COMPENDIO - ETICA - PP 148-154 PDF
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COMPÊNDIO
DE ÉTICA
Função Pública,
Empresas e Negócios
Arne Wiig • Inge Amundsen • Ivar Kolstad
Luís de França • Vicente Pinto de Andrade
TÍTULO
Compêndio de Ética – Função Pública, Empresas e Negócios
AUTORES
Arne Wiig
Inge Amundsen
Ivar Kolstad
Luís de França
Vicente Pinto de Andrade
EDITOR
Universidade Católica de Angola
Rua Pedro de Castro Van-Dúnem, 24,
Bairro Palanca, C.P. 2064 Luanda
Web site: www.ucan.edu
Email: [email protected]
PRÉ-IMPRESSÃO
LeYa, S.A.
CAPA
LeYa, S.A.
IMPRESSÃO E ACABAMENTOS
Multitipo
Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio (fotocópia,
offset, fotografia, etc.) sem o consentimento escrito da Editora, abrangendo esta proibição o texto,
a ilustração e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial.
APRESENTAÇÃO ................................................................................................. 7
Capítulo III – Doutrinas éticas como suporte da ética empresarial .............. 134
Texto 3 – Por que as empresas não deviam sempre maximizar os lucros ..... 260
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1 Este compêndio tinha como editores Inge Amundsen, investigador sénior do CMI (Noruega)
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5 Nos anteriores compêndios havia uma parte completa dedicada à RSE nos sectores ligados
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ARTIGO 1
INTRODUÇÃO À ÉTICA NO SECTOR PÚBLICO
Inge Amundsen
Investigador Sénior do CMI
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mundo difícil, sujo e sem princípios da política. A ética é por vezes considerada
como ineficaz e como um embaraço para aqueles que pretendem obter uma
compreensão apropriada dos acontecimentos. A ética é também, por vezes,
considerada como negativa (dizendo às outras pessoas o que não deverão fazer),
não praticável (porque é suportada apenas pela consciência) e com maiores
probabilidades de apanhar o inocente que nela acredita do que os infractores
deliberados.
O realismo político ou “política do poder” engloba uma variedade de teorias e
abordagens, em que todas elas partilham uma crença em que os Estados (Gover-
nos ou elites governantes) são principalmente motivados pelo desejo de poder
económico, privilégios e domínio contínuo (incluindo segurança militar e territo-
rial) e não em ideais ou ética.
A era da política do poder está a desvanecer‑se ou está a ser, pelo menos,
vigorosamente contestada. Stoker defende que “ver os cidadãos como actores
éticos não é a perspectiva de um idealista inveterado” (Stoker, 1992:376). A ética
voltou a integrar a ciência política e a economia, ainda que tal não tenha ocorrido
sem resistências. Parece ser óbvio afirmar que a reforma da governação através
da ética por si só será ineficaz, o panorama ético padrão necessita de ser acompa-
nhado por regulamentação e por reformas institucionais.
As questões éticas na ciência política tendem a ser complexas, desde questões
de micro nível pessoais a questões nacionais, comparativas e a relações interna-
cionais. Na política, as questões como os interesses públicos versus interesses
privados, os conflitos de interesses, o abuso do poder e a corrupção têm uma
relevância especial. No entanto, prevenir a má conduta é algo de tão complexo
como o fenómeno da má conduta por si só.
A presente introdução irá apresentar três tópicos principais. Em primeiro
lugar, irá descrever, em linhas gerais, os fundamentos e as noções básicas da ética;
em segundo lugar, irá descrever a “infra‑estrutura” de ética (aquilo que molda a
ética dos indivíduos) e, em terceiro lugar, irá descrever dois temas em particular:
o debate sobre o conflito de interesses e a corrupção.
O que é a ética?
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Filosofia moral
6 Por outras palavras, a ética descritiva tentaria determinar que percentagem de pessoas
acredita que matar está sempre errado, enquanto a ética normativa diz respeito a determi‑
nar se é correcto ou não manter esta crença.
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Ética da virtude
Consequencialismo
Utilitarismo
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Ética deontológica
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7 Tome‑se a corrupção como exemplo. A ética da virtude considera a corrupção como uma
quebra de vários imperativos categóricos, incluindo evitar prejudicar e agir com justiça, uma
vez que a corrupção consiste em favorecer algumas pessoas. Do mesmo modo, a ética deon‑
tológica (Kantianismo) irá observar o compromisso para com o princípio (e ignorar as con‑
sequências de um acto em particular) e irá defender que a corrupção envolve o logro e pre‑
judica a capacidade racional e moral dos envolvidos e, consequentemente, considerará a
corrupção como contrária à ética. As teorias consequencialistas como o utilitarismo, no en‑
tanto, poderão encarar a corrupção como ética. Alguns observadores defenderam que a cor‑
rupção é o equivalente a “dar graxa” e pode levar a que as burocracias funcionem de um
modo mais eficiente (o que é proveitoso para a maior parte das pessoas). Apesar de este ar‑
gumento ser raramente utilizado hoje em dia (o ganho de eficiência imediato é destruído pe‑
los danos a longo prazo causados ao sistema administrativo), o argumento pode exemplificar
uma perspectiva a partir da qual a corrupção pode ser vista como ética.
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pela maior parte das pessoas e na maior parte das circunstâncias. Por outras
palavras, os deveres negativos são uma obrigação de todos, já as obrigações
positivas são o dever de algum grupo ou instituição em particular, geralmente o
Estado.
O sector público ou o Estado é o Governo com todos os seus Ministé-
rios, departamentos, serviços, administrações central/regional/local, empresas
paraestatais e outras instituições. O sector público é composto por dois elemen-
tos nucleares, a nível político existem as instituições políticas onde as políticas
são formuladas e onde são tomadas as decisões (principais), e a nível adminis-
trativo existe a administração do sector público, que se encontra encarregada de
implementar estas políticas e decisões. Este nível da implementação também é
denominado por função pública ou por administração estatal ou de burocracia.
Contudo, a distinção entre a política e a administração não é completamente
clara, pois a administração também dispõe de bastantes poderes discricionários.
As actividades do sector público vão desde proporcionar segurança social,
administração do planeamento urbano e da organização da defesa nacional à
provisão de cuidados de saúde, de escolas e de estradas. Em princípio, não existe
limite para aquilo que o Estado pode fazer. Existe, no entanto, grande debate
relativamente a até que ponto deverá o Estado intervir, tanto nos sectores eco-
nómicos como na vida privada dos seus cidadãos. Esta é uma questão política e
o debate relativamente ao papel e à dimensão do Estado e do sector público (por
oposição ao sector privado) é provavelmente a linha divisória mais importante na
filosofia política, onde os socialistas preferem um envolvimento maior do Estado, os
libertários favorecem um envolvimento mínimo do Estado (segurança e defesa da
propriedade), já os conservadores e liberais favorecem um envolvimento do Esta-
do em alguns aspectos da sociedade, mas não em outros.
A ética é raramente objecto de preocupação no debate ideológico relativa-
mente ao papel do Estado, mas a ética é uma preocupação natural no debate
acerca do papel efectivo dos políticos e da administração estatal. Independen-
temente da dimensão e de que papel o Estado está a desempenhar (e se espera
que esteja a desempenhar), tanto os políticos como os funcionários públicos
detêm poderes discricionários, eles tomam decisões que afectam muitas pessoas.
Portanto, estas decisões dever‑se‑ão basear em algum tipo de ética. Por exemplo,
o público em geral (os cidadãos de um país) espera normalmente que os políti-
cos e funcionários públicos do país sirvam o interesse público, e que o sirvam de
forma racional e eficiente. Não se pretende que eles sigam interesses privados,
pessoais ou de grupos limitados.
A ética do sector público profissional dos funcionários públicos e dos políticos
é algo diferente da ética pessoal dos indivíduos. Para além dos valores e princí-
pios éticos pessoais dos indivíduos (como o respeito pelos outro, a honestidade, a
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específicas; por outras palavras, o contexto são as forças que condicionam as prio-
ridades morais no serviço público.
O carácter ético de um indivíduo pode ser imprevisível e ténue, mas a base
ética débil de um indivíduo pode ser ultrapassada e a sua ética tornar‑se significa-
tiva e direccional, quando convergem as pressões estruturais e de um meio par-
ticular. Pode, no entanto, existir um conflito entre o sistema de crenças (carácter
ético) do indivíduo e as acções que o indivíduo foi ordenado a executar (a pressão
do contexto). Para alguns, tal pode levar a frustração profunda e a dissonância
cognitiva. Consideremos o exemplo de um funcionário público que acredita nas
normas de abertura, justiça e responsabilidade da governação, e é pressionado
para tomar decisões que sirvam pessoas em desrespeito notório para com estes
princípios. Outros poderão encarar a ambiguidade contextual de um modo opor-
tunista, como possibilidades de se furtarem ao cumprimento de normas e de ser-
virem os seus próprios interesses.
As normas e princípios contextuais também podem ser ambíguos e contra
dizerem‑se a si próprios. Princípios grandiosos podem colidir com expectativas
mundanas, assim como elevados objectivos podem colidir com limitações de imple-
mentação. A ambiguidade da ética no sector público é particularmente aparente
quando as obrigações e os valores incluídos em convenções internacionais colidem
com a soberania nacional e com as prioridades políticas nacionais, e quando a
política nacional colide com as normas socioculturais da sociedade local.
Vários exemplos podem ilustrar este conflito. Tomemos, por exemplo, um
funcionário do Ministério da Educação Superior do Bangladesh cujas funções con-
sistiam na distribuição de subsídios e bolsas de estudo de fontes estrangeiras aos
melhores candidatos entre os estudantes locais. Estes subsídios eram um “bem”
muito escasso pelos quais os estudantes e as suas respectivas famílias estavam
dispostos a pagar muito dinheiro. O funcionário público do Ministério, no entanto,
era absolutamente “honesto” e distribuiu os subsídios de acordo com o mérito
através da análise dos exames e de outras credenciais dos estudantes e não
aceitou subornos para satisfação de quem ofereceu os subsídios e das Universi-
dades estrangeiras. Isto teve um custo pessoal, uma vez que o seu salário era tão
reduzido, ele só tinha capacidade económica para alugar um quarto apenas e não
tinha dinheiro para se casar. Mais importante, ainda, aos olhos da sua família, ele
comportou‑se de um modo contrário à ética, e vergonhoso, a sua família alargada
tinha reunido o dinheiro necessário para a sua educação ao longo dos anos, mas
ele era agora um “investimento perdido”, pois não deu nada de retorno à família.
Por fim, a família cortou os laços com ele e olhava‑o com despeito.
Vários investigadores têm observado o stress moral com que se deparam os
funcionários públicos que vivem em dois “mundos diferentes”. Particularmente,
as teorias de regime neo‑patrimonial realçam o conflito entre a lógica moral e as
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8 Patrick Chabal and Jean‑Pascal Deloz (1999), Africa Works. Disorder as Political Instrument.
James Currey, Oxford.
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Direitos Humanos
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10 Se o Governo do país do qual é cidadão não puder assegurar os seus direitos políticos, por
exemplo, o direito de liberdade contra a perseguição por opiniões políticas ou crenças reli‑
giosas, discriminação ou tortura, os outros Governos (países estrangeiros) têm, consequen‑
temente, o dever de lhe proporcionar asilo político (segundo a Convenção Relativa ao Es‑
tatuto dos Refugiados de 1951 das Nações Unidas e o Protocolo Relativo ao Estatuto dos
Refugiados de 1967).
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tion of the International Code of Conduct for Public Officials do Conselho Social e Económico
da ONU, em https://www.unodc.org/pdf/crime/commissions/11comm/6add1e.pdf.
13 Ver www.coe.int/t/dg1/greco/documents/Rec(2000)10_EN.pdf.
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das suas funções, e que o funcionário público deverá agir de forma politicamente
neutra e que não deverá tentar frustrar as políticas, decisões ou acções legítimas
das autoridades públicas (artigo 4.o). Além disso, o funcionário público tem o
dever de servir com lealdade a autoridade nacional, local ou regional legitima-
mente constituída e espera‑se que seja honesto, imparcial e eficiente, e que
cumpra os seus deveres até ao máximo das suas capacidades com competência,
justiça e compreensão, no respeito exclusivo pelo interesse público e pelas cir-
cunstâncias relevantes do caso (artigo 5.o).
O código também indica que, no cumprimento dos seus deveres, o funcioná-
rio público não deverá agir arbitrariamente em detrimento de qualquer pessoa,
grupo ou organismo e deverá apresentar o respeito devido pelos direitos, deveres
e interesses próprios de todos os outros (artigo 6.o). Na tomada de decisões, o
funcionário público deverá agir legitimamente e exercer os seus poderes dis-
cricionários de forma imparcial, tendo em conta apenas as questões relevantes
(artigo 7.o).
O artigo 8.o é também importante pois indica que o funcionário público não
deverá permitir que o seu interesse privado entre em conflito com o seu cargo
público. É da sua responsabilidade evitar tais conflitos de interesses, quer sejam
reais, potenciais ou aparentes. O funcionário público nunca deverá tirar partido
indevido do seu cargo para satisfação de interesses privados. Deve ser evitado
qualquer conflito de interesses (artigo 13.o)14. O funcionário público que ocupa
um cargo em que o cumprimento dos seus deveres oficiais venha provavelmente
a afectar os seus interesses pessoais ou privados deverá, como requerido por
Lei, declarar aquando da nomeação e, posteriormente, a intervalos regulares,
a natureza e a extensão desses interesses (artigo 14.o)15. O código menciona,
além disso, o dever de se comportar em todas as circunstâncias de modo a que a
confiança do público na integridade, imparcialidade e eficácia do serviço público
seja preservada e aumentada, que o funcionário público responde perante o seu
superior hierárquico imediato a menos que de outro modo seja indicado na Lei,
e que o funcionário público tem o dever de tratar apropriadamente, com toda a
confidencialidade necessária, todas as informações e documentos que adquirir
no curso ou como resultado do seu emprego.
14 O conflito de interesses é uma situação em que o funcionário público tem um interesse pri‑
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Outro dever consiste em que o funcionário público que acreditar que lhe esteja
a ser solicitada uma actuação que seja ilegal, imprópria ou contrária à ética, que
envolva má administração, ou que de outro modo seja inconsistente com o pre-
sente código, deverá relatar a questão às autoridades competentes (artigo 12.o).
O artigo 16.o indica que o funcionário público deverá tomar precauções
para que nenhuma das suas actividades políticas ou envolvimento em debates
políticos ou públicos prejudiquem a confiança do público na sua capacidade de
cumprir os seus deveres de forma imparcial e leal. No exercício dos seus deve-
res, o funcionário público não deverá permitir que o utilizem para fins político
‑partidários.
O artigo 18.o afirma que o funcionário público não deverá exigir ou aceitar
ofertas, favores, hospitalidade ou qualquer outro benefício para si mesmo ou
para a sua família, familiares e amigos próximos, pessoas ou organizações com as
quais tenha tido relações comerciais ou políticas (o que não inclui a hospitalidade
convencional ou ofertas menores). Se for oferecida ao funcionário público uma
vantagem indevida, ele deverá dar os passos apropriados para se proteger (arti-
go 19.o), e o funcionário público não deverá oferecer ou dar qualquer vantagem
de modo algum ligada ao seu cargo enquanto funcionário público, a menos que
legalmente autorizado a fazê‑lo (artigo 21.o).
Finalmente, o artigo 23.o afirma que, no exercício dos seus poderes discricio-
nários, o funcionário público deverá garantir que, por um lado, o pessoal, e, pelo
outro, a propriedade pública, as instalações, serviços e recursos financeiros dos
quais está encarregado são geridos e utilizados de um modo eficaz, eficiente e
económico. Não deverão ser utilizados para fins privados a menos que seja dada
permissão legal.
NORMAS DEMOCRÁTICAS
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base ética para políticos e representantes eleitos, mas também podem servir
de ponto de referência para burocratas e administradores públicos. Além disso,
existem dilemas na implementação administrativa de políticas não determinadas
pelas qualidades democráticas do Governo.
Regime democrático
Responsabilização política
16 Como exemplo, a maioria não tem o direito de privar a minoria de direitos civis (através de
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Transparência
cia completa (acesso a informação para todos) pode ser superior à utilidade prática da in‑
formação (sobrecarga de informação); adicionalmente, alguma transparência num meio cor‑
rupto pode revelar quem está “à venda”.
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19Ver o capítulo de Shaxson sobre a Global Witness e sobre o estabelecimento de pressão in‑
ternacional para a transparência nas indústrias de extracção de petróleo e diamantes. Para
factos acerca das iniciativas, ver os respectivos websites (Global Witness: www.globalwit‑
ness.org; EITI: www.eitransparency.org; Publish What You Pay: www.publishwhatyoupay.org;
Transparency International: www.transparency.org).
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Equidade
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que procura reduzir ou eliminar as diferenças nas condições materiais entre indi-
víduos ou agregados familiares numa sociedade. O que geralmente significa igua-
lizar o rendimento e/ou a riqueza total até determinado ponto.
Muitas democracias liberais do século XXI são caracterizadas pela diversidade
sociocultural, reconhecendo que esta diversidade é não só um ideal democrático,
mas também um objectivo social fundamental de qualquer organização. Sob o
pretexto da equidade ou igualdade, uma organização não deverá simplesmente
seguir políticas para atingir os seus objectivos, mas deverá fazê‑lo num enqua-
dramento que trate os indivíduos com imparcialidade. Parte do que constitui um
tratamento justo será o reconhecimento dos contributos e das necessidades de
diferentes indivíduos. Até que ponto existe uma indulgência construtiva almejan-
do a diversidade (de todos os tipos) é espelhada na noção de tolerância.
Hausman e McPherson (1993) defendem que a justiça ou a imparcialidade
deverão ser compreendidas a nível do tratamento apropriado dos interesses de
diferentes pessoas e agir de modo correcto irá frequentemente evitar prejudicar
outros indivíduos. As noções de prejuízo e de interesse estão claramente ligadas a
noções de bem‑estar humano.
Integridade pública
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REFORMAS ADMINISTRATIVAS
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Este aspecto torna essencial que os funcionários públicos cumpram normas que
conhecem e compreendem e que podem utilizar como base para tomar decisões
éticas. Deverão poder usufruir de aconselhamento confidencial quando sentirem
necessidade.
A maior parte das pessoas preferiria ser – e aparentar ser – honesta e res-
peitada pela sua integridade pessoal. Esta asserção está correcta e proporciona
um ponto inicial para um sistema de gestão da ética que disponha de potencial
para fazer incursões sérias no terreno da má conduta ética. Frequentemente, a
má conduta pode ser tanto o resultado de equívocos e más interpretações como
de ilegalidade evidente. Em tal meio, descobrir o que está certo e errado é geral-
mente muito simples.
Nos dias de hoje, tanto em países desenvolvidos como em países em transi-
ção, as exigências colocadas no serviço público advêm de diversos quadrantes,
incluindo: aumentar a privatização e a contratualização externa de funções
tradicionalmente governamentais; delegação da responsabilidade, incluindo a
responsabilidade financeira, dentro de organizações de serviço público; maiores
pressões para abertura e para um escrutínio dos meios de comunicação mais
intensivo do sector público; uma intensidade continuamente maior da actividade
de grupos de pressão interessados em conseguir negócios com o Governo; e
uma maior disponibilidade por parte do público para apresentar queixas quando
a qualidade do serviço público é fraca. Todos contribuíram para um aumento da
consciencialização acerca da necessidade de dar passos para melhorar a base
ética com a qual o serviço público funciona. Além de tudo isto, muitos países em
transição têm‑se deparado com a herança de quadros do sector público desmo-
ralizados e disfuncionais, frequentemente mal pagos e mesmo sem receberem
a sua remuneração, forçando‑os a sobreviverem com o que quer que consigam
obter do público pelos serviços que têm prestado.
Na gestão de instituições da função pública, as áreas de responsabilidade
e discrição alargaram‑se em muitas áreas. Além disso, as sondagens realizadas
em vários países revelaram que a hostilidade do público para com as estruturas
governamentais pode ser elevada. Nos países em vias de desenvolvimento e
em transição, as entidades públicas podem sofrer de uma série de deficiências,
encontrando‑se o nepotismo, o clientelismo e o favoritismo entre os obstáculos
mais graves a uma administração racional. Os familiares e outros podem acreditar
que lhes deverão ser oferecidos empregos, contratos ou tão simplesmente pro-
priedade governamental, e podem aplicar uma pressão intensa sobre um familiar
com emprego público pela expectativa de que proporcionem o sustento a vários
membros da família alargada – particularmente quando os níveis de remuneração
são praticamente insuficientes para satisfazer as necessidades pessoais imediatas
do funcionário público.
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20 Os princípios para reforma do sector público que se seguem são tirados do documento Best
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Reforma salarial
Recrutamento e promoção
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da corrupção ocorre quando as pessoas são nomeadas para cargos públicos com
base nas suas ligações e não nas suas capacidades.
As disposições institucionais relativas à selecção, recrutamento, promoção e
demissão de funcionários públicos são centrais para o funcionamento apropriado
do sector público e podem ser melhor disponibilizadas através da legislação. As
pessoas adequadas têm de ser atraídas para os cargos adequados. O que, por sua
vez, significa que os cargos por si só necessitam de ser suficientemente atractivos
para cidadãos qualificados e de ser uma alternativa viável ao sector privado.
Um serviço público em que os seus membros são nomeados e promovidos
com base no mérito serão muito menos susceptíveis à corrupção do que os que se
baseiam predominantemente em ligações políticas e pessoais. Numa meritocracia,
os funcionários são promovidos com base no seu desempenho e devem os seus
cargos, pelo menos em parte, ao público que servem. Em situações em que os car-
gos são obtidos através de ligações ao poder, a lealdade é devida à ligação e não à
instituição para a qual a pessoa foi nomeada. Frequentemente, o beneficiário de
tal nomeação procurará que o seu “padrinho” o proteja se encontrar quaisquer
dificuldades. Os nomeados de partidos políticos podem colocar problemas parti-
cularmente difíceis aos administradores que não disponham das mesmas ligações.
Um serviço público baseado no mérito apresenta numerosas vantagens. Em
primeiro lugar, os candidatos são julgados em relação a critérios que podem ser
verificados, caso se suspeite de infracções. Em segundo lugar, os detentores de
cargos têm um incentivo para um bom desempenho. A politização da função
pública leva a desempenhos medíocres. Quando os políticos têm um impacto
directo no recrutamento, promoção, demissão ou transferência de funcionários
públicos por motivos que não os que se baseiam no mérito, a disciplina profis-
sional poderá ser difícil de aplicar e os incentivos ao desempenho poderão ser
difíceis de utilizar uma vez que a sua nomeação é de curto prazo. Em terceiro
lugar, os funcionários públicos nomeados politicamente podem sentir‑se mais
inclinados a quebrar as regras de modo a maximizarem os seus ganhos pessoais
no curto espaço‑tempo que esperam permanecer no cargo. Em quarto lugar, os
funcionários públicos que devam os seus cargos às suas próprias capacidades
assim como a critérios claros e verificáveis, sentir‑se‑ão responsáveis perante o
Estado que lhes dá o emprego em vez de perante o Governo no poder. Em quinto
lugar, um serviço público baseado no mérito evita a natureza relativamente de
curto prazo das nomeações políticas e a consequente perda de experiência a cada
mudança de Governo. No entanto, uma função pública puramente baseada nos
méritos poderá ter de ser diversa de modo a acomodar programas de acção afir-
mativa em consonância com as práticas democráticas.
Por exemplo, esses programas podem garantir que as minorias são equitati-
vamente representadas no serviço público e corrigir desequilíbrios geográficos e
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de sexo. Além disso, uma função pública baseada no mérito não é uma garantia
contra a corrupção. Os pré‑requisitos para um recrutamento isento de corrupção
para cargos do sector público incluem um recrutamento predominantemente
baseado no mérito e um programa de promoções com critérios objectivos e con-
testáveis e com um percurso de carreira claro, uma minimização da interferência
política tanto na acção como na contratação do sector público, uma limitação
estrita das nomeações políticas a determinados cargos de alto nível, um salário
adequado e outros benefícios para oferecer incentivos adequados, e protecção
dos funcionários públicos através de mecanismos internos de estado de direito.
Denúncias
Por denúncias entende‑se chamar a atenção para actos dolosos que estejam
a ocorrer dentro de uma organização. Podem existir disposições especiais como
“linhas de apoio” dentro da organização ou gabinete ou uma linha interministe-
rial especialmente criada para questões como o contrabando ou a corrupção, de
modo a facilitar as denúncias. Um delator é por vezes chamado de “informante”
ou “bufo”. Existem quatro formas de efectuar denúncias:
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Por outro lado, um delator tem de determinar se a conduta que está a expor repre-
senta um caso de efectivo acto doloso ou se representa apenas um desacordo de
política. É claro que grande parte da actividade pública deverá ser debatida em
público e a abordagem de desacordos sobre a maior parte das questões não só é
aceitável como desejável. As sessões à porta fechada, no entanto, são secretas por
um motivo. Revelar o interesse que uma cidade tem numa propriedade em particu-
lar poderá aumentar o preço dessa parcela. A exposição de informações sensíveis
sobre uma decisão de contratação ou demissão podem ser desnecessariamente
prejudiciais para um indivíduo. Por mais que as opiniões dos membros da Direcção
ou do Conselho sejam divergentes acerca destas questões, elas deverão permane-
cer secretas, caso um problema não ascenda ao nível da má conduta.
