitos estruturais", desde as maravilhosamente banais ("pes- dade "como um todo" tern sobre seus membros individuais. Re-
soas que se associam nao s6 com os membros de seus proprios conhece que as sociedades nao sao totalmente uniformes -
grupos, mas tambem com os de outros"), passando pelas mo- quer dizer, uma das finalidades do estudo estrutural deve ser a
deradamente interessantes, embora muito discutiveis ("descen- de mostrar exatamente que niveis de integra9ao podem ser des-
traliza9ao da autoridade numa associa9ao aumenta a associa- cobertos dentro de agrupamentos sociais e entre cles. Nao obs-
9a O informal entre 0 pessoal administrativo"), ate as provocati- tante, as limita90es de tal concep9ao de "sociologia estrutural"
vas, mas talvez substancialmente equivocadas ("as altas taxas sao pronunciadas.
de mobilidade promovem a mudan9a estrutural"). Segundo A abordagem de Blau confunde a necessidade de distin-
Blau, "a teoria e sociol6gica no sentido especifico de que ex-
guir a influencia de propriedades estruturais das explica90es
plica padroes de rela90es sociais em termos de propriedades da psicol6gicas da conduta, por um lade, com a asser9ao de que os
estrutura social, nao em termos das SUposi90es formuladas, parametros estruturais podem ser definidos independentemente
sejam estas derivaveis ou nao de principios psico16gicos. A de "valores", "nonnas" OU "tradi<;oes culturais", por DutrO. Pre-
natureza das formula90es 16gicas empregadas toma as explica- sume-se que seu programa de descoberta da "influencia inde-
<;oes estruturais"lo.
pendente que a estrutura de posi90es sociais numa sociedade
,
248 A CONSTITUJf;AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUC;:AO SOCIAL 249

ou comunidade exerce sobre rela,oes sociais" sera realizado ,oes"", Mas, quando Blau a desenvolve, percebe-se que essa
"independentemente de valores culturais e motivos psicologi- proposi,ao e falsa. Se a implica,ao fosse que certos motivos
cos"". Mas a redu,ao a generaliza,oes psicologicas.nao e a tipicos podem ser pressupostos por quem teoriza, e ser enun-
mesma coisa que a formula,ao em termos de valores ou signi- ciados se necessario, a asser,ao poderia ser defendida. Mas
ficados culturais. Estes ultimos fazem refereneia il tarefa inevi- nao e isso 0 que Blau tern em mente, Ele deixa bern claro ser
tavelmente hermeneutica da gera,ao de descri,oes sociais, sua opiniao que a especifica,ao de motivos (e razoes ou inten-
parasitarias dos conceitos dos agentes que ajudam a constitui- ,oes) e realmente irrelevante para os fatores envolvidos na
las. Urn equivoco caracteristico dos defensores da sociologia generaliza,ao. E isso nao e verdade, em absoluto, Pelo contril-
estrutural e confundir duas acep,oes diferentes nas quais a rio, a espeeifica,ao faz-se necessaria precisamente para sua
natureza "objetiva" das propriedades estruturais pode ser con- explica,ao causaL A maior propor,ao de administradores ten-
traposta a "subjetividade". Os parametros estruturais, como Blau dera a verificar-se quando os atores reagem ao que consideram
os define, sao "nao-subjetivos" no sentido de nao poderem ser ser novos problemas e questoes apresentados pelo aumento das
descritos em termos de predicados individuais. Mas niio po- dimensoes organizacionais 13 •
dem ser "nao-subjetivos" no sentido de nao poderem de modo
:E passivel que, num exame mais minucioso, as generali-
za,oes "estruturais" apresentadas por Blau resultem serJ6rmu-
algum ser caracterizados independentemente das "tradi,oes
las que as atores usam para produzir as resultados indicados.
culturais", nas quais este termo se refere aos significados dos
- Se nada sabemos sobre 0 que os proprios agentes acreditam
agentes. Assim, Blau considera "estruturais" as categorias de estar fazendo - porque esse tipo de informa,ao e considerado
parentesco. Mas estas dependem, manifestamente, de concei- distinto da analise de efeitos estruturais -, nao podemos avaliar
tos e discrimina,oes empregados por atores. 0 proprio termo a probabilidade de que as coisas sejam realmente assim. Aque-
"posi,ao", tao basico para a no,ao de estrutura de Blau, envolve les que administram organiza,oes possuem suas proprias teo-
claramente conceitos dos agentes. As posi,oes sociais, como rias em usa sabre elas e podem, na verdade, estar ao corrente
todos os outros aspectos dos "parametros estruturais", so exis- da literatura academica sobre 0 assunto. Considere-se a propo-
tern na medida em que os atores fazem discrimina,oes em sua si,ao de que a descentraliza,ao da autoridade em organiza,oes
conduta baseadas na atribui,ao de certas identidades a outros. aumenta as associa,oes informais entre 0 pessoal administrati-
A no,ao de que 0 estudo de parametros estruturais e con- YO. Como acontece com a generaliza,ao sobre tamanho e dife-
vergente com 0 carater especial da sociologia poderia ser plau- rencia,ao interna, ela presume conseqiiencias intencionais que
sivel se algumas propriedades causais definidas lhes estives- os agentes tern raz5es para provocar OU, alternativamente, 0 re-
sem associadas, fazendo assim convergir a "explica,ao socio- sultado pode ter sido amplamente impremeditado. Para 0 obser-
logica" com a "explica,ao estrutural". Mas as rela,oes causais vador social eesseneial saber qual e0 caso concreto para eluci-
supostamente em a,ao sao obscuras - embora obviamente se dar 0 que estil havendo. Pelo menos alguns dos agentes envol-
presuma que elas operam de algum modo fora do alcance das vidos poderao estar atuando illuz das proprias generaliza,oes
razoes que os agentes poderiam ter para fazer 0 que fazem. que Blau identifica, E bern possivel que uma politica de des-
Assim, Blau propoe a generaliza,ao de que 0 tamanbo crescen- centraliza,ao seja seguida especificamente com a finalidade
te de uma organiza,ao produz maior diferencia,ao interna e, de aumentar certos tipos de assoeia,ao informal entre diferentes
por conseguinte, eleva a propor,ao de pessoal administrativo categorias de administradores.
nela contido. Segundo ele, essa rela,ao pode ser apreendida Esses comentarios demonstram que a "abordagem estru-
"sem se investigarem os motivos dos individuos nas organiza- tural" das ciencias sociais nao pode ser separada de um exame

L
 250 A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODU(:,i,O SOCIAL 251

dos mecanismos de reprodu,ao socia!. E perfeitamente corre- Vma alternativa? Individnalismo metodol6gico
to, e claro, enfatizar que a sociedade nao e uma cria,ao de ato-
res individuais e que as propriedades estruturais de sistemas As concep,5es de "explica,ao distintivamente estrutural"
sociais permanecem alem da vida dos individuos. Mas a estru- em sociologia tern tido desde longa data urn inimigo natural no
tura, ou as propriedades estruturais, ou as "parametros estrutu- individualismo metodologico. 0 debate entre as duas posi,5es
rais", so existem na medida em que ha continuidade na repro- e, de certo modo, a contrapartida metodologica ao dualismo de
du,ao social no tempo e no espa,o. E essa continuidade, por sujeito e 0 objeto social que caracterizou a ontologia das cien-
sua vez, so existe nas (e atraves das) atividades reflexivamente cias sociais. Embora Max Weber tenha sido adotado frequente-
monitoradas de atores situados, tendo uma serie de conseqiien- mente como "sociologo estrutural", ele apontou com bastante
cias premeditadas e impremeditadas. Permitam-me repetir: uma clareza suas preferencias pessoais. Numa carta escrita nao
e
categoria distintiva de "explicafaO estrutural" coisa que nao muito antes de sua morte, observou: "Se me tornei urn sociolo-
exisle; tudo 0 que ha e uma interpreta,ao dos modos pelos quais go [...] foi principalmente a fim de exorcizar 0 espectro de con-
varias formas de coer,ao influenciam a a,ao humana. Nada ha cep,5es coletivas que ainda sobrevive entre nos. Por outras pa-
de misterioso acerca do que significa "influencia" neste caso. lavras, a propria sociologia so pode originar-se de a,5es de urn
Veja-se a generaliza,ao de que elevadas taxas de mobilidade ou mais individuos isolados e deve adotar, portanto, metodos
promovem a mudan,a estrutura!. Podemos provavelmente su- estritamente individualistas."" A a,ao humana, como diz Weber
por que as altas taxas de mobilidade nao sao, em grande parte, em Economia e sociedade, "s6 existe enquanto comportamen-
intencionais e que as mudan,as por elas induzidas tampouco 0 to de urn ou mais seres humanos individuais"15. 0 debate em
sao, embora possa acontecer, por exemplo, de uma politica torno de que teses poderiam, de fato, estar sendo formuladas
por Weber e outros "individualistas metodologicos" alongou-
educacional ser estabelecida a fim de estimular a mobilidade e,
se muito, mas existe, sem duvida, uma genuina diferen,a de opi-
por conseguinte, os fatos fazerem parte de um processo reflexi-
niao entre eles e os "sociologos estruturais". Os detalhes podem
vamente monitorado. Suponhamos, porem, que a mobilidade
ser complexos, mas as linhas gerais sao relativamente simples.
em questao nao seja intencional, como as das mulheres - uma
Os individualistas metodologicos concordam com a opiniao
mobilidade ocupacional ascendente - e que a "mudan,a estru-
que enunciei acima: a busca de "explica,ao estrutural" I: futil e
tural" promovida revela-se nas taxas mais altas (ou mais bai-
talvez atl: nociva.
xas) de divorcio. Podemos investigar ai as influencias causais, Acompanharei agora uma das mais influentes abordagens
mas somente conhecendo os motivos e as raz5es dos envol- das quest5es suscitadas por varias vers5es do individualismo
vidos - esposas, maridos e outros. E possivel que as mulheres metodologico. Lukes discute e procura "tornar inocua" cada uma
de sucesso em suas carreiras profissionais passem menos tem- das que ele considera suas principais express5es". As doutrinas
po no lar do que na circunstiincia adversa, culminando em ten- que advogam 0 individualismo metodologico envolvem uma ou
sao (nao intencional) no relacionamento conjugal; que elas vejam mais das seguintes teses.
o casamento como pOllea importante, comparado ao sucesso
no trabalho; que os maridos se mostrem ressentidos com 0 exito I) "Atomismo social truistico." E 0 ponto de vista que defende
de suas esposas etc., ou uma combina,ao de tudo isso para di- que 0 fato de os fenamenos sociais so poderem ser explica-
ferentes individuos. dos em termos da analise da conduta de individuos I: eviden-
te em si meSillO. Assim, diz Hayek: "nao existe Dutro cami-
nho para uma compreensao dos fenamenos sociais a nao ser
 252 A CONSTITUlt:;A-O DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODUt:;AO SOCIAL 253

mediante nosso entendimento das a90es individuais dirigi- A estrategia de bombardeamento de Lukes, constituida
das para outras pessoas e guiadas pelo comportamento que por argumentos destinados a "desarmar" 0 individualismo me-
se espera deJas"" (uma formula9ao proxima, de fato, da de- todologico, coloca pelotoes em duas frentes. Nenhuma das te-
fini9ao de Weber de "a9ao social"). ses mencionadas nas quatro categorias acima tern a menor
2) A ideia de que todas as afirma90es sobre fen6menos sociais plausibilidade quando examinada minuciosamente. Como a
- como a exposi9ao de Blau de parametros estruturais _ primeira e truistica (quer dizer, trivialmente verdadeira), nao
podem ser reduzidas, sem perda de significado, a descri90es vern ao caso. Dizer que a "sociedade consiste em pessoas" cons-
das qualidades dos individuos. Essa ideia negaria qualquer titui "uma proposi9ao banal sobre 0 mundo", a qual e "analiti-
sentido ao que Blau diz sobre "estrutura"; ele estaria sim- camente verdadeira, isto e, em virtude do significado das pala-
plesmente agregando propriedades de individuos. vras"". 0 segundo, terceiro e quarto pontos sao demonstravel-
3) A asser9ao de que so os individuos sao reais. Assim, parece mente falsos. 0 fato de a descri9ao ou amilise de rela90es de
ser sustentado por alguns autores que todos os conceitos parentesco, como as designadas por "casamento entre primos",
referentes a propriedades de coletividades ou sistemas sociais nao poder ser realizada sem referencia a cognoscitividade de
(poderiamos uma vez mais citar, como exemplo, os "para- agentes humanos nao acarreta que tais rela90es possam ser
metros estruturais") sao modelos abstratos, constru90es dos
descritas apenas em termos dos predicados dos individuos. Se
teoricos, de algum modo que a n09ao de "individuo" nao e.
o ponto 3 implica, de algum modo, que so os individuos sao di-
4) A alega9ao de que nao pode haver leis nas ciencias sociais,
retamente observaveis, ele incorre em erro - embora nao haja
exceto na medida em que existam leis sobre as disposi90es
razao nenhuma, em qualquer caso, para sustentar a proposic;ao,
psicologicas de individuos'".
associada ao behaviorismo, de que somente 0 que e observavel
e real. Podemos nao ser capazes de observar os elementos que
Todos esses quatro elementos pareceriam encontrar-se no tan-
Blau tern em mente quando fala de parametros estruturais, mas
tas vezes citado enunciado de Watkins sobre 0 que ele chama
de "principio do individualismo metodologico": certamente observarnos fenornenos .~ociais em circunstancias
de co-presen9a, como a forma9ao e encena9ao de encontros.
De acordo com esse principia, os constituintes basicos do Finalmente, 0 ponto 4 e coberto pelo que eu disse antes: nao ha
mundo social sao pessoas individuais que agem de modo mais escassez de generalizac;5es nas ciencias sociais, ernbora elas
ou menos apropriado a luz de suas disposir;oes e compreensao nao tenham a mesma forma logica que as leis universais na
de sua situar;ao. Teda situa<;ao social, instituir;ao ou evento com- ciencia natural.
plexo resulta de uma configurar;ao particular de individuos, suas Esses argumentos, admite Lukes, ainda nao tomam ino-
disposir;5es, situar;oes, crenr;as e recursos e ambientes fisicos. cuo 0 individualismo metodologico. Nem mesmo atacam sua
Pade haver explica90es inacabadas ou parciais de fen6menos principal for9a, que diz respeito a explica9ao. A asser9ao mais
sociais de larga escala (digamos, a inflayao) em tennos de Qutros
importante na cita9ao de Watkins, e talvez tambem na de Hayek,
fen6menos de larga escala (digamos, 0 pleno emprego); mas 56
teremos chegado a explicar;5es fundamentais desses fen6menos encontra-se na declara9ao de que as "explica90es finais" de fe-
de larga escala quando tivennos deduzido uma explical;ao deles a nornenos sociais tern de envolver as "disposic;oes, crenc;as, re-
partir de enunciados sobre as disposil;oes, crencas, recursos e cursos e inter-rela90es de individuos". E ai que Lukes sente
inter-relacoes de individuos. (Os individuos poderao pennanecer residir 0 poder potencialmente explosivo do individualismo me-
anonimos, eapenas disposil;oes tipicas etc. ser-Ihes atribuidas.)19 todologico, cujo detonador precisa ser delicadamente desarma-
do e removido. 0 que sao as "disposi90es etc." dos individuos?
 254 A CONSTITUIt:;A'O DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODUr;AO SOCIAL 255

E 0 que e, em todo caso, a "explica,ao"? Quanto a esta ultima, Aqueles que defendem urn reducionismo envolvendo caracte-
Lukes pOde demonstrar com relativa facilidade que muitos pro- risticas fisiologicas do organismo nao podem fazer valer suas
ponentes do individualismo metodologico tern em mente urna alega,5es em qualquer coisa relacionada com a pratica real das
no,ao francamente restrita do que seja (isso e igualmente vali- ciencias sociais, mas outros nao conseguem encontrar quais-
do para Blau e a maioria dos soci610gos estruturais). Explicar e quer propriedades dos individuos que nao sejarn irredutivel-
responder a urn "por que" e, com freqiiencia, isso envolve tor- mente "contaminadas" pelo social.
nar urn determinado fenomeno social inteligivel simplesmente Neste ponto Lukes abandona a questao. Nao penso que is-
no sentido de fomecer dele uma caracteriza,ao exata21 • Neste so seja suficiente: temos de formular as quest5es de urn modo
caso, a explica,ao funciona, por assim dizer, na (ou em tomo da) algo diferente. Entretanto, antes de retomar alguns dos aspec-
linha de base da natureza necessariamente hermeneutica das tos que ficararn pendentes na exposi,ao de Lukes, sera instruti-
ciencias sociais. E inegavelmente importante enfatizar que a vo fazer referencia a alguns problemas muito semelhantes sus-
"explica,ao" compartilha da contextualidade de toda atividade citados num outro quadrante - na polemica entre Thompson e
social, seja esta relativa as indaga,oes de atores leigos ou de Anderson acerca do carater do marxismo". Thompson consi-
observadores sociologicos. Entretanto, concentremo-nos no sig- dera desde longa data os conceitos estruturais como suspeitos,
nificado mais restrito dessa palavra como algo relacionado sem os rejeitar por completo, e enfatiza sistematicamente a
com a formula,ao nao apenas de generaliza,oes, mas de gene- importii.ncia do estudo da textura e variedade da agencia hurna-
raliza,5es causais - por outras palavras, aquelas que nao afir- na. Assim, ao descrever os pontos de vista que dao base a sua
mam simplesmente que urna rela,ao de tipo abstrato prevalece analise do desenvolvimento de classes na Inglaterra, nos secu-
entre duas categorias ou classes de fenomenos sociais mas los XVIII e XIX, ele comenta: "a classe e definida por homens
tambem identificarn as conex5es causais envolvidas. enquanto vivem sua propria historia e, afinal, essa e sua unica
Em que sentido essas conexoes causais se relacionam ne- defini,ao"". Durante uma prolongada polemica contra Althus-
cessariamente com os individuos? Segundo Lukes, em algu- ser e seus seguidores - provocando urna resposta em dimen-
mas vers5es do individualismo metodologico as qualidades dos s5es de livro por parte de Anderson -, Thompson detalha as
individuos invocadas nas explica,5es sao tra,os fisiologicos do implica,oes de seu ponto de vista. Nao tentarei caracterizar 0
organismo ou necessidades organicarnente dadas. Mas resulta debate como urn todo, mas mencionarei apenas alguns aspec-
que essas explica,5es sao totalmente implausiveis. Ninguem tos pertinentes.
pode apresentar qualquer coloca,ao que reduza os fenomenos Althusser e censurado por Thompson - corretamente, em
sociais a propriedades organicas. Logo, essas formas de indivi- minha opiniao" - por apresentar urna descri,ao deficiente da
dualismo metodologico sao, no maximo, alega,5es hipoteti- agencia hurnana e urna concep,ao deterministica de estrutura.
cas; nao tern rela,ao direta de especie alguma com os materiais Os seres hurnanos sao vistos nao como agentes conscientes,
de estudo dos cientistas sociais. Em outras interpreta,5es do mas apenas como "esteios" de modos de produ,ao. Aquilo que
individualismo metodologico, porem, ou as caracteristicas atri- charnei de "deprecia,ao do ator leigo" e expresso por Thomp-
buidas a individuos e incorporadas em explica,5es nao excluem son de maneira mais abrupta. Althusser, e a maioria dos outros
a possibilidade de outras analises estruturais, ou essas caracte- associados ao estruturalismo ou ao funcionalismo, "partem da
risticas sao cobertas pela refuta,ao do item 3 acima e envol- mesma 'antropologia latente', do mesmo pressuposto ulterior
vern, de fato, caracteriza,5es sociais (estruturais), de qualquer acerca do 'Homem' - de que todos os homens e mulheres (exce-
modo. Logo, 0 individualismo metodologico foi neutralizado. to eles proprios) sao remalados idiolas"". A vida social, ou a
 256 A CONSTITUf(;AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL 257
hist6ria humana, diz Thompson, deveria ser entendida como da palavra, por exemplo, liga-se diretamente ao empirismo, no
"pr<itica humana sem mestre". Isso significa que os seres hu- qual ela e urn registro passive de eventos no mundo, algo muito
manos atuam deliberada e conscientemente, mas sem poder distante das conota90es ativas do termo que Thompson deseja
antever ou controlar as conseqiiencias do que fazem. Para en- acentuar. Alem disso, em nenhum momenta este disseca efeti-
tender como isso acontece, precisamos de urn termo que foi vamente a rela9ao entre a9ao e estrutura. Isso e verdade ate
omitido em Althusser: e 0 que Thompson simplesmente desig- mesmo no que diz respeito a seu livro mais importante, The
na por "experiencia humana"26, A experiencia ea conexao entre Making of the English Working Class, que abre com um para-
"estrutura" e "processo", 0 verdadeiro material da analise so- grafo celebre: "A classe trabalhadora nao nasceu como 0 sol na
cial ou hist6rica. Thompson sublinha que esse ponto de vista hora marcada. Estava presente em sua pr6pria cria9ao", e sua
nao 0 aproxima do individualismo metodol6gico. De fato, ele forma9ao "deve tanto aagencia quanta ao condicionamento"28.
aponta uma certa afinidade entre este e 0 marxismo de Althus- Mas, a despeito dos aplausos que a obra recebeu com justi9a,
ser. Pois este autor acredita que as "estruturas" s6 existem no sublinha Anderson, ela nao resolve realmente as questoes as-
interior de dominios te6ricos, nao na pr6pria realidade, e essa sim suscitadas.
postura, portanto, assemelha-se ao nominalismo dos individua-
listas metodol6gicos. Mas ainda, afinal, nao e facil enxergar Pois se a afirmayao da co-detennina<;ao de agencia e neces-
exatamente ate que ponto as ideias de Thompson sao distintas sidade devesse ser corroborada, precisariarnos ter, no minime,
do individualismo metodol6gico. Muitas das passagens em sua uma explora<;ao conjunta da reuniao e transfonna<;ao objetivas de
obra, nas quais ele caracteriza suas concep90es gerais, asseme- urna for9a de trabalho pela Revolu,iio Industrial, e da gennina,iio
lham-se as ideias de Watkins acima citadas. Assim, ao voltar a subjetiva de urna cultura de classe em resposta a ela. [...] [Mas] a
falar do conceito de classe, ele insiste: "Quando falamos de advento do capitalismo industrial na Inglaterra eurn sombrio pa-
uma classe, estamos pensando num grupo vagamente definido no de fundo para 0 livro, em vez de urn objeto de analise direto
por si s6. [...] Os ritmos e as pausas temporais irregulares, e as dis-
de pessoas que comparti!ham das mesmas categorias de intes-
tribui<;oes e deslocarnentos espaciais desiguais da acumula<;ao de
ses, experiencias sociais, tradi9ao e sistema de valores, que tern capital entre 1790 e 1830 marcaram inevitavelmente a composi-
uma disposi,do para comportar-se como uma classe, para de- <;ao e 0 caniter do proletariado ingles nascente. Contudo, nao en-
finir-se a si mesmas em suas al;oes e em sua consciencia em contrararn lugar nesta descri<;ao de sua forrna<;ao. 29
rela9ao a outros grupos de pessoas em termos de classe.""
Ha muito de atraente nas ideias de Thompson, mas Ander- A polemica entre Thompson e Anderson nao e conclusiva,
Son nao teve dificuldade em descobrir nelas algumas deficien- em absoluto, mas e uti! coloca-la lado a lade com 0 debate
cias. Quando aquele fala de "pessoas" e da primazia da "expe- mais abstrato acerca do individualismo metodol6gico. Este
riencia", de que modo esses termos aparentemente transparen- ultimo parece largamente esgotado, mas a vivacidade da pole-
tes devem ser entendidos? Ao enfatiza-los, ele pretende clara- mica entre Thompson e Anderson demonstra claramente que
mente acentuar 0 significado da agencia humana no fazer a as questoes nao estao mortas. Existe um sentido muito impor-
Hist6ria. Mas 0 que e "agencia" permanece inexplicado, ape- tante no fato de nao poderem estar. Cada investiga9ao realizada
sar da profusao de exemplos hist6ricos que Thompson oferece nas ciencias sociais ou na hist6ria esta envolvida em relacionar
em seus trabalhos originais e mediante sua critica a Althusser. a a9ao a estrutura, em tra9ar, explicitamente ou nao, a conjun-
"Experiencia" - como sabemos pelas tentativas de Dilthey de 9ao ou as disjun90es de conseqiiencias premeditadas ou impre-
explicar Erlebnis - e um termo notoriamente ambiguo. Urn uso meditadas da atividade, e em verificar como elas afetam 0 des-
 258 A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL 259
tino de individuos. Nenhum malabarismo com conceitos abs- ria da estrutura,ao. lsso pressupoe 0 abandono da equipara,ao
tratos podeni substituir 0 estudo direto de tais problemas nos de estrutura e coer,ao. A rela,ao entre facilita,ao e coef9ao pode
contextos reais de intera,ao. Pois as permutas de influencias ser facilmente exposta nurn nivel16gico, dado urn ponto inicial
sao intennimiveis, e naD existe urn sentido em que a estrutura na no,ao da dualidade da estrutura. Hist6ria nao significa "pni-
"determine" a a,ao ou vice-versa. A natureza das coer,oes a que ticas hurnanas sem mestre". Ea temporalidade de praticas hu-
os individuos estao sujeitos, os usos que eles dao as capacida- manas, modelando e sendo modelada por propriedades estrutu-
des que possuem e as formas de cognoscitividade que revelam rais, dentro das quais diversas formas de poder sao incorpora-
sao todos eles manifestamente variaveis do ponto de'vista his- das - de forma alguma urna mudan,a de frase tao nitida, mas
t6rico. penso que seja colocada com maior precisao.
o esclarecimento conceptual pode pelo menos ajudar, su- Uma outra questao suscitada pelo debate sobre 0 individua-
gerindo como essas materias poderao ser mais bern abordadas. lismo metodol6gico: as coletividades sao atores? 0 que signi-
o que liga os argumentos de Thompson aos de Watkins e ou- fica dizer, por exemplo: "0 governo decidiu adotar a politica
tros e que ambos ap6iam seus argurnentos, de forma urn tanto X"? Ou: "0 governo atuou rapidamente diante da amea,a de
excessiva, numa concep9ao intuitiva, naG teorizada, do '''indivi- rebeliao"? Varias distin,oes precisam ser delineadas neste
duo" ou "agente". Eles estao inteiramente justificados em sus- ponto. As descri,oes de a,ao, como mencionei num capitulo
peitar das aspira,oes da "sociologia estrutural", quer esta adote anterior, nao devem ser confundidas com a designa,ao de agen-
a forma oferecida por Blau ou a elaborada por Althusser. 0 cia enquanto tal. Tanto elas quanta os relatos de intera,ao nao
individualismo metodol6gico nao e, como Lukes sugere, in6- podem ser dados puramente em termos de predicados indivi-
cuo a respeito dos objetivos que os "soci610gos estruturais" se duais. Mas s6 os individuos, seres que possuem uma existencia
propoem alcan,ar. Os individualistas metodol6gicos estao er- corp6rea, sao agentes. Se as coletividades ou grupos nao sao
rados, na medida em que afirmam que as categorias sociais agentes, por que as vezes falamos como se fossem, como nos
podem ser reduzidas a descri,oes em termos de predicados in- exemplos acima? Somos propensos a faze-Io quando existe urn
dividuais. Mas eles estao certos ao desconfiar de que a "socio- grau significativo de monitora,ao reflexiva das condi,oes de
logia estrutural" elimina ou, pelo menos, subestima radicalmen- reprodu,ao social, do tipo relacionado especialmente com as
te a cognoscitividade dos agentes humanos, e tern razao em organiza,oes, embora nao exclusivo delas. "0 governo decidiu
insistir que as "fon;as sociais" sao sempre nero mais nem menos adotar a politica X" e urna descri,ao sintetica de decisoes to-
do que combina,oes de conseqiiencias premeditadas ou impre- madas por individuos, mas, normalmente, em alguma especie
meditadas da a,ao empreendida em contextos especificaveis. de consulta mutua ou quando a orienta,ao politica resultante e
A "sociologia estrutural" e 0 individualismo metodol6gi- normativamente obrigat6ria. As decisoes tomadas por governos
co nao sao alternativas, de modo que rejeitar uma seja aceitar a ou outras organiza,oes podem nao representar 0 resultado de-
outra. Em certos aspectos, como diz Lukes, 0 debate entre os sejado de tudo, ou 0 resultado mais desejado de todos, daque-
dois lados e vazio. A questao e descartar alguns dos termos do les que participam nelas. Em tais circunstancias, faz sentido
debate enquanto se desenvolvem outros mais alem do que foi dizer que os participantes "decidem" (individualmente) "deci-
feito por qualquer de seus participantes. 0 que 0 "individuo" e dir" (coletivamente) sobre urn dado curso de a,ao. Quer dizer,
nao pode ser considerado 6bvio. Nao se trata aqui de comparar os membros individuais de urn governo podem concordar em
predicados mas de especificar como sao os agentes hurnanos _ considerar-se obrigados a respeitar 0 resultado de urna reuniao
algo que tentei fazer com rela,ao aos conceitos basicos da teo- do qual discordam ou 0 teor de urna proposta contra a qual VOla-
 260 A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA. SISTEMA, REPRODUt;:AO SOCIAL 261
ram, mas que recebeu 0 apoio da maioria. B importante com- do sociol6gico. Trad. de M. Garrido Torres. Sao Paulo, Abril Cul-
preender que "0 governo decidiu..." ou "0 governo aluou..." sao tural, 1973, pp. 380-1. Col. "Os Pensadores", vol. XXXII!.]
declara,oes sinteticas, porque, em algumas situa,oes, pode im- 11. Ibidem, pp. 50 e 52 [po 389 da ed. brasileira].
portar muito quais individuos foram os principais iniciadores 12. Ibidem, pp. 2-3 [po 390 da ed. brasileira].
ou executores das decisoes tomadas (ou nao tomadas) e das 13. Marx, Karl. Capital. Londres, Lawrence & Wishart, 1970, p. 72.
orienta,oes politicas seguidas, sejam elas quais forem. Vma discussao instrutiva dessa questao figura em: Rose, Gillian.
The Melancholy Science. Londres, Macmillan, 1978, cap. 3.
14. Marx, Karl. Grundrisse. Harrnondsworth, Penguin, 1976, p. 157.
Referencias 15. Yer CPST, cap. 5.
16. Preparado para a reda9ao de CCHM, mas nao na versao final ai
Estrutura, sistema, reprodu(:iio social
incluida.
17. A classifica,ao tambem deixa em aberto a possibilidade de outros
1. CPST, pp. 222-5.
tipos - por exemplo, sociedade socialista de Estado, distinta do
2. CCHM, cap. 8 capitalismo e, e claro, de outras fonnas de organiza9ao da socie-
dade que possam desenvolver-se concebivelmente no futuro.
3. Ibidem, pp. 45-6. Minhas considera,5es aqui modificam apenas
18.0 ponto de vista expresso em CCHM, p. 164, "A cidade e 0 locus
ligeiramente minha versao anterior desse problema. Para cutras se- dos mecanismos que produzem a integra9ao de sistema", esta for-
,5es em que nos apoiamos aqui, vertambem pp. 157-64 e 166-9. mulado de modo algo inadequado. Alem disso, nao quero trans-
4. Acompanhei de perto a analise de Eberhard nos paragrafos prece- mitir a ideia de que a rela9ao cidade-campo e unitciria Oll singular;
dentes: Eberhard, Wolfram. Conquerors and Rulers. Leiden, Brill, pelo contnirio, e heterogenea e complexa quando considerada a
1965, p. 9 passim.
generalidade das sociedades.
5. Hodgson, Marshall G. S. "The interrelations ofsocieties in history". 19. Wallerstein, Immanuel. The Modern World-System. Nova York,
Comparative Studies in Society and History, vol. 5, 1962-3, p. 233. Academic Press, 1974; cf. Spengler: "Nao e ridiculo opor urn.
6. Gailey, H. A. A History ofAfrica. 1800 to the Present. Nova York, hist6ria 'modema' de alguns seculos, e essa hist6ria localizada,
Houghton-Mifflin, 1970-2,2 vols.; Grousset, Rene. The Empire para todos os fins, na Europa Ocidental, a umahist6ria 'antiga', que
ofthe Steppes. New Brunswick, Rutgers University Press, 1970. cobre muitos milenios - despejando, alias, nessa 'hist6ria antiga'
7. Carlstein, T. "The sociology of structuration in time and space: a toda a massa de culturas pre-helenicas, nao exploradas nem orde-
time-geographic assessment of Gidden's theory". Swedish Geo- nadas, como mero apendice?" (Spengler, Oswald. The Decline of
graphical Yearbook. Lund, Lund University Press, 1981; Layder, the West. Londres, Allen & Unwin, 1951, p. 38).
Derek. Structure, Interaction and Social Theory. Landres, Rout- 20. Cf. nota 2 acima.
ledge, 1981; Thompson, 1. B. Critical Hermeneutics. Cambridge, 21. Cf. meu ensaio "The nation-state and violence".
Cambridge University Press, 1981; Archer, Margaret S. "Morpho- 22. CPST, pp. 104-5.
genesis versus structuration: on combining structure and action". 23. Marx, K. Capital, cit., p. 11 O.
British Journal ofSociology, vol. 33, 1982. 24. Ibidem, pp. 110 e 103.
8. Carlstein, 1. "The sociology of structuration in time and space", 25. Ibidem, p. 168.
cit., pp. 52-3. Yer tambOm: Critical Hermeneutics. Cambridge, 26. Para uma versao anterior de alguns desses pontos, ver DSCA, cap. 6.
Cambridge University Press, 1981, pp. 143-4. 27. Marx, K. Capital, cit., vol. 1, p. 337.
9. Bhaskar, Roy. The Possibility of Naturalism. Brighton, Harves- 28. Ibidem, p. 338.
ter, 1979,p. 42.
29. Ibidem, p. 356.
10. Durkheim, Emile. The Rules of Sociological Method. Londres: 30. Ibidem, p. Ill.
Macmillan, 1982, pp. 39-40. [Edi,ao brasi1eira: As regras do meto- 31. CPST, pp. 141 ss.
 262
A CONSTITUH;:AO DA SOCIEDADE ESTRUTURA, SISTEMA. REPRODUr;:AO SOCIAL 263
32. Levi-Strauss, Claude. Structural Anthropology. Londres, Allen La- 46. Touraine, Alain. The Self-Production of Society. Chicago, Uni-
ne, 1968, pp. 365-6. [Edi,ao brasileira: Antropologia estrutural versity of Chicago Press, 1977, p. 238.
Trad. de Chaim Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro, Tempo 47. Blumer, Herbert. "Collective behaviour". In: Lee, Alfred M. Prin-
Brasileiro,1967.]
ciples ofSociology. Nova York, Barnes & Noble, 1951, p. 199.
33. Levi-Strauss, Claude. The Savage Mind. Londres, Weidenfeld & 48. Cohn, Norman. "Mediaeval millenarianism: its bearing upon the
Nicolson, 1966, p. 93.
comparative study of millenarian movements", In: Thrupp, Silvia
34. Essa e uma preocupa<;ao essencial de Between Capitalism and L. Millenial Dreams in Action. Haia, Mouton, 1962, p. 31.
Socialism.
49. Cf. Banks, 1. A. The Sociology of Social Movements. Londres,
35. CCHM, caps. 7, 8 e 9. Tambem nao considero aqui a questiio Macmillan, 1972, pp. 20-1 passim.
muito importante (analisada igualmente em CCHM) das rela,oes 50. Gorz, Andre. Farewell to the Working Class. Londres, Pluto, 1982.
entre 0 capitalismo, 0 Estado e as divis6es de classes.
36. Urn tema desenvolvido mais completamente em Between Capi-
talism and Socialism.
Nolas criticas: "socialagia estrutural"
37. Ver: Kautsky, John H. The Politics ofAristocratic Empires. Cha- e individualismo metodol6gico
pel Hill, University of North Carolina Press, 1982: "Se urna clas-
se e concebida como urn agrupamento em conflito com uma Dutra 1. Cf. Boudon, Raymond. The Uses ofStructuralism. Londres, Hei-
classe, enHio, na verdade, aristocracias e campesinatos DaD sao nemann, 1971. [Edi9ao brasileira: Para que serve a noriio de es-
classes, em absoluto" (p. 75).
trutura? Trad. de Luis Costa Lima, Edi,ao Eldorado, 1974.]
38. Ibidem, pp. 5-6. Ver lambem: Claessen, Henri J. M. e Skalnik, BoudoD categoriza urn certo mimero de uscs divergentes do con-
Peter. The Early State. Haia, Mouton, 1978.
ceito. Para urn conjunto de abordagens alga diferentes, ver: Blau,
39. Shils, Edward. Tradition. Londres, Faber & Faber, 1981, p. 280. Peter M. Approaches to the Study of Social Structure. Landres,
40. Waley, Arthur. Three Ways ofThoughtinAncient China. Londres, Collier-Macmillan, 1975.
Allen & Unwin, 1939, p. 38. Para urna discussao mais ampla, ver: 2. Wallace, Walter L. "Structure and action in the theories ofCole-
Pocock, 1. G. "The origins of the study of the past". Comparative man e Parsons". In: Blau, P. M. Approaches to the Study ofSo-
Studies in Society and History, vol.4, 1961-2.
cial Structure, cit., p. 121.
41. Levi-Strauss, Claude. Totemism. Londres, Merlin, 1964, p. 98. 3. Mayhew, Bruce H. "Structuralism versus individualism", partes 1
42. Ibidem. Levi-Strauss tambem observa: "A lingua Dakota nao e 2. Social Forces, vol. 59, 1980, p. 349.
possui uma palavra para designar 0 tempo, mas pade expressar de 4. Ibidem, p. 348.
numerosas maneiras os modos de ser em dura<;ao. Para 0 pensa- 5. Blau, Peter M. Inequality and Heterogeneity. Nova York, Free
mento Dakota, de fato, 0 tempo constitui uma dura<;3.o em que a Press, 1977; "Structural effects". American Sociological Review,
medi,ao nao intervem: e urn 'bern livre' ilimitado" (p. 99). Inte- vol. 25, 1960; "Parameters of social structure". In: Blau, P. M.
ressantes observa~5es pertinentes a essas quest6es sao feitas em: Approaches to the Study ofSocial Structure, cit.;"A macrosocio-
Schintlholzer, Birgit. Die AUj/6sung des Geschichtbegrijft im logical theory of social structure". American Journal ofSociolo-
Strukturalismus. Harnburgo, 1973 (disserta,ao de doutoramento). gy, vol. 83, 1977.
43. Thompson, E. P. The Poverty of Theory. Londres, Merlin, 1978, 6. Inequality and Heterogeneity, cit., p. ix.
pp. 86 e 291.
7. "Parameters ofsocial structure", cit., p. 221.
44. Vieo, G. The New Science. Ithaca, Cornell University Press, 1968, 8. Inequality and Heterogeneity, cit., p. 246.
pp. 382, 1108. [Edi,ao brasileira: Principios de (uma) ciencia 9. '''Parameters of social structure", cit., pp. 252-3. "0 que coloca essa
nova. Trad. Antonio de Almeida Prado. Sao Paulo, Abril Cultu- amea<;a e a posi<;ao dominante de organiza<;oes poderosas na so-
ral, 1974, p. 184. Col. "as Pensadores", vol. XX.]
ciedade contemporanea, como 0 Pentigono, a Casa Branca e gigan-
45. Thompson, J. B. The Poverty ofTheory, cit., p. 86.
tescos conglomerados. A tendencia tern sido a de crescente con-

""~
 264
A CONSTITUI!;AO DA SOCIEDADE
ESTRUTURA, SISTEMA, REPRODU!;AO SOCIAL 265
centra~ao de recursos economicos e humanos, e de poderes deles ponto os escritos substantivos de Weber foram guiados por esse
derivados em gigantescas organiza~6es e seus altos executivos, 0 principio.
que implica uma crescente consolida<;ao de irnportantes recursos 15. Weber, Max. Economy and Society. Berkeley, University of Ca-
e fonnas de poder. [... J"
lifornia Press, 1978, vol. 1, p. 13.
IO. Inequality and Heterogeneity, cit., p. 246.
16. Lukes, Steven. "Methodological individualism reconsidered". In:
11. "A macrosociological theory of social structure", cit., p. 28.
-. Essays in Social Theory. Londres, Macmillan, 1977.
12. Blau, Peter M. "A fonnal theory of differentiation in organiza-
17. Hayek, F. A. Individualism and Economic Order. Chicago, Uni-
tions". American Sociological Rewiew, vol. 35, 1970, p. 203.
versity of Chicago Press, 1949, p. 6.
13. Este ponto e apresentado em: Turner, Stephen P. "Blau's theory
18. Lukes tambem identifica urna conota9ao adicional do individua-
of differentiation: is it explanatory?". Sociological Quarterly, lismo metodo16gico, uma doutrina de "individualismo social" que
vol. 18, 1977. Algumas dessas quest6es sao ventiladas de novo (ambiguamente) afirma que a sociedade tern como seu objetivo 0
em Blau, P. M.: "Comments on the prospects for a nomothetic bern de individuos" (Lukes, S. "Methodological individualism
theory of social structure". Journal for the Theory of Social reconsidered", cit., pp. 181-2).
Behaviour, vol. 13, 1983. Ver, tambem, no mesma volume, urn 19. Watkins, 1. W. N. "Historical explanation in the social sciences".
extraordinano artigo de Mayhew sabre "Causality, historical par- In: Gardiner, P. Theories ofHistory. Glencoe, Free Press, 1959.
ticularism and other errors in sociological discourse". A contri- 20. Lukes, S. "Methodological individualism reconsidered", cit., p. 178.
bui<;ao de Blau continua revelando as deficiencias que ja indi- 21. Cf. NRSM, cap. 4.
quei: 1) elementos henneneuticos na fonnula9ao de conceitos de 22. Thompson, E. P. The Poverty of Theory. Londres, Merlin, 1978;
analise social sao suprimidos em favor da ideia de que "0 objetivo Anderson, Perry. Arguments within English Marxism. Londres,
da sociologia e estudar a influencia do <ambiente social' sobre as Verso, 1980.
<tendencias observaveis das pessoas' " (p. 268); 2) a referencia a 23. Thompson, E. P. The Making of the English Working Class.
motivos, razoes e inten90es dos agentes e persistentemente equi- Hannondsworth, Penguin, 1968, p. 40.
parada apsicologia, relegada a urn dominio separado dos interes- 24. CPST, cap. 1 passim.
ses da "sociologia"; 3) urna versao de urna desacreditada filosofia 25. Thompson, E. P. The Poverty ofTheory, cit., p. 148.
da ciencia natural, em que a "explica9ao" e vista como necessa- 26. Ibidem, p. 30.
riamente vinculada a"teoriza9ao nomotetico-dedutiva" (p. 265), 27. Ibidem, p. 295. Grifo no original.
e aceita sem discussao; 4) nenhuma considerayao e feita apossi- 28. Thompson, E. P. The Making ofthe English Working Class, cit.,
bilidade de que, mesmo se a filosofia da ciencia natural assim p.9.
subentendida fosse aceitavel, 0 carater de "leis" em ciencia social 29. Anderson, P. Arguments within English Marxism, cit., pp. 32-4.
seria fundamentahnente diferente das leis da natureza; 5) 0 ponto
de vista esti. todo ele envolto na conhecida mas erronea alegayao
de que a ciencia social, em comparayao com a ciencia natural, esta
em suas fases iniciais de desenvolvimento. Blau aceita a inexis-
tencia, "pelo menos ate aqui", de "leis detenninisticas em sociolo-
gia" (p. 266). Mas ele expressa fe em que elas serao urn dia desco-
bertas - certamente nao podemos descartar essa possibilidade,
porque a "teoria nomotetica da estrutura social ainda se encontra,
sem duvida, num estadio muito rudimentar" (p. 269).
14. Citado em: Moromsen, Wolfgang. "Max Weber's political socio-
logy and his philosophy of world history". International Social
Science Journal, vol. 17, 1965, p. 25. Eclaro, e discutivel ate que
Capitulo V
Mudanfa, evolufiio e poder

Quero apresentar neste capitulo argumentos favonlveis it

desconstru,iio de toda uma gama de teorias de mudan9a social,
especialmente as de urn tipo evolucionista, e it reconstru,iio da
natureza do poder como inerente it constitui9ao da vida social.
"Desconstruir" teorias de mudan9a social significa negar a
possibilidade de realiza9ao de algumas das mais acariciadas
ambi90es da teoria social - incluindo as do "materialismo his-
torico". Isso nao implica fazer a alega9ao relativamente fraca de
que tais teorias nao podem ser conoboradas pelas provas dis-
poniveis. Envolve urn argumento muito mais forte e mais con-
trovertido: 0 de que elas estao equivocadas a respeito dos tipos
de explica9ao de mudan9a social possiveis. Uma desconstru-
9aO de teorias de mudan9a social pode ser procedida atraves de
tres series de considera90es de generalidade progressivamente
decrescente, como abaixo:

determinayao estrutural nfvel de generalidade

evoluyao social

materialismo hist6rico 1
Uma grande propor9ao da ciencia social, tanto na sociolo-
gia academica quanta no marxismo, baseou-se no pressuposto
de que e possivel fonnular teoremas de causa9ao estrutura! que
explicarao a detennina9ao da a9ao social em gera\'*' A maioria

'" As referencias podem ser encontradas a pp. 323-9.

268 A CONSTITUlr:;AO DA SOCIEDADE MUDANr:;A. EVOLUr:;AO E PODER 269

das versoes de determina,ao estrutural esta ligada a tese de que do funcionalismo, liderado por Malinowski e Radcliffe-Brown,
as ciencias sociais podem revelar leis universais, leis essas que na antropologia, e depois por Merton e Parsons, na sociologia,
identificam os efeitos das coer,oes estroturais. Uma dada ocor- foi responsavel, em certa medida, pelo eclipse do pensamento
rencia ou tipo de comportamento seria comprovadamente urn evolucionista, embora seu renascimento tivesse side mais tarde
exemplo de uma lei geral, tendo sido especificadas certas con- iniciado pelo pr6prio Parsons'.
di,oes limitrofes para a vigencia da lei. A "determina,ao" aqui
equipara-se a uma forma especifica de determinismo. 0 cha-
mado debate sobre a "lei de cobertura" explorou esse tipo de EvoIucionismo e teoria social
questao com certo detalhe e, sem entrar diretamente nele, basta
dizer aqui que tal concep,ao e inteiramente incompativel com Muitas teorias da evolu,ao formam exemplos primordiais
o carater das generaliza,oes nas ciencias sociais que descrevi do que chamei de modelos "end6genos" ou "expansiveis" de
antes (ver tambem pp. 404-9)'. Negar que uma explica,ao mudan,a e critiquei anteriormente. Esses tipos de teoria evolu-
geral da determina,ao estrutural possa ser obtida e adotar urna cionista estiveram, de fato, estreitamente relacionados com 0
postura em rela,ao a qual boa parte deste livro e pertinente'. funcionalismo - sendo urn exemplo notavel as obras de Comte -,
Algumas teorias de mudan,a social estao ligadas as con- e a separa,ao entre funcionalismo e evolucionismo introduzida
cep,oes acima. Tem-se pensado as vezes, por exemplo, que exis- por Malinowski e outros deveria, talvez, ser encarada mais como
tern leis universais governando a mudan,a social e que urna uma aberra,ao do que como urn estado natural de coisas. As
teoria de mudan,a social deve ser organizada em torno delas. metaforas organicas forneceram, com freqiiencia, a rela,ao en-
Mas ha muitas tentativas de explicar a mudan,a que, embora tre os dois. Uma planta ou organismo contem em si urna traje-
nao postulem leis, especificam certos principios limitados de t6ria de crescimento, urn desdobramento de potencialidades la-
determina,ao de mudan,a que se sustenta serem aplicados de tentes. Neste caso, a mudan,a e entendida como governada
maneira universal. Entre esses principios, as concep,oes evolu- pelos mecanismos envolvidos nesse desdobramento, sendo as
cionistas tern sido de longe as mais salientes. sociedades consideradas unidades claramente limitadas. Sus-
o "evolucionismo", e claro, nao pode ser facilmente cate- tenta-se que as condi,oes externas acentuam ou detem proces-
gorizado, uma vez que uma variedade de pontos de vista dife- sos de crescimento, mas sao na realidade urn pano de fundo
rentes foram associados ao termo, e a popularidade das con- contra 0 qual os mecanismos de mudan,a operam. Alguns mo-
cep,oes evolucionistas tern aurnentado e declinado nas ciencias delos evolucionistas trataram a mudan,a como inerentemente
sociais no decorrer do tempo. A segunda metade do seculo XIX lenta e curnulativa. Assim, Durkheim considerou a revolu,ao
foi certamente 0 ponto alto do evolucionismo na teoria social, politica agita,ao na superflcie da vida social, incapaz de dar
inspirado em consideravel grau pelas descobertas de Darwin origem a transforma,oes importantes da sociedade, porque a
na biologia4 • As no,oes evolucionistas mostraram subseqiien- evolu,ao das institui,oes sociais basicas e sempre necessaria-
temente urna tendencia para sairem da moda, sobretudo entre mente lenta'. Mas as concep,oes expansiveis de mudan,a nao
os antrop610gos, que em sua maioria foram fortemente influen- sao certamente estranhas a teorias que propoem que a evolu,ao
ciados por uma OU Dutra interpreta9ao do "'relativismo cultu- avan,a atraves de processos de transi,ao revolucionana. As
ral". Mas tais no,oes retiveram alguns defensores na antropo- concep,oes de Marx representam urn exemplo. 0 principal
logia, e 0 evolucionismo permaneceu sistematicamente domi- motor da mudan,a social, no esquema que Marx descreve no
nante na arqueologia. No mundo anglo-sax6nico, a ascensao a
"Prefacio" de Contribui~iio critica da economia politica, e a
 270 A CONSTITUII;AO DA SOCIEDADE MUDAN!;A. EVOLU!;A-O E PODER 271

