Coragem de Criar
Coragem de Criar
Coragem de Criar
“VIVEMOS a morte de uma época, e a nova era ainda não nasceu. Tudo à nossa volta é prova
disso: a mudança radical nos costumes sexuais, na educação, religião, tecnologia e em quase
todos os outros aspectos da vida moderna. E, por trás de tudo, a ameaça da bomba atômica,
distante, mas sempre presente. É preciso coragem para viver nesse limbo.” p. 8.
Temos uma escolha. Fugir em pânico ante a iminência do desmoronamento das nossas
estruturas; acovardar-nos com a perda dos portos conhecidos; ficar paralisados, inertes e
apáticos. Fazendo isso, estamos abrindo mão da oportunidade de participar da formação do
futuro. Estamos negando a característica mais distintiva do ser humano — influenciar a
evolução por meio do reconhecimento consciente —, capitulando frente à força destrutiva e
cega da história, desistindo de moldar uma sociedade futura mais justa e mais humana.” p. 8.
1. O que é a coragem?
“A coragem de que falamos não é o oposto do desespero. Muitas vezes teremos de enfrentar
o desespero, como tem acontecido a todas as pessoas sensíveis nas últimas décadas. Por isso
Kierkegaard e Nietzsche, Camus e Sartre afirmam que a coragem não é a ausência do
desespero, mas a capacidade de seguir em frente, apesar do desespero.”. p. 9.
“A principal característica dessa coragem é originar-se no centro, no interior do nosso eu, pois
do contrário nos sentiremos vazios. O "vazio" interior corresponde à apatia exterior; com o
correr do tempo, a apatia se transforma em covardia.” p. 9.
“A palavra coragem tem a mesma raiz que apalavra francesa coeur, que significa "coração".
Assim como o coração irriga braços, pernas e cérebro fazendo funcionar todos os outros
órgãos, a coragem torna possíveis todas as virtudes psicológicas. Sem ela os outros valores
fenecem, transformando-se em arremedo da virtude.”. p. 9-10.
“A coragem é necessária para que o homem possa ser e vir a ser. Para que o eu seja é preciso
afirmá-lo e comprometer-se. Essa é a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza.”
p. 10.
4. A Coragem Social
“A intimidade requer coragem porque o risco é inevitável. Não é possível saber, logo no início,
de que forma o relacionamento nos irá afetar.”. p. 13.
6. A Coragem Criativa
“[...] a coragem criativa é a descoberta de novas formas, novos símbolos, novos padrões
segundo os quais uma nova sociedade pode ser construída.”. p. 16.
9
“Seja qual for a nossa atividade, há sempre uma satisfação profunda em saber que estamos
contribuindo para a estruturação de um mundo novo. Isso é coragem criativa, por menores e
acidentais que sejam as nossas realizações.” p. 28.
“Para definir a criatividade é preciso distinguir as pseudo formas — isto é, criatividade como
estetismo superficial — da sua forma autêntica — ou seja, o processo de criar algo novo. A
distinção básica está portanto entre arte como um artifício (como em "artífice" e "habilidoso")
e a arte genuína.”. p. 31.
1. O que é a criatividade?
“Os artistas e os filósofos têm procurado, através dos séculos, tornar bem clara essa distinção.
Platão, por exemplo, relegou os poetas e artistas da sua época para o sexto círculo da
realidade porque, segundo ele, expressavam apenas aparências, e não é real. Considerava a
arte como elemento decorativo, um modo de tornar a vida mais bela, a utilização do que é
aparente. Mas no diálogo que escreveu mais tarde, o Banquete, descreve o que chama de
artistas verdadeiros— ou seja, os que criam uma nova realidade. Esses poetas e pessoas
criativas expressam o ser, dizia Platão. Ou, segundo a minha definição, são eles que alargam as
fronteiras da consciência humana. Sua criatividade é a manifestação básica de um homem
realizando o seu eu no mundo.”. p. 31.
“O processo criativo deve ser estudado, não como o produto de uma doença, mas como a
representação do mais alto grau de saúde emocional, a expressão de pessoas normais, no ato
de atingir a própria realidade.” p. 32.
