Chuck Palahniuk - Climax PDF

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Ficha Técnica

Copyright © 2014 by Chuck Palahniuk


Tradução para a língua portuguesa © 2015, LeYa Editora Ltda., Érico Assis
Título original: Beautiful You
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.
Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa.

Produção editorial: Pólen Editorial


Preparação: Mariana Góis
Revisão: Clara Diament, Elisa Nogueira, Hed Ferri e Lizandra M. Almeida
Diagramação: Júlia Yoshino
Adaptação de capa original: Fabio Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Palahniuk, Chuck
Clímax / Chuck Palahniuk; tradução de Érico Assis. – São Paulo: LeYa, 2015.
224 p.

ISBN 9788544102640
Título original: Beautiful You

1. Literatura norte-americana 2. Ficção I. Título II. Assis, Érico


3/503

15-0559 CDD–813

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura norte-americana

Todos os direitos reservados à


LEYA EDITORA LTDA.
Rua Desembargador Paulo Passaláqua, 86
01248-010 – Pacaembu – São Paulo – SP
www.leya.com.br
“Vamos desbancar um bilhão de maridos.”
Clímax

E nquanto Penny era violentada, o juiz


simplesmente observava. O júri recuou
horrizado. Os jornalistas se encolheram na
tribuna. Ninguém no tribunal se apresentou
em sua defesa. O estenógrafo continuou a di-
gitar diligentemente, transcrevendo as palav-
ras de Penny: “Alguém me ajude, ele tá me
machucando! Mandem ele parar!”. Os dedos
ágeis estenografaram a palavra “Não!”. O es-
tenógrafo transcreveu um gemido, um grun-
hido e um grito, todos de longa extensão
fonética. Depois veio uma lista de súplicas:
Os dedos dele registraram: “Socorro!”.
E então: “Pare!”.
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Teria sido diferente se houvesse outras


mulheres no tribunal. Mas não havia. Todas
as mulheres tinham sumido do mapa nos úl-
timos meses. A esfera pública estava despo-
jada do sexo feminino. Todos que obser-
vavam Penny se debater – juiz, júri, plateia –
eram homens. O mundo havia-se tornado
um lugar de homens.
O estenógrafo digitou: “Por favor!”.
E continuou: “Não, por favor! Aqui não!”.
Penny era a única que se mexia. Sua calça
estava arriada de qualquer jeito até os cal-
canhares. Suas roupas íntimas tinham sido
arrancadas para expô-la a quem ousasse ol-
har. Seus cotovelos e joelhos debatiam-se,
tentando livrá-la. Na primeira fila, os desen-
histas traçavam linhas rápidas para retratá-
la atracada a seu oponente, as roupas
rasgadas agitando-se no ar, o cabelo des-
grenhado a chicotear o nada. Mãos tímidas
ergueram-se da plateia, cada uma agarrada a
um celular, para conseguir uma foto furtiva
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ou segundos de vídeo. A gritaria de Penny


paralisava a maioria dos presentes, sua voz
dissonante ecoava pelo recinto em tudo o
mais quieto. Não era mais o ruído do estupro
de uma única mulher apenas; os redemoin-
hos reverberantes e estridentes daquele
barulho sugeriam que se violentava uma
dezena de mulheres. Uma centena até. O
mundo inteiro gritava.
No banco das testemunhas, ela lutava.
Esforçava-se para fechar as pernas e afastar
a dor. Erguendo a cabeça, tentou fazer con-
tato visual com alguém, com qualquer pess-
oa. Um homem pressionou as laterais da
cabeça com as palmas das mãos, tapou os
ouvidos e apertou os olhos, com o rosto ver-
melho como o de um garotinho assustado.
Penny olhou para o juiz, que suspirou com-
passivamente diante de seu esforço, mas
recusou-se a bater o martelo e pedir ordem.
Um dos meirinhos abaixou a cabeça e balbu-
ciou alguma coisa em seu microfone de
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lapela. Com o revólver ainda no coldre, ele


apenas transferiu o peso de um pé para
outro, estremecendo diante dos gritos.
Outros espiavam decorosamente o relógio
ou as mensagens em seus celulares, como se
tivessem vergonha por Penny. Como se
Penny não devesse gritar nem sangrar em
público. Como se o abuso e a agonia fossem
culpa dela.
Os advogados pareciam murchar dentro
dos caros ternos risca de giz. Remexiam
papéis como se estivessem ocupados. Até o
namorado de Penny permaneceu sentado,
pasmo com a brutalidade daquela violação,
absolutamente incrédulo. Alguém deve ter
chamado uma ambulância, pois de repente
paramédicos vieram correndo pelo corredor
central.
Soluçando e usando as unhas para se de-
fender, Penny esforçava-se para se manter
consciente. Se conseguisse ficar de pé, se
pudesse se erguer da cadeira, ela conseguiria
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correr. Fugir. O tribunal estava mais cheio


do que ônibus em horário de pico, mas nin-
guém tentou conter seu agressor, nem o ex-
pulsar dali. Quem estava de pé deu um ou
dois passos para trás. Todos que observavam
começaram a recuar até onde as paredes per-
mitiam, deixando Penny e o estuprador no
vazio cada vez maior na frente da sala.
Os dois paramédicos abriram caminho
entre a multidão. Ao chegarem até ela, Penny
revidou, ainda ofegante, relutando. Eles a
tranquilizaram e pediram que relaxasse. O
pior já havia passado. Ela acalmou-se, en-
charcada de suor, tremendo de susto. Por to-
dos os lados, um muro formado por rostos
procurava espaços vagos em que seus olhos
não encontrassem outros olhos tomados pela
vergonha mútua.
Os paramédicos a colocaram na maca. Um
deles envolveu seu corpo trêmulo com um
cobertor, enquanto o outro prendia as cintas
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para mantê-la no lugar. O juiz finalmente


bateu o martelo para pedir um recesso.
O paramédico que afivelava as cintas
perguntou:
– Pode me dizer em que ano estamos?
A garganta de Penny ardia, esfolada de-
pois de tantos gritos. Sua voz saiu rouca, mas
ela disse o ano correto.
– Pode me dizer quem é o presidente? –
perguntou o paramédico.
Penny quase disse Clarissa Hind, mas
deteve-se. A presidenta Hind estava morta. A
primeira e única presidenta dos Estados Un-
idos havia morrido.
– Pode nos dizer seu nome?
Os dois paramédicos eram, obviamente,
homens.
– Penny – ela disse. – Penny Harrigan.
Os dois homens inclinados sobre ela
ficaram pasmos ao reconhecê-la. As ex-
pressões profissionais se desfizeram por um
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instante para dar lugar a sorrisos de


encantamento.
– Eu achei que você parecia familiar –
disse um deles, triunfante.
O outro estalou os dedos, irritado porque
as palavras não lhe vinham à mente. Ele se
intrometeu:
– Você é a... você é aquela moça, do Na-
tional Enquirer!
O primeiro paramédico apontou o dedo
para Penny, amarrada, indefesa, observada
por todos os olhares masculinos.
– Penny Harrigan! – berrou ele, em tom
acusatório. – A “Cinderela do Nerd”.
Os dois homens ergueram a maca à altura
da cintura. A multidão se abriu para deixar
que eles a conduzissem até a saída.
O segundo fez sinal de que a havia
reconhecido.
– O cara em quem você deu o pé na bunda
não era, tipo, o homem mais rico do mundo?
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– Maxwell – afirmou o primeiro. – O


nome dele era Linus Maxwell.
Ele balançou a cabeça, incrédulo. Não só
Penny acabara de ser estuprada diante de
um tribunal federal lotado, sem que nen-
huma pessoa erguesse um dedo para deter o
agressor, como agora os atendentes da
ambulância tratavam-na como uma idiota.
– Deveria ter se casado com ele, moça –
disse o primeiro, ainda surpreso, a caminho
da ambulância. – Se tivesse casado com o
cara, você seria mais rica que Deus...

Cornelius Linus Maxwell. C. Linus Max-


well. Devido a sua reputação de playboy, os
tabloides costumavam chamá-lo de
“ClíMax”. O megabilionário mais megab-
ilionário do mundo.
Eram os mesmos tabloides, aliás, que a
haviam apelidado de “Cinderela do Nerd”.
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Penny Harrigan e Corny Maxwell. Eles tin-


ham se conhecido havia um ano, mas parecia
uma vida inteira. Agora o mundo era total-
mente diferente.
Um mundo melhor.
Nunca antes na história da humanidade
houve época melhor para ser mulher. Penny
sabia disso. Da infância à maturidade, ela re-
petira aquilo como um mantra: Nunca antes
na história da humanidade houve época
melhor para ser mulher.
O mundo dela tinha sido quase perfeito.
Havia se formado recentemente em direito,
entre os três melhores alunos da turma, mas
rodara duas vezes no exame da Ordem.
Duas! Não por insegurança, mas porque algo
tinha começado a deixá-la apreensiva. Penny
se incomodava com o fato de que, apesar das
vitórias do feminismo, conquistadas a duras
penas, ser uma advogada otimista e ambi-
ciosa não parecia um feito tão triunfal. Não
mais. Parecia algo tão audaz quanto ser dona
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de casa nos anos 1950. Algumas décadas at-


rás, a sociedade a incentivaria a não trabal-
har, ser mãe e ficar em casa para cuidar dos
filhos. Agora a pressão era para que ela se
tornasse advogada. Ou médica. Ou cientista
espacial. O que quer que fosse, a validação
desses papéis tinha mais a ver com moda e
política do que com a própria Penny.
Quando entrou na faculdade, ela se ded-
icou a buscar a aprovação dos professores do
Departamento de Estudos de Gênero da
Universidade de Nebraska. Trocara os son-
hos de seus pais pelos dogmas de seus do-
centes, mas nem uma perspectiva nem outra
eram naturalmente suas.
Na verdade, Penelope Anne Harrigan
ainda estava sendo uma boa filha – obedi-
ente, inteligente, zelosa – que fazia tudo que
a mandavam fazer. Ela sempre se submetera
aos conselhos dos mais velhos, mas desejava
algo além da aprovação dos pais reais e sub-
stitutos. Com desculpas a Simone de
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Beauvoir, Penny não queria ser a terceira


geração de nada. Sem ofender Bella Abzug,
ela não queria ser uma pós-nada. Ela não
queria repetir as vitórias de Susan B.
Anthony nem de Helen Gurley Brown. Quer-
ia poder fazer outras escolhas além de ser
dona de casa ou advogada. Santa ou puta.
Uma opção que não estivesse atolada no que
restara de um sonho da era vitoriana. Penny
queria algo muito mais radical do que o
feminismo!
O que a incomodava era a ideia de que
havia uma motivação mais profunda im-
pedindo sua aprovação no exame da Ordem,
aquela parte de seu inconsciente que não
queria ser advogada, e ela continuava tor-
cendo por um imprevisto que a resgatasse de
seus sonhos pequenos, previsíveis. Suas
metas continuavam sendo as mesmas das
radicais do século anterior: ser advogada... e
competir pau a pau com os homens. Mas as-
sim como qualquer meta que vem de outra
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pessoa, aquela se tornara um fardo. Já tinha


sido alcançada dez milhões de vezes por out-
ras mulheres. Penny queria um sonho só seu,
mas não tinha ideia de que sonho era esse.
Ela não se sentia realizada como a filha
comportada, tampouco regurgitando a ideo-
logia tacanha de seus professores. Era um
alívio pensar que a maioria das garotas de
sua geração estava passando pela mesma
crise. Todas tinham herdado um legado de
liberdade, e sua dívida para com o futuro era
criar uma nova fronteira a ser derrubada
pela próxima geração de mulheres, que, por
sua vez, abriria novos caminhos.
Enquanto não surgisse um objetivo novo,
singular e original, Penny continuaria a cor-
rer atrás de seu antigo sonho obstinada-
mente: um cargo inicial em um escritório de
advocacia, a menina que comprava donuts,
que arrumava as cadeiras e que estudava
para o próximo exame da Ordem.
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Mesmo agora, aos 25 anos, ela estava pre-


ocupada que fosse tarde demais. Nunca con-
fiara em seus impulsos, em seus instintos.
Entre seus maiores medos estava a possibil-
idade de que nunca descobrisse nem desen-
volvesse seus maiores talentos e intuições.
Seus dons. De que sua vida fosse desper-
diçada em perseguir metas predeterminadas
pelos outros. Em vez disso, ela queria ter o
poder e a autoridade – uma força primitiva e
irresistível – que transcendessem os papéis
de gênero. Ela sonhava em brandir uma ma-
gia pura que precedesse a própria
civilização.

Ao mesmo tempo em que criava coragem


para fazer sua terceira tentativa do exame da
Ordem, Penny trabalhava no Broome,
Broome & Brillstein, o escritório mais presti-
giado de Manhattan. Na verdade, ela não era
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exatamente sócia do escritório, mas também


não era uma estagiária. OK, de vez em
quando ela corria até o Starbucks no térreo
para buscar meia dúzia de lattes e cappucci-
nos de leite de soja, mas não todo dia. Havia
dias em que ela tinha de buscar cadeiras para
uma reunião importante. Mas ela não era
uma estagiária. Penny Harrigan não era ad-
vogada, ainda não, mas também não era uma
mísera estagiária.
Os dias demoravam a passar na BB&B,
mas às vezes acontecia algo empolgante. Ho-
je, por exemplo, ela tinha ouvido trovões
ecoarem entre as torres do centro financeiro.
Era o barulho de um helicóptero pousando
na cobertura. No heliponto daquele prédio,
sessenta e sete andares acima, alguém in-
crivelmente importante estava chegando.
Penny estava no térreo, equilibrando uma
caixinha de papelão com meia dúzia de cafés
fervendo. Esperava o elevador observando
seu reflexo no aço polido das portas. Penny
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não era linda, mas também não era feia. Não


era nem alta, nem baixa. Seu cabelo era
legal, bem-cuidado e fazia volume nos om-
bros de sua blusa da Brooks Brothers. Seus
olhos castanhos eram grandes, sinceros. No
segundo seguinte, seu semblante claro e ser-
eno desapareceu.
As portas do elevador se abriram e um
bando de homens parrudos, todos de ternos
azul-marinho idênticos, saiu como uma
equipe de futebol americano. Como uma
ofensiva que protege o quarterback, a estrela
do time, eles abriram espaço com os ombros,
empurrando a multidão impaciente à espera
dos elevadores. Forçada a dar licença, Penny
não pôde deixar de esticar o pescoço para
saber quem eles escoltavam. Quem tinha
uma das mãos livres a ergueu, com o celular
em punho, gravando vídeos e tirando fotos
acima da cabeça. Penny não conseguiu
enxergar em meio àquele ataque de sarja
azul, mas conseguiu olhar para cima e ver o
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famoso rosto nas telas dos aparelhinhos. O


ambiente se encheu de cliques eletrônicos,
somados ao burburinho e à estática dos
walkie-talkies. Por trás de tudo, o som aba-
fado de um choro.
A mulher nas telinhas dos infinitos celu-
lares secava o rosto com a ponta de um lenço
de linho e renda já manchado de lágrimas e
rímel. Mesmo usando óculos de sol enormes,
o rosto era inconfundível. Se ainda restasse
alguma dúvida, ela foi solucionada com a
safira azul hipnotizante que pendia entre os
seios perfeitos. Caso se pudesse confiar nas
capas de revistas à venda nos caixas dos su-
permercados, era a maior e mais perfeita
safira do mundo, de quase duzentos quilates.
A pedra adornara o pescoço de rainhas do
Antigo Egito, de imperatrizes romanas, de
czarinas russas. Penny não conseguia ima-
ginar por que uma mulher que usasse tal joia
estaria chorando.
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De repente, tudo fez sentido: o helicóptero


trazia a megacelebridade ao topo do prédio
enquanto a beldade traumatizada debandava
pelo térreo. Os sócios seniores estavam
coletando depoimentos. Era o caso da
megapensão.
A voz de um homem se projetou entre a
confusão:
– Alouette! Alouette! Você ainda o ama?
Uma voz feminina berrou:
– Você o aceita de volta?
A multidão parecia prender a respiração,
fazendo silêncio para aguardar uma rev-
elação divina. A beldade chorosa, enquad-
rada pelos visores de centenas de celulares,
documentada de todos os ângulos e direções,
ergueu seu queixo elegante e disse:
– Não serei rejeitada. – Facetada em todas
aquelas perspectivas, ela engoliu seco. –
Maxwell é o melhor amante que já tive.
Ignorando uma nova torrente de pergun-
tas, a equipe de segurança abriu caminho em
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meio aos curiosos até chegar às portas que


davam acesso à rua, onde uma fila de
limusines os aguardava. Em um instante, o
espetáculo acabou. A mulher no centro de
tanto alvoroço era a atriz francesa Alouette
D’Ambrosia. Vencedora de seis Palmas de
Ouro e de quatro Oscar.
Penny mal podia esperar para escrever um
e-mail aos seus pais contando a cena. Essa
era uma das vantagens de trabalhar na
BB&B. Mesmo que o trabalho fosse apenas
buscar café, Penny ainda estava contente de
ter saído de casa. Em Nebraska, nunca veria
estrelas do cinema.
O comboio partiu. Todos ainda olhavam
para a direção em que tinha seguido quando
uma voz conhecida gritou:
– Ô, Omaha!
Era sua colega do escritório, Monique, que
estalava os dedos e acenava para chamar a
atenção de Penny. Comparada a Monique,
com suas unhas de porcelana cravejadas de
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cristal austríaco, madeixas compridas e


trançadas com miçangas e penas, Penny
sempre se sentia um pardalzinho descorado.
– Cê viu? – Penny gaguejou. – Era a Alou-
ette D’Ambrosia!
Monique abriu caminho até Penny aos
berros:
– Omaha, era pra você estar no 64o andar!
– Ela agarrou Penny pelo cotovelo e a puxou
na direção do elevador. Os copos de café
quente sacudiram e quase transbordaram.
– O velho Brillstein reuniu a equipe, e eles
só querem saber de uma coisa: mais e mais
cadeiras!
Penny estava certa. Era o depoimento.
D’Ambrosia vs Maxwell: a megapensão em
litígio. Todos sabiam que era um processo
frívolo. Golpe de marketing. O homem mais
rico do mundo havia namorado a mulher
mais linda do mundo durante 136 dias. Nem
um dia a mais ou a menos. Penny sabia dos
detalhes do caso devido às filas no
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mercadinho. Em Nova York, os caixas são


tão lentos e ranzinzas que se pode ler o Na-
tional Enquirer de cabo a rabo enquanto se
espera para pagar pelo potinho de sorvete
derretido de creme crocante. Segundo os
tabloides, o bilionário dera àquela mulher a
maior safira do mundo. Eles passaram as
férias nas Ilhas Fiji. Fiji, o auge do glamour!
Então se separaram. Se fossem outras pess-
oas, o assunto acabaria por aí, mas os olhos
do mundo inteiro estavam voltados para os
dois. Provavelmente para poupar seu or-
gulho ferido, a ex-namorada rejeitada agora
exigia a compensação de cinquenta milhões
de dólares por abalo emocional.
Enquanto entravam no elevador, uma voz
animada gritou do lobby:
– Aê, caipira! – As duas garotas se viraram
e avistaram um jovem de terno risca de giz
correndo na direção delas. Desviando das
pessoas, ele estava a poucos metros e gritou:
– Segura o elevador!
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Em vez de atender o pedido, Monique


acionou o botão de fechar as portas. Apertou
tantas vezes com seu dedão adornado que
parecia pedir socorro em código Morse.
Penny morava na Big Apple havia seis meses
e ainda não conhecera alguém que apertasse
o botão do elevador menos de vinte vezes. As
portas bateram a centímetros do nariz
aquilino do jovem advogado, deixando-o
para trás.
O nome dele era Tad, e flertava com Penny
sempre que a encontrava. “Caipira” era um
apelido carinhoso, e Tad era bem o que a
mãe de Penny chamaria de “partidão”. Penny
não concordava muito. Achava que ele só
prestava atenção nela porque era um degrau
para chegar a Monique. É o que qualquer
homem faz para ganhar pontos com a men-
ina bonita: bajular a cadelinha gorda e suja
que andava com ela.
Não que Penny fosse fedida. Nem exata-
mente gorda. E nem que Monique se
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importasse com Tad. Com todo o seu charme


e extroversão, sua mira estava nos invest-
idores em fundos de alto risco ou em oligar-
cas russos recém-empossados. Ela dizia sem
qualquer remorso, a quem quisesse ouvir,
que queria morar numa town house no Up-
per East Side e passar o dia inteiro na cama
comendo bolacha recheada. Com um longo
suspiro de alívio, totalmente fingido, ela
falou:
– Ô, Omaha, cê devia deixar o Tad meter o
Tadinho dele aí dentro!
Penny não se encantava nem um pouco
com as piscadelas e os assobios dele. Sabia
que era o patinho feio. O degrau.
Dentro do elevador, Monique avaliou os
trajes que Penny escolhera para o trabalho,
moveu o quadril e girou o indicador. Não so-
brava espaço para mais nenhum brilhante
nos dedos da moça. Monique franziu os lá-
bios, destacando os tons de roxo no gloss:
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– Menina, eu amo essa sua silhueta retrô!


– disse ela, jogando as tranças com miçangas
para trás. – Eu amo que você não se importe
com suas coxas grossas.
Penny aceitou o elogio com certa hesit-
ação. Monique era uma colega de trabalho, o
que não queria dizer “amiga”. A vida aqui era
diferente da do Meio-Oeste. Em Nova York,
você tinha que se conformar.
Na cidade grande, cada gesto era premed-
itado para ostentar. Cada detalhe na aparên-
cia feminina demonstrava status. Penny ab-
raçou a caixa de papelão na qual estavam os
cafés quentes como se fosse um ursinho de
pelúcia com cheiro de baunilha. Não se sen-
tia à vontade.
Monique olhou para o lado, tendo um
sobressalto ao ver alguma coisa no rosto de
Penny. A julgar pela expressão da colega, no
mínimo era uma tarântula fazendo ninho.
– Quem sabe em Chinatown? – disse Mo-
nique, dando um passo para trás. – Lá elas
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resolvem esses pelos de lobisomem que tão


brotando em volta da sua boca. – Ela com-
pletou com um sussurro teatral: – Elas
fazem um precinho que até você pode pagar.
Na fazenda de seus pais, lá em Shippee,
Nebraska, Penny já vira habitantes do galin-
heiro se bicarem e sangrarem até a morte de
um jeito mais sutil. Era evidente que alguns
espécimes humanos femininos nunca tinham
recebido o memorando que explica a existên-
cia de uma irmandade entre as mulheres.
As portas se abriram assim que elas
chegaram ao 64o andar. As duas foram rece-
bidas pelos focinhos de quatro pastores-
alemães farejadores de bombas. Uma
guardinha corpulenta tomou a frente para
revistá-las com um detector de metais.
– Estamos confinadas a partir deste andar
– explicou Monique. – Já que você-sabe-
quem tá no prédio, eles vão evacuar todos os
andares daqui até a cobertura. – Atrevida
como sempre, Monique pegou Penny pelo
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cotovelo e reiterou: – As cadeiras, garota.


Pega, pega!
Era um absurdo. A BB&B era o escritório
mais poderoso do país, mas as salas nunca
tinham lugares suficientes para todos. Como
numa dança das cadeiras, quem chegava at-
rasado à reunião tinha que ficar de pé. Pelo
menos até que um subalterno como Penny
fosse providenciar mais assentos.
Enquanto Monique corria até a reunião
para ganhar tempo, Penny tentava abrir cada
porta. Todas trancadas. Os corredores es-
tavam estranhamente desertos. Penny via
pelos vidros as cadeiras que cada colabor-
ador havia deixado em segurança em sua re-
spectiva mesa. No ar rarefeito dos andares
executivos nunca se ouvia barulho, mas este
era de dar medo. Não se ouvia o eco de vozes
ou de passos pelas paredes de lambris nem
pelos quadros com paisagens do vale do rio
Hudson. As garrafas de água Evian haviam
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sido descartadas com tanta pressa que ainda


borbulhavam.
Ela tinha quatro anos de formação em
política de gênero e dois anos de direito e es-
tava ali buscando cadeiras para gente
preguiçosa ou metida demais para levar sua
própria cadeira para a reunião. Era degrad-
ante. Essa parte Penny deixaria definitiva-
mente fora do e-mail para os pais.
Seu celular começou a vibrar. Mensagem
de Monique: “CRIATURA, CADÊ AS
CADEIRAS?!”. A essa altura, Penny corria
entre os corredores. Equilibrando a caixa de
cafés em uma das mãos, ela simplesmente
empurrava as portas, pegando nas
maçanetas só para ver se giravam. Frenética,
só lhe restando um arremedo de esperança,
corria desabalada e sem fôlego de um es-
critório trancado ao seguinte. Uma maçaneta
girou. Ela não esperava. A porta se abriu. Ela
perdeu o equilíbrio. Desabando com uma
onda de café quente, ela caiu em algo que, de
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tão macio, parecia grama. Esparramada, de


barriga no chão, ela viu de perto os verdes,
vermelhos e amarelos entrelaçados de
belíssimas flores. Muitas flores. Havia caído
num jardim. Passarinhos exóticos em-
poleirados entre rosas e lírios. Exatamente
em frente a seu rosto pairava um sapato
preto engraxado. Um sapato masculino com
a ponta posicionada como se fosse lhe dar
um chute nos dentes.
Não era um jardim de verdade. Os passar-
inhos e flores não passavam de desenhos em
um tapete oriental. Tingido e tramado em
pura seda, era o único daquele estilo em toda
a BB&B. Penny sabia de quem era o es-
critório. Ela se viu refletida no couro escuro
do sapato: o cabelo encharcado de café pen-
dendo sobre os olhos, o rosto vermelho, a
boca escancarada e ela ainda caída no chão,
sem fôlego. Seu peito arfava. A queda havia
levantado sua saia, deixando sua bunda de
fora. Agradeceu aos céus pela calcinha de
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algodão que estava usando. Se fosse uma


tanguinha mais atrevida, teria morrido de
vergonha.
Seus olhos acompanharam o sapato preto
até chegar a um tornozelo forte e sinuoso
embainhado por meia xadrez. Nem o
desenho verde e dourado da meia conseguia
disfarçar os músculos que havia por baixo.
Além disso, havia a bainha da calça. Desse
ângulo baixo, o olhar de Penny acompanhou
a prega pronunciada na flanela cinza até o
joelho. O corte e o caimento meticulosos
definiam os contornos dos músculos. Com-
pridas. Pernas de quem joga tênis, pensou
Penny. Dali, a costura interna da calça levou
seus olhos para uma protuberância consider-
ável, como um punho forte envolvido pela
suave flanela.
Ela sentiu a umidade quente entre si e o
chão. Estava chafurdando entre os copos.
Um litro de leite de soja desnatado com café
com leite com chai com café com espuma
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embebia suas roupas e destruía o tapete do


escritório, cujo valor ela não saberia
estimar.
Mesmo no couro polido e sombrio do sap-
ato, Penny viu o vermelho de suas bochechas
se intensificar ainda mais. Engoliu em seco.
Uma voz rompeu o transe.
Era uma voz masculina. O tom parecia
resoluto, mas era suave como o carpete de
seda. Tão agradável quanto confuso, ele
repetia:
– Já fomos apresentados?
Os olhos de Penny ergueram-se para at-
ravessar o véu de seus cílios compridos e
trêmulos. Ao longe via-se um rosto. Nos pon-
tos mais distantes daquela visão em flanela
cinza viam-se as feições que ela tanto con-
hecia dos tabloides do mercadinho. Os olhos
azuis e a testa entremeada pela penugem in-
fantil de cabelos loiros. O sorriso carinhoso
que fazia uma covinha em cada bochecha
barbeada. A expressão era suave e tranquila
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como a de uma boneca. Não havia uma ruga


sequer em sua testa, nem nas bochechas;
nada que sugerisse que algum dia ele
houvesse se preocupado ou franzido o rosto.
Penny sabia, pelos tabloides, que ele tinha 49
anos. Não havia nem pés de galinha para
provar a frequência de seus sorrisos.
Ainda esparramada no chão, Penny,
ofegante, pronunciou-se.
– É você! – ela guinchou. – Você é ele!
Quero dizer, você é você! – Ele não era um
cliente do escritório. Pelo contrário, ele era o
réu no caso da megapensão. Penny imaginou
que estivesse lá para prestar depoimento.
Ele estava sentado num assento de convid-
ado, uma das poltronas Chippendale esculpi-
das em alto-relevo e estofadas com couro
vermelho. O cheiro de couro e graxa de sap-
ato era pungente. Diplomas enquadrados e
coleções de livros com encadernação de
couro forravam as paredes do escritório.
35/503

Atrás dele via-se uma mesa de mogno com


o brilho escarlate de um século de polimento
e cera. Do outro lado da mesa estava uma
figura corcunda, cuja cabeça calva brilhava
quase tão vermelha, cheia de manchas senis.
Seus olhos cintilavam de raiva. Lábios finos,
paralisados, revelavam a dentadura man-
chada de tabaco. Em todos os diplomas, cer-
tificados e prêmios, grafados em delicada ca-
ligrafia gótica, lia-se o nome Dr. Albert
Brillstein.
Em resposta delicada aos balbucios de
Penny, o homem mais jovem perguntou sem
enrubescer:
– E você seria...?
– Ela não é ninguém – rosnou o homem
atrás da mesa, o sócio sênior da firma. – Ela
nem deveria estar aqui! Não passa de uma
secretariazinha. Que se deu mal três vezes no
exame da Ordem!
As palavras foram como um tapa na cara
de Penny. Atordoada, ela desviou-se dos
36/503

olhos azuis e viu-se mais uma vez refletida


no sapato do homem mais novo. Seu chefe
tinha razão. Ela não passava de uma office
girl. Uma ninguém. Uma jeca burra que se
mudara para Nova York sonhando encon-
trar... seu destino? Qualquer coisa. A ver-
dade brutal era que provavelmente ela nunca
passaria no exame. Passaria o resto da vida
organizando papéis e buscando café, e nunca
lhe aconteceria nada de extraordinário.
Sem esperar que ela se levantasse, o Sr.
Brillstein esbravejou:
– Saia! – Ele apontou o dedo ossudo e
trêmulo para a porta e berrou: – Retire-se!
No bolso da saia, o telefone de Penny
começou a tocar. Mesmo sem olhar, sabia
que era Monique. E que Monique estaria
devidamente impaciente.
Brillstein tinha razão. Ela não deveria es-
tar ali. Deveria estar num subúrbio de
Omaha. Casada com um Sigma Chi pacato,
agradável. Já teriam dois filhos, o terceiro a
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caminho. Era sua sina. Deveria estar coberta


de baba de bebê, não de espresso duplo.
Lá estava ela no reflexo do sapato, minús-
cula como Alouette D’Ambrosia encolhida
pelas telas de celular. Penny sentiu as lágri-
mas empoçarem seus olhos e observou uma
descer pelo rosto. Foi tomada pela autocom-
iseração. Usou a mão para limpar o rosto,
torcendo para que nenhum dos homens
houvesse percebido. Usou o carpete como
apoio para tentar se levantar, mas a mistura
de chantili, caramelo e calda de chocolate a
havia grudado ao chão. Mesmo que con-
seguisse se pôr de pé, temia que o líquido
houvesse deixado sua blusa transparente.
Apesar da cor alegre, os olhos azuis que a
observavam eram tão focados e imóveis
quanto uma câmera. Avaliavam-na.
Gravavam-na. Ele era tão belo quanto ela,
mas seu queixo era firme. Ele exalava
autoconfiança.
Sr. Brillstein gaguejou:
38/503

– Sr. Maxwell, mal posso expressar meu


pesar por essa interrupção. – Ele ergueu o
telefone, teclou alguns números e disse: –
Não se preocupe, pois essa jovem será ex-
pulsa do prédio imediatamente. – Ele berrou
ao telefone: – Segurança! – A julgar pela
veemência da voz, não seria um mero repú-
dio. Era como se os planos dele fossem jogá-
la do telhado.
– Aceita minha ajuda? – perguntou o
homem loiro, abaixando-se.
Brilhava em seu dedo um anel com uma
grande pedra vermelha trabalhada em baixo-
relevo. Mais tarde, Penny viria a descobrir
que aquele era o terceiro maior rubi já en-
contrado no Sri Lanka. Havia pertencido a
sultões e marajás, e agora surgia para
resgatá-la. Seu brilho era ofuscante. Os de-
dos estavam surpreendentemente gelados.
Uma força igualmente incrível a fez erguer-
se quando os lábios, os lábios que ela vira
39/503

beijarem estrelas do cinema e herdeiras de


fortunas, disseram:
– Agora que você tem a noite livre... me
daria o prazer de sua companhia para o
jantar?

A vendedora da Bonwit Teller olhou para


Penny com desdém.
– Posso ajudá-la? – perguntou com voz de
escárnio.
Penny havia corrido cada metro das oito
quadras entre o metrô e a loja de departa-
mentos. Ainda não havia recuperado o
fôlego.
– Vestido? – gaguejou. Mais resoluta,
acrescentou: – Vestido de gala.
A atendente olhou-a de cima a baixo, sem
perder um detalhe. Não eram os sapatos
Jimmy Choo falsificados que ela havia com-
prado em um shopping de Omaha, direto da
40/503

fábrica, nem a bolsinha com a alça desfiada e


as manchas de torta. O casaco quase-Bur-
berry pouco escondia que suas roupas es-
tavam empapadas de café gelado e chantili
grudento. As moscas haviam descoberto seu
cheiro doce e a acompanhavam desde a
plataforma lotada do metrô. Penny tentou
espantá-las com um gesto delicado. Para um
estranho, talvez parecesse louca. A análise da
vendedora estava durando uma eternidade, e
Penny lutou contra a ânsia de dar meia-volta
no salto gasto e deixar a esnobe para trás.
A vendedora podia ser uma socialite de al-
guma parte nobre da cidade. Chanel dos pés
à cabeça. Unhas impecáveis. Não se viam
moscas escuras vergonhosas pairando sobre
sua perfeita trança francesa nem na pele
imaculada de sua testa. Após analisar Penny
friamente, os olhos da atendente fitaram os
dela. Em tom de indiferença, disse:
– Seria para alguma ocasião especial?
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Penny começou a explicar a situação, mas


de repente parou. O homem mais rico do
mundo a havia convidado para jantar. Ele
havia sugerido às oito da noite no Chez Ro-
maine, o restaurante mais top da cidade,
talvez do mundo. Reservas feitas com anos
de antecedência. Anos! Combinaram de se
encontrar lá mesmo. Até parece que Penny o
deixaria ver seu quarto e sala no sexto andar,
sem elevador, dividido com duas colegas. Era
óbvio que ela estava prestes a explodir, mor-
rendo de vontade de contar a alguém. Boas
notícias não parecem verdadeiras até você
contar para umas dez amigas. Mas aquela es-
tranha desconfiada na seção de vestidos da
Bonwit Teller nunca iria acreditar. Essa
história, tão absurda, só ajudaria a confirmar
a impressão de que Penny era uma mendiga
maluca e que só fizera a vendedora perder
seu precioso tempo.
Uma mosca pousou na ponta de seu nariz.
Penny a espantou e se esforçou para manter
42/503

a calma. Ela não era uma lunática. Não ia


sair correndo. Tentando acalmar o medo na
voz, ela disse:
– Gostaria de ver o transpassado da Dolce
& Gabanna dessa temporada, o que tem a
cintura drapeada.
Como se fosse um teste, a vendedora es-
treitou o olhar e perguntou:
– Em crepe de chiffon?
– Em seda – Penny respondeu rápido. –
Com a barra assimétrica. – As longas filas no
mercado haviam valido a pena de novo: Jen-
nifer Lopez havia usado esse vestido no ta-
pete vermelho do Oscar no ano anterior.
A mulher mediu o corpo de Penny com os
olhos e perguntou:
– Tamanho 48?
– Pode ser 40, por favor – Penny rebateu.
Sabia que as moscas estavam no seu cabelo,
mas ela as tratava como pérolas negras do
Taiti.
43/503

A atendente sumiu para procurar o


vestido. Penny quase rezou para ela não vol-
tar. Aquilo tudo era uma loucura. Ela nunca
havia gastado mais de cinquenta dólares
num vestido, e o que ela pedira para ver não
podia custar menos de cinco mil. Com algu-
mas digitadas no celular, ela confirmou seu
limite no crédito. Se comprasse o vestido,
usasse duas horas no jantar e o devolvesse
pela manhã, ela teria uma história para con-
tar pelo resto da vida. Não conseguia pensar
em mais nada além daquela noite. Seria uma
aposta, um salto no escuro. Cornelius Max-
well era conhecido por seus gestos galantes.
Era a única explicação. Vira-a humilhada,
caída no tapete diante de seu chefe enfure-
cido, e por isso estava tentando preservar
sua dignidade. Era cavalheirismo, nada
mais.
Pelo que Penny lia nas revistas de fofoca,
Cornelius Maxwell era famoso por sua gen-
tileza. Eles não eram assim tão diferentes.
44/503

Ele nascera em Seattle, de mãe solteira e en-


fermeira. Seu sonho sempre fora ser alguém
na vida, para sustentá-la com tudo a que
tivesse direito. Mas ela morreu num acidente
de ônibus. Aconteceu quando Cornelius es-
tava na graduação na Universidade de Wash-
ington. Um ano depois, ele fundou a DataMi-
croCom na sua república de estudantes. Um
ano depois, estava entre os empreendedores
mais ricos do mundo.
Entre as mulheres glamourosas que
primeiro se relacionaram com ele estavam
Clarissa Hind, candidata improvável ao sen-
ado pelo estado de Nova York, eleita graças
ao apoio financeiro e às conexões políticas
dele. Antes de terminar o primeiro mandato,
ela já aspirava ser a mais jovem senadora
que o estado já elegera para a capital do país.
Em nada atrapalhava o fato de a mídia idol-
atrar o casal: a majestosa senadora e o ou-
sado bilionário do mercado de alta tecnolo-
gia. Contando com o dinheiro dele e a
45/503

própria determinação, Clarissa venceu de


lavada. Para encurtar a história, três anos at-
rás ela havia realizado não apenas o próprio
sonho, mas o de milhões de norte-americ-
anas: fora eleita a primeira presidenta dos
Estados Unidos.
Ao longo do percurso, Corny Maxwell fora
um cabo eleitoral incansável, sempre a elogi-
ando, sempre a apoiando em público e em
particular. Mas os dois não chegaram a se
casar. Havia rumores de um aborto natural e
de que ela o convidara para ser vice. Porém,
assim que a eleição acabou, os dois divul-
garam um comunicado à imprensa para
anunciar o fim do relacionamento. Dividindo
o púlpito da coletiva de imprensa, a presid-
enta eleita e seu elegante consorte reafirm-
aram a afeição e o respeito que ainda
mantinham um pelo outro, embora o ro-
mance houvesse acabado.
Penny sabia que esse tipo de sucesso de-
pendia de trabalho duro e sacrifício, mas as
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fotos dos paparazzi faziam tudo parecer


descomplicado. A presidenta Hind fora a in-
spiração de Penny para se tornar advogada.
Ela tinha medo de sonhar? E se Corny Max-
well estivesse atrás de uma nova pupila? Não
era absurdo que ele houvesse visto algum po-
tencial inato em seus olhos. A noite poderia
ser um teste, e, se ela passasse, Penny Har-
rigan talvez estivesse sendo preparada para
assumir um papel muito importante no
cenário mundial. Estava prestes a entrar no
círculo mais restrito do planeta.
Sua divagação foi interrompida por uma
mosca zumbindo em sua boca. Os devaneios
na seção de vestidos da Bonwit Teller se
transformaram em tosse e engasgo.
Foi merecido. Ela estava se deixando levar
pela fantasia. O futuro sabe como partir seu
coração quando você deposita nele expect-
ativas demais. Veja só Linus C. Maxwell, que
ainda sorria depois de uma sucessão de ro-
mances fracassados. Depois de Clarissa, ele
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se envolvera com a família real britânica.


Nada menos que uma princesa, e nem era
uma das feias congênitas. Nem das sujinhas.
A princesa Gwendolyn era linda. Era a ter-
ceira na linha de sucessão, a dois passos de
ser rainha. Mais uma vez, parecia a combin-
ação perfeita de aristocracia europeia e
know-how tecnológico ianque. O mundo
ficou aguardando a data do casório. Então, o
rei foi alvejado por um anarquista, e lá estava
Corny para apoiá-la no funeral de seu pai. E
quando um acidente bizarro – um satélite
saiu da órbita e caiu sobre a Terra – matou o
herdeiro, irmão de Gwendolyn, sua coroação
foi dada como certa.
Corny Maxwell poderia ter sido um prín-
cipe com vida mansa no Palácio de Bucking-
ham, mas a história se repetiu. O magnata e
a aristocrata findaram a relação como ami-
gos. Por duas vezes ele escapara de um
casamento com mulheres extremamente
poderosas.
48/503

Segundo os boatos, ele se sentia ameaçado


por mulheres de maior status que ele. Os jor-
nais sensacionalistas o detestavam. Mas
Penny suspeitava, assim como muita gente,
que C. Linus Maxwell seria para sempre o ór-
fão à procura da mãe, alguém a quem ele
pudesse cobrir de carinho e presentes caros.
Nenhuma das ex-namoradas de Maxwell
parecia ter sofrido com o relacionamento.
Clarissa Hind passou de novata recatada no
cenário político a líder internacional. Gwen-
dolyn era meio que uma novilha, bonitinha,
mas acima do peso. Durante o relaciona-
mento, ela emagreceu e desde então passou a
ser um ícone fashion. Até Alouette tinha en-
frentado os próprios demônios: os tabloides
publicavam sempre suas aventuras com be-
bidas e drogas. O amor de Maxwell a deixara
limpa, algo que várias reabilitações – por
mandado judicial – não haviam conseguido.
No meio da Bonwit Teller, o celular de
Penny começou a vibrar. Era Monique. Sem
49/503

pedir cadeiras dessa vez, Monique havia


mandado um SMS: “ME LIGA!”. Toda a
BB&B já devia saber da novidade. Uma parte
de Penny queria que ninguém soubesse,
tamanha era a vergonha de ser vinculada à
presidenta Hind, à rainha Gwendolyn e a
Alouette D’Ambrosia. Penny vasculhou a
memória atrás dos casos que haviam aconte-
cido nesse meio-tempo. A poeta ganhadora
do Nobel. A herdeira de uma poderosa sider-
úrgica japonesa. A baronesa da imprensa.
Até o momento, o sapatinho de cristal não
coubera em nenhum desses pés. Penny
tentou não pensar naquilo, mas o que ela
fizesse entre aquele momento e a meia-noite
talvez decidisse o resto de sua vida.
Antes que Penny pudesse responder à
mensagem de Monique, a atendente voltou,
trazendo uma peça de chiffon de seda ver-
melha. Ela arqueou a sobrancelha retocada a
lápis com ceticismo e soltou:
50/503

– Então é esse... Tamanho 40. – Ela fez


um sinal para Penny acompanhá-la ao
provador.
Presidenta Penny Harrigan. Sra. C. Linus
Maxwell. Sua imaginação ia longe. No New
York Post de amanhã, seu nome estaria em
negrito entre as celebridades da Página Seis.
Amanhã, a esnobe ali saberia que ela não é
mentirosa. Toda a cidade saberia seu nome.
Mas, acima de qualquer coisa, ela usaria
aquele vestido com muito, muito cuidado.
Eram três da tarde. O jantar era às oito.
Ainda havia tempo para depilar as pernas,
arrumar o cabelo e telefonar para os pais.
Talvez assim a situação ficasse mais próxima
da realidade.
Correndo atrás da vendedora, Penny per-
guntou, nervosa:
– Vocês têm política de devolução do valor
total da compra, né? – Ela cruzou os dedos
para o zíper fechar.
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Kwan Qxi e Esperanza eram as colegas


ideais para dividir um quarto e sala aper-
tadinho em Jackson Heights. Meses antes,
enquanto a mãe de Penny a ajudava a fazer
as malas para sua mudança para o outro lado
do país, a sábia senhora insistira em toda sua
sapiência:
– Encontre uma chinesa e uma latina seja
lá do país que for para rachar o aluguel.
Pode parecer que os pais de Penelope são
monstros retrógrados e racistas, mas eles só
queriam o bem da filha. Imaginavam que,
num lar com diversidade racial e cultural,
haveria menos chance de uma menina
roubar a maquiagem da outra. Cosméticos
são caros, e compartilhá-los pode levar a in-
fecções. Era um conselho sensato, pois
herpes e percevejos estão em toda parte. Era
um conselho de pessoas de bem a ser
seguido.
52/503

Apesar das boas intenções dos pais pro-


vincianos de Penny, as integrantes desse trio
intercultural, totalmente diferentes, tinham
mais em comum do que imaginavam. Logo já
estavam dividindo roupas, segredos e até
lentes de contato. Os limites eram mínimos.
Até o momento, essa familiaridade casual
não fora problema.
Esperanza era uma latina de sangue
quente e seios empinados, cujos olhos negros
cintilavam travessura. Era comum ela fingir
impaciência com as tarefas mais simples –
trocar uma lâmpada, por exemplo, ou lavar
um prato – e gritar: “Ay, caramba!”, e seu
jeito caricato sempre fazia Penny morrer de
rir. Óbvio que ela não era rígida demais para
não ser capaz de fazer piada de si mesma.
Esperanza conseguia jogar um sombrero en-
feitado no chão da sala e começar uma anim-
ada dança em volta da aba do chapéu, prova
de sua grande evolução rumo ao futuro pós-
politicamente correto de sua identidade.
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Kwan Qxi, tão calada, tão rígida, era o in-


verso da señorita de pavio curto. A asiática
andava pelo apartamento sem emitir sons,
tirando o pó dos rodapés... aparando seu
bonsai... dobrando a ponta do papel
higiênico num origami de surpresa para a
próxima que usasse o banheiro; transform-
ando, enfim, caos em ordem. Seu rostinho e
atitude plácidos serviam como um calmante
natural para Penny. Sua densa cortina de ca-
belos negros era uma maravilha comparada
ao rabo de cavalo frisado e retrô que Penny
usava quase todo dia.
Nas últimas horas antes do jantar no Chez
Romaine, Penny implorou às duas meninas
que contribuíssem com o que sabiam de mel-
hor para deixá-la mais bonita. De Esperanza,
ela queria pálpebras que brilhassem como o
pôr do sol em Havana. De Kwan Qxi, queria
um cabelo que pendesse como grandes feixes
de seda. As colegas foram incansáveis no
apoio, animando-a como damas de honra
54/503

servindo à noiva nervosa. Juntas, elas a en-


feitaram e a vestiram.
Resplandecente em seu vestido, Penny es-
tava um deslumbre. Para fechar o look,
Kwan Qxi desenterrou um elegantíssimo
pingente. Era jade, brilhante, esculpido em
forma de dragão, com duas pérolas nos ol-
hos. Herança de família. Esperanza também
desencavou seus brincos prediletos, em
forma de uma pequena piñata incrustada de
pedrarias. Acreditando ou não na história de
que Penny ia jantar com o homem mais rico
do mundo, as duas meninas estavam com lá-
grimas nos olhos diante da transformação da
amiga.
O interfone tocou. O táxi que elas haviam
chamado estava aguardando.
No último instante, Penny segurou o
fôlego e foi buscar uma caixinha de metal
que havia escondido muito tempo antes no
banheiro. O estojo com seu diafragma. Só
um tiquinho de prevenção. Não precisara
55/503

dele desde seu baile de formatura da


graduação. Enquanto procurava nos armári-
os, ela ficou pensando se tanto tempo de de-
suso haveria estragado o anticoncepcional.
Será que o látex teria ficado quebradiço,
como acontecia com camisinhas? Ou se teria
partido? Ou, pior, estaria todo cheio de
mofo? Ela achou a caixinha prata no meio da
bagunça de uma gaveta e prendeu a respir-
ação antes de abrir. Estava vazia.
Batendo os pés e fingindo indignação,
Penny foi falar com as meninas na cozinha.
Ergueu o estojinho em tom acusatório. Seu
nome, Penelope Harrigan, estava impresso
na etiqueta, assim como o nome e o endereço
do clínico geral da família em Omaha. Ela
jogou a caixa no balcão, ao lado da torradeira
enferrujada e com crostas de queijo, e
anunciou:
– Vou apagar as luzes e contar até dez, ok?
– Os rostos das duas outras não denun-
ciavam qualquer reação. Não coraram nem
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tentaram evitar o olhar de Penny. – Não vou


fazer perguntas – disse ela. Um toque no in-
terruptor e o lugar ficou completamente
escuro. Ela começou a contar.
Ouviu-se um som molhado e abafado,
acompanhado de um suspiro e uma
risadinha.
Penny contou:
– ... oito, nove, dez.
As luzes se acenderam. A caixa estava
aberta e ali se via uma forma rosada. O di-
afragma reluzia, fresco e úmido, goticulado
com os fluidos vaginais e sadios de sabe-se lá
quem. Havia apenas um pelo pubiano agar-
rado ao contraceptivo, enroladinho. Penny
anotou mentalmente que devia lavá-lo caso
precisasse dele mais tarde.

Nunca falhava: o táxi chegou atrasado ao


Chez Romaine. Engarrafamento no túnel,
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impossível conseguir sinal de celular. Mas


tudo bem. O motorista não parava de pedir
desculpas pelo retrovisor. E de dizer que ela
estava deslumbrante.
Penny sabia que ele só queria ser educado.
De tanto dinheiro que havia gasto naquela
tarde, ela dizia para si que tinha que estar ar-
rebentando. Para desprezo da vendedora, o
vestido havia fechado perfeitamente e delin-
eava seu corpo jovem. Os sapatos Prada,
mais um luxo pensado na última hora, tam-
bém estavam sensacionais. Mesmo assim,
Penny sabia que nunca tivera uma beleza
arrebatadora.
Pelo menos não havia mais moscas à sua
volta. Já era uma vantagem. Em relação a
morar no Meio-Oeste, tudo era uma
vantagem.
Nebraska nunca combinara com Penny.
Em Omaha, quando adolescente, ou mesmo
quando era uma menininha em Shippee, ela
sempre se sentira um peixe fora d’água. Por
58/503

um lado, ela não tinha nada a ver com o pai e


a mãe de corpos robustos, silhuetas em
forma de pera, pés chatos e tortos. Enquanto
eles tinham as sardas e os cabelinhos ruivos
da diáspora irlandesa, Penny tinha pele de
pêssego, pálida como leite. Os dois sabiam
que ela estava louca para morar em Nova
York.
Minutos antes, assim que entrara no táxi,
ela havia ligado para contar a novidade.
Quando a mãe atendeu o telefone, Penny
perguntou:
– Tá sentada, mãe?
– Arthur! – a mãe berrou. – É sua filha no
telefone.
– Tenho uma novidade muito incrível –
disse Penny, mal conseguindo se conter. Ela
ergueu o olhar para conferir se o motorista
estava olhando. Queria que ele escutasse.
– Eu também! – a mãe exclamou.
Ouviu-se um clique e a voz do pai entrou
na conversa.
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– A horta da sua mãe deu um tomate que é


a cara do Danny Thomas.
– Eu te mando uma foto – a mãe promet-
eu. – É um espanto.
– E você, meu docinho, o que você tem
para nos contar? – perguntou o pai.
Penny fez uma pausa para dar mais efeito.
Quando falou, garantiu que a voz fosse alta o
bastante para que o taxista ouvisse:
– Tenho um encontro com C. Linus
Maxwell.
Os pais não reagiram. Pelo menos não no
mesmo instante.
O pai de Penny tomava o café da manhã
sentado na privada para poupar tempo. A
mãe sonhava em ter um colchão de água. No
seu aniversário, eles lhe mandavam uma
Bíblia com vinte dólares entre as páginas.
Esses, em versão resumida, eram seus pais.
Penny tentou tirar alguma reação.
– Vocês sabem quem é o sr. Maxwell?
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– Claro que sim, querida – a mãe re-


spondeu, sem emoção. – Eu e seu pai não
moramos mais em Shippee!
Penny esperava berros de alegria, suspiros
de espanto, qualquer coisa. Por fim, o pai
dela falou:
– Amamos você de qualquer jeito, Pen-
Pen. Não precisa inventar disparates só para
nos impressionar. – Ele estava chamando-a
de mentirosa.
Nesse momento, o táxi entrou no túnel por
baixo do rio. A ligação caiu. As colegas de
quarto também não haviam acreditado, mas
mesmo assim fizeram um rebuliço.
Ajudaram com a sombra e com o delineador
como se fossem madrinhas de casamento.
No dia seguinte, todos acreditariam nela.
Normalmente ela não dava tanta atenção à
aparência. Não havia se arrumado apenas
por causa de Maxwell. O mundo inteiro iria
vê-la. Penny entraria naquele restaurante
como uma pessoa qualquer, mas quando
61/503

servissem a sobremesa ela já seria alguém.


Até sua heroína, a presidenta Hind, saberia
seu nome.
Penny notou dois homens num sedã preto,
presos no mesmo engarrafamento. Assim
como os guarda-costas que escoltaram Alou-
ette D’Ambrosia, ambos vestiam ternos azul-
marinho sob medida e óculos espelhados. A
expressão severa não transmitia emoção.
Nenhum voltou o rosto na direção de Penny,
mas ela sabia que a dupla estava lá para
espioná-la.

Desde suas primeiras lembranças, ela via


homens estranhos iguais àqueles, sempre a
seguindo. Às vezes eles vinham em carros
que a acompanhavam lentamente ou es-
tavam sentados no carro em frente ao seu
colégio. Outras vezes caminhavam determ-
inados em seu encalço, sempre a uma
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distância discreta. Sempre dois, às vezes três,


todos de terno escuro e óculos espelhados. O
cabelo era curto e penteado. Sapatos oxford
engraxados, mesmo que a acompanhassem
como cães de caça sobre duas patas pelo es-
tádio dos Nebraska Cornhuskers, enchar-
cado da chuva ou pelas praias do lago
Manawa.
Em muitas tardes de inverno, enquanto
ela voltava do colégio ao entardecer, seus
acompanhantes seguiam seus passos por
campos vazios, desviando de pés de milho
derrubados pelo vento. Um levantava a
lapela e sussurrava no microfone; outro er-
guia o braço para fazer sinal a um
helicóptero que também acompanhava cada
passo de Penny. De vez em quando, um di-
rigível grande e pesado pairava sobre ela, dia
sim, outro também.
Desde que conseguia se lembrar, esses ho-
mens a espreitavam. Sempre em sua visão
periférica. Estavam sempre ao fundo. Havia
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enormes chances de que hoje eles também


jantassem no Chez Romaine, mesmo que nas
mesas do andar de baixo, sempre atentos.
Ela nunca se sentira ameaçada por isso.
No mínimo, sentia-se mimada e segura.
Desde a primeira sensação de que estava
sendo seguida, Penny imaginou que os ho-
mens fossem do Departamento de Segurança
Interna. Os americanos puros, ela pensava,
desfrutavam dessa mesma supervisão dili-
gente. Ela estava tão encantada com os
guarda-costas que passara a aceitá-los como
anjos da guarda, papel que cumpriram mais
de uma vez.
Numa noite de inverno rigoroso, ela cor-
tou caminho por vários hectares de silagem
podre ao voltar para casa. O céu estava
escuro como um hematoma. O ar gelado
tinha um cheiro pungente e agourento de pu-
trefação. Em um instante, um tornado veio e
transformou a paisagem em uma nuvem de
terra fértil e gado leiteiro voador.
64/503

Implementos agrícolas afiados retiniam por


todos os lados ao seu redor. Pedras enormes
de granizo bombardearam sua cabeça.
Penny achou que seria morta, mas uma
força a derrubou nos canteiros, e ela sentiu
algo pesado, suave mas insistente, pression-
ando seu corpo. O tornado perdeu a fúria em
um instante. O peso sumiu, e ela soube que
fora um de seus sentinelas anônimos. Com o
terno risca de giz manchado de lama, ele
retirou-se e foi embora sem nem aceitar um
agradecimento. Mais que guardião passivo,
ele fora um herói. Aquele estranho havia sal-
vado sua vida.
Anos depois, quando Penny estava na fac-
uldade, um Zeta Delta mamado a arrastara
pelas escadas até um porão com chão de
terra batida. Foi durante uma festa anim-
adíssima no início do ano. Pensando bem,
talvez ela houvesse prometido ao garoto mais
do que tinha para dar. Contrariado, ele a
jogou no chão e montou sobre ela, com um
65/503

joelho de cada lado de seu corpo rebelde. As


mãos musculosas começaram a rasgar seu
vestido de algodão de estampa floral. Ele re-
mexeu o zíper das calças cáqui, do qual saiu
uma ereção vermelha e raivosa. Por mais
temível que fosse a situação, Penny ainda era
uma garota de sorte.
Graças aos céus, existiam os agentes da
Segurança Interna, pensou Penny quando
um estranho em terno de flanela cinza surgiu
das sombras perto da parede do porão. Ele
deu um golpe de caratê violento na traqueia
do garoto. Com o quase estuprador engas-
gado, Penny saiu correndo em segurança.
Mesmo depois de dizer adeus a seu estado
natal, os anjos da guarda ainda permane-
ceram em seu encalço. Na Big Apple, ela via
o neon refletir em seus óculos enquanto eles
a observavam a uma distância discreta. Na
Bonwit Teller. Até na BB&B, onde eles
usavam os óculos mesmo dentro do prédio. E
ainda a protegiam. Eram agentes da
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segurança interna e, na cabeça de Penny,


protegiam todo e qualquer americano.
Sempre.

