As Mulheres de Terca-Feira - Monika Peetz PDF
As Mulheres de Terca-Feira - Monika Peetz PDF
As Mulheres de Terca-Feira - Monika Peetz PDF
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–Vai logo, Tom! Levanta a bunda daí! – gritou Luc. – As clientes vão
chegar a qualquer momento.
O dono do Le Jardin enxotou seu novo garçom sem dó. A cada instante,
choviam ordens sobre o jovem.
Eu disse cinco copos.
Essa louça não.
Onde ficam as flores?
Eu tenho que cuidar de tudo sozinho?
Tom não entendeu bulhufas. Por que Luc fazia tanto alvoroço? Não tinha
ninguém no livro de reservas que justificasse essa atitude.
– Não temos nenhuma reserva para a mesa da lareira.
Luc parou um instante, como se aquela fosse a observação mais idiota que
já tinha ouvido na vida.
– Você olhou o calendário?
– Claro.
– E?
– Hoje é terça-feira.
Luc aumentou a voz:
– A primeira terça-feira do mês. Isso significa…
– Algum feriado francês? – Tom arriscou.
Luc respirou fundo. Talvez tivesse sido um erro dar uma chance a um
jovem desempregado que acabara de largar a escola. A única experiência
gastronômica de Tom vinha de sua mais tenra idade. Certa vez, um idiota
movido pelos hormônios participou da concepção do rapaz no restaurante do
clube esportivo TSV Euskirchen. Infelizmente, esse idiota era o próprio Luc.
Por isso, foi difícil dizer não quando, cinco semanas antes, a ex despejou o
infeliz produto de seu caso amoroso na soleira da porta. O rejeitado tinha 19
anos e era a cara da mãe. Na opinião de Luc.
– Minhas clientes mais fiéis fizeram reserva para as oito, como toda
primeira terça-feira do mês. Eu ainda era garçom quando elas começaram a
vir.
Luc se empolgou e seu sotaque de Colônia denunciou que ele de francês
nada tinha, sendo “Luc” apenas um nome artístico. No entanto, a
proximidade com o Institut Français contribuía para não mudar nada na
orientação do restaurante.
Tom continuava sem entender.
– E daí?
Luc suspirou uma segunda vez. Aos 65 anos, já precisava começar a
pensar num sucessor. Mas como deixar claro para um filho tolo o que havia
de tão especial nessas cinco mulheres? Havia quinze anos frequentavam seu
estabelecimento. No começo, todas as terças-feiras, depois uma vez por mês.
Era um dia chuvoso e sem muito movimento e Luc estava prestes a fechar
quando as cinco, ensopadas e aos risinhos, chegaram à porta do restaurante.
Cinco mulheres que não poderiam ser mais diferentes umas das outras:
Caroline, a advogada fria, esportiva, de rosto talhado com traços clássicos;
Judith, pálida, magra e transparente; Eva, a médica durona recém-formada;
Estelle, indiscutivelmente uma cidadã do mundo; e a mais nova, Kiki, que
estava terminando a escola, luminosa como uma borboleta colorida.
Foi Caroline quem convenceu Luc a abrir algumas garrafas. A eloquente
advogada tinha, na época, a última palavra. No entanto, foi ideia de Judith
sair para beber algo após o curso de francês.
– Quero aproveitar minha noite livre até a última gota – explicou. Mais
tarde ficou claro que Judith havia mentido ao ex-marido, Kai, dizendo que
seu chefe exigiu e estava pagando um curso de francês para ela. Sabia que
seu marido pedante ia para a cama pontualmente às 22h30 e não perceberia
que, a partir daquele dia, todas as terças-feiras ela chegaria cada vez mais
tarde. O curso de francês marcou o começo do fim daquele casamento. Judith
mentia para Kai sobre os cursos e continuava a se encontrar com as amigas.
Passou-se uma pequena eternidade até as amigas encherem Judith de
coragem para acabar de uma vez por todas com seu casamento infeliz. Com
os anos, Luc observou como, de uma secretária insegura, surgira uma mulher
que, com a ajuda do esoterismo e da sabedoria oriental, buscou o próprio
caminho.
Luc poderia ter contado histórias ao seu curioso filho por horas a fio. No
entanto, sua boca era um túmulo. O dono do restaurante era esperto o
suficiente para nunca deixar as mulheres perceberem o quanto revelavam
involuntariamente. Luc era acompanhante e admirador silencioso das
mulheres de terça-feira, que faziam do Le Jardin seu confessionário.
A mesa estava posta com perfeição, o chef, preparado, as velas, queimadas
pela metade.
– Onde elas estão?
Inquieto, Luc controlava o horário. Quinze para as oito.
Era muito comum que grupos do Institut Français, que ficava nas
proximidades, viessem ao Le Jardin. Incomum era que dali surgisse uma
amizade para a vida toda. Absolutamente estranho era, contudo, que a mesa
das mulheres de terça-feira ficasse vazia naquele dia.
Quando Luc fechou seu restaurante pouco antes das onze, sem que
Caroline ou uma das outras aparecesse, ele sabia que alguma coisa estava
errada. Mais errada que qualquer coisa que tivesse visto nos últimos quinze
anos.
2
Indefesa, Judith precisou assistir Arne, cada vez mais magro, afundar nos
travesseiros, o nariz cada vez mais pontudo, a respiração cada vez mais leve.
Suas mãos tremiam como se quisessem sair voando. A cada minuto,
desaparecia o homem grande e forte pelo qual se apaixonara perdidamente
havia cinco anos, apesar da barba que fazia cócegas e da predileção por
camisas de flanela xadrez.
– Parece que vai pegar uma guitarra e cantar sobre uísque, mulheres e
pistolas – sussurrou Estelle, alto demais, para as amigas, quando o
encontraram pela primeira vez.
– Tenho um rosto achatado e um péssimo gosto para roupas. É coisa minha
– retrucou Arne, também malcriado.
O mesmo sentiu por Judith. Ela era ”coisa dele”. Sessenta e três dias
depois de tê-la encontrado em uma livraria, entre a prateleira de feng shui e
budismo, casaram-se em um barco no rio Reno.
– Tudo corre, como o rio – anunciou Arne. – E é assim que gostamos.
As amigas de Judith não foram as únicas atropeladas pelos acontecimentos.
– Que grande prazer conhecer a Julia – gritou alegre uma tia robusta
vestida de lilás. Exalava o aroma de naftalina e água-de-colônia.
– Ela se chama Judith – corrigiu Caroline pela enésima vez, já que não
faltaram tias de Arne.
O rosto da senhora corou tanto que combinou com o tom de lilás.
– Não faz mal – interrompeu Estelle. – Também conhecemos Anton há
poucos dias.
– Arne – advertiu a tia, sem se dar conta da piada de Estelle.
– Foi tudo tão repentino – as pessoas confirmavam mutuamente, chegando
então ao “Quem imaginaria?”.
– Eu – disse Judith. – Soube desde o primeiro momento que envelheceria
com Arne.
E agora o destino a levara ao quarto andar do hospital.
Lá fora, pela primeira vez em dias, o sol surgiu por detrás das nuvens. Nas
enfermarias, começava o horário de visitas e, no quarto andar, o tempo
parecia passar lentamente. Cinquenta e nove minutos até que a enfermeira
aparecesse novamente, dez minutos para o chá, três minutos para arrumar o
travesseiro de Arne, treze segundos até a gota com a solução de morfina se
dissolver e escorrer pela mangueira transparente.
Onde estava Caroline? Todas as quatro amigas eram bem-vindas. A
companhia era reconfortante. Eva trazia potinhos com guloseimas, Estelle,
uma fofoca quentinha, Kiki, o bom humor e uma brisa de frenesi. Esse agito
era bem melhor que o silêncio mortal no qual se esperava pelo fim.
Arne Nowak morreu com a sensação difusa de ter esquecido algo importante.
Ele tinha razão.
4
Havia seis meses as amigas viam como Judith se torturava. Era hora de fazer
algo. Elas se esforçavam para animá-la.
– Vamos ao que interessa: para onde as mulheres de terça-feira vão viajar
este ano?
Luc cutucou seu filho:
– Preste atenção no que vai acontecer agora!
De fato, mal Caroline falou essa frase e um tumulto começou. Estelle foi a
primeira a falar o que queria:
– Quero dormir sob as estrelas. Nem precisam ser muitas. Cinco estrelas
no hotel, duas no restaurante.
Kiki tomou a palavra de imediato:
– Preciso de cidade grande. Quero sair, ir para a farra. Solidão eu já tenho
em casa. Vai chegar o dia em que apenas as operadoras de celular e sites de
compra vão me dar parabéns pelo meu aniversário.
– Para mim, está tudo certo – rebateu Eva. – Eu acompanho.
Luc riu:
– Isso vai durar no mínimo uma hora. Então Caroline dá a voz de comando
e a gente serve o champanhe de reconciliação.
Caroline tentava colocar ordem no evento com propostas concretas:
– Há pouco tempo, um cliente me contou algo sobre uma pousada na
Áustria. Dá para fazer trilhas ótimas. E a quadra de tênis…
As outras nunca saberiam o que havia com a quadra de tênis, pois a
opinião de Estelle já decidiu:
– Pousada? Isso me cheira a quarto duplo. Não vou a lugar nenhum com
quarto duplo. Nem minha casa tem quarto duplo.
– Este ano eu não vou.
Judith havia refletido durante todo o jantar sobre como dar a notícia às
amigas. Sua recusa desapareceu em meio às vozes.
– A pousada oferece diversas possibilidades. Não precisamos todas as
vezes…
– Este ano eu não vou! – Judith repetiu tão alto que todas se assustaram.
Silêncio envergonhado na mesa. Todas as quatro olharam espantadas.
– Que você disse? – questionou Caroline.
– Não vou com vocês.
De todos os lados voaram comentários para Judith.
– Como assim?
– Por quê?
– Você é quem mais precisa sair de casa.
– Que ideia é essa?
– Claro que você vem com a gente.
No restaurante, havia tempos todos os outros clientes tinham parado de
comer. Com curiosidade flagrante, olhavam as mulheres em sua discussão
acalorada.
– Encontrei o diário de Arne – Judith tentou justificar sua decisão. A
perplexidade entre as mulheres de terça-feira era grande.
– Que isso tem a ver com nossa viagem?
Hesitante, Judith explicou o que quis dizer:
– Arne mantinha um diário, apenas quando viajava. Para o Caminho de
Santiago. Contudo, queria ir para Lourdes. Por conta da água milagrosa.
Os olhos dela se encheram. Sua voz ficava cada vez mais baixa.
– Se ele tivesse chegado… essas, essas páginas brancas no diário de Arne,
isso é o pior!
– Não entendo o que isso tem a ver com a nossa viagem – disse Caroline,
balançando a cabeça.
Judith deu mais força à voz:
– Não tenho tempo de ir com vocês. Vou fazer o caminho de Arne até o
fim.
Finalmente, a revelação. Estava claro para Judith o que significava aquele
ato para a turma. Nunca uma das amigas falhara na tradição conjunta. Seria a
primeira vez em quinze anos que não estariam todas na viagem anual.
Com cuidado, Judith abaixou a cabeça. Esperava que as amigas fossem lhe
jogar tudo na cara, o mesmo que já havia dito para si mesma milhares de
vezes.
Seis meses, Judith! Não chegou a hora de você voltar a viver?
Aos poucos você precisa se separar de Arne.
Judith! Olhe para a frente! Não para trás!
Você já tentou se confessar?
Esse foi o padre do enterro de Arne que se intrometeu em seus
pensamentos. Por que Judith deveria se confessar? Para que se concentrar nas
coisas que as pessoas fizeram na vida? Era o que ela odiava no catolicismo.
Constantemente as pessoas sentiam-se culpadas. Por tudo possível. E pelo
impossível também.
“Bobagem. O catolicismo perdoa tudo. Isso acalma imensamente”,
responderia Arne.
Judith travava esse diálogo interno incessante com seu falecido marido. A
todo o momento ela refletia sobre como poderia não pensar em Arne. Ao
menos por uma hora ou apenas por cinco minutos.
– Eu acho – Judith levantou novamente a voz – que só vou encontrar paz
quando terminar o caminho dele. O diário de Arne precisa ter um fim.
Ela tentou novamente fazer com que as amigas compreendessem. Mas
como poderiam entender os problemas de Judith? Jamais ousou contar para
alguém sobre seu sentimento de culpa. E sobre muitas outras coisas que a
torturavam.
Caroline tentou interpretar as palavras de Judith.
– Você quer peregrinar até Lourdes?
Judith confirmou com a cabeça.
– Pelo mesmo caminho que Arne seguiu.
– Como isso funciona? Na peregrinação as pessoas vão a pé ou precisam se
arrastar de joelhos? – perguntou Estelle e ganhou por isso um chute enérgico
na canela. Discrição não era seu forte.
– Não precisa me chutar, Eva. É uma pergunta legítima. Ou não? Judith?
Judith não respondeu à observação anárquica de Estelle:
– É meu jeito de me despedir, terminando o capítulo de Arne. Eu apenas
preciso, não sei ainda como…
Tentou ser forte, mas as lágrimas não paravam de correr pelo rosto. As
mãos de Judith tremiam quando pegou o copo, que caiu. O vinho tinto se
espalhou sobre a mesa como uma poça de sangue.
Estelle ainda não havia se recuperado do choque quando Tom chegou à mesa
da lareira. Luc olhava satisfeito, como seus movimentos haviam ficado
perfeitos. Em apenas seis meses, conseguiu transformar Tom em um
verdadeiro garçom. O jovem tinha talento. Não era de surpreender. Puxou o
pai.
– Posso servir o champanhe agora? – perguntou Tom, educadamente.
Estelle conseguiu apenas grasnar.
– Acho que preciso de um médico.
7
Philipp mal havia saído quando o olhar dela recaiu sobre o velho espelho.
Qual era o saldo naquele momento? Examinou sua imagem com atenção.
Provavelmente ainda caberia, sem problemas, no vestido de casamento,
registrou com alegria. O colega advogado estava muito enganado. Estava
satisfeita com sua vida. Dois filhos bem criados, seguindo seu caminho de
forma consciente, reconhecimento na profissão, um marido carinhoso que
levava a sério a carreira dela tanto quanto a própria. E o mais importante:
continuavam a fazer sexo. Um pouco mais de tempo para eles e a vida seria
perfeita.
8
Mais tempo! Ansiosa, Eva queria mais duas horas. As mulheres de terça-
feira haviam combinado de ir juntas para o aeroporto. Caroline seria a
motorista e buscaria cada uma delas. Eva era a primeira em sua rota.
A mochila pronta já estava no hall de entrada. No entanto, Eva corria pela
cozinha espaçosa e equipada com perfeição, colando os últimos post-its:
panelas, pratos, copos, despensa, tudo foi sinalizado para a família que não
sabia o que eram sacolas, pacotes e cozinhar.
Da mesa, os três adolescentes de Eva viam a agitação enfurecida da mãe
com tédio. Ao lado, Frido Pai, cujo título ele próprio se dera. Após Eva ter
assumido a tarefa de dar nomes aos filhos David e Lene, no terceiro filho
Frido insistiu que era sua vez. E foi Frido Júnior. Na pressa do cartório, não
lhe ocorreu nada melhor. Foi sua última tentativa de enfrentar a eficiência dos
planos familiares antecipados de Eva. Quando vinte meses depois a pequena
Anna completou a família, a divisão dos papéis estava definida. Eva tinha sob
sua asa os departamentos de família e eventos sociais, enquanto a função do
marido era a de ministro do trabalho, finanças e economia.
Aos 43 anos, Frido era membro da diretoria de uma seguradora,
proprietário orgulhoso de uma casa própria com um generoso jardim,
confortável para todos, e desconhecia completamente o cotidiano da própria
família. Com cuidado, folheou as instruções manuscritas de muitas páginas
que Eva empurrara.
– Segunda David tem tênis e Frido, serviço de coroinha?
Eva confirmou com a cabeça. Não deixar nenhuma dúvida, prometeu a si
mesma. Programaram dez dias de caminhada, ida e volta. As mulheres de
terça-feira nunca ficaram tanto tempo longe.
– Apenas na sexta-feira a reunião de pais de Lene será difícil, e talvez
quarta-feira.
– Quarta-feira? Sem chance, tenho reunião do conselho.
Reunião do conselho era para Frido um tipo de estado crônico. Reunião de
pais, levar crianças a compromissos, premiação no clube de tênis, braço
quebrado. Havia anos, Frido tinha reunião do conselho. Não que ele não
estivesse disposto a cuidar da família. Estava apenas ocupado.
– Arranje uma ajuda, Eva – pregava Frido insistentemente. Mas Eva não
teve quatro filhos para empurrá-los para uma babá romena.
Quando Caroline chegou para buscar Eva, a mãe das quatro crianças estava
totalmente esgotada. E isso antes de ter percorrido sequer um centímetro da
tal peregrinação.
– Talvez eu possa mudar a reserva do voo e chegar depois.
– Eva, sempre tem alguma coisa. Torneio de tênis do David, concerto de
Lene, reunião do conselho…
– Aula de culinária de mães e filhas! Imagine o que vai acontecer se, no
meio, Frido for para a reunião do conselho. Porque ele precisa assar um bolo
na escola.
Eva parecia realmente desesperada. A compaixão de Caroline havia
chegado ao limite.
– Quer ouvir a verdade, Eva? Você poupou seus queridos durante tantos
anos que eles não sabem sequer reconhecer as próprias meias.
Eva sabia que Caroline tinha razão, e mesmo assim se sentia uma egoísta.
– Frido vai se sair muito bem, Eva. Logo ele se acha na imensidão de
trabalho que você deixou para trás.
– Que você quer dizer com isso?
Caroline respirou fundo. Todo ano era a mesma coisa. Primeiro, discutiam
uma eternidade antes de chegarem a um consenso sobre local e data. E então
Eva, Kiki e Judith pensavam em outra coisa totalmente diferente.
Coisa demais para fazer.
Não consigo ficar longe.
Sinto muito.
Caroline conhecia essas desculpas de cor. Sempre era uma grande
confusão até a partida. Quando havia partida.
Primeiro, cada filho precisava ser abraçado e beijado dos pés à cabeça,
então o marido e, novamente, os filhos. Apenas quando a família se colocava
em posição na frente do portão do jardim para os acenos chorosos, o passo
decisivo era dado. Caroline deu um grande suspiro. Já tinha uma das amigas
no carro. Agora faltavam três.
9
A única, além de Caroline, que não se perguntava se devia ficar em casa era
Estelle.
– Peregrinar é o novo pretinho básico – explicou ao marido, com total
convicção. – Sou a única que não se transformará numa iluminada?
Estelle tinha outro problema: um closet de 25 metros quadrados e nada
para vestir. Depois de ter se recuperado do primeiro choque, partiu
imediatamente para a ação. Para Estelle, isso significa ligar para alguém que
pudesse assumir a tarefa por ela.
Duas horas depois, seu personal shopper, um entendido de verdade, estava
no bairro nobre de Hanwald. Estelle morava numa rua na qual não havia
casas, apenas propriedades. As instalações da mansão eram tão exageradas
quanto Estelle. Um pouco pomposas, um pouco carregadas, um pouco
douradas e com cobras demais. As cobras estavam mesmo em todas as
extravagâncias: estátuas, cordões, penduricalhos, almofadas e padronagens
Versace brilhantes, em pratos de sobremesa e lençóis.
– Tenho que agradecer tudo ao meu pai – explicava Estelle com gosto. –
Faro para o dinheiro e sentido para gastar.
Estelle endeusava o pai, Willi. Fugitivo da Prússia Oriental, construiu
patrimônio após a guerra como comerciante de entulho. Arriscando a vida,
recolhia peças de ferro, colunas e outros metais misturados aos escombros
para levá-los para a reciclagem. Juntar, identificar, separar, processar, esse
havia se tornado seu lema de vida. Estelle ampliou em um componente:
mostra o que você tem. De quê adianta ser rico se ninguém souber?
– Precisamos de um look – anunciou o personal shopper antes mesmo de a
porta fechar – que dê uma reviravolta irônica na imagem empoeirada de
escoteiro dos peregrinos.
Ele conhecia as preferências de Estelle. Sempre que grandes eventos
sociais estavam prestes a acontecer, ela corria em busca de seu auxílio.
Agora, uma combinação para o caminhar contemplativo pelas trilhas de
peregrinação centenárias era demais. Mas ele nunca admitiria: em tempos de
crise de crédito, não podia se dar ao luxo de perder sua cliente mais fiel. Não
passou pela cabeça de nenhum dos dois que era possível entrar numa loja de
esportes e acertar em cheio no departamento de “Trilhas e Caminhadas”.
– Tenho uma reputação a zelar, minha querida! – sussurrou empolgado o
personal shopper, começando a busca.
Quem sabe a que ponto de intimidade Estelle e seu rei das farmácias não
teriam chegado se não fosse a bicicleta que quase atropelou os dois. Kiki, a
última a ser buscada, havia chegado.
– Ficaria mais fácil se você não precisasse passar lá em casa para me
buscar – desculpou-se, olhando para Caroline.
