A Teoria Da Verdade - César Meurer PDF

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A Teoria

correspondentista
da Verdade
Comitê Editorial da

 Agnaldo Cuoco Portugal, UNB, Brasil


 Alexandre Franco Sá, Universidade de Coimbra, Portugal
 Christian Iber, Alemanha
 Claudio Gonçalves de Almeida, PUCRS, Brasil
 Cleide Calgaro, UCS, Brasil
 Danilo Marcondes Souza Filho, PUCRJ, Brasil
 Danilo Vaz C. R. M. Costa, UNICAP/PE, Brasil
 Delamar José Volpato Dutra, UFSC, Brasil
 Draiton Gonzaga de Souza, PUCRS, Brasil
 Eduardo Luft, PUCRS, Brasil
 Ernildo Jacob Stein, PUCRS, Brasil
 Felipe de Matos Muller, UFSC, Brasil
 Jean-François Kervégan, Université Paris I, França
 João F. Hobuss, UFPEL, Brasil
 José Pinheiro Pertille, UFRGS, Brasil
 Karl Heinz Efken, UNICAP/PE, Brasil
 Konrad Utz, UFC, Brasil
 Lauro Valentim Stoll Nardi, UFRGS, Brasil
 Marcia Andrea Bühring, PUCRS, Brasil
 Michael Quante, Westfälische Wilhelms-Universität, Alemanha
 Miguel Giusti, PUCP, Peru
 Norman Roland Madarasz, PUCRS, Brasil
 Nythamar H. F. de Oliveira Jr., PUCRS, Brasil
 Reynner Franco, Universidade de Salamanca, Espanha
 Ricardo Timm de Souza, PUCRS, Brasil
 Robert Brandom, University of Pittsburgh, EUA
 Roberto Hofmeister Pich, PUCRS, Brasil
 Tarcílio Ciotta, UNIOESTE, Brasil
 Thadeu Weber, PUCRS, Brasil
A Teoria
correspondentista
da Verdade
Apresentação e crítica lógico-semântica

César Meurer

φ
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.behance.net/CaroleKummecke

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Série Filosofia e Interdisciplinaridade – 99

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


MEURER, César

A teoria correspondentista da verdade: apresentação e crítica lógico-semântica [recurso eletrônico] / César


Meurer -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.

111 p.

ISBN - 978-85-5696-397-0

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Filosofia. 2. Lógica. 3. Epistemologia. 4. Verdade. 5. Referência. 6. Correspondência. 7. Argumento da


funda. 8. Davidson, Donald. I. Título. II. Série.

CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Sumário
Apresentação 9

Capítulo 1 11
A verdade no atomismo lógico de Russell
A concepção de fato 13
A concepção de crença 16
A relação crença & fato 19
Considerações finais 22

Capítulo 2 23
Pensamento, linguagem e mundo no Tractatus de Wittgenstein
Mundo, fatos e objetos 24
O pensamento 26
A linguagem 29
Considerações finais 36

Capítulo 3 37
A concepção e a definição de verdade de Tarski
A proposta de Tarski 39
A verdade atribuída a sentenças 41
Adequação material e correção formal da definição 43
Verdade em L 47
A solução de Tarski 48
O método recursivo 53
Satisfação 56
A solução não é correspondentista 66

Capítulo 4 73
Davidson contra a teoria correspondentista da verdade
O argumento da funda 75
Contra a concepção atomista do significado 76
Contra a concepção atomista da verdade 79
Reapresentações da conclusão 82
Sobre o alcance do argumento 84
O legado de Frege 85
Church: fregeano e autor do AF 95
Davidson: apropriações fregeanas 99

Referências 105
Apresentação

A possibilidade de determinar átomos linguísticos e a


correspondência destes a entidades, átomos igualmente simples no
mundo extralinguístico, constitui o núcleo da assim denominada
teoria correspondentista da verdade. Tal é o entendimento de
Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein, considerados os principais
defensores dessa teoria no século XX.
Russell pensava que a estrutura última da realidade se revela
na análise lógica de sentenças verdadeiras, uma vez que estas
espelham os fatos que expressam. Denominada ‘atomismo lógico’,
essa posição ganhou adeptos e, em pouco tempo, status de
paradigma filosófico alternativo ao idealismo e ao pragmatismo.
No capítulo 1, abordo o atomismo lógico de Russell como uma
doutrina metafísica e dedico-me a detalhar a concepção
correspondentista de verdade que ela comporta.
O primeiro Wittgenstein concebia o mundo como um
conjunto de coisas simples em diversos arranjos que subsistem –
os fatos. Pensar, lemos no Tractatus, consiste em fazer figurações
de fatos ou estados de coisas possíveis. Graças à forma lógica,
nossas figurações podem ser comparadas com o afigurado. São
verdadeiras aquelas que correspondem aos fatos. A
correspondência, veremos no capítulo 2, consiste em uma
coordenação de elementos: as coisas no estado de coisas, por um
lado, e as palavras na proposição, por outro. A linguagem,
expressão sensível do pensamento, preserva a correspondência do
figurado com o afigurado.
Alfred Tarski via a sua concepção como uma espécie de
teoria correspondentista aperfeiçoada, mas com solução positiva
10 | A Teoria correspondentista da Verdade

apenas no âmbito das linguagens formalizadas. No capítulo 3,


examino os principais escritos de Tarski sobre a verdade. Defendo
que a concepção tarskiana de verdade é correspondentista e que a
definição não é. ‘Concepção’, nessa formulação, designa o
propósito do autor e ‘definição’, por outro lado, aponta para o
resultado que ele efetivamente alcançou.
Donald Davidson, que se apropria da solução de Tarski e
pretende adaptá-la à linguagem natural, critica duramente a teoria
correspondentista da verdade, considerando-a ininteligível e sem
conteúdo. No capítulo 4 procuro elucidar essa posição de Davidson
para com o correspondentismo. Mostro que ela é resultado de uma
reflexão de natureza lógico-semântica que ele desenvolveu nas
décadas de 60 e 70. Interpreto essa reflexão como uma
argumentação contra o atomismo, no curso da qual Davidson
serve-se de uma estratégia conhecida como ‘argumento da funda’,
cujo alcance depende da adesão a uma semântica extensionalista.
Capítulo 1

A verdade no atomismo lógico de Russell1

Conforme Haack (2002, p. 133), o criador da doutrina


denominada ‘atomismo lógico’ foi Wittgenstein, mas a versão de
Russell apareceu primeiro, em um conjunto de conferências
pronunciadas em Londres, nos primeiros meses de 1918, e
posteriormente publicado sob o título The Philosophy of Logical
Atomism.2 Efetivamente, Russell menciona no início desse texto que
está tratando de explicar ideias que aprendeu com Wittgenstein.
No presente capítulo, faço uma apresentação da concepção
de verdade de Russell. Trata-se de uma concepção atomista que,
Ayer anota (1974, p. 102), Russell preservou até o final da vida. Ele
próprio confirma isso em Meu Pensamento Filosófico, dado à
estampa em 1959:

Durante todo o meu desenvolvimento filosófico, desde que


abandonei o monismo, conservei, apesar de mudanças, certas
crenças fundamentais, que não sei de que maneira demonstrar,
mas das quais não consigo duvidar. A primeira delas, que me
parece tão óbvia que me envergonharia referir-me a ela, não fora
a circunstância de deparar com opinião contrária, é que a verdade
depende de alguma espécie de relação com o fato. A segunda é que
o mundo consiste de muitas coisas relacionadas entre si. A
terceira é que a sintaxe – isto é, a estrutura das sentenças – deve

1
Este capítulo é uma versão revisada do artigo “Do mundo para a linguagem: a verdade no
atomismo lógico de Russell”, publicado na Revista Intuitio em 2014.
2
Uma parte do texto de Russell apareceu no The Monist, v. 28, 1918 e o restante no The Monist, v.
29, 1919. A matéria foi reeditada em 1956, na coletânea Logic and knowledge. Utilizo a edição da
Routledge Classics (2010), citando-a com as iniciais PLA.
12 | A Teoria correspondentista da Verdade

ter alguma relação com a estrutura dos fatos, pelo menos


naqueles aspectos da sintaxe que são inevitáveis e não peculiares
a esta ou àquela língua. Finalmente, existe um princípio a
respeito do qual me sinto menos seguro, mas ao qual desejo
manter-me fiel [...] Refiro-me ao princípio de que aquilo que se
pode dizer acerca de um complexo pode ser dito sem que nos
refiramos a ele, expondo suas partes e suas relações mútuas
(Russell, 1960, p. 136-137 – itálicos acrescentados).

Essa passagem providencia um contexto: as quatro crenças


fundamentais constituem o “núcleo duro”, por assim dizer, da
filosofia de Russell. Questões metafísicas, lógicas e epistemológicas
estão aí profundamente interconectadas. Por onde começar? Nas
conferências de 1918 o autor insistiu que o percurso adequado é do
mundo para a linguagem. Por conta dessa recomendação é
acertado tomar o atomismo como uma doutrina metafísica que
comporta uma teoria correspondentista da verdade. Veremos que a
ideia de correspondência explicita o modo como Russell vincula a
metafísica à epistemologia por meio da lógica. Por conseguinte, o
propósito de elucidar a concepção de verdade é, em boa medida,
análogo ao trabalho iluminar esse vínculo.
Nas conferências de 1918, Russell apresentou a tese central
do atomismo nos seguintes termos: “O mundo pode ser analisado
num certo número de coisas separadas com relações e assim por
diante” (PLA, p. 15). Note que essa tese está em sintonia com a
segunda das crenças fundamentais que ele enumerou em 1959, de
que o mundo consiste de muitas coisas e que essas muitas coisas se
relacionam umas com as outras. Ao que me consta, as coisas
separadas são particulares simples com qualidades e relações. Duas
ideias, poderíamos chamá-las de premissas, fornecem sustentação
à tese: “o mundo contém fatos, que são o que são, não importando
o que decidimos pensar acerca deles”, e “existem também crenças,
que se referem aos fatos e que por referência aos fatos são ou
verdadeiras ou falsas” (PLA, p. 06). Aqui a sintonia com os pilares
fundamentais apresentados em 1959 se faz notar outra vez.
César Meurer | 13

Essa esquematização em forma de argumento (premissas e


conclusão) servirá de fio condutor para o que segue. Iniciarei com
o que Russell entende por ‘fato’. Depois, na segunda seção,
abordarei o seu entendimento de ‘crença’ e, finalmente, na terceira
parte, a relação ‘crença & fato’. Essa relação é o cerne da teoria da
verdade do atomismo lógico russelliano e, conforme sugeri há
pouco, uma amostra do quão imbricadas aí estão a metafísica, a
epistemologia e a lógica.

A concepção de fato

O mundo pode ser analisado. Podemos descrever o que existe.


Tal descrição, caso se decida fazê-la, não estará completa com a
enumeração das coisas particulares. A descrição completa do mundo
objetivo inclui, segundo Russell, as relações e as propriedades das
coisas. E quando a atenção se volta para propriedades e relações
estamos percebendo o que o autor chama ‘fatos’.
Fatos pertencem ao mundo objetivo tanto quanto as coisas
particulares, ainda que não se confundam com elas. “Expressamos
um fato quando dizemos que certa coisa tem determinada
propriedade ou que tem certa relação com outra coisa; mas a coisa
que tem a propriedade ou a relação não é o que chamo um ‘fato’”
(PLA, p. 07).
Russell está ciente das dificuldades de oferecer uma definição
precisa de ‘fato’. Em algumas passagens, quando a circunstância
requer uma elucidação do termo, lê-se que fato é “a espécie de
coisa que torna verdadeira ou falsa uma proposição” (PLA, p. 06);
“a espécie de coisa que se expressa por uma sentença inteira, não
por um nome simples” (PLA, p. 07); “a espécie de coisa que é o
caso quando o nosso enunciado é verdadeiro e que não é o caso
quando o nosso enunciado é falso” (PLA, p. 18). Essas definições
são apenas aproximadas, pois deixam “fato” como “espécie de
coisa” e remetem a questão para as proposições ou sentenças.
14 | A Teoria correspondentista da Verdade

Mais esclarecedora é a passagem onde o autor diz que um


fato, seja ele qual for, é uma “complexidade objetiva genuína”
(PLA, p. 24). Sendo o fato complexo, sua apreensão também será
complexa. A complexidade objetiva dos fatos, ainda que não seja
definível, é apreensível e descritível. Eis porque Russell pensa que
“o procedimento apropriado e ordenado começa da complexidade
do mundo e chega à complexidade da proposição” (PLA, p. 24). Por
isso, tem razão Kirkham (2003, p. 65) ao classificar a teoria da
verdade de Russell como um projeto metafísico.3
O percurso do mundo para a linguagem aposta na
possibilidade de apreender a complexidade genuína dos fatos e
desmembrá-la “em suas partes componentes, das quais pode-se
alterar um componente sem alterar os outros, e um componente
pode ocorrer em alguns fatos, embora não ocorra em todos” (PLA,
p. 19). Segue, do êxito desse procedimento, que a unidade última
da análise do mundo são os assim chamados ‘átomos lógicos’. Em
outras palavras: todas as coisas que nós experienciamos podem ser
analisadas atomicamente. Se assim for, então a lógica atomista que
Russell defende supera a lógica monista. Quer dizer: a
multiplicidade do mundo não é apenas aparente, como se poderia
pensar sob a influência de alguém “que mais ou menos segue
Hegel” (PLA, p. 02). Para ilustrar esse ponto, Santos (1978, p. xix)
sugere um paralelo com as teorias científicas: o que vale para essas
teorias – de serem formuladas em termos de expressões simples
para objetos, propriedades e relações –, valeria também para a
metafísica. Tivéssemos uma linguagem logicamente perfeita, diz
Russell, poderíamos reduzir o mundo a objetos, propriedades e
relações simples e teríamos “num relance a estrutura lógica dos
fatos” (PLA, p. 25).

3
Kirkham constrói um quadro abrangente, no qual as teorias da verdade são agrupadas em projeto
metafísico, projeto da justificação e projeto dos atos de fala. São metafísicas aquelas teorias que
visam “identificar em que consiste a verdade; o que significa para uma afirmação ser verdadeira”
(Kirkham, 2003, p. 39).
César Meurer | 15

O mundo possui certa estrutura apreensível e a linguagem


pode espelhá-la. Daí que o caminho do mundo para a linguagem é
logicamente pavimentado; a estrutura última da realidade se revela
na análise lógica de sentenças que expressam fatos.
Russell chama a atenção para a forma lógica dos fatos ao
mostrar que eles podem ser classificados segundo uma hierarquia.
No nível mais simples está aquele tipo de fato que consiste “na posse
de uma qualidade por parte de uma coisa particular”. No nível
seguinte estão os fatos nos quais temos uma relação diádica, do tipo
“isto está à esquerda daquilo”. “A seguir chegamos àqueles [fatos]
em que temos uma relação triádica entre três particulares” (PLA, p.
26). Essa hierarquia pode ser levada adiante, como se queira.
Os fatos também podem ser classificados segundo sua
espécie. Sob esse prisma entra em consideração, por um lado, a
distinção de fatos particulares e gerais, e, por outro, a de fatos
positivos e negativos. O autor anota que essas distinções são de
grande importância e acrescenta que é possível produzir outras.
Conforme essa linha de pensamento, fazer filosofia consiste, em
boa medida, em inventariar fatos. Como disse Pears (2010, p. 07),
isso soa como se fosse física, mas é metafísica.
O que esse inventário não pode perder de vista é que todos
os fatos pertencem ao mundo objetivo e, não importa a sua forma
lógica, “deve[m] ser composto[s] inteiramente de constituintes
que existam, e não de constituintes que não existam” (PLA, p. 52).
No entendimento de Russell, a teoria das descrições é o recurso
apropriado para evitar compromissos ontológicos com entidades
inexistentes.
Na tônica de um balanço abrangente dos fatos Russell
menciona também fatos atômicos e fatos existenciais. O critério
geral de classificação é a forma lógica, que pode ser apreendida e
exposta em suas partes componentes. Esse exame aponta que a
verdade consiste em correspondência da forma da proposição ou
sentença [que se adequa] com a forma do fato.
16 | A Teoria correspondentista da Verdade

Os fatos em nada dependem do pensamento ou da


linguagem. Não são, eles mesmos, verdadeiros ou falsos. Tais
atributos, V e F, são algo que cabe a outras entidades complexas: as
proposições. É verdadeira a proposição que espelha um fato. Para
tornar isso mais claro é necessário estudar o que o autor entende
por crença. Esse é o tema do próximo tópico.

A concepção de crença

O ponto de partida para delinear o que Russell entende por


‘crença’, já mencionado na introdução, é a afirmação: “existem
também crenças, que se referem aos fatos e que por referência aos
fatos são ou verdadeiras ou falsas” (PLA, p. 06). Grifo essa
passagem pela sua posição na obra em exame e pela sonoridade
ligeiramente dissonante do termo ‘crenças’ que aí observo. A
primeira vista, teria sido mais apropriado dizer que existem
também proposições ou sentenças que se referem aos fatos.
Para Russell, ‘crença’ é algo que se expressa através de uma
sentença. É o que se lê no The Problems of Philosophy, que
apareceu em 1912. Sem usar o termo ‘atomismo’, essa obra oferece
uma explicação marcadamente psicológica da correspondência de
sentenças verdadeiras com fatos. Nessa explicação, acreditar e
ajuizar designam o mesmo ato mental de entrelaçar, num
complexo, determinados termos (Russell, 2008).4
O termo ‘crença’ permite falar também da crítica que
Russsell dirige à concepção pragmatista de crença. A seu ver, a
concepção de crença do atomismo lógico é inconciliável com a
concepção pragmatista de crença. A seguinte passagem de O meu
Pensamento Filosófico situa essa divergência:

O ponto essencial em que difiro do pragmatismo é este: o


pragmatismo afirma que uma crença há de ser julgada
verdadeira se possui certas espécies de efeitos, enquanto que eu

4
Kirkham (2003) analisa o correspondentismo de Russell a partir dessa obra.
César Meurer | 17

afirmo que uma crença empírica deve ser considerada verdadeira


se possui certas espécies de causas (Russell, 1960, p. 154-155).

Conjecturo que Russell usou o termo ‘crença’ com o intuito


de demarcar sua posição em relação ao pragmatismo. É
importante frisar que se trata, nas conferências de 1918, de uma
ocorrência isolada: em nenhum momento a afirmação de que há
“crenças que se referem aos fatos” é, nesses mesmos termos,
reapresentada. Nos parágrafos mais avançados o assunto é
retomado com a palavra ‘proposição’ e, eventualmente, ‘sentença’
ou ‘enunciado’.5 Passo então a essa terminologia.
Adiantei, no final da seção anterior, que as proposições
espelham fatos e nisso reside sua possibilidade de verdade. Isso
requer esclarecimentos. A primeira coisa a mencionar é que para
Russell “uma sentença (ou proposição) é um símbolo apropriado
para um fato” (PLA, p. 12). A noção de símbolo que o autor
emprega é idêntica a do entendimento comum: símbolo é algo que
significa alguma outra coisa. No caso da proposição, ela

é um símbolo complexo no sentido de que tem partes que


também são símbolos: um símbolo pode ser definido como
complexo quando tem partes que são símbolos. Numa sentença
contendo várias palavras, as várias palavras são cada uma um
símbolo, e a sentença que as compõe é portanto um símbolo
complexo naquele sentido” (PLA, p. 10).

Se a proposição é um símbolo complexo então ela


corresponde ao mundo não apenas nesse nível complexo, onde a
contrapartida é o fato, mas também no nível das palavras para
com as suas referências. Eis o exemplo do autor: “a palavra
‘Sócrates’ significa certo homem; a palavra ‘mortal’ significa certa

5
Em certas discussões filosóficas se distingue ‘proposição’ de ‘sentença’, ‘enunciado’, ‘frase’ e ‘juízo’.
No texto em exame, Russell usa sobretudo ‘proposição’ e ‘sentença’. Em algumas passagens, o leitor
é levado a crer que ele os toma como sinônimos. Interpreto que Russell não toma ‘proposição’ como
um objeto abstrato.
18 | A Teoria correspondentista da Verdade

qualidade; e a sentença ‘Sócrates é mortal’ significa certo fato”


(PLA, p. 12).6
Russell frisa que “as proposições não são nomes para os
fatos” (PLA, p. 13). Nomear é essencialmente diferente de afirmar
ou negar. As coisas simples são justamente os objetos suscetíveis
de denotação por nomes próprios. Esse critério é oriundo da teoria
das descrições, conhecida desde o On Denoting (1905). A teoria das
descrições, que não detalharei aqui, mostra que a expressão
denotativa que não é um nome genuíno pode ser redescrita como
um predicado. Justamente por causa da sua capacidade para
resolver enigmas sobre existência e identidade, essa teoria vigorou
como paradigma filosófico por um longo período.7
Nomes próprios não têm a dualidade entre verdade e
falsidade que é necessário manter para as proposições. Para
assegurar a possibilidade de proposições falsas – detalhe de grande
importância – Russell argumenta que para cada fato há duas
proposições, e não uma como poderíamos ser levados a imaginar.
A articulação desse argumento é deveras perspicaz:

suponhamos que Sócrates está morto seja um fato. Temos duas


proposições: ‘Sócrates está morto’ e ‘Sócrates não está morto’. E
para essas duas proposições que correspondem ao mesmo fato,

6
Note o leitor que Russell lança mão do termo ‘significa’. Dependendo das nossas preferências
teóricas, essa palavra impulsiona distintas considerações. Penso que a teoria correspondentista da
verdade é, nesse sentido, também uma teoria do significado. Acerca desse ponto é interessante uma
passagem de Meu Pensamento Filosófico: “Foi em 1918 [...] que primeiro me interessei pela definição
de ‘significado’ e pela relação entre a linguagem e os fatos. Até então eu encarara a linguagem como
algo ‘transparente’ não tendo jamais examinado o que constitui a sua relação com o mundo não-
linguístico” (1960, p. 124). Tanto quanto sei, o primeiro texto de Russell dedicado ao significado é o
capítulo 10 de Análise da Mente (Russell, 1976).
7
Sobre o On Denoting, considero de grande proveito as análises de Pinto (2001) e Brito (2003, p. 53-
60). Dentre as inúmeras avaliações técnicas da teoria das descrições, gostaria de destacar
Chateaubriand (2001, p. 93-135) e Gamut (2009, p. 161-167). Sobre a influência da teoria das
descrições na filosofia posterior, considero apropriado mencionar o elogio de Wittgenstein (4.0031 –
1968, p. 71): “Toda filosofia é ‘crítica da linguagem’ [...] O mérito de Russell é ter mostrado que a
forma aparentemente lógica da proposição não deve ser sua forma real”. A teoria de Russell foi
contraposta em 1950, por Strawson, no On Referring (Strawson, 1975). Russell (1960, p. 213-219)
respondeu às críticas Strawson.
César Meurer | 19

existe um único fato no mundo que faz uma verdadeira e a outra


falsa (PLA, p. 13).

Segue que não apenas as proposições verdadeiras têm


relação com fatos, mas também as falsas. Quer dizer: a proposição
ou tem a relação de “ser falsa para o fato” ou tem a relação “ser
verdadeira para o fato” (PLA, p. 13). Isso posto, resta saber como se
procede para averiguar se a relação é de um ou de outro tipo. Esse
é o assunto da próxima seção. Com ele, chegamos ao cerne do
correspondentismo russelliano, onde a insistência “do mundo para
a linguagem” se deixa compreender plenamente.

