Vontade Divina
Vontade Divina
Vontade Divina
Sidney Silveira
Gallus M. Manser, um dos grandes tomistas do século XX, traz uma bela
refutação, em seu livro A Essência do Tomismo, dos argumentos em favor
da prova da existência de Deus a partir do anelo de felicidade que há no
coração do homem. Enumeremos duas dessas teses em forma de
silogismo, para torná-las bem claras:
A isto responde Manser: o que o homem quer por necessidade natural não
é Deus, mas a felicidade em geral, in comuni (e nisto reproduz o que diz
o Aquinate em De Veritate, XI, q. 2). A Deus o homem elege livremente, e
não por necessidade natural. Em suma, pode-se dizer que o homem
apetece a Deus indiretamente, a partir do bem em sentido geral. Portanto,
Deus não pode ser o objeto formal especificante nem da vontade, e nem
inteligência — já que a vontade é apetite intelectivo do bem. Ademais, não
sendo Deus o primeiro que se conhece aqui na terra pelo homem,
tampouco será Ele o primeiro que se deseja naturalmente.
Carlos Nougué
PAX
Nesta tragédia que se abateu sobre nossa cidade, nós devemos procurar
a causa do mal, de tal maneira que possamos evitar uma nova
calamidade. Mas, objetarão alguns: como evitar no futuro o que é obra do
acaso? Como evitar aquilo que não é senão o efeito das forças naturais?
Quem é dono do acaso? Quem é dono dos ventos, das chuvas e de todas
as coisas?
Mas alguns poderão ainda dizer: “Não foi Deus; foi o demônio!”
Assim como no caso de Jó, foi o demônio que causou todas as desgraças
que caíram sobre Jó, e, em particular, que fez desabar a casa onde
estavam os seus filhos e nenhum deles escapou. Esta objeção não é
comum hoje em dia, mas merece uma resposta. Jó, ao ter notícia deste
acontecimento, ficou muito aflito, rasgou suas vestes, como era costume
no Oriente, raspou a cabeça, prostrou-se por terra, adorou o Senhor e
disse:
Por isto, ele acrescenta: “Como foi do agrado do Senhor, assim sucedeu;
bendito seja o nome do Senhor.” Mas tendo visto que todos os
acontecimentos estão sob o governo de Deus, que permite uns e realiza
outros, procuremos a causa destes mesmos acontecimentos. Qual é a
razão dos flagelos, das tragédias, dos sofrimentos, quer venham das forças
naturais, quer do demônio, quer dos homens diretamente? No caso de Jó,
a razão da permissão divina era a de aumentar a santidade de Jó. No caso
de Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós, a causa da permissão
divina era a nossa Redenção. No caso de Nova Friburgo, qual é ela?
Interroguemos a Revelação, que se exprime pela Tradição e pelas
Sagradas Escrituras.
O que diz a Santa Liturgia. Numa das orações do missal que devem ser
ditas por ocasião de um terremoto nós lemos: “por vossa misericórdia
firmai a terra que vemos tremer sob o peso de nossas iniqüidades, a fim
de que os mortais saibam que tais flagelos são castigo de vossa mão e a
sua cessação o efeito de vossa misericórdia.”
Logo, todos os mortais, todos nós, somos avisados por este texto de que
tais flagelos são um castigo das mãos de Deus. Na oração para pedir o
bom tempo, a Santa Igreja reza dizendo: “...Concedei-nos bom tempo, a
fim de que, punidos justamente pelos nossos pecados, possamos sentir,
por vossa misericórdia, os efeitos de vossa clemência.”
Eis aí o que a Tradição nos ensina pela Santa Liturgia, que é, ela mesma,
uma regra segura de nossa Fé, pois a regra da oração é a regra do que
devemos crer. Passemos ao segundo ponto de nosso sermão ou segunda
fonte de nossa investigação que são as Sagradas Escrituras.
2º ponto.
