Ciência Como Solidariedade PDF

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Universidade Federal da Bahia

Universidade Estadual de Feira de Santana


Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências

Kleyson Rosário Assis

Conhecimento e solidariedade:
uma perspectiva neopragmática sobre o ensino de ciências

Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e
História das Ciências (UFBA-UEFS)
para obtenção do título de doutor.
PROPONENTE: Kleyson Rosário Assis
ORIENTADOR: Prof. Dr. Waldomiro J.
Silva Filho

Salvador
2013

1
BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Waldomiro J. Souza Filho (Orientador - UFBA)

Prof. Dr. Alexandre Meyer Luz (UFSC)

Prof. Dr. André Luis Mattedi Dias (UFBa)

Prof. Dr. Charbel Niño El-Hani (UFBa)

Profª Dra. Vera Maria Ferrão Candau (PUC-Rio)

2
DEDICATÓRIA

Aos Ancestrais.

3
AGRADECIMENTOS

A orientação que recebi do professor Waldomiro J. Silva Filho exigiu


dele, além de dedicação, muita paciência e confiança. Não posso deixar de
manifestar minha imensa gratidão por esse percurso que ele me ajudou a
percorrer. Também não posso deixar de agradecer aos colegas do Grupo de
Pesquisa Investigações Filosóficas, coordenado pelo professor Waldomiro. O
debate franco e aberto é a marca do supracitado grupo e não tenho dúvidas do
quanto isso foi importante para o resultado a que cheguei neste trabalho. Os
professores Charbel El-Hani, Alexandre Luz e André Mattedi fizeram parte da
minha banca de qualificação e fizeram críticas e comentários preciosos. Temo
não ter respondido todas as questões, mas muitas delas continuam vivas em
mim e podem gerar novas investigações.
O poeta e professor Jean-Paul D’Antony, amigo de longas datas,
debruçou-se sobre a tese e sugeriu caminhos preciosos de linguagem. Sou
muito grato pela sua amizade e irmandade.
Meus pais, Antônio Rosa de Assis e Elza Rosário Assis, ofereceram-me
apoio incondicional. Agradeço-lhes imensamente.
Devo manifestar também meu contentamento em contribuir com este
trabalho no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das
Ciências (UFBa-UEFS). Muitas questões que, para mim, passavam ao largo
por serem consideradas óbvias quando ingressei no Programa, vieram a
ocupar o grau de centralidade que merecem, fazendo jus à fórmula filosófica do
espanto.
Por fim, agradeço à Cássia Maylla de Almeida Pita, que, além de me
presentear com sua companhia, concede-me a honra de ser pai de gêmeos.

4
EPÍGRAFE

“Pão ou pães é questão de opiniães.”

João Guimarães Rosa

5
RESUMO

Conhecimento e Solidariedade:
Uma perspectiva neopragmática sobre o ensino de ciências

Há um problema que tem desafiado filósofos, cientistas, professores e


instituições acadêmicas acerca da natureza da ciência e seu lugar nas
sociedades contemporâneas: por um lado, uma visão universalista
epistemológica do conhecimento científico parte do princípio de que a ciência é
una, tem um local e uma data de nascimento mais ou menos mapeado,
aproximadamente no século XVI na Europa, e fundamentada na moderna
racionalidade europeia; por outro lado, uma perspectiva multiculturalista (no
extremo relativista) aponta para a diversidade epistemológica elaborada a partir
de distintas culturas humanas, que possuiriam diferentes caminhos para o
conhecimento, métodos distintos de apreensão da realidade, que seriam tão
legítimas e dignas quanto a ciência hegemônica. As duas perspectivas não são
muito simpáticas entre si. O embate entre universalistas e multiculturalistas
implica uma reflexão acerca da noção mesmo de “ciência”, assim como de
noções correlatas, como de “realidade” e “verdade”, que não se reserva
somente ao campo teórico, mas tem consequências importantes para as
práticas e instituições. Para o presente trabalho, interessa precisamente as
implicações desse debate no que diz respeito ao ensino de ciências nas
universidades, sobretudo, a questão da natureza da ciência no ambiente de
uma sociedade democrática e inclusiva. A partir daí apresento o que seria uma
terceira via do debate: a interpretação do conhecimento científico partindo do
neopragmatismo do filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007), para o
qual a ciência pode ser compreendida como uma atividade antes solidária que
objetiva. Por fim, defendo a tese de que as políticas de ações afirmativas
etnicorraciais são melhores descritas em termos de solidariedade do que de
inclusão, e que essa descrição converge com a prática científica como
caracterizada aqui.

Palavras-chave: ensino de ciências; neopragmatismo; solidariedade;


conhecimento; Richard Rorty.

6
ABSTRACT

Knowledge and Solidarity:

A neopragmatic perspective on science teaching

There is a problem that has stumped philosophers, scientists, teachers and


academic institutions about the nature of science and its place in contemporary
societies: first, an epistemological universalistic view of scientific knowledge
assumes that science is one, has a local and a date of birth more or less
mapped approximately in the sixteenth century in Europe, and based on the
modern European rationality; on the other hand, a multiculturalist perspective
(in relativistic extreme) points to the epistemological diversity drawn from
different human cultures that possess different paths to knowledge, distinct
apprehension methods of reality, that would be as legitimate and worthy as the
hegemonic science.There is a problem that has stumped philosophers,
scientists, academic teachers and institutions about the nature of science and
its place in contemporary societies: on the one hand, an epistemological
universalistic view of scientific knowledge assumes that science is one, has a
place and a date of birth more or less mapped approximately in the sixteenth
century in Europe, and based on the modern European rationality; on the other
hand, a multiculturalist perspective (in relativistic extreme) points to the
epistemological diversity drawn from different human cultures that possess
different paths to knowledge, distinct apprehension methods of reality, that
would be as legitimate and worthy as the hegemonic science. The two
perspectives are not very friendly to each other. The clash between
universalists and multiculturalists implies a reflection on the notion even of
"science", as well as related notions as "reality" and "truth," which is not
reserved only to the theoretical field, but has important consequences for
practices and institutions. From then present what would be a third way of
debate: the interpretation of scientific knowledge starting from neopragmatism
the American philosopher Richard Rorty (1931-2007), for which science can be
understood as an activity before solidarity that objective. Finally, I argue that the
policy etnicorraciais affirmative actions are best described in terms of solidarity
than inclusion, and that this description converges with scientific practice as
featured here.

Keywords: science teaching; neopragmatism; solidarity; knowledge; Richard


Rorty

7
SUMÁRIO

0. INTRODUÇÃO ...................................................................................... ...10

1. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS E O


DEBATE UNIVERSALISMO VERSUS
MULTICULTURALISMO...................................................................................16

1.1. NATUREZA DA CIÊNCIA E ENSINO DE


CIÊNCIAS..........................................................................................................16

1.2. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE


CIÊNCIAS..........................................................................................................23
1.2.1 Contribuições da história e da filosofia da ciência para o ensino de
ciências..............................................................................................................24
1.2.2 Cidadania, inclusão e ensino de ciências...............................................28

1.2.3 Objeções acerca das contribuições que a história e a filosofia da ciência


possam oferecer ao ensino de ciências.............................................................31
1.3. A QUERELA UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO E O ENSINO DE
CIÊNCIAS..........................................................................................................38

2. A DISPUTA REALISMO VERSUS ANTIRREALISMO E O


NEOPRAGMATISMO........................................................................................50

2.1. O DEBATE REALISMO VERSUS ANTIRREALISMO................................50


2.1.1 Realismo Científico...................................................................................53
2.1.2 O argumento do milagre e a “inferência da melhor explicação”...............58
2.1.3 A controvérsia do realismo em termos semânticos..................................62

2.2. O CONTEXTO (NEO)PRAGMÁTICO DE RICHARD RORTY E A


SUPERAÇÃO DO DEBATE REALISMO VERSUS ANTIRREALISMO............63
2.2.1 Pragmatismo clássico e crítica à metafísica............................................64
2.2.2 Neopragmatismo......................................................................................68

8
2.2.3 O antirrepresentacionalismo de Rorty e a crítica à disputa realismo versus
antirrealismo.....................................................................................................70
2.2.4 Des-substancialização do mundo............................................................74
2.2.5 O refúgio essencialista: as ciências naturais...........................................78

3. ETNOCENTRISMO, SOLIDARIEDADE E POLÍTICA LIBERAL-


DEMOCRÁTICA..............................................................................................82
3.1. ETNOCENTRISMO CONFESSO E SOLIDARIEDADE – A EXPANSÃO DO
“NÓS”...............................................................................................................82
3.2. REDESCREVENDO AS CIÊNCIAS..........................................................92
3.3. O ETNOCETRISMO NO RASTRO DO RELATIVISMO............................98
3.3.1 Poesia e esperança................................................................................101

4. UMA PERSPECTIVA NEOPRAGMÁTICA SOBRE ENSINO DE CIÊNCIAS


E POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS NAS UNIVERSIDADES.............105
4.1 O “LUGAR” DA VERDADE NA EDUCAÇÃO............................................107
4.1.1 Verdade, liberdade e educação: a tensão entre socialização e
individuação....................................................................................................112
4.2 RACIONALIDADE E TOLERÂNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS............118
4.3 POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS ÉTNICO-RACIAIS,
SOLIDARIEDADE E ENSINO DE CIÊNCIAS................................................123
4.3.1 Neopragmatismo e diversidade cultural................................................129
4.3.2 Diversidade cultural e racionalidade.....................................................130
4.3.3 Razões da tolerância............................................................................131
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................135
REFERÊNCIAS.............................................................................................143

9
INTRODUÇÃO

Há um problema que tem desafiado filósofos, cientistas, professores e


instituições acadêmicas acerca da natureza da ciência e seu lugar nas
sociedades contemporâneas: por um lado, uma visão universalista
epistemológica do conhecimento científico parte do princípio de que a ciência é
una, tem um local e uma data de nascimento mais ou menos mapeado,
aproximadamente no século XVI na Europa, e fundamentada na moderna
racionalidade européia; por outro lado, uma perspectiva multiculturalista (no
extremo relativista) aponta para a diversidade epistemológica elaborada a partir
de distintas culturas humanas, possui diferentes caminhos para o
conhecimento, métodos distintos de apreensão da realidade e é tão legítima e
digna quanto a ciência hegemônica. As duas perspectivas não são muito
simpáticas entre si. O embate entre universalistas e multiculturalistas implica
numa reflexão acerca da noção mesmo de “ciência”, assim como de noções
correlatas, como de “realidade” e “verdade”, que não se reserva somente ao
campo teórico, mas, tem consequências importantes para as práticas e
instituições.

Para o presente trabalho, interessa precisamente as implicações desse


debate no que diz respeito ao ensino de ciências nas universidades, sobretudo,
a questão da natureza da ciência no ambiente de uma sociedade democrática
e inclusiva.

O problema da diversidade epistemológica aparece com clareza nas


sociedades democráticas, e, nestas, nos grandes centros universitários,
quando determinados grupos, denominados minorias (o que não significa
necessariamente uma minoria no sentido quantitativo, e sim de acesso a
determinadas esferas de poder ou de direitos), reivindicam legitimidade e
dignidade equitativas das suas formas próprias de vida e de produção de
conhecimentos. Considerando a igualdade de direitos numa esfera
democrática, espera-se que uma cultura majoritária não imponha
arbitrariamente seus próprios valores às demais culturas. Portanto, faz-se
necessário refletir como um modelo de sociedade com princípios universalistas,
como são as sociedades democráticas ocidentais, pode relacionar-se, no seu
10
próprio seio, com a pluralidade de vozes multiculturais sem recorrer a
pressupostos metafísicos ou autoritários. Atente-se, pois, que o problema é
tanto epistemológico quanto político. Quais critérios podem-se estabelecer
entre membros de diferentes comunidades, sejam elas lingüísticas, científicas
ou culturais, acerca da verdade e da realidade?

No ensino de ciências, que é o mote deste trabalho, a divergência entre


as perspectivas universalistas e multiculturalistas tem gerado intensos debates
e pesquisas entre especialistas da área. Questiona-se: É possível conciliar uma
visão clássica de ciência que preserve os valores do conhecimento rigoroso e
sistemático e o sentido de igual dignidade das diferentes perspectivas culturais
no ensino de ciências? Como estabelecer critérios a fim de se decidir quais
conteúdos devem ser validados e ensinados em universidades democráticas e
multiculturais sem ferir os direitos das minorias de expressarem seus modos
próprios de concepção de conhecimento? Supondo a existência de uma
pluralidade de epistemologias, seriam todas elas igualmente válidas e,
portanto, dignas de comporem um currículo em ensino de ciências? Será a
perspectiva universalista a via para se elevar acima das idiossincrasias locais
do multiculturalismo? Refletir sobre essas questões se torna ainda mais
urgente quando os contrastes entre as distintas perspectivas se aguçam,
dificultando o entendimento mútuo e provocando o fenômeno da intolerância,
ao invés da aceitação do pluralismo humano.

A contenda entre universalistas e multiculturalistas é subjacente às


questões práticas sobre a natureza do fazer científico e seu ensino. O presente
trabalho pretende justamente abordar esse problema de um ponto de vista
estritamente teórico, tendo em conta as consequências que a adoção de uma
ou outra perspectiva possa ter no ensino de ciências nas universidades. Não
se trata, pois, de um trabalho de caráter empírico no qual serão analisados e
comparados, detalhadamente, dados de outras pesquisas específicas sobre a
concepção de ciências a partir de estudantes ou professores (de determinadas
universidades) e se os resultados dessas pesquisas correspondem ou não à
prática científica. Aqui, a pesquisa situa-se dentro do campo mais amplo da
educação científica, na qual são considerados seus aspectos epistemológicos,
sua natureza, impacto social e limites ético-políticos. É nesse sentido lato que

11
tratarei o ensino de ciências1. Portanto, não se trata de uma abordagem da
ciência por ela mesma, mas da sua interface com a filosofia e a sociedade.
Considera-se, pois, questões de caráter epistemológico e suas implicações em
tomadas de decisões e resoluções de problemas ético-políticos. Meu
argumento é que os pressupostos filosóficos têm consequências diretas sobre
a inteligibilidade da ciência de seu ensino, precisamente considerando o debate
que me parece crucial: universalismo versus multiculturalismo.

Tendo em conta o descompasso entre as perspectivas universalistas e


multiculturalistas no ensino de ciências, sobretudo, a escassez dessa
discussão do ponto de vista étnico-racial no Brasil (SILVA, 2009)2, tentarei
apresentar o que seria uma “terceira via”: a tese de que apenas a ideia de
inclusão social nas universidades é insatisfatória, pois isto acarretaria num
sistema educacional igualitário-universalista – todos estariam sujeitos a normas
e valores que, de antemão, não foram estabelecidas por aquele que está sendo
incluído. A mera inclusão traz consigo a exigência do esquecimento das
diferenças. Proponho, além de inclusão, solidariedade. Para tal, farei uma
interpretação do conhecimento científico partindo do neopragmatismo do
filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007) e, então, extrairei daí
algumas consequências relevantes para o ensino de ciências em países
democráticos cujas relações étnico-raciais são relevantes para a constituição
de políticas educacionais, como é o caso do Brasil.

Com razão, Rorty muitas vezes é lembrado como o filósofo que exerceu
uma crítica contundente à epistemologia moderna e alguns de seus
desdobramentos na contemporaneidade, como a filosofia analítica. Nessa
crítica, Rorty argumenta que nem nossa mente nem nossa linguagem podem
representar o mundo como ele é em si mesmo. Segue daí que, na sua
concepção de conhecimento, o problema da justificação é, antes de tudo, um

1
Apesar da preocupação aqui se restringir ao ensino de ciências nas universidades,
eventualmente argumentos utilizados sobre o ensino de ciências para as séries iniciais podem
ser considerados por apresentarem potencialidade teórica de extensão para o ensino superior.
2
A exceção talvez seja o ensino de biologia, por conta da discussão sobre raça ter ganhado
uma extensão pública superior a de outros temas científicos, sobretudo, por ser esse conceito
extremamente relevante na configuração da geopolítica global. Nas ciências humanas, embora
a aplicação da Lei nº 10.329/03 ainda não seja uma realidade, por se tratar da introdução da
História e da Cultura Afro-Brasileira as iniciativas que ocorrem gozam de um maior grau de
aceitação por conta da história e da composição étnico-racial do Brasil.

12
problema da relação entre nossos enunciados sobre o mundo, e não um
confronto entre nossos enunciados e o mundo. A objetividade deve ser
pensada como fruto desse confronto entre enunciados, intersubjetivamente, de
maneira livre e aberta, capaz de nos conduzir a uma “concordância não-
forçada”. Nesse sentido, na redescrição da ciência proposta por ele, a sugestão
é de que ela seja compreendida como solidariedade. Esta é a terminologia que
Rorty adota para dizer que, já que nem nossa mente nem nossa linguagem
podem representar o mundo tal como ele é em si mesmo, a justificação de
nossas crenças, inclusive as científicas, não é nem objetiva nem subjetiva, e
sim social.

Concomitantemente a isso, Rorty propõe que a racionalidade seja


compreendida como razoabilidade, mais como portadora de virtudes
intelectuais, a exemplo da tolerância, abertura para o diálogo, a capacidade de
não responder agressivamente às diferenças, do que como virtudes
epistemológicas – como método, critério, objetividade. Para Rorty, as
instituições científicas dão “concretude e detalhamento para a ideia de
‘concordância não-forçada’. A referência a tais instituições substancializa a
ideia de ‘encontro livre e aberto’” (RORTY, 2002, p.61). A ciência, nesse
aspecto específico, se apresenta como um exemplo de solidariedade humana.
Por sua vez, é também a descrição da razão como tolerância uma herança da
tradição iluminista que remete aos discursos de filósofos como Voltaire,
Rousseau, Diderot, dentre outros, é sugerida na agenda filosófica de Rorty
como condição para a manutenção de sociedades democráticas e diversas
culturalmente (RORTY, 2005).

Pessoas de diferentes culturas, linguagens, lugares, crenças, já


interagem entre si cotidianamente em sociedades democráticas e pluralistas
sem que suas diferenças sejam esquecidas. Desde que a ciência seja
entendida como solidariedade, favorece-se a abertura para o diálogo sem que
necessariamente uma das partes tenha que renunciar à sua perspectiva
identitária. Com efeito, estudantes de ciências podem, através da
aprendizagem de ideias científicas, ampliar e enriquecer suas próprias
perspectivas. Isso não quer dizer que, necessariamente, eles irão aceitar
perspectivas distintas das suas. Haverá sempre o risco de desestabilização e

13
disputa. Pessoas que não se identificam umas com as outras interagem sem
necessariamente se trucidarem. Precisariam, para não caírem no ostracismo,
interagirem compartilhando os mesmos espaços de produção de
conhecimento. Penso que a universidade é um ambiente privilegiado para essa
interação. Para tal, é preciso ter em conta não somente o conteúdo e a
produção científica, mas também considerar finalidades mais amplas para o
ensino de ciências, que envolvam a construção de um mundo melhor.

A fim de alcançar o objetivo proposto, o trabalho foi dividido em quatro


partes. No primeiro capítulo, apresento um breve panorama de três problemas
relacionados ao ensino de ciências: a questão da natureza da ciência, a
disputa acerca da inserção da história e da filosofia da ciência no ensino e o
debate universalismo versus multiculturalismo nesse contexto. De uma maneira
geral, o que tento demonstrar é que, dos três problemas apontados, o da
disputa universalismo/multiculturalismo é o mais forte e define os demais.

No segundo capítulo, a pretensão é apresentar em linhas gerais que o


problema da disputa universalismo/multiculturalismo pode ser discutido
também no âmbito epistemológico. A partir de então, me apropriarei da
terminologia proposta por Dummett (1996) para esse debate orientado
epistemologicamente: o realismo e posturas de rechaço a ele, denominadas
genericamente de antirrealismo. Posteriormente, ainda nesse capítulo,
abordarei a tentativa neopragmática de Richard Rorty de superação do debate
nesses termos, abandonando definitivamente a ideia de que o mundo constitui
um elemento essencial para nossas asserções acerca da verdade (RORTY,
2000).

No terceiro capítulo, discuto o deslocamento que Rorty faz da


epistemologia para a política, avaliando quais são as vantagens de sua
proposta de redescrever a ciência enquanto uma atividade antes solidária que
objetiva. Neste momento, também será examinada a sua pretensão de
substituir a “validade universal pela esperança social utópica” (RORTY, 2005,
p.88). Ao defender que a única justificação que podemos encontrar para
nossas crenças é social, que ela emerge entre os membros que compõem a
“nossa” comunidade, Rorty advoga que todo conhecimento é etnocêntrico –
“que todo raciocinar, tanto em física como em ética, está vinculado a uma

14
tradição” (RORTY, 2005, p.149). E assim ele sai em defesa da tradição de sua
própria comunidade: a tradição da democracia-liberal dos Estados Unidos da
América.

O quarto e último capítulo, como o título sugere, busca apresentar uma


perspectiva neopragmática sobre ensino de ciências, relações étnico-raciais e
políticas de ações afirmativas nas universidades. Precisamente nele será
exposta minha interpretação da redescrição de Rorty das ciências como um
argumento a favor das políticas de ações afirmativas étnico-raciais no Brasil,
dando ênfase ao ensino de ciências.

Dentre as iniciativas educacionais voltadas para a eliminação da


iniquidade à qual a população afro-brasileira é submetida, as políticas de ações
afirmativas étnico-raciais no ensino de ciências nas universidades tem se
apresentado como um campo infértil por conta da suposta neutralidade política
das ciências. Ou se considera essas ações como problemáticas por
supostamente colocar critérios políticos acima de critérios epistemológicos e,
consequentemente, comprometer a natureza da ciência e seu ensino. A
perspectiva neopragmática do ensino de ciências que proponho aqui sugere a
possibilidade de subversão dessa lógica. Ela pode ser uma alternativa plausível
às perspectivas universalistas e multiculturalistas.

15
1. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS E O
DEBATE UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO

1.1. NATUREZA DA CIÊNCIA E ENSINO DE CIÊNCIAS

A ciência que temos hoje e que dispõe de uma data e local de


nascimento mais ou menos mapeado (qual seja, a ciência possui uma história
e é possível encontrar nela certo aperfeiçoamento), fundamentada na moderna
racionalidade européia, dotada de teorias e metodologias rigorosas, não goza
de uma concepção derradeira da comunidade dos filósofos quanto à sua
natureza. Decerto, este é um problema que se apresenta também para
cientistas e professores de ciências, mas com níveis distintos de interesse.
Afinal, os objetivos dos cientistas, assim como os dos professores de ciências,
não necessariamente convergem com os objetivos dos filósofos. Filósofos
geralmente entendem que as respostas que os cientistas oferecem quando são
questionados sobre a natureza da atividade científica são quase sempre
insuficientes. Cientistas, por sua vez, em geral demonstram pouco interesse na
questão (VIDEIRA, 2006). Professores de ciências têm as mais variadas
concepções acerca da natureza da ciência (CHINELLI et al., 2010). Muitas
vezes suas concepções são consideradas ingênuas (GIL-PÉREZ et al., 2001;
PRAIA et al., EL-HANI, 2006). Especialmente no Brasil, somente recentemente
os professores começaram a contar com uma bibliografia especializada sobre o
assunto, ainda que parca (MARTINS, 2006). É preciso mesmo saber se
devemos nos referir à ciência no singular, ou às ciências, no plural, já que a
primeira opção nos remete a certa unidade científica, enquanto a segunda para
a diversidade de epistemologias que, em alguma medida, apontaria certas
singularidades entre elas, apesar de preservar muitas semelhanças, suficientes
inclusive para que possam ser chamadas também de ciência.

Entendemos por ciências disciplinas bastante distintas, a ponto de


estabelecermos basicamente três ramos delas: as ciências naturais, as
ciências humanas e as ciências formais. A preocupação neste trabalho é com a
natureza das primeiras. Objetivamente, a questão que se impõe é: existe uma

16
unidade real da ciência com uma estrutura metodológica das quais todas
compartilham, apesar de suas especificidades, e que nos permitiria alcançar o
conhecimento de maneira segura? Tal preocupação já havia levado filósofos do
início do século passado, no grupo conhecido como Círculo de Viena, a
elaborarem a Enciclopédia Internacional da Unidade da Ciência. Alguns
membros desse grupo buscaram encontrar “uma uniforme estruturação lógico-
matemática do conhecimento científico e a possibilidade de exprimir numa
linguagem única seus conteúdos empíricos em qualquer área” (GRANGER,
1994, p.41). Esta seria uma postura rígida quanto ao entendimento da forma
ideal de como um conhecimento de natureza científica deveria se comportar,
baseada, sobretudo, na crença da existência de um método científico. O
método científico, uma vez sistematizado, seria capaz de explicar todas as
qualidades da ciência. Aliás, a crença na existência desse método inspirou
consideravelmente outras disciplinas que, na esperança de serem
consideradas científicas, deveriam, também, fazer uso rigoroso do método
(VIDEIRA, 2006). A física fora muitas vezes vista como um modelo a ser
seguido de universalidade do método científico isento de interesses e valores
particulares, capaz de orientar as demais disciplinas rumo ao conhecimento
seguro.

Naturalmente, tal pretensão de unidade não foi compartilhada por todos.


Apesar do entusiasmo que ela provocou no início do século XX,
posteriormente, a pretensão de encontrar um método científico universal foi
submetida cada vez mais a duras críticas por parte dos filósofos da ciência,
tornando-se difícil sustentar sem muitas ressalvas as aspirações do Círculo de
Viena. Talvez, um dos exemplos mais eloqüentes de como a compreensão
acerca da natureza da ciência pode variar, fazendo um contraponto à noção
citada acima, seja a de Paul Feyerabend (1989). No Contra o Método,
publicado pela primeira vez em 1975, ele defende a pluralidade de métodos e a
contingência de teorias científicas para explicar um mesmo fenômeno como
indícios da fragilidade de uma unidade científica que, por sua vez, se
sobreponha a outras formas de conhecimento da realidade, como os mitos, as
religiões e as ideologias. Com a sua proposta de um anarquismo metodológico,

17
Feyerabend mina a pretensão de se encontrar regras para a ciência que tenha
validade universal. Expressou-o na famosa fórmula: “Tudo vale”:

A ideia de que a ciência pode e deve ser elaborada com


obediência a regras fixas e universais é, a um tempo,
quimérica e perniciosa. É quimérica pois implica visão
demasiado simplista das capacidades do homem e das
circunstâncias que lhe estimulam. É perniciosa porque a
tentativa de emprestar vigência as regras conduz a
acentuar nossas qualificações profissionais em
detrimento de nossa humanidade [...] Todas as
metodologias têm limitações e só a ‘regra’ do ‘tudo vale’ é
capaz de manter-se. (FEYERABEND, 1989, pp.449-450)
– grifo do autor.

Evidentemente, a prática do ensino de ciências não pode ficar isenta das


controvérsias acerca da natureza da ciência que os filósofos protagonizaram e
protagonizam (GIL-PÉREZ et al. 2001). Um estudo significativo elaborado
sobre a questão, no âmbito do ensino de ciências, foi realizado por Alters
(1997). O estudo em questão se propôs a investigar se há concordância entre
as concepções sobre a natureza das ciências utilizadas na literatura de ensino
de ciências e os filósofos da ciência. Um grave problema constatado por ele na
literatura de ensino de ciências é que, em parte, as metodologias utilizadas
para análises sobre a concepção de professores e estudantes acerca da
natureza da ciência não mostram de forma clara quais foram os pressupostos
filosóficos utilizados para a elaboração dessas metodologias. Elas se reportam
diretamente aos resultados sem explicitar os meios: “estes estudos nunca
explicitam os critérios ou os pressupostos filosóficos em que baseiam os
critérios, mas simplesmente relatam os resultados dos estudos” (ALTERS,
1997, p. 40). Sendo assim, faz-se necessário investigar que concepções de
ciências estão subjacentes a uma perspectiva adequada ou inadequada no
ensino de ciências, uma vez que existem muitas filosofias conflitantes, sendo,
às vezes, incompatíveis.

No intuito de comparar as perspectivas da literatura do ensino de


ciências sobre a natureza da ciência com a noção que os filósofos da ciência
têm dela, Alters (1997, p. 44) elaborou um questionário com 15 critérios
retirados da literatura de ensino de ciências sobre a natureza da ciência e
aplicou a 176 filósofos da ciência para avaliar o grau de correspondência entre

18
eles. Uma das conclusões a que o autor chega é de que, apesar de a literatura
e as organizações de educação científica aceitarem a ideia de que uma das
principais metas da educação científica seja uma apresentação clara da noção
do que é a natureza da ciência, essa meta até o momento não foi alcançada
(ALTERS, 1997, p. 48). O estudo que se baseia em uma pesquisa empírica
revela algo já bem conhecido entre os filósofos da ciência: a falta de
concordância acerca da natureza da ciência3. Se os especialistas não têm uma
posição harmônica sobre a questão, quais parâmetros podem ser utilizados
para a compreensão de estudantes e professores acerca da natureza da
ciência? Talvez devêssemos admitir, com Alters, que o único acordo viável no
momento, entre membros de comunidades de pesquisadores em educação
científica, é o de reconhecer que não existe um consenso sobre a natureza da
ciência.

O que Alters (1997) aponta como um grave problema na literatura do


ensino de ciências pode ser constatado no artigo de Harres (1999) intitulado:
“Uma revisão de pesquisas nas concepções de professores sobre a natureza
da ciência e suas implicações para o ensino”. Revisando as pesquisas sobre as
concepções de professores sobre a natureza da ciência, Harres constata que
todas as “investigações são consensuais no fato de que estudantes
apresentam CNC [Concepções sobre a Natureza da Ciência] geralmente
inadequadas” (HARRES, 1999, p.197). Dentre outros aspectos, as CNC
inadequadas seriam:

a consideração do conhecimento científico como


absoluto; - a ideia que o principal objetivo dos cientistas é
descobrir leis naturais e verdades; - lacunas para
entender o papel da criatividade na produção do
conhecimento; - lacunas para entender o papel das
teorias e sua relação com a pesquisa; - incompreensão
da relação entre experiências, modelos e teorias.
(HARRES, 1999, p.198)

Isso vai levar a suspeita de que talvez o problema esteja na concepção que os
professores têm de ciências, ou mesmo que eles apenas reflitam problemas

3
Essa é uma conclusão a qual Videira também chega ao refletir sobre a natureza do método científico: “A
‘moral’ da história a respeito da posição de cientistas e filósofos parece ser a seguinte: ainda que a
maioria dos cientistas e parte nada desprezível dos filósofos acreditem em algo que chamam de ‘método
científico’, eles não conseguem se entender a respeito do que este último seria” (Videira, 2006, p.34).

19
implícitos nos conteúdos curriculares, o que vai gerar novas investigações.
Estas por sua vez terão que abordar temas correlacionados, como a ligação
entre as crenças dos professores e aquilo que ele ensina em sala; crenças dos
estudantes em contradição com conteúdos disciplinares de ciências; mudanças
conceituais; diversidade cultural e ensino de ciências etc. Harres chega aos
seguintes resultados na sua investigação:

professores de ciências (independente do nível de


atuação e do tipo de instrumento utilizado para investigá-
los) possuem, em geral, CNC inadequadas, próxima a
uma visão empírico-indutivista; - minoritariamente,
especialmente quando a pesquisa propicia, pode-se
encontrar concepções próximas a uma visão mais
contextualizada e menos absolutista da ciência, embora
distinta para diferentes aspectos; - estratégias para
mudanças de CNC inadequadas podem ter sucesso se
dedicarem atenção especial à história da ciência ou à sua
natureza; - tendências homogenizadoras de formação
pode explicar que variáveis acadêmicas e de experiência
não se relacionam com o nível da CNC dos professores.
(HARRES, 1999, p.201)

No entanto, em nenhum momento Harres vai tornar explícita a


dificuldade que existe em se determinar a natureza da ciência. Ao optar por
uma concepção de ciência mais contextualizada, ele deixa de lado aspectos
relevantes de um debate que acompanha a noção de ciência na sua história.
Harres se mostra adepto da inserção da história e da filosofia da ciência no
ensino de ciências, enquanto algo que pode favorecer a compreensão do
estudante acerca da natureza da ciência, mas prefere não inserir suas próprias
crenças dentro desse contexto, ou submetê-la a um exame rigoroso dentro do
debate acerca da natureza da ciência.

Por outro lado, apesar do reconhecimento de que questões sobre a


natureza da ciência não foram esgotadas, vários especialistas argumentam
que, “para fins de educação científica, existe um nível aceitável de consenso
sobre a natureza ampla de questões de ciência” (CLOUGH & OLSON, 2008,
p.143). El-Hani (2006, p. 6), por exemplo, aponta como “a ênfase sobre as
controvérsias epistemológicas pode ocultar o fato de que há também um grau
relativamente alto de concordância sobre alguns aspectos de uma visão
adequada sobre a natureza da ciência”. A estratégia dele, baseando-se nas

20
investigações de McComas et al. (1998) e Gil-Pérez et al. (2001) sobre esse
problema no âmbito do ensino de ciências, é mudar o foco da investigação
para os aspectos mais aceitos acerca da natureza da ciência e que podem ser
úteis para o seu ensino. Elaborando um quadro comparativo entre os dois
estudos, ele aponta justamente o que há de comum em ambos. Reproduzo, a
seguir, as características da natureza da ciência creditadas a McComas e
colaboradores por El-Hani:

(i) O conhecimento científico, embora robusto, tem uma


natureza conjectural. (ii) O conhecimento científico
depende fortemente, mas não inteiramente, da
observação, da evidência experimental, de argumentos
racionais e do ceticismo. (iii) Não há uma maneira única
de fazer ciência, i.e., não há um método científico
universal, a ser seguido rigidamente. (iv) A ciência é uma
tentativa de explicar fenômenos naturais. (v) Leis e
teorias cumprem papéis distintos na ciência, e teorias não
se tornam leis, mesmo quando evidências adicionais se
tornam disponíveis. (vi) Pessoas de todas as culturas
contribuem para a ciência. (vii) Novos conhecimentos
devem ser relatados aberta e claramente. (viii) A
construção do conhecimento científico requer registros de
dados acurados, crítica constante das evidências, das
teorias, dos argumentos etc. pelas comunidades de
pesquisadores, e replicação dos estudos realizados. (ix)
Observações são dependentes de teorias, de modo que
não faz sentido pensar-se em uma coleta de dados livre
de influências e expectativas teóricas. (x) Cientistas são
criativos. (xi) A história da ciência apresenta um caráter
tanto evolutivo quanto revolucionário. (xii) A ciência é
parte de tradições sociais e culturais. (xiii) A ciência e
tecnologia impactam uma à outra. (xiv) Ideias científicas
são afetadas pelo meio social e histórico no qual no qual
são construídas. (El-HANI, 2006, p.7)

Agora, apresento as de Gil-Pérez e colaboradores, também segundo El-Hani:

(i) O reconhecimento de que existe uma variedade de


métodos empregados pelas diversas ciências, admitindo-
se um pluralismo metodológico. (ii) A rejeição de uma
visão empírico-indutivista, aceitando-se a dependência
teórica da observação e enfatizando-se o papel das
teorias na atividade científica e a natureza não-linear do
crescimento do conhecimento científico. (iii) O
reconhecimento do papel das hipóteses na prática
científica, sendo estas entendidas como tentativas de
respostas a problemas formulados cientificamente, que
devem ser submetidas a testes rigorosos, mas jamais
serão estabelecidas de maneira absoluta. Deve-se

21
compreender, assim, a natureza conjectural do
conhecimento, evitando-se concepções epistemológicas
absolutistas. (iv) O entendimento de que a busca de
entendimento global, sistematização e unificação dos
conhecimentos científicos constitui um aspecto central de
todas as ciências. Deve evitar, ainda, o que Gil e
colaboradores chamam de ‘reducionismo
experimentalista’, de acordo com o qual um tratamento
experimental único poderia ser suficiente para refutar ou
comprovar uma hipótese. (v) O reconhecimento e a
compreensão do caráter social da atividade científica.
(EL-HANI, 2006, p.9)

Ele chega à conclusão de que, ao examinar as propostas de McComas e


Gil-Pérez sobre o que seriam concepções adequadas acerca da natureza da
ciência, “descobrimos que há muitas superposições entre elas, o que reforça a
tese de que, apesar das controvérsias, existe um grau significativo de
concordância entre elas”. (EL-HANI, 2006, p.9)

Esse posicionamento sugere que podemos falar com alguma


desenvoltura sobre a natureza das ciências, ou de concepções de ciências
mais adequadas ou menos adequadas para o seu ensino. Diferentemente de
Alters (1997), para quem o único acordo possível entre a comunidade de
pesquisadores em ensino de ciências era o de reconhecer que não há um
consenso quanto à natureza da ciência, El-Hani se mostra mais otimista. Em
alguma medida, Alters tem razão: se a comunidade de filósofos da ciência não
tem uma concepção derradeira sobre a natureza da ciência, então, como
profissionais de ensino de ciências, que frequentemente recorrem aos filósofos
da ciência como aportes teóricos, teriam? Apesar de Gil-Pérez e colaboradores
terem chegado à conclusão de que há certas semelhanças na compreensão de
alguns filósofos da ciência acerca de sua natureza4, é bastante difícil desdobrar
daí uma concepção de ciência sem fazer uma cocha de retalhos. Essa
dificuldade não passou despercebida em sua pesquisa: “é fácil constatar que a
imagem da ciência que esses pontos de consenso configuram resulta de um
conjunto de simplificações e visões deformadas” (GIL-Perez et al., 2001,
p.138).

4
Dentre os filósofos trabalhados por ele, elenca: Popper, Kuhn, Bunge, Toulmin, Lakatos,
Laudan, Feyerabend (GIL PÉREZ et al. 2001, p.135)

22
Uma postura razoável talvez seja admitir que não existe um consenso
derradeiro sobre a natureza da ciência, mas isto não significa que não exista
um consenso, ainda que fraco. Em todo caso, ele pode ser suficiente para que
a comunidade dos filósofos da ciência, cientistas e professores de ciência se
reconheçam enquanto tratando de um mesmo assunto, apesar de terem
objetivos distintos. Parece não haver dúvida de que a compreensão da
natureza da ciência é um forte aliado para o seu ensino e sua aprendizagem.
Porém, reconhecer que existe um consenso relativo sobre a natureza da
ciência entre filósofos, cientistas e professores de ciências é suficiente para
nos certificarmos de que estamos falando sobre a mesma coisa, de que não se
trata de um diálogo no qual as pessoas não se auscultam. Mas seria suficiente
para pensarmos numa educação científica de qualidade? “Luta-se com as
armas que se tem” – prescreve o ditado popular.

Apesar da crise da educação científica (SILVA, 2006, p. X), seria


exagerado dizer que seus resultados são pífios. Não lograr os resultados
esperados está longe de significar não alcançar resultados. Isso só vem
endossar a tese de que as investigações acerca da natureza da ciência devem
avançar e continuar a se expandir para o ensino de ciências. O recurso da
inclusão da história e da filosofia da ciência nessa empreitada já é amplamente
reconhecido, conforme veremos a seguir. A fim de contextualizar o debate,
apresentarei nas subseções 1.2.1 e 1.2.2, respectivamente, alguns argumentos
favoráveis e contrários a inserção da história e filosofia da ciência no ensino de
ciências. A investigação sugere que há um consenso forte acerca da inclusão
da história e da filosofia da ciência no ensino de ciências para uma melhor
compreensão da natureza da ciência. Mas o problema é que conteúdo histórico
e que filosofia da ciência devem ser ensinados. Na seção seguinte, 1.3, sugiro
que a dúvida recai novamente sobre a natureza da ciência e que este problema
tem como pano de fundo uma velha contenda de caráter filosófico:
universalismo versus relativismo.