Como sempre, parecia um pouco afobada. Sobre a calça de caminhada,
usava um vestidinho curto e uma mochila colorida. Embora já tivesse 35
anos, agia como uma garota. No cesto da bicicleta havia coisas soltas que
ainda precisava colocar na mochila.
– Preciso fazer algumas coisas no caminho – defendeu-se, antes que
alguém pensasse em fazer alguma pergunta desagradável. – De última hora as
coisas no estúdio ficaram um pouco…
Freneticamente, Kiki procurou pelo eufemismo adequado para o que havia
lhe acontecido no trabalho. E decidiu que não era o momento correto de
entregar o segredo para as amigas.
– Ficaram um pouco corridas – terminou assim a frase.
Caroline, sacudindo a cabeça, olhava para tudo que estava entrando na
mochila. Câmera, papel, lápis, o caderno de desenho, fita adesiva, uma
tesoura.
– Parece que você está fugindo.
– Isso é um interrogatório? – retrucou Kiki para Caroline.
Caroline e Eva olharam-se desconcertadas. Precisava haver um bom
motivo para Kiki deixar na casa de Estelle a bicicleta que utilizava todos os
dias. A amiga estava se comportando de forma muito estranha. Por que Kiki
reagiu com tanta agressividade?
– Ela está numa idade difícil – comentou Estelle. – Mas quem não está?
Pela primeira vez, uma leve dúvida rondou Caroline: talvez tivesse sido
melhor ter ficado em casa esse ano. Por toda a vida, Caroline invejou pessoas
que conseguiam uma boa desculpa. Mas ela não conseguia. Caroline era
pontual e ficava até o último minuto. E assim devia ser.
Juntas seguiram para buscar Judith, que de última hora tinha decidido ir ao
cemitério novamente. Naquele momento, estava diante do túmulo de Arne,
carinhosamente enfeitado, e teve de encontrar forças para deixá-lo. Parecia
perdida na enorme camisa de flanela xadrez de Arne que vestia.
– Não sei se vou conseguir fazer essa peregrinação – Judith confessou a
Caroline, que havia se encarregado de desgrudá-la de lá.
– Você não vai me deixar sozinha com as meninas. Não pode fazer isso
comigo – respondeu Caroline.
Judith tinha suas dúvidas:
– Você acha que vou conseguir? Peregrinar? Todos os quilômetros? A pé?
Caroline pegou uma vela do túmulo de Arne e a botou na mão de Judith.
– Vamos levá-la para Arne até Lourdes. É quase como se ele mesmo
estivesse peregrinando.
Caroline colocou a mochila de Judith nas costas, passou o braço no dela e a
levou para a saída do cemitério, onde as três amigas aguardavam.
–A mamãe!
Quando o avião se aproximou da costa francesa do mar Mediterrâneo,
Frido e sua filha mais nova, Anna, estavam sentados na cozinha à noite e
brindavam com suas canecas de achocolatado. Na página oito das anotações
de Eva estava escrito que achocolatado ajudava a dormir melhor.
Logo no primeiro gole, Anna sacudiu a cabeça.
– Acho que mamãe faz achocolatado com leite.
Frido afirmou com a cabeça, sério. Dirigia um departamento com 230
funcionários, mas era pedir demais que preparasse um achocolatado. Já havia
custado muito para acender o fogão.
– Ao menos está quente – comentou Frido, dando um bom exemplo e
tomando de uma vez a horrível beberagem.
Anna apertou os olhos e o imitou.
Lá em cima, Super Mario comemorava em um volume que apenas
adolescentes achavam socialmente aceitável. Os três maiores estavam
reunidos no quarto de David e disputavam corrida no Wii. Isso porque Frido
já os mandara para a cama havia horas.
– Não consigo dormir se a mamãe não me der um beijinho de boa-noite –
comentou Anna, tristonha.
Frido gostaria de ter respondido “Eu também”. Mas isso não consolaria sua
filha.
– Acho que podemos ver onde mamãe está.
Finalmente, surgiu um sorriso no rosto da menina.
Elas não imaginaram que seria assim. Algumas escarpas nuas que faziam
parte do Massif de la Clape, uma rua vazia, um ponto de ônibus abandonado.
Cinco rostos espantados encaravam a manhã francesa. Tinham chegado ao
ponto de partida da peregrinação. Judith insistia em começar pelas
proximidades da praia de Narbonne, onde Arne iniciou sua última etapa de
peregrino. Especialmente nos primeiros dias, anotou muitas coisas no diário e
Judith esperava reencontrar todos os detalhes. Após o dia três, elas pulariam
algumas etapas com transporte público para concluir a pé o trecho de St.
Liziers até Lourdes. Dez dias de programação cheia: planejaram 250
quilômetros de caminhada. E agora estavam no início: cinco mulheres da
cidade grande no meio do nada.
Caroline trazia um chapéu, Kiki, um lenço de menina, Judith, uma
expressão de sofrimento, Eva, o costumeiro rabo de cavalo e Estelle, um
óculos de sol imenso e sofisticado. Até perceber que com ele não era possível
ver nada. Então, arrancou a peça do nariz e confirmou que não se tratava da
lente escura. Não se via nada porque não havia nada para ver. Além da
paisagem, claro. Aliás, paisagem era o que não faltava.
No horizonte, distanciava-se o ônibus intermunicipal que havia deixado as
cinco ali. O barulho do motor diminuía. O calor crescente de junho fazia o ar
tremular, as cigarras cantavam, um pássaro batia as asas, um besouro remexia
as folhas que cobriam o solo seco. Em algum lugar ao longe, um cão de
guarda latia. Não se via viva alma.
– Ao menos esse Caminho de Santiago não é tão tumultuado como aquele
da Espanha.
Caroline foi a primeira que retomou a fala. O primeiro choque começava a
desparecer. Enquanto Kiki registrava a cena memorável com sua câmera
digital que custara uma pequena fortuna, Judith já procurava na margem da
estrada até encontrar o que buscava. Numa pedra castigada pelo tempo,
estava pregada uma vieira de São Tiago, o sinal inequívoco de que haviam
chegado ao Caminho de Santiago.
– Arne deve ter começado sua última jornada aqui – sussurrou Judith,
emocionada.
Caroline entendia muito bem o que aquele momento significava para a
amiga. Decidiu fazer de tudo para que a viagem fosse um sucesso.
– Que estamos esperando?
Enroscou seu braço com o de Judith. Entraram no caminho tão animadas
que as vieiras de São Tiago penduradas nas mochilas balançavam felizes para
lá e para cá. Pela primeira vez desde a morte de Arne, Judith estava feliz.
Sentia-se bem e fazendo a coisa certa: ir em frente, levantar os ombros e
andar, apenas andar. E ficar novamente próxima a Arne. Nesse início havia
uma magia, algo quase sagrado.
Havia pessoas que tinham o dom de estabelecer contato com algo mais
elevado e divino durante a peregrinação. Judith queria ser uma dessas
pessoas. Estava aberta para aquilo. Exatamente como Arne, dedicaria-se
conscientemente ao Caminho. Unir-se à Criação e ser de novo uma unidade
em si mesma.
– Onde está o nosso sherpa?
– Que sherpa?
– O carregador de malas! Uma viagem espiritual cairia muito melhor se
alguém me libertasse das cargas mundanas.
Caroline apenas sorriu.
– Você sabia onde estava se metendo.
Estelle permaneceu impassível.
– Foi uma tentativa, não foi? – anunciou e começou a andar. Puxava com
toda a seriedade uma mala elegante com rodinhas enormes na parte traseira.
– Design personalizado. Yves fez de um jeito que ficou a minha cara – ela
explicou para Kiki, que olhava com curiosidade.
– Tração quatro por quatro. Poderia ter sido feita por mim.
– Achei que você era responsável pelos copos e pratos descartáveis.
– Até hoje eu era. Mas está acontecendo uma concorrência interna na
empresa. O estúdio Thalberg tem um pedido gigantesco para o exterior.
Imaginem, vamos desenvolver vasos para a Ikea! Quem ganhar a
concorrência interna poderá ver seu design no mundo todo, em centenas de
filiais. É minha chance.
Estelle quase teve dó de Kiki. Era só essa nova missão que a deixava tão
nervosa? Havia anos Kiki batalhava incansavelmente por sua carreira. Não
era a primeira concorrência interna que contava com empolgação. Mas até
agora, nenhuma de suas obras tinha dado certo. Também, como seria
possível? Kiki desenhava utensílios domésticos: talheres descartáveis, pratos
de plástico, palitos de coquetel, produtos de plástico sem nome, produtos
massificados, coisas por trás das quais ninguém supõe que haja um designer.
Mesmo assim esperava, um dia, descartar os descartáveis. Os pedidos e os
homens. Mas no estúdio de Thalberg, nesse meio tempo, jovens designers se
estapeavam. Eram estagiários que mal haviam passado da fase das espinhas,
mas bastante motivados, cheios de ideias e prontos para dar um chega para lá
em Kiki de uma vez por todas. Dessa vez, tinha que funcionar:
– Design é como esporte – explicou para Estelle. – Com 30 anos, você já
está pendurando as chuteiras.
Estelle se perguntava para onde alguém iria no mundo do design quando já
passara havia muito dos 30, como Kiki. Mas Kiki já estava falando de novo.
– Você não acredita como nossos estagiários são diferentes – reclamou. –
Correm o dia inteiro com suas garrafas de água e digitam sem parar em seus
telefones. Vão para festas apenas para postar as fotos na internet no dia
seguinte – revoltou-se Kiki. – São conectados.
Não mencionou que tentou, diversas vezes, se enturmar com os colegas
jovens e que fez uma conta no Facebook. Logo na informação pública do
relacionamento, surgiram dúvidas. ”Complicado” foi a primeira alternativa
que de alguma forma descrevia sua situação. Em algumas semanas, Kiki
tinha mais ex-namorados reunidos em sua página do que amigos. Mas depois
piorou. Quando recebeu uma mensagem dizendo que um certo Matthieu de
Ruão queria entrar em contato, foi a gota d’água. Por nada nesse mundo
queria dividir seu “complicado” com Matthieu, tampouco participar da feliz
vida conjugal com a ex-agora-esposa-mãe-de-duas-filhas-lindas. Queria
menos ainda ser observada por seus jovens colegas de trabalho, com os quais
rapidamente se conectara.
– Você envelheceu, querida – constatou Estelle sem charme algum,
chegando ao cerne dos problemas de Kiki. Na eterna cobiça pelo amanhã,
Kiki acumulou sem querer um bocado de passado. E assim, crescia nela, aos
poucos, a consciência de que possivelmente nunca mais teria uma grande
carreira no design. Mesmo que entregasse um desenho espetacular. Sacava a
câmera, pronta para fotografar tudo que pudesse servir de inspiração para a
coleção de vasos. As cores peculiares do sul da França, o cheiro da manhã, os
ruídos leves da natureza, tudo podia ser um estímulo para uma ideia
sensacional. Dessa vez, daria certo.
Eva ainda estava no ponto de ônibus e fuçava em seu celular.
– Já estou indo – gritou para as amigas.
Não precisava de testemunhas para seu telefonema. Sabia que as amigas
gostavam de rotulá-la de supermãe. Mas, antes que ela pudesse se libertar e
aproveitar a viagem com tranquilidade, precisava saber se tudo corria bem em
casa.
Tensa, Eva apertava as teclas, sacudindo o telefone. Chegou a subir numa
pedra pequena e segurá-lo no ar. A tentativa de obter contato com o quartel-
general em casa fracassou. Sinal zero.
As amigas viraram-se para ela. Eva acenou.
– Já vou, já vou.
Com pressa, agarrou a mochila, jogou-a nas costas e imediatamente
inclinou-se para trás. Será que tinha colocado um pouco a mais de peso ali?
As companheiras já desapareciam por trás de uma curva quando começou a
andar, resmungando. Um, dois, três, quatro. O calor oprimia, a mochila
pesava, o tênis não. Finalmente tinha dado cinco passos. Se um passo tem
setenta centímetros, quando eram necessários até Lourdes? Quando o número
se iluminou na tela do telefone (na função de calculadora), desejou nunca ter
começado a calcular. Quatrocentos mil passos até Lourdes! Isso porque já
tinha descontado o trecho que percorreriam de ônibus e táxi. Nunca
conseguiria.
Eva não imaginava que por trás da próxima curva já teriam uma pausa.
Involuntária, pois com a primeira bifurcação surgiu a desavença.
– Temos que ir para a direita. Então se chega automaticamente ao mosteiro
– anunciou Judith. Estelle tentou ler a descrição do caminho no diário de
Arne sobre o ombro de Judith, que se virou bruscamente.
– Que segredo tem aí no diário? – revoltou-se Estelle.
Judith não respondeu. Diferente do que Arne temia, ela tratava o diário
como sua relíquia pessoal. Não havia nada de espetacular no que Arne
escrevera sobre o mosteiro. Relatou em todos os detalhes como foram
atenciosos os monges beneditinos ao recebê-lo com pão, queijo de cabra e
vinho caseiro. Nos horários de missa, os cantos gregorianos preenchiam o ar.
Judith mal podia esperar para entrar nesse mesmo convento no qual Arne
encontrara refúgio. Quem sabe os monges até se lembrassem de um peregrino
que parecia um vaqueiro do velho oeste.
– Não siga o caminho da esquerda e pegue o trecho menos utilizado ao
leste – Caroline estilhaçou os pensamentos da amiga, lendo em voz alta um
livro, um guia de peregrino. Ela nunca confiava que outra pessoa soubesse o
que era para fazer. – Então vamos à direita.
– Esquerda.
E agora? Os dedos de Judith e Caroline apontavam em duas direções
completamente opostas.
Por fim, Eva chegou, suando e arfando.
– Respira fundo – sussurrou Kiki para ela.
Judith e Caroline estavam frente a frente com seus livros nas mãos como
lutadores de box em um ringue, esperando por um sinal para começar o
primeiro round. A raiva tomou conta de Judith: que ideia foi essa de Caroline
se intrometer dessa forma?
– Para mim é importante seguir o mesmo caminho de Arne!
– Mesmo que seja o caminho errado.
– Arne escreveu que, quando você percorre o Caminho de Santiago, não
pode planejar. Precisa estar aberta para as coisas que vai encontrar.
Os olhos das outras três moviam-se entre Judith e Caroline, como numa
partida de tênis.
– Estou aberta para tudo, contanto que a gente siga pelo caminho correto.
– É o meu caminho. Arne me incumbiu dele.
– Esse é o Caminho de Santiago, centenário, bem marcado. Arne não foi o
primeiro que andou por ele.
– Você vai me seguir e não o contrário! – Judith repreendeu Caroline com
tal veemência que era impossível reconhecer aquela pessoa magrinha e
delicada. Seguiu a direção que Arne indicara no diário, sem se importar com
Caroline e suas objeções.
– Viemos até aqui para apoiar Judith – completou Kiki, com um gesto de
desculpas para Caroline. As outras fizeram o mesmo.
– Provavelmente, Arne conhecia um atalho – justificou Eva.
Estelle também se pôs a caminhar:
– Mosteiros acolhedores exercem uma atração irresistível sobre mim.
As rodinhas da mala estalavam sobre o chão pedregoso.
Por conta própria, Caroline tinha ido a uma agência de viagens especializada
em peregrinação. Lá, informou-se e conseguiu um guia. O único que continha
esse trecho estava em francês. Por fim, tratava-se de um dos Caminhos de
Santiago menos percorridos. Sabia que Judith estava errada e fez ainda uma
última tentativa de convencer o grupo:
– Precisamos percorrer hoje no mínimo 28 quilômetros. Se já no início
começarmos pelo caminho errado, nunca chegaremos em Lourdes.
Nenhuma das mulheres reagiu. Tinham escolhido o lado de Judith.
Caroline ficou para trás, indignada. Cinco minutos após o início da
peregrinação, as mulheres de terça-feira estavam diante de seu primeiro teste
de resistência. Cedo demais para arriscar tudo, decidiu Caroline.
Com ar furioso, marchou atrás das quatro amigas. Passou por uma pedra
com uma vieira de São Tiago, quase totalmente coberta de grama. Apenas a
seta saía de dentro das folhas verdes, apontando para a direção contrária.
12
Judith estava exausta. Não era por causa do sol, que aos poucos chegava ao
seu ponto mais alto e diluía as cores. Não era por causa do que via e sentia. O
que inquietava Judith eram as coisas que não via. O córrego com água fresca,
o parapeito da ponte onde Arne se machucou, o banco antiquíssimo à sombra,
um pinheiro atingido por um raio cujo tronco crescia novamente: Judith
buscava em vão por todos os detalhes que Arne anotou em seu diário.
“Você precisa olhar direito”, reclamou consigo mesma. Mas como poderia
absorver a paisagem com tantos comentários às suas costas?
– Se não encontrarmos o mosteiro – disse Estelle – tenho algumas ideias.
Minha assistente fez uma busca na internet com todos os restaurantes da
região.
Ela puxou algumas folhas impressas de sua mochila e citou, se deliciando,
os cardápios do restaurante mais próximo.
– Patê de cervo com pistache, caranguejos de água doce marinados em
molho de vermute. Nem vinte quilômetros daqui. Poderíamos fazer um
agradinho para nós mesmas.
– A peregrinação precisa doer. Senão, não adianta – Kiki ensinou à amiga.
– No fim do caminho, você será redimida de todos os pecados.
Se havia algo que interessava mais a Estelle do que a boa comida eram as
boas histórias. Não era do seu feitio fazer rodeios. A vida era muito curta. O
melhor era ir direto ao assunto:
– Mais uma história de homens que não deram certo?
Kiki balançou a mão, retorquindo:
– Quando chegarmos em casa, o problema terá acabado.
– Problemas que somem no ar? – comentou Caroline num feliz cantarolar.
– Meus criminosos também acreditam nisso e nunca resolvem nada. Se não
me escutam, ficam perdidos...
Judith entendeu bem que o comentário de Caroline era para ela. Queria ser
tão eloquente quanto a amiga ou rápida como Estelle. Arne certamente teria
uma resposta divertida na manga. Sempre conseguia aliviar tensões com uma
piada.
Um ruído penetrante rompeu seus pensamentos turvos. O telefone de Eva
tocou. Ela atendeu aliviada. Finalmente um lugar no qual havia sinal.
– Frido! Como estão as coisas? Fiquei tão preocupada.
Mas a ligação estava tão ruim que Eva precisava gritar para se fazer
entender. Judith e as outras foram obrigadas a ouvir toda a conversa. Não era
difícil imaginar o que fazia Frido estar no outro lado da linha.
– Frido, eu já cozinhei os molhos.
Suas instruções eram rápidas e precisas. Judith ficava surpresa em ver
como Eva era paciente com Frido.
– No freezer, não na geladeira.
– E a gaveta do meio?
– Etiqueta vermelha.
Falar e caminhar ao mesmo tempo era difícil para Eva. Ela tentava tomar
ar. Enquanto Judith lançava uma prece rápida e muda para os céus, Kiki
lançou uma aposta:
– Dez euros que Frido não consegue fazer nenhuma refeição.
Estelle retrucou:
– Até meu poodle sabe onde está a comida dele.
Tensas, observavam a evolução da conversa.
– Exato! E agora você precisa esquentar tudo – ensinava Eva.
Estelle temia o pior:
– Espero que ele saiba usar o micro-ondas.
Mal tinha acabado a frase, quando Eva gritou, indignada:
– Frido, não no micro-ondas, né?
– Você devia cozinhar qualquer dia, Estelle – riu Kiki.
Estelle reagiu com revolta fingida:
– Eu cozinho sim. Ninguém faz chá melhor do que eu.
Judith leu muito sobre peregrinações. Em nenhuma das histórias houve um
peregrino que ficasse pendurado no telefone e desse uma aula para aqueles
que ficaram em casa sobre o uso do micro-ondas e a perda de antioxidantes e
as consequências ruins resultantes dele, como arteriosclerose, câncer ou
catarata. Nesse meio tempo, o rosto de Eva tinha adquirido a cor de um
tomate.
– Eu sabia que seria difícil para Frido – sussurrou para as amigas. – Mas
não tinha ideia de que ele se comportaria como um analfabeto.
Balançando a cabeça, tirou a mão do microfone e mudou para o tom de
esposa paciente:
– Você precisa esquentar o molho em banho-maria. Pegue uma panela e
ponha água, uma baixa. Não, não a vermelha. Isso. Cinco a sete minutos.
Sim, eu espero, claro.
Judith não ouvia mais. Tinha descoberto algo lá na frente que parecia ser uma
ponte. A pinguela sobre o riacho tinha um corrimão totalmente enferrujado
que se projetava perigosamente. Suspirou aliviada. Devia ser o pedaço de
ferro no qual Arne machucara a mão direita. Estavam no caminho certo.
Quando passou a mão com cuidado pelo metal afiado, soube por que havia se
lançado nessa aventura.
Estranho como sentiu algo totalmente diferente quando olhou para a
pontezinha. O corrimão de metal afiado e escondido se estendia pelo
caminho. Judith ficou radiante de não ter dividido com suas amigas os
detalhes do diário.
15
Judith evitava olhar para Caroline. Claro que tinha perguntas, claro que ela
havia percebido as incoerências. Mas dizia respeito apenas a Arne e a ela.
