Ciência Como Solidariedade PDF
Ciência Como Solidariedade PDF
Ciência Como Solidariedade PDF
Conhecimento e solidariedade:
uma perspectiva neopragmática sobre o ensino de ciências
Salvador
2013
1
BANCA EXAMINADORA
2
DEDICATÓRIA
Aos Ancestrais.
3
AGRADECIMENTOS
4
EPÍGRAFE
5
RESUMO
Conhecimento e Solidariedade:
Uma perspectiva neopragmática sobre o ensino de ciências
6
ABSTRACT
7
SUMÁRIO
8
2.2.3 O antirrepresentacionalismo de Rorty e a crítica à disputa realismo versus
antirrealismo.....................................................................................................70
2.2.4 Des-substancialização do mundo............................................................74
2.2.5 O refúgio essencialista: as ciências naturais...........................................78
9
INTRODUÇÃO
11
tratarei o ensino de ciências1. Portanto, não se trata de uma abordagem da
ciência por ela mesma, mas da sua interface com a filosofia e a sociedade.
Considera-se, pois, questões de caráter epistemológico e suas implicações em
tomadas de decisões e resoluções de problemas ético-políticos. Meu
argumento é que os pressupostos filosóficos têm consequências diretas sobre
a inteligibilidade da ciência de seu ensino, precisamente considerando o debate
que me parece crucial: universalismo versus multiculturalismo.
Com razão, Rorty muitas vezes é lembrado como o filósofo que exerceu
uma crítica contundente à epistemologia moderna e alguns de seus
desdobramentos na contemporaneidade, como a filosofia analítica. Nessa
crítica, Rorty argumenta que nem nossa mente nem nossa linguagem podem
representar o mundo como ele é em si mesmo. Segue daí que, na sua
concepção de conhecimento, o problema da justificação é, antes de tudo, um
1
Apesar da preocupação aqui se restringir ao ensino de ciências nas universidades,
eventualmente argumentos utilizados sobre o ensino de ciências para as séries iniciais podem
ser considerados por apresentarem potencialidade teórica de extensão para o ensino superior.
2
A exceção talvez seja o ensino de biologia, por conta da discussão sobre raça ter ganhado
uma extensão pública superior a de outros temas científicos, sobretudo, por ser esse conceito
extremamente relevante na configuração da geopolítica global. Nas ciências humanas, embora
a aplicação da Lei nº 10.329/03 ainda não seja uma realidade, por se tratar da introdução da
História e da Cultura Afro-Brasileira as iniciativas que ocorrem gozam de um maior grau de
aceitação por conta da história e da composição étnico-racial do Brasil.
12
problema da relação entre nossos enunciados sobre o mundo, e não um
confronto entre nossos enunciados e o mundo. A objetividade deve ser
pensada como fruto desse confronto entre enunciados, intersubjetivamente, de
maneira livre e aberta, capaz de nos conduzir a uma “concordância não-
forçada”. Nesse sentido, na redescrição da ciência proposta por ele, a sugestão
é de que ela seja compreendida como solidariedade. Esta é a terminologia que
Rorty adota para dizer que, já que nem nossa mente nem nossa linguagem
podem representar o mundo tal como ele é em si mesmo, a justificação de
nossas crenças, inclusive as científicas, não é nem objetiva nem subjetiva, e
sim social.
13
disputa. Pessoas que não se identificam umas com as outras interagem sem
necessariamente se trucidarem. Precisariam, para não caírem no ostracismo,
interagirem compartilhando os mesmos espaços de produção de
conhecimento. Penso que a universidade é um ambiente privilegiado para essa
interação. Para tal, é preciso ter em conta não somente o conteúdo e a
produção científica, mas também considerar finalidades mais amplas para o
ensino de ciências, que envolvam a construção de um mundo melhor.
14
tradição” (RORTY, 2005, p.149). E assim ele sai em defesa da tradição de sua
própria comunidade: a tradição da democracia-liberal dos Estados Unidos da
América.
15
1. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS E O
DEBATE UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO
16
unidade real da ciência com uma estrutura metodológica das quais todas
compartilham, apesar de suas especificidades, e que nos permitiria alcançar o
conhecimento de maneira segura? Tal preocupação já havia levado filósofos do
início do século passado, no grupo conhecido como Círculo de Viena, a
elaborarem a Enciclopédia Internacional da Unidade da Ciência. Alguns
membros desse grupo buscaram encontrar “uma uniforme estruturação lógico-
matemática do conhecimento científico e a possibilidade de exprimir numa
linguagem única seus conteúdos empíricos em qualquer área” (GRANGER,
1994, p.41). Esta seria uma postura rígida quanto ao entendimento da forma
ideal de como um conhecimento de natureza científica deveria se comportar,
baseada, sobretudo, na crença da existência de um método científico. O
método científico, uma vez sistematizado, seria capaz de explicar todas as
qualidades da ciência. Aliás, a crença na existência desse método inspirou
consideravelmente outras disciplinas que, na esperança de serem
consideradas científicas, deveriam, também, fazer uso rigoroso do método
(VIDEIRA, 2006). A física fora muitas vezes vista como um modelo a ser
seguido de universalidade do método científico isento de interesses e valores
particulares, capaz de orientar as demais disciplinas rumo ao conhecimento
seguro.
17
Feyerabend mina a pretensão de se encontrar regras para a ciência que tenha
validade universal. Expressou-o na famosa fórmula: “Tudo vale”:
18
eles. Uma das conclusões a que o autor chega é de que, apesar de a literatura
e as organizações de educação científica aceitarem a ideia de que uma das
principais metas da educação científica seja uma apresentação clara da noção
do que é a natureza da ciência, essa meta até o momento não foi alcançada
(ALTERS, 1997, p. 48). O estudo que se baseia em uma pesquisa empírica
revela algo já bem conhecido entre os filósofos da ciência: a falta de
concordância acerca da natureza da ciência3. Se os especialistas não têm uma
posição harmônica sobre a questão, quais parâmetros podem ser utilizados
para a compreensão de estudantes e professores acerca da natureza da
ciência? Talvez devêssemos admitir, com Alters, que o único acordo viável no
momento, entre membros de comunidades de pesquisadores em educação
científica, é o de reconhecer que não existe um consenso sobre a natureza da
ciência.
Isso vai levar a suspeita de que talvez o problema esteja na concepção que os
professores têm de ciências, ou mesmo que eles apenas reflitam problemas
3
Essa é uma conclusão a qual Videira também chega ao refletir sobre a natureza do método científico: “A
‘moral’ da história a respeito da posição de cientistas e filósofos parece ser a seguinte: ainda que a
maioria dos cientistas e parte nada desprezível dos filósofos acreditem em algo que chamam de ‘método
científico’, eles não conseguem se entender a respeito do que este último seria” (Videira, 2006, p.34).
19
implícitos nos conteúdos curriculares, o que vai gerar novas investigações.
Estas por sua vez terão que abordar temas correlacionados, como a ligação
entre as crenças dos professores e aquilo que ele ensina em sala; crenças dos
estudantes em contradição com conteúdos disciplinares de ciências; mudanças
conceituais; diversidade cultural e ensino de ciências etc. Harres chega aos
seguintes resultados na sua investigação:
20
investigações de McComas et al. (1998) e Gil-Pérez et al. (2001) sobre esse
problema no âmbito do ensino de ciências, é mudar o foco da investigação
para os aspectos mais aceitos acerca da natureza da ciência e que podem ser
úteis para o seu ensino. Elaborando um quadro comparativo entre os dois
estudos, ele aponta justamente o que há de comum em ambos. Reproduzo, a
seguir, as características da natureza da ciência creditadas a McComas e
colaboradores por El-Hani:
21
compreender, assim, a natureza conjectural do
conhecimento, evitando-se concepções epistemológicas
absolutistas. (iv) O entendimento de que a busca de
entendimento global, sistematização e unificação dos
conhecimentos científicos constitui um aspecto central de
todas as ciências. Deve evitar, ainda, o que Gil e
colaboradores chamam de ‘reducionismo
experimentalista’, de acordo com o qual um tratamento
experimental único poderia ser suficiente para refutar ou
comprovar uma hipótese. (v) O reconhecimento e a
compreensão do caráter social da atividade científica.
(EL-HANI, 2006, p.9)
4
Dentre os filósofos trabalhados por ele, elenca: Popper, Kuhn, Bunge, Toulmin, Lakatos,
Laudan, Feyerabend (GIL PÉREZ et al. 2001, p.135)
22
Uma postura razoável talvez seja admitir que não existe um consenso
derradeiro sobre a natureza da ciência, mas isto não significa que não exista
um consenso, ainda que fraco. Em todo caso, ele pode ser suficiente para que
a comunidade dos filósofos da ciência, cientistas e professores de ciência se
reconheçam enquanto tratando de um mesmo assunto, apesar de terem
objetivos distintos. Parece não haver dúvida de que a compreensão da
natureza da ciência é um forte aliado para o seu ensino e sua aprendizagem.
Porém, reconhecer que existe um consenso relativo sobre a natureza da
ciência entre filósofos, cientistas e professores de ciências é suficiente para
nos certificarmos de que estamos falando sobre a mesma coisa, de que não se
trata de um diálogo no qual as pessoas não se auscultam. Mas seria suficiente
para pensarmos numa educação científica de qualidade? “Luta-se com as
armas que se tem” – prescreve o ditado popular.
23
1.2.1. Contribuições da história e da filosofia da ciência para o ensino de
ciências
Harres (1999), Alters (1997), Greca & Freire (2004), Matthews (1995),
El-Hani (2006), Martins (2006), Silva (2006), Praia et al. (2007), Chinelli et al.
(2010), dentre muitos outros, entendem que a inserção da história e da filosofia
da ciência no ensino de ciências pode contribuir para que professores e
estudantes tenham uma visão mais clara acerca da atividade científica.
Matthews (1995, p.187) comenta que Michael Polanyi defendeu “o ponto de
vista óbvio de que HFS [História e Filosofia da Ciência] deveria fazer parte da
educação científica”. Mas tal ponto de vista, embora pareça óbvio, não o foi
desde sempre. E se teoricamente há consenso sobre a inclusão da história e
da filosofia da ciência no ensino de ciências, na prática esta é uma realidade
ainda distante. As razões para que isso ocorra vão desde a formação limitada
dos professores em história e filosofia da ciência, até a ausência de material
didático de qualidade disponível sobre o tema, como ocorre no Brasil (EL-
HANI, 2006; MARTINS, 2006). Nesta subseção, apresentarei brevemente
alguns argumentos a favor da inserção da história e da filosofia da ciência no
ensino de ciências, a fim de situar o debate que farei posteriormente sobre a
disputa universalismo/multiculturalismo.
24
imune a essa influência5. O Projeto de Física de Harvard contará
posteriormente com outros membros que foram diretamente influenciados por
Conant na elaboração de um currículo escolar em que a história, a filosofia e as
dimensões culturais da ciência estavam presentes e que atingiu uma
porcentagem de 15% de alunos de 1º e 2º grau dos Estados Unidos. Segundo
Matthews,
5
Cito Kuhn (2005, p.16): “Foi James B. Conant, então presidente da Universidade de Harvard,
quem primeiro me introduziu na história da ciência e desse modo iniciou a transformação de
minha concepção da natureza do progresso científico”.
25
não deve se restringir a saber apenas aquilo que ele ensinará em classe, até
porque outros elementos não explícitos no conteúdo podem contribuir, e muito,
para a clareza daquilo que está sendo ensinado. Parece trivial que um
professor de física deve conhecer o contexto histórico em que Copérnico
“revolucionou” a disciplina6.
Ao contrário dos que defendem uma história somente conceitual das ciências
(por exemplo, Laudan, 2000 e Martins, 2000), Matthews (1995), Greca & Freire
Jr. (2004), El-Hani (2006), Gil-Pérez et al. (2001), Praia et al. (2007), Chinelli et
al. (2010), dentre muitos outros, tentam mostrar que abordagens contextuais
das ciências, que levem em conta suas dimensões históricas e filosóficas, a
relação com a cultura e a vida cotidiana, seu caráter social, podem influenciar
positivamente na compreensão que se tem delas e suas implicações para o
ensino.
6
Os argumentos não se restringem a um conhecimento básico de história da ciência e do seu
contexto sócio-cultural, há algo em jogo aí que diz respeito aos fundamentos mesmo daquilo
que está sendo ensinado, assim como o sucesso ou fracasso da aprendizagem. Seria o caso
de se discutir, como o fazem Cobern (2000), Brickhouse (1990) e Vázquez Alonso &
Manassero Mas (1999) a relação entre ciência, conhecimentos e crenças.
26
No fundo, o que se busca com uma educação científica em que a
história e a filosofia da ciência tenham um papel mais significativo é também a
formação humana – Feyerabend (1989), Greca & Freire Jr. (2004), Jenkins
(1999). Feyerabend é um exemplo expressivo dessa preocupação. O que
prepara o cidadão para a sua atuação na sociedade, defende ele, não é a
formação em uma ideologia determinada, seja ela qual for, científica ou
religiosa. O cidadão maduro, aquele imbricado dentro de um processo
educacional mais amplo, deve está apto a tomar as decisões que lhe
parecerem mais atraentes. Para tal, ele deve abordar as ideologias mais
relevantes como fenômenos históricos, inclusive a ciência:
7
Para citar alguns: José Ortega y Gasset, Martin Heidegger, Hannah Arendt e Herbert
Marcuse.
27
que existe entre pesquisa científica e usos militares em segundo plano, por
exemplo, parece-me o contrário da intenção de formar cidadãos mais
responsáveis. Como os cientistas neófitos e os futuros cientistas poderão fazer
escolhas críticas (sensatas) desconhecendo a dinâmica social e a história da
disciplina que exercem ou que escolherão exercer? 8
Para Jenkins (1999), deve-se levar em conta que boa parte dos
empreendimentos científicos na contemporaneidade está relacionada com a
produção de conhecimento nos contextos de sua aplicação. Nesse sentido,
cidadãos e especialistas são obrigados a se confrontarem com problemas
complexos e difíceis que marcam a interface ciência e sociedade. Ele entende
que educação científica, cidadania e compreensão pública da ciência estão
ligadas de inúmeras formas. Essa articulação fica evidente ao se evocar nas
sociedades democráticas a necessidade de alfabetização científica do cidadão,
a fim de que este tenha condições de tomar decisões que exigem algum
conhecimento específico.
8
Um excelente estudo dos pontos de vista social, histórico, político e econômico sobre a
relação entre ciência e guerra foi desenvolvido por Sánchez-Ron (2007). No que se refere
especificamente à energia nuclear e sua história, ele afirma que: “Se há desenvolvimentos
científico-tecnológicos que caracterizam o século XX, a energia nuclear é um deles. A
capacidade de servir-se de elementos químicos para fabricar armas com poder destrutivo –
cidades inteiras e centros de milhões de pessoas – que tem mostrado possuir as bombas
nucleares construídas a partir de 1945 constitui uma novidade absoluta na história da
humanidade. Não é possível compreender a história mundial posterior a 1945, o fatídico ano
em que se lançaram duas dessas bombas (de urânio a primeira, de plutônio a segunda) sobre
as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, sem levar em consideração a disponibilidade
do armamento atômico, e como este foi melhorando”. (Sánchez-Ron, 2007, p.145)
28
exigências por força de grupos subalternizados, ou as denominadas minorias,
que manifestam a necessidade de se pensar numa política educacional no
ensino de ciências que considere suas particularidades. Dentre essas
particularidades, podemos apontar para os modos próprios de produção e
compreensão do conhecimento por esses grupos, que muitas vezes estão em
conflito com o conhecimento considerado científico.
9
Três anos após o fim da Guerra Civil Americana, em 1868, nasceu W. E. B. Du Bois, afro-
americano que mais tarde viria a se tornar um dos principais líderes para a integração da
população negra na sociedade norte-americana. De forte formação acadêmica, escreve um
livro com o sugestivo título: “As almas da gente negra” (1903), que é uma antropologia
filosófica do negro contemporâneo arrancado de sua terra natal e tentando se incluir numa
sociedade branca excludente. Nos anos sessenta, Franz Fanon, negro, médico e psicanalista,
irá tentar demonstrar a impossibilidade da psicanálise freudiana, assim como do
existencialismo sartriano, dar conta da “alma” negra (Cf. Fanon, 2008). Em 2001, um coletivo
denominado NENU (Núcleo de Estudantes Negros(as) da Universidade Federal da Bahia), ao
propor um projeto de cotas para ingresso de afro-descendentes nesta instituição, incluía a
disciplina IPA (Introdução ao Pensamento Africano).
29
unidimensionais e profundamente falhas, devido à
exclusão e à representação incorreta das contribuições
das mulheres. [...] A inclusão da perspectiva das
mulheres não significará simplesmente uma maior
participação delas na prática da ciência e do
conhecimento; mudará a própria natureza dessas
atividades e sua autocompreensão. (NARAYAN, 1997,
p.276-277)
Algo similar se daria com outros grupos que tiveram suas perspectivas
de mundo e suas experiências colocadas às margens da história, e que agora
reivindicam a legitimidade de suas formas próprias de produção de
conhecimento10. No entanto, o modelo utilizado de inclusão quase sempre é
inspirado numa perspectiva universalista em que o incluído, para ser incluído,
precisa se submeter a um regime pré-estabelecido, fazendo com que ele se
torne “igual”. Nesse sentido, a inclusão traz consigo a exigência do
esquecimento das diferenças daquele que está sendo incluído, reforçando um
sistema educacional com princípios igualitário-universalistas. É um modelo que
está longe de levar à mudança da natureza da atividade científica e da sua
autocompreensão, como sugere Narayan.
10
No Brasil, as políticas educacionais atenderam a essas reivindicações através da
implementação das políticas de ações afirmativas que, dentre outras medidas, sanciona a Lei
nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira no ensino
fundamental e médio, a Lei nº 12.711/2012, que garante a reserva de 50% das matrículas por
curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia
para estudantes de ascendência indígena e africana oriundos do ensino público, o
financiamento estudantil, os cursinhos pré-universitários, além de programas de pesquisa e
pós-graduação. Conforme sugerido na nota anterior, a implementação das políticas de ações
afirmativas satisfez apenas parcialmente a reivindicação desses grupos, que, além do direito à
educação, reclamam a inserção de suas perspectivas acerca do conhecimento. Esta questão
será retomada no capítulo 4 desta tese.
30
em que reivindica a legitimidade da diversidade epistemológica contra “abusos”
de poder da ciência hegemônica. Torna-se difícil defender o multiculturalismo
sem o princípio universalista de justiça e respeito mútuos 11. No fundo, a
justificativa moral do multiculturalismo traria consigo uma justificativa
epistêmica. Siegel (2002) acaba por inverter os argumentos dos
multiculturalistas, fazendo uma interpretação destes em que a universalidade
se faz necessária. Se há dúvidas quanto à universalidade da perspectiva
epistemológica da moderna ciência ocidental, o mesmo não se pode dizer da
tentativa de uma justificativa moral e política universalista do multiculturalismo.
11
Siegel tem uma simpatia especial pela perspectiva pragmatista. Acredita que uma maior
comunicação e entendimento entre comunidades diversas de pesquisa podem nos
proporcionar certo avanço.