expansiio das for,as de produ,iio no seio de urn determinado de reconstru<;ao hist6rica au uma metodologia au abordagem
tipo de sociedade. Nurn dado ponto, essa expansiio niio pode especial. (Steward)'"
mais ser contida dentro das institui,oes existentes da socieda- A evolw;ao (natural au social) eurn processo de automanu-
de, redundando num processo de revolu,iio, apos 0 qual 0 tenc;ao, autotransformac;ao e autotranscendencia, direcional no
mesmo processo volta a ocorrer'. As origens da mudan,a de- tempo e portanto irreversivel, 0 qual, em seu curso, gera todas as
vern ser encontradas nas propriedades tendenciais das sociedades novidades, maior variedade, organizac;ao mais complexa, niveis
de classes, as quais contem as "sementes de sua propria trans- mais elevados de compreensao e atividade mental carla vez mais
formal;ao". consciente. (Huxley)'l
Como deve ser entendido 0 termo "evolu,iio"? A palavra A evolw;ao pade ser definida como uma sequencia tempo-
prov.om do latim evolutia, derivado de e- ("fora de") e volutus ral de fonnas: uma forma desenvolve-se a partir de Dutra; a cul-
("enrolado"). Usava-se em referencia ao desenrolamento de tura avanc;a de urn estagio para DutrO. Nesse processo, 0 tempo e
livros em pergaminho. 0 conceito niio era aplicado em algo urn fator tao integrante quanta a mudanc;a da fonna. 0 processo
que se parecesse com sua acep,iio modema antes do final do evolucionista e irreversivel e nao-repetitive. [...] 0 proces-
s.oculo XVII, quando passou entiio a signil'icar urn processo so evolucionista e semelhante ao processo historico, ou difusio-
ordenado de mudan,a, passando por varios estadios discemi- nista, na medida em que ambos sao temporais e, portanto, irre-
veis. Comte foi urn dos primeiros pensadores sociais importan- versiveis e nao-repetitivos. Mas diferem no fato de 0 primeiro
tes a fazer extenso uso da no,iio, e sua formula,iio niio .0 muito ser de carater nomotetico e 0 segundo, idiognifico. [...] Por certo,
o processo evolucionista tern sempre lugar algures e num conti-
diferente daquelas propostas subseqiientemente por muitos au-
nuum temporal, mas 0 tempo particular e 0 lugar particular nao
tores (incluindo Parsons, ver pp. 310-23). A varia,iio de tipos sao significativos. 0 que conta e a sequencia temporal de for-
sociais, sua diferencia~ao e sintese, promovendo a "ordem com mas. (White)"
continuidade" - foram esses os temas de Comte. "Nenhuma
ordem real pode estabelecer-se nem, sobretudo, durar se niio Em suas esferas biologica e cultural, a evolw;ao move-se si-
for plenamente compativel com 0 progresso; nenhurn grande multaneamente em duas dire90es. Por urn lado, cria a diversida-
de atraves da modifica9ao adaptativa: fonnas superiores resul-
progresso podera efetivamente realizar-se se niio tender, em
tam das inferiores e as ultrapassam. A primeira dessas dire90es e
ultima instiincia, para a evidente consolida,iio da ordem.',g
a Evolu9ao Especifica, e a segunda, a Evolu9ao Geral [...] uma
Mencionarei algumas defini,oes mais recentes de evolu- taxonomia diferente torna-se necessaria para examinar esses
,iio social ou cultural, selecionadas de modo mais ou menos dois aspectos da evolu9ao. Preocupado com as linhas de descen-
aleatorio: dencia, 0 estudo da evolU(;:ao especifica emprega a classifica9ao
filogenetica. Na perspectiva evolucionista geral, a enfase trans-
Quer se use ou nao 0 adjetivo "bioI6gico", 0 principia de fere-se para 0 carater do proprio progresso, e as fonnas sao c1as-
evolw;ao esta firmemente estabelecido como pertinente ao mun- sificadas em estadios ou niveis de desenvolvimento sem referen-
do das coisas vivas. [... J Tais conceitos basicos da evoluyao ou cia il filogenia. (Sahlins)"
varia~ao organica, selec;ao, adaptar;ao, diferenciaviio e integrar;ao l
pertencem ao centro de nossa preocupa9ao, quando apropriada- Existem significativos pontos de varia,iio entre essas for-
mente ajustados a urn assunto social e cultural. (Parsonst mula,oes. 0 que Sahlins chama de "evolu,iio especifica", por
A evoluc;iio pede ser considerada urn interesse em determi- exemplo, .0 a ilnica acep,iio de evolu,iio reconhecida por Steward,
nar farmas, processos e fun<;6es que reaparecem periodicamen- que rejeita diretamente, de fato, a "evolu,iio geral". Mas as de-
te. [...] A evolu,iio cultural pode ser vista como urn tipo especial fini,oes tendem a ter certos tra,os comuns, declarados ou impli-
 272 A CONSTITUJ<;A-O DA SOCIEDADE MUDAN<;A. EVOLU<;AO E PODER 273
citos, e podem ser utilizadas para caracterizar como uma teoria provas da existencia de uma sociedade humana ate a era mo-
ou abordagem tern de ser para merecer ser chamada de "evolu- dema. Assim, por exemplo, White construiu urn indicador de
cionista". Considero ponto pacifico que "evolu9ao" e mais do evolu9ao com base na produ9ao de energia. As sociedades ou,
que um termo casualmente aplicado (para 0 qual nao pode ha- na terminologia de White, os "sistemas culturais" variam en-
ver obje9ao), sin6nimo de "desenvolvimento" ou "mudan9a". quanta meios de utilizar a energia. Algumas sao mais eficazes
Para que a "teoria evolucionista" nas ciencias sociais tenha urn a esse respeito do que outras. Diferentes sistemas culturais po-
significado distinto, direi eu, ela devera mostrar as seguintes dem, portanto, ser classificados ao lange de uma escala, com-
caracteristicas (nao pense que sejam arbitranas ou demasiado parando-se os coeficientes derivados da rela9ao entre 0 mon-
fortes). tante de energia utilizada e consumida, e 0 nllinero de seres
Em primeiro lugar, deve existir, pelo menos, alguma pres- humanos envolvidos nesses sistemas". De Comte e Spencer em
suposta continuidade conceptual com a evolu9ao biologica. diante, os pensadores evolucionistas referiram-se a crescente
Como as defini90es acima deixam claro, esse e um criterio que complexidade, diferencia9ao etc. E claro, "evolu9ao" poderia
muitos, mas nao todos, dos que se consideram teoricos evolu- ser usada apenas com referencia a tal progressao, abstraida do
cionistas sao propensos a enfatizar. E uma afirma9ao que faz tempo e do espa90. Pode ser justificavel dizer, por exemplo,
sentido, pois ainda que se originasse primordialmente no pen- que as culturas pequenas, orais, estao num dos extremos de um
samento social e nao na biologia, foi esta ultima que conferiu a continuum de consumo e distribui9ao de energia (ou distancia-
"evolu9 a o" uma designa9ao bastante precisa e elaborou uma mento tempo-espa90), e as sociedades modemas, industrializa-
descri9ao das transforma90es evolucionistas - que elucida a das, no outro. Tampouco ha dificuldade em sustentar a asser9ao
evolu9 a O sem usar qualquer n09ao teleologica. Usar 0 termo de que certos desenvolvimentos tecnicos, ou formas de organi-
"evolw;ao" nas ciencias sociais eurn tanto gratuito, se nao tiver za9ao social, sao requisitos previos para outros. Nesse sentido,
pelo menos algumas conexoes com 0 vocabulano conceptual "evolu9ao" e indiscutivel como conceito. Mas usa-Io desse
que ficou estabelecido na biologia. Nao se segue dai que uma modo nao e explicar coisa alguma com rela9ao a mudan9a so-
cial nem satisfaz 0 criterio de ter uma afinidade razoavelmente
completa correspondencia conceptual seja necessaria ou dese-
estreita com a evolu9ao biologica.
jave!. 0 evolucionismo ou, de qualquer forma, 0 darwinismo
Em terceiro lugar, deve ser especificada uma seqiiencia de
tern sido recentemente alvo de vigorosos ataques na esfera da
estactios de desenvolvimento social, na qual 0 mecanismo de
ciencia natural, e e concebivel, senao inteiramente prov3.vel,
mudan9a esteja vinculado a sUbstitui9ao de certos tipos ou as-
que seja descartado nesse campo ao mesmo tempo que conti-
pectos de organiza9ao social por outros. Esses estactios podem
nua sendo sustentado no dominic da ciencia socia!.
ser dispostos na forma de evolu9ao especifica ou de evolu9ao
Em segundo lugar, 0 evolucionismo social deve especifi- geral, ou de alguma especie de combina9ao das duas. Nao se
car algo mais do que apenas uma progressao de mudan9a com deve inferir sorrateiramente disso que a progressao em tal esca-
rela9 ao a certos criterios propostos, sendo esse "algo" um me- la evolucionista signifique progresso segundo criterios morais,
canismo de mudan9a. Este ponto precisa ser examinado com exceto na medida em que isso seja explicitamente justificado
alguma minucia por causa de sua importancia. Alguns evolu- de alguma forma. Como enfatizarei adiante, as teorias evolu-
cionistas tendem a acreditar que, para defender 0 conceito de cionistas sao altamente propensas a fundir "progressao" com
evolu9 a o em teoria social, e suficiente mostrar que ocorreu uma "progresso", devido a pressupostos etnocentricos que, embora
progressao, com rela9ao a um certo item ou itens sociais, no de- nao estejam, provavelmente, subentendidos de modo lo&!co no
correr da Historia, desde 0 mais remoto periodo do qual temos evolucionismo, sao muito dificeis de evitar na priltica.
 274 A CONSTITUII:;A-O DA SOCIEDADE MUDANI:;A. E VOL UI:;AO E PODER 275
Em quarto lugar, identificar urn mecanismo de mudan,a quais 0 pool genetico de organismos e influenciado pela intera-
social significa explicar a mudan,a de algurn modo que se apli- ,ao com 0 meio ambiente como resultado de tra,os de sobrevi-
que a todo 0 espectro da hist6ria humana, nao como urn meca- vencia seletiva. A "adapta,ao" talvez possa ser formulada de
nismo exclusivo de mudan,a mas como 0 dominante. Nao h:\ modo convincente na ciencia social se tomada como urn rotula
duvida nenhuma quanta ao principal candidato neste caso, pois geral referente it gama de processos pelos quais os seres hurna-
ele ocupa algurn lugar em virtualmente todas as teorias evolu- nos respondem a caracteristicas de seus ambientes fisicos e as
cionistas, por muito que elas possam diferir em outros aspec- modificam. Assim, Rappaport define 0 termo como "0 proces-
tos. Trata-se da "adapta,ao" - significando geralmente adapta- so pelo qual organismos ou grupos de organismos, mediante
,ao ao meio ambiente material. mudanyas sensiveis em seus estados, estruturas ou composi-
Nem todas as descri,5es de mudan,a social que depen- ,5es, mantem a homeostase em si mesmos e entre eles mesmos,
dem do conceito de adapta,ao sao evolucionistas, uma vez que diante das flutua,5es ambientais de curto prazo e das mudan-
podem nao estar em conformidade com os tres criterios ante- ,as de longo prazo na composi,ao ou estrutura de seus ambien-
riores. Mas a no,ao de adapta,ao e tao importante nas teorias tes"". Entretanto, e caracteristico do pensamento social evolu-
evolucionistas que, sem ela, todas perdem a maior parte de sua cionista ampliar tanto esse uso que 0 termo torna-se irremedia-
for,a 16gica, de sua irrefutabilidade". Portanto, faz sentido sus- velmente amorfo. Por exemplo, Harding inicia seu estudo da
tentar que, se na explica,ao de mudan,a social 0 conceito de adapta,ao definindo 0 conceito como "a aquisi,ao e conserva,ao
adapta,ao resulta ser destituido de valor (como afirmarei), 0 de controle sobre 0 meio ambiente", 0 que e francamente incon-
evolucionismo e privado de boa parte de seus interesses. Mas testavel. Mas depois acrescenta que, na teoria evolucionista, a
procurarei tambern explorar dois outros caminhos criticos de adapta,ao nao se refere apenas it rela,ao entre sociedades e na-
ataque as teorias evolucionistas: elas for,am a hist6ria humana tureza, mas tambem ao "ajustamento mutuo de sociedades".
a entrar nurn molde no qual nao se ajusta descritivamente e ten-
dem a estar associadas, embora nao inevitavelmente, a urn cer- A adapta<;ao anatureza moldani a tecnologia de wna cultura
to nilmero de corolanos infelizes. e, derivativamente, seus componentes sociais e ideo16gicos. En-
tretanto, a adapta<;ao a Qutras culturas pade modelar a sociedade
e a ideologia, as quais, per sua vez, atuam sabre a tecnologia e
Adapta,ao determinam seu rome futuro. 0 resultado total do processo adap-
tativo e a produc.;:ao de urn todo cultural organizado, uma tecno-
logia, sociedade e ideologia integradas, interatuando com a in-
Usado nurn contexto social, 0 conceito de adapta,ao pode fluencia seletiva dual da natureza, por urn lado, e 0 impacto de
provar-se caracteristicamente: I) vazio, ou seja, tao amplo e culturas alheias, por outrO.I~
vago em seu significado a ponto de tomar-se mais perturbador
do que esclarecedor, ou 2) implicado nurna pretensao de expli- A adapta,ao tornou-se simplesmente, neste caso, uma no,ao a
ca,ao funcionalista especiosa e logicamente deficiente, ou 3) en- tal ponto difusa que inclui todas as possiveis fontes de influen-
volvido na afirma,ao de tendencias diniimicas em sociedades cia sobre a organiza9ao e a transforma9ao sociais!
hurnanas que sao demonstravelmente falsas. Esse tipo de uso e inteiramente caracteristico das teorias
Quanto ao primeiro ponto, a no,ao de adapta,ao pode ser evolucionistas nas ciencias sociais (comparar, por exemplo, com
usada de modo razoavelmente preciso na biologia, donde deri- o uso do conceito por Parsons, abordado nas pp. 319-20). As
va", quando seu significado usual deve referir-se a modos pelos raz5es disso sao bastante claras. Quando a "adapta,ao" e espe-
I'I

276 A CONSTITUlr;:A-O DA SOCIEDADE MUDANr;:A. EVOLUr;:AO E PODER 277

cificada com urn certo grau de precisao - como na formula,ao parte do fate 6bvio de que 0 homem nao pede viver sem comer.
de Rappaport - e quando aquilo a que se e adaptado tambem Logo, uma sociedade 56 pede existir se seus membros puderem
garantir alimento suficiente para se manterem vivos e se repro-
esta claramente delimitado, a no,ao e manifestamente inade-
duzirem. Qualquer sociedade, em que crenc;as ou instituic;oes ra-
quada como mecanismo geral de mudan,a social. Se ambiente tificadas cortaro completamente 0 suprimento alimentar (como,
significa "ambiente natural" e se "adaptar-se" a ele significa res- poe exemplo, se todes os camponeses egipcios tivessem se senti-
ponder a mudan,as distingiiiveis nesse ambiente, de maneiras do obrigados a trabalhar 0 ano inteiro construindo uma superpi-
que tenbam esse efeito de modificar tra,os orgiinicos ou so- rfunide) ou slispendem a reprodm;ao (como uma convic~ao uni-
ciais existentes, nesse caso a "adaptac;ao" e uma noc;ao sim- versal e fanatica da virtude do celibato 0 faria), estaria condena-
plesmente restrita demais para constituir urn candidato fidedig- da a ter uma vida breve. Nesse caso limitador, e mais do que
no a tal mecanismo. S6 poden\. tomar-se plausivel pelo desdo- 6bvio que 0 suprimento alimentar deve exercer um controle final
bramento de urn ou de ambos os aspectos de seu significado _ na deterrninar;ao ate de crenr;as e ideais. Presumivelmente, por-
tanto, os metodos para assegurar 0 sustento exercem, afinal, um
incluindo-se outras sociedades (isto e, 0 "ambiente social") no
controle similar mais concretamente. E de esperar que 0 modo
termo "ambiente" e/ail incluindo-se como "adaptac;ao" quaisquer como as pessoas ganham seu sustento "'determine", a longo pra-
processos sociais que pare,am favorecer as probabilidades de 20, suas crenr;as e instituir;oes.
20

manter uma sociedade nurna certa forma estavel. Entretanto,

urna vez feito isso, 0 conceito toma-se tao vago que perde sua Entretanto, 0 que e 6bvio para Childe nao decorre, em absoluto,
utilidade para explicar qualquer coisa. de sua premissa. Identificar urna exigencia funcional de uma
Em segundo lugar, e freqiientemente devido a seu carater sociedade ou item social nao acarreta nenhurna implica,ao, em
vazio, conforme expresso em tais formula,oes, que a no,ao de si e de si mesmo, sobre sua influencia real na configura,ao das
adapta,ao figura com tanta assiduidade em "explica,oes" espu- institui,oes que satisfazem essa exigencia.
rias. Pouco adianta, na verdade, afirmar que aquelas socieda- Passando a ultima das tres caracteristicas acima, a adapta-
des ou tipos de sociedade que sobreviveram durante urn certo ,ao obteria for,a de explana,ao se fosse encontrada urna dinii-
periodo de tempo, porque sobreviveram, precisavam ter sobre- mica que interpretasse com exito a diversidade e a sucessao
vivido. Mas e exatamente a isso que se reduzem, com freqiiencia, dos principais tipos de sociedade hurnana na Hist6ria. As teo-
as explica,oes que envolvem "adapta,ao". Assim, e comurn rias evolucionistas mostram-se ai empiricamente insuficientes.
propor que a sobrevivencia de urn item social pode ser explica- Se fosse 0 caso de haver algum tipo de impulso motivacional
da em termos de sua capacidade adaptativa superior. Mas como generalizado para os seres humanos se "adaptarem" progressi-
a capacidade adaptativa e entendida? Em termos comparaveis vamente de urn modo mais eficaz a seus ambientes materiais,
com os mencionados acima - todos os elementos que precisam haveria urna base de sustenta,ao para a teoria evolucionista.
ser invocados para que esse item persista, enquanto urn outro Mas tal compulsao e inexistente21 • Altemativamente, poder-se-
nao. Entretanto, quando "adapta,ao" e entendida de modo mais ia supor que urna especie de equivalente da sele,ao natural
limitado, as explica,oes oferecidas tendem a ser igualmente seria encontrada com rela,ao as sociedades humanas. Foi cer-
defeituosas, incorporando versoes do funcionalismo". Urn exem- tamente isso 0 que supuseram muitos evolucionistas do seculo
plo tipico de boa parte da literatura pertinente, com considera- XIX. Spencer preferiu "sobrevivencia dos mais capazes" em
vel influencia substantiva, e 0 seguinte, extraido de G. H. Chil- vez de "sele~ao natural", mas a ideia e a mesma. Ele interpre-
de, que tou "sobrevivencia" menos como resultado da satisfa,ao de
exigencias materiais de urn dado ambiente do que como levar a
 278 A CONSTITU[(;AO DA SOCIEDADE MUDAN9A, EVOLU9A-O E PODER 279
melhor militarmente em face de outras sociedades. A forma<;ao esta em que a natureza reflexiva da vida social humana subver-
de sociedades cada vez maiores mediante a guerra, diz Spencer, te a explica<;ao da mudan<;a social em termos de qualquer con-
"e um processo inevitavel pelo qual as variedades de homens junto simples e soberano de mecanismos causais. Travar co-
mais bern adaptados a vida social suplantam as menos adapta- nhecimento com 0 que se passa "na" Hist6ria toma-se nao s6
das"". Mas se esse tipo de ponto de vista esta sendo hoje ampla- uma parte inerente do que seja "hist6ria", mas tambem urn
mente descartado, mesmo entre os evolucionistas, e por s6lidas meio de transformar a "Hist6ria",
razoes empiricas. A influencia da guerra sobre a mudan<;a so- A teoria evolucionista em biologia depende de postulados
cial e bastante real. Mas a for<;a militar, simplesmente, nao tern da independencia da origem das especies e da imutabilidade
o valor explicativo geral necessario para converter a "adapta- das especies exceto mediante muta<;ao, Essas condi<;oes nao se
93.0" num mecanismo evolucionista via-vel. Assim que come9a- aplicam ahist6ria humana, As "sociedades" simplesmente nao
mos adicionando outros fatores, entretanto, estamos de volta a possuem 0 grau de "fechamento" que as especies tern, Os bi6-
situa<;ao em que 0 conceito explica tudo e nao explica nada. logos podem responder com bastante facilidade a pergunta: 0
que e que evolui? Mas nao existe uma "unidade de evolu<;ao"
prontamente acessivel na esfera das ciencias sociais23 . la. tratei
Evolu~ao e Hlstoria desse ponto (pp. 192-9), mas e conveniente repeti-Io aqui. Os
evolucionistas falam habitualmente da evolu<;ao ou de "socie-
A hist6ria nao tern um "formato" evolucionista, e a tenta- dades" au de "sistemas culturais", com 0 pressuposto de que
tiva de enquadra-la em um pode ser seriamente danosa. Enu- aquelas que estao mais avan<;adas sao apenas versoes diferen-
merei tres raz5es pelas quais a hist6ria humana nao se asseme- ciadas das menos avan<;adas, Mas 0 que constitui uma "socie-
lha a urn modelo evolucionista da especie e quatro perigos em dade" ou "cullura" varia com os pr6prios tra<;os sobre os quais
que incorre 0 pensamento evolucionista nas ciencias sociais. A os pensadores evolucionistas tendem a concentrar-se. 0 debate
maior parte do terreno foi bern estudado pelos criticos do evo- entre evolucionistas e "difusionistas" s6 ajudou a encobrir esse
lucionismo desde 0 seculo XIX em diante, mas talvez valha a problema, na medida em que tendeu a tratar sociedades ou cul-
pena explicar esses itens em detalhe. Urn "formato" evolucio- luras como entidades distintas, diferindo primordialmente no
nista - urn tronco com ramos, au uma trepadeira, em que estao que diz respeito a suas aprecia<;oes divergentes das fontes de
integradas a passagem do tempo cronol6gico e a progressao mudan<;a que as afetam.
das especies - e uma metMora inadequada para analisar a so- A hist6ria humana nao e, para usar a expressao de Gellner,
ciedade humana. uma "hist6ria de crescimento mundial", Como observa
Os seres humanos fazem sua hist6ria no conhecimento Gellner, durante dois seculos foi dificil para qualquer pessoa
dessa hist6ria, isto e, como seres reflexivos que cognitivamente noOcidente
se apropriam do tempo em vez de meramente 0 "viver". 0 pon-
to e bastante banal, mas figura usualmente nas discussoes de pensar sabre as questoes humanas sem a imagem [... J de urn
evolucionistas somente em rela<;ao com a questao de saber se crescimento ascendente e universal. [... JAparentemente essa era
uma conclusao natural decorrente do modelo da hist6ria ociden-
existe ou nao uma ruptura entre os proto-humanos e 0 Homo
tal, a qual era geralmente tratada como a hist6ria da humanida-
sapiens. Quer dizer, consideram-no simplesmente algo novo de. A hist6ria ocidental oferece a impressao de uma certa conti-
adicionado aos processos evolucionistas existentes - mais urn nuidade e urn certo e persistente impulso ascendente - ou, de qual-
fator complicando a sele<;ao natural. 0 n6 da questao, entretanto, quer modo, assim parecia e assim passou a ser ensinada. Emer-
fr

280 A CONSTITUII:;AO DA SOCIEDADE 281

MUDANr;:A. EVOLUr;:AO E PODER

gindo dos vales dos rios do Oriente Medio, a hist6ria da civiliza- surgiram as "civiliza,oes" divididas em classes, primeiro na Me-
~ao parece ser uma de crescimento continuo e essencialmente sopotamia, depois em outras regioes. Mas 0 periodo relativa-
ascendente, s6 interrompido ocasionalmente por patamares ou
mente curto de hist6ria desde entiio nao e marcado pela conti-
mesmo retrocessos: a Hist6ria pareceu avan~ar pouco a pouco
no litoral mediterraneo, galgando depois a costa atlantica, com nua ascensao da civilizal;aO; harmoniza-se mais com 0 quadro
as coisas ficando cada vez melhores. Imperios orientais, os gre- de Toynbee de ascensao e queda de civiliza,oes, e suas rela,oes
gos, os romanos, a cristandade, a Idade Media, a Renascen9a, a conflitantes com os dominios tribais. Esse modelo terminou
Reforma, a industrializa9ao e a luta pela justi9a social (...] a com 0 advento da primazia global do Ocidente, um fenomeno
Hist6ria conhecida, com variantes especialmente nos detalhes que da a "Hist6ria" um cunho muito diferente de tudo 0 que
mais recentes, de tensoes e antecipa9ao, tudo isso e bastante fa- aconteceu antes, truncada por um minusculo periodo de dois
miliar e ainda forma a imagem do pano de fundo da Hist6ria ou tres seculos. Em vez de ver 0 mundo modemo como uma
para a maioria das pessoas. (...] 0 quadro, e claro, combinou-se acentua,ao ulterior das condi,oes existentes em sociedades
com 0 evolucionismo biol6gico, e a vit6ria do darwinismo pare-
divididas em classes, e muito mais esclarecedor ve-lo como
cia arrematar a questao. Duas disciplinas inteiramente indepen-
dentes, a hist6ria e a biologia, fomeciam aparentemente partes tendo realizado urna cesura no mundo tradicional, que ele pa-
diferentes da mesma curva continua. 24 rece corroer e destruir de forma irremediavel. 0 mundo mo-
demo nasceu antes da descontinuidade do que da continuidade
A viagem do Beagle simbolizou, por assim dizer, as expedi,oes com 0 que aconteceu antes. A tarefa da sociologia e explicar da
que colocaram os europeus em contato com diversas e ex6ticas melhor forma possivel a natureza dessa descontinuidade - a es-
culturas, agrupadas e categorizadas nurn esquema abrangente, no pecificidade do mundo introduzido pelo advento do capitalis-
qual 0 Ocidente se situava naturalmente no topo. Nao M sinais mo industrial, originalmente localizado e fundado no Ocidente.
de que os esquemas evolucionistas estejam hoje livres desse Concluirei esta se,ao enumerando sucintamente quatro
tipo de etnocentrismo. Onde se podera encontrar, na ciencia so- perigos que 0 pensamento evolucionista atrai - que, para serem
cial ocidental, um esquema desses que coloque a india tradicio- evitados da forma mais eficaz, pedem um rompimento radical
nal no topo da escala? Ou a China antiga? Ou, no que diz respei- com esse pensamento. Sao os que designarei como: 1) com-
to ao assunto, a india ou a China modemas?" pressao unilinear; 2) compressao homol6gica; 3) ilusao norma-
Entretanto, nao M necessidade de formular tais perguntas tiva e 4) distor,ao temporal.
- as quais, como e 6bvio, nao sao logicamente impermeaveis o primeiro perigo, a compressao unilinear, significa a ten-
em termos de suas pemiciosas implica,oes para as teorias evo- dencia dos pensadores evolucionistas de comprimir a evolu,ao
lucionistas - para mostrar que a Hist6ria nao e urna "hist6ria de geral na evolu,ao especifica. Assim, 0 feudalismo precede 0
crescimento mundial". A hist6ria do Homo sapiens e mais pre- capitalismo na Europa e constitui 0 nexo social a partir do qual
cisamente retratada da seguinte maneira. Ninguem pode estar este ultimo se desenvolve. Ele e, portanto, nurn certo sentido
segura de quando 0 Homo sapiens apareceu pela primeira vez, pelo menos, 0 precursor necessirio do capitalismo. 0 feudalis-
mas 0 certo e que, na maior parte do periodo durante 0 qual os mo sera, entiio, urn "estidio" geral na evolu,ao do capitalismo?26
seres hurnanos tem existido, eles viveram em pequenas socieda- Certarnente que nao, embora existam vers5es do marxismo, e
des ca,adoras e coletoras e houve escassa progressao discemi- tambem outras escolas de pensamento social, que defendam
vel no tocante a mudan,as quer sociais quer tecnol6gicas: urn esse ponto de vista.
"estado estavel" seria urna descri,ao mais exata. Por razoes que Por compressao homol6gica, 0 segundo perigo, refiro-me
permanecem altamente controversas, nurn determinado ponto atendencia de alguns autores de imaginar que existe urna ho-
n

282 A CONSTlTUJ(;:AO DA SOCIEDADE MUDAN(:A. E VOL U(:AO E PODER 283

mologia entre os estadios de evolu,ao social e 0 desenvolvi- Marcuse so difere de Freud ao supor que a "Iuta com a nature-
mento da personalidade individual. Vale a pena examinar essa za", que constitui a base da existencia material humana, pode
tendencia, pelo menos com algum detalhe, porque, embora nao ser aliviada pelas for,as produtivas geradas pela ordem econo-
dependa diretamente dos postulados do evolucionismo discuti- mica do capitalismo, mas nao capazes de expressao humani-
dos ate aqui, esta, nao obstante, associada com muita freqiien- zante no seio dessa ordem.
cia ao pensamento evolucionista. Em termos simples, supoe-se Uma utiliza,ao comparavel de Freud, embora despojada
que as pequenas culturas orais se distinguem por formas de da visao de uma reconstitui,ao radical da sociedade, sera en-
cogni,ao, afetividade ou conduta encontradas unicamente nos contrada nos escritos de Norbert Elias. Elias constroi sua teoria
estadios iniciais do desenvolvimento do individuo em socieda- muito diretamente em tomo do teorema de que a crescente
des mais evoluidas. 0 nivel de complexidade da organiza,ao complexidade da vida social acarreta necessariamente a cres-
da sociedade, por exemplo, seria supostamente refletido pelo cente repressao psicologica:
de desenvolvimento da personalidade. Urn correlato desse pon-
to de vista esta em que a crescente complexidade da sociedade Desde 0 mais recuado periodo da historia do Ocidente ate 0
implica urn grau elevado de repressao do afeto. a mal-estar na presente, as fun<;:5es sociais tomaram-se cada vez mais diferen-
cultum, de Freud, e 0 locus classicus de tal ponto de vista. Freud ciadas sob a pressao da competi<;:ao. Quanto mais diferenciadas
usa 0 termo "civiliza,ao" para referir-se Ii "soma total das rea-
se tomavam, maior ficava sendo 0 numero de fun<;:oes e, assim,
liza,oes e regras que distinguem nossas vidas das dos nossos
o de pessoas de quem 0 individuo depende em todas as suas
ancestrais animais e que servem a dois propositos: proteger 0
ac;5es. [... J Quando urn numero cada vez major de pessoas preci-
homem contra a natureza e ajustar suas relac;oes mutuas"27. Ao
sa afinar sua conduta pela de outras, a teia de ac;5es deve ser
acentuar com enfase 0 progressive controle sobre 0 mundo ma-
organizada de urn modo cada vez mais rigoroso e preciso. [...] 0
terial, 0 estudo de Freud de "civiliza,ao" - uma no,ao a cujo
individuo e compelido a regular sua conduta de maneira cada
respeito muito mais poderia ser dito - apresenta algumas afini-
vez mais diferenciada, constante e estavel. [...] A teia de a<;:5es
dades muito fortes com 0 materialismo historico. Talvez nao
toma-se tao complexa e tao extensa, 0 esfor<;:o para comportar-se
seja tao surpreendente quanta parece Ii primeira vista, pois, que
"corretamente" dentro deJa tao grande, que ao lado do autocon-
alguns marxistas tenham assimilado outros aspectos da con-
cep,ao de Freud de desenvolvimento social. trole consciente do individuo e firmemente estabelecido urn apa-
relho de autocontrole que funciona as cegas. 29
A tentativa de Marcuse de ligar a interpreta,ao freudiana
de "civiliza,ao" a uma cdtica do modo capitalista de produ,ao
assimila os aspectos fundamentais do ponto de vista de Freud. Elias sublinha certas caractedsticas especificas do Ocidente
A transmuta,ao do "homem animal" em "ser humano" represen- modemo, mas elas estiio fundamente submersas num evolucio-
ta um movimento do barbarismo primitivo para a civiliza,ao: nismo generalizado. Nas ~'sociedades menos complexas" existe
um autocontrole individual inferior, maior expressao esponta-
nea de emo,ao etc. As pessoas em tais sociedades sao urn pou-
De Para
co como crianc;as, espontaneas e vohlveis.
satisfar;ao imediata satisfacao adiada Se esse ponto de vista e incorreto, como acredito que seja,
prazer restricao do prazer ha toda uma variedade de implica,oes que podem ser aduzidas
alegria (atividade ludica) esforrt0 (trabalho)
receptividade produtividade no tocante Ii natureza do capitalismo modemo e ao potencial de
ausencia de repressao segurancal3 liberta,ao que ele possa conter'°. Mas por que esta errado e que
 284 A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE MUDANr;:A. EVOLUr;:AO E PODER 285
tipo de perspectiva deve substitui-lo? Temos de olbar, em alguma arriscado a esse respeito. Possui urn som eticamente neutra,
parte, para as descobertas da antropologia moderna, as quais como se "capacidade adaptativa" superior fosse ipso facto su-
certamente dissipam a ideia de que as "sociedades primitivas" perioridade com rela9ao a tra90S sociais normativamente supe-
sao primitivas em qualquer aspecto, salvo 0 de sua tecnologia riores. Entretanto, quando aplicado a sociedades humanas, 0
materia!. 0 estudo da linguagem talvez forne9a aqui uma linba termo e quase sempre sinonimo de puro e simples poder. Em-
basica. Nao existe simplesmente uma correla9ao discernivel bora 0 adagio de que 0 poder nao confere 0 direito seja antigo,
entre a complexidade lingiiistica e 0 nivel de "avan90" material ele e freqiientemente esquecido pelos te6ricos evolucionistas
de diferentes sociedades. Esse fato indicaria, em si mesmo, ser como conseqiiencia de seu pr6prio evolucionismo".
improvavel a existencia de quaisquer diferen9as gerais de orga- Finalmente, por distor9ao temporal, 0 quarto perigo, en-
niza9ao psiquica entre culturas orais, por urn lado, e "civiliza- tendo a propensao dos pensadores evolucionistas para suporem
90es", por outro. Devemos ser cuidadosos ate com a suposi9ao que a "Hist6ria" s6 pode ser escrita como mudan9a social, que
de que as civiliza90es sao mais complexas do que as culturas o decorrer do tempo e sinonimo de mudan9a, a confusao de
orais. As civiliza90es - mas sobretudo aquela forma especifica "historia" com "historicidade".
de ordem global introduzida pela ascendencia do Ocidente nos o materialismo hist6rico e uma forma de evolucionismo?
ultimos dois seculos - envolvem maior distanciamento esp a90- Com certas reservas, podemos dizer que e, se 0 termo for en-
temporal do que as culturas orais. Agrupam segmentos mais tendido de determinada maneira. Suponbamos 0 "materialismo
extensos de tempo (provavelmente) e de espa90 (certamente). hist6rico" entendido num sentido muito gera!. 0 termo assim
Entretanto, algumas caracteristicas de atividade social encon- empregado pode referir-se a ideia, enunciada na cita9ao "os
tradas em culturas orais, como as associadas as institui90es de seres humanos fazem hist6ria", de que a vida social humana e
parentesco, sao excepcionalmente complexas. E claro, poder- formada e reformada na praxis - nas atividades praricas leva-
se-ia sublinbar que a concep9ao de Freud, e a de outros que ado- das a efeito no decorrer da vida cotidiana. Eexatamente essa a
taram uma posi9ao similar, centra-se na repressao do afeto, ou especie de ideia que procurei defender ao expor os principios
na relativa falta dela, em culturas orais. Mas as provas existen- basicos da teoria da estrutura9ao. Mas "materialismo hist6ri-
tes nao sustentam, simplesmente, a proposi9ao de que tais cul- co" e mais comumente usado, sobretudo entre aqueles que se
turas estao universalmente associadas a espontaneidade da ex- intitulam marxistas, numa acep9ao muito mais definida e que
pressao emociona!. Algumas culturas orais (como os psic610- certamente encontra consideravel apoio textual em Marx. E
gos do ego, entre outros, procuraram demonstrar) tern proibi- aquele "materialismo hist6rico" que se baseia no esquema de
90es morais muito fortes, que cobrem toda uma gama de con- desenvolvimento da sociedade esb09ado por Marx e Engels
dutas dianas, e as repressoes inculcadas no treinamento de nas primeiras paginas de A ide%gia a/ema e do Manifesto co-
crianl;(as podem ser muito severas 31 • munista, e exposto de forma sucinta e brilhante por Marx no
Por tendencia da teoria evolucionista a ilusao normativa, 0 "Prefacio" de Contribui!;ao acritica da economia politica.
terceiro perigo, entendo a inclina9ao para identificar 0 poder As ideias estabelecidas nessas fontes combinam com to-
superior, economico, politico ou militar, com superioridade dos os principais criterios pelos quais identifiquei 0 evolucio-
moral numa escala evolucionista. Tal inclina9ao esta intima- nismo, e tambem comportam algumas de suas nocivas implica-
mente relacionada, sem duvida, com as conotac;5es etnocentri- 90es secundarias. Everdade que Marx, por vezes, escrevia como
cas do evolucionismo, mas nao e exatamente a mesma coisa. a se estivesse produzindo nada mais do que uma hist6ria da Eu-
conceito de adapta9ao e, uma vez mais, aleat6rio e ate mesmo ropa ocidenta!' Mas ele nao estava certamente escrevendo ape-
n
I

286 A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE MUDAN9A, EVOLU9A'O E PODER 287

nas urn ensaio intetpretativo a respeito de urna das esquinas do principais transi90es entre tipos de sociedade de tal maneira
mundo. Seu esquema de desenvolvimento, envolvendo a socie- tambem,
dade tribal, 0 mundo antigo, 0 feudalismo, 0 capitalismo, mais
o modo asiatico de produyao, constitui urn quadro de referen-
cia evolucionista, no qual a adaptayao, a guisa de expansao das Analise da mudan9a social
foryas de produyao, desempenba 0 papel principal. Por que a
forma asiatica de sociedade e "estagnante" em comparayao As considera90es precedentes nao significam que nao pos-
com 0 Ocidente? Porque nao permite 0 desenvolvimento das samos generalizar acerca da mudanya social nem subentendem
foryas de produyao para alem de urn certo ponto. Seria urn que devamos renunciar a todos os conceitos gerais em cujos
erro, e claro, aproximar excessivamente Marx. de outras ver- termos a mudan9a poderia ser analisada. Cinco conceitos sao
soes do evolucionismo do seculo XIX, apesar de toda a sua particularmente pertinentes a esse respeito. Mencionei tres -
admira9ao por Darwin. Sua preocupayao com a crescente do- principios estruturais, extremidades de tempo-espa90 e sistemas
mina9ao da natureza conseguida por seres humanos exprime intersociais - no capitulo anterior. Quero acrescentar-lhes ago-
uma versao da n09ao de adaptayao que nao e essencialmente ra as n090es de caracterizQ9iio epis6dica (ou, mais sucinta-
diferente de muitos outros usos da ideia. Mas existe em Marx mente, episOdios) e de tempo mundial".
uma dialetica hegeliana invertida, desvirtuada de forma a caber
Principlos estruturais Analise de modos de articulayao instltucional
num certo formato desenvolvimentista, que nao possui urn
analogo direto nas teorias evolucionistas mais ortodoxas. Caracterizary6es epis6dicas Delineamento de modos de mudan9a ins1itucional
o evolucionismo de Marx e urna "hist6ria de crescimento de forma campara-vel

mundial" e mostra as deficiencias da compressao unilinear e da Sistemas intersociais Especificaryao de rela90es entre to1alidades socials
distor9 ao temporal. Mas deve-se fazer-lhe obje9ao principal-
mente em termos do papel que atribui aos mecanismos adapta- Extremidades de tempo- Indica9ao de conex6es entre sociedades de lipo
espayo estru1ural diferenciado
tivos. A versao de Childe do materialismo hist6rico pode, em
alguns aspectos, ser peculiarmente tosca, mas tern a virtude de Tempo mundial Exame de conjunturas a luz da "Historia" reflexiva-
mente monitorada
por a descoberto pressupostos que, com freqiiencia, sao formu-
lados de modo mais sub-repticio. 0 fato de que os seres huma-
Toda a vida social e episOdica, e eu reservo a nOyaO de epi-
nos devem sobreviver nos ambientes materiais em que vivem s6dio, como a maioria dos conceitos da teoria da estruturayao,
nada nos diz sobre se 0 que eles fazem para sobreviver desem- para aplid-la a toda a gama de atividade social. Caracterizar
penba ou nao urn papel dominante na transforma9ao social. urn aspecto da vida social como urn epis6dio e ve-lo como urn
Nao penso que seja possivel reparar as deficiencias da certo nfunero de atos ou eventos com urn come90 e urn fim
teoria evolucionista em geral ou do materialismo hist6rico em especifidveis, envolvendo assim uma determinada seqiiencia,
particular". Epor isso que falo na desconstru9ao de ambos. Por Ao falar de episOdios em larga escala refiro-me a seqiiencias
outras palavras, nao podemos substitui-las por urna teoria de identificaveis de mudanya afetando as principais institui90es
forma similar. Ao explicar a mudan9a social, nenbum mecanis- dentro de urna totalidade social, ou envolvendo transi90es entre
mo {mico e soberano pode ser especificado; nao existem chaves tipos de totalidade social. Tomemos como exemplo 0 surgimen-
que descerrem os misterios do desenvolvimento social hurnano, to de Estados agnmos, Tratar a forma9ao de urn Estado como
reduzindo-os a uma f6rmula unitaria, ou que respondam pelas urn episOdio significa penetrar analiticamente na "Hist6ria",
 289
288 A CONSTITUf(;/iO DA SOCIEDADE MUDAN(:A, EVOLU(:/iO E PODER

ou seja, identificar certos elementos como marcando a abertu-

ra de urna seqiiencia de mudan,a e descrever essa seqiiencia
como urn processo de transmuta,ao institucional. A forma,ao
do Estado tern de ser estudada no contexto do envolvimento de
uma sociedade preexistente em rela,ces intersociais mais am-
\ momentum \ \ I trajet6ria I

plas (sem esquecer, e claro, as formas endogenas de mudan,a),

examinadas no contexte dos principios estruturais implicitos
nas totalidades sociais pertinentes. Assim, a acumula,ao de
excedentes de produ,ao por parte de comunidades aldeas espa- I tipo I
cialmente proximas em areas de elevada fertilidade potencial
pode ser urn tipo de ""drao que culmina no surgimento de urn
tradi,ces como caracteristicas estruturais de sociedades", a pre-
Estado que combina aquelas comunidades sob urna (mica
ordem de administra,ao. Mas e apenas urn padrao entre outros. ponderancia da historicidade como for,a mobilizadora da or-
Em muitos casos, a coordena,ao do poder militar usado coerci- ganiza,ao e transmuta,ao social - todos esses fatores e outros
vamente para estabelecer urn aparelho estatal rudimentar e 0 mais fomecem urn pano de fundo para se avaliarem as origens
fator mais importahte. Os Estados agranos sempre existem ao particulares de urn episOdio,
lange da extremidade de tempo-espa,o em rela,ces inc6modas Ao referir-me aO tipo de mudan,a social envolvida nurn
de simbiose e contlito com (e domina,ao parcial sobre) as so- episodio, pretendo indicar em que medida ele e intensivo e ex-
ciedades tribais circundantes, assim como, e claro, com outros tensivo _ quer dizer, com que profundidade uma serie de mu-
Estados, que podem lutar pela hegemonia sobre uma determi- dan,as desintegra ou remodela urn alinhamento existente de
nada area. lnsistir em que a mudan,a social seja estudada em institui,ces e qual a amplitude atingida por tais mudan,as. Uma
"tempo mundial" e enfatizar a influencia de formas variaveis ideia pertinente neste ponto, que foi por mim descrita com al-
de sistema intersocial sobre as transi,ces episooicas. Se toda a gum detalhe num outro trabalho", e a de que pode haver "Ii-
vida social e contingente, toda a mudan,a social e conjuntural. miares criticos" de mudan,a caracteristicos de transi,oes entre
Quer dizer, depende de conjun,ces de circunstancias e eventos tipos sociais globais. Urn conjunto de mudan,as relativamente
que podem diferir em natureza de acordo com varia,ces de rapidas pode gerar urn momentum de desenvolvimento de lon-
contexto, quando 0 contexto (como sempre) implica a monito- go prazo, sendo este possivel somente se certas transforma,oes
ra,ao retlexiva, pelos agentes envolvidos, das condi,ces em que institucionais essenciais forero realizadas inicialmente. "Mo-
eles '''fazem hist6ria". mentum" refere-se a rapidez com que a mudan~a ocorre em
Podemos categorizar modos de mudan,a social em termos rela,ao a formas especificas de caracteriza,ao episodica, en-
das dimensces representadas abaixo, as quais se combinam na quanto "trajetoria" diz respeito a dire,ao da mudan,a, como se
avalia,ao da natureza de formas especificas de episOdio. Ao ana-
lisar as origens de urn episodio, ou serie de episodios estudados mencionou antes.
Vejamos brevemente 0 problema do smgimento de Estados
de modo comparativo, varias especies de considera,ao sao or-
agriirios a fim de ilustrar os conceitos que acabam de ser apre-
dinariamente relevantes. No mundo modemo, a expansao do
sentados. Em que medida 0 desenvolvimento de tais Estados
distanciamento tempo-espa,o de sistemas sociais, 0 entrela,a-
pode ser considerado urn tipo (mico de episOdio? Ate mesmo
mento de diferentes modos de regionaliza,ao envolvidos em
uma pergunta de tao inocua aparencia pode resultar muito mais
processos de desenvolvimento desigual, a preeminencia de con-
 290 A CONSTITUI(:AO DA SOClEDADE MUDAN(:A, EVOLU(:AO E PODER 291
dificil de responder do que e sugerido pela relativa simplicidade Temos de levar esse ponto em conta quando distinguimos
da maioria das teorias apresentadas a respeito de tais Estados _ Estado de supremacias. Pode ser que estas ultimas sejam geral-
por exemplo, que eles tern suas origens em guerras, em pianos mente as antecessoras dos primeiros (e subsistam quando os
de irriga,ao, nallapida aQurnula,ao de excedentes de produ,ao Estados sao destruidos ou desmoronam), mas urn raras vezes
etc. Fazer uma c~racterizayao epis6dica, como mencionei, sig- deriva simplesmente da ~'expansao" ou "diferenciay8.o intema"
nifica tomar urn certo nillnero de decisoes conceptuais: sobre do outro, A distin,ao entre Estados e supremacias nao e tao fa-
que forma social constitui 0 "ponto de partida" de uma presu- cil de estabelecer quanto, segundo parece, tern sido freqiiente-
lljida seqiiencia de mudan,a, sobre qual e a trajet6ria tipica de mente suposto na literatura antropol6gica, A base normal da
desenvolvimento e onde se supoe que esteja 0 "ponto final".
distin,ao esta relacionada com a centraliza,ao. Em contraste
Em primeiro lugar, poderiamos registrar que 0 termo "Es- com os Estados, as supremacias possuem urna serie de detento-
tado" e ambiguo. Pode referir-se a forma geral de urna "socie-
res de cargos equivalentes, subordinados ao chefe; esses cargos
dade baseada no Estado" ou as institui,oes govemamentais de
dispoem mais ou menos do mesmo poder e status, Nao ha duvida
urn tipo definido dentro de tal sociedade. Para sirnplificar a ques-
de que essa distin,ao ajuda a ordenar os materiais empiricos im-
tao, usarei "Estado", para este fim, no sentido da segunda des-
portantes. Nao obstante, a linba divis6ria pode ser colocada de
sas altemativas. 0 problema de caracteriza,ao inicial tomar-se,
maneira variavel. Considere-se, por exemplo, 0 caso do Taiti". Ai
pois, 0 de decidir quais os principais contrastes a serem procura-
existiam grupos end6genos de descendencia, estratificados em
dos quando se justapoem circunstancias nas quais existem cer-
tas institui,oes politicas aquelas em que tais institui,oes ine- certo grau pelo status e pela responsabilidade politica. Os che-
xistem. Essa questao parece admitir urna resposta, embora nao fes, presididos por urn chefe supremo, eram extraidos das cama-
indiscutivel. Segundo Nadel, podemos supor que urn Estado das superiores desses grupos em diferentes partes da ilha. Mas
existe quando as seguintes condi,oes se verificam: a) 6rgaos mereciam esses grupos ser chamados de "Estados"? Claessen
centralizados de govemo, associados a b) legitimo controle ter- diz que sim40, mas Oliver, 0 autor que mais esfor,os dedicou ao
ritorial e c) uma distinta elite ou classe dominante, detentora de estudo da antiga sociedade taitiana, diz que nao4l ,
modos definidos de treinamento, recrutamento e atributos de A diferen,a de opiniao e menos empirica do que concep-
status". Tal formula,ao, ou uma muito semelhante, foi adotada tuaL E importante porque sintomatica das dificuldades envol-
por muitos e eminentes contribuintes para este campo, mormente vidas em especificar classes de objetos sociais, Minha opiniao
no caso do estudo classico de Fortes e Evans-Pritchard". Qual e e a de que Claessen adota criterios demasiado imprecisos para
a contraparte, 0 tipo de situa,ao social a partir da qual 0 Estado a existencia de Estados. E evidente que os criterios de classifi-
se desenvolve? Poder-se-ia pensar que a resposta e 6bvia: as ca,ao e a atribui,ao de mecanismos definidos de articula,ao
sociedades que nao possuem institui,oes estatais, conforme institucional nao sao questiies independentes. Nao se pode par-
acima definidas. Mas as coisas nao sao, de fato, tao 6bvias, ou tir de uma taxonomia teoricamente neutra e mais tarde injetar-
somente 0 sao se aplicarmos de maneira irrefletida urn modelo lhe urna interpreta,ao te6rica, Assim, na base de urna investi-
end6geno. Pois nao e provavelmente habitual que institui,oes ga,ao de 21 "Estados primitivos", Claessen afirma nao existir
estatais se desenvolvam no seio de uma "sociedade" ja consti- associa,ao especifica entre tais Estados e 0 urbanismo. Mas,
tuida que permanece mais ou menos inalterada. Pelo contrario, de fato, quase todos os exemplos citados para se chegar a essa
o desenvolvimento de Estados funde com muita freqiiencia en- conclusao pertencem a sua categoria de "Estados incipientes", os
tidades sociais previamente inarticuladas e pode, ao mesmo tem- quais me parecem ser mais adequadamente designados como
po, fragmentar outras que existiram antes. supremacias42 .
 292 A CONSTITUJ(;JO DA SOCIEDADE MUDANr;:A, EVOLUr;:JO E PODER 293

Como deveremos especificar a trajetoria de mudan,a a ser tecnologica ou it acumula,ao da produ,ao excedente. Quando
observada? Tal como e formulada na literatura existente, essa tais no,6es nao redundam em falsas "explica,6es" funcionalis-
pergunta e respondida freqiientemente nao so dentro de um qua- tas, elas sao simplesmente incompativeis com os dados empiricos,
dro endogeno de referencia, mas tambem considerando premis- Existem alguns casos que estao perto de satisfazer os requisi-
sas implicitamente evolucionistas. Quer dizer, e apresentada de tos - quer dizer, quando a acumula,ao de excedentes precede 0
urn modo unidirecional, tendo unicamente a ver com 0 desen- desenvolvimento de urn Estado e quando uma classe dominan-
volvimento de Estados, enquanto a existencia do Estado e con- te emergente "impulsiona" no sentido da forma,ao do Estado,
siderada 0 ponto final do processo. Mas por que razao conside- Mas esses sao casos excepcionais". As fases de forma,ao do
rar eXclusivamente, mesmo primordialmente, dessa maneira os Estado estao com freqiiencia ligadas il produtividade e riqueza
episodios que envolvem Estados agnirios? 0 desenvolvimento declinantes, e nao 0 inverso, se bern que, por vezes, mercado-
de urn Estado numa certa regiao coincide amiude com a disso- rias e outros bens possam ser saqueados em areas circundantes,
lu,ao ou 0 enfraquecimento de outros, vizinhos, quando nao e, A Hteoria da guerra" atraiu muitos adeptos porque, se exis-
talvez, 0 fator desencadeante desse processo. A dissolu,ao de te um aspecto dos Estados agrarios (e industrializados) que e
Estados e uma ocorrencia nao menos comum do que sua for- mais ou menos cronico, este e a participa,ao em guerras. A
ma,ao inicial, e h:\ poucos argumentos logicos que justifiquem versao do evolucionismo de Spencer, e claro, atribuiu grande
a concentra,ao num processo com exclusao do outro - sobretu- significado il guerra antes do desenvolvimento da idade indus-
do quando se verifica repetidamente estarem ambos interliga- trial. A guerra esti, em definitivo, muito comumente envolvida
dos. Eu estaria propenso, portanto, a caracterizar a questao da na forma,ao e desintegra,ao de Estados - 0 que, como sublinhei,
seguinte maneira. Ao compreendermos os processos de mudan- e freqiientemente urn so e mesmo processo. Mas uma coisa e
,a institucional que afetam os Estados agnirios, estamos pro- dizer que os Estados se dedicam amiude a atividades belicas,
outra e afirmar que tais atividades desempenham urn papel
curando analisar as condi,oes que originam as rela,oes cruza-
das entre supremacias e formas estatais. dominante ou determinante nas origens desses Estados; e ainda
uma outra coisa e dizer que elas desempenham esse papel na
Expressa desse modo, deveria ficar claro por que motivo
forma,ao (ou declinio) de todos os Estados agranos. 0 primei-
tal posi,ao esti em discordancia com a usual concentr~ao nas
ro enunciado nao sofre obje,6es. 0 segundo e, na melhor das
"origens" do Estado. Tampouco surpreende que a vasta litera-
hipoteses, apenas parcialmente valido. 0 terceiro e simples-
tura sabre as "origens" do Estado nao tenha apoiado os varios
mente erroneo. As teorias demognificas nao tiveram muito mais
tipos de generaliza,ao abrangente freqiientemente tentada. Es-
exito. Etas geralmente sugerem que 0 aumento de popula,ao, 0
ses tipos definem-se em fun,ao das diversas for,as causais que resultado de crescentes taxas de natalidade em popula,oes cujo
tenham recebido prioridade43 • Provavelmente as mais influen- espa,o vital disponivel e relativamente limitado, cria press6es
tes sao aquelas que enfatizam os fatores demognificos, a guerra que levam il centraliza,ao da autoridade e il diferencia,ao de
e 0 crescimento das for,as de produ,ao. Os escritos de Childe pode!"", Por certo, as sociedades de base estatal sao maiores,
tiveram um substancial impacto sobre as teorias que se encon- muitissimo maiores, com freqiiencia, do que as ordens tribais,
tram na terceira dessas categorias; na arqueologia, sua obra foi As teorias demograficas estiio quase sempre associadas il ideia
provavelmente uma fonte mais importante de influencia mar- de que a "revolu,ao neolitica" estimula 0 aumento populacional,
xista do que os escritos dos proprios Marx e Engels. As teorias levando il forma,ao do Estado. Mas isso nao funciona num ni-
desse tipo tendem a ser fortemente evolucionistas e a pressupor vel geral nem num mais especifico. 0 inicio do neolitico esta
que as "origens" do Estado estao associadas ou it pura mudan,a distante do desenvolvimento de quaisquer sociedades de base
r
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A CONSTITUIr;:A'O DA SOCIEDADE MUDANr;:A, EVOLUr;:A'O E PODER 295

estatal conhecidas. Em termos mais especificos, nao se segue quer contato com os mongois. Seus idiomas, costumes e reli-
que aqueles Estados que se formaram em areas fisicamente giao eram diferentes, Os grandes mercadores s6 perifericamen-
confinadas resultaram sempre de Urn acumulo de pressao po- te faziam parte da "sociedade mongol", mas a maioria de seus
·pulaciona!. Existem alguns casos que parecem concordar razoa- contatos e filia,oes com grupos estava distribuida ao longo de
velmente bern com a teoria, mas muitos outros nao. Assim, grandes distancias, as quais iam de urn extremo ao outro do
examinando a forma,ao de Estados no vale do Mexico e na subcontinente e abrangiam todo 0 Oriente Proximo, 0 mesmo
Mesopotamia, Dumont chega it conclusao de que 0 crescimen- podia ser dito a respeito dos sacerdotes, que pertenciam a asso-
to populacional nao pode explicar 0 desenvolvimento de for- cia,oes que se estendiam sobre todo 0 subcontinente e, por
mas de Estado, embora 0 primeiro esteja associado ao segun- vezes, para alem dele,
do". Outra investiga,ao indica que a popula,ao pode declinar
no periodo anterior it forma,ao do Estado". Nao nos deveria surpreender 0 fato de encontrarmos as mes-
Algumas descri,oes da forma,ao do Estado enfatizam ou- mas lendas populares e fabulas tradicionais em todo 0 Oriente
tras rela,oes entre sociedades alem das belicas. Nesse sentido, Proximo, em algumas partes da Asia meridional e, finalmente,
Polanyi estudou 0 impacto do comercio de longa distancia na costa chinesa de Fu-kien, sem que os verifiquemos nas Fili-
sobre 0 desenvolvimento de Estados'". Que seja do meu conhe- pinas nem na ilha de Hainan. As tribos Miao em Kui-chou pre-
cimento, ninguem propos isso como teoria generalizada de for- servaram durante seculos seus pr6prios costumes, cren.;as e len-
ma,ao do Estado; se alguem 0 fizesse, ela teria ainda menos das, apesar de haver colonias chinesas instaladas a apenas alguns
quilometros, nas quais outros costumes, crenr;as e lendas eram
hito do que as acima mencionadas. Esse tipo de ponto de vista
propagados. Nesses lugares, chineses e Miao niio interatuavam
chama pelo menos a aten,ao para aspectos da importiincia de
como regra, exceto nos campos da explora9ao econ6mica ou da
sistemas intersociais em processos de forma,ao e decadencia agressao militar. Mas os Miao em Kui-chou podiam ter os mes-
do Estado. Entretanto, a men,ao nem de guerra nem de comer- mos costumes que os Miao no Vietna, porque - como podemos
cio defronta a questao analitica da natureza dos sistemas inter- provar freqiientemente - alguns contatos eram mantidos mesmo
sociais. Como sublinhei no capitulo previo, nao adianta pensar atraves de grandes distancias e por longos periodos. 50
em tais sistemas unicamente como uma serie de rela,oes ligan-
do totalidades sociais claramente delimitadas. Estudar tais sis- Os pontos apresentados ate agora sugerem que as teorias
temas significa, ao mesmo tempo, descartar a suposi,ao de que das "origens" do Estado tendem a sofrer de deficiencias resul-
a questao do que uma "sociedade" e consente uma resposta tantes da caracteriza,ao de episOdios numa forma endogena e/ou
rapida e faci!. Considere-se de n,ovo 0 genero de exemplo estu- evolucionista e da falta de exame da organiza,ao e mudan,a de
dado por Eberhard. Numa so arena geografica podem existir sociedades no contexto de sistemas intersociais. Mas a isso e
numerosas sociedades em proximidade fisica relativamente es- preciso acrescentar a falta de aten,ao ao impacto do "tempo
treita, mas sem muito contato direto entre elas, embora estejam mundial", Somando tudo isso, podemos chegar a discernir que 0
todas nominaI-ou realmente submetidas ao dominio politico de tipo de teoria freqiientemente considerado como explica,ao das
49
um centro • Em contrapartida, podem existir em tal arena "origens do Estado" nao passa de uma quimera, Ao aludir it in-
agrupamentos interligados cuja localiza,ao no tempo-espa,o f1uencia do "tempo mundia)", nao quero dar a entender a dispo-
apresenta grandes diferen,as - e esse urn dos fenomenos que si,ao de eventos ou acontecimentos num calendario da historia
tenho em mente ao falar de "extremidades de tempo-espa,o". do mundo. Refiro-me a duas coisas mencionadas por Eberhard
Assim, tal como na China tradicional, na india mongol a gran- em seu uso da expressao (embora elas nao sejam por ele distin-
de massa de agricultores indianos nao tinha virtualmente qual- guidas com clareza), Cada uma diz respeito a fatores que limi-
['

