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ENSINAR HISTÓRIA NO SÉCULO XXI:

Dilemas e Perspectivas

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REITOR
Sílvio Luiz Oliveira Soglia
VICE-REITORA
Georgina Gonçalves dos Santos

SUPERINTENDENTE
Sérgio Augusto Soares Mattos

CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Américo Almassy Júnior
Celso Luiz Borges de Oliveira
Geovana da Paz Monteiro
Jeane Saskya Campos Tavares
Léa Araújo de Carvalho
Nadja Vladi Cardoso Gumes
Sérgio Augusto Soares Mattos (presidente)
Silvana Lúcia da Silva Lima
Wilson Rogério Penteado Júnior

SUPLENTES
Carlos Alfredo Lopes de Carvalho
Robério Marcelo Ribeiro
Rosineide Pereira Mubarack Garcia

EDITORA FILIADA À

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Fabrício Lyrio Santos
Sérgio A. D. Guerra Filho
(Organizadores)

ENSINAR HISTÓRIA NO SÉCULO XXI:


Dilemas e Perspectivas

Cruz das Almas/Bahia - 2019

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Copyright©2019 Fabrício Lyrio Santos e Sérgio A. D. Guerra Filho (org.)
Direitos para esta edição cedidos à EDUFRB.
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica:
Humberto Sampaio Rey
Revisão e normatização técnica:
Reginaldo Vasconcelos
Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme
decreto nº 1.825, de 20 de dezembro de 1907.
A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio,
seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.

Rua Rui Barbosa, 710 – Centro


44380-000 Cruz das Almas – BA
Tel.: (75) 3621-7672
[email protected]
www.ufrb.edu.br/editora | www.facebook.com/editoraufrb

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ......................................................................7

ENSINAR HISTÓRIA HOJE: TRILHAS E CENÁRIOS .......11

ENSINO DE HISTÓRIA E A REFORMA


DO ENSINO MÉDIO .............................................................35

O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA ........67

DILEMAS DO CURRÍCULO DOS ANOS


INICIAIS DE ENSINO ............................................................83

A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA:


ALGUMAS CONJECTURAS...................................................99

ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA:


PONTOS PARA REFLEXÕES ..............................................115

NÓS E TODOS: UM DIÁLOGO SOBRE


A LEI Nº 11.645/08 ...............................................................139

VISÃO RELIGIOSA DE MUNDO E


ENSINO DE HISTÓRIA .......................................................163

O GOSTO PELA HISTÓRIA: NARRATIVAS DE


PROFESSORES......................................................................183

SOBRE OS AUTORES...........................................................201

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APRESENTAÇÃO

Fabricio Lyrio Santos


Sérgio A. D. Guerra Filho

Ensinar História no Século XXI – eis um enunciado que su-


gere diferentes reflexões e diversos itinerários. Esta coletânea registra
algumas das principais questões que constituem o debate contem-
porâneo em torno de dilemas e perspectivas do ensino de história na
educação básica, dialogando com um esforço que vem sendo feito
por diversos sujeitos e protagonistas.
A ANPUH-BA (Associação Nacional de História – Seção
Bahia) vem participando ativamente deste debate, seja no diálogo
mais amplo com a Associação Nacional, seja no apoio ao fortaleci-
mento do GT Ensino de História no âmbito regional.
Neste intento, logo após a refundação da seção regional baiana,
realizou-se, em 2003, o I Encontro Estadual de Ensino de História,
na Universidade do Estado da Bahia, Campus V (Santo Antonio de
Jesus). Infelizmente, esta iniciativa pioneira aguardou uma década
para ser retomada, quando, finalmente, no ano de 2013, teve lugar
o II Encontro Estadual de Ensino de História, sediado no Centro
de Artes, Humanidades e Letras da ainda jovem Universidade Fede-
ral do Recôncavo da Bahia (Campus de Cachoeira). Esforçando-se
por (re)inventar uma tradição, o evento reinseriu o tema na agenda
permanente da entidade, repercutindo positivamente entre professo-
res e pesquisadores vinculados à Universidade e à Educação Básica.
Como resultado, seguiram-se o III Encontro Estadual de Ensino de
História, em 2015, na Universidade Estadual de Feira de Santana,
e o IV Encontro, em 2017, sediado na Universidade do Estado da
Bahia, Campus XIV (Conceição do Coité).

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Os capítulos a seguir formam um instigante painel com refle-


xões sobre o Ensino de História, que abordam questões ligadas ao
currículo, à formação de professores e aos desafios colocados pela so-
ciedade brasileira contemporânea em suas dimensões multicultural,
multirracial e multirreligiosa.
O texto de abertura traz à baila um tema que representa muito
bem uma das principais reflexões presentes no próprio tema esco-
lhido para o II Encontro Estadual de Ensino de História, que é a
dimensão sempre inacabada – e, por isso mesmo, sempre atual – do
nosso ofício: a relação entre a Universidade e a Escola, ou, mais espe-
cificamente, a relação entre os saberes acadêmicos e os saberes esco-
lares. Para Maria Aparecida Lima dos Santos, não é possível ensinar
História de maneira a dar conta das demandas atuais – demandas da
educação e para além dela – sem superar uma tradicional forma de
relação entre estas duas instâncias, transformando uma visão hierár-
quica e de mão única numa relação dialética, horizontal e constante,
respeitando as especificidades, tanto da academia, quanto da escola.
Os capítulos seguintes formam dois blocos temáticos. O pri-
meiro reúne quatro capítulos que abordam a questão do currículo
na Educação Básica e o lugar ocupado pelo Ensino de História, bem
como o processo de formação do professor de História. No capítulo
“Ensino de História e a Reforma do Ensino Médio”, Carlos Augusto
Lima Ferreira e Edicarla dos Santos Marques nos remetem a uma
reflexão crítica acerca das propostas curriculares de História através
das últimas décadas, levantando a questão da ausência de docentes
e discentes – principais envolvidos na dinâmica escolar – no proces-
so de construção das mesmas. A seguir, Heloísa Helena Tourinho
Monteiro apresenta “O Ensino de História na Educação Básica”,
propondo um caminho reflexivo através da teoria e da práxis. Nele,
a autora discute os atuais dilemas que docentes encontram entre a
Formação (inicial e continuada), o Ensino (e seus dilemas cotidia-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

nos) e a Aprendizagem em História, tendo o currículo e seus ten-


sionamentos e acomodações como centro de análise. Na sequência,
Paulo Eduardo Dias de Mello discute “Dilemas do currículo dos
anos iniciais de ensino”, no qual aborda os fundamentos teóricos e
normativos da presença da disciplina História no currículo escolar,
tomando como pretexto o movimento pela exclusão desta disciplina
dos três primeiros anos do Ensino Fundamental por parte da Se-
cretaria de Educação do Governo de São Paulo. Fechando esta pri-
meira parte, Tatiana Polliana Pinto de Lima apresenta “A formação
do professor de História: algumas conjecturas”. Nele, a autora traz
questionamentos que sinalizam os atritos entre as velhas maneiras de
ensinar História – como, também, de formar docentes – e as novas
demandas sociais, apontando para a necessidade de um maior diálo-
go com outras áreas afins e com propostas multiculturais.
O segundo bloco reúne três capítulos com reflexões em torno
da diversidade cultural, étnico-racial e religiosa que caracteriza a so-
ciedade brasileira contemporânea e suas repercussões no Ensino de
História. No primeiro deles, intitulado “Ensino de História da Áfri-
ca: pontos para reflexões”, Jorgeval Andrade Borges avalia as lacunas
entre a importância do ensino de História da África – temas, fontes e
abordagens – e a sua efetiva realização, apontando para a necessidade
de se pensar a formação inicial e continuada de docentes para tal.
Em seguida, Erlon Fábio de Jesus Costa nos apresenta “Nós e todos:
um diálogo sobre a Lei 11.645/08”, chamando a atenção para a ne-
cessidade de um olhar especial para a Educação Indígena, buscando
compreender as especificidades destas populações, resgatando o seu
protagonismo enquanto grupo, tanto na História, quanto no fazer
pedagógico. Fechando o bloco, temos “Visão religiosa de mundo e
ensino de História”, de Leandro Antonio de Almeida. O autor nos
leva a importantes reflexões sobre um tema tão delicado como atual,
qual seja, o papel do Ensino de História no trato de conteúdos que

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

toquem, direta ou indiretamente, a religiosidade de discentes – mui-


tas vezes exacerbada em forma de intolerância.
O último capítulo, de autoria da Professora Maria Antonieta
Tourinho, é um convite à reflexão sobre o “ser historiador”, pro-
blematizando algo que talvez fuja à racionalidade cientificista tradi-
cional, mas que está presente e desempenha um papel muitas vezes
determinante nas escolhas que constituem a base do itinerário for-
mativo dos professores de História, tanto ontem quanto hoje: o gos-
to pela História. Como não levá-lo em consideração, em meio aos
dilemas e perspectivas do ensinar História no Século XXI? Vivendo
em uma sociedade que privilegia, cada vez mais, o prazer e a fruição,
o ócio e a contemplação, não seria o “gosto pela História” um ele-
mento fundamental a ser considerado no processo de formação e na
prática docente?

***

A emergência destes temas não faz mais do que confirmar a


premente necessidade de realizarmos, no âmbito das nossas universi-
dades, mais pesquisas e mais reflexões acerca do Ensino de História.
De um lado, os diálogos de cunho teórico-metodológicos devem
adensar os fundamentos da prática docente; de outro, o dia-a-dia
no “chão da escola” deve lançar luzes sobre as prioridades de nos-
sos olhares. E isto implica em investirmos esforços e recursos numa
aproximação efetiva e prolífera com o espaço privilegiado de rea-
lização deste tema: a Escola de Educação Básica. A experiência do
Programa de Iniciação à Docência (PIBID) tem demonstrado que
este é um caminho fundamental pelo qual devemos, cada vez mais,
optar. Ensinar História no século atual pode ser um desafio e tanto,
mas é um desafio ao qual não podemos nos furtar.

Desejamos a vocês uma boa leitura.

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ENSINAR HISTÓRIA HOJE: TRILHAS E CENÁRIOS1

Maria Aparecida Lima dos Santos

Hoje minha fala é proveniente de um lugar na universidade.


Formadora de professores desde 1997, tenho atuado desde 2003 nas
disciplinas de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado, primeiro
em duas universidades particulares e depois na universidade públi-
ca. Até 2002, fui professora de História da Educação Básica por 15
anos, período em que trabalhei com crianças e adolescentes.
No concernente à minha formação, fiz parte do grupo de pes-
soas provenientes das classes sociais menos favorecidas que, na dé-
cada de 1980 chegou, pela 1ª vez, ao ensino superior. Aquele grupo
de esfarrapados, de pessoas que viviam em morros cinzentos. Faço
parte, portanto, do grupo de pessoas a quem um discurso exclu-
dente, autoritário e, infelizmente, imperante nos meios escolares,
atribui ainda hoje e com muito força as incapacidades e faltas im-
peditivas dos avanços do sistema escolar. Por outro lado, faço parte
também do grupo de ex-professores da Educação Básica que possui
uma preocupação infinda com os rumos do País e o papel do ensino
de História neste processo. Pessoas que escolheram o caminho da
Universidade, não por lhe parecer mais cômodo, mas sim, mais ne-
cessário em um processo de afirmação de um projeto político efetivo
de transformação da sociedade brasileira. Portanto, sou de uma ge-
ração de professores universitários que hoje defende a reaproximação
dos saberes acadêmicos da sua função social primeira, engrossando
as fileiras de filósofos, historiadores, cientistas sociais, dentre outros
profissionais que estão procurando repensar o papel da Universidade
1 Conferência proferida na abertura do II Encontro Estadual de Ensino de His-
tória: O ensinar História no Século XXI: dilemas e perspectivas da educação
histórica na contemporaneidade, promovida pelo GT de Ensino de História da
ANPUH/BA, no dia 13.05.2013

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

frente a processos avassaladores de repressão e silenciamento de vozes


dissonantes.
Assim, a reflexão que apresentarei é fruto de uma articulação
entre preocupações advindas de minha prática docente primeira-
mente na Educação Básica e, depois, no Ensino Superior, bem como
da minha condição social de origem, a qual me permite hoje, dentro
da Universidade, um movimento de aproximação e afastamento que
me parece profícuo para refletir sobre o papel do ensino de História
e seus desafios na contemporaneidade. Preocupações que gostaria
de compartilhar neste momento, não como algo novo ou inédito,
mas como um esforço em sistematizar aquilo que penso serem hoje
alguns dos desafios para todos nós.
Meu texto está estruturado em duas partes, em torno das quais
elenco alguns pontos que se constituem, do meu ponto de vista,
como desafios, considerações e indagações frente ao ensinar História
hoje. São elas:
1. Necessidade de reestruturação das bases da relação Educa-
ção Básica/Ensino Superior como forma de constituir um
projeto efetivo de transformação social, no qual o ensino
de História seja um dos principais espaços de reflexão.
2. Clareza das concepções que regem a prática do profissio-
nal docente, seja ele atuante na Educação Básica ou no
Ensino Superior.

FUNÇÕES SOCIAIS DÍSPARES

Ao defrontar-se com a realidade da escola e da sala de aula, os


estudantes de graduação muitas vezes trazem notícias de falas dos
professores em serviço que destacam a falta de relação entre o que se
estuda na universidade e o que se faz na sala de aula. Parece-me que

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

a indagação ora em vista nos remete a discussões apaixonadas e, mui-


tas vezes, rancorosas. Percebo que, de maneira geral, as falas sempre
apontam a existência de dualidades: da relação entre teoria e práti-
ca, entre ideal e real, entre universidade e escola. Essa categorização
coloca sempre a universidade ao lado da teoria e do ideal, e a escola
ao lado da prática e do real. “Isso tudo na prática é outra história”
ou “Na teoria tudo isso é muito bonito, mas na prática quero ver
você lidar com salas numerosas com alunos que não prestam aten-
ção em você” são afirmações feitas frequentemente em nosso meio,
seja entre os alunos (que nunca foram docentes, mas que já falam
como se tivessem 20 anos de experiência), seja entre os professores
em serviço.
Esse esquema dicotômico parece ajudar muito pouco (ou pra-
ticamente nada, a meu ver) a compreender a complexidade da rela-
ção entre a escola de Educação Básica e a universidade. Antes, em-
pobrece a discussão e evidencia a necessidade de pensar mais a fundo
sobre o que se chama de teoria e o que se chama de prática, como
estratégia de superação necessária para que seja possível a retomada
da percepção de que a escola é espaço por excelência de disseminação
do conhecimento de maneira sistematizada. E o conhecimento é,
em si, teórico. Ou seja, tais posturas parecem ir contra os princípios
fundamentais que, em essência, dão sentido à existência do próprio
espaço escolar.
No Brasil e no mundo, a partir da percepção da existência des-
sa tensão, desde a década de 70 do Século XX, e com muito maior
intensidade na década seguinte, no espaço do ensino de História,
uma série de pesquisadores tem investigado as características dos sa-
beres produzidos no âmbito da Academia e no espaço da escola.
Essas produções têm trazido à tona conhecimentos que não podem
mais ser desconsiderados por sujeitos que pretendem se tornar pro-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

fessores, seja na Educação Básica, seja no Ensino Superior, e que


intentam atuar na sociedade integrando projetos efetivos de trans-
formação. Também não pode mais ser ignorada pelos profissionais
atuantes nas licenciaturas, engajados na formação de professores de
todas as áreas, e, mais especialmente, no ensino de História.
Frente à complexidade na qual a relação universidade/escola
de Educação Básica parece estar inserida, tenho duas indagações que,
acredito, se constituem em desafios cruciais na contemporaneidade:
1. Que especificidades a escola de Educação Básica possui
que precisam ser consideradas quando abordamos aspec-
tos da relação Escola/Universidade?
2. Qual o papel da universidade na formação do profissional
docente e, no nosso caso mais especificamente, do futuro
professor de História?
Para responder a primeira questão, creio que devo começar
por definir o espaço que o professor de História ocupa na escola, ou
seja, aquele da disciplina escolar. Para certos educadores, as discipli-
nas escolares decorrem das ciências de referência, sendo dependentes
da produção das universidades ou demais instituições acadêmicas,
servindo como instrumentos de “vulgarização” do conhecimento
produzido por um grupo de cientistas (BITTENCOURT, 2004,
p. 36). Nesse viés, o conhecimento histórico acadêmico transfor-
ma-se em conhecimento histórico escolar ao “sofrer” certos “cons-
trangimentos” que visam à sua transformação em algo “ensinável”.
Essas “deformações” ocorreriam em dois níveis básicos: aquele das
políticas públicas e da sociedade em geral, espaço dentro do qual
seriam elaborados os saberes históricos a serem ensinados e aque-
le que ocorre dentro da escola, no momento em que o professor
dá a sua aula, constituindo o saber histórico efetivamente ensinado.
Essas operações resultariam no saber histórico efetivamente apren-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

dido pelo estudante. Esse processo de “constrangimento”, ao qual


os conhecimentos históricos acadêmicos são submetidos, Chevallard
chamou de “transposição didática”.
Segundo Bittencourt, o conceito de transposição didática
remete à inserção da relação Escola/Universidade em um esquema
hierárquico, no qual o conhecimento histórico acadêmico é visto
como superior, integral, “sofrendo” certos constrangimentos e sen-
do “deformado” pela escola. Atualmente, autores como Monteiro
(2007) têm procurado utilizar o conceito de mediação didática para
diminuir essa visão de uma relação hierarquizada, mas não deixando
de destacar que há um processo de apropriação do conhecimento
histórico acadêmico pela escola que precisa ser melhor investigado
em termos de pesquisas no campo do ensino.
Não obstante, um outro grupo de pesquisadores, baseando-se
em Chervel, define a disciplina escolar como
(...) um corpo dinâmico de conhecimentos elabora-
dos por especialistas que não compartilham de ma-
neira pacífica os conteúdos, métodos e pressupostos.
É composta por segmentos diferentes e divergentes,
atuando em sua elaboração alianças e conflitos. As
disciplinas escolares têm sido constantemente rede-
finidas de acordo com compromissos que se estabe-
lecem em um contexto educacional historicamente
determinado. (BITTENCOURT, 2008, p.98).

Chervel (1990) defendeu que a escola produz uma cultura


específica, singular e original, ao discorrer sobre a construção das
disciplinas escolares, em particular sobre a ortografia francesa. Esse
autor criticou esquemas explicativos que apresentavam o saber es-
colar como um saber inferior ou derivado dos saberes superiores,
fundados pelas universidades. Criticou também a noção da esco-
la como simples agente de transmissão de saberes elaborados fora
dela, lugar, portanto, do conservadorismo, da rotina e da inércia.
Assim, “para este autor, a instituição escolar produz um saber especí-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

fico, cujos efeitos estendiam-se sobre a sociedade e a cultura, o qual


emerge das determinantes do próprio funcionamento institucional”
(FARIA FILHO et alli, 2004, p. 144-5). De acordo com Chervel, as
disciplinas escolares formam-se no interior de uma cultura escolar,
tendo objetivos próprios e muitas vezes irredutíveis àqueles das ci-
ências de referência (BITTENCOURT, 2004, p. 38). Ao constituir
a definição de cultura escolar, Julia (2001) intentava dar atenção às
práticas, tendo o conceito surgido em meio a questionamentos sobre
a necessidade de se investigar as práticas cotidianas, dando visibilida-
de ao funcionamento interno das escolas. A cultura escolar tem sido
entendida como
[...] um conjunto de normas que definem conheci-
mentos a ensinar e condutas a inculcar, e um con-
junto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comporta-
mentos; normas e práticas coordenadas a finalidades
que podem variar segundo as épocas (finalidades
religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de sociali-
zação)” (FARIA FILHO et alli, 2004, p. 143).

Ao tornar-se operacional para a pesquisa acadêmica, o con-


ceito de cultura escolar possibilitou aos investigadores perceberem
as características dos conhecimentos produzidos na escola. Assim,
ao conceber a disciplina escolar no âmbito da cultura escolar, temos
que ela resulta de uma dinâmica própria constituída no espaço da
escola, a qual, por sua vez, está inserida na sociedade e, dentro dela,
tem uma função definida.
No que se refere especificamente à História, Moniot (1993)
afirma que, para os alunos, as disciplinas são “compartimentos de
saber”, aparecendo-lhes como evidência natural, somando-se a isto
ainda a crença de que a disciplina escolar seja um “eco” daquela da
Universidade, a partir da qual a instrução escolar se faz (MONIOT,
1993, p. 22). No entanto, o autor ressalta que, a partir da história
escolar, esses argumentos têm sido refutados por outros que superam

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

essas explicações sensivelmente, destacando que as matérias escolares


são “uma fabricação específica e com missões próprias” (MONIOT,
1993, p. 23). As matérias escolares são efeitos da instituição, de suas
lógicas, da força identificadora de seus representantes e seu ensino
na escola precedeu aquele da existência da própria disciplina aca-
dêmica. No caso da França, o ensino de História foi imposto entre
os anos de 1820 e 1850, enquanto que os cursos superiores na área
foram criados somente no final do Século XIX. O ensino, segundo o
autor, assegurou mesmo “a fortuna da história universitária”, haven-
do cumplicidade entre uma e outra em certo período, sem deixar de
trilhar, no entanto, caminhos distintos. Moniot destaca ainda que,
se a História escolar vive em uma dependência moral da História
acadêmica (“l’histoire historienne”), ela produz para a última uma
reverência e uma segurança pública pela cultura e pelos sentimentos
que propaga. Para o autor, o que ocorre de fato é uma troca de le-
gitimações reais entre duas entidades específicas (MONIOT, 1993,
p. 26).
Fica claro, a partir desse referencial, que os conteúdos e as
maneiras de ensinar História na escola resultam de embates internos
e externos a essa instituição e não são, nem podem ser, meramente
“transpostos” da Universidade. Tem-se claro, portanto, que os sa-
beres ensinados na escola não devem servir apenas à Universidade,
mas, fundamentalmente aos diferentes grupos e movimentos sociais
e às demandas sociais e políticas que colocam àquela instituição.
Quando se compreende que a escola produz um saber próprio
e que as disciplinas escolares são construções históricas desse espaço,
ao abordar a questão da relação Universidade/Escola de Educação
Básica, é preciso destacar, dentre as diferentes funções que a escola
assume em nossa sociedade, aquela que diz respeito ao processo edu-
cativo (PÉREZ GÓMEZ, 1998).

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Diferentemente da Universidade, que intenta formar profes-


sores e pesquisadores, o objetivo primordial da escola é promover o
processo de socialização dos sujeitos. Portanto, tudo o que acontece
na escola ocorre tendo-se em vista esse objetivo. Na escola não se
pretende formar historiadores, médicos ou engenheiros, mas sujeitos
que compreendam os mecanismos de funcionamento da sociedade,
que atuem politicamente, que se tornem trabalhadores e cidadãos,
sem perder de vista que, dependendo da época, a ideia de cidadania
variou e, com ela, a atuação da escola, seus programas, suas práticas,
suas dificuldades e seus problemas.
A universidade também possui uma dinâmica própria, sen-
do que as ações que ocorrem em seu interior estão condicionadas
pela função que a mesma assume na sociedade. Também dentro da
Universidade ocorrem embates, há divergências, posturas e deman-
das políticas e teóricas conflitantes. Dessa forma, cada época produz
reflexões a respeito de que profissional se quer formar, assim como
na escola se pensa constantemente que cidadão se quer formar. Na
Universidade, luta-se pela autonomia na produção de conhecimen-
to, assim como na escola luta-se pela autonomia na escolha do que
e do como ensinar.
A percepção de que a Universidade possui uma função muito
diferente daquela que a escola, dentro de nossa sociedade, possibilita
que se compreenda o porquê do estranhamento que sentimos ao nos
depararmos com os conhecimentos que o meio acadêmico nos apre-
senta durante o processo de formação inicial. Esse processo, entendi-
do como um momento crucial para a formação profissional, objetiva
colocar o graduando em contato com um conhecimento especiali-
zado, teórico, mais profundo, que lhe permita enxergar para além
das aparências e do senso-comum, dotando-o de instrumental que
lhe possibilite vislumbrar o “subterrâneo”, o “oculto” por onde corre

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

o sangue que dá vida ao conhecimento científico. Em se tratando


da História, a meta principal do curso oferecido na Universidade,
então, será a de colocar o estudante em contato com os mecanismos
de construção do conhecimento histórico acadêmico a fim de que,
ao ensinar e/ou pesquisar, possa ele mesmo dialogar com esse conhe-
cimento, tornando-se parte de uma comunidade que se insere na
vida profissional a partir de um certo lugar e com uma certa função
social. E isso não é possível se não se adentrar o “chão” da escola.
Nesse sentido, e já ensaiando a construção de uma resposta
para a segunda questão que formulei sobre o papel da Universidade
na formação do professor de História, acredito que a mesma pode
contribuir com a escola ao formar profissionais que saibam olhar
para o espaço escolar com um olhar indagativo e não meramente
taxativo. Um olhar investigador, de compreensão, que vê para além
das aparências. Trata-se, portanto, de contribuir para a formação de
profissionais que superem o discurso de que “na prática, a teoria é
outra”, porque compreende que teoria e prática são faces da mesma
moeda e, portanto, caminham juntas em um processo dialético no
qual a reflexão guia e constitui a prática e a prática guia e constitui a
teoria. Assim, ser um professor reflexivo é um princípio que a Uni-
versidade deve defender junto a seus alunos2.
Um profissional bem formado, apresentado às especificidades
da cultura escolar, vê a escola como um espaço complexo. Portanto,
dificilmente se deixará levar por “chavões” como “esses alunos de
hoje não querem saber de nada...”. Um profissional bem formado
2 Cerri (2009), ao abordar as aproximações entre o pensamento de Jürgen Ha-
bermas e Paulo Freire, aponta que ambas participam da construção de um para-
digma emergente na teoria do conhecimento, paradigma que tem sido pensado
por Boaventura Souza Santos “que sintetiza a interessante ideia de que a ciência é
o senso comum organizado. Essa perspectiva casa-se perfeitamente com a matriz
disciplinar da História, tal como proposta por Rüsen: a História existe no ciclo em
que suas motivações e ações mergulham do campo científico para a dimensão da
vida prática, e vice-versa” (CERRI, 2009, p. 154).

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

pela Universidade consegue compreender o jovem de hoje para além


das aparências e dos estereótipos. Afinal, para fazer afirmações como
as de que os “jovens de hoje não querem nada”, não é preciso um
diploma universitário. Qualquer pessoa pode fazer isso. Mas para
compreender o comportamento desses jovens hoje e saber lidar com
suas preocupações e anseios, compreendendo como isso se relacio-
na ao contexto histórico-cultural no qual se encontram inseridos e
de que maneira esse é um elemento fundamental na consecução do
papel educativo e formativo que todo profissional docente possui, é
preciso ir para além das aparências. É preciso, portanto, estar teori-
camente preparado, instrumentalizado. É preciso ser um profissional
do ensino.
E é aí que a Universidade tem muito a contribuir com a escola.
Caracterizada como espaço de elaboração de conhecimento
que instrumentaliza o profissional para a reflexão, a Universidade
pode contribuir participando em parceria. E para que essa parceria
seja efetiva, os profissionais que atuam nos cursos de graduação pre-
cisam compreender que a escola é espaço de produção de cultura, é
constituída por sujeitos e tem objetivos distintos daqueles da Uni-
versidade. E que, sob essas condições e a partir dessas características,
ela própria produz saberes. No caso do ensino de História, a História
escolar. Por isso, a escola torna-se um espaço privilegiado, inclusive,
para a formação inicial em parceria com os cursos de Ensino Supe-
rior, situação que tem se tornado cada vez mais frequente em con-
textos de parcerias de ensino e pesquisa nas universidades públicas3.
3 Refiro-me mais diretamente às aproximações que têm ocorrido entre estas duas
instituições no contexto do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID),
financiado pelo Governo Federal e gerenciado pela Coordenação de Aperfeiçoa-
mento de Pessoal do Ensino Superior (Capes). Atualmente, já é possível conhecer
uma série de experiências e projetos de formação inicial publicados em diversas
revistas acadêmicas brasileiras. Cito aqui em destaque duas delas bastante recentes:
o número 18, de 2012, da Revista História & Ensino – Edição Especial Pibid,
editada e publicada pelo curso de História da UEL e disponível em http://www.

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Logo, em uma relação de igualdade, é preciso compreender


que a escola é motivada por questões internas a buscar conhecimen-
to na Universidade. Portanto, a Universidade é requerida como par-
ceira, como espaço especializado que produz conhecimento para ser
socialmente apreendido. E essa apreensão está condicionada às ne-
cessidades dos agentes sociais que nela buscam saberes.
A meu ver, quando a escola busca parceria com a Universida-
de, ela não está dizendo “venham aqui fornecer saberes que não te-
mos”, mas ela está colocando: “Vamos pensar em parceria?”; “Vamos
pensar juntos?”; “Vamos construir conhecimento juntos?”. E isso
porque os sujeitos que atuam na escola já produzem conhecimento.
Faço aqui uma citação longa de um trecho escrito por Tardif (2000),
pela clareza com que explica a relação entre teoria e prática na ação
de um trabalhador:
Tal como Marx já havia enunciado, toda práxis
social é, de uma certa maneira, um trabalho cujo
processo de realização desencadeia uma transforma-
ção real do trabalhador. Trabalhar não é exclusi-
vamente transformar um objeto ou situação em
uma outra coisa, é também transformar a si mes-
mo pelo trabalho. (...) Ora, se o trabalho modifica
o trabalhador e sua identidade, modifica também,
sempre com o passar do tempo, o seu “saber traba-
lhar”. (...) Em suma, pode-se dizer que os saberes
ligados ao trabalho são temporais, pois são cons-
truídos e dominados progressivamente durante um
período de aprendizagem variável, de acordo com
cada ocupação. Essa dimensão temporal decorre do
fato de que as situações de trabalho exigem dos tra-
balhadores conhecimentos, competências, aptidões
e atitudes específicas que só podem ser adquiridas
e dominadas em contato com essas mesmas situa-
ções. Em outras palavras, as situações de trabalho
parecem irredutíveis do ponto de vista da raciona-
lidade técnica do saber, segundo a qual a prática

uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/issue/view/825; e a Revista Latino-Ame-


ricana de História – Dossiê Formação de Professores de História, número 6, vol.
2, de 2013, disponível em http://projeto.unisinos.br/ rla/index.php/rla. Acesso
em: 30.08.13.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

profissional consiste numa resolução instrumental


de problemas baseados na aplicação de teorias e
técnicas científicas construídas em outros campos
(por exemplo, através da pesquisa, em laboratórios
etc.). Essas situações exigem, ao contrário, que os
trabalhadores desenvolvam, progressivamente, sabe-
res oriundos do próprio processo de trabalho e nele
baseados. Ora, são exatamente esses saberes que exi-
gem tempo, prática, experiência, hábito etc. (TAR-
DIF, 2000, p. 209-211, grifo nosso).

No trecho destacado, Tardiff ressalta que não há como cons-


truir antes os saberes relacionados à prática profissional, porque esses
saberes constituem-se no decorrer da prática da profissão. Dessa for-
ma, não é possível ser professor antes de estar na escola, assim como
não é possível aprender a nadar sem entrar na água. Portanto, é natu-
ral quando recém-formados, por exemplo, somos tomados por uma
sensação de distanciamento que sentimos quando nos deparamos
com o cotidiano escolar, uma vez que estamos, na realidade, entran-
do em contato com um outro. Um outro que tem sido objeto de
estudo e de reflexão de pesquisadores da Universidade, mas que, de
maneira alguma, pode ser negado em suas especificidades.
Ao professor já em serviço, os saberes acadêmicos só fazem
sentido quando ele mesmo se dá conta e respeita os seus próprios sa-
beres. Quando vai à Universidade buscar parceria, diálogo, momen-
tos de aconchego reflexivo, distantes do cotidiano avassalador que,
na maior parte do tempo, afasta do estudo e da reflexão, o professor
poderá não encontrar respostas, mas sair “alimentado”, “revigorado”
para lidar com o incerto, instigante e desafiador espaço escolar. Nes-
se encuentro o profissional não pode esquecer que são as perguntas o
que move o conhecimento. As suas perguntas, porque só pergunta
quem sabe, como nos aponta Madalena Freire (1998).
Não posso deixar de destacar que tal estado de coisas exige
também da instituição universitária uma mudança de postura, afi-

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nal, uma relação é uma via de mão dupla. Para compreender o seu
lugar nessa parceria é preciso que aqueles que fazem parte do meio
acadêmico não se vejam como “os que sabem” diante “dos que não
sabem”. Torna-se premente cultivar uma postura de respeito aos sa-
beres de diferentes naturezas, dentre eles os saberes advindos da in-
serção do profissional docente na cultura escolar.
Assim, penso que os profissionais que atuam na pesquisa aca-
dêmica podem contribuir com a escola ao produzir conhecimentos
que permitam ao professor da escola e ao professor universitário que
se compreendam melhor nessa relação. Ao possibilitar que os docen-
tes ligados à Academia percebam que o conhecimento produzido na
Universidade não é “a” verdade, mas uma possibilidade dentre tantas
outras, os pesquisadores já estão cumprindo seu papel.
Esses desafios aparecem associados a uma série de outros que
merecem atenção. Na segunda parte deste texto, apresento um deles:
tomando por base os princípios de um projeto político comprome-
tido com uma perspectiva crítica e de transformação, a necessidade
de se ter, enquanto docentes atuantes, seja no ensino de História
escolar, seja na formação inicial, clareza das próprias concepções his-
toriográficas e de ensino e aprendizagem da História.

CONCEPÇÕES HISTORIOGRÁFICAS E DE ENSINO

Um dos saberes fundamentais requeridos na formação de pro-


fessores é a compreensão de que existem concepções de ensino e de
aprendizagem que norteiam a prática docente, mesmo quando não
se tem consciência delas. Martineau (1999) destaca que é impor-
tante garantir que os estudantes da Educação Básica sejam capazes
de atender as exigências cognitivas do pensamento histórico. Dessa
forma, é necessário precisar os principais atributos de um ensino

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adequadamente adaptado que possibilite a aprendizagem do pen-


samento histórico por esses alunos. No entanto, aponta o autor, na
maior parte do tempo, questões como essas são abordadas de manei-
ra muito geral e limitada, e raramente se articulam a teorias sobre o
ensino e a aprendizagem. Usualmente, as considerações provêm da
experiência de ensino, sendo que os professores procuram explicar
os problemas de aprendizagem a partir de diversos fatores, menos
do ensino.
Martineau também ressalta que o professor atual não é for-
mado para pensar sua prática pedagógica. A consequência é que,
sem modelos de referência, imperam os modelos implícitos não for-
malizados. Esses saberes de referência empírica podem confortar o
professor, mas são limitados. Tardif (2000) indica que esses saberes
compõem o que se chama de saber prático, que supervaloriza a práti-
ca, desvalorizando o conhecimento.
Portanto, um ensino informado, e por isso com sua potencia-
lidade transformadora ampliada, exige um profissional que tenha
clareza teórica das concepções de ensino e aprendizagem que regem
sua prática a fim de compreender com maior profundidade as rela-
ções disso com aquilo que é planejado e realizado em sala de aula
e com as aprendizagens que acontecem. Em nosso caso especifica-
mente, acrescente-se ainda a necessidade de ser capaz de determinar
a concepção de ensino e aprendizagem de História e sua relação com
a concepção de História.
As pesquisas que, em nosso campo, enfocam a atividade do-
cente, têm apontado que a perpetuação de práticas calcadas em
concepções de ensino e de aprendizagem da História ditas tradicio-
nais. Responsabilizado pela propagação de um ideário identitário
que contraria a ideia de cidadania plena do indivíduo, o ensino de
História ainda carrega permanências de um tempo em que sua fun-

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ção primordial era a de doutrinar, aspecto que pode ser vislumbrado


mesmo entre aqueles que defendem, ao menos em teoria, projetos
políticos de transformação de nossa sociedade.
Uma das formas de efetivamente promover a superação de
concepções que vêm sendo combatidas há algum tempo por aqueles
que defendem um ensino de História libertador, a partir de prin-
cípios como os elencados anteriormente, é a clareza em torno das
concepções historiográficas em sua relação com as concepções de
ensino e aprendizagem de História que cada um de nós possui. Cerri
(2009), ao refletir sobre o tema, afirma que não é possível estabelecer
uma relação direta entre ambas. Mas, a meu ver, as características
gerais elencadas por esse autor podem nos ajudar a avançar na com-
preensão das concepções que hoje circulam nos meios escolares, seja
na Educação Básica, seja no Ensino Superior.
Segundo este pesquisador, há duas categorias nas quais se po-
dem organizar a relação entre o ensino de História e todas as ver-
tentes historiográficas: aquela em que se entende (e pratica) que o
ensino é uma daquelas tantas coisas que se podem fazer com o co-
nhecimento produzido pela História; e aquela dos que defendem
a posição teórica de que historiografia é resultado de uma reflexão
didática, entendendo aqui também a didática em sentido amplo,
como dialogante com o espaço externo à profissão ou pesquisa espe-
cializado (CERRI, 2009, p. 149).
No primeiro grupo encontram-se as concepções ditas tradicio-
nais, as quais possuem como características (CERRI, 2009, p. 151):
• Pensar o ensino não é uma tarefa que caiba ou esteja ao
alcance do historiador;
• Essa vertente entende que o ensino é um problema de ou-
tra instância que não a da historiografia;

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O ato do ensino não participaria do ato da produção do
conhecimento, sendo posterior e distinto;
• A questão do ensino passa para um outro campo profissio-
nal: o do didata;
• Não é uma concepção historiográfica, mas uma postura
didática, ou melhor, a ausência dela;
• Das questões acima vem toda a dificuldade em relacionar
ensino e pesquisa, teoria e prática.
Em seguida, o autor discorre sobre concepções historiográficas
tradicionais e ensino de História, definindo-as como
• “aquelas que entendem que a verdade está nas coisas. Mas
não são transparentes, e faz parte da concepção tradicional
identificar que a verdade vira conhecimento ao ser extraída
das coisas através da interpretação dos sábios autorizados
a emitir o discurso competente (na expressão de Marilena
Chauí)” (CERRI, 2009, p. 151-2);
• Para o ensino e aprendizagem a questão é internalizar
aquilo que os especialistas produziram: “o ensino é um
problema de concentração e dosagem do remédio”4;
• O Sujeito aprendente não ocupa o centro do processo;
• O aluno é aprendiz passivo, é objeto5;
4 A teoria empirista – que historicamente é a que mais vem impregnando as repre-
sentações sobre o que é ensinar, quem é o aluno, como ele aprende, o que e como
se deve ensinar – se expressa em um modelo de aprendizagem conhecido como de
“estímulo-resposta”. Esse modelo define a aprendizagem como a substituição de
respostas erradas por respostas certas. A hipótese subjacente a essa concepção é a
de que o aluno precisa memorizar e fixar informações – as mais simples e parciais
possíveis e que deve ir se acumulando com o tempo. Na concepção empirista o
conhecimento está “fora” do sujeito e é interiorizado através dos sentidos, ativados
pela ação física e perceptual (WEISZ, 2000).
5 Ainda na perspectiva empirista, o sujeito da aprendizagem seria “vazio” na sua
origem, sendo “preenchido” pelas experiências que tem com o mundo. Criticando
essa ideia de um ensino que se “deposita” na mente do aluno, Paulo Freire usava
a metáfora “educação bancária” para falar de uma escola em que se pretende “sa-
car” exatamente aquilo que se “depositou” na mente do aluno. Nessa concepção
o aprendiz é alguém que vai juntando informações, sendo visto como receptor

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• O Professor é o centro por deter o conhecimento;


• A relação é de transmissão;
• Expressões típicas dessa concepção: “passar o conteúdo”,
ou “vencer o conteúdo”;
• Centralidade do conteúdo – conteudismo – a qual priva
professor e aluno da reflexão epistemológica, pois os con-
teúdos são tomados como universalmente válidos;
• Estão associadas a essa concepção métodos e técnicas6,
uma vez que
[...] temos aqui todo o ensino diretivo, transmissivo,
da catequese às práticas memoristas de eventos, per-
sonagens e datas, até o tecnicismo e o neotecnicismo
e seu ensino por objetivos (pois diagnostica que o
problema do ensino é a forma). A renovação nesse
campo vem da técnica, na tecnologia e nos recursos
de ensino. Por isso, utilizar filmes em sala de aula
não é, em si, superação das concepções tradicionais
se o objetivo é “dourar a pílula” e fazer o aluno engo-
lir o amargo remédio que, mais cedo ou mais tarde,
vai ter que tomar” (CERR, 2009, p. 152).

