Livro-A Cena Musical Da Black Rio-Luciana Oliveira-2018 PDF
Livro-A Cena Musical Da Black Rio-Luciana Oliveira-2018 PDF
Livro-A Cena Musical Da Black Rio-Luciana Oliveira-2018 PDF
A cena musical da
fenômeno de massa no Rio de Janeiro nos anos 1970, mobilizando
onde vive formas intensas de partilhar experiências.
Luciana Xavier de Oliveira milhares de pessoas todos os finais de semana. Dos bailes soul surgiu
Black
uma estética particular que conectava a juventude negra periférica Desse modo, a variável racial que perpassa o
Neta adotiva de Leda, que arcou com seus
brasileira à uma cultura negra internacional, notadamente norte- argumento autoral explicita as interrelações com
estudos, e filha de Dalva, trabalhadora americana. Tudo isso em meio a um contexto de grande polarização aspectos dos territórios simbólicos, as questões
doméstica, a autora é formada em política, entre a repressão da ditadura militar e as críticas de uma socioeconômicas e principalmente as expressões
jornalismo pela Universidade Federal do Rio esquerda tradicional, entre as tradições culturais afro-brasileiras e as estéticas que constituem os fenômenos musicais.
de Janeiro, fez mestrado em comunicação influências da globalização. Como os participantes do Movimento Black Nesse sentido, o livro interessa não apenas aos
na Universidade Federal da Bahia (PósCom) Rio propunham diferentes exercícios subjetivos e novas formas de campos da comunicação e música, mas também aos
e doutorado na Universidade Federal expressão racial? Como, por meio de um estilo particular, esses jovens estudos relativos às diásporas africanas, etnicidades
Fluminense (PPGCOM). Realizou estágio inseriram uma rasura nos discursos da democracia racial e nas visões do
Rio
e estudos culturais contemporâneos.
doutoral (CAPES) na Universidade Tulane, próprio movimento negro? E como esses bailes ajudaram a transformar
o mercado fonográfico, estabelecendo um novo segmento para a Tudo isso emana do texto com a própria intensidade
nos Estados Unidos, e foi pesquisadora
música negra no Brasil? São essas questões que esse livro pretende com que a autora vive suas próprias experiências.
visitante do projeto Literary Cultures of the
discutir, ampliando as reflexões em torno de noções como cena musical, Tensionada, atravessada por outras discursividades
Global South (BMBF/DAAD) na Universidade
políticas de estilo e identidade negra. e disposta a permitir que tais experiências
de Tübingen, Alemanha. Atualmente, é
reorganizem as suas próprias. Em um contexto em
docente da Universidade Federal do ABC no
que os excessos se constroem pela incapacidade
Black
Rio
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
REITOR
João Carlos Salles Pires da Silva
VICE-REITOR
Paulo Cesar Miguez de Oliveira
ASSESSOR DO REITOR
Paulo Costa Lima
A cena musical da
Black
Rio Estilo e mediações nos
ailes soul dos anos
Salvador
EDUFBA
2018
Revisão
Mariana Rios Amaral de Oliveira
Normalização
Sandra Batista
Imagem da Capa
@freevector
ISBN 978-85-232-1720-4
CDU 793.3
Editora afiliada à
Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br / [email protected]
13 n od ç o
55 ailes e l es de s io
57 desen eado das danças ailes ne os o la es no s lo
60 ma no a idade desen ol imen o s ano
64 l es e ailes de sal o
73 mo imen o
97 Hello, crazy people!
102 ailes soul
107 s oi es do a eo l e enas ença
118 soul em al a elo idade
120 s s e as e i es de som
138 ind s ia ono i a no asil dos anos
141 se men o do soul
150 anda la io
153 MPB+soul
155 Brazilian disco music
189 estilo da la io
192 lasse m dia ne a
201 o os es ilos no as ne i des
208 Black movies
212 oda e ons i n ia
227 a elos oli i ados
265 on l sões
281 e e n ias
Black Rio, Black Soul, Black Power ou apenas Soul. Foram diversos os nomes
usados ao longo do tempo para identificar essa cena musical desenvolvida em
meados da década de 1970 na cidade do Rio de Janeiro. Sob o lema emble-
mático do Black is beautiful, eventualmente traduzido para o português, ne-
gros se descobriram lindos dançando ao som da soul music em grandes bailes
sediados, em princípio, nos subúrbios cariocas. Da cena que se configurou
em torno da atuação das centenas de equipes de som responsáveis por es-
truturar um grande conjunto das festas que reuniam milhares de jovens nos
finais de semana, emergiu uma estética particular que conectava a juventude
negra periférica brasileira às produções negras internacionais, notadamen-
te norte-americanas. Esse contexto gerou um conjunto heterogêneo de po-
líticas de estilo que apresentavam uma alternativa de ação político-cultural,
afirmação identitária e acesso à cidadania em um momento de intensas po-
larizações políticas e de grande repressão em meio à ditadura militar. Nesta
pesquisa, proponho-me a compreender como os participantes da cena mu-
sical da Black Rio apresentavam diferentes exercícios subjetivos e diferentes
formas de sociabilidades na configuração de políticas culturais ao apresentar
novas maneiras de se posicionar na arena pública e de se expressar subjeti-
vamente, buscando uma via entre a esquerda militante tradicional e a direita
Na fala dos dois produtores, há duas pistas que podem levar à compreen-
são dos sentidos da Black Rio: o seu caráter aglutinador em torno do lazer,
que assumia status político, mas não no sentido convencional; e a sua face
comunicativa, que fez da cena um espaço de materialização dos processos de
mediação e globalização cultural. São essas manifestações que pretendo ana-
lisar nesta pesquisa, tomando o cuidado de não apontar a Black Rio como um
braço, uma etapa ou um processo integrante da constituição do movimento
negro brasileiro. Obviamente, a ligação de participantes com os bailes e as
organizações negras é apresentada e discutida, mas não foi meu intuito me
deter sobre a trajetória particular de organizações e militantes que se relacio-
navam ao contexto do soul.
Desse ponto de vista, a vitalidade e a potência política da cena black se
remetiam mais à constituição de um horizonte geral de expectativas geradas
nos processos de mediação que tornaram os bailes espaços de partilha de ex-
periência e reconfigurações identitárias por meio do estilo e novas estraté-
gias culturais. Havia trocas, convergências, diálogos com diversas instâncias
de movimentos negros (brasileiros e estrangeiros), mas me interessa, nes-
te trabalho, enfatizar os aspectos comunicativos da cena musical per se, que
criavam condições para outras formas de se fazer política a partir da cultura
e possibilitavam novos exercícios estéticos que criavam novas condições de
1 Ver: Janotti Junior (2012a), Sá (2011), Freire Filho e Fernandes (2005) e Pires (2011).
e sos me odol i os
No conjunto dos estudos das cenas, é notável a frequência de alguns tipos de
percursos metodológicos realizados por autores de diferentes áreas do co-
nhecimento. Autores de diversas áreas utilizaram diferentes procedimentos
metodológicos em seus estudos sobre cenas musicais. Para analisar aspec-
tos identitários de grupos de ouvintes da música eletrônica contemporânea,
Thornton (1996) fez uso da observação participante e da etnografia em clu-
bes e bares. Com o objetivo de identificar características singulares de uma
cena específica local em relação à expressão global do gênero musical, Car-
doso Filho (2008) realizou procedimentos como a interpretação textual de
produtos e performances a partir da análise semiótica de discos e/ou das le-
tras de heavy metal. Já autores como Kahn-Harris (2000) se propuseram a
s estilos em ena
Na configuração dos estilos, os objetos mundanos possuem função princi-
pal e podem se converter em materiais simbólicos ao assumirem uma ação
de subversão de ordens, instituições e fronteiras, assinalando e reorientando
a presença da diferença. Os objetos também jogam com estigmas e são uma
porta de entrada para a construção de sentimentos de pertencimento a uma
3 Para uma revisão da crítica a respeito das subculturas, ver: Freire Filho e Fernandes (2005).
1 Tipo de dança campestre originária da região da Boêmia, na Alemanha, que se tornou bastante
popular na Era Vitoriana, se tornando uma dança de salão semelhante à polca, mas com movi-
mentos mais lentos.