CONFLITOS DE INTERESSES
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21A lista foi retirada do documento Best Practices in Combating Corruption da OSCE, 2004
(disponível em www.osce.org/item/13568.html).
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22A lista foi retirada do documento Best Practices in Combating Corruption da OSCE, 2004
(disponível em www.osce.org/item/13568.html).
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Outras estratégias que uma organização ou Governo podem adoptar para evi-
tar comprometer, ou aparentar comprometer, a sua integridade incluem a manu-
tenção de registos completos e precisos dos processos de tomada de decisões;
garantir a abertura tornando pública informação precisa acerca dos processos,
decisões e acções da organização; e garantindo que a decisão final pode ser subs-
tanciada (especialmente quando existir um risco de conflito de interesses ou a
percepção da existência de um conflito de interesses).
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Ofertas e gratificações
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CORRUPÇÃO
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desenvolvam e que as pessoas tenham vidas mais saudáveis e felizes. Sem o Estado,
o desenvolvimento sustentável, tanto económico como social, é impossível”.
A corrupção tem surgido como um constituinte temático deste paradigma
renovado, no qual o desenvolvimento necessita de reformas económicas, depen-
dentes por sua vez de reformas políticas e administrativas, como a boa gover-
nação e as reformas da função pública, responsabilidade, Direitos Humanos,
multipartidarismo e democratização. Além disso, têm sido observados níveis muito
elevados de corrupção em situações em que o Governo é visto como ilegítimo
pela população (implicando desrespeito amplamente difundido pelos procedi-
mentos judiciais) e em países em que o Estado desempenha um papel interven-
cionista na economia. O papel do Estado e da política é, portanto, essencial para
compreender a corrupção.
O papel decisivo do Estado é também reflectido na maior parte das defini-
ções de corrupção. A corrupção é convencionalmente entendida como, e refe-
rida como, um comportamento de tentar obter riqueza privada por parte de
alguém que representa o Estado e a autoridade pública, ou uma má utilização
de bens públicos por funcionários públicos para fins privados. A definição opera-
cional do Banco Mundial é que a corrupção consiste ‘‘no abuso do poder público
para benefício privado’’. Na definição clássica e mais amplamente utilizada de
J. S. Nye, a corrupção é o “comportamento que se desvia dos deveres formais
do desempenho de um papel público devido a ganhos pecuniários ou de status
privados (pessoais, família próxima, conventículo privado); ou que viola as regras
contra o exercício de determinados tipos de influência no âmbito privado”23.
Uma versão algo actualizada com os mesmos elementos pode ser encontrada na
definição de Mushtaq Khan, que a define como o “comportamento que se desvia
das regras formais de conduta que orientam as acções de alguém num cargo de
autoridade pública devido a motivos do âmbito privado como a riqueza, poder
ou status”24.
Por outras palavras, a corrupção é uma relação particular (que se poderá
caracterizar como pervertida) entre o Estado e a sociedade. De um lado temos
o Estado, isto é, funcionários públicos, burocratas e políticos, ou seja, qualquer
pessoa que detenha um cargo de autoridade para atribuir direitos sobre recur-
sos públicos (escassos) em nome do Estado ou do Governo. A corrupção dá‑se
quando estes indivíduos estão a utilizar inadequadamente o poder público em
si outorgado para benefício privado. Um acto corrupto dá‑se quando a pessoa
responsável aceita dinheiro ou outro tipo de recompensa e, em seguida, trata de
23 Nye, J. S. (1967), Corruption and Political Development, in American Political Science Re‑
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utilizar indevidamente os seus poderes oficiais para pagar favores indevidos. Por
exemplo, constitui um acto de corrupção quando um detentor de cargo estatal
aceita um suborno para prestar algum serviço público que é supostamente gratuito
ou exige mais do que o seu preço oficial pela sua prestação.
No outro lado de um acto corrupto está, contudo, “o lado da oferta” e existem
algumas teorias e conceptualizações que colocam a ênfase nos “corruptores”,
aqueles que oferecem subornos, e nas vantagens que ganham. Estes fornecedo-
res são o público ou, por outras palavras, a sociedade não‑estatal. O parceiro do
funcionário público corrupto é qualquer indivíduo, empresa, organização nacional
ou estrangeira não pertencente ao Governo nem ao sector público25.
O enfoque no lado da oferta foi ainda mais aprofundado. Por exemplo, a
influência de empresas (empresas privadas, por exemplo grandes empresas
estrangeiras e multinacionais) no Estado, e especialmente no modo como exer-
cem influência sobre e estabelecem conluios com funcionários públicos para
extrair vantagens, tem sido denominada de “captura de Estado”. Algumas empre-
sas em economias de transição tiveram capacidade para dar forma a regras de
regulação para sua própria vantagem, com um custo social considerável. Em tal
“economia de captura”, os funcionários públicos e os políticos vendem de modo
privado uma série de vantagens geradoras de rendimentos “a la carte” para
empresas individuais. Em casos extremos, as empresas poderosas dão forma às
regras jurídicas e às políticas fornecendo ganhos privados ilícitos, não transpa-
rentes, a funcionários públicos e a políticos, por exemplo, através da “compra”
de decisões presidenciais e parlamentares através de dinheiro ou financiamento
do partido. O que adquirem são benefícios como assegurar direitos de proprie-
dade, acesso a recursos (concessões), monopólios e preferências, assim como a
eliminação de obstáculos, tais como impostos e regulamentações ambientais, de
saúde e de segurança.
Argumentou‑se que, de modo a avaliar se a corrupção é eticamente aceitável
ou não, necessitamos de utilizar argumentos éticos ou teoria ética que forneçam
abordagens racionais a questões de certo ou errado. Existe uma série de teorias
éticas ou perspectivas que propõem critérios diferentes para a avaliação se um
acto ou prática é aceitável ou não26.
25 A corrupção também existe dentro e entre empresas privadas, nas Organizações Não
‑Governamentais e entre indivíduos nos seus negócios pessoais, sem existir envolvimento de
qualquer instituição estatal ou funcionário estatal. Também existe corrupção sob a forma de
subornos, burlas e métodos mafiosos dentro de, e entre, empresas privadas, também existem
indivíduos traidores e desleais em empresas privadas. Este tipo de corrupção pode ter reper‑
cussões no sistema político, uma vez que destrói a confiança do público e pode ser sintomá‑
tico para o desenvolvimento económico e moral gerais de uma sociedade.
26Ivar Kolstad (2008), Corruption as Violation of Distributed Ethical Obligations, Mimeo,
Outubro 2008, Bergen, Chr. Michelsen Institute.
58 |
Dois dos conjuntos de teorias éticas mais conhecidos são as teorias conse-
quencialistas, que avaliam actos ou práticas com base nas suas consequências, e
as teorias deontológicas, que avaliam actos ou práticas com base nas suas carac-
terísticas (ver anteriormente). Um exemplo de uma teoria consequencialista é o
utilitarismo que afirma que se deverá escolher as acções que maximizam a soma
de utilidade ou felicidade para todos os indivíduos. Um exemplo de uma teoria
deontológica é a perspectiva Kantiana que considera como contrárias à ética as
acções que violam um conjunto de princípios denominados como imperativos
categóricos.
A prática de corrupção tem sido avaliada tanto sob perspectivas consequen-
cialistas como deontológicas. Alguns investigadores têm utilizado argumenta-
ções consequencialistas para mostrar que a corrupção é contrária à ética. Por
exemplo, defendeu‑se que a corrupção leva à adjudicação de contratos públicos
à empresa que pagar os subornos mais elevados e não à empresa que oferece
a melhor relação entre qualidade e preço (uma vez que os funcionários públicos
irão seleccionar projectos que geram os maiores rendimentos privados e não os
que apresentam melhores resultados sociais). Defendeu‑se que a corrupção atrai
mão‑de‑obra qualificada para fora de actividades produtivas para a procura de
rendimentos, exacerbando ainda mais as ineficiências da atribuição de recursos.
Também tem sido defendido que a corrupção afecta desproporcionalmente os
mais desfavorecidos (em linha com a declaração da Transparency International
supracitada). Em suma, a corrupção tem consequências prejudiciais e é, por isso,
considerada como contrária à ética sob uma perspectiva consequencialista.
Outros investigadores forneceram argumentos contra a corrupção sob uma
perspectiva Kantiana. Por exemplo, tem‑se argumentado que a corrupção viola
o imperativo categórico de “actuar apenas de acordo com máximas que se pode
desejar que sejam Leis Universais da Natureza”, visto que a corrupção é uma
tentativa de obter tratamento especial. Também se tem argumentado que a cor-
rupção viola o imperativo categórico de “tratar sempre a humanidade de uma
pessoa como um fim e nunca como um meio apenas”, visto a corrupção envolver
enganos e prejudicar a capacidade racional e moral dos envolvidos. Tal demons-
tra o forte consenso sobre a corrupção, que a corrupção é eticamente indefensá-
vel do ponto de vista das teorias consequencialistas e das deontológicas.
No entanto, os argumentos supracitados não nos permitem concluir que a
corrupção é sempre contrária à ética. O problema reside no facto de as definições
supracitadas não definirem explicitamente “cargo público” nem “poder outorga-
do”. A corrupção é vista como um abuso de qualquer tipo de cargo público ou do
poder outorgado, no entanto, este poder não é necessariamente democrático,
legítimo ou responsabilizável. O seguimento de políticas que beneficiam apenas
um pequeno grupo (os detentores do poder ou os seus apoiantes, por exemplo)
| 59
Corrupção política
27Heidenheimer, Arnold J., Michael Johnston e Victor T. LeVine (eds.), Political Corruption.
A Handbook. New Brunswick/NJ, 1989 (3.a Edição, 1993), Transaction Pub.
60 |
| 61
62 |
• Medidas preventivas
– Abertura e transparência política
– Divulgação de bens
– Monitorização dos contratos do sector público
– Regulamentações de conflitos de interesses
– Monitorização de activos e interesses financeiros
– Reforma das regulamentações de aprovisionamento
– Regulação de licenças e concessões
– Formulação de uma estratégia nacional anticorrupção
– Livre acesso à informação
– Regulação dos grupos de pressão
– Aumento da consciencialização e poder do público
– Regulamentação das campanhas eleitorais incluindo monitorização da
cobertura dos meios de comunicação social e das contribuições e despe-
sas das campanhas
– Formação dos meios de comunicação social e jornalismo de investigação
– Organismos reguladores conjuntos entre o Governo e a sociedade civil
| 63
• Aplicação da Lei
– Investigação financeira e monitorização de activos
– Amnistia, imunidade e mitigação de punições
– Normas para evitar e controlar a lavagem dos lucros da corrupção
– Extradição
– Recuperação de activos
Corrupção burocrática
Uma vez que a corrupção burocrática se baseia, na maior parte dos casos,
num acordo ou entendimento particular entre dois indivíduos, uma relação
pessoal de base negocial de conhecimento através da família, clã, origem ou
semelhante, um dos acordos institucionais que pode ser estabelecido para redu-
zir a corrupção é tornar impessoal a relação entre os funcionários estatais e o
público. Todos os mecanismos do ideal Weberiano são aplicáveis, portanto, como
a especialização, linhas hierárquicas de autoridade, recrutamento, promoção e
remuneração de acordo com a experiência e o mérito. O controlo da corrupção
(burocrática e política) pode ser correctamente vista como uma parte da constru-
ção de normas éticas, da regulamentação legal e das reformas institucionais que
criam a “infra‑estrutura de ética” ou o “sistema de integridade”.
A lista de medidas e ferramentas possíveis para limitar ou restringir a corrup-
ção burocrática é extensa. Apresentamos aqui alguns exemplos (não exaustivos)
da literatura anticorrupção30:
29 Estas pessoas geralmente mantêm os seus postos de trabalho quando existe uma mudança
de Governo.
30 É de notar que algumas das medidas sob “controlar a corrupção política” também pode‑
rão ser relevantes para controlar a corrupção burocrática, as duas listas não são mutuamente
exclusivas.
64 |
• Desenvolvimento institucional
– Reforma da função pública
– Códigos e normas de conduta
• Medidas preventivas
– Abertura e transparência
– Gestão orientada para os resultados
– Utilização de incentivos positivos para melhorar a cultura e a motivação
dos funcionários
– Mecanismos para reclamações públicas
– Formulação de uma estratégia nacional anticorrupção
– Carta dos cidadãos e pactos de integridade
– Desenvolvimento da consciencialização através de anúncios televisivos e
de rádio, campanhas de consciencialização
– Programa de ética abrangente para pequenas e médias empresas
• Aplicação da Lei
– Directrizes para as investigações
– Operações de vigilância electrónica
– Protecção a delatores
– Assistência legal mútua
• Monitorização e avaliação
– Sondagens sobre a prestação de serviços
– Estudos sobre a integridade nacional/avaliações do país
– Estatísticas‑espelho enquanto ferramenta de investigação e prevenção
– Indicadores de desempenho mensuráveis no sector judicial
OBSERVAÇÕES FINAIS
| 65
Além disso, cada elemento depende dos outros. Larbi defende relativamente
à Etiópia que “é aparente que a debilidade em uma parte da infra‑estrutura de
ética como o Parlamento tem repercussões nas outras partes, como nas audito-
rias. Assim, os reformadores necessitam de estar cientes das dependências funcio-
nais e das ligações organizacionais entre vários componentes da infra‑estrutura
de ética. Tal apela a uma abordagem integrada e coordenada das reformas”
(Larbi, 2001:261).
Central ao raciocínio de grande parte das discussões mais recentes sobre ética
no sector público é o facto de ter de ser vista sobretudo em termos institucionais
e organizacionais. A ética individual e o comportamento ético é amplamente uma
construção que depende do meio político e do espírito cultural da administração
pública.
66 |
ARTIGO 2
A ÉTICA DA GOVERNAÇÃO EMPRESARIAL EM ORGANIZAÇÕES
DO SECTOR PÚBLICO. TEORIA E AUDITORIA31
ABSTRACT
SUMÁRIO
31 Título original: The Ethics of Corporate Governance in Public Sector Organizations. Theory
and Audit, Scott Fleming and Mike McNamee, Public Management Review, vol. 7, n.o 1, 2005,
pp. 135‑144.
| 67
INTRODUÇÃO
68 |
Ética
A ética pode ser considerada como uma forma de filosofia moral – o estudo
sistemático das regras, princípios, obrigações, acordos, valores e normas morais.
A um nível social, existem outros aspectos que estruturam a cultura ou atmosfera
moral das organizações. Então, para se compreender uma organização do sector
| 69
Governação empresarial
Um Modelo Conceptual
32Não existe consenso relativamente ao facto de o conceito de “valores” ser pluralizado (em
inglês).
70 |
Integridade
| 71
33 É de salientar que o “imperativo categórico” exige alguma elaboração, visto que existem
72 |
34 É importante salientar que, para além das tensões entre a equidade e outros valores, a sim‑
| 73
seus valores subculturais. Além disso, estes relacionamentos não são fixos e imutá-
veis, são frequentemente transitórios e num constante estado de fluidez.
74 |
CONCLUSÃO
35 O motivo inerente prende‑se com a oportunidade para explorar itens não previstos que
ocorrem de alguma forma na auditoria e que podem ser uma profícua fonte de recolha de
informações genuinamente inovadoras. Sem essa oportunidade, algumas questões interes‑
santes e importantes podem permanecer sem ser identificadas, subdesenvolvidas e/ou não
corroboradas.
| 75
BIBLIOGRAFIA
76 |
| 77
ARTIGO 3
AVALIAÇÃO DA INFRA‑ESTRUTURA PARA A GESTÃO DE ÉTICA
NO SERVIÇO PÚBLICO NA ETIÓPIA: DESAFIOS E EXEMPLOS
PARA OS REFORMADORES36
ABSTRACT
36 Título original: Assessing Infrastructure for Managing Ethics in the Public Sector in Ethio‑
pia: Challenges and Lessons for Reformers, George Larbi, International Review of Administra‑
tive Sciences, vol. 67, vol. 2, 2001, pp. 251‑262.
78 |
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
| 79
37 O trabalho no qual esta comunicação se baseia foi financiado pelo Programa das Nações
80 |
| 81
82 |
início, que a ética tem de fazer parte integrante do CSRP, não se tratou de um
aspecto identificado posteriormente, associado à reforma. Os resultados iden-
tificados pelo grupo de trabalho sugeriam que, embora a corrupção e outras
práticas pouco éticas não estivessem institucionalizadas na máquina governa-
mental, havia preocupações que sugeriam que a corrupção estivesse a ganhar
terreno e que poderia aumentar, caso não fosse combatida. O Governo encetou
um importante programa de desenvolvimento capital, especialmente em termos
de infra‑estrutura e nos sectores da saúde e da educação, envolvendo o apoio
de doadores e contratos de larga escala. A economia também está a ser sujeita
a liberalização. O Governo da Etiópia receia que, se não forem devidamente geri-
dos, estes contratos possam representar um incentivo para a corrupção e outras
práticas pouco éticas em larga escala.
Não obstante estas preocupações, as disposições institucionais e organi-
zacionais para verificação da corrupção e aplicação da ética nas instituições
governamentais são frágeis. Neste sentido, a reforma de ética tornou‑se uma das
prioridades do CSRP38. O subprograma para a ética integra cinco projectos prin-
cipais: (1) criação de um organismo coordenador central para a ética; (2) desen-
volvimento de Códigos de Ética; (3) educação em ética; (4) reforço da capacidade
dos meios; (5) reforço da capacidade das forças policiais, delegados do Ministério
Público e Administração Judicial. No âmbito da componente de ética do CSRP,
realizou‑se em 1999 uma avaliação da infra‑estrutura de ética existente na Etiópia
no intuito de se gerarem resultados e recomendações que possibilitem informa-
ções para as reformas (Larbi, 1999b).
38O CSRP integra cinco subprogramas: Gestão e controlo de despesas; Gestão de recursos
humanos; Prestação de serviços; Gestão de topo; Ética.
| 83
Resultados
84 |
Elemento
da infra‑estrutura Resumo dos principais problemas/questões
de ética
| 85
86 |
| 87
88 |
| 89
CÓDIGOS DE ÉTICA
90 |
| 91
92 |
CONCLUSÕES E ILAÇÕES
| 93
BIBLIOGRAFIA
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Corruption: International Survey of Prevention Measures, Paris: OECD.
94 |
| 95
ARTIGO 4
MAIS DO QUE UM MAU PRESSÁGIO: AVALIAR O PAPEL
QUE OS CÓDIGOS DE ÉTICA DESEMPENHAM PARA
GARANTIR A RESPONSABILIZAÇÃO DOS DECISORES
DO SECTOR PÚBLICO39
ABSTRACT
This article argues that the essential factors of a public service code of ethics
can be divided into five categories. These categories or principles are fairness,
transparency, responsibility, efficiency and conflict of interest. These principles
are identified in this article as being the basic elements of democratic accounta-
bility in relation to public sector decision‑making. The issues explored are not only
the obstacles that the public service decision‑maker faces in internalizing these
principles but, also, the challenges for a pro‑active management in fostering such
internalization.
SUMÁRIO
39Título original: More than Writing on a Wall: Evaluating the Role that Code of Ethics Play in
Securing Accountability of Public Sector Decision‑Makers, Niamh Kinchin, The Australian Jour‑
nal of Public Administration, vol. 66, n.o 1, 2007, pp. 112‑120.
96 |
IMPARCIALIDADE
| 97
41 Em particular, a secção 5 (1) (a) da Administrative Decisions (Judicial Review) Act, 1977
(ADJR Act) refere relativamente à análise judicial: “Um indivíduo que seja lesado por uma de‑
cisão à qual a presente Lei seja aplicável, e que seja tomada após a vigência da presente Lei, po‑
derá apelar ao Tribunal Federal ou ao Tribunal Federal de Magistratura para obter uma or‑
dem de análise relativamente à decisão com base num ou mais dos seguintes fundamentos: (a)
que a violação das regras de justiça natural tenha ocorrido em relação à tomada da decisão”.
98 |
TRANSPARÊNCIA
| 99
42 A secção 13 da ADJR Act obriga a um direito mais abrangente relativo ao fundamento ex‑
presso e concernente às decisões tomadas ao abrigo da Lei citada: “Podem conhecer‑se os mo‑
tivos para a decisão se (1) o indivíduo tomar uma decisão à qual a referida secção seja aplicá‑
vel, qualquer indivíduo que tenha direito a fazer um pedido ao Tribunal Federal ou ao Tribunal
Federal de Magistratura ao abrigo da secção 5 em relação à decisão pode, mediante notifica‑
ção por escrito ao indivíduo responsável pela decisão, solicitar uma declaração por escrito que
inclua os resultados referentes a questões de facto material, referentes a evidências ou outro
material nos quais se baseiem esses resultados e indicando os motivos subjacentes à decisão”.
100 |
43 Secção 41, Freedom of Information Act, 1982 (Lei relativa à Liberdade de Informação).
44 Secção 24, Freedom of Information Act, 1982 (Lei relativa à Liberdade de Informação).
45 Secção 36, Freedom of Information Act, 1982 (Lei relativa à Liberdade de Informação).
46 Por exemplo, consultar Ken Myers (1990): What is in the ‘‘Public Interest?’’ Asks one Conser‑
vative Group, in The National Law Journal, vol. 13, n.o 9, p 4; Barbara Hocking (1993): What
Lies in the Public Interest? A Legal History of Official Secrets in Britain, in QUTLJ, vol. 9, pp. 31
‑60; Trish Keeper (2004): In the Public Interest, in NZLJ, Junho, pp. 231‑234.
| 101
RESPONSABILIDADE
47 Michael Jackson refere também que, na realidade, os funcionários públicos foram limita‑
102 |
Whistleblowers Protection Act, 1994 (Queensland); Whistleblowers Protection Act, 2001 (Vic‑
toria); Protected Disclosures Act, 1994 (New South Wales).
| 103
EFICIÊNCIA E EFICÁCIA
104 |
49 Secção 44: “Promover uma utilização eficaz e ética dos recursos da Commonwealth. (1) Um
| 105
CONFLITO DE INTERESSES
106 |
CONCLUSÃO
| 107
108 |
BIBLIOGRAFIA
| 109
Luís de França
Professor da UCAN
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO GERAL À ÉTICA EMPRESARIAL
“A Ética Empresarial nasce nas últimas décadas do século XX. Contudo, a crise
financeira global que afecta a Economia Mundial, desde há vários anos, veio dar
a esta temática uma actualidade de primeira grandeza. Desde então não há dia
em que Chefes de Estado, analistas económicos, Prémios Nobel, investigadores,
autoridades de todas as latitudes não se pronunciem sobre a necessidade da ética
para um bom funcionamento da Finança Internacional e, consequentemente, a
estabilização do crescimento económico das Nações.
Todos, ou quase todos, concordam que a vida financeira do mundo será diferente
daqui para a frente. A ideia de que tudo vale desde que haja lucro está a ser posta
em causa por numerosas intervenções ao mais alto nível da liderança mundial.
Convém portanto ao iniciar este estudo sobre a ética nas empresas reflectir
sobre as origens desta crise que, para muitos, é a maior desde há pelos menos 70
anos. Uma descrição necessariamente incompleta desta crise é o assunto que vai
constituir o primeiro capítulo deste curso. É caso para dizer: Ética precisa‑se!”
O FIM DA HISTÓRIA?
| 111
112 |
investimento. Desde finais dos anos 80 que o Governo norte‑americano era pres-
sionado a revogar esse conjunto de leis. Stiglitz foi opositor da fusão entre bancos
comerciais e bancos de investimento e a actual crise só lhe veio dar razão.
Por um lado eram evidentes os conflitos de interesses decorrentes da sobre-
posição da cultura dos bancos comerciais (que emprestam dinheiro e gerem
depósitos de forma segura) com a dos bancos de investimento (que geram a
venda de títulos e aplicam grandes quantias em produtos de risco elevado na
perspectiva de rendimentos muito elevados). A mesma instituição que emite títu-
los de uma empresa e que os recomenda, sentir‑se‑á pressionada, por exemplo, a
emprestar dinheiro a essa empresa mesmo que tenha dúvidas sobre a sua saúde
financeira. Da mesma forma, a instituição que empresta dinheiro para a compra
de casas, por exemplo, vai depois vender títulos correspondentes às hipotecas
dessas casas – um exemplo de derivado financeiro onde a necessidade de vender
e valorizar esses títulos leva a esconder ou a disfarçar o risco de algumas dessas
hipotecas.
OS LOUCOS ANOS 90
| 113
Também cita o caso do Citigroup que investia fortemente os depósitos dos seus
clientes, sem o seu conhecimento, em produtos financeiros de risco.
