As Mulheres de Terca-Feira - Monika Peetz PDF

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais


lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a
um novo nível."
Ficha Técnica
Originalmente publicado em alemão com o título Die Dienstagsfrauen, by Monica Peetz. © 2010 Verlag Kiepenheuer
& Witsch GmbH & Co. KG Underlying direitos licenciados pela corporação ARD/licenciado pela Degeto Film GmbH
Copyright © 2013 Casa da Palavra
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.
Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Direção editorial
Martha Ribas
Ana Cecilia Impellizieri Martins
Editora: Fernanda Cardoso Zimmerhansl
Editora assistente: Beatriz Sarlo
Copidesque: Carolina Rabelo
Revisão: Lilia Zanetti
Capa: Marianne Lépine
Foto de capa: © David Franklin/Getty Images
© Fotolia
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P421m
Peetz, Monika
As mulheres de terça-feira / Monika Peetz ; [tradução Peterso Rissatti]. - Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2013.
Tradução de: Die Dienstagsfrauen
ISBN 9788577343676
1. Romance alemão. I. Rissatti, Peterso II. Título.
13-1876. CDD: 833
CDU: 821.112.2-3
CASA DA PALAVRA PRODUÇÃO EDITORIAL
Av. Calógeras, 6, 1001 – Rio de Janeiro – RJ – 20030-070
21.2222 3167 21.2224 7461
[email protected]
www.casadapalavra.com.br
Para Peter Jan, Lotte e Sam
1

–Vai logo, Tom! Levanta a bunda daí! – gritou Luc. – As clientes vão
chegar a qualquer momento.
O dono do Le Jardin enxotou seu novo garçom sem dó. A cada instante,
choviam ordens sobre o jovem.
Eu disse cinco copos.
Essa louça não.
Onde ficam as flores?
Eu tenho que cuidar de tudo sozinho?
Tom não entendeu bulhufas. Por que Luc fazia tanto alvoroço? Não tinha
ninguém no livro de reservas que justificasse essa atitude.
– Não temos nenhuma reserva para a mesa da lareira.
Luc parou um instante, como se aquela fosse a observação mais idiota que
já tinha ouvido na vida.
– Você olhou o calendário?
– Claro.
– E?
– Hoje é terça-feira.
Luc aumentou a voz:
– A primeira terça-feira do mês. Isso significa…
– Algum feriado francês? – Tom arriscou.
Luc respirou fundo. Talvez tivesse sido um erro dar uma chance a um
jovem desempregado que acabara de largar a escola. A única experiência
gastronômica de Tom vinha de sua mais tenra idade. Certa vez, um idiota
movido pelos hormônios participou da concepção do rapaz no restaurante do
clube esportivo TSV Euskirchen. Infelizmente, esse idiota era o próprio Luc.
Por isso, foi difícil dizer não quando, cinco semanas antes, a ex despejou o
infeliz produto de seu caso amoroso na soleira da porta. O rejeitado tinha 19
anos e era a cara da mãe. Na opinião de Luc.
– Minhas clientes mais fiéis fizeram reserva para as oito, como toda
primeira terça-feira do mês. Eu ainda era garçom quando elas começaram a
vir.
Luc se empolgou e seu sotaque de Colônia denunciou que ele de francês
nada tinha, sendo “Luc” apenas um nome artístico. No entanto, a
proximidade com o Institut Français contribuía para não mudar nada na
orientação do restaurante.
Tom continuava sem entender.
– E daí?
Luc suspirou uma segunda vez. Aos 65 anos, já precisava começar a
pensar num sucessor. Mas como deixar claro para um filho tolo o que havia
de tão especial nessas cinco mulheres? Havia quinze anos frequentavam seu
estabelecimento. No começo, todas as terças-feiras, depois uma vez por mês.
Era um dia chuvoso e sem muito movimento e Luc estava prestes a fechar
quando as cinco, ensopadas e aos risinhos, chegaram à porta do restaurante.
Cinco mulheres que não poderiam ser mais diferentes umas das outras:
Caroline, a advogada fria, esportiva, de rosto talhado com traços clássicos;
Judith, pálida, magra e transparente; Eva, a médica durona recém-formada;
Estelle, indiscutivelmente uma cidadã do mundo; e a mais nova, Kiki, que
estava terminando a escola, luminosa como uma borboleta colorida.
Foi Caroline quem convenceu Luc a abrir algumas garrafas. A eloquente
advogada tinha, na época, a última palavra. No entanto, foi ideia de Judith
sair para beber algo após o curso de francês.
– Quero aproveitar minha noite livre até a última gota – explicou. Mais
tarde ficou claro que Judith havia mentido ao ex-marido, Kai, dizendo que
seu chefe exigiu e estava pagando um curso de francês para ela. Sabia que
seu marido pedante ia para a cama pontualmente às 22h30 e não perceberia
que, a partir daquele dia, todas as terças-feiras ela chegaria cada vez mais
tarde. O curso de francês marcou o começo do fim daquele casamento. Judith
mentia para Kai sobre os cursos e continuava a se encontrar com as amigas.
Passou-se uma pequena eternidade até as amigas encherem Judith de
coragem para acabar de uma vez por todas com seu casamento infeliz. Com
os anos, Luc observou como, de uma secretária insegura, surgira uma mulher
que, com a ajuda do esoterismo e da sabedoria oriental, buscou o próprio
caminho.

Luc acompanhava o passar dos anos das mulheres de terça-feira. Foi


testemunha de como Caroline, jurista talentosa, transformou-se numa famosa
advogada criminalista; como Eva, médica apaixonada, pendurou o jaleco e
constituiu uma família; e como a estudante Kiki crescera. Em quinze anos,
tudo mudou. O Le Jardin também cresceu e passou de lugarzinho
recomendado por amigos a ponto de encontro da moda, e Luc, o garçom,
passou a ser proprietário. Apenas a luxuosa Estelle, a mais experiente das
mulheres de terça-feira, permaneceu fiel a si mesma. Era importante que
notassem sua riqueza, sua segunda residência em St. Moritz e suas
habilidades no golfe. Luc achava que ela já havia nascido num terninho
Chanel.
– As cinco mulheres que vieram aqui faz pouco tempo.
A ficha de Tom finalmente caiu. O rosto todo iluminou-se.
– Aquela mais nova também vem? A de pernas compridas e saia curta?
– Kiki? Tire os olhos de Kiki! – alertou Luc.
– Mas ela parece bacana.
Luc sabia bem. Kiki não era bacana. Kiki era maravilhosa. Alegre,
frenética, cheia de energia, bem-humorada e apaixonada. Afirmava que “falta
de sexo dá espinha”. Queria aprender francês pois, na viagem que fez após
terminar a escola, apaixonara-se perdidamente por Matthieu, de Ruão. Achou
que daria um novo impulso ao relacionamento se pudessem ao menos
conversar. Infelizmente, logo após quatro horas de “Francês para Iniciantes”,
percebeu que Matthieu gostava mesmo era de falar da ex-namorada. Deixou-
se consolar por Nick. E por Michael. Kiki sonhava com um relacionamento
sério, mas amava mais o sexo que os homens que dele participavam.
“O bom de ser solteira é que posso me concentrar na vida profissional”,
tentava se convencer. Era solteira, agora faltava apenas uma carreira de
verdade. Seu emprego atual, no renomado estúdio de design Thalberg, não
trouxe o tão esperado sucesso. Kiki fazia parte da equipe de designers que
trabalhava para Johannes Thalberg. Mente criadora e fundador da empresa,
ele desenhava móveis, luminárias, acessórios de sala e cozinha, às vezes
também a decoração completa de lojas e hotéis. Kiki ainda não havia
conseguido se destacar no grupo de designers, mas acreditava no amanhã.
Cada dia, um novo dia.

– Agora conta – pressionou o jovem garçom.


Luc poderia contar muitas coisas, não apenas as histórias dos homens de
Kiki. As cinco mulheres nem sonhavam o quanto Luc conhecia de suas vidas.
Observador, sabia até das tradicionais viagens de muitos dias das mulheres de
terça-feira. Não surpreendia que anedotas a respeito das viagens anuais
aquecessem, finalmente, as rodadas de terça-feira, levando a regulares
explosões de gargalhadas.
Na primeira viagem, isolaram-se nas montanhas do Reno a fim de estudar
para a prova de francês. O fim de semana de estudos das mulheres de terça-
feira foi um grande sucesso; a prova, nem tanto. Kiki e Estelle nem
apareceram. Na época, Kiki estava ocupada com a linguagem corporal
francesa e Estelle concluiu que uma casa de veraneio na França era out e no
Algarve era in. Por que então continuar a aprender francês? O estômago da
jovem médica, Eva, revirava de empolgação, de modo que passou grande
parte do tempo da prova no banheiro do Institut Français. Mais tarde
souberam que a empolgação dizia menos respeito à prova do que a seu novo
calculador de ciclo fértil, que ainda não sabia usar direito. Justamente por isso
David, seu primogênito, estava a caminho. Sete meses depois, nasceu com
mais de quatro quilos e 57 centímetros. Por causa dele, Eva nunca mais foi a
mesma. Nem com os exames de francês, nem com a vaga de assistente no
Hospital do Coração de Paris. Até hoje guarda o contrato assinado: “Símbolo
da vida que eu quase tive”, dizia.
Judith fez a prova como devia e não passou. A quantia gasta em terapia
para tratar o medo da prova, afanada secretamente do orçamento doméstico
de Kai, poderia ter sido usada de forma muito mais razoável. Apenas
Caroline, advogada formada com louvor, passou na prova, com nota máxima,
obviamente. Ela brilhava com seu francês perfeito. Embora Luc
acompanhasse a carreira da moça pelos jornais, para ele nunca ficou claro por
que precisava do idioma: nenhum criminoso perigoso com o qual a advogada
criminalista já se envolvera sequer tentou assaltar o Louvre, sequestrar um
avião da Air France ou explodir a torre Eiffel. Mesmo o marido de Caroline,
Philipp, clínico geral em Lindenthal, preferia passar as férias na Itália.
Nenhuma vez os dois filhos de Caroline precisaram de ajuda com o dever de
casa de francês. Como os quatro filhos de Eva, os de Caroline não tinham
problemas na escola.

Luc poderia ter contado histórias ao seu curioso filho por horas a fio. No
entanto, sua boca era um túmulo. O dono do restaurante era esperto o
suficiente para nunca deixar as mulheres perceberem o quanto revelavam
involuntariamente. Luc era acompanhante e admirador silencioso das
mulheres de terça-feira, que faziam do Le Jardin seu confessionário.
A mesa estava posta com perfeição, o chef, preparado, as velas, queimadas
pela metade.
– Onde elas estão?
Inquieto, Luc controlava o horário. Quinze para as oito.
Era muito comum que grupos do Institut Français, que ficava nas
proximidades, viessem ao Le Jardin. Incomum era que dali surgisse uma
amizade para a vida toda. Absolutamente estranho era, contudo, que a mesa
das mulheres de terça-feira ficasse vazia naquele dia.
Quando Luc fechou seu restaurante pouco antes das onze, sem que
Caroline ou uma das outras aparecesse, ele sabia que alguma coisa estava
errada. Mais errada que qualquer coisa que tivesse visto nos últimos quinze
anos.
2

–Precisamos cancelar com o Luc.


Alguns dias antes, as amigas ainda falavam sobre isso. Quando a terça-
feira chegou, nenhuma pensava mais a respeito.
Arne, atual marido de Judith, estava no quarto andar do Hospital Sankt
Josef, em Colônia. Quarto andar. Com essas duas palavras de pouca
importância, os médicos e enfermeiros descreviam quase amigavelmente a
ala dos leitos de morte. Tudo ali era atenuado. A luz, as vozes, e
principalmente as esperanças. No quarto andar esperava-se pela morte. Arne
aguardava havia seis dias. E com ele, Judith e as amigas de terça-feira, que se
revezavam.
A doença de Arne foi como uma corrida de montanha russa. Cada arranque
para cima revelava-se uma ilusão. Depois da subida, vinha a queda em ritmo
alucinante. As notícias ruins chegavam numa sequência rápida:
Inoperável.
Exames de sangue ruins.
A quimio não adianta.
Apenas questão de tempo.
Por dezenove meses foi assim. Dezenove meses em que Arne e Judith
evitaram o tema morte sempre que podiam. Judith tentou afastar o
pensamento de que Arne logo não estaria mais a seu lado. Ainda assim, o fim
deveria chegar.
– Devemos garantir que sempre uma de nós esteja ao lado de Judith –
encorajava Eva ao dividir as amigas em turnos, cobrindo as 24 horas do dia.
Contudo, foi ela a primeira a falhar. Lene, sua filha de 13 anos, bagunçou o
cronograma da mãe ao cair de bicicleta e perder um pedaço do dente. Era
impossível para Eva deixá-la sozinha nessa situação.
“Você pode me substituir?”, escreveu Eva numa mensagem de texto para
Caroline.
“Vou despachar um processo rapidinho”, prometeu a advogada
criminalista, que estava no meio de uma audiência.
Pouco antes de o revezamento acontecer, Eva precisou se despedir. Assim
aconteceu aquilo que todas queriam ter evitado: Judith estava pela primeira
vez totalmente sozinha no quarto andar. Consigo e com medo.

– Faremos para a família uma despedida tão discreta quanto possível! –


prometeu a enfermeira robusta, com forte sotaque do leste europeu. De vez
em quando, trocava as infusões e trazia para Judith um chá com suspeito
cheiro de rum.
– Ilegal, mas bom – murmurou com ar conspirador. – Medo, solúvel em
álcool.
– Muito obrigada, enfermeira…
Como era o nome dela? Judith gostaria de tê-la chamado pelo sobrenome,
mas não conseguia ver sentido algum na sequência bizarra de consoantes que
ondulava para cima e para baixo no enorme peito tcheco da enfermeira.
– Os tchecos são extremamente avarentos com vogais – Arne brincou no
primeiro dia, num momento de surpreendente clareza. – Eles deveriam
negociar a liberação das vogais com os finlandeses.
Judith sorriu, cansada.
– É verdade – insistiu Arne, com voz fraca –, pegue a palavra sorvete. Os
tchecos dizem zmrzlina. E os finlandeses? Jäätelöä.
Judith não tinha ideia se era verdade. Entendia bem apenas por que Arne
fazia aquilo: mesmo no leito de morte, tentava animar Judith, até perder as
forças.

Indefesa, Judith precisou assistir Arne, cada vez mais magro, afundar nos
travesseiros, o nariz cada vez mais pontudo, a respiração cada vez mais leve.
Suas mãos tremiam como se quisessem sair voando. A cada minuto,
desaparecia o homem grande e forte pelo qual se apaixonara perdidamente
havia cinco anos, apesar da barba que fazia cócegas e da predileção por
camisas de flanela xadrez.
– Parece que vai pegar uma guitarra e cantar sobre uísque, mulheres e
pistolas – sussurrou Estelle, alto demais, para as amigas, quando o
encontraram pela primeira vez.
– Tenho um rosto achatado e um péssimo gosto para roupas. É coisa minha
– retrucou Arne, também malcriado.
O mesmo sentiu por Judith. Ela era ”coisa dele”. Sessenta e três dias
depois de tê-la encontrado em uma livraria, entre a prateleira de feng shui e
budismo, casaram-se em um barco no rio Reno.
– Tudo corre, como o rio – anunciou Arne. – E é assim que gostamos.
As amigas de Judith não foram as únicas atropeladas pelos acontecimentos.
– Que grande prazer conhecer a Julia – gritou alegre uma tia robusta
vestida de lilás. Exalava o aroma de naftalina e água-de-colônia.
– Ela se chama Judith – corrigiu Caroline pela enésima vez, já que não
faltaram tias de Arne.
O rosto da senhora corou tanto que combinou com o tom de lilás.
– Não faz mal – interrompeu Estelle. – Também conhecemos Anton há
poucos dias.
– Arne – advertiu a tia, sem se dar conta da piada de Estelle.
– Foi tudo tão repentino – as pessoas confirmavam mutuamente, chegando
então ao “Quem imaginaria?”.
– Eu – disse Judith. – Soube desde o primeiro momento que envelheceria
com Arne.
E agora o destino a levara ao quarto andar do hospital.

Lá fora, pela primeira vez em dias, o sol surgiu por detrás das nuvens. Nas
enfermarias, começava o horário de visitas e, no quarto andar, o tempo
parecia passar lentamente. Cinquenta e nove minutos até que a enfermeira
aparecesse novamente, dez minutos para o chá, três minutos para arrumar o
travesseiro de Arne, treze segundos até a gota com a solução de morfina se
dissolver e escorrer pela mangueira transparente.
Onde estava Caroline? Todas as quatro amigas eram bem-vindas. A
companhia era reconfortante. Eva trazia potinhos com guloseimas, Estelle,
uma fofoca quentinha, Kiki, o bom humor e uma brisa de frenesi. Esse agito
era bem melhor que o silêncio mortal no qual se esperava pelo fim.

Um barulho veio do corredor: eram os agentes funerários. As pessoas os


ouviam de longe. As camas da enfermaria rangiam. As macas dos agentes,
contudo, rolavam sobre rodas de borracha macia no linóleo. Ouvia-se apenas
esse zumbido fino, além dos passos pesados dos parentes que deixavam o
quarto do falecido. Uma ou duas horas depois, vinha a turma da desinfecção,
com seus carrinhos de limpeza chiando agudos. Então, novamente uma cama
rangia. Judith ouviu algumas vezes, nos últimos dias, essa canção fúnebre.
Talvez fosse pior que a respiração de Arne.

Antes de Arne ficar doente, eram milhares as vontades de Judith. Agora,


tinha apenas uma: poder ouvir a voz dele mais uma vez, seu riso solto, sentir
ainda uma última vez as mãos em sua pele. Uma vez mais. Por favor.
Judith não sabia como continuaria a viver sem Arne. Não conseguia
imaginar que sairia do quarto andar para uma casa vazia. Como dormiria
novamente na cama em que tinham deitado juntos? Ela nunca gostou daquele
móvel grande e desajeitado que ocupava quase todo o quarto.
Que estranho. Judith logo festejaria seu quadragésimo aniversário e nunca
havia comprado uma cama própria. Aos 17, deixou na casa dos pais o beliche
que dividia com o irmão, oito anos mais novo, e mudou-se para a casa de um
namorado. Kai tinha 27 e era dono de um colchão largo de oitenta
centímetros. A cada movimento, ela raspava o braço na parede, que mais
parecia um ralador. Kai tinha misturado serragem com a tinta branca.
– Papel de parede prensado genuíno é muito caro – ele afirmava.
Judith amava tapetes de parede em cores quentes, mas a casa era de Kai.
Também era dele o dinheiro e a visão de mundo. Além do papel de parede
prensado, a economia e as alianças de casamento. Mesmo no sexo, Kai
amava os cálculos. Beijava sempre primeiramente uma diagonal até chegar
ao umbigo e avançava em paralelo com as palmas da mão até a coxa direita,
como se tivesse aprendido de cor num livro de autoajuda sexual. Após alguns
anos a seu lado, Judith ficou tão congelada por dentro que fugiu para Wolf,
dono de um colchão d’água. Mais tarde, fugiu para Arne. Kai colocava
jornais no banco do carro quando chovia. Arne dançava descalço pelo parque
e lavava os pés em poças d’água.

– Teoricamente – Arne sussurrou com esforço. Judith deu um pulo de susto.


Há dias o silêncio dominava o quarto e agora vinha uma palavra.
– Teoricamente – murmurou Arne novamente, levantou a mão e a deixou
cair, exausto. O que Judith também presenciou, aproximando-se da boca de
Arne, e nela permaneceu essa única palavra: “Teoricamente!”
No leito de morte, Thomas Mann exigiu seus óculos, Goethe, mais
claridade e Jesus, segundo a lenda, não pediu mais nada. “Está consumado”,
teria anunciado na cruz antes de voltar ao seu Pai celestial. Aos ouvidos de
Judith parecia que cinco especialistas em marketing tivessem por muito
tempo meditado sobre quais últimas palavras seriam mais eficientes numa
crucificação. A última mensagem de Arne era esta sua última palavra:
teoricamente.
Não fazia sentido. Seu primeiro marido, Kai, representava a teoria. Arne
era quem aproveitava a vida na prática, um otimista incurável que ajudava
tudo que estivesse entre o céu e a terra. Não fosse a doença, teria peregrinado
para Lourdes, para a gruta de Nossa Senhora?

A porta abriu-se com tudo e arrancou Judith de seus pensamentos. Caroline.


Finalmente. Finalmente! Aliviada, afundou a cabeça no ombro da amiga.
Mesmo que a advogada não fosse alguém para quem abraços eram
corriqueiros. Judith simplesmente se alegrou por não estar mais sozinha.
Caroline acariciava as costas da amiga com suavidade:
– Sinto muito mesmo, Judith.
– Eva precisou ir embora por causa da história do dente de Lene. Ela caiu
de bicicleta.
– Quando aconteceu?
A compaixão soava na sua voz. Caroline normalmente era a primeira a
criticar quando Eva era tão monopolizada pela família.
– Ontem à tarde, quando voltava da escola. Mas o dentista quis dar uma
olhada hoje de novo.
– Judith, estou falando de Arne.
Caroline fulminou Judith com um único olhar. Eram esses olhos alertas,
espertos, íntegros que causavam medo nos adversários judiciais. E, às vezes,
também em Judith. Buscando ajuda, virou-se para Arne e descobriu o que
Caroline percebera à primeira vista. Arne tinha parado de respirar. A pele fina
que recobria o rosto esquálido reluzia cinzenta. Foi-se silenciosamente, como
se não quisesse assustar Judith.
3

Arne Nowak faleceu no início da noite de terça-feira. Deixou a mulher,


Judith, uma casa com três quartos na Blumenthalstrasse, uma dúzia de
camisas de flanela e uma bomba-relógio. No entanto, Arne tinha consciência
de que estava preso ao quarto andar. Nesse estado de semiconsciência
sombria para o qual a morfina o deslocava, lampejava sem clareza o
pensamento aterrorizante: o diário, um Moleskine preto, ainda estava no
armário. O local era seguro enquanto vivesse, mas disso ele esqueceu.
Seu otimismo inalterável pregou uma última peça: Arne recusava-se a
acreditar que sua hora havia chegado. Cada dia convencia a si mesmo e a
Judith de que o tumor ainda daria mais algum tempo. Toda noite orava pela
prorrogação. Por que não queimara aquelas anotações suspeitas? Judith nunca
deveria saber o que ele fez. Nenhuma mácula poderia perturbar a lembrança
dos anos que passaram juntos.
Que seria quando Judith encontrasse o caderninho? Que seria quando ela
contasse às amigas? O que aconteceria quando mostrasse as anotações a elas?
Dez olhos veriam melhor que dois. Estelle tinha uma queda por escândalos,
Caroline tinha um faro infalível para mentiras. Uma vez no quarto andar, ele
não conseguiu mais vislumbrar as consequências caso a verdade viesse à
tona. Não apenas para Judith, mas também para as amigas.
Teoricamente…
“Teoricamente você pode começar a jogar fora minhas coisas, você não
precisa se incomodar com as tranqueiras antigas.” Ele diria.
O pensamento desapareceu antes que fosse concluído.
“Teoricamente”, ele começou, então perdeu o fio da meada e a
concentração. Por um momento, acreditou precisar fazer algo importante; no
próximo estava lá apenas o cansaço. Um véu de languidez cobriu todas as
preocupações. A boca estava seca. Para ele, tanto fazia. Não tinha vontade
sequer de respirar.
Às vezes, uma palavra penetrava na névoa, às vezes sentia a mão de Judith
na sua. Com esforço, abria as pálpebras, via os olhos úmidos de Judith e
voltava a esquecê-los no próximo segundo. Nada permanecia e era
impossível corrigir qualquer erro. Às vezes, nem sabia mais onde estava.
Tudo tinha um cheiro muito estranho, de dias deixados para trás havia muito
tempo, de cigarro. Os velhos cigarros Eckstein nº 5. Ele logo reconheceu a
marca, seu avô fumou essa coisa após a guerra. “O diário, talvez o avô
pudesse… eu deveria…” passava pela cabeça dele. Então, nada mais passou.

Arne Nowak morreu com a sensação difusa de ter esquecido algo importante.
Ele tinha razão.
4

Foi um enterro digno e, em seguida, um jantar impressionante no Le Jardin.


“A chatice da morte, o discurso”, Arne teria reclamado. No entanto, os
convidados estavam satisfeitos. O remorso corroía apenas Judith.
A sensação de não ter feito o melhor durante o tempo que estiveram juntos
crescia nela como um tumor. Judith castigava-se com acusações. Estragou
tantos momentos na vida a dois. Sentia falta dos primeiros dias felizes com
Arne: café da manhã na cama, almoço na cama e à noite dormir juntinhos
sobre as migalhas de pão. Como gostaria de reclamar novamente sobre a
sujeira na cama!
Seis meses após a morte de Arne, Judith teve a sensação de que havia
chegado ao fundo do poço absoluto. Sem o contrabaixo, sem o barulho
característico dos chinelos e dos papéis que deixava por toda a parte, a casa
parecia estranha. Não tinha coragem de jogar fora as coisas de Arne, que
agora eram inúteis: um gancho vazio atrás da porta, um criado-mudo órfão,
uma prateleira inútil no banheiro. Judith não tinha nada com que pudesse
preencher as lacunas que Arne havia deixado.
Até aquele dia, ainda não tinha ousado tocar no guarda-roupa. Com
cuidado, empurrou a porta para o lado. A mão deslizou suavemente sobre o
casaco de couro, a jaqueta de veludo que usava na livraria, com apliques
ovais de couro nas mangas e, por fim, as camisas. Aquelas peças de roupa de
gosto duvidoso, tão vergonhosas no passado, agora traziam uma lembrança
tão doce. Com delicadeza, puxou uma das peças de flanela marrom, verde e
laranja. Algo caiu. Um objeto. Um caderno. O diário de Arne.
Na capa preta, Arne havia colado com fita adesiva um santinho: à beira de
um riacho, cercada de ovelhas, uma menina rezava para a aparição de Maria.
Judith conhecia a história que se escondia por trás da imagem. A menina era
Bernadette Soubirous, filha de um moleiro, para quem mais de 150 anos atrás
aparecera a Virgem Maria. Lá, onde a pequena teve suas visões, estende-se
hoje a via de peregrinação de Lourdes. Lá, milhares de romeiros buscam
diariamente cura e fortalecimento. Peregrinos como Arne.
Arne havia começado seu caminho para Santiago de Compostela dois anos
antes do diagnóstico de câncer. Dois mil e quatrocentos quilômetros
separavam a porta de sua casa em Colônia do portal ocidental da imponente
catedral espanhola que abrigava o túmulo do apóstolo Tiago, o Maior. Arne
dividira o caminho em etapas que precisavam de duas a três semanas para
serem cumpridas. Professor de uma escola profissionalizante, tinha mais
férias que Judith, que na época do casamento trabalhava na recepção de um
centro terapêutico em Colônia, indicando aos visitantes o caminho para
fisioterapeutas, ergoterapeutas, dançaterapeutas, jogoterapeutas e
fonoterapeutas, todos reunidos sob o mesmo teto. Após a morte de Arne,
Judith pediu demissão, contrariando o conselho das amigas.
A viagem de peregrinação de Arne estava planejada para muitos anos.
Registrava meticulosamente as estações de sua viagem em um diário. Às
vezes, Arne mostrava a Judith uma página: um desenho, um poema, um
cartão-postal que colava em suas etapas. Judith havia esquecido que o
caderno existia. Agora, parecia o legado mais importante do marido. Imersa,
folheou as páginas sobre a viagem de peregrinação.
Judith sequer percebeu que o telefone tocava, de tão agitada que ficou pelo
reencontro com os pensamentos de Arne. Página por página, andou com ele
pelo Caminho de Santiago até o texto ser interrompido no meio da frase.
Após receber o diagnóstico de câncer, Santiago de Compostela virou algo
inalcançável. Arne alterou a rota. Seu objetivo e sua esperança ficaram
apenas em Lourdes, que corria num trecho paralelo ao do Caminho de
Santiago. O caderno preto de anotações o acompanhou também nessa última
viagem, para a qual escolhera a praia de Narbonne como ponto de partida. Na
época, havia planejado 430 quilômetros até Lourdes, divididos em dezessete
etapas. O branco virginal das últimas cinquenta páginas e a realidade trágica
por trás dele atingiram Judith como um raio. Arne esperava encontrar a cura
na fonte de Bernadette. Nunca chegou a Lourdes. Totalmente exausto,
interrompeu a viagem. Seis semanas depois, estava morto.
Nos meses após a morte de Arne, Judith ficou presa a um estado de
prostração. Na maioria dos dias conseguia apenas o mais essencial: Inspirar.
Expirar. Inspirar. Expirar. Agora estava mais do que claro o que devia fazer.
5

Caroline estava preocupada. O processo mal tinha terminado quando discou


mais uma vez o número de Judith. Tentou falar com a amiga a tarde toda. Era
novamente a primeira terça-feira do mês e Caroline queria ter certeza de que
Judith não esqueceria o compromisso. Ela não podia faltar de modo algum,
pois decidiriam a viagem anual.
Uma colega advogada a cumprimentou pelo processo vencido. Caroline
quase não percebeu. Tinha uma sensação de pressão no estômago. Se Judith
não aparecesse no Le Jardin, seguiria imediatamente para a
Blumenthalstrasse.
Passos pesados interromperam sua linha sombria de pensamento. Estelle
sempre afirmava que era possível ouvir a diferença entre sapatos caros e
baratos pelo barulho do passo. Plástico rangia. Aqui soavam como solas de
couro caras: sapatos de advogado. De fato, o representante da parte vencida,
Paul Gassner, tentava freneticamente alcançá-la. Isso porque ela tinha
acabado de arruinar seu dia e seu relacionamento com o cliente. A propósito,
não era a primeira vez. Gassner era charmoso, mas Caroline não estava a fim
de uma revisão do caso. Tinha pressa em chegar ao Le Jardin e tentou
dispensá-lo o mais rápido possível:
– O juiz proferiu a sentença a nosso favor, não temos o que discutir.
O advogado não se deixou abater. Ao contrário, sem qualquer aviso,
apresentou uma proposta para ela.
– Sra. Seitz, quando a senhora vai se juntar a mim? Formaríamos uma
equipe fabulosa!
Da forma como ele falou, fez parecer uma oferta imoral. Queria um
encontro com ela? Deus do céu. Era casada, muito bem casada.
– Como o senhor sabe, sou comprometida. Profissional e pessoalmente.
E ponto.
O advogado não se deixou impressionar.
– Minha cara Caroline – tentou Gassner novamente –, sejamos sinceros.
Não somos mais jovenzinhos. Se a senhora quiser decolar novamente, esse é
o momento certo.
Que audácia sem tamanho! Mas Caroline não deixou nada transparecer.
Aprendeu em muitos processos criminais a não falar com total franqueza.
Enquanto já fervia por dentro, permanecia tranquila por fora:
– Quem disse ao senhor que quero mudar minha vida?
– As crianças fora de casa, sem netos em vista. Seu marido tem o
consultório, os congressos, o esporte, e a senhora? Uma vez ao mês o
encontro com as amigas do curso de francês. Não pode ficar apenas nisso.
De repente, Caroline parou. Aquilo ecoou em sua cabeça. Como um
estranho podia saber dessas coisas? Aonde queria chegar? Havia um ar de
compaixão na voz de Gassner? Por um momento, ela esqueceu até mesmo
sua preocupação com Judith.
– Não leve a mal se fiz toda essa investigação. No fim das contas é preciso
saber quem trazer para o próprio escritório! – explicou o Sr. Bonitão
Atrevido, com um sorriso insolente.
O olhar de Caroline disse tudo: não parecia se sentir valorizada sob a
espionagem de alguém. No entanto, o homem mantinha um sorriso safado no
rosto. Claro, se considerava o George Clooney da advocacia de Colônia.
Caroline também sorriu, charmosa:
– Onde posso encontrar o senhor?
– Para mulheres inteligentes e boas notícias, estou disponível dia e noite.
Com a certeza de que conseguira uma chance com Caroline, Gassner
rabiscou seu número particular em um cartão de visitas.
– A senhora pensará na minha proposta?
– Não! – disse Caroline, curta e grossa. – Mas quando eu precisar de
informações sobre a minha vida e minha situação, entro em contato com o
senhor.
Arrancou o cartão de visitas das mãos dele e o deixou para trás, perplexo.
Quando entrou no carro, um sorriso satisfeito iluminou seu rosto. Caroline
gostava de ser cortejada, mas o colega não precisava saber disso.

– O advogado da parte contrária quis te aliciar?


As mulheres riam solto enquanto Caroline contava a história na mesa da
lareira, meia hora depois.
– Como se eu fosse mesmo me envolver com alguém que me espiona –
Caroline terminou assim a história.
Sentiu-se mais leve ao ver que Judith acabava de entrar no Le Jardin. A
amiga parecia mais pálida e transparente que da última vez. Mas estava lá.
Caroline ficou tão aliviada que esqueceu o advogado.
6

Nesse meio-tempo, Tom presenciou sete vezes a primeira terça-feira do


mês. Sete vezes pôs a mesa da lareira, sete vezes tentou em vão chamar a
atenção de Kiki.
Havia muito não precisava mais pensar sobre qual cardápio era adequado
para quem. A salada era de Judith, que mal reagia quando servia a ela o prato
feito com tanto carinho. Caroline, que se sentava à ponta da mesa como se
tivesse a presidência, sempre observava Judith. As batatas assadas, os feijões,
o bife, nada fazia com que ficasse satisfeita. Algo estava estranho com Judith.
Mas o quê?
Estelle não percebeu nada. Com apetite voraz, destrinchava sua lagosta
com molho espumante de estragão e crustáceos. Normalmente, Luc não
colocava nenhuma firula luxuosa no cardápio. Para Estelle, fazia uma
exceção mensal. Ela agradecia com generosas gorjetas e recomendações em
seu círculo de conhecidos, que transformou o Le Jardin num sucesso. Mais
que os pratos requintados, Estelle interessava-se pelos envolvimentos
amorosos. Divertia-se com a história do advogado:
– Caroline tem um admirador secreto.
– Tudo puramente profissional, Estelle.
– Quem contou para ele sobre nosso curso de francês? Já faz quinze anos –
surpreendeu-se Eva.
Caroline também estava perplexa:
– Ele sabia até mesmo sobre os compromissos de Phillipp. Melhor que eu!
Kiki suspirou fundo:
– Isso nunca aconteceu comigo. Ainda preciso agradecer quando consigo
fazer o design de uma caneca de plástico para o Thalberg. Nunca ninguém
quis me aliciar desse jeito.
Nesse momento, Tom flambava o prato de Kiki. Tentou impressioná-la
com uma chama espetacular. Ela nem prestou atenção.
Decepcionado, Tom virou-se para Eva, que ainda segurava o cardápio.
Enquanto as outras já estavam comendo havia muito tempo, Eva ainda não se
decidira. Nervosa, puxava para baixo seu pulôver curto demais. Como suas
amigas conseguiam sempre estar com a aparência tão perfeita? Para Eva,
bastava apenas jeans, suéter e um rabo de cavalo.
– Fígado, talvez eu devesse comer fígado. Frido ama fígado.
As amigas rolaram os olhos para cima. Difícil acreditar que Eva fora, no
passado, a mais ambiciosa do quinteto. Quinze anos de casamento com Frido
e quatro filhos depois, ela não sabia mais do que gostava. Eva cozinhava e
pensava apenas pelos outros.
– Quero o mesmo que ela – disse, para finalizar os serviços de Tom. Eva
apontou para Judith que, de cabeça baixa, empurrava para lá e para cá
algumas folhas de alface solitárias e minúsculas cenourinhas. Não precisava
levantar a cabeça, pois sentia que, naquela noite, Caroline não lhe desviava a
atenção, com aquele olhar marcante que conhecia desde o hospital. Esse olhar
do qual não era possível fugir, que obrigava a pessoa a falar.
– Está tudo bem comigo… de verdade… estou saindo muito mais…
apenas essa semana não cheguei a sair… troquei a grama do túmulo –
murmurou. Judith não conseguia esconder que as lágrimas estavam prestes a
brotar.
– Posso fazer algo por você? – perguntou Caroline.
– Chega de perguntas, Caroline, por favor. Senão vou chorar de novo e não
quero mais chorar… – a voz dela tremia.

Havia seis meses as amigas viam como Judith se torturava. Era hora de fazer
algo. Elas se esforçavam para animá-la.
– Vamos ao que interessa: para onde as mulheres de terça-feira vão viajar
este ano?
Luc cutucou seu filho:
– Preste atenção no que vai acontecer agora!
De fato, mal Caroline falou essa frase e um tumulto começou. Estelle foi a
primeira a falar o que queria:
– Quero dormir sob as estrelas. Nem precisam ser muitas. Cinco estrelas
no hotel, duas no restaurante.
Kiki tomou a palavra de imediato:
– Preciso de cidade grande. Quero sair, ir para a farra. Solidão eu já tenho
em casa. Vai chegar o dia em que apenas as operadoras de celular e sites de
compra vão me dar parabéns pelo meu aniversário.
– Para mim, está tudo certo – rebateu Eva. – Eu acompanho.
Luc riu:
– Isso vai durar no mínimo uma hora. Então Caroline dá a voz de comando
e a gente serve o champanhe de reconciliação.
Caroline tentava colocar ordem no evento com propostas concretas:
– Há pouco tempo, um cliente me contou algo sobre uma pousada na
Áustria. Dá para fazer trilhas ótimas. E a quadra de tênis…
As outras nunca saberiam o que havia com a quadra de tênis, pois a
opinião de Estelle já decidiu:
– Pousada? Isso me cheira a quarto duplo. Não vou a lugar nenhum com
quarto duplo. Nem minha casa tem quarto duplo.
– Este ano eu não vou.
Judith havia refletido durante todo o jantar sobre como dar a notícia às
amigas. Sua recusa desapareceu em meio às vozes.
– A pousada oferece diversas possibilidades. Não precisamos todas as
vezes…
– Este ano eu não vou! – Judith repetiu tão alto que todas se assustaram.
Silêncio envergonhado na mesa. Todas as quatro olharam espantadas.
– Que você disse? – questionou Caroline.
– Não vou com vocês.
De todos os lados voaram comentários para Judith.
– Como assim?
– Por quê?
– Você é quem mais precisa sair de casa.
– Que ideia é essa?
– Claro que você vem com a gente.
No restaurante, havia tempos todos os outros clientes tinham parado de
comer. Com curiosidade flagrante, olhavam as mulheres em sua discussão
acalorada.
– Encontrei o diário de Arne – Judith tentou justificar sua decisão. A
perplexidade entre as mulheres de terça-feira era grande.
– Que isso tem a ver com nossa viagem?
Hesitante, Judith explicou o que quis dizer:
– Arne mantinha um diário, apenas quando viajava. Para o Caminho de
Santiago. Contudo, queria ir para Lourdes. Por conta da água milagrosa.
Os olhos dela se encheram. Sua voz ficava cada vez mais baixa.
– Se ele tivesse chegado… essas, essas páginas brancas no diário de Arne,
isso é o pior!
– Não entendo o que isso tem a ver com a nossa viagem – disse Caroline,
balançando a cabeça.
Judith deu mais força à voz:
– Não tenho tempo de ir com vocês. Vou fazer o caminho de Arne até o
fim.
Finalmente, a revelação. Estava claro para Judith o que significava aquele
ato para a turma. Nunca uma das amigas falhara na tradição conjunta. Seria a
primeira vez em quinze anos que não estariam todas na viagem anual.
Com cuidado, Judith abaixou a cabeça. Esperava que as amigas fossem lhe
jogar tudo na cara, o mesmo que já havia dito para si mesma milhares de
vezes.
Seis meses, Judith! Não chegou a hora de você voltar a viver?
Aos poucos você precisa se separar de Arne.
Judith! Olhe para a frente! Não para trás!
Você já tentou se confessar?
Esse foi o padre do enterro de Arne que se intrometeu em seus
pensamentos. Por que Judith deveria se confessar? Para que se concentrar nas
coisas que as pessoas fizeram na vida? Era o que ela odiava no catolicismo.
Constantemente as pessoas sentiam-se culpadas. Por tudo possível. E pelo
impossível também.
“Bobagem. O catolicismo perdoa tudo. Isso acalma imensamente”,
responderia Arne.
Judith travava esse diálogo interno incessante com seu falecido marido. A
todo o momento ela refletia sobre como poderia não pensar em Arne. Ao
menos por uma hora ou apenas por cinco minutos.
– Eu acho – Judith levantou novamente a voz – que só vou encontrar paz
quando terminar o caminho dele. O diário de Arne precisa ter um fim.
Ela tentou novamente fazer com que as amigas compreendessem. Mas
como poderiam entender os problemas de Judith? Jamais ousou contar para
alguém sobre seu sentimento de culpa. E sobre muitas outras coisas que a
torturavam.
Caroline tentou interpretar as palavras de Judith.
– Você quer peregrinar até Lourdes?
Judith confirmou com a cabeça.
– Pelo mesmo caminho que Arne seguiu.
– Como isso funciona? Na peregrinação as pessoas vão a pé ou precisam se
arrastar de joelhos? – perguntou Estelle e ganhou por isso um chute enérgico
na canela. Discrição não era seu forte.
– Não precisa me chutar, Eva. É uma pergunta legítima. Ou não? Judith?
Judith não respondeu à observação anárquica de Estelle:
– É meu jeito de me despedir, terminando o capítulo de Arne. Eu apenas
preciso, não sei ainda como…
Tentou ser forte, mas as lágrimas não paravam de correr pelo rosto. As
mãos de Judith tremiam quando pegou o copo, que caiu. O vinho tinto se
espalhou sobre a mesa como uma poça de sangue.

– Eu vou. Eu acompanho você. – Caroline tomou uma decisão relâmpago. –


Acha que vou deixar você andar sozinha pelo deserto? Do jeito que está?
Judith ficou tão surpresa que parou de chorar.
– Faria isso por mim?
Caroline confirmou com a cabeça. Conhecia a amiga muito bem. Judith,
indecisa e descrente, vivia na impureza, no provisório, começava algo aqui e
ali e desde a morte de Arne, não mais. Peregrinação, catolicismo, louvor à
Maria, curas milagrosas: tudo bobagem, acreditava Caroline. E, apesar disso,
cuidaria para que Judith levasse sua ideia a cabo. As pessoas não têm
problemas, resolvem problemas. Se precisar, com peregrinação.
– Também vou – juntou-se Kiki. Suspeitava que essa fosse uma ideia
alcoolizada. Mas às vezes era necessário tomar medidas radicais para se
conseguir algo. – Talvez seja possível não pedir apenas cura na gruta, mas
também um homem bacana. Estou a ponto de comprar um gato para não
jantar mais sozinha.
As amigas riram. Sabiam melhor do que ninguém: o problema verdadeiro
era que Kiki não podia nem queria se prender. Havia pretendentes o
suficiente e camas alheias também, mas ela nunca permanecia mais do que
alguns meses.
A solidariedade das amigas aqueceu o coração de Judith. Sentia-se um
pouco mais confortada. Os olhos de Caroline viraram para Estelle.
– Alguém mais?
Estelle evitava qualquer contato de olhar. Ai, meus sais. Peregrinar. Ela
contratava uma pessoa até mesmo para passear com o poodle. Por que
caminhar noventa minutos às margens do Reno se podia voar para Londres e
fazer comprinhas no mesmo espaço de tempo? Em vez de responder,
inspecionou as garrafas de vinho. Era o que faltava. Todas estavam vazias?
Tímida, Eva levantou a mão:
– Se todas estiverem de acordo, também vou. Precisava mesmo fazer mais
esporte.
Pela centésima vez, puxou o pulôver curto sobre suas formas arredondadas
óbvias para, no próximo segundo, pescar um pedacinho de carne do prato de
Caroline. Típico de Eva. Primeiro comia apenas salada e, no final, todo o
resto. O mau costume que, também mantinha em casa e trouxe, com o passar
dos anos, dez quilos de sobrepeso e um remorso crônico. No dia seguinte,
com certeza, começaria a dieta do abacaxi. E como hoje não importava
mesmo, deu fim ao resto de lagosta nadando no molho de estragão.
Estelle se abanava com a carta de vinhos. Na verdade, queria apenas
chamar a atenção de Tom, o garçom. Para Caroline, isso bastava como voto
positivo:
– Estelle também vem conosco. Aceito por unanimidade. Vamos
peregrinar até Lourdes.
– Como? – o rosto de Estelle empalideceu sob a base cuidadosamente
aplicada. Seu olhar mostrava uma tensa consternação. Caroline nem se deu
conta. Nesse momento, todas as atenções eram de Judith.
– Não podemos aliviar sua preocupação, Judith. Mas podemos fazer o
caminho com você.
Judith via os rostos animadores. A afeição incondicional a emocionou.
Muito provavelmente, nenhuma delas seria amiga caso se conhecessem hoje.
Mas quinze anos vividos juntos tornam todas as diferenças menos
importantes. Raramente Judith havia sentido seus laços de forma tão intensa
como nesse momento.

Estelle ainda não havia se recuperado do choque quando Tom chegou à mesa
da lareira. Luc olhava satisfeito, como seus movimentos haviam ficado
perfeitos. Em apenas seis meses, conseguiu transformar Tom em um
verdadeiro garçom. O jovem tinha talento. Não era de surpreender. Puxou o
pai.
– Posso servir o champanhe agora? – perguntou Tom, educadamente.
Estelle conseguiu apenas grasnar.
– Acho que preciso de um médico.
7

O grande BMW com adesivo de médico freou de repente. O marido de


Caroline, Philipp, ainda de jaleco, desceu do carro. Não precisou procurar
muito tempo pela mulher, pois as portas da garagem estavam totalmente
abertas. Entre bicicletas, bancada de ferramentas e caixas de mudança,
Caroline buscava equipamentos adequados para uma peregrina novata. Tênis
de caminhada, garrafas térmicas, saco de dormir, capa de chuva, mochila…
Onde estava a maldita mochila?
Seis semanas se passaram após a decisão de seguirem juntas para a
peregrinação. Começariam no dia seguinte e Caroline não havia feito a mala.
Ao menos Philipp trouxe suas encomendas:
– Adesivo protetor de calcanhar, unguento, bandagens, spray antisséptico e
um galão de dez litros. Se a água de Lourdes funcionar, o consultório vai
lotar.
Caroline jogou num canto o galão de gasolina que Philipp entregou a ela.
– Vai tirando sarro de mim, vai!
– Lourdes? Peregrinar pelo Caminho de Santiago? Desde quando você leva
isso tão a sério, Caroline?
– Não vou peregrinar. Vou acompanhar Judith. Se eu achar a mochila.
Caroline abriu uma das caixas de papelão. Parou, emocionada. Bem em
cima estava uma camisetinha de beisebol.
– Olhe, essa foi a primeira que compramos para Vincent.
Embaixo da roupa escondiam-se brinquedos antigos de Vincent e
Josephine, seus filhos, que havia muito tinham crescido. Mas revirar
lembranças não era para Philipp.
– Para que você guarda essas velharias?
– Para os seus netos!
– Netos? Sou muito novo para virar avô!
– Philipp! Vincent e Fien já passaram dos 20. Vai acontecer, cedo ou tarde.
Philipp não respondeu. Pensativo, observou a imagem que olhava para ele
de um velho espelho recostado num canto. Rápido, arrumou os cabelos
levemente grisalhos e aspirou com exagero.
– Se eu encolher a barriga, fico bem razoável. Não pareço mesmo o vovô
Philipp.
Caroline envolveu o marido nos braços.
– Eu fico com você mesmo com barriga.
Queria puxá-lo para si, abraçá-lo, ficar perto dele, mas Philipp se soltou de
uma vez.
– Achei!
Triunfante, ergueu a mochila empoeirada.
Um sentimento de decepção tomou conta de Caroline. Um momento breve
que desapareceu tão rápido como chegou.
– Nos vemos ainda? Hoje à noite?
– Tenho plantão. O colega com o bebê faltou de novo.
Caroline hesitou. Que colega? Que bebê? Precisava saber de quem ele
estava falando? Talvez estivessem os dois muito presos às obrigações
profissionais. Estava decidida, no futuro, a colocar Philipp em sua agenda de
compromissos.
– Quando eu voltar quero um fim de semana a sós com você. Sem plantão
para amigos…
– …sem papelada de trabalho na cama – Philipp a interrompeu. – Sem
ligações de criminosos no domingo de manhã, sem bolo com sua tia
Gertrude, sem mulheres de terça-feira.
Caroline odiava esse clima petulante dos últimos meses. Mas ela não
queria brigar. Não pouco antes da viagem.
– Ficamos os dois livres. Depois da peregrinação – rapidamente ela mudou
de assunto.
Philipp a beijou na testa.
– Combinado.

Philipp mal havia saído quando o olhar dela recaiu sobre o velho espelho.
Qual era o saldo naquele momento? Examinou sua imagem com atenção.
Provavelmente ainda caberia, sem problemas, no vestido de casamento,
registrou com alegria. O colega advogado estava muito enganado. Estava
satisfeita com sua vida. Dois filhos bem criados, seguindo seu caminho de
forma consciente, reconhecimento na profissão, um marido carinhoso que
levava a sério a carreira dela tanto quanto a própria. E o mais importante:
continuavam a fazer sexo. Um pouco mais de tempo para eles e a vida seria
perfeita.
8

Mais tempo! Ansiosa, Eva queria mais duas horas. As mulheres de terça-
feira haviam combinado de ir juntas para o aeroporto. Caroline seria a
motorista e buscaria cada uma delas. Eva era a primeira em sua rota.
A mochila pronta já estava no hall de entrada. No entanto, Eva corria pela
cozinha espaçosa e equipada com perfeição, colando os últimos post-its:
panelas, pratos, copos, despensa, tudo foi sinalizado para a família que não
sabia o que eram sacolas, pacotes e cozinhar.
Da mesa, os três adolescentes de Eva viam a agitação enfurecida da mãe
com tédio. Ao lado, Frido Pai, cujo título ele próprio se dera. Após Eva ter
assumido a tarefa de dar nomes aos filhos David e Lene, no terceiro filho
Frido insistiu que era sua vez. E foi Frido Júnior. Na pressa do cartório, não
lhe ocorreu nada melhor. Foi sua última tentativa de enfrentar a eficiência dos
planos familiares antecipados de Eva. Quando vinte meses depois a pequena
Anna completou a família, a divisão dos papéis estava definida. Eva tinha sob
sua asa os departamentos de família e eventos sociais, enquanto a função do
marido era a de ministro do trabalho, finanças e economia.
Aos 43 anos, Frido era membro da diretoria de uma seguradora,
proprietário orgulhoso de uma casa própria com um generoso jardim,
confortável para todos, e desconhecia completamente o cotidiano da própria
família. Com cuidado, folheou as instruções manuscritas de muitas páginas
que Eva empurrara.
– Segunda David tem tênis e Frido, serviço de coroinha?
Eva confirmou com a cabeça. Não deixar nenhuma dúvida, prometeu a si
mesma. Programaram dez dias de caminhada, ida e volta. As mulheres de
terça-feira nunca ficaram tanto tempo longe.
– Apenas na sexta-feira a reunião de pais de Lene será difícil, e talvez
quarta-feira.
– Quarta-feira? Sem chance, tenho reunião do conselho.
Reunião do conselho era para Frido um tipo de estado crônico. Reunião de
pais, levar crianças a compromissos, premiação no clube de tênis, braço
quebrado. Havia anos, Frido tinha reunião do conselho. Não que ele não
estivesse disposto a cuidar da família. Estava apenas ocupado.
– Arranje uma ajuda, Eva – pregava Frido insistentemente. Mas Eva não
teve quatro filhos para empurrá-los para uma babá romena.

– Isso se chama divisão de tarefas – defendia-se Eva rapidamente quando as


amigas levantaram a sobrancelha.
– Isso chama escravidão – comentava Estelle, seca. A amiga mimada era o
exemplo clássico de mulher que sempre colocava coisas demais na mala e
deixava o peso para os outros. Estelle não trabalhava, Estelle delegava. Suas
tarefas na rede de farmácias da família, os cuidados com a casa, sua vida. Até
o vibrador na gaveta de seu criado mudo que, como gostava de comentar,
ganhava de longe de seu marido.
Eva poderia se espelhar no exemplo de Estelle, mas não era assim. Pelo
contrário, tentava aplacar seu sentimento de culpa borbulhante com ação.
– Já aprontei a comida. Sopa de peixe tailandês, bistecas fritas, massa com
três recheios, vegetariano para Lukas, queijo para Lene, carne moída para
todos os outros.
Ela abriu as portas do refrigerador no qual um exército de potes
cuidadosamente rotulados esperava pela batalha. Frido observou o freezer
como se fosse, no mínimo, a oitava maravilha do mundo. Não ocorreu a
ninguém que Eva merecia um elogio por seus serviços familiares contínuos.
Nem mesmo à própria Eva.
– Você tem certeza de que quer participar disso? – insistiu Frido.
– Não, não tenho – quase respondeu Eva.
Mas Anna, a filha mais nova, a quem era fortemente apegada, veio em sua
defesa:
– Por mim, mamãe, você deve peregrinar. Não faz mal que eu seja a única
sozinha na aula de culinária com mães e filhas. De verdade.
Carinhosa, a menina de 9 anos envolveu nos braços o pescoço da mãe.