Tentou salvar o que devia ser salvo:
– E daí? O mais importante é o que acontece dentro de você.
Estelle livrou-se dos tênis. Bolhas. Bolhas horríveis. Carne viva!
Judith continuou, impassível:
– Arne diz que o caminho da peregrinação provoca sentimentos
inesperados.
– Vontade de matar, por exemplo – completou Estelle.
– Você precisa seguir com consciência, Estelle – esclareceu Judith com
brandura. – Então o corpo se acostuma de forma natural ao novo ritmo de
vida. Só assim você vai se redescobrir.
A ladainha esotérica e essa voz sussurrada, embebida em compreensão,
foram a gota d’água para Estelle:
– Quem diz isso? Arne, o profeta? Vamos ver.
Curiosa, Estelle tentou agarrar o diário que estava na grama. Antes que ela
pudesse pegá-lo, Judith puxou o caderno para si com violência. O legado de
Arne não pertencia a nenhuma delas.
– Só queria saber quais desafios espirituais ainda me aguardam –
defendeu-se Estelle.
Ela não queria continuar pensando naquilo. Precisava se libertar das coisas
que aconteceram. Não queria mais sentir saudades de Arne. Muitas pessoas
escreviam diários para se lembrar. Judith queria escrever para esquecer. Das
nuvens e de tudo o que veio depois. Não era preciso muita imaginação para
reconhecer o que significava aquela poça de tinta. A mancha parecia uma
nuvem de tempestade. Os deuses estavam prontos para lançar seus raios
sobre ela.
Mais que depressa, Judith folheou o diário até o início. Quinta-feira, 17 de
junho. Parou novamente. O que deveria escrever sobre a primeira parte da
peregrinação? Obedecia às indicações de Arne no diário. E, apesar disso,
estava desnorteada. Judith se convenceu de que era apenas o cansaço que a
deixava sem palavras.
16
Eva tirou das costas sua pesada mochila. Naquele momento, em Colônia,
havia uma refeição quentinha na mesa. Assim, conseguia se acalmar para
cuidar de si mesma e das amigas, que precisavam de ânimo. Para surpresa de
suas parceiras de peregrinação, Eva fez surgir da mochila, como num passe
de mágica, um piquenique fabuloso. E um forro de mesa ultrafino, que Kiki
reconheceu emocionada como um de seus primeiros projetos para o estúdio
Thalberg. Logo não se veria mais nada da estampa. Sobre o forro de mesa,
uma profusão de gostosuras: azeitonas, salaminho, queijo, folhados recheados
ao lado de biscoitinhos de parmesão, minimuffins com tomate seco e bolo de
cenoura com nozes. Irresponsável no que diz respeito à técnica de
peregrinação era levar isso tudo na bagagem. Mas naquele momento sua
arma secreta significou a salvação do bom humor.
– Entendo o Frido. Eu também não deixaria você ir embora. Você é o
máximo – suspirou Estelle.
Eva ficou envergonhada. Não lidava bem com elogios.
– São só umas coisinhas. Nada demais – tentou diminuir seu feito. Mas ela
se ocupara dias e dias com o planejamento e a preparação do piquenique.
Sem falar em todo o esforço de arrastar até ali a pesada mochila.
Eva arrumava as delícias nos pratos de plástico que trouxe, servia e se
alegrava quando as outras gostavam dos quitutes. Após tantas horas de
caminhada, um lugar simples à sombra parecia o Paraíso. Preguiçosas, as
mulheres de terça-feira se esticaram todas, curtiam as comidinhas gostosas e
deixaram o olhar vaguear sobre os montes. Rochas nuas elevavam-se do
verde exuberante, o vento soprava no calor do meio-dia e as cigarras
ciciavam sua eterna canção. Havia um cheiro de poeira seca, alecrim e férias.
A alegria tomava o lugar da exaustão. Estavam viajando. Longe de Colônia,
uma cidade com a qual se podia encher meio livro para descrever sua feiura.
Dizem que, com os anos, os cachorros ficam parecidos com seus donos.
Para os fazendeiros e seus animais parece valer a mesma regra. Não ficou
claro quem se surpreendeu mais ao encontrar na estrada de cascalho as cinco
senhoras solitárias, com aparência de cidade grande, totalmente suadas: o
fazendeiro ou as ovelhas que olhavam de cima para baixo, dispostas sobre o
reboque do trator. Não precisaram trocar uma palavra. O fazendeiro
entendeu, sem nenhuma explicação, que aquela cena pedia um ato cristão de
amor ao próximo. Sem falar nada, abriu a porta da carroceria e empurrou as
ovelhas para o lado. Com um gesto simples, convidou as cinco peregrinas
exauridas a entrar em seu reboque.
Judith embarcou e com isso deu o sinal que por hoje estava pronta para
esquecer o diário e suas instruções. Caroline e Eva seguiram-na. Até Kiki
desistiu de outra discussão sobre remissão dos pecados. Todas as quatro eram
da opinião de que já haviam feito o bastante para o primeiro dia de
peregrinação. Algo quase grandioso! De qualquer forma, o suficiente para
desistir.
Apenas Estelle estava em dúvida. Nunca se podia saber em que medida a
vingança estava disseminada entre as ovelhas francesas. Elas podiam ser
parentes do cordeiro com o qual havia se deliciado na noite anterior em
Montpellier. Cordeiro com geleia de cebola. Parecia uma eternidade. Como
uma lembrança de uma vida passada, de uma vida bela. Aquele reboque sujo
parecia pouco convidativo. Mas havia escolha? O pensamento horrível de ter
de seguir apenas um metro ali deu o ímpeto para mostrar coragem e declarar
guerra à sua fobia de fazendas. Enquanto Estelle tentava encontrar um lugar
seguro o mais longe possível das ovelhas, Eva sentou-se confortavelmente
com as pernas cruzadas no chão do reboque. Feliz, se dedicou às sobras do
piquenique.
Estelle estava feliz: talvez o reboque de trator fosse o melhor lugar para
convencer-se da singularidade e da beleza da paisagem. E o melhor lugar
para sentir que estavam unidas de verdade. Caso se conhecessem hoje, a
amizade não aconteceria de jeito nenhum. Mas, após quinze anos, podiam
dizer verdades que, em outra situação, causariam homicídios.
Nada mudou. Ficaria assim para sempre, aconteça o que acontecer.
Estelle deixou os pés maltratados balançarem sobre o canto do reboque.
Alguém acarinhava sua nuca suavemente. Quando virou a cabeça para o lado,
viu dois olhos úmidos de ovelha mirando apaixonados as aplicações de pele
em sua jaqueta. Como Judith disse:
– Na peregrinação, as pessoas descobrem novas facetas de si mesmas.
Estelle percebeu que seu gosto para roupa fazia sucesso entre as ovelhas.
19
Estelle desapareceu no térreo para procurar uma boa bebida. Voltou com uma
garrafa de vinho.
– A única coisa que consegui encontrar naquilo que chamam de adega –
comentou enquanto enchia os copos.
Caroline ergueu seu copo:
– Um brinde a essa bela porcaria. Exatamente como Arne – declamou em
tom festivo.
Não tinha a intenção de ofender, mas Judith sentiu-se imediatamente
atacada. Sua expressão ficou petrificada, mas Caroline pareceu não perceber.
– O vinho nem é tão ruim – elogiou.
– Que é isso, Caroline? – retrucou Judith.
– É possível que Arne não percebesse mais as coisas como elas realmente
eram? – Caroline tentou aliviar a situação. Ela não queria briga. Mas Judith
estava na rota do embate.
– A doença era no estômago, não na cabeça.
Kiki suspirou. Às vezes Caroline era péssima com seu amor mórbido pela
verdade. O que seria se Arne tivesse descrito exatamente o caminho e as
acomodações? Elas tinham um teto sobre a cabeça, tinham saúde, ainda
restavam dez dias livres na França e o vinho estava ótimo. Que mais
queriam?
– Pare com isso, Caroline. Deixe Judith com a imaginação dela. – Kiki
queria ajudar a amiga, quando Caroline prosseguiu:
– Você não acha estranho que os dados no diário não batam com nada? –
ela continuou a cutucar.
Kiki não era a única que sentia que as coisas desandariam. Eva pôs-se
entre as briguentas e serviu mais vinho. Visivelmente alerta, tentou apaziguar
a briga antes que estourasse de verdade.
– Há muitos caminhos e todos levam a Santiago de Compostela.
Judith empurrou Eva para o lado.
– Provavelmente o dono mudou – rebateu Judith, truculenta.
Estelle inspecionava sua cama com as pontas dos dedos:
– Ninguém troca esse cobertor há uns sete meses.
Estelle estava preparada para todas as eventualidades. Sacou logo um
inseticida da mala.
– Aonde você quer chegar? – perguntou Judith.
– Você acredita mesmo – justificou-se Caroline – que Arne achou que isso
era luxuoso?
– Após um dia de peregrinação? Definitivamente, sim! – intrometeu Kiki,
divertida. Ela disse exatamente o que queria dizer. Tinha se acomodado em
sua cama na parte de cima do beliche e colou na parede alguns dos desenhos
que havia feito para seus vasos durante o caminho, achando tudo ótimo.
Exceto pelo bate-boca das amigas. Nas camas de baixo, a briga continuava.
Caroline não desistia, muito menos Judith:
– Arne estava à beira da morte, sabia que iria morrer. Assim cada momento
parecia um presente. Cada encontro com a criação, uma maravilha. Mesmo
com a mais ínfima criatura.
Um cheiro penetrante espalhou-se pelo quarto e tirou o fôlego de Judith
para continuar sua fala. Com o inseticida, Estelle espirrou para o além uma
pequena criatura e sua grande família que se escondiam atrás de sua cama.
Até ela percebeu a consternação das amigas. Culpada, olhou primeiro para
Judith, e então para o massacre que havia perpetrado contra os bichos
rastejantes.
– Podíamos nos converter ao budismo – propôs Estelle, cheia de remorso.
– Eles acreditam na reencarnação.
Judith saiu do quarto batendo a porta. Eva foi atrás, não sem antes dar uma
bronca em suas companheiras de peregrinação.
– Isso foi totalmente desnecessário – sussurrou ela. Não ficou claro sobre o
que falava. Sobre Caroline com suas perguntas ou sobre Estelle com seu
humor anárquico.
Caroline pensou o dia todo como poderia fazer para que Judith obedecesse
menos às informações duvidosas do diário de Arne. No fim, decidiu-se
espontaneamente pelo método mais rígido.
Logo depois, culpou-se por não ter conseguido formular sua intenção de
forma mais diplomática. Num banco diante do albergue, bebia um copo de
vinho e olhava a vida noturna do vilarejo. Os últimos raios de sol lançavam
um dourado morno sobre as fachadas cinzentas. Era um calor reconfortante.
Nas ruelas, alguns jovens seguiam duas meninas que davam risadinhas e se
empurravam com gestos meio brutos e gritos altos. Na igreja, reuniam-se os
homens mais velhos do vilarejo para o bate-papo do começo de noite. A todo
o momento, os olhares se voltavam para Caroline. Ela não percebeu nenhuma
vez.
Caroline estava triste consigo mesma. Por que reagira com tanta grosseria?
Invejava Kiki por seu talento para aceitar as coisas. Não fazia nenhuma
pergunta desnecessária. Era provável que, para ela, não importasse se
chegariam a Lourdes, a Timbuktu ou a lugar nenhum. Aproveitava o dia e o
que o acaso trouxesse. E, mesmo assim, era ambiciosa no que fazia. Por que
Caroline não conseguia ver a vida de forma mais descontraída? Kiki foi
amada. Já Caroline era, em todos os casos, valorizada, com frequência
temida, às vezes abertamente combatida.
Na vida profissional, saía-se bem: montar tática, aguardar, dizer a coisa
certa na hora certa. Por que na vida pessoal não funcionava?
– Por isso a gente tem amigas. Para se recuperar do trabalho – confortou-se
Caroline. As mentiras faziam parte do seu cotidiano como o amém da missa.
Dia após dia, era confrontada com declarações falsas e meias verdades, com
desculpas e retóricas. O Direito mantinha os mentirosos protegidos. Nemo
tenetur se ipsum accusare (ninguém é obrigado a acusar a si mesmo), era o
nome disso. Quanto mais enfrentava mentiras na sala de audiência, mais
alérgica ficava a elas na vida pessoal.
Não era incomum que ficassem dias sem se falar. Não eram daqueles casais
que mantêm uma linha telefônica exclusiva. Caroline estava longe de ser o
tipo de mulher que tentava garantir com ligações, mensagens de texto ou e-
mails que o marido ainda estava vivo e a amava. Mas, naquele momento, se
irritou por não conseguir falar com ele. Esperava tanto que Philipp pudesse
ajudá-la.
Bufando, Caroline recostou-se. O calor estava cada vez mais confortável.
De uma janela aberta soava em alto e bom som o Jornal de 20 heures, que
havia algum tempo era apresentado por uma mulher e não pelo ícone dos
noticiários franceses, Patrick Poivre d’Arvor, que Caroline acompanhara
durante todo o curso de francês. Crianças chutavam bola entre duas latas de
lixo e festejavam a cada gol, como se tivessem marcado o ponto que daria à
seleção francesa o título mundial. Uma voz chamou-os para jantar. Ficaram
os senhores sentados em um peitoril no muro da igreja, comentando os
acontecimentos do dia. Estranho, pensou Caroline, nas praças dos vilarejos
sulistas apenas homens ficam sentados. Mas também entre as mulheres de
terça-feira a mistura não dava certo. Ficava complicado sempre que os
homens chegavam.
Com arrepios, Caroline lembrou-se da primeira comunhão do primogênito
de Eva, David, que mereceu uma grande festa. Grande festa para Eva
significa convidar não apenas suas amigas e agregados, mas também toda a
imensa família de Frido e sua excêntrica mãe. Ela ainda lembrava como se
surpreendeu quando encontrou Regine pela primeira vez nessa festa. A mãe
de Eva estava perplexa, pois a filha venerava uma tradição familiar contra a
qual ela lutou com muito empenho. “É culpa da vovó Lore”, anunciou, ainda
na porta de entrada. Seu tom deixava claro que não era um elogio de jeito
nenhum. Entre Regine e a família católica fervorosa de Frido, que
compareceu à comunhão de David com todos os filhos e filhos dos filhos
disponíveis, houve uma troca terrível de “elogios”. No meio dessa confusão,
estavam as cinco amigas e seus companheiros.
Enquanto Kiki partia primeiro o coração e depois o nariz do irmão mais
novo de Frido (ambos sem querer), Estelle e seu rei das farmácias se
arrependeram muito por terem perdido a oportunidade de trazer um grande
frasco de ritalina para distribuir entre todas as crianças presentes. Ou para
Regine, que havia escolhido justamente Philipp para rever seu trauma
católico de infância. Não conseguia compreender o fato de sua filha, que
havia criado para ter a cabeça aberta, obrigar seu neto David a algo tão
dogmático como uma comunhão.
– Veja a confissão – berrava Regine na orelha de Philipp para vencer a
gritaria das crianças. – Quando criança, precisei me desculpar até mesmo
pelos pecados dos quais nem me lembrava mais. Sempre esse medo. Deus já
sabe o que você terá para confessar antes de você cometer o pecado.
Mal Philipp conseguiu fugir de Regine, grudou em Kai, que corrigia a
pobre Judith a cada três frases. “Isso que você está dizendo está certo só em
parte” parecia ser a frase favorita dele. Três dias depois, Judith deu entrada
no divórcio.
Depois da tarde de comunhão ter acabado com Eva quase tendo um colapso
nervoso, ela anunciou que festejaria cerimônias religiosas no futuro apenas
com o núcleo da família. Os companheiros de suas amigas também não
tinham lembranças muito boas daquela tarde. A partir de então, quando
possível, ficavam longe dos encontros das mulheres. Para elas, estava ótimo.
O único marido que insistia em participar dos encontros de terça-feira era
Arne. Sempre levava Judith ao Le Jardin e não ficava apenas em uma tacinha
de vinho, mas às vezes permanecia até o fim da noite. A sorte de Judith: Arne
era realmente sincero e bom com ela. Seu azar: queria provar isso para ela 24
horas por dia. Caroline sempre se surpreendia em como os dois eram
simbióticos. Mas, depois de Kai, qualquer alteração era um progresso. Judith
não era uma mulher forte. Se Judith não achasse um ombro para se encostar,
ficava arrasada. Estranho que não tivesse percebido isso bem antes: Judith,
que em todos esses anos havia escapado de um homem para o outro, vivia
pela primeira vez sozinha desde a morte de Arne. Não era surpreendente a
dificuldade em se orientar na nova vida.
Mesmo contra a vontade, Caroline tentou novamente encontrar Philipp.
Nesse meio-tempo, a recepcionista já tinha ido para casa. Em vez dela, a
secretária eletrônica atendeu: “Consultório do Dr. Philipp Seitz. No momento
não podemos atender. Em caso de emergência, por favor procure o pronto-
socorro mais próximo.”
Irritada, Caroline desligou. Não precisava de um médico de emergência.
Precisava de Philipp. Naquele momento desejou que seu relacionamento
fosse um pouco mais parecido com o de Judith e Arne.
A rua havia esvaziado, as luzes nas casas tinham sido desligadas. No nicho
do muro crepitava uma vela. A Virgem Maria sorria para ela, plácida.
Caroline tinha motivos para rir. Então foi ela que convocou as pessoas a
peregrinar até a gruta de Lourdes. “Dizei aos padres que devem vir até aqui
em procissão e construir uma capela”, comunicou Maria a Bernadette em sua
13ª aparição. Após a 18ª, Maria desapareceu e deixou as pessoas somente
com aquilo que trouxera à tona. Maria conclamou, Arne comeu milho e
Caroline levou a fama.
Desanimada, baixou o telefone. Esperava que seu sétimo sentido para
mentira estivesse enganado. Tinha de haver um motivo pelo qual nenhuma
informação desse diário batia. Um motivo racional.
22
Ginette havia abrigado muitos hóspedes durante a vida. Nas décadas em que
gerenciava o Auberge Sainte Marie, aprendeu a avaliar as pessoas. Quando
pouco antes da meia-noite uma mulher exaurida e gordinha de shorts de
dormir, camiseta e pés descalços surgiu diante dela, apontou com um gesto
simples para o telefone no corredor.
Eva mal conseguia discar o número de Colônia de tanto que tremia. Era
uma mistura de frio, cansaço e exaustão que havia atacado todas as fibras de
seu corpo. Anna atendeu de pronto.
– Você disse que eu podia ligar dia e noite – desculpou-se com a mãe, que
havia adivinhado. Claro que a ligação tarde da noite era de Colônia, de casa.
– Que foi?
– Mamãe, tem um lobisomem no meu quarto – tremia a voz da pequena.
Um lobisomem. Óbvio. Todo mundo sabia que era mais fácil combatê-lo
se estivesse na França. Frido havia deixado Anna assistir filmes com os filhos
maiores?
– Anninha, por que você não falou com o papai?
– Papai não acredita em lobisomem. Como ele vai achar?
Simples assim. Se a pessoa não acredita em lobisomens, pode dormir
sossegada, mesmo que esteja apenas a dez metros do potencial perigo.
– E seus irmãos?
– Eles estão rindo da minha cara.
Eva sabia muito bem que não se tratava de um lobisomem. Anna sentia
falta da mãe, como ela sentia falta da filha e de toda a família. Mas isso não
conforta ninguém nessa situação.
– Sabe, Anna, o que a vovó Lore cantava para mim quando eu não
conseguia dormir? – Eva agachou-se no chão de pedra, recostou-se na parede
fria e sussurrou uma pequena melodia. Tinha uma voz bonita e suave.
Ginette, que limpava a cozinha, parou e ficou ouvindo, emocionada. Como lá
longe, em Colônia, uma menininha ouvia. Anna não conseguia falar. A
tristeza deu um nó na garganta de Eva. Ela sabia que Anna também estava
emocionada.
– Também estou com saudades. De todos vocês. Vai para minha cama e dê
um beijo no papai por mim. Durma bem.
– Mamãe, você está chorando? – quis saber Anna, sem acreditar.
Eva enxugou as lágrimas do rosto e afirmou:
– Não, não. Eu não choro.
O sol levantou-se com vagar por trás das montanhas, mergulhando os muros
cinzentos das casas em um dourado morno. Uma lambreta solitária roncava
alto pelas ruelas estreitas, dois galos faziam disputa de canto. E Eva ainda
não sabia o que fazer. Duas almas moravam em seu peito e trocavam farpas
verbais.
– No segundo dia a caminhada melhora – dizia uma.
– Caminhar, pelo amor de Deus. Nenhum metro a mais. Por favor, nem
pensar – falava a outra.
– Anna vai dar conta. A única que não dá conta é você.
– Você precisa ir para casa. Esqueceu de anotar como funciona a secadora
de roupas.
– Outras mães também conseguem. Caroline, por exemplo. Por que você
não?
– Quer desistir? Ser a única?
– Você é uma perdedora.
– Eva, acorde!
Não eram mais as vozes internas. Era Caroline que a acordou com
suavidade.
