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SÃO PAULO
2006
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1
PUC/SP
2006
2
BANCA EXAMINADORA
_________________________
_________________________
_________________________
3
Dedidado especialmente à
minha mãe Francisca,
ao meu pai Batista
e aos meus irmãos:
Adriana, Andréia e Alex.
4
Agradecimentos
orientador e incentivador durante a graduação, Kênia Rios, Edilene Toledo, Verônica Secreto,
Adelaide Gonçalves, Eurípedes Funes, Régis Lopes, Frank Ribard e Ivone Cordeiro.
Um agradecimento especial à professora Simone Simões, antropóloga e amiga
querida.
Obrigado a professora Helena do Imparh pela competente e sugestiva revisão desse
texto.
A toda a galera do curso de História da UFC: Thiago, Daniel, Kerson, P. A, Carol,
Renata, Anna Carmem, Laninha, Liana, Edgar, Yassuo, Neto, Pedro, Henrique, Naná, Alê,
João Paulo, Josi, Engels, Gesner, Adalberto, Pereira, Rquel, Vitão.
A todos os colegas do primeiro semestre do ano 2000, especialmente a Túlio Muniz e
Camila Pagliuca.
A rapaziada do bosque: Capacete, Calixto, Carlos Jorge, Manoel Carlos, Tyrone,
Paulinho, Chicão, Gerardo e aos colegas do curso de Comunicação Social.
Agradeço sinceramente a inesquecível Lorena Lyse Lima Rodrigues.
À querida Nicinha e família.
A Karla, pela felicidade nesses dias preocupantes.
Esse trabalho não seria possível sem a participação dos moradores da comunidade do
Serviluz. Agradeço a todos aqueles que em algum momento me ajudaram, dando dicas
preciosas ou simplemente emprestando-me um pedaço de papel e uma caneta.
Agradeço especialmente a todos os que gentilmente concederam-me entrevista.
Agradeço aos amigos Clécio, Cleilson, Gleison, Jorge, Cláudio, Fábio, Gleisinho, Hélio,
Ilamar e a toda a galera do Titanzinho. Aos meninos do Paz e do Peleja. Ao David, vizinho,
historiador e amigo.
A todos os meus familiares.
Aos funcionários dos arquivos em que passei e que gentilmente atenderam-me.
Agradeço a CAPES pelo auxílio financeiro.
Agradeço de modo muito especial à população do Serviluz, pelas lutas, conquistas,
ensinamentos e pela feitura de uma história, sem dúvidas, dignas de ser narrada. Espero
sinceramente que este trabalho esteja à altura da grandeza de vocês.
6
RESUMO
ABSTRACT
This dissertation has for central objective to understand the historical process of
formation and urbanization of the Serviluz district, in Fortaleza. Community located between
the Atlantic Ocean, the Port of the Mucuripe and an industrial complex specialized in the
production of gas and fuel, this narrow beach piece was occupied by a sufficiently
heterogeneous contingent of workers. Fishers, prostitutes, surfers, dock workers, industry
workers, small traders and, over all diligent informal, are together, configuring particular
aspects of a community culturally multifaceted and marked by distinct migratory experiences.
It is looked to perceive how the community coexists with a natural landscape modified by the
progress and which way the people had lived its sociabilities.
Sumário
Introdução.................................................................................................................…...6
Capítulo I
1 O Mucuripe e o Serviluz - da aldeia de pescadores à moderna selva de
pedra...............................................................................................................................20
1.1 Os verdes mares bravios.........................................................................................20
1.2 Homens do mar, pés no chão..................................................................................30
1.3 A “tragédia” portuária............................................................................................41
1.4 A indústria de fogo..................................................................................................47
1.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária..........................................52
Capítulo II
2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma comunidade
multifacetada................................................................................................................57
2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”.....................................................................58
2.2 A Praia Mansa........................................................................................................69
2.4 A crise na pesca e o surgimento de novos trabalhadores...................................75
2.3 A seca e a cidade.....................................................................................................80
2.5 A marginalidade e a imagem do medo.................................................................88
2.6 A comunidade .......................................................................................................95
Capítulo III
3 O homem e a natureza: os elementos para as
transformações.........................................................................................................109
3.1 As areias que voam.............................................................................................109
3.2 Da taipa ao tijolo.................................................................................................120
3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local...........................................................131
Conclusão...................................................................................................................144
Relação de Siglas ......................................................................................................145
Relação de imagens anexas.......................................................................................146
Arquivos e Fontes......................................................................................................147
Bibliografia................................................................................................................150
Anexos .......................................................................................................................155
9
Introdução
1
Pesquisa realizada por membros locais do Partido dos Trabalhadores (PT).
2
O Vicente Pinzón integra-se administrativamente a Secretaria Executiva Regional II (SER II) da Prefeitura
Municipal de Fortaleza e engloba basicamente os bairros Serviluz, Castelo Encantado, Conjunto Santa
Teresinha, Lagoa do Coração, Morro das Placas, parte da Praia do Futuro, entre outros. A dimensão geográfica,
confusa, certamente não corresponde à totalidade da população que ali habita. Nas estatísticas oficiais, por
exemplo, a região possui uma população de apenas 39.551 habitantes. Por sua vez, o Bairro Cais do Porto,
comumente confundido também com o Serviluz, apresenta um quadro demográfico de 21.529 habitantes (Censo
IBGE-2000). Para se ter uma idéia desse desacordo, enquanto o Mucuripe tem 11.990 moradores, o Grande
Mucuripe, uma nomenclatura vaga, registra 203.220 habitantes (Censo IBGE-2000).
11
3
As divisões internas foram se estabelecendo no decurso do tempo e, geralmente, em função das migrações de
grupos de trabalhadores para o local. A Estiva, o Farol, a Fronteira, a Favela, o Titanzinho, o Rastro, o Final da
Linha, a Pracinha, e o Chespierre são partes localizadas, mas integrantes do mesmo bairro.
12
geral (citadas entre aspas), as observações de campo, as anotações das pequenas impressões e
a experiência de alguém que também migrou para aquela praia e nela reside há mais de quinze
anos. Sobretudo, deve-se creditar qualquer possível rigor científico deste estudo ao modo
transparente com o qual os documentos foram trabalhados.
No que concerne mais diretamente à metodologia com História Oral, Portelli4
observou que a relação social e pessoal entre os dois interloucutores também tem um papel
importante na produção das fontes de pesquisa. Trata-se de uma troca pessoal que se torna
uma declaração pública, uma performance que vira texto. A forma da entrevista depende
também do grau de familiaridade do entrevistador em relação à realidade sob investigação:
“os narradores pressuporiam que um historiador ‘nativo’ já conhece os fatos e fornecem em
substituição explicaçõoes, teorias e julgamentos”5.
Richard Hoggart foi taxativo ao enfatizar que um escritor tem obrigação de resolver
estes problemas como lhe for possível e durante o próprio processo de escrever, enquanto luta
por descobrir o que tem verdadeiramente para dizer: “Não me eparece possível que ele
consiga alguma vez atingir uma objetividade absoluta”6.
Sabendo de antemão dos perigos e das armadilhas decorrentes da proximidade com as
entrevistas, que exigiram um necessário “afastamento” metodológico, a singularidade de
conhecer mais de perto a realidade diária dessas pessoas me forneceu muitos elementos de
análise, capazes talvez, de apreender com maior riqueza de detalhes as dimensões mais
íntimas do cotidiano, da cultura e das identidades locais.
A praia do Mucuripe foi um conhecido reduto de jangadeiros e prostitutas que
recebiam, esporadicamente, visitantes de outras regiões encantados com aquela bela
paisagem. Com a construção do cais e o advento da indústria, alguns estivadores e indivíduos
de outras categorias somaram-se timidamente a esse contingente. Durante a estiagem de
quatro anos, no fim de 1970, novas favelas se espraiaram sobre as dunas dessa parte da
cidade.
Fortaleza é uma cidade cuja história é profundamente marcada pelo êxodo rural; ilhas
de prosperidade e bairros elegantes se constituíram em meio a periferias. De modo geral, os
núcleos habitacionais, ou favelas, que circundaram o complexo portuário, foram sendo
ocupados sobre as areias da praia de jangadeiros do Mucuripe desde a década de 1940, época
4
PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos
Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº.
22. São Paulo: EDUC, junho de 2001.
5
Op. Cit. PORTELLI, p. 21.
13
6
HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais
referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões). P. 22.
14
7
Arquivo criado na década de 1990. Reúne uma variada documentação, escrita e iconográfica, sobre a história
do bairo. O acervo foi criado e é coordenado por uma antiga moradora do Mucuripe Vera Lúcia Miranda, a
Verinha.
8
O acervo do ex-governador Virgílio Távora, organizado em 2003, está disponível no Arquivo Intermediário do
Arquivo Público do Estado do Ceará. O acervo reúne documentos particulares e administrativos, mapas,
fotografias, comendas, troféus, diplomas e objetos pessoais do político cearense. Cf. CEARÁ, Inventário do
Acervo Virgílio Távora. Ceará. Secretaria da Cultura. Arquivo Público. Fortaleza: SECULT, 2005.
15
Nas páginas dos jornais da época, os destaques primeiros foram dados para o tímido
crescimento do mercado imobiliário, a emergência elegante dos bairros ilustres e dos clubes
de veraneio, o debate sobre as obras no porto, a abertura de novas estradas, as empresas que
resolveram migrar do Sul para o Nordeste e as disputas pela terra no sertão. Noutro momento,
a partir de meados dos anos 1970, as notícias davam conta do inchaço desordenado da cidade,
do saneamento urbano nas novas áreas de risco, das sucessivas crises econômicas e do tímido
anúncio da globalização. Num médio prazo, realizando uma leitura mais panorâmica dos
jornais, parece que o país foi do sonho eufórico da modernização operada nos anos 1950 ao
tenebroso pesadelo das sucessivas crises econômicas desencadeadas a partir da década de
1970.
Mas, nos cadernos dos diversos periódicos, não era difícil observar que a praticidade e
as benesses da vida moderna sempre se intercalavam ao cotidiano violento, criminoso e
desajustado das favelas que não paravam de crescer. Tratava-se de notícia dispersa que,
analisada em conjunto, indicava e atribuía formas e definições, emitindo juízos sobre
determinados assuntos.
Interessante observar como grande parte dos registros sobre a vida na periferia estava
escrita nas páginas policiais. De modo geral, essas fontes veiculam informações e produzem
representações que não correspondem à realidade vivida nesses espaços. Nas reportagens
divulgam-se, sobretudo, os dramas, as catástrofes e a política assistencialista do Estado, cada
vez mais disfarçada sob o lema da ampliação da cidadania.
A imprensa do Ceará no período contava com os seguintes jornais: O Povo, Correio do
Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará e O Estado, além do jornal Diário do Nordeste, criado em
1982, e do jornal alternativo Mutirão (1977-1982). Na imprensa, guardadas as devidas
especificidades, a pesquisa sobre determinados espaços da cidade, como o Serviluz, foi
revelando que as informações vinham sistematicamente acompanhadas de adjetivos como
“perigoso” e “assustador”, e as coisas que dali provinham tinham quase sempre uma “origem
duvidosa”.
Por isso, ao utilizar esse material como fonte historiográfica, foi necessário considerar
o caráter do processo de produção da informação e a imprensa como constituinte de um certo
tipo de memória, que atende prioritariamente ao interesse de grupos sociais específicos.
Apesar da relevância das fontes de imprensa para os investigadores do período
contemporâneo, sabe-se que a grande maioria da população do bairro não tem acesso a esse
tipo de leitura.
16
necessidade de “dar voz” a essas pessoas, mas também porque esse é um universo em que a
oralidade sobrepõe-se à escrita nas construções e reconstruções da memória.
O trabalho com História Oral foi uma experiência rica e bastante singular. Um longo e
sinuoso trajeto foi percorrido das primeiras histórias de vida - timidamente colhidas diante do
gravador, objeto muitas vezes assustador - à convicção de que em cada depoimento havia uma
mensagem a ser transmitida e uma “verdade” a ser considerada; o contínuo retorno à infância
e a constante ressignificação das experiências passadas em função do tempo presente.
Basicamente, o processo de produção das entrevistas pode ser dividido, do ponto de
vista metodológico, em dois momentos distintos. No primeiro, os depoimentos orais foram
obtidos através de um prévio roteiro de perguntas e respostas mais diretas e que funcionaram
em essência como fonte de informação para a elaboração de subitens temáticos. Essa foi uma
fase relativamente simples, pois os próprios moradores da comunidade indicaram as pessoas
mais “sabidas” sobre a história do bairro. Com facilidade, estabeleci uma relação a meu ver
coerente.
Elaborei assim uma espécie de rede de entrevistas, estabelecendo, como critério
primordial de escolha dos depoentes, a tentativa de dialogar com diferentes membros da
comunidade. Líderes comunitários, pescadores, estivadores, trabalhadores da indústria, ex-
prostitutas, surfistas, donas de casa e trabalhadores informais foram ouvidos, perfazendo um
total de 11 (onze) entrevistas com durações de tempo variado.
Logo aflorou a deficiente formação profissional e a inexperiência acadêmica para
realização dessa atividade. A fragilidade metodológica inicial incluía desde o manejo com o
equipamento técnico até a falta de uma certa sensibilidade para lidar com a sutileza de
situações simples ocorridas no decurso do diálogo.
Já na primeira entrevista, depois de uns quinze minutos de conversa, o entrevistado,
bruscamente, interrompeu a gravação, desligando ele próprio o aparelho e pedindo-me para
que pulasse aquela pergunta. Eu o havia interrogado sobre uma possível participação sua nas
associações comunitárias do bairro. Ao fim da conversa, o entrevistado me contou que não
falara sobre aquele assunto porque “comunidade dava muita encrenca”.
Paradoxalmente, o gravador parecia ajudar tanto quanto atrapalhar. Eu mesmo não
gostava daquele objeto estranho entre duas pessoas no ato da entrevista. Aquele aparelhinho
tinha a incrível capacidade de inibir as pessoas que, ao saberem que tudo seria registrado,
tinham demasiada cautela no ato da fala. Por outro lado, muitos o aproveitavam e o utilizavam
como meio de soltar a falar e denunciar.
18
Optei então pelo uso de um rádiogravador portátil. Um pouco maior e com microfone
embutido no próprio aparelho, permitia captar o som numa distância mais longa, o que
possibilitou a eliminação física imediata do gravador. Além disso, para eliminar a tensão dos
primeiros instantes, comecei a ter também o hábito de ligar o rádio e ouvir música enquanto
preparava a gravação, o som poderia facilitar um possível relaxamento do depoente.
Num segundo momento da confecção das entrevistas, a dinâmica e a maleabilidade da
fonte oral exigiram uma redefinição dos critérios de escolha das pessoas e das questões a
serem feitas. Foi preciso, por exemplo, redimensionar a filtragem em função da profissão
exercida e a separação dos indivíduos em grupos, na medida em que essa divisão não
satisfazia a certos problemas e indagações da pesquisa em fase mais avançada.
Permanecia ainda a tentativa de dialogar com os múltiplos sujeitos do bairro, figuras
“representativas” de seus grupos e espaços, possibilitando assim a abertura de canais de
interação entre a diversidade ali existente. Segundo Ecléa Bosi “a memória oral é fecunda
quando exerce a função de intermediária cultural entre gerações”9.
Numa nova triagem, bem como no possível retorno a entrevistas anteriores, procurei
levar em conta não apenas o grau de conhecimento, a participação e o envolvimento político
do depoente, mas principalmente a forma e a capacidade de relembrar suas memórias. A idéia
não era mais saber apenas sobre a história do bairro em si, mas perceber como, no desenrolar
de cada narrativa individual, as pessoas reelaboravam suas experiências de coletividade. Não
interessava simplesmente constatar as participações mais efetivas, mas entender o sentido que
cada participação ou ausência teve na vida das pessoas.
Ao se trabalhar com História Oral, foi preciso aprender que o silêncio pode dizer
muito. Ao mesmo tempo, o fato de se saber da existência de certos constrangimentos sobre
determinados assuntos revelou a necessidade de se ter grande delicadeza para tratar certas
questões, ainda mais quando se mora na comunidade pesquisada.
Nos registros das associações do bairro, já apareciam denúncias de brigas e corrupção
entre os membros das entidades. O fato é que supostas fraudes, apropriações indébitas dos
equipamentos comunitários e os casos de brigas e ameaças passaram também a fazer parte da
luta por melhorias. Indicavam tanto os perigos decorrentes do exercício e manipulação do
poder no local, como a existência de uma tênue diferença entre o que é o espaço público e
aquilo que se torna particular. Existe um fluxo permanente e intenso de informações entre a
rua e o lar, a partir do qual ambos são constantemente modificados.
9
BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: lembranças paulistanas. In: O Direito a Memória: Patrimônio Histórico e
Cidadania. São Paulo: DPH, 1991. p. 146.
19
10
Cf.: ANJOS JUNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A serpente domada: um estudo sobre a prostituição de
baixo meretrício. Fortaleza: Edições UFC, 1983. Foram utilizados alguns trechos das entrevistas realizadas por
este autor.
11
Cf.: PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética na História
Oral. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 15. São Paulo: EDUC, abril 1997.
20
realizadas por am totalmente disponíveis a cair n’água e pousar para lentes fotográficas. São
jovens que falam através do corpo e da gestualidade, expressam-se em movimentos
acrobáticos captados pelos holofotes da mídia.
Fonte construída através de um processo dialógico, recíproco e dinâmico, esse
material ajudou a desvelar a percepção do sentimento de pertencimento ao grupo, a
identificação das redes internas de solidariedade, a ajuda mútua, as discórdias, o
reconhecimento dos valores afetivos e a melhor compreensão dos mecanismos internos de
regulação da comunidade.
Através dos depoimentos orais, fui descobrindo que, além das associações de
moradores, que compuseram um quadro geral de organização popular nos bairros da cidade,
outros grupos também tiveram efetiva participação no coletivo local. Segundo o entrevistado
José Osmir Monteiro da Souza, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), uma pesquisa do
seu partido no bairro identificou que o Serviluz “atualmente conta com aproximadamente
trinta tipos diferentes de associações populares”12.
Foi importante considerar que, durante grande parte do período de abrangência dessa
pesquisa, o país estava mergulhado numa ditadura militar. Apesar disso, os movimentos
sociais ganharam destacada notoriedade. Já havia algum tempo, comunidades e bairros se
organizavam. As manifestações artísticas e culturais que clamavam por liberdade de
expressão se intensificaram e, de modo geral, as camadas populares passaram a exercer maior
pressão sobre o Estado.
Os indícios apontam que os tipos de ação política praticada no bairro não estão
diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam
conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se
constituíram. Afinal o bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas moravam,
para ser o lugar onde elas também viviam, encontravam-se, desenvolviam relações de união e
solidariedade, e onde acumulavam experiências de vivência comunitária e de resistência
coletiva.
Após os anos 1990, os movimentos associativos se multiplicaram no bairro. Ligas
esportivas mobilizavam centenas de jogadores de futebol em competições realizadas nos fins
de semana. Surfistas promoviam campeonatos e realizavam projetos sociais voltados à
preservação ecológica. Manifestações e festas católicas, como as tradicionais caminhadas em
procissões, eram realizadas pelas ruas escuras e violentas do bairro, as atividades nas pastorais
12
Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003.
21
Capítulo I
“O pescador que antes pisava descalço o chão de sua intimidade, já passeia sobre chinelos de plástico. Não
mais olha e vê as horas que são, pela posição das estrelas, mas pelos sinais digitais do relógio japonês de
pulso (...) a cabaça de ontem é a marmita de alumínio de hoje”
(Eduardo Campos)
Os homens já não mais acordam ao cantar do galo, mas o hábito de cedo levantar
ainda permanece. Diferentemente do horário de trabalho na indústria, no qual os operários
devem estar à porta da fábrica ao toque da estridente sirene, os trabalhadores do mar não
batem o cartão de ponto. Na pequena pesca, o momento do trabalho depende quase sempre da
sazonalidade da maré.
Se o mar “tá pra peixe”, o mestre reúne os pescadores. A força de trabalho quase
sempre se compõe no momento exato de iniciar a pescaria, mas muitos homens se engajam no
decurso do processo de captura. Entre oito e dez homens, no mínimo, são necessários para a
realização da pesca com a rede de “três malhos” 13. Esse é um tipo de equipamento de pesca
destinado basicamente a pesca de sardinhas.
13
“O tresmalho, de origem portuguesa, era uma rede de emalhar composta pela superposição de três malhas de
tamanhos diferentes. A rede de tresmalho era fabricada com fios de algodão pelos próprios pescadores, que
passavam boa parte do tempo em contínuo conserto”. Cf.: DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. Pescadores,
camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo, Ática, 1983. P. 37.
23
O barco, ancorado na beira da praia, é arrastado pelos pescadores para a beira d’água,
sendo carregado sobre um eixo de ferro e sustentado por duas rodas de automóvel. Alguns
poucos barcos ainda fazem porto e ficam abrigados sob deterioradas cabanas na praia do
Serviluz. Ali, ainda é possível visualizar desgastados rolos de madeira enterrados na areia.
Dependendo do tipo de pesca a ser empreendido, no entanto, o barco, geralmente do tipo bote,
não parte da areia, mas precisa estar na água, à espera, já no escuro da madrugada.
Na tradicional pesca com a rede de “três malhos”, a pequena embarcação compõe-se
de uma superfície de madeira que mede geralmente quatro metros de comprimento por dois
de largura, essas dimensões, entretanto, são bastante variáveis. Sobre o barco, preparado
desde a pescaria anterior, é possível o equipamento básico a ser utilizado: uma rede14, dois
montes de corda, dois remos e uma longa vara de madeira.
Quando a embarcação e todo o equipamento já estão na superfície da água, a equipe
impulsiona, “faz força”, e o casco do barco desliza contra as ondas. Nesse instante, três ou
quatro homens sobem no barco enquanto os outros sustentam a corda em terra. A força de
trabalho se forma e se divide de acordo com as habilidades e a experiência profissional de
cada pescador15.
A maré nem sempre facilita o ingresso dos homens mar adentro, e vencer a
arrebentação das ondas, em algumas épocas do ano, consiste na etapa mais difícil e penosa de
todo o processo de captura. O risco da embarcação virar é imenso. Além disso, essa operação
pode levar horas ou pode simplesmente ser abortada devido à fúria indomável das águas.
Quando os chamados “homens de terra” já não conseguem mais avançar no mar, recuam com
a ponta da corda e começam a puxá-la lentamente; começa uma verdadeira batalha contra as
ondas. Na “voga”, o pescador mais experiente vai à frente do barco utilizando os dois remos
de que dispõe simultaneamente. As ondas quebram às suas costas e, como é ininterrupto o
balanço da maré, seu corpo é constantemente jogado para o centro do bote. À medida que o
14
A rede também apresenta uma grande variação de tamanho, em média, são confeccionados entre 80 e 120 metros
de rede para cada embarcação. Basicamente, a rede compõe-se do “saco”, parte onde a malha é maior, e do “copo”, a
parte mais estreita, o fundo da rede. Extremamente pesada, uma boa rede é tecida com uma média de: 80 quiilos de
náilon, alguns pescadores utilizam linha de seda para baratear os custos; 500 quilos de chumbo, responsáveis pelo
afundamento do material; 70 peças de isopor ou “abóias”, necessárias à flutuação da parte que fica sobre a superfície.