Quando Caroline chegou para buscar Eva, a mãe das quatro crianças estava
totalmente esgotada. E isso antes de ter percorrido sequer um centímetro da
tal peregrinação.
– Talvez eu possa mudar a reserva do voo e chegar depois.
– Eva, sempre tem alguma coisa. Torneio de tênis do David, concerto de
Lene, reunião do conselho…
– Aula de culinária de mães e filhas! Imagine o que vai acontecer se, no
meio, Frido for para a reunião do conselho. Porque ele precisa assar um bolo
na escola.
Eva parecia realmente desesperada. A compaixão de Caroline havia
chegado ao limite.
– Quer ouvir a verdade, Eva? Você poupou seus queridos durante tantos
anos que eles não sabem sequer reconhecer as próprias meias.
Eva sabia que Caroline tinha razão, e mesmo assim se sentia uma egoísta.
– Frido vai se sair muito bem, Eva. Logo ele se acha na imensidão de
trabalho que você deixou para trás.
– Que você quer dizer com isso?
Caroline respirou fundo. Todo ano era a mesma coisa. Primeiro, discutiam
uma eternidade antes de chegarem a um consenso sobre local e data. E então
Eva, Kiki e Judith pensavam em outra coisa totalmente diferente.
Coisa demais para fazer.
Não consigo ficar longe.
Sinto muito.
Caroline conhecia essas desculpas de cor. Sempre era uma grande
confusão até a partida. Quando havia partida.
Primeiro, cada filho precisava ser abraçado e beijado dos pés à cabeça,
então o marido e, novamente, os filhos. Apenas quando a família se colocava
em posição na frente do portão do jardim para os acenos chorosos, o passo
decisivo era dado. Caroline deu um grande suspiro. Já tinha uma das amigas
no carro. Agora faltavam três.
9

A única, além de Caroline, que não se perguntava se devia ficar em casa era
Estelle.
– Peregrinar é o novo pretinho básico – explicou ao marido, com total
convicção. – Sou a única que não se transformará numa iluminada?
Estelle tinha outro problema: um closet de 25 metros quadrados e nada
para vestir. Depois de ter se recuperado do primeiro choque, partiu
imediatamente para a ação. Para Estelle, isso significa ligar para alguém que
pudesse assumir a tarefa por ela.
Duas horas depois, seu personal shopper, um entendido de verdade, estava
no bairro nobre de Hanwald. Estelle morava numa rua na qual não havia
casas, apenas propriedades. As instalações da mansão eram tão exageradas
quanto Estelle. Um pouco pomposas, um pouco carregadas, um pouco
douradas e com cobras demais. As cobras estavam mesmo em todas as
extravagâncias: estátuas, cordões, penduricalhos, almofadas e padronagens
Versace brilhantes, em pratos de sobremesa e lençóis.
– Tenho que agradecer tudo ao meu pai – explicava Estelle com gosto. –
Faro para o dinheiro e sentido para gastar.
Estelle endeusava o pai, Willi. Fugitivo da Prússia Oriental, construiu
patrimônio após a guerra como comerciante de entulho. Arriscando a vida,
recolhia peças de ferro, colunas e outros metais misturados aos escombros
para levá-los para a reciclagem. Juntar, identificar, separar, processar, esse
havia se tornado seu lema de vida. Estelle ampliou em um componente:
mostra o que você tem. De quê adianta ser rico se ninguém souber?
– Precisamos de um look – anunciou o personal shopper antes mesmo de a
porta fechar – que dê uma reviravolta irônica na imagem empoeirada de
escoteiro dos peregrinos.
Ele conhecia as preferências de Estelle. Sempre que grandes eventos
sociais estavam prestes a acontecer, ela corria em busca de seu auxílio.
Agora, uma combinação para o caminhar contemplativo pelas trilhas de
peregrinação centenárias era demais. Mas ele nunca admitiria: em tempos de
crise de crédito, não podia se dar ao luxo de perder sua cliente mais fiel. Não
passou pela cabeça de nenhum dos dois que era possível entrar numa loja de
esportes e acertar em cheio no departamento de “Trilhas e Caminhadas”.
– Tenho uma reputação a zelar, minha querida! – sussurrou empolgado o
personal shopper, começando a busca.

No dia da viagem, as amigas podiam admirar o resultado de tanto esforço. O


enorme portão automático, que protegia a mansão de Estelle de olhares
indesejáveis e de testemunhas de Jeová, abriu-se com um zumbido.
Automaticamente, holofotes se acenderam. Estelle causava sempre a
sensação de uma entrada triunfal. Mas dessa vez, Caroline e Eva, ao buscar
Estelle, ficaram sem fôlego.
– O importante é avaliar o look pelos detalhes – recomendou o personal
shopper. Sua assinatura figurava em todas as peças: calça cargo que
acentuava as formas (o maior orgulho dele era a vieira de Santiago, uma
grande concha de cristais Swarovski brilhando no bumbum), jaquetão com
uma boa dúzia de bolsos multifunção com aplicação de pele, e para as costas
uma mochila elegante e dourada de marca. Além disso, Estelle trazia seu
poodle. Debaixo do braço. Seu cãozinho de colo.
– Não digam nada – gritou Estelle. – Sou uma mistura de Robin Hood e
Simba, o leão.
Caroline caiu na gargalhada. Amava em Estelle o fato de conseguir rir de si
mesma com vontade. Apesar disso, gostava mais ainda de rir dos outros. A
língua ferina de Estelle garantiria bons papos para os longos dias de
peregrinação, desde que pudesse se livrar do poodle, que cobria a dona com
lambidas.

Esperava-se que a despedida do marido redondo e careca, que encaixou a


bagagem de Estelle no porta-malas, fosse significativamente mais fria. Um
beijo oco. Mas o rei das farmácias, com certeza uma cabeça menor que
Estelle, puxou a mulher e a beijou com uma paixão que deixou Caroline e
Eva vermelhas de vergonha.
– E eu sempre pensei que para Estelle o importante fossem só as cinco
farmácias – murmurou Caroline.
– E isso num casamento tão longo – suspirou Eva.
Quanto mais intenso o beijo ficava, mais parecia claro para ambas que a
história do vibrador era exagero. Mas assim era com tudo que Estelle fazia e
dizia.
– As pessoas precisam exagerar para serem entendidas – enfatizava, rígida
e determinada, que a citação era de Mao. Judith não podia dizer que era a
única conhecedora da filosofia oriental.

Quem sabe a que ponto de intimidade Estelle e seu rei das farmácias não
teriam chegado se não fosse a bicicleta que quase atropelou os dois. Kiki, a
última a ser buscada, havia chegado.
– Ficaria mais fácil se você não precisasse passar lá em casa para me
buscar – desculpou-se, olhando para Caroline.
Como sempre, parecia um pouco afobada. Sobre a calça de caminhada,
usava um vestidinho curto e uma mochila colorida. Embora já tivesse 35
anos, agia como uma garota. No cesto da bicicleta havia coisas soltas que
ainda precisava colocar na mochila.
– Preciso fazer algumas coisas no caminho – defendeu-se, antes que
alguém pensasse em fazer alguma pergunta desagradável. – De última hora as
coisas no estúdio ficaram um pouco…
Freneticamente, Kiki procurou pelo eufemismo adequado para o que havia
lhe acontecido no trabalho. E decidiu que não era o momento correto de
entregar o segredo para as amigas.
– Ficaram um pouco corridas – terminou assim a frase.
Caroline, sacudindo a cabeça, olhava para tudo que estava entrando na
mochila. Câmera, papel, lápis, o caderno de desenho, fita adesiva, uma
tesoura.
– Parece que você está fugindo.
– Isso é um interrogatório? – retrucou Kiki para Caroline.
Caroline e Eva olharam-se desconcertadas. Precisava haver um bom
motivo para Kiki deixar na casa de Estelle a bicicleta que utilizava todos os
dias. A amiga estava se comportando de forma muito estranha. Por que Kiki
reagiu com tanta agressividade?
– Ela está numa idade difícil – comentou Estelle. – Mas quem não está?

Pela primeira vez, uma leve dúvida rondou Caroline: talvez tivesse sido
melhor ter ficado em casa esse ano. Por toda a vida, Caroline invejou pessoas
que conseguiam uma boa desculpa. Mas ela não conseguia. Caroline era
pontual e ficava até o último minuto. E assim devia ser.

Juntas seguiram para buscar Judith, que de última hora tinha decidido ir ao
cemitério novamente. Naquele momento, estava diante do túmulo de Arne,
carinhosamente enfeitado, e teve de encontrar forças para deixá-lo. Parecia
perdida na enorme camisa de flanela xadrez de Arne que vestia.
– Não sei se vou conseguir fazer essa peregrinação – Judith confessou a
Caroline, que havia se encarregado de desgrudá-la de lá.
– Você não vai me deixar sozinha com as meninas. Não pode fazer isso
comigo – respondeu Caroline.
Judith tinha suas dúvidas:
– Você acha que vou conseguir? Peregrinar? Todos os quilômetros? A pé?
Caroline pegou uma vela do túmulo de Arne e a botou na mão de Judith.
– Vamos levá-la para Arne até Lourdes. É quase como se ele mesmo
estivesse peregrinando.
Caroline colocou a mochila de Judith nas costas, passou o braço no dela e a
levou para a saída do cemitério, onde as três amigas aguardavam.

Havia momentos na vida nos quais tudo se encaixava, obedecendo a um todo,


grande e razoável. Aquele não era um desses momentos. Quando as cinco
mulheres se acomodaram no avião, a bomba-relógio chamada Arne já estava
acionada. O mecanismo explosivo estava ativado. Pequenos sinais, avisos
aconteceram. Elas ignoraram cada um deles e brindaram com o champanhe
barato da empresa aérea.
– À peregrinação das mulheres de terça-feira!
– A Lourdes e à Virgem Maria!
10

–A mamãe!
Quando o avião se aproximou da costa francesa do mar Mediterrâneo,
Frido e sua filha mais nova, Anna, estavam sentados na cozinha à noite e
brindavam com suas canecas de achocolatado. Na página oito das anotações
de Eva estava escrito que achocolatado ajudava a dormir melhor.
Logo no primeiro gole, Anna sacudiu a cabeça.
– Acho que mamãe faz achocolatado com leite.
Frido afirmou com a cabeça, sério. Dirigia um departamento com 230
funcionários, mas era pedir demais que preparasse um achocolatado. Já havia
custado muito para acender o fogão.
– Ao menos está quente – comentou Frido, dando um bom exemplo e
tomando de uma vez a horrível beberagem.
Anna apertou os olhos e o imitou.
Lá em cima, Super Mario comemorava em um volume que apenas
adolescentes achavam socialmente aceitável. Os três maiores estavam
reunidos no quarto de David e disputavam corrida no Wii. Isso porque Frido
já os mandara para a cama havia horas.
– Não consigo dormir se a mamãe não me der um beijinho de boa-noite –
comentou Anna, tristonha.
Frido gostaria de ter respondido “Eu também”. Mas isso não consolaria sua
filha.
– Acho que podemos ver onde mamãe está.
Finalmente, surgiu um sorriso no rosto da menina.

Juntos, Anna e Frido marcaram no laptop o caminho que as cinco mulheres


pretendiam tomar. O caminho do Piemonte dos Pirineus.
– De Colônia elas voaram até Montpellier. Vão passar a noite lá. De
manhãzinha, pegam o ônibus até aqui.
Frido fez uma cruz no ponto de partida. Colocou o mapa no blog de Anna.
Agora ela podia marcar todos os dias o avanço das mulheres de terça-feira.
Anna olhava perplexa para a tela do computador e para o pai.
A cruz estava num espaço vazio, terra de ninguém.
– Não tem nada aí!
– Tem sim, Anna, deve ter algo.
Era o que ele esperava com ardor. E que houvesse uma antena de celular.
Frido teve a sensação desconfortável de que a preparação de achocolatado
não seria o único obstáculo que o aguardava nos próximos dias.
11

Elas não imaginaram que seria assim. Algumas escarpas nuas que faziam
parte do Massif de la Clape, uma rua vazia, um ponto de ônibus abandonado.
Cinco rostos espantados encaravam a manhã francesa. Tinham chegado ao
ponto de partida da peregrinação. Judith insistia em começar pelas
proximidades da praia de Narbonne, onde Arne iniciou sua última etapa de
peregrino. Especialmente nos primeiros dias, anotou muitas coisas no diário e
Judith esperava reencontrar todos os detalhes. Após o dia três, elas pulariam
algumas etapas com transporte público para concluir a pé o trecho de St.
Liziers até Lourdes. Dez dias de programação cheia: planejaram 250
quilômetros de caminhada. E agora estavam no início: cinco mulheres da
cidade grande no meio do nada.
Caroline trazia um chapéu, Kiki, um lenço de menina, Judith, uma
expressão de sofrimento, Eva, o costumeiro rabo de cavalo e Estelle, um
óculos de sol imenso e sofisticado. Até perceber que com ele não era possível
ver nada. Então, arrancou a peça do nariz e confirmou que não se tratava da
lente escura. Não se via nada porque não havia nada para ver. Além da
paisagem, claro. Aliás, paisagem era o que não faltava.
No horizonte, distanciava-se o ônibus intermunicipal que havia deixado as
cinco ali. O barulho do motor diminuía. O calor crescente de junho fazia o ar
tremular, as cigarras cantavam, um pássaro batia as asas, um besouro remexia
as folhas que cobriam o solo seco. Em algum lugar ao longe, um cão de
guarda latia. Não se via viva alma.
– Ao menos esse Caminho de Santiago não é tão tumultuado como aquele
da Espanha.
Caroline foi a primeira que retomou a fala. O primeiro choque começava a
desparecer. Enquanto Kiki registrava a cena memorável com sua câmera
digital que custara uma pequena fortuna, Judith já procurava na margem da
estrada até encontrar o que buscava. Numa pedra castigada pelo tempo,
estava pregada uma vieira de São Tiago, o sinal inequívoco de que haviam
chegado ao Caminho de Santiago.
– Arne deve ter começado sua última jornada aqui – sussurrou Judith,
emocionada.
Caroline entendia muito bem o que aquele momento significava para a
amiga. Decidiu fazer de tudo para que a viagem fosse um sucesso.
– Que estamos esperando?
Enroscou seu braço com o de Judith. Entraram no caminho tão animadas
que as vieiras de São Tiago penduradas nas mochilas balançavam felizes para
lá e para cá. Pela primeira vez desde a morte de Arne, Judith estava feliz.
Sentia-se bem e fazendo a coisa certa: ir em frente, levantar os ombros e
andar, apenas andar. E ficar novamente próxima a Arne. Nesse início havia
uma magia, algo quase sagrado.
Havia pessoas que tinham o dom de estabelecer contato com algo mais
elevado e divino durante a peregrinação. Judith queria ser uma dessas
pessoas. Estava aberta para aquilo. Exatamente como Arne, dedicaria-se
conscientemente ao Caminho. Unir-se à Criação e ser de novo uma unidade
em si mesma.
– Onde está o nosso sherpa?
– Que sherpa?
– O carregador de malas! Uma viagem espiritual cairia muito melhor se
alguém me libertasse das cargas mundanas.
Caroline apenas sorriu.
– Você sabia onde estava se metendo.
Estelle permaneceu impassível.
– Foi uma tentativa, não foi? – anunciou e começou a andar. Puxava com
toda a seriedade uma mala elegante com rodinhas enormes na parte traseira.
– Design personalizado. Yves fez de um jeito que ficou a minha cara – ela
explicou para Kiki, que olhava com curiosidade.
– Tração quatro por quatro. Poderia ter sido feita por mim.
– Achei que você era responsável pelos copos e pratos descartáveis.
– Até hoje eu era. Mas está acontecendo uma concorrência interna na
empresa. O estúdio Thalberg tem um pedido gigantesco para o exterior.
Imaginem, vamos desenvolver vasos para a Ikea! Quem ganhar a
concorrência interna poderá ver seu design no mundo todo, em centenas de
filiais. É minha chance.
Estelle quase teve dó de Kiki. Era só essa nova missão que a deixava tão
nervosa? Havia anos Kiki batalhava incansavelmente por sua carreira. Não
era a primeira concorrência interna que contava com empolgação. Mas até
agora, nenhuma de suas obras tinha dado certo. Também, como seria
possível? Kiki desenhava utensílios domésticos: talheres descartáveis, pratos
de plástico, palitos de coquetel, produtos de plástico sem nome, produtos
massificados, coisas por trás das quais ninguém supõe que haja um designer.
Mesmo assim esperava, um dia, descartar os descartáveis. Os pedidos e os
homens. Mas no estúdio de Thalberg, nesse meio tempo, jovens designers se
estapeavam. Eram estagiários que mal haviam passado da fase das espinhas,
mas bastante motivados, cheios de ideias e prontos para dar um chega para lá
em Kiki de uma vez por todas. Dessa vez, tinha que funcionar:
– Design é como esporte – explicou para Estelle. – Com 30 anos, você já
está pendurando as chuteiras.
Estelle se perguntava para onde alguém iria no mundo do design quando já
passara havia muito dos 30, como Kiki. Mas Kiki já estava falando de novo.
– Você não acredita como nossos estagiários são diferentes – reclamou. –
Correm o dia inteiro com suas garrafas de água e digitam sem parar em seus
telefones. Vão para festas apenas para postar as fotos na internet no dia
seguinte – revoltou-se Kiki. – São conectados.
Não mencionou que tentou, diversas vezes, se enturmar com os colegas
jovens e que fez uma conta no Facebook. Logo na informação pública do
relacionamento, surgiram dúvidas. ”Complicado” foi a primeira alternativa
que de alguma forma descrevia sua situação. Em algumas semanas, Kiki
tinha mais ex-namorados reunidos em sua página do que amigos. Mas depois
piorou. Quando recebeu uma mensagem dizendo que um certo Matthieu de
Ruão queria entrar em contato, foi a gota d’água. Por nada nesse mundo
queria dividir seu “complicado” com Matthieu, tampouco participar da feliz
vida conjugal com a ex-agora-esposa-mãe-de-duas-filhas-lindas. Queria
menos ainda ser observada por seus jovens colegas de trabalho, com os quais
rapidamente se conectara.
– Você envelheceu, querida – constatou Estelle sem charme algum,
chegando ao cerne dos problemas de Kiki. Na eterna cobiça pelo amanhã,
Kiki acumulou sem querer um bocado de passado. E assim, crescia nela, aos
poucos, a consciência de que possivelmente nunca mais teria uma grande
carreira no design. Mesmo que entregasse um desenho espetacular. Sacava a
câmera, pronta para fotografar tudo que pudesse servir de inspiração para a
coleção de vasos. As cores peculiares do sul da França, o cheiro da manhã, os
ruídos leves da natureza, tudo podia ser um estímulo para uma ideia
sensacional. Dessa vez, daria certo.
Eva ainda estava no ponto de ônibus e fuçava em seu celular.
– Já estou indo – gritou para as amigas.
Não precisava de testemunhas para seu telefonema. Sabia que as amigas
gostavam de rotulá-la de supermãe. Mas, antes que ela pudesse se libertar e
aproveitar a viagem com tranquilidade, precisava saber se tudo corria bem em
casa.
Tensa, Eva apertava as teclas, sacudindo o telefone. Chegou a subir numa
pedra pequena e segurá-lo no ar. A tentativa de obter contato com o quartel-
general em casa fracassou. Sinal zero.
As amigas viraram-se para ela. Eva acenou.
– Já vou, já vou.
Com pressa, agarrou a mochila, jogou-a nas costas e imediatamente
inclinou-se para trás. Será que tinha colocado um pouco a mais de peso ali?
As companheiras já desapareciam por trás de uma curva quando começou a
andar, resmungando. Um, dois, três, quatro. O calor oprimia, a mochila
pesava, o tênis não. Finalmente tinha dado cinco passos. Se um passo tem
setenta centímetros, quando eram necessários até Lourdes? Quando o número
se iluminou na tela do telefone (na função de calculadora), desejou nunca ter
começado a calcular. Quatrocentos mil passos até Lourdes! Isso porque já
tinha descontado o trecho que percorreriam de ônibus e táxi. Nunca
conseguiria.

Eva não imaginava que por trás da próxima curva já teriam uma pausa.
Involuntária, pois com a primeira bifurcação surgiu a desavença.
– Temos que ir para a direita. Então se chega automaticamente ao mosteiro
– anunciou Judith. Estelle tentou ler a descrição do caminho no diário de
Arne sobre o ombro de Judith, que se virou bruscamente.
– Que segredo tem aí no diário? – revoltou-se Estelle.
Judith não respondeu. Diferente do que Arne temia, ela tratava o diário
como sua relíquia pessoal. Não havia nada de espetacular no que Arne
escrevera sobre o mosteiro. Relatou em todos os detalhes como foram
atenciosos os monges beneditinos ao recebê-lo com pão, queijo de cabra e
vinho caseiro. Nos horários de missa, os cantos gregorianos preenchiam o ar.
Judith mal podia esperar para entrar nesse mesmo convento no qual Arne
encontrara refúgio. Quem sabe os monges até se lembrassem de um peregrino
que parecia um vaqueiro do velho oeste.
– Não siga o caminho da esquerda e pegue o trecho menos utilizado ao
leste – Caroline estilhaçou os pensamentos da amiga, lendo em voz alta um
livro, um guia de peregrino. Ela nunca confiava que outra pessoa soubesse o
que era para fazer. – Então vamos à direita.
– Esquerda.
E agora? Os dedos de Judith e Caroline apontavam em duas direções
completamente opostas.
Por fim, Eva chegou, suando e arfando.
– Respira fundo – sussurrou Kiki para ela.
Judith e Caroline estavam frente a frente com seus livros nas mãos como
lutadores de box em um ringue, esperando por um sinal para começar o
primeiro round. A raiva tomou conta de Judith: que ideia foi essa de Caroline
se intrometer dessa forma?
– Para mim é importante seguir o mesmo caminho de Arne!
– Mesmo que seja o caminho errado.
– Arne escreveu que, quando você percorre o Caminho de Santiago, não
pode planejar. Precisa estar aberta para as coisas que vai encontrar.
Os olhos das outras três moviam-se entre Judith e Caroline, como numa
partida de tênis.
– Estou aberta para tudo, contanto que a gente siga pelo caminho correto.
– É o meu caminho. Arne me incumbiu dele.
– Esse é o Caminho de Santiago, centenário, bem marcado. Arne não foi o
primeiro que andou por ele.
– Você vai me seguir e não o contrário! – Judith repreendeu Caroline com
tal veemência que era impossível reconhecer aquela pessoa magrinha e
delicada. Seguiu a direção que Arne indicara no diário, sem se importar com
Caroline e suas objeções.
– Viemos até aqui para apoiar Judith – completou Kiki, com um gesto de
desculpas para Caroline. As outras fizeram o mesmo.
– Provavelmente, Arne conhecia um atalho – justificou Eva.
Estelle também se pôs a caminhar:
– Mosteiros acolhedores exercem uma atração irresistível sobre mim.
As rodinhas da mala estalavam sobre o chão pedregoso.

Por conta própria, Caroline tinha ido a uma agência de viagens especializada
em peregrinação. Lá, informou-se e conseguiu um guia. O único que continha
esse trecho estava em francês. Por fim, tratava-se de um dos Caminhos de
Santiago menos percorridos. Sabia que Judith estava errada e fez ainda uma
última tentativa de convencer o grupo:
– Precisamos percorrer hoje no mínimo 28 quilômetros. Se já no início
começarmos pelo caminho errado, nunca chegaremos em Lourdes.
Nenhuma das mulheres reagiu. Tinham escolhido o lado de Judith.
Caroline ficou para trás, indignada. Cinco minutos após o início da
peregrinação, as mulheres de terça-feira estavam diante de seu primeiro teste
de resistência. Cedo demais para arriscar tudo, decidiu Caroline.
Com ar furioso, marchou atrás das quatro amigas. Passou por uma pedra
com uma vieira de São Tiago, quase totalmente coberta de grama. Apenas a
seta saía de dentro das folhas verdes, apontando para a direção contrária.
12

Quem inventou esse negócio de peregrinação? Era o pensamento que


rondava a cabeça de Eva. Tinha desistido de contar os passos. No caminho
sem fim e sem sombra pelos vinhedos que formavam a paisagem montanhosa
suave, a questão era sobreviver ao passo presente e juntar forças para o
próximo. A carga de seus pecados era pesada. Não era de se estranhar, pois
Eva os cometia principalmente à noite, na geladeira. Nas refeições, ainda
conseguia se conter. Quando a cozinha estava arrumada, a roupa toda
estendida no varal e os quatro filhos em seus quartos, não havia mais forças
para resistir a qualquer tentação. Talvez devesse cozinhar menos. Sem sobras
não haveria tentação. Mas Eva amava a ideia de ter uma casa aberta onde os
convidados-surpresa sempre encontravam um lugar na mesa farta.
Provavelmente, era um legado da própria infância. Quando adolescente,
Eva não ousava convidar ninguém para ir a sua casa. Nunca conseguia saber
se sua mãe entraria de repente no quarto com seu ousado traje dos anos 1960,
pularia na cama e assustaria seus amigos com palavras como: “Meu nome é
Regine, sou a coroa da Eva.” Regine não se considerava apenas a melhor
amiga da filha, mas também a encarnação da juventude eterna. Insistia para
que a filha e os netos a chamassem pelo primeiro nome. Isso não impedia
Anna de pular no pescoço de Regine e falar empolgada: “vovó”. Nesse
sentido, Anna era teimosa. Para ela era claro: Regine logo teria 70 anos e era
sua avó. E uma vovó a gente chama de vovó, ponto final. Eva tinha total
confiança de que a nova geração tinha um futuro maravilhoso pela frente.
Regina acharia fantástico que Eva estivesse no caminho do
autoconhecimento.
– Três semanas na Índia, então aguento mais onze meses em Colônia –
tinha o costume de dizer.
Quando criança, Eva tinha a sensação de ser parte de algo que Regine
apenas tolerava com esforço. As excursões de Regine para Ashram
significavam, para Eva, ilhas de felicidade, pois passava esse tempo com
Lore, sua avó. Seu catálogo de regras rígidas, que incluía a missa dominical,
era para Eva um programa benéfico. Amava a confiança, o suspense e até as
proibições. E também a igreja. Eva ficou feliz quando soube que Frido era
membro praticante da comunidade católica. De pronto, sentiu-se à vontade na
família do marido, que a recebeu carinhosamente. Conhecia famílias como a
de Frido apenas da televisão. Infelizmente, Regine se encheu da Índia após
cinco férias em três anos e continuou sua busca por si mesma em Colônia. Se
Eva ao menos tivesse conhecido o pai. Mas Regine nunca revelaria sua
identidade.
– Quem se interessa por uma pequena família burguesa – defendia a mãe
quando Eva voltava a insistir no assunto.
– Eu – admitia Eva, cuidadosa.
Mas Regine nunca quis ouvi-la.
Era de arrancar os cabelos: em vez de aproveitar as visões e os panoramas
fascinantes de uma paisagem desconhecida, continuava a se torturar
dolorosamente, refletindo sobre sua mãe. Isso por que havia abandonado
Regine havia muito. Eva esforçava-se todos os dias para lidar com a vida de
forma diferente da mãe. Às vezes, tinha a suspeita de que valorizava mais a
ideia de uma casa aberta e receptiva, na qual seus filhos poderiam convidar
amigos sem medo, do que realização dessa ideia em si. A casa liberal às
margens do parque, comprada alguns anos antes, estava sempre cheia de
vida. A quadra de esportes da área verde era a atração para as crianças da
região. A casa se transformou no primeiro endereço quando os amiguinhos
precisavam ir ao banheiro, beber algo, fazer um curativo, telefonar, usar a
bomba da bicicleta, ir de novo ao banheiro. Eva controlava tudo. Talvez fosse
a única moradora de Colônia que deixava a porta de casa aberta para que não
precisasse atender a campainha cada vez que tocasse.
Seguir. Sim. Seguir. Mais um passo. E outro. Quantos tinham no caminho?
Eva olhava do solo empoeirado e via luz no fim do túnel. O caminho de
cascalhos, aos poucos virava uma subida. Eva tinha certeza: de lá de cima era
possível ver o mosteiro. Até os monges têm telefone hoje em dia. Por fim,
poderia ligar para casa. Reuniu coragem. Os espíritos que permaneceram se
anunciavam. Ainda conseguiria o último trecho. A primeira etapa já estava
quase para trás. Não era tão difícil peregrinar. Mais alguns passos.
Quando seu olhar passou do morro verdinho para o vale que parecia tão
vazio quanto o caminho que percorrera, Eva reconheceu que tinha cometido
apenas um erro na peregrinação: ter dito sim para essa aventura maluca.
13

–Não é maravilhoso? – comentou Kiki sobre a visão fascinante do mar


Mediterrâneo e a praia de Narbonne, que estavam às suas costas.
Ao contrário de Eva, que murmurava e resmungava a cada passo, a
caminhada não trazia nenhum problema para Kiki. O local de trabalho dela
ficava longe do centro da cidade, numa antiga área industrial. Os antigos
galpões de tijolos à mostra, onde antigamente a carne era dividida entre
muitos, abrigavam atualmente grandes empresas de mídia e design. Kiki
pedalava até lá, com qualquer clima. Doze quilômetros para ir, doze para
voltar. Sem contar as visitas aos clientes vez ou outra. Também nesses casos
ela ia quase sempre de bicicleta. Kiki estava bem preparada para uma
peregrinação.
O calor lhe acariciava a pele. Cheirava a abundância, verão, pinheiros,
tomilho e alecrim. Para Kiki, dava no mesmo se Deus ou o Big Bang era
responsável pelo espetáculo de luzes, cores, sombras e cheiros. Outros
podiam quebrar a cabeça com isso. Estava feliz por estar longe de Colônia,
onde não apenas o clima estava mais nublado que claro.
Kiki não contou nada às amigas, que não faziam ideia. Nem de seus
problemas no estúdio, tampouco das notícias ruins que chegavam até ela em
casa toda segunda-feira na forma de extratos bancários. Kiki trabalhava
sessenta horas por semana para ser pobre como Jó. O estúdio Thalberg partia
do princípio de que a menção de sua renomada empresa no currículo era
recompensa suficiente para os funcionários. Se Estelle não tivesse feito um
empréstimo para ela, a viagem anual de Kiki iria por água abaixo.
– Por que você aguenta a exploração do Thalberg? – perguntou Estelle,
crítica, pois Kiki não conseguia largar seus cadernos de rascunhos nem
mesmo durante a peregrinação.
– Uma vaga de trabalho no Thalberg é como a elevação para o céu dos
designers – entusiasmava-se Kiki.
Ficou muito orgulhosa quando, seis anos antes, pudera apresentar seu
portfólio na entrevista de emprego e provar seu talento para Thalberg,
designer, diretor de arte e astuto homem de negócios. Thalberg, que diversas
vezes foi aclamado pelas revistas como “designer do ano”. Thalberg, cujos
esboços eram exibidos nos principais museus de design do mundo. Ou seja,
esse Thalberg acreditou no talento dela. Achou os desenhos vívidos,
inovadores, engraçados e sensuais. Quando ouviu a palavra emprego fixo, o
elogio soou tão alto em sua cabeça que não prestou atenção ao valor do
salário mensal. Muitos designers dariam a vida para trabalhar com Thalberg.
Kiki tentava equilibrar o orçamento com aquilo que Thalberg pagava por sua
vida.
– Thalberg é um fenômeno – Kiki defendia sua decisão. – A gente
consegue aprender muito com ele. Vocês precisam ver como ele transforma
uma ideia mediana em um esboço brilhante com alguns rabiscos.
Prudente, não comentou que o último esboço mediano que ele pegou dessa
forma era dela. Aqueles talheres de plástico idiotas para a companhia aérea!
Já na fase de desenvolvimento, ela ficou bem perto de se matar com um de
seus protótipos de faca. Infelizmente eram muito cegos, quebradiços, porosos
e, acima de tudo, feios.
– Claro que você não sabe qual é o padrão da classe executiva de hoje –
Thalberg a humilhou diante de toda a equipe.
– Como poderia – berrou Kiki. – Com o que o senhor me paga, posso no
máximo pagar uma empresa aérea baratinha. E lá servem pãozinho seco.
Claro que ela não disse isso, pois Thalberg já tinha passado para a próxima
estação de trabalho, onde seu colega que desenvolvia os pratos
correspondentes não havia chegado a um resultado melhor.
“Design é como decátlon. É necessário aprender a aguentar a troca rápida
entre altos e baixos”, aprendera na faculdade. Kiki não aceitaria mais
derrotas. Finalmente, queria ter sucesso. Criar algo que a destacasse do
exército de designers que trabalhava para Thalberg.
Tudo podia ser base para sua coleção de vasos. A cada metro da
peregrinação, Kiki descobria algo interessante. Uma videira nodosa que
contava a história de colheitas passadas, uma formação rochosa especial onde
um lagarto tomava sol, orquídeas selvagens na beira da estrada, a ave de
rapina que subia majestosa pelas encostas de calcário do Massif de la Clape.
– É um abutre que espera os peregrinos que ficam para trás – suspeitava
Estelle com olhar compassivo para a resmungante Eva. Estelle não tinha
nenhum senso para as belezas naturais.
– O que você já está fotografando de novo? – quis saber Estelle, perplexa,
quando Kiki se curvou sobre um pedaço amassado de papel que havia muito
ficou no sol.
– Olhe essas cores desbotadas. Como se estivessem se dissipando – Kiki
enalteceu sua descoberta, bem sabendo que modelos diluídos somente
chegariam a Estelle se viessem da coleção de Emilio Pucci ou Missoni.
Kiki fotografava tudo: o pedaço de jornal velho, as libélulas, cujas asas
refletiam a paleta de cores.
– Thalberg gosta de motivos naturais.
– Johannes Thalberg gosta apenas de si mesmo – alertou Estelle, que
encontrara com o chefe de Kiki algumas vezes no clube de golfe.
Não estava de todo errada. Mas isso vinha das origens de Thalberg, que
fora criado numa pequena cidade no estado de Hesse. O lugar era dominado
por fábricas de sapato. Todos os adultos trabalhavam lá, exceto os Thalberg,
que eram donos da fábrica. Thalberg crescera em meio aos empregados e
desde muito cedo aprendera a enfatizar as diferenças sociais. O chefe de Kiki
misturou-se a outros círculos, onde o dinheiro encontrou o jovem espírito
empreendedor. Numa área na qual todos se tratam com informalidade,
Thalberg mantinha distância de seus funcionários.
O trabalho dos vasos era a chance de Kiki de ser promovida para a liga
superior e mostrar seu poder a Thalberg e à imprensa, que faria matérias
sobre o grande pedido da Ikea. Ela já via os artigos diante de si: “Design
divino”, estaria lá em letras imensas e vermelhas e, logo abaixo, a história do
surgimento de seus desenhos. “As ideias surgiram durante minha viagem de
peregrinação”, essa frase caía bem num entrevista para a revista de decoração
Belas Casas. “Não sou religiosa”, ditaria para a jornalista impressionada,
“mas minha peregrinação para Lourdes marcou a virada da minha carreira”.
Seria mais ou menos assim. Contanto que lhe ocorresse algo que valesse o
título “Design divino”.
O foco da câmera encontrou um inseto verde brilhante. Estava pendurado
com a cabeça triangular para baixo em uma planta e esperava que uma presa
descuidada se aproximasse.
– Um louva-a-deus – reconheceu Caroline. – São raros até no hemisfério
sul.
Kiki sempre se surpreendia com o conhecimento que Caroline tirava da
cartola.
Estelle revirou os olhos:
– Louva-a-deus? Típico do Caminho de Santiago. Até os insetos são
católicos aqui – Estelle já tinha visto paisagens o suficiente. Indignada,
completou: – Deveríamos ter chegado ao lendário mosteiro de Arne faz
tempo.
– Não devíamos não – esclareceu Caroline claramente. – Estamos indo na
direção errada.
Falou alto para que Judith, que seguia sozinha à frente, pudesse ouvir.
14

Judith estava exausta. Não era por causa do sol, que aos poucos chegava ao
seu ponto mais alto e diluía as cores. Não era por causa do que via e sentia. O
que inquietava Judith eram as coisas que não via. O córrego com água fresca,
o parapeito da ponte onde Arne se machucou, o banco antiquíssimo à sombra,
um pinheiro atingido por um raio cujo tronco crescia novamente: Judith
buscava em vão por todos os detalhes que Arne anotou em seu diário.
“Você precisa olhar direito”, reclamou consigo mesma. Mas como poderia
absorver a paisagem com tantos comentários às suas costas?
– Se não encontrarmos o mosteiro – disse Estelle – tenho algumas ideias.
Minha assistente fez uma busca na internet com todos os restaurantes da
região.
Ela puxou algumas folhas impressas de sua mochila e citou, se deliciando,
os cardápios do restaurante mais próximo.
– Patê de cervo com pistache, caranguejos de água doce marinados em
molho de vermute. Nem vinte quilômetros daqui. Poderíamos fazer um
agradinho para nós mesmas.
– A peregrinação precisa doer. Senão, não adianta – Kiki ensinou à amiga.
– No fim do caminho, você será redimida de todos os pecados.
Se havia algo que interessava mais a Estelle do que a boa comida eram as
boas histórias. Não era do seu feitio fazer rodeios. A vida era muito curta. O
melhor era ir direto ao assunto:
– Mais uma história de homens que não deram certo?
Kiki balançou a mão, retorquindo:
– Quando chegarmos em casa, o problema terá acabado.
– Problemas que somem no ar? – comentou Caroline num feliz cantarolar.
– Meus criminosos também acreditam nisso e nunca resolvem nada. Se não
me escutam, ficam perdidos...
Judith entendeu bem que o comentário de Caroline era para ela. Queria ser
tão eloquente quanto a amiga ou rápida como Estelle. Arne certamente teria
uma resposta divertida na manga. Sempre conseguia aliviar tensões com uma
piada.
Um ruído penetrante rompeu seus pensamentos turvos. O telefone de Eva
tocou. Ela atendeu aliviada. Finalmente um lugar no qual havia sinal.
– Frido! Como estão as coisas? Fiquei tão preocupada.
Mas a ligação estava tão ruim que Eva precisava gritar para se fazer
entender. Judith e as outras foram obrigadas a ouvir toda a conversa. Não era
difícil imaginar o que fazia Frido estar no outro lado da linha.
– Frido, eu já cozinhei os molhos.
Suas instruções eram rápidas e precisas. Judith ficava surpresa em ver
como Eva era paciente com Frido.
– No freezer, não na geladeira.
– E a gaveta do meio?
– Etiqueta vermelha.
Falar e caminhar ao mesmo tempo era difícil para Eva. Ela tentava tomar
ar. Enquanto Judith lançava uma prece rápida e muda para os céus, Kiki
lançou uma aposta:
– Dez euros que Frido não consegue fazer nenhuma refeição.
Estelle retrucou:
– Até meu poodle sabe onde está a comida dele.
Tensas, observavam a evolução da conversa.
– Exato! E agora você precisa esquentar tudo – ensinava Eva.
Estelle temia o pior:
– Espero que ele saiba usar o micro-ondas.
Mal tinha acabado a frase, quando Eva gritou, indignada:
– Frido, não no micro-ondas, né?
– Você devia cozinhar qualquer dia, Estelle – riu Kiki.
Estelle reagiu com revolta fingida:
– Eu cozinho sim. Ninguém faz chá melhor do que eu.
Judith leu muito sobre peregrinações. Em nenhuma das histórias houve um
peregrino que ficasse pendurado no telefone e desse uma aula para aqueles
que ficaram em casa sobre o uso do micro-ondas e a perda de antioxidantes e
as consequências ruins resultantes dele, como arteriosclerose, câncer ou
catarata. Nesse meio tempo, o rosto de Eva tinha adquirido a cor de um
tomate.
– Eu sabia que seria difícil para Frido – sussurrou para as amigas. – Mas
não tinha ideia de que ele se comportaria como um analfabeto.
Balançando a cabeça, tirou a mão do microfone e mudou para o tom de
esposa paciente:
– Você precisa esquentar o molho em banho-maria. Pegue uma panela e
ponha água, uma baixa. Não, não a vermelha. Isso. Cinco a sete minutos.
Sim, eu espero, claro.

Judith não ouvia mais. Tinha descoberto algo lá na frente que parecia ser uma
ponte. A pinguela sobre o riacho tinha um corrimão totalmente enferrujado
que se projetava perigosamente. Suspirou aliviada. Devia ser o pedaço de
ferro no qual Arne machucara a mão direita. Estavam no caminho certo.
Quando passou a mão com cuidado pelo metal afiado, soube por que havia se
lançado nessa aventura.
Estranho como sentiu algo totalmente diferente quando olhou para a
pontezinha. O corrimão de metal afiado e escondido se estendia pelo
caminho. Judith ficou radiante de não ter dividido com suas amigas os
detalhes do diário.
15

Não dava mais. Precisavam urgentemente de um descanso. Exausta, Judith


deixou-se cair nas sombras de um pinheiro exuberante.
Kiki arrancou seus sapatos de caminhada e massageou os dedos
maltratados. Redimir-se de pecados dava trabalho, ainda mais para as
extremidades.
– Meus pés estão dormentes – lamentou.
Estelle, que havia esticado braços e pernas na grama como se fosse fazer
um anjo na neve, torcia o nariz com nojinho:
– Do jeito que estou cheirando, parece que já estou morta.
Mesmo Kiki, que estava acostumada a procurar e ver o lado bom de tudo,
estava com os nervos à flor da pele.
– Estamos há horas andando em círculos – reclamou com olhar acusador
sobre Judith.
Estelle comentou o que Caroline havia horas pregava:
– Definitivamente é o caminho errado.

Judith evitava olhar para Caroline. Claro que tinha perguntas, claro que ela
havia percebido as incoerências. Mas dizia respeito apenas a Arne e a ela.
Tentou salvar o que devia ser salvo:
– E daí? O mais importante é o que acontece dentro de você.
Estelle livrou-se dos tênis. Bolhas. Bolhas horríveis. Carne viva!
Judith continuou, impassível:
– Arne diz que o caminho da peregrinação provoca sentimentos
inesperados.
– Vontade de matar, por exemplo – completou Estelle.
– Você precisa seguir com consciência, Estelle – esclareceu Judith com
brandura. – Então o corpo se acostuma de forma natural ao novo ritmo de
vida. Só assim você vai se redescobrir.
A ladainha esotérica e essa voz sussurrada, embebida em compreensão,
foram a gota d’água para Estelle:
– Quem diz isso? Arne, o profeta? Vamos ver.
Curiosa, Estelle tentou agarrar o diário que estava na grama. Antes que ela
pudesse pegá-lo, Judith puxou o caderno para si com violência. O legado de
Arne não pertencia a nenhuma delas.
– Só queria saber quais desafios espirituais ainda me aguardam –
defendeu-se Estelle.

Impotência e raiva fervilhavam em Judith. Por que trouxe as amigas para o


Caminho de Santiago? Deveria fazer a peregrinação sozinha. Mesmo sem o
envolvimento das mulheres de terça-feira já era difícil seguir as trilhas de
Arne. Os comentários cáusticos das amigas, a crítica muda e o matraquear
incessante ao fundo envenenavam a atmosfera. Distanciou-se um pouco do
grupo e tentou concentrar-se no motivo pelo qual tinha ido à França. Queria
dar um fim digno ao diário de Arne com um capítulo final.
Com cuidado, abriu o livro e tirou a tampa da caneta-tinteiro de Arne.
Desde a infância, quando Judith rabiscava o caderno da escola com sua
caneta-tinteiro Pelikano, nunca mais tivera uma dessas na mão. A herança
antiquada de Arne era um modelo fora de linha. No sentido mais verdadeiro
da palavra. Em vez de botar no papel frases e aforismos sábios e bem-
escolhidos, o que Judith deixou no diário de Arne foi uma mancha úmida em
azul-cobalto. Judith sentiu as lágrimas brotarem. Eram sempre as pequenas
coisas que a tiravam do prumo. Uma canção no rádio que ouviram juntos,
uma carta da Volvo que convidava Arne para a apresentação de um novo
modelo, os potinhos secos de leite que Arne sempre enchia para atrair o gato
do vizinho para a varanda deles. E agora essa mancha horrorosa no diário.
Arne tentaria ler algo positivo do borrão, do mesmo modo como previa o
futuro nas nuvens quando passaram as primeiras férias juntos no mar Báltico.
– Sou um leitor de nuvens treinado – afirmou, convincente, garantindo que
as nuvens pareciam um bolo. – Anos doces e fartos nos esperam – sussurrou
em seu ouvido.
E Judith acreditou nele. Até tudo mudar.

Ela não queria continuar pensando naquilo. Precisava se libertar das coisas
que aconteceram. Não queria mais sentir saudades de Arne. Muitas pessoas
escreviam diários para se lembrar. Judith queria escrever para esquecer. Das
nuvens e de tudo o que veio depois. Não era preciso muita imaginação para
reconhecer o que significava aquela poça de tinta. A mancha parecia uma
nuvem de tempestade. Os deuses estavam prontos para lançar seus raios
sobre ela.
Mais que depressa, Judith folheou o diário até o início. Quinta-feira, 17 de
junho. Parou novamente. O que deveria escrever sobre a primeira parte da
peregrinação? Obedecia às indicações de Arne no diário. E, apesar disso,
estava desnorteada. Judith se convenceu de que era apenas o cansaço que a
deixava sem palavras.
16

–Sei do que precisamos – gritou Eva, animada. Resmungou e compreendeu


com um olhar que as amigas ainda estavam em pé de guerra. Judith estava
sentada em posição de lótus, um pouco distante das outras, as palmas das
mãos voltadas para o céu, os olhos fechados.
– Ela faz mais teatro para o falecido Arne do que para os vivos – comentou
Estelle sobre o comportamento estranho da amiga.
– Ela perdeu o marido, Estelle. Deixe-a exagerar, ela pode – Eva saiu em
defesa de Judith. Preocupava-se com a amiga. Judith era a mais dramática de
todas. Desde os tempos de Kai, preferia falar dos problemas a resolvê-los.
Desde a morte de Arne, tinha ficado silenciosa. Quando Judith não queria
mais falar, era um sinal de alerta.

Eva tirou das costas sua pesada mochila. Naquele momento, em Colônia,
havia uma refeição quentinha na mesa. Assim, conseguia se acalmar para
cuidar de si mesma e das amigas, que precisavam de ânimo. Para surpresa de
suas parceiras de peregrinação, Eva fez surgir da mochila, como num passe
de mágica, um piquenique fabuloso. E um forro de mesa ultrafino, que Kiki
reconheceu emocionada como um de seus primeiros projetos para o estúdio
Thalberg. Logo não se veria mais nada da estampa. Sobre o forro de mesa,
uma profusão de gostosuras: azeitonas, salaminho, queijo, folhados recheados
ao lado de biscoitinhos de parmesão, minimuffins com tomate seco e bolo de
cenoura com nozes. Irresponsável no que diz respeito à técnica de
peregrinação era levar isso tudo na bagagem. Mas naquele momento sua
arma secreta significou a salvação do bom humor.
– Entendo o Frido. Eu também não deixaria você ir embora. Você é o
máximo – suspirou Estelle.
Eva ficou envergonhada. Não lidava bem com elogios.
– São só umas coisinhas. Nada demais – tentou diminuir seu feito. Mas ela
se ocupara dias e dias com o planejamento e a preparação do piquenique.
Sem falar em todo o esforço de arrastar até ali a pesada mochila.
Eva arrumava as delícias nos pratos de plástico que trouxe, servia e se
alegrava quando as outras gostavam dos quitutes. Após tantas horas de
caminhada, um lugar simples à sombra parecia o Paraíso. Preguiçosas, as
mulheres de terça-feira se esticaram todas, curtiam as comidinhas gostosas e
deixaram o olhar vaguear sobre os montes. Rochas nuas elevavam-se do
verde exuberante, o vento soprava no calor do meio-dia e as cigarras
ciciavam sua eterna canção. Havia um cheiro de poeira seca, alecrim e férias.
A alegria tomava o lugar da exaustão. Estavam viajando. Longe de Colônia,
uma cidade com a qual se podia encher meio livro para descrever sua feiura.

Poderia ter sido um piquenique idílico se Judith não tivesse se separado do


grupo e se não houvesse a tecnologia moderna, com qual é possível encontrar
qualquer pessoa em qualquer situação. Quando Eva quis pegar seu primeiro
bocado, o celular tocou. Como sempre, atendeu de pronto. O sentimento
angustiante no estômago de que em Colônia algo pudesse não estar em ordem
não a deixava em paz.
– Alô, Lene. Como? Nota três em matemática? Que aconteceu? – Eva
suspirou. As pequenas catástrofes também conseguiam desequilibrar sua
grandeza.
Eva tinha apenas começado a consolar Lene quando sobre ela recaíram os
olhares de desaprovação que as amigas lhe lançaram. Por que olhavam com
tanto desprezo? Não podiam entender. Estelle tinha dois enteados adultos que
viviam bem longe, os filhos de Caroline foram naturalmente bem criados,
Kiki continuava a busca pelo pai dos seus filhos e Judith pensou tanto na
possibilidade de ter um que o tempo acabou passando para ela. Nenhuma das
mulheres de terça-feira fazia ideia de como era levar quatro crianças para a
escola. Regine sempre dizia que era culpa da falta de uma intervenção
prematura. Quando perdemos um período importante no desenvolvimento
infantil, ficamos para trás automaticamente. Regine tinha razão. Como
deveria ter feito? Levar quatro crianças pequenas para aulas de
musicalização, natação para bebês e aulas de chinês. Sem esquecer os testes
de inteligência no caso de problemas escolares. Às vezes, tinha a impressão
de que era a única mãe a não acreditar que notas ruins e falta de vontade de ir
à escola era resultado de uma inteligência mais alta. Abaixo da média, assim
chamavam no pátio da escola. Lene estava apenas na puberdade e às vezes
era preguiçosa, só isso. Mas por isso deveria deixar sua filha na mão? Apenas
por que estava numa peregrinação? Não queria ser como Regine, que
desaparecia por semanas sem se preocupar com nada. Era desesperador.
Desde que chegara à França, pensava na mãe a cada cinco minutos.
17

–Quando conheci Eva, ela queria fazer doutorado no Hospital do Coração,


em Paris. Então, ela casou com Frido, teve um filho atrás do outro e nunca
terminou o curso de francês – resmungou Estelle.
Caroline respondeu de boca cheia:
– Você também não.
– Eu tentei, de verdade. Cheguei a pensar que tinha talento. Até eu tentar
comprar uma passagem de ônibus na primeira vez em que estive na França.
Estelle fez uma pausa dramática, sua especialidade.
– E então? – perguntou Kiki, impaciente.
– Não sei o que eu disse, mas o motorista deve ter entendido “tire as
calças”.
Elas caíram na risada. Nem mesmo o olhar acusador de Judith conseguiu
deter o estouro de gargalhadas.
– E por isso você está aprendendo polonês agora – Kiki cutucou Estelle.
– Claro, só assim eu consigo me entender com a empregada. Ela sempre
diz a mesma frase e eu não entendo bulhufas.
Caroline entrou de novo na conversa.
– Nesse meio-tempo você conseguiu saber o que significa a frase?
Estelle imitou um sotaque polonês:
– Não tenha medo, meu marido conserta isso.
E, de novo, explodiram em gargalhadas.

– Vocês não podem simplesmente ficar quietas? – gritou Judith para as


amigas.
Caroline prendeu o riso. Estelle e Kiki se entregaram sem pudores ao
humor pentelho.
– Talvez seja uma reação alérgica à paisagem – comentou Estelle. – Todo
o pólen, o ar puro, com certeza não fez bem.
Na versão de Judith, a situação era esta:
– Para vocês é tudo uma grande diversão. Mas não para mim. Quero
absorver o lugar como Arne experimentou. Imaginei com tanta beleza e…
e… e agora nem sei mais onde estamos.
As lágrimas rolavam. A exaustão e o desespero que haviam crescido
dentro dela nas últimas horas finalmente a tomaram de assalto.
– Eu queria ser forte – confessou.
O riso se esvaiu em rostos perplexos. Kiki mordia o lábio inferior, com
indecisão. Sentia-se culpada. Estelle, nem tanto. Muitas vezes tinha se
irritado com o fato de Judith cobrir o falecido marido com uma aura sagrada.
No passado, precisaram ouvir muitas vezes que Arne a sufocava com seu
amor. Mas Judith se esquecera disso havia muito. Para alívio de Caroline,
Estelle guardou para si outros comentários. Mesmo ela sabia quando parar.
Caroline apenas pegou o braço de Judith. Não tinha o mínimo interesse em
saber mais sobre o que quer que fosse. Com certeza não quando deixaram
para trás quinze anos juntas e ainda tinham 430 quilômetros de caminhada até
Lourdes pela frente. Quatrocentos e vinte e sete, para ser mais exata, pois
Caroline sabia exatamente onde estavam.
– Talvez a gente não saiba qual caminho Arne percorreu, mas sabemos
aonde ele queria ir.
Judith mal reagia. Estava no fim de suas forças.
– Não faz sentido. A peregrinação só piorou as coisas – soluçou ela. –
Queria mesmo voltar.
Caroline pegou seu guia do peregrino.
– Exatamente o que precisamos agora. Algumas centenas de metros daqui
está a rodovia. É o caminho mais curto para voltarmos à rota. Apenas alguns
quilômetros.
Teatral, Estelle fez que iria cair:
– Onde está o médico que pedi para chamarem?
18

Dizem que, com os anos, os cachorros ficam parecidos com seus donos.
Para os fazendeiros e seus animais parece valer a mesma regra. Não ficou
claro quem se surpreendeu mais ao encontrar na estrada de cascalho as cinco
senhoras solitárias, com aparência de cidade grande, totalmente suadas: o
fazendeiro ou as ovelhas que olhavam de cima para baixo, dispostas sobre o
reboque do trator. Não precisaram trocar uma palavra. O fazendeiro
entendeu, sem nenhuma explicação, que aquela cena pedia um ato cristão de
amor ao próximo. Sem falar nada, abriu a porta da carroceria e empurrou as
ovelhas para o lado. Com um gesto simples, convidou as cinco peregrinas
exauridas a entrar em seu reboque.
Judith embarcou e com isso deu o sinal que por hoje estava pronta para
esquecer o diário e suas instruções. Caroline e Eva seguiram-na. Até Kiki
desistiu de outra discussão sobre remissão dos pecados. Todas as quatro eram
da opinião de que já haviam feito o bastante para o primeiro dia de
peregrinação. Algo quase grandioso! De qualquer forma, o suficiente para
desistir.
Apenas Estelle estava em dúvida. Nunca se podia saber em que medida a
vingança estava disseminada entre as ovelhas francesas. Elas podiam ser
parentes do cordeiro com o qual havia se deliciado na noite anterior em
Montpellier. Cordeiro com geleia de cebola. Parecia uma eternidade. Como
uma lembrança de uma vida passada, de uma vida bela. Aquele reboque sujo
parecia pouco convidativo. Mas havia escolha? O pensamento horrível de ter
de seguir apenas um metro ali deu o ímpeto para mostrar coragem e declarar
guerra à sua fobia de fazendas. Enquanto Estelle tentava encontrar um lugar
seguro o mais longe possível das ovelhas, Eva sentou-se confortavelmente
com as pernas cruzadas no chão do reboque. Feliz, se dedicou às sobras do
piquenique.