A relação crença & fato

A teoria da verdade do atomismo lógico tem dois planos


relacionados: o dos nomes próprios, símbolos para as coisas, e o
das proposições, símbolos para os fatos. O exposto nos tópicos
precedentes pode ser sumarizado nos seguintes termos:

As coisas no mundo possuem várias propriedades e acham-se em


várias relações entre si. Que elas possuem essas propriedades e
relações são fatos, e as coisas e suas qualidades ou relações são
claramente, num ou noutro sentido, componentes dos fatos que
possuem aquelas qualidades ou relações (PLA, p. 18-19).

As coisas, que designamos por nomes, participam de fatos,


que afirmamos ou negamos com proposições. Se lembrarmos uma
vez mais da recomendação de começar a análise pelos fatos e não
pelas coisas, então a forma adequada de dizê-lo é a inversa: os
fatos, que afirmamos ou negamos com proposições, são compostos
de coisas simples, que designamos por nomes, consideradas suas
propriedades e relações.
Uma proposição, símbolo para um fato, se expressa por
palavras concatenadas. Para entendê-la é preciso conhecer o
vocabulário, a gramática e a sintaxe da linguagem. Mesmo uma
20 | A Teoria correspondentista da Verdade

proposição inédita pode ser compreendida quando esses requisitos


estão atendidos.
Se a proposição é compreendida mediante o entendimento
das palavras que a compõe, como se alcança o entendimento
destas? Considere-se, por exemplo, que é um fato que cinco maçãs
vermelhas estão no recipiente que está sobre a mesa. Russell
orienta-nos a partir do fato, tomando-o como uma complexidade
genuína. Para cada fato, como vimos, há duas proposições, sendo
uma verdadeira e outra falsa. Nesse caso a proposição verdadeira
para o fato pode ser assim enunciada: ‘Cinco maçãs vermelhas
estão no recipiente que está sobre a mesa’. Qual seria a proposição
falsa para esse mesmo fato? Porventura seria ‘Cinco maçãs
vermelhas não estão no recipiente que está sobre a mesa’? Poderia
ser ‘Cinco maçãs estão no recipiente que não está sobre a mesa’? A
dificuldade se faz notar. Prossigamos com a problematização,
agora voltando para as palavras componentes da sentença. Como
se alcança o entendimento de ‘cinco’, de ‘maçã’, de ‘vermelho’ e
assim por diante?
No que segue ensaiarei alguns movimentos de análise,
seguindo o que Russell propõe. É um exercício. Concedo, de saída,
que é um fato que cinco maçãs vermelhas estão no recipiente que
está sobre a mesa.
1ª consideração: o fato é o que é, não importa o que
pensamos acerca dele. Quer dizer: em sentido algum ele depende
do pensamento. É uma ocorrência externa.
2ª consideração: o fato pode ser desmembrado em suas
partes componentes. Uma maneira de fazê-lo seria separá-lo em
dois: é um fato que cinco maçãs vermelhas estão no recipiente e é
outro fato que o recipiente está sobre a mesa. Um ulterior
desmembramento consiste em notar que é um fato que as cinco
maçãs são vermelhas (e não duas verdes e três vermelhas, por
exemplo).
3ª consideração: pode-se alterar um componente sem
alterar os outros. É perfeitamente possível trocar as cinco maçãs
César Meurer | 21

vermelhas por cinco maçãs verdes, o que resultaria em outro fato:


cinco maçãs verdes estão no recipiente que está sobre a mesa.
Muitas outras alterações são possíveis (por exemplo: cinco maçãs
vermelhas estão no recipiente que está embaixo da mesa; cinco
maçãs vermelhas estão sobre a mesa e o recipiente está embaixo da
mesa,...). Ficou claro, nessa consideração, que um componente
pode ocorrer em muitos fatos. Sinal evidente da multiplicidade
analisável do mundo.
4ª consideração: o símbolo apropriado para um fato é uma
proposição, e é o fato que torna verdadeira ou falsa a proposição.
Se é um fato que cinco maçãs vermelhas estão no recipiente, então
a proposição verdadeira para esse fato é ‘Cinco maçãs vermelhas
estão no recipiente’. Uma proposição pode ser verdadeira ou falsa
para um fato. O fato, por si mesmo, não tem a dualidade entre
verdadeiro e falso.
5ª consideração: a proposição é um símbolo complexo, na
natureza do qual nada informa se ele é verdadeiro ou falso.
Houvesse no próprio símbolo uma marca da verdade ou da
falsidade, se poderia ampliar o conhecimento do mundo
examinando tão somente proposições, sem olhar para os fatos.
Sem olhar para as maçãs, para o recipiente e para a mesa, não se
pode saber qual sentença é verdadeira e qual é falsa. A verdade da
sentença depende derradeiramente do fato.
6ª consideração: a proposição é um símbolo complexo
porque contém palavras que também são símbolos. É um símbolo
aquela palavra que expressa alguma coisa particular. Chamamo-lo
de nome ou nome próprio. Aqui uma questão importante se impõe
ao curso da análise: como distinguir nomes próprios de outras
palavras? Quais destas são nomes: ‘cinco’, ‘maçã’, ‘vermelho’,
‘estar no’ e ‘recipiente’?
A questão deixa à vista que “as características lógico-formais
das proposições são bastante diferentes das características dos
nomes” (PLA, p. 13). A característica do nome, por assim dizer, é a
relação única que ele tem com o que nomeia. Quer dizer: “um
22 | A Teoria correspondentista da Verdade

nome só pode nomear um particular ou, se não o nomeia, não é


em absoluto um nome, é um ruído” (PLA, p. 13). O nome tem um
modo: nomear. A proposição tem dois modos: ser verdadeira ou
falsa. “Exatamente como uma palavra pode ser um nome, mas
simplesmente um ruído carente de significado, uma expressão que
aparentemente é uma proposição pode ser verdadeira ou falsa, ou
pode ser carente de significado” (PLA, p. 13). Fica claro que uma
proposição falsa não é uma expressão carente de significado.

Considerações finais

Apresentei, nesse capítulo, as ideias que considero


fundamentais para compreender a teoria da verdade do atomismo
lógico de Russell. Para concluir, gostaria de recapitular o núcleo
dessa teoria e a insistência do autor de que a abordagem adequada
é do mundo para a linguagem.
A tese fundamental do atomismo é acerca do mundo e diz
que ele é constituído de muitas coisas, com propriedades e
relações. Russell pensa que nós podemos apreender a estrutura do
mundo uma vez que as sentenças verdadeiras espelham os fatos
que expressam. É por referência a um fato que uma sentença
declarativa é verdadeira ou falsa. Essa correspondência é
logicamente viável se a linguagem for clara.
O atomismo opõe-se ao idealismo na medida em que este
não admite a multiplicidade analisável que aquele toma como
ponto de partida. Trata-se, nesse caso, de uma divergência
metafísica. O atomismo também se opõe ao pragmatismo na
medida em que este concebe que uma crença é verdadeira em
virtude de suas consequências. Essa é uma divergência
epistemológica. Russell não aprova o consequencialismo que marca
a concepção de verdade dos pragmatistas. Para ele, como vimos,
uma crença é verdadeira ou falsa em virtude de um fato e jamais
pelas consequências.
Capítulo 2

Pensamento, linguagem e mundo no


Tractatus de Wittgenstein1

O Tractatus Logico-Philosophicus – escrito a partir de


anotações feitas nas trincheiras da I Guerra Mundial, da qual o
autor participou diretamente, e publicado pela primeira vez em
1921 – é uma das expressões mais sofisticadas da teoria
correspondentista da verdade. Falando num tom prosaico, essa
teoria prevê que a linguagem pode retratar o real mais ou menos
como uma fotografia retrata determinado cenário. Em termos um
pouco mais rigorosos: é verdadeira a proposição que corresponde a
um fato. Mas o que são fatos? Como individuar fatos? Como aferir
a mencionada relação de correspondência? O fato é de algum
modo anterior à proposição que o retrata? Essas interrogações
estão no centro dos interesses de Wittgenstein. No presente
capítulo, debruço-me sobre as respostas que ele articula no
Tractatus.
É importante considerar, de início, que Wittgenstein concebe
a filosofia basicamente como lógica e metafísica. Já em Notes on
Logic, redigido em 1913, ele dizia que filosofia “consiste em lógica e
metafísica, elas formam a sua base. [...] Filosofia é a doutrina da
forma lógica de proposições científicas” (Wittgenstein, 1957, p. 231-
232). Essa observação sinaliza a primazia da lógica, tanto na

1
Este capítulo é uma versão revisada do artigo “Como se relacionam o pensamento e a linguagem
com o mundo? Notas de leitura do Tractatus Lógico-Philosophicus”, publicado na Revista Kalagatos
em 2013.
24 | A Teoria correspondentista da Verdade

metafísica quanto na filosofia da linguagem. Ora, conceder


primazia à lógica na metafísica significa que é possível investigar a
estrutura da realidade sem recorrer à experiência. O Tractatus foi
gestado no espírito dessa concepção, basicamente como um
empenho metafísico.
Wittgenstein entende que pensamento e linguagem se
relacionam com o real graças à forma lógica que compartilham. A
lógica está na base da metafísica, por um lado, e da linguagem, por
outro. De vez que o mundo e a linguagem têm em comum a forma
lógica, então ao estudar a estrutura da linguagem tornamos
manifestas as características do real.
É deveras interessante que o Tractatus começa falando do
mundo. A porta de entrada, por assim dizer, é a metafísica. Em
seguida, Wittgenstein avança para uma teoria da proposição e, por
fim, apresenta uma teoria da lógica. A questão é que essa ordem é
o inverso da ordem lógica que mencionei no parágrafo anterior. Se
estiver certo, então a lógica é condição para a análise da linguagem
e esta, por sua vez, fundamenta a concepção de mundo.
A exposição que segue conserva a arquitetura da obra em
exame: inicio com o que aí se lê acerca do mundo. Depois avanço
para a concepção de pensamento e, finalmente, trato da
linguagem. Esse percurso deve dar evidência para o seguinte
entendimento: a linguagem, expressão sensível do pensamento,
pode figurar o mundo com verdade.

Mundo, fatos e objetos


Iniciemos com os termos elementares da concepção
tractariana de mundo. Para tanto, tomemos o seguinte corpo de
proposições2 como ponto de partida:

1 O mundo é tudo o que ocorre.


2 O que ocorre, o fato, é o subsistir dos estados de coisas.
2.01 O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas).

2
Cito o Tractatus pelo número da proposição.
César Meurer | 25

2.02 O objeto é simples.


2.0271 O objeto é fixo, o subsistente; a configuração é o mutável,
o instável.
2.0272 A configuração dos objetos forma o estado de coisas.

Expresso está que o mundo é constituído de objetos simples


e subsistentes que se ligam uns aos outros de modo instável.
Wittgenstein chama a ligação de objetos de ‘estado de coisas’. Um
estado de coisas, seja qual for, tem certa configuração que diz
respeito ao modo como as coisas se ligam entre si.
‘Fato’ designa, nessa doutrina, algo objetivo e subsistente,
porém não fixo. O contraste entre ‘objeto’ e ‘fato’ é justamente
esse: ambos são objetivos e subsistentes, mas apenas o primeiro é
estável, ao passo que o segundo é instável.
A subsistência do mundo – isto é, dos objetos e dos estados
de coisas – não requer o pensamento. O mundo, em seus
componentes estáveis e instáveis, subsiste para além do que
pensamos dele.
Estes são os traços básicos da ontologia tractariana:
componentes estáveis (coisas) e instáveis (estados de coisas). Os
componentes estáveis – a substância subjacente do mundo (2.021)
– participam dos componentes instáveis.
O que diferencia fatos de estados de coisas? A proposição (2)
apresenta essa distinção. Se pensarmos nos estados de coisas como
situações possíveis que subsistem ou não (que ocorrem ou não),
então podemos denominar ‘fatos’ àquelas que subsistem. Essa
interpretação sinaliza que os estados de coisas são independentes
uns dos outros, ao que se pode acrescentar: “A subsistência e a não
subsistência dos estados de coisas é a realidade” (2.06).
Pensemos nos estados de coisas que subsistem. A eles
Wittgenstein chama ‘fatos’. É um fato que a chuva ocasionou
deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro. Havia outras
possibilidades de essas coisas (objetos) se ligarem. Subsistiu essa.
As coisas que participam desse estado de coisas – a chuva, os
deslizamentos,... – podem aparecer em inúmeras outras situações.
26 | A Teoria correspondentista da Verdade

“Cada coisa está como num espaço de estados de coisas possíveis”


(2.013).
Uma palavra mais sobre a substância do mundo – aquilo que
é simples, fixo e subsistente –, os objetos. No entendimento de
Wittgenstein, “é essencial para a coisa poder ser parte constituinte
de um estado de coisas” (2.011). Interpreto que essa afirmação é
mais epistemológica do que ontológica, no sentido de que a
possibilidade de conhecer uma coisa requer um estado de coisas.
Essa interpretação está apoiada em (2.0121), onde se lê que “não
podemos pensar nenhum objeto fora da possibilidade de sua
ligação com outros”. Ser pensável não é aqui condição de
existência. A existência do objeto, este visto como substância, é
anterior a qualquer estado de coisas determinado e, por isso
mesmo, possibilidade de ser constituinte de diversos estados de
coisas. A noção de figuração, que discutirei mais adiante, é
esclarecedora para essa questão.

O pensamento

Ao comentar a natureza da filosofia defendida no Tractatus,


Glock (1998, p. 26) afirma que “para Wittgenstein, a filosofia ou a
lógica ocupam-se do pensamento, pelo fato de refletirem sobre a
natureza da representação, já que é no pensamento que
representamos a realidade”. Com essa observação, nossa atenção
se volta para a seguinte questão: o que o Tractatus afirma acerca
do pensamento? As afirmações principais são as seguintes:

2.1 Fazemo-nos figurações dos fatos.


2.11 A figuração presenta a situação no espaço lógico, a
subsistência e a não subsistência de estados de coisas.
2.12 A figuração é um modelo da realidade.
2.13 Na figuração, seus elementos correspondem aos objetos.
2.15 Os elementos da figuração estando uns em relação aos
outros de um modo determinado, isto representa as coisas
estando umas em relação às outras. Esta vinculação dos
César Meurer | 27

elementos da figuração chama-se sua estrutura e a possibilidade


dela, sua forma de afiguração.
2.1511 A figuração enlaça-se com a realidade; deste modo:
estendendo-se para ela.
2.1512 É como padrão de medida que se aplica à realidade.
2.15121 Somente os pontos mais exteriores das linhas divisórias
tocam o objeto a ser medido.
2.174 A figuração não pode, porém, colocar-se fora de sua forma
de representação.
2.18 O que cada figuração, de forma qualquer, deve sempre ter
em comum com a realidade para poder afigurá-la em geral –
correta e falsamente – é a forma lógica, isto é, a forma da
realidade.
2.2 A figuração tem em comum com o afigurado a forma lógica
da afiguração.
2.221 O que a figuração representa é o seu sentido.
3 Pensamento é a figuração lógica dos fatos.

Dessa seleção de proposições, (3) é a mais importante.


Pensar é fazer figurações dos fatos. Fatos, a discussão da sessão
anterior já esclareceu, são estados de coisas que subsistem; que
acontecem. As noções centrais, nesses excertos relativos à
concepção de pensamento, são: figuração, espaço lógico e forma
lógica.
Comecemos com a noção de figuração. Para seguir a
terminologia do autor (é difícil apreender a doutrina sem atentar
para isso), vejamos (2.2): temos, por um lado, a figuração, e, por
outro, o afigurado. O afigurado designa justamente o mundo. O
que o pensamento tem em comum com o mundo (ou melhor, com
uma parte do mundo; um fato), que funciona como enlace, é a
forma lógica. Quer isso significar que o pensamento é uma espécie
de refém do mundo, no sentido de dizer que só o que existe é
pensável? A resposta para essa questão é não. Por um lado, o
pensamento não pode ser condição de existência do objeto, pois
voltaríamos a uma versão de idealismo. Por outro lado, o
pensamento não pode ficar derradeiramente dependente do
mundo, no sentido de sermos capazes de pensar apenas o que há.
28 | A Teoria correspondentista da Verdade

Seria melhor dizer que o pensamento segue regras lógicas. Se


voltarmos uma vez mais para (2.0121), onde se lê que “não
podemos pensar nenhum objeto fora da possibilidade de sua
ligação com outros”, seremos levados a dizer que pensar num
objeto qualquer já é, de imediato, apresentar o espaço lógico. O
objeto é pensável na sua ligação com outros e essa ligação, ou
estado de coisas, é sempre lógica. Por outras palavras: pensamos
em inúmeros estados de coisas, subsistentes ou não. O que todos
os estados de coisas têm em comum, sempre, é que a ligação que aí
acontece é lógica. Por isso ela é pensável. Nas palavras de Carmo
(2008, p. 56), “a lógica não representa nada, mas é o que torna
possível a representação. A lógica, portanto, não pertence ao
domínio do que pode ser dito, mas, sim, ao domínio do que é
mostrado”.
As possibilidades de ligação de um objeto com outros
(estados de coisas) compõem o espaço lógico. Por isso “a figuração
presenta no espaço lógico” (2.11). Uma figuração é, pois, um
complexo lógico em um espaço lógico. O que está fora do espaço
lógico não se afigura como complexo lógico e, por isso, não pode
ser pensado.
Podemos pensar o que quisermos, mas sempre seguiremos a
lógica de ligar certo(s) objeto(s) com outro(s). Mesmo um mundo
imaginário muito diferente deste que experimentamos
sensivelmente terá em comum com este a forma lógica (2.18). A
forma lógica, ela mesma, porém, nos escapa. Como observa Stein
(1994, p. 28) “a forma lógica não pode ser representada ou
afigurada; e isto se deve a que ela não constitui um estado de
coisas, ela não faz parte da realidade”. Com essa observação
chegamos aos limites da linguagem, que são limites lógicos.
Qual é a relação entre pensamento e verdade? A
consideração mais óbvia consiste em dizer que podemos pensar de
modo verdadeiro e de modo falso. Pensar de modo verdadeiro é
fazer uma figuração tal que seja a figuração de um fato. Fato, já
dissemos, é um estado de coisas que subsiste. O acréscimo que
César Meurer | 29

desejo fazer a essa definição, parcialmente subentendido até aqui,


é: fato é um estado de coisas que subsiste independente de ser
pensado ou não. É um fato que a chuva ocasionou deslizamentos.
Em pensamento, faço uma figuração que corresponde a esse
complexo genuíno e independente. Em (2.13) fica claro que a
figuração toca a realidade quando os seus elementos correspondem
aos elementos do afigurado. Melhor dizendo, a forma da figuração
corresponde à forma do afigurado. Uma vez que um estado de
coisas é justamente uma determinada relação de coisas umas em
relação às outras, os elementos da figuração retratam essa
determinada relação. Quer dizer, figuração e afiguração possuem a
mesma forma – vinculam as coisas do mesmo modo.
Resta, para concluir esse tópico, dissipar a interpretação
segundo a qual o pensamento é uma entidade mental. Pauto-me
novamente em Glock (1998, p. 26): “os pensamentos não são
entidades mentais ou abstratas, mas sim proposições, sentenças
que foram projetadas sobre a realidade, podendo, portanto, ser
completamente expressas na linguagem”. Esse é o degrau que
permite a passagem para a próxima sessão, onde abordo a
concepção tractariana de linguagem.

A linguagem

A concepção tractariana de linguagem ganha corpo nas


seguintes proposições:

3.1 Na proposição, o pensamento se exprime sensível e


perceptivelmente.
3.14 O signo proposicional consiste em que seus elementos, as
palavras, estão relacionados uns aos outros de maneira
determinada. O signo proposicional é um fato.
3.2 Nas proposições os pensamentos podem ser expressos de tal
modo que aos objetos dos pensamentos correspondam elementos
do signo proposicional.
3.202 Os signos simples empregados nas proposições são
chamados nomes.
30 | A Teoria correspondentista da Verdade

3.203 O nome denota o objeto. O objeto é sua denotação. (“A” é o


mesmo signo que “A”).
3.3 Só a proposição possui sentido; só em conexão com a
proposição um nome tem denotação.
4 O pensamento é a proposição significativa.

Desse corpo de excertos pode-se inferir que a linguagem é


expressão linguística do pensamento. Em (3.1) lemos que essa
expressão é sensível e perceptível. Quer dizer: a linguagem,
diferente do pensamento, se faz notar sensivelmente. Qualquer
pensamento pode ser expresso na linguagem, justamente porque
possui estrutura proposicional. Ademais, a expressão linguística
preserva a correspondência do figurado com o afigurado, antes
comentada. As palavras, elementos das proposições (signos
proposicionais), correspondem aos objetos dos pensamentos.
Os signos mais simples da linguagem, os nomes, denotam
objetos. Esse, no entanto, é o caso somente quando o nome está em
uma proposição. Por si, à parte da proposição, a palavra nada
denota. Temos então uma significativa equivalência entre objetos e
nomes. “Assim como é característica essencial do objeto que este
esteja em combinação com outros objetos, é característica essencial
do nome que ele esteja em relação com outros para poder exercer a
sua função principal de denotar um objeto” (Stein, 1994, p. 31).
O ponto a ser sublinhado é que as proposições podem ser
analisadas em seus elementos constituintes. Essa análise termina
por mostrar que a linguagem tem uma forma lógica que tende a
ter a forma da realidade. Muitas vezes esse aspecto é caracterizado
como relação isomórfica, entendendo-se com essa expressão que a
estrutura da linguagem e a estrutura da realidade se identificam e
que, por isso, aquela pode representar esta (Glock, 1998).
A mencionada análise deve chegar ao nível atômico, no qual
a verdade da proposição elementar, que é logicamente
independente das demais, depende exclusivamente da existência
ou não de certo fato atômico. A verificação, nesse nível, depende
derradeiramente dos nomes. O nome, conforme a posição que
César Meurer | 31

ocupa na proposição, confere o suporte que a proposição necessita


para ser verdadeira. Tenhamos em conta uma vez mais o que se lê
em (3.3): “só em conexão com a proposição um nome tem
denotação”. Com essa posição “Wittgenstein supera com Frege
[autor da tese da prioridade da frase] a concepção da linguagem
composta de elementos independentes. [...] o sentido das frases
não é fruto da associação da significação das palavras nelas
contidas” (Oliveira, 2001, p. 96-97).
Ao tratar do enlace essencial da lógica da representação com
a lógica do mundo, Wittgenstein afirma que “pertence à figuração
a forma afigurante que precisamente a torna figuração” (2.1513). O
termo a ser compreendido aqui é ‘forma afigurante’, o que se
alcança considerando o autor diz na sequência: “a relação
afigurante consiste nas coordenações dos elementos da figuração e
das coisas” (2.1514) e “estas coordenações são, por assim dizer,
antenas dos elementos da figuração, com as quais esta toca a
realidade” (2.1515). Stein (1994) interpreta que as referidas antenas
são justamente os nomes próprios. Cabe a eles fazer a ligação, o
enlace, da figuração (pensamento; proposição; sentença) com a
realidade.
À luz de (2.1514) podemos pensar a correspondência como
coordenação de elementos: por um lado as coisas e, por outro, os
constituintes da figuração. Ao detalhar essa coordenação de
elementos, Oliveira (2001, p. 103) lança mão da expressão
‘figuração isomórfica’, entendendo com ela aquelas figurações que
cumprem dois requisitos: identidade categorial e de estrutura
externa. Essa dupla requisição é central para se falar da verdade:
somente as figurações verdadeiras são isomórficas.
O que é identidade categorial? O que é estrutura externa?
Qual é a relação de uma com a outra e com a verdade? Para
explicitar essas noções, sigo a linha de argumentação de Oliveira
(2001, p. 102-105), com algumas diferenças nos exemplos.
Tomemos dois modelos de mundo de campos diferentes, M1
e M2, assim constituídos (Oliveira, 2001, p. 102-103):
32 | A Teoria correspondentista da Verdade

Quanto aos objetos e nomes: em M1 temos os nomes “a”, “b”,


“c”, e os correspondentes ontológicos a, b, c. Em M2 os nomes são
“α”, “β”, “γ”, que referem α, β, γ.
Quanto aos predicados: em M1 temos um predicado
monádico (propriedade) F, e um predicado diádico (relação) R. Em
M2 temos um predicado monádico G, e um predicado diádico T.
Observados os nomes e os predicados, a constatação é que
“há uma coincidência formal nas constantes; ambos os mundos
têm três indivíduos, um predicado monádico e um predicado
diádico” (Oliveira, 2001, p. 103). As constantes de M1 podem ser
coordenadas com as de M2: a, b, c se deixam coordenar com α, β,
γ; F com G; R com R. “A condição de possibilidade de tal
coordenação é a identidade interna [...] ambos [os modelos]
possuem a mesma estrutura interna, [...] a mesma estrutura
categorial” (Oliveira, 2001, p. 103).
Quanto aos fatos atômicos. Em M1 temos Rac, Rca, Rcb, Fb.
Em M2 temos Rαγ, Rγα, Rγβ, Gβ. (Na imagem, as setas indicam R
e os retângulos indicam F e G, em cada caso.)
Considerando a coordenação das constantes, da qual se
inferiu identidade da estrutura interna, podemos notar agora que
os predicados são atribuídos aos mesmos indivíduos (que se
correspondem na coordenação antes constatada). Assim,

além da idêntica estrutura interna se realiza também a identidade


da estrutura externa. A identidade da estrutura externa
pressupõe a identidade da estrutura interna. Ora, o isomorfismo
César Meurer | 33

nada mais é do que essa identidade estrutural, no caso entre dois


mundos diversos, e M2 pode ser considerado uma figuração
isomórfica de M1. Dizer que entre M1 e M2 há uma figuração
isomórfica significa dizer que há uma identidade de estrutura. O
isomorfismo é, pois, uma relação entre relações (Oliveira, 2001,
p. 103).