296 A CONSTITUl9A'O DA SOCIEDADE MUDAN9A. EVOLU9AO E PODER 297

tam as generaliza,oes que poderiam ser feitas acerca de tipos garnente adotada desde entilo, entre Estados "pristinos" e "se-
de episodio. Vma refere-se a conjunturas, a outra Ii influencia da cundarios"S2. Estados pristinos ou primitivos silo aqueles que se
cognoscitividade humana sobre a mudan,a social. Entendo por desenvolvem em areas onde nenhuma forma estatal existiu
"conj'lUlturas" a interaf;ao de influencias que, num determinado antes; Estados secundarios silo os que se desenvolvem em
tempo e lugar, silo relevantes para urn dado episOdio - neste areas onde existiram outros anteriormente ou que ainda podem
caso, a forma,ilo ou 0 declinio do Estado. A conjuntura de cir- ser encontrados nas proximidades. As diferen,as entre uns e ou-
cunstiincias em que urn processo de desenvolvimento ocorre tros fornecem, pelo menos, urn eixo principal em "tempo mun-
pode ser muito diferente da de urn outro, mesmo que seus "re- dial" e estimularn diretarnente as rela,oes intersociais. Creio
sultados" - por exemplo, a consolida,ilo de urn tipo similar de que minhas considera,oes previas indicaram que a identifica-
aparelho estatal - sejarn semelhantes. Para se entender como ,ilo empirica de Estados primitivos e extremarnente diflcil.
isso pode ocorrer, e essencial considerar a reflexividade huma- Nilo e possivel definir esses Estados como aqueles que se for-
na - e isso e exatarnente 0 que muitas teorias de forma,ilo do maram em ambientes geograficamente isolados. Pois a in-
Estado nilo fazem. As condi,oes conjunturais poderiam ser tra- fluencia de formas de organiza,ilo politica das quais simples-
tadas como comparaveis com as "condi,oes limitrofes" das leis, mente "se tern noticia" e bastante para fazer de urn Estado urn
nilo fosse 0 caso de que elas podem ingressar no pensamento e, Estado secundano. Assim, 0 Egito do Antigo Reino e conside-
por conseguinte, na conduta de atores hurnanos que estilo cons- rado, por vezes, urn Estado primitivo com base em que, ao que
cientes delas.
parece, desenvolveu-se num milieu geograficamente protegido
Adotando fragmentos de cada urna das teorias mencionadas (embora as provas arqueologicas a esse respeito sejam, de fato,
acima, Claessen e Skalnik enurnerarn os seguintes elementos co- muito escassas). Mas tudo 0 que isso significa e que se desco-
mo pertinentes para a explica,ilo da forma,ilo do Estado, embora nhece ter ai existido qualquer forma estatal previa. 0 impacto
nem sempre eles sejam encontrados, afirmam esses autores, e sua
de Estados mesopotilmicos preexistentes certamente nilo pode
importiincia relativa possa variar de caso para caso:
ser desprezadoSJ •
A ila,ilo que desejo aduzir e que as categorias de Estados
I) crescimento ou pressilo populacional;
primitivos e secundarios silo sumarnente instaveis. Exemplos
2) guerra, conquista ou a arnea,a de urna coisa ou outra;
3) progresso tecnologico ou a produ,ilo de urn excedente; de Estados primitivos silo diflceis de apontar e, na natureza do
4) ideologia ou legitima,ilo; caso, Dunea conseguiremos estar certos de que casas aparente-
5) a influencia de Estados ja existentes 51 • mente candidatos plausiveis a pertencer a essa categoria sejam
mais do que isso. Pois pode acontecer, e claro, que vestigios de
Embora estes elementos sejarn oferecidos como se fossem influencias anteriores tenharn simplesmente desaparecido. Dai
"fatores" de equivalentes status logico, 0 elemento 5 e, de fato, resulta certamente que, embora nilo exista barreira para a espe-
diferente dos demais. Considera-Io seriamente significa en- cula,ilo sobre os modos de desenvolvimento de Estados primi-
frentar todas as questoes que mencionei anteriormente a res- tivos, pode ser surnamente enganoso considerar 0 que se conhe-
peito dos sistemas intersociais, extremidades de tempo-espa,o e ce a respeito deles como base para teorizar acerca dos processos
"tempo mundial". E simplesmente absurdo comprimi-Ios num de forma,ilo do Estado em gera!. Com muito maior probabili-
tinieD "fatar" adicional a ser somado aos outros mencionados. dade e muito mais proveitoso considerar os "Estados secunda-
Podemos come,ar a desembrulhar alguns dos problemas rios" como prototipicos - quer dizer, Estados que se desenvol-
envolvidos, considerando a distin,ilo introduzida por Fried, e lar- vern nurn mundo, ou em regioes do mundo, onde ja existem
 298
A CONSTITW9AO DA SOCIEDADE
MUDAN9A. EVOLU9A"O E PODER 299
Estados ou forma,oes politicas possuidoras de urn considera-
vel grau de centraliza,ii<!~ pais influencias sobre a forma,iio do Estado; uma explica,iio
geral que servira em alguns casos niio se ajustara a outros. Isso
Num mundo de Es.tados ja existentes niio hi dificuldades
nao significa que generaliza,oes acerca da forma,ao do Estado
em explicar a acessibilidade da ideia do Estado, ou de modelos
como um tipo de episodio sejam desprovidas de valor. Entre-
de forma,iio de Estados, que possa ser seguida por lideres am-
tanto, serao provavelmente aplicaveis a uma gama de contextos
biciosos e seus sequitos. Estamos todos familiarizados com 0
e periodos historicos mais limitada do que os autores da maio-
fato de que os lideres do Japiio, em tempos recentes, decidiram
ria das teorias mais proeminentes tiveram em mente.
deliberadamente - embora apos uma boa dose de pressiio ex-
terna por parte do Ocidente .. adotar um certo modelo de de-
expansao da popul3yao conflitos ou guerras com
senvolvimento industrial derivado da experiencia europeia e grupos circunvizinhos
norte-americana previa. Embora esse exemplo seja, sem duvi-
da, incomum, na medida em que as mudan,as iniciadas foram
subitas e de extraordinario alcance, dificilmente se pode dizer
1
pressao sobre os recursos

que so em epoca recente seres humanos num determinado con-

texto se preocuparam em imitar ou adotar os de um outro contex- 1
coordenayao da populayao
to com 0 intuito de contrabalan,ar seu poder ou influencia. Por
outras palavras, as etapas envolvidas na forma,iio do Estado
nunca foram provavelmente ignoradas por aqueles que desempe-
,'dita 1 ...
!ormagao do Eslado / )' processos concomitan1es
nharam papeis de destaque nesse processo. Basta cOIUeturar que de dissoluyao do Estado
os construtores de Estados estiveram quase sempre conscios dos
principais aspectos da natureza e base do poder das forma,oes Figura 12
politicas centralizadas para explicar muita coisa sobre 0 modo
como os Estados nasceram e declinaram. Niio temos de imaginar A teoria de Carneiro poderia ser tomada como exemplo.
que tenha sido sempre comum para individuos ou agrupamentos Uma suarepresenta,ao formal pode sercomo a Figura 12. Esse
ter em mente pIanos organizacionais gerais com vistas a mudan- autor enfatiza a importiincia da guerra na origem dos Estados.
,a social e depois dedicar-se a tarefa de implementa-los. Este e, Mas ela e mais ou menos cronica em sociedades de todos os
em grande parte, um fenomeno da era moderna. tipos, diz ele, e nao, portanto, uma explica,ao suficiente da
Como poderia ser, pois, uma teoria de forma,iio do Estado forma,ao do Estado. A guerra tende a conduzir a forma,ao de
remodelada nesses termos? Em primeiro lugar, cumpre lem- Estados, quando os envolvidos estao confinados em areas fisi
brar que a a,iio de "for,as sociais" generalizadas pressupoe camente circunscritas de terra agricola, como os vales do Nilo,
motiva,iio especificavel por parte dos que siio influenciados Tigre-Euffates e Indo, 0 Vale do Mexico ou os das montanhas e
por elas. Por exemplo, falar de "expansiio populacionaI" como do litoral do Peru. Em tais circunstancias, as opera,oes de
causa contribuinte da forma,iio do Estado envolve certos pa- guerra podem chegar a criar uma pressao sobre recursos escas-
droes motivacionais que instigam especies definidas de rea,iio sos, quando a migra,ao para fora da area tern poucas probabili-
a essa expansiio (e implicitas em sua produ,iio). Em segundo dades de ocorrer. Os modos de vida estabelecidos ficam sob
tensao, induzindo alguns grupos a buscar a ascendencia militar
lugar, a influencia do "tempo mundiaI" significa ser provavel a
sobre outros e estimulando tentativas de centralizar 0 controle
existencia de consideraveis diferen,as com rela,iio as princi-
de produ,ao. 0 crescimento populacional tende a ser um fator

I
1.-
 300 A CONSTITUII:;AO DA SOCIEDADE 301
MUDANc,:A. E VOL Uc,:AO E PODER

contributivo sumamente importante, tanto na estimula,ao de cren,a de que, nao possuindo esse carater, alguma coisa esta
conflitos em torno dos recursos quanta na promo,ao da centra- errada nela. Os Estados nem sempre se desenvolvem em areas
liza,ao da autoridade administrativa". Todo urn vale acabara geograficas fisicamente confinadas. A fim de cobrir tais casos,
finalmente por ser unificado sob uma 1'mica supremacia, a qual, Carneiro introduz 0 conceito do que chama "concentra,ao de
com a concentra,ao cada vez maior de recursos administrati- recursos". Quando os recursos naturais estiio especialmente con-
vos, se tornara distinguivel como Estado. 0 Estado pode entao centrados em qualquer area determinada, as pessoas tendem a
dilatar suas pr6prias fronteiras conquistando e absorvendo os ser atraidas para essa area, resultando num congestionamento
povos circunvizinhos. E neste ponto (embora Carneiro nao 0 populacional dentro dela. Vma vez existindo uma popula,ao
diga explicitamente) que a teoria pressupoe a primazia de cer- razoavelmente densa na area em questiio, as condi,oes estao
tos tipos de motivos - podemos acrescentar, a provavel influencia dadas para 0 padrao de desenvolvimento do Estado. Contudo,
de estrategias, modelos ou influencias difusas de formas polfti-
ao ser assim ampliada, a teoria deixa de parecer tao plausivel, e
cas preexistentes. Epreciso inferir que, em face da pressao sobre
e certamente preferivel concluir que ela abrange apenas certos
os recursos e os modos de conduta estabelecidos, os envolvi-
tipos de casos de forma,ao do Estado, nao todos. E muito im-
dos nao alteram tais modos de conduta para renovar a coopera-
portante, e claro, procurar descobrir onde se situam exatamente
,ao social. A divisao desigual de recursos nao decorre mecani-
os limites de sua validade. Mas 0 fato de que a teoria serve para
camente da pressao populacional. As tendencias ao fortaleci-
mento do controle centralizado tampouco ocorrerao em tal elucidar apenas uma certa gama de casos nao quer necessaria-
situa,ao, quer isso seja desejado ou nao. 0 mais provavel e que mente dizer que, do ponto de vista 16gico, ela seja defeituosa.
elas envolvam algum tipo de entendimento reflexivo das "ne-
cessidades sociais" por parte de atores empenhados numa polf-
tica que fortalece tal controle, embora os resultados concretos Mudan~a e poder
!
possam nao ser os pretendidos. I
Como e comum em boa parte da literatura antropol6gica e I Quem refletir sobre a frase "os seres humanos fazem a
arqueol6gica pertinente, as iMias de Carneiro sao apresentadas Hist6ria", sobretudo dentro do mais vasto ambito dos escritos
como uma teoria da "origem do Estado". A frase tende normal- de Marx, sera inevitavelmente levado a considerar as questoes de
mente a referir-se a Estados primitivos, embora isso nao fique conflito e poder. Pois, na concep,ao de Marx, a realiza,ao da
totalmente claro naquilo que 0 autor tern a dizer. Penso ser mais hist6ria ocorre nao apenas em rela,ao ao mundo natural mas
proveitoso, por razoes ja mencionadas, afastarmo-nos da distin- tambem mediante as lutas que alguns seres humanos travam
,ao entre Estados primanos e secundarios. Exatamente 0 mesmo contra outros em circunstancias de domina,ao. Desconstruir 0
modelo que Carneiro trata como implicado na "origem" do Es- materialismo hist6rico significa descartar alguns dos princi-
tado pode ser tambem um processo de dissolu,ao ou fragmen- pais parametros em fun,ao dos quais Marx organizou sua obra.
ta,ao polftica. A teoria de Carneiro e interessante e foi exposta Mas, no caso do poder e de sua rela,ao com 0 conflito - de urn
com elegancia, mas disso nao se segue que, para ser defendida, modo algo paradoxal -, 0 que se faz necessano e um esfor,o de
tenha de ser aplicavel a todos os casos conhecidos de forma,ao reconstru,ao. Vejamos por que deve ser assim.
de Estado, mesmo sendo possivel distinguir facilmente os Es- Vma obje,ao relativamente superficial, embora de manei-
tados primitivos dos secundanos. 0 autor admite poderem ser ra alguma insignificante, its vanas observa,oes de Marx sobre
apontados casos em que a teoria parece nao servir. Entao, tenta conflito e domina,ao poderia ser a de que elas exageram muito
modifica-Ia de maneira a conferir-Ihe aplica,ao universal, na a importancia da luta de classes e das rela,oes entre classes na
 302
A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE MUDAN(:A. EVOLU(:AO E PODER 303

Historia. 0 que quer que a "Historia" seja, por certo ela nao e o poder nao e, como tal, urn obstaculo aliberdade ou aeman-
primordialmente "a historia das lutas de classes", e a domina~ao cipa~ao, mas seu proprio veiculo - embora seja urna insensatez,
nao se baseia, em algum sentido generico, na domina~ao de obviamente, ignorar suas propriedades coercivas. A existencia
classe, mesmo em "ultima instiincia". Urn problema mais fun- de poder pressupoe estruturas de domina~ao por meio das quais
damental, entretanto, e 0 conceito de poder pressuposto, embora o poder que "flui suavemente" em processos de reprodu~ao so-
raramente receba expressao direta, nos escritos de Marx. Com cial (e e, por assim dizer, "invisivel") opera. 0 desenvolvimen-
efeito, Marx associa poder (e 0 Estado, como sua consubstan- to de for~a ou sua amea~a nao e, pois, 0 caso tipico de uso do
cia~ao) Com cisma, com uma divisao de interesses entre clas- poder. Sangue e furia, 0 calor da batalha, 0 confronto direto de
ses. Assim, poder esta ligado a conflito e e representado como campos rivais - nao sao essas, necessariamente, as conjunturas
caracteristica somente das sociedades de classes. Se Marx
historicas em que os efeitos mais importantes e de maior alcan-
desenvolveu uma formidavel analise e denuncia da domina~ao
ce do poder sao sentidos ou estabelecidos.
nas sociedades divididas em classes e capitalistas, 0 socialismo
Dito isto, e necessano, porem, separar a teoria da estrutu-
apresenta-se como uma sociedade em que a domina~ao e trans-
ra~ao de ambos os caminhos variantes percorridos por Parsons
cendida. A esse respeito, 0 marxismo e 0 socialismo, de modo
e por Foucault. Ao associar 0 poder aos chamados "fins coleti-
mais generico, como foi percebido por Durkheim", tern muito
vos", Parsons sacrifica parte do insight de que 0 conceito de
em comum Com seu oponente do seculo XIX, 0 liberalismo uti-
litano. Todos participam de uma "fuga do poder" e todos vin- poder nao tern qualquer rela~ao intrinseca com 0 de interesse.
culam 0 poder, inseparavelmente, a conflito. Como 0 poder em Se 0 poder nao tern conexao logica com a realiza~ao de interes-
Marx esta alicer~ado no conflito de classes, ele nao apresenta ses secionais, tampouco a tem com a de interesses ou "fins"
qualquer amea~a especifica na sociedade prevista do futuro: a coletivos. Mais substantivamente, a concentra~ao de Parsons
divisao de classes sera superada como pressuposto da inicia~ao no consenso normative como alicerce da integra~ao de socie-
dessa sociedade. Para os liberais, porem, que negam a possibi- dades leva-o a subestimar seriamente a importiincia da contes-
lidade de realiza~ao dessa reorganiza~ao revolucionaria da so- ta~ao de normas; e das multiplas circunstancias em que a for~a
ciedade, a amea~a do poder e onipresente. 0 poder assinala a e a violencia, e 0 medo delas, estao diretamente envolvidas na
existencia de conflito e a potencialidade de opressao; assim, 0 aprova~ao da a~aose. A reabilita~ao do conceito de poder por
Estado deve estar organizado de maneira a minimizar seu aI- a
Foucault, por outro lado, so e conseguida custa de sucurnbir a
cance, restringindo-o atraves do parcelamento do poder de for- urna distor~ao nietzschiana em que 0 poder e aparentemente
ma democfatica56. anterior a verdade. Em Foucault, assim como em Parsons, em-
Uma teoria reconstruida do poder partiria da premissa de bora por diferentes razoes, 0 poder nao esta relacionado como
que tais perspectivas sao insustenmveis. 0 poder nao esta ne- uma descri~ao satisfatoria de agencia e cognoscitividade, en-
cessariamente vinculado a conflito no sentido quer da divisao quanto implicadas na "constru~ao da Historia".
de interesses quanto da luta ativa, e nao e intrinsecamente opres- Para urn maior desenvolvimento dessas vanas observa~oes,
sivo. A artilharia critica provocada pela analise do poder por quero examinar numerosos aspectos do poder no iimbito do
Parsons" nao nos deve levar a ignorar os corretivos hasicos que quadro conceptual de referencia da teoria da estrutura~ao. Uma
ele ajudou a introduzir na literatura. 0 poder e a capacidade de preocupa~ao primordial deve ser a questao de como 0 poder e
obter resultados; se estes se encontram ou nao ligados a inte- gerado. Temos, com efeito, de considerar muito seriamente a
resses puramente secionais nada tern a ver com sua defini~ao. asser~ao de Parsons de que 0 poder nao e urna quantidade esta-
 304
A CONSTlTUI(:A-O DA SOCIEDADE MUDAN(:A. EVOLU(:AO E PODER 305

tica mas, sim, expansivel, em rela9ao a formas divergentes de ser muito importante demonstrar a importiincia paralela dos
propriedade sistemica, embora nao adote as ideias por ele ela- recursos autoritarios. Pais, tal como 0 marxismo, ainda somos
boradas ao explorar as implica90es dessa asser9ao. prisioneiros da era vitoriana, na medida em que, antes de mais
Proponbo que a n09ao de distanciamento tempo-espa90 esta nada, pensamos na transforma9ao do mundo material como
ligada de forma muito direta a !eoria do poder. Ao explorarmos for9 a motivadora generica da historia humana.
essa conexao, podemos desenvolver algumas das principais E claro que a acumula9ao de recursos alocativos esta es-
caracteristicas da domina9ao como propriedade expansivel dos treitamente envolvida com 0 distanciamento tempo-esp a90 ,
sistemas sodais. Conforme descrevi no capitulo de aoertura, 0 com a continuidade das sociedades ao longo do tempo e do
poder e gerado na (e atraves da) reprodu9ao de estruturas de espa90 e, assim, com a gera9ao de poder. Os ca9adores e cole-
domina9ao. Os recursos que constituem as estruturas de domi- tores dispoem de poucos meios de armazenamento de viveres e
na9ao sao de duas especies: alocativos e autoritarios. Qualquer outros requisitos materiais, e utilizam 0 armazem gratuito da
coordena9ao de sistemas sociais no tempo e no espa90 envolve natureza para prover suas necessidades 0 ano inteiro. Eles de-
necessariamente uma combina9ao definida desses dois tipos de pendem, de uma forma muito imediata, da generosidade da
recursos, os quais podem ser classificados assim:
natureza - urn fata que, entretanto, DaD implica necessariamen-
Recursos alocativoS
te empobrecimento. Alem disso, atividades rituais, cerimoniais
Recursos autoritarios
e religiosas ordinariamente avultam muito mais do que as exi-
1 CaracteriS1icas materiais do meio am-
biente (materias-primas, fantes de po- 1 Organizacao do tempo-espaCo social gencias materiais relativamente limitadas da vida cotidiana. Em
der material) (constituicao temporal-espacial de ca-
rninhos e regr6es) comunidades agrarias, pelo menos, e empregado algum tipo de
2 Meias de producao/reprodUl;:ao mate- tecnologia produtiva, e 0 armazem que 0 mundo natural fome-
rial (instrumentos de produyao, tecno. 2 Producaolreproduyao do corpo (orga-
logia) nizayao e relacao de seres humanos em ce e ampliado de varias maneiras que facilitam a "expansao"
associacao mutua) de rela90es sociais atraves do tempo-espa90. Quer dizer, sao cul-
3 Bens produzidos (artefatos criados pela tivadas diferentes safras sazonais, produtos sao armazenados
interayao de 1 e 2) 3 Organizacao de oportunidades de vida
(constituiyao de oportunidades de auto- onde isso e tecnicamente possivel, permite-se que a terra seja
desenvolvimento e de auto-expressao)
alqueivada, a fim de se proteger a capacidade produtiva da so-
Nao se trata de recursos fixos; formam os meios do cara- ciedade a longo prazo etc. Em sociedades divididas em classes
ter expansivel do poder em diferentes tipos de sociedade. As pode haver um desenvolvimento adicional da produtividade
teorias evolucionistas sempre foram propensas a dar a priorida- agraria per capita, embora nem sempre seja esse 0 caso quando
de aos recursos da coluna da esquerda, as vmas especies de re- comparado ao de comunidades camponesas menores. Os siste-
cursos materiais empregados na "adapta9ao" ao meio ambien- mas de irriga9ao e outras inova90es tecnicas geralmente nao
teo Mas, como foi indicado em meu exame precedente, os auto- aumentam a produtividade media tanto quanta regularizam e
ritmos sao rigorosamente tao "infra-estruturais" quanta os coordenam a produ9ao. Em Estados agrarios mais vastos, a
alocativos. Nao quero, em absoluto, negar a influencia do habi- armazenagem de alimentos e de outros bens pereciveis toma-
tat natural circundante sobre os padroes de vida social, 0 im- se da maior importancia. No capitalismo modemo, a compra e
pacto que tipos importantes de inven9ao tecnol6gica podem venda de bens manufaturados e tao fundamental para a existen-
produzir ou a importilncia dos recursos de poder material que cia social quanta a troca de toda a gama de outras mercadorias:
podem estar disponiveis e submetidos ao uso humano. Mas ha nao e exagerado dizer que a expansao do capitalismo para for-
muito tempo vern sendo convencional enfatizar isso, e penso mar urna nova economia mundial nao teria sido possivel sem 0
'11

306 A CONSTITUlI:;/iO DA SOCIEDADE 307

MUDAN9A, EVOLU9/io E PODER ;

desenvolvimento de uma serie de tecnicas para a preserva9ao e nida numa ordem administrati~. Mas as dimensoes da organi-
armazenagem de bens pereciveis, sobretudo de alimentos". Por za9ao do sistema constituem uma contribui9ao muito signifi-
outro lado, 0 capitalismo tambem gera - e e dependente de _ cativa para a gera9ao de poder. As vanas caracteristicas coercivas
taxas de inova9ao tecnica, conjugadas com urna utiliza9ao e facilitadoras do corpo, sobre as quais discorri no capitulo III,
maci9a de recursos naturais, nurn plano totalmente diferente de sao importantes aqui - nol verdade, sao a base sobre a qual os
tudo 0 que aconteceu antes. recursos administrativos, nesse sentido, devem ser analisados.
Descrita dessa maneira, a historia hurnana pareceria (e foi Entretanto, temos de acrescentar a esses fatores a categoria de
freqiientemente feita para parecer) uma seqiiencia de expan- oportunidades de vida, urn fenomeno que tampouco e, de modo
soes das "for9as de produ9ao". 0 aumento dos recursos mate- algum, puramente dependente da produtividade material de uma
riais e fundamental para a expansao do poder, mas os recursos sociedade. A natureza e a escala do poder gerado por recursos
alocativos nao podem ser desenvolvidos sem a transmuta9ao autoritarios dependem nao so da disposi9ao dos corpos, regio-
de recursos autoritarios, e estes ultimos sao, sem duvida, pelo nalizados em percursos espa90-temporais, mas tambem das
menos tao importantes quanta os primeiros no fornecimento de oportunidades de vida abertas aos agentes sociais. "Oportuni-
"alavancas" de mudan9a social. A organiza9ao de tempo-espa- dades de vida" significa, em primeiro lugar, as probabilidades
90 social refere-se as formas de regionaliza9ao dentro (e atra- de pura sobrevivencia para os seres humanos em diferentes for-
ves) das sociedades, em fun9ao das quais sao constituidos os mas e regioes de sociedade. Mas tambem sugere toda a gama de
percursos espa90-temporais da vida cotidiana. As comunida- aptidoes e capacidades que Weber tinha em mente quando in-
des de ca9a e coleta, e os relativamente poucos casos de cultu- troduziu 0 termo. Daremos apenas urn exemplo: a alfabetiza-
ras n6mades maiores, sao as unicas sociedades cuja organiza- 9ao em massa. Vma popula9ao alfabetizada pode ser mobilizada,
9ao espa90 -te mporal global implica movimento regular de e mobilizar-se, atraves do tempo-espa90 de modos muito dis-
todo 0 grupo atraves do tempo-espa90. 0 termo "linicas" esta tintos dos caracteristicos de culturas predominantemente orais.
deslocado neste contexto, pois as sociedades de ca9adores e H. me referi a importancia da armazenagem de recursos
coletores foram a mais tipica forma de organiza9ao social huma- alocativos como veiculo da expansao da domina9ao, um tema
na na Terra ate tempos muito recentes. A fixa9ao espacial _ a familiar na literatura da teoria evolucionista. Muito menos co-
atribui9ao de locais para "ambientes construidos" definitivos, nhecida, mas de importancia essencial na gera9ao de poder, e a
especialmente na forma de cidades - assinala uma nova etapa annazenagem de recursos autoritarios. ~~Arrnazenagern" e urn
na historia hurnana. meio de "ligar" 0 tempo-espa90 envolvendo, no nivel da a9ao ,
A segunda categoria de recursos autoritarios, a produ- a administra9ao inteligente de urn futuro projetado e a recorda9ao
9ao/reprodu9ao do corpo, nao deve ser igualada a categoria 2 de urn tempo passado. Nas culturas orais, a memoria hurnana e
na classifica9ao de recursos alocativos. E claro, os meios de virtualmente 0 linico repositorio de armazenagem de informa-
rep rodu9ao material sao necessarios a reprodu9ao do organis- 9ao . Entretanto, como vimos, a memoria (ou recorda9ao) sera
mo hurnano; durante a maior parte da historia hurnana, limites entendida nao so em rela9ao as qualidades psicologicas de
materiais de varias especies contiveram 0 crescimento global agentes individuais, mas tambem como inerente it recursividade
da popula9ao. Mas a coordenafiio de quantidades de pessoas da reprodu9ao institucional. Neste caso, a armazenagemja pres-
reunidas numa sociedade e sua reprodu9ao no tempo constitui supoe modos de controle tempo-espa90, assim como urna ex-
urn recurso autoritario de urn genero fundamental. 0 poder nao periencia fenomenal do "tempo vivido", e 0 "recipiente" que ar-
depende somente, e claro, do tamanho de urna popula9ao reu- mazena recursos autoritarios e a propria comunidade.
 Notas criticas: Parsons sabre evo/Ufiio
MUDAN9A. EVOLU9AO E PODER 311

dade de visao permite uma gama mais vasta de respostas coor-

denadoras ao meio circundante e, assim, possui grande valor
adaptativo. A visao nao surgiu apenas numa parte do reino ani-
mal, mas aconteceu independentemente em especies de molus-
cos, insetos e vertebrados. Os 6rgaos visuais desses grupos nao
sao de urna tinica forma anatomica e nao podem ser considera-
dos como pertencentes a urn s6 processo evolutivo, mas a visao
parece ser urn requisito previa para todos os niveis superiores
de evolu,ao biol6gica.
o potencial biol6gico de seres hurnanos para a evolu,ao
Embora nas UltiIllas decadas vigorosos defensores de urn social depende dos universais evolutivos das maos e do cere-
ponto de vista evolucionista, como Leslie White, tenbam apare- bro. Possuir dedos dotados de movimentos independentes e urn
cido, seria provavelmente verdadeira a afirma,ao de que a obra polegar oposto permite urna extraordinaria variedade de mani-
deles nao teve urn impacto substancial sobre 0 pensamento te6ri- pula,oes de objetos em conjunto com bra,os equipados de arti-
co nas ciencias sociais. E de algum interesse, portanto, que urn cula,oes m6veis. 0 cerebro humano e tao mais desenvolvido
dos maiores contribuintes para esse pensamento, Talcott Parsons, do que os de outras especies que torna possivel 0 dominio de
tenba procurado insuflar vida nova a teoria evolucionista, ainda modos de atividade e de cogni,ao desconbecidos entre os ani-
que apenas no desenvolvimento ulterior de sua obra. Como a mais inferiores, sobretudo a capacidade de cria,ao e uso da lin-
concep,ao de Parsons do evolucionismo mobilizou, de fato, guagem. Esses tra,os facultam aos seres humanos vantagens
consideravel apoio, examina-Ia-ei agora em detalhe. adaptativas sobre as demais especies. 0 conceito de adapta,ao,
A evolu,ao social, argurnenta Parsons, e uma extensao da afirma Parsons, e essencial tanto para a evolu,ao biol6gica
evolu,ao biol6gica, mesmo que dependente de mecanismos quanta para a social. A adapta,ao, diz ele, nao deve ser enten-
substancialmente diferentes. Nao ha razao nenhurna para supor dida simplesmente como 0 ajustamento passivo de uma dada
que existe uma subita ruptura entre a evolu,ao biol6gica e a especie ou tipo de sistema social a condi,oes ambientais, mas
social. 0 "divisor de aguas entre 0 suburnano e 0 hurnano", ex- induir fatores de sobrevivencia mais ativos. A adapta,ao de
pressao cunhada por Parsons, assinala urna fase nurn processo urn "sistema vivo" pode envolver uma "preocupa<;ao ativa com 0
de desenvolvimento a longuissimo prazo. Ambas as formas de dominio ou a capacidade para mudar 0 meio ambiente de modo
evolu,ao podem ser entendidas em termos de universais _ "uni- a satisfazer as necessidades do sistema, assim como a aptidao
versais evolutivos". Urn universal evolutivo, na terminologia para sobreviver em face de suas caracteristicas inalteraveis"'.
de Parsons, e qualquer tipo de desenvolvimento "suficiente- Isso significa freqiientemente a capacidade para enfrentar urna
mente importante para favorecer a evolu,ao" que tenba a pos- serie de desafios ambientais e, em especial, as circunstancias
sibilidade de se manifestar em mais de urna ocasiao em dife- que provocam incerteza. Urn universal evolutivo, em suma, e
rentes condi,oes'* A visao e apresentada como urn exemplo de qualquer tra,o orgiinico ou social que aurnente as capacidades
urn universal evolutivo na esfera do mundo orgiinico. A capaci- adaptativas a longo prazo de urn sistema vivo nurn grau tal que
se torna urn requisito previa para niveis superiores de desen-
volvimento. Existe somente urna diferen,a importante entre os
* As referencias podem ser encontradas a pp. 329-30. universais evolutivos biol6gicos e sociais: os primeiros nao sao
 312 A CONSTlTUl9A-O DA SOCIEDADE MUDAN9A, EVOLU9AO E PODER 313

passiveis de difusao, enquanto os segundos 0 sao. Assim, as urn processo de "promo,ao adaptativa". A orienta,ao de acor-
condi,6es em que se origina urna vantagem adaptativa podem do com a qual a diferencia,ao se processa pode ser descrita
ser diferentes daquelas que facilitam sua adapta,ao ulterior por nestes termos. Dada a natureza cibemetica dos sistemas sociais,
outros agrupamentos sociais. essa orienta,ao deve ser june/anal. A crescente complexidade
Os seres hurnanos vivem em sociedades e criam culturas. de sistemas, na medida em que esta nao se deve apenas a seg-
Os aspectos simbOlicos da cultura, como Parsons os descreve, menta,ao, envolve 0 desenvolvimento de subsistemas especia-
sao vitais para a adapta,ao. 0 "simbolo" substitui 0 gene como lizados a respeito de fun,6es mais especificas na opera,ao do
principal componente organizador da evolu,ao social. Embora sistema como urn todo e de mecanismos integrativos que inter-
baseadas nurn conjunto de capacidades orgiinicas gerais, as qua- relacionam os subsistemas funcionalmente diferenciados'. Esses
lidades simbOlicas dos sistemas sociais tern de ser aprendidas subsistemas - manuten,ao do padrao, integra,ao, constitui,ao
de novo por cada gera,ao. As "orienta,6es culturais" nao se politica e economia - sao a base da analise de Parsons.
implementam como os programas geneticos. A comunica,ao e Nos tipos mais simples de sociedade, a sociedade primiti-
a base da cultura e a linguagem base da comunica,ao. Assim, a va, os quatro subsistemas revelam apenas urn nivel muito baixo
linguagem e urn universal evolutivo elementar; nao existe so- de diferencia,ao. As sociedades primitivas caracterizam-se por
ciedade hurnana conhecida que nao possua uma linguagem. urn sistema especifico de "simbolismo constitutivo", 0 qual
Segundo Parsons, os sistemas de simbolos tern urn papel diretivo confere ao grupo urna identidade cultural definida, distinta da
na organiza,ao social, de urn modo geral, e na mudan,a social. de outros grupos. Tal simbolismo esta sempre diretamente
Isso e porque eles esmo no topo de uma hierarquia cibemetica ligado a rela,6es de parentesco - por exemplo, na forma de urn
nas sociedades hurnanas. No "esquema de a,ao" de Parsons, eles mito de deuses ancestrais que teriam fundado a comunidade.
situam-se acima do sistema social, da personalidade e do orga- o mito une 0 grupo e fomece urn quadro interpretativo de refe-
nismo. 0 meio ambiente fisico condiciona ou fixa limites para rencia para enfrentar as exigencias do mundo natural e as amea-
os modos de conduta formados no seio das sociedades, mas e 0 ,as oriundas deste. Vma das caracteristicas distintivas das so-
sistema cultural que mais diretamente os regula'. ciedades primitivas consiste em que 0 simbolismo constitutivo
Em suas mais antigas formas, cultura e mais ou menos si- esta envolvido de modo abrangente nas varias esferas da vida.
nonimo de religiao. A religiao, argurnenta Parsons, e urn dos Participa das atividades religiosas, morais e tecnologicas, per-
quatro universais evolutivos encontrados "ate no mais simples meando-as e tomando-as parte de urna unidade social coesa.
sistema de a,ao". Os outros sao a comunica,ao atraves da lin- Parsons (tal como Durkheim) cita como exemplo as sociedades
guagem, 0 parentesco e a tecnologia: "a presen,a desses quatro aborigenes da Australia. A organiza,ao social dessas socieda-
universais constitui 0 minimo que pode ser dito para designar des australianas consiste quase totalmente em rela,6es de pa-
uma sociedade como verdadeiramente humana"'. Eles relacio- rentesco enos modos como elas se articulam com as praticas
nam-se com as propriedades globais da a,ao e, portanto, com 0 totemicas, as rela,oes de troca e as transa,oes com 0 meio am-
quadro geral de referencia da evolu,ao biologica. A evolu,ao biente. Os aspectos econ6micos destas ultimas sao da "especie
fora dos mais elementares tipos de sistema de a,ao pode ser mais simples", dependendo da cava e da coleta de bagos, raizes
analisada como urn processo de diferencia,ao progressiva, 0 e varias especies de insetos comestiveis. Os grupos tribais dis-
qual se refere a especializa,ao funcional. A diferencia,ao pode tribuem-se por territorios bastante vastos e, embora 0 simbolis-
levar - embora nao inevitavelmente - a crescente capacidade mo constitutivo de cada urn deles tenha urna referencia territo-
adaptativa com rela,ao a cada fun,ao especifica, que e separada, rial definida, nao existem fronteiras territoriais claramente
 312 A CONSTITUI<;:AO DA SOCIEDADE MUDAN<;:A, EVOLU<;:AO E PODER 313

passiveis de difusao, enquanto os segundos 0 sao. Assim, as urn processo de "promo,ao adaptativa". A orienta,ao de acor-
condi,oes em que se origina urna vantagem adaptativa podem do com a qual a diferencia,ao se processa pode ser descrita
ser diferentes daquelas que facilitam sua adapta,ao ulterior por nestes termos. Dada a natureza cibemetica dos sistemas sociais,
outros agrupamentos sociais. essa orienta,ao deve ser funcional. A crescente complexidade
Os seres hurnanos vivem em sociedades e criam culturas. de sistemas, na medida em que esta nao se deve apenas it seg-
Os aspectos simb6licos da cultura, como Parsons os descreve, menta,ao, envolve 0 desenvolvimento de subsistemas especia-
sao vitais para a adapta,ao. 0 "simbolo" substitui 0 gene como lizados a respeito de fun,oes mais especificas na opera,ao do
principal componente organizador da evolu,ao social. Embora sistema COmo urn todo e de mecanismos integrativos que inter-
baseadas nurn conjunto de capacidades orgiinicas gerais, as qua- relacionam os subsistemas funcionalmente diferenciados'. Esses
lidades simb6licas dos sistemas sociais tern de ser aprendidas subsistemas - manuten,ao do padrao, integra,ao, constitui,ao
de novo por cada gera,ao. As "orienta,oes culturais" nao se politica e economia - sao a base da analise de Parsons.
implementam como os programas geneticos. A comunica,ao e Nos tipos mais simples de sociedade, a sociedade primiti-
a base da cultura e a linguagem base da comunica,ao. Assim, a va, os quatro subsistemas revelam apenas urn nivel muito baixo
linguagem e urn universal evolutivo elementar; nao existe so- de diferencia,ao. As sociedades primitivas caracterizam-se por
ciedade humana conhecida que nao possua uma linguagem. urn sistema especifico de "simbolismo constitutivo", 0 qual
Segundo Parsons, os sistemas de simbolos tern urn papel diretivo confere ao grupo urna identidade cultural definida, distinta da
na organiza,ao social, de urn modo geral, e na mudan,a social. de outros grupos. Tal simbolismo esta sempre diretamente
Isso e porque eles estao no topo de uma hierarquia cibemetica ligado a rela,oes de parentesco - por exemplo, na forma de urn
nas sociedades hurnanas. No "esquema de a,ao" de Parsons, eles mito de deuses ancestrais que teriam fundado a comunidade.
situam-se acima do sistema social, da personalidade e do orga- o mito une 0 grupo e fomece urn quadro interpretativo de refe-
nismo. 0 meio ambiente fisico condiciona ou fixa limites para rencia para enfrentar as exigencias do mundo natural e as amea-
os modos de conduta formados no seio das sociedades, mas e 0 ,as oriundas deste. Uma das caracteristicas distintivas das so-
sistema cultural que mais diretamente os regula'. ciedades primitivas consiste em que 0 simbolismo constitutivo
Em suas mais antigas formas, cultura e mais ou menos si- esta envolvido de modo abrangente nas varias esferas da vida.
nanimo de religiao. A religiao, argumenta Parsons, e urn dos Participa das atividades religiosas, morais e tecnol6gicas, per-
quatro universais evolutivos encontrados "ate no mais simples meando-as e tomando-as parte de urna unidade social coesa.
sistema de a,ao". Os outros sao a comunica,ao atraves da lin- Parsons (tal como Durkheim) cita como exemplo as sociedades
guagem, 0 parentesco e a tecnologia: "a presen,a desses quatro aborigenes da Austrilia. A organiza,ao social dessas socieda-
universais constitui 0 minimo que pode ser dito para designar des australianas consiste quase totalmente em rela,oes de pa-
uma sociedade como verdadeiramente hurnana"'. Eles relacio- rentesco enos modos como elas se articulam com as priticas
nam-se com as propriedades globais da a,ao e, portanto, com 0 totemicas, as rela,oes de troca e as transa,oes com 0 meio am-
quadro geral de referencia da evolu,ao biol6gica. A evolu,ao biente. Os aspectos econamicos destas ultimas sao da "especie
fora dos mais elementares tipos de sistema de a,ao pode ser mais simples", dependendo da ca,a e da coleta de bagos, raizes
analisada como urn processo de diferencia,ao progressiva, 0 e varias especies de insetos comestiveis. Os grupos tribais dis-
qual se refere it especializa,ao funcional. A diferencia,ao pode tribuem-se por territarios bastante vastos e, embora 0 simbolis-
levar - embora nao inevitavelmente - it crescente capacidade mo constitutivo de cada urn deles tenha urna referencia territo-
adaptativa COm rela,ao a cada fun,ao especifica, que e separada, rial definida, nao existem fronteiras territoriais claramente
 314 A CONSTITUIr;:AO DA SOCIEDADE MUDANr;:A. EVOLUr;:AO E PODER 315
demarcadas entre os diferentes grupos. Embora as rela90es de tura religiosa desenvolvida, legitimando a posi9ao do rei e pro-
parentesco sejam de essencial importiincia, nao existe diferen- movendo a solidariedade social.
cia9ao vertical entre unidades aparentadas; nenhum conjunto Entretanto, as sociedades primitivas avan9adas ainda per-
de clas tern acentuadamente maior poder, riqueza ou proemi- tencem a primeira fase da evolu9ao distinguida por Parsons. A
nencia religiosa do que qualquer outro. As sociedades austra-
lianas sao funcionalmente diferenciadas por genero e por ida- 1 segunda e a das sociedades "intermedias", as quais contem dois
subtipos, as "arcaicas" e as "intermedias avanc;adas". Ambas es-
de, mas, quanta ao mais, consistem em agrupamentos segmen- tao associadas a existencia da escrita. As sociedades arcaicas
tares equivalentes, ligados por la90s de parentesco. sao caracterizadas apenas pelo que Parsons chama de "escrita
As sociedades mais primitivas, como os grupos australia- de oficio", isto e, a escrita usada principalmente para a contabi-
nos, podem distinguir-se do "tipo primitivo avan9ado". A tran- lidade administrativa e para a codifica9ao de preceitos magicos
si9ao e marcada pelo colapso da equivalencia entre grupos de e religiosos. Ler e escrever e prerrogativa de pequenos grupos
parentesco. Isso pode acontecer quando urn grupo consegue sacerdotais e nao parte da educa9ao geral da classe ou classes
assegurar recursos que the permitem controlar a forma9ao de dominantes. 0 Egito Antigo oferece urn exemplo de sociedade
la90s matrimoniais; esses recursos podem ser entao usados para arcaica. Vma sociedade desse tipo possui urna ordem religiosa
acurnular riqueza material e outras bases de poder. Vma ten- "cosmologica", a qual generaliza e sistematiza 0 simbolismo
dencia a diferencia9ao vertical da sociedade substitui 0 carater constitutivo mais do que em comunidades primitivas. Tern urn
mais igualititrio das sociedades mais simples. A mudan9a eco- aparelho politico e administrativo, separado em certa medida
nomica esta associada a tal processo: a residencia fixa, a pro- das fun90es e obriga90es religiosas. As sociedades arcaicas tern
dU9ao agricola ou pastoril substituem os procedimentos mais qualidades adaptativas superiores as das primitivas, porque con-
errantes da ca9a e da coleta. Nao existe ainda uma "economia" centram a responsabilidade funcional nos dominios do religio-
diferenciada, mas a produtividade material intensificada gera so e do politico. Esses fatores sao ainda mais desenvolvidos no
pressoes economicas no sentido da consolida9ao dos direitos tipo de sociedade intermedia avan9ada, que consiste em "impe-
de propriedade e da estabilidade do controle territorial. Como rios historicos" como os de Roma e da China. Todos oles esti-
quer que smja, a estratifica9ao e 0 primeiro e mais basico uni- veram profundamente envolvidos com as "religioes mundiais"
versal evolutivo na transi9aO das sociedades de mais para menos a cujo respeito escreveu Weber. Caracterizam-se pela escala
primitivas. A estratifica9ao tende, antes de mais nada, a emer- maci9a de suas inova90es culturais como resultado de impor-
gir mediante a eleva9ao de urna linhagem a urna posi9ao privi- tantes "avan90s filosOficos" que distinguem entre 0 mundo sa-
legiada; 0 individuo mais velho dessa linhagem adota, entao, grado e 0 mundo material; os reis deixam de ser deuses.
geralmente, 0 titulo de monarca. As sociedades primitivas avan- A legitima9ao cultural especializada e urn universal evolu-
9adas sao consideravelmente mais heterogeneas do que suas tivo que recebeu defini9ao nitida com 0 advento dos imperios
precursoras, envolvendo oposi90es etnicas, religiosas e outras, historicos. Seu foco e politico, dado que constitui 0 meio de
assim como divisoes de classes. as reinos africanos, como 0 consolida9ao da autoridade govemamental. "Satisfazer a neces-
Zulu, sao os principais exemplos de sociedades desse tipo. Par- sidade de legitima9ao" subentende 0 surgimento de lideres po-
sons admite que no reino Zulu, e em outros que se Ihe asseme- liticos especializados, em aditamento ao soberano.
lham, 0 poder militar era de grande significa9ao na formula9 ao e
Numa frente extraordinariamente vasta e relativamente in-
consolida9ao da ordem social. Mas ele salienta que provavel- dependente de variar;5es culturais particulares, os lideres politi-
mente de muito maior importiincia foi a forma9ao de urna cul- cos devem ter, a longo prazo, naD s6 suficiente pader mas tambem
 316
A CONSTITUIr;XO DA SOCIEDADE MUDANr;A, EVOLUr;XO E PODER 317
a legitima~ao do mesmo. [...] A combina~ao de padroes cultu-
examinamos detalhadamente."') Como foi que algumas das
rais diferenciados de legitima~ao com agencias socialmente di-
caracteristicas culturais dessas duas sociedades se difundiram
ferenciadas e 0 aspecto essencial do universal evolutivo de legi-
tima<;ao. 6 tilo extensamente e tilo longe de seus pontos de origem? E 0 que
tomou possiveis as inova,6es culturais que elas produziram?
Quanto a segunda destas interroga,6es, Parsons argumenta que,
Urn segundo universal evolutivo e 0 surgimento da organi-
de fato, somente pequenas sociedades com grau razoavel de
za,ilo burocnitica. Aceitando a tese de Weber sobre a indispen-
independencia politica poderiam ter dado origem a tanta novi-
sabilidade da burocracia para a efetiva mobiliza,ilo do poder
dade culturaL Isso nao poderia ter ocorrido em vastos imperios,
em grande escala, Parsons argumenta que as sociedades inter-
com enorme extensilo territorial e uma variedade de interesses
medias avan,adas mostram uma grande expansilo da coordena-
concorrentes, 0 primeiro problema e resolvido precisamente
,ilo administrativa do govemo, far,as armadas e outros setores
pela subsequente perda de independencia par parte de ambas
institucionais diferenciados. Urn terceiro universal introduzido
as sociedades: suas inova,6es culturais foram adotadas por im-
pelos imperios historicos e 0 usa da moeda em rela,ilo as trocas
portantes camadas no seio de entidades sociais maiores. As
mercantis. Segundo Parsons, as trocas mercantis constituem
culturas judaica e grega foram absorvidas predominantemente
um sistema de poder que evita alguns dos "dilemas" do poder
par "classes eruditas", nilo por grupos politicos dominantes;
politico. Em ultima analise, 0 poder politico depende de san-
subseqiientemente, essas influencias culturais tornaram-se as
,6es punitivas impostas por urn corpo administrativo; 0 dinhei-
"principais amarras sociais" das tradi,6es estabelecidas no Oci-
ro compartilha de algumas das qualidades do poder pOlitico,
dente, 0 tipo modemo de sociedade surgiu nessa "area evoluti-
mas e urn recurso mais generalizado que se propaga tanto entre
va singular", oOcidente'.
as "consumidores" quanta entre as "produtores", urn recurso
que emancipa as pessoas da lealdade a grupos politicos especi-
o surgimento da sociedade ocidental, afirma Parsons,
representa urn novo e decisivo avan,o na capacidade adaptati-
ficos e dos vinculos atributivos de parentesco. Mas esses tres uni-
va, em compara,ao com as sociedades intermedias, As caracte-
versais evolutivos pressup6em todos um quarto: "uma ordem
risticas do Ocidente, que permitem maiar diferencia,ilo do que
normativa e universalista altamente generalizada"', exemplifi-
podia ser realizado antes, incluem 0 maior desenvolvimento de
cada num sistema de direito. Entretanto, isso coloca-nos no li-
mercados, a universalizac.;ao da lei e a associa9ao democnitica
miar da modemidade, porque alguns imperios historicos de-
envolvendo direitos de cidadania para a massa da popula,ilo,
senvolveram organiza,ilo burocnitica e mercados num grau bas-
Somadas, essas caracteristicas refor,aram ainda mais a conso-
tante elevado sem uma companivel amplia,ilo de formas de
direito generalizado. lida,ao da "unidade territorial" de sociedades que possuiam
suas proprias e nitidas fronteiras. 0 desenvolvimento do direito
o desenvolvimento do Ocidente moderno, a suprema for- universalizado pode ser descrito atraves da articula,ao do Di-
ma evolutiva no esquema de Parsons, esm relacionado com duas
reito Romano, no continente, com 0 direito consuetudimirio, na
sociedades-"viveiros" que exerceram uma influencia especifi- Inglaterra. 0 segundo e sumamente importante em termos de
ca de enorme aleance: Israel e Grecia. (Urn comentario sinto- facilita,ao da liberdade de contrato e de prote,ao da proprieda-
matico neste ponto e 0 seguinte: "0 budismo e, de longe, 0 mais de privada, E, afirma Parsons, "a mais importante marca dis-
proeminente complexo cultural mencionado ate aqui que teve tintiva da sociedade modema"; a ordem juridica inglesa "foi
sua mais profunda influencia fora da sociedade em que se ori- um pre-requisito fundamental da ocorrencia inicial da Revolu-
ginou. Mas porque nao conduziu para a modemidade e porque ,ao Industrial"". Foi tambem a condi,ao do desenvolvimento da
teve pouco significado basico para a sociedade ocidental, nilo 0 democracia de massa, Por sua vez, a democracia e a condi,ao
 318
A CONSTfTUl9A-O DA SOCIEDADE MUDAN9A, EVOLU9AO E PODER 319

para 0 exercicio efetivo do poder numa sociedade altamente do corpo (urn cerebro volumoso e neurologicamente complexo,
diferenciada. As sociedades que nao se tornam democniticas, postura vertical etc,) foram a condi9ao previa para 0 desenvol-
incluindo as '''organizal;5es totalitirias comunistas", nao terao vimento da sociedade hurnana. 0 desenvolvimento inicial da
as vantagens adaptativas daquelas que se democratizaram. Que associa9ao e cultura social humana foi provavelmente urn tra90
sociedade avan90u mais, ate hoje, no longo caminho evoluti- de sobrevivencia propicio ao exito evolutivo do Homo sapiens.
yo? Os Estados Unidos, ora! Uma consoladora, ainda que nao Mas 0 que resulta disso se nao levarmos em conta 0 atrativo
particularmente original, conclusao para urn soci610go norte- , { estetico de uma teoria que explica 0 desenvolvimento biol6gico
americana, ap6s urn imponente estudo da evolu9ao hurnana e social com urn Unico conjunto de conceitos? A resposta e: nada.
como urn todo l 1. A evolu9ao biol6gica est" relacionada com as mudan9as na
Isso soa como aquela especie de conclusao que acaba por hereditariedade, nos tra90s geneticos de sucessivas gera90es;
granjear urn mau nome para a sociologia... pelo menos no resto elas sao explicadas economica e efetivamente por urn pequeno
do mundo. Poderia ser tentador ignoni-la com base na restri9ao nfunero de mecanismos relativamente simples, A evolu9aO so-
que Parsons adiciona a conclusao de sua obra sobre evolu9ao: cial diz respeito as rela90es entre sociedades hurnanas e 0 am-
que 0 leitor nao deve preocupar-se demais com os detalhes de biente material, assim como entre tais sociedades. A caracteri-
sua argurnenta9ao, pois 0 que importa e "a ideia do universal za9ao de "evolu9ao" nao pode ser corretamente atribuida a
evolutivo e seu embasamento na concep9ao de capacidade adap- esses fenomenos, nem urna dada sequencia de mudan9as pode
tativa generalizada"". De modo geral, eu acatarei, de fato, essa ser explicada em termos "evolucionistas", a menos que se de-
recomenda9ao, mas, como indicarei, a aprova9ao dos Estados monstre a opera9ao de mecanismos similares. A teoria de Par-
Unidos por Parsons est" inteiramente de acordo com sua ver- sons e tipica das descri90eS evolucionistas ao argumentar como
sao de pensamento evolucionista. se tal demonstra9ao fosse dada pelo fato (indiscutivel) de que a
A teoria de Parsons satisfaz todos os criterios que mencio- evolu9ao biol6gica esteve interligada com 0 desenvolvimento
nei como distintivos do evolucionismo. Ele deixa bern claro inicial da cultura hurnana. 0 que deveria ser mostrado com evi-
que a evolu9ao e mais do que "hist6ria", e sua exposi9ao defen- dencia e tornado como se fosse urna fonte de evidencia.
de que a evolu9ao social e a bio16gica estao conceptual e subs- o conceito de adapta9ao que Parsons introduz e tao vago e
tancialmente ligadas. A conhecida n09ao de adapta9ao faz de tao abrangente quanta qualquer outro na literatura, embora nao
novo sua ap ari 9ao. Parsons especifica a progressao em que est" seja por isso atipico, A adapta9ao, ele deixa bern claro, tern
mais interessado (a diferencia9ao de institui90es) e oferece urna algo a ver com a "sobrevivencia" e com a intera9ao com 0
mundo material, mas nao est", de modo algum, limitada a isso.
interp reta9ao global da mecanica de mudan9a que depende da
Est" mais amplamente ligada a redu9ao da incerteza - urna
infIuencia "cibernetica" de valores e simbolos. Tambem apon-
ideia que Parsons adotou da teoria dos sistemas, assim como a
ta muitas das fraquezas secundirias do pensamento evolucio-
da infIuencia cibernetica de simbolos e valores. Mas como "in-
nista e nao presta a suficiente aten9ao as advertencias para evi-
certeza" nao e definida em parte alguma, a tese ou e concep-
tar os acidentes aos quais as teorias evolucionistas estao sujei-
tualmente tao difusa que se torna virtualmente inutil ou, se vol-
tas com tanta frequencia.
tada mais para urn conteudo empirico definido, parece ser, na
Parsons atribui considenivel importancia a ideia de que a melhor das hip6teses, implausivel. Suponhamos que adotemos
evolu9ao social e urna extensao da evolu9ao biol6gica. Ora, exis- os dois sentidos que Parsons pode ter em mente: a redu9ao das
te obviamente urn sentido em que essa tese e indiscutivel. Afi- incertezas acerca dos caprichos da natureza e a redu9ao de in-
nal de contas, parece ser 0 caso de que as caracteristicas fIsicas certezas com rela9ao a eventos futuros, Nem urn nem outro pare-