O veículo balançante pôs-se em marcha. O vento soprava o cheiro forte de


ovelha no rosto de Estelle. Da cabine do trator soava a música chiada de um
rádio. Com a melodia simples, mas feliz, a vida invadiu as mulheres.
– Nós traduzimos esse pedaço no curso de francês – gritou Kiki. Estelle
conseguia lembrar-se vagamente de ter visto os jovens coristas franceses na
televisão. Provavelmente em uma época quando o apresentador Rudi Carrell
era o herói dos sábados à tarde.
Kiki começou a tagarelar e a cantar. Tudo continua como antes, dizia a
letra. Nada mudou.
Até Judith deixou-se embalar pela canção hilária. Assumiu o refrão junto
com Eva e Estelle. Kiki era responsável pela voz solo e as estrofes. Não sabia
a letra com perfeição. Por isso, ressoava com gestos largos e dramáticos.
Apenas Caroline evitava, gargalhando:
– Nunca consigo alcançar o tom certo.
Para ela, bastava ver suas garotas. Enquanto cantavam felizes, o trator com
reboque arava as paisagens montanhosas, passando por alguns romeiros
dispersos que provavam que não eram elas as únicas que buscavam esse
solitário Caminho de Santiago.

Estelle estava feliz: talvez o reboque de trator fosse o melhor lugar para
convencer-se da singularidade e da beleza da paisagem. E o melhor lugar
para sentir que estavam unidas de verdade. Caso se conhecessem hoje, a
amizade não aconteceria de jeito nenhum. Mas, após quinze anos, podiam
dizer verdades que, em outra situação, causariam homicídios.
Nada mudou. Ficaria assim para sempre, aconteça o que acontecer.
Estelle deixou os pés maltratados balançarem sobre o canto do reboque.
Alguém acarinhava sua nuca suavemente. Quando virou a cabeça para o lado,
viu dois olhos úmidos de ovelha mirando apaixonados as aplicações de pele
em sua jaqueta. Como Judith disse:
– Na peregrinação, as pessoas descobrem novas facetas de si mesmas.
Estelle percebeu que seu gosto para roupa fazia sucesso entre as ovelhas.
19

Rangendo, o trator freou à frente da primeira hospedagem, o albergue de


Santa Maria. Tinham conseguido. Deixaram para trás a primeira etapa. Sem
palavras, da mesma forma como quando embarcara as amigas, o fazendeiro
desceu a rampa após o desembarque das peregrinas.
O ambiente do vilarejo lembrava a Idade Média. Nas estreitas vielas
apertavam-se casas espremidas de dois andares, feitas de pedras naturais
rústicas em cinza, ocre e amarelo pálido. As fachadas corroídas mostravam
uma luta sem fim contra a deterioração. Parecia que sempre tinham de
remendar e limpar um lugar que acabara de ser consertado.
Caroline estava contente de ter chegado. Na viagem pelo vilarejo, o
reboque havia passado muito perto dos muros das casas sem que o fazendeiro
considerasse necessário diminuir o ritmo. As marcas nas paredes mostravam
que nem todo motorista conseguia manter a distância correta dos muros.
Talvez por isso fossem poucas as janelas. Quando havia, eram pequenas. O
tamanho parecia mais orientado pelo espaço disponível do que pela simetria.
As fachadas de pedra não eram muito convidativas, pois as poucas janelas
estavam bloqueadas por venezianas e persianas. Discos de antenas nos
telhados comprovavam que ali não acontecia muita coisa. As pessoas traziam
o mundo para o vilarejo via satélite.
O albergue de Santa Maria ficava numa praça com uma pequena igreja,
uma charcutaria e uma pequena tabacaria, onde não se conseguia apenas
notícias do grande e vasto mundo, mas também as fofocas quentinhas do
lugar. E a fofoca da vez se voltou para as cinco mulheres do grande e vasto
mundo que se perderam no vilarejo.

Caroline observou cuidadosamente a estátua talhada em madeira da padroeira


local na porta do albergue, num nicho cavado no muro de tijolos grossos.
Maria estava representada como uma mulher em trajes brancos, o vestido
esvoaçante preso com um cinto azul. Em cada pé, uma rosa dourada.
Exatamente assim a filha de 14 anos do moleiro, Bernadette de Soubirous,
havia descrito Maria em 1858, após a santa ter aparecido para ela numa gruta.
Caroline leu a história na internet e bem de passagem verificou que no mundo
secular, nos resultados da busca pelo local de peregrinação em Lourdes, se
encontrava também a filha de Madonna, que recebera o mesmo nome.
Para Caroline, a história de Bernadette não pareceu muito esclarecedora. A
mensagem da aparição para a menina foi a seguinte: “Não prometo fazê-los
felizes neste mundo, mas com certeza no outro.” Claro que não se
questionava alguém como Maria, pois um acontecimento desta natureza não
precisa de qualquer verificação posterior.
A mania profissional de Caroline de precisar comprovar afirmações com
base na plausibilidade não pôde ser deixada de lado. Histórias vagas
deixavam a advogada nervosa. Histórias vagas significavam trabalho,
complicações, revisões e surpresas desagradáveis na sala de audiências.
Vozes que sopravam algo no ouvido lembravam principalmente os clientes
que não queriam assumir qualquer responsabilidade por sua vida.
Foi uma coincidência estranha que a aparição misteriosa em Lourdes
tivesse ocorrido exatamente quatro anos antes do dogma da concepção
imaculada de Maria ser aceito. Sou a Imaculada Conceição, respondeu a
mulher que flutuava diante dos olhos de Bernadette na parede da gruta
quando a menina perguntou seu nome.
Caroline ainda não entendia uma coisa. A Imaculada Conceição não se
referia de fato a Jesus. Tratava-se da própria Maria. No dogma, Pio IX fixara
como princípio da crença que não apenas Jesus era fruto do nascimento
virginal. Pelo ato de misericórdia divina, Maria também foi livrada desde o
primeiro momento do pecado original. Mesmo que a gravidez da avó de
Jesus, Anna, tenha sido totalmente natural. Caroline franziu a testa: sexo
normal? E, apesar disso, uma concepção imaculada? Para entender algo
assim, era preciso ser bem católico.
Um advogado contrário, de qualquer forma, não a desafiaria com tal
argumentação aventureira. Mas assim era com a religião. Ou se acredita ou
não se acredita. Caroline não acreditava numa palavra da história de
Bernadette. Nem que a água benta de Lourdes era aquilo que prometia. Tinha
lido que em pesquisas científicas não detectaram nenhum composto mineral
extraordinário na água da fonte. No uso comum, aquilo que foi pesquisado
era chamado de água mineral. Mas se as pessoas acreditavam na história de
Bernadette ou queriam nomear seu albergue com o nome dela, para Caroline
dava no mesmo.
O grito de júbilo de Judith tirou-a de seu transe de pensamentos.
– Santa Maria! Voltamos para a rota de Arne.
Radiante, Judith pulou do reboque. Mal podia acreditar na sorte
inesperada.
– Vamos dormir lá onde Arne passou a noite. Talvez não seja o trecho
exato que ele percorreu, mas estamos de volta para o caminho dele. Vocês
vão achar o máximo – prometia ela às amigas. – Arne amou. Eles têm uma
adega de vinhos, camas muito macias, banheiros amplos. O ideal após um
longo dia de peregrinação. Arne não queria mais ir embora.
A modulação de sua voz tinha voltado. A insegurança que se espalhou por
Judith durante a primeira etapa se dissipara. Elas chegaram ao trecho de
peregrinação de Arne, e Judith estava pronta para assumir novamente a
liderança.
Até o momento em que Ginette, dona do albergue e envelhecida por uma
vida sob o sol do sul, abriu para elas a porta rangente do quarto. Caroline não
precisava mais inspecionar o albergue. Um olhar bastava para acabar com a
última dúvida: algo não estava de acordo com o diário de Arne. E esse algo
era mais do que um pequeno erro na indicação do caminho.
20

–A cama de cima é minha – anunciou Kiki, fazendo festa. Com


empolgação, lançou-se com sua mochila no beliche próximo à janela
bloqueada. As outras ainda não estavam recuperadas do choque. Luxo que
nada. O quarto tinha uma aura de cela humilde de mosteiro. E não era apenas
pelo crucifixo imenso que enfeitava o aposento.
Uma lâmpada de neon iluminava impiedosamente os tristes detalhes das
instalações: três beliches, uma cadeira, uma mesa manca, um guarda-roupas
com seis cabides e portas que não fechavam. Tudo de fórmica. Nas camas,
cobertores de algodão flanelado que possivelmente passariam por peças do
período pré-guerra para um colecionador.
– Uma amiga faz bolsas desse tecido. Vende igual pão quente –
entusiasmou-se Kiki. Não tinha tempo, tampouco vontade de se preocupar
com a mobília de um quarto de hotel. Tanto fazia o que Arne escreveu em
seu diário. Kiki estava ansiosa por iniciar o primeiro desenho. Tinha visto
tantas formas e cores interessantes, absorvido o som da paisagem. Os ruídos e
a música eram importantes para ela. No primeiro semestre, virou motivo de
piada na faculdade de design quando tocou um CD na sua primeira
apresentação de produto para demonstrar qual sensação queria capturar com
um projeto de sofá.
Todos os outros haviam feito, detalhada e demoradamente, móveis de
espuma de poliuretano pintados com carinho. Na época, já existiam aparelhos
que produziam modelos tridimensionais a partir de projetos digitais.
Kiki tinha bom humor. O dia tinha lhe brindado com tantas impressões
boas. Agora precisava transformá-las em desenho. Ali conseguia trabalhar
melhor que no estúdio em Colônia, onde sempre estava cercada de colegas
que a distraíam de seu trabalho. Ali era quieto. Até demais.
Judith, que transbordou de entusiasmo ao chegar ao albergue, perdeu a fala
quando olhou o quarto com seis camas.

Estelle desapareceu no térreo para procurar uma boa bebida. Voltou com uma
garrafa de vinho.
– A única coisa que consegui encontrar naquilo que chamam de adega –
comentou enquanto enchia os copos.
Caroline ergueu seu copo:
– Um brinde a essa bela porcaria. Exatamente como Arne – declamou em
tom festivo.
Não tinha a intenção de ofender, mas Judith sentiu-se imediatamente
atacada. Sua expressão ficou petrificada, mas Caroline pareceu não perceber.
– O vinho nem é tão ruim – elogiou.
– Que é isso, Caroline? – retrucou Judith.
– É possível que Arne não percebesse mais as coisas como elas realmente
eram? – Caroline tentou aliviar a situação. Ela não queria briga. Mas Judith
estava na rota do embate.
– A doença era no estômago, não na cabeça.
Kiki suspirou. Às vezes Caroline era péssima com seu amor mórbido pela
verdade. O que seria se Arne tivesse descrito exatamente o caminho e as
acomodações? Elas tinham um teto sobre a cabeça, tinham saúde, ainda
restavam dez dias livres na França e o vinho estava ótimo. Que mais
queriam?
– Pare com isso, Caroline. Deixe Judith com a imaginação dela. – Kiki
queria ajudar a amiga, quando Caroline prosseguiu:
– Você não acha estranho que os dados no diário não batam com nada? –
ela continuou a cutucar.
Kiki não era a única que sentia que as coisas desandariam. Eva pôs-se
entre as briguentas e serviu mais vinho. Visivelmente alerta, tentou apaziguar
a briga antes que estourasse de verdade.
– Há muitos caminhos e todos levam a Santiago de Compostela.
Judith empurrou Eva para o lado.
– Provavelmente o dono mudou – rebateu Judith, truculenta.
Estelle inspecionava sua cama com as pontas dos dedos:
– Ninguém troca esse cobertor há uns sete meses.
Estelle estava preparada para todas as eventualidades. Sacou logo um
inseticida da mala.
– Aonde você quer chegar? – perguntou Judith.
– Você acredita mesmo – justificou-se Caroline – que Arne achou que isso
era luxuoso?
– Após um dia de peregrinação? Definitivamente, sim! – intrometeu Kiki,
divertida. Ela disse exatamente o que queria dizer. Tinha se acomodado em
sua cama na parte de cima do beliche e colou na parede alguns dos desenhos
que havia feito para seus vasos durante o caminho, achando tudo ótimo.
Exceto pelo bate-boca das amigas. Nas camas de baixo, a briga continuava.
Caroline não desistia, muito menos Judith:
– Arne estava à beira da morte, sabia que iria morrer. Assim cada momento
parecia um presente. Cada encontro com a criação, uma maravilha. Mesmo
com a mais ínfima criatura.
Um cheiro penetrante espalhou-se pelo quarto e tirou o fôlego de Judith
para continuar sua fala. Com o inseticida, Estelle espirrou para o além uma
pequena criatura e sua grande família que se escondiam atrás de sua cama.
Até ela percebeu a consternação das amigas. Culpada, olhou primeiro para
Judith, e então para o massacre que havia perpetrado contra os bichos
rastejantes.
– Podíamos nos converter ao budismo – propôs Estelle, cheia de remorso.
– Eles acreditam na reencarnação.
Judith saiu do quarto batendo a porta. Eva foi atrás, não sem antes dar uma
bronca em suas companheiras de peregrinação.
– Isso foi totalmente desnecessário – sussurrou ela. Não ficou claro sobre o
que falava. Sobre Caroline com suas perguntas ou sobre Estelle com seu
humor anárquico.

– Muito bem – Kiki cumprimentou Caroline com o dedão levantado. – Agora


Judith tem de novo um motivo para soluçar a noite toda.
– Se eu não dissesse nada, amanhã a gente andaria novamente na direção
errada – Caroline se defendeu.
Mas Estelle estava pronta para botar mais lenha na fogueira:
– Você não teve uma vez um cliente que falsificou um diário inteiro?
– Hitler? – perguntou Kiki.
Caroline gargalhou:
– Estelle está falando do arrombador em série. Ele achou que podia
escrever um álibi para si mesmo.
– Quem sabe o que Arne tinha para esconder?
21

Caroline pensou o dia todo como poderia fazer para que Judith obedecesse
menos às informações duvidosas do diário de Arne. No fim, decidiu-se
espontaneamente pelo método mais rígido.
Logo depois, culpou-se por não ter conseguido formular sua intenção de
forma mais diplomática. Num banco diante do albergue, bebia um copo de
vinho e olhava a vida noturna do vilarejo. Os últimos raios de sol lançavam
um dourado morno sobre as fachadas cinzentas. Era um calor reconfortante.
Nas ruelas, alguns jovens seguiam duas meninas que davam risadinhas e se
empurravam com gestos meio brutos e gritos altos. Na igreja, reuniam-se os
homens mais velhos do vilarejo para o bate-papo do começo de noite. A todo
o momento, os olhares se voltavam para Caroline. Ela não percebeu nenhuma
vez.
Caroline estava triste consigo mesma. Por que reagira com tanta grosseria?
Invejava Kiki por seu talento para aceitar as coisas. Não fazia nenhuma
pergunta desnecessária. Era provável que, para ela, não importasse se
chegariam a Lourdes, a Timbuktu ou a lugar nenhum. Aproveitava o dia e o
que o acaso trouxesse. E, mesmo assim, era ambiciosa no que fazia. Por que
Caroline não conseguia ver a vida de forma mais descontraída? Kiki foi
amada. Já Caroline era, em todos os casos, valorizada, com frequência
temida, às vezes abertamente combatida.
Na vida profissional, saía-se bem: montar tática, aguardar, dizer a coisa
certa na hora certa. Por que na vida pessoal não funcionava?
– Por isso a gente tem amigas. Para se recuperar do trabalho – confortou-se
Caroline. As mentiras faziam parte do seu cotidiano como o amém da missa.
Dia após dia, era confrontada com declarações falsas e meias verdades, com
desculpas e retóricas. O Direito mantinha os mentirosos protegidos. Nemo
tenetur se ipsum accusare (ninguém é obrigado a acusar a si mesmo), era o
nome disso. Quanto mais enfrentava mentiras na sala de audiência, mais
alérgica ficava a elas na vida pessoal.

Em vez de provocar Judith ainda mais com perguntas desconfortáveis,


Caroline voltou seus pensamentos ao marido. Tentou ligar para Philipp a
noite toda. Arne havia sido seu paciente. Possivelmente tinham conversado
sobre a última peregrinação. Philipp tinha celular, mas utilizava apenas em
caso da mais extrema urgência e raramente o carregava. Não gostava dessas
tecnologias modernas, tampouco da expectativa de ser encontrado a qualquer
momento fora de suas consultas marcadas e dos plantões. E também não
gostava nada das tarifas.
Caroline ligou quatro vezes para o consultório e quatro vezes recebeu a
mesma resposta cantada da recepcionista: “O doutor Seitz está em visita
domiciliar.”
Parecia que Colônia inteira sofria de alguma epidemia que impossibilitava
os pacientes de comparecer ao consultório de Philipp.

Não era incomum que ficassem dias sem se falar. Não eram daqueles casais
que mantêm uma linha telefônica exclusiva. Caroline estava longe de ser o
tipo de mulher que tentava garantir com ligações, mensagens de texto ou e-
mails que o marido ainda estava vivo e a amava. Mas, naquele momento, se
irritou por não conseguir falar com ele. Esperava tanto que Philipp pudesse
ajudá-la.
Bufando, Caroline recostou-se. O calor estava cada vez mais confortável.
De uma janela aberta soava em alto e bom som o Jornal de 20 heures, que
havia algum tempo era apresentado por uma mulher e não pelo ícone dos
noticiários franceses, Patrick Poivre d’Arvor, que Caroline acompanhara
durante todo o curso de francês. Crianças chutavam bola entre duas latas de
lixo e festejavam a cada gol, como se tivessem marcado o ponto que daria à
seleção francesa o título mundial. Uma voz chamou-os para jantar. Ficaram
os senhores sentados em um peitoril no muro da igreja, comentando os
acontecimentos do dia. Estranho, pensou Caroline, nas praças dos vilarejos
sulistas apenas homens ficam sentados. Mas também entre as mulheres de
terça-feira a mistura não dava certo. Ficava complicado sempre que os
homens chegavam.
Com arrepios, Caroline lembrou-se da primeira comunhão do primogênito
de Eva, David, que mereceu uma grande festa. Grande festa para Eva
significa convidar não apenas suas amigas e agregados, mas também toda a
imensa família de Frido e sua excêntrica mãe. Ela ainda lembrava como se
surpreendeu quando encontrou Regine pela primeira vez nessa festa. A mãe
de Eva estava perplexa, pois a filha venerava uma tradição familiar contra a
qual ela lutou com muito empenho. “É culpa da vovó Lore”, anunciou, ainda
na porta de entrada. Seu tom deixava claro que não era um elogio de jeito
nenhum. Entre Regine e a família católica fervorosa de Frido, que
compareceu à comunhão de David com todos os filhos e filhos dos filhos
disponíveis, houve uma troca terrível de “elogios”. No meio dessa confusão,
estavam as cinco amigas e seus companheiros.
Enquanto Kiki partia primeiro o coração e depois o nariz do irmão mais
novo de Frido (ambos sem querer), Estelle e seu rei das farmácias se
arrependeram muito por terem perdido a oportunidade de trazer um grande
frasco de ritalina para distribuir entre todas as crianças presentes. Ou para
Regine, que havia escolhido justamente Philipp para rever seu trauma
católico de infância. Não conseguia compreender o fato de sua filha, que
havia criado para ter a cabeça aberta, obrigar seu neto David a algo tão
dogmático como uma comunhão.
– Veja a confissão – berrava Regine na orelha de Philipp para vencer a
gritaria das crianças. – Quando criança, precisei me desculpar até mesmo
pelos pecados dos quais nem me lembrava mais. Sempre esse medo. Deus já
sabe o que você terá para confessar antes de você cometer o pecado.
Mal Philipp conseguiu fugir de Regine, grudou em Kai, que corrigia a
pobre Judith a cada três frases. “Isso que você está dizendo está certo só em
parte” parecia ser a frase favorita dele. Três dias depois, Judith deu entrada
no divórcio.

Depois da tarde de comunhão ter acabado com Eva quase tendo um colapso
nervoso, ela anunciou que festejaria cerimônias religiosas no futuro apenas
com o núcleo da família. Os companheiros de suas amigas também não
tinham lembranças muito boas daquela tarde. A partir de então, quando
possível, ficavam longe dos encontros das mulheres. Para elas, estava ótimo.
O único marido que insistia em participar dos encontros de terça-feira era
Arne. Sempre levava Judith ao Le Jardin e não ficava apenas em uma tacinha
de vinho, mas às vezes permanecia até o fim da noite. A sorte de Judith: Arne
era realmente sincero e bom com ela. Seu azar: queria provar isso para ela 24
horas por dia. Caroline sempre se surpreendia em como os dois eram
simbióticos. Mas, depois de Kai, qualquer alteração era um progresso. Judith
não era uma mulher forte. Se Judith não achasse um ombro para se encostar,
ficava arrasada. Estranho que não tivesse percebido isso bem antes: Judith,
que em todos esses anos havia escapado de um homem para o outro, vivia
pela primeira vez sozinha desde a morte de Arne. Não era surpreendente a
dificuldade em se orientar na nova vida.
Mesmo contra a vontade, Caroline tentou novamente encontrar Philipp.
Nesse meio-tempo, a recepcionista já tinha ido para casa. Em vez dela, a
secretária eletrônica atendeu: “Consultório do Dr. Philipp Seitz. No momento
não podemos atender. Em caso de emergência, por favor procure o pronto-
socorro mais próximo.”
Irritada, Caroline desligou. Não precisava de um médico de emergência.
Precisava de Philipp. Naquele momento desejou que seu relacionamento
fosse um pouco mais parecido com o de Judith e Arne.

A rua havia esvaziado, as luzes nas casas tinham sido desligadas. No nicho
do muro crepitava uma vela. A Virgem Maria sorria para ela, plácida.
Caroline tinha motivos para rir. Então foi ela que convocou as pessoas a
peregrinar até a gruta de Lourdes. “Dizei aos padres que devem vir até aqui
em procissão e construir uma capela”, comunicou Maria a Bernadette em sua
13ª aparição. Após a 18ª, Maria desapareceu e deixou as pessoas somente
com aquilo que trouxera à tona. Maria conclamou, Arne comeu milho e
Caroline levou a fama.
Desanimada, baixou o telefone. Esperava que seu sétimo sentido para
mentira estivesse enganado. Tinha de haver um motivo pelo qual nenhuma
informação desse diário batia. Um motivo racional.
22

Kiki sentou-se na cama de cima como num trono e começou a desenhar. A


viagem de peregrinação trouxe uma ótima desculpa para não desenhar direto
no computador. Havia estudado em um tempo no qual se ensinava com lápis,
régua e papel. A informatização da área a pegara desprevenida. Desde então,
havia conseguido adquirir noções do assunto. Continuava alheia à
autoconfiança que os designers mais jovens traziam consigo no trabalho com
programas de desenho informatizado. Quando as coisas ficavam difíceis,
apanhava secretamente o lápis. Então sentia-se como seu avô, que ainda
considerava Charles Aznavour o melhor cantor e Peter Frankenfeld o rei do
humor alemão: um dinossauro à beira da extinção.

O olhar de Kiki pousou sobre as amigas. Registrou tudo com a câmera: o


sono de Judith, o criado-mudo com a vela tremeluzente diante da foto de
Arne, ao lado da qual repousavam flores frescas e um copo cheio de vinho.
Judith havia montado seu altar para Arne também na França. Dormia
tranquila. Eva, no beliche à frente, parecia estar em coma. Há horas não se
movia nem um centímetro. Mais um clique. No visor surgiu a foto de Estelle,
que dormia com uma máscara azul. Os pés cheios de esparadrapos se
projetavam para fora do cobertor.
Kiki sorriu. Estelle a odiaria por essa foto. Repassou as imagens
registradas. Os acontecimentos do dia passavam por ela ao contrário. Havia
registrado tudo: as expressões desanimadas das amigas ao entrar no quarto,
Eva no meio das ovelhas, o piquenique maravilhoso, o louva-deus, a primeira
foto do grupo, o champanhe no aeroporto de Colônia, a partida. Como um
choque, surgiu uma imagem: Kiki de braços dados com Max, um homem
grande com rosto de traços clássicos, cabelos loiros bagunçados e um sorriso
feliz que não deixava nenhum vinco em seu rosto. Com 23 anos, ninguém
tem rugas.
Emocionada, Kiki percorreu as lembranças digitais: um casal apaixonado e
com vontade de viver em uma barraca, no salto de trampolim, com metade do
corpo nu no espelho de um banheiro. Momentos tranquilos e felizes,
registrados com o timer da câmera ou com braço esticado. Kiki observava,
sorridente, os cliques ridiculamente hilários, até perceber o que estava
fazendo naquele instante. Começou a apertar a tecla de apagar com força. O
jovem feliz se desintegrou em milhares de pixels. Max desapareceu do cartão
de memória da câmera como desapareceu da sua vida. Passou. Ninguém
saberia o que havia acontecido entre eles.

Minutos depois, Kiki cochilou sobre seu trabalho e sobre as lembranças de


Max. Ouviu vagamente dois gatos que chiavam raivosos numa luta por
território. Ao longe, bateram onze badaladas no pequeno relógio da igreja. A
luz diante da foto de Arne se extinguiu, silenciosa. Tudo estava calmo e
pacífico até o toque de telefone de congelar o sangue romper com a paz
celestial. O toque característico também era tão conhecido como odiado pelas
mulheres de terça-feira. O telefone que tocava, claro, era o de Eva.
Caroline já havia comentado ao deitar-se que o espaço entre a cama de
cima e a de baixo havia sido feito para pigmeus e não para advogadas altas de
Colônia. Infelizmente seus reflexos incorporaram quase nada do
reconhecimento da noite anterior. Caroline levantou-se e bateu contra o
estrado da cama de cima.
O telefone de Eva continuava a tocar impiedosamente. O som penetrante
era uma relíquia de um tempo em que telefones ficavam no corredor, num
volume alto para que se pudesse escutar pela casa toda. Mas os bons e velhos
tempos ficaram para trás. Os telefones há muito não ficam mais num lugar
fixo, mas ficam de preferência onde ninguém os encontra.
Entre inúmeros pedidos de desculpas, Eva se despregou de sua cama,
fugindo. Desde o início, não queria dormir em cima. Primeiro porque não
tinha ideia de como poderia subir a escada com razoável elegância, depois
por que tinha medo de precisar sair à noite. Desajeitada, despencou para a
cama de baixo. Com todo seu peso, esbarrou no braço de Judith, que gritou
de dor.
Onde estava o interruptor? Onde estava o maldito telefone? A única coisa
que encontrou de pronto foi o canto pontudo do criado-mudo. Com o joelho,
infelizmente. O vinho derramou sobre seus pés descalços. Eva gritou,
Caroline resmungou e Kiki jogou um travesseiro. Apenas Estelle continuava
a sonhar tranquila e não percebeu nada. O que não a impediria de, na manhã
seguinte, durante o café, declarar copiosamente que não havia pregado o
olho.
No fim das contas, foi Caroline quem tateou e encontrou o telefone de Eva.
Pegou a coisinha escandalosa e lançou com toda a força pela janela. Lá fora,
ouviu-se um grunhido suíno indignado. Caroline tinha acertado na mosca.
23

Ginette havia abrigado muitos hóspedes durante a vida. Nas décadas em que
gerenciava o Auberge Sainte Marie, aprendeu a avaliar as pessoas. Quando
pouco antes da meia-noite uma mulher exaurida e gordinha de shorts de
dormir, camiseta e pés descalços surgiu diante dela, apontou com um gesto
simples para o telefone no corredor.
Eva mal conseguia discar o número de Colônia de tanto que tremia. Era
uma mistura de frio, cansaço e exaustão que havia atacado todas as fibras de
seu corpo. Anna atendeu de pronto.
– Você disse que eu podia ligar dia e noite – desculpou-se com a mãe, que
havia adivinhado. Claro que a ligação tarde da noite era de Colônia, de casa.
– Que foi?
– Mamãe, tem um lobisomem no meu quarto – tremia a voz da pequena.
Um lobisomem. Óbvio. Todo mundo sabia que era mais fácil combatê-lo
se estivesse na França. Frido havia deixado Anna assistir filmes com os filhos
maiores?
– Anninha, por que você não falou com o papai?
– Papai não acredita em lobisomem. Como ele vai achar?
Simples assim. Se a pessoa não acredita em lobisomens, pode dormir
sossegada, mesmo que esteja apenas a dez metros do potencial perigo.
– E seus irmãos?
– Eles estão rindo da minha cara.
Eva sabia muito bem que não se tratava de um lobisomem. Anna sentia
falta da mãe, como ela sentia falta da filha e de toda a família. Mas isso não
conforta ninguém nessa situação.
– Sabe, Anna, o que a vovó Lore cantava para mim quando eu não
conseguia dormir? – Eva agachou-se no chão de pedra, recostou-se na parede
fria e sussurrou uma pequena melodia. Tinha uma voz bonita e suave.
Ginette, que limpava a cozinha, parou e ficou ouvindo, emocionada. Como lá
longe, em Colônia, uma menininha ouvia. Anna não conseguia falar. A
tristeza deu um nó na garganta de Eva. Ela sabia que Anna também estava
emocionada.
– Também estou com saudades. De todos vocês. Vai para minha cama e dê
um beijo no papai por mim. Durma bem.
– Mamãe, você está chorando? – quis saber Anna, sem acreditar.
Eva enxugou as lágrimas do rosto e afirmou:
– Não, não. Eu não choro.

Quando pôs o telefone no gancho, seu olhar pousou sobre um pedaço de


papel amarelado: ao lado do telefone estava pendurada a tabela de horários da
linha de ônibus local. As letras grossas e cor-de-rosa anunciavam que havia
salvação. Eram apenas algumas palavras que brilhavam nos olhos de Eva:
Saída para o aeroporto às 8h15.
24

O sol levantou-se com vagar por trás das montanhas, mergulhando os muros
cinzentos das casas em um dourado morno. Uma lambreta solitária roncava
alto pelas ruelas estreitas, dois galos faziam disputa de canto. E Eva ainda
não sabia o que fazer. Duas almas moravam em seu peito e trocavam farpas
verbais.
– No segundo dia a caminhada melhora – dizia uma.
– Caminhar, pelo amor de Deus. Nenhum metro a mais. Por favor, nem
pensar – falava a outra.
– Anna vai dar conta. A única que não dá conta é você.
– Você precisa ir para casa. Esqueceu de anotar como funciona a secadora
de roupas.
– Outras mães também conseguem. Caroline, por exemplo. Por que você
não?
– Quer desistir? Ser a única?
– Você é uma perdedora.
– Eva, acorde!
Não eram mais as vozes internas. Era Caroline que a acordou com
suavidade.
– Como assim? Já? – murmurou Eva. Em algum lugar entre as palavras de
encorajamento e autoincriminação desesperada, ela deve ter adormecido.
– São 7h30. Se partirmos logo depois do café, vamos terminar o trecho
mais difícil antes do calor do meio-dia – disse Caroline, tentando animá-la.
Esgotada, Eva afundou-se novamente no travesseiro. Como suas amigas
conseguiam? Caroline estava toda em forma com tênis, Judith fazia suas
orações matutinas diante do pseudo-altar escangalhado de Arne e até Estelle
já estava maquiada.
– Eu já vou – prometeu para as amigas que, famintas e com sede de café,
desapareceram na direção do salão de café da manhã.
Talvez a expressão “calor do meio-dia”, talvez a imagem de precisar fazer
algo extenuante. Quando a porta bateu atrás das amigas, ela sabia o que devia
fazer. Aeroporto, para casa, o pensamento era muito tentador.
Com dificuldade, Eva esticou suas pernas doloridas. Desastrada como
sempre, desceu da cama de cima. Como um saco de farinha, despencou e
descobriu que não era a única a quem faltava o espírito peregrino logo pela
manhã. Kiki, que trabalhara durante grande parte da noite, voltou a dormir
logo após Caroline chamá-la.
Clandestinamente, Eva juntou suas coisas com cuidado ansioso para não
fazer barulho. A cada peça que desaparecia no fundo da mochila, seu coração
ficava mais leve. Ingenuidade pensar que era possível fazer uma peregrinação
dessas sem uma preparação coerente e treinamento regular. No dia seguinte,
ela se matricularia numa academia em Colônia. Em alguns anos, quando as
crianças estivessem maiores, começaria uma segunda tentativa com corpo
astral fortalecido e bem-treinado. Era o lugar errado na hora errada. Para as
amigas, ela era apenas um fardo e um eterno pé-no-freio.
Nervosa, deu uma olhada no horário: faltava pouco para as 8h. Hora de
fechar o capítulo “peregrinação”. Botou a mochila nas costas e, como de
costume, pendeu o corpo para trás. Contra a cama de Kiki. O terremoto
médio que sacudiu o beliche manco não conseguiu tirar Kiki de seu sono
saudável.
Nas pontas dos pés, Eva esgueirou-se para fora do quarto e desceu as
escadas rangentes. Com alguns passos, estaria na saída. Mas o azar era seu
companheiro inseparável. As portas do salão de café da manhã estavam bem
abertas. Pior ainda: as amigas tinham uma visão direta da mesa para o
corredor.
Assustada, Eva escondeu-se em um canto escuro onde uma poeira de
décadas esperava para subir pelo seu nariz e ajudar a provocar um delator
ataque de espirros. Tinha energia suficiente para sair correndo. Mas não tinha
forças para defender sua decisão perante as amigas.

As mulheres de terça-feira estavam convencidas de que havia um bom


motivo para os franceses não usarem uma expressão específica para o café da
manhã. A refeição matutina era descrita simplesmente como petit déjeuner,
como o pequeno almoço dos portugueses, e era preciso se acostumar. Estelle
ruminava descontente a baguete com queijo cremoso, Caroline bebia ricoré,
essa mistura curiosa de café e chicória, e Judith dispensou tudo. Ela se
debruçou sobre um mapa, comparando-o com as anotações do diário de Arne.
Oito e duas da manhã. Eva hesitou: devia correr o risco de ser pega no
caminho para a saída? Estava claro que suas amigas não a deixariam ir
embora tão facilmente. Da mesma forma, estava claro que não aguentaria a
avalanche verbal de argumentos. A saída dos fundos era a única opção.
Ligaria para Caroline do aeroporto. Eva apostou tudo num lance. Com uma
frase decisiva, estava na porta lateral, abriu de uma vez e espremeu-se para
sair.
Fora! Conseguiu! Com olhos fechados, encostou-se na porta que se trancou
atrás dela. Esperou para ver se algo se movia do outro lado. Tudo estava
calmo. Respirou fundo, abriu os olhos e percebeu que seus problemas haviam
apenas começado.
25

Eva não era apenas mulher, mãe, cozinheira, enfermeira, motorista,


lavadeira e empregada. Para seus quatro filhos, Eva também era uma
talentosa ajudante na lição de casa. Pouco antes, havia ajudado Frido Jr.
quando ele precisou se dedicar à origem das expressões idiomáticas para a
aula de alemão. O surgimento da expressão alemã Schwein gehabt
(literalmente ganhei um porco, significando ufa, dei sorte!) era muito
interessante. Em uma das teorias, a expressão teria se originado de um
costume da Idade Média de se dar um porco ao perdedor nas festas esportivas
como prêmio de consolação. A partir daquele momento, Eva considerava
essa versão como a mais verossímil de todas. Pois era exatamente o destino
que estava reservado para ela naquele segundo dia de peregrinação. Eva tinha
sofrido uma derrota. Agora, recebia o porco. Chamava-se Rosa, como
anunciado na placa do portão, e surgiu grande e poderosa diante de Eva. A
saída lateral não havia sido pensada para hóspedes que fugiam secretamente.
Era o acesso ao chiqueiro enlameado de Rosa. Como basicamente Rosa tinha
fome e parecia que já tinha saqueado diversas vezes a cozinha, a porta na
lateral do chiqueiro não tinha trinco. O espaço fazia divisa diretamente com a
rua. Se Eva chegasse até lá, precisaria ir para a direita, passando pela entrada
do albergue. De lá, eram cerca de cem metros até o ponto de ônibus. No
entanto, diante dela estava Rosa. Eva estava presa e a rota de fuga,
bloqueada.

O relógio bateu 8h03.


Eva deu um passo cuidadoso e afundou até o tornozelo na lama fedorenta.
A monstra suína grunhia enraivecida. No prato, o bicho parecia muito mais
lúcido.
– Vai… allez… some… disparez.
Rosa não se mostrava impressionada com a voz trêmula de Eva. Curiosa,
trotava sobre suas pernas curtas e magras cada vez mais perto. Uma meleca
viscosa brilhava em seu focinho.
– Nunca mais como porco. Ç’est promis. Juro – suplicava.
Por que não terminou aquele curso? Provavelmente, o bicho entendia
apenas comandos em francês. O focinho macio da porca batia úmido e
escorregadio contra a mão de Eva. Fechou os olhos e gemeu baixinho para si
mesma. Seria justo ao menos dar sorte nessa situação.
Ela precisava. Fugir. Da. Porca. Agora. Tinha pressa. A única arma que
estava à sua disposição eram suas provisões. Todos os alimentos, as
bolachinhas, os embutidos, os cream crackers que tinha comprado à noite no
supermercado para aumentar os mantimentos se transformaram em munição.
Seria mais fácil passar por um porco satisfeito? Desesperada, lançou à
empolgada Rosa toda a sua provisão para alimentá-la. Até a última migalha.
O ônibus já havia chegado ao vilarejo. A sonora buzina soava pelas vielas
estreitas.
Quando Eva deu um passo à frente, Rosa a agarrou. Pensou que havia mais
guloseimas escondidas na mochila. Eva gritou seu desespero a plenos
pulmões:
– Mais. Mais. Mais. Nunca é o bastante. Já dei tudo. Agora me deixa ir
embora! Bicho idiota. Fous le camp!
A porca bateu em retirada como se a disparada de xingamentos a tivesse
horrorizado. Eva não conseguia acreditar como isso aconteceu. Rosa deu
passagem. Eva botou a mochila nas costas, surpresa pela sua vitória
repentina, e pela primeira vez não pendeu o corpo para trás. Mais uma
experiência.
Sem os quilos de provisões nas costas, ficou fácil escalar o portão. Estava
na rua. Os velhos, que pareciam ter germinado no muro da igreja, esticaram
os pescoços enrugados e empurraram os óculos para mais perto dos olhos
cansados: finalmente, algo acontecia ali.
Com cuidado, Eva passou pela entrada do albergue como se estivesse
atrasada de novo. A dona do albergue, que fumava na frente do prédio, pôs-se
na frente dela. Do bolso de seu avental, Ginette tirou o telefone imundo de
Eva. A esperança de que ninguém havia percebido sua fuga explodiu como
bolha de sabão.
– Há três tipos de peregrinos – comentou Ginette num tom ameaçador. –
Os turistas, que vagam de experiência para experiência, os espirituais, para
quem cada passo leva ao próprio coração…
O ônibus passou com tudo por elas em direção ao ponto. As portas se
abriram. Eva vacilava entre pressa e cordialidade. Pegou o telefone, mas sem
discurso religioso a dona do albergue não soltaria o aparelho. Frenética, Eva
despejou os pretextos que havia fabricado.
– Autoconhecimento nunca foi minha praia. Minha mãe busca a si mesma
até hoje. Tentou de tudo. Sobrevivência com Mao, dança esotérica, sexo
tântrico. Sempre fiquei sozinha. Não quero ser esse tipo de mãe. Uma que
peregrina enquanto a família precisa dela.
A dona do albergue entendeu. Com certeza, Eva pertencia à terceira
categoria:
– E então vêm os indecisos, que na primeira adversidade buscam uma
desculpa.
Em seu rosto pairava a decepção pela fraqueza de Eva. Ou Eva estava
imaginando? Tanto faz. Ao menos pegara o telefone de volta.
Eva correu em direção ao ônibus, esmurrou a porta e, para seu grande
alívio, o motorista deixou que entrasse.

Exausta, deixou-se cair no assento. Havia conseguido. Os poucos passageiros


torceram o nariz pelo aroma de bosta de porco que Eva trouxe consigo para o
ônibus. Ela nem havia percebido. Limpou desesperadamente o visor imundo
de seu telefone. Vinte ligações perdidas, acusava a mensagem de boas-
vindas. Todas de sua família. E três de Regine. A primeira mensagem era de
David. Sem cerimônia, foi direto ao assunto: “Mamãe, você tem alguma ideia
de onde estão minhas meias de tênis?”, disse com voz repreendedora. “Eu
deixei em cima do piano e agora elas sumiram.”
O imenso retrovisor refletia o rosto do motorista. Eva congelou. Sósias
clandestinos existiam? A corrente de ouro e a camisa rosa do uniforme da
linha de ônibus não conseguiam esconder o fato de que o homem no volante
era uma cópia exata de Frido. Com sorriso diabólico, o motorista sinalizou
que estava pronto para conduzi-la até sua casa.

O ônibus deixou a praça do vilarejo. Sem Eva.


– É como com Rosa – explicou Eva à dona do albergue, que permanecia no
mesmo lugar. – É preciso informar onde está o limite. Se não, eles devoram a
gente até o último pedaço.
E botou o telefone na mão de Ginette:
– Se alguém ligar, eu perdi o celular. Muito idiota, mas é isso.
A dona do albergue riu, satisfeita:
– E daí sempre aparecem peregrinos que surpreendem a gente.
Eva estava radiante. Tinha acabado de se surpreender. E havia muito isso
não acontecia.
26

–Fiquei com medo de você arrumar suas coisas e desaparecer sem falar
nada – confessou Caroline quando Eva sentou à mesa do café da manhã. Por
isso tinha se esforçado para entrar na sala com uma felicidade enfática. Como
se a tentativa de fuga nunca tivesse acontecido. Era difícil esconder algo da
advogada esperta.
– Venci meu espírito de porco – admitiu Eva – e a porca lá de fora. Que
são contra o percurso de alguns quilômetros até Lourdes.
Eva comeu com grande apetite. Quem é peregrina também precisa comer.
Pegou um pedaço da baguete e a esfarelou em sua xícara imensa, acrescentou
muito açúcar, despejou sobre tudo o ricoré com leite e mexeu calmamente
com uma colher. Sentiu aquela papa tão macia na boca que não conseguiu
evitar de pensar numa dentadura. A mistura era quente e doce e, com certeza,
contava com inúmeras calorias que ela, como por mágica, carregaria pela
próxima etapa.

Na cozinha, Ginette curvou-se sobre o diário de Arne que Judith lhe


mostrava. A gerente do hotel sacudia a cabeça, enérgica. Assim como a
cozinheira e o entregador de bebidas, que foram consultados rapidamente. O
diário circulou, o mapa desenhado foi examinado, virado e descartado. Não
conseguiu tirar mais do que um dar de ombros perplexo dos hóspedes que
conheciam o lugar.
Cabisbaixa, Judith foi até Caroline.
– Talvez você tenha razão – admitiu ela com um sorriso fracassado. – O
mais importante é que a gente chegue em Lourdes.
Caroline desenterrou suas anotações.
– Já escolhi o trecho para hoje – revelou às amigas.
Judith confirmou com a cabeça, com lábios apertados. Eva olhava para
uma e para outra, cheia de preocupação. Sem parar, aconteciam conflitos
entre elas. Quando haviam concordado em algum assunto? Era esse silêncio
que a perturbava, como se alguém olhasse fixamente o para-brisa trincado
depois de uma pedrada. A rachadura era clara, mas o que não estava nítido
era se e para que lado aumentaria.
Caroline levantou-se. Era hora de partir. Olhou em volta, procurando.
Onde estava Kiki?
27

As pernas nuas bronzeadas, a figura bem proporcionada, a visão tentadora.


Kiki não tinha problema em pular seminua pelo jardim onde suas roupas
secavam. Nem tinha tanta pressa assim. Também, para quê? Nenhum porco
se interessava por ela. Nem mesmo Rosa, que estava deitada, boba e
satisfeita, na lama.
– Foi com esse bicho idiota que você teve problemas? – Kiki perguntaria
mais tarde, perplexa, quando Eva contou a história. Mas sempre era assim
com Kiki. Tinha o dom invejável de ver o lado positivo de tudo. Logo após
acordar, foi até a janela e deixou o olhar pairar sobre os telhados. O sol fez
cócegas em seu nariz, na parede sobre a cama estavam pendurados esboços
muito promissores e Colônia estava bem longe. O que mais poderia querer?
Kiki tinha acabado de pegar as roupas do varal quando dois braços a
envolveram pela cintura. Virou-se e tomou um baita susto. Diante dela estava
um jovem com cabelos loiros bagunçados e olhos que brilhavam de
felicidade. Era o homem que na noite anterior ela havia apagado da sua
memória virtual. Era Max. E, como sempre, seu bom humor beirava o
despudor.
– Está feliz?
Nenhuma explicação, nenhum comentário, absolutamente nada. Apenas:
– Está feliz?
A pequena Bernadette provavelmente sentiu-se assim diante da aparição da
Virgem Maria. Mas a aparição diante de Kiki era bem carnal. Max conseguiu,
numa fração de segundo, o que os quilômetros de caminhada do dia anterior
não tinham conseguido: um sentimento de fraqueza geral tomou conta dela.
Seus joelhos pareciam pudim, seu pulso subiu para a altura da ponta de uma
montanha-russa e seu cérebro esvaziou-se. Com uma batida, todo o sangue
foi drenado da região que torna possível o pensamento, pois descera
urgentemente para fazer surgir, como por encanto, manchas vermelhas febris
no rosto.
– Max – desengasgou. Não conseguiu formular nada mais complexo no
primeiro choque. Percebeu que ainda estava de calcinha no jardim. Com
rapidez, deslizou para dentro do vestido.
– Você fez muito bem em fugir do estúdio. Num ambiente novo é que se
conseguem as melhores ideias – comentou Max.
No momento, Kiki tinha mais perguntas banais que insights criativos.
Como Max soube onde encontrá-la? Não havia dito a ninguém no estúdio
onde passaria as férias.
– Quem te contou?… Nem nós sabíamos onde iríamos dormir – gaguejou
ela, desesperada.
– A filha da sua amiga, Eva, colocou tudo no blog dela. Com horários
exatos, inclusive.
O celular de Max tocava com insistência. Revirou sua bolsa-carteira. Não
pegou o celular, mas a folha impressa que deveria explicar como havia
chegado até ali. No mapa que Frido preparou com Anna e publicou na
internet, estava desenhado minuciosamente o caminho de Eva. Kiki ficou
boquiaberta. Havia muito percebera que Eva dificilmente conseguia se
desprender da família. Mas os dois, ao contrário, podiam perfeitamente se
separar. Nem tiveram que se esforçar tanto. Apenas Max não percebeu.
– Eu disse que estava tudo acabado.
Max a corrigiu. Objetivamente. Sem qualquer acusação na voz.
– Você me escreveu uma mensagem de texto. “Não dá. Sinto muito. Kiki.”
Quatro palavras vagas.
– Não tinha mais nada para dizer – defendeu-se Kiki.
Max permanecia calmo. A amigável serenidade deixava Kiki insegura.
Nem em sonhos imaginou que a situação que já era demais em Colônia fosse
envolvê-la com tanta força na França.

Paul Simon conhecia Fifty ways to leave your lover. Talvez ela devesse ter
pensado com mais atenção sobre 49 alternativas antes de decidir-se pela
solução rápida via mensagem de texto. Kiki não queria conversas sobre
término de relação, essas em que nos deixamos levar, tão chorosos, a frases
como “Podemos ser amigos”. Não queria quebra-quebra e, acima de tudo,
não queria sexo de despedida. Queria que o caso com Max terminasse antes
que fosse tarde demais. Suspeitou que seu comunicado o desagradaria. Como
ele a ignorou, e Kiki ficou arrasada.
– Não acredito em uma palavra sua – ele riu, sem pudor. – Em nenhuma.
Não dessa “Kiki”. A Kiki que conheço não fugiria sem mais nem menos.
Kiki ficou nervosa. O que ele queria ali? Por que viajou atrás dela? O
toque insistente e penetrante do telefone de Max a deixava ainda mais
nervosa.
– Atende logo! – ela estourou.
– É meu pai – explicou Max, sucinto. – Ele sempre fica irritado quando
não sabe onde estou.
Cada frase, uma nova bomba.
– Você fugiu? Sem falar com ninguém? – Kiki tentava reunir o que
acabara de ouvir em um todo razoável.
O telefone parou de tocar. Kiki sentia o pânico crescer.
– Explico tudo quando voltar. Isso se até lá eu tiver entendido tudo –
prometeu Max.
Kiki não respondeu mais nada. Por trás da cerca do jardim surgiram quatro
rostos curiosos. As outras estavam prontas para a etapa daquele dia. Caroline
balançava a mochila de Kiki.

Quantos segundos restavam antes que precisasse explicar às amigas a


presença de Max? O que poderia dizer em sua defesa? Max estava errado. Ela
passou horas polindo aquela mensagem de texto. E quis falar cada uma
daquelas quatro palavras. Principalmente a parte do “Não dá”.
28

–O que Kiki está aprontando lá fora? – indagou Caroline. Da cerca do


jardim, observavam como Kiki falava com um jovem, insistente e nervosa,
gesticulando como se quisesse espantar uma nuvem de moscas. Não restava
um pingo da atitude descontraída que surpreendeu Caroline na noite anterior.
– O que ela está aprontando? – adiantou Estelle. – Brigando. Com Max
Thalberg.
Estelle gostou de ver os olhos arregalados das amigas. Até Judith esqueceu
por um momento suas preocupações.
– Thalberg? Do estúdio Thalberg?
– Como Thalberg para quem Kiki trabalha? – Caroline também quis saber.
– O sucessor do trono em pessoa. Max vai assumir a companhia assim que
terminar a faculdade em Londres.
Eva tinha sua própria maneira de ligar os pontos de uma história.
– Provavelmente tem a ver com trabalho. Kiki deve ter terminado alguma
coisa.
– Você também acredita na concepção imaculada? – Estelle tirou um sarro
da amiga.
Somente então Eva se deu conta:
– Você tá dizendo que Kiki… mas ele é muito… quantos anos ele tem?
Caroline foi direto ao ponto:
– Idade suficiente para ter cartão de crédito, jovem o bastante para aprontar
todas.
Estelle deixou-se levar por pensamentos totalmente diferentes. Seu olhar
pousou sobre o rapaz com visível deleite:
– Eu entendo Kiki. Se eu fosse dois anos mais jovem… – Não completou o
pensamento. Sabia também que seria o suficiente para deixar Eva chocada.
– Piadinha, Eva. Adoção não é minha praia – sorriu Estelle.
– Chega de tagarelar – ordenou Caroline e agitou a bolsa de Kiki. O sinal
da partida.