– Como assim? Já? – murmurou Eva. Em algum lugar entre as palavras de
encorajamento e autoincriminação desesperada, ela deve ter adormecido.
– São 7h30. Se partirmos logo depois do café, vamos terminar o trecho
mais difícil antes do calor do meio-dia – disse Caroline, tentando animá-la.
Esgotada, Eva afundou-se novamente no travesseiro. Como suas amigas
conseguiam? Caroline estava toda em forma com tênis, Judith fazia suas
orações matutinas diante do pseudo-altar escangalhado de Arne e até Estelle
já estava maquiada.
– Eu já vou – prometeu para as amigas que, famintas e com sede de café,
desapareceram na direção do salão de café da manhã.
Talvez a expressão “calor do meio-dia”, talvez a imagem de precisar fazer
algo extenuante. Quando a porta bateu atrás das amigas, ela sabia o que devia
fazer. Aeroporto, para casa, o pensamento era muito tentador.
Com dificuldade, Eva esticou suas pernas doloridas. Desastrada como
sempre, desceu da cama de cima. Como um saco de farinha, despencou e
descobriu que não era a única a quem faltava o espírito peregrino logo pela
manhã. Kiki, que trabalhara durante grande parte da noite, voltou a dormir
logo após Caroline chamá-la.
Clandestinamente, Eva juntou suas coisas com cuidado ansioso para não
fazer barulho. A cada peça que desaparecia no fundo da mochila, seu coração
ficava mais leve. Ingenuidade pensar que era possível fazer uma peregrinação
dessas sem uma preparação coerente e treinamento regular. No dia seguinte,
ela se matricularia numa academia em Colônia. Em alguns anos, quando as
crianças estivessem maiores, começaria uma segunda tentativa com corpo
astral fortalecido e bem-treinado. Era o lugar errado na hora errada. Para as
amigas, ela era apenas um fardo e um eterno pé-no-freio.
Nervosa, deu uma olhada no horário: faltava pouco para as 8h. Hora de
fechar o capítulo “peregrinação”. Botou a mochila nas costas e, como de
costume, pendeu o corpo para trás. Contra a cama de Kiki. O terremoto
médio que sacudiu o beliche manco não conseguiu tirar Kiki de seu sono
saudável.
Nas pontas dos pés, Eva esgueirou-se para fora do quarto e desceu as
escadas rangentes. Com alguns passos, estaria na saída. Mas o azar era seu
companheiro inseparável. As portas do salão de café da manhã estavam bem
abertas. Pior ainda: as amigas tinham uma visão direta da mesa para o
corredor.
Assustada, Eva escondeu-se em um canto escuro onde uma poeira de
décadas esperava para subir pelo seu nariz e ajudar a provocar um delator
ataque de espirros. Tinha energia suficiente para sair correndo. Mas não tinha
forças para defender sua decisão perante as amigas.
–Fiquei com medo de você arrumar suas coisas e desaparecer sem falar
nada – confessou Caroline quando Eva sentou à mesa do café da manhã. Por
isso tinha se esforçado para entrar na sala com uma felicidade enfática. Como
se a tentativa de fuga nunca tivesse acontecido. Era difícil esconder algo da
advogada esperta.
– Venci meu espírito de porco – admitiu Eva – e a porca lá de fora. Que
são contra o percurso de alguns quilômetros até Lourdes.
Eva comeu com grande apetite. Quem é peregrina também precisa comer.
Pegou um pedaço da baguete e a esfarelou em sua xícara imensa, acrescentou
muito açúcar, despejou sobre tudo o ricoré com leite e mexeu calmamente
com uma colher. Sentiu aquela papa tão macia na boca que não conseguiu
evitar de pensar numa dentadura. A mistura era quente e doce e, com certeza,
contava com inúmeras calorias que ela, como por mágica, carregaria pela
próxima etapa.
Paul Simon conhecia Fifty ways to leave your lover. Talvez ela devesse ter
pensado com mais atenção sobre 49 alternativas antes de decidir-se pela
solução rápida via mensagem de texto. Kiki não queria conversas sobre
término de relação, essas em que nos deixamos levar, tão chorosos, a frases
como “Podemos ser amigos”. Não queria quebra-quebra e, acima de tudo,
não queria sexo de despedida. Queria que o caso com Max terminasse antes
que fosse tarde demais. Suspeitou que seu comunicado o desagradaria. Como
ele a ignorou, e Kiki ficou arrasada.
– Não acredito em uma palavra sua – ele riu, sem pudor. – Em nenhuma.
Não dessa “Kiki”. A Kiki que conheço não fugiria sem mais nem menos.
Kiki ficou nervosa. O que ele queria ali? Por que viajou atrás dela? O
toque insistente e penetrante do telefone de Max a deixava ainda mais
nervosa.
– Atende logo! – ela estourou.
– É meu pai – explicou Max, sucinto. – Ele sempre fica irritado quando
não sabe onde estou.
Cada frase, uma nova bomba.
– Você fugiu? Sem falar com ninguém? – Kiki tentava reunir o que
acabara de ouvir em um todo razoável.
O telefone parou de tocar. Kiki sentia o pânico crescer.
– Explico tudo quando voltar. Isso se até lá eu tiver entendido tudo –
prometeu Max.
Kiki não respondeu mais nada. Por trás da cerca do jardim surgiram quatro
rostos curiosos. As outras estavam prontas para a etapa daquele dia. Caroline
balançava a mochila de Kiki.
A cada passo, Eva relaxava mais e mais. Na paisagem solitária, onde não
havia nenhum trabalhador e garçons ousados que pudessem observá-las em
seu esforço suarento, caminhava como se estivesse livre. E também sem a
mochila pesada. O orgulho se espalhava. Alegre, caminhava ao lado de
Caroline após a pausa para o almoço. Atrás delas, Kiki, cujo rosto parecia
dizer apenas uma coisa: “Não pergunte!”
30
Kiki não viu nada. Nem o mosteiro de Fontfroide que, como uma pintura,
ficava encrustado numa depressão nas montanhas com vegetação densa,
tampouco os belos vitrais coloridos que permitiam uma luz multicolorida
mergulhar no interior simples do local, nem os claustros recobertos de verde
com suas colunas duplas e arcadas, nem as roseiras. Kiki havia descoberto
algo novo. Dessa vez em si mesma. Era o arrependimento.
Como aquilo pôde acontecer justamente com Max? Não havia sido amor à
primeira vista? Como? Quando Kiki chegou em Thalberg, Max era um
estudante comprido, cujos braços longos em torno do corpo magrelo e
desproporcional balançavam como se fossem na realidade de outra pessoa.
Os designers, com os quais falava ocasionalmente para pegar intimidade com
a base da empresa, tinham-no como caso perdido. Trabalho manual para Max
significava anotar na palma da mão dicas valiosas para a próxima prova de
francês.
Kiki quase caiu da cadeira quando Thalberg anunciou, poucas semanas
antes, que o jovem passaria suas férias semestrais no departamento dela. A
crise de crédito atingira em cheio sua área: em muitos locais, as receitas
haviam despencado, uma série de importantes clientes italianos pediram
concordata, revistas de decoração que generosamente exaltavam os produtos
foram descontinuadas. Em tempos em que a força de trabalho fixa era
substituída por estagiários baratos, não era um bom sinal precisar incorporar
no próprio local de trabalho o filho do chefe e o futuro diretor da empresa.
Kiki imaginou o que seria dela. Vira muitos estagiários chegarem e irem
embora. Havia os tímidos que se calavam com grande respeito, os
bajuladores que faziam tudo, contanto que o chefe incumbisse pessoalmente,
e os carreiristas, cujo ego e a competência social brigavam por espaço a
cotoveladas. E havia os bons, que podiam ser perigosos para ela, pois seus
desenhos eram vivos, inovadores e sexy. A que grupo pertenceria Max?
À primeira vista, Max agia com timidez. As pessoas esqueciam que estava lá,
de tão reservado que era quando chegou. Mas isso durou até a sessão de
brainstorm sobre a reestruturação de um hotel sofisticado nas proximidades
da estação de trem. Thalberg queria sugestões de todos os funcionários.
Na equipe, estudaram a fundo o briefing. Os colegas se debruçavam sobre
o público-alvo e a estrutura etária, sobre análises de mercado e as mais novas
pesquisas sobre os efeitos das cores e tendências no setor hoteleiro. Um
colega teve uma ideia ousada demais: quebrar o lobby acarpetado e
reconstruí-lo com um projeto claro de linhas retas. Foi quando a música soou.
Max havia levantado e posto um CD no computador.
– É preciso desenvolver um sentimento para o ambiente antes de botar
tudo no chão – explicou-se, sem qualquer constrangimento.
Em vez da teoria cinzenta, uma música suave e melancólica flutuou pelo
estúdio. Um contrabaixo ao fundo, à frente saltavam toques de piano leves
como pena. Um colega dava batidinhas no relógio, os estagiários se
cutucavam sob a mesa de trabalho, rindo baixinho. Se Max não fosse filho do
chefe, saberiam claramente que era perda de tempo e diriam na cara.
Kiki mergulhou na música. A canção soava como piso molhado, como
noite solitária. Soava como uma mulher que, após uma noite inteira dançando
descalça, flutuava pelo lobby do hotel, balançando nas mãos sapatos de salto
alto, pedindo o último drinque no bar. A melodia era melancólica e, mesmo
assim, especialmente alegre.
Atônita, Kiki olhava para a pilha de papéis sobre a mesa. Por catorze dias
trabalhou lado a lado com Max, sem percebê-lo de verdade. Apenas naquele
instante ela viu que o rapaz desproporcional transformara-se num homem
bonito, vestido de forma bem casual, como se quisesse deixar claro que não
se importava mesmo com o dinheiro de seus avós e com as caras camisas sob
medida de seu pai. Pela postura, percebia-se que deixara num canto o
violoncelo comprado pela mãe e, em vez disso, praticara esportes. E ainda
tinha senso para a música.
Kiki entendeu o que Max queria expressar com a música. A canção
capturava perfeitamente a antiga atmosfera que tornava o hotel único. Será
que a solução seria varrer tudo aquilo? Era um apelo sem palavras para, na
transformação, ampliarem o charme mórbido e misterioso que o hotel
emanava.
– Que música foi essa? – perguntou, quando os últimos toques soaram na
sala e o último estagiário tinha voltado para o seu próprio computador.
– Jazz sueco – explicou Max. – Um vestígio do verão.
Kiki não precisava de outras explicações: eram os infelizes amores de
férias que se materializaram na música. Ela também podia cantar uma canção
sobre isso. Uma dos Poppys, por exemplo.
Quando buscou na mesma noite no YouTube por Jan Johansson – Visa
från utanmyra –, e ouviu a música uma segunda vez, ficou claro por que a
mulher no hall do hotel daquela noite estava tão feliz: provavelmente
encontrara sua alma gêmea na festa que acabara de deixar.
Kiki sorriu discretamente pelas lembranças, até perceber que Caroline,
marchando ao lado dela no caminho peregrino, a observava com atenção.
Não disse nada. Mesmo assim, Kiki sentia-se obrigada a dar uma explicação:
– Sim, eu sabia quantos anos ele tinha quando tudo começou. Não, os
problemas não se resolvem sozinhos. Sim, você tinha razão – Kiki tagarelou,
apressada.
Caroline ficou boquiaberta em face da reação ríspida:
– Ninguém te acusou de nada, Kiki.
–Para você tudo parece tão fácil – Kiki elogiou Caroline. – Você tem uma
carreira, filhos, um bom casamento.
Caroline virou-se. Teria mesmo algo a dizer sobre o assunto “Philipp”.
– O Dr. Seitz viajou para uma especialização na Associação dos Médicos
Domiciliares – explicou a recepcionista quando ela ligou naquela manhã.
– Como assim?
– Sempre acontece próximo ao dia 15 de junho, Sra. Seitz. Há dez anos –
completou a recepcionista, não sem um tom de acusação latente na voz. – Ele
deixou lembranças e disse que entra em contato assim que voltar.
Philipp havia ligado no dia anterior para a recepcionista, mas não para a
própria mulher? Provavelmente porque era uma ligação local. Philipp sofria
de uma grave fobia de taxas telefônicas. Desde que, sete anos antes, fora
incomodado durante férias na Itália por uma paciente neurótica e precisou
pagar centenas de euros de conta, ficou convicto de que ligações para celular
no exterior levavam à ruína e que as empresas telefônicas eram bandidas, que
as pessoas tinham de boicotar em todas as circunstâncias. As diminuições nas
tarifas passaram despercebidas. Philipp utilizava seu celular apenas em caso
de emergência absoluta. Ou seja, nunca.
– Caroline tem mesmo sorte com o marido. Philipp nunca foi tão
dependente como Frido – concordou Eva, buscando ar para respirar. A
caminhada ficava cada vez mais pesada para ela.
As amigas tinham razão: Philipp cozinhava, fazia compras e sabia onde
estava o aspirador de pó e qual era sua utilidade. Levava suas camisas para a
lavanderia e também levava os ternos de Caroline. Somente o quesito
telefonar não era seu forte.
Caroline irritou-se com a história do seminário e com o comentário da
recepcionista. Não conseguia entender. Será que não sabia que ele iria para o
tal curso? Por que estava com a cabeça no tribunal e com as pernas na
peregrinação? Provavelmente ele achou o seminário tão normal que nem
pensou que fosse preciso informar. Ela já estava mesmo viajando.
Ela deixou os elogios de Eva e Kiki em seus lugares. Em vez de falar sobre
seu casamento e a fobia telefônica de Philipp, preferiu mudar de assunto:
– Que crime Max cometeu para você ficar tão brava com ele?
– Ele queria me apresentar para os pais dele. No golfe de domingo –
explicou Kiki num tom dramático.
Caroline gargalhou:
– Isso é o que eu chamaria de real motivo para separação.
– Não há nada para oficializar. Nem mesmo para o pai dele. Foi um caso,
um erro bobo.
– Max parece ver as coisas de outro jeito – comentou Eva ao se virar. Kiki
e Caroline seguiram o olhar. Max tinha parado e caminhou calmamente na
direção de Judith, que mostrava para ele a foto de Arne. Ela explicou,
gesticulou e riu. Judith parecia tão solta como nunca mais se vira.
– O que Max está fazendo? – perguntou Kiki, irritada.
– Está fazendo o que tentamos em vão fazer há meses: alegrando Judith –
reconheceu Caroline.
De fato, lá atrás ouviam-se risos contentes.
– Ele não pode fazer isso – protestou Kiki.
– Judith parece feliz quando consegue falar de Arne com alguém que não
vai perguntar nada sobre o diário – retrucou Eva.
Seria melhor não ter dito aquilo, pois de imediato saiu do ritmo e perdeu o
fôlego. Caroline a olhou de cima a baixo, crítica.
– Logo melhora – suspirou Eva. Multitarefas de peregrinação eram demais
para ela. Tinha de fazer apenas uma coisa: andar ou falar.
– Max parece legal – comentou Caroline.
– Ele tem 23 anos – interrompeu Kiki. – Quando Max nasceu eu tinha 13 e
dei meu primeiro beijo de língua. No Robert. O beijo mais nojento da minha
vida. Precisei de um fim de semana inteiro para me recuperar daquele
encontro molhado. Passei meu primeiro trauma de relacionamento enquanto
Max berrava pela chupeta.
Eva apenas riu.
– Quem liga para diferença de idade hoje em dia, Kiki? – retrucou
Caroline, balançando a cabeça. A resposta de Kiki veio como um tiro de
pistola:
– Eu! Eu ligo. Sou muito conservadora.
Mesmo sem falar, Eva não conseguia mais se manter no mesmo ritmo das
amigas. Depois de Fontfroide, elas enfrentavam a longa subida para o Mont
Grand. Os 145 metros de altura exigiam tudo de Eva. Ficou mais lenta até
restar apenas a força para fingir que era de propósito.
32
Eva ficou para trás. Caroline e Kiki mantiveram o mesmo ritmo, sem
interromper a conversa. Por um momento, Eva emparelhou com Judith e
Max. Fiapos de conversa chegavam aos seus ouvidos.
– Arne e eu nos conhecemos em uma livraria esotérica – contou Judith. –
Ele me observou o tempo todo. E então veio até mim com um livro na mão.
Este combina com a senhora, ele disse. E tinha razão.
Eva sentia-se culpada quando percebeu como a voz de Judith soava alegre.
De uma tacada, tomou consciência de que Max havia feito algo que elas
nunca mais tinham conseguido: ouvir com atenção quando falava de Arne.
De forma subliminar, esperavam que Judith, depois de tantos meses após a
morte de Arne, encontrasse outro assunto. Com Max, as coisas tinham o ar da
novidade. Não sabia de nada. Nem de Arne, tampouco da duração adequada
do luto, e muito menos do diário.
– A senhora teve logo certeza de que ele era o cara certo? – quis saber ele.
Judith ficava tão emotiva com as velhas histórias que Max ganhou
espontaneamente seu coração.
– Vamos deixar a senhora de lado, está bem? Meu nome é Judith.
– Max – disse ele.
Seu olhar pairou na direção de Eva, que estava exausta do mesmo jeito.
Era impossível para ela falar. Conseguia apenas levantar o braço. Max, que
havia uma hora estava envolvido nos segredos das mulheres de terça-feira,
também sabia disso.
– E a senhora é Eva, não é mesmo?
Eva concordou com a cabeça. Ela imaginou o que Kiki e as outras teriam
dito para apresentá-la. Como era possível descrevê-la? Ela mesma não sabia:
com quatro filhos em cinco anos e meio, ela mesma se perdeu entre cama,
berço e máquina de lavar. E continuava ficando para trás. Também não
conseguia acompanhar o ritmo de Judith e Max.
– Eu acho…
O que ela achava? Que estava jogando pérola aos porcos. E lembrou mais
uma expressão animal de David cuja origem eles precisavam pesquisar. Essa
foi fácil, mas o filho estranhou quando ela correu para pegar a Bíblia.
Mateus, capítulo 7, versículo 6: não deiteis vossas pérolas aos porcos.
Muitas vezes era como se sentia em casa, quando servia apenas para
organizar, lavar, levar e trazer. Jogando sua vida fora.
“Acho que preciso parar” teria sido a resposta mais sincera.
Por trás dela aproximava-se o sacolejar penetrante da mala de Estelle. Em
ritmo contínuo, ela passou por Eva.
– Me desculpe, Eva. Se eu brecar, saio do meu ritmo harmônico.
E logo Estelle foi embora. Eva tinha conseguido novamente. De novo,
escorregou para a última posição. Um lugar que ela não deixaria mais nos
próximos dias.
33
–Ai. Ai. Ai! – ralhava Estelle. Cada passo era um sofrimento. Não eram os
pés que a atormentavam. Para sua própria surpresa, havia encontrado um
ritmo que lhe parecia fácil e correto. A caminhada permanente tinha se
transformado em estado normal. Precisava apenas de um pouco de diversão.
Para Estelle, isso significava ter alguém com quem conversar.
– Sozinha aqui comigo está tão chato – admitiu, e cumprimentava todo
peregrino, andarilho ou pessoa em férias que cruzava seu caminho e dava a
entender que dominava a língua alemã. Com muitos compartilhou o caminho
por mais de hora.
Estelle amava histórias de vida. Ficou especialmente fascinada com um ex-
ministro grisalho que peregrinava porque, após dois mandatos, tinha sido
preterido não apenas pelo partido, mas também por sua família.
– Por oito anos não parei em casa. Nem o cachorro reconheceu que eu
fazia parte da matilha – lamentou-se. Infelizmente, ela perdeu o ministro de
vista numa pausa para comer.
Em vez disso encontrou, num mercadinho 8 à Huit de um vilarejo, onde
era possível comprar algo para comer e beber mesmo tarde da noite, um
corretor de seguros que tirou uma folga dos destinos de seus clientes
infelizes. Na esteira deste veio Hanna, cabeleireira recém-divorciada, que
tinha ideias claras daquilo que esperava da peregrinação: queria encontrar
Deus ou um novo marido. Da forma entusiasmada com que Hanna falava dos
homens, para ela não havia diferença entre um ou outro. Estelle se
arrependeu, pois nunca saberia o que acontecera com os dois. Em uma
bifurcação do caminho, desapareceram sem deixar rastros. Com mais
frequência eram vistos, contudo, casais de professores do centro-oeste da
Alemanha que estavam de férias. Todos já haviam passado dos 50,
ensinavam alemão e geografia e traziam rolos de papel higiênico e folhas
impressas com indicações artístico-históricas consigo. Encontravam-se,
apresentavam-se, conversavam por dois quilômetros coisas muito pessoais e
separavam-se com um sucinto “Tenha um bom-dia”.
Sou a única peregrina que não sofre de uma crise existencial fundamental,
constatou Estelle após alguns dias. Não contava sequer com uma ínfima crise
conjugal. Seu marido tinha muitas qualidades. Conseguia ganhar dinheiro,
comprar, pendurar, retirar e mudar quadros de lugar, tapar buracos
desnecessários de furadeira, estacionar o carro novo e levar café da manhã na
cama. E ele ainda ria de suas piadas. O que mais ela queria?