Se já nas últimas décadas do século XIX, nas chácaras da Tijuca ou nos casa-
rões de Botafogo, os senhores e senhoras promoviam saraus animados por
valsas ao piano, polcas, xotes e quadrilhas – com pausas para refrescos, na-
moros, discursos e recitativos – na região central, especialmente na Cidade
Nova, reduto da Pequena África, outras diversões ocorriam em “protoclu-
bes” clandestinos estabelecidos em casas térreas de duas janelas e portas com
rótula – os chamados “criouléus”, anteriores às gafieiras. “Nesses arrasta-pés
ou assustados se divertia a gente de baixa categoria social e econômica, pre-
dominando os pretos alforriados ou libertos”. (SAROLDI, 2000, p. 36, grifo
do autor) Uma alternativa para uma população que não habitava em residên-
cias suficientemente grandes para a realização de festas domésticas. Assim,
pequenos espaços voltados para a prática da dança e para a socialização co-
letiva passaram a ser criados, mediante entrada paga. Essas casas possuíam
uma frequência basicamente negra e mestiça, composta por ex-escravos e
descendentes que buscavam formas de divertimento e lazer mais baratas, lo-
calizadas nas redondezas dos seus locais de moradia ou em regiões centrais
3 É digna de nota a “conquista” gradual pelos negros da festa da Igreja da Penha, até então uma
celebração católica conduzida pela elite religiosa local e descendente de portugueses. Essa ocu-
pação negra de uma das maiores festas populares da cidade recebeu atenções e reações contra-
ditórias na imprensa, especialmente no tocante à forte repressão aos capoeiristas, que também
frequentavam o evento, e ao sincretismo religioso ali praticado e mal visto na época. A história
desse processo de ocupação negra da Festa da Penha se iniciou com a presença cada vez maior
de baianas, que iam à festa vender seus quitutes aos frequentadores – Tia Ciata era uma delas, in-
clusive. Além das manifestações sincréticas que marcavam a festa, apesar da repressão, também
eram realizados batuques que animavam o festejo. Aos poucos, a região do entorno da Igreja da
Penha se tornou ponto de encontro de sambistas famosos, como Donga e Pixinguinha, que, du-
rante a festa, podiam mostrar suas composições e divulgar sua arte.
4 Sua densidade econômica era igualmente expressiva, já que ocupava o segundo lugar no ranking
dos estados da federação, vindo atrás apenas de São Paulo. Essa densidade se refletia na renda
per capita do estado, a mais alta do país, com quase o triplo da média nacional. (MOTTA, 2000,
p. 82-83)
l es e ailes de sal o
Consequência direta da instalação na cidade de um número expressivo de fá-
bricas, os clubes tiveram um grande crescimento no começo do século XX,
em vários bairros. Como espaços privilegiados para a prática da dança e
5 Instituição emblemática por ter inaugurado a primeira piscina comunitária da Zona Norte ca-
rioca. Um fato histórico e social importante, levando-se em consideração a distância do mar,
de acesso difícil, em uma época em que a comunicação entre as várias partes de uma cidade era
bastante complicada, especialmente tendo em vista a pequena quantidade de vias de tráfego, um
grande número de morros e pouquíssimos túneis.
direitos das populações negras. Atuou em movimentos nacionais e internacionais, como a FNB,
a Négritude e o Pan-Africanismo, e foi fundador de entidades como o Museu da Arte Negra
(MAN) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), além de ter sido poste-
riormente um dos idealizadores do MNU.
2 “A proposta original era formar um grupo teatral constituído apenas por atores negros, mas pro-
gressivamente o TEN adquiriu um caráter mais amplo: publicou o jornal Quilombo, passou a
oferecer curso de alfabetização, de corte e costura; fundou o Instituto Nacional do Negro, o Mu-
seu do Negro; organizou o I Congresso do Negro Brasileiro; promoveu a eleição da Rainha da
Mulata e da Boneca de Pixe; tempo depois, realizou o concurso de artes plásticas que teve como
tema Cristo Negro, com repercussão na opinião pública”. (DOMINGUES, 2007, p. 109)
3 Essa não era necessariamente uma postura unânime da entidade, e havia divergências político-
-partidárias entre seus membros. Para um aprofundamento a respeito da história do movimento
negro no Brasil, ver: Hanchard (2001) e Alberto (2011).
Mesmo assim, para Silva (1980), como para outros autores, a preocupa-
ção das equipes de soul com o lazer seria maior que uma visão e uma proposta
concreta de um movimento racial. O autor também considerava que a preo-
cupação com a busca e a demonstração pública de um certo status alcançado
por meio da integração em uma sociedade de consumo superaria possíveis
interesses políticos: “Curiosamente, parece que os grupos acabam incorpo-
rando os padrões estabelecidos pela sociedade dominante, procurando se-
rem reconhecidos como negros bem sucedidos”. (SILVA, 1980, p. 7) Esse
desejo, para Silva (1980), também estaria representado no processo de ocu-
pação de espaços anteriormente negados, como clubes frequentados apenas
pela elite branca local, nos quais era vedada a entrada de negros.4 Essas inter-
4 “Mas, é preciso ver o que significa dar uma festa no Tênis Club, que e um dos mais conhecidos
clubes da elite branca da cidade. Ainda que se utilize somente as quadras de esporte, essa si-
tuação aponta para a questão racial, na medida em que não estariam entrando no clube como
um grupo qualquer, mas como um grupo de negros. Também significa ocupar um espaço que
normalmente não lhe é permitido”. (SILVA, 1980, p. 6) A situação da interdição da entrada de
negros em espaços “brancos” da elite e da classe média de Campinas, conforme descrição em
outras passagens do artigo de Silva, também era articulada à questão da classe social, como de-
nuncia Assef (2003, p. 21) em relação ao contexto de São Paulo: “Ao contrário de países como
os Estados Unidos, não havia no Brasil um código social que vetasse a entrada de negros nesses
bailes. O fator excludente era mesmo o alto preço dos ingressos”.
5 Babá e frequentadora dos bailes. Entrevista concedida à autora por telefone, Rio de Janeiro, 26
abr. 2016.
6 As Leis de Jim Crow se referem a uma legislação estadual decretada nos estados sulistas e limí-
trofes dos EUA que vigorou entre 1876 e 1965, cujas premissas mais contundentes exigiam que
as escolas públicas e a maioria dos locais públicos (incluindo transportes) tivessem instalações
separadas para brancos e negros. Esse conjunto de leis também afetava asiáticos e outros grupos
minoritários.
7 A política oficial do apartheid (que significava “separação”) foi adotada entre 1948 a 1994 na
África do Sul, baseada no cerceamento dos direitos da maioria dos habitantes negros e instituída
por governos sucessivos formados por uma minoria branca, que estabeleceram um regime de
segregação racial.
Cavalcanti (1981, p. 3), nesse caso, busca uma terceira posição, ao ten-
tar atribuir um significado maior ao soul, que, segundo ele, se constituiria,
na época, talvez como “o único evento especificamente negro que mobilize
grande número de pessoas”. Isso justificaria, para o autor, a sua comparação
ao samba e a sambistas negros enquanto “exemplo máximo de negritude e
brasilidade”, com discursos identitários e visões comuns entre os dois seg-
mentos, mesmo que houvesse cisões e disputas.
Também é de 1981 o livro Carnaval Ijexá, de Antônio Risério. A obra,
que teve apenas uma edição, é um testemunho situado entre o acadêmico, a
crônica e a poesia sobre o desenrolar das novas ações e produções culturais
afro-baianas durante os anos 1970, superpostas àquilo que o autor chama de
“reafricanização”,8 processo catalisador da influência negra norte-americana
na configuração de um contexto “afro-ijexá”, que incorporava convergente-
mente questões culturais derivadas dos processos de libertação das antigas
colônias portuguesas na África e traços da tradição afro-brasileira. Essa re-
africanização seria marcada pelo uso, no cotidiano ou no contexto da festa,
de símbolos ligados a uma determinada africanidade que demarcavam uma
8 Uma definição espontânea de reafricanização, para Risério (1981, p. 13): “Os pretos se tornam
mais pretos, digamos assim; se interessam cada vez mais pelas coisas da África e da negritude.
Mas vivem, intensa e essencialmente, o presente, jogando aberto para o futuro”.
9 Ao longo do livro, Risério utiliza diversas vezes o termo “gueto” para se referir aos bairros perifé-
ricos pobres e negros de Salvador, utilizando o termo de acordo com o senso comum. No entan-
to, diante da observação da sociedade brasileira ao longo de sua história, a associação de gueto à
experiência racial brasileira aparece um tanto deslocada, pois, de acordo com Wacquant (2004),
o conceito de gueto se refere a uma historiografia ligada à diáspora judaica pela Europa e se re-
laciona ainda à experiência negra nas grandes cidades norte-americanas. A “guetização”, que
tinha um propósito definido de cercamento e controle étnico-racial, era um dispositivo sócio-
-organizador segregador do espaço urbano pautado por uma violência coletiva, com propósitos
de ostracismo social. Wacquant considera as áreas pobres brasileiras como exemplos de aglome-
rações étnicas, marcadas pela pobreza e segregação, mas guardando suas especificidades.