1.2. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS

23
1.2.1. Contribuições da história e da filosofia da ciência para o ensino de
ciências

Harres (1999), Alters (1997), Greca & Freire (2004), Matthews (1995),
El-Hani (2006), Martins (2006), Silva (2006), Praia et al. (2007), Chinelli et al.
(2010), dentre muitos outros, entendem que a inserção da história e da filosofia
da ciência no ensino de ciências pode contribuir para que professores e
estudantes tenham uma visão mais clara acerca da atividade científica.
Matthews (1995, p.187) comenta que Michael Polanyi defendeu “o ponto de
vista óbvio de que HFS [História e Filosofia da Ciência] deveria fazer parte da
educação científica”. Mas tal ponto de vista, embora pareça óbvio, não o foi
desde sempre. E se teoricamente há consenso sobre a inclusão da história e
da filosofia da ciência no ensino de ciências, na prática esta é uma realidade
ainda distante. As razões para que isso ocorra vão desde a formação limitada
dos professores em história e filosofia da ciência, até a ausência de material
didático de qualidade disponível sobre o tema, como ocorre no Brasil (EL-
HANI, 2006; MARTINS, 2006). Nesta subseção, apresentarei brevemente
alguns argumentos a favor da inserção da história e da filosofia da ciência no
ensino de ciências, a fim de situar o debate que farei posteriormente sobre a
disputa universalismo/multiculturalismo.

Segundo Matthews (1995), há uma tradição que remonta ao século XIX


que assevera que a história e a filosofia da ciência contribuem para o ensino de
ciências. Ele constata nos discursos do Conselho Britânico de Currículo
Nacional, em 1855, e da Associação Britânica para o Progresso da Ciência
(BAAS), em 1917, a “convergência de ideais com relação à necessidade de
que os cursos de ciências sejam mais contextualizados, mais históricos e mais
filosóficos ou reflexivos” (MATTHEWS,1995, p. 167). Mas seus argumentos
não se reduzem a esses dois exemplos. Ele traça o pano de fundo da
tendência atual de reaproximação entre história, filosofia e ensino de ciências.
Especificamente nos Estados Unidos, constata que há um interesse maior
nessa relação após a Segunda Guerra Mundial e aponta James B. Conant,
então reitor da Universidade de Harvard, como uma das vozes mais influentes
desse período. Thomas Kuhn, dentre outros renomados cientistas, não ficará

24
imune a essa influência5. O Projeto de Física de Harvard contará
posteriormente com outros membros que foram diretamente influenciados por
Conant na elaboração de um currículo escolar em que a história, a filosofia e as
dimensões culturais da ciência estavam presentes e que atingiu uma
porcentagem de 15% de alunos de 1º e 2º grau dos Estados Unidos. Segundo
Matthews,

seu sucesso em evitar a evasão dos estudantes, atrair


mulheres para os cursos de ciências, desenvolver a
habilidade de raciocínio crítico e elevar a média de
acertos alcançadas em avaliações forneceu evidências
suficientes para os que, hoje, advogam a favor da HFS
[História e Filosofia da Ciência]. (MATTHEWS, 1995, p.
171)

Enfim, para Matthews já há uma tradição contextualista que enumera


algumas boas razões para que a história e a filosofia da ciência façam parte do
currículo em ciências:

(1) motiva e atrai os alunos; (2) humaniza a matéria; (3)


promove uma compreensão melhor dos conceitos
científicos por traçar seu desenvolvimento e
aperfeiçoamento; (4) há um valor intrínseco em se
compreender certos episódios fundamentais na história
da ciência – a Revolução Científica, o darwinismo, etc.;
(5) demonstra que a ciência é mutável e instável e que,
por isso, o pensamento científico atual está sujeito a
transformações que (6) se opõe à ideologia cientificista;
e, finalmente, (7) a história permite uma compreensão
mais profícua do método científico e apresenta os
padrões de mudança na metodologia vigente.
(MATTHEWS, 1995, p. 172)

A introdução da história e da filosofia da ciência, portanto, favoreceria


um ensino de ciências de melhor qualidade e mais de acordo com a sua
verdadeira natureza. Ou ainda, insiste Matthews (1995, p.187), “pode-se
argumentar a favor de um professor que tenha conhecimento crítico
(conhecimento histórico e filosófico) de sua disciplina mesmo que esse
conhecimento não seja utilizado diretamente na sala de aula”. Um professor

5
Cito Kuhn (2005, p.16): “Foi James B. Conant, então presidente da Universidade de Harvard,
quem primeiro me introduziu na história da ciência e desse modo iniciou a transformação de
minha concepção da natureza do progresso científico”.

25
não deve se restringir a saber apenas aquilo que ele ensinará em classe, até
porque outros elementos não explícitos no conteúdo podem contribuir, e muito,
para a clareza daquilo que está sendo ensinado. Parece trivial que um
professor de física deve conhecer o contexto histórico em que Copérnico
“revolucionou” a disciplina6.

Greca & Freire Jr. (2004) apontam duas tendências na inserção da


história e da filosofia da ciência no ensino de ciências: aquela que a encara
como um instrumento para o aprimoramento do ensino de ciências
(MATTHEWS, 1995); e outra que pretende utilizar os aportes da história e da
filosofia da ciência “para mostrar ou exemplificar arestas sociológicas do fazer
científico que, em alguma medida, questionam superioridade do conhecimento
científico frente a outras formas de conhecimento” (GRECA & FREIRE JR.,
2004, p. 344). Os argumentos dos que defendem a inserção da história e da
filosofia da ciência no ensino de ciências, orientam-se no sentido de que elas

têm ajudado a tornar mais inteligível o fenômeno da


ciência, de sua produção e de sua difusão, nas
sociedades contemporâneas [e que] a investigação em
educação em ciências ganhará se investigar as
implicações – para a Educação em Ciências – dessa
imagem da ciência realmente existente. (GRECA &
FREIRE JR., 2004, p. 344) – grifo meu.

Ao contrário dos que defendem uma história somente conceitual das ciências
(por exemplo, Laudan, 2000 e Martins, 2000), Matthews (1995), Greca & Freire
Jr. (2004), El-Hani (2006), Gil-Pérez et al. (2001), Praia et al. (2007), Chinelli et
al. (2010), dentre muitos outros, tentam mostrar que abordagens contextuais
das ciências, que levem em conta suas dimensões históricas e filosóficas, a
relação com a cultura e a vida cotidiana, seu caráter social, podem influenciar
positivamente na compreensão que se tem delas e suas implicações para o
ensino.

6
Os argumentos não se restringem a um conhecimento básico de história da ciência e do seu
contexto sócio-cultural, há algo em jogo aí que diz respeito aos fundamentos mesmo daquilo
que está sendo ensinado, assim como o sucesso ou fracasso da aprendizagem. Seria o caso
de se discutir, como o fazem Cobern (2000), Brickhouse (1990) e Vázquez Alonso &
Manassero Mas (1999) a relação entre ciência, conhecimentos e crenças.

26
No fundo, o que se busca com uma educação científica em que a
história e a filosofia da ciência tenham um papel mais significativo é também a
formação humana – Feyerabend (1989), Greca & Freire Jr. (2004), Jenkins
(1999). Feyerabend é um exemplo expressivo dessa preocupação. O que
prepara o cidadão para a sua atuação na sociedade, defende ele, não é a
formação em uma ideologia determinada, seja ela qual for, científica ou
religiosa. O cidadão maduro, aquele imbricado dentro de um processo
educacional mais amplo, deve está apto a tomar as decisões que lhe
parecerem mais atraentes. Para tal, ele deve abordar as ideologias mais
relevantes como fenômenos históricos, inclusive a ciência:

Preparando-se para essa escolha, a pessoa estudará as


ideologias mais importantes em termos de fenômenos
históricos, estudará a ciência como fenômeno histórico e
não como o único e sensato meio de enfrentar um
problema. (FEYERABEND, 1989, p.465) – grifos do autor.

A história e a filosofia da ciência no ensino de ciências, na medida em


que oferecem uma concepção de ciência mais contextualizada, podem
contribuir para “formação de cidadãos mais responsáveis” (GRECA & FREIRE
JR., 2004, p. 358). O ensino de ciências precisa considerar qual é o papel
social da ciência, que tipo de ciência está sendo produzida e qual sua
finalidade (ZIMAN, 2001). Isto não é algo trivial. Há aí uma crítica não somente
ao modo como novos cidadãos estão sendo formados como aos próprios
formadores, assim também àqueles que se reservam exclusivamente à
pesquisa científica. Se o homem da ciência atual não se preocupa com as
implicações que sua atividade pode exercer na sociedade, esta mesma
sociedade à qual ele deve sua existência, manifesta-se um sério problema
tanto de ordem moral quanto de sobrevivência da própria civilização. O
fenômeno não é uma novidade e foi abordado por vários filósofos do século
passado, que tiveram o desprazer de presenciar duas grandes guerras
mundiais juntamente com a ameaça atômica7. As guerras continuam sendo
uma ameaça até hoje e o perigo atômico se expandiu para além delas desde
que a energia atômica passou a ser utilizada para outros fins. Colocar a relação

7
Para citar alguns: José Ortega y Gasset, Martin Heidegger, Hannah Arendt e Herbert
Marcuse.

27
que existe entre pesquisa científica e usos militares em segundo plano, por
exemplo, parece-me o contrário da intenção de formar cidadãos mais
responsáveis. Como os cientistas neófitos e os futuros cientistas poderão fazer
escolhas críticas (sensatas) desconhecendo a dinâmica social e a história da
disciplina que exercem ou que escolherão exercer? 8

1.2.2. Cidadania, inclusão e ensino de ciências

Para Jenkins (1999), deve-se levar em conta que boa parte dos
empreendimentos científicos na contemporaneidade está relacionada com a
produção de conhecimento nos contextos de sua aplicação. Nesse sentido,
cidadãos e especialistas são obrigados a se confrontarem com problemas
complexos e difíceis que marcam a interface ciência e sociedade. Ele entende
que educação científica, cidadania e compreensão pública da ciência estão
ligadas de inúmeras formas. Essa articulação fica evidente ao se evocar nas
sociedades democráticas a necessidade de alfabetização científica do cidadão,
a fim de que este tenha condições de tomar decisões que exigem algum
conhecimento específico.

A retórica é que os cidadãos precisam ser cientificamente


alfabetizados, a fim de serem capazes de contribuir para
tomada de decisões sobre questões que têm uma
dimensão científica, independentemente dessas questões
serem mais pessoais (por exemplo, relativas à medicação
ou dieta) ou mais políticas (por exemplo, relativas à
energia nuclear, destruição da camada de ozônio ou
tecnologias de DNA). (JENKINS, 1999, p.703)

Falar numa ciência comprometida com o cidadão não é propriamente


uma novidade, mas atualmente a questão tem ganhado novos contornos e

8
Um excelente estudo dos pontos de vista social, histórico, político e econômico sobre a
relação entre ciência e guerra foi desenvolvido por Sánchez-Ron (2007). No que se refere
especificamente à energia nuclear e sua história, ele afirma que: “Se há desenvolvimentos
científico-tecnológicos que caracterizam o século XX, a energia nuclear é um deles. A
capacidade de servir-se de elementos químicos para fabricar armas com poder destrutivo –
cidades inteiras e centros de milhões de pessoas – que tem mostrado possuir as bombas
nucleares construídas a partir de 1945 constitui uma novidade absoluta na história da
humanidade. Não é possível compreender a história mundial posterior a 1945, o fatídico ano
em que se lançaram duas dessas bombas (de urânio a primeira, de plutônio a segunda) sobre
as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, sem levar em consideração a disponibilidade
do armamento atômico, e como este foi melhorando”. (Sánchez-Ron, 2007, p.145)

28
exigências por força de grupos subalternizados, ou as denominadas minorias,
que manifestam a necessidade de se pensar numa política educacional no
ensino de ciências que considere suas particularidades. Dentre essas
particularidades, podemos apontar para os modos próprios de produção e
compreensão do conhecimento por esses grupos, que muitas vezes estão em
conflito com o conhecimento considerado científico.

O que está sendo considerado aqui é a possibilidade de que outros


povos ou grupos culturais tenham desenvolvido e desenvolvam epistemologias
próprias e apreendam a realidade de uma maneira que é tão válida e legítima
quanto a moderna ciência européia. A reivindicação de grupos subalternizados
para a inserção de suas perspectivas epistemológicas no ensino das ciências
manifesta-se através de discursos que apontam para a necessidade de
compreensão da realidade que leve em conta a tradição ou o mundo de vida no
qual esses grupos se formaram. Por isso, fala-se numa epistemologia
feminista, numa epistemologia indígena ou numa epistemologia afro-centrada,
por exemplo. Ou ainda, pode-se fazer a crítica, como fez Hilton Japiassú,
dentre outros, sobre “O projeto masculino-machista da ciência moderna” (2001,
p.67)9. Embora pretensamente universal, o modelo de ciência hegemônico,
para esses grupos, não abarca a complexidade da realidade em sociedades
diversas culturalmente, comprometendo assim a noção de verdade e da melhor
forma de vida, o que pode acarretar, uma vez que esses conflitos se
intensifiquem, num desmantelamento social.

A filósofa indiana Uma Narayan caracteriza da seguinte forma o que


seria uma epistemologia feminista e suas implicações na ciência:

A epistemologia feminista considera as teorias


dominantes sobre os diversos empreendimentos
humanos, incluindo aquelas sobre o conhecimento, como

9
Três anos após o fim da Guerra Civil Americana, em 1868, nasceu W. E. B. Du Bois, afro-
americano que mais tarde viria a se tornar um dos principais líderes para a integração da
população negra na sociedade norte-americana. De forte formação acadêmica, escreve um
livro com o sugestivo título: “As almas da gente negra” (1903), que é uma antropologia
filosófica do negro contemporâneo arrancado de sua terra natal e tentando se incluir numa
sociedade branca excludente. Nos anos sessenta, Franz Fanon, negro, médico e psicanalista,
irá tentar demonstrar a impossibilidade da psicanálise freudiana, assim como do
existencialismo sartriano, dar conta da “alma” negra (Cf. Fanon, 2008). Em 2001, um coletivo
denominado NENU (Núcleo de Estudantes Negros(as) da Universidade Federal da Bahia), ao
propor um projeto de cotas para ingresso de afro-descendentes nesta instituição, incluía a
disciplina IPA (Introdução ao Pensamento Africano).

29
unidimensionais e profundamente falhas, devido à
exclusão e à representação incorreta das contribuições
das mulheres. [...] A inclusão da perspectiva das
mulheres não significará simplesmente uma maior
participação delas na prática da ciência e do
conhecimento; mudará a própria natureza dessas
atividades e sua autocompreensão. (NARAYAN, 1997,
p.276-277)

Algo similar se daria com outros grupos que tiveram suas perspectivas
de mundo e suas experiências colocadas às margens da história, e que agora
reivindicam a legitimidade de suas formas próprias de produção de
conhecimento10. No entanto, o modelo utilizado de inclusão quase sempre é
inspirado numa perspectiva universalista em que o incluído, para ser incluído,
precisa se submeter a um regime pré-estabelecido, fazendo com que ele se
torne “igual”. Nesse sentido, a inclusão traz consigo a exigência do
esquecimento das diferenças daquele que está sendo incluído, reforçando um
sistema educacional com princípios igualitário-universalistas. É um modelo que
está longe de levar à mudança da natureza da atividade científica e da sua
autocompreensão, como sugere Narayan.

Aparentemente, só é possível pensarmos na inclusão da pluralidade de


epistemologias no ensino de ciências nas universidades considerando, por um
lado, o resgate da história da exclusão dessas perspectivas na educação
científica hegemônica e, por outro, aceitando o pressuposto de uma sociedade
democrática na qual todos têm direito de manifestarem suas formas próprias de
vida. Precisamente, pelo segundo motivo, Siegel (2002) vai argumentar que há
muito mais concordância entre universalistas e multiculturalistas do que pode
parecer à primeira vista. A começar pela própria justificação moral do
multiculturalismo, que não pode abrir mão de certo universalismo na medida

10
No Brasil, as políticas educacionais atenderam a essas reivindicações através da
implementação das políticas de ações afirmativas que, dentre outras medidas, sanciona a Lei
nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira no ensino
fundamental e médio, a Lei nº 12.711/2012, que garante a reserva de 50% das matrículas por
curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia
para estudantes de ascendência indígena e africana oriundos do ensino público, o
financiamento estudantil, os cursinhos pré-universitários, além de programas de pesquisa e
pós-graduação. Conforme sugerido na nota anterior, a implementação das políticas de ações
afirmativas satisfez apenas parcialmente a reivindicação desses grupos, que, além do direito à
educação, reclamam a inserção de suas perspectivas acerca do conhecimento. Esta questão
será retomada no capítulo 4 desta tese.

30
em que reivindica a legitimidade da diversidade epistemológica contra “abusos”
de poder da ciência hegemônica. Torna-se difícil defender o multiculturalismo
sem o princípio universalista de justiça e respeito mútuos 11. No fundo, a
justificativa moral do multiculturalismo traria consigo uma justificativa
epistêmica. Siegel (2002) acaba por inverter os argumentos dos
multiculturalistas, fazendo uma interpretação destes em que a universalidade
se faz necessária. Se há dúvidas quanto à universalidade da perspectiva
epistemológica da moderna ciência ocidental, o mesmo não se pode dizer da
tentativa de uma justificativa moral e política universalista do multiculturalismo.

1.2.3. Objeções acerca das contribuições que a história e a filosofia da ciência


podem oferecer ao ensino de ciências

Pode-se argumentar a favor de uma educação científica que se paute


numa concepção racionalista da ciência, em que crenças, culturas, história e
filosofia da ciência são relevantes, mas numa proporção muito menor do que
tem sido imaginado pelos partidários de uma concepção de ciência
contextualizada para o seu ensino. A resposta dada anteriormente à pergunta
sobre as contribuições da história e da filosofia da ciência para o ensino de
ciências passará por algumas objeções.

O perigo subjacente à introdução da história e da filosofia da ciência no


ensino de ciências é justamente torná-las demasiadamente relativas – assim
pensam alguns teóricos da ciência. Nas palavras de Greca & Freire Jr., “tais
contribuições são vistas como exemplos de relativismo e de idealismo que
poderiam prejudicar o desafio da generalização da educação em ciências”
(2004, p.343). De fato, uma crítica avassaladora da ciência desde o ponto de
vista de determinadas correntes filosóficas pode demolir o sentido de se ter
uma educação científica. No extremo, uma abordagem relativista da ciência no
ensino de ciências poderia significar o fim da imagem que professores e
cientistas têm da ciência e que gostariam de compartilhar com as demais
pessoas. Professores e pesquisadores que têm uma perspectiva realista da

11
Siegel tem uma simpatia especial pela perspectiva pragmatista. Acredita que uma maior
comunicação e entendimento entre comunidades diversas de pesquisa podem nos
proporcionar certo avanço.

31
ciência acreditam na objetividade do mundo e no poder da razão de conhecê-
lo, ao mesmo tempo em que, embora possam admitir a influência de agentes
externos na produção científica, buscam delimitar o grau dessa influência,
preservando, assim, o valor de verdade dos enunciados científicos. Apesar de
a organização social poder condicionar a pesquisa, isto não significa
necessariamente que ela vá determinar o resultado da pesquisa.

Objetividade, racionalidade, verdade, precisão são valores que


permitiram ao homem, através da ciência, sua compreensão e intervenção no
mundo – em nome de que deveríamos abandonar esses valores? Seria a
verdade científica um conceito dispensável no ensino de ciências? Os objetos
teóricos de que tratam os cientistas dizem respeito ao mundo real, têm,
portanto, valor de verdade. As ideias não são coisas que simplesmente
colocam na cabeça dos cientistas sem nenhuma relação com o mundo, talvez
elas correspondam à realidade. O conhecimento verdadeiro existe e o cientista
pode ter acesso a ele através de métodos familiares de pesquisa. Certamente
o professor de ciências deve ser aquele que domina suficientemente tanto o
método quanto o conteúdo científico e deve ser capaz de compartilhar isso com
seus estudantes fazendo com que estes abandonem concepções outras de
verdade que porventura possuam.

O que se questiona é até que ponto uma abordagem contextualista das


ciências no seu ensino proporciona uma educação científica de qualidade, se
essa abordagem não estaria atendendo a critérios antes políticos que
epistêmicos12. Por exemplo, afirmar que um ensino de ciências mais
contextualizado, que considere que a inclusão da história e da filosofia da
ciência aproximou mais as mulheres (ou as manteve mais na sala de aula) da
ciência, é um critério político de inspiração democrática que visa a maior
participação das mulheres numa atividade de suma importância nas
sociedades contemporâneas, mas na qual elas foram historicamente

12
É bastante sugestiva a ênfase dada por uma abordagem contextualista do ensino de ciências
a aspectos não científicos: “Os que defendem a HFS [História e Filosofia da Ciência] tanto no
ensino de ciências como no treinamento de professores, de certa forma, advogam em favor de
uma abordagem contextualista, isto é, uma educação em ciências, onde estas sejam
ensinadas em seus diversos contextos: ético, social, histórico, filosófico e tecnológico; o que
não deixa de ser um redimensionamento do velho argumento de que o ensino de ciências
deveria ser, simultaneamente, em e sobre ciências” (MATTHEWS, 1995, p.166).

32
cerceadas. Ou, que a abordagem contextual pode “humanizar as ciências,
conectando-as com preocupações pessoais, éticas, culturais e políticas” (EL-
HANI, 2006, p.5), critérios esses que, embora possam ajudar no ensino de
ciências, não são epistêmicos e, de alguma forma, fogem do escopo das
ciências. Deveriam eles fazer parte do ensino de ciências?

Boghossian (1997) julga que tendências relativistas nas ciências acerca


da verdade e da evidência têm se alastrado de súbito sob a rubrica de “Pós-
modernismo” e teria sido ela a causa da clássica polêmica levantada por Alan
Sokal, em 1994, com a revista Social Text. Este episódio ficou conhecido como
“O embuste de Sokal”13. O problema da perspectiva pós-moderna, tal como
apontada por Boghossian, é que ela substitui critérios epistemológicos por
critérios políticos, não sem prejuízo para os primeiros.

Estas perspectivas autorizam a, e na verdade costumam


insistir na necessidade da, introdução de critérios
políticos em substituição da avaliação historicamente
mais familiar em termos de verdade, evidência e
argumentos. (BOGHOSSIAN, 1997, p. 27)

Boghossian rechaça a postura pós-modernista de ir muito além das


observações historicistas acerca da ausência de neutralidade e da
impossibilidade do pesquisador de ter acesso a uma verdade objetiva. Ele cita
e sanciona a caracterização do historicismo da feminista Linda Nicholson em
que esse, “por mais lato que seja, não implica que a verdade objetiva não
exista” (BOGHOSSIAN, 1997, p. 28). É um passo por demais longo partir da
ideia de que nenhuma investigação é neutra ou desinteressada para a
afirmação de que elas não possam ser mais ou menos parciais ou
desinteressadas. De maneira semelhante, “Conceber que a verdade nunca é a
única coisa que alguém procura [pode-se estar em jogo aí precisamente
regimes especiais de poder] não é negar que algumas pessoas ou métodos
sejam melhores do que outros nessa procura” (BOGHOSSIAN, 1997, p. 28).
Boghossian defende a posição epistêmica privilegiada da ciência em termos de
verdade e objetividade, e denuncia que a luta dos pós-modernos, dentre eles

13
Sobre esse episódio, existe o excelente artigo de Paul Boghossian (1997), que estou
utilizando aqui, intitulado: O que o embuste de Sokal nos deve ensinar – as conseqüências
perniciosas e as contradições internas do relativismo ‘pós-moderno’.

33
Richard Rorty, contra a retórica da objetividade não tem um caráter epistêmico,
e sim político. O que nos interessa questionar aqui é se, sob a rubrica do
ensino de história e filosofia da ciência para o ensino de ciências, essa
tendência relativista não estaria se promovendo.

Não haveríamos de esperar que Boghossian estivesse sozinho no front


contra as chamadas investidas pós-modernas contra a ciência. Mesmo desde
uma perspectiva da epistemologia social, contrariando o entendimento de
Martins (2000) sobre a questão, pode-se defender certos valores como
objetividade e verdade na ciência e no seu ensino, ainda que por motivos
distintos14. Ninguém menos que Alvin Goldman, um dos principais filósofos
dessa linha, é o exemplo cabal. Goldman (1999) denomina sua epistemologia
como verística pela mesma enfatizar a verdade, tanto no âmbito individual
quanto social. Para ele, não somente os indivíduos objetivam a verdade, como
também as instituições sociais. Os primeiros demonstram isso através de: a)
curiosidade, as pessoas desejam conhecer ainda que esse conhecimento não
tenha nenhuma implicação prática; b) quando ocorrem vantagens práticas, a
verdade pode ser um meio útil para atingir fins práticos; c) a prática lingüística
do questionamento é a demonstração do interesse na verdade. A Ciência, a
Justiça e a Educação, enquanto instituições sociais, também demonstram
interesse pela verdade. No que se refere à primeira e à última, objeto desta
investigação, Goldman defende que o seu objetivo em todos os níveis é a
verdade, seja na matemática, nas ciências em geral ou na história.

O objetivo fundamental da educação, assim como o da


ciência, é a promoção do conhecimento. Enquanto a
ciência busca o conhecimento que é novo para a
humanidade, a educação busca o conhecimento que é
novo para os alunos individualmente. A educação
prossegue essa missão de várias maneiras: através da
organização e transmissão de conhecimento pré-
existente, através da criação de incentivos e ambientes
para encorajar a aprendizagem, e moldando habilidades
e técnicas que facilitam a aprendizagem autônoma e
orientam a investigação em direção à verdade.
(GOLDMAN, 1999, p.348) – grifo meu.

14
Aliás, cabe ressaltar que a epistemologia social, assim como a epistemologia individual, são
entendidas por Goldman como subdivisões da epistemologia verística.

34
Não seria esse o único objetivo da educação, mas seria o mais
característico – ou, mais precisamente, necessário. Como tal, Goldman prioriza
a verdade ante qualquer outro objetivo que porventura possa ser fixado para a
ciência e a educação.

Partindo do ponto de vista de que a verdade e a objetividade científica


podem ser preservadas de maneira relativamente independente de contextos
culturais, históricos ou sociais, que razões haveria para inserir história e
filosofia da ciência no seu ensino? Até que ponto, de fato, elas seriam úteis
para o exercício da ciência? Será que por essa via não se estaria perdendo de
vista o objetivo do ensino de ciências que é, valha a redundância, ensinar
ciências, e não história ou filosofia?

No caso específico da história, mesmo uma decisão a favor de sua


inserção no ensino de ciências, deixa ainda uma dúvida: que tipo de história de
fato interessa para a aprendizagem da ciência? Uma história com fins
pedagógicos, o que significa sua utilização apenas como meio para se alcançar
a compreensão de determinados conceitos científicos, uma meia história? Ou a
história tal como é compreendida pelo historiador profissional, preocupado com
a riqueza dos detalhes e a integridade dos “fatos”? Martins (2006) e Silva
(2006) não vacilam em rechaçar a utilização da história no ensino de ciências
quando ela é reduzida a nomes, datas e anedotas, afastando-a de sua
complexidade real, o que pode antes prejudicar o ensino de ciências do que
facilitar. “Quando utilizada de forma inadequada, a história das ciências pode
chegar a ser um empecilho ao bom ensino de ciências” (MARTINS, 2006,
p.xxv)15.

Segundo Matthews (1995), o ataque à introdução da história no ensino


de ciências nos anos de 1970 segue basicamente duas linhas,
respectivamente, uma levantada por Martin Klein e a segunda um
desdobramento das análises kuhnianas na “Estrutura das Revoluções
Científicas”: a) “a única história possível nos cursos de ciências era a pseudo-
história” e b) “a exposição à história da ciência enfraquecia as convicções
científicas necessárias à conclusão bem sucedida da aprendizagem da ciência”

15
Lamentavelmente, no Brasil, uma situação que pode ser comum, considerando-se a
escassez de material didático sobre o assunto (SILVA, 2006, p.x).

35
(MATTHEWS, 1995, p. 172). Matthews credita a Klein a conclusão de que “se o
ensino de ciências de qualidade alimentar-se da história, esta só pode ser de
má qualidade. Então, é melhor não se usar história do que usar-se história de
má qualidade” (1995, p. 173). Kuhn, por sua vez, reconhece o papel positivo
que livros didáticos exercem na formação de cientistas neófitos quando tratam
problemas do passado como se fossem os mesmos trabalhados atualmente,
fazendo com que o iniciante se sinta pertencente a uma tradição 16. Tal
iniciação dogmática, embora não corresponda à forma como a ciência se
desenvolve, seria não apenas útil como necessária para a educação
científica17.

Uma alternativa possível seria a introdução de uma história específica no


ensino de ciências: uma história centrada nos aspectos conceituais e
metodológicos da ciência. Talvez essa seja mais esclarecedora para a
educação científica do que as demais apresentadas aqui. Martins (2000)
defende, prevê e deseja que esse seja o futuro da educação científica nas
primeiras décadas do século XXI: “Abordagens conceitual, metodológica e
filosófica da história da ciência se tornarão mais fortes, por causa de sua
16
Conforme Kuhn, “Os manuais, por visarem familiarizar rapidamente o estudante com o que a
comunidade científica contemporânea julga conhecer, examinam as várias experiências,
conceitos, leis e teorias da ciência normal em vigor tão isolada e sucessivamente quanto
possível. Enquanto pedagogia, essa técnica de apresentação está acima de qualquer crítica
[...]. O manual sugere que os cientistas procuram realizar, desde os primeiros
empreendimentos científicos, os objetivos presentes nos paradigmas atuais. Num processo
frequentemente comparado à adição de tijolos a uma construção, os cientistas juntaram um a
um os fatos, conceitos, leis ou teorias ao caudal de informações proporcionado pelo manual
científico contemporâneo. Mas não é assim que a ciência se desenvolve.” (KUHN, 2005, p.180)
– grifo meu.
17
Em 1930, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, em A missão da universidade, já
suspeitava quanto inserção da história, da filosofia e da sociologia no ensino superior sob a
vaga insígnia de cultura geral: “Cultura referida ao espírito humano não pode ser senão geral.
Não se é ‘culto’ em física ou em matemática. Isso é ser sábio em uma matéria. Ao usar a
expressão ‘cultura geral’ se declara a intenção de que o estudante receba algum conhecimento
ornamental e vagamente educativo de seu caráter e de sua inteligência. Para tão vago
propósito, tanto de uma disciplina como de outra, dentro das que se consideram menos
técnicas e mais vagarosas: pegue a filosofia, ou a história ou a sociologia! Mas o caso é que se
saltarmos à época em que a universidade foi criada – Idade Média –, veremos que o resíduo
atual é a humilde sobrevivência do que então constituía, inteira e propriamente, o ensino
superior. A universidade medieval não investiga; se preocupa muito pouco com a profissão;
tudo era... ‘cultura geral’ – teologia, filosofia, ‘artes’. Mas isso que hoje chamam ‘cultura geral’
não o era para a Idade Média; não era ornamento da mente ou disciplina do caráter; era, ao
contrário, o sistema de ideias sobre o mundo e a humanidade que o homem de então possuía.
Era, pois, o repertório de convicções que havia de dirigir efetivamente a sua existência
(ORTEGA Y GASSET, 2001, p.4). A mera inserção da história e da filosofia da ciência
convenientemente aplicada sugere esse “conhecimento ornamental e vagamente educativo de
seu caráter”, como afirma Ortega.

36
relevância para a educação científica” (MARTINS, 2000, p.52). Ele considera
que análises externas da ciência, sobretudo de caráter sociológico, têm
prevalecido em detrimento de aspectos epistemológicos e internos à própria
dinâmica da ciência. Sua crítica centra-se, sobretudo, nas abordagens
sociológicas da história das ciências. O equívoco para ele é que nenhuma
análise da história da ciência pode abster-se de uma compreensão
epistemológica da ciência, no entanto, seria precisamente isso o que estaria
acontecendo com a substituição da epistemologia por uma “análise social da
prática científica” (MARTINS, 2000, p.48). Uma das razões dessa mudança de
foco seria justamente o interesse que tem gerado no ensino de ciências a
história das ciências. No entanto, Martins prevê que começa a se formar um
novo público que, reconhecendo o valor da história da ciência para o ensino de
ciências, solicita uma abordagem da primeira que leve em conta tanto os
aspectos sociais quanto os filosóficos, metodológicos e conceituais das
ciências. Tal como tem sido utilizada até então no ensino, a história da ciência
ameaça a própria ciência por destituí-la de seus aspectos filosóficos,
metodológicos e conceituais.

Os cientistas e professores são atualmente ignorantes


e/ou hostis aos desenvolvimentos da historiografia das
ciências, talvez por perceber que essa atual abordagem é
hostil à própria ciência. Haverá, portanto, uma grande
pressão de origem educacional para a produção de uma
nova linha de trabalhos historiográficos dedicados a
temas conceituais, filosóficos e metodológicos que os
historiadores da ciência com formação sociológica não
desejam nem estão preparados para desenvolver.
(MARTINS, 2000, pp.47-48)

A dobradinha história e filosofia da ciência, que tem aparecido quase


como inseparáveis para o ensino de ciências, deve ainda explicações mais
consistentes sobre: a) o que as torna inseparáveis; b) quais de seus aspectos
são mais relevantes para o ensino de ciências. Larry Laudan defende que a
ligação entre história e filosofia da ciência é muito menos evidente do que seus
partidários têm defendido:

é pouco provável que o filósofo da ciência interessado


nos paradoxos da confirmação ou no estudo existencial
das entidades teóricas obtenha grandes esclarecimentos

37
de um exame demorado da história da alquimia ou da
botânica sistemática. (LAUDAN, 2000, p. 9)

No entanto, Laudan aponta que a história das teorias dos métodos científicos
seria o elo entre essas duas disciplinas, por se tratar de algo indispensável em
ambas e por se constituir como um interesse em comum. Para compreender o
desenvolvimento da ciência é preciso que o filósofo da ciência examine as
teorias metodológicas que a sustentam na sua relação com as que a
precederam. Nas palavras de Laudan, “é difícil compreender quer a história
quer a filosofia da ciência, sem tratar da evolução das teorias do método”
(2000, p. 10). Se a história e a filosofia da ciência devem se concentrar na
“evolução das teorias do método”, o que dizer da sua inserção no ensino de
ciências?

Há um consenso acerca da inclusão da história e da filosofia da ciência


no ensino de ciências, mas a questão que se coloca hoje é saber qual história
e qual filosofia da ciência favoreceriam o ensino e aprendizado de ciências.
Podemos abordar essa questão retornando ao debate acerca da natureza da
ciência desde a perspectiva filosófica da contenda entre universalistas e
relativistas.

1.3. A QUERELA UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO E O ENSINO DE


CIÊNCIAS

Um dos alvos da filosofia da ciência é refletir sobre a natureza da


ciência, qual seja, compreender os processos através dos quais os
conhecimentos científicos são produzidos e o que exatamente nos leva a
caracterizar-los como tais. Como foi apontado na seção 1.1, essa não é uma
tarefa simples, embora haja uma série de tentativas e sugestões de se chegar
a uma definição aproximada da ideia de ciência. Freqüentemente filósofos da
ciência recorrem à história dela para compreendê-la melhor. Professores de
ciências, por sua vez, cada vez mais, também recorrem à história e filosofia da
ciência como um auxílio poderoso às suas atividades docentes, como vimos na
seção anterior. A partir de agora, tentarei mostrar que há um problema
subjacente ao da inclusão da história e da filosofia das ciências no ensino de

38
ciências, e ele diz respeito, grosso modo, a duas posturas antagônicas que se
pode ter frente ao conhecimento científico: uma com tendências mais
universalistas e outra com tendências mais relativistas.

Esse conflito de ideias e atitudes não se reserva ao campo teórico, pois


pode gerar posicionamentos prático-axiológicos que implicam diretamente na
formação científica dos estudantes, assim como nas suas respectivas
sociedades. Esse debate tem sido nomeado de várias formas. Aqui trataremos
provisoriamente de chamá-lo de universalismo versus relativismo, mas por pura
comodidade de linguagem. À medida que avançarmos na investigação as
distinções entre as variantes de cada um dos posicionamentos se tornará mais
clara. Blackburn (2006) chama a atenção para a variedade de nomes para esse
conflito: absolutistas versus relativistas, tradicionalistas versus pós-
modernistas, realistas versus idealistas, objetivistas versus subjetivistas,
racionalistas versus construtivistas sociais, universalistas versus
contextualistas, platônicos versus pragmáticos. Acrescento realistas versus
antirrealistas. Mas ao fim e ao cabo cada uma das partes preservaria certo
núcleo que poderíamos identificar como pertencente a uma ou outra tradição
filosófica.

A contenda explícita entre relativistas e universalistas remonta a


Sócrates e sua disputa com Protágoras. Desde que esse último afirmou que “O
homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que
não são enquanto não são”, tirou o sono de muitos na história das ideias,
enquanto ele dorme há mais de vinte séculos. A expressão Homo mensura é a
simplificação desse princípio de Protágoras. A literatura acerca desse princípio
é bastante ampla. Alguns o interpretaram como sendo de caráter
antropomórfico e, assim, a “medida de todas as coisas” seria a medida da
espécie humana, tanto no que se refere ao conhecimento quanto à conduta.
Outros que seria uma atitude individualista, de cada homem e cada mulher
perante as várias circunstâncias da vida. O problema posto ganha ainda mais
substância quando se faz recortes dentro do que se entende por espécie
humana, como a ideia de comunidade, raça ou época histórica. Como faz notar
Mora (2001), quando esse princípio relativista toma o caráter de época
histórica, ele se converte (eu diria, pode converter-se) em historicismo. Já se

39
tomarmos tal medida como a de comunidade ou raça, estaremos nos
aproximando das discussões contemporâneas acerca do etnocentrismo,
multiculturalismo, pluriculturalismo, diversidade cultural e conceitos afins. Homo
mensura pode ter um sentido tanto epistemológico quanto ético ou cultural,
apontando assim para uma variedade de tipos de relativismos. Pode ser
considerada tanto uma doutrina quanto uma atitude. Mas em que consiste
precisamente o relativismo e quais as suas implicações para nosso
empreendimento?

De modo geral, o relativismo se apresenta como uma doutrina sedutora,


mas seu encantamento é proporcional aos perigos que ele encerra. Isto tem
levado alguns filósofos a tomarem uma postura de vigilância perante tal
doutrina e muitos dos que apresentam argumentos próximos aos dos
relativistas não se definem desta forma, como, por exemplo, Thomas Kuhn
(2005) e Richard Rorty (2002)18. Em certos momentos, imputar a alguém a
signa de relativista soa como uma acusação. Decerto, há argumentos bastante
fortes contra as teses relativistas, mas o contrário também é verdadeiro. Se,
por um lado, as teses relativistas não são de todo aceitáveis; por outro, elas
seguem sempre a incomodar nossas certezas e não poucas vezes são
capazes de arrastar o tapete sobre o qual nossos pés estão tão bem
acomodados.