31
ciência acreditam na objetividade do mundo e no poder da razão de conhecê-
lo, ao mesmo tempo em que, embora possam admitir a influência de agentes
externos na produção científica, buscam delimitar o grau dessa influência,
preservando, assim, o valor de verdade dos enunciados científicos. Apesar de
a organização social poder condicionar a pesquisa, isto não significa
necessariamente que ela vá determinar o resultado da pesquisa.
12
É bastante sugestiva a ênfase dada por uma abordagem contextualista do ensino de ciências
a aspectos não científicos: “Os que defendem a HFS [História e Filosofia da Ciência] tanto no
ensino de ciências como no treinamento de professores, de certa forma, advogam em favor de
uma abordagem contextualista, isto é, uma educação em ciências, onde estas sejam
ensinadas em seus diversos contextos: ético, social, histórico, filosófico e tecnológico; o que
não deixa de ser um redimensionamento do velho argumento de que o ensino de ciências
deveria ser, simultaneamente, em e sobre ciências” (MATTHEWS, 1995, p.166).
32
cerceadas. Ou, que a abordagem contextual pode “humanizar as ciências,
conectando-as com preocupações pessoais, éticas, culturais e políticas” (EL-
HANI, 2006, p.5), critérios esses que, embora possam ajudar no ensino de
ciências, não são epistêmicos e, de alguma forma, fogem do escopo das
ciências. Deveriam eles fazer parte do ensino de ciências?
13
Sobre esse episódio, existe o excelente artigo de Paul Boghossian (1997), que estou
utilizando aqui, intitulado: O que o embuste de Sokal nos deve ensinar – as conseqüências
perniciosas e as contradições internas do relativismo ‘pós-moderno’.
33
Richard Rorty, contra a retórica da objetividade não tem um caráter epistêmico,
e sim político. O que nos interessa questionar aqui é se, sob a rubrica do
ensino de história e filosofia da ciência para o ensino de ciências, essa
tendência relativista não estaria se promovendo.
14
Aliás, cabe ressaltar que a epistemologia social, assim como a epistemologia individual, são
entendidas por Goldman como subdivisões da epistemologia verística.
34
Não seria esse o único objetivo da educação, mas seria o mais
característico – ou, mais precisamente, necessário. Como tal, Goldman prioriza
a verdade ante qualquer outro objetivo que porventura possa ser fixado para a
ciência e a educação.
15
Lamentavelmente, no Brasil, uma situação que pode ser comum, considerando-se a
escassez de material didático sobre o assunto (SILVA, 2006, p.x).
35
(MATTHEWS, 1995, p. 172). Matthews credita a Klein a conclusão de que “se o
ensino de ciências de qualidade alimentar-se da história, esta só pode ser de
má qualidade. Então, é melhor não se usar história do que usar-se história de
má qualidade” (1995, p. 173). Kuhn, por sua vez, reconhece o papel positivo
que livros didáticos exercem na formação de cientistas neófitos quando tratam
problemas do passado como se fossem os mesmos trabalhados atualmente,
fazendo com que o iniciante se sinta pertencente a uma tradição 16. Tal
iniciação dogmática, embora não corresponda à forma como a ciência se
desenvolve, seria não apenas útil como necessária para a educação
científica17.
36
relevância para a educação científica” (MARTINS, 2000, p.52). Ele considera
que análises externas da ciência, sobretudo de caráter sociológico, têm
prevalecido em detrimento de aspectos epistemológicos e internos à própria
dinâmica da ciência. Sua crítica centra-se, sobretudo, nas abordagens
sociológicas da história das ciências. O equívoco para ele é que nenhuma
análise da história da ciência pode abster-se de uma compreensão
epistemológica da ciência, no entanto, seria precisamente isso o que estaria
acontecendo com a substituição da epistemologia por uma “análise social da
prática científica” (MARTINS, 2000, p.48). Uma das razões dessa mudança de
foco seria justamente o interesse que tem gerado no ensino de ciências a
história das ciências. No entanto, Martins prevê que começa a se formar um
novo público que, reconhecendo o valor da história da ciência para o ensino de
ciências, solicita uma abordagem da primeira que leve em conta tanto os
aspectos sociais quanto os filosóficos, metodológicos e conceituais das
ciências. Tal como tem sido utilizada até então no ensino, a história da ciência
ameaça a própria ciência por destituí-la de seus aspectos filosóficos,
metodológicos e conceituais.
37
de um exame demorado da história da alquimia ou da
botânica sistemática. (LAUDAN, 2000, p. 9)
No entanto, Laudan aponta que a história das teorias dos métodos científicos
seria o elo entre essas duas disciplinas, por se tratar de algo indispensável em
ambas e por se constituir como um interesse em comum. Para compreender o
desenvolvimento da ciência é preciso que o filósofo da ciência examine as
teorias metodológicas que a sustentam na sua relação com as que a
precederam. Nas palavras de Laudan, “é difícil compreender quer a história
quer a filosofia da ciência, sem tratar da evolução das teorias do método”
(2000, p. 10). Se a história e a filosofia da ciência devem se concentrar na
“evolução das teorias do método”, o que dizer da sua inserção no ensino de
ciências?
38
ciências, e ele diz respeito, grosso modo, a duas posturas antagônicas que se
pode ter frente ao conhecimento científico: uma com tendências mais
universalistas e outra com tendências mais relativistas.
39
tomarmos tal medida como a de comunidade ou raça, estaremos nos
aproximando das discussões contemporâneas acerca do etnocentrismo,
multiculturalismo, pluriculturalismo, diversidade cultural e conceitos afins. Homo
mensura pode ter um sentido tanto epistemológico quanto ético ou cultural,
apontando assim para uma variedade de tipos de relativismos. Pode ser
considerada tanto uma doutrina quanto uma atitude. Mas em que consiste
precisamente o relativismo e quais as suas implicações para nosso
empreendimento?
18
Blackburn (2006) coloca Rorty como pertencente à tradição dos sofistas. Boghossian (1997,
2012) considera Rorty um relativista. Não podemos deixar de acrescentar também que, ainda
que Thomas Kuhn não tenha se definido como relativista, sua tese da incomensurabilidade de
teorias científicas serviu e ainda serve como um argumento a favor do relativismo.
40
debate com Teodoro em torno de um suposto livro de Protágoras denominado
A Verdade:
19
A ideia de que nossos critérios, mesmo os científicos, não podem escapar de parcialidades
locais é desenvolvida no capítulo 3, quando discuto o conceito de etnocentrismo em Rorty,
mais precisamente o que denominei de “fatalismo etnocêntrico”.
42
ciência é tão somente um deles” (BOGHOSSIAN, 2012, p.17). Um caso
concreto, relatado por ele, da força dessa doutrina na contemporaneidade diz
respeito a uma matéria publicada pelo The New York Times, em 1996,
intitulada “Criacionistas indígenas tribais contradizem arqueólogos”. Nesta
matéria, a contenda é sobre a origem das populações nativas americanas. A
hipótese mais aceita pelos arqueólogos é de eles chegaram à América, vindos
da Ásia, através do estreito de Bering. Isto teria acontecido aproximadamente
há dez mil anos atrás. Por outro lado, alguns mitos criacionistas dos nativos
americanos dizem que seus ancestrais são originários de um mundo
subterrâneo de espíritos que emergiram para a superfície da terra e, desde
então, vivem aqui. O surpreendente e inaceitável, para Boghossian, é que
essas duas perspectivas (a científica e a mitológica) acerca da origem dos
povos nativos na América sejam postas como igualmente válidas por
arqueólogos de inclinações pós-modernas. Ele credita aos arqueólogos Roger
Anyon e Larry Zimmermann a reivindicação de que o conhecimento científico é
apenas mais um, dentre outros, modos de conhecer o mundo (BOGHOSSIAN,
2012, p.16).
20
Esse problema é gritante no ensino de biologia, quando versões criacionistas da origem do
homem se confrontam com a tese científica do evolucionismo. No Brasil, o problema levou a
Sociedade Brasileira de Genética a publicar um manifesto sobre ciência e criacionismo, no qual
vem comunicar ao público que “não existe qualquer respaldo científico para ideias criacionistas
que vêm sendo divulgadas em escolas, universidades e meios de comunicação. O objetivo
deste comunicado é esclarecer a sociedade brasileira e evitar prejuízos no médio e longo prazo
ao ensino científico e à formação dos jovens no país” (Manifesto da Sociedade Brasileira de
Genética sobre Ciência e Criacionismo, 2008). Ver também Sepulveda & El-Hani (2004).
43
culturais dos grupos envolvidos, portanto, a verdade acerca do fato deve ser
relativa a esses grupos.
21
Luz (2006) distingue mais duas formas de conhecimento além do proposicional:
conhecimento como habilidade e conhecimento por familiaridade ou de trato. O conhecimento
como habilidade é uma sugestão que se encontra na nossa linguagem cotidiana quando
falamos coisas do tipo “Pelé sabe jogar futebol” ou “o gato sabe o caminho para casa”. No
primeiro caso, ao dizer que Pelé “sabe”, esse saber se refere simplesmente à habilidade que
uma determinada pessoa (Pelé) tem de fazer algo (jogar futebol). Habilidade não se transmite,
mas pode ser desenvolvida através de treinamento e repetição. No segundo caso, o do gato
que sabe o caminho para casa, não podemos dizer que se trata de uma habilidade no mesmo
sentido em que “Pelé sabe jogar futebol”. Assemelha-se antes a afirmação de que “o bebê
conhece Maria”. Tanto o gato que sabe o caminho de casa, quanto o bebê que conhece Maria,
parece sugerir a interpretação de conhecimento “como se referindo a um certo elemento pré-
reflexivo, que se manifesta através de uma ação, a ação de distinguir algo entre semelhantes”
(LUZ, 2006, p.39). A este uso do termo conhecimento Luz denominou conhecimento por
familiaridade ou de trato. Nenhum desses dois tipos de conhecimento se refere ao tipo de
conhecimento utilizado pelas ciências. Os dois exemplos que seguem são de Luz (2006).
22
Proposição aqui é entendida apenas como “O pensamento literalmente expresso por uma
frase declarativa com sentido” (BRANQUINHO et al, 2006, p.628). Às frases declarativas pode-
se atribuir verdade ou falsidade.
44
Conhecimento proposicional é o tipo de conhecimento que encontramos
em frases como “Eu sei que Pelé sabe jogar futebol” ou “Pedro sabe que Maria
conhece João”. O que há de singular nessas frases, se compararmos com os
exemplos anteriores, é que elas apontam para um determinado estado mental,
o de alguém que sabe que sabe. A este estado mental denomina-se crença e
ela é condição sine qua non para que alguém saiba algo23. Uma crença tem, ao
menos, três características básicas: a) precisa ter um conteúdo proposicional;
b) pode ser avaliada como verdadeira ou falsa; c) pode ser avaliada como
justificada ou injustificada, racional ou irracional. “O conteúdo proposicional de
uma crença especifica como o mundo é segundo a crença. Especifica, em
outras palavras, uma condição de verdade – como o mundo teria de ser se a
crença fosse verdadeira” (BOGHOSSIAN, 2012, p.28). No que diz respeito à
justificação, a questão é saber se a pessoa está justificada em acreditar em
algo, qual seja, se ela tem razões que tornam sua crença racional.
1. S crê em P
23
Não se ignora aqui a dificuldade de se definir a crença “como um tipo particular de estado
mental” (Boghossian, 2012, p.27), pois haveria de se responder justamente o que queremos
dizer quando nos referimos a um “estado mental”. Mas, para os propósitos do presente
trabalho, me reservarei a essa definição imprecisa e à caracterização que segue no corpo do
texto.
45
3. P é verdadeira.
24
A ideia de conhecimento como crença verdadeira justificada sofreu um duro ataque em 1963
através de contraexemplos elaborados por Edmund Gettier em “Is Justified True Belief
Knowledge?”. Não discutirei as implicações desse problema, pois isto demandaria outro
trabalho. Ver: Gettier (1963), Luz (2006).
46
Mesmo uma formulação menos ingênua do realismo nas ciências prima
pela prioridade ontológica de um mundo independente que pode ser
descoberto pelo sujeito cognoscente, como nos informa o filósofo realista
Thomas Nagel, que em “A última palavra” (2001) apresenta fortes argumentos
em defesa do realismo do conhecimento científico: “partimos da ideia de que,
de algum modo, o mundo existe – e essa, creio, é uma ideia para a qual não há
alternativa inteligível e que não pode ser subordinada a, ou derivada de,
qualquer outra coisa” (NAGEL, 2001, p.98). Por conseguinte, deriva a
possibilidade de explicação de ordenamento do mundo a partir da própria ideia
de realidade objetiva:
Portanto, ainda segundo essa formulação: a) o mundo existe; b) ele tem uma
estrutura independente do sujeito; c) podemos buscar ou descrever essa
estrutura. A crença realista de um mundo independente do sujeito é vista pelo
relativista não só com desconfiança, mas também como notadamente falsa.
Pressupor que noções do que é a realidade, verdade ou objetividade podem
ocorrer apartadas da nossa relação com a cultura, a história, normas de
justificação, linguagem, esquemas conceituais, interesses sociais etc., seria o
mesmo que se colocar numa instância acima de todas as demais. O problema,
para os relativistas, é que essa instância não existe, a menos que para isso
recorramos à metafísica clássica com inspirações platônicas de um mundo
perfeito de formas inteligíveis somente através da razão.
47
2004a, p. 17). Se este for o caso, como assevera Habermas, o realismo precisa
encontrar outra maneira de se justificar, tendo em conta esse novo paradigma.
Mas talvez não seja esse o caso, como sugere Nagel (2001), denunciando que
há uma supervalorização do problema da linguagem e de sua relação com o
mundo em detrimento de algo mais fundamental: a razão.
25
Boghossian se queixa da inoperância da filosofia analítica em exercer sua influência no trato
de conceitos como verdade, significado e objetividade, que seriam maltratados por correntes
pós-modernistas (estas entendidas como variações do relativismo). A questão seria “por que
razão a filosofia analítica, a tradição dominante no mundo de língua inglesa, foi incapaz de
exercer uma influência correctiva mais eficiente. Afinal de contas, a filosofia analítica é
conhecida sobretudo pela sua discussão detalhada e subtil de conceitos da filosofia da
linguagem e da teoria do conhecimento, os mesmíssimos conceitos acerca dos quais o pós-
modernismo está tão rudemente equivocado” (BOGHOSSIAN, 1997, p.35).
48
trata-se da questão epistemológica do realismo: como
conciliar a suposição de um mundo independente de
nossas descrições, idêntico para todos os observadores,
com a descoberta da filosofia da linguagem segundo a
qual nos é negado um acesso direto, não mediatizado
pela linguagem, à realidade “nua”. (HABERMAS, 2004a,
p.8)
49
2. A DISPUTA REALISMO VERSUS ANTIRREALISMO E O
NEOPRAGMATISMO
26
Além do realismo ontológico, epistemológico, científico e semântico, pode-se falar em
realismo político, realismo empírico, realismo moderado, realismo gnosiológico, realismo
ingênuo, dentre outros.
50
Tradicionalmente ao realismo se opõe o idealismo, a tese segundo a
qual as coisas não existem independentemente da mente humana, sendo, às
vezes, como defendem alguns filósofos dessa doutrina, produzidas pela mente
(BERKELEY, 1980, p.70)27. Por outro lado, filósofos realistas afirmam que o
mundo existe independentemente de nossas mentes, seu status ontológico
permanece o mesmo quer nós existamos quer não (HUME, 1980)28. O debate
realismo/idealismo está entre os mais árduos da filosofia e ocupou as mentes
de brilhantes personalidades da história moderna do pensamento ocidental.
De uma maneira geral, além de argumentar que o mundo existe
independentemente de nós, o realismo é dotado pela confiança de que é
possível conhecê-lo verdadeiramente, no sentido de que se pode representá-lo
tal qual ele é. Segundo Blackburn, o argumento dos realistas “invoca alguma
relação entre os comprometimentos da área e a realidade a qual eles
respondem”, onde:
Os comprometimentos em questão são capazes de
verdade estrita e literal; descrevem o mundo; respondem
ou representam fatos (independentes) de um tipo
específico; há um modo de ser do mundo que os torna
verdadeiros ou falsos. Esses fatos são descobertos, não
criados e possuem suas próprias naturezas “ontológicas”
e “metafísicas”, sobre as quais a reflexão pode nos
informar. (BLACKBURN, 2006, p. 189)
27
Certamente, Berkeley é uma referência essencial para a tese idealista. A sua obra “Três
diálogos entre Hilas e Filonous” (1980) caracteriza-se tanto pela elegância estilística quanto
pela perspicácia dos argumentos. Apesar de Bertrand Russell considerar os argumentos
idealistas falaciosos, não deixa de fazer a seguinte consideração acerca da importância da tese
no âmbito da teoria do conhecimento e do lugar de Berkeley na discussão: “Os fundamentos
com base nos quais o idealismo é advogado são geralmente derivados da teoria do
conhecimento, ou seja, de uma discussão das condições que as coisas têm de satisfazer de
modo a podermos conhecê-las. A primeira tentativa séria de estabelecer o idealismo nessa
base foi a do bispo Berkeley” (RUSSELL, 2008, p. 100).
28
Uma estimulante discussão sobre o problema da existência ou não do mundo exterior é
oferecida por Plínio Smith no ensaio “Uma solução cética para o problema do mundo exterior”
(Cf. SMITH, 2005).
51
descrições. O realismo epistêmico pressupõe o realismo ontológico, mas o
contrário pode não ser verdadeiro, uma vez que se pode admitir a existência do
mundo exterior e, no entanto, negar a possibilidade de conhecê-lo
verdadeiramente, ou de se ter um acesso direto a ele. Alguém pode ser cético
quanto à possibilidade de conhecermos o mundo tal qual ele é, admitindo, no
entanto, a existência do mundo29.
No âmbito científico, a tese filosófica do realismo, segundo a qual as
coisas existem independentemente de nossas mentes e que podemos
conhecê-las (ainda que indiretamente) ou descrevê-las corretamente (ainda
que aproximadamente), não ficou imune às predições e conquistas
tecnológicas das ciências modernas. Ao contrário, encontrou nelas sim um
forte argumento a favor de si mesma. Afinal, o que as teorias científicas
modernas de alguma maneira parecem mostrar é que elas se aproximam de
uma descrição do mundo tal qual ele é; caso contrário, não haveria como
justificar o fato de as mesmas serem bem sucedidas na prática. O argumento
do sucesso preditivo das ciências apresenta-se à primeira vista como
irrefutável. Pareceria um pouco ingênuo demais a qualquer um acreditar que a
chegada do homem à lua foi fruto do acaso, quando é sabido que para tal foi
necessária a confluência de vários ramos do saber científico (física, química,
medicina etc.) com vistas a esse objetivo. Teorias científicas parecem,
portanto, de alguma maneira nos informar acerca de algo da realidade, a ponto
de se criar as condições necessárias para nos movermos nela com certa
segurança. Decerto, o sucesso da ciência não pode ser atribuído à obra do
acaso ou à interferência de algo sobrenatural, por conseguinte, as teorias
científicas devem descrever o mundo adequadamente (PUTNAM,1975,73). O
encontro da doutrina filosófica do realismo com o sucesso preditivo das
asserções científicas gerou uma forma específica de realismo: o científico.