Penso que esse comentário toca o núcleo da teoria


correspondentista do Tractatus. Nos termos do pesquisador
brasileiro, a palavra chave é ‘identidade’. O isomorfismo requer
identidade interna e externa. A identidade interna precede a
externa e é condição necessária para esta. Quando há identidade
interna e externa se diz que há identidade estrutural ou
figuração isomórfica. Nos modelos M1 e M2 acima analisados há
figuração isomórfica. 3
Até aqui, o exemplo envolvendo M1 e M2 pode ter
parecido um pouco artificial. Essa impressão não se mantém
quando a figuração isomórfica, nele detalhada, é relacionada de
modo mais explícito com a relação Mundo-Pensamento do
Tractatus. É o que Oliveira (2001, p. 104) faz ao sugerir que “M1
significa o mundo real, [e] M2 seria o mundo dos pensamentos
certos a respeito da realidade”. Com isso, alcançamos um novo
patamar de clareza na compreensão dos diversos aspectos da
questão. Já vimos que a estrutura do mundo se mostra nos
fatos, que podem ser analisados. Resulta oportuno voltar ao
Tractatus e observar que “Na figuração, seus elementos
correspondem aos objetos” (2.13) e que “Os elementos da
figuração substituem nela os objetos” (2.131). É o que se
cumpriu em M2, em relação a M1. É o que se cumpre em
figurações verdadeiras – as que são isomórficas.

3
O termo ‘identidade’ costuma ser usado em sentido ontológico (toda coisa é igual a ela mesma) ou
em sentido lógico (p se e somente se p). A expressão ‘identidade estrutural’, usada por Oliveira,
parece imprecisa à luz da tradição. A questão, de qualquer forma, é a assim chamada coincidência ou
coordenação interna e externa.
34 | A Teoria correspondentista da Verdade

O leitor que me acompanhou até aqui já notou que


figuração e verdade não são equivalentes. Fazemo-nos
figurações do mundo, mas nem todas são isomórficas.
Wittgenstein explica que (4) “O pensamento é a proposição
significativa”. Cabe enfatizar agora que nem todo pensamento
significativo é verdadeiro. Em outras palavras: pensamentos
falsos também são significativos. A falsidade, segundo o autor,
pressupõe uma figuração e esta, já ficou claro, requer identidade
de estrutura interna.
A identidade de estrutura interna se cumpre tanto em
figurações verdadeiras (isomórficas) quanto em figurações
falsas. Um pensamento falso é uma figuração falsa. Uma
figuração falsa é uma figuração sem identidade de estrutura
externa. E nos casos em que “não há nem identidade de
estrutura interna, então não há propriamente um pensamento,
mas apenas disparate” (Oliveira, 2001, p. 105).
O esquema a seguir, baseado em Oliveira (2001, p. 106),
mostra as possibilidades que estão em jogo no que vem sendo
dito da relação Proposição-Fato. As linhas horizontais e os
números da esquerda são acréscimos meus, para identificar o
que a seguir será chamado Passo 1, Passo 2 e Passo 3.
César Meurer | 35

Para interpretar o esquema partimos de M1 e M2. M1


designa um fato qualquer (a realidade; o afigurado). M2 designa
um candidato a correspondente linguístico de M1. A análise segue
para os elementos constituintes de M1 e M2. O objetivo, por assim
dizer, é saber se o candidato a correspondente linguístico atende o
que se requisita para a verdade.
Passo 1: verificar a estrutura interna entre o candidato a
correspondente linguístico e o fato.
Passo 2: sendo a estrutura interna igual, conclui-se que há
figuração. (2.21) “A figuração concorda ou não com a realidade, é
correta ou incorreta, verdadeira ou falsa”. Sendo diferente, não há
figuração – há um disparate, uma tolice, um absurdo.
Passo 3: confirmada a estrutura interna, verifica-se a
estrutura externa. Sendo também a estrutura externa igual,
conclui-se que a figuração é verdadeira (isomorfismo; pensamento
verdadeiro). Havendo diferença de estrutura externa, conclui-se
que a figuração é falsa (pensamento falso).
A figuração é verdadeira quando ela representa um fato. O
fato, a estrutura do mundo, é o critério mediante o qual se
distingue figuração verdadeira de falsa. É o que o autor diz em
(2.224) “Não é possível reconhecer apenas pela figuração se ela é
verdadeira ou falsa” e (2.225) “Para reconhecer se uma figuração é
verdadeira ou falsa devemos compará-la com a realidade”.
A figuração é falsa quando ela não representa um fato, mas
apenas um estado de coisas possível. Segundo Oliveira (2001, p.
107), Wittgenstein chama um estado de coisas possível de ‘sentido’
em “O que a figuração representa é o seu sentido” (2.221). O
sentido concorda ou não com a realidade e na concordância reside
a verdade. Nas palavras do autor: (2.222) “Na concordância ou na
discordância de seu sentido com a realidade consiste sua verdade
ou sua falsidade”.
36 | A Teoria correspondentista da Verdade

Considerações finais

O objetivo do presente capítulo, de compreender o


correspondentismo de Wittgenstein, levou-nos a examinar o que o
autor do Tractatus afirma acerca do mundo, do pensamento e da
linguagem. Esse percurso deu evidência para a tese fundamental
de Wittgenstein: a linguagem, expressão sensível do pensamento,
pode figurar o mundo com verdade. Uma figuração é verdadeira, a
última seção mostrou, quando ela representa um fato. Por conta da
centralidade da noção de figuração, a doutrina tractariana é às
vezes chamada teoria da figuração. Figuração, nesse caso, é o
equivalente português de picture – donde também teoria pictórica
– e do original Bild.
Capítulo 3

A concepção e a definição de verdade de Tarski1

A concepção da verdade de Tarski está exposta de modo


detalhado no longo artigo “O Conceito de Verdade nas Linguagens
Formalizadas” (2007b). Explicações mais elementares, dentre as
quais “O Estabelecimento da Semântica Científica” (2007c), “A
Concepção Semântica da Verdade e os Fundamentos da
Semântica” (2007a) e “Verdade e Demonstração” (2007d), foram
redigidas com o intuito de divulgar a concepção. Nestas, além de
resumir informalmente a teoria, Tarski discute questões
emergentes da recepção da mesma.2
O núcleo da definição da verdade de Tarski é o assim
chamado ‘Esquema T’ (ou ‘Convenção T’ ou ainda ‘Forma T’). A
ideia é simples: para toda e qualquer sentença verdadeira de
determinada linguagem deve ser possível afirmar uma instância
verdadeira do mencionado esquema. A justa compreensão dessa
ideia demanda diversos esclarecimentos, que veremos ao longo do
presente capítulo.
Ainda que o Esquema T seja simples, a concepção de Tarski
tem sido interpretada de diferentes maneiras. Popper (1975; 1994),

1
Este capítulo é uma versão revisada do artigo “Tarski: concepção e definição de verdade”, publicado
na Revista Problemata em 2013.
2
“O Conceito de Verdade nas Linguagens Formalizadas” foi originalmente publicado em polonês, em
1933. “O Estabelecimento da Semântica Científica” apareceu em polonês e também em alemão em
1936. “A Concepção Semântica da Verdade e os Fundamentos da Semântica” e “Verdade e
Demonstração” apareceram em inglês, em 1944 e 1969, respectivamente. Cito esses textos conforme
a tradução brasileira feita por Celso Braida, Cezar Mortari, Jesus Assis e Luiz Henrique Dutra,
publicada em 2007 pela Editora Unesp.
38 | A Teoria correspondentista da Verdade

por exemplo, procura persuadir-nos a lê-la como uma teoria


correspondentista aperfeiçoada. 3 Alternativamente, podemos
interpretar que ela aponta para o deflacionismo (Barrio, 1998).4 Há
também a possibilidade de argumentar que as ideias de Tarski não
constituem exatamente uma teoria, mas sim uma explicitação das
condições que toda e qualquer teoria deve cumprir. Seja a teoria
que for, ela deve permitir, para cada sentença verdadeira, uma
instância verdadeira na forma do Esquema T. Esse é o
entendimento de Haack, que assim se expressa:

Tarski fornece, primeiro, condições de adequação, isto é,


condições que qualquer definição aceitável de verdade deve
preencher; e, então, ele oferece uma definição de verdade (para
uma linguagem formal especificada), que ele demonstra ser
adequada segundo seus próprios padrões (Haack, 2002, p. 143 –
grifos da autora).

Haack trata essas condições como uma espécie de filtro para


avaliar teorias. Somente têm alguma perspectiva de sucesso
aquelas teorias que satisfazem as condições.
Penso que Tarski tinha uma concepção correspondentista.
Uso o termo ‘concepção’ para designar o propósito do autor.
Todavia, sua definição de verdade – o resultado efetivamente
alcançado – não pode ser classificada como correspondentista.
Para detalhar essa interpretação organizei o capítulo em
seções, escritas em atenção às seguintes perguntas: [i] o que Tarski

3
Essa interpretação tem também motivos práticos. Popper encontrou nas ideias de Tarski uma
justificação do realismo. A atitude realista de Popper constitui-se como uma espécie de defesa contra
ideologias subjetivistas, tais como o comunismo e o nazismo (Cf. Słomski, 2003, p. 192).
4
Barrio (1998) constata que a concepção tarskiana de verdade tem um status triplo: (i) é uma teoria
matemática que define o conceito de verdade de modo a evitar paradoxos semânticos; (ii) é uma
definição eliminativa da verdade, que incorpora esse conceito em uma metalinguagem que não
contém conceitos semânticos e (iii) pretende reconstruir a ideia tradicional correspondentista de
verdade. “O que sustento é que se tomamos seriamente o caráter eliminativo da definição da verdade
de Tarski, não parece existir lugar para cumprir o terceiro objetivo: não parece haver motivo algum
para compatibilizar a definição com a ideia de verdade correspondentista” (Barrio, 1998, p. 41 – grifo
do autor; tradução minha).
César Meurer | 39

se propunha solucionar? [ii] qual é o resultado que ele


efetivamente alcançou? [iii] por que o resultado não reedita a
teoria correspondentista? Esse é o fio condutor do texto, que
avança seguindo uma metodologia que chamo analítico-
reconstrutiva, por conta das remissões frequentes aos escritos do
autor bem como dos diversos exemplos e aplicações.

A proposta de Tarski

Tarski considera a sua teoria uma solução para os problemas


acarretados pelo uso ambíguo do termo ‘verdade’. Isso, todavia,
não quer dizer que ele desatou esse nó górdio – o problema
filosófico da verdade – que instigou expoentes de distintas épocas.
É melhor dizer que ele propôs uma questão e a solucionou. Isso
nos dá um ponto de partida para apreciar alguns aspectos de suas
investigações.
O que Tarski se propôs? A resposta está nas primeiras linhas
de “O Conceito de Verdade nas Linguagens Formalizadas”: “O
presente artigo dedica-se quase inteiramente a um único
problema: a definição de verdade. Sua tarefa é construir – com
referência a uma dada linguagem – uma definição materialmente
adequada e formalmente correta da expressão ‘sentença
verdadeira’” (2007b, p. 19-20 – grifos do autor).
Os paradoxos e as antinomias da linguagem
desempenharam um papel importante na eleição desse problema.
Como lógico, Tarski não se conformava com situações antinômicas
e considerava inapropriado tratá-las de maneira superficial. “O
aparecimento de uma antinomia é, para mim, sintoma de uma
doença. Começando com premissas que parecem intuitivamente
óbvias, recorrendo a formas de raciocínio que parecem
intuitivamente certas, uma antinomia nos leva ao sem-sentido, a
uma contradição” (2007d, p. 214).
40 | A Teoria correspondentista da Verdade

Uma situação antinômica muito conhecida é a que surge


quando tentamos aferir o valor de verdade de uma frase que
afirma sua própria falsidade:

(A): A frase (A) não é verdadeira.

Por um lado, a frase (A) não pode ser verdadeira, pois só


pode sê-lo se o que diz for o caso, isto é, se não for verdadeira.
Logo, a frase não é verdadeira. Por outro lado, é justamente isso
que ela afirma. Logo, é verdadeira.5
O contexto acadêmico polonês – nomeadamente a Escola de
Varsóvia, que centrava suas pesquisas na área da lógica e defendia
teses semelhantes às do Circulo de Viena – proporcionou uma
atmosfera favorável à explicitação dessas inconsistências e
influenciou os rumos de sua solução. A questão é que a noção de
verdade ocupa um lugar central não apenas nas antinomias, mas
também nas discussões lógico-filosóficas em geral. Ainda jovem,
Tarski se deu conta que esse conceito necessita ser precisamente
caracterizado. Gómez-Torrente (2017) relata que isso teria
ocorrido entre 1927 e 1929, período em que ele ministrou um
seminário de lógica na Universidade de Varsóvia, no qual
explicitou diversos resultados que faziam referência a noções como
definibilidade e verdade em uma estrutura. Tarski teria passado
por dificuldades na hora de conferir uma forma matemática
rigorosa para tais resultados, pois não dispunha de uma teoria
precisa para essas noções.
Tarski visava a uma definição de verdade passível de uso
consistente nas ciências dedutivas. Ora, é certo que uma utilização
logicamente consistente só é alcançada mediante caracterização
precisa (2007a, p. 150). Para efeitos de precisão deve-se, por
exemplo, respeitar o princípio do terceiro excluído: diante de um
par de sentenças contraditórias, apenas uma é verdadeira.

5
Esse é um exemplo simples de antinomia. Tarski cita outros (2007d, p. 211-213; 2007a, p. 167;
2007b, p. 25).
César Meurer | 41

Se voltarmos a atenção para a abertura de “O Conceito de


Verdade nas Linguagens Formalizadas”, citada há pouco,
notaremos que são duas as condições a serem atendidas pela
definição: adequação material e correção formal. Dito está,
também, que a definição deve valer para uma linguagem, ou
melhor, para as sentenças dessa linguagem. Essas são opções do
autor. Vou comentá-las, uma de cada vez, para avançar na
compreensão da proposta.

A verdade atribuída a sentenças

O uso elástico e impreciso do termo ‘verdade’ permite que


alguns falem de emoções verdadeiras, outros de crenças
verdadeiras, outros da verdade inerente a uma obra de arte e
assim por diante. Para conseguir uma caracterização precisa Tarski
promove uma restrição, que consiste em aplicar o termo
‘verdadeiro’ somente a sentenças. O seguinte comentário, extraído
de “A Concepção Semântica da Verdade e os Fundamentos da
Semântica”, é esclarecedor quanto a isso:

O predicado ‘verdadeiro’ é algumas vezes utilizado para fazer


referência a fenômenos psicológicos tais como juízos ou crenças,
às vezes a certos objetos físicos – a saber, expressões linguísticas
e especificamente sentenças – e às vezes a certas entidades ideais
denominadas ‘proposições’. Por ‘sentença’ entendemos aqui o
que se quer dizer usualmente na gramática por ‘sentença
declarativa’. No que diz respeito ao termo ‘proposição’, seu
significado é notoriamente assunto de longas disputas de vários
filósofos e lógicos, e parece nunca ter sido tornado inteiramente
claro e não ambíguo. Por diversas razões, parece mais
conveniente aplicar o termo ‘verdadeiro’ a sentenças, e vou
escolher essa opção (Tarski, 2007a, p. 159 – grifos do autor).

Para o autor, uma sentença declarativa é um objeto físico, ou


seja, um conjunto de sons ou sinais escritos. Em nota, Tarski pede
que o leitor entenda por ‘sentenças’ “não inscrições individuais,
42 | A Teoria correspondentista da Verdade

mas classes de inscrições de forma similar (assim, não coisas


físicas individuais, mas classes de tais coisas)” (2007a, p. 159, nota
5). Observação similar aparece em “O Conceito de Verdade nas
Linguagens Formalizadas”: “é conveniente estipular que termos
como ‘palavra’, ‘expressão’, ‘sentença’ etc. não denotam séries
concretas de sinais, mas a classe toda daquelas séries cuja forma é
igual à da série dada” (2007b, p. 23-24, nota 3). Portanto, na teoria
em exame, ‘sentença declarativa’ não designa uma coisa física
individual – uma elocução ou ocorrência particular – mas a classe
de tudo o que possui a mesma forma. Pode-se dizer, para ilustrar,
que a sentença ‘Fulano lê textos escritos por Tarski’ e a sentença
‘Fulano lê textos escritos por Tarski’ são dois objetos físicos (dois
conjuntos de sinais escritos). Visto que possuem a mesma forma e
o mesmo significado são, segundo Tarski, duas ocorrências da
mesma sentença. Independente do número de elocuções e das
circunstâncias de cada elocução, será a mesma sentença
declarativa, uma vez que esse termo foi reservado não para coisas
físicas individuais mas para classes de tais coisas. Para Tarski, o
predicado ‘verdadeiro’ deve valer para a sentença enquanto classe
e não para uma elocução.6
A opção pela definição da verdade enquanto aplicada a
sentenças – e não à elocução e nem à crença – vai ao encontro de
um problema, ao menos no âmbito da linguagem cotidiana:
sentenças idênticas que têm significados diferentes conforme o
contexto e as circunstâncias da asserção. Basta pensar em “Eu
gosto de ti” ou “Meu vizinho está doente” para concordar que na
linguagem coloquial temos vários exemplos de elocuções idênticas
na forma e diferentes no significado em virtude de palavras
ambíguas e indexicais.

6
Na última fase da carreira essa ênfase na sentença enquanto classe parece ter sido minimizada.
Considere-se, por exemplo, a definição de sentença oferecida que Tarski oferece em “Verdade e
Demonstração” (2007d, p. 204): “Sentenças são aqui tratadas como objetos linguísticos, como certas
sequências de sons ou de signos escritos”.
César Meurer | 43

Esse suposto problema levanta outra questão: estava Tarski


interessado em construir uma definição de sentença verdadeira
aplicável à linguagem coloquial? Não. Isso está expresso de modo
inequívoco no §1 de “O Conceito de Verdade nas Linguagens
Formalizadas”: “a tentativa de estabelecer uma definição do termo
‘sentença verdadeira’ – aplicável à linguagem natural – é
confrontada com dificuldades insuperáveis” (2007b, p. 31). Em
outros termos, a definição de Tarski não se aplica a linguagens nas
quais sequer se consegue especificar estruturalmente o que é uma
sentença. Efetivamente, Tarski esclareceu o conceito de sentença
verdadeira na linguagem do cálculo de classes.

Adequação material e correção formal da definição

Vimos que a definição, para ser satisfatória, deve ser


materialmente adequada e formalmente correta. Com essas
condições a proposta começa a ganhar alguma complexidade.
Comentarei primeiro o aspecto material e, em seguida, a correção
formal.
É materialmente adequada a definição que logra êxito em
captar o significado que lhe é reconhecido pelos usuários da
expressão em questão. Tarski pede que pensemos na sentença ‘A
neve é branca’. Em que condições ela é verdadeira? Provavelmente
os usuários de tal sentença dirão que ela “é verdadeira se a neve é
branca, e que ela é falsa se a neve não é branca” (2007a, p. 163).
Dessa aparente trivialidade o autor formula uma equivalência em
forma de bicondicional:

A sentença ‘A neve é branca’ é verdadeira se, e somente se, a neve é branca.

Em realidade, de trivial esse procedimento não tem nada. As


aspas, que só ocorrem no lado esquerdo da equivalência, indicam
que aí está o nome da sentença (colocar uma sentença entre aspas
é um modo de construir seu nome). Do outro lado, sem aspas, está
44 | A Teoria correspondentista da Verdade

a própria sentença. A forma genérica desse procedimento é


conhecida como Convenção T, ou Forma T, ou Esquema T (do
inglês Truth):

(T) x é verdadeira se e somente se p.


‘x’ e ‘p’ guardam lugar para o nome da sentença e para a sentença à qual
‘verdadeiro’ se refere, respectivamente.