A ameaça do relativismo diz respeito tanto a convicções puramente


teóricas quanto práticas. Pode acontecer de que a aceitação de uma
determinada vertente de relativismo (o epistemológico, por exemplo) implique
diretamente na ordem prática das coisas, como nos padrões éticos, nas
normas de instituições sociais e jurídicas, nas práticas sociais de um modo
geral. A crença na relatividade de noções como a de verdade ou justificação
racional implica no nosso entendimento acerca de conceitos como o de
objetividade, conhecimento, progresso intelectual, moral e assim por diante.

O primeiro problema com que o relativista tem que lidar é precisamente


com o da auto-refutação. Foi precisamente isso que Sócrates apontou no seu

18
Blackburn (2006) coloca Rorty como pertencente à tradição dos sofistas. Boghossian (1997,
2012) considera Rorty um relativista. Não podemos deixar de acrescentar também que, ainda
que Thomas Kuhn não tenha se definido como relativista, sua tese da incomensurabilidade de
teorias científicas serviu e ainda serve como um argumento a favor do relativismo.

40
debate com Teodoro em torno de um suposto livro de Protágoras denominado
A Verdade:

Sócrates – E então? Precisamos dizer, se assim o


determinas, que formas opiniões verdadeiras para ti,
porém falsa para essas miríades de pessoas?
Teodoro – É o que necessariamente se conclui daquela
proposição.
Sócrates – E Protágoras, como se arranjaria? Na
hipótese de não acreditar que o homem é a medida de
todas as coisas, nem ele nem a grande maioria, que, de
fato, não acredita, não seria inevitável não existir para
ninguém sua Verdade, tal como ele a descreveu? E se
ele a admitisse, porém as multidões a rejeitassem, sabes
muito bem, para começar, que na mesma proporção em
que o número dos que não a aceitam, há mais razões
para seu princípio não existir do que para existir.
Teodoro – Necessariamente se depender do critério
pessoal a existência ou não existência de alguma coisa.
Sócrates – Ao depois, o mais bonito, no caso, é
reconhecer ele próprio que terão de estar certos seus
contraditores, quando opinam sobre seu princípio e o
declaram falso, visto admitir que a opinião de todos se
refere ao que existe.
Teodoro – Perfeitamente.
Sócrates – Então ele confessa que sua opinião é falsa,
uma vez declarada verdadeira a dos que afirmam estar
ele em erro.
Teodoro – Necessariamente. (PLATÃO, 2008, 43-44).

Curiosamente, o relativismo se autodestrói ao negar em seu conteúdo


proposicional aquilo que reivindica como validez objetiva. A assertiva de que o
homem é a medida de todas as coisas aponta para a relatividade da própria
proposição. Caso a aceitemos como verdadeira, ela será refutada pela sua
própria verdade, o que significa que ela não pode ser verdadeira. Com esse
argumento, Sócrates busca encurralar o discípulo de Protágoras, e ao que
parece consegue, pois Teodoro consente com seu rival com um sonoro “sim”.
Mas, talvez, haja aí mais do que possa parecer à primeira vista.

Devemos atentar que se trata de uma disputa em que a verdade está em


jogo e deve se manifestar através de um diálogo no qual a razão deve ser
preservada. A pergunta então é a seguinte: quais são as motivações racionais
da tese relativista? Pode ser que através de uma formulação apenas
41
aparentemente contraditória se manifestem motivos razoáveis para uma
concepção relativista da verdade. Blackburn afirma que “O assunto em questão
entre Sócrates e Teodoro é o da autoridade: a autoridade da verdade,
racionalidade, objetividade, conhecimento, ciência” (BLACKBURN, 2006, p.62).
No fundo, Teodoro e seu mestre estariam combatendo essa autoridade desde
dentro, aceitando os pressupostos racionais para mostrar-lhe sua fragilidade.
Mas de que forma esse movimento que contesta a autoridade da razão utiliza-
se de seus próprios mecanismos?

Desde o ponto de vista da contemporaneidade, a versão antiga do


relativismo pode parecer frágil diante dos argumentos socráticos, ao menos tal
como é conduzido por Platão. Mas isso não significou a sua morte, pois, como
já foi dito aqui, o desdobramento desse primeiro impulso protagoriano faz-se
ouvir até hoje, com versões específicas de relativismo ou aproximações que
tentam preservar o argumento principal e, ao mesmo tempo, evitar que ele se
volte para si mesmo (auto-refutação).

A força dos argumentos relativistas se volta justamente para aquilo que


eles menos apreciam: a supervalorização de conceitos como o de verdade,
objetividade, realidade e afins como critérios suficientes para se determinar
aquilo que deve ser entendido como um conhecimento de natureza científica.
Caso não aceitemos esses critérios como capazes de se estabelecerem acima
das parcialidades locais e gratuitas de pontos de vistas culturais e históricos (e
todos estariam falando sempre desde um ponto de vista assim, não sendo,
portanto, a aceitação uma questão de escolha19), não há porque crer que o
conhecimento científico seja privilegiado com relação às demais formas de
conhecimento.

Esse posicionamento foi denominado por Boghossian de “doutrina da


igual validade”, da qual seriam partidários filósofos como Richard Rorty e Paul
Feyerabend, que ele combate veementemente. Boghossian sintetiza essa
versão do relativismo no seguinte enunciado: “Existem vários modos de se
conhecer o mundo, radicalmente diferentes porém ‘igualmente válidos’, e a

19
A ideia de que nossos critérios, mesmo os científicos, não podem escapar de parcialidades
locais é desenvolvida no capítulo 3, quando discuto o conceito de etnocentrismo em Rorty,
mais precisamente o que denominei de “fatalismo etnocêntrico”.

42
ciência é tão somente um deles” (BOGHOSSIAN, 2012, p.17). Um caso
concreto, relatado por ele, da força dessa doutrina na contemporaneidade diz
respeito a uma matéria publicada pelo The New York Times, em 1996,
intitulada “Criacionistas indígenas tribais contradizem arqueólogos”. Nesta
matéria, a contenda é sobre a origem das populações nativas americanas. A
hipótese mais aceita pelos arqueólogos é de eles chegaram à América, vindos
da Ásia, através do estreito de Bering. Isto teria acontecido aproximadamente
há dez mil anos atrás. Por outro lado, alguns mitos criacionistas dos nativos
americanos dizem que seus ancestrais são originários de um mundo
subterrâneo de espíritos que emergiram para a superfície da terra e, desde
então, vivem aqui. O surpreendente e inaceitável, para Boghossian, é que
essas duas perspectivas (a científica e a mitológica) acerca da origem dos
povos nativos na América sejam postas como igualmente válidas por
arqueólogos de inclinações pós-modernas. Ele credita aos arqueólogos Roger
Anyon e Larry Zimmermann a reivindicação de que o conhecimento científico é
apenas mais um, dentre outros, modos de conhecer o mundo (BOGHOSSIAN,
2012, p.16).

Ao conceder a outras formas de conhecimento o mesmo status que o


conhecimento científico, a doutrina da igual validade solapa um dos conceitos
mais caros à ciência: o de objetividade. Com isso, nega a possibilidade da
existência de um modo de ser das coisas independentes de nós, de nossas
crenças e das circunstâncias sociais contingentes a respeito delas. Esta tese,
quando aplicada ao exemplo em questão, a saber, acerca da origem dos
primeiros povos americanos, gera a estranha ideia de duas respostas
alternativas e contraditórias (no entanto, igualmente válidas) para uma mesma
pergunta: a) a origem dos primeiros homens da América foi do subterrâneo da
terra; e b) teriam eles migrado de outra região através do estreito de Bering 20.
Isto porque os critérios de validade são relativos às diferentes práticas sócio-

20
Esse problema é gritante no ensino de biologia, quando versões criacionistas da origem do
homem se confrontam com a tese científica do evolucionismo. No Brasil, o problema levou a
Sociedade Brasileira de Genética a publicar um manifesto sobre ciência e criacionismo, no qual
vem comunicar ao público que “não existe qualquer respaldo científico para ideias criacionistas
que vêm sendo divulgadas em escolas, universidades e meios de comunicação. O objetivo
deste comunicado é esclarecer a sociedade brasileira e evitar prejuízos no médio e longo prazo
ao ensino científico e à formação dos jovens no país” (Manifesto da Sociedade Brasileira de
Genética sobre Ciência e Criacionismo, 2008). Ver também Sepulveda & El-Hani (2004).

43
culturais dos grupos envolvidos, portanto, a verdade acerca do fato deve ser
relativa a esses grupos.

Questões acerca da igual validade são discutidas comumente e estão na


ordem do dia em matéria de estética ou moral, para as quais juízos objetivos
são aparentemente mais difíceis de serem sustentados. No entanto, quando o
assunto são nossas asserções científicas, espera-se delas que tenham um
maior grau de objetividade. Apesar de não sabermos exatamente o que
significa essa objetividade, como reconhece Boghossian, dispomos de meios
razoáveis que nos asseguram quanto à veracidade das conclusões a que
chegamos diante de determinados problemas:

Podemos não saber qual é essa objetividade, mas, tendo


formado um interesse na matéria, buscamos conhecê-la.
E dispomos de uma variedade de técnicas e métodos –
observação, lógica, inferência para a melhor explicação e
assim por diante [...] – que consideramos ser os únicos
modos legítimos de formar crenças racionais sobre o
assunto. (BOGHOSSIAN, 2012, p.19)

Quando a questão é objetividade, tem-se em mente determinadas


características que são próprias de um conhecimento proposicional, o tipo de
conhecimento tipicamente utilizado pelas ciências e a filosofia 21. Cabe, então,
uma definição, ainda que modesta, do que se entende por conhecimento por
proposição22.

21
Luz (2006) distingue mais duas formas de conhecimento além do proposicional:
conhecimento como habilidade e conhecimento por familiaridade ou de trato. O conhecimento
como habilidade é uma sugestão que se encontra na nossa linguagem cotidiana quando
falamos coisas do tipo “Pelé sabe jogar futebol” ou “o gato sabe o caminho para casa”. No
primeiro caso, ao dizer que Pelé “sabe”, esse saber se refere simplesmente à habilidade que
uma determinada pessoa (Pelé) tem de fazer algo (jogar futebol). Habilidade não se transmite,
mas pode ser desenvolvida através de treinamento e repetição. No segundo caso, o do gato
que sabe o caminho para casa, não podemos dizer que se trata de uma habilidade no mesmo
sentido em que “Pelé sabe jogar futebol”. Assemelha-se antes a afirmação de que “o bebê
conhece Maria”. Tanto o gato que sabe o caminho de casa, quanto o bebê que conhece Maria,
parece sugerir a interpretação de conhecimento “como se referindo a um certo elemento pré-
reflexivo, que se manifesta através de uma ação, a ação de distinguir algo entre semelhantes”
(LUZ, 2006, p.39). A este uso do termo conhecimento Luz denominou conhecimento por
familiaridade ou de trato. Nenhum desses dois tipos de conhecimento se refere ao tipo de
conhecimento utilizado pelas ciências. Os dois exemplos que seguem são de Luz (2006).
22
Proposição aqui é entendida apenas como “O pensamento literalmente expresso por uma
frase declarativa com sentido” (BRANQUINHO et al, 2006, p.628). Às frases declarativas pode-
se atribuir verdade ou falsidade.

44
Conhecimento proposicional é o tipo de conhecimento que encontramos
em frases como “Eu sei que Pelé sabe jogar futebol” ou “Pedro sabe que Maria
conhece João”. O que há de singular nessas frases, se compararmos com os
exemplos anteriores, é que elas apontam para um determinado estado mental,
o de alguém que sabe que sabe. A este estado mental denomina-se crença e
ela é condição sine qua non para que alguém saiba algo23. Uma crença tem, ao
menos, três características básicas: a) precisa ter um conteúdo proposicional;
b) pode ser avaliada como verdadeira ou falsa; c) pode ser avaliada como
justificada ou injustificada, racional ou irracional. “O conteúdo proposicional de
uma crença especifica como o mundo é segundo a crença. Especifica, em
outras palavras, uma condição de verdade – como o mundo teria de ser se a
crença fosse verdadeira” (BOGHOSSIAN, 2012, p.28). No que diz respeito à
justificação, a questão é saber se a pessoa está justificada em acreditar em
algo, qual seja, se ela tem razões que tornam sua crença racional.

Uma crença é considerada conhecimento quando ela é justificada e


verdadeira. Gregos pré-aristotélicos acreditavam que a Terra era plana e havia
razões para isso. Porém, tal como sabemos hoje, a Terra é redonda, o que
torna a crença de que ela era plana falsa. Embora a crença neste caso
satisfaça duas das condições postas (tem um conteúdo proposicional, está
justificada que), ela não satisfaz a condição de veracidade, portanto, não conta
como conhecimento proposicional. Falta similar ocorre no caso de alguém que
crer em algo e essa crença é verdadeira, porém não justificada. Uma crença
verdadeira não justificada pode ser apenas aquilo que denominamos sorte. O
indivíduo que ganhou na loto porque jogou a placa de seu carro não tem mérito
algum no sentido de justificação do resultado que alcançou.

Um conhecimento proposicional pode ser compreendido, portanto, da


seguinte forma: Uma pessoa (S) sabe uma proposição (P) se e somente se

1. S crê em P

2. S está justificado em crer em P

23
Não se ignora aqui a dificuldade de se definir a crença “como um tipo particular de estado
mental” (Boghossian, 2012, p.27), pois haveria de se responder justamente o que queremos
dizer quando nos referimos a um “estado mental”. Mas, para os propósitos do presente
trabalho, me reservarei a essa definição imprecisa e à caracterização que segue no corpo do
texto.

45
3. P é verdadeira.

Essa é uma formulação clássica acerca de como se caracteriza um


conhecimento proposicional24, o tipo de conhecimento que as ciências prezam.
Boghossian argumenta que há um grau razoável de concordância entre os
filósofos acerca dessa forma de conhecimento, perfazendo o que ele chamou
de um “quadro clássico do conhecimento”. Neste quadro, ele aponta três teses
características a favor da independência do conhecimento de contingências
locais. São elas: objetivismo sobre os fatos, objetivismo sobre a justificação e
objetivismo sobre a explicação racional.

Objetivismo sobre os fatos: o mundo que tentamos


compreender e conhecer é o que é, em grande medida,
independente de nós e de nossas crenças a respeito
dele. Mesmo que jamais tivessem existidos seres
pensantes, o mundo ainda teria muitas das propriedades
que ele presentemente tem.
Objetivismo sobre a justificação: fatos do tipo “informação
E justifica crença C” são fatos independentes da
sociedade. Em particular, se algum item de informação
justifica ou não dada crença é algo que não depende das
necessidades e dos interesses contingentes de qualquer
comunidade.
Objetivismo sobre a explicação racional: sob as
circunstâncias apropriadas, nossa exposição à evidência
é capaz, sozinha, de explicar por que cremos no que
cremos. (BOGHOSSIAN, 2012, p.42)

Essas teses são encaradas com suspeita pelo relativista. Note-se a


seguir que essa suspeita não surge apenas da premissa do homo mensura,
mas é motivada também pela suposta fragilidade do que se convencionou
chamar de realismo e de noções correlatas de verdade como correspondência
ou representação. Estamos diante do problema do mundo exterior e dos
instrumentos que temos para acessá-lo. A questão é saber se essa concepção
objetivista do conhecimento nos permite afirmar a realidade do mundo
independente de idiossincrasias locais.

24
A ideia de conhecimento como crença verdadeira justificada sofreu um duro ataque em 1963
através de contraexemplos elaborados por Edmund Gettier em “Is Justified True Belief
Knowledge?”. Não discutirei as implicações desse problema, pois isto demandaria outro
trabalho. Ver: Gettier (1963), Luz (2006).

46
Mesmo uma formulação menos ingênua do realismo nas ciências prima
pela prioridade ontológica de um mundo independente que pode ser
descoberto pelo sujeito cognoscente, como nos informa o filósofo realista
Thomas Nagel, que em “A última palavra” (2001) apresenta fortes argumentos
em defesa do realismo do conhecimento científico: “partimos da ideia de que,
de algum modo, o mundo existe – e essa, creio, é uma ideia para a qual não há
alternativa inteligível e que não pode ser subordinada a, ou derivada de,
qualquer outra coisa” (NAGEL, 2001, p.98). Por conseguinte, deriva a
possibilidade de explicação de ordenamento do mundo a partir da própria ideia
de realidade objetiva:

Acredito que é possível compreender a exigência de


ordenação como conseqüência direta da ideia de uma
realidade objetiva, independente de observações e
observadores particulares. As observações podem diferir,
mas os eventos observados e as leis que os governam
devem ser os mesmos. (NAGEL, 2001, pp. 99-100)

Portanto, ainda segundo essa formulação: a) o mundo existe; b) ele tem uma
estrutura independente do sujeito; c) podemos buscar ou descrever essa
estrutura. A crença realista de um mundo independente do sujeito é vista pelo
relativista não só com desconfiança, mas também como notadamente falsa.
Pressupor que noções do que é a realidade, verdade ou objetividade podem
ocorrer apartadas da nossa relação com a cultura, a história, normas de
justificação, linguagem, esquemas conceituais, interesses sociais etc., seria o
mesmo que se colocar numa instância acima de todas as demais. O problema,
para os relativistas, é que essa instância não existe, a menos que para isso
recorramos à metafísica clássica com inspirações platônicas de um mundo
perfeito de formas inteligíveis somente através da razão.

Problemas quanto à terminologia universalista de verdade, realidade e


objetividade ganham uma nova dimensão a partir da Filosofia da Linguagem.
Esta coloca em xeque um suposto acesso direto ao mundo de uma
subjetividade transcendentalizada, não mediatizado pela linguagem. Como
observa Habermas, “no interior do paradigma lingüístico, é insustentável a
forma clássica de um realismo que se apóia no modelo representativo do
conhecimento e na correspondência entre proposições e fatos” (HABERMAS,

47
2004a, p. 17). Se este for o caso, como assevera Habermas, o realismo precisa
encontrar outra maneira de se justificar, tendo em conta esse novo paradigma.
Mas talvez não seja esse o caso, como sugere Nagel (2001), denunciando que
há uma supervalorização do problema da linguagem e de sua relação com o
mundo em detrimento de algo mais fundamental: a razão.

Um dos fatores que têm contribuído para a


desvalorização da razão é a concepção errônea da
importância da linguagem para a filosofia. Como as
linguagens são práticas humanas, produtos culturais que
diferem entre si e têm histórias complexas, a ideia de que
um nível mais profundo de análise do nosso
conhecimento, do nosso pensamento e da nossa
compreensão deve necessariamente passar pela análise
da linguagem foi dando margem, gradualmente, a uma
espécie de psicologismo sobre o que é mais fundamental,
que por sua vez freqüentemente conduz ao relativismo.
(NAGEL, 2001, p. 47)

Nagel não despreza a importância da análise da linguagem, mas


acredita que a filosofia analítica tem se apartado da sua origem e entrado num
período de decadência desde que deixou de seguir as orientações de Frege no
que concerne à lógica, “concebida como exame de conceitos mentalmente
independentes e como desenvolvimento de uma compreensão mais pura e
uma expressão mais clara desses mesmos conceitos” (NAGEL, 2001, p. 48).
Boghossian (1997) também se manifesta frustrado com os rumos da filosofia
analítica e cobra desta a responsabilidade de tornar suas ideias acessíveis a
todos e não limitada a um pequeno grupo de especialistas 25.

Longe de colocar a linguagem como um problema de segunda ordem


para o realismo, em “Verdade e Justificação” (2004a), Habermas parte para o
confronto entre ambos – realismo e linguagem –, a fim de verificar se há
alguma forma de conciliação que escape ao relativismo lingüístico/cultural e ao
realismo representacionista:

25
Boghossian se queixa da inoperância da filosofia analítica em exercer sua influência no trato
de conceitos como verdade, significado e objetividade, que seriam maltratados por correntes
pós-modernistas (estas entendidas como variações do relativismo). A questão seria “por que
razão a filosofia analítica, a tradição dominante no mundo de língua inglesa, foi incapaz de
exercer uma influência correctiva mais eficiente. Afinal de contas, a filosofia analítica é
conhecida sobretudo pela sua discussão detalhada e subtil de conceitos da filosofia da
linguagem e da teoria do conhecimento, os mesmíssimos conceitos acerca dos quais o pós-
modernismo está tão rudemente equivocado” (BOGHOSSIAN, 1997, p.35).

48
trata-se da questão epistemológica do realismo: como
conciliar a suposição de um mundo independente de
nossas descrições, idêntico para todos os observadores,
com a descoberta da filosofia da linguagem segundo a
qual nos é negado um acesso direto, não mediatizado
pela linguagem, à realidade “nua”. (HABERMAS, 2004a,
p.8)

Não tratarei aqui da tentativa habermasiana de conciliação entre as


partes, nem do resgate que Nagel pretende fazer da razão como uma
possibilidade de conter os abusos que a análise da linguagem tem cometido,
levando ao relativismo. A intenção é tão somente apresentar a dramaticidade
do problema, os caminhos através dos quais ele pode ser abordado. Importa
fazer isso para contextualizar o papel daquele que pretende superar o debate,
Richard Rorty.

O exame rigoroso das duas tendências citadas, doravante a disputa


realismo versus antirrealismo, assim como a alternativa neopragmática a elas,
poderá mostrar quais são as suas motivações e conseqüências para o ensino
de ciências. É o que veremos a seguir.

49
2. A DISPUTA REALISMO VERSUS ANTIRREALISMO E O
NEOPRAGMATISMO

O objetivo deste capítulo é mostrar em que consiste a controvérsia sobre


o realismo, ou, como tem sido denominado na contemporaneidade, a disputa
realismo/antirrealismo. Existem várias formas de realismo (MORA, 2001,
pp.2471-2475)26. Aqui, tratarei somente de quatro delas, a saber: realismo
ontológico ou metafísico (segundo o qual há uma realidade externa à mente e
independente dela), realismo epistemológico (que concorda com o realismo
ontológico no que diz respeito à existência de uma realidade externa
independente de nossas mentes, acrescentando que podemos conhecer certos
aspectos dessa realidade), realismo científico (engloba a tese do realismo
epistemológico associado especificamente ao papel das teorias científicas e do
que caracteriza uma atividade científica) e o realismo semântico (concentra-se
nos aspectos, valha a redundância, semânticos da relação entre linguagem e
realidade – de até que ponto nossas asserções sobre o mundo são verdadeiras
ou correspondem à realidade). Farei apenas uma apresentação sumária
dessas quatro formas de realismo, tendo como alvo explicitar algumas posturas
de rechaço a ele, o que estou chamando aqui, na esteira de Dummett (1996),
de antirrealismo.
Em seguida, após fazer uma breve contextualização do pragmatismo,
sem nenhuma pretensão de reconstruir a sua história, apresentarei a dimensão
neopragmática da tentativa de superação desse debate desde a perspectiva de
Richard Rorty, para o qual tanto realistas quanto antirrealistas são
representacionalistas e cada qual, à sua maneira, reivindica para si a
possibilidade, já extenuada, de ir além dos limites de nossas mentes ou de
nossa linguagem para resolvermos problemas ligados ao conhecimento.
Posteriormente, mostrarei que Rorty desloca o problema da epistemologia para
a política – algo que será mais bem desenvolvido no capítulo 3.

2.1. O DEBATE REALISMO VERSUS ANTIRREALISMO

26
Além do realismo ontológico, epistemológico, científico e semântico, pode-se falar em
realismo político, realismo empírico, realismo moderado, realismo gnosiológico, realismo
ingênuo, dentre outros.

50
Tradicionalmente ao realismo se opõe o idealismo, a tese segundo a
qual as coisas não existem independentemente da mente humana, sendo, às
vezes, como defendem alguns filósofos dessa doutrina, produzidas pela mente
(BERKELEY, 1980, p.70)27. Por outro lado, filósofos realistas afirmam que o
mundo existe independentemente de nossas mentes, seu status ontológico
permanece o mesmo quer nós existamos quer não (HUME, 1980)28. O debate
realismo/idealismo está entre os mais árduos da filosofia e ocupou as mentes
de brilhantes personalidades da história moderna do pensamento ocidental.
De uma maneira geral, além de argumentar que o mundo existe
independentemente de nós, o realismo é dotado pela confiança de que é
possível conhecê-lo verdadeiramente, no sentido de que se pode representá-lo
tal qual ele é. Segundo Blackburn, o argumento dos realistas “invoca alguma
relação entre os comprometimentos da área e a realidade a qual eles
respondem”, onde:
Os comprometimentos em questão são capazes de
verdade estrita e literal; descrevem o mundo; respondem
ou representam fatos (independentes) de um tipo
específico; há um modo de ser do mundo que os torna
verdadeiros ou falsos. Esses fatos são descobertos, não
criados e possuem suas próprias naturezas “ontológicas”
e “metafísicas”, sobre as quais a reflexão pode nos
informar. (BLACKBURN, 2006, p. 189)

Caracterizado dessa forma, o realismo é tanto uma tese ontológica quanto


epistêmica. Por um lado, ele assevera que o mundo existe independentemente
de nós, qual seja, sua existência não depende da nossa; por outro, que é
epistemicamente independente de nós, no sentido de que sua existência não
depende da nossa possibilidade de conhecê-lo, e ainda mais longe, que ele
detêm “um modo de ser” que determina a veracidade ou falsidade de nossas

27
Certamente, Berkeley é uma referência essencial para a tese idealista. A sua obra “Três
diálogos entre Hilas e Filonous” (1980) caracteriza-se tanto pela elegância estilística quanto
pela perspicácia dos argumentos. Apesar de Bertrand Russell considerar os argumentos
idealistas falaciosos, não deixa de fazer a seguinte consideração acerca da importância da tese
no âmbito da teoria do conhecimento e do lugar de Berkeley na discussão: “Os fundamentos
com base nos quais o idealismo é advogado são geralmente derivados da teoria do
conhecimento, ou seja, de uma discussão das condições que as coisas têm de satisfazer de
modo a podermos conhecê-las. A primeira tentativa séria de estabelecer o idealismo nessa
base foi a do bispo Berkeley” (RUSSELL, 2008, p. 100).
28
Uma estimulante discussão sobre o problema da existência ou não do mundo exterior é
oferecida por Plínio Smith no ensaio “Uma solução cética para o problema do mundo exterior”
(Cf. SMITH, 2005).

51
descrições. O realismo epistêmico pressupõe o realismo ontológico, mas o
contrário pode não ser verdadeiro, uma vez que se pode admitir a existência do
mundo exterior e, no entanto, negar a possibilidade de conhecê-lo
verdadeiramente, ou de se ter um acesso direto a ele. Alguém pode ser cético
quanto à possibilidade de conhecermos o mundo tal qual ele é, admitindo, no
entanto, a existência do mundo29.
No âmbito científico, a tese filosófica do realismo, segundo a qual as
coisas existem independentemente de nossas mentes e que podemos
conhecê-las (ainda que indiretamente) ou descrevê-las corretamente (ainda
que aproximadamente), não ficou imune às predições e conquistas
tecnológicas das ciências modernas. Ao contrário, encontrou nelas sim um
forte argumento a favor de si mesma. Afinal, o que as teorias científicas
modernas de alguma maneira parecem mostrar é que elas se aproximam de
uma descrição do mundo tal qual ele é; caso contrário, não haveria como
justificar o fato de as mesmas serem bem sucedidas na prática. O argumento
do sucesso preditivo das ciências apresenta-se à primeira vista como
irrefutável. Pareceria um pouco ingênuo demais a qualquer um acreditar que a
chegada do homem à lua foi fruto do acaso, quando é sabido que para tal foi
necessária a confluência de vários ramos do saber científico (física, química,
medicina etc.) com vistas a esse objetivo. Teorias científicas parecem,
portanto, de alguma maneira nos informar acerca de algo da realidade, a ponto
de se criar as condições necessárias para nos movermos nela com certa
segurança. Decerto, o sucesso da ciência não pode ser atribuído à obra do
acaso ou à interferência de algo sobrenatural, por conseguinte, as teorias
científicas devem descrever o mundo adequadamente (PUTNAM,1975,73). O
encontro da doutrina filosófica do realismo com o sucesso preditivo das
asserções científicas gerou uma forma específica de realismo: o científico.
Por outro lado, muitas objeções foram levantadas ao realismo
científico30, assim como concepções alternativas a ele foram erguidas. Na

29
Esse posicionamento pode ser compreendido como uma forma geral de realismo
denominado de realismo representativo, que consiste “na combinação de uma tese ontológica
segunda a qual o mundo existe, independentemente de ser percebido por alguma mente, e de
uma tese epistemológica segundo a qual nós temos acesso indireto a essa realidade por meio
do nosso modo de representar essa realidade” (SMITH, 2005, p.300).
30
O “empirismo construtivista” de van Fraassen seria uma dessas objeções. Ele define o
antirrealismo como “a posição segundo a qual o objetivo da ciência pode bem ser atendido sem

52
contemporaneidade, há certo deslocamento do debate que leva a
determinadas formas de oposição ao realismo, mas que não significam
necessariamente idealismo. Ademais, o idealismo enquanto uma doutrina
filosófica ampla e bastante diversificada pode ter características pouco
relevantes para o debate com o realismo. Precisamente por esses motivos,
Michael Dummett (1996, p.463) se utiliza do termo antirrealismo para designar
de maneira generalista atitudes filosóficas de rechaço ao realismo. Nas duas
seções seguintes tratarei do realismo científico, entendendo o mesmo como
contendo o realismo epistemológico e o ontológico. Posteriormente, na esteira
de Dummett, será apresentada brevemente a versão do realismo em termos
semânticos. Essa modesta apresentação tem somente a intenção de preparar
o caminho para a compreensão da tentativa neopragmática de Richard Rorty
de superação do debate realismo/antirrealismo.

2.1.1 Realismo Científico


O realismo científico se caracteriza por asseverar que nós podemos
atestar que as teorias científicas se adéquam ao mundo de maneira fidedigna.
O mundo, por sua vez, seria independente dos sujeitos, quer dizer, quaisquer
que sejam as propriedades dele, desde a perspectiva do realismo científico,
não dependem de qualquer intervenção humana, no sentido de se submeter à
nossa vontade ou à forma como às descrevemos. Significa que o que torna
uma teoria verdadeira ou não é precisamente o grau de adequação ou
correspondência ao mundo, ou a objetos no mundo, que ela alcança. Uma
definição do realismo científico tida como ingênua é formulada da seguinte
forma:
o retrato que a ciência nos dá do mundo é verdadeiro,
fidedigno nos detalhes, e as entidades postuladas na
ciência realmente existem; os avanços da ciência são

fazer tal relato verdadeiro [do mundo], e a aceitação de uma teoria pode, de modo apropriado,
envolver algo menos (ou diferente) que a crença de que ela é verdadeira” (2007, p.30). Assim
como o realismo, há muitas formas de antirrealismo. Van Fraassen, por exemplo, defende que
seu empirismo construtivista não é antirrealista da mesma forma que o de Dummett (2007,
p.78-79). Este, além de formular os termos do debate em realismo versus antirrealismo, propõe
um programa de investigação antirrealista embasado semanticamente. Rorty, por sua vez,
espera superar o debate nesses termos (realismo versus antirrealismo), mas creio que não
seria exagerado dizer que seus argumentos têm características antirrealistas, como veremos
adiante.

53
descobertas, e não invenções (VAN FRAASSEN, 2007,
p.24)31.

Apesar de considerá-lo ingênuo, van Fraassen não deixa de apontar que esse
enunciado contém duas características fortes do realismo: primeiro, descreve a
teoria científica como abordando entidades realmente existentes; segundo, que
tais entidades são descobertas pela atividade científica, e não inventadas.
Portanto, estabelece o comprometimento da teoria com a verdade e da
atividade científica com a realidade do mundo. Verdade e objetividade,
segundo essa formulação, fazem parte da relação que uma teoria científica
estabelece com o mundo. O problema se torna mais denso quando temos em
conta que, ao recorrer à teoria, a ciência não só postula entes observáveis no
nosso cotidiano, mas também entes e processos inobserváveis, tais quais
elétrons, campos eletromagnéticos, vírus, ligações moleculares etc., noções
muitas vezes indispensáveis para a predição e explicação de fenômenos
físicos (observáveis ou não). Daí Chibeni (1996, pp. 46-47) afirmar sobre o
realismo científico no que se refere aos entes não-observáveis:
O realismo científico sustenta que aquilo que as teorias
científicas afirmam acerca desse mundo sub-fenomênico
pode, de fato, representar conhecimento genuíno; o
conhecimento humano seria passível de avançar além
dos limites do que é diretamente observável. (CHIBENI,
1996, pp. 46-47)

Curiosamente, o realismo científico postula entidades não-observáveis, ou, ao


menos não diretamente observáveis, para sustentar a interpretação de
determinados fenômenos diretamente acessíveis à observação. A dificuldade
está em conciliar a ideia de objetividade e de verdade como correspondência
com um mundo de entidades inobserváveis. Claro que isso não é uma
arbitrariedade do realismo científico, mas parte do seu próprio processo

31
Nesta formulação preliminar proposta aqui sobre a noção de realismo científico, há o
problema da observabilidade das entidades. Os objetos e eventos supostamente podem ser
classificados em observáveis e inobserváveis. Van Fraassen faz a seguinte distinção dos
termos: “O termo ‘observável’ classifica entidades postuladas (que podem existir ou não). Um
cavalo alado é observável – é por isso que estamos tão certos de que não existe nenhum – e o
número dezessete, não. Supõe-se que haja uma classificação correlata de atos humanos: um
ato de percepção sem ajuda, por exemplo, é uma observação. O cálculo da massa de uma
partícula a partir de deflexão de sua trajetória em um campo de força conhecido não é uma
observação dessa massa”. (VAN FRAASSEN, 2007, p.38)

54
explicativo32. Essa característica do realismo científico o afasta de uma visão
que poderia parecer se tratar de uma tese trivial, próxima ao de um realismo do
senso comum e, em certa medida, tradicional.
O realista tradicional parte do princípio de que os nomes
gerais correspondem,de maneira mais ou menos unívoca,
a várias “propriedades” de “objetos”, em algum sentido de
“propriedade” e em algum sentido de “objeto”
estabelecidos de uma vez por todas, e de que as
alegações de conhecimento são simplesmente alegações
sobre a distribuição dessas “propriedades” nesses
“objetos”. (PUTNAM, 2008a, p. 22)

Mas será que, ao postular sobre entidades não-observáveis, realistas não


estariam indo longe demais? Para que a ciência faça uma descrição verdadeira
do mundo, seria justo que ela se restringisse à parte observável dele, pois no
que se refere aquilo que não é observável não faz diferença se o discurso
científico é verdadeiro ou não, já que nesse caso não há dados empíricos
suficientes para comprovar sua veracidade. De fato, partículas quânticas não
são bolas de bilhar e, portanto, não devem ser tratadas da mesma forma sob
pena de cometermos grandes equívocos33. Objetos de algumas ciências, como
a física quântica, não se deixam capturar tão facilmente – e sua existência fica
condicionada a sofisticadas teorias e aparelhagens que ultrapassam as
faculdades de observação comum dos seres humanos. Sendo assim, realistas
e antirrealistas podem concordar no que diz respeito à existência de certas

32
Segundo Chibeni, essa característica do realismo científico é usada pelo antirrealista van
Fraassen como um argumento contra o mesmo: “O principal argumento de van Fraassen
contra o realismo científico é de que as teorias científicas que baseiam suas previsões e
explicações dos fenômenos em supostos mecanismos inacessíveis à observação direta são
subdeterminados empiricamente, ou seja, os dados empíricos são por princípio insuficientes
para determinar o valor de verdade de algumas de suas proposições fundamentais. Assim, é
possível que duas teorias incompatíveis em suas proposições teóricas sejam empiricamente
equivalentes, isto é, coincidam no que afirmam a respeito do que é observável. Para manter
sua posição, o realista científico tem que fornecer critérios para a discriminação epistêmica das
teorias empiricamente equivalentes. Ora, por necessidade, esses critérios não poderão ser
empíricos, e tipicamente envolvem fatores como o poder explicativo, a simplicidade, a unidade
etc. É precisamente aqui que o anti-realista empirista centra sua crítica: o apelo a tais
princípios não-empíricos (ou superempíricos) significaria um rompimento com os ideais
empiristas tradicionais. Segundo van Fraassen, eles não dizem respeito às relações da teoria
com o mundo, mas com os usuários da teoria, dependendo assim de fatores históricos,
culturais, psicológicos, sociológicos etc.” (1996, p.4)
33
Putnam faz notar que alguns filósofos adeptos do realismo científico tendem a tratar os
objetos da ciência moderna, precisamente a física, à maneira de objetos ordinários, “não levam
em conta que as partículas da física moderna não são pequenas bolas de bilhar e, desse
modo, esquecem-se do fato de ter surgido, dentro da própria física, uma outra extensão da
noção de ‘objeto’” (2008a, p.21-22).