Com todos estes incentivos perversos decorrentes da desregulamentação,
o sector financeiro tem‑se distanciado cada vez mais do seu propósito. Stiglitz
afirma que o sector financeiro deve ser um meio para alcançar algo, e não um
objectivo em si, um bem final. Deve ser antes de mais um intermediário e se está
a ser bem‑sucedido na sua função deve levar a uma produção mais eficiente, não
gerar grandes receitas por si próprio. Seria suposto o sector financeiro gerir o
risco e distribuir capital a baixos custos. No entanto, o sistema financeiro norte
‑americano contrariou todas estas funções, exponenciou o risco, fez uma má dis-
tribuição de capital, e tudo isto a custos muito elevados. Nos últimos anos, este
sector lucrava 30% de todos os ganhos empresariais.
A BOLHA DO IMOBILIÁRIO
114 |
| 115
116 |
| 117
Aqui estão algumas das causas que minaram as economias desse nefasto
período: I. Ausência de regulação dos mercados; II. Gritantes assimetrias na
distribuição da riqueza; III. Insuportáveis níveis de endividamento dos sectores
público e privado, incluindo as famílias; IV. Políticas salariais assentes em bai-
xos salários para a maior parte dos empregados por conta de outrem; V. Frené-
tica especulação nos mercados bolsistas e imobiliário. Mais uma vez a história
se repete sem que os principais responsáveis pela condução dos destinos das
principais instâncias supranacionais e Nações do mundo fizessem alguma coi-
sa para a evitar. A acrescentar às causas de então, tão actuais e semelhantes
às do presente, existem outras que passo a referir: 1. Manifesta incompetência
política e governativa dos principais líderes do mundo civilizado a partir da
década de oitenta; 2. Ameaças à estabilidade económica, financeira e social do
mundo moderno decorrentes da globalização; 3. Políticas fiscais irresponsáveis
e levianas; 4. Políticas monetárias laxistas e negligentes; 5. Idolatria do mate-
rialismo, da fama e do dinheiro em prejuízo do ideal, da justiça e dos valores.
118 |
As lições da crise
A presente crise ensina‑nos a repensar os modelos dogmáticos preconce-
bidos e a adaptá‑los às novas circunstâncias e realidades do mundo actual. O
neoliberalismo económico ou economia pura de mercado, baseado no lucro
fácil e a qualquer preço, na competição predominantemente especulativa dos
mercados imobiliário e de capitais, na anarquia e indiferença dos mercados e
na ausência de princípios legais, éticos e de justiça está a ser definitivamente
enterrado, como aconteceu a outras teorias económicas do passado, de tão
má memória. A resposta científica e pragmática à actual crise do modelo eco-
nómico e social passam por aproveitar as contribuições positivas, as sinergias
e a vitalidade do capitalismo e do socialismo. Estes sistemas económicos não
são incompatíveis, bem pelo contrário, podem ser fundidos numa economia
social de mercado, compósita e mista, onde a inovação, o lucro justo e funda-
mentado, a ética e a solidariedade social possam coexistir em plena harmonia,
reciprocidade e complementaridade.
Aguardo, com esperança, que os ensinamentos de um dos maiores econo-
mistas de todos os tempos, John Maynard Keynes (1883‑1946), incorporados
no seu mais importante trabalho publicado em 1936, Teoria Geral do Emprego,
Juros e Dinheiro, assim como das políticas macroeconómicas superiormente
definidas pelo irreverente John Galbraith (1908‑2006) contribuam para a cons-
trução dum novo modelo económico e duma nova ordem económica interna-
cional. Convém adoptar políticas tributárias bem mais progressivas a fim de
penalizar, controlar e evitar as remunerações sumptuosas e exorbitantes como
as de muitos gestores de cargos públicos e privados e de alguns dos protago-
nistas do mundo do espectáculo por forma a atenuar as gritantes assimetrias
sociais e, desta forma, contribuir para o aumento do poder de compra das
classes mais desfavorecidas e estimular o crescimento económico. Como, com
enorme sabedoria, pregava sua Santidade o Papa Paulo VI, sem justiça nunca
haverá paz e estabilidade.”
| 119
CAPÍTULO II
MERCADOS E EMPRESAS NA ENCÍCLICA CARIDADE NA VERDADE
OPÇÕES DE UM TÍTULO
120 |
e no mundo do mercado livre? Bento XVI veio lembrar que no mundo real em
que vivemos não podem existir dois mundos. Ou seja, haveria o mundo da reli-
gião e o mundo da economia. O Papa diz‑nos que a Economia não é neutra e que
ao viver as questões económicas temos de pôr aí o Evangelho, por isso a Encíclica
se chama Caridade na Verdade.
O Papa Bento XVI nunca escondeu que o atraso na publicação desta Encíclica
se ficou a dever à enorme crise que se abateu sobre o mundo da Finança e da
Economia a partir de 2007.
Inscrevendo‑se nas práticas habituais das chancelarias do Vaticano, o novel
Papa fez saber, quase a partir do momento da sua eleição, em 2005, que desejava
publicar, em 2007, uma Encíclica comemorativa dos 40 anos da publicação da
Encíclica Populorum Progressio. Mas isso não aconteceu em 2007, e no avião que
em Março de 2009 o conduziu ao continente africano, e nomeadamente a Angola,
o Papa foi questionado sobre esse atraso. A sua resposta não podia ser mais cla-
ra: “Bento XVI admitiu que o atraso na publicação da sua tão esperada Encíclica
Social tem que ver com a dificuldade em encontrar uma resposta credível para a
crise financeira global”50.
Por outro lado, em 26 de Fevereiro, ainda em Roma, o Papa também fez
saber que não estava a escrever a Encíclica sozinho e acrescentou: “durante este
longo tempo de espera verifiquei como é difícil falar com competência sobre estes
assuntos, já que a realidade económica senão for abordada com competência não
será credível (…)”.
Mas desde logo afirmou que a Encíclica denunciaria – o pecado humano da
ganância – já que esse foi o erro fundamental que causou o colapso de alguns
grandes bancos americanos e por efeito de ricochete provocou uma crise global.
“(…) Temos de fazer uma denúncia razoável e racional dos erros, sem moralis-
mos, mas com raciocínios concretos que tornem compreensíveis os mecanismos
da economia actual… grandes moralismos nada ajudam se não estiverem apoia-
dos em conhecimentos substantivos da realidade.”51
| 121
Nunca nenhum texto da Doutrina Social da Igreja tinha até então dado tanto
relevo às questões financeiras como acontecerá neste texto de 29 de Junho de
2009.
Ao longo do texto, e por mais de doze vezes, o Papa alerta, denuncia, corrige,
apela a uma outra visão do mundo financeiro ao serviço da economia global. Res-
piguemos algumas dessas referências:
122 |
| 123
Por isso, há que avaliar atentamente as consequências que podem ter sobre
as pessoas as tendências actuais para uma economia a curto, se não mesmo
curtíssimo prazo. Isto requer uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da
economia e dos seus fins, bem como uma revisão profunda e clarividente do
modelo de desenvolvimento, para se corrigirem as suas disfunções e desvios. Na
realidade, exige‑o o estado de saúde ecológica da Terra; pede‑o sobretudo a crise
cultural e moral do Homem, cujos sintomas são evidentes por toda a parte. (§32)
124 |
O LUCRO E O DESENVOLVIMENTO
| 125
126 |
‘‘Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe, mas toma
forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com efeito,
a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se
quem as gere tiver apenas princípios egoístas. Deste modo é possível conseguir
transformar instrumentos de per se bons em instrumentos danosos, mas é a razão
obscurecida do Homem que produz estas consequências, não o instrumento por
si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve ser chamado em causa, mas o
Homem, a sua consciência moral e a sua responsabilidade pessoal e social.” (§36)
“O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição
económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de ope-
radores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que
trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e
desejos.” (§36)
“O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que
regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a
doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a jus-
tiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só
porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas
também pela teia das relações em que se realiza. De facto, deixado unicamente
ao princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não con-
segue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar. Sem formas
internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cum-
prir plenamente a própria função económica. E, hoje, foi precisamente esta
confiança que veio a faltar, e a perda da confiança é uma perda grave.” (§35)
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A lógica mercantil
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A lógica do dom
Mas o mais notável nesta exposição é a confiança que Bento XVI coloca nestas
perspectivas enquanto propostas que podem efectivamente concorrer para a
democracia económica, assim como para a vitalidade do próprio mercado:
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O Papa Bento XVI, continuando a expor a sua visão de uma economia que
respeite o Homem em todas as suas dimensões, vai agora defender que as duas
lógicas, que podem operar num mercado polivalente, são necessárias para a vita-
lidade económica do mercado enquanto instituição base da economia actual:
130 |
Como é de norma um Papa não deve referir num documento de carácter uni-
versal as situações e as realizações concretas, neste caso, na área da economia
e das empresas. Mas quando afirma como o faz no parágrafo 46 do seu texto:
“Nestas últimas décadas, foi surgindo entre as duas tipologias de empresa uma
ampla área intermédia”, podemos admitir que Bento XVI está suficientemente
bem informado sobre todas as formas de organizações sociais e económicas hoje
largamente designadas como fazendo parte do “terceiro sector”.
Bento XVI quer evocar para além das empresas tradicionais, isto é, daquelas
exclusivamente voltadas para o lucro profit as que se designam como non‑profit,
ou seja, as organizações não‑lucrativas. É um universo bem conhecido e descrito
nas sociedades economicamente mais desenvolvidas, como fez, por exemplo,
Peter Drucker relativamente à situação dessa área no seu país.
Mas Bento XVI vai mais longe ao referir as empresas de comunhão. Certamente
que aqui pensava nos “parques empresariais” criados pelo movimento católico
dos Focolaris. Hoje, mais de mil empresas em todo o mundo, incluindo algumas
em países africanos, regem‑se pela lógica do dom sem se apartarem da regra
fundamental do mercado, isto é, trabalhar para obter lucro52. Conhecedor de
todo este universo empresarial, Bento XVI valoriza‑o ao falar das novas tipologias
empresariais:
| 131
E tudo leva a crer que Bento XVI, sem o querer referir, também conhece a
extraordinária inovação lançada há poucos anos pelo Prémio Nobel, Muhammad
Yunus, ao criar o chamado “negócio social”. A maior multinacional do mundo
fabricante de iogurtes associou‑se ao empresário Yunus para criar uma empresa de
iogurtes que hoje fornece milhões desse produto às crianças das aldeias pobres
do Bangladesh. Legitimando todas essas iniciativas corporizadas hoje em verda-
deiras alternativas económicas ao sistema económico dominante, o Papa advoga
que as empresas de comunhão, e outras com a mesma dinâmica, concorrem para
um mercado mais competitivo e humano53.
132 |
Por fim, o autor de Caridade na Verdade, depois de ter afirmado que as duas
lógicas do mercado são necessárias à sua vitalidade, vai agora defender a ideia
segundo a qual a economia civil, ou seja, a economia corrente contratual precisa
de compor com as formas de economia de comunhão, com o fim de se alcançar
um mundo mais humano e competitivo:
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CAPÍTULO III
DOUTRINAS ÉTICAS COMO SUPORTE DA ÉTICA EMPRESARIAL
“A ética, tal qual a conhecemos hoje, é uma criação do mundo grego. E será
sempre difícil falar de ética nas empresas se não se perceber a origem deste uni-
verso cultural.
Foram várias as teorias forjadas nessa Grécia clássica. Umas vingaram e
marcaram durante séculos o pensamento ocidental. Assim, ninguém pode igno-
rar o lugar único de Aristóteles no nascimento da ética. Mas tem também de
reconhecer a influência que outras doutrinas, tais como a estóica ou a epicurista,
exerceram sobre alguns pensadores e economistas até aos dias de hoje. É pois
imprescindível conhecer os pressupostos doutrinais da ética e também a relação
entre a ética e a moral.
Para tanto deve começar‑se pela questão básica. Porquê estudar Ética Empre-
sarial nos cursos de Economia, Gestão e nos diferentes cursos de Engenharia?”
O Homem, definindo‑se pela acção, procurará formas de agir que lhe sejam
favoráveis, por outro lado, o Homem vivendo em sociedade, convive com outros
homens e, logo, acabará por perguntar como devo agir perante os outros? Para
agir o Homem faz as suas escolhas, faz opções. Conflitos nas opções levam à
diversidade de modos de agir, que por sua vez criam novos conflitos.
Na História da Humanidade, pouco a pouco, passou‑se da regra do mais forte
à regra do direito. A ética nasce da necessidade de racionalizar os comportamen-
tos humanos. Ou seja, sair do domínio dos instintos e da sobrevivência.
Concluindo, pode dizer‑se que uma empresa enquanto lugar de convivência
humana também terá de dar lugar à ética. Assim se compreende que se possa e
deva falar de Ética Empresarial.
Filosofia ou Ciência, a ética é necessária para a convivência humana. A Ética
foi desde sempre considerada uma disciplina integrada na Filosofia. Contudo,
hoje, há correntes que tratam da ética, apenas, como ciência do agir, sem refe-
rência à Filosofia.
134 |
A ética como toda a filosofia ocidental nasce na Grécia. A palavra ética, etimo-
logicamente, vem da palavra grega ethos que pode significar modo de ser, modo
de agir. Mais tarde, a palavra ethos foi traduzida em latim pelo termo mos ou
mores no plural. Daqui nasce o vocábulo moral utilizado nas principais Línguas do
Ocidente (Inglês, Espanhol, Francês, Português, Italiano).
Ética e moral têm, portanto, uma etimologia comum, mas enquanto discipli-
nas que procuram teorizar o agir humano são diferentes. Ética e moral não se
devem confundir. A ética é teórica e procura por via da razão e do conhecimento
humano estabelecer princípios universais que possam reger a conduta humana.
A moral resulta de um conjunto de normas, de preceitos, de costumes e de regras
vividos e aceites numa dada cultura e numa dada sociedade. Logo, a moral é
a ética vivida por uma determinada sociedade e num determinado momento
da História. Assim se fala, por exemplo, de moral burguesa, moral cristã, moral
budista, etc.
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A virtude dirá também é o termo médio entre dois extremos viciosos. A virtude
é o justo meio. Em “si mesmo a virtude é um cume, é o que há de mais oposto à
mediocridade”.
E para agir é preciso um conhecimento prático e a virtude fundamental para
o agir humano é a prudência. A prudência é uma disposição acompanhada da
regra verdadeira, capaz de agir dentro da esfera daquilo que é bom ou mau para
um ser humano. A felicidade perfeita só se pode atingir pela ética que indica ao
Homem a temperança para dominar as paixões54.
O estoicismo foi fundado por Zenão de Cicio. Para o estóico, a vida feliz é vida
virtuosa, isto é viver conforme a natureza, ou seja, conforme a razão. O essencial
é a rectidão, a adequação à ordem intrínseca do mundo, a Lei Natural, a Lei Divina
– num sentido quase panteísta – que mede o que é justo e o que é injusto. Para
viver rectamente é preciso lutar contra as paixões, contra as boas e as más.
“Nada te inquiete, nada te perturbe. Todas as coisas nos são alheias, somente
o tempo é nosso”. Esta é uma afirmação do romano Séneca, um dos principais
representantes desta corrente estóica. Séneca era um aristocrata, mas entre os
estóicos também se contam Epicteto, um antigo escravo transformado em filósofo,
e Marco Aurélio que foi imperador romano.
A Filosofia da Stoa – à porta da cidade –, já não é só para uma elite de cida-
dãos tendo em vista o domínio das questões públicas, mas a filosofia que se dirige a
todos os homens que se questionam como governar a cidade.
A felicidade não se deve procurar nos bens que não dependem de nós, tais
como: beleza, riqueza, honra, poder, mas na faculdade de querer bem, que se
chama virtude e que dá a verdadeira beatitude. O estoicismo é uma filosofia da
liberdade interior e absoluta e, é também, uma filosofia do destino. “Os destinos
guiam aquele que os aceitar, forçam a segui‑lo aquele que lhes resistir” (Séneca),
ou seja, a liberdade do sábio consiste pois em querer as coisas tal como aconte-
cem, e não tal como se desejaria que acontecessem.
É uma filosofia dos tempos difíceis na qual o indivíduo tem de encontrar for-
ças em si mesmo. É também a primeira filosofia explicitamente universalista e
cosmopolita. Os estóicos já falam em ser cidadãos do mundo…
A corrente estóica, fundada cerca de 300 a.C., sobreviveu até aos nossos dias,
tendo sido dominante na passagem do mundo grego para o mundo romano e
deixando mesmo a sua influência no cristianismo dos primeiros séculos.
Esta cultura estóica, dominando os primeiros séculos da nossa Era, e através
da sua vertente universalista, favorecerá a expansão do cristianismo.
De modo semelhante ao estoicismo – o seu inimigo histórico – o epicurismo
é do século IV, pois foi fundado por Epicuro de Samos (341‑270 a.C.), que fundou
136 |
a sua escola em Atenas. Esta tendência dura até aos dias de hoje sob o nome de
hedonismo ou utilitarismo.
Tal como o estoicismo, insiste na sabedoria prática. A amizade é indispensá-
vel ao estado de espírito epicurista. O epicurista é um ser delicado e requintado,
que regula com precisão o seu regime de vida para nunca se afastar do estado de
equilíbrio.
Que deve fazer o Homem? O que gosta mais? Ora, o que gosta mais é o que
lhe é agradável: o que lhe dá prazer?
“Quando dizemos que o prazer é o soberano bem não falamos dos prazeres
dos pervertidos, como pretendem alguns ignorantes que nos atacam e desfigu-
ram o nosso pensamento. Falamos de ausência de sofrimento para o corpo e da
ausência de inquietação para a alma.” (Epicuro).
Deve observar‑se que à volta da Filosofia de Epicuro se gerou um certo para-
doxo. Epicurismo ou hedonismo para estes filósofos não é o reino absoluto dos
prazeres. É o prazer equilibrado que quebra a tensão interior e permite cultivar a
amizade nas nossas vidas passageiras.
O mundo cristão quando nasce fala latim e adopta o vocábulo latino mos –
moral. O termo ética será eclipsado da linguagem dos pensadores cristãos e dos
teólogos. Durante séculos só se pensa e só se fala em termos de moral cristã.
É Santo Agostinho (354‑430) que só fala latim, e já não conhece o grego como
acontecia com os pensadores cristãos anteriores, que irá impor o termo moral ao
pensamento ocidental.
Contudo, a reflexão ética ou moral não estagnou durante o longo período
medieval. O teólogo Tomás de Aquino, por exemplo, dará uma contribuição deci-
siva para a compreensão dos actos humanos, ou seja, para aquilo a que hoje se
chamam os princípios de uma filosofia do agir humano.
Com o advento do movimento Iluminista, no século XVIII, que faz da razão a
única referência e a única autoridade do pensar humano volta‑se a falar de ética.
Isso acontecerá com o filósofo Baruch Spinoza (1632‑1677), que publica uma
obra com esse título, o que não acontecia desde o tempo de Aristóteles, ou seja,
durante quase dois mil anos.
Mas, é o filósofo alemão Immanuel Kant que estará no início de uma verda-
deira revolução no modo de pensar a ética, como se verá mais adiante.
Apesar das contribuições destes pensadores – Spinoza, Kant – para o reapa-
recimento da reflexão ética a partir do Século das Luzes – século XVIII – a ética
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só aparecerá na cultura geral em meados do século XX. Depois dos horrores vivi-
dos durante a Segunda Guerra Mundial (1939‑1945), a Humanidade despertou
para a necessidade da reflexão ética. Também se deve ter presente que devido à
influência do Positivismo, primeiro, e depois do Marxismo, em todo o século XIX,
a ética esteve eclipsada.
Assim, a partir dos anos 50 do século passado, e depois de um longo inter-
regno, a ética voltou a estar na ordem do dia das ideias e dos debates. A Ética
Empresarial irá inscrever‑se nesta redescoberta moderna da ética dos antigos.
Actualmente, não há dia em que não apareça um livro ou um artigo de revista
a falar dos mais variados aspectos da ética contemporânea.
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CAPÍTULO IV
OS FUNDAMENTOS DA SOCIEDADE LIBERAL – O UTILITARISMO
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A visão optimista sobre o ser humano veiculada por aqueles pensadores esco-
ceses já referenciados gerará um dos maiores movimentos éticos e políticos do
século XIX, o utilitarismo que se pode definir como: um individualismo profunda-
mente humanista e laico.
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CAPÍTULO V
IMMANUEL KANT, UMA REVOLUÇÃO COPERNICANA
NA FILOSOFIA E NA ÉTICA
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Outro dado para perceber a Filosofia de Kant é o de compreender que para ele
nunca poderemos conhecer as coisas em si mesmas. As coisas manifestam‑se e nós
apreendemo‑las como fenómenos. Isto é, contactamos com uma aparência das
coisas – nós não podemos conhecer as coisas – em si mesmas – só podemos conhe-
cer as suas representações. Wolf, contra o qual Kant escrevia, dizia que se podiam
conhecer as coisas em si mesmas. Kant dizia a razão não consegue lá chegar.
Kant também se opôs a Hume e ao seu empirismo, pois Kant dizia que não
basta a experiência que nada explica, sem as leis do espírito. Porque para Kant é
na mente, na razão, que estão as leis que nos permitem conhecer seja o que for. E
essas leis são a priori, isto é, elas existem ainda antes de eu fazer qualquer expe-
riência ou de receber o impacto de qualquer fenómeno.
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procura dela, vamos dar‑lhe uma base racional, o que para Kant é o mesmo que
dar‑lhe uma base científica.
Kant passou a vida inteira num imenso esforço de racionalização para des-
vendar o modo como a razão funciona e, a partir daí, saber se é possível a razão
fundamentar uma Metafísica.
Para tal, criou o seu método e, que segundo a sua intenção, devia resolver
esta questão fundamental. O método chamou‑se Análise Transcendental. Só que
Kant utilizou as palavras correntes na Filosofia do seu tempo, mas dando‑lhe con-
teúdo diferente. Se não tivermos cuidado ainda ficamos mais baralhados neste
universo de conceitos cruzados. Vejamos, então, o que é que Immanuel Kant
entendeu por transcendental ao expor o seu método na primeira parte da sua
obra magistral.
A noção de transcendental, como se sabe, vem da escolástica. Para Aristóteles
significava as propriedades do ser: unidade, verdade, bondade, por exemplo.
Mas para Kant, transcendental nada tinha a ver com o ser, mas com o conhe-
cimento e o conhecimento a priori. Para Kant, transcendental são os conceitos ou
as representações a priori, isto é, que estão no espírito ainda antes do contacto
com as coisas, com os objectos. Ou seja, Kant foi à escolástica buscar um termo e
deu‑lhe o conteúdo que entendeu.
Concluindo, todo o conhecimento tem relação com um objecto e quando o
conhecimento é, a priori, a sua relação ao objecto é assegurada não pela expe-
riência, mas por princípios que Kant chamava transcendentais.
Pelo entendimento os objectos são pensados. O entendimento é activo –
espontaneidade dos conceitos – é o entendimento que constitui o conteúdo da
analítica transcendental. O conhecimento intelectual faz‑se por conceitos.
O espírito, a razão só compreende na Natureza as coisas que lá pôs. Como e
por que é que essas categorias subjectivas estabelecidas por Kant podem ter valor
objectivo e fundamentar a ciência física, já que esse é o objectivo central da crítica
do entendimento? Kant precisou de dez anos para responder a esta questão.
Kant
Entendimento é o poder de julgar (pensar é julgar). Kant propôs doze tipos
de juízos, ou seja, doze funções de síntese que são independentes da matéria.
A estas funções chamam‑se conceitos puros ou categorias.
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CAPÍTULO VI
JOHN RAWLS E O NASCIMENTO DA ÉTICA EMPRESARIAL
“John Rawls, para alguns o maior filósofo da ciência política do século XX, foi
um herdeiro de Kant, razão porque em parte é necessário conhecer o filósofo ale-
mão antes de se passar ao estudo do cientista americano, professor de Harvard.
Refuto que qualquer estudante universitário não pode deixar a Universidade
sem ter tomado contacto com este pensador que continua a inspirar numero-
sos estudos. Uma das áreas mais elaboradas no pensamento contemporâneo é
exactamente aquela que tem a ver com os estudos sobre as várias concepções da
justiça.
A obra recente de Amartya Sen – Uma ideia de Justiça – não faz mais do que
confirmar o lugar insubstituível de John Rawls na problemática da busca da socie-
dade justa.”
148 |
Nesta obra chave, Rawls procurou lançar a base moral que melhor se ade-
qua a uma sociedade democrática, ao propor um contrato social entre os cida-
dãos, assente na igualdade de oportunidades. Colocando a tónica na ideia de
equidade ou de reciprocidade entre “os mais favorecidos”, Rawls ultrapassou o
tradicional dilema filosófico entre “liberdade” versus “igualdade”, introduzindo a
justiça como conceito central. Segundo a sua definição, justiça significa dar a cada
Homem o que lhe é devido.
John Rawls elaborou uma Teoria da Justiça que, embora não sendo política
nem metafísica, procurou com base na razão estabelecer regras para o convívio
plural e pacífico que, hoje, se pratica nas democracias das sociedades desenvolvi-
das. Para tal, distingue, e no seguimento de Kant, o que são concepções substan-
tivas do bem – que diferem de grupo para grupo, até de pessoa para pessoa – e o
que devem ser Princípios Processuais de Justiça que a todos se possam legitima-
mente aplicar, sem prejuízo das tais diferenças de concepção de vida e dos ideais
de cada um. Digamos que a justiça, e portanto o Estado, estaria necessariamente
numa posição de neutralidade perante as várias concepções do bem.