– A beleza da peregrinação é que as pessoas entram em contato muito


facilmente com as outras – blefou Kiki quando agarrou a alça da mochila.
Seu riso soava falso. Por nada no mundo queria confessar que o jovem ao seu
lado era seu amante, que viera atrás dela numa atitude embaraçosa. Apesar
disso, se sentiu obrigada a dar uma explicação.
– Este é… – começou, forçada, fez uma pausa e virou-se diretamente para
o visitante-surpresa, na esperança de que Max não a desmascarasse. – Como
é mesmo seu nome?
– Max Thalberg – Estelle deu uma ajudinha para Kiki. – Poderia ter ao
menos gravado o nome, já que dormiu com ele.
Kiki ficou boquiaberta. Na verdade, ela podia imaginar que Estelle não
conhecia apenas seu chefe, mas toda a família Thalberg.
– Max é uma lenda no clube de golfe, desde que roubou o cortador de
grama e, passando pelo buraco sete, jogou-se na lagoa dos patos – esclareceu
Estelle.
Max sorriu, atrevido.
– Eu tinha 9 anos.
Eva irritou-se com outra coisa.
– Se Kiki trouxe o namorado, eu poderia ter convidado o Frido – ela
interrompeu, ofendida.
Kiki defendeu-se com grosseria da insinuação:
– Eu não convidei Max.
Estelle não achou tão dramático:
– Deixa pra lá, Kiki, o que importa é que você está feliz.
– E eu não estou feliz! – gritou Kiki e saiu pisando duro.
As outras a seguiram.
Por um momento, Max pendeu de uma perna para a outra. Então pegou sua
bolsa e as seguiu a uma distância respeitosa.
29

“O caminho de Santiago presenteia os peregrinos com encontros


emocionantes, paisagens impressionantes e uma experiência espiritual
especial”, leu Eva no guia do peregrino de Caroline. Naquele dia, ele
presenteou as mulheres com um passeio pela Narbonne da Idade Média, que
ficava a dezessete quilômetros de distância da praia de Narbonne, de onde
haviam começado o caminho no dia anterior. Eva invejava os turistas, que
navegavam por férias agradáveis com suas casas flutuantes no Canal de la
Robine. Passavam seus momentos de lazer nas famosas catedrais, em cafés
ensolarados, ruínas romanas e no cotidiano francês. Eva preferia bater perna
o dia todo no mercado, admirando as barracas com produtos locais, todos
aqueles legumes, frutas, temperos, carnes e frutos do mar reluzentes.
Contudo, após o desastre do dia anterior, o caminho de Santiago preparou um
cronograma rígido para as mulheres de terça-feira e um trecho pouco
brilhante: o que seguia era uma via marginal muito movimentada e nivelada.
Por trás das fábricas à esquerda corria a autoestrada A61 com quatro pistas,
que ligava o Mediterrâneo ao Atlântico. Aquele calor! Aquele fedor! Era o
tipo de via na qual se entrava apenas para testar as pernas e ter as forças
roubadas. Apenas Estelle parecia feliz. Na pista expressa reta como uma
régua, uma mala com rodinhas comprovou ser o único acessório de um
verdadeiro peregrino.
Eva conseguia ler nos lábios apertados de Judith que a palavra autoestrada
provavelmente não constava do diário de Arne. Caminhões passavam
zunindo, jogando poeira seca e descarga de escapamento no rosto. O
proprietário de uma bodega, que por um motivo incompreensível se chamava
La barracuda e de acordo com a placa oferecia “saladas, batatas fritas, paninis
e grelhados”, assoviou para elas com malícia. Os trabalhadores da oficina
mecânica ao lado puxaram seus bonés oleosos para ter uma visão melhor do
inusitado grupo de damas. As expressões variavam entre curiosidade e
diversão gozadora. Os rostos irônicos revelavam que naquele trecho não se
encontravam muitos peregrinos em cujas mochilas balançavam vieiras de São
Tiago. Provavelmente ainda eram capazes de entender que alguém
peregrinasse até Graceland, a última casa de Elvis. Mas andar até o túmulo de
um apóstolo que morreu havia mais de dois mil anos?
Eva podia imaginar bem qual era a imagem delas no momento: cinco
mulheres mimadas, com ótimas condições, que peregrinavam, pois já tinham
feito e visto tudo no mundo. Quem sabe, talvez tivessem até mesmo
escolhido conscientemente as instalações do Auberge Sainte Marie. A esperta
Ginette, que entendia perfeitamente o que movia os peregrinos, ofereceu a
suas hóspedes exatamente aquilo que buscavam: tribulação, pouco conforto e
muita inconveniência. Eram o tipo de experiências que curariam em casa com
uma boa taça de vinho tinto caro.
Típico, pensou Eva. Se fosse peregrinar, então nunca seria na estrada
principal na direção de Santiago de Compostela, onde os peregrinos faziam
parte da paisagem. Ela se arrastaria por uma rota secundária, desconhecida,
mal sinalizada. Talvez fosse sintomático em sua vida. Parecia estar
percorrendo a trilha secundária havia bastante tempo.
Para as amigas, não importava que fossem olhadas com admiração. Estelle
parecia estar prestes a dar um autógrafo ao atendente gozador do Le
barracuda.
Eva ficou aliviada quando cruzaram a autoestrada sobre uma ponte e o
concreto cinzento foi trocado por montes quase sem vegetação. Por trás deles,
Narbonne e o ruído da autoestrada desapareceram. Os típicos arbustos
baixotes da garrigue deram lugar a uma região florestal. No caminho,
dançavam as sombras das árvores que oscilavam na brisa de verão: ciprestes
altíssimos e de um verde exuberante de um lado, árvores frondosas e
farfalhantes do outro. Por quilômetros, nenhum vilarejo, nem cidade,
tampouco observadores críticos. No caminho havia apenas o mosteiro
beneditino de Fontfroide, onde não vivia mais nenhum monge; no lugar, um
restaurante e uma garçonete muito jovem. As cinco mulheres estavam quase
sozinhas sob as abóbadas de ráfia. Em uma mesa pouco à frente delas,
almoçavam dois motociclistas italianos fugindo do cotidiano com motos
Guzzi. Mais do que nos legumes frescos no prato, estavam interessados na
atendente, que servia os grisalhos easy riders com a mesma fleuma que as
cinco amigas. A comida estava fantástica.
A refeição começou com uma salada de folhas mistas com alfaces
verdinhas, repolho e pétalas com muito azeite, limão e pão fresco. Em
seguida, steak com batata gratinada e, de sobremesa, sorbet de morango.
Judith ficou no omelete. Com muito esforço e sofrimento, as mulheres de
terça-feira resistiram à tentação de pedir um vinho para acompanhar a
deliciosa refeição. Não tinham chegado ainda à metade do trecho daquele dia.
Provavelmente passariam ali o resto do dia se a empresa de ônibus Spatz, de
Fulda, não tivesse despejado uma vigorosa trupe de aposentados no
estacionamento do convento. Os pensionistas estavam, como informava a
placa no ônibus, na excursão “Cátaros e Catalães” e exploravam de passagem
o norte da Espanha, Andorra e sul da França. Tinham pressa: três países em
nove dias, almoço em quinze minutos por favor e bebidas já. Rápido, rápido.
– Nessa idade, as pessoas não têm tempo a perder – Eva justificou a
impaciência dos aposentados. No entanto, quando os primeiros começaram a
reclamar em alto e bom som do serviço lerdo, as amigas fugiram mais que
depressa. Para lá, onde ainda estava calmo e não encontrariam conterrâneos
embaraçosos.

A cada passo, Eva relaxava mais e mais. Na paisagem solitária, onde não
havia nenhum trabalhador e garçons ousados que pudessem observá-las em
seu esforço suarento, caminhava como se estivesse livre. E também sem a
mochila pesada. O orgulho se espalhava. Alegre, caminhava ao lado de
Caroline após a pausa para o almoço. Atrás delas, Kiki, cujo rosto parecia
dizer apenas uma coisa: “Não pergunte!”
30

Kiki não viu nada. Nem o mosteiro de Fontfroide que, como uma pintura,
ficava encrustado numa depressão nas montanhas com vegetação densa,
tampouco os belos vitrais coloridos que permitiam uma luz multicolorida
mergulhar no interior simples do local, nem os claustros recobertos de verde
com suas colunas duplas e arcadas, nem as roseiras. Kiki havia descoberto
algo novo. Dessa vez em si mesma. Era o arrependimento.
Como aquilo pôde acontecer justamente com Max? Não havia sido amor à
primeira vista? Como? Quando Kiki chegou em Thalberg, Max era um
estudante comprido, cujos braços longos em torno do corpo magrelo e
desproporcional balançavam como se fossem na realidade de outra pessoa.
Os designers, com os quais falava ocasionalmente para pegar intimidade com
a base da empresa, tinham-no como caso perdido. Trabalho manual para Max
significava anotar na palma da mão dicas valiosas para a próxima prova de
francês.
Kiki quase caiu da cadeira quando Thalberg anunciou, poucas semanas
antes, que o jovem passaria suas férias semestrais no departamento dela. A
crise de crédito atingira em cheio sua área: em muitos locais, as receitas
haviam despencado, uma série de importantes clientes italianos pediram
concordata, revistas de decoração que generosamente exaltavam os produtos
foram descontinuadas. Em tempos em que a força de trabalho fixa era
substituída por estagiários baratos, não era um bom sinal precisar incorporar
no próprio local de trabalho o filho do chefe e o futuro diretor da empresa.
Kiki imaginou o que seria dela. Vira muitos estagiários chegarem e irem
embora. Havia os tímidos que se calavam com grande respeito, os
bajuladores que faziam tudo, contanto que o chefe incumbisse pessoalmente,
e os carreiristas, cujo ego e a competência social brigavam por espaço a
cotoveladas. E havia os bons, que podiam ser perigosos para ela, pois seus
desenhos eram vivos, inovadores e sexy. A que grupo pertenceria Max?

À primeira vista, Max agia com timidez. As pessoas esqueciam que estava lá,
de tão reservado que era quando chegou. Mas isso durou até a sessão de
brainstorm sobre a reestruturação de um hotel sofisticado nas proximidades
da estação de trem. Thalberg queria sugestões de todos os funcionários.
Na equipe, estudaram a fundo o briefing. Os colegas se debruçavam sobre
o público-alvo e a estrutura etária, sobre análises de mercado e as mais novas
pesquisas sobre os efeitos das cores e tendências no setor hoteleiro. Um
colega teve uma ideia ousada demais: quebrar o lobby acarpetado e
reconstruí-lo com um projeto claro de linhas retas. Foi quando a música soou.
Max havia levantado e posto um CD no computador.
– É preciso desenvolver um sentimento para o ambiente antes de botar
tudo no chão – explicou-se, sem qualquer constrangimento.
Em vez da teoria cinzenta, uma música suave e melancólica flutuou pelo
estúdio. Um contrabaixo ao fundo, à frente saltavam toques de piano leves
como pena. Um colega dava batidinhas no relógio, os estagiários se
cutucavam sob a mesa de trabalho, rindo baixinho. Se Max não fosse filho do
chefe, saberiam claramente que era perda de tempo e diriam na cara.
Kiki mergulhou na música. A canção soava como piso molhado, como
noite solitária. Soava como uma mulher que, após uma noite inteira dançando
descalça, flutuava pelo lobby do hotel, balançando nas mãos sapatos de salto
alto, pedindo o último drinque no bar. A melodia era melancólica e, mesmo
assim, especialmente alegre.
Atônita, Kiki olhava para a pilha de papéis sobre a mesa. Por catorze dias
trabalhou lado a lado com Max, sem percebê-lo de verdade. Apenas naquele
instante ela viu que o rapaz desproporcional transformara-se num homem
bonito, vestido de forma bem casual, como se quisesse deixar claro que não
se importava mesmo com o dinheiro de seus avós e com as caras camisas sob
medida de seu pai. Pela postura, percebia-se que deixara num canto o
violoncelo comprado pela mãe e, em vez disso, praticara esportes. E ainda
tinha senso para a música.
Kiki entendeu o que Max queria expressar com a música. A canção
capturava perfeitamente a antiga atmosfera que tornava o hotel único. Será
que a solução seria varrer tudo aquilo? Era um apelo sem palavras para, na
transformação, ampliarem o charme mórbido e misterioso que o hotel
emanava.
– Que música foi essa? – perguntou, quando os últimos toques soaram na
sala e o último estagiário tinha voltado para o seu próprio computador.
– Jazz sueco – explicou Max. – Um vestígio do verão.
Kiki não precisava de outras explicações: eram os infelizes amores de
férias que se materializaram na música. Ela também podia cantar uma canção
sobre isso. Uma dos Poppys, por exemplo.
Quando buscou na mesma noite no YouTube por Jan Johansson – Visa
från utanmyra –, e ouviu a música uma segunda vez, ficou claro por que a
mulher no hall do hotel daquela noite estava tão feliz: provavelmente
encontrara sua alma gêmea na festa que acabara de deixar.
Kiki sorriu discretamente pelas lembranças, até perceber que Caroline,
marchando ao lado dela no caminho peregrino, a observava com atenção.
Não disse nada. Mesmo assim, Kiki sentia-se obrigada a dar uma explicação:
– Sim, eu sabia quantos anos ele tinha quando tudo começou. Não, os
problemas não se resolvem sozinhos. Sim, você tinha razão – Kiki tagarelou,
apressada.
Caroline ficou boquiaberta em face da reação ríspida:
– Ninguém te acusou de nada, Kiki.

Também, nem precisava. Kiki fez as acusações a si própria. Há pessoas que


pensam que conseguem separar estritamente o particular do profissional. Kiki
nunca entendeu isso: como é possível trabalhar com outra pessoa sem ter
nenhum sentimento? Fazer o design de algo tem a ver com transformar
sentimentos em objetos palpáveis.
Enquanto os colegas davam forma ao conceito de botar tudo no chão, Kiki
e Max desenvolveram uma contraproposta. A partir de discussões sobre
poemas e transparência, sobre cores vibrantes e tons de terra discretos,
material e sensações, formou-se um painel de palavras exuberante. De
gozações a elogios inesperados, de olhares furtivos a xícaras de café,
passando por longos olhares e toques aparentemente acidentais. O pós-barba
dele sobrepunha o cheiro estranho na sala de impressão, onde a plotter cuspia
o resultado do trabalho em conjunto. Suas cabeças se tocaram quando
curvaram-se sobre a apresentação pronta.
Demorou três semanas até uma reação de Thalberg. Nenhum elogio,
nenhum comentário. Apenas a informação secreta de que o chefe confiaria a
ela a partir daquele dia as tarefas mais complexas. Recebeu um e-mail em que
Thalberg a convidava para apresentar um projeto para a série de vasos da
Ikea.
Max e Kiki comemoraram o sucesso com discrição no bar do hotel “deles”,
onde um pianista fornecia a música de fundo para sussurros coquetes. Na
despedida, ele a beijou na boca. Um segundo depois, pediu desculpas.
– Não precisa se desculpar – respondeu Kiki.
Foi o começo. O começo do fim. E o início dos seus problemas que agora a
seguiram até a França. E não apenas no sentido figurado.

– Besteira que na peregrinação todas as preocupações desaparecem –


reclamava Kiki. Tinha se virado e viu que Max ainda as estava seguindo. Não
sabia se sorria ou chorava. O freio de emergência, que havia acionado depois
de seis semanas de relacionamento às escondidas, tinha falhado.
31

–Para você tudo parece tão fácil – Kiki elogiou Caroline. – Você tem uma
carreira, filhos, um bom casamento.
Caroline virou-se. Teria mesmo algo a dizer sobre o assunto “Philipp”.
– O Dr. Seitz viajou para uma especialização na Associação dos Médicos
Domiciliares – explicou a recepcionista quando ela ligou naquela manhã.
– Como assim?
– Sempre acontece próximo ao dia 15 de junho, Sra. Seitz. Há dez anos –
completou a recepcionista, não sem um tom de acusação latente na voz. – Ele
deixou lembranças e disse que entra em contato assim que voltar.
Philipp havia ligado no dia anterior para a recepcionista, mas não para a
própria mulher? Provavelmente porque era uma ligação local. Philipp sofria
de uma grave fobia de taxas telefônicas. Desde que, sete anos antes, fora
incomodado durante férias na Itália por uma paciente neurótica e precisou
pagar centenas de euros de conta, ficou convicto de que ligações para celular
no exterior levavam à ruína e que as empresas telefônicas eram bandidas, que
as pessoas tinham de boicotar em todas as circunstâncias. As diminuições nas
tarifas passaram despercebidas. Philipp utilizava seu celular apenas em caso
de emergência absoluta. Ou seja, nunca.
– Caroline tem mesmo sorte com o marido. Philipp nunca foi tão
dependente como Frido – concordou Eva, buscando ar para respirar. A
caminhada ficava cada vez mais pesada para ela.
As amigas tinham razão: Philipp cozinhava, fazia compras e sabia onde
estava o aspirador de pó e qual era sua utilidade. Levava suas camisas para a
lavanderia e também levava os ternos de Caroline. Somente o quesito
telefonar não era seu forte.
Caroline irritou-se com a história do seminário e com o comentário da
recepcionista. Não conseguia entender. Será que não sabia que ele iria para o
tal curso? Por que estava com a cabeça no tribunal e com as pernas na
peregrinação? Provavelmente ele achou o seminário tão normal que nem
pensou que fosse preciso informar. Ela já estava mesmo viajando.
Ela deixou os elogios de Eva e Kiki em seus lugares. Em vez de falar sobre
seu casamento e a fobia telefônica de Philipp, preferiu mudar de assunto:
– Que crime Max cometeu para você ficar tão brava com ele?
– Ele queria me apresentar para os pais dele. No golfe de domingo –
explicou Kiki num tom dramático.
Caroline gargalhou:
– Isso é o que eu chamaria de real motivo para separação.
– Não há nada para oficializar. Nem mesmo para o pai dele. Foi um caso,
um erro bobo.
– Max parece ver as coisas de outro jeito – comentou Eva ao se virar. Kiki
e Caroline seguiram o olhar. Max tinha parado e caminhou calmamente na
direção de Judith, que mostrava para ele a foto de Arne. Ela explicou,
gesticulou e riu. Judith parecia tão solta como nunca mais se vira.
– O que Max está fazendo? – perguntou Kiki, irritada.
– Está fazendo o que tentamos em vão fazer há meses: alegrando Judith –
reconheceu Caroline.
De fato, lá atrás ouviam-se risos contentes.
– Ele não pode fazer isso – protestou Kiki.
– Judith parece feliz quando consegue falar de Arne com alguém que não
vai perguntar nada sobre o diário – retrucou Eva.
Seria melhor não ter dito aquilo, pois de imediato saiu do ritmo e perdeu o
fôlego. Caroline a olhou de cima a baixo, crítica.
– Logo melhora – suspirou Eva. Multitarefas de peregrinação eram demais
para ela. Tinha de fazer apenas uma coisa: andar ou falar.
– Max parece legal – comentou Caroline.
– Ele tem 23 anos – interrompeu Kiki. – Quando Max nasceu eu tinha 13 e
dei meu primeiro beijo de língua. No Robert. O beijo mais nojento da minha
vida. Precisei de um fim de semana inteiro para me recuperar daquele
encontro molhado. Passei meu primeiro trauma de relacionamento enquanto
Max berrava pela chupeta.
Eva apenas riu.
– Quem liga para diferença de idade hoje em dia, Kiki? – retrucou
Caroline, balançando a cabeça. A resposta de Kiki veio como um tiro de
pistola:
– Eu! Eu ligo. Sou muito conservadora.
Mesmo sem falar, Eva não conseguia mais se manter no mesmo ritmo das
amigas. Depois de Fontfroide, elas enfrentavam a longa subida para o Mont
Grand. Os 145 metros de altura exigiam tudo de Eva. Ficou mais lenta até
restar apenas a força para fingir que era de propósito.
32

Eva ficou para trás. Caroline e Kiki mantiveram o mesmo ritmo, sem
interromper a conversa. Por um momento, Eva emparelhou com Judith e
Max. Fiapos de conversa chegavam aos seus ouvidos.
– Arne e eu nos conhecemos em uma livraria esotérica – contou Judith. –
Ele me observou o tempo todo. E então veio até mim com um livro na mão.
Este combina com a senhora, ele disse. E tinha razão.
Eva sentia-se culpada quando percebeu como a voz de Judith soava alegre.
De uma tacada, tomou consciência de que Max havia feito algo que elas
nunca mais tinham conseguido: ouvir com atenção quando falava de Arne.
De forma subliminar, esperavam que Judith, depois de tantos meses após a
morte de Arne, encontrasse outro assunto. Com Max, as coisas tinham o ar da
novidade. Não sabia de nada. Nem de Arne, tampouco da duração adequada
do luto, e muito menos do diário.
– A senhora teve logo certeza de que ele era o cara certo? – quis saber ele.
Judith ficava tão emotiva com as velhas histórias que Max ganhou
espontaneamente seu coração.
– Vamos deixar a senhora de lado, está bem? Meu nome é Judith.
– Max – disse ele.
Seu olhar pairou na direção de Eva, que estava exausta do mesmo jeito.
Era impossível para ela falar. Conseguia apenas levantar o braço. Max, que
havia uma hora estava envolvido nos segredos das mulheres de terça-feira,
também sabia disso.
– E a senhora é Eva, não é mesmo?
Eva concordou com a cabeça. Ela imaginou o que Kiki e as outras teriam
dito para apresentá-la. Como era possível descrevê-la? Ela mesma não sabia:
com quatro filhos em cinco anos e meio, ela mesma se perdeu entre cama,
berço e máquina de lavar. E continuava ficando para trás. Também não
conseguia acompanhar o ritmo de Judith e Max.
– Eu acho…
O que ela achava? Que estava jogando pérola aos porcos. E lembrou mais
uma expressão animal de David cuja origem eles precisavam pesquisar. Essa
foi fácil, mas o filho estranhou quando ela correu para pegar a Bíblia.
Mateus, capítulo 7, versículo 6: não deiteis vossas pérolas aos porcos.
Muitas vezes era como se sentia em casa, quando servia apenas para
organizar, lavar, levar e trazer. Jogando sua vida fora.
“Acho que preciso parar” teria sido a resposta mais sincera.
Por trás dela aproximava-se o sacolejar penetrante da mala de Estelle. Em
ritmo contínuo, ela passou por Eva.
– Me desculpe, Eva. Se eu brecar, saio do meu ritmo harmônico.
E logo Estelle foi embora. Eva tinha conseguido novamente. De novo,
escorregou para a última posição. Um lugar que ela não deixaria mais nos
próximos dias.
33

Dias e quilômetros passaram por Eva. O caminho continuava por florestas


de pinheiros sempre iguais, cujas estruturas, nesse meio-tempo, conheciam
por dentro e por fora, por bosques de oliveiras e vinhedos. Caroline, sempre
terrivelmente bem preparada, mostrava às outras as belezas da região: igrejas
com afrescos especiais, mosteiros atualmente habitados por filipinos. As
inúmeras ruínas concedem a Caroline a oportunidade bem-vinda de comentar
sobre o grupo religioso dos cátaros, que havia oitocentos anos mantinha seus
conhecimentos secretos em castelos até o papa mandar excomungá-los. Os
séculos passaram numa sequência veloz por Eva. Enquanto nas explicações
de Caroline os cátaros foram excomungados, príncipes entronados, castelos
saqueados e a vinicultura intensificada, Eva lutava contra si mesma.

O espírito estava disposto, a carne de Eva, fraca. A cada dia de peregrinação,


crescia a percepção de que não era feita para esse tipo de penitência. Correr
de um lugar para o outro, fazer malas, desfazê-las, fazê-las novamente, entre
uma noite num chalé, num hotel, num albergue. Às vezes melhor, às vezes
pior o quarto, a comida, o vinho, café da manhã e então correr novamente.
Quando, no terceiro dia, entraram no vilarejo cinematográfico de Lagrasse,
que parecia ainda estar no século XIV, Eva sentiu-se numa vila da Idade
Média. Primeiro, o chão era todo de terra. Mal conseguia olhar de perto o
mercado dominical de Lagrasse. A viagem de ônibus e táxi para Carcassone
e, em seguida, para Franjeaux, que as cinco – e também Max – aproveitaram
como pausa para descanso, foi bem menos aproveitada que no dia seguinte
em Mirepoix. Sem forças, pendurou-se num bar sob arcadas de madeira e
bebeu Perrier Citron, enquanto as amigas exploravam a praça quadrada, a
igreja e as lojinhas nas casas de dois andares de enxaimel. Max descansava
tranquilo num gramado. Das sacadas das casas, belas mulheres e bestas
horríveis espiavam Eva lá embaixo. Como era possível aproveitar qualquer
coisa se precisava partir e continuar a caminhada no momento seguinte?
Andar. Andar. Andar. O caminho, as amigas e seus problemas
desapareciam na semiconsciência da contínua sobrecarga corporal. Após os
montes suaves das primeiras etapas e de uma viagem confortável de duas
horas e meia de ônibus entre Mirepoix e St. Girons, o verdadeiro desafio
esperava por Eva. Os Pirineus estavam diante dela. Ou melhor, apenas o
sopé. Mas para Eva era o suficiente. Passos pesados a levaram ao Col du
Portet-d’Aspet. Um monte que enervava muitos participantes do Tour de
France e chegou a custar a vida de um ciclista italiano. Estavam no sexto dia.
Adiante, restavam ainda mais de 150 quilômetros.
Uma canção infantil assombrava sem parar a cabeça de Eva.
Um dois, feijão com arroz. Três, quatro, feijão no prato. Cinco, seis, feijão
inglês. Sete, oito, comendo biscoito. Nove, dez, comendo pastéis.
Com esse verso sem sentido, ela motivava os pequenos David e Lene
quando as perninhas não queriam mais trazê-los de volta do jardim da
infância para casa. Mais tarde, quando Frido Jr. e Anna já haviam nascido,
renunciou a essa tática da caixa de truques chamada força de convencimento
materna. Com quatro filhos, não conseguia mais acompanhar cada um com
técnicas de encorajamento. Às vezes ficava impaciente, sobrecarregada por
exigências vindas de quatro lados. E cansada. “Um, dois, três, quatro.”

A paisagem montanhosa e muito arborizada cintilava, o caminho tremulava e


o sol cozinhava os tecidos de seus músculos até amolecer. Eva virou a garrafa
d’água. Não havia nenhuma gota. Nem uma única gota. Ela não conseguiria.
Não era tão forte como as amigas que, como de costume, a esperavam na
bifurcação. A Eva restava apenas a última salvação do peregrino: juntou as
mãos e lançou uma prece urgente aos céus.
– Me ajude, São Tiago! Ajude uma pobre alma peregrina – gritou, não sem
emotividade exagerada.
Claro que nada aconteceu. Depois de alguns poucos metros, deixou-se cair
no chão seco e arenoso. De joelhos. Ela. Não. Conseguia. Mais. Talvez fosse
necessário falar com o apóstolo num outro tom. Com desespero cada vez
maior, repetiu seu apelo:
– Cher St. Jacques, se apresse. Beam me up.
E nada aconteceu.
Eva botou os dedões para cima. Um ato de desespero, pois na paisagem
remota não havia um único carro. Em torno dela, apenas vastidão e
isolamento. Em algum lugar, um cachorro latia, uma formiga rastejava sobre
sua mão. Estava muito fraca para se defender. Tirou a mochila das costas e
caiu para o lado.
Eva havia chegado ao fim de sua peregrinação. Imóvel, ficou deitada no chão
como se tivesse chegado ao destino final. Os pássaros pipilavam sobre sua
cabeça. Se piassem ainda mais alto, não duraria muito até que as aves de
rapina percebessem que ali havia presas fáceis. Esperava a qualquer momento
o voo de ataque de uma águia. Em vez disso, aproximou-se um ronco de
motor. Freios chiaram. Eva levantou a cabeça com esforço.
Quando a poeira abaixou, uma minipicape vermelha brilhante de três rodas
surgiu numa luz cegante. Na carroceria pequena, garrafas de Orangina
bateram-se, tilintando, tomates e frutas do sul rolaram com a freada brusca.
Uma cesta com baguetes caiu. Que era aquilo? Uma miragem que atraía os
andarilhos para a loucura? Uma visão? A porta do passageiro abriu-se
rangendo, como em câmera lenta.
Tudo aquilo lembrou Eva de uma cena dos faroestes que seus filhos
amavam. Era o instante antes do grande confronto. O vento soprava areia e
bolas de feno sobre a praça poeirenta do vilarejo. Os adversários mantinham-
se escondidos. A música era ameaçadora. Sentia-se que algo estava prestes a
acontecer. A tensão pairava no ar.
Mas não era um faroeste e Eva não corria perigo. Sem desperdiçar outro
pensamento sequer, levantou-se com dificuldade, esticou suas juntas
enferrujadas e foi até o carro. No banco do motorista, um homem robusto
com óculos de sol espelhados e barba por fazer. Embora o veículo mal
alcançasse 40 quilômetros por hora, tinha a aura de um easy rider audacioso.
À primeira vista, inspirava pouca confiança. Em Colônia, seria o momento
perfeito para sair correndo e gritando. O homem pegou a mão de Eva e
apresentou-se sem delongas:
– Jacques.
O rosto de Eva iluminou-se inteiro:
– Eu sei.
Sem hesitar, espremeu-se com sua mochila no veículo balançante. A
naturalidade incrível com a qual entrou no carro pegou Jacques de surpresa.
Tanto que deu uma gargalhada retumbante. Jacques tirou os óculos escuros e,
por trás deles, surgiu um rosto amigável e bronzeado com inúmeras rugas de
expressão. Enxugou as lágrimas dos olhos. Ainda rindo, esclareceu:
– Não posso fazer milagres, mas posso levar a senhora até o nosso hotel.
Eva concordou com a cabeça. Não esperava nada mais que isso. Debruçou-
se para fora da janela, levantou os olhos para o céu e disse uma única palavra:
– Obrigada.
34

Eva rezava, Estelle blasfemava.


– Que negócio idiota – vociferava para si mesma. Estelle estava brigando
com sua mala. Não tinham percorrido nem metade do trecho quando Estelle
se encheu com os solavancos desagradáveis. Por isso, Yves havia pensado em
tudo. Pouco peso, rodinhas móveis com tala larga para qualquer tipo de
terreno, grandes e macias como de patins in-line. Na parte traseira, Yves
tinha até mesmo escondido uma mochila. Estelle estava bem convencida de
que, obviamente, não estava mais na idade de andar como uma mochileira
pelo mundo. Para ser sincera, nunca esteve nessa idade. Na época em que
seus colegas de faculdade buscavam a paz da alma com gurus hinduístas
como turistas mochileiros, Estelle deitava-se apenas em camas feitas. Em
casa e durante as férias. Nunca entendeu por que Kiki se entusiasmava com
suas viagens sem dinheiro, preparação e planejamento. Ano após ano, Kiki
carregava consigo suvenires de terras distantes. Matthieu havia fugido, o
resto era na maioria das vezes de natureza material e desaparecia com as
frequentes mudanças de Kiki. Um conjunto de taças para vinho que, a muito
custo, importara do México nas próprias costas, pois tinha se apaixonado pelo
vidro grosso com bolhas de ar, passou por um momento de brilho quando
uma esposa ciumenta procurou Kiki em casa para confrontá-la. A polícia
nunca acreditou em Kiki quando declarou não saber que seu novo amor era
casado.
A alça retrátil da mala escorregava da mão de Estelle e se estatelava no
chão. As rodinhas a toda hora agarravam-se em obstáculos. Ela se curvava,
levantava novamente a alça e erguia com esforço a mala por sobre o galho
grosso. Os ombros doíam, as bolhas na palma das mãos cresciam. A subida
quilométrica e contínua transformava a mala em chumbo. Caroline tinha
concreto em sua mochila. No entanto, seguia alguns metros à frente. Estelle
diminuiu o ritmo e ficou parada em uma rocha. Uma ova que “as rodinhas
flexíveis fazem do transporte um prazer”. Aquilo era um sofrimento.
Impaciente, estava trocando de mão quando uma buzina de carro estridente a
tirou da pista. Atrás dela, aproximava-se uma minipicape enferrujada, uma
das muitas que circulavam na região. O que havia de especial naquele
transporte era a cabeça de Eva para fora da janela. A amiga, que nunca tinha
olhado para outro homem desde Frido, estava sentada bem juntinha com um
homem estranho numa minicabine de picape. E iluminada, como se a mãe de
Deus a tivesse abençoado pessoalmente. Céus, o que Eva pretendia?
– Auberge de la Paix – gritou Eva para elas do carro, enquanto ele passava
pelas amigas. – Oito quilômetros daqui.
– Assim não vale. Não é justo – reclamou Estelle.
Contudo, a picape já rumava na direção de Judith, que estava desolada,
pois Eva ousara separar-se do grupo.
– Isso não tem nada a ver com a peregrinação – gritou para Eva com voz
acusatória, o que não ofuscou em nada o bom humor da amiga. Ela pensou
nas outras:
– Já organizei as camas. Também para o Max.
Nos últimos dias, Max havia se transformado em parte fixa do grupo
peregrino. Do seu próprio jeito. Para ele era estranho estar no centro das
atenções. Não se misturava, mantinha distância, às vezes ficava quase
invisível por algumas horas. Contudo, mais tarde, quando subiam num
ônibus, ele estava novamente lá. Permaneceu ao lado delas. E, naquele
momento, acenava contente para Eva quando ela passou com o carro e se
aproximou do pico.
– Jacques tem acomodações para nós – gritou Eva para Caroline e Kiki. –
Espero vocês lá.
O carro se distanciou, a nuvem de poeira desapareceu, o ronco do motor
perdeu-se. Restaram apenas o caminho e as mulheres que peregrinavam.
Pedra por pedra. Passo por passo. Metro a metro. O silêncio reverente foi
interrompido por um estalo metálico. E, então, os xingamentos de Estelle.
Ninguém olhou para trás. Os barulhos característicos que acompanhavam a
peregrinação pertenciam uns aos outros, como raio e trovão.
35

O pequeno veículo de três rodas balançava em ritmo tranquilo pista


acidentada acima. Jacques explicava tudo: contava dos pastores, que
cuidavam de seus negócios já havia catorze gerações, dos rastros de ursos que
foram encontrados ontem, das ovelhas desgarradas e discussões encarniçadas.
Na região, há mais associações contra os ursos que bichos vivos. Apesar
disso, uma das criaturas que acabara de voltar para a natureza tinha sido
morta a tiros por um caçador maluco.
Jacques poderia ter se fingido de louco e enganado Eva (para ser coerente
com o caçador destrambelhado): ela ouviu apenas metade do que ele
descreveu de maneira tão florida. A exaustão a fez ignorar a situação precária
na qual estava. Havia se separado das amigas e se deixado sequestrar por um
completo estranho, do qual sabia apenas o primeiro nome. Não tinha ideia
para onde aquele caminho a conduzia e o que ia acontecer. Como uma
adolescente com fome de viver, deixou-se levar impetuosamente por um
desconhecido. Sentia-se maravilhosa assim.

Enquanto lá fora os ursos andarilhos eslovenos e os caçadores selvagens


espreitavam, ela estava em segurança. Curiosa, olhava para o homem no
banco do motorista. Exatamente como ela, não era mais um jovenzinho, mas
ainda não era velho. A vida havia riscado em seu rosto inúmeras linhas de
expressão. Era provável que Jacques tivesse enfrentado muito vento,
intempéries e adversidades. Ela sentia a coxa dele, o calor que emanava. Não
seria um erro tão grave e Eva teria encostado a cabeça no ombro forte dele,
mas antes que pudesse levar a cabo um ato tão ousado, o veículo freou com
um chiado agudo diante de um imponente prédio de tijolos cinza, de aura
industrial. Os três andares do Auberge de la Paix foram construídos
diretamente nos picos rochosos e dele era possível ver um pequeno campo de
oliveiras. As copas carregadas das árvores que se enraizavam no solo fraco e
pedregoso contavam uma história de tradição centenária e trabalho duro. A
porta de entrada mostrava a imagem gasta de uma pomba da paz com um
galho de oliveira no bico.
– Antigamente as azeitonas eram picadas, moídas e espremidas aqui.
Quando meus avós compraram o terreno nos anos 1960, o moinho estava em
ruínas. Eles sonhavam com um ponto de encontro para a juventude do
mundo. Por isso esse nome patético. E os dormitórios – explicou Jacques.

Um albergue da juventude? Com dormitórios? Para o entendimento dos


povos? Pelo amor de Deus. Por que não tinha se informado exatamente para
quais acomodações estava atraindo as amigas? Já deixaram para trás algumas
noites desconfortáveis e mereciam de verdade algo melhor que acomodações
comuns voltadas ao público jovem. Elas não ficariam muito felizes com o
fato de se poder fazer festas durante a noite toda sem que um vizinho se
sentisse incomodado.
Olhou em volta, crítica: roupas secavam no jardim, uma gaiola vazia
balançava na coluna, os vermes perfuravam a madeira e as aranhas faziam
suas teias incansavelmente. Por que deveria procurar outro lugar para
pernoitar? Gostava do velho moinho de azeite de Jacques.
Enquanto ele carregava os suprimentos para dentro da construção, pediu
para Eva sentar-se numa das cadeiras de vime que convidavam ao descanso
sob a sombra de um plátano. Jacques deu a ela a seguinte missão:
– Encoste aí, não faça nada e aproveite.

Eva aproveitou a tranquilidade. Era o momento pelo qual ansiava havia


muito. Havia muito não tinha tempo para si. Não precisava mais correr, não
precisava preocupar-se com ninguém, nem cuidar das compras. Em Colônia,
como indicavam suas ligações diárias, tudo corria sem acidentes com sua
família. Frido mostrava ambições esportivas. Há tempos tinha desistido de
imitar o perfeccionismo de Eva. David comentara na última ligação que a
mesa posta do jantar parecia a mesma que havia sido deixada pela manhã. O
plano alimentar ambicioso dera lugar ao serviço de entrega de pizza.
– Fico feliz quando levo as crianças a tempo para a escola. E chego
também na hora para o trabalho – confessou Frido. – Até cheguei bem tarde
numa reunião do Conselho. E adivinhe o que aconteceu? Nada. O mundo
realmente não acabou.
Eva riu ao telefone. Viu Frido literalmente diante de si, correndo pela
cozinha no terno de três peças discreto do “dia de reunião”, em seus sapatos
cuidadosamente engraxados e costurados manualmente, para cumprir o
parcour matutino de forma pontual. Provavelmente fizera uma tabela de
Excel no escritório para otimizar o processo. E fracassava a cada manhã com
despertadores errados, leite derramado e as tranças de Anna.
– Lene diz que eu pareço a Píppi Meialonga depois de ser eletrocutada –
comentou Anna. – Ah, papai se saiu melhor que ontem. – Apesar de precisar
se acostumar com o penteado, parecia satisfeita. – É legal que papai tenha
mais tempo para a gente – confessou para a mãe.
Por dentro, Eva parabenizava-se por ter dado a Frido a chance de provar
ser um bom prendedor de cabelos e caçador de lobisomens. Talvez tomasse
algo de Frido e das crianças quando organizava tudo. Era a loucura
totalmente normal que acontecia em Colônia. Nada com que precisasse se
preocupar.

Eva acomodou-se na cadeira de vime, fechou os olhos e esperou que a paz


celestial se espalhasse dentro de si. Duma janela entreaberta e coberta com
papel espelhado às suas costas, vinham ruídos que faziam supor que a
cozinha estava logo ali atrás. As portas dos armários eram abertas e fechadas,
louças batiam, uma faca picava em forte stacatto numa tábua de madeira,
gordura estalava. Uma nuvem tentadora de aroma, na qual alho, tomilho e
louro se uniam ao azeite, flutuou para fora. Isso interessava muito mais do
que a ociosidade. Sentar-se, calar-se, pensar e desperdiçar o dia dado por
Deus? Não era para ela.

Curiosa, Eva entrou na casa. Um corredor surpreendentemente alto, com


colunas de madeira escuras e pesadas e assoalho de um vermelho terracota
brilhante, levava na direção da cozinha. Nas paredes brancas caiadas estavam
penduradas todas as ferramentas que mostravam a função original da
construção. Fotos amareladas atestavam a história cheia de vicissitudes do
moinho de azeite e seus donos.
Na virada do século, trabalhadores honestos e de aparência macilenta
posaram na frente da casa, mais tarde eram soldados em uniformes da
Segunda Guerra. As fotos em preto e branco estavam penduradas
amigavelmente ao lado das fotos de cores esmaecidas do pós-guerra e de
retratos atuais muito brilhantes. As famílias nas imagens – provavelmente os
respectivos donos – ficaram cada vez menores com o passar das décadas, até
serem substituídas nos anos 1960 por uma colorida comunidade hippie. Um
menino nu com cabeleira despenteada mostrava a língua insolente ao
fotógrafo. Ao lado, um casal diante de uma kombi pintada. Ela,
multicolorida, com cabelos crespos amarrados com esforço por uma faixa,
ele, de cabelos compridos, com um cocar americano e calças boca de sino.
Era Jacques com seus pais?
Mais misteriosa ainda era a foto seguinte: em um lugar de destaque, estava
um retrato de em grupo peculiar, mostrando Jacques no meio de uma dúzia
de homens em longas togas vermelhas. Qual seria aquela estranha associação
da qual Jacques fazia parte? Haveria ainda sociedades secretas nessa região?
Os homens não pareciam muito santos. Talvez mais juízes do tribunal
constitucional alemão que haviam combinado de se encontrar no carnaval de
Colônia. No lugar dos babados brancos que as togas dos juízes supremos da
Alemanha traziam, os homens da foto traziam um prato de argila redondo e
vitrificado em uma fita verde em torno do pescoço.
– Os membros de L’Académie Universelle du Cassoulet – explicou uma
voz às suas costas. Eva assustou-se. Jacques havia se aproximado dela.
Estava tão absorta com as fotos que não o ouvira.
– Cassoulet? – perguntou ela. Sua voz soava diferente porque estava sob
um pé direito alto? Ou era a presença dele que a deixava nervosa?
– Especialidade da minha avó – comentou Jacques. – Ela veio de
Castelnaudry. A Meca do cassoulet. Você poderá provar hoje à noite.
– O cheiro é delicioso. Posso ajudar? – quis saber Eva, entusiasmada.
Sentir o aroma das panelas alheias era muito mais tentador que admirar as
oliveiras na poltrona de vime. Talvez pudesse aprender algo novo. Em vez de
responder, Jacques abriu a porta da cozinha.
36

“Cada passo, uma resposta”, dizia um website que pretendia tornar


palatável o potencial peregrino daquela caminhada sem fim. Que coisa mais
kitsch, pensou Caroline em casa. Agora, a frase ganhava um significado
totalmente novo. Não era kitsch, mas loucura pura.
Para Caroline, cada passo abria novas perguntas e armadilhas. Os últimos
dias haviam comprovado que quinze anos juntas não bastavam para
compreender a essência de uma pessoa. Ou era esse o caminho? Será que os
peregrinos traziam à tona características que escondiam no cotidiano? Três
horas atrás, apostaria que Eva seria a última a subir no carro de um estranho,
se deixando levar para um destino desconhecido.
“Cada passo, uma nova pergunta” deveria ser a frase. Não apenas Eva agia
de maneira bem diferente. Também a postura de Kiki, com cada dia de
peregrinação no qual conseguia não trocar nenhuma palavra com Max,
parecia-lhe mais misteriosa. Tratava Max como se fosse um móvel ao qual se
passa dia após dia sem prestar atenção. Caroline viu os homens de Kiki virem
e irem. Nunca havia se comportado de forma tão estranha.

– Viens ici! Viens ici! Vite. Vite. Vite!


Vozes agitadas arrancaram Caroline de seus pensamentos. Duas
trabalhadoras do campo gritavam e acenavam com empolgação. Seu francês
era cortado e incompreensível. Em ações judiciais, pessoas como elas eram
transcritas com a horrível expressão “histórico de imigrante”. As mulheres
com histórico de imigrante brandiam tão nervosas os braços que Caroline e
Kiki, andando bem próximas, supuseram intuitivamente que, no mínimo, um
urso selvagem se aproximava, pronto para aceitá-las como almoço.

Sem entender o que estava acontecendo, Caroline e Kiki salvaram-se com um


pulo corajoso sobre as tábuas da cerca que separava o caminho do campo,
apenas para confirmar que a história da comunicação entre culturas estranhas
é uma história cheia de mal-entendidos. Não havia perigo algum. Ao
contrário: as camponesas queriam a qualquer preço fazer algo de bom por
elas. Era óbvio: acreditavam que todos os peregrinos de Santiago eram
pobres e mereciam caridade, e insistiam em impor a elas com muitas palavras
e gestos suas rações.
As cinco amigas já haviam feito uma refeição no último vilarejo. Na
padaria de um supermercado Intermarché, devoraram um imenso sanduíche
com queijo grelhado que comercializavam sob o nome croque monsieur. Mas
isso não importava para as trabalhadoras. Daquilo que Caroline conseguiu
entender do palavreado entrecortado e colorido pelo dialeto, isso significava
que as duas estavam convencidas de que ajudar peregrinos não era menos
sagrado que se colocar a caminho de um local santificado. Deus lembrava-se
dos bons atos. Se os peregrinos de fato estavam exaustos, famintos e
necessitados, o trabalho ficava em segundo plano no mundo fantasioso das
camponesas.
Nada ajudava. Após a padaria em Portet d’Aspet já ter aparecido como um
caso de reestruturação culinária, precisavam agora morder maçãs azedas (que
eram nada mais, nada menos que o alimento oferecido). As camponesas
fizeram o sinal da cruz, satisfeitas. E Caroline e Kiki seguiram seu caminho.
Cada passo, uma aventura.
37

O morder combinado na maçã não impediu Caroline de voltar ao assunto


que havia dias lhe preocupava.
– O que não entendo na questão com Max…
– Você nunca para mesmo de perguntar. Devia ser advogada – riu Kiki.
Caroline não se deixou desviar do tema.
– Há anos você procura algo fixo – respondeu ela.
Kiki interrompeu de imediato.
– O que você acha que vai acontecer quando Max me apresentar ao meu
chefe como nora?
Caroline foi curta e grossa.
– Vai calcular a diferença de idade entre vocês.
– Ele vai me demitir – corrigiu Kiki.
A advogada deu sua própria visão da situação:
– Sexo com incapaz? Não cola. Max com certeza é maior de idade.
Kiki não estava a fim de brincadeira. Sabia que as amigas viam de forma
crítica seus términos de relacionamento. Mesmo assim, ela não era nem um
pouco amoral. Apenas não era teórica. Era como no desenho. A maioria dos
colegas tinham o produto pronto diante dos olhos. Kiki não: precisava
desenhar, testar, ver coisas, pesar o material nas mãos. Precisava sentir antes
de pensar e decidir. Como conseguiria saber que amava alguém se não
testasse a relação? Para Kiki, era um verbo. Amar consistia em algo que era
necessário experimentar e testar, como em artes e ofícios: ninguém se torna
um bom confeiteiro simplesmente porque todo dia bota o nariz na vitrine da
doçaria sem experimentar as delícias adocicadas.
– Você ama segundo o método heurístico de tentativa e erro. Você prova
sistematicamente todos os homens e espera que o verdadeiro esteja entre eles.
Kiki conhecia tentativa e erro. Era bem familiarizada com eles. Mas o que
era heurístico?
– É a arte de chegar a uma boa solução com conhecimento limitado em
pouco tempo – explicou Caroline.
Disso Kiki entendia muito bem. Não sabia nada e o tempo corria atrás dela.
– Por que sempre eu? – reclamou. – Quando conheço um homem, com
certeza é casado, obcecado pela carreira ou um notório renegado. E agora me
apaixono por um adolescente.
De qualquer forma, era ridículo: como era possível alguém com 40 anos ter
fantasias românticas com o amor? Lia-se em qualquer revista feminina que
relacionamentos fixos tinham efeitos colaterais horrendos como meias de
tênis sob o sofá, tubos de pasta de dente abertos e monotonia sexual. Como
era possível achar um homem atraente quando se pode observar a limpeza
devotada dos dentes ou o corte das unhas do pé? Não era surpresa que todas
as comédias românticas param no momento em que o casal apaixonado está
abraçado e murmura frases como: “Até que a morte nos separe.” Tudo que
vem depois disso pode se resumir à expressão “trabalho de relacionamento”.
Kiki era a campeã mundial de começos. O que ela não conseguia era
continuar.
– Você ama o Max? – perguntou Caroline, cuidadosa.
A resposta de Kiki foi esquiva. Caroline não entendia realmente o que
estava acontecendo.
– Se o Thalberg me mandar embora, nunca mais terei um emprego. Quem
me contrataria? Com 40 você é velha demais e muito cara. Você precisava
ver nossos estagiários. Desde a crise do crédito, eles fazem carreira num
estalar de dedos e custam a Thalberg no total 300 euros ao mês.
– Você o ama? – insistiu Caroline.
Kiki ousou um olhar para Max, que peregrinava a pouca distância e piscou
com atrevimento para ela. O rosto de Kiki manchou-se de vermelho. Caroline
sorriu.
– Não. Claro que não – Kiki negou qualquer suspeita. – Não amo.
Ficou feliz que o telefone de Caroline tocou, trazendo um fim abrupto à
conversa. Qual das duas estava mais aliviada? Kiki, que foi libertada da
sagacidade incorruptível de Caroline, ou Caroline, em cuja tela de celular
brilhava o nome certo?
– Philipp. Finalmente!
38

–Ai. Ai. Ai! – ralhava Estelle. Cada passo era um sofrimento. Não eram os
pés que a atormentavam. Para sua própria surpresa, havia encontrado um
ritmo que lhe parecia fácil e correto. A caminhada permanente tinha se
transformado em estado normal. Precisava apenas de um pouco de diversão.
Para Estelle, isso significava ter alguém com quem conversar.
– Sozinha aqui comigo está tão chato – admitiu, e cumprimentava todo
peregrino, andarilho ou pessoa em férias que cruzava seu caminho e dava a
entender que dominava a língua alemã. Com muitos compartilhou o caminho
por mais de hora.
Estelle amava histórias de vida. Ficou especialmente fascinada com um ex-
ministro grisalho que peregrinava porque, após dois mandatos, tinha sido
preterido não apenas pelo partido, mas também por sua família.
– Por oito anos não parei em casa. Nem o cachorro reconheceu que eu
fazia parte da matilha – lamentou-se. Infelizmente, ela perdeu o ministro de
vista numa pausa para comer.
Em vez disso encontrou, num mercadinho 8 à Huit de um vilarejo, onde
era possível comprar algo para comer e beber mesmo tarde da noite, um
corretor de seguros que tirou uma folga dos destinos de seus clientes
infelizes. Na esteira deste veio Hanna, cabeleireira recém-divorciada, que
tinha ideias claras daquilo que esperava da peregrinação: queria encontrar
Deus ou um novo marido. Da forma entusiasmada com que Hanna falava dos
homens, para ela não havia diferença entre um ou outro. Estelle se
arrependeu, pois nunca saberia o que acontecera com os dois. Em uma
bifurcação do caminho, desapareceram sem deixar rastros. Com mais
frequência eram vistos, contudo, casais de professores do centro-oeste da
Alemanha que estavam de férias. Todos já haviam passado dos 50,
ensinavam alemão e geografia e traziam rolos de papel higiênico e folhas
impressas com indicações artístico-históricas consigo. Encontravam-se,
apresentavam-se, conversavam por dois quilômetros coisas muito pessoais e
separavam-se com um sucinto “Tenha um bom-dia”.
Sou a única peregrina que não sofre de uma crise existencial fundamental,
constatou Estelle após alguns dias. Não contava sequer com uma ínfima crise
conjugal. Seu marido tinha muitas qualidades. Conseguia ganhar dinheiro,
comprar, pendurar, retirar e mudar quadros de lugar, tapar buracos
desnecessários de furadeira, estacionar o carro novo e levar café da manhã na
cama. E ele ainda ria de suas piadas. O que mais ela queria?
Talvez por isso as pessoas façam a peregrinação felizes, pois percebem
que os outros estão muito piores, supôs.
Não era assistir à sua própria vida, era a peregrinação que a levava à
loucura. Era a mala que ficava presa em qualquer desnível. Eram as mãos que
queimavam. Na mão direita ficaram visíveis os primeiros indícios de uma
bolha de sangue.

Entre o povo andarilho, as bolhas eram um dos assuntos preferidos. Um dos


professores aconselhou a atravessar a bolha com uma agulha com linha e dar
um nó. Dentro de um dia, a linha sugaria a umidade e a pele secaria. Ajudaria
e doeria um bocado. A mulher dele confiava na própria urina; Judith, em
truques mentais:
– Você precisa concentrar-se na sensação corporal da dor e não nos
sentimentos ligados a ela – explicou a Estelle na manhã em que ela agarrava a
alça da mala com lamentações profundamente doloridas. Mas Estelle não
estava em condições para tais truques mentais, não precisava nem tentar. Em
vez disso, decorreu-se uma luta encarniçada durante três quilômetros entre a
capacidade de sofrimento e a vaidade em seu íntimo. Confirmou que o
catolicismo não era para ela. Mas isso já sabia desde os 12 anos de idade,
quando passou uma breve temporada em uma escola católica para moças.