O náilon, o chumbo e o isopor são distribuídos ao longo de uma imensa corda; esta, além da parte “entranhada” na
rede, apresenta ainda mais uns 200 metros de corda solta, que delimita a distância que o barco se distanciará para
lançar a rede.
15
Esse é um tipo de pesca que emprega pescadores “de terra” e “de mar”. O “vogador”, o “vareiro” e os “cordeiros”
são os profissionais mais especializados, são eles que partem no barco para o lançamento da rede. Costumeiramente,
o dono da embarcação não pesca, mas é possível que um arrendatário participe de modo direto de todo processo de
trabalho.
24
mais aceitação no mercado. O pescador permanece na praia, o próximo lance precisa ser
organizado. O aglomerado humano se desfaz.
A divisão do lucro desse tipo de pescaria obedece a parâmetros mais ou menos
regulares. O dono dos meios de produção abocanha geralmente 40% do resultado total, o
restante é dividido “meio a meio” entre a tripulação. Apesar do cálculo relativamente fácil, o
sistema de partilha nesse tipo de pesca é por vezes irregular e envolve fatores subjetivos
externos à ação de captura16.
A imprecisão na distribuição do pescado se dá pelo caráter de familiaridade e
vizinhança com que se desenvolve o processo produtivo. Não sendo essa uma modalidade
formal de trabalho, a mão-de-obra é por vezes dispersa, atividade é encarada como uma
espécie de “bico”17. Muitos homens se engajam nesse labor ocasionalmente, para garantir a
refeição do dia dos filhos, ganhando uma pequena parte da produção e não uma remuneração
em dinheiro. O resultado da produção, apesar do esforço organizado e coletivo empregado na
captura, é também distribuído por outros critérios de solidariedade ou como forma de
pagamento de pequenos favores prestados entre os moradores no cotidiano do bairro.
Na rede de pesca atual, muitos dos novos trabalhadores do mar não procuram mais os
grandes peixes. Os pescadores da pequena pesca no bairro preferem percorrer o náilon com os
olhos à procura de relógios, óculos, jóias, dinheiro, perfumes e outros objetos que passaram a
ser arrastados no fundo das redes. Artefatos da cultura material urbana, vestígios do turismo,
das oferendas a Iemanjá e dos excrementos residenciais, são artigos que passaram a compor o
cenário litorâneo contemporâneo da cidade.
“Aqui no Serviluz, meu filho, era tudo mar!”, comoveu-se dona Maria Zuleide, 56
anos, uma antiga moradora do bairro Serviluz18. Dona Zuleide relembrava emocionada,
durante a primeira entrevista, a enorme dificuldade que os moradores tiveram para levantar as
primeiras habitações naquele canto de praia vazio e assombrado, e seus olhos brilhavam como
se tivesse acontecido há poucos instantes. “Casas não, casebres no meio dos morros!”19.
No antigo cenário, hoje renovado pelas inúmeras habitações feitas de tijolo, as paredes
durante muito tempo foram edificadas à base de varas, entrelaçadas e enchidas a mão com
barro, eram as conhecidas casas de taipa, herança que remonta ao período colonial. Ali se
16
Entre a tripulação, é consenso que os pescadores “de mar”, pela especialização advinda da experiência,
percebam uma remuneração maior que a dos pescadores “de terra”, que utilizam simplesmente a força braçal. Já
o dono do equipamento, habitualmente, dispensa sua parte na produção quando essa é insuficiente, inclusive para
ser repartida entre os trabalhadores.
17
Biscate, trabalho informal ou temporário.
18
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
19
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
27
morava em barracos improvisados; muitos deles eram erguidos com estruturas de lona
plástica, madeira e até mesmo papelão. Tempos difíceis eram aqueles em que o vento e a
areia, quando não derrubavam as casas, entravam nos olhos e nas panelas dos moradores
abrigados em casebres ainda esparsos.
A pobreza das habitações, no entanto, contrastava com a abundância encontrada nas
panelas suspensas sobre o fogo a lenha, quase sempre abarrotadas de peixe, alimento básico
na mesa das famílias praianas. Apesar das intensas transformações ocorridas na praia e na
economia pesqueira nas últimas décadas, boa parte da população que habitava o local ainda
conseguia sobreviver exclusivamente da atividade de pesca.
“A gente chegava a comer peixe até seis vezes por semana”20, afirmou, nostálgico, seu
Francisco Herton, nascido no início dos anos 1960, na praia do Serviluz. Para ele, o alimento
era fácil porque, além de ser reduzida a população que residia na praia à época, o acúmulo de
substâncias alimentícias atraía vários cardumes para as colunas de concreto e ferro,
construídas como base de sustentação para a edificação do porto.
Nos depoimentos orais, é fácil perceber como as crianças nascidas naquela época
cresciam na beira da praia e brincavam em torno do porto recém construído. Pulando sobre as
pedras dos espigões, nadando entre os barcos ancorados ou correndo na areia frouxa, a
garotada passava o dia todo se divertindo na orla. A lamparina ainda não havia sido
substituída pela lâmpada e, devido à ausência de uma vida noturna para os mais jovens, cedo
se dormia. A praia era praticamente o único espaço de moradia, trabalho e lazer daquela gente
e os jovens costumavam aprender, na beira da praia mesmo, algum tipo de ofício, as
habilidades surgiam quase sempre em meio à execução de pequenas tarefas necessárias às
viagens rumo ao mar; trabalho e lazer facilmente se confundiam.
A pescaria farta e as humildes choupanas dos pescadores, porém, deixaram de ser
características essenciais da conhecida praia de jangadeiros do Mucuripe. Da segunda metade
do século XX em diante, a praia estendeu-se por outros domínios e modalidades distintas de
trabalho e habitação passaram a coexistir no local.
Um breve olhar sobre a história da ocupação da praia do Mucuripe revela que esse foi
um lugar onde se desencadearam muitos fatos importantes para a História do Ceará. Durante
muito tempo, a memória desse antigo vilarejo de pescadores, núcleo populacional antigo, se
constituiu um lugar de natureza exótica, berço dos povos nativos cearenses que viviam
rusticamente.
20
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
28
Resgatando uma polêmica histórica, Raimundo Girão afirmou categórico que foi no
Ceará, e mais especificamente na enseada do velho “Mocoripe”, onde “(...) o homem europeu
sentiu, a primeira vez, a terra e o céu brasileiros” 21. Ali, segundo Girão, fora o “Rostro
Hermoso”, ponta de mar em que as caravelas do navegador espanhol Vicente Pinzón
supostamente aportaram, antes mesmo do desembarque de Cabral em Porto Seguro, na
Bahia22.
Foi também nas praias do Mucuripe que ocorreram os primeiros contatos entre os
aborígines locais e o homem branco europeu. Na literatura cearense, na obra indianista
Iracema, o romancista José de Alencar descreveu fragmentos daqueles “verdes mares
bravios”, espécie de lugar mitológico onde o “bom selvagem” e o branco “civilizado”
viveram suas aventuras. O Mocoripe era um alto e belo morro de areia que tinha a alvura da
espuma do mar ou simplesmente o “morro da alegria”23, praia privilegiada para o descanso de
marujos aventureiros. Navegantes antigos, quando no Ceará aportavam, ancoravam nessa
parte da orla em busca de comida e água fresca, à sombra do arvoredo que outrora margeava o
riacho Maceió, agora soterrado.
A beleza e a exuberância da natureza selvagem naquelas terras, cantada em verso e
prosa, resistiram durante centenas de anos no Ceará, mas, desde meados do século XIX,
intensifica-se a idéia do “progresso” urbano. Nessa trajetória, a praia e os imensos areais da
virgem Iracema foram sendo gradativamente sufocados pelas pedras imponentes da
modernização.
A primeira edificação de maior envergadura nessa área foi a construção de um
pequeno forte onde se instalou um farol, por volta de 1840, quando a ponta de mar do
Mucuripe tratava-se ainda de um ponto estratégico de proteção da cidade24.
21
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p.
19-27.
22
Segundo o Historiador Raimundo Girão, amparado nos estudos de Francisco Adolfo Varnhagen, o navegador
espanhol Vicente Yañez Pinzón desembarcou na ponta do Mucuripe em janeiro ou fevereiro de 1500, antes,
portanto, de Cabral ter chegado a Porto Seguro. In: GIRÃO, Raimundo Geografia Estética de Fortaleza.
Também recentemente em Fortaleza, o jornalista Rodolfo Espíndola publicou o livro “Vicente Pinzón e a
descoberta do Brasil”, onde chega a afirmar que “não se tem mais dúvida que o primeiro ponto do Brasil
avistado e aportado por Pinzón foi a aponta do Mucuripe”, defendendo a construção de um monumento histórico
no local. Cf.: Jornal O Povo 02/02/2004, p. 03.
23
No romance Iracema, de 1865, José de Alencar explica que o nome Mocoripe vem de corib (alegrar) e mo
(partícula ou abreviatura do verbo fazer). In: ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará, 26ª ed. São
Paulo: Ática, 1992. p. 56. Raimundo Girão, entretanto, sugere que essa explicação seja por demais romantizada.
24
O farol era um antigo fortim construído para evitar as invasões estrangeiras. “O plano para a construção do
farol do Mucuripe foi apresentado a D. Pedro I pelo presidente da província do Ceará, no dia 17 de agosto de
1826”. A construção só terminou em 1846, sendo reformada em julho de 1872, em comemoração do aniversário
da Princesa Isabel. Cf.: Jornal O Povo, 12/07/1982, p. 29. O farol foi desativado nos anos 1950 e mais
recentemente transformado em Museu do Jangadeiro. No museu, no entanto, não há qualquer referência aos
29
“Na época eu menino com idade de doze anos eu carreteava (escorregava) de taubinha naquele morro,
aqui acolá a gente fazendo escavação achava aquelas balas de canhão, bola assim com peso de um quilo
dois quilo, coisa antiga mesmo! Se fosse o caso de a gente vender hoje em dia, vendia como relíquia. A
gente menino lá se lembrava disso...” 25.
A memória do Mucuripe como lugar de duelos e batalhas não se reduz aos vestígios
materiais e aos objetos esporadicamente encontrados na praia, há uma lembrança herdada e
compartilhada através das gerações, a vivência desse espaço é por vezes concebida como
sendo esse um lugar das partidas e das dispersões. Ali foram embarcados retirantes famintos
em diversas estiagens, foi lançada a sorte dos chamados “soldados da borracha”26 rumo aos
seringais da Amazônia e aconteceu o desembarque dos pracinhas cearenses que lutaram na
Segunda Guerra Mundial.
Como o Mucuripe foi um dos primeiros ancoradouros da Capitania, embarques e
desembarques de toda ordem se sucediam, havia tempos que lá desciam numerosas
embarcações abastecidas de mercadorias, alvo constante da pilhagem dos flibusteiros. Nessa
parte da província, funcionava um porto bem arcaico e diariamente circulavam gêneros
comerciais destinados à Capitania do Siará Grande, ainda subordinada administrativamente à
de Pernambuco. Com o Ceará independente, em 179927, a vila de Fortaleza assumiu a
hegemonia política e econômica da capitania, e suas riquezas, sobretudo a partir do rico
comércio do algodão, em detrimento da criação de gado, começaram a descer pelo litoral e
não mais pelos rios.
Nesse momento, principalmente em decorrência da distância de cerca de cinco
quilômetros que separava esse povoado da então sede do município, não foi no ancoradouro
do Mucuripe, mas na área da atual Praia de Iracema, que se iniciaram as obras do porto.
Rodolfo Teófilo, durante uma das maiores estiagens da história do Ceará, 1877,
afirmou:
jangadeiros, grande parte do antigo prédio é ocupada com informações do projeto de energia eólica, de
tecnologia alemã, instalado na Praia Mansa, em1996.
25
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
26
Sobre a migração dos “Soldados da Borracha” para a Amazônia cf., entre outros, BARBOSA, Edson Holanda
Lima. Ida ao inferno verde: Experiências dos trabalhadores cearenses imigrados para a Amazônia
(1942/1945). Dissertação de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.
27
Fortaleza somente ganharia ascensão administrativa de vila à cidade em 1823.
30
Os comboios despejavam os flagelados na parte da cidade que ficava mais próxima do mar,
onde se localizavam as últimas estações férreas de Fortaleza. Muitos retirantes erguiam seus
casebres na proximidades da praia. Esse aspecto ajuda a entender o processo de constituição
das primeiras favelas de Fortaleza 31.
28
TEÓFILO, Rodolfo Historia da seca no Ceará (1878-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 194.
29
Op. Cit. p. 84.
30
Op. Cit. TEÓFILO, p. 181.
31
Cf.: RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932.
Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. p. 18.
31
industrial do Ceará. “O grande flagelo de 1932 possuía, assim, um claro objetivo: mostrar a
urgência de um novo porto em Fortaleza” 32.
O antigo porto de Fortaleza foi construído ainda no final do período imperial,
momento em que a cidade já tinha assumido a hegemonia econômica e administrativa da
província do Ceará. Com o advento da República e a emergência de novas forças sociais, a
capital centralizou ainda mais as decisões políticas do Estado; e as elites locais, além da
construção de equipamentos modernizadores como o Porto, a Estrada de Ferro e o Passeio
Público, também empreenderam um verdadeiro processo de remodelação, saneamento e
controle do espaço urbano33.
No Porto do Mucuripe, no entanto, as primeiras pedras só começaram a ser assentadas
por volta de 1940. Obra demasiadamente demorada, levou cerca de 25 anos para ser
concluída, período em que seus arredores foram sendo rapidamente ocupados por levas de
retirantes e por imponentes clubes de veraneio que se erguiam na cidade. Após o porto, a bela
praia do Mucuripe nunca mais seria a mesma.
O memorialista Blanchard Girão observou que nessa época:
O romântico e íntimo esconderijo de velhos homens do mar, fez-se caótica albergaria de gente
doutras origens e de outros costumes. Em meio a essa desordem urbanística, implantou-se ali
também a prostituição. Não se distinguia casa séria de casa ‘suspeita’. A pobreza e a
promiscuidade nivelavam todos34.
32
Op. Cit. p. 26.
33
PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). 3°
ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.
34
GIRÃO, Blanchard Mucuripe: De Pinzón ao Padre Nilson. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1998. p.
32-33.
32
“A pouco e pouco, o tempo apaga hábitos e costumes, mas não os extingue completamente. Visíveis as choupanas
de palha de coqueiro, onde a indigência geme. Na frente, a sala da visita. Entre esta e a cozinha, de fogão
improvisado, a camarinha de amor discreto. E nos quatro cantos, na intimidade pouco ambiciosa, a rede e os
sonhos dos filhos que não param de nascer”
(Eduardo Campos)
35
Op. cit., p. 127.
33
De modo geral, acredita-se que esses homens enraizam-se na miséria porque vivem
sempre para o dia de hoje, preocupando-se somente com as oscilações da maré do momento.
Raramente olham para o dia de amanhã; consomem logo o que pescam. Do resultado da
pescaria, separam um bocado do apurado para casa e o resto se esvai em farras e bebedeiras.
E nesse vaivém, não é de se admirar que a pobreza seja uma situação constante ao longo de
suas vidas, já que a própria existência de uma certa cultura do esbanjamento não lhes permite
fazer reservas nem mesmo em tempos de fartura no mar.
De fato, é fácil argumentar que essa sempre foi uma categoria profissional de homens
essencialmente pobres e desprovidos. A maioria não goza os benefícios da legislação
trabalhista; esses trabalhadores vivem essencialmente da pequena pesca e não possuem
carteira de trabalho assinada. Na cidade, os pescadores urbanos geralmente moram em
habitações consideradas precárias e insalubres, os mais velhos são precocemente acometidos
por várias doenças.
O esforço da lida diária nessa profissão produz corpos esculpidos, vigorosos e
bronzeados e que são, ao mesmo tempo, profundamente marcados pelo desgaste imperioso do
tempo.
Pode-se afirmar também que, além de fatigante, a pesca é uma atividade
extremamente perigosa. Tanto na chamada pesca embarcada como na pesca de caráter
artesanal, os perigos são consideráveis, ir ao mar é rumar para o desconhecido. Em sua
composição, o mar carrega energias incomensuráveis que tornam possíveis todo tipo de
cataclismo.
“A gente casou e com cinco dias ele foi pro mar, aí com cinco dias que ele tava no mar (...) ele tinha
sumido, o barco tinha virado. A família dos outros pescadores tava tudo aí na beira da praia pedindo,
36
HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar. Rio de Janeiro, Ediouro. p. 94.
34
esperando só o corpo né? Que a notícia tava aí (...). Aí com onze dias eles chegaram, a lancha que eles
tavam tinha naufragado, perderam tudo. E ele foi um dos tais que chegou bastante doente, sem falar que
ele não falava, todo ruído das baratas brancas que tem né? Todo ruído, eu tive que ir em casa pegar um
lençol (...)”37.
Episódios semelhantes a este não são raros. As embarcações que saem pela manhã
para voltar à tarde, ou que vão num dia para voltar no outro, podem não retornar nunca mais.
Esse é um universo permeado de numerosas histórias de desaparecimentos e naufrágios
misteriosos, casos verdadeiros que se misturam às populares e desacreditadas histórias de
pescador. A pesca torna órfãos vários filhos do bairro.
Por outro lado, concebendo o mar como uma dádiva, esses trabalhadores contemplam
a natureza de modo singular, suas riquezas, detalhes e grandiosidade, o oceano parece
confirmar a magnitude do cosmo e a relativa impotência humana diante do universo. A pesca
apresenta assim uma certa aura mística, trata-se de uma atividade econômica marcada pela
influência decisiva do fator sorte. Cada partida faz-se repleta de superstições. O bom pescador
há de saber que o “mar não tem pé nem cabelo” e que numa tempestade, muitas vezes, “só
apega aos milagres de Deus”. Esse imaginário, que se alimenta continuamente de desastres e
narrativas épicas das façanhas dos povos do mar, nutre igualmente um arraigado sentimento
de religiosidade. As populações marítimas não desacreditam do diabo, tomam suas
precauções contra suas artes; faz-se preciso conhecer a dualidade que ronda as águas
oceânicas.
De modo geral, a idéia de uma vida religiosa, pacata e sem ambição pode por vezes
simplificar e tornar folclórica a existência de um modo de vida culturalmente rico e carregado
de especificidades que lhes confere identidade própria. Convém, então, não reforçar os
estereótipos que apresentam os pescadores e suas famílias como sendo um povo ignorante e
sem atuação política.
Tampouco cabe ratificar a doce e ilusória sensação de que a vida dos jangadeiros virou
canção romantizada. Mesmo com tendência generalizada de expulsão dos pescadores para
longe da praia, a jangada no Ceará não é apenas uma atração turística. Na propaganda
turística, aliás, as versões exóticas encobrem a dura realidade dos trabalhadores do mar e sua
penosa luta pela sobrevivência. Nos dias atuais, enquanto a agradável imagem do pescador
figura na mídia como elemento símbolo do estado do Ceará, marca registrada da cultura e do
povo cearense, na vida real o náilon continua a cortar suas mãos, o sal permanece a queimar
suas costas, o vento ainda lhe fustiga o rosto e o sol teima em cegar seus olhos.
37
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
35
38
Op. Cit. HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar, p. 116.
39
DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática,
1983.
36
A mecanização na pesca atingiu não somente o barco, mas também as tarefas nele
executadas. Incitou o surgimento de novos profissionais a bordo, maquinistas, foguistas,
cozinheiros e operadores de rádio. A crescente especialização alterou inclusive a tradicional
hierarquia que existia no barco, na medida em que introduz, por exemplo, o assalariamento e
sistema de remunerações diferenciadas entre os tripulantes40.
As alterações no mundo do trabalho, além disso, fizeram desaparecer muitas vilas de
pescadores pelo mundo, colocando a mão de obra à mercê das grandes unidades de produção.
Em muitos países, o declínio da pesca local ocasionou tanto a mudança no modo de vida
quanto o próprio deslocamento das famílias pesqueiras para os grandes centros urbanos, onde
passam a se engajar em atividades alternativas.
No Brasil o avanço da pesca em larga escala se fez concomitantemente à permanência
da pequena pesca41. Em certos ambientes, os pescadores locais possuem imensa capacidade de
adaptação à situação ecológica específica. Explorando nichos próximos à costa, onde não é
possível lançar grandes redes, desenvolvem técnicas precisas de recolhimento das redes
dependendo do fundo, ora rochoso, ora arenoso. Nesse caso a força de trabalho empregada é
eminentemente familiar e o pescador define seu ritmo de trabalho em função da safra da
época. Isso é o que acontece, por exemplo, no Nordeste, onde os cardumes de peixe de alto
valor no mercado, pargos e cavalas, apesar da abundância, são de difícil captura, dados os
fundos rochosos que dificultam a técnica do arrasto. Os jangadeiros localizam e guardam na
memória o bom ponto de pesca, sendo esse um dos principais segredos da profissão. Usam
um sistema de marcação através de uma triangulação visual em objetos fixos na praia,
operando uma espécie de divisão imaginária do mar. Muitos criam seus próprios bancos de
pesca, carregando para dentro d’água grandes objetos, como carcaças de automóveis, que
passam a servir de abrigo aos peixes.
40
Segundo Diegues, essas transformações alteram a condição natural do mestre: “É preciso se levar em
consideração que a maestria é uma capacidade pessoal, um conhecimento raro que exige o conhecimento do mar
e dos cardumes, padrões de migração dos peixes e localização dos melhores locais de pesca, além de certa
capacidade em tratar com a tripulação em condições quase sempre difíceis e extenuantes. Além disso, a maestria
só se consegue através de anos de experiência e é dificilmente adquirível através de cursos formais”. Op. cit.
DIEGUES, p. 37.
41
“Daí serem a propriedade dos meios de produção, o controle do processo de trabalho, a dispersão dos meios de
produção, a reduzida divisão do trabalho levando a um fraco desenvolvimento das forças produtivas, as
principais características da pequena produção mercantil. Esta pode ser mais bem analisada se comparada com a
produção capitalista. Nesta existe uma separação completa entre os trabalhadores e os meios de produção, que se
instalaria com a presença de um não-trabalhador que impõe as condições de produção e reprodução pela extração
da mais valia (...) Os mecanismos de extração da mais valia permitem ao não-trabalhador acumular novos
capitais e se reproduzir enquanto classe dominante, e, ao mesmo tempo, levam a classe operária a vender sua
força de trabalho e a se reproduzir como classe dominada”. Op. Cit. DIEGUES, p. 206.
37
Essa é uma situação diferente das encontradas nas regiões Sul e Sudeste, onde a
retirada de grandes cardumes, sardinhas, pescadas e camarões, foi favorecida pelo ambiente
físico, o que possibilitou a concentração das grandes empresas de pesca nessa região42.