• Privilegiamento da ordem cronológica dos conteúdos, da


sua linearidade;
• Seleção de conteúdos sintonizada a uma visão do mundo
europeu, inclusive a parte nacional desse ensino em cada
país não europeu, uma vez que a própria ideia de nação
tem origem na Europa e a partir daí se dissemina;

passivo. Acredita-se que ele seja capaz de aprender exatamente o que lhe ensinam
e de ultrapassar um pouco isso, fazendo uma síntese a partir de uma determinada
quantidade de informações. Na verdade, o modelo supõe apenas a acumulação, e
o que importa é diferenciar os alunos entre os que conseguem e os que não con-
seguem (WEISZ, 2000).
6 Para se acomodar a essa teoria (empirismo), o processo de ensino é caracterizado
por um investimento na cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e sim-
ples, privilegiando a utilização da memória de curto prazo (WEISZ, 2000).

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• Perspectiva memorista, no sentido de afetiva, identifica-


dora, que aparece aos sujeitos como se fosse natural, de-
corrente do viver, em vez de aparecer como construção7;
• História a partir das elites ou do que elas reconhecem
como histórico;
Cerri destaca também que, ao surgir no Século XIX, a discipli-
na escolar de História foi marcada por essas concepções e, talvez por
isso, ainda hoje seja muito difícil superá-las.
O autor aponta que houve forças de mudança, tanto de or-
dem social, quanto epistemológica, que intervieram na transforma-
ção dessas concepções. A partir dessas forças temos o segundo grupo
dentro do qual se encontram as concepções historiográficas críticas
e as genéticas. As concepções críticas consideram que o problema do
ensino não é a forma, mas o conteúdo que é ensinado. Suas princi-
pais características seriam (CERRI, 2009, p. 152):
• A rediscussão dos conteúdos passa a ser o centro das re-
formas com o objetivo de mudar o que se ensina a fim de
7 Le Goff (1990), ao analisar o papel dos livros didáticos no ensino de História,
considera que, ao ocultar o modo de produção das representações historiográficas,
deixa-se de explicitar a relação do conhecimento com os arquivos, com um meio
histórico, com as problemáticas contemporâneas que determinam sua fabricação,
dentre outros elementos. “Apagam-se” também os aspectos relacionados à escrita
da História, concebendo-se o discurso historiográfico como sinônimo de verdade
única e incontestável e, por isso, algo que precisa ser reproduzido e não pensado.
No entanto, segundo Moniot, essa característica assumida pelo ensino e há muito
atribuída ao livro didático é, na realidade, “a inclinação quase fatal da própria his-
toriografia: substituir a elucidação da produção do passado pela sua representação;
ao invés da produção, falar do real pela sua escrita e pela sua boca. Esse é o proble-
ma central, que cada um por sua própria conta, o acadêmico e o professor, encon-
trará – os dois com um objetivo, um público, um estofo e a responsabilidade de
escolher uma postura” (MONIOT, 1993, p. 27, tradução livre). Rüsen (2001), ao
analisar a narrativa histórica, destaca que no campo da História há uma tradição
em utilizar a pesquisa como elemento de validação do conhecimento produzido,
quando na realidade a forma como esta pesquisa é apresentada, ou seja, a narrativa
histórica construída, é um elemento determinante do conhecimento elaborado. É
ela que aparece pronto nos livros didáticos. É ela que os professores da Educação
Básica consideram como conhecimento legitimado que precisa ser transmitido.

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mudar como os alunos entendem o passado e o presente e


projetam o futuro;
• A verdade está nas coisas, mas a interpretação dela esteve
errada ou falsificada:
o A verdade está com quem critica;
o Ainda há uma verdade e a transmissão da
mesma (exemplo: perspectiva vanguarda/
massa no leninismo);
o A verdade contrapõe-se à ideologia e aos
desvios doutrinários;
• Já começa a considerar o aluno como sujeito e o sujeito
da história.
Por último, Cerri elenca os elementos relacionados às chama-
das concepções genéticas ou dialógicas, segundo as quais:
• A verdade está nos olhos de quem a vê; está na produção
coletiva do diálogo;
• É intersubjetiva;
• Não é relativa, mas relacional;
• O conhecimento não é dado, mas resultado de um traba-
lho, uma construção;
• Não é absoluto ou definitivo, mas dependente do estágio
do conhecimento e do confronto das argumentações, dos
consensos possíveis a cada momento;
• Pedagogicamente: corresponde ao pensamento de Paulo
Freire e à pedagogia crítica estadunidense;
• Radicalismo como postura fértil;
• Concepção de história inclui vertentes que consideram
que a história não é uma ciência e aquelas que conside-
ram que a história, como conhecimento racional, baseado
e gerador de enunciados razoáveis é ciência, mas não é um

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saber-fazer isolado de outras formas de conhecer existentes


na sociedade;
• Base da perspectiva: Habermas – teoria da ação comuni-
cativa – conceito de razão comunicativa: “a racionalidade
é produzida processualmente, envolvendo falantes e ou-
vintes que busquem entender-se sobre o mundo objetivo,
social e subjetivo” (CERRI, 2009, p. 153).
A necessidade de se superar as práticas de ensino possuidoras
de concepções do tipo tradicional rumo àquelas calcadas nas con-
cepções genéticas tem estado na base das propostas que nos últimos
40 anos vêm sendo forjadas por professores da Educação Básica e
pesquisadores da área de ensino de História. Em diferentes projetos,
esses profissionais têm buscado constituir práticas que considerem
os princípios que norteiam o fazer do historiador. O ensino de His-
tória em tal viés toma esse fazer como seu conteúdo essencial, subor-
dinando a ele os fatos e conceitos, os quais se convertem em impor-
tantes instrumentos de reflexão sobre os mecanismos de construção
do conhecimento histórico. Um aspecto central é a preocupação em
se promover o desenvolvimento de competências relacionadas ao
pensamento histórico.
Do ponto de vista didático, a aprendizagem se dá no âmbito
de situações problema nas quais o professor assume o papel de pro-
blematizador e tem a função primordial de criar situações confliti-
vas que provoquem desequilíbrio cognitivo que motivem a busca de
respostas no e através dos materiais oferecidos. As atividades plane-
jadas são compostas por conjuntos de documentos históricos, textos
historiográficos culminando em situações de produção de narrativas
históricas, a fim de aproximar os alunos, de maneira simulada, dos
instrumentos metodológicos elaborados pelo historiador e dos fun-
damentos da Ciência Histórica, destacando as relações passado/pre-

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sente e possibilitando ao aluno o vislumbre de seu papel enquanto


sujeito histórico.
Frente ao exposto, espero ter provocado os leitores a pensar
sobre a complexidade que envolve o ensino de História hoje, seja
aquele destinado às crianças e jovens, seja aquele destinado aos gra-
duandos, futuros professores.
Penso eu, a partir de Charlot (2005), que a aprendizagem da
História escolar dentro da escola obedece à busca de sentido. Portan-
to, os alunos interessam-se por aprender na medida em que isto tem
sentido para suas vidas. Rüsen (2001) e Hartog (2003) destacam
essa busca de sentido como elemento essencial da existência huma-
na: os homens historicamente buscam o sentido de sua existência no
tempo e também do conhecimento histórico construído pela his-
toriografia. Por conseguinte, compreender o porquê de se escrever,
ensinar e aprender História é o elemento fundamental do ensino de
História hoje.
Os desafios não são poucos, mas creio que atualmente os ca-
minhos estão melhor delineados, inclusive devido ao crescimento do
número de docentes de História na Educação Básica e à ampliação
das pesquisas acadêmicas no campo do Ensino de História.
Mas, só isso não basta. Acredito piamente que apenas o traba-
lho de parceria entre as duas instituições já referidas poderá possibi-
litar a construção um caminho mais sólido, melhor fundamentado
rumo a um processo urgente de transformação social do qual, sem
dúvida alguma, todos nós, como trabalhadores, já somos parceiros
de longa data, e para o qual, como docentes do ensino de História,
temos o dever de contribuir.

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ENSINO DE HISTÓRIA E A REFORMA DO ENSINO MÉDIO

Carlos Augusto Lima Ferreira


Edicarla dos Santos Marques

Em nossa prática pedagógica, no cotidiano da sala de aula,


trabalhamos com alunos que têm a ideia, a qual ganhou corpo e cris-
talizou-se ao longo desses anos, de que a História é uma disciplina
que em nada ou quase nada acrescenta para o seu processo de co-
nhecimento, servindo apenas para a memorização dos fatos, nomes
de heróis e datas, com o agravante de trazer para o estudo conteúdos
distantes da sua realidade, deslocados, portanto, do seu universo.
Esta visão contribui para que o ensino de História pouco desperte
o aluno para a apreensão do conhecimento, pois, para eles, este en-
sino não tem utilidade. A suposta “inutilidade” da História, com-
partilhada em alguma medida por alunos e professores, tem aberto
precedentes para que o seu lugar nos currículos escolares venha a ser
constantemente questionado.
As décadas de 80 e 90 do Século XX foram muito importantes
para o ensino da História, pelo empenho e esforço dos profissionais
nas universidades cujo objetivo era a (re)valorização da disciplina
como conhecimento fundamental na formação do pensamento crí-
tico do cidadão. Um desses caminhos pode ser percebido com a di-
vulgação das correntes historiográficas, tanto na Academia quanto
nas reformas curriculares, que colocaram em evidência novos temas
e novos objetos para o conhecimento histórico.
Tornaram-se objetos e sujeitos do conhecimento histórico os
“excluídos da História”, como as mulheres, as crianças, os negros, os
índios, os trabalhadores, os velhos, os “marginais”. Os temas foram
extraídos do contexto das relações sociais existentes no cotidiano em

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

suas dimensões socioculturais, presentes no imaginário coletivo, na


história das mentalidades, na vida privada. Mas no campo prático
da sala de aula, pouco temos observado os sujeitos – alunos – inseri-
dos na produção do conhecimento histórico escolar. Os temas cujos
alunos são os maiores interessados dificilmente têm constituído ele-
mento para as abordagens historiográficas em sala de aula. O que se
observa, a partir do acompanhamento de turmas de estágio, é que as
renovações no campo historiográfico ainda precisam contribuir em
plenitude para a modificação dos conteúdos ensináveis.
As novas tendências historiográficas foram implementadas
nos meios acadêmicos, embora muito ainda necessite ser feito para
que estas dimensões cheguem ao Ensino Básico, evitando-se, dessa
forma, o fosso entre a Universidade e a escola.
Apesar desses esforços, o ensino de História – em relação à
mediação, à prática do(a) professor(a) em sala de aula, ao cotidia-
no do processo de ensino e aprendizagem – ainda não apresenta
um resultado nos indicando que as mudanças advindas das políticas
públicas para o Ensino Médio (Provinha Brasil, Saeb e Prova Brasil,
Encceja e Enem) atingiram, no Brasil como um todo, um índice
satisfatório.
Por outro lado, visualizamos que os esforços empreendidos em
décadas anteriores, pelos profissionais da História e o seu ensino, na
luta pelo reconhecimento da disciplina, enquanto campo formativo
fundamental, solaparam-se frente aos atuais ataques empreendidos
em instâncias federais contrários a esse entendimento. Vejamos a
Reforma do Ensino Médio e as preconizações empreendidas pela
Base Nacional Comum Curricular – BNCC1, que estão por gerar
prejuízos curriculares significativos no âmbito da Educação Básica.
1 Atualmente, encontra-se em “consulta pública” via Conselho Nacional de Edu-
cação CNE, por meio de audiências em território nacional, sem caráter delibera-
tivo, mas já com o andamento da versão final para ser aprovada o que virá a ser a

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Dessa forma, este texto visa oferecer elementos para que se


compreendam, a partir do processo de redemocratização, as relações
entre o Ensino de História no Brasil, o currículo e suas implicações
para a formação do estudante da Educação Básica. E, de modo parti-
cular, pretende historicizar o processo de Reforma do Ensino Médio,
a partir da perspectiva do ensino de História e de leituras e estudos
realizados desde o texto inicial do Projeto de Lei da Reforma (PL nº
6.840/2013) instaurado no Regime Democrático de Direito, quan-
do Reformas Curriculares de impacto nacional ainda eram pensadas
com espaços para audiências públicas e debate coletivo da proposta.

CONCEPÇÕES DO ENSINO DE HISTÓRIA


A História não é uma memória atávica ou uma tra-
dição coletiva. É o que aprendemos de nossos pro-
fessores, de autores de livros didáticos de história e
dos editores de artigos em revistas e programas de
televisão. É muito importante que os historiadores
lembrem-se da responsabilidade que eles têm e que
consiste, antes de tudo, manter-se aparte das paixões
da política ainda que as compartam. Afinal, tam-
bém somos seres humanos.
Eric Hobsbawm

A História é um campo do conhecimento que tem como pre-


ocupação a análise das vivências humanas e relações sociais em suas
múltiplas dimensões temporais e espaciais. Essa análise é possível
quando professores e professoras de história procuram estabelecer
relações entre as perspectivas temporais do presente com o passado,
numa atitude dialogal, recuperando memórias, acontecimentos e
fontes documentais, com vistas à produção de narrativas, interpre-

versão final da BNCC que normatizará os currículos da Educação Básica no Bra-


sil. Todavia, a suposta legitimidade dessas consultas e audiências públicas deve ser
questionada, uma vez que a elaboração do documento não ocorreu de modo que
as demandas da sociedade civil fossem consideradas. Igualmente aos altos índices
de aprovação do “Novo Ensino Médio”, que estão sendo divulgados, convém ao
Governo induzir à leitura da BNCC como um processo democrático.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

tações, compreensões globais e particulares sobre as realidades his-


tóricas. Esta é uma perspectiva que nega a visão de que a História
é a ciência que estuda apenas fatos passados, personagens heroicos,
datas, utilizando como método central a memorização.
A construção do conhecimento acontece quando ocorre, ini-
cialmente, a reconstrução, a análise e, posteriormente, a interpreta-
ção das evidências dos acontecimentos e das práticas coletivas hu-
manas, na dinâmica de suas transformações. Nesta perspectiva, o
historiador, hoje, tem a preocupação de compreender e analisar as
vivências de diferentes sujeitos, isto é, de recuperar as experiências
vividas pelas múltiplas categorias, como trabalhadores do campo, da
cidade, da indústria, da pesca, sendo elas compostas por homens,
mulheres, crianças, negros, mestiços, índios, brancos. Aos profes-
sores e professoras de História cabem, igualmente, as mesmas res-
ponsabilidades, além de trabalharem com os campos imagéticos dos
alunos e suas demandas formativas particulares, auxiliando-os na
produção de sentidos.
Longe de pensar que esta recuperação acontece com neutrali-
dade – a qual é destruída a partir do momento em que o historiador
escolhe o objeto e o sujeito do seu estudo, seleciona as fontes e de-
termina suas perguntas – nessa perspectiva, a reconstrução do co-
nhecimento histórico é infinita. A cada momento, o presente coloca
questões do passado, explicita as tramas das relações sociais ocorridas
no cotidiano e cada grupo faz uma leitura dos acontecimentos ocor-
ridos.
A História estuda a dinâmica das relações humanas no presen-
te e no passado. O trabalho de quem lida com a História é realizado
por um processo de pesquisa, a partir do qual se faz a reconstrução
documentada das relações sociais de um determinado momento e
lugar. Para, efetivamente, ocorrer esse processo, o historiador se re-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

porta ao passado, numa dimensão do presente, buscando entender


as relações sociais humanas existentes ao longo do tempo histórico.
O ensino de História tem um papel preponderante no estabe-
lecimento das conexões entre os tempos (presente e passado), para
que os estudantes possam formar o conceito de temporalidade e as-
sim compreender a dimensão histórica da realidade em que vivem. É
preciso haver uma relação significativa entre o sujeito que vai estudar
o passado e esse passado (objeto de estudo). Nesse sentido, o passado
é algo que acontece, que não está pronto e deverá ser construído pelo
historiador. Essa reconstrução é muito dinâmica e modifica-se, tanto
espacial quanto temporalmente, responsabilizando-se o professor de
História por inserir os alunos na dinâmica histórica das sociedades,
estimulando-os na elaboração de problemáticas e articulações com
as experiências humanas. Contudo, falta-nos em sala de aula a sensi-
bilidade para planejarmos propostas de aprendizagem em consonân-
cia com estas experiências humanas, compreendendo-as como espa-
ços de articulação entre os sujeitos e suas temporalidades. Levando
os estudantes a entenderem que a História não trabalha necessaria-
mente com o passado (campo demasiadamente abstrato), mas que o
seu estudo é, sobretudo, um esforço de compreensão das trajetórias
humanas, historicamente constituídas e espacialmente definidas. Es-
tuda-se, em última instância, a “vida dos outros”.
Portanto, o tempo histórico deve ser encarado em toda sua
complexidade, abarcando as vivências pessoais – através das modi-
ficações temporais biológicas (nascimento, crescimento, envelheci-
mento) e psicológicas (mudanças internas) de cada um – bem como
percebendo este tempo como uma resultante da produção social das
civilizações ao longo de diferentes lugares e momentos.
Para conhecer a História, torna-se importante o entendimento
do processo de produção do saber histórico: como o pesquisador

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

seleciona o objeto, lê os documentos, analisa e produz o conheci-


mento. Importante, também, é ter a clareza do tema a ser estudado,
das fontes, do que procurar e de como lidar com esses dados. A His-
tória, então, é concebida como o conhecimento de um determinado
momento, de um determinado lugar, de um determinado fato que
envolve vários sujeitos.
Portanto, a análise dessa multiplicidade vai permitir perceber
para onde se encaminham os seres humanos (ideia de futuro). Nesse
aspecto, a História é entendida como uma prática social e o futuro
é o vir a ser construído pelos sujeitos históricos. A História é um
contínuo campo de construção do conhecimento, está sempre a ser
construída.
Se acreditarmos que a História é resultado de um processo
histórico construído, ponto a ponto, pelos pensamentos e ações dos
homens entre si, no tempo e no espaço, pensaremos que, para estu-
dá-la, precisamos partir do conceito no qual os sujeitos são constru-
tores da História, seja agindo no processo, seja reconstruindo esse
processo histórico. Esta concepção de História se opõe a uma visão
da História positivista, a qual considera os fatos passados como já
prontos e acabados, dando-lhes a categoria de verdades absolutas,
neutras, universalmente válidas e imparciais.
Essa História privilegia o estudo dos indivíduos isolados,
“grandes governantes”, e constitui o espaço ideal para a história de
heróis e vilões, dos acontecimentos magnânimos. Proporciona uma
visão linear, evolutiva, etapista e terminal da História, de fatos narra-
dos numa sequência cronológica, sem contradições, não consideran-
do a História como feita pelo povo, como experiência realizada nas
relações sociais. Não confronta, não analisa, não questiona os fatos
ocorridos e, muito menos, as ações humanas que os concretizam.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Além de propiciar uma visão que assume o passado como a única


possibilidade de análise histórica.
Para o historiador Eric Hobsbawm (1998), a análise do pas-
sado é importante como referência, jamais para vivermos nele. No
entanto, os nossos professores e professoras (e aqui incluímos os re-
cém-saídos da Universidade) do ensino fundamental e médio, via
de regra, mantêm-se como construções de concepções do ensino de
História ainda ligadas a um passado distante, periodizada de forma
linear, divididas em momentos estanques. Não obstante, essa tradi-
ção/lógica curricular positivista também permanece orientando as
concepções de ensino e aprendizagem nas instituições formadoras,
quando não é o próprio currículo que assim a reproduz. Essas com-
preensões da História, mais arraigadas às concepções positivistas de
ensino, ou ainda vinculadas às tradições não renovadas do materia-
lismo histórico, reduzem o campo de apropriação dos sujeitos em
sala de aula em relação ao seu estudo e atribuição de sentidos.
É fato que o ensino tradicional vem, ao longo dos anos, sendo
objeto de análise e de busca pela superação. Esforços e recursos nes-
ta direção estão sendo realizados e as mudanças estão acontecendo.
Todavia, se observamos o universo da sala de aula stricto sensu, iden-
tificamos práticas e fazeres pedagógicos repetitivos, fragmentados e
descontextualizados (IDANIR ECCO, 2007). A esse respeito, Sch-
midt exprime:
devemos nos congratular com todos os que indivi-
dual ou coletivamente contribuíram e tem contribu-
ído para a melhoria do ensino de História em todos
os níveis. No entanto, no que se refere à pratica co-
tidiana do professor de 1° e 2° graus, isto é, àquela
instância denominada de sala de aula, de um modo
geral as mudanças ainda não são satisfatórias. (2002,
p.55).

Na mesma direção, Cabrini enfatiza que este ensino chega à


sala de aula como:

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

história acabada, ‘verdadeira’, cujo conteúdo parece


distante no tempo, que é apresentado aos alunos.
[...] Esse é o ensino de história que prevalece hoje
nas escolas [...], e que nós, professores da universi-
dade, muito freqüentemente acabamos por reforçar,
ao desenvolver no 3º grau um ensino semelhante.
(CABRINI et al., 2008, p. 21).

Além destes aspectos, é importante frisar o pensamento do


pesquisador canadense Tardif (2002), segundo o qual a formação
inicial está dissociada do cotidiano profissional dos docentes, na me-
dida em que a escola não é um espaço da aplicação dos conhecimen-
tos universitários.
Desse modo, reforçamos o preocupante distanciamento entre
a universidade – caracterizada como aquela na qual se produz o sa-
ber – e o ensino fundamental e médio, qualificado como aquele cuja
tarefa única e exclusiva é transmitir esse conhecimento “produzido”
pela universidade. Revelando o desinteresse ou descaso em relação à
questão do ensino, Fenelon2 (1982), a esse respeito, nos diz:
Se aceitamos então essa dissociação referida acima
entre a ciência e o social, sem a devida perspectiva
crítica, estamos assumindo na prática um modo de
pensar a nossa disciplina, a História, e o seu ensino e
a pesquisa, dentro de um esquema tradicional, onde
a Universidade é sempre pensada como centro de
produção do saber, ou como diria Michel Certeau,
ela se transforma no “lugar social” de onde falam
os cientistas [...] E assim a ciência que se produz
neste espaço social está circunscrita a ele, começa e
acaba nele, produzida, consumida e criticada, revista
e analisada dentro de um círculo cada vez mais fe-
chado que lhe determina o permitido e o interdito.
(FENELON, 1982, p. 25-26).

2 A presente citação pode parecer distante, temporalmente, das discussões acerca


da formação dos professores e do ensino de História, todavia, resolvemos mantê-la
aqui na sua configuração original, pois o vemos como reconhecimento ao papel
exercido por Déa Fenelon na controvérsia sobre o tema e, principalmente na for-
mação de muitos docentes. São questões que permanecem atuais e inquietantes,
típicas de quem influenciou gerações e mais gerações de professores de História.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Refletindo sobre o papel da universidade, Miceli (2000) am-


plia e dá uma maior visibilidade a essa discussão, quando atribui à
hierarquização dos níveis a cristalização do distanciamento entre a
universidade e o ensino básico. Segundo ele,
A expressão ensino superior também produz, em
contrapartida (= equivalência), não a sua comple-
mentação, mas o seu contrário: existe um ensino
inferior. Sendo o ensino do terceiro grau o superior,
os níveis anteriores são, portanto, inferiores... Mas,
inferior/superior em relação a quê? Essa hierarqui-
zação – perigosa e elitista, além de imobilizadora –
atribui funções e papéis específicos e extremamente
diferenciados a cada um dos níveis de escolaridade:
ao ensino universitário (o superior...) compete pro-
duzir conhecimentos para consumo do ensino infe-
rior. (MICELI, 2000, p. 104-105).

Analisando a contribuição dos professores e professoras uni-


versitários para o ensino médio no tocante à produção, o autor apro-
funda a questão, cobrando um maior envolvimento dos docentes.
Desse modo, alerta-nos para o seguinte:
O que se pensa aqui, simplesmente, é que os(as)
professores(as) universitários também devem esfor-
çar-se por conhecer o caráter do ensino médio, pois
é para essa escola que vão se dirigir muitos de seus
alunos(as), principalmente os das chamadas ciências
humanas. Além disso, nada desmerece o profissional
que, além de teses, palestras e conferências eruditas,
coloca sua competência também na elaboração de
cursos de aperfeiçoamento e material para o ensino.
(MICELI, 2000, p. 110).

E é nesse cenário que o ensino universitário de História, tão


rigorosamente crítico e capacitado a dar a sua contribuição, em ver-
dade e, na maioria das vezes, coloca-se de costas e distante do ensino
fundamental e médio, reforçando “a dicotomia produção/reprodu-
ção enquanto locais de trabalho, alimentando-se e negando-se mu-
tuamente” (RICCI, 2000, p. 134).
Superar este caminho não se constitui em uma tarefa fácil,
mas é encarada como um “poder fazer e refazer”, de “criar e recriar”,

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como nos lembra Paulo Freire (2011). Este é um trilhar no senti-


do de desvendar e repensar, tal como sugere Marc Ferro (2003), os
segredos da História, que vivem sob o manto da proteção, notada-
mente quando envolvem processos relacionados à Igreja, aos par-
tidos políticos e aos governos, e repensar o ensino de História. O
professor e a professora de História, portanto, em oposição a uma
tradição positivista e conservadora, poderão problematizar, indagar,
dialogar sobre o real e entender a formação social como algo ligado
ao cotidiano, às experiências. Ao rever suas concepções de História,
de ensino e formação, o professor estará fazendo uma releitura da
sua praxis.
Devemos considerar que História é a ciência humana básica
na formação do estudante, pela possibilidade de fazê-lo compreen-
der a realidade que o cerca e, consequentemente, dotá-lo de espírito
crítico, que o capacitará a interpretar essa mesma realidade. Todavia,
a construção do espírito crítico não significa, necessariamente, le-
var alunos a posições ideológicas extremadas, nem tampouco formar
“pequenos historiadores”, mas capacitá-los a discernir as várias linhas
e correntes de interpretações, que se podem dar aos fatos históricos,
em seus devidos contextos, e, a partir daí, permitir aos discentes rea-
lizar suas escolhas políticas, sociais, econômicas e culturais.
Um novo fazer educativo depende de nossa mudança de atitu-
de pedagógica, de concepção de História e de enfrentamento – co-
meçando por uma autocrítica da nossa prática – frente àqueles que
não estão interessados em construir uma sociedade solidária, onde
todos possam viver como cidadãos dignos, e igualmente responsabi-
lizar-se pelo devir.

CURRÍCULO PRATICADO

Por que estudar currículos oficiais? Não podemos esquecer de


que, dentro da tradição federativa do Brasil, coube aos diferentes

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

sistemas estaduais de ensino, ao longo dos anos, elaborar e imple-


mentar orientações curriculares nas escolas, a partir de diretrizes e
normas advindas da instância federal. Os guias ou propostas curri-
culares têm sido então produzidos, tanto em âmbito estadual como
municipal, e servido de referência para as redes estaduais, municipais
e particulares de ensino.
Segundo Elba Barretto:
Embora oficiais essas orientações não se revestem
de um caráter de obrigatoriedade, cabendo às es-
colas certa margem de autonomia na sua adoção e
interpretação. Tal autonomia é exercida na prática,
mais em virtude de um largo distanciamento entre
as prescrições escritas e as escolas, do que de uma
deliberação expressa dos estabelecimentos de ensino
e de seu corpo docente, visto que a maioria dos pro-
fessor(a)es sequer chega a tomar contato direto com
as propostas. (BARRETTO, 2005, p. 6)

Essa pluralidade e, aparentemente, diversidade na construção


dos currículos, contudo, termina por empobrecer e diluir as orien-
tações curriculares no País, já que o currículo, na prática cotidiana,
reflete, sobremaneira, o atrelamento dos professores e professoras aos
livros didáticos existentes. Isso faz com que haja um descompasso
no processo de renovação curricular e o currículo oculto existente
nos conteúdos dos livros adotados. Mas, vale salientar que boa par-
te desses livros é escrita na atualidade, levando em consideração as
orientações curriculares oficiais. Assim, esses livros terminam por
veicular uma leitura particular que os autores fazem das propostas
curriculares oficiais.
No tocante ao discurso veiculado pelas propostas curriculares
vigentes, estas continuam sendo valorizadas pelo Estado, encarre-
gado de produzi-las, institucionalizando verdades consideradas ab-
solutas, oficializando saberes e legitimando práticas e posturas do-
minantes. Aquelas passam, então, a constituir referências nas redes

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

de ensino, principalmente através de programas de formação conti-


nuada dos docentes, fazendo com que se tornem objeto de disputas
político-ideológicas de grupos opositores que objetivam se tornar
hegemônicos.
As orientações curriculares oficiais refletem, tam-
bém, um ideário que permeia mais amplamente a
sociedade através das suas instituições e das forças
sociais que as animam, ideário esse que vai além da
interpretação particular, que fazem os segmentos
no poder, de certos princípios e pressupostos edu-
cacionais. Vêm, assim, tais orientações constituir,
elas próprias, testemunhos que cristalizam, através
de determinada versão pedagógica, certos valores so-
cialmente compartilhados. [...] Daí se explica o fato
de que, a despeito das mudanças de governo e de
dirigentes, seja possível encontrar mais semelhanças
do que diferenças no conjunto das propostas curri-
culares, embora mereçam ser destacadas contribui-
ções específicas e maiores afinidades político-ideoló-
gicas ou teórico-metodológicas entre algumas delas,
em decorrência da identidade encontrada entre as
administrações que desencadeiam as reformas do
currículo. (BARRETTO, 2005, p. 7)

Entretanto, nos currículos oficiais, os conteúdos surgem como


óbvios, como dados inquestionáveis. Os supostos conflitos, escolhas
e embates não aparecem. Não podemos esquecer de que todo currí-
culo é uma opção dentre muitas outras. Nele são priorizadas deter-
minadas visões de mundo, de grupos sociais, de expressões culturais,
em detrimento de outras. Mas, quando olhamos o produto final
dessas disputas (o currículo oficial), tudo aparenta estar harmonioso,
coerente e complementar: os interesses dos indivíduos, da sociedade,
dos diversos grupos, os projetos de desenvolvimento do País, entre
outros.
A aparente ausência de conflitos nos currículos oficiais deu
espaço a pouco mais de um ano – mais precisamente desde outubro
de 2015, quando a primeira versão da Base Nacional Comum Cur-
ricular foi disponibilizada para consulta pública – a uma acirrada

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

disputa de forças, no que diz respeito às discussões em relação à


BNCC, talvez por não se tratar de um currículo oficial, dentre tan-
tos outros, mas pela dimensão legal e âmbito nacional que a Base
representa. Em primeiro momento os questionamentos direciona-
ram-se à própria legitimidade da BNCC, quanto à necessidade da
sua existência. Discussão progressivamente secundarizada à medida
que a primária versão da BNCC foi publicizada e as mobilizações
das mais diversas ordens (condenatórias/salvacionistas, precipitadas/
tardias, fundamentadas/infundadas) começaram a emergir.
O debate alcançou os diferentes espaços de produção de saber
em seus diversos “níveis”, do “chão da sala de aula” das escolas da
Educação Básica – ponto obrigatório de discussão e avaliação nos
encontros de planejamento escolar – aos seminários e encontros or-
ganizados pelas instituições de Ensino Superior. Estes últimos toma-
ram a discussão para si de modo tardio e tímido, e mais interessados
com as mudanças nos currículos dos cursos de licenciatura oferta-
dos, do que com as alterações curriculares nos campos formativos
da Educação Básica. Cartas e cartas-respostas proliferaram-se, frente
ao dissenso entre pesquisadores, professores, Grupos de Trabalho e
Associações.
O debate que havia iniciado em relação à necessidade ou não
da existência de uma BNCC, deliberadamente convergiu para o
esforço, quase inútil (não fosse a reverberação das discussões), de
concentrar perspectivas curriculares, pedagógicas e sobre a História,
num modelo inerte de currículo que tende ao risco da homogenei-
zação, não apenas de propostas de ensino, mas de concepções curri-
culares e epistemológicas do próprio campo. Se não podemos falar
de uma história verdadeira, tampouco podemos atrelá-la a um único
currículo.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Quando da elaboração dos currículos oficiais, alguns proble-


mas se apresentam como centrais: seleção, organização, apresentação
e sequência do conhecimento. Na definição do que ensinar devem
ser consideradas as necessidades do aluno e da sociedade, os traços
particulares das disciplinas a serem ensinadas, ou da articulação en-
tre as mais diversas disciplinas que compõem uma área do saber, as
características psicológicas e cognitivas dos alunos, suas competên-
cias e habilidades, e as que se quer desenvolver.
A educação brasileira, a partir da aprovação da LDB (Lei
9394/96), passou por uma série de transformações, dentre elas a li-
berdade de cada município formular seus próprios referenciais cur-
riculares, e utilizá-los como norteadores dos programas das discipli-
nas. Para o ensino da História, isso tem uma grande importância
nos currículos, na medida em que essa liberdade possibilita a incor-
poração dos dados históricos e socioculturais das diversas regiões,
valorizando a diversidade e o patrimônio socialmente produzido em
todo espaço socialmente construído.
Com o processo de redemocratização na década de 80 já não
cabia mais a manutenção de aparelhos legais que serviram ao perío-
do da Ditadura Civil-Militar. Assim é que tem início a luta de todo
o conjunto de educadores para substituir a Lei nº 5.540/68, que
versava sobre a Reforma Universitária, e a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação – LDB – de número 5.692/71.
Em sendo assim, todos os setores que compõem a sociedade
civil e que têm ligação direta com a educação participaram, durante
cinco anos, na Câmara dos Deputados, do processo de elaboração
da nova LDB, através de várias discussões nas comissões específicas e
de caráter nacional, o que se constituiu em um avanço muito impor-
tante para a revalorização da educação no Brasil. Muranaka e Minto
nos informam que:

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Todos os setores sociais, da direita à esquerda, das


instâncias do MEC aos organismos representativos
da sociedade civil e política, participaram do pro-
cesso de elaboração da LDB da Câmara, de 1988
a 1993, através de audiências públicas, seminários
temáticos e negociações políticas. (MURANAKA e
MINTO, 1998, p. 74).

O projeto proposto para a nova LDB procurou levar em conta


os profundos contrastes da sociedade brasileira, pensado de tal forma
que todas as suas diretrizes considerassem as questões sociais, para
que elas não fossem esquecidas e funcionassem como o horizonte
social sobre o qual a lei deveria ser interpretada, porque:
Diferente do tempo em que fomos normatizados
em ‘pensamento, palavra e obras’ pela 5692, pela
5540 e por tantas leis mais, o contexto histórico do
processo desta LDB é de luta aberta pelos valores
de democracia enquanto utopia de participação e
de equidade social [...]. Significa que a lei deve ser
interpretada no sentido da ampliação da vontade
coletiva e afirmar a inconformidade com a ex-
clusão social de milhões de desamparados, e de
construir um outro país, uma outra sociedade.
(FRANCO, 1993, p. 49, grifo nosso).

É fato, também, que a letra fria da lei não vem, como em


um passe de mágica, fazer as transformações educativas ansiadas e
desejadas pela comunidade, mas é um instrumento imprescindível
para nortear as ações de um projeto de nação que não desconsidere
o quesito educação, peça fundamental na construção de uma socie-
dade mais justa e humana. Nessa mesma direção, Otaíza Romanelli
considera:
Nenhuma lei é capaz, por si só, de operar transfor-
mações profundas, por mais avançada que seja, nem
tampouco de retardar, também por si só, o ritmo de
progresso de uma dada sociedade, por mais retrógra-
da que seja. (ROMANELLI, 1984, p. 37).

O Governo Federal derrubou o projeto que vinha sendo dis-


cutido pelos diversos setores da educação e, seguindo a lógica da

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globalização, nos impôs o substitutivo Darcy Ribeiro3, que des-


caracterizou toda a proposta. A nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação – LDB, de nº 9.394 foi então sancionada pelo presidente
Fernando Henrique Cardoso em 20 de dezembro de 1996. Esta Lei,
que é o instrumento legal de gerenciamento do sistema educacional
brasileiro, contudo, atende mais aos interesses da comunidade inter-
nacional – e, em realidade, beneficia mais os países mais ricos e mais
fortes que os interesses locais. Esse acontecimento, sem dúvida algu-
ma, estabeleceu uma nova ordem na educação brasileira, gerando na
comunidade de educadores e educadoras uma grande insatisfação.
Esse fato arrefeceu, em certa medida, as tentativas que vinham
se solidificando de reconstruir um currículo de História, comprome-
tido com novos fazeres e novas concepções. Assim:
Estamos assistindo a uma retomada da centralização
da educação que alija da discussão os seus princi-
pais sujeitos: alunos(as) e professor(a)es novamente
vistos como objetos incapacitados de construir sua
história e de fazer, em cada momento de sua vida es-
colar, seu próprio saber. (BITTENCOURT, 2004,
p. 40).

Além da LDB, o Governo Federal, através do Ministério de


Educação – MEC, implantou, em todo o Brasil, os Parâmetros Cur-
riculares Nacionais – PCN. Esses documentos de revisão do ensino
fundamental e médio, construídos e desenvolvidos por um conjunto
de consultores e técnicos da Secretaria de Educação Fundamental do
MEC, não passaram pelo processo de discussão da comunidade de
profissionais do ensino fundamental e médio. O vazio destes deba-
tes fez com que os conflitos sociais que compõem o corolário social

3 A esse respeito, remeto à leitura e análise da tese de doutorado de Cláudia Sapag


Ricci (2003), em que ela apresenta o processo de elaboração das Leis de Diretrizes
e Base da Educação Nacional, desde 1931, até a Lei nº 9.394/96, dando destaque
às estratégias e concepções de formação e perfil profissional do educador.

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e as questões regionais estejam ausentes do conjunto de discussões


propostas pelos PCN.
É certo que estes parâmetros, ainda que tragam novas dire-
trizes que apontam para a construção de um novo ensino, chegam
às diversas escolas brasileiras para sua aplicação – principalmente
as do meio rural – como um instrumento de pouca utilidade para
professores e professoras. Isto vem ocorrendo visto que os docentes
tiveram, neste processo, poucas possibilidades, não só de conhecer o
documento em profundidade como, também, de participar da sua
elaboração. Nesse sentido, os parâmetros pouco têm a ver com a
realidade educacional de cada Região.
Os referenciais curriculares estimulam a discussão de aspectos
considerados importantes para o ensino de História nas escolas, aju-
dando os professores e professoras a escolherem aqueles conteúdos
necessários e apropriados para a construção do conhecimento da rea-
lidade, tanto social quanto política de cada comunidade, mostrando
as relações entre elas e inserindo-as em realidades maiores e mais
complexas, visando a uma maior incorporação dos aspectos cotidia-
nos e sempre atuais no processo de ensino e aprendizagem. Desta
maneira, os referenciais curriculares constituem uma possibilidade
real de utilização do conhecimento popular por parte da disciplina
História e, ao mesmo tempo, cria condições para o surgimento de
novas formas de produção de conhecimento.
Partindo do princípio de que a História é o resultado da ação
de homens e mulheres, podemos utilizar como parte integrante dos
referenciais curriculares o viver, a identidade étnica, os valores, as
diversidades socioculturais e religiosas, enfim, as memórias coletivas
dos lugares, relacionadas à História do País e do mundo, aproprian-
do-se dela para melhor compreensão das realidades locais.

