Realismo e Alegoria - Publicação - 2017 - PDF PDF
Realismo e Alegoria - Publicação - 2017 - PDF PDF
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Eia! Chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro,
que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas
dos homens.
Quincas Borba, Machado de Assis.
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Sumário
REALISMO E ALEGORIA EM MACHADO DE ASSIS .................................................... 1
AGRADECIMENTOS.......................................................................................................... 2
INTRODUÇÃO 6
INTRODUÇÃO
Somente o romance separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal; podemos
dizer que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo.
Georg Lukács
termos estranhos, que apontam para uma expressão alegórica. Ele não é um autor alegórico,
pois a linguagem de seus contos prima pela precisão com que contextualiza suas narrações em
condições históricas determinadas ou pela minúcia com que constrói personagens
individualizadas. A fim de compreender esse aspecto da obra machadiana, no capítulo inicial,
faz-se um estudo dos gêneros literários em prosa típicos do século XIX, conto e romance, bem
como das características da prosa realista.
Ele não é realista, nem alegórico, pois junta as duas notações discursivas em um
mesmo conto, crônica ou romance. A relação entre as duas esferas não é a do apologeta cristão,
mas a do ironista que descobre a vacuidade dos valores e idéias, corroendo-os em seu “humour”
sutil. Quer-se, enfim, apontar nas crônicas, em alguns contos e em um romance essa
peculiaridade formal. A incongruência mostra-se pela união do discurso realista, que tende à
construção de personagens individualizadas e verossímeis, e um discurso alegórico, que
despersonaliza os mesmos seres, tornando-os personificações de conceitos ou princípios. Por
sua vez, esse confronto não leva a um pensamento ficcional universalizante, pois a ironia impede
a realização de uma pretensão genérica.
O conceito de alegoria tal qual lembrado por Schlegel10 traz a marca da religião. Para
o homem religioso interessa apenas o invisível, transformando todas as manifestações materiais
em alegorias daquele. Schlegel constrói os conceitos de totalidade, de identidade, de sentido
como utopias a serem buscadas pelo espírito, fragmento. Assim, o conceito de alegoria parte da
cisão entre o sensível e o inteligível, em que o corpo deve ser destruído a fim de que a alma
apareça. A imagem é sempre uma concretização precária da idéia. O aspecto religioso é
importante, pois, num mundo em que Deus está ausente, não há manifestação imediata do
sentido, da palavra divina através da consciência humana11. O ponto de partida é a desconfiança
quanto à imediatez, em que a alegoria representa a cristalização de um padrão totalizador e
destruidor da individualidade.
Pela exegese alegórica, o texto torna-se sagrado. Não se retorna à crença na
autoridade da tradição, nem à sacralização de um único sentido do texto. Benjamin 12 define a
interpretação como a leitura do Torá em que se devem retirar os quarenta e nove véus que lhe
recobrem o sentido. Tal atitude é elucidada, ao se considerar os procedimentos da interpretação
alegórica.
O retorno à tradição não significa mantê-la intacta ou acreditar no seu sentido
último. Como mostra Bernd Witte13, a técnica da citação de Benjamin corrói o sentido original
do texto através do isolamento de um trecho que, relido, abre novas possibilidades de sentido.
A citação de Platão, por exemplo, pode levar a crer em uma reverência aos diálogos platônicos.
Trata-se, no entanto, da construção de um novo sentido, pois um trecho dos diálogos é isolado
de seu contexto original, em que era compreendido como parte da totalidade. A interpretação
baseia-se, então, no elemento isolado de sua origem, fragmento solto, passando a fazer parte de
um novo conjunto em que lhe é atribuído novo significado.
A exegese alegórica seleciona trechos estranhos do texto, a fim de isolá-los. Muitas
vezes, os trechos inverossímeis, ininteligíveis, esquisitos, chamam a atenção do intérprete por
não participarem de modo harmônico do conjunto. O sentido profundo é construído, então,
como uma traição ao literal e imediato. O exemplo canônico desse processo é a interpretação
cristã do Cântico dos Cânticos. Na Idade Média, a alma é fonte do sentido, e o corpo a fonte do
mal. Seria inaceitável exaltar o amor físico, e os prazeres do corpo, como faz o poema
10 Cf. SCHLEGEL, F. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1994.
11 Cf. GAGNEBIN, Jean Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva; FAPESP: Campinas, 1994. (Estudos: 142)
12 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1986.
13 WITTE, Bernd. Walter Benjamin: una biografia. Barcelona: Gedisa, 1990. (Esquinas, 1).
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salomônico. Para esse texto ser incorporado à Bíblia, deve ter seu sentido literal traído. Desse
modo, ao sacralizar a leitura de um texto, dedica-se atenção para todos os detalhes, de modo
paciente, valorizando-os como necessários para o desvelamento dos significados ocultos.
A exegese alegórica possibilita destacar termos incongruentes da prosa machadiana.
Em uma visão ou interpretação totalizadora, eles são anulados ou negados em seu valor
expressivo. Ao contrário, se atentarmos justamente para esses elementos estranhos, um outro
sentido do conto pode ser descoberto. Ele não se entrega de imediato ao leitor, mas deve ser
desvelado pela mediação do leitor como intérprete.
Não cabe fazer aqui um sumário biográfico que vai da tese à publicação. A tese foi
defendida em 1999, sob orientação da professora Regina Zilbernan, a quem devo agradecer por
vários passos da minha trajetória acadêmica. Faço um agradecimento ao Atílio Bergamini Jr. que
fez a última leitura e sugeriu algumas melhorias no texto.
Ao reler a tese, ao verificar várias proposições, é certo que seria necessário
acrescentar a leitura de outras obras críticas produzidas desde então. Talvez nem fosse
necessário dizer que reescreveria algumas análises a partir da releitura constante da obra de
Machado. Além disso, em cada conversa com amigos e colegas de Literatura Brasileira (Homero
Araújo, Luís A. Fischer, Sérgius Gonzaga, Gínia Gomes e Paulo Seben), surge algo novo.
Também cada disciplina dada ou pesquisa realizada me levam a amadurecer a leitura de
Machado. Se fosse mudar uma linha, mudaria todo o conjunto. Isso seria outro livro.
10
14 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: ________. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
(Obras escolhidas, 1)
15 Id. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: op. cit.
11
que funciona como o oposto da obra única. Antes o observador se deslocava para o local onde
estava o quadro, objeto único existente, que carregava por isso uma aura. A ruptura com a
tradição, com a conseqüente perda da autenticidade, dá-se com a fotografia e cinema
principalmente, na medida em que não existe mais um original. O valor de uso é substituído
pelo de exposição. Antes o simples fato de uma obra existir já revelava sua importância; com a
nova técnica de reprodução, o cinema justifica-se apenas enquanto exposição para a multidão.
O trajeto percorrido do valor de uso (da autenticidade e da aura) ao valor de exposição (da
reprodução técnica) é o que vai da religião à política, em que a arte se torna politizada ou a
política, no caso a fascista, é estetizada.
Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a
aparição única de uma coisa distante. Observar em repouso numa tarde de verão, uma cadeia de
montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a
hora participem de sua manifestação, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho. Mas
fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma tendência tão apaixonada do
homem contemporâneo quanto a superação do caráter único das coisas, em cada situação através
de sua reprodução. 16
Em primeiro lugar, a aura não é conceituada a partir da relação com uma obra de
arte, mas com o belo natural – uma imagem da natureza, como um pôr do sol assistido nas
montanhas. Ao momento único e não repetível associa-se o sujeito, compondo um momento
de integração, em que ele “respira” a aura da montanha durante o pôr do sol, pois ele faz parte
do lugar e do momento. Não há uma separação entre sujeito e o objeto, pois ambos se integram
no mesmo. O sujeito não consegue apreender por inteiro o que vê, nem prendê-lo na
consciência. A figuração do ilimitado, do sublime de uma imagem excessiva, é interiorizada. No
primeiro momento, reduzido frente à imensidade, no segundo elevado por ser capaz de trazer
em si o infinito, o sujeito se engrandece enquanto homem. A experiência da arte traz, então, a
relação religiosa de simpatia entre o homem e a natureza (encantada, por isso) dentro de uma
obra. Não é preciso possuir o objeto, pois esteticamente ele passa a existir na subjetividade do
sujeito, transformando-o. Mesmo que não seja obra de uma religião, é um evento transcendente
que liga o fruidor aos outros homens no momento de contemplar a obra. Como se vê na
narração oral, ou no ritual religioso, a aura pressupõe a integração dos vários sentidos humanos
com o aqui e agora de sua aparição. O sujeito está enraizado na comunidade e na natureza.
A fotografia revela algo que está para além do planejamento técnico. O que ela
apreende é muitas vezes o gesto invisível ao olho humano através da ampliação de um detalhe
ou pela câmara lenta. Ao mesmo tempo, ela traz o desejo de tudo registrar, de gravar todas as
imagens. Ela capta um instante, como o aqui e agora, que, entretanto, perde a aura, vale dizer, a
integração do sujeito com o lugar e o momento único. Ao ser gravada, a imagem torna-se
registro da perda ou um sinal de aura perdida. Assim, a tentativa de tudo aproximar das massas
leva a reproduzir quadros, paisagens naturais ou urbanas das grandes cidades, retratos, pinturas,
murais, enfim todo objeto único e distante é aproximado do consumidor, que tem à sua
disposição as imagens barateadas para consumo. O processo, segundo Benjamin, e também
Adorno17, é similar àquele que ocorre com a música depois de sua reprodução técnica. Em
ambos os casos, a percepção atenta e a concentração são substituídas pelo consumo disperso e
fragmentário.
A perda da aura representa a primazia do valor de troca em detrimento do valor de
uso. Assim, o caráter prático (e também o religioso) de uma obra de arte desaparece. Nessa
mesma medida, o sentido prático da narrativa, por exemplo figurado na associação entre a mão
e a voz, se esvai, pois ela deixa de existir ao metamorfosear-se em romance ou short story. A
metamorfose dá-se com o fortalecimento da imprensa no século XIX, mas ainda permite a
identificação de ambos os gêneros como narrativos. Eles se desligam, no entanto, de sua origem
oral, sendo filhos principalmente da escrita. A arte de dar e receber conselhos – de formular um
provérbio, de sintetizar uma experiência – se perdeu junto com a faculdade de narrar:
O tédio é o pássaro de sonhos que choca ovos de experiência. O menor sussurro nas folhagens o
assusta. Seus ninhos – atividade intimamente ligada ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão
em vias de extinção no campo. 18
No momento de descanso do trabalho, à noite, as pessoas reuniam-se em volta de
um fogo para ouvir e contar histórias. As atividades distensas, lentas, como o tricotar enquanto
se conversa, estão extintas na cidade. Não há espaço para o usufruto do tédio. Como resultado,
a experiência se perde. A forma de transmissão da experiência, a narrativa como uma ordem
possível para o mundo, se destrói. Não há mais intercâmbio, nem troca de conselhos. Com a
perda do dom de ouvir, vem o apagamento da memória. A distensão própria do tédio é uma
condição inexistente na produção de contos modernos ou em sua reprodução em periódicos:
Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida
lembrada por quem viveu. Porém esse comentário ainda é difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois
o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração,
o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do
esquecimento. A memória involuntária, de Proust, não está mais próxima do esquecimento que
daquilo que em geral chamamos de reminiscência? Não seria esse trabalho de rememoração
espontânea, em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de
Penélope, mais que sua cópia? Pois aqui é o dia que desfaz o trabalho da noite. 19
O romance, ligado à informação, opõe-se à narrativa, segundo Benjamin. Assim, na
imagem às avessas de Penélope, o romance desfaz a “rede” da memória que é tecida durante a
noite. Não há uma memória involuntária, mas um processo consciente e ilimitado (a
rememoração) em que o sujeito procura lembrar o que viveu. O romance, “primeiro indício da
morte da narrativa”, está vinculado ao livro, à existência e difusão através da imprensa. Por isso,
seu processo de produção e de recepção ligam-se ao indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes. A marca fundamental está na perda
da tradição, daquilo que ligava os homens ao seu passado. O romancista dobra-se sobre si
mesmo, num processo reflexivo, unilateral, em que a experiência passada torna-se um objeto de
estudo. Assim, o processo de retomada, consciente, do passado explicita o conceito de
rememoração, ligado ao esquecimento. Ao colocar no papel, os fatos não ficam preservados,
mas esquecidos pelo sujeito. Há um elemento a mais na exploração da alegoria de Penélope,
pois o romancista, como ela, tece e desfaz um objeto que não tem um uso prático, mas, ao
contrário dela, ele não sabe o que espera.
Na narrativa oral, a forma traz a marca do autor, que organiza os fatos de sua vida
para transmiti-los a um outro. Há um norte, a partir do qual o narrador consegue estabelecer a
ruptura com sua matéria vivida e identificar o que realmente importa. A capacidade de síntese
deve-se ao fato de não se entregar inteiramente, pois não há explicação, mas apenas uma história
narrada. O narrador, com a autoridade da tradição, distingue os elementos essenciais da história,
orienta-se com segurança no seu passado e transmite sua sabedoria.
A partir da oposição narrativa e romance, alguns conceitos são fundamentais para
Benjamin, como a tríade reminiscência, memória e rememoração. A reminiscência é processo
18 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: op. cit.
19 Id. A imagem de Proust. In: op. cit.
13
20 Id. O narrador: considerações acerca da obra de Nicolai Lescov. In: op. cit.
21 LUKÁCS, Georg. Teoria do Romance. Lisboa: Presença, s/d. (Biblioteca de Ciências Humanas)
22 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: op. cit.
23 Id. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.224.
24 op. cit. p. 231.
14
Benjamin refere-se ao barroco, porém, como salienta Willi Bolle25, a partir dos
pressupostos da literatura contemporânea, dos movimentos de vanguarda de início do século
XX. Como no drama barroco, então, o romance do século XIX traz a marca da escrita, da
imprensa, perdendo a sensualidade e vitalidade da palavra oral. Nele, o ponto central não é
representação da ação humana, mas a sua significação. Por isso, o leitor busca no romance não
apenas o divertimento, mas o sentido de uma existência, que por estar acabada poderia ser
conhecida por inteiro.
Desde o século XVIII, com o romance inglês26, a autenticidade da obra artística
vem se transformando. Em Defoe, Fielding, Richardson, a personagem deve ter nome próprio,
viver experiências únicas em lugares detalhadamente descritos, e a sua história deve ser
apresentada de modo a parecer singular. Não interessa apenas a verossimilhança interna do
romance, mas a aparente veracidade do discurso, como se a personagem ficcional de “tão
verdadeira” pudesse ser encontrada no mundo cotidiano. Assim, não apenas a matéria
representada, de homens e mulheres comuns, mas também o modo prosaico de apresentar faz
do romance um novo gênero literário, que escapa do conceito organicista de Hegel.
Kathrin Rosenfield27 considera a ausência de uma reflexão por Hegel sobre o
romance como uma falha da estética. Ele cita diversas vezes Goethe, mas em nenhum momento
toma os romances como base, seja Afinidades Eletivas ou Wilhem Meister. Estes romances seriam,
no próprio Romantismo alemão, ao lado de Hegel, a expressão da incompletude de uma teoria
pura dos gêneros, que nunca daria conta completamente do particular. K. Rosenfield baseia-se
no contemporâneo de Hegel, Friederich Schlegel, que, nos fragmentos do Atheneum e na carta
sobre o romance28, define este gênero como uma forma típica da poesia romântica:
O gênero da poesia romântica ainda está em estado de formação, e é de fato sua verdadeira essência,
o eterno devenir, sem jamais se dar por acabado. Nenhuma teoria pode exauri-lo e apenas uma
crítica divinatória ousaria se arriscar a caracterizar seu ideal. 29
O romance, escrita prosaica, é considerado paradoxalmente, a forma mais repre-
sentativa da poesia romântica, um eterno transformar-se. A lírica, o drama e a épica não são
modelos fixos, representando abstrações distantes da realidade prosaica. Na obra singular, eles
aparecem misturados entre si. Para Schlegel, a mistura não é regressão, mas progresso. Deus, os
princípios morais, a arte, a filosofia seriam construções humanas; desse modo, não há como se
universalizar um conceito, porque este é historicamente determinado. O romance é, nesse
sentido, um gênero aberto para se apropriar das cenas cotidianas, comuns, e para se voltar para
o público. No aspecto negativo, o uso do conceito de poesia romântica referir-se a um fato
concreto, a uma obra de arte e à mulher amada, termina na indistinção. Por isso, é interessante
relacionar o processo irônico com o próprio gênero romanesco:
É assim que a ironia implica aquela negatividade absoluta na qual o sujeito, ao destruir tudo o que
tem uma determinação precisa e unilateral, se refere a si mesmo; como, porém, a destruição a que
se entrega não atinge somente, como no cômico, o que é desprovido de valor em si, o que se
manifesta como oco e vazio, mas abrange também coisas realizadas e excelentes, a ironia torna-se
uma arte de destruição universal e leva, tal qual a veleidade de que há pouco falávamos, a uma
inconsistência que nada tem de artístico e nenhuma relação possui com o verdadeiro ideal. 30
Hegel faz uma avaliação negativa da ironia moderna de Novalis e Schlegel, que não
distinguem o sério do cômico, atingindo todas as coisas (ocas ou excelentes) em seu processo
25 BOLLE, Willi. Fisionomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Univ. de São Paulo, 1994. p107.
26 Cf. WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
27 ROSENFIELD, Kathrin. Uma falha na estética de Hegel. In: ________. A linguagem liberada. São Paulo: Perspectiva, 1988.
28 SCHELEGEL, Friedrich. Uma carta sobre o romance. In: LIMA, Luiz C. O controle do imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1984.
29 SCHELEGEL, Friedrich. Fragmentos do Atheneum. In: Op. cit.
30 HEGEL, G. W. Estética: O belo artístico ou ideal. Lisboa: Guimarães Editorres, 1993.
15
de destruição. O sujeito fecha-se em si, incapaz de perceber qualquer valor universal e de crer
na realização da idéia no mundo finito. De modo similar, o romance fecha-se sobre si,
absorvendo os mais diversos discursos, bem como representando novas dimensões da realidade
cotidiana. Em um "mundo desencantado", o romance corrói os valores que nele entram.
A diferença entre Hegel e Schlegel reaparece na concepção distinta do Espírito
absoluto. Para Hegel, para ser real, qualquer manifestação deve partir do singular e se
transformar em parte da totalidade. Quer dizer, o pressuposto é de que existe um todo coerente
do qual se compõe a realidade. Para Schlegel31, marcado também pela religiosidade, Deus era
uma intuição interior que se projetava no futuro como uma utopia a ser buscada pelo sujeito.
No presente, o próprio sujeito não deixava de ser um fragmento em um mundo ruinoso. Dentro
disso, Hegel mantém a distinção clara entre os diversos gêneros, enquanto Schlegel se debate
no paradoxo entre a expressão una do poético e a mistura de todos os gêneros literários,
incluindo a filosofia.
O romance é, desde então, um problema de definição, porque incorpora dentro de
si diversas formas discursivas, como cartas, memórias, diário, manuscritos, tratados, ensaios.
Assume simultaneamente um caráter trágico e cômico. Poder-se-ia falar de um princípio épico
subordinador, no relato de uma história; mesmo assim, não deixaria de se verificar a
heterogeneidade nos elementos que compõem uma forma sincrética e híbrida. De certo modo,
todos os tipos de textos poderiam ser usados como sinais para reconstruir uma realidade
complexa, evitando que esta se perca no tempo. Como exemplo típico, radical, na modernidade,
Benjamin apresenta o romance Alexanderplatz32, que recorre até a recortes de jornais.
O conto moderno (short story) pode ser pensado dentro deste contexto. Assim como
o romance, ele apresenta um problema (de difícil solução) para a classificação pura dos gêneros.
Nos estudos críticos Nathanael Hawthorne33 e Filosofia da composição34, Edgar Allan Poe reflete sobre
o processo de composição de formas curtas, o conto (no primeiro caso) e o poema (O corvo, no
segundo caso). Toda a criação é detalhada, tendo como alvo teleologicamente posto o efeito
único, a reação do leitor. As conclusões tiradas para o poema são válidas também para os contos.
O texto deve ser legível de uma única vez, voltando-se para um fim determinado.
O modo de composição assemelha-se ao modo alegórico, porque primeiro é escolhido o efeito
a ser provocado sobre o leitor, depois o caso particular a ser contado. Em O corvo, define-se
primeiro o efeito a ser atingido, o terror, a partir de um clima melancólico; depois Poe pensa
qual situação particular geraria esse impacto: a perda da mulher amada. Um refrão, com alteração
de sentido a cada repetição, é escolhido para acentuar o clima (never more), para ser dito por uma
ave, O corvo.
Poe quer mostrar que o poema não é apenas intuído, mas construído
intencionalmente. A significação inicial, prevista pelo autor, deve ser transposta para a
materialidade do poema, para cada palavra usada. O sentido concebido pelo autor, no entanto,
pode perder-se ou ser alterado pela recepção, restando apenas a materialidade do poema ou do
conto, que serviriam ao leitor de suporte para a construção de um sentido não previsto. Por
exemplo, Todorov, num estudo sobre Poe35, mostra como em um conto fantástico, O gato preto,
o uso excessivo de termos intensos como “terror, horror”, e outros relativos ao mesmo campo
semântico, provoca o embotamento do leitor, que não sofreria o efeito único do horror, pelo
exagero do truque.
36 Cf. Op. cit. e EIKHENBAUM, B. Sobre a teoria da prosa. In: Teoria da Literatura II: textos dos formalistas russos. Lisboa: Edições 70, 1988. Todorov
estabelece o princípio gerador da obra de Poe a partir da noção de limite e de extremo. Assim, por exemplo, vários de seus contos já não seriam narrativos. Sua
posição contraria a de Eikhenbaum que usa a filosofia da composição para mostrar como a short story seria uma forma elementar e homogênea em oposição ao
romance, sincrético por natureza. Na presente pesquisa, consideramos o conto literário (short story) como uma forma de natureza diferente do romance, mas que
traz a si elementos heterogêneos, absorvendo marcas de outros gêneros, ao mesmo tempo em que se distancia da anedota ou do causo.
37 TODOROV, T. Os limites de Poe. In:______. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
17
etapas de sua produção, incluindo o tipo de recepção (leitura da obra por inteiro em uma única
assentada), bem como o impacto que deve gerar. O caráter consciente e racional do processo
leva a uma tensão interna dos elementos narrativos e lingüísticos, em que o acaso ou a frouxidão
da conversa são banidos como adversários da atividade literária. Nesse momento é importante
retomar a recepção da narração oral, tal qual a descreve Walter Benjamin. Para ele, como se viu,
o termo central é a distensão, o tédio, a proximidade do sono, capaz de gerar no ouvinte os
delicados frutos da experiência. Não é a atenção consciente, mas seu oposto que o ouvinte tem
para gravar a história na memória e integrá-la à sua experiência. Assim, o ouvinte pode tornar-
se ele mesmo narrador:
Há uma rivalidade histórica entre as diversas formas da comunicação. Na substituição da antiga
forma narrativa pela informação, e da informação pela sensação reflete-se a crescente atrofia da
experiência. Todas essas formas, por sua vez, se distinguem da narração que é uma das mais antigas
formas de comunicação. Esta não tem a pretensão de transmitir um acontecimento pura e
simplesmente (como a informação o faz); integra-o à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes
como experiência. Nela ficam impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro
no vaso da argila.38
O narrador não conta apenas uma história, ele transmite a sua experiência, que
acaba por se tornar também dos ouvintes. Um conceito forte é o de integração, pois não apenas
o narrador (que pode assumir reversivelmente o papel de ouvinte) faz parte de um grupo, como
integra a história narrada à sua experiência, transpondo para a forma as suas próprias marcas. O
narrador, na descrição de Benjamin, é alguém capaz de aprender com a vida. Ele não tem
conhecimento intelectual do seu mundo, mas uma sabedoria constituída de experiência. A sua
narração está integrada à história natural, da qual todas as criaturas fazem parte. A totalidade de
fundo permite a tranqüila compreensão da vida em relação à morte. Do mesmo modo, como
se tratou antes, o ato de narrar não é apenas composto de palavras, mas surge da união entre a
mão e a voz, entre o gesto e o dito.
Luís da Câmara Cascudo39, ao descrever a literatura oral no Brasil, mostra o
ambiente propício para contar histórias. Ao anoitecer, depois do trabalho do dia, desligados da
faina, no descanso em comum, a comunidade poderia estar reunida em torno da fogueira. O
narrador usa de fórmulas rituais, de frases feitas para abertura e fechamento, indicando a entrada
em mundo diferente daquele desgastado das vivências cotidianas. O contador tem as habilidades
de um ator, no gesto, na entonação, no ritmo dado à voz, no silêncio. Contar uma história traz,
no prazer da narração, um objetivo pedagógico.
Nesse sentido, a narração como forma de comunicação não é base do conto literário
tal qual formulado por Poe. Ele pode trazer uma forte tendência à unidade, ao contrário do
romance, mas, por sua natureza, não se vincula à oralidade. O conto literário é filho da palavra
impressa, da escrita voltada à leitura silenciosa, uma forma de comunicação que concorre com
a narração oral. Dialeticamente, às vezes traz as marcas da fala, criadas de modo artificial,
quando a palavra escrita mimetiza o discurso oral. Ela volta-se apenas para um de nossos
sentidos, a visão. A própria sonoridade (imagem acústica) é produto mental. Assim, as marcas
de um narrador oral surgem no romance e no conto como os traços de sua inexistência, a fim
de se construir com o leitor uma aparente proximidade. Apenas depois de mortos, os narradores
ganham a dignidade da expressão literária, e apenas sinais gráficos alcançam o leitor em sua
solidão.
Assim como no romance, a palavra do conto literário não está apenas ligada à
escrita, mas à imprensa, à informação, e ao desligamento da experiência. Retorna-se agora a
Edgar Poe e seu extremo racionalismo. O autor americano trabalha com o “desaparecimento
38 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: ________. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Obras escolhidas, 3)
39 CASCUDO, Luís da Câmara. A literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Univ. de São Paulo, 1988.
18
da narrativa ou pelo menos de sua forma simples e fundamental. (...) O mesmo ocorre com os
contos de raciocínio, que, neste sentido, estão muito distantes das formas atuais do romance
policial: a lógica da ação é substituída pela procura do conhecimento.”40 A questão não é apenas
estética, mas associada à perda da experiência, como apontou Benjamin. Nos contos policiais, a
procura de conhecimento é ao mesmo tempo o encontro da solução para o crime, e indício da
perda da identidade no meio da multidão em uma cidade. A grande cidade passa a ser uma
segunda natureza, cujos sinais a serem lidos somente se revelam aos olhos do especialista, do
misantropo, de múltiplos conhecimentos científicos, como Dupin. A partir de pequenos sinais,
de índices mínimos, desprezíveis para o olhar desatento e automatizado, Dupin consegue
recompor a história de um crime e ainda determinar a identidade do criminoso, bem como dizer
o lugar correto das coisas escondidas.
Carlo Ginzburg aproxima essa forma de narração da psicanálise e da crítica de arte.41
Sua aproximação é reveladora da necessidade de construir um novo conhecimento, uma outra
base epistemológica para a história, capaz de reconstruir a identidade do sujeito. Os detalhes, os
detritos, os restos, os sinais desprezíveis tornam-se índices de uma nova totalidade. O
historiador italiano supõe que a origem dessa forma narrativa seja o conto de caçadores, capazes
de orientar-se na floresta, selva, mato, conseguindo ler nos rastros a direção e localização de
animais. Assim, em um capítulo de Zadig, de Voltaire, Ginzburg identifica o aproveitamento de
uma fábula oriental de caçadores, em que as pegadas no chão e pêlos nas árvores permitem a
identificação do animal que passou pelo caminho, mesmo que ele não tenha sido visto. A
conclusão do historiador é a de que a investigação das pistas leva conseqüentemente a uma
forma narrativa, em que se reconstitui a realidade passada.
Há dois pontos a comentar. Em primeiro lugar, a aproximação entre discursos de
natureza diferente aponta para a similitude entre a arte, a psicanálise e conto policial. O eixo que
une esses três discursos é o paradigma indiciário. Os indícios permitem a leitura de uma realidade
dentro do universo urbano, numa sociedade de massa, em que o indivíduo perdeu a certeza de
sua identidade. Eles se assemelham à forma de identificação a partir das digitais, que determinam
com segurança quem é cada indivíduo. Desse modo, a cidade e as construções humanas e
históricas, como uma segunda natureza, devem ser lidas nos indícios para que o indivíduo
consiga localizar-se e saber quem é. Como segundo ponto, ressalte-se que, enquanto os
caçadores estavam integrados à natureza, da qual faziam parte, o homem dentro do contexto
urbano é absorvido pela cidade, mas a vê como uma força exterior a si, como uma lei
desconhecida que se impõe a ele, mas que não lhe faculta uma assimilação nem à natureza, nem
a uma comunidade. Desse modo, ler a realidade do conto policial não é uma forma de narração,
mas, pelo contrário o anúncio de seu fim. Em outros termos, a história, a literatura, a psicanálise
(contrariando a interpretação de Ginzburg) servem para indicar a necessidade de explicar e
buscar o conhecimento, ao mesmo tempo em que mostram o isolamento do indivíduo e a
incapacidade de transmitir uma experiência.
Em alguns dos narradores de Edgar Allan Poe, como em O gato preto, William Wilson,
A queda da casa de Usher, Berenice, a voz individual parte de seu isolamento, de serem incapazes de
compreender um fato. O criminoso em O gato preto, por exemplo, não sabe explicar aquilo por
que passou, resolvendo apenas apresentar os fatos para que um leitor de inteligência mais
acurada consiga explicá-lo. Está preso, prestes a morrer, e conta, a partir da posição-limite, o
assassinato de sua mulher e como um gato denunciou o local em que ele havia escondido o
cadáver dela.
Não tenho a fraqueza de buscar estabelecer uma relação de causa e efeito entre o desastre e a
atrocidade, mas estou relatando um encadeamento de fatos e não desejo que nem mesmo um
possível elo seja negligenciado. 42
Nessa cena, o narrador evita estabelecer a relação de causalidade entre um fato e
outro, entre o enforcamento do primeiro gato e o incêndio de sua casa. Cria-se um duplo
sentido, em que a explicação oscila entre o natural e o sobrenatural. Nesse momento, o leitor
vê-se confrontado diretamente com o encadeamento de causa e efeito entre os fatos, jogado
entre a ligação arbitrária ou a sobrenatural. Deve-se considerar a explicação do narrador,
construída para tornar racional o acontecimento estranho. Como a imagem do gato preto,
enforcado, gravou-se no tabique da cama? Por que o incêndio não a destruiu? A explicação
lógica e aceitável soa, no entanto, inverossímil, posto que baseada em frágeis suposições e no
acaso. Poder-se-ia apontar nessa oscilação uma abertura de sentido, típica do conto popular.
Esse conto, no entanto, problematiza a própria pertinência da matéria narrada, bem como leva
a desconfiar do próprio narrador, que se revela como um criminoso frio, que, se teme o gato
preto, não se sente culpado pela morte da mulher. Para ser verossímil, o conto toma a forma de
uma confissão escrita, de alguém que, isolado em uma cela, não tem ninguém a quem transmitir
a sua experiência a não ser o papel à sua frente. O narrador, definitivamente condenado a perder
a vida e a alma, não é confiável, por se tratar do criminoso falando de seu próprio crime. O
plano de avaliação do conto afasta-se do da narrativa popular, pois ela parte do seu efeito único,
o terror, desligado do aspecto moral, o crime. Em suma, parte (segundo o próprio Poe) da
autonomia da obra em relação ao aspecto ético.
O vínculo do conto com a imprensa reforça a diferença da narrativa oral. As
personagens ou morrem, ou tem encerrada sua existência ficcional, a fim de criar para o leitor a
impressão de uma totalidade, de um universo finito, que pode ser conhecido a fundo. Esse é o
impulso dos contos de Poe, na medida em que os protagonistas são personagens próximas do
limite da vida, à beira da morte, ou excluídos do convívio social (como Dupin). O leitor pode
analisar a fundo o conto, como uma janela que se abre de par em par e permite um olhar em
perspectiva, uma atenção aguda sobre cada palavra, um desvelar de sentido das frases e nomes43.
A busca atenta e extremada de sentido é aguçada pela intenção ultra-racional de um autor que
diz não haver nada de casual na obra de arte. Assim, buscamos no detalhe um sentido oculto.
Ainda em O gato preto, a repetição grifada de palavras relativas ao terror do narrador, bem como
o indício isolado indicando sua condição de preso servem como sinais de um sentido outro,
profundo, racional, para além da significação literal e imediata.
O conto de Poe, pensado dentro de sua teoria estética, traz a marca do absoluto.
Por trás do pressuposto racionalista de explicar e determinar todos os aspectos da criação
literária, a ânsia totalizante do mito de englobar tudo desloca-se para o campo da arte.
A arte (e o conto especificamente) desligada das outras dimensões humanas torna-
se autônoma, e sua resposta é auto-sacralização, absorvendo a aura religiosa, pois o artista seria
capaz de expressar, de modo pleno, o sentimento que dá sentido e autenticidade à vida de seus
leitores. No caso de Poe, o conto é orientado para suscitar o efeito único, tornando-se meio de
expressão emocional do leitor. A experiência da arte passa a ser subjetiva e individual, e o artista,
como um xamã, é capaz de enriquecer esse sentimento interior. O mesmo sentido de absoluto,
determinação completa e ausência de acaso na forma construtiva levam o leitor a procurar
(assim como o douto exegeta alegórico) os sentidos ocultos trazidos pelo conto. Num processo
de remissão interno, uma palavra, um detalhe, uma frase ou uma descrição tornam-se
superlativamente significativo. Para os leitores, o efeito único; para os doutos, os iniciados, a
42 POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Abril Cultural, 1981. p. 44.
43 CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ________. Valise de cronópio. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. (Debates, 104)
20
44 BENJAMIN, Walter. Paris do segundo império. In: ________. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras
escolhidas, 3)
45 op. cit. p. 37.
46 POE, Edgar Allan. O homem das multidões. In: Ficção completa, poesias e ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. POE, Edgar Allan. Poetry and tales.
New York: The Library of America, 1984. p. 390.
47 op. cit. p. 393.
21
homem na cidade, apagados pela multidão, são devolvidos pelo detetive ou controlados pela
polícia:48
Os estranhos efeitos de luz obrigaram-me a um exame das faces individuais, e, embora
a rapidez com que aquela profusão de luz fugia diante da janela me impedisse de vislumbrar
mais de um rosto, parecia-me que, no meu particular estado mental de então, podia freqüentemente
ler, mesmo naquele breve intervalo de um olhar, a história de longos anos. 49 (grifo meu)
Esse "particular estado mental" talvez pudesse ser chamado de entusiasmo ou de
confiança na possibilidade de se ler em um breve instante a história de um indivíduo. A
convicção é tão forte, que breves sinais servem para reconstituir a história de longos anos. A
identidade define-se nesse caso a partir da capacidade de se ler os detalhes.50 Essa possibilidade
de compreender a história, de reconstruir a identidade do sujeito por sinais, de definir o grupo
a que pertence, está na base da perspectiva realista do século XIX ao se representar a realidade.
No caso de Edgar Allan Poe, a multidão da grande cidade entra para literatura não
apenas para ser classificada, mas também para apontar um tipo novo, que guarda segredos
profundos que o narrador não penetra. Ao contrário dos tipos comuns, um olhar apenas não
basta para decifrar o caráter do "homem das multidões". O narrador sai em seu encalço a fim
de descobrir seus segredos. A descrição do tipo físico fica presa aos contrários: fraco, mas cheio
de energia; com roupas pobres, mas camisa de boa aparência; miserável, mas com um diamante
brilhando em seu corpo. Esse indivíduo sente-se viver apenas quando está no meio da multidão,
sempre caminhando. Torna-se inquieto e angustiado, quando, no meio da noite, vê-se em locais
desertos, acelera o passo para encontrar grupos humanos. Ao final, sem desvendar-lhe o
segredo, o nome, o caráter, o narrador desiste exausto de sua pesquisa, fixando o "homem das
multidões" como alguém que não se deixa ler, que leva ao túmulo seus segredos.
Todorov propõe que Poe seja o autor dos limites51, que chega ao extremo de pôr
em xeque a narração, quando sua ordenação é dada por um princípio metódico que vai do
abstrato ao concreto. Em O homem da multidão, o conto foge da narração para adquirir uma
consistência filosófica, em que o narrador reflete sobre um objeto específico. Como mostra
Adorno, a reflexão filosófica deve se concentrar sobre um objeto específico para que não se
transforme em meditação vazia.52 No caso, existe um esforço para apreender conceitualmente
um elemento concreto. O limite do conceito, ao final, fica marcado pelo caso que escapa às
classificações.
Ao contrário de Todorov, não se afirma aqui que Poe deixe de representar a
realidade, para construir uma forma fechada em si mesma. Como mostram Os crimes da Rua
Morgue, Marie Roget, William Wilson, entre outros, a ficção de Poe aborda novos aspectos da
realidade do século XIX, mas já enunciando o limite da representação literária. Mesmo que sua
ênfase esteja no caráter fantasioso da criação, a questão de Poe é o limite da ordenação, da
racionalização que, ao ser levada ao extremo (como se dá também em sua criação poética),
encontra casos inexplicáveis e eventos únicos.
No caso de Balzac, a convicção de ter encontrado a regra de organização da
sociedade francesa, em que todas as partes se interligam, impede-o de pôr o limite de Poe para
sua representação do real. A literatura, como reflexo mimético do mundo, mostra ao leitor a
ordem possível da sua realidade. No olhar lançado diretamente sobre a concretude das coisas,
vê-se o movimento, o passar das gentes, a multiplicidade dos elementos. Na ficção, pelo filtro
autoral, o narrador seleciona os elementos supostamente essenciais, ordena-os e mostra-os ao
leitor. A literatura realista funciona assim como mediação ou revelação dos padrões de
organização social. Não é outra a leitura que Lukács faz do realismo de Balzac53, considerando-
o um grande escritor por sua capacidade de mostrar o mundo como ele é. O final do capítulo
III de Eugênia Grandet, "Amores de província", em que o narrador define o avarento, serve de
exemplo:
Os avarentos não acreditam numa vida futura. O presente é tudo para eles. Esta reflexão
lança uma luz horrível sobre a época atual em que, mais que em qualquer outro tempo, o
dinheiro domina as leis, a política e os costumes. Instituições, livros, homens, e doutrinas,
tudo conspira para solapar a crença numa vida futura, sobre a qual o edifício social se apóia
há mil e oitocentos anos. Atualmente, a sepultura é a transição pouco temida. O futuro que
nos esperava além do réquiem, foi transportado para o presente. Chegar per faz e nefas ("pelo
que é permitido e pelo que é proibido”) ao paraíso terrestre do luxo e das vaidosas alegrias,
petrificar o coração e macerar o corpo em busca de bens eternos, eis o pensamento geral!
Pensamento que aliás está escrito em toda parte, até nas leis, que perguntam ao legislador:
“Que pagas” em vez de dizer “que pensas”. Quando essa doutrina tiver passado da
burguesia ao povo que será do país?54
O avarento Grandet é a encarnação da sociedade dominada pelo dinheiro, que
funciona como a falsa mediação universal55, no dizer de Adorno, pois transforma tudo o que
toca. Assim, Grandet, ao dar a notícia da morte de seu irmão de Paris a Carlos, não lamenta
tanto a morte, quanto a falência que deixava o sobrinho na miséria. Ele mede a dor sentimental,
o amor, a política, a religião, tudo pelo que vale em dinheiro. Assim, ao se reconciliar com a
mulher e com a filha, lança moedas de ouro na cama como uma forma de demonstrar de seu
apreço por elas.
Repare-se no processo lógico construído pelo narrador. Ele parte de uma
personagem particular (Sr. Grandet) para definir o avarento, como um tipo. Depois segue
adiante e caracteriza a "época atual". O princípio de generalização, de lei abstrata, é tão forte e
absoluto, que se impõe a todas as personagens. No caso do avarento, ele é encarnação da
"divindade da época", Dinheiro, transformando tudo o que lhe é estranho em mercadoria, isto
é, em reflexo de si mesmo.
Eugênia é o pólo oposto. Ela, junto com sua mãe e a fiel empregada Nanon, é uma
criatura pura que ainda acredita no sentimento, no valor moral da religião. Ao longo do romance,
ela decepciona-se com Carlos, casa-se para manter as aparências sem deixar de ser virgem, torna-
se viúva e herdeira de milhões. Ao final sua imensa solidão a transforma em uma criatura sem
lugar do mundo, sem possibilidade de ter filhos, de permanecer através de seus herdeiros. Como
heroína do romance, procura valores puros num mundo sem espaço para eles.
O conflito burguês de que parte o romance é o confronto entre as duas famílias
pelos milhões que representa o casamento com Eugênia: Cruchotistas versus Grassinistas. No
dia de aniversário de 23 anos de Eugênia, o narrador mostra uma moça nem feia nem bonita,
mas que atrai por ser filha única de um rico vinhateiro. As duas famílias levam presentes, riem,
jogam, mas todos os sinais aparentes ganham sentido apenas se vistos dentro da competição
pela herdeira. “Não estava ali, acaso, o único deus moderno em se acredita, o Dinheiro em todo
o seu poder, expresso por uma única fisionomia?”56 O nome do primeiro capítulo é
53 LUKÁCS, George. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. In: ________. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
54 BALZAC, Honoré. Eugênia Grandet. In: ________. A comédia humana. Porto Alegre: Globo, 1967. T.4, p. 276.
55 ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Madrid: Taurus, 1984.
56 BALZAC, Honoré. Eugênia Grandet. In: ________. A comédia humana. Porto Alegre: Globo, 1967. T.4, p. 228
23
pode florescer de modo exuberante.60 Torna-se, então, compreensível o sistema capitalista como
o modo mais elevado da produção material, mas ao mesmo tempo constituindo um ambiente
desfavorável para o florescimento da cultura. No capitalismo, a categoria do ser econômico
(relações intra-humanas; homem e natureza) aparece reificada, pois “na consciência humana o
mundo aparece completamente diverso daquilo que na realidade é: aparece alterado na sua
própria estrutura, deformado em suas efetivas conexões”.61
O escritor qualificado será, a partir dessa concepção, aquele que defenda a
integridade humana, contra a sua degradação. Um exemplo ilustrativo é a análise de Marx,
referida por Lukács, em que a ação anti-humana do dinheiro domina os dramas, como O mercador
de Veneza. O dinheiro torna-se uma divindade visível, como um poder alienado da humanidade,
pois, ao deificarem-no, os homens o vêem como uma forçar extra-humana e incoercível. O
dinheiro, que concilia o inconciliável, torna-se o alcoviteiro universal ao tornar homens e povos
em objetos de compra e venda. A arte humanista denuncia esse processo, por promover o
desenvolvimento integral do homem. A sua base está na capacidade de representar a totalidade
do mundo.
Chega-se ao ponto fundamental da concepção lukacsiana de arte. Ela deve
funcionar como a tomada de consciência do mundo exterior através de um reflexo da realidade,
que existe independentemente da consciência, nas idéias, representações, sensações do homem.
Quer dizer, a arte é uma forma específica de conhecimento, entre a sensibilidade imediata e a
abstração científica, através da qual o homem pode adquirir uma consciência do processo global
do real. Assim, segundo Lukács, o reflexo é a essência da criação artística, e “todo grande artista”
deve se manter fiel ao real, procurando recompô-lo em sua integridade e totalidade. Essa arte
“autêntica” não pressupõe engajamento político partidário, mas honestidade do artista que
procura representar o mundo como se lhe apresenta, sem alterá-lo por causa de sua concepção
ideológica ou por seu desejo utópico.62
A realidade nessa concepção não está na superfície imediata do mundo exterior,
finita e fragmentária, não se compondo por fenômenos casuais e espontâneos. A arte que se
prende a essa concepção, torna-se mera cópia fotográfica. O Naturalismo seria um exemplo
marcante, pois, mecanicista, apega-se às leis exteriores e independentes que determinam o
comportamento e a vida do homem. Esse modo de reificação da objetividade, em detrimento
da subjetividade do autor, leva a uma apego aos pequenos acontecimentos, aos instantes,
perdendo de vista a totalidade. Essa descrição, esvaziada de sentido humano, torna-se apenas
ilustração de um conceito genérico, em que a personagem aparece como títere de uma tese.
A separação entre sujeito e objeto pode levar à preponderância do objeto ou a sua
negação. Isto é, a arte passa a ser considerada apenas como produção de um sujeito isolado, em
que se cai em um puro jogo, exercício formal fechado sobre si mesmo. A partir desses dois
pontos, Lukács critica toda arte apegada ao apuro formal e desligada da representação como
mero artifício formalista.
A realidade se constrói, então, pela dialética entre fenômeno e essência. De um lado,
os fenômenos fugazes e os instantes não repetíveis dão conta da vivência cotidiana dos homens.
De outro, esse processo somente se torna compreensível e se ordena pela apreensão da realidade
profunda, as leis que subjazem ao imediato. A verdadeira arte será a que apreender o momento
dialético em que a essência se transforma e se revela no fenômeno:
60 Op. cit. p. 20
61 Op. cit. p. 20.
62 Op. cit. p. 30.
25
O tipo vem caracterizado pelo fato de que nele convergem, na sua unidade contraditória, todos os
traços salientes daquela unidade dinâmica na qual a autêntica literatura reflete a vida.63
A personagem-tipo ganha um conceito peculiar na teoria de Lukács, pois representa
a solução para a dialética da essência e do fenômeno. O “grande artista” não representa uma
personagem em situação, mas investiga as direções e rumos do processo histórico. Esse
questionamento tornar-se-ia uma pesquisa abstrata, no entanto, se ficasse presa ao nível
genérico. Para ganhar força, o artista deve interligar os conflitos sociais aos problemas e dilemas
pessoais de uma personagem, que sofra, decida e lute para realizar seu ideal. Desse modo, o tipo
torna-se a figura-chave para se compreender a noção do realismo em Lukács, pois sintetiza em
suas vivências o cotidiano prosaico e o conflito histórico. Portanto, para Lukács, a grande arte
é um reflexo do real; e o artista qualificado deve ser capaz de apreender a totalidade existente,
através de uma personagem-tipo.
O conceito de realismo, visto como mímese autêntica do real, em Lukács coincide
com o de arte, não apenas enquanto teoria, mas principalmente como critério de valor. Ele é
um conceito teórico, pois, baseado no materialismo dialético, pretende dar conta de toda a
história da arte. Ao mesmo tempo é critério avaliativo, pois serve para qualificar e selecionar a
boa obra de arte, bem como indicar aquelas não bem realizadas. O pressuposto é de ordem
hegeliana, já que o fenômeno material apenas se torna realidade a partir de sua apreensão pelo
conceito, quando se torna membro vivo da totalidade. A diferença de Lukács, por sua filiação
ao marxismo, é a de que a totalidade não é senão um processo material econômico. Existe a
constatação da falsa totalidade, da mercadoria, que degrada o homem, e aspiração da verdadeira
totalidade, em que o homem se concilia consigo e com a natureza.
Essa discussão fica enriquecida ao se considerar a distinção, proposta por Lukács,
entre narrar e descrever64. A narração é identificada com a participação do artista na realidade,
enquanto uma tentativa de compreendê-la em sua totalidade, em suas leis essenciais. Ao
contrário, a predominância da descrição marca o apego à particularidade, em que o fenômeno
é visto de modo estático, desligado do processo histórico. Descrever o fenômeno em si ou
submetê-lo a uma tese positivista impede a compreensão da realidade como um processo
global.65
A crise, na concepção marxista de realidade, faz parte do processo histórico social.
Em Zola, ao contrário, a vida se desenvolve sem saltos e sem rupturas, pois todas as ações
humanas são vistas como acontecimentos normais, resultantes da influência do meio sobre o
homem. Nesse sentido, o Naturalismo fica preso ao cotidiano, em que tudo se torna previsível.
