Da Criminologia À Biopolítica
Da Criminologia À Biopolítica
Da Criminologia À Biopolítica
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DOI: 10.12957/rqi.2016.18602
Resumo
Trata-se de pesquisa acerca do conceito de biopolítica, em especial de seu desenvolvimento nos trabalhos
realizados por Michel Foucault e continuados por Giorgio Agamben. Almeja-se, a partir do diagnóstico realizado
por Agamben, dos diálogos entre Foucault e Deleuze e das recentes pesquisas no sistema penitenciário de Minas
Gerais, pensar a criminologia direcionada à execução penal não mais nos moldes da normalização apresentados
por Foucault, nem na perspectiva marxista dos objetivos econômicos ligados à prática do encarceramento, mas
sim com base nos conceitos de exceção no direito e de vida nua identificados por Agamben na
contemporaneidade.
Palavras-chave: Michel Foucault; Giorgio Agamben; biopolítica; criminologia crítica; sistema penitenciário.
INTRODUÇÃO
Dizer que o sistema prisional brasileiro está em crise já virou lugar-comum nos discursos jurídicos
contemporâneos a ponto de se aceitar com naturalidade o verdadeiro campo de exceção que se formou nessas
instituições, com o que, paradoxalmente, se invisibiliza tal percepção. Nesse contexto, observa-se um crescimento
vertiginoso dos índices de encarceramento nos últimos anos, resultado da adoção de políticas de segurança
pública de caráter bélico e do abuso pelo Legislativo da “legislação simbólica”. Ambos os fenômenos são expressão
de um populismo penal alinhado a uma demanda passional da população pela adoção de políticas punitivas cada
vez mais autoritárias e intolerantes. Configura-se então um cenário cíclico que se retroalimenta até atingir os
1
O presente artigo foi escrito durante o gozo de bolsa de pós-doutorado concedida ao primeiro autor pela Fundação CAPES, com
a realização de estágio pós-doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona (Espanha).
2
Doutorando em Filosofia pela Universidade de Coimbra (Portugal). Professor Adjunto de Filosofia do Direito e disciplinas afins
na Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG. Membro do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG. Pesquisador Colaborador no Departamento de Filosofia da
Universidade de Campinas (UNICAMP). Professor Titular de Filosofia do Direito no curso de Graduação em Direito da FEAD
(Belo Horizonte/MG). E-mail: [email protected]
3
Mestranda em Direito e Justiça pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG.
Pesquisadora bolsista do projeto GAMPSP junto ao CAO-DH do MPMG. E-mail: [email protected]
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limites do materialmente insustentável, sem de fato reduzir os índices de violência ou da sensação de insegurança
experienciada pelos cidadãos.
Com o tema da redução da maioridade penal em pauta, foi divulgado em 3 de junho de 2015 o “Mapa
do Encarceramento – Os jovens do Brasil”, por meio de uma parceria entre a Secretaria-Geral da Presidência da
República, a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil. O documento trouxe à
baila, após a análise de dados colhidos e sistematizados pela base INFOPEN (Sistema Integrado de Informações
Penitenciárias) entre 2005 e 2012, que o país passa por um momento crítico, marcado pelo hiperencarceramento
em massa de grupos sociais específicos (ME, 2015, p. 12). Nesse período, constatou-se um crescimento de 74%
da população prisional brasileira, colocando o Brasil em 4º lugar no ranking mundial de população carcerária4
(Ibid, p. 11). Esta é massivamente composta por jovens (entre 18 e 29 anos) negros com o ensino fundamental
incompleto (Ibid, pp. 29-35), revelando que o encarceramento corresponde a um perfil específico e seletivo da
população.
Em maio de 2015 foi ajuizada junto ao STF uma Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF 347) baseada em representação formulada pela Clínica de Direitos Fundamentais da
Faculdade de Direito da UERJ, objetivando o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema
penitenciário brasileiro, e cobrando a adoção de providências a fim de sanar as gravíssimas lesões a direitos
constitucionais da população carcerária. A ação aponta o “Diagnóstico de Pessoas Presas” divulgado pelo CNJ em
junho de 2014, que constatou um número de 563.626 detentos nas prisões brasileiras, construídas para
comportar 357.219 indivíduos, fator que resulta em um déficit de pelo menos 206.307 vagas (ADPF 347, 2015, p.
28). Esse quadro de superlotação, agravado pelo uso abusivo por parte do Judiciário da prisão provisória 5,
inviabiliza completamente a garantia de direitos mínimos assegurados aos presos enquanto cidadão, sendo-lhes
negado a higiene, a saúde, a segurança, a privacidade, o devido acesso à justiça, à educação e ao trabalho. Somado à
degradante infraestrutura dos presídios, bem como à precariedade na organização, contingente e preparação de
seus funcionários, tantas vezes envolvidos em casos de tortura, mau uso da força e sanções ilegítimas, identifica-se
o estabelecimento de verdadeiro estado de exceção nas unidades prisionais que constituem o sistema brasileiro.
Neste viés, o presente trabalho busca ponderar sobre o atual estado em que se encontram as unidades
prisionais, em especial as de Minas Gerais analisadas na constância das pesquisas desenvolvidas pelo projeto
4
Os três primeiros lugares são respectivamente ocupados pelos Estados Unidos, a China e a Rússia. Se considerarmos o número de
presos domiciliares, o Brasil ascende ao 3º lugar do ranking, ultrapassando a Rússia (ADPF 347, p. 6).
5
De acordo com dados do CNJ, 41% dos presos brasileiros são provisórios, número que cresceu em 1450% de 1990 a 2014
(ADPF 347, 2015, p. 31)
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GAMSP6, sob o viés da teoria biopolítica de Giorgio Agamben acerca do estado de exceção e a configuração do
campo. Acredita-se que este, enquanto espaço de suspensão do ordenamento jurídico no qual são implicadas as
vidas nuas, apresenta-se como chave de leitura mais apropriada para o desenvolvimento de estudos
criminológicos focados na situação contemporânea do sistema prisional. Ademais, pretende-se demonstrar que o
paradigma tradicional da criminologia, centrado na obra de Foucault e nas noções de normalização e subjetivação,
já não atende plenamente as demandas epistêmicas dirigidas à descrição da situação vivenciada nas prisões
brasileiras, ou seja, a da pura e simples exceção impressa a corpos matáveis (vida nua) e abandonados ao campo.
BIOPOLÍTICA E EXCEÇÃO
Biopolítica é um termo que denota, basicamente, uma política que lida com a vida, caminhando na
contramão das diversas concepções que percebem no político um campo que transcende a banalidade do
biológico, em prol de uma suposta racionalidade inerente às interações humanas. Não obstante, na esteira
histórica o termo tem ganhado cada vez mais densidade, apresentando-se fortemente polissêmico e distinguindo-
se basicamente entre concepções que tomam a vida como base fundamental da política e outras que a percebem
enquanto o próprio objeto da política (LEMKE, 2011, p. 3).
Tendo sido primeiramente adotado pelo sueco Rudolph Kjellen em sua obra de 1916 “O Estado como
forma de vida”, o termo ligava-se a uma concepção organicista de Estado. Ao invés de representá-lo como um
produto artificial de um contrato regido pela livre vontade, Kjellen entendia o Estado enquanto uma espécie de
forma vivente, “um conjunto integrado de homens que se comportam como um único indivíduo
simultaneamente espiritual e corpóreo” (ESPOSITO, 2010, p. 33). Essa naturalização da política se estendeu com
o passar dos anos, tendo a vida como centro referencial, expressando-se de diversas maneiras sob a égide da
biopolítica. Assim, a biopolítica pode ser entendida:
1. Em um contexto correlato aos estudos patológicos que inovaram a biologia e a biotecnologia (e assim
cuidando dos “riscos orgânicos” que ameaçavam o corpo político);
2. Relativamente às ações no sentido ecológico, direcionadas à preservação do meio ambiente necessário
para o desenvolvimento humano;
3. No campo da eugenia e da racionalidade racista, aplicada à formação de um capital humano supra
qualificado;
4. Enquanto ciência das condutas das coletividades humanas, determinadas por elementos biológicos-
genéticos (afastadas das noções de livre-arbítrio, bem como de explicações relacionadas ao meio sócio-
6
Grupo de Apoio ao Ministério Público no Sistema Prisional, criado em 2014 por pareceria entre o Instituto de Direitos Humanos
e CAO-DH DO MPMG, cujo objetivo é o monitoramento das Unidades Prisionais do Estado de Minas Gerais, de forma a melhor
instruir a atividade do Ministério Público.