Enquanto ela estava perdida em seus


pensamentos, o trânsito começou a fluir. O
táxi já estava parando em frente ao toldo do
Chez Romaine. Um manobrista veio abrir a
porta. Penny pagou o táxi e respirou fundo.
Conferiu a hora no celular: estava quinze
minutos atrasada.
Deu a última conferida no vestido e nos
braços. Nada de moscas.
Nas páginas do National Enquirer, Jen-
nifer Lopez e Salma Hayek sempre camin-
havam pelo tapete vermelho com um acom-
panhante. Penny Harrigan não tinha opção.
Não se via sinal de ClíMax. Havia uma mul-
tidão de fotógrafos contidos por uma corda
de veludo, que apenas a olharam sem
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fotografá-la. Ninguém com um microfone


tomou a frente para dizer como ela estava
bonita e perguntar sobre o vestido. Outro
carro chegou, o manobrista abriu mais uma
porta, e sua única opção foi caminhar soz-
inha até a porta dourada do restaurante.
No salão, ela quis que o maître a notasse,
mas não teve sorte. Ninguém a notou. Aguar-
davam ali homens e mulheres elegantes, al-
guns até que trouxessem seus carros, outros
por uma mesa. O burburinho de risadas e
conversas fez com que ela se sentisse ainda
mais invisível, como se isso fosse possível.
Ali, seu vestido estava no limite do aceitável.
Suas joias atraíam olhares de perplexidade.
Da mesma forma como quis correr da ven-
dedora esnobe da Bonwit Teller, Penny mais
uma vez teve vontade de dar as costas e sair
correndo. Ela guardaria o belíssimo vestido
vermelho na embalagem original e devolver-
ia amanhã. Homens como Maxwell não
saíam com garotas como ela.
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Ainda assim, alguma coisa a incomodava.


Ela desejou não ter se exaltado tanto em re-
lação ao encontro. Suas colegas de quarto...
seus pais... até o taxista... Todos achavam
que ela era uma mentirosa. Tinha de provar
que não era. Se ao menos um colunista de fo-
foca a visse com Corny Maxwell, ou alguém
os fotografasse juntos, ela teria sua vingança.
Foi essa ideia que a conduziu rumo à porta
do salão principal. Ali, um lance de degraus
acarpetados levava ao andar de baixo. Quem
avançasse atrairia os olhares de todos os
presentes naquele espaço amplo e
abarrotado.
No último degrau, Penny sentia-se à beira
de um desfiladeiro onde seu futuro a aguar-
dava. Atrás, os ricos e poderosos já estavam
encalacrados, dando marcha a ré como num
engarrafamento. Ouviu um pigarro alto. Lá
embaixo, o salão estava lotado, com todas as
mesas ocupadas. No mezanino havia
69/503

comensais ainda mais atentos. O lugar onde


Penny estava, na escada, era como um palco.
No centro do salão, via-se um homem
solitário, cujos cabelos loiros refletiam a luz
do candelabro. Concentrado, ele tomava not-
as em uma caderneta sobre a mesa, com uma
caneta prateada.
Penny sentiu o hálito de um estranho
próximo ao seu ouvido. A voz obsequiosa
sussurrou:
– Com licença, senhorita? – O falante
fungou alto.
Todo o restaurante observava o homem
sozinho a rabiscar, mas à moda discreta dos
nova-iorquinos, fitando-o por cima do cardá-
pio e espiando pelo reflexo das lâminas
prateadas das facas de manteiga.
A voz obsequiosa ao ombro de Penny foi
mais insistente:
– Precisamos deixar este espaço aberto. –
E continuou: – Peço que me dê licença.
70/503

Paralisada, Penny queria apenas que o


comensal solitário erguesse o olhar e a not-
asse, que reparasse como estava linda. A
multidão que se formava atrás dela res-
mungou, inquieta. Ela não conseguia se mex-
er. O porteiro, o manobrista, alguém teria de
vir levantá-la e carregá-la como um saco de
batatas.
Por fim, o homem que escrevia na cader-
neta olhou para cima. Seus olhos se encon-
traram. Cada cabeça naquele salão cavernoso
virou-se para acompanhar seu olhar. O
homem levantou-se, e o burburinho diminu-
iu. Como se a cortina estivesse se erguendo
na ópera, todos silenciaram.
Sem perder o contato visual, o homem
veio até a escada e começou a subir na
direção de Penny. A dois degraus, ele parou e
ofereceu-lhe a mão. Assim como ela tinha es-
tado abaixo dele no tapete do escritório,
tentando se levantar, agora ele estava abaixo
dela.
71/503

Ela aceitou a mão. Os dedos dele con-


tinuavam gelados, como ela se lembrava.
Assim como vira no National Enquirer, C.
Linus Maxwell a escoltou. Como já fizera
com tantas mulheres refinadas. Eles des-
ceram os degraus e atravessaram o salão em
silêncio. Ele puxou a cadeira para ela se sent-
ar. Depois, sentou-se e fechou a caderneta.
Nesse momento, as vozes ao redor voltaram
a ganhar volume.
– Obrigado por ter vindo – ele disse. –
Você está encantadora. Desta vez, Penny
acreditou que era digna do elogio.
No instante seguinte, a mão de Maxwell
veio em sua direção como se fosse lhe dar um
tapa na cara. Foi tão rápido que o braço dele
virou um borrão. Ela recuou.
Quando abriu os olhos, o punho cobria seu
campo de visão, imenso, parado, os nós dos
dedos tão próximos que quase tocavam a
ponta de seu nariz.
72/503

– Desculpe-me pelo susto – ele disse –,


mas acho que a peguei. – Abrindo os dedos,
ele mostrou o corpo esmagado de uma
mosca.

Na manhã seguinte, Penny passou meia


hora em frente às portas ainda trancadas da
Bonwit Teller. Ela não teria como pagar nem
um dia de juros no cartão de crédito em cima
do preço daquele vestido de gala. Mesmo que
se atrasasse para o trabalho, tinha de de-
volver o vestido imediatamente.
Os contos de fadas nunca mostraram
Cinderela levantando-se ao raiar do dia para
devolver vestido e sapatos, temendo que uma
vendedora desconfiada fosse achar defeito e
se recusasse a reembolsar o valor integral.
Apesar do vinho e do prato extraordinári-
os, o jantar não fora tão mágico. Foi impos-
sível relaxar e se divertir dentro de um
73/503

aquário onde todos os olhares estavam volta-


dos em sua direção. O problema não era
Maxwell. Ele fora extremamente atencioso,
até demais, atento a cada palavra que ela diz-
ia. Por várias vezes, ele abriu sua caderneta e
anotou algumas palavras com caligrafia ve-
loz, espaçada, como se estivesse copiando
um ditado. Foi menos um encontro amoroso
e mais uma agradável entrevista de emprego.
Ele não compartilhou qualquer informação
sobre si, pelo menos nada que ela já não
soubesse pelas colunas de fofocas. Nervosa
como estava, Penny soltou o verbo quase
sem respirar. Louca para preencher qualquer
possibilidade de silêncio, ela falou dos pais,
Myrtle e Arthur, e de sua vidinha suburbana.
Relembrou as horas que não passavam na
faculdade de direito. Divagou sobre a grande
paixão de sua vida, o terrier escocês
Dimples, e sobre a morte dele no ano
anterior.
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Ao longo do monólogo, Maxwell sorriu


com placidez. Ainda bem que vez por outra
apareciam garçons que lhe davam um in-
stante para fechar a matraca e recuperar o
fôlego.
– Se a madame permitir... – disse o
garçom com um floreio da mão coberta por
luva branca –, o sushi kobashira é a especial-
idade da casa.
Penny sorriu triunfante.
– Parece uma delícia.
Max a olhou com dúvida.
– Você sabe que são vieiras aoyagi cruas,
não é?
Penny não sabia. Aliás, Maxwell possivel-
mente salvara sua vida. Mesmo que ele não
soubesse, ela tinha forte alergia a frutos do
mar. Com uma mordida, cairia no chão in-
chada e inerte. O choque de Penny provavel-
mente transpareceu em seu rosto, pois ele
imediatamente refez o pedido dela ao
garçom:
75/503

– A senhorita vai querer o Frango Divan.


Graças a Deus alguém estava prestando
atenção. Sua boca destrambelhada retomou
o monólogo frenético.
Penny sabia o quanto estava sendo patét-
ica, mas mesmo assim não se continha. Até
então, ninguém em Nova York chegara a
demonstrar algum interesse por ela. Ela pas-
sara de pequeno milagre dos pais a uma
menina triste e invisível. Quase todas as
noites, ela se obrigava a caminhar pelas ruas
até o bairro ficar em silêncio e estar exaurida
o bastante para dormir. Vagava pelo Upper
East Side sozinha, acompanhada somente
pelos porteiros que ficavam atrás do vidro
nas entradas dos prédios chiques e a viam
passar. As imponentes town houses, os con-
domínios suntuosos: era o que todo mundo
queria. Pode-se dizer que ela estava se ad-
estrando a querer a mesma coisa, mas na
verdade não queria. Penny apenas fingia
76/503

querer as joias na vitrine da Cartier e os


casacos de pele da Bloomingdale’s.
Não queria apenas as pompas do sucesso;
ela ansiava pelo poder de verdade. Até ela se
achava louca em sua ambição.
Acima de tudo, Penny não queria o que as
outras mulheres diziam querer. Elas pare-
ciam possuídas na forma como vinham em
enxames, desejando tanta coisa mundana. E
isso a preocupava, fazia com que se sentisse
banida de alguma colmeia. Se não desejasse
os devidos galãs do cinema, as devidas velas
aromáticas, temia que houvesse algo de er-
rado com ela.
Diariamente, ela via advogadas e exec-
utivas mastigando números em fúria, voci-
ferando exigências ao telefone. Nenhuma
delas passava a impressão de ter evoluído.
Não pareciam ter tomado o caminho mais di-
fícil. Penny queria uma carreira que fugisse
dos padrões instintivos da política de
gênero.
77/503

Durante a sobremesa, Penny Harrigan ad-


mitiu: não sabia o que queria da vida. Ser ad-
vogada não era seu grande sonho. Quando
adolescente, no Ensino Médio, ela ouvira de
todo mundo – pais, professores, pastor – que
toda pessoa precisa de metas de longo prazo
e planos para chegar lá. Todos diziam que ela
precisava dedicar a vida a alguma coisa. Ela
optara pela carreira no direito como se
houvesse sorteado um papelzinho dobrado
de dentro do chapéu. Afora a presidenta
Hind, ser advogada atraía Penny tanto
quanto vestir um casaco de pele e levar dois
cães afghan hounds com colar de diamantes
para ouvir Verdi no Metropolitan. Para ser
sincera, Penny não disse exatamente isso,
mas sabia que alguma coisa iria acontecer e
que um destino glorioso a aguardava em
breve.
Maxwell não havia feito pergunta alguma
sobre o assunto, mas ouvia atentamente.
Assistia como se estivesse memorizando
78/503

tudo o que ela dizia. Em dado momento


entre os aperitivos e a salada, ele puxou a ca-
derneta na qual fazia anotações enquanto a
aguardava no restaurante. Abriu-a em uma
página em branco. Retirou a tampa da
caneta-tinteiro prateada e começou a escre-
ver como se estivesse listando os medos de
Penny. Ela não conseguia entender, pois sua
letra era muito pequena, quase microscópica.
Maxwell não parava de anotar. Ou era absur-
damente grosseiro ou enormemente
atencioso.
Ao perceber que suas palavras eram regis-
tradas, Penny ficou mais atenta, mas não foi
capaz de calar o transbordar de seu nervos-
ismo reprimido. Ela nunca havia expressado
isso a ninguém: sua vida parecia ter esta-
cionado. Depois de vinte e cinco anos de
boas notas e bom comportamento, ela
chegara a um beco sem saída. Alcançara seu
potencial. Enquanto falava, Penny já estava
ciente de que provavelmente nunca mais
79/503

voltaria a ver aquele homem. Isso fazia dele


um confidente seguro.
O alívio dela era evidente. Sob o olhar ar-
rebatador de Maxwell, Penny corava.
Ataviava-se. Incentivada pelos olhos atentos,
ela balançou a cabeça para fazer os brincos
de piñata dançarem. Ergueu uma das mãos
ao peito, passando as pontas dos dedos pelas
curvas sinuosas do dragão de jade. Os dois
acessórios a lembravam da bênção que eram
suas colegas de apartamento.
Os olhos de Max pareciam fascinados por
cada gesto de Penny. Ele sorria, mas sem a
interromper. Seus olhos nunca deixavam de
acompanhá-la, mas sua mão não parava de
escrever.
Parecia quase apaixonado. Era mais que
encanto, mais que amor à primeira vista.
Maxwell parecia enfeitiçado pelo som da voz
de Penny, como se todo seu corpo começasse
a se inclinar na direção dela, ansiando por
80/503

ela. Algo em sua expressão dizia que ele pas-


sara a vida esperando esse momento.
Penny queria que o mundo prestasse
atenção nela dessa mesma forma. Queria que
todos soubessem seu nome e que a amassem.
Pronto, ela havia admitido em alto e bom
som. Mas não podia fazer nada que justifi-
casse tantos louvores do público. Precisava
apenas de um mentor, um professor, alguém
que a descobrisse.
Em frente às portas trancadas da loja de
departamentos, Penny erguia a sacola do
vestido para não a arrastar na calçada. Lem-
brava de todos os pratos maravilhosos ser-
vidos no jantar. Tivera muito medo de deixar
a comida cair no colo. Uma só manchinha e
ela passaria os cinco anos seguintes pagando
pelo descuido. Quando o porteiro da loja
girou as chaves, ela correu para a seção onde
havia comprado o vestido.
A vendedora que a ajudara havia menos de
24 horas já estava no caixa. Com a sacola na
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dianteira e a voz mais firme possível, Penny


disse:
– Gostaria de devolver.
A vendedora pegou a sacola. Deitando o
vestido no balcão, abriu o zíper e conferiu o
plissado da seda rubra.
– Cheguei em casa e provei – disse Penny.
Com uma mão, ela fez um gesto que torceu
para que parecesse de desapego. – Está
longe do que eu tinha em mente.
A vendedora revirou e alisou a saia, vistor-
iando costuras e bainha, e perguntou:
– Então você não chegou a usar?
– Não – respondeu Penny. Ela prendeu a
respiração, com horror de que um pingo ou
mancha de transpiração expusessem sua
falácia.
A moça a pressionou, sem sorrir:
– Nem para um jantarzinho rápido?
Penny tinha certeza de que a moça havia
encontrado um pingo de vinho. Uma mancha
de musse de chocolate. Sentido o cheiro de
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perfume ou cigarro no tecido. Pode ter sido a


imaginação de Penny, mas de repente a
seção da loja ficou atulhada de clientes, ven-
dedores, até um guarda, todos atentos a seu
diálogo.
– Não – insistiu Penny. Agora ela estava
transpirando.
– No Chez Romaine?
– Não – Penny soltou num chio.
A vendedora a fitou com um olhar austero
e disse:
– Preciso te mostrar uma coisa.
Enfiando o vestido de volta à sacola, ela
colocou a mão embaixo do balcão e tirou um
jornal: o New York Post do dia. Na primeira
página, a manchete: “Príncipe Nerd tira nova
Cinderela do anonimato”.
E ao lado do título havia uma foto colorida
de Penny ao lado de Maxwell. Não havia
como negar: ela estava usando o vestido.
83/503

– Espero que a senhorita não me leve a


mal – disse a vendedora com expressão con-
denatória –, mas isso é inaceitável!
Penny fora pega no ato. Fez um cálculo de
cabeça: com base no preço e nos juros atuais
no seu cartão de crédito, ela poderia quitar o
vestido por volta de seu quadragésimo
aniversário.
– Por uma visibilidade como essa – disse a
mulher –, a Dolce & Gabanna devia te pagar
para vestir essas roupas.
Inclinando-se para a frente, em tom con-
spiratório, ela continuou:
– Prada. Fendi. Hermès. Eles são capazes
de morrer por um destaque assim. – Ela pis-
cou. – Deixa que eu falo com essa gente. Se
você vai começar a acompanhar o Sr. Max-
well, dá pra ganhar uma fortuna pro-
movendo certos estilistas.
Isso podia virar um problema. Maxwell
havia perguntado se podia telefonar, mas a
experiência de Penny dizia que ele só
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perguntara por educação. Não era garantia


de um segundo encontro. Eles não haviam
feito planos. Ela não ia dizer isso, mas era
provável que nunca mais o visse.
Passando os olhos pela seção de vestidos,
Penny notou que atraía olhares de estranhos
por onde passava. Homens. Mulheres. Al-
guns uniformizados. Algumas em casaco de
pele. Todos agarrados à edição matutina do
Post. E todos radiantes ao vê-la.
A vendedora, tão hostil no dia anterior, es-
boçava um sorriso tímido. Com os olhos
deslumbrados e vivos, ela suspirou. Pres-
sionando a mão aberta contra o peito, como
se quisesse aliviar uma palpitação, ela disse:
– Perdoe minha falta de profissionalismo,
mas...
Mesmo sob a maquiagem pesada da
atendente, Penny percebeu que ela estava
corando. Estendendo a edição do Post, ela
perguntou:
85/503

– Pode autografar a foto para a minha


filha?

C. Linus Maxwell não telefonou no dia


seguinte. Nem no outro dia. Uma semana se
passou.
Penny continuou trabalhando e tentou
desviar-se dos interrogatórios sobre o Chez
Romaine.
Depois do expediente, Penny foi à agência
do Chase Manhattan em Jackson Heights e
alugou um cofre. Era preciso ter duas chaves.
Ela observou o atendente do banco inserir a
chave e girar. Ela usou sua própria chave, e
ele a deixou a sós para abrir a caixinha de
metal na saleta. Assim que ele saiu, Penny
tirou uma coisinha pequena e rosada da
bolsa e colocou-a no cofre. Em seguida,
trancou-o e chamou o atendente. Suas
86/503

colegas de apartamento não teriam outra


chance de usar seu diafragma.
De volta ao apartamento, ela devolveu os
brincos e o colar. Toda vez que seu telefone
vibrava, fosse ligação ou mensagem, ela via
Kwan Qxi e Esperanza a observarem com
nervosismo. Mas era sempre uma mensagem
da mãe ou do pai. Ou a vendedora da Bonwit
Teller para dizer que ela havia ganhado um
deslumbrante vestido Alexander McQueen
ou um par de saltos Stella McCartney para a
próxima noite de Cinderela.
Na fila do caixa do mercado, ela ficava es-
perando sua vez de passar seu sorvete, tent-
ando ignorar as manchetes de tabloides que
a fitavam. “Cinderela leva o cano!” Outra
capa trazia uma foto imensa de Penny com-
prando sorvete sob o título “Cinderela rejeit-
ada vai se entupir!”. Era surreal. Lá estava
ela comprando sorvete de creme crocante e
olhando uma foto dela mesma, do dia anteri-
or, na fila. Para piorar a situação, nas fotos
87/503

mais recentes ela já parecia mais gorda!


Todo mundo na loja a reconhecia e estava a
postos para um tapinha no ombro ou para
consolá-la. O caixa fez um gesto de que ela
não precisava pagar.
– Fica por conta da casa, querida.
Ser alvo de pena em Nova York, a cidade
impiedosa. A que ponto havia chegado?
Alguns dias depois, ela mal conseguia
fechar o botão das calças. Guloseimas de-
mais e de graça. Por isso ela foi pega de sur-
presa quando Tad a convidou para almoçar
no Russian Tea Room. Lá, em um ambiente
mais intimista e sofisticado, ele a fez rir com
suas histórias divertidas sobre trotes de sua
época em Yale. Tad ditou seu curriculum
vitae completo, obviamente inseguro com
uma comparação com seu belo bilionário.
Vangloriou-se de ter sido capitão de remo da
equipe. Para provar, vestia um blusão verde-
claro com o logo da faculdade. Por mais tédio
que ele lhe provocasse, Penny ainda estava
88/503

grata. O falatório de Tad a distraía de sua


atual humilhação pública e da aflição que a
pressionava. Tad era aceitável – mais bonito
que o loiro e insosso Max – e havia a possib-
ilidade de que um jornalista perdido do Post
tirasse uma foto deles para acompanhar a
manchete “Cinderela volta ao jogo!”.
Penny surpreendeu-se ao ver que estava
segurando a mão de Tad sobre a toalha da
mesa. Ela só queria que os espectadores
achassem que ela e Tad estavam juntos,
mas... aconteceu algo mágico. Ondas de en-
ergia. Química. Macumba. Os dedos dela já
estavam profundamente entrelaçados aos
dele. Ela começou a se perguntar se con-
seguiria chegar ao banco e abrir seu cofre
antes de o banco fechar.
Penny não era recatada. Não fazia o tipo
diretorinha de escola. A seu ver, as intimid-
ades antes do casamento não eram pecado...
Ela apenas nunca vira vantagem em ter sexo
casual. Durante suas aulas de estudos
89/503

feministas, descobrira que aproximadamente


30% da população feminina é totalmente não
orgásmica, e parecia que ela se encaixava
nesse percentual. Sorte que havia outros
prazeres na vida. Dançar salsa, por exemplo.
Sorvete. Filmes com Tom Berenger. Não
fazia muito sentido dar chance a herpes,
HPV, hepatite viral, HIV e gravidez indese-
jada em busca de uma realização sexual
inalcançável.
Apesar de tudo, o encontro com Tad es-
tava ótimo. Ela estivera errada sobre suas in-
tenções. Bem errada, aliás. O ambicioso ad-
vogado a queria, não estava interessado em
Monique. Era o que seus olhos diziam.
Talvez ela estivesse equivocada a respeito do
sexo. Com o cara certo, talvez pudesse en-
contrar o prazer arrebatador.
– Penny... – ele gaguejou.
– Sim. – Ela engoliu em seco. Para
acalmar-se, recatadamente desviou o olhar
90/503

para o cesto de pães. Quando ousou voltar os


olhos para ele, ela repetiu:
– Sim, Tad?
Ele segurou firme a mão dela. Tad e seu
Tadinho. O simples almoço estava virando
aquilo que o tão falado jantar no Chez Ro-
maine não fora: impulsivo... ardente... car-
regado de insinuações eróticas.
No fundo da bolsa, o celular de Penny to-
cou. O barulho a pegou de surpresa.
– Penny – Tad prosseguiu. – Eu sempre
amei...
O celular tocou de novo. Penny tentou ig-
norar. Seu corpo todo ficou tenso.
Tad tomou coragem.
– Se você não está mais saindo com... –
Seus lábios se enrugaram, e ele chegou mais
perto. E mais perto. Ela sentiu o cheiro da
deliciosa vitela russa que haviam provado há
pouco.
Penny escapou do beijo. Não podia ignorar
a chamada.
91/503

– Desculpe – gracejou ao encontrar o celu-


lar. Era o toque de Max.

Era uma injustiça. Penny tentava dizer a


todo mundo que C. Linus Maxwell era mais
que um garoto prodígio da internet. Muito
mais! Ele gerenciava um grupo multinacion-
al de empresas líderes na área de redes, TI,
comunicação via satélite e serviços bancári-
os. Determinada, ela explicou a Monique que
os empreendimentos de Maxwell
empregavam mais de um milhão de pessoas
e serviam a muitas outras pessoas. A cada
ano, sua fundação beneficente doava um bil-
hão de dólares para cada uma das doze cau-
sas de enorme relevância, combatendo a
fome, curando doenças, promovendo os
direitos das mulheres. Como a presidenta
Hind podia atestar, a igualdade de gêneros
era um sonho que vivia no coração de Max-
well. Ele administrava colégios no Paquistão
92/503

e no Afeganistão, onde garotas poderiam


batalhar por um futuro melhor. Financiava
campanhas políticas que levavam mulheres
aos cargos mais altos de todos os países.
Era isso, Penny dizia a todos, essa altivez e
esse altruísmo que faziam de Maxwell mais
que um nerd ricaço.
O que ela dizia para si era que gostava de
estar ao seu lado. Era difícil convencer os
outros, e mais difícil ainda convencer a si
mesma.
No trabalho, Monique perguntou:
– Ô, Omaha, você tá usando diafragma? –
Petulante, ela virou a cabeça, e as continhas
de suas tranças chacoalharam.
Sem aguardar a resposta, ela continuou:
– Porque se tiver, arranca isso daí!
Queima! Joga seu contraceptivo na privada e
deixa esse homem te emprenhar!
O assunto não era da conta de Monique,
mas após um mês de encontros Penny ainda
não tinha ido para a cama com Maxwell. Os
93/503

pais dela ligavam tarde da noite. Penny sus-


peitava de que queriam pegá-la no flagra. Ela
atendia sonolenta:
– Que horas são?
Ao telefone, interurbano, a mãe berrava:
– Como que você não ama esse homem?
Ele é muito rico!
Na extensão, o pai emendava:
– Finge que ama!
– Seu pai e eu ainda nem conhecemos
Maxwell – transbordava a mãe –, mas já o
consideramos família!
Penny desligou. Tirou o telefone da
tomada e voltou a dormir. Não queria ser
uma mulher fácil. Já vira muitas colegas de
faculdade de véu e grinalda. Muitos
casamentos haviam chegado à fase tenebrosa
dos “encontros de casais”, e só para casais,
como prisão perpétua em uma penitenciária
onde visitas conjugais são coisa rara. Ricos
ou pobres, ela e Maxwell ainda eram duas
94/503

pessoas que precisavam de paixão mútua


para dividir a vida.
Aquilo nunca saía de sua mente: nenhum
dos famosos casos de Maxwell havia durado
mais que 136 dias. Não podia ser por acaso.
Todos haviam durado exatos 136 dias.
E não era como se Maxwell a pressionasse
a fazer sexo. Ele era tão desprendido, tão
agradável, mas tão distante que Penny
começava a se perguntar se Alouette D’Am-
brosia estava mentindo quando disse que ele
era o maior amante que já conhecera. A bela
francesa já devia ter se deitado com homens
melhores, mais carinhosos, mais ardentes.
Maxwell não podia ser tachado de agressivo.
Ele pouco fazia além de observar, ouvir e
fazer anotações na caderneta. Nas festas em
iates, mulheres que Penny nem conhecia a
encaravam. Supermodelos finas como palito
riam de suas coxas de mulher comum,
jogando suas cabeças para trás, incrédulas.
Os homens tinham olhares sinistros.
95/503

Presumiam que ela havia enfeitiçado Max-


well com seus dotes eróticos. Seus olhos
devassos sugeriam cenas de sodomia desen-
freada e felação experiente. Seria engraçado
contar a eles que o homem mais rico do
mundo a havia levado para esquiar em Berna
e a touradas em Madri, mas nunca para a
cama.

Penny não era virgem quando ela e Max-


well se conheceram. Ela transara com meni-
nos na faculdade. Alguns, mas um de cada
vez. Só meninos. E nunca por trás! Não era
depravada, nem vagabunda. Seus namorados
quase sempre eram riquinhos conservadores,
que brincavam de cavalheirismo abrindo a
porta do carro para ela. Traziam arranjos de
orquídeas, que amarravam em seu vestido
com dedos trêmulos. Até onde ela sabia, todo
homem achava que dançava bem e era bom
96/503

de cama. Na verdade, a maioria só sabia um


passo – geralmente o bate-cabeça – e entre
os lençóis era como um macaco de docu-
mentário cutucando um formigueiro com um
graveto.
Ela tivera algumas experiências, mas
nunca um orgasmo. Não um orgasmo-or-
gasmo, que faz a terra tremer, que deixa os
dentes dormentes, o tipo de orgasmo sobre o
qual sempre lera na revista Cosmopolitan.
Quando se formou em direito, Penny já
não era mais virgem, e tampouco estava a
fim de sossegar.

Em Paris, numa festa fechada no último


pavimento da torre Eiffel, Penny teve a opor-
tunidade de conhecer Alouette D’Ambrosia
pessoalmente. Com seu jatinho particular à
disposição, Paris parecia tão próxima quanto
o centro de Manhattan. Maxwell conseguia
97/503

buscá-la em praticamente qualquer lugar do


mundo para um jantar tranquilo e devolvê-la
ao espartano apartamento de Jackson
Heights antes da meia-noite. Ver sempre a
mesma tropa de rostos ressentidos e lux-
uriosos do jet set internacional, noite sim e
outra também, em festas e estreias, fazia o
mundo parecer menor. Mesmo no topo da
torre Eiffel, com a cintilante Paris a seus pés,
Penny bebericava uma taça de champanhe,
tímida demais para interagir com os outros,
que faziam e aconteciam. A noite estava
quente, mas Penny sentiu um calafrio na es-
pinha, exposta pelo decote profundo de seu
vestido Vera Wang. Maxwell, sempre muito
atencioso, fora chamado a outro lugar, e ela
percebeu olhares hostis sobre ela. Olhou em
volta para ter certeza. Como raios laser, eles
vinham do terraço da torre. Era a estrela de
cinema, a vencedora de quatro Oscar. Fora
indicada mais uma vez e era a favorita para
levar o quinto prêmio em questão de
98/503

semanas. A mulher que Penny vira em frag-


mentos nas incontáveis telinhas de celular.
Agora ela era uma só e parecia imensa.
O confronto era iminente. Todos os con-
vidados assistiam exultantes à aproximação
de Alouette. Ela andava em círculos, espreit-
ando a presa. Movimentava-se como uma
pantera num corpete de couro negro que de-
lineava todas as suas curvas. Suas narinas,
tão delicadas, inflavam. Com os dentes à
mostra, ela estava pronta.
A vendedora da Bonwit Teller fizera o pro-
metido e apresentara Penny a estilistas da
alta-costura, que a vestiam divinamente.
Porém, em comparação a essa predadora, a
essa devoradora de homens, ela se sentia
uma mendiga. Como sempre, resistiu à ânsia
de fugir do campo de batalha. Bem que Max-
well podia voltar logo. Monique saberia se
defender de uma amazona em fúria. Jennifer
Lopez e Penelope Cruz estariam a postos
para dar um pau naquela francesinha
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metida. A Penny só ocorria se virar e


aguardar o impacto.
– Ratinha – disse uma voz com sotaque
carregado, que Penny ouvira em vários
filmes.
As pontas das unhas se cravaram no om-
bro de Penny e a puxaram devagar, virando-
a até que visse com quem estava falando. A
feição elegante estava distorcida pelo ódio.
– Tá assustada, ratinha? – Alouette D’Am-
brosia projetou o queixo. – Não? Pois dever-
ia. Você está correndo um sério risco.
Penny apertou sua taça com mais força. Se
a situação chegasse às vias de fato, ela jogar-
ia o doce espumante nos olhos da atriz. E
sairia correndo feito louca.
– Não importa o que você faça... – disse
Alouette. Seu dedo longo, com a unha per-
feita, foi apontando para o rosto de Penny, e
ela alertou: – Não durma com Max. Nunca
transe com Maxwell.
100/503

A multidão ficou visivelmente frustrada


quando a estrela de cinema virou-se e foi
embora. As pessoas lhe davam passagem.
Antes de alguém dar um pio, ela já havia en-
trado no elevador e sumido.
Para Penny era evidente que Alouette es-
tava louca de ciúme. A deusa francesa ainda
era perdidamente apaixonada por Max.
Penny riu consigo mesma. Ela, a simples
Penny Harrigan, causava ciúmes na sex sym-
bol mais sedutora do mundo. Um minuto de-
pois, Maxwell estava de volta atrás dela.
Como sempre, anotava algo na caderneta,
viajando no seu mundo particular.
Penny não disse nada, então ele
perguntou:
– Está tudo bem?
Ela descreveu a cena que ele havia per-
dido. Como Alouette a havia abordado.
Como a atriz a havia ameaçado.
Uma expressão estranha cruzou o rosto in-
expressivo de Maxwell. Era algo que Penny
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nunca tinha visto, raiva misturada a outra


emoção. Quem sabe amor. O vento cálido
despenteou os cabelos dele.
Seja lá o que fosse, ela não poderia resistir.
Fosse pela atração física ou a possibilidade
de irritar Alouette, Penny não conseguia resi-
stir à ideia de dormir com Max. Pegou-o pela
mão.
– Hoje não vamos pegar o avião. – Ela le-
vou as mãos gélidas até sua boca, beijou-as e
disse: – Vamos ficar aqui e voltar a Nova
York pela manhã.

Na cama, o toque de Maxwell era tão pre-


ciso que parecia clínico. Seus dedos pareciam
pontas de compasso querendo medi-la.
Como médico ou cientista, elas agarravam-
na como se quisessem medir sua pressão.
Muitas vezes, ele parava no meio de uma
carícia, inclinava-se para sua mesinha de
102/503

cabeceira e anotava algo em sua misteriosa


caligrafia aracnídea.
Naquela primeira noite em Paris, Penny
percebeu que estava levemente bêbada, nua
na cama enquanto ele se ajoelhava entre suas
pernas abertas.
A mesinha de cabeceira tinha uma coleção
de objetos curiosos. Havia garrafas de cristal
com várias faces, parecendo frascos de per-
fume, cada uma com um líquido em cor
vívida. Pareciam imensos rubis, topázios e
esmeraldas. Lembraram Penny da imensa
safira que vira no pescoço de Alouette D’Am-
brosia. Entre as garrafas coloridas havia
béqueres de vidro comum e tubos de ensaio
iguais aos que Penny associava às aulas de
química do Ensino Médio. Havia uma caix-
inha de papelão, semelhante às de lenços
descartáveis, mas que parecia cheia de luvas
de látex, sendo que uma delas brotava,
pronta para ser arrancada. Viu também um
pote com várias opções de camisinhas. Entre
103/503

os objetos estava a caderneta de Maxwell.


Óbvio que estava lá, era quase um apêndice.
O último objeto que Penny conseguiu identi-
ficar foi um pequeno gravador digital, do
tipo que um executivo atarefado usaria para
ditar pensamentos. O item mais próximo era
uma garrafa de champanhe.
Maxwell já estava ereto, mas não parecia
muito ciente de seu estado de excitação. A
centímetros da nudez de Penny, ele estava
um pouco inclinado para fora da cama.
Primeiro, ele abriu a garrafa de champanhe e
derramou um pouco da bebida num béquer.
Era rosado e espumante. Champanhe rosê.
Passou o béquer para Penny. Erguendo a
garrafa, ele fez um brinde:
– À inovação e ao progresso. – Eles be-
beram. – Não tome tudo de uma vez,
querida.
Maxwell estalou os dedos para indicar que
queria o béquer de volta. Serviu mais um
gole de champanhe e deixou a garrafa de
104/503

lado. Com grande atenção, começou a escol-


her entre os frascos de cristal. Colocou um
pouquinho deste e um pouquinho de outro
entre os xaropes coloridos no béquer de
vinho rosê. Ele vinha e voltava em sua cader-
neta, como se consultasse uma receita em
código.
Concentrado no trabalho, Maxwell
devaneava:
– As pessoas são tão perdidas. Dedicam-se
a estudar tudo, exceto o mais importante. –
Seus lábios se contraíram até formarem um
sorriso torto. – Estudei os aspectos mais del-
icados do reino dos sentidos. Aprendi muito
com médicos e anatomistas. Dissequei
cadáveres, tanto de homens quanto de mul-
heres, para entender a mecânica do prazer.
Remexendo o béquer para misturar per-
feitamente o conteúdo, Maxwell franziu as
sobrancelhas e perguntou:
– Você já teve um orgasmo?
105/503

– Claro! – Penny respondeu rápido. Até


demais. Era mentira e soou como mentira.
Maxwell sorriu maliciosamente e
prosseguiu:
– Fui aprendiz dos maiores especialistas
em sexo deste mundo. – Não havia vanglória
nas palavras, apenas firmeza e determinação.
– Estudei com os xamãs tântricos do Marro-
cos. Dediquei-me a dominar a energia
kundalini. Para entender o coeficiente de
fricção entre diferentes tipos de pele, con-
sultei os químicos orgânicos mais import-
antes do planeta.
Os olhos de Penny perambulavam pelo
corpo nu de Maxwell. Ela sabia, conforme o
National Enquirer, que ele tinha 49 anos.
Tinha idade para ser seu pai, mas sua sil-
hueta enxuta lembrava a de um inseto. Cada
membro era definido e bem proporcional,
como o de uma formiga ou vespa. Sua pele
clara e lisa era tão sob medida quanto suas
roupas, sem uma ruga ou gordura visível. Ela
106/503

procurou sardas ou verrugas nos ombros,


nas mãos, mas não encontrou. Da forma
como falava de sua busca sexual, esperava
que tivesse piercing nos mamilos. Um torso
tomado de tatuagens ou cicatrizes de jogos
de tortura. Mas não havia pista alguma. Era
uma pele imaculada, tesa, na medida certa
para recobrir a musculatura.
– Minha receita especial – disse ele, ofere-
cendo o béquer para Penny. Era o espumante
com substâncias misteriosas.
Borbulhava menos, mas ainda parecia
champanhe rosê. Tinha um cheiro doce, deli-
cioso. Parecia morango. Penny olhou
desconfiada para o béquer cheio e disse:
– Quer que eu beba?
– Não exatamente – disse Maxwell. De
uma gaveta na mesa, ele retirou uma coisa
que parecia um brinquedo de borracha. Era
uma bola ovoide feita de borracha vermelha,
quase do tamanho de uma laranja. De uma
ponta da bola saía uma espécie de cânula
107/503

branca e comprida. – Uma seringa vaginal –


continuou Maxwell, erguendo-a para que
Penny a inspecionasse. Ele demonstrou
como a cânula soltava-se da bola, mostrando
um furo na borracha no qual derramou a
mistura. Enquanto rosqueava a cânula de
volta, Penny entendeu o que ele tinha em
mente.
– É uma ducha? – ela perguntou, nervosa.
Max assentiu.
Penny contorceu-se, desconfortável.
– Você acha que eu não sou limpa?
Maxwell esticou os dedos dentro de luvas
de látex e disse:
– Não deixe isso cair na sua pele.
Ela não gostou do que ouviu. Ele queria
injetar aquele negócio dentro dela?
– Não se preocupe. – Ele deu um risinho
abafado. – É um estimulante, e dos mais
leves. Você vai adorar. – Ele passou a cânula
fina por entre as pernas dela.
A cânula deslizou para dentro.
108/503

– Você vai gostar – disse ele, começando a


comprimir a bola de borracha. A seringa.
Penny sentiu o espumante gelado e efer-
vescente a preenchê-la.
Com a mão livre, Maxwell manteve-a
parada, fazendo pequenos movimentos
carinhosos em círculo na sua barriga. Seu
corpo estava gelado e tenso como seus
dedos.
Quando o recipiente ficou vazio, Maxwell
retirou-o. Usou uma toalha macia e limpa
para secar a gota rosa que escapou.
– Boa garota – ele disse. – Só deixe aí den-
tro mais um minuto. – Ele mordeu a ponta
da embalagem de uma camisinha e colocou-
a. – Você está indo muito bem.
Penny tentou não imaginar a digníssima
presidenta Hind sujeitando-se à limpeza do
champanhe mágico.
Ainda ajoelhado entre as pernas abertas
dela, ele disse:
– Eu te amo por você ser tão comum.
109/503

Se era um elogio, Penny já tinha ouvido


melhores.
– Por favor, não se ofenda – ele disse com
toda delicadeza. – Observe. Você possui uma
vagina perfeita. De livro. Seus labia majora
são exatamente simétricos. Sua crista peri-
anal é magnânima. Seu frenulum clitoridis e
sua fourchette... – Ele parecia sem palavras,
levando a mão ao coração e suspirando alto.
– Em termos biológicos, os homens dão
grande valor à uniformidade. As proporções
de sua genitália são ideais.
Sob aquele olhar, Penny sentiu-se menos
mulher e mais um experimento. Um ratinho
de laboratório.
Maxwell não melhorou a situação ao
emendar:
– Mulheres de sua faixa etária e status
econômico são o público-alvo da maior parte
dos bens industriais no mundo.
Alguma coisa, talvez a ducha, deu-lhe a
sensação de que seus dentes estavam se
110/503

desmanchando na boca, que os ossos das


pernas estavam derretendo.
– Isso vai aumentar seu prazer. – Ele
forçou as pernas dela com os joelhos para
que se abrissem mais. Sua ereção pairou
sobre ela, já acomodada no preservativo.
Desenrolando mais uma camisinha sobre a
primeira, Maxwell balbuciou algumas
palavras.
Enquanto falava, ele dirigiu mais uma vez
o olhar à seleção de garrafas borbulhantes no
criado-mudo. Escolheu uma e soltou gotas
de um líquido claro na palma da mão. Acres-
centou pingos de outras duas garrafas.
– O pH de sua pele é levemente ácido.
Estou misturando o lubrificante exato para
suas necessidades eróticas.
Ele espalhou lentamente o óleo ao redor
de sua vulva, com cuidado para os dedos não
a penetrarem demais. Espalhou a última
parte em seu órgão sexual ereto.
111/503

Penny começou a rir, mole como uma


boneca de pano.
Ele pegou mais uma coisa na mesinha. Era
o gravador digital. Apertou um botão e
disse:
– Se não se importa, gostaria de registrar
nossas sessões para pesquisa. – Uma luzinha
vermelha brilhou no aparelho. Começando a
ditar, Maxwell disse: – Com base no com-
portamento, por assim dizer, lúdico do ele-
mento, é seguro dizer que a ducha vaginal
está tendo efeito máximo.
E então ele a montou, introduzindo sua ri-
gidez contra a pressão do líquido. Ele estava
empurrando-o para dentro dela, mexendo e
agitando a preparação.
Penny arfava. Ela gritou, tanto de incô-
modo quanto de prazer. Sentiu a umidade
escapar e molhar os lençóis. Sentia o líquido
dilatar-se dentro de seu corpo. Contorceu-se
em vão, tentando fugir da sensação. Quanto
mais o prazer tomava conta dela, mais Penny
112/503

entendia por que Alouette ficara tão amar-


gurada, tão raivosa. Seja lá o que fosse o
líquido rosa, as nádegas pulsantes e a ereção
de Maxwell pareciam forçá-lo a entrar ainda
mais em seu corpo. Aos poucos, suas pernas
ficaram tão relaxadas que ela podia jurar que
estava voando. A sensação chegou a seus
braços. Seus seios pareciam intumescidos.
Sua mente abriu-se para aceitar um prazer
que ela não sabia existir.
Ela mal tinha noção de que Maxwell es-
tava ali. Enquanto as coxas dele batiam con-
tra ela, seu olhar inexpressivo observava as
reações no rosto de Penny. Ele lambeu os de-
dos e delicadamente torceu-lhe os mamilos,
focado como se abrisse um cofre. Sem perder
um movimento, pegou sua caneta e fez mais
uma anotação na caderneta.
Maxwell acariciou a parte interna das
coxas e o clitóris de Penny. Com as coxas, fez
ajustes milimétricos de ângulo e velocidade
dos impulsos. Medindo a reação dela,
113/503

calibrou a profundidade de cada ataque.


Dirigindo-se ao gravador, disse:
– O assoalho pélvico do elemento relaxou
in extremis. – Ele passou sua mão envolta
em látex pela parte inferior das costas dela,
tateando sua espinha até descobrir o que
procurava. Naquele ponto, as pontas de seus
dedos intensificaram a massagem.
– Para você entender – explicou Maxwell
–, estou usando dois dedos para comprimir
sua artéria de Hibbert anterior. É uma téc-
nica tântrica simples que um iogue do Sri
Lanka fez a gentileza de me ensinar. – Ele fa-
lava como um guia de excursão tagarela e
levemente desdenhoso. – Restringindo o
fluxo sanguíneo profundo para sua virilha,
deixo seu clitóris dormente. – O que quer
que ele estivesse fazendo, não precisava ol-
har. Seus dedos sabiam por onde ir. Seus ol-
hos continuaram fixos nos dela.
– Seus comentários são muito importantes
para o processo – disse Maxwell. Sua voz
114/503

parecia aveludada, mas Penny tentou se con-


centrar. – Entende o que digo? – ele pergun-
tou. – Faça que sim com a cabeça se
entender.
Penny fez que sim.
– Você precisa se preparar. Não tenha
medo. Não tenha medo de gritar. Você pre-
cisa deixar que o prazer atravesse seu corpo.
– Ele nivelou os olhos. – Se você impedir o
fluxo de prazer, pode acabar morta.
Penny fez que sim. Ela mal fazia parte do
mundo. Enquanto afogava-se no prazer, não
havia passado nem futuro. Nada existia além
daquele momento de ápice das sensações.
Não havia outro mundo fora a energia que
atravessava seu corpo.
– Em um instante, quando eu libertar a
pressão, o sangue fluirá por sua uris major e
você terá a maior satisfação que já experi-
mentou. – Com esse aviso, Penny sentiu as
pontas dos dedos deixarem sua espinha.
115/503

Uma coisa, alguma coisa clara e enorme re-


lampejou dentro dela.
– Grite! – ordenou Maxwell. – Não con-
tenha o êxtase. Não seja tola e puritana,
Penny! Grite!
Mas Penny não conseguia gritar. Uma fila
de obscenidades avolumou-se em sua gar-
ganta, mas ela manteve os dentes cerrados.
Seus membros se sacudiram e se debateram
sem controle. Uma torrente de baboseiras
animalescas e impropérios ameaçou fervil-
har de sua boca. O gravador ainda captava
tudo. Ela engoliu os uivos. Uma mão gelada
tocou-a no pescoço e ali ficou.
Maxwell proclamou:
– Para registro, a frequência cardíaca do
elemento é ligeira e irregular. – Ele falava
com o gravador. – Sua respiração é extrema-
mente superficial, e há indicações de que ela
adentra o coma erótico induzido.
Penny sentiu que ia morrer. A visão que
tinha dele congelou e começou a escurecer
116/503

nos cantos. Maxwell procurou alguma coisa


no criado-mudo. Com a almofada do dedão
envolta em látex, ele ergueu uma das pálpeb-
ras caídas de Penny e iluminou sua íris.
– A dilatação da pupila está vagarosa –
disse ele. Ao longo de toda a experiência,
suas coxas continuavam em movimento, in-
troduzindo e removendo sua ereção dura
como aço.
– Por que o sexo deveria ser de outra
forma? – comentou Max. – Tudo, o cinema,
a música, a pintura, é cuidadosamente calcu-
lado para nos manipular, para nos excitar. –
Ele lambeu dois dedos e passou-os como
uma tesoura em Penny, com toques rápidos
contra suas partes íntimas intumescidas. Es-
sas pequenas surpresas enchiam Penny de
mais prazer, deixando sua mente vazia. Não
importava o que estivesse pensando, ela es-
quecia em um instante. – As drogas são pro-
jetadas para ter a maior eficiência possível –
117/503

ele disse. – Por que não deveríamos dedicar


a mesma atenção às minúcias do sexo?
Penny tremeu como um criminoso na ca-
deira elétrica. Seus membros sacudiram, e
sua pele convulsionava como um fantoche
nervoso. Sua língua saltou da boca e lambeu
o nada.
– Não me abandone, Penny. – Ele a acom-
panhava atentamente. – Você vai entrar em
choque.
Penny sentiu algo se acomodar sobre sua
testa.
– A temperatura do elemento está
caindo... trinta e sete graus... trinta e seis... –
Era um termômetro de testa. Os lábios gela-
dos de Maxwell tocaram os seus. Seu hálito
morno preencheu sua garganta e inflou seus
pulmões. – O elemento parou de respirar –
pronunciou ele. Os pulmões dele mais uma
vez encheram os dela, assim como seu pênis
a preenchia. – Estou tentando ressuscitar o
elemento. – Em meio a tudo isso, Penny mal
118/503

percebia que ele ainda a comia com a mesma


cadência de estocadas longas e suaves. Mon-
itorava sua frequência pelo pescoço. – Use
minha respiração – ele ordenou. – Use
minha respiração para gritar. Expresse sua
exaltação. – Com a voz calma e inexpressiva,
ele disse: – Não morra quando tanto prazer
ainda a aguarda...

Agora Penny sabia por que os tabloides o


chamavam de “ClíMax”. Seria a primeira e
última vez que Penny veria Maxwell nu.
Haveria muito sexo por vir, talvez até de-
mais, mas nada que envolvesse os órgãos
sexuais dele.
Assim que Maxwell pediu licença para ir
ao banheiro, Penny voltou a gravação e
tentou achar seu grito. Queria apagá-lo. A
obscenidade que saíra de sua boca era de-
gradante. Ela parecia possuída por um
119/503

demônio, completamente fora de si. Não era


uma pessoa, mas o uivo de um animal no cio
ladrando às luas de tempos primevos.
Se ela podia confiar em ClíMax, aquele
acesso bestial salvara sua vida. Com ele, ela
permitira que a tensão de um orgasmo com
risco de morte a invadisse sem deixar danos
permanentes. O propósito da mulher,
afirmava ele, não era ser recipiente, mas um
canal de transmissão. Para que saísse viva,
todas as sensações deviam atravessá-la.
Entre as maratonas de excitação que cul-
minavam em orgasmos explosivos, Maxwell
dava aulas a Penny. Ele introduziu um dedo
e, sem mudar sua expressão, disse:
– Essa é sua uretra. – Girando o dedo,
continuou: – E essa... é sua esponja uretral,
mais conhecida como “Ponto G”.
A excursão dos dedos fez calafrios atraves-
sarem seu corpo.
120/503

Ele besuntou as mãos com um gel rosa,


com cheiro de rosas, para em seguida inserir
dois dedos.
– Quando massageio a parede posterior de
seu lago seminal...
Penny não tinha como ver, mas aparente-
mente era o que ele havia feito, pois ela se
contorceu com alegria desmesurada. Seja lá
o que Max estivesse fazendo, ela automatica-
mente empurrava suas coxas na direção da
mão dele, querendo mais.
– Essa é sua esponja do períneo, uma
massa de tecido erétil que conecta o nervo
pudendo ao clitóris.
Penny nem precisava olhar para saber que
seu clitóris estava rijo. Intocado, ele doía de
tão intumescido e pulsante.
Massageando tudo que encontrava, Max-
well estimulava o clitóris sem tocá-lo.
– A esponja do períneo é o motivo pelo
qual as mulheres podem atingir o orgasmo
121/503

fazendo sexo anal. – Ele deslizou o terceiro e


quarto dedos para dentro.
– Grande garota. Sua vagina está
“inflando”. Durante a excitação – explicou
ele –, a vagina interna expande-se,
alongando-se para criar um beco sem saída
depois do colo do útero. – Agora sua mão in-
teira estava lá dentro.
Penny olhou para baixo e viu apenas o
pulso suave e branco sumir dentro dela. Ao
ver a cena, soltou um gemido.
Os olhos de Maxwell tinham um aspecto
vítreo, distante, sem focar coisa alguma. Era
evidente que estava explorando um mundo
oculto com as mãos.
– Creio que esse seja seu colo do útero –
disse ele. – Se eu aplicar pressão constante...
Os dedos de Penny foram involuntaria-
mente à boca e ela mordeu uma junta.
Ganiu. Fechou os olhos, envergonhada pelo
choro que saía do fundo da garganta. Era um
terror ser seduzida tão além de seu controle
122/503

racional. Era tão assustador quanto ela ima-


ginava que fosse um ataque cardíaco. Mas
ela não queria parar.
Com a voz embargada de admiração e sur-
presa, Maxwell disse:
– Mas é excepcional! Você sempre ejacula
assim?
Penny abriu os olhos e espiou. Um filete
de um fluido tremelicante saía da parte su-
perior de sua boceta. O líquido escorreu pelo
braço de Maxwell até pingar de seu cotovelo.
– Desculpa – ela falou baixinho, tomada
de vergonha.
– Mas por quê? – perguntou Maxwell, tor-
cendo a mão nas profundezas dela.
– Estou fazendo xixi em você.
Ele riu. Com a mão livre, colheu uma gota
do líquido. Esfregou-o entre dois dedos, le-
vou os dedos ao nariz e cheirou. Depois, pro-
vou com a ponta da língua.
– Enzimas – pronunciou-se – das suas
glândulas de Skene. Por isso vêm de sua
123/503

uretra e não de sua vulva. – Ele levou os de-


dos úmidos à boca de Penny e perguntou: –
Quer experimentar seu próprio gosto?
Excitada como estava, ronronando e
debatendo-se como um bicho, Penny não
conseguiu lamber os dedos. Não precisou.
Ele enfiou os dedos na boca dela.
Amordaçou-a. Sufocou-a. O gosto de suas
secreções era metálico e salgado. Durante
uma breve eternidade ela não conseguiu
falar nem respirar.
A voz de Maxwell era de reprovação.
– Achei que havia dito que estava usando
um diafragma.
Não estava. O diafragma de Penny estava
em Jackson Heights, guardado em segurança
num cofre do banco Chase Manhattan.
Penny não queria ficar grávida. Só não tinha
planos de transar naquele dia.
Os dedos saíram de sua boca e deixaram-
na inspirar mais uma vez.
124/503

– Não pense que pode me enganar, sen-


horita Harrigan. – Os dedos ainda
passeavam dentro dela, mapeando seu
mundo oculto. – Quando e se eu me casar
com alguém, será por amor. Fiz uma vasecto-
mia há muitos anos.
Penny queria explicar-se, mas estava ex-
austa. Em vez disso, ela caiu para trás,
entregando-se mais ao prazer enquanto ele
acariciava suas glandes clitorianas. Ele
descreveu como o corpo do clitóris
prolongava-se até a pele. Com uma leve
pressão, fez o caminho do eixo até o ponto
em que se divide, o qual chamou de “crura”.
Esse caminho bifurcado, explicou Maxwell,
envolvia a cavidade vaginal.
Ele falou mais. Um prolongado e prolixo
registro de viagem sobre uma terra que
Penny nunca visitara, uma aula de história
sobre o mundo que havia dentro dela.
Maxwell explicou que os médicos, desde a
época de Hipócrates até os anos 1920,
125/503

recebiam instrução formal para levar as pa-


cientes ao “paroxismo”. Usando dedos e óleo,
realizavam um procedimento-padrão con-
hecido por médicos e parteiras para tratar a
histeria, a insônia, a depressão e uma série
de outras doenças comuns às mulheres.
Praefocatio matricis, o nome. Ou “sufocar a
mãe”. Até o vetusto Galeno recomendava a
manipulação vigorosa da vagina até ela expe-
lir prontamente o acúmulo de líquido.
Vibradores, afirmou ele, estavam entre os
primeiros eletrodomésticos a utilizar eletri-
cidade. Em 1893, um homem chamado Mor-
timer Granville havia feito grande fortuna ao
inventar um vibrador a pilha. Havia uma
ampla gama de brinquedinhos sexuais à
venda em revistas de circulação nacional e
no catálogo da Sears-Roebuck. Foi só depois
de aparecerem nos filmes pornográficos
grosseiros dos anos 1920 que os consolos vi-
bratórios viraram motivo de vergonha.
126/503

Galeno. Hipócrates. Ambroise Paré. Penny


não conseguia acompanhar a sequência de
nomes e datas. Depois do século dezesseis
ela caiu no sono. Sonhou que estava despen-
cando do alto da torre Eiffel. Caía porque
Maxwell a empurrara.