– O amor de Jesus Cristo mostra-se em sua disposição extraordinária para o


sacrifício – inculcavam as freiras em sua nova aluna. A disposição exigida
para o sacrifício estava veementemente oposta à consciência de injustiça
característica de Estelle. E não era justo quando a professora exigia dela que
dividisse todos os seus doces com toda a turma. Até com a gorda da Baby
Witte. Ao contrário de Estelle, a gorda Baby cantava todo domingo na missa
e era a queridinha de todos os professores, com sua letra limpa e legível e sua
respeitabilidade importuna. Estelle não queria dividir de jeito nenhum seus
doces ganhos honestamente.
Mas gostava de dividir algo bem diferente. Sob suas condições, com uma
pequena contribuição, Estelle deixava que as colegas de sala dessem uma
olhada em livros muito especiais. Estelle mantinha um aluguel animado com
os romances bem eróticos que sua mãe lia em segredo e mantinha escondidos
no cesto de roupa para passar. Entre as roupas úmidas, os livros ficavam com
o dobro do tamanho. Um golpe de sorte para Estelle, pois o preço de uma
obra era orientado pelo seu tamanho. Infelizmente, a gorda Baby Witte tinha
menos senso para o sensual do que para o pecado e a expiação. Denunciou
Estelle, que foi suspensa pela escola de freiras por três meses inteiros.
Com isso, Estelle atraiu a ira das freiras, mas conquistou também de uma
vez por todas a aprovação de seu pai, que reconheceu nela seu sangue
singularmente empreendedor. Willi tirava dinheiro do entulho e o perdeu
imediatamente em negócios infalíveis. Não conseguiu, durante toda a sua
vida, ser escolhido para uma das posições importantes de sua associação
carnavalesca. Os idiotas nunca aceitaram de verdade aquele comerciante de
entulho com humor robusto, unhas cronicamente pretas e contatos dúbios.
Com sua mulher não era diferente. A filha da casa mais nobre perdeu tudo na
fuga para a Prússia Oriental, exceto a altivez adquirida. O sentimento de
gratidão, pois Willi lhe salvara a vida quando ofereceu um teto e seu ombro
forte, aumentou nos primeiros anos de um casamento sem filhos. Ela foi para
a emigração interna e sonhava com um mundo de heróis românticos de mãos
macias como pianistas.
– Estelle terá o melhor – decidiu o pai. Com a escolha de uma escola de
elite, pensou que daria a Estelle acesso aos melhores círculos. E na época, em
Colônia, eles eram os católicos. Ele foi à escola pegar a expulsão
pessoalmente.
– São as mãos, Estelle – dizia sempre e mostrava as palmas das mãos
maltratadas e calejadas, cobertas de calos grossos.
Mais alguns dias de peregrinação e suas mãos estariam iguais às de um
comerciante de entulho. Vinte anos de cremes, retoques e óleos jogados pela
janela? Todas as máscaras de mão para nada? Não podia fazer como seu
falecido pai.
Estelle havia chegado ao ponto crítico: após 150 quilômetros de agonia,
estava totalmente exausta e disposta a qualquer concessão que a livrasse da
criação indescritível de Yves. Os equipamentos corretos são tudo, Caroline
havia alertado antes. Estelle precisou de uma porção de dias para reconhecer
que as coisas mais importantes que ela precisava para alcançar Lourdes não
cabiam na mala: paciência, perseverança e mãos sem bolhas.
Podia e não podia simplesmente se livrar das coisas. As camponesas
vieram no momento certo. As duas mulheres olhavam, incrédulas, como
Estelle levantava primeiro a mala, depois ela mesma por sobre a cerca. Se um
OVNI pousasse diante delas, não teriam ficado tão abobalhadas.
Se Caroline ainda não conseguia se virar com aquela mistura de idiomas,
Estelle botou a mão na massa. Colocou na mão das mulheres tudo aquilo de
que acreditava poder se livrar. Adeus spray inseticida, até mais ver máscara
de olhos e maquiagem. Tchau, mala estúpida. Em sua limpeza coerente, deu
de cara com os papéis com as informações sobre os restaurantes da região.
Não, ainda não havia chegado tão no fundo do poço. Restava ainda a
esperança de que a peregrinação não seria apenas de sofrimento e privação.
Talvez pudesse convencer as amigas de que uma refeição feudal num
restaurante exclusivo seria um tipo de liturgia. Mesmo que, para tanto,
precisassem aceitar um desvio na rota.
Céticas, as camponesas examinavam potes e tubos, cremes e máscaras de
olhos. Obviamente acharam que Estelle era uma representante da Avon que
andarilhava pela província com sua mala de amostras. Foram necessários
gestos frenéticos até elas reconhecerem que podiam ficar com tudo. E de
graça. Sem outro compromisso de compra. As trabalhadoras fizeram o sinal
da cruz. Não contavam que a recompensa de Deus fosse se materializar tão
depressa. A mensagem de Maria de fazer apenas os fiéis felizes no outro
mundo provou nesse dia ser apenas uma ameaça vazia.

Estelle apressou-se para alcançar as amigas o mais rápido possível, quando


ouviu ao longe a voz de Caroline. Algumas palavras chegaram aos seus
ouvidos: Arne. Viagens. Consultas. O restante era engolido pelo vento.
Estelle estava grata por sua disposição ao sacrifício. O barulho das rodinhas
que pulavam sobre o solo desnivelado havia muito teriam denunciado sua
presença. Os pés de Estelle planavam sobre o caminho pedregoso, tocavam
cuidadosamente o chão. Nenhuma pedra mais rolaria antes de ela se
aproximar.
Caroline tinha se acomodado em um tronco. Falava ao telefone com
Philipp sobre algo que interessava a Estelle mais que as histórias de vida de
companheiros esporádicos de peregrinação. Sobre Arne.
39

–Tenho um dever de sigilo. Você sabe disso – soou irritada a voz de


Philipp no telefone. Caroline não conseguia entender. Milhares de vezes
ouvira o argumento na vida profissional: de médicos que queriam levá-la a
uma declaração, de advogados adversários, de padres. Mas não de seu
próprio marido. Finalmente ela encontrara Philipp e agora ele apelava para a
obrigação legal de confidencialidade.
– Você não está falando sério – indignou-se Caroline.
– Brincadeira – aliviou Philipp. – Não posso te contar nada porque não sei
de nada.
A evasão soava como uma grande mentira. Quando Philipp lançava mão
de táticas e manobras, fazia isso muito mal. A conversa rumava para o
desastre.
– Philipp, não faça isso. Em outra situação você falaria dos pacientes.
O trato com o dever de sigilo quase nunca era observado de forma tão
estrita na mesa do jantar. Às vezes era necessário falar, embora fosse contra
todas as regras. Principalmente no início da carreira, Caroline precisava de
alguém com quem pudesse dividir os acontecimentos do dia. Falou quando
foi confrontada pela primeira vez com fotos de cadáveres e, às escondidas,
precisou vomitar, quando um cliente foi para cima dela com uma faca e
quando foi convocada para ser defensora pública no caso Nele Bauer. Nele
eram dois. Na época, com a mesma idade de Josephine. E estava morta. Os
policiais encontraram a garota em seu berço, assassinada com oito facadas. A
própria mãe de Nele, Stefanie, chamou a polícia. Embora prestasse queixa da
agressão, desde o primeiro momento virou a principal suspeita. Caroline não
acreditava na versão do grande desconhecido que conseguiu acesso à casa
disfarçado de entregador de pizza e de repente esfaqueou a menininha.
Stefanie comentou entre lágrimas o histórico de drogas do ex-namorado e dos
credores agressivos que a ameaçavam. Nenhum dos policiais acreditava na
inocência da mulher. E, portanto, comportaram-se na investigação.
No processo, Caroline provou passo a passo que as provas foram obtidas,
manipuladas e processadas ilicitamente. Era uma absolvição de segunda
classe, “por falta de provas”, e Caroline serviu de alvo para os mais maldosos
artigos da imprensa. Lutou para esclarecer que a demonstrabilidade de um
crime era o calcanhar de Aquiles de uma legislação democrática. Foi difícil,
pois Nele Bauer fez com que ela obtivesse dúvidas profundas sobre estar ou
não do lado certo do direito. Quando voltou para casa e Josephine a envolveu
nos seus bracinhos, ela caiu no choro.

Todo defensor público conhece esse momento no qual se ajuda alguém que
no fundo se considera culpado a conseguir a liberdade. Stefanie Bauer
marcou sua primeira vez. Sem Philipp, teria enlouquecido. Como ele poderia
entender seu desespero se ela não tivesse contado dos ferimentos de Nele, do
corpo magrinho, de como Stefanie agia com indiferença ao falar da filha.
Philipp acompanhou o processo. Tinha todo o tempo do mundo, pois o
primeiro artigo ruim, que tratava de Caroline e da questão de ela poder
defender um monstro, deixou sua sala de espera vazia.
O caso de assassinato impune de Nele Bauer permaneceu como uma ferida
aberta em sua biografia. Seus filhos cresceram e tomaram seus próprios
caminhos profissionais. Josephine seguiu os passos do pai e estudou
medicina, Vincent mantinha uma loja virtual próspera na qual comercializava
camisetas e pulôveres.
Após o enterro de Arne, Caroline esteve em seu túmulo. O fato de a última
morada de Nele também continuar a ser cuidada com carinho após tantos
anos a tranquilizou. Caroline tinha certeza de que as flores frescas da
primavera e o novo ursinho de pelúcia não vinham de Stefanie Bauer.
O estranho foi que Nele deu um impulso decisivo em sua carreira. Mal
completara 30 anos e era a advogada criminal mais conhecida de Colônia. No
fim, foram os artigos maliciosos que a incentivaram a continuar. Com cada
artigo sarcástico crescia sua resistência interior. Se o populacho irado, que a
cobria de ameaças e boicotava o consultório do seu marido, ficasse
responsável pela justiça, seria o início do fim do Estado de Direito. Seu
casamento sobrevivera à tempestade, bem como o consultório. E agora
Philipp vinha para cima dela com seu dever de sigilo.
– O que há com você? – perguntou, embasbacada.
– Você está vendo fantasmas – respondeu Philipp. – Tem muitos
criminosos ao seu redor mentindo para você.
Quantas vezes Caroline tentou se convencer disso nos últimos quilômetros.
O sentimento inquietante no estômago permanecia:
– Tem algo errado com o diário de Arne.
– E se tiver, o que você tem com isso? – o marido tentou encerrar o
assunto.
– Judith é minha amiga. Quero ajudá-la.
– Arne morreu – Philipp lembrou Caroline. – Deixe as velhas histórias em
paz, Line.
Ficava furiosa quando Philipp a chamava de Line. Fazia isso apenas
quando esquecia de pegar a tempo as coisas dela da lavanderia, embora
tivesse prometido de pés juntos, ou quando se candidatava para o plantão,
embora soubesse que era aniversário da tia Gertrude no mesmo dia: nessas
situações, ele a chamava de Line.
– Se você souber de algo, precisa me contar – insistiu Caroline.
A resposta dele afundou-se no barulho que cercava Philipp. Eram vozes e
música.
– O que você disse? Está muito chiado. Onde você está? Estou tentando
falar com você há dias. Philipp! Philipp?
A ligação caiu. Caroline desligou e discou o número freneticamente.
Ocupado.
– Engraçado, as linhas telefônicas sempre caem quando a gente quer falar
algo com o marido.
Caroline virou-se. Estelle estava em pé, recostada a uma árvore. Nem se
deu ao trabalho de fingir que não estava ouvindo tudo.
– Você acha mesmo que Philipp sabe do segredo de Arne? – quis saber,
sem cerimônia.
Caroline deu de ombros. Devia haver um motivo convincente para Philipp
invocar diante dela o dever de sigilo. Nunca tinha acontecido antes. Por isso,
mal podia imaginar que os maridos ficaram próximos com a doença terminal
de Arne. Tão próximos que Arne revelou coisas que ele havia escondido até
mesmo de Judith. Arne e Philipp eram tão diferentes.
– O cara fala muito – Philipp comentou após o primeiro encontro. – E
sempre sobre coisas desinteressantes.
Philipp era tímido demais para conseguir dividir com Arne ideias
nebulosas sobre Deus, o mundo e tudo que pairava entre eles. Nunca
ocorreria a Arne ler o futuro para Caroline nas nuvens. Preferia confiar em
seus números trimestrais, na seção de economia do jornal Frankfurter
Allgemeine e num consultor fiscal sério.
– A realidade não é calculável – Arne costumava afirmar. – Mesmo a
altura da torre Eiffel varia em até quinze centímetros conforme a temperatura
externa.
Philipp poderia responder algo sobre a expansão regular do aço, mas temia
que Arne tivesse mais uma resposta ambígua.
E esses dois homens se aproximaram nos últimos meses de Arne? Caroline
tinha mesmo a impressão de que Philipp evitava Arne, pois era seu paciente.
Sentia-se culpada, pois tinha pedido a Philipp para ver o prontuário médico
de Arne. Isso foi após o hospital ter desistido dele. Philipp também
acompanhou Arne quando não havia mais o que fazer além de administrar
analgésicos, acompanhá-lo em seu caminho difícil e apoiar Judith.
– Arne nunca foi assunto na nossa mesa de jantar – confessou Caroline
com honestidade. Por que seria? Caroline não precisava perguntar a Philipp
sobre Arne. Podia ler nos olhos úmidos de Judith como estava a saúde dele.
Nessa época, Philipp se distanciou.
– Tive consultas o dia todo, à noite não atendo – dizia ele como desculpa
quando evitava os convites para visitar o casal. Odiava discutir descobertas
laboratoriais em jantares agradáveis com amigos. Mas talvez esse isolamento
tivesse um motivo totalmente diferente. Arne confiara algo a Philipp? Algo
que o desagradava tanto que ele se afastou de Arne e Judith? Por que não
contou nada?
– É esse diário – concluiu Estelle. – Enquanto não soubermos o que tem
nele, vamos tatear no escuro.
Caroline perguntou-se se neste caso tatear no escuro não era mais
saudável. Era mesmo importante saber qual segredo Arne levara para o
túmulo?
Se olhasse para trás, compreenderia que a conversa estranha com Philipp
fornecera uma peça importante para o quebra-cabeça, mas não queria ainda
formar um quadro com as outras peças. Permanecia isolada, um final falso.
Por enquanto.
40

–Não acredito. Nossa corajosa Eva – surpreendeu-se Estelle. Após a etapa


árdua, as amigas e Max reuniram-se no albergue. Ter alcançado um cume a
1.160 metros trouxe a todos um sentimento de comoção. Mal podiam
imaginar que, em pouco menos de quatro semanas, os ciclistas do Tour de
France sofreriam o mesmo trecho para baixo e para cima com suas bicicletas.
Naquele momento, estavam sentados como galinhas no poleiro num banco de
cozinha. Escaldavam os pés em cinco baldes de plástico idênticos, nos quais
Jacques despejou água morna e agradável enriquecida com bicarbonato de
sódio. Estelle sentia que tinha andado o dia todo sem chegar sequer um passo
perto do seu grande destino. Os outros não estavam muito melhores que isso.

A única que dançava contente e recuperada pela cozinha era Eva. Ficou claro
que estava flertando com Jacques, que servia vinho para ela várias vezes. Era
um desses vinhos que, no máximo, seria usado para substituir o vinagre no
âmbito normal do lar. Na cozinha de Jacques, o gosto era divino, exatamente
como a comida que haviam feito juntos, num trabalho de horas a fio. Jacques
insistiu em servir pessoalmente a primeira colher a Eva.
– O segredo para um cassoulet divino está na escolha dos legumes. Minha
avó preferia os feijões brancos lingot – sussurrou Jacques enquanto levava a
colher até a boca de Eva. As bochechas dela ficaram em brasa, pelo calor da
cozinha, por tanto vinho, pelo homem ao seu lado. Eva, sempre responsável
pelo bem-estar culinário, visivelmente aproveitava o fato de Jacques cozinhar
para ela. O prato exuberante de feijões e carne era totalmente irresponsável
no quesito calorias. Sua promessa de abdicar da carne de porco fora
esquecida havia muito. Da mesma forma, esquecera tudo que fazia parte de
sua vida, mesmo as amigas. Aquele era seu dia e não deixaria que nada nem
ninguém estragasse a noite.

As tensões pairavam como nuvens tempestuosas sobre o grupo. A


peregrinação agia como uma lente de aumento. Todos os conflitos, que
podiam ser abafados no dia a dia pelo dinamismo frenético, aumentavam.
Kiki ignorava Max ao máximo e desenhava obstinada. Judith lutava com as
lágrimas, Caroline verificava o celular o tempo todo e Estelle fitava como
uma cobra olha uma cobaia: bem acima da mochila aberta de Judith jazia o
diário. Como gostaria de dar uma olhada nas páginas misteriosas! Judith
protegia o caderno como se fosse o Santo Graal. Toda noite enfiava o diário
embaixo do travesseiro. No entanto, Estelle viu sua chance. Judith estaria
distraída durante a refeição. Podia pegar o diário emprestado, dar uma
olhadinha deveria bastar.

Ela quis se levantar quando Eva empurrou para suas mãos um prato de
cassoulet. A fome de Estelle era maior que sua curiosidade.
– Não diga que você ficou o dia todo na cozinha – surpreendeu-se Estelle.
Jacques não conseguia elogiar o suficiente sua ajudante:
– Eva ajudou com tudo: deixar os feijões de molho, cozinhar, retirar o
bouillon. Cozinhar as coxas de pato na gordura, refogar as costelas de porco,
fritar as linguiças com alho, acrescentar toucinho e o joelho de porco.
– No fim você colocou os feijões e as carnes na panela de barro, despejou
bouillon sobre tudo e levou ao fogo – completou Eva, solícita.
– E isso levou o dia todo? – admirou-se Estelle. Na verdade, seu
pensamento estava naquilo que aconteceu entre os dois além do cozinhar
juntos. No entanto, em seu estado altinho, Eva estava imune contra qualquer
insinuação.
– Claro que não. Você precisa cuidar do cassoulet. Durante o cozimento,
forma-se uma crosta escura. Você deve rompê-la com cuidado, pois não quer
esmagar os feijões. O cassoulet precisa ter sete crostas – explicou Eva como
tinha aprendido.
Jacques botou o boné vermelho da associação na cabeça de Eva.
– Bem-vinda ao clube – disse Jacques, solene. – Pode se orgulhar, viu.
Eva deu risadinhas inseguras. Não sabia como lidar com a estranha atenção
masculina. Ao menos ninguém conseguia ver que enrubescera. O rosto já
estava vermelho pelo calor da cozinha e por muito vinho. Kiki fotografou a
cena memorável.

Estelle nunca na vida pediria de livre e espontânea vontade um cozido tão


grosseiro. Contudo, após a primeira colherada, decidiu que uma sopa de
feijão era exatamente o correto para restituir as forças após um longo dia de
caminhada na peregrinação exaustiva. Mais fenomenal que a comida era a
metamorfose de Eva.
– Desde o corte do contato intenso com a família, Eva está mudada –
sussurrou Caroline. – Tão solta como eu não via há anos.
Judith levantava suspeitas sobre a transformação singular de Eva:
– A peregrinação traz à tona o que está escondido.
Estelle interrompeu antes que Judith se perdesse novamente em uma
palestra espiritual.
– Estranho. Não senti nada. Na verdade, bem no fundo, sou totalmente
superficial – trombetou, bem alegre.

– Tem gosto, tem gosto de… – Eva buscou uma comparação coerente,
desistiu rindo e deu mais uma garfada. Comia junto com as amigas e com
apetite irrefreável. Apenas Judith, como de costume, remexia a comida.
– Posso fazer um omelete para você – ofereceu Jacques.
Judith concordou com a cabeça, preocupada.
– Omelete, claro. Obrigada.
Havia dias não se alimentava de outra coisa.
Elle n’aime pas ce qu’on mange ici, resmungava o pessoal dos restaurantes
que elas visitaram. “Ela não gosta do que comemos aqui.” De pronto, a
pessoa transformava-se num estranho quando não comia nem carne nem
peixe. Restava apenas omelete.

O remexer infeliz de Judith dava nos nervos de Estelle. Era uma penitência
especial que Judith se impunha? Autoflagelação? Ou somente um grande
teatro? Como poderia ter a oportunidade de dar uma olhada no diário se
Judith não se deixava distrair pela comida e pela companhia? Como se fosse
proibido desfrutar de algo que Arne não podia mais experimentar.
Após duas, três bocadas por educação no omelete, Judith levantou-se
calada, pegou o diário e a mochila e desapareceu.
– Isso não pode continuar assim – sussurrou Estelle para Caroline. –
Precisamos fazer algo.
Não ficou claro o que passava pela cabeça de Estelle.
41

A capela de peregrinação, que ficava separada do albergue, incrustada no


meio da paisagem pastoril, recebeu Judith com cheiro de incenso e a parafina
morna das velas. O cantarolar monótono de um grupo de peregrinos franceses
reunidos para a oração noturna encantava a igreja. Sem qualquer entonação,
oravam mecanicamente um ciclo infinito de ave-marias.

Je vous salue, Marie pleine de grâces; le Seigneur est avec vous.


Vous êtes bénie entre toutes les femmes
et Jésus, le fruit de vos entrailles, est béni.
Sainte Marie, Mère de Dieu, priez pour nous pauvres pécheurs,
maintenant et à l’heure de notre mort.

A ladainha interminável formava uma cortina monótona que preenchia a


igreja com uma aura de mistério. Judith havia transformado em um costume
procurar junto com Eva a igreja local à noite. Para ela, isso também fazia
parte da peregrinação. Arne seguira esse ritual e Judith queria fazer o mesmo.
– Nossos ativistas católicos – zombava Estelle quando voltavam a
desaparecer numa igreja. Isso porque Judith não era católica, nunca fora.
Invejava Eva pela fé inquestionável e natural que mantinha. Ela mesma
sentia-se mais espiritualista que religiosa. Espiritualista e em busca.
Judith esperava muito por um sinal. A cada passo que dava, almejava o
momento mágico no qual se instalaria a sensação especial com a qual tantos
peregrinos se entusiasmavam. Esperava ansiosamente pelo encontro com um
tipo de entidade superior que lhe desse força para reunir sua vida, que estava
estilhaçada em milhares de pedaços.
Ela não ousava compartilhar com as amigas os assuntos espirituais. Como
falar disso com a cética Caroline? Para a advogada, contavam apenas os fatos
verificáveis. A única que estava acessível a perguntas religiosas era Eva. Mas
como perguntar algo assim?
– E aí? Como é? Já teve uma experiência divina?
Soava como a pergunta imprópria de sua avó que a perseguia com seu
eterno “Ah, Judith, você já tem um namorado fixo?”. E isso apenas para
denunciar para a mãe no primeiro “sim”: “A menina é muito jovem para ter
um namorado”, se indignava.

Possivelmente a pergunta sobre Deus era tão particular como a pergunta se e


com quem fazia sexo. Judith estremeceu por dentro. Como podia pensar em
sexo na igreja? Se o momento mágico não queria se instalar, era culpa dela.
Não estava aberta o suficiente. Toda vez seus pensamentos rumavam para a
direção errada.
Talvez fosse por essa capela de peregrinação que a sensação de cura e paz
na alma não surgia. Da mesma forma que na catedral de Mirepoix, essa igreja
também tinha representações suntuosas da crucificação, martírio e morte.
Desde criança, Judith temia o lado mórbido da Igreja Católica. Como única
criança sem confissão religiosa de sua série, logo a submeteram à aula de
educação religiosa católica. E dela fazia parte a odiosa visita às igrejas.
– Judith é uma criança medrosa – foi registrado numa avaliação escolar.
De fato, temia tudo e todos. Os insetos que seu irmão menor jogava em sua
cama, esquecer o texto do poema quando estava diante da classe, as vozes
altas dos pais que brigavam o tempo todo. O pior, contudo, eram as visitas
escolares às igrejas: todas as representações da paixão esculpidas em pedra,
mármores e pinturas de parede, as relíquias pavorosas da vida passada por
trás dos vitrais, os túmulos, criptas e cadáveres embalsamados.

Por milagre, Bernadette também jazia incorrupta num sarcófago em Nevers,


como se tivesse falecido no dia anterior. Graças a Deus, Borgonha estava
bem longe, e assim nenhuma das amigas teria a ideia de fazer uma visita à
defunta. Bastava para Judith o cartão-postal com a imagem de Bernadette
colada por Arne no diário. Bernadette jazia tranquila em seu hábito, as mãos
juntas em oração, num sarcófago. Judith horrorizava-se com a imagem. As
veias do antebraço brilhavam, as unhas eram quase cor-de-rosa, o rosto,
levemente bronzeado. Judith tinha compaixão por essa mulher angustiada.
Enfraquecida por desconfiança, incompreensão e hostilidade, Bernadette
adoeceu de tuberculose óssea e morreu aos 35 anos. De que adiantou ser
canonizada em 1934? De que adiantou 63 das milhares de curas que
aconteceram na fonte terem sido reconhecidas oficialmente como milagres?
Judith achava muito alto o preço que Bernadette pagou por seu encontro com
Maria. As aparições eram um espetáculo. Após o caso ser reconhecido, até
dez mil curiosos reuniram-se na gruta para observar Bernadette. Nem todos
estavam a favor dela. Foi chamada de mentirosa, escarnecida, desacreditada e
caluniada como histérica. Mais tarde, quando se refugiou no convento, não
pôde mais falar sobre suas experiências. “A Virgem Maria serviu-se de mim
como de uma vassoura”, constatou, austera. Segundo o costume, foi deixada,
abandonada, num canto.

Je vous salue, Marie pleine de grâces; le Seigneur est avec vous.


Vous êtes bénie entre toutes les femmes…

O sermão ao fundo continuava e se repetia. Talvez a oração ajudasse. Para


Arne ficou claro que a origem e o objetivo da vida residiam fora dele mesmo.
“As pessoas deviam perguntar menos e orar mais” era seu credo.
Insegura, Judith juntou as mãos para a oração. Não era necessário ser
católico para saber as palavras do rosário. Comprou uma vela votiva e tentou
rezar enquanto a acendia. Tinha as palavras preparadas na cabeça.

Ave Maria, cheia de graça


O Senhor é convosco.
Bendita sois vós entre as mulheres…

Por que as palavras não queriam sair da boca? “Rogai por nós, pecadores.”
Em vez disso, as lágrimas riscavam seu rosto. Uma mão fria pousou em seu
ombro. Judith assustou-se. Um homem havia se separado do grupo francês e,
despercebido, aproximou-se.
– Posso fazer algo por você, irmã? – falou ele. Sua voz penetrante soou
estranha. Judith balançou a cabeça.
– A única pessoa que poderia me ajudar está morta.
– A peregrinação é como uma guerra consigo mesma – respondeu o
homem. – Sangue, suor e lágrimas. E apenas você pode ganhar a guerra.
Judith não tinha certeza se havia algo para ganhar.
– Meu marido morreu. Eu já perdi.
A resposta do peregrino veio rápido e cortante como um estalo de chicote.
– Não tem a ver com ele, mas com você e seus erros.
Judith virou a cabeça para o lado. Quem era esse consolador obscuro? Pelo
véu das lágrimas, reconheceu um homem pequeno, atarracado, cabelos ruivos
bem curtos. Tinha olhos azuis e profundos, fundidos nas pupilas e cristalino.
Não era apenas a mão fria que tocou em seu ombro que a fazia arrepiar. Eram
esses olhos nos quais não se encontrava apoio. Afogava-se neles.
Instintivamente, Judith deu um passo para trás, a mão caiu de seu ombro.
– Meu luto é falso. Minha peregrinação, falsa. Por que todos acham que
podem criticar minha vida?
Irritada, fulminou o homem misterioso com palavras estranhamente
bombásticas. O peregrino permaneceu impassível com a explosão. Não se
moveu de sua tranquilidade.
– O difícil não é o caminho. O difícil é a pessoa se encontrar consigo
mesma.
Ele se aproximava com cada palavra. As sombras das velas davam à sua
expressão algo demoníaco que a apavorava.
– E a verdade que a pessoa encontra em si – continuou, com o rosto
contorcido –, nem sempre é agradável. Sem confissão não há salvação.
Judith sentiu-se incomodada. Que eram aqueles alertas obscuros? Queria
apenas ir embora.
– Não tenho ideia do que o senhor está falando – terminou, com medo, a
conversa aterrorizante. O peregrino considerou a postura defensiva a prova de
que tinha razão.
– Você sabe, irmã. Apenas não quer admitir.
Chega. O que esse cara está pensando? O que ele sabia dela? Não
precisava ouvir aquelas coisas. Judith saiu apressada da igreja.
– Você pode fugir de mim – as palavras soaram frias em suas costas. –
Mas não pode se esconder da verdade porque ela está dentro de você.
Longe. Apenas longe. Longe desse homem diabólico com suas profecias
funestas.
Com um empurrão, Judith abriu com força a porta pesada da igreja. Um
golpe de vento frio arrebatou as chamas das velas e as apagou com um golpe.
O peregrino nefasto desapareceu engolido pela terra. Ouvia-se apenas o
sermão fantasmagórico.

Je vous salue, Marie pleine de grâces; le Seigneur est avec vous.


Vous êtes bénie entre toutes les femmes…

Os franceses oravam como se nada tivesse acontecido. Ninguém percebeu


nada de extraordinário. Ninguém além de Judith. Esperava com ardor que
aquele não fosse o sinal pelo qual ansiava.
42

A guerra pela melhor cama fora deflagrada. No corredor estreito do


albergue dominava o empurra-empurra animado pelos dormitórios. Além das
cinco amigas, o grupo peregrino francês da capela estava lá e preparava um
fim repentino à noite agradável na cozinha. Havia duas dúzias de peregrinos
no corredor que queriam ser servidos e acomodados. Jacques esforçava-se de
verdade para colocar ordem no caos. Ficou paralisado quando descobriu que
não apenas Max e as mulheres haviam se misturado aos franceses, mas
também Eva.
– Volto já. Não saia daqui – sussurrou no ouvido dela quando a invasão
francesa começou e o obrigou a deixar a cozinha. Quando as amigas
decidiram que também era hora de repousarem as cabeças peregrinas
cansadas, ela as acompanhou. Esperar que Jacques voltasse? Onde isso iria
parar?

– Les hommes à gauche, les femmes à droite. Homens à esquerda, mulheres à


direita – Jacques dominou com a voz sua decepção e a confusão agitada de
línguas. O corredor era um vai-e-vem. As mulheres de terça-feira
arrependeram-se muito por terem ficado na cozinha entre vinhos e cassoulet e
não se preocupado a tempo em reservar uma cama. Agora não restava
alternativa senão se mesclar ao grupo francês.
Mochilas se enroscavam, cotovelos se batiam, barricas usadas como
bastiões, dedos do pé espremidos. Eflúvios de suor, alho, incenso e álcool o
suficiente pairavam pelo ar. Ou seria o prato exuberante de feijão mostrando
seu primeiro efeito?
Jacques não se deixou impressionar. Com charme, convenceu duas
senhoras idosas, que tinham os mesmos pais ou o mesmo cabeleireiro
excêntrico, que os quartos individuais eram apenas para idosos com o pé na
cova. Quando as senhoras gêmeas que ainda reclamavam sobre a falta de
conforto desapareceram no dormitório, sentiam-se tão jovens e atraentes
como havia anos não acontecia.
– Hoje à noite vamos ter que ficar juntinhos – anunciou Jacques por sobre
aqueles que ainda esperavam e, nesse momento, fitou Eva nos olhos. Estava
claro que seu olhar era ambíguo.
– Não ouse aproveitar-se da situação – Eva ouviu uma voz. No entanto, ela
não tinha vindo de seu íntimo, mas de Kiki, que a multidão havia empurrado
inesperadamente para perto de Max. Teatral, ele tapou o nariz:
– Eu te amo, Kiki. Mas nem tanto assim.
– Agora entendo por que os peregrinos são contra os prazeres da carne –
comentou Estelle. – O cheiro do suor peregrino transforma qualquer um em
celibatário.
Ela tentava, com a respiração bucal sistemática, fugir do inferno de odores
e, com um empurrão bem colocado, chegar para a frente. Apenas Judith
parecia não perceber os cheiros penetrantes. Seu olhar pairava inquieto pelo
grupo.
– O cara estava entre os franceses. Tenho certeza – lamentava ela.
– Por que você se deixa impressionar tanto? – perguntou Caroline. Não
entendia por que Judith estava tão perturbada.
– Vocês precisavam ver. Os olhos faiscavam como se ele quisesse fazer
algo comigo.
– Um tipo de talibã católico? – quis saber Estelle.
O pavor tinha abalado muito Judith. Estava pálida sob o bronzeado que
tinha conseguido nos últimos dias e insistia que o homem ficara cada vez
mais hostil.
– Ele me ameaçou!
– O que ele disse? – Caroline tentou ordenar a história confusa de Judith.
– Que mais ele deve ter dito – intrometeu-se Estelle. – Para o talibã
existem apenas duas coisas: crime e castigo.
Judith encarou Estelle com olhos desesperados.
– Oi, sou eu – acenou Estelle. Eva não entendia mais nada.
– Judith está mais perturbada que em casa – sussurrou Caroline. E tinha
acabado de tomar uma cotovelada pontuda de um andarilho francês bem-
treinado e decidiu que esse tipo de batalha por um lugar era inadequado para
ela. Debateu-se para sair da confusão e, paciente, esperou num canto até que
o caos se dissipasse.
– Les hommes à gauche, les femmes à droite. Homens à esquerda,
mulheres à direita – Jacques repetiu. Estelle e Kiki desapareceram aliviadas
para a direita, Max, não sem sinal de tristeza por conta de Kiki, para a
esquerda.
– O homem estava entre as velas – Judith ainda estava desorientada. –
Como uma aparição.
Judith não conseguia compreender por que ninguém a levava a sério.
Eva apresentou uma explicação para o fenômeno estranho:
– É o caminho, Judith. É isso que o caminho faz com as pessoas –
empolgou-se e seu pensamento rumou de volta ao seu salvador. – A
caminhada é tão monótona que as percepções ficam automaticamente mais
intensas. Mesmo os encontros mais corriqueiros transformam-se em algo
mágico – murmurou e fitou Jacques. Cozinharam, riram e flertaram o dia
todo. Ela saboreou os olhares curiosos dele, a maneira como pousava sua
mão sobre a dela quando falava. Jacques não escondia que achava Eva
atraente.
Nem Frido entrou na vida dela de forma tão tempestuosa como Jacques.
Não era homem de corridas intensas e outras surpresas. Na escola,
expulsaram-no da equipe de futebol, pois era muito lento no início e perdia
todas as bolas. Frido não tinha fôlego para corridas curtas, mas provava,
quando lhe davam chance, persistência e tenacidade. Não era rápido, nem era
um amigo de ações impetuosas. Formulou o primeiro pedido de casamento de
forma tão cuidadosa que esqueceu completamente de Eva. Mesmo assim, se
casou com ele. Ficava triste em pensar que ele não conheceu a vovó Lore,
que teria gostado dele. Teria gostado muito menos do fato de ela estar na
França e não pensar nem um pouco em Frido, mas apenas no homem que
estava no corredor e dividia a multidão como Moisés fez com o mar.

Eva tentou imaginar que tipo de vida Jacques levava fora do trabalho. Era um
santo que caíra do céu ou tinha uma vida totalmente real? Talvez vivesse com
seus pais sob o mesmo teto. Ativistas da paz de esquerda, grisalhos e
curvados, que aqui e ali fumavam unzinho escondidos. Ou tinha sua própria
família? Mulher e filhos que naquele dia, por acaso, visitavam os avós? Eva
não perguntou e Jacques não contou nada. Passaram o dia juntos, sem
passado e sem futuro. Jacques parecia ver de outra forma.
– Por que você não fica uns dias conosco? – perguntou para Eva, quando
finalmente ela entrou na fila. – Poderia me ensinar o que vocês cozinham lá.
– Carne assada da Renânia – propôs Eva.
– Difícil? – perguntou Jacques.
– Demorada.
O rosto de Jacques brilhou:
– Perfeito.
Seu interesse acariciava o ego de Eva. E, no entanto, um casinho de férias
era a última coisa que ela buscava. Sabia qual era o seu lugar. Com Frido, as
crianças, as amigas. Não estaria mais ali quando no dia seguinte, ao meio-dia,
ele voltasse de sua ida ao mercado.
– Vim com minhas amigas e vou continuar com elas. Agora eu consigo.
Saint Jacques me salvou.
Eva sorriu para ele, tímida. No seu entendimento, isso significava uma
declaração de amor impetuosa. Mas ninguém precisa viver todo amor. Pode-
se mantê-lo quieto no coração. Lá, onde ele não fará mal.

Como se tivesse imaginado que a despedida poderia vir mais rápido do que
esperava, Jacques puxou um antigo cartão-postal que mostrava o Auberge de
la Paix da época do movimento Paz e Amor. No verso, anotou para Eva a
tradicional receita de cassoulet.
– A academia ficaria feliz se você levasse a receita para casa.
A voz subiu pelas costas dela. Trêmula, abriu a carteira para colocar o
cartão. Nos bolsos de plástico reluziam os retratos da família. Jacques pegou
as mãos de Eva, puxou-a para si e a beijou:
– Bon voyage, Eva.
– Obrigada por tudo – sussurrou antes de desaparecer rapidamente no
quarto. Estava satisfeita com o dia e com a receita que sabia estar segura na
carteira, como lembrança e alerta. Ainda tinha o beijo nos lábios. Agora sabia
o gosto do cassoulet. Tinha sabor de recomeço.

Jacques ficou no corredor e olhava Eva de longe. Quando se virou, percebeu


que havia esquecido uma última peregrina: Caroline. Ela fingiu estar
observando atenta os pôsteres baratos na parede.
– Eu não vi nada – gritou Caroline. – Não vi nem ouvi nadinha.
Jacques apenas sorriu. Lançou um olhar para o cômodo à direita. Então,
apontou tranquilamente para a esquerda, onde pouco tempo antes Max havia
desaparecido. De qualquer forma, Caroline soube depois, não havia quartos
separados ali.
43

Cama desconfortável, espaço exíguo, companhia masculina. Junto com


Max, Caroline aterrissou no dormitório dos homens. Na evolução do homem
pré-histórico ao indivíduo moderno, dormir em grupo representou mais regra
que exceção. Mas mesmo quando se compreende peregrinação como o
retorno a formas de vida simples, o que acontecia com Caroline naquela noite
representava um verdadeiro desafio. Com a visão de pernas masculinas
peludas, antebraços envelhecidos e barrigas salientes, estava profundamente
arrependida de ter se mantido educada na distribuição das camas.
Tentou, o mais furtivamente possível, tirar sua roupa. Quando percebeu os
olhares telescópicos de seus companheiros de peregrinação, decidiu de pronto
passar a noite com a roupa de caminhada, o que podia piorar a experiência
olfativa que sofria com a peregrinação.
Antes do descanso noturno comunitário, as luzes todas se apagaram, o que
levou diversos camaradas a protestarem e a acenderem de novo a iluminação
do dormitório. Três vezes se fez a luz antes que, por fim, a calma chegasse.
Caroline cobriu-se de imediato com o cobertor de lã e com os lençóis quando
o murmúrio monótono da oração noturna se elevou. Quanta culpa no cartório
poderiam ter essas pessoas que os rosários na igreja não haviam bastado para
se purificar dos pecados? Ao contrário das expectativas, o sussurro suave
tinha algo de tranquilizante. O caminho pesava nas juntas cansadas de
Caroline. A satisfação de exigir algo do físico e chegar aos próprios limites
esvaziava a cabeça. Um sentimento de felicidade inesperado espalhou-se
agradavelmente pelo seu corpo.

Minutos depois, as portas do inferno se abriram. Algumas pessoas roncavam


às vezes, muitas sempre, alguns por constipação, outros pelo excesso de
álcool. A espécie humana que tendia a se lançar numa aventura peregrina
ronca sobremaneira. Para piorar, o vizinho de Caroline, na cama dezesseis,
tossia o tabaco plantado nos pulmões maltratados por inúmeros cigarros. Não
dava para aguentar.
Caroline parecia ser a única incomodada com a concorrência velada pelo
novo recorde mundial de decibéis. Estudos comprovaram que mulheres
dormem melhor quando não têm homem nenhum ao seu lado. A prática, por
sua vez, parecia mostrar exatamente o contrário. Os senhores peregrinos
dormiam, Caroline sofria. Por que não pensara num tampão para os ouvidos?
Claro que estavam em sua checklist. E, obviamente, pensou sobre essa
questão e decidiu levianamente que em um trecho secundário pouco popular
do caminho de Santiago não poderiam encontrar um dormitório tão
superlotado.
Irritada, puxou o travesseiro sobre a cabeça. Tentava desesperadamente
dormir quando sentiu que alguém tinha se sentado na sua cama.

Após o ataque com faca, ela fez um curso de autodefesa. Juntamente com sua
filha Josephine, da qual foi exigido por decreto materno que fizesse um curso
de defesa pessoal. O curso chegou a um ápice inesperado de sua história
comum: entre cotoveladas, joelhadas e pisadas violentas no peito do pé,
panturrilha, joelho, coxa e genitálias, restou bastante tempo para mãe e filha
conversarem e rirem. Deveriam ter pedido a Fien muito antes para entrar no
curso de reciclagem. Agora era tarde. Não havia uma maneira sem risco de se
defender. Caroline tentou lembrar onde estava o canivete, quando uma voz
feminina sussurrou algo.
– Preciso te falar uma coisa.
O agressor noturno era Estelle. A luz que entrava do corredor pela
frestinha na porta do dormitório bastava para Caroline ver que Estelle estava
com algo nas mãos. Era o diário de Arne.
44

–Isso é roubo – indignou-se Caroline.


Estelle tinha outra visão das coisas:
– Autodefesa. No máximo.
As duas tinham se refugiado no banheiro comunitário no fim do corredor,
o único lugar onde se podia conversar sem incômodos, desde que fossem
ignorados a luz neon piscante, os azulejos laranja e um chuveiro pingando
que anunciava, como um tambor mensageiro, que alguém precisava se
renovar por completo.
– Não vou ajudar nesses atos clandestinos – decidiu Caroline. Suas
palavras ecoaram no banheiro alto e azulejado. Se alguém cantasse algo ali,
toda a casa ouviria. Mais um argumento: Caroline não tinha a voz correta
para sussurrar, murmurar, sibilar e cochichar. Se dizia algo, dizia para que
sua audiência de aposentados com dificuldades de audição, que não perdia
nenhum caso de assassinato aberto ao público, pudesse entender algo.
– Somos amigas, não enganamos umas às outras – comentou ela.
– Ouça primeiro – exigiu Estelle energicamente.
– Você já leu – reconheceu Caroline. Estelle não deixou que a objeção
indignada de Caroline a parasse, abriu uma página do diário e levantou a voz:
– Muitos dizem que os peregrinos bebem água e comem pão. No entanto,
quando chegar a Jerôme após um longo e empoeirado trecho do caminho, não
quero mais sofrer. Quero aproveitar o que a terra onde perambulei metro a
metro produz em delícias.
– Isso era bem típico de Arne – disse Caroline. – Um pouco exagerado,
pomposo, floreado. O próprio Arne.
– Não é bem isso – Estelle retrucou. Saboreava com prazer informações
privilegiadas. Caroline sentia-se num programa de perguntas, em que não
eram procuradas apenas respostas, mas também perguntas. Havia muito
esquecera que não queria saber nada do diário secretamente roubado.
– Que insinuações são essas? Do que você está falando, Estelle?
Caroline não conseguia esconder que decaía no tom ácido que usava com
as testemunhas de seus interrogatórios cruzados. Mas ali não se tratava de um
caso criminal. Era sua amiga Judith e seu falecido marido.

Estelle provou que seu sentido para a cena perfeita não a tinha abandonado
nem na França. Exageradamente devagar e inconveniente, desenterrou os
papéis do bolso da calça.
– Lembra das críticas dos restaurantes?
– Dos caranguejos de água doce no vermute? Claro. Tanto que você
encheu com eles.
Estelle reagiu melindrada:
– Somos um grupo. Todos podem dizer suas ideias. E eu dou valor ao fato
de meu corpo, com o qual eu gasto tanto tempo, esforço e dinheiro…
– Diga logo o que é – interrompeu Caroline, rude.
Estelle respirou fundo:
– O texto, essas formulações pomposas… – novamente ela fez uma pausa
dramática.
– Estelle!
– Arne copiou – Estelle deixou a bomba cair.
– Como assim copiou?
– Esse texto do diário é idêntico ao das críticas de restaurante da internet.
Agitada, Estelle pousou o dedo indicador em um local determinado.
– Leia você mesma.
Caroline pegou a folha. As letras dançavam diante dos olhos.
– O que a terra onde perambulei metro a metro produz em delícias.
Nenhum outro lugar tem gosto tão autêntico quanto Jerôme.
Arne nem se dera ao trabalho de mudar os nomes.
Estelle leu agora em coro com Caroline:
– A vida com Deus e como Deus na França consegue aqui um novo
sentido. Quando as ervas de garrigue se unem ao delicado azeite, entende-se
que delícias modestas podem levar ao reino dos céus.
Estelle interrompeu.
– Encontrei ainda outros lugares – continuou ela. – A história com os
monges que o receberam de braços abertos: tudo roubado. Arne Nowak
plagiou seu diário.
Caroline ficou sem palavras. Apenas as gotas eternas do chuveiro soavam
no cômodo. O frio que os azulejos emanavam rastejava pelas suas costas
acima. Teria sido melhor vestir uma jaqueta, mas não estava preparada. Nem
para o chuveiro, nem para o frio, tampouco para aquilo que Estelle tinha
revelado. Justamente Arne, que conseguia ler romances inteiros nas nuvens,
lançou mão em seu diário de fórmulas pré-fabricadas?
– A peregrinação de Arne é uma invenção? – surpreendeu-se Caroline.

– Se fosse assim tão fácil – suspirou Estelle e pescou de um bolso escondido


na capa do diário um bilhete ensebado.
– Querido Arne, Samu vem às 17h de Angles. D. – Caroline decifrou o
garrancho obscuro.
– Angles é próximo de Lourdes – Estelle já havia pesquisado. – Dois dias
de viagem daqui.
– Isso quer dizer que Arne esteve nesta região?
– E, mesmo assim, mentiu no diário – concluiu Estelle.
Fazia algum sentido? Que motivo tinha Arne para mentir sobre sua
peregrinação? Que se escondia por trás do misterioso bilhete?
O nome evocou nela uma vaga lembrança. Era como uma palavra que
estava na ponta da língua e não queria sair. Estelle dera um passo adiante
com suas trilhas de pensamento. Formulou com clareza o que devia ter
acontecido:
– Precisamos encontrar esse Samu em Angles. E D.! São testemunhas
importantes.

Caroline tinha consciência de que haviam ultrapassado uma fronteira incerta.


A sensação vaga no estômago transformou-se em provas palpáveis. Mas que
crime escondia-se por trás disso tudo? Que verdade Arne tentou encobrir?
Quem sabia que avalanche tinham colocado em curso sem o menor cuidado?
A lembrança que tinha do marido de sua amiga fora manchada.
O que poderia acontecer com a vida de Judith se isso estourasse?
Estelle respirou fundo:
– Pela primeira vez entendo o que você sente em seu trabalho.
Falava com empolgação. Caroline sabia muito bem para onde rumavam as
coisas quando algo entusiasmava Estelle. Ela contaria tudo a Deus, ao mundo
e a todos os outros.
– Não diga nenhuma palavra a Judith! – advertiu.
Estelle levantou, pateticamente, os dedos para o juramento:
– Minha boca é um túmulo.
Fez uma pausa significativa.
– Eu posso tentar, sim.
45

–Tenho certeza de que coloquei o diário embaixo do travesseiro, como


toda noite. Hoje de manhã ele estava embaixo da minha cama.
Judith parecia exausta no café da manhã do Auberge de la Paix. Estelle
estava calada. Sabia exatamente o que preocupava Judith. Tirar o diário
debaixo do travesseiro foi brincadeira de criança, colocá-lo de volta no lugar
mostrou-se tarefa complicada. Quando ela abriu a porta do dormitório, Judith
estava acordada. Estelle apenas fugiu do destino ameaçador jogando o livro
rapidamente embaixo da cama da amiga.
Decidida a permanecer acordada e devolver o livro ao seu lugar original,
Estelle adormeceu suavemente. Até Judith chacoalhá-la.
– Acho que esse lugar é assombrado – sussurrou ela.
O encontro com o peregrino demoníaco ainda estava tão fresco que nem
pensou que a peregrinação do diário podia ter um motivo bem profano.
Estava convencida de que o moinho de azeite e a capela eram locais
malignos.
Estelle calou-se enquanto Judith juntava rapidamente suas coisas. Calou-se
no café da manhã quando Max quis saber onde Caroline esteve por tanto
tempo durante a noite. Calou-se quando Judith exigiu uma partida rápida.
Havia dominado a arte do calar-se. E, mesmo assim, apressou-se em dar um
fim ligeiro ao estado incomum. A missão de Estelle era simples. “Vamos
acabar com isso.” E cozinhar o galo não era para ela.
Nas etapas para Angles, marchava na frente de todos uma Estelle altamente
motivada. Mesmo que isso significasse precisar lidar com ovelhas, bodes,
vacas e cães selvagens que sempre se punham no caminho dos peregrinos.
Quando espantou do caminho pela primeira vez uma cabra assustadíssima,
sentiu-se como Indiana Jones que precisa sobreviver às aventuras na busca
pela verdade. Seria hilário se não envolvesse Judith. Ao lado dela, Eva
caminhava com novo impulso e novos conhecimentos.
– Sabe o que é tão legal na caminhada? Pela primeira vez eu me sinto
novamente eu – confiou à amiga.
Estelle concordou com a cabeça:
– Se o autoconhecimento parece com dor muscular, também estou no
caminho certo.
Estelle virou-se, buscou o olhar de Caroline, que junto com Kiki
caminhava logo atrás, e piscou para a advogada. Caroline devia saber que
podia confiar em Estelle. Faça o bem e fale sobre isso, chamava-se nos
círculos beneficentes de Colônia. De que adiantava o sacrifício se ninguém o
percebia?
46

–O que há com Estelle? – surpreendeu-se Kiki. Ela compreendeu logo que


algo não estava bem.
Caroline esquivou-se:
– Provavelmente, doença nervosa nos olhos.
– Tenho isso também – comentou Kiki com exasperação fingida. – Sempre
que me viro, vejo Max Thalberg.

Cada uma carregava sua própria mala. A de Kiki chamava-se Max e andava
sozinha. Ele não a importunava, não exigia nada.
– Gostaria que você soubesse que estou aqui – justificou-se ele, sucinto.
– Você não percebe que dá nos nervos das minhas amigas? Você perturba!
– Kiki jogou na cara dele.
– Não – disse Max.
Kiki sabia que ele tinha razão. Max tinha se integrado perfeitamente ao
grupo de peregrinas. E, para Judith, era um importante companheiro de
conversas. Em segredo, Kiki admirava a paciência com que Max ouvia as
histórias de Judith. Sua curiosidade parecia sincera. Suspeitava que ele
soubesse totalmente por acaso de uma porção de coisas sobre o passado de
Kiki.
– Por quanto tempo mais você vai fingir que Max não está conosco? Você
precisa falar com ele – pressionou Caroline.
Kiki tratava Max como o vento. Ele aguentava esse tratamento com
sorrisos complacentes e bom humor inabalável. Kiki ficava completamente
sobrecarregada com a situação, pois estava tão ocupada em ignorar Max que
não conseguia chegar a nenhum pensamento claro. Durante dias não
conseguiu colocar um risco no papel.
Mesmo assim, tudo corria bem: a viagem de peregrinação deu a ela a
chance única de voltar às origens de sua profissão. Quantos artistas
encontraram no sul da França sua verdadeira grandeza: Cézanne, Gauguin e
Van Gogh mostraram como capturar as cores claras do sul. Foi um presente
poder trabalhar ali.
Você só fala bonito! Mas não consegue nada, lamuriava-se uma voz
histérica no seu íntimo. Você não faz seu trabalho. Como no estúdio. Você
teria terminado muito antes em Colônia. Em vez disso, você nem abriu o
catálogo sobre o tema acessórios de casa.
Está certo, confessou Kiki, sem rodeios. Não era do seu feitio discutir com
sua voz interior. Por que ficar discutindo? Sabia que a voz tinha razão. Mas
havia uma diferença essencial entre elas: a voz contava apenas com os
fracassos. Kiki, exclusivamente com as possibilidades: Todas as agências
compraram o mesmo catálogo. Os designers o aprendem de cor e todos
chegam aos mesmos desenhos.
Você e suas desculpas, Kiki. Como sempre, Kiki, a voz continuava a se
lamentar. Você deixou a última possibilidade fugir, Kiki. Não acredita mesmo
que conseguirá em sete dias, o que outros…
Quatro dias. Eu ainda tenho quatro dias, Kiki interrompeu a voz.
Você desperdiçou seu tempo com Max em Colônia. Perde tempo aqui. E
agora é tarde demais, a terrorista íntima forçava imagens cada vez mais
terríveis. Era bom que Kiki não pudesse vê-la. Provavelmente tinha olhos
arregalados pelo pânico, agitava nervosa os braços e tinha problemas
cardíacos.
No fim você não tem nada. Nem carreira, nem homem, nem nada. Era sua
última chance.
– Cala a boca – Kiki pôs a censora interna na linha. – Seu blá-blá-blá idiota
não ajuda a gente em nada.
– Eu não disse nada – defendeu-se Max, surpreso. Kiki estava tão
mergulhada em seu monólogo que não percebeu Max bem perto dela.
Estelle, que mostrou talento de surgir no local mais interessante na hora
certa, se intrometeu:
– Não ligue, Kiki. Nesta região é normal que as pessoas ouçam vozes. Em
geral elas murmuram algo como “Eu sou a Imaculada Conceição”.
Caroline puxou Estelle:
– Kiki e Max não precisam da sua moderação ao vivo – repreendeu. Seu
olhar para Kiki tinha uma mensagem certeira e no seu rosto ela podia ler: “É
agora. Faça logo.”

Ela precisava. Ela devia. Ela podia falar com Max. Agora. Mas como? Como
podia dizer de uma vez por todas que não tinham futuro? Kiki tinha o melhor
trabalho do mundo, estava bem perto do sucesso. Não podia encarar nenhum
erro. Nem a Max.
– Como alguém pode ser tão teimoso – ralhou com o jovem.
– Não sou teimoso – respondeu Max, tranquilo. – Apenas sei o que faz
bem para mim. Ao contrário de você.
Kiki buscou ar.
– Com 23 anos eu tinha três casos em uma semana. Com 23 anos eu não
sabia de nada.
Max fez seu gracejo:
– Por isso esperei você crescer.
Como assim? Max não era apenas cabeça-dura. Era descarado.
– Eu não te amo – Kiki disse com firmeza. Nem mesmo a descompostura
rude levava Max a uma reação raivosa. Ele sorriu, atrevido. Kiki precisou
acrescentar:
– Você entendeu? Eu não te amo.
– Você está mentindo para você, Kiki. Para nós.