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para assegurar a sua neutralidade ninguém saberia se, na sociedade real, é rico
ou pobre, homem ou mulher, culto ou ignorante, etc. Do acordo unânime que daí
saísse teríamos as regras de uma ética pública na sociedade pluralista.
Numa sociedade pluralista Rawls estava consciente das dificuldades que se
levantavam à estabilidade das estruturas sociopolíticas que se conformavam com
os princípios enunciados. Ele reconheceu mesmo que a exigência de estabilidade
colocava poderosas restrições a qualquer concepção de justiça:
Como se disse são os pensadores liberais tais como John Rawls, Willy Kymli-
cka, Jeremy Waldron, Ronald Dworkin, entre outros, que prepararam o terreno
para o aparecimento nos finais dos anos 80 daquilo a que agora chamamos Ética
Empresarial. Contudo, e no que diz respeito ao autor referenciado acima, convém
registar as críticas principais que lhe são feitas. Antes de mais questiona‑se a
proposta liberal que defende a neutralidade absoluta do Estado. Deverá o Estado
liberal ser neutro? Por outro lado é redutor o enfoque exclusivo no indivíduo
enquanto tal, sem a dimensão social e dialógica que também o constitui; tal enfo-
que não se revela capaz de captar uma série de realidades da vida. Falta portanto
à Teoria da Justiça de Rawls a dimensão colectiva ou comunitarista sem a qual
não é possível dar resposta às questões da diversidade étnica e cultural existente
em quase todas as sociedades contemporâneas.
Uma das críticas à obra chave de Rawls é aquilo a que poderíamos chamar o
seu carácter individualista. Logo no início da obra o autor mostra a sua propensão
para o individualismo ao escrever:
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“E, bem‑feitas as contas a médio e a longo prazo, verificamos que, tal como
nada há tão gerador de riqueza e de rendimentos como uma boa ideia, nada
há, a médio e longo prazo, tão eficaz e eficiente para as empresas, ambientes
e sistemas empresariais como uma boa ética. A ideia de que o negócio é negó-
cio, a ideia de que há um mundo privado da ética e há um mundo do negócio,
que tem regras técnicas mas onde vale tudo, nunca terá sido uma ideia cor-
recta, mas hoje, além de ser uma ideia falsa, é uma ideia ineficiente. Cada vez
mais verificamos, e nas zonas onde na nossa cultura e civilização se produzem
ideias, que o futuro é marcado pela ética moralista, passadista, mas, no sentido
originário, marcado pelos homens e, acima de tudo, pelo seu carácter.
E não foi por acaso que a reflexão sobre Ética Empresarial, arrancado natu-
ralmente com os clássicos da filosofia e os clássicos da ética, foi uma reflexão
que nasceu da sociedade e da empresa. Esta que temos hoje nasceu da socieda-
de e da empresa, em primeiro lugar, da sociedade norte‑americana, da grande
crise pós‑Watergate e pós‑guerra do Vietname, e do meio empresarial, que sen-
tiu não só uma necessidade de se confrontar com os seus próprios valores, mas
de se confrontar com a sociedade e de pensar a relação com essa sociedade.
Essa crise de civilização conduziu a uma reflexão sobre ética, que não é teoriza-
ção de filósofos, embora seja imprescindível o contributo dos filósofos, mas que
é sobretudo hoje procurado pela comunidade empresarial na sua dimensão de
formação nas escolas de Gestão e Administração, e na sua dimensão prática.
A problemática dos códigos, a problemática da deontologia, a problemática da
ética nas relações são a base de qualquer relação económica micro ou de negó-
cios e serão cada vez mais no futuro a boa‑fé da confiança (…)
Se no passado pode ter bastado a ideia de que a empresa, o gestor e os
seus elementos cumprem a Lei, no futuro, no mercado que transcende fron-
teiras, na sociedade globalizada, aquilo que faz o prestígio, o nome, a eficácia
das empresas, de sociedades empresariais e de países, naturalmente, a sua
produtividade e competitividade, mas não menos o seu bom nome, que assenta
numa prática eticamente exigente.
Nesse sentido, sem estar a reduzir tudo à ética ou a absolutizar a ética, diria
que é importante que interiorizemos que o futuro empresarial passa por uma nova
cultura empresarial de que a responsabilidade social da empresa, os padrões de
comportamento perante aqueles com quem se relaciona (clientes, fornecedores
e consumidores), perante os mercados com uma relação de transparência e de
verdade, que não é só importante nos mercados financeiros mas é em todos),
perante os elementos que constituem a empresa (dos gestores perante os traba-
lhadores, perante os accionistas e perante o Estado) faz parte integrante.”
Prof. Doutor António Sousa Franco – Ministro das Finanças de Portugal –
1996, no 1.o Congresso Português de Ética Empresarial
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No ano 2000, após quatro anos, o 2.o Congresso Mundial da ISBEE realiza‑se,
em S. Paulo, sob a experimentada orientação da FGV. Participaram cerca de qua-
trocentas pessoas oriundas de quarenta e um países. O tema central foi o seguinte:
Os Desafios Éticos da Globalização.
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CAPÍTULO VII
EMPRESAS ÉTICAS E EMPRESAS DE RESPONSABILIDADE SOCIAL
“É preciso ter presente que uma empresa é antes de mais uma organização
económica criada para fornecer bens ou serviços, e que deve ser rentável. Sem
lucro não há riqueza, não há desenvolvimento.
Não obstante esta constatação, temos de reconhecer que a evolução do mundo,
nas últimas décadas, particularmente em certos países, assistiu a uma deslocação
do primado exclusivo do económico para a consideração do social. Ao nível da
vida das empresas, isso levou à possibilidade de algumas empresas começarem a
assumir posições éticas no mundo dos negócios, assim como a assumirem respon-
sabilidades sociais fora do âmbito da empresa.
Daí terem florescido no mercado empresas éticas e empresas de responsabili-
dade social. Como é que ética se inscreve na vida de uma empresa é o que vere-
mos neste capítulo.”
Aristóteles foi o fundador da ética das virtudes, afirmando: “As virtudes não
são fins, mas meios para alcançar a excelência”. Todos os pensadores que escre-
vem sobre as virtudes são continuadores ou comentadores de Aristóteles. Foi ele
que forjou a noção de virtude enquanto “meio‑termo” ou “justo meio” entre dois
extremos. Um por excesso e outro por defeito. Por exemplo, a virtude da cora-
gem seria o meio‑termo entre a cobardia e a temeridade. A virtude da generosi-
dade ou magnanimidade seria o meio‑termo entre a avareza e a prodigalidade.
Como o modo de agir é uma consequência do modo de ser, a pessoa que
se exercita nas virtudes e tem uma unidade de vida, deixa transparecer na sua
actuação profissional as virtudes que cultiva na sua vida pessoal.
Virtudes são qualidades que capacitam as pessoas a encontrar motivos para
bem agir. Sem coacção, exercitando a sua liberdade, a pessoa virtuosa procura
sempre escolher o que é bom, certo, correcto. As virtudes são essencialmente
hábitos bons que, para florescer, devem ser praticados.
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A noção de valor – os valores – são termos que nunca foram usados na Filoso-
fia antiga. Quem introduz a noção de valor na cultura moderna é o fundador da
Economia Política, Adam Smith.
Ao dissertar na sua obra, Riqueza das Nações, sobre o valor de uso e o valor
de troca, aquele autor forjou um conceito que se tornou muito importante na
vida económica. Mais tarde, e sempre na área da Economia, aparecerão as Bolsas
de Valor.
Passado um século sobre a publicação da obra de Adam Smith, na Alemanha,
o mundo da Filosofia começou a reflectir e a usar esse novo termo. É então que
se publicam as primeiras obras sobre A Filosofia dos Valores. Em 1950, um filósofo
francês, Louis Lavelle, publica um Tratado sobre os Valores. Desde então até hoje,
a reflexão sobre os valores no domínio filosófico nunca mais parou.
Uma das repercussões desse interesse pelos valores será na área empresarial.
As empresas durante muitos séculos foram, acima de tudo, e exclusivamente,
vistas como organizações económicas produzindo bens ou serviços. Mas a partir
dos finais do século XX, essas organizações passaram a ter a responsabilidade
de promover, incentivar e encorajar o comportamento ético através dos valores
escolhidos pela empresa.
Uma Empresa Ética é uma empresa que livremente adopta um conjunto de
valores na sua estrutura e nos seus objectivos. Normalmente, esses valores cons-
tituem o essencial de um Código de Conduta ou Código de Ética Empresarial.
A Empresa é Ética por causa dos valores adoptados na empresa e não por
causa das virtudes das pessoas que integram a organização ou pelos produtos e
serviços que ela oferece à sociedade.
Esses valores assumidos pelos executivos, gerentes e empregados devem ser
vividos, dentro das atribuições de cada um, e acabam por se tornar próprios des-
sas pessoas, como sua segunda natureza. O hábito de agir conscientemente, em
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éticos base, já que o não cumprimento dessas normas pode vir a custar muito em
multas, perdas de direitos ou afectar a reputação e o bom nome da empresa.
Posições mais recentes afirmam também que nos negócios há deveres morais
que estão muito para além dos interesses imediatos dos proprietários e dos
accionistas.
Há autores que defendem até que os stakeholders têm certos direitos sobre o
modo como o negócio funciona, e alguns vão até ao ponto de sugerir que esses
direitos implicariam a possibilidade de tomar parte na gestão da empresa.
A versão do contrato social aplicada à gestão das empresas foi popularizada
após a obra marcante de John Rawls sobre a Teoria da Justiça.
Empresa de Responsabilidade Social é uma empresa que decide actuar fora
da sua área de produção ou de serviços, a bem da colectividade. A Empresa de
Responsabilidade Social não é necessariamente uma empresa ética.
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VOCABULÁRIO
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CAPÍTULO VIII
CRESCIMENTO ECONÓMICO E DESENVOLVIMENTO HUMANO
O fim da Guerra Fria, simbolizado pela queda do muro de Berlim, criou con-
dições para que um grupo de economistas e pensadores liderados por Mahbub
ul Haq iniciassem a investigação e divulgação de uma nova perspectiva para a
economia mundial. Ao domínio quase exclusivo da visão economicista no mundo
ocidental veio opor‑se a visão do desenvolvimento humano proposta a partir
de 1990 pelo grupo de economistas do PNUD – Plano das Nações Unidas para o
Desenvolvimento.
Com efeito, em 1990 foi lançado o primeiro Relatório do Desenvolvimento
Humano – RDH, seguido todos os anos de novos relatórios com novas perspecti-
vas. Os sete primeiros relatórios foram determinantes para o modo como muitos
actores da cena económica internacional passaram a ver a realidade mundial. Eis
as temáticas abordadas de 1990 até à actualidade:
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Desenvolvimento Humano
“Há sempre escolhas políticas, embora as escolhas não deixem de ter limi-
tações. Algumas são melhores para a redução da pobreza, para os Direitos
Humanos e para a sustentabilidade – enquanto outras favorecem as elites,
desprezam a liberdade de associação e esgotam os recursos naturais. Os prin-
cípios da justiça têm de ser explicitados – para identificar compensações entre
eles, como entre a equidade e a sustentabilidade, de modo a que os debates e
as decisões a nível público sejam bem informados.
O desenvolvimento humano vê as pessoas como arquitectos do seu próprio
desenvolvimento, tanto pessoalmente, na famílias e nas comunidades, como
colectivamente, no debate público, na acção partilhada e na prática democrá-
tica.”
Relatório do Desenvolvimento Humano, 2010, páginas 20 a 24
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CAPÍTULO IX
A ÉTICA EMPRESARIAL COMO FACTOR DE INTEGRAÇÃO
NA GLOBALIZAÇÃO EM CURSO
“Se a Ética Empresarial foi despoletada por acontecimentos bem datados nos
Estados Unidos da América, o contexto da globalização, e a necessidade de uma
vertente ética no interior do processo global em curso, faz perceber por que é que
das multinacionais até às PME, a Ética Empresarial será cada vez mais um factor
de integração na globalização em curso.
A Ética Empresarial, traduzida, por exemplo, em termos de Responsabilidade
Social das Empresas, contribui para a ‘cadeia de valor’, à qual uma empresa tem
de estar atenta quando desenha uma estratégia para o seu nicho, num mercado
cada vez mais globalizado.”
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A globalização irá unificar o mundo? E antes mesmo de se obter uma resposta, mais
ou menos metafísica, constata‑se que esse movimento criou angústias e medos.
Por que é que a marcha para a globalização provoca em alguns espíritos angús-
tias metafísicas, inspirando até comportamentos radicais? Em muitos lugares do
planeta verifica‑se que este novo projecto universal ou esta nova forma de olhar o
mundo suscita fascínios e repulsas. O imaginário humano como que fica perturbado.
Com efeito, o que agora chamamos globalização é, mais uma vez, a busca, a
tentativa que a História tem feito no seu caminho para o universalismo. Na ver-
dade, não existe, por si só, bom ou mau universalismo, nem face a ele, uma boa
ou má resistência. Existem, certamente, aspectos loucos na precipitação para
uma unidade fusionista, bem como, também, com toda a certeza, lados nocivos
no bloqueio às identidades separadoras e agressivas. Na busca da globalização o
mais difícil é caminhar entre estes dois escolhos, frequentemente associados. O
medo de aniquilamento da nossa própria identidade e, de modo oposto, a exalta-
ção das identidades assassinas, como lhe chamou Amin Malouf.
A globalização é o aspecto que marca a presente época porque tem primazia
sobre todos os outros aspectos do presente, tal como os homens do presente os
vêem. Assim como a Guerra Fria se constituiu durante décadas como a referência
à acção dos homens no mundo, hoje esse lugar está ocupado pela globalização.
A globalização tal como a Guerra Fria não se refere apenas aos termos em que as
relações de poder planetário se desenvolvem, mas antes constitui‑se num con-
texto que gera o sentido e sugere as possibilidades de acção e reflexão do nosso
viver histórico.
A globalização fornece a perspectiva de fundo para o entendimento corrente.
A globalização não é um fenómeno de mercados, nem de política, nem dos gran-
des e poderosos. A globalização, em si mesma, não concentra nem desconcentra
poderes. O que a globalização faz é sobretudo reequacionar as actividades do
Homem no mundo, alterando a perspectiva de base sobre a qual se erguem todas
essas actividades. A perspectiva de hoje é o globo suspenso no espaço, no centro
da nossa atenção.
Um globo é algo captado, apropriado externamente, só visto de longe, pode
um globo ser um globo. Hoje o mundo foi feito globo. O mundo como mundo era
o todo onde nos encontrávamos. Era então o planisfério percorrido como uma
superfície. O mundo, como globo, é um objecto na nossa mão.
De um mundo estranho e por descobrir, prioritário ao ser humano, o Homem
quis criar e está a criar um mundo inventado, construído por uma tecnologia que
está a tomar o papel de realidade. O mundo virtual. O Homem saiu do mundo,
colocou‑se no espaço e voltou a olhá‑lo: agora na sua mão, muito mais pequeno
do que há quinhentos anos atrás. Um globo – “a aldeia global” – há quarenta
anos anunciada por McLuhan.
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Tabela 4
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absolutizar, ‘a globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pes-
soas fizerem dela’. Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, actuando
com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade.
Opor‑se‑lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito, que
acabaria por ignorar um processo marcado também por aspectos positivos,
com o risco de perder uma grande ocasião de se inserir nas múltiplas oportu-
nidades de desenvolvimento por ele oferecidas. Adequadamente concebidos e
geridos, os processos de globalização oferecem a possibilidade duma grande
redistribuição da riqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido;
se mal geridos, podem, pelo contrário, fazer crescer pobreza e desigualdade,
bem como contagiar com uma crise o mundo inteiro.
É preciso corrigir as suas disfunções, tantas vezes graves, que introduzem
novas divisões entre os povos e no interior dos mesmos, e fazer com que a
redistribuição da riqueza não se verifique à custa de uma redistribuição da
pobreza ou até com o seu agravamento, como uma má gestão da situação
actual poderia fazer‑nos temer.
Durante muito tempo, pensou‑se que os povos pobres deveriam permanecer
ancorados a um estádio predeterminado de desenvolvimento, contentando‑se
com a filantropia dos povos desenvolvidos. Contra esta mentalidade, tomou
posição Paulo VI na Populorum Progressio.
Hoje, as forças materiais de que se pode dispor para fazer aqueles povos
sair da miséria são potencialmente maiores do que outrora, mas acabaram
por se aproveitar delas prevalentemente os povos dos países desenvolvidos,
que conseguiram desfrutar melhor o processo de liberalização dos movimen-
tos de capitais e do trabalho. Por isso, a difusão dos ambientes de bem‑estar a
nível mundial não deve ser refreada por projectos egoístas, proteccionistas ou
ditados por interesses particulares.
De facto, hoje, o envolvimento dos países emergentes ou em vias de desen-
volvimento permite gerir melhor a crise. A transição inerente ao processo de
globalização apresenta grandes dificuldades e perigos, que poderão ser supe-
rados apenas se se souber tomar consciência daquela alma antropológica e
ética que, do mais fundo, impele a própria globalização para metas de humani-
zação solidária. Infelizmente esta alma é muitas vezes abafada e condicionada
por perspectivas ético‑culturais de cariz individualista e utilitarista.
A globalização é um fenómeno pluridimensional e polivalente, que exige ser
compreendido na diversidade e unidade de todas as suas dimensões, incluindo
a teológica. Isto permitirá viver e orientar a globalização da Humanidade em
termos de relacionamento, comunhão e partilha.” (§42)
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CAPÍTULO X
FINANÇA ÉTICA. UMA VISÃO E UM CONCEITO NOVO
“O mundo financeiro que hoje também já se pode encarar como uma enge-
nharia – a Engenharia Financeira, não espera lições de ética para o seu agir
próprio. Os mecanismos financeiros tem dinâmicas e regras bem precisas de fun-
cionamento. Mas esses mecanismos são em grande parte accionados pela von-
tade dos homens. E esses podem accionar mais para um lado do que para outro.
Alguns pensadores, alguns economistas, e também activistas dos Direitos
Humanos conceberam nas últimas décadas instrumentos financeiros que procu-
ram que uma parte da Finança Mundial trabalhe na base de critérios éticos.
Na base da confiança, da transparência, da co‑responsabilidade nos investi-
mentos, esses instrumentos financeiros, Bancos e fundos de investimento são segu-
ramente uma minoria no panorama mundial, mas como tantas vezes aconteceu na
História podem ser catalisadores de grandes transformações a longo prazo.”
Bento XVI referia‑se a situações como aquela que está na origem da actual crise
financeira mundial. Essa crise provocada pelos movimentos especulativos nos
Estados Unidos da subprime mortgage (empréstimos para aquisição de habitação
a quem não garantia condições de os poder honrar, mas que os bancos consi-
deravam “bom negócio” porque desde 1945 os preços das casas nos EUA foram
sempre aumentando – até 2006, ao longo de quase 60 anos – de tal modo que se
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Bancos Éticos
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Microcrédito e microfinanciamento
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(Faça com que pouco dinheiro sustente um longo caminho num desenvolvimento
sustentável).
A micro finança conheceu um grande crescimento nos últimos anos, quer em
volume de empréstimos, quer nos lucros. Hoje o conjunto de todos os activos
dos Bancos e Fundos que fornecem microcréditos está estimado em 50 biliões de
dólares, tendo como clientes 150 milhões de pessoas no mundo em desenvolvi-
mento.
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CAPÍTULO XI
MUHAMMAD YUNUS, O CRIADOR DO MICROCRÉDITO
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Grameen Capital
1998 Gestão de investimentos
Management
Grameen Danone 2006 Bens alimentares nutritivos e a baixo preço para os pobres
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Tudo aquilo que foi descrito até aqui e a partir das próprias palavras de
Muhammad Yunus não corresponde ao que se estudou anteriormente sobre as
empresas éticas e sobre a Responsabilidade Social das Empresas. Esse tipo de
empresas já definidas anteriormente inscrevem‑se na dinâmica actual do mer-
cado capitalista e todas têm de se organizar à volta do princípio da maximização
dos lucros. Todas têm de obter lucros e procurar dividendos aos accionistas que
criaram essas empresas.
A Ética Empresarial aparece como um correctivo a práticas abusivas, por um
lado, e também como a uma melhoria qualitativa da vida interna e da imagem
das empresas que actualmente existem. Aliás, Muhammad Yunus num dos seus
livros tem palavras elogiosas para o lugar que a Responsabilidade Social das
Empresas ocupa no universo dos negócios de hoje, mas ao mesmo tempo ele
marca os limites dessas iniciativas, sobretudo quando confrontadas com a sua
perspectiva global – criar um mundo sem pobreza.
Toda a procura e a experimentação de caminhos para novas tipologias empre-
sariais levaram, ao fim de vinte anos, o criador do microcrédito a propor um pro-
jecto empresarial inédito – o negócio social. Ao fazê‑lo ele começou a questionar
o modelo capitalista actual e lançou a hipótese de que baseando‑se noutra antro-
pologia, o capitalismo pode continuar a produzir prosperidade sem necessaria-
mente produzir pobres como actualmente acontece.
É essa proposta inovadora que iremos estudar no capítulo seguinte.
“Muhammad Yunus é um visionário com sentido prático que fez prosperar
milhões de pessoas no Bangladesh e noutras partes do mundo.” (Los Angeles
Times).
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CAPÍTULO XII
“O CAPITALISMO É UMA ESTRUTURA MEIO DESENVOLVIDA”,
MUHAMMAD YUNUS
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Eis como ele inicia o seu segundo livro intitulado, Criar um Mundo sem Pobreza,
Tal como muitos outros autores este economista não se satisfaz com o reco-
nhecimento de que o capitalismo está florescente, pois acrescenta de imediato
que nem todos beneficiam deste desenvolvimento. A distribuição do rendimento
global conta outra história: 94% do rendimento mundial está distribuído por 40%
da população, enquanto os outros 60% são obrigados a viver com apenas seis por
cento do bolo global. Metade da população do mundo vive com dois dólares por
dia ou menos e quase mil milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por
dia.
Ao constatar esta situação o autor asiático interroga‑se – o que está errado? E
avança com a sua resposta ao dizer: “Num mundo onde a livre iniciativa não tem
um verdadeiro concorrente, por que é que os mercados livres foram incapazes de
satisfazer tantas pessoas? À medida que algumas Nações marcham para uma
cada vez maior prosperidade, por que é que uma tão grande parte do mundo foi
deixada para trás? A razão é simples. A actual forma dos mercados ‘sem gordura’
não foi pensada para resolver problemas sociais, em vez disso pode mesmo gerar
um aumento exponencial da pobreza, das doenças, da poluição, da corrupção, do
crime e da desigualdade”.
Muhammad Yunus vai seguidamente propor uma nova antropologia, ou seja,
uma outra maneira de conceber o Homem. Adam Smith também construiu a sua
teoria económica sobre uma certa forma de compreender os interesses do ser
humano. Então Yunus vai mostrar por que é que ele acha que o capitalismo tem
uma visão limitada do ser humano.
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Assim foram formulados os sete principios que devem nortear uma empresa
social de tipo 1:
“O último destes princípios foi uma sugestão do alemão Reitz que trabalha
comigo no Grameen Creative Lab em Wiesbaden, na Alemanha. No ambiente
agressivo do mundo dos negócios convencionais, esquecemos que os negócios
podem ter algo a ver com a alegria. A empresa social tem tudo a ver com a
alegria. Quando as pessoas se envolvem nela, continuam a descobrir a alegria
ilimitada que se obtém.”
Cfr. Muhammad Yunus, op. cit., páginas 29 a 31
192 |
Entre os nossos contemporâneos nem todos pensam assim. Neste livro iniciá-
mos a reflexão sobre a ética aludindo à falência, em 2008, de um dos mais antigos
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194 |
BIBLIOGRAFIA
| 195
Seglin, Jeffrey (2003), The Right Thing: Conscience, Profit and Personal Responsibility in
Today’s Business, Spiro Press.
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Pobreza, Difel, 2008.
Yunus, Muhammad (2008), Criar Um Mundo sem Pobreza – O Negócio Social e o Futuro do
Capitalismo, Difel.
Yunus, Muhammad (2010), A Empresa Social, A Nova Dimensão do Capitalismo para fazer
Face às Necessidades mais Prementes da Humanidade, Editorial Presença, 2011.
196 |
INTRODUÇÃO
56Angola ainda não assinou a Iniciativa de Transparência das Indústrias Extractivas (EITI) e
existe uma cultura de secretismo.
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TEXTO 1
AVALIANDO A ÉTICA DE NEGÓCIO: TEORIAS ÉTICAS NORMATIVAS
RESUMO
INTRODUÇÃO
200 |
Ao localizar um lugar para a teoria ética, Richard DeGeorge (1999) sugere que
podem ser imaginadas duas posições extremas:
• Absolutismo ético. De um lado do espectro estaria uma posição de absolu-
tismo ético, o qual reivindica que há princípios morais eternos e universais.