2. O Processo Criativo
“O primeiro fator que notamos no ato criativo é a sua natureza de encontro. Os artistas
encontram a paisagem que querem pintar — olham para ela, observam-na sob diversos
ângulos. Ficam, como se diz, absorvidos nela. Ou, no caso do pintor abstracionista, o encontro
é com uma idéia, uma visão interior, que pode ser inspirada pelas cores brilhantes da palheta
ou pela brancura áspera da tela. As tintas, a tela e os outros instrumentos tornam-se então
partes secundárias do encontro; são a linguagem, a mídia, como as chamamos. Os cientistas
aproximam-se das experiências e do trabalho de laboratório na mesma situação de encontro.”
p. 32-33.
“O talento pode ter correlatos neurológicos, e pode ser estudado como algo que foi "dado" à
pessoa. O indivíduo pode ter talento, quer faça uso dele ou não; pode ser a medida da pessoa.
Mas a criatividade só existe no ato.”. p. 34-35.
3. a intensidade do encontro
“[...] a criatividade genuína caracteriza-se por uma intensidade de percepção, por um alto nível
de consciência.”. p. 35.
“Os artistas, como todos nós, experimentam alterações neurológicas nos momentos do
encontro. O coração acelera-se, a pressão sangüínea sobe, a visão é mais intensa e restrita, as
pálpebras semicerram-se para distinguir melhor a cena; e o artista ignora o que o rodeia (e a
passagem do tempo). O apetite diminui — o indivíduo absorto no ato criativo perde o
interesse pelo alimento e não se dá conta das horas das refeições.” p. 35.
“Essa intensidade de percepção não está ligada ao objetivo ou à vontade consciente. Pode
ocorrer durante o devaneio ou durante o sonho, ou vir dos chamados níveis inconscientes.” p.
36.
Encontro no ato criativo: “[...] encontro do artista ou do cientista com o seu mundo. [...] O
mundo é um conjunto organizado de relações significativas, no qual a pessoa existe, e de cujo
projeto participa. Tem realidade objetiva, mas não se limita a isso. O mundo interrelaciona-se
com a pessoa, a todo momento. Uma dialética contínua processa-se entre o inundo e o
indivíduo, e um não pode ser compreendido sem a presença do outro. Por isso não é possível
situar a criatividade como um fenômeno subjetivo; ela não pode ser estudada simplesmente
em termos do que se passa no íntimo de uma pessoa. O polo correspondente ao mundo é a
parte inseparável da 'criatividade' do indivíduo.”. p. 40.
“[...] os limites são inevitáveis na vida humana, além de valiosos. Discutirei também o
problema da necessidade de limites para a criatividade, pois o ato criativo origina-se na luta do
ser humano contra e com aquilo que o limita.”. p. 95.
“Para começar, há a limitação física inevitável da morte. Podemos adiar a morte, mas nós
todos morreremos num tempo desconhecido e imprevisível. A doença é outro limite. Quando
trabalhamos demais ficamos doentes. Há os limites neurológicos evidentes.”. p. 95.
“Apesar de podermos aumentar a nossa inteligência até um certo grau, ela também está
limitada pelo nosso ambiente físico e emocional.”. p. 95.
2.
“Nossa paixão pela forma demonstra a necessidade que temos de adaptar o mundo à nossa
conveniência e desejos e, o que é mais importante, de sentir o nosso próprio significado.”. p.
110.
3.
“Kant afirmava que a nossa compreensão não é apenas um reflexo do mundo objetivo que nos
rodeia, mas constitui também este mundo. Não se trata de os objetos nos dizerem coisas
apenas; adaptam-se ao nosso modo de conhecimento. Portanto, a mente é um processo ativo
na formação e reformulação do mundo.” p. 111.
“[...] paixão pela forma é uma parte da tentativa de dar sentido à vida. E isso é a criatividade
genuína. A imaginação, definida de modo geral, parece-me o princípio básico da própria razão,
pois as funções racionais, de acordo com as definições, podem levar à compreensão — podem
participar da realidade —apenas enquanto são criativas.”. p. 112.
4.
“Todo aquele que deseja seguir o caminho certo deve conhecer, desde a juventude, as formas
belas; e, quando bem orientado, aprende a amar somente essas formas — esse amor o levará
a criar pensamentos sensatos; e logo perceberá que a beleza de uma forma relaciona-se com
a beleza de outra, e que a beleza das formas é uma só.”. p. 117.
Platão — O Banquete, traduzido para o inglês por Benjamin Jowett, in The Portable Greek
Reader, org. por W. H. Auden. Nova Iorque, 1948, p. 496.
Referência completa: MAY, Rollo. A Coragem de Criar. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1975.