Perde-se a ação e se fica restrito a um estado:
A íntima poesia da vida é a poesia dos homens que lutam, a poesia das relações inter-humanas, das
experiências e ações reais dos homens. Sem essa íntima poesia não pode haver epopéia autêntica,
não pode ser elaborada nenhuma composição épica apta a despertar interesses humanos, a fortalecê-
los e avivá-los. (...) O homem quer ver na epopéia a clara imagem de sua práxis social. 66
Nesse parágrafo, está exposto o ideal que a narração encerra. Num período em que
o homem moderno vive na fragmentação, na alienação, em condições materiais adversas à
cultura, a arte deve cumprir a missão de despertar a consciência do homem para os momentos
de transformação, para as crises que revelam a natureza do processo histórico. A arte é nesse
caso uma forma de conscientização, pois reflete o processo em sua essência e totalidade.
A narração afirma-se em sua qualidade estética, pois distingue e ordena. Como ação
épica, localizada no passado, ela comporta a seleção do que é essencial, criando a ilusão no leitor
de que está perante a vida mesma. O leitor espera na evolução dos acontecimentos o êxito ou o
fracasso das personagens, a fim de compreender o processo vivido por elas em um movimento
temporal próprio da história.
De outra parte, o predomínio da descrição representa um sintoma e uma causa do
afastamento do significado épico dos acontecimentos humanos, abrindo ainda mais o abismo
entre o homem alienado e a realidade. Em romances como os de Zola (naturalista) e Flaubert
(formalista), Lukács vê o predomínio de observadores contemporâneos aos fatos que não
conseguem distinguir o essencial, considerando como padrão ideal a tudo descrever. Os homens
e suas ações metamorfoseiam-se em objetos a serem representados, perdendo o caráter humano.
Submetidos a um critério espacial, eles perdem a dimensão temporal e histórica.
A descrição de objetos é necessária em qualquer narração, desde que eles tornem-
se parte orgânica do todo. O objeto, inanimado, somente adquire sentido e poesia dentro do
contexto da ação e da experiência humana. Se a descrição fica centrada na observação, ela se
torna superficial, pois os objetos são vistos apenas em seu aspecto exterior e desligados do
homem. Aparentemente o método da observação e descrição torna a literatura científica; na
visão de Lukács, “porém os momentos sociais registrados pela observação e representados pela
descrição são tão pobres, débeis e esquemáticos, que podem sempre, com rapidez e com
facilidade, fazer com que se descambe para o extremo oposto ao do objetivismo: um
subjetivismo integral”.67
A noção de totalidade da obra literária aparece como sintoma, para Walter
Benjamin, da crise do romance68, do isolamento do sujeito que não consegue compreender mais
a realidade como um todo, já que perdeu a capacidade de intercambiar experiências. De seu
isolamento, ele espera encontrar no romance o sentido da existência que somente pode ser dado
pela morte da personagem ou o fim conclusivo da obra. Nesse aspecto, o romance construiria
uma falsa imagem da realidade, promovendo uma conciliação entre o sujeito e o mundo que
não existe de fato. A totalidade surgiria como uma falsidade a impedir o sujeito de perceber a
mutilação de suas vivências.
Além disso, como já vimos, o romance não surge da narração. Ao contrário, por
ser uma obra de natureza escrita, ela tem a marca híbrida da mistura de diversos tipos de textos,
inclusive de procedência não literária. Desde o princípio, sua forma prosaica torna-o aberto a
receber as mais diversas influências. O romance, gênero literário moderno, possui uma forma
irregular. Eqüidistante da lírica e do conhecimento científico, ele opera a ligação entre ambos.
Serviria como elaboração sensível e consciente de aspectos modernos da realidade humana.
Apegado ao diferente e ao novo, esse gênero abre-se para absorver contribuições de outras
áreas, não sendo redutível a uma receita nos moldes clássicos. Assim, a sua linguagem é
enriquecida pelo gênero dramático, pela imprensa, bem como por referências eruditas. O caráter
híbrido, e analítico, faz com que ele se defina por sua constante transformação.
A ampliação do público leitor leva a um incremento da imprensa periódica, em que
se publica o romance folhetim, e da indústria do livro. Nasce a demanda da produção de uma
leitura acessível, multiforme, capaz de agradar a muitos paladares. O livro não pode ser teórico,
a fim de atrair e satisfazer ao leitor em sua necessidade de fantasia.
O Romantismo demonstra um forte interesse pelo comportamento humano,
considerado em função do meio e das relações sociais. Ele, como ficção, amplia a realidade
representada pela ficção. “Não arranca os homens à contingência para levá-los ao plano do
heterogêneas na voz do narrador, no romance. Assim, quando Lukács diz que o romance
representa o essencial da realidade, ter-se-ia na verdade a fachada, a ideologia de sustentação do
capitalismo. Na leitura de Adorno, o caráter crítico da obra romanesca se perde, pois fica preso
ao horizonte burguês.
A dialética e a mediação surgem da mesma realidade, em que a totalidade aparece
como falsidade, mas interessa lembrar que Adorno insiste na distinção entre a arte e a filosofia,
por terem natureza e forma diferentes. Tanto na Dialética Negativa, quanto em O ensaio como forma,
a reflexão filosófica afirma-se por sua capacidade de desligar-se da imediatez do fenômeno
através do conceito. Ela não se distancia do objeto, nem se despreocupa da forma de expressão,
mas não deixa de ser importante construir conceitos que remetam para além de si, a fim de não
se cair no irracionalismo. De outra parte, a arte, como mostra Rodrigo Duarte74, ocupa um lugar
central nas reflexões de Adorno, porque ela consegue ir além da totalidade, da ideologia, para
representar o humano ainda não desfigurado pela totalidade. Ela funciona como o outro da
realidade, na sua capacidade de se desligar do cotidiano, ao apontar para uma representação do
homem conciliado, em que a natureza redimida não esteja dominada. O modo de realizar isto
atualmente, ainda segundo Adorno, é abandonar a mímese realista (como crença na objetividade
especular da prosa), a expressão sentimental e autêntica da lírica e a harmonia musical. Se a arte
se prende à espontaneidade e à irracionalidade, acaba por se tornar expressão do mesmo.
Chega-se a uma distinção importante para Adorno entre a arte e os objetos da
indústria cultural. A reflexão filosófica tem a obrigação de tomar ambas como objeto. No século
XIX, não há propriamente indústria cultural, mas os intelectuais de elite demonstram a
preocupação quanto ao lugar da arte e da cultura nas grandes cidades. As novidades
tecnológicas, figurações da crença no progresso material, trazem o risco da degradação cultural
dos folhetins, dos jornais, do consumo por entretenimento. Nesse sentido, pode-se ver a
representação realista, como expressão da identidade ao mesmo, à sociedade de consumo e ao
indivíduo desintegrado, enfim a expressão da barbárie. Na arte, ela encontra o estranho, o
diferente, a não-identidade, a humanidade ainda não subsumida pela totalidade.
Adorno lembra que a origem do racionalidade e da moral está na irracionalidade,
enfatizando a necessidade da filosofia de construir o conceito sem esquecer de seu limite. No
mesmo sentido, ainda na Dialética Negativa, Adorno afirma que o menor traço de diferença é o
suficiente para destruir a identidade e a totalidade. Ao centrar-se naquilo que escapa aos
conceitos, a arte pode encontrar o diferente, o “não-idêntico”, ou, em outros termos, o humano
não desfigurado pela ideologia e ir além do Realismo.
Essa discussão torna-se fundamental, quando se trata de um conceito como o de
Realismo. Adorno mostra como a tendência do conceito é totalizadora e totalitária, pois procura
apagar as diferenças e os dados estranhos para se fixar no semelhante. Em Lukács, Adorno e
Benjamin, o ponto de partida para a construção desse conceito é a prosa realista do século XIX,
mas o resultado, como já foi visto, é diferente. Para Lukács, a mercadoria construiu um mundo
desencantado, regido pela produção material capitalista, avessa à cultura. Nesse caso, o
compromisso da "verdadeira" arte, humanista e honesta75, é a de apresentar uma visão
integradora do mundo para o homem desenraizado. Para Benjamin, a totalidade não é crítica,
mas uma fantasmagoria de um sentido perdido. Parente próximo da informação, o romance
auto-explicável e preso à novidade não ajuda a ordenar as vivências do leitor, mas a perdê-las.
O leitor fica preso à sua solidão. Adorno mostra ainda como o romance realista prende-se à
fachada homogeneizadora da sociedade totalitária, deixando de lado as experiências humanas
que lhe escapam.
74 DUARTE, Rodrigo. Seis nomes, um só Adorno. In: NOVAES, Adauto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994
75 Cf. LUKÁCS, G. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. _______. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
29
Antes de finalizar essa discussão, cabe destacar que a relação entre literatura e
sociedade proposta por Lukács não permite englobar a lírica ou a arte de vanguarda. A
identificação com o Realismo, segundo o modelo de Balzac, cria um padrão homogêneo avesso
a expressões que lhe sejam diferentes. Nesse sentido, Benjamin e Adorno não restringem a
discussão do Realismo, mas abrem espaço para a lírica, por exemplo.
Em Lírica e sociedade,76 Adorno apresenta a lírica (objeto delicado) como um discurso
avesso à socialização, expressão da subjetividade do sujeito. A expressão individualizada para se
tornar universal, no entanto, deve expressar-se na linguagem, que vai além da individualidade.
Na lírica, assim, “a elevação ao universal é a manifestação de algo ainda não desfigurado, não
captado, não subsumido ao conceito universal77”, pois o poeta é um dos poucos capazes de
mergulhar em si e expressar sua subjetividade, encontrando o universal.
As obras de arte, todavia, têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia
esconde. Seu próprio êxito, quer elas o ambicionem ou não, passa além da falsa consciência. 78
A universalidade do poema é sempre social. Não é possível um salto direto da
expressão lírica para o universal, pois então seria uma revelação de ordem sagrada. O todo da
sociedade, como unidade contraditória, aparece dentro da obra, mas deve ser analisado de modo
imanente. Ele não revela apenas a “ideologia, como falsa consciência ou mentira”, mas mostra
aquilo que a ideologia esconde. Por isso, Adorno enfatiza que “esse saber só é válido quando se
redescobre no puro abandonar-se à coisa mesma”, na medida em que, ao fazê-lo, o sujeito é
capaz de descobrir as marcas estranhas e diferentes que não se assemelham à ideologia.
Quando se comenta o Realismo, a lírica parece ser um tema arbitrário, pois não traz
a capacidade de representar o mundo. Por esse traço, ela se torna relevante nesse momento,
pois a obra de arte deve ser capaz de revelar o que a ideologia esconde. Desse modo, a obra
realista em sua forma fechada, homogeneizadora de diversos discursos, tende apagar o que lhe
seria diferente, perdendo a capacidade de exprimir a complexidade de uma consciência, de uma
linguagem e de um caso que não se enquadram na lei social. Ao contrário do tipo lukacsiano, a
voz da lírica moderna, desde Baudelaire, escapa para o atípico a fim de encontrar o humano nos
refugos da sociedade, no trapeiro, no revolucionário, no homem-sanduíche, na prostituta, na
lésbica.
Lukács e Adorno partem da relação entre literatura e sociedade, em que o mundo
capitalista é regido pelo dinheiro, mas para Adorno a arte não se liga à sociedade por ser um
reflexo de suas leis essenciais. Ao contrário, a grandeza da arte, é mostrar aquilo que escapa da
totalidade. Assim, justificam-se os fragmentos, as ruínas, os detalhes, os elementos estranhos,
pois eles representam aquilo que ainda não foi subsumido pela falsa universalidade do capital.
As posições, como já se viu na contraposição entre Lukács e Benjamin, partem da mesma
degradação do homem, da mesma circunstância histórica, mas, enquanto para Lukács, arte deve
resgatar o princípio da totalidade, Adorno defende que isso seria um engodo ideológico, pois a
totalidade da arte mimetizaria a totalidade do capital.
Desse modo, o valor histórico da lírica, que não representa diretamente o real, ajuda
a compreender os limites da prosa realista. A pretensão de objetividade ou de descoberta de
uma regra geral mimetiza em termos formais a totalidade da sociedade capitalista, que traduz
tudo em mercadoria, mas deixa escapar ou não consegue apreender os casos limites, estranhos,
"o homem das multidões", que não se deixa ler ou classificar pela racionalidade do observador.
A experiência humana está ali onde a ideologia não penetrou ainda.
79 WATT, Ian. O realismo e a forma do romance. In: A ascenção do romance:estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
80 PAES, José Paulo. A armadilha de narciso. In: ________. Gregos e Baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985.
81 BALZAC, Honoré. Eugênia Grandet. In: ________. A comédia humana. Porto Alegre: Globo, 1967. T.4, p. 284.
31
perante um discurso histórico. Talvez seja possível afirmar que a comunicação com o leitor é
alcançada de modo pleno, mas não se trata de discutir apenas as posições do narrador e do
leitor, nem as opções narrativas. O central é o aspecto referencial da linguagem, criando a ilusão
de que as palavras funcionam como uma mediação neutra entre o leitor e o próprio mundo
representado.
Nesse momento, cabe analisar a forma como o romance cria a ilusão de estar
trazendo a realidade burguesa para dentro de sua composição. Mesmo não sendo epopéia, o
romance continua sendo por excelência um gênero burguês, que procura representar os valores
e o cotidiano da burguesia como se fossem universais. O romance é, desse modo, uma forma
literária historicamente nova, cuja marca principal é o realismo, que procura mostrar a “verdade
humana”. Há uma negação dos universais, para se procurar a verdade dos sentidos,
experimental.82
Conforme Ian Watt, o realismo literário pode ser derivado do filosófico. Na era
moderna, crítico, antitradicional, inovador, este negava os conceitos universais pela
apresentação de realidades particulares. O romance, novo e original (séc. XVII), procura
representar a experiência individual como uma experiência única. Para isso, a forma não é mais
convencional, e a fábula deve ser extraída da realidade “atual” e cotidiana. Em uma história
autobiográfica, centrada no indivíduo, o romance representa uma experiência nova e singular,
em que a verdade do relato não surge por ser repetição do padrão tradicional. A veracidade é
dada por centrar-se nas verdades humanas e singulares.
A técnica do romance para alcançar a verdade realista é a da particularidade. Para
que as personagens tenham uma individuação, devem ter um nome próprio, como se fossem
pessoas comuns. A descrição detalhada do ambiente vem a construir as condições específicas
de espaço e tempo em que a personagem deve ser inserida. A estrutura coesa do romance mostra
uma noção de tempo como um processo construtivo do sujeito, em que o passado é visto como
causa e o presente como determinado. O processo de construção da identidade, em uma história
de cunho autobiográfico, é a memória. A nova dimensão da representação do real aparece na
forma epistolar, na técnica do close-up sobre a personagem no tempo histórico demarcado. Por
fim, a palavra (a linguagem) vale pela sua capacidade de representar a realidade com
autenticidade, por isso a prosa romanesca procura ser fiel mesmo que as vezes chegue às
vulgaridades, numa forma fácil e traduzível.
O realismo não é, portanto, um conceito desligado das condições históricas, mas se
define pela relação entre realidade e a forma literária. No caso da forma realista do romance,
trata-se de um novo gênero que se consolida como tal não pela espécie de vida mostrada
(rebaixada e vulgar), mas sim pela maneira como é apresentada. Assim, o problema central “da
correspondência entre a obra literária e a realidade que ela imita” é epistemológico, quer dizer,
é relativo aos conceitos de realismo e de realidade.
A natureza intrínseca do romance busca uma representação precisa da realidade, a
partir um posicionamento livre, que não se prende às tradições literárias; ao contrário, livra-se
delas. Nega, por exemplo, os moldes da epopéia, porque esta tomava seu tema no mito e, em
verso, procurava elevar a condição de suas personagens a reis ou nobres, para que fossem
exemplares. A forma romanesca liga-se nesse caso a uma nova concepção de real, que não está
no conceito universal e abstrato, cuja verdade era encontrada pela pesquisa contemplativa. A
verdade realista do romance é oriunda do empirismo e da crença de que a verdade é alcançada
pela pesquisa através dos sentidos humanos, que não dependem de um apriori metafísico
religioso ou filosófico, pois só existe o homem em suas condições históricas de existência.
82 Cf. WATT, Ian. O realismo e a forma do romance. In: op. cit. A caracterização da forma realista do romance que segue foi baseada nas formulações do
teórico inglês.
32
83 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 3ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1988.
84 Op. cit. 37.
85 BENJAMIN, Walter. Paris do segundo império. In: ________. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
33
na violência própria do escravismo, bem como na sua amenização pelo favor. Ao olhar como
europeu o patriarcado e o paternalismo católico, tanto Alencar quanto Machado de Assis teriam
criado formas incongruentes em relação à matéria narrada, misturando o interesse material
capitalista à prática do favor. A dualidade brasileira, de se estar desterrado na própria terra,
reaparece em uma forma inacabada do romance, não alcançando a condensação balzaquiana.
A forma romanesca, como se percebe em Ian Watt, centra-se na particularização da
personagem, um indivíduo único, com biografia própria, enraizado em condições históricas
amplas e em condições cotidianas de existência. Essa forma corresponde ao valor da vida
privada burguesa ou a afirmação de sentimentos burgueses, das escolhas individuais e naturais.
A moral burguesa ganha legitimidade científica, principalmente quando o homem perde-se na
massa da metrópole. A representação estética lhe devolve, então, como o interior de sua casa,
sua identidade, seus traços pessoais e o mundo ordenado que não encontra mais nas ruas da
cidade.
Cabe agora retomar a concepção lukacsiana de que o romance é a epopéia da era
burguesa . O herói deixa de fazer parte de uma totalidade e de expressar os valores de um povo.
86
Não há mais espaço para uma síntese entre a realidade objetiva e a expressão subjetiva, assim
como a ação do caráter épico não resulta de uma necessidade individual e coletiva. O universo
homogêneo e comunitário, para Lukács, perdeu-se. Estamos frente ao herói problemático que
procura num mundo desencantado o sentido de sua existência, porque o romance parte de uma
sociedade problemática, em que a totalidade e a identidade não passam de uma aspiração do
sujeito. Tal concepção de romance tem uma base questionável, como aponta Ference Fehér87, a
aceitação tácita de que, antes do mundo capitalista, a sociedade comunitária teria sido harmônica
e homogênea. Trata-se de uma idealização lukacsiana de origem romântica:
Max Weber assinalou diversas vezes que o capitalismo e a sociedade industrial se
caracterizam por um desencantamento do mundo, através do qual os sentimentos e valores
supremos são substituídos pelo cálculo frio e racional das perdas e ganhos. A volta à religião
e à paixão pelo misticismo são formas de revolta contra esse desencantamento, e tentativa
desesperada de restabelecer no universo cultural esse “encantamento” expulso pelas
máquinas e pelos livros de contabilidade.88
O pensamento do início do século XX na Alemanha, segundo Löwy89, traz a marca
de Weber, do desencantamento do mundo, em que a solução é apontada para a volta à totalidade
pré-burguesa, seja pela arte, pela religião ou pelo amor. De qualquer modo, os valores
românticos, anti-burgueseses, não se centravam na primazia do capital, nem do material, mas
na abertura para o espiritual. A teoria do romance responde a essa questão nuclear ao opor epopéia
ao romance, pois com isso afirma que esse surge do "desenraizamento universal", do isolamento
do herói problemático em busca de valores autênticos em um mundo degradado.
O herói no romance tradicional (de cunho realista) tem a tendência a reproduzir a
realidade aprendida pelos sentidos. Para que esse procedimento seja eficaz, o texto cria uma
totalidade orgânica, tomando dados particulares do cotidiano da época. Sua eficácia está em um
discurso capaz de persuadir o leitor de que vê homens agindo no mundo. Não pode criar,
portanto, a ilusão de ótica de se ver duas imagens ao mesmo tempo, pois uma destruiria a outra
como na ironia. Apesar da diversidade de materiais, o conjunto deve seguir um princípio único.
Segundo Anatol Rosenfeld90, o romance realista, por ele visto como tradicional, é
paralelo à representação artística do sujeito na pintura de retratos. O homem é retratado, e a
86 LUKÁCS, Georg. Teoria do Romance. Lisboa: Editorial Presença, s/d. Biblioteca de Ciências Humanas.
87 FEHÉR, Ferenc. O romance está morrendo? contribuição à teoria do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
88 LÖWY, Michel. Romantismo e messianismo. São Paulo: Perspectiva, 1988. (Debates.) p. 55.
89 Cf. Op. cit.
90 ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: Texto/Contexto. 4ªed. São Paulo: Perspectiva, 1985. (Debates, 7)
34
pintura cria a ilusão de que de modo imediato pode-se reconhecer a figura que aparece na tela.
No realismo, os homens aparecem como são, sem idealização, abrindo-se caminho para
representar qualquer tipo de homem, sem precisar cair na comédia ou na sátira. Um dos critérios
de excelência da literatura e da arte é o apuro técnico para se representar de modo preciso a
realidade, avaliando-se sua capacidade de mostrar novas áreas do cotidiano.
Por isso, paralelo ao avanço da pintura em direção à abstração, o romance
moderno faria uma "desrealização" da literatura, com a tendência a não mais reproduzir a
91
sanduíche. Nem mesmo o poeta é heróico, porque, ao perder a auréola, um farsante passou a
usá-la, impedindo-nos de identificar o verdadeiro artista.
O narrador também é um papel a ser encenado pelo autor. Não há autoridade em
sua voz e não há mais o que contar, mas ele representa a segurança necessária para persuadir o
leitor de sua posição. Com a crise da narração, da faculdade de narrar, de representar o real e de
transmitir a experiência, todo o relato reflete-se sobre si mesmo, sua natureza artificial e sua
própria falsidade. O Realismo, que se propunha como uma representação fiel da realidade,
revela-se nessa perspectiva como um artifício literário. O autor, arbitrariamente, opta por um
modo de representar a realidade, mas nada garante a veracidade da imagem ilusoriamente
construída.
Machado de Assis destrói a crença de Alencar na possibilidade de se superar a
desordem do mundo pela imposição do ideal moral, ao construir um narrador personagem que
não distingue o bem do mal com segurança, nem tem autoridade para isso. Brás Cubas é como
Loredano (o vilão de O Guarani), apegado ao prazer e ao dinheiro, com a volúpia do nada que
ironiza Deus e nivela tudo ao seu desejo. Ele está morto, seu cadáver está despedaçado pelos
vermes, perdeu a vida. Assim, também o romance perde a unidade orgânica, sua prosa anda ao
léu, sem rumo: o narrar perde a organicidade, despedaçado em várias partes desarticuladas entre
si.
36
94 HAVELOCK, Eric. A revolução da escrita na Grécia. São Paulo: Ed. da Universidade Estadual Paulista; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
95 Op. cit. p. 17.
96 Op. cit. p. 28.
37
compreender a imagem particular usada para deixar o pensamento abstrato mais claro. A
alegoria era considerada um ornamento do discurso persuasivo, que, como a metáfora, servia
como substituição do pensamento por uma imagem que lhe fosse semelhante. Por isso,
alegoria é “falar o outro”, expressão que representa um sentido que está fora de si e, ao
mesmo tempo, é a fala na ágora, tornada mais acessível para os participantes nas
assembléias atenienses.
O sistema retórico funcionava como um conjunto de regras para orientar a arte de
falar (discursar) bem. Ele visava à inserção do cidadão na Pólis, nas situações em que fosse
necessário fazer uso da palavra para intervir e agir procurando alterar uma situação. Em um
julgamento, por exemplo, o sujeito discursa procurando convencer o árbitro, o juiz, da correção
de sua posição, a fim de alcançar uma decisão a seu favor. Assim também em uma assembléia,
o discurso tem como escopo alterar a situação em alguma direção, a partir do convencimento
daqueles que têm poder para decidir.
Considerando a retórica como um sistema, existem regras hierarquicamente
organizadas, para orientar o aprendizado da técnica discursiva. Os princípios gerais devem
sempre prevalecer sobre os menores. Desse modo, a primeira regra posta é a de que se deve
persuadir o outro, usando para isso argumentos verdadeiros e convincentes (pensamento), uma
expressão clara (linguagem) e, se possível, figuras que embelezem e quebrem a monotonia do
discurso (arte). Assim pela ordem, o sujeito deve primeiro encontrar argumentos fortes, plenos
de autoridade, para atingir o sucesso de sua fala. É o fim buscado e, ao mesmo tempo, o
princípio que serve para ordenar o todo de seu discurso. Se para tanto, for necessário sacrificar
a arte, não há problemas. Na seqüência, deve-se ponderar da necessidade da clareza para
que o outro compreenda a fala, a fim de ser convencido, mesmo que isto signifique em
algum momento a perversão das regras gramaticais, porque a regra maior sempre tem
precedência. Por fim, os ornamentos devem ser usados para que o discurso seja embelezado,
não se torne monótono para os ouvintes e seja, então, mais facilmente memorizado e
compreendido.
A alegoria é nesse ponto uma parte menor, uma figura, do sistema retórico. Ela
serve, como se viu, para representar o tema, através de uma imagem que lhe seja semelhante, de
modo coerente. Alegoria (parábola, apólogo, personificação, fábula) é uma forma desenvolvida
tanto do exemplo quanto da metáfora. É, em outros termos, uma sucessão de metáforas que
exemplificam ou particularizam uma abstração a fim de torná-la palpável; de certo modo, torna
o pensamento uma figura sensível. Por mais arbitrária que seja a imagem alegórica, ela deve
estar submetida à ordem geral do discurso, como ilustração. Deste modo, o pensamento
sempre tem precedência sobre a imagem, a idéia sobre o exemplo, porque o sentido não está na
imagem, mas nas concepções intelectuais que lhe são anteriores.
Não há propriamente em Platão uma discussão sobre a natureza da alegoria, pois a
discussão sobre a retórica já engloba esse aspecto. Pareceu-me interessante, no entanto,
transportar para sua leitura o conceito de alegoria tal qual fora proposta pelos românticos, pois
se vê o vínculo essencial entre a expressão alegórica e a religiosidade ou o sagrado a que ela se
submete. Esse caminho se sustenta por duas razões: já em Porfírio, de Alexandria, era proposta
uma leitura alegórica de vários diálogos, pois Platão os escreveria com uma intenção alegórica.
De outra parte, não haveria uma distinção clara entre mito e alegoria, já que os deuses seriam
considerados como encarnações de elementos naturais ou princípios universais. Assim, Platão
faria uso da alegoria ao reler a mitologia grega:
O homem, contudo, não tem consciência de ter inventado essa linguagem que representa a religião.
Ele tem a impressão que é o próprio mundo que fala essa língua, ou mais precisamente, que a própria
realidade é, no fundo, uma linguagem. O universo lhe aparece como a expressão de potências
40
sagradas que, revestidas de formas diversas, constituem a trama verdadeira do real, o ser atrás das
aparências, a significação além dos sinais que a manifestam. 103
O ponto de partida é o de considerar a mitologia grega em primeiro lugar como
uma religião estruturada. Quer dizer, a crença na existência dos deuses, e dos significados, é o
que dá ordem para a multiplicidade dos fenômenos, explicando-os. Assim, a constituição da
realidade como tal, como “trama verdadeira”, somente se dá quando o sujeito apreende os
fenômenos materiais pelo conceito. No caso, esses conceitos são encarnados na própria
existência dos deuses. Eles não são pessoas, mas potências.104 Zeus não é um indivíduo, mas
uma potência natural (regularidade das estações, bem como imprevisibilidade da mesma) e social
(na medida em que Zeus Basileus é o rei dos deuses). O significado de Zeus não se dá apenas
por sua caracterização, mas pela relação que mantém com os outros deuses, e que cada um deles
estabelece com os outros. Sua peculiaridade dá-se pela distinção com Hermes, Dioniso, Apolo,
Atena. Como uma linguagem, então, os deuses funcionam como uma forma de compreensão
do mundo:
Eles permitem integrar o indivíduo humano a grupos sociais tendo sua regra de funcionamento, sua
hierarquia; integrar por sua vez esses grupos sociais na ordem da natureza, de ligar enfim o próprio
curso da natureza a uma ordem sagrada. Os deuses têm assim uma função de regulação
social.105
Por essa explicação, a religião politeísta dos gregos não é arbitrária, mas responde a
uma necessidade do povo de compreender e explicar o cosmos. São esses valores comunitários
que entram em crise na cidade-estado. A explicação mítica deixa de ser satisfatória. Platão não
nega o valor dos deuses gregos, mas altera de modo substancial o seu significado. Na medida
em que eles são deuses, devem ter uma identidade constante associada à idéia. Nenhum traço
humano, impuro, pode tocá-los. Dizer uma imoralidade, um crime ou impureza de um deus é
não considerá-lo mais como deus. Platão mantém o respeito ao sagrado como fonte da
realidade, mas muda seu conceito apagando o caráter duplo e ambíguo que os deuses tinham na
religião grega. Poder-se-ia, talvez, falar de um deslocamento do contato com o sagrado do ritual
exterior para um processo de conhecimento interior, da própria alma. As Idéias, bem como os
deuses, existem fora do mundo, mas o ponto de contato dá-se pelo conhecimento construído
através de nossa alma, pois, como ela se originou da Idéia, aspira sempre retornar a esse mundo
sagrado.
Em Fédon, Platão, discute a natureza da alma. Sócrates, condenado à morte,
momentos antes de tomar a cicuta, despede-se de sua família, e fica junto dos amigos para
esperar a morte. Com uma tranqüilidade exemplar, ele, além de consolar aqueles que ficariam
vivos, ainda ensina sobre a natureza da alma humana:
Este objeto que eu estou vendo agora tem tendência para assemelhar-se a um outro ser, mas, por
ter defeitos, não consegue ser tal como o ser em questão, e é, pelo contrário, inferior. 106
Poder-se-ia considerar essa passagem como um exemplar conceito de alegoria, em
que a imagem tende assemelhar-se a um outro ser, mas por seus defeitos sempre será inferior
ao conceito ou idéia que busca exprimir. A Idéia, como lugar da verdade, pode ser vista apenas
de modo indireto, para não cegar o observador. No caso, é através do corpo, dos objetos
materiais que se pode intuir de modo indireto a verdade da alma.
103 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. p. 91.
104 Cf. op. cit. p. 94.
105 Op. cit. p. 95.
106 PLATÃO. Platão. São Paulo: Abril, 1986. (Os Pensadores). p. 78.
41
O homem tem natureza dupla. De um lado, possui um corpo, visível, que através
dos sentidos percebe um universo múltiplo, mas que em sua natureza mortal não pode definir
a identidade do ser humano. De outro lado, a alma, invisível, possui uma forma única que pode
ser alcançada através da reflexão. Ela, imortal e divina, possui a inteligência e define a identidade
do sujeito. Entre a matéria e a idéia, o homem fica no meio do caminho e precisa se desligar do
corpo para que liberte sua alma. É um processo doloroso como o parto, mas evita o
rebaixamento do homem, presa de seus sentidos. O sentimento intenso, o sofrimento e a alegria
intensa fazem crer que o causador da dor seja mais real e verdadeiro; funcionam, desse modo,
como um cravo que prende a alma ao corpo. Por isso, o homem deve fazer uso da reflexão,
para se desligar daquilo que o prende ao corpo perecível.
Nessa situação, o filósofo coloca-se entre o mundo natural (material, perecível e
enganador) e o mundo das idéias (a verdadeira realidade, eterna, indescritível). Ele é o mediador
que mostra como, atrás dos corpos, dos sentimentos primários e das necessidades básicas,
esconde-se a verdade. O conhecimento de si mesmo, da própria alma, constitui o caminho para
a verdade. Nesse caso, o filósofo é a parteira que ajuda a nascer o conhecimento livre. Através
do diálogo, ele consegue levar o interlocutor a compreender que a realidade verdadeira não está
na apreensão imediata, nem no preconceito, mas nas idéias. A unidade do bem, do belo, do
bom, do valor é separada das imperfeições materiais e revelada em sua pureza. Desse modo, a
alma é levada a lembrar da Idéia, de onde se origina, e conhecer sua natureza imortal.
Em Protágoras107, Sócrates pergunta qual arte ensina a sofística, qual o saber que ela
transmite aos homens. O pintor ensina pintura, o médico, medicina, e o sofista? Responde
Protágoras: a arte da política. Sócrates contra-argumenta dizendo que a virtude política não
estava restrita a uma pessoa, mas é de todos e não pode ser ensinada. O sofista inventa, então,
uma fábula para responder à pergunta.
Protágoras conta a origem dos homens, não como conhecimento sagrado
(numinoso), mas como fábula. A narrativa deixa de ser mito para ser vista como uma
representação de um conhecimento abstrato. Protágoras opta pela fábula para agradar o público,
sentado à sua volta. Na narração, ele conta a invenção dos seres mortais e como eles são fornidos
de recursos para sobreviverem. Faltando apenas o homem, Prometeu rouba o fogo de Hefaístos
e a arte de Atena para dar aos homens. Na evolução dos homens, eles se reúnem em cidades,
mas brigam e se destroem. Zeus, compadecido, manda Hermes entregar a virtude política e o
pudor a todos os homens:
Mas, no que diz respeito à justiça e às outras virtudes políticas, se alguém é conhecido como injusto
e se, dando testemunho contra si próprio, confessa a verdade em público, esta confissão da verdade
que passava há pouco por sabedoria, é considerada agora uma loucura, pois nos convencemos de
que todos os homens devem se apresentar como justos, quer o sejam, quer não, e que é loucura não
simular a justiça, pois é necessário que todos, sem exceção, participem na justiça ou que ela
desapareça.108
107 PLATÃO. Protágoras. Madrid: Aguilar, 1993. (Obras Completas, vol. único). pp. 167-169.
108 Op. cit. p. 168.
109 PLATÃO. Platão. São Paulo: Abril, 1986. (Os Pensadores). pp. 96-97
42
motivo Platão condena o artista a ser expulso da República, no livro X, pois a arte imita a
aparência do mundo, seu corpo, como se fosse a única realidade, levando o homem a prender-
se às coisas materiais, como se fossem as mais importantes. Para Platão, o artista suscita um
prazer e um sofrimento no espectador que crê como verdadeiro aquilo que está exposto. O
artista imita a imitação que é o mundo das aparências e dos fenômenos, sem ter o interesse de
descobrir imagens que expressem o verdadeiro sentido das idéias. A arbitrariedade e o caráter
sensual da arte levam o sujeito a se apegar às histórias particulares, perdendo de vista o
verdadeiro.
Já nesse primeiro momento, o uso da alegoria em Platão define-se apenas quando
se considera a finalidade a que se destina. Assim, em Protágoras, o uso da narrativa seduz o
auditório apenas para sustentar um ponto de vista particular, uma opinião. Platão advoga
exatamente o contrário. A alegoria constitui-se como legítima apenas quando visa representar a
idéia.
Platão, como mostra em Fédon110, não desconhece que o mundo político funciona
pela aparência e de que as guerras originam-se na disputa por riqueza. Ele aponta, no entanto,
que isto confirma o corpo, e o apego aos prazeres do sentido, como a origem de todos os males
pessoais e políticos, e de que a alma deve ser educada para não tomar as características do corpo
em que se encontra presa. Por isso, o uso que o sofista faz da imagem alegórica é pernicioso,
pois serve para afastar o homem do caminho da verdade.
Ao fazer o uso da alegoria, em Crátilo111, Platão mostra a insuficiência da linguagem
para expressar a alma e as verdades do mundo das idéias. Ela é uma sombra, na sua
multiplicidade de palavras, que traz as marcas do sentido. A linguagem, na sua natureza, não é
nem motivada diretamente das coisas, quer dizer, ela não imita as coisas na sua forma; nem é
uma criação de cada sujeito, porque ela serve para uma comunidade sem que o sujeito possa
alterar a forma ou o sentido das palavras de modo arbitrário. Ao final do diálogo, depois de pôr
em xeque as duas posições, Platão anuncia um caminho mais importante. As palavras (os nomes)
não são o objeto de estudo do filosofo. Elas são como Eros, como a alegoria, medianeiras entre
o homem e o conhecimento das coisas mesmas, isto é, a idéia de que são uma sombra. O
interesse de reafirmar o lugar intermediário da linguagem está no fato de Sócrates afastar-se de
seus interlocutores ao afirmar que as palavras não são motivadas pelas coisas, nem são
completamente arbitrárias. Não está, então, na linguagem mesma a fonte do conhecimento, mas
no estudo do universal, das idéias:
E é evidentemente necessário buscar fora dos nomes outras luzes capazes de nos mostrar, sem ajuda
dos mesmos nomes, qual das categorias é verdadeira, evidentemente fazendo-nos ver a verdade do
que é.112
Contentemo-nos em admitir de comum acordo que não há que partir dos mesmos nomes, senão
que há que aprender a investigar as coisas partindo delas mesmas, melhor do que dos nomes. 113
Enfim, a investigação não parte da linguagem, mas das próprias coisas, devendo ser
entendida pelo homem não como as coisas materiais, mas como idéias que elas escondem, que
não mudam e permanecem sempre idênticas a si mesmas. Se o conhecimento partisse dos
próprios nomes, levaria o investigador ao engano ou a impossibilidade de alcançar a verdade,
pois neles está a mesma dualidade que é própria do homem.
Quando falham as palavras, a memória, que é o domínio delas, também desmorona. Isso é um
ultraje; mas é um ultraje sagrado e afirmativo, prova manifesta da existência daquilo que ultrapassa
toda a linguagem humana. Dessa literalmente indizível luz e glória, a língua do poeta luta por trazer-
nos uma única centelha:
e torna a minha voz ora potente
por que um vislumbre ao menos de tal glória
possa eu deixar à porvindoura gente
(CANTO XXXIII, DANTE)114
George Steiner mostra o quanto a linguagem limita com o silêncio, de um lado, e
com a música, de outro, sempre em contraponto com aquilo que está para além dos limites do
dizível. Isso ressalta a natureza da idéia, tal qual concebia Platão, pois ela é exterior ao sujeito,
somente sendo alcançada após a morte. Enquanto homem, o sujeito apenas pode tomar
consciência de sua existência, inclusive a partir da consideração de tudo o que ultrapassa a
linguagem humana.
Em A República, a fim de discutir a natureza da justiça e da injustiça, Sócrates
convida seus interlocutores a fundar uma cidade na imaginação. Esta cidade surge pouco a
pouco pelos elementos apresentados no discurso. Considerada como uma associação entre os
homens, frágeis e precários para bastarem-se a si mesmos, a cidade é uma comunidade. É o
espaço ideal para se discutir a natureza da justiça e da injustiça. Primeiro, as necessidades básicas:
alimentação, habitação e vestuário. Depois pouco a pouco a cidade torna-se mais complexa, à
medida em que se procura suprir as necessidades dos seus habitantes. Assim também a passagem
da cidade sã em que basta suprir as necessidades para a cidade cheia de humores, em que é
preciso o luxo para satisfazer as necessidades:
Não poderão admitir-se na cidade, sejam alegóricas ou não, essas histórias que falam de como Juno
foi agrilhoada por seu filho e como Hefestos, que pretendia defender sua mãe maltratada por seu
pai, foi lançado do céu por este, ou todas as teomaquias inventadas por Homero. Porque a criança
não é capaz de distinguir onde se dá ou não a alegoria e tudo o que recebe em tal idade dificilmente
se apaga ou muda. Por isso, seguramente convenha antes de mais nada que as primeiras fábulas que
ouça a criança sejam também as mais adequadas para conduzi-la à virtude. 115
Ao comentar a literatura, no livro III, Platão não a condena, mas delimita seu campo
de atuação a partir da finalidade a que se lhe atribui. Assim, para as crianças, nem mesmo na
cidade, seria admissível uma história (alegórica ou não) em que apareçam ações indignas dos
113 Op. cit. p. 551. Contentemonos com admitir de comun acuerdo que no hay que partir de los nombres, sino que hay que aprender a investigar las cosas
partiendo de ellas mismas, mas bien que de los nombres.
114 Steiner, george. O poeta e o silêncio. In: _______. Linguagem e Silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
115 platon. Republica. Madrid: Aguilar , 1993. (Obras completas, vol. único) p. 697. No podrán admitirse en la ciudad, sean alegóricas o no, esas historias que
hablan de como Juno fue aherrojado por su hijo y cómo Hefaisto, que pretendia defender a su madre maltratada por su padre, fue lanzado del cielo por este, o
todas las teomaquias inventadas por Homero. Porque el niño no es capaz de distinguir dónde se da o no la alegoria y todo lo que recibe em su alma a tal edad
dificilmente se borra o se cambia.. Por lo cual, seguramente convenga antes de nada que las primeras fábulas que oiga el niño sean también las más adecuadas para
conducirle a la virtud
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deuses, pois a criança não é capaz de distinguir o que é representação mimética do mundo
material ou o que é alegoria da realidade das idéias. A confusão se cria, porque os poetas afirmam
que os deuses cometem atos desonrosos. Eles não poderiam ser deuses e cometer uma ação
imoral, já que para Platão a identidade da idéia é absoluta. Ela deve ser sempre igual a si mesma,
não podendo ser contraditória ou trazer a negação dentro de si. Assim, se um deus é alegoria
do sagrado, da idéia, ele deve ser integralmente bom. O mal se origina entre os homens. Desse
modo, na literatura admitida na República, o herói é alguém superior aos outros homens e serve
de exemplo para seus ouvintes.
Quando Sócrates discute com seus interlocutores qual o tipo de narração que pode
ser apresentada para os jovens, faz a distinção entre as verdadeiras e as falsas. Ele começa por
analisar as narrações a partir do objeto que representam. Em primeiro lugar, a arte deve imitar
a verdade, portanto, deve imitar não as aparências e fenômenos, mas as ações ideais (IDÉIAS), a
verdadeira realidade, que serve de exemplo para os homens. Seria um meio de aproximar os
homens, e a sua alma, do mundo transcendente e eterno de onde a alma veio e para o qual
retornará.
Com esse pressuposto, Sócrates condena toda a representação dos deuses, do
Hades e dos heróis, em que estes apareçam cometendo ações indignas, porque contradiriam sua
condição. Todos os poetas (Homero, Hesíodo, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes) são censurados,
na medida em que trazem trechos falsos quanto à descrição dos objetos sagrados. Eles são
puros, perfeitos, luminosos – seres transcendentes. Sua condição não admite falhas, defeitos,
maldades. O sagrado, como a realidade transcendental e eterna, não pode ser corroído pela arte
com suas mentiras, com seu apego ao corpo e ao fenomênico. Devem ser mostradas apenas as
ações justas. Por isso, quando se trata da apresentação de homens, apenas os homens superiores
como os heróis e os filósofos são dignos de imitação.
Sócrates avalia também as formas com que os poetas narram os acontecimentos do
passado, presente e futuro: na forma narrativa, em que o próprio poeta fala; na forma imitativa,
em que o poeta torna-se semelhante a alguém na voz e na aparência, proferindo um discurso
como se fosse outra pessoa; ou ainda na forma mista:
– Compreende, portanto, – prossegui – que há, por sua vez, o contrário disto, que é
quando se tiram as palavras do poeta no meio das falas, e fica só o diálogo.116
Platão usa dessa última forma para representar os diálogos de Sócrates. Por esse
raciocínio, os diálogos platônicos seriam fábulas, isto é, narrações com o objetivo didático de
servir de exemplo às novas gerações. Seria uma forma de mostrar acontecimentos de homens
justos (centrados em Sócrates, o maior de todos os homens) e sua procura da verdade para o
leitor tomar esta narração como modelo a ser imitado. Platão seria neste sentido o único literato
digno de entrar na República ideal, porque estaria a narrar ações verdadeiras que partem das
condições fenomênicas para alçar-se à verdade.
Pode-se agora retomar a razão que leva Platão a fazer uso da alegoria. Na medida
em que ele é um filosofo, seguidor de Sócrates, sua finalidade é a inquirir a verdade à procura
da solução certa. Ao contrário do sofista, ele não aceita o mundo das aparências, mas procura a
essência que ele esconde. Desse modo, o uso da narrativa, da representação imagética, justifica-
se na medida em que há a necessidade de encontrar alegorias que conduzam os ouvintes da
ignorância ao conhecimento, de modo a que se lembrem da natureza imortal de sua alma. Nos
diálogos, Sócrates expõe uma série de alegorias, dentre as quais a mais conhecida é da caverna,
a fim de tornar compreensível o saber filosófico. Nesse sentido, sua poiesis constrói uma imagem
117 PLATÃO. Platão. São Paulo: Abril, 1986. (Os Pensadores). pp. 96-97.
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em que mostra como o amor é o mais belo de todos os deuses, sendo a fonte de todas as
virtudes. Sócrates parte da fala de Agatão, de sua beleza, a fim de mostrar como ela mascara o
verdadeiro conceito de amor pelo artifício das belas palavras. Questionando-o, leva-o a concluir
que o amor é comparável ao conceito de pai, pois ele não é em si mesmo, mas apenas em relação
a algo. Desse modo, o sujeito deseja aquilo de que é carente (o Belo e o Bom), por uma
necessidade incontrolável. O amor é o motor emocional que empurra o sujeito para fora de si à
procura do que lhe falta.
Após essa introdução, Sócrates começa uma narração para mostrar como aprendeu
a natureza do amor com uma sacerdotiza, Diotima. Ele mostra, assim, como é mais importante
e positivo buscar a Verdade, do que se colocar como criador do conhecimento. Segundo
Diotima, Eros (assim como os gênios ou os heróis) não é nem mortal, nem imortal, pois ele
existe entre os homens e os deuses, fazendo toda espécie de ligação entre eles. Filho da Pobreza
e do Recurso, no dia do nascimento de Afrodite, ele é carente (pobre como a mãe), mas está
(sempre cheios de recursos como o pai) a buscar a Beleza. Assim, o conceito de amor é
deslocado do amado perfeito (objeto do amor) para o amante (sujeito que ama); este princípio
norteia a poiesis (confecção), e causa a passagem do não ser ao ser, no caso de criar sempre o
bem. Esse mesmo princípio coordena tanto o parto do corpo quanto o da alma, em que através
da geração o homem procura a imortalidade, isto é, permanecer através do filho ou da obra que
gera, ou através da alma que permanece viva. Nos casos, a criação dá-se com dor, e mesmo a
alma liberta com grande dor a beleza que está dentro de si.
A partir desses conceitos, Sócrates mostra o processo de formação do homem
ensinado por Diotima, através da iniciação amorosa. Primeiro, ama-se os belos corpos e os belos
discursos, quer dizer, toma-se a expressão particular e imperfeita como se fosse a realidade.
Depois, procura-se o Belo na forma, através da generalização das belezas particulares. A seguir,
descobre-se a beleza da alma, para depois amar a ciência, como o conhecimento da verdadeira
realidade, a Idéia, origem da alma. Por fim, apenas depois da morte, o Belo em si é alcançado,
quando a alma se liberta da prisão do corpo.
Todos os interlocutores tocam em aspectos importantes de Eros, mas ninguém a
não ser Sócrates compreende-o de modo totalizador. Sua capacidade está na síntese, na
superação do apego ao parcial, para então explicar o homem como um processo de busca
direcionado ao Belo, ao Bom, ao Verdadeiro. Como se pode perceber, a fala de Sócrates é uma
síntese de todas as anteriores, pois ele busca estabelecer o princípio universal (como Fedro);
estabelece a duplicidade do amor físico (sensível), ligado às opiniões variáveis, e do amor da
alma (inteligível), ligado ao conhecimento universal; coloca o amor como o princípio vital,
gerador da vida e da manutenção da espécie humano pela necessidade do homem de permanecer
(parto); a seguir temos a definição de Aristófanes retomada, de que o amor é a procura daquilo
que nos falta (o Belo e o Bem); e por fim, de Agatão, o mais Belo torna-se a Idéia em si, que
somente pode ser contemplada diretamente após a morte.
O Banquete mostra como a linguagem alegórica se articula com a dialética platônica.
