A Performance Como Ritual PDF
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Ficha Técnica:
A PERFORMANCE COMO RITUAL
da Arte como Veículo de Jerzy Grotowski ao
Theyyam do Norte Malabar.
O presente estudo foi redigido segundo as normas da língua portuguesa instituídas pela
reforma ortográfica de 1971.
Para os nomes estrangeiros, de pessoas, topónimos, práticas ou grupos sociais, e.o. usam‐
se os nomes portugueses quando estejam claramente consagrados pelo uso e/ou
devidamente suportados por fontes credíveis e corroboráveis. Nos restantes casos usa‐se a
grafia da sua língua de origem, na sua transliteração em alfabeto latino, quando aplicável.
Os termos da língua malaiala, à falta de uma regra comum de transliteração, foram vertidos
para o alfabeto latino segundo a forma mais comum entre os autores ou informantes
credíveis.
II
Dedico este trabalho à memória de
Jerzy Grotowski, meu Professor e
alma mater. Estou certo de que
‘Bos’ teria apreciado os meus
esforços para enquadrar
teoricamente o trabalho que com
ele fiz na prática.
III
Agradecimentos
O presente trabalho foi possível graças aos contributos, conivência e participação
de muitos. Devo agradecer:
À minha esposa, Madina Ziganshina, cúmplice e companheira de aventuras;
Ao Professor Doutor João Maria André, meu orientador, pela infinita
paciência, bons conselhos e correcções;
Aos restantes docentes do Curso, muito em especial aos Professores Doutor
António Pedro Pita, Doutor Fernando Matos de Oliveira e Doutor Luís
Umbelino, pelas boas e difíceis questões com que me confrontaram;
Ao meu amigo Luís Timóteo Ferreira pelas longas e animadas tertúlias, pelas
ideias inverosímeis e pela veemente revisão do texto;
Aos meus colegas de estudos, em especial à Cristiane Werlang e ao João Luz,
pela camaradagem e cumplicidade;
Ao meu amigo e principal patrocinador do estudo de campo, Santhosh
Thayale Purayil, pelo alojamento, pelo apoio logístico, pelas informações
credíveis; e a toda a sua família que, durante uns tempos, foi também
minha; e aos seus colaboradores de Travel Kannur, em especial a Rajesh
Nalinalayam, a Ranjith M. V. e a Raghunathan Kannothumkandy, pelo
suporte e cooperação;
Ao meu amigo Giorgio De Martino, pelas aventuras partilhadas e pelas boas
pistas e extensa bibliografia sobre o Theyyam;
Aos meus amigos e informantes Manjunath K.V., Shamna K., Shyju Valsan
Kaniyal, Narayanan Madakkal e Shyamala Dhayarath. E aos muitos outros
informantes anónimos;
Ao Professor Doutor Dinesan Vadakkiniyil, da Universidade de Calicute, pelas
longas e enriquecedoras conversas sobre o Theyyam;
A Balakrishnan Panikkar, pelos ensinamentos. E a Rajesh Peruvannan, pelas
extraordinárias performances e franca camaradagem.
IV
Resumo
Pretendemos, com esta dissertação, fundamentar a categorização como ritual laico
da Arte como Veículo, propósito da última fase do trabalho de Jerzy Grotowski,
discutindo os modos particulares dessa categorização.
No primeiro capítulo expomos, resumidamente, o percurso artístico de Grotowski e
as principais influências que marcaram o seu pensamento. Explicamos os conceitos
fundamentais que estruturam a sua prática artística e ensaiamos uma definição
para a Arte como Veículo. Finalizamos o capítulo com uma discussão sobre a
categorização como ritual das criações performativas produzidas segundo este
modelo.
No segundo capítulo abordamos o ritual como performance e discutimos a origem
ritual dos géneros estéticos performativos. Apresentamos definições operativas de
ritual e performance e abordamos os principais aspectos do ritual enquanto
performance, recorrendo sobretudo à Antropologia da Performance de Victor
Turner. No final do capítulo exploramos a categorização da Arte como Veiculo como
ritual, à luz da Antropologia da Performance.
No terceiro capítulo fazemos um estudo sumário de um ritual tradicional, o culto
dos Theyyams do Norte Malabar, na Índia. Contextualizamos e descrevemos o ritual
e algumas das suas particularidades. Relatamos as impressões recolhidas durante
um estudo de campo na região, à luz da experiência da Arte como Veículo e dos
aspectos realçados pela Antropologia da Performance.
Concluímos com a enumeração de resultados obtidos e a confrontação entre o que
se apurou na investigação sobre a Arte como Veículo e as impressões recolhidas no
estudo do Theyyam, apontando‐se desenvolvimentos que possam futuramente
confirmar ou reforçar os resultados agora apresentados.
V
Abstract
With this dissertation I intend to justify the categorization as a secular ritual of the
Art as Vehicle, the last phase of Jerzy Grotowski's work, discussing the particular
ways of this categorization.
In the first chapter I briefly expose the artistic course of Grotowski and the main
influences that marked his thought. I explain the fundamental concepts that
structure his artistic practice and I essay a definition for Art as Vehicle. I end the
chapter with a discussion of the categorization as a ritual of performing works
created according to this model.
In the second chapter I address the ritual as performance and briefly discuss the
ritual origin of performative aesthetic genres. I propose operative definitions for
ritual and performance and I enumerate the main aspects of ritual as performance,
calling upon, mostly, the Anthropology of Performance from Victor Turner. At the
end of the chapter I explore the categorization as ritual of Art as Vehicle at the light
of the Anthropology of Performance.
In the third chapter I make a summary study of a traditional ritual, the worship of
Theyyams in the North Malabar, India. I contextualize and describe the ritual and
some of its special features. I report the impressions gathered during a field study in
the region, at the light of the experience of Art as Vehicle and of the aspects
highlighted by the Anthropology of Performance.
I conclude with an enumeration of results and the confrontation between what was
found in the research on Art as Vehicle and the impressions gathered in the study of
Theyyam, pointing out future developments that may confirm or strengthen the
results now presented.
VI
Índice
Nota ortográfica. II
Dedicatória. III
Agradecimentos. IV
Resumo. V
Abstract. VI
Índice. VII
Introdução. 1
Propósito. 1
Metodologia e Organização do trabalho. 2
Capítulo I – A Arte como Veículo: A Objectividade do Ritual. 8
1 – A importância, o percurso e as raízes de Jerzy Grotowski. 8
2 – O pensamento de Grotowski: alguns conceitos‐chave para a
explicação da Arte como Veículo. 21
3 – A Arte como Veículo, um esboço de definição. 33
4 – A Arte como Veículo como “Arte Ritual”. 38
Capítulo II ‐ O Ritual como Performance. 41
1 – Se não o Ritual, então o quê? 41
2 – O que é o Ritual? Definições de Ritual e de Performance. 42
3 – Victor Turner e o ritual: imutabilidade, limiaridade, transe, fluxo,
enquadramento, communitas, drama social, anti‐estrutura e a ligação
à Biogenética Estrutural. 46
4 – Outras noções contributivas: Mitologia, Magia, Religião, Sacrifício
e Dádiva. 57
5 – A Arte como Veículo como ritual laico. 60
VII
Capítulo III – Theyyam, A Dança dos Deuses. 63
1 – Contextualização do Estudo. 63
2 – O Theyyam, uma descrição. 74
3 – Impressões. 89
Resultados. 94
Referências Bibliográficas. 101
Anexos:
‐ Diário de Estudo de Campo;
‐ Glossário;
‐ Entrevistas;
‐ O Calendário Kollam;
‐ Imagens.
VIII
Introdução
Propósito
“O ritual é performance, uma acção consumada, um
acto. O ritual degenerado é espectáculo” (Grotowski,
1988: 53).
A desconcertante asserção em epígrafe constitui a fonte de todas as interrogações que
suscitam o presente trabalho. A afirmação ocorreu em Março de 1987 na conferência
inaugural do Workcenter de Jerzy Grotowski em Pontedera, Itália, sede da última etapa do
seu trabalho, e em que participaram também Peter Brook e Roberto Bacci. A transcrição,
com o título ‘o Performer’ (‘le Performer’) foi publicada em várias instâncias: a primeira em
ART‐PRESS, Paris, em Maio de 1987, com uma nota de Georges Banu; no opúsculo de
apresentação do Workcenter, com data presumida de 1988; e na colectânea organizada por
Schechner e Wolford e publicada em 1997. Pelo meio e para além, uma grande quantidade
de traduções em variadas línguas, que demonstram o interesse e a atenção que tem
merecido este texto que, a nosso ver, se constitui como um dos mais controversos e
intrigantes discursos de Grotowski1. O parágrafo inicial da transcrição, em que se insere o
enunciado, reza o seguinte:
O Performer, com letra maiúscula, é um homem de acção. Não é um homem que
representa outro. É o dançarino, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos géneros estéticos.
O ritual é performance, uma acção consumada, um acto. O ritual degenerado é
espectáculo. Não quero descobrir uma coisa nova mas algo de esquecido. Algo tão velho
que todas as distinções entre géneros estéticos deixam de ser válidas (Grotowski, 1988:
53)2.
A primeira questão que daqui se extrai prende‐se com a validade da nossa investigação: se
a prática de Grotowski, e concretamente esta última fase que ficou conhecida por Arte
como Veículo, se situa na esfera do ritual e aquém da distinção entre géneros estéticos,
constitui ainda assim matéria sobre a qual nos possamos debruçar num exercício que
1
Antonio Attisani realça a singularidade deste texto como o “seu único escrito que não se refere a
uma experiência passada” (cfr Attisani, 2013: 26).
2
“Le Performer, avec une majuscule, c’est l’homme de l’action. Ce n’est pas l’homme qui joue un
autre. Il est le danseur, le prêtre, le guerrier : il est en dehors des genres esthétiques. Le rituel est
performance, une action accomplie, un acte. Le rituel dégénéré est spectacle. Je ne veux pas
découvrir quelque chose de nouveau mais quelque chose d’oublié. Une chose si vieille que toutes les
distinctions entre genres esthétiques ne sont plus valables”. Nossa tradução. Optámos por usar a
publicação sem data do Workcenter of Jerzy Grotowski, presumivelmente de 1988, por conter a
versão revista pelo autor e em francês, língua em que foi proferida a comunicação.
1
necessariamente se situa no campo dos Estudos Artísticos e, mais precisamente, dos
Estudos da Performance?
Mostraremos que o trajecto de Grotowski constitui um percurso artístico coerente e que
este último período do seu trabalho resulta consequentemente das motivações já
expressas nas fases anteriores, pelo que se situa, sem sombra de dúvidas, no domínio dos
Estudos da Performance e das Artes Performativas.
Que o ritual é performance parece não constituir uma questão: recorreremos aos autores
de referência dos Estudos da Performance e da Antropologia para apresentar e discutir os
modos como o ritual se apresenta como performance. O que constitui uma questão de
monta é saber se um modelo de performance, neste caso a Arte como Veículo, que se situa
num domínio artístico, pode reclamar a categorização de ritual. Esta constituirá pois a
questão de partida da nossa dissertação: Pode a Arte como Veículo ser entendida como um
modelo de ritual? Em que termos e com que consequências?
Nesta interrogação inicial entronca um conjunto de outras questões que se afiguram
fundamentais para a obtenção de uma resposta:
Como se entende a reclamada ‘objectividade’ da Arte como Veículo? Que caminhos nos
abre e como se relaciona com o ‘essencial’?
Consegue a Arte como Veículo manter essa pretensão ritualista quando confrontada com
uma análise do ritual em sentido estrito enunciada pela antropologia? E, quando
contraposta a uma tradição ritual, que similitudes suportam essa presunção?
Pretendemos demonstrar que a Arte como Veículo pode ser entendida como um modo
particular de produção de ritual, embora não satisfaça todos os requisitos de uma definição
de ritual em sentido estrito. Que, ao remeter‐se ao ‘essencial’, este ritual laico reduz a sua
dependência em relação à componente simbólica, afirmando‐se como questionamento
prático que se cumpre pela performance. Mais, que esta demanda de Grotowski se situa
proeminentemente numa dimensão ontológica.
Metodologia e Organização do Trabalho
O propósito enunciado requererá, antes de mais, um exame aprofundado da proposta
artística de Grotowski, que constituirá pois o primeiro capítulo do nosso estudo. O intento é
sobretudo dificultado pela carência de fontes impressas. Adepto da transmissão directa,
Grotowski foi muito escasso na documentação escrita que nos legou sobre este seu
derradeiro projecto. Para abordar a Arte como Veículo começaremos por esboçar o seu
percurso artístico, salientando a coerência e continuidade das motivações orientadoras das
diferentes etapas do seu trabalho, justificando assim o eventual recurso a fontes datadas
de diferentes épocas para explicitar os conceitos aqui articulados. Ressalve‐se que o
universo dos estudos grotowskianos é muito vasto, pelo que restringiremos a nossa
2
atenção, focando‐nos sobre as matérias que directamente se relacionam com a
performance enquanto ritual.
Convém ainda notar que toda a acção de Grotowski se desenvolve num plano prático. Ele
quase não escreveu, os escritos que dele nos ficaram são, na grande maioria, transcrições
de conferências ou entrevistas, como comenta Schechner:
Ao longo dos anos Grotowski não publicou quase nada que tenha escrito (não conheço
nenhum exemplo e suponho que Grotowski não escreve, nem sequer para si próprio).
Quando Grotowski aparece impresso é o que alguém gravou de uma aparição pública ou
entrevista privada ou escrito a partir de notas (Schechner, 1993: 264‐265, nota 7)3.
O seu discurso parece, frequentes vezes, hermético, metafórico: “Grotowski nunca foi
aberto acerca do seu trabalho. É uma pessoa reservada e cada vez mais” (Schechner, 1993:
245)4. Isto dever‐se‐á à específica dimensão prática em que o seu discurso se inscreve: cada
texto tem o seu contexto e Grotowski falava para performers e as referências e imagens
que utiliza reportam‐se a um universo experiencial e apelam à vivência da performance. Ler
as transcrições das conferências de Grotowski solicita uma interpretação mais densa:
descobrir‐lhe as pausas, adivinhar‐lhe as ênfases, decifrar‐lhe as expressões físicas e faciais,
enfim, explicar os conceitos veiculados por referência ao universo da prática performativa
em que se inscrevem.
A este ponto importa esclarecer que o autor deste trabalho foi estagiário no Workcenter of
Jerzy Grotowski entre 1990 e 1992, onde desenvolveu um estudo prático sobre a ‘Arte
como Veículo’ sob a supervisão de Grotowski, pesquisa que continuou posteriormente de
forma autónoma no âmbito do Acto – Instituto de Arte Dramática (Aveiro, 1992 – Estarreja,
2006). Humildemente, afirmamos que o discurso de Grotowski não constitui para nós um
problema de compreensão: na prática performativa, julgamos alcançar perfeitamente o
sentido de todas as proposições que nos expõe sobre a performance enquanto ritual. O
problema reside, sim, na explicação.
Interpretar as proposições de Grotowski no que concerne à ‘arte ritual’, articulando‐as com
as propostas de fases anteriores do seu percurso, questionar um discurso que se insere
numa dimensão prática e performativa e, servindo‐nos de uma inevitável compreensão
prévia, transferi‐lo para uma esfera da linguagem verbal com um propósito explicativo, são
intuitos que colocam, pois, esta primeira parte do nosso projecto num âmbito
hermenêutico e sob a alçada de um circuito que pressupõe pré‐conceitos na interpretação
(cfr. Gadamer, 1975), um círculo hermenêutico, ou “uma espiral que continuamente se
alarga e abraça novas formas de questionar e compreender a questão que nos envolve”
3
“Over the years, Grotowski has published almost nothing that he has written (I don’t know of a
single example and would guess that Grotowski does not write, even for himself). When Grotowski
appears in print it is what someone has tape recorded from a public appearance or private interview
or written from notes”. Nossa tradução.
4
“Grotowski has never been open about his work. He is a reclusive person, and increasingly so”.
Nossa tradução.
3
(Verde, 2009: 84). Processo que nos conduzirá à colocação das questões enunciadas num
plano ontológico.
Começamos por traçar sumariamente o percurso artístico de Jerzy Grotowski, identificando
as várias etapas e a evolução coerente das suas motivações. Explicamos as noções
fundamentais do seu pensamento. Finalmente definimos a Arte como Veículo e discutimos
a sua categorização como ritual.
No segundo capítulo do trabalho modificamos a nossa abordagem e focamos a atenção no
ritual enquanto performance, determinando‐lhe os modos, avançando com definições
operativas para ‘performance’ e ‘ritual’ e discutindo vários aspectos do ritual enquanto
performance.
Recorremos aos autores de referência da Antropologia e não será por acaso que tomamos
Victor Turner como principal orientador pois, como observou Schechner:
As especulações de Turner no final da sua vida caminham proximamente a par do trabalho
de Grotowski. Grotowski começa com elementos “objectivos” – tempo5, iconografia,
padrões de movimentos, sons. A pesquisa não é histórica, não de como o sânscrito "om" e
o Inglês "Amen" (uma transliteração do hebraico "Awmain") podem ser versões do
mesmo ur‐mantra; mas que o som aberto "uh" seguido por um final "zumbido" é uma
sequência encontrada num grande número de culturas porque expressa uma estrutura do
cérebro. Se Turner tivesse vivido, ele teria querido descobrir se uma performance de
"drama objectivo" grotowskiano partilharia com os rituais das suas culturas fonte os
atributos ao nível das respostas do sistema nervoso autónomo, das ondas cerebrais e
assim por diante.
Como Grotowski, Turner pesquisou sobre os poderes criativos do ritual (1969, 1983,
1986). Ele queria mostrar como o ritual não era apenas um conservador do
comportamento evolutivo e cultural, mas um gerador de novas imagens, novas ideias e
novas práticas. Ao rever as teorias estrutural e neurológica do ritual, Turner sentiu‐se
incomodado pela ausência de qualquer consideração do "jogo", precisamente o que
Grotowski está a investigar (de uma forma muito séria, se não santimonial) (Schechner,
1993: 255)6.
5
‘Tempo’ tem aqui o sentido de medida do compasso musical.
6
“Turner’s speculations at the end of his life closely paralled Grotowski’s work. Grotowski begins
with “objective” elements — tempo, iconography, movement patterns, sounds. The research is not
historical, not how the Sanskrit “om” and English “Amen” (a transliteration of the Hebrew
“Awmain”) may be versions of the same ur‐mantra; but that the open “uh” sound followed by a
“hummed” closure is a sequence found in a number of cultures because it expresses brain structure.
If Turner had lived, he would have wanted to find out if a Grotowskian “objective drama”
performance shared with the rituals of its source cultures attributes at the level of autonomic
nervous system responses, brain waves, and so on.
Like Grotowski, Turner searched for ritual’s creative powers (1969, 1983, 1986). He wanted to show
how ritual was not just a conservator of evolutionary and cultural behavior, but a generator of new
images, new ideas, and new practices. In reviewing structural and neurological theories of ritual,
Turner was troubled by the absence of any consideration of “play,” precisely what Grotowski is
investigating (in a most serious if not sanctimonious manner)”. Nossa tradução.
4
Convém interrogarmo‐nos sobre o que Turner pretendia dizer quando nos propunha uma
Antropologia da Performance. Uma leitura desatenta poderia remeter‐nos para um estudo
das formas performativas, uma extensão da Antropologia Teatral de Eugenio Barba. Ora,
Turner vai muito mais longe, o Homo performans que se propõe estudar é o que pela
performance se revela a si próprio (cfr. Turner, 1987: 81).
Terminamos este capítulo discutindo o modo particular como, à luz de uma Antropologia
da Performance, a Arte como Veículo se pode categorizar como modelo de produção de
rituais.
No terceiro capítulo pretendemos ensaiar uma ruptura na nossa própria compreensão e
observar o ritual sob uma perspectiva de estranheza: “não podemos realmente
compreender a nossa própria tradição (pelo menos no meu caso) sem compará‐la com um
berço diferente. É o que podemos chamar de corroboração" (Grotowski, 1995: 130).7
Entendemos como meio adequado a este propósito a realização de um estudo etnográfico
da tradição ritual do Theyyam da Costa do Malabar, no sudoeste indiano.
Assistimos pela primeira vez a uma cerimónia com Theyyams em 2013, por ocasião de uma
viagem de lazer no sul da Índia e quase por acaso. As qualidades performativas do evento
despertaram‐nos o maior entusiasmo e prolongámos a nossa estadia na região de Cananor
para presenciar mais cerca de seis celebrações, ficando pois com uma noção muito vaga da
tradição ritual.
Um dos aspectos que pesou na nossa escolha foi o transe de possessão que caracteriza o
Theyyam e que, julgámos, podia lançar alguma luz sobre a questão da desubjectivação do
performer.
7
“we cannot really understand our own tradition (at least in my case) without comparing it with a
different cradle. It’s what we can call corroboration”. Nossa tradução.
5
Para cumprir este objectivo projectámos um estudo de campo na região de Cananor com a
duração de nove semanas no início de 2015. A duração era, desde o início, uma das
condicionantes, uma vez que todos os autores recomendam uma estadia mais prolongada
que permita “lidar com a totalidade dos aspectos sociais, culturais e psicológicos da
comunidade, pois eles estão tão entrelaçados que nenhum pode ser compreendido sem
tomar em consideração todos os outros” (Malinowski, 1932: XVI).8 A curta permanência
determinava que o estudo se concentrasse nas questões relacionadas com o transe de
possessão e as suas técnicas mas, na prática, foi necessário conhecer minimamente o
contexto, aprender o essencial do vocabulário e dos conceitos relacionados com o ritual,
estabelecer contactos e aprofundar relações de confiança com os informadores.
As fontes documentais também se revelaram, em muitos casos, decepcionantes: várias das
publicações consultadas repetem informações não fundamentadas, por vezes inverosímeis;
num caso de uma tese de doutoramento detectámos um impudente plágio; muita da
literatura sobre o Theyyam está subordinada a motivações políticas, ideológicas ou sócio‐
económicas e apresenta conclusões distorcidas ou forjadas. A bibliografia credível, no
âmbito da antropologia e dos estudos da performance, elege um vasto leque de questões
associadas ao Theyyam, da pressão hegemónica (cfr. Dasan, 2012; cfr. T. V., 2006) à
apropriação da tradição por forças políticas (cfr. Ashley, 1993) e à conflitualidade social
provocada pela apropriação (cfr. Ashley e Holloman, 1982), da energia sagrada (sakti) (cfr.
Freeman, 1991) à consciência ecológica (cfr. Induchoodan, 1996; cfr. Jayarajan, 2004), da
organização social (cfr. Ashley 1979) à transgressão (cfr. Vadakkiniyil, 2010), por exemplo.
Enfim, “a etnografia, semelhantemente a qualquer outro tipo de pesquisa, geralmente
começa com o pesquisador a aproveitar para si mesmo a gama de informações que já
existe sobre o tema ou povo que está a ser estudado” (Whitehead, 2005: 3)9 e esses
estudos podiam não contribuir directamente para responder às nossas questões mas
ajudaram significativamente a compreender o contexto.
O nosso estudo situou‐se pois no âmbito da etnografia e consistiu em recolher impressões,
mais do que dados, em confrontar as nossas impressões com informadores críveis, em
cruzar todas as informações na tentativa de obter concordância, nem sempre possível.
Recorremos à observação participante, às entrevistas informais e semi‐estruturadas, enfim,
tentámos construir uma aproximação émica10 que nos permitisse uma compreensão do
objecto de estudo e fornecesse respostas às nossas questões. Desse trabalho resultou um
Diário de Estudo de Campo, complementado com fotografias e um glossário, a transcrição
8
“deal with the totality of all social, cultural and psychological aspects of the community, for they
are so interwoven that not one can be understood without taking into consideration all the others”.
Nossa tradução.
9
“Ethnography, similar to any other type of research usually begins with the researcher availing him
or herself of the range of information that already exists on the topic or people being studied”.
Nossa tradução.
10
Estrangeirismo a partir do inglês emic, por sua vez um neologismo cunhado por Kenneth Pike; na
antropologia a abordagem émica investiga como a população local pensa (cfr. Kottac, 2005: 47).
6
de três entrevistas semi‐estruturadas e um artigo sobre o calendário em uso na região,
documentos que incluímos como anexos à dissertação.
Foi com este material que tentámos dar corpo neste terceiro capítulo a uma “descrição
densa” (cfr. Geertz, 1973: 6): uma leitura do ritual do Theyyam construída a partir da
multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, sobrepostas ou ligadas entre si,
simultaneamente estranhas, irregulares e inexplicáveis (cfr. Geertz, 1973: 10). Ao contrário
de Clifford Geertz, o autor deste trabalho não foi “favorecido por um talento literário único
nas ciências sociais” (Verde, 2009: 70), pelo que não se deve esperar mais do que uma
modesta exposição dos aspectos performativos daquela tradição.
Terminamos este capítulo registando as nossas impressões sobre os rituais observados e
cotejando‐as com as indicações da Antropologia da Performance e a experiência da Arte
como Veículo.
O nosso estudo do Theyyam tem por objectivo uma confrontação com aspectos denotados
pela prévia abordagem à Arte como Veículo, sempre com o cuidado de recusar qualquer
tipo de comparação assente numa perspectiva evolucionista do ritual. Será pois para essa
aferição que se orientará a conclusão do trabalho. Numa última secção da dissertação
enumeramos os resultados obtidos, confrontando o que se apurou na investigação sobre a
Arte como Veículo com as impressões recolhidas no estudo do Theyyam e apontamos
desenvolvimentos que possam futuramente confirmar ou reforçar os resultados agora
apresentados.
7
Capítulo I – A Arte como Veículo: a objectividade do ritual.
1 ‐ A importância, o percurso e as raízes de Jerzy Grotowski.
Jerzy Grotowski (Rzeszów, 11 de Agosto de 1933 – Pontedera, 14 de Janeiro de 1999) foi
sem dúvida uma das mais importantes figuras do Teatro e das Artes Performativas do
século XX, à escala global. Da América do Norte ao Japão, da Índia à América do Sul, à
África, à Europa, por toda a parte encontramos companhias e projectos teatrais ou
performativos que reclamam a sua influência, pensadores que evocam os seus
ensinamentos, artistas que se identificam com os seus ideais. Em 1996, Robert Findlay
estimava que a bibliografia mundial sobre Grotowski teria aproximadamente 20.000
entradas (cfr. Wolford, 1996a: XV). O ano de 2009 foi proclamado “Ano de Grotowski” pela
Unesco.
No entanto, o pensamento de Grotowski está muito longe de ser satisfatoriamente
analisado, a sua efectiva influência nas artes é diminuta, os seus ideais nunca estiveram tão
distantes da prática artística contemporânea. Para Motta Lima, tínhamos “a impressão de
que conhecíamos a investigação de Grotowski quando, de fato, apenas começamos a dar
conta de sua complexidade” (Motta Lima, 2013: 8). Para Slowiak e Cuesta,
Grotowski equipara‐se a Stanislavsky, Meyerhold e Brecht como um dos quatro grandes
directores de teatro do século XX. Mas enquanto é geralmente compreendido que
Stanislavsky transformou a actuação, Meyerhold a encenação e Brecht a dramaturgia, a
influência de Grotowski no ofício não é tão imediatamente reconhecível (Slowiak e
Cuesta: 2007: 64)11.
Uma análise mais detalhada do trabalho e do pensamento de Grotowski, acompanhada da
sua tradução na prática artística, poderá permitir alargar a sua influência a outras áreas
artísticas e determinar que seja o séc. XXI o verdadeiro século de Jerzy Grotowski, como
propõe Attisani num artigo com esse título (cfr. Attisani, 2013), onde defende que os
resultados da pesquisa de Grotowski serão um dos fundamentos de uma nova cultura
teatral, baseada na presença e no encontro.
James Slowiak e Jairo Cuesta foram próximos colaboradores de Grotowski tendo
participado em várias fases do seu trabalho. Fazemos eco deles quando dizemos que para
entender Grotowski há que começar por reconhecer que ele:
foi sempre um enigma. Foi chamado mestre e charlatão; guru e sábio; mito e monstro. Ao
longo da sua relativamente breve carreira (faleceu com a idade de 65 anos), Grotowski
11
“Grotowski ranks with Stanislavsky, Meyerhold, and Brecht as one of the four great stage directors
of the twentieth century. But while it is generally understood that Stanislavsky transformed acting,
Meyerhold, directing, and Brecht, playwrighting, Grotowski’s influence on the craft is not so instantly
recognizable”. Nossa tradução.
8
passou por numerosas transformações, frequentemente apanhando desprevenidos os
seus críticos e mesmo os seus amigos (Slowiak e Cuesta: 2007: 1)12.
Criado numa família monoparental (durante a Segunda Guerra Mundial o pai alistara‐se no
exército polaco no exílio e nunca regressou à Polónia devido às suas convicções anti‐
soviéticas), a influência que a mãe, e em especial a sua peculiar religiosidade, nele exerceu,
é‐nos explicada pelo próprio:
A minha mãe praticava o mais ecuménico catolicismo. E ainda salientava que para ela
nenhuma religião detinha o monopólio da verdade. O seu interesse pelas tradições da
Índia era profundo e estável. […] Repetia‐me que intelectualmente (isto é, em
consequência das suas opiniões), se sentia budista. […] Parecia suficientemente lógico mas
durante as suas confissões na igreja isso causava algumas discussões cómicas com o
padre. Também porque ela enfatizava, durante a confissão, que na sua opinião, se os
humanos têm alma, certamente os animais também a têm (Grotowski: 1997a: 253)13.
Na infância e primeira juventude, Grotowski foi um ávido leitor e este interesse era
mediado pela sua mãe: A Índia Secreta de Paul Brunton (onde tomou contacto com os
ensinamentos de Ramana Maharshi), a Vida de Jesus de Ernest Renan14, os Evangelhos, o
Corão, o Zohar e os livros de Martin Buber e de Dostoievski (cfr. Grotowski, 1997a: 253‐
255), foram obras que leu na juventude e haveriam de constituir referências para toda a
sua vida.
Quando concluiu os estudos secundários o jovem Grotowski estava indeciso quanto à
carreira a seguir e enviou candidaturas para três escolas superiores: para a escola de
medicina, para seguir psiquiatria, para o programa de estudos orientais e para o curso de
actores da escola superior de teatro. Aparentemente a escolha do teatro terá resultado da
circunstância de aquela escola ter sido a primeira a responder.
Depois de concluídos os seus estudos de teatro na Polónia, onde foi marcado pela
influência do Reduta,15 Grotowski estudou encenação durante um ano (1955 – 56), em
Moscovo, com Yuri Zavadski, um próximo colaborador de Stanislavski e Vakhtangov, com
quem se iniciaria na metodologia das acções físicas, que viria a desenvolver ao longo do seu
12
“… was always an enigma. He has been called a master and a charlatan; a guru and a sage; a myth
and a monster. Throughout his relatively brief career (he died at the age of 65), Grotowski went
through numerous permutations, often catching his critics, and even his friends, off guard”. Nossa
tradução.
13
“Mother was practicing the most ecumenical Catholicism. She still underlined that for her no one
religion had a monopoly on truth. Her interest in the traditions of India was deep and stable. […] She
repeated to me that intellectually (that is, because of her opinions), she felt herself to be a Buddhist.
[…] It seemed logical enough, but during her confessions in the church it caused some funny
discussions with the priest. Also because she emphasized in the time of confession that in her
opinion, if humans have souls, then surely animals have also”. Nossa tradução.
14
A Vida de Jesus de Renan foi emprestada em segredo a Grotowski por um jovem padre (cfr.
Grotowski: 1997a: 253). O livro, proibido pela Igreja Católica é um exemplo da importância que
ganhou a cristologia num contexto de luta entre ciência e religião no último quartel do século XIX.
15
Grupo de teatro polaco de vanguarda dirigido por Juliusz Osterwa que funcionou entre 1919 e
1939. Para Zbigniew Osinski a influência do Reduta no Teatr‐Laboratorium consistiu na sua
fundamental tradição ética (cfr. Burzynski e Osinski, 1979: 65).
9
percurso (cfr. Thibaudat, 1995). Foi em Moscovo também que descobriu as experiências
teatrais de Meyerhold (cfr. Slowiak e Cuesta: 2007: 6) e viu uma encenação de Hamlet por
Peter Brook (cfr. Brook, 2009: 139). Para Raymonde Temkine, “foi através de Meyerhold
que Grotowski compreendeu que encenar uma peça não é senão uma resposta à peça; não
uma submissão mas uma reacção – isto é o significado de criação” (Temkine, 1972 [1967]:
50)16.
No final da sua estadia na União Soviética, Grotowski partiu numa viagem de dois meses à
Ásia Central, a primeira de muitas a confirmar o seu interesse pelas culturas do continente
asiático.
No regresso à Polónia, em Outubro de 1956, Grotowski assumiu funções como professor
assistente na Escola de Teatro de Cracóvia enquanto completava o seu mestrado em
encenação e dirigiu várias produções para teatros de reportório.
Foram anos politicamente conturbados na Polónia e Grotowski teve um grande
envolvimento nos acontecimentos, assumindo posições de liderança em movimentos
juvenis que genericamente podemos classificar como esquerdistas e anti‐estalinistas (cfr.
Osinski, 1986: 18). Ghandi era uma referência mas também um exemplo improvável:
Grotowski era por demais combativo e “incapaz para a assumpção total e generalizada das
boas intenções de toda a gente” (Bonarski, 1979 apud Kumiega, 1985: 6)17. Nos seus
“sonhos políticos”, a noção de “liberdade” ocupava um lugar central (cfr. Kumiega, 1985:
6).
Ao mesmo tempo que escrevia artigos inflamados sobre a esquerda académica ou
“civilização e liberdade – isto é o único socialismo” (Grotowski, 2014 [1957]: 87), organizava
e proferia conferências sobre filosofia oriental, abordando temas como o Budismo, o Ioga,
os Upanishads, Confúcio, o Taoísmo e o Budismo Zen (cfr. Kumiega, 1985: 6).
Durante estes anos em Cracóvia, Grotowski teve oportunidade de dirigir várias peças
teatrais. No entanto, a avaliar pelas descrições que nos chegam pela crítica18 e pelos textos
publicados por Grotowski, este não era ainda o teatro que ele pretendia. Em Maio de 1959,
Ludwig Flaszen convidou Grotowski para se juntar a ele na direcção de um pequeno teatro
em Opole. O encontro entre os dois é descrito por Flaszen numa entrevista de 1966:
Numa esquina de Cracóvia duas pessoas encontraram‐se: Jerzy Grotowski e Ludwig
Flaszen. O primeiro tinha chegado à conclusão que estava completamente farto do Teatro
Velho19 e do velho teatro. Flaszen estava também farto do velho teatro – o teatro era uma
16
“It is through Meyerhold that Grotowski understood that staging a play is but an answer to the
play; not a submission but a reaction–this is the meaning of creation”. Nossa tradução.
17
“I am incapable of a total and generalized assumption of everyone's good intentions”. Nossa
tradução.
18
Veja‐se sobretudo Burzynski e Osinski, 1979, Kumiega, 1985 e Osinski, 1986.
19
Referência ao Stary Teatr de Cracóvia, cujo nome se traduz por Teatro Velho.
10
arte localizada no extremo da cauda das outras disciplinas artísticas (Grotowski e Flaszen,
1966 apud Kumiega, 1985:7)20.
Começou aí o projecto do Teatro das Treze Filas, que viria a ser mais tarde o Teatr
Laboratorium. Não aprofundaremos esta fase do percurso de Grotowski por ser por demais
conhecida e por não contribuir directamente para o objecto do nosso estudo. Esboçaremos
as linhas gerais do trajecto, apontaremos a evolução do pensamento e a génese e
desenvolvimento dos conceitos que nos serão úteis para a explicação da Arte como Veículo.
Começou aí também a etapa a que se convencionou chamar Teatro das Produções, a fase
estritamente teatral do percurso de Grotowski.
O Teatro das Treze Filas assentaria em pressupostos que Grotowski foi buscar a
Stanislavski: um grupo estável e permanente de profissionais com competências técnicas,
tempo para a criação e montagem das obras feita por um Director (cfr. Grotowski, 1995).
Mas os processos de trabalho foram sendo conquistados: a primeira produção, Orfeu de
Jean Cocteau, teve apenas três semanas de ensaios.
A extensão dos períodos de ensaio, no entanto, cresceu gradualmente a cada nova
produção: a segunda produção teve seis semanas de ensaio; a terceira, três meses; a
quarta, seis meses; até à produção teatral final, Apocalypsis cum figuris, que teve 400
ensaios ao longo de um período de três anos (Slowiak e Cuesta: 2007: 9)21.
As noções que viriam a identificar o teatro e o pensamento de Grotowski foram‐se
construindo nestes primeiros anos do Teatro das Treze Filas que a partir de 1962 passou a
chamar‐se Teatro Laboratório das Treze Filas e em 1965 se mudou para a cidade de
Breslávia com o nome de Instituto de Pesquisa sobre o Método do Actor – Teatro
Laboratório22: o Teatro Pobre, a via negativa, o Actor Santo, conjunctio opositorum , acto
total, participação, relação espacial. Foi também o tempo para o aprofundar de
conhecimentos recebidos mas ainda não postos em prática: a metodologia das acções
físicas, o training para actores, a vibração da voz, a montagem segundo a atenção do
espectador.
20
“At a Krakow crossing two people met: Jerzy Grotowski and Ludwig Flaszen. The first had come to
the conclusion that he was thoroughly fed up with the Old Theatre and with old theatre. Flaszen was
also fed up with old theatre—theatre was an art located at the tail end of other artistic disciplines”.
Nossa tradução.
21
“The length of the rehearsal periods, however, grew incrementally with each new production: the
second production, six weeks of rehearsal; the third, three months; the fourth, six months; until the
final theatre production, Apocalypsis cum figuris, which had 400 rehearsals over a three‐year
period”. Nossa tradução.
22
Instytut Badań Metody Aktorskiej ‐ Teatr Laboratorium. As designações de “laboratório” e
“instituto de pesquisa” foram certamente suscitadas pela admiração por Niels Bohr e o seu Instituto
na Universidade de Copenhaga, que Grotowski usa como referência (cfr. Grotowski, 1975 [1968]: 91‐
ss). Nos Estados Unidos tinha havido um American Laboratory Theatre, fundado em 1924 por
Richard Boleslavsky e Maria Uspenskaja, alunos de Stanislavski exilados na América (cfr. Ruffini,
2005: 121). Desconhecemos se Grotowski tinha conhecimento da existência deste Teatro
Laboratório.
11
As condições eram muito humildes: “A pobreza foi inicialmente uma prática neste teatro;
só mais tarde foi elevada à dignidade de estética” (Kott, 1997: 134)23. Esta foi também uma
constante na sua vida: nos seus últimos anos Grotowski vivia em condições ascéticas (cfr.
Wolford, 1997a: 371). A pobreza, ou pelo menos a demarcação face às condições
económicas, é um aspecto importante no percurso de Grotowski que nunca esperou pelas
condições ideais nem ficou refém dos sucessos alcançados.
Em 1961, Eugenio Barba, nessa altura estudante de encenação na Academia de Teatro de
Varsóvia, assistiu a um espectáculo de Grotowski. Nos dois anos subsequentes foi aluno e
assistente de encenação no Teatro das Treze Filas. Começou aí uma amizade que se
prolongaria por toda a vida e Barba teve um papel determinante em dar a conhecer
Grotowski ao mundo. Em Junho de 1963 decorreu em Varsóvia o décimo congresso do
Instituto Internacional de Teatro e Barba alugou um autocarro e convenceu vários dos
participantes a deslocarem‐se a Lódz para assistirem a uma apresentação de Dr. Faustus
(cfr. Kumiega, 1985: 42).
Dr. Faustus e o ano de 1963 representaram um ponto de viragem no percurso de
Grotowski. A peça representava a maturidade do projecto teatral de Grotowski, em termos
éticos, estéticos e metodológicos. Segundo Osinski, a produção terá merecido cerca de uma
centena de críticas, ensaios e estudos em publicações ocidentais, em contraste com o
completo silêncio com que a imprensa polaca a recebeu (cfr. Osinski, 1986: 76). Em
consequência, foram recebidos convites para as temporadas seguintes na Bélgica, na
Holanda e para o Festival do Teatro das Nações em Paris, digressões que não se
concretizaram devido à oposição das autoridades polacas (cfr. Kumiega, 1985:42).
Grotowski tinha já visitado a França por duas vezes: em 1957, participou no Encontro
Internacional da Juventude em Avinhão, onde conheceu o trabalho de Jean Vilar e do seu
mentor Charles Dullin. Passou ainda uma curta temporada em Paris. Em 1959, visitou de
novo Paris onde conheceu Marcel Marceau, que o impressionou grandemente. (cfr. Osinski,
1986: 27).
Em 1962, Grotowski participou em Helsínquia no oitavo Festival Mundial da Juventude e
dos Estudantes, onde se dirigiu a uma audiência internacional para falar sobre o trabalho
experimental da sua pequena companhia. Raymonde Temkine, uma das primeiras a dedicar
um livro ao trabalho de Grotowski (Temkine, 1972 [1967]), era uma das participantes do
festival.
No mesmo ano, passou um mês na China onde fez contactos com artistas contemporâneos
e estudou as artes tradicionais, especialmente as técnicas e métodos de training da Ópera
de Pequim. Foi nessa ocasião que observou o “princípio chinês”, depois amplamente usado
por Eugenio Barba. Em Xangai conheceu o Dr. Ling com quem aprendeu técnicas de
respiração e o uso dos ressonadores corporais (cfr. Barba, 1999: 53).
23
“Poverty was at first a practice of this theatre; only later was it raised to the dignity of aesthetics”.
Nossa tradução.
12
Em 1965, com a mudança para Breslávia e o interesse de profissionais e críticos do mundo
ocidental, estavam reunidas as condições para a internacionalização das propostas de
Grotowski. O livro de Barba Alla ricerca del Teatro Perduto (Barba, 1965) é publicado em
italiano e húngaro. A Tulane Drama Review de Schechner dedica um dossier ao Teatr
Laboratorium, em que figura o texto “Para um Teatro Pobre”. Grotowski, com Ryszard
Cieslak e Rena Mirecka, dirige um seminário e demonstrações de exercícios físicos e vocais
no Festival Internacional de Teatro de Estudantes em Nancy (cfr. Slowiak e Cuesta: 2007:
16).
Quando permaneciam em Breslávia, os actores do Teatr Laboratorium dividiam o seu
tempo entre os espectáculos, o trabalho sobre as novas criações e a formação de um
crescente número de estudantes estrangeiros que aí acorria (cfr. Slowiak e Cuesta: 2007:
18).
Não nos deteremos mais sobre a fase do Teatro das Produções senão para considerar a sua
última etapa, Apocalypsis Cum Figuris, “uma das grandes produções teatrais do século XX”
(Kumiega, 1985: 87)24. A última produção teatral de Grotowski resultou de um longo e
difícil processo: os primeiros ensaios tiveram lugar em Dezembro de 1965 e a estreia só se
realizou em Fevereiro de 1969.
As digressões da companhia poderiam justificar algum atraso na data da estreia, que foi
adiada por várias vezes, mas durante esse período não só o nome como o suporte textual
da peça foi sendo alterado. O colectivo atravessava uma crise criativa a que não seria
estranho o particular momento político que se vivia na Polónia: na sequência da guerra
Israelo‐Árabe de 1967 o governo lançara uma campanha anti‐semita sem precedentes. Em
Agosto de 1968 a Polónia junta‐se à invasão soviética da Checoslováquia para esmagar a
Primavera de Praga (cfr. Slowiak e Cuesta: 2007: 18). Mas não eram as influências
exteriores que mais afectavam o trabalho: a um ponto o grupo tinha mais de vinte horas de
material de actuação e nada satisfazia Grotowski. Achava que os actores não eram
autênticos, que repetiam o que já sabiam. A crise “foi um 'vazio' abaixo do ponto zero.
Acho que deu à luz Apocalypsis. Este terrível buraco morto que tinha engolido todo o nosso
trabalho foi o útero em que o trabalho nasceu” (Flaszen, 1978: 323 apud Kumiega, 1985:
87)25.
24
“one of the great theatrical productions of the twentieth century”. Nossa tradução
25
“This was a ‘void’ beneath the zero point. I think it gave birth to Apocalypsis. This terrible dead
hole which had swallowed all our work was the womb in which the work was born”. Nossa tradução.
13
Um dia, o erro de um dos actores, que interpelou o actor errado, semeou o caos no ensaio
e Grotowski descobriu o que lhe faltava: autenticidade. Esta será uma chave fundamental
para o entendimento de todo o trabalho posterior de Grotowski. Nesta produção nada de
falso seria admitido. Flaszen escreveu em 1967: “A performance não é uma cópia ilusionista
da realidade, a sua imitação […] A performance é em si mesma realidade; um
acontecimento literal, tangível” (Flaszen, 1967: 114 apud Burzynski e Osinski, 1979: 59).26
Grotowski tomou os princípios do Teatro Pobre, do acto total, da participação e relação
espacial e estendeu‐os para uma direcção totalmente nova. Numa sala vazia os adereços
são reduzidos a um naco de pão, uma faca, uma toalha branca, velas e um balde de água.
Dois projectores pousados no chão e apontados às paredes constituíam a única fonte de
iluminação (cfr. Slowiak e Cuesta: 2007: 20).
Aos espectadores foi dado o papel de testemunhas. A montagem não era feita para o
espectador nem contra ele: o trabalho decorria na sua presença.
A vocação do espectador é ser um observador, mas ainda mais, é ser uma testemunha.
Testemunha não é quem mete o nariz em todo o lado, quem se esforça para estar o mais
próximo possível ou por interferir nas acções dos outros. A testemunha mantém‐se
ligeiramente afastada, não se quer intrometer, deseja manter‐se lúcida, ver o que
acontece, do princípio ao fim, e guardar na memória; a imagem dos eventos deve
permanecer dentro dela (Grotowski, 2015a [1969]: 126).27
Era clara a intenção de alargar a toda a companhia a experiência do “acto total” de Cieslak
em “O Príncipe Constante”(cfr. Burzynski e Osinski, 1979: 57). Zygmunt Molik, um dos
actores, confidenciou a Jennifer Kumiega em 1981 que “Apocalypsis nunca foi para mim
uma performance. Era como um momento em que eu podia viver uma vida plena… num
outro mundo por um instante…” (Kumiega, 1985: 92).28
Em suma, com Apocalypsis Cum Figuris, Grotowski atingiu o zénite da sua carreira teatral e
a concretização das suas propostas metodológicas e estéticas. E, consequentemente, a
mudança de rumo é também coerente e em continuidade com as suas motivações e
propostas anteriores:
Estamos a viver numa época pós‐teatral. O que se segue não é uma nova vaga de teatro,
mas algo que vai ocupar o seu lugar. Demasiados fenómenos existem com base no
costume, porque a sua existência é geralmente aceite. Sinto que Apocalypsis Cum Figuris
26
“Performance is not an illusionist copy of reality, its imitation […] Performance itself is reality; a
literal, tangible event”. Nossa tradução.
27
“La vocazione dello spettatore è essere osservatore, ma ancora di più, è essere testimone.
Testimone non è chi mette il naso ovunque, chi si sforza di essere il più vicino possibile o di
intromettersi nelle azioni degli altri. Il testimone si tiene lievemente in disparte, non vuole
immischiarsi, desidera mantenersi lucido, vedere quello che accade, dall’inizio alla fine, e tenere a
mente; l’immagine degli eventi dovrebbe rimanere dentro di lui”. Nossa tradução.
28
“Apocalypsis was never like a performance for me. It was like a time in which I could live a full life…
in another world for a while…” Nossa tradução.
14
é, para mim, uma nova etapa da nossa pesquisa. Atravessámos uma certa barreira
(Grotowski, 1970 apud Kumiega, 1985: 99).29
Enquanto o Teatr Laboratorium alcançava o auge do sucesso na sua digressão em Nova
Iorque, Jerzy Grotowski preparava já uma nova abordagem artística: o Parateatro ou Teatro
de Participação. Mas antes ainda havia outra mudança que se impunha.
No final de Agosto de 1970, Grotowski, vindo de uma estadia de cerca de seis semanas
algures na Índia e no Curdistão, encontrou‐se no aeroporto de Xiraz com a companhia do
Teatr Laboratorium que fazia uma digressão pela Pérsia e Líbano. A pessoa com que os
membros da companhia se encontraram não era reconhecível. Grotowski, que sempre fora
ligeiramente rotundo, que se vestia de fato e gravata pretos e usava óculos escuros,
aparentando mais idade do que os trinta e seis anos que tinha nessa altura, não tinha nada
a ver com o jovem magro, de cabelos compridos e barba rala, em calças de ganga, camisa e
óculos de aros redondos que se lhes apresentou como o seu director artístico.