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As reflexões biopolíticas nas obras de Foucault aparecem como desdobramentos de sua analítica do
poder realizada em períodos anteriores, quando o autor buscava compreender o poder e sua atuação disseminada
não apenas a partir da lógica repressora e punitiva que aniquilaria o sujeito - pois se assim fosse, este jamais seria
aceito e obedecido por longo tempo -, mas também como algo que induz ao prazer e produz desejo, saber,
discurso e subjetividade (FOUCAULT, 2008, p. 7). Diferentemente da tradição cartesiano, o sujeito não é
tomada por Foucault como um a priori, mas enquanto fruto do poder, tratando-se do resultado de um discurso
institucional produtor de saber. Tal saber advém da observação e categorização social das quais surgem as noções
de normal e anormal e figuras como o louco, a histérica, o delinquente, etc. Nesta linha, o sujeito de direito para
Foucault é aquele constituído dentro de um discurso jurídico estabilizador dos embates de forças socialmente
difundidas, sendo normalizado tanto pelas sanções quanto pelos prêmios propiciados pelo sistema.
Dos estudos histórico/analíticos que o autor fez desde sua obra “Doença mental e Psicologia” até os
cursos finais no Collège de France, Foucault, embasado por critérios qualitativos e históricos, acaba por dividir
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inicialmente o funcionamento do poder em dois grandes modelos: poder soberano e poder disciplinar. O poder
soberano é aquele que tem origem na teoria contratualista, sendo usualmente representado sob a figura do
monarca e tido como o único legítimo. Essencialmente repressivo e concentrado, é também chamado de poder
jurídico, identificando-se com as normas jurídicas e as instituições oficiais que detêm o domínio da força
coercitiva.
Pautado na subtração de poderes daqueles que se encontram sob sua égide, o poder soberano teve sua
força configurada nos regimes feudais e monárquicos, sendo vivenciado por meio da punição ritualística 7 explícita,
inicialmente como direito de réplica do soberano (primeiro atingido pelo descumprimento da norma) e
secundariamente como reforço e exemplo, nas palavras de Foucault, do direito sobre a morte8 detido pelo
soberano, que pode então fazer morrer e deixar viver (FOUCAULT, 1999b, p. 128). Assim construía-se o
criminoso, através da punição e da violência, sob a figura do “monstro”, um indivíduo naturalmente ruim e
socialmente perigoso, não-igual aos demais e, como tal, indigno de compaixão, sendo merecedor dos mais brutais
castigos. No entanto, com o advento do iluminismo, Foucault observa uma tendência à limitação do poder
monárquico. Nessa perspectiva, a atrocidade dos suplícios passa a ser reprovada: “que o poder que sanciona não
se macule mais por um crime maior que o que ele quis castigar, que fique inocente da pena que inflige”
(FOUCAULT, 1999a, p. 48). Assim, passa a ser necessário um poder discreto e silencioso que preserve a
“humanidade” do condenado. Eis aí o poder disciplinar.
Desenvolvido em meados do século XVII até o início do século XVIII, o modelo de poder disciplinar é
parte da sociedade moderna. Trata-se de uma forma de assujeitamento que mascara e garante o poder soberano
por meio do constante e cotidiano controle regulador e corretivo, quantificando, medindo, hierarquizando,
normalizando, enfim, construindo saberes e indivíduos pela interiorização de valores e comportamentos
formatados disciplinarmente. Tal poder não se exerce pela punição, mas pela vigilância constante e pela
microadministração, atravessando e atuando diretamente nos corpos individualizados de forma a garantir um
controle mais funcional. Prevenir torna-se mais eficiente e economicamente viável do que punir. É o poder sobre
a vida, o olhar invisível que organiza o espaço e otimiza o tempo para criar corpos dóceis, ágeis e produtivos.
Mais do que controlar e limitar, o poder disciplinar regra os comportamentos por meio da norma,
7
Sobre a interpretação do antigo direito como poder soberano, Foucault afirma: “o suplício judiciário deve ser compreendido
também como um ritual político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o poder. [...] O
crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o pessoalmente, pois a lei vale como a vontade do soberano; ataca-o
fisicamente, pois a força da lei é a força do príncipe. ” (FOUCAULT, 1999a, p. 41)
8
“Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte. Sem dúvida, ele derivava
formalmente da velha patria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de ‘dispor’ da vida de seus filhos e de seus
escravos; podia retirar-lhes a vida, já que a tinha ‘dado’. O direito de vida e morte, como é formulado nos teóricos clássicos, é uma
fórmula bem atenuada desse poder. Entre soberano e súditos, já não se admite que seja exercido em termos absolutos e de modo
incondicional, mas apenas nos casos em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência: uma espécie de direito de
réplica. ” (FOUCAULT, 1999b, p.127)
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moldando-os a partir de seus desvios, visando o restabelecimento de uma ordem artificialmente pré-definida e
criando subjetividades adequadas e aceitáveis. Diferencia-se essencialmente do poder soberano (que, via de regra,
inscreve-se no âmbito negativo/proibitivo) porque não apenas pune os comportamentos tidos como ruins, mas
também premia os bons, e é neste sentido que Foucault relaciona o poder não somente como repressor, mas
também como indutor de prazer, a partir do momento que cria desejos a serem saciados: “A resposta disciplinar
oscila entre o negativo e o positivo, a pena e o prêmio” (FONSECA, 2004, p. 263). Dessa maneira, nas palavras do
autor:
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem
como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e
melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-
las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido,
separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades
necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças
para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias
orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina
“fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao
mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder
triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu super poderio; é um poder
modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente.
Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos
da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente que vão pouco a
pouco invadir essas formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus
processos. O aparelho judiciário não escapará a essa invasão, mal secreto. O sucesso do
poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a
sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.
(FOUCAULT, 1999a, p. 143)
Aqui Foucault percebe o aparecimento do sujeito jurídico entendido como uma construção das práticas
disciplinares. Trata-se do indivíduo colocado em instituições como as escolas, as fábricas, as prisões, as clínicas, de
forma a ser vigiado em grupos e constituído, fixado, normalizado nestas. (FOUCAULT, 2002, pp. 113-114) A
esse modelo Foucault denominou de “rede institucional de sequestro”, podendo ser compreendida
esquematicamente por seus quatro objetivos:
1. Controlar o tempo dos sujeitos, direcionando-os ao trabalho;
2. Mecanizar seus corpos de forma a torná-los dóceis ao trabalho;
3. Integrar o tempo e os corpos de maneira produtiva; e
4. Usar o saber clínico produzido no controle para multiplicar este poder.
Não basta, portanto, tornar os indivíduos eficientes; estes devem ser dóceis, devem acreditar e internalizar a
importância do trabalho como “dignificante”. (FOUCAULT, 2002, pp. 115-121)
Assim, Foucault demonstra em seus trabalhos finais sobre o poder como o processo disciplinar está
intimamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo, de modo que a sociedade, para melhor funcionar,
mantém seus indivíduos uniformes, segregando do espaço público aqueles que se afastam dos padrões. Contudo,
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é importante ressaltar que o filósofo não enxerga o poder disciplinar como consequência direta ou fruto exclusivo
dos sistemas capitalistas, e sim como instrumento utilizado por eles, uma vez que o poder disciplinar e a sociedade
de normalização apresentam-se também no contexto do socialismo.