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Assim, a primeira versão da BNCC, embora comum a todos


os Estados da Federação, buscou contemplar em sua estrutura – dis-
tinguindo-se neste aspecto dos PCN – um espaço para as discussões
sobre as realidades regionais. Outrossim, também deu visibilidade a
debates historiográficos mais contemporâneos, bem como atendeu
minimamente às demandas formativas exigidas pelos movimentos
sociais com a inserção direta de algumas categorias (classe, raça e
gênero), ainda que, conceitualmente, de modo incipiente.
As críticas deferidas em relação à versão preliminar do docu-
mento, que afirmaram que este priorizava em demasia o protagonis-
mo dos sujeitos, ou ainda os conteúdos relativos à História da África
e dos povos indígenas na América, não foram acertadas. Contraria-
mente, ao que disseram os críticos mais conservadores, não houve
protagonismo. Elencar conteúdos sobre História da África e sobre
povos indígenas nas Américas, por exemplo, sem preocupações mais
consistentes em relação à compreensão hierárquica que estes temas
ocupam, ou mesmo assumir a relação colonial – de “conquista” –
que sempre recaiu sobre as abordagens destes conteúdos, é reforçar
o que já está posto.
Evidentemente, a abolição dessa relação colonialista da Eu-
ropa com o mundo não é tarefa fácil. Luis Fernando Cerri (2009)
discorreu sobre o difícil exercício de superação de uma das carac-
terísticas que define a própria História como disciplina escolar: o
foco europeu. Mas alertou sobre os riscos dos conteúdos implícitos
presentes nos currículos, ao afirmar que:
Outro aspecto a considerar é que essas lógicas não
são meros recipientes de conteúdos, mas atribuem
significados ao processo histórico, pelos mecanis-
mos de funcionamento do currículo oculto. Por
exemplo, posso ensinar o valor da cultura nacional
através de músicas, mas se todas elas forem cantadas
em inglês, transmite-se implicitamente um sentido
de valorização de uma cultura estrangeira, embora

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tudo o que eu digo vá no sentido contrário. Da mes-


ma forma, posso afirmar à exaustão que o impor-
tante não é a memorização, mas a compreensão dos
conteúdos históricos. Porém, se a lógica de seleção
e articulação dos conteúdos históricos for linear e
tradicional, querendo ensinar um pouco de tudo o
que há para saber sobre o passado, mesmo não ten-
do significado nenhum para o alunado, apenas por-
que é difusamente reconhecido como “importante”,
acabo transmitindo uma ideia de conhecimento his-
tórico contrária àquela que enuncio explicitamente.
Ainda nesse mesmo raciocínio, não é a inclusão
de elementos de História da China que torna a
“História da Civilização” vacinada contra o eu-
rocentrismo. (CERRI, 2009, p.144, grifo nosso)

Contraditoriamente, a primeira versão da BNCC demarca


uma condição histórica subalternizada, tanto da História da Áfri-
ca quanto da História dos povos indígenas nas Américas. E não, a
História da África não precisa existir a reboque da História do Bra-
sil. Se a Europa não deve permanecer sendo concebida pelos nossos
currículos como “o umbigo do mundo”, tampouco o Brasil o é, sob
o risco de desenharmos uma História integrada “mal resolvida” entre
o Brasil e o resto do mundo.
E esse distanciamento Brasil/mundo não seria o único. Há
uma distância entre as experiências vivenciadas na escola com o
currículo existente, e as características socioculturais de um mundo
transformado pela emergência de movimentos sociais, nas mobiliza-
ções em prol da afirmação de identidades socioculturais subjugadas,
pelo mundo globalizado e pela generalização das novas formas de co-
municação e tecnologias. Este currículo continua a refletir sobre um
mundo social que não mais existe. E quando pensamos que o debate
sobre a primeira versão da BNCC foi profícuo, que as demandas da
sociedade civil, das organizações de professores, das associações de
profissionais, dos pesquisadores da área, e da consulta pública sobre
ela vão ser acatadas, nos deparamos com a nova versão da BNCC

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publicada e propagandeada pelo jornal Folha de São Paulo do dia


03/05/2016 como: “Nova versão da base nacional curricular traz
de volta história da Europa”. Traz de volta a Europa, sem que esta
nunca tenha saído do currículo de História. Já a versão final, ou ter-
ceira versão – como alguns preferem identificá-la – está marcada pela
atenuação de tensões e conflitos de toda ordem. Na ausência de uma
concepção de História unívoca, preferiu-se abrir mão dos debates e
elaborar uma versão nada inaugural.
Portanto, não podemos falar de algo totalmente novo ou ori-
ginal no texto final da versão da BNCC. Tampouco faz parte de uma
tradição recente repensar a organização dos conteúdos históricos nos
currículos da Educação Básica, a partir de perspectivas retrógradas.
Ao final, percebemos que o debate público, coletivo e transparen-
te, das políticas públicas requer tempo, amadurecimento, conflito e
senso de democracia. Na ausência de um desses fatores, ou na ausên-
cia de todos eles, solapam-se o coletivo em nome de demandas emer-
genciais postas pelo Estado. Foi assim com a elaboração da LDB,
com a concretização da BNCC, e com a Reforma do Ensino Médio.
Na contramão desse processo e visando à construção de um
currículo pluricultural, é então necessário conversar com os sujeitos
dos cotidianos das escolas. É preciso pensar as escolas e seus currícu-
los praticados para além dos contextos pedagógicos imediatos, visto
que as escolas se articulam com outros grupos socioculturais, com
outros contextos e instituições, através de relações sociais formais e
informais, produzindo diferentes saberes e fazeres na elaboração de
seus currículos.
Pensar o currículo em uma direção única, tal como as for-
mulações postas nos documentos do MEC, seria desconsiderar as
relações sociais produzidas e tecidas a partir dos contextos sociopolí-
ticos, econômicos, religiosos, familiares, socioculturais, vivenciados

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pelos sujeitos no seu cotidiano, que produzem diversas identidades


e posturas, dependendo das necessidades e/ou interesses, pessoais e/
ou locais, das histórias de vida, formações, valores e intenções. A
título de exemplo, destacamos as contribuições de Luis Fernando
Cerri (2009), ao argumentar que os conteúdos abordados nos PCN
ganham uma dimensão nacional que reflete um determinado perfil
de professor e professora imaginado pelo MEC. A BNCC, por sua
vez, antevê não apenas um professor imaginado, como também pre-
coniza as concepções de História e Ensino que deverão ser adotadas
por ele nos espaços escolares.
É, portanto, neste contexto, que há processos organizativos es-
pontâneos na construção curricular no interior das escolas, os quais
não devem ser subestimados ou mesmo desconsiderados, já que o
currículo abriga as concepções de vida social e a relação inerente ao
contexto no qual se encontra inserido. Não estamos com isto afir-
mando que o currículo escolar não esteja impregnado de ideologias,
ou que algumas não serão dominantes em relação a outras. No en-
tanto, o simples fato de existirem, e de as assumirmos enquanto do-
minantes, indica haver outras ideologias e expressões socioculturais
com as quais devem concorrer e lutar, para se manterem como tais.
Estes embates são travados constante e cotidianamente, envolvendo
indivíduos, instituições e classes.

O “NOVO ENSINO MÉDIO”

O reordenamento do Ensino Médio por áreas do conheci-


mento já estava sendo pautado desde 2013, através de um Projeto
de Lei que tramitava na Câmara dos Deputados, e na ocasião já pro-
punha a ampliação da carga horária do ensino para o tempo integral.
Referimo-nos ao PL nº 6.840/2013 que, ao dispor sobre a Reforma

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do Ensino Médio, preconizava a alteração da Lei nº 9.394/1996,


que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A Re-
forma, outrora iniciada como o Projeto de Lei supracitado, levada
a consultas e audiências públicas, acabou por ser implementada a
partir de uma Medida Provisória com força de Lei; trata-se da MP
nº 746, sancionada como Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.
Uma breve análise comparativa entre o PL nº 6.840/2013, a MP nº
746 e a Lei nº 13.415/2017, permite-nos trazer ao debate algumas
questões, substancialmente comuns aos três documentos relaciona-
dos à Reforma.
Foi inevitável que, ao ler o texto do PL em questão e docu-
mentos relacionados disponíveis no próprio portal da Câmara dos
Deputados, consideremos algumas problemáticas que já perpassa-
vam o documento. Dentre os aspectos que podemos mencionar,
cabe sinalizar que já era objetivo inicial da Reforma, ainda quando a
mesma assinalava-se como PL, a descaracterização da História como
disciplina escolar. Naquele contexto se reconhecia amplamente a ne-
cessidade e urgência de Reforma do Ensino Médio, dadas as reais
circunstâncias do Ensino Médio na esfera Nacional. Indagamo-nos,
sobretudo, a respeito das proposições que a Reforma assumia, postas
no Projeto de Lei e seus possíveis espaços falhos.
É de conhecimento que a estrutura curricular do Ensino Mé-
dio não atende, já há algum tempo, às demandas da juventude bra-
sileira. O currículo não contempla as necessidades de diálogo sobre
a realidade dos estudantes – pouco ou quase nada do que é visto no
Ensino Médio fala diretamente sobre a vida cotidiana/contemporâ-
nea dos alunos. Em termos de expectativas relacionadas às condições
materiais de existência, este mesmo currículo, quando muito, dire-
ciona as Universidades, Faculdades ou cursos técnicos. Como um
pré-requisito a ser vencido, para alcançar a vida real concreta e – por

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que não dizermos – o mundo do trabalho – que muitos iniciam pre-


maturamente – o Ensino Médio é cumprido.
Igualmente angustiante para o estudante do Ensino Médio no
Brasil tem sido, ao menos no caso da disciplina História, a repeti-
ção temporal como estratégia de organicidade curricular. Primeiro,
pela própria definição do currículo, oficial ou oculto, cuja estrutu-
ra apresentada é a quadripartite (FONSECA, 2006). Em seguida,
observamos a repetição dessa estrutura temporal que é adotada no
Ensino Fundamental, aplicada ao Ensino Médio. E não estamos tra-
tando aqui apenas de manter ou não uma determinada organização
temporal dos conteúdos; do ponto de vista didático, isso pode ser
interessante. O problema dessa repetição temporal como estratégia
de organicidade curricular é que, além de condicionar a uma deter-
minada percepção de tempo linear e homogênea, no caso do Ensino
Médio, a abordagem da disciplina não vem acompanhada de proble-
matizações acerca do tempo presente. A aprendizagem histórica no
Ensino Médio permanece tal como se configura no Fundamental,
uma narrativa de acontecimentos passados, e pouco ou quase nada
se apreende sobre a vida humana.
A leitura dos “Conteúdos Referenciais para o Ensino Médio”,
disponibilizados pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia
(SEC) nas Jornadas Pedagógicas entre 2013 e 2016, nos possibilitou
identificar na organicidade curricular similaridade entre os conte-
údos que outrora foram trabalhados no Ensino Fundamental. Os
Guias dos Livros Didáticos, elaborados pelo Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), evidenciam essa tendência curricular dada
à repetição. E, por fim, um grande número dos professores, ao ela-
borar seus Planos de Unidade, no início do ano letivo, acaba por
legitimar essa lógica curricular, que em nada interessa aos alunos do
Ensino Médio.

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Uma das principais controvérsias presentes na antiga proposta


da Reforma era a alteração do Currículo por áreas do conhecimen-
to. Isso é meia verdade. Essa reestruturação poderia trazer dinâmi-
ca própria ao currículo, e humanizá-lo, ao sugerir a interação entre
os diferentes campos de saber. Quem sabe, essa nova configuração
curricular fosse capaz de promover, ou talvez sugerir, uma recontex-
tualização dos conteúdos fragmentados, disciplinados nos formatos
escolares. Mas isso só seria possível se o reordenamento do Ensino
Médio viesse acompanhado de projetos que pudessem ser pensados
de modo autônomo pelos diferentes professores, a partir das suas
respectivas áreas de formação. Todavia, a proposta inicial de reor-
ganização curricular, presente no PL nº 6.840/2013 – que já sofria
críticas – viu-se transfigurada na recente Lei nº 13.415/2017 em
uma estrutura curricular concebida de modo fragmentado, a partir
do entendimento de que existe uma “parte comum”, determinada
pela BNCC, e uma “parte diversificada”, configurada pelos itinerá-
rios formativos; havendo ainda a possibilidade de oferta do Ensino
Médio organizado por módulos. Ressaltando que os itinerários for-
mativos serão ofertados de acordo com “a possibilidade dos sistemas
de ensino”4.
Assim, a Reforma no Ensino Médio, que poderia dar novos
contornos aos processos de aprendizagem e trazer modificações sig-
nificativas ao próprio currículo, vem acompanhada da precarização
do trabalho docente, da redução das especificidades disciplinares e
da impertinência do notório saber como requisito para a docência,
em detrimento da formação. À medida que “profissionais com notó-
rio saber reconhecido5” serão levados a assumir áreas formativas para
as quais não tiveram formação, assume-se o risco da simplificação

4 BRASIL, Governo Federal. Lei nº 13.415 de 16 de fevereiro de 2017. Art. 36.


5 Idem. Art. 61, Inciso IV.

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das abordagens em sala de aula, e consequente pauperização da do


Ensino ofertado. Em relação à formação docente, as alterações mais
significativas dizem respeito à submissão dos currículos dos cursos
de formação de docentes à BNCC, tendo em vista que são orienta-
dos a tomá-la como “referência”.6
Outra questão relevante, que tem ganhado pouca atenção, diz
respeito à alteração da carga horária do Ensino Médio, para tempo
integral, com o mínimo de sete horas diárias de trabalho escolar. Pa-
rece ter havido o entendimento, equivocado no nosso ponto de vista,
de que tempo integral é sinônimo de formação integral. Como isso
ganhará corpo nas regiões onde juventude e mundo do trabalho são
elementos integrantes? Tal problemática parece ter sido colocada nos
relatórios elaborados pela Comissão Especial Destinada a Promover
Estudos e Proposições para a Reforma do Ensino Médio (CEENSI),
porém o PL nº 6.840/2013 já não apontava soluções eficazes quanto
à efetiva permanência desses jovens no Ensino Médio, tampouco
a atual Lei nº 13.415/2017. O relatório 2-2013 CEENSI trouxe
indicadores sobre a juventude brasileira e sua inserção no mercado
de trabalho. Dentre outras questões, o relatório sinalizou que, em
2008, aproximadamente 66% da população juvenil de 14 a 29 anos
estavam no mundo do trabalho.
Como é possível articular demandas formativas do Ensino
Médio com as expectativas formativas da juventude, atreladas ao
mundo do trabalho, sem que isso condicione os alunos das escolas
públicas a determinados espaços subalternizados do mercado de tra-

6 Importante destacar que já existem Instituições de Ensino Superior, entre elas,


universidades Federais, como as listadas a seguir, com Licenciaturas em Ciências
Humanas.
UFMA - http://www.proen.ufma.br/site/sub_pag.php?id=323;
UNIVAG - http://www.univag.edu.br/v1/cursos/visualizar_curso.aspx?id=23;
UNILAB - http://www.unilab.edu.br/graduacao/humanas/.
UNIPAMPA - http://cursos.unipampa.edu.br/cursos/cienciashumanas/

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balho? Em que medida a inserção de capital da iniciativa privada,


pela via dos serviços técnicos terceirizados e da educação à distância,
poderá definir os próprios objetivos formativos da juventude brasi-
leira que compõe o Ensino Médio? Estas e outras questões emergem
de um contexto de Reforma no qual as possibilidades de diálogo,
debate público e participação democrática não foram consideradas.
Ainda segundo dados apresentados pelo relatório, houve uma
tendência crescente na última década no número dos jovens que
apenas trabalham, e são justamente esses jovens aqueles que não
concluem o Ensino Médio. Pensamos ser preciso ampliar as possibi-
lidades formativas para o Ensino Médio, considerando e problema-
tizando as esferas que implicam na presença do jovem no mercado
de trabalho, mas considerando, sobretudo, a formação humana, que
passa por uma instrução elementarmente histórica – para a vida,
bem como para o mundo do trabalho. Sem que este último lhe seja
apresentado de modo precoce, como demanda dos setores produti-
vos e a formação histórica, sequer lhe seja apresentada como campo
de possibilidade.
Considerar a assertiva de que o ingresso dos jovens nos espaços
de trabalho representa um dos principais motivos para a evasão es-
colar pode levar a soluções aparentes. A primeira foi ampliar a carga
horária do Ensino Médio para o tempo integral, como forma de
retirar-lhe tempo para o trabalho, tendo em vista que parte desses
alunos estuda e trabalha; a segunda alternativa, que não exclui a ideia
anterior, diz respeito a inserir de modo mais acentuado as dinâmicas
do mundo do trabalho dentro da escola. Talvez a maior contribui-
ção que o debate público sobre a Reforma pudesse nos dá seja a
ampliação da própria discussão Escola/Mundo do Trabalho. Contu-
do, a Reforma do Ensino Médio, que poderia ser um ponto inicial
de questionamento/reordenamento da própria lógica produtiva das

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nossas sociedades, contrariamente, assume essa lógica como elemen-


to norteador da própria dinâmica de produção dos bens culturais.
A referida relação Mundos do Trabalho/Ensino Médio é bem mais
conflituosa e alarmante.7 Cabe-nos fazer uma ampla discussão sobre
essa questão, e não a superficialidade de implementações pela via
curricular, que, diga-se de passagem, não é nada original, tampouco
ingênua.

CURRÍCULO ESCOLAR: UMA REFLEXÃO

Quando nos referimos à construção de currículo, de que esta-


mos falando? Dependendo do tipo de experiência, de leitura, cada
pessoa ou cada grupo de pessoas certamente pensará em perspectivas
diferentes. Há quem pense no rol de assuntos que a escola deverá
ensinar; há quem pense logo nos programas escolares escolhidos, por
série, para os alunos. Há quem pense em orientações que norteiem
as ações que se desenvolvem na escola ou sob a sua orientação. Há
até quem não pense absolutamente nada; simplesmente desconheça
esta palavra. Nesse sentido, Cerri (2009) nos diz:
Os currículos são elementos centrais na atividade
educativa e expressam significativamente as noções,
concepções, conceitos e preconceitos sobre a socieda-
de, a ciência, a educação e o ser humano, no mo-
mento em que são elaborados. Os estudos nessa área,
todavia, são claros em apontar que a atividade edu-
cativa desenvolvida na sala de aula é uma realidade
que o currículo (entendido como a orientação da ati-
vidade dos professor(a)es cristalizada num documen-
to ou conjunto de documentos) influencia, mas não
7 Cf: “A associação da categoria juventude com as variáveis sexo, cor, renda fa-
miliar e região de moradia torna ainda mais explícitas as múltiplas desigualdades
que atingem a população juvenil. Jovens pertencentes às famílias de baixa renda,
moradores de áreas metropolitanas mais pobres, ou de determinadas áreas rurais,
mulheres jovens e jovens negros de ambos os sexos são atingidos de maneira mais
crítica pelas dificuldades acesso à educação e ao trabalho.” Relatório 2-2013 da
CEENSI, disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetra-
mitacao?idProposicao=602570

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governa. Entre o currículo prescrito e o aprendizado


do aluno interpõem-se fenômenos (como o currícu-
lo oculto e os condicionamentos específicos de cada
escola e de cada sala) que produzem o currículo reali-
zado, distinto daquele se prescreveu. Um dos fatores
que condiciona a efetivação do currículo é a avaliação
externa à escola. Nesse sentido, é de longa data que
os exames vestibulares vêm se comportando como o
principal organizador do currículo do Ensino Médio,
e nesse campo, aos poucos o Exame Nacional do En-
sino Médio – ENEM vem ganhando um espaço ex-
pressivo. (CERRI, 2009, p. 214).

Se pensarmos em currículo escolar podemos concebê-lo a par-


tir da comunidade escolar, a história, as experiências por ela vividas,
as pressões e influências recebidas, que não acontecem isoladamente.
São resultantes de uma multiplicidade de relações de natureza eco-
nômica, social, religiosa, política, cultural etc., que se aprofundam,
adquirem maior ou menor significado de acordo com nossas cren-
ças, nossos valores, concepções e se reorganizam, orientando-se em
direção às nossas aspirações, expectativas, escolhas. Segundo Tomaz
Tadeu da Silva:
O currículo tem significados que vão muito além
daqueles aos quais as teorias tradicionais nos con-
finaram. O currículo é lugar, espaço, território. O
currículo é a relação de poder. O currículo é traje-
tória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia,
nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja
nossa identidade. O currículo é texto, discurso, do-
cumento. O currículo é documento de identidade.
(SILVA, 2002, p. 150).

Cada escola tem sua própria história, viveu sua própria ex-
periência. Cada escola precisa ter seu próprio currículo. Mas todas
as escolas precisam trabalhar, ainda que por processos diversos, na
direção de um mesmo objetivo: a formação do homem, do cida-
dão, orientadas pelos valores universais. Os referenciais curriculares
se fazem, pois, necessários, como orientação para as ações educati-
vas voltadas para a formação de homens e mulheres. São propostas

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orientadoras dos caminhos que podem ser construídos e percorridos


pelos membros da comunidade escolar, juntamente com famílias e
todos os grupos e segmentos sociais interessados no trabalho dos
professores e professoras, no âmbito da escola.
Assim considerando, podemos dizer que os referenciais cur-
riculares constituem um documento contendo indicações, esclare-
cimentos e recomendações mais gerais voltadas para a melhoria do
trabalho do professor e da professora, e da aprendizagem do aluna-
do, mas que, por trazer a marca oficial, exclui estes sujeitos na sua
elaboração e formulação.
Todos os professores e professoras, e demais profissionais da
escola, encontram, neste documento, informações sobre a cultura
local, reflexões sobre as concepções que sustentam o trabalho nas
escolas, considerações sobre os objetivos da atividade escolar, organi-
zação da escolaridade, organização do conhecimento, definição dos
objetivos e dos conteúdos de cada uma das disciplinas escolares, o
significado dos temas transversais, orientações didático-pedagógicas,
utilização de equipamentos e de outros recursos didáticos, natureza
das interações que ocorrem no interior da sala de aula e da escola, re-
lação escola/família/comunidade, avaliação da aprendizagem escolar
e outras questões que, embora não tratadas de forma direta, podem
ser encontradas por inferência, pelas relações que se estabelecem en-
tre os vários componentes do trabalho pedagógico.
É preciso, no entanto, prestar atenção para não confundir re-
ferenciais curriculares com manual de ensino que precisa ser segui-
do à risca para dar certo. Não pode ser entendido assim, a não ser
que façamos opção por um ensino mecânico, orientado por receitas,
passos e etapas rígidas de trabalho. Este ensino certamente não leva-
ria à formação de pessoas que pensam, se desenvolvem, criam com
liberdade e autonomia, que se fazem cidadãs, portanto, autoras de

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sua própria trajetória, e, por conseguinte, indivíduos presentes como


sujeitos históricos na construção do currículo. O currículo de Histó-
ria deve ser uma construção para além dos referenciais curriculares,
levando em consideração os sujeitos sociais, atores do processo. Nes-
se sentido, concordamos com Arroyo:
Continuando a nos indagar por que essa ausência
dos educadores e educandos nos desenhos curricula-
res, chegaremos a uma hipótese preocupante: estão
ausentes nos currículos, porque em nossa história
não ha lugar para os sujeitos sociais. Os currículos
como território do conhecimento são pobres em
sujeitos sociais. Só importa o que falar, não quem
fala. Este foi expatriado desse território. Como fo-
ram expatriados da terra, da moradia, do judiciário,
do Estado e de suas instituições. (ARROYO, 2011,
p. 138).

Dessa forma, a elaboração curricular deve reconhecer a impor-


tância e a relevância de todos os sujeitos em sua construção, partindo
do princípio de que a História é o resultado da ação de homens e
mulheres. Assim, é possível tomar como parte integrante do cur-
rículo escolar o viver, a identidade étnica, os valores, a diversidade
cultural e religiosa, enfim a memória coletiva dos grupos sociais,
relacionada com a história do País e do mundo, apropriando-se dela
para melhor compreensão da realidade local. Nessa perspectiva, é
fundamental que seja compromisso do ensino de História assegurar
que possam existir novas leituras, que acontecimentos e pessoas, an-
tes esquecidos, sejam analisados e, ainda, que novas interpretações
se somem às já existentes. Mas antes é preciso asseverar o direito ao
ensino da História.

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REFERÊNCIAS

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

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O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Heloisa Helena Tourinho Monteiro

Cabe demarcar neste artigo a importância da discussão, pro-


posta pelo II Encontro Estadual de História, em Cachoeira – Bahia,
2013, já que a dicotomia que se instaura entre o Ensino de História
na Educação Básica e a formação do professor de História na Uni-
versidade ainda apresenta descaminhos e pontes a serem construídas
para a consolidação de uma relação mais dialógica e fluida entre as
esferas do pensar e da ação cotidiana do Ensino.
Nos últimos anos, os avanços nesta aproximação devem ser
reconhecidos, porém, como professora da Educação Básica desde
1992, atuando na sala de aula e na coordenação de área até os dias
atuais, afirmo que os passos ainda são tímidos e as estratégias preci-
sam contemplar de forma mais evidente o professor e a professora
que se encontram nas frentes de trabalho da Educação Básica.
Com as contínuas mudanças enfrentadas pela Educação Bá-
sica, está mais do que na hora de que as discussões do Ensino de
História tenham a sua pauta amplamente divulgada e concretize a
relação entre professores e professoras de História que fazem da sala
de aula o espaço do fazer, do acontecer – o conhecimento histórico,
para crianças da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino
Médio.
Nos últimos dez, doze anos do Século XXI, a Educação Infan-
til tem dado mostras de como relacionar movimentos sociais com
professores e pesquisadores da área, no que resultou em vitórias para
a defesa de Educação Infantil de qualidade para todas as crianças do
Brasil. A inclusão da Educação Infantil no Fundeb, até a obrigato-
riedade da Educação para crianças de 4 e 5 anos, bem como a defesa

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

incansável de se garantir à criança a realização plena de sua infância,


são resultados de ampla marcha em prol do tema, utilizando-se de
todos os atores necessários para a frente desta batalha, independen-
te do lugar que se encontram estes atores, estejam nas creches, nos
Centros de Educação Infantil, nos Fóruns Estaduais e Nacionais em
defesa da Educação Infantil, ou nos espaços da Academia. Trago este
exemplo para nos provocar e ao mesmo tempo nos incentivar a criar
uma ampla discussão sobre o Ensino de História na Educação Básica
do nosso País.
Os dilemas são muitos, desde a escolha do livro didático, dos
materiais de suporte, dos textos suplementares e complementares, às
escolhas dentro do conteúdo que representarão os recortes, as abor-
dagens temáticas, passando por atividades criativas, filmes e docu-
mentários pertinentes, bem como projetos interdisciplinares.
Por exemplo, sob que perspectiva se deve trabalhar a Repúbli-
ca Velha no Ensino Médio? Exclusivamente política, econômica ou
social? Criar um diálogo, estabelecer correlações? Dispensar os no-
mes dos Presidentes, suas ações e suas datas? Muitas decisões a serem
tomadas nas esferas da coordenação, das reuniões pedagógicas, nas
quais professores, pedagogos, orientadores com formações variadas
tentam chegar a um denominador comum para uma proposta de
trabalho que realize o ensino de História para crianças e adolescen-
tes, jovens e adultos.
Na década de 90 do Século XX, com as transformações episte-
mológicas e metodológicas do ensino de História, a área pedagógica
demonstrava a necessidade de uma revisão do programa desta disci-
plina. Várias eram as discussões, norteadas pela busca de um novo
caminho para o ensino de História, no qual este não fosse apenas
transmissor dos fatos e reprodutor de uma historiografia factual e
pouco reflexiva. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, propostos

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

em 1997, trouxeram a ideia de um ensino de História mais crítico,


descaracterizando o império de uma História política recheada, ex-
clusivamente, de fatos, datas e nomes que desde a Ditadura Militar
reinava na Educação Básica. Ainda hoje, mesmo com o avanço das
pesquisas na virada do Século XXI, estas discussões representam a
pauta do dia-a-dia no ensino de História:
Atualmente, a preocupação com a importância do
conhecimento histórico na formação intelectual do
aluno faz com que um dos objetivos fundamentais
do ensino seja o de desenvolver a compreensão his-
tórica da realidade social. Assim, compreender a
história com base nos procedimentos históricos tor-
nou-se um dos principais desafios enfrentados pelo
professor no cotidiano de sala de aula. Esse desafio é
um passo interessante na construção de uma prática
de ensino reflexiva e dinâmica, podendo-se afirmar
que ensinar História é fazer o aluno compreender
e explicar, historicamente a realidade em que vive.
(SCHIMIDT E CAINELLI, 2004, p.75-74).

Os estudos teóricos da área pedagógica, precariamente trata-


dos nos cursos de graduação de Licenciatura em História, durante
muito tempo, certamente geraram uma lacuna em uma geração de
professores que se dirigiram para a Educação Básica. A relação entre
ser professor e ser Historiador, muitas vezes distanciadas por um
discurso hierárquico provocou distorções nefastas no Ensino de His-
tória, pois quando na graduação muitos alunos demonstram pouca
intenção de ir para a sala de aula, boa parte deles termina por seguir
o caminho do ensino, que por muito tempo esteve dissociado de
uma atuação e ação mais pesquisadora do professor.
O sonho com a carreira e o status de Historiador é o que
motiva as discussões, e o brilho nos olhos dos estudantes reflete tal
sentimento. Enquanto as disciplinas da área didático-metodológica
foram vistas por muito tempo como receitas desprezíveis para ensi-
nar. Ensinar, para esta parcela de estudantes do curso de História,
resume-se em saber o conteúdo e entrar em sala para verdadeiras

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

palestras, já “que houve uma generalização entre estudantes de His-


tória, da ideia preconcebida de que para ser professor de História
basta dominar os conteúdos de História” (FONSECA, 2003, p.62).
A relação dos cursos de Licenciatura em História com a re-
alidade propriamente dita da Educação Básica1 – leia-se Educação
Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio – revela uma dispa-
ridade entre o que é produzido na Universidade e o que é ensinado
na escola. Enquanto em alguns espaços da Universidade o debate e
as novas pesquisas acontecem, a escola é ainda muito mais espaço de
transmissão de um saber produzido no ambiente acadêmico, muitas
vezes distante da diversidade que a Escola apresenta no seu cotidiano
com as histórias e histórias dos sujeitos que compõem o lugar no
qual se desenvolverá o Ensino.
O uso do livro didático reflete esta lógica, sendo muitas ve-
zes a única fonte historiográfica utilizada, representando uma crença
muito forte na História escrita, nos textos mais formais, em uma
cultura elitista que quase sempre oprime a realidade de estudantes
do interior deste Brasil, estudantes de regiões ribeirinhas, estudantes
oriundos de populações quilombolas, estudantes descendentes de
indígenas, que não se identificam nos livros de História, que não se
enxergam na sua própria história.
Relativizando este quadro encontramos a ação do professor
que, devido à sua própria história e desejo de desenvolver sua pro-
fissão criativamente, subverte esta ordem e “inventa soluções para
superar os contratempos que o cotidiano da escola e a complexidade
dos problemas da educação colocam em nosso caminho” (TOURI-
NHO, 2003, p.12). Desta forma, tanto a escola quanto a Universi-
1 Afirmar os segmentos da Educação Básica refere-se ao fato de que naquele pe-
ríodo a educação pública obrigatória começava a partir dos sete anos de idade, a
Educação Infantil e de Alfabetização não era garantida pelo Poder Público. Atual-
mente a Lei de Diretrizes e Base de 1996 legisla abrangendo todos os segmentos,
o que foi um avanço para a população brasileira.

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dade apresentam possibilidades de transformação e/ou de reprodu-


ção do conhecimento. São os sujeitos históricos que em um lugar ou
outro irão fazer a diferença na Educação.
Para esclarecer este debate, Fonseca (2003, p.61) aponta que,
durante certo período do final do Século XX, a graduação enfrenta-
va a dicotomia entre os cursos de licenciatura e bacharelado, sendo
que, no primeiro, os currículos se definiam dentro de uma relação de
conhecimento específico da disciplina e conhecimento pedagógico,
numa clara ênfase ao ensino. Já no segundo, os currículos apresenta-
vam os conhecimentos teóricos e práticos voltados para a pesquisa.
O resultado disto é que uma parcela de professores optou por le-
cionar e outros orientaram suas carreiras para a pesquisa. É preciso
então considerar a importância de pensarmos o currículo no curso
de História de forma que, ao invés de encontrarmos esta dicotomia,
seja possível falar em diálogo, de maneira que teoria e prática possam
ser analisadas dentro do curso, e vivenciadas pelo professor/estudan-
te no âmbito da sala de aula.
Neste sentido, Rocha (2002) indica que os currículos preci-
sam atender ao denominador comum da teoria e prática, necessi-
tando para isso formar profissionais que dominem, a um só tempo,
duas vertentes do ensino da História: a vertente lógica e a vertente
psicológica. O professor passa a compreender conceitos e teorias
que sistematizam a informação histórica e o modo como se dá a
construção desses conceitos e teorias no processo de aprendizagem
pelos alunos. Desta forma “é necessário que se inclua na formação
(inicial e continuada) do professor o estudo das zonas de confluên-
cia, regiões onde a teoria se encontra com a prática da sala de aula”
(ROCHA, 2002, p.165). Este perfil de profissional deve emergir de
cursos que orientem seu currículo e oportunizem a fundamentação
e legitimação do ensino, e não ser apenas uma proposta voltada para

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a formação de quadros destinados à ampliação e reformulação do


acervo historiográfico existente.
Muito se caminhou frente a este quadro dicotômico, no que
se refere ao professor de História e sua formação na Licenciatura. O
espaço de discussão teórico-metodológico do ensino da disciplina
foi ampliado e observa-se uma qualidade na discussão da práxis pe-
dagógica.
Todavia, a situação que iremos encontrar com relação às pro-
fessoras do Ensino Fundamental nas séries iniciais, é que, sendo po-
livalentes, ministram as disciplinas específicas e precisam reunir co-
nhecimentos da área e saber aplicá-los conceitualmente para a faixa
etária de crianças até nove anos de idade, tendo uma formação geral
das áreas específicas. A formação, quase sempre no antigo magistério
e no curso de pedagogia, envolve um estudo das disciplinas que fica
aquém das exigências atuais do ensino/aprendizagem nas séries ini-
ciais do Ensino Fundamental.
Se há uma mudança no olhar do ensino de História no Ensino
Fundamental II e no Ensino Médio ao longo desse tempo, conside-
rando-se as mudanças curriculares e mudanças de posturas frente ao
ensino, isto irá resvalar em exigências profundas na abordagem da
disciplina História nas séries iniciais. Atualmente, também é exigido
nas séries iniciais um domínio conceitual no ensino de História, e
das outras disciplinas em que prevaleça a capacidade crítica, a refle-
xão e a compreensão da dinâmica histórica relacionadas ao pensa-
mento na infância.
A questão do ensino de conceitos na disciplina História gera
uma série de posições, sendo duas delas bem definidas e contrárias.
Considera-se que as abstrações necessárias para o domínio conceitu-
al de temas da História, como escravidão, capitalismo, colonização,
etc., dependem da faixa etária dos estudantes e que nas séries ini-

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ciais do Ensino Fundamental a compreensão não ocorre. Contudo,


segundo Bittencourt (2004), Cavalcanti (1995), e Berti & Bortoli
(2007) a compreensão da História é possível em crianças na faixa
etária de 7 a 10 anos, sendo registrados exemplos de práticas bem
sucedidas na Escola da Vila em São Paulo, o que fez Cavalcanti afir-
mar:
A partir dos 7 anos, quando estruturas cognitivas
fornecem condições de reversibilidade ao pensa-
mento e a noção de tempo pode se desenvolver, as
crianças ganham condições de compreender proces-
sos e transformações (fenômenos); o passado pode
ser entendido como o conjunto do que veio antes de
tudo que existe agora, e as hipóteses sobre como será
o futuro se tornam possíveis. (1995, p.6)

Em uma pesquisa desenvolvida por Berti & Bortoli (2007,


p.95) chegou-se à conclusão de que “até mesmo crianças de 8-9
anos podem entender o funcionamento das instituições econômi-
cas e políticas principais se isso lhes é claramente ensinado”. Isso
demonstra que, apesar da polêmica, muitas práticas em sala de aula
vêm demonstrando que é possível ensinar História às crianças de
faixa etária menor, desde que o professor tenha o domínio da área
e possa explicitar de maneira mais simples e clara temas da História
considerados mais complexos, motivo que torna o cuidado com os
textos utilizados e os textos do livro didático uma premissa para esse
objetivo.
Considera-se que a formação da criança no ensino de História
deve ter sua base de sistematização do pensamento já nos primeiros
contatos com a disciplina na Educação Infantil, na qual já se pode
trabalhar conceitos históricos e abordagens metodológicas concer-
nentes à faixa etária da criança. Como exigir o domínio conceitual
e metodológico das professoras de 1º ao 5º ano do Ensino Funda-
mental? Esse é o grande dilema que se afigura nas últimas décadas do
Século XX, e mais fortemente no início do Século XXI.

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Essas professoras têm assistido à chegada de uma série de es-


pecialistas da área de História, Geografia, Matemática, Ciências,
Português, Língua Estrangeira e Arte-educação nas séries iniciais,
orientando, analisando e definindo o livro didático, atividades e pla-
nejamentos e trazendo para este segmento um conhecimento para
lá de específico. O que se revela bastante constrangedor é que são
professoras que ainda estão fazendo o curso de Pedagogia, porque
são oriundas do antigo Magistério e/ou sendo formadas em Pedago-
gia, e que não viram essas disciplinas na sua formação com as espe-
cificidades de agora, até mesmo porque estas ciências passaram por
modificações quando elas já estavam no exercício da profissão ou na
concomitância da graduação.
Se para professores egressos do curso de Licenciatura em His-
tória torna-se um desafio aplicar o conhecimento de sua formação
inicial na Educação Básica, professoras do curso de Pedagogia ou do
antigo Magistério, e as denominadas professoras leigas da rede co-
munitária, enfrentam o desconhecimento conceitual e muitas vezes
a falta de aprofundamento das discussões teórico-metodológicas do
ensino de História, e agora são exigidas na sua competência e habi-
lidade para ministrar aulas que atendam a um universo disciplinar
muito mais denso e complexo.
Pesquisando sobre o universo infantil, desde as questões re-
lacionadas à cognição, aprendizagem, adequação das atividades e
abordagens para a faixa etária dos 7 aos 10 anos, percebe-se que
a especificidade de lidar com a criança é um domínio que apenas
quem vivencia esta prática pode usufruir. Passei a observar que a arte
de contar histórias, principalmente para crianças, é realmente esti-
mulante, e ao longo do tempo tem dado muito certo. Não importa
se o assunto é Grécia Antiga, Maias, Incas, Idade Média ou Brasil
República. Apropriar-se deste conteúdo e transformá-lo, a fim de

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ensinar História para as crianças, é um caminho possível. Sempre


afirmei e afirmo que ensinar História é compatível com a faixa etária
de crianças até nove anos e que a ausência do raciocínio abstrato
não gera impedimento para que crianças de sete, oito anos de idade,
possam compreender a passagem do tempo histórico, assim como
desenvolver um pensamento crítico acerca das relações socioeconô-
micas que as envolvem.
Sendo assim, a partir da realidade da professora, das crianças
e da própria história de vida de cada uma delas, é possível introdu-
zirmos conceitos históricos que anos mais tarde serão aprofundados.
É como afirmam Berti & Bortoli (2007, p.102 e 103): “as crianças,
inclusive aos 8 anos, podem compreender as crenças que dão sentido
a práticas e instituições do passado se são corretamente descritas”.
Ainda no início do Século XXI, a dicotomia entre ensino e
pesquisa permanecia. Havia discussões bastante frutíferas entre alu-
nos de graduação querendo exercer a função de historiador e con-
siderando as disciplinas da área de educação apenas uma etapa do
currículo a ser cumprida, e outros que apontavam a opção para ensi-
nar como um desejo pessoal. Falava-se muito de um ensino de His-
tória diferente, transformador, mas a própria Universidade também
representa o lugar da reprodução do ensino e a dificuldade de uma
formação que traduza um professor-pesquisador em estado perma-
nente.
Atualmente, já nos deparamos com estudos aprofundados so-
bre currículo na sua perspectiva dialógica, multirreferencial e com-
plexa. Macedo orienta que:
[...] na medida em que o currículo como práxis in-
terativa passa a ser visto como um sistema aberto e
relacional, extremamente sensível às recursividades,
à dialogicidade, à contradição, aos paradoxos coti-
dianos, a indexalidade das práticas, como instituição
eminentemente moderna, precisa de uma urgente
ressignificação de sua emergência tradicionalmente

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“dura” e excludente, o pensamento complexo e mul-


tirreferencial aparece como mobilizador contempo-
râneo potente, de uma outra visão, de uma outra
prática no campo das concepções e implementações
curriculares. (2005, p.24).