A concentração das grandes empresas de pesca43 no litoral do Sul e do Sudeste foi
amplamente reforçada pelo Decreto-Lei 221, da Superintendência do Desenvolvimento da
Pesca, a Sudepe, criado em 1967. Com esse decreto, o governo brasileiro criou um programa
de incentivos fiscais que visava ampliar os investimentos privados e romper o ciclo de baixa
produtividade que ainda caracterizava o setor. Como ressaltou Diegues, a iniciativa do Estado
praticamente abandonava à própria sorte a pequena pesca. Enquanto os empresários
construíam barcos e fábricas com o fácil dinheiro do governo, os trabalhadores eram
pressionados pelo capital. A pesca tornava ainda mais precárias as condições do homem; as
intermináveis jornadas de trabalho e a permanência por meses no mar quase sempre se
traduziam em perdas de vidas humanas.
Curiosamente, apesar da centralização dos investimentos, cerca de 97% dos recursos
foram captados pelas regiões Sul e Sudeste; os próprios dados da Sudepe indicam que os
pescadores nordestinos aumentaram efetivamente sua participação na produção nacional entre
1950 e 1970. Recebendo algo em torno de 0,3% dos incentivos, o Nordeste elevou sua
produção para 24% da produção total brasileira. Assim, como se disse, pelas peculiaridades
físicas do litoral nordestino, fazia-se necessária a aplicação de um tipo de pesca particular.
Esse foi um dos fatores de as empresas recém-criadas na região terem sido instaladas próximo
às áreas de maior fertilidade, como o litoral do Rio Grande do Norte e do Ceará, onde eram
abundantes produtos valiosos como a lagosta, antes pescada em pequenos botes a remo e em
jangadas. Assim podiam também comprar a baixo preço a produção dos pequenos pescadores.
No Ceará, nesse período, talvez pela condição de miséria oferecida em terra, foi
consideravelmente crescente o número de homens que se lançaram ao mar. Em 1940 havia
4.801 pescadores registrados pela federação. Em 1970 já eram 14.215 os que pescavam de
forma legalizada. O estado praticamente dobrou sua participação no mercado brasileiro.
Esses números evidenciam como a descoberta da lagosta no Ceará atraiu vários
empresários para o estado; em 1961, pelo menos dez empresas do Sul do país solicitavam à
42
Até meados dos anos 80, cerca de 80% das indústrias pesqueiras estavam localizadas nessas regiões, mesmo as
empresas criadas no Norte e Nordeste pertenciam a esses grupos econômicos. Nas regiões Sul e Sudeste, 68% da
mão de obra era embarcada enquanto no Nordeste a pesca artesanal arregimentava cerca de 76% dos
trabalhadores do setor. Cf.: DIEGUES, p. 111-134.
43
Esse é um tipo de indústria caracterizado pela completa integração do setor. O lucro dessas empresas é
garantido não somente pela exploração da força de trabalho, mas também pelo beneficiamento e comercialização
do produto.
38
Divisão de Caça e Pesca do Ceará permissão para instalação de suas usinas em Fortaleza44. A
“economia natural” da pesca artesanal começava a sofrer severos danos. A introdução da
pesca comercial inseria os pescadores num novo mercado e numa nova atividade,
eminentemente capitalista. Na pesca da lagosta, o “ouro do mar”, o período pós-1950 foi
caracterizado por um considerável ingresso de enormes embarcações motorizadas, pela
melhoria das técnicas de captura e por um elevado investimento em empresas de pesca.
Havia tempos, a tradicional jangada de piúba, amarração de troncos feita da típica e
resistente árvore do Pará, vinda de navio, tinha sido substituída pelas embarcações de
madeira, menores, mais frágeis e transportadas por carretas. Pouco a pouco, o pescado ficou
escasso e crescia assustadoramente o número de atravessadores. A corrida desenfreada por
esses produtos de alto valor no mercado de exportação parecia conter em si o germe de sua
própria destruição.
A atração de empresas e trabalhadores acabou resvalando na dinâmica ocupacional da
cidade de Fortaleza e na própria forma de organização das famílias pesqueiras. Como
ressaltou dona Maria da Conceição, “eram mais de duzentas mulheres, todas trabalhando de
carteira assinada”45. Como oferecem uma atividade verticalmente integrada, as “empresas
ricas” do setor pesqueiro passaram a empregar também numerosa quantidade de mão-de-obra
feminina no processo produtivo, na limpeza, na embalagem e no armazenamento do produto
destinado ao mercado externo. Os homens, ao se afastarem por tempo mais longo, acabaram
modificando a rotina familiar, transformando o papel desempenhado pela mulher no espaço
doméstico. Esse fator refletiu-se não apenas na mudança de comportamento e nas atribuições
que os membros da família passaram a ter, mas caracterizou o próprio padrão migratório
familiar dos que partiam de outras localidades rumo à capital.
Por outro lado, o pescador embarcado mantém pouquíssimo contato com seus
familiares; no mar, sua sobrevivência é garantida pela empresa que o contratou; sua família,
porém, dependerá do resultado da produção:
“Eles levavam de cinco, seis sacos de farinha, cinco, seis sacos de arroz, eles levavam muito, muito,
então tinha uma dificuldade muito grande pra quem fica né! (...) Eu tenho certeza que se eu num corro
eu tinha sido uma vítima dessas que ele foi, encontrou outra e num voltou mais sabe? (...)” 46.
44
Jornal Unitário, 24/09/1961, p. 07.
45
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
46
Idibem.
39
“(...) é uma coisa difícil sabe (...) quando eles vão pro mar fica aquela situação, se é pela empresa você
fica recebendo aquele dinheiro né? E tem que aceitar aquela humilhação ‘Ah! Seu marido num tá
produzindo, o seu dinheiro vai atrasar e num sei o que’ sabe como é que é (...)”47.
47
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
48
As entidades associativas dos pescadores são bem antigas. Em 1922, o próprio Estado já havia criado as
Colônias de Pesca, instituições obrigatórias às quais deviam pertencer, muitas vezes de modo compulsório, todos
os pescadores formais. Entretanto, em sua trajetória, essas organizações se atrelaram aos industriais e passaram a
exercer um certo controle sobre os pescadores. Na prática, não defendiam os interesses dos trabalhadores, mas
funcionavam como distribuidores de pequenos benefícios sociais.
40
49
Sobre a viagem dos pescadores cearenses em 1941 e sobre as repercussões do filme de Orson Welles, cf.
respectivamente: NEVES, Berenice Abreu de Castro. Do mar ao museu: A saga da jangada São Pedro.
Fortaleza: Museu do Ceará, 2001; e SANTOS, Márcia Juliana. It’s all true e a construção das imagens do
Brasil (1942-93). Dissertação de Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2004.
30
Op. cit. SANTOS, p. 113.
41
3 - A “tragédia” portuária
“Aqui, a natureza recuou ante o trabalho do homem, que modelou a pedra e redesenhou os
limites impostos por Deus ao oceano (...) o porto se apresenta como um lugar ambíguo,
inquietante e reconfortante. Espaço aberto para as riquezas e as ameaças do mundo evoca ao
mesmo tempo o abrigo, o refúgio e a fragilidade; combina as imagens da invasão e da evasão”.
(Alain Corbin)
O Cais do Porto do Mucuripe, somente depois de muito tempo, teve sua construção
efetivada no início da década de 1940, sendo sua primeira etapa concluída em 1946.
Construído gradativamente, o novo cais substituía o velho porto de Fortaleza, localizado na
Praia de Iracema.
Mesmo não sendo estático, o ritmo de vida dessa parte da cidade se alterou
profundamente após a vinda do complexo portuário. É possível afirmar que a região do
Mucuripe ainda não havia passado por transformações tão intensas e tão radicais quanto as
efetivadas a partir da execução dessa obra.
42
51
Jornal O Povo, em 28/05/1938, p. 08.
43
banhistas e curiosos, foi praticamente destruída com o avanço do mar, em virtude das obras
do Porto do Mucuripe52.
Não estaria mais a Capital cearense a revelar aquele bisonho retrato de Koster (viajante inglês)
e ater à sua frente as humilhantes e dolorosas perspectivas de portos tentados e fracassados
diante da fúria dos verdes mares tão decantados, mas por outro lado tão destruidores 53.
“O cais do porto, ele ter sido construído ali, nossa comunidade só teve a ganhar. Toda mão de obra, todo
serviço prestado ali dentro (...) na faixa de 60% de toda mão de obra ali dentro é daqui do bairro. É do
Bairro Serviluz e de áreas circunvizinhas”54.
Na memória dos trabalhadores locais, o porto representa muitas vezes não somente
emprego direto dentro das docas, mas sobretudo a possibilidade de obtenção de pequenos
afazeres entre os homens que para lá rumam diariamente.
52
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Fortaleza: Cultura e Lazer (1945 – 1960). In: Uma nova história do Ceará.
SOUZA, Simone de (org.). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p.193.
53
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p.
29.
54
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
44
55
Segundo Celso Furtado, não há dúvidas de que os anos 1950 foram a fase decisiva da industrialização
brasileira. Cf.: FURTADO Celso. O Brasil pós-milagre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Coleção Estudos
Brasileiros, v.54, 1983. p. 31.
56
RONCAYOLO, Marcel. Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes artificiais. In: Op. cit.
Projeto História, nº. 18. p.97.
57
Sobre a eletrificação no Ceará Cf.: LEITE, Ary Bezerra História da Energia Elétrica no Ceará. Fortaleza:
Fundação Demócrito Rocha, 1996. p. 170.
58
SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo da Segunda grande
Guerra. Fortaleza: Museu do ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002.
59
Op. cit. p. 39.
45
O projeto do Mucuripe fora desenhado para utilizar a água do mar (...), mas quando ocorria a
maré baixa, entravam nos referidos tubos areia, peixinhos, crustáceos, águas marinhas (...)
ocasionando sua obstrução, prejudicando o resfriamento do condensador e o funcionamento
normal da turbina, o que acarretava freqüentes interrupções do fornecimento de energia
elétrica. O SERVILUZ teve que manter equipes de mergulhadores, que cumpriam o penoso
serviço de limpeza e deslocamento das bombas de dragagem62.
60
Caberia, contudo, somente à Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza (CONEFOR) a recepção da
energia elétrica da CHESF, instalada apenas em 1965. Em 1971 foi inaugurada a Companhia de Eletricidade do
Ceará (COELCE).
61
IOC. A Eletrificação no Ceará: Pequeno histórico da vinda da energia de Paulo Afonso a Fortaleza. IOC -
Imprensa Oficial do Ceará, 1965. P. 88.
62
Op. cit. LEITE. Ary Bezerra História da Energia Elétrica no Ceará. p. 172.
63
Jornal O Povo, em 07/01/1960, p. 06.
46
segmentos mais fortes, a empresa Gás Butano instalou sua fábrica na região em 1951 e logo
iniciou suas operações. Depois vieram as multinacionais64.
Curiosamente, as grandes empresas eram as que ameaçavam de forma mais direta a
natureza e as que menos empregavam os homens da região. Priorizam pessoas alfabetizadas e
requerem um quadro de funcionários altamente especializados.
“Essas empresas davam prioridade mais às pessoas que tinha alto grau de estudo. Porque as pessoas
daqui a maior parte era pipoqueiro, pescadores. Área pobre mesmo! Acostumado ir pra Beira Mar
vender sua bebidazinha no seu carrinho, pipoquinha, etc. Se essas indústrias dessem valor às pessoas
que morassem aqui na favela, na área aqui seria muito bom”65.
Na fala dos moradores, percebe-se o abismo que por vezes parece existir entre o bairro
e a indústria ao lado. Os trabalhadores recrutados nas imediações desempenhavam serviços
essencialmente braçais, eram o pessoal do “baixo escalão”, enquanto a mão-de-obra mais
especializada provinha toda de fora da região.
É lógico que, numa região portuária, havia trabalhadores especializados como
operadores de guindastes e do maquinário moderno. E mais, pouco a pouco, disseminou-se a
cultura da especialização profissional e a do letramento escolar. A necessidade de
escolarização, sobretudo, advinha do premente desejo de uma capacitação técnica da mão-de-
obra. Nesse sentido, configurou-se tanto um quadro social de organização comunitária em
função do mercado de trabalho, até então restrito, quanto se operou intenso processo de
treinamento profissional dos jovens fora do bairro.
Prevalecia, porém, a admissão nos serviços de capatazia, de carregadores,
empilhadores e conferentes, bem como nas tarefas de vigilância, portaria, limpeza e
manutenção. Havia inclusive aqueles que eram empregados na venda e distribuição de
botijões de gás e latas de querosene nas poucas habitações onde o morador dispunha de fogão
ou podia comprar querosene em quantidade maior. Nesse caso, a mercadoria tinha de ser
transportada às costas, já que não era possível o tráfego de veículos sobre as areias ainda não
pavimentadas.
Além disso, as oportunidades traziam consigo os riscos inerentes à própria atividade
industrial. Isso significava na prática a ocorrência de inúmeros acidentes com o manuseio de
64
Segundo o Informativo da Companhia Docas do Ceará, as seguintes empresas são atendidas pelo Plano de
Emergência no Mucuripe: Esso Brasileira de Petróleo, Petrobras (Lubnor), Petrobras (BR Distribuidora S.A.),
Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga, Shell Brasil S.A., Texaco Brasil S.A., Companhia Ferroviária
Nordeste (CFN), Agip Liquigás, Nacional Gás Butano, Locaequipe Serviços e Transportes (aeronaves), Grande
Moinho Cearense, Moinho Fortaleza J. Macedo Alimentos S.A., além de outras empresas, como as de pesca,
menores.
65
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
47
produtos e equipamentos de trabalho não habituais. Ali se instalara uma indústria moderna,
movimentada por uma tecnologia considerada de ponta e, no entanto, os acidentes se tornaram
rotina entre a classe trabalhadora, não acostumada ao maqunário moderno.
“Trabalho na plataforma, eu trabalho no grau máximo de ‘risco quatro’ né, eles chamam de ‘risco
quatro’, quer dizer, que é uma área totalmente perigosa, inflamável e sem condições de expectativa de
vida, a qualquer momento pode estar envolvido num acidente”66.
“Morreram três indivíduos (...) os caras foram tirar gasolina, olha como era fácil um acidente, uma
tragédia. Porque o nosso bairro é cheio de gasoduto, sabe, nosso bairro é uma bomba mesmo (...) pra
azar deles faltou energia na hora (...) os três rapazes morreram porque faltou energia na hora, e foi na
hora que o navio mandou a carga de gasolina pelo gasoduto”68.
Nas narrativas, fica evidente que o imaginário do bairro está carregado de episódios
trágicos; em várias circunstâncias, vidas foram ceifadas, os incrementos do progresso e a
riqueza econômica se fizeram, muitas vezes, banhados no sangue dos trabalhadores locais.
“(...) o guincho, o guindaste, aquilo ali ele tava desativado há muito tempo, estava enferrujado então
resolveram explodi-lo pra num ter risco de perigo, mas acabou tendo perigo porque no dia da explosão
morreram quatro pessoas. Num sei se foi negligência ou sei lá, só sei que botaram dinamite lá e
explodiram, foi pedaço de ferro pra todo lado. Nesse mesmo dia morreram quatro trabalhador”69.
66
Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Souza ao autor em 28/01/2003.
67
Ibidem.
68
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
69
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.
48
“(...) pescador que morreu afogado, teve pescador que morreu afogado. Aqui na construção do
Titanzinho teve motorista que morreu também (...) que a caçamba ia jogar as pedras e vacilou, num saiu
de dentro do carro e caiu com pedra e tudo. Eu num tô lembrado bem dos outros tipos de acidentes, mas
tem. Morte de violência também existe, à bala. Eu já vi muita gente morrer também aqui, bala, faca e
assim vai”71.
70
“(...) é legítimo inferir que o desenvolvimento técnico tem no acidente mais que um simples desvio ou exceção
à regra; este é parte constitutiva do próprio aparato técnico”. Cf.: SILVA FILHO, Op. cit. p. 22.
49
71
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.
50
em pelo menos sete tanques no terminal da Shell, localizado na Esplanada do Mucuripe, onde
estavam acumulados mais 10 milhões de litros de gasolina72.
Os jornais anunciavam com afinco o maior incêndio já ocorrido no Ceará. Uma
maratona de guerra se passava na região. Recrutas foram chamados às pressas, técnicos e
contingentes de apoio foram convocados do interior e de outros estados. Um avião Hércules
da Força Área Brasileira foi deslocado de Recife para combater o fogo que ameaçou também
as demais companhias petrolíferas. Durante os trabalhos, cinco soldados do Corpo de
Bombeiros foram internados no hospital da corporação, vítimas de intoxicação e queimaduras
causadas pelo enorme calor no local73.
Na Assistência Municipal, deu entrada uma criança, vítima de atropelamento ocorrido
quando o menor, em companhia da mãe, tentou atravessar uma rua nas imediações do
desastre. Havia sido justamente no momento em que muita gente correu ao ouvir a explosão
do segundo tanque de gasolina74.
A polícia militar isolou a área e o tráfego de transportes foi desviado. Caminhões-
tanques não conseguiram abastecer e a falta de gasolina afetou gravemente diversos setores da
cidade.
Pelo noticiário, a cidade de longe acompanhou que o retorno das famílias afastadas
não estava previsto, porque não se sabia quanto tempo se gastaria para debelar totalmente o
fogo que tomou as imediações75. Nos casebres localizados na área mais próxima à indústria, a
situação foi muito pior. Casas ficaram fechadas; algumas abandonadas às pressas e deixadas
abertas, foram alvo da pilhagem de aproveitadores. A polícia de plantão registrou pelo menos
cinco prisões76.
“O caso foi tão sério que após o primeiro dia de fogo aí a polícia montou um esquema de segurança,
ficou fazendo ronda no bairro e alguns moradores ficaram tomando conta de suas casas (...) porque a
população abandonou o bairro, porque foi um incêndio que assustava, a gente sentia a temperatura do
fogo, uma quintura (...) assustava mesmo (...) muita gente foi robada levaram televisão, levaram som
porque os ladrões aproveitaram (...) foi um dia mesmo de terror (grifo nosso) para a população do
Serviluz”77.
72
Jornal O Povo, em 29/07/1980. p. 08.
73
Jornal Tribuna do Ceará, em 29/07/1980, capa.
74
Jornal O Povo, em 29/07/1980, capa.
75
Durante a pesquisa, foi comum ouvir referências de moradores de outros bairros da cidade sobre esse incêndio.
Muitos citadinos tiveram como divertimento a contemplação do “espetáculo” de cores das labaredas de fogo que
podiam ser focadas de longe.
76
Jornal Tribuna do Ceará, em 29/071980, p. 04.
77
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
51
78
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
52
óbvia a expulsão dos pobres das chamadas áreas de risco, como ocorreu em muitos dos
grandes centros urbanos brasileiros.
Na cidade de São Paulo, Raquel Rolnik sugeriu que diante da desigualdade social e da
mutiplicidade cultural, urbana se constitui
(...) um pacto territorial paralelo à propria legislação, que admite que existam coisas
irregulares, ilegais, e até destina determinados espaços da cidade – normalmente os espaços
mais desqualificados, distantes, desurbanizados, longíncuos – para essas coisas ilegais
acontecerem. E que esse é um pacto que, ao mesmo tempo, permite que a maior parte das
pessoas resolva seu problema da moradia por sua própria conta e, ao assim fazer, não tensiona
todo o esquema político de denominação79.
79
ROLNIK, Raquel. Lei e política: a construção dos territórios urbanos. In: Op. cit. Projeto História, nº. 18.
p. 140.
53
Durante um longo tempo, ignorou-se o encanto das praias e o prazer do banho de mar
em Fortaleza e somente muito tardiamente, de modo mais preciso no despontar do século XX,
a cidade abriu-se para o seu litoral.
Segundo o historiador francês Alain Corbin80, um conjunto de imagens repulsivas
associadas às águas oceânicas, construídas desde a gênese bíblica, impediu a emergência do
desejo da beira-mar no mundo ocidental. Não faltam episódios na mitologia e na literatura
clássica que reforçam a visão negativa do litoral como receptáculo dos excrementos do mar e
esconderijo dos monstros.
No entanto, é na própria teologia cristã que se inscreve uma nova noção apaziguadora
do litoral como espaço que tranqüiliza o homem, lugar onde Deus, em sua infinita bondade,
dispôs o oceano para o bem-estar das criaturas.
Assim, a partir do século XVII, operou-se uma mudança que veio possibilitar um novo
olhar sobre esse território, fazendo emergirem as figuras iniciais da admiração do mar que
motivarão, entre outras coisas, a prática da viagem turística.
Doravante as elites sociais buscam aí a ocasião de experimentar essa relação nova com a
natureza; encontram aí o prazer até então desconhecido de usufruir um ambiente convertido
em espetáculo (...) espera-se do mar que acalme as ansiedades da elite, que restabeleça a
relação harmoniosa do corpo e da alma (...) que corrija os males da civilização urbana, os
efeitos perversos do conforto, embora respeitando os imperativos da privacidade81.
Corbin observou com maestria como, desde o século XVIII, se operou uma espécie de
“invenção” da praia, que despertou o interesse pelo mar como um verdadeiro fenômeno
social. A partir desse momento, na Europa Ocidental, liberou-se uma paixão pelos panoramas
marítimos e os turistas passaram a experimentar a emoção de ver o mar.
Surgiu então uma íntima vinculação entre o estado de alma e a paisagem, a partir do
qual o espectador passa a viver a emoção provocada pelo sublime espetáculo da natureza.
Ocorre assim o alargamento dos modos de apreciação cenestésica do litoral que constitui um
acontecimento fundamental na história da sensibilidade. O equipamento turístico multiplica e
vulgariza uma experiência antes reservada às populações litorâneas, dando novas feições às
tradições mantidas secularmente nesses lugares.
No Ceará, o crescimento ganancioso do mercado da especulação imobiliária e o
inchaço demográfico desordenado propiciaram nas últimas décadas o acirramento dos
80
CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
81
CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras,
1989. p. 74.
54
enfrentamentos entre pobres e ricos pelas áreas litorâneas. Nesse sentido, as zonas de praia se
tornaram espaços conflituosos, marcados por duas lógicas distintas: uma representada pelos
usos tradicionais (o porto, a pesca e a habitação dos pobres); outra, pelas novas práticas
marítimas, notadamente os tratamentos terapêuticos da brisa, os banhos de mar e o veraneio82.
No mesmo período, a utilização do litoral para fins terapêuticos também induziu a
ordenação do banho de mar, bem como a regulamentação dos usos da praia. Em Fortaleza as
novas práticas marítimas, representativas dos hábitos europeus apropriados pelas elites locais,
suscitam um tímido movimento de urbanização das zonas de praia83. Na Praia de Iracema, a
partir dos anos 1920, ampliou-se a frequência de pessoas da elite que se deleitavam sob o sol
escaldante e que edificaram ali suas casas de veraneio.
Na cidade, por muito tempo, a praia foi um lugar desaconselhável para as pessoas de
bem. O mar era o lugar do porto e do transporte de mercadorias, suas praias serviam
basicamente de depósito de lixos e excrementos. O litoral, por isso, esperou longo tempo para
que suas areias fossem em definitivo incorporadas à realidade da vida urbana.