Iib~ _
 320
,'""=,'","' =w~, 1
ce sequer avan,ar inequivocamente com os tipos de sociedade
que Parsons retrata de acordo com a sua escala evolucionista, e
MONN". "'W,"" roN'
Suponhamos que fosse 0 caso de que 0 esquema de capa-
321

cidade adaptativa mais a influencia "cibernetica" do simbolismo

fiuito menos contribuir para a "sobrevivencia" diferencial de- constitutivo forneceu urn quadro explicativo geral para a evolu-
les. 0 controle crescente sobre 0 meio ambiente material, pro-
,ao social mais ou menos analogo aquele por meio do qual os
duzido pelo desenvolvimento tecnol6gico ou a manipula,ao de
bi610gos explicam a evolu,ao natural. 0 problema do que sig-
recursos autoritanos, DaD esinonimo, em absoluto, de incerteza
nifica "sobrevivencia", no caso das sociedades humanas, uma
reduzida dos resultados. Urn agricultor tecnologicamente mais
questao que deve ser conjugada, em certa medida, com a do
"eficiente", por exemplo, pode ser mais vulneravel a varia,oes
que uma "sociedade" e, exigiria ainda muito mais aten~ao do que
climiticas do que urn ca,ador e coletor. Quanto a redu,ao de
a dedicada por Parsons. Na evolu,ao biol6gica, sobrevivencia
futuras imprevisibilidades, quem podera supor que 0 mundo no
e extin,ao sao alternativas claras e incompativeis, estando vin-
qual vivemos hoje, com suas taxas maci,as, embora flutuantes,
culadas as condi,oes que deterrninam a reprodu,ao diferen-
de mudan,a tecnol6gica e econ6mica, com suas incertezas po-
liticas e a presen,a de urn arsenal nuclear, e menos incerto do cial. Uma popula,ao que nao pode efetivamente lutar pelos
que 0 mundo da hurnanidade paleolitica? inputs ambientais de que necessita nao pode transmitir seus ge-
Alem disso, 0 mecanismo condutor da evolu,ao, que Par- nes e, por conseguinte, extingue-se. Mas nao existe urn analogo
sons liga a crescente capacidade adaptativa de seus universos real para essas circunstiincias no mundo social. Se a capacidade
evolutivos - 0 controle cibernetico produzido pelo simbolismo adaptativa e definida tao amplamente de modo a incluir a mo-
constitucional -, e, sem duvida, nada convincente. Parsons es- biliza,ao para a guerra, as unidades sociais, com freqiiencia,
tabelece essa abordagem, evidentemente, em oposi,ao cons- nao logram "adaptar-se", na medida em que sao subjugadas ou
ciente ao materialismo hist6rico, e a outras teorias que ele con- destruidas por outras. Mas tipos inteiros de sociedade nao se
sidera assemelharem-se a esta, ao sustentarem que a tecnolo- extinguem usualmente desse modo. Alem disso, se colonizadas
gia, ou a organiza,ao economica de urn modo mais geral, sao ou subordinadas a outros grupos, em vez de serem extintas,
as for,as principais que influenciam a mudan,a social. Mas tal forrnas preexistentes de organiza,ao social continuam amiude
abordagem nao e mais plausivel do que as teorias que ela con- existindo sob uma aparencia reconhecivelmente similar, nurn
testa. Uma vez mais, urn argumento por analogia parece ser contexto social alterado. A questao de saber se conseguiram ou
confundido com a produ,ao de evidencia. Em sistemas de con- nao "sobreviver" gravita entao bastante em torno do que se
trole mecanicos, os controles ciberneticos de baixa energia po- decidir que e uma "sociedade" ou a unidade apropriada de ana-
dem governar movimentos envolvendo urn dispendio muito lise para 0 estudo evolucionista. Parsons esquiva-se em grande
maior de energia. Parsons compara entao isso com 0 controle parte a questao ao incorporar urna resposta para ela em sua
do gene sobre a sintese proteica e outros aspectos do metabo- classifica,ao das sociedades. E urn sinal de inferioridade evo-
lismo celular, como se este ultimo exemplo desse, de algum lutiva a ausencia de fronteiras claramente definidas nas "socie-
modo, mais peso a seu argurnento sobre a influencia controla- dades primitivas"B. Uma visao alternativa da materia, entretan-
dora do "simbolismo constitutivo" sobre a mudan,a social. 0 to, seria a de que a defini,ao do que deve ser considerado uma
suposto paralelo conceptual desempenha uma dupla fun,ao. "sociedade" distinta e mais dificil de formular do que Parsons
Recorre-se a ele como urna fonte da tese da posi,ao controla- supoe - ate, pelo menos, nos avizinharmos da era das moder-
dora de simbolos e valores, mas depois Parsons tambem escre- nas na,oes-Estados.
ve como se esse paralelo ajudasse igualmente, de algum modo, A teoria de Parsons exemplifica quase todas as tendencias
a validar essa tese.
danosas a que, conforme sugeri, as explica,oes evolucionistas
 322 A CONSTITUI(:AO DA SOClEDADE
,
I
MUDAN(:A. EVOLU(:AO E PODER 323
estao tipicamente sujeitas. Ela apresenta, aparentemente sem mente maior poder adaptativo do que outras contribui,oes que
apreens5es, uma "hist6ria de crescimento mundial", cai na com- pudessem ter sido recebidas de outras areas. 0 fato de que
preensao unilinear e quase faz do que chamei de ilusao norma- aquelas foram incorporadas Ii cultura europeia nada indica sobre
tiva uma virtude deliberada. Sintomitica da "histaria de cresci- seu valor evolutivo, como Parsons tinha anteriormente especi-
mento mundial" de Parsons e a discussao apresentada de "socie- ficado. Neste ponto, ele atribui Ii "necessidade evolutiva" (a
dades primitivas". Parsons menciona en passant que as socieda- alega,ao de que um tipo de organiza,ao social apresenta tra,os
des aborigenes da Australia estao "entre as mais primitivas so- que tern de aparecer antes que urn tipo "superior" possa surgir)
ciedades conbecidas"" sem muita elabora,ao adicional. Pensa o significado de "necessidade histarica" (a circunstancia de
nelas como 0 extremo inferior da escala, em termos, como dei- que, como os elementos designados tornaram-se parte inte-
xou claro, da falta de diferencia,ao, do baixo desenvolvimento grante da sociedade europeia, as coisas "devem" ter acontecido
da economia e da preeminencia do parentesco nessas sociedades. dessa maneira).
E quanta Ii complexidade do sistema de parentesco, Ii riqueza Finalmente, a ilusao normativa. A ideia de Parsons de que
das produ,oes culturais australianas nas esferas do ritual e da meio milhao de anos de histaria humana culminam no sistema
arte? Nao lhes e feita virtualmente qualquer men,ao, porque social e politico dos Estados Unidos seria mais do que leve-
Parsons pratica a tipica elisao evolucionista entre "primitivis- mente ridicula se nao se harmonizasse claramente com sua "his-
rno" em certas dimens6es, como a tecnologia, e "primitivismo" taria do crescimento mundial". Qualquer que seja 0 atrativo
das sociedades como um todo. E 0 que dizer da tremenda di- especioso que possa ter, este foi-Ihe dado por sua conexao com
versidade de pequenas culturas orais que existiram ao longo do o tema da crescente capacidade adaptativa associada Ii evolu-
tempo e do espa,o, corretamente enfatizada pelos "relativistas ,ao. Embora Parsons possa alegar que sua interpreta,ao e estri-
culturais"?15 Se Parsons estivesse unicamente preocupado em tamente anaHtica e nao contem implica,oes avaliatarias, tal nao
formular uma concep,ao de evolu,ao geral (isto e, se ele nao e palpavelmente 0 caso. Se, por exemplo, "democracia" e defi-
fosse absolutamente um evolucionista, em meu entendimento nida de um modo especifico, COmo mais ou menos equivalente
do termo), talvez sua falta de referencia a tal diversidade, e ao a "democracia liberal, conforme exemplificada pela ordem po-
fato de que essas sociedades dominaram a maior parte da hista- litica dos Estados Unidos", e se "democracia" e convertida num
ria humana, pudesse ser justificada. Mas ele tambem esm cer- universal evolutivo para sociedades no mais alto nivel de evo-
tamente interessado na evolu,ao especifica, tentando indicar a lu,ao, entao que outra conclusao pode haver senao aquela que
principal dire,ao de mudan,a pela qual as "sociedades primiti- Parsons extrai? Mas e tao vazia quanto a maioria dos principios
vas" se transformaram em "sociedades primitivas avan<;adas" e do evolucionismo tende a ser.
estas em sistemas do tipo "intermedio".
A compressao unilinear e evidente na descri,ao por Parsons
do impacto das sociedades-"viveiros", onde se verifica uma
acentuada altera,ao nas formas de sua discussao. Enquanto, Referencias
Mudan~a, eva/urao e pader
em rela,ao a tipos evolutivos antecedentes, Parsons se debru,a
sobre vastos periodos da Histaria, ao analisar a ascensao do
1. Por vezes, "determina9ao" toma-se urn outro nome para urn obje-
Ocidente sua discussao torna-se inevitavelmente mais estreita tivismo que procura explicar a conduta prirnordialmente atraves
em sua enfase. Nada tern de convincente, por certo, supor que da coen;ao estrutural. Wright, por exemplo, procura identificar "uma
as heran,as culturais de Israel e da Grecia possuem necessaria- serle de distintas relac5es de determinacao" baseadas oum "esque-
 1
324 A CONSTITUIt:;A-O DA SOCIEDADE MUDANt:;A, EVOLUt:;JO E PODER 325

rna diferenciado de causalidade estrutural compativel com a teo- 4. Nisbet sublinhou, entretanto, que 0 evolucionismo social e 0 bio-
ria marxista". Ele distingue varios modos de detennina~ao, mas 16gict) tambem se desenvolveram separadarnente e que "e urna
eu mencionarei apenas dais para transmitir 0 sabor do que Wright das rnais serias concep90es erroneas de boa parte da literatura
tern a dizer: "limita9ao estrutural" e "seleyao". A primeira refere-se modema sobre a hist6ria do pensamento social que 0 evolucionis-
aos modos como as propriedades estruturais das sociedades fixam rno social do seculo XIX foi simplesmente uma adapta9ao das
ideias do evolucionismo biol6gico, sobretudo as de Charles Darwin,
limites para 0 que e passivel dentro dessas sociedades. Assim,
ao estudo de institui90es sociais" (Nisbet, Robert. A Social Chan-
afinna Wright, a "estrutura economica" do feudalismo limita a for-
ge and History. Londres, Oxford, 1969, cap. 5).
ma do Estado que se observa em sistemas feudais. Enquanto uma
5. Parsons, Talcott. "Evolutionary universals in society". In: Desai,
democracia representativa com sufragio universal era "estrutural-
A. R. Essays on Modernism of Underdeveloped Societies. Born-
mente impassivel" dentro do feudalismo, uma considecivel varie-
bairn, Thacker, 1971; Societies, Evolutionary and Comparative
dade de fonnas de Estado e compativel corn as ordens feudais. A Perspectives. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1966.
"seleyao" refere-se "aqueles mecanismos sociais que concreta- 6. Cf. "Durkheim's political sociology".!n: SSPT
mente determinam series de resultados ou, no caso extremo [?], 7. Marx, Karl. "Preface" a A Contribution to the Critique of Poli-
resultados especificos, dentro de uma gama estruturalmente limi- tical Economy.!n: Marx, Karl e Engels, Friedrich. Selected Writings.
tada de possibilidades". Wright liga "sele,ao" com a determina,ao Londres, Lawrence & Wishart, 1968.
de "conjunturas hist6ricas especificas". No feudalismo, economia 8. Comte, Auguste. Physique sociale. Paris, Hermann, 1975, p. 16.
e Estado relacionam-se de modo a delinear as formas de divisao 9. Societies, Evolutionary and Comparative Perspectives, cit., p. 2.
de classes que ocorrem, com estas tornando-se expressas como 10. Stewart, Julian H. Theory ofCulture Change. Urbana, University
lutas concretas entre gropos definidos. of Illinois Press, 1955, p. 248.
A n09ao de "determina9ao" e, neste ponto, ambiguamente for- II. Huxley, Julian. "Evolution, cultural and biological".!n: Thomas,
mulada. Quando Wright fala da determina,ao de "resultados es- William C. Current Anthropology. Chicago, University of Chica-
pecificos" ou de "conjunturas hist6ricas", ele tern em mente apa- go Press, 1956,p. 3.
rentemente uma acep9ao muito generalizada do tenno. Assim en- 12. White, Leslie A. The Evolution ofCulture. Nova York, McGraw-
tendida, a concep9ao de Wright envolveria urna especie totalmente Hill, 1959,pp. 29-30.
desenvolvida de detenninismo estrutural, uma versao de "socio- 13. Sahlins, Marshall D. e Service, Elman R. Evolution and Culture,
logia estrutural" em que a conduta humana deve ser explicada co- Ann Arbor, University of Michigan Press, 1960, pp. 12-13. Para
mo 0 resultado de causas sociais. Mas outras observa90es feitas outras defini90es, ver, entre outros, os seguintes: Childe, V. Gordon.
por Wright sugerem que ele nao deseja adotar tal ponto de vista. The Progress ofArchaeology. Londres, Watts, 1944; Dobzhansky,
As caracteristicas estruturais de sistemas sociais, como indica sua Theodosius. Mankind Evolving. New Haven, Yale University Press,
primeira categoria, fixam limites dentro dos quais uma serie inde- 1962; Tax, Sol. The Evolution of Man. Chicago, University of
tenninada de resultados pode acontecer. Neste caso, "detennina- Chicago Press, 1960. Manners, Robert A. Process and Pattern in
9ao" significa "COer9aO" e nao discrimina entre os varios sentidos Culture. Chicago, Aldine, 1964. Meggers, Betty J. Evolution and
que, como sugeri, esse termo caracteristicamente engloba. Repetin- Anthropology: a Centennial Appraisal. Washington, Anthropo-
do, "estrutura" nao pode ser identificada com "COer9aO", e os as- logy Society, 1959; Stebbins, L. The Basis ofProgressive Evolution.
pectos coercivos das propriedades estruturais nao podem ser vis- Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1969; White,
tos como uma fonna generica de "causalidade estrutural". Como Leslie A. "Difusion vs. evolution: an anti-evolutionist fallacy".
esses pontos ja foram tratados, nao ha necessidade de nos alon- American Anthropologist, vol. 44, 1945; Alland, Alexander. Evolu-
garmos mais sobre eles. Ver: Wright, Erik Olin. Class, Crisis and tion and Human Behaviour. Garden City, Natural History Press,
the State. Londres, New Left Books, 1978, pp. 15-18. 1967; Chappel, Eliot D. Culture and Biological Man. Nova York,
2. Cf CPST, pp. 230-3. Holt, Rinehart & Winston, 1970; Stocking, George W. Race, Culture
3. NRSM, cap. 2. and Evolution. Nova York, Free Press, 1968.
 --r
'1

326
A CONSTITUlI:;AO DA SOCIEDADE MUDAN9A. EVOLU9AO E PODER 327
14. White, Leslie A. "Evolutionary stages, progress and the evalua- 22. Spencer, Herbert. The Principles ofSociology. Nova York, Apple-
tion of cultures". Southwestern Journal ofAnthropology, vol. 3, ton, 1899, vol. 2, p. 110.
1947; The Evolution ofCulture, cit., cap. 2.
23. Cf. Renfrew, Colin. "Space, time and polity". In: Friedman, J. e
15. Para discussoes importantes, ver Bennett, John W. The Ecologi-
Rowlands, M. J. The Evolution ofSocial Systems, cit.
cal Transition. Nova York, Pergamon Press, 1976; Alland, Ale-
24. Gellner, Ernest. Thought and Change. Londres, Weidenfeld &
xander. Adaptation in Cultural Evolution. Nova York, Columbia
Nicolson, 1964,pp. 12-13.
University Press, 1970; Appley, M.-H. Adaptation-Level Theory:
25. Naipaul, V. S. India, a Wounded Civilization. Harrnondsworth,
A Symposium. Nova York, Academic Press, 1971; Cohen, J. Man
Penguin, 1976.
in Adaptation. Chicago, Aldine, 1968; Boughey, Arthur S. Man and
the Environment. Nova York, Macmillan, 1971; Dubas, Rene. Man 26. Sahlins, M. D. "Evolution: specific and general". In: Sahlins, M
Adapting. New Haven, Yale University Press, 1965; Munson, Ro- D. e Service, E. R. Evolution and Culture, cit., pp. 30-1.
nald. Man and Nature. Nova York, Felta, 1971; Theodorson, Geor- 27. Freud, S. Civilization and its Discontents. Londres, Hogarth, 1969,
ge A. Studies in Human Ecology. Nova York, Row, Peterson, pp.26.
1961; Vayda, Andrew P. Environment and Cultural Behaviour. 28. Marcuse, Herbert. Eros and Civilization. Nova York, Vintage,
Nova York, Natural History Press, 1969; Eldredge, Niles e Tatter- 1955, p. 26 [Edi,ao brasileira: Eros e civilizafiio. Trad. de Alvaro
sall, Ian. The Myths ofHuman Evolution. Nova York, Columbia Cabral, Zahar Editores, 1968, p. 34.]
University Press, 1981. 29. Elias, Norbert. The Civilising Process, vol. I, The History of
16. Entretanto, ha bi6Iogos que contestariam issa. Assim, Ehrlich e Manners. Oxford, Blackwell, 1978, vol. 2, pp. 232-3.
outros: "Por causa da aplicar;ao extrernamente vaga do termo 30. Aprofundo alguns desses temas em Between Capitalism and So-
'adaptar;ao' na literatura biologica, talvez fosse sensato abando- cialism, vol. 2 de CCHM.
na-lo por completo" (Ehrlich, Paul R. et alii. The Process of 31. Ver alguns dos exemplos discutidos em: Kardiner, A. The Indl
Evolution. Nova York, McGraw-Hill, 1974, p. 337). vidual and His Society. Nova York, Columbia University Press,
17. Rappaport, Roy A. "Ritual, sanctity and cybernetics". American 1939.
Anthropologist, vol. 73, 1971, p. 60. Para comentarios criticos, 32. Talvez valha a pena voltar a enfatizar que esse e urn dos perigos
ver: Whyte, Anne. "Systems as perceived". In: Friedman, J. e do evolucionismo, nao sua implica9ao l6gica. Habennas e urn
Rowlands, M. J. The Evolution afSocial Systems. Pittsburgh, Uni- autor que'discutiu esse e fiuitos outros pontos acerca do evolu-
versity of Pittsburgh Press, 1978. cionismo de urn modo esclarecedor e, como sempre, de modo argu-
18. Harding, Thomas G. "Adaptation and stability". In: Sahlins, M. to. Ver: Habennas, Jiirgen. Communication and the Evolution of
D. e Service, E. R. Evolution and Culture, cit., pp. 45 e 48. Society. Boston, Beacon, 1979, esp. os caps. 3 e 4; "Geschichte
19. Cf. Luhmann, Niklas. "Funktion und Kausalimt". In: Soziologis- und Evolution". In: Zur Rekonstruktion des historischen Mate-
che Aujkliirung. Colonia-Opladen, 1970, vol. I. rialismus. Frankfurt, Suhrkarnp, 1976.
20. Childe, V. Gordon. "Prehistory and Marxism". Antiquity, vol. 53, 33. Como faz Cohen em sua recente e filosoficamente requintada
1979, pp. 93-4. (Este artigo foi originalmente escrito na decada de interpreU!:9ao do materialismo hist6rico: Cohen, G. A. Karl Marx's
1940, mas nao publicado em vida de Childe.) Theory ofHystory, a Defence. Oxford, Clarendon Press, 1978.
21. CCHM, cap. 3. Nao vejo como a seguinte afirrna,ao de Lenski 34. Tomei de Eberhard 0 segundo desses conceitos. Ver: Eberhard,
possa ser defendida: "Como urna especie, uma sociedade hurnana Wolfram. Conquerors and Rulers. Leiden, Brill, 1965.
e urna popula9ao 'isolada', cujos membros compartilham de urn 35. CCHM, cap. 10.
pool de infonna9ao e estao, portanto, presos a urn percurso evolu- 36. CSAS; CPST, pp. 228 ss.
tivo comum" (Lenski, Gerhard. Human Societies. Nova York, 37. Nadel, S. F. A Black Byzantium. Londres, Oxford University Press,
McGraw-Hill, 1970, p. 60). Para comentarios criticos, ver: UIz, 1942.
Pamela 1. "Evolutionism revisited". Comparative Studies in So- 38. Fortes, M. e Evans-Pritchard, E. E. African Political Systems. Lon-
cietyandHistory, vol. 15, 1973.
dres, Oxford University Press, 1940.
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,
328 A CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADE 329
MUDANr;A, EVOLUr;JO E PODER

39. Oliver, Douglas L. Ancient Tahitian Society. Honolulu, Univer~ 56. Cf. Badie, Bertrand e Birnbaum, Pierre. Sociologie de I 'etat. Pa-
sity of Hawaii Press, 1974.
ris, Grasset, 1979, pp. 189 ss.
40. Claessen, Henri 1. M. "The early state in Tahiti". In: Claessen, 57. Incluindo meu proprio comentario em: "'Power' in the writings
Henri J. M. e Skalnik, Peter. The Early State. Haia, Mouton, 1978. of Talcott Parsons". In: SSPT.
41. Oliver, D. L. Ancient Tahitian Society, cit. 58. Cf lambem: Luhmann, Niklas. Trost and Power. Chichester, Wiley,
42. Claessen, Henri 1. M. "The early state: a structural approach". In: 1979, p. 127. Ele afirma: "A estreita associa,iio do poderoso com
Claessen, H. 1. M. e Skalnik, P. The Early State, cit. o perigoso so e realmente adequada para as sociedades arcaicas e
43. Ver: Cohen, Ronald. "State origins: a reappraisal". In: Claessen, os modos arcaicos de pensar [...]". Isso parece extraordinariamen-
H. J. M. e Skalnik, P. The Early State, cit.; Carneiro, Robert L. "A te otimista numa era nuclear.
theory of the origin of the state", Science, n. 169, 1970; Fried, 59. Cf Frankel, Boris. Beyond the State. Londres, Macmillan, 1983.
Morton H. The Evolution ofPolitical Society. Nova York, Ran- Este eurn dos poucos livros a enfatizar 0 significado da prodw;ao
dom House, 1967; Koppers, W. "L'origine de I'etat. 6'h Inter- e preservar;ao de alimentos em massa para 0 desenvolvimento do
national Congress ofAnthropological and Ethnological Sciences. capitalismo.
Paris, 1963, vol. 2; Krader, Lawrence. Formation of the State. 60. McLuhan, Marshall. The Gutenberg Galaxy. Londres, Routledge,
Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1968; Lenski, G. Power and 1962.
Privilege. Nova York, McGraw-Hill, 1966; Lowie, Robert. The 61. CCHM, p. 96.
Origin of the State. Nova York, Harcourt Brace,1927; Senrice, 62. Mumford, Lewis. "University city". In: Kraeling, Carl H. e Adams,
Elman R. Origins of the State and Civilization. Nova York, Robert M. City Invisible. Chicago, University of Chicago Press,
Norton, 1975.
1960, p. 7.
44. Cf. Service. E. R. Origins ofthe State and Civilization, cit.
45. Carneiro, R. L. "A theory ofthe origin of the state", cit.
46. Dumont, Louis. "Population growth and cultural change". South- Notas criticas: Parsons sobre evolu(:iio
western Journal of Anthropology, vol. 21, 1965; Service, E. R.
Origins ofthe State and Civilization, cit. 1. Parsons, Talcott. "Evolutionary universals in society". American
47. Wright, Henry T. e Johnson, Gregory. "Population, exchange and Socioiogical Review, vol. 29,1964, p. 339.
early state formation in southwestern Iran". American Anthropo- 2. Ibidem, p. 340.
logist, vol. 77,1975. 3. Societies, Evolutionary and Comparative Perspectives. Englewood
48. Polanyi, Karl. Trade and Markets in Early Empires. Glencoe, Free Cliffs, Prentice-Hall, 1966, pp. 9-10.
Press, 1957.
4. "Evolutionary universals in society", cit., p. 342.
49. Eberhard, W. Conquerors and Rulers, cit., pp. 9 ss. 5. Societies, Evolutionary and Comparative Perspectives, cit., p. 24.
50. Ibidem, p. 10.
Vertarnbem: "The problem of structural change". In: Lidz, Victor
51. Claessen, Henri 1. M. e Skalnik, Peter. "Limits, beginning and end e Parsons, Talcott. Readings on Premodern Societies. Englewood
of the early state". In: The Early State, cit., p. 625. Cliffs, Prentice-Hall, 1972, pp. 52 ss.
52. Fried, M. H. The Evolution ofPolitical Society, cit. 6. "Evolutionary universals in society", cit., p. 346.
53. Comparar as opinioes de Wilson e Kelley: Wilson, John A. The 7. Ibidem, p. 351.
Culture ofAncient Egypt. Chicago, University of Chicago Press, 8. Societies, Evolutionary and Comparative Perspectives, cit., p. 95.
1951; Kelley, Allyn L. "The evidence for Mesopotamian influen- 9. Parsons, Talcott. The System of Modern Societies. Englewood
ce in pre-dynastic Egypt". Newsletter ofthe Society for the Study Cliffs, Prentice-Hall, 1971, p. 1.
ofEgyptian Antiquities, vol. 4, p. 3, 1974. 10. "Evolutionary universals in society", cit., p. 353.
54. Carneiro, R. L. "A theory of the origin of the state", cit. 11. The System o/Modern Societies, cit., cap. 6.
55. Durkbeim, Emile. Socialism. Nova York, Collier-Macmillan, 1962. 12. "Evolutionary universals in society", cit., p. 357.
 J
330 A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE Capitulo VI
13. 0 carater vazio desse ponto de vista e evidente na seguinte trans- A teoria da estruturafiio, pesquisa
cri<;ao: "e [... J claro que nenhuma sociedade poderia atingir 0 que empirica e critica social
chamaremos de 0 nive! 'primitivo avanc;ado' da evolw;ao social,
sem desenvolver de fronteiras relativamente nitidas. Assim, uma
falta de fronteiras parece ser uma importante marca de primitivis-
mo de uma sociedade" (Societies, Evolutionary and Comparative
Perspectives, cit., pp. 37-8).
14. Ibidem, p. 36.
15. Nao e minha intenc;ao sugerir que a iinica escolha acessivel a res-
peito das conota<;5es nonnativas da teoria social esta entre 0 rela-
tivismo cultural, por urn lado, e 0 evolucionismo, por Dutro.
Uma reitera~ao de conceitos basicos

Talvez seja util, neste ponto, recapitular algumas das Ideias

basicas contldas nos capitulos precedentes. Farel um resumo
utilizando um certo numero de itens; em seu conjunto, eles
representam os aspectos da teoria da estrutura,ao que incidem
de modo mais geral sobre os problemas de pesquisa empirica
nas ciencias sociais.

I) Todos os seres hurnanos sao agentes cognoscitivos. Isso

significa que todos os atores sociais possuem urn conslde-
ravel conhecimento das condi,oes e conseqiiencias do que
fazem em suas vidas cotidianas. Esse conhecimento nao e
inteiramente proposicional em carater nem incidental para
as atividades deles. A cognoscitividade incrustada na cons-
ciencia pratica exibe urna extraordinaria complexldade -
uma complexidade que, com freqiiencia, pennanece com-
pletamente inexplorada nas abordagens sociologicas ortodo-
xas, sobretudo as associadas com 0 objetlvismo. Os atores
sociais tambem sao ordinariamente capazes de descrever
em tennos discursivos 0 que fazem e as razoes por que 0
fazem. Entretanto, em sua maior parte, essas faculdades
estao engrenadas no fluxo da conduta do dia-a-dia. A racio-
naliza,ao da conduta so se converte na apresenta,ao dis-
cursiva de razoes se os individuos forem solicitados por
outros a esclarecer por que atuaram de tal ou tal modo. Tais
perguntas so sao normalmente formuladas, e claro, se a ati-
 'c

r··<
332 A CONSTITUJ(;:AO DA SOCIEDADE ' 333
A TEORIA DA ESTRUTURAt;:AO

vidade em questao for, de certa forma, desconcertante - se nomenos reflexivamente para influenciar ou controlar 0
parecer zombar da conven9ao ou afastar-se dos modos ha- fluxo de intera9ao.
bituais de conduta de uma determinada pessoa. 6) Identidades sociais, e as rela90es posi9ao-pratica que Ihes
2) A cognoscitividade de atores humanos esta sempre vincu- estao associadas, sao "marcos" no tempo-espa90 virtual da
lada, por um lado, ao inconsciente e, por outro, as condi- estrutura. Elas estao associadas a direitos normativos, obri-
90es nao reconhecidas/conseqiiencias impremeditadas da ga90es e san90es que, dentro de coletividades especificas,
a9ao. Algumas das tarefas mais relevantes da ciencia so- constituem papeis. 0 uso de marcos padronizados, espe-
cial deverao ser encontradas na investiga9ao dessas fron- cialmente relacionados com os atributos corporais de idade
teiras, a importancia das conseqiiencias impremeditadas para e genero, e fundamental em todas as sociedades, apesar das
a reprodu9aO do sistema e as conota90es ideol6gicas que grandes varia90es transculturais que podem ser notadas.
tais fronteiras possuem. 7) Nenhum significado unitario pode ser dado a "coer9ao" na
3) 0 estudo da vida cotidiana e essencial para a analise da re- analise social. As coer90es associadas com as propriedades
p rodu9ao de pr<iticas institucionalizadas. A vida diaria e estruturais de sistemas sociais constituem apenas um tipo
inseparavel do carater repetitivo do tempo reversivel- com entre muitas outras caracteristicas da vida social humana.
trajetos trapdos ao longo do tempo-espa90 e associados 8) Entre as propriedades estruturais de sistemas sociais, os
com as caracteristicas coercivas e facilitadoras do corpo. principios estruturais sao especialmente importantes, uma
Entretanto, ela nao deve ser tratada como a "funda9 ao" vez que especificam tipos globais de sociedade. Vma das
sobre a qual se constroem as conexoes mais ramificadas da principais enfases da teoria da estrutura9ao esta em que 0
vida social. Pelo contnirio, essas conex5es mais extensas grau de fechamento de totalidades sociais - e de sistemas
devem ser entendidas em termos de uma interpreta9ao da sociais em geral - e amplamente variavel. Existem graus
integra9ao social e de sistema. de "sistemidade" nas totalidades sociais, como em outras
4) A rotina, psicologicamente ligada a minimiza9ao das fon- formas mais ou menos inclusivas de sistema social. E
tes inconscientes de ansiedade, e a forma predominante de essencial evitar a suposi9ao de poder ser facilmente defini-
atividade social cotidiana. A maioria das praticas dimas nao do 0 que uma "sociedade" e, n09ao que provem de uma era
sao diretamente motivadas. As pr<iticas rotinizadas consti- dominada por na90es-Estados com fronteiras bern delimi-
tuem a expressao primordial da dualidade da estrutura com tadas que usualmente se encontram na esfera de a9ao admi-
rela9 ao a continuidade da vida social. No desempenho de nistrativa de govemos centralizados. Mesmo nas na90es-
rotinas, os agentes alimentam um sentimento de seguran9a Estados existe, e claro, uma grande variedade de formas
ontol6gica. sociais que cortam transversalmente as fronteiras das so-
5) 0 estudo do contexto, ou das contextualidades de intera- ciedades.
9aO, e inerente a investiga9ao da reprodu9ao social. 0 "con- 9) 0 estudo do poder nao pode ser visto como uma considera-
texto" envolve 0 seguinte: a) as fronteiras espa90-tempo- 9aO de segunda ordem nas ciencias sociais. 0 poder nao
rais (sendo usualmente marcos simb6licos ou fisicos) em pode ser, por assim dizer, acrescentado como um remendo,
torno das faixas de intera9ao; b) a co-presen9a de atores, depois de terem sido formulados os conceitos mais basicos
possibilitando a visibilidade de uma diversidade de expres- da ciencia social. Nao existe conceito mais elementar do
soes faciais, gestos corporais, linguagem e outros veiculos que 0 do poder. Entretanto, isso nao significa que ele seja
de comunica9ao; c) percep9ao consciente e usa desses fe- mais essencial do que qualquer outro, como e pressuposto
!,
334 A CONSTITUl9JO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9JO 335

naquelas versoes da ciencia social que cairam sob uma in- caracteriza a ciencia social. 0 sociologo tern como campo de
fluencia nietzschiana. 0 poder e urn dos varios conceitos estudo fenomenos que ja sao constituidos como significativos.
primanos da ciencia social, todos enfeixados em tomo das A condi9ao de "entrada" nesse campo e travar conhecimento
rela,oes de a,ao e estrutura. Ele e 0 meio de conseguir que com 0 que os atores ja sabem, e tern de saber, para "prosseguir"
as coisas sejam feitas e, como tal, esta diretamente implici- nas atividades cotidianas da vida social". Os conceitos que
to na a,ao humana. E urn equivoco trata-Io como inerente- observadores sociologicos inventam sao conceitos de "segunda
mente divisor, mas nao hi duvida de que alguns dos mais ordem", na medida em que pressupoem certas capacidades
acerrimos conflitos na vida social sao corretamente vistos conceptuais por parte dos atores a cuja conduta eles se referem.
como "lutas pelo poder". Essas lutas podem ser vistas co- Mas esta na natureza da ciencia social que eles podem tomar-se
mo relacionadas com os esfor,os para subdividir recursos de "primeira ordem" se forem reservados apropria vida social.
que geram modalidades de controle em sistemas sociais. o que hi de "hermeneutico" na dupla hermeneutica? A pro-
Entendo por "controle" a capacidade que alguns atores, priedade do termo deriva do duplo processo de tradu,ao ou
grupos ou tipos de atores tern de influenciar as circunstan- interpreta,ao que esta envolvido. As descri,oes sociologicas
cias da a,ao de outros. Nas lutas pelo poder, a dialetica de tern a tarefa de mediar as redes de significado dentro das quais
controle opera sempre, embora 0 uso que os agentes em os atores orientam sua conduta. Mas tais descri,oes sao catego-
posi,oes subordinadas podem fazer dos recursos a que tern rias interpretativas que pedem tambem urn esfor,o de tradu,ao
acesso difira muito substancialmente entre contextos sociais dentro e fora das redes de significado envolvidas em teorias
distintos. sociologicas. Varias considera,oes relativas a analise social
10) Nao hi mecanismo de organiza,ao social ou de reprodu,ao estao ligadas a isto:
social identificado por analistas sociais que atores leigos
nao possam tambem conbecer e incorporar ativamente ao I) 0 estilo literano nao e irrelevante para a exatidao das des-
que fazem. Em nurnerosos casos, as "descobertas" dos so- cri,oes sociais. Isso e mais ou menos importante de acordo
ciologos so 0 sao para aqueles que nao estao nos contextos com a extensao em que uma determinada pesquisa social e
de atividade dos atores estudados. Como os atores fazem 0 etnogrMica - ou seja, e escrita com 0 objetivo de descrever
urn dado milieu cultural para outros que nao 0 conhecem.
que fazem por terem razoes para tanto, e natural que
2) 0 cientista social e urn comunicador, apresentando redes de
fiquem desconcertados quando observadores sociologicos
significado associadas com certos contextos de vida social
lhes dizem que 0 que fazem deriva de fatores que lhes sao,
aqueles que estao em Dutros. Assim, as ciencias sociais
de algum modo, exteriores. As obje,oes leigas a tais "des-
apoiam-se nas mesmas fontes de descri,ao (conhecimento
cobertas" podem ter assim urna base muito solida. A retifi-
mutuo) dos romancistas ou outros que escrevem relatos fic-
ca,ao nao e, em absoluto, puramente caracteristica do pen-
cionais da vida social. Goffman e capaz, com a maior facili-
samento leigo.
dade, de entremear ilustra,oes ficcionais com descri,oes
extraidas de pesquisas em ciencia social, porque ele procura,
Estes pontos sugerem urn certo nUmero de diretrizes para com muita freqiiencia, "exibir" as formas tacitas de conhe-
a orienta,ao global da pesquisa social.
cimento mutuo, mediante as quais as atividades priticas sao
Em primeiro lugar, toda pesquisa social tern urn aspecto
necessariamente cultural, etnogrMico ou "antropologico". Isso
e uma expressao do que eu chamo de a dupla hermeneutica que * As referencias podem ser encontradas app. 433-6.
 336 A CONSTITUIr;:A-O DA SOCIEDADE

ordenadas, em vez de tentar mapear a distribui9ao real des-

sas atividades.
r
I
m,m, "U,"mvMC" 337

trata-se de urn pretexto para urn conubio disciplinar. Normal-

mente, os cientistas sociais contentarn-se em deixar que os his-
3) A "descri9ao densa" sera requerida em alguns tipos de pes- toriadores sejam os especialistas em tempo e os ge6grafos, es-
quisa (sobretudo a de urn tipo maisetnognifico), mas nao pecialistas em espa90, enquanto eles mantem sua pr6pria iden-
em outros. E geralmente desnecessiria quando as ativida- tidade disciplinar distinta, a qual, se nao e uma preocupa9ao
des estudadas tern caracteristicas generalizadas familiares exclusiva com a coer9ao estrutural, esta estreitamente ligada a
aqueles a cuja disposi9ao as "descobertas" sao postas, e urn enfoque conceptual sobre a "sociedade". Historiadores e
quando a principal preocupa9ao da pesquisa e com a analise ge6grafos, por sua parte, mostraram-se bastante sollcitos em
institucional, na qual os atores sao lratados em grandes agre- consentir nessa disseca9ao disciplinar da ciencia social. Os pra-
gados ou como "tipicos" em certos aspectos definidos co- ticantes de uma disciplina, segundo parece, s6 se sentem seguros
mo tais para os prop6sitos do estudo. se puderem apontar uma nitida delimita9ao conceptual entre
seus interesses e os dos autros. Assim, a "historia" pade ser
Em segundo lugar, e importante na pesquisa social ser vista como tendo por objeto de estudo as seqiiencias de eventos
sensivel as habilidades complexas que os atores possuem para dispostos cronologicamente no tempo ou, talvez, de urn modo
coordenar os contextos de seu comportamento cotidiano. Na ainda mais arnbiguo, "0 passado". A geografia, como gostarn de
analise institucional, essas habilidades podem ser mais ou reivindicar fiuitos de seus representantes, encontra seu carater
menos enquadradas, mas e essenciallembrar que tal enquadra- distintivo no estudo de formas espaciais. Mas se, como enfati-
mento e totalmente metodol6gico. Aqueles que consideram zei, as rela90es tempo-espa90 nao podem ser "arrancadas" da
que a analise institucional compreende 0 campo da sociologia analise social sem abalar todo 0 empreendimento, tais divisoes
in toto confundem urn procedimento metodol6gico com uma disciplinares inibem ativarnente a abordagem de questoes da
realidade ontol6gica. A vida social pode, com muita freqiien- teoria social que sao significativas para as ciencias sociais como
cia, ser previsivel em seu curso, como esses autares propendem urn todo. Analisar a coordena9ao espa90-temporal de ativida-
a salientar. Mas sua previsibilidade, em muitos de seus aspec- des sociais significa estudar as caracteristicas contextuais de
tos, sao os pr6prios atores sociais que "fazem acontecer"; ela locais onde os atores sociais se movimentam em seus percursos
nao acontece apesar das razoes que eles tern para a sua condu- cotidianos e a regionaliza9ao de locais que se estendem atraves
tao Se 0 estudo de conseqiiencias impremeditadas e de condi- do tempo-espa90. Como acentuei freqiientemente, tal analise e
90e s nao reconhecidas de a9ao constitui uma parte importante inerente a explica9ao do distanciarnento tempo-espa90 e, por
da pesquisa social, cabe-nos sublinhar, nao obstante, que tais conseguinte, ao exame da natureza heterogenea e complexa
conseqiiencias e condi90es devem sempre ser interpretadas adquirida per totalidades sociais mais vastas e pelos sistemas
dentro do fluxo da conduta intenciona!. Temos de incluir aqui a intersociais em gera!.
rela9ao entre aspectos reflexivarnente monitorados e aspectos Para comentar as irnplica90es empiricas das considera90es
impremeditados da reprodu9ao de sistemas sociais, e 0 aspecto precedentes, considerarei vanos trabalhos de pesquisa separa-
"longitudinal" de conseqiiencias irnpremeditadas de atos con- dos. No sentido de preservar urn grau de continuidade com
tingentes em circunstiincias historicarnente significativas de uma exemplos que usei antes, tomarei como casos ilustrativos mate-
especie ou de outra. rial relacionado com a educa9ao e com 0 Estado. Como 0 Es-
Em terceiro lugar, 0 analista social tambem deve ser sensi- tado modemo abrange, em todo lugar, tentativas de monitorar a
vel a constitui9ao espa90-temporal da vida socia!. Em parte, reprodu9ao institucional por meio da influencia sobre a natureza
 [
338 A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE I A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 339

dos sistemas educacionais, essas duas "areas" de pesquisa es- . Alem disso, yOU querer conduzir a discussao numa dire<;ao que
tao, de fato, estreitamente interligadas. 0 primeiro exemplo e I nao se costuma considerar estreitamente relacionada com os
urn bern conbecldo estudo de submissao e de rebeliao numa problemas de trabalho empirico - indicando como a pesqmsa
escola ~a classe trabalhadora na regiao das Midlands (lngla- social esta vinculada a critica social. Nas se<;6es finais deste
terra). E de carater primordialmente etnografico e contrasta capitulo tentarei mostrar por que a teoria da estrutura<;ao ficar'
neste aspecto, e no pais de origem, com 0 segundo exemplo: intrinsecamente incompleta se nao estiver ligada a uma con-
urn estudo por levantamento estatistico da mobilidade educa- cep<;ao da ciencia social como teoria critica.
cional na ltillia. 0 terceiro e 0 quarto exemplos baseiam-se em Talvez possa parecer, a primeira vista, que estes ultimos
material empirico diretamente interessado nas atividades e en- aspectos se desenvolvem num plano muito diferente do exame
volvimentos de Estados modemos. Urn descreve nao tanto urn da pesquisa empirica. Mas a liga<;ao e, de fato, muito estreita,
determinado projeto de pesquisa, mas a obra de urn autor que pois nao se limitara a considerar apenas de que maneiras 0
tentou combmar 0 material empirico com uma explica<;ao te6- estudo empirico pode ser elucidado atraves dos conceltos de-
nca do carater contradit6rio dos "Estados capitalistas". 0 outro senvolvidos nas partes precedentes deste livro. Toda a pesqmsa
refere-se a urn trabalho especifico de pesquisa _ uma tentativa e conduzida em rela<;ao a objetivos explanat6rios explicitos ou
d: analise das origens da linba divis6ria entre "a City" e a "in- implicitos, e tern conseqiiencias praticas potenciais tanto para
dustna", a qual tern sido urna caracteristica notavel da socieda- aqueles cujas atividades sao investigadas quanta para outros. A
de brit'nica durante uns dois seculos ou mais. elucida<;ao do carater desses objetivos e conseqiiencias nao e
_ Usarei cada trabalho de pesquisa para ilustrar certas ques- facil, e requer a solu<;ao de alguns dos problemas criados con;
toes conceptuals parcialmente distintas. Para come<;ar, exami- 0 abandono de urn modelo diretamente baseado no recurso a
narel 0 que considero ser, sob muitos aspectos, urn relat6rio forma 16gica da ciencia natural. Ao examinar esses problemas,
exemplar de pesquisa, e apresentarei em detalhe muitas das esfor<;ar-me-ei por limitar tanto quanta possivel quaisquer
p;incipais enfases empiricas que se relacionam com os princi- incurs6es no terreno da epistemologia. Meu prop6sito e anali-
plOS baslcos da teoria da estrutura<;ao. Depois, concentrar-me- sar 0 que decorre da pretensao basica subjacente em toda a pes-
ei em tres problemas especificos. Como deveremos analisar quisa social: a de que 0 pesquisador comunica novos conbeci-
empiricamente a coer<;ao estrutural? Como poderemos dar mentos previamente inexistentes ou inacessiveis (em qualquer
sUbsta~cia empirica ano<;ao de contradi<;ao? E que tipo de pes- sentido) aos membros de uma comunidade social ou sociedade.
qmsa e apropnado ao estudo da longue duree da mudan<;a ins-
titucional?
Duas importantes restri<;6es devem ser feitas antes de pas- A analise da conduta estrategica
sarmos ao conteudo principal da discussao. Ao especificar al-
gurn~s das ~iga<;6es entre a teoria da estrutura<;ao e a pesquisa De acordo com a teoria da estrutura<;ao, sao possiveis dois
empmca, nao me preocuparei com urna avalia<;ao das virtudes tipos de enquadramento metodol6gico em pesquisa sociol6gi-
e inconvenientes de diferentes tipos de metodo ou tecnica de ca. Na analise institucional, as propriedades estruturais sao tra-
pesquisa, ou seja, nao procurarei analisar se a pesquisa etno- tadas como caracteristicas cronicamente reproduzidas de siste-
grafica e ou nao superior ao usc, digamos, de questionarios. mas sociais. Na analise da conduta estrategica, 0 foco incide
Oferecerei, entretanto, alguns comentanos sobre a rela<;ao entre sobre os modos como os atores sociais se ap6iam nas proprie-
as chamadas pesquisa "qualitativa" e pesquisa "quantitativa". dades estruturais para a constitui<;ao de rela<;6es sociais. Na medi-
 340 .
A CONSTITU1I;AO DA SOCIEDADE
I
, A TEORIA DA ESTRUTURAI;AO
. 341

da em que se trata de uma diferenya de enfase, nao existe urna Considere-se a pesquisa descrita por Paul Willis em seu
linha divisoria nitida que possa ser trayada entre esses dois ti- livro Learning to Labour'. 0 autor interessou-se em estudar urn
pOS, e carla urn deles, crucialmente, tern de ser, em principia, grupo de crianyas da classe trabalhadora numa escola localiza-
completado por urna concentrayao na dualidade da estrutura. A da numa area pobre de Birmingham. Embora 0 grupo estudado
analise da conduta estrategica significa dar primazia as cons- fosse muito pequeno, a pesquisa de Willis e convincente em
ciencias discursiva e pratica, e as estrategias de controle dentro seus detalhes e sugestiva ao aduzir implicayoes que vao muito
de limites contextuais definidos. As propriedades instituciona- alem do contexto em que 0 estudo foi realmente executado.
lizadas dos cenarios de interayao sao metodologicamente su- Como tratarei de mostrar, harmoniza-se estreitamente com as
postas como "dadas". Temos de ter muito cuidado com isso, e principais implicayoes empiricas da teoria da estruturayao. 0
claro, pois tratar as propriedades estruturais como metodologi- que confere essas qualidades a pesquisa? Numa parte conside-
camente "dadas" nao e afirmar que elas nao sao produzidas e ravel, pelo menos, a resposta esta em que Willis trata os rapa-
reproduzidas atraves da agencia humana. E concentrar a anali- zes envolvidos na pesquisa como atores que conhecem muito,
se nas atividades contextualmente situadas de grupos definidos discursiva e tacitamente, a respeito do ambiente escolar de que
de atores. Sugerirei os seguintes principios como importantes fazem parte, e em que ele mostra precisamente como suas ati-
na analise da conduta estrategica: a necessidade de evitar des- tudes rebeldes em relayao ao sistema de autoridade da escola
criyoes empobrecidas da cognoscitividade dos agentes; uma tern certas conseqiiencias definidas e impremeditadas que afe-
descriyao refinada da motivayao; e uma interpretayao da diale- tam seus destinos. Ao deixarem a escola, eles vao ocupar em-
tica do controle. pregos nao-qualificados e desestimulantes, facilitando assim a
reproduyao de algumas caracteristicas gerais da mao-de-obra
capitalista industrial. A coeryao, por outras palavras, opera com-
momento hermeneutico provadamente atraves do envolvimento ativo dos agentes inte-
ressados, nao como alguma forya de que eles sao os recipientes
monitora98.0 reflexiva da ayao ] consciencia discursiva
passivos.
racionaJizayao da 898,0 consciencia pratica
Consideremos, em primeiro lugar, a consciencia discursiva
inconsciente
motiva9ao e pratica, tal como erefletida no estudo de Willis. 0 autor deixa
claro que "os garotos" podem dizer muito acerca de suas opi-
nioes sobre as relayoes de autoridade na escola e sobre por que
dualidade
da estrutura
reagem a ela do modo como reagem. Entretanto, essas capaci-
dades discursivas nao assurnem apenas a forma de declarayoes
proporcionais; 0 "discurso" tern de ser interpretado para incluir
INTEGRAC;:.i\O DE SISTEMA
modos de expressao que, com freqiiencia, sao tratados como de-
sinteressantes na pesquisa socioI6gica - como 0 humor, 0 sar-
I amalise de l' analise casmo e a ironia. Quando urn dos "garotos" diz dos professores:
t conduta estrategica I institucional
"Eles sao maiores do que nos, eles representam urna instituiyao
maior do que nos..."3, esta expressando uma creuc;a proposicio-
Figura 13 nal de urn genero conhecido por meio das respostas a perguntas
apresentadas pelos pesquisadores em entrevistas. Mas Willis mos-
 342 A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE 343
A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO

tra que 0 humor, a tro,a, 0 sarcasmo agressivo - elementos que mais do que os conformislas. Porque contestam ativamente as
sao a moeda corrente discursiva dos "garotos" - constituem ca- rela,aes de autoridade da escola, sao peritos em captar onde es-
racteristicas fundamentais da "penetra,ao" sagaz, por parte tao as bases das pretensaes de autoridade dos professores e
deles, do sistema escolar. A cultura zombeteira dos "garotos" onde atacar seus pontos fracos, como controladores da discipli-
exibe urna compreensao muito completa da base da autoridade na e como personalidades individuais. A oposi,ao expressa-se
do professor e, ao mesmo tempo, questiona diretamente essa como uma continua e irritante resistencia contra 0 que os pro-
autoridade ao subverter a linguagem em que ela normalmente fessores esperam e solicitam, a qual cessa geralmente a urn passo
se expressa. Como sublinha Willis, as varias modalidades de do confronto direto. Assim, espera-se que, na sala de aula, as
zombaria e irreverencia sao dificeis de gravar em fila e, sobre- crian,as se sentem quietinhas em seus lugares, fiquem caladas
tudo, de representar em letra de fOrma nos relat6rios de pesqui- e se dediquem a seu trabalho. Mas "os garotos" sao todos mo-
sas. Mas essas, e outras forroas discursivas que raramente figu- vimento e agita,ao, exceto quando 0 olhar severo do professor
ram em tais relat6rios, podem mostrar tanto sobre os modos de imobiliza urn deles transitoriamente; ficam tagarelando sub-
enfrentar ambientes sociais opressivos quanto os comentarios repticiamente ou fazem comentarios que estao Ii beira da insu-
ou respostas mais diretos. Nas palavras do autor:
bordina,ao direta, mas podem ser explicados satisfatoriamente
se seus autores forem interpelados; eles esmo sempre fazendo
o espac;o conquistado da escola e de suas regras pela gropo algurna outra coisa que nao 0 trabalho que lhes e pedido, mas
informal e usado para a fonnac;ao e desenvolvimento de certas
habilidades culturais dedicadas principalmente a "tirar urn sar- tem urna justifica,ao espuria na ponta da lingua quando sao
ro", 0 "sarro" e urn irnplemento rnultifacetado de extraordimiria questionados. Eles inventaram "experimentos com confian,a"
importancia na cultura contra-escola [... J a habilidade para pro- sem, ao que parece, terem lido Garfinkel: "Vamos manda-Io
duzi-Io euma das caracteristicas que definern 0 garoto como urn plantar batalas quando entrar", "Vamos rir de tudo 0 que ele
dos "garates" - "Nos podemos tirar sarro deles, eles nao podem· disser", "Vamos fingir que nao podemos entender 0 que ele diz e
tirar sarro de nos." Mas tambem e usado em muitos Dutros con- interrompe-lo 0 tempo todo com '0 que eque isso quer dizer?''''.
textos: para derrotar 0 tedia e 0 merlo, para superar as provaC;oes Como avaliar 0 conteUdo motivacional das atividades opo-
e os problemas - uma saida para quase tudo. Em muitos aspectos,
sitoras dos "garotos"? [sso depende, em certa medida, de mate-
o sarro e 0 instrumento privilegiado do infonnal, assim como a
ordem, 0 mando, e do fonnal [...] 0 sarro e parte de uma irreve-
rial que Willis nao se dispas a explorar diretamente. Mas e

I
rente e devastadora rna conduta. A semelhanr;a de urn exercito claro que considerar "os garotos" agentes sagazes sugere uma
de ocupar;ao da dimensao infonnal, invisivel, "os garotos" der- explica,ao para a motiva,ao deles diferente da implicita na
ramam-se pelos campos em busca de incidentes para se divertir, opiniao "oficial", que os ve como "bademeiros" e "provocado-
subverter e incitar. 4 res" incapazes de apreciar a importiincia das oportunidades