55
entidades, sobretudo àquelas observáveis, mas discordar com relação às
demais, inobserváveis. O problema para os antirrealistas é que não há como
confrontar os enunciados científicos com um mundo de objetos ou estado de
coisas não-observáveis para, então, determinarmos seu valor de verdade.
Dummett descreve o impasse nos seguintes termos:
O antirrealista acusa o realista de interpretar essas
declarações à luz de uma concepção de estados míticos
de coisas, não diretamente observável por nós, tornando-
os verdadeiras ou falsas. De acordo com o anti-realista, o
que torna verdadeiro ou falso são os estados observáveis
de assuntos sobre a base de que o juiz de seu valor de
verdade. Na interpretação do realista, estes apenas
fornece evidência para a verdade ou falsidade das
declarações, ou constitui um meio indireto de julgá-las
verdadeiras ou falsas; o antirrealista retruca que eles são
os meios mais diretos que poderia haver. (DUMMETT,
1996, p.469)

Uma vez que antirrealistas atribuem a esses estados de coisas, de entes


inobserváveis, uma conotação obscura, inescrutável, não há porque conceder
crédito a teorias que se julgam corresponder ao mundo. Ou, para ser mais
preciso, não há como verificar se os enunciados de uma teoria científica
correspondem ao mundo, já que não temos como confrontá-los com ele. Desde
esse ponto de vista, uma teoria científica pode ser boa sem necessariamente
ser verdadeira, como defende van Fraassen (2007, p.31). Mas, a rigor, o
realismo científico não espera das teorias científicas que sejam apenas boas.
Faz-se necessário que as suas verdades sejam confirmadas, ou que façam
aproximações da realidade – e o estado de coisas observáveis pode oferecer
evidências para isso. Ao postular a existência de entidades observáveis e
inobserváveis, e que as teorias científicas podem descrever adequada ou
aproximadamente essas entidades, o realismo científico coloca o mundo como
o tribunal derradeiro de nossas formulações mentais sobre ele. Nesse sentido,
teorias científicas se caracterizam por acessar entidades que são
independentes dos sujeitos, objetivas. Boas teorias são aquelas que, em última
instância, correspondam à realidade. Ao menos é esse o ideal do realismo
científico, tal como formulado por Dummett:
Há, pelo menos, como um ideal, um nível de objetividade
mais profundo do que a intersubjetividade: a forma de
descrição envolvendo conceitos que não são
essencialmente dependentes de nossas capacidades

56
perceptivas, posição no espaço e no tempo, e afins. A
obtenção de um nível de objetividade é o esforço para
descrever o mundo como ele é em si mesmo; o realismo
científico tem o crédito de lutar por esse ideal, ao qual ele
acredita que podemos nos aproximar. (DUMMETT, 1996,
p.470)

Contudo, toda essa controvérsia sobre a existência ou não de certas


entidades, assim como nossa capacidade de descrevê-las verdadeiramente,
pode parecer de pouca monta quando se pensa nas teorias como
instrumentos. Numa abordagem instrumental de problemas dessa natureza, um
físico, por exemplo, aponta Popper (2008, p. 28), está interessado somente: “a)
no domínio do formalismo matemático, isto é, no instrumento, e b) nas suas
aplicações”. Pouca relevância é dada à consistência dos argumentos, posto
que o resultado prático é óbvio. Para Popper (2008, p.28), é justamente essa
perspectiva da ciência que prevaleceu no século XX e isso foi devido à
conjunção de dois fatores: “a) as dificuldades na interpretação do formalismo
da teoria quântica e b) o êxito espetacular de suas aplicações práticas”. No que
se refere às dificuldades de interpretação formal da teoria quântica, segundo
Popper, físicos de renome, como Niels Bohr, renunciaram à pretensão de
explicar à teoria quântica em termos da descrição de algo. O poder explicativo
foi substituído pelo poder preditivo e operativo das teorias. Tal como Popper
caracteriza o instrumentalismo: “Uma teoria científica não explica o mundo,
nem o descreve: é apenas um instrumento” (POPPER, 2008, p.130).
Partindo de uma abordagem instrumental das teorias científicas, atribuir
ao realismo científico à pretensão de que as teorias científicas correspondam à
realidade talvez seja onerá-lo demais. Faz-se necessário esclarecermos por
que se deve tratar com cautela a tese de que há uma reciprocidade verdadeira
entre as teorias científicas e o mundo, e assim tentar apresentar um conceito
mais consistente do realismo científico. Uma maneira que van Fraassen
encontrou de formular uma versão menos ingênua do realismo foi
abandonando os conceitos de correspondência e objetividade, e substituindo a
ideia de que as teorias científicas são verdadeiras pela ideia de que elas
aspiram à verdade. Na sua versão definitiva acerca do que seria o enunciado
correto do realismo científico, ele afirma: “A ciência visa dar-nos em suas
teorias um relato literalmente verdadeiro de como o mundo é, e a aceitação de

57
uma teoria científica envolve a crença de que ela é verdadeira” (VAN
FRAASSEN, 2007, p.27). Ao caracterizar as teorias científicas como
pretendendo oferecer um “relato literalmente verdadeiro de como o mundo é”,
van Fraassen remete ao caráter discursivo da teoria onde “literal” não significa
necessariamente com valor de verdade. Na sua concepção, “mediante uma
interpretação literal, os supostos enunciados da ciência realmente são
enunciados, capazes de serem verdadeiros ou falsos” (VAN FRAASSEN, 2007,
pp. 31-32). Por outro lado, ele acredita que uma interpretação literal pode se
refinar sem, no entanto, conduzir para a modificação das relações lógicas entre
os enunciados e as coisas – “se uma teoria diz que algo existe, então uma
interpretação literal pode especificar o que tal coisa é, mas não vai eliminar a
implicação de existência” (VAN FRAASSEN, 2007, p.32). Esta seria, pois, a
formulação do realismo científico mais contundente para van Fraassen e capaz
de combater algumas formas de antirrealismo, como o instrumentalismo, por
exemplo.

2.1.2 O argumento do milagre e a “inferência para a melhor explicação”


Hilary Putnam, em sua fase mais realista, alega que, ou as teorias
científicas descrevem o mundo realmente, ou tudo isso é obra de um milagre.
Em suas palavras:
o argumento claro em favor do realismo é que ele é a
única filosofia que não faz do sucesso da ciência um
milagre. Que os termos na teoria científica madura são
termos caracteristicamente referenciais (essa formulação
é devida a Richard Boyd), que as teorias aceitas em uma
ciência madura são, caracteristicamente,
aproximadamente verdadeiras, que o mesmo termo pode
se referir à mesma coisa mesmo quando ocorre em
diferentes teorias – esses enunciados são considerados
pelos realistas científicos não como verdades
necessárias, mas como parte da única explicação
científica do sucesso da ciência e, logo, como parte de
qualquer descrição científica adequada da ciência e de
suas relações com seus objetos. (PUTNAM, 1975, p.73)

Essa formulação, que Putnam atribui a Richard Boyd, consiste na tese de que
o realismo é uma boa explicação para o sucesso preditivo da ciência, uma tese
que não necessita recorrer a fatores exógenos – a ciência mesma é chamada a
tornar inteligível seu êxito. Em outras palavras, “O realismo se torna, por assim

58
dizer, a própria teoria da ciência sobre si mesma e com todas as credenciais da
ciência” (BLACKBURN, 2006, p.268), ao tempo em que, enquanto tese
filosófica, favorece uma explicação da ciência em que seu sucesso no domínio
empírico, prático ou da observação, supostamente evidencia seu caráter
consistente enquanto teoria. Portanto, trata-se de uma alegação a favor da
ideia de que teorias científicas bem sucedidas deveriam ser aceitas como
descrições do mundo aproximadamente verdadeiras, pois elas apresentam a
melhor explicação dos fenômenos observáveis ou não que foram previstos por
elas.
Ao programar a projeção de um foguete para o espaço, admite-se para
isso que a gravidade é uma realidade, que a lua gira em torno da terra, que
fazemos parte de um sistema no qual o sol é seu centro, que os cálculos
relativos à velocidade etc. funcionam e mais e mais e mais – e que tudo isso é
uma operação rotineira sem qualquer interferência de forças sobrenaturais,
qual seja, sem milagres. Fazer isso nada mais é do que repetir as explicações
que a própria ciência oferece para o seu sucesso. Ou, como afirma Blackburn
(2006, p. 276), ao comentar o argumento de Putnam-Boyd: “A ciência explica o
sucesso da ciência” – melhor para os que não crêem em milagres. Como faz
notar Nagel, confirmar ou infirmar empiricamente a ordenação do mundo e
buscar explicar fenômenos particulares por meio de leis gerais, contêm algo de
circular:
quando formulamos uma lei de qualquer espécie, com
base em nossas observações, e em seguida a
confirmamos por meio da experimentação, a confirmação,
bem como a formulação original, dependem do
julgamento de que a melhor explicação sistemática da
relação entre as observações originais e os nossos
experimentais é aquela que os recobre de modo
sistemático – uma explicação de acordo com a qual não
se trata de acidente. (NAGEL, 2001, p.108-109)

Ao argumentar que a ciência é capaz de se explicar desde dentro, sem recorrer


a eventos que não advenham da própria ciência, realistas científicos sugerem
que antirrealistas flertam com certo transcendentalismo 34. Não obstante, o

34
Blackburn (2006, p. 268) escreve: “se a teoria inclui o melhor de toda a nossa compreensão
empírica e científica do mundo, então a postura externa é necessariamente ‘transcendental’:
nunca poderíamos ocupá-la nem sequer chegar perto de ocupá-la, fosse qual fosse a duração
e sucesso de nossas inquirições empíricas e teóricas”.

59
argumento da explicação endógena da ciência não implica seu isolamento
frente ao mundo – “em larga medida, a ordenação que encontramos em nossa
experiência é produto de uma ordenação que ali está, independente de nossas
mentes” (NAGEL, 2001, p.113).
O argumento do milagre não encerra a discussão, pois o que ele
apresenta não é uma prova contundente de que o realismo científico está certo.
Apenas aponta para a plausibilidade de se optar pela explicação de que as
entidades às quais as teorias científicas se referem realmente existem, em vez
de enveredarmos por caminhos misteriosos. É melhor levar em consideração
que as teorias científicas têm algo a ver com o mundo, tendo-se em conta seu
elevado grau de sucesso empírico, do que crer em coincidências, bruxarias,
demônios ou coisas afins35. Tal como formulado por Putnam, o argumento do
milagre é uma forma peculiar de petição a favor do realismo científico.
O argumento de Putnam pode ser compreendido também como uma
variação da regra de inferência para a melhor explicação. Van Fraassen (2007)
e Chibeni (1996) apontam Charles Peirce como o precursor desse tipo de
argumento, mas como ele foi desenvolvido recentemente deve-se à formulação
de Gilbert Harman (1965). O próprio Harman afirma que a terminologia que ele
utiliza, “inferência para a melhor explicação”, é uma tentativa de evitar
sugestões enganosas de outras terminologias (como “abdução”, “o método de
hipóteses”, “inferência hipotética”, “o método de eliminação”, “indução
eliminativista”, “inferência teórica”), mas que a elas correspondem
aproximadamente36.

35
Um argumento próximo ao apresentado por Putnam a favor do realismo científico é o por
vezes denominado “argumento da coincidência cósmica”. Chibeni (2006, p.225) atribui as
raízes desse argumento a Descartes, mas como ele ficou conhecido teria se dado devido à
forma como J. J. C. Smart o apresentou, que Chibeni resume da seguinte maneira: “[o
argumento da coincidência cósmica] consiste em alegar que se uma teoria prediz corretamente
uma grande quantidade e variedade de fenômenos é improvável que seja falsa acerca do
mundo sub-fenomênico de que suas predições empíricas dependem. Se as entidades não-
observáveis postuladas pelas teorias não existissem, e se o que a teoria diz sobre elas não
existissem, e se o que a teoria diz sobre elas não fosse aproximadamente verdadeiro, somente
uma coincidência de proporções cósmicas poderia explicar o seu sucesso empírico” (CHIBENI,
1996, p.51).
36
Cito Harman: “The inference to the best explanation" corresponds approximately to what
others have called "abduction," "the method of hypothesis," "hypothetic inference," "the method
of elimination," "eliminative induction," and "theoretical inference." I prefer my own terminology
because I believe that it avoids most of the misleading suggestions of the alternative
terminologies”. (HARMAN, 1965, 88-89)

60
A inferência para a melhor explicação, tal como formulada por Harman,
consiste no seguinte:

Ao inferir a melhor explicação se infere, do fato de que


certa hipótese explicaria a evidência, a verdade desta
hipótese. Em geral, várias hipóteses podem explicar a
evidência, por isso devemos ser capazes de rejeitar todas
as hipóteses alternativas antes de estarmos seguros de
fazer a inferência. Portanto se infere, da premissa de que
uma hipótese forneceria uma “melhor” explicação para a
evidência do que quaisquer outras hipóteses, a conclusão
de que esta determinada hipótese é verdadeira.
(HARMAN, 1965, p.89)

Harman conclui que uma determinada hipótese é verdadeira se ela


oferece, perante as demais, uma melhor explicação. Em outras palavras, diante
do enunciado de uma evidência em que há hipóteses alternativas para explicar
essa evidência, deve-se partir para uma apreciação dessas evidências,
comparando-as entre si. Será verdadeira aquela que oferecer a melhor
explicação para a evidência em questão. Por exemplo, quando o cientista
infere a existência de átomos e de partículas subatômicas, ele está inferindo a
verdade de uma explicação para vários dados que deseja explicar (HARMAN,
1965, p.89). Ao fazer isso, Harman estabelece uma relação estreita entre
verdade e melhor explicação.
O problema de como se pode julgar se uma determinada hipótese é
melhor do que as outras não passa despercebido por Harman. Ele presume
que o julgamento das hipóteses leve em consideração características como
simplicidade, plausibilidade, maior grau de explicação etc. Porém, este é um
problema que ele assumidamente não se propõe a abordar naquele momento
(HARMAN, 1965, p.89).
A sugestão é de que a regra da inferência para a melhor explicação
pode ser usada tanto em casos “ordinários” quanto naqueles mais singulares,
como no caso do realismo científico37. A questão é saber se o mesmo

37
Um caso ordinário seria, por exemplo, esse relatado por van Fraassen: “ouço um arranhar na
parede, o sapateado de pequenos pés à meia noite, meu queijo desaparece – e infiro que um
camundongo veio viver comigo. Não acho apenas que esses sinais aparentes da presença de
um camundongo vão continuar, nem apenas que todos os fenômenos observáveis vão ser
como se houvesse um camundongo, mas que realmente há um camundongo” (VAN
FRAASSEN, 2007, p.46). Casos não ordinários seriam aqueles que envolvem inobserváveis,
como partículas subatômicas, por exemplo.

61
argumento utilizado para casos ordinários seria suficiente para levar-nos, por
exemplo, à crença da existência de entes inobserváveis.

2.1.3 A controvérsia do realismo em termos semânticos


Uma formulação distinta da disputa acerca do realismo, da qual van
Fraassen não compartilha, é proposta por Michael Dummett. Para este, o que
está em jogo é uma questão de linguagem. Deveríamos deixar de falar sobre a
“classe polêmica dos objetos” e passarmos a falar sobre a “classe polêmica de
enunciados”, basicamente por dois motivos: Primeiro por que nessa disputa há
certos objetos que parecem simplesmente não existir. Seria o caso do realismo
relativo ao passado ou do realismo relativo ao futuro. O equívoco estaria em
tratar estados de coisas como objetos; O segundo motivo advém de uma
polêmica na matemática acerca de seus objetos. Dummett aponta que,
dependendo da orientação teórica, pode-se negar que os objetos matemáticos
tenham “propriedades distintas das que somos capazes de reconhecer”, ou,
por outro lado, que “os objetos matemáticos são criações livres da mente
humana”, porém, uma vez criados, gozam de propriedades independentes.
a diferença significativa encontra-se entre aqueles que
consideram todas as afirmações matemáticas cujo
significado é determinado a possuir um claro valor de
verdade independentemente de nossa capacidade para
descobri-lo, e aqueles que pensam que a sua verdade ou
falsidade consiste na nossa capacidade de reconhecê-lo.
(DUMMETT, 1996, p.465)

Dados os dois argumentos acima, Dummett justifica seu posicionamento de se


concentrar antes na linguagem do que em qualquer outra coisa – a disputa do
realismo não é propriamente acerca de objetos e sim de enunciados: “em que a
realidade consiste não é determinado apenas por que objetos existem, mas por
que proposições são válidas: o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas”
(DUMMETT, 1996, p.465). Mas esses motivos ainda não seriam determinantes
para a passagem que Dummett faz de sua preocupação com a classe de
objetos para a de enunciados, embora assuma que isso deixa sua atitude mais
plausível. A motivação cabal para a sua recomendação em nos preocuparmos
com os enunciados em vez de com o status metafísico dos objetos estaria nos

62
impasses entre concepções distintas de realidade e a carência de meios
(formas) de decidirmos qual delas (dessa variedade) é a correta.

posto que os desacordos metafísicos plasmavam


concepções diferentes acerca da realidade a que se
referiam os enunciados, me parecia óbvio que o que
subtraía as disputas eram diferentes concepções de
significado desses enunciados. Posto que não havia
nenhuma maneira de dizer que concepção de realidade
era correta, a aproximação mais frutífera consistia em
investigar de que concepção de significado se tratava.
(DUMMETT, 1996, p.465)

Ao se concentrar nos aspectos lingüísticos da teoria, Dummett intenta escapar


estrategicamente do debate no âmbito do status metafísico das entidades. A
maneira de lidar com o problema da existência de determinadas entidades é
interpretá-lo em termos semânticos. Logo, a controvérsia que envolve realismo
versus antirrealismo pode ser interpretada antes em termos de aspectos
linguísticos que usamos para falar sobre o mundo do que sobre aspectos do
mundo. Ou, como declara Dummett: “Eu preferi falar sobre a ‘disputa da classe
polêmica dos enunciados’ em vez de falar sobre a ‘disputa da classe polêmica
dos objetos’” (DUMMETT, 1996, p.465). Portanto, não é o caso de sabermos
se nossas asserções correspondem ou não à realidade, mas de se elas são
verdadeiras ou não.

2.2 O CONTEXTO (NEO)PRAGMÁTICO DE RICHARD RORTY E A


SUPERAÇÃO DA DISPUTA REALISMO/ANTIRREALISMO
Uma objeção ao realismo epistemológico em geral e ao realismo
científico em especial pode surgir de uma postura pragmatista em relação ao
conhecimento. Desde o ponto de vista do neo-pragmatismo de Rorty, tanto
verdade quanto correspondência, assim como objetividade, são vocábulos
dispensáveis. Por conseguinte, sem eles, cai por terra a noção de realismo
científico de que temos tratado até aqui. Não designaremos tal postura como
antirrealista, pois o próprio Rorty pretende superar o debate nesses termos e
fazer uma nova descrição em que essas noções sejam abandonadas.
Respaldando o posicionamento do filósofo da ciência Arthur Fine, o qual ele
declara ser seu preferido, Rorty afirma que “não deveríamos ser nem realistas

63
nem antirrealistas, que toda a questão entre realismo e antirrealismo deveria
ser posta de lado” (2006, p.107) 38.
Poder-se-ia pensar que se trata de apenas mais um pensador excêntrico
em meio ao turbilhão de ideias do cenário atual da chamada pós-modernidade.
Mas Rorty não está sozinho. Ele pertence a uma tradição: o pragmatismo.
Alinha-se, com muitas ressalvas, a Dewey, James, Peirce, Putnam, Quine,
Davidson etc. Veremos em que consiste essa tradição na qual ele se insere e
da qual é certamente um dos mais expressivos representantes da segunda
metade do século XX. Posteriormente, nos concentraremos em suas ideias
acerca do conhecimento e, ao fim deste trabalho, desdobraremos daí algumas
implicações para o ensino de ciências.

2.2.1 Pragmatismo clássico e crítica à metafísica


Entende-se por pragmatismo um movimento filosófico que se originou
nos Estados Unidos por volta de 1880, sendo-lhe atribuído muitas vezes o
nome de filosofia americana. Os norte-americanos Charles Sanders Peirce
(1839-1914), William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952) são
considerados os três pragmatistas clássicos. Rorty entende que, apesar de os
três apresentarem preocupações filosóficas distintas, eles mantêm uma
oposição compartilhada à teoria da verdade como correspondência, adotam
uma visão darwiniana dos seres humanos e, concomitantemente, suspeitam
profundamente de certos problemas herdados da modernidade. Esses
problemas são, sobretudo, de ordem epistemológica, como os dualismos
sujeito-objeto, aparência-realidade, espírito-matéria, que são posteriormente
enfrentados por filósofos como Willard van Orman Quine, Hilary Putnam e
Donald Davidson, que Rorty liga à tradição pragmatista, constituindo assim
com ele o chamado neopragmatismo.
Em certos momentos, James irá entender o pragmatismo como um
método com o qual podemos enfrentar determinados problemas filosóficos,
verificando antes suas implicações práticas para depois decidir se se trata de
uma questão que precisa ser solucionada. Nesse sentido, o pragmatismo visa

38
A objeção de Rorty à querela realismo versus antirrealismo consiste em afirmar que se trata
de uma daquelas querelas sem nenhuma incidência prática e que, portanto, deve ser
abandonada, fazendo jus à fórmula pragmática de Peirce.

64
“assentar disputas metafísicas que, de outro modo, se estenderiam
interminavelmente” (JAMES, 1979, p. 18). O que pragmatistas desejam é
baixar a poeira dos grandes confrontos metafísicos, buscando as
conseqüências práticas caso numa determinada disputa, tivéssemos de
escolher entre uma ou outra alternativa. Saber se o mundo é um ou muitos ou
se sua constituição é material ou espiritual, em que implica na vida prática
humana? Caso a resposta a essas questões não faça diferença nenhuma na
prática, não há por que se preocupar com elas:
O método pragmático nesses casos é tentar interpretar
cada noção traçando as suas conseqüências práticas
respectivas. Que diferença prática haveria para alguém
se essa noção, de preferência àquela outra, fosse
verdadeira? Se não pode ser traçada nenhuma diferença
prática qualquer, então as alternativas significam
praticamente a mesma coisa, e toda disputa é vã.
Sempre que uma disputa é séria, devemos estar em
condições de mostrar alguma diferença prática que
decorra necessariamente de um lado, ou o outro estar
correto (JAMES, 1979, p. 18).

Não há precisamente uma teoria do conhecimento pragmatista, nem tampouco


o método pragmático, se tivermos em conta a variedade de posições que cada
um dos chamados pragmatistas tiveram e têm com relação ao conhecimento.
Essa pluralidade de temas e perspectivas faz crescer a dificuldade em se
apresentar um conceito geral e preciso do que seria propriamente o
pragmatismo. Isto não nos deve levar a crer que se trata necessariamente de
uma característica negativa. A falta de uma definição precisa, nesse caso,
aponta justamente para o exercício de uma faculdade aberta, dinâmica, não
teleológica, que tenta conciliar (ou até mesmo superar) dimensões humanas
muitas vezes contraditórias. A fim de ilustrar o lugar maleável no qual o
pragmatismo se encontra, pragmatistas recorrem a uma imagem:
[o pragmatismo] situa-se no meio de nossas teorias,
como um corredor em um hotel. Inúmeros quartos dão
para ele. Em um, pode-se encontrar um homem
escrevendo um volume ateístico; no próximo, alguém
rezando por fé e força; em um terceiro, um químico
investigando as propriedades de um corpo. Em um
quarto, um sistema de metafísica idealística está sendo
excogitado; em um quinto a impossibilidade da metafísica
está sendo demonstrada. Todos, porém, abrem para o
corredor, e todos devem passar pelo mesmo se quiserem

65
ter um meio prático de entrar e sair de seus respectivos
aposentos. (JAMES, 1979, p. 21)

Rorty cita esse trecho de James quando se propõe a explicar o pragmatismo.


Trata-se de uma alegoria elaborada por Giovanni Papini, talvez um dos
principais pragmatistas italianos, que coordenou a revista militante Leonardo
(1903). Papini foi profundamente influenciado por William James e este, por
ocasião de sua visita a Roma, em 1905, impressionou-se com o movimento
pragmatista italiano, no qual se reconhece enquanto inspirador (WAAL, 2007,
p. 103-104). Portanto, a referência a Papini por James não é arbitrária – o
mestre escuta o eco de sua voz no discípulo e trata de legitimá-la. Que Papini,
James e Rorty recorram a essa imagem para explicar o pragmatismo é um
sintoma de que se trata de uma boa imagem, ou no mínimo relevante. Como
bem observou Blackburn, “o próprio corredor de Papini o levou para dentro e
para fora de diversos quartos diferentes; por diversas vezes ele se tornou
niilista, futurista e católico” (2006, p. 24).
A desconfiança de que certos problemas metafísicos, como, por
exemplo, o dualismo espírito-matéria, não levam a lugar nenhum quando
tratados desde o ponto de vista pragmático, faz com que pragmatistas
empreendam uma rigorosa crítica à história da filosofia, por entenderem que a
mesma desde o princípio se move dentro de dualismos. Pragmatistas almejam
a superação do dualismo espírito-matéria e esperam fazê-lo através de uma
espécie de síntese desses aspectos explicativos historicamente separados na
filosofia. Segundo a descrição de Faerna, seria essa uma das características
mais marcantes do pragmatismo, de maneira que seu enunciado geral poderia
ser o seguinte:

Lograr uma síntese conceitual entre a interpretação do


homem como ser que pensa, que julga e que
compreende, e a interpretação do homem como ser que
atua, que projeta, que toma decisões e que valora.
(FAERNA, 1996, p.7)

Essa síntese envolveria tanto aspectos da realidade natural do homem quanto


de ordem pensante ou espiritual. Dessa forma, a divisão clássica entre homem
e natureza é borrada, na medida em que se faz uma descrição do mundo na
qual nós não somos algo à parte, mas pertencentes ao processo evolutivo no

66
qual, como outros animais, desenvolvemos meios para a sobrevivência – “a
consciência deve ser compreendida em continuidade com – já que não
reduzida a – a realidade não consciente”. (FAERNA, 1996, p.8 – grifo do autor).
A superação do dualismo espírito-matéria pelo pragmatismo dá-se sob a
égide de uma visão naturalista do mundo de inspiração darwiniana. O lócus
dessa superação seria a experiência. James a entende como a base de todo o
saber e de toda a ação. Ela nos ajuda simplesmente a não nos conformarmos
com um suposto universo “dado”, abstrato, com soluções verbais, más razões
a priori, princípios firmados, sistemas fechados com pretensões absolutistas ao
gosto dos filósofos de temperamento racionalista, e abre a possibilidade de nos
situarmos no mundo, numa atenção constante à realidade. O filósofo
pragmatista
Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a
ação e o poder. O que significa o reinado do
temperamento empírico e o descrédito sem rebuços do
temperamento racionalista. O que significa ar livre e
possibilidades da natureza em contraposição ao dogma,
à artificialidade e à pretensão de finalidade na verdade.
(JAMES, 1979, p.20)

Em Dewey, o termo “experiência” teria sido usado em vários sentidos,


provocando a acusação de seus críticos de que ele reduzira a ideia de
experiência à de experimento. Mas não seria essa a acepção de experiência
em Dewey, assim como constituiria uma injustiça restringir a tal seu papel no
pragmatismo. O sentido enfatizado aqui para os propósitos dessa descrição é o
da experiência enquanto projeção. Pensamentos, teorias, sentenças, enquanto
arcabouços de nossas experiências, não dizem respeito somente a “fatos”
passados, nem sequer “refletem” a natureza, mas orientam ações futuras 39.

39 Ferrater Mora oferece uma descrição das várias acepções que em Dewey tem a experiência
numa comparação entre a forma ortodoxa de entendê-la e a pragmática: 1) na concepção
ortodoxa, a experiência é considerada meramente como um assunto de conhecimento,
enquanto agora ela aparece como uma relação entre o ser vivo e o seu meio físico e social; 2)
na acepção tradicional, a experiência é, ao menos de um modo primário, uma coisa física,
embebida de subjetividade, enquanto a experiência designa agora um mundo autenticamente
objetivo do qual fazem parte as ações e os sofrimentos dos homens e que experimenta
modificações em virtude de sua reação; 3) na acepção tradicional somente o passado conta,
de modo que a essência da experiência é, em última análise, a referência ao que precedeu, e o
empirismo é concebido como vinculação ao que foi ou é dado, enquanto a experiência em sua
forma vital é experimental e representa um esforço para mudar o dado, uma projeção rumo ao
desconhecido, um marchar para o futuro; 4) a tradição empírica está submetida ao
particularismo, enquanto a atual acepção da experiência leva em conta as conexões e

67
Ao remeter pensamentos, sentenças e teorias como verdadeiras ou
falsas para o campo da experiência, pragmatistas nos convidam a romper com
o dualismo metafísico entre espírito versus matéria, sujeito versus objeto, vida
contemplativa versus vida ativa, particular versus universal, experiência versus
pensamento, a favor de uma concepção de conhecimento afim com a atuação
futura do homem no mundo. Em outras palavras, a experiência deixa de ser
apenas retrospectiva e passa a ser também prospectiva.
O Pragmatismo, então, se apresenta como uma extensão
do empirismo histórico, mas com essa diferença
fundamental, que ele não insiste sobre fenômenos
antecedentes, mas sobre fenômenos conseqüentes; não
sobre os precedentes, mas sobre as possibilidades de
ação. E essa mudança no ponto de vista é quase
revolucionária em suas conseqüências. Um empirismo
que está contente com repetir fatos passados não tem
lugar para a possibilidade e a liberdade. Não pode
encontrar espaço para concepções gerais ou ideias, ao
menos não mais do que considerá-las como sumários ou
registros. Mas quando assumimos o ponto de vista do
pragmático, vemos que ideias gerais têm um papel muito
mais importante a desempenhar do que o de registrar e
relatar experiências passadas. Elas são as bases para
organizar observações e experiências futuras. (DEWEY,
2008, p.125)

Apesar das tentativas de distinguir entre a experiência entendida à maneira


clássica (Locke, Berkeley, Hume) e a experiência desde um ponto de vista
pragmático, agora será o abandono desse termo uma das características que
diferenciará o pragmatismo do neopragmatismo. Em vez de experiência, a
linguagem passa a ser o novo expediente das preocupações filosóficas.

2.2.2 Neopragmatismo
O neopragmatismo desenvolve teses pragmatistas à luz da “virada
lingüística” (linguistic turn). Este processo pode ser caracterizado por uma
maneira peculiar de fazer filosofia que consistiu numa maior concentração nos
aspectos lógico-formais do pensamento, que deveriam ser buscados na
estrutura da linguagem, e não na estrutura da mente ou da experiência. Quanto

continuidades; 5) na acepção tradicional existe uma antítese entre experiência e pensamento,


ao contrário do que ocorre na nova acepção de experiência, na qual não há experiência
consciente sem inferência e a reflexão é inata e constante (MORA, 2001, p. 971).

68
maior o grau de precisão na linguagem, acreditava-se, mais perfeitamente
poderíamos conhecer o mundo. Essa ideia advém da suspeita de que talvez
não existam problemas filosóficos genuínos, “os alegados problemas filosóficos
não passariam de pseudoproblemas e as alegadas teorias ou proposições
filosóficas seriam pseudoteorias e pseudoproposições” (POPPER, 2008, p.96).
Conseqüentemente, restava à filosofia abandonar a pretensão de elaborar
teorias, caracterizando-se antes como uma atividade que consiste em mostrar
o que há de sem sentido e absurdo nas formulações filosóficas tradicionais.
Essa ideia inspirou uma vigorosa escola contemporânea
de analistas da linguagem que herdaram sua [de
Wittgenstein] crença de que não existem problemas
filosóficos genuínos; de que tudo que o filósofo pode
fazer é desmascarar e dissolver quebra-cabeças
lingüísticos propostos pela filosofia tradicional. (POPPER,
2008, p.98-99)

Em 1966, Rorty organizou um conjunto de ensaios de diversos autores sobre


esse episódio filosófico concentrado nos aspectos lingüísticos do
conhecimento, com o título de The Linguistic Turn, onde aponta o objetivo da
sua empreitada:
O propósito do presente volume é fornecer material de
reflexão sobre a maior parte da revolução filosófica
recente, a da filosofia lingüística. Com a expressão
“filosofia lingüística”, estarei defendendo aqui uma visão
de que os problemas filosóficos são problemas que
poderiam ser resolvidos (ou dissolvidos) pela reforma da
linguagem, ou por uma melhor compreensão da
linguagem que usamos presentemente. (RORTY, 1992,
p.3)

As duas principais diferenças entre os pragmatistas clássicos e os


neopragmatistas seriam: a) a insistência dos clássicos, como James e Dewey,
em falar sobre a “experiência”, em vez de falar sobre a “linguagem”, como o faz
Quine, Putnam e Davidson; b) Dewey e Peirce estavam preocupados com um
suposto método científico a fim de garantir a assertibilidade de nossas crenças,
em distinguir ciência e não-ciência, enquanto neopragmatistas fazem um
“abandono tácito dessas pressuposições” (RORTY, 2000, p. 40).
Thomas Kuhn é considerado por Rorty não necessariamente como um
neopragmatista, mas como alguém que possui alguns pontos em comum com
esse movimento. Na avaliação de Rorty, após A estrutura das revoluções

69
científicas (1962), de Kuhn, a noção de método científico começou a ser
abandonada, ao tempo em que fatores externos à ciência passaram a ser
considerados largamente na determinação de teorias válidas ou não.
Concomitantemente, Paul Feyerabend solapou a ideia de um método científico
e obscureceu a distinção ente ciência e não-ciência. Por outro lado, esse
processo foi reforçado pelo nivelamento da verdade nas ciências e na ética por
Davidson e Putnam, assim como pelo ataque de Quine, em Dois dogmas do
empirismo, a pressuposições fundacionistas40 necessárias para garantir a
noção de método (RORTY, 2000, p.41).
Numa perspectiva rortiana, pragmatistas clássicos e neopragmatistas
têm uma consideração especial por Darwin, na medida em que a linguagem é
naturalizada, entendida antes como uma ferramenta do que como uma maneira
de refletir o mundo ou, para usar uma expressão de Rorty, espelhá-lo. A
pretensão pragmatista de minar a ideia de que somos animais especiais devido
à nossa capacidade de representar através da linguagem o mundo como ele
realmente é não é algo trivial, mas o próprio fio condutor entre pragmatistas
clássicos e neopragmatistas.
É justamente no contexto desses últimos que Richard Rorty se coloca.
Porém, sem deixar de lado as preocupações daquele que foi também seu
herói: John Dewey. Nesse sentido, a crítica à realidade e ao conhecimento
empreendida por ele tem uma finalidade: a construção de um mundo melhor.

2.2.3 O antirrepresentacionalismo de Rorty e a crítica à disputa


realismo/antirrealismo
Diz-nos Rorty que historicamente a filosofia, sobretudo no campo
epistemológico, caiu no seu próprio engodo – a crença de que existe uma
realidade e que nossa mente ou linguagem é capaz de representá-la. Essa
ideia é criticada por Rorty com uma metáfora acerca da pretensão da filosofia,
a de “espelhar a natureza”:
A imagem que mantêm cativa a filosofia tradicional é a da
mente como a de um grande espelho, contendo variadas

40
Entende-se por fundacionismo, grosso modo, a tese de que o conhecimento tem
fundamentos últimos sobre os quais se sustenta. Uma metáfora clássica para explicar o
fundacionismo foi elaborada por Descartes nas “Meditações”: o conhecimento é como um
edifício, assim como este precisa de uma base sólida (fundamento), o conhecimento necessita
de fundamentos específicos e seguros.

70
representações – algumas exatas, outras não – e capaz
de ser estudada por métodos puros, não empíricos. Sem
a noção da mente como espelho, a noção de
conhecimento como exatidão de representação não se
teria sugerido. (RORTY,1994, p. 27)

Nesse sentido, tanto realistas quanto antirrealistas estariam envoltos na


mesma névoa, ou presos aos mesmos grilhões, de uma disputa infrutífera que
considera o conhecimento do mundo em termos de ser melhor ou pior
representado, ou ainda em torno da origem de nossas representações. No
contexto da contemporaneidade, o debate realismo/antirrealismo busca
oferecer provas acerca de se há ou não conformidade entre determinadas
teorias e o mundo, “se as asserções de física podem corresponder aos ‘fatos
da questão’, ou se as asserções da matemática e da ética têm também essa
possibilidade” (RORTY, 2002, pp.14-15). De uma maneira geral, esses filósofos
são denominados por Rorty representacionalistas. Para estes, é importante
pensar o conhecimento em termos de uma representação na mente ou na
linguagem. Rorty situa a si mesmo na corrente dos antirrepresentacionalistas,
filósofos que não consideram importante a discussão do realismo, que
entendem a ideia de representação como simplesmente estéril na
contemporaneidade. Sendo assim, o problema localiza-se precisamente na
ideia de representação, comum a realistas e antirrealistas. Nas palavras de
Rorty:
Para os representacionalistas, “tornar verdadeiro” e
“representar” são relações recíprocas: o item não-
linguístico que torna S verdadeiro é o item representado
por S. Mas os antirrepresentacionalistas vêem essas
duas noções como igualmente desaventuradas e
dispensáveis – não apenas no que concerne às
asserções de classes disputadas, mas no que concerne a
todas as asserções. (2002, p. 16)

As proposições representacionalistas serão consideradas verdadeiras se os


fatos do mundo, itens não-linguísticos, as fizerem verdadeiras ao serem
confrontados. Ou seja, o sentido de verdade de uma proposição consiste em
apreender aquilo que seu correspondente estado de coisas é em si mesmo, de
modo a poder representá-lo. Antirrepresentacionalistas como Rorty estão
dispostos a abandonar todos os conceitos que envolvam a pressuposição de
que podemos compreender “o que significa a determinidade da realidade”

71
(RORTY, 2002, p. 19) e, consequentemente, representá-la. Por outro lado,
representacionalistas “vêem a física como a área da cultura na qual realidades
não-humanas, enquanto opostas às práticas sociais humanas, desenvolvem
suas atividades do modo mais óbvio possível” (RORTY, 2002, p. 19). Em
seguida, Bernard Williams é citado por Rorty como apresentando a seguinte
tese representacionalista:
nós podemos selecionar entre nossas crenças e os
caracteres distintos de nosso mundo alguma imagem que
possamos racionalmente reivindicar para representar o
mundo de um modo maximamente independente de
nossas perspectivas e de suas peculiaridades.
(WILLIAMS apud RORTY, 2002, p. 21)

Os antirrepresentacionalistas, por sua vez, “não vêem sentido algum na


afirmação de que a física é mais independente de nossas peculiaridades
humanas do que a astrologia ou a crítica literária”. Num tom mais pragmático,
afirmam que “as várias áreas da cultura respondem por diferentes
necessidades humanas” e não podemos nos colocar fora dessas necessidades
para então “observarmos se algumas delas são gratificadas pela constatação
de uma similitude objetiva ou diferença de natureza” (RORTY, 2002, p. 21).
Desde o ponto de vista neopragmatista de Richard Rorty, essa é uma
questão digna de ser abandonada41 – deveríamos pensar no conhecimento em
termos de sendo melhor ou pior para as nossas próprias descrições da
realidade, aquilo que é melhor para nós. Deveríamos entender o conhecimento
não enquanto uma representação da realidade, e sim enquanto uma forma de
lidar com a realidade que favoreça o nosso bem-estar. Para pragmatistas, a
questão ontológica sobre a natureza das coisas já se mostrou há muito
superada, posto não existir algo como a natureza das coisas, ou uma essência
pronta a ser desvelada42. Pragmatistas “querem substituir a distinção entre
aparência e realidade pela distinção entre descrições do mundo e de nós

41
O abandono da disputa acerca do realismo é um posicionamento comum a Rorty e
Davidson. Este afirma: “O realismo, como eu o entendo, é a perspectiva de que o uso
predicacional da verdade pode ser explicado em termos de uma relação de correspondência.
Esta seria uma afirmação interessante se todo mundo pudesse surgir com um modo inteligível
e iluminado de individualizar as entidades às quais os enunciados e crenças verdadeiros
correspondem, junto com uma semântica aceitável para se falar sobre tais entidades. Mas não
há tal explicação. Até que haja uma, não vejo sentido em alguém se declarar um realista ou, a
esse respeito, um antirrealista” (DAVIDSON, 2002, 147).
42
Na próxima seção, abordaremos especificamente a tese rortiana de uma tentativa de des-
substancialização do mundo.