• Relativismo ético. No outro extremo estaria uma posição de relativismo, a
qual reivindica que a moralidade depende do contexto e é subjectiva. Os
relativistas tendem a acreditar que não há certos e errados universais que
possam ser determinados racionalmente – depende apenas da pessoa que
toma a decisão e da cultura em que se localizam. Na sua forma melhor
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? PENSAR TEORIA
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No outro lado, temos aquelas teorias que baseiam o julgamento moral nos
princípios subjacentes da motivação de quem toma uma decisão. Esta teoria
sugere que uma acção é certa ou errada, não porque gostemos das consequên-
cias que produzem, mas porque os princípios subjacentes estão moralmente
certos. Estas abordagens não‑consequencialistas estão bastante ligadas ao pen-
samento Judaico‑Cristão e começam por raciocinar acerca dos direitos e deveres
individuais. Estas teorias filosóficas, também chamadas deontológicas (com base
na palavra grega para “dever”), olham para a desejabilidade dos princípios e com
base nestes princípios deduzem um “dever” para agir de acordo com uma deter-
minada situação, independentemente da apetecibilidade das consequências.
A seguir, olharemos de perto as famílias de teorias filosóficas e analisaremos
o seu potencial para resolver várias decisões de negócio. A Tabela 6 dá uma breve
visão geral das escolas filosóficas relevantes e dos elementos básicos do seu pen-
samento. Ao explicar estas teorias, usá‑las‑emos para reflectir sobre um problema
de negócio específico, conforme apresentado no “Dilema Ético”. Sugerimos que o
leia antes de continuar este texto.
Desejos ou
Bem‑estar
Foco interesses Deveres Direitos
colectivo
individuais
Maximização
de desejos/ Acto/regra Imperativo Respeito pelos
Regras
interesses utilitarismo categórico seres humanos
próprios
O Homem é
O Homem
controlado pela O Homem é
Conceito como actor com O Homem é um
fuga da dor um ser que se
de seres conhecimento actor moral
e aquisição distingue pela
humanos e objectivos racional
de prazer dignidade
limitados
(“hedonista”)
Não Não
Tipo Consequencialista Consequencialista
‑consequencialista ‑consequencialista
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DILEMA ÉTICO
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Perguntas
1. Lendo o caso e colocando-se a si próprio no papel do Director de Produção,
qual seria a sua reacção visceral imediata?
2. Com base na sua decisão espontânea imediata, pode explicar as razões da
sua escolha? Pode também relacionar essas razões com valores ou princí-
pios subjacentes que são obviamente importantes para si?
Teorias consequencialistas
Egoísmo
O egoísmo é uma das mais velhas ideias filosóficas, e já foi bem conhecida e
discutida por antigos filósofos gregos. Nos últimos três séculos, o egoísmo teve
bastante influência na economia moderna, particularmente em relação com
as ideias de Adam Smith (1723‑1790) acerca do desenho da economia liberal.
O egoísmo pode ser definido: “Seguindo a teoria do egoísmo, uma acção está
moralmente certa se o tomador da decisão decide livremente com o fim de per-
seguir ou os seus desejos (de curto prazo) ou os seus interesses (de longo prazo)”.
A justificação para o egoísmo reside no conceito subjacente do Homem:
como o Homem tem apenas uma visão limitada sobre as consequências das suas
acções, a única estratégia satisfatória para ter uma boa vida é perseguir os seus
próprios desejos ou interesses. Adam Smith (1793) argumentava que, no sistema
económico, esta perseguição dos próprios interesses individuais era aceitável
porque produzia um resultado moralmente desejável para a sociedade através da
“mão invisível” do mercado. Os argumentos de Smith podem portanto ser resu-
midos como afirmando que é provável que se encontre um resultado moral no
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Utilitarismo
A filosofia do utilitarismo tem sido uma das teorias éticas mais usualmente
aceites no mundo anglo‑saxónico. Está ligada aos nomes dos filósofos e econo-
mistas britânicos Jeremy Bentham (1748‑1832) e John Stuart Mill (1806‑1873) e
teve influência na economia moderna em geral. O princípio básico do utilitarismo
pode ser definido como se segue.
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Hitler, em 1944, justificaram a sua tentativa com razões utilitárias, dado que o
assassínio (dor) de uma pessoa abriria caminho à redução da dor de milhões de
outras pessoas.
Se aplicarmos esta teoria à situação descrita no “Dilema Ético”, antes de mais
devemos olhar para todos os actores envolvidos e analisar a sua potencial utilidade
em termos de prazer e dor envolvidos em diferentes modos de acção, ou seja,
seguir em frente com o acordo (acção um) ou não fazer o acordo (acção dois).
Podíamos estabelecer um simples balanço como o descrito na Tabela 7.
Depois de analisar todos os bons e maus efeitos para as pessoas envolvidas,
pode‑se adicionar “prazer” e “dor” à acção um, e o resultado será a utilidade
desta acção. Depois de feito o mesmo com a acção dois, a decisão moral é rela-
tivamente fácil de identificar: a maior utilidade das respectivas acções é a moral-
mente certa. No nosso caso hipotético a decisão orientar‑se‑ia provavelmente
para a acção um (fazer o acordo), dado que contempla o maior prazer para todas
as pessoas envolvidas, enquanto que na acção dois (não fazer o acordo) a dor
parece dominar a análise.
Má consciência,
Bom acordo para o
Director de possível risco Boa consciência, Perda de um bom
negócio, potencial
Produção para a reputação menos risco acordo
bónus pessoal
da companhia
Perda de um bom
Comerciante acordo, procura
Bom acordo
tailandês de um novo cliente
na Europa
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É claro que os utilitaristas estiveram sempre atentos aos limites da sua teoria.
O problema da subjectividade, por exemplo, conduziu a um refinamento da teo-
ria, diferenciando entre o que tem sido definido como “acção utilitarista” versus
“regra utilitarista”.
A acção utilitarista olha para acções únicas e baseia o julgamento moral na
quantidade de prazer e quantidade de dor que estas acções únicas causam.
A regra utilitarista olha para classes de acção e pergunta se os princípios sub-
jacentes de uma acção produzem a longo prazo mais prazer do que dor para a
sociedade.
A nossa análise utilitária do “Dilema Ético” usou o princípio da acção utilitaris-
ta, perguntando se nessa situação única, em particular, o prazer colectivo excedia
a dor infligida. Dadas as circunstâncias específicas do caso, isto pode resultar na
conclusão de que está moralmente certo, porque a dor das crianças é considera-
velmente pequena, dado o facto, por exemplo, de que elas podem ter de trabalhar
de qualquer forma ou de que a educação escolar pode não estar disponível para
elas. Da perspectiva da regra utilitarista, contudo, poder‑se‑ia perguntar se o tra-
balho infantil em princípio produz mais prazer do que dor. Aqui, o julgamento pode
ser consideravelmente diferente, dado não ser difícil argumentar que as dores
do trabalho infantil excedem os seus benefícios (principalmente) económicos.
214 |
Teorias não‑consequencialistas
Estas duas abordagens são muito similares, com origem em assunções acerca
dos princípios básicos universais de certo e errado. Todavia, enquanto as teorias
baseadas em direitos tendem a começar pela atribuição de um direito a uma
parte e depois advogar um dever correspondente da outra parte para proteger
aquele direito, a ética dos deveres começa com a atribuição do dever de agir de
uma determinada forma.
Ética do dever
| 215
De acordo com Kant, estas três máximas podem ser usadas como testes para
todas as acções possíveis, e uma acção deve ser considerada moralmente certa se
“sobreviver” aos três testes. Isto sugere que a moralidade é caracterizada por três
elementos importantes, cada um dos quais é testado por uma destas máximas.
A Máxima 1 verifica se a acção pode ser realizada por todos e reflecte o
aspecto da consistência, dado que uma acção só pode estar certa se todos pude-
rem seguir o mesmo princípio subjacente. Assim, por exemplo, o assassínio é
uma acção imoral porque se permitíssemos que toda a gente assassinasse não
haveria possibilidade de vida humana na Terra; mentir é imoral, porque se a toda
a gente fosse permitido mentir, toda a noção de “verdade” seria impossível e não
seria imaginável uma civilização humana organizada e estável.
A Máxima 2 foca o ponto de vista de Kant de que os humanos merecem
respeito como actores autónomos e racionais, e que esta dignidade humana
nunca deve ser ignorada. Todos usamos pessoas como meios, ao empregá‑las
ou pagar‑lhes para nos fornecerem bens ou serviços. Todavia, isto não significa
que as devamos tratar somente como meio de realização do que pretendemos,
esquecendo‑nos das suas próprias necessidades e objectivos na vida e das suas
expectativas de fazerem as suas próprias escolhas.
A Máxima 3 examina cuidadosamente o elemento de Universalidade. Posso
chegar à conclusão que um certo princípio pode ser seguido consistentemente
por todos os seres humanos, podia também chegar à conclusão que seguir aquele
princípio respeita a dignidade humana e não “usa” as pessoas como um meio.
Mas depois Kant quis que nós verifiquemos se os princípios das nossas acções
seriam aceitáveis para todos os seres humanos. Este teste tenta, portanto, supe-
rar especificamente o risco de subjectividade inerente à análise utilitarista, dado
que ela nos pede para verificar se outros actores racionais também aprovariam
o nosso julgamento sobre uma certa situação. Em outros contextos este ponto
216 |
tem sido referido como o Teste do New York Times (Treviño e Nelson, 2004:99) –
nomeadamente, se ficasse desconfortável caso as suas acções fossem reportadas
na imprensa, pode estar razoavelmente seguro que elas são de estatuto moral
duvidoso.
Se aplicarmos o “teste” moral de Kant ao “Dilema Ético”, obtemos as seguin-
tes percepções:
• De acordo com a Máxima 1, a primeira questão será perguntar se que-
remos que toda a gente aja de acordo com os princípios da nossa acção.
Obviamente, como Director de Produção já se sente desconfortável acerca
de aplicar o princípio da exploração do trabalho infantil num contexto do
terceiro mundo à sua própria família na Europa. Provavelmente, você não
gostaria que isto se tornasse uma Lei Universal, o que sugere que esta activi-
dade pode ser julgada imoral na base da inconsistência.
• Relativamente à Máxima 2, é questionável se as crianças decidiram trabalhar
livremente e com autonomia. Ao fazer uso do seu trabalho pode dizer‑se que
você as trata em grande parte como mão‑de‑obra barata para os seus pró-
prios fins, em vez de as tratar como “fins em si próprios”, sugerindo que a
sua dignidade humana básica não está a ser totalmente reconhecida e res-
peitada.
• Olhando para a Máxima 3, questiona‑se também se você gostaria que os seus
amigos e família soubessem da sua decisão. Por outras palavras, pareceria
bastante duvidoso que todos os seres humanos racionais chegassem univer-
salmente à mesma conclusão de que o trabalho infantil é um princípio que
devia ser seguido como um Princípio Geral.
A Teoria de Kant é bastante extensa e para o propósito deste livro não quere-
mos aprofundá‑la para além destes três princípios básicos. Mas estes já podem
ser bastante proveitosos em situações práticas e têm tido uma considerável
influência no pensamento sobre ética de negócio. Por exemplo, na parte II dis-
cutimos o conceito de parceiro da empresa. Evan e Freeman (1993) argumentam
que a base ética deste conceito derivou substancialmente do pensamento Kan-
tiano. Consequentemente, a fim de tratar os empregados, comunidades locais ou
fornecedores não somente como um meio, mas também como elementos com
os seus objectivos e prioridades, Evan e Freeman sugerem que as empresas têm
um dever fundamental de conceder a estes parceiros algum grau de influência
na empresa. Com isto, eles estariam capacitados para agir como seres humanos
livres e autónomos, em vez de serem meramente factores de produção (empre-
gados) ou fontes de rendimento (consumidores), etc.
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? PENSAR TEORIA
218 |
protegidos (na altura, principalmente pelo Estado). Entre os direitos mais impor-
tantes concebidos por Locke, e os subsequentes teóricos dos direitos, estavam
direitos à vida, liberdade e propriedade. Estes foram alargados desde então para
incluir os direitos à liberdade de expressão, consciência, consentimento, privaci-
dade e o direito a um justo processo jurídico, entre outros.
Em termos de uma teoria ética, podemos definir direitos segundo as seguin-
tes linhas: Direitos Naturais são certos direitos básicos, importantes e inaliená‑
veis que devem ser respeitados e protegidos em todas as acções.
O significado geral da noção de direitos, em termos de uma teoria ética, está
no facto de que estes direitos tipicamente resultam no dever de outros actores os
respeitarem. Neste aspecto, os direitos são por vezes vistos como relacionados
com deveres, dado que os direitos de uma pessoa podem resultar num corres-
pondente dever de outras pessoas respeitarem, protegerem ou facilitarem esses
direitos. O meu direito à propriedade impõe um dever a outros de não interfe-
rirem com a minha propriedade ou me a tirarem. O meu direito à privacidade
impõe um dever a outros de se retraírem de recolher informação pessoal acerca
da minha vida privada sem o meu consentimento. Direitos e deveres são, por
isso, vistos frequentemente como dois lados da mesma moeda.
Esta ligação aos deveres correspondentes torna a teoria dos direitos similar à
abordagem de Kant. A diferença principal é que ela não confia num complexo pro-
cesso de determinar os direitos, aplicando o imperativo categórico. Em vez disso,
a noção de direitos é baseada numa certa reivindicação axiomática acerca da
natureza humana, que se apoia principalmente nas várias abordagens filosóficas
do Iluminismo, muitas vezes suportadas por determinados pontos de vista religio-
sos, como a abordagem do pensamento social católico. Os Direitos Naturais, ou
Direitos Humanos, como são principalmente referidos hoje em dia, baseiam‑se
num certo consenso de todos os seres humanos acerca da natureza da dignidade
humana.
Apesar da ausência de uma dedução teórica complicada – ou possivelmente
por causa do seu ponto de vista simples e plausível – a abordagem dos direitos
tem sido muito poderosa ao longo da História e moldou substancialmente as
constituições de muitos Estados modernos. Isto inclui a Declaração dos Direitos
do Homem que teve influência no período da Revolução Francesa (1789), e da
Constituição Americana, que se baseia grandemente em noções de direitos. Estas
ideias conduziram também à Declaração dos Direitos Humanos das Nações Uni-
das, emitida em 1948, que tem sido um padrão poderoso para fazer cumprir os
vários direitos em todo o mundo. A mais recente manifestação deste pensamento
é a Carta dos Direitos Humanos Fundamentais para a União Europeia, acordada
como parte do Tratado de Nice em 2000. Com base na ideia original dos Direitos
Naturais, estes direitos foram decompostos por muitas áreas diferentes da vida
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social, política e económica, conduzindo aos vários direitos civis, sociais e políti-
cos que definem a noção de cidadania moderna (liberal).
Actualmente, os Direitos Humanos básicos incluem o Direito à Vida, Liber-
dade, Justiça, Educação, Julgamento Justo, Salário Justo, Liberdade Religiosa,
Associação e Expressão, para nomear apenas alguns. São estes antecedentes que
fazem da noção de Direitos Humanos uma das mais comuns e importantes abor-
dagens teóricas à ética de negócio a nível prático. As empresas, especialmente as
multinacionais, são julgadas cada vez mais pelas suas atitudes face aos Direitos
Humanos e pela forma como os respeitam e protegem.
O Centro de Pesquisa de Direitos Humanos e de Negócio, por exemplo, esta-
beleceu que em 200657 cerca de 100 companhias tinham políticas publicadas
sobre Direitos Humanos – das quais alguns exemplos são dados na Tabela 8.
57 www.business‑humanrights.org
220 |
A Ética em Acção – 1
Rio Tinto e as reclamações aborígenes sobre terras de mineração na Austrália
| 221
podiam reclamar a terra dado que não viviam em habitações fixas – conotadas
com propriedade – e um relacionamento de posse que era familiar à perspectiva
ocidental.
Embora este princípio fosse derrubado em 1992 por decisão do Supremo Tri-
bunal, isso não resolveu o problema. Mesmo quando oferecidas compensações
generosas, os conselhos aborígenes recusaram muitos dos acordos apresentados.
A questão central para eles era que “nós não temos nada contra a extracção
mineira, mas temos de proteger os nossos lugares sagrados”, conforme afirmou o
membro de uma tribo. “A nossa Lei aborígene diz‑nos isso, é uma Lei com milha-
res de anos. A Lei do homem branco na Austrália tem apenas 250 anos.”
Ao longo do tempo, a Rio Tinto tem feito esforços consideráveis para lidar
com o problema dos direitos sobre a terra na Austrália. Relativamente a um
novo projecto no Norte da Austrália, o Presidente da Companhia apresentou na
Cimeira de 2002, em Joanesburgo, a orientação clara da companhia sobre a
questão: “Nós não queremos desenvolver o assunto sem o seu (aborígene) consen-
timento. Ponto Final”. Todavia, não obstante estas vitórias para o povo aborígene,
mantêm‑se os problemas de direitos de propriedade. Por exemplo, alguns dias
antes de ter feito a declaração acima, a Rio Tinto ganhou uma causa no Supremo
Tribunal Australiano que deitou completamente por terra as queixas do povo
de Miriuwung‑Gajoerrong sobre as operações mineiras de outra companhia no
remoto Noroeste. Embora concedendo direitos sobre a terra, o Tribunal declarou
que “não há título de direito nativo sobre minérios ou petróleo” extraídos daquela
terra. Como resultado, a Rio Tinto não teve de partilhar um único cêntimo do seu
lucro anual de 1,7 biliões de libras (€ 2.5 biliões) com a tribo de cuja terra extrai
os seus valiosos recursos.
? PENSAR TEORIA
Que direitos estão em conflito neste caso? Quais são as implicações para
uma teoria ética baseada nos Direitos e na Justiça? Sugeriria outras aborda-
gens para resolver este conflito satisfatoriamente?
As teorias éticas baseadas em direitos são muito fortes, dada a sua ampla-
mente reconhecida base de Direitos Humanos Fundamentais. Contudo, a base
teórica tem mais a ver com plausibilidade do que com uma profunda metodolo-
gia teórica. Além disso, talvez que a mais substancial limitação desta abordagem
seja que as noções de direitos estão fortemente ancoradas num ponto de vista
ocidental de moralidade. Pode ocorrer muita fricção se estas ideias forem directa-
mente transferidas, se não impostas, em comunidades com um diferente legado
222 |
O problema da justiça
A abordagem dos Direitos Humanos em relação à ética tem uma relação parti-
cular com as decisões económicas e de negócio. Sempre que duas partes entram
numa transacção económica tem de haver acordo entre as partes sobre uma
distribuição equitativa de custos e benefícios. É para isto que servem os contra-
tos ou, mais comummente, isto é realizado por meio do mercado. Problemas de
distribuição, todavia, não ocorrem apenas nas transacções, mas também em mais
larga escala:
• Como deve uma empresa pagar aos seus accionistas, executivos, pessoal
administrativo e operários de forma que todos obtenham uma compensa-
ção satisfatória pela sua contribuição para a empresa?
• Como deve uma empresa tomar em consideração as necessidades das comu-
nidades locais, empregados e accionistas ao planear um investimento com
grande impacto sobre o ambiente?
• Como deve um Governo alocar dinheiro para educação, de forma que cada
sector da sociedade tenha uma possibilidade equitativa de uma boa edu-
cação?
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224 |
| 225
Conforme discutido, esta abordagem do mercado livre foi popular nas últimas
duas décadas. Contudo, tem também sido argumentado que conduziu a uma
considerável desigualdade. A noção de mercado pressupõe participantes em pé
de igualdade no mercado, a fim de produzir um sistema justo. Mas na medida
em que as pessoas diferem em rendimento, capacidade, saúde, estatuto social
e económico, etc., os mercados podem conduzir a resultados que algumas delas
deixariam de considerar como equitativos. Num nível global, isto tornou‑se visível
quando os países pobres subdesenvolvidos tentaram competir com países alta-
mente industrializados: é como se na Fórmula Um, uma bicicleta arrancasse ao
lado de um Ferrari, mesmo com as regras mais equitativas, o condutor da bicicleta
estaria condenado a perder.
Obviamente, as duas respostas extremas à questão sobre o que significa exac-
tamente justiça num contexto económico são insatisfatórias. A resposta pode
bem estar no meio. Uma abordagem muito popular a este problema foi proposta
pelo americano John Rawls (1971). Na sua Teoria da Justiça ele sugere dois crité-
rios, dois “testes”, para decidir se uma acção pode ser chamada justa. De acordo
com Rawls, a justiça é alcançada quando:
1. Cada pessoa tem um direito igual ao mais amplo sistema total de liberda-
des básicas, compatível com um sistema parecido de liberdade para todos.
2. As desigualdades sociais e económicas devem ser acordadas de forma que
sejam:
a) para o maior benefício dos menos favorecidos;
b) ligadas a ofícios e posições abertas a todos, em condições equitativas de
igualdade de oportunidades.
226 |
| 227
? PENSAR TEORIA
Se olharmos para trás, para estas principais teorias éticas tradicionais, pode-
mos argumentar que apresentam um ponto de vista bastante abrangente dos
seres humanos e da sociedade e, com base em várias assunções, usam princípios
contestáveis para responder a questões éticas. Ao apresentar esse “modelo”
fechado do mundo, estas teorias têm a vantagem substancial de trazerem uma
solução para cada situação possível. Elas têm, porém, a grande desvantagem de
os seus pontos de vista acerca do mundo apresentarem apenas um aspecto da
vida humana, enquanto a realidade tende normalmente a ser mais complexa do
que o ponto de vista simplificado destas teorias éticas.
Em discussões anteriores, resumimos alguns dos principais benefícios e des-
vantagens de cada uma destas principais teorias éticas. Todavia, a abordagem de
todas as teorias tradicionais está aberta a críticas.
A Ética no Ecrã
Pão e Rosas (Bread and Roses)
228 |
| 229
Angeles como no longínquo Leste, onde a situação difícil das fábricas de trabalho
suado tem sido tão notavelmente realçada em anos recentes.
230 |
mais recentes para desenvolver ou ressuscitar teorias éticas que enfatizem uma
maior flexibilidade, bem como incluir os que tomam decisões, o seu contexto e
as suas relações com os outros, em oposição a princípios universais meramente
abstractos. Embora estas estejam também abertas a críticas, ajudam a enriquecer
a escolha de perspectivas que podemos tomar em questões de ética de negócio.
A “Ética no Ecrã” exemplifica algumas das questões discutidas até agora,
contrapondo em particular noções de utilitarismo com questões de dignidade
humana e justiça económica. Todavia, ao avaliar o filme Pão e Rosas a partir da
perspectiva destas teorias éticas tradicionais, pode‑se constatar que esta aborda-
gem excessivamente racional apenas capta e conceptualiza parcialmente a nossa
percepção moral e juízos éticos da situação dos imigrantes ilegais explorados
pelas indústrias de serviços do Ocidente.
Ética da virtude
| 231
uma das primeiras teorias éticas, a ética da virtude, para desenvolver uma pers-
pectiva alternativa sobre ética de negócio que marque o abandono das teorias
tradicionais baseadas em regras que olhámos até agora. Na ética da virtude a
mensagem principal é: “As boas acções vêm das boas pessoas”. Podemos, por
isso, defini‑la nas linhas seguintes: a ética da virtude sustenta que acções moral‑
mente correctas são as tomadas por actores com carácter virtuoso. Conse‑
quentemente, a formação de um carácter virtuoso é o primeiro passo para um
comportamento moralmente correcto.
Virtudes são um conjunto de traços de carácter adquiridos que permitem a
uma pessoa levar uma vida boa. As virtudes podem ser diferenciadas em virtu‑
des intelectuais – sendo a “sabedoria” a mais proeminente – e virtudes morais,
que compreendem uma longa lista de características possíveis, como honesti-
dade, coragem, amizade, compaixão, lealdade, modéstia, paciência, etc. Todas
estas virtudes manifestam‑se em acções que constituem um padrão habitual de
comportamento da pessoa virtuosa, em vez de ocorrerem uma única vez ou em
decisões que não se repetem. Como estas características não nos pertencem por
nascimento, adquirimo‑las pela aprendizagem e, mais notavelmente no negócio,
pelo nosso relacionamento com os outros numa comunidade de boas práticas
(MacIntyre, 1984).
No centro da ética da virtude está a noção de uma “vida boa”. Para Aristóte-
les, um dos proponentes originais da ética da virtude, isto consiste na felicidade,
não num sentido hedonista, orientado para o prazer, mas num sentido mais
alargado. Isto inclui, notavelmente, o comportamento virtuoso como uma parte
integral da vida boa: uma pessoa de negócios feliz não será apenas aquela que
finalmente ganha mais dinheiro, mas aquela que o ganha saboreando ao mesmo
tempo os prazeres de uma maneira virtuosa de realizar o seu sucesso. Num con-
texto de negócio, a “vida boa” significa bastante mais do que ser uma empresa
lucrativa. A ética da virtude tem uma visão muito mais holística, olhando também
para a forma como este lucro é realizado e, mais notavelmente, reivindicando
que o sucesso económico é apenas uma parte de uma boa vida de negócio – sendo
igualmente importantes a satisfação dos empregados, bom relacionamento entre
todos os membros da empresa e relações harmoniosas com todas as partes inte-
ressadas (Collier, 1995).