Quando acordou, o lado de Maxwell na


cama estava vazio. A porta do banheiro es-
tava fechada e ela ouviu de longe o barulho
de água corrente.
Teria sido Betty Friedan ou Gloria
Steinem? Penny não se lembrava, mas sabia
que uma delas havia escrito sobre a “trepada
sem culpa”, uma variedade ideal de sexo fis-
icamente gratificante que não impunha
obrigação emocional. Transar com Maxwell
encaixava-se perfeitamente no que a autora
tinha em mente. Penny sentiu-se fraca, como
se estivesse gripada. Mas durou apenas
127/503

alguns minutos; logo depois estava faminta.


Comeram e treparam, depois comeram e tre-
param outra vez. Infinitamente. Sem culpa.
Era oficial. Penny Harrigan nunca tivera
um orgasmo de verdade. Não igual à
sensação emocionante que Maxwell con-
seguira criar em seu corpo voraz. Pelo menos
dessa vez as descrições de fogos de artifício e
convulsões que ela tanto lera na Cosmopolit-
an pareceram meias-verdades, não um
exagero.
Acariciando o púbis de Penny, Maxwell
disse:
– Gostaria de te depilar... Os testes ficari-
am mais precisos.
Ela aquiesceu. Sem problema. Já tinha
feito depilação total e usado cera para usar
biquíni no último feriado.
– Dessa vez, os pelos não voltarão. – Ele
utilizou uma fórmula especial compartilhada
ao longo dos milênios por tribos uzbeques,
uma loção de aloe vera e purê de pinhão que
128/503

a deixaria eternamente lisa como uma


criança.
Penny olhou com tristeza para seus cach-
inhos tosquiados entre os lençóis. Disse a si
mesma que nunca gostara de ser peluda.
O que Maxwell aparentemente mais apre-
ciava no sexo era encontrar formas de coagi-
la a obter a máxima satisfação. Parecia ser
sua única fonte de prazer. Sempre que Penny
perguntava se ele queria gozar, ele dava de
ombros e dizia:
– Quem sabe na próxima vez. – Depois da
primeira relação, ele nunca mais viria a tirar
nem a camisa. Logo passou a vestir um jaleco
para não sujar as roupas.
Para uma mulher linda como Alouette,
acostumada a levar os homens à loucura, o
fato de Maxwell não gozar deve ter sido en-
louquecedor. Penny tentava não pensar na
francesa deslumbrante que ameaçara sua
vida, mas não era tarefa fácil. Alouette tivera
136 dias de intimidade com Maxwell.
129/503

Gwendolyn também tivera 136 dias. O Na-


tional Enquirer jamais mentia. A menos que
tivesse contado errado, Penny achava que
tinha 103 dias pela frente. Se o sexo continu-
asse naquele ritmo, não tinha certeza de que
viveria tanto tempo. Mas que jeito maravil-
hoso de morrer!
Se pelo menos ela conseguisse encontrar a
gravação de seu uivo, se a encontrasse e apa-
gasse, sua felicidade seria plena. A porta do
banheiro ainda estava fechada. Lá dentro, a
água continuava a correr.
Pegou o gravador no criado-mudo e voltou
a gravação. Apertou o play e ouviu: “... não
seja tola e puritana”. Penny sentiu-se
hipócrita, mas não queria que outro ser hu-
mano ouvisse o monte de baixarias que
transbordou de sua boca. Apertou o play
mais uma vez e finalmente ouviu um grito.
Com o chuveiro a toda pressão, ela torcia
para que Maxwell não percebesse o que es-
tava fazendo.
130/503

Alguém estava gritando em francês. Não


que Penny entendesse o idioma, mas ima-
ginava o que era dito com base em sua exper-
iência. Era Alouette sob influência do cham-
panhe rosê com os ingredientes secretos. Ela
avançou a apertou o play.
– Não me abandone, Penny – disse a
gravação.
Enquanto ela ouvia, encantada, o aparelho
em suas mãos soltou um toque estridente.
Não era somente um gravador, era um tele-
fone! Penny ficou tão assustada que quase o
deixou cair no chão; resolveu então devolver
o telefone ao criado-mudo, onde ele continu-
ou a tocar e tocar. Quando tentou ver o nome
de quem ligava, leu apenas “Número
Privado”.
Penny deu um salto da cama. Bateu na
porta do banheiro.
– Max, seu celular! – Tentou girar a
maçaneta, mas estava travada. Ela ouvia o
chuveiro e uma voz cantando uma música
131/503

desconhecida. Alguns toques depois, foi ven-


cida pela curiosidade. Ela levou o telefone ao
ouvido e disse:
– Alô?
Silêncio.
A porta do banheiro se abriu e Maxwell
saiu, com uma toalha enrolada na cintura e
cabelo encharcado. Ao vê-la atendendo seu
telefone, suas sobrancelhas uniram-se em
fúria, e ele estalou os dedos, com um sinal
para ela desligar.
– Alô? Corny? – perguntou uma voz fem-
inina. Uma voz conhecida. – Max... – disse
ela. – Não foi culpa minha – justificou-se. –
Fique calmo, por favor.
Penny entregou o telefone a Maxwell. Ela
ainda ouvia a voz falando alto, nervosa, im-
plorando. Ele levou o telefone ao ouvido e es-
cutou, atento. Aos poucos, seus olhos
começaram a vagar pelo chão. Quanto mais
tempo a pessoa do outro lado falava, mais
132/503

sua expressão nervosa se transformava em


preocupação, deixando-o pensativo.
– Não tem problema – disse ele. – Os in-
gredientes ativos não estão na relação de
substâncias nocivas ou controladas pelo gov-
erno. – Ele ouvia e balançou a cabeça. –
Bom, então indique um novo presidente para
a FDA. Escolha alguém que consiga agilizar
a aprovação dos produtos.
A ligação era de uma pessoa que Penny já
vira na televisão. Era uma voz que trazia à
mente um corte de cabelo alinhado, ao nível
do ombro. Tailleur azul. Colar de pérolas.
Uma mulher falando atrás de uma floresta
de microfones em entrevistas.
Ainda ao telefone, com os olhos em Penny,
Maxwell disse:
– Estou na fase final de testes. Estamos
ajustando a produção para lançar no verão.
No mês que vem estaremos em quinhentos
mil pontos de venda. – Ele deu as costas a
Penny e entrou no banheiro. – Você sabe o
133/503

que está em jogo. Não me obrigue a tomar


atitudes que farão você se arrepender.
A porta se fechou. Talvez para abafar o
diálogo, ele ligou o chuveiro na potência
máxima.
A menos que Penny estivesse enganada, a
mulher ao telefone era a presidenta dos Esta-
dos Unidos, Clarissa Hind.
Penny ficou pensando em qual seria a
fantástica invenção que já estava em fase de
testes.

Peripécias sexuais sem hora para acabar


fariam parte da rotina de seus próximos dias
e noites. Max sempre tinha um brinquedo,
uma poção, um lubrificante magnífico para
mostrar a ela.
Ele a levava ao clímax até suas costas
doerem e suas pernas perderem totalmente o
134/503

controle. Instigava-a de maneira delicada,


dizendo:
– Estamos quase lá, falta apenas mais um
ajuste. Não podemos perder o cronograma.
Sua mão sondava as partes internas de
Penny.
– Estou procurando seu plexo pudendo.
Deveria estar bem aqui.
Em outras ocasiões, frustrado em sua ex-
ploração, ele usava a mão livre para desdo-
brar atrás dela um diagrama de anatomia,
que usava como mapa. Era canhoto e
mantinha os dedos plantados na vagina
como se estivesse marcando a página de um
livro. Você está aqui. Com uma mão lá den-
tro, usava a outra para alisar os vincos do
diagrama e traçar um dedo pela rota en-
quanto balbuciava:
– Os ramos dos nervi pelvici splanchnici
bifurcam-se aqui, perto de seus nervi
erigentes... – Ao achar o que queria, ele mex-
ia em algo profundo dentro dela e
135/503

exclamava, triunfal: – Penny! Sabia que seu


plexo coccígeo está dois centímetros deslo-
cado para a frente? – Tateando às cegas, ele
complementava: – Não se preocupe. Parece
estar dentro dos parâmetros.
Vez por outra, ele usava algum instru-
mento de prazer que estivesse em testes.
Apoiava-o em um canto do criado-mudo e
torcia levemente o metal ou o plástico. Às
vezes, usava um par de alicates, normais ou
de pressão, que deixava na gaveta da mes-
inha. O pior era quando ele batia várias vezes
o instrumento contra a mesa, arruinando a
elegância do móvel até conseguir a curva
desejada.
Nessas ocasiões, o quarto parecia aquelas
fotografias em sépia do laboratório de Tho-
mas Edison que Penny vira em Menlo Park.
Ou da oficina de Henry Ford. De sua parte,
Penny sentia-se menos uma namorada e
mais uma assistente de laboratório. Como
Dr. Watson ou Igor. Ou o cão de Pavlov.
136/503

Enquanto Max prosseguia em suas


experiências, conduzindo-a a mais con-
vulsões e espasmos de prazer, apesar de seu
humor, de sua indiferença e de seu despeito
crescentes, Penny tinha uma leve esperança
de que ele gritasse “Eureca!”.
Maxwell ficava imerso em sua tarefa, fo-
cado como um relojoeiro suíço ou um neuro-
cirurgião. Muitas vezes, requisitava a seu ca-
mareiro ou mordomo que trouxesse uma
bandeja com instrumentos esterilizados para
que não se desconcentrasse do
procedimento.
– Paquímetro! – bradava, estendendo o
antebraço, e o subordinado batia a ferra-
menta contra sua mão aberta. – Suor! – ber-
rava, e o criado passava uma toalha de papel
para limpar as gotas de transpiração em sua
testa.
Havia vezes em que Max descia a cabeça
abaixo dos joelhos dela, com uma lantern-
inha entre os dentes e uma lupa de joalheiro
presa ao olho, como um explorador. Seu
rosto afrouxava com a concentração.
– Escolhi você porque você nunca havia
tido um orgasmo – explicou Max. – Os ho-
mens sabem. Você estava adormecida, e nin-
guém até então a havia despertado. É o perfil
típico das mulheres que tento ajudar.
Ele começou a ler algo em uma folha
impressa:
– “Por tempo demais, as mulheres foram
privadas do prazer que se encontra dentro de
seu próprio corpo.” – Era um press release.
– “Eu acredito, assim como muitos profis-
sionais da área médica, que grande parte dos
transtornos mentais e físicos que acometem
as mulheres ocorre porque acumulam um es-
tresse que poderia ser liberado de forma fácil
e rápida com o devido instrumental...”
138/503

Mesmo aos ouvidos ingênuos de Penny, o


discurso parecia uma sequência de eufemis-
mos. Segundo Maxwell, tinha que ser assim.
Ele vendia sexo. Ainda mais controverso era
vender às mulheres os meios para alcançar
uma experiência sexual melhor do que ja-
mais tiveram com homens. Para alguns, esse
anúncio pareceria um jargão ininteligível,
um comercial antigo de um sabonete íntimo.
Mas, para outros, no caso homens que dav-
am valor apenas à sua cobiça sexual, era um
discurso que soaria como o fim do mundo.
Os dois estavam sentados na cama. Ultim-
amente, estavam sempre na cama. Penny
nunca vestia mais do que um robe, e só o
fazia para receber as refeições gourmet trazi-
das pelo mordomo.
– “E é por isso” – Maxwell prosseguiu –
“que temos o prazer de apresentar a linha de
produtos de beleza Beautiful You...”
C. Linus Maxwell estava se preparando
para expandir sua vasta corporação e
139/503

adentrar o campo das vaginas vazias. Todos


aqueles géis e líquidos de tom perolado no
criado-mudo. A ducha mágica de champanhe
rosê. Os líquidos calibrados para modular o
coeficiente de fricção. Ele levaria tudo aquilo
às consumidoras femininas e solitárias.
As embalagens seriam cor-de-rosa, mas
não de maneira ofensiva. A linha seria ven-
dida sob a marca guarda-chuva Beautiful
You. Manipulando seu smartphone com os
polegares, Maxwell mostrou a Penny um
protótipo dos anúncios, com as palavras
“Beautiful You” curvas em arabescos bran-
cos. Um slogan abaixo de cada anúncio dizia:
“Melhor que amor”. A ducha, explicou Max-
well, seria vendida como pó solúvel em
pequenos envelopes, a ser misturado com
água ou champanhe. Era apenas um dos di-
versos produtos de beleza chocantes de tão
inovadores. Logo toda mulher teria orgas-
mos avassaladores a preços módicos.
140/503

Todos os estudos e pesquisas sobre o erot-


ismo que Maxwell fizera com swamis, médi-
cos e cortesãs e todos os segredos sexuais do
mundo ancestral: era isso que ele estava
prestes a vender para a mulher contem-
porânea. Toda garota, de Omaha a Oslo,
muito em breve estaria experimentando os
orgasmos desenfreados que Penny descobri-
ra havia pouco. Era um assombro imaginar
como aquilo mudaria o mundo. Como os
casos anteriores de Maxwell haviam demon-
strado, com a devida satisfação sexual as
mulheres podiam desabrochar, perder peso,
vencer as drogas. A realização pessoal de to-
das as mulheres começaria em questão de
semanas.
Nos últimos dias, isolada na cobertura
parisiense de Maxwell, Penny já perdera três
quilos e meio. Dormia como um bebê. Nunca
se sentira mais relaxada e tranquila.
Confessava apenas a si mesma certo or-
gulho por ter dado sua contribuição,
141/503

pequena que fosse, ao projeto. Max ainda


ajustava algumas receitas. Aparava algumas
arestas. Em um futuro próximo, meninas ex-
atamente como ela, garotas normais que não
tinham um corpo fora de série nem um rosto
muito bonito, teriam acesso ao prazer abso-
luto até então reservado apenas às estrelas
do cinema.
Enquanto via fotos de protótipos de brin-
quedos eróticos, lubrificantes e camisolas,
Penny perguntou:
– Por que “Beautiful You”?
Maxwell deu de ombros.
– Os “criativos” do marketing disseram
que esse nome teve o melhor resultado nos
testes. E é fácil de ser entendido em qualquer
lugar.
Jovem ou idosa. Gorda ou baixinha. Bil-
hões de mulheres aprenderiam a amar seus
corpos. Beautiful You seria uma bênção para
toda a humanidade feminina. Penny sabia
que se os produtos para consumo de massa
142/503

tivessem metade da potência dos protótipos


que ele vinha experimentando nela, C. Linus
Maxwell rapidamente duplicaria sua fortuna.
De brincadeira, ela perguntou:
– Você já não tem dinheiro suficiente?
Mais uma vez, o sorriso triste cruzou seus
lábios.
– Não se trata de lucro – ele respondeu. –
Não ao preço que tenho em mente.
Era pela mãe, Penny imaginou. Não era o
sonho de todo garotinho honrar a mãe sofre-
dora? A mãe de Maxwell havia lutado para
dar a seu garoto uma chance no mundo e
morrera antes que ele pudesse demonstrar
sua gratidão. Dava um certo arrepio a ideia
de que ele honrava a mãe distribuindo sexo
de qualidade para as mulheres... Sua mo-
tivação era nobre e comovente.
Um pensamento ocorreu a Penny. Não era
da sua conta, mas ela perguntou:
– Você ainda sente saudades? De sua
mãe?
143/503

Ele não respondeu. Voltou a ler seu press


release em silêncio.
Impulsiva, ela prostrou-se para lhe dar um
beijo na bochecha.
– Por que isso? – ele perguntou.
– Por ser um filho tão querido.
E mais uma vez, o sorriso descorado, furt-
ivo, de um garotinho órfão e solitário.

– Não é o Spanish Fly. Nem se compara –


ele insistiu.
Em uma rara aparição em público, os dois
foram jantar em um restaurante chique na
vizinhança de St. Germain, no sexto arron-
dissement. Como sempre, a mesa à luz de
velas que ocupavam era o centro das
atenções. Até os parisienses, quase sempre
reservados, fitavam-nos descaradamente.
O mítico afrodisíaco conhecido como
Spanish Fly, explicou Maxwell, era feito com
144/503

a cantárida, um coleóptero verde-esmeralda.


O inseto, quando seco e moído até formar
um pó bem fino, podia ser misturado a uma
bebida para provocar uma inflamação severa
do trato urinário. Era esse o mítico efeito que
supostamente levava as mulheres a implorar
por sexo. Na realidade, era tão empolgante
quanto uma urticária interna.
– Isso aqui será diferente – disse Maxwell,
girando uma cápsula rosa entre os dedos.
Ele retirara a invenção de seu bolso por
um instante apenas. Assim como todos os
seus brinquedinhos, a bolinha rosa era um
produto da linha Beautiful You. Aproxima-
damente do tamanho de um ovo de codorna,
ela parecia uma bala, algo que deveria estar
em cestas de Páscoa. Tinha cor de chiclete.
Penny tirou o objeto das mãos dele.
– Então é para eu engolir?
Maxwell riu com a pergunta inocente. Fez
uma negativa e disse:
145/503

– Não, minha cara. É um supositório va-


ginal com uma fórmula aperfeiçoada para in-
crementar o desejo feminino.
Ele ficou observando Penny girar a con-
tinha rosa entre os dedos.
– Perceba a leve viscosidade do revesti-
mento. É uma camada de silicone impreg-
nada com um suave estimulante de ervas. Se
o pênis adentrar a cavidade vaginal e encon-
trar essa continha, os dois parceiros com-
partilharão do prazer de seu efeito.
Penny apertou a bolinha entre os dedos.
Era macia. Parecia extremamente pesada na
palma de sua mão. Ela deu um sorriso
travesso, ergueu o guardanapo do colo e
secou delicadamente os cantos da boca. Per-
guntou ao garçom que passava:
– Excusez moi, onde fica o toilette?
Ao retornar do banheiro, Penny viu sua
nêmesis: Alouette. Ela estava sentada em um
lugar discreto, a um canto, acomodada de
forma que não chamasse atenção. Seu rosto
146/503

parecia abatido, mais magro do que Penny se


lembrava. Os olhos pareciam mais fundos.
De alguma forma, as experiências no
quarto haviam acalmado Penny e renovado
sua autoconfiança. Audaciosa, ela caminhou
até a mesa da rival. A pílula rosa já estava
dentro de si, fazendo o efeito que Maxwell
havia projetado. Penny mirou a mulher des-
figurada e disse:
– Alouette, como você está bem!
– Não, não estou – retrucou a atriz. –
Estou uma merda, e é tudo culpa de Max.
Penny estreitou o olhar.
– Está me seguindo?
Alouette suspirou. Passou os dedos de
uma das mãos pelos cabelos compridos e
encorpados.
Penny não pôde deixar de notar os fios
que saíram entre os dedos. Já havia alguns
fios caídos na mesa e no estofado.
147/503

– Meu primeiro impulso foi salvá-la, rat-


inha – começou Alouette –, mas agora vejo
que você foi reduzida a uma vadia idiota.
Penny estremeceu diante dos termos.
– Apesar de meu aviso, você deixou que
Maxwell a enfeitiçasse. – Os olhos de Alou-
ette encheram-se de pena. Não havia rancor
em sua voz. – Você já foi alguém, mas como
foi veloz em jogar fora seus sonhos para se
tornar mais uma sedenta conass.
Penny virou-se para ir embora, mas Alou-
ette perguntou:
– Ele já te ofereceu a bolinha negra?
– Que bolinha negra? – Penny perguntou,
séria.
A atriz apenas sorriu com ironia.
– Talvez isso seja divertido – ela
escarneceu.
Quando Penny voltou à mesa, Maxwell
não se levantou para puxar-lhe a cadeira. Fez
sinal para ela chegar mais perto e estendeu-
lhe a mão. Ele segurou a mão dela
148/503

carinhosamente por um instante. Beijou-a e


soltou algo em sua palma. Ela abriu a mão e
lá estava a bolinha negra. De tamanho e
formato idênticos à primeira. A única difer-
ença era a cor.
– Rosa para sua vagina – disse Max. –
Negra para seu doce ânus. É melhor simplifi-
car. Toda a linha de produtos Beautiful You
usará esse mesmo sistema de cores.
Obediente, Penny fez sua segunda visita ao
toalete.
As pílulas começaram a fazer efeito antes
mesmo de seu retorno à mesa. Maxwell
puxou a cadeira para ela e voltou à sua, do
outro lado da mesa. Começaram a estudar os
cardápios.
A sensação começou com um ardor delic-
ado na virilha. Depois, uma cólica luxuriosa.
Cresceu até parecer que algo voraz e com
dentes macios mastigava suas estranhas,
devorando-a por dentro.
149/503

Ela inspirou tão alto que chamou a


atenção de outras pessoas. Penteados
elaborados viraram-se para olhá-la. Para
manter as aparências, ela levou um guard-
anapo à boca e fingiu que tossia. Melhor
acharem que ela tinha tuberculose do que
saberem que fora acometida por uma se-
quência de orgasmos múltiplos.
– Não se preocupe – disse Maxwell. – Não
haverá dano permanente. O revestimento de
silicone é muito macio.
Algo se retorceu e se debateu, entranhado
dentro dela.
– As duas continhas são ímãs naturais –
explicou Max. – Eu não pude entregá-las ao
mesmo tempo porque a atração entre elas é
muito forte. – Ele ergueu a caneta e se pre-
parou para tomar nota. – A antiga tribo
peruana dos chichlachas chamava-as de
“pedrinhas casadas”: uma vez que as duas se
encontram é quase impossível separá-las.
150/503

Ele explicou que a continha negra estava


instalada na parede anterior do reto de
Penny e a rosa estava alojada na parede pos-
terior da vagina. As bolinhas, mesmo revesti-
das de silicone e inseridas em orifícios dis-
tintos, haviam se encontrado. A fina camada
de músculo entre as duas cavidades, com sua
farta rede de terminações nervosas, estava
sendo comprimida e massageada por dois
potentes ímãs. Eles apertavam o mais
sensível ponto entre os dois.
Saboreando a reação dela, o gênio maligno
fez sinal para um garçom.
– Apenas sua sensível esponja do períneo
separa as continhas. Você está indefesa. Seu
sistema nervoso erógeno está sob ataque.
Para não gritar, Penny começou a morder
sua unha meticulosamente tratada. Seus
mamilos ficaram tão duros que os seios pare-
ciam prontos a levitar do bojo de seu sutiã.
– Você ainda é jovem – disse Maxwell. Ele
estudou a reação dela com cuidado. –
151/503

Entenderei caso não consiga lidar com todo


o potencial do corpo feminino. – Ele estava
zombando dela, fazendo-a suportar essa
provação em público. Enquanto casais eleg-
antes jantavam e batiam papo ao lado deles,
ondas orgásmicas de energia sexual arre-
batavam Penny.
Um garçom aproximou-se da mesa e
perguntou:
– Gostaria de fazer seu pedido, madame?
Era como se planetas estivessem em col-
isão em sua pélvis, traçando órbitas confusas
dentro dela. Grandes mares agitados, uma
erosão em sua sanidade. Ela cruzou as per-
nas com força na vã tentativa de travar o
jorro que viria.
Em tom pensativo, Maxwell disse ao
garçom:
– Hoje a moça vai querer um bife enorme.
– Dirigindo-se a ela, acrescentou: – Ou pref-
ere uma suculentíssima porção de língua?
152/503

Mesmo com os espasmos estremecedores


de êxtase dominando seu corpo, Penny sen-
tia a ponta do pé de Maxwell subindo por sua
perna. Do tornozelo ao joelho, aquela suave
rigidez passeou até cutucar a virilha dela.
Penny lembrou-se do momento em que eles
se conheceram, quando, esparramada no ta-
pete, viu seu rosto desgrenhado refletido na
ponta engraxada do sapato. Ela não con-
seguia falar. Suas mãos trêmulas tocaram a
saia do vestido e perceberam que estava en-
sopada. O guardanapo em seu colo também.
Sem dar atenção ao garçom, ela empurrou o
pé de Max para o lado e tentou se levantar.
Agarrando-se ao espaldar das cadeiras e per-
turbando seus endinheirados ocupantes, ela
foi aos tropeços até o banheiro. As pernas
tremiam, enfraquecidas pelos espasmos de
prazer. Quando estava quase na porta, seus
joelhos cederam e ela caiu. Estava exausta.
Com o cabelo caído diante do rosto, ela en-
gatinhou os últimos passos e refugiou-se no
153/503

santuário de azulejos. Em segurança no


cubículo, ela subiu a saia úmida e introduziu
dois dedos dentro de si. Sentia a pílula rosa,
mas não conseguia pegá-la. O silicone
escorregava.
Arqueando as costas, Penny enfiou dois
dedos no ânus e tentou encontrar a bolinha
negra, mas foi em vão.
Uma voz atrás dela disse:
– Você não vai conseguir tirar sozinha. –
Era Alouette. A estrela de cinema a havia
acompanhado até o banheiro. Ela ficou
parada, em pé, assistindo ao dilema erótico
de Penny. – No ano passado, eu estava nesse
mesmo banheiro. Quem salvou minha sanid-
ade foi um cumim. Rapaz de coragem. Como
se fosse veneno de uma víbora, ele sugou a
bolinha negra de meu derrière.
Inclinando sua virilha para a frente, Penny
implorou:
– Por favor. – A voz era quase um ganido.
154/503

Alouette avaliou a vulva nua e deu um


curto assobio.
– Então é essa a atração que Maxwell tem
por você, ratinha. É a boceta mais bonita que
já vi na vida. – Ela lambeu os lábios. –
Gloriosa.
As secreções de Penny pingavam no chão e
começaram a formar uma pequena poça.
– Relaxe – aconselhou Alouette. – Apenas
o fluxo intenso de seus fluidos poderá fazer a
pedrinha do amor escorrer de onde está! –
Alouette ajoelhou-se nos azulelos e segurou
as coxas de Penny. Pressionando sua boca de
estrela de cinema com força contra a vagina
transbordante da jovem, ela começou a chu-
par. Penny se precipitou ao seu encontro,
cavalgando naquele rosto tão belo como se
fosse uma sela. Conseguia sentir os dedos de
Alouette explorarem seu reto.
A enchente de estímulos aos poucos cedeu.
Alouette ergueu a mão que estava na virilha
de Penny e cuspiu a continha rosa no vaso.
155/503

Sem sua parceira, a bolinha preta saiu com


facilidade, presa entre os dedos da atriz, e ela
a segurou no ar para Penny ver antes de
jogá-la na água. Os dois ímãs grudaram-se
com uma força incrível, e Alouette deu
descarga. Avaliando os estragos na masque
de Penny, ela disse:
– Não me agradeça, ratinha. Um dia você
vai desejar que eu a houvesse deixado mor-
rer de prazer. – Enquanto ia a um espelho
para retocar o batom, ela disse: – Já é tarde
demais para você. Em breve você será mais
uma escrava.

Quando não estavam em banquetes de


comidas exóticas em meio a pessoas ilustres,
eles eram levados pelo chofer de Maxwell em
Paris a seu château no vale do Loire. Lá ela
vagava pelos enormes salões, examinando
antiguidades inestimáveis que haviam
156/503

pertencido a muitas celebridades antes de


Max. Havia algo de solitário em ser famoso.
Ela passeava pelos jardins do château en-
quanto seguranças com metralhadoras a ob-
servavam do telhado e câmeras docu-
mentavam cada um de seus passos.
Penny deixara as articulações dos dedos
em carne viva de tanto abafar os gritos de êx-
tase. Se permitisse que aquilo continuasse
durante alguns meses, achava ela, teria uma
overdose de prazer que a deixaria satisfeita
para a vida toda. Ela podia refletir por um
instante sobre questões de altíssima relevân-
cia, como a fome no Sudão, mas aí Max
enfiava-lhe secretamente algum novo
produto e sua mente ficava vazia. A euforia
apagava tudo. Não lhe sobrava energia para
preocupar-se com a carreira jurídica, nem
com o tenebroso futuro de seus pais envel-
hecendo no Nebraska. Nem com a mudança
climática global. Ela ficava totalmente
fechada em seu corpo, no momento da
157/503

sensação de glória. Não havia passado, nem


futuro, e só Max conseguia mantê-la naquele
lugar. Com seu toque, o mundo vinha abaixo.
Não existia nada fora Paris, fora sua cama,
fora seu clitóris pulsante.
Ela estava ganhando tudo o que sempre
lhe disseram que a faria feliz – roupas Gucci,
sexo avassalador, fama –, mas a cada dia
sentia-se mais infeliz. Não ajudava o fato de
que as pessoas esperavam que ela estivesse
em êxtase. Ninguém queria ouvir os prob-
lemas de uma Cinderela frustrada; ela tinha
a obrigação de viver feliz para sempre. Mas
isso... Nada ali era a grande missão de vida
que ela esperava encontrar.
Ela começou a fazer as contas, quase
nervosa para que o relacionamento chegasse
ao fim. Faltavam apenas 87 dias.
Penny sabia que deveria estar vivendo
bem na sua idade, abrindo-se para os outros,
tendo desventuras. Desejava encher a cara
em alguma das festas de arromba onde a
158/503

amiga Monique provavelmente estaria


naquele exato momento. Aceitaria até uma
festa da Sigma Chi com tonéis de cerveja e
garotos de fraternidade usando suas ereções
contínuas para ameaçar as colegas.
Na cobertura ou no château, quando es-
tavam a sós, Max nunca queria conversar. Só
queria testar suas invenções tântricas. Penny
justificava esse comportamento dizendo a si
mesma que ele estava sob pressão. Com
apenas um mês para o lançamento da linha
Beautiful You, tudo precisava estar perfeito.
Mesmo assim, ela ainda tentava aliviar a
tensão. Contava piadas, fazia elogios a seus
carros, cabelo, roupas, mas ele mal dava
ouvidos à bajulação.
Nem as famosas lojas da capital francesa a
animavam, depois de semanas entrando e
saindo das elegantérrimas butiques. Os
maiores estilistas disputavam Penny.
Independentemente do que vestisse, eles lhe
diziam que estava fabulosa. Chegavam a lhe
159/503

oferecer comissão para vestir suas marcas


em eventos importantes. Tudo era muito
falso. Ela sabia que estava horrível e que eles
só queriam aparecer. Seu pescoço era muito
curto e muito grosso. Seus seios eram muito
pequenos e, além disso, assimétricos. Suas
coxas eram muito grossas. Os espelhos dos
ateliês não mentiam.
Antes de ficar famosa, algumas pessoas
em Nova York haviam criticado seu corpo na
caradura, mas pelo menos haviam dito a ver-
dade. A única parte realmente bonita de sua
anatomia eram as partes íntimas. E Penny
não tinha como pedir a Christian Lacroix
para desenhar um vestido que realçasse esse
aspecto.
Durante as compras, ela procurava
presentes que pudessem entreter Max, o que
era difícil, muito difícil. O que dar a um
homem que tem tudo? Que tem todo
mundo? A única coisa que parecia agradar
Maxwell era quando um protótipo ou nova
160/503

fórmula levava-a a níveis mais altos de


prazer. Quanto maior a excitação de Penny,
maior o interesse dele. Ao perceber isso,
Penny resolveu dar-lhe um presente da única
forma possível.
Em uma noite, quando determinado
aparelho – um brinquedo que parecia uma
pinha projetada para alargar-se dentro do
corpo dela, baseado em uma quinquilharia
pré-colombiana – não funcionou, Penny não
deixou que ele soubesse. A sensação havia
sido boa, mas não mais do que isso. Penny
preocupou-se que pudesse estar saturada.
Talvez estivesse sofrendo alguma espécie de
fadiga em seus transmissores de prazer.
Quando percebeu a frustração de Max,
restou-lhe apenas dar um gás em sua per-
formance. Então, saracoteou pela cama como
um leão-marinho e bateu os braços. Latiu
como um cachorro e cantou como um galo.
No ápice do orgasmo falso, apesar de bem-
intencionado, Maxwell lhe disse:
161/503

– Pare.
Ele olhou para ela, impávido. Puxou a
corda de seda que prendia o brinquedo e o
deslizou entre as pernas de Penny. Como
uma criança mimada, Maxwell enrolou o
cordão no aparelho e disse:
– Não pense que algum dia poderá mentir
para mim. Um cientista é, em primeiro lugar,
um ávido observador. Sua frequência
cardíaca em momento algum superou as 105
batidas por minuto. Sua pressão sanguínea
nem mudou desde que começamos.
Claramente frustrado, ele soltou o instru-
mento falho sobre o criado-mudo.
– O que mais aprecio em você é sua crítica
sincera e sem filtros. – Ele apertou um botão
para chamar o mordomo. – Paremos por ho-
je. Essa noite foi um desperdício.
Maxwell pegou o controle remoto e ligou a
televisão. Um barulho de tiros e pneus
derrapando preencheu o enorme quarto.
Sem tirar os olhos da tela, ele disse:
162/503

– Você nunca, nunca mais deve fingir


comigo. – Sem tirar os olhos da TV, ele disse:
– Se eu quisesse resultados falsos, continuar-
ia a fazer testes com prostitutas.

Na mesma noite, algo fez Penny despertar


de repente. Um ruído abafado. Ela prendeu a
respiração e ouviu apenas o silêncio de seu
quarto na cobertura. O ar-condicionado fazia
as cortinas da janela dançarem. Max estava
deitado ao seu lado, dormindo entre os
lençóis de seda, com seu relógio de cabeceira
a registrar três horas e dezoito minutos.
Antes que pudesse voltar à terra dos sonhos,
o som voltou. Era um murmúrio em voz
masculina.
Maxwell falava enquanto dormia. As pa-
lavras não passavam de gemidos. Pareciam:
“Fonte”. Talvez duas palavras: “Foi ele”.
Penny não tinha certeza. Apoiou-se no
163/503

cotovelo para se aproximar. Ele resmungou


de novo: “Filme”.
Ela chegou mais perto. Muito perto. Como
se um alarme tivesse disparado, ele gritou
com a voz áspera de pânico:
– Phoebe! – O acesso deixou Penny ator-
doada. A palavra ficou pairando em sua
mente. Phoebe. Em seguida, ele ficou em
silêncio.
Aparentemente, quem via a cara não via o
coração de C. Linus Maxwell. Dentro daquele
peito frio e científico batia um coração de
verdade. Se ao menos ele pudesse dividir
seus segredos, cogitou Penny, esperançosa,
quem sabe a relação deles pudesse ir além da
maravilha sexual e virar um romance de
verdade.
A mesquinhez de Maxwell sempre a sur-
preendia. Por fora, ele ainda era um garoto,
um geek obcecado por ciência. Um tirano
distante, que sufocava suas emoções e afetos.
Sua pele era inodora e fria como metal, como
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os robôs em filmes de ficção científica. Mas


quando ele a estimulava...
Quando Max a estimulava, a sensação era
como ouvir um tenor na Ópera de Paris ou
como jantar al fresco a iguaria italiana mais
deliciosa. Mesmo que Max não a amasse,
Penny não tinha defesa quando ele excitava
suas glândulas. Apesar da frieza e da
crueldade, momentaneamente ela sentia-se
apaixonada. Quando seus apetrechos Beauti-
ful You revolviam a paixão dentro dela,
Penny fitava aqueles olhos azuis, tão dis-
tantes, e não desejava mais nada no mundo.
Era como se Maxwell a houvesse
enfeitiçado.
Penny queria acreditar que fazer amor era
mais do que ativar terminações nervosas até
que substâncias químicas desabaladas es-
guichassem por seu sistema límbico. Ela
sabia que o amor de verdade era duradouro,
era uma coisa da alma, algo que podia
sustentar, nutrir uma pessoa. O “amor” que
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Max gerava parecia evaporar tão logo


extinguia-se o orgasmo. Apesar da reação de-
liciosa, os produtos Beautiful You eram nada
além de um substituto para o amor, bem po-
tente, aliás.
Seu maior medo era de que as mulheres
do mundo não notassem a diferença.

No dia seguinte, ela teve um lapso de in-


spiração e resolveu telefonar para a mãe em
Omaha.
– Como está Paris? – a mãe perguntou, só
para puxar assunto. – Me diga que sua men-
struação atrasou!
– Como você sabe que estou em Paris? –
Penny a desafiou.
De longe, a mãe estalou a língua.
– Querida, você está na primeira página
do National Enquirer todos os dias com a
torre Eiffel logo atrás!
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Penny estremeceu. Fazia semanas que


vinha ligando para o trabalho dizendo estar
doente. Disse a Brillstein que tinha hepatite
C. A não ser que toda a BB&B morasse em-
baixo da terra, eles só podiam saber que ela
estava mentindo.
– Estão chamando você de “Cinderela do
Nerd”! – berrou a mãe. Ela sempre gritava
em telefonemas de longa distância.
– Mãe?
– Viu a foto da presidenta Hind na semana
passada? – berrou a mãe. – Ela está
horrível!
Penny tentou uma saída:
– Quem sabe seja hepatite.
– E aquela Alouette D’Ambrosia? Ela
parece ainda pior. – A mãe de Penny a aler-
tou: – Não vá deixar Maxwell escapulir. Toda
moça que termina com ele vai pro inferno.
Penny tentou mudar o rumo da conversa.
– Foi por isso que liguei, mãe. Você tem
edições antigas do Enquirer?
167/503

– É só dizer a data – a mãe respondeu, or-


gulhosa. – Tenho todas as edições desde
1972.
– Está brincando?
– É a obra da minha vida – gabou-se a
mãe.
– Eu queria fazer uma surpresa para Max
– disse Penny –, mas não sei muita coisa
sobre ele, a infância, do que ele gosta, não
gosta, entende?
– Por que você não usa a Wiki-sei-lá-o-
quê?
– Wikipédia, mãe. Também não ajuda.
Com uma voz resignada, Penny explicou
que “ClíMax” tinha equipes de hackers que
viviam de perscrutar a internet e gerenciar
sua imagem pública. Ele controlava cada de-
talhe pesquisável na rede.
– Estou procurando histórias publicadas
antes da internet.
A mãe dela pareceu hesitar.
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– Querida, é o Enquirer, não o New York


Times.
– Mãe, por favor.
– O que você tem em mente?
Penny parou para pensar.
– Os nomes dos bichinhos de estimação
que ele teve na infância. Coisas que ele
gostava de fazer. Quem sabe alguma ideia
meiga sobre a mãe. O nome dela era
“Phoebe”?
– Ela morreu.
Penny insistiu:
– Eu sei, mas seria legal encontrar um
apelido antigo. O sorvete de que ele mais
gosta, uma música, algo assim.
A mãe de Penny parecia revitalizada, emo-
cionada em ser recrutada para o projeto.
– Vou fuçar as revistas no porão agora
mesmo.
– Obrigada, mãe!
169/503

Na verdade, depois de fingir aquele or-


gasmo, Penny começou a questionar tudo.
Parou de confiar nas reações de seu próprio
corpo. A cada sessão noturna, ela
preocupava-se em estar reagindo pouco ou
demais às ministrações de Maxwell. Nunca o
amara, mas amava o que ele conseguia fazer
com seu corpo. Agora até os orgasmos es-
tavam perdendo o poder sobre ela.
Ela começou a pensar na hipótese de que
por isso Maxwell terminara o caso com
Clarissa Hind. Com a princesa Gwen. Com
Alouette.
Restavam apenas 67 dias.
Intencionalmente ou não, Penny continu-
ou a fingir alguns orgasmos. Havia noites em
que nem a lembrança dos lábios cálidos de
Alouette entre suas pernas conseguia levá-la
ao clímax. Algumas vezes ela conseguiu con-
vencer Maxwell. No geral, porém, não tinha
170/503

sucesso. Ele conhecia seu corpo mais do que


ela mesma.
Nas vezes em que foi pega – traída por sua
frequência cardíaca basal, pelo pH de sua
transpiração, pela lividez de sua pele –, Max-
well sumariamente extraiu o protótipo do
produto em teste. Arrancava as devidas pági-
nas de suas anotações e fazia um
estardalhaço, rasgando-as em pedacinhos
que soltava sobre a lixeira ao lado da cama.
Então, abria seu laptop e começava a revisar
a campanha de marketing da primeira ger-
ação de produtos Beautiful You.
Certa vez, para neutralizar sua raiva silen-
ciosa, Penny olhou incisivamente para a ca-
derneta e perguntou:
– Estão todas aí?
– Quem? – perguntou Max, sem tirar os
olhos de um teste para comercial de TV. Para
Penny, os vídeos pareciam todos iguais: mul-
heres de sorriso maníaco e olhos cintilantes
saindo da loja ou do correio, correndo para
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casa, carregando a mesma caixa cor-de-rosa


com as palavras “Beautiful You” escritas em
arabescos. A narração que concluía cada
comercial era um doce ronronar feminino
dizendo: Vamos desbancar um bilhão de
maridos!
– Todas as suas ex – Penny esclareceu. –
Estão todas aí? – Ela indicou a caderneta
tomada por sua caligrafia aracnídea. – A
presidenta, a princesa, a herdeira da siderúr-
gica? Ela sabia que estavam. Maxwell guar-
dava esses dados como um cachorro guarda
ossos.
– Essa é só a última de minhas cadernetas
– disse o homem enquanto repassava
amostras dos anúncios que sairiam em todas
as revistas femininas do mundo, nas quais o
logo da Beautiful You era acompanhado de
textos em basco, francês, hindi, africâner,
chinês, mandarim... – Tem certeza de que
quer ouvir? – ele perguntou, frio.
Ela não tinha certeza, mas fez que sim.
172/503

– Tenho, indexadas e cruzadas, as espe-


cificações forenses de 7.824 exemplares do
sexo feminino, com idades de 6 a 207. –
Virando-se para encará-la, acrescentou: –
Antes que você telefone para o conselho tu-
telar, meu encontro com a menina de 6 anos
ocorreu quando ambos tínhamos essa idade
e brincávamos de “médico” no porão da
família dela, em Ballard. – A mulher com
séculos de idade era uma feiticeira que vivia
no alto do monte Everest.
Maxwell sorriu.
– Busquei conhecimentos para agradar to-
das as mulheres do mundo – disse ele,
categórico. Não estava se gabando, ou pelo
menos não era essa sua intenção. – Jovem
ou idosa. Gorda ou magra. Todas as raças.
Todas as culturas. Consigo levar qualquer
mulher, de forma rápida e eficiente, a níveis
de orgasmo mais altos do que ela jamais
sonhou.
173/503

Voltando a olhar para a tela do computa-


dor, ele prosseguiu:
– Reuni dados sobre a reação sexual de
garotas em idade colegial, universitárias,
jovens profissionais. Estudei os macetes er-
óticos de prostitutas templares do
Tadjiquistão... terapeutas sexuais alemãs...
dançarinas do ventre sufis. As mulheres que
você conhece, ricas e poderosas, não passam
da ponta do meu iceberg sexual. Quando as
levei para a cama, já estava treinado, com
um repertório de mil maneiras de dar
prazer.
Penny percebeu que, com números como
aqueles, poucas das parceiras haviam tido
mais do que alguns minutos da atenção de
Max.
– Por isso você foi atrás de Clarissa Hind?
– Não. O propósito de mulheres como
Clarissa e Alouette não era pesquisa. Eram
testes. Testes e contatos. Sem falar na publi-
cidade. Percebi que seria de grande valia
174/503

conhecer a presidenta dos Estados Unidos e


a rainha da Inglaterra em tal nível de intim-
idade. E o prestígio por conhecê-las atraiu
mais cobaias.
– Cobaias como eu? – Penny perguntou,
ao mesmo tempo honrada e revoltada com a
ideia.
Maxwell dirigiu-lhe um olhar de afeto.
Estava sentado de pernas cruzadas na cama,
com o laptop aberto à sua frente.
– Não, minha cara. Você foi a minha volta
olímpica.
Ele seria o precursor da coleção mais ex-
traordinária de ferramentas eróticas da
história mundial. Sabia que iam funcionar.
Aliás, algumas funcionavam até bem demais.
O prazer que geravam talvez até matasse
uma garota mais normal. A última rodada de
testes fora projetada para aliviar a potência
dos brinquedos mais perigosos. A coleção
Beautiful You poderia chegar ao mundo sem
medo de sofrer processos ou ações judiciais.
175/503

– Antes que você se sinta usada – ele


prosseguiu –, por favor, lembre-se de que
você teve enorme satisfação em nosso per-
íodo juntos. Você foi cortejada pela imprensa
mundial. E seu guarda-roupa melhorou
muito.
Penny não tinha como negar qualquer das
afirmações, mas entendia por que uma mul-
her como Alouette tinha entrado com um
processo de cinquenta milhões de dólares
pelo abalo emocional.
– Se ajudar o seu orgulho, minha cara, é
bom você saber que salvou muitas vidas ino-
centes. – Ele digitou algumas teclas,
trazendo à tela uma nova seleção de anún-
cios. – Contudo, estou usando o termo “ino-
cente” em sentido bastante amplo.

Horas após cada maratona de gozo, Penny


sentia os músculos enrijecerem e arderem de
176/503

tão doloridos. Era como se ela houvesse


subido ao pico do monte Everest ou atraves-
sado o canal da Mancha a nado. Alguns epi-
sódios, os mais extremos, deixavam-na num
estado parecido com o das vítimas de polio-
mielite. Fazer mais sexo estava fora de cogit-
ação antes que ela se recuperasse; Maxwell
sabia disso e não forçava. Algumas das
posições que eles conseguiram exigiam uma
flexibilidade digna de contorcionista de
circo. Caso houvesse distensão muscular ou
rompimento de um tendão, os testes at-
rasariam semanas.
Um batalhão de fisioterapeutas circulava
pela cobertura. Para ajudá-la na velocidade
de recuperação, massagistas friccionavam
seu corpo durante horas com óleos aromáti-
cos, trabalhando com suas mãos musculosas
e intuitivas em toda parte. Especialistas em
acupuntura faziam milagres espetando suas
agulhinhas. Era só quando ela estava total-
mente revitalizada que Maxwell a abordava
177/503

com um novo apetrecho ou afrodisíaco. Ele


impunha sua doce tortura consensual e
deixava-a arfando, ardendo. Então, mais
uma vez a equipe de recuperação fazia Penny
voltar a sua forma sadia a tempo de mais
uma rodada de prazer paralisante.
– Não quero que a fadiga turve seus
sentidos – disse-lhe Max. Enquanto um
turco brutal e corpulento passava o dedo
pela parte interna de suas doídas coxas, Max
parava ao seu lado, vestindo um terno de
doze mil dólares e examinando seu corpo nu
à procura de hematomas. – É muito import-
ante que você esteja completamente des-
cansada e sensível aos estímulos quando
fizermos nossos experimentos.
Ele chegou mais perto da mesa da mas-
sagem, onde ela estava besuntada de óleo.
Seus lábios vaginais estavam avermelhados,
inchados devido ao abuso sensual da noite
anterior. Inclinando-se sobre o corpo dela,
ele levou os lábios ao clitóris inflamado.
178/503

Penny estremeceu.
– O ácido lático deve se dissipar. Você
ainda está muito sensível – afirmou Max. –
Adiaremos os testes por dois dias.
Ao longo das últimas semanas, Penny per-
dera a conta de quantos produtos Beautiful
You ele testara. Alguns eram medíocres, sem
graça, desinteressantes, mas a maioria a
havia deixado exausta e fraca de tanta satis-
fação. Temendo por sua própria segurança,
ela pedira a Max para reduzir os efeitos de
alguns produtos. Ela era jovem, em forma,
saudável, recém-graduada em direito.
Aqueles produtos mais eficientes podiam ser
fatais em mulheres mais velhas ou menos
saudáveis.
Nas noites em que as brincadeiras a
deixavam impossibilitada de continuar,
Penny ficava deitada na cama e pedia a Max
para ler sua caderneta de pesquisa. Recém-
massageada e tomando goles de Côtes du
Rhône, ela se enrolava em um ninho de
179/503

lençóis de seda. Max ficava sentado ao lado


da cama, em uma cadeira de espaldar reto.
Trajando smoking e gravata-borboleta
branca, ele lambia a ponta do dedo antes de
virar as páginas, indo e voltando até encon-
trar a cobaia certa.
– “Data: 17 de junho, ano 20-” – lia ele. –
“Local do teste: Mall of America, Minneapol-
is, Minnesota. Produto: Beautiful You no
216, o Modelador Vegetal Lúdico, processad-
or de alimentos que transforma qualquer
legume cru em apetrecho erótico.” – Com
sua voz monótona, robótica, Maxwell descre-
veu estar diante de uma mesa dobrável en-
quanto um fluxo de consumidoras passava
por ele. Algumas paravam, observando-o in-
serir cenouras e abobrinhas cruas em um
compartimento plástico. Com um movi-
mento simples, ele apertava uma alavanca.
Lâminas invisíveis dentro do aparelho mol-
davam o legume até transformá-lo em um
falo projetado para máxima realização.
180/503

Enquanto se formava a multidão de curiosas,


Maxwell demonstrava como as lâminas in-
ternas podiam ser ajustadas para que o apet-
recho sexual resultante fosse mais ou menos
comprido ou grosso. Outras lâminas tal-
havam canais e reentrâncias que serviriam
para provocar a abertura vaginal. A plateia
dava risadinhas e suspiros de deleite. Uma
voz perto do fundo da multidão gritou:
– Funciona com berinjela?
Maxwell assegurou que sim.
– E batatas? – perguntou outra
consumidora.
Max pediu uma voluntária.
Lendo para Penny, sentado em sua cadeira
ao lado da cama, com as pernas cruzadas
com precisão sobre o joelho e sua caderneta
equilibrada sobre elas, ele continuou:
– “A voluntária no 1.769 disse chamar-se
Tiffany Jennifer Spalding, 25 anos, mãe de
três filhos e dona de casa. Altura: um metro e
181/503

setenta centímetros. Peso: sessenta e um


quilos.”
Ali mesmo, no Mall of America, ele
ajustou os botões de regulagem.
– Que grossura você prefere? – Ele deu
um sorriso libidinoso. – Das batatas, no
caso.
Ela corou.
– Não tão grandes. Médias.
– Suave ou com texturas?
Tiffany Jennifer levou um dedo à têmpora
e parou um segundo para pensar.
– Com texturas.
– Sulcos ou saliências?
Ela perguntou:
– Pode fazer os dois?
A multidão prendeu a respiração enquanto
ele erguia a tampa do aparelho e inseria o
tubérculo na canaleta de corte. Como um
mágico no palco, ele pediu cerimo-
niosamente a sua voluntária para apertar a
alavanca de ativação da lâmina.
182/503

– É sua primeira vez? – ele perguntou.


Ela fez que sim, trêmula. O mundo de-
sacelerou e entrou no compasso de uma
transa.
Para acalmá-la, ele pôs um braço em torno
de Tiffany Spalding. Colocou as duas mãos
dela na alavanca, depois colocou sua mão
sobre as dela.
– Você deve enfiar de forma rápida e
suave.
Os dois contaram até três, apertaram jun-
tos a alavanca, e a plateia perdeu o fôlego.
Maxwell ergueu o painel de segurança e rev-
elou um falo perfeito. Suave e levemente
curva, não lembrava a robusta batata que en-
trara pela parte de cima do aparelho. Com as
devidas precauções sanitárias e o cozimento
completo, ele garantiu à plateia que não
havia motivo pelo qual a batata não poderia
ir da fazenda para o quarto e depois para a
mesa da família. Para uma mãe jovem, de
183/503

orçamento apertado, o produto pagar-se-ia


em questão de semanas.
– Agora vocês podem ter diversão e
comida!
Muitas riram. Todas aplaudiram. Com o
dinheiro na mão, fizeram fila para comprar.
Nenhuma o reconheceu. Nunca recon-
heciam. O disfarce que ele usava para essas
ocasiões era simples e eficiente. Mesmo
quando o bigode falso caía durante o sexo or-
al, como aconteceu muitas vezes, as cobaias
nunca percebiam com quem estavam
transando. Era impossível que C. Linus Max-
well, o homem mais rico do mundo, fosse o
estranho a procurar seu bigode postiço entre
os lençóis.
Ainda lendo na cobertura em Paris, Max-
well aproximou sua cadeira da cama. Segur-
ando a caderneta aberta com uma mão, ele
passou a mão entre os lençóis até seus dedos
encontrarem a virilha fatigada de Penny.
184/503

– “O Modelador Vegetal Lúdico vendeu


rapidamente. Mesmo após esgotar o estoque,
restou uma consumidora.” – A voluntária no
1.769 perguntara: “E eu?” Sua voz havia re-
cuado até virar um murmúrio embebido em
sensualidade.
No quarto da cobertura, as pontas dos de-
dos de Maxwell passavam cuidadosamente
pelos contornos suaves da vulva sobrecar-
regada de Penny. Com pequenos movimen-
tos circulares, ele extraía umidade de suas
profundezas.
A voluntária no 1.769 ainda estava agar-
rada à sua batata esculpida. Olhando-o por
trás de seus cílios tremulantes, ela disse:
– Você é um ótimo vendedor. – Ela usava
o batom Pink Palace, da Avon, e mantinha a
batata sugestivamente perto da boca. Pelo
tom de pele, Maxwell estimou que ela estaria
a 17 dias de seu período fértil. Segundo suas
anotações, ela perguntou:
185/503

– Tem algo mais que possa me interessar?


Mais um aparelho que me poupe tempo?
Com a voz ainda no mesmo tom, calmo e
monocórdico, Max enfiou os dedos, explor-
ando a umidade quente de Penny. Diferente
do que acontecera naquele mesmo dia, ela
não estremeceu. Na verdade, gemeu e girou
sua pélvis esgotada contra o peso da mão
dele.
– “A voluntária no 1.769” – Max lia em voz
alta – “provou-se uma participante disposta
e ávida nas avaliações preliminares da ducha
de champanhe...”
Havia mais. Maxwell passou horas lendo.
Mas, enquanto sua mão empreendia a cos-
tumeira magia, Penny não estava mais
ouvindo.