Talvez por isso as pessoas façam a peregrinação felizes, pois percebem
que os outros estão muito piores, supôs.
Não era assistir à sua própria vida, era a peregrinação que a levava à
loucura. Era a mala que ficava presa em qualquer desnível. Eram as mãos que
queimavam. Na mão direita ficaram visíveis os primeiros indícios de uma
bolha de sangue.
Todo defensor público conhece esse momento no qual se ajuda alguém que
no fundo se considera culpado a conseguir a liberdade. Stefanie Bauer
marcou sua primeira vez. Sem Philipp, teria enlouquecido. Como ele poderia
entender seu desespero se ela não tivesse contado dos ferimentos de Nele, do
corpo magrinho, de como Stefanie agia com indiferença ao falar da filha.
Philipp acompanhou o processo. Tinha todo o tempo do mundo, pois o
primeiro artigo ruim, que tratava de Caroline e da questão de ela poder
defender um monstro, deixou sua sala de espera vazia.
O caso de assassinato impune de Nele Bauer permaneceu como uma ferida
aberta em sua biografia. Seus filhos cresceram e tomaram seus próprios
caminhos profissionais. Josephine seguiu os passos do pai e estudou
medicina, Vincent mantinha uma loja virtual próspera na qual comercializava
camisetas e pulôveres.
Após o enterro de Arne, Caroline esteve em seu túmulo. O fato de a última
morada de Nele também continuar a ser cuidada com carinho após tantos
anos a tranquilizou. Caroline tinha certeza de que as flores frescas da
primavera e o novo ursinho de pelúcia não vinham de Stefanie Bauer.
O estranho foi que Nele deu um impulso decisivo em sua carreira. Mal
completara 30 anos e era a advogada criminal mais conhecida de Colônia. No
fim, foram os artigos maliciosos que a incentivaram a continuar. Com cada
artigo sarcástico crescia sua resistência interior. Se o populacho irado, que a
cobria de ameaças e boicotava o consultório do seu marido, ficasse
responsável pela justiça, seria o início do fim do Estado de Direito. Seu
casamento sobrevivera à tempestade, bem como o consultório. E agora
Philipp vinha para cima dela com seu dever de sigilo.
– O que há com você? – perguntou, embasbacada.
– Você está vendo fantasmas – respondeu Philipp. – Tem muitos
criminosos ao seu redor mentindo para você.
Quantas vezes Caroline tentou se convencer disso nos últimos quilômetros.
O sentimento inquietante no estômago permanecia:
– Tem algo errado com o diário de Arne.
– E se tiver, o que você tem com isso? – o marido tentou encerrar o
assunto.
– Judith é minha amiga. Quero ajudá-la.
– Arne morreu – Philipp lembrou Caroline. – Deixe as velhas histórias em
paz, Line.
Ficava furiosa quando Philipp a chamava de Line. Fazia isso apenas
quando esquecia de pegar a tempo as coisas dela da lavanderia, embora
tivesse prometido de pés juntos, ou quando se candidatava para o plantão,
embora soubesse que era aniversário da tia Gertrude no mesmo dia: nessas
situações, ele a chamava de Line.
– Se você souber de algo, precisa me contar – insistiu Caroline.
A resposta dele afundou-se no barulho que cercava Philipp. Eram vozes e
música.
– O que você disse? Está muito chiado. Onde você está? Estou tentando
falar com você há dias. Philipp! Philipp?
A ligação caiu. Caroline desligou e discou o número freneticamente.
Ocupado.
– Engraçado, as linhas telefônicas sempre caem quando a gente quer falar
algo com o marido.
Caroline virou-se. Estelle estava em pé, recostada a uma árvore. Nem se
deu ao trabalho de fingir que não estava ouvindo tudo.
– Você acha mesmo que Philipp sabe do segredo de Arne? – quis saber,
sem cerimônia.
Caroline deu de ombros. Devia haver um motivo convincente para Philipp
invocar diante dela o dever de sigilo. Nunca tinha acontecido antes. Por isso,
mal podia imaginar que os maridos ficaram próximos com a doença terminal
de Arne. Tão próximos que Arne revelou coisas que ele havia escondido até
mesmo de Judith. Arne e Philipp eram tão diferentes.
– O cara fala muito – Philipp comentou após o primeiro encontro. – E
sempre sobre coisas desinteressantes.
Philipp era tímido demais para conseguir dividir com Arne ideias
nebulosas sobre Deus, o mundo e tudo que pairava entre eles. Nunca
ocorreria a Arne ler o futuro para Caroline nas nuvens. Preferia confiar em
seus números trimestrais, na seção de economia do jornal Frankfurter
Allgemeine e num consultor fiscal sério.
– A realidade não é calculável – Arne costumava afirmar. – Mesmo a
altura da torre Eiffel varia em até quinze centímetros conforme a temperatura
externa.
Philipp poderia responder algo sobre a expansão regular do aço, mas temia
que Arne tivesse mais uma resposta ambígua.
E esses dois homens se aproximaram nos últimos meses de Arne? Caroline
tinha mesmo a impressão de que Philipp evitava Arne, pois era seu paciente.
Sentia-se culpada, pois tinha pedido a Philipp para ver o prontuário médico
de Arne. Isso foi após o hospital ter desistido dele. Philipp também
acompanhou Arne quando não havia mais o que fazer além de administrar
analgésicos, acompanhá-lo em seu caminho difícil e apoiar Judith.
– Arne nunca foi assunto na nossa mesa de jantar – confessou Caroline
com honestidade. Por que seria? Caroline não precisava perguntar a Philipp
sobre Arne. Podia ler nos olhos úmidos de Judith como estava a saúde dele.
Nessa época, Philipp se distanciou.
– Tive consultas o dia todo, à noite não atendo – dizia ele como desculpa
quando evitava os convites para visitar o casal. Odiava discutir descobertas
laboratoriais em jantares agradáveis com amigos. Mas talvez esse isolamento
tivesse um motivo totalmente diferente. Arne confiara algo a Philipp? Algo
que o desagradava tanto que ele se afastou de Arne e Judith? Por que não
contou nada?
– É esse diário – concluiu Estelle. – Enquanto não soubermos o que tem
nele, vamos tatear no escuro.
Caroline perguntou-se se neste caso tatear no escuro não era mais
saudável. Era mesmo importante saber qual segredo Arne levara para o
túmulo?
Se olhasse para trás, compreenderia que a conversa estranha com Philipp
fornecera uma peça importante para o quebra-cabeça, mas não queria ainda
formar um quadro com as outras peças. Permanecia isolada, um final falso.
Por enquanto.
40
A única que dançava contente e recuperada pela cozinha era Eva. Ficou claro
que estava flertando com Jacques, que servia vinho para ela várias vezes. Era
um desses vinhos que, no máximo, seria usado para substituir o vinagre no
âmbito normal do lar. Na cozinha de Jacques, o gosto era divino, exatamente
como a comida que haviam feito juntos, num trabalho de horas a fio. Jacques
insistiu em servir pessoalmente a primeira colher a Eva.
– O segredo para um cassoulet divino está na escolha dos legumes. Minha
avó preferia os feijões brancos lingot – sussurrou Jacques enquanto levava a
colher até a boca de Eva. As bochechas dela ficaram em brasa, pelo calor da
cozinha, por tanto vinho, pelo homem ao seu lado. Eva, sempre responsável
pelo bem-estar culinário, visivelmente aproveitava o fato de Jacques cozinhar
para ela. O prato exuberante de feijões e carne era totalmente irresponsável
no quesito calorias. Sua promessa de abdicar da carne de porco fora
esquecida havia muito. Da mesma forma, esquecera tudo que fazia parte de
sua vida, mesmo as amigas. Aquele era seu dia e não deixaria que nada nem
ninguém estragasse a noite.
Ela quis se levantar quando Eva empurrou para suas mãos um prato de
cassoulet. A fome de Estelle era maior que sua curiosidade.
– Não diga que você ficou o dia todo na cozinha – surpreendeu-se Estelle.
Jacques não conseguia elogiar o suficiente sua ajudante:
– Eva ajudou com tudo: deixar os feijões de molho, cozinhar, retirar o
bouillon. Cozinhar as coxas de pato na gordura, refogar as costelas de porco,
fritar as linguiças com alho, acrescentar toucinho e o joelho de porco.
– No fim você colocou os feijões e as carnes na panela de barro, despejou
bouillon sobre tudo e levou ao fogo – completou Eva, solícita.
– E isso levou o dia todo? – admirou-se Estelle. Na verdade, seu
pensamento estava naquilo que aconteceu entre os dois além do cozinhar
juntos. No entanto, em seu estado altinho, Eva estava imune contra qualquer
insinuação.
– Claro que não. Você precisa cuidar do cassoulet. Durante o cozimento,
forma-se uma crosta escura. Você deve rompê-la com cuidado, pois não quer
esmagar os feijões. O cassoulet precisa ter sete crostas – explicou Eva como
tinha aprendido.
Jacques botou o boné vermelho da associação na cabeça de Eva.
– Bem-vinda ao clube – disse Jacques, solene. – Pode se orgulhar, viu.
Eva deu risadinhas inseguras. Não sabia como lidar com a estranha atenção
masculina. Ao menos ninguém conseguia ver que enrubescera. O rosto já
estava vermelho pelo calor da cozinha e por muito vinho. Kiki fotografou a
cena memorável.
– Tem gosto, tem gosto de… – Eva buscou uma comparação coerente,
desistiu rindo e deu mais uma garfada. Comia junto com as amigas e com
apetite irrefreável. Apenas Judith, como de costume, remexia a comida.
– Posso fazer um omelete para você – ofereceu Jacques.
Judith concordou com a cabeça, preocupada.
– Omelete, claro. Obrigada.
Havia dias não se alimentava de outra coisa.
Elle n’aime pas ce qu’on mange ici, resmungava o pessoal dos restaurantes
que elas visitaram. “Ela não gosta do que comemos aqui.” De pronto, a
pessoa transformava-se num estranho quando não comia nem carne nem
peixe. Restava apenas omelete.
O remexer infeliz de Judith dava nos nervos de Estelle. Era uma penitência
especial que Judith se impunha? Autoflagelação? Ou somente um grande
teatro? Como poderia ter a oportunidade de dar uma olhada no diário se
Judith não se deixava distrair pela comida e pela companhia? Como se fosse
proibido desfrutar de algo que Arne não podia mais experimentar.
Após duas, três bocadas por educação no omelete, Judith levantou-se
calada, pegou o diário e a mochila e desapareceu.
– Isso não pode continuar assim – sussurrou Estelle para Caroline. –
Precisamos fazer algo.
Não ficou claro o que passava pela cabeça de Estelle.
41
Por que as palavras não queriam sair da boca? “Rogai por nós, pecadores.”
Em vez disso, as lágrimas riscavam seu rosto. Uma mão fria pousou em seu
ombro. Judith assustou-se. Um homem havia se separado do grupo francês e,
despercebido, aproximou-se.
– Posso fazer algo por você, irmã? – falou ele. Sua voz penetrante soou
estranha. Judith balançou a cabeça.
– A única pessoa que poderia me ajudar está morta.
– A peregrinação é como uma guerra consigo mesma – respondeu o
homem. – Sangue, suor e lágrimas. E apenas você pode ganhar a guerra.
Judith não tinha certeza se havia algo para ganhar.
– Meu marido morreu. Eu já perdi.
A resposta do peregrino veio rápido e cortante como um estalo de chicote.
– Não tem a ver com ele, mas com você e seus erros.
Judith virou a cabeça para o lado. Quem era esse consolador obscuro? Pelo
véu das lágrimas, reconheceu um homem pequeno, atarracado, cabelos ruivos
bem curtos. Tinha olhos azuis e profundos, fundidos nas pupilas e cristalino.
Não era apenas a mão fria que tocou em seu ombro que a fazia arrepiar. Eram
esses olhos nos quais não se encontrava apoio. Afogava-se neles.
Instintivamente, Judith deu um passo para trás, a mão caiu de seu ombro.
– Meu luto é falso. Minha peregrinação, falsa. Por que todos acham que
podem criticar minha vida?
Irritada, fulminou o homem misterioso com palavras estranhamente
bombásticas. O peregrino permaneceu impassível com a explosão. Não se
moveu de sua tranquilidade.
– O difícil não é o caminho. O difícil é a pessoa se encontrar consigo
mesma.
Ele se aproximava com cada palavra. As sombras das velas davam à sua
expressão algo demoníaco que a apavorava.
– E a verdade que a pessoa encontra em si – continuou, com o rosto
contorcido –, nem sempre é agradável. Sem confissão não há salvação.
Judith sentiu-se incomodada. Que eram aqueles alertas obscuros? Queria
apenas ir embora.
– Não tenho ideia do que o senhor está falando – terminou, com medo, a
conversa aterrorizante. O peregrino considerou a postura defensiva a prova de
que tinha razão.
– Você sabe, irmã. Apenas não quer admitir.
Chega. O que esse cara está pensando? O que ele sabia dela? Não
precisava ouvir aquelas coisas. Judith saiu apressada da igreja.
– Você pode fugir de mim – as palavras soaram frias em suas costas. –
Mas não pode se esconder da verdade porque ela está dentro de você.
Longe. Apenas longe. Longe desse homem diabólico com suas profecias
funestas.
Com um empurrão, Judith abriu com força a porta pesada da igreja. Um
golpe de vento frio arrebatou as chamas das velas e as apagou com um golpe.
O peregrino nefasto desapareceu engolido pela terra. Ouvia-se apenas o
sermão fantasmagórico.
Eva tentou imaginar que tipo de vida Jacques levava fora do trabalho. Era um
santo que caíra do céu ou tinha uma vida totalmente real? Talvez vivesse com
seus pais sob o mesmo teto. Ativistas da paz de esquerda, grisalhos e
curvados, que aqui e ali fumavam unzinho escondidos. Ou tinha sua própria
família? Mulher e filhos que naquele dia, por acaso, visitavam os avós? Eva
não perguntou e Jacques não contou nada. Passaram o dia juntos, sem
passado e sem futuro. Jacques parecia ver de outra forma.
– Por que você não fica uns dias conosco? – perguntou para Eva, quando
finalmente ela entrou na fila. – Poderia me ensinar o que vocês cozinham lá.
– Carne assada da Renânia – propôs Eva.
– Difícil? – perguntou Jacques.
– Demorada.
O rosto de Jacques brilhou:
– Perfeito.
Seu interesse acariciava o ego de Eva. E, no entanto, um casinho de férias
era a última coisa que ela buscava. Sabia qual era o seu lugar. Com Frido, as
crianças, as amigas. Não estaria mais ali quando no dia seguinte, ao meio-dia,
ele voltasse de sua ida ao mercado.
– Vim com minhas amigas e vou continuar com elas. Agora eu consigo.
Saint Jacques me salvou.
Eva sorriu para ele, tímida. No seu entendimento, isso significava uma
declaração de amor impetuosa. Mas ninguém precisa viver todo amor. Pode-
se mantê-lo quieto no coração. Lá, onde ele não fará mal.
Como se tivesse imaginado que a despedida poderia vir mais rápido do que
esperava, Jacques puxou um antigo cartão-postal que mostrava o Auberge de
la Paix da época do movimento Paz e Amor. No verso, anotou para Eva a
tradicional receita de cassoulet.
– A academia ficaria feliz se você levasse a receita para casa.
A voz subiu pelas costas dela. Trêmula, abriu a carteira para colocar o
cartão. Nos bolsos de plástico reluziam os retratos da família. Jacques pegou
as mãos de Eva, puxou-a para si e a beijou:
– Bon voyage, Eva.
– Obrigada por tudo – sussurrou antes de desaparecer rapidamente no
quarto. Estava satisfeita com o dia e com a receita que sabia estar segura na
carteira, como lembrança e alerta. Ainda tinha o beijo nos lábios. Agora sabia
o gosto do cassoulet. Tinha sabor de recomeço.
Após o ataque com faca, ela fez um curso de autodefesa. Juntamente com sua
filha Josephine, da qual foi exigido por decreto materno que fizesse um curso
de defesa pessoal. O curso chegou a um ápice inesperado de sua história
comum: entre cotoveladas, joelhadas e pisadas violentas no peito do pé,
panturrilha, joelho, coxa e genitálias, restou bastante tempo para mãe e filha
conversarem e rirem. Deveriam ter pedido a Fien muito antes para entrar no
curso de reciclagem. Agora era tarde. Não havia uma maneira sem risco de se
defender. Caroline tentou lembrar onde estava o canivete, quando uma voz
feminina sussurrou algo.
– Preciso te falar uma coisa.
O agressor noturno era Estelle. A luz que entrava do corredor pela
frestinha na porta do dormitório bastava para Caroline ver que Estelle estava
com algo nas mãos. Era o diário de Arne.
44
Estelle provou que seu sentido para a cena perfeita não a tinha abandonado
nem na França. Exageradamente devagar e inconveniente, desenterrou os
papéis do bolso da calça.
– Lembra das críticas dos restaurantes?
– Dos caranguejos de água doce no vermute? Claro. Tanto que você
encheu com eles.
Estelle reagiu melindrada:
– Somos um grupo. Todos podem dizer suas ideias. E eu dou valor ao fato
de meu corpo, com o qual eu gasto tanto tempo, esforço e dinheiro…
– Diga logo o que é – interrompeu Caroline, rude.
Estelle respirou fundo:
– O texto, essas formulações pomposas… – novamente ela fez uma pausa
dramática.
– Estelle!
– Arne copiou – Estelle deixou a bomba cair.
– Como assim copiou?
– Esse texto do diário é idêntico ao das críticas de restaurante da internet.
Agitada, Estelle pousou o dedo indicador em um local determinado.
– Leia você mesma.
Caroline pegou a folha. As letras dançavam diante dos olhos.
– O que a terra onde perambulei metro a metro produz em delícias.
Nenhum outro lugar tem gosto tão autêntico quanto Jerôme.
Arne nem se dera ao trabalho de mudar os nomes.
Estelle leu agora em coro com Caroline:
– A vida com Deus e como Deus na França consegue aqui um novo
sentido. Quando as ervas de garrigue se unem ao delicado azeite, entende-se
que delícias modestas podem levar ao reino dos céus.
Estelle interrompeu.
– Encontrei ainda outros lugares – continuou ela. – A história com os
monges que o receberam de braços abertos: tudo roubado. Arne Nowak
plagiou seu diário.
Caroline ficou sem palavras. Apenas as gotas eternas do chuveiro soavam
no cômodo. O frio que os azulejos emanavam rastejava pelas suas costas
acima. Teria sido melhor vestir uma jaqueta, mas não estava preparada. Nem
para o chuveiro, nem para o frio, tampouco para aquilo que Estelle tinha
revelado. Justamente Arne, que conseguia ler romances inteiros nas nuvens,
lançou mão em seu diário de fórmulas pré-fabricadas?
– A peregrinação de Arne é uma invenção? – surpreendeu-se Caroline.
Cada uma carregava sua própria mala. A de Kiki chamava-se Max e andava
sozinha. Ele não a importunava, não exigia nada.
– Gostaria que você soubesse que estou aqui – justificou-se ele, sucinto.
– Você não percebe que dá nos nervos das minhas amigas? Você perturba!
– Kiki jogou na cara dele.
– Não – disse Max.
Kiki sabia que ele tinha razão. Max tinha se integrado perfeitamente ao
grupo de peregrinas. E, para Judith, era um importante companheiro de
conversas. Em segredo, Kiki admirava a paciência com que Max ouvia as
histórias de Judith. Sua curiosidade parecia sincera. Suspeitava que ele
soubesse totalmente por acaso de uma porção de coisas sobre o passado de
Kiki.
– Por quanto tempo mais você vai fingir que Max não está conosco? Você
precisa falar com ele – pressionou Caroline.
Kiki tratava Max como o vento. Ele aguentava esse tratamento com
sorrisos complacentes e bom humor inabalável. Kiki ficava completamente
sobrecarregada com a situação, pois estava tão ocupada em ignorar Max que
não conseguia chegar a nenhum pensamento claro. Durante dias não
conseguiu colocar um risco no papel.
Mesmo assim, tudo corria bem: a viagem de peregrinação deu a ela a
chance única de voltar às origens de sua profissão. Quantos artistas
encontraram no sul da França sua verdadeira grandeza: Cézanne, Gauguin e
Van Gogh mostraram como capturar as cores claras do sul. Foi um presente
poder trabalhar ali.
Você só fala bonito! Mas não consegue nada, lamuriava-se uma voz
histérica no seu íntimo. Você não faz seu trabalho. Como no estúdio. Você
teria terminado muito antes em Colônia. Em vez disso, você nem abriu o
catálogo sobre o tema acessórios de casa.
Está certo, confessou Kiki, sem rodeios. Não era do seu feitio discutir com
sua voz interior. Por que ficar discutindo? Sabia que a voz tinha razão. Mas
havia uma diferença essencial entre elas: a voz contava apenas com os
fracassos. Kiki, exclusivamente com as possibilidades: Todas as agências
compraram o mesmo catálogo. Os designers o aprendem de cor e todos
chegam aos mesmos desenhos.