Da segunda metade dos anos 70 até início dos anos 80, Foucault desenvolve sua analítica do poder em
um âmbito macrofísico, direcionando finalmente seu enfoque para o Estado. A partir do curso no Collège de
France Em defesa da sociedade de 1976, o autor passa a tratar de temas relacionados à biopolítica e à noção de
governamentalidade, cunhando então o conceito de biopoder:
De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando?
Eu lhes dizia em duas palavras agora há pouco: trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos
nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de
natalidade, mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com
uma porção de problemas econômicos e políticos (os quais não retorno agora), construíram, acho eu, os
primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica. É nesse momento, em todo caso, que
se lança mão da medição estatística desses fenômenos com as primeiras demografias. É a observação dos
procedimentos, mais ou menos espontâneos, mais ou menos combinados, que eram efetivamente postos em
execução na população no tocante à natalidade; em suma, se vocês preferirem, o mapeamento dos fenômenos de
controle dos nascimentos tais como eram praticados no século XVIII. (FOUCAULT, 2005, pp. 290-291)
O autor percebe que em meados do século XVIII até o início do século XIX há um desenvolvimento das
técnicas de normalização que vão além do poder disciplinar, extrapolando os limites do corpo individual e
passando a incidir massivamente na população em sua naturalidade. Os processos conjuntos da vida são o novo
objeto específico de tratamento do poder: nascimento, morte, produção; ou seja, a incidência do poder deixa de
agir pontualmente nas relações intersubjetivas, passando a agir na vida humana em suas manifestações coletivas
mais basilares. Aqui os indivíduos ainda são sujeitos de conformação, no entanto, agora também são vistos como
integrantes de uma espécie humana, de uma coletividade e classificados em determinada faixa da população.
Com a biopolítica, o Estado moderno especializa a sua atuação, deixando de exercer sua soberania
exclusivamente no território para assumir funções de gestão populacional. Tal se liga a uma ideia de “arte de
governar”, de modo a fortalecer o próprio Estado, tendo sido percebido que os discursos funcionam no sentido
macro e resultam em uma população docilizada e produtiva. Com efeito, a população é objetivada por meio das
estatísticas e grandes censos, proporcionando um conhecimento da realidade empírica essencial para as
intervenções estatais e para o controle populacional. A biopolítica surge então como uma gestão das forças
estatais, que deve buscar manter a vida para garantir sua excelência (FOUCAULT, 2005, pp. 293-294).
Sob os ecos ressoantes da experiência dos Estados totalitários e reconhecendo na atualidade uma
exposição da vida biológica à violência de uma maneira sem precedentes, Giorgio Agamben faz referência ao
conceito de biopolítica trazido por Foucault. Agamben pensa sobre esse momento em que a vida natural começa
a ser, de forma mais evidente, incluída nos cálculos do poder estatal, com o que constrói um modelo biopolítico
que, não podendo deixar de se focalizar no negativo, se estrutura tendo em vista a noção de soberania. Com isso já
se pode perceber as profundas diferenças entre Foucault e Agamben. Se o primeiro vê a soberania como um
momento nas fases de desenvolvimento do poder que, por mais que se superponham, mantêm certas
especificadas, o segundo só conseguirá pensar a biopolítica em termos de soberania, razão pela qual sua reflexão
desaguará em uma tanatopolítica centralizada na figura do homo sacer. O que o autor italiano desvela é que essa
implicação da vida na política remonta a tempos muito mais primários do que aqueles identificados por Foucault.
Para Agamben, trata-se de pensar o momento de fundação do direito na violência originária do nómos, quando
então a vida transmuta-se em ordem jurídica. Esse mecanismo torna-se evidente na atualidade por força das
decisões – tão claras quando falamos de sistema prisional – que buscam o gerenciamento da população, de suas
forças produtivas e de seu desenvolvimento calculável tendo em vista as vidas que valem a pena ser vividas e as que
não valem, tudo sob o resguardo de uma ordem soberana que, não sendo exatamente a do Estado-nação, nem por
isso deixa de ser poderosa e letal.
Agamben ressalta que a dinâmica entre vida biológica e política está presente desde a ideia grega de uma
bíos política, ou seja, um viver qualificado para a política, apartado da ideia geral de zoé, conceito que, por sua vez,
designava de forma geral a vida natural de todos os seres viventes (AGAMBEN, 2007a, p.11). Essa separação
semântica nas origens do pensamento ocidental inflacionou-se no período do nazismo, momento específico no
qual os indivíduos foram, manifestamente, compreendidos em uma estratégia política como simples seres viventes
e não sujeitos de direitos. A partir desse raciocínio, Agamben denuncia a politização da zoé que gera a “vida nua”.
Trata-se de uma transformação radical das práticas de governo da modernidade, e por isso, também do
pensamento político-filosófico (AGAMBEN, 2007a, p. 12).
Para compreender essa dinâmica de forma genealógica, o autor lança mão de uma figura do direito
romano arcaico, o homo sacer, cuja ambiguidade e contradição consistem em ser aquele que é, ao mesmo tempo,
matável e insacrificável, maldito e santo, localizado fora tanto do direito humano quanto do divino (AGAMBEN,
2007a, p. 81). Formata-se o sacer naquele espaço do bando – o abandono original gerado pelo poder soberano –
no qual “a pessoa é posta para fora da jurisidição humana, sem alcançar a divina” (Ibid, p. 89), representando a
figura originária da vida nua, da exclusão inclusiva chamada exceção pela qual se constituiu a vida política no
Ocidente (AGAMBEN, 2007a, p. 91). Segundo o autor:
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Aquilo que é capturado no bando soberano é uma vida humana matável e insacrificável: o
homo sacer. Se chamamos vida nua ou vida sacra esta vida que constitui o conteúdo
primeiro do poder soberano, dispomos ainda de um princípio de resposta para o quesito
benjaminiano acerca da “origem do dogma da sacralidade da vida”. Sacra, isto é, matável e
insacrificável, é originariamente a vida no bando soberano, e a produção da vida nua é, neste
sentido, o préstimo original da soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer
valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental,
exprime ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a
sua irreparável exposição na relação de abandono. (AGAMBEN, 2007a,p. 91)
Sacer significaria, portanto, simplesmente uma “vida matável”. Mas o termo vita, por sua vez, aparece no
direito romano não como um conceito jurídico, mas sim como “o simples fato de viver ou um modo particular de
vida (o latim reúne em um único termo os significados de zoé como de bíos)” (AGAMBEN, 2007a, p. 95). Ou
seja, aqui a vida aparece apenas como contraparte de um poder que a ameaça com a morte. Trata-se do poder do
pater familias sobre os demais, a quem ele “concede” a vida. A relação se mostra então enquanto modelo do poder
político em geral do soberano sobre os cidadãos, relacionando-se àquele modelo que, como notado por Foucault,
teve por muito tempo um privilégio característico do direito de vida e de morte:
Nem bíos político nem zoé natural, a vida sacra é a zona de indistinção na qual, implicando-
se e excluindo-se um ao outro, estes se constituem mutuamente (...) e a vida humana se
politiza somente através do abandono a um poder incondicionado de morte. Mais originário
que o vínculo da norma positiva ou do pacto social é o vínculo do soberano, que é, porém, na
verdade somente uma dissolução; e aquilo que esta dissolução implica e produz – a vida nua,
que habita a terra de ninguém entre a casa e a cidade – é, do ponto de vista da soberania, o
elemento político originário. (AGAMBEN, 2007a, p. 98)
Este movimento de exclusão inclusiva na ordem representa o mecanismo da exceção por excelência, ou
seja, aquele que suspende a lei para implicar nela, de forma excludente, a vida nua, o substrato do político. É esse o
sentido da exceção: do latim ex capere, ou seja, captar fora, de modo a incluir a vida na ordem do direito e da
política na mesma medida que a abandona à violência jurídica que, por seu turno, constititui a vida como algo
“sagrado”. Na tradição do pensamento político-jurídico, o conceito de exceção relaciona-se à razão de Estado,
consistindo no movimento pelo qual o soberano, frente a uma situação política emergencial de ameaça, assume
competências extraordinárias por um determinado período temporal, lançando mão de uma concentração de
poderes que desconhece limites (MATOS, 2012, p. 23). Tratava-se de uma tentativa de incluir a exceção na
ordem jurídica, “criando uma zona de indiferenciação em que fato e direito coincidem” (AGAMBEN, 2007b, p.
