DERRIDA, Jacques
DERRIDA, Jacques
DERRIDA, Jacques
INSTITUIÇÃO CHAMADA
Jacques Derrida (1930-2004) foi um dos pensadores mais
LITERATURA
Uma entrevista com Jacques Derrida
influentes e controversos da segunda metade do século XX,
sua obra assinala um corte decisivo nos saberes científicos,
artísticos e filosóficos, com implicações não menos signi
ficativas no campo dos estudos literários. Publicou, entre
outros, Torres de babel (Editora UFMG, 2002) eA escritura e a
diferença (2014,4. ed.).
© 1992, Em Acts of literature, de Jacques Derrida (autor) e Derek Attridge
(organizador). Reproduzido com a permissão da Taylor and Francis Group,
LLC, uma divisão da Informa plc.
© 2014, Editora UFMG
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Introdução
A LITERATURA À DEMANDA DO OUTRO
Questões de princípio
Lembro-me de quando, na qualidade de aluno inscrito nos
seminários de Jacques Derrida, no início dos anos de 1990,
certo dia ele me trouxe o livro recém-publicado na Inglaterra
e nos Estados Unidos, Acts of Literature, organizado pelo
especialista britânico de origem sul-africanaDerek Attridge,
contendo uma entrevista que estaria na origem de minha
tese de doutorado, depois convertida no livro Derrida e a
literatura.1As discussões com meu então diretor de estudos
na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), o
professor Derrida, giravam em tomo do sentido e da essência
da literatura, em particular a partir das reflexões de Maurice
Blanchot em O livro por vir e em O espaço literário. Em mi
nha mente de recém-chegado ao território francês, le sens e
7
Vessence da literatura, a despeito de umapequena diferença de Foi, portanto, com alegria que recebi o convite de
pronúncia, quase se confundiam. Não é que não percebesse Roberto Said para revisar e apresentar a tradução desse
a distinção, mas intuitivamente compreendia que pensar texto dotado de grande singeleza, mas também de não
o sentido da literatura (se ela tem um) era também pensar menor complexidade. Nessa entrevista realizada em 1989 e
sua essência (se tem uma). Mal sabia que o presente então publicada pela primeira vez três anos depois, encontram-se
recebido como uma dádiva não apenas continha uma série algumas das ferramentas mais potentes disponibilizadas
de respostas a minhas aflitivas questões (“A literatura tem por Derrida para pensar as intrincadas e muitas vezes con
um sentido ou uma essência?”, “Quais?”, “Se não tem, como flituosas, perquiridoras, prazerosas, jamais de todo neutras
opera o texto literário?”, “Qual a relação com a questão da relações entre discurso literário e discurso filosófico. Chamo
mtmesis?”, “E a filosofia, em que se aproxima e se distancia a atenção, desde já, como é dito num resumo inicial do texto
do texto literário?” etc.), mas, sobretudo, suscitaria outras traduzido adiante,, para o fato de que, por mais de 15 anos,
dúvidas, as quais, por sua vez, só seriam resolvidas, mesmo a versão francesa não estava disponível. Somente em 2009
assim parcialmente, com a escrita da referida tese sobre a foi que Thomas Dutoit, pesquisador americano radicado
“questão da literatura” nos textos da desconstrução. em Paris, a coeditou, num volume que contém ensaios e
Além de ser uma coletânea com diversos ensaios de depoimentos sintomaticamente voltados para as relações
Derrida em que a literatura aparece, direta ou indireta de Derrida com os Estados Unidos.2A tradução a seguir já
mente, como tema, o volume Acts of Literature continha tinha sido realizada por Marileide Dias Esqueda, a partir
uma preciosa entrevista que modificaria os rumos de meu do inglês, quando recebi o convite para revisá-la. Assim,
projeto de pesquisa. “This Strange Institution Called Lite propus-me a fazer a revisão igualmente em cotejo com o
rature” era o título do diálogo com Derek Attridge, que me texto em francês.
levou a apresentar um trabalho nos seminários de Derrida,
no auditório do bulevar Raspail, bem como a escrever uma
J. Derrida, Cette étrange institution qu’on appelle la littérature: entrevista a
carta ao CNPq, notificando que, doravante, o tópico ainda Derek Attridge, em Derrida d’ici, Derrida de là, org. Thomas Dutoit e Philippe
bastante enigmático “Derrida e a literatura” se tornaria o Romanski, Paris, Galilée, 2009, p. 253-292. A primeira versão dessa entrevista
foi publicada em inglês com o título de “This Strange Institution Called Lite
único objeto de minhas investigações. rature”, em Jacques Derrida: Acts of Literature, ed. Derek Attridge, New York/
London, Roudedge, 1992, p. 33-75.