A partir dos anos 1970, com a intensificação do turismo, além das já referidas
transformações no mundo do trabalho pesqueiro, a especulação imobiliária também avançou
sobre o litoral de Fortaleza. Aquela primitiva aldeia de pescadores da enseada do Mucuripe
logo se transformou numa espécie de “selva de pedra” luxuosa onde jangadeiro pobre já não
podia mais morar.
A segregação espacial e a maquiagem no espaço urbano tornaram Fortaleza uma
cidade para inglês ver. À medida que foi chegando o turista, o pescador foi sendo obrigado a
sair. O resultado desse processo é a concretização de uma cidade que construiu espaços de
lazer e equipamentos de luxo para os turistas e as elites locais, mediante a destruição de
valores e tradições culturais há tempos sedimentadas, aumentando ainda mais a desigualdade,
a exclusão social e o avanço da degradação do meio ambiente já iniciado pela indústria.
O turismo tornou-se a nova vedete econômica do estado e os investimentos no setor
crescem ano após ano. Através do antigo Centro de Turismo, criado em 1975, e do atual
Programa de Desenvolvimento do Turismo do Ceará (PRODETUR-CE), em parceria com o
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e com o Banco do Nordeste do Brasil
(BNB), o Governo do Estado tem gastado milhões em obras vultuosas e numa política de
marketing que visa divulgar uma suposta vocação turística do Ceará.
82
DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Mar à Vista: estudo sobre a maritimidade de Fortaleza. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2002. p. 57.
83
Op. cit. p. 46.
55
84
O primeiro grande estabelecimento destinado a fins de hospedagem, o Excelsior Hotel, um suntuoso prédio de
sete andares, foi inaugurado em 31 de dezembro de 1931 e situava-se ao lado da Praça do Ferreira no centro da
cidade. Já no princípio da década de 1970, o prefeito Evandro Aires de Moura baixou um decreto estabelecendo
a distância de 20 metros entre um edifício e outro, a fim de amenizar os efeitos da corrida imobiliária na Avenida
Beira-Mar e preservar a circulação dos ventos marinhos em direção à cidade. O decreto foi revogado na
administração posterior.
85
Op. cit. GIRÃO, Blanchard. p. 206.
56
Na zona portuária, no Mucuripe, começava a surgir a prostituição, e, por isso, em 1952, 600
mulheres foram ameaçadas de despejo pela Secretaria de Polícia, pois algumas famílias
exigiram a transferência dos prostíbulos para outros lugares86.
(...) tal remoção não foi fácil, pois as ‘madames’ alegavam não ter um local disponível e
adequado para seu tipo de negócio, sendo o Farol um local quase desértico e em péssimas
condições. Não havia luz elétrica, água potável e calçamento, tornando bastante difícil o acesso
ao local (...) A energia elétrica foi o único serviço prontamente instalado 89.
86
Op. cit. JUCÁ, p. 205.
87
Op. cit. p. 206.
88
GUEDES, Mardônio. Pelas ruas e pensões: o meretrício em Fortaleza (1930-1940). In: Fortaleza: História
e Cotidiano – Gênero. SOUZA, Simone e NEVES, Frederico de Castro (orgs.). Fortaleza: Ed. Demócrito
Rocha, 2002. p. 53.
57
89
Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 25.
58
Capítulo II
“Farol, designação inadequada para abrigar quem vive sem uma luz a indicar-lhe o futuro”.
(Blanchar Girão)
90
No pensamento moralizador ocidental, temas como a não virgindade, condição da prostituta, são condenados,
fato que se reflete, inevitavelmente, no trabalho. “Nas leituras da Igreja Católica sobre a prostituição, o que se
observa é a ênfase em um paradigma de prostituta como ‘tipo ideal’ para desenvolver o raciocínio baseado no
pecado, na impureza, na devassidão, na podridão”. No entanto, “historicamente na nossa sociedade, o cabaré
tinha como uma de suas principais funções a iniciação sexual do homem, preservando as ‘moças de família’, que
deviam permanecer virgens até o casamento”. Cf.: SOUSA, Francisca Ilnar de. O Cliente: o outro lado da
prostituição. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998. p.114 e 41.
91
ANJOS JÚNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A Serpente domada: um estudo sobre a prostituição de
baixo meretrício. Fortaleza: Ed. UFC, 1983, p. 24. Trata-se de um dos poucos trabalhos acadêmicos que
enfocam o bairro. A pesquisa, no entanto, não é específica sobre a zona do Farol em Fortaleza, mas um estudo
comparativo das características dessa com as zonas de baixo meretrício do “Posto Fiscal” em Brasília. O autor
realizou a pesquisa de campo entre março e julho de 1980, privilegiando os dias de sexta a domingo devido à
maior concentração de mulheres. Utilizou ainda a estratégia de entrevistar as prostitutas em outros dias da
semana, sobretudo à tarde, nos quais, devido ao descontraimento das mulheres, era possível investigar melhor o
cotidiano dos cabarés.
61
“Nessa época os cabarés eram freqüentados só por estrangeiros, americanos, franceses. Tinha boate que
só freqüentava americano, brasileiro não tinha vez (...) o Farol era um local que as mulheres tinham
status, as mulheres viviam bem, vestidas, bonitas (...) quer dizer, ganhavam dinheiro, muitas
aproveitaram, algumas fizeram pé-de-meia, casaram, umas foram morar na Alemanha, algumas ficaram
aqui, sabe. Mas o Serviluz os cabarés eram freqüentados exclusivamente por gringos”94.
As cenas descritas pelos moradores escapam aos desígnios almejados pela segregação
espacial. Uma variedade de sons, cores e luzes nutria ali múltiplas relações. Tudo indica que
as visitações ao Farol não se davam apenas pelo movimento dos cabarés e toda sua boemia, a
92
Anjos Júnior afirma que os “gigolôs” no Farol, podiam ser contados cerca de 50 (cinqüenta) na década de 80,
serviam como “leões de chácara” ou como protetores e/ou exploradores das meretrizes.
93
Ainda segundo Anjos Júnior, os cabarés principais recebiam denominações como Moulin Rouge, Estrela do
Mar, Morning Light, A Deusa do Mar, Rastro, Corujão, Sumaré, Brisa Mar, Mocambo da Fafá, Discotec, Boite
da Eunice etc. Op. cit. p.26.
94
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
63
praia pouco habitada apresentava ainda uma paisagem bastante convidativa. “A sociedade de
Fortaleza se divertia aqui”, enfatizou um entrevistado. Recebiam-se muitos turistas,
praticantes de esportes náuticos e pescadores de fim de semana, a praia foi um excelente
espaço de lazer.
No Serviluz, as lembranças do mundo da prostituição não se limita ao universo da
pobreza e da promiscuidade; ao contrário, apresenta sinuosas relações sociais que agregam
valores e criam territórios. A partir do Farol, no então reduzido povoado do Serviluz, deram-
se intensas negociações e disputas entre os de “dentro” e os de “fora” desse circuito.
A zona de prostituição levava o nome do farol desativado que foi transformado em
museu, e, mesmo sendo alvo de preconceito devido à sua localização, o Farol do Mucuripe foi
durante certo tempo um importante ponto de visitação turística da cidade. Nos depoimentos,
percebe-se que várias personalidades de Fortaleza e estrangeiros endinheirados se misturavam
alegremente às mulheres e aos pescadores que residiam nos arredores. O “acolhimento”
tornou-se uma prática econômica e cultural importante para a comunidade.
Altos funcionários das multinacionais em estadia na cidade, muitos dos quais também
estrangeiros, tinham nessa localidade a possibilidade de diversão e entretenimento ao lado da
empresa em que trabalhavam. Com toda essa movimentação, não apenas as casas noturnas
lucravam, o pequeno comércio local cresceu consideravelmente, “minha mãe comprava
dólares”95, e as pequenas mercearias foram se transformando para atender um público
exigente e diversificado.
De modo curioso, são igualmente comuns as lembranças dos episódios em que os
pescadores disputavam, em pé de igualdade, o direito de usufruir o comércio no Farol com
pessoas de elevado poder aquisitivo.
“Por incrível que pareça no passado o pescador tinha moral, porque ganhavam bem. A lagosta dava
dinheiro. O pescador chegava no cabaré, a zona como nós falávamos na época, ele disputava pau a pau
com os gringos, com o pessoal que vinha de fora que gastava em dólares, porque o dinheiro era fácil
(...) o pescador, o pescador artesanal, também tinha muita aceitação porque naquela época o pescador
ganhava muito dinheiro, a lagosta né? Tinha abundância”96.
Nesses depoimentos, ainda que essa tenha sido uma situação relativamente efêmera, a
condição do pescador figura bem diferenciada daquela tradicional imagem de pobreza, quase
indigência, a que já se referiu. A imagem do pescador podia, inclusive, emergir como a de um
95
Ibidem.
96
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
97
Depoimento de Lúcia, do Brisa Mar. Cf.: ANJOS JÚNIOR, p. 88-89.
64
“príncipe encantado”. Muitos homens do mar podiam proporcionar uma vida mais segura às
mulheres da zona e essa era, via de regra, a condição mais palusível para a fuga do meretrício.
“Se o cara é bom pra mim e me dá conforto e eu gosto dele, eu largo mão disto e vou ficá com
ele. Mas eu prefiro se for pra casar, casá mesmo, de papel e juiz, porque aí a responsabilidade
da coisa é bem maior. Aí eu posso cuidá dele, dos filhos, tudo que a mulher faz ... quando o
homem gosta mesmo, ele casa” 97.
“Daquela área pra lá depois das nove horas em diante não tinha mais possibilidade de pessoas de menor
ir pra lá, entendeu? Não tinha. Oito horas, nove horas já não ia mais (...) e as mulheres casadas iam, mas
o pessoal comentava muito. Eu nunca tive isso não, eu sempre ia porque onde meu marido tava, eu
nunca tive medo de ir (...), mas era um negócio muito quente, muito quente, quente mesmo. Homens
despidos, mulheres também, era uma... como é que se diz, uma... um lugar mesmo reservado, muito
quente tá entendendo? (...) praticamente isolado (...), mas pra cá também eles num passavam, nem elas
nem eles, eles num passavam né, era como assim um muro de Berlim (...)”98.
Há, de certo modo, nas entrevistas colhidas entre os moradores, uma tendência geral
ao apagamento da memória da prostituição no bairro. Isso implica reconhecer o Farol como
um espaço reiteradamente rejeitado e compreendido por alguns como uma espécie de mancha
negra na história do lugar. Em termos práticos diários, durante o dia era até comum que os
moradores andassem entre os cabarés, afinal foi em função do meretrício que energia elétrica,
telefone, farmácia, chafariz e outros serviços foram prontamente instalados no local. À noite,
no entanto, o espaço ganhava sons e agito, sendo quase sempre malvisto no seio da
comunidade.
Escolas, associações e outros núcleos comunitários que foram se formando no bairro
aconselhavam os pais a não permitirem que os filhos freqüentassem a zona de prostituição. Os
mais velhos lembram quando a Kombi do Juizado de Menores começou a vigiar de modo
mais acintoso a entrada de crianças na zona de prostituição. A violência desencadeada no
98
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
65
“Naquela época existia um tabu. Por exemplo, uma moça, uma senhora casada não podia andar naquela
área, porque se andasse naquela área era confundida (grifo nosso) com prostituta. Existia essa divisão.
Aí foi justamente por causa disso que dividiram o Farol do Serviluz. Mas só que o Farol está contido no
Serviluz e o Serviluz contém o Farol (...) pensavam que todas mulheres eram iguais. As mulheres
casadas, as moças num podiam andar naquela área, principalmente à noite”99.
.
O forte isolamento mantido por alguns moradores locais e registrado na cidade como
um todo em relação a esse espaço não consegue silenciar as permutas e os intercâmbios
existentes. Havia um reconhecimento tácito de que, apesar das opções de vida das meretrizes,
estas tinham procedências semelhantes à maioria da população local e o ganho com a
prostituição, supostamente fácil, era uma condição necessária à sobrevivência.
“A maioria delas eram garotas que vinham do interior, chegava aqui não tinha trabalho e entrava nesse
ramo de vida. É como diz o ditado a vida é fácil né? Na época tinha mulher que fazia quatro, cinco
programas. Amanhecia o dia com muito dinheiro, muito dinheiro mesmo. E quando pegava um gringo
ou marinheiro ganhava até em dólar ganhava”100.
99
Entrevista realizada concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
100
Entrevista realizada concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
66
“(...) E pra lá a gente nem sabia quando acontecia uma morte, uma coisa, porque também era difícil,
agora é muito mais fácil (...), mas brincavam por lá a vontade principalmente quando chegava navio,
marinha né?, esses navios eram muito chegados aqui e... às vezes acontecia fato de matarem marinheiro,
marinheiro desaparecia, isso pra gente aqui, a população ainda era pouca, isso pra gente era como se
fosse uma coisa muito grande (...) teve uma época que mataram dois marinheiros, amanheceram mortos
naquelas pedrinhas né? , dois corpos ali, vixe Maria! foi uma coisa quase que o bairro acaba, quase que
aqui acaba, mas de violência não, de tristeza entendeu? (...)” 102.
O Farol passou a ter uma rotina de assaltos e mortes que o levaram ao declínio quando
chegou à “época da marginalidade”. Sintomaticamente, a percepção dessa transformação
repentina no ritmo de vida local é com freqüência atribuída à zona, fazendo emergir daí uma
espécie de memória ressentida desse espaço.
A decadência do Farol está ainda relacionada ao surgimento de novas e sofisticadas
áreas de prostituição na cidade. À medida que os clientes preferenciais ausentaram-se, os
donos dos bordéis passaram a investir cada vez menos na contratação de garotas jovens e
formosas. Essas, por sua vez, procuraram novos lugares próprios à prostituição. O
aparecimento avassalador do vírus da aids também contribuiu para a diminuição generalizada
no mercado do sexo, pois a crescente preocupação com doenças e epidemias esvaziou
gradativamente os bares e quartos de aluguel.
Fatores externos à atividade da prostituição favoreceram o declínio do fluxo de
visitantes, como o surgimento de novas atrações turísticas na cidade e a diminuição dos
marinheiros descidos no porto. O sistema portuário moderno, de estivagem em contêineres,
por exemplo, passou a permitir um trabalho de carga e descarga mais veloz, diminuindo o
tempo de permanência do marítimo em terra. À medida que este trabalhador não mais
precisava permanecer quinze enfadonhos dias na cidade, alterou-se também a rotina dos que
lhes prestavam serviços, inclusive de prostituição. Por outro lado, se o volume de marítimos
da marinha mercante diminuiu, os transatlânticos de luxo carregados de passageiros
aumentaram, mas esses turistas não mais incluem o bairro como ponto a ser visitado. Ao
contrário, ao passo que o bairro foi tornando-se perigoso, as próprias autoridades portuárias
encarregaram-se de criar mecanismos a fim de evitar a ida dos turistas à praia do Serviluz.
101
Op. cit. ANJOS JÚNIOR. p. 35.
102
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
68
Em meio à crise, tornar-se uma madame ainda era uma expectativa para muitas
mulheres, pois significava a diminuição do trabalho e o aumento do prestígio que extrapolava
os domínios da zona. A pressão no cabaré se manifestava, por exemplo, na chegada de navios,
quando os clientes eram esperados na entrada do cais, uma verdadeira batalha: “Aí, eu parti
pra cima dela. Ela tava com uma gilete no dedo e tão aqui os cortes (mostrando o pescoço e o
braço). A sorte dela é que ela já saiu daqui, senão eu tinha matado ela”103.
Na prostituição, conhecer as regras de convivência do meio, como a não delação, por
exemplo, é código fundamental para conseguir viver sem afrontas com as companheiras.
Também é comum que no ato do trabalho as mulheres utilizem “nomes de guerra” ou que não
se metam na briga entre duas pessoas do local, ao mesmo tempo; numa possível richa entre
um “de dentro” e um “de fora”, rapidamente se toma partido.
A concorrência deixa marcas no corpo, as agressões físicas com navalhas, giletes ou
garrafas quebradas visam principalmente partes do corpo como face ou seio, deixando
cicatrizes que marcam profundamente uma mulher, depreciando-a no trabalho devido à
dilaceração física visível.
Numa atividade cujo ganho advém do aluguel do corpo, os ganhos podem aumentar de
modo substancial segundo os jogos sexuais, propostos, quase sempre, pelo próprio cliente. A
prostituta precisa desenvolver a consciência de que o bom estado físico é fundamental, um
“cartão de visita” para fechar bom negócio; seu ganho diminui substancialmente à medida que
envelhece ou que aparenta desgaste físico.
De modo geral, o tempo hábil para o trabalho é bem curto. Nem sempre é possível
aplicar os necessários cuidados corporais e as preocupações com a saúde e com a estética são
comprometidos pelos desgastes contínuos e acelerados dos corpos. A alimentação deficiente,
a ingestão contínua de álcool e as noites em claro deixam marcas, claramente perceptíveis à
luz do dia.
Apesar das ambigüidades emanadas da prostituição, para alguns moradores foi uma
pena que o bairro não tenha tido estrutura suficiente para firmar-se como destino turístico,
nem mesmo no ramo de prostituição. Lamentam não ter aproveitado a grande movimentação,
o rico passado histórico, a bela natureza e a vocação hospitaleira do povo, não ter se
antecipado ao futuro que apontava para o turismo como grande projeto de Estado. Apesar da
desigualdade em que se encontravam socialmente o nativo e o visitante, boa parte da
população de baixa renda entende essa mistura com o pessoal “de fora” como um fator
103
Depoimento de Cleonice. Cf.: Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 68.
69
positivo. Nos depoimentos, é significativo que os estrangeiros, bem mais que os ricos da terra,
eram vistos como alavancas, capazes de ajudar a superar as necessidades primárias do bairro.
Os turistas podiam ser vistos como promovedores de apadrinhamentos, amizades e outros
laços afetivos, práticas que parecem se perder quanto o tradicional hábito de visitação tornou-
se uma mercadoria.
Como foi dito anteriormente, até os anos 60 e 70, o Serviluz era um pequeno
conglomerado de pescadores e prostitutas. Existia ainda uma pequena vila, a Estiva, sendo
esse espaço geograficamente integrado. Na primeira rua do bairro, a Zezé Diogo, onde
haviam sido instalados os cabarés, ficava também o Campo do Paulista, espaço de futebol e
lazer freqüentemente assolado por inundações. Como bem lembrou um morador, “o Serviluz
parecia uma cidadezinha” onde os morros de areias e uma fina grama verde, a salsa,
completavam o espaço. Pouca gente, pouca luz e pouco lixo.
Nas imediações do porto, a construção de novos espigões de pedra e o aterramento de
parte da orla, necessários à ampliação do complexo portuário, fizeram recuar o mar e
acalmaram o avanço das marés. Tornou-se habitável uma pequena faixa de praia, a chamada
Praia Mansa (ver mapa), que passou a abrigar casebres de pescadores e biscateiros
remanescentes da pesca. A partir da segunda metade da década de 1970, essa região foi sendo
lentamente tomada por várias famílias, muitas das quais já estabelecidas na capital e que viam
na praia a possibilidade de trabalho e ocupação de um terreno da Marinha.
Na ilha, criada artificialmente, as casas eram de madeira e cobertas de palha de
coqueiro, pois a Companhia Docas não permitia a edificação de alvenaria. Localizada ao lado
da antiga usina do Serviluz, a Praia Mansa pouco apresentava vestígios de ocupação, o local
era bastante preservado, pouco aparentando que, ao lado dos barracos, vultuosos
investimentos industriais tinham transformado a paisagem. Não havia água encanada e
tampouco energia elétrica. Sitiadas, as pessoas mais antigas lembram-se de uma única
televisão, alimentada por bateria, uma novidade do mundo urbano, ainda bem estranho àquela
realidade. A televisão, em preto e branco, fora uma aquisição de um morador da praia, um
mecânico de lanchas, e passou a servir de entretenimento à população. Nas casas, cheias e
70
104
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.
105
Ibidem.
71
“Agora se desenvolveu por quê? Porque esses familiares a maioria são do Acaraú (município criado em
1849 e distante 238 km de Fortaleza), então começaram a construir suas casas, depois das casas
construídas, aí vem um sobrinho, vem primo, vem irmão, vem cunhado e assim a população foi
aumentando (...)”106.
“A Docas planeou o terreno, loteou para cada família 12 (doze) metros de comprimento por 6 (seis) de
frente. Esses 6 (seis) metros de frente nós fazia as casas de 5 (cinco) metros de casa e ficava meio metro
de cada casa, pra num ficarem conjugadas (...) eles doaram vara, que não era de tijolo, barro, as
madeiras e as telhas para cada morador”107.
106
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
107
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 30/06/2006.
72
“Pra ser sincero eu num troco esse bairro aqui por nenhum outro bairro da nossa capital não (...)
essa rua que eu moro é só praticamente o pessoal que veio da Praia Mansa, praticamente a mesma
família (grifo nosso)”108.
108
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2003.
73
questão, talvez reveladora, quando se pensa a utilização da falsa identidade de pescador como
meio de inserção nas áreas praianas de Fortaleza. Afinal, como foi que cerca de três mil
pessoas, pobres e subempregadas, dentre as quais nem todas eram trabalhadores da pesca,
conseguiram se infiltrar numa área tão restrita?
Transferida da ilha para o Serviluz, a comunidade continuou a viver num lugar cuja
localização geográfica provocava um grande e estranho incômodo. Ali os elementos da
natureza pareciam confluir, fazendo operar uma lógica de moradia, às avessas; quanto mais
próximo da água do mar se habitava, mais se estava sujeito à ameaça das areias e dos ventos;
na beira da praia, percebia-se mais nitidamente como as intempéries naturais podiam impor
sérias dificuldades à existência do homem. No Serviluz, principalmente nos meses de vento
forte, era na beira do mar que mais se sofria “com a chuva de areia que invade nossas casas e
tempera nossa comida”109.
No decorrer do processo histórico de ocupação do Serviluz, a praia do Titanzinho
correspondeu exatamente à faixa de praia que recebeu os pescadores oriundos da “barra
mansa”, ou Praia Mansa. Ocupou-se a borda de terra que margeia o mar, a esquina leste de
Fortaleza, onde as fileiras de casas foram estendidas sobre uma área de dunas aplainadas, a
praia do Titanzinho110, terreno conseguido junto à Marinha por ocasião da retirada daquela
população. Os pescadores, em condições de trabalho e moradia agora bastante diferenciadas
daquelas em que viviam nos tempos áureos da lagosta, permaneceram na orla, mas tiveram de
conviver mais diretamente com outras categorias de trabalhadores. Nessa região, instalou-se
assim uma variedade de modos de vida que possibilitava a hibridez de múltiplas culturas.
A migração em torno da pesca não se procedeu somente relacionada a laços familiares.
Inúmeras experiências individuais marcaram também a experiência retirante de homens e
mulheres fugidos para a cidade. Os deslocamentos a partir de estratégias familiares não
devem ocultar a vivência migratória solitária dos jovens que cedo partem rumo à capital e em
busca dos benefícios que esta supostamente oferece.