I
educacionais oferecidas pela escola - a contrapartida do socio-
No nivel das consciencias discursiva e pr<itica, poderia pa- logues da "socializa,ao imperfeita". Os motivos que instigam
recer que as crian,as conforroistas - aquelas que mais ou menos suas atividades e estao subjacen\es em suas razaes para faze-
aceitam a autoridade dos professores e suas metas educacio- rem 0 que fazem nao podem ser explicados como resultado de
nais, em vez de se rebelarem contra elas - seriam as que pos- , uma compreensao deficiente do sistema escolar ou de suas
suem mais conhecimentos acerca do sistema social vigente na rela,aes com outros aspectos dos milieux que sao 0 pano de
escola. Entretanto, Willis demonstra que, em ambos os niveis fundo de suas vidas. Pelo contrario, ejustamente por conhece-
de consciencia - a discursiva e a pr<itica - "os garotos" sabem rem muita coisa a respeito da escola e dos outros contextos em
 344 A CONSTITUl(:A-O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO 345

que se movimentam que eles agem de tal maneira. Esse conhe- direito 0 tempo todo. A semelhan,a dos juizes de futebol nos
cimento pode ser usado primordialmente em suas atividades dias de hoje, quero dizer que eles estao fracassando porque sao
praticas ou nurn discurso altamente contextualizado, embora rapidamente levados ao ultimo recurso [...] 0 cartao amarelo e
no estudo de Willis "os garotos" se destaquem como muito tirado do bolso do juiz it primeira infra,ao e, urna vez feito isso,
mais articulados do que outros na escola provavelmente reco- ele tern de por 0 jogador para fora do campo ou ignorar tudo 0
nheceriam. Entretanto, os limites daquilo que sabem a respeito mais que ele venha a fazer no jogo"'. as professores sabem
das circunstiincias em que vivem sao bastante restritos. Eles disso, e "os garotos" sabem que eles sabem. Por conseguinte,
percebem, certamente, que suas oportunidades de obter outra ! "os garotos" sao capazes de explorar a situa,ao em sua propria
coisa a nao ser empregos inferiores e nada estimulantes sao vantagem. Ao subverterem os mecanismos do poder discipli-
escassas, e essa percep,ao influencia suas atitudes de rebeldia nar na sala de aula, eles afirmam sua autonomia de a,ao. Alem
em rela,ao it escola. Mas tern, na melhor das hipoteses, urna disso, 0 fato de que a escola e urn lugar onde passam apenas
consciencia imprecisa de aspectos da sociedade mais vasta que uma parte do dia e urna parte do ano e vital para a "contracultu-
influenciam os contextos de sua propria atividade. Poderia ser ra" que eles iniciaram. Pois e fora da escola, longe dos olhares
plausivel inferir urn padrao motivacional geral subjacente - tal- dos professores, que podem ser livremente empreendidas a,oes
vez em parte inconsciente - de urna tentativa de estabelecer que seriam anatema no cenario escolar.
modos de conduta que injetem algurn tipo de significado e de
cor num conjunto triste e descolorido de perspectivas de vida
que sao, mesma difusamente, precisamente vistas como tal. Conseqiiencias impremeditadas: contra 0 funcionalismo
Nao podemos entender satisfatoriamente a motiva,ao dos "ga-
rotos", se nao virmos que eles apreendem, embora de modo A pesquisa de Willis nao constitui apenas urn soberbo es-
parcial e contextualmente confinado, a natureza de sua posi,ao tudo emognifico de urn gropo informal dentro de urna escola; e
na sociedade 6 . tambem urna tentativa de indicar como as atividades dos "garo-
Willis descreve de maneira muito arguta a dialetica de con- tos", dentro de urn contexto restrito, contribuem para a repro-
trole no ambito do cemirio escolar. Mas "os garotos" e seus du,ao de formas institucionais mais vastas. a estudo de Willis
professores sao especialistas na teoria e pnitica da autoridade, e incomurn, comparado com urna boa parte da pesquisa social,
e seus respectivos pontos de vista quanto a suas necessidades e porque ele sublinha que as "for,as sociais" operam atraves das
objetivos formais sao profundamente opostos. as professores razoes dos agentes e porque seu exame da reprodu,ao social
reconhecem que necessitam do apoio das crian,as conformis- nao recorre a conceitos funcionalistas. Sua interpreta,ao da co-
tas para fazer com que as san,oes a seu alcance tenham valida- nexao entre a "contracultura" da escola e os mais amplos pa-
de, e esse poder nao pode ser efetivamente exercido se as san- droes institucionais, expressos concisamente, e fonnulada nos
,oes punitivas tiverem de ser aplicadas com frequencia. a sub- seguintes termos. as modos antagonicos de comportamento dos
diretor revela-se urn Mbil teorico parsoniano do poder quando "garotos" na escola levam-nos a querer deixar a escola para
comenta que 0 funcionamento de uma escola depende princi- come,ar a trabalhar. Querem a independencia financeira que 0
palmente da existencia de urn certo consenso moral, 0 qual nao trabalho proporcionani; ao mesma tempo, entretanto, nao tern
pode ser implantado it for,a nas crian,as. As san,oes punitivas quaisquer expectativas especiais a respeito de outros tipos de
so devem ser usadas como urn ultimo recurso, porque consti- recompensa que 0 trabalho poderia oferecer. A cultura agressi-
tuem urn sinal do fracasso do controle efetivo e nao a base para va e trocista que eles desenvolveram no milieu escolar asseme-
o mesmo: "Voce nao pode ir decretando suspensoes a torto e a lha-se muito, na realidade, it cultura da flibrica nas situa,oes de
 I
346 A CONSTITUl9/io DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9/iO 347
trabalho para onde eles tendem a encaminhar-se ao abandonar No tipo I, 0 genero de perspectiva desenvolvida por Willis,
a escola. Por conseguinte, eles acham relativamente facil seu urn dado conjunto de atividades sociais (0 comportamento an-
ajustamento ao trabalho e estao aptos a tolerar as exigencias de tagonico dos "garotos") e interpretado como a,ao intencional.
urn labor mon6tono e repetitivo em circunstiincias que eles re- Por outras palavras, e mostrado que essas atividades sao leva-
conhecem ser desagradaveis, quando nao inconciliaveis. A das a efeito de modo intencional, por certas raz6es, dentro de
conseqiiencia impremeditada e ironica da "parcial penetra,ao" condi,6es de cognoscitividade limitada. A especifica,ao des-
deles nas limitadas oportunidades de vida que lhes sao acessi- ses limites permite ao analista mostrar como as conseqiiencias
veis e perpetuar ativamente as condi,6es que ajudam a limitar impremeditadas das atividades em questao derivam do que os
estas ultimas. De fato, por terem deixado a escola sem qualifi- agentes fizeram intencionalmente. A interpreta,ao envolve uma
ca,6es e ingressado num mundo de trabalho manual de baixo atribui,ao de racionalidade e de motiva,ao aos agentes envol-
nivel, urn trabalho que nao oferece perspectivas de carreira e vidos. as atores sociais tern raz6es para 0 que fazem, e 0 que
com 0 qual estao intrinsecamente descontentes, eles estao efe- fazem tern certas conseqiiencias especificaveis que eles nao pre-
tivamente encalhados ai para 0 resto de suas vidas ativas. "0 meditam. No tipo 2, sao quase inexistentes as tentativas de de-
garoto da classe trabalhadora e passivel de sentir que ja e tarde talhamento da intencionalidade da conduta dos agentes. Sup6e-se
demais quando descobre a natureza trai,oeira de sua anterior provavelmente que a conduta e intencional de algurn modo,
confian,a. A celebra,ao cultural durou, poderia parecer, ape- que ela tern, na terminologia de Merton, fun,6es manifestas.
nas 0 tempo bastante para despacha-Io atraves das portas fe- Mas em interpreta,6es funcionalistas isso geralmente nao e
chadas da fabrica"" - ou, mais freqiientemente, hoje em dia, considerado especialmente interessante, dado que a aten,ao esta
para urna vida de desemprego ou subemprego cronico. concentrada na atribui,ao de racionalidade a urn sistema social,
Ora, tudo isso poderia ter sido enunciado nurn modo fun- nao a individuos. Presume-se que a intensifica,ao de urna ne-
cionalista e "explicado" em termos funcionais. Assim, poder- cessidade funcional do sistema tern valor explicativo, suscitan-
se-ia argurnentar que 0 capitalismo industrial "necessita" de do conseqiiencias que, de certo modo, satisfazem essa necessi-
grandes contingentes de pessoas para executar 0 trabalho ma- dade. A interpreta,ao funcional de Merton do ritual Hopi da
nual desestimulante ou para fazer parte de urn exercito indus- chuva (ver pp. 14-15) ajusta-se exatamente a esse esquema. As
trial de reserva de desempregados. Portanto, a existencia dessas caracteristicas intencionais da participa,ao Hopi no ritual sao
pessoas e"explicada" como uma resposta a essas necessidades, descritas sumariamente - a "finalidade" etrazer chuva, e isso e
criadas, de qualquer modo, pelo capitalismo - talvez como re- o que ele nao faz. A primeira vista, portanto, a participa,ao no
sultado de algumas "for,as sociais" nao especificadas que tais cerimonial e urna atividade irracional. Contudo, podemos identi-
necessidades desencadeiam. as dois tipos de explica,ao podem ficar urna necessidade funcional il qual 0 cerimonial corresponde,
ser contrastados da seguinte maneira: gerando uma conseqiiencia positivamente funcional. As socie-
dades pequenas necessitam de urn sistema unitario de valores
que as mantenha coesas; a participa,ao no ritual da chuva re-
(1) atividades conseqOelncias (2) atividades conseqOencia
sociais impremeditadas
fon;a tal sistema de valores ao reunir regularmente a comuni-
sociais funcional
dade em circunstiincias nas quais a adesao aos valores do grupo
"""".:>1 /F//~;;J """':.::l. / "
/ pode ser publicamente afirmada.
8gaO intencional necessidade funcional Indiquei anteriormente por que 0 tipo 2 nao e 0 de explica-
,ao adequada para as atividades em questao. Entretanto, Cohen
348 A CONSTITUII:;AO DA SOClEDADE A TEORIA DA ESTRUTURAr;AO 349

sugeriu recentemente um modo engenhoso mediante 0 qual duos envolvidos, caso em que podera redundar em conseqiien-
essa interpreta9ao poderia ser resgatada9 • Para tanto, postulou 0 cias mais desintegradoras do que coesivas para 0 sistema social
que ele chama de as "leis da conseqiiencia". A interpreta9ao 2 mais amplo.
nao e uma explica9ao, porque nao fornece urn mecanismo li- A obra de autores funcionalistas foi muito importante na
gando 0 pressuposto de uma necessidade funcional as conse- pesquisa social precisamente porque dirigiu a aten9ao para as
qiiencias que se presumem resultarem dai para 0 sistema social disparidades entre 0 que os atores pretendem fazer e as conse-
mais amplo em que estao envolvidas as atividades a serem ex- qiiencias do que eles fazem. Mas podemos identificar, e tentar
plicadas. Ao postular as "leis da conseqiiencia", estabelecemos resolver, as quest5es envolvidas de modo menos ambiguo dis-
generaliza90es para 0 efeito de que, toda vez que um dado item pensando por completo a terminologia funcionalista. Ha tres ti-
social seja funcional para um outro, 0 primeiro item social tem pos de circunstancias em que a linguagem funcionalista e co-
sua existencia corroborada. A assun9ao de uma instancia parti- mumente usada. Todos sao importantes em analise social, mas
cular de atividade social sob uma lei da conseqiiencia pode ser podem facilmente expressar-se em termos nao-funcionalistas.
considerada uma explica9ao funcionalista "nao-elaborada". Mas Suponhamos uma descri9ao das descobertas de Willis num
as explica90es funcionalistas nao-elaboradas nao sao absoluta- modo funcionalista, da seguinte maneira: "A educa9ao, numa
mente explica90es e, alem disso, tem a perigosa propriedade sociedade capitalista, tem a fun9ao de alocar individuos para
colateral de sugerir que existe um grau de coesao mais elevado posi90es na divisao ocupacional do trabalho." Em primeiro lu-
do que pode ser de fato 0 caso nos sistemas sociais a que se re- gar, tal declara9ao e aceitavel se entendida como uma contrafa-
ferem. Dizer que 0 tipo 2 "nao e elaborado" e admitir ignoran- tual implicita lO • Muitas asser90es funcionalistas, ou pretensas
cia das conexoes causais que ligam 0 item social ou as ativi- "explica90es", podem ser lidas desse modo. De fato, elas esta-
dades em questao as suas conseqiiencias funcionais. 0 que se-
belecem uma rela9ao que pede uma explica9ao, em vez de ex-
riam essas conexoes, se descobertas? Elas seriam precisamente
plica-Ia. Podemos expressar a declara9ao de maneira diferente,
do genero dado no tipo I - uma especifica9ao de a9ao ou tipos
sem usar "fun9ao", nos seguintes termos: "Para que a divisao
de intencional com resultados (ou tipos de) impremeditados.
profissional de trabalho seja mantida, 0 sistema educacional tem
Por outras palavras, 0 elemento 2 s6 e viavel quando convertido
de assegurar que os individuos sejam alocados diferencialmen-
no 1. Mas no 1 einteiramente desnecessario usar 0 termo "fun-
te em posi90es ocupacionais." A for9a de "tem de" e aqui con-
9ao". Esse termo "fun9ao" subentende alguma especie de qua-
lidade teol6gica que os sistemas sociais possuiriam; sustenta-se trafatual; envolve a identifica9ao de condi90es que devem ser
a existencia de itens ou atividades sociais porque eles satisfa- satisfeitas para que certas conseqiiencias ocorram. Estabelece
zem necessidades funcionais. Mas, se 0 fato de terem resulta- um programa de pesquisa, e, entendida como formulando uma
dos funcionais nao explica a razao de suas existencias - s6 uma pergunta em vez de respondendo a uma, e inteiramente legiti-
interpreta9ao de atividade intencional e conseqiiencias impre- mao Mas 0 uso do termo "fun9aO" pode ser enganador porque
meditadas 0 faz -, as atividades podem ficar mais facilmente sugere que 0 "tem de" refere-se a alguma especie de necessida-
separadas daqueles resultados do que as "leis de conseqiiencia" de que e uma propriedade do sistema social, gerando de algum
sugeririam. A conduta dos "garotos" leva a conseqiiencias fun- modo for9as que produzem uma resposta (funcional) apropria-
cionais para a reprodu9ao do trabalho assalariado capitalista, da. Poderiamos supor que resolvemos um problema de pesqui-
como resultado de sua "penetra9ao parcial" de suas circunstan- sa quando tudo 0 que se fez realmente foi estabelecer um pro-
das de vidas. Mas essa "penetrac;ao muito parcial" como Willis
l blema a requerer pesquisa. Em segundo lugar, a declara9ao po-
argumenta, pode ser potencialmente radicalizante para os indivi- de ser interpretada como referente a um processo de feedback
 350 A CONSTITUI<;A"O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA<;A"O 351

que depende totalmente de conseqiiencias impremeditadas. Con- A dualidade da estrutura

forme ji indicamos, dizer que a "educa,ao [...] tern a fun,ao de
alocar individuos [...]" encobre as diferen,as entre aspectos pre- Parto do principio de que ficou claro, a partir de minhas
meditados e impremeditados da reprodu,ao social. Portanto, considerac;oes anteriores no presente livro, que 0 conceito de
nao esta claro em tais declara,oes ate que ponto os processos dualidade da estrutura, fundamental para a teoria da estrutura-
em questao sao 0 resultado de "Ia,os causais" e em que medida ,ao, esta subentendido nos sentidos ramificados que os termos
estao incorporados em processos do que chamei anteriormente "condi,oes" e "conseqiiencias" da a,ao tern. Toda intera,ao so-
de auto-regula,ao reflexiva. As necessidades sociais existem cial se expressa, em algum ponto, nas (e atraves das) contextuali-
como fatores causais implicados na reprodu,ao social somente dades da presen,a corporal. Ao passar da anaIise da conduta
quando sao reconhecidas como tais por aqueles que sao envol- estrategica para um reconhecimento da dualidade da estrutura,
vidos em determinado momento, e influenciados por elas. 0 temos de come,ar "avan,ando cautelosamente de dentro para
fora" no tempo e no espa,o. Isto e, precisamos tentar ver como
sistema educacional em que "os garotos" estao envolvidos foi
as praticas seguidas numa dada gama de contextos est1io implan-
supostamente estabelecido a fim de promover a igualdade de
tadas em mais amplas esferas de tempo e de espa,o - em suma,
oportunidades. Seus resultados substantivos, com rela,ao il
temos de tentar descobrir suas rela,oes com praticas institucio-
perpetua,ao da imobilidade, contrapoem-se a isso, mas eles nao
nalizadas. Continuando com a ilustra,ao extraida da obra Willis,
foram planejados nesse sentido pelo ministerio da Educa,ao
ate onde "os garotos", ao desenvolverem uma cultura de oposi-
ou qualquer outro argao diretivo do Estado. Se fossem ~ se a
,ao dentro da escola, se apaiam em regras e recursos mais larga-
educa,ao fosse deliberadamente organizada por poderosas en- mente envolvidos do que nos contextos imediatos de sua a,ao?
tidades decisarias, a fim de perpetuar 0 sistema de classes -, 0 Podemos especificar analiticamente 0 que esta envolvido
processo envolvido seria substancialmente diferente. E claro, em fazer passagem conceptual da analise da conduta estrategi-
tudo isso constitui uma materia complexa. Todos os sistemas ca para 0 exame da dualidade de estrutura conforme 0 esquema
educacionais modemos envoIvern tentativas de regula,ao re- abaixo (a analise institucional come,aria na outra extremidade,
flexiva, as quais acarretam freqiientemente conseqiiencias que como a seta ascendente indica):
repercutem naqueles que iniciam politicas educacionais. Mas Transferir a analise das atividades situadas de atores estra-
deixar essas complexidades por estudar e nao apreender as con- tegicamente localizados significa estudar, primeiro, as conexoes
di,oes reais de reprodu,ao. 0 resultado pode ser alguma forma entre a regionaliza,ao de seus contextos de a,ao e forma mais
de objetivismo - 0 que quer que aconte,a, e como resultado de amplas de regionaliza,ao; segundo, a incrusta,ao de suas ativi-
for,as sociais tao inevitaveis quanta as leis da natureza. Al- dades no tempo ~ em que medida elas reproduzem praticas, ou
temativamente, porem, poderia haver uma tendencia a aceitar
uma especie de teoria da conspira,ao. 0 que quer que aconte,a, interse~6es de regi6es ----:;;.. propaga~a.o espacial alem dos
e porque alguem 0 planejou. Se a primeira altemativa, a con- con1extos imediatos de interacao

cep9 ao caracteristica do funcionalismo, esta associada a nao- rotiniza y80 ----;:;.. propagaCao temporal alem dos contextos
atribui,ao de suficiente importilncia il a,ao intencional, a se- imediatos de interacao
gunda deriva do fato de nao se perceber que as conseqiiencias
distanciamento tempo-espayo
de atividades escapam cronicamente a seus iniciadores.
formas de totalidade social
352 A CONSTITUIi;AO DA SOCIEDADE A TEORJA DA ESTRUTURAi;AO 353

aspectos de pniticas, que estao estabelecidas desde longa data; Por sua parte, as atitudes e a conduta dos "garotos" nao sao,
terceiro, os modos de distanciamento tempo-espa90 que ligam por certo, totalmente inventadas de novo por eles; na verdade,
as atividades e rela90es em questao a caracteristicas das socie- eles apoiam-se nurn fundo de experiencias estabelecido em suas
dades globais ou sistemas intersociais. vidas fora da escola e desenvolvido historicamente no seio das
Willis fomece urna analise muito perspicaz de alguns des- comunidades da classe trabalhadora em geral. As crian9as que
ses fenomenos, embora sua terminologia seja diferente. A hie- se afastam das normas e do comportamento esperado do am-
rarquia formal da escola, e claro, incorpora modos de conduta biente escolar sao capazes de usar esse fundo de experiencia.
e expectativas normativas amplamente disseminados por dife- Ao transformar elementos dele e ao faze-los influir no milieu
rentes setores da sociedade, embora fortemente influenciados por escolar, ajudam a reproduzir essas mesmas caracteristicas no
divisoes de classes. A escola, como urn local, esta fisicamente contexto mais amplo, embora 0 usem de modo inovador, nao
separada do local de trabalho e temporalmente separada da de maneira mecilnica. 0 bairro e a rua fomecem as formas sim-
experiencia de trabalho no tempo de vida das crian9as. Embora b6licas de cultura jovem que saO tambem, mais diretamente, a
a escola e 0 local de trabalho compartilhem de padroes globais fonte de temas articulados na cultura contra-escolar. Willis tam-
de poder disciplinar nao sao meramente aspectos de uma Unica bern menciona a importiincia de historias relatadas por adultos
forma institucional. Como sublinha Willis, a disciplina da esco- acerca da vida na fabric a, sobretudo as referentes as atitudes
la possui urn tom fortemente moralizado, 0 qual esta faltando em face da autoridade. Os pais ajudam a transmitir a cultura da
no local de trabalho. A disciplina escolar consubstancia urn "pa- classe trabalhadora a seus filhos, mas, obviamente, nem todos
radigma educacional abstrato, mantendo e reproduzindo 0 que eles se comportam de maneira identica ou compartilham das
ele toma possivel"". 0 carater moral desse eixo de autoridade, mesmas opinioes. Alem disso, existe urn consideravel grau de
ou as pretensoes normativas nas quais ele esta focalizado, ajustamento independente de perspectivas entre pais e filhos.
influencia a natureza da subcultura rebelde. Em seu manifesto Alguns pais expressam atitudes muito semelhantes as dos "ga-
desprezQ pelas minucias das rotinas escalares, "as garotos" rotos", enquanto Dutros reprovam com veemencia 0 comporta-
fazem mais do que se desviarem, do ponto de vista do compor- mento deles. Ainda outros, que desconfiam dos valores da es-
tamento, daquilo que se espera deles; eles mostrarn sua rejei9ao cola ou lhes sao hostis, tern filhos rigorosamente ajustados aos
as prerrogativas morais em que a autoridade dos professores padroes esperados de conduta escolar. 0 interciimbio entre as
supostamente se assenta. Os recursos ao alcance do pessoal do- atividades dos "garotos" e as influencias da sociedade mals vasta,
cente quando procuram afirmar sua autoridade, entretanto, en- por outras palavras, e "produzido" por todos os envolvidos.
volvem ao mesmo tempo mais do que essas reivindica90es de Como fenomeno social reflexivamente monitorado, 0 sis-
legitima9ao. 0 pessoal docente sao "centros de recursos" para tema escolar nacional faz uso da pesquisa sociologica e da psi-
a distribui9ao de conhecimentos, reconhecidos como mercado- cologia. Ambas se infiltraram na organiza9ao pratica dessa es-
ria escassa pelas crianc;as confonnistas, senao pelos "garotos", cola (sem duvida, os professores estiio hoje inteiramente fami-
e e ele quem tern 0 controle mais direto sobre a regulariza9ao liarizados com 0 proprio estudo de Willis). Houve urn movi-
do tempo e 0 espa9amento de atividades que compoem a orga- mento no sentido de uma perspectiva algo mais "progressista"
niza9ao das aulas e dos horarios escolares como urn todo. E no tocante a organiza9ao do curriculo e a orienta9ao do ensino
claro, em tudo isso 0 pessoal docente apoia-se indiretamente nas na sala de aula. Urn dos principais contextos em que "os garo-
formas firmemente estabelecidas de sustenta9ao institucional tos" entram em contato direto com a pesquisa academica deri-
da sociedade mais vasta 12. vada da sociedade mais vasta e em rela9ao a orienta9ao voca-
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354 A CONSTITUJ(;AO DA SOClEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA<;AO 355

cional, que hoje constitui urn requisito legal a ser cumprido por "desanimador" - tiio desalentador quanta 0 presente -, desprovi-
todas as escolas. A orienta,ao de carreira e influenciada, sobre- do de qualquer das qualidades progressistas associadas a no,ao
tudo, pela teoria psicologica e pelos testes psicologicos, e e le- essencialmente classe media de urna carreira. Nao estiio interes-
vada muito a serio dentro da escola. Como mostra Willis, ape- sados em escollier determinados empregos, e deixam-se mais
sar de urna certa aura igualitma, a orienta,ao vocacional reflete levar para 0 que estiio fazendo do que consideram deliberada-
fortemente os valores e_aspira,oes da classe media. Centrados mente urn leque de alternativas e depois optam por urna dentre
no "trabalho", os pontos de vista promulgados tendem a con- elas. "as garotos", como Willis deixou claro, entregam-se a urna
trastar vigorosamente com as atitudes e ideias sobre trabalho vida de trabalho generalizado. Nao tern em mente qualquer no,ao
que - em sua concep,ao propria - "os garotos" captaram dos de "trabalho generalizado". Motivados pelo desejo de obter os
pais e de outros no bairro e na comunidade. Zombam ou mos- melhores salmos que puderem imediatamente e pelo pressupos-
tram-se indiferentes ao material fomecido nas aulas sobre car- to de que 0 trabalho e essencialmente desagradavel, e na conduta
reiras profissionais. Mas essa rea,ao nao e simplesmente nega- que eles refletem esse compromisso, essa entrega ao trabalho.
tiva. Eles acham que possuem uma percep,ao intuitiva do ver- Encarado, portanto, num quadro de referencia tempo-
dadeiro carater do trabalho que e negada as crian,as confor- espa,o mais amplo, ha urn processo de regenera,ao da cultura
mistas - e talvez possuam. As conformistas tern de fazer as coi- da classe trabalhadora que ajuda a dar origem as (e concretiza-
sas Com esfor,o, mediante a aquisi,ao de qualifica,oes, porque se atraves das) atividades situadas de grupos como "os garo-
nao tern esperteza para fazer melhor. A sobrevivencia no mun- tos". Comenta Willis:
do do trabalho exige energia, determina,ao e percep,ao das
melhores oportunidades. Os processos infonnais e fonnais da escola sao obviamen-
te vitais na preparar;ao da fon;:a de trabalho de urn certo modo,
Nao e dificil perceber como essas ideias, captadas e elabo-
mas 0 lar, a familia, 0 bairro, os meios de comunicac;ao de massa
radas nos ambientes de trabalho da classe operaria estabeleci- e a experiencia da classe trabalhadora nao-produtiva em geral
da, ajudam a mergulhar "os garotos" nesses mesmos ambientes sao igualmente vitais para sua reprodti';:ao continua e aplicayao
quando deixam a escola. As fontes de descontinuidade com as diana ao processo de trabalho. Num sentido inverso, e impor-
normas "oficiais" da escola oferecern, em certa medida, nao tante avaliar 0 grau em que a fibrica; em suas dimensoes objeti-
oficialmente, continuidade com os contextos de trabalho. Eo a vas e na cultura de oposir;ao que desenvolve, reage aos locais
cultura da contra-escola que fomece a principal orienta,ao se- nao-produtivos da reproduc;ao da forc;a de trabalho e os influen-
guida pelos "garotos" quando vao trabalhar. Com frequencia, cia em certo sentido, de modo que, como vimos na cultura da
nas opinioes dos rapazes e de seus pais, existe urna conexao contra-escola, poderi haver um circulo invisivel e freqiiente-
mente impremeditado de significado e direc;ao que atua, em ulti-
direta entre as rela,oes de autoridade na escola e no trabalho,
ma instancia, para preservar e manter uma configurac;ao - tal-
fomecendo vinculos cognitivos e emotivos entre os dois muito vez, uma vez mais, desviando-se profundamente das intenc;oes da
diferentes dos sancionados "oficialmente" por ambos. Podemos politica oficial. 13
ver nisso uma base de experiencia temporalmente estabelecida
desde longa data e espacialmente muito vasta, renovada de Ao suscitar a questao da for,a de trabalho, fomece-se urna
varias maneiras por carla gera93.o para quem os rnundos sociais conexao com as rela,oes de transforma,ao/media,ao que exa-
dispares e fisicamente separados da escola e do trabalho estao minei ilustrativamente no capitulo V. Nao voltarei a cobrir de
ligados. As opinioes dos "garotos" em rela,ao a escola orien- novo esse terreno, mas indicarei simplesmente como as rela-
tam-nos em rela,ao ao futuro, mas eles veem 0 futuro como ,oes estruturais envolvidas podem ser elaboradas analitica-
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356 A CONSTITUf(;:AO DA SOClEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA<;:AO 357

mente em fun,ao das atividades situadas da cultura contra-es- lhador livre; e livre sob urn duplo ponto de vista. 0 trabalhador
cola. Outros conjuntos estruturados, alem daquele previamente deve dispor, como pessoa livre, de sua for,a de trabalho como
discutido, envolvidos na reprodu,ao do capitalismo industrial mercadoria sua; por outro lado, deve nao ter outra mercadoria
como totalidade social, podem ser representados da seguinte para vender, estar desprovido e livre em todos os sentidos da
maneira 14 : palavra, isto e, nao possuir nada do que e preciso para a realiza-
,ao de sua for,a de trabalho"". Ora, 0 "deve" poderia ser inter-
propriedade privada: dinheiro: capital: contrato de trabalho: autoridade industrial pretado como (ou subentender) uma "explica,ao" funcional
dos fen6menos em questiio, como se a asser,ao explicasse por
que estes ocorrem. Existem certamente fortes inclina,oes fun-
propriedade privada : dinheiro :vantagem educacional : posj~ao ocupacional
cionalistas na formula,ao de Marx de alguns dos argumentos
basicos em sua descri,ao do desenvolvimento capitalista. Mas
As transforma,oes do lado esquerdo do primeiro conjunto concordemos em interpretar 0 "deve" do modo que sugeri ser
sao as mesmas anteriormente analisadas. Entretanto, a conver- incontestavel, apresentando uma questao a ser respondida. Es-
sibilidade das propriedades estruturais para 0 lado direito depende sas quesWes podem ser formuladas em rela,ao nao apenas as
do modo como 0 contrato de trabalho e "traduzido" em autori- origens mais remotas do capitalismo, mas tambem a sua conti-
dade industrial. Como Marx mostrou bastante detalhadamente, nuada reprodu,ao como ordem institucional global- nao exis-
a forma do contrato de trabalho capitalista 6 muito diferente tern for,as mecanicas que assegurem essa reprodu,ao de dia
dos vinculos de vassalagem que existiam entre 0 senhor e 0 para dia ou de gera,ao para gera,ao.
servo na ordem feudal. 0 contrato de trabalho capitalista 6 urna o que a pesquisa de Willis ajuda a indicar, nos contextos
rela,ao economica entre empregador e empregado, 0 encontro situados de a,ao dos "garotos", e como as rela,oes estruturais
de dois agentes "formalmente livres" no mercado de trabalho. acima identificadas sao sustentadas nessa a,ao e reproduzidas
Um aspecto principal da nova forma de contrato de trabalho 6 por esta. Devido a sua "penetra,ao muito parcial" do sistema
que 0 empregador nao contrata "0 trabalhador", mas a for,a de escolar, de sua indiferen,a para com 0 carater de trabalho e, no
trabalho do empregado. A equivalencia da for,a de trabalho e entanto, de sua disposi,ao para ingressar no mundo do traba-
essencial- tal como 6 a fomecida pelo veiculo de troca unitaria lho, "os garotos" constituem-se como "for,a abstrata de tra-
do dinheiro - para as transforma,oes estruturais envolvidas na balho". A suposi,ao de que todo trabalho e 0 mesmo confirma
existencia do capitalismo industrial como tipo generico de sis-
as condi,oes de permutabilidade da for,a de trabalho estrutu-
tema de produ,ao. 0 trabalho abstrato 6 quantificavel em uni-
ralmente envolvida no contrato de trabalho capitalista. Existe
dades equivalentes de tempo, fazendo as tarefas qualitativa-
aqui urna certa qualidade patetica, porquanto, se a descri,ao de
mente diferentes que os individuos executam nos varios ramos
Willis e valida, a cultura oposicionista dos "garotos" leva-os
de industria intercambiaveis para 0 empregador. 0 contrato de
efetivamente a integrar suas atividades mais estreitamente, em
trabalho 6 transformado em autoridade industrial atraves do
alguns aspectos, com as institui,oes da ordem a que se opoem
poder econ6mico que os empregadores, como classe, podem
do que os conformistas. Entretanto, na propria complexidade
exercer sobre os trabalhadores, uma vez que a imensa maioria
dessa rela,ao podemos ver a importiincia de nao tentar mera-
destes ultimos esta destituida de propriedade.
mente "subtrair" a a,ao da estrutura ou vice-versa - por outras
Segundo Marx, para que essas rela,oes existam, "6 preci-
so que 0 possuidor de dinheiro encontre no mercado 0 traba- palavras, de resistir ao dualismo de objetivismo e de subjetivismo.
As atividades situadas do "garotos", complicadas como sao em
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358 A CONSTITU[(;:AO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 359

relayao ao entrela9amento de conseqih~ncias intencionais e im- nada, bem·como empiricamente rica, sobre a natureza da coer,ao
premeditadas, sao apenas uma fra,ao minuscula de um proces- etnogrilfica. Mas tampouco desej 0 afirmar que os estudos etno-
so global e maci,amente complexo de reprodu,ao institucional. grilficos tern qualquer primazia sobre outros tipos de investiga-
Chegaremos il mesma conclusao se considerarmos 0 lado di- ,ao social e, para fins de analise institucional, estamos com
reito do outro conjunto estrutural, as caracteristicas institucio- freqiiencia (embora nao inevitavelmente) interessados em agre-
nais contribuindo para a conversibilidade da vantagem educa- gados muito maiores do que aqueles que podem ser examina-
cional em posi,oes ocupacionais diferenciadas. Existem algumas dos, confortavelmente, em termos etnogrilficos. Permitam-me,
relativamente diretas em que a posse de dinheiro pode ser con- pois, mudar de pais e de estudos de pesquisa, e usar como base
vertida em vantagem educacional, que por sua vez pode ser tra- de discussao uma pesquisa realizada sobre oportunidades edu-
duzida em posi,ao ocupacional privilegiada. Assim e possivel cacionais no Piemonte, noroeste da Italia". A pesquisa informa
comprar educa,ao em estabelecimentos particulares, gerando os resultados de um questionario e de entrevistas efetuadas
possibilidades maiores de obten,ao de recompensas profissio- com alunos do segundo grau, envolvendo um total de cerca de
nais do que as acessiveis aos que freqiientam as institui,oes edu- 3 mil individuos. Os entrevistados na maior das duas partes da
cacionais estatais. Mas a tradu,ao de uma para a outra envolve, pesquisa eram todos jovens que tinham come,ado a procurar
em sua maior parte, circuitos de reproduyao muito mais com- trabalho havia nao mais de um ano antes de serem contatados.
plexos. Assim, a pesquisa aborda temas muito semelhantes aos do
A identifica,ao de conjuntos estruturais e urn recurso mui- estudo de Willis, em especial as atitudes em rela,ao il escola e
to util para conceituar algumas das principais caracteristicas de ao trabalho. Tambem exemplifica aspectos da monitora,ao re-
uma dada ordem institucional. Mas, como enfatizei antes, as flexiva da reprodu,ao do sistema por parte do Estado, tao ca-
estruturas referem-se a uma ordem virtual de rela,oes, fora do racteristica das sociedades contempor1ineas. Os entrevistados
tempo e do espa,o. As estruturas existem somente em sua estavam todos inscritos em listas organizadas de acordo com
exemplifica,ao nas atividades cognosciveis de sujeitos huma- uma lei aprovada pelo Parlamento, cujo objetivo era ajudar os
nos situados, os quais as reproduzem como propriedades estru- egressos da escola a encontrarem emprego. Essa lei oferecia
turais de sistemas sociais incrustados em extensoes de tempo- beneficios aos empregadores que admitissem jovens recem-
espa,o. Portanto, 0 exame da dualidade da estrutura envolve saidos de escolas, criassem varias formas de treinamentos no
sempre estudar 0 que denominei anteriormente as dimensoes emprego etc. 0 proprio programa de pesquisa era parte da ten-
ou eixos da estrutura,ao. tativa das autoridades para influenciar reflexivamente as condi-
,oes de reprodu,ao social. Era patrocinado pelo governo italia-
no, em parte em resposta ao resultado bastante surpreendente
o problema da coer,ao estrutural da politica anterior em rela,ao aos jovens que terminavam sua
escolaridade. 0 governo tinha oferecido seiscentos empregos
Passemos agora il questao da coer,ao estrutural. Neste muito bern pagos ajovens que haviam concluido 0 curso secun-
ponto, despe,o-me dos rapazes da escola de Harnmertown. Nao dario e estavam sem trabalho, pelo periodo de um ano. Entre-
quero com isso sugerir que a pesquisa etnografica, como a exe- tanto, um tef90 daqueles a quem os empregos foram oferecidos
cutada por Willis, e refrataria il aprecia,ao desse problema. recusaram-nos. Essa rea,ao desconcertou os que haviam ini-
Pelo contrario, muito do que Willis disse pode ser entendido ciado essa politica, pois acreditavam, segundo parece, que os
precisamente como uma investiga,ao sutil e teoricamente refi- desempregados aceitariam qualquer emprego razoavelmente
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360 A CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURAr;AO 361

bern pago que lhes fosse oferecido. Para investigar 0 assunto, dos pelo nlvel de educa9ao dos pais, os resultados mostram que
eles financiaram 0 estudo. a profissao do pai - provavelmente 0 indicador empirico mais
Gambetta, 0 autor do relat6rio da pesquisa, analisa seu ma- comUIll de hist6rico de classe usado na pesquisa - ainda exerce
terial de modo a relaciona-Io nitidamente com questoes de consideravel efeito sobre 0 destino educacional. Os resultados
coer9ao estrutural. Diante de varias 0P90es educacionais, inda- tambem indicam 0 processo seqiiencial de efeitos que ocorrem.
ga ele, os individuos sao "impelidos" para elas ou "saltam" As crian9as da classe trabalhadora sao mais suscetiveis de ser
sobre elas? Em que sentido, se algum existe, ha for9as seme- eliminadas nurna fase relativamente precoce, em termos de
Ihantes as descritas pelos "soci610gos estruturais" que impelem evasao escolar na primeira oportunidade apresentada. Mas aque-
os individuos para cursos especificos de a9ao? Em primeiro las que permanecem tern maiores probabilidades de prosseguir
lugar, Gambetta organiza os resultados da pesquisa de modo ate a universidade do que as de classes superiores que conti-
semelhante ao de urna miriade de outros estudos em que esse nuam estudando; estas ultimas, por outras palavras, tern maiores
tipo de ponto de vista foi adotado. Assim, por exemplo, pode- probabilidades de parar urna vez atingidas as fases mais avan9a-
se mostrar que os antecedentes de classe influenciam a natureza das do processo educacional. [sso sugere que as familias de
da escolha educacional. Vma crian9a da "classe alta" tern qua- classes superiores tendem, mais ou menos automaticamente, a
tro vezes mais chances de chegar a educa9ao universitaria do manter seus filhos nas escolas para alem da idade usual de ter-
que urna crian9a de background "proletario". 0 que e que tais mino da escolaridade. Por outras palavras, existem influencias
diferen9as nos dizem? Tal como se apresentam, elas nao indi- que "empurram" para cima, nao apenas para baixo, obrando con-
cam os mecanismos por meio dos quais sao produzidas as cor- tra as crian9as da classe trabalhadora. Os pais da classe traba-
rela90es observadas; e sejam quais forem as influencias res- lhadora nao sao propensos a manter seus filhos em educa9ao a
ponsaveis, elas eslito longe de inequivocas em seus efeitos, menos que haja algurna razao especial para tanto - uma crian9a
pois muitas crian9as da classe alta nao ingressam no ensino excepcionalmente talentosa, urna particularmente motivada para
superior, enquanto urna certa propor9ao de jovens da classe tra- permanecer na escola etc.
balhadora 0 fazem. Nao obstante, tais observa90es indicam As crian9as da classe trabalhadora foram empurradas ou
que ha mais 0P90eS educacionais influentes do que fatores que saltaram? Foram "retiradas da frente" por terem 0 que Willis cha-
possam ser efetivamente representados como. urn agregado de ma de uma "penetra9ao parcial" das oportunidades de vida que
decisoes tomadas separadamente. Analisando dados similares deparam? Por urna analise estatistica adicional de seu material,
obtidos nurna serie de estudos realizados, em sua maioria, na Gambetta pode mostrar que as crian9as da classe trabalhadora
America do Norte, Leibowitz demonstra que a variancia "ex- sao consideravelmente mais senslveis a falta de sucesso educa-
plicada" em anos completados de escolaridade em termos de cional, antes da decisao inicial de prosseguir na escola ou de
antecedentes socioeconomicos situa-se entre 10% e 47%". deixa-Ia, do que as das classes superiores. [sso sugere que as
Claramente, essas conexoes sao apenas difusamente ex- familias e as crian9as da classe trabalhadora tern urna compreen-
pressas quando apresentadas na forma dessas correla90es gerais. sao realista das dificuldades que enfrentam para prosseguir no
Portanto, Gambetta procura examinar mais de perto as fontes de sistema escolar. Podemos, pelo menos, arriscar uma interpreta-
variiincia interclasses, controlando estatisticamente urn certo 9ao dos motivos pelos quais essas crian9as, tendo permanecido
nUmero de fatores possivelmente influentes. Feito 0 controle das na escola, apresentam menos probabilidades de abandona-la do
diferen9as economioas, conforme indicadas pela renda da fa- que as outras. Para elas, e para seus pais, permanecer na escola
milia da crian9a, assim como dos "recursos culturais", medi- envolve urn compromisso muito maior (a valores que lhes saO
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! 362 A CONSTlTUI(:AO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO 363

culturalmente "estranhos") do que no caso das classes superio- derar varias interpreta90es possiveis de tais resultados. Por
res. Os custos materiais tambem sao maiores, uma vez que, para exemplo, seria 0 padrao de permanencia na escola 0 mesmo se
os pais, 0 custo marginal de manter uma crian9a na escola e nao houvesse possiveis beneficios economicos em decorrencia
mais substancial do que para as familias mais abastadas. Vma de mais demorada freqiiencia escolar? Neste ponto, a teoria do
vez assurnido 0 compromisso, M urn maior "investimento" cul- estacionamento sugeriria conclusoes diferentes das apresenta-
tural e material a ser protegido do que no caso das crian9as das das pelas teorias do "capital humano", as quais consideram as
classes superiores. decisoes educacionais em termos de custo-beneficio. A fim de
Presume-se que 0 conhecimento dos mercados de trabalho, avaliar essas possibilidades variantes, Gambetta correlacionou
assim como as atitudes para com 0 trabalho em geral, podem a decisao de permanecer em educa9ao ate 0 nivel universitario
influenciar tais decisoes. Nesse ponto, Gambetta analisa urna com diferen9as economicas, na regiao do Piemonte. as resul-
concep9ao de comportamento nos mereados de trabalho que tados indicam que nao se trata apenas de uma questao de esco-
atraiu considenivel aten9ao na Italia: a "teoria do estacionamen- Iha negativa, como a teoria do estabelecimento sugere; perma-
to". De acordo com essa ideia, a dura9ao da escolaridade tende necer constitui, em celia medida, uma decisao positiva, "esti-
a estar inversamente relacionada com as probabilidades de mo- mulada" pelos atrativos das oportunidades que urna educa9ao
bilidade social nas idades iniciais de termino da vida escolar. A de alto nivel oferece. Mas as proprias teorias do capital huma-
fim de evitarem ficar desempregados, os alunos "estacionam" no estao excessivamente simplificadas em termos dos pressu-
por mais tempo na escola. A explica9ao motivacional implicita postos motivacionais que elas envolvem, como a pesquisa mos-
na teona do estacionamento e a de que, ceteris paribus, 0 tra- tra. Alem disso, essas teorias nao conseguem apreender resul-
balho e preferido it escola. as que propuseram a teoria" fize- tados impremeditados de urna pluralidade de cursos de a9ao se-
ram uma descri9ao dos motivos e razoes dos atores sociais que paradamente considerados. Pode haver conseqiiencias perversas
e, em grande parte, implicita e "pouco consistente". Nao obs- que resultem, sem que isso tenha sido intencionado, de deci-
tante, a teoria do estacionamento e interessante porque produz soes de prosseguir na educa9ao a fim de maximizar as recom-
certas possibilidades contra-intuitivas - por exemplo, indica pensas profissionais ulteriores. Cada individuo poderia agir na
que a dura9ao da educa9ao, em certas circunstancias, pode estar expectativa de beneficios mais elevados, mas, se urn nillnero ex-
inversamente relacionada com 0 nivel de desenvolvimento eco- cessivo agir desse modo, os beneficios esperados evaporam-se".
nomico de urn bairro ou de uma regiao. Assim, Barbagli apu- A pergunta que Gambetta formulou originalmente - foram
rou que, na Italia como urn todo, a renda media per capita esta empurradas ou saltaram? -leva-o a ultrapassar os limites usuais
positivamente correlacionada com a taxa de freqiiencia escolar da sociologia estrutural. Ele esta apto a analisar seu material
na faixa etaria de 11-15 anos. Por outro lado, a taxa de perma- empirico de maneira a mudar de urna perspectiva institucional
nencia, apos a idade em que e legalmente passivel deixar a es- para 0 estudo da conduta intencional. Seus sujeitos de pesquisa
cola, esm correlacionada negativamente com a renda per capi- sao mais do que meros "informantes sociologicos". Em vez de
ta e com outras medidas de desenvolvimento economico regio- discutir diretamente a analise que Gambetta fez de seus resul-
nal. Barbagli conclui que, em conseqiiencia das maiores difi- tados, seguirei, entretanto, linhas de pensamento desenvolvi-
culdades em encontrar emprego, os que vivem nas provincias das num capitulo anterior. Permito-me repetir 0 que disse pre-
mais pobres tendem a permanecer por mais tempo na escola". viamente acerca das coer90es sobre a a9ao. Em primeiro lugar,
Entretanto, como a teoria do estacionamento e "pouco con- as coen;5es DaD "impelem" ninguem a fazer coisa nenhwna, se
sistente" em termos motivacionais, ela nao nos permite consi- ele ou ela nao tiver ja sido "estimulado". Por outras palavras,
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364 A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE
lI A TEORIA DA ESTRUTURA9A-O 365

wna descri,ao da conduta deliberada esta subentendida meSmo sancionadores mais sutis tambem estejam envolvidos. Estudos
quando as coer,oes que limitam os cursos de a,ao sao muito como 0 de Willis tornam bastante 6bvio que wna variedade de
fortes. Em segundo lugar, as coe[\'oes sao de varios tipos. Nes- tais mecanismos existe igualmente no ambiente escolar.
se caso, e importante distinguir entre a coer,ao que deriva de Passarei agora, finalmente, it primeira questao. Identificar
san,oes diferenciais e a coer,ao estrutura!. Em terceiro lugar, a coer,ao estrutural nwn contexto especifico ou tipo de con-
estudar a influencia da coer,ao estrutural em qualquer contexto texto de a,ao pede que se considerem as raz6es dos atores em re-
particular de a,ao subentende especificar aspectos relevantes la,ao it motiva,ao que esta na origem das preferencias. Quando
dos limites da cognoscitividade dos agentes. as coer,oes restringem tanto a gama de alternativas (exeqiii-
Consideremos essas questoes em ordem inversa. No que se veis) que s6 wna op,ao ou tipo de op,ao fica disponivel a wn
refere ao terceiro ponto, e evidente que boa parte do que Gam- ator, 0 pressuposto e de que este concluira nao valer a pena
betta tem a dizer relaciona-se, de fato, com a identifica,ao dos fazer outra coisa senao aquiescer. A preferencia envoIvida e a
limites da cognoscitividade dos agentes. Por exemplo, ele dedi- negativa do desejo de evitar as conseqiiencias da nao-aquies-
Ca consideravel aten,ao it especifica,ao do que pais e filhos cencia. Se 0 agente "nao poderia ter atuado de outro modo" na
provavelmente sabem a respeito dos mercados de trabalho em situa,ao, e porque existia somente uma op,ao, dadas as caren-
Suas areas locais. Isso e manifestamente importante. 0 meSmo cias desse agente. Isso nGO deve ser confundido, como tenho
pode ser dito da cognoscitividade no tocante ao milieu escolar. enfatizado sistematicamente, com 0 "nao poderia ter sido feito
Um estudo de tipo estatistico nao pode produzir material com a de outra maneira" que marca a fronteira conceptual da a,ao; e
riqueza de detalhes oferecida pela obra de Willis. Mas podem exatamente essa a confusao que os soci610gos estruturais ten-
ser feitas inferencias - e apoiadas no material de pesquisa, co- dem a fazer. Quando existe uma Unica op,ao (viavel), a cons-
mo mostra Gambetta - sobre os tipos de conhecimentos que pais ciencia de tallimita,ao, junto com as carencias, fornece a ra-
e filhos provavelmente possuem do "valor monetario" da edu- zao para a conduta do agente. E pelo fato de a coer,ao - enten-
ca,ao. dida como tal pelo ator - constituir a razao para essa conduta,
A respeito do segundo ponto, cumpre sublinhar a existen- que a elipse da sociologia estrutural e facilmente feita". As coer-
cia de varias especies de san,oes que afetam a posi,ao das ,oes tambem participam, e claro, das razoes dos atores quando
crian,as; essas san,oes podem ser facilmente distinguidas a esm envolvida wna gama mais ampla de op,oes. Uma vez
partir das fontes de coer,ao estrutura!. A escolaridade obriga- mais, temos de ser cuidadosos nesse ponto. Os modelos formais
t6ria e a idade minima em que umjovem pode deixar a escola de preferencia ou de tomada de decisao, em qualquer conjunto
sao fixadas por lei. Por vezes, pais e filhos desprezam essa obri- dado de circunstiincias, oferecem wn modo analiticamente pode-
ga,ao legal, sobretudo nas regioes da Itilia meridional, mas, roso de interpreta,ao das liga,oes entre propriedades estrutu-
para a maioria, ela fixa 0 quadro basico em cujo ambito sao to- rais, mas nao substituem as investiga,oes mais detalhadas das
mados os tipos de decisao analisados por Gambetta. As crian- razoes dos agentes que a pesquisa etnografica propicia. Con-
,as tambem estao sujeitas a san,oes informais por parte dos sidere-se, wna vez mais, a conduta dos "garotos". Urn modelo
pais e de outras figuras na escola. Como os pais tem de susten- "economico" torna indubitavelmente compreensivel a argu-
tar aqueles que, de sua progenie, permanecem na escola, dis- menta,ao deles. Vendo que a educa,ao formal tern pouco a ofe-
poem de uma forte san,ao economica para influenciar a deci- recer-lhes, no tocante a perspectivas de trabalho, eles decidem
sao se seus filhos prosseguirao ou nao em seus estudos; evi- efetivamente cortar seus prejuizos saindo para trabalhar 0 mais
dentemente, e provivel que wna serie de outros mecanismos depressa possive!. Entretanto, essa representa,ao do comporta-
 366 A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 367

mento deles nada transmite das sutilezas ou da complexidade empirico, preocupando-me unicamente com a que designei an-
que 0 estuOO de Willis revela. tes como "contradi9ao estrutural". As mais importantes e inte-
o estudo de Gambetta diz respeito a influencia da coer9ao ressantes das tentativas recentes de dar ao conceito de contradi-
estrutural dentro da situa9ao imediata de a9ao encarada pelos 9ao urn conteudo empirico definido sao encontradas nas obras
que deixam a escola. Esse enfoque restrito justifica-se, sem de autores influenciados pela teoria dos jogos, que adotam um
duvida, dada a natureza inevitavelmente confinada de qualquer ponto de vista explicitamente ligado ao individualismo metodo-
pesquisa individual. Mas e obvio que a influencia de coer90es 16gico22 • Urn desses autores, Boudon, escreveu extensamente
estruturais sobre 0 curso da a9ao em questao poderia potencial- sobre educa9ao e politica estatal. A obra de um outro, Elster, e
mente ser examinada em muito maior profundidade. Assim, uma das principais fontes em que Gambetta se apoiou no estu-
pOder-se-ia investigar como os motivos e processos de racioci- do que acabamos de analisar.
nio dos atores foram influenciados ou modelados por fatores Boudon e Elster associam a contradi9ao as conseqiiencias
em sua educa9ao e por experiencias previas, e como esses fato- impremeditadas da a9ao, uma subclasse dos "efeitos perversos"
res, por sua vez, [oram influenciados por caracteristicas institu- que podem resultar dos atos intencionais de uma pluralidade de
cionais gerais da sociedade mais ampla. Entretanto, essas "for- individuos. Elster distingue duas variedades de contradi9ao as-
9as sociais" poderiam, em principio, ser estudadas exatamente sim entendidas: a que envolve "contrafinalidade" e a que en-
do mesmo modo que os fenamenos diretamente envolvidos na volve "subotimalidade"". A primeira dessas variedades esti
pesquisa de Gambetta. Por outras palavras, as coer90es estrutu- associada ao que Elster chama de falicia da composi9ao - 0
rais operam sempre atraves dos motivos e razoes dos agentes, ponto de vista erraneo de que 0 que e possivel para uma pessoa,
estabelecendo (com freqiiencia de maneira difusa e tortuosa) num dado conjunto de circunstancias, e necessaria e simulta-
condi90es e conseqiiencias que afetam 0P90eS abertas a outros, neamente possivet para toda e qualquer outra pessoa nessas cir-
eo que eles querem das 0P90es que tern, sejam elas quais forem. cunstiincias. Por exemplo, 0 fato de que qualquer um pode de-
positar seu dinheiro num banco e ganhar juros sobre ele nao
implica que todo mundo pode fazer 0 mesmo.
Contradi93o e 0 estudo empirieo do eontlito A tese de Elster e de que muitos exemplos da falicia de
composi9ao podem ser redescritos como envolvendo rela90es
o aprofundamento dos topicos relacionados da educa9ao sociais contradit6rias. As conseqiiencias contradit6rias resul-
e do Estado proporciona urn fio material de continuidade quan- tam quando todo individuo num agregado de individuos atua
do se passa a considerar uma gama adicional de quest6es rele- de urn modo que, embora produza 0 efeito pretendido, se reali-
vantes para 0 trabalho empirico. Sugeri, num capitulo anterior, zado isoladamente, cria um efeito perverso, se feito por todos.
que 0 conceito de contradi930 pode ser utilmente ligado a no- Se todo 0 publico numa sala de conferencias se poe de pe a fim
90es de propriedades estruturais e coer930 estrutural. Minhas de poder ver melhor 0 conferencista, ninguem, de fato, 0 veri.
considera90es nesse capitulo foram relativamente breves e al- Se cada agricultor, numa dada irea, tenta adquirir mais terra
tamente abstratas. Afirmei que a n09ao de contradi930 pode derrubando irvores, resultando em erosao do solo devido ao des-
reeeber urn sentido claro em teoria social, e que ela merece dis- matamento, todos acabarao com menos terra do que no come-
tinguir-se da de conflito, na medida em que este ultimo termo 90. Esses sao resultados que nao so ninguem pretende como
denota alguma forma de antagonismo ativo entre atores e cole- tambem vao contra 0 que todos querem nessas situa90es; nao
tividades. rentarei agora defender essa afirma9ao num contexto obstante, etes derivam de uma conduta cujo proposito e satisfa-
 368 A CONSTITUIr;AO DA SOCIEDADE A TEOR/A DA ESTRUTURAr;AO 369

zer necessidades, que poderia satisfaze-las para individuos, nao mente superqualificadas. Em parte como rea,ao as frustra,ces
fosse 0 fato de tomar-se generalizada. Considere-se a discussao assim incorridas, foi criado em muitos paises 0 que passou a
de Marx da tendencia de queda da taxa de lucro em economias ser designado como educa,ao superior de "cicio curto" - isto
24
capitalistas • Em circunstancias em que a economia esta cres- e, cursos reduzidos oferecendo op,ces mais flexiveis a curto
cendo a um tal ritrno que absorve as fontes disponiveis de mao- prazo. Entretanto, muito poucos optaram por inscrever-se em
de-obra, os sahirios tenderao a subir na propor,ao em que os tais cursos. Por que? Boudon sugere que 0 fracasso da educa-
empregadores experimentam escassez de for,a de trabalho ade- ,ao de cicIo curto pode ser entendido em termos analogos aos
quada. Para contrabalan,ar isso, os empregadores introduzem do dilema do prisioneiro - um resultado subotimal de decisces
inova,ces tecnicas para economizar custos de fabrica,ao. Em- racionais pela popula,ao estudantil no conbecimento de seu
bora um industrial possa derivar individualmente maior lucra- provavel resultado. A pesquisa mostra que pessoas que escolhe-
tividade de Uma tal resposta, 0 montante global de mais-valia e, ram cursos de cicio curto tem, de fato, chances de obter empre-
portanto, de lucros na economia declina, uma vez que aumen- gos nao inferiores aos daqueles que seguiram cursos mais
tou a razao de capital constante para capital variavel. Uma vez extensos e mais tradicionais. A maioria dos estudantes tamb"m
que todos, num determinado setor da economia, tenham intro- parece estar consciente desse fato. Assim, poder-se-ia supor
duzido a mesma inova,ao tecnol6gica, eles podem ficar todos intuitivamente - como supos 0 govemo que os instituiu - que
numa situa,ao pior do que estavarn antes. uma elevada propor,ao de estudantes escolheria os cursos de
o segundo tipo de rela,ao contradit6ria, a subotimalidade, cicio curto. Por muito obvio que isso possa parecer, assinala
e definido em termos da teoria dos jogos. E quando todos os Boudon, essa suposi,ao seria incorreta. As escolhas que os es-
participantes numa situa,ao te6rica de jogo optam por uma es- tudantes fazem dependem - tal como 0 dilema do prisioneiro -
trategia de solu,ao, conhecedores de que os outros participan- do fato de que cada individuo esta escolhendo no conhecimen-
tes tambem 0 farao, e de que todos poderiam ter obtido tanto, e to de que outros estao fazendo suas escolhas a partir do mesmo
ate mais, se uma outra estrategia tivesse sido adotada. Em vez leque de altemativas. Os estudantes, na realidade, maximizarn
do caso da contrafinalidade, os envolvidos estao cientes dos suas chances escolhendo a educa,ao a longo prazo, mesmo
resultados aos quais 0 comportamento deles pode levar em sabendo que outros provavelmente pensam do mesmo modo e
varias conjun,ces com a a,ao de outros. Suponhamos que agri- muito embora alguns individuos pudessem luerar mais se esco-
cultores que produzem uma determinada safra poderao obter lhessem a op,ao a curto prazo".
lucros mais elevados se formarem um cartel. Se isso for feito, As formula,ces de Elster e Boudon sao atraentes, pois
sera ainda mais lucrativo para 0 agricultor individual desprezar permitem que um significado claro seja dado a contradi,ao
o acordo de cartel, a fim de ganbar a custa dele sem the estar (embora 0 pr6prio Boudon nao use 0 termo) e indicam como
vinculado. Como todos os agricultores estao cientes de que poderia ser concedido um contelido empirico a no,ao. As con-
seria esse 0 resultado, nenbum cartel e estabelecido". Boudon sequencias de atos intencionais sao contradit6rias quando elas
aplicou uma interpreta,ao algo comparavel a pesquisa sobre sao de tal modo perversas que a pr6pria atividade de procurar
educa,ao e mobilidade social. Na decada de 1960, a educa,ao atingir um objetivo diminui a possibilidade de 0 alcan,ar. As
superior expandiu-se em virtualmente todos os paises indus- dificuldades com essa concep,ao de contradi,ao, entretanto,
trializados. Como os niveis educacionais subiram, cada vez mais sao bastante 6bvias. Ela esta intimamente associada ao uso de
pessoas aceitaram empregos para os quais, de acordo com os modelos extraidos da teoria dos jogos. Ora, nao M dlivida de
requisitos formais do trabalho envolvido, elas estavam notavel- que os modelos te6ricos de jogos podem ser muito liteis na pes-
 370 A CONSTfTUf(;JO DA SOCfEDADE A TEORJA DA ESTRUTURA9JO 371