9 Idem, Some States and Truisms About Neologisms, Newisms, Postisms, Pari
sitisms, and Other Seisms, em Derrida d’ici, Derrida de là, p. 223-252, 10 Cf. entrevista mais adiante, p. 46-48.
por restrições institucionais, com as quais os inventores e justiça como desconstrução, mas sem oposição simplista.
os leitores se defrontam todo o tempo. Os temas da impossibilidade e o da incondicionalidade, sob
O questionamento fundamental das instituições por o signo das quais se inscreve a literatura, poderiam sugerir
parte da estranha instituição chamada literatura só se tor uma utopia desconstrutora, mas isso não acontece porque
na de fato compreensível se se levar em conta a distinção a incondicionalidade só passa a existir, com efeito, dentro
entre direito e lei, de um lado, e justiça, de outro, tal como de determinadas circunstâncias. O absoluto incondicional
elaborado por Força de lei. Trata-se de uma proposição de da justiça significa uma promessa de aperfeiçoamento sem
Pascal, em que se concebe a justiça como algo que depende fim do direito, das leis e da legalidade em geral, inclusive
das leis para poder acontecer, mas que deve necessariamente dos direitos humanos. Sem essa efetividade, a justiça in
excedê-las: condicional se reduziria a mera abstração. A especificidade
do direito garante a força geral da justiça, que nenhuma
“Talvez”, é preciso sempre dizer talvez para a justiça. Há um democracia particular conseguirá, por si só, pôr em práti
porvir para a justiça e só há justiça na medida em que o aconteci ca, restando uma tarefa comum a todas as democracias do
mento é possível, excedendo, enquanto acontecimento, o cálculo, planeta, a de se manifestarem como fiadoras do justo abso
as regras, os programas, as antecipações etc. Como experiência luto. Sem esse empenho em nome de uma democracia por
da alteridade absoluta, a justiça é inapresentável, mas essa é a vir, vindoura, “vindo” (o sintagma à-venir tem todas essas
chance do acontecimento e a condição da história. Uma história conotações), nada de democracia real, nada de política am
decerto irreconhecível, é claro, para os que creem saber de que plamente democrática. A potência da literatura,19enquanto
falam quando usam essa palavra, quer se trate de história social, instituição ligada às modernas democracias, com o poder
ideológica, política, jurídica etc.18 praticamente infinito de dizer tudo, consiste em encenar
esse desejo de justiça, ah mesmo onde até o mais simples
Com isso, Derrida pode formular igualmente a diferen
w Cf. A. FinWelkraut, Ce que peut la littérature, Paris, Stock, 2006. Trata-se de
ça entre construção normativa e desconstrução justa ou uma série de diálogos com especialistas, que procuram dar conta do poder da
literatura na sociedade atual. A partir do programa Répliques, da rádio France
Culture, Alain Finkielkraut tenta relançar o debate em tomo do literário, indo
18 J. Derrida, Force de loi: le “Fondement mystique de l’autorité”, Paris, Galilée, além da obrigação do engajamento político de Sartre. Participam da coletâ
1994, p. 61. nea, entre outros, Jacques Roubaud, Philippe Sollers e Antoine Compagnon.
20 C£ J-P. Sartre, Qu'est-ce que la littérature?, Paris, Folio Essais, 1996. 21 Cf. entrevista mais adiante, p. 84-85.
22 J. Derrida, Voyous: deux essais sur la raison, Paris, Galilée, 2003. 23 A. Cícero, Porventura, Rio de Janeiro, Record, 2012.
35 Cf. S. Naifeh e G. W. Smith, Van Gogh: The Life, New York, Random House,
2011 . 36 Cf. entrevista mais adiante, p. 117.
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qu’on appelle la littérature”, publicada no livro Derrida d’ici, preferencialmente como filosóficos. O senhor poderia expli
Derrida de là, organizado por Thomas Dutoit e Philippe car melhor a afirmação acerca de seu interesseprimeiro [your
Romanski. primary interest] pela literatura e dizer como se relaciona
Por ser um diálogo, desde a origem, enunciado em com seus trabalhos aprofundados sobre textos filosóficos?
mais de uma língua (plus d’une langue: categoria derri-
diana de inspiração babélica), sempre que necessário são - O que seria um primary interest7.