10 Freestyle é um gênero musical originado na virada dos anos 1970 para os 1980, diante da deca-
dência da disco music, basicamente desenvolvido em comunidades latinas e negras de Nova York
e Miami. Utilizando batidas eletrônicas de teclados e sintetizadores e misturando elementos rít-
micos e melódicos do R&B, dance e house music, era uma música dançante, mas melódica, com
temática romântica, que, por sua vez, deu origem ao Miami bass, mais dançante e sincopado,
com batida mais grave e intensa, fundamentado sobre a atuação criativa de DJs, substituindo te-
mas românticos pela fala das ruas em gravações com temáticas sexuais, que baseou a constitui-
ção do funk carioca.
11 Segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C) de 2016, realizada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
12 Sobre esse aspecto, a tese de Hanchard (2001) recebeu um ensaio crítico de Pierre Bourdieu e
Louis Waquant, no qual acusam o autor de ser incapaz de compreender a dimensão global das
experiências raciais no contexto da diáspora africana por conta de uma visão etnocêntrica e “im-
perialista”, que usaria como único modelo de combate ao racismo aquele praticado nos EUA, de-
senvolvido a partir do movimento pelos direitos civis dos afro-americanos. Para mais, ver: Bour-
dieu e Wacquant (1999).
13 Sobre a origem dos bailes, Dom Filó (2009) também questiona essa narrativa: “Costumam atri-
buir a Big Boy e Ademir Lemos, no Canecão, o surgimento do soul no Brasil. Mas isso não é ver-
dade! O fato é que nós tínhamos intervenções no subúrbio por conta de vários outros compa-
nheiros, que se reuniam pra fazer festas nas casas”.
Big Boy já difundia o soul em seus programas de rádio antes dos discos do
gênero chegarem ao Brasil e foi um grande divulgador do som de James Brown,
dedicando alguns minutos de seu programa diário à black music. Mas a ideia
de realizar um baile que tocasse soul partiu de outro discotecário famoso na
época. Pecegueiro, publicitário e empresário de Big Boy, no documentário
The Big Boy Show (2004), conta:
14 Depoimento de Mr. Funky Santos publicado na tese Identidade e resistência no urbano: o Quar-
teirão do Soul em Belo Horizonte, de Ribeiro (2008).
15 Big Boy foi ainda pioneiro no começo das operações da FM no país e assinou a programação da
Rádio Eldo Pop, do Sistema Globo de Rádio em 1973, uma rádio de vanguarda que só tocava
rock, especialmente progressivo.
16 Depoimento do Mr. Funky Santos publicado no livro Batidão: uma história do funk, de Essinger
(2005).
17 Para Palombini (2009, p. 52), Ademir Lemos era mestiço, enquanto, segundo McCann (2002),
ele era branco, o que pode denotar tensões nas apreensões e percepções sobre cor e raça entre
observadores brasileiros (no caso, Palombini) e americanos (McCann), de acordo com as expe-
riências culturais e raciais específicas de seus países.
18 No final dos anos 1980, Ademir Lemos lançou-se como cantor de funk, gravando, em 1989, a
“Melô do Arrastão”. Em 1991, lançou o disco Um senhor baile com o sucesso “Rap do Rapa”,
com samples das músicas “Money for nothing”, do Dire Straits, e “Cocaine”, de Eric Clapton.
19 Programa De Lá Pra Cá, com direção de Carolina Sá. TV Brasil, Rio de Janeiro, 23 jan. 2014.
25 min.
ailes soul
O crédito a Big Boy é importante para a compreensão daquele momento,
pois foi o responsável pela difusão inicial da soul music no Rio de Janeiro em
20 Ademir Lemos, em depoimento a Vianna (1987, p. 51), conta sua versão do fato: “As coisas es-
tavam indo muito bem por lá. Os resultados financeiros estavam correspondendo à expectativa.
Porém, começou a haver falta de liberdade do pessoal que frequentava. Os diretores começaram
a pichar tudo, a pôr restrição em tudo. Mas nós íamos levando até que pintou a ideia da direção
do Canecão de fazer um show com Roberto Carlos. Era a oportunidade deles para intelectualizar
a casa, e eles não iam perdê-la, por isso fomos convidados pela direção a acabar com o baile”.
21 É interessante notar como esse tipo de organização de evento cultural popular amador era tam-
bém percebido no contexto americano, nas rent parties ou “festas de aluguel”, realizadas nas fave-
las do Harlem ou de Chicago, no começo do século, em que negros se reuniam para ouvir e dançar
jazz tocado ao vivo, nas block parties ou “festas de quarteirão”, realizadas já nos anos 1960 e 1970,
em espaços públicos como praças, parques e quadras esportivas em bairros negros americanos,
animados por música eletrônica, e nos sound system jamaicanos, que se baseavam em sistemas de
som potentes que animavam festas realizadas nas periferias de Kingstom desde os anos 1950. O
som desses sistemas sonoros possuía características particulares como a ênfase nas frequências de
graves e na questão estética, possibilitando novas formas de consumo popular. (GILROY, 2001)
22 Jornalista e militante. Entrevista concedida à autora por telefone, Rio de Janeiro, em 2 fev. 2016,
telefone.
Ao final dos anos 1960, quando o rock deixa de assumir contornos mais
dançáveis, passa a ser maciçamente substituído pelo soul e por uma produção
pop dançante brasileira – de artistas como Wilson Simonal, Jorge Ben Jor e
The Fevers. Esse movimento de bailes voltados para um público negro, ani-
mados por música norte-americana, também já ocorria em São Paulo desde
1967, segundo Silva (1998, p. 73), quando foi criada a Chic Show, primeira
equipe profissional de baile a se formar na cidade voltada para o segmento da
black music, logo seguida por outros empreendimentos, como as equipes Bla-
ck Mad e a Zimbabwe, ambas criadas em 1975.
Foi nas pequenas festas do subúrbio, por volta de 1969, que Oséas deu
seus primeiros passos como disc-jóquei, tocando seus discos em uma vitrola
barata. Oséas era uma espécie de líder de uma turma de roqueiros do Morro
da Mineira e idolatrava Led Zeppelin e Jimi Hendrix, mas já ostentava um
grande penteado afro. Até então, o jovem trabalhava como auxiliar de palco
de um grupo de carioca de rock e, logo depois, foi contratado para prestar
23 Depoimento de Mr. Funky Santos publicado no livro Todo DJ já sambou: a história do disc-jóquei
no Brasil, de Assef (2003).
s oi es do a eo l e enas ença
Foi após uma ida a um baile de Mr. Funky Santos, no Clube Astória, que
Dom Filó teve a ideia de levar para o Clube Renascença uma proposta se-
melhante: “Vimos que poderíamos fazer a mesma coisa no Renascença, mas
com um diferencial: a consciência negra”.26 (ESSINGER, 2005, p. 19) Em
1972, o Clube Renascença – antiga associação criada no Andaraí, Zona Nor-
te do Rio, por uma classe média negra local – foi escolhido para ser o espaço
de realização de uma festa com um mote marcadamente voltado para cons-
cientização racial: as Noites do Shaft. Fazendo referência ao personagem do
seriado homônimo americano, essas festas eram utilizadas por seus organi-
zadores para propagar um discurso politizado, voltado para a formação e a
valorização de uma nova imagem do negro, influenciados pela ideologia do
movimento Black Power norte-americano. O Poder Negro, em sua acepção
original, se referia a um conjunto de ideias e valores de afirmação e orgulho
negro desenvolvido na década de 1960, tendo como um de seus principais
idealizadores Stokely Carmichael, que difundia a crença da superioridade das
culturas negras de origem africana.
A própria escolha do nome do evento já representava uma proposta dife-
renciada, mais popular e uma articulação com símbolos internacionais. Shaft
era o nome do personagem principal do filme de mesmo nome, que contava
as aventuras de um detetive negro, que propunha uma visão positiva e um
protagonismo do negro em uma narrativa relacionada às experiências das
populações negras norteamericanas. O filme, protagonizado pelo ator Ri-
chard Roundtree, ganhou três sequências dirigidas por Gordon Parks. Lan-
çado pela MGM em 1971, teve um grande orçamento e recebeu o Oscar de
melhor canção no ano seguinte com uma composição de Isaac Hayes, um dos
26 Depoimento de Dom Filó publicado no livro Batidão: uma história do funk, de Essinger (2005).
27 O disco atingiu o número um da The Billboard 200 e passou 60 semanas no topo das paradas
norte-americanas. Os singles de “Theme from Shaft” e “Do your thing” também entraram no
ranking Top 40 da parada Billboard Hot 100.
28 “[...] então a gente montou o Orfeu, aí tudo bem, um espetáculo maravilhoso, um sucesso, mas
jovem negro nenhum. Ninguém tava [sic] ligado nesse troço de cultura. Eu com aquilo compre-
endi e entrei numa de fazer som” (Jornal de Música apud VIANNA, 1987, p. 55), conta Dom Filó
em entrevista ao Jornal da Música em 1976.