Tarski considera que cada instância da Convenção T reflete o


uso corrente da expressão ‘é verdadeira’ e pode, por isso, ser
considerada uma definição parcial de verdade. O traço comum das
sentenças resultantes desse esquema é que elas preservam o
sentido da concepção clássica.7 Uma compreensão mais refinada da
adequação material é alcançada depois de vermos o que o autor
buscava com o requisito da correção formal.
É formalmente correta a definição que respeita as regras
formais relativas à construção de definições (2007a, p. 159). Que
regras são essas? Tarski oferece um conjunto de indicações que
permitem uma especificação exata da estrutura e do vocabulário da
linguagem na qual a definição será dada. A especificação precisa
ser exata, pois “o problema da definição de verdade ganha um
significado preciso e pode ser resolvido de maneira rigorosa
apenas para aquelas linguagens cuja estrutura foi especificada com
exatidão” (2007a, p. 166). Esse procedimento de especificação da
estrutura é impraticável na linguagem natural, dada a sua
universalidade. Logo, na linguagem natural, a definição da verdade
é meramente aproximativa. Em termos práticos, diríamos que nas
linguagens semanticamente fechadas se podem formular frases
autorreferenciais – como a frase (A) citada antes – que dão origem
a contradições. Para o autor em tela, esse problema é insuperável.
Voltemos ao procedimento de especificação da estrutura da
linguagem e, a título de exercício, suponhamos um sistema formal.
Tarski orienta-nos a fazer uma lista de termos e expressões

7
Tarski chama de ‘clássica’ a concepção mais comum entre os filósofos: a correspondentista.
César Meurer | 45

primitivas. O que é demonstrável no sistema depende dessa lista,


bem como dos axiomas e das regras de derivação que
estabelecemos. Podemos introduzir novos termos na linguagem do
sistema, observando as regras para a definição destes. Se as novas
expressões não forem definidas de modo regrado o sistema pode
tornar-se inconsistente.
Entendo que as regras para a definição tratam da relação do
novo termo com os termos que já pertencem ao sistema. O
significado do novo termo deve ser especificado em termos já
disponíveis. Essa especificação é apresentada em forma de
bicondicional (se e somente se) ou de identidade (é idêntico a).
As sentenças de identidade são um tanto mais intuitivas e
funcionam bem para definir nomes. Para ilustrá-lo, suponhamos
que o sistema em questão contém o termo H2O. A essa linguagem
podemos acrescentar o termo ‘água’, definindo-o do seguinte
modo: água é idêntico a H2O. O que o sistema ganha com essa
definição? O acréscimo ou a eliminação de um termo não incidem
no poder expressivo do sistema: tudo o que é possível dizer com o
novo termo era possível dizer sem ele. O que se ganha é que
algumas sentenças podem ser formuladas de modo mais simples.
As sentenças em forma de bicondicional são adequadas para
definir predicados. O lado esquerdo da bicondicional, conhecido
como definiendum, apresenta a expressão que se quer definir. O
lado direito, conhecido como definiens, é ocupado por expressões
que pertencem ao vocabulário primitivo ou que tenham sido
previamente definidas.
Tarski quer definir a expressão ‘x é verdadeira’. Trata-se de
um predicado e, por isso, a definição é apresentada em forma de
bicondicional. O definiendum apresenta a expressão a ser definida
e o definiens, como já indiquei, comporta expressões que já são do
sistema. Esquematicamente:

x é verdadeira ↔ p
46 | A Teoria correspondentista da Verdade

Já vimos que a verdade é um atributo de sentenças. Assim,


‘x’ guarda lugar para uma sentença. É da sentença que se dirá ‘é
verdadeira’. Considere-se, por exemplo, a sentença ‘A grama é
verde’. Em que condições essa sentença é verdadeira? Ou melhor:
em que condições ‘A grama é verde’ é verdadeira? Este é o
definiendum:

‘A grama é verde’ é verdadeira

Em que condições essa sentença é verdadeira? A resposta


que capta o uso corrente dirá, provavelmente, que a sentença é
verdadeira se a grama é verde e que ela é falsa se a grama não é
verde. Logo, a bicondicional que nos interessa fica assim
formulada:

‘A grama é verde’ é verdadeira ↔ a grama é verde

Essa é uma instância da Forma T (ou ‘Convenção T’, ou


‘Esquema T’). Ela é, para Tarski, uma espécie de paradigma de uso
adequado de ‘verdadeiro’: “queremos usar o termo ‘verdadeiro’ de
tal maneira que todas as equivalências da forma T possam ser
afirmadas e diremos que uma definição de verdade é ‘adequada’ se
todas essas equivalências dela se seguem” (2007a, p. 163 – grifos
do autor).
Para finalizar esse tópico, gostaria de apresentar duas
considerações: a primeira, que a adequação material e a correção
formal devem funcionar conjuntamente. Quero com isso chamar a
atenção para uma aparente assimetria: o requisito da adequação
material parece funcionar na linguagem comum e a correção formal,
por outro lado, leva a questão para o âmbito das linguagens
formalizadas. Há maneira de assegurar a correção formal na
linguagem comum? Em resposta retomo o que pontuei antes: a
linguagem comum, dada a sua universalidade, é inconsistente. E a
adequação material pode ser garantida em um sistema formal? Sim,
pois a formalização nada mais é do que um trabalho com uma
César Meurer | 47

linguagem específica, cujo marco semântico está previamente fixado


e explicitado na lista de termos e expressões primitivas.
A segunda consideração propõe um retorno à antinomia com
frases autorreferenciais – (A) A frase (A) não é verdadeira – para
perguntar: o Esquema T ajuda a resolver essa dificuldade? A
resposta é não. Frases autorreferenciais ocorrem em linguagens
semanticamente fechadas e tais linguagens não estão no foco de
Tarski. No próximo tópico explicito melhor essa diferença entre
linguagem universal e linguagens formalizadas.

Verdade em L

Para completar a apresentação do propósito de Tarski


cumpre dizer que sua definição de sentença verdadeira tem
solução positiva somente no âmbito das linguagens formalizadas.
Recebem esse título aquelas “linguagens artificialmente
construídas nas quais o sentido de toda expressão é univocamente
determinado por sua forma” (2007b, p. 33). O assunto é abordado
no “O Conceito de Verdade nas Linguagens Formalizadas”. Depois
de observar que a linguagem cotidiana padece de antinomias,
Tarski considera-a logicamente inconsistente. Assim, também o
uso da expressão ‘sentença verdadeira’ torna-se nela inconsistente.
Segue que não há maneira de construir uma definição correta de
uma expressão inconsistente. “A palavra ‘verdadeiro’, como outras
palavras de nossa linguagem cotidiana, certamente não está isenta
de ambiguidade” (2007a, p. 160).
Em comparação com as linguagens naturais, as formalizadas
não têm a mesma universalidade. O caso é que “não existe
necessidade de usar linguagens universais em todas as situações
possíveis. Para os propósitos da ciência, em particular, raramente
elas são necessárias” (2007d, p. 217). Justamente pelos seus limites,
as linguagens formalizadas permitem a mencionada especificação
da estrutura. Confirma-o a análise que o autor fez da linguagem do
48 | A Teoria correspondentista da Verdade

cálculo de classes, que culmina com a definição de sentença


verdadeira nesse âmbito.
Até aqui limitei-me ao propósito de Tarski, que é
correspondentista no seguinte sentido: a linguagem formalizada é
uma linguagem sem ambiguidades, isto é, cada nome e cada
predicado tem referência determinada. No próximo tópico, avanço
para o resultado alcançado.

A solução de Tarski

Vimos que Tarski se propunha construir uma definição de


sentença verdadeira para determinada linguagem. Vimos também
que a solução se pauta em dois critérios: a adequação material e a
correção formal. Especialmente interessado nas linguagens
científicas, ele levou a questão para o âmbito das linguagens
formalizadas. Ali, a solução requer duas linguagens diferentes:

Uma vez que concordamos em não empregar linguagens


semanticamente fechadas, temos de empregar duas linguagens
diferentes ao discutir o problema da definição da verdade e, de
forma mais geral, de quaisquer problemas no campo da
semântica. A primeira dessas linguagens é a linguagem ‘a cujo
respeito se fala’, e que é o assunto de toda a discussão. A definição
de verdade que estamos buscando se aplica a sentenças dessa
linguagem. A segunda é a linguagem na qual ‘falamos a respeito’
da primeira, e em termos da qual desejamos, em particular,
construir a definição de verdade para a primeira linguagem
(Tarski, 2007a, p. 170).

A linguagem a cujo respeito se fala recebe o nome de


‘linguagem-objeto’ ou, abreviadamente, L. A linguagem na qual se
fala da linguagem objeto é chamada de ‘metalinguagem’ ou ML.
Essa última deve ser mais rica que a primeira: basicamente, ela
precisa conter a linguagem-objeto e, por acréscimo, um nome para
cada frase da linguagem-objeto e algum vocabulário lógico.
César Meurer | 49

A metalinguagem, que fornece meios suficientes para definir


verdade, deve ser essencialmente mais rica que a linguagem-
objeto; não pode coincidir com esta última, nem ser nela
tradutível, já que, de outra forma, ambas as linguagens seriam
semanticamente universais e a antinomia do mentiroso poderia
ser reconstruída em ambas (Tarski, 2007d, p. 220).8

A situação é então a seguinte: dada uma L, semanticamente


restrita, queremos construir, em uma ML apropriada, uma
definição formalmente correta e materialmente adequada da noção
‘sentença verdadeira em L’. Para cada sentença de L deve ser
possível afirmar, na ML, a Forma T correspondente. (Alguns
parágrafos acima chamei isso de “paradigma de uso adequado de
‘verdadeiro’”.)
Retomo agora de modo mais rigoroso o que pontuei no
tópico anterior acerca da especificação da estrutura e do
vocabulário de L. No §2 de “O Conceito de Verdade nas Linguagens
Formalizadas” Tarski observa que todas as linguagens
formalizadas possuem algumas características, a saber: é possível
(α) listar ou descrever estruturalmente os símbolos ou expressões
elementares com as quais se forma todas as expressões de L,9 e (β)
estabelecer as regras que determinam quais combinações de
símbolos ou expressões elementares constituem sentenças de L
(2007b, p. 33). Esses dois passos dão conta da formalização de L.
Para que L funcione dedutivamente (γ) faz-se uma lista dos
axiomas – também chamados ‘enunciados primitivos’ –, e (δ) se
determina as regras de inferência, aquelas “operações de caráter
estrutural que permitem a transformação de sentenças em outras
sentenças” (2007b, p. 34). Acerca das regras de inferência o autor
acrescenta: “as sentenças que podem ser obtidas de sentenças
dadas por uma ou mais aplicações dessas operações são chamadas

8
Esse é um comentário informal acerca das diferenças de L e ML (Para um detalhamento, cf. Tarski,
2007b, p. 37-40).
9
A descrição estrutural de uma expressão consiste em descrever a expressão como uma
concatenação de elementos extraídos de uma lista finita e fixa de palavras ou letras.
50 | A Teoria correspondentista da Verdade

consequências das sentenças dadas. Em particular, as


consequências dos axiomas são chamadas sentenças
demonstráveis” (2007b, p. 34 – grifos do autor). Note o leitor que a
ideia de consequência lógica é central nas ciências dedutivas.

Uma demonstração formal de uma sentença dada consiste em


construir uma sequência finita de sentenças tal que (1) a primeira
sentença na sequência é um axioma, (2) cada uma das sentenças
seguintes ou é um axioma ou, então, é derivável diretamente de
algumas sentenças que a precedem na sequência através de uma
das regras de demonstração, e (3) a última sentença na sequência
é aquela que deve ser demonstrada (Tarski, 2007d, p. 226).

Quanto aos axiomas, Tarski diz que são sentenças que


“parecem-nos ser materialmente verdadeiras” (2007b, p. 34).10
Quanto às regras de inferência, o autor espera que preservem o
valor de verdade: “quando tais regras são aplicadas a sentenças
verdadeiras, as sentenças obtidas por seu uso deveriam ser
também verdadeiras” (2007b, p. 35). Essas duas considerações
deixam entrever que ‘formal’ não é o mesmo que ‘sem significado’.
Para Tarski, o problema da verdade é irrelevante em sistemas que
desconsideram o significado dos símbolos que empregam. Por
outras palavras: se determinada sequência de símbolos nada
significa, não faz sentido perguntar se é verdadeira. Todos os
símbolos precisam ter significado? Não. No entendimento do
autor, “isso se aplica apenas aos símbolos chamados constantes.
Variáveis e signos técnicos (tais como parênteses, pontos, etc.) não
possuem nenhum significado independente, mas exercem uma
influência essencial no significado das expressões das quais fazem
parte” (2007b, p. 34, nota 10).

10
Axiomas constituem um conjunto de sentenças elegido como ponto de partida. Segundo Klimovsky
e Boido (2005, p. 119), o uso das palavras ‘axioma’ e ‘teorema’ é tributário de Aristóteles, em cujo
pensamento elas se aplicam, respectivamente, a verdades primárias, evidentes e a verdades
deduzidas a partir delas.
César Meurer | 51

Considerando essas indicações quanto à formalização de L


pode-se perguntar: onde está a correspondência ou referência à
realidade? A resposta é: na lista de símbolos e expressões
elementares que foi tomada como ponto de partida para a
descrição estrutural de L.
O exposto até aqui é suficiente para um exemplo. Tarski, em
seu artigo mais importante, toma a linguagem do cálculo de classes
como L (2007b, §2 e 3).11 Por minha conta elaboro outro exemplo
de L, mais modesto.12 Buscarei executar os procedimentos que
Tarski recomenda. Ao leitor que conhece a teoria em exame, devo
antecipar que o exemplo deixa a desejar, principalmente na
formalização de ML.
Consideremos, pois, que L contém o seguinte vocabulário:

– as constantes ‘a’ e ‘b’, que significam, respectivamente, ‘César’ e


‘Simone’.
– os predicados ‘M’ e ‘F’, que significam, respectivamente, ‘é um homem’
e ‘é uma mulher’.
– os símbolos lógicos ‘¬’ e ‘⋀’, que significam, respectivamente, ‘não’ e
‘e’.13
– o sinal de pontuação conhecido como ‘parênteses’: ( ).

Estabelecido esse vocabulário, vamos especificar quais


combinações constituem sentenças de L:

– concatenar um predicado de L com uma constante de L forma uma


sentença elementar de L. 14 Por exemplo: ‘Ma’ é uma sentença que

11
Tarski não redigiu uma formulação geral do seu método, mas somente expôs o seu funcionamento
em certas linguagens (Cf. Gómes-Torrente, 2004, p. 28).
12
A inspiração para esse exemplo vem de Kirkham, que expõe o método recursivo de Tarski com um
exemplo acessível inclusive ao leitor sem formação em lógica (Kirkham, 2003, p. 210-215). Em
comparação com Kirkham, o meu exemplo avança na formalização de L.
13
Sentenças disjuntivas, condicionais e bicondicionais podem ser parafraseadas mediante certas
combinações de negação e conjunção. Quero, com isso, dizer que a capacidade expressiva da nossa L
não aumentará com o acréscimo dos operadores ‘v’, ‘→’ e ‘↔’.
52 | A Teoria correspondentista da Verdade

significa ‘César é um homem’; ‘Mb’ é uma sentença que significa ‘Simone


é um homem’; ‘Fb’ é uma sentença que significa ‘Simone é uma mulher’;
‘Fa’ é uma sentença que significa ‘César é uma mulher’.
– prefixar ‘¬’ a uma sentença elementar de L origina uma nova sentença,
que é a negação daquela. Por exemplo: ‘¬Fa’ é uma sentença que
significa ‘César não é uma mulher’.
– intercalar ‘⋀’ entre duas sentenças elementares de L e envolver o
resultado com os parênteses dá origem a uma sentença composta, que é
a conjunção das sentenças elementares em questão. Por exemplo: (Ma ⋀
Fb) é uma sentença que significa ‘César é um homem e Simone é uma
mulher’.
– prefixar ‘¬’ a uma sentença composta de L origina uma nova sentença.
Por exemplo: ¬ (Ma ⋀ Fb)
– intercalar ‘⋀’ entre duas sentenças de L, sejam elas elementares ou
compostas, dá origem a uma sentença. Por exemplo: (Ma ⋀ Fb) ⋀ (Mb ⋀
Fa).

O número de sentenças de L pode ser ampliado


infinitamente, pois as operações ‘¬’ e ‘⋀’ podem ser aplicadas a
cada nova sentença. Cada nova sentença produzida conforme as
regras é formalmente demonstrável. Fosse o número de sentenças
finito, bastaria, para efeitos de construção da definição de verdade,
listá-las todas e afirmar, em ML, as sentenças T correspondentes.
Cada sentença T seria uma definição parcial e a definição geral de
sentença verdadeira seria “o produto lógico delas” (2007b, p. 55).
No entanto, nossa L tem um número infinito de sentenças.
Dada essa L, como construir, em uma ML, uma definição
formalmente correta e materialmente adequada da noção ‘sentença
verdadeira em L’? Tarski usa uma técnica chamada “método
recursivo” (2007b, p. 57). Essa técnica funciona quando L tem
estrutura verofuncional. Já em linguagens L com estrutura
quantificacional de primeira ordem a definição envolve ainda outra
técnica, a satisfação. No que segue vou expor resumidamente esses
14
Tarski (2007b, p. 57) usa os termos ‘expressão elementar’ e ‘sentença elementar’, ao invés de
‘sentença atômica’, como é usual entre nós.
César Meurer | 53

procedimentos. Uma exposição completa, caso se quisesse fazê-la,


demandaria que ML fosse formalizada e dotada de um sistema
dedutivo. A simplicidade da nossa L torna esse tratamento de ML
dispensável.

O método recursivo

Para as sentenças elementares da nossa L não há maiores


dificuldades de afirmar a sentença T correspondente. Por exemplo:

‘César é um homem’ é verdadeira ↔ César é um homem.

E para as sentenças compostas? Visto que elas são formadas


a partir das sentenças elementares, por uma ou mais aplicações de
‘¬’ e ‘⋀’, a questão consiste em explicar de que modo cada uma
dessas operações determina a verdade ou a falsidade da sentença
resultante. Por isso, a atenção volta-se para os operadores lógicos
‘¬’ e ‘⋀’ e para os parênteses.
A operação de negação, simbolizada por ‘¬’, inverte o valor
de verdade da sentença à qual é aplicada: o valor de verdade de
uma sentença ¬p é a verdade quando p for falsa e a falsidade
quando p for verdadeira. Quanto à conjunção, simbolizada por ‘⋀’:
o valor lógico da conjunção de duas sentenças é a verdade quando
ambas são verdadeiras e a falsidade nos demais casos.15 Isso posto,
podemos definir ‘sentença verdadeira em L’:

Para toda sentença x de L, x é verdadeira em L se e somente se ou


[1] x = ‘Ma’ e César é um homem, ou
[2] x = ‘Mb’ e Simone é um homem, ou
[3] x = ‘Fa’ e César é uma mulher, ou
[4] x = ‘Fb’ e Simone é uma mulher, ou

15
Mortari (2001, p. 129 e ss) oferece um tratamento completo e acessível dessas e outras valorações.
54 | A Teoria correspondentista da Verdade

[5] existe uma sentença y de L, tal que x = ‘¬y’ e y não é verdadeira em


L, ou
[6] existem sentenças y e z em L, tais que x = ‘y⋀z’ e y e z são ambas
verdadeiras em L.

Essa definição é significativamente similar e inspirada na


definição que Kirkham (2001, p. 214-215) apresenta
informalmente. Algumas elucidações se fazem necessárias para
compreendê-la. Notemos, primeiramente, que ela não é formulada
em L, mas em ML. De momento, uma discussão pormenorizada de
ML não se faz necessária. É suficiente notar a ocorrência de outros
operadores, ‘=’ que significa ‘é idêntico a’ e a disjunção exclusiva
‘ou’, e de letras ‘x’, ‘y’ e ‘z’. Quanto à ‘x’, está claramente
designando uma sentença qualquer de L que se queira examinar a
luz da definição. De ‘y’ e ‘z’ falarei logo mais. Passo agora às
cláusulas da definição.
[1], [2], [3] e [4] são cláusulas que dão conta das sentenças
elementares de L. Tomemos [1], que diz que x é verdadeira em L se
e somente se x é idêntico a ‘Ma’ e César é um homem. Para onde
essa cláusula aponta? Para a sentença T correspondente:

‘Ma’ é verdadeira ↔ César é um homem.

As cláusulas [2], [3] e [4] devem ser interpretadas


essencialmente do mesmo modo que [1]. As cláusulas [5] e [6]
pretendem dar conta das sentenças formadas a partir de outras
sentenças de L com o uso dos operadores lógicos de L. Para tanto,
‘y’ e ‘z’ não devem ser lidos como sentenças específicas. Esses
termos referem de modo não específico sentenças que têm em
comum certa estrutura lógica: em [5], ‘y’ abarca todas as sentenças
de L formadas pela negação de outras sentenças de L
anteriormente formuladas; [6] compreende todas as sentenças de
L formadas pela conjunção de outras sentenças de L anteriormente
formuladas.
César Meurer | 55

O exposto é, em uma versão simplificada, uma definição


recursiva. De modo genérico, entende-se que definições por
recursão precisam atender três aspectos (Yagisawa, 2006): (i) Pelo
menos uma cláusula básica, que se aplica a certos itens
determinados. No nosso caso, são básicas as cláusulas [1], [2], [3]
e [4], que aplicamos às sentenças elementares; (ii) Pelo menos
uma cláusula recursiva, que consiste em uma regra para alcançar
outros itens aos quais a definição se aplica. No nosso caso, são
recursivas as cláusulas [5] e [6]; (iii) Uma cláusula de fechamento,
que estabelece que a definição se aplica a nada mais além disso. No
nosso caso, o fechamento é expresso pela disjunção exclusiva ‘ou’.
As seis cláusulas são suficientes para dar uma definição
materialmente adequada e formalmente correta de qualquer
sentença de L. Consideremos ‘(Ma ⋀ ¬Fa)’. A primeira pergunta: é
uma sentença de L? A rigor, caberia uma demonstração. A resposta
é: sim, é uma sentença de L. Segunda pergunta: será ela verdadeira
em L? Para afirmar a sentença T correspondente, os passos são
estes:

‘(Ma ⋀ ¬Fa)’ verdadeira em L se e somente se ‘Ma’ é verdadeira Por [6] da


(1)
em L e ‘¬Fa’ é verdadeira em L. Definição
(2) ‘Ma’ é verdadeira em L se e somente se César é um homem. Por [1]
‘¬Fa’ é verdadeira em L se e somente se ‘Fa’ não é verdadeira
(3) Por [5]
em L.
(4) ‘Fa’ é verdadeira em L se e somente se César é uma mulher. Por [3]
‘¬Fa’ é verdadeira em L se e somente se César não é uma
(5) Por [5]
mulher.
Pelos
‘(Ma ⋀ ¬Fa)’ é verdadeira em L se e somente se César é um
(6) passos (2),
homem e César não é uma mulher.
(3) e (5).

A última linha desse processo recursivo apresenta a


definição formalmente correta e materialmente adequada da
sentença em questão:

‘(Ma ⋀ ¬Fa)’ é verdadeira em L ↔ César é um homem e César não é uma mulher.


56 | A Teoria correspondentista da Verdade

Esse exemplo simples constitui uma visualização do


procedimento recursivo. Nos casos realmente interessantes, L é
mais rica tanto em constantes e predicados quanto em operadores,
sinais de pontuação e regras de formação de novas expressões e
sentenças. Conforme Kirkham, o método recursivo funciona desde
que haja “números finitos de tipos de membros básicos do
conjunto em questão e somente um número finito de modos por
meio dos quais membros não básicos possam ser construídos ou
adicionados” (Kirkham, 2003, p. 213-214).
E se L for uma linguagem com quantificadores e variáveis? É
claro que uma linguagem quantificada tem capacidade expressiva
maior, o que a torna mais interessante para a atividade científica.
Tarski mostrou como construir a definição de verdade para
linguagens com essas características. Esse é o assunto do próximo
tópico.

Satisfação

Continuemos com a L especificada no tópico anterior,


tratando de acrescentar-lhe os símbolos lógicos ‘∀’ e ‘∃’ e as
variáveis ‘x’, ‘y’ e ‘z’. O vocabulário de L agora é o seguinte:

– as constantes ‘a’ e ‘b’.