72
mesmos que são menos úteis, e descrições que são mais úteis” (RORTY,
2000a, p. 27).
De imediato, as perguntas que se erguem diante da proposta de
compreensão do conhecimento em termos de descrições mais úteis e menos
úteis, melhor ou pior para nós, são: Úteis em que sentido? Quais critérios são
estabelecidos acerca do que é o melhor? Quem é esse “nós”? Estes
questionamentos não passaram despercebidos por Rorty. O problema, para
nós e não para Rorty, é que suas respostas são propositadamente imprecisas:
“Úteis para criar um futuro melhor”; “Melhor no sentido de que contém mais
daquilo que consideramos bom e menos do que consideramos ruim”, e bom é
“diversidade e liberdade”, “crescimento” (RORTY, 2000a, p.27-28); “Nós” são
os liberais, os democráticos. Essa vagueza nas respostas faz parte da
estratégia pragmática de não se conformar a nenhum modelo preestabelecido
de conhecimento e nem conformar o futuro ao presente, ao que entendemos
hoje como melhor. “Se existe algo de peculiar ao pragmatismo é que ele
substitui noções como realidade, razão e natureza, pela noção de um futuro
humano melhor” (RORTY, 2000a, p.26).
A conseqüência de utilizarmos descrições mais úteis e descrições
menos úteis é o abandono da ideia de conhecimento como correspondência e
a adoção da nossa relação com o mundo de maneira causal. Seria esse o
posicionamento, segundo Rorty, também de Dewey e de Davidson –
asseverações verdadeiras têm uma relação causal com o mundo:
devemos ver a investigação como uma maneira de usar a
realidade. Assim, a relação entre nossas afirmações
verdadeiras e o resto do mundo é causal ao invés de
representacional: ela causa em nós a manutenção de
nossas crenças, e nós mantemos as crenças que se
provam como guias confiáveis para conseguir o que
queremos (RORTY, 2000a, p. 37).

Enquanto pensarmos, à maneira da filosofia tradicional, que entre nós e o


mundo existe algo (os sentidos, a linguagem) que distorce nossa visão das
coisas tais quais elas são, permaneceremos presos a um determinado modelo
de conhecimento. Assim como enquanto pensarmos no conhecimento como
tendo um fundamento inalienável, neutro, racional, não-contingente, sobre o
qual o mesmo se assenta, não sairemos da metafísica moderna. A linguagem

73
não distorce nossa imagem do mundo, pois a linguagem não representa o
mundo. Tanto os órgãos do sentido, quanto a razão ou a linguagem, aparecem
ao pragmatismo de Rorty como instrumentos a fim de lidar com os objetos. O
“erro” estaria na função demasiadamente restritiva atribuída à linguagem ou à
razão enquanto uma forma capaz de representar o mundo, quando os
pragmatistas “gostariam de eliminar a distinção entre conhecer as coisas e
fazer uso delas” (RORTY, 2000b, p.60). A linguagem, assim como as teorias
científicas, constitui mais um instrumento que o homem desenvolveu no seu
confronto com o entorno – não a representação do seu entorno. Os
pragmatistas fazem eco à asserção baconiana segundo a qual “conhecimento
é poder”. Conhecer algo é ser capaz de utilizar esse algo ou colocá-lo em
relação com alguma outra coisa, mas tal relação não é intrínseca, não diz
respeito à natureza desse algo, é sim uma relação extrínseca e contingente. A
versão pragmatista da asserção de Bacon elimina toda a suposição de que o
mundo tenha uma substância43.

2.2.4 Des-substancialização do mundo


Uma concepção antirrepresentacionalista do conhecimento traz no seu
bojo uma crítica da tese ontológica de um mundo dicotomizado entre aquilo
que é e o que parece ser, entre o fixo e o mutável, entre essência e acidente,
entre substância e propriedade, havendo uma suposta superioridade dos
primeiros com relação aos segundos. Tal tese é uma herança dos gregos
antigos que se consolidou na história da filosofia como um problema real que
estava ou está esperando por uma solução. A busca pelo fixo, pelo imutável,
por aquilo que é em si mesmo, pela essência, pela substância confundia-se
com a própria filosofia enquanto busca pela verdade. Naturalmente, isso
ocorria sob a égide da racionalidade entendida à maneira platônica e
aristotélica, mais próxima da matemática do que da poesia. Aliás, foi o próprio

43
O posicionamento de Dewey nesse sentido é emblemático: “mercê das invenções, o lema de
Bacon, de que conhecer é poder, bem como seu sonho de contínuo domínio sobre as forças da
natureza por meio das ciências naturais, fez-se realidade. [...] É desnecessário recordar que
mudanças políticas importantes se seguiram à implantação da nova ciência e as suas
aplicações industriais, e que algumas das diretrizes do progresso social já foram pelo menos
elaboradas. [...] os Estados modernos são tidos, menos como divinos, e mais como obras
humanas, menos como manifestações necessárias de princípios supremos que tudo regem, e
mais como invenções de homens e mulheres em ordem a satisfazerem seus desejos”
(DEWEY, 2011, p.60-61 – grifos meus).

74
Platão (429-347 a.C.) que, na idealização de uma república, recomendou a
expulsão dos poetas, por esses ensinarem mais mentiras do que verdades,
reservando ao filósofo, este que se deixa conduzir pela parte mais elevada da
alma, a razão, o lugar proeminente de um rei, com um acesso privilegiado a um
mundo inteligível, portanto, capaz de conduzir a vida particular e pública 44.
É também com base nesses princípios que se estabelecerá uma
hierarquia sobre formas de vida, tendo a vida contemplativa superioridade
sobre a vida prática. Ao menos, assim compreendem Platão e Aristóteles como
a condição natural do cidadão grego, que deveria se dedicar ao ócio, entendido
não somente como descanso, repouso, mas também como consagração do
lazer ao estudo, aos afazeres do espírito, à administração pública. Respaldado,
por um lado, numa concepção platônica dualista de mundo, em que o inteligível
se sobrepõe ao sensível, por outro lado, a concepção aristotélica, em parte
herdada de seu mestre, do pensamento como a coisa mais perfeita que existe,
tanto que a única atividade divina é pensar, e mais precisamente, pensar no
pensamento, é que a ideia de uma vida hierarquizada irá se consolidar na
tradição ocidental.
Na avaliação de Rorty, o que liga filósofos de tradições tão distintas
quanto William James e Friedrich Nietzsche, Donald Davidson e Jacques
Derrida, Hilary Putnam e Bruno Latour, John Dewey e Michel Foucault é o fato
de todos serem antidualistas (RORTY, 2000b, p.56). Por via de uma tradição
analítica ou continental, eles estariam cumprindo um papel semelhante ao
afastarem-se da herança dualista metafísica da filosofia ocidental oriunda dos
antigos gregos, como aparência e realidade, essência e acidente, substância e
propriedade, e buscando uma visão prioritariamente relacional. Rorty,
transitando entre as duas tradições, se propõe a fazer uma operação que
consiste em reunir os pontos em comum entre analíticos e continentais e fundi-
los a fim de levar a cabo seu projeto antifundacionista e
antirrepresentacionalista do conhecimento. Isso, por sua vez, vai permiti-lo

44
O problema está no esforço platônico de fundir a vida particular e pública: “A tentativa de
fundir o público e o privado está por trás da tentativa platônica de responder à pergunta ‘Por
que é de interesse pessoal ser justo’, bem como na afirmação do cristianismo de que a perfeita
auto-realização pode ser alcançada no servir ao outro” (Rorty, 2007, p.15). Por outro lado, a
busca pela verdade tem também um objetivo ético: a esperança de que a verdade forneça
regras de acordo com a qual nossas vidas possam ser vividas.

75
pensar, ou imaginar – talvez seja o termo mais apropriado – uma “comunidade
utópica igualitária”.
Rorty partirá de dois slogans que ele associa diretamente a dois
filósofos, cada qual de uma das duas tradições citadas anteriormente: Michel
Foucault e Wilfrid Sellars. A este último é creditada a afirmação de que “toda
consciência é um fato lingüístico” 45, enquanto a assertiva de que “tudo é uma
construção social” é lembrada como uma frase típica do mundo europeu, tendo
quase sempre Foucault como partida (RORTY, 2000b, p. 57). Não tratarei aqui
da leitura direta desses filósofos, apenas do uso que Rorty faz deles a fim de
levar a cabo sua tese de um mundo des-substancializado. Rorty sabe que essa
não é uma tarefa simples, mas deixa clara sua esperança na introdução de
Empirismo e Filosofia da Mente, de Sellars, de que um dia “a enfadonha
‘divisão analítico-continental’ seja vista como uma infeliz e temporária crise de
comunicação” (RORTY, 2008, p.22).
Uma vez eliminada a distinção entre conhecer as coisas e fazer uso
delas que os pragmatistas adotam, assim como a suposição de uma natureza
intrínseca das coisas, Rorty considera inevitável nos livrarmos de dualismos
como aparência e realidade. Argumentando que a descrição herdada dos
gregos das coisas enquanto portadora de essências tornara-se inútil, propõe
que encaremos as coisas numa perspectiva relacional, antiessencialista. Para
tal, sugere que pensemos nas coisas como se fossem números. Quaisquer que
seja o número pensado, só o fazemos relacionando-o com outros números, e
não lhe atribuindo uma natureza intrínseca. Esta proposta, adverte-nos Rorty,
nada tem a ver com a concepção de números como esteio do universo ou à
afirmação bíblica de que Deus ordenou as coisas por número, medida e peso.
Vejamos, então, a partir do seu exemplo, reproduzido a seguir, o que ele quer
dizer quando propõe pensarmos nas coisas como se fossem números.
Ao perguntarmos sobre a essência do número 17, o que ele é em si
mesmo, independentemente de sua relação com outros números, busca-se
uma descrição dele diferente das seguintes: 17 é menor que 22; 17 é maior

45
Esta ideia é denominada por Sellars nominalismo psicológico, “de acordo com a qual toda
consciência de tipos, semelhanças, fatos, etc., em suma, toda consciência de entidades
abstratas – na verdade, toda consciência mesmo de particulares – é uma questão lingüística.
De acordo com essa perspectiva, nem mesmo a consciência desses tipos, semelhanças e
fatos pertencentes às assim chamadas experiências imediatas é pressuposta no processo de
aquisição do uso de uma linguagem” (Sellars, 2008, p.68 – grifos do autor).

76
que 8; 17 é a soma de 6 e 11; 17 é a raiz quadrada de 289; 17 elevado ao
quadrado é 4.123.105; 17 é a diferença entre 222 e 205. Podemos fazer dessa
forma descrições infinitas acerca do número 17, mas todas elas continuariam a
ser “acidentais” ou “extrínsecas”, nenhuma dirá o que é o 17 em si mesmo, não
nos fornecerá uma “pista para alcançarmos a intrínseca dezesseteidade do
dezessete – o aspecto singular do 17, o que faz dele o número que é” (RORTY,
2000b, p.65). Os números não são o tipo de coisa que cabe conceituarmos
como tendo uma natureza intrínseca, uma realidade autônoma, uma
substância, eles não se encaixam nessas categorias. A escolha de qual dessas
descrições anteriores do número 17 devemos aplicar em uma dada situação
dependerá de nossos propósitos.
A postura de Rorty enquanto um antiessencialista é razoavelmente
simples: não vale a pena pensar em números atribuindo-lhe essências, assim
como não vale a pena pensar nas demais coisas dessa maneira, seja uma
mesa, elétrons ou valores morais. A comparação é boa porque o fato de pensar
em números sem essências, em sua relação infinita com os demais números,
em nada prejudica o uso que fazemos deles. O sentido explicitado de pensar
as coisas como se fossem números é o de nos convencer de que
não há nada a ser conhecido a respeito desses objetos a
não ser uma teia infinitamente vasta e indefinidamente
expansível de relações que eles mantêm com outros
objetos. Não há sentido em reclamar por termos de
relações que não sejam eles mesmos relações, pois
qualquer coisa que pode servir como termo de uma
relação pode ser dissolvido em outro conjunto de
relações, e assim por diante, indefinidamente. (RORTY,
2000b, pp. 66-67)

Evitando pensar nas coisas como dotadas de substâncias intrínsecas,


somente relacionando-as, abrem-se diante de nós novas possibilidades de
entendermos como podemos conhecer o mundo sem cairmos na pretensão de,
de alguma forma, espelhar sua natureza, seja na mente, seja na linguagem. O
máximo que podemos fazer é elaborar sentenças verdadeiras acerca do
mundo – o que é verdadeiro ou não são as sentenças, não o mundo. Ao
descrevermos um objeto, estamos simultaneamente atribuindo-lhe uma
propriedade relacional – o que é não é em si, somente em companhia. Isto não
é uma metáfora. Não há como estabelecermos onde termina uma coisa e

77
começa outra, o que nela é essencial e aquilo que é simplesmente acidental ou
periférico. Se o antiessencialista tivesse de usar o jargão filosófico, diria
simplesmente que a constituição ontológica do mundo é relacional e não
substancial. Mas isso soa muito mal quando se tem como projeto evadir-se das
amarras da filosofia tradicional, quando se quer elaborar novas descrições
acerca do conhecimento.

2.2.5 O refúgio essencialista: as ciências naturais


Como temos apontado, o realista supõe o mundo formado por
substâncias e que a função do cientista é descobri-las e descrevê-las
corretamente. Uma objeção imediata posta pelos realistas aos seus rivais é o
sucesso das ciências naturais em enfrentar problemas. Caso as ciências não
correspondam de fato à realidade, como podemos explicar sua bem sucedida
prática de prescrever através de teorias e experimentações eventos do mundo?
A mecânica newtoniana seria um exemplo de como entidades teóricas (força,
inércia, gravidade) existem autonomamente independentes das teorias que as
vinculam. No entanto, campos eletromagnéticos, ligações moleculares, vírus,
ou seja, entidades não-observáveis, não são “objetos” no sentido tradicional do
termo. Eles não se revelam simplesmente quando introduzimos sofisticados
aparelhos de análise para ampliar nossas percepções e a forma como eles
existem depende em alguma proporção da teoria. Para Putnam, o exemplo
paradigmático vem da própria física, precisamente a mecânica quântica, pois é
dentro dela que surge outra noção acerca de “objeto” não afim com a noção
tradicional que conta com propriedades inalienáveis:
A razão por que as “partículas” da mecânica não são
objetos no sentido tradicional é que (na maioria dos
“estados”) elas não possuem, segundo a mecânica
quântica contemporânea, nenhum número definido! Mas
os objetos tradicionais possuem sempre um número
definido [...]. Além disso, as propriedades lógicas dos
“campos” da mecânica quântica são igualmente
estranhas. (PUTNAM, 2008a, p.22)

Talvez, o realismo científico tenha que contar com alguma confiança no seu
objeto, na medida em que postula sua existência independente do intelecto,
mas deve ter em conta que opera com uma noção estendida do que se
entende por objeto. Como diz Putnam, “partículas da física moderna não são

78
pequenas bolas de bilhar” (2008, p.21-22). Pode acontecer que uma teoria
empiricamente adequada numa determinada circunstância torne-se
inadequada em outras instâncias, violando inclusive normas de lógica e de
método que, independente de sua veracidade, pode ser que estejamos
bastante familiarizados com elas. A dificuldade não se restringe à noção de
objeto, mas também recai sobre normas e métodos pelos quais tratamos esses
objetos. Blackburn recorre ao exemplo da física quântica:
A física quântica pode ser um exemplo: podemos ter toda
confiança de que ela ofereça resultados corretos, mas
todavia a achamos profundamente insatisfatória, uma vez
que só adquirimos adequação empírica tratando as
partículas de um modo em alguns contextos e de modo
diferente em outros, mas sem uma teoria circundante que
nos possibilite compreender a diferença. (BLACKBURN,
2006, p.288)

Isto aponta para a dificuldade de se pensar a noção de mundo utilizada


por realistas. Mas Rorty adverte muito bem que, se pensarmos o mundo
nesses termos, corremos o risco de nos desviarmos da questão, ou de
mudarmos o nome do jogo. Porque na medida em que começarmos a pensar
em partículas atômicas, entes inobserváveis, “dados dos sentidos”, adentramos
antecipadamente em “alguma teoria particular acerca de como o mundo é”
(RORTY, 1999, p.67). De certa forma, ainda ficamos no círculo vicioso do
realismo ao nos concentrarmos no problema de se uma teoria corresponde ou
não à realidade ou qual seu grau de aproximação. Não há dúvidas quanto à
capacidade da ciência de resolver problemas, prescrever acontecimentos, sua
eficácia em intervir no mundo é incontestável – mas “a ciência moderna não
nos torna capazes de enfrentar os problemas porque há correspondência,
apenas nos torna capazes de enfrentar os problemas, sem mais”, diz-nos Rorty
(1999, p. 17).
Numa trama de inspiração davidsoniana, Rorty sugere o abandono da
ideia de que o mundo constitui um elemento essencial para nossas asserções
acerca da verdade. Ele (o mundo) silencia ante nosso processo de crítica e
justificação das crenças. Isto significa que enunciados que se fundamentam na
observação do mundo, em experiências imediatas com a realidade, em nada
nos ajudam a esclarecer a conexão que estabelecemos entre crença e mundo,
qual seja, não devemos buscar no mundo, pois não as encontraremos, as

79
condições que nos proporcionem a justificação derradeira de nossas crenças.
Tal perspectiva, advinda do fracasso da epistemologia (das ciências) em
encontrar um fundamento último do conhecimento de caráter objetivo,
favoreceu a ideia de que “o mundo não faz verdadeiros os enunciados e,
portanto, não pode desempenhar papel epistêmico algum no processo de
justificação” (KALPOKAS, 2005, p.193). O problema estaria nos postulados
epistemológicos do ceticismo moderno que estabelece
mediações/intermediários entre o homem e o mundo. Desde que eliminada a
ideia de que há intermediários entre nós e o mundo, desfaz-se grande parte
das questões postas pela epistemologia moderna, como, por exemplo, o
problema do dualismo esquema-conteúdo. Rorty, na esteira de Davidson,
defende que a única relação que se pode estabelecer, entre o mundo e as
crenças acerca do mundo, é de causalidade46.
Se o mundo não exerce um papel determinante sobre o conteúdo de
nossas crenças, ou seja, se o mundo não determina sua verdade ou falsidade,
então o que sustenta uma crença não pode ser o mundo. Na medida em que o
mundo possui apenas um papel causal na formação de crenças, ele está fora
do espaço de justificação, não pode servir de algo com que possamos
confrontar as crenças para sustentá-las. O que Rorty parece estar combatendo
é uma noção de experiência com o mundo que seria em si mesma justificatória,
quando, no seu entendimento, o que o mundo faz é provocar causalmente, e
não evidentemente, em nós, através de nossos órgãos sensoriais, crenças.
Para Rorty, isso se dá de forma bruta, a ponto de ele equiparar a evolução
cultural com a evolução biológica.
o mundo configura o espaço das razões, não por
“fornecer fatos”, mas por ir exercendo uma pressão
causal bruta sobre nós. Justamente como a pressão bruta
do meio conduz a sucessivos estágios da evolução

46
A passagem a seguir de Davidson é bastante expressiva quanto a isso: “Nada, contudo,
nenhuma coisa, torna sentenças e teorias verdadeiras: nem experiências, nem experiências,
nem irritações na superfície, nem o mundo podem tornar uma sentença verdadeira. Que a
experiência tome um certo rumo, que a nossa pele seja mais aquecida ou perfurada, que o
universo seja finito, estes fatos, se assim quisermos exprimir-nos, tornam sentenças e teorias
verdadeiras. Mas este argumento é melhor construído sem a menção a fatos. A sentença ‘A
minha está quente’ é verdadeira se e somente se a minha pele está quente. Aqui não há
referência a um fato, a um mundo, a uma experiência ou a uma peça de evidência”
(DAVIDSON, 1984, p.194)

80
biológica, assim há conduzido também a diferentes
estágios da evolução cultural. (RORTY, 1992, p.148)47

Já que o mundo não exerce um papel epistêmico sobre nossas crenças,


Rorty sustenta que somente uma crença pode justificar outra crença. O mundo
não oferece nem pede razões, somente nossos pares, os seres humanos, têm
essa habilidade manifesta através da linguagem. A justificação não repousa
sobre nada além de nossas práticas sociais de conversação e de necessidades
estritamente humanas.

47
Decerto, essa é uma comparação que deve ser vista com suspeita, tendo em conta as
mazelas que uma leitura darwinista da sociedade já provocou. Sabe-se que o darwinismo
social já foi usado para justificar conflitos raciais e nacionais como uma necessidade biológica
e um meio para o progresso. Essa afirmação “Sustenta que um processo reflexivo, cultural,
onde existe justificação de crenças que determinam em parte o curso de nossas concepções
de realidade, onde se supõe que há princípios epistêmicos que determinam o que temos de
asseverar, é similar a um processo aleatório, irrefletido e exclusivamente causal como o da
evolução biológica” (KALPOKAS, 2005, p.201).

81
3. ETNOCENTRISMO LIBERAL-DEMOCRÁTICO E SOLIDARIEDADE

Partindo do princípio de que não há nada que nos garanta a


correspondência entre nossas crenças e o mundo, que nosso ideal de
conhecimento enquanto certeza não pode ser validado por esse último, faz-se
necessária uma concepção de conhecimento que abandone a pretensão de
objetividade entendida como uma representação fiel do mundo em nossa
mente ou na linguagem. Se o mundo não torna nossas crenças verdadeiras ou
falsas e sim que elas são justificadas socialmente (e não apenas por um eu
solitário, mas por nós), o conhecimento não pode ser uma questão de
adequação com a realidade, e sim de concordância entre os membros de
determinada comunidade. Com isso, Rorty abandona a pretensão de uma
epistemologia de caráter universal e propõe uma concepção de conhecimento
que só pode ser justificada localmente, abrindo alas dessa forma para o seu
etnocentrismo, assim como para sua defesa da ideia do conhecimento como
solidariedade e da razão como conversação.

3.1 ETNOCENTRISMO CONFESSO E SOLIDARIEDADE – A EXPANSÃO DO


“NÓS”

Em Objetivismo, relativismo e verdade (2002), Rorty estabelece de


maneira genérica duas formas através das quais os seres humanos reflexivos
supostamente dariam sentido às suas vidas: uma ligada à história e à relação
desta com a comunidade e outra “a partir da descrição de si mesmos como
estando em relação imediata com a realidade não-humana (2002, p.37 – grifo
meu). Na primeira manifesta-se o desejo por solidariedade, enquanto na
segunda manifesta-se o desejo por objetividade. Para a última, quanto mais os
membros de sua comunidade se distanciam em direção a algo independente
dela, quanto mais se aproximam da objetividade, enquanto a primeira reserva-
se às práticas de sua comunidade e não se questiona acerca da relação dela
com algo exterior, não-humano.
Na descrição rortiana da tradição ocidental (RORTY, 2002), a
objetividade é estabelecida como o ponto central de sua constituição enquanto
civilização, ao mesmo tempo em que há um abandono paulatino da

82
solidariedade. A balança já teria pendido para a objetividade desde os gregos
antigos, quando estes buscaram de maneira implacável a verdade, sem se
questionarem se ela poderia ser boa ou não para a sua comunidade. A ligação
normativa entre a verdade e o bem faz parte do dogma platônico que se reflete
fortemente na tradição ocidental. A objetividade da verdade, formulada
segundo essa tradição, é não-provinciana, transcendente, independente de
contextos, está além de um olhar restrito de qualquer comunidade e se lança
cada vez mais a um olhar de fora, a-histórico, não submetido a idiossincrasias
locais. Na medida em que se mantêm uma preocupação com a construção de
uma relação especial entre crenças e objetos, que garanta a diferenciação
entre as crenças verdadeiras e as falsas, a lógica do realismo continua a
imperar. Daí a necessidade dessa tradição de
construir uma epistemologia que tenha espaço para um
tipo de justificação que não é meramente social, mas
natural, e que aflora da própria natureza humana; uma
justificação que vem a ser possível através de uma
ligação entre esta parte e o resto da natureza. [...] Para
serem verdadeiramente racionais, os procedimentos de
justificação precisam conduzir à verdade, à
correspondência com a realidade, à natureza intrínseca
das coisas. (RORTY, 2002, p.39)

Rorty defende que a pretensão de ir além de nossa comunidade, em


direção a um contato direto com a natureza das coisas, perdura na tradição
ocidental e pode ser encontrada tanto no iluminismo quanto na
contemporaneidade. No iluminismo, essa pretensão se manifesta na crença de
que a física é a ciência que proporciona esse acesso privilegiado à natureza, o
contato direto com algo independente do humano. Posteriormente, com o
avanço das ciências naturais, outras áreas da cultura (instituições sociais,
políticas e econômicas) começam a reivindicar o mesmo grau de objetividade
das ciências e, com ela, de justificação racional. Onde racionalidade é a
expressão de uma natureza humana global, a-histórica, capaz de transcender a
simples concordância até representar a realidade como ela é em si mesma. Na
contemporaneidade, essa crença permaneceria a mesma:
Muito da retórica da vida intelectual contemporânea toma
como assegurado que a meta da investigação científica
para o homem é compreender ‘estruturas subjacentes’,
ou ‘fatores culturalmente invariáveis’, ou ‘padrões
biologicamente’ determinados’. (RORTY, 2002, p.38)

83
Desde a perspectiva de Rorty, o que há de equivocado nessa retórica é a
insistência em conceber o mundo como possuidor de uma substância, algo
imutável, fixo, que precisa ser desvendado ou alcançado – o Ser, ou a
Verdade. E, por outro lado, o homem como possuidor de uma propriedade
inalienável, a racionalidade. Esta compreendida expressamente como método,
caminho pré-estabelecido, estabelecimento prévio de critérios, capacidade de
predição. Pode ser que poetas e artistas não saibam exatamente onde
chegarão ou qual o resultado de suas obras. Juízes, por sua vez, podem ter
critérios claros para a pronúncia de uma sentença e negociantes
frequentemente têm metas bem definidas, assim como estratégias para
alcançá-las. Nem os poetas, artistas, juízes ou negociantes são vistos como
irracionais, mas também não são tomados como paradigmas de racionalidade.
Este lugar foi ocupado na tradição ocidental pela ciência. Conforme Rorty:
nós parecemos ter um critério claro para o sucesso de
uma teoria científica – literalmente, sua capacidade de
predizer e, por conseguinte, de nos tornar aptos a
controlar alguma porção do mundo. Se ser racional
significa estar apto a estipular critérios antecipadamente,
então é plausível tomar a ciência natural enquanto o
paradigma de racionalidade. (RORTY, 2002, p.57)

O conhecimento fundamentado na racionalidade, entendida como “uma


questão de aplicação de critérios” (RORTY, 2002, p.42), seria o único
genuinamente objetivo, não provinciano, que ultrapassa o reino das opiniões e
aporta no porto seguro da verdade. Nesse sentido, realistas desejam fundar a
solidariedade na objetividade. Aquilo que é compartilhado por todos é
justamente o que há de mais objetivo, independente, autônomo. E, nesse
sentido, para Rorty, a verdade é o tópico que satisfaz esse desejo tido como
universal. A crença de que todos os homens desejam a verdade, juntamente
com a de que a verdade corresponde à realidade e que, por fim, essa teria uma
natureza, é que alimenta o desejo de se fundar a solidariedade na objetividade.
Dadas essas três premissas, eles tratam de defender que
a verdade é uma, e que o interesse humano universal
pela verdade oferece o motivo para se criar uma
comunidade includente. Quanto mais descobrimos a
respeito dessa verdade, tanto mais terreno comum
partilharemos, e mais tolerantes e includentes nós, por
isso, nos tornaremos. A ascensão de sociedades

84
relativamente democráticas e tolerantes, há alguns
séculos, é atribuída à crescente racionalidade dos tempos
modernos, em que “racionalidade” quer dizer o emprego
de uma faculdade inata orientada para a verdade.
(RORTY, 2005a, p.104-105)

Assim é como Rorty entende a tentativa racionalista de filósofos de descrever a


história das modernas sociedades liberal-democráticas, uma descrição da qual
ele não somente discorda, como considera também desnecessária 48.
Por outro lado, o pragmatismo tal como propagado por Rorty, deseja
reduzir a objetividade à solidariedade, e nesse sentido dispensa tanto a
metafísica quanto a epistemologia, além de atribuir à verdade um caráter
instrumental: é verdadeiro aquilo que é útil para nós. Dessa forma, não espera
das crenças nenhum tipo de avaliação que considere se as mesmas
correspondem aos objetos de maneira natural, não-local e necessária. Na
verdade, não espera nem mesmo que as crenças correspondam à realidade.
Apenas enfoca o caráter de utilidade que elas podem ter para nós e, como tal,
sua condição provisória. Afinal, crenças podem ser substituídas.
De um ponto de vista pragmático, dizer que a crença que
se apresenta agora para nós como racional não precisa
ser verdadeira é simplesmente dizer que alguém pode
surgir com uma ideia melhor. É dizer que há sempre
espaço para uma crença aperfeiçoada, desde que uma
nova evidência, ou novas hipóteses, ou todo um novo
vocabulário, também a acompanhe”. (RORTY, 2002, p.39
– grifo do autor)

Entendido dessa forma, o pragmatismo consiste numa filosofia disposta a


cooperar no enfrentamento dos problemas postos pelo mundo. Por isso ele
está sempre disposto à novidade, à revisão de sua rede de crenças a fim de
superar o seu estado atual em busca de crenças melhores. Trata-se de uma
dinâmica de conhecimento em que todas as crenças podem ser postas na
mesa. Ao fim, as melhores crenças são aquelas que são mais úteis para nós e
não as mais verdadeiras. E “nós”, desde o ponto de vista assumidamente

48
Nagel, por exemplo, de forma não ingênua, não irá defender que simplesmente o mundo nos diz o que
ele é, mas que é necessária a conjunção dele com teorias que elaboramos. Mas ao fim, seria o mundo o
tribunal último acerca da veracidade de nossas crenças: “Podemos encarar nossas crenças como
objetivamente verdadeiras não porque o mundo externo nos leve a adotá-las, mas porque somos capazes
de chegar a elas, através de métodos que têm sólidas bases para reivindicar confiabilidade, em virtude de
seu êxito em eleger, entre alternativas em litígio, as hipóteses que sobrevivem às melhores críticas e
questionamentos que somos capazes de levantar contra elas. A confirmação empírica desempenha um
papel vital nesse processo, mas não pode cumpri-lo sem a teoria” (NAGEL, 2001, p.120).

85
etnocêntrico de Rorty, significa os liberais, os democráticos. Sua postura
etnocêntrica não é uma escolha, mas simplesmente uma imposição da própria
condição humana enquanto formada por membros que pertencem a
comunidades distintas. Estes vêem a si mesmos com desavenças passíveis
em sua maioria de serem superadas através do diálogo, sem qualquer
referência a algum tipo de critério superior ao qual se possa recorrer. Nas
palavras de Rorty:
O que não podemos fazer é nos alçar para além de todas
as comunidades humanas, possíveis e atuais. Nós não
podemos encontrar um gancho celeste que nos erga para
fora da mera coerência – da mera concordância”.
(RORTY, 2002, p.59-60)

O termo propositadamente provocativo que Rorty encontrou de frisar


para situação de dependência que temos de nosso contexto social e cultural
para nossas asserções sobre o mundo foi etnocentrismo. O problema mais
imediato no conceito de etnocentrismo em Rorty é o fato de ser usado em dois
sentidos distintos: às vezes, ele é apresentado como uma fatalidade, outras, no
sentido de uma confissão contingente dos valores da própria comunidade.
Somente posteriormente, ele percebe a falha e se justifica na introdução de
Objetivismo, relativismo e verdade:
Eu devia ter distinguido mais claramente entre
etnocentrismo enquanto uma condição incontornável – a
grosso modo um sinônimo de ‘finitude humana’ –, e
enquanto uma referência a um ethnos particular. No
segundo sentido, ‘etnocentrismo’ significa lealdade a uma
cultura sócio-política, que os marxistas usualmente
denominaram ‘democracias burguesas’ e que Roberto
Unger denominou mais neutramente, ‘as democracias
ricas do Atlântico Norte’ (RORTY, 2002, p.28).

Essa ambigüidade no conceito pode sugerir em alguns momentos que o


sentido global do termo emerge necessariamente da sua postura anti-
representacionista, o que não é certo. Ao que parece, sua defesa de uma
política democrática é meramente contingente em relação ao etnocentrismo
compreendido enquanto “finitude humana”. Tanto que ele afirma que não há
nada que possamos apresentar em defesa de uma sociedade democrática
frente a uma totalitária se não argumentos. Tentei minimizar essa ambigüidade
chamando apenas de “etnocentrismo” quando entendia que ele se referia ao

86
conceito enquanto “finitude humana”. Ou, de maneira mais enfática, de
“fatalismo etnocêntrico”. Por outro lado, quando ele se referia ao seu próprio
posicionamento enquanto herdeiro da tradição política e cultural ocidental,
chamei de “etnocentrismo confesso” ou “etnocentrismo liberal-democrático”.
Já que o etnocentrismo é inevitável, Rorty entende que nem ele nem
ninguém deve se furtar de se posicionar diante de outras culturas, que ser
etnocêntrico “é simplesmente dizer que as crenças sugeridas por outras
culturas precisam ser primeiramente testadas a partir da tentativa de tecê-las
com as crenças que já possuímos” (RORTY, 2002, p.43). Daí o pluralismo e a
tolerância liberal, assim como a virtude socrática do diálogo, aparecerem a ele
como as alternativas mais plausíveis na contemporaneidade. Afinal, mesmo
dentro de seus limites, a cultura liberal se permite uma abertura cada vez mais
ampla para o diálogo com outras culturas de maneira não violenta, a fim de
alcançar o maior grau possível de concordância. Seu desejo é o de “estender a
referência do pronome ‘nós’ tão longe quanto possível” (RORTY, 2002, p.39).
O etnocentrismo confesso rortiano esforça-se por escapar tanto do
relativismo quanto do universalismo. Ele afirma categoricamente não ser um
relativista, e diz que esse rótulo lhe foi atribuído, assim como aos pragmatistas
em geral, por filósofos realistas que projetam suas próprias pretensões e
hábitos de pensamento no pragmático. Realistas pensam que tal postura não
deve ser levada muito a sério, que a recusa de pragmatistas em escolher entre
comunidades distintas só pode ser fruto de certa ironia. Rorty reage
veementemente a essas críticas. Prefere ser antes repreendido por seu
etnocentrismo do que por seu suposto relativismo. Afinal, está claro seu
posicionamento a favor de uma sociedade liberal-democrática.
A Rorty, o etnocentrismo aparece como uma alternativa mais plausível
do que o relativismo, porque não busca a verdade ou a equivalência de
verdades em comunidades distintas. Se assim fosse, ele estaria no âmbito da
epistemologia, justamente o que ele nega, ou o que espera ter superado
através da sua crítica ao representacionalismo. Em verdade, o problema do
relativismo é algo que deve ser evitado, e não respondido (RORTY, 2007,
p.105). Dessa forma, há um abandono expresso da epistemologia rumo à
política e à ética, estas entendidas como destituídas de qualquer caráter
racionalista e universalista. Não há alternativa senão assumir os limites de se

87
estar na sua própria comunidade – não há maneira do “indivíduo elevar-se
acima da linguagem, da cultura, das instituições e das práticas que houver
adotado, e ver todas elas como equiparadas a todas as demais” (RORTY,
2007, p.99). Ao fim, esta última seria a comunidade para a qual precisaríamos
justificar nossas crenças, aquela que compartilha conosco uma mesma rede de
crenças capaz de gerar entendimento. Por outro lado, uma comunidade
estranha seria aquela em que suas crenças não possuem contigüidade com as
nossas, não se justapõem de maneira salutar, impossibilitando que tenhamos
um diálogo bem sucedido. Embora caminhemos todos sobre o mesmo solo, as
crenças acerca do que ele significa podem variar. Rorty deixa claro em nota
que não se trata aí de um problema de intradutibilidade:
Esse não é um problema teórico sobre “intradutibilidade”,
mas simplesmente um problema prático sobre as
limitações do argumento; não é que nós vivamos em
mundos diferentes do mundo dos nazistas ou
amazônicos, mas é que a conversação desde ou sobre
seus pontos de vista, apesar de possível, não será uma
questão de inferência a partir de premissas previamente
acordadas. (RORTY, 2002, p. 53)49

Portanto, não se trata de uma tese sobre relativismo epistemológico ou


cultural50. Não se defende a ideia de que há tantas epistemologias quanto
culturas, nem tampouco a tese de que há uma equivalência de valores entre
crenças de culturas distintas. O relativismo, cultural e epistemológico, falha ao
pensar em culturas diferentes à maneira dos geômetras, como se cada cultura
fosse dotada de esquema conceitual próprio que impediria a comunicação
entre elas. O etnocentrismo confesso de Rorty propaga:
a visão de que não há nada a ser dito nem sobre a
verdade, nem sobre a racionalidade, para além das
descrições dos procedimentos familiares de justificação
que uma dada sociedade – a nossa – emprega em uma
outra área de justificação. (RORTY, 2002, p.40)

49
Rorty ecoa declaradamente Davidson e o argumento desse contra a ideia de
incomensurabilidade de linguagens e do desdobramento ontológico dele resultante. Habermas
segue um caminho similar: “A multiplicidade e a contingência das gramáticas que geram o
mundo permitem o retorno de dúvidas quanto à objetividade do conhecimento, que num
primeiro momento puderam ser atenuadas pela leitura forte, idealista do transcendental. No
entanto, do pluralismo dos jogos de linguagem não resulta necessariamente uma multiplicidade
de universos lingüísticos incomensuráveis, herméticos uns em relação aos outros”
(HABERMAS, 2004, p.27).
50
Boghossian, por exemplo, considera que Rorty tem uma visão relativista da justificação
epistêmica (2006, p.13). Luper, assim como Boghossian, utiliza Rorty como um exemplo forte
de relativismo epistemológico (2004, p.1).