29 Ebony é uma revista mensal voltada para o público afrodescendente, criada por John Harold
Johnson em 1945 nos Estados Unidos e publicada até os dias atuais. Sua proposta era dar visibili-
dade à população afro-americana, e suas capas são dedicadas a atores, músicos e políticos negros
do país.
Dom Filó, da mesma forma que Mr. Funky, criava uma nova forma de atu-
ar, ultrapassando o simples papel de tocar músicas. Naquele tempo, os DJs,
mesmo que famosos, tocavam de costas para o público, de acordo com Es-
singer (2005, p. 19). Mas, nos bailes soul, os disc-jóqueis desenvolviam per-
formances diferentes e assumiam uma função de animadores, mestres de ce-
rimônias, se tornando celebridades. Especialmente a questão da autoestima
estimulada pelos produtores das Noites do Shaft influenciou muitas outras
equipes, que, em seus bailes, passaram a premiar os cabelos “blacks” mais bo-
nitos, ou realizavam concursos para escolher os frequentadores mais pareci-
dos com astros do soul, como Isaac Hayes ou James Brown. No baile da SGP
no Mourisco em 1976, o participante mais parecido com Isaac Hayes con-
corria a uma caderneta de poupança no valor de mil cruzeiros como prêmio.
(FRIAS, 1976, p. 3) Já em outros eventos, as premiações eram destinadas aos
melhores dançarinos. Essa valorização também das pessoas comuns ao lado
dos artistas famosos era uma estratégia também adotada nos próprios pan-
fletos e cartazes de divulgação das festas, em que fotos de frequentadores
ilustravam as peças publicitárias junto com rostos de celebridades dos bailes,
como o cantor Tony Tornado e o DJ Monsieur Limá.
O fato de ser um dos poucos jovens negros a possuir um carro na épo-
ca permitia que Filó circulasse pela noite carioca e descobrisse onde pode-
ria conseguir discos inéditos para seus bailes, desenvolvendo novas opor-
tunidades de negócios na área da cultura e do entretenimento. O soul ainda
era um gênero pouco explorado em termos de segmento noturno, pois não
era a música mais tocada nas boates e emergentes discotecas da Zona Sul.
Disc-jóqueis de casas famosas, como Le Bateau, Jirau, One Way, dispensa-
vam os discos de soul que chegavam, e os DJs dos bailes black começaram
a negociar para conseguir esse material, criando canais exclusivos de aces-
so às novidades do gênero. “Chegava muito material black e eles só tocavam
Sex Machine”.32 (ESSINGER, 2005, p. 19-20) E, desse modo, nomes do soul
Com o aumento dos lucros, a SGP adquiriu um sistema de som e luz mais
poderoso, incluindo luzes estroboscópicas e projetores coloridos, dando ao
baile uma atmosfera pirotécnica e onírica, inspirada também na ambientação
das recentes discotecas. Outra característica da equipe foi o desenvolvimento
de estratégias de marketing alternativas para divulgar a marca dos seus bailes,
que contavam não apenas com o carisma do mestre de cerimônias Filó, mas
também com um visual diferenciado ostentado pelos integrantes da equipe,
que também contava com um grupo de dança chamado Angola Soul, com
uma média de 30 integrantes, que animavam os bailes. Duplas e grupos de
dança eram um recurso frequentemente utilizado por algumas equipes. Em
geral, não eram bailarinos formais, mas fãs que compareciam frequentemen-
te aos bailes e chamavam a atenção pela maestria na dança e pela aparência,
s s e as e i es de som
Muitos dos seguidores dessas equipes pioneiras resolveram iniciar seus
próprios negócios. Por volta de 1976, havia centenas de equipes de soul em
33 Alusão ao título do álbum duplo homônimo de James Brown Revolution of the Mind: Recorded
Live at the Apollo, v. 3, Polydor, 1971.
34 A equipe de som mais famosa até hoje foi a Furacão 2000. Criada em Petrópolis, tornou-se um
miniconglomerado na área de entretenimento no Rio de Janeiro, depois de ter sido comprada por
Rômulo Costa, um ex-funcionário da equipe. Atualmente, a Furacão é a maior marca ligada ao funk
carioca, se desdobrando em gravadora e produtora, além de realizar programas de TV e de rádio.
37 “Houve um tempo em que o discotecário era uma figura apagada no jogo de luzes, som e alegria
da pista de dança. Era o maestro sem batuta, escondido entre pilhas de discos, às vezes jogado
num canto qualquer, atrás de pratos, copos e panelas, ao lado da copa ou do bar de uma boate.
Agora o cenário é outro... De repente, aquele modesto canto passou a ficar pequeno demais para
a importância dos DJs das mil e uma noites de som...”. Mário Henrique Peixinho, programador
da rádio Mundial, na contracapa do LP DJs 77. (RCA Victor, 1977, encarte de um disco).
Os DJs tinham preferência pelos Disco Mix, que eram discos, a maio-
ria de 12 polegadas (LP) [...], com várias versões de uma ou algumas
músicas remixadas, de forma que ficassem levemente modificadas da
versão original (algumas vezes apenas com sua duração alongada), o
que conferia a marca da exclusividade àquele DJ e sua equipe de som
que conseguiu tal raridade. Mas as raridades também poderiam vir
por meio de compactos importados de 7 polegadas, que tocavam a
velocidade de 45 rotações por minuto (rpm) [...], conhecidos como
compactos de Funk Forty Five. (BRAGA, 2015, p. 62)
A gente ia para o baile para escutar músicas que não ouvia em lugar
nenhum. Algumas delas, quando tocavam, o público urrava. Não ti-
nha internet, era muito difícil conseguir disco importado. Algumas
músicas eram preciosidades. Vi um cara trocar um fusca por um
compacto importado – não estou brincando. (SCHPREJER, 2009)
39 O DJ Paulinho, da equipe Black Power, se lembra dessas movimentações: “sempre todos os sába-
dos, reunião dos Black’s para discutir sobre músicas, discotecários, equipes que melhor se apresen-
tavam etc... Detalhe: Essas reuniões rolavam e os participantes sempre se vestiam no maior estilo
Black, usando chapéu, óculos escuros, bengalas, blazer, sapatos com dois e três andares. A Praça de
Duque de Caxias ficava repleta de gente e parecia até que você estava no Harlem!!”. Disponível em:
<http://zinezerozero.blogspot.com.br/2011/03/bgirlz-2011.html>. Acesso em: 6 abr. 2016.
40 A urbanização promovida por Chagas Freitas, governador do estado da Guanabara (1971-1975)
e do Rio de Janeiro (1979-1983), levou à criação de grandes espaços chamados calçadões ou
ruas de pedestres, às quais era vedado o trânsito. Os calçadões eram exclusivamente voltados
para o comércio, mas com espaço para canteiros, árvores, bancos de praça, favorecendo a circu-
lação de pessoas, como um shopping a céu aberto.
41 Para Hanchard (2001, p. 140), a escolha das quadras de escolas de samba para a realização de
bailes cada vez maiores era devido ao alto valor do aluguel de salões sociais, bem como à “relu-
tância de muitos proprietários brancos em permitir que grandes levas de brasileiros negros en-
trassem em seus prédios”.
42 “The Beautiful Black People estaria no maior sufoco, não fosse o surgimento das equipes de som.
There was a time em que foi um só Baile da Pesada. Hoje desdobraram-se em centenas de Disco
Dance instalados nas festivas domingueiras de clubes. A Equipe Soul Grand Prix conquistou,
através de suas multimilionárias performances, o direito de registrar esse acontecimento tão
marcante”. (Texto de encarte do LP da SGP escrito por Ademir Lemos, produtor do disco, Top
Tape, 1976)
43 Wattstax também foi exibido na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em 6 de se-
tembro de 1977, em um seminário intitulado “O soul – e suas implicações sócio-econômicas e
culturais na comunidade”, com a participação do crítico musical Roberto Moura e da militante
negra e antropóloga Lélia Gonzales.
45 Tal situação indicava uma estrutura bem mais complexa de profissionais distribuídos em diferen-
tes áreas: artística (equipe de produção, composta por orquestradores, regentes e produtores);
técnica (especialistas em áudio e eletrônica); comercial (marketing, capa/embalagem, produção,
distribuição e promoção dos discos); e industrial (matrizes). (CERQUEIRA, 2015, p. 6)
se men o do soul
A grande quantidade de lançamentos, sejam estrangeiros ou nacionais,
não deixava dúvidas a respeito do crescimento acelerado do mercado con-
sumidor brasileiro de discos nos anos 1970, que incorporava novos seg-
mentos da população com um crescente poder de compra. Mesmo assim,
apesar do empenho da indústria fonográfica para aproveitar o mercado
brasileiro na venda massiva de rock internacional, bandas mais famosas,
como Led Zeppelin e Deep Purple, aqui não obtiveram vendas expressi-
vas. O mercado nacional tinha características peculiares e precisava ser
explorado de maneiras diferentes.