Pensar o currículo nessa perspectiva multirreferencial torna-se


um grande desafio dentro das escolas e na escola comunitária o de-
safio é maior, na medida em que a formação das professoras ainda é
bastante depreciada e o universo de alunos é originário de uma ca-
mada da população que não se apropria destas discussões, no sentido
teórico, sendo a escola muitas vezes o único espaço de socialização,
de contato com o saber institucionalizado, com o livro propriamente
dito. Ainda é muito forte a tese de que o poder é de quem sabe, de
forma institucionalizada, e quando passamos a conhecer o universo
da rede comunitária entendemos perfeitamente o que Foucault afir-
ma: “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as
massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente,
claramente” (1979, p.71).
Tanto na escola privada quanto na escola pública, vivia-se a
lógica do currículo “duro” e “excludente”, no qual a supremacia co-
lonizadora eurocêntrica ditava as normas e a História. Isto se re-
velava não só na organização disciplinar das séries e segmentos da
Educação Básica, como na carga horária mínima das disciplinas da
área de humanas, assim como a História que era contada nos livros
didáticos. Todavia, faz-se necessário comentar a mudança editorial
por que passaram muitas coleções de História nestes últimos anos,
quando documentos históricos e textos historiográficos mais atuali-
zados foram inseridos a título de reflexão e contraposição de ideias.
As atividades propostas ficaram mais discursivas e criativas, distan-
ciando-se do estilo questionário. Também houve mudança no papel
do professor, no sentido de sempre buscar ressignificar a sua rela-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

ção com o livro didático, elaborando planejamentos que suscitam o


pensar histórico muito além da proposta didática exclusiva do livro
didático. Atualmente, o professor tem encontrado uma quantidade
de revistas especializadas em História que apresentam as pesquisas de
historiadores renomados, ocorrendo muitas retificações ao texto do
livro didático. A produção têm sido intensa e considera-se que existe
um maior interesse sobre a História pela sociedade em geral.
A interpretação da teoria piagetiana de que o que era mais
próximo para o aluno gerava uma possibilidade maior de cognição e
entendimento também influenciava pedagogas que, no papel de su-
pervisoras, consideravam, por exemplo, que era “mais fácil” começar
a 5ª Série com História do Brasil do que com História Geral – como
se houvesse em História esta gradação do que é mais fácil e do que é
mais difícil, em termo de conteúdo.
O enfoque mais determinista desta visão subordinou a apren-
dizagem ao desenvolvimento biológico, fazendo com que os conte-
údos escolares fossem organizados segundo o nível de maturidade
das crianças. Evitava-se ousar e acreditava-se que este padrão não
poderia ser mexido e que a criança não poderia ser exigida em outras
formas de pensamento. Daí a crítica que Vygotsky (1896-1934) irá
fazer, segundo Bittencourt (2004, p. 186-187). Segundo a autora,
Vygotsky se refere ao fato de Piaget não levar em consideração con-
ceitos e noções provenientes do senso comum, denominados por
ele de conceitos espontâneos. Neste contexto, a teoria de Vygotsky
enfoca a aquisição social dos conceitos, o que revela que não neces-
sariamente o que está próximo do aluno seja mais compreensível do
que aquilo que está distante. A vivência da criança que desenvolve
uma rede conceitual baseada no senso comum é aspecto fundamen-
tal para o desenvolvimento do ensino de História na faixa etária até
nove anos de idade.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Através de uma nova perspectiva historiográfica houve a pe-


netração da análise econômica da História nos níveis Fundamental
II e Médio, rompendo aquele paradigma dominante e ampliando o
campo da explicação social para uma visão de totalidade histórica.
Outro fenômeno foi certo “messianismo” catequista e panfletário
que acreditava que o ensino de História deveria “levar” à Revolu-
ção. Além disso, a própria exigência do vestibular fez parte deste
processo de transformação no ensino da História. A partir dos anos
80, principalmente nas provas para acesso às Universidades Públicas,
exige-se maior capacidade crítica e interpretativa da História, em de-
trimento da memorização descontextualizada. As provas foram pro-
postas de forma dialógica e a Educação Básica introduziu mudanças
que atendessem a esses novos vestibulares.
O ensino de História caminhou significativamente no senti-
do de diversificar a prática pedagógica, buscando metodologias que
atendessem às mudanças ocorridas neste cenário2. Nesta perspectiva,
as contribuições de Vygotsky quanto à formação da cidadania e cria-
ção de responsabilidade social nas crianças, desde pequenas, salien-
tam que “o aspecto básico da educação era trabalhar a consciência
individual para a participação na sociedade por meio da internaliza-
ção de conceitos” (NEMI e MARTINS, 1996, p.37). São propostas
da área, numa perspectiva construtivista, dialógica e interdisciplinar
desde as séries iniciais até o Ensino Médio, visitas a campo, seminá-
rios, pesquisas orientadas, apresentação de trabalhos diversificados,
produções de leitura e escrita, pastas memoriais, registros de extra-
polações, debates etc.
Quando se trata de crianças das séries iniciais do Ensino Fun-
damental, a linguagem acessível e a adequação das atividades devem

2 Sobre essa ideia de “caminhar”, “progredir”, “evoluir”, ver HOBSBAWM, 1998,


p.68-82.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

ser muito cuidadosas para que os conceitos de História possam ser


elaborados pelos alunos. As intenções didático-metodológicas ficam
claras nos instrumentos escritos, traduzidos nos planos de curso, de
unidade e de aula, bem como nas atividades avaliativas. Estas inten-
ções buscam a autonomia, a criatividade, a criticidade e a aprendiza-
gem dos estudantes.
Evidencia-se, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, um
trinômio que precisa ser trabalhado com as professoras deste referido
segmento, qual seja: Formação-Ensino-Aprendizagem em História e
a correlação deste trinômio com a concepção curricular dos planos
de curso e o livro didático. Ultimamente, a busca das professoras da
rede comunitária tem sido a de garantir uma formação em nível su-
perior, entendendo que a comunidade só altera seu processo com o
movimento próprio dos que a ela pertencem. Estas professoras estão
ocupando o espaço das Universidades particulares, projetos de for-
mação do Estado, seminários, cursos, palestras, enfrentando dificul-
dades financeiras e sociais, mas procurando sempre qualificar a sua
prática e garantir às crianças possibilidades mais efetivas e concretas
de transformação da própria realidade.
A primeira questão que se impõe revela que a formação nos
cursos de Magistério, Normal Superior e Pedagogia, ao longo do
processo histórico das regulamentações do ensino fundamental no
Brasil, grosso modo, não apresenta força nem densidade na forma-
ção específica, gerando um ensino polivalente sem um substrato
ontológico e epistemológico de áreas tão diversas tratadas de 1ª a
4ª Séries. Então, a formação daquelas professoras – porque na sua
maioria são mulheres – que adentram o universo do trabalho escolar,
apresenta uma fragmentação e um esvaziamento de um estudo que
revele um domínio conceitual e metodológico, atendendo à cons-
trução de um currículo cheio de intenções quanto à transmissão do
conhecimento social.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Desta realidade, o segundo elemento do trinômio se desdo-


bra e o ensino estará atrelado a esta visão curricular que reproduz
e mantém parte dos poderes que a escola organiza. Nesse sentido,
cabe aqui repetir a pergunta que Antônio Flávio Moreira e Tomaz
Tadeu da Silva fazem: “Que forças fazem com que o currículo oficial
seja hegemônico e que forças fazem com que esse currículo aja para
produzir identidades sociais que ajudam a prolongar as relações de
poder existentes?” (2005, p. 29-28).
Mesmo com o fim quase total da disciplina Estudos Sociais
nos currículos de todo o País, existe um ranço na formação das pro-
fessoras e na organização dos planos de curso, que se apega a um
ensino cronológico e factual, esvaziado da proposta de identificação
com a realidade, suscitada acima, que atendia às orientações políticas
e ideológicas da Ditadura Militar no Brasil.
O terceiro aspecto do trinômio, a aprendizagem, aponta para
o que pode ocorrer com crianças de 7 a 10 anos que, na fase das
séries iniciais do Ensino Fundamental, começam a tomar contato
com as disciplinas da área de Ciências Sociais. Se a organização dos
conteúdos e métodos da disciplina História não permite a interpre-
tação de diferentes visões que se tem da História, para que a criança
desenvolva sua autonomia, isso certamente demonstra a quem inte-
ressa limitar o ensino de História aos heróis e datas destacadas.
Quando falamos de crianças e para crianças são os contos, as
fábulas, as lendas, os desenhos, que vêm à nossa cabeça. No entanto,
no ensino de História, temos dois desafios: diversificar este universo
marcado por uma história eurocêntrica, machista e reducionista e
implementar práticas mais autênticas que revelem a participação da
criança, como sujeito de direito, na construção do seu conhecimento
histórico.

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REFERÊNCIAS

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instituições do passado em crianças de 8 e 10 anos. In: CARRETERO,
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MEC; SEB, 2010.
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na pré-escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
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História. Campinas, SP: Papirus, 2003.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições
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nas ciências humanas e na educação. Salvador: EDUFBA, 2000.
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crítica do currículo: uma introdução. In: MOREIRA, Antonio
Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Currículo, cultura e sociedade.
São Paulo: Cortez, 2005.
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História: o tempo vivido: uma outra história? São Paulo: FTD, 1996.
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Cortez, 2002.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

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TOURINHO, Maria Antonieta de Campos. O Ensino de História:
Inventos e Contratempos. Tese (Doutorado em Educação). Salvador:
Faced/UFBA, 2003.

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DILEMAS DO CURRÍCULO DOS ANOS INICIAIS DE ENSINO

Paulo Eduardo Dias de Mello

A História deve ser uma disciplina autônoma do currículo es-


colar com presença assegurada desde o início da escolarização? Ela
deve figurar na matriz curricular dos anos iniciais do Ensino Funda-
mental com uma carga horária específica ou seus conteúdos devem
estar diluídos no currículo? Em que momento e como devem ser
trabalhados os conteúdos de História com as crianças que estão em
processo de alfabetização?
Em Resolução publicada em 2011, definindo as diretrizes para
a organização curricular do ensino fundamental e do ensino médio
nas escolas estaduais, a Secretaria de Estado da Educação de São Pau-
lo respondeu a essas indagações retirando dos três primeiros anos do
Ensino Fundamental não só a disciplina de História, mas também
a de Geografia e Ciências Físicas e Biológicas. Vejamos, abaixo, a
matriz publicada como Anexo I da Resolução SEE/SP nº 81/2011:

Resolução nº 81/2011 - ANEXO I


Matriz Curricular Básica para o Ensino Fundamental
Ciclo I – 1º ao 5º ano
Ano 1º 2º 3º 4º 5º
Série 4ª
LÍNGUA PORTUGUESA 60% 60% 45% 30% 30%
HISTÓRIA/
- - - 10% 10%
GEOGRAFIA
Base
MATEMÁTICA 25% 25% 40% 35% 35%
Nacional
Comum CIÊNCIAS FÍSICAS E
- - - 10% 10%
BIOLÓGICAS
EDUCAÇÃO FÍSICA/
15% 15% 15% 15% 15%
ARTE
Total Geral 100% 100% 100% 100% 100%

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

I - dois turnos diurnos: carga horária de 25 aulas semanais, com du-


ração de 50 minutos cada, totalizando 1.000 aulas anuais.
II - três turnos diurnos e calendário específico de semana de 6 dias
letivos: carga horária de 24 aulas semanais, com duração de 50 mi-
nutos cada, totalizando 960 aulas anuais.
As escolas estaduais paulistas adotaram a nova matriz, esta-
belecida pela Resolução n. 81, a partir de 2012. Desde então, as
professoras que lecionam nos três primeiros anos dos anos iniciais
do Ensino Fundamental foram instruídas pelo órgão central da edu-
cação estadual paulista a não ministrar os conteúdos das disciplinas
de História, Geografia e de Ciências Físicas e Biológicas para seus
alunos. Além disso, a Secretaria estabeleceu que a carga reservada
especificamente para as disciplinas de História e Geografia, prevista
para o 4º e 5º anos, não deveria exceder 10% da carga horária total.
Assim, considerando um cálculo básico, uma professora dos anos
iniciais não deveria ocupar mais do que 10% do total de seu tempo
de ensino no Ciclo I, com a disciplina de História. Isso significa que
de um total de 6.000 horas de estudos, correspondente ao Ciclo
I completo, ou seja, cinco anos de escolarização, uma criança não
precisaria ter mais do que 120 horas de estudos dedicados à História.
Essa decisão, segundo a secretaria paulista, foi tomada “consi-
derando a necessidade de adequar as matrizes curriculares da educa-
ção básica às diretrizes nacionais e às metas da política educacional”
(Res. SE n. 81, 16/12/2011). Segundo essa percepção, a adequação
curricular necessariamente implicaria numa redução da carga horária
das disciplinas de História, Geografia e Ciências Físicas e Biológicas,
o que induz a uma leitura de que essas disciplinas possuem uma im-
portância secundária no processo de alfabetização e letramento das
crianças, e mais, que sua importância na formação geral das crianças
na faixa etária entre 6 e 8 anos não é tão relevante, e que por isso não

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

necessita de mais que 2% do total do tempo curricular nesta etapa


da escolaridade.
Na realidade, a Resolução 81, de 16 de dezembro de 2011, é
quase uma reedição de uma outra, produzida em 2007, a Resolução
SE - 92, de 19-12-2007:

Resolução SE - 92, de 19-12-2007 - ANEXO I


Matriz Curricular Básica para o Ensino Fundamental
Ciclo I – 1º a 4ªsérie
Série 1ª 2ª 3ª 4ª
LÍNGUA PORTUGUESA 60% 45% 30% 30%
HISTÓRIA/GEOGRAFIA - - 10% 10%
Base
MATEMÁTICA 25% 40% 35% 35%
Nacional
Comum CIÊNCIAS FÍSICAS E
- - 10% 10%
BIOLÓGICAS
EDUCAÇÃO FÍSICA/ARTE 15% 15% 15% 15%
Total Geral 100% 100% 100% 100%

Cabe destacar que há uma diferença importante entre as duas


resoluções. A diferença é que, na Resolução n. 81 de 2011 não foi
reeditado o parágrafo 3º da Resolução n. 92 de 2007, o qual estabe-
lecia que a priorização dada ao desenvolvimento das competências
leitora e escritora e dos conceitos básicos da Matemática, no Ciclo
I, não eximiria o professor da classe da abordagem dos conteúdos
das demais áreas do conhecimento. Portanto, indicava ao professor
que deveria priorizar a alfabetização, sem esquecer dos conteúdos
das demais disciplinas. No entanto, a Resolução n. 81 simplesmente
não menciona ou faz qualquer indicação sobre a necessidade dos
professores trabalharem os conteúdos das disciplinas que tiveram sua
carga horária extirpada da matriz. Isso é, simplesmente, omitido pela
norma de 2011. Essa ausência de uma indicação clara sobre como
trabalhar os conteúdos das disciplinas que tiveram seu tempo exclu-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

ído do currículo nos faz entender que houve, portanto, uma simples
exclusão curricular.
Mas, o que explica que, desde pelo menos 2007, a Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo tenha adotado esta postura de
esvaziamento, diminuição, quase extinção da disciplina de História,
Geografia e Ciências nos anos iniciais do Ensino Fundamental? Efe-
tivamente, ainda não temos um documento formal explicativo que
justifique essa deliberação. Inclusive, apesar da mobilização realizada
pela Associação Nacional de História – ANPUH, que realizou, em
março de 2013, o Fórum SP Sem Passado: Ensino de História e
Currículo, no auditório da Faculdade de Educação da USP, com
a participação de um público de 120 pessoas, entre professores do
Ensino Fundamental e Médio, estudantes de História e Pedagogia,
além de professores e pesquisadores de ensino de História, e resultou
na elaboração de uma carta aberta veiculada pela internet e encami-
nhada à Secretaria, nenhuma resposta foi apresentada pelos gestores
da Secretaria sobre essa decisão.
Afinal, é importante, ou não, ensinar História para crianças?
Se o ensino de História deve se restringir apenas aos dois últimos
anos do Ciclo I, ele não deve participar do processo de alfabetização
das crianças desde o seu início? A História não contribui para o de-
senvolvimento das capacidades relacionadas à leitura e à escrita dos
alunos? Além disso, quais são as contribuições específicas do ensino
de História para a formação das crianças?
Segundo Bittencourt (2011), o ensino de História sempre es-
teve presente nas escolas elementares ou escolas primárias brasileiras,
ainda que a importância atribuída à disciplina por educadores ou
gestores tenha sido objeto de constantes disputas desde o Século XIX
até hoje. Tanto na época do Império quanto no Período Republi-
cano os programas eram definidos em cada localidade, o número

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

de anos de estudo foi sempre muito variável, assim como a forma e


a profundidade dos estudos. Mas, apesar das disputas, é importan-
te ressaltar que os conteúdos históricos apareceram já nos primei-
ros planos de estudo propostos para as “escolas de primeiras letras”,
ainda no Primeiro Reinado, em 1827. Neles, o ensino de História
articulava-se às lições de leitura, ou seja, seus conteúdos eram su-
portes para que os alunos aprendessem a ler e escrever. A partir dos
anos 70 do Século XX, com a ampliação e organização das esco-
las de educação elementar, a importância da disciplina se ampliou,
“como conteúdo encarregado de veicular uma ‘história nacional’ e
como instrumento pedagógico significativo para a constituição de
uma ‘identidade nacional’” (BITTENCOURT, 2011, p. 60). De
certo modo, tais objetivos sempre permearam o ensino de História
para os alunos do “ensino primário” e ainda se encontram presentes
nas atuais propostas curriculares. Mas, também adquiriram outras
dimensões expressando novas demandas e preocupações com a for-
mação das crianças e jovens.
O currículo da escola básica elementar não é, portanto, algo
fixo, mas um artefato histórico e social, sujeito a mudanças e flutua-
ções, em constante fluxo e transformações. Por isso é importante dar
atenção aos diferentes significados que, através dos tempos históri-
cos, foram atribuídos a conceitos básicos como educação, escola e
disciplina escolar. Assim como é necessário compreender o processo
de fabricação do currículo como algo intrinsecamente constituído
de conflitos e lutas entre diferentes tradições e concepções sociais,
que atuam no amalgamento de conhecimentos científicos, de cren-
ças, de expectativas e visões sociais. Trabalhos de importantes teóri-
cos e historiadores do currículo como Fourquin (1992), Goodson
(1995, 1997), Moreira (1994) e Silva (1996, 1999) indicam que,
para explicarmos como o currículo veio a se tornar o que é, preci-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

samos descrever a dinâmica social que moldou sua forma e conteú-


do, questionando seus conteúdos, sua organização, as propostas de
formas específicas de se ensinar, e como estas formas e conteúdos se
tornaram válidos e legítimos. Daí a necessidade de entendimento do
processo de fabricação do currículo como processo epistemológico
social sujeito a fatores formais (lógicos, epistemológicos e intelectu-
ais) e informais (interesses, rituais, conflitos simbólicos e culturais,
necessidades de legitimação e controle e propósitos de dominação
ligados a fatores como raça, classe, e gênero).
Em suma, a compreensão do currículo como artefato históri-
co, segundo Silva (1996), deve estar centrado numa “epistemologia
social do conhecimento”. Isto implica dizer que devemos estudar a
história do currículo nos preocupando em identificar os determi-
nantes sociais e políticos do conhecimento educacional organizado,
procurando descobrir quais conhecimentos, valores e habilidades
são considerados como verdadeiros e legítimos em uma determinada
época, assim como tentando determinar de que forma essa legitimi-
dade e validade foram estabelecidas.
Nesse sentido, é importante recuperar que, no início da déca-
da de 1990, a própria Secretaria de Educação paulista, por meio da
Coordenadoria de Ensino e Normas Pedagógicas – a CENP, lançou
uma Proposta Curricular de História para o então 1º Grau que bus-
cava reformular a concepção de ensino de História e sua contribuição
na formação das crianças e dos jovens. Essa proposta, respeitando a
organização do ensino em quatro ciclos de dois anos cada, previa a
inclusão da História desde o chamado Ciclo Básico, ou seja, desde a
alfabetização. A opção da proposta era o trabalho por eixos temáti-
cos. Para o Ciclo Básico o tema era: “a criança constrói sua própria
história”; para a 3ª e 4ª Séries o tema previsto era: “a construção do
espaço social: movimentos de população”. A proposta preconizava

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que uma das funções sociais da escola fundamental seria contribuir


para a formação do aluno como sujeito de sua própria história. Ao
mesmo tempo, incentivando a participação dos alunos por meio da
oralidade e atividades de leitura e escrita, de leitura de documentos
e fontes diversas, a disciplina colaborava ativamente com o processo
de aquisição da linguagem escrita.
Essa orientação sobre a inclusão da História no currículo,
como uma disciplina escolar das chamadas séries iniciais, foi assimi-
lada aos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, lançados pelo
MEC, em 1997. Assim, apesar do documento apresentar a História
e Geografia no mesmo caderno, cada disciplina é tratada em sua
especificidade, indicando quais são seus objetivos, conteúdos e mé-
todos de ensino e aprendizagem, desde o ciclo de alfabetização. Da
mesma forma que a proposta paulista, os PCN se organizam em ci-
clos e eixos temáticos. No primeiro ciclo o eixo temático é “História
Local e do Cotidiano”; no segundo ciclo é “História das organiza-
ções populacionais”. O documento refere-se especificamente sobre o
tema da alfabetização recomendando que:
No caso do primeiro ciclo, considerando-se que as
crianças estão no início da alfabetização, deve-se dar
preferência aos trabalhos com fontes orais e icono-
gráficas e, a partir delas, desenvolver trabalhos com a
linguagem escrita. De modo geral, no trabalho com
fontes documentais — fotografias, mapas, filmes,
depoimentos, edificações, objetos de uso cotidiano
—, é necessário desenvolver trabalhos específicos de
levantamento e organização de informações, leitura
e formas de registros. O trabalho do professor con-
siste em introduzir o aluno na leitura das diversas
fontes de informação, para que adquira, pouco a
pouco, autonomia intelectual. (PCN – História e
Geografia, p.34)
No trabalho com fontes na sala de aula, os PCN indicam que
o professor pode identificar as linguagens específicas de cada docu-
mento, seja ele um documento escrito, iconográfico, audiovisual ou
material.

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Mesmo em documentos curriculares mais recentes, como o


produzido pela Prefeitura de São Paulo, em 2007, que trabalha com
o conceito de expectativas de aprendizagens e apresenta uma propos-
ta de currículo baseada numa abordagem interdisciplinar, a discipli-
na de História não desaparece. Na proposta da prefeitura paulistana
os conhecimentos são organizados em torno do eixo “Natureza e
Sociedade”, composto pelo conteúdo das disciplinas de Ciências
Naturais, Geografia e História. Segundo o documento, a proposta
foi organizada tendo como finalidade estudos interdisciplinares que
partem de questões próprias das vivências humanas e suas interações
com a natureza, com o intuito de fornecer às crianças dessa faixa de
idade, condições para a indagação, a elaboração e a compreensão de
diferentes elementos do mundo, presentes em seu cotidiano e rela-
cionados à diversidade de procedências culturais, lugares e épocas.
A exclusão das disciplinas de História, Geografia e Ciências
Físicas e Biológicas, tal como aparece na atual Matriz Curricular
para as escolas da rede estadual paulista, representa uma proposição
contrária a todas as indicações curriculares formuladas nas últimas
décadas. Inclusive, significa uma ruptura com a própria história das
reformas do currículo estadual, que foi um dos primeiros, na década
de 80, a reinserir a História ao lado da Geografia como disciplinas
autônomas, após o período em que ambas foram agrupadas e des-
caracterizadas pelos chamados Estudos Sociais. Como afirma Silva
(1996), a inclusão ou a exclusão de uma disciplina no currículo tem
conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade, indicando que a
preocupação com o acesso à educação deve incorporar a preocupa-
ção como acesso diferencial a diferentes tipos de conhecimento, ou
seja, aos currículos.
Por outro lado, os estudos sobre currículo indicam que as ten-
tativas de reformulação do conhecimento escolar também expressam

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a forma como determinadas questões são definidas pelos gestores


educacionais como “problemas sociais”, revelando estratégias de
legitimação de discursos sociais. Por isso, uma possível perspectiva
para explicar a mudança proposta pela Secretaria paulista é que sua
decisão foi tomada como uma resposta antecipada à medida pro-
visória nº 586, de 08 de novembro de 2012, do Governo Federal,
que instituiu o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. O
Pacto aposta na priorização das disciplinas de Língua Portuguesa e
Matemática como solução para resolver o problema das crianças que
não chegam alfabetizadas ao final desta etapa de ensino. A questão
da alfabetização, o baixo desempenho dos alunos nas avaliações na-
cionais poderiam ser os motivos legitimadores da mudança curricu-
lar proposta. Assim, visando assegurar uma melhora no desempenho
dos alunos nas provas nacionais e internacionais, seria necessário re-
organizar o tempo curricular destinando mais aulas à aprendizagem
da Língua Portuguesa e da Matemática.
Circulam no País, inclusive, algumas propostas, baseadas em
experiências de secretarias, organizações sem fins lucrativos e empre-
sas, de forjar uma plataforma nacional que dê uma identidade única
para a educação básica. Há quem pense que ela poderá oferecer um
currículo comum nacional e até gerar uma plataforma de aulas di-
gitais estruturadas, com objetos de aprendizagem variados (vídeos,
textos e jogos), e um conteúdo esquematizado. Pensa-se que, além
de aulas prontas, divididas em três níveis de complexidade, a plata-
forma possa ser equipada com ferramentas de customização e criação
de novas atividades, áreas de compartilhamento e orientações para os
professores, de modo que cada rede ou escola possa eventualmente
organizar seu currículo1. Trata-se aqui de selecionar e organizar con-
1 “MEC desenvolve plataforma nacional digital da educação” 2 de abril de 2013-
AE - Agência Estado. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/geral,-
mec-desenvolve-plataforma-nacional-digital-da-educacao,1015971,0.htm. Aces-

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teúdos curriculares de acordo com as expectativas de aprendizagem


baseadas nos descritores da Prova Brasil ou nos requisitos do Pisa2.
Nesta perspectiva, elaborar currículos passa a significar um ato de
customização, termo empregado no mundo da moda, e apropriado
pelo marketing, para designar processos de adaptação de produtos ao
consumidor. Mais do que isso, ajustar o trabalho docente para que
obtenha resultados concretos nas avaliações nacionais e internacio-
nais.
O cenário das reformulações curriculares é complexo e revela
um pano de fundo internacional que influi no debate curricular. Por
isso, implementar processos coletivos, democráticos, participativos
de reelaboração curricular é algo fundamental. O currículo não deve
ser resultado de uma decisão de especialistas que diagnosticam, pla-
nificam e vão definir o que, quando e como os professores devem
ensinar. O professor não é (ou não deve ser reduzido) a um mero
aplicador do currículo decidido por aqueles que planificam a edu-
cação. É preciso questionar com o professor o seu trabalho. Por que
ele ensina desse modo? Como seleciona os conteúdos? Como atua
na sala de aula? Como acompanha e assegura a aprendizagem dos
alunos? É preciso que ele avance além das explicações apenas basea-
das na experiência e seja invocado e provocado a explicitar quais são
os modelos teóricos que fundamentam sua prática, ou seja, enunciar
suas fontes teóricas, os princípios psicopedagógicos, os critérios di-
dáticos e pedagógicos; e mais, que revele qual é sua concepção sobre
seu papel e a função social da escola. Para o professor poder melhorar
sua prática educativa, é preciso que ele reflita sobre sua prática e te-
so em 12/12/2013.
2 O Programme for International Student Assessment (Pisa) - Programa Inter-
nacional de Avaliação de Estudantes - é uma iniciativa internacional de avaliação
comparada, aplicada a estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe
o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países associados ao
exame.

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nha uma clara concepção sobre como se aprende, qual a teoria mais
apropriada, quais os modelos mais adequados em cada situação, e
que tenha como perspectiva que sua atuação ultrapassa a mera rotina
pedagógica, contribuindo com a formação das novas gerações.
Se pensamos que o ensino não deve ter um modelo uniforme,
pois não atende a diversidade dos alunos, seus ritmos e estilos de
aprendizagem; se pensamos que o processo de aprendizagem não
é meramente cumulativo, nem se resume a transferência de infor-
mações, mas se constitui num processo de construção singular, in-
dividual e complexo; portanto, não podemos pensar no professor
como mero aplicador, como um elo de uma corrente de transmissão
mecânica onde os “experts” são aqueles que estabelecem o que deve
ser ensinado.
Como indicam os estudos sobre currículos, os documentos
curriculares oficiais possuem a particularidade de se constituírem,
independente das intencionalidades expressas por seus elaboradores,
em falas institucionais localizadas no interior do poder estatal. Por
esta mesma razão, seu texto adquire um caráter normativo, oficial,
e formal, indicando estratégias de legitimação e imposição de uma
forma de conhecimento escolar. No entanto, o currículo formal não
possui uma capacidade absoluta de imposição de suas prescrições, às
quais a escola e os professores se curvariam sem resistência. Os currí-
culos, em sua elaboração e implementação, portam processos infor-
mais e interacionais nos quais aquilo que é legislado, é interpretado,
subvertido e transformado. Aliás, todo o processo de elaboração do
currículo, ou seja, de seleção, de organização do conhecimento es-
colar, e sua implementação prática, é um processo constituído de
conflitos e lutas entre diferentes tradições e concepções sociais, guar-
dando momentos de tensões, conflitos, acordos e rupturas. Disto re-
sultam as importantes clivagens entre o currículo real ou interativo,

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ensinado e apreendido, e o currículo formal ou pré-ativo, como nos


diz Goodson (1995, 1997).
Portanto, se pretendemos pensar os professores como sujeitos
epistêmicos, dotados da capacidade de planificar, dotados da habili-
dade de serem flexíveis para realizar os ajustes temporais permanen-
tes que a instituição escolar exige, precisamos inserir as orientações
curriculares numa visão sistêmica da educação em todas suas esferas,
articulando as dimensões curriculares às ações de formação conti-
nuada (que podem se desenvolver junto com a Universidade em
cursos de aprofundamento ou especialização articuladas à pesquisa),
de reorganização da carreira docente (a jornada de trabalho, a hora
de trabalho pedagógico, por exemplo) e de melhoria permanente
das condições de trabalho. Tarefa nada simples, mas que certamente
qualifica, responsabiliza e dá vitalidade aos agentes que constroem
o ensino.3 Assim, o sentido de uma mudança curricular deixa de ser
uma simples troca de documentos, em que se extirpa disciplinas, ou
se agregam novos conteúdos, mas pode significar um processo de
mudança mais abrangente da cultura escolar.
De certo modo, os resultados de investigações produzidas no
campo da pesquisa sobre o ensino de História nos anos iniciais, seg-
mento que tem se expandido nos últimos anos, revelam a neces-
sidade de se investir nesse processo, em especial na formação dos

3 As iniciativas de formação de professores articuladas a reformulações curriculares


correm o risco de serem atropeladas, relegando os professores a um papel subalter-
no no processo. Um exemplo interessante, na contramão dessas iniciativas em que
apenas os especialistas indicam o que os professores devem ensinar, foi a experiên-
cia “Formação, currículo e Avaliação: trabalho coletivo” realizada em Campinas,
e que foi indicada e obteve um prêmio do INEP, em 2011. A experiência visando
a construção coletiva do currículo integrou as ações dos projetos pedagógicos das
escolas às dimensões curriculares e de avaliação promovendo a participação dos
professores em cursos de formação continuada em serviço. Os dados do projeto
podem ser obtidos no link: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/labora-
torio/publicacoes/livro_premio_inovacao2011.pdf. A experiência de São José dos
Campos pode se inscrever nesta mesma linhagem.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

professores, como agentes de mudança curricular, apostando na im-


portância e especificidade do trabalho com a História nos anos ini-
ciais. Estudos de pesquisadores como Araújo (1998), Assis (1999),
Germani (2001), Siman (2003), Miranda (2004), Gaelzer (2006),
Cardoso (2006), Oliveira (2006), por exemplo, abordaram diversos
temas e investigaram distintos problemas do ensino de História nos
anos iniciais, desde a noção de tempo de crianças e adolescentes; as
práticas de ensino de História desenvolvidas nas escolas; o uso de
documentos no ensino de História; os processos de aprendizagem
dos alunos; o conhecimento histórico dos professores; seus discursos
e práticas. Certamente, um dos fios condutores desses trabalhos é a
afirmação da importância e das especificidades que devem cercar o
trabalho com História para as crianças dos anos iniciais e a confir-
mação de sua importância no desenvolvimento intelectual e social
dos estudantes.
O acúmulo de conhecimento sobre o tema, por si só, indicaria
que o caminho adotado pela secretaria paulista é equivocado. Como
afirmam os autores da carta aberta à Secretaria de Educação de São
Paulo, esta supressão representa um sério “sequestro cognitivo”, pois
nega a possibilidade de uma formação histórica das crianças (CAR-
TA ABERTA, 16/03/2013). Mais ainda, opera uma nova forma de
seleção dos conteúdos escolares que extrai a alfabetização histórica
do currículo escolar e produz as condições para o analfabetismo po-
lítico. E, por fim, faz do currículo um artefato técnico, cujas decisões
sobre o que deve ser mantido ou excluído não passa por um amplo
processo de debate com aqueles que atuam na sala de aula.

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REFERÊNCIAS

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

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A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA:
ALGUMAS CONJECTURAS

Tatiana Polliana Pinto de Lima

Este texto é fruto da fala realizada no II Encontro Estadual de


Ensino de História ocorrido no ano de 2013 em Cachoeira (Bahia),
na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), na mesa
redonda intitulada “O Ensino de História na Educação Básica: (in-
ter)conexões, dilemas e perspectivas”. Informo que nas páginas a
seguir não é meu intento promover receitas prontas ou propor so-
luções para o que achamos ser problemas para a disciplina História
nas salas de aula da Educação Básica. Pretendo realizar uma série de
questionamentos e algumas reflexões acerca do Ensino de História
na Educação Básica e a formação do professor de História.
Ao chegar no primeiro dia de aula do componente curricular
Ensino e Aprendizagem em História, que faz parte do currículo do
curso de Pedagogia da UFRB, faço o seguinte questionamento nos
últimos cinco anos: para que serve a disciplina História neste início
de Século XXI? As respostas dadas pelos meus estudantes são as mais
diversas e seguem sempre o mesmo padrão:
– Para aprender coisas do passado.
– Para estudar sobre outros povos.
– Para, através do passado, entendermos o presente.

Diante deste cenário, outra pergunta sempre é feita nos pri-


meiros dias de aula, em cada início de semestre no Curso de Peda-
gogia da UFRB. Vocês gostam ou gostavam de estudar História?
Apenas 0,5% respondem que sim. Os demais afirmam: Não. Mas,
por outro lado, sentem curiosidade pelo passado, principalmente
por civilizações consideradas antigas. Gostam de assistir a filmes épi-
cos e a novelas históricas. Então, por que falar de História atrai, ao

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

mesmo tempo que repele? Por que ela se torna uma disciplina fruto
de tanto interesse e de tantos questionamentos?
Vejam que, no mundo atual, não é difícil entender a impor-
tância da Matemática, da Física, da Química. Afinal, estas discipli-
nas integrantes da área de exatas são muito requeridas nas atividades
industriais e comerciais. Aprender os seus conteúdos significa estar
mais apto para o mercado de trabalho. Mas, e a História?
Se eu perguntasse aos leitores e estes pudessem me responder,
será que colocariam que ela é responsável por formar o cidadão crí-
tico e reflexivo e, portanto, caminha nesta direção? Que é através
dela que a consciência histórica é formada? Este seria então o grande
contributo da disciplina escolar. Outros poderiam olhar e dizer que
há um horizonte nebuloso e, portanto, acreditam que ela não serve
para nada, da forma como está sendo lecionada. Contudo, poderiam
também falar de forma objetiva como os meus discentes.
Invariavelmente, nestas turmas em que leciono, sigo com ou-
tra pergunta: por que estudamos História na escola? Invariavelmen-
te as respostas seguem sendo as mesmas já citadas acima. Nenhum
aprofundamento teórico. As falas seguem o senso comum de qual-
quer cidadão brasileiro ao qual se fizessem estas indagações. Isso para
não falar dos que nada responderiam.
Moreira e Vasconcelos nos colocam:
Para entendermos melhor o papel da História em
nossa vida, vamos tomar um exemplo tirado do
filme Blade Runner, o caçador de androides, do di-
retor Ridley Scott. Uma das personagens do filme,
suposta filha de um cientista importante, descobre
que é na verdade um androide, isto é, uma máquina
com forma humana. Todas as lembranças que ela
tinha desde a infância não eram experiências reais
que tinha vivido, mas informações implantadas pelo
cientista em seu cérebro cibernético. A partir do
momento que descobre a verdade sobre si mesma,
ela passa a viver uma intensa crise existencial. Tal
crise, no entanto, não se deve à indignação por a

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

terem feito de tola, mas, sim, ao fato de não ter mais


certeza de quem era realmente.
Isso significa que é por meio de nossas experiên-
cias passadas que construímos nossa própria iden-
tidade. Sabemos quem somos no presente porque
podemos estabelecer relações entre as experiências
que vivemos no passado e que nos tornaram o que
somos hoje. E é exatamente por ter consciência de
nossa própria identidade que somos capazes de agir
efetivamente no presente. É por conhecermos nos-
so próprio passado que somos capazes de entender
nosso papel no presente e agir no mundo de modo a
transformá-lo no futuro. (2007, p. 18-19).