Não funcionou. Kiki deixou Max para trás e juntou-se com passo rápido a
Caroline e Estelle, que a receberam com olhares questionadores.
– Discussões não são para mim. Prefiro me afastar – comentou ela.
Tinha algo realmente mais importante a fazer do que dispensar Max. Na
pausa seguinte, retirou da mochila seu caderno de esboços com grande alarde.
Deixou-se desviar muito da criação por conta de Max. Naquele momento,
seguiu para a ordem do dia, que se resumia a um único ponto. Vasos. Agora.
Imediatamente.
Com vigor, enfocou os contornos toscos no papel e viu surgir uma
surpresa. Tudo que tinha visto nos últimos dias conectou-se numa imagem:
como se estivessem vivas, linhas e cores fundiram-se e formaram um modelo
filigranado, forjado harmonicamente na forma. Por dias, Kiki apenas viu,
espiou, cheirou e sentiu. Agora, o desenho apareceu sozinho no papel. Foi um
desses momentos mágicos nos quais parece que outra pessoa conduz o lápis.
Muitos colegas chamariam aquilo de “inspiração divina”. Kiki não conseguia
confiar nesse conceito. As pessoas precisavam escavar ideias. Com
frequência eram necessárias centenas de horas tristes e vãs de ateliê antes de
surgir uma imagem interna do nada. Um desenho que apenas naquele
momento se podia assinar. Não era milagre, era trabalho duro.

A risada ressoou. Kiki olhou para cima. A realidade colocou-se entre ela e
seu bloco. Na forma de Max. De novo.
47

Caroline riu. Ainda era cômico como Kiki se contorcia. Há muito Caroline
percebera, todas as amigas sabiam: Kiki estava apaixonada. E não fazia outra
coisa nos lindos e longos dias a não ser negar o óbvio. Ela se perguntava
quando a própria Kiki descobriria.
Distraída, Caroline recostou-se. As cinco sentaram-se nas pedras
acidentadas de um leito de rio erodido que corroía profundamente a
paisagem. Era um momento perfeito. Os problemas do início ficaram para
trás, Angles ainda estava à frente delas. Seria o instante ideal de parar o
tempo. Tentou apenas aproveitar, assim como Max fazia.

Com o torso nu e barras das calças enroladas, Max estava às margens do rio,
entalhava lanças e instruía Eva, Judith e Estelle na caça aos peixes.
– Pode-se ler no movimento da água quando uma truta está nadando. Você
precisa calcular o tamanho dela e mirar um pouco antes do peixe – explicou
Max.
Não fez um esforço exagerado para ser querido e aceito. Fazia aquilo que
lhe dava prazer e contagiava as pessoas com seu entusiasmo. Com isso, atraía
os olhares das peregrinas para si. E também o olhar de Kiki, que por trás de
seu papel não tirou por um segundo os olhos dele. Mesmo Estelle chapinhava
na água rasa e analisava com lança a postos se teria uma chance de sobreviver
na vida selvagem como autoprovedora.
– Onde aprendeu isso? – quis saber ela, impressionada.
– Em lugar nenhum. Li tudo isso. Karl May.
– Karl May? – comentou Estelle em voz alta para que Caroline também
pudesse ouvir. – Ele fingia apenas, como se tivesse vivido aquelas aventuras.
Inventou tudo aquilo que está nos livros – disse ela, colocando mais lenha na
fogueira.
Caroline perdeu o ar. Segredos eram moeda de troca para Estelle. Podia
contar em três dedos quanto demoraria para Judith perceber que Estelle
pegara o caderno escondido dela. Graças a Deus, Max fez um lançamento
naquele instante. A água espirrou, sob a superfície um espetáculo pagão. Um
peixe perfurado debatia-se por sua vida.
– Na mosca. Acertei na mosca – gritou Max. No tumulto pelo peixe
capturado, a observação delatora de Estelle afundou.
– Nunca tinha pegado um peixe. Nem unzinho – alegrou-se Max.
– Típico dos sulistas – brincou Estelle. – Seguem o dia devagar e então vão
descansar. Não é surpresa que é fácil pegá-los.
– Talvez Karl May tenha simplesmente pesquisado bem – gritou Judith,
empolgada.
Caroline ouvia com atenção. Será que Judith suspeitava de algo? Será que
sabia mais do que revelava? Resoluta, deixou as dúvidas persistentes de lado
e deu ordens a si: aproveite. Agora. Pare por um momento. O quanto der.
Angles estava longe. O início do verão era doce.

Pouco mais tarde, três peixes assavam em espetos de madeira sobre uma
pequena fogueira que acenderam com galhos secos entre pedras. Também na
peregrinação, o cuidado com os grelhados parecia ser coisa de homens.
Mesmo Eva, que todo verão convidava as pessoas para um grande churrasco,
entregou-se ao ócio. Ajudou a limpar os peixes e encher com as ervas que
havia colhido às margens do caminho. O resto ficou a cargo de outros.
Satisfeita, esticou-se ao sol e deixou que os outros cozinhassem.
– A refeição fica muito mais gostosa quando a gente se deixa surpreender –
suspirou, fechando os olhos. A cada dia Eva ficava melhor em não responder
a todo reflexo de ajuda quando se tratava de dividir tarefas.

Caroline saboreou o gosto de ervas nos peixes, o pão fresco e a calmaria do


momento. O tempo parou de correr tanto. No modo de desaceleração
indolente, todos os problemas desapareciam. Talvez fosse possível deixar
tudo como estava? Ir até Lourdes, colocar a vela de Arne na gruta e esquecer
tudo. A quem interessava por que D. considerou necessário informar Arne
que Samu o buscaria? A quem interessava o que Samu e Arne faziam juntos?
Arne estava morto. E elas foram à França para dar um ponto final ao capítulo.
Ela precisava apenas fechar o bico, esquecer o bilhete e as perguntas. O
pensamento voou para longe tão rápido quanto chegou. Estelle virou-se para
Caroline, dando outro de seus olhares misteriosos. Caroline respondeu com
um gesto que ameaçou Estelle de uma rápida decapitação.

Um toque de celular agudo lembrou Caroline de repente que o tempo não


havia parado. Existia ainda. Todos os problemas que ela deixara de lado. Mas
dessa vez foi o telefone de Max, o mensageiro de notícias ruins.
48

–Você não vai ver quem te escreveu? – perguntou Kiki.


– É só meu pai – foi a resposta pouco empolgada. Max achava muito mais
importante servir peixe a Kiki com uma reverência perfeita. A sensação de
que algo de ruim acontecia em Colônia não deixava Kiki em paz.
– Talvez seja importante.
Em vez de uma resposta, Max botou o celular na mão de Kiki.
– Se você acha meu pai tão importante.
Kiki foi pega de surpresa.
– Leia – reforçou Max. – Não tenho segredos para você.
A mensagem na tela anunciava que chegara uma mensagem de texto de
Thalberg. Normalmente, não passaria pela cabeça de Kiki fuçar o telefone
alheio. No entanto, provavelmente também dizia respeito a seu futuro. Ela
precisava saber se Thalberg estava informado. Kiki abriu a mensagem e viu
seus piores temores ultrapassados. MAX, DIGA ONDE VOCÊ ESTÁ! SUA
MÃE ESTÁ DOENTE DE PREOCUPAÇÃO, escrito em letras maiúsculas.
– Você ainda não ligou para Colônia?
Max negou com a cabeça e continuou comendo sem se importar.
– Seu pai vai me culpar que você sumiu assim, sem mais nem menos –
advertiu Kiki.
– O que você tem a ver com meu pai?
– Você precisa responder para ele.
– Se você acha tão importante, escreve para ele – Max provocou Kiki.
– O que vai acontecer quando seu pai souber da gente? Ele nem vai olhar
meus desenhos – explodiu Kiki. – O estúdio inteiro vai falar um monte de
mim.
Sua voz aumentou. De soslaio, as mulheres observavam o que acontecia
entre Kiki e Max. Descambaria em briga? Max registrou imperturbável as
acusações de Kiki, dando de ombros.
– Não me interessa o que os outros dizem.
Kiki desistiu. Era fácil para Max falar. Com 23 anos, Kiki também não
dava a mínima para o que os outros pensavam. Com 20, o mundo está aberto,
com 30 ainda é possível encontrar a saída de emergência, mas com 40 tudo
fica mais estreito. Principalmente quando não se tem uma herança com a qual
é possível relaxar. Para Max, tratava-se de outra coisa:
– A tarde no barco. A noite na tenda. Kiki, não era mentira quando você
me disse que não queria imaginar uma vida sem mim. Somos um do outro.
O desespero crescia em Kiki:
– Não posso envelhecer com você. Eu já sou velha!
– O que tem essa diferençazinha de idade – retrucou Max. Nem formulou
essa frase como pergunta. Para Max, era uma observação insossa. E não tinha
nada mais a acrescentar. Virou-se e a deixou para trás. Kiki irritou-se. O que
disse pareceu pingar nele como gota de chuva. Se Max não entendia, ela
precisava assumir a iniciativa.

Eles já tinham partido havia muito e andavam por um trecho de floresta, e


Kiki ainda cogitava os 160 caracteres que acalmariam Thalberg. Três
quilômetros e meio depois, convenceu-se de que era melhor argumentar com
o trabalho. A única coisa que conseguia impressionar Thalberg eram ideias
inovadoras. Cento e sete metros depois, tinha superado a emergência por uma
resposta e conjurou mais de oito palavras na tela.
Estou na França. Preciso de paz para alguns desenhos. Não sabia que
estava preocupando vocês. Sorry. Max.
– Se isso te acalma – Max respondeu, curto e grosso, quando ela mostrou a
mensagem.
– Isso deve acalmar seu pai – corrigiu Kiki. Quando apertou o “enviar”,
tirou um peso das costas. Thalberg estava informado do paradeiro do filho. E
seu nome não apareceu nenhuma vez.

Pouco depois, se deu conta de que teria sido melhor pedir aconselhamento a
Caroline, que poderia alertá-la dos bumerangues que são as mentiras e do
erro principal que a maioria dos mentirosos comete: pensam apenas no
momento de alívio e não naquilo que vem depois. Kiki não tinha um plano de
longo prazo.
Ela já havia se mostrado um caso perdido no xadrez. Como poderia
desenvolver estratégias para tantas figuras que se moviam no tabuleiro?
Tinha um panorama apenas quando perdia metade das peças com uma
abertura descabeçada. Em geral, estava exatamente a três jogadas do
naufrágio. Planejar estrategicamente não era para ela. Preferia se deixar
surpreender pelas consequências e ficava feliz assim. Dessa vez, exatamente
vinte minutos. Então, recebeu a fatura na forma de uma nova mensagem de
texto. Novamente em letras maiúsculas. HOTEL QUER RENOVAR
QUARTOS ANO QUE VEM. QUEM DE NOSSO PESSOAL VAMOS
COLOCAR NESSE PROJETO? Claro que Thalberg comprara um novo
celular e não tinha ideia de como digitar letras minúsculas.
“Um dispositivo do qual se precisa ler o manual de instruções não está
pronto”, ele gostava de ralhar. Pregava a simplicidade. No entanto, as
soluções simples nem sempre eram as melhores, como ficou claro naquele
momento.
– Meu pai tem a tendência de monopolizar as pessoas – comentou Max. –
A única possibilidade de fugir é se isolar de vez em quando.
Ele não fez o mínimo segredo de que se sentia exatamente daquele jeito e
que via como tarefa de Kiki responder também dessa vez. Ela estava na
estaca zero. Pior ainda: estava um passo mais próxima do abismo.
49

Eva não entendia mais a amiga. Havia horas Kiki se correspondia sob um
nome falso com seu chefe, que não desconfiava de nada.
– Max vai desistir quando perceber que nós dois não chegaremos a lugar
nenhum – justificou-se. – Ele volta para a faculdade e eu, para o trabalho.
Como se nada tivesse acontecido. Até lá, estou mantendo Thalberg de bom
humor.
Eva suspirou. Decidiu defender o lado de Max.
– Você quer acabar como eu? Durante minha vida, a frase que mais falei
foi “se ao menos eu tivesse”.
Kiki não parava de apertar as teclas do telefone:
– Eu também. Se ao menos eu não tivesse me envolvido com Max.
Mas essa não foi a ideia de Eva:
– Meus “se ao menos eu tivesse” foram a coisas que eu NÃO fiz. Ido para
Paris, apesar do Frido, trabalhado como médica, colocado Frido para fazer
trabalhos de casa também, exigido um quarto próprio, assaltado menos a
geladeira.
– Por que você não tenta com Max? – intrometeu-se também Caroline.
Kiki não percebia mesmo que Max era especial? Divertido, gentil e sexy. Era
insuportável testemunhar como Kiki renegava a si mesma. O que mais ela
queria?
– Caroline tem razão – reconheceu Eva.
– Agora pode parecer bom e correto. Mas como vai ser quando eu tiver 60
anos? – Kiki defendeu sua posição.
Lá atrás, Estelle se enfiou na conversa.
– Um marido mais jovem economiza cuidados maiores no caso de doença.
Elas tentavam convencer Kiki de todos os lados:
– Imagine, você saberia hoje quem estará com você aos 60. Porque sua
vida será previsível – alertou Eva.
“Assim como a minha”, ela evitou dizer. Kiki também entendera assim.
– Acho que você precisa de um amante, Eva – sugeriu Kiki.
Eva repeliu a ideia:
– Amo o Frido. Ele foi a melhor escolha que fiz. A questão é o que eu faço
dessa escolha. Não preciso de um amante. Mas talvez eu possa voltar a
aprender francês. Ou alguma outra coisa. Apenas para mim.
Há quanto tempo as amigas não ouviam algo assim de Eva: um “eu”. O
“eu” ainda era mínimo, frágil e tímido, mas havia dado o ar da graça. Tinha a
ver com a caminhada, que Eva sentia cada vez mais leve de um quilômetro
para o outro. Com cada passo, deixava para trás um pedaço de remorso. Anna
tinha cabelos rebeldes? Então tá. Lene esqueceu de aprender matemática,
David não conseguia encontrar as meias de tênis no último momento? As
crianças não tinham idade suficiente para se organizar? Frido Jr. também
podia ir ao grupo de coroinhas sem fazer uso do seu serviço de chofer.
Afinal, tinha uma bicicleta. E Frido? Conseguia aprender algo novo, como
ela? Apenas para Regine não havia solução. O pensamento em sua mãe
formava um bloco indigesto no estômago.
Bom que ainda tenho alguns quilômetros à frente, passou por sua cabeça.
Tinha acabado de começar a fazer um balanço de sua vida.
– A gente tem bastante tempo para refletir quando caminha – explicou,
desconcertada.
– Se você diz – comentou Caroline.
Alcançaram a meta do dia. A placa manchada na entrada do vilarejo
mostrava claramente onde estavam: Angles.
50

Caroline engoliu com dificuldade. A leveza que sentira às margens do rio


foi varrida num golpe. Conforme as apreensões sombrias, o vilarejo a recebeu
com um silêncio repelente. Soprava um vento cortante, que balançava em
ritmo irregular uma folha de janela solitária contra a amurada, prendia-se
numa cortina de miçangas que levantava voo com um ruído leve,
movimentava os varais de roupa onde sacudiam meias em fila. Ao lado,
pimentas secavam. Um vaso plástico com flores frescas tombou. Em todo
lugar, sinais de vida. Mas nem uma alma na rua, nem uma única janela
iluminada. As conversas animadas, que acompanharam todo o caminho,
calaram-se. Nas vielas estreitas, seus passos soavam ocos.

A única luz vinha dos faróis de um carro branco: liga, desliga, liga, desliga. O
pisca alerta fornecia uma desculpa esfarrapada para o carro estar estacionado
no meio do caminho. Quando passou ao lado do automóvel, Caroline
percebeu que ao lado do carro havia uma estrela azul. Sob ela, quatro letras:
S.A.M.U.
Foi como se tirassem vendas de seus olhos. Por que ela não percebeu isso
antes? Service d’Aide Médicale d’Urgence. Samu. O serviço de atendimento
médico de emergência.
– Não me surpreende que parecia tão familiar – sussurrou Estelle para ela.
Provavelmente tinha encontrado a abreviação em algum dos textos que
traduziu no curso de francês. Estelle e Caroline concordaram com um rápido
olhar. Sabiam o que e quem deviam procurar.
Judith parou, como todos os outros também. Ouviam dentro das vielas do
vilarejo. O vento soprava de longe ruídos estranhos. Apenas tons únicos,
depois uma melodia perturbadora e estranha. Era uma música castigada,
agourenta, acompanhada por passos pesados. Deviam ser muitas pessoas que
se aproximavam num lento e misterioso marchar compassado. Com
desconforto, as mulheres seguiram adiante. A música aproximava-se cada vez
mais. A visão abriu-se para uma massa de pessoas. Todo o vilarejo estava
reunido para a procissão. Música tradicional, ritual arcaico. Acompanhadas
por música enviesada de instrumentos de sopro, figuras masculinas de
postura lúgubre em marcha compassada com estranho balanço carregavam
uma Maria de madeira pelo vilarejo.

O olhar de Caroline pairava buscando alguém pela multidão. De fato, entre os


turistas bronzeados em suas roupas coloridas de feriado, peregrinos e
moradores do vilarejo estava um homem forte, atarracado num uniforme
branco de enfermeiro. Deve ser ele. Samu. De Angles.
– Você sabe o que vai acontecer se eu falar francês com ele – murmurou
Estelle para Caroline.
Tem como voltar? Caroline vacilou apenas por um momento. Talvez
aquele homem tivesse a chave para o segredo de Arne. Talvez fosse a única
chance de conseguir uma resposta.
– Olha lá – gritou Estelle, agarrou Judith pela manga com agitação e
apontou vagamente para um grupo de curiosos. Judith não entendeu bulhufas.
Que havia de especial ali?
– O cara está com uma camisa da Tommy Hilfiger – salvou-se Estelle. Era
uma mentira, mas não lhe ocorreu nada melhor com a pressa. Judith estava
tão ocupada zombando da superficialidade de Estelle que nem percebeu que o
lugar ao seu lado ficou vazio. Caroline havia saído à francesa, agradecendo
Estelle em pensamento.

– Excusez-moi, monsieur – Caroline falou com o enfermeiro cuidadosamente,


de soslaio. De perto, o homem de cabelos castanhos e frisados parecia quase
quadrado. Era uma cabeça e meia menor que Caroline e transpirava força de
todos os poros. Lembrou Caroline do leão de chácara de um estabelecimento
duvidoso perto da estação de trem, que estava envolvido com rap e atos de
violência e abusou totalmente da noção de “respeito” diante do tribunal. O
enfermeiro parecia não querer observá-la. Com cuidado, cutucou o ombro
dele.
– Excusez-moi…
Não chegou mais perto, pois nesse momento a Virgem estava passando por
eles. O enfermeiro baixou o olhar com reverência. Caroline fez o mesmo.
Não queria irritar sem necessidade um homem que parecia tão irascível e
colérico. Não estar familiarizada com os rituais católicos mostrou-se uma
clara desvantagem. Quando olhou novamente para cima, viu-se
completamente sozinha na calçada. Todos os outros se uniram ao cortejo e
seguiam a Madonna. A multidão engolira o enfermeiro.
51

–Ali está a Caroline – interrompeu Judith. Apesar do esforço incessante de


Estelle para distraí-la, descobriu Caroline na procissão. Os olhos de Judith
apertaram-se. Procurava entender o comportamento bizarro da amiga
advogada. Caroline se espremia entre fiéis para avançar para a ponta do
cortejo. Judith achou mais que estranho:
– Onde ela vai? O que está procurando?
– Talvez tenha se transformado espontaneamente em católica – Kiki
especulou.
Agora, todas olhavam para Caroline, que se curvava sobre um enfermeiro e
falava insistentemente com ele.
– Talvez Caroline não esteja bem. Ela estava com uma sensação estranha
no estômago – tranquilizou Eva.
Judith não estava nem um pouco convencida. Estelle ficou nervosa.
Precisava encontrar uma explicação que soasse lógica, inofensiva. Com mil
diabos, como poderia distrair Judith antes que ela descobrisse o que Caroline
estava fazendo de fato? Era péssima com mentiras. Quase quis desistir
quando os céus enviaram tropas para salvá-la. Descobriu duas idosas que
pareciam gêmeas na procissão. Em torno delas, rostos bem conhecidos.
– Os franceses – ela gritou, contente. – Não são os franceses do albergue
de Jacques?
Judith desviou o olhar. O pânico surgiu em seus olhos.
– Espero que o louco não esteja com eles – Estelle cutucou
intencionalmente a ferida. Os franceses também as reconheceram. Noites
conjuntas num dormitório contribuíam claramente para a compreensão dos
povos. Felizes e agitados, acenavam para elas como se não estivessem numa
procissão de Maria, mas na entrada das nações dos Jogos Olímpicos. Judith
não era a única inquieta. Max temia o pior.
– Espero que eles durmam em outro lugar. Mais uma noite com os roncos
eu não aguento – resmungou, trazendo a Estelle uma última ideia para desviar
a atenção de Judith.
– Precisamos providenciar imediatamente um lugar para dormir. Quando a
procissão acabar, não vamos conseguir mais nada – comentou Estelle. – Não
quero acabar com os franceses em colchões num ginásio de esportes.
Judith balançou a cabeça, inquieta:
– Vamos pegar um bom hotel. Um onde não encontraremos nenhum grupo
de peregrinos.
– O mais caro daqui – festejou Estelle.
Empolgada, puxou os papéis. Tinha ali uma dica de restaurante. Se os
quartos fossem tão sofisticados quanto o cardápio, teria ganhado o dia.
Secretamente agradeceu aos franceses pela sua numerosa aparição na
procissão.
– Nós controlamos as finanças – Kiki sussurrou para ela. Não seria a
primeira vez que salvava Kiki de uma situação aguda de emergência. Certa
vez, Estelle precisou livrar Kiki de uma taxista na frente do Le Jardin que
parecia uma lutadora e era imune ao charme da designer.
– Eu poderia jurar que ainda tinha uma nota – lamentou Kiki. – Ela não
quer me levar de volta por 12,40 euros.
Estelle adiantava o táxi, a conta no Luc e às vezes também o aluguel. E
agora até mesmo o hotel.
– Eu te pago depois – prometeu Kiki.
– Em parcelas, como sempre – Estelle assentiu com a cabeça. Ela sabia que
não fazia sentido querer dar algo de presente para Kiki, pois era muito
orgulhosa.
Estelle pôs-se em marcha. E Judith seguiu-a. Virou-se pela última vez. Não
eram os franceses que a interessavam. Era Caroline que se envolvera numa
conversa animada com um enfermeiro francês.
52

–O homem com camisas de flanela, o caubói. Arne!


Caroline assentiu com a cabeça. Demorou um tempo até o enfermeiro
compreender de quem Caroline falava. Ele conhecia o homem. E muito bem.
– Busquei Arne com a ambulância e levei ele para Toulouse – confirmou
ele. – De lá ele foi transferido para um hospital em Colônia.
Caroline entendeu apenas metade.
– Ele interrompeu a peregrinação?
O enfermeiro olhou para ela como se Caroline não batesse bem da cabeça.
– Arne? Peregrinando? Bobagem. Ele passava suas férias com Dominique.
Como sempre.
Disse isso sem o menor pudor. Como se fosse algo natural. A frase ecoou
na cabeça de Caroline. Férias. Como sempre. Dominique. Ela tentou juntar as
palavras em algo que se integrasse naquilo que ela sabia sobre o amigo
falecido. Tudo que ela conseguia era uma outra pergunta idiota: “Arne vinha
para cá com frequência?”
O enfermeiro não queria estender a conversa com a senhora intrometida.
– Tenho um dever de sigilo.
Dispensou Caroline com um aceno e se uniu no fluxo universal de orações.

Sainte Marie, priez pour nous,


Sainte Mère de Dieu, priez pour nous
Sainte Mère toujours, priez pour nous…
Dever de sigilo. Caroline já tinha ouvido isso antes. Parecia uma
eternidade. Dessa vez, não estava disposta a se dar por vencida.
– O senhor precisa me ajudar. Precisa ajudar nossa amiga. É importante –
Caroline pressionou o homem.
O enfermeiro sentiu-se extremamente perturbado em sua meditação
religiosa. Ela conseguiu despertar o lado colérico do homem.
– Onde a senhora pensa que está? – começou ele, ríspido. – Na parada da
Disneylândia que realizamos para turistas alemães? A senhora vem aqui e faz
perguntas. Quem é a senhora? Polícia secreta?
Os primeiros fiéis ao redor começaram a prestar atenção. Por precaução,
Caroline calou-se. Se respondesse agora, provavelmente as feridas abertas da
Segunda Guerra Mundial viriam à baila. No entanto, o enfermeiro já havia se
sentido ofendido e estourou.
– Que vocês, alemães, pensam? Que são donos de tudo? Que podem fazer
o que querem?
As pessoas em volta pediam que ficasse quieto. Uma briga começou.
Alguns conterrâneos dele se intrometeram, tentando convencê-lo com gestos
intensos. Caroline já se preparava internamente para a retirada pedida quando
o enfermeiro fez algo inesperado.
– Pergunte para Dominique a senhora – gritou para ela. Rabiscou algo num
papel, pôs na mão de Caroline e, por fim, desapareceu na procissão.

Sainte Marie, priez pour nous,


Sainte Mère de Dieu, priez pour nous
Sainte Mère toujours, priez pour nous…

Caroline ficou como se tivesse sido atingida na cabeça. Não tinha respostas.
Apenas um endereço de Dominique. As perguntas eram possíveis apenas se a
pessoa aguentasse as respostas. Quanta verdade Judith podia suportar?
Caroline amassou o papel com vigor, lançou-o numa lixeira e saiu dali.
Cinco passos depois, virou-se. Enojada, revirou o monte de lixo e
desamassou o papel. Suas mãos tremiam. Nesse momento, sentiu algo
estranho. Um calor repentino subiu pela espinha e obrigou-a literalmente a
virar-se. A procissão havia feito uma curva pela praça do vilarejo e vinha de
frente para ela. A figura dourada de Maria emanava uma luz que pairava
sobre a cabeça dos fiéis. Uma magia misteriosa saía da Madonna. Por um
instante, estavam ligadas. Nesse único e inexplicável momento, não era mais
uma estátua de madeira que estava diante dela. Caroline podia jurar que
Maria a olhava diretamente nos olhos.
Nervosa, fechou os olhos. Afastou de si o sentimento bizarro. Perturbações
do sono podiam levar a alucinações. Era bem óbvio que isso valia também
para sobrecarga física e espiritual.

Horas mais tarde, estava deitada numa cama confortável que merecia cada
uma das cinco estrelas que categorizavam o hotel. Tiveram um jantar
excelente – nenhuma outra palavra era mais precisa para descrever o menu de
seis pratos – e beberam bastante. Ela não conseguia dormir. Estava deitada na
cama junto à janela, olhava a noite escura e sem estrelas e esperava por um
milagre. O milagre veio. Mas era um milagre falso. Não apenas para Judith,
mas principalmente para Caroline.
53

Caroline não era a única que esperava por uma salvação maravilhosa.
– Meu sonho é que a senhora “passe de mágica” volte para Colônia –
confessou Frido quando Eva fez sua ligação de todas as noites.
Eva não precisava de detalhes. O cansaço na voz dele era o bastante para
imaginar como estava sua cozinha. Como as cozinhas parecem quando as
pessoas não têm à disposição uma senhora “passe de mágica”: o lixo
transborda, a lava-louças fica cheia, o tablete de sabão dentro dela, o botão de
ligar esquecido. E, com muita sorte, encontram-se as meias de tênis nas
caixas de bebida vazias.
Frido era um homem sensato, não precisava de bola de cristal para saber
quem, até aquele momento, havia reduzido o trabalho para ele. A única coisa
que o surpreendeu foi a quantidade de trabalho para ser feito.
– Como você consegue? – perguntou Frido, exausto.
– Sei lá – respondeu Eva. – Eu apenas faço.
– E essas reuniões eternas – reclamou ele. – Quando se tem a pressão do
horário, a primeira coisa que se percebe é quantos monstros passam numa
mesa de reunião. Tenho todos: o falador, o perguntador, o que não diz nada e
o exibido. E aqueles que são responsáveis pelas decisões ficam calados.
– Contrate mais mães – recomendou Eva. Quem tinha crianças em casa
esperando comidinha quente, um beijo de boa-noite ou ombros paternos para
se apoiar, não tinha tempo para repetições infinitas, vaidades pomposas e
decisões postergadas. Mas esse boato ainda não havia se alastrado até os
níveis da diretoria. Frido apenas suspirou.
– Ficarei feliz quando você voltar para casa – confessou, num sussurro.
Eva calou-se. Algo havia mudado. Tinha se envolvido com a aventura da
peregrinação apenas porque queria fazer algo por Judith e porque as amigas
dela apoiavam. Naquele momento, caminhava porque lhe fazia bem. Não
ousava contar isso ao fragilizado Frido. Sobre os momentos nos quais não se
pensava em mais nada, mas apenas em sentir o chão se mover sob os pés,
absorver o cheiro de giesta e zimbro, se misturar às sombras moventes,
observar o jogo de nuvens e cores. Sentir as subidas e descidas do caminho,
cada mínima diferença de altitude.

– Boa noite, Frido – desejou, em vez disso. Não tinha coragem de confessar
como estava feliz em ter pela frente alguns dias de peregrinação. A verdade
era que não interessava se sua cozinha em Colônia estava arrumada ou não.
Via-se num ponto mágico de sua peregrinação: saiu de casa, deixou para trás
seu cotidiano, mas não havia chegado ainda a lugar algum. Simplesmente
estava a caminho. Ao sabor do vento.
54

São Pedro conspirou contra elas. Após ter trazido ao acaso alguns assentos
livres num ônibus e uma viagem gratuita entre Montcaup e St. Bertrand de
Comminges, agora tinham caído num confortável modo “bagaço”.
– As senhoras trouxeram a tempestade – alertou o motorista do ônibus.
No entusiasmo de terem reduzido bem as duas longas etapas que estavam
diante delas, detiveram-se tempo demais nas catedrais mundialmente
conhecidas. Em vez de iniciar as etapas rapidamente, maravilharam-se com a
magnífica decoração em madeira e os imponentes bancos do coro.
Quando finalmente colocaram-se em marcha, era tarde demais. Nuvens
escuras tingiam o céu e ofereciam um espetáculo único. Ao fundo, os picos
dos Pirineus que se aproximavam cada dia mais brilhavam. Chuva e ventania
se aproximavam.
Judith e Max seguiam na frente, as outras vinham logo atrás.
– E o que é isso? Vocês encontraram algo?
Curiosa, Eva pressionava Estelle e Caroline. Kiki também. Caroline virou-
se horrorizada para Estelle, que fez um gesto de desculpas.
– Meu espírito foi forte, mas a boca é fraca.
O erro foi deixar as três dividirem um quarto na noite anterior.
– Agora fale! Que tem o diário? O que o enfermeiro contou? – quis saber
Estelle. Tentou a noite toda chegar até Caroline.
Judith, que ficara desconfiada, não saiu do lado de Caroline durante o
jantar. Ela, que normalmente era a primeira a desaparecer na cama, pedira até
mesmo sobremesa. Mais tarde, insistiu em ficar com Caroline num quarto
duplo. Depois de olhar para as velas, a foto e o copo de vinho com que Judith
formava toda noite um altar improvisado, desapareceu o impulso de Caroline
de contar tudo.

Antes, Caroline teria um ataque com isso. Antes, dez dias antes. Em Colônia,
comia fast food, deixava-se aterrorizar pela internet móvel e e-mails rápidos e
tirava no máximo um cochilo quando o trabalho sobrecarregava. Na
peregrinação, tinha tempo para reagir. Nada tinha pressa quando se estava
num percurso a pé. Dominique não vivia longe de Angles. Entre o albergue e
Dominique havia duas elevações que queriam vencer. Era impossível fazer
esse percurso em um dia. Caroline estava grata por esse adiamento da pena.
Devia enfrentar aquilo que soubera no dia anterior.
– Parece que Arne passava as férias regularmente nesta região. Com
alguém que se chama Dominique – explicou Caroline. Tentou soar o mais
neutra possível. A notícia, contudo, caiu como uma bomba. Estelle entrou de
imediato nas especulações:
– Talvez Arne tivesse uma segunda família, filhos, uma vida dupla
misteriosa.
– Dominique pode muito bem ser nome de homem – advertiu Caroline.
Agitada, Eva balançava a cabeça. Não queria acreditar que Arne enganara
Judith.
– Tudo isso pode não ser nada! Um engano.
Caroline castigava-se com autoacusações:
– O pior é que eu incentivei Judith a fazer essa viagem.
– Quem imaginaria uma coisa dessas? Arne adorava Judith – Eva
comentou.
– E mesmo assim a traiu – constatou Estelle.
Então Kiki chegou ao ponto que realmente interessava:
– E o que fazemos agora? Contamos para Judith?

Como se ouvisse seu nome, Judith virou-se. De maneira estranha, sentiu que
as conversas empolgadas às suas costas diziam respeito a ela. As quatro, que
até então discutiam calorosamente, se calaram.
55

Sobre o que conversavam todo aquele tempo?, perguntava-se Judith. Havia


dias tinha a sensação de que coisas estranhas estavam acontecendo.
– Sou o que menos sei das coisas por aqui – comentou Max. – Elas não
compartilham os segredos comigo.
– Nem comigo – lamentou-se Judith.
Suas amigas ficavam a cada dia mais estranhas. Ela se sentia observada a
todo o tempo e avaliada sem parar. Sabia que elas, no fim das contas,
esperavam por se livrasse do luto e voltasse a ser a velha Judith. Estava feliz
por Max ter se juntado ao grupo, pois sentia-se ligada ao jovem. Mas não
como uma mulher sente-se ligada a um homem. Nunca poderia imaginar-se
apaixonada por um homem mais novo. Era algo diferente. Max era o único
que a encarava de forma imparcial. Desconfiada, Judith virou-se pela segunda
vez. As quatro amigas deram ao mesmo tempo um sorriso irônico. Mais
estranho não podia ser.

Uma rajada de vento tirou seu fôlego. Durante toda a etapa, Judith olhava
preocupada para o céu. Com as primeiras gotas, acabou a esperança de que as
nuvens passariam ao largo delas. Dentro de poucos minutos a chuva leve
transformou-se num aguaceiro. Os Pirineus desapareceram nas nuvens
espessas. Raios fendiam os céus. Riachos se encheram, arrastaram plantas e
tornaram o caminho intransitável em pouco tempo. Quase não se via dez
metros adiante.
Encontraram abrigo provisório numa cobertura de madeira, como os
milhões de mosquitos que fugiam da chuva. Nem mesmo os caros chocolates
Valrhona e as bananas que Max tirou como por encanto de sua bolsa-carteira
tornaram a atmosfera confortável. Na natureza, a tempestade agia como uma
força elementar. O vento agitava os troncos frágeis, a chuva tamborilava
incessante no telhado cheio de goteiras. Subiu um cheiro de palha úmida e
apodrecida.
– Esse cheiro vai me dar uma alergia – reclamou Estelle, enquanto
espantava os mosquitos.
Depois de quinze minutos, os raios ainda continuavam a cair. A chuva não
parava.
– Não tem sentido esperar – comentou Caroline. – Logo vai escurecer.

A ideia de fugir pela rodovia diretamente para o próximo vilarejo provou ser
um erro drástico. A visão era ruim, a via estreita. Todas as vezes que um
caminhão buzinante zunia perigosamente próximo a elas, a água espirrava
aos montes. Não fazia sentido. Precisavam se render ao caminho secundário,
desproporcionalmente mais longo.
Com esforço, arrastaram-se caminho encharcado acima. O avançar na lama
sempre é lento. Aqui e ali, Judith escorregava. Nunca haviam se sentido tão
ligados à terra, nem olhado para o céu com tanta inquietação. Apenas de lá
podia vir a redenção. A chuva estreitava o horizonte. Não era possível sequer
imaginar a meta do dia. Por dentro, Judith blasfemava. Podia dizer mil vezes
a si mesma que a chuva trazia consigo a limpeza externa que caminhava de
mãos dadas com a interna. O romantismo peregrino e o entusiasmo religioso
estavam longe naquele momento como os sussurros e segredos. O negócio
era resistir a essa etapa.
Raramente surgia uma vieira de São Tiago que marcasse o caminho. A
orientação era difícil, a água estava por todo lado. Corria sobre as mãos, fluía
nas golas e nos sapatos. Nas capas de chuva arrancadas rapidamente das
mochilas desenvolvia-se um ambiente vaporoso.
– Se não tomarmos cuidado, por baixo da cobertura plástica pode se formar
um acúmulo de calor e um colapso do sistema circulatório – Eva recapitulou
seu conhecimento médico.

Lágrimas de exaustão corriam pelo rosto de Judith. “É preciso peregrinar com


todos os sentidos”, anotou Arne em seu diário. Nesse dia, era o sentido do
absurdo que a acompanhava pelo caminho.
56

Da torre badalava o sino do mosteiro, de longe ecoava o canto suave dos


monges. Oravam pela saúde de seus hóspedes que a chuva havia lavado por
inteiro. Normalmente o mosteiro não abrigava turistas nem peregrinos, mas
para as seis figuras congeladas que tremiam diante dos portais de St. Martin
ao fim da tarde, o abade abriu uma exceção.

Tomaram chá quente e comeram um bolo marmorizado bem doce. Encheram


os sapatos com literatura devocional cristã e botaram para secar numa estufa
na cozinha. O banho quente limpou o resto de lama das juntas cansadas. Kiki
foi a última que entrou no chuveiro. Não se incomodava pelo fato de ali ter
apenas cabines úmidas que eram separadas apenas por meias paredes
improvisadas. Para ela tanto fazia se o chuveiro ao lado dela estivesse ligado,
até um cheiro curioso chegar da cabine ao lado. Um gel de banho com cheiro
de ervas que conhecia muito bem. Um olhar de soslaio pela meia parede
mostrava que seu nariz não a enganara. Na cabine ao lado corria espuma em
torno de um grande pé masculino. Sem dúvida: Max estava tomando banho
ao seu lado. Era tão intencional que ele ainda cantarolou inocentemente ali.

Kiki enrolou rapidamente a toalha no corpo e fugiu. Contudo, o quarto que


dividia com Judith estava fechado. Não restou outra coisa senão juntar-se às
amigas que lavavam suas roupas imundas no pátio interno do mosteiro em
uma tina metálica.
– Judith está na capela – comentou Caroline. Ela já esperava Kiki para
dizer o que devia ser dito. – Precisamos falar sobre o que descobrimos. Ou
isso ficará entre nós para sempre – anunciou com voz firme.
O nervosismo cresceu. Principalmente em Eva.
– Por que vocês começaram com essa bisbilhotice?
Kiki também não conseguia ver aquele plano com bons olhos.
Superestimaram o poder da sinceridade irrestrita.
“Querida, precisamos falar.”
Quantos relacionamentos se acabaram em discussões que seguiam essa
frase desastrosa? Antes de falar, é necessário calcular primeiro o risco de
machucar o outro. E a chance de mudança. O que melhoraria no caso de Arne
com qualquer conversa?
– Judith ama o Arne dela. A gente precisa acabar com a lembrança que ela
tem? Ninguém precisa saber de tudo – Kiki opinou.
Caroline estava irredutível quanto a sua opinião:
– Tenho certeza de que Judith desconfia de algo. Desde o início da viagem
ela vem se comportando de um jeito estranho.
Estelle apoiava totalmente:
– Caroline vai falar para ela – decidiu antes que alguém pudesse pensar
que já pudesse estar pronta para assumir essa função ingrata.
– Dizer o quê? – quis saber Eva, zombando. – Não sabemos quase nada
sobre as viagens estranhas de Arne.
– Mas sabemos o que os homens aprontam no tempo livre – apontou
Estelle.
– O que é isso? Uma festinha conspiradora para lavar roupa suja?
As quatro tomaram um susto. Mergulhadas na discussão, nem perceberam
que Judith se aproximara. A conversa morreu de repente. Judith também
entendia o que estava acontecendo.
– Não sou cega, surda ou maluca. Os olhares, os sussurros, as piscadelas de
Estelle… posso participar do segredinho?

Silêncio. Prolongado. Eva, de qualquer maneira, não se sentia qualificada


para aquela conversa, Estelle tentou fingir que na realidade vinha de Marte e
Kiki descobriu naquele momento que o fundo de sua mochila era
impermeável, o que infelizmente não se podia dizer da parte de cima. Seus
desenhos cuidadosamente trabalhados nadavam num lago de água da chuva.
Percebeu que seu futuro tinha ido por água abaixo. Cada traço que havia feito
com tanto esforço e reflexão se dissolvera na enchente. A ideia era apenas
uma vaga lembrança que rodopiava sem rumo pelo espaço. Sabia que não
conseguiria chegar uma segunda vez à obra de arte filigranada.

Um olhar para Judith bastou para Kiki entender que não era o momento certo
para lamentações. Havia algo pior. E informar, como de costume, era tarefa
para Caroline.
57

Por onde Caroline deveria começar? Nada no curso universitário preparava


alguém para aquilo que fazia parte do ganha-pão cotidiano da profissão de
advogado: a transmissão de más notícias. Na Idade Média, os emissários que
traziam notícias ruins perdiam literalmente a cabeça. Caroline tinha toda uma
série de más notícias guardadas para Judith. Começando pelo roubo do diário,
passando pela quebra de confiança até as manobras esquisitas de Arne.
O caminho mais tranquilo para escalar um monte é aproximar-se do
objetivo em vias sinuosas. Assim era também com informações
desagradáveis. Com cuidado, a advogada aproximava-se da verdade.
– É sobre o diário, sobre o que Arne escreveu. – Fez uma pausa. Aprendeu
isso com Philipp, que precisava dar diagnósticos negativos semanalmente em
seu consultório. Pausas dão à pessoa tempo para acompanhar com a cabeça e
formular suas próprias perguntas. Judith não tinha a menor ideia dessas
teorias. Antes mesmo de Caroline chegar à primeira curva estreitíssima do
caminho tortuoso, Judith lançou suas desconfianças:
– Você xeretou minha vida?
– Ouça primeiro.
Judith não precisava ouvir. Tinha formado havia muito seu próprio
pensamento.
– O diário não foi parar embaixo da minha cama por mágica. Também não
havia nenhum peregrino que subiu atrás de mim. Você pegou de mim sem
que eu soubesse.
– Fui eu – confessou Estelle, sincera. – Caroline não podia fazer nada para
impedir.
– Foi um erro – admitiu Caroline francamente.
– Como vocês puderam fuçar nas minhas coisas? Que interessava para
vocês o diário de Arne?
Judith tinha razão. Elas tinham cometido um erro e, para que a amizade
tivesse um futuro, ele precisava ser corrigido. As mentiras precisavam cessar.
Mentiras eram bumerangues. Voltavam e atingiam quem os havia lançado no
mundo para se desviar do pior. Às vezes o bumerangue voltava de imediato,
às vezes precisava de mais tempo. Caroline condenou um homem que após
décadas foi tombado por suas mentiras. Uma equipe de casos arquivados
analisou o assassinato de uma garota de 13 anos. Trinta anos se passaram
desde o acontecido. Do suspeito filho do vizinho de outrora surgira um
cidadão respeitável, pai de família virtuoso e funcionário público sem ficha
na polícia. Meia vida se passou quando foi levado novamente ao tribunal.
Involuntariamente, se transformou na melhor testemunha da acusação, pois
não se lembrava mais das mentiras contadas antes às autoridades de
investigação. A pessoa lembra-se da verdade mesmo após décadas. No
entanto, o homem esquecera as mentiras muito tempo antes. Quando o
bumerangue o atingiu, estava despreparado. Caroline não queria viver algo
assim. Não com suas amigas.
Engoliu em seco e continuou a falar, pois precisava ser assim. Todas as
cartas na mesa.
– Parece que Arne nunca peregrinou. Seu diário é uma colagem de textos
da internet.
Judith gargalhou, irônica:
– Você nunca gostou de Arne, pois ele não se encaixava na sua visão
racional do mundo.
Dentro de Caroline soou um alerta para se manter calma e ver essa resposta
atravessada como era: uma tentativa desajeitada de empurrar a culpa para o
outro. Uma tentativa de negar o que devia desconfiar desde que errou o
caminho pela primeira vez no Massif de la Clape.
– Temos uma testemunha, Judith. Arne passava as férias aqui. Sempre.
Com alguém que se chama Dominique.
Judith apertou perigosamente os olhos:
– Continue!
– Não sabemos de mais nada – confessou Caroline. – Temos o endereço de
Dominique. E só.
Pronto, tinha falado. Caroline observava Judith com atenção: como
processaria aquilo? As outras três realizavam uma inspeção rigorosa na ponta
dos pés. Após um segundo de espanto, Judith irrompeu numa gargalhada. Ria
de todo coração, como se tivesse sido liberta. Reação muito estranha.
– Entendo que precisa de tempo para se recompor – Caroline disse a Judith
com cautela.
Judith continuava a rir. Nenhuma das amigas conseguia compreender o
comportamento bizarro. Rodando o dedo indicador ao lado da cabeça, Estelle
indicava: agora Judith havia pirado de vez.
– Pelas circunstâncias, se você quiser interromper a peregrinação, eu vou
entender. Todas vamos – explicou Caroline.
Judith interrompeu as gargalhadas de repente. Seus olhos eram como
dardos venenosos apontados para Caroline. Do ser pequeno e desprotegido
que até então existia, brotou alguém que tinha força e uma fúria inacreditável
nas entranhas.
– Caroline, a safa. Sempre uma palavra esperta na hora certa. Esse seu jeito
de sabe-tudo me enoja.
As mulheres estavam em choque. Apenas Caroline permaneceu calma:
– Se você quer despejar sua raiva em mim, ótimo. Não tem problema.
A tentativa de não deixar a discussão aumentar fez Judith ficar mais
agressiva.
– Você e sua arrogância de merda – Judith gritou para Caroline. – Que
você tem a ver com os segredos de Arne? Se eu fosse você, cuidaria mais do
seu casamento.
De repente, o silêncio. O susto. Assim que foi disparada, a frase ecoou no
lugar. Até Judith parecia estupefata com aquilo que acabara de deixar
escapar.
Caroline sentiu a insegurança crescer. Desde o telefonema, o pensamento
sobre o comportamento estranho de Philipp não a deixara mais em paz. Não
tinha falado a respeito com nenhuma das amigas. Não era o tipo de pessoa
que revelava o que a atingia. Era difícil falar sobre sentimentos. Preferia
resolver os problemas consigo mesma. Caroline mexeu os ombros.
Movimentar-se ajudava a abaixar o nível de adrenalina, ajudava a controlar a
voz trêmula. Todos os truques de quando estava começando na profissão.
Tinha colegas que confiavam em anti-hipertensivos. Caroline tentou uma vez
usá-los num processo e perdeu. As pílulas não reduziram apenas a febre
nervosa, mas também a sua concentração. Precisava da tensão para funcionar.
Não na vida pessoal.
– O que você quer dizer? Do que está falando, Judith? – quis saber após
recuperar um pouco do controle.
Judith se arrependeu. Seus cílios tremiam. Com movimentos nervosos,
juntou suas roupas imundas.
– Desculpe. Não quis dizer nada. Falei por falar. Me desculpe, estou um
pouco… – Judith tentou botar panos quentes na observação descuidada,
enrolou-se ainda mais e fugiu no meio da frase.
– Eu sei. Peregrinar traz à tona o pior na gente – comentou Estelle, seca.
58

–Quero ficar sozinha – gritou Judith.


Kiki estava irritada. Ficou trancada para fora do quarto. Com frio e em pé
num imponente corredor de mosteiro sustentado por arcos. As últimas luzes
do dia reluziam pelas numerosas janelas. Estava passando um frio miserável.
Não havia um isolamento moderno. O frio eterno corria das celas diretamente
para o primeiro andar. Kiki pulava de um pé para o outro, estava descalça e
ainda enrolada numa toalha.
Um pouco adiante, Max se recostou à parede fria e sorriu, irônico.
– Estou num quarto duplo. Duas camas confortáveis. Dois cobertores.
Kiki evitava o contato visual e batia na porta com força. O dia tinha sido
um verdadeiro desastre. Não podia lidar com mais problemas.
– Judith, abre – implorava.
Max decidiu que dessa vez não a deixaria fugir.
– É apenas a idade que conta para você? – retomou ele o assunto da briga
dos dois.
Kiki espancava a porta com a mão aberta. Os monges que estavam a
caminho da última missa do dia viraram a cabeça para olhar. Uma mulher
vestida apenas com uma toalha e um homem muito jovem tentando
conquistá-la era algo que com certeza não viam todos os dias em seus santos
recintos. Caminharam pelos corredores do mosteiro mais devagar que o
habitual.
Max tentou novamente:
– Para que se prender a uma única característica ao escolher um parceiro?
Se alguém procura um anjo e presta atenção apenas nas asas, pode chegar em
casa com uma galinha para a canja.
Kiki riu. A imaginação dele a divertia.
– Nada contra galinha de canja – continuou Max. – Com alguns legumes
pode ficar deliciosa.
Kiki se rendeu. Tinha percebido que não fazia sentido esperar no corredor
até que Judith se acalmasse. Congelaria antes.
– Vou aceitar sua oferta, mas isso não significa nada. Não pense que mudei
de ideia – alertou ela.
Max levantou a mão em sinal de compromisso.
– Não vou encostar em você. Por tudo que é mais sagrado para mim.
O brilho safado em seus olhos mostrava que para ele, provavelmente, não
existiam tantas coisas sagradas assim. Kiki seguiu na ponta dos pés em
direção a Max e, então, pisou na toalha que imediatamente foi ao chão. Max a
levantou. Cuidadosamente, envolveu a toalha em torno dos ombros dela. Ele
se aproximou. Ficou muito próximo. Perigosamente próximo.
– Anjos não têm sexo – esbravejou, rouca –, por isso vivem tão em paz.
De qualquer forma, Max não tinha nada de anjo:
– Quem quer ir pro céu? Só tem chato lá.
Tirou uma mecha de cabelo do rosto de Kiki. As pontas dos dedos
acariciaram o rosto dela, tocaram seus lábios. Kiki tremia, seus joelhos
cediam. Entre a chuva interminável que destruiu seus desenhos e a briga das
amigas, seu espírito de resistência havia ido embora.
***

Em quinze anos, as cinco amigas tinham passado por desentendimentos,


rachas e discussões, mas nada que se comparasse ao que acontecera nessa
viagem de peregrinação. Elas sempre foram firmes como uma rocha e agora
tudo afundava, não apenas os desenhos.

Exausta, Kiki deixou a cabeça afundar no peito de Max. A mão dele


acariciava sua nuca. Ele recendia a gel de banho de ervas, verão, morangos
vermelhinhos. Familiar e estranho ao mesmo tempo, quente e sedutor. Kiki se
rendeu. Fugira centenas de quilômetros da impossibilidade desse amor. Por
dias a fio peregrinou diante dele, atrás dele e lado a lado, até o pescoço doer
pelo esforço de desviar o olhar. Envolveu Max num abraço. A toalha caiu
novamente. Estava seminua no corredor do mosteiro, esquecida da existência
do mundo.
59

–Quando tiver perguntas sobre minha própria vida, eu aviso.