Que dizem os autores sagrados? Que nos revela Deus nos livros
inspirados? “A terra será maldita por tua causa” diz Deus a Adão. E por
quê? Por causa do pecado de desobediência de Adão. A terra abriu a sua
boca e recebeu da tua mão o sangue de teu irmão. Quando a cultivares,
ela não te dará os seus frutos.” disse Deus a Caim. E por quê? Porque
Caim matou o seu próprio irmão, Abel. “Exterminarei da face da terra o
homem que criei.” disse Deus antes do dilúvio. “Tudo o que há sobre a
terra será consumido.” E por qual razão? Por causa do pecado dos
homens. Sempre a mesma causa.
“Maldito seja Canaã; ele será escravo dos escravos de seus irmãos.” diz
Noé. E por quê? Porque Cam pecou contra o mandamento de honrar pai
e mãe. “Faze sair desta cidade todos que te pertencem, dizem os anjos a
Lot, porque nós vamos destruir este lugar”, a saber, Sodoma e Gomorra.
E por qual razão?
Deus abrandou o peso de sua mão, mas com uma condição: a conversão.
A Nova Lei não se caracteriza pela facilidade, mas pela caridade, o que é
bem diferente. Por acaso foi fácil a vida dos cristãos nos primeiros
séculos? Nos tempos de perseguição dos imperadores romanos?
Fácil sim, mas pela caridade, pois “quem ama não pena e se pena, ama a
sua pena.” Fácil, mas não como o mundo entende a facilidade. Fácil por
causa do ardor da caridade, que é bem diferente da facilidade que o
mundo deseja. A Nova Lei se caracteriza pelo amor, mas o amor da cruz.
A grande diferença entre a Lei Antiga e a Nova Lei está na maior
abundância da graça divina e, portanto, numa maior santidade dos
verdadeiros católicos. Pensar que a Nova Lei se caracteriza pela falta de
punição dos pecados cometidos pelos homens é um grave equívoco.
Mas para dar um exemplo concreto tirado dos tempos da Nova Lei eis o
que lemos na vida de Santo Afonso de Ligório, Doutor da Igreja, no século
XVIII. Assim passamos ao terceiro ponto.
3º ponto.
Por esta razão, eu convido para, durante três dias, fazermos uma
procissão de penitência. Ela sairá hoje do mosteiro às 15h rumo à capela
São Miguel e voltará até o mosteiro.
Mas, como diz uma das orações do Missal Romano. “Convertei, Senhor,
os flagelos de vossa ira em remédios de salvação.” Todos aqueles que
foram ajudar os acidentados sentiram a verdade dessas palavras. Os
flagelos, Deus os converte em remédios. “Deus só permite o mal porque
Ele é bastante poderoso e misericordioso para do mal tirar um bem
maior.”
Nem o exército, nem a prefeitura, nem o auxílio, aliás tão precioso, dos
tratoristas e dos voluntários pode fazer cessarem os flagelos. Só Deus
pode fazê-lo. Só Deus governa os elementos, as forças da natureza.
Devemos, pois, recorrer a Ele em primeiro lugar para que Ele converta os
flagelos de sua ira em remédios de salvação, através da conversão desta
cidade ao verdadeiro e único Senhor Jesus Cristo e à sua Mãe Santíssima,
isto é, devemos pedir a conversão da população de Nova Friburgo à Santa
Igreja Católica em sua verdadeira Tradição recebida dos Apóstolos e
defendida por Dom Lefebvre, Dom Antônio de Castro Mayer e conservada
pelos Bispos da Fraternidade São Pio X e por todos aqueles que têm o
verdadeiro zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas.
Que Nossa Senhora escute nossas orações e nos obtenha o que esperamos
de sua bondade e de sua misericórdia.
Assim seja.
Sidney Silveira
Uma das objeções contrárias à præmotio, e que hoje renasce com força
entre teólogos modernistas, diz o seguinte: Deus não tem nenhum poder
direto sobre os atos livres do homem, pois age apenas indiretamente
mediante forças outorgadas à vontade para que se fixe no bem. Tal idéia
não considera o que acima foi dito e acaba por transformar a vontade
humana em algo absolutamente inexpugnável — e, por conseguinte,
também a liberdade, que tem na volição o seu estatuto ontológico. A
præmotio, neste caso, seria uma violência que iria contra a liberdade.