Você e suas desculpas, Kiki. Como sempre, Kiki, a voz continuava a se
lamentar. Você deixou a última possibilidade fugir, Kiki. Não acredita mesmo
que conseguirá em sete dias, o que outros…
Quatro dias. Eu ainda tenho quatro dias, Kiki interrompeu a voz.
Você desperdiçou seu tempo com Max em Colônia. Perde tempo aqui. E
agora é tarde demais, a terrorista íntima forçava imagens cada vez mais
terríveis. Era bom que Kiki não pudesse vê-la. Provavelmente tinha olhos
arregalados pelo pânico, agitava nervosa os braços e tinha problemas
cardíacos.
No fim você não tem nada. Nem carreira, nem homem, nem nada. Era sua
última chance.
– Cala a boca – Kiki pôs a censora interna na linha. – Seu blá-blá-blá idiota
não ajuda a gente em nada.
– Eu não disse nada – defendeu-se Max, surpreso. Kiki estava tão
mergulhada em seu monólogo que não percebeu Max bem perto dela.
Estelle, que mostrou talento de surgir no local mais interessante na hora
certa, se intrometeu:
– Não ligue, Kiki. Nesta região é normal que as pessoas ouçam vozes. Em
geral elas murmuram algo como “Eu sou a Imaculada Conceição”.
Caroline puxou Estelle:
– Kiki e Max não precisam da sua moderação ao vivo – repreendeu. Seu
olhar para Kiki tinha uma mensagem certeira e no seu rosto ela podia ler: “É
agora. Faça logo.”
Ela precisava. Ela devia. Ela podia falar com Max. Agora. Mas como? Como
podia dizer de uma vez por todas que não tinham futuro? Kiki tinha o melhor
trabalho do mundo, estava bem perto do sucesso. Não podia encarar nenhum
erro. Nem a Max.
– Como alguém pode ser tão teimoso – ralhou com o jovem.
– Não sou teimoso – respondeu Max, tranquilo. – Apenas sei o que faz
bem para mim. Ao contrário de você.
Kiki buscou ar.
– Com 23 anos eu tinha três casos em uma semana. Com 23 anos eu não
sabia de nada.
Max fez seu gracejo:
– Por isso esperei você crescer.
Como assim? Max não era apenas cabeça-dura. Era descarado.
– Eu não te amo – Kiki disse com firmeza. Nem mesmo a descompostura
rude levava Max a uma reação raivosa. Ele sorriu, atrevido. Kiki precisou
acrescentar:
– Você entendeu? Eu não te amo.
– Você está mentindo para você, Kiki. Para nós.
Não funcionou. Kiki deixou Max para trás e juntou-se com passo rápido a
Caroline e Estelle, que a receberam com olhares questionadores.
– Discussões não são para mim. Prefiro me afastar – comentou ela.
Tinha algo realmente mais importante a fazer do que dispensar Max. Na
pausa seguinte, retirou da mochila seu caderno de esboços com grande alarde.
Deixou-se desviar muito da criação por conta de Max. Naquele momento,
seguiu para a ordem do dia, que se resumia a um único ponto. Vasos. Agora.
Imediatamente.
Com vigor, enfocou os contornos toscos no papel e viu surgir uma
surpresa. Tudo que tinha visto nos últimos dias conectou-se numa imagem:
como se estivessem vivas, linhas e cores fundiram-se e formaram um modelo
filigranado, forjado harmonicamente na forma. Por dias, Kiki apenas viu,
espiou, cheirou e sentiu. Agora, o desenho apareceu sozinho no papel. Foi um
desses momentos mágicos nos quais parece que outra pessoa conduz o lápis.
Muitos colegas chamariam aquilo de “inspiração divina”. Kiki não conseguia
confiar nesse conceito. As pessoas precisavam escavar ideias. Com
frequência eram necessárias centenas de horas tristes e vãs de ateliê antes de
surgir uma imagem interna do nada. Um desenho que apenas naquele
momento se podia assinar. Não era milagre, era trabalho duro.
A risada ressoou. Kiki olhou para cima. A realidade colocou-se entre ela e
seu bloco. Na forma de Max. De novo.
47
Caroline riu. Ainda era cômico como Kiki se contorcia. Há muito Caroline
percebera, todas as amigas sabiam: Kiki estava apaixonada. E não fazia outra
coisa nos lindos e longos dias a não ser negar o óbvio. Ela se perguntava
quando a própria Kiki descobriria.
Distraída, Caroline recostou-se. As cinco sentaram-se nas pedras
acidentadas de um leito de rio erodido que corroía profundamente a
paisagem. Era um momento perfeito. Os problemas do início ficaram para
trás, Angles ainda estava à frente delas. Seria o instante ideal de parar o
tempo. Tentou apenas aproveitar, assim como Max fazia.
Com o torso nu e barras das calças enroladas, Max estava às margens do rio,
entalhava lanças e instruía Eva, Judith e Estelle na caça aos peixes.
– Pode-se ler no movimento da água quando uma truta está nadando. Você
precisa calcular o tamanho dela e mirar um pouco antes do peixe – explicou
Max.
Não fez um esforço exagerado para ser querido e aceito. Fazia aquilo que
lhe dava prazer e contagiava as pessoas com seu entusiasmo. Com isso, atraía
os olhares das peregrinas para si. E também o olhar de Kiki, que por trás de
seu papel não tirou por um segundo os olhos dele. Mesmo Estelle chapinhava
na água rasa e analisava com lança a postos se teria uma chance de sobreviver
na vida selvagem como autoprovedora.
– Onde aprendeu isso? – quis saber ela, impressionada.
– Em lugar nenhum. Li tudo isso. Karl May.
– Karl May? – comentou Estelle em voz alta para que Caroline também
pudesse ouvir. – Ele fingia apenas, como se tivesse vivido aquelas aventuras.
Inventou tudo aquilo que está nos livros – disse ela, colocando mais lenha na
fogueira.
Caroline perdeu o ar. Segredos eram moeda de troca para Estelle. Podia
contar em três dedos quanto demoraria para Judith perceber que Estelle
pegara o caderno escondido dela. Graças a Deus, Max fez um lançamento
naquele instante. A água espirrou, sob a superfície um espetáculo pagão. Um
peixe perfurado debatia-se por sua vida.
– Na mosca. Acertei na mosca – gritou Max. No tumulto pelo peixe
capturado, a observação delatora de Estelle afundou.
– Nunca tinha pegado um peixe. Nem unzinho – alegrou-se Max.
– Típico dos sulistas – brincou Estelle. – Seguem o dia devagar e então vão
descansar. Não é surpresa que é fácil pegá-los.
– Talvez Karl May tenha simplesmente pesquisado bem – gritou Judith,
empolgada.
Caroline ouvia com atenção. Será que Judith suspeitava de algo? Será que
sabia mais do que revelava? Resoluta, deixou as dúvidas persistentes de lado
e deu ordens a si: aproveite. Agora. Pare por um momento. O quanto der.
Angles estava longe. O início do verão era doce.
Pouco mais tarde, três peixes assavam em espetos de madeira sobre uma
pequena fogueira que acenderam com galhos secos entre pedras. Também na
peregrinação, o cuidado com os grelhados parecia ser coisa de homens.
Mesmo Eva, que todo verão convidava as pessoas para um grande churrasco,
entregou-se ao ócio. Ajudou a limpar os peixes e encher com as ervas que
havia colhido às margens do caminho. O resto ficou a cargo de outros.
Satisfeita, esticou-se ao sol e deixou que os outros cozinhassem.
– A refeição fica muito mais gostosa quando a gente se deixa surpreender –
suspirou, fechando os olhos. A cada dia Eva ficava melhor em não responder
a todo reflexo de ajuda quando se tratava de dividir tarefas.
Pouco depois, se deu conta de que teria sido melhor pedir aconselhamento a
Caroline, que poderia alertá-la dos bumerangues que são as mentiras e do
erro principal que a maioria dos mentirosos comete: pensam apenas no
momento de alívio e não naquilo que vem depois. Kiki não tinha um plano de
longo prazo.
Ela já havia se mostrado um caso perdido no xadrez. Como poderia
desenvolver estratégias para tantas figuras que se moviam no tabuleiro?
Tinha um panorama apenas quando perdia metade das peças com uma
abertura descabeçada. Em geral, estava exatamente a três jogadas do
naufrágio. Planejar estrategicamente não era para ela. Preferia se deixar
surpreender pelas consequências e ficava feliz assim. Dessa vez, exatamente
vinte minutos. Então, recebeu a fatura na forma de uma nova mensagem de
texto. Novamente em letras maiúsculas. HOTEL QUER RENOVAR
QUARTOS ANO QUE VEM. QUEM DE NOSSO PESSOAL VAMOS
COLOCAR NESSE PROJETO? Claro que Thalberg comprara um novo
celular e não tinha ideia de como digitar letras minúsculas.
“Um dispositivo do qual se precisa ler o manual de instruções não está
pronto”, ele gostava de ralhar. Pregava a simplicidade. No entanto, as
soluções simples nem sempre eram as melhores, como ficou claro naquele
momento.
– Meu pai tem a tendência de monopolizar as pessoas – comentou Max. –
A única possibilidade de fugir é se isolar de vez em quando.
Ele não fez o mínimo segredo de que se sentia exatamente daquele jeito e
que via como tarefa de Kiki responder também dessa vez. Ela estava na
estaca zero. Pior ainda: estava um passo mais próxima do abismo.
49
Eva não entendia mais a amiga. Havia horas Kiki se correspondia sob um
nome falso com seu chefe, que não desconfiava de nada.
– Max vai desistir quando perceber que nós dois não chegaremos a lugar
nenhum – justificou-se. – Ele volta para a faculdade e eu, para o trabalho.
Como se nada tivesse acontecido. Até lá, estou mantendo Thalberg de bom
humor.
Eva suspirou. Decidiu defender o lado de Max.
– Você quer acabar como eu? Durante minha vida, a frase que mais falei
foi “se ao menos eu tivesse”.
Kiki não parava de apertar as teclas do telefone:
– Eu também. Se ao menos eu não tivesse me envolvido com Max.
Mas essa não foi a ideia de Eva:
– Meus “se ao menos eu tivesse” foram a coisas que eu NÃO fiz. Ido para
Paris, apesar do Frido, trabalhado como médica, colocado Frido para fazer
trabalhos de casa também, exigido um quarto próprio, assaltado menos a
geladeira.
– Por que você não tenta com Max? – intrometeu-se também Caroline.
Kiki não percebia mesmo que Max era especial? Divertido, gentil e sexy. Era
insuportável testemunhar como Kiki renegava a si mesma. O que mais ela
queria?
– Caroline tem razão – reconheceu Eva.
– Agora pode parecer bom e correto. Mas como vai ser quando eu tiver 60
anos? – Kiki defendeu sua posição.
Lá atrás, Estelle se enfiou na conversa.
– Um marido mais jovem economiza cuidados maiores no caso de doença.
Elas tentavam convencer Kiki de todos os lados:
– Imagine, você saberia hoje quem estará com você aos 60. Porque sua
vida será previsível – alertou Eva.
“Assim como a minha”, ela evitou dizer. Kiki também entendera assim.
– Acho que você precisa de um amante, Eva – sugeriu Kiki.
Eva repeliu a ideia:
– Amo o Frido. Ele foi a melhor escolha que fiz. A questão é o que eu faço
dessa escolha. Não preciso de um amante. Mas talvez eu possa voltar a
aprender francês. Ou alguma outra coisa. Apenas para mim.
Há quanto tempo as amigas não ouviam algo assim de Eva: um “eu”. O
“eu” ainda era mínimo, frágil e tímido, mas havia dado o ar da graça. Tinha a
ver com a caminhada, que Eva sentia cada vez mais leve de um quilômetro
para o outro. Com cada passo, deixava para trás um pedaço de remorso. Anna
tinha cabelos rebeldes? Então tá. Lene esqueceu de aprender matemática,
David não conseguia encontrar as meias de tênis no último momento? As
crianças não tinham idade suficiente para se organizar? Frido Jr. também
podia ir ao grupo de coroinhas sem fazer uso do seu serviço de chofer.
Afinal, tinha uma bicicleta. E Frido? Conseguia aprender algo novo, como
ela? Apenas para Regine não havia solução. O pensamento em sua mãe
formava um bloco indigesto no estômago.
Bom que ainda tenho alguns quilômetros à frente, passou por sua cabeça.
Tinha acabado de começar a fazer um balanço de sua vida.
– A gente tem bastante tempo para refletir quando caminha – explicou,
desconcertada.
– Se você diz – comentou Caroline.
Alcançaram a meta do dia. A placa manchada na entrada do vilarejo
mostrava claramente onde estavam: Angles.
50
A única luz vinha dos faróis de um carro branco: liga, desliga, liga, desliga. O
pisca alerta fornecia uma desculpa esfarrapada para o carro estar estacionado
no meio do caminho. Quando passou ao lado do automóvel, Caroline
percebeu que ao lado do carro havia uma estrela azul. Sob ela, quatro letras:
S.A.M.U.
Foi como se tirassem vendas de seus olhos. Por que ela não percebeu isso
antes? Service d’Aide Médicale d’Urgence. Samu. O serviço de atendimento
médico de emergência.
– Não me surpreende que parecia tão familiar – sussurrou Estelle para ela.
Provavelmente tinha encontrado a abreviação em algum dos textos que
traduziu no curso de francês. Estelle e Caroline concordaram com um rápido
olhar. Sabiam o que e quem deviam procurar.
Judith parou, como todos os outros também. Ouviam dentro das vielas do
vilarejo. O vento soprava de longe ruídos estranhos. Apenas tons únicos,
depois uma melodia perturbadora e estranha. Era uma música castigada,
agourenta, acompanhada por passos pesados. Deviam ser muitas pessoas que
se aproximavam num lento e misterioso marchar compassado. Com
desconforto, as mulheres seguiram adiante. A música aproximava-se cada vez
mais. A visão abriu-se para uma massa de pessoas. Todo o vilarejo estava
reunido para a procissão. Música tradicional, ritual arcaico. Acompanhadas
por música enviesada de instrumentos de sopro, figuras masculinas de
postura lúgubre em marcha compassada com estranho balanço carregavam
uma Maria de madeira pelo vilarejo.
Caroline ficou como se tivesse sido atingida na cabeça. Não tinha respostas.
Apenas um endereço de Dominique. As perguntas eram possíveis apenas se a
pessoa aguentasse as respostas. Quanta verdade Judith podia suportar?
Caroline amassou o papel com vigor, lançou-o numa lixeira e saiu dali.
Cinco passos depois, virou-se. Enojada, revirou o monte de lixo e
desamassou o papel. Suas mãos tremiam. Nesse momento, sentiu algo
estranho. Um calor repentino subiu pela espinha e obrigou-a literalmente a
virar-se. A procissão havia feito uma curva pela praça do vilarejo e vinha de
frente para ela. A figura dourada de Maria emanava uma luz que pairava
sobre a cabeça dos fiéis. Uma magia misteriosa saía da Madonna. Por um
instante, estavam ligadas. Nesse único e inexplicável momento, não era mais
uma estátua de madeira que estava diante dela. Caroline podia jurar que
Maria a olhava diretamente nos olhos.
Nervosa, fechou os olhos. Afastou de si o sentimento bizarro. Perturbações
do sono podiam levar a alucinações. Era bem óbvio que isso valia também
para sobrecarga física e espiritual.
Horas mais tarde, estava deitada numa cama confortável que merecia cada
uma das cinco estrelas que categorizavam o hotel. Tiveram um jantar
excelente – nenhuma outra palavra era mais precisa para descrever o menu de
seis pratos – e beberam bastante. Ela não conseguia dormir. Estava deitada na
cama junto à janela, olhava a noite escura e sem estrelas e esperava por um
milagre. O milagre veio. Mas era um milagre falso. Não apenas para Judith,
mas principalmente para Caroline.
53
Caroline não era a única que esperava por uma salvação maravilhosa.
– Meu sonho é que a senhora “passe de mágica” volte para Colônia –
confessou Frido quando Eva fez sua ligação de todas as noites.
Eva não precisava de detalhes. O cansaço na voz dele era o bastante para
imaginar como estava sua cozinha. Como as cozinhas parecem quando as
pessoas não têm à disposição uma senhora “passe de mágica”: o lixo
transborda, a lava-louças fica cheia, o tablete de sabão dentro dela, o botão de
ligar esquecido. E, com muita sorte, encontram-se as meias de tênis nas
caixas de bebida vazias.
Frido era um homem sensato, não precisava de bola de cristal para saber
quem, até aquele momento, havia reduzido o trabalho para ele. A única coisa
que o surpreendeu foi a quantidade de trabalho para ser feito.
– Como você consegue? – perguntou Frido, exausto.
– Sei lá – respondeu Eva. – Eu apenas faço.
– E essas reuniões eternas – reclamou ele. – Quando se tem a pressão do
horário, a primeira coisa que se percebe é quantos monstros passam numa
mesa de reunião. Tenho todos: o falador, o perguntador, o que não diz nada e
o exibido. E aqueles que são responsáveis pelas decisões ficam calados.
– Contrate mais mães – recomendou Eva. Quem tinha crianças em casa
esperando comidinha quente, um beijo de boa-noite ou ombros paternos para
se apoiar, não tinha tempo para repetições infinitas, vaidades pomposas e
decisões postergadas. Mas esse boato ainda não havia se alastrado até os
níveis da diretoria. Frido apenas suspirou.
– Ficarei feliz quando você voltar para casa – confessou, num sussurro.
Eva calou-se. Algo havia mudado. Tinha se envolvido com a aventura da
peregrinação apenas porque queria fazer algo por Judith e porque as amigas
dela apoiavam. Naquele momento, caminhava porque lhe fazia bem. Não
ousava contar isso ao fragilizado Frido. Sobre os momentos nos quais não se
pensava em mais nada, mas apenas em sentir o chão se mover sob os pés,
absorver o cheiro de giesta e zimbro, se misturar às sombras moventes,
observar o jogo de nuvens e cores. Sentir as subidas e descidas do caminho,
cada mínima diferença de altitude.
– Boa noite, Frido – desejou, em vez disso. Não tinha coragem de confessar
como estava feliz em ter pela frente alguns dias de peregrinação. A verdade
era que não interessava se sua cozinha em Colônia estava arrumada ou não.
Via-se num ponto mágico de sua peregrinação: saiu de casa, deixou para trás
seu cotidiano, mas não havia chegado ainda a lugar algum. Simplesmente
estava a caminho. Ao sabor do vento.
54
São Pedro conspirou contra elas. Após ter trazido ao acaso alguns assentos
livres num ônibus e uma viagem gratuita entre Montcaup e St. Bertrand de
Comminges, agora tinham caído num confortável modo “bagaço”.
– As senhoras trouxeram a tempestade – alertou o motorista do ônibus.
No entusiasmo de terem reduzido bem as duas longas etapas que estavam
diante delas, detiveram-se tempo demais nas catedrais mundialmente
conhecidas. Em vez de iniciar as etapas rapidamente, maravilharam-se com a
magnífica decoração em madeira e os imponentes bancos do coro.
Quando finalmente colocaram-se em marcha, era tarde demais. Nuvens
escuras tingiam o céu e ofereciam um espetáculo único. Ao fundo, os picos
dos Pirineus que se aproximavam cada dia mais brilhavam. Chuva e ventania
se aproximavam.
Judith e Max seguiam na frente, as outras vinham logo atrás.
– E o que é isso? Vocês encontraram algo?
Curiosa, Eva pressionava Estelle e Caroline. Kiki também. Caroline virou-
se horrorizada para Estelle, que fez um gesto de desculpas.
– Meu espírito foi forte, mas a boca é fraca.
O erro foi deixar as três dividirem um quarto na noite anterior.
– Agora fale! Que tem o diário? O que o enfermeiro contou? – quis saber
Estelle. Tentou a noite toda chegar até Caroline.
Judith, que ficara desconfiada, não saiu do lado de Caroline durante o
jantar. Ela, que normalmente era a primeira a desaparecer na cama, pedira até
mesmo sobremesa. Mais tarde, insistiu em ficar com Caroline num quarto
duplo. Depois de olhar para as velas, a foto e o copo de vinho com que Judith
formava toda noite um altar improvisado, desapareceu o impulso de Caroline
de contar tudo.
Antes, Caroline teria um ataque com isso. Antes, dez dias antes. Em Colônia,
comia fast food, deixava-se aterrorizar pela internet móvel e e-mails rápidos e
tirava no máximo um cochilo quando o trabalho sobrecarregava. Na
peregrinação, tinha tempo para reagir. Nada tinha pressa quando se estava
num percurso a pé. Dominique não vivia longe de Angles. Entre o albergue e
Dominique havia duas elevações que queriam vencer. Era impossível fazer
esse percurso em um dia. Caroline estava grata por esse adiamento da pena.
Devia enfrentar aquilo que soubera no dia anterior.
– Parece que Arne passava as férias regularmente nesta região. Com
alguém que se chama Dominique – explicou Caroline. Tentou soar o mais
neutra possível. A notícia, contudo, caiu como uma bomba. Estelle entrou de
imediato nas especulações:
– Talvez Arne tivesse uma segunda família, filhos, uma vida dupla
misteriosa.