88
Dessa forma, a verdade dependerá certamente da descrição em que nós
mesmos nos inserimos, enquanto partidários da objetividade ou da
solidariedade. O etnocentrismo confesso de Rorty vê a si mesmo como
partidário da última, portanto, da verdade como pura e simplesmente uma
crença bem justificada socialmente. Rorty defende que sua perspectiva é
bastante similar à de Putnam no que se refere à tentativa frustrada do realismo
de se obter uma objetividade que consiste numa visão desde o ponto de vista
do olho de Deus. Não há tal ponto de vista, diz-nos Rorty, toda tentativa de
assim proceder é imaginar que existe um “gancho celeste”, uma maneira de
escapar do nosso próprio jogo de linguagem que é historicamente
condicionado.
Rorty argumenta que qualquer ambição de ancorar
nossas crenças, de realmente descobrir que merecem os
rótulos estimados de verdade e falsidade, traz a
necessidade de nos posicionarmos fora de nossa própria
pele ou de nos posicionarmos num ponto arquimediano,
livre de toda teoria e pré-concepções, esperando em vão
por uma “visão de lugar nenhum”. (BLACKBURN, 2007,
p.239)

Rorty apela para uma concepção pragmática da verdade na qual a ideia de que
a racionalidade é uma questão de aplicação universal de critérios é dispensada
e substituída pela noção de utilidade para nós – (no qual o “nós” são os
pertencentes da comunidade liberal-democrática da qual ele próprio faz parte).
Sua justificação é naturalmente redundante, uma vez que o vocabulário para
defender sua perspectiva é o vocabulário da própria democracia liberal. A
própria linguagem do etnocentrismo democrático-liberal estabelece o
vocabulário necessário para suas demandas: a busca do diálogo, da tolerância,
da solidariedade, da concordância não-forçada. Sendo assim, para Rorty, a
democracia liberal se apresenta até o momento como a melhor alternativa
política que temos, aquela que permite a maior abertura possível a fim de
aceitar as diferenças. A justificativa para aceitá-la como tal só pode ser
endógena, só pode brotar de dentro do próprio sistema de crenças dessa
comunidade. “Nós deveríamos dizer que precisamos, na prática, privilegiar

89
nosso próprio grupo, ainda que não haja nenhuma razão não-circular para agir
assim” (RORTY, 2002, p.47)51.
Descartando a imagem da mente como espelhando a natureza, Rorty
defende claramente que a produção do conhecimento se dá através do debate
entre sujeitos capazes de apresentarem argumentos a fim de provarem suas
crenças. Dessa maneira, a questão deixa de ser encontrar a forma através da
qual a mente se relaciona com a realidade, que seria um retorno ao dualismo
sujeito/objeto, e volta-se para o processo em que buscamos validar nossas
crenças. A superação pragmática da epistemologia exige que a questão seja
deslocada do mundo para os falantes. Somente estes emitem sentenças,
somente estas podem ser verdadeiras ou falsas. Apenas os membros de nossa
comunidade podem legitimar ou não nossas asserções. A autoridade
epistêmica da primeira pessoa no singular é solapada e substituída pela
autoridade da primeira pessoa do plural: “nós” 52. Com isso, Rorty articula anti-
representacionismo e etnocentrismo (democrático-liberal), pois a partir de
então as questões realmente relevantes dizem respeito aos limites de nossa
comunidade, ao grau de liberdade e abertura de nossos encontros a fim de
provarmos nossas crenças, à nossa capacidade de ouvir, ponderar e aceitar ou
não sugestões estranhas a nós.
Os pragmáticos gostariam de substituir o desejo por
objetividade – o desejo de estar em contato com uma
realidade que é mais do que alguma comunidade com a
qual nós nos identificamos – pelo desejo por
solidariedade com essa comunidade. (RORTY, 2002,
p.60)

O fatalismo etnocêntrico de Rorty advém de sua crítica radical ao


representacionismo e, como conseqüência direta dela, da ausência de uma
perspectiva acima de todas as demais. O “desejo por objetividade” – a

51
Na leitura de Rorty, teriam feito isso Dewey, assim como Michael Oakeshott e John Rawls:
“Todos admitiram alegremente que a justificação circular de nossas práticas, uma justificação
que faz parecer bonito um traço de nossa cultura citando um outro, ou comparando de forma
discriminatória a nossa cultura com outras, fazendo referência aos nossos próprios padrões, é
o único de justificação que nós teremos” (RORTY, 2007, p.111).
52
Para Habermas, a “autoridade epistêmica passa do sujeito cognoscente, que extrai de si os
critérios para a objetividade da experiência, para a práxis de justificação de uma comunidade
lingüística” (2004, p.240). Note-se que Habermas, ao falar de uma comunidade lingüística, não
se filia a Rorty no seu etnocentrismo.

90
pretensão humana de um contato com algo não-humano – é a tentativa
frustrada de preencher esse vazio. Ou de se alcançar a perspectiva divina.
Rorty sabe que não pode apelar para o seu etnocentrismo a fim de
resolver todas as questões de ordem política, epistemológica ou ética como se
o mesmo gozasse de critérios superiores capaz de neutralizar a força de
parcialidades locais. Naturalmente, o etnocentrismo não goza e nem deseja ter
critérios étnicos, culturais ou nacionais superiores através dos quais ele possa
se justificar. Ele simplesmente assume a condição estritamente humana de
todo conhecimento, a ausência de uma mão capaz de tocar algo não-humano
sem imediatamente humanizá-lo – “A trilha da serpente humana, pois, está
sobre tudo” (JAMES,1979, p.24), como diria um de seus heróis, Willian James.
Resta-nos então a argumentação.
Decerto, a noção de etnocentrismo traz em si uma série de problemas
com os quais inevitavelmente teremos que lidar sem a pretensão de esgotá-los.
Ninguém ignora as conseqüências trágicas de quando uma cultura, ou
determinado grupo étnico ou nação se considera superior aos demais. A
história da colonização da América e da África não deixa dúvida quanto às
implicações nefastas dessa suposição, ancorada, dentre outros motivos, na
crença de que os colonizadores eram civilizados (e, portanto, mais racionais),
enquanto os demais não. Nesse sentido, possuindo a digna missão de educá-
los. Por outro lado, quando ocorre a exacerbação do princípio da tolerância à
diferença, equivalendo toda a forma de vida, ou não se posicionando
favoravelmente ou contra qualquer forma de vida, provoca-se uma perigosa
cultura de moderação53. Ainda nesse capítulo farei algumas objeções ao

53
Terry Eagleton, um marxista engajado, faz o seguinte comentário no que se refere à tentativa
de tornar a cultura liberal o paradigma da civilização: “Ser civilizado ou culto é ser abençoado
com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras agradáveis e uma mentalidade
aberta. É portar-se razoável e moderadamente, com uma sensibilidade inata para os interesses
dos outros, exercitar a autodisciplina e estar preparado para sacrificar os próprios interesses
egoístas pelo bem do todo. Por mais esplêndidas que algumas dessas prescrições possam ser,
elas não são politicamente inocentes. Ao contrário, o indivíduo culto parece-se
suspeitosamente com um liberal de tendências conservadoras. [...] Esse indivíduo civilizado
certamente não se parece com um revolucionário político, ainda que a revolução também faça
parte da civilização. A palavra ‘razoável’ significa aqui algo como ‘aberto à persuasão’ ou
‘disposto a concessões’, como se toda convicção apaixonada fosse ipso facto irracional. A
cultura está do lado do sentimento em vez do da paixão, o que quer dizer do lado das classes
médias de boas maneiras em vez do das massas iradas. Dada a importância do equilíbrio, é
difícil ver por que alguém não seria solicitado a contrabalançar uma objeção ao racismo com o
seu oposto. Ser inequivocamente contrário ao racismo pareceria ser distintamente não
pluralista. Já que a moderação é sempre uma virtude, um leve desagrado com relação à

91
etnocentrismo liberal democrático defendido por Rorty, mas antes gostaria de
apresentar a redescrição que ele faz da ciência enquanto uma atividade
solidária.

3.2. REDESCREVENDO AS CIÊNCIAS

Um problema que historicamente desafia a filosofia é a demarcação


entre ciência e não-ciência. Qual o motivo? Por que escolhemos
prioritariamente esse problema? – questiona-se Rorty. Enquanto historicista,
ele não crê que tenhamos uma resposta estritamente epistemológica para
essas questões, o tipo de resposta que realistas costumam apresentar. Ele
sugere que se essas questões forem re-direcionadas para a história intelectual,
talvez tenhamos mais sucesso.
Uma resposta que Rorty simpatiza, mas que não se restringe a ela, é
aquela, na sua interpretação, comum a Nietzsche e Dewey
de que a tentativa de distinguir a deliberação prática de
uma busca impessoal e não-perspectivística da verdade
(um tipo de busca, a partir do qual, a ciência natural é
pensada como paradigma) é uma tentativa de alcançar
“conforto metafísico”: o tipo de conforto outrora propiciado
pela religião. (RORTY, 2002, p.86)

Reiterada vezes Rorty criticou a pretensão de se entender a ciência como


tendo um acesso privilegiado à realidade e do cientista como aquele que pode,
com sua mão humana, tocar em algo não-humano. A ciência não é uma
religião e nem tão pouco o cientista é seu sumo sacerdote. No entanto, ciência
e cientistas têm sido vistos dessa forma, uma maneira bem moderna de
encontrar “conforto metafísico”. Trata-se, certamente, da sua crítica às ciências
naturais como refúgio essencialista, conforme vimos na seção 2.2.5 do capítulo
anterior.
Passemos agora à segunda resposta aos questionamentos feitos acima
acerca da origem do problema da demarcação entre ciência e não-ciência, uma
resposta, dirá Rorty, complementar e psico-histórica.

prostituição pareceria mais apropriado do que uma oposição veemente a ela. E já que a ação
pareceria implicar um conjunto de escolhas razoavelmente definitivas, essa versão da cultura
é, inevitavelmente, mais contemplativa do que engagé” (EAGLETON, 2005, p.32-33).

92
Essa resposta é a que os cientistas sociais têm sido
freqüentemente exemplares conspícuos de certas
virtudes morais. Os cientistas são merecidamente
famosos por apoiarem-se antes na persuasão do que na
força, pela (relativa) incorruptibilidade, pela paciência e
caráter razoável. (RORTY, 2002, p.86)

Curiosamente é nesse ponto que a ciência é mais exemplar: não por ser
mais objetiva, lógica, metódica, e sim por ser uma prática humana solidária que
pode inspirar o resto da cultura. O que há de mais interessante na cultura
científica não é o cientificismo ligado a certa noção de racionalidade
considerada fracassada por muitos filósofos na contemporaneidade, mas
precisamente sua prática (ou o ideal de uma prática) de discutir argumentos de
maneira livre e aberta, de se alcançar cada vez mais uma “concordância não-
forçada” dentro e para além de nossa comunidade. Rorty parece querer
mostrar que anti-representacionismo, etnocentrismo e democracia liberal
convergem rumo à ideia de uma ciência solidária.
Mas para que haja essa convergência é preciso fazer uma resdescrição
da ciência através da criação de um novo vocabulário. Esse novo vocabulário
abandonaria distinções como objetivo/subjetivo, verdade/prazer,
fatos/valores54. É importante salientar que não se trata de desbancar as
ciências naturais – elas, diz ele, são e merecem ser paradigmas morais, mas
para tal não precisam representar o mundo tal como ele é. A ideia de que a
ciência merece ser o paradigma moral está ligada à nova descrição que ele se
propõe a fazer dela, em que a solidariedade se sobreponha à objetividade.
Nesse sentido, se tivermos de pensar numa virtude que os cientistas têm, é
justamente a da solidariedade. A análise de Thomas Kuhn de paradigmas
científicos disputando entre si como a de uma disputa antes política que
epistemológica é vista positivamente por Rorty. Creio que a imagem da
competição entre teorias alternativas nos ajuda a ter uma ideia mais clara
sobre a maneira pela qual essa solidariedade se manifesta numa sociedade
pluricultural, ao tempo em que afasta um sentido religioso ou filantrópico que

54
Tal posicionamento tem a ver com a ideia de que nossa linguagem é contingente, e não uma forma de
representação do mundo. Dentro do espírito darwiniano, Rorty concebe a linguagem como uma
ferramenta, necessária apenas enquanto útil. Quando velhos vocabulários se tornam obsoletos, precisamos
mudá-los. “a ideia atraente é que as ferramentas linguísticas têm seu propósito e portanto podem ser
aposentadas quando esse propósito tiver se cumprido, enquanto outros projetos e ferramentas surgem para
suplantá-las. Rorty chama isto de mudança de vocabulários” (BLACKBURN, 2006, p.237).

93
porventura pode lhe ser dada, aproximando-a antes da piedade do que da
disputa. “Nós devemos ter apreço pelo pensamento de que as ciências, assim
como as artes, sempre propiciarão um espetáculo de feroz competição entre
teorias alternativas, movimentos e escolas” (RORTY, 2002, p.60).
Precisamente isso é o que pragmatistas vêem como virtude científica, algo que
eles compartilham com a arte. Um pouco adiante, Rorty afirma:
Eles [os pragmáticos] pensam que os hábitos de
confiança antes da persuasão do que na força, de
respeito pelas opiniões dos colegas, de curiosidade e
zelo por novos dados e ideias são as únicas virtudes que
os cientistas têm. Eles não pensam que há uma virtude
intelectual chamada “racionalidade” além dessas virtudes
morais. (2002, p.60)

Descrita dessa forma, enquanto disputa puramente humana, sem um “gancho


celeste”, a solidariedade rortiana só pode aceitar a concepção de racionalidade
como razoabilidade, mais como portadora de virtudes intelectuais (tolerância,
abertura para o diálogo) do que epistemológicas (método, objetividade,
critério). Nesse sentido, a razão pode ser entendida como “sinônimo de
tolerância – a habilidade de não ficar demasiado desconcertado diante do que
é diferente de si, a capacidade de não responder agressivamente a essas
diferenças”. Essa racionalidade confia mais na conversação do que na
violência, no abandono ou no desprezo.
Ela também acompanha uma confiança mais na
persuasão do que na força, uma inclinação para
conversar antes do que brigar, queimar ou banir. É uma
virtude que capacita indivíduos e comunidades, vivendo e
deixando viver, e agrupando novos, sincréticos e
comprometidos modos de vida. (RORTY, 2005b, p.78)

Na avaliação de Rorty, todos (cientistas e humanistas) anseiam antes


pela racionalidade enquanto objetividade do que pela racionalidade enquanto
solidariedade. Mas deveríamos antes optar pelo segundo tipo e esquecer a
ideia de que podemos estabelecer critérios a-temporais através dos quais se
pode medir o progresso. A melhor contribuição dos cientistas para o tipo de
sociedade utópica que Rorty imagina está no modelo de instituição que eles
criaram. Na nova descrição da ciência proposta por ele, métodos, objetividade
e conceitos afins perdem para a capacidade de solidariedade manifesta através
de suas instituições. Parece-me que este é o ponto. Embora cientistas vejam a

94
si mesmos como portadores da racionalidade enquanto objetividade, eles, na
prática, exercem com grande êxito a racionalidade enquanto solidariedade – “a
ciência é um modelo de solidariedade humana” (RORTY, 2002, p.61). Faz
parte da redescrição rortiana da ciência a sugestão de que o
antirrepresentacionalismo conjugado com o etnocentrismo liberal-democrático
engendra um modelo de ciência no qual os membros de sua comunidade
tendem cada vez mais para um horizonte estabelecido intersubjetivamente, no
espaço público do debate, e não na confrontação de nossas representações
subjetivas com a realidade.
Mas é apenas fazendo uma redescrição da ciência e da atividade
científica enquanto solidariedade que Rorty concede-lhe um lugar de primazia
na cultura humana, como uma atividade que pode inspirar as demais. Decerto,
os perigos que acompanham a ciência moderna já haviam sido denunciados no
iluminismo por Jean-Jacques Rousseau quando este respondeu negativamente
no seu Discurso sobre as ciências e as artes à Academia de Dijon sobre “Se o
restabelecimento das ciências e das artes serviu para aperfeiçoar o espírito?”
(ROUSSEAU, 1999, p.5). Apesar do otimismo imperante da época no
progresso da ciência e da técnica rumo ao aperfeiçoamento absoluto da
humanidade sob a égide da razão55.
Mas na primeira metade do século XX o impacto da Primeira Grande
Guerra Mundial coroa a suspeita de Rousseau sobre a virtude da ciência e da
técnica e, ao mesmo tempo, provoca sofisticadas análises da então chamada
racionalidade técnica-científica. Os motivos das críticas são tão variados
quanto o de pensadores que refletiram sobre o assunto. Oswald Spengler
produz uma volumosa obra intitulada “A decadência do Ocidente”, na qual,
como o título sugere, o autor defende que até o século XX a técnica já teria
passado por todos os seus estágios, sendo o último aquele em que a Europa
vivia e ao qual ele denominou de “Ascensão e dissolução da cultura

55
Talvez uma das manifestações mais eloqüentes do otimismo histórico do Iluminismo seja o livro de
Jean-Antônio-Nicolas de Caritat Condorcet, “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito
humano”, no qual concilia razão, progresso e história rumo a um aperfeiçoamento absoluto. A passagem
que segue é uma resposta a Rousseau: “Então ver-se-á que esta passagem tempestuosa e penosa de uma
sociedade grosseira ao estado de civilização dos povos esclarecidos e livres não é uma degeneração da
espécie humana, mas uma crise necessária na marcha gradual em direção ao aperfeiçoamento absoluto.
Ver-se-á que não foi o crescimento das luzes, mas sua decadência, que produziu o vício dos povos
policiados; e que enfim, longe de corromper os homens, as luzes suavizaram os vícios, quando não
puderam corrigi-los ou mudá-los” (CONDORCET, 1993, p.39).

95
mecanicista”. A previsão de Spengler é pessimista, como o título da obra
sugere: nada mais resta para o ocidente senão a decadência.
Também no início do século passado, Ortega y Gasset alega ter feito a
primeira análise do ser da técnica numa coletânea de artigos intitulada
Meditação sobre a técnica (1996). Apesar de não compactuar com o fatalismo
de Spengler quanto ao destino da ciência e da técnica, ele compartilha a ideia
de que paira na Europa uma crise quanto à produção técnico-científica.
Segundo sua análise, tal crise se manifesta na indiferença das massas quanto
à história, aos processos de criação de novas técnicas e a natureza da
atividade científica. O curioso é que esse seria um processo engendrado pela
própria ciência moderna:
acontece que o homem da ciência atual é o protótipo do
homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito
unilateral de cada homem da ciência, mas porque a
própria ciência – raiz da civilização – converte-o
automaticamente em homem-massa. (ORTEGA Y
GASSET, 1987, p.122)

Por massa entende-se a união harmônica de um determinado tipo de homem


que se vê como igual a todos os outros em todas as esferas da vida. Não diz
respeito à origem cultural ou classe social, nem tampouco à educação, e sim à
faculdade do desejo que se assemelha ao de todo mundo e dissolve-se no
anonimato, conforme análise desenvolvida na sua obra A rebelião das massas.
Não posso deixar de apontar aqui que, para Ortega y Gasset, o fenômeno das
massas só foi possível devido à conjunção da ciência moderna com a
democracia liberal.
O sentimento de crise também assola o fundador da fenomenologia,
Edmund Husserl, conforme atesta a conferência proferida por ele em 1935,
intitulada A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental.
Seu relato sobre o momento histórico pelo qual a Europa está passando é
dramático:
Como se explica que, neste plano, nunca se chegou a
uma medicina científica, a uma medicina das nações e
das comunidades supranacionais? As nações européias
estão enfermas. Diz-se que a própria Europa está em
crise. Não faltam os curandeiros. Estamos submersos
num verdadeiro dilúvio de propostas ingênuas e
exaltadas de reforma. Mas por que aqui as ciências do
espírito, tão ricamente desenvolvidas, não prestam o

96
serviço que as ciências da natureza cumprem
excelentemente bem em sua esfera? (HUSSERL 1996,
p.59-60)

No seu entendimento, a crise das ciências ocorre em conseqüência da crise da


humanidade como projeto racional elaborado a partir da filosofia grega, sendo
esta compreendida como saber fundamental, uno e universal. Considerando a
Grécia como o berço da cultura européia, vê na trajetória da razão no Ocidente,
através das ciências, o desvio desse projeto original. O que Husserl pretende
fazer através da fenomenologia é uma reforma desse projeto original fundado
na filosofia tal como compreendida pelos gregos 56.
Não é o caso agora de fazer uma análise de cada um desses filósofos
sobre a noção de ciência, mas tão somente apontar de maneira generalista
como a redescrição que Rorty se propõe a fazer da ciência afasta certo
pessimismo presente nas formulações de Rousseau, Spengler, Ortega y
Gasset e Husserl, e concomitantemente aponta para os aspectos políticos dela
considerados positivos. Rorty aprova a formulação de Bacon do saber como
poder, entendendo daí a racionalidade como um empreendimento técnico que
visa interesses no mundo prático. Em seguida, abandonando o modelo
representacional da racionalidade moderna, fundado no dualismo
sujeito/objeto, une a racionalidade técnica à racionalidade enquanto
conversação, que ele liga à própria ideia de uma cultura liberal-democrática.
Entendendo a cultura apenas “como um conjunto de hábitos compartilhados,
que capacitam os membros de uma comunidade humana singular a dar-se
bem com os outros e com seu ambiente como todos assim o fazem” (RORTY,
2005b, p.80) e não como uma virtude ou algo produzido estritamente pela
racionalidade, Rorty formula um ideal de sociedade na qual cada cultura teça

56
Referindo-se a essa conferência de Husserl, Habemas em Conhecimento e interesse vai
afirmar: “Husserl não trata das crises que existem nas ciências, mas da sua crise enquanto
ciência. Sem vacilações, como quase todos os filósofos antes dele, Husserl toma como medida
da sua crítica uma ideia de conhecimento que preserva a conexão platônica da pura teoria com
a prática vital. Não é o conteúdo informativo das teorias, mas a formação de um hábito reflexivo
e ilustrado nos próprios teóricos o que finalmente produz uma cultura científica. A marcha do
espírito europeu parecia ter como objetivo a gestação de uma cultura científica. No entanto,
essa tendência histórica parece a Husserl ameaçada depois de 1933. Está convencido de que
o perigo não ameaça apenas a partir de fora, mas também de dentro. Atribui a crise ao fato de
as disciplinas mais avançadas, sobretudo a física, se terem afastado do que em verdade se
pode chamar teoria” (HABERMAS, 2009, p.130-131).

97
com as demais uma rede composta por finos traços de cada uma delas. Um
ideal de sociedade característico da racionalidade entendida como tolerância.
O desejo por “objetividade” perde suas partes
desnecessárias e acaba no desejo por adquirir crenças
que, se transformando, irão eventualmente receber
concordância não-forçada no curso de um encontro livre
e aberto com pessoas que detêm outras crenças.
(RORTY, 2002, p.63)

Como se vê, nem todo discurso filosófico da modernidade é descartado, mas


redesenhado segundo os propósitos de sua defesa do liberalismo democrático
(iluminista) sem fundamentação metafísica ou epistemológica, nem tampouco é
comprometido com um fim que não seja o aumento gradual daquilo que é
melhor para nós.

3.3 O ETNOCENTRISMO NO RASTRO DO RELATIVISMO

Talvez uma das primeiras ponderações com relação ao etnocentrismo


de Rorty não seja uma novidade e sim uma variação do argumento de Sócrates
contra o discípulo de Protágoras. A questão que se impõe é a seguinte:
devemos entender o etnocentrismo em si mesmo como uma tese etnocêntrica?
Há certa formalidade aí que Rorty propositadamente não cumpre, mas que aqui
não nos cabe negligenciar. Kalpokas acertadamente aponta que o
questionamento acima da tese etnocêntrica de Rorty o coloca entre duas
alternativas incompatíveis:
Há aqui duas possibilidades: se a resposta é afirmativa,
então a impossibilidade de elevar-se acima do próprio
vocabulário deve ser atribuído exclusivamente ao
pragmatismo de Rorty, mas não a outras teorias
filosóficas. Neste caso, suas críticas aos realistas e
kantianos careceriam de objeto. Seus respectivos
vocabulários finais lhe permitiriam fazer o que o de Rorty
não, a saber: sair de suas próprias redes de crenças e
desejos. Pelo contrário, se a tese de Rorty há de
entender-se em um sentido universalista, o etnocentrismo
não pode ser verdadeiro. Uma afirmação, ao menos, não
pode ser etnocêntrica, se é que pretendemos sustentar
que nenhum indivíduo ou comunidade pode subtrair-se
da sua própria cultura. (KALPOKAS, 2005, p.53)

98
Enfim, o que Kalpokas sustenta é que o etnocentrismo de Rorty é
inconsistente, não sendo senão uma variação do relativismo. De fato, não é
claro conciliar a afirmação de que “somos moralmente superiores” devido à
nossa tradição democrático-liberal com a de que outros usuários da linguagem
“que não pertencem [a essa tradição] não são menos coerentes [que nós] em
seu uso da linguagem” (RORTY, 2005a, p.143)57. Em primeiro lugar, parece
haver uma confusão entre a tentativa de reflexão sobre a natureza de nossas
crenças e a ética, ainda como um reflexo da confusão entre as duas noções de
etnocentrismo presente no seu discurso. Depois, a afirmação da superioridade
moral da sua cultura com relação às demais pressupõe uma justificação que
ultrapassa os limites impostos por sua comunidade, o que significa dizer que
seus critérios são melhores. Mas então temos uma negação do etnocentrismo.
Podemos extrair do próprio Rorty uma resposta a esse questionamento
quando o mesmo tenta mostrar que o pragmatismo não implica relativismo de
nenhuma espécie. Ele tenta superar a ideia de que verdade e justificação se
opõem, que a primeira é relativa a algo enquanto a segunda não. Sua crítica ao
absolutismo, alega, não conduz necessariamente ao relativismo. Seria assim
se o nosso motivo de justificar crenças fosse encontrar a verdade ou nos
garantir uma maior proximidade com ela, mas a justificação de nossas crenças
não é impulsionada pela verdade e nem tampouco visa exclusivamente ela. Ele
reitera inúmeras vezes que o tópico verdade deve ser abandonado em prol de
um vocabulário que nos seja mais útil. Mas, se tivermos de usar a palavra
verdade, recomenda, que seja um uso acautelatório. A função da verdade é
cumprida quando nos ajuda na prevenção de situações difíceis, quando ela nos
oferece algo a que se ater num mundo de inseguranças.
Se estou correto em pensar que a única função da
palavra “verdadeiro” (ou de qualquer outro termo
normativo indefinível, como “bom” ou “certo”) é nos
acautelar, prevenir contra o perigo, apontando para
situações imprevisíveis (audiências futuras, dilemas
morais futuros etc.), então não faz muito sentido
perguntar se a justificação conduz ou não à verdade. A
justificação, perante mais e mais audiências, conduz a
perigos sempre menores de refutação, portanto, a menos
e menos necessidade de cautela. [...] Mas alguém só dirá

57
Um pouco adiante, Rorty irá afirmar: “Parece-me que sou tão provinciano e contextualista
quanto os professores nazistas que faziam seus alunos lerem Der Stürmer. A única diferença é
que sirvo a uma causa melhor. Venho de uma província melhor” (2005a, p.155).

99
que a justificação conduz à verdade se puder de alguma
maneira extrapolar – do condicionado ao incondicionado
– de todas as audiências imagináveis a todas as
audiências possíveis. (RORTY, 2005a, p.131)

Naturalmente o que está em jogo aí é a pretensão rortiana de priorizar a


política liberal-democrática, tanto no que diz respeito ao seu entendimento de
que é a melhor forma de organização social hoje existente, quanto no sentido
da sua defesa de que a política liberal-democrática não necessita de
fundamentos metafísicos ou epistemológicos de qualquer ordem para
sobreviver. Para se sustentar uma sociedade democrática, aberta ao diálogo,
includente, com contextos de discussão cada vez mais amplos, não podemos
contar com a verdade no sentido universalista, que ultrapassa os limites de
nossa comunidade. Rorty converge antirrepresentacionalismo e etnocentrismo
liberal-democrático, ao tempo em que tenta redescrever o último tendo em vista
as conseqüências do primeiro. A saber, a ideia de que o mundo não servirá de
tribunal de nossas sentenças e que, diante de tal situação, nada nos resta
senão investirmos em encontros cada vez mais amplos e qualificados, o tipo de
encontro em que a sociedade liberal-democrática tem se aperfeiçoado cada
vez mais.
A sociedade liberal é aquela que se contenta em chamar
de “verdadeiro” o que quer se revele como desfecho
desses encontros. É por isso que tem pouca serventia
para a sociedade liberal a tentativa de supri-la de
“fundamentos filosóficos”. (RORTY, 2007, p.102)

Embora sedutora, a articulação entre etnocentrismo e política liberal-


democrática implica certos problemas ético-políticos. Rorty está certo de que
uma política liberal-democrática pode perdurar sem os deliciosos aportes de
uma fundamentação filosófica de caráter universalista. Não por mero desprezo
a essa tradição, mas simplesmente porque os princípios de racionalidade
universalista da política liberal-democrática clássica pressupõem um
vocabulário já defasado, que inclui, por exemplo, a noção de “natureza
humana”, um pressuposto que nos coloca acima da história e independentes
da cultura. A partir do momento em que ele des-substancializa o “eu”, encerra-

100
se a possibilidade de se atribuir direitos e responsabilidades ao homem tendo
por base uma natureza humana58.
Admitida a contingência de uma sociedade liberal-democrática, tal como
Rorty a entende, resta-lhe apenas fazer uma defesa apaixonada de sua própria
comunidade. O problema é a possibilidade aberta de que qualquer comunidade
faça também uma defesa apaixonada de si. Rorty diz que numa sociedade
liberal-democrática o diálogo deve prevalecer ante a ação, fora isso, vale-
tudo59. Mas assim a sociedade liberal-democrática estabelece, ainda que de
maneira mínima, as regras do jogo aos quais os outros devem se submeter.
Optar pelo diálogo em vez da violência é um valor restrito, não universal,
inspirado pelo desejo de solidariedade. A questão é se esse desejo pode
inspirar todas as comunidades planetárias como sendo moralmente superior.
Desde que o próprio Rorty não admite a ideia de que há critérios
superiores, ou um “gancho celeste” ao qual possamos nos alçar, não há porque
hierarquizar formas de moralidade. Até onde posso ver, Rorty poderia
permanecer no seu argumento de viés davidsoniano de que o uso coerente de
linguagens por todas as comunidades não implica o estabelecimento de
critérios de “validade universal”, como o quer Habermas na formulação de uma
“ética do discurso”. O que não fica claro é como ele pode afirmar a
“superioridade moral” dessa tradição, a qual ele e Habermas pertencem, e ao
mesmo tempo reconhecer seu caráter provinciano e contingente.

3.3.1 Poesia e esperança

58
Atente-se que Rorty leva às últimas conseqüências políticas o princípio de não determinação
de uma natureza humana. Algo que encontramos também em José Ortega y Gasset e Jean-
Paul Sartre, respectivamente no início e na segunda metade do século XX. O que diferencia os
três neste quesito parece-me ser precisamente as implicações políticas que cada um extrai
dessa des-substancialização do humano. Curiosamente, a pauta de uma suposta natureza
humana jamais saiu em absoluto do horizonte da filosofia, seja por necessidades metafísicas,
seja por uma imposição das ciências, precisamente as biológicas (genética). Recentemente
(2000-2001), Habermas retoma a discussão e publica um texto com o instigante título: “O futuro
da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?”
59
Dentro do mais nobre espírito pragmático, Rorty afirma que “Só teríamos um impasse real e
prático, em vez de artificial e teórico, se alguns temas e alguns jogos de linguagem fossem
tabus – se houvesse uma concordância geral, numa sociedade, em que certas perguntas são
sempre pertinentes, em que certas perguntas têm prioridade sobre as outras, em que há uma
ordem de discussão fixa e em que os movimentos pelos flancos não são permitidos. Esse seria
justamente o tipo de sociedade que os liberais tentam evitar – uma sociedade em que a ‘lógica’
dominaria e a ‘retórica’ seria proibida por lei. É central na ideia de sociedade liberal que, com
respeito às palavras em oposição aos atos, à persuasão em oposição à força, vale-tudo”.
(2007, p.101-102)

101
Agora, cabe-nos perguntar: Rorty foi bem sucedido na sua tentativa de
redescrever a ciência antes em termos de solidariedade do que de
objetividade? Talvez a questão acima tenha sido mal formulada. Tentarei
mostrar por que. Na proposta de redescrição rortiana, o que se tem em vista
não é propriamente oferecer argumentos sólidos, ou fundamentos, em defesa
da sociedade liberal e suas instituições, incluindo aí as científicas. Ele pretende
fomentar um vocabulário em que as noções de objetividade, verdade,
realidade, correspondência etc. simplesmente sejam abandonadas por
considerá-las obsoletas. Aspira “reformular as esperanças da sociedade liberal
de um modo não racionalista e não universalista” (RORTY, 2007, p.90). De que
forma? Poetizando a cultura:
Precisamos de uma redescrição do liberalismo como
esperança de que a cultura como um todo possa ser
“poetizada”, e não como a esperança iluminista de que
ela possa ser “racionalizada” ou “cientizada”. Ou seja,
precisamos substituir a esperança de que todos troquem
a “paixão” ou a fantasia pela “razão” pela esperança de
que as oportunidades de realização das fantasias
idiossincráticas sejam equiparadas. (RORTY, 2007,
p.103-104)

Avaliando seu próprio posicionamento como destituído de provas e


argumentos racionais decisivos, Rorty retira-se do jogo da filosofia e orienta-se
para a literatura. Como avaliar se uma poesia é verdadeira ou falsa?
Naturalmente essa é uma pergunta absurda. Também a ideia de que a cultura
como um todo precisa ser poetizada sugere que a última é detentora de uma
capacidade própria imaginativa, que é especialmente criativa, o bastante, em
todo caso, para levar outras esferas da cultura a um maior desenvolvimento.
A ligação que Rorty estabelece entre romantismo e pragmatismo é
explícita. Não é exagero dizer que ele faz uma leitura romântica da ciência,
imaginativa, no sentido de criar novos vocabulários e na esperança de que
esses mudem as práticas sociais:
Deveríamos tentar pensar a imaginação não como uma
faculdade que gera imagens mentais, mas como uma
capacidade de mudar as práticas sociais propondo novas
utilizações vantajosas de sinais e ruídos. Para sermos
imaginativos, e não meramente fantasiosos,
necessitamos tanto de fazer algo novo quanto de termos
sorte suficiente para que nossa novidade seja adotada

102
por nossos camaradas – incorporada em suas maneiras
de fazer as coisas. (RORTY, 2009, pp.182-183)

Mas, ao atribuirmos à poesia tamanha singularidade, não estaríamos


sutilmente sugerindo que outras esferas da cultura, como a própria filosofia, a
ciência ou a política, seriam estanques, pouco criativas, destituídas do poder
de originar através do seu próprio vocabulário o ainda inexistente? Penso que
poucos seriam contra a ideia de que a poesia é uma atividade por excelência
criativa. Aliás, é contra o poder imaginativo dela que Platão se insurge na sua
“República”, a ponto de defender que os poetas deveriam ser expulsos da
sociedade60. Mas daí a pressupormos que ela é hierarquicamente superior às
demais formas de produtividade cultural é um passo por demais longo, ao
menos no campo da filosofia. O filósofo Rorty propõe uma cultura pós-filosófica
inspirada poeticamente, mas ao dar esse passo assemelha-se a um grande
pássaro cuja “As asas de gigante impedem-no de andar” 61.

Por outro lado, como cobrar de alguém que se declara esperançoso de


algo que essa pessoa ofereça argumentos? Note-se que o problema não é
refutar o conhecimento de alguém que diz não saber, como seria o caso das
refutações socráticas. A esperança perdura a despeito de provas. O
preocupante é que ela pode ser sacada tanto do democrático-liberal, quanto do
ditador ou de um fanático religioso. Portanto, cabe-nos questionar qual o
alcance da agenda filosófica de Rorty ao colocar a esperança e a solidariedade
como baluartes da “possibilidade ou obrigação de construir uma comunidade
includente planetária” (RORTY, 2005a, p.104). Ou seja, como baluartes da sua
política democrática.

60
“- Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de
tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus
poemas, prosternávamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador,
mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade não há homens dessa espécie, nem sequer é lícito que
existam, e mandá-lo-íamos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra
sobre a cabeça e de os termos coroado de grinaldas”. (PLATÃO, 1993, p.125)
61
O verso é de um clássico de Charles Baudelaire, O Albatroz, no qual ele descreve o poeta
como um pássaro capturado pelos homens e chacoteado. A estrofe na íntegra: “O Poeta se
compara ao príncipe da altura / Que enfrentava os vendavais e ri da seta no ar; / Exilado no
chão, em meio à turba escura, / As asas de gigante impedem-no de andar” (BAUDELAIRE,
1985, p.111).

103
104
4. UMA PERSPECTIVA NEOPRAGMÁTICA SOBRE ENSINO DE CIÊNCIAS
E POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS ÉTNICO-RACIAIS NAS
UNIVERSIDADES

Como apontamos anteriormente (sub-seção 2.2), a filosofia de Dewey foi


uma forte fonte de inspiração para a formulação do neopragmatismo rortiano.
Enquanto discípulo assumido de Dewey, Rorty não deixou de tratar de uma das
questões que teve papel de destaque na trajetória de seu mestre: a educação.

Apesar da influência que Dewey exerceu sobre Rorty, não avançaremos


para uma investigação sobre graus de concordância ou discordância entre
eles. Restringiremo-nos aqui a tentar extrair, a partir do neopragmatismo de
Richard Rorty, possíveis consequências para o ensino de ciências no contexto
de uma sociedade democrática em que as relações étnico-raciais são
relevantes para a constituição de políticas educacionais, como no caso do
Brasil. Para tal, faz-se necessário um esclarecimento: Rorty, em seus
pouquíssimos textos reservados especificamente à educação, não tratou com
exclusividade do ensino de ciências, nem tão pouco da relação entre ensino de
ciências e relações étnico-raciais, mas da educação entendida como
“edificação” – uma atividade próxima a da poesia, no que diz respeito à sua
dimensão criativa, transformadora, imaginativa, capaz de nos fazermos
diferentes do que somos hoje através da criação de novos vocabulários.

Como “educação” soa um tanto prosaico demais, e


Bildung um tanto estrangeiro demais, irei usar
“edificação” para representar esse projeto de encontrar
modos novos, melhores, mais interessantes, mais
fecundos de falar. (RORTY, 1994, p.354)

Nesse sentido, a Educação soa antes como uma atividade autocriativa


(social e individualmente), que fomenta modos de falar menos familiares e mais
inventivos, e não apenas como mera instrução e repetição de velhos
vocabulários.

Se, como já foi observado, há uma escassez de material em língua


portuguesa sobre o ensino de ciências (SILVA, 2006; MARTINS, 2006), no que
diz respeito ao tópico específico da relação entre o ensino de ciências e a
problemática étnico-racial no Brasil, a produção é ainda mais rara por se

105
considerar que esse é um campo politicamente neutro (SILVA, 2009). Ao tratar
das políticas de ações afirmativas étnico-raciais nas universidades,
especificamente no Brasil, estarei sugerindo, a partir da redescrição de Rorty
da ciência como uma atividade antes solidária que objetiva, e da sua
compreensão da educação como edificação, que há a possibilidade de incluir
novos elementos discursivos para esse debate no campo do ensino de
ciências. Justamente o campo que tem apresentado o maior grau de
dificuldade e resistência para a aplicação dessas políticas.

Essa atitude é permitida porque o ensino de ciências em sociedades


contemporâneas e democráticas é parte integrante da educação como um
todo62. Além do mais, concluímos no primeiro capítulo desta tese que na
literatura contemporânea sobre o ensino de ciências há um consenso de que a
reflexão sobre a ciência – tanto investigações sobre a história das ciências
quanto sobre a epistemologia – é importante para a sua compreensão e
ensino63. Por outro lado, ao enveredar por esse caminho, proponho uma
interpretação da filosofia de Rorty tendo em conta uma educação científica
comprometida com a nossa circunstância histórica e social.

É claro que o posicionamento de Rorty, coerente com seu


neopragmatismo, aponta para uma compreensão da educação como algo que
deve servir a propósitos estritamente políticos, e passa por uma crítica da
ciência enquanto uma forma de representar a natureza ou de encontrar nela
uma essência. Nem epistemologia nem ontologia. Parece-me que o ensino de
ciências deve se aproximar mais dos propósitos de uma democracia. Isso não
se dá apenas por uma escolha política pela democracia, embora haja aí
também esse posicionamento, mas trata-se, além disso, de uma consequência
do que Rorty entende como uma falência da epistemologia entendida enquanto
filosofia primeira e fundamentação teórica do real e a emergência da
compreensão de que a realidade é impregnada de interesses humanos. A

62
Concordo com Rorty quando ele afirma que “não podemos ser educados sem descobrir
bastante sobre as descrições do mundo oferecidas por nossa cultura (por exemplo,
aprendendo os resultados das ciências naturais) (RORTY, 1994, p.359).
63
Embora não se possa dizer, diante de toda critica de Rorty à filosofia, que ele faça filosofia
da ciência no sentido rigoroso do termo. Decerto, esse é um rótulo que ele nega, uma vez que
entende a filosofia da ciência como “o nome que a ‘epistemologia’ adotou quando se escondeu
entre os empiristas lógicos” (RORTY, 1994, p.319).