A partir deste ponto de vista, o Director de Produção virtuoso do “Dilema
Ético” pode ser visto de perspectivas diferentes, dependendo da comunidade de
onde proveio a noção de Director virtuoso. Por um lado, pode ser compassivo e
atencioso com a situação dos fornecedores. Tendo em conta as suas necessidades
de trabalho e dinheiro, bem como a necessidade de educação das crianças, talvez
tente fazer negócio com eles ao mesmo tempo que assume a responsabilidade
pela educação das crianças. Por exemplo, pode suportar uma escola local ou
232 |
pagar salários suficientemente altos para permitir que a família mande os seus
filhos à escola, em vez de usá‑los como trabalho barato. Por outro lado, pode
também pensar que a “vida boa” na Tailândia rural pode de facto consistir numa
família inteira a trabalhar junta e que os conceitos ocidentais de educação, profis-
sionalização e eficiência são um conceito diferente de uma “vida boa” que pode
não ser apropriada para a abordagem tailandesa da vida. Tipicamente, a ética da
virtude num contexto de negócio como este sugere que a solução para muitos
dos problemas enfrentados pelos gestores está localizada na cultura e tradição
da comunidade de boas práticas relevantes. O Director de Produção deve deter-
minar o que fará um Director de Produção “virtuoso”, segundo o seu Código de
Conduta profissional, os modelos de papéis virtuosos ou o treino profissional.
Não leva muito tempo a ver qual é a principal desvantagem da ética da virtude
(Jones et al., 2005:56‑68): como determinamos qual a comunidade ideal de boas
práticas a consultar? E, na falta de um claro Código de Conduta das nossas comu-
nidades relevantes, como traduzimos as ideias de características virtuosas em
acção ética? Mais ainda, a relevância da ética da virtude para a ética de negócio é
que nos recorda que o certo e o errado não podem ser resolvidos simplesmente
pela aplicação de uma regra ou princípio específico, mas que precisamos de cul-
tivar ao longo do tempo o nosso conhecimento e julgamento sobre aspectos de
ética, através de experiência e participação (Nielsen, 2006).
Ética feminista
Esta abstenção de uma abordagem aos problemas éticos com base em princí-
pios foi também trazida à cena por uma outra escola de pensamento sobre ética
de negócio mais recente. As abordagens feministas à ética de negócio partem
da assunção de que homens e mulheres têm atitudes bastante diferentes relati-
vamente à organização da vida social, com impacto significativo na forma como
são tratados os conflitos éticos (Gilligan, 1982). Ao tratar de problemas éticos, a
teoria ética tradicional tem procurado regras e princípios para serem aplicados
de uma forma equitativa, objectiva e consistente. Esta abordagem foi quase
exclusivamente estabelecida e promulgada por filósofos masculinos e pensadores
como Kant, Locke, Bentham, Smith e Mill. A “ética dos direitos”, como por vezes
é chamado este ponto de vista masculino (Maier, 1997), tenta estabelecer bases
legítimas para reivindicações e interesses de indivíduos em situações de conflitos
sociais.
A ética feminista, por outro lado, tem uma abordagem diferente que vê o
indivíduo profundamente inserido numa rede de relações interpessoais. Conse-
quentemente, a responsabilidade pelos membros desta rede e a manutenção da
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“Ética do cuidado e
“Ética dos direitos”
relacionamentos”
(abordagem masculina)
(ética feminista)
Autónomos, separados,
Ponto de vista dos Actores inter‑dependentes
independentes. Condutor de
seres humanos dentro de uma teia social
uma função no grupo
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? PENSAR TEORIA
Ética do discurso
Todas as abordagens teóricas que temos discutido até agora começam por
uma certa perspectiva sobre os seres humanos, os valores ou objectivos que
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236 |
Ética pós‑moderna
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238 |
A Ética em Acção – 2
British Airways, Gate Gourmet, e trabalho de baixo salário: um acordo desagradável?
| 239
megafone, aos seus empregados que se encontravam fora das suas instalações
em Londres. Como muitas trabalhadoras tinham os maridos ou outros familiares
a trabalhar para a BA na área de manuseamento de bagagens, poucos metros
abaixo em Heathrow, não foi surpresa que muitos trabalhadores da BA entrassem
em greve em solidariedade para com os seus colegas da Gate Gourmet.
Como a greve na BA era tecnicamente ilegal, a BA recusou pagar os salários
dos grevistas e os trabalhadores voltaram ao trabalho um dia depois. Todavia, a
perturbação e o caos causados às operações globais da linha aérea resultaram
não apenas em má publicidade e no aborrecimento dos clientes, mas também
em custos extras estimados em mais de € 60 milhões!
Durante os meses que se seguiram, a BA, a Gate Gourmet e os trabalhadores
envolvidos embarcaram numa prolongada e controversa jornada de conversações
e negociações. A BA concordou por fim rever o seu contrato de fornecimento
com a Gate Gourmet em melhores condições, admitindo implicitamente a sua
responsabilidade pela disputa laboral na sua subsidiária que passara a fornece-
dora. Contudo, durante os quatro meses seguintes, os voos da BA para e de Hea-
throw não incluíam comida, já que a Gate Gourmet precisava de renegociar um
acordo com os seus trabalhadores, que resultou no reemprego de trabalhadores
despedidos ou no pagamento de compensação por redundância àqueles que saí-
ram definitivamente. As condições, todavia, eram ainda inaceitáveis para alguns
trabalhadores, considerados pela administração “um núcleo duro de militantes”,
os quais subsequentemente ameaçaram levar a empresa a Tribunal. A administra-
ção da Gate Gourmet pareceu ver ainda o diálogo como a segunda melhor opção:
“Espero vê‑los no Tribunal”, teria dito o Director Eric Born, conforme foi referido
pelos media.
? PENSAR TEORIA
240 |
| 241
A série de teorias éticas discutidas nesta parte fornece‑nos uma rica fonte de
assistência à tomada de decisões moralmente informadas. Todavia, a discussão
do nosso caso, o “Dilema Ético”, fez surgir uma variedade de diferentes pontos
de vista e implicações normativas, dependendo da abordagem teórica que fosse
escolhida. Por vezes, estes pontos de vista fornecem‑nos resultados bastante con-
traditórios.
Como já indicámos antes, não sugeriremos uma teoria ou uma abordagem
como sendo o melhor ou o verdadeiro ponto de vista de um dilema moral. A
Figura 2 mostra esta abordagem, onde a teoria ética é vista como uma espécie de
“lente” através da qual focar a tomada de decisão ética sobre uma consideração
específica, como direitos, deveres, discurso, ou seja o que for.
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Dilema ético
Dilema ético
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244 |
| 245
QUESTÕES A ESTUDAR
1. O que são teorias éticas?
2. A teoria ética é de alguma utilidade prática para os gestores? Discuta,
usando exemplos da prática corrente de negócio.
3. Definir absolutismo ético, relativismo ético e pluralismo ético. Até que
ponto cada perspectiva é útil para o estudo e prática da ética de negócio?
4. Quais são as duas principais famílias de teorias éticas tradicionais? Expli-
que a diferença entre estas duas abordagens à teoria ética.
5. Qual a teoria ética que pensa ser mais usada no negócio? Porque pensa
que é assim?
6. Leia o caso seguinte:
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EXERCÍCIO DE PESQUISA
Seleccione um problema ou dilema ético de negócio ou dilema que tenha
enfrentado ou que tenha surgido numa organização da qual fez parte como
empregado, estudante ou gestor.
1. D
escreva, resumidamente, os detalhes básicos do caso, identifique e dis-
cuta as questões principais de ética de negócio envolvidas.
2. E xponha as principais respostas, soluções ou tomadas de acção que
podiam ser consideradas em relação a este problema.
3. A
valie essas opções usando as teorias discutidas nesta parte.
4. Q
ue decisão foi finalmente tomada? Até que ponto acredita que esta foi a
melhor opção e porquê?
A Ética em Acção – 3
A British Petroleum e o oleoduto BTC: delícia Turca ou roleta Russa?
| 247
B - T - C pipelin
ed e
os
op
pr
Ceyhan Baku
FONTE: www.baku.org.uk
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| 249
exposta a um ambiente ameaçado pela corrupção, o qual por sua vez levou a
queixas dos locais, particularmente no Azerbaijão e Geórgia. Na Turquia, onde
as companhias petrolíferas nacionais conduziram o esquema, a má comunicação
entre os contratantes e as autoridades locais levou a reclamações acerca da abor-
dagem dos doadores à implementação dos projectos. Em muitas comunidades,
os esforços eram também dificultados por divisões políticas locais e, num caso,
até mesmo por uma disputa sangrenta entre as famílias dominantes.
Para os militantes como os Amigos da Terra, Amnistia Internacional e Bankwa-
tch, o projecto BTC é até certo ponto a evidência de que muita da conversa da BP
acerca de RSE e sustentabilidade pouco mais é que “informação enganadora” e
Relações Públicas (RP). Eles, por exemplo, culparam a companhia por ter assinado
um Acordo do País Anfitrião (APA) com a Turquia que “desconsidera descarada-
mente a Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, conforme disse o Professor
Sheldon Leader na sua qualidade de Conselheiro Jurídico da Amnistia Interna-
cional. Criticaram também a companhia pela alegada tortura dos activistas dos
Direitos Humanos e pelas críticas ao projecto BTC pela polícia local na Turquia.
Reportaram também casos em que os proprietários de terras tinham sido aparen-
temente ameaçados para aceitarem acordos de compensação inapropriadamente
baixos.
O último golpe dado à BP veio na forma do filme documentário Zdroj (Fonte)
dos realizadores Checos Martin Marecek e Martin Skalský, exibido em Londres
no princípio de 2006 no Festival de Cinema da Human Rights Watch. O filme
documenta não apenas as devastadoras consequências da produção de petróleo
Cáspio (onde a BP é o actor principal) para o ambiente e condições de vida dos
residentes locais, mas também sérios abusos dos Direitos Humanos ao longo do
projecto BTC. O filme apresenta um grande número de residentes locais que se
queixam de nunca terem sido compensados pelo valor das suas terras, tendo‑lhes
apenas sido pedida permissão para usarem as suas propriedades. Alega também
a corrupção entre a elite governamental do Azerbaijão que, em troca, impede
uma ampla distribuição da riqueza gerada pelo petróleo e suprime a oposição feita
por grupos da sociedade civil.
No momento em que escrevemos, a BP tem ainda de responder às recentes
alegações. No seu website queixa‑se que “a BP apoia instituições e ONG que pre-
tendem eliminar o suborno e a corrupção nas suas diversas formas. Nós somos
uma empresa que apoia a Transparência Internacional e participamos no desen-
volvimento dos seus ‘Princípios Empresariais Contra o Suborno’. Estes princípios
foram testados no terreno na nossa unidade no Azerbaijão”. O projecto expõe os
dilemas contemporâneos da ética do negócio e da RSE para os Países da Coliga-
ção, mesmo para aqueles com políticas ostensivamente “progressistas”. Embora
a BP tenha indubitavelmente feito esforços consideráveis no tratamento das
250 |
críticas que lhe eram dirigidas, o facto de operar em países propensos à corrupção,
e com padrões de Direitos Humanos que são aparentemente diferentes dos da
sua base britânica, põe em causa o esforço da companhia para ser vista como um
actor responsável. Pode‑se argumentar que o facto de a BP ter procurado agir
responsavelmente, estabelecendo o PRDS e confiando nos actores locais para a
execução, expôs ainda mais a companhia às críticas que tentou tratar em primeiro
lugar.
QUESTÕES A ESTUDAR
Reconhecemos também o apoio dado pela Sra. Deniz Tura através da sua
dissertação de MBA no Royal Holloway da Universidade de Londres, com base
no trabalho de campo no Azerbaijão e Turquia, no Verão de 2005, incluindo 61
entrevistas com gestores do projecto do ISDR e activistas de ONG baseadas local-
mente.
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TEXTO 2
A RESPONSABILIDADE SOCIAL DO NEGÓCIO
É AUMENTAR OS SEUS LUCROS
252 |
| 253
do interesse dos seus empregadores. Por exemplo, que ele deverá abdicar de
aumentar o preço do produto de modo a contribuir para o objectivo social de
prevenção da inflação, ainda que o aumento do preço pudesse ser em benefício
da empresa. Ou que ele tenha que fazer despesas visando a redução da poluição
para além do volume que seria de devido interesse para a empresa ou que seja
exigido por Lei, tendo em vista contribuir para o objectivo social de melhorar as
condições ambientais. Ou que, em prejuízo dos lucros da empresa, ele contratasse
os menos dotados desempregados ao invés de trabalhadores melhor qualifica-
dos, tendo em vista contribuir para o objectivo social de redução da pobreza.
Em qualquer um destes casos, o Administrador da empresa estaria a gastar
dinheiro de outrem por uma causa social geral. Ao realizar acções que, de acordo
com a sua “responsabilidade social”, reduzem os retornos para os accionistas, ele
está a gastar o dinheiro deles. Ao realizar acções que provocam a subida de pre-
ços para clientes, ele está a gastar o dinheiro dos clientes. Ao realizar acções que
baixam os salários de alguns trabalhadores da empresa, ele está a gastar o dinheiro
destes trabalhadores.
Os accionistas, os clientes ou os trabalhadores poderiam até separadamente
gastar o seu próprio dinheiro numa dada acção particular se assim o desejassem.
O Administrador Executivo está a exercer uma “responsabilidade social” distinta
se, ao invés de servir como agente dos accionistas, dos clientes ou dos trabalha-
dores, apenas gasta o dinheiro de forma diferente daquela em que estes o pode-
riam ter gasto.
Mas se ele faz isto, na verdade, está, por um lado, a impor impostos e, por
outro, a decidir sobre como as receitas desses impostos devem ser usadas.
Este processo levanta questões políticas a dois níveis: princípio e consequên-
cias. Ao nível de princípio político, a imposição de impostos e a utilização de
receitas de impostos são funções do Governo. Nós temos instrumentos e cláusu-
las constitucionais, parlamentares e judiciárias bem estabelecidas e elaboradas
para controlar estas funções, de modo a assegurar que os impostos sejam aplica-
dos tanto quanto possível de acordo com as preferências e desejos do público –
acima de tudo, a “tributação sem representação” foi um dos gritos de Guerra da
Revolução Americana.
Temos um sistema de verificações e balanços para permitir que a função legis-
lativa de imposição de impostos e despesas esteja separada da função executiva
de colecta de impostos e administração de programas de despesas e da função
judicial de mediação de disputas e interpretação da Lei.
Aqui, o homem de negócios – auto seleccionado ou indicado, directa ou indi-
rectamente, pelos accionistas – deve ser ao mesmo tempo Legislador, Executivo e
Jurista. Ele deverá decidir a quem cobrar impostos, por quem e para que propósito
e deverá também saber como gastar os impostos cobrados – tudo isto orientado
254 |
através de exortações gerais que vêm de cima, visando controlar a inflação, melho-
rar as condições ambientais, combater a pobreza, e por aí em diante.
Toda a justificação que leva a que o Administrador Executivo seja seleccionado
pelos accionistas é que o executivo seja um agente ao serviço dos interesses do
seu chefe. Esta justificação desaparece quando o Administrador Executivo impõe
impostos e gasta as receitas por causas “sociais”. Ele torna‑se, na verdade, num
funcionário público, ainda que nominalmente continue a ser um empregado de
uma empresa privada. Tendo como base o princípio político, é intolerável que
tais funcionários públicos – considerando que as acções que realizam em nome
da responsabilidade social são efectivamente reais e não apenas para inglês ver
– sejam seleccionados como o são agora. Se estão para agir como funcionários
públicos, então devem ser eleitos através de um processo político. Se estão para
impor impostos e fazer despesas de modo a promover objectivos “sociais”, então
devem ser estabelecidos mecanismos políticos para se fazer a avaliação dos
impostos e determinar, através de um processo político, os objectivos a perseguir.
Esta é a razão básica por que a doutrina da “responsabilidade social” envolve
a aceitação da visão socialista, segundo a qual mecanismos políticos, e não meca-
nismos de mercado, são a forma apropriada para a determinação da alocação de
recursos escassos a usos alternativos.
Tendo como base as consequências, será que o Administrador Executivo
poderá, de facto, desvincular‑se da sua alegada “responsabilidade social”? Por
outro lado, suponha que ele não fosse condenado por despender o dinheiro dos
accionistas, dos clientes ou dos trabalhadores. Como poderá ele saber como
usar esse dinheiro? Dizem‑lhe que ele deve contribuir para o combate à inflação.
Como poderá ele saber qual é a acção a levar a cabo para se atingir esse fim? Ele
pode ser perito na administração da sua companhia – na produção de um certo
produto ou na venda deste produto ou no financiamento do mesmo. Mas pode
não haver nada que tenha concorrido para a sua selecção que faça dele um perito
em inflação. Será que a sua acção de estancar a subida do preço do seu produto
reduz a pressão inflacionária? Ou, ao deixar o poder de compra nas mãos dos
seus clientes, estará simplesmente a desviá‑lo para outro sítio. Ou, ao forçá‑lo a
produzir menos por causa do baixo preço, isto irá simplesmente contribuir para
a escassez do produto? Mesmo que possa responder a estas perguntas, quanto
custo será justificadamente imposto aos seus accionistas, clientes e trabalhadores
por este propósito social? Qual é a sua comparticipação apropriada e qual é a
comparticipação apropriada dos outros?
E, quer ele queira, quer não, poderá ele não ser condenado por despender o
dinheiro dos accionistas, dos clientes ou dos trabalhadores? Será que os accionis-
tas não o irão despedir? (Os actuais ou aqueles que tomarem a empresa quando
as suas acções em nome da responsabilidade social tiverem reduzido os lucros
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256 |
fenómeno de apelo aos accionistas para pedir às empresas para que exerçam
a responsabilidade social (por exemplo, a recente cruzada G.M.). Em muitos
destes casos, o que está na verdade em causa é a tentativa, por parte de alguns
accionistas, de fazer com que outros accionistas (ou clientes ou trabalhadores)
contribuam, contra a sua vontade, para causas “sociais” preferidas pelos activis-
tas. Uma vez bem‑sucedidos, estão mais uma vez a impor impostos e a gastar as
receitas.
A situação do proprietário individual é de certa forma diferente. Se ele realiza
alguma acção destinada a reduzir os retornos da sua empresa para assim exercer
a sua “responsabilidade social”, está a usar o seu próprio dinheiro, não o dinheiro
de outrem. Se ele quiser usar o seu dinheiro para esses propósitos, esse é um
seu direito e eu não vejo qualquer objecção a que ele faça isso. No processo, ele
também pode impor custos aos trabalhadores e clientes. Contudo, como compa-
rativamente a uma grande empresa ou sindicato é muito menos provável que ele
tenha um poder monopolista, um tal efeito colateral tenderá a ser menor.
Claro que, na prática, a doutrina de responsabilidade social é frequentemente
um capote usado em nome de acções que são justificadas sob bases diferentes
da razão efectiva dessas acções.
Para ilustrar isto, pode muito bem ser no interesse a longo prazo de uma
empresa que seja a maior empregadora numa pequena comunidade dedicar
recursos para oferecer facilidades ou infra‑estruturas sociais a essa comunidade
ou para melhorar o seu Governo. Isto pode tornar fácil a atracção de trabalha-
dores desejados, pode reduzir a despesa com os salários ou aliviar as perdas
resultantes de roubos e sabotagem ou ter outros efeitos que valham a pena. Ou
pode ser que, dadas as leis sobre a dedução das contribuições das empresas para
acções de caridade, os accionistas podem contribuir mais para as organizações
de caridade que eles preferem, tendo as empresas a fazer as ofertas ao invés de
serem eles próprios a fazê‑las, uma vez que podem dessa forma contribuir com
um montante que doutra forma poderia ter sido pago sob forma de impostos
empresariais.
Em cada um destes casos – e em muitos outros similares – há uma forte ten-
tação para ajuizar ou justificar estas acções como exercício de “responsabilidade
social”. No ambiente actual de exercício de opinião, com a sua generalizada aver-
são ao “capitalismo”, “lucros”, “empresas sem escrúpulos”, e por aí em diante,
esta é uma forma de as empresas desenvolverem a boa vontade como resultado
que decorre de despesas que são inteiramente justificadas no seu próprio inte-
resse.
Seria inconsistente da minha parte convidar os Administradores Executivos de
empresas a coibirem‑se deste fingimento hipócrita porque isto estaria a ferir os
alicerces de uma sociedade livre. Isso seria equivalente a apelar aos Executivos
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258 |
direito a voto e a palavra em relação ao que vai ser feito, mas se a sua ideia for
rejeitada pelo seu superior ou pela maioria, terá então que se conformar. Para
alguns é apropriado exigir que outros dêem a sua contribuição para um propósito
social geral, quer estas pessoas queiram ou desejem dar essa contribuição ou não.
Infelizmente, a unanimidade não é sempre possível de conseguir. Há alguns
casos em que a conformação parece inevitável, por isso eu não vejo como alguém
pode evitar de todo o uso do mecanismo político.
Mas, quando tomada seriamente, a doutrina da “responsabilidade social”
alarga o âmbito do mecanismo político de modo a abranger toda a actividade
humana. Em termos filosóficos, a doutrina da “responsabilidade social” não difere
da mais explícita doutrina colectivista. Ela distingue‑se apenas por professar a
crença de que os fins colectivos podem ser atingidos sem meios colectivos. É por
isso que, no meu livro Capitalismo e Liberdade, considerei‑a uma “doutrina funda-
mentalmente subversiva” numa sociedade livre, e disse que, numa tal sociedade,
“há uma e apenas uma responsabilidade social de negócio – usar os seus recursos
e envolver‑se em actividades concebidas para aumentar os seus lucros, desde que
se mantenha dentro das regras do jogo, o que equivale a dizer envolver‑se em
concorrência aberta e livre sem engano ou fraude”.
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TEXTO 3
POR QUE AS EMPRESAS NÃO DEVIAM SEMPRE
MAXIMIZAR OS LUCROS
RESUMO
INTRODUÇÃO
260 |
58http://www.shell.com/static/media‑en/downloads/speeches/adrianloader_sg_csr_230220
04.pdf
59 Os executivos geralmente perseguem os seus próprios interesses, em prejuízo dos interes‑
ses dos accionistas, mas a base normativa publicamente expressa é que as suas acções devem
maximizar os lucros dos accionistas.
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60 http://www.ge.com/files/usa/en/company/news/jeff_lmmelt_BC_Speech.pdf
61 Mais precisamente, Friedman defende que os Administradores Executivos de empresas de‑
veriam perseguir os interesses dos accionistas. Em muitos casos, os accionistas poderão que‑
rer dispensar os lucros em nome de outros fins. Mesmo se os accionistas tiverem outros inte‑
resses diferentes da maximização de lucros, isto não reduz a validade dos argumentos que se
seguem, desde que haja um certo desvio entre os interesses dos accionistas e uma visão eti‑
camente motivada de interesses sociais, o que é uma assunção razoável.
262 |
| 263
outros fins. Se alguém pode exigir que os accionistas sacrifiquem alguns dos seus
retornos para outros fins importantes, então o facto de que um gestor é aquele
que deve pôr isto em prática não invalida a exigência aos accionistas.
O terceiro argumento parte da ideia de uma divisão de trabalho ideal entre
o Governo e o negócio. Ambos são, supostos, ser mais eficientes se colocarem
ênfase sobre as suas obrigações específicas, o que é desvantajoso para a sociedade
como um todo. O problema decorrente deste argumento é que, geralmente, a
situação não permite a divisão de trabalho visada. Em muitos países, em especial
no Terceiro Mundo, Governos e Instituições Públicas são incapazes ou não têm
vontade de assumir muitas das tarefas implícitas na divisão ideal de trabalho.
Dadas as imperfeições ou restrições deste tipo, não é inconcebível que a mais
eficiente divisão de trabalho acarrete maior responsabilidade às empresas, para
além de se concentrarem apenas nas suas operações nucleares de negócio.
O quarto, e último, argumento em defesa da visão de Friedman estabelece
que tomar uma responsabilidade extra colocaria a firma fora do negócio. Uma
forma comum de substanciar este argumento é dizer que algumas formas agem
de forma responsável, e então não são eliminadas pela concorrência. Se os con-
sumidores, trabalhadores ou accionistas valorizarem a responsabilidade empre-
sarial, uma firma responsável poderá sobreviver e até crescer. Num contexto de
competição menos que perfeita, a responsabilidade empresarial poderia até con-
ferir uma vantagem estratégica à firma. E, de facto, a população de firmas num
dado mercado é geralmente muito heterogénea.
Porém, toda esta contra‑argumentação não mostra que o argumento de
sobrevivência de Friedman esteja exagerado, não refuta totalmente o argumento.