Neste ponto, falta fundamentalmente a percepção de que, movendo a
vontade humana ao bem, Deus não apenas não a coage, mas, ao
contrário, a faz alcançar a perfeição, pois, conforme se lê na Suma
Teológica (I, 105, a. 4), querer não é outra coisa senão a inclinação natural
da vontade ao seu objeto, que é o bem em sentido absoluto (simpliciter).
Em tempo: Tudo isso nos leva à seguinte e angustiosa questão: por que
Deus permite o mal? Ou melhor: por que permite Ele que alguns homens
não escolham o bem, já que teria poder para, necessariamente, movê-los
a tanto? Este é outro assunto, decorrente do problema ora abordado. A
ele nos referiremos noutra oportunidade.
Sidney Silveira
2- O Anjo — embora tenha uma inteligência intuitiva que não lhe permite
errar com relação aos objetos inteligidos — não tem a intuição simultânea
de toda a realidade, nem do que Deus é em si mesmo. Diz Santo Tomás
que “a causa primeira excede a medida da substância dos Anjos e dos
demônios. Daí que, mesmo ao conhecer [intuitivamente] a essência de
Deus, [a inteligência angélica] não apreende a ordem total da Providência
divina” [De Malo, q. 16, a. 2. ad 10]. Por isto, frisa o português Celestino
Pires, no seu excelente Inteligência e Pecado em Tomás de Aquino, que a
ignorância dos Anjos, de que fala Santo Tomás, não é privação de
conhecimento devida à natureza angélica. Não é obnubilação da
inteligência. É simplesmente que o seu conhecimento não é total, ou seja:
não exaure a inteligibilidade da causa que Deus é. Sendo assim, podemos
dizer que há uma ignorância metafísica nos Anjos, razão pela qual o
demônio pôde considerar possível assemelhar-se a Deus e, com isto, pecar
(pois é claro que a inteligência angélica não quereria algo que a ela se
apresentasse como impossível). Foi possível o demônio querer a
autonomia em relação a Deus porque não conhece toda a ordem da
Providência. E assim, considerando o seu próprio bem, desconsiderou a
sua ordem necessária em relação ao Bem que Deus é.
Sidney Silveira
Para quem não sabe, Polifemo foi o Ciclope (gigante de um olho só, filho
do deus Poseidon, ou Posídon) enganado pela astúcia humana de Odisseu
e de seus companheiros, no famoso poema de Homero. Encarna a
semidivindade traída pela maldade do homem. Pandora, por sua vez, de
acordo com a mitologia grega, foi a primeira mulher, criada como punição
aos homens em razão da ousadia de Prometeu em roubar o fogo divino. O
irmão de Prometeu, chamado Epitemeu, extasiado com a sua beleza,
presenteou-lhe com uma ânfora ou caixa que continha todos os males do
mundo, e que lhe havia sido dada pelos deuses. Segundo algumas
traduções, no fundo da caixa estaria a esperança (elpís). Seja como for, o
fato é que Pandora não leva em conta as admoestações de Zeus e abre a
caixa, liberando toda a sorte de males sobre os homens.
3- Esse caudilho, por sua vez, teria um precursor, da mesma forma como
Cristo teve a João Batista como anunciador;
2- O caudilho que fundará essa nova era é Jake Sully (ele próprio fala em
“renascimento”, no filme). Sully torna-se líder logo após Pandora quase
ser destruída pela maldade dos homens, que por sua vez já tinham
arrasado a Terra. Ele não nasce Salvador por delegação divina, mas se faz
salvador.
A negação da obra de Deus faz com que Cameron invente um novo mundo,
com um novo homem, novas plantas, novos animais e um novo idioma —
um mundo (no filme) muitíssimo mais satisfatório do que este criado por
Deus. E esta negação da maravilha da Criação não deixa nada de pé;
alcança todos os âmbitos da realidade e pinta-os em cores brilhantemente
surreais. Não me admira saber que muitas pessoas, provavelmente
desprovidas de espiritualidade, pensem em se matar após ver o filme.