A transformação de imagem operada por Grotowski em 1970 fez correr muita tinta. A
generalidade dos estudiosos pretende associá‐la a uma profunda experiência vivida nessa
viagem, mas o facto é que essa foi a sua terceira deslocação à Índia e, a essa altura,
Grotowski tinha já viajado por muitas zonas da Ásia. Schechner põe a ênfase numa outra
viagem: no início de 1970, aquando da digressão do Teatr Laboratorium em Nova Iorque,
Grotowski fez uma jornada, parcialmente à boleia, desde a costa Leste dos Estados Unidos
até à Califórnia, muito ao estilo de Kerouac (cfr. Schechner, 1997a: 486 – 490). Nessa
viagem, Grotowski confrontou‐se pela primeira vez com o mais intenso da cultura jovem
americana do início dos anos setenta: hippies, as ideias de Castaneda (que Schechner
defende que Grotowski terá encontrado [cfr. Schechner, 1997a: 487], apesar de Grotowski
o negar [cfr. Slowiak e Cuesta: 2007: 23]), a influência do Instituto de Esalen (que suscita
nova polémica sobre se o terá visitado ou não [cfr. Schechner, 1997a: 487]). Schechner
argumenta que a viagem à Índia foi a terceira que Grotowski aí fez e que nada justificaria
uma mudança tão radical. Podemos conjecturar que em 1970 as instalações do Teatr
Laboratorium em Breslávia seriam frequentadas por quase tantos hippies e leitores de
Castaneda quanto qualquer universidade californiana.
Permitimo‐nos aqui evocar o que já expusemos da personalidade de Grotowski para tentar
sanar a polémica. Do que ficou dito se perceberá que Grotowski dirigia a sua própria vida e
agia segundo princípios éticos e uma profunda motivação. Mudar de imagem constituiria
apenas um meio, mesmo que nos possa parecer que tenha resultado num alívio. Mas o
abandono da gravata e do fato não corresponderiam a um desleixo face às suas obrigações
éticas, sociais e profissionais, antes pelo contrário. Parece‐nos mais uma adequação a um
contexto globalizado: o Grotowski com uma imagem de polaco, do lado escuro da cortina
de ferro, foi substituído por um Grotowski com uma imagem mais jovem e cosmopolita,
mais ajustada à época em que se vivia. Não foi resultado nem da viagem à Índia nem da
29
“We are living in a post‐theatrical epoch. It is not a new wave of theatre which follows but
something that will take its place. Too many phenomena exist on the basis of custom, because their
existence is generally accepted. I feel that Apocalypsis Cum Figuris is, for me, a new stage of our
research. We have crossed a certain barrier”. Nossa tradução.
15
viagem pela América; não foi resultado de uma influência mas de uma deliberada
adaptação ao ambiente; foi construída meticulosamente durante vários meses, estudada,
considerada e reflectida. A ausência de seis semanas na Índia e Curdistão constituiu a
oportunidade para a concretizar.
A imagem de Grotowski tinha‐se adequado a um projecto que doravante era global, não
por se dirigir aos apreciadores de teatro a nível internacional, mas por se dirigir a todos e a
cada um. Estavam reunidas as condições para declarar o fim do Teatro e o inicio do
Parateatro:30 Doravante ninguém estaria só, assim o declarou em Holiday (Grotowski,
1997b).
O Parateatro situava‐se nos limites do teatro, expandindo as suas fronteiras e estava
intimamente relacionado com contexto histórico‐cultural dos anos setenta e com a noção
de Cultura Activa. Cultura Activa, que pode ser entendida como criatividade, é uma acção
“que dá um sentido de realização à vida, uma extensão das suas dimensões, é necessária
para muitos e no entanto continua a ser o domínio de poucos” (Grotowski, 1976 apud
Kumiega, 1985: 201)31. Tratava‐se pois de ultrapassar a divisão entre actores e
espectadores num ambiente de suspensão dos papéis sociais e de procurar a dimensão
humana da existência de cada um através da acção e da experimentação. Um encontro
envolvendo outros indivíduos e a natureza (cfr. Grotowski, 1997b [1972]: 215 ‐ ss). Leszec
Kolodziejczyk descreve‐o sumariamente:
Uma experiência parateatral. Em que consiste? Consiste no isolamento comum por um
grupo de pessoas num lugar afastado do mundo exterior e na tentativa de construir um
encontro genuíno entre seres humanos. […] No entanto, isto não é uma performance uma
vez que não contém os elementos teatrais tais como a trama ou a acção (Kolodziejczyk,
1978: 8 apud Schechner, 1997b: 210)32.
Mas Grotowski não tinha contado com a falta de preparação técnica e ética dos
participantes.
Nos primeiros anos, quando um pequeno grupo trabalhava exaustivamente durante
meses e meses sobre este propósito e era mais tarde acompanhado por apenas alguns
novos participantes do exterior, aconteceram coisas que estavam na fronteira de um
milagre. No entanto depois, quando à luz desta experiência, fizemos outras versões com
vista a incluir mais participantes ‐ ou quando o grupo de base não tivesse passado
primeiro por um longo período de trabalho intrépido ‐ certos fragmentos funcionaram
30
Os espectáculos do Teatr Laboratorium mantiveram‐se em reportório e foram apresentados até
muito mais tarde. Apocalypsis Cum Figuris teve a sua última apresentação em 1980.
31
“which gives a sense of fulfillment of life, an extending of its dimensions, is needed by many, and
yet remains the domain of very few”. Nossa tradução.
32
“A para‐theatrical experiment. What does it consist of? It consists of a common isolation by a
group of people in a place far removed from the outside world, and an attempt to build a kind of
genuine meeting among human beings. […] This is not a performance, however, because it does not
contains the elements of theater such as plot or action”. Nossa tradução.
16
bem mas o todo degenerou, em certa medida, numa sopa emotiva entre as pessoas, ou
melhor, numa espécie de animação (Grotowski, 1995: 120).33
A grande lição que Grotowski tiraria do Parateatro prende‐se com a impossibilidade do
diletantismo: “Não é a boa vontade que vai salvar o trabalho, mas a maestria. Obviamente,
quando temos a maestria, aparece a questão do coração. Coração sem maestria é uma
merda. Quando a maestria existe, devemos lidar com o coração e com o espírito”
(Grotowski, 1997c [1986]: 297).34
Em 1976, ainda com projectos parateatrais a decorrer, o Teatr Laboratorium inaugura a
fase do “Teatro das Fontes”. Como resultado das suas viagens, Grotowski tinha contactos
com inúmeros indivíduos e colectivos que desenvolviam práticas performativas que
tocavam o “essencial”. O novo projecto recorre a esses contactos para estabelecer um
estudo sistemático, não das formas performativas, não das técnicas, mas do “essencial” em
si:
Mas o que procuramos neste Projecto são as fontes da técnica das fontes e essas fontes
devem ser extremamente simples. Tudo o resto desenvolveu‐se posteriormente e
diferenciou‐se de acordo com os contextos social, cultural e religioso. Mas a coisa primária
deverá ser algo extremamente simples e deverá ser algo que foi oferecido ao ser humano
(Grotowski, 1997a: 261).35
A grande ruptura em relação à estratégia do parateatro é a individualidade do trabalho.
“No Teatro das Fontes cada um está ‘sozinho com os outros’. Mesmo se trabalham lado a
lado, estão na solidão” (Grimes, 2997: 271).36
33
“In the first years, when a small group worked thoroughly on this for months and months, and was
later joined only by a few new participants from the outside, things happened which were on the
border of a miracle. However afterwards, when, in light of this experience, we made other versions,
with a view to include more participants – or when the base group had not passed first through a
long period of intrepid work – certain fragments functioned well, but the whole descended to some
extent into an emotive soup between the people, or rather into a kind of animation”. Nossa
tradução.
34
“It is not goodwill which will save the work, but it is mastery. Obviously when mastery is here,
appears the question of heart. Heart without mastery is shit. When mastery is here, we should cope
with the heart and with the spirit”. Nossa tradução.
35
“But what we search for in this Project are the sources of the technique of sources, and these
sources must be extremely unsophisticated. Everything else developed afterwards, and
differentiated itself according to social, cultural or religious contexts. But the primary thing should be
something extremely simple and it should be something given to the human being”. Nossa tradução.
36
“In the Theatre of Sources one is ‘alone with others’. Even though people work alongside one
another in it, they are in solitude”. Nossa tradução.
17
Em suma, um trabalho individual de especialistas em técnicas performativas tradicionais
que procuram, não na sua tradição, mas no que pode estar antes da tradição e da cultura,
na “essência”.
A imposição da Lei Marcial na Polónia, em 1981, veio condicionar o fim do projecto, que
ocorre em 1982 quando Grotowski voluntariamente se exilou nos Estados Unidos. Porém,
esperou por uma oportunidade em que todos os seus companheiros do Teatr Laboratorium
se encontravam fora do país em trabalho e informou‐os da sua decisão e das
consequências que esta teria para eles. Para os que escolhessem pedir asilo político, havia
um advogado em Paris, onde a maioria se encontrava, preparado para assumir o processo
(cfr. Wolford, 1997b: 283 – 284).37
Em 1983, Grotowski lança um novo projecto, agora sem o enquadramento do Teatr
Laboratorium e num contexto que lhe é estranho: a convite do Professor Robert Cohen
inicia na Universidade da Califórnia/Irvine a pesquisa sobre o “Drama Objectivo”.38 O
programa apresentava‐se nos seguintes termos: “Drama objectivo diz respeito àqueles
elementos de rituais antigos que têm um preciso, e portanto objectivo, impacto nos
participantes, para além do mero significado teológico ou simbólico” (Wolford, 1996a: 9).39
A questão da “objectividade” em Grotowski é polémica e ocupará a nossa atenção quando
nos dedicarmos à “objectividade do ritual”, a Arte como Veículo (infra, Cap. I .3). Para já
traçaremos as fontes do conceito em Grotowski, que segundo Osinski são duas: a primeira,
Gurdjieff, para quem uma “Arte Objectiva” teria uma qualidade extra e supra‐individual e
poderia portanto revelar as leis do destino do Homem. A segunda, Juliusz Osterwa, director
do Reduta, que num caderno de apontamentos discutia a objectividade da arte e a
possibilidade de esta afectar todos de uma forma de que nem se dessem conta. Grotowski
conhecia bem ambas as referências (cfr. Osinski, 1997: 385 – 6). As perguntas que se
formulavam agora eram: que elementos, estruturas ou ferramentas têm um impacto
objectivo sobre o performer? Haverá técnicas, lugares, movimentos, vibrações corporais ou
vocais que afectam o performer e transformam a sua energia, permitindo‐lhe entrar num
fluxo de impulsões vitais?
O programa Drama Objectivo durou pouco tempo sob a direcção de Grotowski. Mas as
questões, que vinham já das fases anteriores do seu trabalho, transitaram para a etapa
seguinte. Em 1986, Grotowski foi convidado por Roberto Bacci, director do Centro per la
Sperimentazione e la Ricerca Teatrale de Pontedera, Itália, para aí instalar, com carácter
37
O Teatr Laboratorium viria a dar‐se por extinto em 1984.
38
No ensaio “From The Theatre Company to Art as Vehicle” (in Richards, 1995: 115 ‐ ss) Grotowski
ignora esta fase da sua carreira. Eventualmente porque as vicissitudes do projecto o levaram a não o
considerar como “coisa sua”. O projecto viria a decorrer até 1992, embora a partir de 1986 a
participação de Grotowski fosse ocasional e não assumisse a direcção do programa. Em
contrapartida, no mesmo texto Grotowski é prolífero nas críticas que dirige aos departamentos de
teatro das universidades norte‐americanas.
39
“Objective drama is concerned with those elements of ancient rituals of various world cultures
which have a precise and therefore objective impact on participants, quite apart from solely
theological or symbolic significance”. Nossa tradução.
18
definitivo, o seu Workcenter. Aqui começa a sua derradeira fase, o trabalho sobre a Arte
como Veículo, a que dedicaremos a nossa atenção mais à frente.
Antes de dar por concluída esta secção importa, em súmula, identificar as principais
influências e referências que distinguem o pensamento de Grotowski.
No topo da lista situa‐se, sem sombra de dúvida, Konstantin Stanislavky de quem Grotowski
se considerava mais do que um continuador: “houve um tempo em que eu queria ser
Stanislavsky” (Kumiega, 1985: 218).40 Pela interposta pessoa de Yuri Zavadski, dele recebeu
as mais importantes ferramentas metodológicas: a metodologia das acções físicas e as
noções de “trabalho sobre si mesmo” e pesquisa constante. Meyerhold foi uma referência
na encenação, tal como Vakhtanghov (cfr. Grotowski, 1975 [1968]: 14). Os exercícios
biomecânicos de Mayerhold tiveram pouca importância na pesquisa sobre os trainings
corporais porque não havia registo deles ou quem os pudesse transmitir ao elenco do Teatr
Laboratorium. Neste domínio constituíram referências Delsarte, Dalcroze (Grotowski,
2015b [1971]: 153‐154), o Ioga e Charles Dullin, de quem Grotowski terá tomado
conhecimento através de Jean Vilar e Marcel Marceau (cfr. Osinski, 1986: 27). Numa fase
posterior os “Movimentos” de Gurdjieff podem ter tido um papel determinante no
desenvolvimento dos exercícios que ficaram conhecidos por “Motions” (cfr. Schechner,
1997a: 479). As artes performativas asiáticas, nomeadamente a ópera de Pequim, o Noh e
o Kathakali trouxeram referências técnicas (cfr. Grotowski, 1975 [1968]: 14). Juliusz
Osterwa, director do Reduta, foi sobretudo uma referência ética dentro do contexto
profissional (cfr. Burzynski e Osinski, 1979: 65).
Eugénio Barba, Peter Brook, Joseph Chaikin, Andre Gregory, Richard Schechner foram
amigos muito íntimos e grandes apoiantes dos projectos de Grotowski. Foram por ele
grandemente influenciados, mas não exerceram uma influência significativa no seu
pensamento.
O hipotético ascendente de Antonin Artaud sobre Grotowski tem feito correr muita tinta.
Mas só em 1960 Grotowski terá lido um pequeno excerto publicado numa revista polaca e
teria que esperar até 1964 para ler O Teatro e o seu Duplo que lhe foi enviado por
Raymonde Temkine (cfr. Temkine, 1972 [1967]: 144). De resto, no texto incluído em Para
um Teatro Pobre Grotowski explica porque Artaud não podia constituir uma referência: ele
era um visionário, um poeta do teatro, mas não tinha deixado pistas palpáveis que
pudessem ser seguidas (cfr. Grotowski, 1975 [1968]: 81 ‐ 90).
O pensamento de Gurdjieff, que Grotowski terá conhecido através de Peter Brook (cfr.
Wolford, 1996b: 225) e Carl Jung, que terá lido continuadamente desde a juventude, junto
com Paul Brunton, Ernest Renan, os Evangelhos, o Corão, o Zohar, Martin Buber (cfr.
Grotowski, 1997a: 253‐ 255) e Mestre Eckhart (cfr. Grotowski, 1988: 55‐57), bem como a
sua inclinação para o romantismo polaco, constituem as fontes que levam muitos autores a
suscitar a questão da espiritualidade de Grotowski, assunto que importa aqui discutir.
40
“there was a time when I wanted to be Stanislavsky”. Nossa tradução.
19
Os termos “espírito” ou “espiritual” ocorrem muito raramente no discurso de Grotowski e
nunca directamente relacionados com o cerne da sua pesquisa. E denuncia que “fala‐se
muito do espírito, da alma e da psique. Farisaísmo” (Grotowski, 2015c [1980]: 236)41.
Por outro lado, o seu léxico, as suas referências e as metáforas utilizadas reportam‐se a um
universo conceptual comummente relacionado com a espiritualidade. No texto “Teatro das
Fontes” (Grotowski, 1997a) Grotowski deu‐se ao trabalho de nos relatar, com algum
detalhe, a religiosidade da mãe e as suas leituras da infância e primeira juventude. Sendo
habitualmente tão reservado quanto à sua vida, porque o fez?
A nosso ver, Grotowski usa do léxico e das referências de que dispõe para transmitir uma
mensagem de objectividade que é constante em todo o seu discurso; nesse relato sobre a
sua juventude fornece‐nos as chaves para a descodificação da mensagem. O seu discurso,
pode parecer estranho e soar em certa medida a “charlatanice”. Pessoalmente, devo
confessar que não nos incomoda muito utilizar fórmulas de ‘charlatão’. Tudo o que cheira
a “anormal” e a “mágico” estimula a imaginação, quer do actor, quer do encenador
(Grotowski, 1975 [1968]: 35).
Mas em muitas outras passagens não hesita em declarar‐se não crente e laico42.
“Grotowski não teria usado o termo ‘espiritual’, teria mais provavelmente troçado da ideia”
(Schechner, 1997a:465).43 E quando se refere ao “espírito” fá‐lo num contexto em que
“’espiritual’ denota um modo de estar plenamente incorporado, em vez de uma forma de
sair do corpo” (Grimes, 1997: 273).44
Tatiana Motta Lima chama‐nos a atenção para uma passagem de um filme documentário45
em que, em jeito de brincadeira, Grotowski afirma: “Se Deus existe, então, ele cuida da
nossa vida espiritual, mas, e se ele não existe?” (Motta Lima, 2010: 2). O que leva a
investigadora a entender que “a vida espiritual do homem, sua alma, o conhecimento que
pode ter de si mesmo é, para Grotowski, ‘affair’ do próprio homem” (Motta Lima, 2010: 2).
E que:
O sagrado em Grotowski, ao contrário, desestabiliza – esgarça, amplia, faz ceder –
determinada noção mais estável de sujeito. No ‘trabalho sobre si’ é o próprio ‘si’, a
percepção do que é (está) ‘si’, que é colocado em questão. É um processo de luta, de
‘práticas de liberdade’, de não assujeitamento, que está em jogo. Podemos fazer uma
analogia aqui com a noção de ‘inquietude de si’ com a qual Foucault trabalhou (Motta
Lima, 2010: 4).
41
“Si parla molto dello spirit, dell’anima e della psyche. Fariseismo”. Nossa tradução.
42
Por exemplo: “Falo de ‘santidade’ não sendo crente. Concebo uma ‘santidade laica’” (Grotowski,
1975 [1968]: 31).
43
“Grotowski himself would not use the word “spiritual”, he would more probably mock the idea”.
Nossa tradução.
44
“‘spiritual’ connotes a way of being embodied with fullness rather than a way of exiting from the
body”. Nossa tradução. Mais à frente neste trabalho teremos a oportunidade de abordar o corpo em
Grotowski e a sua perspectiva antropológica absolutamente monista.
45
“A Postcard from Opole”, de 1963.
20
E são estes mesmos argumentos que usamos para defender que toda a consideração sobre
a espiritualidade de Grotowski deveria, com vantagem, ser deslocada para o domínio da
ontologia. Parece ser esse o entendimento de Monique Borie:
O teatro é antes de mais para Grotowski um instrumento de realização e o lugar de onde
ele interrogou o pensamento mítico é o mesmo de onde a hermenêutica o interroga. O
que habita a sua busca, como a da hermenêutica, é uma problemática do ser, formulada
através da nostalgia da origem e da unidade perdidas… (Borie, 1978)46
O percurso de Grotowski, que temos vindo a descrever, é sintetizado por Schechner da
seguinte forma: o trabalho sobre si próprio levou ao abandono do teatro e conduziu ao
Parateatro; a procura de algo que fosse transcultural e essencial remeteu ao Teatro das
Fontes; destilar essas fontes em acções performativas levou ao Drama Objectivo e à Arte
como Veículo (cf. Schechner, 1997b: 213).
Para Grotowski o percurso é linear: “A linha é perfeitamente directa, procurei sempre
prolongar a investigação, mas chegado a um certo ponto, para fazer um passo em frente, é
preciso alargar o campo” (Thibaudat, 1995)47.
É esta coerência e linearidade do seu percurso, que percorre o teatro desde o pré‐teatro ao
pós‐teatro, que nos leva a considerar que a caracterização da Arte como Veículo, enquanto
corolário das suas investigações e pesquisas, só seja possível recorrendo ao estudo dos
conceitos que foram desenvolvidos ao longo de toda a sua carreira nas artes performativas.
2‐ O pensamento de Grotowski: alguns conceitos‐chave para a explicação da Arte
como Veículo.
Munidos desta muito sumária descrição do percurso de Jerzy Grotowski tentaremos
explicar o pensamento que o percorre, identificando alguns conceitos fundamentais na sua
estruturação. Convém mais uma vez fazer notar que a sua acção se desenvolve num plano
prático, que Grotowski quase não escreveu e que, quando escreveu ou transcreveu os seus
discursos e conferências, se dirigia a praticantes das artes performativas, inscrevendo pois
o seu discurso numa prática de transmissão directa do conhecimento.48 O seu léxico vai
beber às muito díspares fontes que apontámos e as suas metáforas incorporam imagens
que estimulam a acção. A sua transmissão de conhecimentos é também condimentada com
uma significativa dose de provocação.
46
“Le théâtre été avant tout pour Grotowski un instrument d’accomplissement, et le lieu d’où il a
interrogé la pensée mythique se trouve être celui‐là même d’où l’herméneutique l’interroge. Ce qui
habite sa quête, comme celle de l’herméneutique, c’est une problématique de l’être, formulée à
travers la nostalgie de l’origine et de l’unité perdues…” Nossa tradução.
47
“La lignée est parfaitement directe. J’ai toujours cherché à prolonger l’investigation, mais arrivé à
un certain point, pour faire un pas en avant, il faut élargir le champ”. Nossa tradução.
48
A questão da “transmissão” ocupou um lugar relevante no pensamento de Grotowski, sobretudo
na última década da sua existência. Sobre este assunto veja‐se o seu prefácio à obra de Thomas
Richards (1995), At Work With Grotowski on Physical Actions.
21
Sustentámos que a coerência do percurso de Jerzy Grotowski nos permite articular as
noções expressas em diversas épocas do seu trajecto. Não pretendemos com isto negar
que esses conceitos se formaram em determinada altura e que evoluíram, se
transformaram, se adequaram. Pelo contrário: os conceitos nasceram da prática e a ela se
foram ajustando. Tatiana Motta Lima dedicou um livro, que se tornou uma referência, à
evolução dos conceitos em Grotowski (Motta Lima, 2012)49 entre as fases teatral e
parateatral. Explica‐nos, por exemplo, o percurso da noção de “actor” (que mais tarde será
“performer” ou “fazedor”), do espectador à testemunha, da relação ao encontro. Não
caberia no âmbito nem na extensão deste trabalho fazer tão aprofundada análise dos
conceitos usados. Utilizaremos noções que transitam (e se adequam) das fases precedentes
do seu trabalho para explicar a Arte como Veículo, chamando a atenção para a evolução do
conceito, quando tal se justificar.
Relembramos que Grotowski dava pouca importância às palavras: “Cada vez que nos
limitamos a certos termos, estamos a flutuar no mundo das ideias, das abstracções.
Podemos então encontrar fórmulas extremamente reveladoras, mas elas pertencem ao
domínio do pensamento, não ao domínio da realidade” (Grotowski, 1997c [1986]: 294).50 O
que não o impediu de dedicar um extremo cuidado à edição, tradução e publicação dos
seus textos (cfr. Schechner, 1997a: 472 – 473).
Interrogar o seu pensamento artístico requer que se não perca de vista o fim a que a arte se
destina e para Grotowski a arte, e especialmente o teatro, serve:
Para vencermos as nossas fronteiras, para ultrapassarmos os nossos limites, para
enchermos o nosso vazio – para nos realizarmos. Não é uma condição, mas um processo
no decurso do qual o que em nós é obscuro lentamente transparece. Nesta luta pela
verdade de nós próprios, neste esforço para arrancar a máscara quotidiana, o teatro, com
a sua percepção carnal, sempre me pareceu uma espécie de provocação (Grotowski,
1975[1968]: 19).
Não é pois, à partida, uma arte social ou com um fim exterior a si. É um processo do ‘eu
próprio’, que se desenrola no território do ‘eu próprio’, o trabalho sobre si mesmo.
Ensimesmado? Demonstraremos que não.
O Corpo como Sujeito.
Em muitos aspectos o pensamento de Grotowski constrói‐se com conceitos que não
admitem gradação. Se começarmos por olhar para o seu pensamento a partir do sujeito
que age, quem faz, deparamo‐nos com a pedra angular de toda a sua arquitectura
conceptual: o indivíduo. “O significado etimológico de ‘individualidade’ é ‘indivisibilidade’, o
que quer dizer existência total em qualquer coisa” (Grotowski, 1975 [1968]: 208). Permita‐
49
Não nos foi possível obter uma cópia do livro pelo que nos apoiámos na sua tese doutoral de 2008.
A autora afiançou‐nos que o livro foi inteiramente baseado na tese.
50
“Each time we limit ourselves to certain terms, we are afloat in the world of ideas, of abstractions.
We can then find some extremely revealing formulas, but they belong to the realm of thoughts and
not to the realm of realities”. Nossa tradução.
22
se‐nos chamar a atenção para a evidente correlação com o conceito de “individuação” de
Jung: “Uso o termo ‘individuação’ no sentido do processo que gera um ‘individuum’
psicológico, ou seja, uma unidade indivisível, um todo” (Jung, 2000 [1934]: 269).51
O indivíduo é, pois, absoluto, total e indivisível, mas não basta que o sujeito pertença à
espécie humana para merecer a caracterização de indivíduo. Pelo contrário, Grotowski
denuncia que as condições usuais do quotidiano colocam o ser humano numa condição de
divisão, adormecimento, não‐presença: “O ser humano está constantemente dividido entre
‘eu’ e o ‘meu corpo’ – como se fossem duas entidades diversas” (Grotowski, 2015b [1971]:
157)52. O indivíduo é hic et nunc, a sua cabeça, corpo e coração constituem uma unidade ou
totalidade que se traduz por “presença” ou “consciência” (cfr. Grotowski, 1995: 125). Esta
unicidade presencial é também um absoluto corpóreo: a cabeça, o corpo e o coração,
sendo metáforas para a mente, a fisicalidade e as emoções, são antes de mais segmentos
do corpo. É pois o corpo, físico e carnal, um corpo total e uno, que se constitui como sujeito
da proposição, que age, intervindo no mundo de forma culminante. O corpo opera um
processo de aglutinação, congregando categorias que se apresentam separadas na tradição
do pensamento ocidental: corpo e mente, razão e emoção, interior e exterior, estrutura e
vida. O corpo assume‐se como sujeito uno, um sujeito que não nega as dualidades em que
as suas impulsões o colocam face às circunstâncias ou com que se depara no seu modo de
se ver a si próprio, mas que as resolve pela conjunção. Aglutina esses dualismos, assume‐se
como um eu que age.
A unicidade do sujeito requer, antes de mais, uma aceitação do corpo:
Não estar dividido, no fundo, quer dizer aceitar‐se. Não confiar no próprio corpo significa
não ter confiança em si mesmo. Estar dividido. Não estar dividido: não é só a semente da
criatividade do actor, é também a semente da vida, da possível totalidade (Grotowski,
2015b [1971]: 157). 53
Essa unicidade, primordial para Grotowski, é condição essencial para a concretização de um
“Acto” que, por si, será meio de acesso a outra categoria, como explica Monique Borie:
51
A noção de “individuação” em Jung pode também ser relacionada com o objectivo da Arte em
Grotowski. Veja‐se: “Individuação significa tornar‐se um ser único, na medida em que por
‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando
também que nos tornamos o nosso próprio si‐mesmo. Podemos pois traduzir ‘individuação’ como
‘tornar‐se si‐mesmo’ (Verselbstung) ou ‘o realizar‐se do si‐mesmo’ (Selbstverwirklichung)" (Jung,
2008 [1917]: 60). Um estudo aprofundado da influência de Jung em Grotowski (que não cabe no
propósito do presente trabalho) poderia ajudar‐nos a explicar a sua propensão para os autores do
romantismo, a sua alegada utilização de arquétipos na composição teatral ou o seu interesse pela
Gnose, por exemplo.
52
“L’essere umano è constantemente diviso tra ‘io’ e il ‘mio corpo’ – come fossero due entità
diverse”. Nossa tradução.
53
“Non essere divisi, in fondo, vuol dire accettarsi. Non avere fiducia nel proprio corpo vuol dire non
avere fiducia in se stessi. Essere divisi. Non essere divisi – nom è soltanto il seme della creatività
dell’attore, è anche il seme della vita, della possibile interezza”. Nossa tradução.
23
O teatro como instrumento de realização, como meio de acesso à verdade e ao ser, é aqui
indissociável duma reconquista da unidade, da totalidade, que se opera no e pelo actor
ele mesmo (Borie, 1978).54
Dito isto, a acção performativa é uma prática e acarreta a resolução funcional de problemas
que se colocam à performance. Nestas circunstâncias pode afigurar‐se necessário olhar
para o corpo de um ponto de vista exterior: como funcionam as articulações do meu braço?
Como recupero o equilíbrio depois deste movimento? Mas a divisão do corpo, a sua
objectivação, só ocorre para reforçar a ideia de aglutinação e subjectivação unitária do
corpo, surgindo em situações de exercício ou com propósitos pedagógicos:
A dissecação a que Grotowski se refere aponta para uma nova percepção do corpo. Não se
trata de exercitá‐lo ao limite de sua potência física como o fazem os atletas, tampouco
deixá‐lo adormecer como mero suporte do logos. É preciso livrá‐lo de sua falsa
materialidade, marcada social, cultural e psiquicamente para que renasça como morada
da subjetividade individuada. Há nisso uma componente de forte sensualidade e de desejo
metafísico de entrega ao outro. Somente nessa perspectiva é que se pode conceber uma
técnica que vise associar à precisão física da partitura a qualidade perturbadora da auto‐
exposição íntima (Coelho, 2009: 56).
Os ‘trainings’ corporais não são actividades preparatórias, são acções artísticas que
cumprem plenamente os objectivos enunciados: libertar(‐se), realizar(‐se). A abordagem
proposta é o desafio:
Desafiá‐lo dando‐lhe tarefas, objectivos que parecem exceder as capacidades do corpo. É
uma questão de convidar o corpo ao “impossível” e fazê‐lo descobrir que o “impossível”
pode ser dividido em pequenas partes, pequenos elementos, e tornado possível. Nesta
segunda abordagem, o corpo torna‐se obediente sem saber que deveria ser obediente.
Torna‐se um canal aberto às energias, e descobre a conjunção entre o rigor dos
elementos e o fluxo da vida (“espontaneidade”). Deste modo o corpo não se sente como
um animal domado ou domesticado, mas antes como um animal selvagem e orgulhoso. A
gazela perseguida por um tigre corre com ligeireza, uma harmonia de movimento que é
incrível. Se a observarmos em câmara lenta num documentário, esta corrida da gazela e
do tigre dão‐nos uma imagem de vida que é plena e paradoxalmente alegre (Grotowski,
1995: 129).55
54
“Le théâtre comme instrument d’accomplissement, comme moyen d’accès à la vérité et à l’être
est indissociable, ici, d’une reconquête de l’unité, de la totalité qui s’opère dans et par l’acteur lui‐
même”. Nossa tradução.
55
“To challenge it by giving it tasks, objectives that seem to exceed the capacities of the body. It's a
question of inviting the body to the "impossible" and making it discover that the "impossible" can be
divided into small pieces, small elements, and made possible. In this second approach, the body
becomes obedient without knowing that it should be obedient. It becomes a channel open to the
energies, and finds the conjunction between the rigor of elements and the flow of life
("spontaneity"). Thus the body does not feel like a tamed or domestic animal, but rather like an
animal wild and proud. The gazelle pursued by a tiger runs with a lightness, a harmony of movement
that is incredible. If one watches this in slow motion in a documentary, this run of gazelle and tiger
gives an image of life which is full and paradoxically joyous”. Nossa tradução.
24
Trata‐se então de olhar para o corpo a partir do corpo, de um “olhar de dentro”, de um
convite à auto‐exploração e à superação. Um modelo de percepção do corpo que reforça a
sua subjectividade: o corpo é um sujeito que age.
A Acção, o Acto Total: Fazer.
Se o sujeito é o indivíduo corporizado, o predicado desta enunciação é a acção. No discurso
de Grotowski, acto, acção ou acto total são sinónimos56, o que quer dizer que não se lhe
aplicam gradações valorativas. Uma acção é sempre um acto total, não existe uma acção
mal executada como não existe uma acção incompleta ou uma acção que não seja plena.
Todos os comportamentos ou movimentos que não caibam nesta exigência de totalidade e
plenitude serão relegados para as categorias de “actividade”, “gestualidade” ou outras,
sem interesse para a presente reflexão57.
No entanto, ao contrário do corpo‐sujeito, a acção pode e deve ser dividida, multiplicada,
subtraída, somada: no processo de criação, o performer “deve dividir cada acção em acções
mais pequenas” (Richards, 1995: 88)58, “eliminando todas as acções que não sejam
absolutamente necessárias” (Grotowski, 1997c: 302)59 e organizando‐as segundo uma
sequência (cfr. Grotowski, 1986).
56
Estamos, obviamente, a tratar o pensamento e Grotowski como um todo coerente. Se
analisássemos detalhadamente verificaríamos que os diferentes termos foram usados
predominantemente em épocas e contextos distintos. Mas tal não contraria a nossa alegação de que
traduzem uma mesma ideia.
57
No léxico de Grotowski, uma actividade é um comportamento a que não corresponde uma
motivação; um gesto é um movimento periférico (dos braços, das mãos, dos pés, da cabeça) a que
não corresponde uma impulsão.
58
“must divide each action into smaller actions”. Nossa tradução.
59
“eliminating all the actions that are not absolutely necessary”. Nossa tradução.
60
Para uma discussão sobre as noções de “metodologia” e “método” a partir do pensamento de
Stanislavski, veja‐se o nosso artigo “Metodologia versus Método” (Pereira e Villepoix, 1998).
25
refere às vossas acções, especialmente o ritmo (…) Se souberem fazer as vossas acções
simples, segundo as circunstâncias dadas, estas acções tornar‐se‐ão acções psico‐físicas”.
O esquema das acções físicas é o esqueleto sobre o qual se constrói tudo o que faz essa
essência da personagem humana. Ele reflecte de uma maneira extremamente expressiva
e convincente todos os sentimentos, todas as experiências emocionais da personagem
(Pereira e Villepoix, 1998).
Grotowski inscrevia‐se na linha de Stanislavski, por via da sua aprendizagem com Zavadski,
e desenvolveu a metodologia das acções físicas num contexto liberto das contingências do
teatro realista,61 logo sem ter que se conformar com o desenho de uma “personagem”. No
contexto grotowskiano, como explica André de Brito Correia:
Em vez de falar de papel ou de personagem, é mais pertinente falar de partitura para
entender aquilo que é o ofício do actuante. Essa partitura é um “modelo de reacções”, um
“sistema de signos”. Constitui‐se como um esquema de associações que não são
pensamentos mas sim recordações precisas, recordações que são activadas por um
trabalho de procura através do corpo‐memória (Correia, 2003).
Como dissemos, a acção não admite gradação, não pode ser mais ou menos, tem que ser
precisa, rigorosa, estruturada. A acção é a estrutura:
Estrutura ou forma é uma disciplina; é significante porque é um processo de signos que
estimula as associações do espectador. Esta disciplina é organizada e estruturada; sem ela
temos caos e puro diletantismo […] A disciplina é obtida através da espontaneidade, mas
mantém‐se sempre uma disciplina. A espontaneidade é vergada pela disciplina, e no
entanto há sempre espontaneidade. Estes dois opostos sujeitam‐se e estimulam‐se
mutuamente e dão radiância á acção. O nosso trabalho não é abstracto nem naturalista. É
natural e estruturado, espontâneo e disciplinado (Grotowski, 1969: 42)62
Toda e qualquer acção responde a uma motivação; é pois uma reacção. Para que a acção o
seja plenamente, a motivação requerida pelo acto artístico é também extraordinária:
“Dominado pelo entusiasmo – no velho sentido da expressão – o homem lança mão de
signos rítmicos, começa a dançar, a cantar” (Grotowski, 1975 [1968]: 15).
É pois num estado de “entusiasmo” que o actuante executa o seu acto extraordinário. Que
consiste em despojar‐se da sua máscara quotidiana e, psiquicamente desnudado, entregar‐
se numa dádiva total,63 que gera o acto total:
61
No contexto pedagógico Stanislavski defendia que a metodologia das acções físicas podia ser
usada tanto no teatro naturalista quanto no teatro simbolista. Não é essa a questão que nos ocupa:
as acções físicas para Stanislavski são sempre realistas, recolhidas da experiência quotidiana.
Veremos que Grotowski vai mais longe.
62
“Structure or form is a discipline; it is significant because it is a process of signs that stimulates the
spectator's associations. This discipline is organized and structured; without it we have chaos and
pure dilettantism […] Discipline is obtained through spontaneity, but it always remains a discipline.
Spontaneity is curbed by discipline, and yet there is always spontaneity. These two opposites curb
and stimulate each other and give radiance to the action. Our work is neither abstract nor
naturalistic. It is natural and structured, spontaneous and disciplined”. Nossa tradução.
63
Subsistiu a ideia de que esta dádiva era feita ao espectador (ou, no Teatro de Participação, à
testemunha co‐actuante). Veremos que no contexto da Arte como Veículo se torna mais claro que a
entrega é à acção, a dádiva é ao “fazer”.
26
A realização do acto a que nos referimos exige a mobilização de todas as forças físicas e
psíquicas do actor, cujo estado é a disposição inactiva, a passiva disponibilidade, que vai
tornar possível a realização activa. […] Esse acto é culminante (Grotowski, 1975 [1968]:
35).
Esta “passiva disponibilidade” articula‐se com a noção de via negativa, sustentáculo da
noção de “Teatro Pobre”: o actor não necessita de adquirir novas competências ou
habilidades. Deve é libertar‐se de bloqueios e preconceitos que lhe limitem a disposição
inactiva, a possibilidade de reagir (cfr. Grotowski, 1975 [1968]: 14).
Disponibilidade passiva requer uma extrema sinceridade: “a sinceridade começa onde
estamos desarmados” (Grotowski, 1997b [1972]: 223)64 e deve ser entendida no sentido de
Trilling: “ser verdadeiro para si mesmo” (Trilling, 1972)65.
A análise do processo da acção contribui para esclarecer o carácter subjectivo do corpo. As
motivações, enquanto reacções, traduzem‐se por impulsões:
Antes de uma pequena acção física há um impulso. É aí que reside o segredo de algo
muito difícil de entender, porque o impulso é uma reacção que começa dentro do corpo e
que é visível apenas quando já se tornou uma pequena acção. O impulso é tão complexo
que não se pode dizer que seja apenas do domínio corporal (Grotowski, 1992: 100)66.
O impulso corresponde a uma intenção ou motivação, que constitui uma reacção, e tem
origem no mais profundo e íntimo do indivíduo. Em termos físicos, começa por se
manifestar no centro do corpo e expande‐se até às extremidades.67 A motivação determina
um conjunto de qualidades da acção: a direcção, o tempo‐ritmo, a intensidade, o volume e
a ressonância da voz, entre outras. 68Estas expressões visíveis da motivação permitem‐nos
uma leitura da mesma, ainda que a motivação não seja visível para nós.
64
“sincerity begins where we are defenseless”. Nossa tradução.
65
A distinção de Trilling entre sinceridade e autenticidade ganha especial interesse com a
interpretação de Charles Taylor em The Ethics of Authenticity (1992) que liga a autenticidade com a
noção moderna de auto‐realização. Grotowski, no entanto, não faz distinção entre os dois conceitos.
66
“Avant une petite action physique, il y a l’impulsion. Là git le secret de quelque chose de très
difficile à saisir parce que l’impulsion est une réaction qui se commence derrière la peau et qui est
visible seulement quand elle est déjà devenue une petite action. L’impulsion est tellement complexe
qu’on ne peut pas dire qu’elle soit du domaine uniquement corporel”. Nossa tradução.
67
É muito importante não confundir o impulso com as contracções musculares (cfr. Richards, 1995:
96).
68
Os trainings servem para conferir ao corpo a plasticidade e condutibilidade que facilitam a
passagem das impulsões vitais e são, por excelência, as disciplinas que permitem um estudo prático
sobre as qualidades da acção (física ou vocal). Não nos deteremos aqui sobre a matéria dos trainings,
por ser demasiado extensa para este trabalho, embora seja um tema nuclear à compreensão do
universo grotowskiano e estar sempre presente no entendimento dos conceitos aqui abordados.
69
Seria interessante comparar as noções de espontaneidade em Grotowski e Moshe Feldenkrais.
Desconhecemos se Grotowski tinha conhecimento dos estudos e conclusões de Feldenkrais mas, na
análise do processo da acção, muitas das conclusões são dialogantes. No entanto, para o prático
27
referir ao fluxo de impulsos, Grotowski evita precisar onde se situa a origem dessa energia.
Mas energia e fluxo de impulsões constituem‐se como dois pontos de vista sobre o mesmo
fenómeno. A organicidade, que era para Stanislavski uma noção ligada à plástica corporal e
à naturalidade da postura e do movimento quotidiano é redefinida por Grotowski como a
potencialidade que resulta do fluxo de impulsos, que têm origem no interior do indivíduo e
se dirigem para a concretização da acção precisa. Dito desta forma, a organicidade,
resultante do fluxo de impulsos, ou energia, plenamente motivado, requerendo uma
inactiva disponibilidade… afigura‐se um processo rigoroso e exigente. Sem dúvida que o é
e, no entanto, se atendermos a que a via negativa é o caminho proposto, entenderemos
que Grotowski ligue a organicidade à infância: “A criança é quase sempre orgânica”
(Grotowski, 1992: 103).70
Temos insistido na tese de que o pensamento prático de Grotowski constitui um todo
coerente. Um bom exemplo é a noção de conjunctio oppositorum que começa por se
revelar nos exercícios ditos plásticos:
... de Delsarte, de Dalcroze e de outros, passo a passo, descobrimos que os chamados
exercícios plásticos podem funcionar como conjunctio oppositorum entre estrutura e
espontaneidade (Grotowski, 2015b : 153 ‐ 154).71
A noção foi também tomada de Jung (que, por sua vez a glosou da alquimia medieval):
“união dos opostos quando um deles jamais está separado do outro. Trata‐se daquela
esfera de vivência que conduz diretamente à experiência da individuação, ao tornar‐se si‐
mesmo” (Jung, 2000 [1934]: 113).
A conjunção de opostos é, também na actuação, o justo equilíbrio entre o impulso vital e o
rigor da estrutura de execução. A tensão gerada pela oposição estimula o estado de
“consciência vigilante” e desperta o corpo‐memória.
O corpo‐memória: o acesso ao essencial.
O fluxo de impulsões desperta o processo do corpo‐memória72. Esta é uma noção nuclear
no pensamento prático de Grotowski e tem, para o nosso propósito, o maior interesse:
Pensa‐se que a memória seja independente de tudo o resto. Na verdade, pelo menos para
os actores, não é assim. O corpo não tem memória. Ele é memória. O que é preciso fazer é
desbloquear o corpo‐memória (Grotowski, 2015b : 155)73.
israelita, um comportamento espontâneo é o que tem um baixo teor emocional associado
(Feldenkrais, 1985: 8 – 13).
70
“L’enfant est presque toujours organique”. Nossa tradução.
71
“… di Delsarte, di Dalcroze e di altri, passo dopo passo, abbiamo scoperto che i cosiddetti esercizi
plastici possono funzionare come conjunctio oppositorum tra struttura e spontaneità” Nossa
tradução.
72
Podemos julgar que, também na consideração da memória, Grotowski parte de Stanislavski para o
ultrapassar: este recomendava que as acções físicas fossem procuradas em recordações precisas.
Grotowski, como veremos, vai bastante mais longe.
28
O corpo‐memória manifesta‐se por associações psico‐físicas: as dinâmicas corporais
desencadeiam um processo associativo e, se se permitir que essas associações conduzam o
processo, elas desenharão a dinâmica corporal, provocando o fluxo de impulsões, activando
novas associações.
O actor apela à própria vida [...] Volta‐se para o corpo‐memória, não tanto para a
memória do corpo, mas exactamente para o corpo‐memória. E para o corpo‐vida.
Portanto, volta‐se para as experiências que foram para si verdadeiramente importantes e
para aquelas que aguardamos, que ainda não aconteceram (Grotowski, 2015c: 240).74
Para Grotowski, a conquista deste corpo‐vida é possível através do exercício constante do
actuante no sentido de superar a contradição entre espontaneidade e precisão, conjunctio
oppositorum , característica da acção. O corpo na sua totalidade, com a sua riqueza
reminiscente, o corpo‐vida, revela‐se na acção. Estabelece‐se um processo dialéctico de
desempenho e superação: o corpo executa a acção e a acção revela o corpo, o corpo
revela‐se na acção e a acção executa‐se no corpo. Veja‐se como o corpo‐vida, unidade
aglutinadora do corpo enquanto sujeito, é também um corpo‐em‐acção que se agrega ao
mundo, um corpo dessubjectivado.
As explorações sobre o corpo‐memória levaram‐no ainda a considerar uma outra dimensão
dessubjectivada do corpo: o corpo de cada um é também um corpo herdado, que não é só
seu e que transporta em si uma memória genética, uma possibilidade de acesso a outra
dimensão: “Um dos acessos à via criativa consiste em descobrir em si mesmo uma
corporeidade antiga à qual se está ligado por uma relação ancestral forte” (Grotowski,
1988: 56).75
E, ainda mais longe, esse corpo é um repositório de toda a evolução, conferindo‐lhe uma
ligação com a “origem”:
[…] existe uma certa posição primária do corpo humano. É uma posição tão antiga que
talvez fosse, não a do homo sapiens, mas a do homo erectus, e que se relaciona de alguma
maneira com o aparecimento da espécie humana. Uma posição que parece desaparecer
de vista na noite dos tempos, ligada ao que os Tibetanos por vezes chamam o nosso
aspecto “réptil” […] temos no nosso corpo um corpo antigo, um corpo réptil… (Grotowski,
1997c: 297 ‐ 298).76
73
“Si pensa che la memoria sia indipendente da tutto il resto. In verità, almeno per gli attori, non è
così. Il corpo non ha memoria. Esso è memoria. Quello che bisogna fare è sbloccare il corpo‐
memoria”. Nossa tradução.
74
“L’attore fa appello alla propria vita […] Si rivolge al corpo‐memoria, non tanto alla memoria del
corpo, ma appunto al corpo‐memoria. E al corpo‐vita. Dunque si rivolge alle esperienze che sono
state per lui davvero importanti e a quelle che aspettiamo, che non sono ancora venute”. Nossa
tradução.
75
“Un des accès à la voie créative consiste à découvrir en soi‐même une corporéité ancienne à
laquelle on est relie par une relation ancestrale forte”. Nossa tradução.
76
“[…] there exists a certain primary position of the human body. It’s a position so ancient that
maybe it was that, not of the homo sapiens, but of the homo erectus, and which concerns in some
way the appearance of the human species. A position which seems to fade out of sight in the night of
29
O corpo‐sujeito, individual, carnal é também um corpo‐em‐acção, porque a ela se entrega
plenamente e, por essa via, devém um corpo‐outro, um corpo antigo, que se aproxima da
“origem”, do “essencial”.
O “essencial” de que nos aproximamos pela acção (cfr. Grotowski, 1995: 125) é o Ser,
“essere”. “A essência: etimologicamente trata‐se do ser, da condição do Ser. A essência
interessa‐me porque ela não tem nada de sociológico. É o que não recebemos dos outros, o
que não vem do exterior, que não é aprendido” (Grotowski, 1988: 54).77
O processo da aproximação ao “essencial” relaciona‐se com ascensão e claridade: “A arte é
um amadurecimento, uma evolução, uma ascensão que nos permite emergir da escuridão
para a claridade” (Grotowski, 1975 [1968]: 202). Ascensão a um estado de consciência mais
subtil, penetração em algo (ao mesmo tempo que o actuante é penetrado):
Com a penetração – como no regresso de um exilado – poder‐se‐á tocar algo que não está
já ligado às origens mas – se ouso dizê‐lo – à origem? Acredito nisso. A essência é o pano
de fundo da memória? Não sei. Quando trabalho muito próximo da essência tenho a
impressão de actualizar a memória. Quando a essência é activada é como se se activassem
potencialidades muito fortes. A reminiscência é talvez um dessas potencialidades
(Grotowski, 1988: 54).78
E retorno à densidade corpórea, cuja impulsão vital remete de novo à ascensão: esta é a
dinâmica cíclica que provoca no actuante uma transformação, a passagem da escuridão à
claridade. É pois uma dinâmica vertical, ascendente e descendente.
O que se destaca desta dinâmica essencial de ascensão é que o corpo‐sujeito, total e
indivisível, agregado ao mundo pela acção, dessubjectivado pela memória do corpo‐outro,
agora se multiplica em “Eu‐Eu”. A “consciência vigilante” é estado alterado de consciência e
percepção em que coexistem e colaboram dois “Eu”: o Eu que age e o Eu que é consciente.