Em todas as falas, são usadas imagens alegóricas a fim de se dar concretude para o conceito de
amor que busca representar. Apenas na fala de Sócrates, o conhecimento é alcançado e se
percebe a pertinência do uso da alegoria. No caso, ele não retoma a mitologia de modo
reverente, mas a reinventa através da alegoria de Eros, recriado a fim de expressar o verdadeiro
conceito do amor. As características dele (recurso, pobreza, amor à deusa Afrodite)
correspondem ao conceito, como expressão indireta dele. O amor indica, então, a pobreza do
homem, sua carência. Ao mesmo tempo, seu amor à Beleza movimenta a alma em direção ao
sempre mais Belo, saindo do amor erótico ao corpo do outro e alcançando o amor filosófico ao
Conhecimento da Verdade. A imagem construída para representar o conceito não procura ser
verossímil, nem procura corresponder a acontecimentos humanos. Ela procura deslocar o
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118 Cf. DAWSON, David. Allegorical readers and cultural revision in ancient Alexandria. Berkeley: University of California Press, 1992. Nesse estudo de três
representantes da tradição de interpretação alegórica, Philo (tradição judaica), Valentino (mística cristã), Clemente de Alexandria (platonismo cristão), o autor mostra
como a alegoria, necessariamente uma forma narrativa que constrói um sentido não literal se confronta com o sentido literal, naturalizado como o verdadeiro pela
comunidade, encenando uma luta política e cultural através da interpretação cultural do passado.
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formular o argumento verdadeiro, não é porque ele não exista, mas porque o sujeito é ainda
incapaz de formulá-lo. A crença é a de que, através do diálogo, da troca de idéias, pode-se chegar
ao argumento verdadeiro, ainda que não consigamos expressá-lo.
Como na religião, o reino das idéias sagradas é inefável, invisível, numinoso. Ele
não pode ser alcançado pelo homem em vida, porque a ele vão apenas as almas. Dele o homem
pode se recordar através do objeto, dos fenômenos, das palavras que imitam a realidade verda-
deira e imaterial. Neste sentido, o respeito de Sócrates/Platão aos deuses dá-se porque eles são
imagens necessárias para o homem expressar e compreender o divino. São materializações
mediadoras que permitem ao homem compreender o sagrado e a ele se dirigir. Por isso, o mito
de Eros ou qualquer outro pode ser reinventado, porque eles não são o divino, mas
aproximações. A reinvenção (segundo o trajeto racional) leva o sujeito a perceber melhor a
verdadeira natureza do sagrado.
Platão não apenas faz uma releitura da tradição, mas interioriza em seu texto o
procedimento da expressão alegórica. Ele relê a mitologia grega, a fim de encontrar os sentidos
ocultos trazidos pela religião. Para isso, ele quebra a conciliação entre o espírito e o homem que
se uniam numa única entidade e cria uma separação radical entre corpo e alma. O homem não
é síntese mas a justaposição de ambas, cujo confronto direciona o movimento humano. A tarefa
do sujeito é harmonizar ambas pelo domínio violento do corpo. Na tradição dos deuses, Platão
busca narrativas que contêm a marcha do homem do desconhecimento para o conhecimento
ou o caminho da alma para libertar-se do corpo:
A alma é imortal, pois o que se move a si mesmo é imortal, ao passo que, naquilo que move alguma
coisa, mas, por sua vez, é também movido por outra, a cessação do movimento corresponde ao fim
da existência. Somente o que se move a si mesmo não deixará de mover-se e, sendo assim, constitui
também fonte de movimento para as outras coisas que se movem. Ora, um princípio constitui algo
inato, pois é a partir de um princípio que necessariamente assume existência tudo aquilo que existe,
ao passo que o princípio não provém de coisa alguma, pois, se começasse a ser partindo de qualquer
outra fonte, não seria princípio. (...)
Agora que foi demonstrada a imortalidade do que se move por si mesmo, não haverá qualquer
escrúpulo em afirmar que essa é exatamente a essência da alma, que o seu caráter é precisamente
este.(...)119
Caracterizá-la daria ensejo a um longo e divino discurso, mas como se trata apenas de oferecer uma
breve imagem, bastará um discurso humano de menores proporções, e nessa medida tentaremos
falar: a alma pode comparar-se a não sei que força ativa e natural que unisse um carro a uma parelha
de cavalos alados conduzidos por um cocheiro. Os cavalos dos deuses são de boa raça, mas os dos
outros seres são mestiços. Quanto a nós, somos os cocheiros de uma atrelagem puxada por dois
cavalos, sendo um belo e bom, de boa raça, e sendo o outro precisamente o contrário, de natureza
oposta. De onde provém a dificuldade que há em conduzirmos o nosso próprio carro. (...)
Como os cavalos que puxam os carros são dóceis, a subida é fácil para os deuses; para os demais é
uma subida penosa, porque o corcel de má raça puxa e inclina o carro para a terra dificultando a
tarefa de condução do carro ao que dela está encarregado. (...)
Estas tentam tudo para serem dignas de seguir os deuses, erguendo para cima a cabeça do cocheiro
mas, perturbadas pelos corcéis que puxam o carro, apenas conseguem vislumbrar as realidades. Tão
depressa levantam como baixam a cabeça, e, como não conseguem dominar a desarmonia dos
corcéis, apenas vêem algumas realidades, mas não conseguem ver outras (...).
O primeiro, de melhor aspecto, tem um corpo harmonioso e bem lançado, pescoço altivo, focinho
arrebitado, pelo branco, olhos negros, desejo de uma glória que faça boa companhia à moderação e
à sobriedade. Como é amigo da opinião certa, pode ser conduzido, não precisa ser esporeado, pois
basta, para o fazer trotar, uma palavra de comando, ou de encorajamento. Por sua vez, o segundo,
é torto e disforme. Foi criado não sabemos como, tem o pescoço baixo, a nuca amarrada, o focinho
achatado, a cor negra, os olhos cinzentos, uma compleição sangüínea. Amigo da soberba e da
lascívia, as orelhas muito peludas, não obedece a ordens e a muito custo obedece, depois de castigado
com o açoite.120
Essa é a alegoria mais conhecida de Sócrates para representar a alma humana, que
chama de mito, reafirmando a proximidade entre esse dois conceitos. Para representar a alma,
ligada ao princípio da imortalidade e do movimento, ele utiliza a alegoria do cocheiro, guiando
um carro levado por dois cavalos, um branco e outro negro. O cocheiro, que é o próprio
homem, deve ser capaz de conduzir os cavalos para onde quer, para os objetos belos que lhe
atraem a atenção. O primeiro cavalo, branco, representa a ligação da alma com sua origem no
mundo das idéias, na reminiscência da beleza, harmonia e bem inatos. O segundo cavalo, lascivo
e disforme, refere-se à ligação do homem com seu corpo, “este sepulcro”121, que prende o
homem às coisas da terra, fazendo-o crer que os prazeres dados pelos sentidos representam a
verdade, impedindo o indivíduo de ver de fato a realidade das idéias. A dificuldade do cocheiro
é a de harmonizar os dois cavalos para levá-lo em uma única direção, “subindo” em direção ao
Belo.
Mesmo sendo óbvio o caráter dessa imagem alegórica, convém salientar seus traços.
Em primeiro lugar, desde o começo, Platão compõe uma imagem sem a pretensão de
verossimilhança com o mundo das aparências. Ao contrário, seu interesse é o de representar
uma concepção, em sua última instância inacessível ao homem, por meio de uma “breve
imagem”, por um “discurso humano”. O caráter absurdo da imagem, sua incongruência, lembra
que ela serve apenas para representar a alma imortal que habita o homem. Cria-se uma
ambigüidade, própria dos diálogos platônicos, em que a alegoria de palavras é ao mesmo tempo
exegética (por pressupor a interpretação de uma realidade) e poética (por ser uma invenção
mimética da verdadeira realidade). No caso, Sócrates, porta-voz de Platão, não poderia fugir
disto, pois não havia discurso humano, imagem, para representar sua idéia. Ele inventa, então,
uma narração, atendo-se ao caráter épico da alegoria, em que mostra o caminho a ser percorrido
pela alma humana desejosa de ascender ao Bem, ao Belo, ao Justo – às idéias.
Em outro nível de análise, a própria alegoria está imageticamente representada.
Nesse sentido, a alegoria jogaria com a oposição entre o corpo (a imagem aqui chamada de mito)
e a alma (o sentido que ela procura representar de modo exemplar). Cabe supor ainda um
terceiro elemento dessa alegoria, o cocheiro, o homem, que viria ser o filósofo e que, ao criar a
imagem, procura harmonizá-la de tal modo a sua concepção de alma, a fim de que eleve seu
discurso humano em direção às idéias. Essa concepção triádica traz um caminho de leitura do
paradoxo do criador em Platão. De um lado, o filósofo (superior ao artista) não deve ser criativo
a fim de representar fielmente o reino da idéias. Toda a criação seria uma degradação, uma
queda, pois significa dar corpo ao incorpóreo. De outro lado, a necessidade leva o filósofo a
elaborar mitos (imagens alegóricas), porque as idéias somente são contempladas após a morte.
Mesmo considerando que não haja palavras completamente motivadas, nem imagens fiéis ao
modelo (idéias), o filósofo deve construir a alegoria em palavras com a finalidade didática de
atrair os homens para a beleza das formas, das almas, da ciência, da própria idéia. O escultor, o
pintor, o dramaturgo – os artista são expulsos da República, no livro X, mas a função da arte é
incorporada e corrigida pela filosofia, pois o filósofo não imita o mundo das aparências (criando
um terceiro termo enganador), mas procura representar a verdadeira realidade, as idéias. As
imagens, necessariamente canhestras e imperfeitas, servem, no entanto, como um guia do
homem em direção às idéias.
Uma outra alegoria, das asas da alma, serve para reforçar a hierarquia vertical das
idéias, postas no alto, em relação à matéria, julgada imperfeita. O homem no princípio viveria
junto à perfeição, mas por uma queda acabaria preso dentro dos corpos, sepultura, mas sempre
aspirando retornar à esfera das idéias. Com dores e irritação, a alma pela contemplação do Belo
faria surgir suas asas. Livres, elas se desligariam dos prazeres sensíveis para a fruição da
perfeição. Assim, seria explicado o transe do amante ao ver o seu amado, pois essa visão lhe
despertaria uma lembrança da Beleza real, do uno. Por isso, o amado tende a ser visto como um
deus, pois abre ao amante um caminho para a perfeição. Lembrando que a alma traz o princípio
do movimento e de que ela evolui em direção àquilo que lhe falta, então, o entusiasmo leva o
homem em direção ao mais belo.
Platão reinventa o mito, distanciando-se da mitologia e da religião gregas, pois altera
a natureza dupla e contraditória dos deuses. Ele passa da narrativa mítica, como fundamento da
explicação do real, para o conhecimento filosófico. Nessa passagem, purifica o Sagrado das
imperfeições, mas não abdica das imagens como ilustrações necessárias para seus conceitos. A
Idéia (Bem, Belo, Verdadeiro, Justo...) passa a ser o princípio original explicativo do mundo, a
ser representado pela imagem alegórica. No diálogo platônico, cabe insistir, temos a síntese entre
oralidade e escrita. Ao abandonar a forma oral, sem desvalorizá-la como meio de alcançar a
Verdade, ao mesmo tempo, inventa o diálogo como notação escrita do movimento da fala, da
dialética.
Em Aristóteles, há uma transformação do conceito do Belo e do Bem. Em primeiro
lugar, o mundo das idéias não constitui mais um universo à parte, passando a estar dentro das
formas da natureza e do homem. Nessa virada conceptual, a natureza, material e múltipla,
consiste a única realidade existente, o único objeto para o qual o sujeito deve voltar-se para
refletir. Ela não é caos, nem ininteligível, nem mesmo origem do mal, pois a matéria traz em si,
por um princípio de atração, as próprias formas, que permitem antever a racionalidade do
mundo natural. O homem descobre as formas através da apreensão pelos sentidos (que deixam
de ser enganadores) das coisas naturais ou culturais, que assim se tornam objetos concretos do
conhecimento. Desse modo, a arte, além de ser resgatada, aproxima-se do estatuto de filosofia,
pois, tal qual a ciência, ela se volta para a natureza a fim de encontrar a forma inteligível,
escondida nas particularidades materiais. A arte mimética passa a ser um meio de se conhecer o
mundo, pois ela procura a unidade e o universal.
Na poética, Aristóteles mostra como a arte funciona como imitação na qual o
51
homem pode ver com prazer acontecimentos que lhe causariam repugnância na vida real122.
Poder-se-ia, aproveitando a imagem de Italo Calvino123, dizer que a arte seria como o escudo de
Perseu. Olhar diretamente para a Medusa petrifica o sujeito, mas de modo indireto através do
reflexo, permite ao guerreiro vencer a Górgona. Com sua cabeça derrotará outro monstro, e do
sangue que dela escorre nasce Pégasus, o cavalo alado. Desse modo, o peso ou a violência de
certos fenômenos reais levariam o sujeito à mudez, pois não se consegue encará-los diretamente.
A arte, através de sua forma específica de representação, seria capaz de retirar o sujeito de seu
mundo, para que, ao retornar, ele tenha aprendido conceitos sobre experiências fundamentais
para sua formação.
A fim de alcançar seu objetivo, a epopéia ou a tragédia devem seguir os princípios
derivados de sua natureza específica. A tragédia deve centrar-se na imitação de uma ação única.
A unidade não está na personagem, que deve ser elevada, mas nas ações que pratica, que devem
voltar-se para um único fim. Aristóteles estuda os elementos que compõem a tragédia, mas não
foge nunca da sua unidade. A tragédia define-se por sua própria natureza, e mesmo o fim a que
se volta, provocar terror e piedade no público, lhe é imanente. Ela não é uma imagem imperfeita,
canhestra, em relação aos fenômenos ou acontecimentos particulares. Ao contrário, a arte é
filosófica, pois consegue ser mais perfeita do que os fenômenos trazendo em si e ensinando a
ver tanto a unidade formal escondida em acontecimentos diversos, quanto seu caráter de
necessidade.
Não se pode encontrar na definição aristotélica de arte lugar para a alegoria. Ela
serviria, pois, apenas como uma figura retórica, utilizada depois da elaboração de todo o
raciocínio, a fim de tornar a elocução mais atraente e persuasiva junto ao público. Ela funciona
enfim como um artifício retórico de materialização de um pensamento, dependente de uma
abstração que lhe antecede. Não pode ser arte, pois não tem a intenção mimética de ser reflexo
do mundo, da realidade. A alegoria, por ser um mero embelezamento do discurso, não diz nem
da natureza da arte, nem da ordenação do raciocínio, pois esses domínios têm uma estruturação
própria:
Ao que parece, duas causas, e ambas naturais geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e
nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as
primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.
Sinal disto é o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas
daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, as representações de animais
ferozes e de cadáveres. Causa é que o aprender não muito apraz aos filósofos, mas também,
igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo
por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada
uma delas, e dirão, por exemplo, "este é tal". Porque, se suceder que alguém não tenha visto o
original, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor
ou qualquer outra causa da mesma espécie.124
Para Aristóteles, a arte continua a ser vista como mimética, em que o homem tende
a imitar os acontecimentos humanos à sua volta, materiais. Também é a imitação fonte de
aprendizado e de prazer. Aristóteles encontra, no entanto, a finalidade na obra de arte mesma.
Ao contrário de Platão, a arte justifica-se a partir de si mesma. Ao representar uma ação humana,
de modo completo e uno, a tragédia revela o caráter necessário dos acontecimentos, ligado ao
122 Cf. PANOFSKI, E. Idea: evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
123 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
124 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. 2. ed. São Paulo: Ars Poetica, 1993. p. 29.
52
caráter da personagem. Trata-se de uma lógica interna à forma artística, mas que imita dentro
de si a lógica dos acontecimentos humanos, depurados das particularidades e dos acidentes. Pela
imitação, o espectador não ficaria apegado aos sentimentos, mas os purgaria; não veria sombras,
mas a ordem mesma do mundo.
A tragédia para Aristóteles é a imitação de uma ação completa, que permita o transe
da felicidade para a infelicidade ou o reverso. A fim de ser belo, o mito deve ter grandeza (uma
"extensão apreensível pela memória"125), e ordem (movimento das ações de acordo com a
própria natureza da coisa imitada). Como se percebe, o Belo não é uma idéia intangível, mas um
conceito apreendido na própria forma. Não se trata de uma beleza enganadora que entorpece a
reflexão, mas da revelação da beleza pela criação intencional do artista, capaz de retirar da
matéria o secundário a fim de criar um forma intencional (proporcional, ordenada e harmônica):
Por conseguinte, tal como é necessário que nas demais artes miméticas una seja a imitação, quando
o seja de um objeto uno, assim também o Mito, porque é imitação de ações, deve imitar as que sejam
unas e completas, e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez
suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo. Pois não faz
parte de um todo o que, quer seja quer não seja, não altere esse todo. 126
filosófico, separa as duas instâncias. Cabe a cada uma forma e finalidade específicas. Na Poética,
por exemplo, Aristóteles parte da análise de tragédias e das epopéias, principalmente, para
apreender a natureza dessas formas. Seu discurso não nega o valor da arte, nem a condena, parte
do pressuposto de que, existentes, são necessárias aos homens, pois em si mesma a tragédia tem
uma função. Ele não se propõe, no entanto, a substituir a filosofia pela arte, nem afirmar a
superioridade desta; o desenvolvimento lógico do discurso filosófico seria suficiente para
representar a verdade dos objetos. Desse modo, a concepção de arte aristotélica prescinde a
expressão alegórica, pois a tragédia não representa conceitos ou idéias, mas ações humanas. E
o conhecimento do espectador é elaborado pela compreensão das formas escondidas nos
acontecimentos singulares.
Como síntese, podemos dizer que Aristóteles concebe o mito como uma ação una
e completa, que representa em si uma verdade humana, pois traz o que é possível de acontecer
no mundo, de acordo com os critérios da necessidade e da verossimilhança. Como não há
separação entre o conceito e a forma, estando o primeiro dentro do segundo, não há espaço
para alegoria. Em Platão, ao contrário, o corpo e a alma separam-se. Mesmo estando no homem,
elas se separam; e o corpo não passa de uma sombra das idéias, que estão ausentes do mundo
material em outra esfera. A alegoria passa a ser uma necessidade discursiva, a fim de aproximar
a idéia do homem, mas através de um expressão que mostra o abismo que há entre ambos.
Pela natureza do presente trabalho é pertinente realizar um salto para uma
contraposição similar a esta. A alegoria está posta em oposição ao símbolo durante Romantismo.
No símbolo, estão ligados de forma indissolúvel e natural o particular e universal; na alegoria
temos uma relação mediata e artificial entre conteúdo e a forma. Pela visão de Lukács, tributária
do Romantismo alemão, seria muito mais uma arte a serviço de um conteúdo, do que
propriamente uma arte literária. Seja para representar um conteúdo religioso positivo, seja para
mostrar um conteúdo religioso negativo, de qualquer modo, a forma não seria autônoma. Para
ser compreendida, precisa do suporte transcendente que lhe preenche o vazio de sentido. A
alegoria é uma expressão mais elaborada da arte decorativa, em que o particular vem a pretexto
de algo que não lhe é imanente, mas exterior.
No primeiro volume de sua estética, ainda no prefácio128, Lukács estabelece um
critério de valor, que serve para identificar a grande obra. Ela deve ser o testemunho da
imanência, considerando que o homem constrói-se a si mesmo, pelo trabalho e linguagem. A
arte seria a luta contra a religião, porque a obra parte do mundo e se volta para ele. Assim, a
contraposição de símbolo e alegoria é a questão do ser ou não ser da obra de arte, na medida
em que o primeiro é autônomo e imanente, e a segunda é dependente do sentido transcendente.
A questão central em Lukács é a contraposição entre símbolo e alegoria. O ponto
de partida é Goethe, nas Máximas e Reflexões129, como sendo o primeiro teórico a formular a
questão como um problema para toda a arte, indo além de seu predecessor, Winkelman, que
apenas intuía a relação entre alegoria e religião, mas a radicava como expressão típica da
Antigüidade. As duas categorias não são definições neutras, mas fundam um critério crítico, em
que a alegoria é identificável ao desvalor por radicar o sentido fora do homem, no espírito, e o
símbolo é o valor, por que produz de modo dinâmico o sentido.
Alegoria é busca do particular como exemplo do geral. Existe uma atribuição rígida
de uma imagem ao conceito correspondente. Há um vínculo com a desantropomorfização do
homem, porque a extensão da imagem é limitada a um único sentido, determinado de modo
absoluto e dogmático. A fixação da relação conceito-imagem torna-se independente do homem,
como oriunda de uma determinação transcendente. Pode-se identificar uma passagem do
fenomênico (da imagem) para o campo intelectual, que esgota o movimento. A alegoria é,
portanto, uma forma de fazer visível um conteúdo, já construído pelo conceito. A ligação rígida
e arbitrária consagra não a união da imagem e do conceito, mas do abismo que se forma entre
ambos.
O paradoxo entre a natureza, a realidade empírica, e o espírito, é resolvido através
da obra de arte simbólica. Ela representa a libertação da necessidade de sobrevivência (comer,
beber, dormir, procriar), não se mostrando útil. Ao mesmo tempo, não é expressão direta da
razão, do conceito, pois dá-se pela construção sensível. É o princípio da liberdade do jogo, em
que o homem exercita a autonomia e liberdade que o põem acima da natureza. A síntese
pressupõe que a iluminação religiosa não vem de Deus, de uma entidade sobrenatural e exterior,
mas parte da própria capacidade do homem de bastar-se a si mesmo. Desse modo, o
Cristianismo (a Idade Média e o Gótico) são revalorizados não pela imposição de um Deus
superior, mas pela expressão da religiosidade como uma construção subjetiva.
Como se viu, o símbolo é o oposto da alegoria, segundo Goethe, e começa por ser
uma manifestação do artista que busca apenas o particular sem pensar no geral, mas que o traz
dentro de si essencialmente:
Esta é a verdadeira arte simbólica, na qual o particular representa o geral, não como sombra ou
sonho, senão como uma revelação viva e instantânea do ininvestigável. 130
130 LUKÁCS, Georg. Estética: cuestiones liminares de lo estetico. Barcelona: Grijalbo, 1967. v. 4.
131 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva: FAPESP : Campinas, 1994. (Estudos, 142)
55
historicamente. A própria alegoria seria épica, já que traz dentro de si a necessidade uma nar-
ração, estando inserida num processo sucessivo de etapas de descoberta, de leitura, sendo que
o sentido de história é o da degradação, da queda, da constante destruição do homem pelo
tempo.132 Deste modo, restaria da alegoria barroca, seus detalhes, seus fragmentos, sua
materialidade à espera de ser salva, iluminada pela crítica filosófica.
Georg Lukács e Walter Benjamin, como indica Jeanne Marie Gagnebin133, partem
de uma questão que lhes é comum. Nas condições históricas da Alemanha do início do século
XX, a noção weberiana de desencantamento do mundo se impõe à nova geração de intelectuais.
Assim, há um pergunta de base: é possível um pensamento crítico na contemporaneidade? Para
Lukács, da Teoria do romance, o homem perdeu o mundo harmonioso, a temporalidade feliz e a
linguagem capaz de expressá-lo. A solução a ser posta, depois, a partir do materialismo dialético
e histórico, é de que se deve pressupor a totalidade do mundo. A base do desenvolvimento
humano está na condição material do homem, pois, a partir do trabalho e da habilidade manual,
a cultura se constitui em suas manifestações simbólicas; e a transformação das sociedades dá-se
pela mudança das condições de trabalho. A resposta de Lukács, como se pode ver nas
referências à sua estética, é de que a verdadeira narrativa épica consegue superar a fragmentação
do mundo desencantado.
Walter Benjamin parte do mesmo problema histórico, mas questiona a totalidade,
porque, ao homogeneizar a realidade a partir de um princípio dominante, termina por negar
qualquer elemento diferente que se afaste do seu padrão. Assim, a totalidade liga-se à história
dos vencedores. O apego ao estranho, ao detalhe discrepante do conjunto, à ruína, enfim, ao
elemento heterogêneo traz uma promessa de felicidade que pode ser contemplada pelo presente,
pois resgata a voz dos que foram vencidos:
Assim, a alegoria não remete à incapacidade de um poeta em criar símbolos luminosos e vislumbrar
um sentido universal, como suspeitava a estética clássica de Goethe e até, talvez, o próprio Lukács.
Remete sim à percepção aguda, na idade barroca, da distância cada vez maior entre o mundo profano
e o mundo sagrado, e, igualmente, ao profundo sentimento de desvalorização do sujeito humano e
dos objetos de seu agir que daí decorre. Desvalorização que a transformação de todas as coisas em
mercadoria no capitalismo devia levar a seu ápice, como conclui Benjamin lendo os poemas de
Baudelaire.134
132 A noção de tempo em Hegel e em Lukács é evolução, projeção para um futuro melhor cuja mediação é a modernidade. Deste modo, o mundo tem um sentido
próprio, teleológico, que aponta para um devir. A noção derivada da alegoria concebe o tempo como o signo da queda, da saída do homem do paraíso: portanto,
deve ser degradação, queda, destruição. A alegoria funda-se nessas ruínas, nesses fragmentos, que estão no próprio mundo das coisas e que devem ser salvas pelo
sentido que o alegorista lhes atribui.
133 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lukács e a crítica da cultura. In: ANTUNES, Ricardo e REGO, W. Leão. Lukács: um Galileu no século XX. São Paulo: Boitempo,
1996.
134 Op. cit. p. 95.
57
135 BENJAMIN, Walter. Parque Central. In: _______. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Obras Escolhidas, 3)
136 Id. Sobre o conceito de história. In: _______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, 1)
58
imanência, porque não existe mais fundamento metafísico. O significado torna-se uma
construção arbitrária. A arte, ao declinar a aura, perde sua unicidade e totalidade na reprodução,
na sua transformação em mercadoria, e acaba sendo compreensível apenas sob a perspectiva
alegórica. O caráter construtivo da história individual, através da experiência e da história
coletiva, perde-se porque não há mais a comunidade, mas uma série de homens isolados frente
a uma realidade que se transforma velozmente e deixa atrás de si apenas fragmentos, ruínas,
desatualizados como um jornal velho.
O procedimento de leitura alegórica é semelhante tanto para a história quanto para
a literatura. São impressionantes as aproximações que se pode fazer entre o método proustiano
de recuperar o tempo perdido137, na sua luta contra o esquecimento, e o método proposto ao
historiador, tanto para o barroco quanto para o século XIX de Baudelaire. Nos dados singulares
os elementos originam um outro sentido histórico. Escondido naquele “agora”, resgata-se no
presente o grito messiânico vindo do passado.
Pode-se aproximar dessa leitura histórica, aquela empreendida por Carlo Ginzburg
em O Queijo e os Vermes138, cujo método de recomposição historiográfica está presente no texto
Os Sinais139. Dialeticamente, o historiador pode fazer surgir desses dados esparsos, desses sinais
e ruínas que restaram, uma narração que faça falar, organizar, a história do outro. Podem-se
organizar realidades complexas a partir de dados singulares, portanto, para reordenar
narrativamente a história sob uma nova perspectiva.
A partir desse contexto brevemente apresentado define-se um sentido de alegoria.
De certo modo, o núcleo semântico de ler e revelar o outro está tanto na alegoria religiosa
quanto na benjaminiana, mas, no caso de Walter Benjamin, não se leva em conta a remissão
arbitrária de uma imagem a um sentido transcendente. Ao contrário, a alegoria comporta um
processo construtivo que supre a falta de significado por uma aproximação arbitrária, em que
dois termos ligam-se por analogia. Na exegese alegórica, os pontos extremos compõem uma
constelação em que o particular não perde sua diferença em uma imagem orgânica. Como não
há mais segurança quanto a um sentido transcendente, nem uma ontologia da qual se possa
partir, as coisas ficam depreciadas, à espera de uma iluminação que revele o sentido escondido
em suas sombras. Seu signo é o da finitude e da morte, pois a união entre o significado e a
imagem alegórica é frágil e perecível. Sua força não está na revelação da essência da realidade,
mas no discurso que a compõe, sem que haja, no entanto, uma tradição, mantida e transmitida
por relatos, na medida em que a repetição do mesmo é destruída:
Aquilo que é atingido pela intenção alegórica permanece separado dos nexos da vida; é, ao mesmo
tempo, destruído e conservado. A alegoria se fixa em ruínas. Oferece a imagem da inquietação
entorpecida140
137 Id. A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras esoolhidas, 1). A aproximação entre narração literária e
histórica é sugerida por Jeanne Marie Gagnebin, nos seus estudos sobre Benjamin.
138 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
139 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo : Companhia das Letras, 1989.
140 BENJAMIN, Walter. Parque Central. In: _______. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Obras Escolhidas, 3)
59
arbitrário. Além disso, como um tirano barroco, ela submete todas as esferas da vida humana
ao seu jugo, reduzindo o estético, religioso, político ou moral a fetiches que a tornam atraente.
Esse valores são a aparência com que a mercadoria esconde seu poder totalizador.
Assim também o artista perde sua auréola e se insere dentro da multidão como
apenas mais um. O seu trabalho não tem o caráter genial, como no Romantismo, para ser
inserido no mercado de trabalho comum. A auréola, perdida pelo poeta, continua a ser usada
por outras pessoas, mas sem que tenham em si o brilho que ela lhes confere.
O mundo das coisas arruína o símbolo e para esvaziá-lo de qualquer transcendência.
A intenção alegórica tem, então, um caráter destruidor similar, liquidando as totalizações e
fixando-se nas ruínas que não se enquadram dentro do sistema absolutista e totalitário da
mercadoria. Este processo é o caminho possível para salvar e para revelar o outro escondido
por detrás das totalizações arbitrárias do sistema ideológico, do historicismo e do evolucionismo
histórico.
A transcendência do homem moderno seria estar enterrado na sua história 141. Na
intenção alegórica, o artista salva os elementos singulares residuais do sistema. A formulação
desse processo dá-se pela forma alegórica, em que se destróem formas recebidas da tradição
para dar-lhes um novo sentido. Ou ainda, apresenta-se uma parte discrepante e marginal do
sistema, reproduzindo, numa escrita fragmentária, a realidade das coisas em que a totalidade
ideológica exclui os elementos heterogêneos. A participação do sujeito é fundamental, pois uma
forma alegórica não se entrega de modo imediato à fruição.
Ao fim desses comentários, cabe retomar alguns traços textuais da alegoria, como
personificação, tipologia (figura) e etimologia. Elas não se confundem com alegoria, mas servem
para indicar sua presença. Outros traços, como inverossimilhança, absurdo, aporia do sentido
literal, contradição servem de critérios para o leitor interpretar alegoricamente um texto, pois
escapam ao sentido imediato, permitindo questioná-lo em busca de uma nova leitura. Por isso,
dentro da contraposição entre símbolo e alegoria, a segunda é uma possibilidade não realizada
ou uma utopia possível, pois o sentido imediato, espontâneo, realiza o interesse dos vencedores.
A alegoria serve para indicar os sentidos possíveis de um texto, seu teor de verdade ofuscado
pelo sentido histórico literal:
Pelo contrário, é histórico de uma maneira extrema ao tratar de assimilar-se aos fenômenos como
casos limite. A partir dos “excessos mais desacreditados da história”, o método se propõe construir
uma constelação que ofereça, sem descrever, a imagem da verdade. (...) O método pretende abarcar
uma totalidade, como o permitem compreender as frases centrais do prefácio: “A história filosófica
como ciência da origem é a forma que, desde os extremos mais remotos, desde os excessos aparentes
do desenvolvimento, faz surgir a configuração da idéia como configuração da totalidade,
caracterizada pela possibilidade de uma proximidade significativa dos contrários. A totalidade
encarada aqui como o objetivo do conhecimento não é já a totalidade harmoniosa da imagem
simbólica do mundo, senão que se trata de uma totalidade forjada com a ajuda dos materiais mais
díspares, uma totalidade que não dissimula as rupturas e na qual pode estar contido o mundo com
suas contradições. 142
143 Cf. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Prefácio. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras Escolhidas, 1).
144 AUERBACH, Eric. Figura. São Paulo: Ática, 1997.
145 PÉPIN, Jean. La tradition de l’allégorie: de Philon d’Alexandrie a Dante. Paris: Études Augustiennes, 1987.
61
146 STEINER, George. Alfabetização humanista. In: _______. Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p
21.
62
seus contemporâneos. O rigor de suas análises e a pertinência de seus juízos resultam do estudo
sistemático das obras.
Machado de Assis, no entanto, não é apenas crítico, mas escritor de teatro, poesia,
romance e conto. Ele conhece os dois lados da atividade literária enquanto produtor e crítico.
Em seus estudos críticos, concentrados nas décadas de 60 e 70, antes de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, Machado cobra de poetas e romancistas o caráter necessário e coerente na
construção dos caracteres e dos enredos, perguntando se são verossímeis ou não. Talvez a
principal exigência de Machado de Assis seja a verossimilhança, usada para exigir coerência
interna das obras e relação mimética destas com a realidade humana representada.
Cada vez mais engajado nas várias facetas da produção literária, nas décadas de 60
e 70 do século passado, Machado de Assis produz teatro, romance, poesia, ensaios, crônicas,
demonstrando consciência do caráter institucional da literatura, que vive não apenas pela mão
de gênios incompreendidos, mas principalmente por leitores alfabetizados e por escritores
conhecedores de sua realidade.
Já em um ensaio de 1865, O ideal do crítico147, Machado de Assis estabelece regras
para a crítica literária. Ao contrário da briga pessoal ou da linguagem agressiva, o crítico deve
pautar-se pela "sinceridade, solicitude, justiça"148. O objetivo principal é "procurar o sentido
íntimo da obra (verdade e imaginação)"149, unindo “ciência e consciência”. A crítica deve evitar
a tendência de elogiar o trabalho dos amigos, pois ela deve ser uma "luta constante contra todas
as dependências pessoais"150. Como a base da crítica são as leis do belo, deve-se ser "tolerante
no terreno das escolas (Realismo, Romantismo, Classicismo"151). Machado de Assis, com isso,
quer contrariar a crítica pautada em comentários pessoais, que apenas produz erros e não assume
a função de “um farol seguro” para guiar as musas152.
Machado apresenta, assim, um conceito ideal de crítica. A pretensão à
universalidade fica clara pelas expressões retiradas do texto. Inicia pela postura ética, passa pelo
conhecimento das leis poéticas (ciência), chega à expressão civilizada (urbanidade). A crítica (“a
procura do sentido íntimo da obra”) está posta acima das escolas, dos estilos e modelos de
época. Cada um dos modelos pode ter obras qualificadas sem excluir as demais escolas, que
devem ser vistas mais como necessidades históricas de expressão.
A afirmação ideal de arte literária e de crítica literária mostra como Machado de
Assis crítico queria pôr-se à parte das querelas de escolas. Seria um modelo clássico, que uniria
o caráter de ciência (leis do belo) e o ético (como a busca da autonomia, isenção). Por outros
termos, a crença nos valores seguros do sentido da arte fundamenta a posição machadiana. O
caráter formativo e emancipatório da crítica se afirma na educação dos leitores e dos escritores
para melhor conhecerem a arte, quanto ao modo de construí-la e avaliá-la.
O ideal do crítico, de outubro de 1865, não é um texto isolado, mas tem continuidade
ao longo do ano de 1866 em comentários críticos dos lançamentos. Caso não houvesse
novidade, Machado recorria "à estante nacional, onde não faltam livros para folhear". A função
pedagógica da crítica destacada no primeiro texto é assumida pelo próprio Machado, que estuda
e avalia a literatura contemporânea. Ao comentar Iracema, por exemplo, Machado insere-a no
contexto da poesia americana, destacando que a lenda do Ceará escapa ao clichê, mostrando-se
uma obra de qualidade. Ao apreender o sentido da obra, mostra como não se trata de uma
147 ASSIS, J. Maria Machado de. O ideal do crítico. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 3).
148 Op. cit. p. 798
149 Op. cit. p. 799.
150 Op. cit. p. 799.
151 Op. cit. p. 800.
152 Op. cit. p. 798.
63
Houve um dia em que a poesia brasileira adoeceu do mal Byronico; foi grande a sedução
das imaginações juvenis pelo poeta inglês; tudo concorria nele para essa influência
dominadora: a originalidade da poesia, a sua doença moral, o prodigioso do seu gênio, o
romanesco de sua vida, as noites de Itália, as aventuras de Inglaterra, os amores da
Guiccioli, e até a morte na terra de Homero e de Tibulo. 155
Ao fazer isso, ele não condena a influência do autor europeu de modo absoluto,
mas os imitadores que ficaram na superfície, nos vícios, nos elementos externos apenas. Assim,
na Lira dos Vinte Anos, mesmo de modo confuso, ele não encontra apenas um imitador de
Byron: "a melancolia de Álvares de Azevedo era sincera. Se excetuarmos as poesias e os poemas
humorísticos, o autor da Lira dos vinte anos raras vezes escreve uma página que não denuncie a
inspiração melancólica, uma saudade indefinida, uma vaga aspiração."156
Nesses textos críticos sobre Junqueira Freire, Fagundes Varela e Álvares de
Azevedo, duas questões se destacam. Primeiro, pela lição machadiana, o leitor é instruído a
procurar o sentido da obra por sua organização interna, no caso pelo conjunto de poemas do
livro de Junqueira Freire. Deve-se avaliar a obra não pelo nome ou lenda do autor, mas pela
qualidade e sentido dos poemas mesmos. Em Álvares, há, portanto, um traço melancólico que
é sincero, que vai para além da moda, mas isso não o isenta de ter deixado alguns maus poemas
em sua qualificada obra. Além disto, quanto à relação entre o modelo e o imitador, Machado
mantém a lúcida posição de não condenar Byron, mas os imitadores. Esse ponto é crucial para
um escritor que traz tantas marcas de autores estrangeiros em sua obra, pois a influência apenas
torna-se danosa se corresponde a uma submissão a problemas externos ao criador.
Em outra crítica, a um poeta chileno, Guilherme Malta, Machado traz alguns
conceitos interessantes. Em primeiro lugar, para elogiar o poeta em questão, define: "O imitador
servil copiaria os contornos do modelo; não passaria daí, como fazem os macaqueadores de
Victor Hugo, que julgam ter entrado na família do poeta, só com lhe reproduzir a antítese e a
pompa da versificação. O discípulo é outra coisa: embebe-se na lição do mestre, assimila ao seu
espírito o espírito do modelo."157
Além disto, nessa crítica aparece já a noção de que o Romantismo era um
movimento em fase final. Esse movimento, em que cada poeta "acreditava na elevada missão a
que viera ao mundo"158, traz como marca, figurada no poeta em questão, "uma contemplação
interior, coisas do coração, e muita vez coisas de filosofia. Quando ele volve os olhos em redor
de si é para achar na realidade das coisas um eco ao seu pensamento, um contraste ou uma
harmonia entre o mundo externo e o seu mundo interior.159 Esse é um movimento em declínio
na "crise do século"160. Nesse momento, destaque-se o conceito machadiano de Romantismo,
como escola literária, originária da Europa. Ela não se volta para a realidade a não ser para
encontrar um "eco do pensamento". O aspecto central é a crença de ordem religiosa na missão
do poeta, que compõe sua arte como um ideal redentor, capaz de curar o mundo doente e de
sublimar os males reais.
Do que se vê até aqui, o movimento do conceito para a análise das obras patenteia
o conhecimento que Machado de Assis tinha da tradição literária, dos gêneros literários e da
produção contemporânea. Fica, por enquanto, a necessidade de se compreender a verdade
estética de uma obra por uma análise imanente e, ao mesmo tempo, o caráter histórico dos
movimentos literários. Machado de Assis, nas críticas comentadas, indica o esgotamento das
formas românticas, mas não o faz como condenação. Ao contrário, em Junqueira Freire, Álvares
de Azevedo e Fagundes Varela, aponta a qualidade das obras. Critica com veemência, no
entanto, o exagero e a prolixidade, de um lado; e o descuido formal ou lingüístico, de outro.
Desse modo, o advento de obras realistas, como os romances de Eça de Queiroz, traz o signo
positivo e negativo. Se prenuncia uma nova literatura, com os olhos voltados para a realidade,
de um lado, traz, de outro, o caráter dogmático de escola.
Na década de 70, em três ensaios , Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de
nacionalidade, A nova geração e Primo Basílio, Machado tematiza não apenas o esgotamento dos
processos literários canônicos do Romantismo, como ainda questiona as formas escolhidas pela
nova escola literária, o Naturalismo. Nesses ensaios, a consciência crítica de Machado de Assis
fica evidente em sua reflexão sobre a forma de representação da realidade pela arte. Em Notícia
da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade161, de 1873, Machado de Assis observa que a
literatura brasileira ainda está na adolescência, precisando de algumas gerações para se tornar
autônoma: "Meu principal objeto é atestar o fato atual, ora o fato é o instinto de que falei, o
geral desejo de criar uma literatura mais independente"162. Trata-se da inclinação de uma nação
que não constituiu sua identidade. A tendência é procurar nos temas locais, na natureza e no
índio os traços definidores da brasilidade. O equívoco acontece quando a tendência é elevada
157 Id. Guilherme Malta. In: Crítica literária. Rio de Janeiro: Jakson, 1957. (Obras completas, 29)
158 Op. cit. p. 120.
159 Op. cit. p. 120.
160 Op. cit. p. 121.
161 ASSIS, J. Maria Machado de. Instinto de Nacionalidade. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989.
162 Op. cit. p. 802.
65
ao caráter de doutrina, não se aceitando outros temas. O essencial é que o escritor seja um
"homem de seu tempo e de seu país"163, mesmo tratando de temas e assuntos remotos. O crítico
mostra que não poderia exigir um sentimento nativista em Basílio da Gama ou em Santa Rita
Durão quando a independência política ainda estava longe.
No mesmo ensaio, Machado de Assis retoma o ponto de vista já sustentado em O
ideal do crítico de que faltava no Brasil uma crítica literária regular, minuciosa e serena, capaz de
estabelecer assuntos, educar o gosto do público, corrigir tendências morais repreensíveis para o
amadurecimento da literatura. Ao comentar o romance, Machado de Assis destaca-o como o
principal gênero aqui desenvolvido, justificando isso por se tratar de uma nação na "primeira
mocidade", sem as bases sólidas de estudo para outros gêneros, como alta filosofia ou crítica
histórica. Tal romance busca a cor local, para ser brasileiro, tendo como padrão representar a
vida brasileira em diferentes aspectos164. Ao elogiar a boa tendência moral do romance brasileiro,
Machado destaca a ausência de penetração dos "livros de certa escola francesa". Mesmo tendo
boas tendências de ordem moral, o romance brasileiro se constitui de obras presas ao puro
"domínio da imaginação", desligadas das crises sociais e filosóficas do século. Machado de Assis
insiste ainda que, em um “país que apenas entra na primeira mocidade”, na “adolescência
literária”, faltam romances fundados nas qualidades de observação e análise.
Quanto à poesia, Machado destaca o surgimento de uma nova tendência a partir de
Miniaturas, de Gonçalves Crespo, que retomará no ensaio sobre a nova geração. Não são os
ademanes de flores e aves nacionais que tornam o poema brasileiro, mas antes a forma de
compor. Faz ainda a defesa da simplicidade, a fim de evitar o exagero que ostenta a escola
hugoísta, que traz a grandiloqüência do escritor francês para a poesia brasileira:
Que precisa ela então? Em que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e
gosto; peca na intrepidez às vezes da expressão, na impropriedade das imagens, na obscuridade do
pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvaira e se perde, chegando à obscuridade,
à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. 165
A questão central desse ensaio está na percepção de que a literatura brasileira está
em formação. O processo de amadurecimento não passa, nesse caso, pelos temas retirados da
natureza, do índio, da cor local, nem da imitação dos padrões europeus, mas se centra num
desenvolvimento autônomo da literatura enquanto instituição. A preocupação panorâmica fica
evidente, pois Machado não se volta nem para a história literária nem se preocupa com a crítica
das obras; preocupa-se apenas mapear o conjunto.
No outro ensaio, Machado se concentra sobre uma obra apenas, Primo Basílio166, de
Eça de Queiroz, em que critica a falta de verdade no conflito da personagem Luíza. Ela se
entrega ao adultério com seu antigo namorado, o primo Basílio, por inclinação. Perto da volta
de viagem do marido, ela e o amante estão entediados, terminando a relação. Segundo Machado,
o romance terminaria aí, na volta do marido, porque Luíza propenderia a se acomodar no seu
casamento, mas Eça aumenta-lhe a extensão criando o roubo das cartas por Juliana, empregada
com desejo de enriquecer. Seria falta de verdade, porque o enredo na arte (diferente de uma
simples anedota ou notícia de jornal) deve partir da natureza da personagem, de seu conflito
moral. A mesma falta de organicidade, Machado aponta nas adjetivações exageradas e nas
descrições minuciosas (apenas inventários) com que Eça se desviaria do essencial para ficar
preso ao acessório.
Nesse ensaio, há um modelo de romance subjacente às críticas. Esse ideal de prosa
romanesca parece importante, pois estabelece princípios úteis que podem servir de referência
para a compreensão da obra machadiana. O autor deve colocar-se entre os exageros da escola
romântica (olhar com os olhos da alma, com os excessos da imaginação) e os da escola realista
(fixar-se na sensação imediata das coisas), a fim de preservar a verdade estética.
Desse modo, o crítico não se volta contra os padrões românticos ou naturalistas,
mas, através desses últimos, posiciona-se contra os processos compositivos que se cristalizam,
que se tornam regras escolares, fazendo com que os autores esqueçam o real para se prenderem
a traços estilísticos, desprovidos de sentido. Em termos romanescos, o crítico censura Eça de
Queiroz por descer a detalhes escabrosos que não contribuem para a totalidade do romance e
que servem apenas para denunciar sua filiação ao Realismo de Zola, tal qual O Crime do Padre
Amaro. A intriga do romance seria tão frágil, que desmoronaria se Juliana não tivesse roubado
as cartas de Luísa. Quer dizer, o conflito não seria expressão do sujeito, mas exterior a esse:
Não peço, decerto, os estafados retratos do Romantismo decadente; pelo contrário, alguma coisa há
no Realismo que pode ser colhido em proveito da imaginação e da arte, mas sair de um excesso para
cair em outro, não é regenerar nada: é trocar o agente da corrupção.(...)
Resta-me concluir, e concluir aconselhando aos jovens talentos de ambas as terras de nossa língua,
que não se deixem seduzir por uma doutrina caduca, embora no verdor dos anos. Este messianismo
literário não tem a força da universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude. Influi,
decerto, em bom sentido e até certo ponto, não para substituir as doutrinas aceitas, mas corrigir o
excesso de sua aplicação. nada mais. Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo,
assim não sacrificaremos a verdade estética. 167
interesse, mas, transposto para um romance, torna-se inverossímil, pois o conflito não deriva
do caráter da personagem, mas de um acidente.
Como crítico literário, no presente ensaio, Machado propõe que os jovens talentos
voltem à realidade, mas não ao Realismo. Resta saber quais procedimentos literários realizam
tal objetivo. Existe uma cobrança de fidelidade respeitosa ao objeto de que parte o impulso
mimético169, do qual tenta se aproximar com precisão e atenção. A esse conceito básico de
representação, de mimesis, ligam-se as faculdades de análise e de observação a que Machado de
Assis confere importância. Deve-se destacar que a fidelidade somente existe quando a obra é
verossímil, ou seja, quando o escritor transpõe de modo adequado a realidade dos fatos para a
linguagem própria da literatura. Esta é uma concepção que se desliga do Romantismo, na medida
em que a criação literária não se centra no impulso subjetivo, porém parte de um objeto exterior
e autônomo.