42), sob as escusas da urgência ou da necessidade e fazendo referência a um suposto direito pré-constitucional.
No entanto:
Se o que é próprio do estado de exceção é a suspensão (total ou parcial) do ordenamento
jurídico, como poderá essa suspensão ser ainda compreendida na ordem legal? Como pode
uma anomia ser inscrita na ordem jurídica? E se, ao contrário, o estado de exceção é apenas
uma situação de fato e, enquanto tal, estranha ou contrária à lei; como é possível o
ordenamento jurídico ter uma lacuna justamente quanto a uma situação crucial? E qual é o
sentido dessa lacuna? (AGAMBEN, 2007b, p. 39).
Assim, o que Agamben percebe é que se a exceção é o movimento de passagem entre zoé e bíos – ou
seja, entre vida biológica e vida politizada – que garante a inclusão da vida no direito, ela não poderia deixar de ser
também seu momento fundador. O autor discorre então sobre o paradoxo da soberania e do homo sacer a partir
do estado de exceção, compreendendo o soberano como aquele que está ao mesmo tempo dentro e fora do
ordenamento jurídico. Sendo o soberano aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece legitimidade do
poder de proclamar o estado de exceção e, assim, de suspender a validade do próprio ordenamento, isso significa
que seu locus é externo a esse ordenamento jurídico, ao mesmo tempo que, todavia, pertence a ele, já que é por ele
legitimado para decidir se a constituição in toto pode ser suspensa (AGAMBEN, 2007a, p. 22). Essa percepção
aponta para uma única saída: a de que a ordem jurídica e seus limites estão diretamente ligados à palavra decisiva
do soberano:
Se a exceção é a estrutura da soberania, a soberania não é, então, nem um conceito
exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência
externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é
a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria
suspensão. (AGAMBEN, 2007b, p. 35)
A figura do homo sacer, implícita no nómos pela sua exclusão, apresenta-se então sob duas perspectivas:
o súdito, cuja vida é politizada no momento em que é despida de valor político no contexto de uma ordem pré-
estabelecida, e o soberano, que estando no limite da ordem estabelecida, possui o poder de decisão sobre o limiar
da política e da vida nua.
A implicação da vida nua na ordem político-jurídica surge então como um desdobramento do dever de
se pagar com a vida que remonta a um período pré-social, tratando-se de uma incondicional sujeição a um poder
de morte exigida pelo direito adquirido de participação da vida política, como se a vida só pudesse entrar na cidade
por meio do duplo matabilidade/insacrificabilidade, cunhando ao mesmo tempo a vida nua e o sujeito de direito.
E se na contemporaneidade a vida se encontra mais claramente no centro da política estatal, tornando-se
biopolítica e transformando todos os cidadãos em homens sacros, isto só é possível porque deriva da estrutura
originária do poder soberano (AGAMBEN, 2007a, p. 117). Na coexistência entre sacralidade e matabilidade da
vida nua, Agamben afirma que a política contemporânea desloca-se no sentido de coincidir cada vez mais com a
vida biológica de seus cidadãos, não sendo mais possível diferenciar o homo sacer dos demais cidadãos, a não ser
por meio da palavra do soberano (AGAMBEN, 2007a, p. 121).
Essas intuições apresentadas por Agamben propagam-se em uma direção desconcertante e catastrófica,
afirmando que o campo, como o mais absoluto espaço biopolítico no qual o poder atua na produção da vida nua
sem qualquer mediação, é o paradigma da modernidade (AGAMBEN, 2007a, p. 140). Trata-se de uma tendência
típica das democracias ocidentais, nas quais a declaração do estado de exceção “é progressivamente subsituída por
uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica norma de governo” (AGAMBEN,
2007b, pp. 27-28), resultando na emergência de campos de exceção permanente no interior dos ordenamentos
jurídicos.
Tal desenvolvimento biopolítico, no qual o soberano decide sobre o valor ou desvalor da vida enquanto
tal, remete à destruição de vidas consideradas inúteis em prol do crescimento das demais (AGAMBEN, 2007a, p.
149). Um dos exemplos lançados pelo autor é o debate sobre a eutanásia na primeira metade do século XX, no
qual Agamben indentifica em um panfleto elaborado pelo penalista alemão Karl Binding o surgimento da noção
de uma “vida que não merece viver”. Hoje, percebe-se a proliferação de discursos que desqualificam a importância
de qualquer medida direcionada à resolução da crise do sistema prisional no sentido da preservação de direito
fundamentais dos sujeitos lá encarcerados. Revela-se claramente assim uma lógica que centrada em um tipo de
vida desqualificada – contraposta a outras repletas de vitalidade, produtividade e valor – e que por isso torna-se
politicamente irrelevante. Essa discussão marca um limiar no qual a vida deixa de ter valor jurídico enquanto tal e
pode, portanto, assim como na lógica do homo sacer, ser morta sem que se configure um homicídio
(AGAMBEN, 2007a, p. 146). Tal será exemplificado pelo caso aqui analisado, quando se discutirá a omissão do
Estado em situações de obrigação objetiva de preservar as vidas dos que se encontram diretamente sob seus
cuidados.
Por mais que se pense que as premissas fundadoras dos campos de concentração estão soterradas pela
moral e o direito contemporâneos, é marcante a similaridade entre essas práticas e as situações nas unidades
prisionais, ainda que a teoria jurídica regula tais realidades sustente-se sob os princípios da dignidade humana e
dos direitos fundamentais inerentes a todos os sujeitos. Alessandra Teixeira identifica, no período entre as décadas
de 80 e 90, a ascenção e a derrocada dos discursos sobre o sujeito de direito no cárcere brasileiro, reconhecendo a
instalação de verdadeiros regimes de exceção em sistemas penitenciários marcados pelo abandono das vidas ali
reclusas, quando não pelo acentuado arbítrio e violência institucional praticadas (TEIXEIRA, 2007, p. 2).
Em poucos anos assistiu-se ao nascimento de uma legislação criminal brasileira elaborada no âmbito de
uma política de humanização das prisões, tendo em vista a reforma do Código Penal e a elaboração da Lei de
Execuções Penais em 1984, na qual há uma preocupação em se garantir um rol mínimo de direitos subjetivos aos
sentenciados. No entanto, como destaca Teixeira, o que essa política estatal tentou realizar era impossível, pois
buscava regular formalmente a gênese essencial das prisões e seu funcionamento, sem criticar a compreensão de
tal espaço como exemplar do arbítrio, da violência e das disciplinas enquanto suspensão nunca total, mas também
nunca anulada do direito (TEIXEIRA, 2007, p. 9). Essa tentativa de “humanização pela juridificação” nunca
chegou de fato a ser abstraída pelo campo simbólico da sociedade, até ser apagada por completo com a adoção do
“pacote de segurança” lançado em 1987 e intensificado no período Collor, composto por duras medidas de
enfretamento à violência, sempre em nome de urgências declaradas em razão do risco à paz e à segurança,
discurso que teria seu ápice no emblemático Massacre do Carandiru em 1992 (TEIXEIRA, 2007, p. 10).