Por outro lado, muitas objeções foram levantadas ao realismo
científico30, assim como concepções alternativas a ele foram erguidas. Na
29
Esse posicionamento pode ser compreendido como uma forma geral de realismo
denominado de realismo representativo, que consiste “na combinação de uma tese ontológica
segunda a qual o mundo existe, independentemente de ser percebido por alguma mente, e de
uma tese epistemológica segundo a qual nós temos acesso indireto a essa realidade por meio
do nosso modo de representar essa realidade” (SMITH, 2005, p.300).
30
O “empirismo construtivista” de van Fraassen seria uma dessas objeções. Ele define o
antirrealismo como “a posição segundo a qual o objetivo da ciência pode bem ser atendido sem
52
contemporaneidade, há certo deslocamento do debate que leva a
determinadas formas de oposição ao realismo, mas que não significam
necessariamente idealismo. Ademais, o idealismo enquanto uma doutrina
filosófica ampla e bastante diversificada pode ter características pouco
relevantes para o debate com o realismo. Precisamente por esses motivos,
Michael Dummett (1996, p.463) se utiliza do termo antirrealismo para designar
de maneira generalista atitudes filosóficas de rechaço ao realismo. Nas duas
seções seguintes tratarei do realismo científico, entendendo o mesmo como
contendo o realismo epistemológico e o ontológico. Posteriormente, na esteira
de Dummett, será apresentada brevemente a versão do realismo em termos
semânticos. Essa modesta apresentação tem somente a intenção de preparar
o caminho para a compreensão da tentativa neopragmática de Richard Rorty
de superação do debate realismo/antirrealismo.
fazer tal relato verdadeiro [do mundo], e a aceitação de uma teoria pode, de modo apropriado,
envolver algo menos (ou diferente) que a crença de que ela é verdadeira” (2007, p.30). Assim
como o realismo, há muitas formas de antirrealismo. Van Fraassen, por exemplo, defende que
seu empirismo construtivista não é antirrealista da mesma forma que o de Dummett (2007,
p.78-79). Este, além de formular os termos do debate em realismo versus antirrealismo, propõe
um programa de investigação antirrealista embasado semanticamente. Rorty, por sua vez,
espera superar o debate nesses termos (realismo versus antirrealismo), mas creio que não
seria exagerado dizer que seus argumentos têm características antirrealistas, como veremos
adiante.
53
descobertas, e não invenções (VAN FRAASSEN, 2007,
p.24)31.
Apesar de considerá-lo ingênuo, van Fraassen não deixa de apontar que esse
enunciado contém duas características fortes do realismo: primeiro, descreve a
teoria científica como abordando entidades realmente existentes; segundo, que
tais entidades são descobertas pela atividade científica, e não inventadas.
Portanto, estabelece o comprometimento da teoria com a verdade e da
atividade científica com a realidade do mundo. Verdade e objetividade,
segundo essa formulação, fazem parte da relação que uma teoria científica
estabelece com o mundo. O problema se torna mais denso quando temos em
conta que, ao recorrer à teoria, a ciência não só postula entes observáveis no
nosso cotidiano, mas também entes e processos inobserváveis, tais quais
elétrons, campos eletromagnéticos, vírus, ligações moleculares etc., noções
muitas vezes indispensáveis para a predição e explicação de fenômenos
físicos (observáveis ou não). Daí Chibeni (1996, pp. 46-47) afirmar sobre o
realismo científico no que se refere aos entes não-observáveis:
O realismo científico sustenta que aquilo que as teorias
científicas afirmam acerca desse mundo sub-fenomênico
pode, de fato, representar conhecimento genuíno; o
conhecimento humano seria passível de avançar além
dos limites do que é diretamente observável. (CHIBENI,
1996, pp. 46-47)
31
Nesta formulação preliminar proposta aqui sobre a noção de realismo científico, há o
problema da observabilidade das entidades. Os objetos e eventos supostamente podem ser
classificados em observáveis e inobserváveis. Van Fraassen faz a seguinte distinção dos
termos: “O termo ‘observável’ classifica entidades postuladas (que podem existir ou não). Um
cavalo alado é observável – é por isso que estamos tão certos de que não existe nenhum – e o
número dezessete, não. Supõe-se que haja uma classificação correlata de atos humanos: um
ato de percepção sem ajuda, por exemplo, é uma observação. O cálculo da massa de uma
partícula a partir de deflexão de sua trajetória em um campo de força conhecido não é uma
observação dessa massa”. (VAN FRAASSEN, 2007, p.38)
54
explicativo32. Essa característica do realismo científico o afasta de uma visão
que poderia parecer se tratar de uma tese trivial, próxima ao de um realismo do
senso comum e, em certa medida, tradicional.
O realista tradicional parte do princípio de que os nomes
gerais correspondem,de maneira mais ou menos unívoca,
a várias “propriedades” de “objetos”, em algum sentido de
“propriedade” e em algum sentido de “objeto”
estabelecidos de uma vez por todas, e de que as
alegações de conhecimento são simplesmente alegações
sobre a distribuição dessas “propriedades” nesses
“objetos”. (PUTNAM, 2008a, p. 22)
32
Segundo Chibeni, essa característica do realismo científico é usada pelo antirrealista van
Fraassen como um argumento contra o mesmo: “O principal argumento de van Fraassen
contra o realismo científico é de que as teorias científicas que baseiam suas previsões e
explicações dos fenômenos em supostos mecanismos inacessíveis à observação direta são
subdeterminados empiricamente, ou seja, os dados empíricos são por princípio insuficientes
para determinar o valor de verdade de algumas de suas proposições fundamentais. Assim, é
possível que duas teorias incompatíveis em suas proposições teóricas sejam empiricamente
equivalentes, isto é, coincidam no que afirmam a respeito do que é observável. Para manter
sua posição, o realista científico tem que fornecer critérios para a discriminação epistêmica das
teorias empiricamente equivalentes. Ora, por necessidade, esses critérios não poderão ser
empíricos, e tipicamente envolvem fatores como o poder explicativo, a simplicidade, a unidade
etc. É precisamente aqui que o anti-realista empirista centra sua crítica: o apelo a tais
princípios não-empíricos (ou superempíricos) significaria um rompimento com os ideais
empiristas tradicionais. Segundo van Fraassen, eles não dizem respeito às relações da teoria
com o mundo, mas com os usuários da teoria, dependendo assim de fatores históricos,
culturais, psicológicos, sociológicos etc.” (1996, p.4)
33
Putnam faz notar que alguns filósofos adeptos do realismo científico tendem a tratar os
objetos da ciência moderna, precisamente a física, à maneira de objetos ordinários, “não levam
em conta que as partículas da física moderna não são pequenas bolas de bilhar e, desse
modo, esquecem-se do fato de ter surgido, dentro da própria física, uma outra extensão da
noção de ‘objeto’” (2008a, p.21-22).
55
entidades, sobretudo àquelas observáveis, mas discordar com relação às
demais, inobserváveis. O problema para os antirrealistas é que não há como
confrontar os enunciados científicos com um mundo de objetos ou estado de
coisas não-observáveis para, então, determinarmos seu valor de verdade.
Dummett descreve o impasse nos seguintes termos:
O antirrealista acusa o realista de interpretar essas
declarações à luz de uma concepção de estados míticos
de coisas, não diretamente observável por nós, tornando-
os verdadeiras ou falsas. De acordo com o anti-realista, o
que torna verdadeiro ou falso são os estados observáveis
de assuntos sobre a base de que o juiz de seu valor de
verdade. Na interpretação do realista, estes apenas
fornece evidência para a verdade ou falsidade das
declarações, ou constitui um meio indireto de julgá-las
verdadeiras ou falsas; o antirrealista retruca que eles são
os meios mais diretos que poderia haver. (DUMMETT,
1996, p.469)
56
perceptivas, posição no espaço e no tempo, e afins. A
obtenção de um nível de objetividade é o esforço para
descrever o mundo como ele é em si mesmo; o realismo
científico tem o crédito de lutar por esse ideal, ao qual ele
acredita que podemos nos aproximar. (DUMMETT, 1996,
p.470)
57
uma teoria científica envolve a crença de que ela é verdadeira” (VAN
FRAASSEN, 2007, p.27). Ao caracterizar as teorias científicas como
pretendendo oferecer um “relato literalmente verdadeiro de como o mundo é”,
van Fraassen remete ao caráter discursivo da teoria onde “literal” não significa
necessariamente com valor de verdade. Na sua concepção, “mediante uma
interpretação literal, os supostos enunciados da ciência realmente são
enunciados, capazes de serem verdadeiros ou falsos” (VAN FRAASSEN, 2007,
pp. 31-32). Por outro lado, ele acredita que uma interpretação literal pode se
refinar sem, no entanto, conduzir para a modificação das relações lógicas entre
os enunciados e as coisas – “se uma teoria diz que algo existe, então uma
interpretação literal pode especificar o que tal coisa é, mas não vai eliminar a
implicação de existência” (VAN FRAASSEN, 2007, p.32). Esta seria, pois, a
formulação do realismo científico mais contundente para van Fraassen e capaz
de combater algumas formas de antirrealismo, como o instrumentalismo, por
exemplo.
Essa formulação, que Putnam atribui a Richard Boyd, consiste na tese de que
o realismo é uma boa explicação para o sucesso preditivo da ciência, uma tese
que não necessita recorrer a fatores exógenos – a ciência mesma é chamada a
tornar inteligível seu êxito. Em outras palavras, “O realismo se torna, por assim
58
dizer, a própria teoria da ciência sobre si mesma e com todas as credenciais da
ciência” (BLACKBURN, 2006, p.268), ao tempo em que, enquanto tese
filosófica, favorece uma explicação da ciência em que seu sucesso no domínio
empírico, prático ou da observação, supostamente evidencia seu caráter
consistente enquanto teoria. Portanto, trata-se de uma alegação a favor da
ideia de que teorias científicas bem sucedidas deveriam ser aceitas como
descrições do mundo aproximadamente verdadeiras, pois elas apresentam a
melhor explicação dos fenômenos observáveis ou não que foram previstos por
elas.
Ao programar a projeção de um foguete para o espaço, admite-se para
isso que a gravidade é uma realidade, que a lua gira em torno da terra, que
fazemos parte de um sistema no qual o sol é seu centro, que os cálculos
relativos à velocidade etc. funcionam e mais e mais e mais – e que tudo isso é
uma operação rotineira sem qualquer interferência de forças sobrenaturais,
qual seja, sem milagres. Fazer isso nada mais é do que repetir as explicações
que a própria ciência oferece para o seu sucesso. Ou, como afirma Blackburn
(2006, p. 276), ao comentar o argumento de Putnam-Boyd: “A ciência explica o
sucesso da ciência” – melhor para os que não crêem em milagres. Como faz
notar Nagel, confirmar ou infirmar empiricamente a ordenação do mundo e
buscar explicar fenômenos particulares por meio de leis gerais, contêm algo de
circular:
quando formulamos uma lei de qualquer espécie, com
base em nossas observações, e em seguida a
confirmamos por meio da experimentação, a confirmação,
bem como a formulação original, dependem do
julgamento de que a melhor explicação sistemática da
relação entre as observações originais e os nossos
experimentais é aquela que os recobre de modo
sistemático – uma explicação de acordo com a qual não
se trata de acidente. (NAGEL, 2001, p.108-109)
34
Blackburn (2006, p. 268) escreve: “se a teoria inclui o melhor de toda a nossa compreensão
empírica e científica do mundo, então a postura externa é necessariamente ‘transcendental’:
nunca poderíamos ocupá-la nem sequer chegar perto de ocupá-la, fosse qual fosse a duração
e sucesso de nossas inquirições empíricas e teóricas”.
59
argumento da explicação endógena da ciência não implica seu isolamento
frente ao mundo – “em larga medida, a ordenação que encontramos em nossa
experiência é produto de uma ordenação que ali está, independente de nossas
mentes” (NAGEL, 2001, p.113).
O argumento do milagre não encerra a discussão, pois o que ele
apresenta não é uma prova contundente de que o realismo científico está certo.
Apenas aponta para a plausibilidade de se optar pela explicação de que as
entidades às quais as teorias científicas se referem realmente existem, em vez
de enveredarmos por caminhos misteriosos. É melhor levar em consideração
que as teorias científicas têm algo a ver com o mundo, tendo-se em conta seu
elevado grau de sucesso empírico, do que crer em coincidências, bruxarias,
demônios ou coisas afins35. Tal como formulado por Putnam, o argumento do
milagre é uma forma peculiar de petição a favor do realismo científico.
O argumento de Putnam pode ser compreendido também como uma
variação da regra de inferência para a melhor explicação. Van Fraassen (2007)
e Chibeni (1996) apontam Charles Peirce como o precursor desse tipo de
argumento, mas como ele foi desenvolvido recentemente deve-se à formulação
de Gilbert Harman (1965). O próprio Harman afirma que a terminologia que ele
utiliza, “inferência para a melhor explicação”, é uma tentativa de evitar
sugestões enganosas de outras terminologias (como “abdução”, “o método de
hipóteses”, “inferência hipotética”, “o método de eliminação”, “indução
eliminativista”, “inferência teórica”), mas que a elas correspondem
aproximadamente36.
35
Um argumento próximo ao apresentado por Putnam a favor do realismo científico é o por
vezes denominado “argumento da coincidência cósmica”. Chibeni (2006, p.225) atribui as
raízes desse argumento a Descartes, mas como ele ficou conhecido teria se dado devido à
forma como J. J. C. Smart o apresentou, que Chibeni resume da seguinte maneira: “[o
argumento da coincidência cósmica] consiste em alegar que se uma teoria prediz corretamente
uma grande quantidade e variedade de fenômenos é improvável que seja falsa acerca do
mundo sub-fenomênico de que suas predições empíricas dependem. Se as entidades não-
observáveis postuladas pelas teorias não existissem, e se o que a teoria diz sobre elas não
existissem, e se o que a teoria diz sobre elas não fosse aproximadamente verdadeiro, somente
uma coincidência de proporções cósmicas poderia explicar o seu sucesso empírico” (CHIBENI,
1996, p.51).
36
Cito Harman: “The inference to the best explanation" corresponds approximately to what
others have called "abduction," "the method of hypothesis," "hypothetic inference," "the method
of elimination," "eliminative induction," and "theoretical inference." I prefer my own terminology
because I believe that it avoids most of the misleading suggestions of the alternative
terminologies”. (HARMAN, 1965, 88-89)
60
A inferência para a melhor explicação, tal como formulada por Harman,
consiste no seguinte:
37
Um caso ordinário seria, por exemplo, esse relatado por van Fraassen: “ouço um arranhar na
parede, o sapateado de pequenos pés à meia noite, meu queijo desaparece – e infiro que um
camundongo veio viver comigo. Não acho apenas que esses sinais aparentes da presença de
um camundongo vão continuar, nem apenas que todos os fenômenos observáveis vão ser
como se houvesse um camundongo, mas que realmente há um camundongo” (VAN
FRAASSEN, 2007, p.46). Casos não ordinários seriam aqueles que envolvem inobserváveis,
como partículas subatômicas, por exemplo.
61
argumento utilizado para casos ordinários seria suficiente para levar-nos, por
exemplo, à crença da existência de entes inobserváveis.
62
impasses entre concepções distintas de realidade e a carência de meios
(formas) de decidirmos qual delas (dessa variedade) é a correta.
63
nem antirrealistas, que toda a questão entre realismo e antirrealismo deveria
ser posta de lado” (2006, p.107) 38.
Poder-se-ia pensar que se trata de apenas mais um pensador excêntrico
em meio ao turbilhão de ideias do cenário atual da chamada pós-modernidade.
Mas Rorty não está sozinho. Ele pertence a uma tradição: o pragmatismo.
Alinha-se, com muitas ressalvas, a Dewey, James, Peirce, Putnam, Quine,
Davidson etc. Veremos em que consiste essa tradição na qual ele se insere e
da qual é certamente um dos mais expressivos representantes da segunda
metade do século XX. Posteriormente, nos concentraremos em suas ideias
acerca do conhecimento e, ao fim deste trabalho, desdobraremos daí algumas
implicações para o ensino de ciências.
38
A objeção de Rorty à querela realismo versus antirrealismo consiste em afirmar que se trata
de uma daquelas querelas sem nenhuma incidência prática e que, portanto, deve ser
abandonada, fazendo jus à fórmula pragmática de Peirce.
64
“assentar disputas metafísicas que, de outro modo, se estenderiam
interminavelmente” (JAMES, 1979, p. 18). O que pragmatistas desejam é
baixar a poeira dos grandes confrontos metafísicos, buscando as
conseqüências práticas caso numa determinada disputa, tivéssemos de
escolher entre uma ou outra alternativa. Saber se o mundo é um ou muitos ou
se sua constituição é material ou espiritual, em que implica na vida prática
humana? Caso a resposta a essas questões não faça diferença nenhuma na
prática, não há por que se preocupar com elas:
O método pragmático nesses casos é tentar interpretar
cada noção traçando as suas conseqüências práticas
respectivas. Que diferença prática haveria para alguém
se essa noção, de preferência àquela outra, fosse
verdadeira? Se não pode ser traçada nenhuma diferença
prática qualquer, então as alternativas significam
praticamente a mesma coisa, e toda disputa é vã.
Sempre que uma disputa é séria, devemos estar em
condições de mostrar alguma diferença prática que
decorra necessariamente de um lado, ou o outro estar
correto (JAMES, 1979, p. 18).
65
ter um meio prático de entrar e sair de seus respectivos
aposentos. (JAMES, 1979, p. 21)
66
qual, como outros animais, desenvolvemos meios para a sobrevivência – “a
consciência deve ser compreendida em continuidade com – já que não
reduzida a – a realidade não consciente”. (FAERNA, 1996, p.8 – grifo do autor).
A superação do dualismo espírito-matéria pelo pragmatismo dá-se sob a
égide de uma visão naturalista do mundo de inspiração darwiniana. O lócus
dessa superação seria a experiência. James a entende como a base de todo o
saber e de toda a ação. Ela nos ajuda simplesmente a não nos conformarmos
com um suposto universo “dado”, abstrato, com soluções verbais, más razões
a priori, princípios firmados, sistemas fechados com pretensões absolutistas ao
gosto dos filósofos de temperamento racionalista, e abre a possibilidade de nos
situarmos no mundo, numa atenção constante à realidade. O filósofo
pragmatista
Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a
ação e o poder. O que significa o reinado do
temperamento empírico e o descrédito sem rebuços do
temperamento racionalista. O que significa ar livre e
possibilidades da natureza em contraposição ao dogma,
à artificialidade e à pretensão de finalidade na verdade.