Grotowski recorre às palavras de Mestre Eckhart: “Nós somos dois: o pássaro que debica e
o pássaro que observa” (Grotowski, 1988: 55)79. Para Mario Biagini, performer no
Workcenter de Grotowski, “a energia ascende e muda de qualidade, mas também podemos
dizer que é aquela vaga sensação que identifico como eu que muda de qualidade, como se
meu ser, minha percepção de mim mesmo no mundo e do mundo em mim mudassem de
qualidade, de densidade” (Biagini, 2013: 318).
the ages, linked to what the Tibetans sometimes call our “reptile” aspect. […] we have in our body an
ancient body, a reptile body …”. Nossa tradução.
77
“L’essence: étymologiquement il s’agit da l’être, de l’êtreté. L’essence m’intéresse parce qu’elle
n’a rien de sociologique. C’est ce qu’on n’a pas reçu des autres, ce qui ne vient pas de l’extérieur, qui
n’est pas appris”. Nossa tradução.
78
“Avec la percée – comme dans le retour d’un exilé – peut‐on toucher quelque chose qui n’est plus
lié aux origines mais – si j’ose le dire – à l’origine? Je le crois. L’essence est‐elle arrière‐fond de la
mémoire? Je n’en sais rien. Quand je travaille très près de l’essence j’ai l’impression d’actualiser la
mémoire. Quand l’essence est activée c’est comme si de très fortes potentialités s’activaient. La
réminiscence est peut‐être une de ces potentialités”. Nossa tradução.
79
“Nous sommes deux. L’oiseau qui picote et l’oiseau qui regarde.” Nossa tradução.
30
Mas não se trata de dualismo. Será antes uma amplificação: “É a unidade do homem. Então
não é o ‘eu’ que age – é ‘este’ que age. Não é o ‘eu’ que leva a cabo o acto, é o ‘meu
homem’ (o ser humano que existe em mim) que realiza o acto. Eu e o genus humanum
juntos” (Grotowski, 2015c: 239).80 É nesta conquista da unidade do Ser que identificamos a
natureza ontológica do projecto artístico de Grotowski.
O Outro: o movimento que responde.
Acabámos de fazer um trajecto que nos levou do corpo‐sujeito, uno, pleno, absoluto, que
através da acção, total, motivada, espontânea e estruturada, orgânica, se transforma em
corpo‐em‐acção, corpo‐no‐mundo e também corpo‐memória, corpo antigo, corpo‐vida, e
entra num processo de verticalidade que o conduz ao encontro com o Ser.
O percurso parece completo e, no entanto, nada disto fará sentido se esquecermos um
elemento fundamental desta equação: o Outro.
Antes que a acção seja executada, ela será motivada e o motivo constitui uma passagem
entre o sujeito e o mundo, entre o sujeito e o outro. A motivação dirige‐se para uma
relação de contacto: “não há impulsos, nem reacções, sem contacto” (Grotowski, 1975
[1968]: 176).
O ator não fica mergulhado em “vivências íntimas”, mas as percebe como reações
dirigidas ao outro, deslocadas espacialmente na direção do outro. O contato pressupunha,
portanto, uma relação concreta com o espaço: é em direção ao outro (aos outros, ao
Outro), em termos de espaço físico, que a reação pode se dar. Nesse sentido, o conceito
de “contato” não inclui apenas os atores que se relacionam, mas também o “espaço”
onde acontecem essas relações. O espaço é, ao mesmo tempo, percebido geométrica e
“existencialmente” (Motta Lima, 2005: 56).
O movimento em direcção ao Outro é pois também um movimento no espaço (que é um
espaço relacional) e é um acto de percepção, um “movimento que é resposta”:
Quando nos movemos, e quando somos capazes de romper com as técnicas do corpo da
vida quotidiana, então o nosso movimento torna‐se um movimento de percepção.
Podemos dizer que o nosso movimento é ver, ouvir, sentir, o nosso movimento é
percepção (Grotowski, 1997a: 263).81
O destinatário imediato desta relação de contacto é, para o actor ou performer, o outro ou
outros co‐actuantes. Eles são elementos objectivos, geradores de impactos e alvos de
reacções e motivações. Quanto mais se desenvolver uma relação de confiança entre os co‐
actuantes, tanto mais cada um deles poderá estar seguro de obter, num dado momento, o
estímulo que desencadeará as suas reacções. Estas relações de contacto são geradoras de
80
“Ma non si tratta di dualismo. È l’unità dell’uomo. E allora non agisce ‘io’ – agisce ‘questo’. Nom
‘io’ compie l’atto, il ‘mio uomo’ (l’essere umano che è in me) compie l’atto. Io e il genus humanum
insieme”. Nossa tradução.
81
“When we are moving, and when we are able to break through the techniques of the body of
everyday life, then our movement becomes a movement of perception. One can say that our
movement is seeing, hearing, sensing, our movement is perception”. Nossa tradução.
31
uma percepção do “Eu” assaz peculiar e enriquecedora (cfr. Richards, 1997: 46). Grotowski
falava de um “parceiro seguro” em que reside a oportunidade para um renascimento (cfr.
Grotowski, 1975 [1968]: 193). A noção de companheiro em Grotowski tem que ser ligada
ao conceito de “Eu e Tu” em Martin Buber: “Buber era um dos autores favoritos de
Grotowski. Os temas do encontro autêntico, do sacrifício e do risco que perpassam pela
discussão de Grotowski podem também ser encontrados no conceito de “Eu – Tu” de
Buber” (Lavy, 2005: 180).82 O que Buber nos diz é que só um ser humano total e uno pode ir
com sucesso ao encontro do Outro e que essa reunião é o berço da “Verdadeira Vida” (cfr.
Buber, 1937 [1923]).
O parceiro pode também materializar um “outro” imaginário, uma produção mental do
performer que resulta das suas associações e memórias e que se projecta sobre o co‐
actuante (cfr. Ouaknine, 1970: 36).
O espectador é um Outro que não tem especial importância para o objecto do nosso estudo
presente (senão talvez pela sua manifesta ausência, que discutiremos oportunamente) mas
importa referi‐lo, ainda que brevemente. Já mencionámos como, com Apocalypsis cum
Figuris, o espectador se converteu em testemunha e, mais tarde, em participante. Importa
dizer que Grotowski jamais se referiria aos espectadores com um substantivo colectivo;
público, audiência são termos que não fazem parte do seu vocabulário. “Público é um
rebanho!” disse um dia na nossa presença. “O espectador tem sempre que ser tratado com
o respeito que nos merece um indivíduo”.
Um Outro sempre presente neste processo: o próprio Jerzy Grotowski, encenador, director
de actores, produtor artístico ou Teacher of Performer. No teatro a sua função é dupla:
consiste em criar uma “montagem”, um percurso para a atenção do espectador, que lhe
permita uma leitura (subjectiva) e que, ao mesmo tempo, assume a função de “véu” em
relação à partitura íntima do actor que, desnudando‐se da sua máscara quotidiana e
oferecendo‐se, deve, ainda assim, estar protegido da concupiscência da multidão. Por outro
lado, o director de actores deve guiar e inspirar o actor na sua procura, com ele crescendo.
Na sua Afirmação de Princípios:
Um actor só pode ser guiado e inspirado por alguém que se entregue à sua actividade
criadora. Guiando e inspirando o actor, o encenador tem que permitir que
simultaneamente ele o guie e inspire. É uma questão de liberdade, de colaboração, e isto
não implica a falta de disciplina, mas respeito pela autonomia dos outros (Grotowski, 1975
[1968]: 204).
A partir do momento em que já não há espectadores, a função de Grotowski concentra‐se
no processo do Performer e na transmissão do conhecimento:
Eu sou teacher of Performer. Falo no singular. Teacher é alguém que transmite o
ensinamento; o ensinamento deve ser recebido, mas a maneira para o aprendiz de o
82
“Buber was among Grotowski's favorite authors. The themes of authentic encounter, sacrifice, and
risk which run through Grotowski's discussion can also be found in Buber's concept of I‐Thou”. Nossa
tradução.
32
redescobrir, de se lembrar, é pessoal. Como é que o teacher obteve ele próprio o
ensinamento? Pela iniciação ou pelo roubo (Grotowski, 1988: 53).83
O projecto ontológico de Grotowski requer a consideração do “Outro”, pressupõe uma
dimensão de alteridade84 sem a qual a busca prática do Ser não faz sentido.
3 – A Arte como Veículo, um esboço de definição.
Não é demais repeti‐lo: o pensamento prático de Grotowski não é susceptível de ser fixado
por definições teóricas. Foi concebido para ser transmitido directamente, pela prática, e
será na prática que os seus termos serão entendíveis. A tentativa de definição conduz, de
algum modo, ao desmoronamento da sua estrutura conceptual.
Entramos assim em contradição com o propósito a que nos propusemos? Eventualmente
sim, se insistirmos em propor definições fechadas e categóricas. Mas se nos limitarmos a
esboçar enunciações operativas, confinadas exclusivamente ao âmbito do propósito que
nos norteia, estaremos de alguma forma a remeter a asserção explicativa para o domínio
prático da acção. As definições que aqui possamos esboçar serão pois operativas e
limitadas ao âmbito do presente trabalho e, ressalvando a antinomia, não serão definitivas.
O termo “veículo” aplicado a este contexto foi usado pela primeira vez por Grotowski na
“Afirmação de Princípios” do Teatr‐Laboratorium: “o teatro e o acto de representar são
para nós uma espécie de veículo que nos permite emergir de nós mesmos, realizarmo‐nos”
(Grotowski, 1975 [1968]: 206), retomado por Peter Brook no capítulo que dedica ao Teatro
Sagrado: “o teatro é um veículo, um meio de auto‐estudo, auto‐exploração, uma
possibilidade de salvação” (Brook, 1968: 66)85 e no título da conferência proferida em
Florença em Março de 1987: “Grotowski, a Arte como Veículo” (Brook, 1988: 49 ‐ 52).86
Este título viria a constituir a designação para a actividade de Grotowski no seu Workcenter
em Pontedera.
Grotowski foi muito escasso na informação escrita que nos legou sobre este seu derradeiro
propósito. Para abordarmos a Arte como Veículo, além das fontes que se referem
directamente a esta fase do trabalho de Grotowski, e uma vez que o seu trajecto é
consequente, podemos recorrer a outras fontes, em diferentes estádios do seu percurso,
que explicitam os conceitos aqui articulados. O que importa vincar é que esta derradeira
83
“Je suis teacher of Performer. Je parle au singulier. Teacher, s’est quelqu’un par qui passe
l’enseignement; l’enseignement doit être reçu, mais la manière pour l’apprenti de le redécouvrir, de
se rappeler est personnelle. Comment le teacher lui‐même a‐t‐il connu l’enseignement? Par
l’initiation, ou par le vol”. Nossa tradução.
84
Para uma explicação aprofundada da dimensão da alteridade em Grotowski veja‐se a obra de
Paula Alves Barbosa Coelho, A Experiência da Alteridade em Grotowski, (Coelho, 2009).
85
“the theatre is a vehicle, a means for self‐study, self‐exploration, a possibility of salvation”. Nossa
tradução.
86
“Grotowski, l’art comme véhicule”. Nossa tradução.
33
etapa constitui, deliberadamente, um epílogo do seu projecto nas artes performativas.
Grotowski tinha uma clara percepção da iminência da sua morte e organizou o seu trabalho
de forma a extrair conclusões e transmitir a sua experiência às gerações seguintes.
O opúsculo de apresentação do Workcenter, com data de publicação presumida de 1988,
apresenta o seu objectivo nestes termos: “transmitir a alguns indivíduos da geração mais
jovem as conclusões práticas, técnicas, metodológicas e criativas ligadas ao trabalho que
Grotowski desenvolveu durante quase trinta anos”.87 Os aspectos técnicos são elencados
da seguinte forma:
‐ Relação precisão / organicidade.
‐ Relação tradição / trabalho pessoal.
‐ Relação ritual / espectáculo.
‐ Dança e ritmo.
‐ Canto.
‐ Vibração da voz.
‐ Ressonância espacial e corporal.
‐ Respiração.
‐ Consciência do espaço e reacção aos seus elementos constituintes.
‐ Improvisação: os impulsos / consciência vigilante.
‐ Improvisação dentro de uma estrutura.
‐ Montagem de acções físicas.
‐ Montagem da performance / papel.
‐ Procura de uma linha precisa e de uma lógica dos impulsos e das acções físicas: a
partitura.88
No Workcenter de Grotowski, um pequeno grupo de performers profissionais, oriundos de
diversas tradições ou escolas performativas, dedicava‐se, ao longo de anos de trabalho
intensivo, a construir uma obra performativa que não seria nunca apresentada
publicamente e que servia o propósito de “trabalhar sobre si mesmo”. O labor diário
comportava ainda o estudo e desenvolvimento de diferentes trainings corporais, a acção
vocal, a dança e o ritmo, entre outras disciplinas práticas. Dissemos já que estas práticas
não são consideradas preparatórias, elas são já disciplinas criativas e servem o propósito
87
“transmettre à quelques individus de la génération la plus jeune les conclusions pratiques,
techniques, méthodologiques et créatives liées au travail que Grotowski a développé durant presque
trente ans”. Nossa tradução.
88
Relation précision / organicité. Relation tradition / travail personnel. Relation rituel / spectacle.
Danse et rythme. Chant. Vibration de la voix. Résonance spatiale et corporelle. Respiration.
Conscience de l’espace et réactions à ses éléments constitutifs. Improvisation : les impulses /
conscience vigilante. Improvisation dans une structure. Montage d’actions physiques. Montage de la
performance / rôle. Recherche d’une ligne précise et d’une logique des impulsions et des actions
physiques : la partition. Nossa tradução.
34
expresso da arte: libertar‐se, realizar‐se, transcender‐se. No entanto, a designação “Arte
como Veículo” fica confinada ao trabalho sobre a actuação.
Do que até aqui dissemos sobre a Arte como Veículo poderia resultar um entendimento
simplista de que se trata unicamente de uma performance de que se excluíram os
espectadores; um ensaio no teatro poderia corresponder a tal definição mas não é disso
que se trata e o sentido da Arte como Veículo requer explicitação adicional.
No pequeno ensaio incluído no livro de Thomas Richards, e que constitui uma das principais
fontes escritas sobre o assunto, explica‐nos que a Arte como Veículo poderia também ser
chamada de “objectividade do ritual” ou “Artes Rituais”. Ritual entendido não como uma
cerimónia ou uma celebração e muito menos uma improvisação. A referência ao ritual
situa‐se na objectividade dos seus elementos, que são instrumentos para trabalhar sobre o
corpo, o coração e a cabeça do “fazedor”89 (cfr. Grotowski, 1995: 122).
A Arte como Veículo é o outro extremo de uma cadeia que liga o teatro como espectáculo
aos ensaios com vista ao espectáculo, estes às improvisações anteriores à construção do
espectáculo… O que principalmente a distingue do teatro é a sede da montagem: “Na outra
extremidade da longa cadeia das artes performativas está a Arte como Veículo, que procura
criar a montagem não na percepção dos espectadores, mas no artista que faz. Isto já tinha
existido no passado, nos antigos Mistérios” (Grotowski, 1995: 120).90
A montagem constituiu um tema central no questionamento metodológico de Grotowski
desde a época do teatro das produções: é uma das funções do encenador e consiste em
criar um percurso para a atenção do espectador, que lhe permita uma leitura individual e
que, ao mesmo tempo, assume a função de “véu” em relação à partitura íntima do actor.
Na Arte como Veículo a sede da montagem não se situa na percepção do espectador, mas
na do performer. Não se trata de estabelecer um acordo entre os performers sobre uma
montagem comum: “Não, nada de acordo verbal, nada de definição falada: é necessário,
através das próprias acções, descobrir como se aproximar – passo a passo – do essencial.
Neste caso a sede da montagem está no ‘fazedor’” (Grotowski, 1995: 124)91. É pois uma
montagem “orgânica” que responde (e desafia) às pulsões vitais do performer.
O “fazer”, ainda que o contexto seja o “sobre si próprio”, requer a estruturação de uma
obra (opus): como no teatro, só na confrontação com a obra pode o actor revelar‐se,
confrontar as suas impulsões com o rigor da execução. No Workcenter de Pontedera foram
criados vários opera, que iam sendo desenvolvidos com o tempo e que tinham por
denominação genérica o título de Action. Enquanto existiam dois grupos de trabalho,
coexistiram a Downstairs Action e a Upstairs Action, denominadas a partir dos espaços do
89
Em inglês, “doer”, termo que Grotowski usa sempre sem traduzir.
90
“At the other extremity of the long chain of the performing arts is Art as vehicle, which looks to
create the montage not in the perception of the spectators, but in the artists who do. This has
already existed in the past, in the ancient Mysteries”. Nossa tradução.
91
“No, not verbal agreement, no spoken definition: It is necessary, through the very actions
themselves to discover how to approach – step by step – towards the essential. In this case the seat
of the montage is in the doers”. Nossa tradução.
35
edifício em que os grupos habitualmente trabalhavam. Desde o final de 1992, com o
Workcenter a trabalhar só com um grupo, passou a haver apenas uma Action.
A construção da Action privilegiava, como elementos performativos, a utilização de cantos
e danças de tradições rituais afro‐caribenhas por estes deterem um forte enraizamento na
organicidade corporal e estarem associados às impulsões vitais que percorrem o corpo.
Outros elementos utilizados na construção da Action eram provenientes, de um modo
geral, de várias das tradições que constituem o “berço” da cultura ocidental (cfr. Grotowski,
1995: 126 – 130), i.e. a bacia Leste do Mediterrâneo. Estes componentes eram, no entanto,
depurados de toda a sua carga simbólica e religiosa. A “Arte Ritual” de Grotowski era
rigorosamente laica.
No interior da estrutura da performance, cada actuante deverá compor uma “partitura”
individual de acções físicas, motivações e reacções. Estas são desenvolvidas a partir de
memórias individuais, buscadas na ancestralidade do corpo‐memória. No processo de
execução da performance ocorrerá eventualmente um conflito entre a espontaneidade,
ligada à impulsão vital que motiva a acção, e a necessidade de rigor no desempenho da
estrutura performativa. Esta tensão, cuja resolução deverá resultar de uma conjunção entre
estas forças opostas, estimulará a consciência vigilante e aumentará o potencial
performativo da acção.
Grotowski usa a metáfora de um ascensor: o teatro é como um elevador moderno, operado
por um ascensorista (o performer) que conduz os passageiros numa viagem até aos vários
andares do edifício. A Arte como Veículo seria um ascensor arcaico, um cesto amarrado a
uma corda suspensa de uma árvore e que o performer opera à força de braços para se
elevar a si mesmo. Para onde? Para cima, a um estado de consciência mais subtil, e para
baixo, de regresso à densidade corpórea, cuja impulsão vital remete de novo à ascensão.
Funciona pois em dois sentidos, segundo um eixo vertical.
Tentemos pois esboçar uma definição de Arte como Veículo:
A Arte como Veículo é um modelo de processo artístico performativo (do fazer, não do
representar) que, como tal, requer a construção de um opus cuja montagem é feita em
função da percepção do actuante (performer). Incide sobre a totalidade de um indivíduo,
numa perspectiva holística (o corpo, a cabeça e o coração). Recorre à metodologia das
acções físicas para construir uma partitura individual de motivações e reacções e apoia‐se
em elementos extraídos de tradições rituais, como sejam cantos, danças ou textos, os quais
têm um carácter de objectividade quanto ao estímulo que provocam na percepção do
actuante. A transmissão/aprendizagem destes materiais é preferencialmente directa, sendo
de difícil aceitação os materiais recolhidos por via documental.
Embora seja um trabalho individual, idealmente é realizado por um colectivo, em que cada
elemento integra nas suas motivações e reacções a necessidade de dar resposta, incluir,
estabelecer contacto com o “outro”.
As acções são desenvolvidas a partir das memórias individuais, buscadas na ancestralidade
do corpo‐memória. No processo de execução afigura‐se um conflito entre a
espontaneidade, ligada à impulsão vital que motiva a acção, e a necessidade de rigor na
36
execução dos detalhes precisos da acção, conflito que deve ser resolvido pela conjunção
entre estas duas forças opostas (conjunctio opositorum ).
O conteúdo deste processo situa‐se na consciência e traduz‐se pela circulação entre uma
consciência subtil e outra mais densa, corpórea. O eixo é pois vertical.
Embora não existam razões impeditivas de que um opus concebido como Arte como
Veículo seja testemunhado por terceiros, as testemunhas têm que estar informadas de que
a estrutura performativa que eventualmente testemunharão não é construída em função
do espectador, pelo que não é potencialmente objecto de fruição por terceiros. Não
obstante, pode servir como referência ou estímulo para profissionais e investigadores.
Zbignew Osinski, que será uma das mais relevantes autoridades no que respeita ao estudo
da obra de Grotowski, exprime a experiência da sua visita ao Workcenter de Pontedera
nestes termos:
O trabalho sobre a técnica e sobre a precisão do detalhe. Nunca, em nenhum teatro do
mundo, vi nada tão espiritual, tão puro. Não, nunca descreverei isto como teatro (Stepien,
1988: 3 apud Osinski, 1997: 392)94.
O fundamento para esta “pureza” residirá talvez na extrema sinceridade que é condição
essencial à Arte como Veículo: no teatro é sempre possível iludir o espectador, mas aqui,
sendo o actuante o destinatário único da performance, não há como defraudar uma acção
que se quer de despojamento total e entrega.
Para Grotowski, o objectivo da Arte é “um amadurecimento, uma evolução, uma ascensão
que nos permite emergir da escuridão para a claridade” (Grotowski, 1975 [1968]: 202). A
Arte como Veículo, como corolário desta procura, institui uma noção de poiesis ao serviço
de uma procura do Ser.
92
Este “Eu‐Eu” não é o mesmo de Martin Buber; no filósofo hasídico essa expressão relaciona‐se
com um ensimesmamento, ausência de relação. Em Grotowski “Eu‐Eu” é uma dessubjectivação do
Eu, uma abertura a outra dimensão do Eu que resulta da alteração da consciência.
93
“le regard du teacher peut parfois fonctionner comme le miroir de la liaison Je‐Je”. Nossa
tradução.
94
“Here one can see a fulfillment of everything that was part of Grotowski’s earlier work. One works
on technique and on the precision of detail. Never, in any theatre in the world, did I see anything so
spiritual, so pure. No, I will never describe this as theatre”. Nossa tradução.
37
4 – A Arte como Veículo como “Arte Ritual”.
O que permite então categorizar as performances artísticas criadas segundo este específico
modelo como rituais? “qual é então a diferença entre esta objectividade do ritual e a
performance? É o facto de o público não ser convidado?” (Grotowski, 1995: 122).95 Sem
dúvida a ausência de testemunhas e da obrigação de fazer uma montagem em seu
benefício liberta a performance para ser construída em função do impacto que terá na
percepção do actuante. Mas, como referimos, as obras de Arte como Veículo do
Workcenter de Grotowski foram algumas vezes testemunhadas por assistentes exteriores.
Por outro lado, a ausência de testemunhas não é tão‐pouco um requisito do ritual, antes
pelo contrário.
É o facto de serem utilizados elementos extraídos de diferentes rituais? Uma parte dos
elementos usados na estrutura de acções são retirados de tradições rituais mas, "[Não] falo
de uma síntese de diferentes formas rituais originárias de diferentes lugares. Quando me
refiro ao ritual, falo da sua objectividade" (Grotowski, 1995: 122).96 A razão da escolha
desses materiais (cantos e danças) prende‐se com o seu profundo enraizamento na
organicidade e nas pulsões vitais.97 De resto, eles poderiam ser substituídos por outros
elementos com semelhantes propriedades, sem afectar a categorização de ritual das obras
da Arte como Veículo.
No que toca à categorização da Arte como Veículo como modelo para a construção de artes
rituais, Grotowski apenas se refere aos dois aspectos supracitados que, como vimos, não
são suficientes para essa classificação.
Uma pista para a resolução deste problema pode residir no teor do curso de Antropologia
Teatral ministrado por Grotowski no Collège de France entre Março de 1997 e Janeiro de
1998 cujo título foi “A ‘Linhagem orgânica’ no teatro e no ritual”98. Nessas lições estabelece
duas estirpes distintas no ritual e nas artes performativas: a linhagem “artificial” (no
sentido nobre do termo, i.e. artifex, artística), que está presente no teatro e na maioria das
artes performativas, mas também no ritual, e se caracteriza pela sua elaboração simbólica.
Grotowski costumava apontar a Ópera de Pequim e o seu complexo sistema de signos
gestuais como um exemplo máximo da linhagem artificial.
95
“What, then, is the difference between this objectivity of ritual and a performance? Is the fact that
the public is not invited?” Nossa tradução.
96
“[Nor] do I speak of a synthesis of different ritual forms coming from different places. When I
refer to ritual, I speak of its objectivity”. Nossa tradução.
97
Grotowski usa o exemplo dos mantra das tradições budista e hinduísta que, tendo um impacto
objectivo sobre o praticante, podem ser considerados “elementos veiculares” mas, porque estão
longe de uma abordagem orgânica, não servem para a Arte como Veículo (cfr. Grotowski, 1995: 127
– 128).
98
“La ‘Lignée organique’ au théâtre et dans le rituel”. Nossa tradução. A gravação das aulas
encontra‐se publicada em áudio‐livros por Le Livre qui Parle, Villefranche‐du‐Perigord.
38
A “segunda perspectiva”, a “linhagem orgânica”, assenta no funcionamento natural do
corpo, nas suas impulsões vitais, e o exemplo que Grotowski então deu foi o da meloterapia
do tarantismo documentada por Diego Carpitella e Ernesto De Martino em 1959. No
documentário, que Grotowski mostrou e comentou na lição de 20 de Outubro de 1997,
uma jovem mulher, acompanhada por três músicos, dança a tarantela com o objectivo de
se curar do suposto tarantismo. O seu corpo é percorrido por impulsões muito fortes e
rápidas e a sua dança é extática.
A Arte como Veículo, independentemente de a categorizarmos como performance poética
ou como arte ritual, inscreve‐se nesta “linhagem orgânica”.
Esta distinção entre duas linhagens, que Grotowski usou pela primeira vez nestas lições no
Collège de France, é da maior importância uma vez que nos permite entender que a
performance ou o ritual da linhagem “artificial” se baseiam na intersubjectividade do
símbolo, estabelecendo uma necessária relação de comunicação entre quem faz e para
quem se faz, mediada pelo signo, enquanto aqueles que se situam no domínio “orgânico”
se fundam na sua própria dinâmica e eficácia em que quem faz e o que faz são inseparáveis.
Por outras palavras, numa performance “artificial” o actuante “representa” ou “simboliza”
a acção, enquanto numa performance “orgânica” o actuante “é” a acção.
Este caminho proporciona‐nos a possibilidade de categorizar a Arte como Veículo como
autopoiética. O conceito resulta das investigações em biologia de Humberto Maturana e
descrevia e explicava a natureza dos seres vivos. Foi posteriormente aplicado em vários
campos como resultado da colaboração entre Maturana e Francisco Varela. “A
característica mais marcante de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus
próprios cordões, e se constitui como distinto do meio circundante mediante sua própria
dinâmica, de modo que ambas as coisas são inseparáveis” (Maturana e Varela, 1995:87).
Isto é, “o ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e esse constitui seu
modo específico de organização” (Maturana e Varela, 1995:89).99
É esta dimensão autopoiética que se revela quando “um canto se torna o seu próprio
sentido através das qualidades vibratórias” (Grotowski, 1995: 126)100 e “de repente, esse
canto começa a cantar‐nos. O canto antigo canta‐me; já não sei se estou a descobrir o
canto ou se sou aquele canto” (Grotowski, 1995: 127).101 O canto e a acção de cantar, neste
99
Jorge Dubatti, na sua Filosofia do Teatro, retoma a noção de autopoiesis para caracterizar o tipo de
trabalho teatral que se organiza com base na procura e na investigação, sem pressupostos nem
determinações prévias (cfr. Dubatti, 2012: 74). Mas a sua consideração não serve para explicar a Arte
como Veículo porque, embora o seu estudo da Poética Teatral se estenda para o campo da
Ontologia, não se separa nunca de uma Semiótica (cfr. Dubatti, 2010: 58 ‐ ss). A reflexão de Dubatti
opera no quadro estrito de teatro moderno ocidental em que as dimensões de expectação e convívio
são indispensáveis (cfr. Dubatti, 2007: 106 – ss.), pelo que se confina ao que Grotowski designa por
“linhagem artificial”.
100
“the song becomes the meaning itself through the vibratory qualities”. Nossa tradução.
101
“all of a sudden, that song begins to sing us. That ancient song sings me; I don’t know anymore if I
am finding that song or if I am that song”. Nossa tradução.
39
exemplo, abrem uma porta, uma passagem, que conduz a uma outra dimensão ontológica.
Um limiar.
“Na Arte como Veículo o impacto no fazedor é o resultado. Mas este resultado não é o
conteúdo; o conteúdo está na passagem do pesado ao subtil” (Grotowski, 1995: 126)102.
Limiaridade, a transição entre dois estados (e também aqui conjugação de opostos), é uma
das características fundamentais do ritual e aquela que, a nosso ver, fundamenta a
categorização das criações de Arte como Veículo como Artes Rituais. A Arte como Veículo
produz rituais que o são, não pelas suas características formais, não pelo seu resultado, mas
porque instituem um limiar autopoiético por onde transita um Ser.
A operação ontológica que temos vindo a descrever, em que o sujeito se funde na acção e
transita entre a densidade corpórea e a consciência subtil, não é uma metamorfose
definitiva. É, pelo contrário, um vai e vem incessante de um sujeito que executa a acção e
nela se funde, mas que aí se não perde, se não extingue, uma vez que retorna à espessura
corpórea do “Eu”. “Cuidado! […] é necessária vigilância, para não te tornares propriedade
do canto – sim, mantém‐te de pé” (Grotowski, 1995: 127).103
De pé, erectus, em trânsito (ou transe) vertical, no sentido ascendente em direcção a uma
consciência mais subtil, luminescente, e descendente rumo à densidade carnal, vital,
orgânica, o actuante equilibra‐se num limiar ontológico entre o “Ser” e o “Fazer”. Este é o
particular modelo das Artes Rituais.
102
“In Art as a vehicle the impact on the doer is the result. But this result is not the content; the
content is in the passage from the heavy to the subtle”. Nossa tradução.
103
“Beware! […] vigilance is necessary, not to become property of the song – yes, keep standing”.
Nossa tradução.
40
Capítulo II ‐ O Ritual como Performance.
O propósito enunciado para o presente trabalho prenuncia a construção de uma ponte:
numa das margens, a Arte como Veículo, território dos estudos teatrais e da performance;
na outra, o ritual tradicional, considerado de forma geral e transcultural, domínio dos
estudos antropológicos. Neste segundo capítulo mudamo‐nos para a outra margem para aí
alicerçar os pilares que suportem a Arte como Veículo como um muito particular modelo de
ritual. Seguimos a indicação de Schechner: “As especulações de Turner no final da sua vida
caminham proximamente a par do trabalho de Grotowski” (Schechner, 1993: 255)104 e,
naturalmente, apoiamo‐nos sobretudo nas reflexões e conclusões daquele antropólogo.
Mas, antes de irmos ao encontro de Turner, valerá a pena especificar de que falamos e
porque falamos de ritual.
1 ‐ Se não o ritual, então o quê?
Glosamos o título de uma das secções do capítulo dedicado ao Ritual do volume de Richard
Schechner, Performance Studies: “A Origem da Performance: Se não o ritual, então o quê?”
(Schechner, 2002: 71)105 com o intuito de tentar estabelecer a pertinência do estudo
transcultural do ritual para compreender e enquadrar a prática das artes performativas e,
especificamente, da Arte como Veículo de que nos ocupámos no capítulo precedente.
Nesse escrito, Schechner faz uma reviravolta conceptual que o leva a concluir que o ritual
não pode ser visto como a origem das artes performativas: porque tal implicaria basear‐se
num Darwinismo social distorcido, que identificasse as culturas tradicionais como
“antecessoras” da cultura moderna ocidental, porque não existe um vínculo de linearidade
entre os rituais das culturas “ditas primitivas” e a performance da modernidade ocidental,
porque as diferenças culturais não permitem supor uma superioridade ou um estádio mais
“avançado” da cultura que suporta e contém a performance ocidental contemporânea.
Não podemos deixar de estar de acordo com todos estes argumentos. Mas, algumas linhas
adiante, nesta mesma secção, Schechner conclui também que: “A deslocação do ritual para
a performance estética ocorre quando uma comunidade participante se fragmenta em
clientes pagantes ocasionais” (Schechner, 2002: 72)106. O que, de outro ponto de vista,
equivale à afirmação de Jerzy Grotowski que propusemos como mote deste trabalho: “O
104
“Turner’s speculations at the end of his life closely paralled Grotowski’s work”. Nossa tradução.
105
“Origins of Performance: If Not Ritual, Then What?”. Nossa tradução.
106
“The shift from ritual to aesthetic performance occurs when a participating community fragments
into occasional, paying costumers”. Nossa tradução.
41
ritual é performance, uma acção realizada, um acto. O ritual degenerado é um espectáculo”
(Grotowski, 1988: 53)107.
Formas evoluídas ou degeneradas do ritual, as artes performativas contemporâneas
mantêm com ele um vínculo; parentesco, afinidade, evolução, degeneração, fragmentação,
são tanto metáforas quanto tomadas de posição que não deixam, no entanto, de
reconhecer essa ligação.
Compreendemos a posição de Schechner como reacção a leituras antropológicas simplistas,
mas não podemos deixar de concluir por uma resposta positiva à questão colocada: o ritual,
entendido como categoria do comportamento social humano, está na origem dos géneros
estéticos performativos, não só dos modernos e ocidentais mas das artes performativas em
geral, e com eles partilha várias características formais, estruturais e técnicas,
diferenciando‐se noutras particularidades. De modo geral, e excluindo qualquer noção de
linearidade directa ou continuidade (embora alguns géneros estéticos performativos
tenham efectiva génese em rituais degenerados ou decepados da participação social que os
sustentava, como Grotowski e Schechner nos apontam), podemos afirmar que o ritual está
na origem das artes performativas.
E esta ligação parece‐nos justificar plenamente o estudo transcultural do ritual no contexto
da antropologia da performance e a confrontação entre específicas práticas rituais e
géneros estéticos performativos contemporâneos.
2 ‐O que é o ritual? Definições de ritual e performance.
Comecemos pelo mais simples: o dicionário diz‐nos que o conceito de ritual é de origem
latina e que se refere à forma prescrita como são conduzidas as cerimónias religiosas.
Refere‐se pois a uma esfera sagrada, como o exprime Mircea Eliade: “Todos os rituais têm
um modelo divino, um arquétipo” (Eliade, 1984: 36).
Podemos contrapor que muitos dos rituais que conhecemos da nossa vivência empírica não
contém essa característica de sacralidade. Mas um conceito antigo transporta consigo
traços dessa antiguidade e como o mesmo Mircea Eliade nos explica, “Podemos dizer, de
um modo geral, que o mundo arcaico ignora as actividades “profanas”; qualquer acção com
significado determinado – caça, pesca, agricultura, jogos, conflitos, sexualidade, etc. –
participa, de certo modo, no sagrado” (Eliade, 1984: 42).
Uma vez que esta universalidade do sagrado no mundo arcaico não se aplica ao mundo
moderno, pareceria justo conceber que na era da modernidade industrial onde, pelo
contrário, é bem definida a separação entre o sagrado e o laico e em que a espiritualidade
se encontra confinada a um espaço delimitado, possam coexistir rituais seculares a par dos
rituais sagrados. Os protocolos político ou académico serão disso modelo, embora não
107
“Ritual is performance, an accomplished action, an act. Degenerated ritual is a show”. Nossa
tradução.
42
devamos esquecer que as instituições que lhes dão corpo, o Estado ou a Universidade, por
exemplo, têm origens arcaicas e foram fundadas em contextos eclesiásticos.
Mas seria talvez preferível, em prol de uma definição mais estrita e operativa de ritual, e
considerando a nossa argumentação na secção anterior, entender que estes rituais
laicizados da modernidade são cerimónias; de origem ritual, sem dúvida, mas já não ritual
porque fragmentados da coesão social que lhes conferia esse carácter, dissociados do
sagrado que imperava no mundo arcaico para que foram primeiramente concebidas.
O ritual faz parte da tradição. Mas nem todas as práticas tradicionais serão rituais, ainda
que possam reclamar uma longa ancestralidade. Porque o ritual tem necessariamente um
modelo divino; recorremos ainda a Mircea Eliade que, com o exemplo da dança, o reafirma:
Vejamos, por exemplo, a dança. Todas as danças eram originariamente sagradas, pois
tinham um modelo extra‐humano. Se esse modelo foi um animal totémico ou
emblemático, se os seus movimentos foram reproduzidos para esconjurar pela magia a
sua presença concreta, para o multiplicar ou para alcançar a incorporação do homem no
animal; se, noutros casos, esse modelo foi revelado por uma divindade (pírrica, por
exemplo, dança armada criada por Atena, etc.) ou por um herói (cfr. A dança de Teseu no
Labirinto); se a dança é executada com o fim de obter alimentos, honrar os mortos ou
assegurar a harmonia do Cosmos; se ela surgiu com as cerimónias mágico‐religiosas, de
iniciação, ou nos casamentos, tudo isso são pormenores que não nos interessam de
momento. O que importa é a origem extra‐humana pressuposta (pois todas as danças
foram criadas in illo tempore, na época mítica, por um “antepassado”, um animal
totémico, um deus ou um herói) (Eliade, 1984: 43).
As cerimónias a que anteriormente nos referimos, políticas, académicas, judiciais, militares,
etc. serão eventualmente tão antigas que se lhes não sabe determinar a origem ou a razão
de ser. Tal como os rituais, fazem parte da tradição. Mas podem reclamar uma origem
divina? Foram pela primeira vez executadas por uma divindade ou antepassado mítico num
tempo lendário? Como apontámos antes, uma praxis antiga transporta consigo traços de
um tempo arcaico e esse mundo desconhecia a separação entre o sagrado e o profano.
Será pois natural que costumes antigos comportem vestígios de uma sacralidade que já lhes
não pertence. Mas, sempre e apenas em proveito de uma definição operativa de ritual,
entendemos que serão de excluir as práticas que, independentemente da sua
ancestralidade e tradição, não reclamam essa origem fundacional divina.
Um aspecto controverso que se coloca à definição de ritual é o que se prende com a
padronização do comportamento. Sendo o ritual reconhecível por esta sua característica,
alguns autores, Schechner e Goffman, por exemplo, identificam o ritual com a repetição de
um modelo de conduta. Não é só no discurso quotidiano que ouvimos expressões como “o
ritual de se barbear” ou “o ritual do almoço em família”; esta noção de que um
procedimento padronizado constitui um ritual encontra eco na antropologia e nos estudos
da performance.
Ao recusarmos esta acepção temos consciência de que contrariamos a própria etimologia
do termo. De facto, como nos diz Jean Cazeneuve na sua Sociologia do Rito: “A palavra
latina ritus designava, aliás, não só as cerimónias ligadas às crenças relativas ao
43
sobrenatural, como os simples hábitos sociais, os usos e os costumes (ritus moresque), isto
é, à maneira de agir reproduzidos com uma certa invariabilidade” (Cazeneuve, s/d: 10). Mas
é o mesmo autor que, nas conclusões da mesma obra, nos diz que: “ O rito, tal como
afirmamos desde o início, é sempre uma acção simbólica” (Cazeneuve, s/d: 269).
Apelemos a Victor Turner para nos ajudar a esclarecer esta questão:
Primeiramente permitam‐me um comentário sobre a diferença entre o meu uso do termo
“ritual” e as definições de Schechner e Goffman. De um modo geral eles parecem
entender por ritual uma unidade de actos padronizados, que podem ser seculares como
sagrados, enquanto eu pretendo referir‐me a uma sequência complexa de actos
simbólicos. Ritual é para mim (como Ronald Grimes o emprega) uma ‘performance
transformadora revelando grandes classificações, categorias e contradições dos processos
culturais’” (Turner, 1987: 75)108.
Este parágrafo parece‐nos conter quase tudo o que importaria a uma definição operativa
de ritual, no contexto da antropologia da performance. Recorremos novamente a
Schechner para introduzir um aspecto que nos parece relevante: “A deslocação da
performance estética para o ritual acontece quando uma audiência de indivíduos é
transformada numa comunidade” (Schechner, 2002: 72)109. Embora tenhamos algumas
reservas quanto à facilidade desta transformação, que nos parece ocorrer antes em
mutações muito lentas (e uma vez que o ritual reclama a sua origem in illo tempore),
relevamos a essencialidade da comunidade e da sua participação activa e convicta para que
Schechner aqui nos adverte. Sobre os aspectos comunitários do ritual, e sobretudo sobre o
conceito de communitas que Victor Turner sabiamente introduz, debruçar‐nos‐emos mais à
frente neste trabalho.
Humildemente, e porque o propósito deste trabalho assim o requer, permitimo‐nos ensaiar
uma definição de ritual: diríamos que consiste na execução, no contexto de um grupo social
plenamente participante, de uma sequência complexa e predeterminada de actos
simbólicos, que reproduzem um modelo sagrado e que operam transformações nos seus
participantes, a nível individual e social.
Um ritual é, pois, uma performance e não podemos perder de vista que é no âmbito dos
estudos da performance que se situa o nosso questionamento.
O que é então uma performance? Recorremos de novo ao dicionário para estabelecer que
a palavra inglesa tem o sentido de execução, acabamento, desempenho.110 Ora, mesmo
munidos desta definição cabal, deparamo‐nos desde logo com a dificuldade em delinear o
perímetro desta noção: entre a execução orçamental, o acabamento de uma peça de
108
“First let me comment on the difference between my use of the term ‘ritual’ and the definitions
of Schechner and Goffman. By and large they seem to mean by ritual a standardized unit act, which
may be secular as well as sacred, while I mean the performance of a complex sequence of symbolic
acts. Ritual for me (as Ronald Grimes puts it), is a ‘transformative performance revealing major
classifications, categories, and contradictions of cultural processes’”. Nossa tradução.
109
“The move from aesthetic performance to ritual happens when an audience of individuals is
transformed into a community”. Nossa tradução.
110
Cfr. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], http://www.priberam.pt .
44
mobiliário e o desempenho de um automóvel cabe um universo de acções em que as
únicas características comuns que se podem reconhecer são a presença de uma actividade,
humana ou não, e um ensejo valorativo sobre essa mesma actividade. A procura num
dicionário de língua inglesa confirma esta observação: quão bem uma pessoa, máquina,
etc. realiza um trabalho ou uma actividade.111
A emergência dos estudos da performance, recentrando a citação de Shakespeare “Todo o
Mundo é um palco”112 e perspectivando toda a actividade humana (e até a não humana)
como performance, estabelece um campo de estudo que potencialmente interage com
todos os ramos da ciência e abarca todas as realidades passíveis de entendimento humano.
Não é descabido analisar a performance do electrão de urânio nem observar a dança dos
planetas no contexto performativo da expansão do Universo.
Num campo de estudo tão alargado, que compete de facto e de direito aos estudos da
performance, arriscamo‐nos a perder o escopo da nossa reflexão: pretendemos examinar
um dado modelo de performance artística e um específico ritual enquanto performance
para, cruzando dados numa perspectiva transcultural, daí retirar conclusões que nos
permitam estabelecer relações entre aquela performance e o ritual.
O largo espectro dos estudos da performance funciona aqui como uma dificuldade cuja
resolução não está na nossa alçada nem no propósito deste trabalho. Do que necessitamos
é de uma definição mais estrita, ainda que provisória e válida apenas no encadeamento
desta investigação, que nos permita enquadrar tanto o ritual como as artes performativas
como performance.
Tentaremos começar por a buscar na definição que lhe dá Erving Goffman: “Uma
‘performance’ pode ser definida como toda a actividade de um dado participante numa
dada ocasião que sirva para influenciar de alguma forma qualquer dos outros participantes”
(Goffman, 1959: 15)113.
Nesta definição encontramos um ponto de partida mas também um óbice no uso de uma
noção que, embora adequada ao propósito de Goffman, não pode servir aos nossos
intentos: actividade.
De facto, não nos interessa nem o fazer quotidiano nem a execução mecânica ou
automatizada de funções ou actividades. O que nos interessa, enquanto performance, é a
acção extraordinária, motivada, que exerce uma eficaz influência sobre outros indivíduos.
Grotowski, como já vimos, atribui‐lhe um carácter de entusiasmo: “Dominado pelo
entusiasmo – no velho sentido da expressão – o homem lança mão de signos rítmicos,
começa a dançar, a cantar” (Grotowski, 1975: 15). E explica: “A realização do acto a que nos
111
“how well a person, machine, etc. does a piece of work or an activity.” Nossa tradução. Cfr.
http://dictionary.cambridge.org .
112
Como lhe Aprouver, Acto II, Cena VII.
113
“A ‘performance’ may be defined as all the activity of a given participant on a given occasion
which serves to influence in any way any of the other participants”. Nossa tradução.
45
referimos exige a mobilização de todas as forças físicas e psíquicas do actor […] Esse acto é
culminante” (Grotowski, 1975: 35).
Esta acção não comporta escalões valorativos ou gradações na sua execução: não existe
bem feito por oposição a mal feito, como não existe fazer parcialmente. Usemos um
exemplo da acrobacia: fazer um salto mortal é uma acção; não existe um salto mortal mal
feito, é uma queda; não existe meio salto mortal ou quase salto mortal, são igualmente
tombos, ausência de execução da acção.
Estes acidentes provocariam, ainda assim, uma influência, uma reacção nos outros
participantes. Mas não a influência esperada, não a reacção que motivou a acção. O
acidente não constitui pois performance, só a acção que corresponde espontaneamente à
sua motivação pode ser entendida como performance.
Julgamo‐nos, pois, munidos das noções que nos permitirão esboçar uma definição de
performance. Insistimos em que esta definição tem um carácter provisório e limitado ao
âmbito deste trabalho, não pretendendo disputar ou desautorizar enunciações por certo
mais avisadas e esclarecidas. Só o fazemos pelos requisitos de operatividade impostos pelo
nosso propósito.
Assim, por performance entenderemos a acção estruturada e plenamente motivada de um
ou vários indivíduos, executada num espaço e tempo definidos, com um carácter extra‐
quotidiano e orientada, deliberada ou espontaneamente, para a obtenção de um resultado
ou reacção por parte dos participantes ou de outros indivíduos presentes no mesmo espaço
e tempo.
3 – Victor Turner e o ritual: imutabilidade, limiaridade, transe, fluxo,
enquadramento, communitas, drama social, anti‐estrutura e a ligação à Biogenética
Estrutural.
Existirão infinitos pontos de vista sobre o ritual, mesmo a partir dos estudos da
performance. Neste trabalho limitamo‐nos a abordar os aspectos que nos parecem
relevantes e operativos para um dado propósito e é nesse sentido que nos apoiamos
particularmente em Victor Turner. A sua apologia de uma antropologia da performance
(cfr. Turner, 1987) implica uma deslocação da estrutura para o processo e da competência
para a performance, opções que entendemos mais ajustadas aos nossos intentos.
Comecemos por abordar a aparente constância do rito: o ritual apresenta‐se como uma
reprodução inalterada e inalterável de acções primordiais e é o respeito por esse carácter
originário que o fundamenta e lhe confere valoração.
46
No entanto, esta reclamada imutabilidade não resiste à mais simples observação, como nos
expõe Schechner:
Mas bastará uma pequena investigação para mostrar que quando as circunstâncias sociais
mudam, os rituais também mudam. Por vezes a mudança concretiza‐se informalmente
quando os praticantes do ritual […] ajustam a sua performance para a adequar a novas
circunstâncias. […] noutras circunstâncias, são introduzidas mudanças oficiais para alinhar
o ritual com novas realidades sociais. (Schechner, 2002: 72 ‐ 73)114.
Turner vai mais longe:
O preconceito de que o ritual é sempre “rígido”, “estereotipado”, “obsessivo” é
peculiarmente Ocidental Europeu, produto de conflitos específicos entre ritualistas e
antiritualistas, iconófilos e iconoclastas, no processo das lutas internas do Cristianismo.
Quem tenha conhecido os rituais africanos entende melhor – ou Balinês, ou Cingalês, ou
Ameríndio (Turner, 1987: 26)115.
No entanto, cada tradição ritual reclama a sua ancestralidade, imutabilidade e origem
divina. Como conciliar esta aparente contradição? Indo mais longe: no âmbito dos estudos
da performance será aceitável reconhecer a pretendida origem divina do ritual (que num
contexto de estudos teológicos não levantaria problema)?
Atentemos na seguinte passagem de Turner:
[…] o ritual não é necessariamente um bastião do conservadorismo social; os seus
símbolos não condensam apenas os valores socioculturais acarinhados. Pelo contrário,
pelos seus processos liminares, detém a fonte geradora da cultura e da estrutura. Assim,
por definição, o ritual está associado com a transição social (Turner, 1987: 158)116.