Este impulso não gera na crítica machadiana uma aceitação irrestrita de qualquer
forma, desde que o objeto seja representado em sua particularidade e em seus detalhes. A escrita
literária não é meramente referencial (no caso do romance), nem emotiva (no caso da poesia),
pois existem técnicas e processos formais que singularizam o fazer artístico. Assim, a relação
entre literatura e realidade não diz respeito apenas à veracidade do texto literário, emotiva ou
objetiva, mas à verossimilhança. A qualidade estética constrói-se dentro da obra literária, que
deve ser capaz de representar uma verdade humana. A falha do romance O Primo Basílio,
conforme Machado, reside no equívoco de considerar arte a relação direta da palavra com o
real, procurando termos mais crus para parecer realista, mas falha na relação interna da narrativa,
inverossímil, baseada no dado circunstancial do roubo das cartas.
No ensaio de 1879, A nova geração, Machado de Assis faz um novo painel com
pretensão generalizante, semelhante àquele da Notícia do estado atual da literatura brasileira. Ele
identifica "uma tendência nova, oriunda do fastio deixado pelo abuso do subjetivismo e do
desenvolvimento das modernas teorias científicas; (...) enfim que esse movimento é determinado
por influência de literaturas ultramarinas." 170 A tendência nova, marcada pela aspiração ao Bem,
à Justiça, é fruto da influência da ciência, substituta da religião. Em 1878, há a mesma a carência
de 1873, a falta de maturidade, para se constituir um movimento literário autônomo, pois a
origem da idéia nova é estrangeira. Do mesmo modo que na crítica a Eça, defende a autonomia
do sujeito criador perante a escola literária. No caso, sugere afastamento do Realismo, através
da citação de um crítico da escola realista: "Um crítico, Taine, escreverá que se a exata cópia das
coisas fosse o fim da arte, o melhor romance ou o melhor drama seria a reprodução taquigráfica
de um processo judicial".171 A defesa machadiana é a da linguagem adequada à arte, com suas
regras, que não faz dela uma mera aplicação da ciência, da filosofia ou da política.
Propondo-se a aferir a qualidade de cada obra produzida, com segurança, Machado
avalia a obra dos poetas da nova geração. Comenta, por exemplo, sobre um velho assassino que
diz, ao final do poema, com ódio ao ver crianças saindo da escola: “eu nunca soube ler”. O
principal problema está na projeção do ideal de instrução, do poeta, que violenta a
verossimilhança da cena a fim de projetar-lhe seus desejos. Valentim Magalhães não representa
a realidade, mas uma fantasia sua. No poema Jóia, de Afonso Celso Jr., o filho pede um camafeu.
A mãe responde-lhe com um beijo, dizendo que essa é melhor jóia do que a outra. A criança
diz, então, que quer um colar.
169 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin. In: Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de
Janeiro: Imago, 1997.
170 ASSIS, J. Maria Machado de. A nova geração. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 3). p. 815
171 Op. cit. p. 813.
68
É gracioso! mas não é a criança que fala, é o poeta. Não é provável que a criança entendesse a figura,
dado que a entendesse, é improvável que a aceitasse. A criança insistiria na primeira jóia; “cet âge
est sans pitié”.172
Estes dois exemplos servem para mostrar que Machado de Assis cobra coerência
no objeto representado. Se o poeta esboça a cena da mãe e do filho não pode dizer tudo o que
quer, deve construí-los a partir de sua própria condição. Há a necessidade de se considerar
primeiro as circunstâncias objetivas de representação; o ideal do poeta deve ser posto em
segundo plano. A imaginação serve para representar o mundo na sua própria natureza, mas deve
seguir as regras da representação próprias da arte.
Machado restringe nesse caso a fantasia poética, mostrando como a liberdade de
criar do poeta deve ser coerente em sua representação da realidade. Ao imaginar a cena da
criança com a mãe, o poeta não a torna artística por mostrá-la como gostaria que fosse, pois a
cena torna-se clichê por ter um sentimentalismo abstrato, inexistente na realidade. O interesse
nesse caso é a restrição imposta ao arbítrio individual de criação, pressupondo uma regra
artística, já que nesse caso a arte deve respeitar a verossimilhança dos fatos.
Assim, ao voltar sua atenção, em primeiro de dezembro de 1879, pouco antes de
iniciar a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, à nova geração da poesia brasileira,
Machado de Assis delineia os caminhos da literatura, entre o que se esgotava e o que surgia.
Critica, por exemplo, os imitadores de Baudelaire que reduzem o modelo a apenas um traço,
exagerando-o de tal modo, que produzem uma arte estéril. Também não aceita a representação
direta, vulgar na sua leitura, de cenas baixas, vis, que chocam, mas não se tornam arte.
Cabe, assim, destacar alguns pontos centrais da crítica machadiana. Em primeiro
lugar, o ideal é constituir uma posição pessoal autônoma, independente das escolas. Em
contrapartida, também a literatura nacional deve amadurecer para construir sua própria doutrina
literária, sem influxo externo. Em ambos os casos, artista e nação, o tempo histórico deve
constituir o sujeito para que as transformações e mudanças não sejam conseqüências de um
contato externo, mas que sejam parte do processo de construção da identidade nacional. A
dualidade de Junqueira Freire, a de Álvares de Azevedo, e sua melancolia sincera, o apego aos
acessórios da moda, a aceitação da escola realista são alguns traços que apontam para a ausência
de uma identidade própria constituída; seja porque o ideal não pode se realizar e o sujeito fecha-
se sobre si, seja porque o indivíduo prende-se aos inventários de elementos concretos, sem ser
capaz de construir um conjunto.
A crítica literária, conforme Machado de Assis, deve contribuir para a educação de
leitores, quanto à formação do gosto, e para a correção de caminhos dos autores. Independente
dos favores e ódios pessoais, sua isenção é determinante para a constituição de obras literárias
de qualidade. A verossimilhança deve ser construída a partir de uma necessidade interna da
composição, considerando o caráter específico da literatura que não se confunde com outras
áreas, como filosofia, ciência ou política.
e com precisão. Um poema não se faz com imagens ou pensamentos, mas com palavras. Por
isso, Machado condena a poesia de Sílvio Romero, por ter um desacordo entre o pensamento e
a linguagem, além de falta de estilo.
Outra marca dessa poesia está na construção de quadros, de cenas, de anedotas, em
que o eu lírico abstém-se de aparecer. Quando Machado cobra verossimilhança, vê-se também
a preocupação de que a representação seja objetiva, fruto de análise e reflexão. Isto é, ela deve
ser construída a partir da natureza do quadro representado. Não se trata de gratuidade, de arte
pela arte, mas de respeito às coisas mesmas, para que elas não sejam apenas o espelho dos
desejos e ideais do poeta.
Conforme destaca Péricles E. Ramos173, as críticas machadianas, cobrando
"correção métrica e gramatical, precisão vocabular, economia da composição e sobriedade de
imagens", influenciam diretamente no surgimento do grupo parnasiano no Brasil, com o qual
Machado manterá sempre amistosas relações. A poesia plástica, artesanal, da palavra justa e o
culto à forma estavam já em gérmen em A nova geração. Nesse ensaio, por exemplo, o conselho
a Alberto de Oliveira para que deixe a idéia nova de lado será obedecido, como assinala Alfredo
Bosi:
Enfim, a passagem de uma fase a outra entende-se ainda melhor quando lidos alguns
poemas das Ocidentais, já parnasianos pelo sóbrio do tom e pela preferência dada às formas
fixas, em Uma Criatura, em Mundo Interior e no célebre Circulo Vicioso, uma linguagem
composta e fatigada serve à expressão de um pessimismo cósmico que toca Schopenhauer
e Leopardi pelo retorno ao mito da Natureza madrasta (imagem central no delírio de Brás
Cubas).174
Essa indicação serve como referência para se aproximar a crítica literária da poesia
machadiana. A correção da linguagem, a sobriedade do tom, as formas fixas, o verso
alexandrino, a objetividade são traços machadianos que antecipam o Parnasianismo. Já em
Americanas, de 1875, publicadas entre Instinto de Nacionalidade e a Nova geração, Machado de Assis
compõe uma poesia melancólica que será reafirmada em Ocidentais. Seu apego às ruínas, aos
detritos, àquilo que indica a passagem inexorável do tempo, funciona como contraponto à
euforia da nova geração, confiante no futuro. Cada elemento indica a morte a que todo indivíduo
está submetido. Machado não cria um poema heróico que cante a superação da adversidade pela
afirmação do ideal futuro. Seus poemas aproximam-se dos resíduos, do que se perde de modo
definitivo. É a dor, a tristeza de nos descobrirmos finitos, a caminho da destruição. Essa noção
corresponde a imagens, conceitos e idéias que reincidem ao longo das poesias de Machado de
Assis.
Em Americanas, Machado paga seu tributo à poesia indianista, mas diverge bastante
de seus predecessores. Não há uma poesia de afirmação, mas uma melancólica exposição de
cenas que marcam o fim. Em A visão de Jaciúca175, o chefe guerreiro, "torvo e merencório",
convida os índios a festejarem a paz na aldeia e a não fazerem a guerra. A decisão surpreende
aos companheiros, que cobram, através de Tatupeba, uma explicação. Jaciúca conta, então, a
visão que teve na noite anterior. Guiado pelo fantasma de Içaíba, Jaciúca vê a chegada dos
brancos e a destruição dos índios, em que a "morte era a menor das angústias".
Assim falara o pálido Içaíba;
Alguns instantes contemplou meu rosto,
173 RAMOS, Péricles E. Consciência estética e aspiração à forma. In: PIZARRO, Ana (Org.). Palavra, literatura e cultura: emancipação do discurso. São Paulo:
Memorial; Campinas: UNICAMP, 1994.
174 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
175 ASSIS, J. Maria Machado de. Americanas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 3). P. 126.
70
Nessa fala de Jaciúca, que encerra o poema, temos a visão de Içaíba que se desfaz.
"O duro chefe da indomável tribo"177, sempre pronto para a guerra, sente-se ao final morto. Ele
antevê não apenas a sua morte, mas a extinção de seu povo. A guerra, os esforços, as penas não
são mais justificados pela glória da aldeia, pois esta, ao ser destruída, levaria consigo a memória
dos feitos guerreiros. Já que o destino é a morte e o esquecimento, restava convidar os guerreiros
para o prazer da paz. Em O Uraguai, de Basílio da Gama, com feitos heróicos, Cacambo ou de
Sepé lutam até a última chance. Eles não se importavam em morrer, pois sua batalha está
fundada na crença de defenderem a terra de seus pais e sua liberdade. Na Visão de Jaciúca, ao
contrário, a antecipação da morte inevitável representa a perda de sentido da luta presente. Está
aqui, nesse poema decassílabo, em versos brancos, a concepção de história machadiana, em que
o encontro dos povos é visto pela perspectiva do derrotado, como melancólica destruição. O
grande ideal guerreiro se desfaz, restando apenas a miserável condição humana, destinada à
morte.
Em Prometeu, poema de Ocidentais, Machado constrói uma alegoria da história e
destino humanos, em que a personagem pede súplice a eterna compaixão, sem recebê-la. Ao
ver passar milhares, milhões de anos pausadamente como dobre de finados, sua única aspiração
é a morte. Ao final, as correntes caem e o suplício termina com a queda do cadáver no abismo.
Assim como em Americanas, Machado de Assis pagou tributo ao indianismo, nesse poema ele
retoma um tipo romântico. Ao contrário da representação romântica, como a de Castro Alves,
Machado não exalta Prometeu por sua resistência e valentia, e sim compõe a figura mitológica
por meio de uma citação distorcida, por um novo prisma, a fim de construir a figura do homem
submetido ao suplício da vida. Essa pequena narrativa poética traça, portanto, uma imagem
melancólica da existência humana.
A aspiração do homem é a morte, pois a característica central da existência é o
sofrimento. Não é uma identificação do mal na civilização para a contraposta exaltação do
mundo natural. Ao contrário, a história da humanidade torna-se na visão machadiana uma
realização de um princípio da Natureza, que traz dentro da afirmação (vida) a própria negação
(morte).
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura, antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.
(...)
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças redobra.
178 Assis, Joaquim Maria Machado de. Ocidentais. In: op. cit. p. 152.
179 Cf. BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1985.
180 LOYOLA, Pe. Ignacio de. Exercícios espirituais. S/referência.
72
elementos da estética hegeliana, quando o autor mostra como o indivíduo pode superar a
exterioridade, enquanto negação do espírito, através da liberdade e de sua autonomia. A
consciência de si e a superação da necessidade o distinguem do animal e vencem a resistência
da matéria. Dentro desse plano, a arte concilia a idéia e a particularidade, como o luzir sensível
da Idéia, como penetração do espiritual no material, e do necessário no acidental, como ensina
Hegel:
Graças a essa idealidade, a arte imprime valor a objetos que em si são insignificantes e que, apesar
dessa insignificância, a arte fixa para si mesma transformando-os no seu próprio fim e atraindo a
nossa atenção sobre coisas que, sem ela, nos escapariam completamente. O mesmo papel
desempenha a arte em relação ao tempo e também aqui a sua ação é idealizante. Torna perdurável
o que, no estado natural, é fugidio e efêmero; quer se trate de um sorriso instantâneo, de uma rápida
contração sarcástica da boca, de manifestações mal perceptíveis da vida espiritual do homem, quer
de acidentes e eventos que vão e vêm, que existem um momento para logo serem esquecidos, tudo
isso a arte arranca à existência perecível e evanescente, e também aí se mostra superior à natureza. 181
Pelo poema machadiano vê-se que a arte não pode ser simbólica. Não é o luzir
sensível da idéia, pois, para isso, o particular, o físico, deveria servir de veículo para expressão
do universal, negando a si mesmo e subordinando-se ao conceito. A arte seria necessária, assim,
enquanto instrumento de formação do homem, para despertar a consciência do real,
extinguindo-se ao ser superada pela filosofia. O princípio de expressão é o do organismo vivo,
saudável, em que o todo não é a soma das partes, mas integração dos membros. O poema
machadiano contraria essa concepção ao afirmar que no seio do organismo vivo não luz o
espiritual, mas já se anuncia a destruição. Além disso, o caráter genérico do poema leva a
considerar o homem integrado ao ciclo da história natural, cujo fundamento teleológico é a
destruição
A opção machadiana dá-se pela expressão alegórica. A “criatura” – desproporcional,
exagerada, uma figura inimaginável fora da ficção – é a representação do conceito de Vida. Sem
lamento ou exaltação, a decomposição é descrita como inerente a esse conceito; a morte é o
alvo a ser alcançado pelo desenvolvimento da vida, como um movimento do qual não se pode
fugir.
A alegoria em Uma Criatura passa a exprimir uma idéia geral, que não diz respeito
diretamente ao eu lírico, mas tem a pretensão de ser universal. Não se trata mais de encontrar o
vínculo solidário entre o homem e a natureza. A cultura, a linguagem, a expressão dos
sentimentos e a própria história estão desligados do mundo natural, cuja vida traz dentro de si
a morte e cuja indiferença mostra ausência de qualquer princípio moral. Nesse sentido, a alegoria
é a forma expressiva em que a imediata integração do sujeito com a totalidade não é mais
possível a não ser pela morte.
MUNDO INTERIOR
Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à ínfima luzerna.
lido como a morte, com o destino de toda criatura dentro desse movimento universal. Note-se
o exagero, atípico em Machado de Assis, que adjetiva a vida de “imortal”, o cataclismo de
“eterno” e o segredo de “enorme”, e em que a vida permanece sempre em seu movimento
rumo à destruição, que leva os indivíduos vivos à morte. A hipérbole ressalta o mistério da
morte individual e seu significado.
Não é de se estranhar que no mesmo livro de poemas, Ocidentais, Machado de Assis
tenha realizado a tradução do monólogo To be or no to be, de Hamlet, de Shakespeare. Nele há
expresso o desejo de morrer, de dormir apenas, mas há principalmente o temor do que viria
após a morte.
Esse breve poema traz como título um trecho do livro Da natureza, de Lucrécio: “É
bom quando os ventos revolvem a superfície do grande mar, ver da terra os rudes trabalhos por
que estão passando os outros; não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém, mas
porque é bom presenciar os males que não se sofrem. É bom também contemplar os grandes
combates de guerra travados pelos campos sem que haja da nossa parte qualquer perigo”183. É
o início do livro II, em que o filósofo romano usa a imagem, a fim de mostrar o lugar do filósofo,
afastado das lidas humanas, da paixão, da inveja, do apego ao poder ou à riqueza, para
contemplar de longe o movimento desordenado dos homens na escura ignorância. Sua intenção
é a de atacar o medo da morte e a ignorância, mostrando como o mundo natural ordena-se ao
acaso, por si, em sua materialidade, sem a presença de deuses. Depois da morte, o espírito e a
alma morrem junto com o corpo, pois também são materiais. Não haveria, no entanto, o que
temer, pois os átomos oriundos da decomposição fariam surgir um novo corpo. A sabedoria
estaria em contemplar ao longe a tempestade dos males humanos.
Não por acaso a alegoria da tempestade reaparece no poema machadiano. Em pri-
meiro lugar, o título funciona como um véu a recobrir o sentido literal dos versos do poema.
Citado em latim, sem referência de autor, e de modo incompleto, o poema separa o título dos
versos, cuja ligação dá-se pela interpretação alegorizante. Deve-se considerar, então, o vínculo
entre Machado de Assis e a concepção materialista de natureza dada por Lucrécio, radical em
sua negação de toda religião, misticismo ou explicação sobrenatural para a vida humana. Sua fé
e convicção estão no poder da razão, capaz de esclarecer os homens, mostrando o caráter
arbitrário e casual da natureza. Por meio de seu discurso, procura esclarecer os homens a fim
de se afastarem dos males da ignorância, tanto do apego às paixões quanto do vínculo com a
religião. Sem a mesma convicção, Machado parece esclarecer seu leitor dessa possibilidade.
No corpo do poema, o assunto é a morte de um cachorro na rua, a quem ninguém
deixa de lançar um olhar. No primeiro verso (“Lembra-me”) , temos a posição do eu lírico que
recupera uma cena particular por ele vivida, um acontecimento que lhe ficou marcado na
memória. Numa primeira leitura, parece um simples apego a um fato estranho, curioso, que se
grava na memória do sujeito. Num segundo momento, percebe-se que as pessoas passam pelo
cão envenenado e se detém sem deixar de olhar, atraídas pela morte do animal. Na descrição do
cão, o eu lírico projeta-lhe um riso bufão e espúrio, como se ele ou respondesse ao olhar dos
passantes, rindo da pretensa distância, ou risse de seu próprio fim. De um modo ou de outro,
essa cena particular ganha sentido apenas na ligação com título que lhe antecede. O véu
descoberto permite ver no poema um exemplo da tradição de Lucrécio. Aos homens parece
agradável ver o cão morrer, pois estariam vendo de longe o sofrimento e dor de um outro ser.
Essa distância torna a morte do animal de rua agradável, pois lembra ao passante sua condição
de vivo. A imagem, ao ser lembrada pelo eu lírico, coloca ironicamente o cão em relação aos
passantes, mostrando que a morte só é suave vista à distância.
A distância entre os homens e o animal é contingente, pois ambos estão submetidos
ao mesmo princípio da morte. O riso poderia estar partindo do cão, que na praia da morte
183 LUCRÉCIO, Da natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
76
abandona a vida e vê o tumulto dos homens agitados pelas paixões. Esse sentido é coerente
com o todo do poema, se relacionado a Lucrécio, em que a morte não deve ser temida, pois é
desagregação dos átomos. Ao mesmo tempo, ela é idêntica aos homens e aos animais. Assim,
os homens interessam-se pelo cão moribundo; e este ri dos primeiros.
A cena cotidiana é destruída em sua singularidade a fim de se mostrar sua força
alegórica, como expressão de um sentido geral, quando interpretada através da relação com
Lucrécio, mas não perde sua força singular. A ênfase está no episódio descrito, como um quadro
pintado pelo eu lírico. O título serve apenas para indicar um caminho de leitura, para reflexão a
partir do acontecimento singular. Aqui se cristaliza novamente uma dualidade em que a ligação
da imagem com o sentido dá-se por gesto arbitrário, no caso desse poema, realizado pelo
próprio poeta.
Em A mosca azul, temos uma fábula em versos, em que um poleá encontra uma
mosca mágica, que lhe dá uma bela visão. Ele, curioso para descobrir o mistério, disseca a mosca
"a tal ponto, e com tal arte, que ela, rota, baça, nojenta, vil, sucumbiu". Com isso, o pária perde
sua visão fantástica e enlouquece. Os versos "como um homem que quisesse / dissecar a sua
ilusão" encaminham a leitura alegórica do poema. A mosca azul, ser ínfimo, traz a capacidade
de transformar um pária em Rei realizado e feliz; ela representa a ilusão em que os homens
crêem para se tornarem felizes. A curiosidade da causa do prazer revela não um conhecimento
brilhante, mas um corpo nojento. O homem não desfaz o mistério ou o prazer da ilusão, a não
ser que destrua aos dois.
No alto
O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.
Então, volvendo o olhar ao sutil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.
Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,
Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro estendeu-lhe a mão.184
184 ASSIS, J. Maria Machado de. Ocidentais. Rio de Janeiro: Aguilar, 1988. (obras Completas, 3) p. 179.
77
No caso, ele vincula Ariel à poesia idealista, mística, que procura voar em direção
ao sol; esse seria o sentimentalismo romântico186. Caliban é a outra face, em que o poeta ao
acordar na terra valoriza os sentidos e percebe os elementos prosaicos da existência humana, é
a poesia posta ao chão. Assim, reconhecemos no último poema de Ocidentais a despedida da
ilusão romântica, em que o poeta volta-se para seu fim. Machado de Assis não se expressa pelo
transbordamento lírico, mas pela construção de uma cena alegórica, em que dialoga com a
tradição brasileira (Álvares de Azevedo) e européia (Shakespeare)
Os poemas constroem uma concepção de natureza indiferente ao homem, vazia de
sentido humanizante, trazendo em si a lembrança da morte, da miserável condição humana.
Além disto, a forma de expressão adequada é a da alegoria, por trazer em si a dissociação entre
a imagem e o significado, cuja ruptura marca a impossibilidade de aproximação entre o conceito
e a realidade. O fascínio do verme, da ruína, da destruição e da morte mostra a fixação no
momento negativo da realidade, sem que seja projetada sua superação pelo progresso.
A noção de cataclismo, e de ausência de espiritualidade na natureza, leva à expressão
alegórica, pois a imagem particular não traz espontaneamente um sentido natural. Quando o
faz, esse sentido é uma naturalização construída pela cultura e pela tradição. Contrariando esses
sentidos “orgânicos”, Machado encontra em tropos dualistas como a alegoria a forma de
exprimir a crise da tradição.
Nos poemas, a alegoria aparece em sua forma mais tradicional, como veículo
daquilo que Benedito Nunes chamou de pensamento ficcional de Machado de Assis.187
Epistemologicamente, a base do ceticismo machadiano, sua concepção de mundo, vem expressa
pelas imagens poéticas, bem como pela seleção de poetas por ele traduzidos.
Nas poesias, o caráter alegórico é veículo da concepção de mundo machadiana,
servindo para esclarecer um dos aspectos importantes de sua obra. A imagem poética não é a
livre expressão da subjetividade do sujeito tal qual era concebida pelo Romantismo. Não é o
sentimento, nem a sensação, nem uma reflexão de ordem intuitiva em que o eu lírico afirma a
si mesmo. Ao contrário, são temas objetivos como a Vida, uma cena, um personagem mítico
(Prometeu), poetas (Camões, Gonçalves Dias). O processo de despersonalização do poema
retira o sujeito de cena para mostrar um mundo que o esmaga por sua inexorável negatividade.
A forma traz um rigor que o afasta dos poemas românticos.
Machado de Assis não preenche a natureza de um sentido humano, positivo, como
185 AZEVEDO, Álvares. Lira dos vinte anos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988. (Poesias completas)
186 Op. cit.
187 NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In: _______. No tempo do niilismo. São Paulo: Ática, 1992.
78
se ela fosse o símbolo da nação. Entre o homem romântico e a natureza se constrói uma relação
solidária, em que o sujeito projeta sobre o natural os seus sentimentos, suas reflexões, suas
concepções. Machado destrói essa solidariedade ao mostrar a indiferença da natureza em relação
ao homem e ao revelar o caráter arbitrário da relação entre a materialidade e o sentido a ela
atribuído. Assim, não é o homem que descobre o espírito ou a idéia na natureza, mas o contrário.
É no homem que a natureza, enquanto materialidade finita, imperfeita e indiferente, se revela,
destinando-o teleologicamente à morte. Nesse aspecto, o homem constitui sua identidade, a
partir de sua causa final, a morte.
A natureza machadiana, apesar de materialista, não se liga ao Naturalismo, na me-
dida em que todas as explicações causais são desdenhadas, por limitadoras, por não darem conta
da particularidade humana. Opõe-se ao Naturalismo, pois o homem não é explicado pela
natureza biológica ou por leis naturais, mas porque traz dentro de si um mistério: a morte.
O rigor formal da poesia faz de Machado de Assis um precursor dos parnasianos.
Ele se apega à anedota, à tradição helênica, a um conceito como exercício de um virtuosismo
poético. A frieza machadiana lembra a de um poema como Satânia, de Olavo Bilac, em que o
erotismo se desfaz no congelamento da mulher como se fora uma estátua. O rigor de Uma
criatura traz os típicos alexandrinos parnasianos, com a cesura no sexto verso, e uma elevação
vocabular e temática, próprias do artesanato do ourives bilaquiano. Quem sabe, o Círculo vicioso,
poema alegórico da inveja, não seria comparável a Mal secreto, de Raimundo Correia? As
ligações entre Machado de Assis e os poetas parnasianos, aos quais elogiava e a quem se uniria
na fundação da Academia Brasileira de Letras, ajudam a compreender muito do estilo da poesia
machadiana.
A ligação com o Parnasianismo e o culto à forma ajudam a explicar uma faceta da
obra machadiana, pois a negação do subjetivismo e sentimentalismo romântico leva à busca do
contrário. Não há síntese, mas separação entre as duas atitudes. Em um soneto, como Anoitecer,
de Raimundo Correa188, a imagem da natureza é construída como expressão da melancolia do
sujeito, pois ela representa a passagem do tempo e das perdas. A negação da subjetividade está
na negação da expressão explícita e direta do eu poético. A alegoria indica que o homem vive
no reino da imanência, sem a perspectiva de um sentido transcendente. Por isso, na natureza
machadiana, o tempo avança em direção à destruição, em que os homens e os animais estão
submetidos ao mesmo princípio. Em todos os poemas, há a marca da morte, da perda da ilusão,
da natureza, como indícios de uma história-destino, da qual não há fuga. A forma alegórica vem
a representar a saída da história, o congelamento em anedotas ou em quadros, em
personificações ou em fábulas oníricas, pois o tempo passa a ser identificado com o movimento
externo que submete o homem ao princípio da degradação.
não serem tragados pelo tempo destruidor, a crônica é sinônimo de um texto publicado em um
periódico, jornal ou revista.
Como gênero prosaico, a crônica mistura jornalismo e literatura. Sua abordagem vai
do acontecimento particular aos temas permanentes, como lembra Gledson191 a respeito de
Machado de Assis. O efêmero é o ponto de partida, mas ele apenas sustenta a crônica quando
é mesclado com a reflexão ou com uma abordagem lírica. Sua linguagem coloquial traz
referências eruditas e literárias que dizem respeito a níveis distintos – forma de abordagem, ao
tema e à linguagem –, mas mantêm um termo constante, o caráter híbrido da crônica, forma
protéica, que, de um autor para outro, ou mesmo em um mesmo cronista, metamorfoseia-se em
discursos distintos, tais como comentário, narração, argumentação, diálogo dramático, epístola,
forma lírica, conto.
A crônica está ligada a um meio de comunicação de massa, na forma escrita, e mais
estreitamente à informação. Segundo Walter Benjamin192, a informação, paralela ao romance, se
desenvolve com a consolidação da burguesia como uma nova forma de comunicação. Ela deve
ser compreensível por si e para si, exigindo verificação imediata. Ela difere da narração
tradicional, em que a autoridade do narrador está enraizada na distância temporal (do velho que
conhece a tradição de seu povo) ou na distância espacial (do viajante que percorreu países e
culturas diferentes). A informação constitui-se por seu caráter perecível, diário. Ela corresponde
ainda a um esvaziamento do sujeito que a recebe, pois, ao trazer a explicação em si, evita o
esforço interpretativo por parte do receptor.
A crônica é um discurso coloquial, que se aproxima do leitor para lhe “falar ao pé
do ouvido". A crônica problematiza uma necessidade humana inalienável, que é a de “captar o
universal no mergulho em si mesmos ou, mesmo, simplesmente desenvolver-se como sujeitos
autônomos, mestres da livre expressão de si mesmos”193. A mistura desordenada das
informações no jornal leva ao esvaziamento do sujeito, pois falta a elas e ao sujeito que as recebe
um princípio de organização, que lhes dê sentido, que as mantenha na memória, que as ligue
com a existência individual. A crônica serve para mostrar pelo humor, pelo comentário, uma
expressão individual (sofrida ou não, lírica ou reflexiva) sobre os acontecimentos mais
imediatos. São as palavras, uma articulação e uma orientação, para indivíduos que se tornaram,
em vez de sujeitos autônomos, objetos da história. De modo geral, a crônica, quando irônica,
expõe de modo corrosivo a crise do sujeito; e, de modo particular, a crônica machadiana expõe
o problema central do homem brasileiro dividido entre aparência modernizante (leis igualitárias,
eleições, congresso; bondes, prédios; modos civilizados e vestimentas da moda) e o cotidiano
brutal, de raiz colonial, em que a desigualdade e a discriminação são vistos como se fosse
naturais.
Eugênio Gomes194 mostra como o estilo machadiano aparecia nas crônicas, citando
o hábito de catar o mínimo e o escondido. Assim, mesmo se considerando vulgares algumas
crônicas, como a série Gazeta de Holanda, elas podem auxiliar na compreensão da obra
machadiana. A sua tese mais importante é a de a série de crônicas da década de setenta do século
passado serviu de preparação às inovações formais da ficção iniciada em 1881 com Memórias
Póstumas de Brás Cubas.
A tese básica de Sonia Brayner repete a de Eugênio Gomes, ao enfatizar que a
crônica é o campo de experimentação das novas formas da prosa machadiana:
191 GLEDSON, John. Bons Dias. In: Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
192 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações acerca da obra de Nicolai Lescov. In: _______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
(Obras escolhidas, 1)
193 ADORNO, Theodor. Lírica e Sociedade. In: BENJAMIN e outros. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
194 GOMES, Eugênio. Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958.
80
Enquanto seus romances românticos da década de 70 apenas vão semeando, aqui e acolá, no
discurso de um narrador onisciente ou na fala de algum personagem mais perceptivo, as sementes
de uma visão pessimista do mundo e dos seres, mantendo, entretanto, o modelo narrativo
tradicional, as crônicas servem de domínio preferido para o ensaio de uma nova linguagem de
caracterização dialógica, campo experimental para um tipo de narrador, não convencional,
espontâneo, intruso a comentar suas próprias decisões retóricas 195
195 BRAYNER, Sonia. Metamorfoses machadianas: o laboratório ficcional. In: BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. (Escritores
Brasileiros: Antologia e Estudos, 1)
196 GLEDSON, John. Bons Dias. In: Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
197 MEYER, Marlise. De estação em estação com Machadinho. In: In: _______.Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: EdUSP, 1986.
81
moderno e irônico com fruto desse conúbio. Para examinar-se a presença do registro realista e
da tendência alegorizante, simultaneamente empregados, o problema está na quantidade de
crônicas a serem analisadas, pois não há como dar conta de toda produção de quatro décadas.
Desde os anos 60 até a década de 90 do século passado, naturalmente podem ser identificados
alguns traços de mudança na linguagem, no estilo e na posição de Machado perante a realidade
brasileira. Acentua-se o ceticismo machadiano perante as transformações históricas, como a
guerra do Paraguai, a abolição, a proclamação da República, o encilhamento, a revolução
federalista, a ditadura de Floriano. Monarquista liberal198, o olhar lançado sobre o Brasil destaca
a ausência de progresso apesar das alterações políticas e sociais. Não se trata de ignorar essa
peculiaridade, mas apenas de selecionar alguns exemplos de acordo com o objetivo acima
proposto, sem preocupação de estabelecer uma evolução estilística do autor ou de se guiar por
uma seqüência cronológica.
Um traço fundamental da crônica, e mais especificamente da crônica machadiana,
é o vínculo estabelecido entre seu texto e as notícias de jornal. Sejam acontecimentos locais,
nacionais ou estrangeiros, o cronista refere como fonte primeira a imprensa. Machado
demonstra a leitura atenta dos periódicos locais bem como dos europeus, mantendo-se a par
dos principais fatos da atualidade. Um crime, um discurso na câmara, uma peça de teatro, uma
guerra, o analfabetismo, uma eleição, curandeiros, a inauguração do bonde são eventos
noticiados no jornal que Machado de Assis explora em suas crônicas, adotando na maior parte
das vezes um ponto de vista inusitado.
Às vezes, o relato de uma vivência direta do cronista parece desmentir tal vínculo
com o jornal, como as idas ao senado, um fato observado em um bonde ou uma conversa com
algum conhecido. Mesmo nesses casos, a narração funciona como comentário sobre um fato de
interesse mais amplo publicado na imprensa e supostamente de conhecimento dos leitores. Por
exemplo, nas páginas de A Semana, em 16 de outubro de 1892, o cronista parte da inauguração
dos bondes elétricos, mas conta uma cena observada na rua. Ele vinha em um velho bonde,
puxado por dois burros, quando viu passar um outro, elétrico.
Para não mentir, direi que o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do
cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um
grande ar de superioridade. Posto não fosse feio, não eram as prendas físicas, que lhe davam
aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a
própria eletricidade. Não é meu ofício censurar essas meias glórias, ou glórias de
empréstimo, como lhe queiram chamar os espíritos vadios. As glórias de empréstimo, se
não valem tanto como as de plena propriedade, merecem sempre algumas mostras de
simpatia. Para que arrancar um homem a essa agradável sensação? Que tenho para lhe dar
em troca?199
198 Cf. GLEDSON, John. A política na crônica de Machado de Assis. In: AGUIAR, F., MEIHY, J. C. e VASCONCELOS, S. (Org.). Gêneros de fronteira:
cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997.
199 ASSIS, J. Maria Machado de. A Semana. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, III). p. 551. ou ASSIS, J. Maria Machado de. A Semana:
crônicas (1892-1893). São Paulo: Hucitec, 1996. p. 135.
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das atenções, por sentir o condutor da própria modernidade, de encarnar a eletricidade. O tema
não é novo em Machado de Assis. Recorrente, ele nos ajuda a entender o modo com que aborda
a realidade. Assim, o mesmo gesto está no capítulo CLIV, Navios de Pireu200, de Memórias Póstumas
de Brás Cubas, em que o alienista mostra a Brás Cubas o orgulho com que seu empregado abre
as janelas e bate os tapetes, querendo parecer o dono da casa. O médico explica que a ilusão
vale a realidade, como o caso do homem, um provável pobretão, que olhava para os navios no
Pireu, sentindo-se dono deles e que fica amargurado ao ser desmentido. O cronista revela no
gesto do cotidiano uma atitude que repete um padrão humano, satisfeito em estar preso a uma
ilusão.
Na seqüência da referida crônica, depois da passagem do bonde elétrico, o cronista
relata o diálogo que ouviu entre os burros que puxavam sua condução. Conhecedor, através de
Swift, da língua dos cavalos, Houyhnhnms, ele pode compreender o que as duas alimárias
diziam, funcionando como personificações do otimista e do cético. O primeiro defende a
melhoria de vida, a libertação dos burros, depois da introdução completa dos bondes elétricos.
O outro que mostra a aparente liberdade esconde o golpe do dia seguinte, assim ele dá como
exemplo a chicotada do cocheiro. Gledson201 analisa o diálogo como uma representação indireta
da libertação dos escravos, em que a introdução do trabalho livre não representou uma melhoria
nas condições de vida dos negros. De todo modo, a introdução de um comentário indireto serve
para revelar o tipo de vínculo do cronista com a realidade. Não há a pretensão de ser objetivo,
mas de investigar o sentido do fato singular.
Esse diálogo entre burros pode ser encontrado nas Histórias de 15 dias, 15 de março
de 1877202. Animais, acostumados à subida do morro, lastimam a inauguração do bonde de Santa
Teresa. "– Dizem: Les dieux s'en vont. Que ironia! Não; não são os deuses, somos nós. Les ânes
s'en vont!, meus colegas. Les ânes s'en vont!"203 A partir da frase do burro filósofo, Machado
estabelece uma melancólica reflexão em que mostra a evolução do mundo em direção ao fim
como uma constante substituição de uma força por outra. A recorrência da imagem do burro,
quinze anos depois, em A Semana, para comentar o surgimento do bonde elétrico, nos ajuda a
entender o esforço do cronista em distanciar-se da mera aceitação dos fatos como fruto
inevitável do progresso ou da exaltação da entrada do Brasil na civilização. Inevitáveis, sim, mas
vistos sob o ponto de vista distante, eles ganham um sentido novo, no caso, melancólico.
Poder-se-ia dizer que o cronista vem a ocupar o lugar do narrador, deixado vago
pelo desaparecimento da faculdade de narrar e propriamente da comunidade em que se inseria
o contador de histórias. Esse narrador, como homem experiente, seja por ser viajante ou
sedentário, traduz seu conhecimento da vida em narrativas, que têm um caráter prático.
Machado de Assis inventa, no entanto, um cronista ficcional que ocupa essa posição para dizer
que já não se pode mais ocupá-la. Ele não se relaciona mais diretamente com o mundo, mas
com a representação deste pela imprensa. Esse cronista finge não compreender a economia,
desdiz as verdades da ciência, mostra-se cético em relação à medicina e questiona o valor dos
políticos; surpreende-se com o erro da página impressa e descobre que o jornalista, com suas
notícias e telegramas, não diz apenas a verdade. Revolta-se contra os grandes temas, buscando
trazer à cena apenas a arraia-miúda, "as pobres ocorrências de nada"204. Enfim, o cronista
funciona como o mediador entre os acontecimentos do vasto mundo, registrados pela imprensa,
200 ASSIS, J. Maria Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 1) p. 636
201 Cf. GLEDSON, John. In: ASSIS, J. Maria Machado de. A Semana: crônicas (1892-1893). São Paulo: Hucitec, 1996.
202 ASSIS, J. Maria Machado de. Histórias de 15 dias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 3). p. 364.
203 Op. cit. p. 364.
204 ASSIS, J. Maria Machado de. A Semana. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 3). p. 541. ou ASSIS, J. Maria Machado de. A Semana:
crônicas (1892-1893). São Paulo: Hucitec, 1996. p. 85.
83
e o leitor.205
A imprensa tem a função de representar a realidade de modo fiel e objetivo 206.
Desde o século XIX, a imprensa é vista como um instrumento de democratização, capaz de
levar as informações aos homens distantes e impulsioná-los para o progresso. O jornal era uma
forma de aproximar o povo comum da leitura, da capacidade de abstração, da reflexão, da
consciência de si e conseqüentemente tenderia a formar homens livres. Assim, “ao mesmo
tempo, em que tira matéria do caso, a imprensa procura organizá-lo, ordená-lo, dispor as notícias
que emergem da geléia geral em um plano organizado, hierarquizado, categorizado: o caos se
harmoniza, se ‘civiliza’ nas páginas de jornal ou no noticiário de TV, nas páginas da Internet ou
no rádio.”207 A edição funciona, assim, como uma forma de organizar as informações conforme
o veículo específico em que se insere, bem como de acordo com a lógica do grupo incumbido
de editar. O interesse é o de deter os fatos, a fim de que brilhem perante os olhos do leitor,
permanecendo vivos. Além disto, deve-se retê-los enquanto explicação para o leitor. O resultado
é o da edição, é uma página organizada, com texto e ilustrações, como fatos hierarquizados
conforme o grau de importância suposta pelo editor. Além disto, as notícias são classificadas de
acordo com sua natureza em categorias a fim de ocupar as diversas seções: economia, política,
cultura. Ao final, temos a digestão dos fatos do dia passados ao leitor, como se fossem o que
ocorreu de principal no mundo. Leão Serra destaca, no entanto, que compreender o mundo
pelo modelo da imprensa não significa compreendê-lo de fato, como olhar uma foto não
permite conhecer o fato e genuinamente o objeto fotografado, mas apenas conhecer a
representação fotográfica daquele objeto. Assim, ao buscar o excepcional que surpreenda, a
imprensa torna-se ambígua, pois, ao mesmo tempo em que procura ordenar a desordem da
realidade, gera confusões no leitor, como regra de sua própria construção, pois estabelece um
modelo centrado no estranho apenas e nos fatos justapostos por esse critério.208
Machado de Assis, jovem, exaltava em 1859 essa capacidade civilizadora e
democratizante do jornal, que estaria um passo à frente do livro na evolução do espírito, sendo
a encarnação do movimento de idéias. Depois, cético, passa a desconfiar da capacidade da
imprensa de representar o real e do lugar do jornal em uma sociedade de analfabetos. Já em
História de 15 dias, de 1876-1877, com as crônicas divididas em partes, destacadas por números
romanos, como um historiador de quinzena, ou "contador de histórias"209, o cronista, como um
comentador, questiona o papel da imprensa. Ele problematiza o lugar do leitor, dando relevo
para a ignorância do homem comum, que não compreenderia, como o próprio cronista também
não, a ordem do mundo. Ironiza e questiona sua própria autoridade de cronista, mostrando-se
incapaz de solucionar suas dúvidas e quiçá de explicá-las ao leitor. Chega inclusive a duvidar da
veracidade dos acontecimentos representados pelo jornal210, pois, ao apresentar de um dia para
outros versões distintas do mesmo acontecimento ou corrigir um telegrama publicado, revela-
se que o leitor tem acesso não ao fato objetivo, mas a uma versão verossímil dos mesmos.
Antes de prosseguir, cabe frisar que Machado de Assis constrói ficcionalmente o
cronista. O narrador assume uma suposta ignorância a fim de questionar a aceitação natural e
imediata do cotidiano pelo leitor passivo. Como Sócrates, o cronista tem consciência de sua
205 CALLIGARIS, Contardo. A voz de cada um. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 ago. 1998. Caderno Mais, p. 11.
206 SERVA, Leão. O caos e o jornal. Revista USP, São Paulo, dez-fev, 1996/97, 32. p. 206.
207 Op. cit. p. 122.
208 Cf. op. cit.
209 ASSIS, J. Maria Machado de. Histórias de 15 dias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 3). p. 362.
210 Cf. ASSIS, J. Maria Machado de. A Semana. In: op. cit. p. 542. ou ASSIS, J. Maria Machado de. A Semana: crônicas (1892-1893). São Paulo: Hucitec, 1996.
(31 de julho). Ironicamente, o cronista diz que " o respeito em que fui educado para com a letra redonda fez-me acabar de crer que se não fosse verdade não seria
impresso. Não creio em verdades manuscritas".
84
ignorância, sendo, por isso, a autoridade capaz de levar o homem no caminho do verdadeiro
saber em direção à Idéia. Ao contrário de Platão, e segundo o modelo da sátira menipéia,
Machado constrói uma figura satírica que estabelece um diálogo corrosivo com o leitor, que
aparece desenhado e respondendo dentro de várias crônicas. Ele assume o lugar de Menipo, de
Diógenes, que, pelo humor, destrói as verdades sagradas, a crença nos deuses, os preconceitos
e luta contra a hipocrisia.
Em uma crônica de 3 de abril de 1885, de Balas de Estalo, através do pseudônimo de
Lélio, Machado parte de um lugar comum dito pelo Senador João Alfredo: "Há alguém com
mais estilo que Voltaire, é todo o mundo." A frase, usada por todos, fica gasta e não diz mais
nada. Esse é um tema recorrente na prosa machadiana. Está no conselho do pai em Teoria do
Medalhão para que o filho não pense e apenas repita as frases alheias, que não leia os originais e
apenas use frases ocas. Em Evolução, o narrador conta um caso de um amigo que lhe roubou a
idéia, fazendo-a sua. Em O anel de Polícrates, Xavier vê sua frase perder a autoria. No caso dessa
crônica, a aceitação automática do dito é vedada através da reflexão sobre seu sentido. Machado
não aceita a veracidade da frase por ser imediatamente compreensível, por ser tradicional ou por
ser unânime, pois sua aprovação leva a considerar que qualquer um pode ter mais qualidade do
que Voltaire:
Não sei se já alguma vez disse ao leitor que as idéias, para mim, são como as nozes, e que até hoje
não descobri melhor processo de saber o que está dentro de umas e de outras, – senão quebrá-las.
(...)
Foi o que me aconteceu. Trazia comigo na mala e nas algibeiras uma porção dessas idéias definitivas,
e vivi assim, até o dia em que, ou por irreverência do espírito, ou por não ter mais nada que fazer,
peguei de um quebra-nozes e comecei a ver o que havia dentro delas. Em algumas, quando não
achei nada, achei um bicho feio e visguento. 211
Essas "idéias definitivas" são as frases feitas carregadas pelas pessoas para se
reconhecerem umas as outras, pois todos as conhecem desde muito. Mediado pela experiência
pessoal, o cronista passa da frase do Senador para uma reflexão mais ampla sobre os lugares
comuns. Nesse caminho, em que se ressalta a dor de perder as ilusões, o cronista assume a
função de destruidor de preconceitos. Ele atenta para o detalhe, para uma simples frase, a fim
de mostrar o sentido absurdo. Apesar de ser consoladora, a crença de que até mesmo o leitor
seja mais espirituoso do que Voltaire baseia-se em uma idéia falsa. Esse movimento do dado
imediato, frase do senador, para a generalidade, vacuidade do senso comum, é mediado pela
imagem da noz. Essa ganha a forma de uma alegoria usada para encarnar não apenas a
experiência pessoal do cronista, mas principalmente seu conceito sobre as "idéias definitivas".
Nesse caso, fica evidente que o deslocamento do registro dos acontecimentos para a reflexão,
ganha a feição alegorizante.
Na crônica de 5 de outubro de 1885, de Balas de Estalo212, o cronista inventa uma
história em que critica o Espiritismo o qual apresenta como a última e definitiva verdade. Mostra
sua dúvida quanto à verdade espírita, mas, como pessoas eminentes acreditavam na doutrina,
passou a duvidar de sua dúvida. Ficou convencido quando viu-se sair de seu corpo e ir à
Federação Espírita, onde ouviu que "as religiões do passado" têm de ser substituídas pelo
Espiritismo, que abole inclusive a concepção de diabo. Ao voltar para casa, a alma do cronista
encontra seu corpo habitado pelo próprio diabo. Ao dialogarem, o cronista mostra seu espanto,
dizendo que era impossível o diabo existir, pois "é uma concepção do passado", segundo Allan
211 ASSIS, J. Maria Machado de. Balas de Estalo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 3). p. 448.
212 Op. cit. p. 472.
85
Kardek.
Aqui, o diabo sorriu tristemente com a minha boca, levantou-se e foi à mesa, onde
estavam as folhas do dia. Tirou uma e mostrou-me o anúncio de um medicamento novo,
o rábano iodado, com esta declaração no alto, em letras grandes: "Não mais óleo de fígado de
bacalhau". E leu-me que o rábano curava todas as doenças que o óleo de fígado já não podia
curar – pretensão de todo medicamento novo. Talvez quisesse fazer nisto alguma alusão
ao espiritismo. 213
O alegorista agarra, ora aqui ora lá, um fragmento do fundo desordenado que seu saber morto coloca
à disposição, segura-o ao lado de um outro e experimenta se eles se encaixam: aquele significado
com essa imagem ou essa imagem com aquele significado. O resultado nunca se deixa prever, pois
não há qualquer mediação natural entre os dois. Mas o mesmo se dá com a mercadoria e o preço.
214
ambos estivessem presentes, falando livremente. Isto faz com que a escrita esteja repleta de
marcas do discurso oral, de simplicidade prosaica.