– as variáveis ‘x’, ‘y’ e ‘z’.
– os predicados unários ‘M’ e ‘F’.
– os símbolos lógicos ‘¬’ e ‘⋀’.
– os símbolos lógicos ‘∀’ e ‘∃’.
– o sinal de pontuação: ( ).

Com esses acréscimos, L ganha complexidade e capacidade


expressiva: o uso de variáveis e quantificadores permite fazer
generalizações. Visualizamos isso nas regras sintáticas de
constituição de sentenças de L, que decidimos serem as seguintes:
César Meurer | 57

– concatenar um predicado de L com uma constante de L forma uma


sentença elementar de L.
– concatenar um predicado de L com uma variável de L forma uma
sentença aberta16 de L. Por exemplo: ‘Mx’, que significa ‘x é um homem’;
‘Fy’, que significa ‘y é uma mulher’.
– prefixar um quantificador de L a uma sentença aberta de L forma uma
sentença quantificada de L. Por exemplo: ‘∃xMx’, que significa ‘Existe ao
menos um x tal que x é um homem’; ‘∀yFy’, que significa ‘Para todo y, y
é um homem’.
– prefixar ‘¬’ a uma sentença de L, seja ela elementar, composta, aberta
ou quantificada, origina uma nova sentença, que é a negação daquela.
– intercalar ‘⋀’ entre duas sentenças quaisquer de L e envolver o
resultado com parênteses dá origem a uma nova sentença, que é a
conjunção das sentenças em questão.

L agora tem estrutura quantificacional. A definição de


‘sentença verdadeira em L’ já não será a mesma que funcionou em
estrutura verofuncional. Para compreender as diferenças, inicio
chamando a atenção para as assim chamadas ‘sentenças abertas’
(às vezes chamadas ‘função’ ou ‘função sentencial’), obtidas
mediante a interpretação de um predicado como uma expressão
com um espaço vazio, representado por uma variável. Vejamos.
Uma sentença aberta tem valor de verdade incerto. Isso
porque o predicado não está nela atribuído a nada específico – a
variável é um símbolo que não nomeia um objeto ou indivíduo em
particular, apenas indica a possibilidade de vir a ser substituída pelo
nome de um objeto ou um símbolo com função de nome. É
justamente a ocorrência de uma variável livre que caracteriza o que
chamamos ‘sentença aberta’. Na sentença ‘x é um homem’, a
variável ‘x’ está livre para dar lugar ou a ‘a’ ou a ‘b’ (as constantes de
L). Se ‘x’ der lugar a ‘a’, forma-se a sentença ‘César é um homem’.
Se der lugar a ‘b’, temos a sentença ‘Simone é um homem’. Essas
16
O que hoje chamamos ‘sentença aberta’ foi chamado por Tarski de ‘função sentencial’ (2007b, p.
57), por influência de Frege e Russell, que empregavam as expressões ‘função’ (Russell, 1978, p. 04)
e ‘função proposicional’ (Frege, 1978).
58 | A Teoria correspondentista da Verdade

sentenças, onde a variável já não ocorre, não são abertas. Às vezes se


diz que são ‘sentenças fechadas’ (ou sentenças significativas, ou
simplesmente sentenças) e isso quer dizer, entre outras coisas, que
possuem, cada uma, um valor de verdade certo. (Em contraste com
o ‘incerto’ que usei linhas acima.) Substituir as variáveis por
constantes é, pois, uma maneira de fechar uma sentença.
Outra maneira de fechar uma sentença aberta consiste em
ligar todas as suas variáveis a quantificadores. Quer dizer: se
quantificamos a sentença aberta ‘Fx’ formamos ou ‘∃xFx’ ou
‘∀xFx’. Nestas, ‘x’ já não é uma variável livre. A variável não é
eliminada da sentença e esta, depois de quantificada, passa a ter
um valor de verdade certo. A linguagem natural permite ver isso
de modo mais intuitivo: Enquanto a sentença aberta ‘x é uma
mulher’ tem valor de verdade incerto, a sentença quantificada
‘Para todo x, x é uma mulher’ tem valor de verdade certo. Em uma
mesma sentença podem ocorrer diversas variáveis. Para fechá-la,
todas as variáveis devem ser quantificadas ou substituídas por
constantes.17
As dificuldades do método recursivo empregado na L
verofuncional ficam mais evidentes quando notamos que as regras
sintáticas de composição de sentenças permitem que ‘¬’ e ‘⋀’
operem com sentenças abertas. Todos os exemplos a seguir –
poderíamos formular muitos outros – são resultados sancionados
pelas regras já apresentadas: ‘Fx’, ‘My’, ‘¬Fz’, ‘(Fx⋀¬Fz)’,
‘¬(Fx⋀¬Fz)’, ‘(¬Fx⋀¬Fz)⋀My’. Em cada uma dessas sentenças há
variáveis livres. Portanto, todas elas são sentenças abertas. A rigor,
elas não dizem nada que se possa tomar por verdadeiro ou falso.
Essa constatação parece inviabilizar o projeto de construir, em
uma ML, uma definição formalmente correta e materialmente
adequada de ‘sentença verdadeira em L’. Nas palavras de Tarski:
“em vista disso, não pode ser dado nenhum método que nos

17
Não vou me alongar nessas explicações básicas de quantificação de primeira ordem. Ao leitor
interessado nesses e outros detalhes recomendo o livro de Mortari (2001, p. 98-117).
César Meurer | 59

capacite a definir o conceito requerido [de verdade] diretamente


por meios recursivos” (2007b, p. 57). O que fazer então?

Apresenta-se a possibilidade, contudo, da introdução de um


conceito mais geral, que seja aplicável a quaisquer funções
sentenciais [sentenças abertas], que possa ser recursivamente
definido e que, quando aplicado a sentenças, conduza-nos
diretamente ao conceito de verdade. Esses requisitos são
preenchidos pela noção de satisfação de uma função sentencial
dada por certos objetos (Tarski, 2007b, p. 57 – grifos do autor).

Esse teria sido, segundo Kirkham (2003, p. 218), o grande


insight do pensador polonês: “como a propriedade da verdade não
é possuída por sentenças abertas, devemos descobrir uma outra
propriedade”. E essa outra propriedade é a satisfação. Na mesma
linha de raciocínio está Suppes (1988, p. 86) quando diz que “a
definição precisa de satisfação é uma das contribuições mais
originais de Tarski”.
Em “A Concepção Semântica da Verdade e os Fundamentos
da Semântica” o autor se expressa assim: “No que diz respeito à
noção de satisfação, poderíamos tentar defini-la dizendo que
determinados objetos satisfazem uma dada função se a última se
torna uma sentença verdadeira quando nela substituímos as
variáveis livres por nomes dos objetos dados” (2007a, p. 174).
Vejamos isso com mais detalhes.
O caso mais simples é o das sentenças abertas que contém
somente uma variável livre. Tomemos, por exemplo, ‘Fx’.
“Podemos então significativamente dizer, de todo objeto isolado,
que ele satisfaz ou não a função dada” (Tarski, 2007b, p. 58). Em
outras palavras: ‘a’ satisfaz, ou não, a função ‘Fx’; ‘b’ satisfaz, ou
não, ‘Fx’. Com esses elementos, o autor formula um esquema em
forma de bicondicional:

Para todo a, a satisfaz a função sentencial x se e somente se p.


60 | A Teoria correspondentista da Verdade

Para o nosso exemplo em L, esse esquema se converte na


seguinte sentença:

Para todo a, a satisfaz a função sentencial ‘x é uma mulher’


se e somente se a é uma mulher.

Esse caso simples é suficiente para compreender o conceito


de satisfação aqui em jogo: trata-se de uma relação de um ou mais
objetos (uma sequência) e uma sentença aberta. Se a sentença
contém apenas uma variável livre, um objeto satisfaz essa sentença
se ele possui a propriedade expressa pelo predicado da sentença.
Na nossa L, o único objeto que satisfaz ‘Fx’ é ‘b’. (Fx = x é uma
mulher; b = Simone).
L pode também apresentar sentenças abertas que contêm
duas variáveis livres. O procedimento, nesse caso, é similar. “A
única diferença é que o conceito de satisfação refere-se agora não a
objetos isolados, mas a pares (mais precisamente, a pares
ordenados) de objetos” (Tarski, 2007b, p. 59). Tarski tem em
mente aqui sentenças abertas com predicado de dois lugares. Em
nossa L não previmos nenhum predicado desse tipo. Vou inseri-lo
aqui sem a devida explicitação no que diz respeito às regras
sintáticas de formação de sentenças com esse predicado. (O leitor
que me acompanhou até aqui não terá dificuldades em
acompanhar esse passo.) Suponhamos, pois, o predicado ‘R’, que
significa ‘x é mais velho que y’.
Como disse, em sentenças abertas que contêm duas
variáveis, a satisfação requer um par de objetos. Tarski fala em
sequência de objetos, pois a ordem destes é muito importante. Na
nossa L, a sequência de objetos que satisfaz ‘Rxy’ é ‹a, b›. Cabe
notar que a sequência ‹a, b› não é idêntica à sequência ‹b, a›.
Genericamente falando, não há limite para o número de
variáveis livres em uma sentença. Isso depende, claramente, da
complexidade da L em questão. Em todos os casos, saber se
determinada sequência de objetos satisfaz ou não determinada
César Meurer | 61

função sentencial (ou sentença aberta) “depende apenas daqueles


termos da sequência que correspondem (em seus índices) às
variáveis livres da função” (Tarski, 2007b, p. 62). O que isso quer
dizer? Que as sequências de objetos podem ter mais termos do que
as variáveis livres da função. O que importa, como disse o autor,
são os termos que correspondem, em seus índices, às variáveis
livres. Se a função (ou sentença aberta) tem duas variáveis livres,
importam apenas os dois termos da sequência de objetos que têm
o mesmo índice. “Toda variável corresponde aquele termo da
sequência que tem o mesmo índice (isto é, o termo fk será
correlacionado com a variável vk)” (2007b, p. 59).18 Os termos
excedentes da sequência podem ser considerados irrelevantes. Ora,
com isso fica fácil constatar que infinitas sequências de objetos
satisfazem uma mesma sentença aberta (ou função sentencial).19
E no caso das negações e conjunções? Trata-se, obviamente,
de fazer definições recursivas. Tomemos, mais uma vez, a sentença
aberta ‘Fx’. Pelos parágrafos anteriores, sabemos que ela é
satisfeita por infinitas sequências de objetos cujo primeiro termo é
‘b’ (supondo, por um instante, que a nossa L tem uma quantidade
maior de constantes e que podemos, por isso, ter sequências
infinitas de objetos).
E a sentença ‘¬Fx’? Nesse caso, é suficiente dizer que uma
sequência de objetos satisfaz ‘¬Fx’ quando ela não satisfaz ‘Fx’. Em
outras palavras, qualquer sequência de objetos cujo primeiro
termo não é ‘b’ satisfaz ‘¬Fx’. Na nossa L, seria qualquer sequência
cujo primeiro termo é ‘a’, pois ‘Não é verdade que César é mulher’.
E a sentença ‘(Fx⋀My)’? Tratando-se de uma conjunção, é o
suficiente dizer que uma sequência de objetos a satisfaz se e
somente se satisfaz ambas as sentenças que a compõe. Isso é o

18
k é um número natural distinto de 0 (zero) que indica a posição em uma sequência. A ideia é um
ordenamento enumerado que permitirá dizer, por ex., que o termo f7 deve ser correlacionado com a
variável v7.
19
Kirkham (2003, p. 221-222) oferece exemplos muito interessantes de sequências infinitas de
objetos que satisfazem sentenças abertas.
62 | A Teoria correspondentista da Verdade

suficiente em relação às sentenças abertas. Passo agora para as


sentenças quantificadas e, logo depois, para a verdade. (Por
enquanto, estamos apenas falando de satisfação, um conceito mais
geral que a verdade justamente por ser aplicável também a
sentenças abertas e que pode ser recursivamente definido.)
Para compreender o conceito de satisfação em sentenças
quantificadas, tomemos ‘∃xFx’. A questão é: como identificar as
sequências de objetos que satisfazem essa sentença quantificada?
Ora, é evidente que ela é satisfeita por todos os objetos que
possuem a propriedade F. Na nossa L, ela é satisfeita por qualquer
sequência que contenha ‘b’.
Passemos a uma sentença quantificada um pouco mais
complexa: ‘∃x2Fx2’. Essa sentença difere da anterior pelo subscrito
na variável x. Para acompanhar esse raciocínio, é suficiente que o
leitor tenha presente que as variáveis de L poderiam ser x1, x2, x3,...,
xn, sendo essa numeração informativa da posição na sequência.
Assim, ‘Fx2’ é satisfeita por uma sequência infinita de objetos cujo
segundo termo possui a propriedade F. Quanto à sentença
quantificada ‘∃x2Fx2’, devemos tomá-la como uma generalização
inteligível. É certo que as generalizações por quantificação, assim
como o uso de variáveis com subíndices, aumenta a capacidade
expressiva de L. Isso é desejável na atividade científica.
O próximo exemplo de sentença quantificada
existencialmente pretende ser o mais claro. Tomemos outra vez o
predicado R, cujo significado já estipulamos acima: ‘x é mais velho
que y’. Agora vamos quantificar existencialmente essa sentença
aberta, obtendo ‘∃xRxy’. Essa sentença “será satisfeita por uma
sequência de objetos apenas no caso de haver uma outra sequência
de objetos, diferindo da primeira no máximo no i-ésimo lugar
(onde i-ésimo é a variável ligada pelo quantificador) que satisfaz a
César Meurer | 63

sentença aberta resultante da eliminação do quantificador” (Haack,


2002, p. 152).20
E quanto às sentenças universalmente quantificadas? Como
saber quais sequências de objetos às satisfazem? Esse ponto é um
pouco mais exigente. Tarski afirma que “a operação de
quantificação universal requer consideração especial”, e explica:

Seja x uma função sentencial qualquer, e suponhamos que já


saibamos que sequências satisfazem a função x. Considerando o
significado da operação de quantificação universal, diremos que a
sequência f satisfaz a função ∩k x (na qual k é um número
natural particular) somente se essa sequência satisfaz, ela
própria, a função x e não cesse de fazê-la mesmo se o k-ésimo
termo dessa sequência varie de alguma maneira. Em outras
palavras, se toda sequência que difere da sequência dada no
máximo na k-ésima posição, também satisfaz a função (Tarski,
2007b, p. 60-61).

Tomemos a função ‘Fx2’ para compreender a passagem


acima. Seguirei as orientações do autor, observando a ordem em
que elas são apresentadas.

Primeiro passo: tomamos a função ‘Fx2’. Já sabemos que sequências de


objetos a satisfazem.
Segundo passo: quantificamos universalmente, obtendo ‘∀x2Fx2’.
Terceiro passo: “diremos que a sequência f satisfaz a função
[quantificada] somente se essa sequência satisfaz, ela própria, a função
[não quantificada]”
Quarto passo: a mesma sequência f continua a satisfazer a função [não
quantificada] quando o k-ésimo termo dessa sequência [no caso, o
segundo termo] variar.

20
Nossa L é muito restrita para exemplificar isso adequadamente. Introduzo um exemplo à parte,
inspirado em Haack (2002, p. 152): “a sequência ‹Curitiba, São Paulo, Porto Alegre...› satisfaz ‘(∃x)
(x é uma cidade entre y e z)’ porque, por exemplo, a sequência ‹Florianópolis, São Paulo, Porto
Alegre› satisfaz ‘x é uma cidade entre y e z’”.
64 | A Teoria correspondentista da Verdade

Kirkham avaliza essa interpretação ao anotar que Tarski


estabelece

duas condições que devem ser atendidas para que uma sequência,
digamos, a sequência S, satisfaça uma sentença universalmente
quantificada [...]: (1) S deve satisfazer a sentença aberta que seria
criada ao se suprimir o quantificador. [...]. (2) Essa mesma
sentença aberta deve também ser satisfeita por toda sequência
que é exatamente como S, exceto pelo fato de que tem um objeto
diferente na quarta posição (Kirkham, 2003, p. 222).

A condição (1) de Kirkham coincide com o terceiro passo da


minha interpretação e a condição (2) com o quarto passo.
Voltando a função ‘∀x2Fx2’, devemos afirmar que ela é
satisfeita por todas as sequências que satisfazem ‘Fx2’ e por todas as
demais sequências que possuem outro termo na segunda posição,
termo este que também satisfaz ‘Fx2’. Considerando que na nossa L
‘Fx’ significa ‘x é mulher’, essa função é satisfeita por todas as
sequências cujo segundo termo possui a propriedade ‘ser mulher’.
O percurso feito é suficiente para apresentar a definição
recursiva de satisfação em L. Ela pode ser enunciada da seguinte
forma:

Para toda sentença x de L, uma sequência de objetos f satisfaz x se e


somente se ou
[1] x = ‘xk é homem’ e o objeto na posição k de f é homem, ou
[2] x = ‘xk é mulher’ e o objeto na posição k de f é mulher, ou
[3] existe uma sentença y de L, tal que x = ‘¬y’ e f não satisfaz y, ou
[4] existem sentenças y e z em L, tais que x = ‘y⋀z’ e f satisfaz y e z, ou
[5] x = ‘∀xkFxk’ e o objeto na posição k de f é mulher, ou
[6] x = ‘∀xkFxk’ e toda sequência que difere de f na posição k satisfaz
‘Fxk’, ou
[7] x = ‘∀xkMxk’ e o objeto na posição k de f é homem, ou
[8] x = ‘∀xkMxk’ e toda sequência que difere de f na posição k satisfaz
‘Mxk’.
César Meurer | 65

As cláusulas [1] e [2] dessa definição são básicas e dão conta


das sentenças abertas mais simples, com uma variável e um
predicado. As cláusulas [3] e [4] pretendem dar conta de todas as
sentenças formadas pela negação ou pela conjunção de outras
sentenças. As cláusulas [5], [6], [7] e [8] pretendem dar conta das
sentenças universalmente quantificadas, conforme os
desdobramentos dos parágrafos anteriores. E as sentenças
existencialmente quantificadas? Nenhuma cláusula trata delas de
modo explícito. Se a interpretação das sentenças existencialmente
quantificadas que apresentei alguns parágrafos acima estiver
correta, então as cláusulas [1] e [2] também dão conta desse tipo
de sentença.
Essa definição recursiva de satisfação em L acompanha, de
modo relativamente próximo, a que Kirkham oferece em
linguagem informal (2003, p. 225). Esse autor também mostra a
direção do último passo, a definição de sentença verdadeira em L,
que pode ser assim formulada:

Para toda sentença x de L, x é verdadeira ↔ x é satisfeita por todas as


sequências de objetos.

Prontamente, uma interrogação se impõe diante dessa


definição: por que uma sentença verdadeira deve ser satisfeita por
todas as sequências de objetos? A resposta é relativamente simples.
O primeiro ponto a notar, que já a definição realça, é que a
satisfação pode ser aplicada tanto a funções sentenciais como
também a sentenças. Nas funções, como já frisamos, interessam
apenas “os termos da sequência que correspondem (em seus
índices) às variáveis livres da função” (Tarski, 2007b, p. 62). Os
demais termos são irrelevantes. Ora, em uma sentença com zero
variáveis livres (sentença fechada) “o primeiro elemento de uma
sequência, e todos os elementos subsequentes, são irrelevantes”
(Haack, 2002, p. 152). Logo, uma sentença com zero variáveis
livres é satisfeita por todas as sequências de objetos. Como diz o
66 | A Teoria correspondentista da Verdade

autor: “Resulta que, para uma sentença, apenas dois casos são
possíveis: uma sentença é satisfeita ou por todos os objetos ou por
nenhum deles” (Tarski, 2007a, p. 175). Se é satisfeita por todos os
objetos, é verdadeira. Se é satisfeita por nenhum objeto, é falsa.
Essa é, em linhas gerais, a solução de Tarski. No que diz
respeito às sentenças completas, o artifício da satisfação não deixa
de ser curioso: sentenças verdadeiras são satisfeitas por todas as
sequências de objetos. Consideremos, por um momento, a
sentença ‘A neve é branca’. Ela tem zero variáveis livres. Conforme
Haack, sentenças com variáveis livres em número igual a zero são
sentenças niládicas. Pode-se dizer, então, que a sentença niládica ‘A
neve é branca’ é satisfeita, por exemplo, pelas seguintes duas
sequências de objetos: ‹Canoas, São Leopoldo, Porto Alegre,
Montevideo,...› e ‹Cenoura, beterraba, alface, pepino, repolho,...›.
Deve-se acrescentar que ela é satisfeita por todas as demais
sequências, quaisquer que sejam seu primeiro e demais elementos.
Outras sentenças verdadeiras, como por exemplo ‘A grama é
verde’, recebem tratamento idêntico.
Feita essa exposição, cabe retomar a terceira questão lançada
na introdução: por que a solução de Tarski não é uma teoria
correspondentista da verdade? Esse é o assunto do próximo tópico.

A solução não é correspondentista

Em várias passagens Tarski se diz comprometido com a


perspectiva clássica/correspondentista da verdade, ainda que as
formulações desta, ao seu ver, pequem por falta de clareza e
precisão. Desse modo, ele permite que o leitor veja seu trabalho
como uma espécie de aperfeiçoamento do correspondentismo.
Pontuo algumas dessas evidências textuais.
Em “O Conceito de Verdade nas Linguagens Formalizadas”
Tarski afirma: “vou me ocupar exclusivamente em apreender as
intenções contidas na chamada concepção clássica da verdade
(‘verdadeiro – correspondente à realidade’)” (2007b, p. 20). Em “A
César Meurer | 67

Concepção Semântica da Verdade...” lemos que “a concepção


semântica é apenas uma forma modernizada” da concepção
clássica (2007a, p. 180). Já em “Verdade e Demonstração” ele diz:
“tentaremos aqui obter uma explanação mais precisa da concepção
clássica de verdade, uma explanação que possa superar a
formulação aristotélica e que preserve, ao mesmo tempo, suas
intenções básicas” (2007d, p. 206).21
Tarski vê em Aristóteles uma posição interessante acerca da
verdade. No entanto, ele “como que traduz a formulação
aristotélica para o vocabulário semântico-referencialista” (Braida,
2002, p. 45), entrando, desse modo, em diálogo com os
correspondentistas mais influentes do último século.

Se decidíssemos estender o uso popular do termo ‘designar’,


aplicando-o não apenas a nomes mas também a sentenças, e se
concordássemos em dizer que o que é designado pelas sentenças
são ‘estados de coisas’, poderíamos possivelmente usar para o
mesmo propósito a seguinte frase: Uma sentença é verdadeira se
ela designa um estado de coisas existente (Tarski, 2007a, p. 160-
161).