46 Na Philips, Midani também passou a empregar outra estratégia. Primeiro, separou a “nata” da
MPB e cantores mais popularescos em dois selos: Philips e Polydor. E os artistas que vendiam 4
mil discos que permaneceram na Philips passaram a receber todas as atenções da gravadora, que
realizava campanhas de marketing, peças publicitárias, investia mais em produção, tecnologia e
divulgação, passando a vender 40, 50 mil cópias. Com isso, a gravadora tornou-se bastante lucra-
tiva, aumentando sua participação de 7% a 8% para 18%, 19% do mercado. (MIDANI, 2009)
47 Nirto, da SGP, fala a respeito do investimento na busca de novos talentos: “Aí alugaram para a
gente um apartamento em Ipanema, na Visconde de Pirajá, e deram um gravadorzinho para re-
gistrar tudo o que tivesse em termos de black brasileiro”. (ESSINGER, 2005, p. 36)
48 “Dia a dia surge uma novidade no mundo da música em todos os cantos do mundo. E cada inova-
ção ganha sempre um nome pequenino, mas com a intenção de definir algo muito grande e ele-
vado. Assim é o ‘soul’, a última inovação surgida no mundo da música e que consegue uma acei-
tação das maiores, principalmente pelo público jovem que, como sempre, é o primeiro a aceitar,
adotar e beber o que vem com característica de novidade. As letras contêm mensagens de muito
sentimento e ternura, embora o ritmo seja alegre e bem dentro da linha do que o jovem prefere
e exige... É o que se dança e se canta em todas as boates ianques, em todas as ‘caves’ de Paris e do
resto da Europa. E como o vento é que traz ligeiro as novidades musicais, num instante ele se fez
presente no Brasil, onde aos poucos começa a infiltrar-se...”. (SANSONE, 2004, p. 171)
49 “A Nopem, Nelson Oliveira Pesquisas de Mercado, é uma empresa carioca criada em 1965 com
o objetivo de atender exclusivamente à indústria fonográfica. Nelson Oliveira, seu fundador, tra-
balhara anteriormente no Ibope e estruturou sua pesquisa de venda de discos a partir de infor-
mações de lojistas do eixo formado pelas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. As listagens não
trazem quantidades de vendas, mas apenas a posição anual de cada álbum no ranking dos 50
mais vendidos”. (VICENTE, 2006, p. 2)
50 A empresa encerrou suas atividades em 1980, ao vender seu catálogo para a Som Livre. Na dé-
cada de 1990, todo o seu acervo foi licenciado à Discos Copacabana, que posteriormente foi ad-
quirida pela EMI. Desde 2011, o acervo da Tapecar vem sendo restaurado e digitalizado pelo selo
Discobertas.
51 Midani se confunde porque, na verdade, a revista Veja publicou duas matérias abordando a Black
Rio, sendo a primeira, com cinco páginas, em 1976 e a segunda, com apenas duas páginas, em
1978, esta um obituário sobre o falecimento do compositor Candeia.
52 Segundo Essinger (2005, p. 38), a União Black era originalmente um grupo de samba do subúr-
bio: “Com o aval do produtor e integrante dos Fevers Pedrinho da Luz, Gerson então conseguiu
roupas blacks para a rapaziada, ajudou na composição das músicas e o disco foi feito. A foto da
capa, curiosamente, foi tirada com a banda posando nas ruínas do Astória, lá onde começara Mr.
Funky Santos”.
anda la io
Com o sucesso dos bailes e a maior difusão de gêneros da black music norte-
-americana nas rádios brasileiras, artistas nacionais que cantavam soul music
começaram a despontar e a gravar discos de grande sucesso. Mesmo antes
desse êxito alavancado pelos bailes, a black music já influenciava o trabalho de
muitos artistas brasileiros. Além dos já consagrados Tim Maia53 e Jorge Ben
Jor, novos nomes como Hyldon e Cassiano, antigos parceiros de Tim Maia,
angariaram excelentes resultados para a indústria fonográfica. Tony Torna-
do, Bebeto e Gerson King Combo, diferentemente dos outros cantores de
soul brasileiros, ganharam impulso em suas carreiras ao articularem direta-
mente suas imagens aos bailes black, realizando grandes shows a partir de
contratos com as equipes de som.
A boa repercussão do segmento incentivou a WEA, Warner Music do
Brasil, que, em 1977, incumbiu ao músico Oberdan Magalhães, a pedido da
matriz norte-americana, a criação de uma banda que mesclasse a soul music
com a música negra brasileira mais conhecida no exterior: o samba. “A War-
ner está animadíssima, tem toda uma transação em cima de música negra,
53 Sobre a importância do soulman Tim Maia, Ramos (2007, p. 68) comenta: “Os Lp(s) lançados
por ele ao longo dos anos 70 são bases fundamentais da música pop que se desenvolveu no Brasil
nas décadas seguintes e estão entre os exemplos mais bem acabados de nossa música em termos
de produção de discos dentro de um estúdio”.
54 “A gravação que o Mazzola produziu com a Banda Black Rio foi um momento muito importante
na vida musical do país, pois o grupo reunia os mais importantes músicos black do Rio de Janeiro.
Oberdan, líder da banda, desenvolveu arranjos surpreendentemente ousados e modernos, que
fizeram com que o álbum Maria Fumaça se tornasse, até hoje, uma referência entre os músicos
brasileiros devido ao seu conceito inovador e, sobretudo, à influência que exerceu sobre os desti-
nos musicais do funk brasileiro, que estava nascendo, inicialmente pela influência musical do Jor-
ge Ben Jor, do Tim Maia e, naquele momento, dessa banda. O negro podia se expressar de muitas
maneiras – sem ficar unicamente confinado ao samba e, no entanto, sem o renegar”. (MIDANI,
2009, p. 102)
MPB+soul
E a soul music, que chegava ao Brasil através dos bailes, começava efetiva-
mente a ocupar a significativa fatia da música estrangeira nas gravadoras
55 Sobre esse show, Caetano Veloso comenta em artigo publicado na Revista Música de 1977: “[...]
o show é bem uma apresentação de banda. Eu estou presente, a minha transação se dá por intei-
ro. É bacana, mas é bem mais uma apresentação de banda. Eu fiz questão que fosse assim, porque
eles são músicos muito bons”. (RAMOS, 2007, p. 71)
A cena Black Rio, ao alcançar a grande mídia, acabou por despertar críticas
e reações que seguiam, basicamente, duas frentes. A primeira defendia a tese
de que o Brasil era uma democracia racial, obtida graças à miscigenação de
três raças: o branco português, o negro africano e o índio nativo. Segundo
essa corrente, o país seria o paraíso do mulato, não havendo atualmente gran-
des problemas de preconceito racial, o que tornaria qualquer movimento ne-
gro artificial e deslocado da realidade nacional, uma tendência importada dos
EUA que poderia ser prejudicial ao Brasil ao pregar uma marcada diferencia-
ção racial que possivelmente conduziria a conflitos e tensões. (CAVALCANTI,
1981, p. 3) Havia ainda o receio de um distanciamento de uma autêntica cul-
tura brasileira, alienando os participantes não apenas da “verdadeira” iden-
tidade nacional, como também de possíveis ações políticas eficazes de cons-
cientização racial que deveriam ser pautadas em tradições afro-brasileiras.
Outras críticas, advindas de uma esquerda com tendências comunista-mar-
xistas, partiam do pressuposto de que o problema da desigualdade no Brasil
seria uma questão de classe social e não de ordem racial, pressupondo que a
união e a luta de classes dispensariam a necessidade de um movimento negro
com ênfase na questão étnica.
1 Além de jornalista, Marlene Ferreira Frias (1944-2004) pesquisava cultura popular e era mui-
to ligada ao universo do samba carioca. Foi jurada durante alguns anos de desfiles de escolas de
samba, fez parte do Conselho de Carnaval da Cidade do Rio de Janeiro, do Conselho Estadual de
Cultura do Rio de Janeiro e, com Hermínio Bello de Carvalho e Nei Lopes, escreveu textos para
o livro Rainha Quelé (2001), com organização de Heron Coelho, sobre a vida de Clementina de
Jesus. Lena Frias faleceu em 2004, ano de seu último trabalho, um release sobre um CD de Dona
Ivone Lara.