Deve-se ressaltar que para alguns a mudança para a metrópole significou exatamente o
rompimento, o desligamento familiar. Nesse meio, a quantidade desenfreada de filhos do
casal restringe sobremaneira as oportunidades de melhoria social, e mesmo a garantia da
sobrevivência no local de origem. Os mais moços, ao tentarem a sorte na cidade, acabam
109
Documento disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho
110
O nome Titanzinho é uma alusão a um grande guindaste de fabricação alemão usado na construção do
primeiro espigão, o Titan. A máquina descarregava as pedras, transportadas por maria-fumaça, e as alinhava no
paredão. Conta-se que, após a desativação, o Titan foi destruído e que, durante sua explosão, quatro
trabalhadores morreram vitimados pelos estilhaços.
74
“Então quando eu cheguei aqui eu encontrei uma dificuldade muito grande, porque ninguém dava
apoio a gente ‘de menor’, crianças menores né? (...) não tinha condições, ninguém dava condições
a ninguém, não tinha esse negócio. Hoje em dia tem! Você tem quatorze anos tem... um grupo tem
uma coisa, você ganha uma coisa, ganha outra, hoje tem, mas nessa época não tinha” 111.
“Todo pescador tinha uma casa boa, tinha luxo, tinha carro, hoje não é mais assim. Pescador passa
fome, passa necessidade (...) como a pesca praticamente acabou, ou seja, a pesca da lagosta, só tem o
peixe. E hoje em dia se você for ver os pescadores do bairro sofrem. Hoje o que não saiu do ramo, hoje
111
Entrevista realizada concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
112
Depoimento de Maria Ferreira Dias, dona Mariazinha, líder comunitário do Serviluz. Cf.: CEARAH,
Periferia. Vivências, lutas e memórias: História de vida de lideranças comunitárias em Fortaleza. Fortaleza:
Ed. Demócrito Rocha, 2002. p. 98.
75
passa uma necessidade enorme teve que mudar de profissão (...) porque a pesca em si hoje no nosso
bairro não é mais... é um meio de sobrevivência para aqueles que não conseguiram nada” 113.
113
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
114
O manzuá, geralmente construído nas comunidades de pesca, é uma espécie de gaiola feita de madeira e
arame. Essas armadilhas são lançadas pelas embarcações no ato da captura.
76
A pesca intensiva, como se viu, foi responsável pela depredação marinha em escala
planetária, levando à prática extinção de algumas espécies, como a lagosta115. O “mar não é
mina”, o mar não é um bem inesgotável. A captura em larga escala fez com que, durante todo
o século XX, vários países adotassem tratados de proteção e preservação dos cardumes,
limitando a pesca de certas espécies em determinadas épocas do ano. É sabido ainda que o
sistema de assalariamento por produção desenvolveu o espírito competitivo entre os
pescadores; cada vez mais ávidos por ganhos maiores, embarcam em viagens que duram
vários dias.
No Serviluz o ecossistema possibilitou uma certa continuidade da pesca local. Mas
apresentou como resultado do declínio econômico desse ramo o surgimento dos chamados
pescadores-biscateiros116. Não conseguindo sobreviver apenas da renda proveniente do mar,
esses homens foram sendo obrigados a complementar o ganho familiar com trabalhos
auxiliares. Pescadores de praia e não de alto-mar utilizam linhas e pequenas redes, costumam
reunir parentes, vizinhos e amigos da própria comunidade. A produção nem sempre é
destinada ao mercado, servindo basicamente de alimentação aos familiares dos que pescam. A
partilha, como foi dito, nem sempre é exata e obedece a laços de solidariedade externos à ação
de captura. Trata-se de homens que se tornam “pescadores quando tem peixe”, porque, na
maior parte das vezes, o sustento vem da feitura de pequenas tarefas, já que a pesca tornou-se
um tipo de “bico”.
A conciliação entre pesca e atividades secundárias, como a agricultura, consiste numa
prática comum em muitas pequenas localidades pesqueiras do Ceará. De certa forma, essa foi
uma tradição que se manteve entre os pescadores que migraram para a cidade, sobretudo nos
lugares onde a pequena lavoura e o criatório de animais para consumo puderam ser
mantidas117.
Se a pesca continua arregimentando certa força de trabalho local, principalmente entre
aqueles que não se escolarizaram, sua prática foi aos poucos reduzida. A crescente pesca
115
De acordo com a Lei 9.605-98, o Instituto do Meio Ambiente (IBAMA) considera crime a pesca da lagosta
com tamanho inferior a 13 centímetros, o tipo vermelho, e 11 centímetros para as espécies verdes. Além disso,
no “período de defeso”, durante os meses de janeiro a abril, a pesca do crustáceo é proibida.
116
Pescadores ocasionais que conciliam a pesca à execução de outras atividades.
117
No Serviluz, apesar da reduzida fertilidade do solo arenoso, os quintais foram amplamente aproveitados com
essas práticas. Nas residências, no fundo dos pequenos terrenos, frontais ao mar, porcos, galinhas e outros
animais destinados ao consumo doméstico dividiam espaço com o plantio de algumas fruteiras e hortaliças.
118
Arquivo do Sindicato dos Portuários do Mucuripe.
119
Criada em 1965, com o fim da construção do porto, a Companhia Docas do Ceará foi a primeira sociedade de
economia mista a administrar um porto no país.
77
industrial impunha novas exigências de mercado nesse ramo de trabalho; aos olhos dos jovens
do bairro, parecia não fazer sentido estudar para continuar pescando quando havia inúmeras
outras possibilidades profissionais nos arredores. Acrescenta-se ainda que os meninos da
comunidade, inseridos nos programas assistenciais criados pelo governo, ingressavam
automaticamente em novas áreas de trabalho, compatíveis com uma demanda por mão-de-
obra em setores da economia moderna, como a indústria, o comércio e o turismo.
No caso do operariado do porto e da indústria, a constatação inicial da ausência de
uma certa tradição sindical atuante no bairro não ocultava que a estiva e as fábricas
empregavam muitas pessoas. Esses sindicatos em Fortaleza dificilmente podem ser tidos
como instrumentos de emancipação dos trabalhadores. O Sindicato dos Portuários do Ceará,
porém, dentre várias categorias, é uma entidade que ainda presta “assistência” a mais de mil
trabalhadores em portos no estado do Ceará118.
Em 1996, data da última greve dos estivadores do porto do Mucuripe, a Companhia
Docas do Ceará praticamente impôs aos trabalhadores do porto um novo sistema de
contratação de mão-de-obra. Com a criação do Órgão Gestor de Mão-de-obra (OGMO), e sob
o discurso da racionalização do trabalho na estiva, os sindicatos cederam a administração da
contratação do trabalho no porto, de suma importância para a categoria, entregando essa tarefa
a um organismo sob a tutela direta da Companhia Docas119.
Em última análise, a movimentação portuária moderna subordina-se às oscilações
econômicas em escala mundial; ainda que os trabalhadores da estiva alcancem uma
estabilidade maior que os da pesca, seus ganhos são sempre relativos e dependentes do
número de navios que passam pelo porto. Fernando Silva120 observou que atualmente, em
meio a embates sobre questões como a “modernização” (leia-se privatização) e a eliminação
do chamado Closed Shop System121, os portuários continuam levando não só a carga, mas
também boa parte da culpa pelas mazelas da política implantada e pelos principais problemas
que concorrem para a ineficiência dos portos.
120
SILVA, Fernando Teixeira. A carga e a culpa. São Paulo: HUCITEC, 1995. p. 07.
121
No Closed Shop System ou simplesmente “monopólio de estiva”, a contratação da mão-de-obra nas operações
de estivagem e desestivagem de cargas do porto fica a encargo do sindicato. De acordo com Gitahy, “não é de
surpreender que os estivadores fossem um terreno fértil para a solidariedade em quase todos os portos do mundo
e que tivessem criado sindicatos na base do Closed Shop para neutralizar a insuportável ameaça do mercado de
trabalho no sistema ocasional de contratação”. Cf.: GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar:
Trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana. São Paulo: Unesp, 1992. p.114.
78
“(...) Eu já fiz tanta coisa já! Já trabalhei in hotel, trabalhei in banca de revista, trabalhei in restaurante,
já trabalhei como vendedor ambulante, mas o que eu gostei mais foi de trabalhá in hotel. Eu trabalhava
na recepção do hotel e eu tinha contato direto com os turistas e os hóspedes que vinham se hospedar no
hotel. Um pessoal muito interessante de várias partes do Brasil, de várias partes do mundo (...) era
muito interessante, você aprendia várias coisas novas, o costume das pessoa de outro estado, o jeito de
ser das pessoas de outro estado (...) e ainda tinha as gorjeta que a gente ganhava dos hóspedes. Eu
levava as bagagens e às vezes eles davam presente (...) eu consegui comprar alguma coisa pra mim
quando eu trabalhava no hotel”123.
122
Informativo Cearáportos, ano III, nº. 15, out./nov. de 2003.
123
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.
79
Para os entrevistados, entre outras diferenças, esses novos postos de trabalho tinham a
vantagem da carteira de trabalho assinada. Esta oferecia garantias tanto quando se está
empregado quanto no momento do desemprego, já que o registro da experiência profissional
qualifica e facilita a aquisição de um novo emprego. À medida que aumentou a escolarização
e que melhoraram as condições de transporte, os jovens do bairro puderam ainda trabalhar no
comércio e noutros lugares que requeriam uma capacitação profissional razoável, acirrando
ainda mais a dispersão no universo do trabalho.
O próprio crescimento do bairro, motivado pela enxurrada migratória dos anos 80 em
diante, possibilitou também o aparecimento de novos trabalhadores, voltados para as
necessidades internas da comunidade que crescia. É o caso, por exemplo, dos padeiros, que
surgiram concomitantes ao surto demográfico, e dos pedreiros, que despontaram juntamente
com a ascensão da construção civil. Homens desempregados passaram a se profissionalizar
na edificação de casas de alvenaria, uma febre que assolou recentemente o bairro. Serviços
temporários para alguns, já que os “bicos” nem sempre aparecem; para outros, mais
especializados, os novos ramos de trabalho significavam emprego o ano inteiro. Além disso,
esse mercado informal também agrega uma série de tarefas para as quais não se exige quase
nenhuma qualificação profissional. No referido setor de construção, por exemplo, os
chamados “serventes” são pessoas sem escolaridade alguma e que desempenham, como
auxiliar de pedreiro, um trabalho inteiramente braçal.
Vale salientar que muitas vezes a sobrevivência da população pode ser garantida a
partir da inventividade criativa gerada com os recursos disponíveis na própria localidade,
como no caso da captura da sardinha, que, apesar de empregar uma força de trabalho
eminentemente masculina, pode despertar uma extensa cadeia produtiva (pesca, compra e
venda), capaz de envolver toda a família. Enquanto o homem pesca, em casa as mulheres
secam, espetam e fritam as sardinhas ou “piabas”. Por sua vez, os jovens conduzem os
espetinhos, consumidos como petiscos pelos turistas nas praias mais badaladas da cidade.
Assim, se as circunstâncias históricas gerais possibilitaram o advento do turismo, coube à
população praiana a capacidade inventiva de integrar a pesca ao turismo.
Esse potencial criativo pôde ainda ser canalizado para o esporte que também se tornou
um meio de sobrevivência para muitos jovens locais. O surfe, por exemplo, de esporte
marginalizado, emergiu à categoria de profissão de destaque, conquistando uma fatia
significativa de adeptos na comunidade. Na contramão das possíveis afirmações
profissionais, foi recorrente a noção da efemeridade no mundo do trabalho, das “profissões
curtas”. Mesmo em atividades como o surfe, que se caracterizam pela excelência no vigor
80
físico, a dedicação total ao esporte por parte dos competidores não possibilita que se tirem os
olhos de outros ramos de trabalho, nos quais eventualmente poderiam ingressar quando
findarem os patrocínios. É consenso: “tem uma época que a idade pesa”.
A mistura e as possibilidades postas no trabalho, de certo modo, impediam a análise
desses trabalhadores pela via exclusiva de uma suposta divisão de classes. A circularidade
permanente e a vastidão de tarefas que eclodiram nessa região configuravam uma realidade
mais abrangente, a força operária entendida como a “classe que vive do trabalho”.
124
SANTIAGO, Pádua. A Cidade como Utopia e a Favela como Espaço Estratégico de Inserção na Cultura
Urbana (1856-1930). In: Trajetos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade
Federal do Ceará. V.1, n° 2. Fortaleza, junho de 2002. p. 120.
125
Fundo Governador Virgílio Távora. Subsérie: Secretaria de Obras e Serviços públicos. Data: 1979/1982.
Fortaleza-CE. Caixa 04.
81
Em 1982, pela primeira vez, as denúncias de ‘genocídio’ alcançaram todo o país. (...) As cenas
terríveis da luta pela vida no sertão seco foram mostradas pela televisão em campanhas de
solidariedade que se organizaram para ajudar as vítimas do ‘flagelo’. A ‘seca’ novamente
aparece com toda a sua força real e simbólica no cenário político nacional e mobiliza
campanhas e projetos128.
126
Idem.
127
Idem.
128
NEVES, Frederico de Castro. A seca na história do Ceará. In: Op. cit. Uma Nova História do Ceará. p.
100.
129
Op. cit. SANTIAGO, Pádua. p. 127.
130
Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003.
82
131
Sintomático desse retorno é a já tradicional prática de piqueniques com destino às localidades interioranas em
festa. Anualmente, no carnaval, por exemplo, partem cerca de cinco ônibus lotados de passageiros que moram no
Serviluz rumo ao município de Acaraú, no bairro é grande a quantidade de pessoas provenientes desse lugar.
83
ponto a outro, a possibilidade da partida e do retorno rápido tornaram-se uma realidade cada
vez mais plausível.
A facilidade de vir para “dá uma olhadinha” figura como um dos motivos da
recorrente feitura de breves reconhecimentos na cidade antes da mudança definitiva. Desse
modo, as redes sociais baseadas na família e nos laços comunitários de amizade constituíam-
se como fundamentais para os migrantes. O entrevistado José Osmir contou que o pai chegou
a Fortaleza em 1976, antecipando-se, portanto, em pelo menos dois anos em relação ao início
da estiagem. Enquanto o chefe do lar procura trabalho, os demais membros da família
permanecem no interior. Na cidade, o pai abrigava-se precariamente na casa de parentes ou
amigos ou arriscava-se em moradias provisórias nos lugares onde pareciam ser maiores as
oportunidades. Somente quando o pai arranja emprego, a família é chamada. Essa na verdade
foi a continuidade de uma antiga prática, o migrante vem e logo retorna ao lugar de origem,
prepara-se como pode e volta novamente para a cidade com o intuito de fixação definitiva.
Foi o que se percebeu também no depoimento de dona Zuleide: “Eu vim porque o
interior tava pouco chovido e a calamidade tava um pouco grande”132. Como já tinha o marido
residindo e trabalhando na cidade, vendeu tudo que tinha e comprou as passagens para
Fortaleza, onde esperava “formar meus filhos”. Observa-se nesse depoimento que a migração
pode ser vista tanto como um ato de desespero, de quem na estiagem espera garantir na capital
a sobrevivência, quanto uma atitude mais ou menos planejada, programada em família ou de
quem pretende na cidade grande constituí-la. Na maior parte dos casos, o deslocamento
significa o fracionamento provisório da família, pois a estratégia utilizada é migração
parcelar. Nesse sentido, os espaços dos bairros acabam assumindo contornos de pontos de
reencontro a partir da inserção no trabalho.
Na cidade o emprego quase sempre não é fácil. “Eu arrumei esse emprego com uma
dificuldade e até mesmo com uma briga com um juiz aqui de Fortaleza né?”133. Dona
Conceição falou que foi barrada em várias empresas; não conseguindo emprego, resolveu
procurar um juiz, pois sabia que precisava dialogar com uma “autoridade da cidade”. Nesse
depoimento, ficou evidente a importância do reconhecimento mínimo do funcionamento e
normas do mundo urbano. Mesmo sabendo que não tinha qualificação profissional para
exercer qualquer tipo de trabalho, dona Conceição foi veemente: “Tenho dois pés, duas mãos
e uma cabeça boa e uma grande vontade de aprender”. Sabia que naquele momento precisava
também recorrer à pessoa exata.
132
Entrevista concedida por Maria Zuleide do Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
133
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
84
“Leve essa carta, seu registro vai ser essa carta”134. Com a recomendação concedida
pelo juiz, dona Conceição conseguiu emprego, trabalhou durante sete anos na empresa de
pesca Ipecea, fazia o beneficiamento de vários tipos de pescado destinado à exportação. No
emprego ganhava, além do salário, uma gratificação pela quantidade de lagosta exportada:
“Nessa época eu tinha vinte anos, eu já tinha casa construída, já tinha minha casa com terreno
próprio, já tava bem”. Hoje, dona Conceição diz arrepender-se de ter deixado aquele emprego
de lado para casar e cuidar da casa, nostálgica, acredita que se “tivesse uma família
estruturada quem sabe hoje teria um negocinho”.
O conhecimento sobre a situação de moradia, a sabedoria prévia do potencial do
mercado de trabalho para as mulheres na área e o reconhecimento da importância da cultura
letradas nessa etapa da vida foram atributos essenciais. No espaço suburbano dos bairros,
ampliam-se as preocupações com as questões que permeiam a noção de cidadania. A
necessidade de ter um registro é quase sempre a primeira obrigação nessa empreitada, afinal
ser registrado é ser alguém que existe perante a lei. O registro é o pontapé inicial para a
retirada de toda documentação, em caso de engajamento no trabalho, ler e assinar contratos
são atividades básicas que servem como meio de proteção contra eventual exploração na
empresa.
No Serviluz, nos anos 80, as crianças do bairro passaram a ter seus registros expedidos
também pelas associações comunitárias locais. Aos poucos, disseminou-se a necessidade do
aprendizado da escrita e dos registros formais das relações associativas. Como a maior parte
dos pais da comunidade têm sua naturalidade em municípios fora da capital, lugares onde
pouco se necessitava desses papéis, documentos e letras podiam ser considerados
necessidades secundárias. Na cidade grande, porém, juízes, cartórios e outros mecanismos que
regulam a vida urbana tendem a assumir maior importância e a experiência do estudo na
escola passa a ser sistematicamente valorizada. Para os pais, incentivar esse aprendizado
tornou-se um elemento básico de inserção nas “regras” do jogo, condição da cultura urbana e
de quem nele pretende “vencer”.
No geral, o balanço da experiência migratória é visto como sinônimo de vitória.
Nessas memórias, no entanto, a trajetória vitoriosa parece fazer-se sempre em meio a soluços
de arrependimento e choro pela inexperiência no passado, a frustração de não ter sabido
aproveitar as oportunidades oferecidas na juventude; tratam-se de pessoas para as quais
assumir a família “saiu muito caro”.
134
Ibidem.
85
A vida na cidade certamente não diminui o prestígio pela vida familiar. Para muitos
depoentes, a idéia do “fui resgatando a minha família” aparece como um desejo realizado e
um motivo de profundo orgulho. O viver na cidade alimentou a necessidade de trazer os
parentes para perto. Quando isso não acontece, o mundo urbano da favela servirá de palco
para a construção de novos vínculos afetivos e para a formação de movimentos associativos
de toda ordem. Na periferia, a construção dos laços de união e a solidariedade acontecem em
meio à necessidade objetiva da ajuda mútua: “a gente foi construindo, eu trabalhei com eles as
noites, né? Botava meus filhos pra durmi e ia pra lá, ajudar a carregar tijolo e tal, a gente
construiu e eles vieram pra cá”135.
Na cidade a população pobre quase sempre mora em bairros afastados, lugares onde a
precariedade das habitações se confunde com as antigas moradias:
“Naquela época era muito bom a gente brincava de tudo, brincadeira natural, de pião, de pipa, de bila,
carrinho de lata e assim passava o dia (...) a minha casa a gente abria o quintal lá o portão de casa e via
o mar. Depois o bairro foi aumentando, aumentando e as casas aumentando também e hoje em dia o
Serviluz tá do jeito que tá” 136.
135
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
136
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.
137
“O Estado, criando o BNH, enseja amplos benefícios ao capital financeiro e ao capital imobiliário (...) a
política habitacional implantada beneficia também outros setores do capital industrial, na medida em que a
mercadoria ‘casa’, principalmente os conjuntos habitacionais, convertem-se em grandes consumidores de
produtos industriais das mais variadas linhas”. Cf.: SILVA, José B. da. Quando os incomodados não se
retiram: uma análise dos movimentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992. p. 79.
86
Os números evidenciam o surto populacional pelo qual passou a cidade, que desde
1975 passou a ter mais da metade da população vivendo na sua área urbana. Para se ter uma
idéia mais precisa, das primeiras 26.820 unidades habitacionais construídas pelo Proafa,
25.000 foram distribuídas na área metropolitana de Fortaleza e apenas 1.800 no interior do
estado.
Como efeito decorrente da migração, operou-se a proliferação contínua e crescente das
chamadas áreas marginais, depois chamadas áreas de risco, onde a qualidade de vida era
extremamente comprometida. Nesses lugares, eram bem pouco perceptíveis os benefícios
oriundos da cidade grande.
O cenário marginal configura-se sobretudo por meio das estatísticas criminais, nas
quais esses espaços emergem como pontos de violência e marginalidade, suscitando a luta
política pela construção de novas imagens eivadas da própria comunidade.
“Se alguém falar que é do Serviluz as pessoas se benzem, algumas pessoas não querem dá emprego.
Se a pessoa é preto, pobre e mora no Serviluz é marginalizado total”.
“Uns foram pro cemitério e outros foram pra cadeia e quem ficou vivo serviu de exemplo”.
“Eu já cheguei a ver o seguinte: um colega nosso na época tava cursando a faculdade e o cobrador
do ônibus queria tomar a carteirinha dele, porque não acreditava que aqui no nosso bairro tinha
gente fazendo faculdade (...) uma amiga minha também ela sofria muito assim porque ela era classe
média e vinha pra cá, a mãe dela só faltava... batia nela, ela saía escondida pra vim surfar, porque a
mãe dela dizia que ela vinha pra cá e ia se envolver com drogas e ia se envolver com mil e uma
loucuras, aqui só tinha o que não prestava (...)” 138.
138
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
88
Com o passar dos anos, a marginalidade se transformou numa dura realidade que
afetou a convivência entre os moradores. O medo expulsou muitos dos antigos vizinhos e
passou a provocar acirrados isolamentos na comunidade. Tinha acabado a época em que se
podia dormir com a porta aberta, findara o tempo dos meninos que faziam as coisas
“direitinhas” e dos garotos “bem confiantes”.
A marginalidade que passa a caracterizar o lugar também suscitou a necessidade de
encontrar pequenas estratégias para enfrentar a rejeição, o descaso e, sobretudo, o perigo
iminente da morte. A população sentia na pele os vários efeitos da situação violenta do bairro.
“Muita gente quando vai procurar emprego não bota nem Serviluz no bairro que mora, bota Vicente
Pinzón (...) Era muito triste a gente ir atrás de um emprego pra trabalhar, por a gente morar nesse bairro
aqui as pessoas já de antemão já diziam que num tinha vaga pra gente”139.
139
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.