Assim sendo, podemos dizer que uma das maiores contribui-


ções da disciplina é o entendimento acerca da nossa identidade. É
o debate sobre quem somos. O papel que temos na sociedade na
qual estamos inseridos. É tentar entender, a partir de experiências
passadas, quem eu sou hoje. É formar a minha identidade individual
em meio à construção da identidade coletiva. Afinal, vivemos em
sociedade. Não estamos isolados no meio do deserto. Ainda neste
debate, Flávia Caimi (2013) afirma que atualmente as discussões
sobre identidade têm se renovado e voltado à tona com muita força
entre os professores e pesquisadores em Ensino de História. Afirma,
ainda, que este tema pode ser situado no contexto da globalização,
quando as identidades de um povo precisam ser reafirmadas para
não serem dissolvidas diante de identidades de outros povos, no meu
entender, hegemônicos econômica e culturalmente.
Para deixar claro ao leitor, coloco que, ao meu referir ao con-
ceito de identidade, falo do ponto de vista antropológico, falo da
identidade cultural, dos patrimônios comuns que envolvem grupos
de pessoas (língua, religiões, artes, trabalho, esportes, festas). Mas
também falo a partir da sociologia, que prioriza a identidade social.
Caimi coloca:
A Sociologia, por sua vez, prioriza o estudo da iden-
tidade social, entendendo-a como o sentimento de

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pertença a determinado grupo e também a forma


como os indivíduos estabelecem e entendem sua
relação com o mundo, como se percebem dentro
da sociedade, como percebem as outras pessoas em
relação a si mesmas. Assim, a identidade social é
sempre construída nas interações e emerge das vá-
rias práticas sociais e/ou discursivas das quais os in-
divíduos fazem parte. (2013, p. 18)

No campo da História, especificamente, a maior preocupa-


ção tem sido a formação da identidade nacional, a criação de um
amálgama que impediria a separação do território, evitando as inde-
pendências dos vários Estados que compõem a Federação Brasilei-
ra. Mas, temos alcançado este intento? No cotidiano podemos dizer
que somos um só povo, uma só língua? Em alguns aspectos jurídi-
cos, sim. Mas, socialmente e antropologicamente, acredito que não.
Principalmente quando ligamos o nosso televisor e vemos diaria-
mente as diferenças no tratamento a quem habita as chamadas zonas
nobres das cidades brasileiras e àqueles que estão nos morros, nas
favelas, nas invasões, nas comunidades (termo politicamente correto
e mais utilizado atualmente).
Ainda assim, precisamos ter em mente que um dos objetivos
nas aulas de História é o debate sobre esta realidade social, sobre as
identidades que se formam a partir desta, mas que ao mesmo tempo
interferem nesta. Segundo Moreira e Vasconcelos, (2007) o estudo
da História torna mais perspicaz o nosso olhar acerca da sociedade
que nos cerca e nos auxilia nos direcionamentos quanto às decisões
a serem tomadas no presente.
Isto significa o quê? Significa que, ao estudarmos História, nos
tornamos mais capazes de nos conhecer, de saber quem é o outro
diante de mim e quem sou eu diante deste outro. O estudo da His-
tória nos faz ser diferentes do personagem da charge abaixo:

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Fonte: http://ria-muito.blogspot.com.br/2012/06/30-tirinhas-frank-ernest.html

Um ser alienado do processo de produção, excluído das de-


cisões sobre a sua força de trabalho e consequentemente sobre os
problemas sociais, econômicos, políticos. Mas, vamos devagar. O
estudo da História não é a salvadora do Universo e nem a soluciona-
dora das mazelas da sociedade. Ela nos leva, através de seus diversos
conteúdos, à reflexão, a nos sentirmos curiosos a respeito dos acon-
tecimentos, para que assim possamos tomar as nossas decisões e não
sermos levados pelas modas ou opiniões alheias. Ela pode evitar, a
depender do trabalho que se faça em sala de aula, que passemos 30
anos da nossa vida sem sabermos qual o nosso papel na sociedade na
qual estamos inseridos.
Como fazer isto? As nossas práticas educativas enquanto pro-
fessores têm muito a ver. Não há como eu ministrar uma aula crítica
e reflexiva se eu possuo uma metodologia tradicional. Como costu-
mo dizer aos meus alunos, não é a metodologia isoladamente, ou
o conteúdo ou a avaliação que farão com que eu seja um professor
progressista ou tradicional. É o conjunto de tudo isto. Posso dar
uma aula reflexiva somente com quadro ou lousa e giz ou pincel. E
posso dar uma aula esquemática somente com o projetor de slides.
Para refletir, eu preciso conhecer e somente conheço estudando os
fatos, aprendendo a me localizar temporalmente, conhecendo os su-
jeitos que foram alçados a personagens principais da História, bem

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

como os considerados menos importantes. Ninguém ensina o que


não sabe. Neste momento, toda a nossa bagagem cultural, teórica,
formativa deve entrar em ação e ser mobilizada para as nossas aulas.
Quanto à origem ocidental da História, Albuquerque Júnior
coloca:
Quando a história surgiu como uma modalidade de
conhecimento, como um gênero narrativo na Gré-
cia antiga, devia atender duas funções: memorizar
os feitos humanos, os acontecimentos grandiosos e
extraordinários que pudessem ser realizados pelos
homens; servir de exemplo, de guia para as ações fu-
turas. Articulada a uma concepção de natureza hu-
mana que a considerava universal e imutável, espe-
rava-se que, em circunstâncias idênticas, os homens
tendessem a repetir os mesmos erros e acertos, com-
portando-se do mesmo modo. (2012, p. 21-22).

Este objetivo seria, então, melhor alcançado se a beleza da nar-


rativa dos acontecimentos conseguisse prender a atenção do público,
conseguisse seduzir os espíritos. O seu intento versava sobre a for-
mação das novas gerações, da educação moral e política da elite diri-
gente. Assim como na Antiguidade, a História continua possuindo
esse papel moralizante, de educar os cidadãos da pólis moderna. Mas,
como fazer isto, afirmar as identidades individuais e as coletivas em
um mundo cuja centralidade pauta-se, ao mesmo tempo, na indi-
vidualidade e também na alteridade, na diversidade? É o equilíbrio
da balança. Como me fazer eu, em uma sociedade em que vivemos
coletivamente? A História possui este papel: da formação das subje-
tividades, da produção da humanidade a partir dos seres humanos.
Sem, contudo, perder de vista o coletivo.
O ensino e a escrita da história implicam sempre
a tomada de posição política e a defesa de valores,
mesmo quando não se está atento para esses aspec-
tos. A história que se escrevia e ensinava em nome
da identidade, da construção do idêntico, que fazia a
diferença retornar à semelhança tal como requerido
pelo pensamento platônico e hegeliano, parece ter
hoje a função social de nos ensinar a conviver com

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a diversidade, a respeitar a alteridade e a diferença,


que é a condição exata do mundo em que vivemos.
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 33).

Levar tudo isto para a sala de aula: eis o ponto chave. O que
mais ouço dos professores ao interpelá-los sobre um modo diferente
de lecionar a disciplina é: “isto dá muito trabalho, o tempo é pouco,
já tenho muito conteúdo a ministrar”. Como se a formação do su-
jeito fosse dissociada do conteúdo curricular que ele se vê obrigado,
muitas vezes, a trabalhar, mesmo que não concorde com ele. Ou
seja, o trabalho, o conteúdo ou os valores necessários ao cidadão na
atualidade. Digo: estes dois aspectos precisam caminhar juntos. Sem
isso, a História perde o seu valor no currículo da educação básica. O
passado ficará sendo simplesmente o passado. Sem sentido algum.
Não podemos esquecer que é do que julgamos ser que as per-
guntas partem para que possamos nos constituir no sujeito que que-
remos ser, ou que precisamos ser. Não no sentido de julgamento
das ações passadas, se o passado esteve correto ou não, mas para que
possamos entender quais os motivos que nos levam a fazer o que
fazemos hoje. É a partir daí que conseguiremos esclarecer às nossas
crianças, jovens e adultos, por que estudamos História. Enquanto
isso não estiver claro, a importância maior será para Língua Portu-
guesa, Matemática, Física, Biologia. Não se verá a necessidade e a
beleza de se escutar a história de outros povos, de outros tempos.
Nesse sentido, indago: as aulas de História estão incentivan-
do os estudantes a compreenderem a realidade humana e social do
mundo em que vivem? Desde a escola dos Annales (1930) os histo-
riadores profissionais têm buscado novas fontes, novos objetos, no-
vas teorias, novas metodologias. No âmbito da História ensinada,
este movimento muito influenciou as salas de aula quando o coti-
diano e as práticas culturais, tanto da criança como de outros povos,
passaram a ser objeto de debate, de pesquisa. A memorização, por si

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

só, de nomes e datas, tem dado lugar a um ensino mais complexo,


em que a criança inicia as suas análises e compreensões dos proble-
mas sociais, aprendem a desenvolver o olhar crítico. Mas, este não
é um movimento tranquilo, uniforme. É tenso, problemático, com-
plexo, no qual muitas vezes se acha que o antigo deva ser totalmen-
te desconsiderado. Entenda-se o antigo como a história positivista,
factual.
Maria Antonieta de Campos Tourinho costuma dizer que a
história positivista deu grandes contribuições ao ensino de História,
mesmo não sendo reflexiva. Confesso que tinha grande rejeição a
esta colocação. Mas, atualmente, tendo a concordar. Como criticar
o que você não conhece? É a descrição nos faz conhecer muito dos
acontecimentos históricos. O que coloco é que não devemos nos
restringir à descrição. Vamos mais além. Pensemos a partir dela. Re-
flitamos sobre os acontecimentos e não os aceitemos como naturais.
Afinal, aprender, conhecer, é próprio do ser humano.
Pagès coloca:
Para alcanzar esta finalidade el currículo prescri-
be, en sus objetivos generales y em sus critérios de
evaluación, el desarrollo de capacidades tales como
analizar, compreender y enjuiciar problemas socia-
les, valorar criticamente el entorno próximo y leja-
no, manejar criticamente información, analizar fe-
nómenos y procesos sociales, assumir uma posición
crítica ante determinados hechos y valores, pregun-
tarse por el sentido del progresso en la evolución de
las sociedades, obtener y relacionar información a
partir de distintas fuentes, etc. (2004, p. 152).

Se precisamos desenvolver habilidades e competências nas


nossas crianças, jovens e adultos, indago: os nossos professores de
História estão sendo formados para trabalhar a partir desta perspec-
tiva? Se analisarmos os currículos das Licenciaturas em História, ve-
remos que não. Ainda nos dias de hoje, a formação das Licenciaturas
é uma formação bacharelesca. Ouço muitos historiadores profissio-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

nais colocarem que são contra as cargas horárias de estágio, contra as


cargas horárias de práticas de ensino, as quais consideram excessivas.
Falam que falta espaço para o conteúdo da História. Desta feita, a
disputa ainda é entre o conteúdo e a metodologia. Neste embate, o
conteúdo parece estar sendo considerado mais importante.
O saber histórico escolar é desconsiderado em grande parte
das Licenciaturas, apesar de o campo de pesquisas sobre o ensino de
História ter crescido nas últimas décadas no Brasil. Isto tem a ver
com a mentalidade imperante. Até pouco tempo atrás, para ser um
bom professor de História, bastava ter o conhecimento dos fatos his-
tóricos e ter uma didática razoável, a qual se limitava a conhecer as
técnicas corretas para ensinar. Lembro que na minha graduação em
História havia uma disciplina chamada TAVE (Técnicas Audiovisu-
ais de Ensino), a qual era ministrada como um apêndice da Didática.
Nesta disciplina os professores nos ensinavam como fazer
transparências, como se portar na sala de aula, as correntes peda-
gógicas, como fazer um plano de aula e de unidade. Não havia a
reflexão sobre o que ensinar, sobre as escolhas metodológicas a serem
feitas, sobre o processo de ensino-aprendizagem. O currículo era o
famoso 3+1 (três anos de conteúdos específicos e um ano de disci-
plinas pedagógicas).
Nesse sentido, ensinar história, sob tal prerrogativa,
significava apresentar aos estudantes um repertório
de informações organizadas sob uma sequência de
conteúdos prescrita e disciplinarizada, seja em torno
de uma narrativa de história nacional, seja ancorada
na narrativa de uma grande história da civilização.
(ZAMBONI, LUCINI, MIRANDA, 2013, p. 257)

O livro didático era a fonte primaz para se dar aulas. Muitas


destas características ainda se encontram presentes nas escolas atual-
mente, bem como nos cursos de formação de professores de História.
Mas, muitas mudanças já têm sido feitas, tais como o trabalho com

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

as novas tecnologias, com outras linguagens, as oficinas de História,


onde o lúdico é a palavra-chave, as quais têm sido desenvolvidas com
os alunos da Educação Básica.
Nesse sentido, muitas escolhas se apresentam aos professores.
Trabalharei com as grandes narrativas? Com a Micro-História? Com
a História do Cotidiano? Com a História Temática? Com a Histó-
ria Marxista? Com a Nova História? Quais metodologias devo usar?
Quais conteúdos eleger? Seguir o livro didático? Seguir os Parâme-
tros Curriculares Nacionais? Todas estas indagações se apresentam
quando o professor se faz professor no exercício da sala de aula.
Muitas dúvidas, bem como muitos questionamentos surgem.
Igualmente, muitas reflexões surgirão a partir do momento em que
o docente se abre para conversar com os seus discentes, para ouvi-
-los, para senti-los, para vê-los. E, por fim, para fazer a diferença e
mostrar-lhes que a disciplina História pode ser ensinada e aprendida
com prazer.
Quando se fala em história como distração, diver-
são, sedução e prazer, não se está, necessariamente,
renunciando à sua carga crítica, à capacidade que
possui de aprofundar a (auto)compreensão dos ho-
mens: diferentes artes também produzem aquelas
experiências (pintura, poesia, cinema, teatro, etc.) e,
simultaneamente, participam, quando o querem, de
radicais desmontagens de poderes – governos, valo-
res, grupos.
Associar a história a diversas lutas e identidades so-
ciais, por sua vez, não elimina doses de sensibilidade
em relação ao mundo, inclusive no que diz respeito
à torna-lo mais belo e produtor de felicidades. (SIL-
VA, 2003, p. 13)

Para isto, a História não pode se tornar prazer de alguns pou-


cos iluminados. Ela precisa ser prazerosa para todos. E, neste movi-
mento, não somente a disciplina História precisa ser prazerosa, mas
toda a escola precisa sê-lo. Precisamos sair da Academia, mostrar aos
discentes da Educação Básica que a disciplina pode ser e é prazerosa

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quando se entende o ofício do historiador, quando se trabalha com


a diversidade de fontes.
Talvez o gosto pela História passe igualmente por trabalhar de
forma prazerosa a própria formação dos professores de História. Será
que a formação que estamos dando aos nossos licenciados não está
deveras técnica, mecânica? Será que estamos trabalhando de forma a
seduzir os nossos futuros professores? Ora, quem nunca foi seduzido
não poderá fazê-lo. Traduzindo: se os nossos estudantes de Licencia-
tura não viram a História de forma prazerosa, mas meramente como
um apanhado de conteúdos seletos para uns poucos, como pensar a
disciplina de forma diferente? Como concebê-la como uma narrati-
va fluida, divertida, mas não menos científica? Alguns o farão, mas
muitos não.
Uma saída é pensar no diálogo com outras disciplinas, com
outros campos do saber. É perceber que a História se faz em outros
espaços que não a Academia e a escola. Diante disto, precisamos
incorporar nos currículos das Licenciaturas em História o debate so-
bre multirreferencialidade na formação. A História precisa dialogar
e aprender com outras ciências, tais como as Ciências da Educação,
a Psicologia, a Antropologia, a Ciência Política, a Linguística.
Isto significa que refletir a respeito do ensino de
história, visando a sua prática como boa experiên-
cia para todos, ultrapassa o isolacionismo da histo-
riografia sem olhos para tantos de seus circuitos de
produção e circulação e de pedagogias descuidadas
em relação aos conteúdos que se estudam nessa es-
pecífica área de investigação. (SILVA, 2003, p. 18).

Para que este pensamento floresça, digo que precisamos en-


tender a pesquisa e o ensino como lados de uma mesma moeda.
Precisam estar juntos. Não basta meramente o professor dizer que
trabalha com pesquisa, mas efetivamente desenvolver uma aula que
antes foi pensada, elaborada a partir de seus referenciais, de pesquisas

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

desenvolvidas por ele. É na sala de aula, ao trabalhar com pesquisa,


que o professor deve desenvolver com as crianças, jovens e adoles-
centes, os passos da mesma.
Para que isso ocorra, reitero: a formação do professor de His-
tória precisa ser repensada, redimensionada. A Licenciatura precisa
ser o foco. Os debates sobre a sala de aula, o cotidiano escolar, o
debate sobre os saberes docentes, os quais, por sua vez, envolvem os
saberes pessoais, os saberes disciplinares, os saberes curriculares, os
saberes sobre as ferramentas de trabalho, os saberes experienciais, a
formação profissional precisam ser o ponto alto. (TARDIF, 2011;
PIMENTA, 2012).
A identidade do professor de História precisa ser construída e
debatida. Segundo Pimenta:
Para além da finalidade de conferir uma habilitação
legal ao exercício profissional da docência, do curso
de formação inicial se espera que forme o professor.
Ou que colabore com a sua formação. Melhor seria
dizer que colabore para o exercício de sua atividade
docente, uma vez que professorar não é uma ativida-
de burocrática para a qual se adquire conhecimentos
e habilidades técnico-mecânicas. Dada a natureza
do trabalho docente, que é ensinar como contri-
buição ao processo de humanização dos alunos his-
toricamente situados, espera-se da licenciatura que
desenvolva nos alunos conhecimentos e habilidades,
atitudes e valores que lhes possibilitem permanente-
mente irem construindo seus saberes-fazeres docen-
tes a partir das necessidades e desafios que o ensino
como prática social lhe coloca no cotidiano. Espera-
-se, pois, que mobilize os conhecimentos da teoria
da educação e da didática necessários à compreensão
do ensino como realidade social, e que desenvolva
neles a capacidade de investigar a própria atividade
para, a partir dela, constituírem e transformarem os
seus saberes-fazeres docentes, num processo contí-
nuo de construção de suas identidades como profes-
sores. (2012, p. 18-19).

Ou seja, o professor de História não é um historiador pro-


fissional, que por falta de opção, de campo de trabalho, de salários

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ínfimos, foi ser professor de História. Ele é um professor de His-


tória por opção, por ter cursado uma Licenciatura. Mas, nem por
isto, ele é menos pesquisador, menos reflexivo, menos crítico, menos
científico. Somente assim, a corrente entre ensino e pesquisa que se
encontra partida poderá ser consolidada, forjada.
Encaminhando-nos para as reflexões finais, informo que nes-
te contexto não estamos formando o professor de História para os
desafios da atualidade. Ainda são poucos os historiadores que se de-
dicam à área do ensino como objeto de pesquisa, que trazem para
a sala de aula debates como as mudanças de paradigmas nas ciên-
cias, no conhecimento e na educação, a discussão sobre habilidades,
competências e atitudes que precisam ser desenvolvidas neste Século
XXI, o novo e o tradicional na educação, as diferentes linguagens
e suportes da informação, o local, o regional e o global, em meio à
globalização cultural e econômica, a aliança entre teoria e a prática,
o lúdico, a ética e a estética no ensino.
Para finalizar as minhas reflexões, digo que não há como rea-
lizar todos estes debates sem bagagem, sem o devido conhecimento
dos autores, das teorias, dos estudantes, da escola. Sem isto, não sa-
beremos escolher o caminho a ser seguido. Mas, digo que, indepen-
dente das escolhas feitas, das decisões tomadas, nunca deixemos de
nos indignar, de nos assombrar, de nos admirar, de termos algumas
firmes convicções na educação. Nunca deixemos de ter paixão pela
nossa profissão. No dia em que o prazer e paixão pela sala de aula
não mais existirem, deixe a sala de aula, pois não haverá mais nada a
ser feito nela por você.

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REFERÊNCIAS

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história e a construção de discursos identitários. In: SILVA, Cristiani
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avaliação da aprendizagem no ensino de História. Curitiba: IBPEX,
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tória, Memórias e Culturas. Curitiba: Ed. CRV, 2013.
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Paulo: Brasiliense, 2003.
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TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente: elemen-
tos para uma teoria da docência como profissão de interações huma-
nas. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 12. ed.


Petrópolis: Vozes, 2011.
ZAMBONI, Ernesta; LUCINI, Marizete; MIRANDA, Sônia Re-
gina. O saber histórico escolar e a tarefa educativa na contempo-
raneidade. In: SILVA, Marcos (org.). História: que ensino é esse?
Campinas: Papirus, 2013.

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ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA:
PONTOS PARA REFLEXÕES

Jorgeval Andrade Borges

Este artigo faz uma reflexão sobre algumas questões relativas


ao ensino de História da África na Educação Básica. As problemá-
ticas colocadas são frutos de pesquisa realizada para o doutorado
em educação na Faculdade de Educação da Universidade Federal
da Bahia. A referida pesquisa trabalhou prioritariamente com pro-
fessores de História da Rede Pública Estadual de Ensino da Bahia.
Neste artigo, a partir de alguns resultados da investigação, se faz um
diálogo com autores que têm formulado questões sobre os dilemas
para a implementação da Lei nº 10.639/03.
O texto se divide em dois pontos: o primeiro discute como
alguns autores especialistas na temática em questão colocam o pro-
blema da inserção dos estudos africanos nas escolas, e o segundo
procura apresentar algumas orientações e sugestões para a problemá-
tica específica da seleção dos temas da História Africana possíveis de
serem abordados em sala de aula. A intenção primordial desse texto
é refletir se as preocupações para a implantação dos estudos africa-
nos nas escolas, colocadas pelos especialistas na época de sanção da
referida lei, ainda procedem ou sofreu alterações, após uma década
de sua vigência.

RAZÕES E DILEMAS

A primeira reflexão que esse texto traz sobre o ensino de África


diz respeito às motivações que levaram à obrigatoriedade desses no-
vos conteúdos no currículo escolar. Inicialmente, é preciso admitir
que existem várias razões para a importância do ensino de História

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da África na Educação Básica. Tendo em vista a pluralidade de moti-


vações para a inserção dos estudos africanos nas escolas, entendo que
é interessante começar uma abordagem sobre essa questão, a partir
da compreensão contida nas Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura e Afro-brasileira e Africana do Conselho Nacional de Edu-
cação (CNE), aprovadas em 2004. As referidas diretrizes discorrem e
regulamentam a Lei nº 10.639/03. Segundo esse documento oficial,
deve-se ensinar África nas escolas em duas perspectivas complemen-
tares: pela sua afinidade com a História do Brasil, e por sua relação
com a História da humanidade. Do ponto de vista da legislação, esse
é o duplo aspecto da inclusão desses conteúdos nas escolas.
O referido documento oficial destaca sobremaneira que a
presença africana na sociedade brasileira é imensa. Assim sendo, o
argumento principal para o ensino da África está no fato da impossi-
bilidade de uma boa compreensão do Brasil sem o conhecimento das
experiências dos povos africanos. O texto do mencionado documen-
to corrobora a ideia de que, na história do Brasil, as relações sociais
foram primordialmente entre africanos e europeus, pois as formas
de produção eram dependentes do tipo de mão da obra e dos está-
gios civilizatórias das nações africanas (SILVA E, 2010). Por conse-
guinte, o entendimento completo da História do Brasil só é possível
através do conhecimento da História e da Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Sem estes elementos se constrói uma História incompleta
da sociedade brasileira. No mesmo sentido, como foi enunciado,
o documento aqui analisado aponta outra razão importante para o
estudo da História da África: o fato de que, para se apresentar uma
sólida noção da História da humanidade, seria indispensável um co-
nhecimento da experiência africana.

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As duas dimensões do ensino de África, acima expostas, estão


colocadas no referido documento do CNE (2004) e devem servir
como norteadoras para a inserção desses conteúdos no currículo
escolar. Esta compreensão que aqui se apresenta do referido docu-
mento está em desacordo com a interpretação de Oliva (2007), se-
gundo a qual as Diretrizes do CNE (2004) possuem uma tendência
a supervalorizar a relação da África com o Brasil, em detrimento
das relações que este continente mantém com o restante do mundo.
Entendo que a África em sua relação com o Brasil e o mundo é o
contexto que prevalece na lei de inclusão dos estudos africanos nas
escolas. O argumento aqui apresentado é que não existe, na inter-
pretação das referidas Diretrizes, direcionamento a fragmentar o en-
sino de África em duas opções: suas interações com o Brasil ou suas
inter-relações com a História da Humanidade. Para este documento
oficial, essas duas dimensões estão contidas em um único processo,
que consiste na influência que o continente africano tem na História
Universal. Esta discussão está sendo posta porque tem implicação,
como se verá mais adiante, sobre as formas como se está ensinando
África nas escolas.
A segunda questão que se faz uma reflexão nesse artigo diz
respeito ao seguinte problema: muitos docentes ainda têm reservas
em levar a temática africana para a sala de aula, devido à ausência
da História da África nos cursos de graduação que fizeram. Segundo
Oliva (2004), associada a essa circunstância da não existência da dis-
ciplina História da África nas Licenciaturas, se encontra o problema
das representações que os professores possuem sobre o continente e
os povos africanos. Esta questão do desconhecimento e das represen-
tações sobre a África é um aspecto do ensino de História da África
de suma relevância.

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Para o referido autor, o problema das representações sobre a


África para o ensino de História é que elas levam a uma posição ne-
gativa em relação à História Africana. Dentre essas representações,
a negação da historicidade dos africanos é um elemento importante
das estereotipias criadas sobre a África. Na opinião desse especialista,
a educação escolar somente concebia a África como uma área histó-
rica através da tendência a naturalizar determinados aspectos sociais,
como a escravidão. Isso produziu um imaginário que apresenta o
africano sempre associado à ideia de escravo (OLIVA, 2004). Essa
situação entra em contradição com as normativas das Diretrizes do
CNE (2004) que colocam como meta estabelecer uma visão positiva
sobre os africanos nas escolas.
Por isso, para o mencionado autor, desconstruir representa-
ções existentes reconstruindo a historicidade da África se tornou o
desafio basilar do ensino de História da África. Pensar diferente das
caricaturas sobre o continente africano se torna assim um dos ob-
jetivos da inserção de África no currículo escolar (OLIVA, 2004).
Por conseguinte, a introdução da História Africana no currículo
da Educação Básica objetiva, entre outros elementos, realizar essa
desconstrução de noções pré-concebidas. Desse modo, existem dois
fatores conjugados que se constituem como o dilema central para o
ensino da História Africana na Educação Básica: representações so-
bre a África e o desconhecimento da História desse Continente, por
parte da maioria dos professores.
Tendo esse parâmetro em vista, como, ou com quais referen-
ciais, os docentes da Educação Básica estão ensinando a História
Africana? Segundo o autor, quase sempre a fonte referencial mais
disponível para acesso a informações sobre o continente africano é a
jornalística. Nesta modalidade de fonte, a estigmatização da doença,
fome e guerras é uma referência recorrente de um continente tratado

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como condenado ao caos (OLIVA, 2004). Entendo que esta forma


de conceber a África parte da premissa de uma região unívoca. Por
isso que alcançar a pluralidade das sociedades africanas se configu-
ra como importante para o conhecimento sobre esse Continente, e
conceber uma África diversa passa pela restauração de sua historici-
dade.
Foi enunciado que nos documentos oficiais a inserção dos es-
tudos africanos no ensino se justifica pela relação que esse continente
manteve e mantém com o Brasil e o mundo. Igualmente foi alegado
que a dupla situação do desconhecimento e estigmatização da África
dificultam essa inserção nas salas de aula. Desse modo, fazer as devi-
das relações do continente africano com o Brasil e o mundo em sala
de aula, como foi colocado, implica em desconstruir preconceitos e
isso passa pela questão da formação docente. Chega-se, assim, a uma
questão chave para o ensino de África nas escolas: a formação de pro-
fessores para essa temática. Falta de conhecimento e representações
se coadunam em um único fenômeno educacional para a implemen-
tação da Lei 10.639: o não acesso a esses conhecimentos por parte
dos docentes. O dilema é, portanto, ensinar o desconhecido.
Nesse ínterim, uma ressalva precisa ser feita, qual seja: essas
reflexões do mencionado especialista foram elaboradas em 2004 sob
o impacto imediato da sanção da lei de obrigatoriedade dos estudos
africanos no ensino. Isso significa que as colocações desse africanista
brasileiro expressam as preocupações oriundas da expectativa que se
tinha na época da promulgação da referida lei. Essas preocupações
diziam respeito aos desafios para a implantação dos conteúdos afri-
canos nas escolas. A questão posta atualmente é saber se após uma
década de vigência da referida lei ainda se configuram as mesmas
preocupações, ou se houve mudanças nas escolas em relação ao ensi-
no da História Africana.

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Como a problemática da formação de professores para a temá-


tica africana era o centro das discussões dos especialistas, vale a pena
se deter nessa questão. A formação docente para África conduz a
uma antiga questão do ensino de História: a orientação eurocêntrica
do processo histórico. Esta versão da História reduziu a África aos
episódios do tráfico de escravos e colonialismo. Admitir a participa-
ção deste continente em acontecimento histórico mais amplo, como
a origem humana, por exemplo, é coisa recente no ensino de Histó-
ria (OLIVA, 2004). A África antiga, dos grandes reinos e impérios,
até pouco tempo era ignorada nas escolas. O caso específico da civili-
zação egípcia é emblemático, pois, apesar de ser apresentada com es-
plendor, era referenciada ao Oriente Médio (SILVA, 2010). Por isso
que, para Oliva (2007), um ensino de História não eurocêntrico é
uma das metas de uma reformulação curricular em que a introdução
da História Africana faz parte. A esse respeito, vale colocar a opinião
de Barbosa (2010), para quem a questão é realizar a reconstrução
dessa História, tendo em conta o olhar africano: a África vista a par-
tir de dentro, por si mesma, como é posta na coleção História Geral
da África, editada pela Unesco.
Do exposto até agora, se pode alentar que a inserção da His-
tória da África na Educação Básica assinala caminhos para inovações
no currículo escolar e no ensino de História em especial, mas trouxe
de imediato o dilema relacionado à falta de conhecimento desses
conteúdos por parte dos docentes. Por isso que, vale reiterar, uma
das problemáticas mais emblemáticas anunciadas pelos autores que
discutem a inserção do ensino de História da África nas escolas é
a carência na formação de professores para estes conteúdos. Como
foi frisado anteriormente, Oliva (2004) foi o pioneiro a colocar que
ensinar o que ainda não se conhece é o dilema central da inclusão
atual da África no currículo escolar. Na lógica aqui exposta, a proble-

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mática da formação de professores está relacionada umbilicalmente à


situação de superação da normativa eurocêntrica de que a África não
possui história e isso não pode ser feito com os professores ignoran-
do o processo histórico africano. A questão que surge em consequ-
ência dessa falta de formação docente para a temática africana, vale
insistir, é a seguinte: tendo em vista o desconhecimento da História
Africana pelos professores, que África está sendo levada para os alu-
nos nas escolas?
Como foi assinalado, esse paradoxo em ter que ensinar o des-
conhecido é uma constatação feita por estudiosos, desde o início da
vigência da lei de obrigatoriedade dos estudos africanos. Em 2003,
ano da Lei nº 10.639, Oliva analisou a História da África em coleções
didáticas e chegou à conclusão de que a maioria desses livros apre-
senta uma visão eurocêntrica sobre a África. Igualmente, destaca o
persistente problema de como ensinar de maneira adequada o que
não se conhece realmente:
A falta de estudo aprofundado nas universidades
resultou na formação de professores despreparados
para trabalhar com esses conteúdos. Mas, algumas
universidades e secretarias de educação já oferecem
cursos de extensão e especialização e os profissionais
podem qualificar-se também pela via autodidata,
pois já existe um conjunto de boas publicações,
ainda que em pequeno número, sobre a história da
África no Brasil. (OLIVA, 2003, p. 7)

Para esse autor, a lei da obrigatoriedade de inclusão dos es-


tudos africanos nos currículos escolares é uma forma do Governo
assumir a responsabilidade pela negação da ancestralidade africana
na cultura brasileira, mas o esforço pessoal dos professores é impres-
cindível para o ensino adequado da disciplina. Em nossa pesquisa,
ficou constatado que esta possibilidade de formação autodidata em
África é um assunto polêmico para os professores da Educação Bási-
ca, pois, para os docentes, a implementação deve ser vista como uma

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tríplice responsabilidade: do poder público, das gestões escolares e


dos professores.
Oliva (2003) estudou a África nos livros didáticos e as inicia-
tivas institucionais para cursos de formação de professores em es-
tudos africanos realizados em período anterior à assinatura da Lei
nº 10.639/03, consistindo em trabalho pioneiro. Posteriormente,
se mostrou otimista em relação ao futuro da disciplina História da
África, devido à sua proliferação nos cursos acadêmicos de gradua-
ção e pós-graduação. Ele acredita que, no ritmo em que se expandia
a temática africana nos materiais escolares, em breve as complexas e
diversificadas experiências históricas africanas poderiam ser apresen-
tadas naturalmente. Na pesquisa aqui apresentada, a situação encon-
trada atualmente não confirmou o presságio do referido especialista,
pois o ensino de África caminha a passos lentos nas escolas investi-
gadas.
Do exposto acima se pode fazer assegurar que um dos proble-
mas para a inserção dos estudos africanos nas escolas ainda continu-
am sendo os mesmos colocado por este autor: lecionar História da
África no Brasil atual implica em lidar com as questões do desconhe-
cimento dessa disciplina por parte do professor, e as representações
sobre esse Continente, que docentes e discentes detêm. A inserção
da História Africana no ensino apresenta, ainda, essa dinâmica em
trabalhar com conteúdos desconhecidos e um imaginário pré-con-
cebido. Vale acrescentar que, para ensinar África, é fundamental se
contrapor às estereotipias que marcam a visão a seu respeito, e um
caminho para isso é conhecer a produção historiográfica africana
existente.
Segundo Oliva (2004), esse desconhecimento da África no en-
sino brasileiro é histórico, pois raramente existia, antes da promul-
gação da referida lei, a disciplina História da África nas licenciaturas.

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No entanto, a investigação que se efetivou com os professores da


Bahia em 2013 demonstrou que esse quadro se modificou, pois a
maioria dos docentes em exercício declarou ter formação inicial ou
continuada em História da África. Neste sentido, a atual obrigato-
riedade da inclusão do estudo da História Africana no ensino teve
uma repercussão na formação docente, podendo ser vista como um
momento de transição de um ensino que omitiu a África, para um
outro que a põe em evidência. Qual a África que está se evidencianda
nas salas de aula é uma das questões posta para os pesquisadores do
atual ensino de História.
Sobre a temática do desconhecimento da História da África
no ensino brasileiro, vale mencionar ainda as observações feitas por
Arnaut e Lopes (2005) em um trabalho de introdução à História
Africana, publicado sobre impacto imediato da lei. Esses autores rei-
teram o prognóstico de Oliva (2004) sobre a falta de conhecimen-
to dessa História por parte dos docentes. Segundo Arnaut e Lopes
(2005), o universo africano continua sendo absolutamente desco-
nhecido para a maioria dos nossos alunos e professores. Apesar de
manifestarem satisfação com o advento da lei, esses historiadores se
mostram apreensivos quanto a seus resultados, pois existe uma ima-
gem de África formada por fontes diversas, nas quais professores e
alunos se referenciam:
Existe uma tradição, um universo conceitual e uma
cultura que funciona como esquema de percepção
quando pensamos em África. Usualmente, associa-
mos idéias e noções estereotipadas que constroem
e são construídas por uma imagem de uma África
tribal, tradicional, arcaica, com negros em trajes
pré-industriais e armas primitivas, buscando seu ali-
mento nas savanas. Nestas representações, a África
aparece como distante, como separada de nós por
alguns séculos. (ARNAUT; LOPES, 2005, p. 8-9).

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Pode-se então inferir que o desafio central estabelecido para


o ensino de História da África é a fronteira entre desconhecimento
e estigmas. Por isso a problemática basilar do ensino de História da
África se configura como sendo a necessidade de um alicerce: o co-
nhecimento da historiografia sobre a África por parte dos professores.
Penso que, através do conhecimento da produção dos historiadores
africanos e africanistas, é possível exercer uma tarefa fundamental
para essa modalidade de ensino: a apropriação das teorias explicati-
vas da História da África. Por meio dessas teorias, se reconhecem os
conceitos próprios à experiência histórica africana.
O ensino da História da África necessita tanto de um conhe-
cimento de seu processo histórico como das teorias que tratam da
especificidade africana. Segundo Fage (2010), modelos analíticos
das realizações históricas africanas têm sido elaborados com melhor
precisão desde os anos 50 do Século XX. Tendo em vista a inserção
obrigatória dos estudos africanos no currículo da Educação Básica, o
conhecimento da historiografia sobre a África que protagoniza estas
teorizações é de suma importância para aqueles que levam esses con-
teúdos para a sala de aula.
No processo de incorporação da História Africana nos currí-
culos escolares, é importante afirmar a historicidade plena dos povos
africanos, que na historiografia europeia está resumida a aconteci-
mentos relacionados à realidade de Europa e América. Para isso se
necessita de fonte apropriada, ou seja, a historiografia sobre a Áfri-
ca. Através do estudo de obras dessa historiografia se percebe que a
História Africana pode ser abordada sob dois prismas. Em primeiro
lugar, a História da África concebida em dimensão continental tem
por objetivo principal apresentar uma África estruturada, entendida
como berço cultural da humanidade e marcada por organizações po-
líticas que datam de um período anterior à presença europeia. Em

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segundo lugar, a História da África deve ser vista a partir do impacto


que as sociedades africanas sofreram com a intervenção europeia,
compreendendo os momentos do tráfico de escravos e a colonização
(KI-ZERBO, 2010).
Com esse procedimento, a África atual passa a ser vista como
uma síntese que envolve sua História milenar e a intervenção euro-
peia. Saraiva (1983) é um dos expoentes africanistas que defende ser
a África atual uma síntese histórica de caráter amplo, se contrapondo
às versões que reduzem a realidade africana apenas à sua História
contemporânea. O debate sobre a ideia da síntese histórica africana
que compreende a África pré-colonial e a colonial é imprescindível
para o atual ensino de África. Por isso que conhecer a África antes e
depois da intervenção da Europa se configura como procedimento
importante para o ensino dessa História.
A problemática da formação de professores foi, em conjunto
com as questões das representações e materiais apropriados para o
ensino da História Africana, o eixo que se ocuparam os especialistas
para discutir as dificuldades encontradas para a inserção dos conte-
údos africanos nas escolas, especificamente na disciplina História.
Na pesquisa que se realizou com os professores da Educação Básica
na Bahia, a questão da formação docente veio à tona, porém, com
alguns indícios de mudanças provenientes da existência da Lei nº
10.639/03.
Na pesquisa realizada em 2013, foi colocada para os profes-
sores pesquisados a questão sobre a formação que possuíam sobre a
História da África. Neste aspecto, a maioria dos depoimentos colo-
cou que o conhecimento que tinham sobre a História Africana era
precário. Quanto à origem desses conhecimentos, as respostas de-
monstram quatro possibilidades: na graduação, em livros didáticos,
por iniciativa própria em fontes como internet e revistas. Em muitos

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

casos, os cursos de graduação foram citados como a origem deste co-


nhecimento. No entanto, são mencionados com comentários de que
apresentam limites tais como carga horária insuficiente para o conte-
údo exigido por essa temática e a falta de qualificação de professores
que ministram essas aulas nas Universidades. As questões de carga
horária e qualificação de professores apresentadas sobre a disciplina
de História da África na graduação em História são retratadas como
recorrentes também nos cursos de extensão e pós-graduação.
O conjunto dos depoimentos que foi recolhido dos docentes
corrobora a ideia geral do reconhecimento da precariedade dos co-
nhecimentos no que diz respeito à História Africana. A esse respeito,
os depoimentos tocam na questão espinhosa do esforço individu-
al pela busca de formação para ensinar África. Foi visto que Oliva
(2004) defende a necessidade de iniciativa individual do professor
para que a história da África aconteça nas escolas ou pelo menos
como sendo uma alternativa necessária. A esse respeito, as Diretri-
zes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(2004), apesar de apostarem também nessa iniciativa docente, têm
a preocupação de não responsabilizar unicamente e prioritariamente
os professores pela implantação da lei. As referidas diretrizes sus-
tentam, conforme visto anteriormente, que, sem os devidos supor-
tes, estas iniciativas podem ser limitadíssimas. O importante aqui é
colocar que essa pesquisa constatou, de fato, que o fenômeno das
iniciativas individuais por parte dos professores acontece, mesmo de
forma limitada.
Outro aspecto a ser destacado nos referidos depoimentos diz
respeito à constatação de que no curso de graduação o estudo da
História da África não se preocupa em discutir formas de como fazer
aulas sobre esse tema. Esse tipo de preocupação é recorrente nos do-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

centes da Educação Básica que se comprometem a ensinar a História


da África nas escolas. Esta é uma das razões pelas quais se dedica nes-
te artigo um segundo ponto especialmente para discutir a questão da
seleção dos assuntos da História Africana para sala de aula.
Esta é uma das maiores implicações que os cursos de forma-
ção de professores, especialmente quando se refere às graduações,
apresentam: a problemática da didática para o ensino da História
da África na Educação Básica. Em nosso entendimento, esta é uma
questão de ordem mais ampla que envolve o ensino de História.
Esse problema pode ser visto na ótica da dicotomia apresentada por
Saviani (2008) entre graduações de licenciaturas e pedagogias, na
qual a primeira se ocupa dos conteúdos e a segunda da didática. O
referido autor considera isso como sendo um problema de estrutu-
ração dos cursos universitários, que tem implicações na Educação
Básica. Tendo em vista a questão mencionada da precariedade de
conhecimento sobre a História Africana, esse problema da didática
se torna mais tenso. Disso pode advir a exigência da necessidade e a
denúncia da carência de materiais didáticos para a temática africana
feita pelos professores.
Ficou constatado na pesquisa que 70% dos professores pesqui-
sados tiveram contato com assuntos relacionados a África durante a
graduação. Essa característica de acesso à disciplina sobre África na
graduação é demonstrativa da influência da Lei nº 10.639 nas licen-
ciaturas em História. A lei provocou uma mudança importante nos
currículos dos cursos de licenciaturas em História na Bahia. Isso sig-
nifica que se pode atualmente afirmar que a maioria dos professores
de História na Bahia possui formação em África.
No entanto, isso não significa que o mesmo se pode dizer
quanto ao conhecimento desses professores acerca da História do
continente africano, pois, nesse aspecto, demonstram ter uma carac-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

terística limitada, precária. A pesquisa igualmente demonstrou que


os professores têm limites de conhecimento a respeito da temática
africana. A constatação geral foi a seguinte: os docentes que reconhe-
cem ter um conhecimento precário sobre a História Africana perfa-
zem um total de 72% dos pesquisados. Isso significa que a maioria
dos professores pesquisados possuiu um conhecimento precário so-
bre a História Africana. Curiosamente, a percentagem de professores
com dificuldades no conhecimento da História Africana se equivale
à percentagem de professores que tiveram disciplinas sobre África na
graduação.
Do exposto, entende-se que a formação de professores tem
se constituído como elemento capital para o ensino da História e
cultura africana nas escolas e que, no momento atual, se pode ob-
servar que a maioria dos professores da Educação Básica tem essa
formação. No entanto, a problemática da formação, uma vez acon-
tecida, não resolveu o dilema inicial da falta de conhecimento sobre
a África. Portanto, a questão inicial de que a falta de conhecimento
era o mesmo que falta de formação, nos moldes colocados pelos es-
pecialistas quando do surgimento da obrigatoriedade do ensino de
África nas escolas, foi relativizado nessa pesquisa.