Havia muito tempo Caroline não fazia piadas desse tipo. Aquele era um
momento propício.
Caroline voltou ao pátio interno. Cercada por muros de milhares de anos,
sentia-se caída para fora do tempo. Às vezes, badaladas de sinos e orações
ecoavam. O hábito de um monge se arrastava pelo claustro. Algumas
galinhas assustadas bicavam a grama, um gato esticava-se, preguiçoso, num
banco. O idílio era um contraste gritante com a confusão de seu interior.
Estava sozinha. Apenas uma imagem de Maria em pedra, gasta pelo tempo,
era testemunha de seu desespero.
“Eu me preocuparia mais com meu próprio casamento.” A frase rastejava
por todas as reentrâncias do cérebro. Deixou que os fatos estranhos dos
últimos dias passassem em retrospectiva diante de seus olhos. A despedida
rápida e fria, os dias nos quais ela não conseguiu falar com Philipp, a
conversa telefônica bizarra, o silêncio. Girava na mão um pedaço de papel
que tirara da carteira. Era o cartão de visitas de seu colega. Desde o encontro
no tribunal, quando propôs uma mudança de modo tão ousado, nunca mais
tinham se encontrado. De vez em quando ele mandava uma mensagem de
texto dizendo que sua oferta ainda estava de pé.
– Estou satisfeita com a minha vida – afirmava ainda algumas semanas
atrás.
– Mas não pode ser tudo – ele disse. – Seu marido tem o consultório, os
congressos, o esporte. E a senhora?
Havia muito seu marido levava a própria vida: era aquilo que seu colega
realmente queria lhe dizer? Será que o advogado percebeu? Será que Judith
percebeu algo que estava claro para todos? Se ao menos as pessoas tivessem
a coragem de questionar a si próprias. Por isso pairava aquele ar de
compaixão na voz dele? Ela percebera o tom irritante do colega advogado e o
ignorou.
Vaidade, confessou para si mesma. Sentia-se lisonjeada por alguém
cortejá-la abertamente. O tom de flerte a divertia. As pequenas iscas que se
escondiam nas perguntas do colega foram deixadas de lado, negligenciadas.
Ignorou todos os sinais de alerta. Era difícil deixar algo escapar de Caroline.
Apenas ela mesma conseguia fazê-lo.
Fitava o cartão de visitas como se a solução de seus problemas pudesse ser
lida no número de telefone. A imagem de Maria concordava com a cabeça,
quase despercebida. Caroline pensou que não importava se era apenas ilusão
de ótica ou pura imaginação. A mulher de pedra tinha razão. Decidida, pegou
o telefone e ousou dar um passo pouco convencional. Discou o número de
seu colega, Paul Gassner.
– Eu sabia – soou uma voz empolgada no outro lado da linha. – Eu sabia
que a senhora me telefonaria.
Não era surpresa para ele que Caroline, após semanas de hesitação,
telefonasse. Para Caroline era muito mais. Como lhe passou pela cabeça
confiar num completo desconhecido? Alguém que conhecia apenas en
passant de seu ambiente profissional? Ainda tinha escolha. Podia fingir que a
ligação era para dizer não de uma vez por todas. Podia soar inofensivo. Mas
queria isso mesmo? Fechar os olhos?
– Não é sobre sua oferta – confessou ela. – É sobre mim.
Cuidadoso, Paul Gassner acompanhava.
– A senhora tem certeza de que eu posso ajudá-la com isso?
– Parece que o senhor sabe mais da minha vida do que eu.
Caroline esforçava-se para não olhar para Maria. Não precisava de nenhum
sinal divino para saber que o correto era perguntar a si mesma e aos outros.
Não queria ser como as mulheres que com frequência encontrava em
processos: inocentes, cegas, surdas e resistentes à verdade. Conhecera
mulheres que, apesar das confissões, queriam acreditar na inocência de seus
maridos criminosos, pois de outra forma precisariam questionar sua própria
história pessoal. Não queria ser assim. Com cautela, tateava sobre aquilo que
queria saber.
– O senhor falou algo sobre meu marido. Dos congressos e do esporte. O
que o senhor queria dizer na verdade?
60

Insone, Eva rolava na cama. Havia tentado de tudo. Bebeu leite morno,
contou carneirinhos, sussurrou a cantiga da vovó Lore, arriscou até ajoelhar-
se. Nada ajudou. A sensação ruim que a briga deixou não diminuía com
nenhum truque para dormir. Amanhã tudo estará esclarecido, esperava ela.
Judith e Caroline precisavam apenas conversar.
Eva conseguia entender Judith. A traição de Caroline e Estelle era pior do
que aquilo que o falecido Arne em algum momento pudesse ou não ter feito.
Não era surpresa que Judith tivesse lançado insinuações ridículas. Era como
um animal acuado num canto, que sem piedade morde para todos os lados.
Por isso a resposta barata com menção ao casamento de Caroline. Não
podiam ser outra coisa aquelas palavras obscuras que Judith disparou. Para
Eva, Philipp e Caroline eram o casal perfeito. Estavam havia mais de vinte
anos juntos, tratavam-se com respeito e podiam contar histórias sem se
interromperem e estragar o clímax do acontecido. Uma retaliação, tinha que
ser isso. “Tudo vai se esclarecer de manhã”, disse para si. Mesmo assim, não
conseguia dormir.
Nervosa, acendeu a luz. A cela exagerava na frugalidade. Paredes brancas
vazias, uma porta de madeira pesada, uma janela alta demais para permitir
uma olhada para o jardim do mosteiro. A única distração oferecida era uma
pilha da Revista Lourdes. O jornal dos peregrinos do terceiro milênio tinha
apenas um assunto. A Lourdes histórica do tempo das aparições, as visões de
Bernadette, milagres e enxurradas de peregrinos. A cada duas páginas, Maria
era representada com seu véu branco, cinto azul e rosas douradas nos pés.
“Penitência, penitência, penitência”, clamava a imagem de Maria. “Orai a
Deus pelos pecadores.”
Eva não duvidou por nenhum instante que a história aconteceu daquela
forma. Por que a menina mentiria? Quem teria sussurrado para ela a frase
complicada da 16ª aparição? Que soy Immaculada Concepción. Sou a
Imaculada Conceição. Uma filha de trabalhadores iletrados não pensaria
nisso. A água de Lourdes curou pessoas. Física e espiritualmente. A magia do
lugar chegaria ao seu coração. Ela esperava.
“Penitência, penitência, penitência”, ecoava em sua cabeça sonolenta. Mas
quem era aqui o pecador? Quem era o criminoso? Quem era a vítima? E qual
o pecado?
“Cuidado com o que você lê antes de dormir”, sempre dizia a vovó Lore.
Eva pôde comprovar que a história de Bernadette não era adequada para
embalá-la num sono tranquilo.

Um barulho. Tinha trancado a porta? Provavelmente não. Em casa, essa


tarefa cabia a Frido. Em geral já estava na cama enquanto ele bebia sua
última taça de vinho na sala de estar.
Eva levantou a cabeça. Era difícil se orientar. Sem lua, sem vago brilho de
um poste na rua, sem luz de casas vizinhas iluminando o quarto
parcimonioso. Em Colônia, as cortinas ficavam abertas. Quartos escuros
como esse pareciam uma câmara mortuária. Com isso teve pesadelos.
Não, Eva não se enganou. Passos aproximavam-se. Passos cuidadosos de
alguém que não queria ser ouvido nem visto. A maçaneta moveu-se devagar
para baixo. Uma dama misteriosa estava na soleira da porta. Trajava vestido e
véu brancos. As vestes esvoaçantes prendiam-se na cintura com um cinto.
– Sou eu – sussurrou a imagem de Maria. Soava mais como Judith do que
como a Imaculada Conceição. Estava enrolada num lençol branco. Apesar da
cobertura que tinha enrolado no corpo, tremia como folha ao vento.
– Pensei que estava tendo uma visão – indignou-se Eva. – Nunca mais faça
isso!
– Quero saber onde Arne esteve de verdade – disse Judith com uma voz
surpreendentemente firme. – Você me acompanha? Até Dominique?
– Agora? No meio da noite? – surpreendeu-se Eva.
– São quatro quilômetros. Se sairmos agora, estaremos lá na hora do café
da manhã. Não consigo mais esperar.
Algo não cheirava bem no tom bem-disposto que Judith mostrava.
Primeiro a risada estranha quando Caroline revelou que algo não estava certo
com o diário, agora essa determinação incomum.
– Você é a única que sempre esteve comigo. Sozinha eu não confio em
mim – Judith tentou convencer a amiga reticente. Eva saiu da cama. Era
ingênuo pensar que a tempestade se acalmaria sozinha. Não conseguia dormir
mesmo. Era hora de esclarecer as coisas.
61

–Tem alguém aí.


Algumas celas do claustro adiante, Kiki levantou a cabeça do travesseiro e
ficou ouvindo no escuro. No corredor, ouviu o ranger de uma porta, vozes
abafadas e, em seguida, passos. Teve medo.
– Esse lugar é apavorante. De verdade.
– Volte a dormir.
Max puxou Kiki novamente para o catre estreito. A cama dupla era
claramente um exagero para o seu dormitório.
– Por que não sou como você? – Kiki se perguntou. – Você nunca tem
medo.
Max murmurou, sonado:
– Você jura que eu não tenho medo. De cachorros, das provas em Londres,
das pessoas na empresa que esperam que eu saiba tudo, de queda de cabelo,
tenho muitos medos.
Kiki se aninhou no braço dele.
– Talvez ajude se tivermos medo juntos.
Max acordou com um estalo. Entendeu muito bem o que Kiki queria dizer
de verdade.
– Você quer ficar comigo?
– Você vai se arrepender – ameaçou Kiki. – Eu ronco quando bebo vinho
tinto, nunca encontro duas meias iguais, trabalho quinze horas por dia para
ser pobre como sou…
Max beijou Kiki, varrendo aquela verborragia nervosa para longe.
– Um simples “sim” bastaria também.
– Você é impossível – Kiki o empurrou. Max sorriu para ela. Kiki sentia
mais do que conseguia ver.
– Por isso você se apaixonou por mim.
– Não. Foi por causa do jazz sueco. Quando você botou o CD lá no
estúdio. A melodia me emocionou.
– Você sabia que o compositor também fez música para a Píppi
Meialonga? O mesmo cara.
Estranho. Isso não se encaixava. Talvez por isso se apaixonara por Max,
porque as contradições podem formar um todo. Ela se apaixonou porque Max
era diferente, tinha algo poderoso. Porque gostava do mesmo tipo de música
que ela, estava lá por ela, porque ela queria estar lá por ele. Kiki correu com o
dedo pelo corpo de Max. Ele parecia um gato, musculoso, a pele muito
quente, muito suave. Max a abraçou num repente. Não queria a mulher em
parte. Queria por completo.

– Vocês fizeram tanto barulho – comentaria Estelle durante o café da manhã


no refeitório – que até os monges precisaram de um cigarrinho depois.
E Kiki soltou uma gargalhada sonora. Sua voz alegre ecoou sob os arcos.
– E o que me importa o que os outros pensam?
62

“Nos encontramos na ponte”, escreveu Eva num papel que jogou por baixo
da porta do quarto de Caroline. O ponteiro do relógio na torre batia 5h23
quando a porta pesada de madeira se fechou atrás das duas. Eva e Judith
marcharam em ritmo acelerado.
Confusos os pensamentos, aterrorizante a paisagem. A névoa pairava sobre
uma lagoa, campos e árvores reluziam num azul esverdeado irreal. O novo
dia raiava. Um trator arava pela aurora, atrás dele alguns pássaros
madrugadores a quem Deus ajudava. Quando os primeiros raios de sol
chegaram ao topo dos ciprestes, o mosteiro já havia ficado para trás.
Eva chegara ao estado com que muitos peregrinos sonhavam. Os pés
seguiam sozinhos e ajustavam-se automaticamente às condições do caminho.
Apenas a cabeça vazia era ainda uma esperança religiosa. O que esperava de
Dominique? Eva não estava em condições de colocar em prática o que
gostava de pregar para os filhos: “Cuide apenas dos problemas que você tem
e não dos que pode conseguir.”
Por que existem problemas que trazem pessoas do passado?
– Tem certeza que quer fazer isso? – Eva perguntou a Judith. Estavam
diante do grande portal. Eva esperava tudo. Uma pequena casa, uma
residência numa vila de construções novas, mas não um edifício monstruoso
recém-reformado. A fachada do fim do século XIX emanava um brilho novo.
Apenas os ferros fundidos do imenso portão de entrada eram pitorescos em
seu envelhecer.
Judith não hesitou um segundo sequer. Confiante, tocou a campainha.
– Se Arne tiver me traído… – disse Judith, sem terminar a frase. – Quero
saber a verdade, Eva – sussurrou.
– Arne está morto. O que isso vai mudar? – Eva tentou uma última vez.
– Tudo. Tudo. Tudo – declarou Judith. Seu tom soava quase inesperado.
Eva nem chegou a se surpreender com a resposta estranha. O portão
principal se abriu. Uma senhora num vestido muito alvo, abaixo do joelho,
seguiu com passo enérgico pelo caminho de pedras até a entrada. No cabelo
bem preso num coque endurecido entronava-se uma touca de enfermeira.
Com cada fibra do seu corpo, expressava o quanto era competente.
A mulher as recebeu com uma enxurrada de palavras incompreensíveis em
francês. Sua voz era profunda e rouca pelo fumo, denunciando uma vida
agitada, além do uniforme bem cortado. Eva e Judith não entenderam nada,
apenas o sinal de interrogação no fim da frase estava bem claro.
– Dominique? – Judith soltou, num engasgo.
A mulher levantou as sobrancelhas com força.
– Vous êtes Dominique, a senhora é Dominique – constatou Judith, dessa
vez com voz firme.
A mulher irrompeu numa gargalhada poderosa. Quase não conseguiu se
conter, pois achou muito absurda a ideia de Judith. Fez um sinal para que a
seguissem pelo pátio.
Eva avistou as vans para deficientes no estacionamento, todas de marcas
alemãs. Num toldo, algumas cadeiras de rodas. Arne passava as férias aqui?
O Arne que conhecia tinha uma alergia grave a hospitais e fazia de tudo para
não deixar transparecer sua doença. Mas conhecia Arne de verdade?
Conhecia a amiga?
63

Judith sufocava. Nos altos corredores dominava o cheiro de desinfetante,


urina e café fresco. Os tênis de caminhada de Judith e Eva soltavam um
chiado a cada passo no chão encardido de linóleo marrom. O era aquilo: um
hotel? Um sanatório? Uma espécie de “quarto andar”?

– Nós nos consideramos uma extensão dos albergues para enfermos de


Lourdes – explicou a eficiente enfermeira, que nesse meio tempo percebera
que Eva e Judith eram alemãs. Seu alemão era muito mais compreensível que
seu francês. Sabendo que era necessária em outro lugar com urgência, falava
como uma metralhadora enquanto atravessavam rapidamente o corredor. –
Cuidamos de peregrinos que querem permanecer alguns dias a mais na
região. Para muitos doentes, essas peregrinações são as únicas férias que
conseguirão tirar.
Nas paredes, recostavam-se cadeiras de rodas dobradas. Mais à frente, as
imagens dos grupos de visitas a Lourdes com seus hóspedes sempre na
mesma pose: na primeira fila, os cadeirantes, atrás todos os que podiam ficar
de pé nas próprias pernas e, na terceira fileira, sobre um banco, os
acompanhantes nos uniformes de diferentes organizações de ajuda. Ao fundo,
a basílica do Rosário. E então o choque. Entre as fotos do grupo, um retrato
de Arne. Confiante e feliz, sorria para Judith e Eva. Sobre os ombros,
carregava casualmente uma mochila na qual estava pendurada uma vieira de
São Tiago. Estavam certas. A mulher que não era Dominique abriu com vigor
as portas duplas do refeitório.

Judith e Eva olharam ao redor, desconcertadas. Em mesas redondas para oito


pessoas, doentes e, em sua maioria, idosas tomavam o café da manhã. Grande
parte dos hóspedes precisava de ajuda prestada por toda uma brigada de
mulheres com toucas de enfermeira. Muitos pareciam que não estavam na sua
única, mas também última viagem. Eva estava tão emocionada com o que via
que nem lhe veio à mente perguntar-se como Arne se encaixaria nessa
imagem. Os rostos contavam histórias de doença, velhice e morte. Tocadas,
Judith e Eva olhavam as pessoas: uma mulher pálida, de olhos fundos, que
precisava de uma máquina de oxigênio permanente; um ancião com inúmeras
linhas marcando seu rosto, prendendo suas muletas na cadeira de rodas; uma
mulher cujos membros espasmódicos tinham vida própria; um casal grisalho,
alimentando calados sua filha deficiente. A menina de trança embutida,
sardas e olhos vívidos estava completamente refestelada em sua colorida
cadeira de rodas. Letras alegres saltavam do encosto da cadeira: Celine. Eva
supôs ser uma doença muscular progressiva. Nenhum milagre no mundo
podia curar essas doenças.
– Eles não vêm a Lourdes na esperança de encontrar a cura – explicou a
enfermeira, como se pudesse ler pensamentos. – Vêm porque aqui têm
consolo. Sentem-se menos sozinhos.
Incansável, a mulher voava pelo salão. Eram mesas para pôr e tirar, pão
para cortar, louça para lavar, um queixo para limpar e cadeiras de rodas
presas para soltar. Por fim, a palavra redentora:
– Lá está Dominique – apontou na direção da área de distribuição da
refeição. Judith ficou boquiaberta. Descrente, olhava fixamente para
Dominique. Eva seguiu seu olhar. Não estava menos surpresa.
Dominique era um senhor por volta dos 70 anos. Forte como uma árvore,
cabelos grisalhos, ralos e bem curtos, linhas fortes no rosto e movimentos
vigorosos. Insistia em parabenizar pessoalmente uma das hóspedes pelo
aniversário de 91 anos com um pedaço de bolo, sobre o qual queimava uma
única vela, e uma serenata tonitruante. A idosa, uma mulher enrugada de
olhar vivaz, afundou de emoção em sua cadeira de rodas. Somente então
Dominique foi até as visitantes não anunciadas.

– Judith Funke – apresentou-se a primeira mulher. O homem não era mesmo


aquilo que ela esperava e por quem ansiava. Confusa, estendeu-lhe a mão,
que ficou no ar. Dominique não a pegou. O sorriso cortês que ainda estava no
rosto do homem desapareceu.
– A senhora errou de endereço – ele a despachou com rispidez.
– É sobre meu marido, Arne. O senhor o conhece – Judith apressou-se em
falar, nervosa. – Vimos a foto dele. No corredor. O diário nos trouxe até aqui.
Óbvio que Dominique tinha exato conhecimento de quem estava falando.
Também ficou claro que ele não tinha o menor interesse em compartilhar
com Judith aquilo que sabia.
– Me desculpe, mas preciso cuidar dos nossos peregrinos recém-chegados.
Assim ele terminou a conversa. Resoluto, tomou as manoplas de uma
cadeira de rodas e empurrou em grande velocidade um homem surpreso, que
até o momento conseguia se mover bem sozinho, até um lugar livre na mesa
para oito pessoas. O cadeirante quis protestar: já havia tomado seu desjejum,
mas Dominique olhou com tanta fúria que o homem decidiu,
espontaneamente, que era hora para um segundo café da manhã.
Judith ficou muda pela rejeição inesperadamente rude. Eva, para ajudar a
amiga, correu atrás de Dominique.
– Judith descobriu que algo não batia no diário de peregrinação do marido.
Ela quer saber a verdade.
– No passado, a amiga da senhora pouco se lixava para o que Arne fazia.
Dominique era um homem de opinião. Estava longe de ser um idealista
benevolente que se esperava encontrar numa instituição como aquela. Eva
irritou-se com a grosseria. Quem ele pensava que era? Determinada, tomou
partido da amiga, que acompanhava a discussão com pânico cada vez maior.
– Por que o senhor diz isso? Nem conhece Judith.
– Arne era meu amigo – desabafou Dominique.
Sua voz falhou. Apenas com esforço, conseguiu continuar.
– Queria que ele viesse comigo para Santiago de Compostela. Mas não, ele
precisava voltar para essa mulher. – Apontou para Judith como se quisesse
perfurá-la.
– Quero ir embora, Eva. Vamos – implorou Judith.
Mas Eva insistiu. Ela não se deu por satisfeita com insinuações vagas.
– Do que o senhor está falando todo esse tempo?
– Que Arne era um idiota. Perdoou tudo da mulher, até mesmo o amante.
– Que loucura. Judith, diz para ele que não é verdade – Eva pediu para a
amiga. Em vez de responder, Judith fugiu. Tropeçou numa atendente com
uma bandeja. Xícaras se estilhaçaram no chão, ovos quebraram, uma bateria
de croissants mergulhou em uma lagoa de chá. Nem assim Judith parou.
Atrás dela estava a enchente, diante dela, a catástrofe, pois Dominique estava
apenas começando.
– Achou que ele não percebia quando ela falava ao telefone às escondidas,
vestia-se para encontros românticos. Uma vez ele a seguiu até o hotel onde
ela encontrava o amante.
– Ele sabia quem era o homem?
– Claro. Era o seu próprio médico!
Eva gargalhou. Era uma risada constrangida, incrédula. Não podia ser
verdade, tinha de ser um mal-entendido. Que mais podia ser?
– Arne estava em tratamento com Philipp, marido de uma amiga – ela
sussurrou, como se fosse um argumento certeiro.
– Philipp. Exatamente. Era assim que o homem se chamava – respondeu
Dominique.
O sangue pulsava com força contra as têmporas de Eva. Como batidas de
um martelo, as palavras ressoavam na sua cabeça. Judith e Philipp? Um caso?
Nas costas de Arne? Nas costas de Caroline? Não pensaria algo assim de
Judith. Ninguém ousaria pensar. Sentia como se tivesse aterrissado num jogo
do contrário. Eva não conseguia parar de negar aquela situação, balançando a
cabeça. Essa não era a solução de seus problemas. Era o Armagedom.
– Arne aceitou essa situação – explicou Dominique, triste. – Tinha medo
de que, ao perdê-la, perdesse a si mesmo e sua honra. Muito antes de falecer.
Dominique não parecia mais furioso, mas ferido e vulnerável.
– Nós peregrinávamos juntos – contou ele. – Nos conhecemos pouco antes
de Colônia. Dois bobos que buscavam vieiras de São Tiago entre os rios
Reno e Mosela. Não havíamos trocado uma palavra sequer, até percebermos
uns dias depois que andávamos no mesmo ritmo.
Eva concordava com a cabeça. Entendeu de imediato que um ritmo
semelhante formava um elo especial entre duas pessoas.
– O diário de peregrinação não foi mesmo inventado? – Eva buscou uma
saída da catástrofe.
– Arne queria mostrar a Judith que ele ainda era um homem forte pelo qual
ela se apaixonara. No início ele peregrinava de verdade. Depois ele apenas
fingia continuar suas viagens de peregrinação incansavelmente. Fingia como
se tivessem um futuro. Na realidade, ele estava muito doente. Após Santiago
de Compostela, comecei isso aqui. Arne vinha passar as férias comigo para se
recuperar. Até não mais conseguir. Precisou interromper a última estada.
Aos poucos, Eva começava a entender. Muda, concluía os pensamentos.
– Foi sua última peregrinação. A ambulância o buscou. Samu. Às 17h.
– Seis semanas depois, Arne estava morto. – Dominique baixou a cabeça.
– Fiquei sabendo por acaso. Um de nossos peregrinos trouxe um jornal de
Colônia.
Por um momento, tudo ficou silencioso, muito silencioso. Eva
desmoronou. Dominique deu voz àquilo que Eva estava pensando:
– Judith traiu a todos. Inclusive a senhora.
64

Onde estava Eva? O que os dois falavam tanto? Inquieta, Judith andava para
lá e para cá diante do portão. Seus passos agitados chiavam sobre o cascalho.
Dominique devia ser o ex-banqueiro belga de quem Arne falou bem no início
do relacionamento. Arne nunca contou muita coisa sobre a peregrinação.
“Nada é tão chato quanto histórias de férias de outras pessoas”, sempre
dizia. Quando criança, Arne odiava as noites de slides das diversas tias, que
naquela época ainda tinham os tios do lado.
– Você não conhece isso? – perguntou a Judith. – Aqueles textos-padrão
com os quais cada slide é apresentado. O engraçado, aquilo que não se
reconhece bem em alguma foto, que fica atrás à esquerda, atrás da árvore. É a
tia Frieda com um macaco no braço.
Arne odiava esses eventos. Estranhamente, as pessoas nunca viam nesses
slides o que realmente era dito. E nunca sentiam nada a não ser o tempo que
se arrastava, enquanto aguentavam explicações ricamente ilustradas sobre
pessoas conhecidas casualmente nas férias, excursões de ônibus, a flora e a
fauna exuberantes em torno da piscina do hotel.
– É preciso sentir países estrangeiros, não capturá-los em slides – insistia
Arne. Por isso, levava consigo apenas o diário de peregrinação e nunca uma
máquina fotográfica. Judith se arrependia agora. Se soubesse que Dominique
era um amigo de peregrinação, nunca teria pedido a Eva para vir até aqui.
Mas era certo que Dominique sabia de alguma coisa? Algo concreto? Algo
que podia se transformar numa desgraça para ela?
“Juntos podemos ficar em silêncio”, Arne contou sobre Dominique. Talvez
ele tivesse se calado mais que falado. Quem disse que Arne sabia algo sobre
Philipp? Talvez tivesse apenas uma suspeita, algo que se podia eliminar
facilmente do mundo.

O portão de entrada abriu de uma vez. Judith escondeu-se atrás de um arbusto


de buganvílias violeta. Da proteção segura, observou como Dominique
acompanhou Eva pessoalmente para a saída. Despediu-se pegando as duas
mãos de Eva e animando-a. Judith ouviu o ressoar sonoro da voz dele sem
conseguir compreender uma única palavra. Era como se Dominique
consolasse um hóspede. Eva mordia os lábios calada e meneava a cabeça sem
parar
Por fim, Eva soltou-se de Dominique. E então veio. Direto para ela. Judith
não precisou perguntar nada. Podia ler no olhar destruidor de Eva que ela
sabia de tudo.
– Um caso. Com o marido da sua melhor amiga. Por meses. Como você
pôde? – gritou para Judith.
Judith nem podia culpá-la por ter ficado chocada. Foi assim que ela
também ficou, após o primeiro beijo entre os dois. Depois disso, evitou
Philipp como pôde. Quase quatro semanas. Até Arne pedir para ela que o
acompanhasse no checkup.
– Me preocupo com você – disse Philipp num momento furtivo. Uma frase
simples e pequena. Que fez bem para ela, pois em casa tudo girava em torno
da doença de Arne. Judith tinha medo, pois a frase inofensiva deu a ela a
sensação de que tinha um futuro. Ela sozinha. Também sem Arne.
– Philipp sempre me ouviu quando precisei. E a certa altura, isso virou
algo mais.
– Você teria gostado se Arne tivesse uma amante! Sua culpa seria menor –
Eva jogou na cara de Judith.
– O que eu deveria ter feito? Aconteceu. Não podia dizer a verdade a
ninguém. Arne estava à beira da morte.
– Eu te defendi, Judith – Eva disse, balançando a cabeça. – Te consolei, te
ouvi quando você falou de Arne. E de seu luto. Dominique tem razão: você
fez todos nós de bobos. Principalmente Caroline.
– É a culpa, Eva. A culpa que eu expio.
– Algo assim não é possível expiar, Judith. Não quando suas amigas
traídas estão junto de você.
Judith desmoronou.
– Eu sabia que vocês me condenariam se isso viesse à tona. Tive medo de
ficar abandonada.
Eva não conseguiu aguentar:
– Você pode ao menos uma vez pensar em outra coisa que não seja você
mesma e seus sentimentos?
Eva bufou, parou, virou-se e foi na direção de Judith, que levantou o braço
diante do rosto para se proteger. Estava tão transtornada que seria capaz de
tudo, até mesmo de agredi-la.
– O caso com Philipp continua? – sibilou Eva.
– Philipp queria começar uma vida nova comigo. Desde que Arne morreu,
não consegui mais traí-lo. Talvez Arne fosse o amor da minha vida. E eu não
soube dar valor.
E, novamente, as lágrimas rolaram.
– Você vai contar para Caroline – ordenou Eva, fria.
Os olhos de Judith arregalaram-se de pavor. Ela conseguia apenas
gaguejar.
– Podemos tratar isso como um segredo nosso. Já passou.
Eva não tolerou nenhuma objeção.
– Eu estou cheia de sua autopiedade. Você vai falar com Caroline. Se você
não acertar as coisas até Lourdes, faço eu.
65

O sol queimava. No horizonte, as montanhas de três mil metros elevavam-


se sobre o contraforte. O caminho não era muito íngreme, mas em muitos
pontos o sol ardia. Lá, onde havia sombras da floresta, tinha-se o prazer
duvidoso de encontrar hordas de porcos alentejanos criados ainda como na
Idade Média, pegando seu sustento no matagal. Cheiro de terra forte e quente
misturava-se ao cheiro de pinheiros e pasto recém-cortado.
Mesmo que os trechos de peregrinação entre Gîte de Sarlabous e Bagnères-
de-Bigorre nesses nove dias não tivessem trazido maiores dificuldades, o
número de quilômetros que precisavam atravessar ainda era um desafio. Mas
nada se comparava à tarefa que Judith tinha diante de si.
– Caroline não está muito comunicativa – alertou Estelle, quando as duas
reencontraram o grupo na imensa ponte de pedra que se estendia na curva alta
do rio. – Ao contrário de vocês – lançou ela ironicamente em seguida, quando
viu as expressões amuadas de Judith e Eva.
– Nem pergunte. Logo você vai saber – explicou Eva.
Judith não tirava os olhos de Caroline no caminho da peregrinação.
Quebrava a cabeça sobre como verbalizar aquilo.
– Caroline, uma coisa idiota aconteceu comigo. Um pequeno erro.
Não seria tarefa de Philipp falar a verdade para Caroline? Era ele quem se
casara com Caroline, não ela. Por que perdeu tanto tempo com Judith? Por
outro lado, é notório que as mulheres em situações de vida difíceis ficam
suscetíveis a qualquer pequena atenção. Todas as mulheres apaixonam-se por
seu médico, psiquiatra ou cabeleireiro. Não é justo aproveitar-se disso,
exatamente como ele fizera. Philipp explorara sua fraqueza. Ele a
bombardeou com telefonemas.
– Como você está?
– Posso fazer alguma coisa por você?
– Precisa de algo?
Alguém a consideraria terrível por ter ficado sobrecarregada com a doença
de Arne? Uma olhada para o lado mostrava que havia alguém que a
considerava pior que isso.
– Estou falando sério, Judith – lembrava Eva, sem necessidade. O brilho
nos olhos por si só mostrava que Eva não se desviaria um centímetro sequer
de sua exigência.
Por que precisava enfrentar esse problema sozinha? Era típico: se as coisas
ficavam sérias, os homens fugiam. O coração de Judith estava na garganta.
Não conseguia. Não era tão forte quanto Caroline.

Buscando ajuda, olhava em volta. Precisava de apoio, de alguém com quem


pudesse falar. Alguém que a entendesse. Estelle? Nem pensar. Judith temia
sua língua ferina. Como seria com Kiki? Tinha muita experiência, mas com
catástrofes de amor. Como proceder com a mulher que quebrou os copos
mexicanos? Kiki precisava saber como lidar com tais situações.
Tímida, aproximou-se da amiga, gaguejou um pouco antes de se lançar ao
assunto:
– Kiki, que aconteceu com a história do homem casado? Depois que a
mulher descobriu?
Kiki não sabia como reagir à pergunta esquisita de Judith. O barulho de
uma mensagem de texto distraiu sua atenção.
– Momentinho – desculpou-se Kiki e voltou a digitar no celular de Max.
– Ainda escrevendo para o Thalberg? – surpreendeu-se Judith.
– Kiki é excelente em assuntos da empresa – intrometeu-se Max.
Kiki soltou uma risadinha:
– De alguma forma, agora tenho direito de decisão sobre os negócios.
– Até minha mãe chora as pitangas com Kiki – completou Max.
Judith olhou Kiki, compassiva.
– Mentir nunca é bom – alertou ela em voz baixa. – Mais cedo ou mais
tarde tudo vem à tona. E então você não sabe como sair da lama.
Kiki finalmente terminou com suas mensagens de texto.
– Que você queria saber sobre o México? – retomou ela. Max abraçou Kiki
e também ficou curioso.
– Esquece – disse Judith com um aceno. Caroline estava diante dela. Uma
pedra havia entrado na sola grossa de seu calçado de caminhada. Era agora. O
momento para a confissão.

O medo ajudava, pois impedia que alguém se balançasse no parapeito de uma


ponte, acariciasse um cão de briga no boteco da esquina ou provasse toda
uma série de drogas psicodélicas. Mas agora sentia-se clandestina e
arruinada, uma sensação ruim no estômago. Escorregara no caso com Philipp.
Como explicar algo desse tipo? Que nunca quis machucar Caroline? Judith
sentia a náusea crescendo. Talvez ficasse até mesmo doente. Se ficasse
doente, Eva não poderia exigir que abrisse o jogo.
Com raiva, Caroline batia seu sapato contra uma base de concreto onde
havia uma cruz encravada. O barro voava em todas as direções. A pedra
continuava firme.
– Caroline descobriu que Philipp tem um caso com outra mulher –
sussurrou Estelle, que se aproximou furtivamente, a Judith. – Melhor deixá-la
em paz.
– Não – exclamou Judith. Estelle balançou a cabeça. E tinha, inclusive,
mais informações. – Ela verificou todas as consultas de Philipp. Se
encontrava com outra regularmente.
Outra? Se ela soubesse quem era a outra... Caroline buscou em sua mochila
o canivete. A lâmina saltou do cabo e brilhava ao sol, motivo suficiente para
Judith trocar o incerto pelo certo e buscar a distância. Longe, apenas longe de
Caroline. Quem sabe do que seria capaz num momento de fúria? Quem lida
tanto com morte e assassinato pode ter ideias perigosas.
Judith correu, correu e correu. Não conseguia mais. Por trás, uma mão
pousou sobre seu ombro. Judith se assustou.
– Preciso te agradecer, Judith – ouviu Caroline dizer atrás dela. Ajuda, esse
tom. Por que Caroline falava num tom amigável? Onde tinha deixado o
canivete? Judith contava com um ataque a qualquer momento. No entanto,
Caroline continuava a falar nesse tom irritante:
– Sem você eu ainda estaria acreditando que vivo um casamento feliz.
Judith murmurou. Essa amizade indescritível, incalculável a deixava
aterrorizada. Precisou pensar no gato do vizinho que trouxe para ela numa
manhã de domingo um camundongo quase morto na varanda. Em vez de o
animal terminar o serviço, brincou por diversos minutos com a criatura
maltratada. Deixou o animal ferido fugir apenas para abatê-lo novamente
com as garras. Um jogo cruel que, no fim das contas, o camundongo perdeu.
Era como se sentia: um camundongo à beira da execução.
– Sinto muito, de verdade – balbuciou ela.
– Como você descobriu? – perguntou Caroline.
– Que Philipp se apaixonou…?
Como começou? Um dia, Philipp a levou do hospital para casa, porque
Arne precisou passar uma noite lá. Judith não tinha carteira de motorista e já
estava tarde. Pelo medo imenso de entrar numa casa vazia, ela o convidou
para uma taça de vinho. No bar da esquina, lá tudo começou, quando ele a
olhou nos olhos por tempo demais para depois ignorá-lo. Era aquele olhar.
Duas horas mais tarde, ela foi para casa inebriada sem ter bebido uma gota de
álcool.
– Você viu os dois. Ou não? – lembrou-se Caroline de sua pergunta.
Os dois? Do que Caroline estava falando? Demorou alguns segundos até
Judith se desligar mentalmente do bar da esquina.
– Não precisa dizer se não quiser – disse Caroline.
As peças se juntaram em Judith e ela soube o que significavam as
perguntas de Caroline.
– Você não tem ideia de quem é a amante de Philipp? – conferiu Caroline,
surpresa. Caroline negou com a cabeça.
De longe, Eva observava atenta o que acontecia.
“Você precisa falar para ela”, Judith pensava encorajando-se. “Agora.
Você precisa.”
– Talvez seja alguém que você conheça. Alguém que esteja próxima de
você. Alguém que você nunca esperaria – Judith tateava cuidadosamente a
verdade.
– Soube hoje à noite – respondeu Caroline, brusca.
– É mesmo? – resmungou Judith.
– Mandei uma pessoa até o ninho de amor.
– Que ninho de amor?
Caroline pigarreou.
– Por conta do seminário de médicos. Enquanto peregrinávamos, Philipp
passou alguns dias românticos com sua vagabunda.
– Philipp tem uma amante? – Judith estourou, horrorizada.
Naquele momento, foi a vez de Caroline olhar para Judith, perplexa. Judith
não conseguiu perceber que cometera um grande erro tático. Tinha sido um
golpe para ela.
– Agora, enquanto peregrinamos, ele está se encontrando com uma outra?
– repetiu Judith, incrédula. A indignação, que se transformava em sua barriga
numa ira imensa, era verdadeira e genuína.
– Esse porco traidor – xingou Judith do fundo de sua alma.
– Já tem meses. É uma paciente. Eu também não quis acreditar –
reconheceu Caroline.
– Vou matá-lo – disse Judith entre dentes.
Caroline ficou emocionada.
– Obrigada. Mas eu mesma farei isso.
– Faremos em dupla.
Caroline olhou a amiga com alegria.
– Obrigada, Judith. Fico feliz em ter você como amiga.
Judith foi atropelada por uma onda de afeição. Havia muito esquecera o
que queria dizer de fato. Pegou Caroline pelo braço.
– Nós duas perdemos nosso homem. Isso nos une – explicou, patética. E
quis dizer cada palavra que falou.
66

Caroline sentou-se, extremamente desolada, numa cadeira de plástico em


uma pequena bodega de Bonnemazon, num dos vilarejinhos aos quais o
caminho as levou. Eles quase não tinham habitantes, mas tinham um serviço
de informações ao turista e, quando se tinha sorte, um bar. Alguns
quilômetros ainda precisavam ser percorridos até a meta do dia, em
Bagnères-de-Bigorre. De lá, restavam ainda trinta quilômetros até Lourdes.
Embora o sol da tarde iluminasse o local, Caroline congelava. Em torno
dela caminhavam apressados homens com panturrilhas firmes, torsos nus e
calças brilhantes de ciclistas, que não escondiam nenhum detalhe do
equipamento masculino. Um grupo de ciclistas italianos trocaram com uma
equipe holandesa as camisetas suadas, como se tivessem acabado de se
enfrentar num jogo de futebol. Os peregrinos da nova era tinham mais a ver
com esporte do que com religião. Da confusão de vozes empolgadas,
Caroline entendeu que alguns ciclistas queriam ir para Finisterra. Até o fim
do mundo, o verdadeiro ponto final do caminho de Santiago, que ficava
sessenta quilômetros antes de Santiago de Compostela.
Caroline estava um pouco além daqueles peregrinos ciclistas. Já havia
chegado ao fim do seu mundo e quebrava a cabeça para saber quando e onde
sua vida escapara. Philipp e ela tinham saído de seu caminho conjunto.
Tinham parado de cuidar um do outro.
Nem pensou em ligar para Vincent e Josephine. Caroline não tinha a
tendência de discutir problemas pessoais com os filhos. Tinha orgulho, pois
os dois eram independentes. No fundo era aquilo que também exigia de si
mesma: ser forte.
– O que eu fiz de errado? – perguntou a Estelle quando esta veio do bar
com duas taças de vinho tinto.
– Nada. Absolutamente nada – confirmou Estelle. – Você é uma mãe
fantástica, uma advogada excelente, está muito bem para sua idade, é uma
amiga fiel. Em suma: você é insuportável.
Estelle continuou:
– É isso o que eu acho – disse, com seu tom seco costumeiro. – Você
poderia pelo menos às vezes se atrasar, ficar bêbada ou fazer algo
embaraçoso, mas você sabe tudo tão bem. Não é surpresa que seu marido
tenha procurado uma paciente necessitada para admirá-lo.
– Essa não sou eu. Não sou perfeita – defendeu-se Caroline.
Estelle não estava convencida.
– Tem alguma coisa que você não consiga fazer? – perguntou ela,
desconfiada.
Caroline não precisou refletir muito.
– Cantar – respondeu de pronto.
– Você deveria cantar alto de vez em quando. Isso ajudaria. Ao menos a
mim – comentou Estelle. Caroline deu um beijo na bochecha da amiga.
Estelle era impagável. Tinha uma língua ferina, adorava tirar sarro dos outros,
mas era uma amiga esperta e leal.
Cantar? A recomendação bizarra não abandonou Caroline. Entendeu o que
Estelle dizia. Coragem para mostrar as fraquezas. Não era mesmo algo que se
pedia em sua profissão.
Nenhum cliente queria ouvir “Me desculpe, não sei o que dizer”. Também
os juízes tinham uma certa reação alérgica quando alguém confessava que
não tinha a menor ideia de como se chegou ao crime que devia ser julgado.
Caroline era paga para saber o que fazer em situações difíceis da vida. As
dúvidas eram prazer pessoal.
“Os senhores não precisam de uma boa autoestima para uma apresentação
confiante no tribunal. Exercitem essa atuação confiante e a segurança virá
sozinha”, pregava o professor de direito penal. Talvez essa casca endurecida
do autocontrole permanente tenha coberto seu “eu” particular.
“Você deve cantar mais”, decidiu Caroline quando, como em todas as
noites, pendurava as roupas recém-lavadas para secar, dessa vez no estábulo
da fazenda que encontraram para passar a noite. Com voz trêmula, tentou
cantar os Poppys. As vacas pararam de ruminar e lançaram um olhar estúpido
para Caroline. Após alguns tons vacilantes, Caroline parou, desmotivada.
Será que a amante de Philipp conseguia cantar? Ela tentou imaginar como era
a mulher com que ele tinha se envolvido. O advogado a descreveu como
pequena e delicada. Quase uma menina. Foi isso que atraiu Philipp. O
sentimento de ser requisitado como protetor?
Não importava. Naquele momento, o negócio era cantar. Caroline retirou-
se para o barracão ao lado, onde ninguém podia ouvi-la. Nem mesmo uma
vaca.
Caroline não foi a única que naquela noite se isolou do grupo. Uma voz
feminina nervosa circulava pelo ar. Por uma fenda na madeira, Caroline
olhou para fora. No pasto atrás do barracão, longe da casa grande, uma figura
caminhava para lá e para cá e conversava ao telefone. Gesticulava agitada. O
vento levava as palavras para longe.
Com cuidado, Caroline aproximou-se do portão lateral, passou pela parede
de madeira passo a passo até chegar ao fim do barracão. Atrás do canto do
barracão, a apenas alguns metros de distância, Judith falava ao telefone. Ali
Caroline conseguiu ouvir cada palavra.
– Você é um maldito, Philipp – enfurecia-se Judith. Sua voz soava mais
alto e ofegante que de costume.
– Porque você não me contou tudo. Você queria uma vida nova. Não,
Philipp, ouça você. Caroline merece algo melhor que você. Qualquer mulher
merece algo melhor que você. Eu, idiota, quase abandonei Arne. Para viver
com você. Philipp, vai a merda. Nunca mais me ligue.
Judith desligou, respirou fundo e seguiu na direção da casa grande. O
espaço no canto, no qual Caroline estava ouvindo tudo, estava vazio.
67

Judith se esforçava para não tirar os olhos do prato de café da manhã.


Evitava olhar para Eva. Na mesa das mulheres de terça-feira reinava o
silêncio. Kiki e Max concentravam-se em juntar numa imagem os pedaços de
papel que a catástrofe aquática havia destruído, quando um cantarolar feliz
tirou a concentração deles.
– Bom dia a todos. Dormiram bem? – Caroline disse com extrema
felicidade quando entrou no pequeno refeitório. Ninguém viu o que havia
passado na noite anterior. Seu primeiro impulso após o fiasco de ontem foi
fazer a mala e desaparecer. Dessa vez não havia nenhuma porca chamada
Rosa que ficaria no seu caminho e impediria a fuga. Apesar disso, Caroline
não tinha ido tão longe quanto Eva.
Quando quis deixar a fazenda isolada em roupas desconfortavelmente
úmidas, a noite estava caindo. Uma trilha levava em direção à floresta. Diante
dela, uma paisagem vasta e montanhosa. Em algum lugar era possível
reconhecer uma moradia ou mesmo um vilarejo que poderia ter servido de
objetivo. Onde queria chegar ainda naquele dia? Não tinha sentido fugir,
terminaria o caminho até Lourdes. E também o caminho que Caroline tinha
diante de si com Judith. Além disso: o que ela faria em casa? Ainda existia
algo assim? Sua casa?
A noite toda imaginou o que Philipp poderia ter dito a Judith. Como se
consolava uma amante?
“Não posso deixar Caroline, pois ela é tão delicada” não serviria mesmo
como desculpa. Mas o arsenal das técnicas de postergação oferecia mais
variantes. Frases como:
“Eu não amo mais minha mulher.”
“Caroline não me entende.”
“Vivemos como irmãos.”
A imagem de Philipp contando a Judith sua vida sexual causava
desconforto físico. Diferente de muitos casais que tinham como objetivo as
bodas de prata, eles tinham de fato uma vida sexual. Não importa o que
Philipp falasse. Talvez não fosse tão empolgante como no início, quando
podiam transar na mesa da cozinha, numa barraca de praia ou no elevador,
mas ela existia.
“Ainda estou com Caroline porque…”
Os filhos já eram grandes, não podiam servir de desculpa para não se
separarem. Por que ainda estavam juntos? O que os unia além de 25 anos de
passado, um punhado de documentos familiares, uma hipoteca conjunta e
uma geladeira que era abastecida alternadamente e esvaziada pelos dois?
Caroline não tinha uma resposta. Mal sabia como deveria tratar Judith.
Com uma alegria acentuada, Caroline sentou-se à mesa do café da manhã:
– Quem sabe o que nos espera hoje? São Tiago traz todos os segredos à
tona.
Judith deslizava inquieta em sua cadeira para lá e para cá. O tom feliz e
hipócrita que Caroline apresentava não podia significar nada bom. Seu olhar
pairava sobre Eva, que balançava a cabeça.
– Algum problema, Judith? – quis saber Caroline, doce como açúcar.
– Manteiga? Onde está a manteiga? – Judith refugiou-se na normalidade.
– Onde deveria estar? No cinema?
Caroline apontou para as porções embaladas que estavam embaixo do
nariz de Judith.
A conversa morreu. Kiki e Max, que desde o mosteiro estavam ocupados
principalmente com eles, perceberam que algo não estava bem.
– Vocês sabiam que Judith tem um caso com o meu marido? – perguntou
Caroline num tom de fofoca e mordeu com prazer o seu pãozinho. – Parece
que Philipp mantém um harém inteiro.
As mulheres precisaram apenas ver os olhos deprimidos e as bochechas
queimando de Judith para entender que Caroline falava a verdade.
– Alguém mais dormiu com meu marido? – quis saber ela, interessada.
– Piadinha – soltou Estelle. – Até parece que eu teria um caso. Nunca. Não
antes de eu ter feito minha abdominoplastia.
Ninguém riu. A última arma secreta de Estelle, desfazer a tensão com
piadinhas, fracassou. Kiki levantou-se tão brusca e repentinamente que sua
cadeira tombou. Gesticulava de forma vaga, queria dizer algo e desistiu.
Junto com Max, fugiu. Havia momentos que eram particulares demais para
que alguém participasse como observador involuntário. A explosão era
sentida no ar.
– Tentei falar com você – formulou Judith, com medo. Caroline desviou o
olhar como se Judith não estivesse ali. Não queria ouvir por que não era culpa
de Judith, que era sua culpa. Estava farta das lágrimas de Judith, os gestos
indefesos, os olhos de Bambi.
– Estou curiosa para saber onde o caminho nos levará hoje – anunciou
Caroline, exultante. Ela prendeu o pãozinho entre os dentes, agarrou a
mochila e saiu do refeitório.
***

– A religião não é uma boa conselheira – foi a conclusão de Estelle. – “Ame


o seu próximo” está na Bíblia. Esqueceram apenas de avisar que não era para
ser pego em flagrante.
68

–Eu posso explicar tudo – Judith tagarelava atrás de Caroline, que


realmente parou e sorriu:
– Alguém disse que, no caso de problemas, devemos tentar falar. –
Caroline fez uma pausa de efeito: – Mas esse alguém deve ser um completo
idiota. – E foi embora.
Judith corria atrás dela. A mochila saltava nervosamente em suas costas.
– Desculpe por eu te deixar tão nervosa.
– Me poupe disso, Judith.
Caroline empurrou para o lado um ramo que se estendia no caminho e o
soltou intencionalmente. Um galho chicoteou dolorosamente o rosto de
Judith. Lágrimas brotaram nos olhos. Caroline aumentava o ritmo sem
piedade. Judith sempre atrás.
– Não seja infantil, Caroline. Não podemos conversar como duas adultas?

Caroline fechou os ouvidos. Pena que na França não tinha pão crocante. Às
vezes ela comia pão crocante no lanche noturno com Vincent e Josephine,
quando estava de saco cheio de tudo. O barulho do pão triturado entre os
dentes de trás se sobrepunha à briga da noite entre as crianças cansadas.
– Mamãe! O Vincent chutou minha canela.
– Porque a Fi roubou batata frita do meu prato.
– O Vincent pegou muito mais.
– A Fi tá mentindo. Ela sempre mente.
– E você sempre quer ser o mandão. Você é um bobalhão, isso sim.
– Mamãããe.
Os dois mostravam uma energia criminosa própria de se desculpar com
persistência e falsidade. E deveriam apontar o verdadeiro culpado. Bancar a
juíza não era o seu forte. Nessas situações, Caroline sentia como perdia a
paciência, então ajudava se prender a alguma coisa. A um pacote de pão
crocante, por exemplo. O pão crocante, leu na época, era mais rico em
vitaminas, minerais e fibras, bem como em fitonutrientes que o pão branco, e
também batia outros pães integrais no que dizia respeito ao teor nutricional.
Do barulho agradável que abafava todo o resto o texto no pacote não
explicava nada.
Não, não era perfeita. Nunca foi. Era apenas um pouco mais perfeccionista
do que as amigas e um pouco menos expansiva com as pessoas ao redor nos
momentos “pão crocante” na vida.

E naquele momento queria ser infantil. Gostaria mesmo era de chutar a


canela de Judith, mas não queria dar a ela esse gostinho. Conseguia calcular
no que isso poderia dar. Judith irromperia em lágrimas e faria carinha de
indefesa e ferida. E no fim Caroline precisaria consolar Judith, pois nenhuma
mulher adulta chuta a outra impunemente.
Não tinha a menor necessidade de entender Judith. Seu pulso palpitava, ela
resfolegava, o coração acelerado, as pernas marchavam e os sentimentos
trotavam com ódio. Não conseguia pensar nada de bom sobre a amiga. Judith
era uma mentirosa em série. Sempre fora. Passou Kai para trás, traiu Arne e
chutou a amizade de todo o grupo. Ao mesmo tempo, conseguiu se vender
como vítima desamparada. Pegou o caminho mais fácil, no qual não
precisava fazer esforço algum, e tomava desrespeitosamente tudo o que
queria. Pelas costas. Metia-se em problemas até que alguém viesse e
resolvesse. Não, Caroline não queria ser razoável. Arrependia-se de cada
segundo em que tinha ficado ao lado de Judith. Estava cheia do terror dos
fracos, que Judith dominava à perfeição.

A simples vontade de ir embora disfarçava tudo. Caroline voltou a acelerar o


passo no calor acachapante por espinheiros, urtiga, matagal, até não
conseguir mais sentir as imensas pontadas. O suor corria pelo rosto, pelas
costas. Caroline lutava para tomar fôlego e retomar a compostura. Judith, que
a alcançara, pegou timidamente a mochila que Caroline tinha derrubado.
Achava mesmo que podia acalmar Caroline se diminuísse o peso para ela?
Judith não era legal, não queria que a achassem legal. Caroline agarrou as
alças. Por um momento, brigou pela mochila. Quando Judith a soltou de
repente, Caroline se desequilibrou, tentou se apoiar, tropeçou numa pedra e
caiu de lado sobre o chão pedregoso. Com esforço, levantou-se e continuou a
lutar.
Seu joelho queimava como fogo. Era agradável que a dor física
acompanhasse o sofrimento da alma. Aquele ditado idiota era verdade: o
único remédio eficaz para uma ressaca é uma bela dor de dente.
– Você está sangrando, Caroline – gritou Judith.
O sangue escorria sem parar, manchando as calças do joelho até a canela.
Caroline não queria assumir qualquer fraqueza, não na frente de Judith. Até
que não aguentou mais. Exausta, deixou seu corpo cair no meio-fio. Um
segundo mais tarde, Eva estava ao seu lado. Ríspida, empurrou Judith.
– Deixa que eu cuido disso – berrou Judith. – Eu só quero ajudar.
Eva reagiu com impaciência:
– Deixa ela em paz, Judith.
– Você disse que eu precisava dizer a verdade para Caroline – lamentou-se
Judith, como se fosse Eva a responsável pela briga.
– Falei sim. Mas o que Caroline vai fazer depois disso é assunto dela, não
seu.
– Quero me desculpar.
– Caroline não quer aceitar suas desculpas.
Caroline ficou feliz por Eva ter tomado a palavra por ela. Seus próprios
sentimentos não estavam sob controle. Quando ouviu no celeiro a voz de
Judith, o chão fugiu debaixo dos seus pés, como se tivesse saído do próprio
corpo. A Caroline que dizia frases como “Estou satisfeita com a minha vida”
deixou seu corpo e observou a figura miserável que ficou para trás. Sua vida
tinha se dividido ao meio. O que sempre acontecia: teria um “antes de
Lourdes” e um “depois de Lourdes”.