Em outra noite de recuperação, Maxwell


puxou uma cadeira até o lado da cama em
186/503

que Penny estava deitada. Naquela noite,


entre lembranças de gueixas, sing-song girls
e profissionais do sexo, ele leu a respeito de
uma dona de casa qualquer, escolhida prat-
icamente a esmo.
– “Voluntária no 3.899” – leu ele. –
“Local: Bakersfield, Califórnia, auditório da
Escola Fundamental Hillshire. Horário: sete
da noite, dois de outubro, 20-.”
Ele estava à procura de uma mulher en-
corpada para testar o produto no 241. O te-
cido vaginal tinha de ser extremamente ab-
sorvente, e para explorar esse aspecto Max-
well inventara o Rebentador, um vibrador
que continha quatro cavidades internas.
Cada uma funcionava como reservatório que
podia ser preenchido com líquidos, e a op-
eradora podia programar o aparelho para
soltar quantidades moderadas durante o uso,
fosse café para um estímulo rápido ou
xarope para tosse para um efeito mais eu-
fórico. Ou até antibióticos. Ou um óleo
187/503

essencial para lubrificação quando ne-


cessário. A ponta do vibrador iria jorrar o
líquido no momento desejado. Para provar
sua eficácia, ele abordou uma mãe solitária e
começou a bater papo. Para tirá-la do meio
de outras mães, fez elogios à sua aparência.
A estratégia foi bem-sucedida, e logo ele a
havia isolado em uma sala desocupada do
jardim de infância.
– “Lá entre os hamsters presos em gaiolas,
seduzi a cobaia.”
De olhos fechados e ouvidos atentos,
Penny suspirou. Conhecia muito bem o
produto no 241. Suas secreções de cafeína a
haviam ajudado a se manter presente em
várias e longas noites de testes de
resistência.
– “Apesar de seu índice de massa corporal,
a voluntária exibiu uma resposta entusi-
asmada ao aparelho.” – Como sempre, a voz
de Maxwell não se alterava. Ele falava sem
mostrar comoção. – “Uma vez iniciada a
188/503

aplicação do aparelho, o elemento inex-


plicavelmente gritou o nome ‘Fábio’ em in-
tervalos regulares.”
Penny sorriu diante de sua aparente inca-
pacidade de entender a referência.
– “A frequência cardíaca do elemento
chegou rapidamente aos 157 batimentos por
minuto.” – leu Max. – “A condutividade
elétrica de sua pele teve aumento
dramático.” – Ele fez uma pausa para virar a
página da caderneta. – “Deve-se notar que o
cientista que conduzia o experimento teve
imensa dificuldade em reter a posse total do
produto. A voluntária no 3.899 demonstrava
enorme potência pélvica e estava resoluta em
usurpar o aparelho e encerrar o procedi-
mento sozinha.”
Penny ficou imaginando uma mulher
solitária brigando com o raquítico e bran-
quelo Maxwell pelo controle de um brin-
quedinho sexual. Uma galeria de hamsters e
189/503

coelhos engaiolados testemunhando as es-


tripulias em toda sua docilidade animal.
– “No ápice do clímax, (respiração a 25
batimentos, pressão sanguínea 17,5 por 10,2)
as condições do teste alteraram-se de modo
radical.” Decifrando sua própria letra esmae-
cida, Maxwell continuou: – “Embora a ap-
licação do produto tenha tido sucesso abso-
luto, o local do teste não forneceu a devida
privacidade.”
Alguém havia entrado na sala.
– “Os padres da escola confessional en-
traram sem bater. Aparentemente, haviam
sido alertados pelos ruídos de nosso
procedimento.”
Em um aparte científico, ele havia escrito:
– “Apenas para registro, a voluntária pos-
sivelmente exibiu um corpus spongiosum
excepcionalmente amplo. À entrada de out-
ros homens no recinto, ela expeliu uma tor-
rente copiosa de ejaculação de sua uretra,
ensopando-os por completo.”
190/503

Ele bateu os nós dos dedos vivamente con-


tra o clitóris hipersensibilizado de Penny,
técnica que quase a levava à loucura. Penny
deu risadinhas. A pobre voluntária em
Bakersfield disparara fluidos nos dirigentes
de sua escola religiosa. Penny esperava que
houvesse valido a pena o curto prazer que o
apetrecho de Maxwell lhe dera; conhecendo
o poder do Rebentador, Penny suspeitava de
que a mulher nunca houvesse lamentado o
encontro furtivo.
O mordomo adentrou o quarto trazendo
uma bandeja de prata. Refestelando-se entre
os travesseiros de cetim e as dobras del-
icadas dos lençóis, Penny aceitou uma taça
de champanhe. Ela estremeceu ao tomar um
gole do espumante gelado e jogou a cabeça
para trás. Apontou para a caderneta aberta
ao joelho de Maxwell e pediu:
– Leia mais uma.
191/503

Lesões e exaustão não eram os únicos


fatores que retardavam os testes de Maxwell.
Quando a menstruação de Penny chegava,
ele não a testava. Vendo-a tremer de cólicas,
com a barriga inchada, Maxwell vinha em
seu auxílio com tabletes de morfina e
pequenas taças de xerez doce. Ela cochilava
semiamortecida, sem tomar conhecimento
de nada além da presença dele ao seu lado,
lendo suas anotações em voz alta.
– “Voluntária no 3.828” – pronunciou ele.
– “Local: Lower Manhattan, Zuccotti Park.
Data: dezessete de setembro, 20-.” – Ele
descreveu como seduziu uma jovem idealista
que chegara havia poucos dias de Oklahoma
para participar do Occupy Wall Street.
– “Ela declarou ter 19 anos” – prosseguiu
ele –, “fato que pedi para confirmar com sua
carteira de motorista, dado que eu não pos-
suía intenção de prejudicar meus padrões es-
tatísticos com dados das genitália pré-
adultas, em formação.”
192/503

A cena acontecera tarde da noite. En-


quanto a maioria dos manifestantes dormia,
Maxwell apresentara à voluntária o produto
Beautiful You no 233, o Lagarto do Amor.
Era um extensor lingual simples, mas bril-
hante. Uma prótese de silicone desenhada
para prolongar o alcance durante o coito oral
e alcançar contato vigoroso com o colo do
útero.
Mesmo com a mente tomada pelo torpor
das drogas, Penny lembrou-se do aparelho
inteligente e de como ele fazia com que o
apêndice oral relativamente diminuto de
Maxwell alcançasse profundidades sur-
preendentes. Ela se contorceu com luxúria
descontrolada diante da lembrança de seus
carinhos.
– “Em um ato simbólico do teatro de rua
político” – leu Maxwell –, “a voluntária soli-
citou ao cientista que realizava o experi-
mento que a amarrasse como uma águia de
193/503

asas abertas aos portões do prédio do Banco


da América.”
A imagem era vívida na imaginação
dopada de Penny. A menina nua ao luar, com
seus membros amarrados e esticados. A
voluntária no 3.828 ofereceu-se como um
sacrifício no altar do capitalismo. Maxwell
ajoelhou-se a seus pés, ajustou o extensor
lingual ao comprimento funcional máximo e
envolveu o púbis dela com a boca.
– “O segredo está em balançar a língua” –
ele leu – “como quem canta. Para evitar o
cansaço dos músculos, não manter a
mandíbula rígida. Após breve aplicação do
produto, a voluntária expressou aprovação
gritando: ‘Entrego meu corpo a vocês, os
99%!’”
Maxwell relatou como os gritos haviam at-
raído um bando de radicais barbados, todos
ansiosos para participar do teste.
– “Com um breve tutorial” – Maxwell re-
latava a partir das anotações –, “todos os
194/503

presentes tiveram sucesso na operação do


produto no 233.”
Para Penny, já não havia limites entre
fantasia e realidade. Viajando em alucin-
ações causadas pela morfina, ela sentiu-se
lambida por legiões de ativistas barbudos. A
voz de Maxwell era como música de fundo na
cena, na qual um pelotão da polícia de
choque nova-iorquina chegava. Sem rosto
por trás dos escudos de Kevlar dos capacetes,
eles desembainharam cassetetes e
ameaçaram a forma nua e despudorada da
voluntária.
– “Logo que o teste se encerrou” – con-
cluiu Maxwell –, “a voluntária pareceu en-
vergonhada e disse ter ingerido quantidades
não especificadas da droga conhecida usual-
mente como LSD. Solicitou que as amarras
fossem desatadas e pediu uma quantia em
dinheiro suficiente para pagar uma pas-
sagem de avião até Tulsa, cidade próxima ao
rio Arkansas...”
195/503

Centros de treinamento olímpico. Clubes


do livro acima de qualquer suspeita. Rodas
de tricô. Nesses lugares, Maxwell encontrava
elementos, e era nesse seleto grupo que
Penny havia entrado.

Depois da enésima reprimenda de Max-


well por fingir orgasmo, Penny viu-se
fazendo o inverso. Ela continha as reações às
suas investidas. Não importava o quanto
Maxwell se esforçasse para agradá-la, ela
começou a conter sua confirmação usual e
aguda da genialidade dele. Era óbvio que o
estava castigando, mas Penny não se impor-
tou. Começara a ficar ressentida. No mundo
de Max, ela não se achava mais do que um
instrumento cujo único propósito era regis-
trar o nível de seu sucesso.
Certa noite, ele testou nela um par de
grampos de mamilo, sujeitando-a a
196/503

estímulos de baixa voltagem que trans-


mitiam ondas senoidais de excitação por sua
medula, irradiando para seus braços e per-
nas. Centelhas de êxtase elétrico partiam das
pontas de seus dedos e chegavam à coroa de
sua cabeça como um halo. Ao longo da
agradável provação, Penny se esforçou para
continuar imóvel. Tentou se distrair
pensando nas poucas perguntas do exame da
Ordem das quais ainda conseguia lembrar.
Decidiu recitar silenciosamente o Discurso
de Gettysburg, palavra por palavra.
Sem qualquer aviso, ele desativou as ba-
terias e removeu os grampos de seus mami-
los. Antes de falar, Maxwell embrulhou os
fios e deixou o aparato de lado. Foi só então
que a confrontou.
– Você está brava comigo, é isso?
– Não me culpe – Penny respondeu. –
Essa sua engenhoca deve ter falhado.
– Falhado? – Ele sufocou uma risada. Cer-
rando os olhos para conferir as anotações na
197/503

caderneta, ele disse: – Senhorita Harrigan,


sua frequência chegou a 180 batimentos por
minuto. Sua temperatura anal era de 39 °C.
Se esta “engenhoca” fosse mais eficiente, a
senhorita teria um infarto coronariano ou
uma embolia cerebral fatal.

Penny viu Alouette D’Ambrosia pela úl-


tima vez num coquetel na Rue St. Germaine.
A atriz estava de braços dados com um belo
romancista, Pierre Le Courgette, vencedor do
Prêmio Nobel de Literatura daquele ano.
Formavam um casal notável. Ela os perdera
de vista, mas, perto do fim do evento, Alou-
ette a abordou. Olhando em volta, nervosa, a
bela francesa disse:
– Onde está Max? – Sem esperar resposta,
ela sussurrou: – Foi um engano meu não
confiar em você. Temos que ser aliadas, nós
198/503

duas. Se não formos, corremos enorme


risco.
Era a primeira vez que se encontravam
desde o incidente com as bolinhas coloridas.
A francesa parecia passar fome e estava um
bagaço em comparação à aparência que já
exibira. Não havia qualquer resquício de ál-
cool em seu hálito, mas era evidente que es-
tava agitada. A safira volumosa pendurada
em seu pescoço brilhava no decote corado.
– Ele vai estragá-la para os outros ho-
mens. – Maxwell adentrara por uma porta
do outro lado do salão. Como sempre, sua
cabeça estava abaixada enquanto anotava.
Ainda não havia visto Alouette, e ela insistiu:
– Nós, todas as mulhers amadas e descarta-
das por ele, somos o harém que ele deixa
pelo mundo.
Mais tensa quanto mais Maxwell se aprox-
imava, ela disse:
199/503

– Fui indicada a um Oscar, por isso pre-


ciso viajar, mas falaremos mais a fundo no
mês que vem, pode ser?
Penny gaguejou:
– Sim.
A sensação da boca de Alouette contra ela
veio à sua mente como uma intrusa.
– Você não vai gostar do que tenho a dizer
– alertou a atriz. Independentemente disso,
o olhar que dirigiu a Penny foi caloroso. –
Seremos amigas, certo?
Enquanto Maxwell se aproximava, ela bei-
jou o rosto de Penny e voltou apressada a seu
acompanhante.

Sem tirar os olhos do corpo sinuoso de


Penny, Maxwell abriu uma gaveta do criado-
mudo, puxou alguma coisa e aproximou-a do
olho como uma máscara. Era uma câmera, e
200/503

ele fez um lento registro panorâmico de toda


a extensão de sua nudez.
Penny não estava com medo. Sabia que,
em certo nível, estava segura. Se aquelas im-
agens viessem a público, seria mais vergon-
hoso para Maxwell do que para ela. Em
muitas manhãs, ela despertava e descobria
um novo aparato. Enquanto introduzia um
novo brinquedinho por dentro dela, Maxwell
falava sobre os antigos rituais sexuais de tri-
bos sudanesas. Havia mais ferramentas
básicas. Versões cor-de-rosa e macias de fór-
ceps que abriam suas nádegas e mantinham-
nas apartadas para sua conveniência.
Observando-a através da lente, ele disse:
– Boa garota, não resista. A câmera está
desligada. Quero apenas que sinta como se
estivesse sob observação. – Estivesse ou não
realmente documentando-a, Penny sabo-
reava o fato de que alguém lhe dedicava
tanta atenção. Perguntava-se se todas as co-
baias haviam apreciado essa atenção tanto
201/503

quanto (ou até mais que) as sensações físicas


que ele proporcionava.

Durante o dia, a luz do sol entrava pelas


janelas altas e invadia a cama enquanto
Penny aconchegava-se sob os lençóis se-
dosos, nua, mordiscando um brioche, beber-
icando um latte, estudando seus velhos liv-
ros de faculdade sobre responsabilidade
civil. Os ateliês de alta-costura lhe traziam
roupas. Os próprios estilistas vinham tirar
suas medidas. Se ela insistisse, Maxwell a
levava a um concerto ou ao teatro; fora isso,
ela raramente saía da cobertura.
A marca Beautiful You seria lançada no
mês seguinte, e ela não sabia se Max ainda
teria necessidade de sua companhia. Não se
iludia. Como sua complexa frieza demon-
strava, ele nunca a amara. Já fora suficiente
ter alguém que pudesse ler suas vontades de
202/503

forma tão intuitiva. Muitas vezes, Max dis-


pensava a equipe de massagistas e fazia a
massagem ele mesmo. Sabia tocar seus mús-
culos tensos e identificar exatamente seu hu-
mor. Ouvia tão atentamente a respiração de
Penny quanto as palavras que ela dizia.
Maxwell passara a conhecê-la tão bem que
Penny raramente precisava falar.
Aí estava um homem que ela considerava
fascinante de maneira tão intensa e que se
deliciava em conduzi-la a ápices de vivacid-
ade que ela nunca sonhara existir. Ele a
saboreava e apreciava.
Bilhões de pessoas o observavam – o
homem mais rico e talvez mais poderoso do
mundo –, e ele observava Penny. A lente de
sua câmera e a caligrafia rabiscada em suas
anotações imbuíam sua vida de ainda mais
valor. Sob seu olhar atento, ela sentia-se se-
gura. Querida. Mas, não, não amada.
203/503

Duas semanas antes de a linha Beautiful


You chegar às lojas, Max parou abrupta-
mente em meio ao coito. Com uma lentidão
resignada, ele cuidadosamente recolheu o
aparato que estava dentro de Penny e o
soltou sobre o criado-mudo. Retirando as
luvas de látex, ele disse:
– Você não tem mais serventia para mim.
– Ergueu sua caderneta. – A integridade... a
autenticidade... a verdade de suas reações
está por demais comprometida.
Enquanto fazia suas anotações, ele con-
feriu o horário no relógio de pulso.
– Meu jato já está a postos. Suas roupas e
objetos pessoais foram embalados, e sua ba-
gagem já está a bordo à sua espera.
Maxwell virou-se para ela. A cabeça de
Penny estava aninhada no travesseiro de ce-
tim branco. Ele posicionou dois dedos na lat-
eral do pescoço dela e cronometrou a fre-
quência cardíaca.
204/503

– O piloto tem instruções para levá-la


aonde desejar. – Penny não teve chance de
reclamar. Ainda nem fechara as pernas.
Ele anotou as últimas estatísticas de sua
frequência cardíaca e temperatura.
– Depositei cinquenta milhões de dólares
para você em uma conta bancária na Suíça.
Transmitirei os detalhes para seu acesso se
concordar em nunca mais me contatar. –
Para enfatizar as ordens, ele a encarou. –
Você nunca poderá falar sobre nossas exper-
iências juntos. Do contrário, bloquearei o
acesso a esses fundos.
Seguiu-se uma eternidade de silêncio.
Apesar da frieza, ela percebeu que o coração
pueril de Max se partia.
– Compreendeu os termos? – ele pergun-
tou por fim.
Piscando para conter as lágrimas e unindo
os joelhos, Penny não respondeu. Estava sur-
presa com a rejeição repentina.
205/503

– Compreendeu? Os termos? – ele berrou.


A fúria das palavras venceu o choque de
Penny e ela fez que sim.
– Elemento indiferente – ele balbuciou
enquanto olhava a caderneta. Não havia en-
gano: sua voz estava engasgada pelo pesar.
Penny virou-se de lado, dando as costas
para ele. Era o fim. Fora um sonho ser
Cinderela, mas agora era hora de acordar.
– Por favor, tenha em mente que você deu
contribuições significativa ao desenvolvi-
mento da linha Beautiful You – prosseguiu a
voz dele, robótica. – Como mostra de meu
apreço, deixei um pequeno presente a bordo
do jato. Espero que goste.
Penny sentiu a cama se mexer. Era o peso
dele deixando o colchão. Ela ouviu seus pés
nus cruzarem o assoalho acarpetado.
– Você precisa deixar minha casa em uma
hora, no máximo. – A porta do banheiro se
fechou.
Fazia exatamente 136 dias.
206/503

A bordo do Gulfstream, Penny encontrou


uma caixinha com laço no único assento que
não estava ocupado por maletas e roupas em
capas. Ela fora expulsa da cobertura tão
rápido que vestia apenas um casaco de
chinchila até os pés e um par de sapatos
Prada. Sozinha na cabine, em silêncio, ela
pegou o presente e deixou-o no colo en-
quanto prendia o cinto e o piloto anunciava a
decolagem.
Quando estavam no ar, ela puxou o laço e
levantou a tampa da caixa. Dentro havia uma
fina corrente de ouro. Quando ela a ergueu,
viu que um rubi pendia do ponto inferior.
Era o rubi que Maxwell sempre usara no
anel, realojado como pingente, o terceiro
maior rubi que já saíra das minas do Sri
Lanka. Dividia a mesma caixa uma libélula
plástica cor-de-rosa e brilhante. Suas asas
207/503

eram grossas e macias e traziam o logo da


Beautiful You. Penny analisou as antenas e a
parte inferior do corpo plástico.
O presente em forma de libélula era um
brinquedinho sexual. A versão comercial do
protótipo que Max testara nela diversas
vezes. Penny nunca se cansara do efeito
daquelas asas batendo. As sessões irrestritas
estavam entre suas lembranças mais inten-
sas, e ver o aparato fez seu rosto enrubescer.
Um fundo fiduciário de cinquenta milhões
de dólares. Roupas que encheriam uma loja
de departamentos. Não, Penny dizia a si
mesma, não tinha sido destratada, de modo
algum. Enquanto fechava a corrente em volta
do pescoço e sentia o peso do rubi gelado
entre seus seios cálidos, ela guardou a
libélula de plástico no bolso do casaco e
começou a planejar o primeiro dia de sua
nova vida. A seu alcance, uma garrafa aberta
de champanhe borbulhava num balde de
gelo. A aeromoça serviu-lhe uma taça e, a
208/503

pedido de Penny, desligou as luzes da


cabine.
Enquanto provava o vinho borbulhante e
seco, ela sentiu um arremedo de tristeza ao
lembrar-se de como, meses antes, aquele
gosto fora tão especial. Entre os múltiplos e
desenfreados orgasmos e tanto champanhe,
a vida com Max a deixara muito mal-
acostumada.
Mimada, mas não desesperada. No mín-
imo, estava empolgada com seu futuro.
Naquele noite, precisaria de algo mais do
que champanhe para cair no sono.
Quando se certificou de que a tripulação
não estava vendo, ela abriu a frente do
casaco e escorregou a libélula para o meio
das pernas. Assistira Max fazer aquilo
dezenas de vezes. Com um ajuste especial,
ele projetara o brinquedinho para aquecer-se
automaticamente à temperatura perfeita.
Mesmo sem olhar, ela percebeu onde ficava o
botão que o ativava.
209/503

Penny ficou pensando em qual seria a dis-


tração de Max depois do lançamento da
linha Beautiful You. Talvez já estivesse
planejando acréscimos. Talvez encontrasse
outra namorada com uma genitália “ideal”
para testar seus protótipos. Alguém que não
hesitasse em expressar excitação.
Namorada não era a palavra certa. Estava
mais para ratinha de laboratório.
Sobre o Atlântico negro como nanquim,
Penny serviu-se de mais uma taça e deitou-se
para aproveitar a pulsação deliciosa entre as
coxas.

Sua primeira semana em Nova York pas-


sou como um borrão. O dinheiro que Max-
well lhe dera era na forma de uma aplicação.
Ela não podia sacar toda a quantia de uma
vez, mas poderia viver muito bem dos di-
videndos pelo resto da vida. Prudente, ela in-
vestiu em uma casinha geminada no Upper
210/503

East Side. Quando o corretor lhe mostrou a


ensolarada cozinha de azulejos, o elevador
suntuoso de ferro ornamental e as lareiras de
mármore esculpido, Penny preencheu o
cheque sem hesitar. Havia armários de so-
bra, que o nobre acervo de Penny preencheu
quase por completo.
No primeiro dia de volta à BB&B, ela en-
controu alguém com quem dividir a casa.
Apesar de o seu discurso de boêmia resol-
uta, Monique ficou animadíssima para
livrar-se do conjugado miserável que dividia
com duas colegas estrangeiras sob a ponte
Kosciuszko. Antes que Penny se permitisse
reconsiderar, Monique já estava tirando
caixas de papelão de um táxi e deixando-as
no elegante saguão da casa. O cheiro de sân-
dalo tomou conta do ambiente, mas a es-
tranha música de cítara da nova colega aju-
dava a preencher o vazio. Para comemorar a
primeira noite juntas, a neohippie realojada
preparou um banquete de tofu ao curry.
211/503

Depois, elas atiraram-se no sofá da sala mul-


timídia, cada uma com um pote de pipoca,
para assistir à transmissão ao vivo da
cerimônia do Oscar.
Enquanto as câmeras do Kodak Theatre
faziam uma imagem panorâmica pelo salão
lotado, Penny não conseguia se segurar.
Procurou o rosto pueril e pálido de Maxwell
e seus cabelos loiros. Sentado em uma das
laterais, viu Pierre La Courgette, namorado
de Alouette. Claro que ele iria; ela era a fa-
vorita para o prêmio de melhor atriz. Havia
outros rostos que Penny reconhecia, gente
poderosa que a esnobara ou que desconfiara
dela. Difícil imaginar que já estivera tão
perto deles. Essa parte de sua vida já es-
capava como um sonho de intensa carga
sexual. Ela permitira que Maxwell a isolasse
em uma fantasia de vício em prazer e sem
apego emocional. Mas agora estava livre.
Entre ser constantemente examinada por
Maxwell e julgada pelos jet setters puro-
212/503

sangue que encontrava nos eventos, Penny


deixara de lado qualquer sensibilidade que
pudesse ter quanto a ser cobiçada. Podia
ouvir o clique das câmeras dos paparazzi vez
por outra, mas não reagia mais. Passara a
presumir que todos os olhos estavam sempre
vidrados nela e comportava-se com um novo
e displicente equilíbrio.
Fosse a autoconfiança renovada ou as
novas roupas, era normal que os homens a
admirassem. Sempre que andava pela Lex-
ington Avenue, quase não reconhecia seu
próprio reflexo nas vitrines da Blooming-
dale’s. O que ela via passar era uma amazona
de pernas longas. A gordura infantil havia
sumido. Seu cabelo balançava em uma onda
reluzente.
Em retrospecto, Penny ficou feliz por a
Cidade Luz nunca ter ouvido falar de sorvete
de creme crocante.
Na sala multimídia, Monique e ela tiveram
uma briguinha boba pelo controle remoto.
213/503

As duas gritaram zombarias contra a tela,


onde desconhecidos diretores de fotografia e
produtores expressavam sua gratidão loquaz.
O vencedor do melhor documentário foi
apressado para sair do palco e a emissora
cortou para o comercial.
A televisão mostrou um grupo de moças
felizes, sorridentes, reunidas em torno de
uma mesa. No meio da cena, a mais bonita
soprava as velas de um bolo de aniversário
enquanto as amigas lhe entregavam
presentes. Todos os presentes eram caixin-
has rosa adornadas com um logotipo branco
em grandes arabescos. “Beautiful You.” As
garotas gargalhavam. Como se dividissem
um segredo maravilhoso, franziam os lábios
e inclinavam-se para sussurrar no ouvido das
amigas. A aniversariante dava gritinhos
como se as caixas trouxessem o nirvana.
Para Penny, era improvável que meninas
como aquelas – magras, de olhar ingênuo e
pele alva – tivessem dificuldade em
214/503

encontrar homens para namorar. Eram as


últimas pessoas que precisariam comprar os
brinquedinhos pulsantes de Maxwell.
De repente, Penny imaginou um bilhão de
esposas solitárias ou solteironas se masturb-
ando em resignação e isolamento. Em
cortiços de guetos em fazendas dilapidadas.
Sem se darem ao trabalho de buscar parceir-
os potenciais. Vivendo e morrendo sem com-
panheiros íntimos, apenas com a aparel-
hagem da Beautiful You. Em vez de serem
putas ou santas, seriam celibatas de mãos li-
geiras. Para Penny, aquilo não era progresso
social.
O comercial de TV encerrava com o con-
hecido slogan, uma doce voz feminina
entoando: “Vamos desbancar um bilhão de
maridos...”.
– Eles têm uma loja na Quinta Avenida –
Monique disse com a boca cheia de pipoca. –
Mal consigo esperar a inauguração. É
amanhã.
215/503

Penny ficou pensando na loja principal. Já


havia uma fila de mulheres que virava duas
quadras, chegando quase à Rua 55. A
fachada do prédio era revestida com um es-
pelho rosa, de forma que quem tentasse ol-
har para dentro veria apenas um reflexo ros-
ado e lisonjeiro de si mesma.
Penny torcia para que os produtos fossem
melhores do que aquele que Maxwell havia
deixado para ela a bordo do Gulfstream. Ela
caíra no sono com suas pulsações tranquilas,
mas, enquanto aterrissavam no LaGuardia,
ela acordou e descobriu que a libélula havia
quebrado. As duas asas de plástico haviam
caído e o corpo de silicone rosa se partira ao
meio. Era como se a coisa tivesse eclodido.
Metamorfoseado-se, pensou. Mas eram as
lagartas que se transformavam em bor-
boletas. Borboletas simplesmente morriam.
Depositavam seus ovos nas folhas de repolho
e seguiam para a morte. Enquanto o piloto se
preparava para aterrissar, Penny
216/503

discretamente retirara as peças de silicone de


dentro de si e as enfiara no bolso do casaco.
Ela decidiu encontrar um amor real, vivo,
de carne e osso, antes de recorrer à fila da
Quinta Avenida.
Monique gritou:
– Atenção, Omaha! – E começou a dis-
parar projéteis salgados e amanteigados de
pipoca.
Na televisão, Alouette caminhava pelo
palco para receber o prêmio de melhor atriz.
Seu vestido longo rodopiava entre suas per-
nas torneadas. De ombros à mostra e jogados
para trás, com os seios empinados em seu
corpete tomara que caia, ela era a imagem
perfeita da autoconfiança e da realização.
Era empolgante só de ver.
– Nossa, como eu amo essa mulher – Mo-
nique suspirou. – Esse bling-bling aí é de
verdade?
No meio do decote da atriz brilhava a
imensa safira.
217/503

A câmera aproximou-se de Maxwell, sen-


tado dez fileiras ao fundo, junto ao corredor.
O adorável nerd parecia brincar com um
joguinho eletrônico. Enquanto seus
polegares dançavam pelas teclas de uma
caixinha preta, ele parecia ignorar o triunfo
de Alouette no palco.
Em forte contraste, a plateia de grandes
nomes aplaudia com admiração genuína.
Atrás do pódio de acrílico transparente, a
bela francesa sorriu, aceitando gra-
ciosamente os louvores. Alguns ficaram de
pé. De repente, todos estavam. Um tsunami
de adoração. Quando os aplausos di-
minuíram e abriram espaço para seu dis-
curso, uma sombra de sofrimento cobriu as
feições delicadas de Alouette. Seus lábios e
cenho retesaram-se de maneira quase imper-
ceptível, mas a dor passou e o sorriso voltou.
Mesmo sob a maquiagem, seu rosto parecia
corado. Filetes de suor colavam fios de ca-
belo em suas bochechas.
218/503

Penny achou Alouette um pouco ator-


doada. Mas quem não ficaria nessa
situação?
A atriz começou seu discurso:
– Merci... – Ela estremeceu mais uma vez.
– Alors – ela gritou sem fôlego. Abraçando a
estatueta dourada contra o peito, ela deu um
passo em direção às laterais, mas pareceu
anormalmente desequilibrada sobre os saltos
agulha.
No segundo passo, ela tropeçou e caiu. O
Oscar dourado aterrissou com um estrondo e
rolou um metro para a frente. Um murmúrio
de preocupação atravessou o auditório.
– Alguém ajude essa mulher! – Monique
gritou para a tela da TV.
Enquanto estava deitada no palco,
tentando erguer-se e apoiada nos cotovelos,
as pernas de Alouette começaram a tremer.
A paralisia começou em seus pés, mas logo
chegou aos joelhos e à cintura. Seus
tornozelos começaram a se afastar. Diante da
219/503

plateia, suas pernas gradualmente ganharam


distância e esticaram a saia entre elas. Alou-
ette se abaixou, agarrando a bainha do
vestido e tentando mantê-la em um nível de
decoro, mas a tensão contra o tecido era
forte demais. O vestido subiu em um
sobressalto, amarfanhando-se acima de sua
virilha. Penny percebeu que ela não usava
nada por baixo. Nunca se usaria com um
vestido tão justo.
– Cê tá vendo isso? – Monique perguntou
num sussurro, com uma mão congelada no
ar entre a bacia de pipoca e a boca
escancarada.
Para Penny, a vencedora de cinco Oscars
parecia demente. Ela girou a cabeça de
maneira violenta de um lado para o outro,
chicoteando o palco com os cabelos com-
pridos. Seus olhos giraram para cima até só
sobrar o branco. Seu peito arfou e suas
costas curvaram-se, lançando suas coxas ao
220/503

ar como se encontrassem um amante


invisível.
Em inglês, com sotaque forte, ela gritava:
– Não! Não, por favor! Aqui não! – Era
como se a estrela estivesse encarando C.
Linus Maxwell.
Não tardou para a emissora cortar para os
comerciais.
Em um instante, a mulher arfante caída no
chão, com o púbis à mostra para uma
audiência de milhões de pessoas, foi sub-
stituída por um bando de garotas risonhas
ostentando sacolas de compras cor-de-rosa.

Não se falava em outra coisa na BB&B.


Alouette D’Ambrosia estava morta. Segundo
a capa do Post, a atriz sofrera um aneurisma
cerebral no palco e morrera antes de a ambu-
lância chegar.
221/503

Corriam rumores de que, após a emissora


cortar para o intervalo de emergência, as
câmeras continuaram ligadas. Diante da
vasta audiência de famosos, Alouette agira
como um animal no cio, chegando ao ponto
de se masturbar violentamente com a es-
tatueta banhada a ouro. Penny não con-
seguia acreditar. Ou não queria. As cenas ex-
tras supostamente estavam na internet, mas
ela não teve coragem de assistir. O episódio
apenas reforçava a impressão de que, no
mínimo, Alouette sofria de uma doença men-
tal. Era triste, mas provavelmente ela tivera
uma recaída e voltara a usar drogas e álcool.
Independentemente da causa, era uma
tragédia. E não só pela morte, pois Brillstein
tinha planos de promover Penny a sócia da
firma. Planejava nomeá-la advogada do pe-
dido de pensão impetrado por Alouette. Ser-
ia perfeito: a namorada mais recente do réu
advogando em favor da ex-namorada rejeit-
ada. Era uma estratégia que faria Alouette
222/503

parecer machucada e meritória. A BB&B


ganharia o caso, mas não sem antes incluir
uma pilha de horas na fatura. Com a morte
da atriz, o caso foi arquivado. A BB&B teria
de achar uma nova mina de ouro, e Brillstein
precisaria de uma nova vitrine para revelar
os talentos advocatícios de Penny.
Brillstein não era o único que estava de
olho nela. Tad também. Tad Smith, aquele
que sempre a chamara de “caipira”. O espe-
cialista em direito de patentes, jovem e inex-
periente, cujo pênis Monique chamava de
“Tadinho”. Depois da revolução que Penny
sofrera em Paris, era como se Tad mal a re-
conhecesse. Uma mulher ousada, sem ver-
gonha alguma de ser notada por todos, ela
deixara de ser a cadelinha gorda e suja. Se
ele ainda tinha alguma queda por Monique,
não falou nada a respeito. Em vez disso, con-
vidou Penny para almoçar.
Ele a levou ao La Grenouille e a divertiu
com histórias dos tempos em que editava o
223/503

Yale Law Review. Depois do almoço, eles


alugaram uma carruagem para cruzar o
parque. Tad comprou-lhe um punhado de
balões de gás hélio de um vendedor de rua,
um gesto simples e romântico que Maxwell –
apesar de toda sua massa cinzenta – nem se-
quer cogitaria.
Tad não fez indiretas sobre o apelido de
“Cinderela do Nerd”. O New York Post já
passara a outras pautas fazia tempo. A morte
de Alouette, por exemplo. O incêndio flore-
stal na Flórida. A rainha da Inglaterra, que
tivera convulsões durante uma reunião para
negociar impostos sobre bens de consumo
fabricados na China. Enquanto a carruagem
trotava pela Quinta Avenida, Penny tentou
ignorar o prédio de espelhos rosa na Rua 57.
Uma fila de consumidoras aguardava para
entrar. A fila se estendia muito além de onde
sua vista alcançava.
– Olha só – disse Tad. – Não é a
Monique?
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Penny acompanhou o olhar dele até uma


menina que esperava na calçada, com os
braços cruzados sobre o peito. Na fila havia
apenas mulheres. No assento da carruagem,
Penny baixou os ombros e se escondeu.
Encolheu-se de frustração e resignação,
escondendo-se atrás dos balões.
– Mô! – gritou Tad. Ele acenou até os ol-
hos da garota o encontrarem.
– Dá pra acreditar? – gritou Monique. –
Tá pior do que quando comprei meu Black-
Berry! – O sol do meio-dia cintilou nas un-
has cravejadas de strass e nas continhas
tribais trançadas em seu cabelo.
Tad pediu ao condutor para parar junto ao
meio-fio.
Assim como antes, Penny sentiu-se ig-
norada, relegada à cadelinha suja da amiga
radiante. Ela olhou para cima, fingindo que
só agora notara a colega de trabalho e de
casa. Sabia que Monique estava ansiosa para
levar para casa e testar uma lista de produtos
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Beautiful You. Os comentários das primeiras


consumidoras na internet foram muito posit-
ivos. Muito mais que positivos – eram delir-
antes. Apesar do enorme estoque produzido
antes do lançamento, as fábricas no exterior
estavam tendo dificuldades para atender aos
pedidos. Os elogios se alastravam como um
incêndio. Os comediantes da TV especu-
lavam que tantas mulheres vinham ligando
para o trabalho e se dizendo “doentes” para
ficar em casa que o Produto Interno Bruto
estava começando a cair.
Penny não gostava da forma como os
âncoras dos telejornais tratavam a pauta,
como se fosse uma piada suja, com pis-
cadelas e uma risadinha irônica subenten-
dida em cada pausa.
– Poupe essa grana – gritou Tad para Mo-
nique. – Jerald, dos direitos autorais, tá a
fim de você. – O cavalo se remexeu, impa-
ciente. Um táxi buzinou atrás deles.
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– Cês não tão sabendo, é? – gritou Mo-


nique de volta. – Homem já era!
A frase provocou uma pequena aclamação
entre as mulheres reunidas ali.
Monique atraiu a multidão.
– Não importa o que um homem faça
comigo, eu sei fazer melhor! – Ela estalou os
dedos com desdém, fazendo os cristais de
strass cintilarem ao sol.
Os gritos foram mais altos. Soaram grace-
jos e assobios de apoio.
O táxi buzinou de novo. A fila de consum-
idoras começou a andar.
– Será que um brinquedinho sexual pode
lhe pagar um jantar? – desafiou Tad, fler-
tando descaradamente.
– Quem paga o meu jantar sou eu! – Com
mais um passo, Monique e as mulheres mais
próximas foram engolidas pela gigantesca
loja cor-de-rosa.
227/503

Como se precisasse cair na real de que


havia retornado à frenética Nova York,
Penny foi violentada em seu primeiro mês na
cidade. Ela estava em uma plataforma
deserta do metrô, voltando para casa após
fazer hora extra no trabalho. Estava à toa,
tentando se decidir entre pedir comida tail-
andesa ou pizza, quando dois braços a agar-
raram por trás. Eles apertaram seu peito e
garganta, fazendo o fôlego sumir por com-
pleto e sua visão reduzir-se a uma noção es-
treita das luzes fluorescentes no teto.
Ela estava caída de costas, com suas calças
Donna Karan arriadas em volta dos sapatos
Jimmy Choo. Posteriormente, o que ela mais
lembraria sobre o estuprador era o cheiro de
urina e Keep Cooler sabor pêssego. O que
nunca entenderia era a velocidade do ocor-
rido. Em um instante, ela estava decidindo se
ia comer frango ao capim-limão, e no outro
228/503

já sentia a ereção do estranho forçando a


entrada.
Maxwell surgiu em sua mente. Não que o
agressor fosse curioso ou clínico, mas pela
impessoalidade do abuso. No entanto, en-
quanto se sentia impotente, com a rigidez
feroz do homem rasgando-a por dentro, ela
também o ouviu gritar.
Mais rápido do que havia caído sobre ela,
ele se pôs de pé, com as mãos agarradas ao
pênis imundo que pendia da braguilha
aberta das calças puídas. Ele continuou ge-
mendo, com lágrimas a escorrer pelo rosto
ao olhar para baixo e inspecionar o corpo.
A primeira impressão dela foi a de que o
zíper havia ficado preso em uma região
sensível. Antes de conseguir reunir forças
para gritar ou sair correndo, ela viu uma
grande gota de sangue sair de um furo na
glande.
229/503

O estranho desviou a atenção do sangra-


mento, erguendo os olhos para encarar
Penny. Com a voz receosa, ele reclamou:
– Que que cê tem na boceta, moça? Um
tigre-de-bengala?
Penny ficou observando a gota de sangue
virar uma corrente. Ela se afastou, desliz-
ando pelo mesmo chão em que o sangue
pingou até formar uma poça na plataforma
do metrô. Ela percebeu que ele usava uma
camisinha e que o látex também havia
rompido.
Em um instante, o trem chegou e o
homem sumiu. Foi tudo o que ela conseguiu
dizer ao policial que a atendeu no 911.
A médica que ela consultara para os ex-
ames de DST disse que ela não tinha sinais
de infecção, mas insistiu que voltasse para
outros exames depois de seis semanas. A
doutora, uma senhora simpática de cabelos
crespos ruivos com fios brancos, insistiu em
fazer exame pélvico e coleta de DNA. Ela
230/503

disse a Penny para colocar os pés nos apoios


da mesa na sala de exames, vestindo um par
de luvas de látex. Pediu que Penny soltasse o
ar quando inseriu um espéculo.
Enquanto a médica ligava uma lantern-
inha para dar início à cuidadosa inspeção,
Penny pediu para fazer um raio X pélvico.
– Normalmente não é necessário – a
médica disse.
– Por favor – Penny insistiu. Uma onda de
pavor alimentava seu pedido.
– Você está preocupada com o quê? – per-
guntou a médica, ainda apertando os olhos
pelo espéculo e girando a lanterna.
Penny contou sobre o pênis perfurado do
estuprador. Sobre o buraco que havia feito
em sua camisinha.
– Bom, aqui não tem nada que possa pro-
vocar perfuração – disse a médica. –
Provavelmente você estava certa em sua
primeira impressão. Ele prendeu no zíper. –
231/503

Ela começou a retirar o espéculo devagar. –


Bem feito pra esse canalha.
Elas pediram o raio X.
O exame voltou e não acusou nada.
Penny disse a si mesma que não era nada.
Provavelmente, tinham sido só os dentes de
metal afiados do zíper do próprio homem. Só
mais tarde Penny percebeu o pior. Pela
primeira vez na vida, seus anjos da guarda,
aqueles que usavam ternos sob medida e
óculos espelhados, não haviam aparecido
para salvá-la.

No trabalho, Penny continuava a estudar


como louca para passar no exame da Ordem.
Brillstein estava à procura da ação coletiva
ideal para ela, mas isso só aconteceria se ela
fosse licenciada. Até lá, ela ainda teria de sair
para comprar café e arranjar cadeiras para
reuniões lotadas.
232/503

Para piorar a situação, Monique só ligava


para avisar que estava doente. Desde o dia
em que trouxera para casa duas sacolas cor-
de-rosa, a garota se mantinha trancada no
quarto. Pelo que Penny via, ela não saía de lá
nem para comer. Dia e noite ouvia-se um
leve zumbido saindo do quarto. Quando
Penny batia na porta, o som cessava.
– Mô? – perguntou Penny. O zumbido lhe
era familiar. Bateu de novo.
– Sai daqui, Omaha.
– O Brillstein perguntou de você hoje.
– Vai embora. – O zumbido foi retomado.
Penny saiu de perto da porta.
Por volta de quarta-feira, Monique foi
cambaleante à cozinha, com os olhos
semicerrados lutando contra a luz do sol,
como se tivesse ficado meses presa numa
mina de carvão. Remexendo a geladeira atrás
de leite, ela resmungou.
– Merda de porcaria vagabunda. – Bebeu
o leite direto da caixa. Suspirando antes de
233/503

mais um gole, emendou: – Não aguento es-


perar, tenho que comprar outro.
Penny ergueu os olhos do livro em que
passava uma caneta marca-texto.
– Quebrou?
– Acho que sim – disse Monique. – Bom,
caíram as asinhas.
Penny ficou rígida. Estava sentada à mesa
de café lotada de livros e bloquinhos de
anotações.
– Era a libélula?
Entornando o leite, Monique fez um grun-
hido de afirmação. Os cristais austríacos
haviam descolado das unhas. Suas tranças
estavam enroscadas, emaranhadas,
bagunçadas.
Penny perguntou, cautelosa:
– Quebrou ao meio?
Monique fez que sim.
– Eu tava dormindo.
Penny fez uma anotação para tratar
daquele assunto com Brillstein. Talvez fosse
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esse o caso de renome de que ela precisava.


Vendendo nesse ritmo, mesmo se uma
pequena porcentagem dos produtos Beauti-
ful You tivesse defeito, já havia motivo para
recall. Se ela pudesse provar que houve pre-
juízo real e reunir um número alto de re-
clamações, mulheres de todo o mundo que
houvessem se ferido com as libélulas desped-
açadas, teria uma ação coletiva de proporção
descomunal. A ideia tinha seus precedentes:
toda vez que um novo absorvente ou anti-
concepcional chegava ao mercado, alguém
morria. As mulheres sofriam choque tóxico.
Rupturas da parede vaginal. Os homens in-
ovavam, as mulheres pagavam o pato.
Alouette, por exemplo. Ela fora um dos
ratinhos de laboratório de Maxwell. Quem
garante que sua embolia não fora con-
sequência, em longo prazo, do uso de um in-
strumento de silicone carregado de estimu-
lantes? Não estava fora de cogitação a rainha
da Inglaterra e a presidenta dos Estados
235/503

Unidos serem convocadas a depor. A imagin-


ação de Penny a transformava em uma nova
Erin Brockovich. Era o caso que impulsion-
aria sua carreira.
Óbvio que Maxwell ficaria furioso. Talvez
cortasse as parcelas de seu fundo fiduciário.
Mas a renda e o prestígio de fechar um
acordo de indenização desse porte talvez va-
lessem mais que a perda.
Destacando trechos de um texto sobre pat-
entes, Penny disse:
– Eu tive medo de que você morresse na
cama.
– Morri umas três mil vezes – Monique
retrucou.
– Já usou a ducha? – perguntou Penny.
Monique estava tirando a tampa de um
pote de iogurte e mexendo-o com uma
colher.
– Quando usar – Penny prosseguiu – leia
as instruções. Use champanhe importado,
não espumante nacional. Por favor, não use
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o brut. E a temperatura tem que estar entre


quatro e dez graus. – Ela ficou pensando se
era assim que Max se sentia quando a
adestrava.
Registrando uma citação na margem da
página, ela se sentiu o próprio Maxwell. Sem
retribuir o olhar curioso de Monique, ela
continuou:
– Quando for usar o produto no 39,
comece as oscilações em 15 batimentos por
minuto e gire devagar até 45 batimentos por
minuto. Depois disso, o efeito fica perfeito se
você alternar entre 27,5 e 35,5 batimentos
por minuto.
Monique ficou impressionada. Ainda não
tinha levado a colher à boca. Puxou uma ca-
deira da mesa e sentou-se.
– Qual é o produto...?
Penny finalizou a frase.
– São as Bolinhas Felizes de Mel. Você
sabe onde fica sua esponja uretral?
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– No banheiro? – chutou Monique. – Na


prateleira do lado da banheira?
Penny lhe dirigiu um olhar crítico.
– Você comprou as bolinhas peruanas,
aquela coisa horrível?
– Bolinhas do quê?
– Ótimo – Penny confirmou, lembrando-
se da cena desagradável em que Alouette a
salvara no restaurante. – Não compre.
Monique deixou o iogurte na mesa, tendo
o cuidado de não colocá-lo em cima do ma-
terial de Penny.
– Você fala como se tivesse inventado esse
troço.
Penny pensou, mas não disse: Eu meio
que inventei. O ressentimento que tinha em
relação à colega de casa amainou. A vida era
curta demais. Alguns dias de autossatisfação
física não iam matar Monique. Era prazer
sem afeto; uma hora ela iria perceber isso e
superar.
238/503

– Ouça bem – disse Penny. – Quando for


usar a Varinha Margarida, tenha em mente o
coeficiente de fricção e só use com o Creme
Suave Sensação.
A expressão de Monique era de desnortea-
mento total.
– Essa merda vai transformar a sociedade
– disse ela com cara de espanto.
Arrancando uma página em branco de seu
bloquinho, Penny começou a escrever.
– Não se preocupe – ela disse. – Vou anot-
ar tudo.

No mesmo dia, ela foi ao escritório de Tad


e o convidou para almoçar. Como namorado,
ele tinha mais audácia que experiência. Era
divertido, espontâneo. Muitas vezes ar-
riscava um beijinho e tentava tirar uma
casquinha quando eles estavam apertados no
metrô. Foi enquanto comiam cachorro-
239/503

quente num banco de praça que ela tocou no


assunto. Talvez estivesse hipersensibilizada,
mas parecia que metade das mulheres na rua
brandia as sacolas de compras cor-de-rosa
da Beautiful You. Mesmo que as sacolas est-
ivessem sendo reaproveitadas para carregar
o almoço, elas haviam se tornado o novo
símbolo de status da mulher liberada e inde-
pendente da Union Square.
Penny achava que a maior realização de
Max não eram os brinquedos em si, e sim a
ideia de combinar os dois maiores prazeres
femininos: compras e sexo. Era como Sex
and the City, mas as quatro meninas não
precisavam de cintos Gucci nem de caras
para transar que só rendiam dor de cabeça.
Elas nem precisavam sair para tomar um
Cosmopolitan ou para bater papo.
– Pensando em termos teóricos – ela in-
troduziu aos poucos, tentando fugir do olhar
de Tad –, o que aconteceria se houvesse um
240/503

novo produto de muito sucesso? Ele geraria


uma fortuna para o inventor, certo?
Tad ouvia atentamente enquanto sua coxa
quase tocava na perna dela.
Ela tentava não pensar sobre com o que
era feita a salsicha do cachorro-quente.
Desde que os brinquedinhos de Maxwell
foram colocados à venda, as nova-iorquinas
pareciam mais descontraídas. Pelo menos
metade que tinha ido até a grande loja rosa e
deixado lá seus dólares. Parecia que a única
tensão restante estava nos dentes rangendo e
nos saltos batendo das consumidoras na fila,
que ficava maior a cada dia que passava.
Naquele dia, o Post trouxera uma matéria de
capa sobre uma mulher que havia tentado
furar a fila. As consumidoras frustradas que
já estavam esperando haviam espancado a
intrusa quase até a morte.
– Vamos supor – Penny arriscou – que
uma cliente em potencial tenha sido
241/503

essencial para o teste e o desenvolvimento


desses produtos...
As sacolas cor-de-rosa estavam em toda
parte. Um ônibus passou, trazendo na lateral
o slogan: “Vamos desbancar um bilhão de
maridos”.
Penny não queria que Tad soubesse dos
detalhes sórdidos do que havia feito com
Maxwell, mas estavam em jogo princípios
mais importantes.
– Digamos que a pessoa em questão seja
mulher – ela sugeriu –, uma jovem inocente
que permitiu que um homem fizesse experi-
mentos com ela com vários protótipos desses
apetrechos sexuais.
– Em termos hipotéticos – Tad confirmou,
abaixando a voz. Sua sobrancelha fez um
arco zombeteiro. – Tô gostando de ouvir.
– Em termos hipotéticos – Penny redire-
cionou –, você acha que a cobaia teria direito
a uma parcela das patentes?
242/503

Tad lambeu uma gota de mostarda que


ameaçava cair do lanche em sua calça
Armani.
– A parte lesada tem mais de 21 anos?
Penny discretamente tirou as rodelas de
cebola de seu cachorro-quente.
– Alguns a mais.
– É alguém que você conhece
pessoalmente?
Penny fez que sim, de cara fechada.
– Ela é bonita? – ele provocou. – Tem a
pele perfeita e uma grande mente jurídica?
Penny protestou:
– Deixe de ser condescendente. Ela não é
uma vagabunda. Seria muito bom se ela
pudesse ter uma orientação jurídica de qual-
idade. – Podia ser sua imaginação, mas pare-
cia que algumas das mulheres com as sacolas
cor-de-rosa estavam mancando. Ficou pre-
ocupada que, se exigisse crédito parcial pelos
produtos Beautiful You, também seria
culpada se eles se revelassem defeituosos ou
243/503

nocivos – a libélula, em especial. Uma parte


nos lucros talvez significasse uma parte na
culpa e no processo.
Tad olhou para ela. Seu semblante
obscureceu.
– A cliente está disposta a ir a tribunal e
descrever em público o processo de testes?
Penny engoliu em seco.
– Seria indispensável?
– Infelizmente, sim. Há testemunhas que
possam corroborar?
Penny pensou. Havia a tripulação do jat-
inho particular de Max. A equipe de seu
château e da cobertura. Os vários motoristas
e assistentes administrativos que, às vezes,
quando ela perdia o controle total, eram con-
vocados para mantê-la de pernas abertas na
cama. Nenhum deles poderia ser intimado, a
menos que ela quisesse testemunhas hostis.
Sorrindo, ela disse:
– Mas há registros que podemos intimar a
apresentarem.
244/503

– Que tipo de registros?


Penny ficou pensando em todos os nomes
que estariam na caderneta de Maxwell. As
anônimas, as profissionais do sexo e as
líderes mundiais.
– O processo seria mais complicado se as
anotações fossem consideradas uma ameaça
à segurança nacional?
– No caso – Tad perguntou
pesarosamente –, se elas colocarem a presid-
enta dos Estados Unidos em uma situação
comprometedora?
Ele estava muito à frente dela. Tad Smith
tinha uma perspectiva proativa da vida, e
Penny descobriu que gostava de trabalhar
lado a lado com um otimista.
Quando ela não falava, ele falava.
– Se a parte lesada der seu depoimento,
podemos registrá-lo e começar o processo de
instrução. – Ele tomou um gole de refriger-
ante. – Se os registros do réu coincidirem
245/503

com o depoimento, sua cliente hipotética


terá um caso com muitas chances de vitória.
Penny não parou para pensar em como re-
agir. Não precisava.
– Qual é o primeiro passo?

Não levou dois dias para que Penny fosse


convocada à sala do Sr. Brillstein. Parece que
a BB&B tinha um espião. Alguém de dentro
passou a dica ao alto escalão de que havia
uma ação iminente, e o chefe dela não ficou
contente. Para piorar, a presidenta estava na
cidade para falar nas Nações Unidas, ou seja,
o trânsito estava travado. Esquadrões anti-
terror patrulhavam os metrôs com cães fare-
jadores. Os poucos cidadãos que não es-
tavam pirando eram as moças plácidas e
tranquilas que carregavam suas sacolas cor-
de-rosa. Vê-las passear, calmas e alheias à
246/503

movimentação pelas ruas, fez Penny ter


vontade de entrar na fila da Quinta Avenida.
Os homens da metrópole – mais espe-
cificamente os héteros –, por sua vez, es-
tavam mais ranzinzas do que nunca. Não
havia um que pudesse competir com a vida
inteira de Maxwell dedicada às artes do erot-
ismo, e agora os resultados de seu estudo
tântrico podiam ser comprados com o cartão
de crédito – cor-de-rosa – da Beautiful You.
A ideia de Tad era começar a procurar
imediatamente mulheres insatisfeitas. Eles
fariam uma série de anúncios de TV para en-
contrar consumidoras que houvessem com-
prado a libélula defeituosa. Elas vieram aos
milhões. Em todo o mundo, usuárias haviam
caído no sono curtindo as pulsações pro-
fundas para acordar e descobrir o brinquedo
despedaçado. Todo depoimento que
coletavam trazia os mesmos detalhes: as asas
haviam caído e o corpo se desmanchara.
247/503

Exatamente o que acontecera com Monique


e Penny.
Seria difícil provar um dano real, pois nin-
guém ficara nem com um arranhão. Muitas
mulheres haviam ido ao médico, mas não en-
contraram fragmentos do brinquedo nas
partes internas.
No escritório de Tad, Penny guardava suas
anotações numa pasta parda, que enfiou em
sua bolsa Fendi para levar para casa. Feito
isso, ela correu até a sala de Brillstein, no
silêncio dos lambris do 64o andar, o acar-
petado santuário secreto onde ela conhecera
Max.
Chegou à porta dele e bateu.
– Entre, por favor. – Era uma voz femin-
ina e familiar. Penny girou a maçaneta, en-
trou e ficou cara a cara com uma pessoa que
vira em inúmeros telejornais. As maçãs do
rosto eram salientes e estreitas. Combinadas
a seu queixo pequeno e pontudo, tinha-se a
impressão de que ela estava sempre
248/503

sorrindo. Os olhos castanho-dourados


resplandeciam compaixão.
O chefe irritadiço de Penny continuava at-
rás de sua mesa encerada.
A presidenta Hind voltou seu sorriso ser-
eno para Brillstein.
– O senhor faria a gentileza de me deixar a
sós com a senhorita Harrigan por alguns
minutos?

– Senhorita Harrigan... – ela principiou.