Ja c q u e s D e r r id a
aqui referidos, entre colchetes, os termos utilizados pelos Nunca ousaria dizer que meu interesse primeiro voltou-se
interlocutores num ou noutro idioma. Isso é tanto mais para a literatura, em vez de para a filosofia. A anamnese
relevante porque, como se poderá verificar, Derrida retoma seria arriscada, porque gostaria de escapar de meus próprios
literalmente, em inglês, às vezes com sutil ironia, alguns dos estereótipos. Para isso, seria preciso determinar o que era
termos da fala de Attridge. chamado de “literatura” e de “filosofia” durante minha
adolescência, num tempo em que, na França pelo menos,
- O senhor declarou para sua banca
D e re k A ttr id g e as duas se entrecruzavam por meio das obras então domi
de tese, em 1980, o seguinte: “Meu interesse mais constante, nantes. O existencialismo, Sartre, Camus estavam presentes
eu diria que antes mesmo de meu interesse filosófico, se em toda parte e a memória do surrealismo ainda estava viva.
isso é possível, voltava-se para a literatura, para a escritu E, se essas escrituras praticaram um tipo bastante novo de
ra dita literária”.1 E o senhor publicou vários textos que relação entre filosofia e literatura, foram, no entanto, pre
apresentam leituras de textos literários, sobre os quais logo paradas para isso por uma tradição nacional e por certos
falaremos. Contudo, uma grande parte de suas obras tem modelos, que recebiam uma legitimidade sólida por parte
se preocupado com escritos que poderiam ser qualificados do ensino nas escolas. Além disso, os exemplos que acabei
de dar parecem muito diferentes entre si.
] A écriture corresponde, em seu sentido mais corrente, à “escrita”. Sobretudo Decerto, eu hesitava entre filosofia e literatura, sem
em Derrida, Barthes e Blanchot, o termo se revestiu de uma força de pensa
mento que, durante muito tempo, o levou ser traduzido para o português, nos renunciar a nenhuma das duas, buscando talvez, obscura
textos desses autores, quase exclusivamente como “escritura”. Todavia, ambos mente, um lugar a partir do qual a história dessa fronteira
os valores devem ser preservados na passagem para nosso idioma, motivo
pelo qual, a depender do contexto, utiliza-se aqui alternadamente uma ou ou pudesse ser pensada ou até mesmo deslocada: na própria
tra tradução. (N. do R. T.)
60 Jacques Derrida
ESSA ESTRANHA INSTITUIÇÃO CHAMADA LITERATURA 61
de um acontecimento absolutamente singular, de uma D. A. - Na Gramatologia, o senhor observa que “com
assinatura absolutamente singular, e, portanto, também de exceção de uma ponta ou de um ponto de resistência, que
uma data, de uma língua, de uma inscrição autobiográfica. foi apenas reconhecido como tal muito tarde, a escritura
Num traço autobiográfico mínimo, pode estar reunida a literária quase sempre e em quase em todo lugar, de acor
maior potencialidade da cultura histórica, teórica, linguís do com modos e em épocas muito diferentes, prestou-se a
tica e filosófica - eis o que realmente me-interessa. Não sou essa leitura transcendente, a essa busca pelo significado que
o único a me interessar por essa potência econômica. Tento estamos colocando em questão”.6Essa expressão “prestou-
entender suas leis, mas também indicar porque nunca se -se a” [s’est prêtée d’elle-même à; lent itself] sugere que,
pode encerrar ou completar a formalização de tais leis. Isso embora essa massa de textos literários possa convidar a
ocorre precisamente porque o traço, a data ou a assinatura tal leitura transcendente, isso não é obrigatório. O senhor
- em suma, a singularidade insubstituível e intraduzível do vê possibilidades para a releitura do que seja denominado
único - é iterável como tal, fazendo e não fazendo parte como literatura por caminhos que contrariariam ou sub
do conjunto marcado. Enfatizar esse paradoxo não é um verteriam essa tradição dominante? Ou isso somente seria
gesto anticientífico, ao contrário. Resistir a esse paradoxo, possível para alguns textos literários, como é sugerido por
em nome de uma pretensa razão ou de uma lógica do sen sua referência, em Posições,7a “certa prática literária3”, que
so comum é a própria figura de um suposto iluminismo foi capaz, antes do modernismo, de operar contra o modelo
[enlightenment] como forma do obscurantismo moderno. dominante de literatura?
Tudo isso deve nos levar, entre outras coisas, a pensar
sobre o “contexto” em geral de forma diferente. A “econo J. D. - O senhor disse “prestou-se a” [lent itself]. Será
mia” da literatura me parece, às vezes, mais poderosa do que todo texto, todo discurso, qualquer que seja o tipo
que a dos outros tipos de discurso, por exemplo, o discurso
histórico ou filosófico. Às vezes: depende das singulari
6 J. Derrida, Gramatologia, trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribei
dades e dos contextos. A literatura seria potencialmente ro, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 196. Citação modificada a partir da tradu
ção proposta por Bennington e Bowlby, em cotejo com o trecho original em
mais potente.
francês (De la Grammatologie, Paris, Minuit, 1967, p. 229). (N. daT. e do R. T.)