Ora, esse modo de colocar a questão ocasiona uma


aproximação do atomismo lógico de Wittgenstein e Russell. É
provável que o autor do Tractatus aprovaria essa afirmação.
Assim, cabe perguntar: em que medida a concepção semântica se
aproxima da concepção correspondentista? Está Tarski certo em
avaliar sua teoria como sendo correspondentista?
Essas questões não são novas e, mais uma vez, é preciso
assinalar que há discordâncias entre os intérpretes. Defendo o
seguinte entendimento: a concepção é correspondentista e a
definição não é. ‘Concepção’, nesse caso, designa o propósito e
‘definição’, por outro lado, diz do resultado efetivamente
alcançado. Com outras palavras: Tarski pensava na verdade como

21
Tarski (2007d, p. 204) concede que Metafísica Γ 7, 1011b26 é a mais antiga explicação filosófica da
verdade.
68 | A Teoria correspondentista da Verdade

uma questão de correspondência com a realidade e, no entanto,


desenvolveu uma definição que nada possui de correspondentista.
Além de mencionar textualmente que almejava uma
concepção semântica, Tarski usou esse termo no título de um dos
seus textos (2007a). Fixemo-nos em três passagens nas quais ele
apresenta seu entendimento de semântica:

Vamos entender por semântica a totalidade das considerações


que dizem respeito aos conceitos que, de modo geral, expressam
certas conexões entre as expressões de uma linguagem e os
objetos e estados de coisas a que se referem tais expressões
(Tarski, 2007c, p. 149).
A semântica é uma disciplina que, de modo geral, trata de certas
relações entre expressões de uma linguagem e os objetos (ou
‘estados de coisas’) ‘a que se referem’ tais expressões (Tarski,
2007a, p. 164).
Por semântica, entendemos aquela parte da lógica que,
informalmente falando, discute as relações entre os objetos
linguísticos (tais como sentenças) e aquilo que é expresso por
esses objetos (Tarski, 2007d, p. 205).

A relação ou conexão linguagem-objetos (ou ‘estados de


coisas’) que aparece nessas passagens evidencia o propósito
correspondentista. Como Tarski mesmo disse, a concepção
semântica pretende ser um aprimoramento da concepção
correspondentista da verdade (2007a, p. 180). Entendo que esse
era o propósito e qualifico-o como correspondentista.
O entendimento de semântica, assim especificado, nos
autoriza a esperar que a teoria relacione/conecte sentenças com
estados de coisas. Ele também nos autoriza a esperar uma
explicação de como o mundo torna as sentenças verdadeiras.
Kirkham (2003, p. 245) converte essa expectativa na seguinte
fórmula [R: uma relação que conecta a sentença t com um estado
de coisas x]:

(t) {t é verdadeiro em L ≡ (∋x) [(tRx) e (x acontece)]}


César Meurer | 69

Ao meu modo de interpretar, as explicações que Tarski dá do


que é semântica autorizam essa fórmula. No entanto, ele não se
ocupa em explicar essa relação ou conexão da linguagem com o
mundo. Quem entende que a solução (assim como o propósito) é
correspondentista talvez conteste essa afirmação chamando a
atenção para a satisfação, que é efetivamente similar à ideia de
correspondência.
Não nego que a satisfação seja similar à correspondência.
Observo, porém, que a aparente similaridade não é suficiente para
qualificar esse artifício como correspondentista. Satisfação, como
vimos, é uma relação de sentenças abertas com sequências de
objetos. É um equívoco dizer que ela é equivalente àquilo que os
correspondentistas do último século – refiro-me a Russell e
Wittgenstein – sincronizam e chamam de correspondência: de um
lado, nomes em uma proposição e, do outro lado, fatos no mundo.
O equívoco torna-se palpável quando recordamos que “a definição
de verdade de Tarski não faz qualquer apelo a sequências
específicas de objetos, pois as sentenças verdadeiras são satisfeitas
por todas as sequências e as falsas, por nenhuma” (Haack, 2002, p.
160). Essa constatação, de que as sentenças são satisfeitas por
todas ou por nenhuma sequência, tomo-a como base para inferir
que a definição ou solução tarskiana não é correspondentista.
É possível que o meu interlocutor correspondentista retome
a questão chamando a atenção para o Esquema T, sugerindo que
cada instância desse esquema relaciona a linguagem com o mundo
ou, mais especificamente, que cada instância relaciona sentenças
com objetos. Algo no mundo tem que ser o caso para que uma
sentença em L seja verdadeira. Estou de acordo que a verdade de
uma sentença depende de como o mundo é. Entretanto, o que o
Esquema T explica acerca dessa conexão sentença-mundo?
Para Tarski, a questão da verdade tem solução positiva
apenas no âmbito das linguagens formalizadas. O autor
demonstrou-o para o caso da linguagem do cálculo de classes. A
solução encontrada não apela para entidades como fatos ou
70 | A Teoria correspondentista da Verdade

estados de coisas. Comentando a sua definição – e qualificando-a


como semântica – Tarski disse:

A definição semântica da verdade não implica nada a respeito de


condições sob as quais uma sentença como (1) A neve é branca
possa ser afirmada. Ela implica apenas que, em quaisquer
circunstâncias em que afirmemos ou neguemos essa sentença,
devemos estar prontos para afirmar ou negar a sentença
correlata (2) A sentença ‘a neve é branca’ é verdadeira (Tarski,
2007a, p. 189).

Essa passagem é significativa para a interpretação que estou


sugerindo. O que está em questão não é a conexão da sentença ‘A
neve é branca’ com o mundo. Toda e qualquer sequência de objetos
a satisfaz. O interesse de Tarski está em outra conexão, a que se dá
entre ‘A neve é branca’ e “A sentença ‘A neve é branca’ é
verdadeira”. Confirma-o uma passagem do § 6 de “O conceito de
verdade nas linguagens formalizadas”, na qual ele resume seus
resultados dizendo:

Para cada linguagem formalizada de ordem finita, pode ser


construída na metalinguagem uma definição formalmente
correta e materialmente adequada de sentença verdadeira,
fazendo-se uso apenas de expressões de caráter lógico geral, de
expressões da própria linguagem bem como de termos
pertencentes à morfologia da linguagem, isto é, de nomes de
expressões linguísticas e das relações estruturais existentes entre
elas (Tarski, 2007b, p. 135).

Tarski não oferece indicações para avaliar a conexão de


sentenças como ‘A neve é branca’ e o mundo. Ele não propõe um
critério que permita confrontar a sentença com o mundo para ver
se é ela verdadeira ou falsa. Quando dizemos “A sentença p é
verdadeira em L se e somente se...” estamos apresentando as
condições de verdade dessa sentença em L. Cada instância do
Esquema T somente apresenta as condições em que uma dada
sentença é verdadeira, e o faz utilizando a própria sentença, mas
César Meurer | 71

não fornece um critério que possibilite decidir se ela é verdadeira


ou falsa.
Se a minha interpretação é plausível, então Tarski não
construiu uma definição genuinamente semântica, conforme a sua
própria concepção de semântica. A definição que Tarski elaborou
não lida com fatos, mas somente com sentenças de L e de ML. Seu
interesse não é a conexão da sentença em L com o mundo, mas a
conexão de cada sentença em L com a respectiva bicondicional em
ML. O esquema T apresenta, em ML, as condições de verdade de
uma sentença em L, desde que a estrutura de L esteja devidamente
especificada. Essas afirmações encontram apoio na interpretação
de Etchemendy (1988), que assinala que a definição tarskiana de
verdade não ilumina as propriedades semânticas da linguagem
objeto. Também encontra apoio em Chateaubriand, que chega a
dizer que “a semântica tarskiana é, de fato, só aparentemente
semântica” e que “as linguagens [L e ML] não precisam ter
qualquer conexão com o mundo, basta que tenham certas
características lógicas” (1998, p. 27).
Capítulo 4

Davidson contra a
teoria correspondentista da verdade1

Vamos iniciar com algumas afirmações incisivas:

A perspectiva realista da verdade, se tem qualquer conteúdo, tem


de ser baseada na ideia de correspondência, correspondência
aplicada a frases ou crenças ou elocuções – entidades que têm um
carácter proposicional; e não se pode tornar inteligível tal
correspondência. [...] É fútil tanto rejeitar como aceitar o slogan
de que o real e o verdadeiro são “independentes do que
pensamos”. O único sentido positivo evidente que podemos dar a
essa expressão, o único uso em harmonia com as intenções dos
que a valorizam, deriva da ideia de correspondência, e essa é uma
ideia sem conteúdo (Davidson, 2005a, p. 41-42 – grifos meus).

Davidson leu esse parágrafo no dia 16 de novembro de 1989,


na Universidade Columbia, em Nova York (Davidson, 2005a, p. ix).
O texto apareceu no ano seguinte, sob o título “The Structure and
Content of Truth”.2 Algo muito próximo havia sido dito dois anos
antes, na Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina. O texto
daquela ocasião, “Epistemology and Truth”, ganhou visibilidade
maior somente em 2001, na coletânea Subjective, Intersubjective,
Objective.
1
Este capítulo é uma versão revisada e melhorada do artigo “Davidson contra o correspondentismo”,
que apareceu na Revista Princípios em 2014.
2
“The Structure and Content of Truth” apareceu no The Journal of Philosophy, v. 87, n. 6, 1990.
Posteriormente, ele foi revisado e incluído no volume Truth and Predication (Cap. 1, 2 e 3). Cito-o
conforme essa coletânea (2005a), mas mencionando o título original.
74 | A Teoria correspondentista da Verdade

O objetivo do presente capítulo é elucidar a crítica de


Davidson à teoria correspondentista da verdade (também chamada
‘teoria correspondencial’, ‘correspondentismo’, ‘teoria da
correspondência’ etc.). Tomo a passagem acima como ponto de
partida e pergunto: por que a ideia de correspondência é
considerada ininteligível e sem conteúdo? Quais são, por assim
dizer, as premissas que dão evidência para essa afirmação?
O correspondentismo tem uma longa história e um forte
apelo empírico. Vimos, nos dois primeiros capítulos do presente
volume, que as defesas mais influentes do último século – a de
Russell e a do primeiro Wittgenstein – se apoiam em uma
metafísica atomista. Esses autores sustentam que a verdade de
uma sentença ou proposição reside na sua correspondência com
algo no mundo. O mundo, que é tal como é independente do que se
pensa a seu respeito, determina a verdade da proposição ou
sentença, e não o inverso. A adequada compreensão dessa posição
demanda atenção aos detalhamentos que cada autor lhe confere.
Um refinamento particularmente importante é a noção de ‘fato’,
que ambos articulam, atomicamente, como correspondente não-
linguístico de sentenças verdadeiras.
Para alguns, Tarski é um correspondentista de alto gabarito.
No terceiro capítulo do presente volume, vimos que essa
interpretação não é pacífica. Por um lado, há evidências textuais
suficientes para mostrar que ele próprio via o seu trabalho como
uma reformulação dessa concepção, que ele denomina ‘clássica’.
Não obstante, questiona-se se o resultado obtido é ou não uma
teoria semântica. Por ‘teoria semântica’ quero significar uma
abordagem da relação dos signos da linguagem com os objetos (ou
entidades, ou coisas, ou fatos) do mundo. Essa questão ganha
importância em relação ao escopo do presente capítulo, pois
Davidson é conhecido como uma espécie de tarskiano: pretende
discutir a compreensão da linguagem a partir do modelo proposto
por Tarski e, ao mesmo tempo, considera que isso “está
relacionado à rejeição de uma imagem representacional da
César Meurer | 75

linguagem e da ideia de que a verdade consiste no espelhamento


acurado dos fatos” (Davidson, 2005a, p. 10).
A crítica que Davidson dirige à teoria correspondentista da
verdade tem, no meu entender, duas fases. A primeira, chamo-a de
crítica lógico-semântica, tem expressão mais vigorosa em trabalhos
publicados nas décadas de 60 e 70. Nesse período, a inteligibilidade
do correspondentismo é posta em xeque. A segunda, podemos
chamá-la de crítica epistemológica, foi desenvolvida a partir dos
anos 80. Nesse período a ideia de correspondência é rejeitada por
sua propensão ao ceticismo.3
Vou aqui ocupar-me somente da crítica lógico-semântica.
Mostrarei que a afirmação apresentada na abertura, de que a
correspondência é ininteligível e sem conteúdo, remete a uma
reflexão de natureza lógico-semântica que Davidson iniciou na
segunda metade dos anos 60 e aprofundou na década de 70. No
núcleo dessa reflexão encontramos uma estratégia conhecida como
‘the slingshot argument’ (argumento da funda, doravante AF). É
com base nesse raciocínio – Davidson entende que ele é preciso e
rigoroso – que a teoria correspondentista é considerada
ininteligível e sem conteúdo. Procurarei mostrar, com diversas
evidências textuais, que Davidson manteve esse entendimento até
o final da carreira.

O argumento da funda

A ideia de correspondência defendida no início do século XX


é uma ideia atomista: afirma que átomos linguísticos
correspondem a entidades, átomos igualmente simples no mundo
extralinguístico. Para Davidson, o AF mostra que essa proposta é
inviável, tanto no âmbito da verdade quanto no âmbito do
significado. É interessante notar que a primeira investida do autor,
3
A partir da década de 80 o ceticismo ganhou importância na reflexão de Davidson, desempenhando
nela um papel central (Smith, 2005b, p. 127). Dentre as diversas abordagens desse aspecto do
pensamento do autor, conferir Smith (2005a; 2005b), Silva Filho (2008) e Navia (2010; 2011).
76 | A Teoria correspondentista da Verdade

datada de 1967, dirige-se contra a concepção atomista de


significado. Dois anos depois o mesmo recurso lógico-semântico
(AF) é usado para rejeitar a concepção atomista de verdade.

Contra a concepção atomista do significado

Os três papers que Davidson publicou no ano de 1967 trazem


versões do AF. São eles: “The logical form of action sentences”, no
qual o argumento aparece duas vezes (2001e, p. 117-118; 2001e, p.
131-132); “Causal relations” (2001b – o argumento está na p. 152-
153) e “Truth and meaning” (2001g, p. 19). 4 Nos próximos
parágrafos, abordarei o que é desenvolvido em “Truth and
meaning”, onde AF é direcionado contra o atomismo do
significado.
Davidson inicia seu texto questionando a concepção de
significado implícita na perspectiva correspondentista. Para
compreendê-lo, cumpre levar em conta algo que nem sempre é
posto em evidência: que a explicação correspondentista da verdade
nos oferece uma teoria explicativa do significado. Quer dizer: no
nível atômico, a proposta de correspondência linguagem-mundo
constitui uma maneira paradigmática de conceber as propriedades
semânticas das palavras e das sentenças. Russell e o primeiro
Wittgenstein consideram que o significado das sentenças depende
do significado dos termos. O significado destes, na concepção
correspondentista, está determinado pelas suas referências. Para
Davidson, identificar significado e referência é um equívoco.
Outro aspecto a considerar com vistas a compreender a
argumentação de Davidson é o seu vocabulário. Para os propósitos

4
“The logical form of action sentences” apareceu em RESCHER, N. (Ed.) Logic of decision and
action. Pittsburgh: Pittsburgh University Press, 1967, p. 81-95. Posteriormente, foi incluído na
coletânea Essays on actions and events (1980). Cito-o conforme a segunda edição dessa coletânea
(2001e). “Causal relations” foi publicado no The journal of philosophy, n. 64, p. 691-703. Esse texto
também foi incluído na coletânea Essays on actions and events (2001b). “Truth and meaning”
apareceu na Synthèse, n. 17, p. 304-323. Posteriormente, foi incluído na coletânea Inquiries into
truth and interpretation (1984). Cito-o conforme a segunda edição dessa coletânea (2001g).
César Meurer | 77

da nossa incursão é oportuno observar que no nível dos nomes,


Davidson fala em termos singulares (singular terms). No nível
proposicional, ele fala em sentenças (sentences) e, eventualmente,
em termos singulares complexos (complex singular terms). No
nível ontológico, ele fala em entidades (entities).5
Na explicação correspondentista, termos singulares têm
referências determinadas. Esse seria o suporte mais forte para
falar de uma teoria do significado a la correspondência. Para
Davidson, a noção de significado do correspondentista está longe
de ser clara. Como o correspondentista a explica? Uma via consiste
em começar pelas palavras, tratando de designar a cada termo
uma entidade. Outra via é começar pelas sentenças. Na rota da
primeira via, “poderíamos designar Teeteto a ‘Teeteto’ e a
propriedade de voar a ‘voa’, na sentença ‘Teeteto voa’” (Davidson,
2001g, p. 17). O questionamento do autor, em relação a esse
procedimento, é: como se explica o significado da sentença que é
gerado a partir dos significados das palavras? Dito de outro modo:
é o significado da sentença algo como a soma dos significados das
palavras que nela ocorrem? Nesse ponto, presumivelmente, o
defensor do correspondentismo pedirá que se considere a
concatenação das palavras (as características estruturais da
sentença), atribuindo a ela uma participação, tal como o atomismo
lógico ensina.
A segunda via, de explicar o significado começando pelas
sentenças, também leva a dificuldades, novamente no que diz
respeito à relação do significado do conjunto para com o
significado das partes. Davidson sugere a expressão “o pai de
Annette” e pergunta: “como o significado do conjunto depende do
significado das partes?” (2001g, p. 17-18). Uma explicação poderia
ser esta: o termo singular ‘Annette’ refere Annette. A expressão em
questão consiste de ‘o pai de’ prefixado a um termo singular t.

5
A ontologia que Davidson recomenda, e que não é o meu ponto aqui, é uma ontologia de eventos
singulares.
78 | A Teoria correspondentista da Verdade

Nesse caso, ela refere o pai da entidade referida por t. Nenhuma


entidade corresponde a ‘o pai de’, a não ser quando essa expressão
é prefixada a um termo singular.
Aparentemente, essas respostas correspondentistas são
satisfatórias e a teoria se vê confirmada. Assim, pode ser que
alguém decida continuar nesse projeto “de identificar o significado
de um termo singular com sua referência” (2001g, p. 19). A ele
Davidson apresenta o argumento que quero colocar em destaque.
Cito a passagem in totum:

Se queremos continuar em nosso curso presente (implícito) de


identificar o significado de um termo singular com sua referência
surge uma dificuldade. A dificuldade surge quando se levanta
duas suposições razoáveis: que os termos singulares logicamente
equivalentes têm a mesma referência, e que um termo singular
não muda sua referência no caso de um termo singular contido
ser substituído por outro com a mesma referência. Mas, suponha
agora que “R” e “S” abreviem duas sentenças idênticas em valor
de verdade. Então, as quatro sentenças seguintes têm a mesma
referência:

(1) R
(2) x̂ (x=x.R) = x̂ (x=x)
(3) x̂ (x=x.S) = x̂ (x=x)
(4) S

Pois (1) e (2) são logicamente equivalentes, como são (3) e (4), ao
passo que (3) difere de (2) somente por conter o termo singular
“(x=s.S)”, enquanto (2) contém “(x=x.R)” e estes se referem à
mesma coisa no caso de S e R serem iguais em valor de verdade.
Por conseguinte, qualquer uma das duas sentenças tem a mesma
referência se tiverem o mesmo valor de verdade. E, se o
significado de uma sentença é o que ela refere, todas as sentenças
iguais em termos de valor de verdade devem ser sinônimas – um
resultado intolerável (Davidson, 2001g, p. 19).

Com o AF, Davidson argumenta que o significado não pode


ser idêntico à referência. As premissas nas quais o argumento está
César Meurer | 79

assentado são duas: termos singulares logicamente equivalentes


são correferenciais e termos correferenciais são intersubstituíveis.
Mais adiante, na discussão do efetivo alcance do argumento,
retomarei essas premissas. Passo agora para a apresentação do AF
contra a concepção atomista da verdade. Veremos que o raciocínio
é essencialmente o mesmo.

Contra a concepção atomista da verdade

Em “True to the facts” (1969)6 Davidson usa o AF contra a


concepção atomista da verdade. O próprio autor considera que
essa é a sua argumentação mais importante contra o
correspondentismo. Já no título – que explora a reversibilidade de
true para ‘verdadeiro’ e para ‘fiel’ – o artigo se mostra provocativo.
(Davidson é um provocador sutil e elegante. Tenho essa impressão
ao ler seus trabalhos e a considero explicada, pelo menos em parte,
ao recordar que a maioria dos textos é oriunda de comunicações
orais.) E a elegância do título pode ser estendida a toda peça. O
parágrafo inicial, por sinal, retrata com perspicácia o que se
costuma colocar sob o rótulo ‘teoria correspondentista’:

Um enunciado verdadeiro é um enunciado fiel aos fatos. Essa


observação parece incorporar o mesmo tipo de juízo óbvio e
essencial acerca da verdade como o seguinte acerca da
maternidade: uma mãe é uma pessoa que é mãe de alguém. A
propriedade de ser uma mãe está explicada pela relação entre
uma mulher e seu filho; de maneira similar, isto parece sugerir
que a propriedade de ser verdadeiro será explicada por uma
relação entre um enunciado e alguma outra coisa. Sem pré-julgar
a questão do que poderia ser essa outra coisa, ou de que palavra
ou frase expressa melhor a relação (de ser verdadeiro, de
corresponder, de retratar), tomarei a liberdade de chamar teoria
correspondentista da verdade a qualquer consideração desse tipo
(Davidson, 2001f, p. 37).

6
O texto apareceu no The Journal of Philosophy, n. 66. Posteriormente, foi incluído na coletânea
Inquiries into Truth and Interpretation (1984). Cito-o conforme a segunda edição da coletânea.
80 | A Teoria correspondentista da Verdade

Segundo o autor, essa ideia de correspondência não resiste a


um escrutínio rigoroso: quando tentamos explicar essa outra coisa,
a parte não-linguística da relação, logo chegamos à noção de ‘fato’
(ou algo similar como ‘estado de coisas’...), que aí ocupa um lugar
central. Ao examinar essa noção, sem demora constatamos que ela
é obscura, trivial, vazia... ininteligível. Ora, se é impossível explicar
a contraparte não-linguística da relação, então a própria ideia de
correspondência perde o seu valor. Para demonstrar isso, Davidson
articula o AF com as seguintes palavras:

Consideremos então mais diretamente as perspectivas de uma


explicação da verdade em termos de correspondência.
O que faz verdadeiros os enunciados é a correspondência entre o
que se diz e os fatos. É natural, então, orientar-se até os fatos em
busca de ajuda. Não se pode apreender muito de orações como
(5) O enunciado de que Thika está no Quênia corresponde aos
fatos,
ou de variantes tais como “É um fato que Thika está no Quênia”,
“Que Thika está no Quênia é um fato”, e “Thika está no Quênia, e
isso é um fato”. Aceitemos ou não a ideia de que a
correspondência com os fatos explica a verdade, (5) e suas
variantes não dizem mais que “O enunciado de que Thika está no
Quênia é verdadeiro” (ou “É verdadeiro que...” ou “..., e isso é a
verdade”, etc.). Se (5) chega a adquirir um interesse
independente, é porque somos capazes de dar uma explicação dos
fatos e da correspondência que não leva imediatamente à
verdade. Uma explicação assim nos permitiria dar sentido a
orações como esta:
(6) O enunciado de que p corresponde ao fato de que q.
O passo para a verdade seria simples: um enunciado é verdadeiro
se há um fato ao qual ele corresponde. [(5) poderia reescrever-se
“O enunciado de que Thika está no Quênia corresponde a um
fato”]. Quando é válida (6)? Certamente quando “p” e “q” são
substituídas pela mesma sentença; mas depois disso as
dificuldades se estabelecem. O enunciado de que Nápoles está
mais ao norte que Red Bluff corresponde ao fato de que Nápoles
está mais ao norte que Red Bluff, mas também, se poderia dizer,
ao fato de que Red Bluff está mais ao sul que Nápoles (talvez
César Meurer | 81

ambos sejam o mesmo fato). Também corresponde ao fato de


que Red Bluff está mais ao sul que a maior cidade italiana em um
raio de cinquenta quilômetros de Ischia. Quando pensamos que
Nápoles é a cidade que satisfaz a seguinte descrição: é a maior
cidade em um raio de cinquenta quilômetros de Ischia, e tal que
Londres está na Inglaterra, então começamos a suspeitar que se
um enunciado corresponde a um fato, corresponde a todos.
(“Corresponde aos fatos” seria o correto, em definitivo.) Por
certo, é fácil confirmar a suspeita empregando os princípios
implícitos em nossos exemplos. Os princípios são estes: se um
enunciado corresponde ao fato descrito por uma expressão da
forma “o fato de que p”, logo ele corresponde ao fato descrito por
“o fato de que q” desde que (1) as sentenças que substituem a “p”
e “q” sejam logicamente equivalentes, ou (2) a diferença entre “p”
e “q” é que um termo singular foi substituído por um termo
singular coextensivo. O argumento de confirmação é o seguinte.
Suponhamos que “s” abrevia uma sentença verdadeira. Logo,
seguramente o enunciado de que s corresponde ao fato de que s.
Mas podemos substituir o segundo “s” pela sentença logicamente
equivalente (o x tal que x é idêntico a Diógenes e s) é idêntico a (o
x tal que x é idêntico a Diógenes). Aplicando o princípio segundo
o qual podemos substituir termos singulares coextensivos,
podemos substituir “t” por “s” na última sentença, desde que “t”
seja verdadeira. Finalmente, revertendo o primeiro passo
concluímos que o enunciado que s corresponde ao fato que t,
onde “s” e “t” são quaisquer sentenças verdadeiras.
Uma vez que para além de assuntos de correspondência não se
propôs forma alguma de distinguir fatos, e este teste não
consegue descobrir uma única diferença, podemos interpretar
que o resultado de nossos argumentos mostra que há exatamente
um fato. Descrições como “o fato de que há estupas no Nepal”, se
é que descrevem, descrevem a mesma coisa: o Grande Fato
(Davidson, 2001f, p. 41-42).