Essa oscilação ideológica que permeia o fenômeno penitenciário brasileiro já fora identificada de
maneira mais geral por Foucault. Tal está nas origens do sistema penitenciário, em fins do século XVIII e começo
do XIX, quando a passagem dos suplícios para a prática do encarceramento foi acompanhada pela lógica
iluminista (e todas as premissas do humanismo que ele traz consigo), consubstanciando-se em discursos sobre a
função da pena no campo da reeducação, da reabilitação e da reinserção social do criminoso. Uma das
consequências desse processo identificada pelo filósofo seria exatamente o abandono da centralidade da punição
– ou seja, da visibilidade do poder que se exercercia de forma espetacular em praça pública por meio da repressão
– e sua transferência para o campo das instituições, onde a punição se tornou velada e discreta, adentrando à
consciência abstrata dos sujeitos e configurando um poder invisível e de natureza propriamente disciplinar
(FOUCAULT, 1999a, pp. 12-13).
Nesse período, Foucault afirma que a punibilidade atingia então uma sobriedade punitiva: ao invés de
exterminar o corpo, passava a atuar no sentido de condicioná-lo para atingir sua alma, modificando-o para
eliminar sua periculosidade (FOUCAULT, 1999a, p. 20) por meio de uma espécie de ortopedia moral, tornando-
o previsível, produtivo e controlável. Foucault acrescenta que a prática do confinamento não estava implícita na
teoria penal da época9, tendo sido nela inserida apenas como estrutura necessária para se transformar moral e
psicologicamente os deliquentes, ajustando suas condutas no sentido de torná-las diligentes e operativas no
contexto de uma lógica de produção, com o que se objetivava regularizar a sociedade e suprir suas necessidades
econômicas. Assim, o direito de punir toma formas de uma nova economia do poder de castigar, aumentando
seus efeitos e reduzindo seus custos. Trata-se de uma economia política do corpo, como diria Foucault, pois ainda
que não se recorra a castigos violentos ou sangrentos, ao trancar e “corrigir” é do corpo que se trata, de suas
capacidades e utilidades na submissão. (FOUCAULT, 1999ª, p. 25). Nas palavras do autor:
Prison became the general form of punishment, replacing torture. The body no longer has to
be marked; it must be trained and retrained; its time must be measured out and fully used; its
forces must be continuously applied in labor. The prison form of penality corresponds to the
wage form of labor. [...] A new mechanism: isolation and regrouping of individuals,
localization of bodies; optimal utilization of forces; monitring and improvement of the
9
O autor explica que o confinamento era praticado nos séculos anteriores somente durante o período de investigação de um
assunto criminal, não se configurando exatamente como uma punição, mas sim como forma de assegurar a localização de uma
pessoa. Poderia até mesmo se tratar de um privilégio, por meio das lettres de cachets, de se escapar da persecução retirando-se a um
monastério, por exemplo. A prisão era criticada na teoria penal por vários motivos: configurava um empecilho para o controle e
supervisão por parte das autoridades da devida aplicação das penas; atuava como catalisador na formação de uma comunidade do
crime, proporcionando a criação de laços entre criminosos colocados em contato; desestimulava o trabalho ao fornecer abrigo e
comida de graça; o estigma produzido na prisão conduzia os indivíduos a retornarem ao mundo do crime (FOUCAULT, 1997,
pp. 24-25).
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output; in short, the putting into place of a whole discipline of life, time and energies. A new
physiology: definition of standards, exclusion and rejection of everything that does not meet
them, mechanism of their reestablishment through corrective interventions that are
ambiguously therapeutic and punitive. (FOUCAULT, 1997, p. 35)
Na linha de raciocínio apresentada por Foucault, o mundo da Lei de Execução Penal brasileira determina
o funcionamento das unidades prisionais e a rotina às quais os detentos deveriam ser submetidos de forma
específica e bem delimitada. Busca-se estabelecer um cuidado do corpo, de forma a torná-lo saudável para a
produção, bem como uma periodização temporal, dia após dia, para incutir nos sujeitos um padrão de
comportamento socialmente desejável, fornecendo-lhes assistência e acesso à saúde, alimentação regulada e
balanceada, espaços para exercícios físicos, horários bem estabelecidos para acordar, se alimentar e dormir, divisão
ponderada entre períodos de estudo, de trabalho e de lazer, códigos disciplinares de ganhos e perdas com base no
comportamento, privação vigiada do uso de entorpecentes etc.
No entanto, a realidade prisional atual dista enormemente daquela determinada pela letra da lei,
prevalecendo hoje dispositivos da soberania desvinculados de qualquer lógica utilitarista, consubstanciando um
permanente estado de exceção no interior das prisões (TEIXEIRA, 2007, p. 3). Dessa feita, nossa hipótese de
trabalho é que a realidade das unidades prisionais públicas10 brasileiras se assemelha muito mais ao modelo
biopolítico da vida nua intuido por Agamben do que do modelo disciplinar descrito por Foucault.
Os resultados das pesquisas no sistema prisional de Minas Gerais, incluindo aqueles realizados pelo
projeto GAMPSP11, apontam para este viés, característico de uma biopolítica que se traduz em tanatopolítica, nos
moldes apresentados por Agamben. Apesar das dificuldades enfrentadas pelo GAMPSP no que tange à coleta de
dados reais durante as visitas realizadas em 201412 e as pesquisas em desenvolvimento em 2015,13 os elementos
apurados revelam que as condições de vida nas Unidades Prisionais de Minas Gerais se afastam claramente dos
discursos penais disciplinares e humanizadores, bem como dos procedimentos de execução previstos em lei.
10
Importante ressaltar que o modelo de gestão prisional das PPP’s (Parcerias Público Privadas), instaurado pelo Estado de Minas
Gerais em 2009, não se enquadra na realidade tratada neste artigo. As unidades prisionais com participação privada se estruturam
de uma maneira bastante próxima da descrita por Michel Foucault, principalmente no que tange ao ostensivo controle disciplinar
dos detentos pautado na vigilância constante, bem como da crítica de cunho marxista, que identifica na prisão uma instituição
ligada à lógica das relações de produção. Trata-se de um modelo que merece análises e críticas diversas da realizada nesta pesquisa.
11
Grupo de Apoio ao Ministério Público no Sistema Prisional, que atua em parceria com o CAO-DH (Centro de Apoio
Operacional em Direitos Humanos) e o IDH (Instituto de Direitos Humanos) em atividades de monitoramento do sistema
prisional junto às Promotorias de Direitos Humanos do Ministério Público de Minas Gerais.
12
As visitas de observação e monitoramento foram realizadas nas seguintes Unidades Prisionais: Penitenciária Professor Jason
Soares Albergaria – PPJSA, Presídio de São Joaquim de Bicas I – PSJB I, Presídio de São Joaquim de Bicas II – PSJB II, Presídio
Feminino José Abranches Gonçalves – PRFJAG, Presídio Inspetor José Martinho Drumond – PRIJMD, Centro de Apoio Médico
e Pericial – CAMP, Presídio Antônio Dutra Ladeira – PRADL, Presídio José Maria Alkimin – PJMA, Penitenciária de Formiga –
PFG, Penitenciária Professor Ariosvaldo Campos Pires – PPACP, Penitenciária Doutor Manoel Martins Lisboa Junior –
PDMMLJ, Presídio de Muriaé, Penitenciária de Três Corações – PTC, Anexo Penitenciário de Três Corações e Complexo
Penitenciário Feminino Estevão Pinto – CPFEP.
13
Considerando que a metodologia de apuração do projeto ainda está sendo desevolvida pelos técnicos do grupo, bem como
tendo em vista a ocorrência de processos de intimidação, coação e ameaça aos quais os presos algumas vezes são submetidos
momentos antes das entrevistas.