7 Idem, Posições, trad. Tomaz Tadeu da Silva, Belo Horizonte, Autêntica, 2001.
(N. daT.)
66 Jacques Derrida
ESSA ESTRANHA INSTITUIÇÃO CHAMADA LITERATURA 67
intencional que institui e, portanto, constitui o texto. Con simplesmente destruiria o rastro do texto. Diria, em vez
venção e intencionalidade podem mudar, sempre induzindo disso, que um texto é poético-literário quando, por meio de
certa instabilidade histórica. Mas, se é possível reler tudo um tipo de negociação original, sem anular o sentido ou a
como literatura, alguns acontecimentos textuais se prestam referência, faz algo com essa resistência, algo que, precisa
a isso melhor do que outros, suas potencialidades são mais mente, teríamos muita dificuldade para definir, pelas razões
ricas e mais densas. Daí o ponto de vista econômico. Essa ri que mencionava anteriormente. Pois tal definição supõe
queza em si não dá origem a uma avaliação absoluta - abso não apenas que levássemos em consideração modificações
lutamente estabilizada, objetiva e natural. Daí a dificuldade convencionais e intencionais múltiplas, sutis e estratifica
de teorizar essa economia. Embora alguns textos pareçam das, mas também, num certo ponto, o questionamento dos
ter um maior potencial para formalização, configurando valores de intenção e de convenção que, com a textualidade
obras literárias e obras que dizem muito sobre a literatura do texto em geral e a literatura em particular, são testados
e, portanto, sobre si mesmas, obras cuja performatividade, em seus limites. Se todo texto literário joga e negocia a
de algum modo, parece a maior possível no menor espaço suspensão da ingenuidade referencial, da referencialidade
possível, isso pode somente dar origem a avaliações inscritas tética (não da referência ou da relação intencional em ge
num contexto, a leituras localizadas, que são, elas próprias, ral), cada texto o faz de modo diferente e singular. Se não
formalizantes e performativas. A potência não está escon há essência da literatura, ou seja, identidade a si da coisa
dida no texto como uma propriedade intrínseca. literária, se o que se anuncia ou se promete como literatura
nunca se apresenta como tal, isso quer dizer, entre outras
D. A. - Para certos teóricos e críticos literários que se coisas, que uma literatura que falasse apenas da literatura
associam à desconstrução, um texto é “literário” ou “poé ou uma obra que fosse puramente autorreferencial se anu
tico” quando resiste a uma leitura transcendental do tipo laria de imediato. O senhor dirá que talvez seja isso que está
que acabamos de discutir... acontecendo. Nesse caso, é essa experiência de aniquilação
do nada, com o nome de literatura, que interessa a nosso
J. D. - Acredito que nenhum texto resiste a isso de desejo. Experiência do Ser, nada mais, nada menos, à beira
forma alguma. A resistência absoluta a tal leitura pura e do metafísico [au bord du métaphysique], a literatura talvez
72 Jacques Derrida
ESSA ESTRANHA INSTITUIÇÃO CHAMADA LITERATURA 73
não estava errado em sugerir que, no fundo, toda retórica de escrever”. Uma obra sobrecarregada de teses “metafísi
literária em geral é por si mesma desconstrutiva, pelo fato cas” óbvias e canônicas pode, na operação de sua escrita, ter
de praticar o que se poderia chamar de um tipo de ironia efeitos “desconstrutivos” mais poderosos do que um texto
ou de afastamento com relação à crença ou à tese metafísi que se autoproclama radicalmente revolucionário sem afetar
ca, mesmo quando aparentemente a coloca em evidência. em nada as normas ou os modos da escrita tradicional. Por
Possivelmente, isso deveria ser tomado mais complexo; exemplo, algumas obras que são altamente “falocêntricas”
“ironia” talvez não seja a melhor categoria para designar essa em sua semântica, em seu significado intencional, em suas
“suspensão”, essa epoché, mas há decerto algo irredutível na próprias teses, podem produzir efeitos paradoxais, parado
experiência poética ou literária. Sem ser a-histórico, longe xalmente antifalocêntricos, pela audácia de uma escritura,
disso, esse traço, ou antes esse re-traço [retrait, retirada], que, de fato, perturba a ordem ou a lógica do falocentrismo,
excederia muito as periodizações da história da literatura tocando nos limites onde as coisas são revertidas: nesse caso,
ou a da poesia e das belas-letras, de Homero a Joyce, aquém a fragilidade, a precariedade, a própria ruína da ordem se