– Penny – a jovem apressou-se em dizer.
A presidenta fez sinal para que ela se sen-
tasse. Era mais ou menos da mesma idade da
mãe de Penny, mas muito mais bem cuidada.
Seu tailleur sob medida caía bem como um
uniforme. Usava um broche de filigranas
prateadas em uma das lapelas, como se fosse
seu distintivo. Ela aguardou o chefe de
Penny deixar a sala, encostou a porta e a
trancou. Então, fez sinal para Penny se sent-
ar em uma poltrona de couro vermelho.
250/503

Sentou-se na poltrona oposta. As duas es-


tavam próximas, como velhas amigas
colocando o papo em dia.
– Minha cara – disse ela, com calma –,
venho aqui por um motivo de segurança
nacional. – Ela falava como se fosse um dis-
curso no Salão Oval. – Por favor, não se en-
volva em uma ação contra C. Linus Maxwell.
Penny ouvia estupefata. Era impossível
imaginar aquela líder tão resoluta
sujeitando-se aos exercícios tórridos de Max.
Penny mal podia imaginar aquela mulher,
tão articulada e bem-vestida, reduzida a gar-
ranchos numa caderneta. Clarissa Hind fora
seu exemplo de vida, mas a líder corajosa
que Penny sempre imaginara não guardava
semelhanças com a pessoa que lançava ol-
hares furtivos para a porta trancada da sala e
que falava com ela de forma tão delicada.
– Como colega no direito – prosseguiu a
presidenta –, tenho simpatia pelo seu desejo
de ver a justiça ser feita. Mas esse confronto
251/503

não deve ocorrer em fórum público. Acredite


quando lhe digo que milhões, no mundo to-
do, estarão em perigo com as medidas legais
que você planeja lançar. Organizar essa ação
coletiva ou contestar as patentes de Maxwell
colocaria em risco tanto as vidas dessas pess-
oas quanto a sua.
Ela não era mais a bela mulher que sorria
na capa do National Enquirer. Três anos de
Salão Oval haviam criado rugas em sua
testa.
– Eu soube que há poucas semanas você
foi violentada numa plataforma de metrô. –
Seu tom parecia hesitante, abafado, mas com
simpatia. – Imagino que tenha sido terrível.
Mas não pense, minha cara, que foi um
crime casual. Independentemente de quem
tenha sido contratado, Max não queria
machucá-la. – Os olhos da presidenta eram
sinceros e suplicantes. – Maxwell estava
apenas demonstrando o poder que possui.
Você precisa passar o resto da vida sabendo
252/503

que, não importa onde estiver, ele pode


alcançá-la a qualquer momento e acabar com
a sua vida.
Penny percebeu que a presidenta estava
sentada na mesma poltrona que Max ocu-
para no dia em que ela caíra a seus pés. O
carpete não demonstrava manchas ou
qualquer sinal do café derramado. Penny se
lembrou da última vez que ouvira aquela
mesma voz tão branda. A desconfiança afiou
sua própria voz como um dardo.
– Quanto Max está lhe pagando? – per-
guntou Penny em tom acusatório. – Você o
ajudou. Quando eu atendi o celular por en-
gano, em Paris, era você. – Ela ficou esper-
ando que a presidenta negasse, mas não
ouviu nada. – Você convenceu a FDA a apro-
var a distribuição desses... produtos de
beleza. – Penny estava pálida. – Ele está
vendendo apetrechos sexuais defeituosos,
nocivos, e você ajuda.
A mulher não se perturbou.
253/503

– Em troca de sua cooperação, estou dis-


posta a ser sua mentora na arena política.
Penny entendeu o plano. Para não serem
expostos, Max e a presidenta estavam ofere-
cendo uma fatia do bolo da política global.
Eles a adestrariam para herdar aquela
dinastia corrupta. Talvez pessoas mais fracas
aceitassem, mas ela só conseguiu sentir nojo
da barganha.
– Não interessa a qual cargo você for con-
correr – a presidenta sugeriu. – Se ficar do
nosso lado, terá praticamente todos os votos
das mulheres entre 18 e 70 anos.
Deixando a política de lado, Penny sabia
que a proposta era insana.
– Você não tem como garantir – ela disse.
– Não tenho – Hind retrucou –, mas Max
tem. – A presidenta ergueu o pulso e puxou a
manga do blazer para conferir o relógio. –
Está na hora do meu discurso na ONU. Po-
demos continuar essa discussão no carro?
254/503

A paisagem cinza de Manhattan esvaía-se


pelo lado de fora da limusine. Por um in-
stante, a presidenta Hind fechou os olhos e
passou as pontas dos dedos nas têmporas,
como se estivesse sofrendo de enxaqueca.
– Primeiro, ele deixa você famosa – disse
a presidenta com a voz muito cansada –, tão
famosa que você não consegue mostrar o
rosto em público. – Desde o primeiro clique
de um paparazzo, afirmou ela, Maxwell con-
tratou a imprensa para cercar Penny. Ele
atiçara a curiosidade do público. Criara as
circunstâncias que a manteriam trancada em
casa. Hind sorria lúgubre, sabendo o que diz-
ia. – Então, o único lugar onde você se sente
segura é a cobertura. Ele a isola. Ele se torna
a única pessoa em quem você pode confiar e
oferece o único conforto que você conhece.
E os tabloides que o difamavam? Segundo
a presidenta Hind, Max era dono de todos.
255/503

Comprara-os havia alguns anos, quando os


jornalistas começaram a ficar intrometidos
demais. Na condição de sócio secreto, ele po-
dia publicar distrações. Podia autodifamar-
se com matérias absurdas, criando uma cor-
tina de fumaça para esconder a verdade e, ao
mesmo tempo, minar a credibilidade
jornalística.
– Mesmo que descubra a verdade sobre
Maxwell – avisou a presidenta –, você nunca
conseguirá trazê-la a público. Hoje em dia
ninguém acredita no que se lê sobre ele. – De
repente, Hind resmungou como se falasse
consigo mesma: – Eu nunca quis governar
nada.
A caminho das Nações Unidas, o celular
da presidenta tocou. Acomodada no banco
de couro, longe do motorista graças a um
painel com isolamento acústico, Penny
fechou a boca e ficou olhando pela janela
fumê.
256/503

– Estou tentando argumentar com ela –


Hind disse à outra pessoa na linha. – Não
tome nenhuma atitude, por favor. – Ela fez
uma pausa e fitou Penny. – Não, nunca que
eu ia contar isso. Mesmo que contasse, ela
não iria acreditar.
Sem ouvir uma palavra do outro lado da
conversa, Penny soube que era Max.
O comboio seguia pelas ruas sem se pre-
ocupar com sinais de trânsito ou outros
veículos. Ao passarem pelo Bryant Park,
Penny viu uma fila comprida para entrar
numa loja da Sexta Avenida chamada
Bootsy. Praticamente a mesma faixa demo-
gráfica que havia pirado com a Beautiful You
agora formava multidões para comprar a
nova moda em sapatos. Penny entendia de
tendências. Na sua opinião, os sapatos eram
feios e deselegantes, com tiras largas sobre o
peito do pé e saltos grossos. Mas alguma
dinâmica de grupo estava em ação. Eram as
mesmas mulheres que vinham
257/503

transformando um livro banal sobre vam-


piros em best-seller nacional.
A presidenta finalizou a conversa, guardou
o telefone no bolso e voltou sua atenção para
multidão que esperava na fila para comprar
sapatos.
– Meu relacionamento com Maxwell
começou como um vício – ela refletiu. – Era
divertido. Eu tinha a sua idade. Na época,
achei que Max era tudo de que eu precisava
no mundo.
Havia algo de trágico no rosto dela ao falar
sobre sua fase mais jovem e mais ingênua.
Sua voz estava carregada de repugnância, di-
rigida a si mesma.
– Confiei nele.
Penny tentou ajeitar-se no assento, mas
estava incomodada. Enquanto a presidenta
falava, seu corpo parecia reagir a uma in-
sinuação erótica. Sem saber qual era o es-
tímulo, seus mamilos estavam eretos a ponto
de doer, de tão rijos, e seu sutiã de seda
258/503

parecia uma lixa. Podia ser movimento do


carro ou o cheiro dos assentos de couro, mas
ela sentiu uma umidade cálida formar-se na
virilha.
A presidenta Hind perguntou:
– Você já tentou ter relações com outra
pessoa depois dele?
Penny pensou no estuprador, mas fez que
não.
– Maxwell acha que nos protege, mas na
verdade nos controla. Ele acha que é a
mesma coisa.
Perto da Lexington Avenue, a respiração
de Penny ficou tão lenta e difícil que ela teve
que abrir a boca para respirar.
A presidenta Hind olhou para ela com
uma expressão de tristeza.
– Eu pedi para ele não fazer isso. – Para
uma conspiradora maligna, ela fez algo es-
tranho. Estava sentada de frente para Penny,
e então inclinou-se para chegar mais perto e
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alcançar a sua mão febril. – Respire. Contin-


ue respirando – ela disse.
A voz de Clarissa Hind era hipnótica.
– Finja que é o clima, uma chuva re-
pentina. Não há o que fazer. Deixe passar. –
Ela pressionou dois dedos contra a lateral do
pescoço de Penny e contou em silêncio. –
Pronto – disse. – Você já está voltando ao
normal.
Segurando as mãos de Penny, Hind
suplicou:
– Me ouça! – E emendou: – Só há uma
pessoa que pode salvar as mulheres desse
mundo. Essa pessoa vive numa caverna, nas
encostas mais altas do monte Everest. O
nome dela é Baba Barba-Cinza, a maior
feiticeira do sexo viva. – A presidenta puxou
Penny para perto e abraçou-a calorosamente.
De rostos colados, Hind sussurrou no ouvido
de Penny: – Vá lá! Aprenda com ela! Só as-
sim você poderá lutar contra Maxwell de
igual para igual!
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Hind soltou-se do abraço e voltou a seu


assento.
Fosse lá o que houvesse acontecido com
Penny, a agitação estava cedendo.
Continuava transtornada, mas já havia se re-
cuperado quando o carro chegou ao destino.
Acompanhada da presidenta Hind, ela pas-
sou rapidamente pela segurança. Para
Penny, os homens do serviço secreto nas
Nações Unidas eram os mesmos guarda-cos-
tas, sem tirar nem pôr, que haviam escoltado
Alouette no dia em que ela fora depor na
BB&B. Eles conduziram as duas mulheres
aos bastidores. Ali, um maquiador pôs Hind
em frente a uma penteadeira com espelho e
começou a prepará-la.
O reflexo no espelho começou a se dirigir a
Penny.
– Já falei tudo que podia falar. Se falasse
mais, ele mataria nós duas. – Com os olhos
fixos, ela levantou sua bolsa Dooney &
Bourke até o balcão e tirou um frasco de
261/503

comprimidos. Tomou dois deles, devolveu o


pote à bolsa e fechou o zíper. – Um dia você
vai entender. – Virando os olhos para ver
apenas seu reflexo, a presidenta disse: – O
que estou prestes a fazer é minha única
opção.
A presidenta não disse nem mais uma pa-
lavra até a hora de assumir seu lugar diante
dos representantes de cada nação do mundo.
O burburinho da tropa de jornalistas cessou
assim que ela foi apresentada. Hind saiu
confiante das coxias para assumir o palco
central.
Na adolescência e especialmente nos anos
árduos do curso de direito, Penny venerara
aquela mulher. Como diziam os tabloides,
Clarissa Hind fora uma valente líder que en-
trara na briga para melhorar o finan-
ciamento de escolas públicas carentes em
Buffalo. Ela tinha liderado uma campanha
de patrocínio empresarial e que perseguira
C. Linus Maxwell atrás de uma doação
262/503

milionária. Os dois viraram alvo permanente


das colunas de fofoca. Ele vira nela uma
qualidade inata e a preparara para a
grandeza.
Penny observava a destemida líder inter-
nacional que sempre idolatrara.
– Cidadãos do mundo... cidadãos dos
Estados Unidos – iniciou a presidenta. –
Venho aqui em toda minha humildade. Há
três anos, fiz meu juramento de posse, em
que prometi proteger e servir...
Sua voz amplificada ecoou pela enorme
câmara do conselho.
– Fracassei.
A reação às palavras foi um burburinho de
choque que cresceu conforme dezenas de
tradutores simultâneos transmitiam a
mensagem aos fones de ouvido de todos os
presentes.
– Meu fracasso e minha covardia são
apenas meus. – Como se estivesse diante de
um pelotão de fuzilamento, ela ergueu a
263/503

cabeça. – Posso apenas orar para que o de-


sastre que temo não venha a acontecer.
Ela desabotoou o blazer e escorregou uma
mão para dentro, colocando-a próxima ao
coração.
– Para encerrar, peço a Deus que me per-
doe. – Ela olhou para Penny, que estava na
lateral, depois dirigiu seu olhar para a
plateia, como se vislumbrasse a eternidade.
– Os erros que cometemos na juventude –
ela disse, solene – cobrarão seu preço pelo
resto da vida.
Não havia discussão sobre o que aconteceu
depois. Com as câmeras de TV transmitindo
o discurso para espectadores em todo o
mundo, Clarissa Hind, a 47a presidenta dos
Estados Unidos, puxou uma pistola calibre
35 do bolso interno do casaco. Levou o cano
da arma até a cabeça e puxou o gatilho.
264/503

No departamento de defesa do consum-


idor da BB&B, um padrão inquietante
começava a tomar forma. Diante das caixin-
has de comida chinesa entregues tarde da
noite, Tad explicou que 70% das mulheres
que haviam proposto a ação coletiva desi-
stiram do caso. Das 30% restantes, nem uma
única dera depoimento. Assim, eles tinham
um manancial de zero mulheres buscando
indenização por dor e sofrimento. De mil-
hões a zero.
Na verdade, da forma como Tad contava, a
situação era justamente inversa.
Pegando um rolinho primavera com os
hashis, Tad disse:
– A coisa está ficando ainda mais es-
tranha. Todas as mulheres que responderam
no início voltaram a comprar libélulas na
Beautiful You.
Penny mergulhou um pedaço de carne de
porco na mostarda picante e mordiscou.
Continuava ouvindo.
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– A fidelidade à marca está em todas as


categorias de consumo – prosseguiu Tad. –
São as mesmas mulheres que têm ido com-
prar as mesmas colônias para os maridos e
namorados. Os mesmos livros da mesma ed-
itora. Fornos de micro-ondas, ração canina,
sabonete, não interessava o produto. – Como
Tad apurou, todos eram fabricados pela
DataMicroCom.
Penny quase se engasgou:
– A empresa do Maxwell!
Tad fez que sim.
– Esse abalo tectônico nos hábitos de
compra fez de cada subsidiária da DataMi-
croCom em líder de vendas em seu
segmento.
Agora Penny estava confusa. Como vender
beleza a cento e cinquenta milhões de mul-
heres podia afetar outros setores inteiros?
– Essas mulheres, em especial, controlam
90% dos gastos de consumo individual no
mundo industrializado. – Ele bebeu sua sopa
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direto da embalagem. – A mão que balança o


berço decide para onde vai quase toda a
renda familiar.
De brincadeira, Penny balançou um ca-
marão frito na frente do rosto dele.
– Ah, não importa como ganham a vida,
essas meninas merecem o dinheiro que
ganham.
Tad atacou com os dentes, mordendo o
crustáceo suculento e arrancando-o de seus
dedos. Melhor assim, pois Penny tinha forte
alergia a crustáceos. Ele falou enquanto
mastigava:
– Espere só até ouvir essa: segundo nosso
departamento de direito de família, os pe-
didos de divórcio subiram 400% desde o
lançamento da Beautiful You. As meninas es-
tão trocando os homens pelas engenhocas!
Horrorizada, Penny riu.
– Eu não!
– Prove! – Tad retrucou.
267/503

Tad queria que o relacionamento chegasse


a outro nível, mas Penny não podia correr
esse risco. Fazia semanas que vinha rejeit-
ando Tad. Depois do que acontecera com o
estuprador, ela ainda tinha medo de que
houvesse algo de errado com sua pélvis. Tad
era um cara legal e por isso não fazia
pressão. Era sincero quanto ao seu senti-
mento por ela. O inverso total de Max. A úl-
tima coisa que ela queria no mundo era
rasgar a genitália do único namorado sério
que tinha desde a época da faculdade.
Para mudar o tópico da conversa, ela
perguntou:
– Então não temos ação coletiva?
Tad deu de ombros.
– Sem reclamantes, sem ação.
Penny lambeu o molho de amêndoa dos
palitinhos enquanto matutava.
– Mas ainda podemos entrar com meu pe-
dido de direitos sobre a patente?
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Tad deu um suspiro. Olhou para ela com


as sobrancelhas arqueadas de preocupação.
– O depoimento pode ser uma humil-
hação. Brillstein não vai poupar nada. Vai
querer saber cada mínimo detalhe sujo dos
experimentos a que ele te submeteu.
Brillstein. Penny detestava Brillstein. Mas
suspeitava que ele a defenderia. A firma po-
dia ganhar uma fortuna se garfasse uma
parte dos lucros do império de apetrechos
sexuais de Maxwell.
Os olhos de Tad desceram ao enorme pin-
gente de rubi no peito de Penny. O presente.
Ela devia ter deixado em casa para poupá-lo
do sofrimento. Lindo ou não, Penny decidiu
guardar a pedra preciosa no mesmo cofre
onde ficava seu diafragma.
Ela inclinou-se sobre a mesa e começou a
juntar os formulários de depoimento para o
processo de defesa do consumidor.
– Não vamos desistir da ação coletiva. –
Ela juntou os formulários com um elástico e
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foi até a porta da sala. – Se você me der um


dia de folga, prometo que consigo as re-
clamantes de que a gente precisa!

No dia seguinte, Penny saiu de sua casa a


pé. De botas Gucci, partiu confiante pela
Quinta Avenida, carregando várias
pranchetas. Os bolsos de seu casaco curto
Donatella Versace estavam quase transbord-
ando, cheios de canetas esferográficas. Por
baixo do casaco, ela usava uma microssaia
Betsey Johnson, com as cores do arco-íris.
Os passarinhos cantavam. O sol da manhã
era um deleite sobre suas pernas nuas, lisas,
assim como os olhares atentos e de cobiça
dos belos passantes masculinos. Ser o centro
das atenções fazia bem para o ego. O difícil
era não se perder na sua missão jurídica em
busca dos fatos. O clima de calor inevitavel-
mente a atraiu para um desvio pelo Central
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Park, onde era impossível deixar de perceber


as mudanças sociais da metrópole.
As típicas legiões de babás britânicas e au
pairs suíças, as esbeltas e jovens auxiliares
que cuidavam das crianças abastadas de
Manhattan: todas haviam desaparecido. No
lugar delas, pestinhas sujos e ranhentos ron-
davam o Sheep Meadow como matilhas de
coiotes. No cenário bucólico também não se
viam refugiadas de terceiro mundo que nor-
malmente serviam como diligentes enfer-
meiras e cuidadoras. Parecia que alguns pa-
cientes haviam sido abandonados ali mesmo,
idosos perdidos em cadeiras de rodas. Era
evidente que esses casos irrecuperáveis
haviam sido deixados à própria sorte, às
margens da trilha pavimentada do parque.
Enquanto Penny deambulava entre suas
formas prostradas, envoltas em cobertores, o
odor de fraldas e bolsas de colostomia cheias
fazia com que ela apressasse seu passo
animado.
271/503

Não fazia sentido, mas as poucas mulheres


à vista eram meninas pré-adolescentes desa-
companhadas ou geriátricas babonas. Com
exceção das muito jovens e das muito debilit-
adas, as únicas mulheres pareciam ser
aquelas nas fotos que, da noite para o dia,
haviam sido coladas por onde quer que
Penny olhasse. Postes... abrigos de ônibus...
tapumes de construção, todas as superfícies
verticais da Big Apple estavam cobertas com
cartazes fotocopiados, dominados por foto-
grafias de mulheres diferentes. Na legenda
de cada foto lia-se “Desaparecida: Amada Es-
posa” ou “Querida Filha” ou “Mãe Adorada”.
“Estimada Irmã”. “Você viu esta mulher?”,
perguntavam os pôsteres. “Desaparecida
desde…” seguida de uma data das últimas
duas semanas. A Penny elas pareciam
lápides, campos de pedras tumulares, como
se a cidade estivesse virando um vasto
cemitério feminino. Era deprimente e
assustador.
272/503

Já circulavam boatos de que essa trans-


formação era consequência do uso dos
aparelhos Beautiful You. Segundo os
rumores, as primeiras a adotar os produtos
haviam decidido viver como eremitas, reclu-
sas embaixo de pontes ou em túneis de
metrô desativados. Abandonaram famílias e
carreiras. Agora sem teto, seu único com-
promisso era com aqueles produtos de cuid-
ados pessoais.
Penny ficou pensando naquela hipótese
tenebrosa quando dois homens bem-arru-
mados passaram correndo rente a seu
cotovelo. Aquela presença tão próxima quase
a fez largar as pranchetas no chão. A seus ol-
hos interioranos, os shorts eram justos de-
mais, ostentando de forma grosseira as
nádegas hipertrofiadas e suas partes íntimas
em movimento sem o devido suporte. Como
se fosse uma menina de 10 anos, um homem
comentou com o outro:
273/503

– Deixe as meninas se divertirem! – Seu


robusto parceiro de corrida respondeu:
– Não estou nem aí se não voltarem! – A
dupla seguiu a galope, deixando para trás
uma nuvem de perfume.
Enquanto os observava sumir ao longe,
Penny descobriu um entrave em seu cam-
inho. Logo à frente havia um estranho
parado. O cabelo curto estava desgrenhado, e
as duas pontas da gravata desamarrada
voavam sobre o terno amarrotado. Dava a
impressão de que ele havia dormido com
aquela roupa.
– Pode me ajudar? – ele pediu. Seu rosto
estava escuro da barba por fazer. Com uma
mão, ele mostrou uma folha de papel verde.
No outro braço, tinha uma resma dos mes-
mos papéis.
– O nome dela é Brenda – ele gemia. – A
minha noiva!
Equilibrando suas pranchetas, Penny
aceitou o papel. Ele trazia mais uma mulher
274/503

sorridente, um retrato granulado que fora


ampliado tantas vezes numa fotocopiadora
que perdera os detalhes. Ela vestia uma
blusa Jil Sander e dava um sorriso vencedor
para a câmera. Sob a foto, liam-se as palav-
ras “Diretora Financeira, Allied Chemical
Corp.” Havia um telefone e as palavras “Caso
você veja esta pessoa, ligue em qualquer
horário, noite ou dia”. Abaixo, a palavra
“Recompensa”. Penny rapidamente enfiou o
folheto no bolso do casaco, junto com o
monte de canetas.
O estranho barbado pegou-a pelo pulso
com uma força tremenda. Suas mãos
suavam.
– Você é mulher – disse ele, espantado. –
Você precisa me ajudar! – Estava quase grit-
ando. – Você é mulher, você tem que cuidar
de mim! – Ele soltou uma risada nervosa,
histérica. Seu olhar voraz mediu de cima a
baixo o corpo de Penny. – Faz tanto tempo
que não vejo uma mulher de verdade!
275/503

Ela precisou de um golpe rápido e bem-


posicionado de sua Gucci para fugir. A bota
pontuda acertou a virilha do homem e Penny
conseguiu se soltar. Antes de dar seu golpe
paralisante, ela notara um pequeno detalhe
em seu rosto, em especial nas bochechas... A
pele dele estava molhada, coberta de lágrim-
as. Estava chorando.
Aterrorizada, Penny não se arriscou a ol-
har de novo. Partiu num ímpeto louco até a
torre cônica e rosada na Quinta Avenida.

Nos últimos dias, as consumidoras da


Beautiful You haviam começado a chamar o
prédio rosa espelhado de “Nave Mãe”. A cada
alvorada, as clientes fiéis estavam lá em
peso. Mesmo com as portas ainda trancadas,
uma fila agitada se estendia por dois
quarteirões. Impacientes, equilibrando o
peso do corpo sobre um salto ou outro, todas
276/503

usavam as mesmas roupas feias e deseleg-


antes. Elas aguardavam da mesma forma que
Penny já havia aguardado em frente às
portas da Bonwit Teller. Cada uma trazia nas
mãos o mesmo livrinho romântico sobre
vampiros. Muitas traziam o almoço em
sacolas cor-de-rosa para sinalizar que es-
tavam voltando à loja. Entre elas havia algu-
mas com cara de exaustas, de cabelos escor-
ridos e rostos pálidos. Faziam Penny pensar
em como o belo rosto de Monique havia se
tornado cadavérico nas últimas semanas. Ah,
e aquele cheiro de falta de banho que es-
capava do quarto da pobrezinha... Monique
já nem ligava para o trabalho para dizer que
estava doente, e Penny sentia-se coagida a
dar desculpas para salvar o emprego da
colega.
No meio da fila, um homem de meia-idade
que vestia a camiseta dos Pagadores de
Promessa abordava uma mulher. Penny re-
conheceu a camiseta porque já vira seu pai
277/503

usando uma igual. Como se fosse do tempo


das cavernas, o homem pegou a mulher
pelos cabelos e tentou arrastá-la até um táxi
que o esperava no meio-fio. A mulher havia
se agachado para tentar continuar na fila das
clientes madrugadoras.
Enquanto Penny se aproximava do casal,
ela ouviu o homem dizer:
– Volte pra casa, por favor! Volte! – As pa-
lavras dele eram entremeadas pelos soluços.
– Johnny e Debbie estão com saudades da
mamãe!
A mulher, Penny supôs, era a esposa do
homem. De sua parte, a esposa golpeava o
homem repetidamente com um objeto cor-
de-rosa. Sua arma era mole, flexível e com-
prida. Vendo mais de perto, Penny percebeu
que era o produto no 6.435, o Mastro Lua de
Mel. Normalmente, ele continha seis pilhas
tamanho D, e Penny ouvia o peso de cada
uma batendo nas costelas do homem como
uma clava. A esposa berrava:
278/503

– Esse naco de plástico é mais homem do


que você jamais será!
Cuidadosa, Penny contornou a contenda e
correu até o início da fila. Nos braços, ela
trazia uma pilha de pranchetas, todas já
devidamente preparadas com formulário e
caneta. Ela começou a abordagem pelas mul-
heres que demonstravam estar mais abati-
das. Exaustas e infelizes, elas estavam em
frente às portas trancadas, como se tivessem
passado a noite ali. A julgar pelo odor cor-
poral e pela postura sonolenta, desleixada,
Penny achou que estavam ali desde o dia
anterior.
– Com licença – ela disse, oferecendo uma
prancheta à primeira mulher. – A senhora já
passou por uma experiência de falha cata-
strófica de um produto Beautiful You dur-
ante o uso?
Ela se sentia uma advogada de porta de
cadeia, embora, no caso, fosse porta de sex
shop, mas os fins justificavam os meios.
279/503

Tremendo apesar do calor matinal, a mão


macilenta da mulher aceitou a caneta. Não
havia sinal de inteligência na expressão da
estranha quando voltou seus olhos vidrados
para a papelada jurídica. Penny percebia que
ela era jovem, mas algo havia sugado sua en-
ergia vital. Os ossos do rosto saltavam por
baixo da pele.
Penny reconheceu aquele olhar. Depois de
rodadas cansativas de êxtase, ela mesma já
vira esse vazio fantasmagórico no espelho.
Reduzida a tal nível de exaustão, ela fora
massageada e manipulada com sucos de
fruta espremidos à mão. Max solicitava
acupuntura e aromaterapia para auxiliar em
sua recuperação, mas essas mulheres não
tinham nada. Estavam morrendo de prazer.
Os olhos delas cintilavam, estavam vidra-
dos e afundados em suas órbitas. As roupas
pendiam caídas, pesadas com a transpiração
seca. Os lábios, frouxos. Eram as mesmas ga-
rotas confiantes e tranquilas que havia
280/503

apenas uma semana passeavam pela Union


Square. Era evidente que os brinquedinhos
tinham virado sua nova e perigosa
compulsão.
Avançando o sinal, ela disse à mulher:
– Estamos organizando uma ação coletiva
para acusar a Beautiful You de conduta
ilegal.
A mulher resmungou uma resposta. Mais
uma situação que Penny reconhecia. Muitas
vezes, após longas sessões de teste, gemidos
altos de êxtase saíam de sua garganta seca,
inutilizada.
Outras foram chegando mais perto, cam-
baleantes, sem firmeza, esticando os
pescoços finos para ver o que Penny queria.
Ela via que os cabelos dessas curiosas
zumbis estavam quebrando na raiz, certa-
mente por desnutrição, provocando falhas
no escalpo. Não deixou de lhe ocorrer que
uma revolução sexual anterior tinha criado
esqueletos ambulantes muito parecidos com
281/503

aqueles. Não muito tempo atrás, essas párias


esqueléticas que se arrastavam teriam sido
vítimas da aids.
Para provocá-las, Penny disse:
– Vocês não precisam de mais um brin-
quedinho. – Enfiando pranchetas em cada
par de mãos, ela continuou: – Precisamos
que a Beautiful You se responsabilize pelos
crimes que comete contra as mulheres. Pre-
cisamos acabar com essa empresa e exigir re-
paração dos danos!
A menina cadavérica no início da fila en-
goliu em seco. Os lábios finos faziam esforço
para formar palavras.
– Você... quer que... eles... fechem? – A
voz era um ganido de terror. Um rugido as-
sassino ecoou pela fila.
Uma voz disse:
– Espera só eu comprar minha libélula
nova. Depois pode processar.
Outra voz acusou:
282/503

– Seja quem for essa aí, ela é contra o


direito da mulher à satisfação sexual.
Uma prancheta foi atirada e por pouco não
atingiu a cabeça de Penny. Seguiu-se um
coro de gritos agudos:
– É uma antifeminista! Ela se odeia! Odeia
o próprio corpo!
– Se joga, filha! E vai pro fim da fila!
– Temos que proteger nosso direito de
comprar na Beautiful You!
Uma chuva de pranchetas começou a vir
de todos os lados em direção a Penny. A
atmosfera encheu-se de esferográficas ar-
remessadas e gritos injuriosos de ira femin-
ina. O exército de frustradas a apedrejava
com livrinhos de vampiro. Mais um minuto e
todas arrancariam os saltos para espancá-la
até a morte. Sem defesa, ela gritou:
– Maxwell só quer manipular vocês! –
Com braços erguidos para defender-se dos
livros, ela berrou: – Ele quer que vocês virem
escravas!
283/503

Enquanto a multidão avançava, inúmeras


mãos agarraram o cabelo de Penny e sua col-
orida microssaia Betsey Johnson. Dedos ira-
dos a agarraram pelos punhos e tornozelos.
Ela achou que iam desmontá-la. Submetida
aos gritos de “Opressora!” e “Reprimida!”,
Penny seria despedaçada membro a mem-
bro. Feita em cacos.
Uma voz louca berrou:
– A Beautiful You me ajudou a sair das
drogas!
Outra esganiçou:
– Graças à Beautiful You eu perdi 34
quilos!
Abafada pelos gritos animalescos da turba,
uma fechadura fez clique. Virou-se uma
chave e um cadeado se abriu.
Quase inaudível.
– A loja – suspirou Penny. Enfraquecida
devido ao esforço para se salvar, ela sussur-
rou: – A loja abriu...
284/503

A frase a salvou, pois as milhares de con-


sumidoras frenéticas se viraram e atacaram o
grande prédio rosa. Jogada na calçada,
Penny ficou em posição fetal enquanto in-
contáveis sapatos feios debandavam para ab-
raçar sua sina.

Naquela noite, Penny vestiu pijamas con-


fortáveis de flanela da L. L. Bean. Foi para a
cama mais cedo, agarrada a uma taça de
pinot gris e com uma quantidade consider-
ável de machucados causados por
pranchetas. Após a missão abortada para re-
unir vítimas, ela chegou em casa desanim-
ada. Estava dolorida. Sua microssaia estava
encardida pelas marcas de mãos, e a mul-
tidão havia destruído seu casaco Versace.
Concluiu que a peça não teria conserto e só
procurou moedas e chicletes nos bolsos antes
de entregá-lo à lata de lixo. Em um dos
285/503

bolsos, encontrou o folheto verde-claro que


recebera do homem nervoso no parque.
“Ligue em qualquer horário, dia ou noite”,
dizia. “Recompensa.”
Na cama, Penny alisou o papel. Deixou o
vinho de lado e procurou o telefone no
criado-mudo. Uma voz de homem respondeu
ao primeiro toque.
– Brenda? – Era o estranho. O punho de
Penny ainda ardia no lugar em que ele a
havia segurado.
– Não – Penny disse, tristemente. – Con-
heci você hoje de manhã.
– No parque – disse ele. Disse que lem-
brava porque fora a única mulher normal
que ele vira naquele dia. Naquela semana,
aliás.
– Todo dia eu passo naquela fila da Quinta
Avenida e procuro... procuro... mas Brenda
não está.
Escolhendo as palavras com cuidado,
Penny estimulou-o a falar.
286/503

– E esse desaparecimento... como


aconteceu?
O homem deixou sua história de angústia
extravasar. O que alimentava sua aflição era
a culpa. Ele comprara o primeiro produto
Beautiful You para a esposa. Era para ser um
presente de aniversário: o produto no 2.788,
a Sonda Êxtase Já. Brenda ficou corada de
vergonha quando abriu o pacote em um res-
taurante lotado, mas ele gentilmente a in-
centivou a usar.
– Não lá no restaurante. – E insistiu: – Só
uma vagabunda aceitaria usar um apetrecho
sexual em um restaurante.
A mente de Penny voltou a seu episódio no
bistrô francês com as bolinhas coloridas.
Abafou uma pontada de vergonha com um
bom gole de pinot gelado. Deitada na cama,
via as feridas nos braços passarem de rosa a
vermelho, de vermelho a roxo. Ficou reflet-
indo sobre seu período em Paris e sentiu que
havia passado metade da vida bebendo vinho
287/503

na cama, coberta de hematomas. Passou pela


sua cabeça que a vida de Melanie Griffith de-
via ser sempre assim.
– Em um dia – prosseguiu o homem ao
telefone –, Brenda era a negociadora mais
influente da indústria química, e no dia
seguinte... – Suas palavras foram da resig-
nação ao cansaço. – Ela se foi. – Ele vascul-
hara o duplex em que moravam na Park Av-
enue e deu falta apenas da Sonda Êxtase Já.
Fazia duas semanas. Desde então algumas
pessoas haviam ligado para dizer que a tin-
ham visto. Uma vez foi sobre o cais em
ruínas perto de Hoboken. Em outra, as
câmeras de segurança de uma bodega
captaram-na roubando pilhas no Harlem
Hispânico.
Enquanto ouvia a história, Penny entor-
nava o vinho. Esticou a mão para pegar a
garrafa no criado-mudo e serviu mais uma
taça. Já tinha virado até o último gole
quando o humor do homem solitário ao
288/503

telefone passou de esperança a medo e, en-


fim, a selvageria.
Era possível escutar sua fúria ao telefone.
Por mais embriagada que estivesse, Penny
sabia que ele estava com o rosto vermelho e
que seu corpo inteiro tremia.
– Se um dia eu encontrar o homem que
criou esses brinquedinhos do demônio... –
Ele fez uma pausa, engasgado de raiva. –
Tendo Deus por testemunha, eu o estrangulo
com minhas próprias mãos!

Os sapatos feios e os livrinhos de vampiro


eram só uma amostra da nova tendência que
estava por vir. Tad acompanhava diaria-
mente a variação nos hábitos de consumo.
Numa segunda-feira, quase dezesseis mil-
hões de donas de casa abandonaram as má-
quinas de lavar roupas que haviam compra-
do há décadas e trocaram pela Sudso, marca
289/503

que chegara ao mercado na semana anterior.


Da mesma forma, uma geração inteira de
amantes da música foi em peso a shows de
uma nova boy band chamada High Jinx.
Desmaiavam. Gritavam. Ao ver aquelas ga-
rotas na televisão, Penny notou que o com-
portamento delas não era muito distinto das
convulsões que haviam acometido Alouette
na noite do Oscar.
Especialistas em comportamento e mar-
keting não conseguiam entender nada sobre
o fenômeno. Era como se um imenso bloco
de consumidoras reagisse exatamente aos
mesmos impulsos. À sombra do suicídio
presidencial, o mercado de ações havia
virado uma montanha-russa. Os preços das
ações desabaram em quase todas as empres-
as. Todas as subsidiárias da DataMicroCom,
porém, como Tad destacou, estavam subindo
como um foguete.
– Principalmente a Henhouse Music – ele
sublinhou.
290/503

Quando as pessoas à sua volta reagiram


com olhares de ignorância, ele acrescentou:
– Essa gravadora representa o High Jinx.
Eles têm músicas em seis posições do top ten
semanal.
Investidores com visão de mercado, ex-
plicou Tad, estavam correndo para o mer-
cado de commodities, especificamente de
manganês e potássio. Zinco também. Todos
os ingredientes que iam nas pilhas alcalinas.
A especulação tinha levado o preço do cobre
às alturas. A falta de pilhas no estoque havia
provocado tumultos, e o forte comércio no
mercado negro levava ladrões a roubar pil-
has usadas de lanternas e brinquedos de cri-
ança. Assim como os arrombamentos de
carro haviam levado motoristas a colar um
adesivo escrito “Sem rádio” no para-brisas,
agora eram as casas que tinham placas “Sem
pilhas” na porta, na esperança de dissuadir
os ladrões.
291/503

O mundo inteiro estava lutando para ver


sentido no que a cultura popular chamava de
“efeito Beautiful You”. Na televisão, os críti-
cos e analistas trocavam gracejos sobre uma
coisa que chamavam de “dependência de es-
tímulo”. Até o momento, ninguém dera
atenção porque isso só prejudicava a vida de
garotos. Nas últimas décadas, apenas jovens
rapazes foram vítimas do prazer paralisante
da excitação contínua. Eles eram seduzidos
pelos níveis crescentes de endorfina gerados
por jogos de videogame e pela navegação em
sites pornográficos. Uma geração de garotos
fora seduzida pelo prazer sem amor e caíra
às margens da sociedade. Estavam ent-
rincheirados em porões tomados pelo odor
de sua depravação, incapazes de manter rela-
cionamentos com parceiras ou parceiros
reais.
292/503

Penny tentou tratar a reportagem como


histeria masculina, mas era difícil ignorar
aquele conceito. Segundo os especialistas, o
problema surgia quando nossos impulsos an-
imais primários eram manipulados por uma
tecnologia avançada. O sorvete de creme
crocante era um belo exemplo: sua delícia
açucarada e gordurosa é exatamente o que
nossos eus animais ansiavam para sobre-
viver. Por isso Penny não conseguia parar de
comer até o pote ficar vazio. Seus próprios
instintos evolutivos estavam sendo usados
contra ela pelo marketing. Até o momento, a
dependência de estímulo chegara aos ho-
mens por meios visuais, em videogames ve-
lozes e pornografia virtual. A nova linha de
produtos de Maxwell parecia exercer o
mesmo efeito sobre as mulheres.
Fazia todo o sentido! Aos poucos, a estim-
ulação constante foi reprogramando paulati-
namente o cérebro feminino. A porção
límbica estava imersa em ondas de
293/503

dopamina. A regulação hipotalâmica de re-


compensas estava prejudicada e o córtex
pré-frontal perdera o controle. Enquanto
matutava sobre os estudos, Penny pensou:
“Ah, tão complicado, mas tão óbvio!”
Uma vez viciadas, as mulheres se perderi-
am no prazer. Esse era o efeito Beautiful
You. Atividades comuns de lazer as ente-
diavam e logo as faziam perder o interesse.
Sem a excitação constante dos produtos
desenvolvidos por Maxwell, as mulheres
caíam em depressão profunda.
Analistas de comportamento foram
rápidos em destacar como a publicidade se
aproveitava havia muito tempo dos impulsos
sexuais naturais dos homens. Para vender
certa marca de cerveja e fisgar o público
masculino, a mídia só precisava mostrar cor-
pos femininos idealizados. Essa tática
histórica parecia explorar as mulheres e
favorecer os homens, mas os observadores
mais astutos reconheciam como as mentes
294/503

de homens inteligentes estavam sendo


apagadas – suas ideias, sua capacidade de
concentração e de compreensão – a cada vis-
lumbrar de seios atraentes e de coxas lisas e
firmes.
Era exatamente assim que os testes da
Beautiful You haviam acabado com os son-
hos e aspirações da mente de Penny, apa-
gando planos de futuro e o amor pela família.
A cultura em geral vinha usando o sexo dis-
plicentemente para atacar os cérebros jovens
e masculinos havia tanto tempo que a so-
ciedade incorporara essa prática maligna
como se fosse algo natural.
Talvez tenha sido por isso que o mundo
aceitara tão rápido o sumiço das mulheres
caídas no mesmo abismo. A superestimu-
lação artificial parecia ser a maneira perfeita
de sufocar uma geração de jovens que queria
mais em um mundo em que havia cada vez
menos. Fossem as vítimas homens ou
295/503

mulheres, a dependência de estímulo parecia


ter se tornado a nova normalidade.

Em uma rara noite de folga, sem ter que


fazer hora extra, Penny e Tad foram a uma
festa no Yale Club. Cercado pelo sangue azul
do Bucks County, ele parecia estar em seu
hábitat. Ainda não queria largar a ação
coletiva, apesar do fracasso de Penny em
conseguir vítimas para depor, mas adotara
uma postura mais sensível, de esperar para
ver. Se dessem tempo ao tempo, provavel-
mente mais mulheres teriam coragem de en-
trar com a ação. Até lá, ele estava disposto a
seguir em frente com a ação de Penny para
contestar a propriedade sobre as patentes da
Beautiful You.
Havia mais um motivo para aventurar-se
naquela noite e se divertir. No dia seguinte,
Penny passaria por uma sabatina dos sócios
296/503

seniores da BB&B e seria compelida a dar


depoimento.
No Yale Club, Penny admirava o jeito cas-
ual com que Tad usava um smoking. Ele
cumprimentava os homens mais ricos de
Nova York como se fossem velhos amigos.
Era um ótimo partido, sem dúvida. O prob-
lema é que ele fazia pressão para ir aos final-
mentes. Os dois já haviam feito praticamente
tudo, menos isso. Penny não queria correr o
risco de machucá-lo e ter de explicar o
motivo de seu medo crescente.
Perdida nesses pensamentos, ela colidiu
com outro convidado. Algumas gotas de
champanhe caíram, mas sem um grande es-
trago. O homem alto e barbudo não lhe era
estranho.
– Você é Penny Harrigan, não? – Ele es-
tendeu a mão. – Meu nome é Pierre Le
Courgette.
Era o premiado romancista que estava
namorando Alouette na época de sua morte.
297/503

– Foi muito triste – ele disse.


Penny apertou o braço dele.
– Você deve sentir muita saudade. Ela era
muito querida.
Contemplativo, ele respondeu:
– Não tínhamos um relacionamento ín-
timo, se é que você me entende. Não me leve
a mal.
Penny ficou esperando ele dizer mais.
– Tentamos várias vezes – ele admitiu –,
mas não a conheci nesse sentido.
Penny foi invadida pela apreensão. Veio à
sua mente o sangue que jorrara do pênis
ereto de seu agressor no metrô.
– Havia algo... dentro da minha Alouette –
ele começou, com a voz carregada de
sofrimento.
Penny arriscou-se a finalizar a confissão
dele.
– Algo o espetou?
– Espetou? – ele perguntou, confuso com
a palavra em idioma estrangeiro.
298/503

– Como um arpão – disse ela. – Alguma


coisa furou seu pênis?
Seus olhos mostraram um lampejo de
compreensão.
– Oui! – ele gritou. – Mon dieu! Estava lá,
escondido, dentro da chatte. – Ela tinha cer-
teza de que Maxwell havia deixado algo lá
dentro, embora os médicos não vissem nada.
Ele estendeu a mão para pegá-la pelo pulso e
pará-la ali mesmo. – Minha cara, o que você
sabe sobre o problema de Alouette?
Penny cambaleou. A sala girava. Seria esse
o segredo que Alouette planejara lhe contar?
Naquele momento, Tad materializou-se e
passou seu braço possessivo pela cintura de
Penny.
– Acho que é hora de alguém ir pra cama.
– Ele a apertou tanto que a fez sentir a
ereção pelo tecido fino da calça do smoking.
Mais uma vez, lá estava ele fazendo
pressão. Irritada com a insistência, Penny
299/503

estava quase disposta a deixar Tad


submeter-se àquela aposta arriscada.

No dia seguinte, no 64o andar, sentada na


sala de reuniões à qual em tempos idos já
levara muitas cadeiras, Penny testemunhou.
A única funcionária ausente era Monique. A
pobre Monique ainda estava escondida atrás
das barricadas da porta de seu quarto.
Penny, por sua vez, via colegas e sócios por
todos os lados. Os olhares de expectativa a
seguiam acompanhados de rastros de falsid-
ade. O mínimo tique nervoso podia sugerir
que ela estivesse mentindo. Um microfone
registrava suas palavras enquanto ela descre-
via a primeira noite em que Maxwell a
preencheu com sua ducha de champanhe
rosê. Um estenógrafo registrava anotações
na mesma velocidade de Max.
300/503

A maioria dos colegas de trabalho ouvia


com fascínio. Os queixos caíam enquanto ela
descrevia a duras penas o processo pelo qual
Maxwell bombardeava o colo de seu útero
com tortuosos espasmos de prazer.
Brillstein periodicamente disparava per-
guntas para desafiá-la.
– Senhorita Harrigan, você disse anterior-
mente que o Sr. Maxwell inseriu a mão em
seu orifício vaginal. Como isso seria
possível?
A lembrança deixou Penny tão chocada
quanto excitada. Enquanto a firma inteira
assistia, ela gaguejou:
– Não sei.
– Não tenha pressa, querida – Tad a en-
corajou, com uma piscadela e os polegares
erguidos. – Você está indo muito bem!
Implacável, sem qualquer escrúpulo, Brill-
stein prosseguiu.
301/503

– A senhorita diria que possui uma anato-


mia especialmente apropriada para tal ex-
ploração intensiva?
Penny sentiu-se ofendida.
– Quer saber se eu sou uma vagabunda?
– Estou questionando – Brillstein desden-
hou – se a senhorita contribuiu com capacid-
ades singulares para o processo de pesquisa.
– Ele disse singulares como se fosse um
palavrão.
– Teve vezes que eu quase morri – Penny
retrucou. Ela tentou não se incomodar com o
olhar penetrante.
– De dor? – Brillstein a detestava.
– Não exatamente. – Com olhares vindos
de todas as direções, o único lugar seguro
para os olhos de Penny era o chão.
Brillstein retomou.
– De acordo com seu depoimento, o Sr.
Maxwell fez um extenso estudo sobre erot-
ismo em geral...
302/503

Penny contou tudo o que podia lembrar


sobre os diversos swamis e cortesãs men-
cionados por Max. Ela descreveu Baba
Barba-Cinza, a mentora primordial de Max,
que morava no Himalaia em uma caverna de
eremitas, onde ele fora encontrá-la. Penny
relatou como a idosa professora orientara o
aluno bilionário em relação a técnicas erótic-
as que remontavam à aurora da evolução.
Penny não mencionou Clarissa Hind, nem
disse que a atormentada presidenta a havia
incitado a procurar os ensinamentos da
famosa anciã. Por que envolver a memória
da angustiada presidenta nesse caso?
Brillstein a interrompeu mais uma vez.
– Se minhas perguntas parecem hostis,
senhorita Harrigan, por favor tenha em
mente que estou lhe fazendo um favor. Os
representantes de defesa do Sr. Maxwell não
serão tão suaves.
Penny enrijeceu. De ombros retos e queixo
erguido, aguardava.
303/503

Ele olhou-a de soslaio.


– A senhorita nos disse que permitiu que o
Sr. Maxwell lhe provocasse estímulo anal em
um restaurante francês? – Brillstein sabo-
reava o interrogatório. O olhar dele dissecava
seu corpo da mesma forma que ricaços es-
tranhos haviam tentado descobrir seus se-
gredos sexuais nas festas em Paris. Era evid-
ente que ele presumia que ela fosse uma nin-
fomaníaca descontrolada.
Com frieza, ela respondeu:
– Maxwell e eu éramos parceiros de
pesquisa. – Ela sentiu que ele estava se pre-
parando para usar o armamento pesado.
Apesar do ar-condicionado ligado, a sala de
reuniões parecia uma sauna. Os homens
puxavam os colarinhos e afrouxavam as
gravatas. As poucas funcionárias pareciam
em êxtase por ela, abanando-se com os docu-
mentos que tivessem à mão.
– É verídico – Brillstein consultou suas
anotações – que no dia dezessete de abril,
304/503

entre as sete e oito horas da noite, a senhor-


ita afirmou ao Sr. Maxwell que havia apre-
ciado os quarenta e sete orgasmos provoca-
dos, os quais agora trata como “pesquisa”?
Penny ficou imóvel. Era verdade, mas não
havia como Brillstein ter aquela informação.
Ela não havia falado em números. Ele só po-
deria saber daqueles detalhes se houvesse
consultado o próprio Maxwell. A conclusão
deixou-a em polvorosa: Brillstein estava em
conluio com Max.
Entusiasmado, Brillstein foi mais fundo.
– Durante uma hora, sua frequência
cardíaca ficou na média de 180 batimentos
por minuto. – Fazendo referência às suas an-
otações, ele leu: – Sua respiração era de 199
inspirações por minuto. – Esses dados obvia-
mente haviam sido coletados na caderneta
de Max. – Isso não soa à senhorita como re-
compensa suficiente pela participação no
dito experimento? – Ele deu um sorriso de
305/503

autossatisfação, com os olhos atentos,


provocando-a a negar o que ele dizia.
Sem aguardar a resposta de Penny, o sócio
sênior apertou um botão instalado no tampo
da mesa da sala de reuniões. Uma tela de
projeção desceu do teto. Com outro botão, o
projetor ganhou vida e gritos começaram a
sair de alto-falantes ocultos. Em ampliação
monstruosa, as formas de uma mulher nua
tomaram a tela. Ela rolava de costas em meio
a travesseiros de cetim brancos, as mãos
agarrando roupas de cama do mesmo tecido.
Um objeto cor-de-rosa projetava-se do meio
de suas coxas. Quando sua agitação frenética
ameaçou deslocar o instrumento rosado, a
mão de um homem fora do quadro adentrou
o plano. Ele retornou o apetrecho à devida
posição. Um dos dedos trazia um anel com
um rubi gigante.
Era a mão de Max. Aquela na tela era
Penny, arfando como uma selvagem no cio.
306/503

– Senhorita Harrigan – perguntou Brill-


stein, desdenhando do vídeo, berrando para
ser ouvido em meio à torrente de gemidos da
gravação –, como a senhorita explica isso?
Penny voltou-se para Tad em busca de
apoio, mas ele havia desviado o olhar. Com
os cotovelos nos joelhos, ele estava cobrindo
o rosto com as mãos, a cabeça tremendo de
desespero.
Uma coisa era discutir o processo de testes
utilizando juridiquês imponente, mas ver
Penny naquela situação, quase insana diante
de uma explosão animal... gritando baixarias
e vulgaridades... Ela não parecia uma
cientista dedicada, trabalhadora. Durante
aquele momento cruel de humilhação, com
uma série de mentes jurídicas se pergunt-
ando se ela era uma auxiliar passada para
trás ou uma meretriz libertina, Penny ouviu
um som familiar. O tremor alto repercutiu
nas torres de escritórios ao seu redor. Era
um helicóptero se preparando para aterrissar
307/503

no heliponto da cobertura, dois andares


acima.
Penny nem precisou perguntar. Sabia
quem estava chegando.
O vídeo parou. A tela subiu e sumiu no
teto.
– Senhores – anunciou Brillstein –, po-
demos seguir adiante? Temos mais um longo
depoimento para tomar esta tarde.
Enquanto os advogados cansados
erguiam-se dos assentos e começavam a es-
vaziar a sala, Brillstein ofereceu a mão a
Penny.
– Se posso dar um pequeno conselho,
minha jovem – disse ele –, acho que seria
uma enorme tolice de sua parte dar
prosseguimento a essa ação.
Penny deixou que ele a conduzisse até a
porta.
Ao tomarem rumos distintos pelo
corredor, ele perguntou se ela podia fazer
mais um favor.
308/503

Atordoada e muda, ela fez que sim.


– Se puder fazer essa gentileza – ele pediu,
com a voz transbordando desprezo –, diga a
sua amiguinha Monique que ela está
demitida!

– Por favor, querida, não fique brava


comigo. – Era a mãe de Penny ligando de
Omaha.
Quando o telefone tocou, Penny estava na
mesa da cozinha lendo o jornal. Todas as
notícias do dia tratavam da finada presid-
enta. A Casa Branca não dava nenhuma ex-
plicação oficial, mas uma comissão de in-
quérito já publicara seu relatório. Conforme
protocolos de segurança, a comandante-
chefe raramente era revistada ou obrigada a
passar por detectores de metal. Sempre
presumia-se que ela seria o alvo, não o
atirador. Hind fora ambos. O vice-presidente
309/503

– homem, é óbvio – fora empossado às pres-


sas. Especialistas bombásticos das rádios at-
ribuíam o suicídio à menopausa.
Com a arma tão perto dos microfones, o
barulho fora ensurdecedor. Os ouvidos de
Penny ainda doíam, e ela tinha de se con-
centrar para ouvir a mãe.
Medindo cada palavra, a dona de casa do
Nebraska falou:
– Comprei umas engenhocas da Beautiful
You.
Penny prendeu a respiração.
Com a confissão, a voz da mãe mudou de
tom e virou um gritinho de menina. – Por
que você não me disse antes? – exclamou. –
É uma sensação incrível! Foi por isso que
Deus me fez mulher!
Penny tentou, mas não conseguiu dizer
uma palavra.
– Seu pai passou a semana inteira amuado
na oficina. – Mais acanhada, ela sugeriu: –
Eles não são feitos para durar, né?
310/503

Penny a interrompeu:
– Qual?
Ela conseguiu ouvir a mãe corar.
– Sabe-se lá Deus como esses engenheiros
fazem testes de durabilidade dessas coisas.
Eu fiz um teste que foi uma tortura. Pior que
John Cameron Swayze com os relógios
Timex.
Penny lembrava-se vagamente do slogan
do relógio: “A vida é dura, mas o tique-taque
continua.”
– Até quebrar, eu estava nas nuvens! –
disse a mãe, sem fôlego.
Penny cruzou os dedos.
– Qual era o aparelho?
Que não seja a libélula, ela suplicou.
– Era a libélula.
– Mãe! – Penny protestou.
Indiferente, a mãe prosseguiu no
tagarelar:
– Você tem esses sapatos novos que todo
mundo quer? – Com um entusiasmo de
311/503

adolescente, ela disse: – Bom, pode me


chamar de louca. Os sapatos são muito feios,
mas os comerciais me dão um arrepio por
dentro. Só de ver esses sapatos, eu fico roxa
de vontade.
No início do dia, Penny batera na porta do
quarto de Monique. Não tivera coragem de
dar a má notícia da demissão por abandono.
Em vez disso, ficara no corredor e balançara
a maçaneta enquanto repetia:
– Abra, por favor. – Levara o ouvido à
madeira e ouvira o zumbido agourento que
vinha de dentro do cômodo. – Abra – ela or-
denou. – Você precisa de ajuda.
Finalmente abriu-se uma fresta. O fedor
era terrível. A fenda foi suficiente apenas
para Penny ver um crânio emoldurado por
tranças sujas.
– Amiguinha – ela disse com voz áspera –,
você tem de me arranjar mais umas pilhas. –
Ela bateu a porta. Girou a chave com força.
312/503

Mais uma vez, Penny ouviu o zumbido


abafado.
Era enlouquecedor saber que sua própria
mãe estava sob a ameaça da mesma ob-
sessão. Tentando mudar de assunto, Penny
perguntou ao telefone:
– Já conferiu aquelas edições do National
Enquirer?
Automaticamente, os dedos de Penny
subiram ao pescoço. Sua pulsação estava em
127 batimentos por minuto. O tempo que
passara com Max a deixara muito atenta a
seus sinais vitais.
A mãe não respondeu, pelo menos não
imediatamente. Pode ter sido a imaginação
de Penny, mas ela achou ter ouvido um
barulho ao fundo.
– Mãe? – ela perguntou – O papai está
usando a serra?
– Eu estava para te contar – disse a mãe –,
pode ser que seu pai ligue. – A voz virou um
sussurro. – Ele quer me botar numa camisa
313/503

de força e me soltar lá com as loucas. – Abor-


recida, ela sibilou: – Só porque eu estou me
realizando.
– E a pesquisa nos jornais, mãe? – Penny
perseverou. – Você não ia descobrir mais
sobre a infância do Maxwell?
A mãe mudou de assunto.
– O que você vai fazer hoje?
Penny contou 131 batimentos por minuto.
– Hoje? – Ela precisava fazer um teste. –
Vou convidar um amigo para passar a noite
aqui.
– É um “amigo” especial? – perguntou a
mãe.
– Sim – Penny respondeu, sem ironia no
tom de voz. – Vou passar a noite com uma
pessoa muito especial.

Brillstein provavelmente viu o nome de


Penny no identificador de chamadas, pois
314/503

atendeu no segundo toque. Com a fala aba-


fada e maldosa, ele disse:
– Sim?
Ao fundo, uma voz feminina e matronal
perguntou:
– Querido? Quem é a essa hora?
– Ninguém! – ele berrou, afastando-se do
gancho. – É do trabalho. Talvez eu tenha que
ir ao escritório.
Depois de passar seu endereço com um
ronronar esbaforido, Penny desligou e correu
até o guarda-roupa. Esquadrinhou o enorme
closet à procura da camisola mais escan-
dalosa. Durante um acesso consumista em
Paris, ela reunira dezenas de camisolas
lindas, torcendo para que uma delas pudesse
despertar tesão em Maxwell. Nenhuma fun-
cionou. Ela escolheu uma faixa estreita de
penas de marabu africano engenhosamente
tingidas de roxo. Era para ser usada de
forma que contornasse o torso, deixando os
315/503

seios à mostra e ocultando apenas parcial-


mente a vulva.
Faltando instantes para a chegada de Brill-
stein, ela acendeu o lampião no hall da casa e
assumiu uma posição que faria a luz lançar
sua sombra contra o vidro jateado da porta
de entrada. Enquanto esperava, ela podia
mover as coxas de forma que sua sombra fi-
casse sedutora se fosse vista da rua.
Ela ficou lá em seus saltos de altura ab-
surda, outra compra que ela torcera que
fosse atiçar o desejo de Max. A armadilha es-
tava pronta. A campainha soou.
– Está aberta – Penny disse com a voz
mais tentadora que conseguiu.
Brillstein entrou empurrando a porta com
o ombro, afobado, como se houvesse corrido
até ali. Ao ter a visão do esplendor de mar-
abu, estalou os lábios enrugados.
– Ora, ora, bem o que eu suspeitava...
Uma putinha das mais danadinhas.
316/503

Penny desviou do primeiro ataque.