– Dominique pode muito bem ser nome de homem – advertiu Caroline.
Agitada, Eva balançava a cabeça. Não queria acreditar que Arne enganara
Judith.
– Tudo isso pode não ser nada! Um engano.
Caroline castigava-se com autoacusações:
– O pior é que eu incentivei Judith a fazer essa viagem.
– Quem imaginaria uma coisa dessas? Arne adorava Judith – Eva
comentou.
– E mesmo assim a traiu – constatou Estelle.
Então Kiki chegou ao ponto que realmente interessava:
– E o que fazemos agora? Contamos para Judith?
Como se ouvisse seu nome, Judith virou-se. De maneira estranha, sentiu que
as conversas empolgadas às suas costas diziam respeito a ela. As quatro, que
até então discutiam calorosamente, se calaram.
55
Uma rajada de vento tirou seu fôlego. Durante toda a etapa, Judith olhava
preocupada para o céu. Com as primeiras gotas, acabou a esperança de que as
nuvens passariam ao largo delas. Dentro de poucos minutos a chuva leve
transformou-se num aguaceiro. Os Pirineus desapareceram nas nuvens
espessas. Raios fendiam os céus. Riachos se encheram, arrastaram plantas e
tornaram o caminho intransitável em pouco tempo. Quase não se via dez
metros adiante.
Encontraram abrigo provisório numa cobertura de madeira, como os
milhões de mosquitos que fugiam da chuva. Nem mesmo os caros chocolates
Valrhona e as bananas que Max tirou como por encanto de sua bolsa-carteira
tornaram a atmosfera confortável. Na natureza, a tempestade agia como uma
força elementar. O vento agitava os troncos frágeis, a chuva tamborilava
incessante no telhado cheio de goteiras. Subiu um cheiro de palha úmida e
apodrecida.
– Esse cheiro vai me dar uma alergia – reclamou Estelle, enquanto
espantava os mosquitos.
Depois de quinze minutos, os raios ainda continuavam a cair. A chuva não
parava.
– Não tem sentido esperar – comentou Caroline. – Logo vai escurecer.
A ideia de fugir pela rodovia diretamente para o próximo vilarejo provou ser
um erro drástico. A visão era ruim, a via estreita. Todas as vezes que um
caminhão buzinante zunia perigosamente próximo a elas, a água espirrava
aos montes. Não fazia sentido. Precisavam se render ao caminho secundário,
desproporcionalmente mais longo.
Com esforço, arrastaram-se caminho encharcado acima. O avançar na lama
sempre é lento. Aqui e ali, Judith escorregava. Nunca haviam se sentido tão
ligados à terra, nem olhado para o céu com tanta inquietação. Apenas de lá
podia vir a redenção. A chuva estreitava o horizonte. Não era possível sequer
imaginar a meta do dia. Por dentro, Judith blasfemava. Podia dizer mil vezes
a si mesma que a chuva trazia consigo a limpeza externa que caminhava de
mãos dadas com a interna. O romantismo peregrino e o entusiasmo religioso
estavam longe naquele momento como os sussurros e segredos. O negócio
era resistir a essa etapa.
Raramente surgia uma vieira de São Tiago que marcasse o caminho. A
orientação era difícil, a água estava por todo lado. Corria sobre as mãos, fluía
nas golas e nos sapatos. Nas capas de chuva arrancadas rapidamente das
mochilas desenvolvia-se um ambiente vaporoso.
– Se não tomarmos cuidado, por baixo da cobertura plástica pode se formar
um acúmulo de calor e um colapso do sistema circulatório – Eva recapitulou
seu conhecimento médico.
Um olhar para Judith bastou para Kiki entender que não era o momento certo
para lamentações. Havia algo pior. E informar, como de costume, era tarefa
para Caroline.
57
Insone, Eva rolava na cama. Havia tentado de tudo. Bebeu leite morno,
contou carneirinhos, sussurrou a cantiga da vovó Lore, arriscou até ajoelhar-
se. Nada ajudou. A sensação ruim que a briga deixou não diminuía com
nenhum truque para dormir. Amanhã tudo estará esclarecido, esperava ela.
Judith e Caroline precisavam apenas conversar.
Eva conseguia entender Judith. A traição de Caroline e Estelle era pior do
que aquilo que o falecido Arne em algum momento pudesse ou não ter feito.
Não era surpresa que Judith tivesse lançado insinuações ridículas. Era como
um animal acuado num canto, que sem piedade morde para todos os lados.
Por isso a resposta barata com menção ao casamento de Caroline. Não
podiam ser outra coisa aquelas palavras obscuras que Judith disparou. Para
Eva, Philipp e Caroline eram o casal perfeito. Estavam havia mais de vinte
anos juntos, tratavam-se com respeito e podiam contar histórias sem se
interromperem e estragar o clímax do acontecido. Uma retaliação, tinha que
ser isso. “Tudo vai se esclarecer de manhã”, disse para si. Mesmo assim, não
conseguia dormir.
Nervosa, acendeu a luz. A cela exagerava na frugalidade. Paredes brancas
vazias, uma porta de madeira pesada, uma janela alta demais para permitir
uma olhada para o jardim do mosteiro. A única distração oferecida era uma
pilha da Revista Lourdes. O jornal dos peregrinos do terceiro milênio tinha
apenas um assunto. A Lourdes histórica do tempo das aparições, as visões de
Bernadette, milagres e enxurradas de peregrinos. A cada duas páginas, Maria
era representada com seu véu branco, cinto azul e rosas douradas nos pés.
“Penitência, penitência, penitência”, clamava a imagem de Maria. “Orai a
Deus pelos pecadores.”
Eva não duvidou por nenhum instante que a história aconteceu daquela
forma. Por que a menina mentiria? Quem teria sussurrado para ela a frase
complicada da 16ª aparição? Que soy Immaculada Concepción. Sou a
Imaculada Conceição. Uma filha de trabalhadores iletrados não pensaria
nisso. A água de Lourdes curou pessoas. Física e espiritualmente. A magia do
lugar chegaria ao seu coração. Ela esperava.
“Penitência, penitência, penitência”, ecoava em sua cabeça sonolenta. Mas
quem era aqui o pecador? Quem era o criminoso? Quem era a vítima? E qual
o pecado?
“Cuidado com o que você lê antes de dormir”, sempre dizia a vovó Lore.
Eva pôde comprovar que a história de Bernadette não era adequada para
embalá-la num sono tranquilo.
“Nos encontramos na ponte”, escreveu Eva num papel que jogou por baixo
da porta do quarto de Caroline. O ponteiro do relógio na torre batia 5h23
quando a porta pesada de madeira se fechou atrás das duas. Eva e Judith
marcharam em ritmo acelerado.
Confusos os pensamentos, aterrorizante a paisagem. A névoa pairava sobre
uma lagoa, campos e árvores reluziam num azul esverdeado irreal. O novo
dia raiava. Um trator arava pela aurora, atrás dele alguns pássaros
madrugadores a quem Deus ajudava. Quando os primeiros raios de sol
chegaram ao topo dos ciprestes, o mosteiro já havia ficado para trás.
Eva chegara ao estado com que muitos peregrinos sonhavam. Os pés
seguiam sozinhos e ajustavam-se automaticamente às condições do caminho.
Apenas a cabeça vazia era ainda uma esperança religiosa. O que esperava de
Dominique? Eva não estava em condições de colocar em prática o que
gostava de pregar para os filhos: “Cuide apenas dos problemas que você tem
e não dos que pode conseguir.”
Por que existem problemas que trazem pessoas do passado?
– Tem certeza que quer fazer isso? – Eva perguntou a Judith. Estavam
diante do grande portal. Eva esperava tudo. Uma pequena casa, uma
residência numa vila de construções novas, mas não um edifício monstruoso
recém-reformado. A fachada do fim do século XIX emanava um brilho novo.
Apenas os ferros fundidos do imenso portão de entrada eram pitorescos em
seu envelhecer.
Judith não hesitou um segundo sequer. Confiante, tocou a campainha.
– Se Arne tiver me traído… – disse Judith, sem terminar a frase. – Quero
saber a verdade, Eva – sussurrou.
– Arne está morto. O que isso vai mudar? – Eva tentou uma última vez.
– Tudo. Tudo. Tudo – declarou Judith. Seu tom soava quase inesperado.
Eva nem chegou a se surpreender com a resposta estranha. O portão
principal se abriu. Uma senhora num vestido muito alvo, abaixo do joelho,
seguiu com passo enérgico pelo caminho de pedras até a entrada. No cabelo
bem preso num coque endurecido entronava-se uma touca de enfermeira.
Com cada fibra do seu corpo, expressava o quanto era competente.
A mulher as recebeu com uma enxurrada de palavras incompreensíveis em
francês. Sua voz era profunda e rouca pelo fumo, denunciando uma vida
agitada, além do uniforme bem cortado. Eva e Judith não entenderam nada,
apenas o sinal de interrogação no fim da frase estava bem claro.
– Dominique? – Judith soltou, num engasgo.
A mulher levantou as sobrancelhas com força.
– Vous êtes Dominique, a senhora é Dominique – constatou Judith, dessa
vez com voz firme.
A mulher irrompeu numa gargalhada poderosa. Quase não conseguiu se
conter, pois achou muito absurda a ideia de Judith. Fez um sinal para que a
seguissem pelo pátio.
Eva avistou as vans para deficientes no estacionamento, todas de marcas
alemãs. Num toldo, algumas cadeiras de rodas. Arne passava as férias aqui?
O Arne que conhecia tinha uma alergia grave a hospitais e fazia de tudo para
não deixar transparecer sua doença. Mas conhecia Arne de verdade?
Conhecia a amiga?
63
Onde estava Eva? O que os dois falavam tanto? Inquieta, Judith andava para
lá e para cá diante do portão. Seus passos agitados chiavam sobre o cascalho.
Dominique devia ser o ex-banqueiro belga de quem Arne falou bem no início
do relacionamento. Arne nunca contou muita coisa sobre a peregrinação.
“Nada é tão chato quanto histórias de férias de outras pessoas”, sempre
dizia. Quando criança, Arne odiava as noites de slides das diversas tias, que
naquela época ainda tinham os tios do lado.
– Você não conhece isso? – perguntou a Judith. – Aqueles textos-padrão
com os quais cada slide é apresentado. O engraçado, aquilo que não se
reconhece bem em alguma foto, que fica atrás à esquerda, atrás da árvore. É a
tia Frieda com um macaco no braço.
Arne odiava esses eventos. Estranhamente, as pessoas nunca viam nesses
slides o que realmente era dito. E nunca sentiam nada a não ser o tempo que
se arrastava, enquanto aguentavam explicações ricamente ilustradas sobre
pessoas conhecidas casualmente nas férias, excursões de ônibus, a flora e a
fauna exuberantes em torno da piscina do hotel.
– É preciso sentir países estrangeiros, não capturá-los em slides – insistia
Arne. Por isso, levava consigo apenas o diário de peregrinação e nunca uma
máquina fotográfica. Judith se arrependia agora. Se soubesse que Dominique
era um amigo de peregrinação, nunca teria pedido a Eva para vir até aqui.
Mas era certo que Dominique sabia de alguma coisa? Algo concreto? Algo
que podia se transformar numa desgraça para ela?
“Juntos podemos ficar em silêncio”, Arne contou sobre Dominique. Talvez
ele tivesse se calado mais que falado. Quem disse que Arne sabia algo sobre
Philipp? Talvez tivesse apenas uma suspeita, algo que se podia eliminar
facilmente do mundo.
Caroline fechou os ouvidos. Pena que na França não tinha pão crocante. Às
vezes ela comia pão crocante no lanche noturno com Vincent e Josephine,
quando estava de saco cheio de tudo. O barulho do pão triturado entre os
dentes de trás se sobrepunha à briga da noite entre as crianças cansadas.
– Mamãe! O Vincent chutou minha canela.
– Porque a Fi roubou batata frita do meu prato.
– O Vincent pegou muito mais.
– A Fi tá mentindo. Ela sempre mente.
– E você sempre quer ser o mandão. Você é um bobalhão, isso sim.
– Mamãããe.
Os dois mostravam uma energia criminosa própria de se desculpar com
persistência e falsidade. E deveriam apontar o verdadeiro culpado. Bancar a
juíza não era o seu forte. Nessas situações, Caroline sentia como perdia a
paciência, então ajudava se prender a alguma coisa. A um pacote de pão
crocante, por exemplo. O pão crocante, leu na época, era mais rico em
vitaminas, minerais e fibras, bem como em fitonutrientes que o pão branco, e
também batia outros pães integrais no que dizia respeito ao teor nutricional.
Do barulho agradável que abafava todo o resto o texto no pacote não
explicava nada.
Não, não era perfeita. Nunca foi. Era apenas um pouco mais perfeccionista
do que as amigas e um pouco menos expansiva com as pessoas ao redor nos
momentos “pão crocante” na vida.
–Não há nada mais para salvar – murmurou Kiki. Não se referia às amigas.
Todas as tentativas de colagem e restauração fracassaram, o desenho estava
perdido. Era a noite antes da última etapa e uma reunião que não merecia este
nome. A atmosfera estava carregada da catástrofe que se abateu sobre todas.
Na fogueira na frente da pousada, Judith queimou, calada, o diário. Página
por página. A fumaça lhe ardia nos olhos. Estelle e Eva, ambas com uma taça
de vinho na mão, assistiam cansadas. O que poderiam dizer a Judith?
Kiki e Max, sentados e enroscados, ocupavam-se com seus próprios
problemas.
– É uma bênção que seus trabalhos tenham desaparecido na água –
consolou Max.
Kiki via diferente:
– Eu chamaria de fiasco. Nunca conseguirei fazer algo tão bom de novo.
Sua mão fez alguns movimentos com uma caneta imaginária antes de ela
desistir. Sua carreira chegara novamente ao fundo do poço.
– O cérebro é fantástico. Esquece todas as coisas desimportantes – Max
comentou.
– O meu também esquece o importante.
Max tirou um bloco de sua bolsa-carteira.
– Desenhe o que você lembrar. Esta é a linha vermelha do desenho.
– As linhas vermelhas eram os detalhes.
– As coisas devem ser simples – disse Max, soando como o pai.
Sem vontade, Kiki tomou o lápis entre os dedos. As ideias eram fugidias.
Se ninguém as fixasse no papel imediatamente, desapareciam e buscavam um
novo lar. Ela sabia que não poderia prender o esboço pela segunda vez no
papel. A silhueta foi recapitulada com rapidez. Mas onde estava a obra de
arte filigranada? Lá, onde havia alguns dias um modelo complicado tomou
forma, corriam agora linhas poderosas, fluidas. Max sacudia a cabeça,
encorajador. Parecia outra coisa, simples, algo que dispensava um manual de
usuário. Parecia alguma coisa que podia convencer Thalberg. Kiki começou a
se divertir com aquilo, até Caroline surgir e começar imediatamente a
espargir veneno.
– O que é isso, um velório? Alguém morreu? Ah, sim. Arne. Por isso
estamos em marcha fúnebre, pois recordamos o amor perfeito de Judith e
Arne.
Kiki estremeceu. Ninguém conseguiria trabalhar nesse ambiente. Estava
insuportável. Kiki e Max entenderam-se num rápido olhar. Não precisavam
de explicações. Obviamente eram dispensáveis. E, além disso, estavam
ocupados. Se Kiki quisesse ter uma chance, precisava terminar hoje o
desenho.
70
Eva, que até aquele momento tinha permanecido calada, ficou do lado de
Caroline e simplesmente pegou a mão dela. Um gesto simples, pequeno, que
deixou claro que não precisava de seminário sobre a ira e nem de um
terapeuta sabe-tudo. Caroline tinha suas amigas. Ao menos ainda tinha uma.
– Não faz sentido exigir de alguém que faça outra pessoa feliz – começou
Eva, cuidadosa. Não julgava nem condenava. Falava de si e das coisas que
aconteceram nesses nove dias que passou com as amigas. – Eu gostaria de
responsabilizar o Frido por eu ter me tornado uma matroninha chata. Mas não
é certo. Eu entrei no jogo. Dia após dia. A gente sempre entra no jogo.
Caroline sabia que Eva tinha razão. A companhia tranquila havia se
tornado um porto seguro. Seu casamento com Philipp parecia confiável,
natural e sossegado, e exatamente por isso fracassou, por causa da falta de
esforço, que resvalou para falta de amor sem que percebessem.
Eva insistiu para que pegassem o desvio pelo Pic du Jer, um topo de
montanha nas cercanias de Lourdes. Sob a grande cruz de madeira que se
erguia para o céu, era possível sentir-se novamente a mais de mil metros de
altura, próximas ao firmamento, antes de iniciarem a descida para o ponto de
peregrinação.
O vento soprava gélido sobre o mirante, que talvez por isso estivesse tão
vazio. Além das cinco e Max, havia apenas um casal solitário, que não
parecia ligado por mais nada além das alianças. Calados, bebiam algo de uma
garrafa térmica. A disposição era fraca, o panorama, impagável.
Nada bloqueava a vista dali de cima. Podia-se olhar 360° sem
impedimentos: na direção de Tarbes, a cidade de Pau, o vale de Argèles
Gazost e os pontos nevados de três mil metros. Antes deles, a paisagem
montanhosa típica, com suas florestas densas e vastos prados. Lourdes ficava
entre eles. Podia-se reconhecer as torres pontudas da Basílica do Rosário e,
antes delas, estendia-se uma grande superfície asfaltada, que parecia ter sido
construída para os montes de pessoas do distrito de peregrinação.
Teria sido o momento para comemorar em júbilo o final da viagem, bradar
com os punhos, tirar a camiseta do time pela cabeça. Teria sido o momento
de abraçarem-se às gargalhadas, mas ninguém estava em condições para isso.
Max registrou o momento memorável com a câmera de Kiki. Que
diferença da foto tirada no primeiro dia, no modo automático da câmera, um
retrato do grupo relaxado. Naquele momento, Judith e Caroline estavam tão
distantes nas margens esquerda e direita que quase caíam para fora da foto.
No meio, de braços dados, Estelle, Eva e Kiki. Os acontecimentos dos
últimos dias se refletiam nos olhares. Os rostos estavam marcados pelas
dificuldades do caminho, a pele bronzeada pelo sol, as roupas empoeiradas.
Havia muito Eva não era a única com o prático rabo de cavalo. Ninguém
sorria.
Caroline sentia-se extenuada e vazia. Sabia o que a esperava: lá embaixo
não estava apenas a gruta de Bernadette. No vale esperavam os telefones sem
chiados, hotéis com conexão rápida de internet, trens e ônibus de traslado
para os aeroportos de Pau e Lourdes. Uma única noite a separava da volta a
Colônia e do encontro com Philipp. Algo parecido era iminente também para
Kiki. Max deu a entender sem dúvida que manteria seu plano: apresentaria
Kiki aos seus pais.
– Você vê até onde as mentiras e os segredos levam – disse. E Kiki
concordou com a cabeça.
– Aqui em cima tem uma caverna que podemos visitar – Eva tentou segurar o
grupo. Soou tão entusiasmada como se tivesse percorrido centenas de
quilômetros apenas para explorar essa caverna.
– Nós conseguimos – gritou Estelle. – Eu sobrevivi! Meu reino por uma
banheira de espuma quentinha!
Estelle deu o sinal para lidar com os últimos metros. Kiki e Max seguiram
na frente, pois precisavam passar imediatamente por fax para Thalberg em
Colônia os desenhos que estavam claros, inconfundíveis e fortes no papel.
– Podíamos ao menos beber algo aqui em cima, não? – tentou Eva
novamente.
– Fazemos isso em Lourdes – comentou Estelle. – Quem tem vontade de
uma boquinha quando o fim do sofrimento está ao alcance das mãos?
Eva sentiu que uma mão se encaixava na sua.
– Medo da chegada? – sussurrou Caroline, sabendo exatamente o que Eva
sentia. Eva balançou a cabeça, agradecida.
– O quem vem mesmo depois do fim? – perguntou.
Caroline deu de ombros. Bom que ainda tinham uma última noite. Dariam
um fim festivo à peregrinação na procissão das luzes que acontecia todas as
noites no local. “Deveis vir em procissões”, Maria revelou por meio de
Bernadette. E assim as mulheres viriam.
72
Max saiu de uma das lojas sacudindo a cabeça. Na mão, tinha os desenhos de
Kiki.
– Aqui é mais fácil conseguir um milagre do que uma máquina de fax.
Kiki fuçava as garrafas de plástico transparentes com a forma e a imagem
de estátuas de Maria. No final, decidiu-se por uma garrafa com Maria e
Bernadette de joelhos, em cuja base havia a inscrição dourada: Que soy era
Immaculada Concepción. Como em todas as garrafas, a coroa azul podia ser
desrosqueada para encher Maria e Bernadette com água benta, e assim levá-
las para casa. Para aqueles que tinham necessidades maiores de água da fonte,
galões estavam à disposição e, apesar da estampa religiosa e a tampa de rosca
azul, lembravam galões de gasolina.
– Devemos levar água-benta? – ponderou Kiki.
– Você está perguntando para um ateu. No avião eu acredito em Deus.