2 De acordo com José Sergio Rocha, jornalista, no site Agenda do Samba-Choro, em 12 de maio de
2004. Disponível em: <http://www.samba-choro.com.br/noticias/arquivo/9139>.
[...] é que o grande desejo dos brasileiros de pele negra das gran-
des cidades (ao menos os do Rio e de São Paulo, onde o movimento
black já existe) é parecer o mais possível com os negros norte-ame-
ricanos. Isto é, deixarem de ser trabalhadores explorados num con-
texto subdesenvolvido, para se tornarem a imagem de trabalhadores
explorados num contexto superdesenvolvido. (TINHORÃO, 1977,
p. 2)
O que existe de mais trágico por trás de tudo isso é que eles estão ten-
tando impingir um ritmo, uma harmonia e um som que nada têm a
ver com a nossa musicalidade. E o pior é que estão se valendo de um
bando de inocentes úteis, que mal sabem avaliar a importância do te-
souro musical, que herdaram da África. (SANTOS, 1977, p. 32)
3 Outro artigo do Pasquim, escrito por Aldir Blanc, intitulado “Safari”, narrava a visita do jorna-
lista a uma festa soul, comparando a experiência a uma caminhada pela África “desconhecida e
escura”, descrevendo os participantes como uma tribo liderada por um tirano, que falavam uma
língua “estranha” intercalada com frases em inglês, como “oh yeah”, e que adoravam os “deuses
brancos do soul, os executivos das gravadoras”. (O Pasquim, ago. 1977)
4 Ver: Os críticos musicais, segundo Caetano Veloso, Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 31 jan. 1979,
p. 41.
Por que se aceita com toda naturalidade que a juventude da zona sul
se vista de jeans, dance o rock, frequente discoteca e cultue Mick Ja-
gger, enquanto o negro da zona norte não pode se vestir colorido,
dançar o soul e cultuar James Brown? Por que o negro tem que ser
o último reduto da nacionalidade ou da pureza musical brasileira?
Não será uma reação contra o fato de ele haver abandonado o mor-
ro? Contra uma eventual competição no mercado de trabalho? Por
que o negro da zona norte deve aceitar que o branco da zona sul (ou
da zona norte) venha lhe dizer o que é autêntico e próprio do negro
brasileiro? Afinal, nós que somos negros brasileiros nunca nos inte-
ressamos em fixar o que é autêntico e próprio do branco brasileiro.
(BLACK RIO, 1976, p. 158)
5 O Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo foi fundado pelos composi-
tores Candeia, Nei Lopes, Wilson Moreira e Mestre Darcy do Jongo em 8 de dezembro de 1975,
na Fazenda Botafogo, subúrbio do Rio de Janeiro. A escola de samba nunca foi filiada a nenhuma
liga carnavalesca e não participa de desfiles competitivos. Suas atividades de resgate dos valores
originais do samba incluem trabalhos culturais e sociais, especialmente voltados para a comuni-
dade negra e pobre da região.
6 Big Boy também afirma na mesma reportagem sua perda de mercado: “Atualmente, a Soul
Grand Prix, que não tem a metade do material que eu tenho, ganha Cr$ 10 mil por baile. Eu ga-
nho Cr$ 5 mil”. (FRIAS, 1976, p. 5)
i ei a di ad a e e ess o
As críticas ao soul partiam também de jornais considerados de direita, como
O Globo. Em 26 de abril de 1977, na página dez da edição matutina, um edi-
torial não assinado declarava o posicionamento do jornal:
7 É notório que Gilberto Freyre era um entusiasta do movimento militar de 1964, tendo sido con-
vidado pelo marechal Castelo Branco a assumir o Ministério da Educação e colaborando com o
regime nas perseguições a intelectuais. Para mais, ver: Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos,
de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke (2005).
8 Autores como James Baldwin, de Numa terra estranha (1963), e Eldridge Cleaver, de Alma no
exílio (1971), forneceram as bases filosóficas para a formação do grupo Panteras Negras.
9 Hanchard (2001, p. 137) cita como exemplo de censura que representava a preocupação quase
paranoica de se evitar qualquer discussão racial o caso de uma frase cortada de um artigo tradu-
zido do jornal britânico Manchester Guardian sobre xadrez, que dizia: “Os brancos têm grandes
vantagens materiais, enquanto os negros quase não têm abertura legal”.
10 Ainda que a repressão sobre as escolas de samba não tenha começado com a ditadura, a censura
e a repressão do regime militar também foram aplicadas às escolas de samba, segundo Hanchard
(2001, p. 138): “era comum a polícia invadir as quadras de escolas de samba, nessa época, e fazer
detenções indiscriminadas de até duzentos rapazes negros de cada vez, bem no meio da quadra”.
11 Em entrevista a Moraes (2014, p. 27), o produtor e empresário de Gerson King Combo conta
que sempre havia alguém da produção vigiando os bailes para dar o alerta caso a polícia apare-
cesse, a fim de que pudessem esconder os discos de soul imediatamente, trocando as músicas e
passando a tocar samba para disfarçar.
Midani ainda conta que, devido a comentários como esse, seu nome che-
gou ao Ministério da Justiça, apontado como receptor de fundos do movi-
mento black americano, que estavam sendo utilizados para financiar uma
guerrilha urbana a partir das favelas, mas o assunto não teve maiores con-
sequências. O disco-jóquei Mounsieur Limá, que também estava lucrando
bastante com o movimento e realizando concorridos bailes, defendia o fenô-
meno, não enfatizando sua autenticidade, mas realçando sua capacidade de
“controle social”, garantindo a segurança na cidade, que deveria ser incenti-
vado pelo governo: “Se não houvesse isso, eu garanto que haveria um aumen-
to grande nos assaltos, nos finais de semana, o pessoal sem ter o que fazer,
sem ter como se divertir”. (O SOUL..., 1976, p. 5) Apesar de não mencionar
diretamente a juventude negra como alvo principal do comentário, o DJ res-
saltou dois estereótipos clássicos relacionados ao negro, especialmente po-
bre, que é aquele que ou dança ou é criminoso.12
Mesmo com esses argumentos não tão enaltecedores, as investigações
policiais continuaram e se estenderam a São Paulo e ao Rio Grande do Sul,
cujos escritórios da Polícia Federal produziram relatórios com um mote co-
mum: todas as investigações criminalizavam o movimento black e o acusavam
de pregar entre jovens negros “o preconceito racial, a discórdia e o desenten-
dimento nocivo à comunidade brasileira”. Havia também uma preocupação
tácita em buscar conexões dos integrantes mais famosos com organizações
12 E, de fato, como defende Vianna (1988), era notória a ausência de álcool e drogas mais pesadas,
bem como de graves atos de violência nos bailes de soul.
A polícia finalmente percebeu que os bailes black eram apenas uma ten-
tativa de reunir um grupo específico em torno de uma forma particular de
música, estilo e lazer, mas ressaltando ainda uma distinção clara, presente
em alguns pontos dos relatórios, que separava os frequentadores gerais, cha-
mados de “pessoas de cor”, daqueles que seriam mais engajados, considera-
dos mentores desse movimento, os “negros” ou “blacks”. De certa forma, um
passo além da crítica produzida pela esquerda, pois sugeriam uma noção de
diferença política fundamental entre a constituição de identidades locais di-
fusas e a de identidades definidas a partir da importação de símbolos cultu-
rais internacionais (ALBERTO, 2009, p. 12), que no espaço dos bailes entra-
vam em disputa na conformação de estilos particulares e diferentes. Mas a
repressão assustou muitos donos de equipes, que ou modificaram paulatina-
mente o som de seus bailes, adotando sonoridades menos conectadas a uma
sensibilidade black, passando a investir mais na disco music e no pop-rock, ou
simplesmente abandonaram o negócio das festas.
m dos ailes
Alguns autores, como Essinger (2005), Giacomini (2006), Mccann (2002),
Thayer (2006) e Ribeiro (2008), consideram que a cena Black Rio come-
ça a entrar em declínio no final dos anos 1970, por conta de fatores como a
13 Para saber mais sobre a ascensão da disco music no Brasil, ver: Essinger (2005) e Rodrigues
(2003).
14 Segundo Frias (1976, p. 3), havia um projeto de trazer outros artistas da Philadelphia Internatio-
nal Records para o Rio de Janeiro, empresariados por uma firma paulista, a Four Seasons, que
acabou não se concretizando.
lasse m dia ne a
Na configuração do estilo na cena da Black Rio, havia um projeto estético
baseado em uma construção social que conjugava individualidade e coleti-
vidade, afirmando modos de vida e propondo novas representações de acor-
do com demandas inéditas em consonância com movimentos internacionais.
Nesse processo, havia a rejeição de uma identidade cultural nacional para a
construção de comunidades que se articulavam tanto em relação aos bailes,
quanto em relação aos atos de consumo cultural de bens simbólicos. O que
ocorria pela interconexão com outros grupos localizados na África e, mais
flagrantemente, nos EUA. A partir desses fluxos e diálogos, as sensibilidades
passaram a se modificar, estabelecendo novas formas de convivência local e
propondo diferentes formas estéticas e experiências pessoais diversas. É a
esse processo a que Sansone (2004) se refere ao falar em “globalização ne-
gra”, que diz respeito à disseminação de musicalidades, símbolos, estilos de
vida e uma estética vinculada às populações negras do eixo Nova York, Los
Angeles e Londres, por exemplo, e que colaborava para a internacionalização
de ícones negros, como personagens de filmes (Shaft, Cleópatra Jones), artis-
tas (James Brown, Michael Jackson), intelectuais e militantes (como Malcolm
X e Angela Davis).