140
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
141
Ibidem
89
“O pessoal já sabe que aqui aconteceu muita coisa”141. Há, na maior parte dos
depoimentos, a certeza de que os moradores do lugar precisam provar em dobro a sua
capacidade. No espaço do trabalho, por exemplo, foi necessária uma versátil mudança de
postura com vistas à adaptação ao sistema de competição industrial; foi preciso forçar as
empresas a valorizarem a experiência e a seriedade de pessoas simples e que, infelizmente,
estavam envoltas num universo considerado degradado do ponto de vista.
“Essa violência destruiu bastante o ramo de turismo, a rede de turismo aqui foi bastante destruída. Por
quê? Por causa da violência! Nós temos aqui uma praia bastante bonita, temos um lindo pôr-do-sol, uma
praia linda. Cadê turismo? Aqui não existe turismo. Por quê? Por causa da violência. Os vagabundos
botaram os turista pra correr, queriam robar os turista (...)”142.
“(...) Uma coisa que me deixa bastante angustiada é eu ver essa juventude, porque eu já tôu com vinte
anos aqui, quer dizer é uma vida né? Tem pessoas aqui que eu vi crescer, que eu acompanhei e hoje eu
vejo se acabando ai no crack, e eu sem puder fazer nada, isso me dá uma angústia tão grande (...) uma
boa parte da juventude não tem uma perspectiva de futuro, é uma juventude que não sonha, que não tem
vontade própria de crescer, de ser alguém na vida, mas eu acho que isso depende muito dos pais, da
família”143.
142
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
143
Entrevista concedida por Maria da Luz Oliveira Ribeiro ao autor em 18/05/2005.
90
“(...) Ele era um garotinho e tal, um menino simples e tudo, gente fina, surfava conosco. Esse garoto ele
partiu pra marginalidade, né? O cara ficou assim o ‘terror’ (grifo nosso) do bairro (...) ficou, coitado,
ficou sem cara porque atiraram por trás da cabeça dele e fizeram uns rombos na cara (...)”144.
A violência no bairro na verdade não é uma regularidade, mas tem seus períodos de
recrudescimento. Funciona como uma espécie de onda; em alguns momentos, aumenta
assustadoramente. Em certas épocas, a situação se torna mais inflamada e os nervos ficam à
flor da pele. Quando uma gangue rival invade o bairro ou quando morre algum criminoso
renomado, por exemplo, provavelmente revides sistemáticos acontecerão. Esses são
momentos de tensão que incomodam a todos, exigem certos cuidados especiais para circular
na área e produzem um prolongado estado de alerta. Nessas circunstâncias, tanto a polícia
quanto os que por ela são procurados passaram a impor constantes “toques de recolher” à
comunidade.
Nessa esteira, nas ruas e nos becos, aumentou a venda e o consumo de drogas;
adolescentes pediam ou tomavam dinheiro de quem passava, roubando e intimidando a
população. Em meio a esse clima, atravessar espaços pouco visíveis, como os becos estreitos
ou a beira da praia à noite, podia significar o fim trágico da vida. “Eu entrei no beco, se eu
fosse um rival, se tivessem me confundido, eu tinha morrido”145.
No bairro, corria-se agora o sério de risco de ser “confundido” e morto por uma
gangue. Em alguns lugares, era nítido o domínio de jovens encapuzados, desmascarando uma
triste realidade que amedrontava e envergonhava os moradores.
Ao som da música funk, bailes e festas agrupavam nuvens de jovens armados que
tomavam conta das ruas, promovendo “arrastões” por onde passavam. Nas noites de sábado,
os jovens do Serviluz se destacava facilmente entre as gangues de adolescentes da periferia de
Fortaleza, levando o nome do bairro ao topo desse circuito.
Para se ter uma idéia da situação, em alguns pontos de encontro ou passagem das
gangues, contavam-se inúmeros furtos, agressões e assassinatos, acontecidos em poucas
horas. No Serviluz não há, por exemplo, quem não se lembre do antigo Forró da Bala. Em
menos de quatro anos de funcionamento, o pequeno bar acumulava a incrível estatística de
144
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
145
Ibidem.
91
146
A pesar da violência, os bares e os clubes dançantes do Serviluz são bastante freqüentados. Além dos antigos
cabarés do Farol e das barracas de praia, alguns comerciantes locais também promoviam festas. O Bar do Surfe,
o Forró do Joãozinho, O Som do Seu Pedro, o Pagode do Luiz, o Flórida Drinks, o Clube Jamaica e outros, de
duração mais efêmera, se destacaram.
92
alcoólatras e das mães prostituídas, a adesão a esse mundo parece seduzir. Se difícil era evitar
o amargar da vida nos presídios da cidade ou afastar a morte que ronda diariamente os
habitantes da periferia, a participação nesses espaços ditos violentos produz uma espécie de
reconhecimento às avessas que encoraja e dá poder. Depois de alguns malefícios, deixa-se de
ser apenas mais um anônimo na multidão para ser um conhecido bandido da favela.
Parece existir aí, a exemplo do Farol, tanto uma triagem quanto uma mistura complexa
entre esses universos e a comunidade, de modo que a divisão simplória dentro e fora não
consegue abarcar. No dia-a-dia surgem pequenas interações, desenvolvidas em nível
microssocial, que precisam ser consideradas, pois estão na base da conformação das relações
de poder e solidariedade.
Quando se pensa, por exemplo, no turismo destruído pela marginalidade, percebe-se
que a visitação ao bairro não acabou. A não inclusão do bairro nos roteiros oficiais da cidade
turística indica não o fim, mas a criação de novos fluxos de visitação. A eliminação da
presença de pessoas endinheiradas não acabou com essa prática, mas renovou a permanência
da antiga tradição da boa acolhida voltada para “os iguais”. As territorialidades147 que o bairro
passou a abrigar criam novas formas de pensar a hospitalidade. Assumir ser do Serviluz com
orgulho é uma opção ainda hoje dúbia mesmo internamente, a imagem do medo ecoa e a
produção de uma postura valorativa desse espaço guarda sempre suas ressalvas. Mesmo
declarando o amor pelo lugar, um entrevistado lamentou que “pra vergonha nossa... assim
umas cinco a dez laranjas podres aqui do bairro tentam, insiste, em sujar a imagem do nosso
bairro”148.
Para muitas pessoas, o fim do circuito de visitação podia indicar o fim do sonho de
sobreviver dessa atividade no próprio bairro e o início de um processo de mudança que
revertesse a situação marginalizada.
“Porque chega! A gente tá fazendo o máximo pra que a área seja bem... sabe... bem vista por aí, pra que
as pessoas possam vir pra comer um pouco pouquinho de areia conosco, fazer o surfe conosco, aí tem
algumas pessoas que querem estragar (...)”149.
147
A noção de território pode ser compartilhada com Raquel Rolnik: “(...) território como uma idéia de espaço
vivido; não só um espaço geográfico delimitado, mas um espaço apropriado e constituído por relações sociais,
por relações culturais”. Cf.: ROLNIK, Raquel. Lei e política: a construção dos territórios urbanos. In: Op. cit.
Projeto História, nº. 18. p. 137.
148
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
149
Ibidem.
93
socioeconômico. A cultura popular tem uma riqueza e uma racionalidade próprias, que não
podem ser alcançadas quando se olha para o bairro com a mesma lupa da cidade que o
recrimina.
2.6 A comunidade
“Qualquer momento histórico é ao mesmo tempo resultado de processos anteriores e um índice na direção de
seu futuro” 151.
Sempre sonhei em trabalhar com os pobres. Era uma espécie de chamamento íntimo, muito
forte, a me convocar para essa missão. E o Mucuripe, certamente era um lugar muito indicado
para isso, pois aqui, naquele tempo e ainda agora, vive uma comunidade carente de tudo: de
alimento, de moradia, de educação, de assistência médica, até mesmo de uma esperança
melhor no dia de amanhã152.
150
“Trabalhos, lutas e conquistas de uma comunidade sofrida”. Cordel produzido por Maria Zuleide de Oliveira
Moura. Disponível na Associação de Moradores do Titanzinho no Serviluz.
151
THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros; uma crítica ao pensamento de
Althusser. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1981. p. 58.
152
Palavras do Padre José Nilson, vigário da paróquia do Mucuripe. Cf.: Op. cit. GIRÃO, Blanchard. p. 193.
95
do padroeiro São Pedro e o culto a Virgem dos Navegantes, são sempre celebrações
importantes tanto do ponto de vista religioso quanto do convívio social. Sempre lotados, os
festejos são momentos de devoção e sociabilidade comunitária, sendo os padres figuras de
reconhecido destaque entre essa população. Essa experiência religiosa constituiu uma
importante matriz dos movimentos de caráter associativo no bairro.
O trabalho religioso no Serviluz teve início já na zona de prostituição. O Farol tornou-
se um excelente espaço para o desenvolvimento de ações filantrópicas; para muitos, a região
era vista como sinônimo de carência tanto material quanto espiritual. O Ninho Fortaleza,
grupo pioneiro com características de voluntariado no bairro153, procurou concentrar suas
atividades assistenciais basicamente sobre as prostitutas. Mas como no Farol era praticamente
impossível desvencilhar as mulheres do restante do espaço, o trabalho da Igreja Católica,
reforçado depois com a criação das pastorais da mulher e do pescador, ampliava-se a toda a
comunidade.
Os moradores da comunidade, por exemplo, freqüentavam os cursos
profissionalizantes oferecidos pelo Ninho. Mas como foi afirmado, a relação entre o bairro e a
prostituição é ambígua. Se o trabalho paroquial muitas vezes não atraía a prostituta, os
moradores atraídos a esse universo compartilhavam ao mesmo tempo em que promoviam
abaixo-assinados para a remoção da zona para longe do bairro154.
A capacidade de estabelecer entendimentos entre as diferenças cuturais que coabitam
o mesmo espaço constitui um aspecto basilar para a compreensão da gestação de experiências
e movimentos comunitários do bairro. Nas memórias sobre os primórdios da constituição das
ações de grupo, está também a necessidade primeira de acreditar no potencial dos sujeitos
envolvidos, “porque tem morador que quando vê uma instituição, uma pequena instituição
crescendo um pouco, pensa que é brincadeira, pensa que é brincadeira, más que funcionar
funciona”155.
153
O Ninho é uma entidade internacional que presta serviços de auxílio às prostitutas em vários países. “No
Farol, (O Ninho) está sob condenação de uma equipe voluntária formada por dez mulheres, não importando, por
principio, se exercem ou não a prostituição, mas que moram na área da zona, no bairro do Mucuripe e também
em outros bairros da cidade”. Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 54.
154
“No próprio Farol, um bairro totalmente pobre, residentes, que co-habitam o mesmo espaço estigmatizado
pela sociedade envolvente, exerçam a discriminação e solicitem ao mesmo poder que também os domina, o
confinamento das prostitutas para algum lugar ainda mais isolado”. Op. cit. p. 60.
155
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
156
Ibidem.
157
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
158
Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 11/07/1982.
96
A rejeição, por exemplo, quase sempre dificultava a integração das prostitutas aos
outros moradores do bairro; o prestígio e a capacidade de liderança das proprietárias dos
cabarés, apesar de reconhecidos na comunidade, na maioria das vezes, restringiam-se aos
domínios dos prostíbulos. Entretanto, no processo de aprendizado político, as necessidades
comuns tendiam a criar permeabilidades e a impulsionar possíveis entendimentos, ainda que
significasse a total aceitação do outro.
“(...) eu só frequentava essa área aí quando era pra ajudar fazer algum enterro de alguma pessoa que
morria, ou então ajudar a tocar em algumas celebrações, missas pra elas (...) não é porque fosse zona de
pessoas errantes não, é porque num gosto de me misturar com essa classe não. Mas na hora que
necessitava de um trabalho, eu sou comunidade (grifo nosso), eu tinha que agir, eu sou igreja”156
159
HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais
referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões).
160
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006.
161
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. O reverso das vitrines: conflitos urbanos e cultura política em
construção. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed. 1992. p. 93
97
movimentos cooperativos. É antes fruto do saber feito de experiência, que ensina que o
indivíduo se encontra inevitavelmente integrado no grupo.
Entre os moradores, foi recorrente a conecção entre o princípio do processo de
organização política e a ação da Igreja no bairro. O trabalho comunitário, de acordo com os
entrevistados, começou com a união das mães em torno da distribuição de alimentos, roupas e
soro caseiro para as crianças.
“De lá pra cá a gente começou nessa luta né, a gente começou a se reunir nas ruas como um grupo de
mães que já existia e começamos a lutar com os pescadores, pedindo esmola a um, pedindo esmola nas
firmas e construímos a escola do Titanzinho, a São Pedro (...) e a gente botou o nome da escola de São
Pedro porque São Pedro era pescador”160
Nesses termos, pensar a Igreja como a força social significa atentar para sua ação, não só na
formulação restrita de uma diretriz política, mas na veiculação de idéias ou discursos que
implicam a formação de uma visão de mundo 161.
162
“A Marcha representa para o Pirambú, no âmbito de sua identidade social, o principal evento que assinala a
construção da memória coletiva da comunidade, fazendo nascer um sentimento, a partir da tentativa de torná-lo
heróico, ou seja que represenasse um fenômeno coletivo e social dentro do movimento polular de Fortaleza, que
pode ser considerado como um marco para a ação politica transformadora e histórica dos bairros pobres da
98
Eder Saber destacou que os novos personagens que emergiram na cena política
brasileira na década de 70 caracterizavam-se principalmente pela diversidade de matizes que
lhes serviam de referência. Movimentos de caráter fragmentado, de onde e quando ninguém
esperava, emergiam novas ações sujeitos coletivos, que criavam seus próprios espaços e
requeriam novas categorias para sua inteligibilidade: “não se trata de alguma suposta
identidade essencial, inerente ao grupo e preexistente às suas práticas, mas sim da identidade
derivada da posição que assume”163. A pretensão de captar a dinâmica dos movimentos sociais
e da cultura comunitária, somente através das condições materiais objetivas, evitando assim
uma análise mais específica de suas práticas, pode significar a perda do aprendizado diário
que os singulariza.
No Serviluz, o reconhecimento da diversidade de referências e matrizes se configurou
como uma realidade cada vez mais concreta e diferentes canais passaram a ser acionados em
benefício da coletividade.
Nesses cantos de praia, pratica-se não apenas o dito catolicismo oficial, não
desacreditando os jangadeiros do poder místico da natureza; a beira da praia serve também à
prática de ritos de bênçãos e manifestações de devoção à rainha e protetora do mar, Iemanjá.
Em algumas praias como a do bairro, manteve-se considerável a quantidade de terreiros de
macumba e candomblé.
Povo de origem sertaneja, essa população estabelece cotidianamente as mais distintas
relações com as forças do sagrado e o sobrenatural. Pairam crenças, por exemplo, nas quais a
realização de determinados rituais religiosos podem, também, acabar com os dramas da
vida164. Na condição urbana, o migrante não abandona sua fé e a experiência religiosa
configura-se como um instrumento na resolucão dos problemas do dia-a-dia.
No Serviluz a diversidade religiosa simboliza bem a multiplicidade de culturas que se
cruzaram no lugar. Em termos religiosos, nessa praia se adere atualmente a diferentes cultos,
sobretudo após a eclosão das igrejas protestantes e pentecostais na área. A Igreja, como
cidade”. Cf.: CAVALCANTE, Lídia Eugenia. Para onde os ventos sopram Pirambu: Memória e identidade
social. Dissertação de Mestrado Interinstitucional em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
p. 116.
163
SADER, Sader. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 44.
164
“Realizar pocissões, promessas ou roubar a imagem do santo da Igreja e só devolvê-la com as chegadas das
chuvas eram práticas de fudamental importância nas estratégias de combate à seca”. Cf.: Op. cit. RIOS, Kênia
Sousa. p.76.
165
A Assembléia de Deus foi a primeira Igreja Evangélica instalada no bairro, em 1966. Aos poucos, tornou-se
comum um conjunto de celebrações que se estendia as ruas e aos domicilios, principiando a conquista gradual de
novos adeptos. O Serviluz conta atualmente com pelo menos 12 pequenas igrejas evangélicas.
99
166
DUARTE, Adriano Luiz. Os sentidos da comunidade: notas para um estudo sobre bairros operários e
identidade cultural. In: TRAJETOS, Revista do Programa de Pós-graduação em Historia Social e do
Departamento de Historia da Universidade Federal do Ceará. v.1, n° 2. Fortaleza, junho de 2002. p.106.
100
167
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,1988. p.22.
168
GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo: Edições Loyola, 1991. p.14.
169
Op. cit. GOHN. p. 12.
170
Op. cit. p. 14.
171
Op. cit.
101
“(...) A comunidade é nós, todo mundo junto. A comunidade que eu entendo, e é, a gente tem que
trabalhar todo mundo junto, mãos dadas (...) você sabe que uma vara quebra, duas vara, três vara
quebra, más quatro, cinco, seis ela já não quebra mais (...) isso é meu entendimento, a comunidade é nós
tudo reunido, tudo unido, isso é é que é a comunidade”172.
172
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006.
173
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
Edusp, 2000.
102
No bairro, os indícios mostram que os tipos de ação política praticada não estão
diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam
conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se
constituíram. Afinal o mundo do bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas
moravam, passou a ser também o lugar onde desenvolviam-se relações de união e
solidariedade, onde acumulavam-se experiências de negociação, vivência comunitária e de
resistência coletiva.
Ainda no que concerne as matrizes dos movimento associativos, os trabalhadores dos
portos são geralmente enfatizados pela presença da categoria nas greves, pela organização
sindical e pela mobilização política dos estivadores. Todo padrão sindical parece possível na
região do porto e a mão-de-obra do cais é poderosa porque sua capacidade de fazer greve
também é poderosa, em geral, os sindicatos portuários têm uma forte tradição de militância174.
A presença dos portuários como categoria de um setor estratégico na vida do país
transformava-os, portanto, em freqüentes destinatários de uma vasta produção de discursos, o
que os tirava do anonimato do cais175.
Assim, esses sindicatos tendem a produzir uma ampla documentação que serve de
base à compreensão dos seus embates que, em grande medida, tem origem no próprio local de
trabalho. Mas no Serviluz, como foi observado anteriormente, o sindicato não constituiu foco
privilegiado de politização do trabalhador, sendo mais comum a referência à pesca e ao
trabalho da Colônia de Pescadores.
“O sindicato dos estivadores já está quase estinto (...) porque com a privatização dos
portos os sindicatos perderam a autonomia”, explica seu Natalee176. Para muitos moradores,
além da desestruturação sindical, a fadiga do trabalho constitui um grande empecílio, já que a
necessidade prática da profissionalização quase sempre limita a participação masculina nas
entidades do bairro:
“(...) O que falta meu amigo é o seguinte, o cara já chega cansado do trabalho, o trabalhador passa o dia
no trabalho, chega cansado, o pescador passa três, quatro dia pescando, chega enfadado (...) então existe
as reuniões lá no centro comunitário, mas o cara chega numa situação tão cansada que não tem ânimo
para ir a reunião. Então existem muitos trabalhos a ser feito, más a pessoa nem toma conhecimento, os
moradores, devido a tarefa do dia-a-dia”177
174
“De Santos a São Francisco, de Sidney a Liverpool, a ameaça de greve dos estivadores é ainda considerada
extremamente séria”. Cf.: HOBSBAWM, Eric J. Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. São
Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 209-210.
175
Op. cit. SILVA, Fernando Teixeira, p. 05.
176
Entrevista concedida por Natalee Ferreira de Sousa ao autor em 20/05/2005.
177
Ibidem.
103
Descia eu, certa tarde, do Morro do Farol Velho, onde distribuíra uma porção de remédios com
as famílias mais carentes. Ao passar de fronte ao Pavilhão da Estiva, sede do Sindicato dos
Estivadores, recebi a mais estrondosa vaia que um homem já tenha recebido. Havia, na época,
um grupo radical de extremistas, de comunistas intolerantes, que resolveram me hostilizar
gratuitamente. Afinal, eu não os agredia, não os combatia, nem se quer tomava conhecimento
das atividades deles178.
178
Palavras do Padre José Nilson, vigário da paróquia do Mucuripe. Cf.: Op. cit. GIRÃO. p. 197
104
“Eu como liderança eu tenho contato com todo mundo. Eu tenho meu partido, mas eu não tenho que me
atrelar em partido algum, eu tenho que trabalhar em benefício da comunidade (...) a minha
reivindicação, eu tenho que pedir benefício pra comunidade (...) por isso eu tenho amizades com todos,
o meu trabalho é comunitário, é pela associação, é pelo povo (...) aqui é aberto pra todo mundo” 182.
Dona Mariazinha acumula mais de quarenta anos de prática comunitária onde adquiriu
contato com diversos políticos, trabalha como responsável não apenas pelo Serviluz, mas
participa de diversos conselhos populares na cidade. Participou da fundação da Federação de
Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), em 1980, e se tornou uma referência no movimento
popular no estado183.
De modo geral, a participação dos moradores na luta pela melhoria social é entendida
como uma forma de valorização do espaço comunitário. Para os participantes, o engajamento
correspondia a um momento-chave de participação pública em prol do bem comum:
“(...) Foi preciso fazer uma passeata, um evento assim, a gente tudo mal trajado, com roupa pior do que
a gente já tinha né? E saimo numa caminhada (...) pegando mais gente. E nós saimo e a gente conseguiu
fazer aquele posto ali né? Primeiro era uma salinha ... chegava um médico por semana, mas já era muito
que ninguém tinha nada”184
179
Estatuto disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho.
180
Pastor norte-americano que liderou a construção da Igreja Presbiteriana e tornou-se um dos pioneiros no
trabalho assistencial e educativo no bairro.
181
Depoimento de Maria Ferreira Dias, a dona Mariazinha, líder comunitária do Serviluz. Op. cit. CEARAH,
Periferia, p. 102.
182
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006.
183
Entre inúmeras viagens à Brasília e a participação em diversos conselhos comunitários de Fortaleza, dona
Mariazinha é a atual presidente do Conselho das Entidades do Grande Vicente Pinzón, que congrega 36
associações de bairros da área. A reivindicação conjunta foi uma estratégia para o aumento da representatividade
das comunidades que possibilitou a formação de parcerias importantes, como às desenvolvidas com a Petrobrás.
184
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
105
“(...) eu tenho essas coisas tudinho notado, tenho o dia que foi aberto a programação do posto (de
saúde), tenho o dia que veio esses posto (de eletrecidade), tenho o dia da inauguração do chafariz ali na
rua da frente”185.
“(...) Nós da comunidade do Serviluz vinhemos solicitar soluções para a retirada da areia que está nos
atingindo bastante, já caiu casas, outras estão enterradas. A areia está causando doença, ninguém não
consegue dormir, nem comer, diante das condições que estamos. Cada vez mais piorando ainda mais
devido à época do vento” 186.
185
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
186
Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 10/11/1982.
187
Ibidem.
106
188
Apesar disso, nos depoimentos, foram constantemente lembrados nomes importantes para as associações,
como o do seu Manoel de Paula, mais conhecido como “galo velho”, e o do seu Francisco de Assis,
recentemente falecido. Esses homens foram presidentes da Colônia de Pescadores do mucuripe e principiaram a
gestão de parcerias entre a comunidade e as entidades de pesca.