No texto, pode-se ver que não há um fluxo linear, mas uma progressão por saltos,
de acordo com as associações do cronista. Seu interesse e arbítrio ficam sempre acima do
assunto escolhido. Ele estabelece o tópico. Como resultado, tem-se um conjunto fragmentário,
em que as peças ficam avulsas. Quer dizer, "todas as coisas aleatórias devem reger-se por um
modo aleatório, como a loteria, algumas convicções; e a buena dicha."215 Assim, ao introduzir a
política do Ceará como assunto, o cronista supõe que o leitor já saiba do que está falando. Este
último é levado, por isso, a perguntar-se por que diabos haveria de saber que o próximo assunto
seria esse. Ao mesmo tempo, por ser tão singular e estranho, fica-se pensar num possível sentido
transcendente; como se o fato fosse uma imagem alegórica. O resultado é irônico, pois, ao
desfazer a naturalidade dos fatos, não se propõe um sentido universal aceitável. A suposta
cordialidade do cronista, que se aproxima do leitor no diálogo, metamorfoseia-se em seu
contrário, na agressão, que desestabiliza a ordem discursiva.
Ao simular uma interação direta com o leitor, Machado mistura o discurso vulgar,
comum, de livre associação de idéias, e o pensamento especulativo com que procura o sentido
profundo dos acontecimentos. A junção entre a vulgaridade e a espiritualidade, o baixo e o alto,
funciona, assim, como método humorístico de destruir os preconceitos do leitor. Tal método
fica explicitado na crônica do dia 21 de janeiro de 1889, da série Bons Dias, em que o cronista
se diz inábil com as palavras, com o discurso, mas excelente ruminador quando calado, capaz
de construir "imensidade de coisas belas e grandes!"216. "Dois episódios, porém, me deram a
medida do que valho, quando rumino. Toda a gente os leu separadamente; o leitor e eu fomos
os únicos que os comparamos."217 Tratam-se de dois incêndios: em um clube, os associados
arriscaram a vida para salvar os estandartes; em outro, um funcionário salvou o livro de
escrituração antes de fugir. Os gestos, "as duas metades do homem", dão a imagem do ser
humano, pois, enquanto uma mostra a importância do emblema da associação, como se fosse
símbolo de uma nação, a outro revela o sólido, a economia. O cronista retira os fatos comuns
de seu contexto orgânico, identificados pelo termo em comum (incêndio), para uni-los de modo
arbitrário, como imagem alegórica do homem. Existe o salto do caso prosaico para o sentido
essencial; do associado ou do funcionário, o cronista salta a falar do "ser humano".
Além disto, na mesma crônica, de modo irônico, o cronista compara-se ao camelo,
ser baixo, e cria uma filosofia farsesca, arbitrária. Com isso, corrói-se qualquer sentido absoluto,
seja ele moral ou político. Machado, melancólico, não faz uma sátira a um mundo em
decomposição pelo viés de uma consciência reta e pura, mas se inclui como voz narrativa ou
reflexiva no processo corrosivo da ironia.
Como lembra Roberto Schwarz, um aspecto notável da crônica é aquele em que
nos revela que "o mundo da imaginação não escapa ao sistema de constrangimento"218, já que o
cronista a faz semanalmente por dinheiro e está "atolado nas conveniências mais medíocres da
vida". A força da crônica está justamente em não ser um gênero tão separado da vida. Enfim, a
crônica como um texto publicado em jornal tem uma natureza prosaica, cuja utilidade está em
representar o mundo. Assim, a possibilidade do cronista em usar qualquer forma para escrever,
indo do poema até os versículos bíblicos, parece desmentir a limitação prosaica imposta pelo
jornal. Ao contrário, parece-me que a pretensa liberdade do cronista está circunscrita ao espaço
215 ASSIS, J. Maria Machado de. Bons Dias. GLEDSON, John (org). São Paulo: Hucitec, 1990.
216 Op. cit. p 153.
217 Op. cit. p 152.
218 Cf. SCHWARZ, Roberto. A política na crônica de Machado de Assis. In: AGUIAR, F., MEIHY, J. C. e VASCONCELOS, S. (Org.). Gêneros de fronteira:
cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997.
87
restrito que ocupa. Em A origem do drama barroco alemão, Walter Benjamin mostra como a
arbitrariedade do alegorista em unir a imagem e o significado aproxima-o do tirano, que se
impõe pela força. O caráter arbitrário do cronista revela sua submissão à imprensa, não apenas
pelo ganho mensal, como também pela remissão do leitor aos fatos do cotidiano. Mesmo em
caso de crônicas subjetivas, desligadas do real, podemos ler não apenas a negação do valor do
fato real, mas principalmente a incapacidade de dominá-lo e de vê-lo como parte da totalidade,
da realidade como um todo maior.
219 ASSIS, J. M. Machado de. Ressurreição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 1)
220 ASSIS, J. M. Machado de. A mão e a luva. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 1)
221 ASSIS, J. M. Machado de. Histórias da meia noite. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 2)
222 ASSIS, J. M. Machado de. A mão e a luva. In: ed. cit. p. 237.
88
acrescentava (XVII, 9): "E aqui há sentido, que tem sabedoria". Menos a sabedoria, cubro-me com
aquela palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos e alguns deliciosos,
mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que
quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem que
a gente dê por isso.
Deste modo, venha de onde vier o reproche, espero que daí mesmo virá a absolvição.
MACHADO DE ASSIS223
Papéis Avulsos é o primeiro livro de contos depois de ensaios críticos como a Nova
geração. Um princípio unificador, mas ao mesmo tempo desagregador, permite vê-lo como obra
íntegra e não apenas como antologia de contos. Como um colecionador, que selecione
elementos heterogêneos a partir de um critério seu, arbitrário, Machado de Assis pode ter ligado
os relatos heterogêneos a partir de algum princípio. "Pessoas de uma só família" supõe a unidade
entre os seus membros pelo laço de parentesco; a obrigação do pai que os reúne destaca ao
contrário o critério exterior que força a reunião em uma mesma mesa. O autor, como o pai,
registra, não apenas a unidade da obra, mas sua dispersão, pois, após escritos e publicados, os
contos, como os filhos, ganham autonomia e independência em relação ao pátrio poder.
Em termos de filiação, uma metáfora cuja importância da obra de Platão foi ressaltada por Derrida,
o filho, ele também, quando deixa a casa paternal, não significa tanto a continuidade do pai que
muito mais, mesmo se for secreto, sua possível substituição, pois o pai não é mais imprescindível à
sobrevivência do herdeiro; o filho anuncia e pronuncia a morte, possível e segura, do pai. 224
Nesse trecho, Gagnebin analisa a imagem de Platão de que o discurso escrito sem
a ajuda do autor, pai, sai a vagar correndo os riscos da má leitura. O escrito, por sua autonomia,
prescinde da presença do autor, criando uma interlocução em que a palavra vai em direção ao
leitor sem que volte à origem. Também a determinação do sentido pelo autor fisicamente
presente se acaba. Assim, a imagem da família indica a morte do pai (autor). No caso de
Machado de Assis, a "obrigação do pai" indica a coerção necessária do autor para reunir seus
escritos avulsos como se fosse uma família.
A expressão “papéis avulsos”, no entanto, sugere coisas soltas ou arrancadas à força
do corpo. Ou referir-se-ia ainda a relatos ou personagens de tal modo singulares, que restariam
avulsos, fora de um sistema. Também os “papéis”, que podem dizer respeito à atuação teatral
ou a folhas, apresentam dois sentidos diferentes, contudo complementares, por falarem
simultaneamente dos contos e das personagens.
Com la leyenda talmúdica de “Angel nuevo” que Benjamin puso al final de su presentación para
justificar ao título, indicó alegóricamente el método de conocimiento que debía seguirse en la revista.
Hizo del Angel (en la síntesis de la tradicón religosa más antigua y de la vanguardia artística) la secreta
imagen que significava su propria actividad de crítico. El Angel de la tradición así como el Angel de
la vanguardia disciernen y recogen entre los fragmentos y los restos de la história reciente los
elementos de sua salvación y los llevan ante Dios. 225
223 ASSIS, J. Maria Machado de. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1989. (Obras Completas, 2). p. 252.
224 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Morte da memória, memória da morte. In: _______. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de janeiro: Imago,
1997. p. 57.
225 WITTE, Bernd. Walter Benjamin: una biografia. Barcelona: Gedisa, 1990. (Esquina). p. 55.
89
imagem do Angelus Novus para significar sua atividade de crítico literário, unindo a tradição à
vanguarda. A atividade é recolher fragmentos, restos e ruínas e levar ante Deus. Depois de ter
perdido a unidade, o anjo cumpriria a tarefa de encontrar a harmonia que ligasse os vários cacos
da história humana. A mesma imagem representa o crítico alegórico226, como aquele que arranca
as coisas de suas relações naturais e as expõe isoladamente. Será ainda a mesma imagem do
Angelus Novus usada nas teses sobre a história para representar o historiador materialista, voltado
para o passado sem poder alcançá-lo, pois um vento forte vindo do paraíso o impede de bater
as asas. Apenas pode ver as ruínas acumulando-se no avanço da história, no progresso. A
expectativa é a de resgatar as ruínas, naquilo que indicam o inevitável passar do tempo,
arrancando-as para fora do fluxo contínuo, arbitrando um sentido.
No caso de Machado de Assis, embora não se trate de crítica e sim de ficção, mais
precisamente de contos, a imagem do Angelus Novus serve para indicar uma aproximação.
Ambos trazem a idéia de fragmentos, de elementos soltos, recolhidos para compor um
conjunto. O traço de união está no fato de não pertencerem a sistema algum, pois se trata de
fragmentos recolhidos. A forte imagem da salvação serve para entender a virada na obra
machadiana, já que, entre os doze contos aqui reunidos, não há unidade temática ou formal que
possa ligar a veleidade de D. Benedita, o delírio de Bacharel Duarte, a visita do espírito de
Alcebíades, as aranhas de cônego Vargas. Parece haver, no entanto, a seleção de formas
narrativas distintas, oriundas da tradição, que levem ao extremo e rompam os limites do gênero
moderno do conto. Crônica histórica, diálogo satírico, aventura, retrato de mulher, capítulo de
livro, carta, conferência são formas usadas para tratar de temas também dispersos, em que se
encontra sempre algo de estranho e fantástico.
Antes de prosseguir, cabe referir uma outra leitura de Papéis Avulsos empreendida
por John Gledson227. Para o crítico inglês, Machado de Assis trata dos problemas da identidade
nacional através de uma identidade pessoal. Assim, como exemplo da tese, ele lê de modo
complementar os contos O espelho e Verba testamentária. No primeiro, a identidade nacional é tão
imperceptível quanto a imagem de Jacobina distorcida no espelho.228 No segundo, Nicolau é "a
encarnação de um tipo nacional ansioso por adotar idéias estrangeiras, mas que, em razão de
seu caráter ressentido, e do seu desejo de se libertar destas mesmas idéias, é impedido de assim
fazer"229; ao cabo, o conto é a história da "consciência nacional"230. Cabe referir aqui essa leitura,
pois traz uma concepção distinta da exegese alegórica. Gledson preenche de sentido as imagens
machadianas, a partir de uma relação direta com a história do Brasil. O caráter fragmentário, as
ruínas, a impossibilidade se estabelecer uma totalidade desaparecem sob esse conceito que se
constrói como um sistema orgânico em que todos os elementos dos contos servem para narrar
a história. Cria-se, nesse caso, um princípio totalizador que subsume todos os elementos
discrepantes. O limite dessa leitura está em perder a rica ambigüidade, em que a alegoria
machadiana não narra diretamente a história, mas se centra na impossibilidade do Brasil se
constituir historicamente.
"Defendo-me com S. João e Diderot (...). O evangelista, descrevendo a famosa
besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): 'E aqui há sentido que tem sabedoria'. Menos a
sabedoria cubro-me com aquelas palavras."231 Antes de mais nada, Machado joga de novo com
a dupla referência, já que une o evangelista e o filósofo iluminista, ateu. Quanto ao primeiro,
parte da besta apocalíptica, para mostrar que seus contos também têm sentido. Não têm
sabedoria, pois seu horizonte não é a religião, a revelação de uma verdade transcendente. Quer
dizer, a imagem alegórica é mais do que mero veículo do significado religioso. Quanto a Diderot,
cujas palavras ("o espírito fica alegre") retornam como epígrafe em Várias Histórias, Machado
aparentemente utiliza-o para curar a melancolia, da perda do sentido transcendente ou da
percepção da passagem do tempo. A alegria do espírito é o grande benefício da ficção. Se
lembrarmos a ligação de Diderot com a sátira menipéia, vemos que o riso serve de cura para a
condição humana, consciente de sua finitude e miséria. Aliás, o Sobrinho de Rameau, que parodia
O parasita, de Luciano, pode ter influenciado a Teoria do Medalhão, um parasita com cor local.
A intenção alegórica tem um caráter destrutivo, pois ao retirar a citação de São João
de seu contexto original, comete uma violência, destruindo o contexto orgânico de que partiu.
No caso machadiano, a tradição bíblica não é respeitada como tal, mas esvaziada da sabedoria,
do sentido transcendente, substituída por outro sentido de ordem profana, inserido dentro da
história. Assim, Na arca: três capítulos inéditos do Gênese é um conto que não venera a palavra bíblica.
A paródia desfaz o sentido original do texto, dando-lhe um significado pessimista. A mesma
linguagem, através dos versículos, serve para mostrar a permanência do mal dentro da
embarcação que levava pretensamente os únicos homens vivos. Não há transcendência, a não
ser a inserção do homem da história, que, como se viu, é definida pela sucessão de gerações no
tempo, cuja única constância é a morte. Assim, Noé refere enigmaticamente que, se seus filhos
estão brigando, o que seria da Turquia e da Rússia.
Os papéis avulsos podem ser as ruínas, salvas do fluxo dessa história. Estes
elementos resgatados na luta contra o tempo são todas as individualidades, os elementos
inexplicáveis por si mesmos, aquilo a que não se conseguiria mais dar um sentido, um conceito,
depois de retirada a “sabedoria”, o significado transcendente. O paradoxo está dado desde o
princípio, pois, ao perderem o nexo com a história da salvação, religiosa, os papéis se tornam
avulsos; ao mesmo tempo, no entanto, as personagens dos contos machadianos aspiram ser
mais do que singularidade; aspiram à exemplaridade da figura, serem preenchidas de sentido, ou
da alegoria, em que encarnam um princípio ou uma moral. Ao serem secularizados, a esses
papéis avulsos resta a história, mas ela fica desprovida da esperança de se superar a tristeza da
ruína em nome do progresso.
Nada há tão deveras melancólico como esse contraste do homem com toda a mais natureza. Muita
vez, subindo a alguma das eminências da nossa cidade, e lançando os olhos do corpo a essa vasta
aglomeração de obras que a civilização criou e perfez, volvo os da alma a quatro séculos antes,
quando uma sociedade semi-bárbara dominava as margens do golfo e as terras interiores. Nenhum
vestígio há já dela; nenhum vestígio há de haver da nossa, depois que volverem outros séculos; mas
o sol que os alumiou e nos alumia é o mesmo; e toda a natureza parece indiferente às nossas obras
caducas. 232
232 Id. Notas. In: In: _______. Poesias Coligidas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. p. 317. (Obras Completas, 3)
91
ponto de observação distante, afastado da cidade, permite olhá-la em sua pequenez e fragilidade,
sem se deixar impressionar pela grandeza. Esse afastamento adquire a mesma indiferença da
natureza, para quem os risos e os choros humanos se confundem. Além disto, as “nossas obras
caducas” são construções atuais, recentes, que, ao serem vistas pelo ponto de vista distanciado,
já trazem dentro de si o aspecto ruinoso.
Desse modo, o sentido dos “papéis avulsos” parece estar na compreensão de que
são casos, personagens e páginas arrancadas do fluxo do tempo destruidor e que adquirem,
assim, permanência ao se transformarem em texto. Eles não são fulgurações simbólicas da
transcendência ou que possuem a eternidade. São folhas precárias que lembram a morte
inexorável.
O pressuposto da narração não seria a transmissão de uma experiência inserida na
comunidade, na forma de ensinamento transmitido, sobre a vida e o mundo. Ao contrário, seria
a retirada de elementos do fluxo contínuo do tempo, por isso narração fragmentária, truncada,
que se mostra na sua face ruinosa, signo repleto do sentido da morte. A parada, o choque, o
inesperado da narrativa seriam formas de se interromper o fluxo e se procurar o outro sentido.
Existe, deste modo, intenção alegórica não apenas ao dar um novo sentido para as imagens, mas
também porque se procura destruir o sentido convencionalmente aceito. Em outros termos,
entre a expressão e a significação cava-se um fundo abismo.
O discurso realista propõe-se como um desenvolvimento da linguagem escrita, que,
liberta da métrica, da rima e do esquema melódico, seria capaz de apreender a diversidade do
mundo prosaico. Os detalhes e a dispersão do mundo contingente seriam reunidos com a
finalidade de aproximar a empiria do conceito, para formar a realidade como unidade. A escrita
machadiana é fragmentária, antidiscursiva, trazendo ao mesmo tempo o registro verossímil e
particular do Realismo, mas não construindo uma totalidade orgânica por se prender no
particular, sendo incapaz de superar a finitude do objeto material ou a condição imediata. Não
há o salto dialético, pois fica preso na "má infinitude" hegeliana. A alegoria surge como a
impossibilidade da história humana se constituir pela superação do momento particular em
direção ao progresso. É marca melancólica, apegada à ruína, incapaz de superar a tristeza da
perda, pois nada haveria além da morte.
De todos os contos que aqui se acham há dous que efetivamente não levam data expressa; os outros
a têm, de maneira que este título História Sem Data parecerá a alguns ininteligível, ou vago. Supondo,
porém, que o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são
especialmente do dia, ou de um certo dia, penso que o título está explicado. E é o pior que pode lhe
acontecer, pois o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisa de explicação.
M. de A.233
233 Id. Histórias Sem Data. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 2) p. 317.
92
– Basta! interrompe-me o leitor; adivinho o resto. Virgínia casou com Reginaldo, as moedas
passaram às mãos de Falcão, e eram falsas...
Não, senhor, eram verdadeiras. Era mais moral que, para castigo do nosso homem, fossem falsas;
mas, ai de mim! eu não sou Sêneca, não passo de um Suetônio que contaria dez vezes a morte de
César, se ele ressuscitasse dez vezes, pois não tornaria à vida, senão para tornar ao império. 236
Nesse final, em um diálogo com o leitor, o narrador mostra o limite de sua prosa.
Ele não pode dar um fim moral, pois esse seria incompatível com a verdade da cena
representada. É do caráter da personagem que derivam as suas atitudes. Assim, se Falcão viesse
a ter mais outra sobrinha, não iria dá-la em casamento, pois sua linguagem não comporta o
verbo dar. Nesse final, vemos de modo exemplar o caráter realista e verossímil da prosa
contística de uma história que tem data. Ao mesmo tempo, no entanto, Falcão torna-se uma
figura emblemática, uma espécie de Midas que transforma em ouro todos os objetos em que
toca, até mesmo sua sobrinha por quem tinha uma afeição sincera. Arrepende-se do seu
primeiro gesto, mas volta a repeti-lo logo a seguir, já que, assim como César, não pode libertar-
se de si mesmo. Por esse traço, creio eu, a história revela sua substância, pois Machado constrói
no conto uma narrativa exemplar da natureza humana, melancolicamente dominada e movida
por suas paixões, como força cega e incoercível, assim como havia definido em sua poesia
alegórica.
O cismador, cujo olhar, assustado, cai sobre o fragmento em sua mão, transforma-se
em alegórico.
Uma construção interrogativa para o final: como é possível que uma maneira de agir ao
menos na aparência completamente anacrônica, como a do alegórico, tenha lugar de
primeira ordem na obra poética do século?
234 Id. Almada. In: Poesias Coligidas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 3) p. 229.
235 Id. Histórias Sem Data. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 2) p. 429.
236 Op. cit. p. 436.
93
Deve-se mostrar a alegoria como o antídoto contra o mito. O mito era a via cômoda de
que Baudelaire se privou.237
Benjamin, em Parque Central, mostra como a alegoria traz uma imagem a serviço do
pensamento. O cismador, ou o ruminador238, separa um elemento dos nexos vivos que ele
mantém com o cotidiano. O gesto é anacrônico, pois remonta à tradição religiosa, judaico-cristã,
em que se recupera a tradição religiosa pela destruição do sentido literal, a fim de apresentar o
conteúdo de verdade, divino. O cismador, no século XIX, perde a referência transcendente, mas
mantém o gesto alegorizante que retira o acontecimento do cotidiano, da prosa da vida,
descobrindo-lhe o conteúdo de verdade. Em Histórias sem data, a advertência anuncia mais do
que a importância da história, o movimento alegorizante de se fixar nas ruínas, das histórias que
sejam universais. A alegoria marca a crise do século na poesia de Baudelaire, mas na Art nouveau,
ela se degrada em gênero, trazendo para dentro de si a "essência como tema"239. No caso
machadiano, ele não encontra o essencial no fato comum, mas a imagem dialética que salta para
fora do fluxo temporal, sendo ambígua, já que estanca o movimento temporal e prenuncia a
salvação pelo significado arbitrário dado pelo autor. O mesmo gesto traz a ironia corrosiva, que
desacredita os valores universais, esvaziando-os como ilusões subjetivas.
O conto retira dos fatos cotidianos aqueles a serem salvos, que expressem de modo
singular uma verdade humana. Contrastado ao fundo destruidor do dia-a-dia, do correr do
tempo, surgiria a História de alguém, de alguma situação que traria em si um alto grau de
experiência. A historiografia dos grandes homens, as memórias, privilegiavam alguns eventos
em detrimento de outros que eram esquecidos. A ficção, que cria Histórias sem data mas
cronologicamente datadas, resgata possíveis experiências humanas que se escondem por trás
das generalizações historiográficas. Novamente a dualidade reaparece. A prosa histórica, cujo
princípio é a adequação ao real, divide espaço com o caráter emblemático dos casos. É histórica,
mas também alegórica.
Por fim, a forma de representação também fica marcada pela mão do ruminador.
Seu olhar melancólico cai sobre os acontecimentos, pela perspectiva do cadáver, como se visse
ruínas. Sua capacidade reflexiva cria uma separação entre o presente e o passado, que desponta
como perdido em cada ruína salva. Dessa perspectiva, seu discurso fragmentário e hesitante
rompe com a linearidade da prosa 'nutrida e direta', pela impossibilidade de se superar a perda
do passado. Artificial, mediado, fragmentário, a prosa melancólica nega o mito, porque não
aceita a junção do sujeito e do objeto, bem como não aceita a ilusão mitificadora do historicismo.
A intenção alegórica destrói a aura do símbolo, momento único e irrepetível, e as quimeras de
conciliação entre homem e natureza, portanto o caráter arbitrário da alegoria aniquila com a
crença no mito, como explicação natural para fatos históricos.
A estrutura e o detalhe em última análise estão sempre carregados de história. O objeto da crítica
filosófica é mostrar que a função da forma artística é converter em conteúdos de verdade, de caráter
filosófico, os conteúdos factuais, de caráter histórico, que estão na raiz de todas as obras
significativas. Esta transformação do conteúdo factual em conteúdo de verdade faz do declínio da
efetividade de uma obra de arte, pela qual década após década, seus atrativos iniciais vão se
237 BENJAMIN, Walter. Parque Central . In: _______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1988.(Obras Escolhidas, 3).
p. 169.
238 Cf.BENJAMIN, Walter. O trabalho das passagens. Trad. Sônia Ferrari. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 3. Cabe transcrever o comentário da
tradutora, justificando a escolha do termo "ruminador": "A palavra 'ruminador'para traduzir Grübler foi escolhida por que dá o sentido de um atividade reflexiva
aplicada insistentemente sobre um mesmo objeto, além de remeter a remoer, voltar a pensar em algo que já foi pensado – volta, portanto, a um passado."
239 BENJAMIN, Walter. Parque Central. In: _______.Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Obras Escolhidas, 3).
p. 155.
94
embotando, o ponto de partida para um renascimento, no qual toda beleza efêmera desaparece, e a
obra se afirma enquanto ruína.240
240 BENJAMIN, Walter. Dois ensayos sobre Goethe. Barcelona: Gedisa editorial, 1996. p. 204.
95
241 ASSIS, J. Maria Machado de. Instinto de nacionalidade. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 3). p. 802.
242 Op. cit. p. 804.
243 Cf. WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
96
mudança de gosto. Ao final, ela fica viúva e, cortejada, não sabe se casa de novo ou não.
Uma noite, volvendo D. Benedita este problema, à janela da casa de Botafogo, para onde se mudara
desde alguns meses, viu um singular espetáculo. Primeiramente uma claridade opaca, espécie de luz
coada por um vidro fosco, vestia o espaço da enseada, fronteiro à janela. Nesse quadro apareceu-
lhe uma figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos,
porque morriam todos no ar. A figura veio até ao peitoril da janela de D. Benedita: e de um gesto
sonolento, com uma voz de criança, disse-lhe estas palavras sem sentido:
Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas... casando...
D. Benedita ficou aterrada, sem poder mexer-se; mas ainda teve a força de perguntar à figura quem
era. A figura achou um princípio de riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu que era a fada que
presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu nome é Veleidade, concluiu; e, como um suspiro,
dispersou-se na noite e no silêncio.244
244 ASSIS, J. Maria Machado de. D. Benedita. In: _______. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2). p. 323.
97
veleidade.
No mesmo sentido, em Trio em lá menor, Maria Regina, que sofre do mal da
imaginação exagerada, projeta fora de si a estrela dupla, que parece uma só. Sua condenação,
vinda através de sonho, é a de oscilar entre dois astros. A figura feminina representa um
indivíduo, particular, bem caracterizado e ao mesmo tempo tem um sentido alegórico. O sentido
principal dessa conjunção está na impossibilidade de se distinguir a realidade da imaginação.
Maria Regina não consegue aceitar os homens como eles são, pois quer um tipo ideal. Fechada
dentro de si, imersa em sua fantasia, ela se torna alegórica, um emblema da impossibilidade de
superar sua condição finita. As duas mulheres encarnam a incapacidade de se deixarem penetrar
pelo tempo histórico transformador.
Em Noite de Almirante, ao descrever para o marinheiro Deolindo, seu ex-noivo,
como passou a gostar de outro, Genoveva diz apenas "vieram outras coisas"245. O narrador nos
explica que "estamos muito próximo da natureza". Em Uma Senhora, a vaidosa e bela Dona
Camila não quer envelhecer, tentando de todo modo sofrear o crescimento da filha, Ernestina,
para que esta ("seu cabelo branco"246) não denuncie sua verdadeira idade. "A natureza, porém,
não é só imoral, mas também ilógica..."247 Assim, Ernestina termina casando e tendo filhos. Ao
final, o narrador mostra D. Camila passeando com o neto, que poderia passar por seu filho. 248
Mais esses dois exemplos de personagens femininas servem para mostrar como
Machado de Assis dá relevância em seus contos para pessoas comuns, sem um atrativo heróico
ou um traço satírico. São histórias enraizadas no cotidiano vulgar e prosaico, avesso ao padrão
poético, em que a mulher do povo (Genoveva) e a mulher da elite (D. Camila) vivem imersas
em suas rotinas opacas. Elas são verossímeis até nos detalhes com que o narrador constrói a
adequação da personagem ao ambiente. Essas personagens, no entanto, assim como Maria
Regina e D. Benedita, ganham uma substância alegórica, na medida em que se tornam
exemplares. Ambas mostram como a natureza as domina e o caráter as faz repetir as mesmas
atitudes. Assim, a expressão sincera e cândida de Genoveva esconde o "egoísmo aspérrimo" da
satisfação do próprio desejo, tornando-a incapaz de cumprir o juramento moral de se manter
fiel ao noivo. Do mesmo modo, o amor materno e o desvelo de avó mostram a permanência
da mesma vaidade enraizada no caráter de D. Camila. Ambas mantêm-se presas dentro do
círculo do eterno retorno da mesmas atitudes, e o gesto particular torna-se alegórico e exemplar
da Natureza Humana.
A partir da necessidade de verossimilhança confrontada com a alegoria, não parece
estranho referir o Conto Alexandrino. No tempo da dinastia dos Ptolomeus, é narrada a história
de dois filósofos, que decidem partir de Chipre para Alexandria em busca do reconhecimento.
Stroibus conta a Pítias que leva na bagagem uma nova teoria.
– (...) Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do mar a essência de todos os
sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe.
Esta é a minha filosofia recente; esta é a que vou divulgar na corte do grande Ptolomeu.249
A teoria não constrói uma metáfora, mas considera literalmente que os animais
compõem o alfabeto e o homem a sintaxe. Desse modo, para o homem se tornar um ladrão
basta tomar sangue de rato em doses diárias. Para a execução correta da teoria é essencial a
245 Id. Noite de Almirante. In: _______. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2). p. 449.
246 Id. Uma senhora. In: op. cit. p. 424.
247 Op. cit. p. 424.
248 Op. cit. p. 429.
249 ASSIS, J. M. Machado de. Conto alexandrino. In: _______. Histórais sem data. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. (Obras completas, 2). p. 411.
98
forma de retirar o sangue do animal e de tomá-lo. O bicho deve estar vivo, e o sangue deve ser
tomado quente. Para conseguir isto, Stroibus torna-se exímio conhecedor da nova ciência – a
anatomia, criada pelo mestre alexandrino, Herófilo (figura não ficcional, histórica).
pela forma de contá-la. De imediato, pelo seu distanciamento temporal, um leitor poderia tomar
o conto como uma crítica contundente de Machado de Assis à ciência de sua época, capaz de
sacrificar o indivíduo em nome de uma teoria genérica. Tal significado é plausível, considerando
o domínio cada vez mais forte de uma ciência positivista e a atuação cada vez mais presente dos
médicos higienistas na sociedade brasileira, com o poder de determinar o que era normal na
vida do indivíduo e o que era patológico.253 Através de um caso extremo, chocante, o conto nos
mostra que a mesma teoria aplicada aos animais, aos ratos, reversivelmente pode ser aplicada ao
homem, de tal modo que ele acaba torturado. Assim, no início Stroibus justificava a tortura e
morte lenta dos ratos em nome da ciência, da verdade universal. “A verdade é imortal; o homem
é um breve momento”. Ao final, em nome do mesmo princípio, Herófilo tortura homens. Ao
sentir o seu destino, “a parte ínfima da natureza humana” faz com que Stroibus clame por sua
vida e depois chore de dor, berrando, implorando e suplicando. A crítica à ciência que coisificava
os homens dentro de seu raciocínio (de modo convincente aos olhos do poder) é feita por um
caso extremo, em que os homens são desumanizados ao se tornarem cobaias necessárias para
experimentar uma nova tese científica.
Para Adorno, a totalidade destrói o sujeito e produz a abstração254. Como o
pensamento subjetivo constrói-se por si mesmo, desligado do objeto, ele acaba por se alienar
da realidade, na mesma medida em que o positivismo, ao pretender quantificar tudo, acaba por
coisificar as relações humanas. Em ambos, seguros de si mesmos, surge a fetichização do
conhecimento, que traz dentro de si a queda do homem na barbárie. Nesse momento, o real e
o humano ficam para além da totalidade, fora do sistema. O olhar de Adorno lembra o do
viajante Jean de Léry que viu e mostrou aos europeus a devoração bárbara de um homem por
outro entre os índios, mas, em vez de apenas condená-la, evidenciou como os franceses traziam
dentro de sua cultura a própria barbárie, ao construir dogmas e não um conhecimento auto-
reflexivo, destruindo, em guerras religiosas, todos aqueles que lhes eram diferentes.
No caso do Conto Alexandrino, a totalidade, a verdade última trazida pela ciência
(tanto de Stroibus, quanto de Herófilo), reduz os seres a meros exemplos da teoria. Eles se
tornam abstratos, pois não são considerados como indivíduos ou seres autônomos. Ao con-
trário, eles se tornam apenas os índices de uma tese. Nesse comentário já é possível adiantar
uma aspecto central na alegorização machadiana, que a distingue da alexandrina, medieval e
barroca. Para essas três concepções, por razões culturais e materiais distintas, a revisão da
tradição era feita a partir de uma crença no valor da religião ou filosofia que defendiam. O
sentido literal, similar ao corpo, é negado ou destruído em nome da verdade abstrata, relativa à
alma. O primeiro é imperfeito e finito, por isso poderia ser legitimamente sacrificado em nome
da verdade imortal. No caso dos cientistas do conto, a ciência ocupa o lugar da religião,
enquanto objeto de crença. A diferença, então, está no tom do narrador, irônico,
melancolicamente irônico, já que ele parece aderir ao ponto de vista dos cientistas, simulando
ignorância do sofrimento, para melhor mostrá-lo como horror arbitrário e ilegítimo. Não se
deve esquecer que não apenas os homens pereceram, mas também a ciência em nome do que
torturaram também foi esquecida. O caráter finito é também o das teorias (da ciência ou da
religião) pelas quais os homens se batem.
Em Educação Após Auschwitz,255 o problema do campo de extermínio, o seu contínuo
terror, não está apenas no fato de ter acontecido, mas no de novamente poder ocorrer, pois não
foi um acontecimento anômalo, mas algo coerente com o desenvolvimento da sociedade
globalizada. Na frieza, na falta de compreensão do outro e na indiferença se encontra a
253 Cf. COSTA, Jurandir Freire. Norma médica e ordem familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
254 ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Madrid: Taurus, 1984. p. 24.
255 ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor Adorno. São Paulo: Ática, 1986. (Grandes Cientistas Sociais, 52)
100
explicação para a aceitação dos crimes nazistas. O gesto frio e a dissolução do sujeito são postos
por Adorno dentro da sociedade industrial. Num mundo cuja falsa mediação universal é a
mercadoria, tudo passa a ser considerado por seu valor de troca. Assim cada coisa ganha
identidade quando serve de mercadoria, mediação ao lucro. O caráter abstrato, negativamente
conceituado por Adorno, apaga qualquer traço heterogêneo que fuja do valor de troca, que,
assim, se constitui como a falsa mediação universal.
Não é arbitrário resgatar uma imagem do século XX, pois, segundo a concepção de
Adorno, o extermínio nos campos de concentração não foi uma anomalia da história, ou um
evento isolado: o desenvolvimento da própria razão desde o iluminismo apontava para
pensamento totalizador, homogêneo, cuja continuidade sem fissuras alijava de si toda
manifestação heterogênea. O princípio da identidade, de descobrir o mesmo em todos os
elementos, tornava inaceitável a diferença. Além disto, a natureza estaria exilada, submetida à
dominação, retornando na forma de mito dentro da própria razão. O núcleo dessa
transformação está no intenso desenvolvimento do capitalismo ao longo do século XIX.
Esse sentido é plausível, baseado no próprio conto. A questão a ser colocada, em
termos estéticos, é anterior ao efeito intelectual, moral ou emocional. Como o conto encaminha
uma interpretação dessa ordem? Quais elementos nos possibilitam ler a figura de Stroibus como
uma alegoria da ciência alienada de sua humanidade? Qual é a importância do contexto histórico,
distanciado da atualidade de Machado de Assis e seus leitores?
Começando pela última questão, é importante ampliar o que já foi dito. Não apenas
Herófilo era uma figura histórica quanto realmente foi ele o criador da anatomia. Também a
Alexandria dos Ptolomeus é precisamente construída, como centro de cultura da época. O conto
constrói uma visão verossímil em termos de ambiente histórico. Ao leitor contemporâneo de
Machado de Assis, a história ganha um caráter de afastamento histórico, algo similar ao que o
autor diz de O segredo de Bonzo256. Em nota ao final de Papéis Avulsos, Machado de Assis comenta
que “(...) para dar possível realidade à invenção, deve-se colocá-la à distância grande, no espaço
e no tempo”. Deste modo, a invenção, a história a ser contada possivelmente, estava pronta.
Faltava, no entanto, dar-lhe verossimilhança, o aspecto de realidade. Na criação, tanto de O
Segredo de Bonzo quanto de Conto Alexandrino, Machado de Assis busca dar uma força de realidade
à sua ficção. Seu interesse (como consta na mesma nota) não é meramente realizar um exercício
formal, mas dar “realidade à invenção”.
Nesse momento, cabe retomar a tradição de leitura alegórica que se consolidou em
Alexandria257. Era um procedimento hermenêutico que visava incorporar textos da tradição de
acordo com as concepções intelectuais do momento. Assim, na vertente cristã, Moisés era lido
como um filósofo que organizou seus conhecimentos em narrativas e formas alegóricas. Sua
narrativa não deixava de ter um sentido literal, ligado ao povo judeu, mas (segundo exegetas
cristãos) ela funcionava como uma prefiguração da existência de Cristo. Do seio dessa leitura
surgem as raízes da identificação entre Adão e Cristo, já que o primeiro iniciou a humanidade
na terra, e o segundo veio a libertar a mesma humanidade, iniciando-a na salvação da alma.
Ambos constituíram mitos de origem. Já na vertente clássica, Homero era relido também como
um filósofo. No caso da Odisséia, negava-se o sentido literal, por ser absurdo, por trazer sinais
inequívocos de inverossimilhança na presença dos deuses entre os homens. Para fazer sentido,
é atribuída uma intenção alegórica a Homero. Na Odisséia, as ações e as presenças dos deuses
seriam figurações de princípios universais. Em Alexandria, as duas vertentes lutavam para
provar a ancianidade maior de Homero ou de Moisés, o que daria mais legitimidade a um ou a
outro.
256 ASSIS, J. M. Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. (Obras completas, 2). p. 364.
257 Cf. PÉPIN, Jean. La tradition de l’allégorie: de Philon d’Alexandrie a Dante. Paris: Études Augustiennes, 1987.
101
Na literatura, a ironia – longe de ser apenas recurso retórico – torna-se assim atitude fundamental.
Criando a obra de arte, o autor a objetiva, distanciando-se dela e do próprio eu empenhado no ato
da criação; em novo ato criativo introduz dentro da obra este mesmo ato de distanciamento, e assim
sucessivamente. O resultado não será decerto uma bela obra clássica, mas em compensação será sem
dúvida “interessante” (nova categoria introduzida por Schlegel). A obra será “aberta”, experimental,
e incluirá na sua estrutura o próprio processo de sua criação. 259
259 ROSENFELD, Anatol. Aspectos do Romantismo alemão. In: _______. Texto/contexto. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1985. (Debates, 7). p. 164.
260 ADORNO, T. Posicão do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN et al. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
103
em busca da pratinha jogada pela janela e da vingança contra Curvelo, o menino que revela o
lado obscuro da escola. Atraído pela banda de fuzileiros navais, sai marchando atrás deles,
imitando-os no seu gesto exterior, assim como havia imitado o professor, e acaba no morro
enxovalhando suas calças novas. Neste final, um herói cômico lida com sua experiência passada
sem dor e mágoa. O riso e o humor fazem com que o narrador esvazie o sentido da escola. Na
oposição entre sala de aula e Morro/Campo (fina flor da humanidade), na contraposição dos
dois universos educativos, a corrosão da escola não é trágica, pois traz um lugar alternativo em
que o personagem aprende a brincar.
Na atitude de Pilar adulto, ao reconstruir sua vivência passada, existe uma espécie
de despertar em relação ao acontecido, que perde sua força imediata de sofrimento e alegria. Ao
ser relido, o passado transforma-se em chave de interpretação da condição atual:
Quando presentificamos algo passado numa rápida imagem, como Benjamin também
gosta de dizer, esta rápida imagem ganha uma concretude mais intensa do passado do que
o passado teve na facticidade da história. (...) É exatamente a isso que Benjamin se refere
quando diz que a posteriori na nossa atualização, as imagens históricas ganham uma
concretude maior do que no tempo em que os acontecimentos realmente ocorreram. (...)
Ou, em outras palavras, a atualidade do acontecimento histórico fixado na contra-memória
é maior choque que a atualidade do acontecimento em seu tempo real.261
A questão “Por que o mundo nos detalhes do cotidiano?” remete a um dos aspectos
mais instigantes do pensamento benjamiano: à importância dos detalhes, dos objetos e dos
costumes cotidianos, das coisas pequenas que passam desapercebidas de tão familiares que
são; também à importância dos restos, dos resquícios, daquilo que, geralmente, é rejeitado
como detrito ou lixo.(...) Mas este motivo correspondia ao motivo tipicamente
benjaminiano de uma concentração de significações diversas na intensidade de uma forma
única, espécie de mundo em miniatura, ou na terminologia leibniziana, de mônada.263
261 BOLZ, Norbert W. É preciso teologia para pensar o fim da História? Revista da USP, São Paulo, n. 15, set-nov, 1990.
262 TIEDEMANN, Rolf. Introduction. In: BENJAMIN, Walter. Paris, capitale du XIXe Siècle: le livre des Passages. Paris: Les Éditions du Cerf, 1989.
263 GAGNEBIN, Jeanne M. Por que o mundo nos detalhes do cotidiano? Revista da USP, São Paulo, n.15, set-nov, 1990.
105
estudo da história.
Pilar, narrador do Conto de escola relembra uma travessura de criança. Aquele
acontecimento, tal como é vivido pelo menino, fora uma travessura com o devido castigo,
superada pela brincadeira do dia seguinte. O narrador adulto, ao preencher de sentido o pequeno
caso escolar, mostra como os dois colegas deram-lhe as primeiras lições de corrupção
(Raimundo) e de delação (Curvelo). O conceito fica encarnado na figura dos dois meninos,
como figuras exemplares de um e outro conceito.
Nesse caso específico não há uma formação no sentido humanista, mas uma de-
gradação do sujeito, que se rebaixa, aprendendo a realizar os atos imorais. A imagem
emblemática da escola traz uma inversão irônica de que o menino sem virtudes se degrada
dentro da instituição de ensino, que deveria introduzi-lo na civilização. O ponto central do
conto, implícito, nesse caso, é de que origem da corrupção e da delação está no terror do adulto
sobre as crianças. O medo de apanhar com vara de marmeleiro do pai leva Pilar à escola; o medo
do professor silencia a turma; o medo do pai/professor leva Raimundo a corromper o colega,
isto é, a comprar a lição de sintaxe; a certeza na punição física, do terror, transforma os olhos
de Curvelo, menino invejoso, em extensão dos olhos e autoridade do professor. Enfim, a
delação e a corrupção se encarnam em duas crianças apenas pela anulação violenta deles mesmos
por imposição do terror, que pune o transgressor.
A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas, em que
o primeiro significa não apenas a si mesmo mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange
ou preenche o primeiro. Os dois pólos da figura estão separados no tempo, mas ambos, sendo
acontecimentos ou figuras reais, estão dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica. Só a
compreensão das duas pessoas ou acontecimentos é um ato espiritual, mas este ato espiritual lida
com acontecimentos concretos, sejam estes passados, presentes ou futuros, e não com conceitos ou
abstrações.264
265 Bosi, Alfredo. A máscara e a fenda. In: Bosi, Alfredo et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. (Escritores Brasileiros, 1.).
107
Ativar o leitor não permitindo sua passividade é uma tarefa insistente na pretensão de
trazer à tona um questionamento central. Este demônio da crítica vai assumir lugar
preponderante a partir dos anos oitenta e configura a tonalidade demonstrativa e psicológica
das narrativas machadianas: a existência de um centro de interesse ideológico e psicológico
comanda as necessidades do controle das categorias ficcionais empregadas.273
Ao longo do texto, Machado lança algumas pistas que levam o leitor a encontrar a
inteligibilidade do texto. Para Katia Muricy, o conto seria "alegoria da sociedade brasileira
oitocentista"274, mostrando nos tempos remotos o confronto entre o padrão colonial de
existência de Itaguaí e as fascinantes e modernas teorias do médico de loucos. Através de valores
e conceitos universais, seu conhecimento racional e progressista seria neutro, desligado da
política, impondo-se, no entanto, como um poder inquestionável perante o povo, como se vê
na própria submissão dos revoltosos ao aceitar a autoridade de Bacamarte e propor aliança. A
solução final, internação do próprio alienista, seria marca da impossibilidade de se distinguir
razão e loucura. No mesmo caminho, Sandra Pesavento, historiadora, lê Itaguaí como uma
projeção alegórica do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX.275
Outro caminho de leitura é o empregado por Eugênio Gomes, que identifica a fonte
de Machado de Assis em um ensaio de Swift, que propunha a criação de um hospital para
internar os incuráveis morais, que aliviaria a sociedade de diversos tipos como herdeiros
pródigos, chicanistas, escrivães, usurários, funcionários venais.276 Em O Alienista, Machado iria
mais longe do que essa crítica irônica, porém moralizadora, na medida em que o resultado final
de Simão leva à confusão entre os limites da razão e da loucura.277 Também ao ligar Machado
de Assis à tradição, porém por um viés distinto, Sá Rego mostra a afinidade de sua obra com a
sátira menipéia.278 O tema da loucura, como um paradoxo sem solução, reaparece em O alienista,
através de um discurso cuja autoridade é desfeita por alguns pequenos traços como a citação
truncada do final, em que o narrador diz que Simão não ri nunca. Ele seria, assim, o avesso de
Demócrito que ria de tudo, pois via no riso a única cura para o delírio, a melancolia e os males
que afligiam a humanidade. Nessa leitura, o único louco seria o próprio Bacamarte.
Essa "outra dimensão", ou esse caráter demonstrativo, traz em primeiro plano uma
questão interessante que é a de que existe um pensamento de ordem cética na ficção de Machado
279 ASSIS, J. M. Machado de. O Alienista. In: _______. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2). p. 280.
280 Op. cit. p. 258.
281 Op. cit. p. 259.
282 Op. cit. p. 263.
283 Op. cit. p. 266.
111
função de sua "volúpia científica"284. Mesmo ao final, trancado sozinho na Casa Verde, onde
morre, permanecem "seus olhos acesos de convicção científica"285.
As citações reforçam o caráter emblemático de Simão Bacamarte, em que o alienista
acaba sendo, ele mesmo, o alienado, confirmando as suspeitas de seus concidadãos. Elas
possuem em primeiro lugar um traço em comum, indicando o caráter inalterável. Ele encarna,
como aponta Bosi286, a própria norma, o sempre idêntico. O sistema científico deve ser
homogêneo. Nele um termo deve ser definido apenas por um traço, os aspectos diferentes ou
heterogêneos devem ser excluídos, por ameaçarem a permanência do juízo científico. Simão é
do início ao final sempre o mesmo. Já em seu casamento, antes de fundar a Casa Verde, ele
escolhe a mulher por ser feia e capaz de procriar, para não desviá-lo do rumo da ciência. Incapaz
de ter filhos, ele vê o problema na mulher e propõe-lhe a solução que ela não segue. Ele não
tem emoções, é incapaz de rir, pensa e vive unicamente a partir dos princípios científicos. Seus
olhos são "cegos para a realidade"287, pois está preso à perfeição do sistema criado em seus
estudos. Todos os homens se transformam em cobaias ou objetos de estudos, sejam os
desequilibrados da primeira teoria ou os aparentemente equilibrados da segunda.
A monomania da Ciência, e de Simão, coloca o único objetivo de encontrar o
"remédio universal da loucura"288. A busca exagerada e obsessiva faz com que ele veja aquilo
que quer ver, a confirmação de seus próprios pressupostos. De certo modo, ele vê a si mesmo
projetado em todo o mundo. O assustador do alienista alienado está na sua frieza, capaz de
qualquer gesto para sustentar a teoria. A cegueira da razão iluminista faz com que a Ciência e
Simão assumam a cara do prazer sádico, "volúpia científica", e da própria Natureza, criatura
indiferente ao destino dos homens, igualados aos vermes. No primeiro caso, Simão tem os
mesmos olhos de Fortunato, de A causa secreta:
Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. 289
A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras
feições não eram menos atraentes do que dantes. 290
Fortunato parece para a sociedade um homem admirável. Sem ser médico, financia
seu amigo, Garcia, e ainda ajuda, como enfermeiro dedicado na cura dos doentes, fazendo os
tratamentos mais difíceis. Leva trabalho para casa, até que sua mulher, Maria Luíza, pede que
ele pare as experiências com os bichos em casa. Essa personagem polida, com a expressão dura
e fria do olhar, revela o prazer sádico ("vasto prazer, quieto e profundo" 291) que a tortura lenta
e prolongada de um rato lhe traz. É o segredo do homem que "castiga sem raiva pela necessidade
de achar sensação de prazer"292. O narrador define Fortunato com o termo de "egoísmo
aspérrimo, faminto de sensações". Nem a morte da mulher, ele poupa.