Deixemos, por momentos, a questão da imutabilidade em aberto enquanto nos
debruçamos sobre uma outra noção introduzida por Victor Turner e que poderá talvez
aportar algum contributo: limiaridade.
Limiaridade é o estado do que se encontra no limiar, nem dentro nem fora, entre duas
categorias:
As entidades limiares não estão aqui nem ali; estão no meio e entre a posição atribuída e
designada pela lei, costume, convenção e protocolo. Como tal, os seus ambíguos e
indeterminados atributos são expressos por uma rica variedade de símbolos, nas várias
114
“But only a little investigation shows that as social circumstances change, rituals also change.
Sometimes the change is accomplished informally as ritual practitioners […] adjust their performance
to suit new circumstances. […] In other circumstances, official changes are introduced to bring ritual
into line with new social realities”. Nossa tradução.
115
“The prejudice that ritual is always “rigid”, “stereotyped”, “obsessive” is a peculiarly Western
European one, the product of specific conflicts between ritualists and antiritualists, iconophiles and
iconoclasts, in the process of Christian infighting. Anyone who has known African rituals knows
better – or Balinese, or Singhalese, or Amerindian”. Nossa tradução.
116
“[…] ritual is not necessarily a bastion of social conservatism; its symbols do not merely condense
cherished sociocultural values. Rather, through its liminal processes, it holds the generating source
of culture and structure. Hence, by definition ritual is associated with social transitions”. Nossa
tradução.
47
sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais. Assim, limiaridade é
frequentemente comparada a morte, a estar no útero, a invisibilidade, a escuridão, a
bissexualidade, um lugar selvagem e a um eclipse do sol ou da lua (Turner, 1969: 95)117.
Comporta pois dois mundos, duas realidades: uma realidade concreta (ainda que extra‐
quotidiana) e uma realidade mítica, metafórica. Ainda Turner: “todo o processo ritual
constitui um limiar entre a vida secular e vida sagrada” (Turner, 1987: 25)118. Que são
interactivas e interdependentes: o mundo mítico só é alcançável a partir de actos
específicos e concretos que são executados corpórea e não metaforicamente. E são
realizadas com uma finalidade operativa: curar uma doença, obter uma boa colheita,
ganhar uma guerra, são alguns exemplos de finalidades que podem ser requeridas ao ritual
e que se traduzem por transformações efectivas nas estruturas sociais. A categoria de
limiaridade, quando articulada com as noções de estrutura e anti‐estrutura, no quadro da
análise do drama social, é relevante para os Estudos da Performance. Como Jon McKenzie
enuncia: “O que é performance? O que são Estudos da Performance? 'Limiaridade' é talvez
a resposta mais concisa e precisa para ambas as perguntas”(McKenzie, 2001: 50)119.
Na limiaridade temos talvez uma pista para a questão da mutabilidade ou imutabilidade do
ritual. Porque o limiar implica que haja dois lados: um “dentro” e um “fora”, um “secular”
e um “sagrado”, o “de baixo” e o “de cima”, enfim, dois opostos que se conjugam através
desta passagem. A noção de limiar poder‐nos‐á ajudar a avançar uma hipótese de solução
para a questão levantada: como nos mostrou Turner, o ritual é de facto a fonte da estrutura
social e motor das transformações sociais e culturais, aí incluído o próprio ritual, de
ajustamento a mudanças internas e de adaptação a condições ambientais. Na sua dimensão
concreta, enquanto conjunto de actos que são executados, o ritual é necessariamente
dinâmico e sujeito a transformações. Mas o ritual comporta outra dimensão, simbólica,
mítica, metafórica. Seria esta que ostentaria um carácter imutável, garante de estabilidade,
primordial. E cuja origem seria divina.
Voltando ainda à noção de limiaridade: um limiar cruza‐se (nos dois sentidos), trespassa‐se,
transpõe‐se. Transe é uma noção com a mesma raiz e sentido de “transitar” e uma
componente essencial do ritual.
As definições de “transe” nos vários dicionários consultados revelam‐se turvadas por
múltiplos mal‐entendidos do senso comum, uma vez que os estados de transe são
facilmente confundidos com outras alterações da consciência. Como nos explica Elizabeth
117
“Liminal entities are neither here nor there; they are betwixt and between the position assigned
and arrayed by law, custom, convention, and ceremonial. As such, their ambiguous and
indeterminate attributes are expressed by a rich variety of symbols in the many societies that
ritualize social and cultural transitions. Thus, liminality is frequently likened to death, to being in the
womb, to invisibility, to darkness, to bisexuality, to the wilderness, and to an eclipse of the sun or
moon”. Nossa tradução.
118
“the whole ritual process constitutes a threshold between secular living and sacred living”. Nossa
tradução.
119
“What is performance? What is Performance Studies? ‘Liminality’ is perhaps the most concise and
accurate response to both of these questions”. Nossa tradução.
48
Reyes‐Fournier: “Os estados de transe consideram‐se integrados numa categoria mais vasta
chamada de estados alterados de consciência. Esta classificação também contém a
intoxicação alcoólica, a extasia religiosa, ‘viagens’ de droga e hipnose” (Reyes‐Fournier,
2013: 53 ‐ 54)120.
Mas também a sonolência ou o sonhar acordado se incluem entre os estados alterados de
consciência. Ainda segundo Reyes‐Fournier, o conceito de “Estado Alterado de Consciência”
resulta dos relatos de indivíduos que, nesses estados, se sentem transportados para outro
lugar ou não se sentem eles mesmos. Outros aspectos comuns são que estes estados são
intencionalmente induzidos e são agradáveis (cfr. Reyes‐Fournier, 2013: 54).
Voltaremos a socorrer‐nos do auxílio de Elizabeth Reyes‐Fournier mas, para já, fiquemos
com esta referência:
Os aspectos comportamentais do transe são menos definidos porque são subjectivos. No
entanto, um aspecto que pode ser medido empiricamente é a taxa de absorção durante
um estado de transe. Absorção refere a capacidade de se concentrar e responder a
estímulos e de ficar imerso neles (Reyes‐Fournier, 2013: 63)121.
Ao nosso trabalho interessa um tipo específico de transe, o transe de possessão. Para Erika
Bourguignon, na possessão “a pessoa é de alguma forma mudada através da presença em si
ou sobre si de uma entidade ou poder espiritual, outra que não a sua própria
personalidade, alma, ego ou semelhante” (Bourguignon, 1976 : 8).122
O transe, e a absorção que este implica, abre‐nos o caminho para o conceito de fluxo, um
conceito introduzido por Mihaly Czikszentmihalyi (Czikszentmihalyi, 1975), psicólogo da
Universidade de Chicago, e que Victor Turner traz para o campo da antropologia da
performance e que consiste num estado que pode ser descrito como a fusão da acção e da
consciência, uma sensação holística que está presente quando se age com um
envolvimento total, “um estado em que a acção sucede à acção de acordo com uma lógica
interna, aparentemente sem necessidade de intervenção da nossa parte. […] no fluxo, há
uma perda de ego, o ‘eu’ que normalmente age como intermediário entre ego e alter
torna‐se irrelevante. […] Mas o fluxo dispersa‐se com a dualidade e a contrariedade, é não‐
dualistico, não‐dialéctico” (Turner, 1987: 54‐55)123.
120
“Trance states are considered to fall into a broader category called altered states of
consciousness. This classification also contains alcohol intoxication, religious ecstasy, drug trips and
hypnosis”. Nossa tradução.
121
“The behavioral aspects of trance states are less defined because they are subjective. However,
one aspect that can be measured empirically is the rate of absorption within a trance state.
Absorption refers to the ability to focus and attend to stimuli and become immersed in it”. Nossa
tradução.
122
a person is changed in some way through the presence in him or on him of a spirit entity or
power, other than his own personality, soul, self or the like. Nossa tradução.
123
“a state in which action follows action according to an internal logic, with no apparent need for
intervention on our part […] In flow, there is a loss of ego, the ‘self’ that normally acts as broker
between ego and alter becomes irrelevant. […] But flow disperses with duality and contrariety, it is
nondualistic, non‐dialectical”. Nossa tradução.
49
O fluxo traduz‐se pois por dessubjectivação, desterritorialização, presença holística, recurso
a uma lógica não dialéctica e autotélica, conjugação entre acção e consciência. No âmbito
do ritual, este estado fica confinado ao espaço/tempo que lhe está predestinado e, pela sua
natureza não dualística, será interrompido pela reflexividade, eventualmente uma auto‐
reflexividade. Ainda Turner:
A reflexividade deve ser uma interrupção no processo do fluxo, um arremesso de volta
contra si mesmo; os procedimentos de enquadramento fazem com que isto seja possível.
O ego rejeitado é repentinamente remanifestado. Na reflexividade cada um é, ao mesmo
tempo, o seu próprio sujeito e objecto directo, não só num modo cognitivo mas também
existencialmente. […] a mais profunda reflexividade consiste em cada um confrontar o seu
consciente com o seu eu inconsciente. O fluxo talvez desvende ou atraia os níveis
inconscientes do eu […] Uma performance ritual é uma dialéctica de fluxo / reflexividade
(Turner, 1987: 55)124.
O que nos dá uma chave para os benefícios terapêuticos que são reconhecidos ao ritual
pelos seus praticantes: a dialéctica entre fluxo e reflexividade, entre inconsciente e
consciente serão necessariamente factores de cura e de auto‐aperfeiçoamento.
O enquadramento (frame) que torna possível a interrupção do fluxo é o que define toda a
estrutura do ritual. Turner, que vai buscar o conceito a Gregory Bateson e Erving Goffman,
define‐o nestes termos: “Por enquadramento refiro‐me à frequentemente invisível
fronteira […] em volta da actividade e que define os participantes, os seus papéis, o
‘sentido’ ou ‘significado’ atribuído às coisas contidas dentro da fronteira e os elementos
abrangidos pelo ambiente da actividade” (Turner, 1987: 54)125.
Este enquadramento é, como vimos já, mutável, vai‐se ajustando às exigências da realidade
social e ambiental por força das “experiências”. Diz‐nos Turner: “O ritual é
multidimensional; qualquer dada performance é moldada pela experiência vertida nela
tanto como pelas suas estruturas convencionais de enquadramento. As experiências fazem
as estruturas “brilhar”, as estruturas focam e canalizam as experiências” (Turner, 1987:
56)126.
Nesta breve resenha de aspectos do ritual importa abordar, ainda a partir de Victor Turner,
a noção de communitas.
124
“Reflexivity must be an arrest of the flow process, a throwing of it back against itself; framing
procedures make this possible. The rejected ego is suddenly remanifested. In reflexivity one is at
once one’s subject and direct object, not only in a cognitive way, but also existentially. […] deepest
reflexivity is to confront one’s conscious with one’s unconscious self. Flow perhaps elicits or ‘seduces
out’ the unconscious levels of the self […] A ritual performance is a flow / reflexivity dialectic”. Nossa
tradução.
125
“By frame I refer to that often invisible boundary […] around activity which defines participants,
their roles, the “sense” or “meaning” ascribed to those things included within the boundary, and the
elements within the environment of the activity”. Nossa tradução.
126
“Ritual is multidimensional; any given performance is shaped by the experiences poured into it as
much as by its conventional framing structures. Experiences make the structures “glow”, the
structures focus and channel the experiences”. Nossa tradução.
50
Turner socorre‐se de uma passagem de Martin Buber para nos dar uma imagem clara do
conceito:
Comunidade é estar, já não lado a lado, mas com cada uma de uma multidão de pessoas.
E esta multidão, apesar de se mover em direcção a uma meta, ainda assim experimenta
por toda a parte uma viragem para, um dinâmico encarar, os outros, um fluxo de Eu para
Vós. Comunidade é onde a comunidade acontece (Buber, 1961: 51, apud Turner, 1969:
127)127.
O conceito é basilar no pensamento antropológico de Turner, detém uma fundamental
importância na sua formulação de “drama social” e articula‐se particularmente com outra
noção capital, a de “anti‐estrutura”, noções que abordaremos de seguida.
Para entender o papel da communitas no âmbito do ritual, importa estabelecer as suas
diferentes modalidades: 1) existencial ou espontânea, mais rara mas frequentemente na
origem dos outros modos; 2) normativa, a que, sob influência do tempo e da necessidade
de organizar recursos e exercer controlo, se institui como sistema social; e 3) ideológica,
quando o modelo normativo se baseia numa communitas existencial (cfr. Turner, 1969:
132).
Communitas emerge em situações de limiaridade e, sendo o ritual a situação limiar por
excelência, ela é um dos aspectos elementares deste. O que o ritual proporciona “é uma
experiência transformativa que vai à raiz do ser de cada pessoa e encontra nessa raiz algo
de profundamente comum e compartilhado” (Turner, 1969: 138)128. Não obstante, o estado
de communitas não deve ser entendido como o objectivo do ritual: “Na religião das
sociedades pré‐industriais, este estado é visto mais como um meio para um fim, o de se
tornar mais plenamente envolvido na rica diversidade do role‐playing estrutural (Turner,
1969: 139)129. Isto é: emergindo de uma situação de limiaridade e profundamente
relacionado com um papel anti‐estrutural, o estado de communitas contribui para o
fortalecimento da estrutura social.
O ritual institui pois uma communitas, normativa ou ideológica, radicada numa experiência
transformativa, limiar e com um papel anti‐estrutural, mas contributiva da estrutura social
normativizada.
A noção de drama social é introduzida por Turner como uma metodologia de descrição e
análise (cfr. Turner, 1987: 74) que recorre à metáfora dramática para esclarecer os conflitos
sociais. Nas palavras de Schechner,
127
“Community is the being no longer side by side, but with one another of a multitude of persons.
And this multitude, though it moves towards one goal, yet experiences everywhere a turning to, a
dynamic facing of, the others, a flowing from I to Thou. Community is where community happens”.
Nossa tradução.
128
“is a transformative experience that goes to the root of each person’s being and finds in that root
something profoundly communal and shared”. Nossa tradução.
129
“In the religion of preindustrial societies, this state is regarded rather as a means to the end of
becoming more fully involved in the rich manifold of structural role‐playing”. Nossa tradução.
51
Victor Turner analisa os ‘dramas sociais’ usando terminologia teatral para descrever
situações desarmónicas ou de crise. Estas situações – disputas, combates, ritos de
passagem – são inerentemente dramáticas porque os participantes não só fazem coisas,
tentam também mostrar aos outros o que fazem ou fizeram; as acções assumem um
aspecto de ‘feito‐para‐uma‐audiência’ (Schechner, 1977: 120)130.
Turner define dramas sociais como unidades do processo social, harmónicas ou
desarmónicas, provenientes de situações de conflito. Normalmente desenvolvem‐se em
quatro fases: 1) Violação de relações sociais habituais e reguladas normativamente; 2)
Crise, durante a qual há uma tendência para a violação se ampliar. A crise tem
características limiares, uma vez que é uma fase intermédia entre fases relativamente
estáveis do processo social, mas não é uma limiaridade sagrada, protegida por tabus e
apartada da vida pública. Pelo contrário, apresenta‐se como ameaçadora da estabilidade
social e desafiadora da ordem e dos seus representantes; 3) Correcção, que pode passar
por mecanismos variados tendentes à resolução do conflito, inclusive a performance de um
ritual público. A correcção tem também características limiares pois é um estado “entre e
no meio”; 4) a fase final consiste quer na reintegração do grupo social perturbado, quer no
reconhecimento e na legitimação da ruptura irreparável entre as partes em disputa (cfr.
Turner, 1974: 37 – 41).
O pensamento de Turner a propósito do papel social do ritual foi evoluindo: se nos seus
primeiros trabalhos asseverava a função do ritual na manutenção da unidade dos grupos
sociais, por permitir a expressão e resolução de problemas e tensões, em estudos
posteriores, como nos explica Catherine Bell, “foi além do modelo de sociedade como um
sistema estruturado e atemporal fechado que, quando perturbado por conflitos, poderia
ser devolvido à estase harmoniosa através da catarse ritual” (Bell, 1997: 39)131, uma vez que
a noção de drama social lhe permitia reconhecer a dinâmica da estrutura social e
compreender o ritual como parte integrante do seu processo contínuo de redefinição e
renovação.
Sobretudo, e por via dos estados liminares que identifica, a descrição e análise do drama
social permitem melhor identificar a dialéctica entre a ordem social, a estrutura, e os
momentos de desordem social e limiaridade, a anti‐estrutura, com relevância para esta
última pois: “o uso táctico da lente analítica ‘como performance’ permitiu aos académicos
explorar performances em que o equilíbrio entre a estrutura e anti‐estrutura pende mais
fortemente para a transgressão e a resistência”(Bial, 2011: 86)132. Também no nosso estudo
130
"Victor Turner analyzes 'social dramas' using theatrical terminology to describe disharmonic or
crisis situations. These situations‐arguments, combats, rites of passage‐are inherently dramatic
because participants not only do things, they try to show others what they are doing or have done;
actions take on a 'performed‐for‐an‐audience' aspect”. Nossa tradução.
131
“went beyond the model of society as a closed and atemporal structured system that, when
disturbed by conflict, could be returned to harmonious stasis through ritual catharsis”. Nossa
tradução.
132
“the tactical use of the ‘as performance’ analytic lens has allowed scholars to explore
performances in which the balance between structure and anti‐structure tilts more heavily toward
transgression and resistance”. Nossa tradução.
52
estaremos atentos a estes aspectos anti‐estruturais de infracção, blasfémia, reversão (das
hierarquias, por exemplo) e inovação.
Foi ainda Victor Turner que nos conduziu aos estudos de Eugene d’Aquili, Charles D.
Laughlin e John McManus, fundadores da Biogenética Estrutural. Tentaremos,
acompanhando Turner, fazer um resumo de algumas das conclusões da obra de 1979, The
Spectrum of Ritual: a biogenetic structural analysis.
O cérebro humano estrutura‐se em três partes: o cérebro reptiliano, a mais antiga, situa‐se
principalmente na coluna vertebral e nas redes de neurónios do plexo solar e é responsável
pelos sistemas involuntários (cardíaco, vascular e respiração) e comportamento instintivo.
Está ligado à vigilância e à sobrevivência. A consciência situada nesta parte do cérebro está
centrada no corpo e não distingue o exterior. Podemos dizer que ao cérebro reptiliano
corresponde o fluxo de movimento.
O cérebro paleo‐mamífero situa‐se na zona subcortical do crânio e é responsável pelo
sistema límbico, pelo hípotalamo e pela glândula pituitária. Calor, frio, sede fome
saciedade, sexo, prazer, dor, raiva e medo têm origem nesta parte do cérebro que é
essencialmente homeoestático, i.e. mantém o equilíbrio (thofotrópico). Pode‐se dizer que
ao cérebro paleo‐mamífero corresponde o fluxo de sentidos.
Visto por outra perspectiva, o cérebro, ou pelo menos a sua componente craniana,
encontra‐se dividido em dois hemisférios a que correspondem diferentes funções: o
hemisfério esquerdo responde habitualmente às funções do discurso, do pensamento
linear e analítico, à noção de tempo e ao processamento de informação sequencial. É
essencialmente ergotrópico, i.e. ligado ao trabalho, à acção. No hemisfério direito residem
normalmente a percepção espacial e tonal, o reconhecimento de padrões, (incluindo
emoções e estados interiores) e o pensamento sintético. Não é dotado de capacidade
linguística nem temporal. É essencialmente trofotrópico, i.e. responsável pela manutenção,
pelo equilíbrio do funcionamento geral do ser humano.
Esta simplificada explicação é necessária para perceber o seguinte comentário de Turner
aos estudos de d’Aquili, Laughlin e McManus:
Eles apresentam provas que sugerem que quando, seja o sistema ergotrópico seja o
trofotrópico são hiperestimulados, ocorre um “transbordo” para o sistema oposto após
“três estádios de sintonização”, frequentemente por “comportamentos de indução”
empregues para facilitar o transe ritual. (…) Em particular, postulam que a actividade
rítmica do ritual, ajudada por “induções” sónica, visual, fótica e de outros tipos, podem
levar, a seu tempo, a uma estimulação simultânea de ambos os sistemas, causando nos
53
participantes do ritual a experiência do que os autores chamam “efeito positivo, inefável”
(Turner, 1987: 165)133.
Esta explicação está aliás em consonância com as conclusões a que, mais de três décadas
depois de d’Aquili, Laughlin e McManus, chega a já citada Elizabeth Reyes‐Fournier:
A descoberta do predomínio do hemisfério cerebral direito durante um estado alterado de
consciência ajuda a explicar a experiência. Com o conhecimento que possuímos sobre a
lateralização do cérebro, ao compararmos os hemisférios direito com o esquerdo
podemos ver que a resposta emocional se torna mais proeminente, enquanto a
133
“They present evidence which suggests that either the ergotropic or trophotropic system is
hiperstimulated, there results a “spillover” into the opposite system after “three stages of tuning”,
often by “driving behaviors” employed to facilitate ritual trance. (…) In particular, they postulate that
the rhythmic activity of ritual, aided by sonic, visual, photic, and other kinds of “driving”, may lead in
time to simultaneous maximal stimulation of both systems, causing ritual participants to experience
what the authors call “positive, ineffable effect”. Nossa tradução.
134
“(…) puzzlement remains at the cognitive left‐hemispherical level. D’Aquili and Lauglin argue that
ritual is often performed situationally to resolve problems posed by myth to the analytic verbalizing
consciousness. This is because like all other animals, man attempts to master the environmental
situation by means of motor behavior, in this case ritual, a mode going back into his phylogenetic
past and involving repetitive motor, visual and auditory driving stimuli, kinetic rhythms, repeated
prayers, mantras, and chanting, which strongly activate the ergotropic system. Ergotropic excitation
is appropriated because the problem is presented in the “mytical” analytical mode, which involves
binary thinking, mediation, and causal chains arranging both concepts and percepts in terms of
antinomies or polar dyads. (…) If excitation continues long enough the trophotropic system is
triggered too, with mixed discharges from both sides, resulting often in ritual trance”. Nossa
tradução.
54
necessidade de analisar que é dirigida pelo hemisfério esquerdo é menos importante
(Reyes‐Fournier, 2013:66)135.
Ainda Turner, citando d’Aquili, Laughlin e McManus: “durante certos estados do ritual e da
meditação, os paradoxos lógicos ou a consciência de oposições polares tal como
apresentadas no mito, aparecem simultaneamente como antinomias e como totalidades
unificadas” (Turner, 1987: 166)136.
O transe resolve, pois, os paradoxos lógicos e as contradições presentes no mito. E vai
ainda mais longe nesse processo de resolução, como nos explica Elizabeth Reyes‐Fournier:
(…) ficar sob o domínio do lado direito do cérebro, durante o estado de transe pode
acarretar um estado de calma e propiciar um sentimento de bem‐estar ao indivíduo. A
neurogénese específica dos estados de transe é uma vereda neuroquímica que actua
directamente com a “ interacção do lobo temporal e a amina biogénica” (Reyes‐Fournier,
2013:60)137.
Entre os estudos de d’Aquili, Laughlin e McManus e de Elizabeth Reyes‐Fournier passaram
mais de três décadas. Decerto muitos outros estudos no domínio das neurociências, e mais
concretamente da biogenética, se poderiam se poderiam evocar para confirmar as
conclusões que aqui se propõem. Não o dando por necessário, não resistimos no entanto a
citar Roland Fisher:
Apesar da relação de exclusão mútua entre os sistemas ergotrópico e trofotrópico, existe
no entanto um fenómeno chamado “ressalto para a superactividade” ou ressalto
trofotrópico que ocorre em resposta à excitação simpática intensa, isto é, ao êxtase, ao
auge da excitação ergotrópica (…) O significado é "significativo" apenas a esse nível de
excitação em que é experimentado, e cada experiência tem seu significado ligado ao
estado. Durante o estado “Eu” dos mais altos níveis de hiper ou hipo excitação, este
significado não pode ser expresso em termos dualistas, uma vez que a experiência de
unidade nasce a partir da integração das estruturas de interpretação (cortical) e
interpretadas (subcorticais). Uma vez que esse significado intenso é desprovido de
especificidade, a única maneira de comunicar sua intensidade é a metáfora; portanto, só
através da transformação de sinais objectivos em símbolos subjectivos na arte, na
literatura e na religião pode a crescente integração da actividade cortical e subcortical ser
comunicada (Fisher, 1971: 902)138.
135
“Discovering the right brain dominance during an altered state of consciousness helps to explain
the experience. With the knowledge we have of the lateralization of the brain in comparing the right
to the left hemispheres, one can see that the emotional response becomes more prominent while
the need to analyze which is directed by the left hemisphere is less important”. Nossa tradução.
136
“during certain ritual and meditation states, logical paradoxes or the awareness of polar
oppositions as presented in myth appear simultaneously, both as antinomies and as unified wholes”.
Nossa tradução.
137
“(…) becoming right brain dominant within the trance state can bring a state of calm and allows
for a feeling of well‐being to the individual. The specific neurogenesis of trance states is a
neurochemical pathway which works directly with “biogenic amine‐temporal lobe interaction”.
Nossa tradução.
138
“In spite of the mutually exclusive relation between the ergotropic and trophotropic systems,
however, there is a phenomenon called “rebound to superactivity” or trophotropic rebound which
55
Colocar as questões relacionadas com o transe e o ritual em termos biogenéticos revela‐se
extremamente vantajoso. Poder‐se‐á então estabelecer uma propensão humana para o
ritual que seja geneticamente transmitida?
A etologia, disciplina da zoologia que se debruça sobre o comportamento animal,
estabelece a categoria de “ritualização” para determinados padrões de conduta. A
definição que nos é dada por Julian Huxley é sintética e objectiva:
Ritualização é a formalização ou canalização adaptativa de comportamento
emocionalmente motivado, sob a pressão teleonómica da selecção natural, com o fim de:
a) promover melhores e menos ambíguas funções sígnicas, tanto intra como inter‐
espécies; b) servir como mais eficientes estimuladores ou libertadores de mais eficientes
padrões de acção noutros indivíduos; c) reduzir os danos intra‐espécie; e d) servir como
mecanismo de conexão sexual ou social (Huxley, 1966, apud Turner, 1987: 157)139.
Reconhecemos nesta definição muitos dos aspectos do ritual que temos vindo a abordar; se
substituíssemos “espécies” por “grupos sociais” talvez nos aproximássemos muito de uma
abordagem sociológica válida para o ritual ou, pelo menos, para aspectos da vida social
estreitamente relacionados com o ritual, como o cerimonial, o decoro, a hierarquização, a
etiqueta, etc.
A resposta da antropologia, pelo menos aquela com um carácter mais conservador e
académico, será sempre a de enfatizar que as características culturais do ritual não nos
permitem considerá‐lo de transmissão genética.
Mas, por outro lado, há um progressivo reconhecimento de que a espécie humana possui
traços distintivos, geneticamente herdados, que interagem com o condicionamento social e
influenciam a formação dos sistemas culturais. A importância deste argumento é expressa
na sua plena veemência por Robin Fox:
occurs in response to intense sympathetic excitation, that is, at ecstasy, the peak of ergotropic
arousal (…) Meaning is ‘meaningful’ only at that level of arousal at which it is experienced, and every
experience has its state‐bound meaning. During the ‘Self’‐state of highest levels of hyper or hypo
arousal, this meaning can no longer be expressed in dualistic terms, since the experience of unity is
born from the integration of interpretative (cortical) and interpreted (subcortical) structures. Since
this intense meaning is devoid of specificities, the only way to communicate its intensity is the
metaphor; hence, only through the transformation of objective signs into subjective symbols in art,
literature, and religion can the increasing integration of cortical and subcortical activity be
communicated”. Nossa tradução.
139
“Ritualization is the adaptive formalization or canalization of emotionally motivated behavior,
under the teleonomic pressure of natural selection so as: a) to promote better and more
unambiguous signal function both intra and inter‐specifically; b) to serve as more efficient
stimulators or releasers of more efficient patterns of action in other individuals; c) to reduce intra‐
specific damage; and d) to serve as sexual or social bonding mechanism”. Nossa tradução.
56
Se não existe natureza humana, qualquer sistema social é tão bom quanto qualquer outro,
uma vez que não existe uma linha de base de necessidades humanas pela qual os julgar.
Se, de facto, tudo é aprendido, então por certo o ser humano pode ser educado para viver
em qualquer tipo de sociedade. O humano fica à mercê de todos os tiranos que pensam
que sabem o que é melhor para ele. E como pode ele clamar que estão a ser desumanos
se, antes de mais, ele não sabe o que é ser humano? (Fox, Robin, 1973, apud Turner,
1987: 156)140.
Tão arrojado fundamento exige uma resposta declaradamente afirmativa: há uma natureza
humana e as estruturas culturais são construídas para responder satisfatoriamente a essa
natureza. A propensão para a prática de rituais integra as características genéticas da
humanidade?
Por certo existem comportamentos de ritualização na espécie humana: o riso e o choro
serão os exemplos primordiais. Mas estes procedimentos não se encaixam na nossa
definição de ritual, pelo que não nos conduzem a uma resposta.
4 – Outras noções contributivas: Mitologia, Magia, Religião, Sacrifício e Dádiva.
Mitologia, Magia e Religião.
Quando pensamos em ritual associamos‐lhe prontamente uma ligação mitológica. Esta
associação, que resulta do carácter sagrado que estabelecemos já para o ritual, não tem em
conta se um determinado rito pertence à esfera da religião ou da magia. Talvez porque, no
que diz respeito ao campo do ritual, não se possam estabelecer distinções entre magia e
religião. Eis como o exemplifica Mircea Eliade:
… para os cristãos de todas as confissões, o centro da vida religiosa é constituído pelo
drama de Jesus Cristo. Embora cumprido na História, esse drama tornou possível a
salvação; portanto só existe um único meio de obter a salvação: repetir ritualmente esse
drama exemplar e imitar o modelo supremo, revelado pela vida e pelos ensinamentos de
Jesus. Ora este comportamento religioso é solidário do pensamento mítico autêntico
(Eliade, 1989: 142).
É, pois, numa conexão mitológica em que o ritual, mesmo o cristão, se funda. Mas esta
relação não é, de forma alguma, subordinada: o ritual não se limita a ilustrar o mito e por
vezes diverge da mitologia que alegadamente o funda. Podemos mesmo encontrar
situações de “transmigração” em que um ritual se transfere, de forma quase integral, de
140
“If there is no human nature, any social system is as good as any other, since there is no base line
of human needs by which to judge them. If, indeed, everything is learned, then surely men can be
taught to live in any kind of society. Man is at the mercy of all the tyrants who think they know what
is best for him. And how can he plead that they are being inhuman if he doesn’t know what being
human is in the first place?” Nossa tradução.
57
um contexto mitológico para um novo contexto religioso ou mitológico que se revele
socialmente mais operativo.141
Levi‐Strauss distingue entre duas formas de mitologia: “uma mitologia explícita consistindo
em narrativas cuja importância e organização interna criam obras de pleno direito; e uma
mitologia implícita que se limita a acompanhar o desenrolar do ritual para comentar ou
explicar os seus aspectos” (Levi‐Strauss, 1992: 107). Desta categoria de mitologia
relacionada com o ritual diz que: “O mito e o rito progridem juntos, mas mantêm‐se à
distância e não comunicam [...] O laço entre mitologia e ritual existe, mas é preciso procurá‐
lo a um nível mais profundo” (Levi‐Strauss, 1992: 108). Importa reter esta independência
mútua entre o mito e o rito.
Definir fronteiras entre os conceitos de magia e religião pode afigurar‐se um exercício
delicado. Desde logo porque em certas circunstâncias a religião se pode comportar como
magia, mas também porque ambas se estruturam numa ligação ao ritual e à mitologia,
como nos adverte Ernst Cassirer na sua Antropologia Filosófica, “No desenvolvimento da
cultura humana, não podemos fixar um ponto onde termina o mito e a religião começa. Em
todo curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos
míticos e impregnada deles” (Cassirer, 1972: 77). A mitologia e o ritual são partes tanto da
religião como da magia e não nos servirão para distinguir estes domínios.
Para Malinowski, elas têm uma origem comum: “Tanto a magia como a religião surgem e
resultam de situações de tensão emocional” (Malinowski, 1988: 90). E o que as distingue,
segundo este antropólogo?
Tomámos como ponto de partida uma distinção muito concreta e evidente: definimos, no
domínio do sagrado, magia como uma arte prática constituída por actos que são apenas
meios para um fim objectivo que se espera vir a desenrolar posteriormente; religião como
um conjunto de actos independentes que constituem por si próprios a realização da sua
finalidade (Malinowski, 1988: 90).
Não nos parece que esta distinção venha a revelar‐se útil no desenvolvimento da nossa
reflexão sobre a Arte como Veículo, enquanto ritual laico, mas terá a maior importância no
enquadramento da tradição do Theyyam (ver Capítulo III – Theyyam, A Dança dos Deuses).
Atentemos ainda numa característica distintiva para a qual Malinowski chama a nossa
atenção:
“A mitologia da religião é também mais variada e complexa, bem como mais criativa.
Centra‐se normalmente em torno de vários dogmas da crença, e desenvolve‐os em
cosmogonias, contos de heróis da cultura, relatos e feitos de deuses e semi‐deuses. Na
magia, dada a sua importância, a mitologia é uma constante jactância das proezas do
homem primitivo” (Malinowski, 1988: 91).
141
Pensamos na sobrevivência de rituais “pagãos” camuflados no cristianismo, nos sincretismos afro‐
americanos e sobretudo na prática do Theyyam que, como iremos ver, se encontra inserido de forma
singular no contexto mitológico do hinduísmo, mas parece ter existido já na Costa do Malabar antes
da chegada dos povos arianos e do hinduísmo bramânico.
58
O Theyyam do Malabar proporcionar‐nos‐á a oportunidade de reflectir sobre a oscilação
entre o mágico e o religioso e a importância relativa do mito e do rito em cada um
desses campos, reflexão que poderemos proveitosamente levar para o campo da Arte
como Veículo.
O Sacrifício e a Dádiva.
Parece‐nos de utilidade ponderar ainda o tema do sacrifício. Na sua obra La Violence et le
Sacré, René Girard dedicou grande atenção à questão do sacrifício ritual, recentrando toda
a performance do ritual nessa componente de violência que, a seu ver, é fundadora de toda
a acção sagrada e ritual. No seu entendimento, o ritual “sublima” ou “purifica” a violência
por “gastar” essa mesma violência: “O ritual tem por função o ‘purificar’ da violência, quer
dizer, de a ‘enganar’ e de a dissipar sobre vítimas que não se arrisca a que sejam vingadas”
(Girard, 1972: 59)142.
Uma violência primordial, fundadora não só do sagrado mas de toda a sociedade e cultura
humanas, ubíqua e inerente à condição humana, constitui o fundamento para a ousada
tese de Girard. Essa pulsão inviabilizaria toda a existência e estruturação social humanas,
pelo que “O religioso primitivo domestica a violência, regula‐a, ordena‐a e canaliza‐a, a fim
de a utilizar contra qualquer forma de violência realmente intolerável e isto numa
atmosfera geral de não‐violência e apaziguamento” (Girard, 1972: 36)143.
Assim, o sacrifício ritual substituiria os verdadeiros objectos da pulsão violenta,
potencialmente todo e qualquer humano, por vítimas inofensivas: animais, prisioneiros de
guerra, escravos, crianças, seres de menor importância para o funcionamento da estrutura
social e menos capazes de se vingarem.
A hipótese proposta por Girard, extremada, arrebatada, releva algumas questões que
teremos oportunidade de confrontar no nosso estudo de campo sobre uma tradição ritual e
que, por certo, teremos ocasião para voltar a abordar.
Mas, relacionado com o sacrifício, interessa‐nos também considerar o auto‐sacrifício. “Para
pensadores como Jan Patocka, Emmanuel Levinas, Jacques Derrida e, até certo ponto, Jean‐
Luc Marion, o mais elevado gesto ético é uma auto‐dádiva sacrificial que não espera
nenhum benefício em retorno. O bem é, paradigmaticamente, um sacrifício purificado, o
mais puro sacrifício que se possa imaginar” (Milbank, 1999).144 Como devemos entender
uma “dádiva total”, que, em última consequência, pode ser a renúncia à própria vida? O
142
"Le rituel a pour fonction de ‘purifier’ la violence, c'est‐à‐dire de la ‘tromper’ et de la dissiper sur
des victimes qui ne risquent pas d'être vengées". Nossa tradução.
143
"Le religieux primitif domestique la violence, il la règle, il l’ordonne et il la canalise, afin d’utiliser
contre toute forme de violence proprement intolérable et ceci dans une atmosphère générale de
non‐violence et de apaisement”. Nossa tradução.
144
“For such thinkers as Jan Patocka, Emmanuel Levinas, Jacques Derrida, and, to a certain
extent, Jean‐Luc Marion, the highest ethical gesture is a sacrificial self‐offering which expects no
benefit in return. The good is, paradigmatically, a purified sacrifice, the purest sacrifice
imaginable”. Nossa tradução.
59
auto‐sacrifício deve sempre ser entendido como altruísmo? Entregar‐se à morte é sempre
um sacrifício?
Derrida remete para a economia “o investimento e o benefício diferido sob o signo da pura
renúncia, sob a aposta do sacrifício desinteressado” (Derrida, 2005 [1972]: 68). No capítulo
que dedica ao auto‐sacrifício em L'éthique du don (Derrida, 1992), analisando o
pensamento de vários autores contemporâneos, propõe que a derradeira dádiva seja vista
como uma ultrapassagem da morte e um “investimento” na imortalidade, uma “aquisição”
de vida eterna ou reencarnação.
Não necessitaremos de abordar o sacrifício da vida nas nossas análises da Arte como
Veículo e do Theyyam mas estas reflexões de Derrida serão por certo úteis para discutir a
dádiva e o sacrifício em ambas as performances.
5 – A Arte como Veículo como ritual laico.
O que resulta, então, quando observamos a Arte como Veículo à luz do conceito de ritual
proposto e das características que lhe apontámos?
Não há dúvida de que ela é performance, enquanto a acção estruturada e plenamente
motivada de um ou vários indivíduos, executada num espaço e tempo definidos, com um
carácter extra‐quotidiano e orientada, deliberada ou espontaneamente, para a obtenção
de um resultado ou reacção por parte dos participantes ou de outros indivíduos presentes
no mesmo espaço e tempo. Mas pode também ser uma execução, no contexto de um
grupo social plenamente participante, de uma sequência complexa e predeterminada de
actos simbólicos, que reproduzem um modelo sagrado e que operam transformações nos
seus participantes, a nível individual e social?
Definitivamente, a Arte como Veículo é laica. A sequência de actos simbólicos não reproduz
um modelo sagrado nem é imutável, uma vez que é construída pelos próprios
participantes, alterada ou aperfeiçoada em função das suas necessidades, não existiu
sempre e não existirá para sempre. Mas, também já o dissemos, tão pouco o ritual das
tradições é imutável.
No primeiro capítulo deste trabalho caracterizámos a Arte como Veículo como ritual
sustentando‐nos no seu carácter de limiaridade. Limiar é o conjunctio oppositorum entre
Presença e Ser, entre Estrutura e Vida, entre Eu e Eu.
A Arte como Veículo proporciona pois um transe performativo, um estado alterado de
consciência. Grotowski chama‐lhe “consciência vigilante” e descreve‐o como uma
circulação, em sentido vertical, entre uma consciência corpórea, mais densa, e uma
consciência mais subtil. Neste estado coexistem dois “Eu”, o “Eu” que age e o “Eu” que é
consciente. Não se trata de dualismo antropológico mas de uma amplificação da
percepção: o actuante aproxima‐se da “essência”, do Ser: é um limiar entre o mundo
concreto e a dimensão ontológica. Não pode ser descrito como um transe de possessão,
60
uma vez que o actuante não é possuído por uma entidade externa; pelo contrário, o
individuo “toma posse” da totalidade do seu Ser.
O fluxo “em que a acção sucede à acção de acordo com uma lógica interna, aparentemente
sem necessidade de intervenção da nossa parte [em que] há uma perda de ego, o ‘eu’ que
normalmente age como intermediário entre ego e alter torna‐se irrelevante” (Turner, 1987:
54) é, na Arte como Veículo, essa oscilação vertical entre a Presença e o Ser.
E, como Turner, na senda de MacAloon e Czikszentmihalyi, observou, na Arte como Veículo
o fluxo interage com a reflexividade: o “Eu” que observa, que é consciente, e que opera em
simultâneo com o “Eu” que age, é reflexivo e opera sobre o “Eu” que age corrigindo a
execução da performance, assumindo o controlo da estrutura. É uma dialéctica entre o
fluxo e a reflexividade, o conjunctio oppositorum entre Estrutura e Vida.
A estrutura, na Arte como Veículo, é construída pelos actuantes, em função das suas
necessidades, desejos, aspirações. Distingue‐se da estrutura do ritual que é culturalmente
herdada, imposta, reflexo da estrutura social, política e económica.
A este ponto importa sucintamente descrever sociologicamente um grupo que trabalha
sobre a Arte como Veículo. Quer no Workcenter de Grotowski em Pontedera, quer nos
mais variados lugares do planeta em que colectivos, influenciados pela actividade do
Workcenter de Pontedera, desenvolvem actividades nessa linha, trata‐se de grupos
pequenos, compostos por três a dez indivíduos, com competências técnicas e experiência
nas artes performativas, que se reúnem com uma determinada regularidade para
desenvolver esse tipo de trabalho. Serão comparáveis (na maior parte das vezes serão
mesmo) a grupos de teatro, amadores ou profissionais, com mais ou menos meios, com
maior ou menor sucesso, que se reúnem para os seus ensaios. A vida quotidiana, a
condição social e económica, as opiniões conjunturais, ficam metaforicamente no camarim
e, quando os actuantes se entregam à prática artística assumem, por decoro, uma postura
de despojamento, de “passiva disponibilidade”.
Não então há lugar para um drama social, como não tem sentido também procurar aqui
uma função anti‐estrutural. Na Arte como Veículo a comunidade social é reduzida ao
mínimo, ao núcleo de co‐actuantes que formam uma communitas espontânea e ideológica,
com um forte compromisso ético de solidariedade que resulta dos seus laços de
interdependência e cumplicidade. Uma vez que tanto a participação no grupo como a
estrutura performativa resultam de opções voluntárias, o conflito ou o comportamento
anti‐estrutural resultarão no desmoronamento da communitas e da estrutura performativa.
A dádiva e o sacrifício são componentes sempre presentes no trabalho artístico de
Grotowski. O acto total, a entrega, a santidade laica do actor, a disponibilidade passiva, são
noções que estão presentes na arte como Veículo. Não o sacrifício no sentido de Girard; e
tão pouco o auto‐sacrifício que mereceu a atenção de Derrida. Porque em Grotowski o
auto‐sacrifício não é altruísta, não consiste numa dádiva ao Outro. A entrega que é
solicitada ao performer é uma dádiva à acção. É à performance que o performer se rende, é
a sua estrutura que tem que sacrificar os seus impulsos vitais. É deliberadamente para
obter um resultado, uma contrapartida vantajosa, que o actuante se sacrifica.
61
Da nossa argumentação parece poder concluir‐se que a arte como Veículo satisfaz os
requisitos para uma categorização como ritual… não fosse a sua laicidade. Mas tentemos ir
um pouco mais longe: o modelo sagrado que o ritual reproduz, procura resposta a que
pergunta? Atentemos na seguinte passagem de Eliade: “ Para o homem religioso, o
essencial precede a existência. Isto é verdade tanto para o homem das sociedades
‘primitivas’ e orientais como para o judeu, o cristão e o muçulmano. O homem é aquilo que
é hoje porque uma série de acontecimentos ocorreram ab origine” (Eliade, 1986: 81). Quer
dizer que o ritual, ao reproduzir a “origem”, procura responder ao “essencial”, ao que
precede e excede a existência, à pergunta sobre o que é o Ser, à questão ontológica.
Se, seguindo esta linha de pensamento, substituirmos na nossa definição de ritual a
expressão “modelo sagrado” por “modelo ontológico” o resultado será um ritual laico,
respondendo plenamente a todas as funções requeridas ao ritual, sem depender de uma
esfera espiritual, mágica ou religiosa.
No que diz respeito à imutabilidade e intemporalidade reclamada pelo ritual das tradições,
que como vimos só poderá existir na sua dimensão simbólica e espiritual, também a Arte
como Veículo, como ritual laico e ontológico, procura responder ao que precede e excede a
existência, à pergunta que não se situa na história, que está para lá da origem: quem Sou,
qual o sentido de Ser?
Sustentamos pois que a Arte como Veículo é um modelo de construção de rituais laicos que
consistem na execução, no contexto de um pequeno grupo social plenamente participante,
de uma sequência complexa e predeterminada de actos simbólicos, que reproduzem uma
questão ontológica e que operam transformações nos seus participantes, a nível individual
e social.
62
Capítulo III – Theyyam, A Dança dos Deuses.
No último capítulo deste trabalho, procuramos corroboração para a nossa categorização da
Arte como Veículo como ritual pois, “não podemos realmente compreender a nossa própria
tradição […] sem compará‐la com um berço diferente” (Grotowski, 1995: 130).145 No
entanto, não se trata aqui de um comparativismo antropológico, mas antes de uma busca
de confirmação pela confrontação: procurar reconhecer numa tradição ritual concreta os
aspectos que apontámos ao ritual em termos gerais e verificar como os mecanismos que
identificámos na Arte como Veículo ocorrem, ou não, num específico ritual.
A tradição ritual do Theyyam da Costa do Malabar, no sudoeste indiano, pareceu‐nos
adequada a este propósito: as cerimónias são abundantes e acessíveis, possuíamos
contactos que nos permitiriam encontrar informadores e o ritual foi já objecto de alguns
estudos pelos prismas da antropologia e dos estudos da performance que produziram
conhecimento documentado. A performance é grandemente ancorada na fisicalidade e
caracterizada pela organicidade do movimento e julgámos poder identificar elementos
“objectivos” presentes no ritual.
Para cumprir este objectivo levámos a cabo um estudo de campo na região de Cananor com
a duração de nove semanas no início de 2015. A curta duração foi, desde o início, uma das
condicionantes e determinava que o estudo se concentrasse nas questões relacionadas
com o transe de possessão e as suas técnicas mas, na prática, foi necessário conhecer
minimamente o contexto, aprender o essencial do vocabulário e dos conceitos relacionados
com o ritual, estabelecer contactos e aprofundar relações de confiança com os
informadores. No final da estadia ficámos com a sensação de estar em boas condições para
iniciar o estudo e de que os dados e impressões recolhidas ficavam muito aquém do
pretendido. É, porém, com essas informações que teremos que trabalhar.
1 – Contextualização do Estudo.
O contexto da cultura indiana.
Falar de cultura indiana é falar da cultura de cerca de 1.210 milhões de habitantes
distribuídos por 29 estados e sete territórios autónomos e que usam 23 línguas oficiais,
acrescidas de mais de um milhar de dialectos regionais. É falar da cultura de um
subcontinente por onde passaram inúmeras migrações étnicas e onde se sediaram algumas
das mais importantes civilizações humanas ao longo de mais de 4.500 anos e que só em
145
“we cannot really understand our own tradition […] without comparing it with a different cradle ”.
Nossa tradução.
63
1947 se uniu politicamente, em resultado de um processo de descolonização recheado de
conflitos e tensões que se perpetuam até aos nossos dias.
Da cultura de um território onde, na palavras de Giles Tarabout:
Nenhum reino se impôs à escala do subcontinente antes da época britânica, embora em
várias ocasiões alguns tenham tido uma extensão considerável. Além disso, o modelo de
controlo político mais frequente não foi a anexação mas antes a subordinação dos
vencidos, cuja autoridade local se via confirmada (Tarabout, 2002: 196). 146
“Cultura indiana” é pois uma categorização em que se procuram valorizar factores comuns
às diferentes regiões e grupos sociais. Resultará, em grande parte do ponto de vista do
colonizador, incapaz de reconhecer a diversidade cultural face à grandeza da sua própria
estranheza, mas também, contemporaneamente, da necessidade instrumental do Governo
da União de consolidar uma identidade cultural legitimadora da própria federação política.
Verificamos a existência de uma tensão, cultural e social mas também política, entre as
orientações hegemónicas pan‐indianas e a sobrevivência das identidades culturais locais.147
O objecto do nosso estudo situa‐se numa área geográfica determinada, coincidente com os
distritos de Cananor e Kasaragod, no norte do Estado de Querala, território caracterizado
por uma grande diversidade cultural e social. As nossas observações e conclusões serão
pois apenas válidas para os grupos sócio‐culturais estudados e em muitos aspectos
contrariarão os preceitos de uma hegemonia cultural indiana.
O Hinduísmo, muito breve abordagem.