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Como apontado pelo Mapa do Encarceramento, Minas Gerais foi o Estado que apresentou maior
crescimento da população carcerária no país, com um percentual de 624% durante o período analisado (ME,
2015, p. 42). Assumindo o segundo lugar no ranking quantitativo total, com 45.540 presos (ME, 2015, p. 26), o
sistema prisional mineiro enfrenta atualmente um déficit de aproximadamente 24 mil vagas14, fator que levou no
primeiro semestre de 2015 à interdição de várias unidades prisionais e, consequentemente, à superlotação dos
CERESPs (Centro de Remanejamento do Sistema Prisional) e CEFLANs (Centrais de Flagrantes da Polícia
Civil), unidades sem qualquer estrutura para receber detentos de forma permanente, mas que passaram a fazê-lo
devido à total impossibilidade de encaminhamento dos presos para as demais unidades estatais.Para além dos
problemas da superpopulação carcerária, resultado de uma política de segurança pública marcada pela
ostensividade, mas sem o devido direcionamento de verbas, foram identificados graves problemas concernentes a:
1. Qualidade da alimentação e às condições sanitárias, muito aquém dos padrões estabelecidos para a
vida humana minimamente saudável;
2. Reduzidas ou inexistentes oportunidades de estudo, já que menos de 10% dos detentos em Minas
Gerais estão inseridos em atividades educacionais (INFOPEN, 2014, p. 116);
3. Escassas atividades de trabalho, considerando que menos de 20% dos detentos em Minas Gerais
estão inseridos em atividades laborais (INFOPEN, 2014, p. 127), sendo a maioria sem finalidade
educativa ou mesmo produtiva, visto que estão em completa dissonância com o mercado de
trabalho formal;
4. Procedimentos disciplinares inconsistentes;
5. Numerosos relatos de maus-tratos e tortura;
6. Omissão na assistência médica; e
7. Alto número de óbitos, principalmente devido a suicídios15.
A exceção instaurada nas Unidades Prisionais de Minas Gerais se expressa no descaso completo quanto
à manutenção de condições mínimas de subsistência e na subversão dos procedimentos padrões que ditam seu
próprio funcionamento, evidenciando a permanente suspensão do direito que impera nesses locais. Destaca-se o
expressivo número de detentos provisórios que compõem a população carcerária brasileira, revelando uma
verdadeira contradição em relação aos princípios penais que reservam a pena de prisão somente para
sentenciados condenados, salvo raras exceções, casos estes que atualmente tornaram-se a regra. Especificamente
em Minas Gerais, é importante trazer à baila as medidas que têm sido tomadas para solucionar a enorme
defasagem nos quadros funcionais de agentes penitenciários. Desde 2004, quando policiais militares antes
14
Dado publicado no site SEDS (Secretaria de Defesa Social) de Minas Gerais:
http://www.seds.mg.gov.br/component/gmg/story/2663-seds-e-deop-iniciam-construcao-de-oito-presidios
15
Conclusões provenientes de relatório final do GAMPSP da atividade de monitoramento ainda não publicado.
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responsáveis pela segurança e escolta dos presos retornaram aos seus postos no intuito de intensifcar o
policiamento preventivo, estes foram substituídos por agentes penitenciários contratados sem concurso público.
Mesmo que em 2012 tenham sido inciados processos seletivos para substituição desses contratados, não foi
estabelecido um contigente razoável de servidores públicos para tais cargos. No mesmo ano, por meio da
Resolução nº 1266/12, a SEDS/MG16 criou o GIR (Grupo de Intervenção Rápida), destinado a atuar em
situações extremas nas Unidades Prisionais, tais como casos de motins, rebeliões e tentativas de fuga. No entanto,
o grupo tem operado frequentemente – e não excepcionalmente, como suas funções determinam – nas Unidades
Prisionais, sendo seus membros despidos de meios de identificação17 e focados em ações pautadas na violência e
na humilhação dos detentos.
Na esteira dos estudos sobre sistemas prisionais efetivados pela criminologia contemporânea, as análise
feitas por Foucault são constantemente referenciadas em conjunto com os discursos utilitaristas sobre a punição,
entendida enquanto processo de reeducação. Tais discursos dominam o imaginário dos atores que
operacionalizam o direito penal formal e positivado, disseminando uma lógica de bem estar penal que, na verdade,
mascara um sistema biopolítico de completa sujeição dos corpos à soberania estatal.
Apresentando a execução da pena para além da matriz retribucionista – prevenção pela intimidação – e
centralizando-se na sua finalidade de regeneração e reintegração do condenado à comunidade, o Welfare State
escondia uma política de enfrentamento do crime pautada no conceito de periculosidade e na esfera de preveção
dos riscos (TEIXEIRA, 2007, pp. 3-4). A criminologia crítica, em suas origens, densifica essa análise no contexto
das atuais economias de mercado, percebendo que o microcosmo disciplinar no qual o indivíduo criminoso é
contruído, para além de buscar o condicionamento de sujeitos economicamente produtivos, garante uma mão-
de-obra desvalorizada e marginal necessária à manutenção das desigualdades sociais, o que se dá por meio de
mecanismos de estigmatização e exclusão (BARATTA, 2004, p. 201).
Nesses termos, é possível identificar nas raízes da criminologia crítica 18, que ainda reverberam com força
nos dias de hoje, um estudo materialista do crime e da reação social a ele que, apesar de compreendido em
diversas correntes conflitantes, ao trabalhar as mazelas do sistema prisional concentra-se: 1) na relação histórica
entre as prisões e as relações de produção na constituição de um verdadeiro “exército industrial de reserva”,
16
Secretaria de Defesa Social de Minas Gerais.
17
Na constância da atividade de monitoramentos das Unidades Prisionais de Mias Gerais, relatos de diversos detentos
confirmaram a ausência de identificação dos agentes do GIR, bem como o uso de capuz cobrindo o rosto destes, de forma a
impossibilitar qualquer reconhecimento para a efetivação de denúncias.
18
Com destaque para as obras referenciais “Punishment and Social Structure” (1939) de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, e
“The New Criminology: For a Social Theory of Deviance” (1973), de Ian Taylor, Paul Walton e Jack Young, que apresentam um
estudo criminológico de raízes declaradamente marxistas.
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evidenciando as relações existentes entre mercado de trabalho, sistema punitivo e o cárcere 19; 2) na crítica do
controle social e dos efeitos do etiquetamento, ou seja, as consequências da “ficha criminal” quando o dentento
retorna à dinâmica social padrão e as dificuldades que essa marca implica para o processo de reintegração no
mercado de trabalho. Assim, demonstra-se que as prisões cuidam em grande medida de processos de formação de
grupos de subalternos, intensificando o processo de marginalização desses e produzindo, ao invés da almejada
readequação social, o fenômeno da reincidência (JULIÃO, 2012, p. 47).
Nesses termos, a análise predominante nas obras diretivas da criminologia crítica tem um cunho
estrutural-econômico focado na ideia de condicionamento e exploração dos sujeitos presos, como se destaca do
trecho de Alessandro Baratta em “Criminologia crítica e crítica do Direito Penal”, no capítulo dedicado à questão
do cácere:
En este debate (Rusche & Kirchheimer e Foucault), en efecto, se han consolidado dos tesis
centrales que son comunes a estas dos obras:
1. para que pueda definirse la realidad de la cárcel e interpretarse su desarrollo histórico
es preciso tener en cuenta la efectiva función cumplida por esta instituición en el seno de la
sociedad;
2. a fin de individualizar esta función es menester tener en cuenta tipos determinados
de sociedad en que la cárcel ha aparecido y ha ido evolucionando como institución penal.
Este modo de plantear los problemas epistemológicos, que es el que consideramos correcto
y que sugerimos llamar enfoque materialista o político-económico[...] No obstante las
objeciones señaladas, las contribuciones de Rusche y Kirchheimer y de Foucault son
esenciales para reconstruir científicamente la historia de la cárcel y de su reforma en la
sociedade capitalista. Las funciones de esta institución en la producción y en el control de la
clase obrera, así como en la creación del universo disciplinario de que requiere la moderna
sociedad industrial, son elementos indispensables para una epsitemología materialista, para
una “economía política” de la pena (BARATTA, 2004, p. 202-204).
Observa-se, portanto, tratar-se de uma perspectiva ligada à compreensão da prisão comoum local
eminentemente de constituição de sujeitos20, seja ela realizada pela disciplina do trabalho, ou do olhar constante.