(JAMES, 1979, p.20)
39 Ferrater Mora oferece uma descrição das várias acepções que em Dewey tem a experiência
numa comparação entre a forma ortodoxa de entendê-la e a pragmática: 1) na concepção
ortodoxa, a experiência é considerada meramente como um assunto de conhecimento,
enquanto agora ela aparece como uma relação entre o ser vivo e o seu meio físico e social; 2)
na acepção tradicional, a experiência é, ao menos de um modo primário, uma coisa física,
embebida de subjetividade, enquanto a experiência designa agora um mundo autenticamente
objetivo do qual fazem parte as ações e os sofrimentos dos homens e que experimenta
modificações em virtude de sua reação; 3) na acepção tradicional somente o passado conta,
de modo que a essência da experiência é, em última análise, a referência ao que precedeu, e o
empirismo é concebido como vinculação ao que foi ou é dado, enquanto a experiência em sua
forma vital é experimental e representa um esforço para mudar o dado, uma projeção rumo ao
desconhecido, um marchar para o futuro; 4) a tradição empírica está submetida ao
particularismo, enquanto a atual acepção da experiência leva em conta as conexões e
67
Ao remeter pensamentos, sentenças e teorias como verdadeiras ou
falsas para o campo da experiência, pragmatistas nos convidam a romper com
o dualismo metafísico entre espírito versus matéria, sujeito versus objeto, vida
contemplativa versus vida ativa, particular versus universal, experiência versus
pensamento, a favor de uma concepção de conhecimento afim com a atuação
futura do homem no mundo. Em outras palavras, a experiência deixa de ser
apenas retrospectiva e passa a ser também prospectiva.
O Pragmatismo, então, se apresenta como uma extensão
do empirismo histórico, mas com essa diferença
fundamental, que ele não insiste sobre fenômenos
antecedentes, mas sobre fenômenos conseqüentes; não
sobre os precedentes, mas sobre as possibilidades de
ação. E essa mudança no ponto de vista é quase
revolucionária em suas conseqüências. Um empirismo
que está contente com repetir fatos passados não tem
lugar para a possibilidade e a liberdade. Não pode
encontrar espaço para concepções gerais ou ideias, ao
menos não mais do que considerá-las como sumários ou
registros. Mas quando assumimos o ponto de vista do
pragmático, vemos que ideias gerais têm um papel muito
mais importante a desempenhar do que o de registrar e
relatar experiências passadas. Elas são as bases para
organizar observações e experiências futuras. (DEWEY,
2008, p.125)
2.2.2 Neopragmatismo
O neopragmatismo desenvolve teses pragmatistas à luz da “virada
lingüística” (linguistic turn). Este processo pode ser caracterizado por uma
maneira peculiar de fazer filosofia que consistiu numa maior concentração nos
aspectos lógico-formais do pensamento, que deveriam ser buscados na
estrutura da linguagem, e não na estrutura da mente ou da experiência. Quanto
68
maior o grau de precisão na linguagem, acreditava-se, mais perfeitamente
poderíamos conhecer o mundo. Essa ideia advém da suspeita de que talvez
não existam problemas filosóficos genuínos, “os alegados problemas filosóficos
não passariam de pseudoproblemas e as alegadas teorias ou proposições
filosóficas seriam pseudoteorias e pseudoproposições” (POPPER, 2008, p.96).
Conseqüentemente, restava à filosofia abandonar a pretensão de elaborar
teorias, caracterizando-se antes como uma atividade que consiste em mostrar
o que há de sem sentido e absurdo nas formulações filosóficas tradicionais.
Essa ideia inspirou uma vigorosa escola contemporânea
de analistas da linguagem que herdaram sua [de
Wittgenstein] crença de que não existem problemas
filosóficos genuínos; de que tudo que o filósofo pode
fazer é desmascarar e dissolver quebra-cabeças
lingüísticos propostos pela filosofia tradicional. (POPPER,
2008, p.98-99)
69
científicas (1962), de Kuhn, a noção de método científico começou a ser
abandonada, ao tempo em que fatores externos à ciência passaram a ser
considerados largamente na determinação de teorias válidas ou não.
Concomitantemente, Paul Feyerabend solapou a ideia de um método científico
e obscureceu a distinção ente ciência e não-ciência. Por outro lado, esse
processo foi reforçado pelo nivelamento da verdade nas ciências e na ética por
Davidson e Putnam, assim como pelo ataque de Quine, em Dois dogmas do
empirismo, a pressuposições fundacionistas40 necessárias para garantir a
noção de método (RORTY, 2000, p.41).
Numa perspectiva rortiana, pragmatistas clássicos e neopragmatistas
têm uma consideração especial por Darwin, na medida em que a linguagem é
naturalizada, entendida antes como uma ferramenta do que como uma maneira
de refletir o mundo ou, para usar uma expressão de Rorty, espelhá-lo. A
pretensão pragmatista de minar a ideia de que somos animais especiais devido
à nossa capacidade de representar através da linguagem o mundo como ele
realmente é não é algo trivial, mas o próprio fio condutor entre pragmatistas
clássicos e neopragmatistas.
É justamente no contexto desses últimos que Richard Rorty se coloca.
Porém, sem deixar de lado as preocupações daquele que foi também seu
herói: John Dewey. Nesse sentido, a crítica à realidade e ao conhecimento
empreendida por ele tem uma finalidade: a construção de um mundo melhor.
40
Entende-se por fundacionismo, grosso modo, a tese de que o conhecimento tem
fundamentos últimos sobre os quais se sustenta. Uma metáfora clássica para explicar o
fundacionismo foi elaborada por Descartes nas “Meditações”: o conhecimento é como um
edifício, assim como este precisa de uma base sólida (fundamento), o conhecimento necessita
de fundamentos específicos e seguros.
70
representações – algumas exatas, outras não – e capaz
de ser estudada por métodos puros, não empíricos. Sem
a noção da mente como espelho, a noção de
conhecimento como exatidão de representação não se
teria sugerido. (RORTY,1994, p. 27)
71
(RORTY, 2002, p. 19) e, consequentemente, representá-la. Por outro lado,
representacionalistas “vêem a física como a área da cultura na qual realidades
não-humanas, enquanto opostas às práticas sociais humanas, desenvolvem
suas atividades do modo mais óbvio possível” (RORTY, 2002, p. 19). Em
seguida, Bernard Williams é citado por Rorty como apresentando a seguinte
tese representacionalista:
nós podemos selecionar entre nossas crenças e os
caracteres distintos de nosso mundo alguma imagem que
possamos racionalmente reivindicar para representar o
mundo de um modo maximamente independente de
nossas perspectivas e de suas peculiaridades.
(WILLIAMS apud RORTY, 2002, p. 21)
41
O abandono da disputa acerca do realismo é um posicionamento comum a Rorty e
Davidson. Este afirma: “O realismo, como eu o entendo, é a perspectiva de que o uso
predicacional da verdade pode ser explicado em termos de uma relação de correspondência.
Esta seria uma afirmação interessante se todo mundo pudesse surgir com um modo inteligível
e iluminado de individualizar as entidades às quais os enunciados e crenças verdadeiros
correspondem, junto com uma semântica aceitável para se falar sobre tais entidades. Mas não
há tal explicação. Até que haja uma, não vejo sentido em alguém se declarar um realista ou, a
esse respeito, um antirrealista” (DAVIDSON, 2002, 147).
42
Na próxima seção, abordaremos especificamente a tese rortiana de uma tentativa de des-
substancialização do mundo.
72
mesmos que são menos úteis, e descrições que são mais úteis” (RORTY,
2000a, p. 27).
De imediato, as perguntas que se erguem diante da proposta de
compreensão do conhecimento em termos de descrições mais úteis e menos
úteis, melhor ou pior para nós, são: Úteis em que sentido? Quais critérios são
estabelecidos acerca do que é o melhor? Quem é esse “nós”? Estes
questionamentos não passaram despercebidos por Rorty. O problema, para
nós e não para Rorty, é que suas respostas são propositadamente imprecisas:
“Úteis para criar um futuro melhor”; “Melhor no sentido de que contém mais
daquilo que consideramos bom e menos do que consideramos ruim”, e bom é
“diversidade e liberdade”, “crescimento” (RORTY, 2000a, p.27-28); “Nós” são
os liberais, os democráticos. Essa vagueza nas respostas faz parte da
estratégia pragmática de não se conformar a nenhum modelo preestabelecido
de conhecimento e nem conformar o futuro ao presente, ao que entendemos
hoje como melhor. “Se existe algo de peculiar ao pragmatismo é que ele
substitui noções como realidade, razão e natureza, pela noção de um futuro
humano melhor” (RORTY, 2000a, p.26).
A conseqüência de utilizarmos descrições mais úteis e descrições
menos úteis é o abandono da ideia de conhecimento como correspondência e
a adoção da nossa relação com o mundo de maneira causal. Seria esse o
posicionamento, segundo Rorty, também de Dewey e de Davidson –
asseverações verdadeiras têm uma relação causal com o mundo:
devemos ver a investigação como uma maneira de usar a
realidade. Assim, a relação entre nossas afirmações
verdadeiras e o resto do mundo é causal ao invés de
representacional: ela causa em nós a manutenção de
nossas crenças, e nós mantemos as crenças que se
provam como guias confiáveis para conseguir o que
queremos (RORTY, 2000a, p. 37).
73
não distorce nossa imagem do mundo, pois a linguagem não representa o
mundo. Tanto os órgãos do sentido, quanto a razão ou a linguagem, aparecem
ao pragmatismo de Rorty como instrumentos a fim de lidar com os objetos. O
“erro” estaria na função demasiadamente restritiva atribuída à linguagem ou à
razão enquanto uma forma capaz de representar o mundo, quando os
pragmatistas “gostariam de eliminar a distinção entre conhecer as coisas e
fazer uso delas” (RORTY, 2000b, p.60). A linguagem, assim como as teorias
científicas, constitui mais um instrumento que o homem desenvolveu no seu
confronto com o entorno – não a representação do seu entorno. Os
pragmatistas fazem eco à asserção baconiana segundo a qual “conhecimento
é poder”. Conhecer algo é ser capaz de utilizar esse algo ou colocá-lo em
relação com alguma outra coisa, mas tal relação não é intrínseca, não diz
respeito à natureza desse algo, é sim uma relação extrínseca e contingente. A
versão pragmatista da asserção de Bacon elimina toda a suposição de que o
mundo tenha uma substância43.
43
O posicionamento de Dewey nesse sentido é emblemático: “mercê das invenções, o lema de
Bacon, de que conhecer é poder, bem como seu sonho de contínuo domínio sobre as forças da
natureza por meio das ciências naturais, fez-se realidade. [...] É desnecessário recordar que
mudanças políticas importantes se seguiram à implantação da nova ciência e as suas
aplicações industriais, e que algumas das diretrizes do progresso social já foram pelo menos
elaboradas. [...] os Estados modernos são tidos, menos como divinos, e mais como obras
humanas, menos como manifestações necessárias de princípios supremos que tudo regem, e
mais como invenções de homens e mulheres em ordem a satisfazerem seus desejos”
(DEWEY, 2011, p.60-61 – grifos meus).
74
Platão (429-347 a.C.) que, na idealização de uma república, recomendou a
expulsão dos poetas, por esses ensinarem mais mentiras do que verdades,
reservando ao filósofo, este que se deixa conduzir pela parte mais elevada da
alma, a razão, o lugar proeminente de um rei, com um acesso privilegiado a um
mundo inteligível, portanto, capaz de conduzir a vida particular e pública 44.
É também com base nesses princípios que se estabelecerá uma
hierarquia sobre formas de vida, tendo a vida contemplativa superioridade
sobre a vida prática. Ao menos, assim compreendem Platão e Aristóteles como
a condição natural do cidadão grego, que deveria se dedicar ao ócio, entendido
não somente como descanso, repouso, mas também como consagração do
lazer ao estudo, aos afazeres do espírito, à administração pública. Respaldado,
por um lado, numa concepção platônica dualista de mundo, em que o inteligível
se sobrepõe ao sensível, por outro lado, a concepção aristotélica, em parte
herdada de seu mestre, do pensamento como a coisa mais perfeita que existe,
tanto que a única atividade divina é pensar, e mais precisamente, pensar no
pensamento, é que a ideia de uma vida hierarquizada irá se consolidar na
tradição ocidental.
Na avaliação de Rorty, o que liga filósofos de tradições tão distintas
quanto William James e Friedrich Nietzsche, Donald Davidson e Jacques
Derrida, Hilary Putnam e Bruno Latour, John Dewey e Michel Foucault é o fato
de todos serem antidualistas (RORTY, 2000b, p.56). Por via de uma tradição
analítica ou continental, eles estariam cumprindo um papel semelhante ao
afastarem-se da herança dualista metafísica da filosofia ocidental oriunda dos
antigos gregos, como aparência e realidade, essência e acidente, substância e
propriedade, e buscando uma visão prioritariamente relacional. Rorty,
transitando entre as duas tradições, se propõe a fazer uma operação que
consiste em reunir os pontos em comum entre analíticos e continentais e fundi-
los a fim de levar a cabo seu projeto antifundacionista e
antirrepresentacionalista do conhecimento. Isso, por sua vez, vai permiti-lo
44
O problema está no esforço platônico de fundir a vida particular e pública: “A tentativa de
fundir o público e o privado está por trás da tentativa platônica de responder à pergunta ‘Por
que é de interesse pessoal ser justo’, bem como na afirmação do cristianismo de que a perfeita
auto-realização pode ser alcançada no servir ao outro” (Rorty, 2007, p.15). Por outro lado, a
busca pela verdade tem também um objetivo ético: a esperança de que a verdade forneça
regras de acordo com a qual nossas vidas possam ser vividas.
75
pensar, ou imaginar – talvez seja o termo mais apropriado – uma “comunidade
utópica igualitária”.
Rorty partirá de dois slogans que ele associa diretamente a dois
filósofos, cada qual de uma das duas tradições citadas anteriormente: Michel
Foucault e Wilfrid Sellars. A este último é creditada a afirmação de que “toda
consciência é um fato lingüístico” 45, enquanto a assertiva de que “tudo é uma
construção social” é lembrada como uma frase típica do mundo europeu, tendo
quase sempre Foucault como partida (RORTY, 2000b, p. 57). Não tratarei aqui
da leitura direta desses filósofos, apenas do uso que Rorty faz deles a fim de
levar a cabo sua tese de um mundo des-substancializado. Rorty sabe que essa
não é uma tarefa simples, mas deixa clara sua esperança na introdução de
Empirismo e Filosofia da Mente, de Sellars, de que um dia “a enfadonha
‘divisão analítico-continental’ seja vista como uma infeliz e temporária crise de
comunicação” (RORTY, 2008, p.22).
Uma vez eliminada a distinção entre conhecer as coisas e fazer uso
delas que os pragmatistas adotam, assim como a suposição de uma natureza
intrínseca das coisas, Rorty considera inevitável nos livrarmos de dualismos
como aparência e realidade. Argumentando que a descrição herdada dos
gregos das coisas enquanto portadora de essências tornara-se inútil, propõe
que encaremos as coisas numa perspectiva relacional, antiessencialista. Para
tal, sugere que pensemos nas coisas como se fossem números. Quaisquer que
seja o número pensado, só o fazemos relacionando-o com outros números, e
não lhe atribuindo uma natureza intrínseca. Esta proposta, adverte-nos Rorty,
nada tem a ver com a concepção de números como esteio do universo ou à
afirmação bíblica de que Deus ordenou as coisas por número, medida e peso.
Vejamos, então, a partir do seu exemplo, reproduzido a seguir, o que ele quer
dizer quando propõe pensarmos nas coisas como se fossem números.
Ao perguntarmos sobre a essência do número 17, o que ele é em si
mesmo, independentemente de sua relação com outros números, busca-se
uma descrição dele diferente das seguintes: 17 é menor que 22; 17 é maior
45
Esta ideia é denominada por Sellars nominalismo psicológico, “de acordo com a qual toda
consciência de tipos, semelhanças, fatos, etc., em suma, toda consciência de entidades
abstratas – na verdade, toda consciência mesmo de particulares – é uma questão lingüística.
De acordo com essa perspectiva, nem mesmo a consciência desses tipos, semelhanças e
fatos pertencentes às assim chamadas experiências imediatas é pressuposta no processo de
aquisição do uso de uma linguagem” (Sellars, 2008, p.68 – grifos do autor).
76
que 8; 17 é a soma de 6 e 11; 17 é a raiz quadrada de 289; 17 elevado ao
quadrado é 4.123.105; 17 é a diferença entre 222 e 205. Podemos fazer dessa
forma descrições infinitas acerca do número 17, mas todas elas continuariam a
ser “acidentais” ou “extrínsecas”, nenhuma dirá o que é o 17 em si mesmo, não
nos fornecerá uma “pista para alcançarmos a intrínseca dezesseteidade do
dezessete – o aspecto singular do 17, o que faz dele o número que é” (RORTY,
2000b, p.65). Os números não são o tipo de coisa que cabe conceituarmos
como tendo uma natureza intrínseca, uma realidade autônoma, uma
substância, eles não se encaixam nessas categorias. A escolha de qual dessas
descrições anteriores do número 17 devemos aplicar em uma dada situação
dependerá de nossos propósitos.
A postura de Rorty enquanto um antiessencialista é razoavelmente
simples: não vale a pena pensar em números atribuindo-lhe essências, assim
como não vale a pena pensar nas demais coisas dessa maneira, seja uma
mesa, elétrons ou valores morais. A comparação é boa porque o fato de pensar
em números sem essências, em sua relação infinita com os demais números,
em nada prejudica o uso que fazemos deles. O sentido explicitado de pensar
as coisas como se fossem números é o de nos convencer de que
não há nada a ser conhecido a respeito desses objetos a
não ser uma teia infinitamente vasta e indefinidamente
expansível de relações que eles mantêm com outros
objetos. Não há sentido em reclamar por termos de
relações que não sejam eles mesmos relações, pois
qualquer coisa que pode servir como termo de uma
relação pode ser dissolvido em outro conjunto de
relações, e assim por diante, indefinidamente. (RORTY,
2000b, pp. 66-67)
77
começa outra, o que nela é essencial e aquilo que é simplesmente acidental ou
periférico. Se o antiessencialista tivesse de usar o jargão filosófico, diria
simplesmente que a constituição ontológica do mundo é relacional e não
substancial. Mas isso soa muito mal quando se tem como projeto evadir-se das
amarras da filosofia tradicional, quando se quer elaborar novas descrições
acerca do conhecimento.
Talvez, o realismo científico tenha que contar com alguma confiança no seu
objeto, na medida em que postula sua existência independente do intelecto,
mas deve ter em conta que opera com uma noção estendida do que se
entende por objeto. Como diz Putnam, “partículas da física moderna não são
78
pequenas bolas de bilhar” (2008, p.21-22). Pode acontecer que uma teoria
empiricamente adequada numa determinada circunstância torne-se
inadequada em outras instâncias, violando inclusive normas de lógica e de
método que, independente de sua veracidade, pode ser que estejamos
bastante familiarizados com elas. A dificuldade não se restringe à noção de
objeto, mas também recai sobre normas e métodos pelos quais tratamos esses
objetos. Blackburn recorre ao exemplo da física quântica:
A física quântica pode ser um exemplo: podemos ter toda
confiança de que ela ofereça resultados corretos, mas
todavia a achamos profundamente insatisfatória, uma vez
que só adquirimos adequação empírica tratando as
partículas de um modo em alguns contextos e de modo
diferente em outros, mas sem uma teoria circundante que
nos possibilite compreender a diferença. (BLACKBURN,
2006, p.288)
79
condições que nos proporcionem a justificação derradeira de nossas crenças.