146
“Aucun royaume ne s'est imposé avant l'époque britannique à l'échelle de l'ensemble du
souscontinent, quoique à plusieurs reprises certains aient connus une extension considérable. Par
ailleurs, le modèle de contrôle politique le plus fréquent n'étant pas l'annexion, mais plutôt la
subordination des vaincus dont l'autorité locale se voyait confirmée”. Nossa tradução.
147
Sobre estas tensões e os seus processos no âmbito do Theyyam, veja‐se Dasan, Mannarakkal,
(2012), Theyyam, Patronage, Appropriation and Interpolation, Cananor: Kannur University; Chandran
T.V. (2006), Ritual as Ideology, Text and Context in Teyyam, Nova Deli : D.K. Printworld Ltd ; e
também toda a segunda parte da tese de Ashley, Wayne (1993) Recodings: Ritual, Theatre, and
Political Display in Kerala State, South India, Nova Iorque : New York University.
64
rito ou performance religiosa; na verdade, ela não satisfaz as características tradicionais
de uma religião ou credo. É uma forma de vida e nada mais (Klostermaier 1994: 1).148
Se aceitarmos esta definição e por “forma de vida” entendermos o conjunto de práticas,
comportamentos e noções éticas e existenciais mais comuns no universo hinduísta,
arriscamo‐nos a excluir deste quadro o nosso objecto de estudo que, indubitavelmente,
dele faz parte. Seguiremos o entendimento de Freeman que, nesta matéria, entende o
hinduísmo como um termo abrangente para “a síntese religiosa indígena através de toda a
Índia, que subsume uma variedade de sub‐tradições regionais (incluindo antigas crenças e
práticas tribais e dravídicas), sob a égide hegemónica da doutrina sânscrítica Bramânica”
(Freeman, 1991:93).149
O sistema de castas.
Usamos o termo “casta” por estar comummente instituído nas Ciências Sociais, embora o
vocábulo seja alienígeno ao próprio sistema social indiano. De facto, o termo de origem
latina e com o sentido de “puro”, terá sido introduzido pelos portugueses para caracterizar
o sistema endogâmico e segregacionista que caracteriza grande parte das comunidades
indianas.
O sistema de castas na Índia é um sistema de estratificação social (cfr. Berreman, 1972:
389). Historicamente, separa as comunidades em milhares de grupos hereditários e
endogâmicos chamados Jātis (cfr. Smith, 2005). Os Jātis são agrupados em quatro
categorias de Varnas: Brâmanes, Chátrias, Vaisias e Sudras. Os indivíduos ou grupos sociais
excluídos do sistema, os Párias, contemporaneamente conhecidos por Dalits, eram
ostracizados por todos os grupos integrados e tratados como “intocáveis”. Fortemente
identificado com o hinduísmo, o sistema indiano de castas estende‐se a outras
comunidades religiosas e pode encontrar‐se entre budistas, cristãos, muçulmanos e siques.
Um importante estudioso indiano, precursor do estudo sociológico sobre o sistema de
castas, Govind Sadashiv Ghurye, admite a grande dificuldade em definir a estrutura:
... não temos uma verdadeira definição geral de casta. Parece‐me que qualquer tentativa
de definição está destinada ao fracasso, devido à complexidade do fenómeno. Por outro
lado, muita da literatura sobre o assunto está marcada pela falta de precisão sobre o uso
do termo (Ghurye, 1969: 1).150
148
“Unlike other religions in the World, the Hindu religion does not claim any one Prophet, it does
not worship any one God, it does not believe in any one philosophic concept, it does not follow any
one act of religious rites or performances; in fact, it does not satisfy the traditional features of a
religion or creed. It is a way of life and nothing more”. Nossa tradução.
149
“the indigenous religious synthesis across the whole of India, which subsumes a variety of
regional sub‐traditions (including ancient tribal and Dravidian beliefs and practices) under the
hegemonic umbrella of Sanskritic Brahminical doctrine”. Nossa tradução.
150
“… we do not possess a real general definition of caste. It appears to me that any attempt at
definition is bound to fail because of the complexity of the phenomenon. On the other hand, much
literature on the subject is marred by lack of precision about the use of the term”. Nossa tradução.
65
Na sua aproximação a uma definição, distingue um conjunto de seis características do
sistema de castas hinduísta que o instituem como uma “filosofia social” e que poderiam ser
aplicadas em todo o país, embora reconhecendo variações regionais. Seria elas:
‐ segmentação rigorosa da sociedade, com os vários grupos definidos e a participação neles
determinada pelo nascimento;
‐ um sistema hierárquico que define a posição para cada uma das castas;
‐ escolha limitada de ocupações, que é aplicada dentro de uma casta bem como pelas
outras castas. À casta pode ser atribuída mais de uma ocupação tradicional, mas os seus
membros ficam limitados a esse leque de opções;
‐ a prática geral de endogamia, embora em algumas situações ocorra hipergamia. A
endogamia aplica‐se aos vários sub‐grupos dentro de uma casta, impedindo o casamento
entre os sub‐grupos e, por vezes, impondo uma restrição geográfica adicional, em que só se
pode casar com uma pessoa do mesmo clã (gotra) e do mesmo território;
‐ restrições alimentares e sobre as interacções sociais, definindo quem pode consumir o
quê e de quem o pode aceitar;
‐ segregação física, por exemplo, nas aldeias. Inclui limitações de movimento e acesso,
inclusive para as áreas religiosas e educacionais e serviços básicos, como abastecimento de
água (cfr. Ghurye, 1969: 2‐22).
As particularidades geográficas, históricas, culturais e políticas de Querala.
O estado de Querala foi formado em 1956 pela States Reorganization Act agrupando as
regiões de língua malaiala: o distrito de Malabar, o Estado de Travancore‐Cochim
(excluindo quatro concelhos do sul, que foram fundidos com o Tamil Nadu) e o distrito de
Kasaragod. Com cerca de 33 milhões de habitantes151 e uma densidade populacional de 860
pessoas por Km2, é o Estado da Índia com a menor taxa de crescimento populacional
positiva (3,44%), o maior Índice de Desenvolvimento Humano (0.790), a maior taxa de
literacia (93,91%) e a mais alta esperança de vida (cerca de 77 anos)152. O relatório de 2005
da Transparency International classificava‐o como o Estado indiano com menor índice de
corrupção.
A geografia do território contribui para particularizar Querala: situado no extremo sudoeste
do subcontinente e estendendo‐se por uma faixa costeira com aproximadamente 600 Km
de comprimento e uma largura máxima de cerca de 120 Km, a região é delimitada a Leste
151
Segundo o censo de 2011.
152
Dados do India Human Development Report 2011: Towards Social Inclusion. Institute of Applied
Manpower Research, Planning Commission, Government of India.
66
pelos Gates Ocidentais, uma cordilheira que atinge os 2.695m em Anamudi e que “ajudou a
garantir, em grande medida, o seu isolamento político e cultural do resto do país e também
facilitou seus extensos e activos contactos com os países do mundo exterior”
(Padmanabhan, 2011:6)153. É esta cadeia montanhosa, e as florestas que a cobrem, que
funciona como reservatório aquífero, retendo a chuva das monções e distribuindo‐a por 44
rios que irrigam a planície que se estende entre o seu sopé e o Oceano Índico, recortando a
costa litoral com rias e lagunas. A mera observação de uma fotografia aérea do Sul da Índia
é eloquente: o território de Querala apresenta‐se coberto por uma intensa mancha verde
de vegetação (que se estende para Norte até Goa) em contraste com a relativa aridez da
paisagem do resto do subcontinente.
As condições geográficas e o clima propício determinam que, historicamente como no
presente, a agricultura seja a principal ocupação das populações (cfr. Padmanabhan, 2011:
10). Destas, existem traços da sua ocupação da região que remontam aos períodos
Mesolítico, Neolítico e Megalítico (cfr. Arora e Singh, 1999: 116), sendo que o elemento
racial Negrito é o mais antigo na população de Querala. Os Negritos parecem ter sido
subjugados por Proto‐Australoides que, por sua vez, foram suplantados por Mediterrânicos,
que se acredita constituirem o principal elemento da população dravídica. Os Arianos, que
começaram a colonizar Querala dois ou três séculos antes da era comum, completam a
presente composição racial da população do Estado (cfr. Menon, 2007: 55). O sistema de
estratificação social, pelas suas características de endogamia e segregação, contribuiu para
que ainda hoje se distingam entre a população estes tipos raciais:
Um estudo da história racial de Querala releva portanto dois factos importantes: 1) Os
primeiros habitantes da terra foram aqueles que são agora representados pelas tribos que
vivem uma existência abrigada nas selvas do estado, bem como por algumas das Castas
Agendadas que vivem nas planícies. 2) Ao longo dos séculos, várias raças e povos fizeram
a sua contribuição para a edificação da cultura compósita e pluralista de Querala,
reconhecida ainda hoje pela sua vitalidade (Menon, 2007: 56).154
O maior vínculo identitário que liga as populações do Estado é, pois, a língua, sem prejuízo
da existência de vários dialectos regionais ou tribais.
A língua malaiala pertence à família das línguas dravídicas, junto com o tamil, o canarês (ou
canada) e o telugu, e tem com a língua tamil uma relação muito próxima (cfr. Asher e
Kumari, 1997: XXIV), ficando por apurar qual o tipo de “parentesco”: de “filiação”, tendo‐se
desenvolvido separadamente a partir do séc. VII EC, ou mais tarde, como é sustentado pela
maioria dos historiadores, entre os quais Menon:
153
“has helped to ensure, to some extent, its political and cultural isolation from the rest of the
country and also facilitated its extensive and active contacts with the countries of the outside
world”. Nossa tradução.
154
“A study of the racial history of Kerala thus brings out two salient facts: 1) The earliest inhabitants
of the land were those who are now represented by the hill tribes living a sheltered existence in the
jungle of the state as well as by some of Scheduled Castes living in the plains. 2) Over the centuries
several races and peoples have made their contribution to the building up of the composite and
pluralistic culture of Kerala noted for its vitality even today”. Nossa tradução.
67
O Malaiala como língua distinta tem a sua origem apenas no século nono E.C. Até então as
populações de ambos os lados dos Gates Ocidentais falavam a mesma língua, que
continha em si variações dialectais. O nome ‘Malaiala’ aplicado à língua da população de
Querala é de relativamente recente origem (Menon, 1979: 332).155
Ou de “irmandade”, tendo evoluído do Proto‐Tamil‐Dravídico a partir da pré‐história, a par
do tamil moderno, como o sustenta Govindankutty (1972: 52‐60).
Em qualquer dos casos, ambos os idiomas têm uma relação muito próxima, apesar de
características diferenciadoras muito vincadas. Uma delas, relevante, é que o malaiala
absorveu e integrou, de forma muito liberal, vocabulário externo, mormente do sânscrito,
mas também do inglês, pali, prakrit, urdu, hindi, persa, chinês, árabe, siríaco, português e
holandês (cfr. Asher e Kumari, 1997: XXIV‐ XXV).
O malaiala escreve‐se com recurso ao seu próprio alfabeto, que contém o maior número de
letras entre os alfabetos indianos, de forma a poder representar tanto os sons de raiz
dravídica quanto os de génese sânscrita (cfr. Govindaraju e Setlur, 2009: 126).
Os mais antigos textos literários conhecidos em língua malaiala datam do séc. XI EC, mas
possivelmente terão existido obras escritas nesta língua ainda no séc. IX EC (cfr. Asher e
Kumari, 1997: XXIII). A literatura em língua malaiala, nos mais diversos géneros, vive
contemporaneamente uma fase de notável vigor.
Os vários aspectos da cultura e sociedade queralesas que temos vindo a abordar, ganham
enquadramento à luz da História. É comum organizar a História de Querala em seis
períodos: pré‐história (até ao séc. IV AEC), clássico (ou Era Shagam, de 300 AEC até 500 EC),
medieval inicial (de 500 a 800 EC), medieval médio (do séc. IX ao séc. XIV), medieval tardio
(ou colonial, de 1400 até à independência) e moderno (cfr. Menon, 2008: 642).
Como referimos já, os mais antigos traços de ocupação humana datam do Mesolítico. Os
estudos apontam para que o desenvolvimento de uma cultura e sociedade indígena
tenham começado tão cedo quanto o Paleolítico e continuado pelo Mesolítico, Neolítico e
Megalítico, tendo os primeiros contactos com a civilização do Vale do Indo ocorrido no final
da Idade do Bronze (cfr. Arora e Singh, 1999: 118‐123). Escritos sumérios dão conta da
exportação de especiarias desde o terceiro milénio AEC e os babilónios, assírios, egípcios,
gregos, fenícios, árabes e romanos visitaram a Costa do Malabar em busca delas antes do
início da Era Comum (cfr. Menon, 2007: 57‐58).
O nome “Querala”, sob a forma de “Keralaputra”, aparece pela primeira vez registado
numa das famosas pedras‐edital do imperador Ashoka (274‐237 AEC). A terra de
Keralaputra seria um dos quatro reinos ou impérios a sul do império Maurya, sendo os
outros os Chola, Pandya e Satiyaputra, todos falantes de Proto‐Tamil (cfr. Smith e Jackson,
2008: 166).
155
“Malayalam as a distinct language had its origin only in the ninth century A.D. Till then people on
either side of the Western Ghats spoke the same language, with dialectal variations within itself. The
name ‘Malayalam’ as applied to the language of the people of Kerala is of relatively recent origin”.
Nossa tradução.
68
Keralaputra seria pois o território dos Cheras, a primeira grande dinastia a dominar a
região, na qual as tropas do imperador Ashoka não conseguiram entrar. Entraram nessa
época, não obstante, o budismo e o , que exerceram uma intensa influência até ao séc. VIII
EC (cfr. Menon, 2008: 643).
Pouco se sabe deste período da história de Querala, compreendido entre os sécs. IV AEC e
VI EC, e que é chamado Era Shagam em referência às academias de poetas e estudiosos de
língua tamil, mas a região terá permanecido sob o controlo da dinastia Chera, sempre em
conflito com os seus vizinhos Chola e Pandya. Terá sido a partir do séc. III EC que a
colonização ariana dos brâmanes Namputhiri determinou a síntese do que seria a distinta
identidade dravídico‐brâmanica queralesa (cfr. Padmanabhan, 2011: 5). A motivação para
esta migração foi o potencial agrícola da região:
Os Brâmanes estavam ‘esfomeados por terra’ e migraram para o Sul levando consigo a
cultura Hindu na sua forma embrionária. Mais tarde estabeleceram aldeias orientadas
para a actividade dos templos e começaram a dominar a totalidade da terra. Neste
processo os Namputhiris funcionaram como exploradores e agentes de uma civilização
superior (Padmanabhan, 2011: 43).156
Obscuro é também o período medieval inicial: a dinastia Chera terá sucumbido ao desgaste
causado pelo conflito permanente com os seus vizinhos e a região terá vivido uma fase de
grande instabilidade política.
Um segundo reinado Chera emergiu a partir do séc. IX EC, compreendendo, no seu auge, a
totalidade do território do actual Estado de Querala e uma pequena parte do que é hoje o
país Tamil. O renascimento do domínio Chera pode ser visto como consequência da
colonização bramânica e um sintoma do poder sócio‐político deste grupo étnico (cfr.
Padmanabhan, 2011: 34). Datará desta época a lenda de Parasurama, um sábio guerreiro e
sexto avatar de Vishnu que teria lançado o seu machado ao mar e resgatado todo o
território costeiro de Querala e Kernataka para o doar aos colonos brâmanes. Este mito
assume especial relevância na reivindicação da propriedade do território pelos Namputhiris
(cfr. Menon, 2007: 20‐21).
Durante este período Querala assistiu a um notável desenvolvimento nas artes, na
literatura e no comércio. No Hinduísmo, o movimento Bhakti contribuiu para o declínio e a
supressão do Budismo e do Jainismo, tendo os templos destas religiões sido destruídos ou
convertidos em locais de devoção hinduísta. Uma identidade queralesa, linguisticamente
distinta da Tamil, formou‐se nesta época (cfr. Asher e Kumari, 1997: XXIV). Data de 825 EC a
instituição do calendário Kollam, ainda hoje de uso quotidiano em todo o estado de
Querala (veja‐se anexo “O Calendário Kollam”). No entanto, uma continuada guerra com o
império Chola levou ao declínio do domínio Chera a partir do séc. XI e à sua derrota
156
“The Brahmins were ‘land hungry’ and they migrated to the South carrying with them Hindu
culture in its embryonic form. Later, they established temple oriented villages and began to
dominate the whole land. In this process, the Namputhiris functioned as exploiters and agents of a
higher civilization”. Nossa tradução.
69
definitiva no início do séc. XII (cfr. Nayar, 1974:86), dando lugar a muitos pequenos feudos
em permanente conflito.
Só no séc. XIV um novo reino viria a impor‐se à escala do território: a partir de Venad, no
sul de Querala, e em antecipação de uma possível invasão islâmica (cfr. Padmanabhan,
2011: 65), Ravi Varma Kulashekhara estabeleceu, durante um curto espaço de tempo, a sua
supremacia sobre a totalidade da região. Com a sua morte, na falta de um poder central
forte, o reino voltou a fragmentar‐se em numerosos principados mas quatro dentre estes
vieram a assumir uma função aglutinadora que definiu a organização territorial até à
formação do moderno Estado de Querala: Kolatunadu, a norte, Calicute, no centro‐norte,
Cochim, no centro e Coulão (mais tarde transferido para Travancore), no sul (cfr. Nayar,
1974:89). De facto, toda a época medieval subsequente foi politicamente dominada pelas
disputas entre os Kolathiris (senhores do Norte do Malabar), o Samorim de Calicute, o Rajá
de Cochim e o Rei de Coulão/Travancore, com os árabes, venezianos, turcos, portugueses,
holandeses e outros a tomarem partido em função dos seus próprios interesses comerciais
e estratégicos.
O domínio britânico viria a manter essa divisão política do território: os reinos de Cochim e
Travancore mantiveram uma relativa autonomia, com o estatuto de principados vassalos. O
distrito do Malabar, a norte, foi administrado directamente pelos britânicos, integrado na
presidência de Madras (cfr. Padmanabhan, 2011: 101).
Na história política recente, e após a formação do Estado em 1956, sobressai a vitória do
Partido Comunista da Índia nas primeiras eleições realizadas no novo Estado, em 1957. Para
além da curiosidade de ter sido, à escala mundial, a primeira vez que um partido comunista
chegava ao poder pela via de eleições, as consequências foram de grande monta: logo no
ano seguinte o Governo da União Indiana impôs uma Governação Presidencial para travar a
grande agitação social e nas eleições seguintes, em 1959, o Partido do Congresso Indiano
subiu ao poder157. Não obstante, desde essa época e até aos dias presentes, o Partido
Comunista e o Partido do Congresso têm alternado sistematicamente no governo do
Estado, em resultado de eleições quinquenais. Dessa alternância entre governos
comunistas e socialistas resultaram, a nosso ver, como principais consequências: 1) uma
reforma agrária e redistribuição dos terrenos agrícolas que pôs fim ao sistema feudal de
propriedade fundiária e garantiu terra arável às populações; 2) um forte investimento nas
funções sociais do Estado, mormente na Educação e na Saúde, com os resultados
anteriormente referidos; 3) grande poder dos sindicatos e restrições ao capitalismo e
investimento externo directo.
São estes os factores que determinam, ainda hoje, a economia de Querala.
Cerca de metade da população depende exclusivamente da agricultura como meio de
subsistência. Arroz, coco, chá, café, borracha, caju e as mais variadas especiarias fazem de
157
Para um estudo detalhado das convulsões políticas em Querala desde a independência e até
1969, veja‐se Victor Fic, Kerala: Yenan of India, Rise of Communist Power: 1937 – 1969, (Fic, 1970).
70
Querala o maior produtor agrícola do subcontinente. Cerca de um milhão de pescadores
exerce a sua faina em moldes tradicionais nos cerca de 600 km de costa. 158
A partir dos anos 90 do séc. XX a liberalização da política económica, até aí dominada por
um paradigma socialista, facilitou o investimento e a criação de empresas mas tal não se
traduziu numa industrialização expressiva. O paradoxal modelo de desenvolvimento,
apresentando um elevado índice de desenvolvimento humano e um baixo desenvolvimento
económico resulta, segundo alguns, da forte posição do sector dos serviços (cfr.
Tharamangalam: 2005:1). A nosso ver, no contexto indiano caracterizado pela exploração
de mão‐de‐obra barata, o nível de literacia da população queralesa, a par da força negocial
dos sindicatos, constitui um óbice a um dado modelo de industrialização, do qual o estado
eventualmente não necessitará. De facto têm‐se vindo a encontrar modelos de
desenvolvimento assentes em trabalho qualificado, na área das tecnologias da informação,
por exemplo (cfr. Rajeev, 2007).
Até à independência da Índia, e à proibição da segregação com base no sistema de castas, a
sociedade queralesa pouco tinha mudado em relação ao que Duarte Barbosa tinha
observado em 1515:
Nesta terra do Malabar todos se servem de uma língua que chamam maliama. Os reis
todos são de uma lei e costume pouco mais ou menos, mas a da gente é mui diferente,
porque haveis de saber que, em todo o Malabar, há dezoito leis de gentios naturais, cada
uma apartada das outras, e tanto que, não se tocam uns aos outros, sob pena de morte ou
perdimento de suas fazendas, assim que todos têm leis, costumes e idolatrias sobre si,
como irei declarando (Barbosa, 1946: 120).
A particularidade do sistema de castas em Querala prende‐se com o domínio dos brâmanes
Namputhiri, que classificam todos os restantes Jātis como Sudras. Para Cyriac Pullapilly, o
sistema de estratificação social foi introduzido em Querala, antes do séc. VIII EC, por
brâmanes Namputhiri ou jainistas arianos que, necessitando de protecção, recrutaram
populações tribais159 a quem atribuíram funções de Chátrias mas apenas estatuto de Sudra
158
"State Profile of Kerala 2010‐11"
(http://msmedithrissur.gov.in/secure/admin/writereaddata/Documents/SSFile163011818139.pdf)
Consultado em 25 – 05 – 2015.
159
Tribal e tribo, são termos que usamos por serem incontornáveis neste contexto, embora
conscientes da ambiguidade dos mesmos. As populações ditas “tribais”, ou adivasi, são, na Índia,
consideradas aborígenes e situam‐se fora do sistema de castas. Para a compreensão da noção de
adivasi e discussão da sua tradução por “tribo”, veja‐se Daniel Rycroft e Sangeeta Dasgupta, (eds)
The Politics of Belonging in India: Becoming Adivasi (Rycroft e Dasgupta 2011) e Sanjukta Dasgupta e
Raj Sekhar Basu (eds), Narratives from the Margins: Aspects of Adivasi History in India (Dasgupta e
Basu 2012).
71
(cfr. Pullapilly, 1976: 26‐30). O mito de Parasurama, atrás referido, justifica a pretensão dos
Namputhiri à propriedade do território (cfr. Menon, 2007: 20‐21), pelo que só em raras
ocasiões reconheceram a alguns monarcas locais o estatuto de Chátrias (cfr. Barendse,
2009: 640). Mesmo brâmanes com outras origens eram considerados intocáveis (cfr.
Gough, 1961: 306).
Uma das particularidades do sistema de segregação em Querala era a “poluição à
distância”: não só era impuro o contacto físico com as castas inferiores, também o era a sua
proximidade. As castas impuras estavam impedidas de entrar nos templos ou edifícios da
administração e deviam manter distâncias estipuladas quando circulassem na via pública
(cfr. Uchiyamada, 1995: 48).
Os Nair, o principal Jātis de guerreiros, com particularidades inéditas e autóctone de
Querala, desempenhando funções de Chátrias mas com estatuto de Sudra, que deu origem
à maioria das famílias da realeza local, parece resultar da integração de uma população
tribal no sistema social hinduísta. Segundo James Hastings, são:
Uma casta racial que não deve a sua origem à função, embora, por força do exemplo, a
sua organização seja quase igualmente rígida e sejam geralmente identificados com ofícios
e ocupações particulares. Estas comunidades de casta racial eram originalmente tribos
mas, ao entrarem no invólucro do Hinduísmo, imitaram a organização social Hindu e,
gradualmente, consolidaram‐se como castas (Hastings, 2003: 231).160
Com os restantes Jātis terá ocorrido o mesmo processo: comunidades aborígenes (adivasi)
foram progressivamente integradas no sistema hinduísta e estabeleceram‐se como casta. O
fim da segregação imposta pelo sistema de estratificação, as políticas de discriminação
positiva dirigidas às castas e tribos consideradas desfavorecidas, bem como as alterações
económicas no tecido social introduzidas pelo sistema económico actual, alteraram
significativamente a função do sistema de castas, ao ponto de já não ser um sistema de
estratificação social. Continua, não obstante, a ser um sistema identitário: apesar da não
discriminação, do convívio inter‐castas, dos casamentos exogâmicos, pudemos observar
que cada indivíduo continua a ser, antes de tudo, membro de um Jātis, ostentando essa
identidade, na maior parte das vezes, com indisfarçado orgulho. Para Myron Weiner, “as
castas não estão a desaparecer, nem tão pouco o ‘castismo’ – o uso político da casta – pois
o que está a emergir na Índia é um sistema social e político que institucionaliza e
transforma mas não revoga a casta” (Weiner, 2001: 195).161
Uma instituição social relevante para o nosso estudo é o tharavadu, um modelo de família
alargada que, originalmente, parece ter sido exclusivo dos Nair. O tharavadu é constituído
160
“A race caste who do not owe their origin to function, although, by force of example, their
organization is almost equally rigid, and they are generally identified with particular trades or
occupations. These race caste communities were originally tribes, but on entering the fold of
Hinduism, they imitated the Hindu social organization, and have thus gradually hardened to castes”.
Nossa tradução.
161
“Caste is not disappearing, nor is "casteism" ‐ the political use of caste — for what is emerging in
India is a social and political system which institutionalizes and transforms but does not abolish
caste”. Nossa tradução.
72
pela casa familiar ancestral, pelas suas propriedades fundiárias e pelos indivíduos da família
matrilinear (cfr. Gough, 1954).
Alguns autores sustentam que, segundo evidência na literatura da Era Shangam, os
tharavadus eram a base da administração feudal do império Chera.162 O certo é que a raiz
etimológica de tharavadu reside em thara e que esta era uma unidade de administração,
civil e militar, da época clássica.
O estudo do tharavadu dos Nair, e da sua matrilinearidade, matrilocalidade familiar e
exogamia, foi substancialmente investigado por Kathleen Gough em The Traditional Kinship
System of the Nayars of Malabar (Gough, 1954), por Melinda Moore, em "Symbol and
Meaning in Nayar Marriage Ritual" (Moore, 1988), por Balakrisna Menon P., em Matriliny
and Domestic Morphology: A Study of the Nair Tarawads of Malabar (Menon P., 1998),
entre vários outros, mas não conseguimos encontrar estudos sobre a instituição do
tharavadu noutros Jātis. Kurup refere o tharavadu como modelo de organização familiar
exclusiva dos Nair no séc. XVII (cfr. Kurup, 1997b: 41). Yasushi Uchiyamada introduz um
outro termo, kudumbam, com o sentido de “casa/família”, este sim, passível de ser usado
por outras castas que não os Nair (cfr. Uchiyamada, 1995: 111). Mas Uchiyamada realizou a
maior parte do seu estudo no sul de Querala; a situação observada no Norte Malabar é
diferente: todos os Jātis reclamam a sua organização em tharavadus.
O estabelecimento de um tharavadu supõe que a família possa possuir uma casa e terras e
que tenha uma estrutura matrilinear (marumakkathayam). Os Thiyya, que reclamam uma
categoria elevada no sistema de castas e que tradicionalmente eram pequenos
proprietários ou arrendatários rurais, são de linhagem matrilinear e reivindicam a
ancestralidade dos seus tharavadus, mas não conseguimos encontrar argumentos que
sustentem essa pretensão.
Durante a nossa estadia no território inquirimos sujeitos originários de vários Jātis e, com
excepção dos Namputhiri, de linhagem patrilinear, e que organizam as suas famílias
alargadas em Illams, com regras e estruturação diferentes, todos nos confirmaram a sua
pertença a um tharavadu, independentemente da sua linhagem ser matrilinear ou
patrilinear. A nossa hipótese é a de que um modelo de administração civil e militar feudal
foi progressivamente sendo agregado às famílias que exerciam o poder, ao ponto de se
tornar uma instituição familiar do Jātis dos Nair. Em situações favoráveis, os Thiyya, que
também desempenhavam funções militares, puderam adquirir terrenos e fundar os seus
próprios tharavadus, integrando‐se assim no modelo social dominante. Com o fim do
162
Kathleen Gough entende que o tharavadu resulta da administração da aldeia, thara (cfr. Gough,
1954). Para Kavalam Panikkar, havia uma unidade mais pequena que o thara, o amsa, esta sim a
aldeia, e quatro amsas formavam um thara (cfr. Panikkar, 1918: 257 ‐ 258). Um pequeno número de
tharas formava um desom e, para Eric Miller, o desom é que era a aldeia e a verdadeira base da
estrutura administrativa, definindo as fronteiras territoriais (cfr. Miller, 1954: 411). Um número de
desoms formava um Nadu, governado por um Naduvazhi (cfr. Devi, 1986: 213). Os Naduvazhis eram
a elite da nobreza militar e respondiam directamente ao Rei. Aldeia, povoação, lugar, a polémica
demonstra a dificuldade de traduzir termos em situações históricas de que se conhece pouco.
73
regime feudal e o acesso à propriedade fundiária, indivíduos de outros Jātis seguiram o
exemplo e estabeleceram os seus próprios tharavadus, como forma de integração social.
Os tharavadus têm importância no contexto do estudo do Theyyam, uma vez que a maior
parte dos kavus (bosques sagrados, templos das castas inferiores) pertence a famílias
alargadas e o festival anual (kaliattam) que aí se celebra é uma dádiva oferecida à
comunidade pelo tharavadu hospedeiro. No entanto, a esmagadora maioria dos
tharavadus visitados era uma “instituição”: uma “casa familiar” onde ninguém residia e
que, durante o ano, era apenas frequentada por um curador para tarefas de manutenção
ou, eventualmente, para cerimónias mágicas ou religiosas nos santuários do kavu anexo.
Temos até aqui vindo a tratar da especificidade de Querala nos seus vários aspectos.
Importa ainda referir que o Estado é também caracterizado por uma grande diversidade
das suas regiões. O nosso estudo centra‐se no Norte do Estado, nos distritos de Cananor e
Kasaragod, território habitualmente referido como Norte Malabar e que corresponde
sensivelmente ao histórico Kolatunadu, dos períodos clássico e medieval, e ao distrito do
Malabar da administração britânica, que se particulariza pela tanto geografia como por
pequenas mas significativas diferenças culturais e na organização social.
Malabar, etimologicamente, significa “região de colinas” (mala – colina, vaaram – região) e
essa será a sua principal característica: nestes dois distritos a cordilheira dos Gates
Ocidentais estende‐se até à costa em colinas, outrora densamente florestadas, que
segmentam as planícies aráveis em parcelas de dimensão reduzida, quando comparadas
com a extensão das planícies do centro e sul do Estado (cfr. Jayarajan, 2004).
Historicamente, os Kolathiri, governantes do Kolatunadu, mantiveram sempre um grande
grau de independência, mesmo nas poucas situações em que foram subjugados por outros
poderes regionais (cfr. Menon, 2002: 626). Esta autonomia poderá explicar a divergência de
modelos sociais e culturais. Por exemplo, as regras de casta podem ser, no Norte Malabar,
significativamente diferentes do resto do Estado: os Thiyyas, que no Norte têm uma
linhagem matrilinear, têm noutras partes do estado uma linhagem patrilinear (cfr. Miller,
1954: 411). Outro exemplo pode ser notado no calendário Kollam: na versão usada no
Norte Malabar o ano começa num mês diferente e os meses têm números de dias que
divergem do calendário usado no resto do Estado (veja‐se, anexo, “O Calendário Kollam”).
A tradição do culto dos Theyyams, as divindades e o seu ritual, que passaremos a descrever,
constitui uma das mais características particularidades da região do Norte malabar.
2 – O Theyyam, uma descrição.
Theyyam é uma corruptela do sânscrito Daivan, que significa “divino”, “divindade”, Deus
(cfr. Menon, 1979: 146). É o nome que se dá à encarnação da divindade, em circunstâncias
definidas, num determinado indivíduo. Os Theyyams são objecto de culto no Norte
Malabar, normalmente em kavus, ou bosques sagrados, que são os templos das castas
inferiores, embora as cerimónias possam também ocorrer numa casa familiar, num campo
74
agrícola ou outro local que se pretenda propiciar, mediante a construção de um santuário
temporário, ou pathi (cfr. Kurup, 1973: 53). Os performers do Theyyam pertencem a tribos
ou às castas mais baixas do sistema de estratificação social mas, durante a performance do
ritual, são considerados uma manifestação da divindade e tratados como tal. Não obstante,
o culto dos Theyyams é menosprezado pelas elites, não só por ser uma forma de culto das
classes baixas, mas também por incluir uma série de práticas consideradas “impuras” e
“poluentes” pelas correntes dominantes do hinduísmo, como sejam os sacrifícios de
animais e o consumo e oferenda de bebidas alcoólicas.
O tipo de cerimónia mais frequente, com a participação de Theyyams, é o kaliattam,
literalmente “história dançada”, que acontece anualmente, numa data fixa do calendário
Kollam, em cada um dos kavus que seguem essa tradição. Perumkaliyattam é um grande
festival (perum significa grande, grandioso), com uma periodicidade mais alargada e
definida para cada caso. Theyyam koodal, literalmente, visita do Theyyam, é uma cerimónia
que acontece numa casa privada, com um objectivo ritual específico, por exemplo,
abençoar uma casa nova ou interceder na cura de uma doença. Os kavus podem também
realizar kaliattams extraordinários, se alguém decidir fazer uma oferenda. Chamam‐se a
estes nercha kaliattam.
O culto do Theyyam é referido por missionários e viajantes ingleses do inicio do séc. XX
como “dança do demónio” (cfr. Thurston, 1909: 436 – 438), mas até à segunda metade do
séc. XX não havia nenhuma documentação sobre esta tradição, nem mesmo em língua
malaiala. Em 1973, K.K.N. Kurup, historiador, publicou o primeiro estudo intensivo sobre o
Theyyam, em inglês (Kurup, 1973), seguido de uma monografia (Kurup, 1997a [1977]) em
que aborda um caso de estudo.
A partir dos anos 1990 passa a haver mais produção de documentação, em inglês: John
Freeman, antropólogo, apresenta uma densa e extensa tese no início da década (Freeman,
1991); seguem‐se os estudos de J.J. Pallath, sociólogo (Pallath, 1995), Yasushi Uchiyamada,
antropólogo (Uchiyamada, 1995), Sita Nambiar, estudiosa de sânscrito (Nambiar, 1996) e, já
no séc. XXI, Chandran T.V., estudioso de arte (T.V., 2006), Jarayajan, folclorista (Jayarajan,
2008), Theodore Gabriel, antropólogo (Gabriel, 2010), Dinesan Vadakkiniyil, antropólogo
(Vadakkiniyil, 2010), Mannarakkal Dasan, linguista (Dasan, 2012) e M. P. Damodaran,
antropólogo (Damodaran, 2015), são alguns dos autores dignos de nota.
No entanto, a maior parte destes estudos centra‐se nas questões sociais e políticas que
resultam da especial tessitura gerada pelas relações sociais e de poder no quadro do
Theyyam: a pressão hegemónica (Dasan, 2012; T. V., 2006), a apropriação da tradição por
forças políticas (Ashley, 1993), a conflitualidade social provocada pela apropriação (Ashley e
Holloman, 1982), o poder sagrado (sakti) como reflexo do poder político (Freeman, 1991), a
75
consciência ecológica e espaço (Induchoodan, 1996; Jayarajan, 2004; Uchiyamada, 1995), a
organização social (Ashley 1979), a transgressão (Vadakkiniyil, 2010), a identidade política
das casta inferiores (Damodaran, 2015), entre outros. A documentação que incide
directamente sobre a performance é muito escassa. Acresce ainda uma grande quantidade
de publicações pouco credíveis que necessariamente confundirão o estudioso e para as
quais importa estar sobreavisado.
Como com a maior parte das questões suscitadas pelo Theyyam, é difícil encontrar
consenso entre os estudiosos relativamente à sua origem. Por exemplo, Sita Nambiar
entende que o Theyyam tem origem no Buta Kolla dos povos Tulu, do extremo norte de
Querala e sul de Karnataka (cfr. Nambiar, 1996: 16), posição que Madhava Menon parece
corroborar (cfr. Menon, 2002: 452). Chandran T.V. entende que o Theyyam está ligado ao
início da agricultura e é, essencialmente, um culto de fertilidade (cfr. T.V., 2006: 19 – 23).
Theodore Gabriel entende que o Theyyam é uma prática que precede em muitos séculos o
advento do hinduísmo bramânico e, até, do jainismo e do budismo em Querala. Para ele, as
populações dos tempos arcaicos, que não reconheciam divisões de casta, não construíam
templos ou ícones e preferiam realizar os seus cultos em bosques sagrados e adorar as suas
divindades sob uma forma visualizável de Theyyam (cfr. Gabriel, 2010: 27).
Mas a maior parte dos autores vê o Theyyam como resultante de uma combinação de
elementos arianos e dravídicos. É esse o entendimento de Kurup, pioneiro do estudo do
Theyyam, que se apoia em literatura da Era Shangam para propor a hipótese de que a
origem do Theyyam assente no culto ao deus Murugan, que a tribo indígena dos Velan
propiciava com uma dança ritual conhecida como Velan Veriyattu, enquanto os brâmanes
seguiam uma forma de culto “mais avançada”. A dança dos Velan seria fundida no “culto
dos heróis”, que se realizaria em torno de monumentos megalíticos dedicados aos
combatentes falecidos, e seria depois adoptada no culto de Bhagavati e, devidamente
“bramanizada”, estendida a outras divindades do panteão ariano e local (cfr. Kurup, 1997a
[1977]: 7). Chandran T.V. refuta as propostas de Kurup, sustentando que a integração do
culto dos heróis no Theyyam é tardia, tendo acontecido entre os séc. XVI e XVIII (cfr. T.V.,
2006: 19 – 23). Kurup rejeita a legendária origem bramânica do Theyyam, assente na leitura
do mito de Parasurama que, ao doar o território de Querala aos Brâmanes, teria também
atribuído a algumas castas o direito a realizar o Theyyam. Pelo contrário, sustenta Kurup, a
lenda mostra uma tentativa de trazer uma prática pré‐ariana para a vigilância e controlo
dos brâmanes (cfr. Kurup, 1986: 39).
Para os autores que defendem esta posição, embora contenha muitos elementos da
religião aborígene, só podemos falar de Theyyam quando haja a combinação com
elementos arianos. Resta saber se houve esse tipo de síntese já com o budismo e o
jainismo, a partir do séc. III AEC, como parece reconhecer J. J. Pallath na elaboração dos
mudi de algumas divindades (cfr. Pallath, 1995: 155) e no desenho de kollams (cfr. Pallath,
1995: 159), que ele entende que são manifestamente variações dos mandalas budistas, ou
se a fusão que dá origem ao Theyyam, tal como o conhecemos hoje, se dá apenas com o
hinduísmo bramânico, a partir do séc. III EC.
76
Em 1973, Kurup predizia o fim do Theyyam. Entendia ele que a sua era a última geração de
performers e que o ritual dificilmente sobreviveria (cfr. Kurup, 1973: 41). Não foi essa a
impressão que colhemos na nossa estadia: a maior parte dos kavus que visitámos tinham
sido construídos ou restaurados nos últimos trinta anos, entre os performers contava‐se
grande abundância de jovens, as populações mostravam‐se extremamente entusiastas e
dedicadas ao culto dos Theyyams.
Se há muitas diferenças entre o contexto em que se desenrola o Theyyam hoje e as
descrições que nos chegam de há cerca de trinta anos, de Wayne Asheley (Ashley, 1993) e
Jonh Freeman (Freeman, 1991), por exemplo, o que mais se destaca é a grande abundância
de cerimónias e a fácil acessibilidade às mesmas, nos nossos dias. Os kaliattams são
anunciados na imprensa regional, existem páginas electrónicas na internet com o
calendário dos vários festivais e há muitos kaliattams na região todos os dias. E, sobretudo,
todos são bem‐vindos e a população é muito participante.
Percebe‐se que nos últimos anos a tradição se ajustou às mudanças sociais e culturais, que
cresceu muito a prática do culto dos Theyyams e que o entendimento do Theyyam como
ritual, integrado num específico contexto sagrado, venceu as tendências de folclorização
(Kurup, 1997ª [1977]) e politização (cfr. Ashley, 1993). Na performance que se nos
apresenta hoje, é reconhecível a descrição de Duarte Barbosa, de 1515:
Há nesta terra outra lei de gentios mais baixa e cível a que chamam pancens, que são mui
grandes feiticeiros, não ganham de comer por outra coisa, falam com os demónios
visivelmente, os quais sentem em alguns, fazendo‐lhes dizer coisas espantosas.
Quando algum rei adoece manda chamar estes homens e mulheres, dos quais vêm dez e
doze casas, os melhores oficiais e mais aceitos ao diabo, com suas mulheres e filhos. À
porta do paço armam uma tenda de panos pintados, onde se metem, e dali vão ao
chamado de algum outro senhor, se os há mister; pintam seus corpos de muitas cores,
fazem coroas de papel e outras invenções com muitas flores e ervas; fazem grandes
fogareiros e candeias acesas; trazem atabaques, trombetas e bacias, com que tangem.
Então saiem das tendas dois em dois com suas espadas nuas nas mãos, dando gritos,
fazendo esgares, correndo pelo terreiro, saltando um trás outro; desta maneira andam um
pedaço dando‐se cutiladas, metendo‐se no fogo nus e descalços, até que cansam, e,
então, saiem outros dois ou três, assim homens como moços, cantando, e fazem outro
tanto. As mulheres estão cantando e bradando, e fazendo grande arruido; nisto estão dois
ou três dias de noite e de dia, trabalhando uns com os outros, e fazendo círculos no
terreiro com riscos de almagra de um barro branco; lançam dentro do círculo arroz e
flores vermelhas, põem derredor candeias. E assim andam nisto até que o diabo, por cujo
serviço o fazem, se mete em um deles, e lhes faz dizer de que el‐rei é doente e com que
será são, e, assim lho diz e ele fica mui contente; manda‐lhe dar de comer, dinheiro e
panos, e faz o que lhe manda (Barbosa, 1946: 155 – 156).163
163
Mostrámos esta descrição a vários especialistas, que reconheceram um ritual com Theyyams,
apesar de Duarte Barbosa não o nomear. O Doutor Dinesan Vadakkiniyil disse‐nos que os “pancens”
podem ser de uma casta chamada Pannan ou Paner, que são considerados uma subcasta regional
dos Malayan.
77
A temporada de Theyyam começa no décimo dia do mês Kollam de Thulam164 (última
semana de Outubro) e acaba a meio de Edavam (início de Junho). No distrito de Cananor, a
temporada começa com a performance do Theyyam Vishakandan em Chathapalli Kavu e
encerra com o kaliattam do templo de Kalarivathukkal (cfr. Dasan, 2012: 2).
As divindades podem ser antepassados, heróis lendários, espíritos, animais ou deuses, do
panteão hinduísta ou deidades locais. Ninguém pode dizer ao certo quantos Theyyams
existem; Dasan assegurava em 2012 que seriam cerca de 400 (cfr. Dasan, 2012: 48) mas um
informador credível comunicou‐nos, em 2015, que tinha documentado mais de 600. Alguns
destes serão variações locais, com pequenas alterações no nome ou nos atributos, mas são,
ainda assim entidades distintas. Algumas destas divindades são veneradas apenas por uma
casta, outras são adoradas por toda a população.
Os performers permitidos para cada um dos Theyyam pertencem às castas mais baixas do
sistema, por vezes a tribos (adivasi): Malayan, Vannan, Velan, Pulayan, Anjutan, Munnutan,
Mavilan, Chingathan, Kopalan e Karimpalan, sendo Malayan e Vannan os Jātis com mais
divindades atribuídas (cfr. Damodaram, 2008: 284).165 Não obstante, a realização de um
kaliattam envolve muitos grupos sociais, com funções específicas prescritas, assentes no
sistema feudal de prestação mútua de serviços, jajmani (cfr. Damodaram, 2008: 287).
Haverá um Jātis com a obrigação de fornecer lenha para queimar, outro que providenciará
óleo para queimar, outro providenciará roupas limpas. Há inclusivamente Theyyams que
são antepassados ou heróis muçulmanos e a comunidade islâmica local será chamada a
participar no ritual (cfr. Dasan, 2012: 11).
Embora muitas das divindades sejam femininas, os performers são sempre do sexo
masculino. Uma única excepção é Devakkutti, venerada exclusivamente no templo da ilha
de Thekkumbad a cada dois anos, no dia cinco do mês Dhanu, e onde a divindade é
incorporada numa mulher de uma específica família do Jātis Malayan, que tenha já passado
a menopausa (cfr. Anju, 2014). A excepcionalidade tem gerado muito interesse e alguma
polémica sobre a categorização de Devakkutti como Theyyam.
Apesar de a totalidade dos autores consultados confirmar que todas as operações rituais
são domínio exclusivo do género masculino, uma única vez assistimos a uma senhora a
cumprir funções de auxiliar durante um kaliattam (veja‐se o nosso Diário e Estudo de
Campo, em anexo, na entrada do dia 18 de Janeiro de 2015). Mais tarde soubemos, por um
informador credível, que, na zona sul do distrito de Cananor, as trupes Malayan são sempre
acompanhadas por uma “avó” que executa várias funções de auxiliar ao performer.
A preparação de um kaliattam começa com um mês de antecedência, quando tem lugar no
kavu uma breve cerimónia em que se faz a entrega do adeyalam, ou “sinal”: as partes
164
Veja‐se, em anexo, “O Calendário Kollam”.
165
Theodore Gabriel, acrescenta, como tribos de performers, Chiravar, Paniyans, Adiyans e Kalanatis
(cfr. Gabriel, 2010: 17). Para Jayarajan, os performers são Malayan, Vannan, Velan, Koppalan,
Mavilan, Pulayan, Paravan, Pampathan e Chinkathan (cfr. Jayarajan, 2008:84). Já John
Freeman reporta que um eminente académico, o Dr. M. V. Visnu Nambutiri, lhe terá dito que
existiriam dezasseis a dezoito castas que executam o Theyyam (cfr. Freeman, 1991: 174).
78
envolvidas, comunidades de performers e administradores do templo, assumem os mútuos
compromissos relativos à realização do ritual e os performers recebem um pagamento
simbólico. A negociação segue trâmites complexos: para cada kavu estão prescritas, pela
tradição ou pelo sistema feudal de prestação mútua de serviços, quais as comunidades de
performers que devem executar os rituais; os performers têm direito a uma retribuição
pecuniária cujo valor não está definido a priori; determinar o valor dos honorários dos
performers torna‐se, pois, difícil porque os administradores do templo não podem procurar
os serviços de outros performers a preços mais convenientes; tão‐pouco podem os
performers deixar de realizar um kaliattam que lhes está atribuído por dever de tradição.
A questão económica é, nos dias presentes, uma grande condicionante à actividade:
independentemente da sua dimensão e duração, a realização de um kaliattam constitui
sempre uma despesa muito elevada para ser resolvida pela família que organiza o evento.
O recurso a patrocinadores implicará, na maior parte das vezes, a aceitação de
contrapartidas publicitárias que se imiscuem no ritual. A outra fonte de receitas é
constituída pelas doações dos crentes, que as depositarão em cofres disponíveis junto aos
santuários. Para aumentar estas receitas, há que captar mais assistência, programar a
cerimónia de forma a que as actividades com mais impacto na população coincidam com
horários viáveis à participação. Apercebemo‐nos que esta preocupação tem vindo a
introduzir alterações no culto, nomeadamente na deslocação das performances dos
Theyyams para horários diurnos.
Os performers organizam‐se por trupes familiares. Em algumas circunstâncias, o adeyalam
pode ser dado apenas ao líder da trupe, que se compromete a trazer os performers para
executar os Theyyams, acompanhados por todos os auxiliares necessários: maquilhadores,
músicos, assistentes vários. Um kaliattam necessitará de tantas trupes quantas as castas a
que estão atribuídas as divindades presentes no kavu. Em kaliattams de maior dimensão
podem ser necessárias mais trupes de uma mesma casta, se houver mais divindades a
personificar do que performers qualificados na família. Em todos os casos, os Malayan
podem ser responsabilizados por fazer o acompanhamento musical para os Vannan,
dispensando a trupe Vannan de trazer os seus próprios músicos. Mas os Malayan não farão
de músicos para qualquer outra casta que não os Vannan, e os Vannan não farão de
músicos para os Malayan nem para outros.