189
Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 11/07/1982.
190
Cf.: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
107
Capítulo III
“Cumpre saber que o vento é compósito. Acredita-se que o vento é simples; engano. Essa força não é
somente dinâmica, é química; não é somente química, é magnética. Tem alguma coisa que é
inexplicável (...) o vento é cheio de mistério. Do mesmo modo que o mar. Também ele é complicado;
debaixo de suas vagas de águas, que se vêem, há outras vagas de força, que se não vêem. Compõe-se
de tudo. De todas as misturas, a do oceano é a mais invisível e a mais profunda. Tentais conhecer
esse caos que vai ter ao nada. É o recipiente universal, reservatório para as fecundações, cadinho
para as transformações (...)”.
(Trabalhadores do Mar, Victor Hugo)
191
Carta disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho.
192
Em 16 de agosto de 1990, foi celebrado um acordo entre o Fundo das Nações Unidas e a Associação de
Moradores do Titanzinho, no qual se aprovava um pedido de ajuda financeira para a comunidade e seus projetos
sociais. Via representação do Unicef no Brasil, passavam a fazer parte das “Entidades e Projetos Apoiados pelo
Criança Esperança”.
193
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
194
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
109
ventos fortes varrem finas nuvens de areia que podem facilmente soterrar casas. Em alguns
meses do ano, principalmente de agosto a novembro, a areia deteriora bastante os prédios. É
senso comum na comunidade que a área do Serviluz tem a “segunda maior maresia do
mundo”, que a concentração dessa substância é voraz, devora eletrodoméstico, porque
rapidamente “a maresia penetra pra dentro dos móveis, enferruja geladeira, fogão e estraga
televisão e assim vai... ”196. Ali, objetos e corpos desgastam-se na contínua combinação dos
elementos da natureza.
No caso da reforma da Escola São Pedro, localizada à beira mar, o solo arenoso fazia
ceder as paredes, o vento quebrava as telhas e a movimentação das dunas progressivamente
soterrava a estrutura física da escola.
A luta contra as intempéries se amplia de modo sazonal, notadamente durante o
período das ressacas da maré, nas enchentes trazidas pelos meses de inverno e na época dos
ventos intensos, entre agosto e outubro. Se as manifestações da natureza são sazonais, os
dramas dos moradores contra seus efeitos podem ser vividos diariamente. Uma entrevistada,
cuja casa já havia desabado uma vez, observou que nas reuniões de ruas se lutava quase
ininterruptamente, a fim de se evitar a areia que caía nas casas. A preocupação novamente
recaía sobre as crianças, devido aos altos índices de mortalidade e doenças entre os meninos
do bairro; a areia podia anunciar a morte.
“Dava diarréia, pneumonia, vômito e chegaram a morrer. Vários caixõezinhos eu fiz devido essa crise
de diarréia que aparecia nas crianças, uma calamidade muito grande! (...), olhe, era muito crítico, muito
sofrido. Eu via calamidade das mães chorando, limpando os olhos dos filho direto, chei de areia tudo.
Quando botava o feijão no fogo aqui, metade era areia. Às vezes minhas filhas:
- Não, como isso não mãe que meus dente é tudo ringindo...
Mastigando areia pura... Eu chorava. Às vezes botava um lençol por cima das cadeira e botava elas pra
comer debaixo pra na hora do almoço não comer só areia” 197.
Dona Zuleide comprou sua casa, um pequeno “localzinho”, de um morador que não
mais agüentara o peso da areia e a poeira das pedras. A ameaça de desabamento deixava todos
em constante atenção. Além disso, a areia nos alimentos, o acúmulo de lixo na praia e os
poços artesanais cavados próximos às fossas propiciavam afecções de toda ordem. Entre os
moradores mais próximos do mar, fazia-se necessária a realização de pequenos improvisos
diários. “Aí o pessoal faz o quê? Descarrega areia com carrinho de mão, outros agoam, outros
195
Cordel produzido por Maria Zuleide de Oliveira Moura, disponível na Associação de Moradores do
Titanzinho.
196
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
197
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
111
bota planta, bota palha pra ver se diminui, mas todo ano a mesma coisa”198. A experiência
concreta com um meio natural que pode mostrar-se hostil torna também esse um espaço
marcado pela inventividade popular, capaz de amenizar os transtornos e reverter situações
adversas.
Diferentemente da ameaça proporcionada pelo fogo, o enfrentamento diário das águas,
dos ventos e das areias já existiam antes da chegada desse povo à região. A questão é que
estes elementos se transformaram em problemas comprometedores com a intervenção e
ocupação humana. A construção dos espigões e a edificação de novas habitações,
ecologicamente irregulares, evidenciaram também a força da natureza local. Para se ter uma
idéia da potência da ventania, vale lembrar que em 1996, na área da Praia Mansa, foi instalado
o equipamento para obtenção de energia através da força dos ventos199.
As dificuldades e aventuras envolvendo a natureza também emergem com certa
facilidade e entusiasmo nas narrativas dos moradores. Grande parte dessa população veio dos
longos 573 quilômetros de litoral cearense para “tentar a vida” em Fortaleza. Na cidade,
morar nos morros e na beira de praia para muitos não era exatamente uma novidade. Na nova
habitação urbana, exercia-se a permanência de práticas antigas, como o hábito de caminhar
longos trajetos ou cavalgar. Para subir a parte mais baixa de um morro, era preciso andar; em
alguns locais, a duna era tão alta e tão íngreme que praticamente impossibilitava a chegada à
porta de casa sem uma caminhada enfadonha.
Dona Conceição200 contou que, apesar de ter nascido em Camocim, onde a praia era
“bela” e a areia “bem grossa”, e não “fina” e “voadora” como a do Serviluz, nunca gostou de
morar no litoral. A entrevistada acredita que, somente por ironia do destino, ela agüentou não
apenas morar a vida inteira na praia como também, chegando à cidade, trabalhar em um
frigorífico com produtos marinhos durante sete anos, casando-se ainda com um pescador com
o qual teve três filhos.
“Sempre o destino me castigou com isso aí (...) olhe eu vou dizer: pra mim foi a necessidade, tá
entendendo! pra mim foi muita necessidade que me deu muito a importância de eu resistir essa coisa
que eu não queria (...)”201.
198
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
.
189
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
199
Instalado pela Companhia Energética do Ceará (COELCE) em 1996, o Parque Eólico é composto de quatro
geradores de 40m de altura e 300kw de potência cada. Cf.: Museu do Jangadeiro no Farol do Mucuripe
200
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
201
Ibidem.
112
Há, nesse caso, o entendimento da condição praiana como uma experiência de suma
importância. Há também o desenvolvimento de certas sensibilidades que tornam os moradores
capazes de distinguir detalhes, aparentemente secundários, por exemplo, na composição do
solo. Se para alguém de fora a areia da praia pode aparentar ser tudo igual, para os que
convivem diariamente com seus efeitos, essa é uma observação no mínimo importante.
A questão é como as pessoas foram constituindo diferentes modos de apreciação da
natureza que as envolvem. Prazer ou obrigação, a condição de se relacionar de forma mais
direta com o meio na verdade é uma experiência já adquirida por boa parte dos migrantes que
chegaram ao Serviluz. Além dos antigos habitantes da Praia Mansa, muitos moradores do
bairro eram provenientes de morros ocupados nas proximidades202 e enfrentavam situações
como os riscos de erosão e o perigo decorrente da enchente das marés.
“Então essa área aqui começou porque o Titan Velho (Praia Mansa) foi invadido pelas águas, e o
governo com medo, a Capitania com medo de o pessoal anoitecerem vivo e num amanhecerem que o
mar tava crescendo muito, tomando os paredão (...) pra gente atravessar nas marés grandes era um
sufoco. A gente ia enxuto e voltava molhado porque o banho era certo. Maior perigo! Então, aí eles
mudaram o pessoal pra essa área, e foi se localizando, aumentando e duma família trazendo outra e
assim sucessivamente (...)”203.
Quem chega a Fortaleza e se desloca para essa região precisa considerar como fatores
cruciais de moradia a situação ambiental, a localização, a natureza do espaço.
Tradicionalmente essa região foi de pesca e outras atividades, profissões que apresentavam
uma forte interação com o meio em que se trabalha. No Serviluz a prática do surfe deu uma
continuidade renovada a essa tradição em que natureza, trabalho e cultura se fundem.
A natureza transformada em selvagem, talvez pela maneira grosseira como foi
modificada, dificultou inclusive a montagem do porto e da indústria. No decurso das obras,
bem como no processo constante de manutenção, a natureza avaria sem tréguas os prédios e
equipamentos das fábricas, os elementos naturais impõem também os seus impasses à
modernização; muitas vezes, é o próprio ambiente alterado que expõe as contradições e furos
do processo modernizador.
Mas, contrariando as revoltas da natureza, o desejo industrial burguês se projeta sobre
os recursos naturais, transformando-os a serviço do sistema capitalista de exploração. A
enseada foi desastrosamente aproveitada por ocasião do porto. Nos anos cinqüenta, a
202
Castelo Encantado, Morro Santa Teresinha, Morro do Teixeira, Morro das Placas, Lagoa do Coração, Favela
da Sardinha, Favela do Marrocos, Favela do Luxou, parte do Papicu e da Praia do Futuro, entre outras, são
regiões de dunas ocupadas trabalhadores migrantes na parte leste de Fortaleza.
203
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
113
204
Informativos Cearáportos, ano III, nº. 15, out./nov. 2003.
114
205
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 30/06/2006.
206
Entrevista concedida por Natalee Ferreira de Sousa ao autor em 20/05/2006
115
207
Brincadeira, lazer entre amigos geralmente regado a bebidas e comidas angariadas no coletivo.
116
Desse modo, da relação dos homens do local com a natureza emerge também a
desarmonia. Nas memórias surgem tanto as imagens do paraíso quanto as do inferno. A
ambiência perigosa tem como marca os constantes riscos e acidentes banais. Ao longo do
tempo, as histórias de garotos distraídos, vitimados em acidentes fatais, se espalharam. Bater a
cabeça ou escorregar numa ponta de pedra ao tomar banho não é fato raro. Sabe-se que é
preciso conhecer em pormenores os locais propícios para mergulhar, ter noção dos acessos
mais práticos, saber reconhecer as melhores “locas”208.
Se há controvérsias sobre os desígnios da natureza e as relações do homem com o
meio, há igualmente uma contradição sobre o valor econômico atribuído às casas da beira
mar. Nessa parte do litoral, operou-se uma lógica de ocupação em que as residências mais
próximas da praia são as mais vulneráveis às intempéries naturais e por isso menos
valorizadas comercialmente. Como não interessa aos trabalhadores de maior poder aquisitivo
morar diante do mar, as residências à beira da praia continuam sendo as mais rudimentares em
matéria de arquitetura e segurança domiciliar.
Mesmo nas casas das ruas principais, é comum que, para amenizar o cair da areia nos
cômodos, as telhas sejam forradas com um tipo de lona plástica. Mas nem o plástico elimina a
estranha sensação do cair da terra sobre o corpo, que sente facilmente a idéia de habitar um
lugar cuja natureza se revela ímpar.
Seja como local de moradia, seja como meio de trabalho, seja para fins de lazer, as
nuanças geográficas interferem diretamente no dia-a-dia da população, aguçando
sobremaneira as sensibilidades.
Do teto emplastificado sob o qual se dormia ao chão movediço sobre o qual se pisava,
os elementos naturais deixam suas marcas no cotidiano do lugar. Até há pouco tempo, as
areias das dunas infestavam de pulgas os pés das pessoas; quando se olhava para os dedos de
uma criança, notava-se que estes estavam repletos de buracos deixados por bichos-de-pé. As
pulgas migravam da areia, alojavam-se no corpo e penetravam na carne.
Em algumas falas, a deficiência socioeconômica devia ser superada pela própria
utilização racional do ecossistema, a mediação entre consciência dos valores humanos e a
natureza, o mutualismo com o ambiente, o aprendizado do espaço como impulsionador das
transformações sociais necessárias.
Nesse contexto, parte da juventude passa a expressar os problemas e a cultura local em
sua mutiplicidads, o entendimento de cultura pode não mais se restringir ao microcosmo do
208
Cavernas esculpidas entre as pedras, algumas conseguem abrigar cerca de oito pessoas.
117
bairro, ainda que o espaço contenha os elementos essenciais de sua formação, mas se baseia
na integração da comunidade ao planeta:
“(...) Se propunham como objectivos não uma mera melhoria das condições materiais de vida dos
trabalhadores, mas sim a procura de satisfações mais elevadas, satisfações essas que se tornariam mais
acessíveis após a obtenção de um mínimo de condições materiais”.
(Richard Hoggart)
“O bairro tem sua infãncia , juventude e velhice. Esta, como a das árvores é a quadra mais bela, uma
vez que sua memória se constituiu”.
(Ecléia Bosi)
209
Letra da música “Tudo” do cantor local Eduardo Lenda.
118
Durante esta pesquisa, constatou-se que o Bairro Serviluz foi constituído em meio à
uma série de transformações urbanas. Esse espaço deixou de ser somente um povoado onde o
fogo significava luz. De modo curioso, a denominação do bairro popularmente quase não é
atribuída a usina de energia elétrica, usualmente, atribuí-se o nome do bairro ao letreiro do
ônibus. Se no plano industrial o Serviluz foi um projeto fracassado em termos de geração de
eletricidade, no plano cultural, essa comunidade fomentou experiências sociais bastante
iluminadas.
Ao tempo dos cadeeiros e velas, sobreveio à época dos refletores. A lua e as estrelas já
não iluminavam a contento os caminhos em terra, e a chama do fogo se tornou uma severa
ameaça. Com o passar dos anos, os postes de eletricidade já não eram suficientes somente nas
ruas e estabeleceu-se a necessidade da iluminação noturna na praia. Ali, se havia adquirido
uma certa sensibilidade para a luz elètrica e desenvolvido o gosto do uso noturno do espaço.
210
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
119
“Mas graças a Deus que quase todo mundo já tem o seu emprego digno, as condições de moradia tão
melhor, ninguém mora mais em casa de tábua, todas são de tijolo. Vinte anos de conquista eu tô vendo
o resultado”212.
Nas construções, aos poucos, os moradores passaram a não mais utilizar as mãos para
modelar o barro da taipa; entrou em cena o tijolo. Este passa a ser assentado com os braços e
os utensílios de trabalho do pedreiro, instrumentos de um profissional cada vez mais
requisitado na comunidade. No decorrer dos anos, substitui-se a madeira pelo tijolo e a pedra,
o barro pelo cimento e a cal, a palha pela telha, o chão de terra batida pelo cimento, frio e
úmido.
211
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006.
212
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
120
uma vez empreenderam uma enorme batalha pela retirada da areia e reconstrução das casas.
Travou-se naquele momento uma longa peregrinação nos órgãos públicos: passeatas,
documentos, abaixo-assinados, denúncias nos jornais e na televisão.
Os documentos arquivados na Associação de Moradores do Titanzinho indicam que,
depois de acirrada luta, um projeto da Prefeitura de Fortaleza previa a reconstrução de 585
casas, a ser realizada progressivamente em quatro etapas, atendendo de imediato os casos de
maior urgência213. Apesar do projeto e do início das reconstruções, as obras emperravam
constantemente; em1985, um novo documento foi remetido à prefeita da cidade, solicitando o
recomeço imediato das obras. Novamente o inverno se aproximava e algumas famílias, a
serem contempladas nas últimas etapas do projeto, ainda permaneciam abrigadas em barracas
de lona, fustigadas pelo calor excessivo do sol durante o dia e pelo frio intenso à noite.
À exceção dos prédios destinados aos cabarés do Farol, essa foi certamente a primeira
grande invasão das casas de alvenaria sobre as areias do bairro. Inserindo-se nos projetos
habitacionais públicos, organizada em associações de moradores ou construindo sob o regime
do mutirão, a população angariava recursos de toda ordem; resistia, reedificava e procurava
viabilizar condições mínimas de segurança e salubridade no meio do areal, exigindo
habitações mais resistentes.
Visualizando o bairro através da conformação arquitetônica urbana, observa-se que,
até o início dos anos 90, mais precisamente em 1994, ano em que começaram as obras do
Projeto Sanear do Governo do Estado, ainda não havia calçamento nem esgoto214. Somente
nesse período as pedras, há tempos transportadas pelos retirantes, e o asfalto, há anos
produzido na fábrica localizada ao lado, começavam enfim a solidificar as ruas. Com as vielas
pavimentadas, muitos becos foram fechados, as residências receberam ligação domiciliar de
esgoto, a iluminação foi reforçada e um calçadão que ligava a orla do Serviluz à da Praia do
Futuro foi construído. No discurso do governo, a favela tornava-se bairro. Nos depoimentos, a
urbanização se fazia eivada de contradições:
“(...) tem rua asfaltada já hoje, quer dizer, é bom é não é né? Por um lado é bom, é bonito e tudo, mas ai
já há o sofrimento da galera com o calor e aquele negócio todo, quintura, outros tipo de doença na
pivetada (...) tem o Sanear também, muito bom o Sanear, mas só que os cara mete na goela, tu gasta
quinze reais de água, gasta mais quinze de esgoto numa coisa que já tá ali, que não precisa fazer nada. A
213
Documento disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho.
214
O Projeto Sanear foi iniciado na gestão de Ciro Gomes, com um discurso ‘mudancista’ seu governo
introduziu consideráveis melhorias sanitárias em Fortaleza. A idéia do Sanear era a implantação de 1.025 km de
rede de esgoto, cerca de 148 mil ligações domiciliares, que beneficiariam mais de 700 mil pessoas. Sobre
atuação dos “Governos das Mudanças”, cf.: GONDIM, Linda Maria Pontes. Clientelismo e modernidade nas
políticas públicas – Os “governos das mudanças” no Ceará (1987-1994). Fortaleza: Ed. UNIJUÍ, 1998.
122
coisa mais difícil é fazer a manutenção aqui, uma galera todinha pagando Sanear e mal vem o Sanear
aqui desentupir um esgoto ”215.
Após a urbanização, não demorou muito e a areia tomou conta de tudo novamente, a
calçada sumiu e o tráfego de veículos nas ruas da praia já não era mais possível. Chegar à
beira da praia motorizado só acontecia se fosse sobre as rodas de um trator, a máquina
derrubava sistematicamente os morros, mas não adiantava, a “areia vem do mar”, acreditam
alguns moradores.
Nas ruas principais do bairro, algumas paredes haviam sido feitas de tijolo e, em
detrimento das ruas da praia, prevalecia a construção de alvenaria. No decorrer do tempo, a
população do bairro foi progressivamente melhorando seu poder aquisitivo e, mesmo nas ruas
consideradas secundárias, a casa ganhou reforço arquitetônico. Nos nomes das ruas (ver
mapas), misturam-se termos relacionados à natureza, homenagem a políticos importantes para
o bairro e a forte religiosidade do povo; nomes parecem revelar a própria diversidade que
compõe a história dessa ocupação.
A distribuição das casas entre essas ruas se deu de forma desordenada, becos estreitos
e vielas tortuosas eram a condição geral. A partir das obras do Sanear, correções foram feitas
e as transformações se espraiaram, mudando a fisionomia espacial do lugar.
Antes dessas intervenções, os becos dominavam como forma mais prática de acesso.
Era quase impossível não utilizá-los. Por eles se chegava mais rapidamente, cortava-se o
caminho para qualquer destino nos arredores; os que não os conheciam se perdiam facilmente
entre suas entradas e saídas. Pelos becos, ia-se da rua principal, que margeia os terminais de
gás do complexo industrial, em direção à beira da praia, atravessando e furando praticamente
todas as ruas do bairro. Seguindo através dessas pequenas passagens, secretas para os que não
dominavam a paisagem irregular, passava-se sem ser visto. O próprio delineamento físico do
beco transformou seus contornos em espaços singulares, conferindo-lhes múltiplos usos
sociais e ao mesmo tempo acentuando seu caráter de perigo e isolamento. Nesses lugares,
processavam-se nascimentos e óbitos.
Quando o projeto de urbanização foi implantado, porém, boa parte dos becos não
podia ser eliminada. O desenho original do projeto não previa que um só beco podia
comportar inúmeras famílias e que não era possível isolá-las completamente. Alguns
abrigavam dezenas de casas e o pequeno corredor continuava sendo o único caminho possível
para a rua.
215
Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.
123
216
JOHNSON, Steven. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, célebros, cidades e softwares. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 62.
217
Op. cit. p. 68.
124
218
Árvores típicas de praia que produzem pequenos frutos comestíveis, mas que são pouco apreciados. A sombra
é sua maior utilização.
125
219
Entrevista concedida por Maria Zuleide Moura de Oliveira ao autor em 01/01/2003.
220
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
221
Entrevista concedida por Maria Zuleide Moura de Oliveira ao autor em 01/01/2003.
126
o cardápio e a mistura do dia. O cotidiano alheio pode ser inalado pelas frestas. Os vizinhos
acabam se responsabilizando mutuamente pelas moradias. Se não há ninguém em casa, é
preciso que um dos moradores mais imediatos esteja sabendo, deixá-lo atento e vigilante é um
ato de prudência.
Em alguns momentos, parece existir a necessidade de tornar público o conteúdo de
acontecimentos que se passam entre as quatro paredes de um domicílio. A alvenaria não
impediu exatamente a transmissão de informações entre a rua e o lar, entre aquilo que é
público e aquilo que deve ser privado.
O fato é que melhorar a condição de moradia passou a significar muito nesse contexto.
O próprio mercado imobiliário descobriu a necessidade que os operários tinham de realizar o
famigerado sonho da casa própria e a sofrida realidade encontrada nos lares de palha e barro
se tornou um prato cheio para determinados setores da construção civil. Ao mesmo tempo,
como foi dito, o dinamismo e as demandas desse mercado acabaram abrindo espaços para
novas profissões e ocupações entre as classes sociais de baixa renda. É um ciclo que não
parou de crescer.
As construções de alvenaria, no entanto, demoraram algum tempo para se impor como
a arquitetura principal do bairro. A não ser em situações em que se conseguiram doações,
como nos calamitosos episódios de enchentes e desabamentos, a renovação das habitações foi
um trabalho basicamente lento e familiar. Pequenos reparos, uma arrumadinha, de uma
população que passou a assimilar melhor as noções de acúmulo e criou a necessidade de
economizar, de guardar um pouquinho para mudar o lugar em que se vive.
Alguns fatores concorreram sobremaneira para tal mudança: a necessidade de se
firmar numa terra de propriedade da União Federal, afastando o fantasma do despejo pelas
ações do Estado ou da iniciativa privada; a diminuição dos transtornos ocasionados pela
natureza e a possibilidade de aumentar a fruição desta; a precisão de se resguardar do próprio
crescimento assustador do lugar que assumiu a rotina da criminalidade das ruas; e o desejo de
não apenas sobreviver, mas viver dignamente após anos de trabalho no mundo urbano.