Até mesmo o beijo de seu amigo no cadáver de Maria Luíza mais do que ciúme, lhe
dá o prazer de ver o outro chorar e sofrer.
"Fortunato" traz a imagem do homem afortunado, cuja satisfação está dada pelo
vasto prazer, de ordem estética, que sente ao ver os outros sofrerem. Ele esquece do mundo à
volta, quando se absorve em seu deleite. Nesse momento único, ele se integra com o mundo
externo, conciliado com a realidade prosaica. O mundo não existe em si, como uma alteridade
autônoma, mas apenas como um instrumento para que Fortunato, como único indivíduo, tenha
as sensações por ele buscadas. No momento em que Garcia descobre o segredo do outro, todas
as atitudes de Fortunato passam a fazer sentido: as visitas à Santa Casa; a ida ao dramalhão
"cosido a facadas"; a ajuda a um desconhecido, esfaqueado na rua; o desprezo desse homem
quando vai agradecer-lhe; a mulher doente; a fundação da clínica; a dissecação de animais em
casa. Enfim, todas as atitudes se revelam como expressão do mesmo princípio, a busca do prazer
egoístico. Sua fortuna está em entregar-se ao destino de modo absoluto e inquestionável,
colocando-se para além da moral.
A personagem nos ajuda a melhor entender Simão Bacamarte, pois ambos possuem
a mesma atitude, a monomania de encontrar apenas prazer e sentido na realização de seu desejo.
Fechados dentro de seu mundo, os outros como o melhor amigo ou a mulher são
metamorfoseados em instrumentos para satisfazer sua paixão. Ao castigar o rato, não tinha
raiva, apenas o fazia para satisfazer-se. Simão possui o mesmo autocentramento cego, incapaz
de enxergar ou perceber algo além da ciência, que se transforma em instrumento sádico de
realização do impulso egoísta. A ciência de cunho universalista é esvaziada por seu caráter
arbitrário e pessoal.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a vaidade é a preocupação de Brás Cubas ao
inventar a panacéia para curar a humanidade melancólica. Mais do que ajudar outros homens,
mais do que ganhar dinheiro, ele quer ver seu nome estampado no rótulo do emplasto. O
defunto autor vê apenas o seu próprio universo, não sendo capaz de compreender os outros
com quem se relaciona. Marcela, Virgília, Eugênia, Nhã Loló, Dona Plácida são vistas apenas
pelo seu desejo, como nos mostra a "filosofia da ponta do nariz".
Em dois momentos, o comportamento de Brás Cubas e das outras personagens
ganha uma expressão genérica. Quincas Borba, o filósofo do humanitismo, justifica todos os
acontecimentos do mundo pelo princípio universal do humanitas, que sempre busca viver.
Assim, um cocheiro atropela uma velha senhora, pois tinha pressa para levar seu patrão para
comer. Não há crime, nem transgressão moral, pois humanitas precisa comer. A explicação
científica ganha a feição risível da pilhéria, em que o conhecimento arbitrário torna-se
autojustificativa. Ao final, o filósofo morre louco.
O outro momento relevante de ser destacado aqui é o delírio. Nele é apagada a
distinção entre sujeito e objeto, e tudo se confunde. A linguagem do sonho vem a substituir o
discurso racional, na tentativa de explicar a história. Essa ganha uma feição naturalizada, como
um movimento contínuo em que os homens, joguete das paixões, repetem sempre o mesmo
ciclo, em que a única constante, pontual, é a morte:
– Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? E,
se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
– Por que já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto
que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a
morte, e parece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo,
não tenho outra lei. Egoísmo e conservação. A onça mata o novilho por que o raciocínio
da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe
e olha. (Grifo meu)293
293 ASSIS, J. M. Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 1.). p. 523.
113
Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção
violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da
impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam
encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto glacial, havia um ar de juventude, mescla de
força e de viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres. 296
E dizem os cronistas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito dos
vereadores; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade,
verdade; nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século. 298
Neste ponto todos os cronistas estão de acordo: o ilustre alienista fez curas pasmosas, que excitaram
a mais viva admiração em Itaguaí.299
A autoridade não está fundada no próprio narrador, mas nos mediadores que teriam
presenciado e registrado a história do alienista. Como o manuscrito medieval da Igreja do Diabo,
como a carta do Enfermeiro, como o capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto, as crônicas
históricas seriam a fonte em que o narrador encontrou a anedota interessante de ser contada.
Como historiador, ele se debruça sobre os documentos e os seleciona como testemunhos
confiáveis a fim de organizá-los em uma narrativa que fixe a memória coletiva. Ele mostra os
pontos cegos quando o fato é duvidoso por não serem os cronistas unânimes ou quando existe
unanimidade das fontes. A verossimilhança do conto constrói-se na imitação paródica da
linguagem das crônicas históricas.
A narração assume desse modo um caráter ambíguo: sendo ficção, apresenta-se
como história. Apesar de acontecer em tempo remoto, os detalhes da construção do ambiente,
os tipos secundários, as cenas têm a precisão própria do discurso realista, em que a ficção
procura se confundir com a história pela adoção de uma linguagem referencial. Este é,
entretanto, um conto junto com outros, definido como tal não tanto por sua natureza intrínseca,
mas pelo próprio espaço em que se encontra como ficção. Assim, a construção narrativa imita
a forma de historiografia como jogo ficcional, em que os cronistas são artifício para simular
verdade.
O estatuto da ficção não se define em si mesmo, mas por um critério exterior. Não
se pode dizer que a narração seja ficcional, ou não, apenas por um critério imanente de
linguagem, porque, se assim fosse, poder-se-ia ficar em dúvida quanto à ficcionalidade de O
Alienista. O conto aponta para um possível arbítrio da historiografia, que, ao se constituir como
prosa, não foge da ficção. A história, que se constrói pela escrita prosaica, se apresenta a si
mesma como relato de fatos verdadeiros. Feita de modo objetivo, busca a adequação com a
realidade. A narrativa histórica funda-se, no entanto, em estratégias textuais arbitrárias no modo
de ordená-los e encará-los.
O agora do passado, como complexidade e heterogeneidade contraditória, não é
esgotado por uma versão que registra apenas parte dos acontecimentos. Na leitura de Benjamin,
o historicismo centra-se na narração dos feitos dos vencedores, deixando as ruínas e os despojos
para trás, como se a história se desse em um tempo homogêneo e vazio.300 Inversamente ao
esvaziamento da história, o caráter ficcional sai revitalizado, porque não é apenas invenção. Ele
é criação de uma realidade possível. Por esta virtualidade, ela revela algo que aconteceu ou está
298 Id. O Alienista. In: ________. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2). p. 263.
299 Op. cit. p. 281.
300 BENJAMIN, Walter. Teses sobre história. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, 1).
115
acontecendo mais próxima da verdade do que a história, como mostra Aristóteles301, porque não
mostra o fato em si, particular, mas o modo pelo qual ele se constitui, universalmente válido, e
mais próximo da filosofia. Há certos aspectos da realidade para os quais o sujeito olha e fica
petrificado pelo peso da concretude. A literatura, como espelho ou reflexo, tem a virtude de
retirar o peso para revelar a experiência humana, a partir do prazer sensível que dá a obra de
arte.
O discurso histórico é esvaziado em O Alienista no ato narrativo. O narrador parece
objetivo, porque se distancia dos fatos e os mostra em seqüência cronológica. Em alguns
momentos, no entanto, a narração revela-se como pessoal, marcando a presença do construtor.
Ao longo do conto, várias vezes o narrador refere os cronistas de Itaguaí, já que não teve acesso
direto aos acontecimentos (como não o tem o próprio historiador), mas a documentos da época.
Às vezes eles são unânimes, às vezes discordam sobre um fato ou outro, de modo que isto
aponta para uma necessária opção narrativa. Com uma versão, fusão de versões, o narrador
recria o acontecimento de segunda mão. A referência não se projeta diretamente sobre o real,
mas sobre a imagem construída pelos cronistas que "leram" o acontecimento.
Mesmo se tratando de uma pretensa narração histórica, o narrador não se abstém
de penetrar no mundo interior das personagens para advinhar o pensamento e revelá-lo ao leitor.
Ao dizer "assim pensou Simão", há a intenção de construir uma personagem mais densa e
humana. Em outros momentos, a indicação precisa dos minutos de indecisão de Simão e a
descrição do brilho dos olhos da personagem excedem as possibilidades do testemunho. Tal
modo de narrar torna pessoal o relato, mostrando o arbítrio de quem vai além do conhecido
para recriar o acontecimento, entrando na ficção.
A relação entre cronistas e narrador aponta para o problema da leitura. Os primeiros
leitores foram os cronistas que leram de formas diversas a vida do alienista de Itaguaí. Depois o
narrador lê e relata, reorganizando as crônicas, construindo a história como discurso coerente e
uno. Por fim, há o leitor do conto. O processo mostra o encadeamento de leituras superpostas,
sem que garanta a quem lê uma certeza de ter acesso ao que verdadeiramente aconteceu, já que
temos um filtro posto sobre outro filtro. Se forem considerados os momentos em que os
cronistas não são unânimes, então há mais versões possíveis dos mesmos acontecimentos
latentes no relato. Simão, por exemplo, seria de fato o único alienado? Ou essa seria apenas
uma versão falsa?
Existe uma forte solidariedade entre o narrador, o tema e a personagem do conto,
que se iluminam mutuamente. Simão Bacamarte procura delimitar com exatidão o território da
loucura e o da sanidade. Uma teoria e depois outra se esvaziam a ponto de ele não saber (muito
menos o leitor) qual é a região da loucura, se ela é uma ilha ou um continente. O resultado é o
auto-encarceramento de Simão, seu isolamento, fechado em sua própria teoria; e na solidão ele
morre sem resolvê-la. A impossibilidade de definir exatamente as áreas da loucura e da razão
representa, em última instância, a indefinição entre uma narração objetiva e subjetiva, entre
história e ficção, entre ciência, com suas leis, e arbitrariedade, constante desvio. Ao dar voz ao
boato de que talvez Simão tivesse sido o único louco, se mostra de modo explícito a
arbitrariedade de sua "ciência", como construção louca e exagerada a partir de seu próprio
desejo.
Todos viviam "normalmente" na medida em que não pensavam sobre isto. Ao se
confrontarem com a possibilidade da loucura é que sua anormalidade vem à tona. A "normali-
dade" da vida social ou sua "demência" ficam no final embaçados. Afinal, se a primeira teoria
estivesse certa, todos os homens seriam loucos e somente Simão são; se fosse a outra, só ele
seria louco, mas se ele fosse louco, então não poderíamos usar o critério de um louco para dizer
301 ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. 2. ed. São Paulo: Ars Poetica, 1993. p. 29.
116
304 Cf. BOTELLA, Juan Zaragoza. Introdução. In: LUCIANO. Diálogo de los dioses. Madrid, Alianza , 1987.
305 Op. cit. p 68.
306 Cf. op. cit.
307 Cf. FERNANDES, Anibal. Prefácio. In: lUCIANO. O parasita ou o papa jantares. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagens, s/d. Também conferir
ROMANO, Roberto. O silêncio e o ruído: a sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1997. Ambos, para tratar de Luciano, citam Renan, da obra
118
Nos Diálogos dos Mortos, Luciano zomba dos filósofos, como Pitágoras, Sócrates,
Platão e Aristóteles, mostrando, por exemplo, a covardia do segundo quando se deparou de fato
com o abismo e com a escuridão308 ou a esperteza do último309. Desfaz as imagens pretensamente
duplas, imortal e mortal, de homens como Herácles, Alexandre, Cástor e Pólux. Revela o
engodo dos adivinhos como Tirésias. Desmascara as amizades de parasitas por homens velhos,
revelando o fim único de caçar-lhes a herança. No conjunto, as únicas figuras construídas de
modo positivo são as de Menipo e de Diógenes que se suicidaram e foram capazes de descer ao
mundo dos mortos, rindo dos gemidos dos outros, aceitando as condições em que caíam,
porque nunca se apegaram a nada no mundo dos vivos.
O ponto de vista distanciado, no caso a perspectiva da morte, as citações truncadas
que retiram a autoridade do original, os temas ambíguos ou paradoxais que misturam o riso e o
choro ou a loucura e a razão são alguns traços da sátira menipéia, apontados por Sá Rego,
retomados ao longo da tradição luciânica. 310 No caso dos diálogos dos mortos, o ponto de vista
da morte revela a face oculta de acontecimentos humanos. Seu interesse não é o de afirmar o
mundo transcendente das idéias, mas o de mostrar que, além da condição humana, não existe
nada. A morte iguala a todos, revelando a precariedade do poder de Alexandre ou de Felipe, o
vazio da filosofia platônica, o charlatanismo dos adivinhos, a nulidade da riqueza.
Em O Parasita, seu procedimento é um pouco diferente. Ele parodia o diálogo
platônico em que a posição de autoridade e de mestre é ocupada pelo parasita, que, através de
habilidosa argumentação, persuade o outro de que a profissão de parasita é uma arte necessária
e de difícil execução: "arte de comer, beber e dizer o necessário para obter esses dois privilégios;
o seu objetivo é o agradável"311. Convencido por argumentos de rigor teórico, o interlocutor
deixa sua posição inicial, crítico do ócio e da imoralidade do parasitismo, para se tornar um
adepto do parasita. Ao longo do diálogo, são usados trechos de Platão e de Homero, que
representavam modelos da paidéia grega. Na argumentação do parasita, eles marcam como sua
posição está sustentada na tradição. A citação truncada, no entanto, funciona ironicamente
revelando a condição venal do parasita, do pseudoconhecimento. Além disto, a citação corrói
também o valor de verdade da tradição, na medida em que é usada para justificar um padrão
imoral perante um ouvinte crédulo. Além disto, o padrão dos pedagogos, filósofos, intérpretes
é ironizado, pois os métodos da exegese e comprovação de uma verdade, em que se revela o
sentido universal da ciência, mostram-se arbitrários.
Dando um salto sobre a tradição luciânica, que passa por Erasmo, Swift, Sterne,
Voltaire, já apresentada por Sá Rego312, encontra-se o mesmo tema do parasita em O Sobrinho de
Rameau313, de Denis Diderot. A aproximação feita com Diderot é motivada pela referência que
Machado faz nas advertências de Papéis Avulsos ("É que quando se faz um conto, o espírito fica
alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida se acaba, sem a gente dar por isso")314 e de Várias
Histórias ("Mon ami, faisons toujours des contes.../ Le temps se passe, et le conte de la vie/
Marco Aurélio ou o fim do mundo antigo: "Luciano aparece-nos como um sábio perdido num mundo de loucos. Não odeia coisa nenhuma: ri de tudo, excepto da
virtude séria".
308 LUCIANO. Diálogo dos mortos. Trad., int. e notas de Henrique Muracho. São Paulo: Palas Athena/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1996. p. 63.
309 Op. cit. p. 117.
310 SÁ REGO, Enylton. O calundu e a sátira menipéia: Machado de Assis, a satira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense, 1989. (Imagens do
Tempo)
311 LUCIANO. O parasita ou o papa jantares. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagens, s./d. p. 137.
312 Cf. Sá Rego, Enylton. O calundu e a sátira menipéia: Machado de Assis, a satira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense, 1989. (Imagens do
Tempo)
313 Voltaire e Diderot. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os pensadores).
314 ASSIS, J. Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 2)
119
s'achève, sans qu'on s'en aperçoive. DIDEROT.")315. A citação do mesmo trecho de Diderot
em dois momentos distintos da produção contística machadiana reforça o vínculo de Machado
com a sátira menipéia. É importante destacar ainda que semelhante citação é epígrafe do livro
de contos de Diderot e é referida em Jaques, o fatalista.
Segundo Roberto Romano316, a sátira diderotiana vem como uma contrapartida de
sua atitude filosófica. Ele acreditava no valor da verdade matemática, por sua maior capacidade
de precisão como se dá na geometria, mas defendia que esta não seria um fato dado e sim um
objeto de busca. Liga, assim, por inversão de posições, Diderot a Platão, pois não haveria um
céu de Idéias prévio, mas uma unidade a ser buscada:
Beleza, simetria, ordem, todas estas são apenas palavras desprovidas de substância. A ordem não
reside nas coisas, mas em nós. Se existe beleza, ela é nosso produto: 'o céu das Idéias está no homem'.
Diderot, a partir desta crise de 1749, continua fiel aos ensinamentos platônicos, ou neoplatônicos,
mas inverte sua perspectiva.317
Rameau, seu interlocutor, ao apresentar-se como um parasita, diz que faz tudo para
conseguir uma mesa para comer e uma bolsa de ouro para sustentá-lo. Sua sagacidade desvenda
aos olhos do outro o mundo miserável e baixo, existente por trás dos conceitos ou das virtudes
afetadas. A força da revelação faz com que o riso e a cólera misturem-se, e de modo
despretensioso e jocoso a ordem do mundo vai se desfazendo.
Rameau se apresenta como professor de música, sem nada saber, apenas
apregoando que tinha "mais para dar do que há horas no dia" ou usando estratagemas simples
para enganar os alunos e seus pais. Não teme confessar que, no início de seu magistério, roubava
os alunos. Mostra ainda, na linhagem luciânica, a necessidade de sua posição de parasita, pois o
mundo nas mãos dos filósofos ficaria uma "terrível chatice" e a vida é "beber bons vinhos,
saborear petiscos delicados, rolar sobre belas mulheres, repousar em camas macias; o resto é
vaidade." Seu interlocutor, o filósofo, fica chocado com o descaso aos valores universais e a
315 ASSIS, J. M. Machado de. Várias Histórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 2.).
316 ROMANO, Roberto. O silêncio e o ruído: a sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1997.
317 Op. cit. p. 27.
318 Voltaire e Diderot. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os Pensadores). p264.
319 Op. cit. p. 271.
120
320 Cf. ROMANO, Roberto. O silêncio e o ruído: a sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1997.
121
apenas com seu arbítrio ao contar o que lhe interessa. Se Jacques chega a uma cidade para buscar
a bolsa de seu amo, mas não havia sido mostrado nenhum fato relativo nem ao esquecimento
da bolsa nem à cidade, ele simplesmente diz que esqueceu. Isto deixa claro que o narrador não
respeita nenhuma regra. Ele mesmo não tem certeza do modo como deve contar a história,
justificando-se constantemente junto ao leitor com as razões de contar de um modo ou de outro
a sua história.
Todas as histórias contadas por Jaques não são consideradas ficção dentro do
horizonte interno da narração. Elas são relatos de experiências suas ou de seus conhecidos, não
procuram ensinar nada, mas representam uma absoluta necessidade pessoal de falar. Algumas
das histórias, inclusive, estão em andamento, estando ainda por terminar. Dentro disto, o tempo
narrativo é o presente. O narrador faz uma mímese radical, ao recriar o fluxo do tempo atual,
mostrando-o em sua diversidade e inacabamento. O relato arbitrário revela, do mesmo modo
que O Sobrinho de Rameau, a ausência de sentido nos fatos reais, ou a desordem que existe por
baixo da aparente harmonia. De certo modo, Diderot recusa-se a construir uma prosa ordenada
e una que sirva de organização das ações em prosa, levando os movimentos casuais de seus
protagonistas às últimas conseqüências.
Machado de Assis não se identifica completamente com Diderot. Em seus contos,
os diálogos têm unidade temática, resgatando a unidade de ação e de efeito de Edgar Allan Poe.
Além disto, as circunstâncias de espaço e de tempo não são simplesmente pano de fundo vagos,
desligados do relato ou do diálogo, como acontece em Diderot. Para o filósofo, o discurso da
sátira ganhava autonomia e ligava-se de modo esporádico às condições históricas e imediatas
dos interlocutores. Mesmo as citações a personagens contemporâneos não dão consistência
realista à prosa diderotiana, pois esse não era seu interesse. O aspecto principal de Diderot está
na encenação de confrontos de idéias, em que ele desfaz a possibilidade de se construir um
identidade una ou um conceito puro. Se for tomado O Sobrinho de Rameau, o encontro fortuito
gera o diálogo, em que os interlocutores estão estáticos. Não há um tema ou fio condutor, mas
um princípio associativo da conversa, em um movimento que salta de uma idéia à outra. Em
Jacques, o Fatalista, o movimento das histórias e das personagens é completamente
indeterminado. Já em Machado de Assis, a precisão de sua prosa e a adequação do discurso ao
contexto histórico dão um caráter de verossimilhança realista aos seus contos. A forma de
representar está apegada à unidade, em que o impulso mimético advém do objeto representado,
referencialmente indicado. A representação do objeto é essencialmente unitária e concisa.
O vínculo estabelecido entre Machado de Assis e Diderot não está apenas na defesa
do conto, mas na própria forma como Machado lida com esse gênero. Retomo o romance
Jacques, o Fatalista, escrito como uma série de contos nele embutidos. Assim, em Machado e em
Diderot, o uso da forma discursiva é feito de modo livre, sem que haja uma regra exterior que
defina como deverá ser o romance ou o conto. O núcleo da narrativa é deslocado da peripécia,
do fato em si, para o modo de representar. A dúvida do narrador torna-se o centro movediço
da narração. No caso, da multiplicidade de contos machadianos, deve-se considerar a
diversidade de narradores, como se Machado de Assis procurasse construir um tipo de discurso
coerente a cada caráter ou tipo social distinto que assuma o lugar do narrador.
Machado defende o gênero conto como forma de passar o tempo. Deve-se ressaltar
que tanto em francês quanto em português o termo "conto" é usado em dois sentidos. Primeiro,
como um tipo de discurso narrativo breve, ligado à anedota ou ao causo; segundo, em "conto
da vida", como logro, ou engano. A partir da concepção de tempo, como um fluxo ininterrupto
que apenas deixa ruínas atrás de si, revelando a precariedade do homem, sua finitude e
fragilidade, o caráter melancólico da existência poderia levar o sujeito ao desespero ou à angústia.
O passatempo é um brincadeira, um jogo ou uma diversão que envolve o sujeito, fazendo com
que não perceba o caráter destruidor do movimento temporal. Dentro da tradição da sátira
122
menipéia, o riso permite ao sujeito agüentar a realidade embrutecida e vencer a angústia do sem
sentido da existência finita.
Antes de retomar o conto machadiano, cade insistir na presença da tradição satírica
na obra de Machado de Assis. Nessa relação com a tradição, ao citar a sátira menipéia, Machado
une de modo paradoxal elementos da mímese realista com os procedimentos próprios da
tradição. Enylton Sá Rego321, segundo as pistas dadas por José Guilherme Merquior, estuda a
sátira menipéia em Machado de Assis, verificando a contribuição da tradição na construção da
prosa romanesca do autor. Destaca a presença de um narrador distanciado, o interesse pelos
estados- limite da consciência, a mistura de gêneros, o uso da paródia, e a citação de os outros
textos. Desse modo, Sá Rego constrói uma explicação do texto machadiano a partir da
atribuição de uma identidade satírica, cujos traços lhe seriam constitutivos, filiando Machado de
Assis a uma tradição literária. O estudo abre um novo viés para a crítica machadiana, mas se
limita ao levantamento de uma fonte. Isso leva a uma análise, principalmente em obras como
Dom Casmurro e Quincas Borba, em que se forçam as características da sátira menipéia a se
tornarem dominantes.
Apesar dessa limitação, esse estudo, além de interessante, demonstra um caminho
possível de análise da obra de Machado de Assis. Aqui, no entanto, além do levantamento de
um diálogo do autor com a tradição cultural (literária, filosófica, religiosa), marcado no estudo
da alegoria, quer-se encontrar a funcionalidade que ela adquire no contexto da obra. A obra de
Machado de Assis atualiza a tradição, que, seguindo a forma da citação, retira o elemento de seu
contexto original, dando-lhe uma nova função dentro de sua obra. Assim, apesar de se utilizar
da forma expressiva do diálogo, ele não se identifica à tradição, mas a elabora de modo original.
Graças a uma atitude irônica, o narrador põe lado a lado a mímese realista e elementos satíricos,
fantásticos ou alegóricos. O dado inverossímil, o elemento estranho encaminha uma
interpretação alegórica, chamando a atenção sobre os detalhes, as discrepâncias, as
idiossincrasias, para afirmar a impossibilidade de um sentido definitivo dado pela construção
totalitária. A posição irônica do narrador põe em suspeita a necessidade de tal construção
totalizante.
Cabe lembrar nesse momento a leitura de Dostoiévski, empreendida por Bakhtin322.
O crítico levanta características da tradicão menipéia que serviram de fonte indireta não apenas
para a prosa russa mas para toda a formação do romance, pois absorve os mais variados gêneros
dentro de si para compor uma prosa em que se mistura sublime e cômico, enraizada na
atualidade. O aspecto central é a inovação, ou o uso peculiar da tradição. Dostoiévski não se
prende a um modelo, mas acrescenta a polifonia e o dialogismo inexistentes nos autores da sátira
menipéia. Aproveita, por exemplo, a apresentação de casos extremos a fim de colocar suas
personagens, ideólogos, em confronto; quer dizer, tem-se um diálogo em que as idéias são
contrapostas em situações-limite.
Machado de Assis explicita algumas de suas fontes, citando-as não como
demostração pedante de erudição, mas como parte de uma nova construção. Autores clássicos,
historiadores, moralistas, cientistas, filófosos, contemporâneos são levados para dentro dos
contos e romances. Assim como Dostoiévski, não se trata, no entanto, de reprodução fiel do
texto original, nem de respeito sacralizador da fonte. Ao arrancar um elemento do contexto
orgânico original, Machado submete uma forma, uma frase ou um tipo a um novo conjunto que
violenta o sentido primeiro para construir outro. Vejamos o exemplo abaixo:
321 SÁ REGO, Enylton J. de. O calundu e a panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
(Imagens do Tempo)
322 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
123
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, um
vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não: mas por que não
acrescentou ele, que muitas vezes uma só hora é a representação de um vida inteira? 323
No conto em questão, O empréstimo, Custódio pede para o tabelião Vaz Nunes uma
quantia emprestada (cinco contos de réis) e, baixando pouco a pouco o pedido, leva apenas 5
mil réis para o jantar. Avesso ao trabalho, apegado à aventura, Custódio é uma mistura de-
"ímpeto de águia" e de "frango rasteiro". Essa cena, associada ao comentário do narrador, revela
seu caráter emblemático, em que o momento transcende os limites do acontecimento singular
e se torna representação de um conflito não superado. A personagem tem vocação para a
riqueza, mas não tem a correspondente força para o trabalho. Trata-se de um misto de indivíduo
singular, Custódio, situado dentro de uma circunstância histórica, e de emblema (misto de águia
e de frango rasteiro; de general e de pedinte). Essa dualidade provém da personagem
representada, incapaz de superar seu conflito, presa à necessidade cotidiana, conseguindo apenas
o dinheiro para a janta.
A frase de Sêneca introduz a cena emblemática que sintetiza uma vida inteira: em
vez de um dia, uma hora. Em vez das 300 páginas de Balzac324, apenas algumas servem para
resumir a existência de Custódio, seu caiporismo. Explicitamente o narrador volta-se para a
tradição para corrigir os autores citados. Interessa reter dessa relação com a tradição o viés
irônico que não se mantém fiel ao contexto original, pois, ao citar o clássico, não o exalta, mas
o corrige. Aparentemente o modelo existente é reproduzido – Bíblia, crônica histórica ou de
viagem, moralistas franceses do século XVII, diálogo luciânico, conto filosófico, realismo
balzaquiano, manuscritos medievais –, mas, por uma combinação dos elementos antigos com
os atuais, Machado inova. Não se trata da busca da originalidade romântica, pois a criação não
se enraíza apenas no sujeito livre, mas deixa clara suas dívidas com outros autores.
Volta-se, então, ao conto machadiano como ele é composto dentro da obra de
Machado de Assis, tomando como primeiro exemplo Teoria do Medalhão: diálogo325. Ele retoma a
tradição de O Parasita, de Luciano, e o Sobrinho de Rameau, de Diderot, em que se defende como
ideal de vida um tipo semelhante ao parasita, o medalhão. Já o termo "teoria" do título traz a
idéia de que se tem a pretensão de universalidade. No caso, trata-se do diálogo entre o pai e um
filho que completa vinte e um anos. Como presente de aniversário, o pai, com a autoridade da
experiência, revela ao filho o ideal de vida a ser buscado, mostrando as difíceis provas pelas
quais se deve passar para alcançar a terra prometida. O filho, discípulo inexperiente, é "dotado
com a perfeita inópia mental". Assim, é descrito o regime debilitante que leva o indivíduo a não
pensar, regime que mantém apenas a gravidade do corpo, sem ter idéias próprias ou originais.
A linguagem deveria ser, então, a de pensar o pensado, através de frases feitas, tendo o cuidado
de apreender de oitiva das teorias correntes apenas as denominações sem intenção de aplicá-las.
O medalhão deve promover o próprio nome, realizando atividades que chamem a atenção sobre
si e mandando noticiá-las pelo jornal. Por fim, deve-se rir com boa e gorducha chalaça, mas
sem cair no vício da ironia ("esse movimento de canto de boca, cheio de mistérios, inventado
por algum grego de decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição
própria de céticos e desabusados"326). Seguindo todos os preceitos, o filho alcançaria aos 45 anos
o estatuto de medalhão.
A forma do diálogo parece ser nesse caso a mais adequada para o ensinamento do
323 ASSIS, J. M. Machado de. O empréstimo. In: _______. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras Completas, 2). p. 334.
324 Op. cit. p. 334.
325 Id. Teoria do medalhão: diálogo. In: op. cit. p. 288.
326 Op. cit. p. 294.
124
jovem que entra no mundo adulto. Nesse caso, a força do conto está no contraste entre o tom
de seriedade do pai e o caráter irônico do conto. A segurança das máximas, a precisão das datas
e etapas de evolução, as idades e os percentuais, bem como as provas, passos e exercícios
constroem um rigor teórico-científico para a teoria do medalhão, que é corroída no seu todo,
na medida em que se forma não um sujeito, mas apenas um homem-máscara, sem consciência
de si, sem atuação social consistente. O conto traz, então, a negação do sujeito autônomo e livre,
em que o ideal é viver na pura aparência, perder-se no mundo indeterminado da opinião em que
o o homem não existe por si, mas apenas pela voz do outro.
A relação entre a Teoria do Medalhão e o Sobrinho de Rameau está no aproveitamento
peculiar que Machado faz da tradição. Ele não reproduz um modelo, mas o reconstrói de acordo
com a necessidade estética de criação de seu conto. No caso, não há diálogo, pois não há choque
ou colocação de valores distintos. Há, isso sim, a afirmação de um padrão, do pai que se impõe
e projeta seu próprio ideal sobre o filho. A ironia fica marcada pela inexistência de um sujeito,
pois o conto pressupõe um homem-máscara (sem conteúdo interior). Mais do que isso,
podemos estender a imagem do diálogo não realizado para verificar a cisão entre o sujeito e
objeto, bem como a relação ambígua de Machado com a tradição literária, de reverência e
corrosão.
Pode-se retomar, nesse momento, O Segredo de Bonzo: capítulo inédito de Fernão Mendes
Pinto, em que Machado de Assis segue um procedimento característico da sátira menipéia, a
tradição literária fornecendo o modelo para a composição de um conto paródico. Não se trata
de simples cópia. Nas notas finais de Papéis Avulsos, ele afirma que, "para tornar a narração
sincera"327, atribui o conto ao viajante escritor, intercalando sua ficção entre os capítulos CCIII
e CCIV da Peregrinações. O autor aproveita para indicar o sentido de uma personagem ao explicar
que Pomada, nome dado ao bonzo, quer dizer charlatão, charlatanismo.
Poder-se-ia dizer que existe uma sátira às discussões filosóficas, em que a teoria da
pedra da lua, defendida pelo velho bonzo, Pomada, explicaria a dualidade da existência humana:
a teoria de duas realidades paralelas, uma objetiva e outra da opinião. Importaria a opinião,
porque, se uma coisa não é considerada pelo homem, não existe enquanto objeto do
pensamento. A empiria seria neutra, sem sentido, enquanto não fosse absorvida pela opinião:
Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente
crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o caso, e entendi
que, se uma cousa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir
na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a
da realidade, que é apenas conveniente. 328
sandálias), pelo narrador (em um concerto musical), somente se comprova como a invenção de
Diogo Meireles. Esse inventa algo que não tem substrato real (o nariz metafísico), para substituir
um objeto existente (nariz doente); o resultado é tão eficiente que os habitantes de bungo
continuam a usar lenço de nariz. Somente Diogo, comerciante que se apresenta como médico,
alcança a aplicação correta da teoria, porque ele inventa um "nariz metafísico", em que ele
mesmo não acredita. Quer dizer, sua invenção existe apenas no reino da opinião, sem existir no
real.
Na Teoria do Medalhão, o ideal é construir a pessoa apenas pela fachada, em seu
aspecto externo, em que se cunha a imagem em um dos lados, mas no outro não há nada. Assim,
o "nariz metafísico" e o "medalhão" são construções existentes apenas como opinião, frutos da
cisão entre o sujeito e a realidade objetiva, em que o universo imaginário passa a existir fechado
em si mesmo.
Em O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana329, a mesma dualidade, marcada
por duas existências, está na definição do "homem, que é, metafisicamente falando, uma
laranja"330, pois está composto de duas almas: "uma que olha de dentro para fora, outra que olha
de fora para dentro..."331. Nesse conto, Jacobina nunca participa do diálogo entre os amigos,
calando-se, cochilando, ou, quando instado a participar, sempre concordando com seu
interlocutor. Na relação com seus colegas, não se estabelece troca com o outro, havendo
ausência de diálogo, como acontecia em A Teoria do Medalhão, em que, na relação desigual, o pai
se impõe sobre o filho. No caso de Jacobina, ele somente conta sua história sob a condição de
não ser interrompido e, quando acaba, retira-se sem dar oportunidade para comentários. De
certo modo, seu tema é a experiência dramática de alguém que sentiu a cisão entre aparência
social e subjetividade.
Deve-se considerar em primeiro lugar o Jacobina narrador: "entre quarenta e
cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece,
astuto e cáustico."332 Esse homem defende a teoria de que cada criatura humana tem duas almas
comprovando-a pela narração de uma experiência marcante, vivida quando, aos vinte e cinco
anos, pobre, fora nomeado alferes. Em Jacobina, há, portanto, o hiato entre a condição presente
de narrador e o seu passado enquanto protagonista. Não há identificação entre os dois
momentos, pois as duas imagens são distintas; o menino crédulo não corresponde ao adulto
cáustico. Deslumbrado com o título recém adquirido, o jovem alferes vive apenas da imagem
que lhe refletem os outros. Na casa de tia Marcolina, esta chega a lhe dar um espelho para ver-
se em sua bela farda.
Ao ficar sozinho, sem a tia, sem o cunhado desta, sem os escravos, todos eles
fugidos, Jacobina torna-se "um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico"333, pois
perde metade de sua existência, sua alma exterior. Apenas nos sonhos recupera um pouco da
vida, pois veste a farda de alferes no meio da família e de amigos que elogiam seu garbo. Essa
imagem mostra como, ao perder o mundo exterior, a única forma de resolver seu problema é o
sonho. A seguir, o narrador explica que, mesmo contrariando as leis da física, ele não se vê no
espelho, mas apenas enxerga uma figura vaga e difusa. A solução de Jacobina é a de pôr sua
farda de alferes para voltar a se sentir vivo, vendo-se por inteiro no espelho.
O espelho torna-se alegoria da nova teoria da alma humana, pois o sujeito passa a
ser aquilo que a opinião reflete. No caso de Jacobina, ele internaliza o princípio social de que
329 Id. O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana. In: op. cit. p. 345.
330 Op. cit. p. 346.
331 Op. cit. p.. 346.
332 Op. cit. p. 345.
333 Op. cit. p. 349.
126
importa apenas a alma externa, a farda e o título de alferes. Repare-se que ele toma consciência
dessa cisão apenas na solidão, o que funcionaria como o ritual de entrada no mundo adulto do
qual fala o pai da "teoria do medalhão". Nesse momento, o sonho (universo interior) e a imagem
do espelho (opinião social) identificam-se como os dois momentos em que Jacobina põe a farda
e se sente vivo. A similaridade leva a perceber a arbitrariedade da alma externa, de caráter
fantasioso e onírico, apenas uma máscara. Assim como não há um diálogo entre Jacobina e os
outros quatro homens, também não há uma relação de troca ou correspondência entre a alma
exterior e o mundo interior, a não ser pela anulação desse.
Nos três casos, do espelho, do nariz metafísico e do medalhão, as imagens servem
como emblemas que enfeixam os conceitos de uma tese: a de que o homem se constrói pelos
olhos dos outros (espelho); a de que a existência da opinião é a única que importa (nariz
metafísico); e a de que o homem deve existir apenas no mundo da opinião instituída (medalhão).
Nos três casos, as imagens funcionam como cristalização de uma situação social e cultural que
se congela como se fora lei natural. O movimento irônico desce do conto-teoria para a ação
narrada ou para o diálogo, em que o particular perde-se, deixa de existir quando mergulhado na
tese geral. A imagem serve, então, para figurar uma tese, determinação do indivíduo pela
instituição social, que, em sua pretensão universal, perde o caráter histórico de momento
dialético a ser superado. Torna-se o congelamento do indivíduo em um estado que não é
superado. O tom irônico e paródico serve para reforçar a auto-absorção do indivíduo, que perde
a condição de sujeito.
As três imagens, assim como outras, cristalizam a cisão do sujeito em matéria e
espírito, ou em corpo e alma, ou interior e exterior, em que apenas um dos lados importa existir.
A conciliação do sujeito consigo e com o outro não existe a não ser como quimera de
espontaneidade ou de imediaticidade impossíveis. No caso do espelho, a crença na autenticidade
da imagem de alferes, refletida nos olhos dos outros, levou a personagem ao engano. O narrador
astuto e cáustico, Jacobina, é resultado do aprendizagem da dissociação entre os dois momentos,
o subjetivo e o social, sendo que o segundo impõe-se sobre o primeiro. Imagem exterior,
arbitrária, ela existe per si, como máscara adulta.
Em O Anel de Polícrates, os dois interlocutores são definidos como A e Z, os dois
extremos do alfabeto. As personagens têm uma nomeação tipificadora, que poderia ser
preenchida por qualquer pessoa em particular. Além disto, os dois extremos são a origem e o
fim do alfabeto, das letras com que se podem escrever palavras e frases. Assim como não é
possível escrever nenhuma palavra com letras isoladas, também não se escreve um diálogo sem
um dos interlocutores. Ao unir a primeira à última letra, ter-se-ia o fechamento do ciclo, em que
os extremos se aproximam.
Neste caso de O Anel de Polícrates, a atuação das personagens está centrada no
próprio diálogo, em que o ambiente interfere como limitador da história contada. No final, por
exemplo, "A" é obrigado a apressar-se, porque "Z" tem um negócio, tendo o relato sobre Xavier
de ser abreviado para caber dentro de quinze minutos.
A - Lá vai o Xavier.
Z - Conhece o Xavier?
A - Há que anos! Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo...
Z - Que rico? Que pródigo?
A - Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. (...)
Z - Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier
que ali vai nunca teve mais de duzentos mil-réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se
com as galinhas, acorda com os galos, e não escreve cartas as namoradas, porque não as tem. (...)
127
A - Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de Marta, eu falo-
lhe de Maria; falo do Xavier especulativo... 334
No trecho inicial, em primeiro lugar, a questão do nome volta como mote inicial.
Xavier é o nome em discussão, mas há uma discordância em relação a pessoa a que ele se refere,
porque "A" diz que é um nababo, mas "Z" diz que é um sóbrio. Na discussão, o nome Xavier
torna-se arbitrário porque se vincula a duas personalidades distintas. E é justamente neste ponto
que está posto o conflito central do conto. Quem é o Xavier? Quer dizer, um conhecimento
assentado, comum de uma pessoa pelos interlocutores, é posto em questão, não se sabendo
mais quem é a personagem a que se referem. A partir desse conflito, "A" revela para "Z" que
conhece o Xavier há mais tempo, desde o homem pródigo até a transformação em um sujeito
sóbrio.
Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis, e até contrárias, um livro,
um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político,
uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra à lua, em certo balão que inventara, uma
candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos. 335
"Z" fica muito surpreso sobre como poderia ter havido uma tão radical
transformação, e "A" explica que o Espírito e a imaginação têm limites, e, com a dispersão e o
uso ao acaso, sem regime, Xavier acabou por perdê-los. Desse Xavier transformado já em sóbrio
vem, então, sua última idéia:
Então o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum; não quis cair
diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E daí veio uma idéia: comparou a vida a
um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: Quem não for cavaleiro, que o
pareça.336
Esta idéia é lançada por Xavier para outras pessoas, para depois voltar a ele, seu
dono. A idéia parte, através de um primeiro amigo que encontra na rua, sai a aparecer em festas,
em conversas com amigos, no jornal, numa peça de teatro, mas nunca lhe volta para a cabeça.
Até o dia em que ele se encontra com o amigo, para quem dissera a idéia, moribundo. Antes de
morrer o amigo repete a frase e outros a pegam.
"A" despede-se de "Z", encerrando a conversa e o percurso de sua revelação. Existe
uma correspondência entre a idéia tida por Xavier e a própria narração que "A" faz dele. Xavier
parece – sóbrio, regrado – dominar a vida, o cavalo xucro, pelo menos para que os outros o
vejam, porque sua força não viria de seu interior. Esta aparência tranqüila é destruída pela
história narrada por "A", pela sua natureza pródiga e desregrada, que tinha antes de perder tudo,
chegar ao seu limite. Resta-lhe no final apenas a aparência de cavaleiro, sem força interior.
Polícrates testa a Fortuna e recebe seu anel, jogado ao mar, de volta; Xavier testa
seu caiporismo, lançando sua última idéia à opinião, mas ela não volta nunca. Xavier, cujo nome
significa sem graça, acanhado, desenxabido, encarna o conflito recorrente de alguém que
constrói um mundo imaginário rico e exuberante, mas que é incapaz de realizá-lo . O diálogo
serve nesse caso para mostrar as duas imagens extremas, que A e Z tem de Xavier, cujo caráter
inconciliável prefigura o triste final. O curioso está na contrapartida, nos homens que tomam
como sua a idéia de Xavier; pois torna-se um dito comum, que impregna inclusive a fala
derradeira do amigo no leito de morte. A perda da autoria, a impossibilidade de se fechar o ciclo
de Polícrates, faz com que a aparente criação individual e espontânea, de comentários políticos,
de peça de teatro e despedida seja apenas máscara da repetição do mesmo, do clichê.
A imagem do anel de Polícrates – cuja fonte (Heródoto) perde-se no conto, em que
"A" cita Xavier, que cita Plínio, que cita... – traz a marca da corrosão da citação em que a idéia
perde seu autor original para ganhar autonomia e ser empregada em novos contextos à revelia
da vontade do autor. Há um movimento circular do anel de Polícrates, que, jogado ao mar, é
comido por um peixe, sendo pescado, indo para cozinha do rei, voltando assim para sua posse.
A imagem do círculo, com figuração da completude, da integridade de um ciclo que se completa,
fica confirmada no benefício da Fortuna que agracia o rei com suas benesses. Em contrapartida,
Machado constrói uma linha temporal em que a idéia de Xavier segue sem jamais retornar ao
ponto original, como se dá inclusive com a citação da história de Polícrates.
A contradição entre a ambição do artista que deseja compor uma sinfonia ou quer
se igualar aos seus modelos clássicos e a ausência de vocação é um tema que reencena o conflito
de Xavier. Ela aparece em Cantiga de Esponsais. Mestre Romão é o maestro da igreja do Carmo
em 1813 que, quando rege a orquestra, transfigura-se, torna-se outro, deixando de ser a pessoa
triste que é. Sua melancolia vem da ambição de criar, escrever músicas, sem nunca realizá-la.
Ainda perto da morte, busca alcançar seu desejo. Não consegue. Aí acontece o contraste irônico,
pois Mestre Romão olha pela janela e vê uma moça, recém casada, inventar espontaneamente a
música que ele sempre buscara.
Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação,
as que têm língua e as que não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta
constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os
homens. Romão era destas. (...) Esta era a causa da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo
não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo;
mas a verdade é esta: – a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir
o meio de traduzir o que sentia.337
337 Id. Cantiga dos esponsais. In: Histórias sem data. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2.). p. 387.
338 Id. Um homem célebre. In: _________. Várias Histórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2.). p. 502.
339 Op. cit. p. 499.
340 Op. cit. p. 503.
341 Op. cit. p. 504.
129
inserção histórica do mesmo conflito, do mesmo núcleo temático, implica diferenças qualitativas
de sua realização. Cantiga de Esponsais, 1813, mostra o maestro atuando na igreja do Carmo,
espetáculo público, ao qual as pessoas eram atraídas pela simples menção do nome de Mestre
Romão. Quem o alimentava, e provavelmente pagava, eram os padres. Para lembrar, estamos
no tempo do Príncipe regente Dom João VI no Brasil. Um Homem Célebre, 1875-1885, traz um
compositor de quadrilhas (música de origem francesa na moda). Ele vive de dar lições de música
e da publicação de suas composições. O editor lhe paga e serve de intermediário entre sua obra
e o público, que torna seu nome conhecido, mesmo que várias vezes ele não seja reconhecido
ao caminhar pela rua. Os locais de execução de sua música são os teatros, os saraus e festas
populares e laicas em que as pessoas vão dançar. Peçanha, no dia em que morre sua mulher, ao
ouvir uma composição sua tocada em uma festa, imagina alguns gestos lúbricos (lascivos e
sensuais). Mostra a euforia suscitada por sua música de ritmo fácil de memorizar e de embalo
próprio para dança, contrastada com sua melancolia. Além disso, o caráter comercial fica muito
claro na escolha do título da quadrilha, arbitrário, sem relação necessária com a composição
criada, mas voltado para o gosto do público.
Essa inserção histórica, própria da prosa realista, mostra não apenas o conflito
pessoal de Romão ou de Pestana, tornando-os expressão do mesmo conflito universal entre
vocação e ambição. A experiência de cada personagem ganha uma expressão mediada pela
condição histórica de cada um, em que o primeiro (1813) tem campo de atuação da Igreja do
Carmo, com a música sacra, enquanto o outro, pago pelo editor, tem seu sustento na música de
salão. Esse caráter elementar, de descer à raiz material e cotidiana das ações humanas, é uma
preocupação constante de Machado de Assis. Não apaga, no entanto, a ambição alegórica de se
representar uma cena exemplar.
Em Um Homem Célebre e Cantiga dos Esponsais, o impulso mimético constrói
personagens verossímeis, respeitando seu caráter interno. De outra parte, elas aproximam-se
dos temas da tradição clássica ou encarnam conflitos universais, entre ambição e vocação. Essa
dualidade está na própria personagem representada: Romão não consegue alcançar sua busca;
Pestana desiste melancolicamente dela, resignado às suas polcas.