No âmbito da crítica lógico-semântica da teoria


correspondentista, essa passagem é central. O que Davidson está
dizendo? Que o correspondentista, a fim de dar plausibilidade para
a sua posição, precisa individuar/distinguir os fatos. Somente
assim eles cumprem o papel previsto, de contraparte não-
82 | A Teoria correspondentista da Verdade

linguística de sentenças. O esquema básico dessa individuação ‘o


enunciado de que p corresponde ao fato de que q’ requer a
especificação de p e de q. À partida, p e q podem ter a mesma
formulação. (O enunciado ‘Nápoles está mais ao norte que Red
Bluff’ corresponde ao fato de que Nápoles está mais ao norte que
Red Bluff.) Nesse ponto, o raciocínio não apresenta problemas.
Porém, se aceitarmos que termos singulares coextensivos e
sentenças logicamente equivalentes são intersubstituíveis, então
seremos compelidos a concordar que não há maneira de
individuar/distinguir as partes que o correspondentista chama
‘fatos’. Quer dizer: de um fato (o fato de que q), mediante tais
substituições, derivamos outros fatos que já não guardam relação
com ‘o enunciado de que p’. Esquematicamente, esse processo de
derivar outros fatos funciona assim:

Passo 1: O enunciado p corresponde ao fato q.


Passo 2: Reescrever q, substituindo sucessivamente termos singulares
coextensivos e sentenças logicamente equivalentes.
Conclusão: O enunciado p corresponde ao fato q, ao fato r, ao fato s,....
aos fatos.

A moral extraída desse raciocínio é que não há uma


semântica séria para fatos. Eles não se deixam especificar. Feita
essa constatação, Davidson diz jocosamente que há ‘o grande fato’,
nada mais do que uma variante de ‘mundo’ ou ‘realidade’. Se
quisermos falar em correspondência devemos então dizer que
todas as sentenças verdadeiras correspondem a esse mesmo fato.
Se é assim, então efetivamente a ideia de correspondência é
ininteligível.

Reapresentações da conclusão

Antes de examinar o argumento, gostaria de registrar


algumas reapresentações da conclusão, vista nos parágrafos
César Meurer | 83

precedentes. Quero com isso mostrar que Davidson manteve sua


posição, de que a ideia de correspondência nada diz, até o fim da
carreira. Opto pelas citações diretas, indicando também o título e o
ano de publicação do texto em questão.
Em “Afterthoughts” (1987) – um adendo ao célebre “A
coherence theory of truth and knowledge” – Davidson observa: “Já
faz muito tempo, em 1969 (“True to the Facts”), argumentei que
não há nada que se possa dizer – de maneira útil e inteligível – que
se corresponda com uma sentença. [...] Ninguém nunca explicou
em que poderia consistir a correspondência” (2001a, p. 154-155).
Em “Epistemology and Truth” (1988) lemos: “Se tem algum
conteúdo, a concepção objetiva de verdade deve basear-se na
correspondência, [...] e não se pode tornar essa correspondência
inteligível. Na medida em que o realismo não é senão a versão
ontológica de uma teoria da correspondência, devo rejeitá-lo
também” (2001c, p. 185).
Em “The Structure and Content of Truth” (1990), Davidson
se expressa com as seguintes palavras: “não há nada de
interessante ou instrutivo a que as sentenças verdadeiras poderiam
corresponder. [...] se as sentenças verdadeiras correspondem a
alguma coisa, tal coisa deve ser o universo como um todo; sendo
assim, todas as sentenças verdadeiras correspondem à mesma
coisa” (2005a, p. 39-40).
Em “The folly of trying to define Truth” (1996), o autor tece
as seguintes considerações: “os fatos ou estados de coisas nunca
foram indicados para desempenhar um papel útil na semântica”
(2005b, p. 22-23).
Em “Indeterminism and Antirealism” (1997), o autor
menciona sua indisposição com a teoria correspondentista nos
seguintes termos: “ninguém nunca foi capaz de dizer de uma
maneira não trivial que classe de ‘coisa’ é o que faz verdadeira uma
sentença” (2001d, p. 70).
Em “Truth Rehabilitated” (1999) Davidson argumenta que
“a noção de correspondência seria de alguma ajuda se fossemos
84 | A Teoria correspondentista da Verdade

capazes de dizer, de um modo instrutivo, que fato ou segmento da


realidade é o que torna a sentença verdadeira. Ninguém teve êxito
nisso. [...] Há boas razões, então, para ser cético em relação à
importância da teoria da verdade como correspondência” (2005c,
p. 05-06).
Em “Is Truth a Goal of Inquiry?” (1999, p. 15) lê-se que:

O realismo, como eu o entendo, é a perspectiva de que o uso


predicacional da verdade pode ser explicado em termos de uma
relação de correspondência. Esta seria uma afirmação
interessante se todo mundo pudesse surgir um modo inteligível e
iluminado de individualizar as entidades às quais os enunciados
ou crenças verdadeiras correspondem, junto com uma semântica
aceitável para se falar sobre tais entidades. Mas não há tal
explicação.

Com distintas nuances, essas passagens transmitem a


mesma convicção: o argumento da funda fornece um motivo
consistente para rejeitar a explicação correspondentista. A ideia de
correspondência é trivial; não resiste a um exame mais rigoroso.
Devemos rejeitá-la, classificando-a como ininteligível.
Para Davidson, a conclusão do AF é compulsória. Será
mesmo? Qual é o efetivo alcance desse argumento? Na próxima
seção tratarei de elaborar respostas para essas interrogações.

Sobre o alcance do argumento

A expressão “argumento da funda” é um apelido cunhado


por Barwise e Perry (1981, p. 398): “O argumento é tão pequeno,
raramente abrange mais de meia página, e emprega tão pouca
munição – uma teoria das descrições e uma noção popular de
equivalência lógica – que o apelidamos a funda [the slingshot]”.
Ainda que a munição seja aparentemente pouca, o AF tem
consequências impactantes e pode ser usado para diversos
finalidades (Santos, 2003, p. 277). Davidson, que usou o
César Meurer | 85

argumento para mais de uma finalidade, não se furta de explicitar


as premissas que lhe dão sustentação.
Qual é o efetivo alcance do AF? Minha resposta consiste em
chamar a atenção para as premissas, mostrar que elas são
inspiradas em Frege e, em seguida, dizer que a força do AF
depende da adesão a uma perspectiva fregeana em semântica.
Veremos que o autor do AF, Alonzo Church, assume claramente o
legado de Frege. O mesmo vale para Davidson. De um ponto de
vista lógico, não há grandes diferenças do AF de Davidson em
relação ao de Church.

O legado de Frege

Dizer que o AF é inspirado em Frege não é o mesmo que


atribuir sua autoria a esse pensador. Frege afirmou que a
referência de uma sentença é o seu valor de verdade. Essa tese é
central para o AF. Além disso, cabe notar que esse pensador
considerava as sentenças como nomes próprios e os valores de
verdade como objetos. Uma passagem de “Sobre o sentido e a
referência” (1892) resume esse legado:

Toda sentença assertiva, em face à referência de suas palavras,


dever ser, por conseguinte, considerada como um nome próprio,
e sua referência, se tiver uma, é ou o verdadeiro ou o falso. Estes
dois objetos são reconhecidos, pelo menos tacitamente, por todo
aquele que julgue, que considere algo como verdadeiro, ou seja,
até por um cético (Frege, 1978c, p. 69).

Nessa passagem aparecem quatro teses relacionadas. Na


interpretação de Burge (2005), tais teses são centrais na posição de
Frege acerca da linguagem e da verdade. Com efeito, Burge
considera útil especificá-las e discuti-las uma de cada vez: “(a) As
sentenças (quando não defeituosas) têm denotações; (b) A
denotação de uma sentença é o seu valor de verdade; (c) Sentenças
86 | A Teoria correspondentista da Verdade

são do mesmo tipo lógico dos termos singulares; (d) A denotação


de uma sentença é um objeto” (Burge, 2005, p. 85).
Além de frisar que as teses estão na ordem em que foram
desenvolvidas por Frege, Burge observa que a adequada
compreensão desse legado demanda atenção à distinção
sentido/referência, bem como ao princípio da composicionalidade
destes. Se lermos com atenção a citação de Frege (acima),
notaremos que o princípio da composicionalidade é mencionado na
primeira linha. Burge formula a noção fregeana de
composicionalidade da referência e do sentido nas seguintes
palavras:

(1) A denotação de uma expressão complexa é funcionalmente


dependente apenas das denotações das suas expressões
componentes logicamente relevantes.
(2) O sentido de uma expressão complexa é funcionalmente
dependente apenas dos sentidos de suas expressões componentes
logicamente relevantes (Burge, 2005, p. 85).

No que segue, destaco alguns pontos que considero


imprescindíveis para compreender a tese (b) “A denotação de uma
sentença é o seu valor de verdade” e a tese (c) “Sentenças são do
mesmo tipo lógico dos termos singulares”. Quanto a (a), está de
algum modo contida em (b). Quanto a (d), ela pode ser vista como
um desdobramento de (b).
A referência de uma sentença é o seu valor de verdade. Para
compreender essa tese, cumpre considerar que nomes próprios,
predicados e sentenças têm sentido e referência. Às vezes,
inadvertidamente, aplicamos a distinção sentido/referência apenas
aos nomes, omitindo os predicados e as sentenças.
O sentido e referência de uma sentença são distintos. Em
ambos, vale o princípio da composicionalidade. Consideradas as
aspirações logicistas de Frege, ele não podia abrir mão desse
princípio. Quer dizer: tanto o sentido quanto a referência de uma
César Meurer | 87

sentença são exaustivamente determinados pelo sentido ou


referência das expressões que a compõem e pelo modo como estão
concatenadas.
Que as sentenças têm referência significa, para começar, que
há algo além do sentido que levamos em conta, especialmente
quando assumimos uma atitude de investigação científica. As
considerações de “Sobre o sentido e a referência” são
esclarecedoras quanto a isso. Depois de mostrar que os nomes têm
sentido e referência, Frege avança para as sentenças assertivas
completas e se depara com a necessidade de aplicar a distinção
sentido/referência também a elas. O ponto de vista é lógico e
devemos compreendê-lo no contexto do projeto de uma língua com
exatidão científica.
Em busca do sentido e da referência das sentenças, o autor
(1978c, p. 67) desenvolve um raciocínio que pode ser
esquematizado da seguinte forma:

1º passo: uma sentença assertiva completa contém um pensamento.7 Ela


diz algo; comunica algo acerca de algo.
2º passo: se substituirmos uma palavra da sentença por outra que tenha
a mesma referência, mas sentido diferente, o pensamento muda. Ex.: o
pensamento da sentença ‘a estrela da manhã é um corpo iluminado pelo
sol’ é diferente do da sentença ‘a estrela da tarde é um corpo iluminado
pelo sol’. Aqui, Frege lida com as conclusões acerca do sentido e
referência dos nomes próprios e com o princípio da composicionalidade.
Conclusão: a substituição de termos singulares correferenciais pode
mudar o pensamento da sentença. O pensamento não se deixa
determinar pela referência dos termos singulares da sentença. Ele é,
nesse sentido, independente. Essa constatação leva Frege a inferir que “o

7
Em Frege, ‘pensamento’ é um conceito denso. Em Der Gedanke, fica claro que o autor é um
platonista nessa matéria: o pensamento é uma entidade abstrata. “Chamo de pensamento algo sobre
o que a verdade pode ser legitimamente colocada em questão. Também o que é falso conto como
sendo um pensamento, tanto quanto o que é verdadeiro. Posso então dizer: o pensamento é o
sentido de uma frase, com o que não quero afirmar que o sentido de toda frase seja um pensamento.
O pensamento, que em si mesmo é não-sensível, veste-se com a roupagem sensível da frase
tornando-se assim apreensível para nós. Dizemos que a frase expressa um pensamento” (Frege,
1999, p. 05-06).
88 | A Teoria correspondentista da Verdade

pensamento, portanto, não pode ser a referência da sentença, pelo


contrário, deve ser considerado como seu sentido” (Frege, 1978c, p. 67-
68).

Que uma sentença assertiva completa tem um sentido – isto


é, que ela expressa algo inteligível; um conteúdo cognitivo – não
ocasiona estranhamentos. Pelo contrário, esse é o entendimento
usual desde Aristóteles, em cujo Da Interpretação se lê que “toda
frase têm um sentido [semantikós] [...], nem todas contudo
apresentam algo [apophantikós], mas sim apenas aquelas que
podem ser verdadeiras ou falsas” (Aristóteles apud Tugendhat,
1996, p. 22).
Mas possuem as sentenças também referência? Frege pensa
que sim. Exceto as sentenças que contêm termos singulares sem
referência. Nesse caso, a sentença toda também não terá
referência, apenas sentido. Consideremos ‘Ulisses profundamente
adormecido foi desembarcado em Ítaca’. Visto que “é duvidoso que
o nome ‘Ulisses’, que aí ocorre, tenha uma referência, é também
duvidoso que a sentença inteira tenha uma” (Frege, 1978c, p. 78).
É por isso que Burge inseriu a ressalva ‘quando não defeituosas’,
na tese (a) citada no início da seção.
Como demonstrar que sentenças não defeituosas têm
referência? Inicialmente, Frege chama a atenção para o fato de que
nos preocupamos com a referência dos termos singulares. A
questão é: como se pode predicar algo de algo (de um termo
singular) que não tem referência, “pois é da referência deste nome
que o predicado é afirmado ou negado”? (Frege, 1978c, p. 78).
Predicar algo de uma entidade inexistente (e.g., Ulisses, o atual rei
do Brasil, Pégaso) constitui, de algum modo, conhecimento?
Improvável. E Frege prossegue:

O fato de que nos preocupamos com a referência de uma parte da


sentença indica que geralmente admitimos e postulamos uma
referência para a própria sentença. O pensamento perde valor
para nós tão logo reconhecemos que a referência de uma de suas
César Meurer | 89

partes está faltando. Estamos assim justificados por não ficarmos


satisfeitos com o sentido de uma sentença, sendo assim levados a
perguntar também por sua referência (Frege, 1978c, p. 78).

Para a atividade científica, de que serve uma sentença que


predica algo de uma entidade inexistente (de um nome que não
possui referência)? Mas, pode ser que a referência do predicado
esteja faltando. Em um texto póstumo, intitulado “Digressões sobre
o sentido e a referência”, Frege deixa claro que também os
predicados têm sentido e referência.
Para compreender que também os predicados têm sentido e
referência, vamos partir da ideia de que expressões linguísticas
podem ser classificadas em ‘completas’ e ‘incompletas’. (Frege usa
uma terminologia da química: expressões saturadas e insaturadas.)
Nomes próprios e sentenças são exemplos de expressões
completas/saturadas. Para elas, a referência é um objeto: uma
entidade ou, no caso das sentenças, um objeto lógico. Funções são
exemplos de expressões incompletas/insaturadas. Por exemplo, ‘x
é filósofo’. Qual é a referência de uma expressão insaturada?
Resulta óbvio dizer que Frege precisava de algo que
funcionasse como referência de expressões incompletas, tais como ‘x
é um filósofo’. Para tanto, ele buscou suporte na matemática. Mais
especificamente, no conceito de função, de uso corrente na
matemática do final do século XIX. O que é uma função matemática
e como ela ajuda a entender a referência de predicados? O assunto é
abordado em um texto intitulado “Função e conceito” (1891). A ideia
básica é que funções matemáticas são expressões insaturadas, que
podem ser completadas por um argumento. Eis um exemplo de
expressão insaturada: ‘2.x3+x’. Para completá-la, basta determinar
x. Podemos substituir x por qualquer número real. Em cada caso, a
expressão ganha um valor. Se determinarmos que x = 1, teremos
‘2.13+1’, o que dá, como valor, ‘3’. Estabelecemos, assim, uma relação
entre 1 e 3, a saber: 1 é o argumento da função e 3 é o seu valor
nesse argumento. Pelo mesmo raciocínio, se o argumento for 2, o
90 | A Teoria correspondentista da Verdade

valor será 18; se o argumento for 4 o valor será 132, e assim por
diante (Frege, 1978b, p. 37).
Frege notou que o conceito de função matemática pode ser
útil para analisar expressões linguísticas. Fica fácil acompanhar
esse passo se consideramos, por exemplo, a função sentencial ‘A
capital de x’. O raciocínio é essencialmente o mesmo do parágrafo
anterior: trata-se de uma função insaturada, que pode ser
completada por um argumento, o que nos dará certo valor. Se o
argumento for ‘Brasil’, o valor será ‘Brasília’. Se o argumento for
‘Uruguai’ o valor será ‘Montevideo’ (Cf. Frege, 1978b, p. 47). E o
que isso tem a ver com predicados?
O raciocínio pode ser aplicado em funções como ‘x é filósofo’.
Trata-se de uma função insaturada, que pode ser completada por
um argumento, o que nos dará certo valor. Se o argumento for
‘Donald Davidson’, o valor será ‘o Verdadeiro’. Se o argumento for
‘Dráuzio Varella’, o valor será ‘o Falso’.
Mas uma função insaturada, como por exemplo ‘x é um
filósofo’, tem referência? A resposta de Frege é sim. Para o autor,
predicados designam conceitos. Frege é um “lógico da extensão”
(1978a, p. 107). Quanto aos predicados, isso quer dizer que eles
designam o mesmo conceito se têm a mesma extensão. Rodrigues
Filho oferece o seguinte exemplo: “Os predicados ‘x é um bípede
naturalmente desprovido de penas’ e ‘x é um animal racional’
designam o mesmo conceito, posto que têm a mesma extensão,
mas apresentam critérios diferentes para determinar se um dado
objeto cai ou não sob esse conceito” (Rodrigues Filho, 2004, p. 46).
O lógico da extensão prevê que “sem prejuízo da verdade,
em toda sentença um termo conceitual pode substituir outro,
quando a ambos corresponde a mesma extensão conceitual; [...] os
conceitos só procedem de maneira diversa na medida em que são
distintas as suas extensões” (Frege, 1978a, p. 107). E acrescenta:

A relação lógica fundamental é a de cair um objeto sob um


conceito: a ela podem-se reduzir todas as relações entre conceitos.
César Meurer | 91

Ao cair um objeto sob um conceito, ele cai sob todos os conceitos da


mesma extensão, do que resulta o que acima se disse [substituição
salva veritate]. E assim como nomes próprios do mesmo objeto
podem substituir uns aos outros sem prejuízo da verdade, o
mesmo também é válido para termos conceituais se sua extensão
conceitual for a mesma. Naturalmente, com tais substituições,
alterar-se-á o pensamento; este, no entanto, é o sentido da
sentença, não sua referência. Esta, porém, a saber, o valor de
verdade, permanece inalterada (Frege, 1978a, p. 107-108).

Para Frege, é a busca da verdade que nos leva do sentido para


a referência. Queremos saber se tal ou tal predicado é ou não uma
propriedade de tal ou tal entidade. Nas palavras do autor: se tal
objeto cai ou não sob tal conceito. E aqui é oportuno recordar o já
anunciado princípio da composicionalidade da referência: para o
autor, a referência da sentença é função da referência das partes.
Ora, já ficou claro que o pensamento pode mudar com a substituição
de termos singulares e conceitos correferenciais. Porque não
respeita o princípio da composicionalidade da referência, ele (o
pensamento) não serve para referência da sentença.
Além do sentido (o pensamento), o que uma sentença tem?
Um valor de verdade. Se estou certo, essa era a única opção
disponível para o papel de referência da sentença. Chego a essa
interpretação ao analisar as seguintes palavras do autor: “Que mais,
senão o valor de verdade, poderia ser encontrado, que pertença de
modo muito geral a toda sentença onde as referências de seus
componentes são levadas em conta, e que permaneça inalterado
pelas substituições do tipo mencionado?” (Frege, 1978c, p. 70).
A argumentação subsequente em “Sobre o sentido e a
referência” confirma o valor de verdade como referência de
sentenças. Ele cumpre o que se espera da referência: [i] depende
claramente da referência dos termos singulares e dos predicados
contidos na sentença (composicionalidade) e [ii] não muda em
casos de substituição de termos singulares correferenciais e,
também, não muda em casos mais complexos, quando a expressão
92 | A Teoria correspondentista da Verdade

substituída não é um termo singular, mas uma sentença


correferencial ou um conceito coextensional.
A despeito das substituições, Frege faz um alerta que
considero de grande importância:

Vemos, a partir disso, que na referência da sentença tudo que é


específico é desprezado. Nunca devemos, pois, nos ater apenas à
referência de uma sentença; porém, o pensamento, isoladamente,
não nos dá nenhum conhecimento, mas somente o pensamento
junto com sua referência, isto é, seu valor de verdade (Frege,
1978c, p. 70).