quisa empirica, com rela9ao a sugestao de problemas a serem das premissas do individualismo metodol6gico. Ou seja, quero
investigados e ao modo como os resultados das pesquisas ligar a n09ao de modo substantivo aos tipos gerais de totalida-
poderao ser interpretados. A obra de Boudon na area da socio- de social que distingui antes, de tal forma que, embora possa
logia da educa9ao e um caso ilustrativo. Mas 0 ambito de apli- haver numerosos exemplos de contradi9ao secundiria, eles sejam
ca9ao da teoria dos jogos as ciencias sociais parece, nao obs- derivativos dos modos contraditarios dominantes em que as
tante, limitado. Embora os modelos tearicos de jogos possam sociedades estao estruturadas. Entretanto, conforme as defini,
ser elegantes e satisfatarios quando enunciados em termos abs- as contradi90es estruturais primarias e secundirias ainda pre-
tratos ou matem:iticos, sua rela9ao com a conduta real e, com servam 0 mesmo nucleo de significado que Elster da ao termo;
freqiiencia, muito tenue. as condi90es de reprodu9ao do sistema dependem de proprie-
As aplica90es empiricas de modelos tearicos de jogos sao dades estruturais que atuam para negar os mesmos principios
as mais faceis de defender quando se encontram certas circuns- em que se baseiam.
tancias particulares; quando tern de ser tomadas "decis5es" ca- Como exemplo de algumas reflexoes pertinentes sobre a
tegaricas; quando as consciencias altemativas envolvidas sao contradi9ao primaria de Estados capitalistas, referir-me-ei a
muito facilmente especificadas; e quando as decisoes em ques- alguns dos escritos de Offe sobre 0 assunto". Eles sao 16gica e
tao sao tomadas separadamente por um agregado de individuos substantivamente compativeis - pelo menos, em alguns de seus
nao em comunicac;ao mutua direta. Tais circunstancias sao des- principais aspectos - com as ideias que apresentei neste livro, e
cobertas com certa freqiiencia nas sociedades modemas, mas geraram uma consideravel soma de esclarecedores trabalhos
existem numerosos contextos da vida social que nao sao desse empiricos. A forma institucional do Estado capitalista e descri-
genero. Se a liga9ao com a teoria dos jogos e uma fonte de li- ta em fun9ao dos seguintes tra90s (entre outros):
mita9ao para esse tipo de abordagem do conceito de contradi-
9ao, uma outra e a vincula9ao com 0 individualismo metodola- 1) "Ao pader politico e vedado organizar a prodw;ao de acordo com
gico, explicitamente adotado por Elster, em particular. A conexao seus pr6prios criterios politicos." Em outras palavras, amplos seto-
pode ser logicamente contigente, mas nao e dificil ver por que res cia organiza~ao economica sao coordenados, nao pelo governo,
as duas tendem a juntar-se. A contradi9ao e situada por Elster mas por atividades empreendidas no ambito das esferas "privadas"
na disjun9ao entre atos individuais, empreendidos separadamen- cia iniciativa econ6mica. A base institucional dessas esferas cleve
te, e suas multiplas conseqiiencias. Esta amplamente limitada ser encontrada na propriedade privada e na "posse" secular da for-
ao que chamei de analise de conduta estrategica. Nesse ponto de ,a de trabalho.
vista, nao ha forma de entender a contradi9ao como implicada 2) "0 poder politico depende indiretamente - atraves dos mecanis-
mos de tributac;ao e dependencia do mercado de capitais - do volu-
nas condi90es estruturais da reprodu9ao do sistema.
me de acumulayao privada." Quer dizer, 0 Estado e financiado
Eesse entendimento que eu defendo como tendo uma im- pela tributac;ao derivada de processos de desenvolvimento econo-
portancia para a teoria social maior do que a sugerida por Elster mica que as agencias estatais nao controlam diretamente.
e Boudon, e como oferecendo maior margem para 0 trabalho 3) "Como 0 Estado depende de urn processo de acumula<;ao cuja or-
empirico. Nao quero questionar a importancia das ideias des- ganiza<;ao estl! fora do seu alcance, todo detentor do poder estatal
ses autores, mas, antes, complementa-Ias. Pode-se supor que os esta basicamente interessado em promover aquelas condi<;oes mais
resultados contradit6rios do tipo que eles examinam estejam, propicias aacumulac;ao."::H
com frequencia, sistematicamente ligados ao que denominei
contradi9ao estrutural. Desejo entender 0 conceito de contradi- o terceiro ponto e um importante acrescimo aos dois pri-
9a O de um modo menos abstrato do que eles, alem de 0 separar meiros, porquanto serve para evitar a implica9ao de um funcio-
 372 A CONSTITUH:;AO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 373

nalismo ingenuo. Deixou claro que os fen6menos identifica- geral para a comunidade, em vez de urn conjunto de servi<;os
dos nos dois primeiros pontos sao conhecidos dos que estao em comercialmente viaveis. Como os individuos das classes de
agencias do Estado, os quais atuam a luz desse conhecimento. baixa renda tern, por certo, opinioes contririas, a politica do go-
Por que 0 Estado capitalista, assim caracterizado, e urna verno poderi vacilar entre a desestatiza<;ao e a reestatiza<;ao de
forma social contradit6ria? Porque as pr6prias condi,oes que tais servi,os quando sucessivos partidos, representando distin-
possibilitam a existencia do Estado poem em a,ao (e depen- tos interesses de classe, chegam ao poder".
dem de) mecanismos que se opoem ao poder do Estado. A "apro- A analise de Offe levanta de maneira incisiva e arguta 0 pro-
pria,ao privada", para usar a terminologia tradicional, pede blema da rela,ao entre contradi,ao e conflito, mas, antes de
"produ,ao socializada" ao mesmo tempo que a nega. Uma ou- aborda-lo diretamente, quero ainda aprofundar 0 tema da contra-
tra forma de expressar isso - desenvolvida de maneira analiti- di,ao secundiria. As contradi,5es primarias podem estar ligadas
camente poderosa por Offe - consiste em dizer que, embora 0 nurna variedade de modos mais ou menos diretos as secundarias.
Estado dependa da forma mercadoria, ele tamhem depende Algumas podem ser de urn carMer muito geral, mas outras po-
simultaneamente da nega,ao da forma mercadoria. A mais di- dem estar muito mais contextualizadas. Consideremos os se-
reta expressao de mercadorifica,ao e a compra e venda de
valores; quando os valores deixam de ser tratados como per-
[ guintes exemplos, escolhidos ao acaso na literatura sociol6gica.
Sao exemplos de resultados perversos, mas penso poder ser ra-
cionalmente afirmado que eles expressam contradi<;5es.
mutaveis em termos moneta-riDs, eles perdem seu carMer mer-
cadorificado. A natureza contradit6ria do Estado capitalista ex-
pressa-se nos avan,os e recuos entre mercadorifica,ao, desmer- 1) Urn estudo dos idosos e da provisao de beneficios suplementares.
cadorifica<;ao e remercadorifica,ao. Tomem-se como exemplos Nos Estados Unidos, os beneficios de urn segura suplementar fo-
o suprimento de servi<;os de assistencia a saude e de transpor- ram introduzidos a fim de melhorar as condi<;6es de vida de idosos
com baixa renda. Mas essa medida teve 0 efeito de elevar 0 nivel de
tes publicos. 0 estabelecimento da medicina socializada signi-
renda dessas pessoas de tal modo que passaram a receber alguns
fica desmercadorificar importantes aspectos da assistencia a daIares acima da faixa que as colDea como dependentes de assis-
saUde e organiza-los numa base diversa daquela em que existe tencia medica estataL Por conseguinte, essa assistencia foi-Ihes
a questao de se os individuos que necessitam de tratamento negada e, assim, fiuitos ticaram em situa~ao pior do que antes.
podem pagar por ele ou nao. Entretanto, aqueles que menos 2) Urn estudo da policia. Na cidade de Nova York, a tim de reduzir 0
precisam da medicina socializada - os segmentos mais afluen- custo de horas-extras trabalhadas por policiais no quadro de pes-
tes da popula<;ao, que tendem a optar pela medicina privada, a soal existente, patrulheiros adicionais foram colocados nas ruas.
despeito dos servi,os medicos publicos - tern de contribuir de Entretanto, a principal fonte de horas-extras para os policiais e 0
forma desproporcional para seu financiamento, atraves da tri- processamento das deten90es. 0 numero crescente de policiais nas
buta,ao progressiva. Portanto, e provavel que exer<;am pressao ruas resultou na realiza9ao de mais pris5es e no concomitante re-
crudescimento do trabalho burocnitico nas delegacias, exacerban-
no sentido de repor alguns servi<;os de medicina publica nurna
do assim a situa9ao que a nova politica supusera remediar.
base comercial. 0 mesmo ocorre com 0 transporte publico. Os
3) Vma analise dos dismrbios urbanos em Detroit. Urn esfor90 em
individuos que pagam mais imposto, aqueles que mais contri- grande escala foi realizado, no final da decada de 1960, para tentar
buem para 0 financiamento do transporte publico, sao os que impedir uma repetiy3.o dos disrurbios nos guetos de Detroit, me-
fazem seus deslocamentos e viagens em carros particulares. diante 0 fomecimento de beneficios de bem-estar social e oportu-
Por conseguinte, 0 mais provavel e que ofere<;am resistencia a nidades de emprego para os residentes naquelas areas desfavore-
qualquer politica que trate 0 transporte publico como urn bern cidas. Entretanto, grande nu.mero de pessoas pobres fcram atraidas
 374 ·
A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE

para tais areas, vindas de fora, a tim de se beneficiarem dos pro-

1
I A TEORIA DA ESTRUTURA9AO
. 375

mais genericas seriio encontradas na associa,iio entre contradi,iio

gramas oferecidos. Muitas delas [oram incapazes de encontrar em- e interesses coletivos. 0 capitalismo e uma sociedade de clas-
prego na cidade e assim engrossaram ainda mais as fileiras dos de- ses, e a contradi,iio entre "apropria,iio privada" e "produ,iio so-
sernpregados nos guetos, Outras foram ocupar empregos que, em
cializada" esti encerrada em divisoes de classes que, por sua
outras circunsmncias, poderiam ter sido dados a residentes croni-
camente desempregados nessas areas. As condi<;6es diagnostica- vez, expressam interesses opostos. A articula,iio entre contra-
das como favoraveis a eclosao de distlirbios foram desse modo di,oes e interesses pode variar, e claro. Mas e racional afirmar
aumentadas, em vez de reduzidas lO • que quanta maior for a convergencia de contradi,oes, primi-
rias e secundirias, mais haveri urn alinbamento preponderante
Tais exemplos servem para deixar clara a provivelliga,iio de divisoes de interesses e mais provivel sera 0 desenvolvimen-
entre a contradi,iio estrutural, contradi,iio no sentido de Elster to de conflitos abertos ao tango da "linba de fratura" dessas
e Boudon, e a ocorrencia de conflito social. Em poucas palavras, contradi,oes. Podemos sugerir a existencia de tres conjuntos
quero apresentar a seguinte proposta: e provivel que a contra- de circunstiincias particularmente importantes para examinar a
di,iio esteja diretamente ligada ao conflito quando se seguem rela,iio entre contradi,iio e conflito: a opacidade da a,iio, a dis-
conseqiiencias perversas ou quando os envolvidos consideram persiio de contradifoes e a preponderiincia de repressiio direta".
provivel que isso ocorra. Niio estou sugerindo que as contradi- Por "opacidade" de a,iio entendo, nos termos de Willis, 0 grau
,oes geram sempre conseqiiencias perversas OU que todas as de penetra,iio que os atores tern das qualidades contraditorias
conseqiiencias perversas sao contradit6rias. Mas a contradi<;ao dos sistemas sociais em que eles estiio envolvidos. 0 discerni-
e uma especie de perversidade estrutural e e provivel que pro- mento da natureza das contradi,oes pode iniciar uma a,iio diri-
duza constantemente conseqiiencias perversas nos modos em gida para a resolu,iio ou a supera,iio das mesmas. Mas seria
que esti exposta na conduta de atores situados. Os resultados urn argumento especioso ligar tal discernimento somente a
perversos sao suscetiveis de gerar ressentimento e, portanto, mudan,a social. A contradi,iio e uma fonte de dinamismo, mas
uma mobiliza,iio pelo menos potencial para a luta, precisa- uma compreensiio disso por parte de atores leigos pode promo-
mente por causa de seus "efeitos de ricochete". Quer dizer, as ver tentativas tanto para estabilizar urn determinado estado de
coisas estao piores do que estavam antes, em circunstancias coisas como para transformi-lo. A importiincia desse ponto e
nas quais todos, ou a maioria dos envolvidos, podiam esperar substantivamente muito consideravel com rela,iio aos prog-
que elas melhorassem. 0 estudo das conseqiiencias perversas de nosticos de Marx sobre a suposta transi,iio do capitalismo para
uma especie contraditoria e, pois, terreno fecundo para 0 exa- o socialismo. Marx sustentou que quando os membros da classe
me das origens dos conflitos. Mas podemos ver que e muito trabalhadora se aperceberem crescentemente da natureza con-
limitador identificar a contradi,iio com tais conseqiiencias per traditoria da produ,iio capitalista, eles se mobilizariio para mu-
se; pois, por urn lado, a contradi,iio estrutural precisa niio acar- m-la. Ele niio parece ter dado muito peso apossibilidade de gru-
retar conseqiH~ncias perversas e, por outro, estas ultimas nao pos dominantes na sociedade adquirirem urna compreensiio do
sao as linicas circunstancias associadas acontradi~ao que podem sistema suficientemente refinada para estabilizi-lo. 0 papel as-
estimular 0 conflito. cendente do Estado pode ser visto precisamente nesses termos.
Pode-se dizer que as conseqiiencias perversas siio resulta- o Estado niio e apenas colhido nos avan,os e recuos da contra-
dos contingentes que podem ser provocados em circunstancias di,iio primiria; as agencias estatais podem procurar monitorar
de contradi,iio estrutural. Condi,oes estimulantes de conflito as condi,oes de reprodu,iio do sistema de maneira tal que se
 376 A CONSTITUlr;:A-O DA SOCIEDADE
T A TEORIA DA ESTRUTURAr;:AO 377
minimizem conflitos que, em Qutras circunstancias, poderiam Estabilidade e mudan,a institucional
amea,ar eclodir.
o grau de fusao ou dispersao de contradi,oes e suscetivel Examinaremos finalmente uma pesquisa que, ao contrario
de variar de acordo corn dois principais conjuntos de condi,oes. das outras ja discutidas, foi diretarnente influenciada, ern certa
Urn e 0 do "desenvolvimento desigual", 0 outro e 0 da regiona- medida, pela teoria da estrutura,ao. Trata-se da recente investiga-
1iza,ao. Nao e preciso dizer muita coisa acerca do conceito de ,ao por Ingham do papel da City na Gra-Bretanba durante os ulli-
desenvolvimento desigual ou sobre suas aplica,oes empiricas. mos duzentos anos aproximadarnente;;. 0 problema empirico que
Ele esta geralmente associado ao pensamento marxista e, ern o autor se dispos a estudar e como a City, 0 centro financeiro ba-
particular, aos escritos de Trotsky e Lenin, mas sua elucida,ao seado ern Londres, manteve sua preeminencia sobre 0 capital
e aplica,ao nao se limitaram, de modo nenbum, ao marxismo. industrial britiinico por um periodo tao extenso. A preocupa,ao
Entretanto, a no,ao possui uma aplica,ao mais ampla do que se mais geral do estudo e corn a natureza do Estado moderno.
tern ordinariamente reconhecido. Ela so e pensada habitual- As organiza,oes que formam coletivamente a City, segun-
mente ern rela,ao a processos de mudan,a ern grande escala; do Ingham, dedicam-se principalmente a atividades que podem
nao existe r02ao para que nao possa ser tambem util ern contex- ser descritas como "comerciais". Entre outras caisas, essas ati-
tos espa,o-temporais mais restritos. A ideia de regionaliza,ao vidades envolvem 0 financiamento do comercio, 0 seguro de
e certamente pertinente a este caso. Uma determinada "expan- mercadorias e transportes, e transa,oes de cambio corn moeda
sao" regional, ern conjunto corn taxas diferenciais de mudan,a, estrangeira. Ocupam-se nao so das rela,oes entre a Gra-Bre-
pode servir para produzir um feixe de contradi,oes e tambem, tanha e outros Estados, mas tambem das ramifica,oes do em-
provavelmente, de conseqiiencias perversas. :E exatamente essa preendimento capitalista numa escala global. Extremamente
a especie de situa,ao, por exemplo, que Lenin diagnosticou como significativo a esse respeito e 0 papel que a City desempenbou
a referente il Russia, apos 0 inicio do seculo XX. Entretanto, na administra,ao da moeda nacional como "moeda mundial",
outras formas de regionaliza,ao podem produzir uma difusao urn instrurnento de cambio internacionalmente valido. Ingham
ou segrnenta,ao de contradi,oes. Quando 0 caso e esse, 0 con- critica as teorias que tratam esse centro financeiro como com-
flito que ocorre e suscetivel de ser fragrnentado e retalhado, de prometido corn 0 "capital financeiro". As atividades da City
modo que os desfechos de algumas lutas anulem os de outras. sao certamente financeiras, no sentido de que estao vinculadas
Por repressao direta entendo 0 uso da for,a ou a amea,a de seu il circula,ao de capital, mas ela esta primordialmente interessa-
uso para inibir 0 surgimento de luta ativa. 0 uso da for,a pode da na corretagem sob todas as formas, na realiza,ao de lucros
ser normalmente considerado uma das expressoes da ocorren- atraves do fornecimento de servi,os de intermedia,ao entre os
cia de conflito, mas a amea,a de seu uso, ou certas exibi,oes diretamente envolvidos no uso produtivo do capital.
Micas de for,a, tambem podem servir igualmente bern para Ingham mostra que, para se entender adequadamente a so-
impedir que as fontes de dissensao se manifestem como luta brevivencia do poder da City desde 0 final do seculo XVIII, e
aberta. Quem se sentir inclinado a argumentar que 0 controle necessario rejeitar 0 estilo endogeno de teoriza,ao, que domi-
dos meios de violencia nao pode ser usado para amortecer con- nou a literatura antecedente, e perceber como destacadas orga-
flitos de tipo profundamente arraigado deve refletir sobre casos niza,oes dentro desse centro financeiro reagiram a eventos po-
como 0 da Africa do SuI". liticos contingentes. Tanto Marx quanta marxistas recentes, co-
mo Hilferding, procuraram explicar (ou justificar de maneira
aceitavel) 0 papel da City ern termos, principalmente, de con-
 378 . A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE
,
I A TEORJA DA ESTRUTURA9AO 379
cep,oes endogenas do desenvolvimento capitalista. Marx reco- sa,oes. 0 monopolio virtual que ela pOde obter sobre certos tipos
nheceu, e comentou, as qualidades distintivas da City na vida de transa,ao comercial, somado a introdu,ao do padrao ouro-
economica britiinica do seculo XIX, e analisou as origens des- esterlino, dependeu de urna serie de condi,oes politicas. Estas
sas qualidades em fun,ao de algumas das caracteristicas da tern de ser discriminadas das fontes de supremacia industrial
economia britiinica quando se deslocou do dominio do capital da Gra-Bretanha. A importiincia da City, e do esterlino, perdu-
comercial para 0 do capital industrial. Mas 0 desenvolvimento rou muito alem do momenta no qual a Grii-Bretanha foi a prin-
do capitalismo industrial, segundo sua opiniao, nao tardaria a cipal potencia industrial do mundo. No final da Primeira Guer-
desalojar 0 capital comercial e bancirio dessa posi,ao central. ra Mundial, os Estados Unidos tinham passado a ser a mais
Com 0 avan,o continuo da produ,ao industrial, 0 capital pro- forte economia do mundo, mas, ao contcirio das expectativas de
dutivo passaria a predominar economica e politicamente sobre muitos nas decadas de 1920 e 1930, Nova York nao suplantou
a "bancocracia" mais tradicionalmente estabelecida. A analise Londres como a principal camara de compensa,ao do mundo.
de Marx fornece, portanto, poucas indica,oes que permitam ex- De acordo com a exposi,ao de Ingham, esses fenomenos
plicar como aconteceu de 0 poder economico e politico da City devem ser entendidos nos seguintes termos. No inlcio do secu-
ter se mantido por tao longo tempo. 0 ponto de vista de Hil- 10 XIX, foi introduzida na Gra-Bretanha uma serie de reformas
ferding, elaborado em data bern mais recente, e igualmente im- fiscais. A inten,ao dos reformadores era, principalmente, ten-
perfeito. Segundo Hilferding, a forma,ao de "capital financei- tar fazer face as antigas dividas que 0 Estado tinha acurnulado,
ro" - a fusao dos negocios bancarios com a industria em gran- exacerbadas pelas guerras napoleonicas. 0 resultado, porem, foi
de escala - ocorreu nurn ritmo mais pausado na Gra-Bretanha favorecer uma concentra,ao de juros pecuniirios, nao partilha-
do que em outros paises. Mas 0 mesmo processo acabaria ocor- dos com os empresarios industriais, nas institui,oes da City. A
rendo ai, tal como acontecera em outras sociedades. A suprema- riqueza crescente desse centro financeiro possibilitou a sobre-
cia britiinica na area da manufatura no seculo XIX permitiu que vivencia de certos setores da aristocracia, quando estes depara-
o pais ficasse temporariamente para tras; entretanto, a compe- ram a decrescente importancia da economia agraria que era sua
ti,ao internacional garantiria que 0 mesmo padrao viria final- base de poder. Como parte de urn "acordo de cavalheiros", os
mente a manifestar-se34 . comerciantes e banqueiros da City adquiriram, por sua vez, as
Mas esse padrao nao surgiu. Por que nao? A tese de Ingham exterioridades da aristocracia. Nao foi apenas urn tipo definido
e a de que a sociedade britanica moderna foi caracterizada nao de poder de classe que foi incentivado pelos processos que afe-
s6 como a primeira economia industrial, mas tambem como taram 0 desenvolvimento da City no seculo XIX; esses mesmos
urn centro de transa,oes comerciais em escala mundial. As mais processos levaram a perpetua,ao e, na verdade, ao fortaleci-
importantes caracteristicas da City, argumenta Ingham, tern de mento do capitalismo comercial "pre-industrial". A City estava
ser entendidas em rela,ao a natureza das na,oes-Estados. Os fisicamente separada do norte industrial- urn formidavel exem-
Estados tern suas proprias moedas, mas nao podem facilmente plo de regionaliza,ao! - permanecendo economica e politica-
controlar seu fluxo fora de seus proprios territorios; alem disso, mente distinta dos centros de capitalismo industrial. Tornou-se
os valores e a estabilidade de diferentes moedas variam muito. fortemente centralizada sob 0 controle do Banco da Inglaterra,
A City tornou-se desde cedo - em parte, mas nao totalmente, e 0 sistema bancario orientou-se, em primeiro lugar e acima de
devido a for,a industrial da Gra-Bretanha no seculo XIX - urn tudo, para a manuten,iio do papel estavel do esterlino como a
centro para uma forma aceita de "moeda mundial" e urna ca- forma "confiavel" de moeda mundiallS • Urn importante aspec-
mara internacional de compensa,ao para a liquida,ao de tran- to adicional desse processo foi a politica fiscal do Estado com
-
1
380 A CONSTITU[(;AO DA SOClEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO 381

vistas a assegurar a validade formal do esterlino, que a atividade A pesquisa distingue com exito urna outra tendencia asso-
estreitamente economica da City nao poderia, por si so, garantir. ciada a modelos endogenos. E 0 pressuposto de que a socieda-
o importante na aprecia,ao de Ingham do desenvolvimen- de mais avan,ada em rela,ao a quaisquer caracteristicas sociais
to economico e politico britanico, nesse contexto, de qualquer que estejam sendo estudadas pode ser tratada como exemplar
modo, nao .0 tanto saber se ela .0 valida ou nao, mas bern mais 0 para fins de pesquisa;o. Assim, no seculo XIX, a Gra-Bretanha
ponto de vista teorico que expressa. Ao criticar os modelos en-l foi considerada por Marx, entre muitos outros, 0 espelho no qual
dogenos, a analise de Ingham evita 0 que poderia ser visto outras sociedades podiam ver urna imagem de seu proprio futu-
como 0 determinismo desenvolvimentista que esta incrustrado ro; como 0 pais industrialmente mais avan,ado, a Gra-Bretanha
em muitas teorias sobre sociedades modernas. Para mim, essa prenunciou desenvolvimentos que outros paises seriam for,a-
.0 urna forma de pensar a mudan,a social que supoe que, nurn dos a acompanhar. Muito compreensivelmente, poucos a con-
determinado tipo de sociedade, existe somente "urn caminho siderariam desse modo nestas decadas finais do seculo xx...
para a frente" que toda sociedade individual deve seguir, em Mas 0 estilo de pensamento que esse ponto de vista representa
algum ponto, se ela for desse tipo. Assim, 0 "capitalismo indus- ten! desaparecido simultaneamente com a retirada da Gra-Bre-
trial", como seria licito supor, tern certos padroes genericos de tanha para a obscuridade economica? Nao, em absoluto. Hoje
desenvolvimento que sao repetidos em todas as sociedades que em dia, sao os Estados Unidos, como a sociedade "economica-
possam ser assim caracterizadas. Se algumas nao exibem tais mente mais avan,ada", que preenchem urn papel comparavel
padroes, deve ser porque estao atrasadas; seu desenvolvimento na teoria social e na pesquisa - mesmo que raras vezes de modo
foi, por algurna razao, retardado. Esse pensamento tambem en- tao inequivoco quanta na versao de Parsons do evolucionismo.
valve, com freqiiencia, uma certa versao do funcionalismo. Se Ora, nao nego que possa ser util, para alguns fins, classificar as
determinados processos de desenvolvimento sao "necessarios" sociedades de acordo com seu nivel de desenvolvimento relati-
a uma sociedade, ou a urn tipo de sociedade, .0 porque sao fun- vo a criterios de urna ou outra especie. Tambem .0 legitimo e
cionalmente requeridos por sua ordem institucional. As neces- necessario tentar especificar 0 que .0 generico para a ordem ins-
sidades funcionais implicitas "explicam" por que urn certo ca- titucional de diferentes sociedades. Mas a "pesquisa compara-
minho de desenvolvimento "deve" ser seguido. Curnpre enfati- tiva" deve ser 0 que 0 termo diz. Ou seja, temos de reconhecer
zar, uma vez mais, que 0 "deve" so ejustificado, neste casa, se que os processos "tipicos" de desenvolvimento so podem ser
entendido num contexte contrafatual. Assim, poder-se-ia argu- avaliados por compara,ao direta entre diferentes sociedades,
mentar que 0 que "devia" ou "tinha de" acontecer na Gra-Bre- nao pela suposi,ao de que qualquer sociedade pode ser tratada
tanha, no inleio do seculo XX, era 0 abandono do papel comer- como modele de urn processo de desenvolvimento endogeno.
cial "obsoleto" da City em face das "necessidades" do capital A ascensao original da City a uma posi,ao de proeminen- \
industrial. Esse argumento .0, pelo menos, potencialmente elu- cia, como Ingham deixa bern claro, foi em grande parte urn ,
cidativo, se entendido em termos contrafatuais. Por outras pa- resultado imprevisto de medidas fiscais instituidas por outras I
lavras, podemos formular a pergunta: quais foram as conse- razoes. Portanto, 0 que para Marx, e para a maioria dos marxis-
qiiencias para 0 capital industrial do fato de ter side mantida a tas subseqiientes, pertencia somente as fases iniciais do desen-
posi,ao de poder da City? Mas se admitirmos que 0 "deve" pos- volvimento capitalista, corretagem comercial e usura, tomou-se
sui for,a explanatoria, 0 resultado .0 urna barreira positiva ao uma caracteristica duradoura do capitalismo britanico. Precisa-
entendimento de por que as coisas tomaram 0 rumo que toma- mente porque a posi<;ao dominante da City foi gradualmente
ram, como demonstra 0 estudo de Ingham de maneira cristalina. vinculada a seu papel como corretora para transa<;oes atraves
r
382 A CONSTlTUI(:AO DA SOCIEDADE
1
i A TEORJA DA ESTRUTURA(:AO 383

das fronteiras nacionais, 0 meSilla fen6meno nao tinha proba- seculo XX, a situa,ao mudou; os setores "industrial" e "comer-
bilidades de se repetir em outro pais. Mas se a posi,ao domi- cial" da economia britanica passaram a estar orientados para
nante que a City estabeleceu na primeira parte do seculo XIX diferentes conjuntos de envolvimentos. Foi a posi,ao da City
foi substancialmente impremeditada, a politica subsequente de como corretora monetaria mundial, por essa altura ja interna-
defesa e expansao de seu poder foi, usualmente, de urna especie cionalmente estabelecida, que a habilitou a sustentar seu poder.
muito diferente. Ap6s 0 inicio do seculo XX, a economia brita- Entretanto, por causa da mudan,a do conjunto de circunstan-
nica passou a enfrentar uma concorrencia intensificada por cias, nos pianos nacional e internacional, sua prosperidade, nes-
parte de outros paises industrializados e em vias de industriali- se periodo, talvez pressupusesse, na realidade, 0 relativo decli-
za,ao. Nessas circunstancias, a hegemonia economica da City nio da industria britanica.
viu-se seriamente amea,ada, interna e externamente. Em gran- o trabalho de Ingham demonstra que as condi,oes que
de parte, como a analise de Ingham revela, a politica promovida influenciaram a ascensao da City, e que depois sustentaram seus
por grupos tanto na area bancaria quanta no ministerio da Fa- \ privilegios, sao substancialmente politicas. E provavelmente
zenda foi ativamente dirigida - com inegavel hito ~ para a defe- \ melhor nao considerar a City uma "parte" do Estado, mas, in-
sa do papel privilegiado das organiza,oes da City. terna e externamente, seu poder economico dependeu de modo )
A pesquisa de Ingham mostra sensibilidade especial e profundo de fatores politicos. Sua hegemonia no ambito da eco-
profunda para os problemas de "tempo mundial". A City veio a nomia britanica foi estimulada pelos estreitos vinculos existen-
assurnir sua forma moderna em rela,ao a uma conjuntura defi- tes entre a "bancocracia" e os niveis superiores do governo.
nida de eventos na primeira metade do seculo XIX. Sua persis- Mas seu papel foi tambem vitalmente moldado por sua posi,ao
tencia como centro de atividades comerciais dependia da posi,ao focal nas atividades de corretagem em escala internacional. E
da Grii-Bretanha como principal potencia industrial e do envol- evidente que nenhuma concep,ao que trate 0 Estado como urn
vimento do pais numa expansao mundial das rela,oes capita- fenomeno unitario ou como uma especie de ator coletivo pode-
listas. Aqueles que levaram a cabo as reformas fiscais do co- ria abranger os materiais que Ingham analisa. Certas dimen-
me,o do seculo XIX acreditavam que os comerciantes, que ti- soes essenciais da orienta,ao politica - por exemplo, as refe-
nham conseguido apoderar-se de urna substancial parcela do rentes ao Padrao-Ouro na decada de 1930 - afetaram fortemente
comercio outrora controlado por holandeses e franceses, seriam o destino da City. Elas s6 podem ser entendidas de forma ade-
capazes de consolidar 0 poderio economico britanico com base quada em termos de adesoes e coalizoes variaveis entre agru- ~
na combina,ao da politica de Livre Comercio com a adesao ao pamentos estrategicamente situados de individuos, tendo por ij
Padrao-Ouro. Huskissen, 0 presidente da Camara de Comercio, vezes resultados que nenhurn deles pretendia.
por exemplo, levantou compara,oes com a Veneza de seculos Num plano mais geral, e possivel extrair li,oes da analise
passados. A eficacia de tais influencias s6 foi possive!, entre- do Estado moderno semelhantes as que indiquei decorrerem do
tanto, devido a alian,a de classes especifica descrita por Ingham. estudo de Estados tradicionais. 0 estudo da "forma,ao do Es-
Alem disso, as condi,oes da consolida,iio inicial do poder da tado", como procurei demonstrar, corre 0 risco de ser interpre-
City, conforme ele deixa claro, eram substancialmente diferen- tado de forma seriamente erronea se for entendido de modo
tes daquelas que permitiram a manuten,ao desse poder em pe- quase evolucionista ou em termos de no,oes endogenas. Vma
riodos subsequentes. Durante 0 seculo XIX, 0 papel desse cen- "teoria" adequada do Estado tradicional ou moderno nao pode
tro financeiro na economia mundial tern uma base econ6mica ser vista como a maioria das que correntemente predominam
direta no hito da Gra-Bretanha como produtor industrial. No na literatura. Em primeiro lugar, 0 nivel de generalidade que se
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'1
,

384 A CONSTITUfI:;JO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURAr;:JO 385

pode presumir qUe tais teorias possuam e possivelmente muito sobre as questoes investigadas. B talvez particularmente impor-
mais baixo do que seus proponentes imaginam. E claro, para tante sublinhar isso com rela,ao it obra de Willis. Poderiamos
que haja uma categoria geral como "Estado agnirio" ou "Es- facilmente retrati-la como nada menos - e nada mais - do que
tado capitalista", devem existir certas caracteristicas institucio- uma pe,a notavelmente arguta de etnografia. De fato, 0 livro
nais comuns que eles compartilhem, e disso pode ser inferido de Willis contem urna substancial anilise teorica de problemas de
tambem que provavelmente tenham algumas tendencias dina- reprodu,ao social, e nao pode haver duvida de que isso foi urn
micas comuns. Mas demonstrar quais sejam elas nao e 0 mes- importante estimulo para a pesquisa conduzida, assim como
mo que explicar seqiiencias de desenvolvimento ou de mudan,a para 0 modo de sua interpreta,ao. Dado que a discussao teorica
que ocorrem. Os tipos de conhecimento que certos individuos de Willis segue linhas semelhantes, pelo menos em alguns as-
ou grupos, sobretudo os mais poderosos, podem ter dessas ten- pectos, aos pontos de vista que desenvolvi, nao e surpreendente
dencias dinamicas podem vir a integrar essas mesmas tenden- que seu trabalho de pesquisa fome,a uma fonte especialmente
cias e a atuar para mode1<i-las de formas especificas. Fatores elucidativa para examinar as implica,oes desses pontos de vista.
que sao de importiincia determinada num tempo e lugar, ou Entretanto, hi urn ponto a salientar que considero mais
nurna certa conjuntura, podem tomar-se relativamente insigni- ) importante do que esses. Nao existe, e claro, obriga,ao para
ficantes alhures, em virtude da propria influencia que tiveram quem quer que efetue detalhada pesquisa empirica, num dado
antes de mais nada. As condi,oes que originalmente favore- r cenirio localizado, de acolher uma serie de no,oes abstratas
ceram 0 dominio da City sobre a industria nao eram as mesmas que apenas atravancariam 0 que, caso contririo, poderia ser
que permitiram mais tarde que essa posi,ao fosse mantida. descrito com economia e em linguagem comum. Os conceitos
Alguns dos problemas suscitados pela natureza das teorias da teoria da estrutura,ao, como no casu de qualquer perspectiva
e generaliza,oes serao abordados nas se,oes que se seguem. te6rica concorrente, devem ser considerados, para muitos fins
Mas ao concluir esta parte da discussao, talvez convenha for- de pesquisa, nada mais do que recursos sensibilizadores. Quer
mular tambem urna questiio que pode ser provocada no espirito dizer, eles podem ser iiteis para se refletir sobre problemas de
do leitor pelos estudos empiricos que usei para ilustrar alguns pesquisa e para a interpreta,ao dos resultados de estudos. Mas
pontos criticos da teoria da estrutura,ao. 0 trabalho de Ingham supor que estar teoricamente informado - obriga,ao de todos
poderi ter sido parcialmente influenciado por esses pontos, mas os que trabalham, em maior ou menor grau, na esfera das cien-
os outros estudos analisados foram escritos de forma indepen- cias sociais - significa sempre operar com uma por,ao de con-
dente. Por que preocupar-se com no,oes incomodas como "es- ceitos abstratos euma doutrina tao perniciosa quanto a que su-
trutura,ao" e 0 resto se pesquisas sociais de primeira categoria gere que podemos passar muito bern sem usar conceitos de
podem ser feitas sem elas? Virios comentirios devem ser teci- qualquer especie.
dos em resposta a isso. As ideias incorporadas it teoria da es-
trutura,ao permitem, do modo que tentei demonstrar, a realiza-
,ao de vmas criticas e corre,oes muito basicas ao trabalho de Juntando os fios da meada: teoria da
pesquisa analisado. Se isso evalido para 0 que considero serem estrutura,ao e formas de pesquisa
exemplos de pesquisa de qualidade superior, hi razoes muito
mais fortes para que essas criticas sejam dirigidas as pesquisas de Examinei nas se,oes precedentes urna variedade de formas
sofrivel qualidade. Alem disso, tudo que foi analisado na pes- de pesquisa social que eimpossivel reunir sob uma s6 epigrafe.
quisa foi informado por uma seria e prolongada reflexao teorica Isso significa que 0 trabalho de pesquisa e empreendido para
 386 A CONSTITUI9AO DA SOCIEDADE A TEORJA DA ESTRUTURA9AO 387
tentar elucidar muitas e diferentes quest5es, de acordo com a manam da inintegibilidade mutua de redes divergentes de sig-
natureza dos problemas que 0 investigador Se prop5e esclare- nificado. Naturalmente, tais quest5es surgem tanto nos varios
cer. Ao indicar algumas das implica,5es da teoria da estrutura- contextos de urna sociedade como entre sociedades. A pesqui-
,ao para a pesquisa empirica, nao quero sugerir a existencia de sa orientada primordialmente para problemas hermeneuticos
urn ilnico formato de pesquisa que todos devem doravante ado- pode ter importancia generalizada, na medida em que serve para
tar. Isso e parte da questao de concentra,ao em estudos que elucidar a natureza da cognoscitividade dos agentes e, assim,
foram, em sua grande maioria, empreendidos fora de qualquer suas raz5es para a a,ao, atraves de uma vasta gama de contex-
influencia imediata dos conceitos que elaborei. Eu afirmei an- tos de a,ao. Pe,as de pesquisa etnografica, como a de Willis -
tes que nao me propus analisar a relevancia que a teoria da ou como, digamos, a tradicional pesquisa de campo antropol6-
estrutura,ao pode ter ou nao para a avalia,ao de tipos especifi- gica em pequena escala numa comunidade -, nao constituem
cos de metodos de pesquisa - observa,ao participante etc. En- em si mesmas estudos generalizantes. Mas podem facilmente
tretanto, e possivel e vale a pena observar mais genericamente passar a se-Io se executados em razoavel numero, de modo que
as tarefas de pesquisa social informadas pela teoria da estrutu- sua tipicidade possa ser justificadamente determinada.
ra,ao e as conseqiiencias da discussao precedente dos traba- as aspectos hermeneuticos da pesquisa social nao sao ne-
Ihos de pesquisa para 0 debate tradicional entre metodos "qua- cessariamente esclarecedores para os sujeitos dessa pesquisa,
litativos" e "quantitativos" em pesquisa social. uma vez que seu principal resultado e a elucida,ao de cenanos
de a,ao considerados "milieux estranhos". Nao e esse 0 caso da
A EJucida~ao hermeneutica de redes de significado (1) investiga,ao da consciencia pratica, que significa 0 estudo do
lnvestigac;:ao de contexte e forma da consciencia pratica que agentes ja conhecem, mas, por defini,ao, normalmente
(0 inconscien1e) (2) esclarece esse conhecimento para cles, se isso for expresso de
modo discursivo, na metalinguagem da ciencia social. Somen-
Identificac;:ao de limites da cognoscitividade (3)
te para a etnometodologia a analise da consciencia priltica e urn
ESpecificac;:ao de ordens inslitucionais (4) "campo" circunscrito de estudo. Para todos os outros tipos de
pesquisa, a interpreta,ao da consciencia pnitica e urn elemento
A "inser,ao" metodol6gica do investigador no material que necessario, implicitamente entendido ou explicitamente enun-
eo objeto de estudo pode ser feita em qualquer dos quatro niveis ciado, das caracteristicas mais amplas da conduta social.
acima indicados. Toda pesquisa social pressup5e urn momenta Conforme sublinhei sistematicamente, a identifica,ao dos
hermeneutico, mas a pressuposi,ao pode permanecer latente limites da cognoscitividade dos agentes em contextos variaveis
quando a pesquisa se ap6ia nurn conhecimento mutuo que nao de tempo e espa,o e fundamental para a ciencia social. En-
precisa ser exposto porque pesquisador e pesquisa habitam urn tretanto, a investiga,ao do nivel 3 pressup5e urn considenivel
milieu cultural comum. as mais eloqiientes defensores da pes- conhecimento dos niveis 1,2 e 4. Sem cles, estamos de volta a
quisa quantitativa reprimem 0 significado essencial do nivel I uma forma rudimentar de sociologia estrutural. a estudo das
acima de duas maneiras. au consideram esse nivel mais pura- conseqiiencias impremeditadas e condi,5es nao-reconhecidas
mente descrito do que explicativo, ou entao nao percebem que da a,ao, conforme enfatizei quando examinamos a pesquisa de
ele participa da formul"9ao de seu trabalho de pesquisa. Mas a Willis, pode e deve ser realizado sem se usar a terminologia
pesquisa ligada ao nivel I pode ser explicativa e generalizante. funcionalista. a que e "impremeditado" e "nao-reconhecido",
Esta relacionada com a resposta a perguntas "por que?" que pro- em qualquer contexto ou gama de contextos de a,ao, nao cons-
 1

388 A CONSTITUl9liO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9liO 389

titui usualmente materia facil de descobrir. Nenhum estudo das rica nas ciencias sociais, per outro lado, enfatizam I e 2, a fim
propriedades estruturais de sistemas sociais pode ser realizado de apontar 0 carater necessariamente situado e significativo da
com exito, ou ter seus resultados interpretados, sem referencia intera<;ao social. Estes se inclinam, com freqiiencia, a mostrar-
il cognoscitividade dos agentes pertinentes - embora muitos se diretamente hostis ao usc de metodos quantitativos na cien-
proponentes da sociologia estrutural imaginem ser exatamente cia social, escorados no argurnento de que a quantifica~ao e 0
isso 0 que define a provincia do "metodo socioI6gico". uso do metodo estatistico impoem il vida social urna fixidez
o nivel4, a especifica~ao de ordens institucionais, envolve que ela, de fato, nao tern. Nao e diftcil discemir no conflito
a analise das condi~oes de integra~ao social e sistemica atraves entre essas posi~oes urn residuo metodol6gico do dualismo de
da identifica~ao dos principais componentes institucionais dos estrutura e a~ao, e, mostrando que tal dualismo e espUrio, pode-
sistemas sociais. Essas formas institucionais revestem-se de remos dissecar melher algumas das implica~oes empiricas da
suma importancia quando, em termos de principios estruturais dualidade da estrutura.
designados, podem ser especificadas como "sociedades" glo- Para ver como isso ocorre, retomemos uma vez mais a esse
bais. Vma vez mais, porem, tive algumas dificuldades para en- conceito, nurn cenario empirico diferente daquele discutido ate
fatizar que somente com muitas reservas a principal unidade de aqui. Segue-se a transcri~ao de urn fragmento de intera~ao
analise na ciencia social pode ser chamada de "sociedade". Com numa sala de tribunal. Os envolvidos sao urn juiz, urn defensor
freqiiencia, as ordens institucionais interferem em decisoes que publico (DP) e urn promotor (P), e a interlocu~ao refere-se a urn
podem ser reconhecidas entre sociedades globais. preso que se declarou culpado nurna acusa~ao de roubo com
E na rela~ao entre I e 2, por urn lado, e entre 3 e 4, por invasao em segundo grau. A quesilio em discussao e a senten~a
outro, que freqiientemente se localiza uma divisao entre meto- a ser aplicada ao reu.
dos "qualitativos" e "quantitativos". A predile~ao por metodos
DP: Meritissimo, solicitamos a formula~ao imediata da sen-
quantitativos tern sido, e claro, desde hi muito urna caracteris-
tem;a e que se prescinda do relat6rio do funcionirio da con-
tica dos atraidos para 0 objetivismo e a sociologia estrutural. dicional.
De acordo com esse tipo de ponto de vista, a analise de condi- Juiz: 0 que diz 0 relat6rio?
~oes da vida social que se estendem muito alem de quaisquer DP: Vma perra anterior por embriaguez e roubo. Nada serio.
contextos imediatos de intera~ao e 0 objetivo primordial da cien- Este e urn simples caso de furta em loja. Ele entrou no
cia social, e a percep~ao da natureza "consolidada" dos com- K-Mart com 0 intuito de roubar. Mas realmente 0 que
ponentes institucionais da vida social pode ser melhor adquiri- temos aqui eurn pequeno furta.
da atraves da classifica~ao, da mensura~ao e dos metodos esta- Juiz: E a promotoria 0 que tern a dizer?
tisticos. Obviamente, a ideia de que a preocupa~ao dominante P: Nada a favor nem contra.
Juiz: Qualquer obje<;ao a uma senten<;a imediata?
das ciencias sociais e a revela~ao de generaliza~oes semelhantes
P: Nenhuma.
a leis sobre a conduta social esta intimamente relacionada com Juiz:Ha quanto tempo ele esta recluso?
essa propensao. Ha neste ponto uma forte e, com freqiiencia, DP: Hi 83 dias.
deliberada ressonancia da divisao "macro"/"micro". Aqueles luiz: Considerando que se trata de urn delito leve, pelo artigo 17
que favorecem os metodos quantitativos como base principal do C6digo de Processo Penal, sentencio 0 acusado a no-
do que torna a ciencia social urna "ciencia" tendem a enfatizar venta dias em prisao distrital, descontado 0 tempo ja cum-
a primazia chamada "analise macrossocioI6gica". Os que advo- pridO. 37
gam metodos qualitativos como fundamento da pesquisa empi-
r

390 A CONSTfTUI9A-O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 391

Este fragmento situado de intera,ao, como qualquer outro, acreditam nelas. Merton adotou isso como urn ponto de partida
pode ser facilmente tornado para indicar como 0 que parece ser para sua forrnula,ao da profecia auto-realizadora, na qual urn es-
uma troca de palavras trivial esta, de fato, profundamente im- tado de coisas se concretiza pelo simples fato de ter sido auun-
plicado na reprodu,ao de institui,oes sociais. Cada fala na con- ciado ou profetizado. Ora, nao duvido em absoluto da impor-
versa entre os participautes so e apreendida por eles (e pelo lei- tancia da profecia auto-realizadora e de urna gama de fenome-
tor) como significativa pela tacita invoca,ao de caracteristicas nos ligados a ela. Mas ela nao e 0 prototipo da "faticidade" de
institucionais do sistema de justi,a criminal. Estas servem de propriedades estruturais contidas na dualidade da estrutura. Esse
suporte para cada interlocutor, que (corretamente) as presurnem ponto e mais sutil e mais profundo, ligando a pr6pria possibili-
como sendo de conhecimento mutuo na situa,ao. Note-se que dade da inteligibilidade e coerencia mutuas da intera,ao situa-
o conteudo desse conhecimento mutuo supoe muitissimo mais da a "faticidade" num nivel institucional de base ampla.
do que a mera percep,ao das taticas de "procedimento apro- Assinale-se tambem como a "faticidade" da ordem insti-
priado" em tais casos, embora isso tambem esteja envolvido. tucional esta intima e fundamentalmente ligada ao poder, que
Cada participante possui vastos conhecimentos sobre 0 que e ela expressa e facilita nos detalhes da intera,ao. Pois a "aceita,ao
urn "sistema legal", sobre procedimentos norrnativos de Direi- como real", que esta embutida na continuidade mutuamente in-
to, sobre 0 que presos, advogados e juizes fazem etc. Para que a teligivel da intera,ao, e 0 proprio fundamento do sistema legal
intera,ao seja realizada, os participautes fazem uso de seu co- como uma expressao de modos de domina,ao. A "aceita,ao como
nhecimento da ordem institucional em que estao envolvidos, real" consubstanciada em modos concretos de procedimentos
de modo a tornar essa intera,ao "significativa". Entretauto, ao nao significa claramente 0 mesmo que conceder discursiva-
invocar a ardem institucional desse modo - e nQo existe Dutra mente legitima9ao ao sistema, embora, eclaro, tampouco 0 im-
rnaneira de os participautes na intera,ao tornarem inteligivel e pe,a. Como sistema de rela,oes de poder, a "aceita,ao como
coerente 0 que fazem, aos olhos uns dos outros -, eles contri- real" tern implica,oes muito mais profundas do que 0 poder
buem com isso para reproduzi-Ia. Alem disso, e essencial ver diferencial real que os agentes participantes sao capazes de !ra-
que, ao reproduzi-la, eles tambem reproduzem sua "faticidade" zer para a intera,ao a fim de que seus pontos de vista sej am leva-
como fonte de coer,ao estrutural (sobre eles proprios e sobre dos em conta. Entretanto, e visivel que a sequencia da conversa
outros). Tratam 0 sistema de justi,a como uma ordem "real" de nao obedece as regras mais "democraticas" que as conversa-
rela,oes, no ambito da qual sua propria intera,ao esta situada e ,oes entre pares ordinariamente exibem, e reflete diretamente
a qual ela expressa. E e urna ordem "real" (isto e, estrutural- o poder diferencial. Assim, 0 juiz tern 0 direito de interromper
mente estavel) de rela,oes precisamente porque eles, e outros o que os outros dizem, fazer deterrninados tipos de perguntas e
como eles em contextos afins e semelhantes, a aceitam como controlar a sequencia da interlocu,ao, urn direito que os outros
tal - nao necessariamente em sua consciencia discursiva, mas nao tern, pelo menos no mesmo grau. 0 fato de a conversa,ao
na consciencia prMica incorporada ao que eles fazem. nao possuir urna forma convencional de revezamento dos inter-
E importaute nao confundir essa observa,ao com a famosa locutores adquire inteligibilidade em virtude do reconhecimen-
senten,a de W I. Thomas, segundo a qual se os atores "definem to mutuo de que 0 juiz tern uma certa identidade social institu-
as situayoes como reais, entao elas sao reais em suas conse- cionalizada, conferindo-lhe prerrogativas e san,oes definidas.
quencias". A proposi,ao de Thomas sugere existir circunstancias Permitam-me formular isso num nivel mais geral para dei-
que nao sao, de fato, "reais" (isto e, ficticias ou imaginarias), xar suas conota,oes bern claras. Toda intera,ao social esta
e que, nao obstante, tern consequencias reais, pois as pessoas situada no interior de fronteiras tempo-espa,o de co-presen,a
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392 A CONSTITUIf;A-O DA SOCIEDADE A TEORJA DA ESTRUTURAf;AO 393

(quer esta seja ou nao ampliada atraves de meios tais como car- titativo depende de procedimentos metodologicamente identi-
tas, telefonemas etc.). Seu carater situado, como analisei em cos a coleta de dados de urna especie "qualitativa", mais inten-
detalhe nos capitulos I e II, esta diretamente envolvido com a siva. E por isso que 0 estudo de Gambetta pode ser usado para
natureza indiciadora da realiza<;ao com exito da comunica<;ao focalizar alguns dos mesmos problemas investigados por Willis.
mutuamente inteligivel. Mas 0 carater situado da intera<;ao nao Os dados do primeiro autor referem-se a urn grande nfunero de
constitui urna barreira para aquela "fixidez" institucional de- individuos; 0 material do segundo autor, apenas a urn grupo re-
monstrada por ordens institucionais atraves do tempo e do es- duzido. 0 trabalho de Gambetta envolve 0 usa de uma bateria de
pa<;o. E sua pr6pria condi<;ao, exatamente como a existencia refinados metodos de pesquisa, ao passo que 0 estudo de Willis
daquelas ordens e a condi<;ao das mais transit6rias formas de consiste inteiramente em informa<;oes etnograficas. Mas a pes-
encontro social ou conversa<;ao. A monitora<;ao reflexiva da quisa do primeiro, nao menos do que a do segundo, pressupoe
conduta social e intrinseca a"faticidade" exibida pelas proprie- urna apreensao da a<;ao situada e de significados sem a qual as
dades estruturais de sistemas sociais, nao algo marginal ou adi- categorias formais da metalinguagem te6rica empregada pelo
cional a ela. Wilson expressou isso da seguinte maneira. Como investigador nao teria sentido nem aplica<;ao. Todos os chamados
afirma<;ao da importancia do conceito da dualidade da estrutu- dados "quantitativos", quando examinados atentamente, resul-
ra, eu nao poderia fazer melhor: tam ser compostos de interpretacy5es "'qualitativas" - isto e, con-
textualmente localizadas e indiciadoras - produzidas por pes-
o mundo social e constituido por ar;6es situadas, produzi- quisadores situados, codificadores, funcionarios govemamen-
das em detenninadas situac;oes concretas, que sao acessiveis aos
tais e outros. Os problemas hermeneuticos apresentados pela
participantes para seu proprio reconhecimento, descric;ao e usc
como bases garantidas para novas inferencias e a<;6es tanto nes- pesquisa etnografica tambem existem no caso de estudos quan-
sas mesmas ocasi6es quanta em subseqiientes. As ac;5es situadas titativos, embora esses passam ser em grande parte "enterra-
sao produzidas por meio de mecanismos de interayao sociallivres dos" pela extensao em que os dados envolvidos foram "traba-
de contexto, sensiveis ao contexto, e a estrutura social e usada lhados". As tentativas de produzir medidas em termos de escalas,
por membros da sociedade para tomar inteligiveis e coerentes eliminar inclina<;oes seletivas, criar tecnicas coerentes de amos-
suas ayoes em detenninadas situayoes. Nesse processo, a estru- tragem etc., situam-se dentro desses limites. Elas nao compro-
tura social e urn recurso essencial e produto da ayao situada; e a metem logicamente, de maneira alguma, 0 uso de metodos quan-
estrutura social e reproduzida como uma realidade objetiva que titativos, embora nos levem, sem davida, a apreciar a natureza
coage parcialrnente a ayao. E mediante essa relayao reflexiva
dos dados quantitativos de modo diferente do de alguns defen-
entre estrutura social e ayao situada que a transparencia de expo-
siyoes [a inteligibilidade mutua da conduta] e realizada pela ex- sores da sociologia estrutural.
plorayao da dependencia de contexto do significado. 38 Os niveis I e 2 sao, assim, tao essenciais para entender 0 3
e 0 4 quanta 0 inverso, e os metodos qualitativos e quantitativos
Uma vez entendido plenamente este ponto, desaparece a devem ser vistos como aspectos mais complementares do que
ideia de que existe urna nitida divisao ou uma necessaria oposi- antagonicos da pesquisa social. Uns sao necessarios aos ou-
<;ao entre metodos qualitativos e quantitativos. E provavel que tros, se quisermos que a natureza substantiva da dualidade da
as tecnicas quantitativas sejam requeridas, usualmente, quando estrutura seja "mapeada" em termos das fafmas de articulac;:ao
se pretende investigar um grande numero de "casos" de um fe- institucional por meio das quais os contextos de intera<;ao sao
nomeno, com rela<;ao a uma variedade restrita de caracteristi- coordenados em sistemas sociais mais abrangentes. Um ponto
cas designadas. Mas a coleta e interpreta<;ao de material quan- que precisa ser convincentemente acentuado e que os pesquisa-
 394 'rommw,,"",=mw", 1 A TEORJA DA ESTRUTURA9AO 395

dores sociais devem estar atentos para os modos como os dados empirica de observa,5es relatadas e teorias a elas associadas.
quantitativos sao produzidos. Pois, diferentemente do movi- Como Schutz e muitos outros enfatizaram corretarnente, 0 ca-
mento do merclirio dentro de urn termometro, os dados sociais rater critico da ciencia social nesse sentido afasta-se normal-
nunca sao apenas urn "indicador" de urn fenomeno independen- mente, de urna forma deveras abrupta, das cren,as e teorias em
temente dado, mas sempre, ao mesmo tempo, exemplificam uso incorporadas a conduta da vida social cotidiana. Todos os
aquilo de que "tratam"- isto e, processos de vida social. atores sociais, epassivel dizer-se com corre¥ao, sao te6ricos so-
ciais que alteram suas teorias a luz de suas experiencias e sao