A situação é irônica, em que a contradição que corrói o sujeito (Romão e Pestana)
está manifesta na sua situação social. De um lado, eles são muito bem considerados, célebres,
geniais, iluminados; de outro lado, eles se consideram frustrados, pois aquilo por que são
queridos não era o objeto de sua busca. A contradição entre a inserção social conseguida e
ambição à permanência e genialidade permanece. Tal jogo contrastivo está no próprio discurso
de Um Homem Célebre, em que a sinhazinha Mota funciona como emblema da aceitação popular
de Pestana, e o narrador a coloca em contraste com as vivências de Pestana. As personagens
entram em contato apenas no início e depois se desligam um do outro, Pestana inclusive a
esquece. Mesmo assim, o narrador põe a moça como um contraponto das ações do compositor
até o seu casamento.
Por fim, a aparência social, celebridade, funciona como alma exterior da
personagem, como a existência da opinião, como a cunhagem de seu medalhão. O universo
interior, do desejo, vive de modo informe preso dentro do sujeito, gerando a frustração. Como
nos outros contos, em Um homem célebre, as imagens dos quadros que ficavam na sala do piano
figuram o confronto de Pestana. Os quadros representam a tradição clássica, amada, cujas
músicas a memória tirânica fixou e que traem o artista quando tenta compor algo original. Seu
esforço consciente é vão e vive no culto às personalidades amadas, "postos ali como santos de
uma igreja", e mesmo quando acredita criar espontaneamente um noturno, repete Chopin. O
outro quadro, o único à óleo, é do Padre que dizem ser o pai de Pestana, que lhe ensinara ou
transmitira pelo sangue, o gosto pela música. Sua origem obscura marca também a origem
incontrolável das polcas, que o tomavam e o controlavam por inteiro. Dominado pela natureza
130
impetuosa das polcas, criação impulsiva, o sujeito fetichiza a tradição clássica, não a superando,
pois a transformara em religião, santos inatingíveis, que, em sua grandeza, reforçam a impotência
criativa de Pestana para a música clássica.
Machado relaciona-se com a tradição literária também de modo arbitrário. Ele não
mantém o sentido original da fala recebida, mas o deturpa de acordo com o sentido que lhe
convém. Assim, ao citar Fernão Mendes Pinto, um manuscrito medieval ou uma frase de Balzac,
não o faz como reverência à fonte em que bebe. Ele se apropria da referência pela corrosão
irônica, em que a citação de trecho ou forma tem seu sentido alterado pela inserção em um novo
contexto. A Bíblia, por exemplo, é retomada parodicamente. Ele a considera como referência
universal, uma das matrizes da prosa ocidental, mas, ao contrário do que faz a Igreja, Machado
toma o texto bíblico de modo dessacralizado, como uma narrativa literária, um modo discursivo
de se representar a realidade. Ao retirar sua aura, Machado não a vê mais como uma revelação
de Deus pela linguagem, porque Este estaria ausente. Além disto, deixa de ser um texto orgânico,
quando não se tem mais a ilusão de que se estaria frente a um texto canônico, por revelar a
essência do homem.
De modo semelhante àquele de O Segredo de Bonzo, o título – Na arca: três capítulos
inéditos do Gênesis – propõe a inserção do conto em um livro existente, como um capítulo inédito,
uma parte original, mas que, por alguma razão, teria sido suprimida ou perdida. Esta inserção
não se dá apenas de modo exterior, por um título que tivesse sido construído pelo narrador. A
própria linguagem mimetiza a da Bíblia, do Gênesis.
Capítulo A
1. - Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e Cam: - 'Vamos sair da arca, segundo a vontade do
Senhor, nós, e nossas mulheres, e todos os animais. A arca tem de parar no cabeço de uma
montanha; desceremos a ela.
2. - 'Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse: 'Resolvi dar cabo de toda a carne;
o mal domina a terra, quero fazer perecer os homens. Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua
mulher e teus filhos.'342
26. - 'Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites. O que será quando
vierem a Turquia e a Rússia? '
27. - E nenhum dos filhos de Noé pôde entender esta palavra de seu pai.
28. - A arca, porém, continuava a boiar sobre as águas do abismo.343
Depois de conter a briga, apartar os filhos apenas sob ameaça de maldição, Noé dá-
342 Id. Na arca: três capítulos inéditos do Gênesis. In: ________. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2.). p. 303.
343 Op. cit. p. 307.
131
se conta de seu erro. A paz não seria alcançada porque o mal não havia sido eliminado. Ele está
dentro do homem e, enquanto houver algum vivo, persistiria. Isto dá o sentido desse capítulo
inédito de Machado. Ele recria de modo ficcional as cenas originais da história humana. Ao
contrário de uma natureza boa, corrompida pelo demônio, o homem é essencialmente
contraditório, trazendo em si o mal, porque é autocentrado nos seus interesses. Tanto um irmão
quanto o outro consideram-se com razão – a terra em questão (posse puramente imaginária) –
pertence a um e o outro seria um usurpador. Nenhum se considera mau, mas, lutando por
interesses egoístas, eles engendram o mal.
Cabe salientar ainda que este engendrar o mal não é fruto meramente de uma
relação social, mas da exteriorização de algo que existe em potência no homem. O mundo está
sob as águas, não pode ser visto, e a ninguém pertence. Os filhos de Noé projetam, porém,
sobre o mundo seu olhar dominador que constrói a idéia de posse, o qual não é, portanto,
telúrica, mas apenas uma ficção sobre o mundo. Poder-se-ia objetar que um filho de Noé não
brigou, Cam, sendo ele quem tenta apartar os irmãos e, por fim, chama o pai para fazê-lo. O
prosseguimento da narrativa bíblica conta que Cam viu a nudez do pai, após uma embriaguez,
e acabou amaldiçoado, condenado a ser escravo de seus irmãos. A possível purificação do
homem, portanto, não é possível, pois ele é por si uma criatura híbrida.
Ao final, contrariando a representação da linguagem bíblica, Noé fala de modo
estranho, com um dado contemporâneo a Machado, a guerra entre a Rússia e a Turquia também
pela questão de limites. Os seus filhos não entendem a profecia de seu pai, porque lhes é muito
estranha. Como se vê, o narrador coloca um dado discrepante que rompe com a verossimilhança
ficcional. No leitor o elemento estranho pode levar uma compreensão nova da história. Em
primeiro lugar, ao criar uma identidade entre um fato mítico-religioso com um histórico, o conto
leva a considerar que os móveis da história humana não mudam, por mais que se insista na
concepção de progresso, de contínua transformação do homem numa evolução. De certo
modo, os homens não dominaram os impulsos naturais, contra os quais a razão luta, mas
deixam-nos transparecer em lutas fratricidas como em uma guerra.
O conto é todo escrito em versículos, imitando a linguagem bíblica; a inserção de
um elemento incongruente a essa narrativa leva a um estranhamento. Deste modo, a perspectiva
ilusionista de criar uma ficção completa em que o leitor pudesse se sentir como se lesse a própria
Bíblia é vedada. Fica marcado o estatuto ficcional, em que o procedimento literário é posto à
mostra. Nesse conto, internamente, existe uma variação da distância estética em relação ao
leitor, exigindo uma mudança de atitude ao final da leitura. Assim, como a diferença entre os
Jacobinas jovem e adulto, a mistura de um problema atual com um bíblico, obriga o leitor a
pensar a respeito da associação entre ambos termos. Nesse caso, o elemento estranho leva a ler
o conto em um sentido alegórico, em que a primeira história (briga de Sem e Jafé) vem a ter seu
sentido completado pela guerra da Turquia contra a Rússia, milhares de anos depois. Assim, a
projeção de futuro a partir do agora narrativo, em que resta apenas uma família no mundo, leva
a considerar a permanência e repetição do mesmo conflito bélico na terra, na disputa por limites,
não mais entre irmãos, mas entre nações vizinhas.
A relação de Machado com a tradição bíblica não é reverente, mas ele se torna um
interlocutor que não aceita o caráter sobrenatural e maravilhoso do texto. Ao deixar de ter
certeza sobre seus estatutos ficcionais e mesmo epistemológicos, Machado de Assis não
considera como absoluta a verdade de seu interlocutor. É um caso semelhante ao do narrador
que não tem mais segurança de sua linguagem e volta-se sobre o próprio modo de representar
o objeto. Neste caso da Bíblia, Machado centra-se no próprio procedimento discursivo do texto
do Gênesis, recriando-o como ficção, mas, anti-ilusionista, deixa isto claro ao colocar uma
incongruência. Este procedimento não impede que se revele uma verdade humana, seu impulso
de destruição do outro para defender uma posse imaginária.
132
O conto Adão e Eva aponta também neste sentido. Durante uma refeição, em 17...,
num engenho da Bahia, a dona da casa oferece a sobremesa. Um dos convidados deseja saber
o que era. Desta situação singela surge a questão sobre a origem da curiosidade humana: Adão
ou Eva?
Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião; porque as cousas no
paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que está contado no primeiro livro do
Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral, riso do carmelita, que conhecia o juiz-de-fora como um
dos mais piedosos sujeitos da cidade, e sabia que era jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma
vez que fosse curial e delicada; nas cousa graves, era gravíssimo. 344
Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres,
cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra. 346
Este trecho impõe uma relação com outros momentos da obra de Machado em que
essa cena da origem aparece. Em A Igreja do Diabo347, Deus não se preocupa com a construção,
pelo demo, de uma igreja que lhe roube os fiéis. Este espírito de completa negação parece-lhe
mais causar-lhe tédio do que outra coisa. No final, compreende-se esta postura quando o demo
vai reclamar que, por trás do sucesso da sua igreja, escondia-se uma falha. Os homens aceitavam
a doutrina do Diabo, senhor da terra, mas às escondidas mostravam-se virtuosos. Deus
respondê-lhe:
– Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de
veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.348
Num caso ou no outro, temos no centro a figura do diabo como negação de Deus.
Deus revela aqui a própria condição indefinível do homem que não pode ser filiado a uma ou
outra origem. Não é divino, não é demoníaco, porque é os dois de modo simultâneo. Será,
assim, um pobre diabo, todo aquele que quiser reduzir o homem apenas a um único princípio
ou a sua negação. Em Adão e Eva, o juiz recria a cena inicial, sem o pecado original, a partir da
perfeição do homem que não cede e não come do fruto da árvore do bem e do mal.
– Quem me chama?
344 Id. A igreja do Diabo. In: ________. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2.). p. 525.
345 AUERBACH, Erich. Adão e eva. In: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982. (Estudos, 2).
346 ASSIS, J. M. Machado de. Adão e Eva. In: ________. Várias Histórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2). p. 525.
347 Id. A igreja do Diabo. In: _________. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2.). 369.
348 Op. cit. p. 369.
133
De modo semelhante ao conto Na Arca, a serpente tenta Eva, fazendo uso dos
fatos históricos que estão por vir, em que a mulher terá "realeza, poesia, divindade". Comer do
fruto da árvore do Bem e do Mal traz a quimera prometida pela Serpente, pela enviada do demo,
que é a de conhecer a origem do mundo e o enigma da vida, bem como a de alcançar as
conquistas materiais. A serpente elide a entrada na história, no fluxo temporal, destrutivo, em
que o homem é condenado a conquistar o pão com o suor do rosto, e a mulher a parir com dor.
Ela não apresenta a miserável condição humana de joguete das paixões. Adão e Eva não dão
ouvidos à Serpente; "nada valia a perda do paraíso". Sua resistência ao mal e a estrita obediência
à regra fazem com que Deus os leve para o Céu em Glória.
– Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor para que lhe desse mais doce,
enquanto os outros convivas olhavam uns para os outros, embasbacados; em vez de explicação,
ouviam uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente.(...)
– Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido,
não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na verdade, uma cousa primorosa. É ainda
aquela sua antiga doceira de Itagipe? 350
Na citação, a reação dos ouvintes perante a estranha narrativa é de incompreensão.
O juiz-de-fora cria uma versão sem sentido aparente, deixando seus interlocutores espantados,
obrigados a decifrar o enigma para entender alguma coisa. A partir de uma questão simples,
singela, de quem seria o mais curioso – o homem ou a mulher? –, o narrador cria sob o riso
benevolente do padre uma nova versão do Gênesis. Ela traz a marca da perfeição humana, capaz
de resistir à curiosidade de conhecer, de não se deixar seduzir pelas promessas da serpente, fiel
a Deus. Se assim fosse, os homens não estariam ali comendo o doce.
O juiz-de-fora inverte a tradição bíblica, mas reforça seu sentido, mostrando a
vacuidade da questão primeira, de quem seria mais curioso, pois a natureza humana é imperfeita
em sua essência, pela mistura que traz entre Bem e Mal. Se fosse diferente, se houvesse alguém
melhor, não haveria humanidade. De novo, a profecia histórica vem a completar o sentido da
cena inicial do Gênesis, em que a história narrada surge como oriunda do pecado original e da
queda.
Ficar preso a um princípio ou a outro é, repetindo, tornar-se um pobre diabo. Desta
condição inicial poder-se-ia ler algumas histórias em que as personagens ficam presas na
imaginação, e frustram-se, porque eles viveriam apenas numa dimensão de sua humanidade,
sem compreender a ambigüidade essencial.
349 ASSIS, J. M. Machado de. Adão e Eva. In: ________. Várias Histórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2.). p. 527.
350 Op. cit. p 528.
134
AHASVERUS. - Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida
cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, fala mais... fala mais... (continua sonhando. As duas
águias aproximam-se).
UMA ÁGUIA. - Ai, ai, ai, deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida.
A OUTRA. - Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito. 351
351 ASSIS, J. M. Machado de. Adão e Eva. In: ________.Várias Histórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 2.). p. 563.
352 BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1994.
135
de Brás Cubas, é naturalizada como repetição dos mesmos conflitos humanos, movidos pelas
paixões, estabelecendo uma repetição de ciclos de euforia e melancolia, cujo termo constante é
a morte. A reação de Brás, ao ver o espetáculo, é a de tédio, pontuada pelo desejo de morrer.
Machado não se torna, no entanto, um moralista às avessas, construtor de exemplos
de sua tese central. Ao contrário, tal concepção se liga ao ponto de vista irônico, altamente
corrosivo, com que destrói os sistemas científicos, filosóficos ou políticos que se propunham
como salvação do homem ou síntese do progresso da humanidade. Como nozes, ele quebra as
idéias, sem encontrar dentro delas nada ou apenas um bicho feio e visguento. Assim, melancolia
e ironia unem-se na negação constante de qualquer teoria totalitária que proponha o sacrifício
dos indivíduos em nome do bem universal.
O critério de seleção dos temas é dado, então, pela melancolia. Preso às ruínas do
passado, às vítimas que sucumbiram ao avanço da história, aos párias que não cabem no sistema
geral, Machado de Assis cata o mínimo e escondido para elevá-lo a objeto a ser representado.
Loucos, sádicos, mulheres comuns, adolescentes e crianças sem virtudes, caiporas, enfim,
aqueles que não cabem no padrão. Fica entre o riso do rato, que comemora a derrocada dos
Stroibus, e a melancólica sabedoria do cão, que sabe que eles voltam sempre.
A alegoria vem a ser, nesse caso, não uma aplicação de um recurso retórico antigo,
de um sistema catequético medieval, mas uma forma de corroer a crença romântica na
possibilidade de expressão espontânea e imediata do sujeito. Desconfiado da evolução imanente
da história humana, descrente da penetração do Espírito no movimento histórico, a alegoria
serve forma de não aceitação do sentido literal da experiência humana.
A intenção alegórica destrói o contexto orgânico da prosa realista ou da unidade
romântica. Em D. Benedita, a mulher comum oscila entre a representação prosaica de uma
experiência cotidiana e a personificação da veleidade. Em Simão ou Stroibus, o indivíduo deixa
de ser ele mesmo para encarnar a Ciência, como monomania ou terror. O espelho, o nariz
metafísico e o medalhão tornam-se objetos emblemáticos da duplicidade da alma humana, do
engodo de se afirmar apenas a existência da opinião e do parasita que se alimenta desse erro.
Um dito comum – “a vida é um cavalo xucro” – torna-se uma representação da perda de sentido
da fala individual, bem como da experiência singular. Noé, Cam, Sem, Jefé ou Adão e Eva são
remissões à tradição, que desfazem a crença no fundamento religioso da origem do homem,
para ressaltar a repetição dos mesmos males inerentes ao homem. Além disso, temos o choque
das tradições grega e judaica, em que as duas personagens encarnam o sofrimento do imortal,
condenado a viver e que deseja a morte, mas que ainda quando morre sonha com a quimera da
felicidade.
A expressão alegórica não transforma a imagem dessas personagens, frases e
objetos em meros exemplos de princípios universais. As formas realista e alegórica confrontam-
se em cada conto, em que, por exemplo, a veleidade não diminui o sofrimento da mulher, nem
essa se reduz àquela. O choque das duas instâncias, isso sim, faz com que o estranho e o
inusitado apareçam dentro do cotidiano. O traço comum está no caráter fechado da história –
exterior às personagens –na conseqüente incapacidade de transformação e realização do sujeito.
Para finalizar, é interessante ressaltar a diferença existente entre Dostoiévki e
Machado de Assis quanto à forma de se apropriarem da tradição. Ambos negam tanto o padrão
romântico, idealista, quanto à expressão unitária do realismo. Como mostra Bakhtin, a
personagem Dostoiévskiana é um ideólogo, cuja voz plenivalente ganha força própria no
diálogo com outras personagens com idêntica condição. Uma não se reduz à outra, mas, pelo
confronto, cada uma delas revela facetas inusitadas das idéias expressas pelo outro. Por isso, a
estrutura polifônica inova a apropriação da sátira menipéia.
Quanto a Machado de Assis, a dualidade e o inacabamento de cada personagem são
frutos não de diálogo, mas da incapacidade dialogar com os outros. Na afirmação do egoísmo,
136
353 EULALIO, Alexandre. O Esaú e Jacó na obra de Machado de Assis: as personagens diante do espelho e De um capítulo de Esaú e Jacó ao Painel d'último
baile. In: _______. Escritos. Org. de Berta Waldman e Luís Dantas. São Paulo: Ed. da UNICAMP; Ed. da UNESP, 1992.
354 GOMES, Eugênio. Testamento estético de Machado de Assis. In: ________. Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958.
355 NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In: No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1992. (Temas, 35)
356 Op. cit. p. 135.
357 Op. cit. p. 136.
138
observou Sá Rego358, é pelo riso, pela mofa de um narrador distanciado que a ficção machadiana
constrói a cura do mal humano, a melancolia, seguindo a tradição luciânica. É importante de se
frisar, no entanto, que não existe um tema único (filosofia, história, costumes sociais, política,
ludismo), mas uma fragmentação que resulta da suspensão de juízos absolutos por meio da
dúvida.
Num caminho formalista, Afonso Romano de Sant'anna359 compreende Esaú e Jacó
como uma estrutura fechada em si mesma, procurando um princípio dominante do texto:
dualidade. A história e o mito seriam variações desse princípio estrutural, não apontando para
uma relação com o contexto. Sua interpretação veda qualquer possibilidade de leitura alegórica,
porque descarta o caráter incompleto do romance, enquanto escrita fragmentária, assim como
seu diálogo com a história.
John Gledson360 faz o oposto. Do mesmo modo como leu Papéis Avulsos, partindo
do conceito de alegoria como expressão do outro, estabelece que o sentido escondido é uma
interpretação machadiana da história do Brasil, não mais da filosofia, como Eugênio Gomes.
Assim todos os elementos e detalhes do romance apontariam para uma leitura de Machado de
seu tempo. São vários elementos trabalhados por Gledson: Cabocla do Castelo, os gêmeos, as
tabuletas, o caso das barbas. O romance é dissecado de modo sistemático como uma leitura da
história, em que cada imagem teria um significado correspondente.
São dois casos extremos. Sant'anna nega todos os índices textuais que apontem uma
ligação do texto com a história, porque seriam meramente exemplos do princípio da dualidade
ou da oposição de A e B. Essa leitura estrutural é mais redutora na medida em que nega a relação
a obra com a realidade, como o próprio Machado preconizava em sua crítica literária. Já Gledson
faz uma ligação direta entre romance e realidade. Nesse caso, a partir do conceito restrito de
alegoria, a história vem a ser o outro que torna inteligível todas as imagens enigmáticas do
romance. Em ambos os casos, encontra-se uma totalidade construída pelo crítico, em que uma
dominante (no primeiro, estrutural; no segundo, histórica) liga todas as partes soltas, compondo
um conjunto.
Existem alegorias diretas, como a filosofia das tabuletas, mas há um modo de
narração, uma escrita alegórica, não considerada por Gledson. O romance converge para o
processo de narração, não para criar uma estrutura fechada, mas para mostrar suas aberturas
para a história. Flora Sussekind, em relação a Memórias Póstumas de Brás Cubas361, diz que Machado
inverte o princípio do romance histórico e da própria História, que usava as memórias como
um documento de época. O mesmo acontece em Esaú e Jacó; em vários aspectos, uma narrativa
às avessas, desconstrução do discurso romântico. O narrador, colocado depois da reformulação
urbana do Rio, dialoga de modo direto com o leitor do início do século XX, dirigindo o olhar
deste para o seu passado, para a escravidão e a proclamação da República. Há, então, uma
narrativa que reconta o passado.
Alexandre Eulálio362 chama Esaú e Jacó de romance-mosaico, construído por uma
série de apólogos que se ligam de modo tênue. Consciente da crise da narrativa, Machado forja
um autor ficcional que compõe um romance fragmentário. A todo momento a narrativa é
interrompida para comentários e desvios do narrador. Logo no início363 o narrador projeta sobre
358 REGO, Enylton Sá. Calundu e a Sátira Menipéia. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
359 SANT'ANNA, A. Romano. Esaú e Jacó. In: ________. Análise estrutural da narrativa. São Paulo: Vozes, 1974.
360 GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. (Literatura e Teoria Literária, 56)
361 SUSSEKIND, Flora. Brás Cubas e a literatura como errata. Revista Tempo Brasileiro: Literatura e História, Rio de Janeiro, v. 81, abr.-mai. 1985.
362 EULALIO, Alexandre. O Esaú e Jacó na obra de Machado de Assis: as personagens diante do espelho e De um capítulo de Esaú e Jacó ao Painel d'último
baile. In: _______. Escritos. Org. de Berta Waldman e Luís Dantas. São Paulo: Ed. da UNICAMP; Ed. da UNESP, 1992.
363 ASSIS, Joaquim M. Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989. (Obras completas, 1)
139
o leitor a ansiedade pela continuação da história. Assim, um romance como Esaú e Jacó traz na
sua forma de mosaico as marcas da história.
Segundo Augusto Meyer, Flora representa a impossibilidade de síntese, por não se
decidir casar com nenhum dos gêmeos
O ideal para Flora está na síntese impossível formada com as duas imposições: possuir num só corpo
as virtudes que se compensam nos dois rapazes. 364
Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra.
Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda
par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. 365
A epígrafe funciona como uma luneta para se ver os trechos obscuros da obra e
serve para completar as personagens. No seu sentido dela está marcada a origem, o nascimento,
o pecado original da alma como uma mancha indelével. A citação aparece truncada, tirada de
contexto, deixada incompleta. Nesse caráter incompleto, inacabado, está uma chave de leitura
da obra. Existe sempre uma incompletude que não permite generalizar o sentido de uma
personagem ou da obra.
A chave alegórica da epígrafe funciona tanto na sua forma incompleta quanto na
referência ao quinto círculo do inferno de Dante. O sentido das personagens, quando obscuras
ou enigmáticas, deve ser compreendido à luz da epígrafe, “alma mal nascida”. Em última análise,
a ficção representa a própria pessoa incompleta, sempre escapando ao sentido que se lhe tenta
atribuir como definitivo. A citação de Dante, tirada de seu contexto original, tem um novo
significado no conjunto em que se integra. Recompondo o contexto original da Divina Comédia,
refere-se às pessoas vulgares, incapazes de se desligarem dos prazeres do corpo. Assim a
sociedade na qual penetra Aires parece ser retirada ou destinada ao quinto círculo inferna. O
inacabamento da epígrafe mostra simultaneamente o caráter enigmático e a mediocridadade das
personagens. De modo semelhante, Goethe, Empédocles, Xenofonte, Homero são citados pelo
narrador como instrumentos de revelação da natureza dos personagens.
364 MEYER, Augusto. Flora. In: _______. Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958.
365 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. (Obras completas, 1). p. 966.
140
Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o
autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus
trebelhos.
Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer
de torre, nem a torre de peão. Há ainda a diferença de cor, branca e preta, mas esta não tira o poder
da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida e assim vai o mundo. (...)
Tudo irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre
Deus e o Diabo.366
uma formação humana. Presos a um confronto mútuo, eles não visam um objeto buscado, ou
um ideal a ser realizado. Sonham com a posição de primeiro ministro, do Império ou República,
mas não lutam para realizar o objetivo.
A dualidade de Pedro e Paulo é a principal alegoria do romance. Não representa
apenas a conservação e a mudança, Luís XV e Robespierre, Monarquia e República. Como os
trebelhos brancos contra os pretos, essas imagens emblematizam o confronto constante dos
gêmeos. Elas representam o princípio da “guerra como mãe de todas as coisas”.
Os gêmeos são como os olhos da Medusa. Perseu não poderia olhá-la diretamente
para não ficar petrificado. Para vencê-la, ele a olha através do reflexo em seu escudo. Vence-a,
corta-lhe a cabeça e leva-a consigo. Usa-a como arma para vencer o monstro de Górgona.
Calvino, na sua conferência sobre a leveza367, vê Perseu como a representação do poeta e de sua
linguagem indireta que domina a realidade sem que vire pedra. Olhar diretamente para os
gêmeos é imobilizar-se na dualidade, a guerra, que os domina a vida inteira. É o caso da análise
que fixa o olhar neles e petrifica-se no jogo de relações duais de A e B.
Para escapar, é necessário olhá-los de modo indireto. Eles estão presentes em todos
os recantos do romance, nas várias personagens com que se relacionam, até mesmo na esmola
de dois mil réis, já que são eles o motor das preocupações e ações de Natividade. Atuam até
mesmo sobre Custódio, o dono das tabuletas, na medida em que ele nos obriga a lançar um
olhar oblíquo sobre a monarquia de Pedro e a república de Paulo. Aires não escapa da ligação
com eles, destinado por Natividade a cuidar deles.
A crise de indistinção entre os gêmeos é própria do período de mudança que afeta
todas as personagens. A falta de diferença faz com que olhemos os dois como se fossem um
mesmo, eles lutam sempre pela mesma coisa, falam ao mesmo tempo, têm sonhos semelhantes,
confundem-se no delírio de Flora. Os gêmeos impregnam a narrativa desde a Advertência, como
se o livro levasse o leitor a procurar um “síntese impossível formada com as duas imposições:
possuir um só corpo as virtudes que se compensam nos dois rapazes.”368
A Advertência – construída por um editor para o leitor compreender a origem do
texto – indica que o autor do texto é o conselheiro Aires. No caso devemos considerar que é
um autor intencionalmente ficcional. Sua narrativa teria sido encontrada entre os memoriais do
falecido conselheiro. O que distinguia o caderno era o título, Último. O nome Esaú e Jacó teria
sido dado pelo próprio editor, retirado duma fala de Aires.
Doar sentido para o romance começa, então, pelo procedimento do editor. Último,
ab ovo, ou Esaú e Jacó são três modos diferentes de nomear a narrativa. A centralidade de Pedro
e Paulo é dada desde o título, por um processo de interpretação do editor; mas Último, o título
rasurado, esconde o outro centro, o autor, que deixa sua última vontade através do testamento.
Ficcionalmente Machado de Assis mostra como nem o sentido de um romance é tranqüilo e
natural. O autor está morto quando o romance chega às mãos do editor-intérprete, não há o
que discutir, deve-se apenas interpretar através do texto, que sempre esconde uma armadilha
para desfazer a síntese pretendida.
367 CALVINO, Italo. Seis propostas para o novo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
368 MEYER, Augusto. Flora. In: ________. Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958.
142
A história de Flora, por quem os gêmeos estiveram apaixonados serve para melhor
compreender como eles eram, mas é uma personagem que não serve de objeto ao amor dos
dois. Na narrativa não aparecem duelos, confrontos, lutas, disputas apaixonadas pela mulher
amada. Pedro e Paulo deixam ao encargo da moça a escolha, e o narrador parece importar-se,
então, mais com ela.
Se Pedro e Paulo representam a tese e a antítese de uma relação dialética, então,
Flora (cobiçada por ambos) representa a síntese impossível. É a incapacidade de transpor-se de
um mundo das idéias para a ação. Vive no alheamento da imaginação, no tempo imóvel da
música. Ela representa a figura da melancolia, já que tem os predicados necessários para ser a
amante feliz, mas que fica incapacitada de agir, porque não transpõe a barreira da hesitação, da
dúvida. É a asna de Buridan.
Pode se levantar a hipótese de que Flora encena o fim do ideário romântico.
Estamos lidando com o fim da grande narrativa de fundação do Brasil, em que a força do ideal
uniria um império fragmentário, dando-lhe a organicidade da nação. Nos romances de Alencar,
a formação do sujeito representa emblematicamente a construção do Brasil, em que ambos
conseguem superar o aviltamento material pela busca da síntese ideal. Um país colonial e
escravocrata com pretensão à nação civilizada vive uma contradição insuperável. O
Romantismo encena esse confronto, os intelectuais sentem-se desterrados em sua própria terra.
Assim, em Esaú e Jacó, depois da virada do século, Machado de Assis revisa a narrativa
fundacional brasileira, o fim do Império e o advento da República, mas através de dramas
individuais, em uma forma fragmentária, em que se mostra a impossibilidade de se narrar.
Na imagem de Goethe, do Fausto, há uma aproximação possível entre a personagem
Flora e Álvares de Azevedo. Não há na moça virgem o retrato de Álvares, mas nela encontramos
uma figura emblemática do Romantismo. Em seu afã de encontrar uma síntese ideal e
impossível para uma contradição real, acaba encontrando a morte. No prefácio à segunda parte
de Lira dos Vinte Anos, ele diz que duas almas habitam as cavernas de seu pensamento, que
seriam as formas de Ariel e Caliban. É uma forma semelhante ao verso de Goethe usado para
ilustrar Flora: “Duas almas em meu seio moram”.
Em Idéias Íntimas, de Álvares de Azevedo, na parte IX, o eu-lírico sonha com a
mulher amada, em uma ilusão descrita com imagens sensíveis, mas que se desfaz deixando-o
sozinho no quarto, molhando o travesseiro com suas lágrimas. O amor idealizado faz com que
ele exista apenas dentro do eu que o projeta, como uma idéia do sublime, cuja colocação no real
seria a sua destruição. O prazer dura enquanto se sonha, o acordar representa a melancolia de
não realizar o seu ideal. No capítulo 79 de Esaú e Jacó – Fusão, difusão, confusão...–, as alucinações
de Flora se assemelham àquela da Lira. Ela recolheu em si os dois gêmeos de Natividade e em
delírios os vê com os olhos de sua alma. “Visto assim era mais que simplesmente conversa das
cousas vulgares e passageiras”, comenta o narrador quando a jovem vê Paulo em sua
imaginação. Assim, na grande noite, Flora vê os dois gêmeos. Primeiro, um de cada vez, sentindo
falta do ausente. Depois, os dois juntos. Por fim os dois se fundem para formar uma só
personagem.
Tudo se mistura à meia claridade; tal seria a causa da fusão dos vultos, que de dous que
eram, ficaram sendo um só. Flora, não tendo visto sair nenhum dos gêmeos, mal poderia
crer que formassem agora uma só pessoa, mas acabou crendo, mormente depois que esta
única pessoa solitária parecia completá-la interiormente, melhor que nenhuma das outras em
separado. Era muito fazer e desfazer, mudar e transmudar. Pensou enganar-se, mas não;
era uma só pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater nela o coração. (grifo meu)369
369 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. (Obras completas, 1.). p. 1054.
143
Também invejava a princesa imperial, que viria a ser imperatriz um dia, com o absoluto poder de
despedir ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar só, no mais recôndito do paço, fartando-se
da contemplação ou de música. Era assim que Flora definia a arte de governar. Tais idéias passavam
e tornavam. De uma vez alguém lhe disse, como para lhe dar força: "toda alma livre é imperatriz" 371
370 Há uma mudança significativa de O Guarani para Iracema. Não me parece que seja apenas alteração formal. O texto alencariano do primeiro romance, uma
aventura envolvente, traz o índio como um personagem masculino, que se batiza ao final, mas se nega a morar na cidade. Cecília cede e ambos abandonam suas
civilizações em nome do amor que os une. O processo é semelhante no segundo texto, mas neste temos em Martim a figura do guerreiro que permanece vivo
depois da morte da amada. O filho da união de ambos funciona apenas parcialmente como síntese, pois passa a ser criado dentro da civilização portuguesa, desligado
da origem materna. Há um aspecto melancólico nessa mudança, pois apenas a morte do índio (ou sua aculturação) permite que ele continue vivo na cultura brasileira.
371 ASSIS, Joaquim M. Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. (Obras completas, 1.). p. 1009.
372 Id. Trio em lá menor. In: Várias histórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. (Obras completas, 2.). p. 525.
373 Op. cit. p. 525
145
Marechal Floriano, em que este representasse o avesso da outra. A morte do ideal, do sublime
de Flora, dá-se quando Floriano assume supremo o poder. O que Flora desejava, Floriano
alcança. Nesse sentido há o rebaixamento do ideal de contemplação para ação arbitrária mais
bárbara. Flora não queria dar satisfações a ninguém, o mesmo faz Floriano só que pelo avesso.
Ocorre um processo de aviltamento em que o poder arbitrário revela-se na sua face mais cruel
e terrível. Considerando as imagens benjaminianas do alegorista e do tirano, Flora vem a ser a
melancólica que não encontra sentido na realidade, enquanto o Marechal de Ferro impõe-se
pela força sua prática política.
Emblematicamente ela morre junto com a instauração do estado de sítio depois da
proclamação da República. Durante o enterro, a cidade do Rio de Janeiro está deserta. Se antes,
no Romantismo, a natureza exprime a subjetividade do eu, nesse momento, a cidade entristecida
pelo golpe representa a perda de Flora. As duas faces de Flora marcam uma cisão entre os
universos do ideal e da realidade, de tal modo que o arbítrio do poder violento e a impotência
tornam-se duas faces de um processo em que nunca se alcança a síntese.
Aires é a outra personagem que acompanha os gêmeos e que presencia casos
particulares, dos quais surgem algumas anedotas do romance. Aires chega a pensar em escrever
uma filosofia das tabuletas a partir dos encontros com Custódio, que mandou pintar uma nova
placa para a Confeitaria do Império. Frente à troca de regime da Monarquia para a República,
aparece Custódio para falar com Aires. Ele está desesperado. A tabuleta da sua confeitaria do
Império está sendo pintada, mas a república está proclamada. Depois de uma certa discussão, o
nome fica definido como Confeitaria do Custódio.
A situação tem um caráter alegórico no sentido mais restrito. Pouco se fala sobre a
troca de regime, e o diálogo entre Custódio e Aires parece representar a visão distanciada da
troca. Nada muda, apenas o nome é substituído. A importância da troca para a população é
mínima, já que não afeta senão acessoriamente o cotidiano das pessoas.
Aires, com sua eterna flor na lapela, presencia algumas outras situações, narradas
no romance. Ele passa por um tumulto no centro do Rio, em que prendem um gatuno; ele se
lembra de Carmem, sua amante; ele vê um burro sendo espancado. São cenas aparentemente
gratuitas, desconexas do todo. Essas três historietas surgem ao sabor de um passante, de um
transeunte pelo centro de sua cidade. Elas poderiam ter sido vistas ou não por Aires, tal sua
casualidade. Por isso, elas não seriam necessárias para a seqüência narrativa.
Não posso dar a toada, mas Aires ainda trazia de cor, e vinha a repeti-la consigo, vagarosamente
como ia andando. Outrossim, meditava na ausência de vocação diplomática. A ascensão de um
governo, – de um regímen que fosse –, com suas idéias novas, os seus homens frescos, leis,
aclamações, valia menos que o riso da jovem comediante. Onde ela estaria? A sombra da moça
varreu tudo o mais, a rua, a gente, o gatuno, para ficar só diante do velho Aires, dando aos quadris
e cantarolando a trova andaluza.374
Aires tece comentários que ajudam a iluminar o fluxo da história. No trecho acima,
a pretexto do barulho de uma multidão, existe uma prefiguração da relação da personagem com
os eventos políticos que presencia. Ao longo da história eles servem de pano de fundo apenas,
mas aparecem em primeiro plano nas vivências das personagens.
Ao se perguntar quem fala no trecho, veremos que existe uma identidade entre
narrador e personagem. Tal identidade é importante porque o comentário sobre o valor do riso
da comediante é assumido pelo narrador. Para Aires (e para o narrador?) a conclusão não gera
tristeza, nem uma ação de confronto direto com o regime, mas um distanciamento que parece
374 Id. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. (Obras Completas, 1). p. 997
146
fim do romance, a figura do líder espírita, Plácido, o narrador aproveita para contar a história
do que aconteceu à religião dele. O mundo deveria ser lido pelas letras do alfabeto, mas os seus
seguidores dividiram-se entre os que queriam ler o mundo nas vogais e os que queriam lê-lo
pelas consoantes. Outro exemplo seria o caso das barbas do capuchinho e do mendigo. Assim
poderia se seguir tirando exemplos de historietas e imagens digressivas do romance. Todas elas
parecem apontar não para a representação variável do mesmo princípio estrutural, mas para a
multiplicidade, a complexidade do real que a ficção representa nesse caso.
376 PAES, José Paulo. Aprendiz de morto. In: ________. Gregos e Baianos. São Paulo: Brasiliense, 1986.
377 HEGEL, W. Estética. Lisboa: Guimarães , 1992. p. 30.
148
freqüente surgir o embaraço que nos parecia inalienável, a mais segura de todas, nos tivesse sido
tirada: a capacidade de trocar experiência.378
O conhecimento do autor Aires, velho e experiente, é formado em um contexto
em que “a capacidade de trocar experiência” perdeu-se. Não se trata de um ancião, integrado à
comunidade, nem de alguém que narra oralmente, com gestos, voz e entonação integrados. A
sua posição como autor é a de um homem isolado, afastado do mundo. Ele compõe o romance
e o memorial no isolamento, em que seu tom ácido e corrosivo contrariam a forma diplomática
com se integra à sociedade. De certo modo, é um exemplo já manifesto em Galeria Póstuma379,
quando morre o tão amado Joaquim Fidélis. Quando o sobrinho, Benjamin, encontra os
cadernos de notas do tio, fica apavorado, pela acidez com que desfaz a imagem pública de seus
amigos e conhecidos. Como emblema, fica a expressão cômica da morte, de Joaquim Fidélis, de
olhos abertos e rindo com o canto da boca. Aires figura a cisão consciente entre imagem pública,
sóbria e conciliatória, e o mundo interior, cultivado de modo livre, possível de ser divulgado
apenas após a morte.
É a partir de uma crise da narrativa que Esaú e Jacó é construído, como bem frisou
Alexandre Eulálio380. O narrador criado por Aires, autor ficcional, é de terceira pessoa, onisciente
em relação aos seus personagens. Ele compõe o discurso narrativo de forma hesitante. Como
se fosse um cego a procurar o caminho, o narrador anda incerto, lembrando uma narração de
embriagado, como ocorre em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Na relação com o leitor ou leitora,
o narrador assume a primeira pessoa e abre um diálogo, dizendo o que espera do interlocutor e
comentando o seu discurso. Na ambigüidade de sua postura, o narrador assume a posição de
poder supremo sobre a narrativa, conta o que quer e do modo como quer. Assim, a seqüência
dos capítulos parece frouxa, sem um nexo obrigatório que os ligue. O nexo principal é a vontade
do narrador.
A perda da capacidade de trocar experiências está figurado também no Aires
personagem. Ele parece um homem integrado à comunidade. Faz parte da sociedade como um
convidado de todos, sendo homem respeitado por sua posição e conhecimento do mundo. Ao
retornar ao Rio, decide-se pela solidão, e tem como divisa o dístico do padre Bernardes:
"alonguei-me fugindo e morei na soedade”. Como cansa da solidão, acaba por se misturar na
sociedade: “Alonguei-me fugindo e morei entre a gente”. É um movimento que vai do retiro
contemplativo, só de leituras na solidão, para a participação na sociedade. Sua interação é, no
entanto, ambígua, de homem que mostra e esconde. Em público é afável e com todos concorda;
na solidão, em seus pensamentos e no seu memorial, é um duro crítico das pessoas da sociedade.
Parece não existir uma relação recíproca mas sim unilateral entre Aires e outros, já
que ele evita mostrar o que pensa. O verbo parecer é chave381, porque ele não permite nunca a
afirmação incisiva quando nos referimos a Aires. Seu movimento é sempre dúplice, abrindo a
duas possibilidades de leitura, que nem sempre se conciliam. Aires é integrado na sociedade,
mas também não o é. Seu ceticismo manifesta-se apenas ao leitor por suas reflexões, mas não
na sua atitude com Flora, Natividade ou com os gêmeos.
Aires – autor, narrador, personagem – compõe uma tríade que torna complexa a
leitura do romance. O processo narrativo dá-se, então, na sua forma fragmentária, de mosaico,
em que esconder-revelar parece ser a tônica. O homem velho tenta sintetizar sua experiência
378 BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações acerca da obra de Nicolai Leskov. In: ________. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio
D'Água, 1992.
379 ASSIS, Joaquim M. Machado de. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. (Obras Completas, 2.).
380 EULALIO, Alexandre. O Esaú e Jacó na obra de Machado de Assis: as personagens diante do espelho e De um capítulo de Esaú e Jacó ao Painel d'último
baile. In: _______. Escritos. Org. de Berta Waldman e Luís Dantas. São Paulo: Ed. da UNICAMP; Ed. da UNESP, 1992.
381 BOSI, Alfredo. Uma figura machadiana. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Ática, 1988. (Temas, 4)
149
em um caso individual, em uma narrativa. Não existe aqui o objeto pronto, acabado, mas o
processo da própria narração representado. A forma é truncada; a leitura é lenta; um processo
de decomposição obriga ao leitor a mudar constantemente suas posições de leitura; e a síntese
ao final é impossível.
É, então, em Esaú e Jacó, o testamento estético de Machado de Assis, como diz
Eugênio Gomes382, que se encontra de modo cristalizado o confronto entre a forma alegórica e
a notação realista. O narrador, melancólico e irônico, insere suas personagens em um contexto
histórico preciso, dando-lhes uma consistência realista. A história entra de modo explícito nos
principais acontecimentos do fim do Império e proclamação e instauração da República. A gente
Batista, Flora, Santos, Natividade, Perpétuo, Custódio são alguns dos muitos tipos que
compõem o universo social fluminense. A inserção de profecias, como as da cabocla do Castelo,
e do mito, como os nomes Pedro e Paulo (encarnação da briga entre Esaú e Jacó, ou referência
a Ulisses e Aquiles), serve para corroer o caráter referencial da prosa realista, dando-lhe um
aspecto figural. Dante, que serve de epígrafe, é uma referência fundamental ao levar para os
círculos infernais seus contemporâneos, mas dando-lhes um sentido figural (segundo Auerbach)
ou alegórico (segundo Pepin). De todo modo, o caráter elementar e o significado literal são
elididos em nome da interpretação alegórica.
No caso de Esaú e Jacó, a forma fragmentária compõe-se como um mosaico, em que
o narrador introduz elementos estranhos constantemente, citações truncadas, frases
estrangeiras, cenas inverossímeis, desvios do eixo narrativo. A dissolução da linearidade
narrativa cria a necessidade de se encontrar o princípio totalizante que dê sentido a obra. Nos
autos medievais, sem unidade de ação, tempo ou espaço, é a referência ao padrão comum de
conhecimento teológico, centrado na alma, que liga os elementos do conjunto. No caso
machadiano, há a necessidade de se ir além do dado elementar, para se encontrar o sentido
alegórico, mas essa possibilidade é vedada pela própria narração titubeante e irônica que corrói
qualquer princípio causal ou lógico.
Enfim, a alegoria não surge como fruto da angústia do ente frente ao vazio do
mundo, mas de um narrador irônico, que usa do humor para impedir a sisudez da crise espiritual,
filosófica ou religiosa. O narrador brinca com suas personagens como trebelhos de xadrez e
lembra ao leitor, como no capítulo “Entre um ato e outro”, que a cena é ficcional, para não se
criar a impressão de uma totalidade harmônica. O humor leva à desconfiança das interpretações
alegorizantes, pois corremos o risco de inventar associações de idéias arbitrárias com aquelas
espíritas de Batista, em que os gêmeos, capítulos gêmeos, II, Pedro e Paulo, criam um processo
infinito de remissão, em que o sentido é veleitário. Ao cabo, deve-se insistir na arbitrariedade
do narrador na sua forma violenta e parcial de construir o romance, que impede a confiança do
leitor, perante o auto-elogio de Aires ou a má vontade para com Santos que ficou com sua
Natividade.
Por fim, a intersecção entre alegoria e realismo, entre sentido universal ou histórico,
parte dos referentes do romance. O fascínio pelos aspectos alegóricos, por sua interpretação,
não pode nos levar a esquecer as remissões históricas. Estas, no entanto, não são legíveis de
modo imediato, como referência direta à História do Brasil. A dualidade, e ausência de síntese,
deve-se à incapacidade de se superar o conflito entre o mítico (sociedade fechada) e o histórico
(sociedade em transformação). Assim, Pedro e Paulo, personalidades incapazes de superar sua
finitude pelo ideal, são sombras, princípios em oposição (conservação e mudança) que repetem
a si mesmos. Eles não constroem sua identidade, não são grandes homens, nenhum deles casa
com Flora, e melancolicamente Aires afirma ao final que eles sempre foram os mesmos.
382 GOMES, Eugênio. Testamento estético de Machado de Assis. In: _______. Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958.
150
A interioridade que, sem resistência, gira ao redor de si mesma é negada, e aquilo que
poderia pôr termo ao movimento falsamente infinito transforma-se em enigma.
Theodor Adorno
383 HEGEL, Georg W. A filosofia da história. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1995.
384 AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1987. (Estudos, 2).
385 JAUSS, Hans R. El recurso de Baudelaire a la alegoría. In: _______. Las transformaciones de lo moderno: estudios sobre las etapas de la modernidad estética.
Madrid: Visor, 1995.
386 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
151
Hegel não nega os impulsos individuais, nem as paixões como motores da conduta
humana. Também insiste na tristeza de ver uma vida perecível destruída pelo próprio homem.
387 HEGEL, Georg W. A filosofia da história. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1995.
388 Cf. ARANTES, Paulo. A prosa da história. In: A ordem do tempo. São Paulo: Polis, 1981.
389 Op. cit. p. 157.
390 Hegel, G. W. op. cit. p. 26.
152
Surge, então, a questão de saber a finalidade de tais sacrifícios humanos 391. A única forma de
superar a melancolia, causada pela percepção da ruína, é negar o finito pela afirmação do infinito.
Pelo conceito, compreende-se que os caminhos adotados pela razão na história humana sempre
dirigem-se para a realização do espírito; quer dizer, deve-se manter a confiança na pertinência
da história e da racionalidade de seu movimento.
A realização histórica de um povo não se dá abstratamente, mas através de homens
históricos, que "são grandes homens exatamente porque quiseram e realizaram algo grande,
correto e necessário, não o imaginário e o fictício."392 Eles não são movidos apenas por uma
causa subjetiva, como inveja, ciúme, cólera, ou alguma outra paixão. Essas existem, mas Júlio
César ou Alexandre Magno são grandes homens por terem encarnado uma necessidade
histórica, pelas quais se sacrificaram.
"Para o criado de um herói não existem heróis", diz um conhecido provérbio, ao qual eu
acrescentaria (e Goethe repetiria, dez anos mais tarde): não porque o homem não seja um herói, mas
porque o outro é um criado.393
O ponto central está na perspectiva com que se encara as ações do herói. Pela
perspectiva da vida cotidiana, o herói acaba corroído por serem expostas suas fraquezas e manias
rotineiras. Se for visto pela capacidade de realização do ideal, então o herói torna-se instrumento
de construção do Estado, de concretização da vontade e liberdade humana. "Tão grande figura
precisa, inevitavelmente, esmagar algumas flores inocentes e destruir algo mais em seu
caminho"394. As paixões atuam por si mesmas, em que a idéia sofre perdas e danos por ser
concretizada, mas o ideal acaba realizado. O sujeito não fica preso em seu mundo interior, em
sua fantasia, mas, como homem prático, realiza suas idéias; dialeticamente, a idéia move-se
necessariamente para a empiria, para sua negação, mas como parte fundamental para sua
realização. O herói não fica preso, no entanto, à necessária diminuição que a exteriorização
provoca na subjetividade.