Atraindo-o pelas salas amplas, ela deixou
suas próprias mãos subirem e descerem
pelas sedosas curvas de seu corpo.
– Oh, sr. Brillstein, oh! – Ela dava risadin-
has e desviava de mais uma investida. – Há
quanto tempo eu esperei por isso!
O tolo devasso já estava se livrando do
casaco, da camisa, das calças. Ele a perseguiu
entre sofás e mesas, sempre um passo atrás
de agarrar a pele jovem e graciosa.
Tentando fazer com que ele mordesse a
isca, Penny perguntou em tom acanhado:
– Você está trabalhando para o Maxwell?
– Ela deu uma risadinha e esvoaçou.
Brillstein deu um sorriso de canto. Limpou
a baba dos lábios com as costas da mão
descorada. Um gato pronto a engolir um ca-
narinho muito sexy.
Amuada e fingindo-se ofendida, Penny fu-
giu de mais uma investida e perguntou:
317/503

– Como você sabe de tantos detalhes das


anotações do Max?
Sua cueca samba-canção Brooks Brothers
se ergueu na direção dela. Suas coxas cabelu-
das e repulsivas já apostavam na expectativa
indefesa. As nádegas murchas se apertavam,
projetando a virilha intumescida. Pequenos
grunhidos de frustração emergiam de sua
garganta.
– Deixe eu te pegar – ele prometeu – que
eu conto tudo.
Ela o conduziu até o quarto, no segundo
andar. Lá, fingiu excitação, miando e se re-
mexendo com a mesma falsidade que irritara
Maxwell. Brillstein aparentemente não notou
que a frequência cardíaca dela se mantinha a
mesma e que tampouco ela suava. Ele subiu
na cama e empurrou as pernas dela. Arran-
cando as cuecas, não demonstrou qualquer
intenção de lhe dar prazer. Um filete de
gosma branca pingou de sua ereção quando
318/503

ele roçou nela. Esfregando-se na pele depil-


ada, ele sussurrou:
– Tão lisinha! Tão lisinha!
Ele apenas se deu ao trabalho de cuspir
nas mãos e passar nela sua saliva doente.
Teve certa dificuldade em acertar o alvo irre-
quieto, por isso Penny acalmou os quadris
por um instante para ele entrar. De um só
golpe, ele enfiou-se por inteiro. Penny
agarrou-se à carne gasta e apertou sua
pegada, preparando-se para o pior. Passara
esse tempo todo torcendo para que sua teor-
ia estivesse correta.
E estava. Antes que pudesse forçar uma
segunda investida, Brillstein começou a grit-
ar como um porco do Nebraska prestes a ser
abatido. Ele tentou se desvencilhar, fugir,
mas os dedos fortes de Penny seguraram a
carne flácida com firmeza entre as pernas.
Havia algo dentro dela que o machucava, e
Brillstein implorava pela libertação. As mãos
319/503

cobertas por manchas senis empurravam,


batiam nela, mas Penny segurou com força.
– Me conte! – ela exigiu, erguendo as
coxas para mantê-lo bem enfiado na sua câ-
mara íntima de torturas. – Me diga o que
Maxwell está fazendo!
Brillstein uivava. Seja lá o que Max havia
implantado em Penny, o instrumento estava
cumprindo sua função de cão de guarda.
– Ele teve alguma coisa a ver com a morte
de Alouette? – ela perguntou. – Ele a matou
por causa da pensão?
– Sim – Brillstein berrou. – Você está me
machucando!
Gritando direto para o rosto vermelho, ex-
tenuado, Penny questionou:
– Isso tem algo a ver com a Beautiful
You?
– Eu não sei! – Ele chorava e se debatia,
como se enxames de vespas picassem sua
masculinidade enterrada.
320/503

Penny não se importava com o fato de ele


sangrar dentro dela. Sua melhor amiga e sua
amada mãe estavam em perigo. Milhões de
mulheres sob ameaça. Dando
prosseguimento à inquisição, colocando-o
contra a parede da mesma forma que ele
fizera com ela no depoimento, ela
demandou:
– Qual é o plano maligno do Maxwell?
– Eu não sei! – Ele chorou pateticamente.
Com isso, ela soltou sua prisão letal sobre
a bunda suada de Brillstein, e o velho
choroso jogou-se para longe de seu abraço.
Às lágrimas e sangrando copiosamente, ele
disse entre os dentes cerrados:
– Acho que seu DIU saiu do lugar.
Indo ao banheiro para buscar álcool e al-
godão, Penny só conseguiu sentir-se vingada.
A pequena confissão de Brillstein confirmara
sua grande suspeita. Existia uma conspir-
ação. Quando ela embebeu as partes íntimas
do chefe com o antisséptico feroz, ele berrou.
321/503

Com o sangue dele ainda a escorrer por suas


coxas, ela puxou uma maleta do closet e
começou a enchê-la de vestidos Vera Wang.
Ao mesmo tempo, dava ordens ao telefone:
– Siri, alugue um jatinho do JFK pro Ne-
pal, com escala em Omaha, Nebraska. Pra
quando? Agora!

Antes de sair de casa, Penny botou o chefe


porta afora, nu e sangrando, com as roupas
emboladas debaixo do braço. Também foi até
a porta trancada de Monique, bateu e disse:
– Mô? Tá me ouvindo? – Ela começou a
passar biscoitos pela fresta sob a porta. –
Não deixe de comer – insistiu. – Não deixe
de tomar água. Eu volto o mais rápido que
puder.
A única resposta que teve foi o zumbido
abafado que já conhecia e que havia dias
ressoava do quarto.
322/503

Enquanto corria pelos corredores do JFK,


ela notou que era a única mulher no recinto.
Dos balcões de check-in até os passageiros,
todos eram homens. Parecia que as mulheres
haviam deixado de existir em público.
Para não atrair a atenção de homens
hostis – Nova York estava se tornando um
barril de pólvora do sexo! –, ela se vestiu
prudentemente com um conjunto de calça e
blazer vintage Yves Saint Laurent. Era um
visual com um toque de masculinidade,
ainda mais quando fazia par com uma gola
rulê branca que minimizava seu busto pro-
tuberante. Havia enrolado seus cabelos
abundantes sob um gorro de tricô e só usava
um toque de gloss cintilante. Enquanto cam-
inhava, projetava os ombros e exibia uma ar-
rogância rude. Se chamasse a atenção de um
estranho, passaria a impressão de ser um
marinheiro jovem e moderno em dia de
folga.
323/503

Quem quer que fosse a pessoa que vazara


as informações da ação pendente para a
presidenta Hind era a mesma que passara a
notícia às revistas de fofoca. Nas bancas do
aeroporto, as manchetes berravam:
“Cinderela Penny Harrigan inventa apet-
rechos sexuais!” As matérias de capa ex-
plicavam em detalhes como suas zonas eró-
genas haviam aperfeiçoado a engenharia car-
nal da Beautiful You. Acompanhando a
matéria, cada jornal trazia uma foto do rosto
de Penny enfiado em um travesseiro branco
de cetim. Seus olhos revirados e a língua
para fora confirmavam que eram cenas do
vídeo que Max havia gravado em Paris. As
imagens eram sedutoras, mas estavam longe
de fazer dela a gênia ergonômica que os
tabloides afirmavam.
Sentada confortavelmente na cabine
luxuosa do jatinho fretado, Penny abriu o
laptop e começou a navegar. Umas poucas
manchetes despertaram seus piores temores.
324/503

Pela primeira vez na história, a Organização


Nacional Feminina ia cancelar seu congresso
anual. O motivo era falta de inscritas. Seis
semanas antes, a programação estava quase
fechada, mas, desde o lançamento da Beauti-
ful You, todas as representantes haviam can-
celado os planos de participação. As outras
afirmavam que explorariam formas altern-
ativas da satisfação pessoal. Seja lá qual
fosse o caso, sem membros ativos e sem con-
gresso a Organização estava à beira da ex-
tinção. Da mesma forma, quando Penny tele-
fonou, uma mensagem gravada disse que a
Liga de Mulheres Votantes estava passando
por escassez de recursos humanos e ficaria
fechada por tempo indeterminado. As mul-
heres do Senado e da Câmara de Deputados
faltavam havia quase uma semana.
O medo cresceu no coração de Penny, mas
ela continuou a pesquisar.
Uma matéria aparentemente sem conexão
dizia que todas as integrantes da equipe
325/503

olímpica dos EUA haviam se demitido. To-


das as grandes atletas – de jogadoras de
hóquei a ginastas e patinadoras artísticas –
iriam ficar em casa e abster-se da oportunid-
ade de ganhar a medalha de ouro. Outra
matéria descrevia como todos os contraltos e
sopranos haviam sumido do Coro do
Tabernáculo Mórmon.
Informes davam conta de quase 100% de
abstenção entre as mulheres em todas as
profissões assistenciais.
Enquanto isso, segundo os sites de negó-
cios, as ações da DataMicroCom estavam nas
alturas. Todas as subsidiárias, especialmente
a Beautiful You, registravam recordes de
vendas.

Em Omaha, um furgão branco aguardava-


a ao desembarcar no aeroporto.
326/503

– Penny – chamou uma voz no assento do


motorista. Era seu pai. Ele estava com uma
expressão aturdida.
– Pen-Pen, por que você está vestida de
marinheiro?
A porta da lateral do furgão se abriu. Um
estranho agachado ali gritou:
– Entre, rápido. – Ele fez sinal para ela al-
cançar a maleta e disse: – Temos que res-
gatar sua mãe!
O nome do estranho era Milo, e ele era o
líder da divisão local do grupo Pagadores de
Promessa, do qual seu pai fazia parte. O fur-
gão era de Milo, e não havia nada na parte de
trás com exceção de um kit de primeiros so-
corros, cobertores dobrados e um fatídico
rolo de corda de náilon. Enquanto o pai os
levava pelas ruas silenciosas da madrugada
de Omaha, Milo e Penny vasculhavam as
calçadas e os becos atrás da mulher perdida.
Milo enfiou a agulha de uma seringa pela
tampa de borracha de um vidro e a encheu
327/503

de um líquido claro. Em um bairro decad-


ente, eles viram alguém usando um roupão
de banho e empurrando um carrinho de
compras cromado. Seus cabelos caíam sobre
o rosto. Os olhos estavam inchados e gos-
mentos. As pernas estavam à mostra, sujas.
Na cesta do carrinho, balançava-se um sorti-
mento de produtos Beautiful You imundos,
rosa encardido. Havia uma placa de papelão
presa com fita na lateral. Escrita à mão com
canetinha preta, dizia: “Trabalho por
pilhas”.
– Pare aqui – Milo sussurrou. – Não a
assuste.
Ele abriu a porta lateral antes de o carro
parar por completo. A mulher parada ao lado
do carrinho de compras mal teve tempo de
perceber a chegada antes de Milo atacá-la
com um cobertor nas mãos. Ele jogou a
coberta sobre ela, e os dois caíram no chão. A
mulher gritava, espancando Milo, enquanto
ele a segurava. Ele gritava:
328/503

– A corda! E a fita também!


Penny encolheu-se no furgão, mas seu pai
saltou do volante e pegou o rolo de corda.
Juntos, os dois homens amarraram a mulher
e a carregaram de volta ao veículo. Durante
todo o ocorrido, ela não parou de gritar:
– Não me levem sem meus brinquedos!
Não me deixem sem eles, por favor!
Milo fechou a porta pesada e o pai de
Penny pisou no acelerador, queimando bor-
racha no asfalto. Atrás deles, um carrinho de
compras abandonado e sua triste carga to-
mavam distância.
A abdução durou menos de noventa se-
gundos. No fundo escuro do furgão, a mulher
sequestrada continuou gritando até Milo en-
fiar a seringa em seu braço.
Ainda com a respiração pesada, porém di-
rigindo mais devagar, o pai dela disse:
– Me desculpe por te obrigar a ver uma
aberração dessas, minha querida.
329/503

Só agora Penny reconhecia a infeliz sedada


e enrolada no chão do veículo.
Era sua mãe.
– Olha só. Pobre mulher – Milo disse com
compaixão, enquanto tapava a boca da cap-
turada com fita-crepe. – Precisamos
desprogramá-la. – Eles passaram por ruas de
cartão-postal e bairros de que Penny se lem-
brava de sua infância.
O pai explicou como a loucura da mãe
evoluíra. Ele e colegas da igreja haviam or-
ganizado uma intervenção e a confrontado
sobre sua compulsão pela Beautiful You. Ela
negou o problema. Eles a levariam para casa,
onde ficaria sob efeito de tranquilizantes
para submeter-se a uma série de terapias de
hipnose e aversão para ajudá-la a lidar com
seu comportamento autodestrutivo.
Penny não se surpreendeu por não ter re-
conhecido a maníaca descontrolada. O rosto
da mãe estava ictérico, com sinais de ex-
austão. Ao chegarem em casa, eles
330/503

carregaram o corpo amarrado com cuidado


pela escadinha da entrada e pela porta da
frente. Assim que a paciente foi seguramente
despida, seus pulsos e tornozelos foram am-
arrados aos cantos de uma cama no sótão
para sua própria segurança. Penny
aventurou-se no porão, onde a coleção do
National Enquirer da mãe preenchia est-
antes do chão ao teto. Cada prateleira tinha
marcação de ano e mês a que correspondiam
as edições, mas Penny não teve que procurar
muito. A pilha de edições que continham os
fatos relativos a C. Linus Maxwell já estava
separada. Abençoada mãe, pensou Penny. A
infeliz mulher havia chegado até aquele
ponto da pesquisa, selecionando aqueles pre-
ciosos exemplares entre os milhares que jun-
tara nos últimos cinquenta anos.
Após preparar uma merecida xícara de
chocolate quente, Penny carregou as revistas
até a poltrona fofa e querida perto da lareira,
na sala de estar, e começou a ler.
331/503

Não havia muita informação que ela já não


soubesse. Maxwell nascera Cornelius Linus
Maxwell em 24 de janeiro de 19e alguma
coisa no Centro Médico Harborview em
Seattle. Não havia registro do pai. A mãe o
criara sozinha e não teve outros filhos.
Ele fora aluno da Universidade de Wash-
ington, mas largara o curso no primeiro ano,
assim que sua mãe foi assassinada. Havia
rumores de que ele abandonara os estudos
para ser aprendiz de uma feiticeira no Him-
alaia. As fofocas menos glamourosas
situavam-no em bordéis longínquos e in-
stalações médicas clandestinas onde tudo
podia ser comprado. Sexo sem limites... dro-
gas personalizadas... Independentemente do
motivo, Corny Maxwell desapareceu durante
seis anos. Poucos meses após ressurgir, ele
se aliou à jovem e ambiciosa Clarissa Hind.
332/503

Em uma edição de dez anos antes, na


seção de negócios do Enquirer, havia uma
série de dez capítulos sobre os projetos de
pesquisa em andamento na DataMicroCom.
Ao longo dos dez capítulos seguintes, o
tabloide detalhava como Max tornara-se pi-
oneiro na área dos microrrobôs. Chamados
de “nanorrobôs” ou “nanites”, eram robozin-
hos tão minúsculos que tinham dimensões
de milionésimos de metro. Um tiquinho
maiores que moléculas. Ciência sempre deix-
ara Penny entediada, mas ela estava achando
aquela leitura intrigante. A aplicação
primária dos nanorrobôs era na medicina.
Mais precisamente chamados de
“nanomedirrobôs”, os robozinhos eram tão
infinitesimais que podiam viajar pela cor-
rente sanguínea ou por vias neurais e regen-
erar tecidos lesionados em nível molecular.
Havia uma matéria detalhada na parte de
ciências do National Enquirer que dava o
panorama completo. Havia nanorrobôs
333/503

projetados para percorrer veias e artérias, re-


tirando acúmulos perigosos de placas de
gordura. Outros buscavam tecido canceroso
e o destruíam com calor ou quimioterapia
localizada.
Uma voz fraquinha na cabeça de Penny
sussurrou: E alguns nanorrobôs saem de
produtos pessoais e sequestram a crura do
seu clitóris!
Ela pesquisou mais notícias sobre avanços
em nanorrobótica, mas as matérias
acabavam em um beco sem saída. Após uma
década de obras revolucionárias na área dos
minirrobôs, a DataMicroCom aparentemente
havia deixado de investir nesse mercado.
Uma nota citava Max dizendo que os nanor-
robôs não tinham um bom custo-benefício.
Ele optara por fechar a divisão de robótica e
redirecionar os recursos para criar a linha de
produtos Beautiful You, muito mais
lucrativa.
334/503

Em choque, Penny lembrou do episódio na


limusine da presidenta. Sem qualquer es-
tímulo aparente, ela sentiu-se excitada. E
não foi só isso: ela estava prestes a alcançar o
orgasmo. Toda sua percepção fora reduzida
às pontas dos mamilos eretos e do clitóris. Só
as palavras carinhosas da presidenta foram
capazes de fazê-la superar aquela maré de
frenesi erótico.
Ela lembrou do colapso de Alouette no
palco do Kodak Theatre e de sua mãe ende-
moniada, amarrada à cama no sótão da casa.
Era o produto que quebrava sempre: a
libélula. Podia ser uma ideia absurda, como
as conspirações saídas da boca espumante de
uma feminista maluca, mas havia a possibil-
idade de o apetrecho não ter quebrado, e sim
chocado. O corpo havia se partido, liberando
enxames de robôs microscópicos tão
pequenos que podiam navegar da vulva até o
útero. Pequenos a ponto de conseguirem
passar pela barreira sanguínea dos ovários e
335/503

viajar pelo sistema nervoso. Até o cérebro.


Como saber o quanto já haviam afetado seu
comportamento e sua percepção?
Na viagem de Nova York até ali, Penny
havia lido uma matéria sobre uma multidão
de vinte mil consumidoras que fizeram
protesto na Times Square, uma brigando
com a outra pela chance de comprar um per-
fume novo. Em Roma, da mesma forma,
consumidoras brigavam para pôr as mãos no
creme facial mais vendido do momento.
Era óbvio que o raio X feito por Penny
após ser atacada no metrô não mostraria
nada. Os nanomedirrobôs eram menores do
que qualquer coisa que um equipamento de
diagnóstico daqueles conseguiria detectar. E
agora eles estavam implantados em dezenas
de milhões de mulheres em todo o mundo
industrializado.
Se ela podia acreditar em Brillstein, e Max
havia mesmo provocado a morte de Alouette,
os nanorrobôs podiam fazer mais do que
336/503

provocar prazer. Talvez também pudessem


matar.
Penny tomou toda a xícara de chocolate e
lentamente subiu as escadas até o sótão. No
escuro, as sombras de seu pai e de Milo pair-
avam sobre a forma nua da mãe amarrada,
se debatendo, gemendo sob a mordaça de
fita-crepe.
– Não temos como salvá-la – disse Milo
com toda coragem –, mas podemos conter
seus hábitos autodestrutivos. – Os homens
estavam ajoelhados dos dois lados da cama e
começaram a orar silenciosamente com as
mãos unidas. Seringas novas e garrafinhas
de tranquilizante estavam sobre o criado-
mudo.
Olhando para eles, sem saber o que fazer,
Penny ficou pensando se estaria certa. Os
nanorrobôs podiam ser responsáveis pelo
comportamento louco e sexual da mãe.
– Pai – ela disse. – Tenho que ir.
337/503

O pai olhou para cima com uma expressão


aflita. – Pen-Pen, sabia que quando eu e sua
mãe morávamos em Shippee os médicos nos
disseram que ela nunca ia ter filhos?
Penny ficou atenta. Ela nunca tinha
ouvido essa história. Conferiu o relógio,
sabendo que o jatinho já estava esperando na
pista.
Fitando a forma indefesa e estupefata da
esposa, o pai de Penny disse:
– Todos os especialistas que consultamos
disseram que ela nunca engravidaria. Por
isso você foi o nosso milagrinho.
Penny chegou mais perto e deu-lhe um
abraço.
Ainda de joelhos, ele sorriu para ela.
– Você foi nosso presentinho de Deus. –
Em tom esperançoso, ele disse: – Se Deus
pôde nos dar uma filha tão maravilhosa... –
Ele esticou a mão e bagunçou o cabelo dela.
– Então quem sabe Deus consegue livrar sua
mãe dessa aflição horrenda.
338/503

Milo ficou olhando, radiante com sua fé


simples. A mãe nua e demente de Penny es-
tava em boas mãos.
– Fique – Milo insistiu, ardentemente. –
Fique e prepare algo pra gente!
Penny conferiu as mensagens no celular.
– O piloto diz que o clima está ficando
ruim. Temos que decolar em menos de uma
hora.
– Pra onde? – o pai perguntou. Pobre
homem. Todo seu mundo estava vindo
abaixo.
Com a voz fria e decidida, a voz de uma es-
tranha, Penny disse:
– Pro Nepal. – Ela repetiu: – Tenho que ir
ao Nepal.

O iaque só carregaria Penny até certo


ponto das encostas rochosas do Himalaia.
Depois do vilarejo remoto de Hop Tsing, ela
339/503

seria obrigada a subir nas costas áridas e es-


treitas de tibetanos sherpas para os últimos
cinco quilômetros praticamente verticais. E
nem eles conseguiriam levar Penny até o
destino. Quando uma caverna distante sur-
giu à frente, os sherpas começaram a tremer
de medo. Balbuciando rezas para repelir
forças malignas, eles a desceram no chão
ressecado pelo sol e começaram a voltar pelo
mesmo caminho em que vieram. Quando ela
reclamou, um camarada robusto apontou
para a caverna ao longe e falou alguma coisa
na língua nativa e em tom histérico.
A única opção de Penny era continuar por
conta própria.
Enquanto escalava a face de pedra da
montanha, imaginava Maxwell fazendo a
mesma peregrinação quando jovem. Em Par-
is, ele falara sobre ter passado anos com essa
estranha e idosa feiticeira. Apresentara-se a
ela como um aprendiz disposto, e ela con-
cordara em tê-lo como pupilo nos caminhos
340/503

mais esotéricos do tantra. Apesar do vigor


juvenil, Maxwell disse que aqueles anos de
prática na magia sexual quase custaram sua
vida.
Aliás – e era esse detalhe que mais as-
sustava Penny –, ele disse que a caverna em
que a feiticeira residia estava cheia de esque-
letos de homens e mulheres que haviam feito
sexo até a morte. Os corpos estavam congela-
dos em posições do Kama Sutra, de con-
torção erótica insuportável.
Com sua mala de rodinhas Louis Vuitton
amarrada às costas, ela subia cada vez mais
alto, agarrada aos degraus da parede de pura
rocha. Lembrando-se das histórias de agonia
orgásmica que Max lhe contara, tinha quase
certeza de que a feiticeira havia morrido. Já
fazia uma década que ninguém a via. Os ven-
tos secos e gelados ameaçavam arrancar seus
dedos das minifendas às quais ela se agar-
rava. Os pássaros nativos davam rasantes,
341/503

bicando e abrindo as garras para proteger os


ninhos. O fedor de guano era avassalador.
Que opção ela tinha? Até a presidenta jur-
ara que essa seria a única forma de enfrentar
a conspiração de Maxwell. Ao assassinar
Alouette de maneira tão pública, ele provara
que podia fazer o mesmo com qualquer uma,
em qualquer lugar. Tinha milhões de reféns,
soubessem elas ou não. Mesmo que
descobrissem os nanorrobôs, já seria tarde
demais.
Apenas Baba Barba-Cinza poderia ter um
antídoto... um tratamento... uma instrução
que pudesse se contrapor às legiões de mi-
crorrobôs implantados por via vaginal.
Um sopro de vento empurrou Penny e
quase arrancou sua mão das rochas. Deses-
perada, ela soltou o cinto Prada que prendia
a maleta às suas costas e viu-a cair lá em-
baixo. Parecia que a mala ia cair para
sempre, girando lentamente no ar até ex-
plodir em um estouro de peças Anne Klein
342/503

em cores vivas. Sem o peso, ela subiu mais


rápido. Ao meio-dia, exausta, entrou na cav-
erna. Não havia ninguém.
Segundo Max, Baba Barba-Cinza passava
a maior parte de seus dias vagando pelas
faces íngremes do penhasco, recolhendo o
líquen e os musgos que constituíam sua
parca dieta. Ela subsistia roubando ovos dos
pássaros que faziam ninho no penhasco.
Muitos de seus bálsamos e cataplasmas
afrodisíacos eram formulados a partir dos
cogumelos selvagens que colhia. As noites,
disse Max, ela passava sozinha. Havia pas-
sado dois séculos em tal solidão, explorando
maneiras inéditas e cada vez mais potentes
de se dar prazer. Eram essas as técnicas que
Baba havia ensinado a Max e que ele ad-
aptara para os produtos de massa da Beauti-
ful You.
Exatamente como ele descrevera, a cav-
erna era habitada por esqueletos e cadáveres
ressequidos de gente que parecia ter morrido
343/503

ao alcançar o clímax extremo. Entre os


falecidos viam-se outros objetos de fab-
ricação humana: protótipos rudimentares do
que Maxwell havia aperfeiçoado e testado em
Penny. Ali estavam as invenções eróticas da
solitária Baba, elaboradas com galhada seca
de rena e amarradas com tendões de bichos.
Para suportar as inumeráveis noites de isola-
mento, ela criara e aperfeiçoara aparatos
como aqueles para se estimular. Sua solidão
permanente rendera-lhe esse tesouro de
apetrechos sexuais.
Penny atravessou a caverna para vê-los
melhor. Alguns, esculpidos em rocha e
polidos até atingir a suavidade do vidro,
eram visivelmente projetados para roçar a
esponja do períneo. Outros eram talhados
em ossos de passarinho e elaborados para es-
timular as ramificações do clitóris que cir-
cundam a vagina. Outros eram de uso evid-
entemente retal.
344/503

Maxwell, seu canalha. A uma só olhada


para os criativos apetrechos sexuais inventa-
dos pela eremita, ele provavelmente já soube
que esse poder iria oprimir e escravizar a
mulher civilizada. Todos eram sur-
preendentes, e Penny ficou estupefata, sem
notar uma figura curvada que havia subido à
caverna e se arrastava na direção dela.
Uma voz áspera e trêmula disse:
– Tenho uma convidada.
Penny girou e teve um vislumbre da bruxa,
que se parecia muito com os aparatos e es-
queletos ao redor. Baba Barba-Cinza era ela
mesma esculpida em ossos e tendões, um
emaranhado nodoso de músculos ressequid-
os e cabelo grisalho. Os olhos brilhavam
como duas pedras da lua, totalmente brancos
e com grossas cataratas. O corpo cansado es-
tava despido, e os pelos pubianos eriçados,
quase brancos, que lhe davam seu nome,
haviam crescido tanto e eram tão
345/503

abundantes que se arrastavam pelo chão


junto aos pés descalços.
Maxwell dissera que ela era cega. Baba,
afirmou, orientava-se pelos desfiladeiros,
entre caças e escaladas, apenas pelo tato e
pelo olfato. Ela conhecia o toque de cada
fenda e fresta daquelas montanhas. Conhecia
o cheiro peculiar de cada rachadura.
Ela ergueu o nariz para farejar a umidade
no ar. Com a voz marcada pelas eras, ela
disse:
– Estou na presença de bucetinha fresca?
Penny ficou imóvel. Aquietou a
respiração.
– Não tente esconder seu cheiro – censur-
ou a idosa. – Já faz muitos anos desde a úl-
tima vez que tive uma aluna. – Ela soltou
uma bolsa carcomida das costas e começou a
tirar maços de musgo dela. Ergueu minúscu-
los ovos de passarinho com todo o cuidado
enquanto dizia:
346/503

– Só pelo seu odor sei que você está vindo


de Nova York e que passou por Omaha.
Maxwell avisara que Baba podia saber to-
do o histórico sexual de uma pessoa a partir
do sabor da genitália.
– Exponha-se. – A bruxa fez um sinal. –
Deixe seu sabor me contar todas as verdades
que você não é capaz. – Ela deu um passo à
frente, mas esperou.

Penny sabia que não tinha opção. Sua mãe


e sua melhor amiga iam morrer. Uma grande
parcela da população estava tomada por um
poder que se recusava a acreditar que existia.
Ela lentamente tirou seus sapatos Christian
Louboutin, seguida pela calça e blusa DKNY.
Por último, abaixou as calcinhas Agent Pro-
vocateur. Dobrou e pousou cada peça cuida-
dosamente sobre uma pedra.
347/503

Nua, vestindo apenas o Miracle Bra da


Victoria Secret, Penny ficou parada,
aguardando.
Baba Barba-Cinza foi cambaleante até ela.
A velha manchada passou a mão trêmula
entre as coxas de Penny e resmungou:
– Ah! – Admirada, soltou um balbucio: –
Não tem pelo. Será obra de Maxwell, o
maligno?
Era, mas Penny estava com muito medo
para falar. Fez que sim. Era o método tribal
uzbeque, com base em aloe vera e pinhão.
Baba bateu com orgulho a ponta de seu
dedo enrugado contra a pele rachada do
peito. A força incólume dos ventos secos e
gelados havia esticado seus seios até eles
ficarem pendendo como úberes curtidos.
Fazia que sim com a cabeça, sorrindo.
– Fui eu que ensinei a técnica a ele.
Sem hesitar, a idosa moveu o mesmo dedo
torto na direção de Penny. Inserindo apenas
a ponta nodosa, ela disse:
348/503

– Minha pequena, que vagina suculenta!


Como um graveto seco, nodoso e
quebradiço, o resto do dedo deslizou até a
junta. A mulher soltou um cacarejo.
– E que receptiva! Será excelente aluna!
Enquanto a reclusa bissecular a inspe-
cionava, Penny tentou lembrar de todas as
coisas que amava no mundo. Como o passeio
de carruagem que ela e Tad haviam feito pelo
Central Park. Sorvete de creme crocante.
Filmes com Tom Berenger. Pensou em bol-
sas Fendi e em parques com montanha-russa
e algodão-doce. Saudosa, ela se lembrou do
quanto admirava Clarissa Hind e de como
ficara empolgada ao ver a primeira presid-
enta do país tomar posse.
Quando não conseguiu mais encontrar
lembranças agradáveis, Penny se contorceu
em resistência fútil contra o dedo da bruxa.
Parecia que ela explorava os recessos mais
íntimos de sua psique.
349/503

Depois de muito inspecionar, o dedo se re-


tirou. Ele reluziu à fraca luz da caverna apen-
as por um instante antes de sumir entre os
lábios franzidos da idosa. Chupando-o, Baba
grunhiu como quem tivesse uma revelação.
Tirou o dedo e lambeu-o diversas vezes com
a língua cinza antes de falar.
– C. Linux Maxwell, foi ele que lhe ensin-
ou. – Ela lia tudo aquilo sobre Penny a partir
de uma pequena amostra. – Ele a instruiu
nas artes que eu lhe transmiti. Foi meu mel-
hor aluno, pelo qual todo mestre anseia.
Pessoas modernas são impacientes demais;
buscam apenas a rota mais veloz até o or-
gasmo e não têm tempo para uma professora
idosa. Maxwell tinha.
O exame minucioso saciou a curiosidade
da velha feiticeira. Enquanto suas mãos ver-
melhas e ásperas seguiam roçando Penny,
ela disse:
– Sim, eu fiz Maxwell conhecer os antigos
hábitos eróticos. – Sua voz rangia como
350/503

dobradiças enferrujadas de uma porta que se


abria para um lugar temível. – Práticas
quase extintas da humanidade. Ninguém
dedica o tempo e a diligência necessários
para alcançar as artes sensuais. Maxwell,
sim. – Ela estava feliz em ter uma aprendiz
para orientar depois de tantos anos. – Antes
de Max, tive meu último aluno há sessenta
anos. O nome dele era Ron Jeremy.
Ela continuou a lamber o dedo,
saboreando-o enquanto falava.
– Maxwell aprendeu tudo o que eu tinha a
ensinar. Com séculos de autoestimulação às
minhas partes, ele tirou proveito de todo o
meu conhecimento. – O desalento anuviava
a expressão da idosa. Mesmo cega, seus ol-
hos pálidos enegreceram. – Agora Maxwell
faz uso de sua sapiência sexual para ferir
tantas mulheres e tirar proveito apenas para
si.
Penny ficou chocada com a compreensão
da feiticeira. Quando a velha esticou seu
351/503

dedo de graveto, Penny entregou-se e


montou-o, excitada.
Provando da nova amostra, Baba entoou:
– Você sente grande culpa. Você traiu suas
irmãs. Você ajudou-o a calibrar suas armas.
Inúmeras são as escravas de Maxwell devido
ao papel que você desempenhou.
Ao ouvir aquilo, Penny chorou. Era ver-
dade. Era horrível, mas era uma verdade que
ela nunca admitiria para si.
Baba chupou o dedo. Tirou-o e estalou os
lábios.
– Você, Penny Harrigan, veio treinar
comigo para poder combatê-lo.
A língua cinzenta afagava o dedo,
saboreando as verdades que ainda restavam
nas rugas.
– Você sabe meu nome? – Penny pergun-
tou, incrédula. Era a primeira vez que abria a
boca naquela caverna. Sua voz ecoou, es-
tridente. – Só ao provar meus fluidos?
352/503

Os lábios ressequidos de Baba Barba-


Cinza sorriram.
– Sei de muitas coisas. – Ela apontou para
uma esteira feita de líquen seco e de seus
próprios pelos. – Venha, sente-se. Você pre-
cisará de força para o treinamento erótico.
Vou preparar nosso chá.

Da mesma forma como havia se sub-


metido aos experimentos de Maxwell, isol-
ada em sua sublime cobertura, Penny agora
se entregava a Baba no claustro da caverna.
Penny nunca se deitara com uma mulher,
mas aquela situação era diferente. Ela nunca
se sentira tão desejada com sua pele macia e
esbelta quanto agora, com a carne justaposta
à pele encarquilhada da anciã. Baba estava
lhe dando aulas, instruindo-a na grandiosid-
ade da magia sexual. A velha dedava-a im-
placavelmente até Penny gritar, berrando
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como se aquelas palavras fossem as últimas


no planeta. A bruxa raramente pedia para ela
retribuir. Quando pediu, Penny também deu
prazer à idosa encarquilhada com o devido
respeito. Para Penny, era o maior dos triun-
fos extrair de sua tutora mesmo um modesto
gritinho de prazer.
Quando saía para as caçadas, a professora
idosa encorajava Penny a utilizar os diversos
ossos e rochas à sua volta para fazer seus
próprios apetrechos de prazer. Ostentando
uma couraça de penas amarrada a gravetos
com tiras de couro, Baba vangloriou-se:
– Estas podem parecer versões estropia-
das que Maxwell corrompeu, mas são feitas
para incrementar a energia feminina. Deix-
arão você mais forte, não mais fraca. – Com
uma piscadela do olho eclipsado pela catar-
ata, ela garantiu à garota: – Não a deixarão
esgotada. – Chegando mais perto, ela olhou
de soslaio: – Mas você precisa ter disciplina!
Baba alertou:
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– A sabedoria erótica dos antigos é forte


demais para a maioria daqueles que a pro-
curam. – Ela deu um sorriso pensativo. – Os
estudantes viajam até aqui para adquirir es-
sas habilidades. Muitos morrem devido às
adversidades da jornada, mas muitos outros
morrem pelas próprias mãos. – Ela explicou
que lhes trazia ovos, mas que eles não co-
miam. Ela os convidaria à sua cama de
musgo e penas, mas eles se recusavam a
dormir. – E assim por diante. – Ela deu de
ombros, resignada. – Eu os apresento a prát-
icas sensuais rudimentares, mas logo eles se
deixam consumir pelo prazer individual.

Para sua surpresa, uma noite Penny levou


sua mentora a um alívio prolongado e exten-
uante. Usando lábios e língua com proficiên-
cia, ela levou a velha a um ataque de ganidos
febris e agudos. A esquelética bruxa do sexo
355/503

saltava com violência sobre sua cama de


gravetos. Suas gengivas desdentadas ber-
ravam incoerências.
Penny prosseguiu com o doce tormento ao
ponto da crueldade antes de diminuir a in-
vestida sobre as partes de sua preceptora.
Por fim, ergueu o rosto encharcado. Limpou
o queixo molhado com um maço de musgo
seco. Ludicamente, olhou Baba nos olhos e
exigiu:
– Conte-me um segredo. Conte-me um se-
gredo ou voltarei a lamber até enlouquecê-la
de vez.
Penny sabia que a preceptora estava bem
satisfeita. A idosa parecia ébria de prazer.
Sem fôlego, Baba balançava a cabeça para
deter o massacre de orgasmos.
– Então! Um segredo! – Penny exigiu.
– Um segredo – concordou Baba. Deitada
de costas, ela ergueu-se apoiada nos
cotovelos. – Maxwell lhe contou por que veio
à minha procura?
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Penny deu de ombros.


– Queria instruções? – Não, Baba negou,
triste, com a cabeça.
– Distração. Para ajudá-lo a esquecer de
uma grande dor que o acometera.
– A morte da mãe – Penny arriscou.
Aquilo não era segredo; estava bem docu-
mentado pelo National Enquirer.
Mais uma vez, a feiticeira corrigiu a aluna.
– Max lançou-se nessa jornada da in-
strução sexual para esquecer a morte da
esposa.
Foi a vez de Penny ficar perplexa. Não
havia como ficar mais surpresa.
– Esposa?
Baba confirmou com silêncio. Maxwell já
tivera uma esposa. Na faculdade, ele con-
heceu e namorou uma menina muito
saudável que estava se preparando para fazer
direito. Os dois estavam muito apaixonados.
Não era o mesmo Max frio e clínico com
quem Penny havia estado. Era um homem
357/503

totalmente dedicado à noiva. Dois apaixon-


ados à beira de adentrar uma nova vida de
felicidade.
A bruxa sexual suspirou.
– Os detalhes da morte da garota não são
importantes. Uma forte reação alérgica. Sem
ela, a vida de Max também se encerrou.
Ele chegara à caverna de Baba pouco
tempo depois do ocorrido. Amargurado, sua
única meta era dissipar os anos que lhe
restavam em travessuras hedonistas.
Penny ansiava por mais daquela história,
mas estava longe de ser o melhor momento
para pressionar sua mentora em busca de
mais detalhes.
– Qual era o nome dela? – perguntou,
escorregando os dedos delicadamente para
dentro da idosa. Brincalhona, cutucou os te-
cidos frágeis do ânus da bruxa. Usou a saliva
generosamente para lubrificar o gasto
orifício.
Baba reagiu:
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– O nome? – Ela sucumbia lentamente aos


afagos. Sua voz se suavizou como se estivesse
caindo em sonhos. – O nome dela era
Phoebe.
Phoebe. O nome ecoou por bastante
tempo na mente de Penny. Phoebe Maxwell.
Era provável que a equipe de Maxwell
houvesse extirpado qualquer menção a
Phoebe nos jornais dos quais ele era dono,
na internet, em toda a história. Ela seria o
calcanhar de aquiles de Maxwell. Era a prova
de que seu coração podia se partir. Enquanto
Penny ponderava sobre o novo aspecto da
vida de Maxwell, ela abaixou o rosto até a
penugem branca e suja que a aguardava e se
pronunciava, convocando sua atenção.
Enquanto retomava seus estudos, quis
muito saber quantos anos Max e Phoebe teri-
am tido de casamento. Mesmo sem pergun-
tar, descobriu.
O casamento durou exatos 136 dias.
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Nos momentos de trégua, Baba passava


unguento nas membranas em carne viva de
Penny. A feiticeira sexual aconchegava-a
com carinho em uma cama de musgo seco e
saía à caça de ovos e cogumelos. Preparava
chás revigorantes e fazia a garota bebê-los da
palma enrugada de sua mão. Ensinou a
aluna a moer aranhas entre rochas para fazer
um unguento reconfortante que realçaria a
sensibilidade anal de Penny. Tão tranquila
estava sua vida e tão profundo era o laço
entre elas que Penny esqueceu da legião de
robôs malignos que talvez estivessem sin-
grando sua corrente sanguínea. Não iria es-
quecer por muito tempo.
Como se Max estivesse testando seus
poderes, certo dia Penny sentiu seus mami-
los endurecerem e começarem a vibrar.
Mamilos e clitóris tremeram com violência.
A idosa a havia levado ao orgasmo diversas
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vezes naquela manhã, antes de sair para bus-


car ovos e lagartos, portanto era a última
sensação que Penny esperava. Foi tão es-
tranho que ela soube no mesmo instante que
era obra de Max. Na hora, ela estava sentada,
sozinha, de pernas cruzadas no chão da cav-
erna, tomando uma xícara de tintura de
líquen. A onda de excitação seguinte veio
antes que ela conseguisse ficar de pé.
Penny parecia estar sob possessão de-
moníaca. Ela não tinha controle sobre o
próprio corpo. Uma outra força parecia sur-
gir e expandir-se entre suas pernas. Seus
seios ardiam de desejo. Sua pulsação
começou a acelerar, e calafrios arrepiavam
sua pele.
Max já descrevera o processo físico de
forma sucinta. Sua vagina excitada estava se
expandindo, crescendo em largura como se
fosse acomodar um falo ereto. Ela iria inchar
até formar um bolsão acima da abertura do
colo do útero, o ideal para encerrar o es-
perma até que ele tivesse sucesso na fertiliza-
ção do óvulo. Na natureza selvagem, era um
processo belo e natural, mas o que acontecia
agora com Penny era uma obra maligna por
controle remoto. Era fácil imaginar equipes
de robôs microscópicos violentando suas ter-
minações nervosas. Mesmo ali, isolada no
Himalaia, ele tinha como ativar seus robôs.
Era como sexo virtual – mas com sexo de
verdade. Como se o estímulo fosse um aplic-
ativo em seu celular! Seja lá qual fosse o
método, ele estava controlando suas
sensações da mesma forma que fizera com o
ataque a Alouette no palco do Oscar. Um es-
tupro selvagem via satélite.
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Momentos depois, quando Baba voltou à


caverna, Penny ainda estava arfando e con-
vulsionando por conta do prazer indesejado.
A lâmia jogou sua bolsa de musgo para o
lado e correu para confortar o corpo que ro-
lava no chão.
– Lute – insistiu Baba, ajoelhando-se. –
Tudo que fazem com você, você pode re-
tribuir. – Ela lambeu o dedo fino com a boca
desdentada e começou a enfiá-los pelos lá-
bios vaginais inchados da garota. – Você não
é um mero receptor – gritou Baba. – Devolva
a energia à sua fonte maligna!
Com isso, ela deu um berro e puxou o
dedo que já sangrava.
– Que coisa monstruosa é essa? – Ela es-
piou o buraco perfurado na ponta de seu
dedo murcho. O fluxo de sangue era canaliz-
ado pelas rugas e linhas que os séculos
haviam esculpido em suas palmas. – O que
esse demônio instalou em você?
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As feições sãs de Penny ainda estavam


transformadas pelo espírito de uma louca
salivante. Delirando, ela abriu as pernas e ar-
queou as costas, lançando as coxas para o
alto. Suas mãos passaram pelo corpo nu sem
controle racional, dedos dementes
agarrando-se e tocando-se num frenesi de
autoestimulação. A cabeça estava jogada
para trás, a boca escancarada e a língua
grossa se estendiam entre os lábios aflitos.
Baba gritou:
– Vomite o prazer ou deixe que ele passe
por você como se tivesse exagerado no vinho
ou na comida.
Ela agarrou os braços da garota e a
sacudiu.
– O sol não queima o espelho! – Ela ber-
rou: – Devolva esse mal!
Enquanto entrava cada vez mais em coma
erótico, Penny ainda sentia a insistência da
velha.
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– Você não tenta conter toda a água do


mundo na bexiga. – Abafada pela sensação, a
voz idosa prosseguia: – Você não comeria até
amontoar o mundo inteiro na barriga. O
prazer, assim como a comida, tem que
perpassá-la. Se ele se acumular, não deixará
espaço para mais nada. Você explodirá. Sua
única esperança é trocar um prazer por
outro. Assim como a comida tira o refugo de
seu corpo, você precisa usar o amor para
deslocar a magia sexual de Max. Mantenha o
foco no amor e assim você vai rechaçar esse
feitiço!
Em desespero, Baba Barba-Cinza pegou
um emaranhado de galhadas e começou a
passá-lo delicadamente pelas ancas da
garota.
– Não lute contra essa sensação – ela in-
sistiu. – Minha criança, deixe que isso a at-
ravesse. Caso contrário, será morta como
tantos esqueletos que você vê à sua volta.
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Os olhos de Penny reviraram. Saliva voava


enquanto seus lábios vomitavam uma fúria
de obscenidades.
– Já chega – Baba exortou. – Fale! Liberte
esse calor! – Delicada com as galhadas
ritmadas, ela implorou: – Não guarde essa
energia dentro de si!
Com uma voz gutural de luxúria, Penny
zurrava obscenidades. O corpo entorpecido
de prazer resmungava e gritava baixarias.
– Deixe o prazer transbordar! – exultou a
bruxa.
Penny arquejou. A onda de lascívia cessou,
e, aos poucos, ela voltou a si.
A bruxa cuidadosamente puxou o galho de
volta.
– Seus tormentos não terão fim – ela
disse. – Você só encontrará a paz quando
derrotar Maxwell. Se não for assim, ele já a
destruiu. – Ela começou a aplicar um bál-
samo refrescante de centopeias trituradas
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nos hematomas que já se pronunciavam nas


pernas de Penny.
– O que eu te ensino – disse Baba –, você
precisa ensinar a todas as mulheres do
mundo, para que elas possam se defender
dessa força maligna.

Baba Barba-Cinza falava sem amargura.


Nua, encostada na espaçosa cama de musgo
e penas, abria as pernas para revelar despu-
doradamente a pele enrugada de suas partes
íntimas. Começou a se acariciar, açoitando-
se delicadamente enquanto se lembrava de
outras histórias. Cada movimento parecia
despertar memórias, como se ela estivesse
lendo contos entre as dobras cinza da pele.
– Fiquei órfã em uma idade cruel. Foi na
alvorada que encontrei o corpo da minha
mãe destroçado, ao pé de um alto desfil-
adeiro onde ela devia estar colhendo ovos de
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tarambola. – Seus olhos vazios fitavam o


passado. – Ergui a mão gelada de minha mãe
e coloquei-a contra a minha. Implorei. – Foi
assim que a criança desolada teve as últimas
poucas horas de cuidado da mãe perdida. –
Por um curto período, não deixei que a ener-
gia sexual saísse de mim em forma de gritos
e agitação.
Não levou muito tempo para os desalma-
dos predadores de seu vilarejo descobrirem
que uma criança indefesa, sem nenhum re-
sponsável, estava à disposição. Na primeira
noite que Baba ficou sozinha na cabana, eles
atacaram.
Com a voz embargada de nostalgia, Baba
disse:
– Eles mapearam minha feminilidade in-
terna. A cada golpe de violência, eles me en-
sinavam mais sobre meu corpo. – Ela descre-
veu como vários selvagens adentraram seu
corpo a cada noite. Muitos extraíam seu
prazer perverso do corpo macio da criança,
368/503

mas Baba decidiu que iria tomar de volta o


prazer de cada um. Se não podia detê-los,
podia aprender a controlá-los aumentando
ou diminuindo o prazer deles. Em sua infân-
cia, ela foi atacada por mais de mil e usou
cada um para proveito próprio. Os embates
cruéis foram sua iniciação. Foi a partir do so-
frimento que ela compilou uma profusão de
práticas sexuais impensáveis.
– Comecei a ficar ávida, com os olhos bril-
hando de expectativa quando eles punham
para fora o pênis carnudo. Sabia que cada
um era uma oportunidade de experimentar e
aperfeiçoar minha arte sexual em formação.
– Ela fechou os olhos em nostalgia. – Entre
meus brutais mentores havia mulheres que
botavam a palma da mão em minha nuca,
com os dedos entrelaçados para me segurar
enquanto me obrigavam a lambê-las até
quase sufocar. – Ela falava com uma voz sem
traços de aflição. Fora da caverna, uma
nevasca branca se alastrava. Lá dentro, uma
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pequena fogueira aquecia um caldo borbul-


hante de lagarto cozido. Baba mexeu a pan-
ela e disse:
– Essa foi minha infância, mas não passou
de um punhado de lágrimas. Quanto mais
crescia minha força, menos força tinham
meus mentores devido ao peso da idade. Mas
nisso eu já os havia escravizado com minhas
habilidades eróticas, pois me tornei um rico
repositório de técnicas sensuais. Eles não
tinham mais como encontrar satisfação, e
aprendi tudo que eles tinham para me ensin-
ar. Traziam-me ouro e joias, coisas sem util-
idade para mim. Por fim, em cenas cheias de
misericórdia e vingança, levei cada um de
meus antigos violadores a um êxtase tão in-
crível que todos, eles e elas, morreram.
A saga de Baba prosseguiu com ela de pé,
caminhando pela caverna gotejante.
– Minha reputação como artesã do sexo
era tal que alunos novos e idosos, homens e
mulheres, me procuravam. – Sendo uma
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jovem feiticeira do sexo, ela foi cercada por


pretendentes que desejavam descobrir os se-
gredos que ela acumulara, seu tesouro real,
que ela conquistara a partir de infinitas
noites de tortuosos embates corpo a corpo. –
Foi para reduzir a quantidade de visitantes
que me retirei para esta caverna. Aqui, só os
mais fortes e mais jovens conseguem me al-
cançar. Os fracos e velhos morrem peregrin-
ando; são seus ossos que fazem a trilha até
minha porta. – Ela riu.
– Os sherpas não chegam perto de mim
nem de minha casa – continuou Baba. – Eles
acreditam que mato meus supostos amantes,
mas os que morrem o fazem pelas próprias
mãos...
Apenas os aspirantes mais saudáveis al-
cançam a caverna. Não existem aleijados
entre os esqueletos. Nem deformados. As ca-
veiras são dos mais belos, com dentes retos e
sadios. Vieram atrás de prazer para si, ex-
plicava Baba.
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– Max foi o único que veio com o


propósito de levar prazer a outros, mas as-
sim que reconheceu o poder que existe em
fornecer tal prazer ele foi seduzido a utilizá-
lo para ganho pessoal!
Ela apontou para os esqueletos e falou
com uma voz pomposa e oca:
– Eles definham e morrem. – A fome e a
exaustão arrancavam a pele dos jovens
aprendizes, que logo pareciam mais velhos
do que a mestra. Não muito depois, Baba
voltava de sua caçada diária e os encontrava
mortos.
Se por acaso gostasse de uma curvatura na
crista ilíaca do aprendiz falecido, Baba podia
recolhê-la para usá-la em novas experiên-
cias. Nada se perdia, pois ela usava cordas
vocais, tendões e intestinos secos para atar
as peças. Era assim que os jovens e belos
apaixonados lhe davam mais prazer após a
morte. Com sorte, ela criaria uma nova
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ferramenta de prazer antes que o mais novo


aluno se apresentasse à entrada da caverna.
Horrorizada, Penny perguntou:
– Você usou os ossos deles?
Todos os produtos da linha Beautiful You
baseavam-se nos moldes de Baba. O arco de
um dos apetrechos tinha o formato de uma
costela. O diâmetro de outro era baseado no
fêmur humano.
Apontando para um emaranhado de ulnas
e tendões, com os olhos brilhantes de empol-
gação, Baba disse:
– Uma vez, Max tentou me assassinar com
aquele ali! Era tão astuto que usou minha
própria criação para me conduzir a espasmos
de êxtase tão gloriosos que quase morri!
Ela contou como Maxwell a desafiara para
um duelo erótico. Ele ficara de pé, nu, um
macho jovem e arrogante, com as pernas
abertas. Ele apontou sua ereção para baixo,
para os joelhos, e soltou-a como uma mola
para bater contra sua barriga tesa. Com um
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brilho jocoso no olhar, ele rotacionava a cin-


tura para fazer seu membro balançar de um
lado para o outro e dizia:
– Venha, velha, venha se impalar. En-
contre seu prazer nessa carne que você ad-
estrou tão bem!
Penny perguntou:
– Como você se salvou?
Sorrindo com as lembranças, a idosa
disse:
– A arma que ele usou saiu de meu corpo e
se estilhaçou. Saltou de mim como a rolha de
uma garrafa. O impulso me jogou para trás.
Bati minha cabeça contra a parede da cav-
erna. Acordei e Max havia ido embora. Havia
levado consigo toda a tecnologia de minha
arte sexual.
– Mas como você se libertou? – Penny
perguntou.
Baba se tocou com toda a pompa.
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– Troquei um prazer por outro. Pensei na


beleza de minha mãe e no quanto eu a ad-
orava. E gritei.
Penny perdeu o fôlego.
– Com a vagina?
Quase gritando, Baba respondeu:
– Criança, você consegue expelir energia
por qualquer orifício!
Penny provou seu chá de líquen e ficou
matutando.
– Isto – continuou a bruxa enquanto re-
tirava um objeto de suas profundezas úmidas
– é tudo que ainda tenho de minha mãe. – O
objeto que ela segurava tinha tons amar-
ronzados, como madeira polida, como um
lápis sem verniz, e ela o retirou lentamente.
A extração fez um som abafado de sucção. –
Era seu dedo mais comprido – Baba explicou
em seu tom de voz mais baixo. – Cortei dela
enquanto os animais selvagens devoravam o
resto. – Ela o ofereceu para Penny examinar.
O dedo cintilou, umedecido, com a superfície
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ondulada de ranhuras. A ponta estreita era


coberta por uma unha descorada. Da ponta
cega brotava um toco de osso amarelado e
rachado. Tinha calor e tinha vida, além do
odor forte dos fluidos naturais de Baba.
Mesmo à luz fraca da caverna, era uma peça
fascinante.
Penny sopesou a relíquia na palma da
mão. Entristecia-a pensar em sua própria
mãe nua e de pernas abertas, se debatendo e
amarrada em um sótão sujo no Nebraska.
Balbuciando em meio aos espasmos de ab-
stinência sexual forçada, ela estaria se retor-
cendo contra os lençóis manchados de suor
como um animal selvagem e febril. A im-
agem deixava Penny em desespero.
Quando a garota estendeu a mão para de-
volver o tesouro, Baba não estendeu a mão
para recebê-lo. Em vez disso, arqueou as cos-
tas e projetou sua púbis anciã. Sentindo o
que a artesã do sexo desejava, Penny cuspiu
no dedo para umedecê-lo e apontou sua
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extremidade torta para o centro da penugem


branca como neve. Enquanto ela devolvia o
objeto a seu lugar, a idosa ofegava de gozo.
– É isso que devo instilar em você – pro-
meteu a anciã. – Salvei-me direcionando o
desprezo de Max de volta à fonte. Quando
acordei, aquele diabo havia ido embora e
muitos de meus instrumentos prediletos fo-
ram levados por ele. O que não roubou, Max
reconstruiu de memória: as receitas herbais,
por exemplo, para seus bálsamos e enemas
profanos. Assim como uma bala ricocheteia
na parede, como a parede do cânion cria o
eco, você precisa redirecionar essa energia.