No entanto, essa análise nos parece secundária tendo em vista a insustentável situação do sistema prisional
público brasileiro, na qual não aparecem nem a vigilância disciplinar dos corpos, nem seu direcionamento ao
trabalho.
19
Alessandro Baratta, em sua obra de destaque nos estudos jurídicos brasileiros “Criminologia crítica e crítica do Direito Penal”,
retoma os escritos de 1939 de Rusche e Kirchheimer em “Punishment and Social Structure”, cuja tese consiste em afirmar que, na
sociedade capitalista, o sistema penitenciário depende do desenvolvimento do mercado de trabalho, no sentido de que a população
carcerária, e seu emprego como mão-de-obra, dependem da oferta da força de trabalho disponíveis no mercado e sua utilização
efetiva, apontando então ser essa sua função real (BARATTA, 2004, p. 203)
20
Em seu argumento, Baratta tece objeções ao modelo foucaultiano refutando a função disciplinar das prisões (BARATTA, 2004,
p. 204). No entanto, o autor peca por compreender a disciplina apenas em seu caráter de “reeducação”, de “normalização” de
sujeitos, de forma a torná-los aptos para um convívio social adequado, ignorando o cerne do poder disciplinar na analítica de
Foucault, que é, antes de tudo, de produzir “modos de vida” em série, em oposição aos mecanismos de repressão do antigo modelo
de atuação do poder soberano. Nesses termos, depreende-se que pensar a prisão como local de condicionamento e constituição de
sujeitos ligados à lógica de produção capitalista, diga-se, explorados em sua condição de mão-de-obra barata é, ainda assim,
apresentá-la no contexto do poder disciplinar, cuja adequação está, nesse caso, direcionada a formação e manutenção de uma
subcultura de marginalizados.
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Ao se centralizar na produção e na manutenção de uma classe marginalizada, essa visão evidencia apenas
um lado da biopolítica que permeia as instituições prisionais, qual seja, a produção de modos de vida, de um “fazer
viver”, colocando em segundo plano o confronto político entre o poder soberano e a vida tida como indigna,
tendência que se traduz no “deixar morrer”. Frente ao caráter descartável que as vidas confinadas nas prisões
contemporâneas assumem no atual contexto capitalista, acreditamos que atingimos um patamar em que, à luz do
diagnóstico biopolítico apresentado por Agamben, prender signifique, a partir de seu mecanismo exceptivo de
inclusão exclusiva, simplesmente deixar morrer.
Na passagem do século XVIII ao XIX, foram coerentes as análises de Foucault sobre o papel das
instituições prisionais, entendidas enquanto ruptura primordial com as sociedades de soberania e apontando para
o desenvolvimento de uma governamentalidade que aposta em mecanismos de normalização da sociedade,
lançando mão do encarceramento para a produção em massa de subjetividades docilizadas. Não obstante, o
próprio filósofo reconhece, como apresentado no Post-Scriptum de Gilles Deleuze, a brevidade deste modelo,
que atingiria seu apogeu a partir do século XX no pós-segunda guerra com a era do controle ao ar livre
(DELEUZE, 1992, p. 219). Com efeito:
Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão,
hospital, fábrica, escola, família. A família é um “interior”, em crise como qualquer outro
interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas
supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a
prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos
longo. Trata-se de apenas gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas
forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades
disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e
que Foucault reconhece como nosso futuro próximo (DELEUZE, 1992, p. 220).
No referido texto, Deleuze aduz que, ao contrário das moldagens subjetivantes realizadas nos locais de
confinamento próprios das sociedades disciplinares, o controle é realizado por modulações, tratando-se de uma
moldagem autodeformante em contínua mutação (DELEUZE, 1992, p. 221), uma emulação pautada na
competição entre indivíduos que produz uma constante sensação de instabilidade e faz nascer o dever de
autosuperação. Ou seja, não se trata de afirmar que a normalização para o controle não se realize mais no interior
das instituições, mas sim constatar sua expansão para além dos muros dessas mesmas instituições, estendendo-se
para toda malha do social.
Essa continuidade de mudanças que garantem a conformação dos indivíduos se perfaz como um
mecanismo típico do capitalismo pós-moderno, que aponta para o surgimento tanto de uma nova relação de
produção/consumo, quanto para uma nova temporalidade.
Hardt & Negri ressaltam o caráter propriamente imaterial e biopolítico do trabalho na
contemporaneidade que, abarcando todas as esferas da vida, transforma em produtos comerciáveis as próprias
interações humanas, sejam elas intelectuais, informacionais, afetivas e/ou comunicativos, que se extendem e
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emergem do campo social (HARDT; NEGRI, 2000, pp. 29-30). Trata-se de uma instituição econômica que,
pautada em uma matéria essencialmente contingente e precária, torna a produção cada vez mais imediatista,
baseada em uma sequência de eventos que aceleram a temporalidade, desfazendo a noção de progresso que antes
definia os processos de acumulação de riquezas.
Essa nova temporalidade que se perfaz na atual fase do capitalismo Andityas Matos denonimou de
“tempo espetacular”21. Trata-se daquele que, apartado do “tempo circular”22 e do “tempo linear”23, é permanente,
irreflexivo, dessignificado, e por isso dura indefinidamente (MATOS, 2014, pp. 142). Por não objetivar nada, por
não apresentar nenhum fim a ser efetivamente cumprido, essa configuração temporal dura de modo amorfo,
fechando-se sobre si mesma na carência de sentido, e “se identificando com a vivência do contínuo” (MATOS,
2014, p. 144) da produção e do consumo de tempo. Matos aponta que nesse mundo sem ciclos, nem princípios
de transcendência, o que se produz verdadeiramente é sempre mais tempo, sempre igual a si mesmo, e que é
apreendido abstratamente por meio da extorsão do trabalho (MATOS, 2014, pp. 145-146). Essa nova lógica de
produção-consumo-temporalidade relaciona-se diretamente àquilo que Paul Virilio, em seu “Velocidade e
Política”, chamou de “dromologia”24: a estratégia que garante a superioridade econômica (VIRILIO, 1996, p. 56)
pautada na lógica da corrida, cuja referência absoluta não é mais a riqueza portátil, mas sim a velocidade. Nessa
“guerra do tempo”, a velocidade aparece como o valor primordial do capitalismo pós-revolução técnica. Essa nova
ordem, pura e sem conteúdo, busca a manutenção do monopólio exigindo que:
A toda nova máquina seja logo contraposta uma máquina mais rápida. Mas com o limiar das
velocidades se estreitando sem parar, fica cada vez mais difícil de conceber o engenho rápido.
Ele frequentemente se torna obsoleto antes mesmo de ser aproveitado; o produto está
literalmente gasto antes de ser usado, ultrapassando assim, na “velocidade”, todo o sistema de
lucro da obsolência industrial (VIRILIO, 1996, p. 56)
Nesses termos, quando a velocidade torna-se medida econômica, e o tempo um vetor de produção, o
que percebemos é um mar de sujeitos obsoletos deixados para trás. Essa compreensão permite uma reflexão sobre
a real função da prisão em uma época na qual a produção e a adaptação devem ser imediatas e contínuas, já que o
tempo passa a ser um bem de extremo valor para ser desperdiçado com aprodução de sujeitos produtivos, diga-se,
com aqueles que não se tornaram devidamente produtivos por inércia.
21
Matos elabora essa denominação a partir da noção de “espetáculo”, cunhada por Guy Debord em “A sociedade do espetáculo”,
que é concebida como “uma relação social entre pessoas mediada por imagens, uma visão de mundo que se objetivou e que se
traduz enquanto afirmação da aparência e da negação visível do vivido; enquanto tal, ele é a ideologia por excelência, já que
empobrece e falsifica a vida, afastando o homem ao abandoná-lo ao senhorio das coisas que ele próprio produziu, tidas então como
a ‘realidade real’” (MATOS, 2014, p. 127).
22
Apresentado como aquele típico da antiguidade greco-romana e das culturas orientais. Nessa temporalidade a vida humana era
organizada a partir dos eventos cíclicos da natureza, trazendo consigo as noções de destruição e renovação em um ciclo reflexivo
(MATOS, 2014, p. 133-136).