TEMÁTICAS DA HISTÓRIA AFRICANA

A partir do que se colocou no ponto anterior, se pode inferir


que são muitos os dilemas dos professores para inserir a África no
atual ensino de História. Entre essas dificuldades, uma das mais im-
portantes tem sido a questão da escolha dos temas e das abordagens
da História Africana possíveis de serem levadas para a sala de aula.
Neste particular, a primeira questão a ser levantada é que a África
no ensino de História não pode ser vista como um caos antes da

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

presença europeia. Ao contrário, deve ser colocado que existiu no


continente africano um processo antigo de formação de sociedades
complexamente estruturadas. Neste aspecto, seria relevante traba-
lhar temas como os reinos e impérios antigos e a escravidão interna
à África, com suas características próprias. Desenvolver a ideia de
uma África estruturada requer alguns requisitos como enfatizar suas
tecnologias de agricultura, mineração e edificações, assim como as
complexas organizações sociais.
Trabalhar em sala de aula a dinâmica de organização inter-
na dos reinos e impérios destacando sua autonomia, isto é, a origi-
nalidade africana, é imprescindível. O historiador africanista Basil
Davidson, por exemplo, apresenta um postulado importante para
a historiografia sobre a África: a defesa da autonomia africana na
criação das tecnologias existentes na História Antiga da África (DA-
VIDSON, 1975). Tendo em conta a produção historiográfica sobre
a África, o procedimento mais favorável para um ensino de História
da África seria estabelecer, junto aos alunos, o debate entre as distin-
tas versões da História, a africana e a europeia. Esse procedimento
se torna interessante à medida que as divergências historiográficas
existentes permitem aos professores e alunos realizarem debates e de-
senvolverem uma linha norteadora do ensino de África que consiste
em admitir que, apesar dos europeus terem influência na moldura
da África atual, esta não é produto da Europa e sim de sua ances-
tralidade histórica. Entendo que o confronto entre a historiografia
europeia e a africana pode esclarecer os equívocos da primeira no
sentido de demonstrar que a História da África é a mais antiga do
mundo e não pode ser resumida ao impacto europeu, por mais que
isto se reflita na contemporaneidade.
Desse modo, o ensino da História das sociedades africanas
serve como reforço à crítica a uma escrita da História centrada na

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Europa. O ensino da História da África tem a função de sustentar


esse posicionamento contrário ao eurocentrismo. Nesse sentido, o
ensino de História da África realiza uma crítica ao eurocentrismo
porque permite rever, em outra ótica, a história que o europeu es-
creveu sobre o continente africano. Por isso, é importante discutir
se a abordagem da África em sala de aula ainda continua no marco
eurocêntrico ou superou este modelo. Contudo, é importante ainda
saber se nesse processo de crítica o ensino de História consegue apre-
sentar o que a História Africana possui de original.
O ensino de História da África necessita superar o marco eu-
rocêntrico, elaborando um olhar para o continente que visualizasse
suas complexidades e destacando sua importância singular por ser,
antes de tudo, a matriz da espécie humana, o lugar onde a História
da humanidade começou. Neste aspecto, o importante ao discutir
quais temáticas da História da África podem ser abordados no ensi-
no da História é buscar superar marcos europeus, resgatando o pon-
to de vista africano.
O ensino de História da África na perspectiva de uma dimen-
são própria ao Continente deve ter como ponto de partida a premis-
sa da tríplice primazia africana da origem do ser humano, cultura
e civilização. A ideia dessas primazias africanas para a História da
humanidade é defendida não somente pela produção historiográfica,
mas também por obras da antropologia (KLEIN, 2005). A partir da
constatação de que o continente africano é a matriz da humanidade,
entendida não somente na perspectiva paleontológica, mas também
na visão antropológica e histórica, se pode apresentar, com consis-
tência, a África dos grandes reinos e impérios.
Um importante exercício para análise da antiguidade das for-
mações estatais na África é o estudo do Egito. Inicialmente, seria
visto que em muitas versões historiográficas esta civilização é tra-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

balhada na perspectiva de que ela estaria fora da África. Com isso,


se estaria assinalando para os alunos que um estudo de História a
partir da percepção da África como berço cultural e civilizatório da
humanidade não pode apresentar esta sociedade como civilização do
Oriente Médio.
O ensino baseado nesta ótica deve também superar as impres-
sões da existência de duas Áfricas separadas, uma ao norte, África
mediterrânea e saariana, e a África subsaariana. Existem visões den-
tro da historiografia sobre a África que ainda defendem a ideia de
que a região norte esteve integrada ao processo histórico europeu e
asiático desde a antiguidade e a região subsaariana manteve-se isola-
da da História Mundial até a Era Moderna. Esta forma de se colocar
as divisões regionais da África teve seu marco inicial no Século XIX.
O conhecimento do debate que a esse respeito é feito na historiogra-
fia sobre a África contribuiria bastante para o professor desfazer essa
formulação de Áfricas isoladas entre si, no qual o ensino de História
se adequou.
Penso também que, no ensino da História Africana, a aborda-
gem sobre a polêmica versão historiográfica conhecida como afro-
centrista, é importante ser levada para sala de aula. Esta perspectiva
historiográfica sustenta a tese da África como matriz da civilização,
que influenciou a História da humanidade. Independente do posi-
cionamento a ser tomado pelos professores, trabalhar com a proble-
mática afrocentrista é promissor porque os alunos precisam conhe-
cer a proposta de revisão da História defendida por essa corrente de
pensamento. O ensino de História, quando for abordar a África an-
tes das invasões externas, não pode tratar as sociedades africanas no
modelo do atraso. Nesse sentido, os historiadores afrocentristas são
referenciais para se contrapor a essa visão de um continente arcaico.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

As questões arroladas acima são problemas teóricos que devem


ser levantados em sala de aula e, através de estudos da historiografia
sobre a África, os professores podem trabalhar as versões existen-
tes no interior dessa própria historiografia. Por isso os docentes da
Educação Básica precisam realizar um desafio teórico: elaborar pos-
sibilidades de conteúdos para as escolas que possam levar um conhe-
cimento coerente com a produção historiográfica. Estar plenamente
situado nas vertentes teóricas da historiografia é importante para os
docentes, pois permite reconhecer as opções historiográficas dispo-
níveis e qual ou quais se pretende trabalhar em sala de aula.
No período anterior à publicação da lei de obrigatoriedade do
ensino de África, as referências sobre esse continente nas escolas obe-
deciam um padrão em que os africanos apareciam em três períodos
distintos. O primeiro, na antiguidade, com o estudo do Egito visto
como civilização exógena à África. O segundo, na época moderna,
com o tráfico de escravos analisado do ponto de vista do Ocidente.
O terceiro, na época contemporânea, em que a África é vista como
apêndice da política colonialista europeia. No momento atual, duas
formas de abordagens da História Africana na Educação Básica se
colocam como possibilidades. A primeira mantém o padrão acima
mencionado, trabalhando a África a partir desses três processos ci-
tados. A segunda trata a África desde a Antiguidade, abordando a
formação e desenvolvimento dos antigos Estados Africanos. Portan-
to, após a vigência da referida lei, há uma ampliação e renovação
dos conteúdos de África em que a novidade é a inclusão dos antigos
reinos e impérios africanos (BORGES, 2010).
A importância para os docentes em conhecer a historiografia
sobre a África se coloca, primordialmente, porque auxilia na reso-
lução de um relevante problema no ensino de História Africana:
escolher com quais concepções da História da África os professores

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

podem analisar o processo histórico africano. A análise do eurocen-


trismo, por exemplo, pode conduzir à discussão sobre a necessidade
de uma Filosofia da História da África. Somente sustentado em uma
filosofia dessa História se pode realizar uma crítica fundamentada
ao eurocentrismo e isso só é almejável mediante conhecimento da
historiografia sobre a África em suas variadas versões.
A inserção da História da África no currículo não pode ser
resumida a um combate anti-eurocêntrico no sentido apenas de de-
núncia das mazelas que os europeus provocaram neste continente.
Neste ensino, é necessário vir à tona os aspectos originais e singu-
lares da experiência histórica africana. Isso é o que se denomina a
dimensão africana de sua História. O ensino de História da África
se encontra em uma fase inicial. A superação desse estágio primário
pressupõe amadurecimento sobre duas questões: a forma ingênua
de se tratar a crítica ao eurocentrismo e o desenvolvimento de uma
concepção filosófica da História condizente com a singularidade da
experiência africana. Como foi colocado, esta maneira de ver a ques-
tão do eurocentrismo é um dos aspectos mais contundentes que a
historiografia sobre a África tem apresentado e isso implica na cons-
trução de uma Filosofia da História que conecte a experiência histó-
rica africana com a da humanidade. O ensino de História da África
não pode ficar alheio a esse debate e ao desafio de construção de uma
Filosofia da História para a África.
Duas reações iniciais aparecem aos professores quando entram
em contato com a História da África. A primeira é a perplexidade
diante da riqueza e complexidade das antigas sociedades africanas. A
segunda é a resistência para estudar África. As principais dificuldades
encontradas no processo de ensino de História da África começam
com esse paradoxo da resistência e perplexidade com relação a esse
novo conhecimento. Trabalhos de ensino de História Africana apa-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

recem inicialmente como uma sistemática descrença nas possibili-


dades civilizatórias desse continente. Disso surgem alguns pontos
importantes no imaginário sobre a África que podem ser encontra-
dos em sala de aula: a África como selva tropical, como uma região
imensamente distante, as populações africanas estão isoladas entre
si e do mundo e o europeu levou a civilização para o continente
africano.
No ensino da História Africana, é importante a introdução de
informações geográficas sobre a África, para que os estudantes pos-
sam ter a ideia da possibilidade de existência de sociedades organi-
zadas, como, por exemplo, constatar a existência de cidades com in-
fraestrutura urbana desenvolvida desde a Antiguidade. A percepção
de que a África é marcada por paisagens de florestas tropicais leva à
construção de um imaginário no qual o africano vive em choupanas,
não havendo lugar para imensas cidades, agricultura de grande porte
e demais atividades econômicas como a pecuária e mineração. Nesta
perspectiva, o continente africano não conheceu em sua História a
revolução agrícola, comercial e urbana.
Em contribuição ao imaginário construído de impossibilida-
des civilizatórias africanas, estes povos estão sempre localizados em
florestas tropicais e desertos, ambientes tidos como inóspitos. Além
disto, o deserto é considerado como divisor de duas hipotéticas Áfri-
cas, uma negra e outra branca. Aqui, o exercício de quebra de pres-
supostos errôneos no ensino da Historia Africana se torna um pouco
mais difícil, porque existem versões na historiografia sobre a África
que sustentam essa divisão. Como recurso didático, se podem utilizar
as rotas de caravanas comerciais, que durante muitos séculos fazem
percurso através das regiões do Saara. Estas caravanas demonstram a
possibilidade de vida cotidiana na região do deserto e da instalação
e desenvolvimento de sociedades estatais nessa região. O recurso às

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caravanas e aos sítios arqueológicos leva à demonstração de uma in-


tegração dos espaços econômicos no deserto do Saara e nas demais
regiões como o Sahel, savanas e florestas (HERNANDEZ, 2005).
Esse procedimento auxilia a construção de uma visão de integração
entre comunidades africanas, eliminando a possibilidade do artifício
de duas Áfricas. Mesmo a diversidade da população africana não é
suficiente para pensarmos em duas Áfricas, uma no norte e outra no
sul do Saara. O que marca a territorialidade na África é, sobretudo,
a integração histórica. O ensino de História da África deve utilizar o
mesmo princípio quando se estudam outros continentes, no sentido
de que existe um continente africano com diversas populações e cul-
turas. Com isso, a ideia de unidade geográfica transmite a impressão
homogênea de uma unicidade cultural.
O presente texto buscou elucidar algumas questões pertinen-
tes ao tema da inserção da História Africana nas escolas. Dentre os
vários dilemas para essa tarefa, concentrou-se na discussão do pro-
blema da formação docente, especialmente discutindo como ela in-
terfere nas dificuldades que os docentes têm para selecionar os as-
suntos da História Africana a serem trabalhados em sala de aula.
Do mesmo modo, essa precariedade do conhecimento sobre África
e sua História impossibilita aos professores uma interpretação do
processo histórico africano a partir da perspectiva endógena a esse
Continente.
No entanto, essa problemática da formação docente para o
ensino da História da África toma atualmente uma configuração
dicotômica entre formação e conhecimento. Se anteriormente se
achava que a falta de conhecimento estava sobremaneira relacionada
à carência de formação inicial e continuada de professores para a
temática africana, no momento atual se constata que a maioria dos
professores possui tal formação e continua com precariedade nesses

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

conhecimentos. A questão da formação de professores da Educa-


ção Básica para a temática africana foi transferida ou ampliada na
questão da formação de professores em África para o Ensino Su-
perior. Nesse sentido, urge averiguar a qualidade dos atuais cursos
universitários nas graduações e pós-graduações que trabalham com
a História da África.

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lha Beatriz Gonçalves e Silva. Brasília: Ministério da Educação, ju-
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CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Resolução n.01 de
17 de junho de 2004. Dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Na-
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NÓS E TODOS: UM DIÁLOGO SOBRE A LEI Nº 11.645/08

Erlon Fabio de Jesus Costa

O texto a seguir tem como principal objetivo provocar refle-


xões e trazer para o cenário educacional questões ainda pouco deba-
tidas no cotidiano escolar, e que partem de uma série de equívocos
e distorções históricas sobre as relações étnico-raciais nos espaços
educativos.
As mudanças ocorridas ao longo da última década em relação
aos aspectos legais da LDB 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira) são resultados de uma série de lutas oriundas
dos movimentos sociais. A Lei nº 11.645/08, que determina o ensi-
no de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, a qual alterou a
Lei nº 10.639/03, representa os anseios das populações tidas como
minoritárias a partir da percepção de uma educação voltada para o
empoderamento.1
Essa temática é fundamentada num composto de aspectos
legais e pedagógicos que permeiam as questões étnicas no univer-
so escolar. As práticas aqui discutidas são resultado de observação
e atuação na História do Povo Tupinambá de Olivença, enquanto
movimento social que envolve o processo educacional experimenta-
do no contexto da educação indígena diferenciada e do ensino con-
vencional.
Para melhor reflexão sobre a temática, este texto foi dividido
em três partes: incialmente será discutida a concepção indígena ao
pensar na sustentabilidade do seu território, partindo do processo
educacional; em um segundo momento, o olhar é direcionado à

1 No contexto exposto, entendemos o empoderamento enquanto tomada de


consciência coletiva na busca pelos seus direitos, fazendo da prática da cidadania
uma ação libertadora e de tomada de consciência de grupo.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Educação Infantil e às diversas trocas de saberes possíveis na apli-


cação da Lei nº 11.645/08; por fim, será sugerida a aplicação de
atividades voltadas às práticas metodológicas e a aplicação de um
material didático consistente capaz de revelar parcela da diversidade
indígena no Brasil.
O processo educacional desenvolvido no Brasil ao longo dos
séculos tratou de utilizar conceitos e termos pejorativos e estereoti-
pados, disseminando em meio à sociedade brasileira padrões euro-
cêntricos, desfavorecendo as populações indígena e negra e colocan-
do à margem as lutas e resistências desses povos.
A tônica para essas percepções emergem das dificuldades ainda
hoje na aplicação da lei, tanto nos seus aspectos estruturais, quanto
instrumentais. Tal afirmativa é justificada pontuando as dificuldades
que hoje o profissional da Educação Básica se depara ao perceber-se
engessado em um currículo que não abre espaços para o debate do
multiculturalismo. Ressalta-se, também, que a formação inicial des-
ses profissionais muitas vezes é defasada e carregada de preconceitos.
No que tange às questões de instrumentalização para a efetivação da
lei, percebe-se uma ausência do protagonismo indígena e negro na
elaboração desses materiais. Esse fato, muitas vezes, acarreta distor-
ções de uma realidade complexa, a qual envolve as relações étnicas e
a diversidade do povo brasileiro.

SUSTENTABILIDADE E EDUCAÇÃO INDÍGENA

Foi a partir de um diálogo com a cacique Maria Valdelice Tu-


pinambá (Jamopoty) que a educação entrou no cenário da pesquisa
que se segue. A conversa, embora tenha sido informal em uma das
sessões eleitorais de Olivença, em 3 de outubro de 2004, possibili-
tou uma análise a respeito da luta pela reconquista da terra em seu

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

processo histórico. O diálogo fomentou um olhar mais aguçado em


relação ao papel social da educação diferenciada indígena, em seus
campos epistemológicos e na preparação do aluno indígena para o
mundo contemporâneo.
A Cacique Maria Valdelice, naquela ocasião, esclarecia que “a
luta pela Terra dos Tupinambá de Olivença era uma luta que estaria
travando para uma herança de seus netos”. Nessa fala da Cacique,
também surgiram questões relacionadas ao processo educacional e
sua importância para a formação integral do indígena em meio a
um processo demarcatório2, tão questionado por diversos segmentos
no sul da Bahia. Diante da já conhecida morosidade no processo de
demarcação das terras indígenas no Brasil, a afirmação da Cacique
parece não trazer alguma novidade. Entretanto, a fala de Valdelice,
quando vinculada à educação indígena, apresenta em seu cerne uma
complexidade que buscaremos aqui abordar.
Para isso, parte-se do princípio da necessidade de ter como
pano de fundo um currículo diferenciado e capaz de atender a uma
demanda de indígenas que, daqui a duas gerações, provavelmente,
herdarão de seus avós, além da luta, o compromisso com um terri-
tório demarcado. Compromisso esse que perpassa, desde a utilização
adequada no manejo dos recursos naturais, até a responsabilidade
de preservar esse espaço, já tão devastado desde os primórdios do
período colonial.
Nesse sentido, as definições sobre o conceito de sustentabili-
dade oferecem o caminho para as reflexões a respeito da importância
do papel da educação em uma sociedade contemporânea. Segundo
2 Depois de solicitarem a delimitação do seu território tradicional à FUNAI, em
2002, e tendo conseguido que em 2003 se iniciassem os estudos preliminares de
identificação de terras indígenas, nos últimos seis anos viram a situação ser prote-
lada com o aumento já sustentável de colisões sociais com interesses econômicos
na região que, em face do conhecimento da existência de tais estudos, os ameaça-
vam (Relatório de demarcação das terras indígenas, 2009).

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Sachs (2004), os três pilares da sustentabilidade são: relevância so-


cial, prudência ecológica e viabilidade econômica. A partir desses
pilares, será traçado um paralelo entre a visão linear da economia e a
educação. Compreende-se a educação como mola mestra no proces-
so de conscientização para a compreensão das necessidades de mu-
dança na postura da sociedade contemporânea.
Marcel Bursztyn (2012), em palestra proferida aos alunos do
Mestrado Profissional em Desenvolvimento Sustentável Junto a Po-
vos e Terras Indígenas, afirma que o Desenvolvimento Sustentável
é a utopia do mundo moderno. Paulo Freire (1996) já chamava a
atenção, que a educação, por mais que busque soluções concretas
para um determinado povo, deve ser estruturada na utopia, no so-
nho do que pode ser ideal. Essa definição e pensamento são capazes
de auxiliar na compreensão da complexidade da colocação da Ca-
cique, nos seus aspectos de historicidade da luta de seu povo e pelo
fato de oferecer outros caminhos para as futuras gerações do povo
Tupinambá. Ora, se sustentabilidade está diretamente relacionada
com a relevância social, no caso dos Tupinambá de Olivença, essa re-
levância perpassa principalmente pelos aspectos educacionais, tanto
em seu campo cotidiano de vivência na sua terra e do sustento que
esta proporciona, quanto nos campos epistemológicos e cosmoló-
gicos. Campos em que os saberes tradicionais servem para garantir,
não só a preservação de cultura Tupinambá, mas também seu patri-
mônio natural.
Nessa perspectiva, o sentido de pertencimento está enraizado
na percepção do território e se expressa na linguagem, no costume,
sempre em referência ao mundo natural. Os sistemas de saber indí-
gena são mapas de memória que carregam uma ancestralidade e se
revelam nas experiências mítico-poéticas, nos espaços do sonho e
dos rituais, no contato com a mãe-terra, nos espaços de representa-

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ção e nas práticas cotidianas. Dessa forma, o saber nas comunidades


indígenas adquire sentido ético em práticas projetadas na coletivi-
dade – ponto de partida e de chegada para os indígenas, ou seja, a
própria comunidade.
Na medida em que a cosmovisão, o pensamento e a religio-
sidade indígenas refletem de múltiplas maneiras o sentido ético de
convivência com a mãe-terra, na experiência comunitária, o sujeito
indígena institui uma “geografia sagrada”, combinando os mais va-
riados elementos do espaço habitado, sejam eles seres viventes, ina-
nimados ou sobrenaturais. A terra, o espaço em si, torna-se um pro-
longamento do corpo; os princípios religiosos estabelecem relações
ecológicas e de proteção com esse espaço-terra; a identidade étnica
da pessoa se enraíza e se prolonga na terra, que passa a fazer parte
dessa identidade.
Nessas relações de saberes em que interagem os espíritos da
natureza (guardiões dos territórios, os “encantados”, para muitos po-
vos indígenas do Nordeste) e as pessoas em seus “espaços concretos”,
o sentido étnico das relações homem/natureza revela uma pedago-
gia comunitária em que os saberes compartilhados atualizam-se e
expressam-se fundamentalmente nas noções de cultivo e respeito.
Muñoz afirma:
A comunidade indígena tem em sua versão local o
espaço que ordena e se reconhece organizador da
vida e da convivência, experimentando-se mun-
do de aprendizagens e de solidariedades mediante
diversas estratégias éticas e de representação da or-
dem. O pensar e o sentir do homem da terra vai
conformando-se num sentido de convivência amo-
rosa para a mãe-terra que se expressa em valores de
cuidado e respeito, que os ambientalistas reconhe-
cem como proteção e uso apropriado dos recursos
naturais. (2003, p. 300).

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As lutas de diversos povos indígenas do Nordeste brasileiro, a


exemplo dos Tabajara3 na Paraíba, pela retomada de suas terras ocor-
rem concomitantemente à luta pela afirmação de uma identidade.
Nesse processo de luta, ser índio vai rememorando, recriando através
das vivências comunitárias e ritualísticas, um sentido para a existên-
cia que está atrelada ao território, à mãe-terra, aos “encantados”, em
que os símbolos são carregados de poesia, sentimento, tempo e an-
cestralidade. Tudo passa a ter sentido: os rios, as árvores, os animais,
as músicas, o ritual, a luta pela terra.
Segundo Geertz, (1973) a cultura é uma característica fun-
damental e comum da humanidade de atrair, de forma sistemática,
racional e estruturada, significados e sentidos às coisas do mundo.
Esta afirmação leva-nos a mais uma reflexão nesse processo educa-
cional enquanto propulsor de uma consciência de sustentabilidade,
não somente pensada como processo de desenvolvimento material,
mas enquanto construtor de mecanismos de preservação da memó-
ria e do próprio patrimônio cultural nos seus campos materiais e
imateriais.
As possibilidades oferecidas a partir de novas maneiras de ob-
servar o mundo favorecem ao educando indígena e não indígena um
leque de opções com base no processo de aprender a conviver. Esse
aprendizado ultrapassa os conceitos de convivência humana a que
muitas vezes o currículo estabelecido limita-se, ampliando a con-
cepção do pilar educacional referente ao aprender a conviver, a um
sentido de relacionar-se com seu espaço e a compreensão das opor-
tunidades proporcionadas por eles, de maneira responsável e ética.
3 O povo Indígena Tabajara tem como seu espaço originário a costa do Nordeste
brasileiro, mais especificamente no Estado da Paraíba. Assim como diversos povos
da costa litorânea, utilizara-se da miscigenação como estratégia de resistência ao
processo colonialista e impactante para os povos de primeiros contatos. No ano de
2008, iniciaram uma luta na busca de seu reconhecimento étnico e na demarcação
de seu território.

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O respeito à diversidade da natureza e a responsabi-


lidade de conservar essa diversidade definem o de-
senvolvimento sustentável como um ideal ético. A
partir da ética do respeito à diversidade de culturas
e de sustentação da vida, base não apenas da sus-
tentabilidade, mas também da igualdade e justiça.
(KOTHARI apud SACHS, 2004, p. 67).

A aplicação de um currículo capaz de proporcionar o enten-


dimento das diferenças é fundamental no ofício, no processo de en-
sino-aprendizagem e na compreensão da sustentabilidade. Por meio
do ensino, esse vínculo com seu espaço pode contribuir para que o
estudante, ao perceber-se diferente e ao manter uma relação de alte-
ridade, tenha condições de compreender sua singularidade em uma
construção histórica. Ao mesmo tempo, possibilita ao aluno tornar-
-se um cidadão capaz de respeitar particularidades e ser competente
para enfrentar o mercado de trabalho, a partir da sua concepção de
sujeito protagonista e responsável pela manutenção de uma herança
deixada pelos seus ancestrais.
Por outro lado, o artigo 26 da LDB, que estabelece a neces-
sidade de reconhecer, por meio do currículo, as especificidades nas
quais o(a) educando(a) está inserido, nos induz a compreender as
mudanças na concepção teórica e conceitual do que vem a ser cur-
rículo de fato. Desse modo, se numa visão tradicional este não pas-
sa de um conjunto de fatos e informações selecionadas para serem
transmitidas, na pedagogia contemporânea é ele o responsável pela
aplicação de práticas não deterministas e carregadas de significados.
Segundo Silva, a escola diferenciada é:
O lugar onde a relação entre os conhecimentos
tradicionais e os novos conhecimentos deverão se
articular de forma equilibrada, além de ser uma
possibilidade de informação a respeito da socieda-
de nacional, facilitando o “diálogo intercultural” e
a construção de relações igualitárias fundamentadas

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no respeito, reconhecimento e valorização das dife-


renças culturais entre os povos indígenas, a socieda-
de civil e o Estado. (SILVA, 1998, p. 31).

Ainda, na perspectiva de Grupioni:


Esse discurso, da educação diferenciada como direi-
to dos índios, se estrutura pela negação da escola
indígena vigente e pela afirmação de um novo con-
junto de premissas que deveria orientar sua trans-
formação. É, assim, pelo rechaço de práticas e ideias
que esse discurso se constrói como inovador e busca
alcançar legitimidade, a ponto de se impor hegemo-
nicamente nos anos seguintes. Em contraposição
a uma escola que se constituía pela imposição do
ensino de língua portuguesa, pelo acesso à cultura
nacional e pela perspectiva da integração é que se
molda um outro modelo de como deveria ser a nova
escola indígena, caracterizada como uma escola co-
munitária (na qual a comunidade indígena deveria
ter papel preponderante), diferenciada (das demais
escolas indígenas), específica (própria a cada grupo
indígena onde fosse instalada), intercultural (no es-
tabelecimento de um diálogo entre conhecimentos
ditos universais e indígenas) e bilíngue (com a con-
sequente valorização das línguas maternas e não só
de acesso à língua nacional). (GRUPIONI, 2008,
p. 36-37)

A partir dessa nova determinação, a educação escolar em con-


texto indígena, a exemplo do povo Tupinambá, os quais em muito
se assemelham com os Potiguara da Paraíba, passa a ser entendi-
da como um instrumento de luta, de afirmação de identidade, de
construção cultural, de valorização da tradição e dos saberes indí-
genas. A educação escolar é pensada e construída a partir de outras
referências e outras intencionalidades. A escola é, portanto, projeto
de autonomia e deve servir para a autodeterminação indígena. Da
mesma forma, as práticas de educação tradicional devem e precisam
dialogar com os saberes produzidos na e pela escola. Talvez essa seja
a fala da Cacique, citada e refletida no início do texto, ao pensar na
luta pelo seu território como espaço que deve ser preservado para
seus descendentes.

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Conforme o Referencial Curricular Nacional para as Escolas


Indígenas:
Pode-se afirmar que as sociedades indígenas pos-
suem um conhecimento minucioso do meio natural
e que reconhecem não somente a diversidade bio-
lógica (variedade de espécies da fauna e da flora),
como também a diversidade ecológica (variedade de
ecossistemas). Atualmente é bastante reconhecida a
contribuição das sociedades indígenas na ampliação
e manutenção da diversidade biológica. A discussão
atual sobre biodiversidade passa pelo respeito e pelo
reconhecimento da existência de sociedades diversas
e diferenciadas, como as indígenas. [...] Embora os
povos indígenas tenham grandes conhecimentos e
saibam utilizar os recursos naturais de seu territó-
rio, suas relações com a natureza são mais do que
o conhecimento da biodiversidade e de técnicas de
manejo. (BRASIL, 2005, p. 258)

Ademais, como afirma Muñoz,


A comunidade indígena tem em sua versão local o
espaço que ordena e se reconhece organizador da
vida e da convivência, experimentando-se mun-
do de aprendizagens e de solidariedades mediante
diversas estratégias éticas e de representação da or-
dem. O pensar e o sentir do homem da terra vai
conformando-se num sentido de convivência amo-
rosa para a mãe-terra que se expressa em valores de
cuidado e respeito, que os ambientalistas reconhe-
cem como proteção e uso apropriado dos recursos
naturais. (2003, p. 300)

No imaginário indígena, o espaço é “espaço concreto”, “geo-


grafia sagrada”, prolongamento do corpo, definidor da identidade
do sujeito, na medida em que esse espaço se apresenta carregado de
memória, entidades sagradas, ancestralidade, tradição e concepções
mítico-poéticas que rememoram e reconfiguram os sentidos de estar
no mundo.
Como sugerem Salinas e Núñez:
A vertiginosa mundialização nos sugere conceitu-
alizar a cultura global em termos de diversidade,
variedade e riqueza de discursos, códigos e práticas
populares e locais que resistem e contestam a siste-

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maticidade e a ordem [...] Neste contexto, parece ser


que são os dispositivos sociais estruturantes da vida
cotidiana os que, em última instância, definem a na-
tureza social, política e cultural desta controvertida
relação entre diversidade ou heterogeneidade cultu-
ral e educação. (SALINAS; NÚÑEZ, 2001, p. 236,
tradução minha).

Nessa perspectiva, torna-se possível traçar um paralelo entre o


que pensa a liderança Tupinambá a respeito da educação diferencia-
da e a citação de Ignacy Sachs a respeito do legado que deve ser dei-
xado para as gerações vindouras: “a conservação da biodiversidade
entra em cena a partir de uma longa e ampla reflexão sobre o futuro
da humanidade. A biodiversidade necessita ser protegida para garan-
tir os direitos das futuras gerações” (SACHS, 2002, p. 67).

POSSIBILIDADES TRAZIDAS PELA LEI nº 11.645/2008

No Brasil, a Constituição Federal, por meio da Lei nº 9.394/96


e do Plano Nacional de Educação, determina que todo cidadão bra-
sileiro tem direito à educação, de qualidade e de acordo com as rea-
lidades de vida de cada grupo social nas quais a escola está inserida.
Partindo desses dois pontos, será apresentado um conjunto de refle-
xões a respeito da importância da Educação Infantil para a aplicação
das Diretrizes Curriculares no ensino da História dos índios brasi-
leiros, a partir do que determina a Lei nº 11.645/2008; bem como
serão apontados caminhos para a efetivação de uma educação capaz
de possibilitar uma relação respeitosa e de valorização para com a di-
ferença cultural, no caso da proposta deste trabalho, com a diferença
em relação às histórias e culturas indígenas em nosso país.
O foco deste trabalho é a modalidade Educação Infantil, ga-
rantida a toda criança brasileira com idade entre 03 e 06 anos. De
acordo com o PNE, a Educação Infantil é a primeira etapa da Edu-

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

cação Básica, em que a criança deve desenvolver competências e ha-


bilidades, nos seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social,
complementando e sistematizando de maneira bastante diversa as
relações e os valores transmitidos pela família e pela comunidade a
qual a criança está envolvida. Partindo dessa concepção, vêm à tona
um fato e um questionamento: o primeiro é o fato de que, nessa fase,
no momento em que as construções sociais são estabelecidas fora do
âmbito familiar e dos espaços coletivos de comunidade, a criança é
convidada a perceber o outro, a perceber a diferença e a aprender a
conviver com essa diferença.
Contudo, nosso País, mesmo legitimando por meio de sua
legislação educacional o processo de formação básica, não consegue
atender a uma proposta de educação voltada para o respeito à dife-
rença. Questionam-se, assim, quais fatores implicam nesse entrave?
Se é a educação a responsável por formar sujeitos para o exercício da
cidadania, em que momento ou em que circunstância esse processo
não consegue alcançar sua finalidade? Para responder tal questio-
namento é preciso mergulhar, não unicamente no universo infan-
til de aprendizagem, mas também nos instrumentos utilizados por
essa modalidade de educação no diálogo desse conhecimento, como
também na formação específica do profissional que deverá atuar nes-
se contexto.
No caso da Educação Infantil brasileira, por meio da análise
do material didático destinado a esse público específico de alunos,
verifica-se uma ausência da diversidade. Ainda estruturado em uma
concepção eurocêntrica de “educar”, as escolas brasileiras ignoram a
presença de uma diversidade étnica, colocando sempre os indígenas
em um passado constante e os negros em um papel de submissão.
Dessa maneira, se enraíza um preconceito, que será disseminado por
toda a vida do indivíduo, já que, no momento inicial do estabele-

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cimento de relações, ele foi orientado a ver essas relações por um


prisma de conceitos já previamente estabelecidos e carregados de sig-
nificados, quase sempre negativos.
Nesse sentido, a Educação Infantil está justamente na condi-
ção primordial de toda a construção de ideais que, muitas vezes, são
descritas como utópicas. No entanto, é preciso compreender que es-
ses ideais são capazes de sanar lacunas da omissão dos povos estabele-
cidos como vencidos em toda a História de nossa Nação, indo além
do que pode ser visto como uma necessidade latente de mudanças
no que se refere à construção didática de materiais, até porque essa
mudança já está preceituada nas prioridades do Plano Nacional de
Educação, tanto para a Educação Indígena quanto para o Ensino
regular.
Garantir a transformação dos sistemas educacionais
em sistemas educacionais inclusivos e a afirmação
da escola como espaço fundamental para a valori-
zação da diversidade, da Educação Ambiental e do
desenvolvimento sustentável, superando, assim, o
trato desigual dado à diversidade ao longo da nossa
história, garantindo a universalidade dos direitos,
superando as desigualdades sociais (BRASIL, 2000).

Partindo dessa visão, elenca-se um segundo ponto de debate a


respeito da infância no contexto escolar, ou seja, as relações étnicas
e raciais. Com o advento da Lei nº 11.645/08, a qual instituiu a
obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena nos currículos escolares, ampliou-se as possibilidades curri-
culares, permitindo o empoderamento dos educandos e dando-lhes
a oportunidade de conhecer outras visões de mundo e de ter novos
diálogos de saberes. A lei em vigor, nesse sentido, deve ser percebida,
não unicamente como política pública de reparação, o que não limi-
ta seu teor de atuação legal, mas, ao aplicá-la na Educação Infantil,
como um dos alicerces para o enfrentamento no que tange às rela-
ções de pessoas e indivíduos no âmbito escolar.

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Nas diretrizes destinadas à Educação Infantil, a mesma é vista


como etapa da educação básica, onde ocorre a construção da perso-
nalidade humana, a motivação de habilidades e inteligências para a
atuação na vida emocional e na socialização. Portanto, é na infância
que o mundo do outro deve ser apresentado; ora, se são as primeiras
experiências de vida que marcam mais profundamente as pessoas,
deverá ser nas primeiras experiências, também, que o mundo do ou-
tro deve ser apresentado.
As visões de mundo e a cosmologia dos povos indígenas são,
sem sombra de dúvida, um dos mecanismos eficientes para a moti-
vação da criatividade e o despertar da imaginação necessária para a
criança no início de sua vida escolar. Assim como as observações do
espaço e a contagem de ciclos, instrumentos preponderantes para
o desenvolvimento da inteligência espacial e lógico-matemática, a
relação com a natureza, muito explorada na educação diferenciada
indígena, é eixo norteador ideal para a construção do conceito de
sustentabilidade, ainda tão pouco explorado na Educação Básica.
Um ponto-chave para esse debate é a falta de formação do
professor para estabelecer essas relações. O profissional de educa-
ção contemporâneo, ou mesmo aquele que atuou antes da última
década, não possui uma formação específica para conhecer e refletir
sobre essas realidades; o mesmo, em seu processo de educação eu-
rocêntrica, pelo contrário, foi levado a não perceber tais diferenças.
Por outro lado, os profissionais do magistério indígena, mediante as
suas lutas específicas, muitas vezes não tiveram a oportunidade de
levar esses conhecimentos específicos para outros espaços de saberes
que não as suas determinadas aldeias. Partindo desse pressuposto,
apresenta-se, a seguir, a possibilidade de um grande diálogo pensado
na infância.