Em um de seus últimos dias na caverna,


Penny deixou o chá de lado e começou a vas-
culhar entre os ossos descarnados e as cascas
de ovo que cobriam o chão de pedra. Baba já
havia saído para buscar comida, e Penny
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precisava corrigir um erro grave. Depois de


vasculhar o lixo, localizou o que precisava:
seu celular. Um ícone na tela mostrava que
ainda havia alguns instantes de energia na
bateria. Ela acessou um número de Nova
York guardado na memória.
Ao primeiro toque, um homem atendeu.
– Brenda? – A voz tinha a rouquidão de
quem passara meses chorando.
Triste, Penny respondeu:
– Não. – Com compaixão, ela explicou: –
Nós nos conhecemos há semanas no...
– No Central Park – ele afirmou. Ele soava
arrasado, um pobre desgraçado. Sua noiva
ainda estava entre os milhões de mulheres
abduzidas.
Penny teve de lembrar por que havia lig-
ado. Queria pedir desculpas e aceitar re-
sponsabilidade pelo menos por parte do fla-
gelo causado pela Beautiful You. E prometer
que faria de tudo a seu alcance para remedi-
ar a crise. Queria garantir àquele estranho
378/503

sofrido e apaixonado que estava quase


pronta para enfrentar Cornelius Linus Max-
well. Em breve, ela seria uma feiticeira do
sexo completa, com poderes para confrontar
e revelar a conspiração nanorrobótica de
Max. Queria que suas palavras delicadas en-
volvessem o homem deplorável em um casu-
lo de conforto. Porém, no instante crucial,
faltou-lhe coragem. Em vez disso, ela
perguntou:
– Como você se chama?
O homem ao telefone fungou.
– Yuri. – Sua voz trêmula se aquietou e ele
devolveu a pergunta: – Como você se
chama? – De repente, sua voz ficou mais afi-
ada, mais estranha.
Penny pensou em dizer seu nome real. Ol-
hou com expressão de culpa para a entrada
da caverna, vendo o trajeto gracioso de um
pássaro pelo céu nebuloso do Nepal. Enfim,
disse:
– Meu nome é Shirley.
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Houve um silêncio mais longo até o


homem repetir.
– Shirley. – Agora sua voz trazia um tom
mais ríspido. – Shirley, por que meu identi-
ficador de chamadas diz “Penny Harrigan”?
Pega por sua mentira, Penny congelou.
Ficou muda, tomada de vergonha. Sua fre-
quência cardíaca subiu a 165 batimentos por
minuto.
– Não se iluda – escarneceu Yuri, com
crueldade. – Eu leio o National Enquirer! –
Seu tom de voz estava envolto por amargura.
– Sei que Penny Harrigan está exigindo
parte das patentes da Beautiful You! Vi no
noticiário que você vai ao tribunal esta sem-
ana! – Ele estava histérico. – Você roubou
minha Brenda de mim! Você roubou esposas
de milhões de maridos e mães de milhões de
crianças!
Os gritos do homem ficaram tão altos que
Penny foi obrigada a tirar o telefone do
ouvido. Suas ameaças ecoavam pela caverna.
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Era nítido o desprezo em sua voz. Era


inegável.
Irado, Yuri gritou:
– Todo homem nova-iorquino sonha em
matá-la!
O telefone de Penny fez um bipe para avis-
ar que a bateria estava no fim.
– Se você ousar mostrar o rosto no julga-
mento das patentes – Yuri prometeu –, va-
mos destruir você. Arrancar cada membro de
seu corpo. Vamos pôr fogo na sua casa!
A ameaça deixou Penny sem chão. Mo-
nique, pensou. Sozinha, incapacitada, em seu
quarto, dispondo apenas de biscoitos e água.
Penny precisava ligar para avisá-la. Se uma
turba feroz botasse fogo em sua casa, Mo-
nique seria queimada viva.
Foi aí que a bateria do celular resolveu
morrer.
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Durante o longo voo do Nepal a Nova


York, Penny pensou na melhor amiga.
Quando se lembrava de Monique, que já fora
tão vibrante e agora estava escravizada a
masturbar-se em um quarto trancado e
escuro, usando um cóccix humano modelado
a partir de um polímero da era espacial, ela
queria chorar. A pobre Monique, com suas
partes íntimas cheias de bolhas de tanto
abuso, pairava sobre um crepúsculo onde o
prazer levava à morte. Penny fez uma oração
silenciosa aos antigos deuses tântricos,
pedindo que sua adorável colega ainda est-
ivesse respirando.
Para se distrair durante a extensa viagem,
ela praticou os exercícios de autoprazer que
Baba ensinara incansavelmente. Impeliu
suavemente seu traseiro até chegar à beira
do orgasmo e substituiu a sensação excitante
por lembranças de amor sincero pelo pai. Es-
timulando seus mamilos, ficou à beira da
hiperventilação e logo redirecionou sua
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paixão crescente a pensamentos nostálgicos


de gatinhos abissínios.
Ao longo dos dias que haviam passado
juntas, a idosa havia selecionado um arsenal
erótico aparentemente ao acaso entre as
peças jogadas pela caverna. Usara cada uma
das mesclas brutas de osso, pedra e penas
como cunha ou alavanca para alcançar os
pontos tântricos mais inacessíveis de Penny.
Assim que ganhava acesso, a bruxa estimu-
lava Penny repetidamente até a excitação in-
sana, sempre a incentivando a liberar seu
gozo em agitação física e gritos jubilosos de
palavreado torpe. Após cada sessão, ela ab-
sorvia o suor do corpo de Penny com punha-
dos de musgos aromáticos.
Juntas, elas bebiam chá de líquen, e Baba
Barba-Cinza expunha sua teoria de que o
prazer é uma energia imortal que pode ser
direcionada, canalizada. O prazer, explicava
ela, era atraído pelas pessoas que treinam
seus órgãos receptores para aceitá-lo.
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Avisou, contudo, que ele não podia ser


guardado nem mantido. Ele deve fluir pelo
corpo, senão o alvo morre.
Trazendo à mão um chifre de carneiro que
incrementara com diversos seixos e óleos de
ervas, a bruxa fez sinal para Penny se deitar e
disse:
– Podemos retomar nossas aulas, minha
cara?
Era verdade. Os 136 dias em Paris, ao lado
de Max, haviam ensinado Penny a ter prazer
sem amor, mas as semanas enclausurada na
caverna úmida de Baba a haviam ensinado
que o êxtase profundo podia coexistir com
um afeto ainda mais forte. A profundidade
de sua ligação com a mulher-bruxa sur-
preendeu até a própria Penny. Ela não tinha
se dado conta disso até a última manhã,
quando acordou na cama de matéria orgân-
ica seca que dividiam e percebeu que precis-
ava voltar ao mundo lá fora.
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Naquela manhã, Penny comeu silen-


ciosamente um mingau de cobras moídas
grosseiramente. Guardou seus poucos per-
tences em uma espaçosa bexiga de ovelha.
Penny passara tanto tempo nua que seu
corpo estranhava o terninho Norma Kamali.
Ajoelhou-se para dar um beijo de adeus em
Baba. Então, antes da alvorada, começou sua
descida angustiante pelos desfiladeiros
escorregadios do Everest.
A bordo de seu jatinho fretado, vestida dos
pés à cabeça em um esplêndido Versace,
Penny provava o chá que ela mesma havia
macerado com os gravetos e o leite de iaque
que a lâmia havia recolhido. Conferiu o e-
mail e descobriu que seu julgamento
começaria dali alguns dias. Seu primeiro
passo na guerra contra Max seria contestar a
propriedade exclusiva das patentes da Beau-
tiful You. Ele seria obrigado a confrontá-la e
o faria em um tribunal, aos olhos do público.
Se perdesse, estaria morta. A morte não lhe
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trazia medo, apenas a esperança de que um


dia retornasse a Baba Barba-Cinza para uma
eternidade de prazer.
E se Penny Harrigan vencesse sua auda-
ciosa batalha? Se ganhasse e o mundo ficasse
livre da conspiração de C. Linus Maxwell, ela
voltaria a viver como a velha senhora,
naquela caverna isolada na encosta do desfil-
adeiro, inventando infinitas maneiras de dar
prazer a si mesma e instruindo os alunos que
buscassem sua orientação.

Ao retornar a sua casa no Upper East Side,


Penny encontrou a porta de vidro jateado ar-
rombada por baderneiros. Com spray ver-
melho, alguém havia escrito “Penny Har-
rigan chupa pau no inferno!!!” em letras gar-
rafais. As palavras se estendiam de forma a
desfigurar a elegante fachada de pedra nos
dois lados da porta. Havia pingos escorrendo
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de cada letra, como em filmes de terror. En-


quanto subia pelos degraus da entrada, ela
viu que a varanda de mármore branca estava
cheia de bonecas de pano. Quase do
tamanho de bebês, cada uma usava mini-
aturas de couro Salvatore Ferragamo. As ex-
pressões faciais haviam sido costuradas e
forradas para lembrar o rosto de Penny. O
delicado bordado criara olhos castanhos e lá-
bios rosa. Era inquietante ver todas as
bonecas mutiladas e salpicadas de alfinetes.
Penny suspirou e estremeceu, combalida,
quando finalmente entendeu que eram
bonecas de vodu.
Entre os artefatos malignos, havia várias
galinhas em decomposição, com as gargantas
cortadas de qualquer jeito e as penas
respingadas de sangue. Seus vidrados olhos
aviários olhavam para Penny em tom acusa-
tório. Era evidente que haviam sido sacrifica-
das ali mesmo. A entrada de sua casa havia
se tornado um altar de ódio. Atraídas pelo
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sangue esparramado estavam suas antigas


nêmesis: as moscas. Elas pairavam sobre os
tocos de velas queimadas.
O eco dos caminhões de bombeiro vinha
de todos os lados. Uma nuvem de fumaça
negra cobria o céu. O fedor provocava nela
ataques de tosse. Um foguete atravessou o
céu, como artilharia militar, fazendo um arco
na direção de Midtown, e sumiu em meio aos
prédios. Ouviu-se um estouro abafado. Sem
qualquer explicação, a cidade havia se trans-
formado em um campo de batalha.
Na mesma hora, Penny pensou em
Monique.
A colega e melhor amiga havia estado no
andar de cima quando sua casa fora sitiada
sabe-se lá por quem. Uma onda de preocu-
pação tomou o lugar do medo, e Penny rapi-
damente chutou a natureza-morta grotesca a
sua frente. Enfiou a chave na fechadura.
Lá dentro, o vidro quebrado se estilhaçava
a cada passo de seus saltos Kate Spade. Os
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vândalos haviam quebrado muitas vidraças.


Sua munição – pedras enroladas em papel
com mensagens ofensivas – estava entre os
destroços. Ainda bem que as grades de se-
gurança em bronze, reforçadas, tinham im-
pedido que os invasores tomassem o local.
Pulando dois degraus da escada por vez,
Penny gritou:
– Monique? Monique, você tá bem?
Ela empunhava o machado que ficava
junto à lareira e derrubou a porta trancada
do quarto da colega. Lá dentro, encontrou a
amiga caída no colchão imundo da própria
cama, perto da morte. O quarto fedia a baba
e biscoito velho. Penny cuidou da menina, le-
vando uma xícara de chá de líquen a seus lá-
bios rachados. Se as pilhas de seus produtos
Beautiful You não houvessem esgotado com
os excessos, Monique já teria morrido de ex-
austão e desidratação havia muito tempo. A
menina antes tão ousada reagiu com um
ganido quando Penny limpou seus membros
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frágeis com um bálsamo feito de glândulas


de águia e sebo de rena.
Ela deu um caldo de ovos de tarambola e
medula fermentada à amiga, levando cada
colherada a sua boca. Quando Monique
tentou balbuciar, Penny a silenciou.
– Você não precisa ter vergonha de suas
circunstâncias degradantes – ela disse. –
Você foi vítima de prazeres primitivos aos
quais nenhuma mulher sem a devida in-
strução teria como resistir.

Penny carregou a colega faminta e apática


à sala multimídia e dispôs seu corpo
claudicante sobre uma confortável chaise
longue. Assim como haviam feito ao assistir
à entrega do Oscar, Penny estourou pipocas
e foi generosa no sal e na manteiga. Ela dava
cada uma a Monique, lentamente,
colocando-as entre os lábios rachados da
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garota. Juntas, assistiram à cobertura inter-


nacional da CNN.
Na tela de plasma de 72 polegadas,
desfraldava-se um panorama de toda a agit-
ação global. Guerras e desastres naturais não
eram mais as notícias corriqueiras. O efeito
Beautiful You havia superado qualquer fatal-
idade. Alguns homens foram espertos e for-
jaram novos papéis para si no mundo em
rápida evolução, mas a maioria deles não
conseguiu fazer o mesmo.
No primeiro grupo, estavam os nojentos
libertinos. Autoproclamados guias do sexo,
eles se deram conta de que as mulheres que
sucumbissem aos produtos Beautiful You
ficariam descontentes com a atuação or-
dinária de um parceiro sexual humano. Con-
tudo, todo homem que empunhasse uma
Vareta Relax Rotativa, o produto no 3.447,
estaria sempre acompanhado pelo belo sexo.
A cantada mais audaz não era mais “Quer ver
minhas gravuras?”. Para um abordagem
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bem-sucedida, bastava ao pretenso amante


mencionar que possuía um dos mais raros
produtos Beautiful You. Qualquer operário
que soubesse utilizar uma furadeira ou mo-
tosserra conseguiria operar facilmente um
Treme Tala ou uma Cobra Vibra-Amor.
Assim, os operários desempregados de todas
as firmas de construção encontravam novas
carreiras demonstrando os apetrechos de
Maxwell tanto nas lojas como vendendo de
porta em porta.
As câmeras da CNN fizeram uma imagem
panorâmica pelo showroom da loja da
Quinta Avenida. Os negócios estavam à toda,
com agradáveis vendedores a assediar as
consumidoras com os produtos. E não apen-
as produtos, mas também extensões de
garantia bastante caras. Elas também po-
diam comprar em prestações, explicava o
jornalista. Os analistas afirmavam que a
DataMicroCom lucrava alto com os encargos
que as consumidoras somavam usando seus
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cartões cor-de-rosa. Nenhuma moça deses-


perada e libidinosa que vagasse pelo covil
dos gigolôs sem escrúpulos, percebeu Penny,
teria chance alguma! Era a carreira mais
desejada por todos os homens da cidade.
Na televisão, a cena mudou. As câmeras
mostravam os quilômetros de fila para entrar
na loja principal. Entre os rostos na fila,
Penny reconheceu a atendente da Bonwit
Teller, já sem o ar de elegância, transform-
ada em uma zumbi sem um dente e de boca
aberta. Da mesma forma, Kwan Qxi e Esper-
anza, as antigas colegas de quarto de Penny,
estavam lá, com os olhos turvos, agarradas
aos cartões de crédito da loja.
Nas últimas semanas, segundo a CNN, a
composição da fila de consumidores havia
mudado. Agora havia um número quase
igual de homens entre as mulheres. Eram os
aproveitadores.
Entre os mais rápidos na adaptação, esses
usurários buscavam comprar todos os
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produtos inéditos possíveis. Eram cambistas


que iriam repassar os apetrechos a mulheres
com um lucro astronômico. Para mulheres
ricas, deficientes ou impacientes, ou
qualquer uma que não quisesse ou não
pudesse esperar do lado de fora, eles eram
enviados dos deuses. Vibradores e consolos
haviam se tornado a nova moeda do mercado
negro mundial. Não se passava um dia sem
informes de que caminhões da Beautiful You
haviam sido saqueados e de que sua preciosa
carga fora levada por inteiro. Assaltos a de-
pósitos. Seguranças assassinados. Entregas
que chegavam em carro blindado. As últimas
compradoras viravam alvo de ladrões, que
roubavam as mercadorias à mão armada
para revender no mercado negro.
Gangues rivais brigavam por território.
Oficinas ilegais de trabalho escravo enchiam
o mercado de produtos falsificados que não
davam a mesma satisfação.
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Para Penny, a situação era quase tão louca


quanto fora a época dos Beanie Babies ou
dos tênis do Michael Jordan. Quase.
Enquanto Monique começava a mascar
sua pipoca rica em calorias, ainda zonza, o
repórter da CNN sobrevoava Manhattan em
um helicóptero, rumando para o norte, em
direção a uma grande coluna de fumaça
negra que se erguia do Bronx. Para Penny, a
Nova York que se via abaixo do helicóptero
parecia um campo de batalha típico do ter-
ceiro mundo. Havia trocas de morteiros
entre os bairros, que provocavam incêndios
em prédios de luxo. Viaturas da polícia e am-
bulâncias banhavam as ruas com luzes ver-
melhas piscantes. O tráfego estava travado
devido aos veículos em chamas.
O plano da câmera captou a Rua 122 East
e passou gradualmente ao Harlem River
Drive, aos poucos chegando ao Bronx. Muito
acima da malha das ruas, o helicóptero se
precipitou para desviar de um míssil ou
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foguete que veio como um jato em sua


direção. A arma parecia ter o tamanho de um
projétil de bazuca. Ela soltou chamas e for-
mou um arco de fumaça negra. Outro projétil
veio contra o helicóptero, e o piloto mergul-
hou para desviar.
Na TV, o céu da cidade era cortado por
ogivas em fogo. Onde quer que caíssem, es-
touros pareciam bombas incendiárias que
queimavam prédios, carros e árvores.
Manhattan tornara-se uma zona de guerra.
Seguindo o arco negro de cada projétil,
Penny conseguia encontrar sua origem na
coluna de fumaça negra.
A fumaça vinha do Yankee Stadium. Lá
dentro, um incêndio descomunal parecia de-
vorar o centro do campo.
A CNN passou da vista aérea para uma
equipe de reportagem em solo no campo de
beisebol. Era um cenário de caos, com mul-
tidões festejando a confusão. Todos os
presentes eram homens, e a maioria usava
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camisetas do grupo Pagadores de Promessa.


Penny conseguiu ver longas filas de homens.
As filas serpenteavam ao redor de uma
grande fogueira, espalhando-se pelo estádio
numa roda. Eram versões masculinas das
filas de consumidoras que serpenteavam à
frente de todos os pontos de revenda Beauti-
ful You pelo mundo.
Os homens frenéticos cantavam uma
música que lembrava a infância de Penny.
Era o hino religioso “Kumbaya”. Os movi-
mentos cadenciados, feito um grupo de
prisioneiros, sincronizavam-se com o ritmo
da melodia enquanto passavam os objetos de
mão em mão. Quando chegava perto do fogo,
cada objeto era jogado nas chamas.
As câmeras se aproximaram mais, e Penny
testemunhou o que seria a visão do inferno
para qualquer homem. Montanhas de pênis
decepados contorciam-se nas labaredas.
Falos torcidos pelo calor intenso, formando
bolhas e retorcendo-se como em um
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tormento prolongado. Ardendo, alguns pin-


tos sofridos arrastavam-se do fogo feito
lagartas, como se tentassem chegar a um
lugar seguro. Iam e voltavam, saltavam e se
debatiam. Pareciam agonizantes. Eram pe-
gos pelos homens em volta e sumariamente
devolvidos a seu destino. Outros estouravam
no calor, cuspindo lava derretida cor-de-
rosa.
Penny os reconheceu: eram produtos
Beautiful You. As figuras que brincavam e
cantavam como selvagens ao redor daquele
inferno eram homens sacrificando seus
rivais. Assim como gerações anteriores
haviam queimado livros e discos, esses ho-
mens urravam em desapego catártico, pas-
sando lanças e varas do amor de homem
para homem até estarem empilhados nas
chamas intempestivas e borbulhantes. O
fedor e a fumaça negra da pira pairavam
sobre as ruas, acres como o vapor venenoso
de um incêndio infinito de pneus.
398/503

Entre os falos, explodiam também libélu-


las e duchas. Nenhum produto ficava de fora.
As pilhas estouravam com guinchos altos,
como um massacre de filhotes de coelho.
Outros falos eram disparados como mís-
seis, direto da fogueira. Eram essas coisas,
essas tochas voadoras, que quase haviam
derrubado o helicóptero da CNN. Como mís-
seis, os objetos faziam chover fogo sobre os
cidadãos da metrópole.
O repórter da CNN explicou que os brin-
quedos de prazer haviam sido comprados,
emprestados ou roubados. Independente-
mente de como haviam chegado ao Yankee
Stadium, nenhum deles sairia dali intacto.
Segundo o repórter, em todos os estádios do
mundo, de imensos coliseus a gramados
ralos de campos de futebol, hordas de ho-
mens raivosos atiçavam as chamas de piras
semelhantes de apetrechos do amor.
De repente, a câmera mudou o foco. Ela se
desviou do repórter da CNN. Alguém, um
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bandido fora de quadro, havia tomado o con-


trole e forçado a lente a focar um único
homem encardido. Seu rosto estava sujo da
fuligem de látex. Uma barba esparsa escon-
dia seu rosto, com exceção dos olhos injeta-
dos. Foi só quando ele falou que Penny
reconheceu.
Era Yuri.
– Penelope Harrigan – urrou ele na tela
plana de sua luxuosa sala de cinema –, em
breve vamos arrastá-la do tribunal até aqui
para queimá-la no fogo como a bruxa que vo-
cê é!

A Manhattan à qual Penny retornara era


uma paisagem urbana de homens. Só se
viam homens a rondar as calçadas. Só ho-
mens dirigiam carros, caminhões ou an-
davam de metrô. Todo assento de todo res-
taurante estava ocupado por nádegas
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masculinas. Obviamente, ao caminhar entre


eles, Penny chamava muita atenção. Sua di-
eta de fungos orgânicos, à beira da inanição,
e as longas horas de autoprazer vigoroso
haviam esculpido seu corpo. Cada músculo
saltava sob a pele fina e lisa enquanto ela
caminhava pelas ruas, confiante.
Para não ser reconhecida, ela colocara
óculos escuros enormes e um boné de beise-
bol virado para trás. Os óculos eram da
Fetch, com uma armação estilosa que criava
um equilíbrio perfeito entre “olha pra mim” e
“se manda”. Ela abdicou do enorme pingente
de rubi, que se tornara o acessório típico da
“Cinderela do Nerd”. Apesar de irrecon-
hecível, era fácil até demais para ela imagin-
ar uma enchente de vigilantes caindo dos
arranha-céus. Homens como Yuri. Um
mundo de pênis raivosos. Os mesmos ho-
mens que haviam sacrificado galinhas a sua
porta, que dominavam as calçadas.
Imaginava-os carregando cordas e tochas. Se
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soubessem quem ela era, a multidão lin-


chadora de machos a perseguiria como se
fosse o Frankenstein.
A fumaça do Yankee Stadium pairava
sobre Nova York como uma mortalha. Con-
solos ardentes riscavam o céu, e as cinzas
caíam como flocos de neve negros. A fuligem
fazia os olhos e a garganta de Penny arderem
com seu odor acre. A indecência pingava e
prendia-se nas laterais rosadas do prédio da
Beautiful You. Encobria-o. Tornava a torre
nada menos do que uma paródia do paraíso
nevado que havia tão pouco tempo Penny
deixara para trás.
Os cartazes de mulheres desaparecidas
continuavam a cobrir cada superfície pública
ainda visível. Subiam por postes de telefone
e muros como se fossem trepadeiras. A luz
severa do sol começara a esmaecer as fotos e
sorrisos de esposas amadas e mães adoradas.
Diretoras e presidentas de sucesso cujas con-
quistas profissionais eram varridas pela
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chuva. Os nomes começavam a desaparecer.


Já estavam quase esquecidas.
Com elas, o progresso político e social de
todo o sexo feminino, conquistado a duras
penas, parecia estar corroído. Em extinção.
Na esquina da Broadway com a Rua 47,
Penny avistou um rosto conhecido. Uma
mulher caída na calçada, encostada à base de
um poste. Chegando mais perto, Penny viu
que a estranha aflita usava um broche Pa-
loma Picasso, dourado e com diamantes, da
Tiffany. Seu cabelo tinha luzes feitas por es-
pecialistas, embora caísse em filamentos
rançosos sobre seu rosto sujo, que uma vez já
fora maquiado. Ela usava os restos esfar-
rapados do que já fora um tailleur Chanel; a
parte de cima estava aberta, com os seios à
mostra para os passantes. A saia estava pux-
ada para cima, em volta da cintura, enquanto
ela apunhalava a si mesma com um dos apet-
rechos Beautiful You. Com as pernas encar-
didas, ela agarrava o brinquedo com as duas
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mãos. Tinha as unhas cobertas de sujeira e


mexia a ferramenta manchada de indecência
em círculos, enfiando e tirando. Como uma
interna de um hospício vitoriano, ela ria e
balbuciava consigo mesma, indiferente às
multidões que passavam e evitando seus
olhares.
Ao aproximar-se do espetáculo, Penny
tentou a sorte:
– Brenda? Você se chama Brenda?
Sem diminuir o ritmo da maquinação car-
nal, a mulher olhou para Penny com um
fraco reflexo de compreensão.
– Você é noiva de Yuri, lembra? – Penny
estendeu as mãos abertas como se assim
pudesse devolver a vida antiga à mulher. –
Você era Diretora Financeira da Allied
Chemical Corp. – Penny reconheceu que o
apetrecho de prazer era o produto Beautiful
You no 2.788, a Sonda Êxtase Já. Seu reves-
timento de silicone e látex estava gasto, man-
chado, quase irreconhecível. Até Yuri teria
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dificuldade para identificar o presente de


aniversário especial que oferecera de
maneira tão inocente. Penny logo descobriu
o número de Yuri no histórico do celular
dela. Ligou e ouviu o telefone tocar do outro
lado.
Ao mesmo tempo, tentou ajudar Brenda,
puxando os trapos do blazer na tentativa de
cobrir seu peito nu. Desesperada para salvar
a dignidade da outra, Penny puxou a bainha
da saia pelas pernas da indigente com in-
sistência enquanto tentava acalmá-la. Nin-
guém parou para ajudar. Todos passavam
com pressa. Eram todos homens que davam
olhares furtivos, ficavam aflitos com a cena e
seguiam seu rumo. O telefone de Yuri con-
tinuou tocando.
– Alguém pode ligar para o 911? – Penny
implorou enquanto tentava encaixar os
botões nas casas. – Por favor! – Ela não con-
seguiu deixar de notar que a criatura
maníaca e besuntada usava um colar duplo
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de pérolas, uma combinação belíssima. De-


pois de seus 136 dias entre os glitterati, ela
conseguia reconhecer que os brincos do
tamanho de cubos de gelo que cintilavam nas
orelhas da estranha eram impecáveis
diamantes de dois quilates.
A reação de Brenda foi agarrar-se com
força ao falo e levar os joelhos ao peito,
fechando-se como uma bola para proteger
seu prêmio. Mostrou os dentes e rosnou
feroz.
– Ajude-me! – Penny implorou a um
empresário em terno risca de giz. O homem
fitou a cena com horror e mudou de rumo
depressa. Ela estava tentando tirar os dedos
da mulher de sua tarefa com delicadeza
quando sentiu uma ferroada na lateral da
mão. A insana havia enfiado os dentes per-
feitamente recobertos por jaquetas na pele
da pretensa salvadora. Com as bochechas
manchadas de sangue, ela mordeu a carne
406/503

tenra perto do dedão de Penny como um an-


imal raivoso.
Um mensageiro de bicicleta parou por
perto.
– Moça, espero que esteja em dia com a
vacina de tétano... – disse ele antes de sair
correndo.
Chocada e com dor, Penny soltou o celu-
lar, não sem antes ouvir uma voz do outro
lado:
– Alô? Brenda? – Era Yuri, mas o telefone
estava destruído, na sarjeta, fora de seu
alcance.
Penny fez força para fugir, mas os dentes
da mulher estavam fincados em sua carne.
Ela arfava, o que fazia o sangue escorrer
pelos cantos da boca. Foi só quando se in-
clinou para a frente que Penny conseguiu es-
capar da mordida da louca. Quando Penny
caiu para trás, a lunática pôs-se de pé e bateu
em retirada, correndo em zigue-zague. Com
o sangue ainda em seu rosto, Brenda saiu
407/503

cambaleante pela Broadway, com as mãos


sujas agarradas ao objeto rosa de sua insa-
ciável obsessão. As multidões masculinas de-
ram licença para ela passar.

As únicas outras mulheres à vista eram as


intratáveis zumbis na fila quilométrica que
começava na torre rosa afunilada da Quinta
Avenida. As infelizes atormentadas pareciam
intercambiáveis. Seus cabelos pegajosos
caíam e formavam nós. As unhas estavam
mordidas até a carne. Todas carregavam a
mesma bolsa, calçavam sapatos idênticos,
vestiam trajes quase iguais. Não era um visu-
al atraente nem estiloso, Penny percebeu;
mas eram todos produtos da DataMicroCom
e de suas subsidiárias.
Uma trupe de homens de ombros caídos,
usando camisetas do grupo Pagadores de
Promessa, armava uma marcha de protesto e
408/503

vigília perto da entrada da loja. Arrastavam-


se como um círculo torto, levando placas que
diziam: “Realização pessoal não gera
família!” Outras placas declaravam: “Bebês
devem vir antes de orgasmos!” Eles ron-
davam e vagavam, sitiados e ignorados.
Para enfrentar a multidão de mulheres em
frente à loja, Penny firmou os pés no chão,
jogando os ombros para trás e colocando as
mãos na cintura.
– Irmãs! – ela gritou. – Me ouçam, por fa-
vor! Vocês têm que parar de abusar de si
mesmas!
As mulheres olharam de soslaio,
observando-a com olhos estreitos e hostis.
Agarravam as sacolas cor-de-rosa junto ao
corpo como se fossem talismãs. Ninguém
dizia uma palavra, mas muitas vaiaram alto.
– Vocês estão em contato com um poder
que não entendem – Penny gritou. – Uma
prática ancestral de autoestímulo que exige
décadas de aprendizado e uso seguro para
409/503

não resultar em danos permanentes à pratic-


ante. – Penny enfrentou com coragem os
rostos servis, rosnantes. – A maioria que está
aqui também foi infectada por legiões de
minirrobôs.
A reação de muitas foi fazer tumulto. Out-
ras cuspiram. Em sua fraqueza uniforme,
nenhuma conseguiu fazer um ataque direto e
sem rodeios.
– Amanhã levarei a público o esquema at-
roz com o qual C. Linus Maxwell se apoderou
de rituais sexuais do passado para escravizar
todo o sexo feminino. – Em resposta às vaias
crescentes, Penny continuou: – A Beautiful
You desperdiça suas endorfinas. Temos que
boicotar todos os produtos da DataMi-
croCom. Vou ensiná-las a produzir apet-
rechos seguros e rudimentares, a partir da
matéria-prima que a natureza nos dá. Tenho
aqui bálsamos para aliviar suas vulvas infla-
madas e sobrecarregadas!
410/503

Em vez de unir-se a Penny ou atacá-la, a


multidão virou de costas. A zombaria di-
minuiu até virar um resmungo geral. O golpe
não havia surtido efeito.
Penny obviamente havia julgado mal a
multidão. O único interesse das mulheres era
voltar à nave-mãe e adquirir mais e mais
produtos. Reavaliando sua estratégia, Penny
repensou sua ofensiva.
– Irmãs! – ela berrou. – O prazer é uma
prerrogativa humana! Temos de atacar os
bastiões do prazer e tomar aquilo que é
nosso por direito! – Ela ergueu um punho ao
céu, ainda com as marcas de dente visíveis
na mão suja do próprio sangue seco.
A reação foi positiva. Muitas mulheres na
multidão vibraram.
– Não fiquem esperando como ovelhinhas
passivas que seus mestres corporativos dis-
tribuam o êxtase em conta-gotas! – reclam-
ou. – Peguem tudo! Derrubem essas portas e
tomem tudo para si!
411/503

Assim, Penny conclamou a fila desorde-


nada a tornar-se um exército revoltoso. Fez a
fome delas se transformar em ira frenética.
Milhares de mulheres em desespero ata-
caram com tudo, chocando-se contra a
fachada de espelho rosa, martelando o vidro
com os saltos deselegantes de seus sapatos
feios. Empunhavam suas armas eróticas e
gastas como se fossem cassetetes. Bateram
com os punhos até rachaduras ominosas
começarem a correr por todos os lados e as
janelas e portas se arquearem para dentro,
prontas para vir abaixo.
Sem ser notada, uma limusine negra havia
parado na esquina perto de Penny. Uma
janela do carro se abaixou, revelando as
maçãs de um rosto pálido e quase reptiliano.
Era Maxwell. Dirigindo-se apenas a Penny,
ele disse:
– Entre.
– Rá! – Ela riu, apontando para a mul-
tidão. A fachada destruída da loja já havia
412/503

sido esmagada pelos pés das revoltosas, que


entravam para saquear prateleiras e
mostruários. – Você não vai controlar todas
nós, Max! – Vitoriosa, Penny gabou-se: –
Vamos tomar tudo que é nosso!
A reação da figura na limusine foi erguer
um aparelhinho escuro. Era quadrado e po-
dia ser confundido com um celular ou video-
game portátil. Era o aparelho que ele estava
dedilhando na plateia na noite da morte de
Alouette. Maxwell apertou alguns botões
como se escrevesse um SMS. Depois, outros.
– Pode vir! – Penny o desafiou. – Chame a
polícia. Chame seus brutamontes. Nem eles
vão impedir essa revolução!
– Entre, sua vaca – Max repetiu. – É a úl-
tima vez que vou pedir com carinho.
– Vai se foder! – Penny gritou.
– Não – Max disse categoricamente. –
Vou foder você, minha cara. – Com isso, ele
apertou um botão, e todas as usurpadoras re-
pensaram suas atitudes.
413/503

Algumas, incluindo Penny, se encolheram.


No caso da maioria, os joelhos cederam, e
elas caíram, agarrando as virilhas com as
duas mãos. Todas começaram a debater-se
no chão ao som de desejo voraz, sem dignid-
ade alguma. O exército revolucionário desfez
suas fileiras e entregou-se ao contorcer he-
donista. No lugar de valentes rebeldes, via-se
um carpete ondulante de corpos humanos.
Os gritos de vitória viraram um coro de gem-
idos sensuais em sincronia com impulsos vi-
olentos da pélvis em direção ao céu.
Ao pressionar mais um botão, as mulheres
começaram a babar e contorcer-se em con-
vulsões espasmódicas. Estavam prestes a
morrer da mesma forma que Alouette, de
parada cardíaca ou aneurismas cerebrais
causados por excesso de estímulo erótico.
Mesmo com os espasmos paralisantes de
prazer em seu corpo, Penny suplicou:
– Liberte-as! – Ela começou a rastejar em
direção ao carro. Dentro de seu corpo,
414/503

tentava conter a força erótica, bloqueá-la ou


redirecioná-la contra Maxwell. Seu assoalho
pélvico tentou formar um punho cerrado e
raivoso. Meditou conforme Baba havia lhe
ensinado. Tentou todos os métodos tântri-
cos, mas nenhum funcionou. Arrastando-se
pela calçada de concreto, ela chegou ao lado
do carro. Derrotada, sussurrou:
– Liberte-as, Maxwell. Poupe essas vidas e
irei com você.
A porta do carro se abriu e Max disse:
– Entre. Caso contrário, aperto outro
botão e todas morrem.
Arrastando-se para dentro do carro, Penny
viu seu rosto refletido no sapato engraxado
de Max. Rebata o poder dele, disse a si
mesma, mas nada aconteceu. Assim que ela
se viu totalmente incapacitada, tremendo e
exausta, caída no carpete do carro, Max
fechou a porta e fez sinal para o motorista
dar a volta no Central Park lentamente.
415/503

Aos poucos, o prazer insuportável diminu-


iu. Era Max quem o determinava com seu
controle remoto. Para outros, ele parecia es-
tar jogando um videogame. Não mais sujeita
à força dos estímulos, Penny se sentou ao
lado dele. Ele serviu uma taça de champanhe
e ofereceu a ela. Champanhe rosê. Ela
dirigiu-lhe um olhar de apreensão.
– Não se preocupe, minha menina – ele
murmurou. – Não preciso drogá-la. Já tenho
controle total sobre seu corpo.
Penny aceitou a taça. Depois das várias xí-
caras do saudável chá de liquens e da carne
de rato, o espumante tinha um sabor aliení-
gena. Suas paredes vaginais relaxaram,
exauridas.
– Eu sei sobre os nanorrobôs – ela arfou.
– Sei que eles vinham dentro da libélula.
– Garota esperta – disse Max. – Será uma
excelente presidenta da DataMicroCom.
– Não vou ser sua marionete – Penny
jurou.
416/503

– Pobre Clarissa – disse Max. – Ela nunca


quis ser presidenta. Eu a obriguei.
Ele explicou que conheceu Clarissa
quando era uma simples vendedora da Avon
que oferecia batons de porta em porta. Ela
não era nada para ele. Só um número. Mas
ele percebeu que, tendo o poder da vida e da
morte, podia obrigá-la a tornar-se qualquer
coisa. Depois de seus 136 dias de romance, já
era tarde demais. Ela estava implantada. Sua
única opção era ser o que ele quisesse ou
morrer. Ela nunca quis ser senadora, muito
menos presidenta, mas, caso se recusasse –
ou se fosse um fracasso na corrida eleitoral
–, Max a teria assassinado e iniciado o
mesmo processo com outra mulher.
– Foi a mesma coisa com Alouette – ele
disse em tom saudoso. – Ela era um rostinho
bonito, feliz sendo apenas uma simples
modelo...
Depois de implantada com batalhões de
nanorrobôs, ela não teve opção. Se não
417/503

tivesse performances estupendas, Max a


punia com níveis debilitantes de prazer. Ele a
alçava às raias da loucura dinamitando seu
clitóris durante dias, de forma que ela não
pudesse comer nem dormir. O fracasso deix-
ou de ser opção, e Alouette passou a ter
medo da própria genitália.
– Para sobreviverem, as duas mulheres
tornaram-se aquilo que decretei. Se alguma
falasse sobre o poder que eu tinha sobre ela,
eu a matava.
– Foi por isso que você assassinou Alou-
ette? – perguntou Penny.
– Ela ia revelar tudo a você – confirmou
Max.
O chofer de Max conduzia-os em uma
volta infinita pela paisagem enfumaçada e
devastada pela guerra. Parecia fazer séculos
desde o romântico passeio de carruagem
com Tad pela mesma rota arborizada.
Pelas janelas fumês da limusine, ela
enxergava o parque. Os bandos de crianças
418/503

sem supervisão ainda vagavam por lá, aban-


donados pelas babás rebeldes. Os idosos em
cadeiras de rodas ainda estavam estacion-
ados como esquimós abandonados à morte
nos icebergs do gelo ártico. Entre eles, estava
Yuri, o noivo abandonado pela noiva ob-
cecada por prazer. Barbudo, só em sua ira,
com as roupas desgrenhadas, ele continuava
a entregar folhetos verde-claros aos
passantes. A foto de Brenda, da mesma
forma que a lembrança que tinha dela, era
mais tênue a cada lote de cópias. Penny teve
vontade de saltar do carro e correr até ele.
Sonhava em mostrar as marcas de dente em
sua mão como prova de que a amada ainda
estava viva. As cicatrizes instilariam nele
uma esperança renovada.
Max percebeu que ela olhava para o
homem derrotado. Indiferente, balançou a
cabeça.
– Não deixarei que um lunático a as-
sassine. – Ele fez um gesto com a mão que
419/503

pareceu englobar toda a cidade. Talvez todo


o mundo. – Onde quer que você tenha an-
dado... em todo momento de sua vida desde
o nascimento… meus seguranças estavam
sempre de olho em você. Foram meus guar-
das que impediram que os rufiões incendi-
assem sua casa e que já salvaram você de um
tornado. – Menos carinhoso, ele acres-
centou: – Você me pertence. Se alguém
matar você, serei eu.
Penny deu um suspiro de resignação.
– E qual é minha função dentro de seus
grandes propósitos?
Max sorriu com um estranho misto de
afeto e pena.
– Você será a presidenta vitalícia da
DataMicroCom. Todo dia, pelo resto da vida,
você vestirá meia-calça e carregará uma
pasta. Seu penteado será um elmo de laquê,
sua alimentação será composta basicamente
por salada. Vai ter que aguentar reuniões tão
tediosas que testarão sua sanidade.
420/503

Max a fitou com um sorriso presunçoso.


– Toda mulher no mundo sonha em ser
minha esposa.
– Está me cantando? – Penny perguntou,
surpresa.
– Não seja boba. Estou pedindo sua mão.
– Ele deu de ombros, como se quisesse evitar
uma discussão. – Você será uma cônjuge
esplêndida. Não há motivo para passarmos a
vida sós se podemos ficar juntos.
A rainha da Inglaterra, a baronesa da mí-
dia chinesa, a magnata do aço, todas as suas
conquistas prévias tinham vidas igualmente
castas de submissão a ele e somente ele. A
rede de mulheres poderosas dava a Maxwell
domínio sobre toda a raça humana.
– Através da Beautiful You – disse Max
com orgulho –, implantei com sucesso nan-
orrobôs em 98,7% das mulheres adultas do
mundo industrializado.
Era assim que ele controlava seus hábitos
de consumo. Durante os comerciais de TV de
421/503

alguns produtos, aqueles produzidos pela


DataMicroCom, ele transmitia um sinal que
ativava sensações eróticas. Fosse um sapato,
um filme ou um livro sobre vampiros, as
mulheres imediatamente associavam os es-
tímulos a sua reação excitada e corriam às
compras.
– As mulheres são os novos mestres do
mundo, mas agora eu sou o mestre das
mulheres.
Penny sabia que ele estava dizendo a ver-
dade. Pelo menos era verdade para ele
mesmo.
– Não pense que isso é uma disputa de
colégio – Max avisou. – Não se trata de men-
ino contra menina. Trata-se de poder. Vive-
mos em uma era em que as mulheres detêm
a maior parte do poder. No governo e nas de-
cisões de consumo, as mulheres comandam
o mundo, e sua expectativa de vida mais pro-
longada dá a elas controle da maior riqueza.
422/503

Ele estava maravilhado com o controle


preto que tinha nas mãos. Começou a girar o
aparelho para observá-lo melhor. A super-
fície era um mosaico de botões negros, cada
um com uma letra ou número. Um teclado.
– Você imagina o que aconteceria se esse
controle caísse nas mãos de um garoto de 13
anos?
Seca, Penny respondeu:
– Já caiu.
Os dedos de Max estremeceram sobre os
botões, e ela berrou em um espasmo de ex-
citação elétrica que atravessou seu clitóris.
Controlando o orgasmo, Penny disse:
– Você tem uma forma bastante eficiente
de impedir que as pessoas tenham bebês. –
Ela estava pensando nas lesões causadas em
todos que tentavam penetrá-la.
Maxwell deu um sorriso enigmático.
– Se sua mão de obra me agradar, talvez
eu permita que você se reproduza. Os seres
humanos são incapazes de controlar seu
423/503

número, por isso devo cumprir essa tarefa.


Na minha utopia, apenas as fêmeas mais in-
teligentes e produtivas terão permissão para
ter filhos.
Ao ouvir aquilo, Penny conseguiu en-
tender por que a presidenta havia se matado.
Maxwell planejava controlar a taxa de natal-
idade de todo o mundo industrializado.
– Superpopulação – disse Penny. – Foi
por isso que você colocou um dobermann
para vigiar o jardim?
Ele concordou com orgulho evidente.
– Você se refere à proteção. Alguns nanor-
robôs podem dar um impulso de energia
plasmática causticante. Foi inventado para
destruir células cancerígenas, mas descobri
que também funciona contra a ereção
masculina.
Irônica, Penny disse:
– Você vai ficar feliz em saber que também
funciona nos dedos de feiticeiras do
Himalaia.
424/503

Max ergueu uma sobrancelha.


– Ah, você foi atrás de Baba Barba-Cinza.
– Ele deu um sorriso irônico e perguntou: –
Como anda minha velhinha?
– Ela despreza você! – Penny retrucou.
Apesar de ele tentar esconder, ela viu que a
notícia entristecera Maxwell. Para aproveitar
sua vantagem, ela emendou: – Baba abom-
ina você por ter roubado os segredos dos an-
cestrais e usado-os em proveito próprio.
Sem dizer uma palavra, Max mexeu um
botão de seu controle, fazendo Penny sentir
uma pontada de desejo impetuoso tremular
por seu ser.
Ela vacilou, mas rapidamente recobrou a
compostura. Estreitou o olhar.
– Tendo a orientação dela, talvez seja mais
difícil dominar a mim do que as suas antigas
escravas.
Max a observou fechar e abrir as mãos
com raiva.
425/503

– Você não é mais a criança fraca que ad-


estrei nos caminhos do prazer... Sinto que
sob a orientação da Baba você se tornou algo
perigoso. Uma mulher. – Seus olhos cintil-
avam com algo que parecia admiração. – Se
pensa em me ferir, tenha em mente que me
matar traria consequências muito além de
sua imaginação mais desvairada!
– Depois de amanhã, o mundo inteiro vai
abominar você. – Ela provou de sua taça de
champanhe. – Durante os argumentos inici-
ais de meu julgamento pelas patentes, pre-
tendo expor toda a sua sujeira!
Max apertou os controles.
Penny sentiu um calafrio de prazer no
ânus. Apenas um alerta. Ignorou-o.
Max brincou com mais um botão, e ela
sentiu os mamilos incharem.
– Tenho certeza de que você consegue
mais que isso.
– E prometo que vou conseguir – jurou
Maxwell. – Se você tentar me expor no
426/503

tribunal, vou fazer você rastejar e latir como


uma cadela louca no cio. Deixarei você in-
sana de tesão. E então vou matá-la.

Naquela noite, Penny construiu um altar


aos deuses tântricos do passado. Fez uma of-
erenda com chá preparado com um punhado
de areia que trouxera da caverna de Baba
Barba-Cinza. Com uma compressa gelada de
líquen úmido, refrescou a testa febril de sua
melhor amiga e colega de casa. Aquela podia
ser a última noite de Penny na Terra, mas até
a morte era melhor do que viver como es-
crava de Maxwell. Imaginou os nanorrobôs
formando um enxame para atacar seu
cérebro e virilha. Telefonou para o pai em
Omaha. A condição da mãe não havia mel-
horado, mas também não havia piorado. Ela
estava fortemente sedada e, para manter-se
viva, era alimentada à força por uma sonda.
427/503

Parecia que só Tad acreditava nela. Em re-


sposta a uma ligação, ele correu à sua casa
levando o resumo da ação para revisarem.
Ela contou sobre sua viagem ao Nepal en-
quanto comiam pizza na cozinha. Penny
falou do guardião que vivia dentro de mil-
hões de mulheres. Aquela pulsação paralis-
ante de energia plásmica perfuradora e
maligna.
Penny explicou tudo. Somente agora eles
poderiam consumar seu romance com ver-
dade e sinceridade. Tomando xícaras do chá
de areia sagrada de Baba, eles estavam à
mesa da cozinha e discutiam como levar o
relacionamento a outro nível.
Tad olhou para ela enquanto a pizza es-
quecida esfriava entre os dois. Ele parecia
um menininho assustado e confuso. Os olhos
estavam arregalados de terror. Fazia meses
que ele via Brillstein mancando pelos corre-
dores em agonia prolongada. Ele engoliu seu
428/503

nervosismo em seco. Não parecia disposto a


ter a mesma sina.
– Achei que você... não podia fazer sexo
vaginal.
Como Baba lhe disse, a vagina de Penny
não era sua única forma de acesso ao poder.
Não importava mais se ela era bonita ou feia,
magra ou gorda, jovem ou velha. Já estava
treinada como uma feiticeira do sexo com-
pleta. Eram suas habilidades repassadas at-
ravés de mil gerações de especialistas do
sexo. Ela carregava a incrível magia carnal
nas mãos e na boca. O conhecimento já es-
tava impregnado em cada músculo de Penny.
Só seu reto já conhecia inúmeros métodos de
dar prazer.
Penny não se vangloriou de nenhum
desses talentos com Tad. Em vez disso, apen-
as apontou para a geladeira.
– Tem uma garrafa de champanhe
gelando. – Com a voz aveludada de insinu-
ações, ela continuou: – Por que você não o
429/503

abre enquanto eu subo para vestir uma


coisinha mais sensual?

No quarto, Penny reencontrou a camisola


de penas de marabu tingidas de roxo. Muitas
penas estavam duras, com o sangue coagu-
lado de Brillstein, mas o roxo camuflava per-
feitamente a pista sanguinolenta da noite em
que ela seduzira e interrogara o maligno
chefe. Vestindo a plumagem, ela calçou os
saltos Prada mais altos que tinha e conferiu o
resultado no espelho do closet. A lembrança
do idoso alojado dentro dela,
choramingando de dor, provocava risos. A
visão de sua vulva magnífica e imberbe con-
vocou uma memória agridoce do belíssimo
rosto de Alouette no banheiro do restaurante
parisiense.
Do andar de baixo, Tad chamou:
– O champanhe está pronto.
430/503

– Só mais um minuto – Penny respondeu.


Ela correu ao quarto de Monique. Lá, a
colega dormia profundamente, exaurida de-
mais para ouvir Penny reunir um monte de
produtos Beautiful You, todos bastante usad-
os. Ela os levou depressa a seu próprio ban-
heiro e jogou no boxe.
Tad chamou de novo:
– Você tá pronta? Vou levar o
champanhe.
– Estou no quarto – Penny gritou. Com o
chuveirinho do banheiro, ela lavava os resí-
duos de lubrificante e fluidos ressequidos
nos diversos apetrechos sexuais que tomara
emprestados. Agora que conhecia os segre-
dos do design dos produtos de Max, ela re-
conhecia facilmente a versão plástica da
clavícula humana. Outro era evidentemente
uma cópia da escápula, mas em fibra de
vidro e borracha. Enxugou cada um com a
toalha de mão e jogou-os na cama. Ouvindo
os passos de Tad na escada, Penny mal teve
431/503

tempo de curvar os cílios, depilar as pernas e


colocar perfume atrás das orelhas.
Enquanto fazia isso, ela esquadrinhava
sua memória atrás de detalhes da anatomia
sexual masculina. Max lhe havia ensinado
um pouquinho. Baba Barba-Cinza lhe ensin-
ara muito mais, mas Penny não colocara
nada desse aprendizado em prática. Sua
mente ficou atordoada com o esforço de ima-
ginar o nervo retal inferior de Tad e sua tún-
ica vaginal.
Como toque final, Penny caminhou lenta-
mente em um círculo amplo, perfumando
sua câmara do amor. Baba ensinara-lhe
muito bem como usar os potentes fer-
omônios que se acumulam na glândula de
Howard, e, ao fazê-lo, preencheu o lugar
romântico com um inegável aroma
hormonal.
Nesse momento, Tad já estava parado na
porta do quarto, segurando a garrafa de
champanhe e duas taças Baccarat. Uma
432/503

combinação de excitação e vulnerabilidade


enchia seus olhos. Com um adejo das penas
de marabu, ela conduziu-o à cama e
rapidamente despiu-o, revisando velada-
mente sua anatomia. Algumas carícias local-
izaram o ligamento puboprostático. Com
uma delicada exploração, os dedos de Penny
abriram caminho devagar e cada vez mais
fundo no reto de Tad. Ela traçou o canal in-
guinal até as glândulas bulbouretrais e o
duto ejaculatório. Se ele tinha alguma ob-
jeção às liberdades que ela tomava, não
falou. Pelo contrário: o advogado viril e
convencido contorceu-se de apreensão en-
quanto via Penny combinar o champanhe
rosê com a mistura de ingredientes secretos
patenteados da Beautiful You. Com seu
toque, sua pele juvenil estremeceu de medo e
expectativa.
Sem que ele soubesse, o sangue do pre-
tenso amante que fora frustrado ainda man-
chava o colchão em que eles encenavam as
433/503

artes do amor. Por sorte, Penny teve a ideia


de virá-lo ao contrário.
Penny saboreou os arrepios dele. Era as-
sim que Max se sentia quando controlava seu
êxtase. Aquilo era ter poder. As prolixas de-
clarações de amor do jovem de sangue azul
desapareceram. Para ele, não existia nada
além das sensações eróticas que experi-
mentava pela primeira vez. Tad estremeceu
com uma paixão que não pôde esconder
quando ela invadiu seu tenso esfíncter com o
bico da seringa e começou a liberar o es-
pumante rosê adulterado, que dilatava e in-
vadia sua corrente sanguínea. Penny estava
persuadindo o corpo dele a se realizar de
uma maneira que prejudicaria seu entendi-
mento da realidade.
Se a própria Penny sentia alguma excit-
ação, era no nível intelectual. Os grunhidos e
contorções de Tad eram prova de que ela al-
cançara o domínio dos centros de prazer hu-
mano. Já vira muitas mulheres sob aquela
434/503

influência. Manipuladas de forma rude. Era


maravilhoso ver que ela era capaz de con-
seguir o mesmo efeito sobre um homem.
Max tinha razão em uma coisa: não se
tratava de uma briga entre menino e menina.
Tratava-se de como o conhecimento do
próprio corpo traz poder sobre os outros.
Penny já fora a cobaia abjeta e babona. Esta
noite ela seria a mestra. Ela estava no
controle.
Com sua habilidade, ela comprimiu os
túbulos seminíferos para suprimir a esper-
matogênese. Penny Harrigan não era mais o
bloco de mármore aguardando para ser es-
culpido. Apesar de sua plumagem tingida de
roxo, ela era a incomparável lâmia do sexo. A
cada uma de suas carícias, monitorava a
pulsação e a temperatura do jovem ad-
vogado. Ele ficou ofegante. Seu ritmo
cardíaco estava em 197 batimentos por
minuto. O assoalho pélvico de Tad cedeu, e
ela habilmente inseriu um falo cor-de-rosa
435/503

escolhido entre o acervo considerável de Mo-


nique. De posse do produto no 371, a Var-
inha Margarida, ela girou e revolveu a mis-
tura intoxicante nas entranhas do namorado.
Essas técnicas o levaram rapidamente ao
coma erótico: sua temperatura central baix-
ou a 27 °C, suas pupilas ficaram fixas e
dilatadas. Penny foi impelida a ressuscitá-lo
com seu próprio fôlego. Assim como Max a
havia estimulado quase a ponto de morrer e
depois a trouxera de volta à vida, Penny re-
animou Tad e lhe disse:
– Não morra. Agora que você sabe da
alegria que seu corpo pode sentir, agarre-se à
sua vida...
Aquilo não era o sexo que Tad conhecia,
que os Sigma Chi conheciam. Ele não ejacu-
lou. O toque tântrico e cuidadoso de Penny
pressionava sua artéria espermática. Em vez
da emissão total de seu jorro quente, apenas
um pingo transparente de líquido seminal
pendia da ponta de sua ereção tão exausta
436/503

quanto modesta. Foi aquela gotinha que


Penny reuniu graciosamente com a ponta do
dedo e levou à boca. Tinha a doçura comum
dos líquidos seminais produzidos pelas glân-
dulas de Cowper, mas por trás daquilo
escondiam-se nuances de sabor mais sutis.
Como já havia visto Baba fazer, Penny
chupou e lambeu a amostra. Ali ela podia ler
o afeto adolescente que Tad nutria por ela.
Podia discernir os sonhos de casamento e de
criarem uma grande e tumultuosa ninhada
de filhos. Naquela única gota de secreção
glandular, ela sentiu o gosto de casa es-
paçosa no subúrbio, de um setter irlandês
com pedigree, de uma minivan para sete pas-
sageiros. Ele estava encurralado em seus
sonhos pequenos tanto quanto ela já est-
ivera. Oculto por trás de todos esses detalhes
havia algo mais fugidio. Ela estalou os lábios,
saboreando os últimos toques. Por fim, suas
papilas gustativas reconheceram o
componente-chave no sabor. Vergonha.
437/503

Exausto, Tad esparramou-se pela cama


desarrumada e a olhou com temor. As mãos
de Penny já aplicavam delicadamente um
unguento calmante de líquen na pele em
carne viva de seu escroto.
A verdade naquele líquido deixou Penny
chocada, mas era inegável. Sorrindo para ele,
encabulada, ela disse:
– Sei dos seus segredos mais ocultos. Não
há mais por que se esconder. – Enquanto
dizia aquelas palavras, Tad fechou os olhos,
aflito.
– Eu não conto pra ninguém, mas você
não estudou em Yale, né?
Ao ouvir aquilo, o jovem e ambicioso
advogado desmanchou-se em lágrimas.