O que de específico é desprezado quando a atenção foca


exclusivamente a referência? Justamente o sentido, o pensamento,
o modo de apresentação dos objetos. A meu ver, Frege não quer
que fiquemos obcecados pelo reino da referência e cegos para o
sentido das expressões.
Sentenças funcionam logicamente como nomes próprios.
Segundo Burge (2005, p. 97), foi por razões pragmáticas que Frege
tratou as sentenças como nomes próprios. O comentador afirma
que Frege não tinha uma justificativa consistente para isso, e
procurava demonstrar as vantagens dessa opção mediante
analogias. Depois de citar algumas dessas analogias, Burge observa
que “estas analogias entre sentenças e termos são, é claro, não
muito animadoras”. E prossegue:

O ponto mais profundo das presentes analogias é que


dentro de uma teoria formal que tenta desnudar a estrutura
semântica, pode-se prescindir da principal diferença entre os
nomes e sentenças (de que apenas essas últimas podem ser
utilizadas para atos linguísticos efetivos ou pensamentos,
prototipicamente asserções e juízos). A diferença entre os
nomes e as sentenças pode ser considerada como estar no seu
ponto, seu uso, e não na forma de sua contribuição para a
estrutura semântica (Burge, 2005, p. 99-100).
César Meurer | 93

Creio que a ideia básica pode ser compreendida se


recordarmos que o interesse primordial de Frege era desenvolver
uma língua formalizada com precisão científica. Por isso, ele
restringiu a atenção às sentenças declarativas e considerou que
elas referem ou o verdadeiro ou o falso. Num contexto formal, se
pode dizer que as sentenças declarativas verdadeiras nomeiam o
verdadeiro e que as sentenças declarativas falsas nomeiam o falso.
‘O verdadeiro’ e ‘o falso’ são objetos lógicos (tese d) e as sentenças
nomeiam esses objetos.
Gostaria agora de ampliar essa reflexão em uma direção
particularmente importante pra o AF. O ponto a ser notado é que
para Frege “qualquer expressão que se refere de maneira unívoca a
um único objeto é um nome próprio” (Rosado Haddock, 2006, p.
67-68). Se tomamos ‘o verdadeiro’ e ‘o falso’ como objetos lógicos,
então é compreensível em que sentido as sentenças são nomes: as
verdadeiras referem, de modo unívoco, ‘o verdadeiro’ e as falsas ‘o
falso’.
Rosado Haddock desenvolve uma análise esclarecedora da
concepção fregeana de nome próprio a partir dos seguintes dois
grupos de expressões pareadas:

(I) (i) ‘Londres’ e ‘London’, (ii) ‘Spain’s Capital’ e ‘Die Hauptstadt


Spaniens’, (iii) ‘7’ e ‘VII’.
(II) (i) ‘the morning star’ e ‘the evening star’, (ii) ‘the teacher of
Alexander the Great’ e ‘the most famous disciple of Plato’, (iii)
‘3+4’ e ‘5+2’, (iv) ‘the autor of Der logische Aufbau der Welt’ e
‘the only member of the Vienna Circle who was both a student of
Frege and Husserl’, (v) ‘the Chang-Los-Suszko theorem’ e ‘the
Preservation Theorem under Unions of Chains of Models’
(Rosado Haddock, 2006, p. 68).

No grupo (I), as expressões pareadas nitidamente referem a


mesma entidade mediante signos distintos que, no entanto, têm o
mesmo sentido. Para todos os casos de (I), basta conhecer a
linguagem para constatar que as expressões referem a mesma
94 | A Teoria correspondentista da Verdade

coisa. Elas não apenas referem a mesma coisa, como também a


apresentam do mesmo modo. Em outras palavras: ainda que os
signos sejam distintos, o sentido e a referência são o mesmo.
No grupo (II) é diferente. Para constatar que os pares de
expressões referem a mesma coisa, não é suficiente conhecer a
linguagem na qual elas são apresentadas. Além dos signos, também
o sentido de cada expressão é diferente. Tomemos, por exemplo, (i)
‘the morning star’ e ‘the evening star’: temos signos diferentes,
sentidos diferentes e referência igual. Saberá que essas expressões
referem a mesma coisa aquele que tem algum conhecimento de
astronomia. Para os demais pares, a análise é a mesma: signos
diferentes, sentidos diferentes e referência igual. “Se colocarmos de
lado nomes próprios equivocados, podemos dizer que o mesmo
sentido pode corresponder a vários sinais, e o mesmo referente pode
corresponder a vários sentidos” (Rosado Haddock, 2006, p. 69). A
análise de Rosado Haddock aponta para algo que Frege considerava
fundamental: devemos levar em conta não apenas a referência, mas
também o sentido dos nomes próprios.
Todas as expressões de (I) e (II) referem univocamente.
Funcionam, na lógica de Frege, como nomes próprios. Tomemos,
por exemplo, ‘Carnap’, ‘the autor of Der logische Aufbau der Welt’
e ‘the only member of the Vienna Circle who was both a student of
Frege and Husserl’. Essas três expressões são correferenciais e,
portanto, intersubstituíveis em uma sentença. A substituição de
termos correferenciais – sejam eles nomes próprios, predicados ou
sentenças assertivas completas contidas em sentenças mais
complexas – não altera a referência da sentença.
Esse rápido exame do legado de Frege nos autoriza a pensar
que Davidson é uma espécie de fregeano. Não há exagero nessa
afirmação, sobretudo se levarmos em conta o que pensava Alonzo
Church, um fregeano ortodoxo que é apontado como autor do AF.
Farei, a título de menção, uma breve incursão no AF de Church.
Isso vai subsidiar a análise do AF de Davidson, que vem logo em
seguida.
César Meurer | 95

Church: fregeano e autor do AF

A visualização de um proto-AF nas reflexões que Quine


desenvolveu sobre Russell em meados de 1941 (Cf. Neale, 2001, p.
188) não impede que Church seja apontado como o autor do AF.
Com efeito, indicações explícitas são encontradas em uma curta
resenha datada de 1943, na qual Church se dedica a provar, contra
Carnap, “que os designata de sentenças da linguagem precisam ser
valores de verdade em vez de proposições” (Church, 1943, p. 299).8
Para a presente análise, tomo uma passagem do Introduction
to Mathematical Logic, que Church publicou em 1956:

Assim, a denotação (em Inglês) de “Sir Walter Scott is the author of


Waverley” deve ser a mesma que a de “Sir Walter Scott is Sir
Walter Scott”, o nome “the author of Waverley” sendo substituído
por um outro que tem a mesma denotação. Mais uma vez a
sentença “Sir Walter Scott is the author of Waverley” deve ter a
mesma denotação que a sentença “Sir Walter Scott is the man who
wrote twenty-nine Waverley Novels altogether”, já que “the author
of Waverley” é substituído por um outro nome da mesma pessoa; a
última sentença, é plausível supor, se ela não é sinônima de “The
number, such that Sir Walter Scott is the man who wrote that
many Waverley Novels, is twenty-nine”, está pelo menos tão perto
de modo a assegurar que tem a mesma denotação; e a partir desta
última sentença, por sua vez, substituindo o objeto completo por
um outro nome do mesmo número, obtém-se, como ainda tendo a
mesma denotação, a sentença “The number of counties in Utah is
twenty-nine” (Church, 1956, p. 24-25).

8
Para enriquecer a história do AF, cabe registrar que no mesmo período Gödel produziu um texto
sobre Russell onde se lê que “[...] se admitimos que o significado de uma expressão composta, esta
contendo expressões constituintes que possuem significado, depende somente do significado dessas
expressões constituintes [...] então segue que a sentença ‘Scott is the author of Waverley’ significa a
mesma coisa que ‘Scott is Scott’; e isso nos conduz quase inevitavelmente à conclusão de que todas
as sentenças verdadeiras possuem o mesmo significado” (Gödel, 1944, p. 128-129). Gödel
amadureceu uma versão diferente do AF, que não analisarei no presente estudo (Cf. Neale, 1995;
Chateaubriand, 2001).
96 | A Teoria correspondentista da Verdade

À luz do que pontuamos na seção anterior, podemos perceber


que o raciocínio de Church deriva de Frege. Somente quem adere a
uma semântica de orientação fregeana pode dizer que “Sir Walter
Scott is the author of Waverley” e “The number of counties in Utah
is twenty-nine” têm a mesma denotação ou referência.
Conforme Ruffino (2004, p. 202), o argumento de Church
está baseado em dois princípios: “(R) Quando em um nome
complexo nós substituímos um nome constituinte por um outro
com a mesma referência, a referência do complexo não é alterada.
(S) Sentenças sinônimas possuem a mesma referência”.
No curso da nossa discussão esses princípios já não
surpreendem, dado o seu teor fregeano. A esquematização que o
pesquisador brasileiro faz do argumento de Church mostra a
aplicação desses princípios:

(1) Sir Walter Scott is the author of Waverley


(2) Sir Walter Scott is the man who wrote twenty-nine Waverly
novels altogether (R)
(3) Twenty-nine is the number, such that Sir Walter Scott is the
man who wrote that many Waverly novels altogether (S)
(4) Twenty-nine is the number of counties in Utah (R)
(Ruffino, 2004, p. 202 – sublinhados no original).

Ruffino sublinha as descrições definidas (para todos os


efeitos, expressões que referem de modo unívoco), o que facilita a
compreensão da passagem de (1) para (2), avalizada pelo princípio
(R), uma vez que Scott é a referência tanto de ‘the author of
Waverley’ quanto de ‘the man who wrote twenty-nine Waverly
novels altogether’. A passagem de (2) para (3) é avalizada por (S),
já que, para Church, as descrições ‘the man who wrote twenty-
nine Waverly novels altogether’ e ‘the number, such that Sir
Walter Scott is the man who wrote that many Waverly novels
altogether’ se não são sinônimas, são pelo menos tão próximas em
significado que se pode aceitar que possuem a mesma referência.
César Meurer | 97

Finalmente, a passagem de (3) para (4) é novamente avalizada por


(R), pois ‘the number, such that Sir Walter Scott is the man who
wrote that many Waverly novels altogether’ e ‘the number of
counties in Utah’ têm a mesma referência: o número vinte e nove.
Ora, a única coisa que (1) e (4) têm em comum é o valor de
verdade. E é justamente isso que Church esperava evidenciar: a
tese de que sentenças designam ou o verdadeiro ou o falso. Além
do mais, é importante notar que nomes próprios e descrições
definidas receberam o mesmo tratamento.
Visto de outro ângulo, o argumento de Church ataca uma
tese muito conhecida: a de que sentenças designam ou referem
proposições. Para Church, não é uma boa ideia defender que
sentenças referem proposições, pois não se pode fornecer uma
semântica séria para essas entidades (as proposições). O colapso
semântico evidenciado no percurso de (1) a (4) traz essa lição.
Chateaubriand (2001, p. 139) aponta problemas no
argumento de Church, particularmente na passagem de (2) para
(3), avalizada por (S). “Elas realmente querem dizer a mesma
coisa, ou quase a mesma coisa, como Church reivindica? Parece-
me que do ponto de vista do significado pode-se levantar várias
questões sobre o argumento”. Uma dessas questões diz respeito às
ambiguidades de (3):

Sobre o que a Church está falando em (3)? Ele está falando sobre
o número de novelas Waverley que Sir Walter Scott escreveu ou
ele está falando sobre o fato de que Sir Walter Scott escreveu
essas novelas? Ou ambos, talvez? É por isso que as vírgulas, com
(2) essencialmente dentro delas. Esta cláusula está fazendo dupla
função; por um lado ela está ajudando a qualificar o inicial ‘o
número’, e, por outro lado, ela está apelando para aquela
sentença e para o ‘vinte e nove’ a fim de fazer uma própria
declaração. É por isso que (2) e (3) parecem estar dizendo quase
a mesma coisa (Chateaubriand, 2001, p. 142).9

9
No Logical Forms (Chateaubriand, 2001, p. 138), as sentenças em questão são (6) e (7).
98 | A Teoria correspondentista da Verdade

Chateaubriand nos convida a pensar que a mencionada


ambiguidade torna implausível a alegada sinonímia de (2) e (3).
Para serem sinônimas, essas sentenças deveriam ser sobre a
mesma coisa e não são. Se compararmos (1) e (4), logo veremos
que possuem conteúdo completamente diferente (são sobre coisas
diferentes), o que torna difícil aceitar que são correferenciais. Seria
esse um bom motivo para rejeitar o argumento de Church?
Chateaubriand pensa que sim. Ruffino discorda:

A meu ver, no entanto, não é claro que a exigência de uma noção


absoluta de acerca de (aboutness) faz muito sentido. Se dizemos
‘João é um dos doze apóstolos de Jesus’, sobre o que é essa
sentença? É sobre João? Ou Jesus? Ou o número doze? Ou o
conceito apóstolo? Ou a propriedade de segunda ordem sendo
uma das propriedades de João? Não parece haver nenhum ponto
em isolar determinada entidade como aquela que a frase é a
acerca dela (Ruffino, 2004, p. 204-205).

E Ruffino prossegue:

Observe que o ponto aqui não é que a linguagem natural é vaga


ou obscura, pois temos as mesmas múltiplas possibilidades para
sentenças em sistemas formais. Como Frege explicita, um
pensamento pode ser analisado de diferentes maneiras, e
nenhuma das muitas possíveis análises pode reivindicar
prioridade sobre as outras (Ruffino, 2004, p. 205).

As observações de Ruffino são pertinentes: não é fácil definir


acerca do que uma sentença é, tanto na linguagem natural quanto
nalguma formalização. Talvez devêssemos aceitar que uma
sentença raramente é acerca de uma única coisa.
O debate entre Chateaubriand e Ruffino é um bom indicativo
das polêmicas em torno da validade das diversas versões do AF.
Chateaubriand tem razão quando aponta ambiguidade em (3). Não
obstante, Ruffino está certo ao recordar as múltiplas possibilidades
de análise de uma mesma sentença.
César Meurer | 99

Davidson: apropriações fregeanas

Davidson apropria-se da estratégia argumentativa de Church


e a usa para criticar a concepção atomista de significado e de
verdade. Vou retomar primeiro a investida contra o atomismo do
significado (vista em “Truth and meaning”). O argumento
formalizado é este:

(1) R
(2) x̂ (x=x.R) = x̂ (x=x)
(3) x̂ (x=x.S) = x̂ (x=x)
(4) S

Conforme Davidson, esse raciocínio comprova que não


podemos identificar significado com referência. Se o fizermos,
seremos levados a concordar que todas as sentenças têm o mesmo
significado – algo intolerável. Vejamos alguns detalhamentos do
argumento.
Davidson considera que R e S são sentenças verdadeiras
quaisquer, mas não oferece exemplos. Convido o leitor a supor que
R abrevia ‘A neve é branca’ e S ‘A grama é verde’. Se identificarmos
o significado com a referência, R e S terão o mesmo significado.
Para demonstrá-lo, Davidson observa que as seguintes duas
sentenças são logicamente equivalentes:

(1) A neve é branca


(2) x̂ (x = x & a neve é branca) = x̂ (x = x)

Sendo (1) e (2) logicamente equivalentes, é também correto


dizer que (1) e (2) têm o mesmo significado (isso se identificarmos
o significado de um termo singular com a sua referência). Da
mesma forma, as seguintes duas sentenças também são
logicamente equivalentes:
100 | A Teoria correspondentista da Verdade

(3) x̂ (x = x & a grama é verde) = x̂ (x = x)


(4) A grama é verde.

Agora observemos a passagem de (2) para (3):

(2) x̂ (x = x & a neve é branca) = x̂ (x = x)


(3) x̂ (x = x & a grama é verde) = x̂ (x = x)

A única mudança de (2) para (3) é a substituição do termo


singular R por S, sendo que eles têm a mesma referência (o
verdadeiro, conforme Frege). A conclusão de Davidson é que (2) e
(3) significam o mesmo que (1) e (4). Como se pode notar, R e S
são sentenças completas e foram tratadas como nomes.
Claramente, uma apropriação do legado fregeano.
Os princípios nos quais Davidson baseou o AF são dois:

(P1) Frases logicamente equivalentes são intersubstituíveis salva veritate.


Foi o que aconteceu de (1) para (2) e de (3) para (4).
(P2) Termos singulares correferenciais são intersubstituíveis salva
veritate. Foi o que aconteceu na passagem de (2) para (3), onde R deu
lugar a S.

Davidson pretende persuadir-nos a não identificar o


significado de um termo com a sua referência. Mas, de onde viria
essa sugestão? Por um lado, o leitor pode relacionar isso com o
Tractatus, onde se lê que “os signos simples empregados nas
proposições são chamados nomes” (3.202), que “o nome denota o
objeto” (3.203) e que “na proposição o nome substitui o objeto”
(3.22). No entanto, ao usar a expressão ‘termos singulares’,
Davidson não está pensando nos designadores que Wittgenstein
chama ‘nomes’. O exemplo acima mostrou claramente que R e S são
sentenças que estão sendo logicamente tratadas como termos
singulares. Os termos singulares que Davidson substituiu de (2)
para (3) são sentenças correferenciais: ambas referem o Verdadeiro.
César Meurer | 101

Significado é uma coisa, referência é outra. Isso vale para


termos singulares e, se formos fregeanos, para predicados e termos
singulares complexos (isto é, sentenças assertivas completas).
O AF apresentado em “Truth and meaning” está em uma
notação que não é usual em nossos dias, o que pode causar
estranhamento e dificuldade de leitura. O uso informal do mesmo
argumento em “True to the facts” pode servir de elucidação dessa
dificuldade. Passemos, então, para o argumento contra a
concepção atomista da verdade.
Em sua investida crítica contra a concepção atomista da
verdade, Davidson apropria-se do AF e o direciona contra a noção
de ‘fato’, que o correspondentista considera a contraparte não-
linguística de cada sentença verdadeira. Em síntese: dadas duas
sentenças verdadeiras quaisquer, o AF pretende provar que elas
correspondem ao mesmo fato. Com isso, a noção de fato fica de tal
modo obscurecida que se torna ininteligível; semanticamente
insustentável. Logo, também a ideia de correspondência perde
valor enquanto explicação da verdade.
Retomo o AF contra o atomismo da verdade:

Suponhamos que “s” abrevia uma sentença verdadeira. Logo,


seguramente o enunciado de que s corresponde ao fato de que s.
Mas podemos substituir o segundo “s” pela sentença logicamente
equivalente (o x tal que x é idêntico a Diógenes e s) é idêntico a (o x
tal que x é idêntico a Diógenes). Aplicando o princípio segundo o
qual podemos substituir termos singulares coextensivos, podemos
substituir “t” por “s” na última sentença, desde que “t” seja
verdadeira. Finalmente, revertendo o primeiro passo concluímos
que o enunciado que s corresponde ao fato que t, onde “s” e “t” são
quaisquer sentenças verdadeiras (Davidson, 2001f, p. 42).
102 | A Teoria correspondentista da Verdade

Virdi (2009, p. 235) propõe a seguinte formalização dessa


passagem:

(1) s
(2) (ιx)(x = d ⋀ s) = (ιx)(x = d)
(3) (ιx)(x = d ⋀ t) = (ιx)(x = d)
(4) t

Virdi inseriu o operador iota, que se usa para ligar variáveis,


cuja contraparte na língua natural é o artigo definido ‘o’ ou ‘a’. A
leitura de (ιx) é “o x, tal que...”. Com o auxílio dessa formalização,
em uma notação mais usual, temos melhores condições de
interpretar o argumento. Vamos, mais uma vez, usar as sentenças
‘a neve é branca’ e ‘a grama é verde’, considerando que elas são
abreviadas por ‘s’ e ‘t’, respectivamente. Temos, então, o seguinte:

(1) A neve é branca


(2) O x, tal que x é idêntico a Diógenes e a neve é branca = o x tal que x é
idêntico a Diógenes.
(3) O x, tal que x é idêntico a Diógenes e a grama é verde = o x tal que x
é idêntico a Diógenes.
(4) A grama é verde.

Para Davidson, essas quatro sentenças, se correspondem,


correspondem ao mesmo fato. Isso se aceitarmos que (1) e (2) são
logicamente equivalentes, assim como (3) e (4), e que (2) e (3)
diferem somente pela substituição de um termo singular por outro
que possui a mesma referência. Vamos para alguns detalhes.
À primeira vista, a expressão ‘o x, tal que x é idêntico a
Diógenes e a neve é branca’ é estranha. No entanto, Santos (2003,
p. 280) atesta que “do ponto de vista formal não há nada de errado
ou de mal formado numa tal expressão”. Trata-se de uma sentença
complexa, formada pela conjunção de duas expressões que
também são sentenças. A explicação é a seguinte:
César Meurer | 103

digamos que, dada uma fórmula φ aberta apenas em “x” e


satisfeita por um único objeto α, a prefixação de “ιx” gera uma
expressão ιxφ que, para muitos efeitos, se comporta como um
termo singular que refere α. No caso presente, φ é a conjunção
“(x = Diógenes ⋀ s)”. O primeiro membro da conjunção, “x =
Diógenes”, é satisfeito apenas por Diógenes. E, quanto ao
segundo, tratando-se de uma frase fechada verdadeira, sabemos
por Tarski que ele é satisfeito por todos os objetos. Então, a
conjunção é satisfeita unicamente por Diógenes, o qual pode ser
visto como a referência da descrição, justificando assim a verdade
de (2) sempre que s é verdadeira (Santos, 2003, p. 280).

Esse comentário de Santos é esclarecedor. Podemos, a partir


dele, entender que o termo ‘(ιx)(x = d ⋀ s)’ refere o conjunto de
todos os objetos que satisfazem a conjunção ‘x = d ⋀ s’. Ora, ‘x’ é
satisfeito apenas por Diógenes e ‘s’ é uma sentença fechada
verdadeira (portanto, conforme Tarski, satisfeita por todas as
sequências de objetos). Logo, tudo o que interessa é ‘x = d’. Com
outras palavras: se ‘s’ é verdadeira, então ‘(ιx)(x = d ⋀ s) = (ιx)(x =
d)’ também é, e vice-versa. Essa é a ideia de equivalência lógica de
(1) e (2).
Uma palavra mais sobre o operador iota: ele opera sobre a
variável ‘x’ e gera, como resultado, um termo descritivo. Esse
termo refere univocamente e pode, por isso, ser tratado como um
nome. O exemplo a seguir, de João Branquinho, retrata essa
operação: “uma aplicação do operador iota à frase aberta ‘x é um
filósofo e x bebeu cicuta’ gera o termo descritivo ou descrição
definida ‘ιx (x é um filósofo e x bebeu cicuta)’, que se lê ‘o x tal que
x é um filósofo e x bebeu cicuta’” (Branquinho, 2006, p. 561).
Voltemos para o argumento. A passagem de (1) para (2)
explica-se pelo principio segundo o qual sentenças logicamente
equivalentes são intersubstituíveis. A mesma explicação elucida a
passagem de (3) para (4). No entanto, essa noção de equivalência
não é pacífica. Chateaubriand, por exemplo, anota algumas
ressalvas acerca dela ao longo de sua análise do AF de Gödel (2001,
p. 146-154).
104 | A Teoria correspondentista da Verdade

Para prosseguir na análise, resta comentar a passagem de


(2) para (3). Esse entendimento é mais simples. Sendo ‘s’ e ‘t’
sentenças fechadas verdadeiras, ambas são satisfeitas por todos os
objetos e, nesse sentido, correferenciais e intersubstituíveis.
Estou aqui seguindo o entendimento de Santos (2003) e
oferecendo uma explicação tarskiana acerca da passagem de (2)
para (3). Se essa explicação é razoável, então há duas justificativas
que autorizam a substituição de ‘s’ por ‘t’. Ei-las:
Justificativa 1: ‘s’ e ‘t’ abreviam duas sentenças verdadeiras
quaisquer; são intersubstituíveis pois são correferenciais (ambas
referem o Verdadeiro).
Justificativa 2: ‘s’ e ‘t’ abreviam duas sentenças fechadas
verdadeiras, ambas são satisfeitas por todas as sequências de
objetos e, nesse sentido, correferenciais e intersubstituíveis.
A lição principal que Davidson extrai do AF é que se pode
derivar qualquer sentença de outra mediante substituições
sancionadas pelos princípios (P1) e (P2). Em outras palavras: não
há semântica que nos permita individuar fatos. Por conseguinte, a
ideia de correspondência de sentenças com fatos é ininteligível.
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