Nos anos 1970, os indivíduos pertencentes a essa classe média negra pa-
recem ter sido colocados em uma posição ambivalente e conflituosa. Havia
um movimento no sentido da incorporação de padrões da “sociedade domi-
nante” (SILVA, 1980, p. 6), buscando um reconhecimento em meio a seus pa-
res por conta da ascensão econômica, e um desejo da afirmação de um lugar
legítimo na sociedade – como estava presente nas aspirações dos criadores
do Clube Renascença. Mas, ao mesmo tempo, o acesso a mais informação
gerava novas aspirações e inquietudes, deflagrando uma maior demanda por
direitos e igualdade. Assim, muitos indivíduos negros dos setores médios co-
meçaram a demonstrar maior interesse por questões ligadas ao orgulho ne-
gro, em novas manifestações de consciência racial e social, o que levou a in-
vestimentos mais efetivos na constituição de organizações negras de diversas
ordens. Um orgulho negro que, de acordo com Giacomini (2006, p. 196),
“[...] supõe, propõe e promove uma coesão, uma espécie de solda entre os in-
divíduos que se reconhecem como iguais, operando como uma base fomenta-
dora de vínculos, ligações, cimentando e conformando o grupo étnico cons-
ciente de si mesmo”.
Mesmo se propondo a uma união, essa classe média negra representava
um processo de estratificação e diferenciação interna com uma consequente
modificação no padrão de relações sociais dentro do conjunto populacional
afro-brasileiro, criando obstáculos à produção de uma identidade coletiva e a
uma mobilização mais ampla. (HASENBALG, 1979, p. 249) Essas diferen-
ciações existiam tanto dentro do próprio segmento negro médio quanto em
relação aos negros mais pobres. Mas o acesso a um maior nível educacional e
o enfrentamento de formas de discriminação no processo de ascensão social
levaram alguns membros dessa “elite” negra a se posicionarem como possí-
veis lideranças de um movimento de luta contra o racismo. Figueiredo (2002)
nota ainda que essa maior escolarização e ascensão socioeconômica não
implicaram um possível “embranquecimento”, em que os estratos médios
o os estilos no as ne i des
Negritude, na acepção original da palavra, se referia a um movimento literá-
rio dos anos 1930 baseado em uma ideologia pan-africanista e que pregava
a solidariedade a partir da origem comum entre os povos negros oriundos
da África. Fundada por Léopold Senghor, poeta, intelectual e político negro,
eleito presidente do Senegal (1960-1980), a négritude era baseada na valo-
rização de todas as manifestações culturais de matriz africana, postulando
uma lógica própria para a fundação de uma razão negro-africana. Da mesma
forma que o pan-africanismo, a négritude partia da premissa de uma unidade
e uma história comum para todos os povos africanos, em um quadro fixo de
referenciais. Mais do que um movimento literário, era um ato político que
Black movies
Filmes como Shaft, Super Fly ou o documentário Wattstax fizeram sucesso na
cena da Black Rio, bem como outros filmes americanos do gênero cinemato-
gráfico blaxploitation. Muitos desses filmes eram frequentemente exibidos
antes de alguns bailes, seguidos por debates, ou imagens e clipes eram proje-
tados em telões, servindo como pano de fundo e um acompanhamento visual
para as músicas tocadas nos bailes.
Há quem viva apenas de exibir esses filmes antes dos bailes soul.
Quem os têm pode pedir qualquer preço, mercado aberto à especu-
lação. O conhecido Messiê Limá, (branco), que detém também fil-
mes sobre artistas negros particularmente importantes para o Soul
Power (Marva Whitney, Mongo Santamaria e outros) ganha, segun-
do Nirto, um dos donos da equipe Soul Grand Prix, que o contrata
para essas exibições, Cr$ 500,00 em cada apresentação. Segundo
um outro componente da equipe, Limá ganha, na verdade, Cr$ 1 mil
500 e segundo os seguidores habituais dos filmes e alguns amigos
1 O sucesso de Super Fly se deu mais pelo boca a boca do que por uma campanha promocional do
estúdio, o que foi um feito surpreendente para a época. O filme contava a história de um trafi-
cante que conseguia enganar a máfia, e o estilo do protagonista marcou época. O slogan do filme
era “He‘s got a plan / To stick it to the Man” (“Man” aqui significava o “Cara”, que se referia aos
brancos americanos), e a frase passou a ser adotada por jovens negros em todo o país.
2 No Brasil, os principais filmes blaxpoitation que aqui foram exibidos, como Shaft, fizeram su-
cesso, mas não chegaram a influenciar cineastas. O único diretor que chegou a realizar um fil-
me com ecos do blaxpoitation foi Waldir Onofre, um diretor e roteirista negro, em As aventuras
amorosas de um padeiro (1975). O filme independente, de orçamento bem modesto, foi rodado
em Campo Grande e chegou a obter um surpreendente sucesso nos cinemas nacionais. Apesar
de apenas um dos protagonistas ser interpretado por um ator negro (Haroldo de Oliveira), o fil-
me explorava relacionamentos inter-raciais e o humor, retratando a vida nos subúrbios, flertando
também com as pornochanchadas do período.
3 Não só nas cenas, mas as trilhas sonoras também colaboravam para a afirmação de símbolos as-
sociados às representações do negro propostas pelos filmes de blaxpoitation em relação à sexu-
alidade do homem negro. Uma das frases da canção-tema de Shaft, composta e interpretada por
Isaac Hayes, dizia: “Who‘s that private dick who’s a sex machine to all the chicks? SHAFT!” (“Quem
é aquele pinto secreto que é uma máquina de sexo para todas as garotas? SHAFT!”).
oda e ons i n ia
4 Jorge Watusi, bailarino negro baiano. Ver citação em Risério (1981, p. 31).
5 O entrevistado Edson M. S., estudante de 16 anos, descreve para Frias (1976, p. 6) a visão pejora-
tiva que os cocotas tinham entre os blacks: “A rapaziada que é mesmo da cor, que tem esse pre-
conceito com eles, nem entra em festa de roqueiro. Roqueiro é cocota, white é drogueiro. Tem
uns pretos que botam umas calças cocota e vão pra lá dizer que também são, mas eu acho que
não pega bem pra eles. Será que eles não veem que o cabelo deles é duro também? Acho que eles
queriam ter aquele cabelo de parafina, lisinho, caído pros lados! White tem é inveja do cabelo da
gente, porque não pode fazer igual”.
6 O apuro com a própria indumentária, bem como com o visual da banda que o acompanhava, foi
a marca da trajetória midiática de James Brown. Conta-se que se um dos músicos não estivesse
com os sapatos devidamente engraxados e brilhantes para o show, deveria pagar uma salgada
multa ao cantor.
7 A roupa ajudava a manter a identidade do grupo de maltas de capoeiras que eram comumente
vistos “usando calça larga de boca fina (a chamada calça boquinha, com bolso muito fundo, no
qual cabiam fumo, dinheiro, cartas e a navalha), paletó sempre aberto, botina bico bem fino e
lenço no pescoço. Este lenço, ou mesmo a camisa, devia ser de seda, já que, segundo corria nas
ruas, o tecido cegava o fio da navalha. A roupa era sempre branca, porque traria marcadas as que-
das no chão da rua”. (NORONHA, 2003, p. 114)
8 Dom Filó, em entrevista a a Ribeiro (2008, p. 168), explica: “O visual do Black tem todo um
sentido. E por que a calça era apertada? Exatamente para aparecer o sapato. Sendo boca sino
era apertada, era difícil de colocar, pois era uma calça muito justa para passar o movimento das
pernas, para mostrar o brilho das pernas. Ali você identificava o dançarino e na hora de dar o ‘es-
paguete’ que é quando você abre as pernas e dá o ‘espaguete’, tem todo um contexto, na dança e
na expressão da roupa”.