Um contra‑argumento mais efectivo seria dizer que, se agir de forma respon-
sável coloca a firma em desvantagem no mercado, outros agentes podem ser
responsáveis pelo alívio ou minimização dessa desvantagem. Por exemplo, pode
ser da responsabilidade dos consumidores pagar um preço alto por produtos
provenientes de firmas responsáveis, ou para os accionistas acrescentarem um
retorno de responsabilidade ao retorno financeiro normal das firmas quando alo-
cam fundos de investimento. O que o argumento de sobrevivência faz é tomar a
visão de responsabilidade de forma demasiadamente estreita; quando se discute
a responsabilidade do negócio, não nos devemos apenas confinar na discussão
sobre responsabilidade do negócio, podemos também tomar em conta as tarefas
e obrigações de outros agentes.
Os argumentos comummente avançados para justificar o postulado de que
as empresas deveriam agir de acordo com os interesses dos seus accionistas
desmoronam‑se ante uma análise minuciosa. Que estes argumentos não são
sustentáveis não implica imediatamente assumir que uma perspectiva ética que
inclua a maximização de lucros pelas empresas seja impossível de conceber. Para
264 |
Assim, a maximização de lucros não implica apenas que a firma tem obriga-
ções especiais para com os seus proprietários, que a obrigação é também precisa
ou obrigação preferencial no sentido de que esta não pode ser renegada para se
satisfazerem outras obrigações.
A questão, então, é se este tipo particular de obrigação especial pode ser
defendido do ponto de vista ético. Na teoria ética, obrigações especiais são deri-
vadas de duas formas. Uma abordagem consiste em dizer que um agente tem
uma obrigação especial para com outra pessoa porque entre eles se estabelece
| 265
um certo tipo de relação. Nestes termos, esta pode ser a denominada abordagem
de relações sobre as obrigações especiais. Outra abordagem consiste em tomar
um ponto de vista universalista e afirmar que qualquer um tem as mesmas obri-
gações gerais para com qualquer outra pessoa, mas que estas obrigações gerais
podem ser desvinculadas de forma mais efectiva se a cada agente se atribuem
obrigações especiais para com um conjunto limitado de outros agentes62. Esta é
basicamente a abordagem de atribuição de tarefas de Goodin (1985, 1988).
No artigo sobre a identificação de accionistas, Cappelen (2004) distingue três
tradições na abordagem de relações: a tradição voluntarista, a tradição de bene-
fícios mútuos e a tradição comunitária. Tendo em vista um ponto mais geral, é
instrutivo analisar como as obrigações especiais decorrentes da maximização de
lucros se inserem no quadro destas três tradições.
De acordo com a tradição voluntarista, as obrigações especiais surgem apenas
a partir de um acordo voluntário e esclarecido. O liberalismo, tal como avançado
por Nozick (1974), é talvez a forma melhor conhecida destes tipos de teoria.
De acordo com esta teoria impor acções não‑voluntárias aos indivíduos viola os
direitos individuais, ou os seus direitos básicos à vida, saúde, propriedade ou
liberdade. A ideia de que os direitos individuais são violados se uma acção não
for voluntária implica certamente que as obrigações especiais apenas surgem da
associação voluntária, tal como entre os donos de uma firma ou entre a gerência
e os donos da firma. Portanto, a implicação a) acima pode ser reivindicada num
contexto liberal.
Contudo, é errado dizer que isto implica que a maximização de lucros pode
ser almejada em todos os casos, que as partes constituintes de um acordo volun-
tário podem perseguir os seus fins de forma ilimitada. De acordo com o liberalis-
mo, usar o trabalho escravo seria incorrecto, ainda que isso possa aumentar os
lucros. E apropriar‑se de recursos pertencentes a outros seria também incorrecto,
ainda que isso pudesse aumentar os lucros. A apropriação de recursos poderá
ser incorrecta mesmo em certos casos em que esses recursos não têm dono, de
acordo com a cláusula de Locken de deixar “o suficiente e tão bom para os
outros”, expressa por Nozick. Alguém pode até formular uma argumentação
contra acções que infrinjam a possibilidade de outras pessoas entrarem para a
associação voluntária, através de acções como a quebra de união. O ponto é que,
ainda que as obrigações especiais possam apenas surgir através da associação
voluntária, isto não invalida a obrigação das partes do pacto de respeitarem os
direitos individuais dos agentes que não sejam parte do pacto. Por outras pala-
vras, a implicação b) acima não pode ser justificada no âmbito do contexto liberal.
Em síntese, Friedman não é um liberal.
62Uso aqui o termo universalista no seu sentido restrito, uma vez que muitas abordagens de
relações discutidas abaixo são comummente assumidas como universalistas.
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268 |
com qualquer outra pessoa. Contudo, estas obrigações gerais podem ser desvin-
culadas de forma mais efectiva se se atribuem aos agentes tarefas especiais em
relação a um subconjunto da população total ou a um conjunto de obrigações. A
atribuição de tarefas especiais produz a divisão de trabalho moral que, de forma
mais efectiva, permite que as obrigações gerais sejam satisfeitas. Esta é a aborda-
gem de atribuição de tarefas de Goodin (1985, 1988), que assenta na perspectiva
“consequencialista”, mas é também consistente com outras teorias universalis-
tas63.
A implicação da abordagem de atribuição de tarefas é que a responsabilidade
principal por uma tarefa deverá ser alocada ao agente ou grupo de agentes que
possam realizar tal tarefa de forma mais efectiva. Actualmente há uma vasta
gama de literatura em Economia que discute a eficiência do mercado económico,
incluindo a maximização de lucros pelas firmas. Tendo como base o primeiro e o
segundo Teoremas de Bem‑Estar da Economia, pode constituir‑se um argumento
sobre o uso eficiente dos recursos produtivos da sociedade64. Por outras palavras,
para preservar a eficiência que alimenta as propriedades do mercado económico,
pode defender‑se a divisão de trabalho moral, na qual se atribui às firmas a tarefa
de maximizar os lucros, enquanto se atribui ao Estado a tarefa de redistribuir os
rendimentos e corrigir as falhas que surjam no mercado. Tendo como base esta
linha de pensamento, consegue‑se um argumento de primeira água a favor da
maximização de lucros pelas firmas.
Porém, esta divisão particular de trabalho moral assenta crucialmente na
assunção de que o Estado é capaz e tem vontade de realizar as tarefas a si aloca-
das. No caso em que o Estado não consegue realizar estas tarefas, elas tornam‑se
uma “responsabilidade residual de todos” (Goodin, 1985:684). Se o Estado não
cumpre com as suas responsabilidades, outros agentes, incluindo firmas, têm
responsabilidades secundárias, ou de apoio, para assegurar que estas tarefas
sejam realizadas (Goodin, 1985). Por outras palavras, no âmbito da abordagem
de atribuição de tarefas, há casos em que as firmas devem desviar‑se da maximi-
zação de lucros. Nas palavras de Goodin (1988:679): “Se se puder mostrar que as
obrigações especiais derivam toda a sua força moral das suas ligações com obri-
gações gerais, então elas são susceptíveis de serem suplantadas (pelo menos em
parte ou em circunstâncias excepcionais) por aquelas considerações mais gerais”.
A última observação ilustra muito bem o ponto geral demonstrado pela dis-
cussão acima sobre as abordagens de relações e de atribuição de tarefas. Nas
teorias universalistas, as tarefas especiais são meros dispositivos administrativos
63Veja‑se Shue (1988), que discute a divisão de trabalho moral na atribuição de tarefas cor‑
relacionadas com os Direitos Humanos.
64 Para uma elaboração mais detalhada das implicações da abordagem de atribuição de tare‑
fas, veja‑se Cappelen e Kolstad (2006).
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que nos permitem realizar as tarefas gerais de forma mais efectiva. No caso
de ruptura registada numa divisão de trabalho moral, incumbe‑se aos agentes
desviarem‑se das tarefas especiais que lhes tiverem sido atribuídas para se asse-
gurar que as tarefas gerais sejam devidamente realizadas. Dito de outro modo,
é possível que não haja nenhumas obrigações especiais das firmas para com os
seus proprietários que assumam prioridade em todos os contextos e situações.
Em abordagens universalistas, o espaço para as tarefas especiais, tal como implí-
cito na maximização de lucros, é restringido.
A abordagem de relações sobre obrigações especiais e, em particular o comu-
nitarismo, pode ser visto como uma reacção à ideia universalista segundo a qual
toda a gente deveria contar de forma igual nas nossas deliberações morais. Algu-
mas relações podem ser mais importantes para nós do que outras, por exemplo,
aquelas intimamente relacionadas com o nosso sentido de identidade, o que
implica que pode haver razão para aceitar tarefas especiais de agentes com os
quais temos este tipo de relações. Numa tentativa de aligeirar os requisitos muito
rígidos de imparcialidade, emanados nas teorias universalistas, as abordagens de
relações de certa forma delimitam até que ponto tarefas podem ser parciais rela-
tivamente a certos grupos ou indivíduos através da definição do que conta como
relações moralmente relevantes. Em todas as tradições relacionais, discutidas
acima, as obrigações especiais de firmas para com os seus donos, implícitas na
maximização de lucros, ou não conseguem ter suporte em relações com impor-
tância moral ou são baseadas em relações que não são as únicas moralmente
relevantes.
Este ponto também se estende a todas as abordagens de relações razoáveis
para além das três aqui discutidas. Proprietários não detêm monopólio sobre a
identidade, direitos individuais, associação voluntária, cooperação mutuamente
vantajosa ou qualquer outra coisa que possa estar subjacente nas obrigações
especiais rígidas de firmas para com os seus donos. Defender que proprietários
são de alguma forma especiais porque estabelecem relações que outros não
estabelecem é argumentar implicitamente que eles são especiais porque são
proprietários. E, para além de violar os requisitos de imparcialidade das teorias
universalistas, isto poderia enfraquecer os requisitos de imparcialidade muito
para além do que seria permitido por qualquer abordagem de relações razoável.
Portanto, as tarefas especiais implícitas na maximização de lucros não podem ser
defendidas sob o ponto de vista de qualquer posição ética, posição universalista
ou qualquer outra posição razoável.
Uma forma similar de pôr esta questão seria dizer que uma teoria ética cons-
tituída em torno da ideia ou consistente com a ideia de que as empreses deviam
apenas perseguir os interesses dos proprietários incluiria um forte elemento de
egoísmo por parte dos proprietários. Como Williams (1993:12) defende, “temos
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Se todas as boas coisas andam juntas, então não há razão para uma teoria ética,
para além de definir o que se pode considerar bom. Não haveria necessidade de
um raciocínio ético em termos de procurar encontrar equilíbrios e resolver dile-
mas, para fazer julgamentos em casos difíceis em que um conjunto de interesses
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CONCLUSÃO
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TEXTO 4
QUANTO CUSTA UMA POSIÇÃO DE SUPERIORIDADE ÉTICA?
(DILEMAS ÉTICOS EM AMBIENTES COMPETITIVOS)
No seu célebre artigo de 1970, Milton Friedman escreveu que “há uma e ape-
nas uma responsabilidade social no negócio – usar os seus recursos e empenhar‑se
em actividades que aumentem os seus lucros desde que se mantenham dentro das
regras do jogo, que o mesmo é dizer, empenhar‑se numa competição aberta e livre
sem decepção ou fraude”. Do ponto de vista de Friedman, os gestores que per-
seguem metas sociais mais amplas – digamos, adoptando emissões padrão mais
estritas do que as exigidas por Lei ou através da doação de fundos das empresas a
organizações de caridade – estão simplesmente a gastar o dinheiro dos outros. As
empresas geridas por estes gestores terão custos mais elevados do que aquelas
geridas por gestores cujo objectivo é maximizar a riqueza dos accionistas. De acordo
com a teoria padrão dos mercados competitivos, estas últimas atrairão mais capi-
tal e eventualmente atirarão com as primeiras para fora do negócio.
Certamente que, como o próprio Friedman claramente reconhece, há muitas
circunstâncias nas quais os limitados interesses da empresa coincidem com os
da comunidade em geral. Ele escreve, por exemplo, que “pode muito bem ser do
interesse a longo prazo de uma empresa, que é um empregador importante numa
pequena comunidade, dedicar recursos para providenciarem bens que facilitem a
vida dessa comunidade ou para melhorar o seu Governo. Isso pode tornar mais fácil
atrair empregados desejáveis, pode reduzir a conta dos salários ou minorar prejuí-
zos resultantes de roubos e sabotagem ou ter outros efeitos lucrativos” (1970, 24).
Friedman argumenta contra o uso do termo “responsabilidade social” para
caracterizar as actividades de uma empresa que, embora servindo a comunidade
em geral, aumenta também os seus lucros. Ele acredita que esta linguagem pos-
sui um grande potencial para enganar políticos e eleitores acerca do papel ade-
quado da empresa na sociedade e promoverá o excesso de regulamentação.
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mais do que o seu valor no mercado aberto, pode pagar‑lhe um preço supe-
rior ao custo marginal do subcontratante, mas abaixo do seu custo médio.
Antecipando este problema, os subcontratantes estarão dispostos a inves-
tir no capital que melhor sirva as necessidades dos seus clientes somente se
acreditarem que os seus parceiros são de confiança e não os exploram.
Num estudo importante, Edward Lorenz detalha por que é que os incentivos
materiais estão mal equipados para resolver os problemas de compromisso
que surgem entre pequenas fábricas francesas e seus subcontratantes, des-
crevendo a seguir detalhadamente como as partes procuram parceiros de
confiança. Por exemplo, todos os respondentes da sua amostra enfatiza-
ram o alto valor que atribuem aos relacionamentos pessoais neste processo
(Lorenz, 1988).
• Garantia de qualidade. O problema da garantia de qualidade surge não ape-
nas entre empresas e consumidores, mas também nas transacções entre
empresas. Considere‑se, por exemplo, o relacionamento entre a empresa
‑mãe e os seus concessionários (franchises). Quando o proprietário de uma
concessão (franchise) fornece ao público serviço de alta qualidade, ele realça
não apenas a sua própria reputação junto dos compradores locais mas tam-
bém a reputação de outros concessionários. A empresa‑mãe gostaria que ele
tomasse em conta ambos os benefícios ao estabelecer os seus níveis de ser-
viço, mas os seus incentivos privados centram‑se somente em como o bom
serviço afecta os seus próprios compradores. Consequentemente, é comum
nos acordos de concessão chamar a atenção do concessionário para forne-
cer um serviço de mais alta qualidade do que, de outro modo, seria do seu
próprio interesse providenciar. Os licenciadores (franchisers) incorrem em
custos na tentativa de pôr em vigor estes acordos, mas a sua capacidade
para monitorar o serviço local é muito imperfeita. O licenciador tem, assim,
um forte incentivo para recrutar concessionários que atribuam um valor
intrínseco ao cumprimento dos seus acordos de serviço. E os concessioná-
rios assim identificados estão em vantagem competitiva em relação aos que
apenas são motivados por interesses próprios.
• Manutenção da confidencialidade. Muitas empresas de consultoria pres-
tam serviços que requerem acesso a informação sensível em termos de
concorrência. É claro que nenhuma empresa será bem‑sucedida neste tipo
de trabalho se adquiriu a reputação de disponibilizar essa informação aos
rivais dos seus clientes. Ainda assim, os empregados muitas vezes deixam
estas empresas e quando isso acontece os incentivos materiais para mante-
rem a confidencialidade reduzem‑se consideravelmente. Em alguns casos, os
incentivos materiais para manutenção da confidencialidade enfraquecerão
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pelo facto de muitas entidades terem tido acesso à informação sensível, tor-
nando muito mais difícil localizar a fonte de quaisquer fugas que possam
ocorrer. Tendo em mente estas contingências, um cliente estará muito mais
disposto a lidar com uma empresa de consultoria dirigida por alguém capaz
de identificar e atrair empregados que saibam dar o devido valor, a honrar os
acordos de confidencialidade.
65 Modelo em que se suporta menos do que a justa quota do custo da produção de um recurso
282 |
Há também evidência que a Ben & Jerry’s vende mais sorvete graças aos
esforços a favor da preservação da floresta tropical amazónica; que a Body Shop
vende mais cosméticos por causa das suas embalagens amigas do ambiente; que
a McDonald´s vende mais hambúrgueres devido ao seu apoio aos pais de crianças
seriamente doentes; etc.
Evidência experimental a partir do “jogo do ditador” proporciona evidência
adicional da disposição dos consumidores em suportarem custos por causa de
preocupações de ordem moral. O jogo do ditador envolve dois jogadores; ao
primeiro é dada uma quantia em dinheiro, digamos 20 dólares, sendo‑lhe depois
pedido para escolher uma de duas formas de dividir o montante entre si e o
segundo jogador: 10 dólares para cada um ou 18 dólares para o primeiro jogador
e 2 dólares para o segundo. Kahneman, Knetsch e Thaler (1986) concluíram que
mais de três quartos dos jogadores escolheram a divisão 10‑10. Eles descreveram
depois esta experiência a um grupo separado de pessoas, a quem deram a esco-
lher entre repartirem 10 dólares com uma das pessoas que tinha escolhido a divi-
são 10‑10 ou repartirem 12 dólares com uma das pessoas que tivesse escolhido a
divisão 18‑2. Mais de 80% das pessoas em causa escolheu a primeira opção, o que
os autores interpretaram como uma disposição de gastarem 1 dólar para punirem
um estranho anónimo que se comportara de forma injusta na experiência anterior.
Tomados como um todo, os dados do mercado e a evidência experimental
parecem deslocar o ónus da prova para os proponentes da hipótese free‑rider.
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OBSERVAÇÕES FINAIS
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TEXTO 5
TEORIA DAS FINANÇAS EMPRESARIAIS
286 |
Muitos gestores vêem o seu papel na sociedade num sentido ainda mais alar-
gado (satisfação dos desejos do consumidor, apoio às artes, contribuições políti-
cas, etc.) do que sugerido por esta lista.
De acordo com Blair (1995, página 214), mesmo nos Estados Unidos, que tra-
dicionalmente têm sido muito menos receptivos à ideia da sociedade de parceiros
do que muitos outros países desenvolvidos (especialmente fora do mundo anglo
‑saxónico), “no fim dos anos 60 e princípio dos anos 70 a capacidade empresarial
de responder a um largo grupo de parceiros tornou‑se aceitável como prática
de negócio”. Contribuições para fins caritativos, desapropriação (da prática do
Apartheid) na África do Sul, e pagamento pela saída de empregados afectos às
actividades de serviços públicos, por exemplo, tornaram‑se lugar‑comum e foram
confirmados pelos Tribunais. O consenso por alguma internalização do bem‑estar
do parceiro colapsou parcialmente nos anos 1980. Os proponentes do valor para o
accionista ganharam influência. Mais ainda, a onda de tomadas de controlo (take
‑over) hostil naquela década estimulou um intenso debate sobre se o aumento da
riqueza do accionista associado às tomadas de poder não veio parcialmente em
detrimento dos trabalhadores e comunidades (Shleifer e Summers, 1988).
A popularidade do ponto de vista da sociedade de parceiros junto do público
contrasta com o forte consenso entre economistas financeiros de que maximizar
o valor para o accionista tem maiores vantagens sobre a busca de objectivos
alternativos. Um defensor particularmente influente da abordagem do valor para
o accionista foi Milton Friedman (1970)66.
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ponsabilidade é a de conduzir o negócio de acordo com os seus desejos, os quais geralmente são
fazer tanto dinheiro quanto possível, embora em conformidade com as regras básicas da so‑
ciedade, ambos enquadrados na Lei e na Ética dos costumes. Em alguns casos os seus patrões
podem, evidentemente, ter um objectivo diferente. Um grupo de pessoas pode formar uma em‑
presa para um fim caritativo – por exemplo, um hospital ou uma escola. O gestor de uma tal
empresa não terá o lucro como seu objectivo, mas sim a prestação de determinados serviços.
O executivo da empresa é também, evidentemente, uma pessoa com as suas razões. Como pes‑
soa, ele pode ter muitas outras responsabilidades que ele reconhece ou assume voluntariamen‑
te – para com a sua família, a sua consciência, os seus sentimentos de caridade, a sua Igreja,
os seus clubes, a sua cidade, o seu país. Pode ser impelido por estas responsabilidades a devo‑
tar parte dos seus rendimentos a causas que entenda merecedoras, recusar trabalhar para cer‑
tas empresas, deixar até o seu emprego, por exemplo, para ingressar nas forças armadas do seu
país. Se quisermos, podemos referir‑nos a algumas destas responsabilidades como ‘responsabi‑
lidades sociais’. Mas a este respeito ele age como um mandante e não como um agente; gasta o
seu próprio dinheiro, ou tempo, ou energia, não o dinheiro dos seus patrões, ou o tempo ou ener‑
gia que tenha acordado devotar aos objectivos deles. Se isto são ‘responsabilidades sociais’, são
‑no de indivíduos, não do negócio.
Os accionistas ou os clientes ou os empregados podem, separadamente, gastar o seu próprio di‑
nheiro numa acção particular se assim o desejarem. O executivo exerce uma ‘responsabilidade
social’ distinta, mais do que servir como um agente dos accionistas, dos clientes ou dos empre‑
gados, desde que gaste o dinheiro de forma diferente do que eles o teriam gasto.
Mas se ele proceder assim, ele está de facto, por um lado, a impor taxas e, por outro lado, a de‑
cidir como o produto das taxas deve ser gasto.
Aqui, o homem de negócios – que se seleccionou a si próprio ou foi apontado directa ou indirec‑
tamente pelos accionistas – é simultaneamente Legislador, Executivo e Jurista. Ele é que deci‑
de a quem taxar, por quanto, para que fim e como gastar o produto – tudo isto guiado apenas
por exortações gerais vindas de cima para refrear a inflação, melhorar o ambiente, combater
a pobreza, etc., etc.”
288 |
67 Citamos novamente Friedman (1970), que é altamente crítico acerca do conceito de socie‑
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presas entre a partilha de controlo, a falta ou o baixo nível da gestão de opções de títulos e a
inactividade do mercado de aquisições (take‑over).
290 |
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71 Esta posição constitui a base para uso de taxas de dispensa temporária de empregados e
avaliação de experiência (Blanchard e Tirole (2004, 2005) para uma discussão de política e
uma abordagem do mecanismo óptimo, respectivamente).
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0 1 2 (dados 3
(contrato) (decisão) intermédios) (resultados)
294 |
72Por exemplo, os altos impostos sobre transacções de imobiliário têm tradicionalmente re‑
duzido a mobilidade dos proprietários. Similarmente, para os não proprietários, as leis rela‑
cionadas com as rendas têm tornado o mercado de arrendamento muito confuso.
73 Um anterior exponente deste ponto de vista foi o próprio Berle. Ele argumentava que “você
não pode deixar de enfatizar o ponto de vista de que as empresas de negócios existem com o único
propósito de fazerem lucros para os seus accionistas até chegar a altura em que esteja prepa‑
rado para oferecer a qualquer pessoa um esquema claro, razoável e exequível de responsabili‑
dades” (1932, citado por Blair, 1995).
| 295
social nos casos de falha de contrato, embora seja reconhecido que incentivos
apropriados são então difíceis de desenhar.
Os fundos verdes (investimento em negócios que se esforçam por proteger o
ambiente) ou, em termos mais gerais, fundos éticos e boicotes ao consumo têm
tentado fazer exactamente isso. São tentativas interessantes e bem significativas
de substituição por uma regulação imperfeita das exterioridades, mas têm as
suas próprias limitações: (a) uma limitação reside no facto de investidores e con-
sumidores terem fraca informação: os incentivos dados por investidores e consu-
midores individuais requerem que estes actores estejam bem informados acerca
dos verdadeiros factos, bem como sejam capazes de interpretar estes factos (por
exemplo, os impactos social e económico de uma política são frequentemente
mal entendidos). Presumivelmente são necessários intermediários da informa-
ção dignos de confiança para orientar a sua escolha; (b) uma outra limitação é a
rédea livre da dispendiosa produção de sanções contra as empresas socialmente
irresponsáveis: como mostra a evidência, uma fracção não desprezível de inves-
tidores está disposta a aceitar uma taxa de retorno ligeiramente mais baixa para
evitar financiar empresas que se comportam de uma forma não ética. Todavia,
muitos não estão provavelmente dispostos a aceitar uma taxa baixa de retorno,
da mesma forma que as famílias se indignam quando um parque ou um velho
bairro é convertido num condomínio de construções luxuosas, mas se apressam a
adquirir as unidades daí resultantes.
SECÇÃO SUPLEMENTAR
Incentivos monetários
296 |
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298 |
77 Mais tecnicamente, a falta de uma “chave decifradora” não permite às partes contratan‑
tes descrever na fase de contratação o significado de uma “boa performance”, só mais tarde,
quando a incerteza se esclarece, se torna mais claro o que significa uma boa performance.
| 299
300 |
o vende aos outros utilizadores (integração vertical) ou por uma entidade com
um fim específico controlada em conjunto pelos utilizadores (empreendimento
conjunto ou associação).
Por exemplo, uma rede de transmissão de electricidade pode ser controlada
por uma companhia de distribuição ou por um gerador (integração vertical), por
um grupo de utilizadores (empreendimento conjunto), ou por uma organização
independente (sem fins lucrativos como no caso de um operador de sistema
independente ou com fins lucrativos como no caso de uma companhia de trans-
missão).