Após o pouso, não mais.
Mas Kiki já havia puxado sua bolsinha de dinheiro.
– Se não ajudar, prejudicar também não vai.
Max tomou o braço de Kiki e a beijou.
–A luz desta vela é o sinal da minha oração – leu Judith. A frase estava
estampada no grosso prato de aço que formava a parede traseira do ofertório.
Além disso, um segundo barril com a mesma inscrição, dessa vez em inglês.
E, então, em francês, holandês e italiano. Os ofertórios ficavam dos dois
lados e formavam um corredor de aço e luz. Judith viu que muitas das velas
eram compradas apenas na Rue de la Grotte. Apenas lá havia essas velas
características com a base azul. Alguns tinham trazido consigo para Lourdes
trambolhos de um quilo com inscrições religiosas em cera; Judith, a vela do
túmulo de Arne.
Ao fundo, o alto-falante já chamava os peregrinos para a procissão de luzes
daquela noite. Um guardião das velas, que cuidava dos costumes ordeiros dos
ofertórios e da reciclagem dos restos de cera, mostrou a Judith onde ficava o
local para a vela de Arne. Solene, acendeu o pavio em uma vela já queimando
e a encaixou com cuidado na ponta de aço.
Tantas luzes, tantos pedidos. Dentro de Judith, tudo era silêncio. Não tinha
mais nenhum desejo. Chegou a Lourdes, tinha resistido até o fim. Judith
havia posto as cartas na mesa e aguentou as consequências. Como disse o
peregrino demoníaco: “A verdade que está dentro de nós nem sempre é
agradável.”
***
Nesse meio-tempo, percebeu que não tivera medo do peregrino, mas de seus
próprios segredos. Tinha se confessado, mas a redenção não veio. Sua vida
antes dali fora varrida por uma tempestade. Aqui, no mar de luzes, tudo
estava calmo, como no olho do furacão. Cada passo que desse a partir
daquele ponto a levaria de volta aos ventos agitados.
Judith já estava na gruta, deslizou as mãos sobre a pedra envolta em lendas
e perguntou-se por que Maria lhe havia trazido para Lourdes. Maria, que
olhava de cima a baixo para peregrinos e turistas curiosos de seu nicho na
parede do rochedo, permanecia calada, como durante todo o caminho. A
elevação espiritual do peregrino era ainda negada a Judith, inclusive na gruta
de Lourdes. Não tinha ideia para onde o caminho a levaria. Tudo parecia em
aberto.
Quando Judith olhou para as velas votivas, percebeu que não estava mais
sozinha. Descobriu ao lado dela Celine, em sua cadeira de rodas colorida.
Compenetrados, os pais acendiam uma vela. As luzes amarelas dançavam no
rosto da criança, que dormia pela exaustão. Suas tranças úmidas balançavam
para fora de uma touca de lã. Tinha acabado de vir de uma das banheiras.
“Bebais da fonte e lavai-vos nela”, ouviu Bernadette da boca de Maria.
Judith olhava surpresa a disputa das pessoas para conseguir um dos lugares
desejados nos bancos de madeira, o que garantia que de fato mergulhariam
em uma das banheiras com água da fonte fria, a 12°C. Aqui também, como
em todos os lugares em Lourdes, cadeirantes, doentes e crianças tinham
preferência.
“O verdadeiro milagre é que em Lourdes não tenha ainda mais gente
doente”, Estelle brincou algumas horas antes. “A água é trocada apenas duas
vezes ao dia. Só o pensamento de entrar nesse caldo me deixa enjoada.”
Quando Judith avistou o casal, percebeu que Estelle estava errada. Eles
agiam de forma bem diferente do que alguns dias antes, no café da manhã na
pousada de Dominique. O cinza dos rostos havia sumido. Pareciam agitados,
quase alegres. O estado de saúde da filha não havia mudado nem um pouco.
E, mesmo assim, suas expressões estavam mais iluminadas.
Eva passou um dia fantástico com a família. Para a despedida, foram com a
locomotiva de cremalheira ao Pic du Jer. Para Eva era importante que a
família no mínimo tivesse uma leve ideia da grandiosidade da paisagem e do
caminho que ela havia percorrido. Tomaram sorvete no mirante e trocaram
histórias. Eva contou da porca Rosa, dos peregrinos que encontrou, das brigas
entre Judith e Caroline, de Max e Kiki e do cassoulet. Mesmo Jacques, o
cozinheiro easy rider, voltou em suas histórias. Omitiu apenas o beijo. Tinha
aprendido nos últimos dias que ninguém precisava saber de tudo, nem contar
tudo. Frido olhava sua mulher com curiosidade. Tinha um brilho no olhar,
uma luz que não percebia havia tempos. Soube novamente por que havia se
apaixonado por Eva.
Meia hora depois, Eva estava sentada no carro. A paisagem pela qual se
afeiçoara passava por ela em ritmo acelerado. Sentiu falta dos cheiros e da
sensação que a brisa morna deixava na pele. O ar-condicionado filtrava a
singularidade da terra. Vilarejos e campos voavam rapidamente por sua
janela. Nenhum detalhe ficava. A mão de Frido tocava a sua e ele a enchia de
olhares e elogios apaixonados.
– Que bom que você voltou. Senti sua falta.
Eva balançou a cabeça, feliz. Lá atrás, todos falavam com ela.
– Sabe que eu me atrasei muito para o tênis – gritou David. – Nenhuma
mãe é tão responsável quanto você, mamãe.
– Transferiram a culinária de mãe e filho para amanhã. Não é legal? –
Anna interrompeu seu irmão mais velho. – Você ainda precisa fazer compras.
Eva tomou um susto. Compras? Cozinhar amanhã? Ela esperava que sua
alma, que se esforçou para acompanhar aquele ritmo, tivesse um pouco de
tempo para encontrar seu caminho de volta para Colônia e para o dia a dia.
Antes que ela pudesse responder, Lene protestou.
– Não é justo. Mamãe precisa falar com meu professor. Ele quer me fazer
repetir de ano.
Eva olhou para Frido:
– Pensei que você tivesse ido na reunião de pais.
Frido contorceu-se um pouco.
– Você é muito melhor nisso – elogiou ele. – Ninguém consegue lidar
melhor com professores. E se eu pudesse pedir algo para o café da manhã.
Seu crème caramel…
Ele não prosseguiu, pois Eva gritou:
– Para! Para tudo!
Apavorado até a alma, Frido freou o carro. Os passageiros voaram em seus
cintos. Os freios atrás deles chiaram. Em todos os lugares, carros buzinavam.
– Você quer matar a gente? – berrou Frido quando parou no acostamento e
desligou o carro. – Ficou louca?
Tudo ficou claro na cabeça de Eva. Tão claro como nunca antes.
– Eu amo vocês. Vocês cinco. Mas assim não dá para continuar.
Num ímpeto, abriu a porta do carro de uma vez e desceu. Frido não
conseguia acreditar.
– O que está acontecendo com você?
Eva deu a volta no carro, abriu o porta-malas e tirou sua mochila de lá. Em
uma estrada dos Pirineus bem movimentada, uma ação bastante perigosa.
Irado, Frido foi até sua mulher:
– Eva? Que você tá fazendo? Onde você vai?
– Para Santiago de Compostela – respondeu Eva, como se fosse a coisa
mais normal do mundo.
– Vai o quê? – Frido não podia acreditar no que tinha ouvido. – Mas não
pode.
Eva lançou para ele um olhar crítico. Se ele dissesse naquele momento “Eu
tenho reunião do conselho amanhã”, ela cometeria um assassinato. As quatro
crianças grudaram o nariz na janela do carro. Frido abriu a boca e voltou a
fechá-la. Supôs que nenhum argumento do mundo convenceria Eva a
reassumir o papel da senhora “passe de mágica” para sua família ou de saco
de pancadas para sua mãe, Regine.
– Estou apenas no início do meu caminho – admitiu ela. – É melhor vocês
acostumarem a ter no futuro uma mãe independente.
Ela se sentia como uma alcoólatra que acabara de receber alta da
reabilitação e, com temor, tira do caminho qualquer tentação. Tudo era muito
recente. Muito novo. A Eva mudada estava muito frágil. Se fosse agora para
casa, em três dias tudo seria como antes. Os dias na peregrinação despertaram
algo nela, mas precisava de mais tempo. Tempo para si, tempo para refletir
sobre si, sobre Regine, sobre tudo. A família aprenderia a viver com a lacuna.
Com a lacuna na vida familiar e na geladeira.
– Livrei você de todo o peso da família por quinze anos. Agora é sua vez.
Indeciso, ele insistia. Frido sabia que Eva tinha razão.
– Eu não sabia que era tanto trabalho – confessou Frido. – Quatro filhos,
todos os compromissos, compras todos os dias, cozinhar. Para você, tudo
parece tão fácil. Como se tudo acontecesse sozinho – desculpou-se ele.
Eva balançou a cabeça. Nada acontecia como por encanto.
– Eu aprendi. Você também pode aprender. E se algo der errado, tenho um
ótimo segurador comigo…
Frido sorriu. O recurso maravilhoso de atenuar conflitos ameaçadores com
humor também ajudou Eva.
– Não quero um marido novo. Apenas um pouco de tempo. Talvez uma
babá…
Não conseguiu continuar.
– Nós ficaremos bem – interrompeu David, indignado. – Não somos mais
crianças.
Todos os quatro filhos sacudiram a cabeça com veemência. Eva não
completou seu pensamento. Sabia que as crianças tinham razão. Era hora de
deixar um pouco a barra da saia materna.
– Eu te amo. Nós te amamos – disse Frido por fim para ela. E então deu-
lhe um beijo nos lábios que levou todos os quatro filhos a um suspiro
coletivo, como se dissessem “Pais são simplesmente constrangedores”.
– Eu sei – respondeu Eva. Naquele momento ela precisava apenas voltar a
se amar. Tinha algumas centenas de quilômetros à frente.
No banco de trás estava Anna, sentada com seu laptop desenhando o caminho
da peregrinação das mulheres de terça-feira, que agora haviam se espalhado
por todas as direções. Duas flechas, no entanto, seguiam para Colônia: as de
Kiki e de Caroline.
78
A partir de Paris, restavam quatro horas para Caroline. Quando o trem Thalys
chegou na estação central de Colônia, Caroline decidiu fazer o mesmo que
Kiki. Passaria a noite no escritório e se encontraria de manhã com Philipp.
Depois dos dormitórios franceses, uma noite no sofá do escritório não
assustava.
Enfurecida, fez uma pausa. Que era aquilo? Luz? A essa hora? Colegas
curiosos eram a última coisa de que ela precisava. Uma das imponentes
poltronas giratórias no lobby moveu-se. Com esforço, Philipp levantou-se.
– Sabia que primeiro você viria ao escritório – disse ele num tom
amigável. Parecia mais magro, suas bochechas estavam caídas, sob os olhos
despontavam olheiras escuras. A ligação de Judith tinha soado o alarme para
ele. Caroline se esforçava para digerir o choque. Não queria cumprimentá-lo,
não queria falar com ele, não queria absolutamente nada. Não queria ser
atacada daquela forma. Após a viagem de peregrinação, não podia aguentar
nenhuma outra surpresa de Philipp.
– Fiz algo muito idiota. E agora procuro uma boa advogada que ajude a
botar minha vida em ordem – abriu a conversa.
Quanto tempo teria levado para pensar na introdução adequada? Seu texto
soava como se tivesse treinado diante do espelho. Com a cara adequada de
penitente.
– Não serei eu – engasgou Caroline. Não gostou de Philipp surpreendê-la
daquela forma.
– Eu terminei tudo – explicou Philipp num tom que sugeria que ele estava
orgulhoso.
– Com todas? Ou apenas com as amigas das quais eu sei?
Philipp percebeu que não podia continuar daquele jeito.
– Que preciso fazer para te convencer de que estou sendo honesto?
Philipp pensou de verdade que havia uma receita fácil? Ele esperava
realmente uma resposta?
– Não é você. Não apenas – confessou Caroline. – Somos nós. O trabalho,
amigos, esporte, congressos, as minhas amigas. Tudo era mais importante
para nós que passar tempo juntos. Levamos vidas separadas há anos, Philipp.
Custava muito para ela ver a verdade nos olhos. Não tinha sentido furtar-se
à responsabilidade. Judith tinha razão: havia uma porta que continuava
aberta. Philipp viu suas esperanças afundarem.
– Aquilo com Judith não significou nada para mim – afirmou com os olhos
fiéis de um cachorro salsicha. – Estou na crise de meia-idade.
Judith assumiu a responsabilidade. Caroline estava disposta a se
responsabilizar pela sua parcela no desastre particular. E seu marido apela
para os hormônios aos quais um homem estaria desesperadamente a mercê
após os melhores anos. Se fosse pelo menos amor, algo grande, uma força da
natureza. Mas Philipp veio com a crise da meia-dade. Não gostou de como
ele falou sobre sua amiga. Como se Judith não contasse. Caroline, que até
aquele momento conseguira de alguma forma manter a compostura, sentiu
como a fúria quis tomar conta dela.
– Queria que você fosse embora – falou ela, dura.
Philipp não conseguia acreditar.
– Você vai jogar fora 25 anos de casamento?
– Você quem fez isso, Philipp. Com seus casinhos.
– Isso é passado, Caroline – suplicou Philipp.
Sua presunção a atingiu em cheio. Estava claro que Philipp achava que o
casamento funcionava de acordo com o princípio do desconto. Segundo o
número de anos juntos, conseguia automaticamente uma segunda chance.
– Preciso de tempo para pensar. E para os meus hobbies – falou ela, de
improviso.
– Desde quando você tem hobbies, Line?
Não, ela não explodiria. Não, não, não.
– Desde hoje – anunciou e buscou o celular na mochila. Max tinha gravado
para ela no trem números de seu celular via Bluetooth. Música era ainda
melhor que pão crocante. Era só enfiar o fone de ouvido na orelha e despedir-
se de todos os ruídos incômodos. Caroline aumentou bem o volume. Os
Poppys cobriam com suas vozes alegres de meninos tudo que Philipp tinha a
dizer.
Non, non, rien n’a changé.
Nada havia mudado, que bobagem. Após Lourdes, não restou pedra sobre
pedra. Deveriam lidar com aquilo. Amanhã. Depois de amanhã. Mas não
hoje. Hoje ela cantava com os Poppys e afirmava que tudo continuava igual.
– Kiki – gritou Thalberg. Ficou claro que seu desenho liberara o tratamento
informal. – Que coincidência, Kiki – comentou. – Os vasos. Desenhos
incríveis. Simples, claros, convincentes. Não queira saber que porcarias
cheias de detalhe eu recebi de seus colegas.
Kiki balançou a cabeça calada, buscou a mão de Max e pegou no vazio.
Somente naquele instante ela percebeu que estava sozinha com os Thalberg.
– Em geral, esse é um motivo para um brinde – continuou Thalberg. – Mas
infelizmente temos assuntos pessoais.
Max ainda estava ocupado com o greenkeeper. Ela caíra numa armadilha.
– Estamos esperando nosso filho com a nova namorada – explicou a
senhora Thalberg, que não ligava para a discrição que o marido visivelmente
mantinha em assuntos particulares. – Você nem reconhecerá nosso Max. Está
tão mais aberto.
– Max tem mostrado até mesmo interesse na direção da empresa –
Thalberg interrompeu a esposa. Não ajudou muito. A senhora Thalberg, tão
falante, continuou falando.
– E o meu marido pensava que ele tinha um caso na empresa – riu a
mulher.
Por fim, Max chegou e parou ao lado de Kiki.
– Não consigo. Não dá – sussurrou para ele.
Max abraçou Kiki gentilmente. As feições dos pais congelaram.
– As propostas de racionalização, as ideias para a nova linha de produto, as
dicas de casamento, tudo vem de Kiki – explicou ele com piscadelas
conspirativas para a mãe. Talvez não fosse uma apresentação diplomática,
mas era eficiente. Dentro de poucos segundos Max deixou claro para os pais
o que estava acontecendo. – O bom – continuou Max, impassível – é que
vocês não precisam conhecer minha namorada. Já conhecem.
A mãe deu um fim ao episódio apavorante. Com perfeita compostura,
apertou a mão de Kiki.
– Nos dê licença, por favor.
Fugindo e em discussão ferrenha, os pais de Max deixaram o campo de
golfe. Kiki parecia infeliz. Era exatamente o que sempre temeu.
Max sorriu para ela:
– Acho que eles gostaram de você.
80
Luc sabia que Thalberg mandou Kiki embora uma semana após o lendário
encontro no clube de golfe. Na mesa das mulheres de terça-feira, foi discutido
à exaustão se Kiki deveria tomar medidas jurídicas contra isso. No fim,
decidiu não fazê-lo. Até aquele momento, não quis provocar a vingança
familiar. Esperava que a série de vasos facilitasse sua entrada em uma nova
agência, pois tinham sido produzidos. Luc esperava todos os dias que os vinte
exemplares que ele encomendou para o restaurante fossem entregues.
– Por isso ela se mudou com Max. Não se fala de outra coisa no clube de
golfe – comentou Estelle, que nesse meio-tempo tinha entrado no Le Jardin.
Vestida com perfeição, como sempre. Com manicure perfeita nas unhas.
Achava que devia isso ao seu pai, que a vida toda deu duro com suas mãos
castigadas. Muitos visitam o cemitério para lembrar dos parentes falecidos.
Estelle ia à manicure.
– Compramos os móveis juntos – comentou Kiki. – Max a poltrona, eu, o
sofá. Para o caso de não dar certo.
Luc sorriu por dentro. Depois de Matthieus, Michaels, Roberts e outras
catástrofes, era um passo imenso para Kiki. Era meio caminho andado.
– E você? – Eva perguntou, olhando para Caroline.
Um silêncio pousou sobre a mesa da lareira. Todos os olhos voltaram-se
para a advogada descolada que, nos últimos meses, não estava tão descolada
assim. Luc, que estava a caminho da cozinha para servir as entradas, parou
por um instante. Aquilo interessava a ele mais do que todo o resto. Havia
preparado algo especial para suas mulheres de terça-feira. Algo que ia contra
as regras implícitas às quais ele obedeceu por quinze anos. Algo que as
surpreenderia. Tenso, ouviu como estava a vida de Caroline.
– Ainda falta tudo na casa nova – contou ela. – Um fogão, estantes,
quinquilharias. Na última semana estive numa loja de móveis com a Fien. E
Vincent trouxe o restante das caixas da mudança no fim de semana. É isso.
As amigas olhavam para ela, caladas. Aprenderam com Caroline. Se quiser
saber de algo, precisa aprender a calar.
– Agora, Philipp e eu nos encontramos às vezes. Conversamos bastante –
continuou Caroline. – É difícil.
Uma bateria de copos de champanhe tombou e derramou-se sobre
Caroline. Luc se desesperou. Não era assim que imaginava a entrada da nova
garçonete.
Eric Newborn está acostumado a lidar com pessoas cujas vidas estão em
crise. É um aclamado autor de diversos livros motivacionais e também um
inspirado palestrante. No entanto, quando sua esposa morre, a angústia o
toma de forma inescapável. Não existe cura fácil, nenhum clichê é capaz de
consolá-lo, nada preenche o enorme vazio deixado pela perda. Ele se recolhe
com sua cadela, Ralph, em sua isolada casa em Martha's Vineyard. Cinco
anos mais tarde, em uma noite agitada de tempestade, um carro sofre um
acidente em frente a sua casa e uma mulher bate à porta, procurando ajuda.
Sam é uma admiradora que estava a procura de Eric, convencida de que ele
saberia dar sentido às coincidências que, simultaneamente, destruíram e
deram nova cor à vida dela. À medida que Eric e Sam orbitam um em torno
do outro, como constelações em um gigantesco universo, eles se põem a
buscar respostas para suas perguntas, e encontram significados em sinais que
às vezes ignoramos diariamente. Uma poderosa história de amor e um
mergulho profundo no funcionamento da alma, O Livro do Porquê é um
romance delicado e instigante, que nos faz refletir sobre a natureza da
felicidade humana.
Escrito pelo autor laico brasileiro que mais vende livros de temática religiosa
no Brasil, Jesus – O homem mais amado da História: a biografia daquele que
ensinou a humanidade a amar e dividiu a História em antes e depois é o livro
mais atual sobre a vida do homem cuja história mantém seu vigor e interesse
há mais de dois mil anos. O escritor e jornalista Rodrigo Alvarez tomou
como base as fontes arqueológicas e bibliográficas mais recentes, além das
mais antigas (entre eles diversos manuscritos originais), e viajou pelos
mesmos lugares percorridos por Jesus em seu tempo para reconstituir os
passos do pregador que, ao mesmo tempo Deus e homem, ensinou a amar,
mudou o curso da humanidade e dividiu a História em antes e depois. Com
uma narrativa elegante, acessível e guiada pelos fatos, além de ricamente
ilustrado, Jesus – O homem mais amado da História é um livro sobre um
Jesus de antes do cristianismo e de todas as suas divisões futuras – e que
mostra a todos os leitores, cristãos ou não, a relevância e a permanência de
sua trajetória e de seus ensinamentos.