9 “Os pisantes de dois, três, quatro andares, feitos à mão, modelos especiais, custam de Cr$ 250
a Cr$ 600 nas lojas do Sousa e do Pinheiro, no centro da cidade e em Madureira; só a filial do
Pinheiro na Galeria São Luis, em Madureira, está vendendo, por semana, cerca de 500 pares de
sapatos especiais para os black”. (FRIAS, 1976, p. 4)
Pode-se afirmar que a moda soul, como toda moda, mantém uma
relação direta e ininterrupta com o costume. Mas, por seu compro-
misso específico com um grupo étnico em condição minoritária, o
diálogo estabelecido é duplo ou, se se prefere, referido a dois dife-
rentes costumes ou tradições. De um lado, a moda soul dialoga com
o costume dominante na sociedade envolvente, tomando-o como
referência a partir da qual procura se distanciar e diferenciar. De
outro lado, ela evoca – e dialoga – com o costume e a tradição nos
quais o grupo vai buscar resgatar sua originalidade e o que seria sua
autenticidade. (GIACOMINI, 2006, p. 201)
Para falar a verdade naquela época você tinha dois cortes, ou esse
que era o meu e de alguns adeptos, o black-power, e aqueles que usa-
vam o Príncipe Danilo que era raspadinho do lado e só uma cuia na
cabeça. Até dentro de casa a gente tinha uma pressão da mamãe, do
papai, eles diziam: ‘não vai cortar esse cabelo, tá parecendo macaco’.
Então a gente já tinha no subconsciente que não podia passar de um
centímetro o cabelo, ou melhor, meio centímetro. Então, isso aí fez
com que alguns começassem a discutir essa questão da discrimina-
ção. (RIBEIRO, 2008, p. 164)
Nossa auto-estima era, até então, muito ruim, dentro de casa a gen-
te se autodiscriminava. [...] Os moleques davam cascudo na gente.
A gente tava cansado daquela onda. Aquilo era muito careta. [...]
Foi quando surgiram os blacks. E começamos a assumir dentro de
casa. Cinco anos depois, meu pai já usava black, minha mãe deixou
11 Uma das Irmãs 2000, sócia da equipe Furacão 2000. Entrevista concedida à autora por telefone,
Rio de Janeiro, em 27 abr. 2016.
m l m de e i e
Uma das maiores equipes de som da cena Black Soul, a SGP desencadeou um
novo momento para a cultura black na cidade, realizando bailes em vários
bairros da Zona Norte à Zona Sul. Lançando vários discos até os anos 1990,
a SGP foi responsável pela introdução na cena Black Soul de novas sonori-
dades associadas ao soul e ao funk norte-americanos. Foi selecionado o LP
da equipe lançado no ano de 1976, auge do movimento Black Rio, quando o
empreendimento se transformou em um complexo empresarial de entreteni-
mento altamente lucrativo. Após um disco de relativo sucesso lançado pela
Top Tape em 1974, a equipe foi convidada pelo executivo e diretor da Warner
eme n ia do soul
O termo “soul music”, em seus primórdios, se referia a um conjunto de so-
noridades e musicalidades que utilizavam figuras melódicas e riffs derivados
da música gospel e do folk blues, que englobavam a música popular negra no
começo dos anos 1960, de acordo com Brackett (2009). O soul era prove-
niente também do jazz e do R&B – que se originou da eletrificação do blues,
ma black em ma mo o
ai a a ai a
Com 11 faixas, cinco do lado A e seis do lado B, a primeira canção do disco,13
“It’s all right now”, era um hit do cantor Eddie Harris, que começou sua car-
reira como saxofonista de jazz, e seu primeiro álbum, Exodus to Jazz (1961),
alcançou as paradas de sucesso. Nos anos 1960, foi contratado pela Atlan-
tic Records, em que começou a gravar canções que promoviam uma mescla
entre o jazz e o funk, em trabalhos mais comerciais, ampliando seu público.
Suas experimentações musicais, introduzindo novos instrumentos, chama-
ram a atenção da crítica, e Harris passou a inovar, influenciado também pelo
blues e pelo rock. Essas mesclas transformaram o músico em um referencial
para as futuras gerações de músicos do fusion jazz e da house music.
A faixa “It’s all right now”, que integra o disco That is why you’re overweight,
de 1975, é um “funk semi-instrumental”, swingado, em que os vocais são de-
sempenhados por um coro que repete o único verso da canção ao longo de
si a al amen e danç el
Não apenas os discos da SGP, mas todas as coletâneas assinadas pelas equi-
pes eram compostas por músicas americanas, não havendo espaço para
cantores brasileiros. Como discutido anteriormente, o consumo de discos
importados era uma marca da cena black carioca, não só em resposta à pene-
tração no mercado nacional de música estrangeira. Mas demarcava também
um impulso distintivo a partir do contato com uma produção globalizada,
Na época para a gente a dança não tinha muita técnica, digamos que
a gente olhava os movimentos e copiava, depois que começamos a
entender que existiam contagens, os aquecimentos, na época a gente
não se aquecia não, já chegava dançando, o aquecimento era a pró-
pria dança, hoje não, hoje tudo é mais técnico, antes era mais uma
forma de tirar um barato, curtir, apesar de já estar aparecendo em
televisão, mas hoje não [...]. (COLOMBERO, 2011, p. 7)
14 O funky chicken foi baseado na dança the chicken, bastante popular nos EUA na década de 1950,
em que os dançarinos batiam os braços, rebolavam e movimentavam os joelhos, em uma espécie
de imitação de uma galinha. Uma versão dessa dança ficou conhecida no Brasil através do apre-
sentador de TV Gugu Liberato, na ocasião da gravação da música “Baile dos passarinhos”, no co-
meço dos anos 1980.
A primeira vez que fui a um baile ‘soul’, levado por amigos, me senti
muito mais à vontade do que em outro tipo de festa: tinha vergonha
de dançar samba em festas na Escola, pois achava difícil os passos e
dançava mal; música ‘soul’ é só liberar os sentimentos e deixar o cor-
po ir junto, pode-se dançar de qualquer maneira...
Nessa fala, Jorge transmite algumas mensagens que dizem respeito à pró-
pria configuração da cena Black Soul naquele momento. Ele apontava o im-
pulso modernizador presente na cena ao opor samba e o soul e enfatizava um
ethos e uma estética jovem, que tinha um apelo rebelde e inovador, em contra-
dição às tradições de gerações anteriores. O conflito geracional se fazia pre-
sente especialmente na maneira de performatizar o estilo por meio da dança,
pois uma das particularidades das formas de dança surgidas no pós-guerra e
conectadas a gêneros musicais juvenis – no caso do soul, eram danças de rua
populares – era uma aparente espontaneidade na desenvoltura dos passos –
mesmo que, para aprendê-los, fosse preciso muito treino e habilidade. Essas
novas sonoridades transmitiam a sensação de que a música teria a capacidade
de conduzir o corpo com mais naturalidade do que gêneros musicais ante-
riores. De fato, as novas músicas jovens possibilitavam certa dose de criati-
vidade e improvisação, já que eram dançáveis individualmente, não mais em
pares, como as danças de salão.
Impressão Edufba
Acabamento Gráfica 3
A cena musical da
fenômeno de massa no Rio de Janeiro nos anos 1970, mobilizando
onde vive formas intensas de partilhar experiências.
Luciana Xavier de Oliveira milhares de pessoas todos os finais de semana. Dos bailes soul surgiu
Black
uma estética particular que conectava a juventude negra periférica Desse modo, a variável racial que perpassa o
Neta adotiva de Leda, que arcou com seus
brasileira à uma cultura negra internacional, notadamente norte- argumento autoral explicita as interrelações com
estudos, e filha de Dalva, trabalhadora americana. Tudo isso em meio a um contexto de grande polarização aspectos dos territórios simbólicos, as questões
doméstica, a autora é formada em política, entre a repressão da ditadura militar e as críticas de uma socioeconômicas e principalmente as expressões
jornalismo pela Universidade Federal do Rio esquerda tradicional, entre as tradições culturais afro-brasileiras e as estéticas que constituem os fenômenos musicais.
de Janeiro, fez mestrado em comunicação influências da globalização. Como os participantes do Movimento Black Nesse sentido, o livro interessa não apenas aos
na Universidade Federal da Bahia (PósCom) Rio propunham diferentes exercícios subjetivos e novas formas de campos da comunicação e música, mas também aos
e doutorado na Universidade Federal expressão racial? Como, por meio de um estilo particular, esses jovens estudos relativos às diásporas africanas, etnicidades
Fluminense (PPGCOM). Realizou estágio inseriram uma rasura nos discursos da democracia racial e nas visões do
Rio
e estudos culturais contemporâneos.
doutoral (CAPES) na Universidade Tulane, próprio movimento negro? E como esses bailes ajudaram a transformar
o mercado fonográfico, estabelecendo um novo segmento para a Tudo isso emana do texto com a própria intensidade
nos Estados Unidos, e foi pesquisadora
música negra no Brasil? São essas questões que esse livro pretende com que a autora vive suas próprias experiências.
visitante do projeto Literary Cultures of the
discutir, ampliando as reflexões em torno de noções como cena musical, Tensionada, atravessada por outras discursividades
Global South (BMBF/DAAD) na Universidade
políticas de estilo e identidade negra. e disposta a permitir que tais experiências
de Tübingen, Alemanha. Atualmente, é
reorganizem as suas próprias. Em um contexto em
docente da Universidade Federal do ABC no
que os excessos se constroem pela incapacidade