106
tentativa aqui será de, a partir da narrativa de Rorty de como se dá a produção
do conhecimento científico, estabelecer uma perspectiva neopragmática sobre
o ensino de ciências em um contexto no qual as relações étnico-raciais são
relevantes no processo educacional. Para tal, considerarei o “lugar” reservado
por Rorty para a verdade na educação em geral e sua relação com a liberdade
(4.1). Em seguida, examinarei qual o sentido de racionalidade melhor expressa
o sentido dos discursos acerca da diversidade cultural (4.2). Por fim,
argumentarei que as políticas de ações afirmativas étnico-raciais nas
universidades podem ser descritas em termos de solidariedade e não apenas
como inclusão, e que o ensino das ciências naturais podem integrar essas
práticas educacionais (4.3).

4.1. O “LUGAR” DA VERDADE NA EDUCAÇÃO

A principal tese de Richard Rorty no âmbito educacional, coerente com


sua crítica à epistemologia, é de que a verdade, compreendida como algo
independente do sujeito e de suas contingências históricas e sociais, não deve
ser considerada como a finalidade da educação; isso se aplica tanto ao período
pré-universitário quanto à universidade. Ele considera a educação um
empreendimento social que possui dois aspectos distintos e igualmente
importantes: a socialização e a individuação. O primeiro visa criar condições de
sociabilidade humana, de convivência entre seus pares, de um sentido de
cidadania e imersão em crenças básicas que garantam a unidade social – seria
o caso da educação básica. O segundo prima pela liberdade, a abertura para o
desenvolvimento da faculdade imaginativa do indivíduo a fim de que ele possa
recriar-se – seria o caso da educação superior. Mas nenhum dos dois
processos estaria preocupado prioritariamente com a verdade. Em suas
palavras:

Nenhum a educação básica (primária ou secundária) nem


a educação superior está primariamente preocupada com
a verdade – embora por diferentes razões nos dois
diferentes níveis. (RORTY, 1997a, p.61)

107
A pergunta, então, é: qual o “lugar” da verdade na educação? Ou, caso
se prefira, qual a sua relevância? Não se trata de definir a verdade ou
estabelecer uma teoria da verdade, mas de refletirmos sobre qual postura ter
diante dela no caso bastante específico do ensino de ciências. Retomemos
brevemente as considerações de Rorty sobre a verdade e vejamos que sua
crítica à epistemologia justifica seu posicionamento de extirpar a verdade do
ensino superior.

Podemos esquematizar da seguinte forma o que foi dito até aqui acerca
da verdade no entendimento de Rorty:

a) Ela não designa uma substância, uma essência, algo que está por
traz dos objetos, ou que é uma propriedade desses, e que nós,
através da razão, possamos alcançá-la (RORTY, 2000);

b) Não existe uma relação de correspondência entre nossos enunciados


sobre o mundo e o mundo a qual denominamos verdade. Nossos
enunciados não correspondem e nem representam o mundo.
Portanto, o debate acerca do realismo, uma vez que pressupõe a
ideia de representacionalismo, deveria ser abandonado (RORTY,
2002);

c) Não tornamos os enunciados verdadeiros confrontando-os com o


mundo, mas justificando-os. A justificação se dá enquanto uma
prática social, entre membros de uma comunidade ou grupo. Ela é
fruto de um acordo (quase sempre provisório, ou do que é melhor
para aquela comunidade até aquele momento) e não da “objetividade
do real” (RORTY, 2002);

d) A objetividade, portanto, não deve ser pensada como independente


dos sujeitos, ou como uma construção deles, e sim como o resultado
da relação entre eles, os únicos seres capazes de dar e pedir razões.
Nesse sentido, a justificação não deve ser pensada em termos de
objetividade e sim de solidariedade – a concordância não forçada
entre os membros de determinada comunidade. Ou como afirma
Rorty: “a objetividade deveria ser vista como conformidade às

108
normas de justificação (para asserções e para ações) que
encontramos sobre nós” (RORTY, 1994, p.355).

e) O papel que o mundo exerce sobre nossas crenças é estritamente


causal, ele (o mundo) não dá nem pede razões – o mundo não
justifica, só nossos pares humanos o fazem (RORTY, 1999a,1999b);

f) Sendo a verdade compreendida enquanto um conceito não-


substancial, ela não pode ser o objetivo da investigação científica ou
filosófica – o que está em jogo é a procura de evidências para nossas
crenças, o que sustenta nossas convicções (RORTY, 1994; RORTY,
2002);

g) O abandono da verdade e da objetividade em nome da solidariedade


não é uma saída para o relativismo e sim para o etnocentrismo.
Embora verdade e objetividade sejam vocábulos dispensáveis para
Rorty, o mesmo não se pode dizer de valores como solidariedade,
democracia e tolerância (RORTY, 2002) – o que denominei seu
etnocentrismo confesso (seção 3.1).

A crítica neopragmática de que os enunciados sobre o mundo são


dependentes do meio político e social, e não representações da realidade,
indica a conjuntura de um cenário no qual tanto a metafísica quanto a
epistemologia são abandonadas. Ou seja, introduz-se a política e a
contingência histórica e social como critérios determinantes de verdade – e,
com isso, o etnocentrismo se torna inevitável. Mais ainda, no caso do
etnocentrismo confesso de Rorty, “os valores de utilidade social precisam
prevalecer sobre os valores de verdade” (ENGEL, 2008, p.20).

Tendo essas considerações em conta, não é de todo surpreendente que,


também no plano educacional, Rorty não reserve um lugar de honra para a
verdade. Ele defende a prioridade da democracia (e com ela a esperança, a
liberdade e a solidariedade) ante o afã de se encontrar fundamentos
verdadeiros para a educação – uma pretensão da filosofia vista como de uma
relevância suspeita (RORTY, 1997a, p.59). No entanto, quando a filosofia é
entendida como tendo uma função social, e é esse o entendimento que Rorty
propõe para ela, as dúvidas sobre sua relevância para a educação começam a

109
ser diluídas. Trata-se antes de lhe atribuir um papel mais modesto, de
justificação de práticas consideradas úteis para nós ou da sugestão de novas
práticas através da criação de vocabulários inéditos, usos originais para se
fazer das palavras, e não de uma fundamentação derradeira de nossas
práticas. Este é o tipo de filosofia que Rorty denominou edificante, cuja meta “é
antes deixar a conversação fluindo que encontrar a verdade objetiva” (RORTY,
1994, p.370). Isso não significa que o filósofo edificante irá partir do zero, que
irá criar do nada, ignorando as contribuições do seu momento histórico – “a
edificação sempre emprega materiais proporcionados pela cultura da época”
(RORTY, 1994, p.359)64. O papel do filósofo edificante é garantir a
continuidade da conversação. Na educação, por exemplo, através da
discussão de novos modelos educacionais, de alternativas concretas para a
formação de professores, da reflexão sobre modos de ingresso no ensino
superior. Questões essas que não são de pouca monta quando se tem na
educação a expectativa de que ela amplie nosso grau de liberdade através da
superação de ideias antiquadas.

Na medida em que a filosofia tenha uma função social,


ela me parece ser uma função terapêutica – ajudar as
pessoas a sair do domínio das ideias filosóficas
antiquadas, ajudando a quebrar as crostas das
convenções. O principal instrumento para quebrar as
crostas das convenções, contudo, é a sugestão de
alternativas concretas. [...] Um bom novo modo de
estabelecer os exames de ingresso no ensino superior ou
de licenciar professores é o tipo de coisa que faz avançar
a educação. O melhor que nós filósofos podemos fazer é
desenvolver uma retórica conveniente para a
apresentação dessas novas sugestões – tornando-as um
pouco mais palatáveis. (RORTY, 1997a, p.59-60)

O papel atribuído por Rorty à filosofia na educação não é diferente do


papel que ele lhe atribui na política. Rorty defende abertamente “a prioridade
da democracia para a filosofia”. Com efeito,

Para Dewey, como para Rorty, não é a filosofia que


possibilita a educação lhe concedendo um fundamento,
mas é esta que se exerce segundo as implicações,
tramas, determinações e implicações da sociedade.

64
Na subseção seguinte abordaremos a tensão existente entre velhos e novos valores no
âmbito educacional, ou, para ser mais preciso, a tensão entre socialização e individuação.

110
Quem possibilita a educação democrática é a democracia
e não os fundamentos que porventura a filosofia consiga
para a educação democrática. (GHIRALDELLI JR., 1997,
p.19)

Quando questionado se a democracia liberal “necessita” de alguma


justificação filosófica, ele, discípulo assumido de Dewey, responde
negativamente:

Aqueles que compartilham do pragmatismo de Dewey


dirão que embora ela possa necessitar de articulação
filosófica, ela não necessita de suporte filosófico.
Segundo esse ponto de vista, os filósofos da democracia
liberal podem desejar desenvolver uma teoria acerca do
si próprio humano conveniente com as instituições que
ele ou ela admiram. Mas um tal filósofo não está com isso
justificando essas instituições por referência a premissas
mais fundamentais, mas o inverso: ele ou ela estão
fixando primeiramente a política e costurando uma
filosofia a seguir. (RORTY, 2002, p.238-239).

A filosofia só pode cumprir sua função social de ultrapassar velhas e


enrijecidas convenções se a sociedade for suficientemente livre para que novas
e estimulantes formas de vida possam vir a ser criadas, garantindo assim que
as futuras gerações não sejam mera reprodução das anteriores. A retórica
filosófica é útil na medida em que pode convencer atuais e futuras gerações
desse propósito, e não porque ela supostamente resguarde a verdade, ou
possa ser capaz de uma fundamentação inalienável da política e da educação.
Com efeito, para Rorty:

nós não deveríamos assumir que a filosofia é


automaticamente relevante para a mudança política ou
educacional. Devemos ser cuidadosos para que nossa
sofisticação filosófica não atravesse o caminho de nossos
amplos propósitos políticos e educacionais. (RORTY,
1997a, p.67)

É a democracia que vai proporcionar ao indivíduo liberdade suficiente


para criar novas formas de viver, novos vocabulários a fim de redescrever-se, e
não a filosofia. Com efeito, para Rorty, deve-se ter em vista que, na educação,
diferentemente da epistemologia, a posse da verdade não é o que mais
importa. A criação de inéditos e mais produtivos modos de falar capaz de nos
111
proporcionar maior grau de liberdade é mais bem vindo do que o domínio de
verdades. Nesse sentido, o lugar reservado à verdade na educação não deve
se sobrepor aos propósitos políticos de uma democracia liberal na qual se
busca ampliar ao máximo o espaço da liberdade e da solidariedade.

4.1.1 Verdade, liberdade e educação: a tensão entre socialização e


individuação

Ao proclamar o aperfeiçoamento da democracia liberal como a utopia a


ser perseguida pela América, Rorty deixa claro que fala em nome de uma
determinada tradição: a do liberalismo americano. Em sua narrativa, ele não
deixa de enfatizar a influência dos liberais Thomas Jefferson e John Dewey
(RORTY, 2000, 2002) como arautos inspiradores de uma nova era na qual a
sociedade seja destituída de classes e castas, que a legislação e as políticas
sociais possam realmente fazer diferença na eliminação da miséria humana e
que o fosso entre ricos e pobres possa ser progressivamente eliminado. Ao
tempo em que acentua a importância do gradual desenvolvimento da
potencialidade e liberdade individuais para o progresso social. Nessa
perspectiva liberal de Rorty, o crescimento individual ocorre
concomitantemente ao crescimento social no âmbito da reforma política. Sua
apologia ao liberalismo apela para a tradição do reformismo político americano
de esquerda em que intelectuais e trabalhadores se unem para efetuar a
mudança social.

Ele [Rorty] está chamando para uma nova aliança entre


intelectuais progressistas e trabalhadores para lidar com
os problemas horrendos do racismo, da desigualdade
econômica e da pobreza que ainda assolam nosso país
[EUA]. (BERNSTEIN, 2003, p.126)

É nesse contexto do liberalismo americano, que preza tanto pela


liberdade individual quanto pelo progresso social, que Rorty estabelece a linha
principal de sua concepção educacional65. Ele entende que a educação se
ocupa de duas funções primordiais: socialização e individuação. Considerado

65
Para uma análise do liberalismo rortiano, ver Warnke (2003), Bernstein (2003) e Elshtain
(2003).

112
esses dois aspectos educacionais, temos tanto a preservação de velhos
valores (socialização) quanto a possibilidade de rompimento e criação de
novos (individuação). De modo que cabe sempre ao aprendiz, no processo de
individuação, decidir o que deseja ser, desenvolver sua autocompreensão,
formar uma concepção pessoal acerca de como ele deve/quer viver a sua vida
de acordo com capacidade e critérios próprios. O que não quer dizer,
necessariamente, uma ruptura com a tradição, já que ele pode escolher entre a
criação de novos valores e a preservação de alguns dos velhos, ou, ainda, uma
conciliação entre eles. Já a socialização visa convencer o aprendiz da verdade
da tradição, ou do que é tido como verdadeiro. Atente-se que, neste caso, a
preocupação não é propriamente com a verdade, mas com a preservação de
uma tradição. A socialização visa garantir certa unidade convencendo as novas
gerações das narrativas que ela conta, das vantagens da sua visão de mundo
e de suas práticas de convivência66. No processo de socialização, Rorty
recomenda aos educadores que cumpram seu papel de afirmar a legitimidade
da sociedade na qual os estudantes estão sendo formados e, de uma forma
ainda mais direta, afirma: “Se um professor [de ensino básico] pensa que a
sociedade está fundada em uma mentira, então ele deveria achar uma outra
profissão” (RORTY, 1997a, p.61). Justamente porque, no princípio, a educação
deve orientar no sentido de ensinar para os estudantes os meios necessários
para o convívio social, o que inclui alguns limites e compartilhamento de certas
crenças básicas, e só posteriormente fomentar o questionamento (criticidade)
que o levará ao processo de individuação. Conforme observa Dazzani,

Como ponto de partida, a educação não começa


desafiando ou questionando o consenso dominante sobre
o que é verdadeiro, acusando os enganos e fracassos
dos mais velhos. Por isso a socialização vem antes da
rebeldia própria da individualização: o amor e a busca
pela liberdade surgem, no processo educacional, depois
que algumas barreiras e limites são estabelecidos para
que venham a ser derrubados. (DAZZANI, 2010, p.64).

66
A educação básica não é o nosso objeto aqui. Ela aparece somente para enfatizar o papel
específico da educação superior.

113
No processo de individuação, aquele realizado no ensino superior, os
professores estão menos preocupados com a verdade e mais em narrar suas
próprias experiências como uma forma de dizer aos estudantes: “Edificai-vos!”

Isto [a edificação] é realizado por professores que não se


preocupam em comunicar conhecimentos mas, ao
contrário, como Arcilla bem colocou, “deixam suas falas
serem movidas por situações vagas e imaginárias que
eles encontraram neles mesmos”. [...] os professores
tentam fazer os estudantes se emocionarem com as
mesmas coisas com que eles mesmos se emocionaram,
completamente independentes da questão de essas
coisas têm alguma relação com o que é tido como
verdadeiro por outra sociedade ou por algum
estabelecimento disciplinar especializado. (RORTY,
1997a, p.62)

A universidade se apresenta como o ambiente propício para o processo


de individuação. Nela, mais do que o apego à verdade, importa que seja
resguardada suficiente liberdade acadêmica e tolerância para que a crítica
contundente de professores e estudantes possa se manifestar. Uma crítica que
pode, inclusive, voltar-se para a própria formação, seja o modelo educacional
universitário do qual fazem parte, ou a sociedade na qual se criaram.

Para Rorty, no caso específico dos Estados Unidos, há uma espécie de


acordo tácito entre a esquerda radical e a direita (conservadora), tendo a
primeira ficado com a responsabilidade sobre a educação universitária e a
segunda sobre a educação pré-universitária (RORTY, 1997b). Esse acordo se
dá por uma espécie de mediação entre as partes, pois até o esquerdista mais
radical considera a necessidade de que uma criança conheça as regras
básicas da convivência social. Enquanto até mesmo o mais conservador de
direita reconhece a necessidade de certa autonomia universitária. Porém, para
Rorty, o problema é que ambos mantêm uma conexão entre liberdade e
verdade.

No quadro geral esboçado por Rorty sobre a situação intelectual da


direita conservadora, assim que se fala em educação, seus partidários falam
em verdade. Isto acontece porque eles crêem numa determinada concepção
de natureza humana ligada à razão, uma faculdade peculiar que faz com que o
homem busque a verdade e possa conhecer as coisas tais quais elas são em si

114
mesmas. Uma vez despertada a luz da razão, abre-se o caminho para a
verdade. Obstáculos, como as paixões, podem se erguer, mas devem ser
superados pela força da razão, o que não seria senão nossa própria natureza
se realizando acima do que é contingente, arbitrário, instintivo. Claramente, no
quadro traçado por Rorty da direita conservadora, a ela está associada a
concepção de homem como racional, onde racional significa algo exclusivo dos
seres humanos, o que o torna hierarquicamente superior aos demais seres e é
a única coisa que pode os tornar livres – “a liberdade consiste em alguém
realizar sua verdadeira individualidade; isto é, na realização da capacidade de
se ser racional. Assim, conclui a direita, só a verdade pode nos fazer livres”
(RORTY, 1997b, p.69).

A esquerda, por sua vez, “identifica os obstáculos à liberdade, que a


educação pode superar, não com paixões ou pecados e sim com convenções e
preconceitos” (RORTY, 1997b, p.70). Ela entende que a verdade se manifesta
automaticamente quando há suficiente liberdade, quando a pessoa escapa das
amarras da socialização que aliena o homem de si mesmo. Radicais de
esquerda são herdeiros de uma tradição que tem Rousseau, Marx, Nietzsche e
Foucault como baluartes da crítica social, como aqueles que explicitaram o
processo de achatamento que a sociedade pode exercer sobre o indivíduo,
privando-o de liberdade. Para a esquerda

a função peculiar da educação é fazer os jovens


perceberem que não devem consentir com esse processo
alienante de socialização. Na versão inversa de Platão
que o esquerdista adota, se se cuida da liberdade –
especialmente a liberdade política e econômica – a
verdade cuidará de si mesma. Pois a verdade é aquilo em
que se acreditará tão logo sejam removidas as forças
alienantes e repressivas da sociedade. (RORTY, 1997b,
p.70)

Conservadores de direita acreditam que, ao conhecimento da verdade,


se sucederá, paulatinamente, um maior grau de liberdade. Radicais de
esquerda, inversamente, crêem que, quanto mais liberdade, mais nos
aproximaremos da verdade. Ambos preservam uma preocupação antes moral
e política do que epistêmica.

115
Façamos uma restrição aqui. Não é o caso de fazermos uma mera
transposição da leitura de Rorty do cenário norte-americano para o Brasil.
Interessa-me precisamente a sua tese de que a educação tem um objetivo
antes moral e político do que epistêmico, e de que a diferença realmente são
os meios propostos para se alcançar esses objetivos. Portanto, deixarei de lado
as análises rortianas sobre posicionamentos de esquerda e direita norte-
americanas por estarem demasiadamente sujeitas às suas idiossincrasias
locais67. O problema estaria precisamente por onde começar a busca por esse
ideal moral e político de ampliação da liberdade. Posto isto, Rorty irá afirmar,
ironicamente, que:

Se a educação pré-universitária produz cidadãos


instruídos e se a educação universitária produz cidadãos
autônomos, então carece completamente de importância
saber se estão ou não ensinando a verdade aos
estudantes (RORTY, 1997b, p.74).

É interessante fazer notar que, nessa contenda entre conservadores e


radicais de esquerda, Rorty coloca-se entre os últimos, com a ressalva de que
não precisamos do tópico verdade como algo pertencente a uma natureza
humana pronta para manifestar-se assim que forem eliminadas as forças
repressivas da socialização. Ele corrobora com a ideia de que na educação
pré-universitária deve prevalecer a socialização, enquanto a universitária deve
empenhar-se em produzir indivíduos livres e criativos, capazes de se
reinventarem, mas sem nenhuma expectativa de com isso estarem mais
próximos da verdade. Não há, diz-nos Rorty, tal natureza inalienável, uma
faculdade chamada “razão”, que precisa ser desvendada e que a educação é o
meio para isso. O equívoco, comum a conservadores de direita e radicais de
esquerda, é justamente se orientar na busca por esse ideal.

Eu penso que os radicais estão certos quando dizem que


se você cuidar da liberdade política, econômica, cultural e
acadêmica, então a verdade cuidará de si mesma. Mas
eu penso que eles estão errados quando acreditam que
existe uma verdadeira individualidade que emergirá uma
vez que seja removida a influência repressora da
sociedade. (RORTY, 1997b, p.73)

67
Cf. Bernstein (2003); Warnke (2003).

116
Ao fim, o dilema educacional em Rorty resguarda um conflito entre socialização
e individuação, entre preservar os valores humanos e coletivos e a liberdade
individual que pode ser ameaçada por esses próprios valores, e vice-versa.
Certamente, um coletivismo intolerante não seria interessante para os
propósitos de individuação, nem tampouco o individualismo exorbitante para os
propósitos de socialização. Como se vê, para os propósitos de uma sociedade
democrática liberal sugerida por Rorty, que estima tanto os direitos coletivos
quanto a liberdade individual, interessa uma educação que concilie
socialização e individuação. Seria essa a condição para o processo de
edificação, no qual o indivíduo alcança um grau cada vez maior de liberdade e
não de verdade. Onde edificação consiste numa

atividade “poética” de cogitar esses novos alvos, novas


palavras ou novas disciplinas, seguida, por assim dizer,
pelo inverso da hermenêutica: a tentativa de reinterpretar
nossas cercanias familiares nos termos não-familiares de
nossas novas invenções. Em qualquer caso, a atividade é
(apesar da relação etimológica entre as duas palavras)
edificante sem ser construtiva – ao menos se
“construtivo” significa o tipo de cooperação na realização
de programas de pesquisa que tem lugar no discurso
normal. Pois o discurso edificante é suposto ser anormal,
tira-nos para fora de nossos velhos eus pelo poder da
estranheza, para ajudar-nos a nos tornarmos novos
seres68. (RORTY, 1994, p.354)

Dito isso, o que se espera da educação superior, desde uma perspectiva


neopragmática, ultrapassa a ideia de resolução de quebra cabeças, de ensino
de verdades científicas, de mera instrução – seu objetivo torna-se mais
ambicioso na medida em que deve impulsionar novas utopias, projetos, ampliar
os horizontes não apenas técnico-científicos, mas humanos, fortalecendo os
laços de solidariedade.

68
Normal e anormal aqui são utilizados por Rorty como uma generalização da distinção de
Kuhn entre ciência normal e ciência revolucionária. Na sua interpretação da terminologia de
Kuhn: “A ciência normal é a prática de resolver problemas em contrapartida ao fundo de um
consenso sobre o que conta como uma boa explicação dos fenômenos e sobre o que seria
necessário para que um problema fosse resolvido. A ciência ‘revolucionária’ é a introdução de
um novo paradigma de explicação e, portanto, de um novo conjunto de problemas” (RORTY,
1994, p.316).

117
4.2 RACIONALIDADE E TOLERÂNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Rorty (2005b, pp.77-78) distingue três sentidos atribuídos à


racionalidade: a) como uma habilidade técnica, eticamente neutra, que os
seres vivos de um modo em geral têm e que, às vezes, é ligada à capacidade
de sobrevivência; b) como algo exclusivo dos seres humanos, ligado à ideia de
uma natureza humana, e que lhe permite, por exemplo, diferente da razão
descrita anteriormente, estabelecer uma hierarquia avaliativa acerca da melhor
forma de vida; c) e, por fim, a racionalidade entendida como sinônimo de
tolerância, “a capacidade de não ficar demasiado desconcertado diante do que
é diferente de si, a capacidade de não responder agressivamente a essas
diferenças”. Nesta, diz Rorty, encontramos

uma confiança mais na persuasão do que na força, uma


inclinação para conversar antes do que brigar, queimar
ou banir. É uma virtude que capacita indivíduos e
comunidades a coexistir pacificamente com outros
indivíduos e comunidades, vivendo e deixando viver, e
agrupando novos, sincréticos e comprometidos modos de
vida” (RORTY, 2005b, p. 78).

Conceber a racionalidade como tolerância é fruto da perspectiva


discursiva sobre a razão que Rorty adota, conjugado com seu esvaziamento do
mundo enquanto portador de essências. Interessa-lhe também, enquanto
pragmatista, a razão como habilidade técnica, “razão técnica”, o tipo de razão
encontrado na tecnologia moderna: “a habilidade de enfrentar o meio ambiente,
ajustando suas reações aos estímulos deste, de modos complexos e delicados”
(RORTY, 2005b, p.77). São essas duas formas de racionalidade, como
tolerância e habilidade técnica, as mais importantes para a formulação do
neopragmatismo de Rorty. A ideia de racionalidade ligada a uma natureza
humana, intrínseca, e que falta aos outros organismos não-humanos, é
dispensada por ele para os propósitos pragmatistas.

Rorty credita a Dewey a ideia de que houve uma conexão contingente


entre a ampliação da racionalidade técnica e a racionalidade entendida como
tolerância. Da maneira como ele ler a história do ocidente, à medida que foram
criadas novas formas de lidar com o ambiente, mais eficientes e bem
sucedidas, proporcionadas pela ciência do século XVII e a nova tecnologia e

118
reformas liberais dos séculos XVIII e XIX, aumentaram-se gradativamente a
capacidade de se relacionar69. Ao lado da eficiência, seguiu-se um maior grau
de tolerância, de conversação com os pares. Isso não quer dizer que, ao
aumento da racionalidade técnica se sucederá necessariamente a ampliação
da tolerância. Mas, ocasionalmente, em alguns momentos da história do
ocidente, ocorreu assim.

Conforme nos tornamos cada vez mais emancipados do


hábito – cada vez mais motivados a agir de forma
diferente de nossos ancestrais, para lidar com nosso
ambiente de modo mais eficiente e bem-sucedido –, nós
nos tornamos cada vez mais receptivos à opinião de que
boas ideias podem vir de qualquer lugar, de que elas não
são prerrogativas de uma elite e que não estão
associadas a qualquer lugar particular de autoridade.
Especialmente a emergência da tecnologia ajuda a
quebrar a distinção tradicional entre a ‘alta’ sabedoria dos
padres e teóricos e a ‘baixa’ inteligência dos artesãos,
contribuindo para a plausibilidade de um sistema
democrático de governo. (RORTY, 2005b, p.86)

Nem Dewey, nem Rorty ignoraram que a racionalidade técnica, esta habilidade
de traçar um plano de ataque ao ambiente, mais do que simplesmente nos
adaptarmos a ele, conduziu não somente ao sufrágio feminino ou a
alfabetização em massa, mas também a duas guerras mundiais e catástrofes
ambientais – para citar apenas algumas poucas consequências. Nesse sentido,
não se espera que à racionalidade técnica se suceda automaticamente um
maior grau de racionalidade enquanto tolerância. Mas a tese de Rorty,
inspirada em Dewey, é de que a emergência da racionalidade técnica provocou
numa determinada comunidade, precisamente aquela onde surgiu a ciência e a
técnica modernas, o aumento gradual da racionalidade enquanto tolerância.
Rorty aponta duas razões históricas para que isso tenha ocorrido: a) o
predomínio da retórica cristã de irmandade humana nas primeiras
comunidades onde foi desenvolvida a tecnologia moderna e b) a emergência

69
Como se sabe, a ampliação da capacidade de se relacionar sem o uso da violência, ou seja, a
tolerância, tem sua expressão política mais marcante no Iluminismo. “O fato é que toda a questão
conflituosa entre religião e política se mostrou aparentemente resolvida a partir do século XVII, grosso
modo, por duas razões. A primeira, graças ao fim das guerras de religião (ao menos do mundo ocidental)
e, a segunda, ao avanço das ideias de república e a devida demarcação de suas competências e espaços
de manifestação, passando a religião para a esfera privada e a política para a pública”. (SANTOS, 2010,
pp.12-13)

119
na tolerância religiosa, que “tornou-se parte da retórica pública dos grandes
poderes imperialistas e colonialistas” (RORTY, 2005b, p.87). Esta última por
ocasião do papel de refugiados da perseguição religiosa na fundação dos
Estados Unidos e o caminho traçado pela Europa de abandonar as Guerras de
Religião. Particularmente a “tolerância religiosa – tolerância a respeito de
questões de ordem crucial – frequentemente abre o caminho para a tolerância
em relação às outras formas de diferença” (RORTY, 2005b, p.87-88).

Essa afirmação de Rorty remete à ideia de que as crenças religiosas


estão possivelmente entre as mais radicais que o indivíduo ou determinadas
comunidades podem ter. Se esse indivíduo ou essas comunidades conseguem
conviver com outros indivíduos e comunidades que têm crenças radicalmente
distintas das suas, possivelmente irá conseguir lidar com diferenças menos
radicais. Nesse sentido, Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados
Unidos, foi para Rorty um grande exemplo – aquele que ajudou os liberais
americanos a “tornar respeitável a ideia de que a política pode ser separada
das crenças sobre questões de importância derradeira” (RORTY, 2002,
p.235)70. A sugestão é de que a religião se restrinja ao espaço privado,
sobretudo, quando ela não pode ser justificada publicamente. Pode-se crer no
que quiser, desde que sua crença não comprometa a convivência saudável
entre os membros de uma democracia. Crenças que comprometam a
coexistência dos cidadãos numa sociedade democrática, e que não são
suficientemente justificadas publicamente, devem ser modificadas ou
abandonadas, quando não, direcionadas para o domínio privado.

quando o indivíduo encontra em sua consciência crenças


relevantes para a política pública, mas são incapazes de
defesa com base nas crenças comuns de seus
companheiros cidadãos, ele precisa sacrificar sua
consciência no altar na conveniência pública. (RORTY,
2002, p.236)

Na interpretação rortiana, Dewey não apresenta argumentos para provar


que “as retóricas de irmandade humana e de tolerância de diferentes opiniões
e estilos de vida fossem boas retóricas para utilizar – retóricas que escolhem o

70
Thomas Jefferson, sob as mantas do Iluminismo, assevera a separação entre Religião e
Estado.

120
objetivo correto” (RORTY, 2005b, 88). Esse é um posicionamento que Rorty
aprova do pragmatismo de Dewey. Dewey toma os objetivos e a retórica da
democracia como certas e então pergunta o que a filosofia pode fazer para
além deles. “Sua resposta foi a de que ela poderia mudar nossa auto-imagem”,
de que

viéssemos a compreender a nós mesmos em


continuidade com amebas e lulas, embora também em
continuidade com aqueles humanóides imaginativos
inimaginavelmente mais flexíveis e livres que poderiam
ser nossos descendentes. (RORTY, 2005b, p.88)

Destituído de provas, Rorty, na esteira de Dewey, deposita no futuro a


justificativa de que esse é o melhor caminho a seguir. Sua tese é de que isso
será possível se conseguirmos conjugar cada vez mais racionalidade técnica e
tolerância. Se aumentarmos cada vez mais a cooperação entre essas duas
formas de racionalidade, teremos mais chances de realizar o ideal de uma
sociedade em que avançamos na minimização do sofrimento através da
ciência e na maximização da solidariedade através da tolerância. Segundo
Rorty, uma prática comum nas instituições científicas e merecedora de atenção
para fomentá-la em outros ramos da cultura.

A referência a tais instituições substancializa a ideia de


“encontro livre e aberto” – o tipo de encontro em que a
verdade não pode deixar de vigorar. Segundo essa visão,
dizer que a verdade será conquistada em um tal encontro
não é construir uma asserção metafísica sobre a conexão
entre a razão humana e a natureza das coisas. É
meramente dizer que o melhor caminho para encontrar
algo em que acreditar é escutar tantas sugestões e
argumentos quantos você puder. (RORTY, 2002, p.61)

Para tal, faz-se necessário que a razão seja compreendida também como
tolerância, a capacidade de escutar e ser escutado, uma conversação com
nossos pares, e a verdade como o resultado desse conflito, e não o “espelho
da natureza”.

Diante dessa redescrição proposta por Rorty da ciência, questionamos


agora de que forma ela pode reverberar no ensino de ciências. Abordar o
ensino de ciências como mais uma forma de fortalecer a esperança de que a

121
solidariedade se sobreponha à objetividade, parece-me ser uma possível
conseqüência do neopragmatismo rortiano.

A ausência do porte da verdade e a compreensão da ciência como uma


tarefa antes solidária que objetiva pode favorecer a ampliação do grau de
tolerância entre professores e estudantes de ciências nas universidades. Isto
não é algo trivial quando você tem numa sala de aula estudantes e professores
com origens culturais, religiosas e histórias distintas, sobretudo quando essas
diferenças se tornam cada vez mais agudas e obstruem o processo de
aprendizagem. Ou, ainda mais grave, quando essas diferenças inviabilizam a
convivência71. Como devemos encarar o ensino de ciências, de biologia, por
exemplo, em contextos que envolvem sujeitos (professores e, sobretudo,
estudantes) de crenças religiosas que podem estar em conflito explicativo
(como é o caso do evolucionismo em biologia e do criacionismo no
cristianismo)?72 Se o problema estiver ligado estritamente ao tema da verdade,
ele não tem solução, pois cada qual, cristianismo e ciência, têm critérios
incomensuráveis.

Numa sociedade suficientemente democrática, como a que Rorty


imagina, a conversa de caráter tolerante com o outro tem de continuar sem
qualquer garantia de que ela conduza à verdade. Mas isso não significa um
“vale-tudo”. Pois está em jogo aí, prioritariamente, a democracia.

Os cidadãos de uma democracia jeffersoniana podem ser


tão religiosos ou irreligiosos quanto quiserem, por tanto
tempo quanto puderem permanecer sem se tornar
“fanáticos”. Isto é, eles precisam abandonar ou modificar
opiniões sobre questões de importância derradeira,
opiniões que podem ter dado até aqui sentido e
sustentação às suas vidas, se essas opiniões encerram
ações públicas que não podem ser justificadas para a
maior parte de seus companheiros cidadãos. (RORTY,
2002, p.235)

Há tanto motivações éticas/políticas quanto racionais para pensarmos


num modelo de ensino de ciências como solidário e tolerante. Esse modelo não
perde de vista o objetivo óbvio do ensino de ciências que é, valha a

71
Seria esse um dos motivos da evasão dos estudantes das salas de aulas de ciências.
72
Sobre o problema do contraste entre a visão de mundo religiosa e a científica no ensino de
biologia ver Sepulveda & El-Hani ( 2004).

122
redundância, ensinar ciências. A perspectiva pragmática do conhecimento não
despreza a razão técnica, aquela que permitiu o surgimento da ciência e da
tecnologia moderna, só não entende que essa razão seja tomada como a
manifestação de uma suposta natureza humana capaz de tocar em algo não-
humano. Pragmatistas gostam de enfatizar que a produção do conhecimento
em geral é uma atividade profundamente social, e o conhecimento científico
não é uma exceção à regra. Afirmar isso não significa dizer que é irracional. O
social não se opõe ao racional73. Rorty, na esteira de James, apenas responde
negativamente à pergunta sobre se “há alguma autoridade além da autoridade
da sociedade – uma autoridade como Deus, a Verdade ou a Realidade – que a
sociedade deveria reconhecer?” (RORTY, 2009, p.26).

4.3 POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS ÉTNICO-RACIAIS,


SOLIDARIEDADE E ENSINO DE CIÊNCIAS

Os discursos acerca das políticas de ações afirmativas étnico-raciais nas


universidades, diversidade cultural e conhecimento, formam uma complexa
rede da qual o ensino de ciências não tem como se isentar. Da forma como
temos abordado aqui, o ensino de ciências é parte integrante da educação
como um todo e está submetido às mesmas orientações políticas que ela.
Nesse sentido, tentarei demonstrar de que maneira as políticas de ações
afirmativas étnico-raciais se entrelaçam com o ensino de ciências,
argumentando que, possivelmente, as políticas de ações afirmativas no ensino
de ciências são melhores descritas em termos de solidariedade do que de
inclusão, e que essa descrição converge com a prática científica como temos
caracterizado aqui. Ademais, esse debate leva à questão sobre o tipo de
sociedade que queremos ter.

É consenso que, numa universidade democrática, questões de gênero,


sexualidade, raça, etnia, identidade etc. não deveriam ser relevantes para se
determinar o acesso de estudantes a ela. Porém, esse consenso camuflou por
um longo tempo o problema das minorias na sociedade brasileira,

73
Boghossian (2012, p.11) sugere que o posicionamento de Rorty compromete a ideia de
crença racional.

123
particularmente a comunidade negra, pois estas jamais tiveram efetiva
igualdade de direitos à educação de nível superior no Brasil (SANTOS, 2009)74.
Como observa Gomes75,

No Brasil, a exclusão social de que os negros são as


principais vítimas deriva de alguns fatores, dentre os
quais figura o esquema perverso de distribuição de
recursos públicos em matéria de educação. (2007, p.60)

Após muitas disputas políticas, a ideia de que as universidades precisam incluir


todos parece prevalecer, sendo que a questão agora é como fazê-lo da melhor
forma possível76. Um exemplo disto é que a inclusão étnico-racial tornara-se o
grande desafio das nossas universidades.

Uma das maneiras que o Estado brasileiro encontrou de sanar essas


dificuldades, atendendo às reivindicações dos movimentos sociais negros, foi
com a implantação de políticas de ações afirmativas77.

Como poderoso instrumento de inclusão social, situam-se


as ações afirmativas. Estas ações constituem medidas
especiais e temporárias que, buscando remediar um
passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de
igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por

74
Uma das ideias que serviu para escamotear o problema das desigualdades étnico-raciais no
Brasil foi a de que aqui, por razões históricas, diferente dos Estados Unidos, se constitui uma
democracia racial. Esta ideia tem sido combatida veementemente por intelectuais e ativistas
negros, considerando-a um mito: “O mito da igualdade racial pode ser compreendida [...] como
uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no
Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre esses dois grupos raciais uma
situação de igualdade de oportunidade e tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a
discriminação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos,
preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo social” (GOMES, 2005, p.57). Um
dos mais influentes teóricos que interpretou e divulgou as ideias acerca da suposta democracia
racial na formação do povo brasileiro foi o sociólogo Gilberto Freyre, no seu clássico Casa-
Grande e Senzala (1930).
75
Joaquim Benedito Barbosa Gomes, acadêmico e ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF), protagonizou calorosos debates em defesa das políticas de ações afirmativas no
supracitado órgão. Em 26.04.12, o STF aprovou por unanimidade a constitucionalidade do
sistema de cotas raciais nas instituições de ensino superior. Joaquim Barbosa é o atual
Presidente do STF.
76
Não me deterei aqui nas razões históricas que buscam justificar as políticas de ações
afirmativas. Sobre uma abordagem dessa natureza, ver o excelente livro do sociólogo Ahyas
Siss, Afro-brasileiros, cotas e ação afirmativa: razões históricas (2003).
77
Muitos pesquisadores consideram que as políticas de ações afirmativas tiveram sua origem
nos Estados unidos da América (MEDEIROS, 2007; GOMES, 2007). Mas outros estudos
apontam que a Índia foi pioneira delas na década de 1940, “como medida assegurada na
Constituição Federal do período, para garantir a reserva de vagas no ensino superior, no
Parlamento e no funcionalismo público, aos membros da casta dos dalits ou ‘intocáveis’”
(PEREIRA & ZIENTARSKI, 2011, p.494).