Não é suposto os performers do Theyyam serem profissionais e quase todos eles têm
outras ocupações ou empregos. Mas, entre as gerações mais jovens, há muitos performers
para quem a prática do Theyyam é a ocupação principal e, mesmo que haja alguma timidez
em o admitir, são efectivamente performers profissionais. O privilégio da função de
teyyakaran é herdado, do pai ou do tio materno, consoante o Jātis seja patrilinear ou
matrilinear. A aprendizagem dá‐se por imitação e cópia, no seio do grupo familiar e as
crianças começam de tenra idade a frequentar e a participar nas cerimónias (cfr.
Damodaram, 2011).
O kavu é, como já dissemos, o templo das castas baixas, que até há algum tempo estavam
excluídas dos templos bramânicos. O nome significa “bosque sagrado” e muito tem sido
79
escrito sobre a dimensão ecológica dos kavus.166 No Norte Malabar, pelo menos aqueles
que visitámos, têm pouco ou nada de “bosque” e podem com mais rigor ser caracterizados
como “terreiro”. O terreiro, ou arangu, adjacente à casa familiar, ou tharavadu,167 é
quadrangular, delimitado por um muro baixo, por vezes apenas uma fiada de tijolos a
definir o espaço. O chão é, por norma, embostado, tipo de pavimentação muito eficaz pois
é fácil de varrer e não produz poeira.
Em lugar central no terreiro ergue‐se o santuário da divindade principal, rodeado pelos
santuários das restantes divindades com residência no kavu. O tipo de edificação dos
santuários pode ser muito variada, indo desde uma simples “palhota” em esteira de
coqueiro até construções em tijolo com elaboradas decorações de telhado (vyala ou
kimpurusan). Alguns santuários podem ser um nicho ou uma pequena divisão na casa do
tharavadu, com entrada pelo lado do terreiro. Em lugares específicos do arangu existem
altares, ou kalashatharas, pedras para partir cocos, ou thengha kallu, e outras pequenas
estruturas, conformes à necessidade específica do ritual de cada kavu. No terreiro, ou
muito próximo, existirá sempre um poço.
Por trás dos santuários são construídos, normalmente com carácter provisório, em esteira
de coqueiro ou panos de lona ou plástico, os vestiários para os performers, ou aniara, um
para cada casta ou trupe familiar. Em raros casos, em kavus notoriamente ricos, estas
construções são definitivas e feitas em tijolo. Num lugar mais afastado, comummente nas
traseiras do tharavadu, monta‐se uma cozinha e um refeitório ao ar livre. Também nos
kavus mais ricos, estas dispõem de infra‐estruturas permanentes, como lavatórios, fornos
ou bancadas.
Na maior parte dos kavus que visitámos existem árvores sagradas, relacionadas com
algumas das divindades que ali residem. Entidades como Gullikan, Kurthy ou Manhalama,
por exemplo, estão associados a determinados tipos de árvores e não podem habitar um
kavu se aí não houver a sua árvore. Em alguns casos essa árvore estará num recinto
apartado do arangu, por a divindade em questão ser personificada por Jātis
hierarquicamente inferiores aos Malayan e Vannan. Por exemplo, Kurthy, atribuída aos
Velan, ou Manhalamma, exclusiva dos Chingathan (veja‐se o nosso Diário de Estudo de
Campo, em anexo, nas entradas dos dias 18 de Janeiro e 14 de Fevereiro de 2015), têm, por
norma, os seus santuários ligeiramente afastados do arangu. Observámos que, nestas
situações, os Theyyams executados por castas inferiores pisam o arangu apenas para
saudar ritualmente os santuários das divindades aí presentes, executando o seu kaliattam
fora do terreiro. Por sua vez, os performers Vannan e Malayan, quando saúdam os
santuários do kavu, não o fazem nos santuários das divindades protagonizadas pelas castas
inferiores. Neste tipo de situações, quando existem performers de castas inferiores aos
166
Veja‐se, por exemplo, Jayarajan, “Sacred Groves of North Malabar” (Jayarajan, 2004), Yasushi
Uchiyamada, Sacred Grove (Kavu): Ancestral Land of "Landless Agricultural Labourers" In Kerala
(Uchiyamada, 1995), Induchoodan, Ecological Studies on the Sacred Groves of Kerala (Induchoodan,
1996) ou Jithesh Maniyath, “Forests of belief” (Maniyath, 2006).
167
Alguns kavus não são propriedade de um tharavadu mas da comunidade, da “aldeia”. Mesmo
nesses haverá uma casa, que servirá de sede administrativa, arrumação de utensílios, etc.
80
Malayan e Vannan, os seus vestiários, ou aniara, estarão também apartados do recinto
principal do kavu.
Alguns kavus, notoriamente aqueles que são propriedade da comunidade e não de uma
família, e, portanto, geridos por uma comissão eleita, desempenham funções sociais mais
vastas do que as meramente mágico‐religiosas. Poderá então existir nas vizinhanças outro
tipo de equipamentos sociais, sendo o mais frequente a construção de um palco destinado
a espectáculos de teatro, dança e outras actividades culturais, sociais ou políticas. Estes
kavus que são geridos por comissões inserem‐se, portanto, no jogo político‐partidário local,
com o Partido Comunista Indiano – Marxista a destacar‐se no patrocínio ao Theyyam e no
controlo dos kavus comunitários.168
Durante o kaliattam, a assistência será geralmente composta pelos membros da família
alargada e pela população do lugar e das localidades mais próximas. Em templos situados
em cidades ou locais de fácil acessibilidade, a assistência pode, em alguns momentos, ser
estimada por milhares. Em kavus em zonas rurais pode não chegar à centena. Em qualquer
dos casos, a assistência tem uma grande mobilidade, permanecendo no templo durante as
sequências rituais que mais lhe interessam e regressando às suas casas ou às suas
actividades durante outros momentos.
Os idosos e as mulheres da família estarão sentados no alpendre do tharavadu e na área
adjacente à casa. Os restantes assistentes estarão dispostos em volta do arangu, onde por
vezes haverá cadeiras. Manter‐se‐á quase sempre a segregação entre géneros, embora
entre as famílias mais jovens seja frequente os maridos acompanharem as esposas. Por
vezes poderá haver uma zona, com um estrado, toldo e cadeiras, por exemplo, reservada a
convidados especiais.
O kaliattam, em sentido estrito, a “história dançada”, ou theyyattam, dança dos deuses, é o
ritual performativo em que intervêm os Theyyams. Do ponto de vista dos Estudos da
Performance parece‐nos conveniente distinguir o kalliatam de todo o conjunto de
procedimentos, práticos e simbólicos, que lhe estão associados e que se destinam a
conferir‐lhe eficácia. Há uma série de processos, que variam de zona para zona, de kavu
para kavu ou consoante as tradições familiares e as divindades a quem é dedicada a
cerimónia, que não envolvem directamente a performance dos Theyyams. Um crente, ou
participante activo no kaliattam, achará despropositado distinguir entre estes
procedimentos e o theyyattam, mas o facto é que aquelas operações, que são muito
variáveis, dificultam a conveniente descrição da performance dos Theyyams.
168
Tem sido produzida muita literatura sobre este assunto, tanto de carácter analítico ou descritivo
como assumidamente mais comprometida. Veja‐se a segunda parte da tese de Wayne Ashley,
(Ashley, 1993), como exemplo do primeiro tipo e Nissim Mannathukkaren, “The rise of the national‐
popular and its limits: communism and the cultural in Kerala” (Mannathukkaren, 2013) e K. K. N.
Kurup, “Peasantry and the Anti‐Imperialist Struggles in Kerala” (Kurup, 1988), como exemplo de
artigos politicamente mais empenhados.
81
Na maior parte dos kavus haverá algum tipo de prática, conduzida por brâmanes, destinada
a consagrar ou purificar o espaço (cfr. Ashley, 1979: 110) ou a transferir a energia sagrada
(sakti) para os objectos do culto (cfr. Ashley, 1993: 58). Em alguns kavus haverá um ritual
de desenho de um kolam, uma imagem sagrada feita no chão com pó de especiarias e
pigmentos, semelhante ao mandala (cfr. Florent, 2004). Num kavu de Vaniyars, e dedicado
a Muchilott Bhagavathi, os komaram169, participantes activos do ritual, usaram um tempo
de intervalo entre as performances dos Theyyams para fazerem um ritual próprio (veja‐se o
nosso Diário de Estudo de Campo, na entrada de 8 de Fevereiro de 2015). Num templo de
Muthappan, antes do início da performance, as famílias que tinham contribuído com
doações para a realização da cerimónia acenderam pavios, ou naithiri, na lâmpada sagrada,
ou nilavilakku, no que pode ser descrito como um pooja, ou oração hinduísta (veja‐se o
nosso Diário de Estudo de Campo, na entrada de 6 de Fevereiro de 2015). Estes rituais, que
são muito variados, parecem não ter uma relação directa com o ritual do kaliattam e
serem, antes, parte da tradição familiar ou comunitária. Mas, para o crente ou participante
no evento, eles são absolutamente indissociáveis do culto dos Theyyams.
Outros rituais, mais frequentes, estão de tal forma articulados com o theyyattam que só
com dificuldade os podemos dissociar. É o caso do kalasam, um ritual de oferendas que se
centra num pote em barro ou madeira, contendo toddy (vinho de palma) e decorado com
folhas frescas de coqueiro e sementes de betel, e que é o objecto central de uma procissão
que circunvaga os santuários, em certos kavus. O pote só pode ser transportado por um
indivíduo do Jātis Thiyya, uma casta hierarquicamente superior às dos performers de
Theyyam, que é acompanhado por komarams pertencentes ao tharavadu que organiza o
evento. Observámos os teyyakaram, performers do Theyyam, a tomar parte neste ritual,
em diferentes estádios da sua performance, isto é, como thottam e como Theyyam (veja‐se
o nosso Diário de Estudo de Campo, nas entradas de 29 de Janeiro, 7 de Fevereiro e 4 de
Março de 2015). De alguma forma, ficámos com a impressão de que o ritual da kalasa tem
uma origem diferente da do Theyyam e de que a participação dos teyyakaram é aqui
secundária. Mas, para os crentes e participantes, o entrosamento é tal que não farão essa
distinção e considerarão ambos como partes essenciais do kaliattam.
Associado ao ritual de Thee Chamundi, observámos um grupo de jovens que, aproveitando
um enorme braseiro que seria usado de seguida pelo Theyyam, executaram aquilo a que
não hesitamos em classificar de ritual de passagem e iniciação: correram a pés nus sobre o
enorme braseiro (veja‐se o nosso Diário de Estudo de Campo, na entrada de 9 de Março de
2015). Não vimos esta situação em nenhuma outra cerimónia e não encontrámos na
literatura descrições de circunstâncias semelhantes, o que nos leva a considerar que é uma
prática específica desta comunidade, uma tradição que se entranhou no kaliattam deste
kavu, mas que deve ser considerada à margem do culto dos Theyyams.
Mas nem todos os procedimentos que se amalgamam no kaliattam são de natureza ritual
ou simbólica. Em todos os kavus haverá, pelo menos, um jantar oferecido à comunidade
169
Os komaran são referidos por Theodore Gabriel como dançarinos em êxtase que servem como
oráculos (cfr. Gabriel, 2010: 97, nota 54). Esta enunciação confirma as nossas observações.
82
durante o kaliattam. Poderão ser mais refeições, inclusive almoços, se o evento durar
vários dias ou se se tratar de um perumkaliattam, grande festival. A comida aqui servida
não tem nada de sagrado, não se confunde com o prasadam, a comida abençoada que
alguns Theyyams confeccionam e oferecem aos crentes. Trata‐se de uma refeição
tradicional queralesa, a mais simples: uma grande quantidade de arroz, servida numa folha
de bananeira, acompanhada por uma variedade de molhos e temperos, estritamente
vegetariana.170 A medida do sucesso do evento faz‐se pelo número de refeições servidas e
várias vezes ficámos com a impressão de que muitas pessoas vinham ao tharavadu apenas
para jantar e não ficavam, depois, para assistir ao kaliattam. A refeição não é um pretexto
para convívio social: dura entre cinco e sete minutos, o tempo de engolir a enorme
quantidade de arroz, sem falar com os vizinhos das mesas corridas, com homens de um
lado e mulheres do outro. Ao fim desse curto espaço de tempo, o comensal levanta‐se para
dar o lugar a quem aguarda em fila por um lugar. Mesmo em kavus pequenos, são servidas
muitas centenas de refeições. E, para a grande maioria dos crentes, também a refeição é
indissociável do kaliattam.
Nos dias que antecedem uma performance, os teyyakaran, performers do Theyyam, estão
obrigados ao cumprimento de votos, que são variáveis no seu teor e na sua duração,
dependendo do Theyyam que vão executar. Abstinência sexual, condicionamento alimentar
e prática de abluções, são alguns dos aspectos mais comuns destes votos, chamados vritha,
termo que designa também o estado de espírito com que o crente se apresenta no ritual. A
prática de vritha levanta, a nosso ver, um problema no contexto presente: com uma agenda
muito preenchida de rituais a executar, de divindades distintas e que requerem votos
diferentes, não há tempo entre os compromissos para a realização dos votos prescritos.
Isto porque a execução de algumas divindades pode requerer muitos dias de uma dieta
vegetariana e a abstinência do consumo de álcool. Mas outras divindades requererão o
consumo de álcool ou alimentação com carne. Embora verificássemos que os performers
seguiam efectivamente regras de abstinência e comportamento relacionadas com o vritha,
não conseguimos obter respostas satisfatórias a estas questões e ficámos com a impressão
de que os informantes se sentiam pouco confortáveis para falar sobre o assunto.
Os votos de vritha têm a importante função de propiciar o estado de ekacintha,
pensamento único ou pensamento unificado. Embora tenhamos querido aprofundar esta
noção, não nos foi fácil obter informações. Das nossas entrevistas com performers,
apurámos de Balakrishnan Panikkar (veja‐se, em anexo, Entrevistas) que ekacintha é só
pensar no Theyyam, só pensar no que tem a fazer e em mais nada. Consegue‐se pela força
de vontade. Para Rajesh Peruvannan, ekacintha “é estar aqui”, diz batendo com a mão no
peito. Atinge esse estado pela recitação dos mantras associados ao Theyyam.
170
Uma única vez, num Theyyam Koodal, a visita de um Theyyam a uma casa familiar, foi‐nos
oferecido, ao almoço, caril de galinha. Quando questionei o teyyakaran sobre o consumo de carne,
respondeu‐me que a divindade que tinha sido encarnada, Muthappan, não era vegetariana e que
galinha e peixe fazem parte das oferendas que se lhe destinam (veja‐se o nosso Diário de Estudo de
Campo, na entrada de 25 de Fevereiro de 2015).
83
A cerimónia mais comum, e que nos parece a mais tradicional, dura pouco menos de um
dia, começando numa tarde e acabando ao final da manhã do dia seguinte. Kaliattams com
muitos Theyyams podem prolongar‐se por vários dias mas ficámos com a impressão de que
estas cerimónias respondiam mais à necessidade de ostentação de riqueza dos seus
patrocinadores do que à continuidade das tradições familiares.
A meio da tarde as trupes de teyyakarans chegam ao kavu, cada uma trazendo consigo as
vestes, adereços e materiais naturais que irá usar na indumentária dos Theyyams. A partir
desse momento todos os elementos da trupe se ocuparão no preparo das indumentárias,
construídas, na sua maior parte, com ramos, folhagens, flores e fibras vegetais.
A essa hora o templo é já um lugar de grande azáfama, com os vários oficiantes atarefados
nos preparativos para o ritual. No kavu, o celebrante que preside ao ritual é o karmi,
também chamado tantri ou poojari, que não é necessariamente da família que possui o
templo mas será do Jātis Thiyya. O karmi é o único que entra no interior dos santuários. É
auxiliado por parikarmi, assistentes do karmi. O antittiriam é um membro sénior da família
que detém o kavu e a sua função é a de acender as lâmpadas e pavios. Mas é o verdadeiro
patrono do kaliattam, o seu cargo confunde‐se com o de karnore, que significa “tio”, e que
é o líder do tharavadu. Haverá outros tipos de oficiantes, segundo a específica forma de
executar o ritual em cada kavu: komaram, ou dançarino‐oráculo, kalashakaram, ou
portador da kalasa, kutakaran, ou portador de guarda‐sol, entre outros. Os membros do
tharavadu estarão ocupados a acender fogueiras, as mulheres a preparar o jantar, enfim, a
azáfama própria de um grande evento familiar.
É suposto que, à chegada ao kavu, todos os elementos da trupe, bem como os oficiantes e
os membros do tharavadu, recebam o mattu, que consiste numa muda de roupa lavada.
Esta muda de roupa, consistindo em um mundu, uma peça de vestuário usada pelos
homens e que se resume a um pano enrolado à cintura que cobre as pernas até aos
tornozelos,171 seria oferecida por pessoas de uma específica casta hierarquicamente
inferior que, ao entregar roupa lavada e receber roupa suja em troca, contribuiria para a
purificação dos oficiantes. Informantes confirmaram‐nos a realização desta prática, a que
nunca assistimos.
Todo o processo do kaliattam pode ser interpretado como transferência e amplificação de
energia sagrada, sakti. O teyyakaran apresenta‐se num estado de predisposição, vritha,
para acumular, amplificar e transferir essa energia. Vai recebê‐la e acumulá‐la em diversos
estádios ao longo da cerimónia para, no final, a distribuir, em forma de bênçãos, oráculos e
conselhos, à família e aos devotos.
A primeira etapa do kaliattam, em sentido estrito, é o thudangal, ou início (cfr. Gabriel
2010: 33), (cfr. Freeman, 1991: 183). Os performers, vestidos apenas com um mundu
vermelho, dirigem‐se ao santuário da divindade que vão encarnar e, depois de abluções e
de receberem oferendas do karmi, cantam cantos de louvor às divindades, acompanhados
pelos percussionistas (veja‐se o nosso Diário de Estudo de Campo, na entrada de 9 de
171
Noutras partes da Índia, dhoti.
84
Fevereiro de 2015). É o sinal para a comunidade de que a cerimónia vai começar. Mas é
também o início do processo de transferência de energia: o sakti da divindade habita o
santuário, impregnando os objectos que aí estão guardados. Ao cantar louvores à divindade
em frente ao santuário, o performer está a chamar a si o poder sagrado.
Todo o processo segue um ritmo muito calmo e entre as várias fases da performance
podem decorrer pausas de muitas horas. Os músicos e os performers poderão utilizar essas
pausas para dormir, sobre um monte de folhagem ou numa esteira, no aniara ou em
qualquer canto do kavu, mesmo enquanto decorrem fases rituais.
A fase seguinte será o thottam ou o vellattam, dependendo da divindade a venerar:
algumas divindades são propiciadas com thottam, um canto que narra o mito e os feitos da
deidade e que é executado pelo performer, por vezes acompanhado por um percursionista,
por vezes acompanhado por auxiliares, outras vezes a solo. Algumas vezes assistimos a
thottams em que o performer não cantava, manifestamente por não conhecer o canto, e
era substituído por um auxiliar mais idoso. Para o thottam, o teyyakaran apresenta‐se com
uma indumentária “incompleta”: já com alguns elementos do que virá a ser a elaborada
veste do Theyyam mas ainda reconhecível na sua forma humana. Thottam refere‐se tanto
ao canto quanto à fase na transformação do teyyakaran.
Antes do início do thottam, o performer sairá do aniara e rodeará o santuário principal, por
três vezes, no sentido dos ponteiros do relógio, fazendo vénias nas direcções cardinais,
após o que se colocará em frente do santuário, onde receberá do karmi, água para
abluções, dádivas de sândalo, com que pintará várias partes do corpo, arroz cru, que atirará
sobre si e sobre os que o rodeiam e uma folha de betel contendo cinco pavios acessos, que
disporá em frente ao santuário ou sobre um altar vizinho.
Apesar da certeza com que John Freeman descreve estes ritos (cfr. Freeman, 1991: 186 –
ss), as nossas observações mostraram‐nos que a liturgia pode ser muito diferenciada em
distintos kavus.172
Ao longo do thottam haverá ocasião para mais oferendas, de arroz, de sândalo e,
sobretudo, de muito vinho de palma, para a maior parte das divindades. Nestes casos, o
teyyakaran será servido generosamente por uma taça de uso ritual, o kindi, e partilhará
com todos os auxiliares, músicos e membros da sua comitiva (veja‐se o nosso Diário de
Estudo de Campo, em anexo, na entrada de 15 de Janeiro de 2015).
Outras divindades são propiciadas por vellattam, uma forma de dança com elementos
miméticos que relatam partes do mito relacionado. Tal como no thottam, no vellattam o
performer apresenta‐se com uma indumentária mais ligeira, já com elementos do Theyyam
mas em que é ainda reconhecível a forma humana. Também, como no thottam, vellattam
refere‐se tanto à dança em si quanto ao estádio da transformação do performer.
172
Veja‐se a nota nosso Diário de 14 de Fevereiro: “Levanta‐me aqui a questão: no thottam qual é o
momento certo para a recepção da chama? Kunhavue Kurathi recebeu‐a no final da cerimónia,
Manhalama recebeu‐a no início. Será variável? Será indiferente?” (veja‐se o nosso Diário de Estudo
de Campo, em anexo).
85
Antes de iniciar o vellattam, o performer dirige‐se ao santuário, que, eventualmente,
contornará três vezes, onde, eventualmente, haverá abluções e dádivas, mas onde
necessariamente lhe entregarão um pavio aceso sobre uma folha de betel. Esta chama
contém energia divina e é com este pavio que o performer volta ao aniara para fazer a
maquilhagem do vellattam, mais simples do que a do Theyyam. Pintar o rosto e o corpo é
“escrever”, é passar para a forma de escrita o mantra que se recita, e que emana da chama
que foi carregada do sakti da divindade. A indumentária do vellattam é mais completa do
que a do thottam mas ainda sem a grande elaboração do Theyyam. A alguns vellattams são
trazidas as armas do santuário, também impregnadas de sakti, e entregues, ainda no
vestiário, quando esteja completamente vestido. Nessa altura ver‐se‐ão a um espelho e a
primeira fase da transformação está completa.
Outros vellattams receberão as armas em frente ao santuário. Aqui estará instalado um
banco‐altar‐trono, o peedam, onde serão pousados objectos do culto e onde o Theyyam se
sentará em algumas passagens.
A dança é acompanhada por cantos e música e traduz passagens do mito da divindade. A
dança dos vellattams guerreiros, Kathivanoor Veeran ou Gurikkal Theyyam, por exemplo,
comporta uma extensa demonstração de artes marciais, kalari payattu. Outros vellattams
referem‐se a passagens específicas da vida da divindade, com uma identidade diferente da
do Theyyam. Assim o vellatam de Thondachan corresponde ao Theyyam de
Vayanattukulavan, e o de Koodiela ao de Muchilot Bhagabathi, por exemplo. Acontece o
mesmo no thottam de Vishnumurty, um Theyyam que é claramente masculino e que,
enquanto thottam tem uma identidade feminina. Como no thottam, também no vellattam
a maior parte das divindades bebe vinho de palma e, generosamente, distribui pelos seus
companheiros.
Dissemos que o vellattam traduz partes do mito da divindade mas isto não quer dizer que
haja uma narrativa literal do mito; na maior parte das vezes é o assumir do carácter e
comportamentos da divindade e o enquadramento em dadas circunstâncias. Não se fica a
conhecer o mito a partir da performance nem esse conhecimento se mostra necessário
para entender o ritual enquanto performance. De igual modo, o thottam, que narra o mito
ou partes dele, não tem uma função de integração dos assistentes, uma vez que é narrado
em malaiala arcaico, indecifrável para a maioria da população. A aprendizagem da
mitologia ligada ao culto do Theyyam far‐se‐á por outras vias que não o ritual, que se
desenrola com uma grande independência em relação à narrativa mitológica que o
sustenta.
Sendo as performances das diferentes divindades muito diversas, quer no thottam quer no
vellatam, nota‐se uma lógica de continuidade: o performer continua a acumular energia
sagrada, que recebe das armas, da maquilhagem, da bebida, das oferendas, do canto e da
dança.
Ao longo da performance, nas várias fases, o performer irá distribuindo essa energia, em
dádivas, bênçãos e oráculos. Partir cocos, com a espada ritual ou contra uma pedra
específica para esse efeito, é uma forma de oráculo: a posição em que o coco partido cai no
86
chão é um indicador sobre a forma como o ritual está a ser desenvolvido. Também, quando
haja uma grande fogueira, esta será construída colocando grossos troncos ao alto, em
forma de pirâmide. Quando os troncos tiverem ardido o suficiente, a estrutura
desmoronar‐se‐á e a direcção em que os troncos caiam é também indicadora do bom ou
mau andamento da cerimónia. Haverá muitas ofertas de arroz cru, que é lançado sobre os
celebrantes, os santuários e os assistentes, e bênçãos, com imposição de marcas de
sândalo, ou outra substância consagrada, na testa dos crentes, ou pelo toque das armas
rituais sobre a cabeça dos fiéis.
No final do thottam ou do vellattam, o teyyakaran retira‐se para o aniara onde continuará
o processo de transformação em Theyyam. A indumentária será “construída” sobre o
performer, numa elaboração complexa de panos, adereços, ramos, bambus, folhas e flores.
A maquilhagem será “escrita” no corpo e rosto. O aniara é um vestiário mas também uma
zona sagrada do recinto e, estas operações de vestir, adornar e maquilhar desenrolam‐se
num ambiente de decoro, com constantes recitações de mantras e, mais para o fim da
operação, frequentemente acompanhadas por percussão e pela entoação do thottam da
divindade.
O mudi, coroa ornamental do Theyyam, é a última peça a ser colocada. A partir do
momento em que se faça o mudiyettu, a cobertura do Theyyam, a transformação está
completa e a divindade está presente na sua plenitude. O mudiyettu pode ser feito dentro
do aniara, por regra quando o mudi seja de pequenas dimensões, ou em frente ao
santuário da divindade, quando se trata de coroas de grandes dimensões ou muito
elaboradas. Em qualquer dos casos, o teyyakaran estará sentado no seu trono ritual, o
peedam, durante a colocação. No final, olhará para a sua imagem num espelho sagrado,
valkannadi.173 Esse é um momento de grande importância no processo: o performer dá‐se
conta da sua transformação e a divindade reconhece a sua incorporação plena no corpo do
teyyakaran. Esta fase é chamada mukhadarshanam e, normalmente, é seguida de tremuras
corporais e energéticas manifestações de entusiasmo.
Mas é impossível fazer uma descrição geral da performance que sirva a todos os rituais:
cada divindade tem a sua específica performance; em cada kavu existem regras específicas
de comportamento para cada divindade. E, no entanto, o ritual é extremamente rigoroso e
o performer deve executar todas as funções prescritas pela ordem e com a forma
determinada, sob pena de grandes infortúnios, para o teyyakaran e para a comunidade.
Os sacrifícios, quando os haja, são normalmente executados no início da performance do
Theyyam. Mas algumas vezes assistimos a sacrifícios a serem realizados durante a fase de
thottam ou vellattam. A oblação é discreta, não reconhecemos as sanguinárias descrições
com que Ashley abre o seu artigo de 1979 (cfr. Ashley, 1979: 99) ou com que Freeman inicia
173
Os espelhos sagrados tradicionais, em bronze, são cada vez mais raros, assistindo‐se à sua
substituição por espelhos de casa de banho, com moldura em plástico. Explicaram‐nos que os
espelhos em bronze são muito caros por já não haver muitos artesãos capazes de os fazer. Sobre os
espelhos tradicionais e a sua função sagrada, veja‐se S. G. K. Pillai, R. M. Pillai e A. D. Damodaran,
(1992), “Ancient metal‐mirror making in South India”, JOM (Journal of Materials), Volume 44, nº 3,
pp. 38‐40, (Pilai et al. 1992).
87
a sua tese (cfr. Freeman, 1991: 64). Os animais sacrificados são exclusivamente galos, nunca
assistimos à imolação de cabras ou bodes. Normalmente cada divindade sacrifica um único
galo, embora, por vezes, a divindade principal do kavu possa sacrificar dois ou três. O
animal é decapitado, usando as mãos, a espada ritual ou, raras vezes, usando os dentes. A
cabeça do animal será colocada sobre um altar ardente, kothirithattu, e o corpo será
deixado a estrebuchar, durante pouco tempo, no terreiro. Depois, os auxiliares do
teyyakaran levarão o corpo do galo para o aniara, como parte do pagamento que é devido
ao performer. 174
O guião da performance dependerá pois de qual é a divindade e, em certa parte, do que é
esperado dessa divindade nesse templo. Mas os Theyyams caracterizam‐se por actos
extraordinários, com que confirmam a excepcionalidade da sua natureza divina. Há, então,
Theyyams que caminham sobre o fogo, outros que se deitam sobre enormes braseiros, os
que caminham sobre andas, os que trepam às árvores, os que usam tochas ardentes junto
ao corpo. A dança é uma constante, como o é o ritmo intenso dos tambores, chenda. A
performance será sempre muito energética, deslumbrante, frequentemente
desconcertante, e aumentará de ritmo até atingir um clímax, chamado uranjattom.
A performance do Theyyam no arangu pode durar entre uma a várias horas. Alguns
Theyyams preparam prasadam, comida sagrada que é variável consoante as divindades.
Quando o haja, a organização fará distribuir o prasadam pela assistência.
Finda a dança do Theyyam, este passará a distribuir bênção, primeiro aos oficiantes e
membros do tharavad, depois à assistência, tendo em atenção as prioridades hierárquicas,
na família como entre a assistência, saudando sempre primeiro os de mais elevado nível
social ou de função. Também a forma de abençoar pode ser muito diferenciada. Lançar ou
dar punhados de arroz cru, pousar a arma ritual sobre a cabeça do crente, oferecer flores
retiradas do toucado ou da indumentária do Theyyam, marcar a testa com pigmentos
vários, são exemplos de diferentes modos de abençoar. Os fiéis retribuem ao Theyyam em
dinheiro, dando‐lhe notas, a maior parte das vezes de cinco ou dez rupias, um valor muito
baixo. Quando o Theyyam recebe uma nota de maior valor, muitas vezes colocá‐la‐á na
testa, presa no toucado. Algumas vezes também, o Theyyam pega numa quantia desse
dinheiro e oferece‐o aos seus auxiliares.
Findas as bênçãos, o Theyyam dirige‐se à casa do tharavadu, onde é recebido por toda a
família. Aí se dirigirá, de novo seguindo a hierarquia de funções familiares, fazendo
oráculos, predizendo benesses para a família, assegurando a sua protecção. Responderá a
questões que lhe sejam colocadas; sobre negócios, questões económicas, casamentos,
épocas propícias para esta ou aquela actividade… enfim, a toda e qualquer questão terá o
Theyyam que responder. O que requer um bom conhecimento da família hospedeira, das
tradições e práticas, do contexto social local e, sobretudo, uma grande capacidade de
174
Em Dermal Tharavadu (Veja‐se o nosso Diário de Estudo de Campo, am anexo, na entrada de 18
de Janeiro de 2015), contaram‐nos que antes do vellattam de Kandanar Kelan, os caçadores iam para
a floresta e voltavam com as suas presas. Uma das peças de carne era queimada no fogo e o ritual
Theyyam incluía a ingestão desta carne. Uma informação a requerer confirmação, que abriria novas
possibilidades à investigação.
88
improvisação. Ainda que o performer seja de uma casta inferior à dos donos da casa, o
Theyyam falar‐lhes‐á com a autoridade que a sua condição divina lhe confere, podendo, por
vezes, usar um tom ríspido ou fazer avaliações severas sobre os indivíduos que o
consultam. A única coisa que não será admitida é o desconhecimento, ou desrespeito, da
linhagem, função e título de cada membro do tharavadu e dos patrocinadores do festival.
Essas situações podem gerar tumultos, com o Theyyam a deixar de ser tratado como
divindade, com claro prejuízo da cerimónia e do bem‐estar familiar e social.
Depois da visita ao tharavadu, alguns Theyyams, sobretudo o Theyyam principal do kavu,
sentar‐se‐ão no terreiro, frente ao seu santuário, e receberão os crentes, dando bênçãos,
conselhos e oráculos. Esta actividade pode demorar várias horas porque, por norma há
muitos crentes que querem contactar directamente com as divindades.
No fim das suas funções, o Theyyam fará as saudações de quem se despede, visitando os
diferentes santuários, de novo o tharavadu, saudando os vários oficiantes, por ordem de
importância. Entregará então as armas sagradas ao karmi, o sacerdote, que as guardará no
interior do santuário.
Depois, sentado sobre o peedam, ou trono‐altar, normalmente em frente ao santuário da
divindade, é‐lhe retirado o mudi, a coroa. Esta operação, que se chama mudiyerakku, marca
o fim da presença da divindade. O teyyakaran poderá então voltar a saudar os celebrantes,
mas desta volta fá‐lo‐á com a humildade que compete ao seu nível de casta.
3 – Impressões.
O Estudo de Campo que realizámos no distrito de Cananor foi, já o dissemos, demasiado
breve. Houve necessidade de estabelecer e fortalecer relações de confiança, perceber o
contexto e conhecer minimamente a cultura e o vocabulário utilizado. O nosso
desconhecimento da língua malaiala constituiu um óbice, em parte compensado pela
simpatia e boa vontade dos informantes. A documentação disponível sobre a temática
enfoca em particularidades muito específicas, que pouco contribuem para o nosso
propósito. Despendemos tempo e atenção com publicações que, à medida que íamos
construindo a nossa compreensão da matéria, se revelaram completamente erróneas. Num
ambiente algo contaminado pela actividade turística, tivemos que nos precaver contra
informações falsas. Assumimos, como princípio, não pagar por informações e não recorrer
aos serviços de guias. Procurámos sempre cruzar as informações recolhidas, confirmando‐
as com diversos informantes julgados credíveis. Apesar dos bons resultados obtidos, por
força da brevidade do estudo, não nos sentimos neste capítulo em condições de enunciar
conclusões, mas antes, de relatar impressões.
89
Neste estudo, relembremos, procuramos corroboração. E a primeira confirmação de que
nos damos conta é respeitante à nossa escolha das propostas de Victor Turner e de uma
antropologia da performance como fio condutor da nossa observação. Damo‐nos conta
que, ao colocarmos o enfoque da nossa observação nos aspectos performativos do ritual,
privilegiando o processo em detrimento da estrutura, este se nos apresenta segundo uma
perspectiva diferente das que, até ao presente, mereceram estudos aprofundados.
A primeira impressão a registar é a de que a performance do Theyyam, no seu ritmo, na sua
dinâmica, na sua partitura de comportamentos, se desenrola com grande independência da
narrativa mitológica que supostamente lhe dá corpo. Por vezes suficientemente afastada
para se perceber que contradiz o contexto cultural, social e religioso em que se insere: o
culto dos Theyyams é composto por dramas que denunciam a injustiça, o mal‐estar, a
perversidade, e que celebram o heroísmo, a abundância, a vida. A Dança dos Deuses é um
manifesto contra o sistema de estratificação social, contra o modelo de propriedade
fundiária e a estrutura económica, contra a condição de exploração das mulheres, contra o
sistema político. É uma demonstração de fisicalidade, de habilidade marcial, de coragem e
de transgressão.
E no entanto, o culto está completamente assimilado e enquadrado pela estrutura social e
política. São as famílias da realeza tradicional que, ainda hoje, patrocinam os eventos e
confirmam os performers, atribuindo títulos honoríficos aos que se destacam pelas suas
capacidades performativas. São os sacerdotes brâmanes que consagram os espaços de
culto ou, de alguma forma, transferem a energia sagrada para ser usada no ritual. E,
sobretudo, por apropriação e interpolação (cfr. Dasan, 2010), por entrelaçamento (cfr. T.V.,
2006) ou incorporação (cfr. Vadakkiniyil, 2010), a estrutura social, política e religiosa foi
modificando o culto dos Theyyams, conformando‐o, assimilando‐o. O culto dos Theyyams
faz parte dessa grande “síntese religiosa […] sob a égide hegemónica da doutrina sânscrítica
Bramânica” (Freeman, 1991:93).175
Não nos deteremos sobre os processos que visaram transformar o ritual numa forma de
arte popular, nem sobre os que pretenderam instrumentalizar o Theyyam como meio de
propaganda política ou para animação turística.176 A prática do Theyyam como culto
pareceu‐nos suficientemente vigorosa para ser considerada por si só, e foi nela que
detectámos as características que convinham ao nosso estudo.
Chamou‐nos a atenção a frequente ausência de performatividade no ritual. No capítulo
precedente definimos performance como acção estruturada e plenamente motivada de um
ou vários indivíduos, executada num espaço e tempo definidos, com um carácter extra‐
quotidiano e orientada, deliberada ou espontaneamente, para a obtenção de um resultado
ou reacção por parte dos participantes ou de outros indivíduos presentes no mesmo espaço
175
“religious synthesis […] under the hegemonic umbrella of Sanskritic Brahminical doctrine”. Nossa
tradução.
176
Performers e informadores credíveis fizeram‐nos saber que, quando são contratados para fazer
animação de eventos diversos, os teyyakarn misturam roupas e improvisam maquilhagens, de forma
a que o resultado não seja realmente um Theyyam concreto mas uma imitação para consumo
turístico.
90
e tempo. No primeiro capítulo mostrámos como uma acção motivada se traduz por
impulsões físicas que percorrem o corpo a partir do seu centro. Foi por essa bitola que
apreciámos os rituais em que participámos e nos demos conta que, em grande número
deles, havia uma quase total ausência de performance, que os performers se limitavam a
estar visíveis e a esboçar gestos, movimentos periféricos, que não resultavam de uma
motivação. Sem que isso parecesse perturbar a assistência.
Uma conversação tida com um informante pode ser esclarecedora: queixávamo‐nos de, nos
dias precedentes, termos visto “homens vestidos de Theyyam” mas não termos visto
autênticos Theyyams; o nosso informante teve muita dificuldade em perceber a nossa
queixa e, quando finalmente nos entendeu, expressou veementemente a sua crença de que
um homem, com o direito hereditário de fazer um Theyyam, devidamente vestido e
maquilhado e tendo realizado as acções prescritas, é um Theyyam. Do performer, o crente
espera que cumpra o ritual segundo a “estrutura” definida. Da divindade, espera bênçãos,
protecção e benefícios futuros, que expressamente pedirá ao Theyyam.
Uma outra situação reveladora: quando visitámos o templo de Muthappan em
Parassinikadavu, um local em que está muito avançada a “sanscritização” do culto daquela
divindade,177 a performance dos Theyyams foi muito sintetizada, não durando mais de
trinta minutos, e foi assistida por cerca de 120 pessoas.178 Depois de a breve componente
performativa ter terminado, e quando os dois Theyyams distribuíam bênção e ouviam
pedidos de benesses, os crentes foram chegando, a fila dos que esperavam a sua vez foi‐se
alongando e ficámos a saber que continuaria a crescer ao longo de toda a manhã (veja‐se o
nosso Diário de Estudo de Campo, em anexo, na entrada do dia 4 de Março de 2015). Estes
crentes não vieram para assistir à performance, vieram tratar dos seus assuntos
directamente com a divindade. Nestas condições, a performance torna‐se desnecessária: a
crença substitui qualquer acção.
177
Para a compreensão do fenómeno religioso de Muthappan, veja‐se Theodore Gabriel, (2010),
Playing God, Belief and Ritual in the Muttappan Cult of North Malabar (Gabriel, 2010) e Dinesan
Vadakkiniyil, “Images of Transgression: Teyyam in Malabar” (Vadakkiniyil, 2010).
178
Será interessante comparar as nossas notas de quatro situações observadas do culto de
Muthappan, a 9 de Janeiro, 6 de Fevereiro, 25 de Fevereiro e 4 de Março de 2015, respectivamente
(veja‐se o nosso Diário de Estudo de Campo, em anexo). É curiosa a comparação das impressões
recolhidas em ambientes mais familiares e rurais e outras em ambientes mais institucionalizados.
91
seus papéis, o ‘sentido’ ou ‘significado’ atribuído às coisas” (Turner, 1987: 54), 179 funciona
no sentido de contrariar o fluxo e prevenir os seus efeitos anti‐estruturais.
No caso do culto dos Theyyams a fronteira não é tão invisível: detectam‐se “camadas” de
estruturação que se sobrepõem a um culto, que foi outrora de povos dravídicos, e que o
normativizam, bramanizando‐o, sanscritizando‐o e remetendo‐o para o domínio da religião
dominante. Detectam‐se as interferências da estrutura do ritual com o sentido de
interromper ou restringir o estado de limiaridade da performance.
Observámos algumas vezes como os performers, enquanto dispensavam bênçãos, eram
tomados pelo que podemos descrever como uma urgência performativa e, interrompendo
a distribuição de bênçãos, voltavam ao terreiro para dançar. É a urgência de acumular o
sakti, de não deixar que o fluxo se disperse. É a urgência do que um performer, Rajesh
Peruvannan, nos descreveu como kalasa,180 a partitura do Theyyam (veja‐se, em anexo,
Entrevista com Rajesh Peruvannan). Para Rajesh, o sakti vem com a transformação. É um
poder interior que localiza no peito. A chama recebida no santuário não tem grande
importância para ele: “sim, tem a ver com sakti. Mas o sakti é do Theyyam e acontece com
a transformação e com a kalasa, as acções do Theyyam”.
Se a crença dispensa a performance não haverá fluxo, não haverá sakti, não se estabelecerá
communitas, a participação será meramente presencial.
Referimo‐nos a cerimónias em que reconhecemos uma ausência de performatividade. Mas
não foi em todas as a que assistimos que tal se verificou. Com a experiência,
intuitivamente, começámos a optar por assistir a cerimónias em locais mais afastados dos
centros urbanos, em zonas mais rurais e, preferencialmente, em contextos familiares. Aí, na
maior parte das vezes, reconhecemos, na organicidade do movimento, no ritmo físico e
vocal, nas impulsões fisícas que percorrem o corpo, a instituição de um fluxo performativo
muito intenso. De um modo geral, pudemos reconhecer sempre o estabelecimento de uma
communitas no seio da trupe de performers. Muitas vezes, quando os membros da família
eram chamados a uma participação mais intensa, por exemplo, a conduzir o Theyyam na
passagem sobre uma fogueira, ou quando houvesse participação de komarams, essa
communitas parecia estender‐se, temporariamente, a esses oficiantes presentes no
arangu. Mas não reconhecemos na assistência qualquer tipo de “experiência
transformativa que vai à raiz do ser de cada pessoa e encontra nessa raiz algo de
profundamente comum e compartilhado” (Turner, 1969: 138).181 A assistência, pareceu‐
nos, vinha à cerimónia para receber uma específica benesse e, muitas das vezes, vinha
179
“invisible boundary […] around activity which defines participants, their roles, the “sense” or
“meaning” ascribed to those things”. Nossa tradução.
180
Kalasa é também o pote sagrado com oferendas, referido supra (pág. 80). Apesar dos nossos
esforços não conseguimos obter mais informações sobre a noção de kalasa nos termos em que foi
usada por este informante.
181
“transformative experience that goes to the root of each person’s being and finds in that root
something profoundly communal and shared”. Nossa tradução.
92
apenas no momento de pedir a dádiva, dispensando a participação nas partes
performativas do ritual.
Para os teyyakaran, no entanto, estas ocasiões de uma performatividade extra‐quotidiana
são oportunidades para operar em si próprios uma transformação, dessubjectivar‐se, deixar
de ser “Eu”. Não conseguimos obter muitas informações sobre esta transformação, os seus
processos ou técnicas. Mas colhemos uma declaração muito valiosa, ao mesmo tempo
singular e reveladora, de um performer idoso e muito respeitado, Balakrishnan Panikkar
(veja‐se, em anexo, Entrevistas). Dizia‐nos que, enquanto estava num estado de
pensamento unificado, ekacintha, só pensava no Theyyam. Logo, se não pensa em si
próprio, “Balakrishnan não existe”, deixa de ser, durante a presença do Theyyam.
Tentemos aplicar ao Theyyam a distinção, proposta por Grotowski, entre linhagens artificial
e orgânica. Enquanto performance, dançada e actuada, o Theyyam apresenta‐se‐nos
claramente como um ritual da linhagem orgânica, assente no corpo e nas suas impulsões
vitais, estimulado por desafios e perigos, carnal. Já a estrutura do ritual, na sua elaboração
litúrgica, se nos apresenta como pertencente à linhagem artificial, assente num complexo
sistema de signos e operando através da sua leitura. A tensão que verificamos aqui, entre a
componente orgânica e a artificial, é a mesma que reconhecemos entre os elementos que
propiciam o fluxo e os que reforçam o enquadramento, eventualmente, entre elementos
de origem dravídica e de origem ariana.
No capítulo anterior (veja‐se, supra, Cap. II.4), vimos a distinção, estabelecida por
Malinowski, entre magia e religião. Nesses termos, e perante as nossas observações, temos
dúvidas em categorizar o culto dos Theyyams como ritual mágico ou religioso, parecendo‐
nos que haja oscilações. O kaliattam não tem por fim um objectivo, se considerarmos que
venerar as divindades é um fim em si. É um ritual que celebra a abundância, a fertilidade,
os antepassados e a protecção divina. Todavia, cada participante individual da cerimónia
tem um pedido que pretende ver concedido pelo Theyyam, determinando a sua
participação em função de um fim utilitário. Mas a cerimónia não é conduzida em função
dessas expectativas, não há práticas no sentido de concretizar as solicitações dos crentes. O
kaliattam caracteriza‐se, então, como ritual religioso. Em circunstâncias dadas, o Theyyam
pode visitar uma casa, no que se chama theyyam koodal, para um fim específico: curar uma
doença, propiciar um parto, por exemplo. Nestes casos, será claramente executado um
ritual mágico.
As impressões que aqui se relatam parecem permitir considerar que um estudo mais
aprofundado do culto dos Theyyams, seguindo a orientação de uma etnografia da
performance, deveria possibilitar esclarecer os processos de transformação,
dessubjectivação e fluxo, as suas técnicas e modos, bem como as motivações que presidem
à estruturação e enquadramento do ritual, e as formas por que os elementos anti‐
estruturais e de transgressão são reintegrados ou incorporados na elaborada estrutura
social, política, económica e religiosa do Norte Malabar.
93
Resultados.
Nesta secção enunciamos os resultados que extraímos da presente investigação,
procuramos estabelecer ligações entre os dois modelos performativos tão distintos e
apontamos as insuficiências do estudo e os desenvolvimentos desejáveis. Hesitámos em
intitulá‐la “Conclusões”: ao longo da dissertação recorremos a definições provisórias e
enunciados operativos, não pudemos aprofundar alguns aspectos que seriam requeridos,
deixámos de lado pontos de vista que seriam contributivos. Mas, poderá alguma vez ser
conclusivo um trabalho deste tipo?
Averiguar a possibilidade da categorização da Arte como Veículo como modelo de ritual,
esse é o propósito que enforma o presente trabalho. A exequibilidade da classificação
começa por se verificar quando se desloca para o domínio do questionamento ontológico
um conjunto de problemáticas suscitadas pela Arte como Veículo e que alguns autores têm
associado à “espiritualidade” de Jerzy Grotowski. Se se entender que a conexão com a
“espiritualidade” resulta do léxico e das referências de Grotowski e se se valorizar a
afirmação da condição laica dos seus propósitos, o discurso e a prática de Grotowski
poderão melhor ser entendidos num domínio de reflexão sobre o Ser.
Para podermos entender o processo proposto pela Arte como Veículo para a produção de
rituais laicos, importa ter em conta a distinção que Grotowski propõe entre linhagens
artificial e orgânica nos géneros estéticos performativos e no ritual. A Arte como Veículo
pertence à linhagem orgânica, em que a performance reside no próprio actuante, na sua
complexidade vital. Para a poder concretizar, o performer terá que se predispor, numa
passiva disponibilidade, a um estado de unicidade antropológica, a não estar dividido. A via
proposta pode ser descrita como uma subjectivação aglutinadora do corpo: o sujeito que
age resulta da conjunção do “corpo”, da “cabeça” e do “coração” e a sua acção, física e
autêntica, resulta de motivações subjectivas.
Esta identificação entre o actuante e a acção permite‐nos entender a performance na Arte
como Veículo como autopoiética e este modo de organização abre caminho para uma nova
dimensão ontológica em que o Ser resulta da combinação entre quem faz e o que é feito.
Note‐se que, para obter estes resultados, tivemos que usar uma definição muito estrita de
performance. Reafirmamos que a definição é operativa e não pretende desautorizar outras
definições mais avisadas. Mas um entendimento “de largo espectro” da performance não
94
nos permitiria encontrar sentido na Arte como Veículo nem, como pretendemos, relacioná‐
la com um ritual tradicional cuja performance é da linhagem orgânica.
As características do presente trabalho não nos permitiram desenvolver alguns aspectos
que poderiam reforçar os resultados observados. Entre eles destacamos: uma discussão
crítica aprofundada sobre a questão da “espiritualidade” em Grotowski e o carácter
ontológico das suas motivações, uma definição mais rigorosa da distinção entre linhagens
artificial e orgânica na performance e no ritual e uma investigação desenvolvida das
consequências da categorização de autopoiética à performance na Arte como Veículo.