Tal perspectiva, advinda do fracasso da epistemologia (das ciências) em
encontrar um fundamento último do conhecimento de caráter objetivo,
favoreceu a ideia de que “o mundo não faz verdadeiros os enunciados e,
portanto, não pode desempenhar papel epistêmico algum no processo de
justificação” (KALPOKAS, 2005, p.193). O problema estaria nos postulados
epistemológicos do ceticismo moderno que estabelece
mediações/intermediários entre o homem e o mundo. Desde que eliminada a
ideia de que há intermediários entre nós e o mundo, desfaz-se grande parte
das questões postas pela epistemologia moderna, como, por exemplo, o
problema do dualismo esquema-conteúdo. Rorty, na esteira de Davidson,
defende que a única relação que se pode estabelecer, entre o mundo e as
crenças acerca do mundo, é de causalidade46.
Se o mundo não exerce um papel determinante sobre o conteúdo de
nossas crenças, ou seja, se o mundo não determina sua verdade ou falsidade,
então o que sustenta uma crença não pode ser o mundo. Na medida em que o
mundo possui apenas um papel causal na formação de crenças, ele está fora
do espaço de justificação, não pode servir de algo com que possamos
confrontar as crenças para sustentá-las. O que Rorty parece estar combatendo
é uma noção de experiência com o mundo que seria em si mesma justificatória,
quando, no seu entendimento, o que o mundo faz é provocar causalmente, e
não evidentemente, em nós, através de nossos órgãos sensoriais, crenças.
Para Rorty, isso se dá de forma bruta, a ponto de ele equiparar a evolução
cultural com a evolução biológica.
o mundo configura o espaço das razões, não por
“fornecer fatos”, mas por ir exercendo uma pressão
causal bruta sobre nós. Justamente como a pressão bruta
do meio conduz a sucessivos estágios da evolução
46
A passagem a seguir de Davidson é bastante expressiva quanto a isso: “Nada, contudo,
nenhuma coisa, torna sentenças e teorias verdadeiras: nem experiências, nem experiências,
nem irritações na superfície, nem o mundo podem tornar uma sentença verdadeira. Que a
experiência tome um certo rumo, que a nossa pele seja mais aquecida ou perfurada, que o
universo seja finito, estes fatos, se assim quisermos exprimir-nos, tornam sentenças e teorias
verdadeiras. Mas este argumento é melhor construído sem a menção a fatos. A sentença ‘A
minha está quente’ é verdadeira se e somente se a minha pele está quente. Aqui não há
referência a um fato, a um mundo, a uma experiência ou a uma peça de evidência”
(DAVIDSON, 1984, p.194)
80
biológica, assim há conduzido também a diferentes
estágios da evolução cultural. (RORTY, 1992, p.148)47
47
Decerto, essa é uma comparação que deve ser vista com suspeita, tendo em conta as
mazelas que uma leitura darwinista da sociedade já provocou. Sabe-se que o darwinismo
social já foi usado para justificar conflitos raciais e nacionais como uma necessidade biológica
e um meio para o progresso. Essa afirmação “Sustenta que um processo reflexivo, cultural,
onde existe justificação de crenças que determinam em parte o curso de nossas concepções
de realidade, onde se supõe que há princípios epistêmicos que determinam o que temos de
asseverar, é similar a um processo aleatório, irrefletido e exclusivamente causal como o da
evolução biológica” (KALPOKAS, 2005, p.201).
81
3. ETNOCENTRISMO LIBERAL-DEMOCRÁTICO E SOLIDARIEDADE
82
solidariedade. A balança já teria pendido para a objetividade desde os gregos
antigos, quando estes buscaram de maneira implacável a verdade, sem se
questionarem se ela poderia ser boa ou não para a sua comunidade. A ligação
normativa entre a verdade e o bem faz parte do dogma platônico que se reflete
fortemente na tradição ocidental. A objetividade da verdade, formulada
segundo essa tradição, é não-provinciana, transcendente, independente de
contextos, está além de um olhar restrito de qualquer comunidade e se lança
cada vez mais a um olhar de fora, a-histórico, não submetido a idiossincrasias
locais. Na medida em que se mantêm uma preocupação com a construção de
uma relação especial entre crenças e objetos, que garanta a diferenciação
entre as crenças verdadeiras e as falsas, a lógica do realismo continua a
imperar. Daí a necessidade dessa tradição de
construir uma epistemologia que tenha espaço para um
tipo de justificação que não é meramente social, mas
natural, e que aflora da própria natureza humana; uma
justificação que vem a ser possível através de uma
ligação entre esta parte e o resto da natureza. [...] Para
serem verdadeiramente racionais, os procedimentos de
justificação precisam conduzir à verdade, à
correspondência com a realidade, à natureza intrínseca
das coisas. (RORTY, 2002, p.39)
83
Desde a perspectiva de Rorty, o que há de equivocado nessa retórica é a
insistência em conceber o mundo como possuidor de uma substância, algo
imutável, fixo, que precisa ser desvendado ou alcançado – o Ser, ou a
Verdade. E, por outro lado, o homem como possuidor de uma propriedade
inalienável, a racionalidade. Esta compreendida expressamente como método,
caminho pré-estabelecido, estabelecimento prévio de critérios, capacidade de
predição. Pode ser que poetas e artistas não saibam exatamente onde
chegarão ou qual o resultado de suas obras. Juízes, por sua vez, podem ter
critérios claros para a pronúncia de uma sentença e negociantes
frequentemente têm metas bem definidas, assim como estratégias para
alcançá-las. Nem os poetas, artistas, juízes ou negociantes são vistos como
irracionais, mas também não são tomados como paradigmas de racionalidade.
Este lugar foi ocupado na tradição ocidental pela ciência. Conforme Rorty:
nós parecemos ter um critério claro para o sucesso de
uma teoria científica – literalmente, sua capacidade de
predizer e, por conseguinte, de nos tornar aptos a
controlar alguma porção do mundo. Se ser racional
significa estar apto a estipular critérios antecipadamente,
então é plausível tomar a ciência natural enquanto o
paradigma de racionalidade. (RORTY, 2002, p.57)
84
relativamente democráticas e tolerantes, há alguns
séculos, é atribuída à crescente racionalidade dos tempos
modernos, em que “racionalidade” quer dizer o emprego
de uma faculdade inata orientada para a verdade.
(RORTY, 2005a, p.104-105)
48
Nagel, por exemplo, de forma não ingênua, não irá defender que simplesmente o mundo nos diz o que
ele é, mas que é necessária a conjunção dele com teorias que elaboramos. Mas ao fim, seria o mundo o
tribunal último acerca da veracidade de nossas crenças: “Podemos encarar nossas crenças como
objetivamente verdadeiras não porque o mundo externo nos leve a adotá-las, mas porque somos capazes
de chegar a elas, através de métodos que têm sólidas bases para reivindicar confiabilidade, em virtude de
seu êxito em eleger, entre alternativas em litígio, as hipóteses que sobrevivem às melhores críticas e
questionamentos que somos capazes de levantar contra elas. A confirmação empírica desempenha um
papel vital nesse processo, mas não pode cumpri-lo sem a teoria” (NAGEL, 2001, p.120).
85
etnocêntrico de Rorty, significa os liberais, os democráticos. Sua postura
etnocêntrica não é uma escolha, mas simplesmente uma imposição da própria
condição humana enquanto formada por membros que pertencem a
comunidades distintas. Estes vêem a si mesmos com desavenças passíveis
em sua maioria de serem superadas através do diálogo, sem qualquer
referência a algum tipo de critério superior ao qual se possa recorrer. Nas
palavras de Rorty:
O que não podemos fazer é nos alçar para além de todas
as comunidades humanas, possíveis e atuais. Nós não
podemos encontrar um gancho celeste que nos erga para
fora da mera coerência – da mera concordância”.
(RORTY, 2002, p.59-60)
86
conceito enquanto “finitude humana”. Ou, de maneira mais enfática, de
“fatalismo etnocêntrico”. Por outro lado, quando ele se referia ao seu próprio
posicionamento enquanto herdeiro da tradição política e cultural ocidental,
chamei de “etnocentrismo confesso” ou “etnocentrismo liberal-democrático”.
Já que o etnocentrismo é inevitável, Rorty entende que nem ele nem
ninguém deve se furtar de se posicionar diante de outras culturas, que ser
etnocêntrico “é simplesmente dizer que as crenças sugeridas por outras
culturas precisam ser primeiramente testadas a partir da tentativa de tecê-las
com as crenças que já possuímos” (RORTY, 2002, p.43). Daí o pluralismo e a
tolerância liberal, assim como a virtude socrática do diálogo, aparecerem a ele
como as alternativas mais plausíveis na contemporaneidade. Afinal, mesmo
dentro de seus limites, a cultura liberal se permite uma abertura cada vez mais
ampla para o diálogo com outras culturas de maneira não violenta, a fim de
alcançar o maior grau possível de concordância. Seu desejo é o de “estender a
referência do pronome ‘nós’ tão longe quanto possível” (RORTY, 2002, p.39).
O etnocentrismo confesso rortiano esforça-se por escapar tanto do
relativismo quanto do universalismo. Ele afirma categoricamente não ser um
relativista, e diz que esse rótulo lhe foi atribuído, assim como aos pragmatistas
em geral, por filósofos realistas que projetam suas próprias pretensões e
hábitos de pensamento no pragmático. Realistas pensam que tal postura não
deve ser levada muito a sério, que a recusa de pragmatistas em escolher entre
comunidades distintas só pode ser fruto de certa ironia. Rorty reage
veementemente a essas críticas. Prefere ser antes repreendido por seu
etnocentrismo do que por seu suposto relativismo. Afinal, está claro seu
posicionamento a favor de uma sociedade liberal-democrática.
A Rorty, o etnocentrismo aparece como uma alternativa mais plausível
do que o relativismo, porque não busca a verdade ou a equivalência de
verdades em comunidades distintas. Se assim fosse, ele estaria no âmbito da
epistemologia, justamente o que ele nega, ou o que espera ter superado
através da sua crítica ao representacionalismo. Em verdade, o problema do
relativismo é algo que deve ser evitado, e não respondido (RORTY, 2007,
p.105). Dessa forma, há um abandono expresso da epistemologia rumo à
política e à ética, estas entendidas como destituídas de qualquer caráter
racionalista e universalista. Não há alternativa senão assumir os limites de se
87
estar na sua própria comunidade – não há maneira do “indivíduo elevar-se
acima da linguagem, da cultura, das instituições e das práticas que houver
adotado, e ver todas elas como equiparadas a todas as demais” (RORTY,
2007, p.99). Ao fim, esta última seria a comunidade para a qual precisaríamos
justificar nossas crenças, aquela que compartilha conosco uma mesma rede de
crenças capaz de gerar entendimento. Por outro lado, uma comunidade
estranha seria aquela em que suas crenças não possuem contigüidade com as
nossas, não se justapõem de maneira salutar, impossibilitando que tenhamos
um diálogo bem sucedido. Embora caminhemos todos sobre o mesmo solo, as
crenças acerca do que ele significa podem variar. Rorty deixa claro em nota
que não se trata aí de um problema de intradutibilidade:
Esse não é um problema teórico sobre “intradutibilidade”,
mas simplesmente um problema prático sobre as
limitações do argumento; não é que nós vivamos em
mundos diferentes do mundo dos nazistas ou
amazônicos, mas é que a conversação desde ou sobre
seus pontos de vista, apesar de possível, não será uma
questão de inferência a partir de premissas previamente
acordadas. (RORTY, 2002, p. 53)49
49
Rorty ecoa declaradamente Davidson e o argumento desse contra a ideia de
incomensurabilidade de linguagens e do desdobramento ontológico dele resultante. Habermas
segue um caminho similar: “A multiplicidade e a contingência das gramáticas que geram o
mundo permitem o retorno de dúvidas quanto à objetividade do conhecimento, que num
primeiro momento puderam ser atenuadas pela leitura forte, idealista do transcendental. No
entanto, do pluralismo dos jogos de linguagem não resulta necessariamente uma multiplicidade
de universos lingüísticos incomensuráveis, herméticos uns em relação aos outros”
(HABERMAS, 2004, p.27).
50
Boghossian, por exemplo, considera que Rorty tem uma visão relativista da justificação
epistêmica (2006, p.13). Luper, assim como Boghossian, utiliza Rorty como um exemplo forte
de relativismo epistemológico (2004, p.1).
88
Dessa forma, a verdade dependerá certamente da descrição em que nós
mesmos nos inserimos, enquanto partidários da objetividade ou da
solidariedade. O etnocentrismo confesso de Rorty vê a si mesmo como
partidário da última, portanto, da verdade como pura e simplesmente uma
crença bem justificada socialmente. Rorty defende que sua perspectiva é
bastante similar à de Putnam no que se refere à tentativa frustrada do realismo
de se obter uma objetividade que consiste numa visão desde o ponto de vista
do olho de Deus. Não há tal ponto de vista, diz-nos Rorty, toda tentativa de
assim proceder é imaginar que existe um “gancho celeste”, uma maneira de
escapar do nosso próprio jogo de linguagem que é historicamente
condicionado.
Rorty argumenta que qualquer ambição de ancorar
nossas crenças, de realmente descobrir que merecem os
rótulos estimados de verdade e falsidade, traz a
necessidade de nos posicionarmos fora de nossa própria
pele ou de nos posicionarmos num ponto arquimediano,
livre de toda teoria e pré-concepções, esperando em vão
por uma “visão de lugar nenhum”. (BLACKBURN, 2007,
p.239)
Rorty apela para uma concepção pragmática da verdade na qual a ideia de que
a racionalidade é uma questão de aplicação universal de critérios é dispensada
e substituída pela noção de utilidade para nós – (no qual o “nós” são os
pertencentes da comunidade liberal-democrática da qual ele próprio faz parte).
Sua justificação é naturalmente redundante, uma vez que o vocabulário para
defender sua perspectiva é o vocabulário da própria democracia liberal. A
própria linguagem do etnocentrismo democrático-liberal estabelece o
vocabulário necessário para suas demandas: a busca do diálogo, da tolerância,
da solidariedade, da concordância não-forçada. Sendo assim, para Rorty, a
democracia liberal se apresenta até o momento como a melhor alternativa
política que temos, aquela que permite a maior abertura possível a fim de
aceitar as diferenças. A justificativa para aceitá-la como tal só pode ser
endógena, só pode brotar de dentro do próprio sistema de crenças dessa
comunidade. “Nós deveríamos dizer que precisamos, na prática, privilegiar
89
nosso próprio grupo, ainda que não haja nenhuma razão não-circular para agir
assim” (RORTY, 2002, p.47)51.
Descartando a imagem da mente como espelhando a natureza, Rorty
defende claramente que a produção do conhecimento se dá através do debate
entre sujeitos capazes de apresentarem argumentos a fim de provarem suas
crenças. Dessa maneira, a questão deixa de ser encontrar a forma através da
qual a mente se relaciona com a realidade, que seria um retorno ao dualismo
sujeito/objeto, e volta-se para o processo em que buscamos validar nossas
crenças. A superação pragmática da epistemologia exige que a questão seja
deslocada do mundo para os falantes. Somente estes emitem sentenças,
somente estas podem ser verdadeiras ou falsas. Apenas os membros de nossa
comunidade podem legitimar ou não nossas asserções. A autoridade
epistêmica da primeira pessoa no singular é solapada e substituída pela
autoridade da primeira pessoa do plural: “nós” 52. Com isso, Rorty articula anti-
representacionismo e etnocentrismo (democrático-liberal), pois a partir de
então as questões realmente relevantes dizem respeito aos limites de nossa
comunidade, ao grau de liberdade e abertura de nossos encontros a fim de
provarmos nossas crenças, à nossa capacidade de ouvir, ponderar e aceitar ou
não sugestões estranhas a nós.
Os pragmáticos gostariam de substituir o desejo por
objetividade – o desejo de estar em contato com uma
realidade que é mais do que alguma comunidade com a
qual nós nos identificamos – pelo desejo por
solidariedade com essa comunidade. (RORTY, 2002,
p.60)
51
Na leitura de Rorty, teriam feito isso Dewey, assim como Michael Oakeshott e John Rawls:
“Todos admitiram alegremente que a justificação circular de nossas práticas, uma justificação
que faz parecer bonito um traço de nossa cultura citando um outro, ou comparando de forma
discriminatória a nossa cultura com outras, fazendo referência aos nossos próprios padrões, é
o único de justificação que nós teremos” (RORTY, 2007, p.111).
52
Para Habermas, a “autoridade epistêmica passa do sujeito cognoscente, que extrai de si os
critérios para a objetividade da experiência, para a práxis de justificação de uma comunidade
lingüística” (2004, p.240). Note-se que Habermas, ao falar de uma comunidade lingüística, não
se filia a Rorty no seu etnocentrismo.
90
pretensão humana de um contato com algo não-humano – é a tentativa
frustrada de preencher esse vazio. Ou de se alcançar a perspectiva divina.
Rorty sabe que não pode apelar para o seu etnocentrismo a fim de
resolver todas as questões de ordem política, epistemológica ou ética como se
o mesmo gozasse de critérios superiores capaz de neutralizar a força de
parcialidades locais. Naturalmente, o etnocentrismo não goza e nem deseja ter
critérios étnicos, culturais ou nacionais superiores através dos quais ele possa
se justificar. Ele simplesmente assume a condição estritamente humana de
todo conhecimento, a ausência de uma mão capaz de tocar algo não-humano
sem imediatamente humanizá-lo – “A trilha da serpente humana, pois, está
sobre tudo” (JAMES,1979, p.24), como diria um de seus heróis, Willian James.
Resta-nos então a argumentação.
Decerto, a noção de etnocentrismo traz em si uma série de problemas
com os quais inevitavelmente teremos que lidar sem a pretensão de esgotá-los.
Ninguém ignora as conseqüências trágicas de quando uma cultura, ou
determinado grupo étnico ou nação se considera superior aos demais. A
história da colonização da América e da África não deixa dúvida quanto às
implicações nefastas dessa suposição, ancorada, dentre outros motivos, na
crença de que os colonizadores eram civilizados (e, portanto, mais racionais),
enquanto os demais não. Nesse sentido, possuindo a digna missão de educá-
los. Por outro lado, quando ocorre a exacerbação do princípio da tolerância à
diferença, equivalendo toda a forma de vida, ou não se posicionando
favoravelmente ou contra qualquer forma de vida, provoca-se uma perigosa
cultura de moderação53. Ainda nesse capítulo farei algumas objeções ao
53
Terry Eagleton, um marxista engajado, faz o seguinte comentário no que se refere à tentativa
de tornar a cultura liberal o paradigma da civilização: “Ser civilizado ou culto é ser abençoado
com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras agradáveis e uma mentalidade
aberta. É portar-se razoável e moderadamente, com uma sensibilidade inata para os interesses
dos outros, exercitar a autodisciplina e estar preparado para sacrificar os próprios interesses
egoístas pelo bem do todo. Por mais esplêndidas que algumas dessas prescrições possam ser,
elas não são politicamente inocentes. Ao contrário, o indivíduo culto parece-se
suspeitosamente com um liberal de tendências conservadoras. [...] Esse indivíduo civilizado
certamente não se parece com um revolucionário político, ainda que a revolução também faça
parte da civilização. A palavra ‘razoável’ significa aqui algo como ‘aberto à persuasão’ ou
‘disposto a concessões’, como se toda convicção apaixonada fosse ipso facto irracional. A
cultura está do lado do sentimento em vez do da paixão, o que quer dizer do lado das classes
médias de boas maneiras em vez do das massas iradas. Dada a importância do equilíbrio, é
difícil ver por que alguém não seria solicitado a contrabalançar uma objeção ao racismo com o
seu oposto. Ser inequivocamente contrário ao racismo pareceria ser distintamente não
pluralista. Já que a moderação é sempre uma virtude, um leve desagrado com relação à
91
etnocentrismo liberal democrático defendido por Rorty, mas antes gostaria de
apresentar a redescrição que ele faz da ciência enquanto uma atividade
solidária.
prostituição pareceria mais apropriado do que uma oposição veemente a ela. E já que a ação
pareceria implicar um conjunto de escolhas razoavelmente definitivas, essa versão da cultura
é, inevitavelmente, mais contemplativa do que engagé” (EAGLETON, 2005, p.32-33).