O antisséptico entrou na ferida e afastou os pensamentos ruins. Eva cuidou do


machucado da melhor forma que pôde. Doía, mas Caroline não queria chorar.
Não por Philipp, nem por Judith, muito menos pelo rompimento da amizade
do grupo.
Judith, indecisa, mordia os lábios e esperava por um sinal reconciliador.
Percebeu que não era necessária nem desejada. Sentida, voltou a caminhar.
69

–Não há nada mais para salvar – murmurou Kiki. Não se referia às amigas.
Todas as tentativas de colagem e restauração fracassaram, o desenho estava
perdido. Era a noite antes da última etapa e uma reunião que não merecia este
nome. A atmosfera estava carregada da catástrofe que se abateu sobre todas.
Na fogueira na frente da pousada, Judith queimou, calada, o diário. Página
por página. A fumaça lhe ardia nos olhos. Estelle e Eva, ambas com uma taça
de vinho na mão, assistiam cansadas. O que poderiam dizer a Judith?
Kiki e Max, sentados e enroscados, ocupavam-se com seus próprios
problemas.
– É uma bênção que seus trabalhos tenham desaparecido na água –
consolou Max.
Kiki via diferente:
– Eu chamaria de fiasco. Nunca conseguirei fazer algo tão bom de novo.
Sua mão fez alguns movimentos com uma caneta imaginária antes de ela
desistir. Sua carreira chegara novamente ao fundo do poço.
– O cérebro é fantástico. Esquece todas as coisas desimportantes – Max
comentou.
– O meu também esquece o importante.
Max tirou um bloco de sua bolsa-carteira.
– Desenhe o que você lembrar. Esta é a linha vermelha do desenho.
– As linhas vermelhas eram os detalhes.
– As coisas devem ser simples – disse Max, soando como o pai.
Sem vontade, Kiki tomou o lápis entre os dedos. As ideias eram fugidias.
Se ninguém as fixasse no papel imediatamente, desapareciam e buscavam um
novo lar. Ela sabia que não poderia prender o esboço pela segunda vez no
papel. A silhueta foi recapitulada com rapidez. Mas onde estava a obra de
arte filigranada? Lá, onde havia alguns dias um modelo complicado tomou
forma, corriam agora linhas poderosas, fluidas. Max sacudia a cabeça,
encorajador. Parecia outra coisa, simples, algo que dispensava um manual de
usuário. Parecia alguma coisa que podia convencer Thalberg. Kiki começou a
se divertir com aquilo, até Caroline surgir e começar imediatamente a
espargir veneno.
– O que é isso, um velório? Alguém morreu? Ah, sim. Arne. Por isso
estamos em marcha fúnebre, pois recordamos o amor perfeito de Judith e
Arne.
Kiki estremeceu. Ninguém conseguiria trabalhar nesse ambiente. Estava
insuportável. Kiki e Max entenderam-se num rápido olhar. Não precisavam
de explicações. Obviamente eram dispensáveis. E, além disso, estavam
ocupados. Se Kiki quisesse ter uma chance, precisava terminar hoje o
desenho.
70

Caroline acompanhou Kiki e Max com o olhar. Desde a noite no


monastério, ficavam literalmente grudados, como se precisassem confirmar
com toques incessantes que aquilo importava.
– Frio na barriga, encontros secretos, beijos roubados. Deve ser amor –
entusiasmava-se Caroline, em tom cáustico.
Um pequeno demônio assumira o controle sobre ela, e ele não conseguia
parar de envenenar a atmosfera com comentários odiosos. Se continuasse
daquele jeito, seria um caso para os seminários de gestão da raiva, dos quais
forçava seus clientes a participar. Viu-se sentada numa roda, em meio a um
grupo de criminosos conhecidos na cidade, que passavam uma bola de lã um
para o outro para conhecerem o nome de cada um e se conectarem, se ligarem
e se sentirem compreendidos. Mas essa coisa de psicologia era só para Judith.
– Será que existem seminários em que é possível trabalhar quando a gente
se sente mal porque arruinou o casamento da amiga? Um seminário para
destruidoras de lares? – continuou a atacar.
Sabia que agia de forma baixa, absurda e agressiva. Ouvia a voz suave do
terapeuta que a encorajava a encarar suas emoções. “Você, Caroline, talvez
queira nos contar como se sente estando sentada com sua amiga Judith em
volta de uma fogueira.” Naquele momento ela podia dizer: “É bom dar vazão
à raiva.”
Judith estava cheia daquilo. Partiu para o contra-ataque.
– Sinto muito mesmo por Philipp. Mas não fui a única que mentiu.
– Ah, sim! Philipp também. Claro – comentou Caroline, séria. O demônio
da raiva estava mais vivo que nunca.
– Quer dizer que nunca percebeu que seu casamento estava em crise? –
cutucou Judith.
– Não estou surpresa. Se minha amiga dorme com meu marido…
Era uma rápida troca de insultos. Não deixavam nada escapar. Não restava
nada da Judith pequena, indefesa, que queria ser levada pelo braço. As duas
terminariam no seminário da raiva.
– Você estava se enganando, Caroline.
– Vocês me enganaram. Você e Philipp.
– E as outras mulheres que Philipp tinha.
– Elas não eram minhas amigas.
– Eu cometi um erro. Mas só se entra numa casa se a porta está aberta.
Estelle, que ficou sentada e calada o tempo todo, quebrou o silêncio. Foi
demais até para ela.
– Esclareçam isso de uma vez. Mesmo sem meus comentários ao vivo –
ela juntou à observação de Caroline.
– Não há nada a esclarecer – falou Caroline.
– Eu gostaria que você soubesse como aconteceu – pediu Judith, o que
serviu apenas para fazer Caroline perder de vez a paciência.
– Poupe-me dos detalhes. Ou você quer trocar figurinhas comigo sobre
suas posições preferidas?
Contra a força verbal de Caroline, Judith ficava impotente. Não importaria
o que dissesse, Caroline teria uma resposta. Não era um processo a ser ganho.
Judith lançou o resto do diário no fogo e seguiu o exemplo de Estelle. Não
tinha sentido.

Eva, que até aquele momento tinha permanecido calada, ficou do lado de
Caroline e simplesmente pegou a mão dela. Um gesto simples, pequeno, que
deixou claro que não precisava de seminário sobre a ira e nem de um
terapeuta sabe-tudo. Caroline tinha suas amigas. Ao menos ainda tinha uma.
– Não faz sentido exigir de alguém que faça outra pessoa feliz – começou
Eva, cuidadosa. Não julgava nem condenava. Falava de si e das coisas que
aconteceram nesses nove dias que passou com as amigas. – Eu gostaria de
responsabilizar o Frido por eu ter me tornado uma matroninha chata. Mas não
é certo. Eu entrei no jogo. Dia após dia. A gente sempre entra no jogo.
Caroline sabia que Eva tinha razão. A companhia tranquila havia se
tornado um porto seguro. Seu casamento com Philipp parecia confiável,
natural e sossegado, e exatamente por isso fracassou, por causa da falta de
esforço, que resvalou para falta de amor sem que percebessem.

Caroline voltou seu pensamento ao que aprenderam e vivenciaram nos


seminários. Tinha perguntado nos últimos meses como ia a vida de Philipp ou
como ele se sentia? Devia se sentir preso, entediado, como se tivesse chegado
ao fim. Ela não viu nada, pois não percebia mais Philipp.
– Talvez Judith tenha razão – admitiu Caroline. – Meu casamento não
estava bem. Apenas nos escondíamos num cotidiano que funcionava.
Virou as costas para Eva, e ninguém poderia ver suas lágrimas.
71

Os picos dos Pirineus brilhavam brancos. À noite, a neve caiu sobre as


montanhas. O vento trazia o ar frio para os vales. O gerente do albergue teve
pena das mulheres que planejavam passar o dia lá fora, nessas temperaturas
polares. Para um francês sulista, os 13°C que predominavam no sopé dos
Pirineus se equiparava a uma frente fria aguda. Ele não enxotaria nem um cão
para fora da porta. Caroline gostava do frio. Achou que o frio repentino se
encaixava em sua última etapa.

Em silêncio, mancava pelo caminho. Às margens da trilha surgiam as


primeiras placas: Lourdes a doze quilômetros, então sete, por fim, três.
Caroline sentia dor. Deixou a mochila no chão e virou-se para Judith.
– Pode carregar se quiser.
Judith jogou a carga adicional nas costas como um castigo justo.
– Por meses tive medo. Medo e remorso. Agora o pior passou.
Caroline entendia bem o que Judith sentia. Ela implorava por absolvição,
pela amizade de Caroline, pela certeza de que tudo ficaria bem. Mas Caroline
não foi tão longe. Perguntava-se se algum dia teria condições para tanto.
Estava cansada demais, exausta demais para brigar e perdoar.
– Vamos conversar depois, Judith. Preciso primeiro botar ordem na minha
vida.
– Falou com Philipp?
Caroline sacudiu a cabeça:
– Tem coisas que são impossíveis de esclarecer por telefone.
Principalmente quando não se sabe como se vai reagir.
A grande raiva se esfumaçara nos quilômetros que passaram, mas também
não havia o que dizer. Judith e Caroline tinham um caminho a percorrer, e já
não mais o fariam juntas.

Eva insistiu para que pegassem o desvio pelo Pic du Jer, um topo de
montanha nas cercanias de Lourdes. Sob a grande cruz de madeira que se
erguia para o céu, era possível sentir-se novamente a mais de mil metros de
altura, próximas ao firmamento, antes de iniciarem a descida para o ponto de
peregrinação.
O vento soprava gélido sobre o mirante, que talvez por isso estivesse tão
vazio. Além das cinco e Max, havia apenas um casal solitário, que não
parecia ligado por mais nada além das alianças. Calados, bebiam algo de uma
garrafa térmica. A disposição era fraca, o panorama, impagável.
Nada bloqueava a vista dali de cima. Podia-se olhar 360° sem
impedimentos: na direção de Tarbes, a cidade de Pau, o vale de Argèles
Gazost e os pontos nevados de três mil metros. Antes deles, a paisagem
montanhosa típica, com suas florestas densas e vastos prados. Lourdes ficava
entre eles. Podia-se reconhecer as torres pontudas da Basílica do Rosário e,
antes delas, estendia-se uma grande superfície asfaltada, que parecia ter sido
construída para os montes de pessoas do distrito de peregrinação.
Teria sido o momento para comemorar em júbilo o final da viagem, bradar
com os punhos, tirar a camiseta do time pela cabeça. Teria sido o momento
de abraçarem-se às gargalhadas, mas ninguém estava em condições para isso.
Max registrou o momento memorável com a câmera de Kiki. Que
diferença da foto tirada no primeiro dia, no modo automático da câmera, um
retrato do grupo relaxado. Naquele momento, Judith e Caroline estavam tão
distantes nas margens esquerda e direita que quase caíam para fora da foto.
No meio, de braços dados, Estelle, Eva e Kiki. Os acontecimentos dos
últimos dias se refletiam nos olhares. Os rostos estavam marcados pelas
dificuldades do caminho, a pele bronzeada pelo sol, as roupas empoeiradas.
Havia muito Eva não era a única com o prático rabo de cavalo. Ninguém
sorria.
Caroline sentia-se extenuada e vazia. Sabia o que a esperava: lá embaixo
não estava apenas a gruta de Bernadette. No vale esperavam os telefones sem
chiados, hotéis com conexão rápida de internet, trens e ônibus de traslado
para os aeroportos de Pau e Lourdes. Uma única noite a separava da volta a
Colônia e do encontro com Philipp. Algo parecido era iminente também para
Kiki. Max deu a entender sem dúvida que manteria seu plano: apresentaria
Kiki aos seus pais.
– Você vê até onde as mentiras e os segredos levam – disse. E Kiki
concordou com a cabeça.

– Aqui em cima tem uma caverna que podemos visitar – Eva tentou segurar o
grupo. Soou tão entusiasmada como se tivesse percorrido centenas de
quilômetros apenas para explorar essa caverna.
– Nós conseguimos – gritou Estelle. – Eu sobrevivi! Meu reino por uma
banheira de espuma quentinha!
Estelle deu o sinal para lidar com os últimos metros. Kiki e Max seguiram
na frente, pois precisavam passar imediatamente por fax para Thalberg em
Colônia os desenhos que estavam claros, inconfundíveis e fortes no papel.
– Podíamos ao menos beber algo aqui em cima, não? – tentou Eva
novamente.
– Fazemos isso em Lourdes – comentou Estelle. – Quem tem vontade de
uma boquinha quando o fim do sofrimento está ao alcance das mãos?
Eva sentiu que uma mão se encaixava na sua.
– Medo da chegada? – sussurrou Caroline, sabendo exatamente o que Eva
sentia. Eva balançou a cabeça, agradecida.
– O quem vem mesmo depois do fim? – perguntou.
Caroline deu de ombros. Bom que ainda tinham uma última noite. Dariam
um fim festivo à peregrinação na procissão das luzes que acontecia todas as
noites no local. “Deveis vir em procissões”, Maria revelou por meio de
Bernadette. E assim as mulheres viriam.
72

–Que é isso? A Disneylândia dos católicos?


Estelle estava perplexa. A luz neon azul das lojas de souvenir reluzia sobre
as vielas estreitas. Azul como a cinta da Virgem Maria, que esperava pelos
compradores em milhares de versões. A cada duas lojas, uma música
diferente tocava. Após dias de solidão e silêncio, Lourdes foi um choque.
Boquiaberta, Estelle caminhava pela longa sequência de lojinhas que se
chamavam Alliance Catholique, Palais du Rosaire ou, mais sóbrio, loja
alemã, que queriam encher os peregrinos de todos os mesmos itens
devocionais. Na apertada Rue de la Grotte, a Virgem Maria era representada
de milhares de formas que surgiam em cartões-postais, santinhos, medalhões
e balas de menta, garrafas de plástico em cestos de vime, orando mudas como
estátuas de plástico, gesso e madeira. A maioria das estátuas de Maria eram
circundadas por uma faixa de luzes coloridas piscantes, outras estavam em
grutas de plástico que imitavam o local das aparições. Para aqueles movidos
por necessidades mais profanas que religiosas, havia batata frita, chocolate e
outros petiscos.

As aparições, que eram um espetáculo com mais de 150 anos, naquele


momento eram puro comércio. Para quem não bastava uma Maria, poderia
comprar na mesa de saldão um rosário, um Jesus crucificado ou um porta-
chaves do papa Bento XVI, que ainda era ofuscado pela popularidade do seu
antecessor. Com senso para o drama religioso, uma mendiga estava
acocorada sob um retrato de tamanho real de João Paulo II, a bengala apoiada
no muro vermelho, as mãos juntas, suplicantes, em oração.

Max saiu de uma das lojas sacudindo a cabeça. Na mão, tinha os desenhos de
Kiki.
– Aqui é mais fácil conseguir um milagre do que uma máquina de fax.
Kiki fuçava as garrafas de plástico transparentes com a forma e a imagem
de estátuas de Maria. No final, decidiu-se por uma garrafa com Maria e
Bernadette de joelhos, em cuja base havia a inscrição dourada: Que soy era
Immaculada Concepción. Como em todas as garrafas, a coroa azul podia ser
desrosqueada para encher Maria e Bernadette com água benta, e assim levá-
las para casa. Para aqueles que tinham necessidades maiores de água da fonte,
galões estavam à disposição e, apesar da estampa religiosa e a tampa de rosca
azul, lembravam galões de gasolina.
– Devemos levar água-benta? – ponderou Kiki.
– Você está perguntando para um ateu. No avião eu acredito em Deus.
Após o pouso, não mais.
Mas Kiki já havia puxado sua bolsinha de dinheiro.
– Se não ajudar, prejudicar também não vai.
Max tomou o braço de Kiki e a beijou.

Estelle estava impaciente. Onde quer que estivesse, sempre havia um


cadeirante no caminho. Em grupo, eram empurrados para a gruta das
aparições. Quem não tinha trazido sua própria cadeira era puxado em cadeiras
azuis com rodas parecidas com riquixás na direção do ponto de peregrinação.
Se em outras cidades existiam ciclovias, Lourdes tinha uma via marcada em
vermelho para o povo de cadeiras de roda.
– A gente se sente quase culpado por não andar no mínimo de bengala –
reclamou Estelle.

Eva comprou velas e distribuiu entre as amigas.


– Para a procissão das luzes hoje à noite – explicou.
– Fiquei feliz por ter chegado até aqui – disse Estelle, recusando. – Minha
necessidade de rituais católicos já está satisfeita pelos próximos 150 anos.
Seu estoque de compromissos nos quilômetros que percorreu na
peregrinação havia sido totalmente esgotado. Peregrinou até Lourdes, não era
possível exigir mais nada dela. De qualquer forma, suspeitava das pessoas
saudáveis que passavam para ver que outros estavam ainda piores.
– Eu vejo as fotos depois – gritou Estelle, desaparecendo na direção do
hotel. Enquanto acenava para as amigas, percebeu que não era a única que
desertara. Judith desaparecera. Sem uma palavra.
73

–A luz desta vela é o sinal da minha oração – leu Judith. A frase estava
estampada no grosso prato de aço que formava a parede traseira do ofertório.
Além disso, um segundo barril com a mesma inscrição, dessa vez em inglês.
E, então, em francês, holandês e italiano. Os ofertórios ficavam dos dois
lados e formavam um corredor de aço e luz. Judith viu que muitas das velas
eram compradas apenas na Rue de la Grotte. Apenas lá havia essas velas
características com a base azul. Alguns tinham trazido consigo para Lourdes
trambolhos de um quilo com inscrições religiosas em cera; Judith, a vela do
túmulo de Arne.
Ao fundo, o alto-falante já chamava os peregrinos para a procissão de luzes
daquela noite. Um guardião das velas, que cuidava dos costumes ordeiros dos
ofertórios e da reciclagem dos restos de cera, mostrou a Judith onde ficava o
local para a vela de Arne. Solene, acendeu o pavio em uma vela já queimando
e a encaixou com cuidado na ponta de aço.
Tantas luzes, tantos pedidos. Dentro de Judith, tudo era silêncio. Não tinha
mais nenhum desejo. Chegou a Lourdes, tinha resistido até o fim. Judith
havia posto as cartas na mesa e aguentou as consequências. Como disse o
peregrino demoníaco: “A verdade que está dentro de nós nem sempre é
agradável.”
***

Nesse meio-tempo, percebeu que não tivera medo do peregrino, mas de seus
próprios segredos. Tinha se confessado, mas a redenção não veio. Sua vida
antes dali fora varrida por uma tempestade. Aqui, no mar de luzes, tudo
estava calmo, como no olho do furacão. Cada passo que desse a partir
daquele ponto a levaria de volta aos ventos agitados.
Judith já estava na gruta, deslizou as mãos sobre a pedra envolta em lendas
e perguntou-se por que Maria lhe havia trazido para Lourdes. Maria, que
olhava de cima a baixo para peregrinos e turistas curiosos de seu nicho na
parede do rochedo, permanecia calada, como durante todo o caminho. A
elevação espiritual do peregrino era ainda negada a Judith, inclusive na gruta
de Lourdes. Não tinha ideia para onde o caminho a levaria. Tudo parecia em
aberto.

Quando Judith olhou para as velas votivas, percebeu que não estava mais
sozinha. Descobriu ao lado dela Celine, em sua cadeira de rodas colorida.
Compenetrados, os pais acendiam uma vela. As luzes amarelas dançavam no
rosto da criança, que dormia pela exaustão. Suas tranças úmidas balançavam
para fora de uma touca de lã. Tinha acabado de vir de uma das banheiras.
“Bebais da fonte e lavai-vos nela”, ouviu Bernadette da boca de Maria.
Judith olhava surpresa a disputa das pessoas para conseguir um dos lugares
desejados nos bancos de madeira, o que garantia que de fato mergulhariam
em uma das banheiras com água da fonte fria, a 12°C. Aqui também, como
em todos os lugares em Lourdes, cadeirantes, doentes e crianças tinham
preferência.
“O verdadeiro milagre é que em Lourdes não tenha ainda mais gente
doente”, Estelle brincou algumas horas antes. “A água é trocada apenas duas
vezes ao dia. Só o pensamento de entrar nesse caldo me deixa enjoada.”
Quando Judith avistou o casal, percebeu que Estelle estava errada. Eles
agiam de forma bem diferente do que alguns dias antes, no café da manhã na
pousada de Dominique. O cinza dos rostos havia sumido. Pareciam agitados,
quase alegres. O estado de saúde da filha não havia mudado nem um pouco.
E, mesmo assim, suas expressões estavam mais iluminadas.

O casal passou por Judith empurrando a cadeira de rodas sem reconhecê-la


ou sequer percebê-la. Nunca saberiam que a pequena Celine ajudara a
mostrar um caminho para Judith. Mas ela sabia o que devia ser feito.
74

Os sinos na torre da Basílica da Imaculada Conceição repicaram. “In


nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti” ecoava de alto-falantes sobre a
ampla praça. Na última meia hora, apareceram milhares de pessoas. Kiki e
Max encontraram um bom local na balaustrada da basílica de cima, do qual
tinham um panorama sobre todo o local sagrado. Entre turistas e curiosos,
sentiam-se melhores do que entre os fiéis que lá embaixo formavam a
procissão. Em todos os lugares, bandeiras, bandeirolas, insígnias, placas de
madeira e plástico, muitas iluminadas com pilhas.

Caroline acenou para os dois. Tinha se enfileirado com Eva na procissão e


ficou colada a um grupo de peregrinos italianos da UNITALSI, de Ravenna.
As cores esmaecidas da faixa arcaica que elevavam ao céu noturno
testemunhavam uma longa tradição peregrina. Na espera, acabaram
começando uma conversa. Caroline divertiu-se ouvindo histórias de Giovanni
Battista Tomassi, fundador da organização peregrina, que em 1903 viajou
para Lourdes, com uma grave artrite nas juntas e uma arma na cintura. O
homem tinha uma ideia clara do que aconteceria em Lourdes: “Ou Maria me
cura, ou eu me mato com um tiro.”
No final, nem uma coisa, nem outra aconteceu. Tomassi foi conquistado
pela atmosfera do lugar e transformou na tarefa de sua vida possibilitar que
pessoas doentes e necessitadas fossem até Lourdes. A organização
sobreviveu a ele, até os dias de hoje. Caroline riu da história. Simpatizou com
o radical Tomassi.
Como Tomassi cem anos antes, ficou impressionada com as pessoas e as
massas que se reuniam ali. Caroline estimava que havia vinte mil pessoas
reunidas na praça. Nunca tinha visto tantos idosos, doentes e desvalidos,
tampouco milhares de cadeiras de rodas de uma vez só. Eram necessárias
centenas daqueles riquixás azuis e centenas de voluntários prontos para
conduzi-los. Diante delas, havia membros da Associação de Lourdes da
Vestefália, que chegaram pela manhã da Alemanha em doze carros-leito para
doentes graves. A maioria dos peregrinos estava tão doente que era carregada
em macas na procissão com a infusão balançando sobre a cabeça. Em todos
os cantos, os voluntários em seus uniformes corriam para ajudar. Pareciam
saber exatamente como a praça devia ser preenchida para que todas as
cadeiras de rodas e carros azuis pudessem ser levados. O lugar à frente da
procissão era reservado aos necessitados, bem atrás da Madonna iluminada
que guiava os fiéis.
Caroline ficou emocionada pela delicada canção de Maria que soava dos
alto-falantes. À voz límpida, clara que entoava a canção uniam-se cada vez
mais vozes. A contida canção de Maria inflava-se num coro poderoso, que
seguia claudicante a voz predominante sempre um pouco atrás e a fazia
flutuar. No refrão, as milhares de velas, cujas chamas eram protegidas por
rosas azuis e brancas de papel, elevavam-se para o céu sem estrelas.
Ave. Ave. Ave. Ave Maria.
Caroline fundia-se no mar de luzes das velas e na canção que a envolvia
calorosamente. Não podia negar: ela, que nunca quis peregrinar e não se
importava nada com o catolicismo, estava tocada pela atmosfera da noite e
pela magia da praça em torno da grande basílica. Eva desapareceu na
multidão, e era bem provável que Kiki e Max ainda estivessem na
balaustrada. E, mesmo assim, estavam ligados pela cerimônia religiosa.
E lá estava de novo a imagem de Maria, carregada pelas pessoas, e dessa
vez parecia sorrir abertamente para Caroline. As lágrimas, que ela limpava
com rapidez, corriam pelo seu rosto. Até perceber que seu vizinho, um padre
grande e negro em vestes coloridas, também chorava. Não importava mais se
alguém visse suas lágrimas. Chorava e sorria ao mesmo tempo.
Não importava também se a história das visões de Bernadette era real. Não
importava o que as lojas de souvenir em torno do campo santo faziam de
Bernadette e Maria. O que viveu naquela noite na praça tinha sua própria
veracidade. Não se tratava de dogmas incompreensíveis e curas
espetaculares, tratava-se de pequenos gestos da humanidade. Acompanhar
um doente, empurrar uma cadeira de rodas, puxar os riquixás, pegar uma
mão. Talvez fossem esses os verdadeiros milagres que as pessoas levariam
para casa.
75

A despedida de Lourdes veio mais rápido do que Caroline desejou no


momento mágico na praça. A chegada no hotel foi apressada. O La Solitude
quase a engoliu com sua balbúrdia de peregrinos. Caroline teve a sensação de
que todos os 356 quartos do hotel estariam ocupados. Em grupos, os
peregrinos predominantemente mais velhos se acotovelavam no bar, na loja
de souvenir e roupas no lobby e diante dos cinco elevadores de alta
velocidade. O único lugar calmo era o terraço, onde havia uma minipiscina.
Apenas um menino holandês sardento, apesar da hora adiantada, gritava
animado na piscininha e mergulhava incansavelmente atrás de objetos que
sua mãe lançava para ele na água. O que essa dupla alegre procurava em
Lourdes? Após uma hora, esses dois também tinham sumido.
Bem abaixo reluzia o rio Gave. As fachadas iluminadas dos hotéis e as
propagandas em neon das lojas refletiam-se na água. Um grupo caminhava
pela ponte na direção de suas acomodações noturnas.
Seguiram-se à última taça de vinho no terraço uma noite inquieta e um café
da manhã às pressas no dia seguinte, entre centenas de peregrinos. Caroline
respirou aliviada quando saiu para a rua. Um carro buzinou.
– Surpresa – gritou uma voz conhecida. Os olhos de Eva se encheram
d’água de pronto. Frido viera com os quatro filhos. Insistiram em trazer Eva
de volta pessoalmente para o seio familiar. Comovida, abraçou os cinco de
uma vez. Ficou muito feliz ao rever a família.
– Eles parecem saudáveis e nada famintos – sussurrou Caroline para Eva.
– Anna está tão grande. Acho que cresceu alguns centímetros – comentou
Eva, enxugando uma lágrima.
Atrás do carro de Frido, um táxi freou. Estelle saiu do hotel. De tailleur e
salto alto. De onde tinha tirado aquilo?
– Para onde você vai? – gritou Caroline.
– Para o aeroporto. Reservei duas semanas de spa no sul. Preciso disso
para me reencontrar.
Não houve uma hora certa para as despedidas. O hotel não tinha recuo e a
avenida Bernadette Soubirous era tão estreita que o carro de Frido causou um
congestionamento. Atrás dele buzinava um carro de entrega, cadeirantes
reclamavam que não podiam passar, o dono da relojoaria informou sobre a
proibição absoluta de estacionar ali. Após dez dias de desaceleração, de
repente tudo ficou fora de controle e rápido demais.
Quando Kiki e Max saíram do hotel recém-banhados e de braços dados,
conseguiram ainda acenar para despedirem-se de Eva e Estelle.
Caroline olhou em volta, procurando:
– Cadê a Judith?
– Foi embora – disse Kiki, séria. – Ontem à noite.
Caroline deu de ombros:
– Talvez seja melhor assim.
Com o coração apertado, pôs-se a caminho de Colônia. A caminho de
Philipp.
76

Hesitante, Judith entrou na pousada para doentes, onde Dominique


arrumava as mesas para o almoço. Se ficou pasmo ao ver Judith, não deixou
transparecer. Não tinha vontade alguma de conversar com ela. Tinha mais o
que fazer.
– Posso falar com o senhor? – tentou Judith, em voz baixa.
Dominique fuzilou-a com um único olhar. Sob suas sobrancelhas grossas
não havia sinal algum de perdão e clemência.
– A senhora tem um talento imbatível de aparecer em momentos
inadequados – rosnou com rispidez. Deixou-a para trás e voltou-se para o
trabalho.
Judith não se deixou impressionar. Tinha tantas perguntas. Sobre Arne,
sobre o tempo que ele passava ali. Talvez quisesse também apenas convencer
Dominique de que não era uma pessoa má.
– Posso esperar até ser um bom momento para o senhor – disse ela,
cuidadosa. – Tenho tempo.
Em vez de uma resposta, Dominique deu a ela uma pilha de pratos. Sem
pergunta, nem explicação.

Por um momento, Judith hesitou, então aceitou o desafio. Distribuiu os pratos


nas mesas para oito pessoas. E então os talheres, os guardanapos e as cestas
de pães. Tinha muito a fazer. E toda mão era útil. Não se virou nenhuma vez
para olhar Dominique e sua reação. Não era uma questão de aprovação, e
naquele momento Dominique ficou pasmo.
77

Eva passou um dia fantástico com a família. Para a despedida, foram com a
locomotiva de cremalheira ao Pic du Jer. Para Eva era importante que a
família no mínimo tivesse uma leve ideia da grandiosidade da paisagem e do
caminho que ela havia percorrido. Tomaram sorvete no mirante e trocaram
histórias. Eva contou da porca Rosa, dos peregrinos que encontrou, das brigas
entre Judith e Caroline, de Max e Kiki e do cassoulet. Mesmo Jacques, o
cozinheiro easy rider, voltou em suas histórias. Omitiu apenas o beijo. Tinha
aprendido nos últimos dias que ninguém precisava saber de tudo, nem contar
tudo. Frido olhava sua mulher com curiosidade. Tinha um brilho no olhar,
uma luz que não percebia havia tempos. Soube novamente por que havia se
apaixonado por Eva.

Meia hora depois, Eva estava sentada no carro. A paisagem pela qual se
afeiçoara passava por ela em ritmo acelerado. Sentiu falta dos cheiros e da
sensação que a brisa morna deixava na pele. O ar-condicionado filtrava a
singularidade da terra. Vilarejos e campos voavam rapidamente por sua
janela. Nenhum detalhe ficava. A mão de Frido tocava a sua e ele a enchia de
olhares e elogios apaixonados.
– Que bom que você voltou. Senti sua falta.
Eva balançou a cabeça, feliz. Lá atrás, todos falavam com ela.
– Sabe que eu me atrasei muito para o tênis – gritou David. – Nenhuma
mãe é tão responsável quanto você, mamãe.
– Transferiram a culinária de mãe e filho para amanhã. Não é legal? –
Anna interrompeu seu irmão mais velho. – Você ainda precisa fazer compras.
Eva tomou um susto. Compras? Cozinhar amanhã? Ela esperava que sua
alma, que se esforçou para acompanhar aquele ritmo, tivesse um pouco de
tempo para encontrar seu caminho de volta para Colônia e para o dia a dia.
Antes que ela pudesse responder, Lene protestou.
– Não é justo. Mamãe precisa falar com meu professor. Ele quer me fazer
repetir de ano.
Eva olhou para Frido:
– Pensei que você tivesse ido na reunião de pais.
Frido contorceu-se um pouco.
– Você é muito melhor nisso – elogiou ele. – Ninguém consegue lidar
melhor com professores. E se eu pudesse pedir algo para o café da manhã.
Seu crème caramel…
Ele não prosseguiu, pois Eva gritou:
– Para! Para tudo!
Apavorado até a alma, Frido freou o carro. Os passageiros voaram em seus
cintos. Os freios atrás deles chiaram. Em todos os lugares, carros buzinavam.
– Você quer matar a gente? – berrou Frido quando parou no acostamento e
desligou o carro. – Ficou louca?
Tudo ficou claro na cabeça de Eva. Tão claro como nunca antes.
– Eu amo vocês. Vocês cinco. Mas assim não dá para continuar.
Num ímpeto, abriu a porta do carro de uma vez e desceu. Frido não
conseguia acreditar.
– O que está acontecendo com você?
Eva deu a volta no carro, abriu o porta-malas e tirou sua mochila de lá. Em
uma estrada dos Pirineus bem movimentada, uma ação bastante perigosa.
Irado, Frido foi até sua mulher:
– Eva? Que você tá fazendo? Onde você vai?
– Para Santiago de Compostela – respondeu Eva, como se fosse a coisa
mais normal do mundo.
– Vai o quê? – Frido não podia acreditar no que tinha ouvido. – Mas não
pode.
Eva lançou para ele um olhar crítico. Se ele dissesse naquele momento “Eu
tenho reunião do conselho amanhã”, ela cometeria um assassinato. As quatro
crianças grudaram o nariz na janela do carro. Frido abriu a boca e voltou a
fechá-la. Supôs que nenhum argumento do mundo convenceria Eva a
reassumir o papel da senhora “passe de mágica” para sua família ou de saco
de pancadas para sua mãe, Regine.
– Estou apenas no início do meu caminho – admitiu ela. – É melhor vocês
acostumarem a ter no futuro uma mãe independente.
Ela se sentia como uma alcoólatra que acabara de receber alta da
reabilitação e, com temor, tira do caminho qualquer tentação. Tudo era muito
recente. Muito novo. A Eva mudada estava muito frágil. Se fosse agora para
casa, em três dias tudo seria como antes. Os dias na peregrinação despertaram
algo nela, mas precisava de mais tempo. Tempo para si, tempo para refletir
sobre si, sobre Regine, sobre tudo. A família aprenderia a viver com a lacuna.
Com a lacuna na vida familiar e na geladeira.
– Livrei você de todo o peso da família por quinze anos. Agora é sua vez.
Indeciso, ele insistia. Frido sabia que Eva tinha razão.
– Eu não sabia que era tanto trabalho – confessou Frido. – Quatro filhos,
todos os compromissos, compras todos os dias, cozinhar. Para você, tudo
parece tão fácil. Como se tudo acontecesse sozinho – desculpou-se ele.
Eva balançou a cabeça. Nada acontecia como por encanto.
– Eu aprendi. Você também pode aprender. E se algo der errado, tenho um
ótimo segurador comigo…
Frido sorriu. O recurso maravilhoso de atenuar conflitos ameaçadores com
humor também ajudou Eva.
– Não quero um marido novo. Apenas um pouco de tempo. Talvez uma
babá…
Não conseguiu continuar.
– Nós ficaremos bem – interrompeu David, indignado. – Não somos mais
crianças.
Todos os quatro filhos sacudiram a cabeça com veemência. Eva não
completou seu pensamento. Sabia que as crianças tinham razão. Era hora de
deixar um pouco a barra da saia materna.
– Eu te amo. Nós te amamos – disse Frido por fim para ela. E então deu-
lhe um beijo nos lábios que levou todos os quatro filhos a um suspiro
coletivo, como se dissessem “Pais são simplesmente constrangedores”.
– Eu sei – respondeu Eva. Naquele momento ela precisava apenas voltar a
se amar. Tinha algumas centenas de quilômetros à frente.

No banco de trás estava Anna, sentada com seu laptop desenhando o caminho
da peregrinação das mulheres de terça-feira, que agora haviam se espalhado
por todas as direções. Duas flechas, no entanto, seguiam para Colônia: as de
Kiki e de Caroline.
78

Estranho. O escritório não estava fechado? Àquela hora? Caroline girou


irritada a chave na porta de seu escritório. Junto com Kiki e Max, voltou de
trem. Temia que Philipp, que sabia exatamente quando deveria aterrissar,
pudesse esperá-la no aeroporto. Tinha decidido pegar o carro, que esperava
na garagem, num outro momento. Mais importante era ter um pouco mais de
tempo para pensar. Caroline esperava que doze horas de trem bastariam para
chegar a uma decisão. O que era correto? Falar? Perdoar? Entrar
imediatamente com o pedido de divórcio?

Na baldeação em Paris Montparnasse, de onde queriam seguir de metrô para


Paris Nord, ela se perdeu de Kiki e Max. Kiki convencera Max a passar uma
noite em Paris. Caroline invejava o carinho que demonstravam
desbragadamente um pelo outro. Era um belo casal, apesar da diferença de
idade. Mas Caroline tinha a leve suspeita de que Kiki queria ir para Paris
também a fim de postergar mais um dia o confronto com Thalberg. Max não
fazia segredo de que colocaria fim aos segredos assim que chegassem em
Colônia. Mentiras eram bumerangues, foi o que aprendeu.
***

A partir de Paris, restavam quatro horas para Caroline. Quando o trem Thalys
chegou na estação central de Colônia, Caroline decidiu fazer o mesmo que
Kiki. Passaria a noite no escritório e se encontraria de manhã com Philipp.
Depois dos dormitórios franceses, uma noite no sofá do escritório não
assustava.

Enfurecida, fez uma pausa. Que era aquilo? Luz? A essa hora? Colegas
curiosos eram a última coisa de que ela precisava. Uma das imponentes
poltronas giratórias no lobby moveu-se. Com esforço, Philipp levantou-se.
– Sabia que primeiro você viria ao escritório – disse ele num tom
amigável. Parecia mais magro, suas bochechas estavam caídas, sob os olhos
despontavam olheiras escuras. A ligação de Judith tinha soado o alarme para
ele. Caroline se esforçava para digerir o choque. Não queria cumprimentá-lo,
não queria falar com ele, não queria absolutamente nada. Não queria ser
atacada daquela forma. Após a viagem de peregrinação, não podia aguentar
nenhuma outra surpresa de Philipp.
– Fiz algo muito idiota. E agora procuro uma boa advogada que ajude a
botar minha vida em ordem – abriu a conversa.
Quanto tempo teria levado para pensar na introdução adequada? Seu texto
soava como se tivesse treinado diante do espelho. Com a cara adequada de
penitente.
– Não serei eu – engasgou Caroline. Não gostou de Philipp surpreendê-la
daquela forma.
– Eu terminei tudo – explicou Philipp num tom que sugeria que ele estava
orgulhoso.
– Com todas? Ou apenas com as amigas das quais eu sei?
Philipp percebeu que não podia continuar daquele jeito.
– Que preciso fazer para te convencer de que estou sendo honesto?
Philipp pensou de verdade que havia uma receita fácil? Ele esperava
realmente uma resposta?
– Não é você. Não apenas – confessou Caroline. – Somos nós. O trabalho,
amigos, esporte, congressos, as minhas amigas. Tudo era mais importante
para nós que passar tempo juntos. Levamos vidas separadas há anos, Philipp.
Custava muito para ela ver a verdade nos olhos. Não tinha sentido furtar-se
à responsabilidade. Judith tinha razão: havia uma porta que continuava
aberta. Philipp viu suas esperanças afundarem.
– Aquilo com Judith não significou nada para mim – afirmou com os olhos
fiéis de um cachorro salsicha. – Estou na crise de meia-idade.
Judith assumiu a responsabilidade. Caroline estava disposta a se
responsabilizar pela sua parcela no desastre particular. E seu marido apela
para os hormônios aos quais um homem estaria desesperadamente a mercê
após os melhores anos. Se fosse pelo menos amor, algo grande, uma força da
natureza. Mas Philipp veio com a crise da meia-dade. Não gostou de como
ele falou sobre sua amiga. Como se Judith não contasse. Caroline, que até
aquele momento conseguira de alguma forma manter a compostura, sentiu
como a fúria quis tomar conta dela.
– Queria que você fosse embora – falou ela, dura.
Philipp não conseguia acreditar.
– Você vai jogar fora 25 anos de casamento?
– Você quem fez isso, Philipp. Com seus casinhos.
– Isso é passado, Caroline – suplicou Philipp.
Sua presunção a atingiu em cheio. Estava claro que Philipp achava que o
casamento funcionava de acordo com o princípio do desconto. Segundo o
número de anos juntos, conseguia automaticamente uma segunda chance.
– Preciso de tempo para pensar. E para os meus hobbies – falou ela, de
improviso.
– Desde quando você tem hobbies, Line?
Não, ela não explodiria. Não, não, não.
– Desde hoje – anunciou e buscou o celular na mochila. Max tinha gravado
para ela no trem números de seu celular via Bluetooth. Música era ainda
melhor que pão crocante. Era só enfiar o fone de ouvido na orelha e despedir-
se de todos os ruídos incômodos. Caroline aumentou bem o volume. Os
Poppys cobriam com suas vozes alegres de meninos tudo que Philipp tinha a
dizer.
Non, non, rien n’a changé.
Nada havia mudado, que bobagem. Após Lourdes, não restou pedra sobre
pedra. Deveriam lidar com aquilo. Amanhã. Depois de amanhã. Mas não
hoje. Hoje ela cantava com os Poppys e afirmava que tudo continuava igual.

Philipp já estava com a maçaneta na mão quando a voz de Caroline ressoava


pelo escritório. Alta e muito peculiar. Philipp nunca soubera que sua mulher
podia cantar. Começou a perceber que não sabia de muita coisa.
Caroline dançava e cantava pelo escritório e buscava entre os textos
jurídicos, pastas de casos e as edições reunidas da revista jurídica Neue
Juristische Wochenschrift um lugar adequado para o souvenir mais
importante: uma estátua de Maria em madeira que podia ser comprada em
Lourdes aos milhares e barato. Artigo de massa made in Extremo Oriente. E
ainda assim, ela emanava um brilho mágico que iluminava a sala escura.
Aquilo não era comprovável, mas para Caroline imaginável. Maria havia
marcado sua biografia. E para isso ela não precisou acreditar, nem mesmo ser
católica.
79

–Isso é necessário? – perguntou, lamentosa.


Max simplesmente continuou a puxar Kiki. Ela conhecia os Thalberg o
suficiente para imaginar como reagiriam quando Max a apresentasse no meio
do campo de golfe. Kiki lera na internet que pesquisadores suecos
descobriram que jogadores de golfe viviam cinco anos a mais que não
jogadores de golfe do mesmo sexo e idade. Kiki temia que fosse apenas para
jogadores suecos de golfe, pois aquilo que estava diante do distinto casal no
buraco nove provavelmente não contribuiria para o prolongamento de sua
vida.
De longe, ela reconheceu o chefe. Johannes Thalberg vestia uma calça
quadriculada, um colete branco com gola V de contraste azul e um óculos de
armação branca hype com design assinado; sua mulher, ao lado, estava toda
de branco. A primeira vez que Kiki encontrou a senhora Thalberg foi quando
precisou buscar algo na nobre mansão de Marienburg. Na ocasião, também
estava vestida toda em cores claras. Ela se encaixava de forma tão harmônica
à decoração creme assinada que Kiki quase não a viu.
Kiki quase não percebeu nada de tanto nervosismo e não se deu conta de
que Max não estava mais ao seu lado. O greenkeeper, um grande fã de Max,
descobriu-o, abraçou-o efusivamente e não quis mais largá-lo de tanta
felicidade pelo reencontro.

– Kiki – gritou Thalberg. Ficou claro que seu desenho liberara o tratamento
informal. – Que coincidência, Kiki – comentou. – Os vasos. Desenhos
incríveis. Simples, claros, convincentes. Não queira saber que porcarias
cheias de detalhe eu recebi de seus colegas.
Kiki balançou a cabeça calada, buscou a mão de Max e pegou no vazio.
Somente naquele instante ela percebeu que estava sozinha com os Thalberg.
– Em geral, esse é um motivo para um brinde – continuou Thalberg. – Mas
infelizmente temos assuntos pessoais.
Max ainda estava ocupado com o greenkeeper. Ela caíra numa armadilha.
– Estamos esperando nosso filho com a nova namorada – explicou a
senhora Thalberg, que não ligava para a discrição que o marido visivelmente
mantinha em assuntos particulares. – Você nem reconhecerá nosso Max. Está
tão mais aberto.
– Max tem mostrado até mesmo interesse na direção da empresa –
Thalberg interrompeu a esposa. Não ajudou muito. A senhora Thalberg, tão
falante, continuou falando.
– E o meu marido pensava que ele tinha um caso na empresa – riu a
mulher.
Por fim, Max chegou e parou ao lado de Kiki.
– Não consigo. Não dá – sussurrou para ele.
Max abraçou Kiki gentilmente. As feições dos pais congelaram.
– As propostas de racionalização, as ideias para a nova linha de produto, as
dicas de casamento, tudo vem de Kiki – explicou ele com piscadelas
conspirativas para a mãe. Talvez não fosse uma apresentação diplomática,
mas era eficiente. Dentro de poucos segundos Max deixou claro para os pais
o que estava acontecendo. – O bom – continuou Max, impassível – é que
vocês não precisam conhecer minha namorada. Já conhecem.
A mãe deu um fim ao episódio apavorante. Com perfeita compostura,
apertou a mão de Kiki.
– Nos dê licença, por favor.
Fugindo e em discussão ferrenha, os pais de Max deixaram o campo de
golfe. Kiki parecia infeliz. Era exatamente o que sempre temeu.
Max sorriu para ela:
– Acho que eles gostaram de você.
80

–Novamente para quatro? – perguntou Tom, cuidadoso.


– Exatamente como nos últimos meses – respondeu Caroline. Era a
primeira terça-feira no mês e Caroline ainda estava sozinha na mesa da lareira
do Le Jardin.
Tom tirou a placa de reserva e o quinto serviço de mesa. Luc olhou para o
filho com uma expressão indiscernível. Demorou algumas semanas até que
pudesse, de certa forma, juntar as peças sobre o que podia ter acontecido na
viagem para a França. Até hoje não consegue se acostumar. Se ele sentia
tanto o vazio do quinto lugar, como as mulheres deviam estar?

No corredor estava pendurada uma série de cartões-postais que elas tinham


enviado nos últimos meses. Uma mostrava o Massif de la Clape e tinha sido
assinado por todas as cinco. Ao lado havia um cartão de Judith, que havia
meses trabalhava como voluntária em uma pousada para doentes. Em outro
Eva escrevera durante seu caminho para Santiago de Compostela. O último
veio do cabo Finisterra. “É um costume deixar algo do equipamento na
escarpa, como sinal de que o caminho terminou. Deixei uma foto antiga
minha lá”, escreveu no verso. De fato, Luc precisou olhar duas vezes quando
uma Eva elegante, com frescor na aparência, entrava vívida no
estabelecimento. Com casaco da moda e sem o rabo de cavalo relaxado,
parecia dez anos mais jovem.
– Estou faminta – sussurrou para Luc quando ele, todo galante, a ajudou
com o sobretudo.
– Não comeu em casa?
Eva balançou a cabeça.
– Nem cozinhei. Eles esquentam uma sobras no micro-ondas.
Ultimamente, conseguia viver com a perda de antioxidantes. Melhor ainda:
estava no melhor caminho para dar mais um passo.
Orgulhosa, apresentou a Caroline seu novo tailleur. Não tinha perdido um
grama, mas não escondia mais suas formas arredondadas.
– Tem algum compromisso mais tarde? – perguntou Caroline, surpresa.
– A médica, você sabe, com quem peregrinei os últimos 120 quilômetros.
Estão buscando uma substituta de férias para ela no hospital. Amanhã posso
me apresentar. Estou bem?
Ela deu uma pirueta perfeita diante de Caroline que, empolgada, aprovou
com um balançar de cabeça. Luc pegou-se fazendo sinal de joia com o dedão.
– Se precisar de uma diarista, pense em mim! Estou à disposição – gritou
uma voz atrás delas. Era Kiki, que entrou apressada. Como sempre, parecia
um pouco desgrenhada.
– O velho Thalberg não se acalmou?
Kiki balançou a cabeça, triste:
– Não tinha tanto tempo livre há anos.

Luc sabia que Thalberg mandou Kiki embora uma semana após o lendário
encontro no clube de golfe. Na mesa das mulheres de terça-feira, foi discutido
à exaustão se Kiki deveria tomar medidas jurídicas contra isso. No fim,
decidiu não fazê-lo. Até aquele momento, não quis provocar a vingança
familiar. Esperava que a série de vasos facilitasse sua entrada em uma nova
agência, pois tinham sido produzidos. Luc esperava todos os dias que os vinte
exemplares que ele encomendou para o restaurante fossem entregues.
– Por isso ela se mudou com Max. Não se fala de outra coisa no clube de
golfe – comentou Estelle, que nesse meio-tempo tinha entrado no Le Jardin.
Vestida com perfeição, como sempre. Com manicure perfeita nas unhas.
Achava que devia isso ao seu pai, que a vida toda deu duro com suas mãos
castigadas. Muitos visitam o cemitério para lembrar dos parentes falecidos.
Estelle ia à manicure.
– Compramos os móveis juntos – comentou Kiki. – Max a poltrona, eu, o
sofá. Para o caso de não dar certo.
Luc sorriu por dentro. Depois de Matthieus, Michaels, Roberts e outras
catástrofes, era um passo imenso para Kiki. Era meio caminho andado.
– E você? – Eva perguntou, olhando para Caroline.
Um silêncio pousou sobre a mesa da lareira. Todos os olhos voltaram-se
para a advogada descolada que, nos últimos meses, não estava tão descolada
assim. Luc, que estava a caminho da cozinha para servir as entradas, parou
por um instante. Aquilo interessava a ele mais do que todo o resto. Havia
preparado algo especial para suas mulheres de terça-feira. Algo que ia contra
as regras implícitas às quais ele obedeceu por quinze anos. Algo que as
surpreenderia. Tenso, ouviu como estava a vida de Caroline.
– Ainda falta tudo na casa nova – contou ela. – Um fogão, estantes,
quinquilharias. Na última semana estive numa loja de móveis com a Fien. E
Vincent trouxe o restante das caixas da mudança no fim de semana. É isso.
As amigas olhavam para ela, caladas. Aprenderam com Caroline. Se quiser
saber de algo, precisa aprender a calar.
– Agora, Philipp e eu nos encontramos às vezes. Conversamos bastante –
continuou Caroline. – É difícil.
Uma bateria de copos de champanhe tombou e derramou-se sobre
Caroline. Luc se desesperou. Não era assim que imaginava a entrada da nova
garçonete.

Ao lado da mesa da lareira estava Judith, enrubescida, olhando com


vergonha. Nas mãos, girava constrangida a bandeja.
– Dominique me ensinou como servir, mas não tinha champanhe lá.
Caroline a encarava como se ela tivesse acabado de descer de uma nave
espacial. Luc esfregava as mãos, nervoso. Esperava conhecer bem o
suficiente suas meninas e ter interpretado bem os fiapos de conversa que
conseguiu agarrar da mesa da lareira. Quando Estelle, Caroline e Kiki
jantaram, as três, duas semanas após o fim da viagem, não tocaram no nome
de Judith. Com o passar dos meses, as arestas afiadas da raiva foram polidas.
“Como está Judith”, sempre se perguntava. Desde Lourdes, nenhuma delas
teve contato com a amiga. Quando, no último encontro de terça-feira, flagrou
Caroline lendo às escondidas no corredor os cartões-postais de Judith, soube
que devia agir. Fez algo que não ousou fazer em quinze anos. Intrometeu-se
na vida de suas clientes. Escreveu um cartão-postal para Judith, que estava na
França. Nele, anotou aquela data. E, embaixo dela, poucas palavras: “Não
esqueça novamente que é a primeira terça-feira do mês.” E 19h40, Judith
surgiu no Le Jardin. Estava nervosa, insegura.

Eva foi a primeira a interromper o silêncio que dominava a mesa da lareira


desde a aparição de Judith.
– Você falou com Dominique? – perguntou ela.
Judith negou com a cabeça.
– Nunca conversamos de verdade. Fiquei feliz por ele ter me aceitado
como parte da equipe. Já foi muito.
– E você aguentou por quatro meses? – questionou Kiki.
– O bom é que ninguém tem tempo de resmungar. Você precisava ver
nossos hóspedes. Pela primeira vez tive a sensação de estar fazendo algo útil.
O silêncio voltou. Caroline limpava com papel-toalha o último resto de
champanhe de sua calça. Mesmo quando não havia mais nada a limpar.
Judith olhou para Luc, insegura. Ele a encorajou com um balançar discreto
com a cabeça.
– Toda primeira terça-feira eu pensei em vocês. Senti saudades –
confessou Judith.
Caroline ainda estava pensando em como lidar com a situação.
– Eu me perguntava sempre como você estaria – Judith falou diretamente
com Caroline. – Nunca me senti à vontade para te ligar.
Luc segurou a respiração. Naquele momento comprovaria se tinha avaliado
bem as circunstâncias. Caroline levantou-se calada e puxou a quinta cadeira
debaixo da mesa.
– Vocês ainda me aceitam? – perguntou Judith.
– Sem você a mesa não fica completa – admitiu Caroline.
Judith estava emocionada. Então, abraçou Caroline como se quisesse
amassar sua nova velha amiga.
Luc sorriu de orelha a orelha. Deu um sinal para Tom encher novamente as
taças de champanhe. Pouco depois, Estelle levantou sua taça:
– Às mulheres de terça-feira.
As taças tilintaram. Num instante, as vozes das cinco mulheres encheram o
ambiente. Apenas naquele momento Luc percebeu como sentia falta da
confusão que havia quinze anos preenchia seu restaurante toda primeira terça-
feira do mês.
– Quando se pode peregrinar junto, consegue-se tudo na vida – declamou
Eva, um pouco patética. Luc a entendeu. Se não era aquele o momento de ser
patética, quando seria?
– O que vocês conseguiram com a peregrinação? Ela não me trouxe nada –
Estelle comentou, indignada.
– Você só não admite – interrompeu Kiki.
– Calos na sola do pé – respondeu Estelle. – Isso conta como mudança?
– Você acha que eu teria falado tudo aquilo com Frido se tivesse desistido
na primeira manhã? – intrometeu-se Eva.
Estelle não estava convencida.
– Coisa de Deus uma ova. Rosa, a porquinha, salvou sua vida.
Luc retirou-se sorrindo para sua cozinha, lá, onde se sentia melhor, nos
bastidores. Antes de desaparecer na porta vaivém, virou-se novamente para
Caroline.

Caroline recostou-se na cadeira e olhou para as amigas, o modo como


falavam, gesticulavam, brigavam, sorriam, comiam e bebiam. Nada havia
mudado, mesmo que tudo tivesse mudado. Caroline sorria em silêncio.
Naquele momento, estava satisfeita. Consigo e com o mundo. E com tudo
que estaria no seu caminho. Amanhã.
Agradecimentos
A Marc Conrad, que acompanhou as mulheres de terça-feira do primeiro
momento com conselhos, ajuda e entusiasmo. Sem ele, a ideia desta história
ainda estaria planando, sem rumo, no ar.
A Kerstin Gleba pela confiança, abertura e amizade, pelos novos
conhecimentos e novos mundos. Não existe coincidência.
A Peter Stertz (sua teimosia era minha obrigação) e Michaela Röll.
A Marie Amsler e Rudi por sua carona entre Lourdes e Carcasonne, pela
busca conjunta pelas vieiras de São Tiago nos Pirineus e pelas ajudas
francesas de toda sorte.
Ao padre Uwe Barzen, pela pastoral alemã em Lourdes, Sophie Loze e os
voluntários do Hospitalité, que compartilharam seu olhar sobre Lourdes.
A Jörn Klamroth, que possibilitou a filmagem, e Claudia Luzius, que
supervisionou o roteiro.
A Haide e Karl-Heinz Peetz, pelo apoio constante.
A Peter Jan Brouwer, Lotte e Sam. Por tudo.
Índice
CAPA
Ficha Técnica
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Oasis. Neste mundo distópico, pistas são deixadas pelo criador do programa e
quem achá-las herdará toda a sua fortuna. Como a maior parte da
humanidade, o jovem Wade Watts escapa de sua miséria em Oasis. Mas ter
achado a primeira pista para o tesouro deixou sua vida bastante complicada.
De repente, parece que o mundo inteiro acompanha seus passos, e outros
competidores se juntam à caçada. Só ele sabe onde encontrar as outras pistas:
filmes, séries e músicas de uma época que o mundo era um bom lugar para
viver. Para Wade, o que resta é vencer - pois esta é a única chance de
sobrevivência. A vida, os perigos, e o amor agora estão mais reais do que
nunca.

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