O estudo de um ritual tradicional, o culto dos Theyyams, ocorre com o sentido de procurar
corroboração para a categorização da Arte como Veículo como ritual.
Para a apreciação dos rituais do culto dos Theyyams teria sido muito importante poder
estudar alguns aspectos da performance de um modo mais concreto: aprender a cantar,
pelo menos, um thottam e explorar as suas qualidades vibratórias e orgânicas; perceber as
técnicas presentes e entender as consequências que o canto produz no sujeito que canta.
Estudar os ritmos e as qualidades vibratórias da percussão que acompanha as várias fases
do ritual. Investigar os efeitos do ritmo e da ressonância sonora sobre o actuante e sobre os
participantes. Perceber a coreografia da dança dos Theyyams e a técnica de equilíbrio que
lhe preside. Indagar sobre a técnica de recitação de mantras, aprendê‐la e ajuizar sobre o
seu impacto no performer, são alguns exemplos de investigações que se requereriam para
uma produção de resultados mais conclusivos. Que poderíamos então confrontar com a
procura de Grotowski com respeito à objectividade dos elementos performativos rituais.
Os dados de que dispomos sobre o Theyyam são escassos mas, ainda assim, suficientes
para poder caracterizar a performance do ritual como pertencente à linhagem orgânica.
Mas, para tal, temos que operar uma distinção conceptual entre elementos performativos e
elementos de enquadramento, dentro do próprio ritual. Recorremos a noções propostas
por Victor Turner para realizar esta operação, que nos vai permitir avançar na análise do
Theyyam e na sua confrontação com a Arte como Veículo: o conceito de fluxo, introduzido
por Mihaly Czikszentmihalyi e apropriado por Turner, e enquadramento (frame), que
Turner vai buscar a Gregory Bateson e Erving Goffman.
Observámos que os elementos performativos do Theyyam, cantos, danças, recitações e
acções, quando plenamente executados, isto é, quando seja possível identificar uma
motivação através de impulsões físicas que percorrem o corpo ou pelas qualidades
vibratórias da voz, entre outras, propiciam um estado de fluxo que pode ser descrito como
a fusão da acção e da consciência, uma sensação holística que está presente quando se age
com um envolvimento total, “um estado em que a acção sucede à acção de acordo com
uma lógica interna, aparentemente sem necessidade de intervenção da nossa parte”
(Turner, 1987: 54‐55)182.
182
“a state in which action follows action according to an internal logic, with no apparent need for
intervention on our part”. Nossa tradução.
95
Mas ficámos com a impressão de que, no Theyyam, os elementos estruturantes, isto é, a
“invisível fronteira […] em volta da actividade e que define os participantes, os seus papéis,
o ‘sentido’ ou ‘significado’ atribuído às coisas contidas dentro da fronteira e os elementos
abrangidos pelo ambiente da actividade” (Turner, 1987: 54)183, não só cumpriam a função
de interromper o fluxo como, à luz da nossa experiência da performatividade, se
afiguravam como “alienígenas” à performance. Reportámos essa impressão, a requerer
uma posterior investigação, de que os elementos performativos, no culto dos Theyyams,
emanam de um complexo cultural dravídico, ou aborígene, e que os elementos de
enquadramento, que conferem significado ao ritual, detêm um cunho cultural
marcadamente hinduísta e bramânico. Se tentarmos aplicar a distinção entre linhagens
proposta por Grotowski, diríamos que o culto dos Theyyams é de linhagem híbrida:
orgânico na sua performance e artificial na sua liturgia.
Com estas impressões, confrontemos o processo performativo proposto pela Arte como
Veículo. Antes de mais, aceite‐se que, à falta de dados mais precisos sobre os elementos
performativos do Theyyam, o processo de instauração de um fluxo de acção, com a
consequente dessubjectivação do actuante e a instauração de um estado de consciência
alterado, parece estabelecer um paralelo entre o culto dos Theyyams e a Arte como
Veículo. O performer da Arte como Veículo apresenta‐se com uma “passiva
disponibilidade” (Grotowski, 1975 [1968]: 35) que lhe permite aderir à acção, aceitando o
seu corpo como aglutinador da sua subjectividade. O teyyakaran, pela prática de votos,
está purificado (vritha) e com o pensamento unificado (ekacintha). O processo que, com
Grotowski, descrevemos como entrega à acção, fluxo de impulsões físicas, ou energia, e
estado de consciência vigilante, foi‐nos descrito pelos teyyakaran como “transformação”,
recepção de “energia sagrada” (sakti) e execução da “partitura do Theyyam” (kalasa).
Quanto à alteração da percepção do “Eu”, os performers tradicionais tiveram muita
dificuldade em discutir as nossas questões. É simples e unânime que quem executa o ritual
é a divindade, um “Outro”, não o performer. Também é fácil apurar que, no final do ritual,
o performer tem plena consciência do que foi feito pela divindade. Mas, onde esteve o “Eu”
durante esse tempo? Balakrishnan Panikkar, para quem a “transformação” é mental,
responde francamente a esta pergunta: “se a minha mente só pensa no Theyyam
(ekacintha), não pensa em Balakrishnan, não existe Balakrishnan”.184 Também para
perceber que alteração ocorre na percepção do “Eu” do teyyakaran, durante o ritual do
Theyyam, precisaríamos de mais dados mas, no restante das descrições dos dois processos
performativos, eles parecem assemelhar‐se.
Onde verificamos uma grande diferença é na constituição dos elementos de
enquadramento: se no ritual religioso o enquadramento interrompe o fluxo e introduz
183
“invisible boundary […] around activity which defines participants, their roles, the “sense” or
“meaning” ascribed to those things included within the boundary, and the elements within the
environment of the activity”. Nossa tradução.
184
Veja‐se, em anexo, “Entrevistas”.
96
elementos que parecem estranhos à performance, já na Arte como Veículo a “estrutura”185
é construída em função do próprio actuante, propondo‐lhe desafios, permitindo‐lhe definir
o sentido e os significados em prol das suas necessidades performativas. A estrutura resulta
de uma montagem, que reúne as partituras dos vários co‐actuantes, integrando objectos e
elementos de uso performativo, cuja sede é a percepção do performer. A contradição entre
o fluxo e o enquadramento é resolvida pela conjunção de opostos. O enquadramento no
ritual do Theyyam é feito com recurso a elementos litúrgicos que se subordinam a
princípios e práticas da religião, confere sentido e significado ao ritual, não só para os
celebrantes mas, sobretudo, para os crentes participantes.
Ou seja, se na Arte como Veículo o enquadramento respeita uma economia performativa,
gerindo os ritmos e encadeamentos de acções em função dos requisitos da própria
performance, que assim se torna autopoiética. No ritual dos Theyyams o enquadramento
subordina‐se à economia social, gerindo o ritual em função de necessidades sociais,
políticas, religiosas e económicas. Poderá isto interferir com a eficácia da performance?
Decerto prejudica a sua performatividade: o Theyyam é por demais solicitado a cumprir
actos litúrgicos e funções sociais que apercebemos como cortes bruscos na performance.
Mas a eficácia do ritual do Theyyam depende justamente destes elementos de
enquadramento e a avaliação da eficácia compete aos participantes não activos: a família
que acolhe o kaliattam, os crentes, a população, querem, sobretudo, que sejam cumpridos
os actos litúrgicos e propiciatórios. Na Arte como Veículo a eficácia da performance é
avaliada pelo performer em função do resultado ou reacção que provoca no próprio e nos
seus co‐actuantes.
Os performers co‐actuantes, um conjunto de regras de ética e decoro profissional, um
espaço físico, tempo e alguns meios: isto será quase tudo o que, na Arte como Veículo,
poderá ser apontado com “Estrutura”, no sentido que lhe dão Turner, Bateson e Goffman.
Não faz sentido olhar para a Arte como Veículo pelo prisma de “drama social”, uma vez que
a componente social foi reduzida ao mínimo. Já o culto dos Theyyams comporta em si uma
densa e complexa dramaturgia social, em que as tragédias, comédias, dramas épicos e
burlescos são narrativas de tensões, conflitos e aspirações dos diferentes grupos
intervenientes. Neste trabalho, esboçámos o contexto em que se desenrolam esses
dramas, os elementos da estrutura social, económica, política e religiosa que os
determinam. Mas precisaríamos de um aprofundado estudo sobre os mitos fundadores de
cada divindade, de identificar as fases do drama social que cada um desses mitos revela, de
investigar como a performance confirma ou contradiz o mito. Essa investigação não
contribuiria directamente para o propósito do presente trabalho, pelo que não a
encetámos aqui, mas poderia mostrar‐se reveladora da estruturação da sociedade e do
processo de formação do ritual, pelo que é um desenvolvimento desejável.
Ambas as performances estabelecem um estado de limiaridade intenso, “no meio e entre”.
O performer da Arte como Veículo é um pontifex, estabelece uma ponte entre o ser e o
185
O termo “estrutura” em Grotowski corresponde ao “enquadramento” de Turner, Bateson e
Goffman. Mais à frente abordaremos o que Turner chama “estrutura” e como se apresenta na Arte
como Veículo.
97
fazer, entre as impulsões vitais e o rigor da estrutura performativa. O teyyakaran cruza
continuamente um limiar entre o quotidiano e o sagrado, entre o fluxo da performance e o
enquadramento da liturgia. Os limiares transpõem‐se, transitam‐se, e é num estado de
transe que os performers de ambos os modelos se encontram durante a execução da
performance. Lamentamos que as características desta investigação não nos tenham
possibilitado, na senda de Turner, realizar um estudo aprofundado das conclusões da
Biogenética Estrutural no que respeita aos estados alterados de consciência. Tal estudo é
não só desejável, como um requisito fundamental para um desenvolvimento futuro das
questões aqui propostas.
O estado de limiaridade propicia a emergência de communitas. Na Arte como Veículo ela é
existencial, ou espontânea, e restrita apenas ao grupo de co‐actuantes. No culto dos
Theyyams presenciámos a ocorrência de communitas espontânea entre os membros da
trupe de performers, extensível aos membros da família hospedeira em certas situações.
Mas nunca observámos sinais da instauração dessa experiência transformativa entre a
assistência. O que nos leva a propor que, na análise do ritual, sejam considerados
diferentes graus de participação: a participação no ritual não implica necessariamente a
participação nas componentes performativa e litúrgica do ritual, pelo que a participação
dos performers e celebrantes será forçosamente mais intensa do que a dos restantes
participantes.
Ambos os modelos performativos comportam um discurso e uma prática relacionada com a
noção de sacrifício. Na Arte como Veículo a noção de sacrifício diz respeito a um esforço
para eliminar hábitos, vencer obstáculos, retirar a “máscara social”. Traduz‐se por “dádiva”
e “entrega” mas não é uma dádiva ou entrega a alguém. O performer sacrifica‐se à acção, é
a ela que se entrega e fá‐lo deliberadamente para obter um resultado, uma contrapartida:
uma percepção enriquecida do “Eu”, realização. Necessitaríamos de mais dados sobre o
sacrifício ritual no culto dos Theyyams. Apesar de o contexto económico presente ser mais
favorável, os relatos de há trinta anos dão‐nos uma imagem de maior generosidade nas
dádivas vivas que eram sacrificadas às divindades. Ficámos com a impressão de que há,
presentemente, alguma timidez relativamente à performance do sacrifício. E não podemos
tão‐pouco observá‐lo pelo radical ponto de vista de René Girard: só podemos apurar que,
para os performers, um galo sacrificado é comida, que depois será levada para casa,
cozinhada e consumida com a família e amigos.
Também ambos os modelos advogam e praticam uma educação por transmissão directa e
por imitação e cópia. Para Grotowski, o conhecimento adquire‐se “pela iniciação ou pelo
roubo”, mas sempre numa relação directa entre o professor e o aluno: as questões técnicas
que definem as artes performativas não são transmissíveis de outra forma. Dos teyyakaran,
relata‐nos M.P. Damodaran, num estudo pioneiro sobre o ensino das técnicas do Theyyam,
“Family Makes A Master: A Case Study of the Malayans of North Malabar, Kerala”
(Damodaran, 2011), que a aprendizagem se faz por imitação e cópia, no seio da estrutura
social alargada e sob a supervisão dos membros seniores. Mas, no Theyyam, o direito a
exercer a actividade performativa é hereditário, exclusivo de casta, clã e família. A Arte
98
como Veículo será acessível a todos e Grotowski foi um veemente defensor da
acessibilidade social da actividade artística, de uma “Cultura Activa” (Grotowski, 1997b).
O culto dos Theyyams tem sido “fonte geradora da cultura e da estrutura” (Turner, 1987:
158)186. Associado à transição social, apercebemo‐nos da sua dinâmica: na construção de
novos kavus (templos das castas baixas), na introdução de novos elementos litúrgicos e
rituais, na expansão territorial de alguns cultos. Arriscamos ainda aqui uma hipótese, a
requerer confirmação, de que, com base na distinção entre linhagens orgânica e artificial e
entre elementos performativos e de enquadramento, serão os elementos de
enquadramento, artificiais, simbólicos, relacionados com a estrutura social, os que
apresentam mais dinamismo, sendo os elementos performativos, orgânicos, compostos por
danças, cantos, recitações e ritmos, menos dinâmicos e mais conservadores.
Os rituais performativos produzidos segundo o modelo da Arte como Veículo são opus,
produções datadas e de autoria reconhecida, são individuais e existirão apenas enquanto o
performer o deseje.
A Arte como Veículo serve “para vencermos as nossas fronteiras, para ultrapassarmos os
nossos limites, para enchermos o nosso vazio – para nos realizarmos (Grotowski,
1975[1968]: 19). O culto dos Theyyams propicia as divindades, os antepassados, os heróis
míticos, procurando obter protecção, abundância de recursos e bem‐estar social. A Arte
como Veículo proporciona rituais laicos e autopoiéticos, o culto dos Theyyams produz
rituais religiosos.
Com estes dados, estamos em condições de, em resposta à questão inicial, afirmar que a
Arte como Veículo é um modelo particular para a produção de rituais performativos. As
obras produzidas segundo este modelo assentam num entendimento antropologicamente
monista do indivíduo, a quem é solicitado que se liberte dos condicionalismos sociais e
culturais para se disponibilizar para a realização de um acto culminante, que responde a
motivações resultantes de uma memória ancestral que se manifesta hic et nunc,
requerendo um especial tipo de presença. Na operação performativa, o indivíduo funde‐se
na acção e transita entre a sua densidade corpórea e uma consciência mais subtil, num
processo a que Grotowski chama de “consciência vigilante” e que, com Turner, podemos
classificar de fluxo e limiaridade e da que emerge um estado espontâneo de communitas
entre os co‐actuantes, com uma especial percepção do “Outro”.
Os rituais que daí resultam inscrevem‐se numa linhagem orgânica, inscrevem‐se no corpo
de quem o executa e reduzem a sua dependência em relação à componente simbólica,
afirmando‐se como questionamentos práticos que se cumprem pela performance;
categorizam‐se como autopoiéticos, traduzem uma fusão entre quem faz e o que faz,
reduzem a interferência de elementos estruturais. Os elementos de enquadramento, a
“estrutura” no sentido que lhe dá Grotowski, são construídos em função do performer e da
performance.
186
“the generating source of culture and structure”. Nossa tradução.
99
Estes rituais dispensam a presença de espectadores, testemunhas ou participantes não
performativos. Não há qualquer impedimento a que sejam testemunhados, mas não deverá
a “estrutura” (enquadramento, em Turner) ser construída em função do espectador, sob
pena de trazer para o ritual elementos da estrutura social e cultural do espectador, que não
são desejáveis.
De igual forma, a exigência de laicidade não é apenas um argumento que nos permite fazer
transitar este tipo de rituais da esfera do sagrado para o domínio ontológico laico: a
introdução de elementos religiosos, simbólicos e culturais, teria consequências na definição
dos elementos de enquadramento, afectando a condição autopoiética da performance e a
sua eficácia.
Os rituais produzidos segundo o modelo da Arte como Veículo, sendo laicos, colocam as
mesmas questões que os rituais sagrados tradicionais: o que é o “essencial”? O que
precede e excede a existência? O que é o Ser? Que ser sou? Em suma, questões que tanto
podem ser religiosas como laicas, são ontológicas.
Quando confrontado com um ritual tradicional, o modelo da Arte como Veículo encontra
corroboração nos aspectos performativos essenciais, assumindo vantagens em alguns dos
aspectos em que diverge, como seja, uma mais eficaz montagem dos elementos de
enquadramento, uma maior acessibilidade à prática do ritual e uma maior independência
face à estrutura social e cultural.
Sustentamos que a Arte como Veículo é um particular modelo de construção de rituais
performativos laicos.
100
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109
ANEXOS
Diário de Estudo de Campo
Diário de Estudo de Campo
DIÁRIO DE ESTUDO DE CAMPO
Neste diário registo as impressões e informações recolhidas durante o Estudo de
Campo da tradição ritual do Theyyam. Nesta viagem de estudo tenho a companhia
da minha esposa, Madina Ziganshina, que será decerto uma preciosa mais‐valia,
para o meu estudo e para a minha felicidade. Junto com as minhas impressões
registarei decerto também as impressões que ela me for transmitindo nas
discussões que conto que venhamos a ter.
31 de Dezembro de 2014 / 15 de Dhanu de 11901 / Quarta‐feira
Partida de Aveiro em comboio às 19.30. Temos uma longa viagem pela frente:
chegaremos a Cochim, primeira etapa de “aclimatação”, no dia 2 de Janeiro cerca
das 16.00. Se descontarmos as cinco horas e meia de diferença horária, serão cerca
de trinta e nove horas em trânsito. Aproveito a viagem para reler sobre
metodologia, aí incluídas as indicações sobre o Diário de Estudo de Campo:
“The daily recording of fieldnotes is important to the ethnographic process so that
various components will not be forgotten. This process of recording fieldnotes
facilitates the iterative process in ethnography, as questions emerge from the
findings that are then viewed as important, and can help in the formulation of new
or supplemental questions that furthers the assurance of emically valid products.
The continuous recording of fieldnotes is also important because of the
ethnographer’s perspective that his or her product (findings) is interpretive, and
those interpretations will often change over the duration of the fieldwork process.
This occurs because early interpretations are often colored by paradigms that the
ethnographer brings to the field. As he or she goes through the process of emically
learning the cultural system being studied, they often find that later interpretations
of the same phenomena differ from those earlier interpretations” [Whitehead, Tony
(2005), ‘Basic Classical Ethnographic Research Methods’, Cultural Ecology of Health
and Care, Maryland: University of Maryland, pp.8].
1 de Janeiro de 2015 / 16 de Dhanu de 1190 / Quinta‐feira
Em trânsito.
1
O calendário Malaiala será da maior importância no Estudo de Campo. Uso a versão
utilizada no Norte de Querala que, neste mês de Dhanu (Sagitário), difere em um dia da
versão usada no Sul do Estado. No mês seguinte, Makaram, os dois calendários acertam,
uma vez que o mês de Dhanu tem, no Sul, um dia a mais do que no Norte.
1
Diário de Estudo de Campo
2 de Janeiro de 2015 / 17 de Dhanu de 1190 / Sexta‐feira
Chegada a Cochim.
3 de Janeiro de 2015 / 18 de Dhanu de 1190 / Sábado
Dia de descanso em Cochim.
4 de Janeiro de 2015 / 19 de Dhanu de 1190 / Domingo
Visita à Bienal de Arte de Cochim.
5 de Janeiro de 2015 / 20 de Dhanu de 1190 / Segunda‐feira
Continuação da visita à Bienal de Arte de Cochim.
6 de Janeiro de 2015 / 21 de Dhanu de 1190 / Terça‐feira
Viagem de comboio em 2ª classe sem ar condicionado, de Ernakullam para
Payyanur. 07.40 ‐» 15.00, se o horário for cumprido; 7 horas e 20 minutos para
cerca de 300 km, dá uma média de 40Km / hora. Do comboio avistámos o Kerala
Kalamandalam (academia de kathakaly), bastante longe da estação de Thrissur e
próximo da estação de Shoranur Junction.
Chegada a Payyanur. O condutor que Santhosh enviou para nos buscar à estação
não conhecia o caminho e demorou o dobro do tempo necessário para nos levar a
Vengara. Na última parte do percurso fui eu a indicar‐lhe o caminho. Cobrou‐me
800 INR, que é cerca de três vezes o preço normal.
Vengara. A casa de Santhosh está em fase final de obras. Um palácio de mármore e
decorações elaboradas, cheio de pó de cimento e a cheirar a tinta.
Santhosh Thayale Purayil é o mentor de Travel Kannur, uma organização / empresa
que tem por objectivo promover o turismo cultural em torno do culto do Theyyam
e, ao mesmo tempo, promover o estudo desta prática ritual. Os propósitos de
Santhosh são por vezes contraditórios: por um lado o Theyyam é a sua religião e
entende que não se deve ganhar dinheiro com esta prática. Por outro lado há meia
dúzia de guias / condutores / intérpretes que ganham a vida a levar turistas às
cerimónias de Theyyam. De qualquer das formas, Santhosh é um patrocinador do
meu Estudo de Campo, uma vez que me cede gratuitamente a sua casa (Santhosh
vive no Dubai, onde é alto quadro numa empresa comercial de capitais indianos) e
será um dos meus mais fiáveis informantes.
Fomos recebidos pelo sr. Narayanan, sogro de Santhosh. Estamos excelentemente
instalados mas ainda não temos ligação à Internet. Passou um elefante junto à casa;
é o elefante do templo vizinho onde esta noite haverá uma cerimónia. Diálogo com
2
Diário de Estudo de Campo
Narayanan: “haviam de ir ver uma cerimónia ao templo, é muito bonita”; “já tentei
visitar o templo, há dois anos atrás. O sacerdote foi muito atencioso, ofereceu‐nos
chá mas não nos deixou entrar no templo por não sermos hindus”; “hã, pois…”;
“não faz mal, percebo que as pessoas precisem de privacidade para praticar a sua
religião”; “pois no templo não deixam entrar qualquer um; não é como no
Theyyam; aí querem muita gente; mas o Theyyam é só entretenimento”.
Conheci os vizinhos da frente Pradeep e Saridha. Dei uma volta pelo bairro a
cumprimentar vizinhos que já conheço: Chandu e a esposa, Manju e Shimna.
Vengara é uma aldeia dispersa, contida numa circunferência com um raio de
aproximadamente 1 ½ Km. Pequenos aglomerados com 30 a 50 fogos alternam com
campos cultivados, plantações de coqueiros e bosques em estado selvagem. O
quadrante sudoeste é ocupado pela comunidade islâmica, principalmente
vocacionada para o comércio e os ofícios artesanais. Os restantes, cerca de 70 % da
população, são hinduístas. Na zona norte vive um pequeno núcleo de pescadores
que exerce a sua faina no rio Perumba. O restante da aldeia é povoado por
agricultores ou filhos de agricultores que trabalham na administração pública ou
nos serviços nas cidades próximas. Como no resto de Querala, verifica‐se uma forte
emigração para os países do Golfo Pérsico e por todo o lado se encontram sinais de
enriquecimento rápido.
Vengara será o epicentro do meu Estudo de Campo que se desenvolverá
sensivelmente no triângulo definido por Cananor, 25 km a sul, Thaliparamba, 15 km
a leste e Payyanur, 12 km a norte (ver Imagem 1).
7 de Janeiro de 2015 / 22 de Dhanu de 1190 / Quarta‐feira
Encontro com Giorgio De Martino.
Informações recolhidas:
‐ O Prof. Dinesan Vadakkiniyil vive em Payyanur. É amigo de Santhosh; foi colega de
trabalho de Narayanan antes de ir estudar para a Noruega.
‐ Pedir opiniões sobre Buta Kola (Kernataka).
‐ Sítio Pré‐histórico, Kasaragod ou Waianad, megalítico ou rupestre (perguntar na
Academia de folklore). Possível informação em Kurup.
‐ KV Nambiar, entrevista por Pallai, nos anexos da tese.
8 de Janeiro de 2015 / 23 de Dhanu de 1190 / Quinta‐feira
Aluguer de uma scooter.
Entrevista semi‐estruturada com Shyju Valsan Kaniyal, no Mykeel Sri
Karimkuttysastham Temple, Pulimparamba (ver anexo Entrevistas).
3
Diário de Estudo de Campo
9 de Janeiro de 2015 / 24 de Dhanu de 1190 / Sexta‐feira
Visita à Kerala Folklore Academy. Fomos recebidos pelo Secretário, sr. Pradeep
Kumar. O Museu confirma a minha má impressão anterior: uma colecção de fotos
velhas e mal contextualizadas, manequins a imitar Theyyams de cuja fidelidade
tenho dúvidas, o pessoal não tem competência para explicar a fraca colecção. Um
pró‐forma institucional cumprido.
Observação / Participação na cerimónia semanal do Railway Sree Muthappan
Kshethram, Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _09_/ _Jan_/ 2015 Nome do Evento_____Cerimónia Semanal (sexta‐feira)
Tipologia ______oração_(pooja)____ Duração ____45 minutos____________
Localidade ___Cananor__ Templo _______Railway Sree Muthappan Kshethram_
Comunidade do Templo _o templo é propriedade dos caminhos‐de‐ferro indianos e
é administrado por membros da comunidade local (não de um especifico jati ou
tharavadu). Muthappan tem o direito de construir os seus templos nos terrenos do
caminho‐de‐ferro no Norte de Querala por uma história passada com um
administrador dos caminhos‐de‐ferro que se tornou devoto.___________________
Comunidade dos performers _________Vannan ____________________________
Horário da observação __________15.30________ / ______16.45______________
Entidades encarnadas __ Sree Muthappan__________________________________
Aspectos da organização da cerimónia
Estrutura
e do ritual
4
Diário de Estudo de Campo
ao ritual
Decoro Comportamento dos assistentes / Bom
comunidade
Constância Permanência ou inconstância da Constante
assistência nas diversas fases do ritual e atenta
Emotividade Participação emotiva / espiritual / Fervorosa,
simbólica ou mera participação Crente
folclórica
Cummunitas Importância dos laços comunitários Sem
dados
Avaliação da performance ritual
Performance
Decoro Dos performers, músicos e Bom
acompanhantes
Música Qualidade rítmica, timbre, intensidade, Muito
performatividade bom
Thottam Qualidade do canto, transe e (2)
performatividade
Acompanha/º Adequação do comportamento dos Bom
auxiliares
Pré‐ Aquecimento, decoro, predisposição Sem
performance geral para a performance dados
Theyyam Desempenho performativo de cada um Muito
dos theyyams presentes, incluindo bom
transe
Oficiante (3) Madayan (um oficiante co‐performer Muito
característico do culto de Muthappan) bom
5
Diário de Estudo de Campo
6
Diário de Estudo de Campo
Em frente à entrada do recinto há um quadrado de terreno mais elevado, com cerca
de 8m de lado, murado e encerrado por um gradeamento. No interior desde
quadrado crescem duas árvores de grande porte. A sul deste recinto há mais um
santuário.
Cheguei ao templo com antecedência para observar o local e me preparar para
observar e participar na cerimónia. Esta começou pontualmente à hora
determinada e durou aprox. 45 min. após os quais Muthappan sentado no seu
peedam (banco / trono / altar) distribuiu bênçãos a duas filas de crentes (uma de
homens, outra de mulheres).
A cerimónia estava bem organizada, em termos de pontualidade, decoro, fluidez do
ritual, etc. Os participantes não ultrapassaram as 80 pessoas e mantiveram‐se
separados em dois grupos, não muito rígidos, com as mulheres a norte e os homens
a sul. Os participantes vieram claramente cumprir um acto religioso e não observar
folclore, mantendo‐se atentos e seguindo o ritual com uma atitude fervorosa.
Em termos performativos a cerimónia pareceu‐me muito boa, com os músicos
concentrados e muito energéticos.
A dança de Muthappan foi energética e rigorosa. Mas a dança do co‐actuante a
quem Muthappan entregou as armas e em quem, de alguma forma, delegou
funções, foi muito mais energética e evidenciou sinais de extasia religiosa.
A característica geral é a de uma cerimónia concentrada, sintetizada, que decorre
com grande fluidez e onde não há necessidades logísticas ou preparações que
interrompam a performance.
Hipótese de investigação: o peso colocado à cintura ‘potencia’ a dinâmica corporal.
O centro de gravidade fica reforçado pelo peso da veste, estimulam‐se pulsões. A
verificar.
10 de Janeiro de 2015 / 25 de Dhanu de 1190 / Sábado
Dia de escrita, planificação e organização. Constato a necessidade de aprofundar o
conhecimento do calendário malaiala para compreender as datas e horas das
cerimónias.
Às 22.00 partimos para uma observação participante.
11 de Janeiro de 2015 / 26 de Dhanu de 1190 / Domingo
Chegámos à aldeia de Vellakkeel cerca das 22.40 do dia 10 de Janeiro. Os habitantes
mostraram‐se logo extremamente hospitaleiros, convidaram‐me a estacionar a
scooter no pátio de uma casa privada e indicaram‐me o caminho para o kavu.
No kavu fomos imediatamente recebidos por um membro do tharavadu que se
colocou à nossa disposição para tudo de que necessitássemos. O líder do tharavadu
7
Diário de Estudo de Campo
veio depois cumprimentar‐nos. Era um cavalheiro idoso e distinto, com um inglês
fluente e elegante, com uma extrema simpatia e humildade carismáticas.
Estava já a decorrer o thottam de Kathivannur Veeram, a entidade a quem é
dedicado o templo.
Observação / Participação parcial na cerimónia anual de Chera – Vellakkeel
Theeyakandi Kathivanoor Veeran Temple
Ficha de Observação de Evento
Data _11_/ _Jan_/ 2015
Tipologia ______Kaliyattam______ Duração ___aprox. 20 horas (2º informantes)_
Localidade _Vellakkeel_ Templo Chera – Vellakkeel Theeyakandi Kathivanoor
Veeran _
Comunidade do Templo ___Thiyya___(tharavadu:_Theeyankandi)______________
Comunidade dos performers _____________Vannan e Malayan________________
Horário da observação __________22.45 (10 Jan)_ / _____07.30 (11 Jan)________
Entidades encarnadas __ Gurukkal Theyyam________________________________
____________________ _ Kathivanoor Veeran ______________________________
____________________ _ Gulikan Theyyam (2º informantes, não observado)_____
Aspectos da organização da cerimónia
Estrutura
e do ritual
8
Diário de Estudo de Campo
ao ritual
Decoro Comportamento dos assistentes / Bom
comunidade
Constância Permanência ou inconstância da Não
assistência nas diversas fases do ritual Constante
mas
atenta
Emotividade Participação emotiva / espiritual / Fervorosa,
simbólica ou mera participação Crente
folclórica
Cummunitas Importância dos laços comunitários Sem
dados
Avaliação da performance ritual
Performance
Decoro Dos performers, músicos e Bom
acompanhantes
Música Qualidade rítmica, timbre, intensidade, Muito
performatividade bom
Thottam Qualidade do canto, transe e Bom (3)
performatividade
Acompanha/º Adequação do comportamento dos Bom
auxiliares
Pré‐ Aquecimento, decoro, predisposição Bom
performance geral para a performance
Theyyam Desempenho performativo de cada um
dos theyyams presentes, incluindo
transe
Gurukkal Descrição abaixo Bom
Theyyam
9
Diário de Estudo de Campo
10
Diário de Estudo de Campo
com uma coluna no centro. Este altar é o templo das entidades ‘Veeran’, os
guerreiros. ‘Chera’ no nome do templo refere‐se a um pequeno lago para abluções
mas não vi nenhum nas imediações.
Quando chegámos ao kavu, cerca das 22.40, o thottam de Kathivanoor Veeran tinha
já começado; estava a ser executado pelo performer (teyyakaran) e mais dois
cantores / percussionistas, ambos idosos.
Às 00.30 estes dois cantores / percussionistas retiraram‐se e foram substituídos por
quatro percussionistas (chendakkaran, tocador de chenda, tambor) e um tocador de
cheena kool, um instrumento de sopro (ver Imagem 50), todos jovens. O teyyakaran
parou de cantar e dedicou‐se a beber grandes quantidades de álcool, que ofereceu
também aos músicos. Começou a dançar. Um assistente ilumina‐o com um archote
de olachootu.
O performer parecia‐me pouco ágil e demasiado idoso; pensei que tivesse cerca de
40 anos. Mais tarde informaram‐me que tem mais de 65 anos e é um teyyakaran
muito apreciado na região. Considerada a idade do performer, a sua desenvoltura
foi afinal notável. Desde o início da minha observação o teyyakaran manteve o
madelam (tamborete) à cintura. Às 00.45 retira o madelam e dança com escudo e
churika (espada curta). Os organizadores diminuem a iluminação eléctrica,
prevalece a luz dos chootu.
Os assistentes estão atentos, poucos ou nenhuns fazem fotos.
O teyyakaran executa alguns movimentos de grande agilidade: por exemplo,
acocorado, “salta à corda” brandindo a churika junto ao solo e passando‐a por baixo
dos pés quando salta. Dança com o chicote de tiras metálicas.
Às 01.35, em frente ao santuário principal, entrega as armas a Gurukkal Theyyam
que encadeia imediatamente. Voltam a ligar a iluminação eléctrica.
O teyyakaran idoso retirou‐se para o vestiário; pude entrever que estava prostrado
no chão, exausto. Uma nota: enquanto durou o thottam antes descrito, o
teyyakaran que iria executar Gurukkal Theyyam foi maquilhado e vestido junto ao
santuário mais pequeno, à vista de quem estava presente (veja‐se Imagem 3);
mostrava algum desconforto. O teyyakaran mais idoso, que executaria Kathivanoor
Veeran, foi vestido e maquilhado sempre no vestiário.
Depois de receber as armas, Gurukkal Theyyam executou uma dança energética em
frente ao santuário principal. Depois subiu os degraus até à entrada do santuário e
tocou a sineta e saiu um membro do tharavadu com quem foram trocadas bênçãos.
Os membros seniores do tharavadu estavam alinhados no terreiro e o Theyyam foi
abençoá‐los. Entretanto, outros membros da organização preparavam o altar térreo
(kothirithattu) para o sacrifício de sangue.
O Theyyam prosseguiu a abençoar toda a assistência, recebendo oferendas em
dinheiro. Veio abençoar‐me: colocou‐me nas palmas das mãos pétalas que retirou
do toucado e depois tocou‐me com o churika na cabeça.
11
Diário de Estudo de Campo
01.52 Sentado no peedam junto ao altar térreo para o sacrifício, usa uma sineta na
mão esquerda. Abre um livro e faz que escreve com a flecha. Abluções, gestos
simbólicos. É‐lhe apresentada uma galinha preta; com uma faca vulgar arranca
algumas penas do pescoço; depois corta‐lhe o pescoço (mas antes, com um gesto
imperativo, mandou que parassem de filmar a duas pessoas que o faziam não muito
longe). Mais gestos simbólicos, abluções (lava as mãos), bênçãos aos auxiliares.
Vai ao santuário, toca a sineta. Do vestíbulo do santuário entoa uma longa récita
que me parece em malaiala arcaico.
02.00 Os músicos retiram‐se, a performance durou menos de meia hora. O
Theyyam entra no edifício principal onde se encontram as mulheres e crianças do
tharavadu onde se demora mais de meia hora a falar e abençoar os presentes.
Às 02.45 entrega as armas no santuário, abençoa os presentes e retira‐se.
Entram imediatamente os músicos e o teyyakaran mais idoso. Começa a segunda
parte do thottam de Kathivannur Veeran.
A assistência já se retirou, só estão presentes os membros da organização e a trupe
de actuantes. Algumas pessoas dormem.
O teyyakaran ganhou nova energia; entre as partes da recitação cantada, bebe
toddy. A percussão está completa (quatro instrumentos), só o performer canta. O
madelam (tamborete) está à cintura.
03.05 retira o madelam e pega em armas (espada curta e escudo) e dança. Depois
sobe ao santuário e recebe uma chama acesa dentro de uma folha de bananeira.
Vai visitar os vários altares e santuários com a chama na mão direita e o valkannadi
(espelho ritual em bronze) na mão esquerda. Às 03.10 retira‐se para o vestiário
levando a chama e o valkannadi.
A próxima fase do programa acontecerá cerca das 05.35; temos cerca de 2 horas e
meia de interregno; varre‐se o terreiro, preparam‐se os altares; um grupo prepara
os saquinhos de papel pardo com doçarias antes referidos. O performer saiu do
vestiário, passeia, toma ar, conversa casualmente; não há continuidade na sua
condição performativa.
Preparam‐se tochas embebidas em óleo de coco. Alguns dos organizadores estão
notoriamente embriagados e oferecem‐me bebida, que recuso. À excepção do
consumo pelo teyyakaran e pelos auxiliares durante a performance, todo o
consumo de álcool é discreto, se não furtivo.
A Madina propõe‐me uma hipótese: a hora do começo do Theyyam coincidirá com
a Lua a atingir o zénite. Um membro da hierarquia do tharavadu confirmou‐me esta
hipótese. Preciso de estudar melhor o calendário malaiala pois todos estes horários
estão aí indicados.
Sobre o altar dedicado a Kathivannur Veeran foi construída uma estrutura com
caule de bananeira onde foram espetadas tochas. A estrutura foi decorada e
aspergida com óleo e com o sangue recolhido no anterior sacrifício. Os homens do
tharavadu fizeram uma fila em frente ao altar e executaram vários gestos
12
Diário de Estudo de Campo
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Diário de Estudo de Campo
Fui‐me deitar às nove horas e passei o resto do dia a dormir. Cerca das 17.00
acordei e comecei a organizar as minhas notas mas estava confuso por ter dormido
todo o dia.
Apesar de não poder confirmar a credibilidade da fonte, achei por bem transcrever
aqui o mito de Kathivanoor Veeran, um antepassado mitificado pelos malaialas
pelos seus feitos de guerra:
The legend of Kathivanoor Veeran has it's origin in Manigramam, Mangatt of
Kannur District. The protagonist (Manthappan) was the child of Chakki and
Kumarappan. He was born on a festive occasion in the village. He was also a great
Kalari exponent and warrior. As he grew older his merry making ways and lack of
sense of duty distanced him from his father. One day when Kumarappan questioned
his ways while having food, he decided to quit home. Manthappan went towards
Kudagu (Coorg) along with his friends. Though they left him halfway through, helped
by a Kudava named Kalamman he managed to find his uncle's house in Kathivanoor.
His Uncle and Aunt welcomed him and loved him as their own son. Manthappan in
turn worked hard on the fields along with his nephew. He fell in love with a woman
named Chemmarathy and expressed his desire to marry her. His Uncle and Aunt
agreed. His aunt advised Chemmarathy to never keep him hungry as that was one
thing which made him immensely angry and lose control of his senses. Manthappan
used to roam around and return home late from his journeys to the market to sell
his farm produce and this always irritated Chemmarathy. On that day too she
warned him "Don't wait till it's dark. Don't forget to come straight back". It was dusk
time and darkness had set in. Chemmarathy kept waiting for Manthappan ...doubts
raised their hood like snakes in her mind. Mind filled with fear and sadness she
started sobbing, exhausted she went to sleep. Past midnight and tired from his long
journey, Manthappan came and knocked on the door, irritated and angry
Chemmarathy did not open the door and kept nagging him with words. Angry,
Manthappan kicked open the door and went inside. War of words continued from
both for some time. Later, hungry and eager Manthappan sat in front of steaming
hot rice and just as he was about to eat, came the loud noise and movement of
people outside. They were shouting "Army is coming ... Kudagu army is coming!”
The warrior that he was, Manthappan got up in haste without having any food.
Thinking of family deities he prepared for battle, taking his sword, shield and other
weapons he jumped out, legs caught in the entrance step he lost his footing and fell
down, his head hit the wooden step and blood flowed from his head. Seeing this
Chemmarathy told him ‐ "If you see blood when you set out for a battle, you are
bound to die". She went on to say that the Kudavas will slay him to pieces. Hearing
these cruel words from his wife he looked back and with a smile he retorted ‐ "Let all
your words come true". Manthappan stormed the battle field, and like a wild
elephant in a sugar cane field, destroyed everything which came before him in the
14
Diário de Estudo de Campo
form of Kudavas. He fought bravely alongside his brethren and victory was soon
theirs. They returned from the battle field celebrating and leaving the Kudavas to
lick their wounds. Manthappan though was not in a celebratory mood, seeing their
hero not joining the celebrations, they asked the reason. Manthappan had lost his
ring finger in the battle. He ran back to the battlefield alone to get his slain finger
back. Seeing Manthappan running back to the battle field alone, the bitter, revenge
seeking Kudavas surrounded and attacked him. Dozens of stealthy swords swung
back and forth and cut him to pieces. They threw his body parts all over the place.
Legend has it that in the Kadivanoor Tharavadu there were omens and they found
and recognized the ring finger there. His uncle and aunt were inconsolable, they
along with the villagers flowed to the eastern valley of Kudagu Hill. There his
bereaved Malayala army brethren had collected of what was leftover of his body
and were waiting for his family to do the final rites. By this time Chemmarathy too
had heard of the incidents and came running to the valley. The whole village was in
tears remembering the brave Manthappan. Chemmarathy could not hold her sorrow
back and she jumped into her beloved's pyre. Manthappan was now a legend and
hailed as "Kathivanoor Veeran". The theyyam of Kathivannor Veeran is a
breathtaking one and widely regarded as the most spectacular. The original
enactment has lots of acrobatic movements having a Kalari background.
Fonte: http://malayalalokam.com/mlcmsj/art‐forms‐of‐kerala‐other‐indian‐
states/theyyam‐folk‐art‐of‐kerala‐/463‐kathivanoor‐veeran‐legend‐and‐
photos.html
Publicado por: Dr. R. C. Karipath
12 de Janeiro de 2015 / 27 de Dhanu de 1190 / Segunda‐feira
Organização de notas e fotos.
Vídeo‐conferência com Santhosh;
Informações recolhidas:
Santhosh pertence ao jati dos Vannan e a sua família possui um kavu (não activo e
que Santhosh quer recuperar quando voltar para Querala) aqui perto da casa. O pai
de Santhosh fazia de Madayan (co‐actuante do ritual de Muthappan) e passou a
responsabilidade ao filho mais velho da sua irmã (embora Santhosh não reconheça
uma linhagem matrilinear na herança da função, apenas porque era o familiar em
melhores condições para herdar a função).
Chandu, outro dos vizinhos, é Malayan.
15
Diário de Estudo de Campo
Para Santhosh 90% dos organizadores de kaliyattams são do partido comunista.
Quanto aos performers, são 100%.
Tipologias das cerimónias com Theyyams:
A cerimónia semanal no templo da estação de caminho‐de‐ferro, bem como a
cerimónia diária em Parassinikadavu não são um kaliyattam, apenas uma oração
(puja) em favor dos crentes. Esta performance do Theyyam não é completa. Nestes
locais acontecem também kaliyattams anuais, com a performance do Theyyam
completa.
O kalliyattam acontece a cada ano numa data fixa do calendário malaiala; pode não
acontecer um ou dois anos, se a comunidade não tiver condições para o fazer, ou
pode a comunidade escolher passar a fazer o kaliyattam apenas de dois em dois ou
de três em três anos. Mas pode sempre reverter esta decisão porque o kaliyattam
é, por definição, uma cerimónia anual.
Perumkaliyattam (perum = grandioso) é um grande festival que acontece com uma
periodicidade mais alargada: há os que acontecem a cada quatro anos ou outros
que acontecem a cada vinte e quatro anos e, entre estes, diferentes tipos de
intervalos definidos por razões astrológicas.
Theyyam Koodal (literalmente, visita do Theyyam) é quando o Theyyam vem a casa
de uma família desempenhar uma função específica.
13 de Janeiro de 2015 / 28 de Dhanu de 1190 / Terça‐feira
Estudo e planificação. Estudo do calendário malaiala; descubro que tenho estado a
seguir um calendário do Sul de Querala que tem uma diferença de um dia em
relação ao calendário do Norte. Parecia‐me que as datas anunciadas para os
kaliyattams no site de Travel Kannur estavam erradas e não percebia porquê… Fui
olhar para um calendário de parede que tinha comprado (mas a que ainda não tinha
prestado atenção) e verifico que sou eu que estou errado: o calendário que tinha
descarregado da Internet tem um atraso de um dia e um dia a mais neste mês de
Dhanu. No próximo mês, Makaram, os dias voltam a coincidir.
Passo a prestar atenção apenas ao calendário de parede que é o calendário Kollam
do norte.
14 de Janeiro de 2015 / 29 de Dhanu de 1190 / Quarta‐feira
01.30, partimos para uma observação participante. Depois de andarmos de scooter
por cerca de duas horas e meia regressamos a casa às 04.00 por não termos
conseguido encontrar o kavu que procurávamos.
08.15, partimos para Pulimparamba para observar o adeyalam.
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Diário de Estudo de Campo
Observação / Participação na cerimónia da entrega do Adeyalam no Mykeel Sri
Karimkuttysastham Temple, Pulimparamba, Thaliparamba, distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _14_/ _Jan_/ 2015
Tipologia ______entrega do Adeyalam__________ Duração ___aprox. 20 min_____
Localidade _Pulimparamba_ Templo _Mykeel Sri Karimkuttysastham ______
Comunidade do Templo ________ Thiyyas _________________________________
Comunidade dos performers _________Malayan / Vannan____________________
Horário da observação _____________09.00_ / _____09.50___________________
Quando chegámos ao templo estavam reunidos cerca de meia dúzia de homens em
atitude informal. Foram chegando mais homens até serem cerca de uma dúzia.
Algumas mulheres da família do líder do templo estavam ocupadas no interior do
edifício e serviram chai e doçarias. Não havia nada de cerimonial ou negocial na
atitude dos presentes.
Cerca das 09.30 todos nos dirigimos, homens e mulheres, para a extremidade do
kavu onde se encontra o túmulo do fundador. No degrau da campa havia uma
espécie de altar, com a fotografia do fundador, Sri Mykeel Kunhappu Vaidyar,
lamparinas de óleo, umas folhas de bananeira a servir de bandeja, com uma nota de
100 rúpias em cada, e um prato com arroz cru. O líder do tharavadu, sr. Valsan
Kaniyal, prostrou‐se junto à campa do seu pai e rezou durante poucos minutos.
Depois pegou no prato com arroz e depositou nas palmas das mãos de cada um dos
presentes uma pequena quantidade de grãos de arroz. Todos procedemos para
lançar o arroz sobre a campa. De seguida o senhor Valsan Kaniyal pegou em cada
uma das folhas com dinheiro e entregou‐a solenemente a cada um dos teyyakaran
trocando breves palavras a que aqueles respondiam com uma afirmação. Suponho
que um diálogo do tipo: “ajudas‐me a honrar a memória do meu pai fazendo
encarnar tal Theyyam neste kavu?” “sim”. À medida que recebiam a folha com o
dinheiro os performers faziam tenção de se retirar, cumprimentando solenemente
os membros do tharavadu e os restantes performers (dobrando‐se e tocando os pés
da pessoa cumprimentada, sinal de maior respeito). O Sr. Valsan Kaniyal tirou um
rolo de notas da cintura e distribuiu dinheiro pelos membros da sua família.
A cerimónia tinha acabado. O sr. Valsan Kaniyal retirou‐se para o compartimento
que lhe serve de escritório no edifício do templo e os performers seguiram‐no.
Iniciou‐se uma discussão que tinha todas as características de negocial. Falava‐se
alto, gesticulava‐se, alguns faziam tenção de voltar as costas ofendidos. Enfim, a
mímica própria de um bazar. Foi‐nos polidamente sugerido que não havia mais
nada a ver neste dia.
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Diário de Estudo de Campo
Esta cerimónia ocorreu exactamente um mês antes do início do kalliyattam (29 de
Makaram).
15 de Janeiro de 2015 / 1 de Makaram de 1190 / Quinta‐feira
2ª parte da entrevista semi‐estruturada com Shyju Valsan Kaniyal no Mykeel Sri
Karimkuttysastham Temple, Pulimparamba.
O chão do terreiro do kavu estava a ser retocado com bosta de vaca. A bosta estava
diluída em água num balde que uma senhora despejava no chão e varria com uma
vassoura de palhas rijas e compridas de forma a uniformizar a camada. Quando
seco, este produto apresenta uma consistência de cimento e, em relação à terra
batida, tem a vantagem de não levantar pó. É este tipo de pavimento que iremos
encontrar em quase todos os kavus visitados.
21.30 Saímos à procura de um kaliyattam em Cherukunnu.
Observação / Participação Parcial na cerimónia anual de Odan Valappu
Kathivanoor Veeran Temple, Cherukunnu, distrito de Cananor.