92
Essa resposta é a que os cientistas sociais têm sido
freqüentemente exemplares conspícuos de certas
virtudes morais. Os cientistas são merecidamente
famosos por apoiarem-se antes na persuasão do que na
força, pela (relativa) incorruptibilidade, pela paciência e
caráter razoável. (RORTY, 2002, p.86)
Curiosamente é nesse ponto que a ciência é mais exemplar: não por ser
mais objetiva, lógica, metódica, e sim por ser uma prática humana solidária que
pode inspirar o resto da cultura. O que há de mais interessante na cultura
científica não é o cientificismo ligado a certa noção de racionalidade
considerada fracassada por muitos filósofos na contemporaneidade, mas
precisamente sua prática (ou o ideal de uma prática) de discutir argumentos de
maneira livre e aberta, de se alcançar cada vez mais uma “concordância não-
forçada” dentro e para além de nossa comunidade. Rorty parece querer
mostrar que anti-representacionismo, etnocentrismo e democracia liberal
convergem rumo à ideia de uma ciência solidária.
Mas para que haja essa convergência é preciso fazer uma resdescrição
da ciência através da criação de um novo vocabulário. Esse novo vocabulário
abandonaria distinções como objetivo/subjetivo, verdade/prazer,
fatos/valores54. É importante salientar que não se trata de desbancar as
ciências naturais – elas, diz ele, são e merecem ser paradigmas morais, mas
para tal não precisam representar o mundo tal como ele é. A ideia de que a
ciência merece ser o paradigma moral está ligada à nova descrição que ele se
propõe a fazer dela, em que a solidariedade se sobreponha à objetividade.
Nesse sentido, se tivermos de pensar numa virtude que os cientistas têm, é
justamente a da solidariedade. A análise de Thomas Kuhn de paradigmas
científicos disputando entre si como a de uma disputa antes política que
epistemológica é vista positivamente por Rorty. Creio que a imagem da
competição entre teorias alternativas nos ajuda a ter uma ideia mais clara
sobre a maneira pela qual essa solidariedade se manifesta numa sociedade
pluricultural, ao tempo em que afasta um sentido religioso ou filantrópico que
54
Tal posicionamento tem a ver com a ideia de que nossa linguagem é contingente, e não uma forma de
representação do mundo. Dentro do espírito darwiniano, Rorty concebe a linguagem como uma
ferramenta, necessária apenas enquanto útil. Quando velhos vocabulários se tornam obsoletos, precisamos
mudá-los. “a ideia atraente é que as ferramentas linguísticas têm seu propósito e portanto podem ser
aposentadas quando esse propósito tiver se cumprido, enquanto outros projetos e ferramentas surgem para
suplantá-las. Rorty chama isto de mudança de vocabulários” (BLACKBURN, 2006, p.237).
93
porventura pode lhe ser dada, aproximando-a antes da piedade do que da
disputa. “Nós devemos ter apreço pelo pensamento de que as ciências, assim
como as artes, sempre propiciarão um espetáculo de feroz competição entre
teorias alternativas, movimentos e escolas” (RORTY, 2002, p.60).
Precisamente isso é o que pragmatistas vêem como virtude científica, algo que
eles compartilham com a arte. Um pouco adiante, Rorty afirma:
Eles [os pragmáticos] pensam que os hábitos de
confiança antes da persuasão do que na força, de
respeito pelas opiniões dos colegas, de curiosidade e
zelo por novos dados e ideias são as únicas virtudes que
os cientistas têm. Eles não pensam que há uma virtude
intelectual chamada “racionalidade” além dessas virtudes
morais. (2002, p.60)
94
si mesmos como portadores da racionalidade enquanto objetividade, eles, na
prática, exercem com grande êxito a racionalidade enquanto solidariedade – “a
ciência é um modelo de solidariedade humana” (RORTY, 2002, p.61). Faz
parte da redescrição rortiana da ciência a sugestão de que o
antirrepresentacionalismo conjugado com o etnocentrismo liberal-democrático
engendra um modelo de ciência no qual os membros de sua comunidade
tendem cada vez mais para um horizonte estabelecido intersubjetivamente, no
espaço público do debate, e não na confrontação de nossas representações
subjetivas com a realidade.
Mas é apenas fazendo uma redescrição da ciência e da atividade
científica enquanto solidariedade que Rorty concede-lhe um lugar de primazia
na cultura humana, como uma atividade que pode inspirar as demais. Decerto,
os perigos que acompanham a ciência moderna já haviam sido denunciados no
iluminismo por Jean-Jacques Rousseau quando este respondeu negativamente
no seu Discurso sobre as ciências e as artes à Academia de Dijon sobre “Se o
restabelecimento das ciências e das artes serviu para aperfeiçoar o espírito?”
(ROUSSEAU, 1999, p.5). Apesar do otimismo imperante da época no
progresso da ciência e da técnica rumo ao aperfeiçoamento absoluto da
humanidade sob a égide da razão55.
Mas na primeira metade do século XX o impacto da Primeira Grande
Guerra Mundial coroa a suspeita de Rousseau sobre a virtude da ciência e da
técnica e, ao mesmo tempo, provoca sofisticadas análises da então chamada
racionalidade técnica-científica. Os motivos das críticas são tão variados
quanto o de pensadores que refletiram sobre o assunto. Oswald Spengler
produz uma volumosa obra intitulada “A decadência do Ocidente”, na qual,
como o título sugere, o autor defende que até o século XX a técnica já teria
passado por todos os seus estágios, sendo o último aquele em que a Europa
vivia e ao qual ele denominou de “Ascensão e dissolução da cultura
55
Talvez uma das manifestações mais eloqüentes do otimismo histórico do Iluminismo seja o livro de
Jean-Antônio-Nicolas de Caritat Condorcet, “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito
humano”, no qual concilia razão, progresso e história rumo a um aperfeiçoamento absoluto. A passagem
que segue é uma resposta a Rousseau: “Então ver-se-á que esta passagem tempestuosa e penosa de uma
sociedade grosseira ao estado de civilização dos povos esclarecidos e livres não é uma degeneração da
espécie humana, mas uma crise necessária na marcha gradual em direção ao aperfeiçoamento absoluto.
Ver-se-á que não foi o crescimento das luzes, mas sua decadência, que produziu o vício dos povos
policiados; e que enfim, longe de corromper os homens, as luzes suavizaram os vícios, quando não
puderam corrigi-los ou mudá-los” (CONDORCET, 1993, p.39).
95
mecanicista”. A previsão de Spengler é pessimista, como o título da obra
sugere: nada mais resta para o ocidente senão a decadência.
Também no início do século passado, Ortega y Gasset alega ter feito a
primeira análise do ser da técnica numa coletânea de artigos intitulada
Meditação sobre a técnica (1996). Apesar de não compactuar com o fatalismo
de Spengler quanto ao destino da ciência e da técnica, ele compartilha a ideia
de que paira na Europa uma crise quanto à produção técnico-científica.
Segundo sua análise, tal crise se manifesta na indiferença das massas quanto
à história, aos processos de criação de novas técnicas e a natureza da
atividade científica. O curioso é que esse seria um processo engendrado pela
própria ciência moderna:
acontece que o homem da ciência atual é o protótipo do
homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito
unilateral de cada homem da ciência, mas porque a
própria ciência – raiz da civilização – converte-o
automaticamente em homem-massa. (ORTEGA Y
GASSET, 1987, p.122)
96
serviço que as ciências da natureza cumprem
excelentemente bem em sua esfera? (HUSSERL 1996,
p.59-60)
56
Referindo-se a essa conferência de Husserl, Habemas em Conhecimento e interesse vai
afirmar: “Husserl não trata das crises que existem nas ciências, mas da sua crise enquanto
ciência. Sem vacilações, como quase todos os filósofos antes dele, Husserl toma como medida
da sua crítica uma ideia de conhecimento que preserva a conexão platônica da pura teoria com
a prática vital. Não é o conteúdo informativo das teorias, mas a formação de um hábito reflexivo
e ilustrado nos próprios teóricos o que finalmente produz uma cultura científica. A marcha do
espírito europeu parecia ter como objetivo a gestação de uma cultura científica. No entanto,
essa tendência histórica parece a Husserl ameaçada depois de 1933. Está convencido de que
o perigo não ameaça apenas a partir de fora, mas também de dentro. Atribui a crise ao fato de
as disciplinas mais avançadas, sobretudo a física, se terem afastado do que em verdade se
pode chamar teoria” (HABERMAS, 2009, p.130-131).
97
com as demais uma rede composta por finos traços de cada uma delas. Um
ideal de sociedade característico da racionalidade entendida como tolerância.
O desejo por “objetividade” perde suas partes
desnecessárias e acaba no desejo por adquirir crenças
que, se transformando, irão eventualmente receber
concordância não-forçada no curso de um encontro livre
e aberto com pessoas que detêm outras crenças.
(RORTY, 2002, p.63)
98
Enfim, o que Kalpokas sustenta é que o etnocentrismo de Rorty é
inconsistente, não sendo senão uma variação do relativismo. De fato, não é
claro conciliar a afirmação de que “somos moralmente superiores” devido à
nossa tradição democrático-liberal com a de que outros usuários da linguagem
“que não pertencem [a essa tradição] não são menos coerentes [que nós] em
seu uso da linguagem” (RORTY, 2005a, p.143)57. Em primeiro lugar, parece
haver uma confusão entre a tentativa de reflexão sobre a natureza de nossas
crenças e a ética, ainda como um reflexo da confusão entre as duas noções de
etnocentrismo presente no seu discurso. Depois, a afirmação da superioridade
moral da sua cultura com relação às demais pressupõe uma justificação que
ultrapassa os limites impostos por sua comunidade, o que significa dizer que
seus critérios são melhores. Mas então temos uma negação do etnocentrismo.
Podemos extrair do próprio Rorty uma resposta a esse questionamento
quando o mesmo tenta mostrar que o pragmatismo não implica relativismo de
nenhuma espécie. Ele tenta superar a ideia de que verdade e justificação se
opõem, que a primeira é relativa a algo enquanto a segunda não. Sua crítica ao
absolutismo, alega, não conduz necessariamente ao relativismo. Seria assim
se o nosso motivo de justificar crenças fosse encontrar a verdade ou nos
garantir uma maior proximidade com ela, mas a justificação de nossas crenças
não é impulsionada pela verdade e nem tampouco visa exclusivamente ela. Ele
reitera inúmeras vezes que o tópico verdade deve ser abandonado em prol de
um vocabulário que nos seja mais útil. Mas, se tivermos de usar a palavra
verdade, recomenda, que seja um uso acautelatório. A função da verdade é
cumprida quando nos ajuda na prevenção de situações difíceis, quando ela nos
oferece algo a que se ater num mundo de inseguranças.
Se estou correto em pensar que a única função da
palavra “verdadeiro” (ou de qualquer outro termo
normativo indefinível, como “bom” ou “certo”) é nos
acautelar, prevenir contra o perigo, apontando para
situações imprevisíveis (audiências futuras, dilemas
morais futuros etc.), então não faz muito sentido
perguntar se a justificação conduz ou não à verdade. A
justificação, perante mais e mais audiências, conduz a
perigos sempre menores de refutação, portanto, a menos
e menos necessidade de cautela. [...] Mas alguém só dirá
57
Um pouco adiante, Rorty irá afirmar: “Parece-me que sou tão provinciano e contextualista
quanto os professores nazistas que faziam seus alunos lerem Der Stürmer. A única diferença é
que sirvo a uma causa melhor. Venho de uma província melhor” (2005a, p.155).
99
que a justificação conduz à verdade se puder de alguma
maneira extrapolar – do condicionado ao incondicionado
– de todas as audiências imagináveis a todas as
audiências possíveis. (RORTY, 2005a, p.131)
100
se a possibilidade de se atribuir direitos e responsabilidades ao homem tendo
por base uma natureza humana58.
Admitida a contingência de uma sociedade liberal-democrática, tal como
Rorty a entende, resta-lhe apenas fazer uma defesa apaixonada de sua própria
comunidade. O problema é a possibilidade aberta de que qualquer comunidade
faça também uma defesa apaixonada de si. Rorty diz que numa sociedade
liberal-democrática o diálogo deve prevalecer ante a ação, fora isso, vale-
tudo59. Mas assim a sociedade liberal-democrática estabelece, ainda que de
maneira mínima, as regras do jogo aos quais os outros devem se submeter.
Optar pelo diálogo em vez da violência é um valor restrito, não universal,
inspirado pelo desejo de solidariedade. A questão é se esse desejo pode
inspirar todas as comunidades planetárias como sendo moralmente superior.
Desde que o próprio Rorty não admite a ideia de que há critérios
superiores, ou um “gancho celeste” ao qual possamos nos alçar, não há porque
hierarquizar formas de moralidade. Até onde posso ver, Rorty poderia
permanecer no seu argumento de viés davidsoniano de que o uso coerente de
linguagens por todas as comunidades não implica o estabelecimento de
critérios de “validade universal”, como o quer Habermas na formulação de uma
“ética do discurso”. O que não fica claro é como ele pode afirmar a
“superioridade moral” dessa tradição, a qual ele e Habermas pertencem, e ao
mesmo tempo reconhecer seu caráter provinciano e contingente.
58
Atente-se que Rorty leva às últimas conseqüências políticas o princípio de não determinação
de uma natureza humana. Algo que encontramos também em José Ortega y Gasset e Jean-
Paul Sartre, respectivamente no início e na segunda metade do século XX. O que diferencia os
três neste quesito parece-me ser precisamente as implicações políticas que cada um extrai
dessa des-substancialização do humano. Curiosamente, a pauta de uma suposta natureza
humana jamais saiu em absoluto do horizonte da filosofia, seja por necessidades metafísicas,
seja por uma imposição das ciências, precisamente as biológicas (genética). Recentemente
(2000-2001), Habermas retoma a discussão e publica um texto com o instigante título: “O futuro
da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?”
59
Dentro do mais nobre espírito pragmático, Rorty afirma que “Só teríamos um impasse real e
prático, em vez de artificial e teórico, se alguns temas e alguns jogos de linguagem fossem
tabus – se houvesse uma concordância geral, numa sociedade, em que certas perguntas são
sempre pertinentes, em que certas perguntas têm prioridade sobre as outras, em que há uma
ordem de discussão fixa e em que os movimentos pelos flancos não são permitidos. Esse seria
justamente o tipo de sociedade que os liberais tentam evitar – uma sociedade em que a ‘lógica’
dominaria e a ‘retórica’ seria proibida por lei. É central na ideia de sociedade liberal que, com
respeito às palavras em oposição aos atos, à persuasão em oposição à força, vale-tudo”.
(2007, p.101-102)
101
Agora, cabe-nos perguntar: Rorty foi bem sucedido na sua tentativa de
redescrever a ciência antes em termos de solidariedade do que de
objetividade? Talvez a questão acima tenha sido mal formulada. Tentarei
mostrar por que. Na proposta de redescrição rortiana, o que se tem em vista
não é propriamente oferecer argumentos sólidos, ou fundamentos, em defesa
da sociedade liberal e suas instituições, incluindo aí as científicas. Ele pretende
fomentar um vocabulário em que as noções de objetividade, verdade,
realidade, correspondência etc. simplesmente sejam abandonadas por
considerá-las obsoletas. Aspira “reformular as esperanças da sociedade liberal
de um modo não racionalista e não universalista” (RORTY, 2007, p.90). De que
forma? Poetizando a cultura:
Precisamos de uma redescrição do liberalismo como
esperança de que a cultura como um todo possa ser
“poetizada”, e não como a esperança iluminista de que
ela possa ser “racionalizada” ou “cientizada”. Ou seja,
precisamos substituir a esperança de que todos troquem
a “paixão” ou a fantasia pela “razão” pela esperança de
que as oportunidades de realização das fantasias
idiossincráticas sejam equiparadas. (RORTY, 2007,
p.103-104)
102
por nossos camaradas – incorporada em suas maneiras
de fazer as coisas. (RORTY, 2009, pp.182-183)
60
“- Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de
tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus
poemas, prosternávamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador,
mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade não há homens dessa espécie, nem sequer é lícito que
existam, e mandá-lo-íamos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra
sobre a cabeça e de os termos coroado de grinaldas”. (PLATÃO, 1993, p.125)
61
O verso é de um clássico de Charles Baudelaire, O Albatroz, no qual ele descreve o poeta
como um pássaro capturado pelos homens e chacoteado. A estrofe na íntegra: “O Poeta se
compara ao príncipe da altura / Que enfrentava os vendavais e ri da seta no ar; / Exilado no
chão, em meio à turba escura, / As asas de gigante impedem-no de andar” (BAUDELAIRE,
1985, p.111).
103
104
4. UMA PERSPECTIVA NEOPRAGMÁTICA SOBRE ENSINO DE CIÊNCIAS
E POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS ÉTNICO-RACIAIS NAS
UNIVERSIDADES
105
considerar que esse é um campo politicamente neutro (SILVA, 2009). Ao tratar
das políticas de ações afirmativas étnico-raciais nas universidades,
especificamente no Brasil, estarei sugerindo, a partir da redescrição de Rorty
da ciência como uma atividade antes solidária que objetiva, e da sua
compreensão da educação como edificação, que há a possibilidade de incluir
novos elementos discursivos para esse debate no campo do ensino de
ciências. Justamente o campo que tem apresentado o maior grau de
dificuldade e resistência para a aplicação dessas políticas.
62
Concordo com Rorty quando ele afirma que “não podemos ser educados sem descobrir
bastante sobre as descrições do mundo oferecidas por nossa cultura (por exemplo,
aprendendo os resultados das ciências naturais) (RORTY, 1994, p.359).
63
Embora não se possa dizer, diante de toda critica de Rorty à filosofia, que ele faça filosofia
da ciência no sentido rigoroso do termo. Decerto, esse é um rótulo que ele nega, uma vez que
entende a filosofia da ciência como “o nome que a ‘epistemologia’ adotou quando se escondeu
entre os empiristas lógicos” (RORTY, 1994, p.319).
106
tentativa aqui será de, a partir da narrativa de Rorty de como se dá a produção
do conhecimento científico, estabelecer uma perspectiva neopragmática sobre
o ensino de ciências em um contexto no qual as relações étnico-raciais são
relevantes no processo educacional. Para tal, considerarei o “lugar” reservado
por Rorty para a verdade na educação em geral e sua relação com a liberdade
(4.1). Em seguida, examinarei qual o sentido de racionalidade melhor expressa
o sentido dos discursos acerca da diversidade cultural (4.2). Por fim,
argumentarei que as políticas de ações afirmativas étnico-raciais nas
universidades podem ser descritas em termos de solidariedade e não apenas
como inclusão, e que o ensino das ciências naturais podem integrar essas
práticas educacionais (4.3).