I
receptivos a informa,ao que chega, a qual pode ser por eles
Conhecimento mutuo versus senso comum adquirida ao fazerem isso. A teoria social nao e, em absoluto, a
provincia especial e isolada de pensadores academicos. En-
E 6bvio que a pesquisa empirica falta urn fundamento 16- tretanto, os atores leigos estao em geral preocupados, sobretudo,
gico se ela nao gerar novos conhecimentos antes inexistentes com a utilidade pratica do "conhecimento" que eles aplicarn
ou inacessiveis. Como tados os atores sociais vivem em con- em suas atividades cotidianas, e pode haver caracteristicas basi-
textos situados no interior de periodos mais vastos de tempo- cas da organiza,ao institucional da sociedade (incluindo a ideo-
espa,o, 0 que e novidade para alguns desses atores nao e para logia, mas nao limitadas a ela) que restrinjam ou distor,arn 0
outros - incluindo, entre esses outros, os cientistas sociais. E, que consideram ser conhecimento.
evidentemente, nessas "lacunas de informa,ao" que a pesquisa E certamente 6bvio que 0 "modelo revelador" da ciencia
etnografica tern sua importiincia especifica. Num sentido am- natural nao pode ser diretamente transferido para as ciencias so-
plo do termo, esse genero de pesquisa eexplanat6rio, porquanto ciais. As cren,as ditadas pelo senso comum acerca do mundo
serve para esclarecer enigmas apresentados quando individuos natural sao corrigiveis a luz das descobertas das ciencias natu-
de urn cemirio cultural se encontram com os de urn Dutro que, rais. Nao ha grandes dificuldades 16gicas para se entender 0 que
em alguns aspectos, e muito diferente. A pergunta "Por que e esta acontecendo em tais circunstancias, embora possa haver
que eles atuam (pensam) como atuam (pensam)?" eurn convite barreiras sociais ao acolhimento de iMias cientificasJ9 • Quer
para ingressar num milieu culturalmente estranho e compreen- dizer, as cren,as leigas estao sujeitas a corre,ao, na medida em
de-lo. Para os que ja se encontram dentro desse milieu, como que isso e necessario, pela entrada de novas teorias e observa-
Winch e muitos outros assinalaram, essa iniciativa pode nada ,5es cientificas. Conforme enfatizei, as "descobertas" das cien-
ter de inerentemente esclarecedor. Entretanto, muito da pesqui- cias sociais naD sao necessariamente novas para aqueles aos
sa social, em termos do material empirico que gera e das inter- quais elas dizem respeito.
preta,5es te6ricas a ela possivelmente vinculadas, tern conota- As quest5es envolvidas aqui tomaram-se bastante nebulo-
,5es criticas para as cren,as sustentadas pelos agentes sociais. sas em conseqiiencia dos avan,os e recuos entre as formula,5es
Para investigar 0 que poderiam ser tais conota,5es, devemos con- objetivistas e interpretativas da ciencia social. As primeiras fo-
siderar a questao seguinte: em que sentido as ciencias sociais ram propensas a aplicar 0 modelo revelador de forma desinibi-
revelarn novos conhecimentos e como tais conhecimentos pode- da as ciencias sociais. Isto e, consideraram as cren,as ditadas
rao ligar-se a critica da falsa cren,a? Essas quest5es sao com- pelo senso comurn e envolvidas na vida social corrigiveis sem
plexas, e nao tentarei tratar aqui senao de alguns de seus aspectos. problemas, em fun,ao do esclarecimento que as ciencias sociais
Os esfon;os cruciais das ciencias sociais, como os da cH~n­ podem fomecer. Entretanto, aqueles que sao influenciados pela
cia natural, estao estreitamente ligados a adequa,ao 16gica e hermeneutica e pela filosofia da linguagem ordinaria estabele-
1 I
396 A CONSTfTU19A-O DA SOCfEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 397
ceram poderosas obje,6es a esse ponto de vista rudimentar. As - que nao fica tao 6bvio 0 fato de que 0 respeito pela autentici-
cren,as ditadas pelo senso comum, tal como foram incorporadas dade da cren,a constitui uma parte necessaria de todo 0 traba-
ao uso da linguagem e a a,ao cotidianos, nao podem ser trata- lho etnogritfico nas ciencias sociais. Os ataques condll'idos
das como meros impedimentos para uma caracteriza,ao valida por aqueles influenciados pela fenomenologia e pela etnometo-
ou veridica da vida social. Pois nao podemos absolutamente des- dologia contra as concep,6es mais ortodoxas de ciencia social
crever a atividade social sem conhecer 0 que seus atores consti- tiveram, sem duvida, consideravel importitncia na elucida,ao da
tuintes sabem, tanto discursiva quanto tacitamente. 0 empiris- natureza do conhecimento mutuo. Mas, ao falarem sobre "senso
mo e 0 objetivismo simplesmente suprimem toda a questao da comum" ou termos equivalentes de modo difuso, eles nao se-
gera,ao de descri,6es sociais atraves do conhecimento mutuo pararam analiticamente a questao metodol6gica da questao cri-
que observadores sociol6gicos e membros leigos da sociedade tica. Ao fazer a distin,ao entre conhecimento mutuo e senso
tern em comum". 0 problema consiste em que, tendo chegado comum, e meu intuito reservar 0 segundo conceito para referir-
a essa conclusao, aqueles que advogam formas interpretativas da me as cren,as proposicionais implicitas na conduta das ativida-
ciencia social acham dificil ou impossivel manter aquela agu- des cotidianas. A distin,ao e predominantemente analitica; quer
deza critica na qual 0 tipo oposto de tradi,ao corretamente in- dizer, 0 senso comum e conhecimento mutua tratado como
sistiu ao justapor ciencia social e senso comum. As tarefas da cren,a falivel, nao como conhecimento. Entretanto, nem todo
ciencia social parecem, pois, limitadas precisamente a etnogra- conhecimento mutuo pode expressar-se como cren,a proposi-
fia - ao esfor,o hermeneutico da "fusao de horizontes"". Urn Va cional- cren,a em que se trata de ceflos estados de coisas e nao
tal paralisia da vontade critica e logicamente tao insatisfat6ria :" de outros. Alem disso, nem todas essas cren,as podem ser dis-
quanta 0 usa desordenado do modelo revelador. cursivamente formuladas por aqueles que as alimentam.
Uma saida para esse impasse pode ser encontrada se dis- Distinguir entre conhecimento mutuo e senso comum nao
tinguirmos 0 conhecimento mutua do "sensa comum"42. 0 pri- subentende que urn e outro sejam fases de estudo de facil sepa-
meiro refere-se ao necessario respeito que 0 analista social deve ra,ao na pesquisa social. Em primeiro lugar, a linguagem des-
ter pela autenticidade da cren,a ou pela entree hermeneutica na critiva usada por observadores sociol6gicos e sempre mais ou
descric;ao da vida social. "'Necessaria" tern, na frase acima, for- menos diferente da usada por atares sociais leigos. A introdu-
,a l6gica. A razao por que, caracteristicamente, faz mais sentido ,ao da terminologia cientifica social pode (mas nao necessa-
falar de "conhecimento", em vez de "cren,a", quando se fala riamente) por em duvida cren,as discursivamente formuladas
do modo como os atores descobrem seu caminho nos contextos (ou, quando ligadas num conjunto, "teorias em uso") que os
da vida social, esta em que a gera,ao de descri,6es requer a pa- atores sustentam. Quando as descri,6es contestadas ja sao em-
rentetiza,ao do ceticismo". As cren,as, tMicas e discursivas, pregadas pelos agentes estudados, qualquer outra apresentada
tern de ser tratadas como "conhecimento" quando 0 observador por observadores, mesmo usando categorias de atores, e direta-
estit atuando no plano metodol6gico de caracteriza,ao da a,ao. mente critica de outras terminologias existentes que poderiam
o conhecimento mutuo, encarado como 0 modo necessario de ter sido usadas. 0 que de uma perspectiva e urn "movimento de
obter acesso ao "objeto de estudo" da ciencia social, nao e cor- libertayao" podera ser uma "organizayao terrorista" de uma
rigivel a Ill' de suas descobertas; pelo contritrio, e a condi,ao outra. A escolha de um termo em vez de outro implica, e claro,
para se estar apta a apresentar "descobertas". uma postura definida por parte do observador. E menos ime-
E devido ao fato de 0 conhecimento mutuo ser predomi- diatamente evidente que a escolha de um termo mais "neutro"
nantemente tacito - condll'ido no nivel da consciencia pratica tambem denuncia uma postura; seu usa indica ter sido assumi-
1 I
t

398 A CONSTITUI9A-O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 399

da pelo observador uma distancia critica em rela,ao aos con- que se pode mostrar que estas nao tem validade ou sao inade-
ceitos usados pelos atores diretamente envolvidos. quadamente fundamentadas. Mas essas implica,oes sao especial-
Em qualquer situa,ao de pesquisa pode haver cren,as acei- mente importantes quando as cren,as em questao sao incorpo-
tas por participantes que se chocam tanto com as defendidas radas as razoes dos atores sociais para fazer 0 que fazem.
pelo observador que este expressa seu distanciamento critico de- Apenas algumas das cren,as que os atores possuem ou profes-
les, mesmo num estudo, sob todos os demais aspectos, puramen- sam sao parte das razoes por eles apresentadas para sua condu-
te emognifico. Urn antropologo nao sentini 0 menor receio em tao Quando estas sao submetidas a critica, a luz das afirma,oes
afinnar: "Os X obtem suas safras procedendo a semeadura em ou descobertas da ciencia social, 0 observador social esta pro-
todos os outonos", na medida em que e um conhecimento mutuo curando demonstrar que elas nao sao boas.
entre ele e os membros da cultura X que a semeadura numa A identifica,ao das razoes dos agentes esta normalmente
epoca apropriada do ano produzira uma determinada safra. Mas ligada, de modo intimo, aos problemas hermeneuticos criados
esse mesmo antropologo podera dizer: "Os X acreditam que sua pela gera,ao de conhecimento mutuo. Sendo assim, cumpre dis-
dan,a ritual provocani chuva", indicando a existencia de uma di- tinguir 0 que chamarei de "criterios de credibilidade" dos "cri-
vergencia entre 0 que ele e os membros da cultura X acreditam terios de validade" pertinentes a critica de razoes como boas
ser as condi~5es necessanas para a ocorrencia de chuva44 • razoes. Os criterios de credibilidade referem-se aos de carater
Os exemplos mencionados no paragrafo acima indicam hermeneutico usados para indicar como a apreensao das razoes
que ate mesmo a pesquisa social puramente etnografica - isto dos atores elucida exatamente a que eles estao fazendo a luz
e, a pesquisa que respeita a meta limitada da reportagem des- dessas razoes. Os criterios de validade referem-se aos de eviden-
critiva - e propensa a ter um momento critico. Embora nao com- cia fatual e entendimento teorico empregados pelas ciencias
prometa a distin,ao logica entre conhecimento mutuo e senso sociais na avalia,ao de razoes como boas razoes. Considere-se
comum, isso significa especificar mais diretamente 0 que esta o caso famoso das araras vermelhas, muito discutido na litera-
envolvido nesse momento critico, que em outros tipos de pes- tura antropologica. Os Bororo do Brasil Central dizem: "Nos
quisa e geralmente desenvolvido de modo mais direto. somos araras vermelhas." Debatida por Von den Steinen, Dur-
Devo enfatizar neste ponto as dimensoes modestas da dis- kheim e Mauss, entre outros, essa afirma,ao pareceu a muitos
cussao que se segue. Analisar logicamente 0 que esta envolvi- absurda ou hermeneuticamente impenetravel. A questao foi,
do na acumula,ao de conhecimento mutuo e na critica da cren- porem, recentemente tratada por um antropologo que teve a opor-
,a ditada pelo senso comum suscita questoes de epistemologia tunidade de reinvestigar 0 assunto na fonte, entre os Bororo".
que nao caberia discutir aqui exaustivamente. As ideias que de- Ele apurou que: a declara,ao e feita unicamente pelos homens;
senvolverei na seqiiencia pretendem fornecer apenas um delinea- as mulheres Bororo tendem a conservar araras vermelhas como
mento geral, 0 qual pressupoe uma concep,ao epistemologica seus animais de estima,ao; em varios aspectos, na sociedade
definida sem a levar ao detalhamento. Quero afirmar a existen- Bororo, os homens sao peculiarmente dependentes das mulhe-
cia de dais sentidos em que a ciencia social e importante para a res; e 0 contato com os espiritos e feito por homens e araras
critica das cren,as leigas interpretadas como senso comum (0 vermelhas independentemente das mulheres. Parece plausivel
que inclui a critica da ideologia, mas nao the confere prioridade inferir que "Nos somos araras vermelhas" e uma declara,ao na
especial). As atividades criticas em que os cientistas sociais se qual os homens comentam ironicamente sua divida para com
envolvem, enquanto nucleo de tudo 0 que fazem, trazem impli- as mulheres e, ao mesmo tempo, afirmam sua propria superio-
ca,oes para as cren,as alimentadas pelos agentes, na medida em ridade espiritual diante delas. A investiga,ao das razoes para a
,
400 A CONSTITUf(;AO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURAr;AO 401
declara9ao ser feita ajuda a esclarecer a natureza desta. A in- convincente (motivacional) na medida em que existe uma ra-
vestiga9ao de criterios de credibilidade, com rela9ao a cren9as zao para a a9ao. Quando ela informa sobre urn segmento ou
discursivamente formuladas, de qualquer modo, depende quase aspecto de conduta em rela9ao ao mundo natural, mostrar que e
sempre do esclarecimento dos seguintes itens: quem as expres- falsa levara 0 agente (ceteris paribus) a mudar seu comporta-
sa, em que circunstancias, em que estilo discursivo (descri9ao mento em quaisquer aspectos pertinentes. Se isso nao aconte-
literal, metiifora, ironia etc.) e com que motivos. ce, a suposi9ao e de que: oiltras considera90es estao preponde-
A avalia9ao de criterios de validade e govemada exclusi- rando no espirito do agente; as implica90es da falsidade da
vamente pela conjun\=ao das criticas "interna" e "externa" ge- cren9a sao mal-interpretadas; ou 0 ator nao aceita, de fato, que
rada pela ciencia social. Quer dizer, os criterios de validade sao a falsidade tenha sido provada de forma convincente. Ora, sao
os de critica intema que considero serem substancialmente cons- as cren~as sociais, nao as relacionadas com a natureza, as ele-
titutivos do que a ciencia social e. 0 principal papel desta no mentos constitutivos daquilo de que elas tratam. Segue-se dai
tocante a critica do senso comum esta na avalia9ao de razoes que a critica da falsa cren9a (ceteris paribus) e urna interven-
como boas razoes em termos do conhecimento simplesmente ,ao pratica na sociedade, urn fenomeno politico numa acep9ao
inacessivel a agentes leigos ou interpretado por estes de modo ampla do termo.
diferente do formulado nas metalinguagens da teoria social. Como esse exame da cren9a se relaciona com a asser9ao
Nao vejo nenhuma base para duvidar de que os padroes de cri- de que todos os atores competentes nao s6 sabem 0 que estao
tica interna nas ciencias sociais transferem-se diretamente para fazendo (sob uma descri9ao ou outra), mas devem faze-lo para
a critica extema neste aspecto. Trata-se de urna afirma9ao pe- a vida social ter 0 cariiter que tern? A pergunta podera ser mais
rempt6ria, e e particularmente nesta conjuntura que se pressu- bern respondida por referencia a urn exemplo concreto. Con-
poe Urn ponto de vista epistemol6gico especifico. Presume-se, sidere-se votar numa situa9ao de "uma pessoa, urn voto". Tal
e eu presumo, ser possivel demonstrar que algumas afirma90es pratica envolve claramente todos os eleitores potenciais saben-
de cren9a sao falsas e outras verdadeiras, embora 0 que signifi- do 0 que e urn "voto", que s6 podem votar urna (mica vez e em
ca "demonstrar", neste caso, precise ser examinado com a mes- seu nome pessoal etc. Somente quando os participantes sabem
rna minuciosidade quanto "falso" e "verdadeiro". Presume-se, essas coisas, e atuam de modo apropriado, podemos dizer que
e eu presumo, que a critica interna - os exames enticos a que existe, realmente, 0 sistema "uma pessoa, urn voto". Ate que
os cientistas sociais submetem suas ideias e pretensas desco- ponto poder-se-a validamente dizer que esse fenomeno existe,
bertas - e inerente ao que a ciencia social e como esfor9 0 cole- se apenas uma certa propor9ao de pessoas tiver pleno conheci-
tivo. Pretendo correr 0 risco de cair no desfavor dos filosofica- mento de que os conceitos pertinentes sao urn problema her-
mente sofisticados afirmando, sem mais delongas, que susten- meneutico? Dizer que os atores "devem" saber de sua a9ao
to a validade de tais pressuposi90es. Num diferente contexto, para que a vota9ao exista e especificar 0 que conta como des-
porem, seria claramente necessario defender tais asser90es em cri9ao valida da atividade. Entretanto, sem duvida, algumas pes-
consideravel detalhe.
soas envolvidas poderao ignorar 0 significado de votar ou to-
Penso que e possivel demonstrar a existencia de uma rela- dos os procedimentos incluidos nurna vota9ao, bern como a
9aO nao-contingente entre provar a falsidade de uma cren9a e as influencia de seu ato no resultado da vota9ao. Generalizando,
implica90es priiticas para a transforma9ao da a9ao vinculada a poderiamos dizer que quaisquer individuos podem cometer erros
ela'". Criticar uma cren9a significa (logicamente) criticar qual- com rela9ao as coisas envolvidas em qualquer aspecto de qual-
quer atividade ou priitica levada a efeito em fun9ao dela, e e quer conven9ao social. Mas nao se pode estar equivocado a maior
r 402 A CONSTITUf(;:AO DA SOCIEDADE , A TEORIA DA ESTRUTURAt;:AO 403
I
parte do tempo sobre 0 que se faz, sem ser visto como incom-
petente por outros atores sociais; e nao existe urn s6 aspecto de
I
i,
esta se refere) pode, de fato, estar intimarnente ligado. A
maioria das "leis" ou generaliza90es mais conhecidas da
qualquer conven,ao sobre 0 qual a maioria dos agentes possa Economia neoclassica e constituida, poder-se-ia pensar, por
1
estar errada a maior parte do tempo. Devemos, e claro, reconbe- enunciados cujo conhecimento nao alterara em nada as cir-
cer outras possibilidades. Agentes posicionados em alguns seto- cunstancias com que se relacionam. Isto e, depende de pa-
res de uma sociedade poderao ignorar completamente os acon- droes de motiva,ao e raciocinio, por parte de agentes leigos,
tecimentos de outros; atores poderao acreditar que os resulta- que muito improvavehnente se alterarao, nao importa 0 quan-
dos de suas atividades sao diferentes dos mostrados realmente; to essas generaliza,oes se tomem familiares. Mas 0 desen-
e a redescri,ao de urn contexto de a,ao nos conceitos da cien- volvimento da ciencia economica desempenhou urn papel
cia social podeni representar as ocorrencias de maneiras diver- na cria,ao das pr6prias condi,oes em que se mantem as
sas daquelas com que 0 agente esta familiarizado. generaliza,oes em questao, promovendo uma postura previ-
Podemos supor, repetindo, que 0 novo conbecimento desen- dente em rela,ao Ii expansao do capital etc. - fenomeno que
volvido nas ciencias sociais tera, habitualmente, implica,oes discutirei mais adiante.
transformacionais imediatas para 0 mundo social existente. 3) Quando 0 novo conhecimento ou informa,ao e usado para
Mas 0 que e coberto por ceteris paribus? manter as circunstancias existentes. Is50, obviamente, pade
Em que condi,oes isso sera diferente? acontecer ate mesmo quando as teorias ou descobertas en-
volvidas, se utilizadas de deterrninada maneira, modificam
I) Mais obviamente, quando as circunstiincias descritas ou ana- o que descrevem. A apropria,ao seletiva de material cienti-
lisadas tratam de eventos passados e se relacionam com con- fico social pelos poderosos, por exemplo, desvia esse mate-
di,oes sociais que ja nao vigoram. No caso em que se pense rial para fins muito diferentes daqueles que poderiam ser
que isso permite, uma vez mais, uma distinc;ao nitida entre servidos se ele fosse mais amplamente difundido.
hist6ria e ciencia social, sublinbe-se que ate estudos pura- 4) Quando aqueles que procuram aplicar 0 novo conbecimento
mente etnograficos de culturas mortas podem muito bern ser nao estao em situa,ao de 0 fazer de modo efetivo. E evidente
tratados como esclarecedores de circunstiincias atuais, muitas que isso constitui, com freqiiencia, urna questao de acesso aos
vezes pelos pr6prios contrastes que revelam. Sem duvida, recursos necessiirios para alterar urn conjunto existente de
nao podemos dizer, em principia, que 0 conhecimento acer- circunstiincias. Mas e preciso sublinbar tambem que a possi-
ca de situa,oes nao mais existentes e irrelevante para outros bilidade de articular interesses discursivarnente e, geralmente,
contextos nos quais esse conhecimento poderia servir de distribuida de modo assimetrico numa sociedade. Os que estao
base de urn modo transformativo. A influencia do "cesarismo" nos escal5es inferiores da sociedade provavelmente terao
na politica francesa do seculo XIX, satirizada por Marx, e viirias limita,oes em suas capacidades de formular discursi-
urn born exemplo. vamente seus interesses, sobretudo os de mais longo prazo.
2) Quando a conduta em questao depende de motivos e raz5es Eles tern menos probabilidades do que os que se encontram
que nao sao alterados por nova informa,ao tomada acessi- em posi,oes superiores de transcender 0 carater situado - no
vel. Neste caso, as rela,oes envolvidas podem ser muito mais tempo e no espa,o - de suas atividades. Isso pode ser devido
complicadas do que parece Ii primeira vista. 0 que parece a oportunidades educacionais inferiores, pelo carater mais
ser dois conjuntos de fenomenos independentes (por exem- confinado de seus tipicos milieux de a,ao (nos termos de
plo, 0 enunciado de urna generaliza,ao e as atividades a que Gouldner, eles tern mais probabilidades de ser "locais" do
 404 A CONSTITUl(:A-O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO 405

que cosmopolitas) ou ainda porque os que ocupam posi,oes dia-a-dia seja cronicamente levada a cabo de modo deliberado.
superiores simplesmente dispoem de uma gama muito maior Eno estudo das conseqiiencias impremeditadas da a,ao, como
de informa,ao acessive!. Tambem e improvavel que os dos enfatizei com freqiiencia, que serao encontradas algumas tare-
escaWes inferiores tenbam acesso a um discurso coerente e fas mais caracteristicas das ciencias sociais. E tambem ai que
conceptualmente refinado em cujos termos seus interesses se localiza a preocupa,ao maior dos cientistas sociais inclina-
possam ser ligados as condi,oes de sua realiza,ao. dos para 0 objetivismo e a sociologia estrutura!. Aqueles que
5) Quando 0 que e reivindicado como conbecimento resulta ser, falam dos objetivos explanat6rios das ciencias sociais como
em parte, falso. E bastante 6bvio, por certo, que nao existe a vinculados a descoberta.de leis nao procedem assim quando os
convergencia necessaria entre a validade de ideias ou obser- resultados sao mais ou menos completamente premeditados.
va,oes produzidas nas ciencias sociais e sua apropria,ao por Assim, por exemplo, os motoristas param regularmente, quan-
atores leigos. Varias possibilidades derivam disso, incluindo do acende 0 vermelho no semaforo, e arrancam de novo, quando
aquela mediante a qual pontos de vista originalmente falsos acende 0 verde. Mas ninguem sugere que parar nos sinais de
podem tomar-se verdadeiros como resultado de sua propa-
transito pode ser representado como uma lei de conduta social
ga,ao (a realiza,ao de algo como simples efeito de sua pro-
humana. As leis ai envolvidas sao de uma especie juridica. Os
fetiza,ao). Nao se segue inevitavelmente que a ado,ao de
motoristas sabem para que sao as luzes vermelhas, como se pre-
conclusoes nulas seja inconseqiiente a respeito da conduta
sume que cles devem reagir segundo os c6digos de comportamen-
que pretendem descrever.
to no transito, e quando param no vermelho ou seguem com 0
6) Quando 0 novo conbecimento e trivial ou desinteressante para
verde sabem 0 que estao fazendo e fazem-no intencionalmente.
os atores aos quais faz referencia. Este caso e algo mais sig-
nificativo do que poderia parecer, por causa das diferen,as
o fato de tais exemplos nao serem mencionados como leis,
que podem existir entre as preocupa,oes de atores leigos e muito embora 0 comportamento envolvido seja muito regular,
as de observadores sociais. Nas palavras de Schutz, as con- indica que 0 problema das leis em ciencia social esta muito li-
veniencias dos cientistas sociais nao sao necessariamente as gada as conseqtiencias impremeditadas, condil;oes nao-reco-
mesmas dos atores cujo comportamento procuram explicar. nhecidas e coer,ao.
7) Quando a forma do conhecimento ou da informa,ao gerada Por "leis" os soci610gos estruturais entendem usualmente
inibe sua realiza,ao ou esconde certas maneiras pelas quais leis universais do tipo que se pensa existir nas ciencias natu-
poderia ser concretizada. 0 mais importante caso em ques- rais. Ora, nao faltam os debates sobre se essas leis existem ou
tao e, de longe, 0 da reifica,ao. Mas as possiveis implica- nao, de fata, na ciencia natural e, se existem, qual e seu status
,oes que isso suscita tambem sao complexas. 0 discurso rei- 16gico. Mas suponbamos sua existencia e admitamos a inter-
ficado produzido nas ciencias sociais pode ter efeitos dife- preta,ao corrente de sua forma 16gica. As leis universais esta-
rentes quando 0 discurso de atores sociais leigos tambem e belecem que quando quer que urn conjunto de condi,oes, espe-
coisificado ou nao. cificadas de um modo definido, seja encontrado, havera tam-
bern um segundo conjunto de condi,oes onde 0 primeiro da
origem ao segundo. Nem todas as declara,oes causais, e claro,
Generaliza~iies em ciencia social sao leis, bern como nem todas as rela,oes causais podem ser
subordinadas a leis (conhecidas). Assim tambem, nem todos os
A vida social, em muitos aspectos, nao e um produto in- enunciados de uma forma universal 0 sao. Hempel da urn exem-
tencional de seus atores constituintes, embora a conduta no plo: "Todos os corpos que consistem em ouro puro tern uma
 "ON~=;"O T mo~
lI
406
0' ""'0'0' o"=,m..,,o 407
massa de menos de 100 mil quilogramas." Nao existe urn s6 atores, no contexto de uma "trama" de consequencias premedi-
caso conhecido em que essa afirmayao nao se sustenta, mas, a tadas e impremeditadas de a9ao, podemos facilmente perceber
menos que fosse descoberto algum mecanismo causal para ex- por que tais generaliza90es nao tern uma forma universal. 0
plicar por que isso deve ser assim, isso nao seria provavelmente conteudo da cognoscitividade dos agentes, a quest1io de como se
considerado um exemplo de uma lei". Ha leis universais nas "situa" e de qual e a validade do conteudo proposicional desse
ciencias sociais? Se nao ha, entao por que tantos adeptos da so- conhecimento - tudo isso influenciara as circunstiincias em que
ciologia estrutural colocaram tipicamente todos os seus trunfos essas generaliza90es subsistem.
nessa explica9ao? A resposta evidente a primeira pergunta e Correndo uma vez mais 0 risco de desconcertar 0 leitor de
nao. Na ciencia natural ou, pelo menos, em algumas de suas mentalidade mais filosOfica, proponho simplesmente declarar
principais areas, ha muitos exemplos de leis que parecem obe- que as raz5es sao causas, aceitando que isso implica, sem duvi-
decer ao tipo de lei universal. Na ciencia social - e eu incluiria da, uma explica9ao nao-humana de causalidade. Em termos mais
tanto a economia quanta a sociologia neste julgamento - nao adequados, usando a terminologia por mim introduzida: a ra-
ha urn s6 candidato que possa ser apresentado de forma indis- cionaliza9ao da a9ao esta causalmente implicada, de maneira
cutivel como exemplo dessa lei no dominio da conduta social cronica, na continua9ao das a90es do dia-a-dia". Por outras pa-
humana. Como argumentei num outro trabalho", as ciencias lavras, ela e um elemento importante na gama de poderes cau-
sociais naD sao retardatarias em comparayao com a ciencia na- sais que um individuo, enquanto agente social, apresenta. Isso
tural. A ideia de que, com novas pesquisas, essas leis acabarao porque fazer algo por determinadas razoes significa aplicar uma
por ser descobertas e, na melhor das hip6teses, profundamente compreensao do que "e requerido" num dado conjunto de cir-
implausivel. cunstiincias, de maneira a dar forma a qualquer coisa que seja
Se elas naD existem, e nunea existirao, na ciencia social, feita nessas circunstancias. Ter razoes para fazer alguma coisa
por que e que tantos supuseram que esta devesse empenhar-se naG e 0 mesma que fazer alguma coisa por certas razoes, e e
por realizar essa quimera? Sem duvida, em grande parte devi- essa diferen9a que cria 0 impacto causal da racionaliza9ao da
do a ascendencia das filosofias empiristas da ciencia natural a9ao. As razoes sao causas de atividades que 0 individuo "faz
.~
sobre as ciencias sociais. Mas isso certamente nao e tudo. Aqui acontecer" como caracteristica inerente a ele ser um agente. Mas
tambem se implica a suposi9ao de que 0 unico conhecimento como a monitora9ao reflexiva da a9ao e limitada, conforme
proveitoso acerca de atores ou institui90es sociais de interesse tenho freqiientemente insistido, existem fatores causais influen-
das ciencias sociais e aque!e que esses atores nao possuem eles ciando a a9ao sem atuar atraves de sua racionaliza9ao. Segue-
pr6prios. Disso vern a inclina9ao para reduzir a um minimo 0 co- se do que foi anteriormente dito que esses fatores sao de dois
nhecimento imputado a atores, ampliando assim 0 ambito de tipos: influencias inconscientes e influencias que afetam as cir-
opera9ao de mecanismos causais que tern seus efeitos indepen- cunstincias da a9ao, em cujo ambito os individuos levam a
dentemente das razoes dos individuos para fazer 0 que fazem. efeito sua conduta.
Ora, se esse tipo de ponto de vista nao e viavel, em bases que exa- Essas segundas influencias sao, de longe, as mais impor-
minei em certo detalhe ao longo deste livro, teremos de rever a tantes para fins de analise social, mas, como "circunstancias cia
natureza das leis em ciencia social. 0 fato de nela nao existirem a9ao" e uma expressao muito generica, ela precisa ser explica-
leis universais conhecidas nao e apenas uma casualidade. Se e da em certo detalhe. Toda a9ao ocorre em contextos que, para
correto dizer, conforme argumentei, que os mecanismos causais qualquer ator, incluem muitos elementos que este nao ajudou a
nas generaliza90es cientificas sociais dependem das razoes dos produzir nem possui qualquer controle significativo sobre oles.
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408 A CONSTITUI(:AO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURAr;:AO 409
Essas caracteristicas facilitadoras e coercivas dos contextos de guem sugerira ser isso a expressao de uma lei universal; nao
a,ao incluem fenomenos materiais e sociais. Com rela,ao aos obstante, trata-se de urna generaliza,ao potencialmente escla-
fenomenos sociais, e preciso salientar que 0 que para urn indi- recedora. A rela,ao causal que ela pressup5e depende dos tipos
viduo e urn aspecto controlavel do milieu social, para outros de tomada de decisao especificadas por Gambetta. Mas, como
pode ser algo que "acontece" em vez de algo que se "faz acon- assinala esse autor, se os pais ou as crian,as (de qualquer das
tecer". Muitas das caracteristicas mais delicadamente sutis, classes) chegam a conhecer a generaliza,ao, poderao incorpo-
bern como as intelectualmente mais desafiadoras, da analise ra-la em sua avalia,ao da propria situa,ao que ela descreve e,
social derivam disso. Ora, e possivel admitir que todas as gene- portanto, em principio, enfraquece-la.
raliza,oes abstratas nas ciencias sociais sao, explicita ou impli- Podemos dizer, como muitos outros ja 0 fizeram, que as
citamente, enunciados causais. Mas, como me preocupei em generaliza<;:oes nas ciencias sociais sao de carater "hist6rico",
enfatizar ao longo deste livro, importa muitissimo saber que desde que tenhamos em mente os muitos sentidos assurnidos
tipo de reia,oes causais esta envolvido. Quer dizer, as situa,oes por esse termo. Nesta conota,ao particular, significa apenas que
em que os participantes "fazem acontecer" urn resultado regu- as circunstancias nas quais as generaliza90es se sustentam sao
larizado diferem substancialmente daquelas em que esse resul- temporal e espacialmente circunscritas, na medida em que de-
tado "acontece" de urn modo nao pretendido por nenhurn parti- pendem de combina,5es definidas de conseqiiencias premedi-
cipante. Como 0 conhecimento dos agentes sobre as condi,5es tadas e impremeditadas da a,ao. Sendo esse 0 caso, sera licito
que influenciam a generaliza,ao e causalmente pertinente a chamar de "leis" as generaliza,5es nas ciencias sociais? lsso
ela, essas condi,5es podem ser alteradas por mudan,as nesse depende inteiramente do rigor com que se deseje interpretar 0
conhecimento. A profecia auto-realizadora e urn, mas apenas termo. Em minha opiniao, como na ciencia natural a "lei" tende
urn, exemplo desse fenomeno. a estar associada a esfera das rela,5es invariantes, mesmo no caso
Cabe aqui uma advertencia. Existem sempre condi,5es- daquelas que nao sao universais na forma, e preferivel nao usar 0
limite para os efeitos de leis na ciencia natural. Mas elas nao termo nesse campo do conhecimento. Em todo caso, e importan-
afetam a rela,ao causal invariante que esta no nucleo das tare- Ie evitar a implica,ao dos defensores da sociologia estrutural de
fas explicativas pelas quais pode ser feita referencia illei. No que as "leis" somente sao encontradas quando conseqiiencias im-
caso de generaliza,5es em ciencia social, os mecanismos cau- premeditadas estao envolvidas de modo significativo com rela-
sais sao inerentemente instaveis, e 0 grau de instabilidade de- ,ao a determinada serie de fenomenos. Por outras palavras, as
pende de ate que ponto os seres aos quais a generaliza,ao se re- generaliza,5es sobre a conduta social hurnana podem refletir
fere sao suscetiveis de apresentar modelos padronizados de diretamente maximas de a,ao deliberadamente aplicadas por
raciocinio, de forma a produzir tipos-padrao de conseqiiencias agentes. Como sublinhei neste capitulo, ate que ponto isso e villi-
impremeditadas. Considere-se 0 tipo de generaliza,ao sugeri- do em qualquer conjunto especificado de circunstilncias tern de
do pelo estudo de Gambetta: "Quanto mais avan,ada estiver urna ser urna das principals tarefas da pesquisa social.
crian,a da classe operaria nurn sistema educacional, menores
sao as probabilidades de que ela desista de estudar, em compa-
ral;ao com crian<;:as de Qutras classes sociais." Neste caso, as As conota,iies praticas da ciencia social
conseqiiencias impremeditadas apontavam para a forma,ao de
urn padrao estatistico, 0 resultado de urn agregado de decis5es As ciencias sociais, diferentemente da ciencia natural, es-
de individuos separados no tempo e no espa,o. Creio que nin- tao inevitavelmente envolvidas nurna "rela,iio sujeito-sujeito"
 410 A CONSTlTUIi;:AO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA9AO 411

com aquilo de que se ocupam. As teorias e descobertas das o que se segue e urna formula9ao tipica de tal ponto de
ciencias naturais estao separadas do universo de objetos e even- vista, de urn autor que, alias, esta muito longe de ser urn segui-
tos a que dizem respeito. [sso assegura que a rela9ao entre co- dor de Comte:
nbecimento cientifico e 0 mundo objetal permanece sendo
urna rela9ao "tecnoI6gica", na qual 0 conbecimento acumulado Como cientistas sociais, compartilhamos com todas as pes-
e "aplicado" a urn conjunto independentemente constituido de soas razoavelmente educadas do mundo de uma compreensao
fen6menos. Mas na ciencia social a situa9ao e diferente. Como geral e perturbadora de que, em nosso campo de estudo, 0 pro-
gresso e muito mais leota do que nas ciencias naturais. Sao as
disse Charles Taylor: "Embora a teoria da ciencia natural tam-
descobertas e inven~5es destas ultimas que estao provocando
bern transforme a pr:itica, a pr:itica que ela transforma nao e
irresistiveis mudao<;as radicais oa sociedade, enquanto as 008-
aquilo de que a teoria se ocupa. [...] Pensamos nela como urna sas, ate agora, foram muito mais pobres em conseqiiencias. Ha ern
'aplica9ao' da teoria." Nas ciencias sociais, "a pr:itica e 0 obje- propagayao uma insidiosa ansiedade acerca do perigoso hiato
to da teoria. Nesse dominio, a teoria transforma 0 seu proprio inerente a esse contraste. Enquanto 0 poder do homern sobre a
objeto"'". As implica90es disso sao muito consideniveis e tern a natureza esta aumentando depressa e, na verdade, acelerando
ver com 0 modo como avaliamos as realiza90es das ciencias rapidarnente, 0 controle do hornem sobre a sociedade, 0 que sig-
sociais, assim como seu impacto pnitico sobre 0 mundo social. nifica, em primeiro lugar, sobre as suas proprias atitudes e insti-
Se aceitassemos 0 ponto de vista daqueles que supoem que tuir;oes, esta ficando muito para tras. Ern parte, pelo menos, isso
deve-se ao mais lento ritmo no avanyO de nosso conhecimento
as ciencias sociais devem ser imita.;:6es das ciencias naturais,
sobre 0 homem e sua sociedade, 0 conhecimento que deve ser
nao hi duvida de que 0 ponto de vista anterior deveria ser con-
traduzido em ar;ao para a refonna social.5 1
siderado urn fracasso. A ciencia social nao apareceu no cenano
com os tipos de lei precisa encontrada nas areas mais refinadas A primeira vista, nada parece mais 6bvio que 0 fate de 0
da ciencia natural e, por razoes a que ja aludi, tampouco 0 fara impacto transformativo das ciencias naturais ter sido incompa-
no futuro. Em face das circunstancias, pareceria que 0 fim da ravelmente maior do que 0 das ciencias sociais. A ciencia natu-
aspira9ao de criar urna "ciencia natural da sociedade" marca 0 ral tern seus paradigmas, suas descobertas merecedoras de con-
fim da ideia de que as ciencias sociais poderao afetar "seu mun- cordancia unanime, 0 conbecimento de alta generalidade ex-
do", 0 mundo social, no mesmo grau em que as ciencias natu- presso com precisao matem:itica. Nela, os "fundadores" sao
rais influenciaram 0 "delas", Durante gera90es, aqueles que esquecidos ou olhados como os originadores de ideias que so
propuseram sociologias naturalistas fizeram-no com base na no- possuem urn interesse arqueologico. A fusao de ciencia e tec-
93:0 de que a ciencia social necessita "alcanc;ar" a ciencia natu- nologia gerou formas de transforma9ao material na mais ex-
ral, intelectual e praticamente. Por outras palavras, sustenta-se traordinaria das escalas. Por outro lado, a ciencia social esta, ao
que esta ultima superou comprovadamente a primeira em ter- que parece, cronicamente dilacerada por divergencias e anta-
mos de suas realiza90es intelectuais e, portanto, de suas conse- gonismos, incapaz de esquecer seus ~'fundadores", cujos escri-
qiiencias praticas. 0 problema consiste, para as ciencias so- tos sao considerados de importancia permanente. Os govemos
ciais, em recuperar 0 terreno perdido, a fim de aplicarem suas de hoje poderao ocasionalmente olhar para ela como fonte de
descobertas ao controle dos eventos no mundo social, de urn informa9ao para decis5es politicas; mas isso parece ser de con-
modo paralelo. 0 programa de Comte fundamentou-se nesse tipo seqiiencia trivial e marginal quando comparado com 0 impacto
de criterio e dai em diante nunca mais deixou de ser sistemati- global da ciencia natural. 0 maior prestigio social de que esta
camente reiterado, de urna forma ou de outra. ultima desfruta, em compara9ao com as ciencias sociais, esta em
 412 A CONSTITW!;AO DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA!;AO 413

plena concordiincia com suas realiza90es e influencia material ao seu dominio e por outros que se lhes opoem. As conseqiien-
muito diferentes. cias praticas de panfletos como os de Maquiavel sao susceti-
Mas estara correta essa 009ao convencional da ciencia so- veis de ser tortuosas e ramificadas. Estao muito longe da situa-
cial como a rela9ao inferior? Pode-se dizer, pelo menos, que se 9a O na qual as descobertas das ciencias sociais sao cotejadas e
torna muito menos facil sustenta-la se considerarmos 0 signifi- avaliadas numa esfera (a "critica interna" de especialistas pro-
cado da dupla hermeneutica. As ciencias sociais, repetimos, nao fissionais) e simplesmente "aplicadas" nurna outra (0 mundo
estao isoladas de "seu mundo" do modo como as ciencias natu- da a9ao pratica). Mas elas sao mais tipicas do destino do co-
rais estao do "delas". Isso certamente compromete a realiza9ao nhecimento cientifico-social do que 0 ultimo caso descrito.
de urn corpus distinto de conhecimento do tipo procurado por Ora, a questao de saber se e justificado chamar Maquiavel
aqueles que adotam a ciencia natural como modelo. Entre- de "cientista social" poderia ser discutida com base em que
tanto, ao mesmo tempo, significa que as ciencias sociais parti- seus escritos precedem a era na qual se tornou sistematizada a
cipam da propria constitui9ao de "seu mundo" de urn modo reflexao sobre a natureza das institui90es sociais. Suponhamos,
que e vedado aciencia natural. porem, que examinemos 0 periodo mais recente, que com-
Considere-se 0 seguinte: preende as decadas finais do seculo XV111 e a parte inicial do
seculo XIX. Foi a epoca, poder-se-ia argumentar, em que co-
Quando urn homem se torna principe por concessao do me90 u a pesquisa empirica detalhada das questoes sociais.
pova, ele cleve manter-se seu amigo, 0 que e muito faeil, pois Alguns consideraram 0 periodo a primeira fase em que as ciencias
este deseja apenas nae ser oprimido. Mas quem se tomar princi- sociais receberam urna base comprobatoria que podia come9 ar
pe contra a opiniao popular, por concessao dos grandes, cleve,
a assemelhar-se a da ciencia natural. Entretanto, 0 impressio-
antes de mais, procurar conquistar 0 pova. Ser-Ihe-a facit iS50,
desde que se tenha ocupado em protege-Io. E, como os homens,
nante e que as tecnicas de pesquisa desenvolvidas, e os "dados"
quando recebern beneficios de quem s6 esperavarn 0 mal, se gerados, tornaram-se imediatamente parte significativa da so-
obrigam mais para com 0 benfeitor, toma-se 0 povo logo mais ciedade para cuja analise elas foram usadas. A abundiincia de
seu amigo do que se 0 principe tivesse side levado ao poder por estatisticas oficiais e sintoma e resultado material desse pro-
vontade sua. 5~ cesso. Sua coleta foi possibi!itada pelo usa de metodos siste-
maticos de pesquisa social. 0 desenvolvimento desses metodos
o teorema de Maquiavel nao e apenas uma observa9ao e inseparavel dos novos modos de controle administrativo pos-
sobre 0 poder e 0 apoio popular em politica. Pretende ser e foi sibilitados pela coleta de estatisticas oficiais. Uma vez estabe-
aceito como urna contribui9ao para 0 mecanismo de governo. lecidas, estas ultimas propiciaram, por sua vez, novos tipos de
Pode-se afirmar sem exagero que a pratica de governo nunca analise social- por exemp10, a pesquisa de padroes demografi-
mais foi a mesma depois que os escritos de Maquiavel se torna- cos, criminalidade, divorcio, suicidio etc. Entretanto, a literatu-
ram conhecidos. Sua influencia nao e faci! de descrever. "Ma- ra sobre esses topicos foi, por seu turno, reincorporada aprati-
quiavelico" tornou-se urn termo pejorativo em parte por razoes ca dos interessados na Produ9ao das estatisticas pertinentes. A
que nao tern muito a ver com 0 conteUdo do que Maquiavel literatura sobre suicidio, por exemplo, e largamente lida por jui-
realmente escreveu - por exemplo, devido ao suposto compor- zes de inslru9ao, funcionmos judiciais e outros, inclusive aque-
tamento de governantes que £0 sua interpreta9ao pessoal ao les que pensam em cometer ou cometem atos suicidas".
que ele teve a dizer. Principios que podem ser aplicados por o desenvolvimento de metalinguagens teoricas e a espe-
principes tambem 0 podem por aqueles que estiio submetidos cializa9 ao exigida pelo estudo intensivo de areas especificas da
 414
A CONSTITUIr;A-O DA SOCIEDADE 415
A TEORIA DA ESTRUTURAr;AO
vida social evidentemente asseguram que as ciencias sociais
dos textos. Na Inglaterra, pensava-se geralmente que 0 autor
nao se tomem totalmente fundidas com seu "objeto de estudo".
fosse urn manancial de deprava,6es, antes de a primeira tra-
Mas, uma vez que se apreende como e complexa, intima e con- du,ao inglesa de 0 principe serpublicada em 1640.
tinua a associa~ao entre analistas sociais "profissionais" e lei- 4) 0 tipo de discurso usado por Maquiavel em seus escritos foi
gos, fica facil perceber por que 0 profundo impacto da ciencia
um elemento ou aspecto de mudan,as fundamentais nas or-
social sobre a constitui,ao de sociedades modernas permanece
dens juridica e constitucional de Estados modemos. Pensar
oculto a visao. As "descobertas" da ciencia social, se realmente sobre "politica" de um modo particular e substantivamente
sao interessantes, nao podem permanecer enquanto tais por mui-
novo era essencial para aquilo que a "politica" se tomou".
to tempo; de fato, quanto mais esclarecedoras elas forem, mais
5) Um govemante que se pensasse ser urn seguidor de Maquia-
provavelmente serao incorporadas a a,ao e se tornarao, desse
vel, e tentasse govemar de acordo com preceitos maquiave-
modo, principios familiares da vida social.
listas, talvez achasse mais dificil aplica-Ios do que um outro
As teorias e descobertas das ciencias naturais estao numa que nao fosse conhecido como tal. Por exemplo, os suditos
rela,ao "tecnologica" com seu "objeto de estudo". Ou seja, a
de urn governante, que conhe,am 0 preceito de que um povo
informa,ao que geram tern significado prlitico enquanto "meio"
tende a ser particularmente receptivo a favores concedidos
aplicado para alterar um mundo de objetos e acontecimentos por alguem que ele esperava ser urn opressor, poderao des-
aut6nomo e independentemente dado. Mas as ciencias sociais
confiar justamente desses favores.
nao estao somente numa rela9ao "tecnoI6gica" com seu "obje- 6) Maquiavel estava perfeitamente ciente da maioria dos pontos
to de estudo", e sua incorpora,ao na a,ao leiga e apenas margi-
acima e advertiu explicitamente sobre algumas de suas impli-
nalmente "tecnologica". Muitas permutas possiveis de conhe-
ca,6es em 0 principe. Portanto, muitos desses pontos toma-
cimento e poder decorrem disso. Para demonstrar ser esse 0 caso,
ram-se ainda mais complexos na medida em que a propria
poderiamos retornar ao exemplo das observa,6es de Maquia-
consciencia deles passou a fazer parte da atividade politica.
vel sobre a natureza da politica. Os topicos seguintes sao possi-
veis envolvimentos e ramifica,6es dos escritos de Maquiavel:
Mas por que as formula,6es de Maquiavel devem perma-
necer significativas hoje, e ser seriamente discutidas como per-
I) Maquiavel pode, numa parte substancial, ter dado apenas tinentes as sociedades existentes, se foram absorvidas, de va-
uma certa forma de expressao ao que muitos governantes, e riadas maneiras, nessas sociedades? Por que os que trabalham
sem duvida outras pessoas tambem, ja sabiam _ talvez ate nas ciencias sociais DaD podem esquecer seus "fundadores",
soubessem algumas dessas coisas discursivamente, embora como os cientistas naturais fizeram? A resposta poderia ter a
seja improvavel que tenham sido capazes de expressa-Ias
ver precisamente com 0 carliter constitutivo das ideias que um
tao incisivamente quanto 0 autor.
pensador como Maquiavel formula e representa. Maquiavel
2) 0 fato de Maquiavel ter escrito esses textos introduziu urn
fornece-nos os melos de ponderada reflexao sobre conceitos e
novo fator, assim que eles se tomaram acessiveis, 0 qual nao
prliticas que se tomaram parte da natureza da soberania, do
existia antes quando as mesmas coisas eram conhecidas, se
eram. poder politico etc., em sociedades modemas. Ao estudar seus
escritos, obtem-se uma percep,ao do que M de distinto no Es-
3) "Maquiavelico" tomou-se urn termo pejorativo entre aque-
tado moderno, porque ele escreveu num periodo relativamente
les que ouviam falar das ideias assumidas por Maquiavel
inicial de seu desenvolvimento. Tamhem nao M duvida de que
sem ter necessariamente urn conhecimento em primeira mao desvenda ou da uma forma discursiva especifica a principios
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A CONSTITUl9A'O DA SOClEDADE 417
A TEORJA DA ESTRUTURA9AO