124
parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e
raciais, as mulheres, dentre outros grupos. (PIOVESAN,
2007, p.40)

No que diz respeito ao ingresso dos estudantes nas universidades, as


ações afirmativas ficaram restritas ao entendimento de que elas se referem
apenas às cotas étnico-raciais para negros e indígenas. Mas o plano de ação
prevê muito mais do que isso, como a Lei nº 10.639/03, o financiamento
estudantil, os cursinhos pré-universitários, dentre outros, também fazem parte
dessa política.78. A Lei nº 12.711/2012 garante a reserva de 50% das
matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de
educação, ciência e tecnologia a alunos que, além da descendência africana
ou indígena, sejam oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos
regulares ou da educação de jovens e adultos 79. Sabe-se que, atualmente, no
Brasil, estudantes de escolas públicas primárias e secundárias são, em sua
maioria, descendentes de africanos escravizados (negros) e pobres 80, e que

78
Na Bahia, a atitude pioneira nesse sentido emergiu da sociedade civil, foi a criação do
Instituto Cultural Steven Biko, fundado em 31 de julho de 1992. Uma análise da difusão dessas
ideias encontra-se em Santos (2007): “A difusão do ideário anti-racista nos pré-vestibulares
para negros e carentes”. No que diz respeito às políticas de ações afirmativas, na minha
percepção, ao se falar em cotas étnicas e raciais se oculta o mais significativo nessas políticas,
que é a inserção numa cultura dominante (a branca) de duas outras culturas subalternizadas (a
negra e a indígena), apesar do termo “etnia” tecnicamente englobar a ideia de cultura.
79
A Lei nº 12.711/2012 estabelece que: “Art. 1º As instituições federais de ensino superior
vinculadas ao Ministério da educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos
cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que
tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.” O Art. 3º, da mesma Lei,
declara que “Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º
desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas,
em proporção no mínimo igual à de pretos, partos e indígenas na população da unidade da
Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE)”.
80
Isto tem levado aqueles que são contra as cotas étnico-raciais nas universidades a defender
que o problema é sócio-econômico e não racial, portanto, as cotas deveriam ser sociais. Tal
concepção advém de uma compreensão fraca do caráter das políticas de ações afirmativas
nas universidades. É um equívoco pensar que o problema racial não é social, posto ser o
conceito de raça determinado socialmente. Em outras palavras, todo problema racial é social,
mas nem todo problema social é racial. Pensar as políticas de ações afirmativas somente como
uma questão social oculta o problema das relações étnico-raciais no Brasil. Daí a restrição em
se pensar as políticas de ações afirmativas nas universidades somente do ponto de vista
social. Acertadamente, Siss (2003, p.192) comenta: “O argumento de que, no Brasil, a maioria
das pessoas, afro-brasileiras ou não, são pobres, por isso, políticas públicas de caráter
universalistas seriam mais eficazes, concorre para negar a existência das desigualdades
raciais entre nós”.

125
suas histórias são marcadas pelo insucesso por conta da má qualidade do
ensino nessas instituições (SANTOS, 2009; SISS, 2003).

Assumida a diversidade cultural em nossa sociedade, manifesta através


de sua heterogeneidade étnico-racial, as políticas de ações afirmativas nas
universidades vieram no intuito de sanar a exclusão histórica a qual foi
submetida parte expressiva de nossa sociedade. Assim como, uma vez
ingressos esses estudantes de origens culturais específicas, precisam ter
asseguradas as condições de permanência (material e simbólica). Por isso,
além do ingresso, a permanência desses estudantes nas universidades logo se
manifestou também como um grave problema, pois grande parte deles não tem
condições de se manter em um curso por conta dos custos de materiais
didáticos, transporte, alimentação etc., além da resistência por parte de outros
estudantes, docentes e gestores que avaliam o sistema de cotas como uma
entrada pelas “portas do fundo” de negros, índios e pobres nas universidades.
Algo que o ilustre geógrafo Milton Santos, em “As cidadanias mutiladas”, já
havia antevisto ao se discutir a implantação do sistema de cotas: “Não adianta
nada deixar um negro pobre entrar numa universidade rica. Tem que ter bolsa
de estudo, criar condições ambientais que o favoreçam” (SANTOS, 1996/1997,
p.144 – grifo meu). Gomes (2007, p.76), exigindo do Estado um maior
compromisso, afirma:

o essencial é que o Estado reconheça oficialmente a


existência da discriminação racial, dos seus efeitos e das
suas vítimas, e tome a decisão política de enfrentá-la
transformando esse combate em uma política de Estado.

Algo que só veio a ocorrer, no que diz respeito ao ensino superior, com a
sanção da Lei Nº 12.711/12. Santos (2009) distingue dois meios de
permanência nas universidades: material e simbólica. A primeira é
caracterizada pelas condições objetivas de existência do estudante na
universidade (comer, vestir, comprar material etc.); a segunda diz respeito às
possibilidades que os estudantes têm de vivenciar a universidade, identificar-se
com o grupo dos demais estudantes, ser reconhecido por esses e, portanto,
pertencer a esse grupo. É importante salientar que esses grupos, muito antes
da implementação dessas políticas, já sinalizavam que apenas o acesso às

126
universidades (e aos conhecimentos aí produzidos e reproduzidos) não seria o
suficiente. Eles reivindicavam também que, além das condições materiais de
permanência na universidade, suas formas próprias de vida, de conhecimento,
história, fossem incluídas nos currículos universitários.

Com efeito, as políticas de ações afirmativas pretendem provocar,


através de medidas de acesso e permanência dignas nas instituições de ensino
superior, a superação das desigualdades no âmbito educacional para a
realização de uma democracia mais plena.

As ações afirmativas, enquanto políticas compensatórias


adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes
de um passado discriminatório, cumprem uma finalidade
pública decisiva para o projeto democrático, que é a de
assegurar a diversidade e a pluralidade social. (PIOVANI,
2007, p.40)

Gomes (2007) também percebe nas ações afirmativas um mecanismo


pedagógico que visa o aperfeiçoamento das relações humanas em distintas
áreas.

De cunho pedagógico e não raramente de um caráter de


exemplaridade, têm como meta, também, o
engendramento de transformações culturais e sociais
relevantes, aptas a inculcar nos atores sociais a utilidade
e a necessidade da observância dos princípios de
pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do
convívio humano. (GOMES, 2007, p.51)

Além da reparação de injustiças históricas sofridas por determinadas


minorias, as políticas de ações afirmativas podem potencializar nossa
capacidade de convívio numa esfera diversa culturalmente (o que significa aqui
também diversa étnica-racialmente), aumentando gradativamente nosso grau
de tolerância, condição para uma sociedade democrática. É esse segundo
aspecto que buscarei enfatizar a partir de agora. Para tal, farei um cruzamento
entre as noções de cultura e racionalidade que talvez sejam mais interessantes
para as políticas de ações afirmativas.

Nas sociedades contemporâneas, a cultura, ou as culturas, tornara-se


um problema e não uma solução. Não se pode simplesmente apelar para a

127
cultura a fim de resolver questões de ordem política, epistemológica ou ética
como se ela gozasse de critérios superiores capaz de neutralizar a força de
parcialidades locais. Certamente, a cultura não goza de critérios transculturais
e a-históricos através dos quais possa se justificar. Como faz notar Eagleton, a
cultura

Não é mais um meio de resolver rivalidades políticas,


uma dimensão mais elevada ou mais profunda na qual
pudéssemos encontrar um ou outro puramente como
humanos; ao invés disso, tornou-se parte do próprio
léxico do conflito político. (EAGLETON, 2005, p.61) –
grifo do autor.

O próprio conceito de cultura traz em si uma série de problemas (como a


sua multiplicidade) com os quais inevitavelmente teremos que lidar sem a
pretensão de esgotá-los. Seguramente é de conhecimento de qualquer cidadão
comum, morador de uma moderna sociedade democrática, minimamente
informado, que existem diversas culturas, pois que esse cidadão
provavelmente escuta, ou já escutou, dos mais variados meios de
comunicação, expressões como: guerras culturais, cultura científica, cultura de
gueto, cultura negra, cultura bélica, diversidade cultural, cultura empresarial,
cultura gay, cultura indígena etc. Mas não foi sempre assim. Esse é um
movimento relativamente recente em torno do conceito de cultura. Não que ela
gozasse de uma clareza conceitual que dispensasse o debate, mas por este
ser posto em outras esferas, como a da relação entre cultura e natureza ou
entre alta e baixa cultura.

Vale ressaltar que o problema toma um contorno ainda mais grave


quando temos de lidar com a afirmação de que certa cultura é superior a outra
por ser mais racional e, portanto, melhor. Ou, inverte-se o argumento e afirma-
se que uma cultura é melhor que a outra por não ser racionalista (RORTY,
2005b, p.77). Pode ainda ocorrer a exacerbação do princípio da tolerância à
diferença, equivalendo todas as formas de vida, ou não se posicionando
favoravelmente ou contra qualquer forma de vida, provocando assim uma
cultura da moderação em que “um leve desagrado com relação à prostituição
infantil pareceria mais apropriado do que uma oposição veemente a ela”
(EAGLETON, 2005, p.33). Note-se que os discursos acerca da noção de

128
cultura não se reservam ao campo teórico, mas têm implicações prático-
axiológicas.

Na tentativa de situar as políticas de ações afirmativas étnico-raciais


dentro de uma perspectiva neopragmática, argumento a seguir que: (a) os
discursos acerca da diversidade cultural não pretendem (e nem podem)
abarcar todos os conceitos de cultura; (b) a crítica desses discursos à
racionalidade não é à racionalidade em geral, mas a um tipo específico de
racionalidade; (c) por fim, que a noção de razão gerada por esses discursos
pode ser mais útil se ela for entendida como tolerância.

4.3.1 Neopragmatismo e diversidade cultural

Os discursos que tendem à valorização da diversidade cultural de


maneira equitativa não pretendem (e nem podem) abarcar todos os conceitos
de cultura. Por isso dispensam o conceito de cultura dicotomizada em uma alta
e uma baixa cultura, assim como o conceito de cultura que emerge de uma
concepção de racionalidade ocidental ligada a um télos histórico. Na primeira
versão, cultura seria um atributo de alguns seres humanos especiais que
gozam de uma sensibilidade especial raramente presente em pessoas sem
uma formação acadêmica. A segunda versão estaria mais ligada à ideia de
uma superação histórica do estado bruto do homem para um estágio superior
em que razão, natureza e história caminhariam juntas rumo a um futuro feliz e
universal, válido, portanto, para todos os seres humanos. Às vezes, os
discursos acerca da diversidade cultural entendem a cultura simplesmente
como “um conjunto de hábitos de ação compartilhados, aqueles que capacitam
os membros de uma comunidade humana singular a dar-se bem com os outros
e com seu ambiente” (RORTY, 2005b, p.80).

Nessa perspectiva generalista que Rorty aponta um dos conceitos de


cultura vigente, falta uma força avaliativa em termos de uma cultura inferior ou
superior. Elas podem ter graus de complexidade distintos, porém nem por isso
podem ser consideradas em termos de melhor ou pior. Em princípio, uma das
dificuldades desse conceito é conseguir conciliar a ideia subjacente de que
todas as culturas têm o mesmo grau de valor com a afirmação de que algumas

129
delas devem ser extirpadas (RORTY, 2005b, p.82-83) por constituir uma
ameaça às demais. Há, portanto, uma tensão não desprezível quando
pensamos em termos de diversidade cultural ou na diferença cultural em
termos práticos. Esse problema não escapa a Eagleton:

Pluralizar o conceito de cultura não é facilmente


compatível com a manutenção do seu caráter positivo...
Os que consideram a pluralidade como uma valor em si
mesmo são formalistas puros e, obviamente, não
perceberam a espantosamente imaginativa variedade de
formas que, por exemplo, pode assumir o racismo
(EAGLETON, 2005, p.28).

Pensemos ainda na cultura das cantigas de tortura, ou da cultura sexual-


psicopata, ou na cultura da máfia etc. Rorty avalia que afirmar a ideia de que
toda cultura é tão válida quanto qualquer outra é ainda uma tentativa de salvar
a noção kantiana de dignidade humana, expressa agora em termos de cultura
humana e abrindo mão de certo grau de racionalidade – “pensar a respeito de
toda cultura humana, se não de todo indivíduo humano, como de valor
incomensurável” (RORTY, 2005b, p. 82). A simpatia aleatória por qualquer
forma de cultura implica numa ameaça à própria ideia de diversidade cultural.

4.3.2 Diversidade cultural e racionalidade

De maneira geral, a crítica dos discursos da diversidade cultural à


racionalidade não é à racionalidade em geral, mas a um tipo específico de
racionalidade. A racionalidade que preocupa os discursos acerca da
diversidade é aquela desenvolvida pelo Ocidente, pós-galileana, e que se
manifesta sob a égide da ciência e da técnica associadas aos projetos de
colonização/dominação absolutistas. Tal racionalidade é carregada por
concepções fortes de valor. Alguns críticos dessa racionalidade moderna
européia defendem que o cerne dela contem projetos de dominação
(MARCUSE, 1999; ADORNO e HORKHEIMER, 1985), enquanto outros
acreditam ser a ciência e a técnica instrumentos que podem ser volvidos tanto
para o sofrimento quanto para a emancipação humana (RORTY, 2002;
ORTEGA Y GASSET, 1996). Uma crítica que tem sido feita reiteradamente por
grupos subalternizados é de que o projeto de racionalidade da ciência moderna

130
é estabelecido por sujeitos com as seguintes características: homem, branco,
macho e adulto. Contestar projetos desse modelo de racionalidade é abrir
espaço para a possibilidade de que outras formas de racionalidade possam se
manifestar. Numa linguagem não propriamente rortiana, seria o caso de
pensarmos na possibilidade de uma pluralidade de epistemologias.

Ao que parece, a crítica das minorias às políticas de inclusão nas


universidades é que elas não conseguem escapar a certo etnocentrismo. Elas
acabam por se constituir como uma forma de falar que repete uma velha
estrutura: para incluir os outros, propõem como regra que se fale na sua
própria língua, a saber, o discurso científico. Assim, ainda que se proponha a
ouvir as vozes dos outros, tematiza várias formas do mesmo, pois impõe como
condição padrões semelhantes de racionalidade. Pensa o outro a partir de sua
identidade e não de sua diferença. Neste caso, Richard Rorty estaria certo ao
defender que não há saída para o etnocentrismo, “que todo raciocinar, tanto
em física como em ética, está vinculado a uma tradição” (RORTY, 2005a,
p.149).

A universidade, enquanto órgão de inclusão, ao rever conhecimentos


alheios e trazê-los para a compreensão desde o seu ponto de vista, já
seleciona aquilo que lhe convém. Quando, para se compreender esses
conhecimentos alheios e estranhos, os mesmos são previamente avaliados, a
inclusão só alcança o que já está estabelecido por aquele que inclui. Talvez os
discursos de inclusão tragam consigo precisamente o seu oposto, a exclusão,
ou algo ainda pior: a eliminação das diferenças mascarada como justiça social.
A universidade, enquanto espaço hegemônico de saber científico, pode não ter
interesses de absorver perspectivas alheias de conhecimento, ou um interesse
apenas parcial. Neste caso, a inclusão pode se dá em maior ou menor grau
desde que seja garantida a hegemonia do grupo dominante. As políticas de
inclusão sugerem uma atitude que se preocupa mais com a amenização de
conflitos e preservação do status quo do que com os problemas reais acerca
do conhecimento posto pelos grupos incluídos.

4.3.3 Razões da tolerância

131
Talvez um conceito de racionalidade útil para os discursos em proveito
da diversidade cultural seja aquele que Rorty considera como sinônimo de
tolerância – “a habilidade de não ficar demasiado desconcertado diante do que
é diferente de si, a capacidade de não responder agressivamente a essas
diferenças” (RORTY, 2005b, p.78). Essa racionalidade confia mais na
conversação estabelecida intersubjetivamente do que na violência, no
abandono ou no desprezo. A perspectiva neopragmática de Rorty sugere como
ideal que a racionalidade manifesta através da técnica e da ciência proporcione
cada vez mais aos seres humanos condições de minimizar os sofrimentos
(causados pelo próprio homem) e maximizar a racionalidade enquanto
conversação.

Enfim, o abandono da epistemologia conjugado com a redescrição que


Rorty faz da ciência e da racionalidade, parece oferecer subterfúgios para
pensarmos as políticas de ações afirmativas étnico-raciais nas universidades
como melhores descritas em termos de solidariedade do que de inclusão. Isto
também no ensino de ciências. Como foi apontado no capítulo anterior (seção
3.2), o que torna as ciências particularmente interessantes não é sua suposta
capacidade de conhecer a realidade e sim a de interferir na realidade para a
realização de propósitos estritamente humanos. Apesar de nem todas as suas
conseqüências terem sido benéficas, Rorty sugere que ela tem servido para
diminuir gradativamente o grau de sofrimento humano e provocado o aumento
paulatino de possibilidades daquilo que é melhor para nós. Portanto, Rorty não
nega o sucesso prático das ciências, mas crer que realistas e antirrealistas têm
dado respostas equivocadas para explicá-lo. A segunda característica diz
respeito ao modo como os cientistas trabalham e suas instituições funcionam.
Lembremos que Rorty entende que o que há de mais interessante na prática
científica é precisamente o fato de ser uma comunidade aberta ao diálogo e
que se propõe a alcançar cada vez mais uma “concordância não-forçada”. Na
sua redescrição das ciências, ou seja, na sua justificativa alternativa a dos
partidários da objetividade, essa é uma prática solidária comum nas instituições
científicas e que pode inspirar os outros ramos da cultura.

Considerando essa caracterização das ciências, não podemos esperar


que seu ensino nas universidades (estas, além de ensinar ciências, se

132
propõem, também de acordo com nossa descrição da educação superior,
edificar) se abstenha de assumir compromissos sociais que convergem com
elas, como é o caso das políticas de ações afirmativas étnico-raciais. Pois o
que essas políticas proporcionam é a intensificação do diálogo, o crescimento
de todos e não de apenas uma parcela da sociedade, a habilidade de se
relacionar com as diferenças – o que temos entendido aqui como sinal de
progresso social.

Além disso, a ampliação do espaço de discussão através do ingresso de


diferentes atores no processo de aprendizagem das ciências pode nos
precaver de que o estabelecimento de prioridades de ensino e pesquisa seja
estabelecido por grupos seletos de objetivos escusos. Não se ignora, por
exemplo, a relação entre ciência e indústria militar, ou ainda o estabelecimento
de uma agenda de pesquisa científica com interesses estritamente
comerciais81. Talvez, a participação de diversos grupos com diferentes
interesses no processo de ensino de ciências nas universidades, definindo
suas prioridades e agendas, pela via de um diálogo aberto e incessante, possa
corroborar com um quadro das ciências a serviço de uma sociedade
democraticamente orientada. Nesse sentido, o ensino de ciências pode
surpreender como uma das áreas em que as políticas de ações afirmativas
étnico-raciais na educação superior encontrem possibilidades edificantes de
sucesso, convergentes com uma narrativa democrática da vida social.

81
Recentemente, Fábio Gandour, cientista chefe da IBM, declarou em entrevista ao jornal
Folha de São Paulo que conseguiu convencer o alto escalão da IBM a abrir uma empresa no
Brasil através do conceito de “ciência como negócio”. Em suas palavras: “A ciência doutrinária
tem credos, liturgia, até dogmas. Descumpra a liturgia de uma universidade, para ver. Você
não sai do lugar (risos). As universidades mais tradicionais praticam esse modelo, que alargou
as fronteiras do conhecimento até hoje, mas não serve para produção de novas soluções.
Vamos desenvolver uma ciência cujos resultados sejam plenamente orientados a causar
impactos positivos nos negócios dos seus financiadores. Essa é a diferença essencial.
Enquanto um professor desenvolve uma pesquisa cujo resultado será uma publicação, nós
desenvolvemos uma cujo resultado será alvo de uma patente.” Logo em seguida, ao ser
questionado sobre se essa já não é uma prática dos laboratórios farmacêuticos, responde: “Há
muito tempo. É também o que fazem algumas universidades americanas. Num equilíbrio muito
bom entre doutrina e negócio. Acredito que um laboratório que pratique ciência como negócio é
autossustentável, um negócio como qualquer outro. Se for bem gerenciado. Ele dá lucro. E
corre um sério risco de ser um departamento altamente lucrativo quando der uma pegada,
dessas na veia. Como a IBM, quando levou o primeiro Nobel de Física cujo objeto de
premiação não era uma teoria, mas um objeto: o microscópio de força atômica” (GANDOUR,
2013).

133
Como temos argumentado aqui, a solução para os problemas advindos
do ensino de ciências em sociedades diversas culturalmente não é
propriamente epistemológica e sim política. Portanto, é nesse âmbito que ela
deve ser discutida. Como vimos, Rorty entende que é a política liberal
democrática a mais adequada, dentre outros motivos, por permitir uma
pluralidade de vozes, o crescimento individual e coletivo, a possibilidade de que
o ainda inédito se manifeste a ponto de renovar nossas perspectivas sobre
quem somos e o que podemos nos tornar.

134
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A introdução da história e da filosofia da ciência no ensino de ciências


tem sido alvo de inúmeras discussões por pesquisadores afins da área. Parece
ser ponto pacífico entre especialistas que uma maior contextualização histórica
e reflexão filosófica sobre a natureza da ciência pode favorecer o processo da
sua aprendizagem (HARRES, 1999; ALTERS, 1997; GRECA & FREIRE JR.,
2004; MATTHEWS, 1995; EL-HANI, 2006 e muitos outros). Não obstante,
dessas pesquisas logo emergiram algumas dificuldades, dentre elas, a falta de
precisão para se determinar a natureza da ciência (ALTERS, 1997; VIDEIRA,
2006), evidente pela variedade de conceitos e teorias encontradas na filosofia
da ciência. Em outras ocasiões, a dificuldade se encontra na discrepância entre
a concepção de cientistas acerca da natureza da ciência e a de filósofos
(VIDEIRA, 2006; RORTY, 1998a). Assim como na filosofia da ciência, se por
um lado a introdução da história da ciência também se apresentou como capaz
de qualificar o processo de ensino de ciências, logo surgiram controvérsias
sobre o tipo/qualidade de história que deve ser ministrada para os propósitos
de uma educação científica (LAUDAN, 2000; MARTINS, 2006).
Além disso, questiona-se que objetivos, além do óbvio, o de ensinar
ciências, deve ter a introdução da história e da filosofia da ciência no ensino de
ciências. O argumento aí é de que o conhecimento da história e da filosofia da
ciência pode levar o estudante a uma compreensão mais ampla acerca do
papel social que as ciências exerceram e podem exercer na constituição do
mundo contemporâneo. Nesse sentido, é reivindicado, também como objetivo
do ensino de ciências, que os estudantes sejam preparados para exercerem
sua cidadania de maneira mais responsável.
Apesar do consenso de que história e filosofia da ciência podem
oferecer valiosos subsídios para o ensino de ciências, a tentativa aqui foi de
não perder de vista problemas caros à reflexão filosófica acerca do
conhecimento em meio a disputas de outra ordem. A estratégia encontrada
para nos precavermos de, ao colocar a história e a filosofia da ciência a serviço
do ensino de ciências, não degenerar as primeiras em mero didatismo, e, ao
mesmo tempo, mantermos o diálogo vivo, foi fazendo uma abordagem do
ensino de ciências desde a perspectiva da contenda filosófica entre

135
universalistas e relativistas. Ou, conforme a terminologia que adotamos com
base em Dummett, o debate sobre o realismo e de posturas de rechaço a ele,
denominadas genericamente de antirrealismo. Esse foi, em linhas gerais, o
percurso do primeiro capítulo desta tese.
Esse percurso teve como propósito preparar o caminho para apresentar
a tentativa de Richard Rorty de superação desse debate através do seu
neopragmatismo (Cap. 2 e 3) e, em seguida, oferecer uma interpretação dele
tendo como foco o problema do ensino de ciências em sociedades
democráticas e na qual os discursos sobre as relações étnico-raciais são
relevantes para a constituição de políticas educacionais (Cap.4).
Como foi apresentado nos capítulos 2 e 3 desta tese, desde a
perspectiva neopragmática de Rorty, o mundo não constitui um elemento ao
qual possamos contrastar nossas crenças acerca dele. Apenas nossos pares
humanos podem dar e pedir razões, é com eles que podemos justificar nossas
crenças. Rorty abandona a epistemologia e, com ela, a pretensão de
objetividade característica das ciências. Em seu lugar propõe a concepção do
conhecimento como solidariedade e da razão como tolerância, ao tempo em
que postula a inevitabilidade do etnocentrismo (fatalismo etnocêntrico). Tal
postura renderá a Rorty o estigma de relativista. Ele, por sua vez, irá replicar
afirmando que seu posicionamento não é relativista precisamente porque
afirma a visão de mundo da sua comunidade, a tradição liberal-democrática
norte americana, como sendo a melhor (etnocentrismo confesso). Rorty
defende que deve ampliar cada vez mais a própria comunidade, por entender
que a mesma oferece subterfúgios vantajosos para aumentarmos o grau de
solidariedade, tolerância e liberdade entre os povos. Uma justificativa
nitidamente circular na medida em que “os termos do elogio usado para
descrever sociedades liberais será traçado a partir do vocabulário das próprias
sociedades liberais” (RORTY, 2002, p.46) Nesse sentido, ele nega o rótulo de
relativista, uma vez que não corrobora com a ideia de que toda visão de mundo
é igualmente válida.
Rorty faz a passagem da epistemologia para a política através de um
ponto nerval da cultura ocidental: as ciências. Na sua proposta de redescrição,
o que mais merece destaque nas ciências não é o seu grau de objetividade
advindo de certa noção de racionalidade, e sim sua capacidade de discutir

136
argumentos de forma livre e aberta, de se esforçar para alcançar um estado de
“concordância não-forçada” que ultrapasse os limites de sua comunidade.
Razão como razoabilidade, anti-representacionismo e etnocentrismo liberal-
democrático compõem a redescrição rortiana da ciência como solidariedade.
A redescrição neopragmática de Rorty das ciências irá criar a abertura
necessária para pensarmos o ensino de ciências em sociedades que detêm
uma grande diversidade étnico-racial e cultural como prioritariamente política e
não epistemológica. Daí as políticas de ações afirmativas étnico-raciais no
ensino superior emergirem no Brasil como uma demanda legítima de uma
sociedade democrática. Reitero que o ensino de ciências é parte integrante da
educação como um todo e está submetido às mesmas orientações políticas
que ela. Nesse sentido, o que uma perspectiva neopragmática sobre o ensino
de ciências pode nos proporcionar é a esperança de que a solidariedade se
sobreponha à objetividade e, com isso, possamos aumentar gradativamente
nosso grau de liberdade e justiça social. Conforme argumentamos, apenas a
ideia de inclusão não é o suficiente para realizarmos esses propósitos. Para
darmos um passo adiante, além da inserção da história e da filosofia da ciência
no ensino de ciências, propomos a redescrição neopragmática das ciências
como a possibilidade de favorecer tanto o seu ensino quanto a sua
democratização. Nesse sentido, o ensino de ciências será mais bem descrito
em termos de solidariedade do que de inclusão.
Talvez Rorty aprovasse com satisfação a crítica de Boghossian (2012)
de que ele se utiliza de critérios antes políticos que epistemológicos. Critérios
como verdade, realidade, objetividade, tão caros à epistemologia, são alvo de
um ferrenho ataque de Rorty, como vimos no decorrer desta tese. Mas ao fazer
isso Rorty não abandona a racionalidade. Apenas busca fazer o que, na sua
leitura da história do ocidente, já ocorreu de maneira contingente: a conjunção
de racionalidade técnica e tolerância desembocando na ampliação da
liberdade, manifesta na democracia liberal. É recorrente em Rorty dizer que
não há nenhuma razão definitiva para que isso ocorra assim, não há um
caminho certo a seguir na nossa busca pela liberdade. O que há são
possibilidades imaginárias, criação do ainda inexistente. Substituir critérios
epistêmicos por critérios políticos aqui significa simplesmente deixarmos de
conceber a ciência à maneira tradicional e passarmos a concebê-la como uma

137
atividade estritamente humana, social, que passa por escolhas coletivas,
situada historicamente, solidária.
A proposta neopragmática de conciliação entre racionalidade técnica e
tolerância para o ensino de ciências não consiste numa síntese de perspectivas
distintas acerca do conhecimento, mas antes numa cooperação entre os
membros de uma comunidade com vistas à constituição de um mundo melhor.
Uma abordagem neopragmática do ensino de ciências não precisa se
preocupar em resguardar um “método”, porque ele está sempre se
reformulando de acordo com as demandas daquela comunidade. Trata-se
antes de uma dinâmica de aprendizagem em que conhecimentos diversos
podem ser todos postos na mesa, utilizados ou descartados. Na universidade,
como na sociedade em geral, não se deve aceitar tudo. Mas talvez possamos
imaginar a universidade como aquele grande corredor de hotel que Papini usou
para descrever o pragmatismo, e que James e Rorty aprovaram. Sejam lá
quais forem nossas crenças dentro de uma instituição universitária, precisamos
interagir compartilhando os mesmos espaços de produção de conhecimento.
Isto é possível se nos tornarmos suficientemente capazes de praticar a razão
como tolerância e a ciência como solidariedade, e assim que a conversação
continue fluindo.
O uso de uma terminologia comum à ética e à política – solidariedade –
para designar a atividade científica certamente não foi uma arbitrariedade. Ao
fazer isso, Rorty já está sugerindo a passagem da epistemologia para a
política. Com efeito, ao se referir pragmatismo, afirma que “Enquanto partidário
da solidariedade, sua avaliação do valor da investigação humana cooperativa
só possui uma base ética, não uma base epistemológica ou metafísica”
(RORTY, 2002, p.41). Ele, propositadamente, através de um novo vocabulário
(novo no sentido de estranho ao ambiente da reflexão científica), borra os
limites entre ciência e política.
Podemos questionar se essa é uma tese para cientistas, filósofos da
ciência ou professores de ciências. Tendo em vista objetivos mais amplos,
redirecionados para a política cultural, é uma tese para todos. Note-se que,
para Rorty, “O termo ‘política cultural’ abrange, entre outras coisas, disputas
sobre o uso correto das palavras” (RORTY, 2009, p.19). Ele defende que “a
política cultural deveria substituir a ontologia e também que a questão de se ela

138
deveria ou não fazê-lo é em si própria uma questão de política cultural”
(RORTY, 2009, p.22). Podemos questionar também se, ao mudar o
vocabulário com que descrevemos a ciência, mudamos a ciência. Se a
resposta for negativa, talvez nos apressássemos em dizer que, então, não há
nenhuma razão para abandonarmos o velho vocabulário. Mas, talvez, ao
mudar o vocabulário, embora a ciência não mude, nós possamos avançar em
aspectos éticos e políticos. No final das contas, Rorty não pretende descrever a
ciência como ela é em si mesma, e sim como ela poderia ser descrita com
vistas a fins estritamente humanos – a “redescrição é uma tarefa da
imaginação” (GHIRALDELLI, 1997, p.26).
Nesses termos, a concepção de ciências, e, por conseguinte, seu
ensino, não é uma questão para a epistemologia (representacionalista, lógica,
racional, universalista), mas uma questão que deve ser re-dirigida para a
política cultural. Justamente por ser esta
a atividade humana menos governada por normas. Ela é
o terreno das revoltas das gerações e, por conseguinte, o
ponto de crescimento da cultura – o lugar onde as
tradições e as normas estão todas disponíveis para
serem imediatamente agarradas por qualquer um...
(RORTY, 2009, p.47).

Pessoas de diferentes culturas, linguagens, crenças, lugares, já


interagem cotidianamente em sociedades pluralistas sem que com isso suas
diferenças sejam esquecidas. Desde que haja abertura para o diálogo, elas
podem compartilhar o espaço universitário sem que uma das partes tenha que
renunciar à sua perspectiva identitária. Estudantes podem aceitar teorias
científicas sem, no entanto, acreditarem nelas. A ciência não é uma procissão
de fé. Estudantes de ideias científicas não precisam ser convertidos a cientistas
neófitos, precisam apenas compreender e aceitar que existem perspectivas
distintas das suas, e que estas também não serão automaticamente aceitas.
Não se trata de uma apologia à irracionalidade ou do abandono da razão, pois
a ideia é de que, através da conversação e não da força, cada qual possa
costurar e expor sua rede de crenças. Para tal, é preciso que todos estejam
familiarizados ou possam se familiarizar com os termos de um discurso
racional, o que envolve “técnicas de persuasão, padrões de justificação e
formas de comunicação” (RORTY, 2005a, p.90).

139
Fazendo um balanço das reflexões de Rorty sobre o conhecimento
científico, a mim bastaria que ele reservasse sua redescrição das ciências
enquanto uma atividade solidária, conciliando racionalidade técnica e
tolerância. O ensino de ciências desde essa perspectiva pode preservar
suficientemente os ditames científicos e ainda cumprir elegantemente o papel
social de ampliação do bem estar coletivo. Daí saltarmos para a democracia
liberal enquanto o melhor modelo de governo a ser seguida é um
comprometimento demasiadamente perigoso. Para citar somente um exemplo,
porém, bastante expressivo, foi em nome da democracia que os EUA invadiram
o Iraque em 2003. Interesses econômicos e militares, quando eram citados,
apareciam como secundários. A fim de promover a democracia era preciso
“livrar o mundo de Saddam Hussein, ditador perigoso e cruel” (Wallerstein,
2007, p.49).
Dizer que a democracia liberal é a forma de organização política
derradeira é ir longe demais. Talvez devêssemos pensar na democracia como
pensamos nas políticas afirmativas, qual seja, como algo de caráter provisório
e não como um fim em si mesmo ou a panacéia de nossos problemas sociais.
Dizer que a democracia é o fim é o mesmo que nos fecharmos para novas
possibilidades, novas organizações sócio-políticas e, quiçá, melhores, que
podem ser propostas e adotadas por outros grupos. Por isso penso que, assim
como as políticas de ações afirmativas, a democracia deve ser vista como algo
de caráter quase provisório e emergencial, que pode possibilitar a ampliação
do nosso grau de liberdade e justiça, mas não como o “centro da vida humana”
(RORTY, 2005a, p.89)82. Se for o caso de investirmos nossas fichas na
esperança, que seja na esperança de formas inéditas de organização social,
mais capazes do que a democracia liberal de proporcionar liberdade e justiça.
No momento, preservar a democracia pode ser a maneira mais eficaz que
temos disponível para que formas inéditas de organização venham a se
manifestar. Não poderia dizer que forma é essa e de que parte do mundo ela
irá ou poderá emergir. Ou se não optaremos por um retorno a alguma outra

82
O período completo desse trecho diz: “Em vez de pensar no centro da vida humana como
sendo a adoração dos deuses, como era antes de Platão, ou como a busca da verdade, como
foi por toda a tradição platônica, você pode pensar no centro da vida humana como sendo a
política democrática e a arte – cada uma apoiando a outra, e impossível sem a outra” (2005a,
p.89).

140
forma de organização que no jogo na globalização foi esquecido, eliminado ou
posto na periferia.

Deve-se suspeitar da ampliação do nós sugerida pelo norte-americano


Rorty. Deve-se suspeitar da idolatria aos seus ancestrais americanos. Sua
retórica visa ampliar sua comunidade. Mas tudo isso é coerente com a filosofia
que ele desenvolve. Isso é transparente quando ele assume seu etnocentrismo
democrático liberal. Mas nós, brasileiros, deveríamos nos perguntar o que
nossa retórica tem para defender ou almejar 83. Qual a nossa utopia?
Naturalmente essa não é uma pergunta que tenhamos a mínima pretensão de
responder aqui. Mas dizer que é democracia liberal é já reduzir nosso horizonte
de possibilidades. Por isso afirmava que, para nossos propósitos aqui, bastaria
dessa redescrição rortiana das ciências, ficarmos no meio do caminho, quer
dizer, apenas com a ideia de solidariedade e tolerância. Virtudes essas que
podem ser encontradas na democracia liberal, mas não apenas nela.
É justo questionarmos a viabilidade desta perspectiva neopragmática do
ensino de ciências em termos formais nas universidades. Decerto, para tal,
seria preciso amplas mudanças, o que envolve nossas concepções de
ciências, ensino, organização curricular, compreensão de nós mesmos
enquanto seres humanos, clareza acerca de nossas ambições políticas e
educacionais, abertura para as contingências de linguagens e identidades. Não
há como ser algo para já, mas pode ser algo para um futuro próximo.
Certamente, como afirma o próprio Rorty, “Se existe algo de peculiar ao
pragmatismo é que ele substitui noções como realidade, razão e natureza pela
noção de um futuro humano melhor” (2000, p.26). Por isso não soa estranho a
acusação de que Rorty romantiza a ciência. O próprio pragmatismo é visto por
ele como semelhante ao romantismo no que diz respeito a sua glorificação do
futuro (RORTY, 2000, p.26). Ideias que soam estranhas hoje podem vir a ser o
senso comum do amanhã.
Quando os gregos primeiro conceberam o governo
democrático, quando os primeiros atomistas modernos

83
Quando digo “nós, brasileiros” é por pura limitação de linguagem, já que não possuímos outro vocábulo
que se adéque à supressão ou à invisibilidade dessas diferenças dentro da nossa substantivação
“brasileiros”. Nossa linguagem, até então, não oferece um vocábulo que aponte para esse “nós”
fragmentário. Mas não podemos deixar de apontar que, se o vocábulo “brasileiro” por um lado serviu para
pensarmos numa identidade nacional, por outro, ocultou as diferenças étnico-raciais em nome da
preservação do status quo de uma sociedade dividida racialmente. A fim de marcar essas diferenças é
que se empunhou o vocábulo afro-brasileiro.

141
levaram Demócrito a sério e se perguntaram se o mundo
não era na verdade apenas átomos e vazio, quando os
protodarwinistas sugeriram que a diferença entre nós e
os animais era meramente a complexidade do
comportamento, e quando Freud sugeriu a conexão entre
consciência e sexo, eles diziam coisas que estavam
muito próximas do absurdo, que quase não seriam nem
mesmo candidatas à verdade. Mas essas alegações
quase absurdas tornaram-se o senso comum dos tempos
que vieram. (RORTY, 2005c, p.97)

Não há como saber que utopia irá vingar, quais serão os novos
vocabulários que as gerações futuras irão adotar. Se esta geração será capaz
de convencer seus pares atuais e futuros do seu vocabulário. A perspectiva
neopragmática do ensino de ciências que estou propondo aqui busca oferecer
as vantagens da sua semântica para a constituição de políticas educacionais
num contexto em que temos uma pluralidade de vozes destoantes. Ela não
pretende ser a solução derradeira para os problemas que acompanham o
ensino de ciências nas universidades. Nem tampouco um projeto universalista
e salvacionista de nossas mazelas e contradições educacionais. É tão somente
a sugestão de que novas ferramentas talvez possam ser utilizadas a fim de que
façamos da educação uma atividade criativa na qual o crescimento de todos
seja o nosso objetivo.

142
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