107
A pergunta, então, é: qual o “lugar” da verdade na educação? Ou, caso
se prefira, qual a sua relevância? Não se trata de definir a verdade ou
estabelecer uma teoria da verdade, mas de refletirmos sobre qual postura ter
diante dela no caso bastante específico do ensino de ciências. Retomemos
brevemente as considerações de Rorty sobre a verdade e vejamos que sua
crítica à epistemologia justifica seu posicionamento de extirpar a verdade do
ensino superior.
Podemos esquematizar da seguinte forma o que foi dito até aqui acerca
da verdade no entendimento de Rorty:
a) Ela não designa uma substância, uma essência, algo que está por
traz dos objetos, ou que é uma propriedade desses, e que nós,
através da razão, possamos alcançá-la (RORTY, 2000);
108
normas de justificação (para asserções e para ações) que
encontramos sobre nós” (RORTY, 1994, p.355).
109
ser diluídas. Trata-se antes de lhe atribuir um papel mais modesto, de
justificação de práticas consideradas úteis para nós ou da sugestão de novas
práticas através da criação de vocabulários inéditos, usos originais para se
fazer das palavras, e não de uma fundamentação derradeira de nossas
práticas. Este é o tipo de filosofia que Rorty denominou edificante, cuja meta “é
antes deixar a conversação fluindo que encontrar a verdade objetiva” (RORTY,
1994, p.370). Isso não significa que o filósofo edificante irá partir do zero, que
irá criar do nada, ignorando as contribuições do seu momento histórico – “a
edificação sempre emprega materiais proporcionados pela cultura da época”
(RORTY, 1994, p.359)64. O papel do filósofo edificante é garantir a
continuidade da conversação. Na educação, por exemplo, através da
discussão de novos modelos educacionais, de alternativas concretas para a
formação de professores, da reflexão sobre modos de ingresso no ensino
superior. Questões essas que não são de pouca monta quando se tem na
educação a expectativa de que ela amplie nosso grau de liberdade através da
superação de ideias antiquadas.
64
Na subseção seguinte abordaremos a tensão existente entre velhos e novos valores no
âmbito educacional, ou, para ser mais preciso, a tensão entre socialização e individuação.
110
Quem possibilita a educação democrática é a democracia
e não os fundamentos que porventura a filosofia consiga
para a educação democrática. (GHIRALDELLI JR., 1997,
p.19)
65
Para uma análise do liberalismo rortiano, ver Warnke (2003), Bernstein (2003) e Elshtain
(2003).
112
esses dois aspectos educacionais, temos tanto a preservação de velhos
valores (socialização) quanto a possibilidade de rompimento e criação de
novos (individuação). De modo que cabe sempre ao aprendiz, no processo de
individuação, decidir o que deseja ser, desenvolver sua autocompreensão,
formar uma concepção pessoal acerca de como ele deve/quer viver a sua vida
de acordo com capacidade e critérios próprios. O que não quer dizer,
necessariamente, uma ruptura com a tradição, já que ele pode escolher entre a
criação de novos valores e a preservação de alguns dos velhos, ou, ainda, uma
conciliação entre eles. Já a socialização visa convencer o aprendiz da verdade
da tradição, ou do que é tido como verdadeiro. Atente-se que, neste caso, a
preocupação não é propriamente com a verdade, mas com a preservação de
uma tradição. A socialização visa garantir certa unidade convencendo as novas
gerações das narrativas que ela conta, das vantagens da sua visão de mundo
e de suas práticas de convivência66. No processo de socialização, Rorty
recomenda aos educadores que cumpram seu papel de afirmar a legitimidade
da sociedade na qual os estudantes estão sendo formados e, de uma forma
ainda mais direta, afirma: “Se um professor [de ensino básico] pensa que a
sociedade está fundada em uma mentira, então ele deveria achar uma outra
profissão” (RORTY, 1997a, p.61). Justamente porque, no princípio, a educação
deve orientar no sentido de ensinar para os estudantes os meios necessários
para o convívio social, o que inclui alguns limites e compartilhamento de certas
crenças básicas, e só posteriormente fomentar o questionamento (criticidade)
que o levará ao processo de individuação. Conforme observa Dazzani,
66
A educação básica não é o nosso objeto aqui. Ela aparece somente para enfatizar o papel
específico da educação superior.
113
No processo de individuação, aquele realizado no ensino superior, os
professores estão menos preocupados com a verdade e mais em narrar suas
próprias experiências como uma forma de dizer aos estudantes: “Edificai-vos!”
114
mesmas. Uma vez despertada a luz da razão, abre-se o caminho para a
verdade. Obstáculos, como as paixões, podem se erguer, mas devem ser
superados pela força da razão, o que não seria senão nossa própria natureza
se realizando acima do que é contingente, arbitrário, instintivo. Claramente, no
quadro traçado por Rorty da direita conservadora, a ela está associada a
concepção de homem como racional, onde racional significa algo exclusivo dos
seres humanos, o que o torna hierarquicamente superior aos demais seres e é
a única coisa que pode os tornar livres – “a liberdade consiste em alguém
realizar sua verdadeira individualidade; isto é, na realização da capacidade de
se ser racional. Assim, conclui a direita, só a verdade pode nos fazer livres”
(RORTY, 1997b, p.69).
115
Façamos uma restrição aqui. Não é o caso de fazermos uma mera
transposição da leitura de Rorty do cenário norte-americano para o Brasil.
Interessa-me precisamente a sua tese de que a educação tem um objetivo
antes moral e político do que epistêmico, e de que a diferença realmente são
os meios propostos para se alcançar esses objetivos. Portanto, deixarei de lado
as análises rortianas sobre posicionamentos de esquerda e direita norte-
americanas por estarem demasiadamente sujeitas às suas idiossincrasias
locais67. O problema estaria precisamente por onde começar a busca por esse
ideal moral e político de ampliação da liberdade. Posto isto, Rorty irá afirmar,
ironicamente, que:
67
Cf. Bernstein (2003); Warnke (2003).
116
Ao fim, o dilema educacional em Rorty resguarda um conflito entre socialização
e individuação, entre preservar os valores humanos e coletivos e a liberdade
individual que pode ser ameaçada por esses próprios valores, e vice-versa.
Certamente, um coletivismo intolerante não seria interessante para os
propósitos de individuação, nem tampouco o individualismo exorbitante para os
propósitos de socialização. Como se vê, para os propósitos de uma sociedade
democrática liberal sugerida por Rorty, que estima tanto os direitos coletivos
quanto a liberdade individual, interessa uma educação que concilie
socialização e individuação. Seria essa a condição para o processo de
edificação, no qual o indivíduo alcança um grau cada vez maior de liberdade e
não de verdade. Onde edificação consiste numa
68
Normal e anormal aqui são utilizados por Rorty como uma generalização da distinção de
Kuhn entre ciência normal e ciência revolucionária. Na sua interpretação da terminologia de
Kuhn: “A ciência normal é a prática de resolver problemas em contrapartida ao fundo de um
consenso sobre o que conta como uma boa explicação dos fenômenos e sobre o que seria
necessário para que um problema fosse resolvido. A ciência ‘revolucionária’ é a introdução de
um novo paradigma de explicação e, portanto, de um novo conjunto de problemas” (RORTY,
1994, p.316).
117
4.2 RACIONALIDADE E TOLERÂNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS
118
reformas liberais dos séculos XVIII e XIX, aumentaram-se gradativamente a
capacidade de se relacionar69. Ao lado da eficiência, seguiu-se um maior grau
de tolerância, de conversação com os pares. Isso não quer dizer que, ao
aumento da racionalidade técnica se sucederá necessariamente a ampliação
da tolerância. Mas, ocasionalmente, em alguns momentos da história do
ocidente, ocorreu assim.
Nem Dewey, nem Rorty ignoraram que a racionalidade técnica, esta habilidade
de traçar um plano de ataque ao ambiente, mais do que simplesmente nos
adaptarmos a ele, conduziu não somente ao sufrágio feminino ou a
alfabetização em massa, mas também a duas guerras mundiais e catástrofes
ambientais – para citar apenas algumas poucas consequências. Nesse sentido,
não se espera que à racionalidade técnica se suceda automaticamente um
maior grau de racionalidade enquanto tolerância. Mas a tese de Rorty,
inspirada em Dewey, é de que a emergência da racionalidade técnica provocou
numa determinada comunidade, precisamente aquela onde surgiu a ciência e a
técnica modernas, o aumento gradual da racionalidade enquanto tolerância.
Rorty aponta duas razões históricas para que isso tenha ocorrido: a) o
predomínio da retórica cristã de irmandade humana nas primeiras
comunidades onde foi desenvolvida a tecnologia moderna e b) a emergência
69
Como se sabe, a ampliação da capacidade de se relacionar sem o uso da violência, ou seja, a
tolerância, tem sua expressão política mais marcante no Iluminismo. “O fato é que toda a questão
conflituosa entre religião e política se mostrou aparentemente resolvida a partir do século XVII, grosso
modo, por duas razões. A primeira, graças ao fim das guerras de religião (ao menos do mundo ocidental)
e, a segunda, ao avanço das ideias de república e a devida demarcação de suas competências e espaços
de manifestação, passando a religião para a esfera privada e a política para a pública”. (SANTOS, 2010,
pp.12-13)
119
na tolerância religiosa, que “tornou-se parte da retórica pública dos grandes
poderes imperialistas e colonialistas” (RORTY, 2005b, p.87). Esta última por
ocasião do papel de refugiados da perseguição religiosa na fundação dos
Estados Unidos e o caminho traçado pela Europa de abandonar as Guerras de
Religião. Particularmente a “tolerância religiosa – tolerância a respeito de
questões de ordem crucial – frequentemente abre o caminho para a tolerância
em relação às outras formas de diferença” (RORTY, 2005b, p.87-88).
70
Thomas Jefferson, sob as mantas do Iluminismo, assevera a separação entre Religião e
Estado.
120
objetivo correto” (RORTY, 2005b, 88). Esse é um posicionamento que Rorty
aprova do pragmatismo de Dewey. Dewey toma os objetivos e a retórica da
democracia como certas e então pergunta o que a filosofia pode fazer para
além deles. “Sua resposta foi a de que ela poderia mudar nossa auto-imagem”,
de que
Para tal, faz-se necessário que a razão seja compreendida também como
tolerância, a capacidade de escutar e ser escutado, uma conversação com
nossos pares, e a verdade como o resultado desse conflito, e não o “espelho
da natureza”.
121
solidariedade se sobreponha à objetividade, parece-me ser uma possível
conseqüência do neopragmatismo rortiano.
71
Seria esse um dos motivos da evasão dos estudantes das salas de aulas de ciências.
72
Sobre o problema do contraste entre a visão de mundo religiosa e a científica no ensino de
biologia ver Sepulveda & El-Hani ( 2004).
122
redundância, ensinar ciências. A perspectiva pragmática do conhecimento não
despreza a razão técnica, aquela que permitiu o surgimento da ciência e da
tecnologia moderna, só não entende que essa razão seja tomada como a
manifestação de uma suposta natureza humana capaz de tocar em algo não-
humano. Pragmatistas gostam de enfatizar que a produção do conhecimento
em geral é uma atividade profundamente social, e o conhecimento científico
não é uma exceção à regra. Afirmar isso não significa dizer que é irracional. O
social não se opõe ao racional73. Rorty, na esteira de James, apenas responde
negativamente à pergunta sobre se “há alguma autoridade além da autoridade
da sociedade – uma autoridade como Deus, a Verdade ou a Realidade – que a
sociedade deveria reconhecer?” (RORTY, 2009, p.26).
73
Boghossian (2012, p.11) sugere que o posicionamento de Rorty compromete a ideia de
crença racional.
123
particularmente a comunidade negra, pois estas jamais tiveram efetiva
igualdade de direitos à educação de nível superior no Brasil (SANTOS, 2009)74.
Como observa Gomes75,
74
Uma das ideias que serviu para escamotear o problema das desigualdades étnico-raciais no
Brasil foi a de que aqui, por razões históricas, diferente dos Estados Unidos, se constitui uma
democracia racial. Esta ideia tem sido combatida veementemente por intelectuais e ativistas
negros, considerando-a um mito: “O mito da igualdade racial pode ser compreendida [...] como
uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no
Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre esses dois grupos raciais uma
situação de igualdade de oportunidade e tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a
discriminação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos,
preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo social” (GOMES, 2005, p.57). Um
dos mais influentes teóricos que interpretou e divulgou as ideias acerca da suposta democracia
racial na formação do povo brasileiro foi o sociólogo Gilberto Freyre, no seu clássico Casa-
Grande e Senzala (1930).
75
Joaquim Benedito Barbosa Gomes, acadêmico e ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF), protagonizou calorosos debates em defesa das políticas de ações afirmativas no
supracitado órgão. Em 26.04.12, o STF aprovou por unanimidade a constitucionalidade do
sistema de cotas raciais nas instituições de ensino superior. Joaquim Barbosa é o atual
Presidente do STF.
76
Não me deterei aqui nas razões históricas que buscam justificar as políticas de ações
afirmativas. Sobre uma abordagem dessa natureza, ver o excelente livro do sociólogo Ahyas
Siss, Afro-brasileiros, cotas e ação afirmativa: razões históricas (2003).
77
Muitos pesquisadores consideram que as políticas de ações afirmativas tiveram sua origem
nos Estados unidos da América (MEDEIROS, 2007; GOMES, 2007). Mas outros estudos
apontam que a Índia foi pioneira delas na década de 1940, “como medida assegurada na
Constituição Federal do período, para garantir a reserva de vagas no ensino superior, no
Parlamento e no funcionalismo público, aos membros da casta dos dalits ou ‘intocáveis’”
(PEREIRA & ZIENTARSKI, 2011, p.494).
124
parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e
raciais, as mulheres, dentre outros grupos. (PIOVESAN,
2007, p.40)
78
Na Bahia, a atitude pioneira nesse sentido emergiu da sociedade civil, foi a criação do
Instituto Cultural Steven Biko, fundado em 31 de julho de 1992. Uma análise da difusão dessas
ideias encontra-se em Santos (2007): “A difusão do ideário anti-racista nos pré-vestibulares
para negros e carentes”. No que diz respeito às políticas de ações afirmativas, na minha
percepção, ao se falar em cotas étnicas e raciais se oculta o mais significativo nessas políticas,
que é a inserção numa cultura dominante (a branca) de duas outras culturas subalternizadas (a
negra e a indígena), apesar do termo “etnia” tecnicamente englobar a ideia de cultura.
79
A Lei nº 12.711/2012 estabelece que: “Art. 1º As instituições federais de ensino superior
vinculadas ao Ministério da educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos
cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que
tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.” O Art. 3º, da mesma Lei,
declara que “Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º
desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas,
em proporção no mínimo igual à de pretos, partos e indígenas na população da unidade da
Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE)”.
80
Isto tem levado aqueles que são contra as cotas étnico-raciais nas universidades a defender
que o problema é sócio-econômico e não racial, portanto, as cotas deveriam ser sociais. Tal
concepção advém de uma compreensão fraca do caráter das políticas de ações afirmativas
nas universidades. É um equívoco pensar que o problema racial não é social, posto ser o
conceito de raça determinado socialmente. Em outras palavras, todo problema racial é social,
mas nem todo problema social é racial. Pensar as políticas de ações afirmativas somente como
uma questão social oculta o problema das relações étnico-raciais no Brasil. Daí a restrição em
se pensar as políticas de ações afirmativas nas universidades somente do ponto de vista
social. Acertadamente, Siss (2003, p.192) comenta: “O argumento de que, no Brasil, a maioria
das pessoas, afro-brasileiras ou não, são pobres, por isso, políticas públicas de caráter
universalistas seriam mais eficazes, concorre para negar a existência das desigualdades
raciais entre nós”.
125
suas histórias são marcadas pelo insucesso por conta da má qualidade do
ensino nessas instituições (SANTOS, 2009; SISS, 2003).
Algo que só veio a ocorrer, no que diz respeito ao ensino superior, com a
sanção da Lei Nº 12.711/12. Santos (2009) distingue dois meios de
permanência nas universidades: material e simbólica. A primeira é
caracterizada pelas condições objetivas de existência do estudante na
universidade (comer, vestir, comprar material etc.); a segunda diz respeito às
possibilidades que os estudantes têm de vivenciar a universidade, identificar-se
com o grupo dos demais estudantes, ser reconhecido por esses e, portanto,
pertencer a esse grupo. É importante salientar que esses grupos, muito antes
da implementação dessas políticas, já sinalizavam que apenas o acesso às
126
universidades (e aos conhecimentos aí produzidos e reproduzidos) não seria o
suficiente. Eles reivindicavam também que, além das condições materiais de
permanência na universidade, suas formas próprias de vida, de conhecimento,
história, fossem incluídas nos currículos universitários.
127
cultura a fim de resolver questões de ordem política, epistemológica ou ética
como se ela gozasse de critérios superiores capaz de neutralizar a força de
parcialidades locais. Certamente, a cultura não goza de critérios transculturais
e a-históricos através dos quais possa se justificar. Como faz notar Eagleton, a
cultura
128
cultura não se reservam ao campo teórico, mas têm implicações prático-
axiológicas.
129
delas devem ser extirpadas (RORTY, 2005b, p.82-83) por constituir uma
ameaça às demais. Há, portanto, uma tensão não desprezível quando
pensamos em termos de diversidade cultural ou na diferença cultural em
termos práticos. Esse problema não escapa a Eagleton:
130
é estabelecido por sujeitos com as seguintes características: homem, branco,
macho e adulto. Contestar projetos desse modelo de racionalidade é abrir
espaço para a possibilidade de que outras formas de racionalidade possam se
manifestar. Numa linguagem não propriamente rortiana, seria o caso de
pensarmos na possibilidade de uma pluralidade de epistemologias.
131
Talvez um conceito de racionalidade útil para os discursos em proveito
da diversidade cultural seja aquele que Rorty considera como sinônimo de
tolerância – “a habilidade de não ficar demasiado desconcertado diante do que
é diferente de si, a capacidade de não responder agressivamente a essas
diferenças” (RORTY, 2005b, p.78). Essa racionalidade confia mais na
conversação estabelecida intersubjetivamente do que na violência, no
abandono ou no desprezo. A perspectiva neopragmática de Rorty sugere como
ideal que a racionalidade manifesta através da técnica e da ciência proporcione
cada vez mais aos seres humanos condições de minimizar os sofrimentos
(causados pelo próprio homem) e maximizar a racionalidade enquanto
conversação.
132
propõem, também de acordo com nossa descrição da educação superior,
edificar) se abstenha de assumir compromissos sociais que convergem com
elas, como é o caso das políticas de ações afirmativas étnico-raciais. Pois o
que essas políticas proporcionam é a intensificação do diálogo, o crescimento
de todos e não de apenas uma parcela da sociedade, a habilidade de se
relacionar com as diferenças – o que temos entendido aqui como sinal de
progresso social.