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A Educação Infantil, para os povos indígenas de forma siste-


matizada, considerando os padrões estabelecidos na LDB, é ques-
tionada por muitas comunidades, haja vista ser nessa fase que as
crianças indígenas buscam justamente as suas respostas para a com-
preensão do seu mundo. Em virtude disso, se faz necessário em mui-
tas comunidades um processo diferenciado, visto que é no cotidiano
que esse processo acontece: nas experiências das roças, nas estratégias
de caça, nas tecnologias de construção ou mesmo nas expressões ar-
tísticas de pintura corporal que o aprendizado ganha sentido. Con-
tudo, ao pensarmos em uma educação em que as relações do Eu e
do Outro se tornem pontos essenciais de encontro, contato e trocas,
essa Educação Infantil, além de propiciar a formação desse indígena
para vida, cria para ele também a possibilidade de escolha; por outro
lado, oportuniza uma promoção correta e ampla nas escolas não in-
dígenas, no que tange às sociedades e culturas indígenas como meios
de combate ao desconhecimento e à intolerância, conforme preveem
os objetivos e as metas da Educação Indígena.
A Educação Indígena, diferenciada e bilíngue, é garantida a
todos os povos indígenas a partir de suas especificidades. O direito a
esse processo educacional, o qual possui sua estrutura nos Referen-
ciais Curriculares para a Educação Indígena, é garantido pela Cons-
tituição. Mais uma vez, há aqui uma discussão acerca do avanço que
essa proposta apresenta para a Educação Básica regular, pois, se por
um lado o diferenciado apresenta inúmeras possibilidades de um
aprendizado fundamentado no experimento, a bilíngue desperta o
sentido de pertença. Ao aplicar conceitos dessa educação onde os
conhecimentos referentes ao cheiro da mata, ao gosto das frutas e à
temperatura da água do rio são saberes fundamentais para o que se
propõe, a escola, em sua função social, prepara o aluno para a vida.
A Educação Indígena apresenta, para o ensino regular, caminhos efi-

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cazes na exploração do lúdico, na compreensão de sustentabilidade,


na vivência comunitária, o que nos faz aqui chamar a atenção, mais
uma vez, para as trocas de experiências e suas marcas deixadas no
momento da infância. Como disse Gonzaguinha, ao compor Cami-
nhos do coração, somos as marcas das lições diárias de tantas outras
pessoas.

MATERIAL DIDÁTICO DIFERENCIADO

Com o advento da Lei nº 11.645/08, inúmeros instrumentos


pedagógicos passaram a ser desenvolvidos, buscando atender às ne-
cessidades específicas da lei. Cursos de formação e capacitação são
oferecidos em diversas modalidades específicas de educação básica
e superior, numa tentativa quase que desesperada de sanar lacunas
deixadas pelo processo de educação ao longo de toda a história edu-
cacional brasileira.
O formato de educação estruturado no Brasil deixou à mar-
gem de sua história os povos originários, buscando desenvolver uma
historiografia positivista em que os povos tidos como minorias fos-
sem excluídos ou mesmo apresentados de maneira distorcida e pejo-
rativa. Os livros didáticos reproduziram durante séculos uma visão
de passado distante e estratificação cultural dos povos indígenas e,
dessa forma, proporcionaram uma representação social completa-
mente negativa e irreal das realidades desses povos. Nesse sentido, é
essencial que os materiais didáticos sejam capazes de abordar essa vi-
são sem equívocos históricos e desprovidos de caráter de julgamento
cultural, a partir de uma visão eurocêntrica, herdada pela educação
até então questionada.
Assim, refletimos sobre o material pedagógicos apresentado
pelo Projeto Séculos Indígenas no Brasil, em uma coletânea onde o

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protagonismo indígena é destacado. Como ponto de partida, fun-


damentamos sua aplicabilidade à luz de toda discussão teórica que
incialmente pontuamos neste texto, visto que o material é capaz de
estabelecer conexões capazes de instrumentalizar professores indí-
genas e não indígenas na aplicação de seus conteúdos no cotidiano
escolar de maneira dialógica e multicultural. Por sua vez, as possibi-
lidades de interfaces entre os mais diversos componentes curriculares
são preponderantes no processo de interdisciplinaridade, proporcio-
nando, assim, uma percepção circular do processo ensino-aprendi-
zagem. Dessa forma, o educando passa a observar o outro a partir
de suas singularidades, encontrando suas próprias respostas para a
construção de sua percepção em relação ao outro.
Nos aspectos iconográficos, o material traz à tona um con-
junto de imagens as quais buscam despertar no aluno o sentido da
curiosidade, levando o mesmo a traçar paralelos das diversidades em
tempos e espaços distintos, proporcionando a quebra de paradigmas
passados que aprisionaram a imagem do indígena entre os Séculos
XV e XVII.
A ludicidade apresentada pelos jogos e pelas brincadeiras
desenvolvidas nas séries iniciais possibilita aos primeiros ciclos de
aprendizagem um contato com o indígena contemporâneo, fazendo
com que as gerações futuras se desvencilhem do conjunto de este-
reótipos de outrora, permitindo a construção de novos olhares e de
uma sociedade menos segmentada. Contudo, o ponto-chave desse
material está relacionado justamente com o protagonismo indígena
na concepção, construção e execução desse material, o qual apresen-
ta uma interpretação do próprio indígena a respeito de sua visão, no
que tange ao seu universo e à sociedade que o envolve.
Esse protagonismo é tão relevante que ultrapassa os limites
conteudistas da escolarização formal e inaugura uma nova percep-

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ção pedagógica ao falar do indígena brasileiro, tirando-o da figura


exótica e colocando-o na conjuntura atual em seus aspectos político,
social e econômico.
Essa percepção rompe com a imagem do indígena selvagem
ou romântico como aquele estabelecido na literatura brasileira, pois
ela escancara uma problemática e nos chama para o debate a respeito
do futuro que buscamos para o coletivo. Oportuniza à comunidade
escolar refletir sobre diversidade no sentido mais amplo de seu con-
ceito, desprovidos de valores discriminatórios e preconceituosos por
desconhecimento ou julgamento prévio ao prisma de uma sociedade
capitalista. As marcas desse protagonismo e a simbologia presente
nos registros indígenas, sejam eles de teor legal ou artístico, possi-
bilitam, a partir de uma estética bela, a identificação de imagens
identitárias nas quais as mais diversas populações indígenas no Brasil
possam perceber no seu espaço um campo aberto para as experi-
ências de aprendizagem, como as que desenvolvemos em meio aos
Tupinambá de Olivença.
Essas experiências, aplicadas à luz do material didático Séculos
Indígenas no Brasil, sinalizaram a composição de um conjunto de
atividades aplicadas nos mais diversos espaços Tupinambá, buscando
retratar a visão que os próprios indígenas possuem sobre seu territó-
rio, revelando um conhecimento ímpar que somente quem vive no
seu espaço há séculos é capaz de retratar. Essas atividades foram ca-
talogadas e, a partir de oficinas desenvolvidas por meio do Programa
Institucional de Iniciação a Docência-História PIBID/UESC, em
conjunto com a Escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença
(EEITO). Durante a aplicação das atividades em que professores in-
dígenas, alunos da Educação Básica e Bolsistas da Universidade pas-
saram a desenvolver, o ponto que mais se destacou foi a percepção
do eu étnico no material, descobrir esse eixo norteador foi essencial

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para o desenvolvimento de diversas atividades relacionadas ao meio


ambiente e aos demais elementos que estão presentes no território,
bem como suscitaram experiências com a língua indígena e com a
memória, além de aguçar a criatividade e a imaginação por meio dos
jogos propostos pelo material didático, por sua vez favoreceram um
diálogo multicultural entre ambos os processos educacionais, permi-
tindo a aplicação da Lei nº 11.645/08 de maneira eficaz e específica,
minimizando conflitos e permitindo um aprendizado contextuali-
zado.
Por outro lado, o material didático em questão valoriza a sa-
bedoria do ancião indígena, trazendo para o debate a questão dos
conhecimentos próprios do mundo indígena, muitas vezes questio-
nados pelos espaços acadêmicos. É relevante explicitar que durante
séculos esses conhecimentos vêm sendo desenvolvidos por meio do
empirismo e das observações diárias oriundas da relação íntima com
a natureza e com o espaço que o cercam. Esses valores, ao estarem
expostos no âmbito pedagógico, fazem da práxis uma ação contínua
de respeito a todas as fases da vida e amplia a discussão a respeito das
ciências indígenas.
As reivindicações do movimento indígena e os estudos de inte-
lectuais engajados têm alertado para a necessidade de contextualizar
os conhecimentos escolares a fim de que esses atendam à realidade
das comunidades indígenas e satisfaçam a necessidade de trabalhar
conteúdos nas escolas que atentem para a diversidade cultural do
País e assim corroborem o fim do preconceito e da discriminação
racial.
Nesse bojo, a Constituição Federal de 1988, a LDB 9.394/96,
o Plano Nacional de Educação e a Lei nº 11.645/2008 são percebi-
dos enquanto marcos legais dessas reivindicações. Embora o reco-
nhecimento legislativo represente um avanço, cotidianamente, pro-

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fissionais da educação encontram impasses relacionados à existência


de um currículo etnocêntrico, escassos investimentos na formação
dos profissionais da educação que contemple a história dos povos
originários, ausência de material didático que auxilie o professor no
estudo das temáticas indígenas ou, ainda, presença de materiais di-
dáticos que reforçam estereótipos e preconceitos vivenciados pelos
povos ameríndios.
Devido a essas questões vivenciadas cotidianamente e pela atu-
ação na Escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença (EEITO),
local onde se desenvolvem projetos que contemplam identidade, ter-
ritorialidade, cosmologia e sustentabilidade, por meio de oficinas
foram produzidas fontes à luz do material da Ação Educativa Sécu-
los Indígenas no Brasil, que auxiliou na construção de instrumentos
didáticos para serem utilizados em escolas regulares e diferenciadas.
Optar por associar o ensino de História Indígena na Educação
Infantil e estabelecer como recorte temático a sustentabilidade aten-
ta para a necessidade que se apresenta desde a infância de cuidar do
território como alternativa para a afirmação da identidade e desen-
volvimento de sentido de pertença, cultura e história. Isso influencia
na forma como os indígenas se percebem como protagonistas nos
mais diversos espaços de vivência, na escola e, futuramente, estabele-
cendo planejamento relacionado à gestão ambiental que tenha como
prioridade o bem da comunidade.

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VISÃO RELIGIOSA DE MUNDO E
ENSINO DE HISTÓRIA1

Leandro Antonio de Almeida

Águas Lindas de Goiás, jovem município fundado no final de


1995, ganhou o noticiário nacional por causa de uma questão reli-
giosa que dividiu a cidade, não apenas a população como também
os vereadores. O problema era saber quem seria o padroeiro local.
Quando fundada, o bispo consagrou Nossa Senhora Aparecida como
padroeira de Águas Lindas, mas os evangélicos reagiram e, através de
um Projeto de Lei aprovado na Câmara, mudaram o protetor para
Jesus Cristo. Em 2009, a decisão foi revertida, e Nossa Senhora foi
reconduzida ao posto. O argumento do autor da proposta foi que Je-
sus não poderia ser padroeiro porque isso seria rebaixá-lo, tendo em
vista que o Cristo era “o criador do mundo, o Deus do Universo”.
Outro vereador, protestante, ameaçou entrar na Justiça e propor um
plebiscito para que a população decidisse a questão. (OLIVEIRA,
2009, vídeo). Enquanto não se encontrava uma solução, as imagens
de Jesus e Nossa Senhora guardavam a entrada da cidade, em lados
opostos da estrada.
O caso acima evidencia, entre tantos outros exemplos que
poderiam ser elencados, o papel atuante da religião no mundo glo-
balizado, contradizendo pressupostos evolucionistas que nortearam
– e ainda norteiam – correntes teóricas das Ciências Sociais e da
História. Ao contrário da inevitável secularização e desencantamen-
to que avançariam sobre as sociedades conforme a modernidade e
1 Esse texto é uma versão ampliada daquele publicado em: ALMEIDA, L. A.
Concepção de mundo religiosa e Ensino de História. Anais do XXVI Simpósio
Nacional de História: ANPUH 50 anos. São Paulo: ANPUH, 2011. Disponível
em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312324345_ARQUI-
VO_ReligiaoAulaHistoria-r.pdf

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o desenvolvimento tecnológico as alcançassem, o que se assiste na


atualidade é a persistência e até o fortalecimento dos fenômenos re-
ligiosos. Geertz é contundente ao apontar que “foi a atenção das
ciências sociais que se desviou a outros campos, enquanto estiveram
dominadas por uma série de pressupostos evolutivos que conside-
ravam o compromisso com a religião uma força em declínio na so-
ciedade, um resíduo de tradições passadas inexoravelmente erodido
pelos quatro cavaleiros da modernidade: secularismo, nacionalismo,
racionalização e globalização.” (GEERTZ, 2006).
Mesmo com a diminuição da presença da religião no nível
macrossocial no Ocidente, ela permanece “com suas funções no ní-
vel micro social, onde ela provê as pessoas com complexos de sig-
nificados e símbolos suficientes para que elas orientem suas vidas
num mundo confundido pela complexidade e a mudança” (MO-
REIRA, 2007, p. 22). Este autor observa, também, as mudanças
pelas quais passa a religião, seja como sistema organizado ou como
prática cultural. Os sistemas religiosos defrontam-se cada vez mais
com concorrentes na explicação e sentido do mundo, como as ciên-
cias; na sacralização de aspectos da vida, como as artes, shows, mídia
etc.; e mesmo na explicação do além, com a criação de um mercado
mundial de bens religiosos possibilitados pela globalização e pelo
desenvolvimento dos meios de comunicação de massa a nível mun-
dial (MOREIRA, 2007, pp. 26-30). Essa pluralização, que atesta sua
persistência e força, nem sempre caminha no sentido da tolerância e
da compreensão, mas, por vezes, gera conflitos armados ou conten-
das simbólicas, como aquela empreendida em torno do padroeiro da
cidade goiana.
No momento em que assistíamos o citado telejornal, pergun-
tamo-nos como seria o Ensino de História no município onde ques-
tões religiosas ganhavam a atenção na cena política2, permeando os
2 Em nível nacional, pode ser lembrado o debate sobre aborto que envolveu os

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sentimentos dos cidadãos. O vereador defendeu sua proposta com


um argumento de dimensão cósmica, que relacionava a pequena
Águas Lindas a todo o Universo, concebido como criação divina.
Além disso, diferentes discursos (católicos e evangélicos) vinculavam
distintamente esse cosmos ao dia-a-dia, gerando disputa entre duas
visões de mundo. Se pouco influenciavam o âmbito material, ela era
importante na relação emotiva, identitária, com o município.
Em nossa atividade docente, notamos ambas as característi-
cas do discurso religioso – organização do cosmos e sustentáculo de
identidades – permeando as consciências dos estudantes na escola.
O objetivo deste artigo é refletir sobre o papel da visão de mundo
religiosa dos alunos nas aulas de História, assim como a postura do
professor desta disciplina escolar em relação ao tema.
O ponto de partida será a analise de dois casos que ocorreram
durante uma experiência docente na 7a Série do Ensino Fundamen-
tal II. Em seguida, serão abordadas questões históricas sobre a pos-
tura docente na aula de História e sugestões de encaminhamento das
mesmas, com vistas a possibilitar que a sala de aula seja um espaço
de diálogo livre, mesmo que conflitivo, entre visões de mundo dos
professores e dos alunos.

PERFIL DA ESCOLA

Em fevereiro de 2006, um recém-concursado professor de


História (este pesquisador), assumiu sua primeira turma numa esco-
la estadual da periferia de Carapicuíba, SP, coincidentemente onde
também morava. O Conjunto Habitacional Presidente Castelo
Branco, popular Cohab de Carapicuíba, como o próprio nome evi-
candidatos à eleição presidencial de 2010, dominado por argumentos religiosa-
mente fundados. No segundo turno da referida eleição, os marqueteiros sentiram-
-se obrigados a mostrar, em suas campanhas, que os candidatos professavam a fé
cristã e não aderiam ao ateísmo.

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dencia, é um bairro marcado por uma grande quantidade de prédios.


O primeiro conjunto foi inaugurado em 1972, e este, o Cohab-5,
em 1983-4. Por isso a densidade populacional é alta, tanto que o
bairro possui três escolas de Ensino Fundamental II e Médio.
A característica socioeconômica central é que foi concebido
como um bairro dormitório, destinado à moradia de operários, em
geral migrantes de outros Estados, que servissem às indústrias em
desenvolvimento da cidade vizinha, Osasco, dos anos 60 a 80. A
expansão do setor de serviços nos anos 90 e 2000 manteve a carac-
terística do bairro, habitado por operários de baixa renda, apesar da
expansão do comércio interno em garagens erigidas pelos moradores
(ALMEIDA, 2008).
A Escola Ana Rodrigues de Liso localiza-se na parte oeste do
bairro. É toda murada, com vários portões trancados que restringem
o acesso à secretaria e às salas de aula. Ambos não impediram um
assalto à mão armada na diretoria, no período em que lá esteve o
professor. A infraestrutura é bem conservada, havendo duas quadras
poliesportivas (uma coberta), um laboratório de informática com
dez computadores, uma sala de vídeo, uma biblioteca com inúmeros
livros novos (didáticos, paradidáticos, acadêmicos e literários), uma
sala de jogos e vinte salas de aula com lousa verde.
O professor ficou incumbido de lecionar para sete 7as Séries
do turno da manhã, com média de 35 a 40 por turma. O perfil era
de estudantes jovens, entre 13 e 14 anos, brancos, mestiços e negros,
com número aproximado de ambos os sexos. Os alunos, em geral,
provêm das ruas adjacentes, mas o colégio aceita matrículas de famí-
lias de outros bairros, Cohabs ou não.

ORDENANDO EVENTOS

O planejamento escolar esperava do professor que ele iniciasse


o ano pela história da evolução humana. Ao preparar as primeiras

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aulas, achou interessante a proposta do calendário cósmico de Carl


Sagan3, e decidiu trabalhar numa perspectiva da história cósmica se-
gundo o paradigma científico atual, para mostrar as diferentes esca-
las temporais. Planejou uma linha do tempo com o início no marco
fundador da história de nosso universo, o Big Bang, passando pela
formação da Via-Láctea, do Sistema Solar e do Planeta Terra. A li-
nha do tempo especificava-se com o início da vida, passando pelo
surgimento e morte dos dinossauros, desenvolvimento dos primatas
e aparição dos primeiros hominídeos, que deram origem ao homo
sapiens. Daí por diante, a linha seguia o ramo de eventos humanos
que o professor considerou significativos e já pertencentes ao tema
que deveria lecionar, como a pintura nas cavernas, surgimento da
agricultura e das primeiras cidades. Avançou um pouco no tempo
e inseriu temas que julgava de conhecimento dos alunos, como o
descobrimento do Brasil. A linha terminava nos dias atuais.
Enquanto planejava, o professor decidiu não “passar a maté-
ria”, mas propor uma brincadeira. Os estudantes receberiam uma
lista com os eventos embaralhados, fora de ordem, e seria sua tarefa
ordená-los segundo a cronologia do mais antigo para o mais recente.
Assim foi feito e o professor, ao analisar os resultados, ficou espan-
tado. Primeiramente porque, dos cerca de 300 alunos, dois ou três
acertaram a linha toda, e alguns se aproximaram da resposta consi-
derada correta, trocando um ou outro evento. O que mais lhe cha-
mou atenção, no entanto, foi que os erros crassos dos outros alunos
seguiram alguns padrões em todas as turmas. Para os estudantes, o
3 Na sua obra Os dragões do Éden e no primeiro episódio da série de TV Cosmos,
o astrônomo Carl Sagan apresentou uma analogia relacionando o tempo cósmico
e um calendário, fazendo a proporção com que os 13 bilhões de anos desde o Big
Bang coubessem em um ano. Assim, mais ou menos cada 500 anos de História
corresponderiam a um segundo do calendário. Por exemplo, 1º de janeiro à 00h00
seria o início do Universo, a Terra surgiria no dia 14 de setembro, o homo sapiens
aparece às 22:30 de 31 de dezembro e os europeus chegariam à América um se-
gundo antes da meia-noite do ano seguinte.

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Universo não começava no Big Bang (“formação do Universo”), mas


com a formação da Terra, ao que se seguia a formação do Sistema
Solar, da Via Láctea e do Universo, nessa ordem. Com relação à vida,
o surgimento e morte dos dinossauros precediam o aparecimento da
vida, e o ser humano às vezes surgia antes dos primatas e hominídeos.
Perplexo, o professor indagou aos alunos sobre suas respostas,
e notou que a ordenação dos eventos da História Natural eram for-
matados por uma visão religiosa, de base bíblica cristã. Por exemplo,
uma das alunas disse sobre o Universo que “Deus primeiro criou a
Terra e depois saiu criando o resto”; ou, sobre os dinossauros, que
“Deus criou os dinossauros, matou os dinossauros e depois criou
a vida como nós conhecemos”. Sobre a evolução humana, um dos
alunos mais estudiosos disse que “estudo isso para passar na escola,
mas não acredito em nada”, que evidencia a relação distanciada com
o assunto estudado, pouco significativo por não se coadunar com a
visão de mundo na qual foi socializado.
A experiência escolar narrada acima mostra como o professor
percebeu, na prática, um dos princípios de determinadas correntes
pedagógicas, como a de Paulo Freire (1986): é impossível ignorar o
que os alunos trazem para o momento educativo que é a aula. Mais
especificamente, para que uma aula de História ocorra, é preciso
levar em conta a visão de mundo dos estudantes, o que inclui pers-
pectivas religiosas as mais diversas, em geral cristãs.
Mesmo que o professor de História não seja cético, ateu ou
agnóstico, para empreender um ensino laico, ele concebe a religiosi-
dade no nível da intimidade e a transcendência como distante. Com
todas as controvérsias epistemológicas sobre o estatuto do conhe-
cimento histórico, este é tido como parte do paradigma científico,
logo, parte de uma cultura moderna na qual a realidade é vista como
desencantada, num mundo físico-químico-biológico regido por leis

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e processos naturais, e num mundo humano a este sobreposto, com


convenções sociais que estruturam dinâmica e diversamente as rela-
ções entre indivíduos, seu pensar, sentir e agir. Nada mais distante
de um meio social em que atuam sobre esta realidade, proposta pe-
las correntes científicas, consciências extrafísicas como Deus, anjos,
demônios, espíritos, orixás e elementais, com possibilidade de inter-
venções mágicas ou paranormais.
Por isso, em relação aos pares historiadores que atuam na Uni-
versidade ou na grande imprensa, os professores da Educação Básica
se encontram numa posição mais incômoda. No meio acadêmico,
os pressupostos formadores da visão de mundo já estão previamen-
te negociados, todo o debate recaindo nas reestruturações trazidas
pelas novas fontes ou revisões teóricas, que respondem a problemas
do campo historiográfico ou a questões sociais. De modo diverso,
os professores, em uma aula de História, não necessariamente par-
tilham os pressupostos que formam a visão de seus alunos, as quais,
“como representações do mundo que aspiram à universalidade e
são determinadas por aqueles que as elaboram, as religiões não são
neutras e impõem, justificam, legitimam projetos, regras, condutas
determinantes nas identidades culturais de pessoas, grupos, países e
sociedades” (SILVA, 2008, p. 206). A considerar os dados sobre reli-
giosidade no Brasil4, talvez possamos mesmo afirmar que sua visão é
minoritária, que o coloca na posição prévia de um estrangeiro.
Daí decorre, no caso citado acima, o espanto do professor de
História ao ler a linha do tempo de seus jovens alunos. Percebeu que
não poderia simplesmente “passar a matéria” e se deu conta de que
seus pressupostos não eram partilhados no que havia de mais fun-
4 O site do jornal O Globo, com base no censo de 2010 do IBGE, apresenta os
principais grupos quanto à religião: católicos (64,6%), Evangélicos (22,2%), Sem
religião (8%), Espírita (2%), Outras (3%), não sabe, não declarou (0,1%). O

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damental. Passou a entender que a sala de aula de História era uma


região de borbulhante fronteira cultural.

REAGINDO A OUTRAS CULTURAS

Outro caso significativo aconteceu com o professor nas mes-


mas classes de 7a Série, envolvendo a reação emocional dos estudan-
tes ao tema da matéria de História. Ao rever com os alunos a resis-
tência do negro e a presença da cultura africana no Brasil, assunto
do ano anterior, procurou escolher uma dimensão de interesse dos
adolescentes: a música. Para mostrar como artistas e ritmos brasilei-
ros evocavam a matriz africana, tocou em um CD player a canção
Dandalunda, na voz de Margareth Menezes5.
Ficou abismado com a reação generalizada em todas as tur-
mas. A grande maioria clamava “macumba!” enquanto o corpo pa-
rodiava gestos rituais das religiões africanas. Outros riam da música
e da encenação dos colegas. Outros ainda comentavam com o colega
do lado, com espanto, como o professor tinha coragem de trazer
uma música daquelas. Mas um dos estudantes evangélicos da 7ª G
não se conteve, levantou-se aos berros de “isso é coisa do demônio!
Tira a música, tira a música!”. O professor foi salvo da zoada geral
pelo sinal de fim de aula.
destaque é o aumento de evangélicos, que se acelerou desde 1991 (9,0%).
5 O encarte apresenta a seguinte letra: Bem pertinho da entrada do gueto / Um
terreiro de Angola e Ketu / Mãe maiamba que comanda o centro / Dona Oxúm
dançando Oxóssi no tempo/ Lá em cima no tamarineiro / Marinha da pipoca
ajoelha / Em janeiro, no dia primeiro / Desce o dono do terreiro / Coquê / Dan-
dalunda, maimbanda, coquê / Seu zumbi é santo sim que eu sei / Caxixi, agdavi,
capoeira / Casa de batuque e toque na mesa / Linda santa Iansã da pureza / Vira
fogo, atraca, atraca, se chegue / Vi Nanã dentro da mata do jejê / Brasa acesa na pi-
sada do frevo / Arrepia o corpo inteiro / Coquê dandalunda maimbanda, / Coquê
/ Dandalunda / Paira na beira / Dandalunda / Da cahoeira / Dandalunda / Paz e
água fresca / Dandalunda / Doura dendê / Coquê...

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Nas aulas subsequentes, este estudante abordava o professor


para conversar sobre religião. Perguntou-lhe se acreditava naquilo,
se gostava daquele tipo de música, se já fora num “lugar de macum-
ba”. O professor inicialmente sugeriu que ele procurasse conhecer
mais daquela religião, que, se possível, visitasse algum terreiro sério
que não veria nada de “demoníaco”, ao que foi replicado que só iria
com seu pastor, e o esperaria marcar dia e hora. O professor achou
melhor desistir da visita e mudar de abordagem, porque a exposição
da diferença estava gerando um impasse. Ao falar dos fundamentos
da História nas aulas seguintes, procurava exemplificar os dilemas
da tradução com exemplos tirados da Bíblia, e perguntava-lhe o que
achava do assunto ou o que seu pastor dissera a respeito. Ora ele
participava, ora observava a explicação com atenção.
Aulas depois, ao tratar da diferença entre versões da História,
o professor pediu que respondessem um questionário sobre se algu-
ma vez na escola houvera discrepância entre o que se falava em casa
e o aprendido na escola. O estudante respondeu que não, nunca
o assunto ou perspectiva dado na escola diferenciava do aprendido
em casa. O professor, ao olhar a resposta, comentou: “Como não?
Outro dia você discutiu comigo por causa de religião, não é?.” “Sim,
discutimos”. “Então...”. Atônito, o estudante, indaga: “Mas podia
colocar?”.
Este caso evidencia outras questões do ensino de História que
envolvem religião, além das já vistas. A primeira delas é a reação
emocional diante da diferença considerada tabu pelo grupo social,
manifesta de formas distintas pelos estudantes, todas como forma de
proteção – agressão verbal, risos, piadas, paródia. A atenção do pro-
fessor às reações afetivas aos conteúdos revela posturas cristalizadas,
em geral oriundas de socialização anterior à escola. Logo, a adesão
a uma visão de mundo não é apenas intelectual, influenciando na

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organização do conhecimento, mas também é emotiva. À ordena-


ção intelectual se sobrepõe uma ordenação de valores de objetos da
realidade numa escala multifacetada que vai do recomendável ao
proibido. Quando se ensina História e se apresenta visões de mundo
distintas, não apenas se reordena as categorias da realidade do estu-
dante, mas também se quebra vínculos afetivos e se questiona valores
arraigados.
Nem sempre a resposta a esse questionamento ocorre sem
conflitos entre autoridades diferentes, que manifestam perspectivas
distintas de mundo. Tanto é que, no caso, o convite à visita ao ter-
reiro foi condicionado pelo aluno à presença do pastor de sua Igre-
ja. Mais ainda, ao ser perguntado dias depois sobre conflitos entre
o espaço escolar e o espaço familiar ou confessional, o estudante
respondeu pela negativa, o que indica a falta de liberdade de con-
tradição já internalizada, cuja saída foi dar a resposta que julgava
esperada pelo professor, em detrimento do que pensava, até mesmo
“falseando” os fatos. Tal reação de um aluno da 7ª Série mostra que,
na sua trajetória escolar, o ensino de História não lhe ofereceu opor-
tunidades de questionar e discordar abertamente do saber histórico
escolar constituído.

RELIGIÃO E ENSINO DE HISTÓRIA

Curiosamente, a postura do professor de História parece mar-


cada por essa espécie de autoritarismo que concebe a necessidade dos
alunos serem iniciados num saber superior e importante, devendo
para isso ter sua visão de mundo alterada, destruída, para que se
aproximem mais da verdade e vivam bem.
Tal postura institucionalizada chegou por essas terras com os
colégios jesuítas por volta de 1500. Era preciso converter as almas

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gentias dos nativos, o que significava que deveriam aceitar a História


segundo a versão da Igreja Católica, ou seja, a teodiceia cristã. Sécu-
los mais tarde, quando o Estado português se consolidou em parte
do território americano ou quando o Estado brasileiro se formou,
o ensino de História religiosa dedicou-se à manutenção dos valo-
res cristãos nas almas dos pequeninos de pais católicos (BITTEN-
COURT, 2007). Para os privilegiados, havia escolas; para a popula-
ção livre e pobre ou escrava havia os catecismos, missas, procissões,
festejos etc.
Desde a década seguinte à independência política brasileira,
a História passou a ter uma função moral e cívica, de criar o sen-
timento de pertencimento à Nação e à civilização ocidental. Nas
poucas escolas existentes o professor era concebido como o agente
conhecedor por excelência da biografia da pátria e da civilização,
à qual os estudantes deveriam incorporar, a qualquer custo, com
métodos repetitivos ou punições hoje consideradas severas, à moda
dos jesuítas. Mas outro componente entrou em cena na segunda me-
tade do Século XIX: as visões naturalistas de história, que negavam
a validade da transcendência das visões de mundo anteriores, colo-
cando em primeiro plano os processos (e progressos) estudados pela
ciência. Desde então, até bem recentemente, nas versões oficiais dos
currículos prescritos e dos livros adotados, a narrativa da pátria deu o
tom (BITTENCOURT, 2007), aproximando-se mais da influência
católica a depender da capacidade de mobilização do clero brasileiro,
ou das concepções naturalistas, conforme a Igreja perdia espaço para
os tecnicistas ou intelectuais laicos.
Nos anos 80, tal visão se manteve, ou mesmo se aguçou, quan-
do as visões socialistas (marxistas) da História tiveram liberdade para
serem incorporadas aos currículos e livros didáticos de História. A
perspectiva da transformação social levava a encarar a religião como

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“ópio do povo”, um impeditivo para a formação da consciência crí-


tica do futuro cidadão engajado. Associada ao pensamento conserva-
dor, as visões religiosas de mundo eram consideradas etapa a ser su-
perada na formação do aluno. Com intenções transformadoras, mais
uma vez o professor era o portador de uma verdade, em nome da
qual se destruiria a cultura dos que aprendem. (FONSECA, 2006;
FONSECA, 1993)
No recente e vigente cenário multicultural, inspirado nas crí-
ticas à reprodução da visão de mundo das camadas dominantes da
sociedade, a atenção às múltiplas diferenças e sua relação desigual
de poder ganhou o primeiro plano. Além da classe social, percebe-
ram-se inúmeras identidades oprimidas e/ou ausentes do discurso
escolar, como as dos negros e indígenas, mulheres e homossexuais,
portadores de necessidades especiais, crianças e jovens, localidades e
regionalidades, minorias culturais, entre outros. Nesse momento, o
debate sobre a religião foi reconfigurado, dando-se relevo às religi-
ões de grupos sociais outrora perseguidos, em relação às quais ain-
da há muito preconceito social, sendo caso exemplar o candomblé.
(SILVA; FONSECA, 2007) Mas, aqui, a religião foi abordada como
uma forma de cultura à qual se devia conviver sem repressões, não
como uma pujante visão de mundo possível de ser habitada e com
status de diálogo sobre o mundo e a vida equânime ao paradigma
científico vigente.
Há riscos pedagógicos que comprometem a postura tradicio-
nal e a postura multicultural descuidada. A postura tradicional gera
um abismo entre o saber histórico escolar e o saber adquirido em ou-
tras esferas da vida, como na família, vizinhança ou na comunidade
confessional. Este saber, além de preceder o escolar, porque o aluno
tem contato com ele desde seu nascimento, costuma ser emocional-
mente mais significativo, porque provém de indivíduos aos quais o

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aluno se liga afetivamente. Dentre as figuras de autoridade com as


quais o estudante tem contato, o professor é a mais estranha, e pro-
vavelmente seu discurso tem menos força que o dos pais ou do líder
confessional. O resultado costuma ser o que o aluno da narrativa
disse sobre evoluçã, “aprendo para passar de ano, mas não acredito
em nada”, ou então respondendo questões sobre si mesmo apenas
para agradar à autoridade escolar que rege a sala de aula.
No caso do multiculturalismo, um grande risco para o pro-
fessor e os alunos de religião majoritária é que o estudo das religi-
ões (perseguidas ou não) seja esvaziada da sua densidade, caso seja
tratada como “adorno cultural” ou mera curiosidade, entrando no
reino dos costumes exóticos atribuídos a alguns segmentos (“ig-
norantes”) da sociedade. O perigo para o professor é assumir uma
postura paternalista, pregando tolerância às religiões, mas, como o
douto citado por Nietzsche, tendo fé “em sua própria superioridade,
na boa consciência da própria tolerância, na segurança simples que
permite ao seu instinto de considerar o homem religioso como um
tipo de valor inferior e colocado mais abaixo, da qual ele se libertou,
afastou-se e sobre o qual se elevou” (NIETZSCHE, 2005, III-58).
Menos agressiva, essa postura opera no mesmo campo arrogante do
tradicionalismo, e almeja alcançar os mesmos objetivos, apesar da
maior paciência no processo.

MEDIANDO RELAÇÕES

Como, então, encaminhar uma aula de História, sem recair


nos perigos da arrogância, ateia ou não, ou incorporar a ideia de
transcendência em história?
Talvez, o primeiro passo seja reconhecer o espaço da aula de
História como um caldeirão de visões de mundo (religiosas) muitas
vezes conflitantes, cujos pontos de contato são mais problemáticos

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que os vigentes entre os pares do meio acadêmico. Assim como o


antropólogo em trabalho de campo, o professor está diante de outros
sujeitos com os quais precisa estabelecer pontes de contato para que
seu trabalho seja possível de acontecer.
Daí que seja desejável iniciar os estudos de História com uma
intensa avaliação diagnóstica. A avaliação ideal seria próxima daque-
la realizada por Paulo Freire, levantando durante meses o modo de
vida de uma comunidade a se alfabetizar (FREIRE, 1986, cap. 3).
Obviamente, o professor de História não tem tanto tempo, mas tal-
vez algumas semanas no início do ano e algumas aulas no início de
cada unidade ou bimestre ajudem. O objetivo aqui não é apenas
saber o que os alunos sabem do conteúdo, mas principalmente como
elaboram o que já sabem, qual a matriz cognitiva e valorativa – in-
cluindo as emoções – a partir da qual filtram a fala do professor.
Na sala de aula, talvez o professor de História seja obrigado
a exercitar, sobretudo nos momentos de tensão, algumas reflexões
que o sociólogo Boaventura Souza Santos empreendeu no texto “Por
uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”. Ao
fazer uma crítica da razão da cultura ocidental (que na escola encon-
tra o professor de História como um dos representantes), aponta que
nenhuma cultura – nem a ocidental e laica – pode se arrogar ao es-
tatuto de totalidade. Por conceber que “todas as culturas são incom-
pletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo diálogo e pelo con-
fronto com outras culturas”, propõe então a hermenêutica diatópica,
uma espécie de tradução que “consiste no trabalho de interpretação
entre duas ou mais culturas com vistas a identificar preocupações
isomórficas entre elas e as diferentes respostas que fornecem a elas.”
A pergunta do sociólogo indiano Shiv Vishvanathan, citada no tex-
to, expressa claramente o dilema: “o meu problema é como ir buscar
o melhor que tem a civilização indiana e, ao mesmo tempo, man-

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ter viva a minha imaginação moderna e democrática” (SANTOS,


2000, p. 261 e ss.). Em termos de aula de História, talvez o dilema
para o professor seja como aguçar a curiosidade dos estudantes pela
perspectiva e temas da Historia e, ao mesmo tempo, não reprimir a
cultura e as tradições a que os alunos pertencem.
Lidar com o dilema significa encarar o professor como um
mediador implicado, um sujeito ativo na aula que possui uma visão
de mundo formada pelo conhecimento histórico em todas as suas
dimensões (temática, metodológica, teórica, epistemológica, social).
Se é nocivo negar a visão dos alunos, pior ainda é subtrair-se, negar
a perspectiva do historiador. Ao contrário, talvez os debates levem o
professor cada vez mais explicitar suas fontes e objetos, seus critérios
de verdade e validade, as críticas feitas a outras perspectivas de mun-
do, assim como os limites de seu conhecimento. Pois, como lembra
Boaventura, “os topoi que cada saber ou prática traz para a zona de
contato deixam de ser premissas da argumentação e transformam-se
em argumentos” (2002, p. 272). Assim, nessa região de fronteira
cultural que é a sala de aula, lecionar História torna-se uma inces-
sante e argumentada proposta de ver a realidade com outras lentes,
cuja validade e serventia ficarão a cargo dos alunos – durante e após
sua vida escolar.
Mas nada funcionará se o professor não abandonar a interio-
rizada postura autoritária da catequese. A função do professor de
História vai além do “passar o conteúdo”, entendendo-o atualmente
como a pertinente apresentação de temas que possibilitem ao es-
tudante compreender, de forma significativa, o que é, assim como
outras formas diferentes de ser. Vai além, também, de iniciá-los nas
competências e habilidades do historiador, uma das partes impor-
tantes do seu ofício docente, por possibilitar ao futuro cidadão se
situar criticamente na tão desigual sociedade brasileira atual. O pri-

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mordial da postura docente em História é a criação de um espaço


para o aluno se expressar e discordar, mesmo no mais fundamental,
a partir de sua visão de mundo. Por exemplo, vimos que a equivalên-
cia de todas as religiões, e a tolerância, pressuposto das concepções
laicas, nem sempre são imediatamente aceitas pelos alunos. Então,
não devem ser apenas postuladas no início da aula de História, mas
ser árdua e argumentadamente construídas.
Os dois casos escolares apresentados mostram como as ques-
tões e categorias que moveram os habitantes de Águas Lindas de
Goiás a se digladiarem simbolicamente por um padroeiro estão pre-
sentes no ambiente da periferia da maior região metropolitana bra-
sileira. Ao secular debate religioso dentro do meio cristão se acres-
centou, a partir do Século XIX, o discurso laico e desencantado, que
na atualidade chega à população principalmente pela escola e, em
especial, pela aula de História.
Entendemos que o professor não pode fugir ao debate nem
desqualificar o que os alunos trazem, implícita ou explicitamente,
mas pode acolher (não assumir) seus anseios na aula. Os resultados
talvez não sejam imediatos nem visíveis, mas consideramos mais efe-
tivos.
Cerca de dois meses depois o professor teve que deixar as tur-
mas e a escola. Alguns estudantes sentiram-se felizes com sua saída,
pois não suportavam mais sua presença. Outros não esboçaram re-
ação alguma. Poucos manifestaram pesar pela sua saída, demons-
traram carinho e agradecimento pelo período em que ele lá esteve.
Com lágrimas, um dos que mais lamentaram sua ausência foi o es-
tudante do qual discordara sobre o candomblé. Pediu-lhe para ficar,
terminar o ano, e disse que fora ele um dos melhores professores que
tivera em sua vida.