Podemos formar alguns critérios acerca dos custos e benefícios do controlo
partilhado olhando para o caso familiar de uma produção de um input conjunto
e aplicá‑los no debate sobre governação empresarial. De facto, as associações
de inputs são bastante comuns: associações de cartões de crédito como o Visa
e o Mastercard79, algumas bolsas de valores, Airbus, cooperativas agrícolas e
de investigação, telecomunicações, biotecnologia, alianças de marcas de auto-
móveis, são tudo exemplos de empreendimentos conjuntos. Empreendimentos
conjuntos, parcerias e associações podem ser vistos como exemplos de socie-
dades de parceiros até ao limite em que os actores com conflitos de interesses
partilham o controlo. Mas deve também ser notado que o primeiro argumento
a favor do valor para o accionista, a carência de receita garantida, pode não se
lhes aplicar: os parceiros em empreendimentos conjuntos podem trazer capital
mais facilmente do que os empregados numa empresa, a necessidade de recorrer
a empréstimos de partes independentes é por isso muito reduzida. Por outras
palavras, o autofinanciamento dos utilizadores do input de um empreendimento
conjunto implica que a carência de receita garantida não é aqui um factor-chave.
Uma lição interessante retirada do trabalho de Hausman (1996), e de mui-
tos testemunhos relacionados, é que a heterogeneidade de interesses entre os
parceiros de um empreendimento conjunto impede seriamente a eficácia deste.
Como é de esperar, os conflitos de interesses entre os parceiros criam desconfian-
ças e conduzem a paralisações na tomada de decisões80.
por vezes podem ter origem nas capacidades limitadas de compensação de alguma das par‑
tes. É aqui que falha o Teorema de Coase.
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TEXTO 6
TRANSFORMANDO OS NOSSOS ESTUDANTES:
O ENSINO DA ÉTICA COMERCIAL PÓS‑ENRON
302 |
de certas formas em vez de outras. Todo aquele que não assuma este objectivo
não é muito reflexivo ou devia estar numa profissão diferente. Se procuramos ser
a causa, então devemos admitir a nossa missão e monitorar quão correctamente
a estamos a executar. Não obstante, em vez de assumirmos os nossos fracassos,
escondemo‑nos atrás de queixas como “alguns estudantes não aprendem porque
os seus hábitos são maus” ou “temos pouco tempo para influenciar os nossos
estudantes, que são endoutrinados por outros professores da escola de gestão
para acreditarem que o estrito interesse próprio domina e deve dominar o mun-
do”. Eu tenho duas réplicas a estes raciocínios.
Primeiro, embora seja verdade que não é mais possível ensinar ética a estu-
dantes desmotivados, do que é ensinar‑lhes cálculo, acredito que é melhor assu-
mir que cada estudante é passível de ser ensinado do que dar por perdida uma
parte do corpo estudantil. Não podemos saber quem pode aprender a menos
que e até que tenhamos feito um esforço concertado para instruir todos os que
potencialmente podemos influenciar. Quando um colega de Kant se queixou acerca
da preguiça dos estudantes alemães, Kant respondeu “Habe Geist” (“Tenha Ima-
ginação”). Também nós precisamos de ter imaginação e procurar melhorar conti-
nuamente o nosso ensino.
Segundo, mesmo se as mensagens que os nossos estudantes e empregados
ouvem no mercado e em outras aulas do MBA encorajam o egoísmo ou a ganân-
cia, não devemos desistir dos nossos estudantes. Se nós, defensores da ética de
negócio, fôssemos tão severos connosco como somos com os Executivos Empre-
sariais, certamente que seríamos repreendidos pela nossa prática, de culpar os
nossos estudantes ou os colegas da escola de gestão pela sua falta de ética. Tal-
vez tenhamos sido nós que falhámos junto dos nossos estudantes e não o contrá-
rio. Desconfio do tom virtuoso que por vezes ouço nos nossos ataques a colegas
da Faculdade de Gestão. Nós, defensores da ética, falamos como se soubéssemos
exactamente o que de gestão significa ensinar de forma eficaz. Bastaria os nossos
colegas deixarem de se meter à nossa frente para podermos sacudir os nossos
gestores de ética. Pergunto‑me se nós realmente sabemos o que significa sermos
professores eficazes de ética e se estamos a satisfazer o nosso próprio padrão.
Embora a pedagogia da ética comercial seja vista como um tópico pouco
atraente, é crucial que comecemos a pensar seriamente sobre qual a melhor
maneira de ensinar o assunto. Para isso, é bastante claro que não nos vamos
colocar a nós próprios fora da actual situação ética difícil. Vocês recordar‑se
‑ão que a Legislação Sarbanes‑Oxley deveria melhorar os controlos internos das
empresas e a qualidade dos relatórios financeiros e prevenir que os Executivos
tirassem benefício dos seus crimes. A Lei era também suposta servir de arranque
à reforma do mercado com o objectivo de melhorar a transparência e eliminar
conflitos de interesses nas empresas da Wall Street. No ano passado, sugeri que
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81Para uma mais ampla discussão dos problemas resultantes de confiar na Lei Sarbanes
‑Oxley para resolver ou mesmo abreviar a prática empresarial negativa, ver Daryl Koehn, Ei‑
ght Reasons Why We Should Not Expect Too Much From Sarbanes‑Oxley, a ser publicado no
Jornal Académico Chinês Wenti.
82David Armstrong, Tyco to Restate Financial Results, Wall Street Journal, 17 de Junho de
2003, A2, A8.
83 Joann S. Lublin and Mark Maremont, Taking Tyco by the Tail, Wall Street Journal, 6 de Agosto
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para identificarem acções e acordos de fusão, tanto a Citigroup Inc. como a UBS
Warburg trouxeram analistas para a Grã‑Bretanha para as ajudar a ganhar uma
grande IPO (venda ao público de títulos de uma companhia). Como o sistema
financeiro da Wall Street apenas cobre as actividades domésticas das empresas
dos EUA, as acções da Citigroup e da UBS foram tecnicamente legais. Mais ainda,
o acordo não se tornou legalmente obrigatório até sessenta dias depois de ser
aprovado pelo Tribunal Distrital dos EUA. Assim, é justo dizer que as empresas
continuam a pressionar o envelope jurídico em relação às próprias práticas que
supostamente tinham renegado85. Não admira que os reguladores se queixem da
recusa das empresas corretoras em aderirem ao espírito do acordo86. As peque-
nas empresas corretoras não estão ligadas ao acordo da Wall Street, também elas
continuam a empenhar‑se em práticas proibidas pelo acordo. Pouco mudou na
frente analista.
Nos termos da Legislação Sarbanes‑Oxley, os Administradores (CEO) têm
de certificar que os seus resultados financeiros são correctos. A exigência pouco
contribuirá para promover a honestidade. As empresas dignas de confiança não
precisam de alterar as suas práticas, enquanto as empresas desonestas não
vão recusar‑se a certificar. Tal recusa constituiria um convite aberto para que os
reguladores viessem atrás da empresa. De facto, a SEC está a investigar algumas
companhias que alegadamente falsearam os lucros de 2001, que certificaram
em 2002. Quando os Executivos são processados, quem paga a factura são os
accionistas. Os accionistas da Xerox estão a pagar mais de 22 milhões de dólares
em multas que a SEC aplicou à empresa por contabilidade inexacta. Adicionando
o insulto à injustiça, os pobres accionistas têm de pagar as facturas jurídicas dos
anteriores executivos da Xerox acusados de instigarem a manipulação87.
O Executivo paga as sobras a níveis estratosféricos dado que as administrações
continuam a achar difícil dizer “não” aos Executivos. Gestores de topo usufruem
de elevados pacotes salariais que não estão ligados à performance. Por exem-
plo, ao anterior CEO da Honeywell, Lawrence Bossidy, haviam sido prometidos 4
milhões de dólares anuais e muitas outras mordomias (avião da empresa, consul-
toria fiscal, espaço de escritório, etc.)88. As companhias que pagam de acordo com
as exigências de performance estão a ajustar, para baixo, as suas metas financeiras
85Erik Portanger, Banned on Wall Street, But All Right Abroad?, Wall Street Journal, 6 de Junho
de 2003, C1, C10.
86 Idem.
87Gretchen Morgenson, Shareholders Will Pick Up the Bill This Time, Too, New York Times, 8
de Junho de 2003, Edição online. Disponível em: http://query.nytimes.com/gst/abstract.ht‑
ml?res = F208FF83D5D0CTB8CDDAFO894DB404482.
88 Monica Langley, Big Companies Get Low Marks for Lavish Executive Pay, Wall Street Journal,
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89Gretchen Morgenson, The Rules on Bosses’Pay Seem to Be Written with Pencil, New York
Times, 25 de Maio de 2003.
90Ambas as citações são de Neil Westergaard, The Good, the Bad, and the Sarbanes‑Oxley,
Houston Business Journal, Semana 1‑7 de Agosto de 2003, 57.
91 Chicago Tribune, 25 de Maio de 2003.
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independência do Director, mas nada fez que visasse estes conflitos muito difun-
didos92.
Debaixo de um ataque implacável à fraca governação das empresas, a New
York Stock Exchange (NYSE) concordou finalmente em revelar o vencimento de
Dick Grasso, Presidente da NYSE, e em proibir os funcionários da NYSE de acei-
tarem lugares nas administrações das empresas listadas. Com efeito, a partir de
2004, os Executivos das empresas de corretagem não trabalharão para o comité
de compensação da NYSE que fixa o salário do Presidente. Estas modestas alte-
rações apareceram apenas depois de Elliot Spitzer, Procurador‑Geral de Nova
Iorque, ter contestado o plano de Grasso para apontar o Presidente e CEO da Citi-
group Inc., Sandy Weill, como Director Público da NYSE. Pedir a um homem cuja
empresa tinha sido multada em centenas de milhões de dólares por acções que
lesaram os investidores para proteger pequenos investidores é má ideia, para não
dizer pior. Todavia, o facto de esta nomeação poder parecer uma boa ideia para
os jogadores da Wall Street mostra quão pouco mudaram as atitudes e acções no
pós‑Enron93. De facto, o Presidente da SEC, Donaldson, tomou a atitude invulgar
de punir publicamente a chefia da Morgan Stanley, depois de alguns CEO da Wall
Street começarem a vangloriar‑se do pequeno valor das multas aplicadas às suas
empresas94.
Contudo, aqui há pouco mais do que uma pequena ironia, dado ter‑se verifi-
cado que a própria SEC tem uma contabilidade negligente95.
Embora as empresas dos EUA falem certamente mais acerca da governação
empresarial, elas parecem estar mais envolvidas em acções de fachada do que na
alteração da conduta do negócio. As empresas pagam para terem uma avaliação
quantificada da governação da empresa. Agências de avaliação, como o Institu-
tional Shareholders Services (ISS), examinam as características de uma empresa
– exemplos, independência do auditor, composição da Administração, responsa-
bilidades do Conselho de Administração e possíveis conflitos de interesses entre
Directores. A agência de avaliação atribui à empresa um determinado grau e
depois vende o acesso das empresas a esses graus. Por um preço substancial, o
ISS sugerirá às empresas como melhorar a avaliação da sua governação. Dado
que o ISS tem grande influência junto dos fundos de investimento e fundos de
reforma, nenhuma empresa quer ficar mal classificada pelo ISS.
92David Bank and Joann S. Lublin, On Corporate Boards, Officials from Nonprofits Spark Con‑
cern, Wall Street Journal, 20 de Junho de 2003, A1, A10.
93 Kate Kelly and Susanne Craig, NYSE to Disclose Grasso Pay Among Changes, Wall Street Jour‑
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96Monica Langley, Want to Lift Your Firm’s Rating on Governance? Buy the Test, Wall Street
Journal, 6 de Junho de 2003, A1, A6.
97 Idem.
98 Idem.
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a ignorar a questão, mas pelo menos os seus colegas podem ter plantado nele
uma semente de dúvida sobre a verdade da sua pretensão de que as escolas pri-
vadas seriam a resposta para os problemas de comportamento dos seus filhos.
Estes exercícios cativam o estudante. Em vez de gastarem energia a com-
preender em que erraram os gestores da Enron ou Exxon, os estudantes lançam o
seu olhar para dentro, escrutinando os seus comportamentos e desejos. Este exame
é o princípio da sabedoria. Se não nos conhecemos a nós próprios – e incluo
os professores neste “nós” – possivelmente não podemos distinguir as acções
do nosso verdadeiro interesse próprio daquelas que resultam de paixões ou de
medos deslocados. Assim, embora este exercício de modo algum esgote a área
da ética de negócio, é um terreno útil para começar se pensarmos seriamente em
provocar uma mudança no comportamento dos estudantes.
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como a ti próprio”, Jesus responde que “Se o homem deseja ser completo ou per-
feito, deve dar a sua riqueza aos pobres. Terá então um tesouro no céu e só depois
deverá seguir Jesus”. Nesta altura o jovem retira‑se, o que leva Jesus a observar
que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico
entrar no reino de Deus”. Ouvindo isso, os discípulos ficam confundidos e pressio-
nam Jesus, “Quem pode então ser salvo?”. Pedro até se lamenta, “Deixámos tudo
para te seguir. O que será de nós?”.
Perguntei aos meus estudantes se notaram qualquer coisa estranha neste
encontro. Um dos estudantes mais inteligentes objectará: “Um momento. Pedro e
os outros discípulos são pescadores, não pessoas ricas conforme os padrões con-
vencionais. Então porque ficaram eles tão surpreendidos pelos comentários que
Jesus fez ao homem rico? Porque tomaram eles a afirmação de uma forma tão
pessoal e começaram a preocupar‑se por nada vir a sobrar para eles? Se, como
eles próprios admitiram, já tinham dado tudo para obter este tesouro no céu, não
é um pouco tarde para começarem a perguntar a si mesmos o que o futuro lhes
reservaria?”.
Eu sugeriria que eles estão preocupados pela forma como interpretaram a
conversa de Jesus com o homem rico. Como muitos de nós, o homem rico quer
uma garantia de que terá vida eterna desde que faça a coisa certa, conformando
‑se com as tradições sociais e evitando o roubo, o adultério e o assassínio. Dado
que o homem não pretende uma vida permanentemente miserável, a “vida eter-
na” significa aqui qualquer coisa como “uma vida duradouramente satisfatória”.
Ele apega‑se aos seus bens materiais como um indicador de que tem feito todas
as coisas certas, ele pensa que teve sucesso junto da sociedade porque é virtuoso.
Todavia e claramente, o homem não é feliz. Esta é a razão por que ele segue Jesus
esperando compreender a sua desdita. Jesus indica que o seu questionador está
morto e devia preocupar‑se menos com a vida eterna e mais com a qualidade
da sua vida neste momento. Jesus diz que o homem rico pode “começar a viver”
(Mateus 19:17) se e apenas se cumprir os mandamentos, incluindo o manda-
mento crucial de amar o seu vizinho como a si próprio. Dado que o homem rico é
obcecado com uma garantia da primazia – ele acredita que merece a vida eterna
mais do que qualquer outro porque tem sido especialmente virtuoso – é difícil
ver como pode ele amar o seu vizinho como a si próprio. A sua vida tem sido
devotada a ultrapassar os outros, batendo‑os na corrida para a aquisição de mar-
cas sociais de virtude e para ser feliz.
Não admira, pois, que os discípulos estejam agitados: desistiram de tudo para
serem preferidos, aos olhos do céu, por causa da sua especial virtude! Eles com-
partilharam a sua sorte com Jesus precisamente porque esperam que ele lhes
garanta toda a espécie de coisas boas. Não é por acidente que, imediatamente
após este encontro, vemos a mãe dos discípulos Jaime e João pedir a Jesus que
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sente os seus filhos à sua direita e à sua esquerda no Reino dos Céus. Ainda aqui,
nós vemos Jesus dizer ao homem rico para não o apelidar de “bom” e para não
olhar para ele como quem concede vida eterna. Nem mesmo Jesus pode tornar
fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha ou que um rico entre no
Reino dos Céus. Apenas depois de nos termos aperfeiçoado, desistindo de acredi-
tar na primazia social, podemos experimentar uma satisfação duradoura. Os dis-
cípulos mentiram a si próprios. Eles não desistiram de tudo, estão tão agarrados
como o homem rico ao sistema social de primazia e à crença de que a conformi-
dade com a Lei Moral garante felicidade. Apenas querem inverter esse sistema,
de forma que humildes pescadores como eles próprios apareçam no topo. Neste
aspecto, estão ainda mais decepcionados que o homem rico. O homem rico pelo
menos reconhece a força da sua prisão, partindo “triste” porque, embora não
esteja disposto a desistir da sua grande riqueza, sente que há mais na vida que a
sua existência passada e presente. Os discípulos, em contraste, partilham do vín-
culo do homem rico mas não o admitem. Estão autoconvencidos de que seguem
um caminho diferente e mais virtuoso rumo à felicidade.
Qual é, então, o caminho para começar a viver e obter satisfação duradoura? É
nesta conjuntura – neste ponto perigoso em que estamos divididos entre a nossa
simpatia pelo que nos dizem ser uma ilusão e uma submissão a outro caminho
que está longe de ser claro – que Jesus conta a parábola dos trabalhadores da
vinha. Quero analisar exactamente como actua a parábola, focando o modo como
ela interpreta as nossas ligações e depois trabalhar à base das mesmas.
Jesus começa por comparar o Reino dos Céus a um proprietário de terras que
sai cedo pela manhã para contratar trabalhadores para a sua vinha. Ele concorda
em pagar‑lhes um denário (cerca de 4 centavos) por dia e manda‑os para a vinha.
Mais tarde, às 9 da manhã, volta e vê homens no mercado sem nada para fazer.
Contrata‑os também prometendo pagar‑lhes um salário justo (dikaios). Ao meio
‑dia e às 3 da tarde faz a mesma coisa. Às 5 vê ainda alguns homens permanece-
rem por ali e pergunta‑lhes, “Porque permaneceram aqui todo o dia sem fazerem
nada?”. Eles respondem “Porque ninguém nos contratou”. Assim, o proprietário
contratou‑os também.
Quando cai a noite, o dono da vinha (kurios) instrui o seu capataz para pagar
os salários, começando pelos últimos contratados. Os contratados às 5 vieram
e receberam um denário, equivalente a um dia de salário. Os contratados de
manhã cedo esperam receber uma quantia maior, mas também eles recebem um
denário. Resmungam contra o dono da vinha, queixando‑se: “Estes homens que
foram os últimos a ser contratados trabalharam apenas uma hora e você igualou
‑os a nós que suportámos toda a carga de trabalho e o calor do dia”.
Quase todos os estudantes identificar‑se‑ão com os resmungões, argumen-
tando que é injusto que aqueles que trabalharam apenas uma hora tenham
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com o seu dinheiro, não pagou aos trabalhadores mais do que um denário por
dia. A “generosidade” do proprietário parece uma coisa bastante mesquinha.
O princípio dominante é então “a cada um de acordo com o seu mérito”?
Dificilmente. O dono da vinha rejeita explicitamente a asserção de que aqueles
que trabalharam um dia inteiro têm direito a maior salário meramente porque
trabalharam mais horas ou mais arduamente. Talvez o princípio operativo de jus-
tiça seja “a cada um de acordo com os seus direitos”? Esta noção também é rejei-
tada. Se os trabalhadores afirmam o seu direito a mais dinheiro, o proprietário
reivindicará o seu direito a dispor da sua propriedade como achar conveniente. A
parábola dá a entender que ambos se envolverão numa batalha de direitos anta-
gónicos e nunca alcançarão um sistema justo.
Com essa percepção, começamos a fazer algum progresso na compreensão
da parábola e a abrir algumas novas possibilidades para nós próprios. A parábola
diz que os que foram contratados primeiro “esperam” (nomizo) ser considera-
dos acima dos outros. “Nomizo” significa esperar de acordo com alguma Lei ou
Princípio (nomos). Sempre que supomos que deveríamos ser mais bem pagos do
que outro, estamos implicitamente a afirmar alguma Lei, Princípio de Mérito ou
Direito. Mas uma Lei ou Princípio não nos pode fazer feliz. A parábola implica que
o verdadeiro problema é que nos tornamos infelizes a nós próprios. Nós éramos
suficientemente felizes, como observa o dono da vinha, até termos começado
a fazer comparações invejosas com os seres humanos nossos irmãos. O modo
legalista de pensamento nunca resolverá o problema da percepção de injustiça,
porque o problema reside na nossa maneira de pensar. Podemos sempre encon-
trar alguém que achemos menos merecedor que nós, podemos sempre insistir
nos nossos direitos à custa de outros. A Lei torna‑se rapidamente, como assinalou
Amitai Etzione, um sistema de direitos proliferantes e conflituosos. Ao invocar
direitos contratuais e de propriedade, o proprietário vira o argumento legalista
dos trabalhadores contra eles próprios. Com esta justaposição – com esta mano-
bra alegórica – o dono da vinha de Jesus descobre o problema: a Lei não pode
resolver nem resolverá satisfatoriamente estas disputas sobre mérito. Nós “come-
çamos a viver” apenas quando compreendemos isso e quando paramos de nos
concentrar naquilo que os outros têm (ou não têm) feito e, em vez disso, olhar-
mos para o nosso próprio modo de agir e pensar.
Entrar no Reino dos Céus – adoptando uma perspectiva divina – é idêntico a
compreender que todos nós somos chamados a fazer o nosso trabalho espiritual
individual. O dono da vinha não deixa que ninguém fique inactivo. A palavra para
“trabalho” usada nesta parábola é a palavra grega erga. O nosso trabalho, ou
erga, consiste em fazer aquilo que tem sido mandado – nomeadamente, aman-
do os outros como a nós mesmos. De facto, a palavra grega para “trabalho por
aluguer” – energadzomai – é uma variante da palavra grega para mandamentos
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escravos dos seus desejos não investigados. Tendo ajudado os nossos estudan-
tes a conhecerem‑se a si próprios e a descobrirem a sua coragem, tê‑los‑íamos
capacitado a pensar segundo o processo de denúncia de uma actividade desleal.
Eu começo por pôr os meus estudantes a ler um capítulo de Ética de Negócio,
de Richard DeGeorge, que simpaticamente explica alguns procedimentos que os
empregados devem seguir a fim de que as suas denúncias de actividades desleais
sejam moralmente justificadas99. Os meus estudantes concordam geralmente
com esta abordagem e inicialmente não viram nela quaisquer problemas. Sim,
argumentam eles, um empregado devia reunir evidência das formas seriamente
erradas de actuação das empresas que seriam convincentes para um “observador
razoavelmente imparcial” e depois apresentar essa evidência internamente, antes
de falar para a imprensa ou para regulamentadores externos. Todavia, nem tudo
é tão claro como DeGeorge nos quer fazer acreditar. Depende muito daquela
pequena frase “observador razoavelmente imparcial”. O problema é que cada
um de nós acredita que está a agir razoável e prudentemente. Assim, como sabe-
mos nós quando a nossa denúncia de uma actividade desleal é verdadeiramente
ética? Esta questão leva‑me até à minha terceira técnica de artes liberais, a que
chamo “pregar um choque severo ao sistema estudantil”.
Depois de a classe ter lido o capítulo da obra de DeGeorge, peço aos estudan-
tes para estudar e avaliar o texto de Henrik Ibsen, Um Inimigo do Povo100. Ibsen
é o primeiro dramaturgo a retratar um denunciante de uma actividade desleal. O
Dr. Tomas Stockman, médico residente numa pequena cidade com águas medici-
nais, reivindica ter descoberto que a água está a ser contaminada por uma bacté-
ria vinda de uma fábrica de curtumes a montante do rio. Quando o Dr. Stockman
informa a imprensa local acerca do problema, a maioria da população da cidade
revoltou‑se e juntou‑se à volta do médico. Contudo, quando o Presidente da
Câmara, Peter, irmão do médico, pôs em causa os custos elevados para resolver
o problema e a probabilidade de a atracção turística da cidade – as águas medici-
nais – perder a sua clientela, a cidade virou‑se contra o Dr. Tomas e a sua família.
Pode‑se certamente usar esta peça para ilustrar o perigo de denunciar uma
prática errada ou para explorar os problemas causados pela ida do Dr. Tomas à
imprensa antes de informar a sua descoberta ao Conselho de Direcção da estân-
cia termal. Eu uso o capítulo de DeGeorge para iniciar a discussão da peça por
estas vias óbvias e bem batidas. Mas então pergunto: como sabemos que real-
mente as águas estão contaminadas? Os estudantes falam excitadamente por
algum tempo e depois apontam a evidência: as pessoas que visitam a estância
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que contava como evidência a favor ou contra cada alegação. Ele estava absoluta-
mente disposto a confrontar os gestores, mas, depois de ter estudado Ibsen, estava
igualmente ciente que a evidência pode e deve ser vista de diferentes formas,
que ela será inevitavelmente politizada, e que há tentações perigosas que acom-
panham o desejo de ser um herói moral. Esta lição é exactamente tão importante
quanto a determinação moral de notificar a gestão acerca do problema antes de
ir para a imprensa, de recolher evidência, etc. Ibsen, astutamente, preferiu orien-
tar a peça para a suposta presença da invisível bactéria. Muitas vezes, o problema
está em discernir se realmente há um problema. Talvez o verdadeiro “inimigo do
povo” seja a certeza da nossa própria rectidão.
CONCLUSÃO
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