A mudança material é somente uma aponta do ice berg, pois nesse espaço operou-se
também uma mudança cultural tão ou mais significativa. Uma mudança certamente lenta e em
permanente exeução. As atitudes básicas da população trabalhadora aparentemente se mantêm
sem grandes alterações. A diferença reside principalmente naquilo que Hoggarth classificou
como “mudanças de atitudes-para-com-as-atitudes”222. No Serviluz, as novas tendências e os
222
Op. cit. HOGGART, p. 81.
128
“Eu nasci aqui em Fortaleza e a maior parte da minha vida foi na beira da praia (...) Eu tenho um
interesse muito grande por esse bairro porque é um bairro que ao chegar com onze anos de idade eu me
apaixonei por esse bairro”224.
223
Letra da música “Décadas Passadas” do grupo Farol RAP, do Serviluz. Autores: Gean Carlos Serafim,
Tanqredo Alves Morais, Paulo Maurício de Oliveira e Jorge Rafael.
129
importância do mar para a sua vida. O fato de morar perto da praia entre os surfistas,
contrariando o senso comum do bairro, constituía um imenso privilégio. Os praticantes desse
esporte facilmente expressavam o amor pelo lar e a satisfação de ter à porta de casa um
espaço excelente para a prática do surfe.
Fala-se de uma geração que nasceu e cresceu num bairro litorâneo, mas, morando na
beira da praia, não desejou seguir a tradicional profissão dos pais. Diferentemente daqueles
que aderiram aos novos postos de trabalho que surgiam na região, continuaram optando pela
vida no mar. Não mais se arriscavam nas temerosas pescarias, mas desenvolveram o gosto
pela “adrenalina de estar dentro d’água competindo”225.
O gosto pelo mar no surfe se configura como uma condição fundamental. Na praia do
Titanzinho, no Serviluz, há entre aqueles que surfam o reconhecimento de que, ao chegar ao
bairro, se estabelece um contato muito intenso com a natureza, a natureza é concebida como
provedora de numerosos benefícios.
“Se o menino tá dentro d’água o que ele tá vendo dentro d’água! Tá vendo uma gaivota que tá
passando, tá vendo um peixe que tá passando, uma tartaruga... ele já começa a ter assim noções de
oceanografia, começa a observar mais os astros, sabe que na lua cheia e na lua nova a maré é mais cheia
ou mais vazante e pode dá onda, qual a época do ano que tem a melhor onda, já começa a se preocupar
com a onda assim... vai esperar o dia que o mar tá mais perfeito e tal pra surfar. Enfim, o moleque já
começa a pensar mais na natureza, começa a ver o lado mais bonito do negócio se ele tiver dentro
d’água”226.
224
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
225
Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, ano 15, edição, 182, outubro de 2004.
226
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
130
“(...) ainda existe o pescado dos três malhos (próprio para capturar sardinhas) na área do Titanzinho
porque é um meio de sobrevivência, do pobre procurar uma sardinha pra comer com seus filhos”227.
227
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/012003.
228
Em sociedades que vivem diretamente da exploração natural, é mais perceptível a correlação entre reprodução
social e reprodução natural.
131
No bairro boa parte dos jovens que surfam são filhos de pescadores. Cresceram na
beira d’água, ajudando os pais na lida diária da praia, geralmente limpando as embarcações,
consertando redes ou executando pequenos serviços de transporte, mas vários fatores
contribuíram para a decisão dos filhos de largar a profissão do pai.
Já foi analisado como a formação de um parque industrial nos arredores, em certo
momento passou a recrutar boa parte da mão-de-obra na vizinhança. Ao chegar à idade de
trabalhar, os jovens tinham que optar entre os trabalhos disponíveis, praticamente todos
braçais; a indústria podia oferecer uma razoável estabilidade e carteira de trabalho assinada,
garantias difíceis de serem obtidas na pesca.
O fato é que a industrialização promoveu ocupações e serviços cujo ritmo de trabalho
diferia muito do emprego nos ofícios tradicionais. O surfe, no entanto, apresentava ainda
muitas semelhanças com o modo de vida dos antigos jangadeiros, sobretudo no que concerne
à interação e ao apego do homem pelo seu espaço de trabalho.
Entre pesca e surfe, porém, afloram também distinções importantes. Uma diferença
considerável está na preocupação do surfista com a manutenção dos recursos naturais. A
idéia da criação de uma consciência ecológica de preservação da natureza produziu
interferências práticas no local onde se realizava o esporte. Ao que parece, a idéia da
preservação não foi enfaticamente posta no mundo da pesca, enquanto no surfe preservar
assume formas bastante contundente. Obviamente isso não significa que o velho homem do
mar não se sentiu incomodado com as mudanças físicas no meio ambiente, basta observar a
escassez do pescado no litoral, mas pouco procurou remediá-las. Se os sindicatos e demais
formas de associações dos pescadores não enfocaram a preservação ambiental como uma
bandeira de luta propriamente dita, isso aconteceu porque essa é uma questão relativamente
recente. A idéia de uma política ecológica, por sua vez, é contemporânea da explosão do surfe
no planeta.
Como o bairro serviluz é muito populoso, o uso da força transformadora da natureza
passou a preceder de um trabalho de limpeza da praia, de conscientização ecológica no
espaço. A idéia ativa de que a praia não é uma lixeira, mas um point para o surfe, surge como
pressuposto ao desenvolvimento das habilidades corporais no mar. É o que se observa no
manifesto do grupo S.O.S Titanzinho:
A praia do Titanzinho, situada na esquina leste de Fortaleza, é o berço dos melhores surfistas
do Brasil, o melhor e mais constante point da cidade. Tema de música e famosa no mundo do
surfe pela força de suas ondas e por seus famosos surfistas. Porém, esse paraíso está sofrendo
com a poluição há muitos anos, resultado da falta de educação da maioria dos moradores e da
falta de leis que punam verdadeiramente os poluidores, os quais jogam lixo na praia causando
132
sujeira, doenças e deformação do coral. O quadro é alarmante, basta olhar a praia e mergulhar
para perceber o grande estrago causado ao meio ambiente. A água é suja e transmite micose,
isso não pode continuar assim, pois é crime ambiental e prejudica a todos que têm no mar sua
fonte de sobrevivência e lazer229.
“Você não pode depender só de uma profissão que é curta, né? Se você tivé no auge, no topo você
ganha (...) do salário mesmo você não faz um pé de meia, geralmente dos prêmios né? Se for
profissional então o surfe é bom, mas é bom que os jovens que almejam ganhar tudo na vida com o
surfe pense melhor né? Que só o surfe ele não vai ter uma vida estável não”230.
229
O grupo S.O.S Titanzinho foi criado por surfistas locais e procura despertar um censo de preservação
ambiental no bairro. Documento disponível na Escolinha de Surfe do Titanzinho.
230
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
133
mar ganharam tecidos sintéticos. Nas águas, a manutenção do estilo de vida, entrelaçado ao
meio, ganhou nova roupagem, renovando uma tradição capaz de adaptar-se, ou recriar-se, em
função dos novos tempos.
O universo do surfe constitui-se a partir de palavras como estilo, ousadia,
originalidade e determinação. A própria história do surfe é narrada nas publicações
especializadas, através das grandes façanhas, dos recordes e das narrativas heróicas dos
grandes vultos enfrentando grandes ondas. A fama é um componente importante no “esporte
dos reis”232. De fato, descer em ondas com vários metros de altura faz desse esporte uma
prática bastante arriscada, há o perigo real dos corais de pedra ou mesmo o risco de acidentes
com o próprio equipamento. As marcas nos corpos novamente servem de testemunho.
Nas revistas especializadas nesse esporte, a radicalidade do surfe se concretiza no forte
apelo às imagens dos competidores. As páginas se compõem basicamente de fotografias, que
ocupam a quase totalidade (ou mais) de uma página. Destacam-se os movimentos bruscos e
velozes dos homens desafiando a natureza; o próprio espaço geográfico é uma peça
fundamental na composição da imagem. No surfe, o cenário pode, inclusive, definir o
desempenho dos atletas.
No Serviluz, esse esporte constituiu-se como propulsor de cultura e redes de
sociabilidades; o surfe também se caracteriza pelas territorialidades que o definem. É
justamente o que ocorre em certos espaços urbanos, como a praia do Titanzinho, os quais são
tomados por indivíduos, pelas relações específicas entre eles estabelecidas. Sendo essas
relações de disputa, conquista, poder e dominação, está criado o contexto em que o espaço se
torna um território a ser criado e disputado233.
Apesar da imagem, aparentemente equilibrada e saudável, o esporte ainda aparece
carregado de pesados preconceitos.
“(...)chegaram uns cara de fora aí, uns caras ai de São Paulo e disseram: - rapaz tem que tirar a galera do
Titanzinho que a equipe tá muito favela. Vamo tirar a galera todinha do Titanzinho que a marca tá
muito favela. E olhe que nessa época a gente tinha os melhores daqui e a gente tava levantando a
marca”234.
Mas a prática desse esporte na periferia urbana de Fortaleza emergiu como mais uma
possibilidade concreta de inserção social. E, à medida que se formou uma espécie de escola
231
Cf.: Revista Veja, 23 de fevereiro de 2005. p. 89.
232
Remete a origem mitológica do esporte, na qual o surfe teria nascido entre os reis das Ilhas da Polinésia,
dando ao surfe um aspecto de ritual sagrado.
233
AZEVEDO, Diego Paula Pesssoa. Fora ‘haole’: um estudo sobre cultura e terrrtorialidade no surfe.
Monografia do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: 2003. P. 25.
234
Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.
134
local, muitos surfistas se profissionalizaram e ganharam dinheiro. No entanto, fora dessa praia
de sucesso, procurei também os depoimentos dos jovens da mesma comunidade que não
lograram êxito no esporte; na verdade, a maioria.
A partir do êxito de alguns competidores locais, os jovens do Titanzinho tornaram-se
figurinhas carimbadas em revistas e demais publicações especializadas no esporte. Uma
questão sempre recorrente nessas reportagens era o amargo reconhecimento do percurso
vitorioso desses atletas; na mídia ficava sempre a interrogação: como era possível um menino
chegar tão longe, vindo do lugar tão pobre e violento no qual ele nasceu? Na concorrida
disputa por títulos, parecia impossível que de um lugar tão precário pudessem sair tantos
talentos e estrelas.
“(...)tinha um cara que sempre fazia umas matérias e sempre colocava o Titanzinho lá em baixo. Só
falando de porco, de praia suja e não sei o quê... Até camisa o cara fez pra vender com o nome do
Titanzinho, ai tinha um porco e uma fese desenhada na camisa(...) ai por causa disso eu discutir com
ele, bota um cara surfando, uma coisa melhor. Toda vida que você abria o jornal tava lá o cara falando
mal do Titanzinho. A sociedade não vai ler isso aqui não, a sociedade vai vê se você botar uma
manobra, um tubo”235.
No futebol, se o cara não está jogando bem eles tiram e colocam outro. No surfe não, quem for
mais bonitinho está com patrocínio. O cara dá um aéreo e fica com a prancha cheia de logotipo
(...) Foi de repente, já competia enquanto meus amigos jogavam futebol. Sabia surfar e jogar
bola, mas tive que escolher. Hoje vejo que através do surfe conheci outros países e estados, já
meus colegas do futebol ainda não saíram do Titanzinho236.
A trajetória árdua é regra geral. No Serviluz, o surfe não teve um começo tão rico e tão
nobre. O surfe no início era marginalizado, hoje é uma profissão; muitos atletas sobrevivem,
outros somente sonham. Esse esporte também era extremamente caro, inacessível, para as
condições financeiras da população local.
Ao que tudo indica, o surfe explodiu do Havaí para o mundo no início do século XX,
chegando ao Brasil nos anos 1940, quando as pranchas eram ainda fabricadas de madeira oca.
Com a intensificação da sociedade de consumo e a adesão aos esportes de massa, o surfe se
235
Ibidem.
236
Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, ano 15, edição, 182, outubro de 2004.
135
estabelece no Ceará nos anos 1970. Na década de 80, contudo, era restrito o acesso às novas
pranchas feitas de fibra.
“Aqui no Titanzinho então, meu, na década de oitenta não tinha prancha de fibra, tinham pranchas de
fibra as pessoas ricas que tinham sua prancha e que de forma nenhuma emprestava, né?, não
emprestava” 237
“Eu aprendi a surfar em cima de um pedaço de madeira como quase todos os garotos daqui. Aos trancos
e barrancos eu pegava uma tábua, serrava e fazia uma prancha (...) a gente conseguia uma carteira de
cigarro e ia prum prédio desses na Praia do Futuro ou lá no Náutico ali, e trocava por um pedacinho de
tábua e aí fazia a gente fazia nossa pranchinha. Quando eles não dava a pranchinha pelo cigarro aí o
jeito era a gente tirar essa tábua e sair correndo, ou então serrar a porta da casa da nossa mãe”240.
“O começo com o surfe foi desde lá do Mucuripe (...) veio naquelas taubinhas que a gente chamava de
sonrisal né? Na praia, jogava a tauba na beira da praia e pulava em cima. Naquela época no Mucuripe
ninguém surfava de tauba na onda não. Na época, jogava no chão e pá... pulava em cima, saia
deslizando na areia. Aí quando cheguei aqui no Titanzinho vi a galera surfando de tauba em cima da
onda, aqui era mais desenvolvido, a galera do Titanzinho já surfava na onda mesmo”241.
Observa-se que deslizar sobre a madeira era inclusive o aprimoramento de uma antiga
prática da pesca, das embarcações que, para atingir a terra firme, precisam cruzar a
arrebentação das ondas. Nesse processo histórico, a habilidade em reutilizar os elementos do
dia-a-dia, constituiu um aprendizado fundamental, capaz de produzir emergências essenciais à
população.
237
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
238
Manobra em que o surfista fica dentro da onda. Cf.: Surfinário em anexo.
239
Surfista local ganhadora de vários títulos nacionais e uma das poucas atletas do país a participar do circuito
internacional, o Word Championship Tour (WCT). Tita Tavares e Fábio Silva, detentor de vários títulos
nacionais, são os mais renomados surfistas do bairro.
240
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
241
Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.
136
242
Jornal O Povo, em 22/08/82. p.07.
137
corpos torneados dos atletas locais, para se reverter a imagem denegrida do Serviluz,
sinônimo de mazela urbana, e faze-la flutuar em novas memórias.
O surfe, a exemplo de muitos outros projetos sociais ali desenvolvidos, era uma forma
de provar que o bairro não era somente feito de grandes problemas, de mostrar o nosso
potencial e deixar claro para os de fora do bairro que “aqui tem pessoas que prestam”243.
Essa reversão, no entanto, é entendida como um processo lento. Os garotos tinham
dificuldades em desenvolver essa prática, antes de tudo porque os pais não aceitavam a idéia.
Surfar, com efeito, era sinônimo de não estudar, da ociosidade e do vício. Durante muito
tempo, dentro da própria comunidade, esse era nitidamente um esporte carregado de
preconceitos sociais, coisa de bandido e vagabundo. Mas, aos poucos, a prática do surfe fez a
garotada alcançar sucesso, ir além daquilo que aparentemente estava colocado como limite da
vida na favela. E, desse modo, o surfe também surgia como válvula de escape à delinqüência
que assolava as ruas do bairro, “ele agarrou com unhas e dentes como sendo assim aquilo que
vai salvar a vida dele, que vai colocar ele num patamar mais elevado”244.
Para o entrevistado João Carlos, o “Fera”, “o Titanzinho é o celeiro do surfe
cearense”, principalmente “porque aqui é esquina leste de Fortaleza, aqui é onde o vento faz a
curva”, “aqui é um lugar maravilhoso”. Por isso a falta de preservação da praia era debilidade
do bairro. Para ele, sobretudo o combate à marginalidade juvenil exorbitante precisava se
intensificar, pois esta acarretava um dos grandes problemas do bairro: a falta de visitantes.
“Fera”, instrutor e técnico de surfe, entende que a discriminação do local perante a
cidade, ocasiona, entre outras coisas, a falta de emprego para os nativos. “Nós temos aqui a
água que pode trazer grandes benefícios para a molecada (...) tem bandidos, mas tem
ondas”245. Para superar tais problemas, colocava-se a necessidade premente de melhorar a
imagem do lugar, bastante temerosa na cidade. Em 1995, quando começou o projeto S.O. S
Titanzinho, entrevista afirma que o bairro Serviluz passava por uma situação difícil. O lugar
estava novamente abandonado e gangues rivais disputavam à bala a sua hegemonia, a
criminalidade produzia dados alarmantes e as mortes acabavam com famílias inteiras. O surfe
passou a ser entendido como uma força mutante, capaz de tirar as crianças da ociosidade e das
drogas, transformar corpos e mentes.
A vida dentro d’água como propulsora de outros aprendizados e criadora de novas
habilidades se tornou uma prática local. O desenvolvimento de movimentos rápidos, de
243
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
244
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003
245
Ibidem.
138
manobras radicais, a fluência na onda, tudo aquilo a ser captado numa plasticidade
fotográfica. No surfe, há a possibilidade de se estabelecerem boas relações com pessoas
vindas de outras partes da cidade, uma forma de ganhar a vida fora do pesado trabalho
industrial. São incontáveis os benefícios advindos do mar: saúde, harmonia com a natureza e a
paz espiritual de quem protagoniza um estilo de vida saudável e feliz. Existe, entre os
praticantes desse esporte, a concepção da natureza como uma espécie de força mutante, que
transforma mentes e corpos e que é capaz, por exemplo, de transformar crianças magricelas
em verdadeiros campeões mundiais de surfe.
Mas o surfe é também um ato de lazer na comunidade: “num surfo pra competir, só
pra brincar, tomar banho, pra relaxar a cabeça”. “Porque eu num sei viver longe do mar
não”246. O surfe é muitas vezes um ato de diversão que engloba homens e mulheres nas horas
de folga do trabalho. Cair na água é procurar esquecer os problemas do dia-a-dia, é reavaliar o
passado, o presente e o futuro: “Eu tenho trinta e seis anos, mas eu sou um irado, eu volto a
ser criança todas as vezes que eu surfo”247.
Entre os sufirtas, é mais nítida a idéia de cultura concebida como uma experiência
mutante.
“Cultura da pessoa é o jeito que você vive, o seu hábito de viver, de falar (...) a cultura ela muda de uma
hora pra outra (...) você tá aqui e querendo outra coisa, fazer outra coisa, uma coisa diferente né? Você
tá fazendo uma coisa que nem é do seu país, da cultura de outro país. Você tá fazendo aquilo ali e você
gosta e vai desenvolver aquilo ali, as vezes até mesmo naturalmente (...) você troca porque alguma coisa
te agradou né?”248.
246
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.
247
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
248
Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.
249
Entre os novos grupos culturias destacam-se o Projeto de Artes do Serviluz (PAS) e o grupo Peleja. Formado
por estudantes secundaristas, e alguns universitários, procuram conscientizar a juventude local através de
intervenções artísticas e ambientais, em diferentes espaços do bairro.
250
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/006/2006.
139
251
Cultura em Movimento – Secult nos Bairros é um projeto do Governo do Estado do Ceará que patrocina
apresentações cuturais intinerantes nos bairros da periferia de Fortaleza.
140
252
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 20-21.
141
Conclusão
Relação de Siglas
1. Ruas do bairro.
8. Praia do Titanzinho.
9. Praia do Serviluz.
Fontes e arquivos:
a) Fontes Escritas
b) Fontes Orais
1 Francisco Herton Lima Rodrigues. Essa entrevista foi realizada na casa do entrevistado,
em 30/02/2002. “Agente comia peixe até seis veszes por semana”, relembrou, nostálgico,
Francisco Herton, mais conhecido como “moço”. O depoente conta que já passou por
várias profissões, afirma que todo trabalho é digno desde que garanta a sobrevivência dos
filhos. Entre idas e vindas, lembra com saudades da irmã que há tempos foi para a Itália e
que somente nas férias pode rever.
2 Maria Zuleide de Oliveira Moura. “Pau pra toda obra”, foi assim que se autodefiniu
dona Zuleide, a entrevista realizada na sala de sua casa em 01/01/2003. Dona Zuleide
participou da primeira gestão da Associação de Moradores do Titanzinho. Através do seu
depoimento, tomamos conhecimento das dificuldades iniciais de construção de um espaço
de participação coletiva, dos projetos realizados, da morosidade burocrática e das fissuras
internas que permeiam o dia-a-dia das entidades.
145
3 José Osmir de Monteiro de Sousa. Jovem e disposto, Osmir sugeriu que a entrevista
fosse realizada, em 28/01/2003, sobre as pedras do paredão onde não “tinha
interferência”. A exemplo do pai, José Osmir é filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT),
segundo o entrevistado: “atualmente nosso bairro conta com aproximadamente trinta
tipois diferentes de associações”. No Serviluz, são poucas as pessoas engajadas a política-
partidária, sobretudo aos partidos de sequerda.
4 João Carlos Sobrinho. Essa entrevista foi realizada na casa do depoente, em 27/02/2003,
com um grupo de quatro amigos (Camila, Idalina, Thiago e Pereira), durante uma
disciplina acadêmica. Mais conhecido como “Fera”, João Carlos é uma referência local
em termos de conscientização ecológica. Técnico e instrutor de surfe, afirma que é na
natureza que está o maior patrimônio cultural do bairro. Acredita que cabe principalmente
aos moradores criarem estratégias que viabilizem a visitação turística no bairro, e,
sobretudo, que essa interação com o pessoal de fora pode ser benéfica e produtiva.
5 Maria da Conceição Alves dos Santos. Contamos também com a participação dos quatro
colegas da Disciplina de Seminário de Leitura, ministrada pela professora Kênia Rios, na
realização dessa entrevista, em 27/02/2003. Na sala de sua casa, dona Conceição contou
que veio do Camocim, interior do Ceará, à procura do pai, já estabelecido na capital. Na
cidade, trabalhou como “classificadeira” numa empresa de pesca e exportação de lagosta:
“nós éramos 280 mulheres, todas trabalhando de carteira assinada”, relata, referindo-se
ao tempo em que era grande a quantidade de mulheres trabalhando na indústria.
6 José Carlos da Silva. Descontraído, o entrevistado concedeu seu depoimento na casa de
um amigo em 08/03/2005. José Carlos fala com muita naturalidade das transformações
ocorridas no bairro, então com “duas ruazinhas”, à época em que nasceu. “Minha mãe
comprava dólares”, afirma, relembrando os tempoa áureos da zona de prostituição do
Farol do Mucuripe.
7 Mauro Sérgio Domingues. “Serginho” , como é mais conhecido, falou sobre sua
experiência como morador do bairro em 18/05/2005, na sala de sua residência. O
entrevistado contou sobre as transformações fisicas do bairro desde a época da Praia
Mansa, tempo em que seu pai foi o primeiro morador da ilha a adquirir aparelho de
televisão. Mauro Sérgio, não seguindo no ramo de pesca, passou a trabalhar no setor
hoteleiro onde pensa ter descobertos novos aprendizados importantes para sua vida.
8 Maria da Luz Oliveira Ribeiro. Muito atenciosa, dona Daluz, como é mais conhecida,
falou ao gravador em sua casa em 18/05/2005. A entrevistada diz que começou a se
146
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Teses e Dissertações:
Revistas
Anexos