Nessa medida, voltamos à fatalidade da história que, em seu constante devir, deixa
atrás de si ruínas e vítimas. Algumas flores inocentes e algo mais em seu caminho395, são
destruídos pelo herói civilizador em sua marcha, mas o particular, para Hegel, é ínfimo perante
o universal. Indivíduos são sacrificados, mas idéia recompensaria o tributo da transitoriedade,
pois, perante a totalidade do Estado, nenhuma parte pode ser excluída.
Em síntese, a perspectiva hegeliana de construção da história pressupõe a
racionalidade do fluxo temporal e das transformações humanas. Através do herói, do indivíduo
excepcional, o progresso do espírito se realiza. A percepção do caráter prosaico e disperso da
realidade material impõe, como inevitável, a construção do discurso prosaico para a formação
da consciência. Isso não implica apego aos dados particulares, dispersos, finitos; não significa
ficar preso às ruínas do passado; tampouco serve para condenar os heróis por suas paixões e
transgressões morais. A prosa significa que o homem volta-se para fora de si, percebe as
mudanças, compreende a integralidade do caráter e, com tudo isso, realiza o ideal no mundo
finito.
O ponto de fuga da perspectiva hegeliana está no futuro, na realização do Estado,
baseado na crença no progresso e racionalidade da história humana. Exatamente pelo viés
contrário, pelo apego ao particular, à ruína, aos elementos prosaicos, ao lado humano e frágil
dos heróis, Walter Benjamin constrói sua filosofia da história396. A verdade não está na
totalidade, mas no fragmento salvo, na memória das vítimas resgatada. A imagem do Angelus
Novus, voltado para o passado, carregado pelo vento do progresso, inverte o sentido da história.
Nesse caso, o historiador não supera a melancolia, pois, ao se prender à ruína, quer reencontrar
um futuro em potencial não realizado, tornando-se incapaz de superar as perdas ou de esquecer
o fundamento violento e bárbaro sobre o qual se erigiu a civilização. O movimento histórico
realizado não é racional, mas fruto do arbítrio aniquilador de todos os que lhe são diferentes.
Ao contrastar os dois pontos de vista, vemos como no primeiro caso, a prosa
realista baseia-se na imanência, na interiorização do devir histórico nas ações humanas. Assim,
não é de se estranhar a relação próxima entre o realismo de Balzac e a prosa histórica de
Michelet. Existe a confiança na representação precisa do mundo, na revelação da unidade
histórica da sociedade que vai do gesto cotidiano ao sublime e que faz com que se leve a sério
qualquer acontecimento. De outro lado, a negação do romance tradicional realista centra-se na
desconfiança de que haja um telos, de um sentido para a história, vista como narração ou a
própria ação. A fragmentação do discurso, o apego ao particular, a ambigüidade, a descrença no
devir histórico, a percepção da eterna repetição do mesmo, a corrosão dos grandes heróis são
apenas alguns índices da incapacidade do realismo, como prosa totalizadora, de abranger o real
e conceituá-lo em sua complexidade, caso se fique atento aos detalhes esquecidos.
Quanto à literatura, Erich Auerbach defende a tese de que o realismo francês
representa de modo sério "a realidade social contemporânea, fundamentada na constante
movimentação histórica"397. Esse conceito de realismo chega à necessidade de uma linguagem
em prosa, em que haja mistura de estilos sublime e humilde, sem fazer a distinção entre objetos
baixos ou elevados.398 Na França, o realismo característico viria na representação das
transformações da sociedade desde 1789, através de Sthendal, Balzac, Flaubert, Goncourt e
terminando com Zola. Há nessa seqüência uma expansão no âmbito representado, em que o
acontecimento cotidiano fica enraizado na história contemporânea, sem que o escritor fuja dos
problemas atuais que o afligem.
Bakhtin distingue dois tipos de representação prosaica, a partir da romance russo,
ao construir um novo conceito de realismo dialógico a fim de caracterizar a prosa romanesca de
Dostoiévski, em contraste ao monologismo de Tolstói. O "realismo pleno"399, segundo termos
do próprio Dostoiévski, tem como objetivo representar as profundezas da alma humana. Não
se trata, como faria a psicologia, de definir o caráter de uma personagem pela voz monológica
do autor, pois nesse caso teríamos a coisificação do homem por uma definição e conclusão
fechadas. Ao contrário, através do dialogismo, a personagem revela-se a si mesma, como
autoconsciência em movimento, que traz sua visão do mundo em choque com a de outras
personagens. O autor não se anula, mas se coloca como uma voz entre outras na unidade não
monológica do romance polifônico, em que cada um é respeitado em seu ponto de vista, em
que cada discurso mostra a inconclusividade constante da personagem, em que o homem nunca
coincide consigo mesmo. 400
Essa noção de realismo, apesar de valorizar o caráter de mistura de estilos sublime
e humilde, difere em grande medida do conceito de Auebach. Para esse, o realismo constitui-se
396 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:________. Magia e técnica, arte e politica. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras escolhidas, 1)
397 AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1987. (Estudos, 2). p.464. Os dois
capítulos que tratam da prosa realista do século XIX identificam um processo comum que vai de Sthendal a Zola.
398 Op. cit. p. 436.
399 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. p. 51.
400 Op. cit p. 50.
154
Eu sou um crítico profano; creio que nenhum relato sobrenatural seja estritamente verdadeiro; penso
que, em cem relatos sobrenaturais, existam oitenta que nasceram da imaginação popular; entretanto
admito que, em certos casos, a lenda vem de um fato real transformado pela ficção. 404
Um milagre, em outros termos, supõe três condições: 1ª) a credulidade de todos; 2ª) um pouco de
condescendência por parte de alguns; 3ª) a aquiescência tácita do autor principal. 405
Importa agora tecer mais algumas considerações sobre esse livro de Renan, a
biografia histórica que escreveu sobre a figura lendária de Jesus. Ele descarta o excesso de notas
de rodapé, em que fossem citados autores eruditos para não tornar o texto maçante. Além disso,
401 ROSENFIELD, Kathrin. Figura e evento. In: ERICH Auerbach: 5. Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
402 RENAN, Ernest. A vida de Jesus: origens do cristianismo. São Paulo: Martin Claret, 1995.
403 Op. cit. p. 25.
404 Op. cit. p. 28.
405 Op. cit. p. 33.
155
Já disse e repito: se, ao escrever a vida de Jesus, nos ativéssemos em adiantar apenas as certezas,
deveríamos nos limitar a algumas linhas. Ele existiu. Ele era de Nazaré da Galiléia. Ele pregou com
charme e deixou na memória dos discípulos aforismos que lhes ficaram gravados profundamente.
Os dois principais discípulos foram Cefas e João, filho de Zebedeu. Ele excitou a ira dos judeus
ortodoxos, que conseguiram condená-lo à morte, por meio de Pôncio Pilatos, então procurador da
Judéia. Ele foi crucificado fora dos portões da cidade. Acreditou-se pouco depois que ele tenha
ressuscitado. Eis o que saberíamos com certeza, mesmo que os Evangelhos não existissem ou
fossem mentirosos, com textos de autencidades e datas incontestáveis, tais como as epístolas
evidentemente autênticas de São Paulo, a Epístola aos Hebreus, o Apocalipse e outros textos
admitidos por todos. 406
Por fim, Renan não nega o valor de verdade da religião. Ele nega a possibilidade de
um milagre, mas afirma a utilidade de todas partes do mundo. No contexto da histórica, a crença
popular no milagre fazia parte da consciência do povo na Judéia. Sua crítica dirige-se ao
materialista que explica tudo segundo à ciência. Assim, sem ser crente, Renan defende o ponto
de vista cético, perante os exageros da religião e da ciência que reduz tudo a uma explicação
mecânica.
Renan, ao construir a Vida de Jesus, enuncia de modo claro que seu projeto não é
avaliar moralmente a origem do cristianismo, mas explicá-la em sua própria lógica. Seu interesse
como historiador, crente no equilíbrio entre arte e ciência, é contar a história de um homem
excepcional. Como uma narração histórica, o autor centra-se no acontecimento relevante que
veio a transformar a história ocidental. Para fazer o leitor compreendê-lo, compõe sua obra a
partir de sua descrença em fatos sobrenaturais, considerando apenas os fatos e o contexto
históricos. Auerbach, ao contrastar os padrões clássicos de Tácito e Petrônio com o estilo dos
evangelhos, mostra como São Marcos toma um personagem comum, Pedro, pescador, de
formação humilde, para ser protagonista de sua cena. O discurso direto, sem traços da retórica
antiga, traz as marcas da oralidade. Enfim, ao centrar-se sobre o acontecimento cotidiano, o
evangelho faz com que o sublime surja do homem mais comum407. O realismo russo, no século
XIX, seguiria um curso próprio, pois estaria enraizado na dignidade cristã de cada ser humano,
em que o indivíduo humilde, enfrentando os conflitos imediatos, inserido em suas condições
particulares, ganha relevância ao ser tratado de modo sério. A inovação da prosa russa estaria
em valorizar a representação da alma, independente de sua origem humilde.
A relação entre literatura e história serve de base à tese de Hayden White408 de que
o discurso histórico não é uma representação neutra da realidade mas uma construção
tropológica. Hayden White estabelece um paradigma de quatro estágios, a partir das figuras da
linguagem – metáfora, metonímia, sinédoque, ironia –, a fim de analisar os modos como os
historiadores representam fatos históricos. Mostra como esse modelo está nas fases do
desenvolvimento piagetiano, na leitura freudiana do inconsciente, em Hegel, em Marx. Enfim,
as etapas marcam o desenvolvimento que associa uma imagem à realidade até o questionamento
da própria forma de representação. Poder-se-ia dizer que Hayden White toma a noção hegeliana
de que a História refere-se tanto aos fatos quanto ao discurso organizado para representá-los,
mas relativiza o valor de verdade desse último de acordo com o prisma do historiador. Assim,
o acontecimento é recriado segundo os padrões do historiador, e a Revolução Francesa pode
ser vista com os olhos do Realismo, da Tragédia, da Comédia, ou da Sátira.
A relação entre literatura e história é retomada por Peter Gay409, a partir de um
epigrama de Buffon de que o estilo é o próprio homem. O ponto central está na síntese final de
que o estilo de um historiador revela a mentalidade de sua época, seu horizonte e suas limitações.
Assim, podemos considerar o realismo como uma forma de representação da realidade, um
estilo de apreensão dos fenômenos empíricos, que fala de sua época. Não interessa somente o
que é mostrado, os homens humildes, burgueses, simples, mas principalmente a forma de
representá-los. Segundo Auerbach, existe a perspectiva séria de levar em consideração o homem
comum como uma personagem relevante. Sthendal representa, sem método ou sistematicidade,
o homem comum, que se constitui como sujeito por estar enraizado em condições históricas
precisas. Balzac, comparado a Michelet, obcecado por encontrar a unidade da sociedade
francesa, parte de um modelo biológico e não desconsidera nenhum elemento de seu ambiente
e dos acessórios para compor suas personagens. Flaubert, por meio de um estilo preciso e
cuidado, toma uma mulher comum, Ema Bovary, como protagonista. Tem a pretensão de
traduzir as formas vagas e cambiantes da experiência inconsciente da protagonista; assim, uma
cena prosaica como uma refeição vem a se tornar reveladora do caráter de Ema. Se Goncourt
tinha fascínio pelo feio e representava os pobres por ser uma novidade literária, Zola representa
esses homens em suas circunstância prosaica de vida.
Como já se viu antes, somente o discurso prosaico, enraizado no conto literário e
no romance, mostra-se apto para representar a realidade de modo vasto. Seja pela observação
direta da experiência, como sugere Poe; seja pela particularização do estilo na construção das
personagens; seja pela mistura de estilos, as formas literárias devem estar abertas aos mais
variados registros para representar o real de modo amplo. O ponto central é a busca de uma
identidade, em que a referência é o concreto e a experiência empírica, as quais se põem para
além da universalidade abstrata. A ciência, a filosofia, outras artes, o jornalismo seriam
instrumentos para abranger esses novos objetos a serem representados.
Talvez, em síntese, a perda da aura, da tradição, dos laços comunitários indique a
relação entre as novas formas discursivas e o realismo ao lidarem com o mundo desencantado
sem a presença de sinais transcendentes, sem milagre. A perda da crença em um modelo sagrado,
em uma explicação metafísica do homem, leva a considerar o homem apenas de modo objetivo,
tornando-se necessária uma nova compreensão que dê sentido à história humana. Hegel
concebe a história universal, em que todos os homens caminham para a liberdade e a
autoconsciência; depois a ciência afirma que a particularidade apenas tem sentido quando
explicada a partir do todo. O homem comum, em situação de isolamento, ganha relevância, ao
ser representado em sua irrelevância social, e aparece como personagem em busca de uma
identidade no meio da massa.
A alegoria moderna mostra a insuficiência da explicação do mundo, dada pelo
realismo e pelo historicismo. O discurso literário realista e a historiografia não retratam a
realidade de modo objetivo. O caráter destrutivo da intenção alegórica ressalta o arbítrio do
estilo do historiador e desvela a natureza ficcional do realismo, dissimulada aos olhos do leitor.
A confiança de Renan em um destino para história humana, mesmo expressa de modo
moderado, exemplifica a crença no progresso do século XIX, cujo fundamento está na
convicção de que as particularidades e os detalhes ganham sentido na inserção no todo. O olhar
está voltado para a construção, para irrupção do novo que, ao romper com o formalismo
tradicional, amplia a consciência humana. A perspectiva alegórica está fixa nas ruínas, incapaz
409 GAY, Peter. O estilo da história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
157
de superar a perspectiva melancólica que se apega aos elementos particulares destruídos pelo
desenvolvimento histórico.
O realismo necessita do desenvolvimento autônomo e imanente da história
humana. Lida-se nesse caso com a perspectiva secularizada de que não há moldura religiosa a
delimitar as ações humanas, mas elas se constroem a partir de si mesmas. O discurso realista
confia em que o desenvolvimento da história humana, com seu próprio movimento, é ordenado
e ruma sempre para o progresso. Hegel, como se viu, não desconsidera as perdas individuais ou
a degradação do ideal ao se realizar, mas as avalia como astúcias da razão em direção à liberdade
do sujeito, integrado ao Estado pleno. A convicção é a de que a moldura religiosa é
desnecessária, pois o espírito interiorizou-se na própria história humana, revelando
progressivamente a racionalidade do movimento histórico.
A intenção alegórica decompõe o realismo e demole tal concepção de história,
como "destruição do orgânico e do vivente"410. O spleen permite o distanciamento de si mesmo411,
de modo que o homem moderno tem a mentalidade de um morto em vida. Seu passado,
"experiência morta, constitui-se como um conjunto de bens mortos"412. Nesse sentido, o spleen
e o ennuiu substituem a melancolia barroca, do príncipe que perdeu o sentido da existência e
reflete sobre os fundamentos do poder real. No Barroco, a melancolia é uma paixão humana,
parte da natureza que domina o homem, puxando-o para baixo e prendendo-o a seus impulsos
corporais. Dentro do drama barroco, como instrumento pedagógico413, há uma luta exemplar
do homem contra a natureza. Ele deve aprender a se ver como um ser precário e finito. Como
nos Exercícios Espirituais inacianos, o homem deve ver sua realidade pelo ponto de vista da morte,
como fim de todo o sensível, de todo engano e fim do tempo; quer dizer, deve descobrir que o
corpo vai apodrecer, que a proximidade das paixões leva ao engano e que a eternidade é infinita.
Desse modo, o príncipe é o mártir, modelo de exaltação da vontade, capaz de superar a condição
humana, pelo domínio de si.
No deslocamento do conflito de fora para dentro do homem, o herói do drama
barroco descobre dentro de seu mundo interior os conflitos naturais414. O sujeito deve subjugar
pela vontade seus impulsos violentos, ligados ao vinho (embriaguez liberadora dos sentidos), à
violência destruidora da vingança e ao sexo, pois em todos esses aspectos a natureza vence o
homem e o aproxima do animal que apenas come e dorme. A superação da finitude, pela virtude
e pela submissão consciente a Deus, leva o homem a superar a melancolia.
A vida é revelada como sonho, ilusão em um movimento constante e desordenado.
Na visão do melancólico, a verdadeira natureza do mundo está na morte, no destino escondido
atrás da vaidade humana, da ilusão de poder, riqueza e prazeres físicos. Na natureza, a vida não
só leva à morte, como traz dentro de si o germe de sua destruição. A morte, como única certeza,
interrompe as ilusões da vida e encerra o espetáculo da existência.
A idade barroca, na sua contradição exacerbada entre ideal religioso e realidade política (é a idade
das sangrentas guerras de religião), expõe aos olhos dos contemporâneos visões de horror tais que
proíbem ao poeta a busca serena de uma harmonia supra temporal. (...) Mas as certezas religiosas e
teológicas são submetidas à prova de uma realidade tão cruel que vacilam. É o choque entre o desejo
410 BENJAMIN, Walter. Parque central. In: ________. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Obras escolhidas, 3.).
p.163.
411 BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1994.
412 BENJAMIN, Walter. apud BOLLE, Willi. op. cit. p 132.
413 CARPEAUX, Otto Maria. Teatro e Estado barroco. Rev. Estudos Avançados, v. 10, set.-dez. 1990.
414 AUERBACH, Erich. O príncipe cansado. In: ________. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1987.
(Estudos, 2).
158
de eternidade e a consciência aguda da precariedade do mundo que, segundo Benjamin, está na fonte
da inspiração religiosa.415
“E Deus viu tudo o que fizera, e viu que tudo era bom”. Portanto o saber do Mal não tem objeto.
Não existe o Mal no mundo. Ele surge no próprio homem, com a vontade de saber, ou antes, no
julgamento. O saber do Bem, como saber, é secundário. Ele resulta da prática. O saber do Mal,
como saber, é primário. Ele resulta da contemplação. 417
415 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1990. (Estudos, 142). p. 49.
416 WITTE, Bernd. Walter Benjamin: una biografia. Barcelona: Gedisa, 1990. (Esquinas, 1). p. 87.
417 Op. cit. p. 256.
159
Em todos esses casos, o episódio dramático não é visto como uma ocorrência isolada, mas como
uma catástrofe natural e necessária, inscrita na ordem no mndo. Mas mesmo em sua função utilitária,
a alegoria não é intensificação da ação, mas interlúdio, amplo e exegético. 419
VIII – É TEMPO!
Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa
casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o
que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender
das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é
uma ópera”, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a
definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo.420
Esse breve capítulo traz alguns elementos interessantes. Ele é construído como
improviso, já que o intento inicial de retornar à tarde de novembro de 1857 não é realizado e,
ao final, há uma mudança de curso, passando-se a explicação da máxima de que “a vida é uma
ópera”. Ficam caracterizados o desvio de curso e a aparente arbitrariedade da digressão. O que
tem a ver o tenor com a história de Bentinho? Nada. Não aparece em mais nenhum momento
do romance.
Como mostra Roberto Schwarz, o enredo somente é bem interpretado, quando se
considera o narrador colocado em situação. Assim, Bento Santiago, velho casmurro, vive
418 LUKÁCS, George. Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels. In: ________. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
419 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 216.
420 ASSIS, J. Maria Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989.(Obras completas, 1)
160
sozinho com um criado em uma casa idêntica à de sua infância. Abandonando o projeto da
história dos subúrbios, entrega-se ao fluir da memória. Seu apego ao passado é tão forte, que os
sentimentos e conflitos outrora vividos permanecem vivos dentro de si. Poder-se-ia dizer que
ele está preso às lembranças como se fossem realidades presentes. Não há perspectiva temporal
construtiva, apenas um retrospecto com final doloroso, em que o leitor sabe, desde a auto-
apresentação, da solidão do narrador.
Esse movimento dá-se, então, em fluir espontâneo da rememoração do passado,
que gira em torno do conflito central dessa existência conturbada. A espontaneidade não
significa a sinceridade romântica ou a autenticidade de um narrador que se desnuda para o leitor.
Trata-se apenas de um aproveitamento de padrões da oralidade na ordenação das memórias.
Sem seguir um plano prévio ou uma ordem rigorosa de centrar-se apenas nos elementos cruciais,
o narrador dispersa-se, variando o ritmo da narração, desviando-se do eixo central, realizando
pausas para comentários. Enfim, Bento Santiago prende-se a algumas cenas do passado, como
o beijo em Capitu, lembrando o que sentia na descoberta de seu amor. O sentimento adolescente
é apenas uma sombra, sem que possa ser revivido, pois a atualidade do narrador coloca uma
nota dissonante, um tom amargo, que não permite mais aceitar as crenças da outra época. Assim,
a narração fica marcada pela dissociação entre Bentinho e Bento Santiago, em que não há uma
plena identidade entre ambos. O menino, isso sim, serve de figura a ser preenchida de sentido
pelo velho.
O outro ponto relevante do capítulo citado é a ênfase dada ao caráter de origem
dessa tarde de novembro, tarde do primeiro beijo, do penteado, das dissimulações de Capitu
(“Eu amava Capitu! Capitu me amava”). A vida, antes dessa tarde, teria sido baça, mera
preparação da cena. Discursivamente, Bento Santiago substitui a narração da origem de seu
amor pela origem do mundo. Ele mesmo diz, no capítulo seguinte, que a teoria era arbitrária, já
que a vida poderia ser “uma ópera, uma viagem de mar ou uma batalha”, mas ainda assim acaba
por aceitá-la.
Os amores de Bento e Capitu, origem da vida, vêm associados à teoria da ópera.
Desvio de um narrador sem método, ela insere, no entanto, desde o princípio do romance, a
história de Bento Santiago na ordem do mundo, figurada pela ópera. O causo tem a função
alegórica, mas adquire aparência risível por ser de um ex-tenor italiano, bêbado incapaz de
cantar. Por essa teoria (dita verdadeira)421, o diabo fora expulso do grande conservatório regido
por Deus. Para voltar às boas graças, ele faz a música para um antigo libreto, escrito como
divertimento por Deus. Este não quer saber de encená-lo, mas, por tanta insistência do diabo,
acaba criando um teatro especialmente para esta ópera, a terra, sem que nunca aí compareça. O
maestro é o diabo, o que explica muitas vezes as dissonâncias entre libreto e música. Shakespeare
seria um simples plagiário. Ao aceitar esta teoria, Bento Santiago identifica na sua vida duo,
terno, quator.422
No relato, por trás do improviso, aparece o rigor alegórico. Existe uma intenção
alegórica ao narrar o princípio do mundo (luta do tenor e barítono pela soprano) em substituição
ao princípio da existência, “a tarde de novembro de 1857”, quando Bento, aos 15 anos,
descobriu seu amor (ou seu interesse sexual) por Capitu. O vínculo, ironicamente arbitrário, fica
reforçado pela citação de Shakespeare. No contexto do pequeno causo, a citação fica solta, até
mesmo despropositada, realçando tanto sua inverossimilhança quanto o valor do dramaturgo
inglês, capaz de compreender o funcionamento do universo humano. A peça ali citada é a As
alegres damas de Windsor, mas ao longo do romance é Otelo que assume o primeiro plano.423 Com
isso, a pausa na apresentação da matéria narrada (deixar de lado Capitu e Bento) faz parte da
narração, como mal narrar, mas também como chave interpretativa de outro sentido possível.
Dom Casmurro é um romance extremamente ambíguo em todas as medidas. Assim,
a data precisa, a descrição detalhada do ambiente da casa, o relato da história de cada
personagem caracterizam o narrador realista, atento e minucioso, cioso dos fatos que apresenta
ao leitor. Ao mesmo tempo, esse narrador introduz um relato alegórico, jocosamente
reconstruído, que constrói pela parábola um princípio geral ordenador de todos os pequenos
acontecimentos. Assim, o discurso histórico-realista desfaz-se pela atemporalidade da alegoria,
que constrói um conflito do bem contra mal, apenas repetido pelos homens. Cabe lembrar o
delírio de Brás Cubas, em que o movimento histórico reduz-se a uma repetição cíclica e
monótona dos mesmos conflitos do homem, joguete das paixões.
O discurso realista supõe a fidelidade aos fatos apresentados, como se a linguagem
fosse um instrumento capaz de representar o mundo. Através de um estilo e tom sóbrios, o
narrador constrói retratos de cada personagem relevante – prima Justina, Tio Cosme, José Dias,
D. Glória, a gente Pádua, Capitu, Escobar –, sem descuidar de inseri-los no contexto social em
que vivem seus conflitos. A precisão não é desmentida, mas corroída em seu valor referencial,
na medida em que o romance tem um conjunto fragmentário de capítulos, em que a sucessão
cronológica é quebrada pelas digressões e pausas do narrador, bem como por lembranças que
saem do esquema linear. Não se pode esquecer ainda que o narrador é um sujeito fechado sobre
si mesmo, que luta contra a passagem do tempo para restaurar o passado no presente. Aí está o
traço principal de ordenação do romance, em que a teoria da ópera ou a citação de Homero
insistem na lei de uma repetição intemporal dos mesmos princípios.
Em Dom Casmurro, o fato vem junto ao comentário. O narrador reflete sobre o que
conta e como conta, deixando à mostra sua forma. Muitas vezes chama o(a) leitor(a)
estabelecendo um diálogo, que, ao contrário da intervenção romântica, evita a crença na
veracidade dos fatos ou a identificação com eles. Em primeiro plano, é posta a construção do
discurso narrativo. No exemplo dado, ao aceitar a teoria, o narrador comenta e antecipa o
desenvolvimento da história. Plágio de Shakespeare, sua história traria a marca de Otelo como
verossímil encenação da verdade imortal. Há uma citação truncada da imagem barroca de que
o mundo é um teatro, ou um sonho, do qual o homem despertaria pela experiência da morte.
Ao mesmo tempo, o “leitor amigo” e “desgraçado leitor” é levado a interpretar o que está
escondido por trás da sinceridade ou autenticidade de Bento Santiago, que poderia ser um ator.
De todo modo, existe um hiato entre o sentido literal (realista) e o alegórico. Mesmo sendo um
texto preciso, marcado pelo caráter prosaico e cotidiano, impõe-se, como necessidade, a
interpretação alegórica. Em nenhum momento, a questão principal é resolvida, no entanto. Quer
dizer, o enigma do romance permanece um paradoxo insolúvel, sem possilidade de se alcançar
uma síntese, pois há uma ausência completa de contraste entre a voz do narrador e a de outros
personagens. Assim, para o leitor, o mundo ficcional constrói-se centrado na subjetividade
hermética de Bento, mas suas normas e seus padrões parecem a encarnação dos princípios
naturais.
O conhecimento mágico, que inclui a alquimia, ameaça seus adeptos com a solidão e a morte
espiritual. Tanto quanto a Renascença, essa época consagrava à alquimia e ao rosacrucianismo, como
provam as invocações dos espíritos, no drama barroco. Sua mão de Midas transforma tudo o que
423 CADLWELL, Helen. The Brazilian Othello of Machado de Assis. Berkeley: University of California Press, 1960. Nesse livro, já clássico da crítica machadiana,
a autora põe em dúvida a credibilidade de Bento Santiago, que seria uma fusão de Othello e Iago. Assim, ela defende, a partir da relação Dom Casmurro e Othello,
a inocência de Capitu.
162
ela toca em significações. Transformações de toda espécie – esse era o seu elemento; e seu esquema
era a alegoria. 424
Se o objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, ela o priva de sua vida, a coisa jaz como se
estivesse morta, mas segura, por toda a eternidade, entregue incondicionalmente ao alegorista,
exposta a seu bel-prazer. Vale dizer, o objeto é incapaz, a partir desse momento, de ter uma
significação, de irradiar um sentido; ele só dispõe de uma significação, a que lhe é atribuída pelo
alegorista.(...) Em suas mãos, a coisa se transforma em algo de diferente, através da coisa, o alegorista
fala de algo diferente, ela se converte na chave de um saber oculto, e como emblema desse saber ele
a venera. Nisso reside o caráter escritural da alegoria. 425
424 BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.252.
425 BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 206.
426 ADORNO, T. W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: BENJAMIN et al. Textos Escohidos. 2a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os
Pensadores).
163
desiludido com a traição de seu primeiro amor, mas essa leitura apenas se impõe pelo
nivelamento de todos os trechos discrepantes, como se fossem mero virtuosismo, passatempo,
que não afetam a história contada. Lendo Dom Casmurro, através da imagem da Dama-mundo427,
vê-se que o princípio da dissolução e destruição ocupa o primeiro plano da narrativa. Por detrás
da face brilhante da volúpia, vem escondida a morte e a destruição. Assim, encontra-se por
detrás da aparência unitária os sinais de um narrador obsessivo, ciumento, melancólico, apegado
aos detalhes do passado, a fim de que revelem uma outra ordem da história. O narrador
descobre na Capitu menina a Capitu traidora. Na descrição exemplar, enfatiza detalhes da
pobreza da amiga, a diferença de classe, a maturidade da menina. Ao lembrá-la, estaria movido
pela saudade de sua paixão, dela e de si mesmo. A espontaneidade do sentimento esconde, no
entanto, traços da diferença de condição entre ambos. Ao final, ao rementer o leitor para os
primeiros capítulos, a fim de atestar a veracidade de sua conclusão, Bento Santiago remete
àquilo que ele mesmo construiu a partir de seu ponto de vista.
O leitor sabe desde o princípio que o narrador velho (casmurro, melancólico,
maledicente, desconfiado) não está no jovem menino. Capitu teria sido a assassina ao matar o
jovem Bentinho, apaixonado, que tinha no primeiro amor a fé de um mundo brilhante: “falto
eu mesmo”428. Ele não está na casa de Matacavalos, não consegue atar as duas pontas da vida,
pois não se identifica com o menino que foi, sente a dor e a saudades, mas não consegue se
identificar mais. Da morte de seu amigo, de seu casamento, de Ezequiel (que não é mais visto
como seu filho), de seu primeiro amor, nasce um novo Bento Santiago. A revelação não é a
mesma de São Paulo, no caminho de Damasco, que, cegado pela luz, passou a ver pelos olhos
da fé. Ao contrário, Bento perde aí as suas crenças.
Não se trata, nesse momento, de inverter a ótica do romance e inocentar Capitu. A
questão é discutir o discurso desse narrador, na forma de sua composição. A voz arbitrária de
Bento Santiago não deixa espaço para outro testemunho. Em um processo irônico, preso dentro
de si mesmo, seus argumentos mostram a natureza de seu caráter, sua posição de classe429.
Enfim, Capitu, Escobar, Ezequiel, Dona Glória são reconstruções do narrador. Nelas ele não
se reencontra mais, pois, cabe lembrar, a casa de Engenho Novo reproduz apenas a aparência
da casa de Matacavalos. O estilo de construção da memória revela, portanto, o homem e as
condições históricas de sua composição.
Volto, então, à estrutura alegórica e velada do próprio romance. Esta me parece ser
uma marca do próprio romance machadiano. Assim, o Bentinho era um menino preso em sua
casa e agarrado às saias da mamãe, Dona Glória. Se lembrarmos Segismundo, personagem de
La vida es sueno430, podemos ter a imagem forte de Bento Santiago. Preso, encadeado nas
correntes do misticismo, do obscurantismo, acaba invejando a liberdade dos animais, das
plantas, da pedra e da morte. Liberto, acabaria por ser um rei muito violento e cruel, cumprindo
a profecia do pai, Basileus, que, para evitá-la, teria prendido o filho. Segismundo supera pela
sabedoria a profecia dos astros e recompõe a ordem do reino da Polônia. Bento Santiago, em
criança, é a expressão da desordem, da infantilidade, do medo, da incapacidade de escapar aos
limites de seu medo. Temos as idéias sem língua. No casamento, Bento se revela como senhor.
Vindo o mal pela manhã adiante, tentei vencê-lo, mas por um modo que o não perdesse de todo.
Sábios da Escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto. Não podendo rejeitar de mim aqueles
quadros, recorri a um tratado entre a minha consciência e a minha imaginação. As visões feminis
seriam de ora avante consideradas como simples encarnações dos vícios, e por isso mesmo
contempláveis, como o melhor modo de temperar o caráter e aguerri-lo para os combates ásperos
da vida.431
Em jovem, fetichista, seus olhos se prendiam as pernas de uma mulher que, caída,
teve o vestido levantado. Ele não viu a queda, mas apenas as pernas e o seu desejo sexual. Seu
desejo é projetado como culpa da própria mulher que caiu, como marca do gênero feminino
que leva os homens à queda. Repare-se na cena citada o artifício do adolescente, traduzido pelo
adulto, que não quer o objeto desejado, as pernas; essas, no entanto, são a encarnação do pecado,
da traição à moral cristã. Como solução do impasse, ele continua a evocar as mesmas pernas
femininas, mas lhes atribui um sentido virtuoso.
Ainda no caso da teoria da ópera, existem dois termos fundamentais a serem
colocados. O primeiro é o aspecto mítico. O ex-tenor italiano insiste na veracidade de sua
narrativa, como verdade última sobre a origem do mundo. Dentro disto, a individualização do
autor e arbitrariedade da criação mostram que falta à narração a crença e aceitação pela
comunidade. Mesmo assim Bento Santiago insiste na sua formulação, como uma alegoria de sua
existência. Pode-se aproximar das invenções platônicas que serviam de ilustração de uma
verdade a ser expressa. A alegoria do diálogo Fedro, em que Sócrates narra a invenção da escrita
pelo Deus egípcio Thot, não funciona como uma ritualização de uma verdade sagrada. Tanto
ele mesmo quanto o seu interlocutor, Fedro, tomam a narrativa como exemplar de um problema
geral. Ele constrói com isso a tese de que a escrita implica uma diminuição da capacidade da
memória, pois o homem transfere para o papel o que gostaria de lembrar, desativando sua
memória e esquecendo o dado. Quando Bento diz aceitar a teoria da ópera, dá uma chave
hermenêutica para sua história, na medida em que a narrativa universalizante (como alegoria)
está identificada ao drama individual da personagem.
O caráter teórico está enfatizado no procedimento narrativo. Como já se viu, a
história do tenor vem a substituir a narração da tarde de novembro de 1857, que seria o ponto
zero das memórias. Em vez de contar o “penteado”, o “beijo”, o “sou-homem”, ele faz uma
digressão. Segundo Eugênio Gomes432, o ex-tenor italiano Marcolini, autor da teoria, representa
uma personagem tipicamente anedótica, que não retorna mais ao romance. Ele funciona como
um espaço livre “para o afluxo mais livre da realidade, em vista de suas naturais conexões com
o povo, que era um modo de atenuar os excessos de subjetivismo filosófico ou simplesmente
digressivo”433, mostrando nesse caso o apogeu da ópera no Rio de Janeiro. A observação do
crítico serve para enfatizar o caráter dispersivo desse capítulo, que não contribui diretamente
para a compreensão da história amorosa de Bento e Capitu.
De acordo com o que já foi trabalhado, no entanto, esse desvio pode ser visto como
uma substituição em que a “história” universal e alegórica identifica-se com a individual e literal.
A narração é substituída pela digressão na ordem do romance, na medida em que a seqüência,
a linearidade narrativa, metonímica, cede lugar para uma associação metafórica. Temos aí uma
ligação não-linear, arbitrária, por um nexo de semelhança entre a parte e o todo, estabelecido
pelo narrador.
A forma digressiva obriga ainda a pensar o protagonista como alguém complexo,
múltiplo, com facetas desconhecidas. O romance se desliga de seu autor e se relaciona de modo
indicial com os fatos representados. O leitor deve construir a imagem do dono da voz narrativa,
bem como o universo ficcional representado pelo discurso. Ao mesmo tempo, a dispersão de
Bento em ações fora do eixo faz do romance um mosaico, como um conjunto de anedotas,
apólogos, comentários, cujo princípio de ligação deve ser pensado pelo leitor.
capítulo XXXVI, “Idéia sem pernas e idéia sem braços”, Bento representa a sua interioridade,
434 EULALIO, Alexandre. O Esaú e Jacó na obra de Machado de Assis: as personagens diante do espelho e De um capítulo de Esaú e Jacó ao Painel d'último
baile. In: _______. Escritos. Org. de Berta Waldman e Luís Dantas. São Paulo: Ed. da UNICAMP; Ed. da UNESP, 1992.
435 GOMES, Eugênio. O enigma de Capitu. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
436 BENJAMIN, W. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 206.
437 GOMES, Eugênio. In: op. cit.
166
sua vontade, através da personificação. A alegoria funciona como mediação entre o mundo
interior e a expressão discursiva que o concretiza. As imagens tornam-se o meio de dar
concretude aos sentimentos, conflitos, caráter e opiniões. Não há um pensamento abstrato em
Bento Santiago capaz de exprimir os conceitos de modo direto, precisando, pois, da mediação
alegórica. A idéia de fazer e refazer as tranças de Capitu e a de beijá-la não eram organicamente
perfeitas, faltava-lhes a parte central para realizá-la, numa as pernas e na outra os braços. No
movimento de leitura para avante ou para trás, vê-se que Bentinho tinha uma imaginação fértil.
Para escapar ao seminário, prometeu rezar milhares de orações, sonhou encontrar o imperador,
imaginou contar tudo a D. Glória, mas tudo não passou de fantasias:
A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida
e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver
lido em Tácito que as éguas íberas concebiam pelo vento; se não foi nele, foi noutro autor antigo,
que entendeu guardar essa crendice no seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma
grande íbera.438
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha lá idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe
vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e
alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde
uma concepção grande executada por meios pequenos. 439
estratagemas se apagam, pois ele detém a voz narrativa e a posição de senhor respeitável lhe dá
legitimidade. De todo modo, Dom Casmurro encena o conflito de uma subjetividade presa
dentro de si mesma, “a representação de uma subjetividade absoluta” a caminho da
autodestruição.
“A vida é uma ópera” relaciona-se diretamente com o caráter do narrador. Bento
Santiago é o velho que se autonomeia de Dom Casmurro, já que constrói para si o papel de uma
personagem, misto de solitário, misantropo e irônico. Quando abre o primeiro capítulo de suas
memórias, com a aquisição da alcunha, o pseudo-autor Bento Santiago deixa claro o final a que
chegará: velho, solitário, tentando atar as duas pontas de sua existência, que não se identifica
mais com aquilo que já foi. Velho desenganado, cético, descrente de si e dos outros, duvida das
pessoas e dos acontecimentos.
O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dento da de Macavalos, ou se esta foi mudada
naquela por efeito de algum caso incidente. (...) Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo, se
te lembras bem da Capitu menina hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta
dentro da casca.
É bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é suma das sumas, ou o resto dos restos, a
saber que que a minha primeira amiga e o meu melhor amigo, tão extremosos ambos e tão queridos
também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me.441
Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez
ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta,
forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas
tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena,
olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito
de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de
tocador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque,
rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos. 442
Preso , atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela
com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes de meus quinzes anos, leitor precoce. 445
Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, os dois lances de há quarenta anos, é
para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe; o pai não lhe meteu mais medo.
No meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste
mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu à
cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja. 446
O autodomínio de Capitu contrasta com a inépcia de Bento para lidar com a mesma
situação. Ela mente do modo mais natural, enganando o pai. Ele percebe a mentira descarada e
inveja-a em sua maturidade. Agora, juntando as idéias bem formadas, o autocontrole, a sua
maturidade e a sua pobreza, a menina aparece aos olhos do leitor como o avesso dele. Ela
dominou a situação e a dirigiu para onde queria. Assim, na primeira descrição de Capitu, o
menino inseguro admira sua amiga e o narrador adulto destrói a idealização infantil pela
apresentação do cotidiano. No processo de corrosão, os elementos prosaicos não vêm a serviço
de uma descrição objetiva, mas servem ao interesse do narrador adulto para mostrar na menina
a presença da mulher.
Ao final de suas memórias, o velho casmurro remete o leitor ao início. O narrador
leva a crer, então, que se trata de uma descrição neutra, como se o leitor tivesse visto o próprio
fato ocorrer. No entanto, há uma compreensão prévia do todo, já que o término da relação
443 SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. In: Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
444 ASSIS, J. Maria Machado de. In: op. cit. p. 821.
445 Op. cit. 844.
446 Op. cit. 850.
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antecede o retrato de Capitu. Não há mera descrição, mas uma interpretação do passado, em
que o sentido buscado é o previamente conhecido. Desse modo, a palavra escrita não surge
como espaço de significação, mas como abismo de obscuridade:
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que formava aqueles
olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que
eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga
que se retira da praia nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas,
às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a
onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-
me.447
A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão
apaixonadamente fixa, que não admira que lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a
gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que
a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva,
sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como quisesse
tragar também o nadador da manhã. 448
Para primeira ilustração do que acabamos de dizer, consideremos a forma humana: representa esta,
como já anteriomente mostramos, uma totalidade de órgãos que constituem outras tantas
subdivisões do conceito, de tal sorte que a cada membro pertence uma atividade particular e só lhe
corresponde a execução de um movimento parcial. Se porém perguntarmos em qual destes órgãos
aparece a alma enquanto alma, logo pensamos que é nos olhos, porque no olhar a alma se concentra;
ela não se vê através do olhar como também no olhar se deixa por sua vez ver. 449
O corpo humano ilustra a obra de arte, pois, através dos olhos (de um elemento
sensível), o sujeito expressa sua alma. As partes, unidas de modo vivo, têm cada uma sua função
para formar o todo orgânico, vivo; não como um animal mas como um homem que descobre
em si a consciência, a presença do Espírito. Essa imagem dos olhos, e do olhar, ajuda a entender
a alegoria em Dom Casmurro. Os “olhos de ressaca” não são meramente ilustração, mas uma
forma de expressão artística. Como destaque, a parte discrepante leva a reinterpretar o todo. Os
olhos de Capitu sintetizam seu caráter, em que a beleza, como o canto das sereias, atrai o
homem, levando-o a destruir-se. Os olhos funcionam como chave alegórica não apenas da
personagem que representa a perfídia feminina (na visão misógina do narrador), mas também o
romance. A beleza do mar, que atrai o nadador, Escobar, esconde dentro de si a morte; os olhos
não trazem, assim, a ambivalência da vida e da morte. Ao dizer que não é mais o mesmo, Bento
insiste no estranhamento com sua identidade pretérita, como se fosse outro, representando de
certo modo sua própria morte. Nessa leitura, ele teria caído no abismo, nas águas cavas, de
dentro das quais constrói suas memórias.
Poder-se-ia objetar que há exagero ou supervalorização de uma imagem particular.
Não me parece, caso se leve em consideração que o romance destaca apenas os momentos
cruciais da história de Bento e Capitu, momentos intensos. Desse modo, a visão dos olhos de
Capitu dá-se no início quando Bentinho descobre seu amor por ela, marcando a luta contra o
seminário e pelo casamento. A sua repetição, enquanto duplificação, anuncia a destruição do
casamento, da saudosa amizade de Bento pelo defunto, a perda do filho, enfim, a desarticulação
pela morte da vida construída até aí.
– E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; – que faria o público, se ela deveras fosse culpada,
tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso
sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria
lançado ao vento, como eterna extinção... 450
leitor acompanhe a descoberta amorosa, sem levar em conta a forma de narração. Na releitura,
encontra-se um outro sentido, a expressão intencional de um narrador preso em sua própria
subjetividade, amargurado. Dói-lhe a perspectiva de que no beijo de amor escondia-se a
dissimulação da traição.
Talvez a imagem mais forte, em termos de alegoria, seja a de Ezequiel. O menino,
filho desejado e esperado para realizar o casamento feliz, traz no rosto, no entanto, a expressão
da traição. Ele revela o outro, o amigo desleal. Traz apenas o sobrenome Santiago, do pretenso
pai. O criador e a origem vêm do outro. A presença viva da criança, que o chama de pai,
representa a morte, a perda do ideal, a destruição do amor.
Esse narrador, não confiável, dominado pela paixão do ciúme, diz uma coisa e
significa outra. Assim como ele olha para o seu passado sob o filtro duplo da saudade e da
suspeita, também o leitor retoma o romance desvendando a intenção alegórica da obra. O
narrador prova a culpa de Capitu ao destacar sinais de um caráter dissimulado.
Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. O que faço,
em chegando ao fim, é correr os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas idéias
finas me acodem então!451
A estrutura desse romance não é apenas fragmentária como também elíptica, com
poucos acontecimentos narrados e grandes lacunas. Entre a denúncia de José Dias (naquela
tarde de novembro de 1857) – a conversa no passeio público, o penteado, o beijo – e a ida do
seminário transcorreram meses. O tempo do seminário, a estada em São Paulo (quando Escobar
serviu de pombo correio), o casamento são descritos em breves cenas. A escrita elíptica permite
ao leitor imaginar fatos que confirmem o sentido geral do romance, que, assim construído,
obriga o leitor a prestar atenção em seu funcionamento. A história narrada não é o único dado
relevante, mas também o processo narrativo, a voz do narrador, a seleção dos fatos, as palavras
usadas para descrevê-los importam para a análise do romance. O narrador não adula, nem agrada
o leitor com uma história linearmente disposta, mas quer convencê-lo da correção de sua
perspectiva.
Assim, as leituras de Helen Caldwell452, John Gledson453 e Roberto Schwarz454
desvelam um outro sentido do romance. Tiram o véu ao optarem por uma perspectiva parcial
e interessada, centrada no principal envolvido. Assim, Dom Casmurro, um auto de acusação455,
representação realista da sociedade brasileira do século XIX, do movimento de classes, teve
leituras variadas. Para Caldwell, Bento/Bentinho não é apenas um velho ciumento relembrando
o passado, mas a encarnação de Otelo que, cegado pelo ciúme, não vê o mundo à sua volta a
não ser com os olhos da imaginação. Segundo o ponto de vista da crítica norte americana,
“Santo” e “Iago”, bem e mal, Bento encarna dentro de si o confronto essencial da alegoria e,
como Otelo, acusa sua mulher, inocente e submetida ao poder patriarcal. Capitu seria inocente,
então. Para Gledson, o romance mostra alegoricamente o funcionamento da sociedade
brasileira, escravocrata, colonial, em que o núcleo familiar funciona como uma metáfora do
Segundo Império. Roberto Schwarz mostra Bento Santiago como típico representante da elite
que não aceita a autonomia de sua mulher, metonimicamente, o esclarecimento de toda classe
A nova forma do romance não segue a tradição realista, para não reproduzir apenas
a fachada, a aparência de ordem da realidade, ou seu aspecto ideológico. A obra alegórica, como
Dom Casmurro, representa a “essência e distorção”. A construção da obra, mostrada ao leitor,
simula o improviso, tateia em busca de uma forma provisória. O sentido não se constrói pela
totalidade orgânica, pela história representada, pelas ações das personagens, mas pelo discurso
do narrador. De certo modo, o romance traz para dentro de si a interpretação alegórica, centra-
se no que foge ao plausível, ao verossímil, ao esperado. No dado absurdo, discrepante, repetido,
a exegese alegórica busca o apoio para a interpretação. No caso de Dom Casmurro, a alegorese é
interiorizada, na medida em que o discurso digressivo fragmenta a ação, como fruto da busca
de significação do narrador. As partes (como a teoria da ópera ou “os olhos de ressaca”)
relacionam-se ao todo por associação arbitrária. A subjetividade do narrador impede a certeza
da informação, pois o sujeito fechado sobre si mesmo não afirma nada com segurança; caso o
faça, não se torna confiável. Pela interpretação alegórica, necessária por causa da fragmentação
e do hermetismo do discurso, o sentido se desenha pelos pontos discrepantes e extremos.
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