Sob juramento, Penny falaria a verdade


por aquelas que não podiam, por Alouette e
Clarissa. Falaria pelas hordas esfarrapadas
438/503

em fila na Quinta Avenida. Ao adentrar o


tribunal, ela inspecionou o lugar e entrou em
pânico. Não havia mulher alguma no júri.
Não havia mulher alguma entre os repór-
teres ou espectadores na galeria. Todos os
presentes eram homens. Ser a única mulher
ali era ao mesmo tempo empolgante e as-
sustador. Ela ficou congelada na porta, por
um instante a mais do que deveria, tempo
suficiente para que cada olho na sala a en-
contrasse. Todas as vozes caíram no silêncio.
Ela sabia que estava deslumbrante, cada
músculo de seu corpo tonificado. Ergueu a
mão delicada e passou os dedos pelo cabelo
lustroso, voltando a cabeça levemente de um
lado para outro para que as longas e grossas
madeixas saltassem e refletissem a luz.
Todos os homens olhavam para ela, e ela não
olhava para ninguém.
Permitiu-se dar um passo. Os olhos a
seguiram. O ódio era como uma névoa de
439/503

fúria que envolveu seus braços e pernas até


ela chegar à mesa da acusação.
Brillstein veio mancando até o tribunal.
Lesões como aquelas eram de recuperação
difícil entre os mais velhos. Sua agonia era
evidente. Estremecendo, ele se abaixou de-
vagar até seu assento, próximo a Penny, com
os olhos vermelhos a fitá-la em fúria. Apenas
Tad estava entre os dois. A firma aceitara
que o jovem interrogasse Penny quando ela
fosse chamada a depor. A lista de testemun-
has que podiam ser convocadas era curta,
pois Tad planejava tornar públicas as cader-
netas de Maxwell.
Berros ecoaram no corredor. As cabeças
do tribunal voltaram-se na direção do tu-
multo. Vozes masculinas gritaram:
– Maxwell, você ainda amava Alouette?
Como você está depois do suicídio de
Clarissa? – Era quase uma repetição da cena
que Penny testemunhara no lobby do prédio
da BB&B quando Alouette D’Ambrosia saiu
440/503

do elevador. Agora eram dezenas de jornalis-


tas e blogueiros brigando pela atenção de
Max. Todos erguiam seus celulares para cap-
turar um vídeo dele adentrando o tribunal.
Penny não conseguia vê-lo. Max estava
muito protegido dentro de sua barreira de
guarda-costas em terno azul, mas viu as telas
das minicâmeras que o retratavam de diver-
sos ângulos. Ele vestia um terno Ralph
Lauren discreto, apropriado para casamen-
tos e funerais. Suas mãos pálidas estavam
vazias; não havia sinal do controle com o
qual ele podia atormentar qualquer im-
plantada com os malignos nanorrobôs Beau-
tiful You. Um sorriso de satisfação perpassou
seus lábios pálidos.
De sua parte, Penny vestira um conjunto
de calça e blazer Jill Sander, que era estiloso
e confiável. Não podia arriscar uma saia ou
vestido. Não tinha interesse em repetir o
striptease trágico e fatal que Alouette fora
obrigada a executar no palco do Oscar.
441/503

Chegara a pensar em levar uma arma em sua


bolsinha Prada, como a presidenta Hind,
mas era tarde demais para matar Max. Os se-
guranças do tribunal estariam muito
atentos.
O tagarelar dos jornalistas acompanhou
Max até seu lugar na mesa do réu. Ali, um
membro de sua equipe de defesa puxou uma
cadeira, e Max a aceitou sem nem olhar na
direção de Penny. Mesmo a distância, ela
sabia que seu comportamento seria tão frio
quanto suas mãos. Aquela companhia do
jantar, tão sorridente e atenciosa, que a in-
centivara a discutir todas as suas preocu-
pações, havia sumido. Era estranho vê-lo
sem uma caneta e um caderno.
Fiel a sua palavra, C. Linus Maxwell havia
cortado o acesso às parcelas de seu fundo de
cinquenta milhões de dólares. Caso passasse
por necessidade, Penny venderia o rubi
pesado que pendia da correntinha de ouro
442/503

em seu pescoço. Usaria até o último centavo


para vê-lo cair.
Todos ficaram em pé quando o juiz entrou.
Ele bateu com o martelo para iniciar a
sessão.
Tad ficou de pé.
– Como advogado da autora da ação – ele
anunciou –, chamo Penny Harrigan como
minha primeira depoente.
Todos os olhos estavam voltados para ela.
Ter sido inspecionada constantemente pelos
ricos e famosos do mundo tornara Penny
imune a exposições públicas como aquela.
Um milhar de estranhos julgava seu corpo,
seu cabelo, até mesmo seu caráter. Nada da-
quilo era importante. Ela caminhava como
uma rainha em direção à guilhotina. Levou
uma mão à Bíblia que lhe ofereceram. Só en-
tão permitiu que seus olhos encontrassem
Maxwell. Ele retribuiu com um olhar tran-
quilo e indiferente. Uma expressão de tédio
443/503

absoluto. Seus olhos semicerrados sugeriam


que ele tentava conter um bocejo.
Quando Penny se posicionou atrás do mi-
crofone e disse seu nome para registro, ele
colocou uma das mãos claras dentro do
casaco do paletó e retirou um pequeno ob-
jeto preto. Manteve-o na palma da mão e
começou a manipulá-lo como se estivesse es-
crevendo uma mensagem de texto.
Não era uma mensagem de texto, Penny
pensou. Estava mais para massagem de
texto.
Penny não sabia dizer se o efeito era
psicossomático ou não, mas uma onda de
calor reconfortante inundou seus seios. O
efeito era tão apaixonante, tão estimulante,
que Penny achou que fosse sua imaginação.
Não era nada perto dos ataques sexuais gros-
seiros com os quais ele a ameaçara antes.
Aquela leve sensação de carícia entre as per-
nas lembrava mais o toque de Baba Barba-
Cinza. Penny contorceu-se levemente. Talvez
444/503

fossem essas as sensações que Max usava


para levar as mulheres a comprar certos liv-
ros e sapatos. Era assim que ele podia per-
suadir as eleitoras femininas a votar em seus
candidatos. Dava uma leve coceira. O efeito
lembrava a expressão que sua mãe cos-
tumava usar: “roxa de vontade”.
Levantando-se da cadeira, Tad
aproximou-se.
– Senhorita Harrigan – ele iniciou –, você
é virgem?
Penny não se chocou. Conhecia todo o
questionário que ele utilizaria. A estratégia
era fazê-la parecer uma brilhante cocriadora,
não uma jovem deflorada.
– Não – ela respondeu. – Não sou virgem.
– A senhorita era virgem quando con-
heceu o sr. Maxwell?
Penny negou com a cabeça.
– Não, não era. – As sensações de prazer
continuavam a perpassá-la. Seu coração
começara a bater tão forte que ela quase
445/503

sentia o pingente de rubi balançando no


peito.
Tad a fitou com um olhar sério.
– A senhorita teve relações sexuais com o
Sr. Maxwell?
Os dedos de Max pairaram como se ele
aguardasse a traição.
Penny fez que sim.
O juiz interveio:
– Fica registrado que a testemunha re-
spondeu afirmativamente.
Tad prosseguiu:
– A senhorita envolveu-se por livre e es-
pontânea vontade no uso de apetrechos
voltados ao incremento da experiência
erótica?
A satisfação por controle remoto cessou de
forma abrupta. O zumbido quente em seus
mamilos e virilha, porém, não fora sua ima-
ginação. Era um aviso. Em reação à última
pergunta de Tad, Penny disse:
446/503

– Sim, eu autorizei o Sr. Maxwell a testar


muitas de suas ideias em mim.
Sem tirar os olhos dela, Max tocou ligeira-
mente uma série de botões.
Penny sentiu as axilas ficarem úmidas.
Parecia que suas roupas estavam ardendo,
prestes a pegar fogo. Um filete de suor des-
ceu pela fenda entre suas nádegas. Um gem-
ido longo e sensual ergueu-se por sua gar-
ganta, mas ela o conteve.
Tad perguntou:
– A senhorita foi compensada pelo serviço
que executou para o Sr. Maxwell?
Com a palavra serviço, Max riu sem fazer
som, grudando o queixo ao peito.
Enraivecida, Penny respondeu:
– Não. Ele me deu presentes, roupas
caras, por exemplo, mas não fui compensada
formalmente nem reconhecida como sua
colega e pesquisadora.
Max a fitou. Era fácil ler a ira em seu
rosto. Como ela ousava presumir que estava
447/503

em igualdade com ele? Ele apertou diversos


controles na caixinha.
No mesmo instante, Penny ofegou. Seu
coração vacilou. O corpo fez força para
libertar-se dos trajes apertados. Cada centí-
metro de sua pele estava tão sensível que até
sua calcinha de seda a envolvia como arame
farpado. Seus dedos fizeram força para abrir
sutilmente botões e zíperes, para encontrar
algum alívio sem trair sua excitação. Ela não
podia dar essa satisfação a Max. Além disso,
serpentear como uma pole dancer turbinada
dificilmente atrairia a simpatia do júri
masculino.
Tad parecia não notar.
– A senhorita está ciente da alcunha do
réu, “ClíMax”?
Penny domou uma nova onda de frenesi e
girou os quadris contra a cadeira de uma
forma que não parecesse evidente.
– Os tabloides o chamam assim. Mas ele é
dono de todos esses tabloides!
448/503

Tad prosseguiu:
– Na sua opinião, senhorita Harrigan, qual
é a principal fonte da vasta experiência sexu-
al do Sr. Maxwell?
Ali estava a oportunidade de denunciá-lo.
Penny engoliu a saliva quente que inundou
sua boca. Ela discretamente levantou um
lenço para enxugar as gotinhas de suor que
brotavam na testa. Com o mundo inteiro a
ouvindo, ela explicaria a jornada de Maxwell
ao Nepal e o aprendizado que tivera aos pés
de Baba. Descreveria como seu trágico
casamento havia lhe dado motivação. E
Penny declararia para o registro público que
os produtos da Beautiful You tinham seus
moldes baseados em ossos ressequidos de
peregrinos desvairados que buscavam o
prazer até a morte. O mundo logo ficaria
sabendo como Maxwell havia descoberto os
segredos sensuais de toda a história humana
para escravizar as clientes e controlar seus
hábitos de consumo. As moças degradadas
449/503

eram dominadas por um poder erótico muito


além de sua compreensão, e Penny ia
resgatá-las. Max seria desmascarado.
Mesmo com as palavras já formadas nos
lábios, a respiração de Penny começou a ficar
arrastada. Suas coxas estavam balançando
para se livrar das calcinhas encharcadas.
Seus pés chutaram os sapatos, que pareciam
ter virado armadilhas. Em uma reação sub-
consciente, os espectadores homens
avançaram, ávidos, em seus assentos. Os ol-
hos cobiçosos a devoravam.
– Diga-nos – Tad a incitou. Ele estava
uma delícia naquela fantasia de advogado.
Penny mal podia esperar para eles se casar-
em assim que essa provação ficasse para
trás. O sexo na lua de mel ia ser fantástico.
Ela estava apenas vagamente ciente de que
Max apertava botões, frenético para impedir
seu depoimento com uma onda ainda maior
de êxtase. Ele podia inclusive tentar matá-la
com um AVC ou um ataque cardíaco
450/503

induzido por excitação. Max fustigava os


botões sem tirar os olhos das reações que
provocava.
Os nanorrobôs que estavam no sistema
nervoso de Penny provavelmente trans-
mitiam todos os seus sinais vitais a Max. A
caixinha preta na mão dele devia revelar
ritmo cardíaco, pressão arterial, níveis hor-
monais, tudo.
Os poderes dele iam muito além do que
ela previra. Max apertou um botão, e na
mesma hora ela sentiu um gosto de chocol-
ate. Era o chocolate amargo mais gostoso
que ela já havia provado na vida; o sabor
preencheu sua boca. Max apertou outro
botão, e Penny sentiu o perfume inebriante
de um jardim de rosas. Os nanorrobôs que
ele depositara através da infame libélula
marcharam para estimular todos os sentidos
dela. Vastas sinfonias de violino tocaram em
seu ouvido. Os efeitos sensacionais da ducha
451/503

de champanhe rosê pareciam avolumar-se


outra vez dentro dela.
Ainda assim, Penny tentava falar. Suas
mãos passearam involuntariamente pelo ca-
belo. Suas costas se arquearam para projetar
os seios.
– Ele está controlando o mundo... – disse
ela, com a voz falha. Apontou o dedo, que
tremia. – Vejam! Com o telefone!
Ao notar o tormento, Tad interveio.
– Meritíssimo, parece que a testemunha
está sofrendo um mal-estar.
– Por favor, detenham-no! – Penny im-
plorou. – Ele está controlando minha mente!
– Suas mãos, involuntariamente, começaram
a rasgar a blusa. Seu esfregar e seu rebolar
violentos fizeram suas calças saracotearem e
se amontoarem junto aos tornozelos. Uma
cacofonia de sabores – foie gras, Grand
Marnier e bala toffee – atiçava seu paladar.
Árias ensurdecedoras de Mozart ribom-
bavam em seus ouvidos. Seus seios da face
452/503

estavam inflamados pelos doces odores de


jasmim e de filhotinhos de cachorro. O
mundo achava que ele estava jogando Tetris,
mas Maxwell estava estimulando todas essas
sensações intensas enquanto seus dedos
tocavam as teclas como um virtuose do
piano.
Indefesa, Penny sentia seu corpo reagir a
um oponente invisível. Seus orifícios ardiam
como se estivesse sendo violada por centenas
de pênis eretos. Suas pernas e lábios eram
forçados a se abrir. Ela sentia o gosto de uma
multidão de línguas invisíveis invadindo-a,
dedos que mordiscavam seus mamilos, um
hálito quente no pescoço.
Ela gritou, mas ninguém veio salvá-la. O
estenógrafo registrou sua súplica. O desen-
hista a retratou debatendo-se.
Tad ficou olhando, incrédulo, chocado. Ela
não era mais uma feiticeira experiente.
Assim como antes, ela era um pedaço suado
453/503

de carne sob o controle erótico de outro


homem.
Os paramédicos chegaram e colocaram-na
em uma maca. Perguntaram-lhe o ano e
quem era o presidente. Perguntaram seu
nome e tiveram o prazer de reconhecê-la: a
“Cinderela do Nerd”.
Durante todo o caminho até o hospital
psiquiátrico, um dos paramédicos con-
tinuava admirado:
– Você deveria ter se casado com o cara...

Apesar do aguaceiro gelado e constante,


uma fila desgrenhada de consumidoras se es-
tendia pela Quinta Avenida. Os pingos en-
charcavam os cabelos até caírem sobre o
rosto, escondendo os olhos lânguidos e
vidrados. Seus sapatos encharcados per-
maneciam dentro das poças. Em intervalos
de poucos minutos, os espantalhos trágicos
454/503

arriscavam um passo à frente. Uma ponta da


fila sumia pelas portas de espelho rosado da
loja. A outra extremidade se estendia no ho-
rizonte. Aqui e ali, havia uma compradora
caída, mas mesmo essas mulheres fracas se
arrastavam usando mãos e joelhos.
Poucas, se é que alguma, olharam para
longa limusine que conduzia um grupo até a
entrada da Catedral de São Patrício para um
casamento. Ali, um toldo protegia a chegada
dos convidados. Entre eles estavam estadis-
tas de todo o mundo, a rainha da Inglaterra,
a baronesa chinesa da mídia, artistas premi-
adas de todo tipo. Legiões de jornalistas lota-
vam a calçada. Era a manchete da década. O
homem mais rico e mais poderoso do mundo
ia se casar.
A caminho das núpcias, a noiva passou
pelos quilômetros e quilômetros de compra-
doras desfiguradas. Ela mantinha o véu
sobre o rosto, torcendo para que não a re-
conhecessem. Ela, Penny Harrigan, não
455/503

conseguira salvar ninguém e, por isso, ia


pagar o maior dos preços. Não seria ela a es-
tabelecer um novo marco para a nova ger-
ação de mulheres. Não seria ela a inaugurar
uma nova fronteira do feminismo. Adornada
com um voluptuoso vestido Priscilla of Bo-
ston, ela se preparou para cruzar a nave da
igreja e jurar lealdade a C. Linus Maxwell.
Em cada esquina, bancas de jornal exi-
biam as manchetes de tabloides reforçadas
para o dia: “Rei Nerd casa-se com sua rainha
malvada”. “Um salve à rainha Penny.”
Outros anunciavam “ClíMax planeja domínio
mundial” e “Corny Maxwell está construindo
robôs do sexo”. Penny era a única que perce-
bia a estratégia de Maxwell. Ele plantara es-
sas histórias para transformar a verdade em
uma piada. Estava minando a credibilidade
da descoberta dela. Agora ninguém ia acred-
itar em Penny.
Seu vestido retrô era devidamente incô-
modo. Ela arrastava o peso de anáguas e
456/503

babados. Era apropriado para a mitologia.


Para todas as outras pessoas, era como um
final de livro infantil: Cinderela se casa com
o Príncipe Encantado. Max precisava disso
para reforçar a ilusão que sustentara durante
tantos anos.
A fumaça negra de látex queimado en-
cobria a cidade. Consolos flamejantes ainda
caíam torrencialmente, causando vítimas
aleatórias.
As andarilhas da Beautiful You camin-
havam com dificuldade, como um exército
em retirada constante de um campo de
batalha longínquo. Feridas e desalentadas.
Com suas roupas ensopadas caindo pelo
corpo, elas não tinham ideia de que eram
marionetes em uma farsa mundial. Penny
não só havia fracassado em ajudá-las, mas
fora cúmplice em sua derrota. Fora na cama
dela que as armas da derrocada tinham sido
aprimoradas. As reações de Penny haviam
aperfeiçoado os apetrechos que agora
457/503

devastavam todo seu gênero. Era simples-


mente apropriado que ela se juntasse a Max.
As mulheres mais inteligentes, talentosas
e determinadas do mundo estavam sujeitas
aos caprichos dele. Ao pressionar de um
botão, Max podia levar gostos indizíveis às
suas bocas. Podia fazê-las ouvir as músicas
divinas. Controlava a realidade que elas sen-
tiam. Aquele dia marcava o princípio de uma
era das trevas para todas as mulheres, e
Penny só podia torcer para que durasse
apenas uma geração. Assim que a verdade
fosse conhecida, quem sabe ninguém mais
comprasse os produtos Beautiful You.
Contudo, pensou Penny, se os nanorrobôs
se autorreplicavam, cada mãe podia passar
seus minimestres às filhas. Quem sabe tam-
bém aos filhos. Dentro de uma geração, todo
o mundo industrializado pertenceria a Max.
O maligno Max.
Se ele realmente tinha feito uma vasecto-
mia, como dissera, não haveria ninguém
458/503

para herdar seu legado. Conhecendo-o,


Penny previa que as rédeas do poder acabari-
am sendo entregues a um supercomputador
totalmente automático. Em breve, um soft-
ware iria dizer a todos o que sentir e dis-
tribuir orgasmos artificiais e música doce,
falsa, através dos robôs, no sistema nervoso
de todos os humanos.
Penny percebeu que até o gosto das coisas
deixaria de ter importância. A DataMi-
croCom poderia colocar qualquer ingredi-
ente nos alimentos que vendia. O sabor e a
sensação reais dos alimentos na boca não
teriam importância, pois os nanorrobôs iri-
am controlar como os consumidores perce-
beriam cada produto.
Penny se lembrou do trajeto de táxi para
seu primeiro jantar no Chez Romaine. Em
contraste com seu caminhar anônimo pelo
tapete vermelho na primeira vez, nessa man-
hã um muro de repórteres enchia as calça-
das, competindo para conseguir uma
459/503

fotografia dela em seus paramentos matri-


moniais. Grupos de lacaios de Max car-
regavam a cauda de seu vestido e seguravam
guarda-chuvas para impedir que uma mísera
gota de chuva arruinasse a noiva. Uma bar-
reira de guarda-costas de ternos azuis a
escoltava pela multidão.
Enquanto se apressava nos degraus da
catedral, Penny sentiu um gosto de costeletas
no molho picante. Ouviu o gorjear de passar-
inhos. Sabia que nada daquilo era real. Max
estava apenas colocando percepções em sua
mente para confortá-la. Sua mente nunca
mais seria sua.
Ao adentrar o vestíbulo da igreja, ela vis-
lumbrou três rostos familiares, mas
classificou-os como alucinações programa-
das por Max. Eles sorriram. Ela sorriu de
volta e perguntou:
– Vocês são reais?
Eram seus pais e sua colega de casa. Sua
mãe e Monique estavam frágeis, abatidas,
460/503

mas Max aparentemente lhes dera força sufi-


ciente para estarem lá naquele dia. As duas
mulheres eram menos convidadas e mais re-
féns levadas até lá para garantir que a
cerimônia transcorresse sem percalços.
Penny podia tentar mais um ato de rebeldia,
mas não faria isso se as pessoas que amava
estivessem em perigo constante.
Era irônico que não muito tempo antes
sua mãe e Monique tivessem atazanado
Penny para que jogasse fora o anticoncep-
cional e armasse uma arapuca para se casar
com Max. Agora era ela que se via encur-
ralada. E, nessa manhã, elas pareciam estar
num velório. Os quatro abraçaram-se com
ardor.
Enquanto os recepcionistas preparavam-
se para levar seus pais aos devidos lugares, a
mãe de Penny sussurrou:
– Pegue isso aqui. – Ela apertou uma coisa
contra a mão da filha. – Leia.
461/503

Penny percebeu horrorizada que os pulsos


da mãe estavam marcados pelas cordas. Seus
braços nus estavam inchados, e cicatrizes
vermelhas denunciavam marcas de injeção.
Ela lhe oferecera um pedacinho de papel do-
brado. Ao alisá-lo, Penny descobriu que era
uma página amarelada de uma edição do
National Enquirer de muitos anos atrás.
Nervosa, ela perguntou a um guarda-costas
onde havia um banheiro.
Penny percebeu que fazia semanas que
nenhuma das devotas faxineiras da paróquia
aparecia para o serviço. Manobrar sua
dantesca saia no cubículo imundo exigiu
muito trabalho. Cada movimento fazia o el-
egante cetim tocar na água suja do assoalho
fedendo a urina. Penny ouviu as primeiras
notas da marcha nupcial enquanto seus ol-
hos vistoriavam a página de jornal em fúria.
O título da matéria era: “DataMicroCom
aposta alto em clones”. Segundo o texto, a
empresa de Max tinha investido pesado para
462/503

criar um embrião humano viável e cloná-lo.


A pesquisa acontecera na mesma época da
criação dos nanorrobôs. Segundo o jornalista
de ciências do National Enquirer, o objetivo
de longo prazo era gerar um clone micro-
scópico. O clone seria mantido em um estado
de vida suspensa. Poderia ser implantado
para gestação em um útero de aluguel.
Penny leu e releu a matéria antes de jogar
o papel no vaso e puxar a descarga.
Se Max conseguia inserir nanorrobôs nas
mulheres, por que não introduziria clandes-
tinamente um clone embriônico suspenso?
Inclusive nela! Não restava dúvida de que
seria um clone dele. Esse, esse era seu plano
magistral. Controlar o crescimento da popu-
lação mundial... Perpetuar seu poder corpor-
ativo planetário... Como um parasita, ele
planejava reproduzir milhares, quem sabe
milhões de Maxs, todos idênticos, nos úteros
de mulheres que não desconfiavam de nada.
Esse era seu plano para levar a paz à
463/503

humanidade. Seu mundo perfeito seria hab-


itado por um bilhão de versões dele mesmo!

Maxwell estava parado no altar. Os pais de


Penny estavam sentados no banco da frente,
aguardando junto a centenas de dignitários e
celebridades que a noiva atravessasse o
corredor.
Todas as mulheres na igreja sorriam, enl-
evadas. Era evidente que Max bombardeava
seus sentidos com cada sensação imaginável.
A mãe de Penny suspirou como se estivesse
arrebatada por brownies recém-saídos do
forno. Os olhos de Monique fecharam-se de-
vagar, como se ela fosse transportada por um
tapete mágico de valsa. Penny era a única ex-
cluída dos prazeres que Max usava para
manter as outras mulheres dóceis conforme
a cerimônia progredia.
464/503

Logo, ela seria a sra. Maxwell. Tinha en-


contrado seu destino, ou vice-versa. Dali em
diante, ela estaria no controle da maior cor-
poração do mundo. Seria a esposa do homem
mais rico do planeta. Penny tomou o lugar a
seu lado. De véu. Implantada. Para amar,
honrar, respeitar e, o mais importante,
obedecer.

O bispo perguntou:
– Se alguém se opõe a essa união no
sagrado matrimônio, que fale agora ou cale-
se para sempre.
Ouviu-se um burburinho ao fundo da
igreja. A multidão de pescoços chiques girou
para observar uma figura recurvada arrastar-
se lentamente pelo corredor central. Seus es-
parsos cachos grisalhos estavam molhados
de chuva. Seu corpo carcomido se arrastava,
desnudo. Uma trilha abundante de pelos pu-
bianos grisalhos varria o carpete. A julgar
465/503

pela expressão de surpresa e medo, Max re-


conheceu a aparição sem convite. A velha,
cada vez mais próxima, ergueu os olhos ce-
gos e brancos na direção dele. Com seu nariz
encarquilhado a farejar tudo, berrou:
– Maxwell, sinto o cheiro de seu medo! –
A voz era um grasnar enferrujado. A boca
sem dentes deu a ordem: – Parem com
esse... ultraje!
Cuidadoso, Maxwell enfiou uma das mãos
no casaco do smoking e tirou a caixinha
negra. Seus toques podiam torturar ou matar
milhões.
A bruxa usurpadora ordenou:
– Conte a ela, Maxwell! – A bruxa apontou
o dedo nodoso. – Se pode casar com a men-
ina, conte a ela! Conte à sua noiva a verdade
sobre sua existência!
Os olhos de Max se encheram de terror.
Na metade do corredor, a mulher-cadáver
esfarrapada ordenou outra vez:
466/503

– Conte o segredo que eu não pude contar.


Isso só pode vir de você. Conte!
Penny estava paralisada, confusa, olhando
da delatora andrajosa para o homem prestes
a se tornar seu marido.
Óbvio que era Baba, vinda desde o Nepal
até Nova York. Seus lábios se abriram e ela
falou:
– Conte por que você dedicou a vida a dar
prazer às mulheres!
Max ergueu seu controlador para que to-
dos vissem.
– Mais um passo, sua velha, e a morte de
bilhões de mulheres será culpa sua!
Baba abrandou seu avanço.
Foi quando Penny interveio.
– Baba – ela gritou com toda audácia. –
Eu sei por que Maxwell roubou os segredos
dos ancestrais. Sei por que ele investiu sua
vida em ter acesso às melhores vaginas do
mundo!
467/503

As mulheres continuavam a se extasiar em


seus devaneios de prazer. Os homens pare-
ciam surpresos, e positivamente, com a in-
terrupção inesperada de um casamento que
tinha tudo para ser um tédio. Se estavam
cientes do prazer das mulheres, ignoravam
deliberadamente. Esses homens, na maioria,
pareciam ser os libertinos indecentes e es-
peculadores que exploravam o efeito mer-
cado negro no Beautiful You.
Enquanto o dedo de Max pairava sobre os
botões que causariam um massacre global,
Penny proclamou:
– Eu sei sobre a pesquisa de clones. Sei
que Max implantou embriões clonados de si
próprio em toda usuária de produtos Beauti-
ful You e que vai ativar a gestação de todos. –
Ela tinha conquistado a atenção de toda a
catedral e gritou:
– Os mesmos nanorrobôs que dão prazer e
dor às escravas de Max vão suprimir a fun-
ção imune que poderia rejeitar esses fetos.
468/503

Esse exército de robôs microscópicos vai


proteger e defender esses fetos até que cen-
tenas de milhões de mulheres férteis deem à
luz cópias perfeitas de Cornelius Linus
Maxwell!
Ao fim do curto discurso, Penny berrava.
Agitava loucamente seu buquê de noiva.
Quando caiu no silêncio, a multidão a obser-
vava, descrente. Penny, em seu vestido fofo e
cheio de babados, aguardava a reação ao seu
ultraje. Preparou-se para que Max
começasse a atormentá-la com seu controle.
Isso não aconteceu.
Baba voltou seus olhos nebulosos para ela.
A idosa balançou a cabeça, zombeteira, e
disse:
– Do que você está falando, minha cara?
Não é nada disso.
Em algum ponto da cavernosa igreja, al-
guém riu.
469/503

– Mais uma palavra – ameaçou Max – e


vou causar mais sofrimento do que vocês
possam imaginar!
Sem lhe dar ouvidos, Baba Barba-Cinza
confrontou-o:
– O vestido que você está usando, Penny
Harrigan, é o mesmo que ela usou há vinte e
cinco anos. O vestido que a falecida esposa
de Max usou quando tinha exatamente a sua
idade! – Suas palavras ecoaram pela enorme
catedral. – Pergunte a seu noivo por que ser-
viu tão bem!
O vestido servira perfeitamente. Desde a
primeira vez que Penny o provara, o vestido
parecia feito para ela.
Antes que ela pudesse ponderar por mais
um instante sobre aquele milagre, Max aper-
tou os botões de seu aparelho. Um satélite
invisível retransmitiu o sinal, e Penny sentiu
um solavanco de dor cruzar seu corpo. Ao
mesmo tempo, todas as convidadas do
casamento gritaram e caíram. Apenas Baba
470/503

permanecia de pé, com um olhar desafiador


diante dos olhos ultrajados de Max.
– Diga à menina – ela sibilou. – Ela pre-
cisa saber do destino que nasceu para
cumprir.
– Nunca – Max gritou.
Penny tinha uma vaga noção de que Baba
havia se aproximado de Maxwell. Os dois ad-
versários deram voltas um em torno do
outro, o dândi de smoking e o esqueleto ma-
cilento. Maxwell enfiou a caixa de controle
no bolso de seu casaco e ergueu as duas
mãos vazias em um gesto de ameaça, pronto
para atacar assim que a bruxa falasse.
O bispo estava em frente a Penny, corando
furioso enquanto ela se contorcia a seus pés,
torcendo-se de agonia e prazer sensual,
quase enlouquecida, com um lamento gutur-
al e lunático a sair de sua boca.
– Você, pequena Penny – berrou Baba –,
você precisa rebater essa energia maléfica.
471/503

Você não conheceu Maxwell por acidente. Só


você pode detê-lo!
Tão logo ela proferiu essas palavras, Max
pulou à frente, pegou Baba Barba-Cinza pela
garganta ressequida e disse:
– Morra, bruxa perversa!
Mesmo arfando para respirar, Baba disse:
– Confira! Confira na caderneta, nove
meses antes de você nascer, Penny! – Com a
voz reduzida a um sussurro, ela continuou: –
Veja quem ele seduziu...
Penny começou a rolar na fofura de seu
vasto vestido de noiva. Sentia os nanorrobôs
correndo pelas veias. Tinha vontade de
rasgar as artérias para limpar seu sangue. Os
robôs nunca a deixariam em paz. Nunca se
livraria deles. Os pequenos sentinelas de
Maxwell estavam vivos e causavam dor de
dentro para fora.
Com o pescoço esmagado nas mãos frias
de Max, Baba morria. Depois de dois séculos
ensinando a iluminação sexual a peregrinos,
472/503

a gentil iogue perdia a vida nas mãos de seu


maior pupilo. Mesmo enquanto as mãos es-
trangulavam sua traqueia, ela grasnou:
– Criança, você deve rechaçar a energia
dele. Canalize-a através de si e devolva com
toda a força! – Ela sussurrou: – Nenhum es-
pelho é queimado pelos mais fortes raios de
sol!
Para se livrar do ataque de falso prazer,
Penny concentrou-se em sua família unida e
em sua simples fé luterana. Saboreou a amiz-
ade verdadeira que se formara entre ela e
Monique. A mente de Penny abraçou tudo o
que ela amava no mundo. Sorvete de creme
crocante. Ron Howard. Richard Thomas.
Meditando firmemente, a consciência de
Penny começou a desviar os sinais da caixa
de controle de Max. Os nanorrobôs fervil-
hantes aos poucos escoaram, unindo-se em
sua pélvis.
Ao mesmo tempo, um assobio estridente
tomou conta da igreja. De início fraco, o som
473/503

começou a ganhar força. O silvo cresceu até


virar uma sirene, um gemido com a intensid-
ade de um alerta de ataque aéreo. A sirene
cresceu até virar um estrondo, tão alta que
ameaçava embaralhar os cérebros de todos
os presentes. Os convidados, o bispo, cada
pessoa na cavernosa igreja tapou os ouvidos
com as mãos e encolheu-se de dor.
A fonte de tudo aquilo era Penny. Abafado
apenas pelas saias e anáguas, o som era
emitido pelo meio de suas pernas e ecoava
pelas paredes da construção. As enormes
janelas de vitrais tremiam. Assim como as
trombetas haviam derrubado as muralhas de
Jericó, rachaduras começaram a se abrir
entre as pedras da catedral. Pó de argamassa
começou a cair. Enquanto aumentava até se
tornar quase um trovão, o som explodiu pelo
cetim e pelo forro, espalhando lantejoulas e
pérolas como estilhaços de bomba. Renda
rasgada voou como flocos infinitos de
474/503

confete branco, expondo o local de poder da


noiva.
Penny pensou no amor que tinha pela
grande Baba, e os lábios de sua vagina se ab-
riram, soltando um estrondo. O ruído retum-
bou como um canhão sônico. A rajada
apagou as velas do santuário.
Sem aviso, o grande vitral da catedral ex-
plodiu. Não para fora. A janela estourou
para dentro, lançando sobre os convidados
fragmentos afiados de vidro vermelho, azul e
verde, destruídos por alguma coisa que sur-
giu como uma bala vinda da direção do Yan-
kee Stadium.
Como um raio, uma bola de fogo, uma
massa flamejante de látex e pilhas atravessou
toda a extensão do grande santuário. Com a
força de um tiro, o foguete assassino atingiu
Max no meio das pernas de seu traje a rigor.
O morteiro abrasador de produtos incandes-
centes atingiu as partes íntimas do homem,
475/503

dobrando-o ao meio e fazendo-o cair para


trás.

Depois de séculos de existência, a lâmia


estava morta.
Maxwell foi ferido mortalmente por uma
arma de seu próprio arsenal de apetrechos
de prazer da era espacial: um falo imolador
que se projetara da fogueira dos Pagadores
de Promessa! O sangue fluía sem parar da
virilha rasgada de seu smoking. Penny nem
precisou olhar melhor para saber que sua
genitália estava aniquilada. Como o person-
agem de um livro de Ernest Hemingway que
ela fora obrigada a ler no colégio, suas partes
haviam sido explodidas. Baba Barba-Cinza
estava morta e Max estava morrendo.
Os nanorrobôs dentro de Penny cessaram.
Aos poucos, Penny e as outras mulheres na
igreja conseguiram levantar-se, piscando,
476/503

estupefatas. Balançaram os cabelos desgren-


hados para tirá-los do rosto e abriram as bol-
sas para dar início à longa e árdua tarefa de
consertar a maquiagem. E a vida.
Os dedos frígidos de uma mão moribunda
fecharam-se sobre o tornozelo de Penny. Era
Max, fitando-a com olhos pidões. Seu rosto,
que já era pálido antes, parecia uma folha de
papel. Seus lábios mal formavam as
palavras.
– Aqui – ele disse. – Veja. – Ele levou a
mão livre ao bolso de seu casaco e retirou um
pedaço de jornal amassado. – Para você –
disse ele, estendendo o papel para ela pegar.
Penny ajoelhou-se e aceitou o presente.
Era um recorte de jornal com data de exatos
trinta anos antes. Do National Enquirer. Em
destaque, via-se uma fotografia em preto e
branco. Ela estava granulada, esmaecida
pelos anos, mas era como olhar num es-
pelho. Era seu rosto, com o mesmo véu e
vestido que ela usava agora. Um anúncio de
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casamento. Cornelius Linus Maxwell ia se


casar com Phoebe Bradshaw. Uma segunda
matéria estava grampeada ao jornal: um ob-
ituário com data de exatos 136 dias depois. A
jovem sra. Corny Maxwell havia morrido de
reação alérgica a crustáceos.
O medo obscureceu o coração de Penny.
Ela também era alérgica a crustáceos. No
primeiro jantar no Chez Romaine, quando
ela quase pediu sushi de vieira, Max a deteve.
De alguma forma, Max já sabia de sua forte
alergia.
– Minha esposa – ele disse. Onde antes
ficavam seu pênis e testículos, Penny viu
apenas uma grande ferida da qual o sangue
transbordava. A mesma mão moribunda que
havia apresentado as matérias agora oferecia
seu caderno aberto em uma página. Ele
disse: – “Voluntária no 48, Myrtle Harrigan,
vinte e quatro de março, ano 19-. Local:
Shippee, Nebraska...”
478/503

A mãe de Penny chorou baixinho en-


quanto Maxwell lia, em voz alta, os detalhes
do caso entre os dois. Vinte e cinco anos
antes, ela era uma recém-casada em uma
cidadezinha, participando de um festival de
tortas no salão da granja local. Em termos
mais dignos que o normal, Max registrara:
– “A voluntária pareceu desolada ao me
confiar sua incapacidade de gerar crianças.
Estranho na cidade, posso ter parecido uma
pessoa segura a quem abrir seu coração.” –
Uma geração atrás, essa jovem mulher do
Nebraska havia confiado seus temores ocul-
tos a Max assim como Penny faria no
primeiro encontro no Chez Romaine. – “A
mulher tinha 168 centímetros de altura,
aproximadamente 54 quilos de peso—”
A certa distância do ponto onde Max se-
gurava seu caderno, recontando o passado, a
479/503

mãe chorosa de Penny ergueu o rosto de um


punhado de lenços e o interrompeu:
– Eu tinha só 51!
Morrendo, Max prosseguiu:
– “Em meu interior, eu sabia que podia
fazer mais pela pobre estéril do que levá-la a
um orgasmo devastador. Estava dentro de
minhas capacidades dar-lhe o bebê que tanto
queria.”
Ele descreveu como seduzira sua mais re-
cente cobaia com uma fatia de torta de
abóbora. Seu marido não estava, pois fora
participar de um retiro do grupo Pagadores
de Promessa no final de semana. Não foi pre-
ciso muito charme para persuadir a solitária
dona de casa. Max consumou o ato no banco
de trás de seu Ford Explorer alugado.
– “Quando a frequência cardíaca dela
chegou a 163 batimentos por minuto” – Max
pronunciou sem mudar o tom –, “implantei
um zigoto clonado e a última geração de
480/503

nanorrobôs necessários para garantir sua


sobrevivência.”
Aos soluços, a mãe de Penny insistiu:
– Nunca pesei mais de 54 quilos, nem de-
pois que você me engravidou!
Nove meses depois, Penny nasceu. Apar-
entemente, um milagre.
Pela expressão de angústia do pai, Penny
entendeu que ele nunca imaginara aquilo.
Nenhum dos pais suspeitara que eles haviam
participado do plano de Max para clonar sua
falecida esposa. Inocentes, eles fomentaram
o experimento de um ser perverso. Ele po-
deria ter implantado esse embrião em
qualquer uma das diversas mulheres que se-
duzira. Poderia ter implantado em todas.
O mais desnorteador para Penny era a
possibilidade real de não ser ela mesma. Já
era bem ruim que impulsos fossem trans-
mitidos a ela, causando o estímulo de seus
centros de prazer. Agora seu próprio DNA
era de segunda mão, herança de um gênio
481/503

insano que ansiava reencontrar sua amada.


Ela, Penny Harrigan, era a ressurreição
genética de Phoebe Maxwell.
Naquele momento de choque, quebrando
o silêncio, uma voz se pronunciou. Espiritu-
osa como sempre, Monique gritou:
– Ai, Omaha! Que nojo!
Mais distante na igreja, Esperanza,
voltando à sua petulância latina, berrou:
– Ay, caramba!

– Meus agentes protegeram você o tempo


todo – sussurrou Max enquanto o sangue
fluía do golpe escabroso entre as pernas. A
igreja estava tão silenciosa que todos os
presentes ouviam sua confissão. Penny só
precisava ver a fotografia esmaecida no ob-
ituário para saber que era verdade.
Seus anjos da guarda, percebeu ela, não
eram prestativos agentes da Segurança
482/503

Interna. Esses sentinelas de terno e óculos


escuros, que a haviam protegido desde a in-
fância, estavam a serviço de Max. Não per-
mitiram que nada acontecesse com ela até
que pudesse amadurecer e tornar-se substi-
tuta da falecida esposa.
– Você é a prova de que minha tecnologia
clônica funciona – prosseguiu Max. – Passei
minha vida inteira buscando o acesso a todos
os úteros do mundo civilizado.
Em termos de demonstração amorosa,
mesmo para Penny, era um gesto tocante.
Maxwell realmente a amara. Amara o
bastante para ressuscitá-la dos mortos.
Maxwell gralhou:
– Você e sua vagina perfeita, minha men-
ina, você será meu presente a todos os
homens!
O cadáver surrado de Baba estava ao lado
dele, tão próximo que o sangue dele se esvaía
sobre ela. Quando o fluxo de fluidos vitais di-
minuiu, os olhos de Max tremularam e
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fecharam-se. Seus pulmões exalaram o úl-


timo suspiro.
– Oh, Phoebe... Tantos anos de saudade…
– E Max se foi.

Sozinha em sua caverna no Himalaia –


nua, é claro –, Penny salpicou temperos em
um caldo de picadinho de lagarto. Mexeu a
panela fervilhante e levou uma colher fu-
megante à boca. O gosto a encheu de nostal-
gia e tristeza pela falecida Baba. Menos de
uma hora após a lâmia e Max terem morrido
no chão da Catedral de São Patrício, Penny
embarcara em um jatinho particular a cam-
inho do Nepal. Escalou os desfiladeiros es-
carpados do monte Everest ainda vestindo os
trapos de seu vestido de casamento. Não
contara a ninguém sobre seu destino.
Os pais de Penny estavam a salvo. Mo-
nique estava livre de sua obsessão por pilhas.
484/503

A julgar pelas mensagens de texto que


apitavam a cada hora, Monique estava noiva
de Tad. Ela continuava a residir na casa no
Upper East Side e a contar com a adoração
de um belo cônjuge.
Penny imaginou que possivelmente, no
devido tempo, uma modesta torrente de
alunos a encontraria ali, atraídos pela antiga
lenda de uma bruxa do sexo que podia per-
petuar o legado erótico dos séculos. Um
fluxo constante de espécimes fisicamente
perfeitos, empenhados em buscar educação
erótica, viria até ela para serem seus aprend-
izes. Penny era a herdeira dos conhecimen-
tos tântricos de todos os tempos, não era?
Ela, Penelope Anne Harrigan, aceitaria a
tocha que lhe fora passada por mulheres
como Baba Barba-Cinza e Bella Abzug. Ela
libertaria as mulheres de ter que recorrer aos
homens para a realização. Esse legado – sem
roupas, sem joias, sem a advocacia – era o
destino que ela buscara por tanto tempo. Seu
485/503

poder baseava-se no prazer carnal. Seu reino


estava além da política interpessoal.
Penny aprendera o que era importante.
Família era importante. Amor era
indispensável.
Ela mexia o caldo aos poucos. Elaborada
segundo a receita predileta de Baba, a super-
fície da sopa estava guarnecida com flocos de
guano picante. De cócoras ao lado da panela,
Penny aproveitava o calor delicado das
chamas. Na posição de lutador de sumô, em-
bora continuasse apática, ela tocava-se com
um pedacinho serrilhado de uma coisa que
lembrava madeira úmida. Era o dedo mais
comprido de Baba, o mesmo dedo com o
qual a sábia anciã havia lido todos os segre-
dos de Penny. Assim como a velha havia
cortado um dedo de sua mãe falecida, Penny
havia decepado esse suvenir do cadáver ge-
lado da mentora. Ainda assim, o presente,
mesmo lubrificado com sebo de coelho
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moído, estava longe de acalmar a melancolia


crescente de Penny.
O termo “dependência de estímulo” pair-
ava em sua mente, mas ela o escorraçou.
Enquanto mergulhava a colher para uma
segunda prova, ficou preocupada com os
milhões de mulheres em todo o mundo que
estariam igualmente agachadas, lutando
para alcançar uma nova autorrealização.
Após a provação opressiva da Beautiful You,
era possível que elas nunca mais al-
cançassem níveis comparáveis de prazer.
Os apetrechos rudimentares criados por
Baba... eram bons. Mas sem o estímulo va-
ginal high-tech dos híbridos de Max, sem
falar na atenção salivante da mídia, Penny
sentia-se a última dos mortais. De repente,
os especialistas tinham razão. Assim como os
adolescentes agarravam-se a seus video-
games e filmes pornô, Penny sentia falta dos
apetrechos cor-de-rosa. Quem sabe o vício
em excitação fosse verdade. Seu cérebro
487/503

límbico estava com sede de dopamina. Seu


hipotálamo estava totalmente selvagem! Ela
estava sofrendo abstinência do efeito Beauti-
ful You. Redobrou os esforços com o dedo
ressequido, mas sentiu uma recompensa
mínima.
Deixando o fogo de lado, ela bamboleou
pelo chão bagunçado da caverna à procura
de alguma coisa. Deixou os tendões velhos e
as bolsas Prada de lado em sua busca frenét-
ica. Enfim, encontrou o objeto que buscava
com tanto fervor.
Era uma caixinha preta, não maior que um
Game Boy. O controlador de Max. Ela
jogara-o no bolso nos momentos finais das
desastrosas núpcias. Depois de Max ser fatal-
mente atingido por um projétil flamejante,
ela também pegara seus preciosos cadernos.
Desde então, passara as horas invernais a de-
cifrar os registros em código de sua pesquisa
sensual. O mosaico de botões negros era um
enigma, mas ela aprendeu quais
488/503

combinações apertar para atingir o melhor


resultado.
Ela começaria dando jeito nos ventos de
nevascas na entrada da caverna. Dia e noite
eles sopravam, um incômodo constante.
Penny rapidamente utilizou o controle para
ajustar sua percepção.
Ela ativou o primeiro código, e o resultado
via satélite foi quase instantâneo. Sentiu uma
inundação de sabor de bolo red velvet com
cobertura de chocolate e granulado colorido
descendo pela garganta. Nem um relojoeiro
suíço conseguiria descobrir os códigos com
mais destreza e precisão. Para distrair-se
ainda mais, Penny fez mais uma combinação
de códigos e provou o delicioso sorvete de
creme crocante. Mesmo assim, seus dedos
ainda não estavam satisfeitos. Agindo
rápido, ela induziu os nanorrobôs em seu
cérebro e corrente sanguínea a criarem o
prazer abundante de Tom Berenger e
489/503

Richard Thomas dando beijos molhados em


seus lábios e seios.
No instante seguinte, aconteceu uma coisa
chocante. Um som. Alguém falou, e os beijos
cessaram. Era uma voz conhecida. Uma voz
feminina. Os olhos de Penny vasculharam a
caverna imunda, mas não encontraram ex-
plicação. As palavras descarnadas eram vag-
as como um sonho, mas não havia erro: era
Baba Barba-Cinza. No ar gelado, pairava o
odor de gema de ovo fermentada, o aroma
inconfundível do arfar sexual da bruxa.
Penny podia ter esperança? Poderia o
fantasma da grande feiticeira retornar para
fazer amor mágico com ela durante o sono?
Uma possibilidade mais obscura era que os
nanorrobôs ainda estivessem a moldar sua
percepção. Débil como um pensamento,
Baba deu a ordem:
– Destrua isso! – Em palavras fracas como
o eco de um eco de um eco, o espírito aler-
tou: – Pequena, tal poder vai corrompê-la
490/503

assim como corrompeu Maxwell... – O es-


pírito insistiu: – Destrua o controle de-
moníaco entre duas pedras antes que ele a
seduza!
Respeitosamente, Penny sussurrou:
– Baba, você está aí?
Ela aguardou, atenta, ouvindo apenas o
vento forte. Sentada, contemplou um futuro
de solidão tendo apenas os antigos imple-
mentos de amor feitos de ossos e tendões.
Contou até cem de cinco em cinco. Conferiu
o estado deplorável de suas cutículas. Depois
disso, contou até mil de vinte em vinte. O
fantasma parou de falar. A jovem aprendiz
do sexo pensava em que atitude tomar.
A inspiração bateu imediatamente. O
satélite da DataMicroCom ainda estava em
órbita. Por que ela não poderia transmitir
alívio às legiões de meninas em todo o
mundo que compartilhavam da mesma ab-
stinência de orgasmos Beautiful You?
491/503

Altruísta, ela continuou digitando até as


sensações maravilhosas bombardearem to-
das as mulheres implantadas pela Beautiful
You. A mãe em Omaha. A atrevida Monique.
Até Brenda – agora recém-casada com Yuri e
também Diretora Financeira da Allied
Chemical Corp. Kwan Qxi e Esperanza! Onde
quer que estivessem, todas saboreariam
sobremesas encorpadas e o gozo celestial de
beijos de estrelas de cinema.
Ela preencheu impulsivamente as narinas
longínquas com brisas cheirando a manga.
Que todas as suas irmãs se regozijassem,
Penny disse a si. Era através dela que al-
cançariam a solidariedade.
Embora suas circunstâncias atuais
pudessem ser de pobreza e ignorância opres-
siva, ela depositou nas mulheres um rica
realidade forjada. Entregava a suas papilas
gustativas um banquete infinito de iguarias.
Um repasto sem fim, e sem nenhuma calor-
ia! Substituiria os pensamentos mundanos
492/503

de todas por pedacinhos de poesia in-


spiradora lida pelo sofisticado aparato vocal
de Meryl Streep.
Alguns toques nas teclas certas, e ela as
bombardearia com autoestima, resolvendo
de uma vez por todas qualquer problema de
autoimagem.
Ela agarrou seus seios e ergueu-os, inspe-
cionando os mamilos com admiração cres-
cente. Eram estupendos. Seu coração ou,
melhor, cada célula de si inflava-se de glória
e beleza. Na sequência, mulheres do mundo
inteiro – altas, aleijadas, gordas, velhas,
jovens e magricelas – se redescobririam.
Onde quer que estivessem nesse momento
da vida – fazendo piquenique ou andando de
ônibus ou executando uma complexa neuro-
cirurgia –, fariam uma pausa para olhar seus
corpos com uma nova e potente consider-
ação. As mulheres sem peito, com pernas
tortas, corcundas, calvas: Penny imporia a
todas o reconhecimento de sua beleza inata.
493/503

À sua incitação via satélite, todas as mul-


heres começariam a se acariciar,
rejubilando-se com a qualidade da própria
pele. O impulso eletrônico de Penny seria o
ímpeto que as faria celebrar seus corpos com
autoprazer e vigor.
Esse era o poder verdadeiro. Ela, Penelope
Harrigan, governaria o mundo todo. Uma
ditadora benevolente que concederia o mere-
cido prazer às multidões. Ela superaria até o
poder que tinham suas heroínas Clarissa
Hind e Alouette D’Ambrosia. Para redimir a
tecnologia perversa de Max, ela traria soz-
inha a paz e a ordem mundiais. Recom-
pensaria o bom comportamento e castigaria
o mau.
Às gerações de mulheres há tanto tempo
instruídas a aceitar ofensas e injustiças,
Penny atacaria com júbilo, e as conduziria a
aceitar a felicidade. Um final feliz. Com a
manipulação furtiva e sutil de seus centros
de prazer, ela as intimidaria delicadamente a
494/503

alcançar todo seu potencial erótico. Ativistas


políticas podiam brigar quanto a estratégias,
ideologias e propósitos, mas Penny venceria
o drama com tsunamis de emoção física.
Um antigo ditado incontestável decretava:
“Autoaperfeiçoamento quer dizer masturb-
ação...”. Enfim, o inverso também seria
verdade.
– Baba – gritou ela –, descanse, guardiã!
Não deixarei que o poder me domine!
Essa, Penny sussurrou consigo, essa será
a melhor época na história para ser
mulher.
Ela daria às mulheres a suprema trepada
sem culpa. Erica Jong ficaria orgulhosa. Isso
– a arte sexual, a prática da magia carnal –
seria a nova fronteira para a nova geração de
jovens.
Dentro de seu impulso de generosidade,
Penny apertou os botões para dar um abraço
amoroso, fraternal e distante em Gloria
Steinem.
495/503

Feito isso, apressou-se em voltar à panela


para os lagartos não chamuscarem.
Inebriada de satisfação, fraquejando de
júbilo, mais uma vez ela buscou os códigos
nos cadernos de Max. Por mais perfeito que
fosse o momento – o dedo querido alojado
dentro de si, os répteis ensopados e deli-
ciosos, as chamas a aquecer seu corpo nu e
absolutamente lindo –, até mesmo essa cena
podia ficar melhor.
Com os dedos cansados e trêmulos, ela
apertou mais botões no controle.
O que aconteceu foi apenas uma alucin-
ação induzida por nanorrobôs, mas Penny
conseguia enxergar, cheirar, sentir.
Uma figura robusta, sólida, emergiu da
nevasca. Estava na entrada da caverna,
descaradamente despido. Seus olhos azuis
vinham carregados de luxúria. Sua impon-
ente e sardenta masculinidade pendia forte
entre as pernas. Um belo Ron Howard vinha
ereto em sua direção.
O autor gostaria de agradecer a esses vis-
ionários pela fé inabalável e pelo apoio
às artes. Que os deuses tântricos nos visitem
durante o sono com episódios frequentes,
frenéticos e suados de libertação total.

Mallory Moss
Katie Dodd
William Klayer
Rebecca D.
Kasey Bossert
Ian W. Arsenault
Halle Kasper
Megan McCrary
Mandy Boles
Kyle Becker
Adam Stratton
Donald Hugo III
497/503

Chuck Crittenden
Peter Wollesen
Stephanie Jean Ray
Nicole Doro
Valeriya Kulchikhina
Meghan Sherar
Angelena Bigham
Zachary Glenn Harbaugh
Andrew G. Gahol
Peter Osborn
Christopher Seevers
Kerstynn Lane
Michael John Silvin
Mandy Marez
Joe Wilson
Wessly Ford
Stephanie Wiley
Patrick D. O’Connor
Henry S. Rosenthal
Brian Manning
Parker Cross
Margaret Dennison
498/503

Sharon Leong
Kevin Stevulak
Charlotte O’Neil Golden
Michael Anderson-McGee
Katie McCartney
Jacquelyn Nicole Tawney
Gary Eaton
Mike Parkinson
Dustin Schultz
Gina Chernoby
Michele McDaniel
Jake Richard
Ryan O’Neill
George Washington Anderson III
Aysha Martinez
Trev Pierce
John Hardenstine
Bettina Holbrook
Michael Bowhay
Mark V. Paulis
Kevin Sharp
Patricia Scott
499/503

Petey Wells
Mike Hardin
Thomas Wayne Harvey
Andrew Greenblatt
Elizabeth C. Nichols
Brian Foster
Bryce Haynes
Tatianna Abastoflor
Ronald Green Jr.
Alisha Ohl
Cody Maasen
Bryan Kraig Ward
Jessica Dugan
Matthew A. Eller
Meredith Alder
Tiffany Joy Atencio
Kyle Adamski
John Michel
Quentin R. Voglund
James Bendos
Gabriel Cesana
Jason W. Bohrer
500/503

Shane Gollihue
Scott Trulock
Aaron Blake Flynn
Brett Kerns
Juliet Walker
Kristina Valencia
James P. Giacopelli
Karen Zacconi
Sean K. Smith
Rita Su
Will Tupper
Michael Pedrosa
Russ Robertson
Tag
Samantha Jade Schnee
Rubyann Baybo
Yassaman Tarazkar
Shereen Lombardi
Ashley Blaike Ralph
Mike Dyson
Lorne Sherman
Patti Vanty-McKinley
501/503

Shaun Sharma
Christine Strileckis
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Clímax
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