81
Recentemente, Fábio Gandour, cientista chefe da IBM, declarou em entrevista ao jornal
Folha de São Paulo que conseguiu convencer o alto escalão da IBM a abrir uma empresa no
Brasil através do conceito de “ciência como negócio”. Em suas palavras: “A ciência doutrinária
tem credos, liturgia, até dogmas. Descumpra a liturgia de uma universidade, para ver. Você
não sai do lugar (risos). As universidades mais tradicionais praticam esse modelo, que alargou
as fronteiras do conhecimento até hoje, mas não serve para produção de novas soluções.
Vamos desenvolver uma ciência cujos resultados sejam plenamente orientados a causar
impactos positivos nos negócios dos seus financiadores. Essa é a diferença essencial.
Enquanto um professor desenvolve uma pesquisa cujo resultado será uma publicação, nós
desenvolvemos uma cujo resultado será alvo de uma patente.” Logo em seguida, ao ser
questionado sobre se essa já não é uma prática dos laboratórios farmacêuticos, responde: “Há
muito tempo. É também o que fazem algumas universidades americanas. Num equilíbrio muito
bom entre doutrina e negócio. Acredito que um laboratório que pratique ciência como negócio é
autossustentável, um negócio como qualquer outro. Se for bem gerenciado. Ele dá lucro. E
corre um sério risco de ser um departamento altamente lucrativo quando der uma pegada,
dessas na veia. Como a IBM, quando levou o primeiro Nobel de Física cujo objeto de
premiação não era uma teoria, mas um objeto: o microscópio de força atômica” (GANDOUR,
2013).
133
Como temos argumentado aqui, a solução para os problemas advindos
do ensino de ciências em sociedades diversas culturalmente não é
propriamente epistemológica e sim política. Portanto, é nesse âmbito que ela
deve ser discutida. Como vimos, Rorty entende que é a política liberal
democrática a mais adequada, dentre outros motivos, por permitir uma
pluralidade de vozes, o crescimento individual e coletivo, a possibilidade de que
o ainda inédito se manifeste a ponto de renovar nossas perspectivas sobre
quem somos e o que podemos nos tornar.
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
135
universalistas e relativistas. Ou, conforme a terminologia que adotamos com
base em Dummett, o debate sobre o realismo e de posturas de rechaço a ele,
denominadas genericamente de antirrealismo. Esse foi, em linhas gerais, o
percurso do primeiro capítulo desta tese.
Esse percurso teve como propósito preparar o caminho para apresentar
a tentativa de Richard Rorty de superação desse debate através do seu
neopragmatismo (Cap. 2 e 3) e, em seguida, oferecer uma interpretação dele
tendo como foco o problema do ensino de ciências em sociedades
democráticas e na qual os discursos sobre as relações étnico-raciais são
relevantes para a constituição de políticas educacionais (Cap.4).
Como foi apresentado nos capítulos 2 e 3 desta tese, desde a
perspectiva neopragmática de Rorty, o mundo não constitui um elemento ao
qual possamos contrastar nossas crenças acerca dele. Apenas nossos pares
humanos podem dar e pedir razões, é com eles que podemos justificar nossas
crenças. Rorty abandona a epistemologia e, com ela, a pretensão de
objetividade característica das ciências. Em seu lugar propõe a concepção do
conhecimento como solidariedade e da razão como tolerância, ao tempo em
que postula a inevitabilidade do etnocentrismo (fatalismo etnocêntrico). Tal
postura renderá a Rorty o estigma de relativista. Ele, por sua vez, irá replicar
afirmando que seu posicionamento não é relativista precisamente porque
afirma a visão de mundo da sua comunidade, a tradição liberal-democrática
norte americana, como sendo a melhor (etnocentrismo confesso). Rorty
defende que deve ampliar cada vez mais a própria comunidade, por entender
que a mesma oferece subterfúgios vantajosos para aumentarmos o grau de
solidariedade, tolerância e liberdade entre os povos. Uma justificativa
nitidamente circular na medida em que “os termos do elogio usado para
descrever sociedades liberais será traçado a partir do vocabulário das próprias
sociedades liberais” (RORTY, 2002, p.46) Nesse sentido, ele nega o rótulo de
relativista, uma vez que não corrobora com a ideia de que toda visão de mundo
é igualmente válida.
Rorty faz a passagem da epistemologia para a política através de um
ponto nerval da cultura ocidental: as ciências. Na sua proposta de redescrição,
o que mais merece destaque nas ciências não é o seu grau de objetividade
advindo de certa noção de racionalidade, e sim sua capacidade de discutir
136
argumentos de forma livre e aberta, de se esforçar para alcançar um estado de
“concordância não-forçada” que ultrapasse os limites de sua comunidade.
Razão como razoabilidade, anti-representacionismo e etnocentrismo liberal-
democrático compõem a redescrição rortiana da ciência como solidariedade.
A redescrição neopragmática de Rorty das ciências irá criar a abertura
necessária para pensarmos o ensino de ciências em sociedades que detêm
uma grande diversidade étnico-racial e cultural como prioritariamente política e
não epistemológica. Daí as políticas de ações afirmativas étnico-raciais no
ensino superior emergirem no Brasil como uma demanda legítima de uma
sociedade democrática. Reitero que o ensino de ciências é parte integrante da
educação como um todo e está submetido às mesmas orientações políticas
que ela. Nesse sentido, o que uma perspectiva neopragmática sobre o ensino
de ciências pode nos proporcionar é a esperança de que a solidariedade se
sobreponha à objetividade e, com isso, possamos aumentar gradativamente
nosso grau de liberdade e justiça social. Conforme argumentamos, apenas a
ideia de inclusão não é o suficiente para realizarmos esses propósitos. Para
darmos um passo adiante, além da inserção da história e da filosofia da ciência
no ensino de ciências, propomos a redescrição neopragmática das ciências
como a possibilidade de favorecer tanto o seu ensino quanto a sua
democratização. Nesse sentido, o ensino de ciências será mais bem descrito
em termos de solidariedade do que de inclusão.
Talvez Rorty aprovasse com satisfação a crítica de Boghossian (2012)
de que ele se utiliza de critérios antes políticos que epistemológicos. Critérios
como verdade, realidade, objetividade, tão caros à epistemologia, são alvo de
um ferrenho ataque de Rorty, como vimos no decorrer desta tese. Mas ao fazer
isso Rorty não abandona a racionalidade. Apenas busca fazer o que, na sua
leitura da história do ocidente, já ocorreu de maneira contingente: a conjunção
de racionalidade técnica e tolerância desembocando na ampliação da
liberdade, manifesta na democracia liberal. É recorrente em Rorty dizer que
não há nenhuma razão definitiva para que isso ocorra assim, não há um
caminho certo a seguir na nossa busca pela liberdade. O que há são
possibilidades imaginárias, criação do ainda inexistente. Substituir critérios
epistêmicos por critérios políticos aqui significa simplesmente deixarmos de
conceber a ciência à maneira tradicional e passarmos a concebê-la como uma
137
atividade estritamente humana, social, que passa por escolhas coletivas,
situada historicamente, solidária.
A proposta neopragmática de conciliação entre racionalidade técnica e
tolerância para o ensino de ciências não consiste numa síntese de perspectivas
distintas acerca do conhecimento, mas antes numa cooperação entre os
membros de uma comunidade com vistas à constituição de um mundo melhor.
Uma abordagem neopragmática do ensino de ciências não precisa se
preocupar em resguardar um “método”, porque ele está sempre se
reformulando de acordo com as demandas daquela comunidade. Trata-se
antes de uma dinâmica de aprendizagem em que conhecimentos diversos
podem ser todos postos na mesa, utilizados ou descartados. Na universidade,
como na sociedade em geral, não se deve aceitar tudo. Mas talvez possamos
imaginar a universidade como aquele grande corredor de hotel que Papini usou
para descrever o pragmatismo, e que James e Rorty aprovaram. Sejam lá
quais forem nossas crenças dentro de uma instituição universitária, precisamos
interagir compartilhando os mesmos espaços de produção de conhecimento.
Isto é possível se nos tornarmos suficientemente capazes de praticar a razão
como tolerância e a ciência como solidariedade, e assim que a conversação
continue fluindo.
O uso de uma terminologia comum à ética e à política – solidariedade –
para designar a atividade científica certamente não foi uma arbitrariedade. Ao
fazer isso, Rorty já está sugerindo a passagem da epistemologia para a
política. Com efeito, ao se referir pragmatismo, afirma que “Enquanto partidário
da solidariedade, sua avaliação do valor da investigação humana cooperativa
só possui uma base ética, não uma base epistemológica ou metafísica”
(RORTY, 2002, p.41). Ele, propositadamente, através de um novo vocabulário
(novo no sentido de estranho ao ambiente da reflexão científica), borra os
limites entre ciência e política.
Podemos questionar se essa é uma tese para cientistas, filósofos da
ciência ou professores de ciências. Tendo em vista objetivos mais amplos,
redirecionados para a política cultural, é uma tese para todos. Note-se que,
para Rorty, “O termo ‘política cultural’ abrange, entre outras coisas, disputas
sobre o uso correto das palavras” (RORTY, 2009, p.19). Ele defende que “a
política cultural deveria substituir a ontologia e também que a questão de se ela
138
deveria ou não fazê-lo é em si própria uma questão de política cultural”
(RORTY, 2009, p.22). Podemos questionar também se, ao mudar o
vocabulário com que descrevemos a ciência, mudamos a ciência. Se a
resposta for negativa, talvez nos apressássemos em dizer que, então, não há
nenhuma razão para abandonarmos o velho vocabulário. Mas, talvez, ao
mudar o vocabulário, embora a ciência não mude, nós possamos avançar em
aspectos éticos e políticos. No final das contas, Rorty não pretende descrever a
ciência como ela é em si mesma, e sim como ela poderia ser descrita com
vistas a fins estritamente humanos – a “redescrição é uma tarefa da
imaginação” (GHIRALDELLI, 1997, p.26).
Nesses termos, a concepção de ciências, e, por conseguinte, seu
ensino, não é uma questão para a epistemologia (representacionalista, lógica,
racional, universalista), mas uma questão que deve ser re-dirigida para a
política cultural. Justamente por ser esta
a atividade humana menos governada por normas. Ela é
o terreno das revoltas das gerações e, por conseguinte, o
ponto de crescimento da cultura – o lugar onde as
tradições e as normas estão todas disponíveis para
serem imediatamente agarradas por qualquer um...
(RORTY, 2009, p.47).
139
Fazendo um balanço das reflexões de Rorty sobre o conhecimento
científico, a mim bastaria que ele reservasse sua redescrição das ciências
enquanto uma atividade solidária, conciliando racionalidade técnica e
tolerância. O ensino de ciências desde essa perspectiva pode preservar
suficientemente os ditames científicos e ainda cumprir elegantemente o papel
social de ampliação do bem estar coletivo. Daí saltarmos para a democracia
liberal enquanto o melhor modelo de governo a ser seguida é um
comprometimento demasiadamente perigoso. Para citar somente um exemplo,
porém, bastante expressivo, foi em nome da democracia que os EUA invadiram
o Iraque em 2003. Interesses econômicos e militares, quando eram citados,
apareciam como secundários. A fim de promover a democracia era preciso
“livrar o mundo de Saddam Hussein, ditador perigoso e cruel” (Wallerstein,
2007, p.49).
Dizer que a democracia liberal é a forma de organização política
derradeira é ir longe demais. Talvez devêssemos pensar na democracia como
pensamos nas políticas afirmativas, qual seja, como algo de caráter provisório
e não como um fim em si mesmo ou a panacéia de nossos problemas sociais.
Dizer que a democracia é o fim é o mesmo que nos fecharmos para novas
possibilidades, novas organizações sócio-políticas e, quiçá, melhores, que
podem ser propostas e adotadas por outros grupos. Por isso penso que, assim
como as políticas de ações afirmativas, a democracia deve ser vista como algo
de caráter quase provisório e emergencial, que pode possibilitar a ampliação
do nosso grau de liberdade e justiça, mas não como o “centro da vida humana”
(RORTY, 2005a, p.89)82. Se for o caso de investirmos nossas fichas na
esperança, que seja na esperança de formas inéditas de organização social,
mais capazes do que a democracia liberal de proporcionar liberdade e justiça.
No momento, preservar a democracia pode ser a maneira mais eficaz que
temos disponível para que formas inéditas de organização venham a se
manifestar. Não poderia dizer que forma é essa e de que parte do mundo ela
irá ou poderá emergir. Ou se não optaremos por um retorno a alguma outra
82
O período completo desse trecho diz: “Em vez de pensar no centro da vida humana como
sendo a adoração dos deuses, como era antes de Platão, ou como a busca da verdade, como
foi por toda a tradição platônica, você pode pensar no centro da vida humana como sendo a
política democrática e a arte – cada uma apoiando a outra, e impossível sem a outra” (2005a,
p.89).
140
forma de organização que no jogo na globalização foi esquecido, eliminado ou
posto na periferia.
83
Quando digo “nós, brasileiros” é por pura limitação de linguagem, já que não possuímos outro vocábulo
que se adéque à supressão ou à invisibilidade dessas diferenças dentro da nossa substantivação
“brasileiros”. Nossa linguagem, até então, não oferece um vocábulo que aponte para esse “nós”
fragmentário. Mas não podemos deixar de apontar que, se o vocábulo “brasileiro” por um lado serviu para
pensarmos numa identidade nacional, por outro, ocultou as diferenças étnico-raciais em nome da
preservação do status quo de uma sociedade dividida racialmente. A fim de marcar essas diferenças é
que se empunhou o vocábulo afro-brasileiro.
141
levaram Demócrito a sério e se perguntaram se o mundo
não era na verdade apenas átomos e vazio, quando os
protodarwinistas sugeriram que a diferença entre nós e
os animais era meramente a complexidade do
comportamento, e quando Freud sugeriu a conexão entre
consciência e sexo, eles diziam coisas que estavam
muito próximas do absurdo, que quase não seriam nem
mesmo candidatas à verdade. Mas essas alegações
quase absurdas tornaram-se o senso comum dos tempos
que vieram. (RORTY, 2005c, p.97)
Não há como saber que utopia irá vingar, quais serão os novos
vocabulários que as gerações futuras irão adotar. Se esta geração será capaz
de convencer seus pares atuais e futuros do seu vocabulário. A perspectiva
neopragmática do ensino de ciências que estou propondo aqui busca oferecer
as vantagens da sua semântica para a constituição de políticas educacionais
num contexto em que temos uma pluralidade de vozes destoantes. Ela não
pretende ser a solução derradeira para os problemas que acompanham o
ensino de ciências nas universidades. Nem tampouco um projeto universalista
e salvacionista de nossas mazelas e contradições educacionais. É tão somente
a sugestão de que novas ferramentas talvez possam ser utilizadas a fim de que
façamos da educação uma atividade criativa na qual o crescimento de todos
seja o nosso objetivo.
142
REFERÊNCIAS
CLOUGH, Michael P.; OLSON, Joanne K. Teaching and assessing the nature
of science: An Introduction. In: Sci & Educ, 2008. pp. 143-145.
143
COBERN, Willian W. The Nature of Science and the Role of Knowledge and
Belief. In: Science and Education 9, 2000. pp. 219-246.
_______. Apples and Oranges: a rejoinder to Smith and Siegel. In: Science and
Education 13, 2004. pp.583-589.
_______, D. On the Very Idea of a Conceptual Scheme. In: Inqueries into Truth
and Interpretation. Oxford; Clarendon Press, 1984. pp.183-198.
ENGEL, Pascal & RORTY, Richard. Para que serve a verdade? Trad. Antônio
Carlos Olivieri. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
144
FAERNA, Ángel Manuel. Introdución a la teoria pragmatista del conocimiento.
Madrid: Siglo XXI de España Editores, 1996.
GANDOUR, Fábio. País precisa fazer ciência como negócio. In: Folha de São
Paulo, 09/06/2013. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/06/1292089-pais-precisa-fazer-
ciencia-como-negocio-diz-cientista-chefe-da-ibm.shtml Acesso em 17.06.13.
GETTIER, Edmund. Is Justified True Belief Knowledge? In: Analysis, 23, 1963.
pp.121-123.
GHIRALDELLI JR., Paulo. Para ler Richard Rorty e sua Filosofia da Educação.
In: Revista filosofia, sociedade e educação, n. 1. Marília-SP, 1997. pp.9-30.
145
GRECA, Ileana María; FREIRE JR., Olival Freire. A “crítica forte” da ciência e
implicações para educação em ciências. In: Ciência & Educação, v. 10, n. 3,
2004. pp.343-361.
HARMAN, Gilbert. The Philosophical Review, Vol. 74, No. 1, Jan., 1965. pp. 88-
95.
JAMES, William. Pragmatismo e outros textos. Trad. Jorge Caetano da Silva &
Pablo Rubén Mariconda, São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Col. Os Pensadores)
146
LAUDAN, Larry. Teorias do método científico de Platão a Mach – resenha
bibliográfica. Trad. Balthazar Barbosa Filho. In; Cad. Hist. Fil. Ci., Série 3, v. 10,
n. 2, Campinas, , jul.-dez. 2000. pp. 9-140.
MCCOMAS, Willian F., ALMAZROA, Hiya & CLOUGH, Michael P. The nature
of science in science education: an introduction. In: Science & Education, 1998.
pp.511-532.
NAGEL, Thomas. A última palavra. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo:
Editora UNESP, 2001.
147
NIZNIK, Jósef & SANDERS, John T. (Eds.). Debate sobre la situación de la
filosofía. Trad. Marco Aurelio Galmarini. Madrid: Ed. Cátedra, 2000. (Col.
Teorema)
______, José. Rebelião das massas. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo:
Martins Fontes, 1987.
PASCAL, Engel & RORTY, Richard. Para que serve a verdade? Trad.Antônio
Carlos Olivieri. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
PUTNAM, Hilary. Corda Tripla: mente, corpo e mundo. Trad. Adail Sobral. São
Paulo: Idéias & Letras, 2008a. (Coleção Filosofia e História da Ciência)
148
REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Trad. Vilmar Schneider.
2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
______, Richard. Educação Sem Dogma. Trad. José Lívio Dantas. In:
GHIRALDELLI JR., Paulo; PRESTES, Nadja Hermann. Filosofia, sociedade e
educação, n. 1, Marília-SP, 1997b. pp.69-80.
149
______, Richard. A Filosofia e o Futuro. In: MAGRO, Cristina; PEREIRA,
Antônio Marcos (Orgs.). Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000d. pp.125-142.
______, Richard. Pragmatismo e política. Trad. Paulo Ghiraldelli Jr. São Paulo:
Martins, 2005b. (Col. Dialética)
______, Richard. Filosofia como política cultural. Trad. João Carlos Pijnappel.
São Paulo: Martins Fontes, 2009. (Col. Dialética)
150
SANTOS, Antônio Carlos dos. O outro como problema: o surgimento da
tolerância na modernidade. São Paulo: Alameda, 2010.
151
Filosofia das Ciências – subsídios para a aplicação no ensino. São Paulo:
Livraria da Física Editora, 2006.
WAAL, Cornelis de. Sobre Pragmatismo. Trad. Cassiano Terra Rodrigues. São
Paulo: Edições Loyola, 2007.
ZIMAN, John. Getting scientists to think about what they are doing. In: Science
and Engineering Ethics, Vol. 7, Issue 2, 2001. pp.165-176.
152