de govemo que tern aplical'ao muito generalizada em Estados de va-se muito menos com relal'ao a teorias e descobertas que tern
todos os generos. Entretanto, a principal razao pela qual seus o maximo a oferecer em termos de seu valor revelador. Esta
escritos nao tern "data" e que eles constituem uma serie de re- constitui grande parte da razao pela qual poderia parecer que as
flexoes (estilisticamente brilhantes) sobre fenomenos que aju- ciencias sociais fomecem muito menos informal'ao de valor
daram a constituir. Sao formulal'oes de modos de pensamento para os criadores de diretrizes politicas do que as ciencias natu-
e al'ao pertinentes as sociedades modemas, nao so em suas ori- rais. As ciencias sociais ap6iam-se necessariamente em muito
gens, mas tamb.om em sua forma organizacional mais perma- do que ja .0 conhecido dos membros das sociedades que elas
nente. Vma teoria arcaica da ciencia natural nao traz urn inte- investigam, e fomecem teorias, conceitos e conclusoes que se-
resse particular, urna vez que outras melhores tenham surgido. As rao reintroduzidos no mundo que descrevem. Os "hiatos" que
teorias que se tomam parte de seu "objeto de estudo" (embora, podem aparecer entre 0 aparelho conceptual do especialista e
talvez, em outros aspectos, resistindo a tal incorporal'ao) retem as descobertas das ciencias sociais, por urn [ado, e as prillicas
necessariamente uma importancia que as teorias arqueologicas inteligentes incorporadas a vida social, par outro, sao muito
da ciencia natural nao possuem. menos claros do que na ciencia natural. Encaradas de urn ponto
Promover 0 cariller critico da ciencia social significa favo- de vista "tecnologico", as contribuil'oes praticas das ciencias so-
recer uma percepl'ao conceptual desenvolvida das conotal'oes ciais parecem ser, e sao, restritas. Entretanto, vistas em termos
pniticas de seu proprio discurso. 0 fato de as ciencias sociais de sua infiltral'ao no mundo que analisam, as ramifical'oes pra-
estarem profundamente implicadas naquilo com que se ocu- ticas das ciencias sociais foram, e sao, deveras profundas.
pam sugere urn papel basico para a historia das id.oias. Assim,
por exemplo, os estudos de Skinner a respeito do surgimento de
formas modemas de discurso no Estado pos-medieval demons-
tram como estas se tomaram constitutivas daquilo que 0 Es-
tado .os>. Ao provar que a natureza do Estado modemo pressu-
poe urn coletivo de cidadaos que sabe 0 que .0 e como funciona
esse Estado, Skinner ajuda-nos a ver Como .0 especifica e dis-
tintiva essa forma de Estado e como ela esUi entretecida com as
mudanl'as discursivas que passaram a fazer parte das praticas
sociais leigas.
As ciencias sociais nao podem fomecer conhecimento (re-
levante) que possa ser "contido", pronto para estimular inter-
venl'oes sociais apropriadas quando necessmo. Na ciencia na-
tural, os crit.orios comprobatorios envolvidos na decisao entre
teorias e hipoteses esmo (em principio e usualmente tambem
na pratica, com excel'oes tais como 0 Lysenkoismo) nas maos
de seus especialistas profissionais. Eles podem prosseguir com
a tarefa de filtrar provas e formular teorias sem interrupl'ao do
mundo a que as provas e teorias se referem. Mas nas ciencias
sociais essa situa.;ao nao se observa - au, mais exatamente, obser-
 A TEORJA DA ESTRUTURA(:AO 419
Notas criticas: ciencia social, histOria e geografia
marcada por nenhurna mudan9a perceptivel nem mesmo por
urna sugestiio de movimento"'. Vejo urn homem passar capen-
gando, com urna perna de pau. Ele e parte do "presente conti-
nuo", a menos que eu 0 perceba nao como urn homem com
urna perna de pau, mas como urn homem que perdeu sua perna.
Tal consciencia do passado, argumenta Oakeshott, e suscitada
nao por negligencia do presente, mas por urna interpreta9ao
especial do presente que atende ao que e evocado pela palavra
"perdeu". 0 presente em compreensao hist6rica e composto de
tudo 0 que se reconhece como remanescentes ou reliquias de urn
Os historiadores, como eu disse, nao podem ser propriamen- "passado conservado":
te considerados especialistas numa dimensao de tempo, assim
A (mica entrada de urn historiador no passado e por meio
como os geografos tampouco podem ser vistos como especia- desses remanescentes. E a primeira preocupa<;ao de uma investi-
listas nurna dimensao de espa90. Essas divisoes disciplinares, ga<;ao hist6rica consiste em reuni-los desde oode se encontram
como vulgarmente concebidas, sao expressoes concretas da re- dispersos no presente, recuperar 0 que podeni ter sido perdido,
pressao de tempo e espa90 em teoria social. Elas tern uma con- impor algum tipo de ordem a essa confusao, reparar os danos que
trapartida na ideia de que a ciencia social se ocupa de leis de possam ter sofrido, reduzir sua fragmentac;ao, discemir suas re-
uma natureza universal ou, pelo menos, altamente geral. Aqui lal;oes, reconhecer urn rernanescente em termos de sua prove-
temos a clara divisao tradicional entre ciencia social e historia: niencia e, assirn, determinar seu carater autentico como urn desem-
uma supostamente preocupada com a generaliza9ao, que e in- penho passado de ordem pratica, ou filos6fica, ou artistica etc. J
diferente a tempo e lugar; a outra analisando 0 desdobramento
de eventos situados no tempo-espa90. Nao penso ser necessario, Atraves dos fragmentos do passado que sobreviveram, 0
a luz das principais ideias que procurei desenvolver neste livro, historiador tenta recuperar aqueles aspectos do passado que se
alongar-me nurna explica9ao de por que essa ideia tradicional e esfumaram no tempo.
destituida de valor. Essa interpreta9ao da natureza da historia poder,,- ser en-
Se os historiadores nao sao especialistas em tempo, no tendida de dois modos algo diferentes, concebendo a hist6ria
que fica a n09ao de que eles sao especialistas no estudo do pas- como empenhada em recuperar urn passado perdido ou como
sado? Essa n095.0 e nao 56, talvez, intuitivamente atraente, mas preocupada com tecnicas especificas de hermeneutica textual
tambem tern sido defendida por muitos historiadores eminen- de algum modo peculiar ao historiador. De acordo com a primei-
tes, assim como por filosofos. Oakeshott explica 0 termo "pas- ra interpreta9ao, a historia teria urn "objeto proprio de estudo"
sado historico" da seguinte maneira'*. 0 mundo que urn indivi- bern definido; de acordo com a segunda, sua caracteristica mais
duo percebe, diz ele, esta "inconfundivelmente presente". Es- notivel seria primordialmente metodol6gica. Mas nem urna nem
tou postado no meio-fio de urna rna e observo 0 que se passa a outra dessas interpreta90es tern muita plausibilidade quando
minha volta. Enquanto ali estou, 0 tempo passa, mas eu assisto examinada mais detalhadamente. Por "presente", como seu
a urn "presente continuo", no qual "a passagem do tempo nao e exemplo do individuo na esquina da rna deixa claro, Oakeshott
entende algo proximo do que eu denominei "presen9a". Mas os
* As referencias podem ser encontradas a pp. 436-8. limites da presen9a sao tanto espaciais quanto temporais. A
 420 A CONSTITUl(:A'O DA SOCIEDADE 421
A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO

recupera,ao interpretativa de um passado perdido nao pode ser como descri,oes de um dado contexto de atividades - depende
facilmente separada - nem 0 deve ser - da elucida,ao interpre- nao da "distancia" no tempo mas de quanto se pode extrair de
tativa de diferen,as culturais disseminadas "Iateralmente" por materiais disponiveis, ainda que escassos, e do grau de diferen-
toda a face do globo. Pois toda a analise dessa natureza envolve ,a cultural envolvido.
a coordena,ao do temporal e do espacial de modos sutis e intri- Portanto, se existem duas disciplinas cuja interse,ao en-
cados. 0 leitor que nao admite esse ponto nao tera muita sim- volve os limites de presen,a, certamente sao a arqueologia e a
patia pela teoria da estrutura,ao, tal como a desenvolvi nas hermeneutica: a primeira, porque esta e a disciplina por exce-
paginas precedentes. Se 0 ponto de vista de Oakeshott e consi- lencia que se ocupa de reliquias ou remanescentes, a quinqui-
derado metodologico, por outro lado, subentende que 0 carater lharia arremessada nas praias dos tempos modemos e ai deixada
distinto da historia reside na competencia do historiador, en- quando as correntes sociais nas quais foi criada se escoaram; a
quanta especialista na interpreta,ao de textos ou reliquias segunda, porque todos os remanescentes de um "passado con-
remanescentes de eras passadas. Essa ideia recebe certamente servado" tern de ser interpretados, sejam eles ceramicas ou tex-
considenivel apoio entre as historiadores, e nao sem razao, pais tos, e porque essa tarefa de recuperar 0 passado e conceptual e
e por demais evidente que a leitura atenta e a elucida,ao de tex- metodologicamente indistinguivel da interposi,ao de redes de
tos ou reliquias materiais e uma preocupa,ao primordial da significado encontrados em culturas coexistentes.
pesquisa historica. Muitos cientistas sociais poderiio tambem Se a ciencia social nao e, e nao pode ser, a historia do pre-
ver uma divisao de trabalho entre historia e ciencia social de sente, e se nao esta, nem pode estar, preocupada simplesmente
acordo com essa ideia; os atores nos quais 0 cientista social com generaliza,oes amargem do tempo e do espa,o, entao 0 que
esta interessado estao vivos e, portanto, epassivel ter comuni- a distingue da historia? Penso que temos de responder como
ca,ao direta com eles; aqueles que interessam ao historiador, Durkheim (embora adotando uma linha diferente de raciocinio
estando mortos, inviabilizam tal comunica,ao. A diferen,a e para chegar a esse resultado): nada - quer dizer, nada que seja
obviamente de grande importancia, nao so porque os vivos po- conceptualmente coerente ou intelectualmente defensavel. Se
dem responder a perguntas enquanto os mortos nao podem, mas existem divisoes entre ambas as ciencias, elas sao divisoes subs-
tambem porque os vivos podem igualmente replicar. Quer di- tantivas de trabalho; nao h:\ um cisma logico ou metodologico.
zer, eles podem questionar ativamente, ou alterar sua alividade Os historiadores especializados em determinados tipos de ma-
em fun,ao de quaisquer "descobertas" que tenham sido difun- teriais textuais, linguagens ou "periodos" nao estao livres de
didas a respeito deles. Entretanto, nao se segue dai que possa envolvimento com os conceitos da teoria social e os dilemas
ser feita uma divisao proveitosa entre historia e ciencia social que Ihes sao inerentes. Mas os cientistas sociais cujas preocu-
de acordo com essa orienta,ao. Pois a maior parte da ciencia pa,oes sao as teorias mais abstratas e gerais sobre a vida social
social e feita em - e atraves de - textos e outros materiais "se- nao estao igualmente livres das exigencias hermeneuticas da
cund:\tios", tal como 0 e a historia. Os esfor,os que um cientis- interpreta,ao de textos e outros objetos culturais. A pesquisa his-
ta social podera despender em comunica,ao direta com os torica e pesquisa social e vice-versa.
agentes sujeitos de suas investiga,oes sao provavelmente exi- Dizer isso ja deixou de ser, por certo, a heresia que foi
guos quando comparados com os que devem ser consumidos outrora. Vejamos, em primeiro lugar, 0 que esteve acontecendo
no trabalho com materiais textuais. Alem disso, ate que ponto do lado da historia. Abrams resume as coisas muito bern quan-
existem problemas interpretativos a ser resolvidos para que os do diz acerca do trabalho de historiadores:
textos adquiram sentido - usando-os como exemplifica,oes e
 422
A CONSTITUIt:;A'O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURAt:;AO 423
o desenvolvimento realmente significativo dos ultimos vio- tensoes da chamada "hist6ria narrativa". 0 debate entre os de-
te anos foi a publicar;ao de urn solido acervo de trabalho hist6ri-
co teoricamente autoconsciente, que progressivamente mostrou
fensores da "nova hist6ria", por urn lado, e os proponentes da
o que havia de absurdo nas concep90es de hist6ria anteriares, "hist6ria narrativa", por outro, pode ser, em alguns aspectos
como alga que, de certa forma, nao estava, em principia, envol- principais, perfeitamente visto como a versao dos historiadores
vida no mundo tearieD das ciencias sociais. A mudanr;a social e do mesmissimo dualismo de a,ao e estrutura que tern assedia,
feita por pessoas que fazem caisas novas. A medida que as do 0 desenvolvimento da ciencia social em gera!. Aqueles que
obras-primas reconhecidas da disciplina da hist6ria vaa ficando, favorecem a hist6ria narrativa objetam quanta it maneira como
teoricamente, cada vez mais explicitas, e que a unidade do meto- a "nova hist6ria" tende a oferecer descri,oes da conduta hwna,
da tearieo da hist6ria e da sociologia torna-se, desse modo, cada na, implicando que esta e 0 resultado de causas sociais fora da
vez mais 6bvia, a insistencia continua de urn remanescente de
influencia dos atores envolvidos. Eles estao certos em assim
historiadores profissionais em que a teoria nao faz parte de seu
neg6cio torna-se cada vez mais firmemente a base efetiva da proceder, pois 0 proveito de incluir na hist6ria estilos de teori,
"institui~ao" da hist6ria e cada vez mais abertamente uma nos- za,ao eivados de falhas desde a origem e suscetivel de ser estri,
talgia ineficaz. 4 tamente limitado. Mas propor a "hist6ria narrativa" como alter,
nativa da "hist6ria analitica", como se tivessemos que optar
A expressao fundamental aqui e "unidade do metodo te6, exclusivamente por wna em detrimento da outra, e certamente
rico". Os problemas da teoria social, de agencia, estrutura e for, urn equivoco.
mas de explica,ao, sao compartiIhados em geral por todas as Supostamente a hist6ria narrativa e a narra,ao de hist6-
ciencias sociais, seja qual for a divisao de trabalho que, em rias, no reconhecimento consciente da raiz comum que Hhist6ria"
outros aspectos, possa existir entre eIas. (history) tern com "hist6ria" (story) e do fato de que histoire
Stone escreveu perspicazmente sobre a influencia das significa ambas as coisas. As hist6rias contadas tern de harrno,
ciencias sociais sobre a hist6ria nas duas decadas mencionadas nizar,se com as exigencias da prova fatual, mas 0 que lhes con,
por Abrams'. Ele distingue virias maneiras pelas quais os en, fere coesao e impoe a anuencia do leitor e a coerencia do enre-
voIvidos na "nova hist6ria" foram influenciados pelas ciencias do, 0 modo pelo qual 0 cariler deliberado da atividade dos des,
sociais. Os historiadores, ele concorda com Abrams, adquiri, critos e transmitido e os contextos da atividade sao retratados.
ram maior consciencia de seu inevitivel envolvimento com a Assim, no decorrer de sua descri,ao do que e hist6ria narrativa,
teoria social, isto e, passaram a aceitar que nao podem deixar Elton observa: "Para que a a,ao possa ser entendida, seu cenirio,
inteiramente implicitas as pressuposi,oes te6ricas que guiam circunstancias e fontes devem ser evidenciados"6, uma afirma-
seu trabalho; ao expliciti-las, estao colocando sobre a mesa ,ao que nao sofre obje,oes. Conforme analisadas por Elton e
cartas que anteriormente talvez preferissem manter escondidas outros, narrativa e 0 que mencionei antes como etnografia sao
nas maos. Outras contribui,oes das ciencias sociais foram mais mais ou menos a mesma coisa. Mas se disso nao se segue que 0
metodoI6gicas. Metodos de quantifica,ao foram aplicados com uso de tecnicas etnogrificas deve estar inevitavelmente asso,
algum exito a wna serie de diferentes questoes hist6ricas _ wn ciado ao subjetivismo, tampouco se segue que a hist6ria narra,
fenomeno de importancia, quando menos devido ao uso de tais tiva tenha qualquer conexao 16gica com wna posi,ao te6rica
metodos constituir urn ponto de partida inteiramente novo em que rejeite conceitos estruturais. Os defensores da hist6ria nar,
hist6ria.
rativa estao plenamente justificados ao objetar contra a intro,
Entretanto, com rela,ao a essas contribui,oes, houve uma du,ao indiscriminada dos conceitos de sociologia estrutural na
pressao contriria por parte dos interessados em impor as pre- obra de historiadores. Mas nao tern razao em supor que esses
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"

424 A CONSTITU[(;:AO DA SOCIEDADE A TEOR/A DA ESTRUTURAt:;AO 425

conceitos possam ser totalmente ignorados. 0 que faz de uma Mas 0 que essa divisao descreve e a que existe entre preocupa-
narrativa uma "hist6ria" persuasiva nao e apenas a coerencia do 90es generalizadoras e outras mais especificas, nao entre socio-
enredo, mas, como diz Elton, a compreensao de "cemirio, cir- logia e hist6ria".
cunstancias e fontes" de a9ao. Entretanto, os cenarios e circuns- o termo "sociologia" foi inventado por Comte e, ate tem-
tancias em que a a9ao ocorre nao vern do nada; eles pr6prios pos muito recentes, preservou em maior propor9ao uma forte
precisam ser explicados dentro do mesmo quadro 16gico em conexao com 0 estilo de pensamento do qual ele foi urn repre-
que tambem deve ser explicada a a9ao descrita e "compreendi- sentante lilo proeminente. Muitos que refutaram 0 evolucionis-
da". E exatamente esse fen6meno que considero basico na for- mo e 0 funcionalismo associaram a sociologia, nao obstante, a
mula9ao da teoria da estrutura9ao. alguns dos principios bitsicos do objetivismo. As "hip6teses ge-
Consideremos brevemente 0 assunto pelo lado dos recentes rais" de que fala Lipset sao comurnente consideradas tal como
desenvolvimentos em ciencia social, concentrando-nos sobre- as discuti acima, isto e, como leis que expressam rela90es cau-
tudo na sociologia. Poderiamos dizer que a sociologia tern suas sais que funcionam de urn modo algo independente da voli9ao
origens na hist6ria modema, concebida como a analise das ori- dos agentes a cuja conduta elas se referem. Nao e apenas 0 con-
gens e impacto do capitalismo industrial no Ocidente. Mas traste entre 0 "nomotetico" e 0 "ideognifico" que os soci610gos
quando tais problemas foram tratados pela gera9ao de autores sao propensos a ter em mente neste caso. Se, como a sociologia
sociol6gicos p6s-Segunda Guerra Mundial, eles renderam-se estrutural sugere, 0 carater distinto da sociologia deve ser en-
freqiientemente as forrnas de evolucionismo que me interessei contrado precisamente em sua preocupa9ao dominante com a
antes em criticar. Deve ficar claro que 0 evolucionismo pode coer9ao estrutural, pode ser aduzida a implica9ao de que os
facilmente tomar-se mais urn inimigo da hist6ria do que 0 alia- historiadores trabalham em mais estreito contato com as ativi-
do que superficialmente poderia parecer, pois encoraja urn des- dades contextualizadas de agentes intencionais. Se e dessa
respeito arbitrario a quest6es de detalhe hist6rico, ao introduzir maneira que os conceitos "socioI6gicos" sao entendidos quan-
a for9a a hist6ria humana em esquemas previamente fixados. do introduzidos na hist6ria, e faeil perceber por que os defen-
Onde 0 evolucionismo nao fez grandes avan90S, houve sores da hist6ria narrativa desconfiam deles e como podem de-
urna tendencia muito forte de identificar a "sociologia", e sua fender 0 que interpretarn como "hist6ria", comparado com "so-
separayao da "hist6ria", precisamente naqueles termos que ciologia". Ambas as partes fomecem apoio a uma dicotomia
anteriormente considerei vazios. A descri9ao de Lipset a res- disciplinar que nao faz qualquer sentido l6gico ou metodol6gico.
peito desse ponto de vista e caracteristica: o que mudou, e esta mudando, a sociologia e, sem duvida,
num consideravel grau, 0 declinio da hegemonia de que goza-
A tarefa do soci6logo e fannular hip6teses gerais, promisso- ram outrora 0 objetivismo e 0 funcionalismo. A repressao do
ramente implantadas num quadro tearieD de referenda mais amplo, tempo em teoria social, tal como foi perpetrada pelos soci610-
e testa-las. [... J A hist6ria deve ocupar-se cia analise do conjunto gos, de qualquer modo, tambem significou, definitivamente,
especifico de eventos ou processos. Onde 0 soci61ogo procura con-
uma repressao da hist6ria - tempo, hist6ria e mudan9a social
ceitos que abranjam uma variedade de determinadas categorias
descritivas, 0 historiador devera manter-se atento aos acontecimen- tendem a ser assimilados dentro do funcionalismo·. Mas eis
tos reais e evitar afinna~5es que, atraves da vincula~ao do compor- que sobreveio tambem urn desapontamento com os dois tipos
tamento nurn tempo ou Jugar a urn comportamento em outro tem- de tradi9ao que dominaram a anillise das sociedades industrial-
po ou lugar, leva a uma diston;ao na descri~ao do que ocorreu no mente avan9adas ate urnas duas decadas atras: a "teoria da so-
conjunto de circunstancias que esm sendo analisado. 7 ciedade industrial", por um lado, e 0 marxismo, por outro". No
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426 A CONSTITUI9A'O DA SOCIEDADE 427

A TEORIA DA ESTRUTURA9AO

periodo ap6s a Segunda Guerra Mundial, ambas as tradi90es solutamente qualquer analise do desenvolvimento dos contex-
foram propensas a apresentar urn forte matiz evolucionista, tos institucionais em que a atividade social ocorre. Contudo,
assim como vanos dos tra90S secundirios que, como indiquei, ambos fundamentam seus estudos nos eventos da vida cotidiana.
estao associados ao evolucionismo. Em especial, a tendencia o que os liga e uma preocupa9ao primacial com 0 tempo, nao
de ambas era substancialmente europocentrica. 0 desafio que como dura9ao cronol6gica, mas como inerente as complexida-
a teoria da "dependencia" e do "sistema mundial" criou para des da reprodu9ao social. Conforme tentei indicar, podemos
esses esquemas de desenvolvimento tern urn papel consideni- aprender muito com Goffinan acerca do modo como se reprodu-
vel no ataque desencadeado contra os pressupostos europocen- zem as institui90es mais profundamente sedimentadas; Goffinan
tricos. Mas ha tambem provas claras do impacto da "nova his- nao e convenientemente visto como 0 te6rico do trivial ou do
t6ria", 0 qual indicou ser provavel que muitas das suposi90es eremero. Per contra, Braudel nao deve ser visto como propo-
que os soci610gos formularam acerca da Europa pre-capitalista nente do estudo de vastas extensoes hist6ricas, nas quais os
estavam basicamente erradas 1J• atores individuais parecem ser os joguetes de irresistiveis cor-
Entretanto, os soci610gos tern muito mais a aprender do rentes sociais, uma "hist6ria determinista, fatalista"J3. A hist6ria
trabalho dos historiadores do que a maioria esta atualmente e a estrutura9ao de eventos no tempo e no espa90 mediante a
preparada para admitir. Poderiamos propor, como exemplo- intera9ao continua de agencia e estrutura, a interconexao da
chave, a obra de Braudel, exaltada entre os "novos historiado- natureza mundana da vida diaria com as formas institucionais
res" mas ainda largamente desconhecida daqueles que suposta- que se estendem sobre imensos periodos de tempo e de espa90 .
mente trabalham com a "sociologia". Os escritos de Braudel Ao assinalar as importantes convergencias atuais entre 0
mostram a influencia que, desde cedo, a sociologia, particular- trabalho de historiadores e 0 de soci610gos, nao desejo sugerir
mente a filtrada pelo grupo do L'anm!e soc/olog/que, exerceu unicamente que a hist6ria deveria tomar-se mais sociol6gica e
sobre 0 desenvolvimento da hist6ria na Fran9a. Em alguns a sociologia mais hist6rica. Ha mais do que isso em jogo. Uma
aspectos, sem duvida, esses escritos refletem as deficiencias recupera9ao de tempo e espa90 para a teoria social significa
das concep90es sociol6gicas do grupo. Mas tambem, em ou- teorizar a agencia, a estrutura e a contextualidade como 0 foco
tros aspectos, vao muito alem das limita90es desses pontos de para os problemas de pesquisa em ambos.
vista, e nao s6 em seu conteudo substantivo, mas igualmente Contextualidade significa tanto espa90 quanto tempo, e
em seu refinamento teorico, revestem-se de grande interesse aqui podemos voltar-nos para a rela9ao entre geografia e socio-
para a sociologia. 0 "diaJogo entre estrutura e conjuntura"" que logia. A geografia e desde ha muito urn assunto menos afeito,
Braudel quer captar e paralelo ao que eu procuro representar de no plano intelectual, do que a hist6ria e, na literatura, ha muito
urn modo mais detalhado na teoria da estrutura9ao. Braudel e 0 menos estudos sobre a rela9ao entre geografia e sociologia do
historiador da longue duree, mas tambem esta explicitamente que sobre hist6ria e sociologia. Muitos soci610gos tern se preo-
interessado em ligar 0 contingente e 0 curto prazo a institui- cupado em averiguar ate que ponto a "sociologia" e, ou deve ser,
90e S que perduram em longos periodos de tempo. "hist6rica" - de modos diferentes, segundo seja entendido cada
Que autores poderao parecer mais distanciados urn do ou- termo -, mas, que seja de meu conhecimento, raros sentiram a
tro, a primeira vista, do que Braudel e Goffinan? Figuras total- mesma inquieta9ao a respeito da geografia. Isso deve-se prova-
mente incompativeis, poder-se-a pensar, e mesmo mencionar velmente nao apenas a diferen9a de prestigio intelectual da his-
os dois de urna vez parece levemente absurdo. Braudel estuda a t6ria e da geografia, mas tambem a maior transparencia que 0
hist6ria ao lange de varios seculos, enquanto Goffinan evita re- conceito de espa90 parece ter em compara9ao com 0 de tempo.
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I

428
A CONSTITUI(:A-O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURA(:AO 429
A distancia espacial e obviamente facil de compreender e de Depois, entretanto, as coisas mudaram sensivelmente. A
enfrentar no plano conceptual, enquanto a distancia temporal convergencia perceptivel de pesquisas talvez nao seja tao grande
nao 0 e. Poderia parecer que de tal argumenta,ao segue-se que quanta entre a historia e a sociologia, mas a geografia hurnana
o espa,o pode ser entregue aos geografos e que 0 estudo das certamente recuperou a maior parte da estreita associa,ao com
formas espaciais e relativamente sem interesse. Mas essa con- a sociologia de que costumava desfrutar em gera,5es previas".
clusao seria superficial. Talvez a frase pare,a bizarra, mas os A "nova geografia" da decada de 1960, tal como a "nova histo-
seres hurnanos "fazem sua propria geografia", tanto quanta "fa- ria", foi fortemente influenciada pela introdu,ao de metodos
zem sua propria historia". Ou seja, as configura,5es espaciais quantitativos provenientes de outras areas das ciencias sociais.
da vida social Sao materia de tanta importancia basica para a A ideia de que a geografia esta primordialmente interessada no
teoria social quanto as dimens5es de temporalidade e, como estudo da regionaliza,ao viu-se substituida por urna enfase mais
tenho freqiientemente acentuado, para muitos fins e apropriado abstrata sobre a forma espacial. Ecoando 0 fluxo de ideias em
pensar mais em termos de tempo-espa,o do que tratar tempo e outras esferas das ciencias sociais, a '"nova geografia" ja Sll-
espa,o separadamente. curnbiu substancialmente as criticas de empirismo que tiveram
As raizes da geografia hurnana no final do seculo XIX tern urn impacto tao poderoso em todo 0 pensamento social e politi-
algo em comurn com as da sociologia. Como no caso da histo- co moderno. 0 resultado, porem, e que a obra de geografos
ria, a geografia humana foi influenciada de maneira significa- tern hoje tanto a contribuir para a sociologia quanto os sociolo-
tiva por Durkheim e os filiados a L'anm!e sociologique. Isso gos podem oferecer em troca. Pois a geografia humana acabou
vale tanto para Ratzel quanta para Vidal de la Blanche, talvez por conter muitos dos mesmos conceitos e por envolver-se nos
as duas figuras mais influentes na forma,ao inicial da geografia. mesmos debates metodologicos da sociologia.
o lema de Ratzel era "Die Menscheit ist ein StUck der Erde" [A Nos capitulos precedentes, tentei deixar claro os que con-
humanidade e urn fragmento da Terra]", mas ele tambem enfa- sidero serem alguns dos principais aspectos em que conceitos
tizou a importancia da organiza,ao social como urn fenomeno geograficos podem incorporar-se a teoria da estrutura,ao. Nao
independentemente estabelecido. Durkheim viu corretamente quero sugerir, e claro, que a obra de Hagerstrand e seus segui-
na obra de Ratzel urn "aliado potencial" para a concep,ao da dores esgota 0 que a geografia tern a oferecer a sociologia. Mas
sociologia tal como desejava desenvolve-Ia". 0 conceito de Vi- e especialmente relevante para a teoria da estrutura,ao por
raz5es que procurei especificar. Oferece insights de natureza
dal de genre de vie [genero de vida] expressa diretamente a in-
teorica, quando submetida a urna adequada avalia,ao critica,
fluencia de Durkheim. Tal como foram adotadas por Lucien
mas tambem tecnicas de pesquisa que podem ser diretamente
Febvre, as ideias de Vidal tiveram importante impacto na obra
aplicadas ao trabalho empirico. 0 tempo-geografia oferece tres
dos historiadores franceses, entre eles Braudel". A concentra-
vantagens sobre as tecnicas estabelecidas de pesquisa social,
,ao deste ultimo na area mediterranica como urn todo, em vez
com as quais, e claro, pode em qualquer caso ser combinado.
de nas fronteiras definidas por na,5es-Estados ou em designa- Uma vantagem e que sensibiliza 0 trabalho de pesquisa para as
,5es politicas como "Europa", reflete fortemente a enfase de contextualidades da intera,ao, sobretudo na medida em que
Vidal. Subseqiientemente, porem, a influencia de Ratzel e Vidal eStas se ligam aos aspectos fisicos dos milieux em que os atores
na sociologia foi fraca. Nas decadas seguintes ao final da Se- se movimentam. A maioria das pesquisas sociais, conforme pra-
gunda Guerra Mundial, sociologia e geografia enveredaram ticadas por soci610gos, tern sido avessa a examinar as conexaes
por dire,5es proprias e quase sempre separadas.
entre aspectos fisicos e sociais de milieux, com as homosas
 430 A CONSTfTUIr;:A-O DA SOCIEDADE A TEOR/A DA ESTRUTURAr;:JO 431

exce90es da escola de Chicago e dos chamados teoricos "eco- baseada em ambientes urbanos. Park tinha conhecimento dos
logicos"". Vma outra vantagem e que dirige nossa aten9ao escritos da geografia hurnana francesa, embora pare9a ter ela-
para 0 significado da rotiniza9ao das atividades cotidianas que borado independentemente seus principais conceitos. Elamen-
estao no amago das institui90es sociais. A terceira e que, ao tavel que a influencia de Park tenha sido fortis sima a respeito
desenvolver a ideia da vida cotidiana como urna serie de per- da ecologia urbana, marcada por urna concep9ao formalista de
cursos tempo-espa90 entrecruzados, 0 tempo-geografia ofere- espa90 e enfatizando urn ponto de vista objetivista. Em suas
ce urn modo de mapeamento e de analise de padroes de repro- a
obras ulteriores, Park aderiu n09ao de que, se pudermos "re-
dU9ao social". duzir todas as rela90es sociais a rela90es de espa90", poderemos
A tentativa de substituir a n09ao de regionaliza9ao em considerar "a possibilidade de aplicar as rela90es hurnanas a logi-
geografia por modelos mais abstratos de forma espacial e, em ca fuodamental das ciencias fisicas'~'. Mas, em seus primeiros
meu entender, urn esfor90 equivocado. Nao penso ser util fazer escritos, ele enfatizou muito mais 0 bairro como urn fenomeno
da analise da regionaliza9ao a preocupa9ao especifica e pecu- contextualizante, ordenado por tra90s sociais distintos e expres-
liar da geografia. Como procurei enfatizar, a regionaliza9ao e sos como genres de vie. E essa especie de enfase que precisa ser
urna n09ao que deveria ser vista como desempenhando urn retida, embora sendo mais vista como associada aregionaliza9ao
papel destacado em teoria social. A regionaliza9ao e mais bern em geral do que aos bairros urbanos em particular.
entendida nao como urn conceito totalmente espacial, mas como A sociologia urbana nao e meramente urn ramo da socio-
urn que expressa 0 agrupamento de contextos no tempo-espa90 . logia entre outros. E da maior irnportiiocia sublinhar isso e ao
Como tal, e urn fenomeno de importiiocia decisiva para a so- reconhece-Io progressos recentes na teoria urbana ajudaram
ciologia, nos niveis teorico e empirico. Nenhum conceito ajuda ainda mais a demolir algumas das divisoes entre geografia e
mais a remediar as enganadoras divis5es entre pesquisa "mi- sociologia. Como indiquei anteriormente, urn exame da nature-
cro-" e "macrossociologica"; nenhum conceito ajuda mais a re- za das cidades e de grande importiiocia na analise de questoes
bater a suposi9ao de que uma "sociedade" e sempre urna uni- comurnente apresentadas como de carater puramente logico,
dade com fronteiras nitidas e precisamente definidas. Os pro- incluindo em especial 0 problema micro/macro. 0 termo "cida-
blemas Com a n09ao de regionaliza9ao, tal como foi adotada de" e aqui suscetivel de induzir em erro. Se as cidades desem-
pela sociologia, consistem: I) em que ela tern figurado primor- penharam praticamente em toda parte urn papel fundamental
dialmente no ambito da sociologia urbana; 2) em que tern sido na organiza9ao de sociedades de grande escala, em sociedades
usada principalmente com referencia a bairros; e 3) em que a divididas em classes isso nao ocorreu. Na medida em que 0
sociologia urbana tern sido tradicionalmente entendida como urbanismo modemo e expressao de urn novo tipo de organiza9ao
urn "campo" da sociologia entre outros. de tempo-espa90, ele esta em descontinuidade com as cidades
Cada urn desses usos deve ser questionado. Conforme pro- tradicionais e suas origens coincidem com as do tipo capitalis-
curei formula-la, a regionaliza9ao nao e certamente equivalen- ta-industrial de sociedade. Nao e preciso concordar com todos
te a "ciencia regional", mas, miD obstante, tern urn uso muito os temas da obra de Castell para admitir que ele foi irnportante
amplo. A "sociologia urbana" e urn dos principais interesses na transferencia de enfase, em teoria urbana, da "sociologia
compartilhados por geografos e sociologos e 0 dominio no qual urbana" para a importiincia generica do urbanismo para a teo-
tern sido mais profusas as permutas entre as duas disciplinas. ria social". A analise do urbanismo, enquanto base do "ambiente
Existem paralelos interessantes entre a obra de Vidal, baseada criado", certamente ocuparia uma posi9ao principal em qual-
principalmente em ambietltes rurais, e a da escola de Chicago, quer programa empirico de estudo que a teoria da estrutura9ao
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432
A CONSTITUII:;AO DA SOCIEDADE 433
A TEORJA DA ESTRUTURA9AO

pudesse ajudar a gerar sobre as sociedades industrializadas atividade, no iimbito de certas situa90es. As atividades huma-
hodiernas.
nas "tern lugar", mediante a apropria9ao e transforma9ao da na-
o que os sociologos podem aprender com a obra dos geo- tureza, em parte nenhuma tao evidente quanta no ambiente
grafos? Nao so a importancia da regionaliza9ao e das tecnicas criado do urbanismo moderno.
para estuda-la, mas tambem 0 significado do que os geografos A titulo de retribui9ao, 0 que os geografos podem apren-
tradicionalmente chamam de lugar (mas eu prefiro chamar de der com os sociologos? Talvez muito pouco, visto que nestes
local) na reprodu9ao de praticas sociais. Os escritos de Pred ultimos anos os geografos passaram a estar ao corrente dos
podem ser citados como exemplo instrutivo, na medida em que debates e questoes em curso na sociologia. Uma contribui9ao
combinam 0 estudo empirico do urbanismo com uma perspec- que pode ser feita, entretanto, consiste em ajudar a desfazer a
tiva influenciada pelo tempo-geografia e pela teoria da estrutu- suposi9ao de que pode existiruma "ciencia do espa90 distinta".
ra9ao". Como Pred corretamente sublinha, 0 conceito de cara- Na geografia humana, as formas espaciais sao sempre formas
ter "situado" da intera9ao social so pode ser empiricamente sociais. Considere-se a asser9ao, representativa de um certo tipo
dissecado de forma adequada se apreendermos como a "repro- de literatura geografica, de que a geografia se interessa em es-
dU9ao de determinadas institui90es culturais, economicas e po- tabelecer "as conexoes espaciais entre conjuntos de fatos, me-
liticas no tempo e no espa90 esta continuamente vinculada a diante a descoberta de leis espaciais" e em elucidar "as conexoes
a90 es temporal e espacialmente especificas, conhecimentos entre as proprias leis, mediante a constru9ao de teorias espaciais,
acumulados e biografias de determinados individuos"". A coQ[- que sao os padroes ou sistemas no dominio dos problemas
dena9ao dos percursos diarios de individuos dentro de uma espaciais"25. Tais formulal;oes, eclaro, expressam uma concep9ao
dada serie de locais, somada ao que alguns pesquisadores de- de leis que descartei anteriormente como inadequada; repre-
nominaram um "senso de lugar", constituem aspectos concreti- sentam uma tentativa de formar uma "lisica social num contex-
zados da dualidade da estrutura. A dialetica de "percurso dia- to espacial"". Mals importante ainda, porem, elas supoem que 0
rio" e "percurso da vida" e 0 modo como a continuidade da espa90 tern sua propria natureza intrinseca, uma proposta logi-
biografia do individuo se expressa na continuidade da reprodu- camente discutivel e empiricamente esteri!. 0 espa90 nao e uma
9ao institucional, assim como a expressa. Urn senso de lugar dimensao vazia ao lange da qual agrupamentos sociais vao
parece ser de grande importiincia na sustenta9ao da seguran 9a sendo estruturados, mas deve ser considerado em fun9ao do seu
ontologica, precisamente porque fornece urn elo psicologico envolvimento na constitui9ao de sistemas de intera9ao. 0 mes-
entre a biografia do individuo e os locais que constituem os ce- a
mo ponto formulado em rela9ao historia aplica-se geografiaa
narios dos percursos tempo-espa90 onde 0 individuo se movi- (humana): nao ha diferen9as logicas ou metodologicas entre
menta. Os sentimentos de identifica9ao com locais maiores _ geografia humana e sociologia!
regioes, na90es etc. - parecem distinguiveis dos criados e refor-
9ados pelos contextos localizados da vida cotidiana. Estes ul-
timos sao provavelmente muito mais importantes com rela9ao
Ii rep rodu9ao de continuidades institucionais em grande escala Referencias
do que os primeiros". Pred sugere que a pesquisa deve explorar
o duplo sentido que a expressao "ter lugar" pode adquirir. A ati- Teoria da estrutura9iio, pesquisa empirica e critica social
vidade social tern lugar em locals definidos, mas isso nao deve
1. Cf. NRSM, cap. 3.
ser entendido simplesmente como a ]ocaliza9ao passiva de tal
2. Willis, Paul. Learning to Labour. Famborough, Saxon House, 1977.
II '"'"
I
434

3, Ibidem, p, 1L
4, Ibidem, pp, 29-30,
nm,,,,,mC"orn m'rnD' l nw~D'="ro~C"o 435

27. Ver especialmente 0 artigo hoje chlssico de Offe e Range: Offe,

Claus e Ronge, Volker, "These on the theory of the state", New
5, Ibidem, p, 33-
German Critique, vol. 6, 1975.
6, Cf especialmente: ibidem, cap, 5,
28, Ibidem, p, 250,
7, Citado em: ibidem, p, 64,
8, Ibidem, p, 107, 29. A propria pesquisa de Offe interessou-se especialmente pelos mer-
caqos de trabalho e educa,ao, Sua tese e a de que as politicas edu-
9, Cohen, G, A Karl Marx's Theory ofHistory, a Defence, Oxford,
Clarendon Press, 1978,
eacionais e de treinamento sao fortemente influenciadas pela
necessidade percebida de promover a vendabilidade da fon;a de
10. Neste ponto, baseio minha analise em "Commentary on the deba-
trabalho. As politicas de laissez-faire e "assistenciais do Estado
te", urn debate sobre funcionalismo, em Theory and Society, 1982,
voLII de Bem-Estar" sao comparadas com as de "remercadorificayao
II, Willis, P, Learning to Labour, cit, p, 66, administrativa", Ver: Offe, Claus, Strukturprobleme des kapita-
12, Ibidem, pp, 68 ss, listischen Staates, Frankfurt, Suhrkamp, 1972; idem, Berufsbil-
13, Ibidem, p, 107, dungsreform, Frankfurt, Subrkamp, 1975,
14, Ver CPST, pp, 104-6, 30. Cada urn desses tres easos provem de: Sieber, Sam D. Fatal Re-
15, Marx, KarL Capital, Londres, Lawrence & Wishart, 1970, voL I, medies, Nova York, Plenum Press, 1981, pp, 60-I, 67-8, 85,
p, 169, [Edi,ao brasileira: 0 Capital, Trad, de Ronaldo A Schmidt 3L CPST, p, 144,
ZaharEditores, 1967,pp, 30-L] 32, Urn ponto assinalado por: Skocpol, Theda, States and Social Re-
16, Relatado em: Gambetta, Diego, "Were they pushed or did they volutions. Cambridge, Cambridge University Press, 1979, p. xii.
jump?" Universidade de Cambridge, 1982, tese de doutorado, 33, Ingham, G, K Capitalism Divided? The City and Industry in Bri-
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Socioeconomic Success Between and Within Famities. Amsterdam, 35, Ingham, G, C Capitalism Divided?, cit
North HolIand, 1977- 36. Critiquei essa tendencia em vanas fontes. Ver: Capitalism and
18. Barbagli, M. Disoccupazione intellettuale e sistema sealas/ieo in Modern Social Theory, Cambridge, Cambridge University Press,
Italia, Bolonba, 11 Mulino, 1974, 1971, cap, 15; CSAS, Introdu,ao; CPST, cap, 6,
19, Ibidem; citado em: Gambetta, D, "Were they pushed or did they 37.0 exemplo provem de Thomas P. Wilson, a cuja obra sobre esse
jump?", cit, pp, 225-6, assunto sou grande devedor. Ver: "Qualitative 'versus' quantitative
20, Ibidem,pp, 243-4, methods in social research". Departament of Sociology, Univer-
2L NRSM, cap, 3, sity of California at Santa Barbara, 1983 (mimeo} Publicado na
22. Elster, Jon. Logic and Society, Contradictions and Possible Worlds. Alemanha pela revista: KiRner Zeitschri/t fUr Soziologie und
Chichester, Wiley, 1978; idem, Ulysses and the Sirens, Cambridge, Sozialpsychologie, voL 34, 1982, Ver tambem: Maynard, Dou-
Cambridge University Press, 1979; Boudon, R, The Unintended glas W, e Wilson, Thomas P,: "On the reification of social struc-
Consequences a/Social Action. LondIes, Macmillan, 1982. ture", In: McNall, Scott n e Howe, Gary N, Current Perspectives
23, Elster, J Logic and Society, cit, cap, 5, in Social Theory. Greenwich, Conn., JAI Press, 1980, vol. 1.
24, Ibidem, pp, 113-18, 38. Wilson, T. P. "Qualitative 'versus' quantitative methods in social
25. Este e0 fenomeno que Olsen tomou muito conhecido; ver: Olson, research", cit., p. 20.
Mancur. The Logic o/Collective Action. Cambridge, Mass.; Har- 39, Cf CPST, W 248-53,
vard University Press, 1963, 40. Winch, Peter. The Idea a/aSocial Science. Londres, Routledge,
26. Boudon, R. The Unintended Consequences 0/ Social Action, cit., 19H
cap. 4; os comentarios enticos sao feitos por: Elster, J. Logic and 4 L Gadarner, Hans-Georg, Truth and Method, Londres, Sheed & Ward,
Society, cit, pp, 126-7,
1975,
 II
I

436 A CONSTITUIt;A-O DA SOCIEDADE A TEORIA DA ESTRUTURAt;AO 437

42. CPST, pp. 250-3.
5. Stone, Lawrence. The Past and the Present. Londres, Routledge,
43. NRSM, pp. 150-3.
1981, pp. 16 sS.,passim.
44. Ibidem.
6. Elton, G. R. The Practice 0/ History. Londres, Fontana, 1967,
45. Crocker,1. C. "My brother the parrot". In: Sapis. J. D. e Crocker, p.173.
J. C. The Social Use a/Metaphor. Filadelfia, University ofPennsyl- 7. Lipset. S. M. "History and sociology: some methodological con-
vania Press, 1977; tambem discutido em: Sperber, Dan. "Appa- siderations". In: Lipset, S. M. e Hofstadter, Richard. Sociology
rently irrational beliefs". In: Hollis, Martin e Lukes, Steven. Ra- and History. Nova York, Basic Books, 1968, pp. 22-3.
tionality and Relativism. Oxford, Blackwell, 1982. 8. Cf. Stinchcombe, Arthur L. Theoretical Methods in Social His-
46. Bhaskar, Roy. The Possibility a/Naturalism. Brighton, Harvester, tory. Nova York, Academic Press, 1978.
1979, pp. 80 ss.
9. Cf. "Functionalism: apres la lutte". In: SSPT.
47. Hempel, Carl G. Philosophy a/Natural Science. Englewood Cliffs, 10. Ver: "Classical social theory and the origins of modem socio-
Prentice-Hall, 1966, p. 55.
logy". In: PCST.
48. "Classical social theory and the origins of modem sociology". In: II. Tilly, Charles. As Sociology Meets History. Nova York, Acade-
PCST.
mic Press, 1981, pp. 37 ss.
49. Ver NRSM, cap. I,passim.
12. Braudet, F. The Mediterranean and the Mediterranean World in
50. Taylor, Charles. "Political theory and practice". In: Lloyd, Chris- the Age ofPhilip II. Londres, Fontana, 1973, vol. 2, p. 757.
topher. Social Theory and Political Practice. Oxford, Clarendon 13. Stone, L. The Past and the Present, cit., p. 19.
Press, 1983, p. 74. Cf. lambem: MacIntyre, Alasdair. "The indis- 14. Ratzel, Friedrich. Anthropogeographie. Stuttgart, 1899, vol. I,
pensability ofpolitical theory". In: Miller, David e Siedentop, Larry. p.23.
The Nature 0/Political Theory. Oxford, Clarendon Press, 1983. 15. Durkheim, Emile. Critica de Anthropogeographie, vol.l. L 'annee
51. Myrdal, Gunnar. "The social sciences and their impact on so- sociologique, vol. 3, 1898-9, p. 551. Entretanto, neste e em outros
ciety". In: Shanin, Teodor. The Rules a/the Game. Londres, Tavis- comentirios, Durkheim tambem foi muito critico em re1a<;ao ao tra-
tock, 1972, p. 348.
balho de Ratzel.
52. Machiavelli, Niccoli>. The Prince. Hannondsworth, Penguin, 1961, 16. Febvre, Lucien. A Geographical Introduction to History. Lon-
p. 69. [Edi<;ao brasileira: 0 principe. Trad. de Livio Xavier, Sao dres, Routledge, 1950.
Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 46. Col. "as Pensadores", vol. IX.] 17. Cf., entre outros, Gregory Derek. Ideology, Science and Human
53. Ver: Atkinson, J. Maxwell. Discovering Suicide. Landres, Mac- Geography. Londres, Hutchinson, 1978.
millan, 1978.
18. Ver, por exemplo: Hawley, Amos H. Human Ecology. Nova York,
54. Ver: Skinner, Quentin. The Foundations of Modern Political Ronald Press, 1950.
Thought. 2 vols. Cambridge, Cambridge University Press, 1978; 19. Algumas importantes aplica<;oes a esse respeito sao oferecidas
idem. Machiavelli. Oxford, Oxford University Press, 1981. em: Carlstein, T. Time, Resources, Society and Ecology. Lund, De-
55. Skinner, The Foundations a/Modern Political Thought, cit. partment ofGeography, 1980.
20. Park, R. "Human ecology". American Sociological Review, vol.
42, 1936, p. 2. E verdade que Park, poe vezes, moderou um POllCO
Notas criticas: cienela social, historia e geografia
sua posi<;ao.
21. Castells, Manuel. "Is there an urban sociology?" In: Pickvance,
I. Oakeshott, Michael. On History. Oxford, Basil Blackwell, 1983. C. G. Urban Sociology: Critical Essays. Londres, Tavistock, 1976,
2. Ibidem, p. 7.
e outras publica<;oes. Cf. tambem os volumosos trabalhos de Hen-
3. Ibidem, p. 32.
ri Lefebvre.
4. Cf. Abrams, Philip. Historical Sociology. Londres, Open Books, 22. Ver especialmente: Pred, Allan. "Power, everyday practice and the
1982, p. 300.
discipline ofhuman geography". In: Space and Time in Geography.

--.
.... -
II
438 A CONSTITUII;:JO DA SOCIEDADE
Glossario de terminologia da
Lund, Gleerup, 1981; Thrift, Nigel e Pred, Allan. "Time-geogra- teoria da estruturafiio
phy: a new beginning". Progress in Human Geography, vol. 5,
1981; e Pred, Allan. "Structuration and place: on the becoming of
sense ofplace and structure of feeling". Journalfor the Theory of
Social Behaviour, vol. 13, 1983.
23. Pred, A. "Structuration and place", cit., p. 46.
24. Buttimer, Anne e Seamon, David. The Human Experience of
Space and Place. Nova York, Sl Martin's Press, 1980; Tuan, Yi-Fu.
"Rootedness versus sense ofplace". Landscape, vol. 24, 1980.
25. Amedeo, D. e Colledge, R. G. An Introduction to Scientific Rea-
soning in Geography. Nova York, Wiley, 1975, p. 35.
26. Gregory, Derek. Ideology, Science and Human Geography. Lon-
Esta lista inc1ui neologismos Oli termos empregados de urn modo dife-
dres, Hutchinson, 1978, p. 73.
rente do estabelecido pelo usc. Tern apenas 0 prop6sito de resumir for-
mula90es oferecidas no texto e nae 0 de as elucidar ainda mais.

Analise de conduta Analise social que caloca em slispensao

estrategica as institui90es como socialmente repro-
duzidas, concentrando-se no modo pelo
i qual os atores sociais monitoram reflexi-
I vamente 0 que fazem; no modo pelo qual
os atores se ap6iam em regras e recursos
na constituiyao da interayao.

Analise institucional Analise social que coloca em suspensao

as habilidades e a percepr;ao consciente de
atores, tratando as instituir;oes como regras
e recursos cronicamente reproduzidos.

Auto-regular;ao Lar;os causais que tem um efeito de feed-

reflexiva back na reprodur;ao do sistema, quando
e
esse feedback substancialmente influen-
ciado pelo conhecimento que os agentes
tem dos mecanismos de reprodur;ao do
sistema e empregam para 0 controlar.

Caracterizar;ao epis6dica A designar;ao, para fins comparativos, de

fonnas de mudan9a institucional; os epi-
s6dios sao seqiiencias de mudan9a tendo
urn inicio, urn curso de eventos e resulta-
dos especificaveis, que podem ser compa-
rados, em cerio grau, abstraidos de con-
textos definidos.
 440 A CONSTITUlt;A-O DA SOCIEDADE GLOSsARlO DE TERMINOLOGIA DA TEORlA DA ESTRUTURAr;:Ao 441

Circuito de reprodw;ao Vma serie institucionalizada de rela¥oes dos de modo a ajudar a descrever valida-
de reprodw;ao, regida ou por layos cau- mente 0 que fazem.
sais homeostaticos ou pcr auto-regula9ao
Criterios de validade Os criterios a que os cientistas sociais re-
reflexiva.
correm para justificar suas teorias e des-
Cognoscitividade Tude que os atores sabem (creem) acerca cobertas, e para avaliar as de outros.
das circunstancias de sua a9ao e da de ou-
Critica extema Critica das crenr;as e priticas de agentes
tras, apoiados na Produ9aO e reprodu<;ao
leigos, derivada das teorias e descobertas
dessa a9ao incluindo tanto 0 conhecimen-
da ciencia social.
to tacito quanta 0 discursivamente dispo-
nivel. Critica intema o aparato cntico da ciencia social, por
meio do qual teorias e descobertas estao
Conhecimento mutuc Conhecimento de "como prosseguir" em
sujeitas a avaliar;a.o a luz de argumentos
formas de vida, compartilhado por atores
logicos e ao fomecimento de provas.
leigos e observadores soci61ogos; a condi-
9ao necessaria de adquirir acesso a des- Dialetica de controle o cariter bilateral do aspecto distributivo
cri90eS validas de atividade social. do poder (poder como controle); como
os menos poderosos adrninistram recursos
Consciencia discursiva 0 que os atores sao capazes de dizer, ou
de modo a lograrem exercer 0 controle
expressar verbalmente, acerca das condi-
sobre os mais poderosos em relar;oes es-
90es sociais, incluindo especialmente as
tabelecidas de poder.
condi~oes de sua propria a~a.o; conscien-
cia que tern uma fonna discursiva. Distanciamento A extensao de sistemas sociais atraves do
Conscil~ncia pnitica 0 que os atores sabem (creem) acerca das tempo-espar;o tempo-espar;o, com base nos mecanismos
de integra~ao social e de sistema.
condi~oes sociais, incluindo especialmen-
te as de sua propria a~ao, mas nao podem Dualidade da estrutura A estrutura como 0 meio e o·resultado da
expressar discursivamente; nenhuma bar- conduta que ela recursivamente organi-
reira repressiva, entretanto, protege a cons- za; as propriedades estruturais de sistemas
ciencia pritica, como acontece com 0 in- sociais nao existem fora da ar;ao, mas es-
consciente. tao cronicamente envolvidas em sua pro-
Contextualidade 0 carMer situado da intera~ao no tempo- dur;ao e reprodur;ao.
espar;o, envolvendo 0 encenamento da in- Dupla henneneutica A interser;ao de duas redes de significado
tera~ao, os atores co-presentes e a comu- como parte logicamente necessaria da
nicar;ao entre eles. ciencia social, 0 mundo social significa-
tivo constituido por atores leigos e as me-
Contradir;ao Oposir;ao de principios estruturais, de mo-
talinguagens inventadas por cientistas so-
do que cada urn depende do outro e, no
ciais; hi uma "oscila~ao" constante de uma
entanto, nega 0 outro; conseqiiencias per-
rede para outra envolvida na pritica das
versas associadas a tais circunstancias.
ciencias sociais.
Criterios de Os criterios usados por agentes para for-
credibilidade necer razoes para 0 que fazem, apreendi-
11
442 A CONSTITUII;XO DA SOCIEDADE GLOSsARIO DE TERMINOLOGIA DA TEORIA DA ESTRUTURAr;XO 443

Estrutura Regras e recursos, recursivamente impli- Local Vma regiao fisica envolvida como parte
cados na reprodU(;ao de sistemas sociais. do cemirio de interayao, tendo fronteiras
A estrutura existe somente como tra<;:05 definidas que ajudam a concentrar a ayao
de memoria, a base organica da cognos- nurn sentido ou outro.
citividade humana, e como exemplifica- Vma interpretayao do agente humano, su-
danaa<;:ao. Modelo de estratificayao
blinhando tres "camadas" de cogni9aol
Estrutura~ao A estrutura<;:ao de rela<;:oes sociais ao lon- motiva9ao: consciencia discursiva, cons-
go do tempo e do espa~o, em virtude da ciencia pratica e 0 inconsciente.
dualidade da estrutura. o carater deliberado, ou intencional, do
Monitorayao reflexiva
Estruturas Conjuntos de regras e recursos, implica- daa~ao comportamento humano, considerado no
dos na articula9ao institucional de siste- interior do fluxo de atividade do agente;
mas sociais. Estudar estruturas, inclusive a a9ao nao e urna serie de atos discretos,
principios estruturais, e estudar aspectos envolvendo urn agregado de inten 90es ,
importantes das rela95es de transfonna- mas urn processo continuo.
9ao/ m edia<;ao que influenciam a integra- Principios de organiza9ao de totalidades
Principios estruturais
<;ao social e sistemica.
sociais; fatores envolvidos no alinha-
Extremidades do Conexoes, conflituais Oll simbi6ticas, entre mento institucional global de uma socie-
tempo-espa~o sociedades de diferentes tipos estruturais. dade ou tipo de sociedade.
Historicidade A identificayao da hist6ria como mudan- Propriedades estruturais Caracteristicas estruturadas de sistemas
ya progressiva, conjugada com a utiliza- sociais, sobretudo as institucionalizadas,
yao cognitiva de tal identificayao a fim de estendendo-se ao lange do tempo e do
favorecer essa mudanya. A historicidade espa~o.
".
envolve wna visao particular do que e A capacidade que atores competentes tern
• "hist6ria", 0 que significa usar 0 conhe-
cimento da hist6ria para mum-lao
Racionalizayao da ayao
de se "manterem em cont." com as ba-
ses do que fazem, da forma como 0 fazem,
Integra<;:ao sistemica Reciprocidade entre atores ou coletivida- de tal modo que, se interrogados por ou-
(ou de sistema) des no tempo-espayo ampliado, fora de tros, podem fornecer razoes para suas ati-
condiyoes de co-presenya. vidades.
Integra~ao social Reciprocidade de praticas entre atores Recursos alocativos Recursos materiais envolvidos na gera9ao
em circunstancias de co-presenya, enten- de poder, incluindo 0 ambiente natural e
dida como continuidades e disjunyoes de os artefatos fisicos; eles derivam do domi-
encontros. nio humano sobre a natureza.
Lal;os homeostaticos Fatores causais que tern urn efeito de Recursos autoritarios Recursos nao-materiais envolvidos na ge-
feedback na reproduyao do sistema, quan- ra9ao de poder, derivando da capacidade
do esse feedback e preponderantemente de tirar proveito das atividades de seres
o resultado de conseqiiencias impreme- hurnanos; eles resultam do dominio de
ditadas. alguns atores sobre outros.
 444 A CONSTITUIi;:AO DA SOCIEDADE Bibliografia
Regionaliza<;ao A diferencia<;ao temporal, espacial ou es-
paco-temporal de regi6es dentro de ou en-
tre locais; a regionalizacao euma impor-
tante 009ao para contrabalancar a supo-
sicao de que as sociedades sao sempre
sistemas homogeneos, unificados.
Rotiniza<;ao o carMer habitual e aBsente da maior par-
te das atividades da vida social cotidiana;
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