23
Apresentado como aquele típico das sociedades judaico-cristãs, que se perfaz linearmente, de forma irreversível, com princípio,
fim e cesuras bem marcadas (MATOS, 2014, pp. 136-141).
24
Neologismo empregado pelo autor como variante da “palavra grega dromos, que exprime a ideia de corrida, curso, marcha”
(VIRILIO, 1996, p. 10).
___________________________________________vol.09, nº. 01, Rio de Janeiro, 2016. pp. 100-121 117
Quaestio Iuris vol. 09, nº. 01, Rio de Janeiro, 2016. pp. 100-121
DOI: 10.12957/rqi.2016.18602
Como apontado por David Garland em sua obra The Culture of Control, as prisões hoje não trabalham
com a noção de reabilitação e sim com um modelo para eliminar certos grupos não inseridos na lógica do
mercado (GARLAND, 2001, p. 178), revelando uma cumulação entre as sanções pré-modernas de banimento e
exílio e as punições corporalmente violentas, que passaram então a ser inseridas no modelo do confinamento.
Assim como no campo descrito por Agamben, questiona-se a possibilidade de sequer pensar uma lógica –
disciplinar ou qualquer outra – no interior de uma instituição coordenada pela exceção, tal como ocorre nas
prisões brasileiras, onde as vidas ali contidas não estão inseridas em um sistema de normatividade ao qual possam
racionalmente compreender e se ajustar. Ao contrário, elas estão atreladas a uma funcionalidade que atua somente
no sentido de reafirmar a ausência de valor dessas mesmas vidas. É o que se depreende da leitura de Wermuth:
Na realidade contemporânea, com o advento das novas tecnologias de produção, prescinde-
se dos “corpos dóceis” aos quais se referia Foucault para o trabalho que outrora era realizado
exclusivamente por meio da força física. Com isso, enormes contingentes humanos
tornaram-se supérfluos, absolutamente disfuncionais para o sistem a produtivo, eis que não
suficientemente qualificados para operar estas novas tecnologias ou porque sua força de
trabalho tornou-se de fato absolutamente desnecessária. Essa nova polarização social resulta
na dicotomia “aqueles que produzem risco” versus “aqueles que consomem segurança”, o
que implica uma atualização do antagonismo de classes. E o modelo de controle social que
se impõe, nesse contexto, é o de exclusão de uma parte da população que não tem nenhuma
funcionalidade para o modelo produtivo e que, por isso, constitui uma fonte permanente de
riscos. (WERMUTH, 2011, pp. 121-122)
Os dados a que nos referimos anteriormente indicam a natureza do encarceramento enquanto locus de
produção de um modo vida tanatopolítico, conformando-se assim enquanto campo de desqualificação da própria
vida política. O afastamento das Unidades Prisionais dos olhos da sociedade, a cegueira criada para a exceção que
ali se estabelece, as constantes demandas dos detentos para “retornar à sociedade” e as dificuldades de acesso –
tanto efetivas quanto simbólicas – das equipes de direitos humanos nesses locais reforçam sua existência
enquanto estrutura de deslocalização, de não-lugar por excelência da qual emerge o limiar entre a norma
permanentemente suspensa e a vida nua. Com isso, delimita-se claramente um espaço anódino no qual o
ordenamento é de fato suspenso, onde são cometidas arbitrariedades e atrocidades que não dependem do direito,
mas somente da civilidade e do senso ético da autoridade que age ali como soberana (AGAMBEN, 2007a, p.
181).
CONCLUSÃO
uma lógica punitiva que despersonaliza os indivíduos, transformando criminosos em verdadeiros homens sacros,
no sentido indicado por Giorgio Agamben.
Lemke ressalta que enquanto Foucault se preocupa em demonstrar que o poder soberano se legitima
somente a partir de uma rede de micropoderes e técnicas de controle, Agamben direciona suas reflexões para a
produção e o domínio da vida nua pelo poder soberano em si, pensando a estrutura biopolítica mais a partir da
violência do que dos processos de normalização. Seu trabalho se desenvolve nessa linha divisória entre vida
política e vida nua, na qual a norma é suspensa e a morte se materializa. Daí porque a biopolítica se transforma em
tanatopolítica (LEMKE, 2011, pp. 59-60). Percebe-se então que aquilo que Agamben aporta ao pensamento de
Foucault é exatamente a compreensão da biopolítica como um mecanismo de exclusão inclusiva, evidenciando na
política o lugar da passagem da zoé ao bíos, com o que se produz um resto inassimilável pelo sistema e que é
exatamente a vida sacra, totalmente matável, mas nunca pelos métodos ditados pelo direito ou, de forma mais
ampla, pelo rito.
A partir das reflexões realizadas sobre essa passagem conceitual de Foucault à Agamben, é cabível
questionar se o excesso e as contradições normativas do ordenamento jurídico, tão evidentes nos processos de
execução penal e na realidade das Unidades Prisionais, devem ser percebidas como falhas ou, ao contrário, são
consequências inevitáveis de certo sistema jurídico biopolítico que hoje domina o Ocidente. Em uma sociedade
marcada pelo controle e pela economia de mercado, não seria absurdo pensar que as vidas enclausuradas são
muitas vezes abandonadas à morte por se configurarem como vidas nuas, quer dizer, não qualificadas e nem
qualificáveis para a veloz produtividade exigida pelo sistema político-econômico vigente.
Nesse contexto, é necessário despir o sistema prisional dos véus que embaçam seu enfrentamento. É
preciso extirpar dos relatos os eufemismos que tratam verdadeiras vidas nuas como “reeducandos”, reconhecendo
antes seu locus jurídico enquanto “bandidos”, no sentido agambeniano do termo, referente aos banidos
(abandonados) de determinada comunidade e, por isso, excluídos das proteções da ordem jurídica. Muito
embora se sujeitem a suas sanções negativas. É preciso reconhecer que o problema das prisões não reside
originariamente na “ausência de espaço físico” ou qualquer outro empirismo, mas na raiz de uma epistême que
preconiza o extermínio de grupos de desajustados em prol da manutenção de certa “normalidade”, seja
econômica ou jurídica. Enfim, é preciso, como buscamos realizar neste trabalho, enxergar o esgotamento – ou ao
menos a parcialidade – das teorias que sustentam o caráter disciplinar da prisão, sejam aquelas que afirmam a
reeducação do detento como seu “direito” ou aquelas que apostam na produção de um corpo docilizado apto a se
encaixar em uma sociedade normalizada, ou mesmo aquelas que, vendo na prisão uma garantia de manutenção da
existência de classes marginalizadas, sustentam com isso a existência de um regime de opressão que se
retroalimenta. É preciso reconhecer que, apesar de coerentes e reveladores de certos aspectos idiossincrátivos do
sistema penal, tais discursos não evidenciam o verdadeiro caráter tanatopolítico – trata-se do “deixar morrer” – em
que consistem as prisões, campos desligados de qualquer lógica de funcionamento na persecução de um objetivo.
Em síntese, com o enriquecimento do pensamento criminológico efetuado pela biopolítica, percebe-se que a
única “lógica” das prisões é extirpar da sociedade, pela instauração de uma permanente exceção, os indivíduos
tidos como inadequados ao seu sistema de produção.
Abstract
This research in development it’s mainly about the concept of biopolitics, especially its passage from the works of
Michel Foucault and Giorgio Agamben. Based on Agamben’s political diagnosis, the dialogue between Foucault
and Deleuze, and recent researches in the prison system of Minas Gerais, it aimsto think the criminological anlysis
of penal execution no longer in the lines of normalization presented by Foucault, neither on the Marxist
perspective of the economics goals of the improsonment, but from concepts such as exception in Law and bare
life, identified by Agamben nowadays.
Keywords: Michel Foucault; Giorgio Agamben; biopolitics; critical criminology; prison system.
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