e mais além. toma mais aparente. Estou pensando, aqui, tanto no exemplo
Dentro desse imenso espaço, muitas distinções perma de Joyce como no de Ponge. O mesmo ocorre de um ponto de
necem necessárias. Alguns textos ditos “literários” “ques vista político. A experiência, a paixão da língua e da escritura
tionam” (não digamos “criticam” ou “desconstroem”) a (aqui estou falando igualmente de corpo, de desejo, de prova
filosofia de forma mais severa, mais temática ou mais bem ção), pode atravessar discursos tematicamente “reacionários”
informada do que outros. Às vezes, esse questionamento pas ou “conservadores” e lhes conferir um poder de provocação,
sa de maneira mais eficiente pela prática efetiva da escrita, da de transgressão ou de desestabilização maior do que o dos
encenação, da composição, do tratamento da língua e da re pretensos textos “revolucionários” (sejam de direita ou es
tórica, do que por argumentações especulativas. Às vezes, os querda), que não ousam se arriscar e prosseguem nas formas
argumentos teóricos como tais, mesmo na forma de crítica, neoacadêmicas ou neoclássicas. Estou pensando também
são menos “desestabilizadores” ou, digamos, simplesmente num número grande de obras deste século, cuja mensagem
menos inquietantes para os “pressupostos metafísicos” e cujos temas políticos seriam legitimamente considerados
[metaphysical assumptions] do que essa ou aquela “maneira “de direita” e cujo trabalho de escrita e de pensamento não
84 Jacques Derrida
ESSA ESTRANHA INSTITUIÇÃO CHAMADA LITERATURA 85
de acordo com roteiros regulados, mas sempre modificando consiste em denunciar ou dissolver a ingenuidade, esperando
suas regras naquilo que se chama de história da literatura. escapar dela completamente: seria, antes, certa forma de tirar
Esse levantamento ou esse simulacro de levantamento do re partido dela e de levá-la em consideração.
calque, simulacro que nunca é neutro e sem eficácia, talvez se Portanto: nada de desconstrução sem prazer e nada de
deva a esse ser ou estar-suspenso, a essa epoché da tese ou do prazer sem desconstrução. “É preciso”, se tal se deseja ou se
“pressuposto metafísico” [metaphysical assumption], de que pode, tirar partido ou partir daí. Mas desisto de continuar
falávamos há pouco. Isso pode proporcionar um prazer sutil improvisando. Falta-nos tempo e espaço.
e intenso. Pode ser produzido sem literatura, “na vida”, na
vida sem literatura, mas a literatura está também a seu modo D. A. - O tipo de releitura histórica a que me referi, na
“na vida”, na “vida real” [real life], como dizem irrefletida- questão anterior, talvez esteja sendo mais posto em prática em
mente os que creem na distinção entre a “vida real” e a outra. algumas formas de crítica feminista, que têm como objetivo
O prazer está relacionado ao jogo que é jogado nesse limite, revelar os pressupostos falocêntricos dos textos literários e
ao que está suspenso nesse limite. Está também relacionado a dos comentários feitos sobre tais textos durante muito tempo.
todos os paradoxos do simulacro e mesmo da mímesis. Pois, Esse tipo de trabalho coincide em alguns aspectos com o seu?
se a “desconstrução”, recorrendo a essa palavra novamente Em que medida o termo “literatura” nomeia a possibilidade
para abreviar, pode desmontar certa interpretação da míme de se ler textos de forma a colocar o falocentrismo tanto
sis - o que chamei de mimetologismo, uma mímesis reduzida quanto o logocentrismo em questão?
à imitação -, a “lógica” do mimeisthai é indesconstrutível,
ou antes, desconstrutível como a “própria” desconstrução. J. D. - Outra questão bastante difícil. Não é mesmo
Esta é, a um só tempo, identificação e desidentificação, ex verdade que a crítica literária “feminista”, enquanto tal,
periência do duplo, pensamento da iterabilidade etc. Como enquanto fenômeno institucional identificável, é contem
a literatura, como o prazer, como tantas outras coisas. O porânea do aparecimento do que se chama de descons
prazer obtido na mímesis não é necessariamente ingênuo. As trução no sentido moderno? Esta desconstrói, primeiro e
coisas em jogo na mímesis são muito engenhosas. E mesmo essencialmente, o que se anuncia na figura do que propus
se houver alguma irredutível ingenuidade, desconstruir não chamar de falogocentrismo, para indicar, de fato, certa