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O depoimento espantou o professor, pois este julgava que


aquele aluno ficaria feliz com sua ausência. Percebeu que o havia
marcado, mas, no momento, não entendeu porque, e talvez nunca
saiba inteiramente a resposta. Imagina que, mesmo fugaz e involun-
tariamente, ao aceitar a discordância, propiciou-lhe um espaço para
contestar a autoridade estabelecida em nome do que se acredita. Pro-
vavelmente o estudante nunca tenha tido a oportunidade de exercer
tal contestação fundamental sem violências emocionais, simbólicas
ou mesmo físicas. Naquele fugaz momento, a aula de História talvez
tenha propiciado um espaço de liberdade.

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REFERÊNCIAS

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Mídia, noticias e audiovisual

DANDALUNDA. Composição de Carlinhos Brown. Margareth


Menezes. Festival de Verão Salvador, 2004. TV Globo. Bahia Even-
tos. 01 CD áudio, faixa 13.
OLIVEIRA, Rinaldo. Goiás tem “guerra santa” para disputa de
padroeiro. Band News, segunda, 11/maio/2009 às 7h36min. Ví-
deo, 1’36’’. Disponível em: http://terratv.terra.com.br/Especiais/Noti-
cias/4416-232967/Goias-tem-Guerra-Santa-para-disputa-de-padroeiro.htm.
Acesso em: 20 de março de 2010.

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O GOSTO PELA HISTÓRIA:
NARRATIVAS DE PROFESSORES1

Maria Antonieta de Campos Tourinho

Gostar, no Aurélio, significa: “achar bom gosto ou sabor; sentir


prazer; ter afeição; dar-se bem; ser compatível; experimentar, gozar,
fruir”.
Será que estes significados frequentam as aulas de História?
Para refletir sobre esta questão retomo a minha experiência
com o ensino de História para alunos do então 1° e 2° Graus, fazen-
do uma analogia com o meu atual ofício que é o de ensinar a ma-
téria Didática e Práxis do Ensino de História a futuros professores.
Considerando que esses dois momentos da minha vida profissional
se interligam, pois questões fundamentais, que atualmente perpas-
sam o meu trabalho, foram geradas e refletidas a partir da minha
experiência como professora destes graus de ensino, retorno ao ano
de 1968, quando, após concurso para ensino público, enfrentei, pela
primeira vez, a sala de aula em uma conjuntura política marcada pela
ditadura militar e, particularmente pelo AI 5, que dificultava diálo-
gos que pudessem transformar o ensino e a aprendizagem em um
processo mais prazeroso e consistente. O estabelecimento do tecni-
cismo – reformas efetuadas no ensino a partir de 1971 – vem agravar
a aridez que rondava as tentativas de um ensino mais significativo, o
qual esbarrava em outro obstáculo desanimador: a falta de interesse
do aluno. Na minha experiência como professora de estágio, tenho
vivenciado o desânimo e a frustração nas falas (muitas vezes carre-

1 Conferência proferida no encerramento do II Encontro Estadual de Ensino de


História: O ensinar História no Século XXI: dilemas e perspectivas da educação
histórica na contemporaneidade, promovida pelo GT de Ensino de História da
ANPUH/BA, no dia 15.05.2013.

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gadas de desencanto) dos professores das escolas, com quem tenho


contato no período de estágio. Apesar de reconhecer que esse desin-
teresse pode pressupor também um interesse e é comum a todas as
disciplinas, localizo-o, particularmente nas especificidades do ensino
de História, que não responde às necessidades mais imediatas do alu-
no, o qual, por sua vez, não consegue apreender a sua importância
em toda a sua sutileza: o imbricamento de sua dimensão existencial,
do ser, como indivíduo, com a sua dimensão social do ser coletivo.
Se o ensino de História, por demandar percepções mais sutis
sobre sua importância, tem as suas especificidades, talvez a maior
delas seja ter como uma de suas matérias-primas a relação passado-
-presente. O que fascina e/ou entedia. Em observações de estágios já
notei alunos com a cabeça deitada no braço estendido sobre a mesa
ou com o olhar perdido no horizonte – imagens que revelam um
profundo tédio – mas também vivenciei momentos de muita sinto-
nia de alunos com a História.
Em uma oficina intitulada A Cidade do Salvador: cenários e
histórias, realizada em uma escola pública de Salvador, a história
desta cidade foi estudada desde a colonização até a modernidade,
com aulas na escola e nas ruas. Nesta oficina, esta sintonia fica bem
evidente nos depoimentos dos alunos, recolhidos quando foi feita a
avaliação das aulas. Tatiane, opinando que o projeto dos alunos da
UFBA sobre a cidade do Salvador, “contando a sua história desde os
primórdios até os tempos modernos”, foi muito interessante. Desta-
ca que este projeto “revelou a identidade da nossa cidade de maneira
divertida e prazerosa”. Rebeca reforça este lado prazeroso: “Na rua,
no museu, no ônibus, nós nos sentimos confortáveis e à vontade
para aprendermos e perguntarmos sobre tudo que sentíamos... Va-
leu!!!” No que é secundada por Caroline: “Uma coisa que eu achei
bem legal foi o jeito que os professores ensinavam. Eles passavam

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para a gente a história de Salvador sem que a aula ficasse chata”. Para
Noemi, Salvador tem uma história “bonita e difícil de ser entendida
e deve haver algo a mais escondido nessas histórias das histórias.
Ficamos perplexos com o que ouvimos, vimos e aprendemos no de-
correr das aulas tanto práticas como teóricas”. Rômulo nos agradece
por termos “valorizado os alunos da escola pública e terem dado um
incentivo para nós, futuros cidadãos”.
O projeto também proporcionou uma mudança em relação ao
gosto pela História: Marcus, ressaltando que fez amigos “que apesar
de estudarem na mesma escola ainda não os conhecia”, declara: “por
causa desse curso estou pensando em fazer História”; Andréia revela:
“Para mim não teve época melhor, afinal eu nunca gostei muito de
História, mas com as aulas aprendi um pouco mais de uma cidade
tão especial como Salvador”; Vanessa reforça: “Para mim, que detes-
to História, foi muito proveitoso”; Artur finaliza:
Tudo isso graças às benditas aulas que recebemos
nos últimos dias... Se antes desse curso eu tinha al-
guma dúvida que profissão seguir agora não tenho
mais, também com boas influências... E vocês com
essas belíssimas aulas nas tardes de sextas-feiras... E
tudo a 0800. Agradeço a todos.

A ambivalência em relação à História vai além da escola e


atinge o público em geral. Le Goff (1982, p. 11), referindo-se ao
interesse do grande público pela História, comenta: “Se lançarmos
um olhar pela imprensa, pelas revistas, pelos livros [...] pelo número
de obras históricas publicadas pelas editoras e pelas respectivas ven-
das, o triunfo da História é inegável; é uma realidade para a qual os
próprios interessados não estavam preparados”. Esse “sucesso” pode
ser, em parte, explicado pela renovação que passou a historiografia
contemporânea que, se aproximando da literatura, da antropologia,
da geografia, da lingüística, ampliando e diversificando os seus te-
mas, possibilitou a abertura de espaços para outros sujeitos histó-

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ricos como mulheres, crianças, índios, negros, prostitutas, bruxas,


vencidos, marginais, excluídos – os quais se tornaram também atores
da História.
Para Duby (1987, p. 136) esse “gosto cada vez mais vivo pela
História”, que se manifesta a partir de 1970, permite que alguns
historiadores de profissão decidam não mais escrever apenas para os
seus colegas ou seus alunos, e a História “aliando o rigor e o gosto
pela descoberta à elegância do estilo”, volte a ser “o que fora em
França no Século XIX: um gênero literário muito fértil”. Essa “aber-
tura brusca, vertiginosa, para uma audiência imensa, heteróclita,
imperceptível”, que acolhe também a expressão através de imagens,
inquieta os historiadores que, mesmo assim arriscam e se saem bem.
Pinsky, em seu livro Por que gostamos de História (2013, p. 11),
ressalta: “As pessoas gostam de História, este é um fato. E buscam
nela não os fatos em si, mas o significado humano que eles adqui-
riram.” Também concordando com Le Goff (1982) e com Duby
(1987) sobre a popularidade da História na atualidade, destaca que
esta declaração de amor à História:
Vem respaldada por números muito expressivos de
venda de livros da área, escritos ou não por historia-
dores de ofício. Se acrescentarmos às obras especifi-
camente históricas os romances históricos, as bio-
grafias e, ainda, a “militária” (livros sobre estratégias,
guerras e guerreiros), veremos que o setor é muito
querido e repete por aqui o sucesso que tem con-
quistado em muitos outros países. (PINSKY, 2013,
p. 19).

No capítulo com o título significativo de A Hora e a Vez da


História, ainda referindo-se a esta popularidade, defende que “a His-
tória é a bola da vez” pois “as grandes livrarias destinam algumas das
melhores estantes e balcões a livros de História. Romances históricos
estão entre os best-sellers no mundo todo. Revistas destinadas à Histó-
ria, sejam científicas ou de divulgação, têm cada vez mais sucesso”

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e neste contexto “o historiador está sendo cada vez mais valorizado.


[...] Profissionais da História são chamados para explicar o mundo
na mídia. Já há historiadores trabalhando com planejamento urba-
no, com projetos turísticos, como consultores editoriais e empresa-
riais”. (PINSKY, 2013, p. 22).
Justifica este interesse pela História a partir de dois motivos. O
primeiro é que temos enorme curiosidade em saber de onde viemos,
onde estão nossas raízes familiares, étnicas, nacionais, culturais já
que visitar e compreender o passado é uma tentativa de nos enten-
dermos melhor. O outro motivo é explicado, ou melhor, foi expli-
cado pelo dramaturgo grego Sófocles, há 25 séculos. Ele dizia que,
de todas as maravilhas do mundo, o homem é a mais interessante
para os próprios seres humanos. (PINSKY, 2013, p. 20). Também
Veyne (1998, p. 69), em um texto no qual reflete sobre a histori-
cidade do interesse pelo passado, indagando por que o homem se
interessa pelo seu passado, salienta que não é porque ele seja um ser
histórico, pois ele também se interessa pela natureza, mas por duas
razões fundamentais: a primeira, por pertencer a um grupo nacional,
social, familiar... o passado desse grupo tem um atrativo particular;
a segunda “é a curiosidade, seja anedótica ou acompanhada de uma
exigência de inteligibilidade.”
Alain Corbin, em entrevista publicada na Revista Brasileira de His-
tória (2005) e intitulada Alain Corbin o prazer do historiador, entabu-
la o seguinte diálogo com o entrevistador:
– Laurent Vidal: O senhor pode nos explicar como
surgiu seu gosto pela História?
– Alain Corbin: Isso é difícil... Lembro-me que,
quando eu estava no colégio, gostava da História,
mas nunca me questionei. Depois, já na univer-
sidade, eu me disse: “vou fazer História”. O que
aconteceu? Eu creio, de fato, que isso responde, em
primeiro lugar, a uma curiosidade, que me parece
fundamental: “Estamos aqui. Como eram as pessoas
antes de nós? Como viviam?”. Essas questões propi-

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ciam uma verdadeira mudança de ares, e é isso que


atiça a curiosidade. Mas, parece-me também, em
segundo lugar, que é um prazer, que é preciso que
a História seja um prazer. Ouve-se dizer: “Ah! não
gosto de História!”. Não se deve fazer História se
não for com um grande prazer. Nunca tive a impres-
são, na minha longa carreira, de realmente trabalhar,
mas sempre de fazer o que me interessava. Chama-
va-se isso, na época clássica, o otium, o lazer cultiva-
do. E eu não lamento essa escolha. Essa curiosidade
com relação à História não se esgota, pelo contrário.
(VIDAL, 2005).

Em uma direção contrária e usando de ironia, Veyne (1998,


p. 73), declarando que a História é um produto dos mais inofensi-
vos que a química do intelecto jamais elaborou, considera que “ela
desvaloriza, desapaixona, não porque restabelece a verdade contra os
erros engajados, mas porque sua verdade é sempre decepcionante e
a história de nossa pátria se apresenta, rapidamente, tão enfadonha
como a das nações estrangeiras”.
Opinião não compartilhada por Pinsky (2013, p. 19), quando
afirma que para um historiador é sempre agradável constatar a sim-
patia com que as pessoas comentam sua atividade: “Puxa, se eu não
fizesse Medicina, faria História”; ou “adoro livros de História”; ou
“eu adorava as aulas de História no colégio”; e ainda “deve ser gosto-
so fazer pesquisa histórica”. Assim, revela ser partidário da existência
de uma paixão pela História, não apenas do público em geral, mas
também dos estudantes da Educação Básica.
Considero que as considerações de Veyne e Pinsky não dão
conta da diversidade de opiniões e sentimentos nem sobre Histó-
ria nem sobre o ensino de História. Quando iniciei minha pesquisa
de doutorado que resultou no texto O ensino de História: inventos e
contratempos, o projeto original se intitulava O despertar do interesse
pelo ensino de História: inventos e contratempos, já que centralizava
o meu objeto de estudo no interesse do aluno pela disciplina. No

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decorrer da pesquisa, muitas dúvidas e incertezas foram surgindo. A


dúvida fundamental prendia-se às possibilidades de um “despertar
do interesse pelo ensino da História”, anunciado no próprio título
original e que pressupõe a existência de um desinteresse difícil de ser
conceituado e, sobretudo de ser “medido”. Esta dúvida foi levanta-
da primeiramente por Carvalho (1999) no seu parecer sobre o meu
projeto, no qual considera que a História é popularmente atraente e
que só falar de desinteresse é fugir à complexidade do tema.
O que tenho observado, tanto quando atuei em sala de aula,
quanto como observadora de estágio, é que, apesar de História não
ser uma disciplina das mais apaixonantes, sendo em alguns casos até
mesmo detestada, a depender da maneira como ela for trabalhada,
esta visão de um estudo enfadonho pode se transformar em envolvi-
mento e curiosidade.
O gosto/desgosto pelo ensino de História e a transformação
do desgosto em gosto puderam também ser observados em outra
oficina intitulada A escola vai ao arquivo: um estudo dos levantes na
Bahia do Século XIX, que teve a intenção de realizar um estudo sobre
a Independência da Bahia, a Revolta dos Malês e a Sabinada, através
de aulas realizadas no Colégio Anísio Teixeira e da ida ao Arquivo
Público do Estado da Bahia para o conhecimento de documentos
sobre estes temas. Esta oficina foi considerada relevante pela pouca
ênfase dada aos estudos sobre a História da Bahia na Educação Bási-
ca, assim como pela riqueza documental encontrada no Arquivo Pú-
blico do Estado da Bahia sobre os referidos temas. O estudo destes
temas de nossa história consistiu numa tentativa de enriquecer e mo-
tivar a experiência do ensino e aprendizado, assim como sintonizar o
aluno com a História. As respostas dos alunos podem ser sintetizadas
nos seguintes depoimentos:
Paulo César: As aulas foram muito boas. Eu já gosta-
va de História do Brasil e agora gosto mais. Conhe-

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cer o Arquivo Público foi muito especial. Certamen-


te voltarei ao arquivo quando necessário. Existem
alguns fatos da história brasileira que desejo conhe-
cer mais de perto.
Bruna: Depois que eu entrei no projeto do arquivo
eu passei a gostar mais de História e entender um
pouquinho a história do Brasil. Eu odiava História
e agora dá para levar. Vejo vocês no arquivo um dia,
pois vai virar hábito ir pesquisar.

Enfim, fascínio e/ou tédio pela História – seja na visão dos


historiadores, na resposta do público em geral ou, mais especifica-
mente, na dos alunos da Educação Básica – é uma dicotomia que
demanda a incorporação dos professores de História neste universo
de gostos e desgostos e provoca a seguinte questão: Como o gosto
dos professores pela História pode possibilitar a sintonização do alu-
no da Educação Básica com o ensino de História?
Para que aconteça esta sintonização é necessária a construção
de um processo de ensino e aprendizagem que possibilite a cada en-
volvido com o objeto de estudo compreender-se como ser histórico
e, nesse mesmo movimento, compreender a História. E para que
este movimento aconteça, considero o gosto pela História de fun-
damental importância. Por isso esta questão tem intrínseca relação
com a matéria Didática e Práxis do Ensino de História, da qual sou
professora e, na qual, juntamente com os alunos, busco possibilida-
des de uma compreensão da História, tanto na sua dimensão exis-
tencial como coletiva, visando a formação de professores de História
para a Educação Básica. Apesar da discussão do gosto pela História
perpassar todo o curso, o momento mais propício para a sua emer-
gência é o período de estágio. Para refletir sobre a importância deste
gosto, me vali de narrativas extraídas de uma entrevista que fiz com
um professor de uma escola pública na qual meus alunos estagiavam
e de memoriais que os estagiários realizaram antes de entrar em sala
de aula sobre o despertar do seu gosto pela História.

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HISTÓRIAS DE UM PROFESSOR

Anos sessenta do século passado. Cidade de Nazaré das Fari-


nhas. Recôncavo da Bahia. Um menino pula o muro da casa do tio,
tendo como atração uma estante repleta de livros e de muito jornal
velho. A casa, a esta hora do dia, está vazia, porque o tio Miguel,
marceneiro que sai para entregar os trabalhos em outros locais da
cidade, é viúvo, com os filhos morando na Capital. Não é a primeira
vez que esta cena acontece. Desde que sua tia Teresa morreu, a casa
ficava sempre fechada e, de vez em quando, ele pulava o muro e ia
para este quarto, e sempre que a estante estava aberta, mexia naquele
material:
O jornal sempre me fascinou, aqueles jornais anti-
gos que eram jornais de lá da cidade e poucos jornais
daqui da Capital. Eu acho que foi a partir daí que
eu comecei a me entusiasmar na verdade com esta
coisa de mexer com esses livros, com esses jornais.
E, hoje em dia, eu penso que a minha relação com
a História ela se deu exatamente neste momento aí.

Esse menino, nascido em 1958, se chama Jorge Antonio do


Espírito Santo Batista e é professor de História da rede estadual e foi
com este relato que respondeu à minha solicitação para que fizesse
algumas reflexões sobre as suas primeiras sintonias com a História.
Conheci Jorge quando, em 1999, buscando mais uma vez o colégio
onde habitualmente realizava estágios de meus alunos, fui surpreen-
dida pela substituição de um professor anterior – com o qual eu já
vinha trabalhando há algum tempo – sucedido por ele. Fui surpre-
endida não apenas pela mudança, mas principalmente pela atitude
de Jorge durante o estágio. Ele não se limitava à assistência formal às
aulas dos estagiários. Desde os primeiros contatos até o fim do perí-
odo de estágio, sabíamos, eu e meus alunos, que poderíamos contar
com sua colaboração, que ia desde sugestões para o planejamento e

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avaliação até a viabilização de recursos, passando por uma perma-


nente troca de ideias.
Indagado sobre qual seria a importância de um aluno da Edu-
cação Básica estudar História, responde:
Bem, eu acho que eu responderia essa pergunta,
olhando até pra mim mesmo. Porque eu digo assim:
a minha vida mudou muito depois que eu fiz Histó-
ria porque você passa a ter consciência. Na verdade,
o que eu tento trabalhar com os alunos, com a dis-
ciplina, é que eu digo assim: eu trabalho com vocês
o que eu gostaria que tivessem trabalhado comigo.
Que você entenda História e que você veja qual a
importância da História na sua vida.

Jorge busca diversos caminhos para o ensino da História – tra-


balha também com música, imagens, teatro, mapas, linha do tempo
– porque acredita que, como a disciplina é tratada, e é ensinada, há
uma predisposição para se detestar História. “Então, eu encontro
muitos alunos que dizem isso para mim, que eu acho muito legal,
tipo assim: Olha, Jorge, eu não gostava de História, mas como você
está trabalhando a História, eu consigo entender que História não é
somente você decorar”. A princípio, a História é algo completamen-
te distante. Depois, os alunos começam a se entender como seres
históricos. Não são todos, porque muitos que estão na escola não
sabem por que estão lá. “Agora alguns, realmente, conseguem enten-
der qual o meu papel enquanto professor e por que alguns me acham
tão chato e tão exigente em sala de aula”. Jorge não pretende que os
alunos entendam a História, desde a antiguidade até a contempora-
neidade, mas que eles passem a entender a importância da História
na vida do ser humano.
Enfim, com seus acertos e desacertos, Jorge é um professor
comprometido com o seu trabalho, tendo um gosto pela História
que consegue ressoar em seus alunos. Estas foram algumas das his-
tórias que ele me contou. Muitas não foram relatadas aqui: as ex-

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periências em um colégio público e em um particular de Nazaré


das Farinhas; a cidade com seus edifícios históricos às margens do
rio Jaguaripe; a antiga estação de trem; a sociedade local com seus
costumes e divisão social; os professores, particularmente uma pro-
fessora de História; os banhos de rio escondidos... Escolhi aquelas
que considerei mais significativas para a formação do professor de
História que hoje ele é.
Por ter a crença de que o nascimento do gosto pela História,
em algum momento da vida, faz um diferencial nos seus professores,
tenho buscado perceber e discutir o nascimento deste gosto com
meus alunos, sobretudo através da elaboração de memoriais.

OUTRAS HISTÓRIAS

No texto O início da História e as lágrimas de Tucídides (GAG-


NEBIN, 1997, p. 18), a autora faz analogias entre Tucídides e He-
ródoto e defende como o contar histórias pode manter aceso o inte-
resse do ouvinte (ou do leitor). Eu acrescentaria: ou do aluno. A arte
do narrar pode ser um aliado do professor para despertar o gosto do
aluno pela História e essa arte pode ser enriquecida por um contato
do narrador com seu próprio gosto através da escrita de memoriais.
José Antonio (TOURINHO, 2004) intitula seu memorial:
Em busca de um marco histórico, mas depois de buscá-lo, “como se
ele fosse relevante, decisivo mesmo para a escrita deste texto”, ques-
tiona: estaria no zero em História, dado por um professor ranzinza
que lhe fez estudar muito e passar “direto”? Ou estaria na descoberta
da Biblioteca Central e seu “acervo maravilhoso”? Ou no interesse
pelas genealogias que lhe motivou a montagem de “uma de todos os
reis de Portugal desde a fundação do Estado até a proclamação da
república”? Chega à conclusão de que não conseguiu vislumbrar um
marco que determinasse o despertar pela História.

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História, na escola, era uma das poucas disciplinas que agrada-


va a Telma (TOURINHO, 2004). Contudo, admite que a história
política, privilegiada por seus professores no conteúdo da disciplina,
não lhe atraía: “Por isso mesmo, a escola não constituiu o meu maior
incentivador.” Ela inicia o seu memorial anunciando que a sua me-
mória pessoal, por vezes, se confunde com a da sua mãe. Foram
tantas histórias contadas a respeito de sua infância e por tantas vezes
repetidas, que tem na memória cada uma delas nos mínimos deta-
lhes. Logo passou a se interessar, não só pelas histórias de sua mãe,
mas também pelas de todas as pessoas idosas com quem teve con-
tato. Daí por diante, a curiosidade cresceu. Devorava fotos antigas,
atentando para os detalhes das roupas, cabelos, tudo servia de ponte
para explicações dos costumes das épocas refletidas em cada foto.
A paisagem denunciava os avanços técnicos, e logo se apressava em
saber da economia do lugar, do que viviam as pessoas, como as fá-
bricas surgiram, como beneficiaram a cidade e se ainda existiam. “O
bom apreciador de estórias sabe que a curiosidade é infinita, sempre
se tem mais a saber.” Percebeu, também, que o conteúdo histórico
nunca valorizava as mulheres enquanto agentes históricos, e que os
negros e índios eram vistos de forma alegórica. Era uma História
feita por e para a elite. O interesse em aproximar os conteúdos da
realidade dos alunos, se existiram, passaram despercebidos por Tel-
ma. Os personagens históricos eram mostrados de forma distante,
desumanizados, sem vida própria, nascidos para atuar determinados
papéis na história. “Esta idéia foi de tal forma engendrada em minha
concepção histórica, que apenas hoje posso entender que as estórias
de minha mãe eram parte da história.”
Ana Carolina (TOURINHO, 2004), também como Telma,
conversava com sua mãe sobre História, e nessas conversas já de-
monstrava, desde pequena, um interesse pelo cotidiano. O começo

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da sua adolescência veio junto com o início do contato com a disci-


plina específica História e, logo de início, se apaixonou pela Grécia
e sua mitologia. Lembra que ficava imaginando como os gregos
viviam, se vestiam, comiam, se relacionavam. A paixão pela Grécia
permanece até hoje e, com certeza, influenciou bastante na escolha
da Faculdade. Queria saber mais sobre esse e outros povos da An-
tiguidade. “Analisando hoje este meu interesse, percebo que o que
me interessava principalmente não eram as guerras e os governantes
e sim a cultura e o cotidiano desses povos da Antigüidade, focos da
História que, sei hoje, fazem parte da Nova História.”
Durante todo o 1º Grau, o gosto pela História foi aumentan-
do e a relação com a disciplina ficou cada vez mais íntima. Cada vez
mais participava das aulas de História com um prazer especial. No
2º Grau, o gosto pela História já era claro. Antes de entrar para a
Faculdade, no período do vestibular, pensou em outras possibilida-
des, “porém foram momentos passageiros. A vocação pelo ensino de
História já era uma certeza.” Ao longo da sua vida, foi acumulando
experiências e sentimentos que alimentaram uma sensação de pra-
zer com a História. Teve consciência dessa relação especial e fez sua
decisão. “Não houve grandes momentos históricos que me fizeram
escolher, mas sim a minha micro história.”
Valter (TOURINHO, 2004) considera que a opção que fez
pela escrita do memorial se configura em um desafio em que se cons-
titui todo e qualquer trabalho de reconstrução do passado. Nesse
sentido, indaga: O que quer o homem com o seu passado? O que
busca o homem na História?
Sem dúvida que na construção do memorial cada
indivíduo coloca uma motivação diferente, o que é
a marca da singularidade de cada um. Alguns certa-
mente vão localizar uma curiosidade acerca dos mo-
numentos de sua cidade que marcam os vestígios do
passado; outros talvez se recordem com uma certa
saudade a admiração sentida por algum professor de

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História, com “ideias diferentes” na hora de explicar


a realidade. Outros ainda podem estar seriamente
indignados com as injustiças sociais e querem com-
preender a origem das desigualdades sociais. Mas o
que certamente todos tem em comum é a curiosi-
dade de saber.

São incontáveis as motivações que podem mobilizar essa


“curiosidade do saber”, movimentar alguém no sentido de ir bus-
car o seu despertar para a História. Além das apontadas por Valter,
outras, como: uma família que cultiva a conexão com o passado,
novelas de televisão, filmes, livros, acontecimentos marcantes que
comoveram etc.
A História chegava até Laís (TOURINHO, 2004) pela tele-
visão. A História entrou na sua vida, particularmente quando, ado-
lescente, assistiu, “no verão de 1985, ao histórico encontro entre os
homens que mandavam no mundo, que estavam ali para decidir
o destino da humanidade, de todos, inclusive o meu.” Era a reu-
nião de cúpula entre Reagan e Gorbatchov, para discutirem sobre
desarmamento nuclear. “Pois bem, não parei mais de interessar-me
pela História”. Filha primogênita de uma professora e de um policial
civil, Laís não conseguia um diálogo com os pais que a achavam
muito jovem para tais preocupações. O passado chegou até ela por
outros caminhos, quando sua avó materna falava de sua ascendência
espanhola, do bisavô que imigrou para o Brasil e virou comerciante:
“ela gostava de tocar para mim as castanholas que ganhou quando
era jovem”. Já sua avó paterna lembrava-se de seu tempo de moci-
nha; descrevia os costumes e os lugares; a feira de Água de Menino, o
bairro e a rua em que morava... “Fechava os olhos, viajava no tempo,
tentando imaginar como eram aqueles lugares.”
Cláudio (TOURINHO, 2004) também teve o privilégio de
ter a influência de uma avó paterna (pai de criação) na sua educação.
“Avó ‘postiça’, negra, analfabeta que me contou estórias e histórias,

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que me apresentou a sua fé sincrética o seu amor de mulher do Re-


côncavo, sem muitos mimos, mas amor”. Outro fato marcante na
sua vida foi que, durante boa parte da sua infância, passou em festas
de Candomblé, ou visitando sua mãe que era filha de santo e se re-
colhia, periodicamente, para as obrigações de sua religião. Aprendeu
cânticos e rezas, assistiu a festas com muita comida de azeite e muito
batuque. “Para mim o Candomblé não era folclore”. Essas vivências
ligadas à sua história pessoal, inserida no social, o fizeram “mais pró-
ximo da história dos negros, dos oprimidos, dos sem história”.
Outra referência é a televisão. Novelas como a Escrava Isaura e
filmes de época como A Paixão de Cristo e Tiradentes, vistos “na velha
televisão Sharp”, trouxeram o passado para Sérgio (TOURINHO,
2004). Ao mesmo tempo, recebe do pai uma enciclopédia, As Gran-
des Civilizações Antigas, e um programa novo, Os Grandes heróis da
Bíblia, passa a ser apresentado na TV Itapoan. “Passei a sonhar com
cidades antigas”. História deixou de ser apenas um prazer quando
ingressou na Escola Técnica Federal da Bahia. Conheceu o marxis-
mo. Era uma História diferente, atuante. Ingressa na Universidade.
1ª opção: História. A Faculdade lhe deu mais do que a orientação
esquerdista da Escola Técnica. A missão de ensinar a verdade é subs-
tituída pela de ensinar a busca da verdade. “Ganhou um sabor novo.
Mais prazeroso.”
“Bravo, década de 80. Povoado de 7.000 habitantes, perten-
cente ao pequeno município baiano de Serra Preta. Localidade isola-
da no semiárido, cercada pelo latifúndio pecuarista e dominada por
uma política concentrada nas mãos de poucos”. Com estas informa-
ções, Mario Ângelo (TOURINHO, 2004) inicia o seu memorial, no
qual relata a sua trajetória política, que acontece imbricada ao seu
“gosto pela História”.

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Durante o Primeiro Grau e parte do Segundo, não sentia o


mínimo prazer em abrir o livro de História. Sempre acreditou que
o conteúdo do livro era igual à aula da professora. Foi para a recu-
peração. “Só me restava abrir o livro e estudar.” Descobriu, a partir
de então, que o livro – ou, pelo menos, aquele com o qual teve con-
tato – era muito diferente da aula. “Passei a perceber que a História
era muito mais profunda e complexa. Tomei gosto pela coisa, como
diz o ditado popular”. Compreendeu que estudar só o conteúdo de
História não era o bastante. Era preciso participar ativamente na
construção social da comunidade. “Reuni-me com alguns colegas
e pensamos em fundar um partido político. Em 1994 fundamos o
PT de Serra Preta. “Fui o primeiro presidente do Partido.” Parentes
tentaram lhe convencer de que estava errado: “o PT é comunista e
baderneiro”, diziam. Mas era um caminho sem volta. Candidata-se
a prefeito em uma chapa, contrário a de um tio. Foi uma surpresa
geral na comunidade: “um grupo de garotos desafiando o poder lo-
cal”. A perda da eleição evidenciou a incipiente preparação política.
“Ficamos chateados. Como o povo vota em quem promove a sua
miséria? – nos perguntávamos”. Fundaram um Centro de Pensa-
mento Crítico de nome Marx. Era um espaço no qual se discutia
política. Já em Salvador, depois de uma passagem pelo Cefet, resolve
fazer outro vestibular. “Meus amigos sempre diziam que eu tinha
tudo a ver com a História”. Mário também achava que sim, mas a
pouca valorização do magistério no Brasil lhe deixava em dúvida. No
último dia da inscrição, tomou coragem e se inscreveu no vestibular
para História na UFBA. “O novo Curso, a princípio, deixou-me
inseguro, pois tudo que eu acreditava como verdade passei a rela-
tivizar. Compreendi que não há verdade absoluta”. O contato com
as correntes historiográficas evidenciou a pluralidade de convicções
que permeiam o saber histórico.

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Estas são algumas das histórias contadas pelos estagiários.


Gosto muito de todas elas. São criativas, sinceras, bem escritas, algu-
mas espirituosas, outras comoventes. Não pretendem ser a busca de
uma verdade e, quando pretendem, percebem que esta verdade pode
ser relativizada: “Termino assim o meu relato de episódios que mo-
bilizaram a sociedade e dos quais fui testemunha. Não sei ao certo se
foi assim que aconteceram, mas é assim que os lembro” (Jacira, apud
TOURINHO, 2004).
Percebo que, nessas narrativas, os alunos se envolvem, dando o
melhor de si, buscando as motivações pela escolha da História como
professor e/ou pesquisador. Sacrifiquei algumas, muito a contragos-
to, como também muito a contragosto sacrifiquei trechos das sele-
cionadas. Gostaria de poder transcrevê-las in totum, mas não cabe na
proposta deste trabalho.
Concluo, defendendo que o gosto pela História, tanto de alu-
nos como de professores, é fundamental para que o ensino de Histó-
ria na Educação Básica aconteça em um ambiente que permita uma
sintonização com a História, a possibilidade da transformação do
tédio em atração, da inércia em curiosidade, buscando a apreensão
da importância da História em toda a sua sutileza: o imbricamento
de sua dimensão existencial, do ser, como indivíduo, com a sua di-
mensão social do ser coletivo.

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REFERÊNCIAS

DUBY, Georges. O Prazer do Historiador. In: NORA. Pierre. En-


saios de Ego-História. Lisboa: Ed. 70, 1987.
CARVALHO, Maria Inez. Reação ao projeto de tese. Salvador: Curso
de Pós-Graduação em Educação, Faced/UFBA, 1999. Digitado.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. O início da História e as lágrimas de
Tucídides. In: Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de
Janeiro: Imago, 1997.
LE GOFF, Jacques. Reflexões sobre a História. Lisboa: Edições 70,
1982.
PINSKY, Jaime. Por que gostamos de História. São Paulo: Contexto,
2013.
TOURINHO, Maria Antonieta de Campos. O ensino de História:
inventos e contratempos. Tese (Doutorado em Educação). Salvador:
Face/UFBA, 2004.
VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a História. Brasília: Ed. UNB,
1998.
VIDAL, Laurent. Alain Corbin o prazer do historiador. Rev. Bras.
Hist. vol.25, n. 4. São Paulo: Jan./Jun, 2005.

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SOBRE OS AUTORES

Carlos Augusto Lima Ferreira


Graduado em História pela Universidade Católica do Salvador.
Mestre em Inovação e Sistema Educativo pela Universitat Autòno-
ma de Barcelona. Doutor em Educação pela mesma Universidade.
Avaliador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacio-
nais Anísio Teixeira. Professor do Programa de Pós-Graduação em
História e dos cursos de História e Pedagogia da Universidade Esta-
dual de Feira de Santana. Coordenador do Laboratório de Formação
de Educadores da mesma Universidade.
Edicarla dos Santos Marques
Licenciada em História pela Universidade do Estado da Bahia. Mestre
em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Professo-
ra do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira
de Santana. Tem experiência de ensino como professora de História
da Rede Estadual de Educação Básica. Integra o Grupo de Estudos
e Pesquisas LUGAR – Formação Docente e Elaboração de Material
Didático/Pedagógico sobre a Cidade de Feira de Santana – BA.
Erlon Fabio de Jesus Costa
Mestre em Desenvolvimento Sustentável junto a povos e Terras In-
dígenas pela Universidade de Brasília. Articulador de relações étni-
co-raciais da Secretaria de Educação do município de Ilhéus e repre-
sentante na Comissão de Relações Étnicas no município de Itabuna.
Tem experiência na área de História, com ênfase em História Indí-
gena e Afro-Brasileira, formação de docentes nas séries iniciais do
ensino fundamental e médio.
Heloisa Helena Tourinho Monteiro
Licenciada em História pela Universidade Católica do Salvador. Es-
pecialista em Ensino Superior pela Universidade do Estado da Bahia.
Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade
Federal da Bahia. Doutora em Educação e Contemporaneidade pela
Universidade do Estado da Bahia. Professora de História do Ensino
Médio do Instituto Social da Bahia.

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

Jorgeval Andrade Borges


Licenciado em História pela Universidade Católica do Salvador.
Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Es-
tadual do Sudoeste da Bahia. Doutor em Educação pela Universida-
de Federal da Bahia. Professor Adjunto da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia. Tem experiência na área de História, com ênfase
em História da África, atuando principalmente nos seguintes temas:
História da África, educação, ensino de História, multiculturalismo
e memória.
Leandro Antonio de Almeida
Licenciado e Bacharel em História pela Universidade de São Paulo.
Mestre e Doutor em História Social pela mesma Universidade. Pro-
fessor do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia. Foi vice-coordenador do Mestrado em His-
tória da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas e coordenador do
Laboratório de Ensino de História do Recôncavo da Bahia.
Maria Antonieta de Campos Tourinho
Licenciada em História pela Universidade Federal da Bahia. Mestre
em História e doutora em Educação pela mesma Universidade. Pro-
fessora da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área
de ensino de História atuando principalmente nos seguintes temas:
ensino de História, historiografia, memória, prática de ensino e me-
todologia.
Maria Aparecida Lima dos Santos
Bacharela e Licenciada em História pela Universidade de São Paulo.
Mestre e Doutora em Educação pela mesma Universidade. Foi pro-
fessora da Educação Básica. Professora da Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Coordenadora da
pós-graduação lato sensu Relações étnico-raciais, gênero e diferenças
no contexto do ensino de História e Cultura Brasileiras.
Paulo Eduardo Dias de Mello
Bacharel e Licenciado em História pela Universidade de São Paulo.
Licenciado em Pedagogia pela Universidade de Guarulhos. Mestre e

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Ensinar História no Século XXI | Dilemas e Perspectivas

doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade


de São Paulo. Professor da Universidade Estadual de Ponta Gros-
sa, no Paraná. Atou em diversas instituições como docente, coorde-
nador e consultor para assuntos relacionados a currículo, educação
continuada, educação de jovens e adultos, material didático e avalia-
ção de livros didáticos.
Tatiana Polliana Pinto de Lima
Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Cam-
pinas. Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia.
Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Gestora
do Núcleo de Desenvolvimento de Programas Lato e Stricto Sensu.
Professora do Mestrado Profissional em Educação da Universidade
Federal da Bahia.

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Formato: 15 x 21 cm
Mancha: 11 x 17 cm
Tipologia: Garamond
Papel: Pólen 80g
Impressão: Gráfica e Editora RDS

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