Aquilo para elas deve parecer coisa melhor.
Sidney Silveira
1. Prolegômenos: a soberba e o pecado contra o Espírito Santo
Expliquemo-nos.
Convém antes de tudo fazer um sumário de como a política era vista nas
épocas anteriores a Maquiavel, para evidenciar o caráter paulatino dessa
inversão dos fins da política — a qual culminará, séculos depois de
Maquiavel, no liberalismo político e em seu malquisto filho primogênito: o
comunismo. Estes últimos se valeram da ambiência perfeita para grassar
sem maiores empecilhos, visto que o seu surgimento histórico ocorreu
numa época em que já se haviam sedimentado tanto a separação entre os
poderes espiritual e temporal como o preconceito antieclesiástico —
fortemente disseminado pela obra do autor florentino.
Identifiquemos primeiramente algumas das principais características da
política durante a Idade Média, algumas delas tiradas de empréstimo da
obra de Ricardo García-Villoslada[10]:
Aqui também houve conflitos, mas sem jamais perder-se o vínculo estreito
entre as ordens temporal e espiritual — o qual só irá se romper após o
período medieval, com o crescimento do absolutismo monárquico e a
perda da influência transnacional da Igreja.
(continua)
__________________________
1- “Tanto no bem como no mal, geralmente se vai do imperfeito ao perfeito,
pois o homem progride no bem e no mal”. Tomás de Aquino, Suma
Teológica, II-II, q. 14, art. 4. Neste ponto da Suma, o Aquinate tem diante
de si uma premissa de Aristóteles arrolada no Livro V da Ética a
Nicômaco, segundo a qual o homem não se torna injusto repentinamente.
Diga-se, porém, que Santo Tomás admite a possibilidade de que alguém
possa começar pecando contra o Espírito Santo, por ter um veemente
incentivo ao mal (vehemens motivum ad malum) ou padecer de um
debilitado afeto pelo bem (debilem affectum hominis ad bonum). Mas
adverte o Santo Doutor que, no homem, quase nunca sucede pecar contra
o Espírito Santo desde o princípio (I-II, q. 14, art. 4, ad.1). Seja como for,
Tomás salienta em diferentes pontos de sua obra que o pecado de malícia
pressupõe outros pecados.
6- Ocorre que o real, como certa vez escrevera Julián Marías, não é apenas
existência; é também resistência, ou seja: a realidade é o que literalmente
resiste aos erros e devaneios humanos.
7- No capítulo sobre a pecabilidade dos Anjos, Celestino Pires aponta, no
livro Inteligência e Pecado em Santo Tomás, para o fato de que Lúcifer
pecou com plena ciência, havendo nele apenas a seguinte ignorância, de
cunho metafísico: a inteligência angélica, embora intuitiva, é incapaz de
atualizar todos os inteligíveis num só ato (o que significa dizer que o Anjo
não pode compreender toda a complexidade do real num instante, pois
sua intelecção é sucessiva: tem um antes e um depois). Não lhe é dado,
portanto, conhecer todos os aspectos da Divina Providência, razão pela
qual ele foi capaz de deliberar mal, julgando possível dominar as demais
criaturas sem submeter-se a Deus, o que em verdade só é possível
enquanto Deus o permite, mas não o é simpliciter (eis, aqui, o seu maldito
erro). Diz Celestino: “De fato o Anjo — no domínio do conhecimento
natural — não pode emitir um juízo falso; mas, diferentemente de Deus,
que é perfeição infinita, pode não apreender suficientemente a ordem do
governo divino”. Celestino Pires, Inteligência e Pecado em Santo Tomás.
Angelicum, Rio de Janeiro: 2012, p. 46. Em síntese, Lúcifer deliberou mal,
mas em virtude da elevação de sua inteligência ele e os que o seguiram
sabiam-se apartados de Deus para sempre, ou seja: agiram com plena
noção das dramáticas consequências que adviriam de sua escolha.