Ficha de Observação de Evento
Data _15 ‐ 16_/ _Jan_/ 2015
Tipologia ______Kaliyattam______ Duração ___aprox. 25 horas (2º informantes)_
Localidade _Cherukunnu_ Templo __Odan Valappu Kathivanoor Veeran Temple _
Comunidade do Templo ____Thiyya___ (tharavadu: Odan Valappu)______ _______
Comunidade dos performers _________Vannan_____________________________
Horário da observação __________22.15 (15 Jan)_ / _____01.40 (16 Jan)________
Entidades encarnadas __ Gurukkal Theyyam________________________________
___________________ _ Kathivanoor Veeran _(só assisti a Vellattam)___________
Aspectos da organização da cerimónia
Estrutura
e do ritual
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Diário de Estudo de Campo
ao ritual
Decoro Comportamento dos assistentes / fraco
comunidade
Constância Permanência ou inconstância da Não
assistência nas diversas fases do ritual Constante
Emotividade Participação emotiva / espiritual / Pouco
simbólica ou mera participação emotiva
folclórica
Cummunitas Importância dos laços comunitários Sem
dados
Avaliação da performance ritual
Performance
Decoro Dos performers, músicos e Bom
acompanhantes
Música Qualidade rítmica, timbre, intensidade, Muito
performatividade bom
Thottam Qualidade do canto, transe e Bom (3)
performatividade
Acompanha/º Adequação do comportamento dos Bom
auxiliares
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Diário de Estudo de Campo
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Diário de Estudo de Campo
Quando chegámos estava a ser recitado o thottam de Kathivanoor Veeran por
quatro auxiliares com idades variadas (um idoso de aprox. 70 anos, um nos
quarenta anos, um nos trinta e um adolescente com vinte anos no máximo); a
mistura das quatro vozes tinha uma excelente qualidade tímbrica, som encorpado,
bom ritmo. O teyyakaran não canta; bebe e faz acções simbólicas. É jovem (entre os
28 e os 32 anos) e de constituição atlética.
23.30 A assistência, que aumentou para cerca de 300 pessoas (continuará a
aumentar durante a próxima meia hora até cerca de 400 pessoas), agita‐se e
aproxima‐se da vedação do kavu. Os percussionistas entram no arangu (terreiro),
acendem‐se archotes de folhas de coqueiro, reduz‐se a iluminação eléctrica, lança‐
se fogo‐de‐artifício.
Parte dançada do thottam. No início o teyyakaran bebe mais do que dança. Quando
dança, o madelam à cintura e a veste prejudicam‐no na sua dinâmica.
O jogo do kindi vazio – quando o Theyyam ou o teyyakaran bebe (e oferece aos
auxiliares) fá‐lo por um recipiente específico em metal, em forma de bule (ver
Imagem 14). Este ‘bule’ chama‐se kindi e tem outras utilidades no santuário: conter
óleo para as lamparinas ou água consagrada, por exemplo. Quando é usado pelo
performer para beber toddy, fá‐lo sorvendo pelo ‘bico’. Quando está vazio o
teyyakaran ou Theyyam lança o objecto pelo ar em direcção a um dos auxiliares
cuja única função é apanhá‐lo (outro auxiliar tem por função manter sempre um
kindi cheio sobre o peedam). O ‘jogo’ (absolutamente informal e extra‐ritual)
consiste em o teyyakaran (ou Theyyam) tentar aproveitar os momentos de
desatenção do auxiliar para lançar o objecto, o qual, pela sua qualidade de sagrado,
não pode absolutamente cair no chão. Tenho reparado várias vezes nesta
brincadeira cúmplice entre os performers durante o ritual.
24.00 Retira o tamborete da cintura e pega na espada curta e no escudo. Os
auxiliares portando archotes fecham um círculo à sua volta, o teyyakaran luta
contra os archotes. Energético e bonito mas o performer parece cansar‐se muito
depressa e deixa cair o ritmo. Bom trabalho dos músicos e dos auxiliares com
archotes.
Acocorado, “salta à corda” sobre a espada.
00.25 Abençoa os membros do tharavadu, vai ao altar, novo “saltar à corda” ao
redor do altar, abençoa as pessoas na assistência.
Perde o ritmo a compor a roupa e a limpar a transpiração. Outras vezes,
simplesmente abranda o ritmo.
Dança com os chicotes metálicos, chicoteia as fogueiras, bonito efeito mas continua
a não assegurar um ritmo crescente e constante.
Perde o controlo, fica prostrado sobre o altar. Vai ao santuário, depois ao
tharavadu, segue para o aniara.
01.00 Gurukkal Theyyam encadeia de imediato. A assistência dispersa, sobram
cerca de 40 pessoas. Como no kaliyattam observado a 11 de Janeiro, Gurukkal
21
Diário de Estudo de Campo
Theyyam foi maquilhado e vestido fora do aniara, à vista da assistência. Pergunto‐
me a razão da discriminação.
A dança de Gurukkal Theyyam é muito vigorosa, primeiro em rodopio, depois
saltando e correndo em volta e esgrimindo as armas (espada curta e escudo)
01.12 Senta‐se no peedam em frente a um kothirithattu entretanto preparado para
o sacrifício ritual (ver Imagem 13). A perna direita treme. O altar contém coco,
arroz, banana, folhas de bananeira e outras, flocos de arroz e outros alimentos.
Gestos, abluções, a perna continua a tremer, colocam‐lhe um colar, a sineta na mão
esquerda, acendem‐se as tochas do altar e uma pequena fogueira em frente ao
altar. Atira comida para a pequena fogueira. Com a flecha escreve num pergaminho
que lhe é apresentado.
Apresentam‐lhe um galo pardo; arranca penas do pescoço; com uma faca corta a
crista ao galo, depois corta‐lhe o pescoço.
O sangue é recolhido numa taça; depois o Theyyam deliberadamente vira a taça,
entornando‐o.
1.25 Fim da percussão. O Theyyam vai para o santuário e recita.
Os restos do galo são levados para o vestiário por um auxiliar.
Fim da observação.
A performance de Gurukkal Theyyam durou cerca de meia hora mas o ritmo e a
intensidade foram sempre crescentes.
A parte dançada do thottam de Kathivanoor Veeran durou cerca de uma hora e
meia mas o ritmo e a intensidade foram constantemente quebrados.
Uma das performances teve cerca de 40 pessoas a assistir; a outra cerca de 400.
Terá o thottam de Kathivanoor Veeran sido “esticado” propositadamente para
agradar à multidão de devotos (ou apenas apreciadores de artes marciais)?
Este ritual de Kathivanoor Veeran foi‐nos recomendado por vários informantes por
conter partes de kalari payattu. No entanto, qualquer aluno num estádio
intermédio desta disciplina marcial executa os exercícios com muito mais rigor e
espectacularidade.
Importa também comparar a parte dançada deste thottam com a correspondente
parte observada a 11 de Janeiro onde, recorde‐se, o performer tinha mais de 60
anos. Nessa performance, e exclusivamente para a parte dançada do primeiro
thottam que durou cerca de uma hora, o performer soube manter um ritmo e
intensidade crescentes, sem quebras. A sua performance era muito mais contida,
não tinha grandes proezas acrobáticas, mas era concentrada e energética.
O performer mais jovem realizou algumas proezas acrobáticas mas nada que
qualquer artista circense não faça com mais desenvoltura. A performance
prolongou‐se para além da sua capacidade de manter uma postura energética e não
soube aproveitar algumas oportunidades performativas (por exemplo, na batalha
contra os archotes).
22
Diário de Estudo de Campo
Ideal seria combinar a capacidade física do performer jovem com a sagacidade na
gestão do ritmo e energia demonstradas pelo mais idoso.
16 de Janeiro de 2015 / 2 de Makaram de 1190 / Sexta‐feira
Organização de notas e planificação.
17 de Janeiro de 2015 / 3 de Makaram de 1190 / Sábado
Organização de notas e planificação.
Cerca das 18.00 partimos para uma observação participante.
Chegámos a Thaliyil cerca das 19.00, um pouco antes do início da cerimónia.
18 de Janeiro de 2015 / 4 de Makaram de 1190 / Domingo
Observação / Participação Parcial na cerimónia anual de Konhan Tharavadu Sree
Thondachan Devasthanam, Thaliyil, Dharmsala, distrito de Cananor.
Ficha de Observação de Evento
Data _17 ‐ 18_/ _Jan_/ 2015
Tipologia ______Kaliyattam______ Duração ___aprox. 22 horas (2º informantes)_
Localidade _Thaliyil, Dharmsala_ Templo __ Konhan Tharavadu Sree Thondachan
Devasthanam _
Comunidade do Templo ____Thiyya___ ____________________________________
Comunidade dos performers _________Vannan__/ Malayans__________________
Horário da observação __________19.00 (17 Jan)_ / _____07.00 (18 Jan)________
Programa __ ______Kandanarkelan Vellattan _________(jati: Vannan)___________
_______________ _ Kathivanoor Veeran Vellattam_____(jati: Vannan)___________
_______________ _ Vayanattukulavan Vellattam_______(jati: Vannan)__________
_____________ _ Gulikan Vellattam_______________(jati: Malayan)____________
_______________ _ Kudiveeran Thottam_____________(jati: Vannan)___________
________________ Elladathu Bhagavathy Thottam______(jati: Malayan)_________
_______________ _ Kudiveran Theyyam___________________________________
_______________ _ Kandanarkelan Theyyam_______________________________
_______________ _ Vayanattukulavan Theyyam____________________________
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Diário de Estudo de Campo
_______________ _ Elladathu Bhagavathy________________(não observado)____
_______________ _ Gulikan____________________________(não observado)____
_________Os músicos são todos malayans__________________________________
Aspectos da organização da cerimónia
Estrutura
e do ritual
ao ritual
Decoro Comportamento dos assistentes / Bom
comunidade
Constância Permanência ou inconstância da Não
assistência nas diversas fases do ritual Constante
Emotividade Participação emotiva / espiritual / Emotiva
simbólica ou mera participação
folclórica
Cummunitas Importância dos laços comunitários Sem
dados
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Diário de Estudo de Campo
Avaliação da performance ritual
Performance
Decoro Dos performers, músicos e Variável
acompanhantes (2)
Música Qualidade rítmica, timbre, intensidade, Muito
performatividade bom
Thottam e Qualidade do canto, transe e Descrição
Vellattam performatividade abaixo
Acompanha/º Adequação do comportamento dos Descrição
auxiliares abaixo
Pré‐ Aquecimento, decoro, predisposição Bom
performance geral para a performance
Theyyam Desempenho performativo de cada um Descrição
dos theyyams presentes, incluindo abaixo
transe
Gurukkal Descrição abaixo Bom
Theyyam
Kathivanoor Sem
Veeran dados
Sacrifício ritual Decoro, compaixão, eficácia e Descrição
espectacularidade dos sacrifícios de abaixo
sangue
Provação do Arrojo, performance e Razoável
fogo espectacularidade das provas de fogo
Fluidez geral Ritmo do ritual Descrição
abaixo
Eficácia da Capacidade dos performers para Desigual;
performance agarrar a assistência ver
descrição
Notas:
(1) Em todos os kaliyattams é oferecida um jantar com a comida tradicional da
região; sem excepção, é servido sobre uma folha de bananeira (a “loiça” tradicional
do sul da Índia rural) e consiste em arroz fresco (paddy) cozido e acompanhado por
25
Diário de Estudo de Campo
vários molhos. A refeição é acompanhada com água. A comida é cozinhada ao ar
livre (ver Imagem 19) pelas mulheres do tharavadu e servida pelos rapazes da
família. Em longas mesas corridas, onde os convidados se vão rendendo por turnos
em grupos segregados de homens e mulheres, os jovens do tharavadu colocam as
folhas de bananeira, o arroz, os molhos, copos e água. Todos comem com a mão
direita. O acto de ingerir a refeição é rápido, não dura mais de 8 minutos apesar de
ser uma quantidade considerável de comida. Normalmente há uma fila de gente à
espera de vez para se sentar. Não há muita convivialidade nesta refeição rápida,
apesar de habitualmente os meus vizinhos de mesa me perguntarem se gosto da
comida queralesa e mais uma ou outra amabilidade. Neste tharavadu, que parecia
pobre e com poucos membros, o arroz foi, não obstante, acompanhado por muitos
molhos diferentes e insistiam com todos para comessem uma segunda dose de
arroz.
(2) A “trupe” Vannan, que era em grande parte a mesma observada a 15 / 16 de
Janeiro em Cherukunnu, tem uma grande quantidade de adolescentes e jovens
adultos com condutas presunçosas que, atraindo a atenção sobre si próprios,
prejudicam a performance. O líder do grupo, idoso, ostentando colar e pulseiras de
ouro e pouco activo na performance, parece constituir o modelo do imodesto
comportamento. Os teyyakaran Malayans, mais maduros e com poucos auxiliares,
tiveram uma postura mais sóbria. A atenção e o decoro dos músicos Malayans
foram variáveis.
Kavu pequeno e com aparência de pobre. O tharavadu é em tijolo cru, sem reboco,
e muito pequeno, tendo apenas uma salinha e um santuário com portas e janelas
(ver Imagem 15). Metade do edifício tem meia parede e uma entrada mas sem
portas ou janelas. O recinto tem aprox. 20 x 20 m com dois santuários bem pintados
e decorados com gosto e sobriedade (ver Imagem 16). Iluminação eléctrica básica.
Nas proximidades, duas bancas com balões e bugigangas. Os membros da
comunidade são poucos mas muito hospitaleiros.
Em nenhum momento houve amplificação sonora, tão pouco fogos‐de‐artifício.
Às 19.35 começa o vellattam de Kandanar Kelam. Começa acompanhado por todos
os chendakkaran (cinco) e dança energeticamente. Às 20.10 ficam só dois dos
percussionistas e a acção passa a ser mais simbólica: oferendas de alimentos,
recitação, bênçãos. Finge beber o álcool que lhe é oferecido mas, de facto, bebe
muito pouco. Às 20.45 retira‐se para o aniara.
Às 20.55 entra Vayanattu Kulavan para o vellattam2. Dança de forma muito lenta,
com micro‐movimentos, a energia toda contida em micro‐acções, durante mais de
10 minutos. Observo que os pés parecem bater no chão ao ritmo dos chenda mas é
no levantar do pé do chão que está a verdadeira dinâmica; os joelhos estão flexíveis
2
Noutra ocasião o velattam de Vayanattu Kulavan, com as mesmas características, foi‐me
referido com o nome de Tondacham (avô).
26
Diário de Estudo de Campo
e as impulsões da dança partem da bacia. O pé toca no chão no exacto ritmo do
chenda mais grave.
A dança torna‐se trémula, em rodopios muito vigorosos mas não muito rápidos. As
tremuras são micro‐acções muito contidas, o movimento tem uma excelente
qualidade de staccato (ver Imagem 20).
Manifesta sinais de êxtase, as mãos e os pés trémulos. Parece mimar um cego ou
uma pessoa trôpega. A dança pára às 21.30, seguem‐se as acções simbólicas de
bênçãos, ofertas de alimentos, etc. sempre com um andar hesitante como um cego
(mais tarde verifico que o Theyyam usa uns “óculos metálicos”, poyii kannu que lhe
dificultam a visão). Mantêm‐se no terreiro a cumprir funções simbólicas ainda
durante a performance de Gulikan e só se retira às 23.05.
Às 22.30 entra Gulikan vellattam. Performance contida e muito sóbria (ver Imagem
21) em frente ao santuário principal sobre o peedam primeiro (ver Imagem 18), em
frente aos restantes santuários depois. Facto inédito, pelo menos para mim: uma
mulher (que estava na companhia dos Malayans) segura o archote com que se
ilumina a divindade (ver Imagem 22). Nos vellattams e Theyyams, as divindades são
sempre iluminadas por um ou mais archotes de folhas secas de coqueiro
(olachootu), segurados por um ou mais auxiliares, por regra da comunidade do
performer. A função parece ser não só de alumiar mas também de indicar o
caminho a seguir ou delimitar a área da performance. Pela primeira vez vejo uma
mulher a executar esta função, aliás qualquer tipo de função dentro do terreiro3. As
mulheres do tharavadu presidem a todas as acções rituais que são realizadas em
frente ou dentro do edifício do tharavadu, a casa familiar. Nunca intervêm nas
funções no terreiro ou nos santuários. As mulheres das comunidades de
performers, se estão presentes, estarão entre a assistência e não participam
activamente no ritual. Este episódio requer uma futura investigação.
Gullikan vellattam retira‐se para o aniara cerca das 23.00.
Começa a preparação de uma grande fogueira que arderá até produzir um monte
de carvão em brasa.
Às 23.20 começa o thottam de Kudiveeram. O performer canta acompanhado de
quatro auxiliares com idades diferenciadas: jovens, adultos e um idoso. A ‘trupe’, de
Vannans, é essencialmente a mesma que observei dois dias antes em Cherukunnu.
O canto é frágil e com falhas no ritmo. Não há amplificação sonora.
Pouca assistência, pouco atenta.
Passa‐se à parte dançada do thottam; muita bebida, pouca dança; acrobacias
imprecisas, ritmo caótico. Muitas paragens para compor a indumentária e limpar a
transpiração do rosto.
3
Mais tarde soube por Manju, Malayan e de Cananor, que entre os Malayans de Cananor e
a sul desta cidade, as ‘avós’ têm sempre este papel no ritual. As práticas variam muito de
kavu para kavu e são distintas entre áreas. Embora a minha área de observação seja
relativamente delimitada, comporta pelo menos três reinos tradicionais: Cananor,
Taliparamba e Payyanur (e, em dados momentos da história, alguns outros).
27
Diário de Estudo de Campo
Notou‐se uma tensão entre os membros do tharavadu e os auxiliares Vannan; os
auxiliares estavam a queimar muitos archotes chootu, usando vários ao mesmo
tempo e não os consumindo até ao fim. Um membro do tharavadu interveio e
começou a racionar a entrega de chootu, exigindo que os consumissem até ao fim
antes de acenderem outro. Os jovens Vannan reagiram ostensivamente mal.
Às 01.10 começou o thottam de Elladathu Bhagavathy. Antes de mais nada, um
auxiliar realizou um sacrifício de um galo no altar apropriado e na presença da
Deusa, que apenas assistiu mas não tocou no animal.
O thottam foi cantado apenas pelo performer, acompanhado por um chenda.
Às 01.30 começa a parte dançada do thottam, acompanhada por um chenda e
ilathalam (címbalos). A dança é executada com um escudo pequeno na mão
esquerda e uma espada curta em forma de Z (pallival) na mão direita. Excelente
ritmo e rigor na execução.
Às 01.50, recitação em malaiala arcaico, sempre em movimento pelo terreiro.
02.00, começa o Theyyam de Kudiveeram. Ritmo e dinâmica razoáveis.
02.15, sacrifício de sangue. Violento e inábil, teve que lutar muito para arrancar à
mão a cabeça do galo.
Continua a dança com bom ritmo e muita energia.
02.20, fim da dança, recitação em malaiala arcaico à entrada do santuário principal.
Fim da performance,
Durante uma hora de interregno fazem‐se preparativos para a sequência seguinte.
Da fogueira são retirados os troncos que não arderam completamente, ficando
apenas os carvões em brasa. Estes são divididos em quatro montes, em quadrado.
Às 03.30 há muita agitação no vestiário, canto e percussão.
Agitação também na assistência, que começou a chegar em grande número.
Kandanarkelam Theyyam entra com grande acompanhamento, muita percussão,
grande agitação. O peedam foi colocado no centro do quadrado com os montes de
carvão em brasa. O Theyyam sobe para o peedam (ver Imagem 23) e faz uma
recitação rápida, grita. Sai do peedam, que é imediatamente retirado. Pontapeia as
brasas espalhando‐as pelo terreiro, pisa‐as, corre em volta. Auxiliares e membros
do tharavadu aproveitam para também pontapear as brasas e as pisar. Depois, os
membros do tharavadu, com chootus, varrem as brasas de novo para um único
monte e colocam vários chootus sobre elas, fazendo uma fogueira com labaredas
altas (+/‐ 2m). O Theyyam, acompanhado por dois auxiliares cujas mãos segura,
passa por cima da fogueira, pisando o fogo (ver Imagem 24). Antes de cada
passagem, os auxiliares e membros do tharavadu atiram vários feixes de chootu
para cima da fogueira, o que tem como efeito abafar momentaneamente o fogo,
reduzindo as labaredas para cerca de um metro de altura. Mas o Theyyam, e os
auxiliares, passam sobre a fogueira sucessivamente nos dois sentidos, isto é, depois
da primeira passagem dão meia volta e passam sobre a fogueira imediatamente.
28
Diário de Estudo de Campo
Nesta segunda passagem o fogo já não está abafado pelos chootu e as labaredas
estão, pelo contrário, mais altas. O Theyyam fará cerca de cinquenta passagens
sobre o fogo num intervalo de cerca de 8 minutos. Os acompanhantes vão‐se
revezando. Todos os auxiliares presentes no terreiro gritam e agitam os braços
aquando das passagens do Theyyam sobre o fogo. A assistência está excitada.
Os auxiliares mais jovens, com o seu excesso de zelo, prejudicam a performance. É
habitual o Theyyam ficar demasiado excitado com a passagem no fogo e insistir em
fazer passagens arriscadas, quando as labaredas estão demasiado altas, ou parando
e permanecendo no centro da fogueira, ou com demasiada frequência, não
parando para retomar o fôlego entre duas passagens. Nestas ocasiões os auxiliares
intervêm, impedindo o Theyyam de se precipitar ou empurrando‐o para fora do
perigo. Nesta ocasião alguns auxiliares jovens quiseram fazer este tipo de
intervenção quando não se justificava, trazendo para a performance uma
teatralidade escusada.
Depois de cerca de 8 a 10 minutos de passagens ininterruptas pela fogueira o
Theyyam passou a dançar em torno da fogueira, por vezes acossando o fogo com o
seu arco, levantando grandes nuvens de faúlhas e labaredas com um efeito visual
impressionante. Muito boa, a dança, com bom ritmo e energia.
Passa‐se à oferta simbólica de alimentos e bebida.
Às 04.15, no santuário, longa recitação em língua arcaica. Os chendakkaran retiram‐
se. Às 05.30, última oferenda. 05.40, mudiyerakku: o mudi, cobertura ornamental
da cabeça, sinal da presença da divindade, é retirado. O teyyakaran deixa de ser
uma divindade e retira‐se para o vestiário.
06.00, Vayanattukulavan Theyyam. O performer entra a dançar mas sem o mudi. No
centro do terreiro pára e senta‐se no peedam. É aqui que os auxiliares lhe colocam
o mudi (operação delicada e demorada) (ver Imagem 25) e o poyii kannu (‘óculos
metálicos’). Estes ‘óculos’ (ver Imagem 26) têm micro perfurações que lhe
permitem ver mas ainda assim, reduzem‐lhe consideravelmente a visão. Quando
todos os adereços estão devidamente colocados (terá demorado cerca de 5
minutos) é‐lhe apresentado um espelho. O performer olha‐se ao espelho e nesse
momento transforma‐se em divindade. O espelho ritual é em bronze, muito raro e
caro. Pareceu‐me (embora não o possa garantir) que o espelho usado nesta ocasião
foi um vulgar espelho de plástico de casa de banho.
Dança lenta, movimentos rigorosos, ritmo excepcional. Confirma todas as
qualidades demonstradas no vellattam. Na mão direita transporta um archote em
madeira com um tecido embebido em óleo de coco ardente na extremidade. Na
mão esquerda, um arco (ver Imagem 27).
Às 06.30 é‐lhe retirado o poyii kannu; a dança torna‐se mais rápida, empunhando
armas.
Oferta simbólica de alimentos, bênçãos, visita ao tharavadu.
07.00, fim da observação.
29
Diário de Estudo de Campo
Dormimos toda a manhã e grande parte da tarde.
Às 20.30 partimos para nova observação participante.
Observação / Participação Parcial na cerimónia anual de Dermal Tharavady,
Pilathara, distrito de Cananor.
Ficha de Observação de Evento
Data _18 ‐ 19_/ _Jan_/ 2015
Tipologia ______Kaliyattam______ Duração ___aprox. 20 horas (2º informantes)_
Localidade _Pilathara_______ Templo __ Dermal Tharavady Theyyam ______
Comunidade do Templo ____Thiyya___ ____________________________________
Comunidade dos performers _________Vannan__/ _Malayan_ /_ Velan__________
Horário da observação __________21.18 (18 Jan)_ / _____06.30 (19 Jan)________
Programa __ ______Kandanarkelan Vellattan____(jati: Vannan) (não observado)___
_______________ _ Vayanattukulavan Vellattam_____(jati: Vannan)____________
_____ ___________ Puthiya Bhagavathy Thottam______(jati: Vannan)___________
________________ Vishnumuthy Thottam_____________(jati: Malayan)_________
_______________ _ Kudiveeran Thottam____2 x_______(jati: Vannan)__________
_______________ _ Kudiveran Theyyam_____2 x____________________________
_______________ _ Kandanarkelan Theyyam_______________________________
________________ Kurthy________________________(jati: Velan)_____________
_______________ _ Vayanattukulavan Theyyam_____________(não observado)__
________________ Kundorchamundi_________(jati: Velan)____(não observado)__
_______________ _Puthiya Bhagavathy____(jati: Vannan)_______(não observado)
________________ Vishnumuthy______________________(não observado)______
_______________ _ Gulikan________________(jati: Malayan)___(não observado)_
30
Diário de Estudo de Campo
ao ritual
Decoro Comportamento dos assistentes / Sofrível
comunidade
Constância Permanência ou inconstância da Não
assistência nas diversas fases do ritual Constante
Emotividade Participação emotiva / espiritual / Pouco
simbólica ou mera participação emotiva
folclórica
Cummunitas Importância dos laços comunitários Sem
dados
Avaliação da performance ritual
Performance
Decoro Dos performers, músicos e Variável
acompanhantes (3)
31
Diário de Estudo de Campo
32
Diário de Estudo de Campo
33
Diário de Estudo de Campo
23.30 começa o thottam de Vishnumurthy. Um performer muito jovem e ágil, num
estado de grande concentração, corre pelo recinto segurando um lenço vermelho
com as mãos, os braços estendidos sobre a cabeça. Depois de algumas voltas ao
terreiro, parando brevemente em frente aos altares e santuários, pára num dado
lugar e os auxiliares atam‐lhe o lenço vermelho na cabeça, colocam‐lhe um
pequeno toucado (kireedorn), pintam‐lhe o torso (ver Imagem 31). Vai ao santuário
receber a chama e, de seguida, visita todos os santuários e altares, transportando‐a
numa folha de bananeira.
23.40, com um chenda sobre o peedam, em frente ao santuário principal, e
acompanhado por um chendakkaran, entoa o thottam. O teyyakaran hesita no
canto e a função do percussionista / cantor parece ser a de assegurar a recitação,
para a qual o jovem performer visivelmente não está preparado.
O canto parece‐me muito bonito mas não o consigo ouvir bem. No melhor local
para ouvir, próximo do santuário, há um grupo de gente que conversa casualmente
sem prestar atenção ao desenrolar do ritual.
A assistência já quase desapareceu. Mesmo os membros do tharavadu não parecem
muito entusiasmados.
Juntam‐se cinco percussionistas ao thottam e cantam em coro. O canto ganha
energia.
00.09, o performer dança; é muito ágil e expressivo e continua muito concentrado.
Dança por todo o terreiro com uma ligeireza impressionante, visitando os
santuários e altares. Às 00.30 aproxima‐se de um dos auxiliares, salta‐lhe para o
colo e aquele sai levando Vishnumurthy para o aniara.
00.40, Kudiveeran thottam; entra a dançar e começa a recitar o canto enquanto
dança. Depois pára em frente ao santuário principal e continua a cantar, sozinho.
De seguida junta‐se‐lhe um percussionista que alterna no canto com o performer.
Continuo a ter dificuldade em escutar convenientemente o canto, com pessoas a
falar na zona em que decorre o ritual. Mas este thottam, que é muito bonito, é em
tudo semelhante ao thottam de Kathivennoor Veeran que já escutei em duas
ocasiões anteriores. Não sei se as palavras são as mesmas mas a melodia é
definitivamente a mesma. As roupas parecem‐me de tal forma idênticas que
poderia ser a mesma indumentária aplicada a duas entidades distintas (já ontem me
tinha parecido o mesmo de Kudiveeran em comparação com o Kathivenoor Veeran
de há três dias). As armas são também iguais.
Serão Kudiveeran e Kathiveenoor Veeran variações da mesma entidade? Entidades
relacionáveis? A pesquisar…
Agora há dois cantores /percussionistas que alternam com o performer no canto.
Bebem. Por momentos prestam mais atenção ao kindi com a bebida e perdem o
ritmo.
01.12, entram todos os chendakkaran, o canto acaba em gritos. O performer bebe
muito e dança (ver Imagem 34). Dança com exercícios de kalari payattu, sóbria;
34
Diário de Estudo de Campo
demonstrações de artes marciais sem esforço e bem executadas. Percussão muito
enérgica e bem ritmada. O teyyakaran com boa noção de ritmo e energia,
económico mas concretizando as acções. Sai às 01.40.
01.50, entra o segundo teyyakaran para fazer o thottam de Kudiveeran. Para além
da oportunidade de comparar as performances, afigura‐se uma questão: como
pode a mesma entidade encarnar em dois teyyakaran ao mesmo tempo? Terei que
colocar esta questão a um crente mas já estou à espera de uma resposta do género
“aos deuses tudo é possível”.
Breve dança, recitação do thottam. O performer, muito jovem, não canta. O canto é
muito abreviado.
02.40, acrobacias: ribaltatas e piruetas, nada de impressionante. Bebe e dança fora
de ritmo, mais preocupado com as piruetas, que faz com esforço, apesar de
simples. Bebe mais e mais. Dança marcial também muito abreviada, só com espada
curta e escudo. Às 02.25 sai.
No aniara ouve‐se cantar o thottam de Kudiveeran.
02.35 Kudiveeran Theyyam.
A dança inicial é um pouco caótica mas recupera o ritmo. Denota dificuldades com a
indumentária.
O sacrifício de sangue é rápido, discreto e eficaz.
Apercebo‐me que ao mesmo tempo está a iniciar‐se outro ritual num dos recintos
em torno de uma das árvores sagradas. Abandono temporariamente a performance
de Kudiveeram Theyyam para ir observar o Theyyam de Kurthy; uma das coisas
mais bonitas a que já assisti em kaliyattams. A deusa usa poyii kannu, uma placa
metálica em forma de crescente cobre‐lhe a boca e um soutien metálico (malaru)
sugere a sua feminilidade (ver Imagem 36). Enquanto dança dirige em várias
direcções um som profundo de “uuuuhhh”. Um grupo de mulheres do tharavadu
reunidas num dos lados do recinto responde com um fantasmagórico “uuuuhhhh”,
dissimulando o acto com uma mão casualmente em frente à boca.
Ambos os rituais decorrem em paralelo e tenho dificuldade em escolher para onde
virar a minha atenção.
Entretanto Kudiveeran Theyyam retira‐se. No vestiário volta a ouvir‐se o canto de
Kudiveeran.
Depois de ter visitado os santuários e altares no arangu, Kurthy está sentada em
frente ao edifício do tharavadu faz um prasadam que depois será entregue às
mulheres do tharavadu, que o distribuem.
03.40, entra o segundo Kudiveeran Theyyam, com bom ritmo e energia.
Executou o sacrifício ritual com rapidez, limpeza e eficácia: sem parar de dançar,
arrancou com um único esticão a cabeça da galinha que lhe foi apresentada.
Performance curta mas energética, acabou cerca das 04.00.
35
Diário de Estudo de Campo
Os membros do tharavadu preparam as brasas para a sequência seguinte: retiram
da fogueira os troncos que não arderam completamente, dividem os carvões em
quatro montes (ver Imagens 37 e 38), limpam toda a área circundante. Chega muita
assistência. Lançam‐se fogos‐de‐artifício.
04.50, entra Kandanakellan Theyyam com grande alvoroço e gritaria. Apagam‐se as
luzes eléctricas. O Theyyam vai imediatamente postar‐se sobre o peedam que
estava colocado no centro entre os quatro montes de brasas. Entoa uma breve
récita. Desce do peedam, que é imediatamente retirado, e pontapeia os montes de
carvão em brasa, espalhando‐as pelo recinto. Os auxiliares e membros do
tharavadu fazem o mesmo com grande júbilo. Depois varrem as brasas para o
centro, em um monte único. Começam a lançar feixes de folhas de coqueiro secas
(chootu) sobre as brasas, fazendo uma fogueira com labaredas altas. Durante os
próximos 15 minutos o Theyyam vai passar por entre as labaredas, sempre
acompanhado por dois auxiliares que conduz pelas mãos (ver Imagens 39, 40 e 41).
As passagens fazem‐se nos dois sentidos sem interrupção; depois escolhe outros
dois auxiliares, há um pequeno compasso de espera e faz mais duas passagens.
Antes da primeira de cada duas passagens, os auxiliares lançam feixes de folhas do
coqueiro secas sobre a fogueira, o que abafa ligeira e momentaneamente as brasas.
Mas o Theyyam faz sempre dois ou três passos sobre a fogueira que, recorde‐se,
tem uma base de carvão incandescente. Os auxiliares e membros do tharavadu
disputam a primazia de acompanhar o Theyyam na passagem pelo fogo, rodeando‐
o com os braços no ar e gritando como quem pede: “eu, eu, agora eu!”. Há muitos
gritos e exclamações de regozijo. Nestes quinze minutos o Theyyam terá feito cerca
de 70 a 80 passagens pelo fogo e mostra sinais de exaustão. A certa altura é claro
que esta sequência acabou e que o Theyyam não passará mais pela fogueira. Dança
então em torno da fogueira, fazendo rotações sobre si próprio num movimento de
grande espectacularidade. Espevita o fogo com o seu arco, provocando faúlhas e
labaredas que se elevam a grande altura.
Cerca das 05.15 vai ao santuário e recita em malaiala arcaico. A multidão, que seria
de mais de 600 pessoas, começa a dispersar rapidamente. O Theyyam continua a
dançar energicamente até cerca das 06.00, com interrupções para abençoar os
presentes. A essa hora retira‐se.
Haverá agora uma pausa até às 09.30. Começando a compreender os horários
indianos, 09.30 pode ser 10.00, 10.30 ou até 11.00. Não tenho energia para esperar
esse tempo e, após recolher mais algumas informações, regresso a casa.
Com pena, porque o que vi nas partes introdutórias de Puthiya Bhagavathy e
Vishnumuthy me deixou muito interessado nestes Theyyams.
19 de Janeiro de 2015 / 5 de Makaram de 1190 / Segunda‐feira
Dia de descanso e organização de notas.
36
Diário de Estudo de Campo
20 de Janeiro de 2015 / 6 de Makaram de 1190 / Terça‐feira
Organização de notas e documentação.
21 de Janeiro de 2015 / 7 de Makaram de 1190 / Quarta‐feira
Organização de notas e documentação.
Shyju, após ter falado com o pai e este com os outros membros da família, envia‐me
uma mensagem: teria que pagar 5.000INR para poder filmar o kaliyattam do seu
templo. Defini que neste trabalho de pesquisa não pagarei por informações, guias
ou semelhantes. Um guia ou informante pagos vão‐me contar as histórias que
acham que eu quero ouvir. Pagar para fazer um documentário resultaria no mesmo;
em última análise, podia até pedir para repetir partes do ritual para fazer takes
extra. Seria desvirtuar o trabalho pelo que tenho que recusar e procurar outro kavu
que me permita filmar o kaliyattam sem me impor uma condição monetária. É claro
que acabarei por fazer uma oferenda ao templo, como sempre faço, e nessas
circunstâncias um valor de aproximadamente 70 euros não é demais. Mas o
princípio é importante: uma dádiva voluntária, não um pagamento.
22 de Janeiro de 2015 / 8 de Makaram de 1190 / Quinta‐feira
Organização de notas e documentação. Planificação.
23 de Janeiro de 2015 / 9 de Makaram de 1190 / Sexta‐feira
Visita ao Koyithattil Tharavadu em Kayyoor. Cerca de 60 km nos dois sentidos em
Scooter deixam‐me esgotado.
Reflexão sobre a possibilidade de fazer o vídeo documentário ali.
Vantagens Desvantagens
(eu) Cumplicidade com família Distância e custos deslocação
Possibilidade de Alojamento e Fora da área de estudo
apoio logístico
(eles) Edifício bonito Nada acontece à noite (confirmar)
Fácil filmar de dia Não há fogo
Pouca assistência Pequena dimensão do espaço
Theyyams bonitos Toldo como barreira
Deusas Espaço ñ convencional
Jatis Vannan e Malayan Calendarização ñ convencional
Theyyams pouco activos
Inquirir sobre a possibilidade de entrevistar o vizinho de Narayanan.
37
Diário de Estudo de Campo
24 de Janeiro de 2015 / 10 de Makaram de 1190 / Sábado
Estudo do calendário malaiala; Narayanan deu‐me algumas informações mas
pareceu‐me pouco seguro pelo que terei que as confirmar.
25 de Janeiro de 2015 / 11 de Makaram de 1190 / Domingo
Estudo da história de Querala.
Reflexão sobre o desenvolvimento do estudo. Há uns dias atrás disseram‐me que
um homem vestido com as roupas do Theyyam não é um Theyyam. Tenho a
sensação que tenho andado a ver muitos homens com roupas de Theyyam mas
poucos, se alguns, verdadeiros Theyyams.
Sobre este assunto troquei impressões com Santhosh, que tem dificuldades em
entender o meu ponto de vista; Santhosh é crente e, para ele, um homem vestido
de Theyyam que vá ao sanctum sanctorum e receba a chama, é um Theyyam. A
transformação, segundo Santhosh, não é voluntária, acontece pela força do deus.
Consegui encontrar um ponto de entendimento com Santhosh que irá procurar
ajudar‐me a encontrar uma trupe de teyyakaran mais maduros que possam
eventualmente proporcionar‐me a autenticidade que me está a faltar.
26 de Janeiro de 2015 / 12 de Makaram de 1190 / Segunda‐feira (feriado)
Continuação do estudo da história de Querala.
27 de Janeiro de 2015 / 13 de Makaram de 1190 / Terça‐feira
04.45 Saída para uma observação.
Observação / Participação Parcial na cerimónia anual de Mavichery Sri
Bhagavathi Temple, Payyanur, distrito de Cananor.
Ficha de Observação de Evento
Data ____27_/ _Jan_/ 2015
Tipologia ______Kaliyattam______ Duração ___aprox. 20 horas (2º informantes)_
Localidade _Payyanur_______ Templo __ Mavichery Sri Bhagavathi Temple__
Comunidade do Templo ____sem dados___ ________________________________
Comunidade dos performers _________Sem dados___________________________
Horário da observação ______05.30 / 08.00 _______+ 14.30 / 15.15 ____________
38
Diário de Estudo de Campo
Programa ___Kannikkorumakan, vellattam, thottam e Theyyam (não observado)___
_______________ _Thuluveeran Theyyam__(não observado)__________________
_____ ___________ Puthiya Bhagavathy Theyyam___________________________
________________ Narambil Bhagavathy__________________________________
________________ Raktcha Chamundi Theyyam_____________________________
________________ Madayil Chamundi_____________________________________
________________ Padarkkulangara Bhagavathy____________________________
________________ Vishnumuthy_________________________________________
Aspectos da organização da cerimónia
Estrutura
e do ritual
ao ritual
Decoro Comportamento dos assistentes / Sofrível
comunidade
Constância Permanência ou inconstância da Não
assistência nas diversas fases do ritual Constante
39
Diário de Estudo de Campo
Avaliação da performance ritual
Performance
Decoro Dos performers, músicos e Mau
acompanhantes
Música Qualidade rítmica, timbre, intensidade, Má
performatividade
Thottam e Qualidade do canto, transe e Sem
Vellattam performatividade dados
Acompanha/º Adequação do comportamento dos Sem
auxiliares dados
Pré‐ Aquecimento, decoro, predisposição Sem
performance geral para a performance dados
Theyyam Desempenho performativo de cada um Descrição
dos theyyams presentes, incluindo abaixo
transe
Sacrifício ritual Decoro, compaixão, eficácia e Sem
espectacularidade dos sacrifícios de dados
sangue
Provação do Arrojo, performance e Descrição
fogo espectacularidade das provas de fogo abaixo
Fluidez geral Ritmo do ritual Sem
dados
Eficácia da Capacidade dos performers para Sem
performance agarrar a assistência dados
Nos últimos dias tem‐me incomodado a falta de rigor e de decoro e a folclorização
do ritual a que tenho assistido. Confirmo que quanto maior é a localidade, quanto
mais próxima das grandes vias de comunicação e dos centros populacionais, mais
folclórico é o ritual e maior o desmazelo dos performers.
40
Diário de Estudo de Campo
O templo fica no centro da cidade de Payyanur, é grande, com todos os edifícios
pintados de novo. Quando aí chegámos ficámos com a impressão de nos
acercarmos de um parque de diversões, tal era a qualidade e quantidade de
iluminações festivas (ver Imagem 44). Estas prolongavam‐se para o outro lado da
rua, até à sede do CPIM (Partido Comunista da Índia – Marxista), que desta forma
parecia reivindicar a responsabilidade pela organização do evento. O envolvimento
do Partido Comunista é um facto notório em muitos templos do distrito de
Cananor, sobretudo naqueles que não são da responsabilidade exclusiva de um
tharavadu. Neste templo não só a iluminação extensível à sede do partido indicava
essa ligação: características de outros templos controlados pela estrutura política
são uma rigorosa organização, esmerada limpeza e eficaz ordenação que também
aqui se encontravam.
Às 05.30 uma dúzia de homens azafamava‐se em volta de um grande monte de
brasas, que puseram e dispuseram sucessivas vezes até entenderem que ficava
perfeito. A mim pareceu‐me que estava igual ao que estava antes.
Às 06.15 entrou um grande número de tocadores de chenda, onze, que começaram
a tocar, com pouca energia e frequentemente fora do ritmo. Atrás da fila dos
chendakkaran, duas crianças tocavam um grande tambor (ver Imagem 46) e
címbalos (ilathalam). Estas funções foram sucessivamente cumpridas por vários
adolescentes, crianças e adultos voluntariosos, com consequências desastrosas para
o ritmo da percussão.
Os homens que tinham estado a fazer a fogueira alinharam‐se numa fila que foi em
procissão visitar os vários santuários, altares e árvores sagradas no recinto. Depois
alinharam‐se em frente aos chendakkaran portando uns guarda‐sóis simbólicos
consistindo num alto cabo (aprox. 3m) encimado por uma pequena circunferência
(aprox. 15cm de raio) aparentemente em chapa e com guizos em torno (ver
Imagem 47).
Entra um performer idoso, de tal forma sumariamente trajado que não é thottam
nem vellattam embora tenha elementos do trajo destes, senta‐se num peedam em
frente do monte de brasas e executa gestos simbólicos. Depois retira‐se e os
homens que tinham feito a fogueira e que transportam agora os guarda‐sóis altos,
correm sobre o braseiro, pontapeando as brasas, continuam a correr em torno do
arangu, rodeando o santuário principal no sentido dos ponteiros do relógio, e
voltando a pisar e pontapear as brasas, lançando carvões ardentes para a sua
frente. Terão feito sete ou oito passagens cada um, com grande gritaria.
Entra Puthia Bhagavathy que se senta num peedam enquanto lhe colocam o mudi.
Um homem idoso com ar de ensonado entoa um canto, fora de ritmo e sem
entusiasmo. Depois de completado o arranjo do Theyyam, este faz várias voltas
pelo terreiro, sempre acompanhada pelos homens que passaram sobre as brasas.
A percussão continua péssima, grupos de adolescentes passeiam casualmente pelo
terreiro como o fariam num centro comercial.
Às 07.10 a assistência começa a dispersar.
41
Diário de Estudo de Campo
42
Diário de Estudo de Campo
e do ritual
43
Diário de Estudo de Campo
Avaliação da performance ritual
Performance
Decoro Dos performers, músicos e Excelente
acompanhantes
Música Qualidade rítmica, timbre, intensidade, Excelente
performatividade
Thottam e Qualidade do canto, transe e Excelente
Vellattam performatividade
Acompanha/º Adequação do comportamento dos Excelente
auxiliares
Pré‐ Aquecimento, decoro, predisposição Sem
performance geral para a performance dados
Theyyam Desempenho performativo de cada um Descrição
dos theyyams presentes, incluindo abaixo
transe
Sacrifício ritual Decoro, compaixão, eficácia e Sem
espectacularidade dos sacrifícios de dados
sangue
Provação do Arrojo, performance e Sem
fogo espectacularidade das provas de fogo dados
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Diário de Estudo de Campo
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Diário de Estudo de Campo
Vaniyar carregando um vaso de óleo de coco, produto de um dia de árduo trabalho,
e a jovem pediu‐lhe que lhe desse o óleo para se untar nele e arder mais depressa.
O Vaniyar hesitou, tentou dissuadir a moça do seu intento, mas acabou por ter
compaixão e dar‐lhe o óleo. Assim que se lançou sobre o fogo, e porque o fez em
frente a Shiva, o corpo da jovem desapareceu nas chamas e a menina foi renascida
como deusa, Muchilot Bhagavathi, a quem só os Vaniyar podem construir templos e
que é a sua principal entidade protectora.
Às 07.15 estava então a decorrer o thottam de Koodiela. Por alguma razão a deusa
Muchilot é chamada Koodiela durante o thottam mas os informantes foram
unânimes em confirmar que o thottam de Koodiela é uma fase na transformação
para o Theyyam de Muchilot Bhagavathi. Estava, pois, a ser cantado, em malaiala
arcaico, o mito que acima enunciei.
O canto é entoado pelo teyyakaran de forma muito sóbria e rigorosa e com
excelentes qualidades vocal e rítmica.
A dada altura, de dentro dos santuários, começam a responder ao canto com
sinetas. Depois, dali saem quatro co‐actuantes (que se chamam komaram) com
coroas douradas e trajos marciais. Vão enfrentar o teyyakaran e estabelece‐se uma
procissão, com os komaram a retroceder frente ao teyyakaran e todos os auxiliares
e chendakkaran (que entretanto tinham começado a tocar) atrás deste, como num
confronto militar mas sem qualquer mímica. Nesta ordem dão várias voltas ao
santuário principal, no sentido dos ponteiros do relógio.
O teyyakaran retira‐se e todos os restantes circulam em torno de uma grande
fogueira que tinha justamente sido iniciada no centro do arangu, lançando manjil
(curcuma, açafrão‐da‐Índia) sobre os troncos. O processo durou até às 08.44.
Às 08.50 entra Poliyoor Kanan Deiyvan em ritmo muito agitado. É‐lhe colocado o
mudi (mudiyettu). Vê‐se num espelho de plástico (ver Imagem 51), revira os olhos,
levanta‐se e dança. Muito bom ritmo e muita energia (ver Imagem 52). Excelente
performance, sempre dançada, sem auxiliares no terreiro. A discrição dos auxiliares
foi aliás uma das melhores impressões recolhida deste kaliyattam; eles estavam
presentes sempre que necessário mas eu não os via, não afirmavam a sua presença.
Às 09.12 acaba a percussão, o Theyyam recita algo caminhado para um lado e para
o outro em frente ao santuário. Ficou ainda no terreiro até às 10.00 distribuindo
bênçãos.
Às 10.40 um chendakkaran idoso inicia um canto. Às 10.50 entra Kannangat
Bhagavathi, processa‐se o mudiyettu e a deusa vê‐se num espelho de plástico vulgar
(ver Imagem 54).
A dança começou por ser lenta mas dinâmica, com micro‐movimentos a partir da
bacia. Aumenta o ritmo até ser muito rápida, sempre com impulsões a partir da
bacia, passos sempre certos e ritmados, os pés tocam no chão e ‘elevam’ a energia
(ver Imagem 55). Esqueço‐me da pesada veste. Auxiliares sempre discretos.
11.30, fim da percussão. Kannangat Bhagavathi vai ainda permanecer no arangu
pelo menos até às 15.30.
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Diário de Estudo de Campo
12.30, num santuário fora do arangu, Vishnumurthy está a acabar de ser vestido.
Depois do mudiyettu vê‐se ao espelho, ainda um espelho moderno mas com
aparência de metálico. Começa a dançar de forma muito energética, com excelente
ritmo (ver Imagem 58). Vai visitar os outros santuários e volta para o santuário
periférico. Aí vai permanecer pelo menos até às 15.30, distribuindo bênçãos.
Entretanto, às 13.00 entrou Pulliyoor Kali Theyyam que ocupou o centro do arangu
com uma dança muito energética, ritmicamente perfeita (ver Imagem 57).
Enquanto o ritual decorria no terreiro havia duas longas filas, uma de homens,
outra de mulheres, que esperavam a sua vez de tomar o almoço nos dois refeitórios
do tharavadu. Entre as duas filas, diria que foram servidos não menos de 3.000
almoços. Estava muito calor para comer arroz e esperar meia hora numa fila era
coisa que não podia conceber, pelo que me contentei com umas fatias de melancia
compradas numa banca montada na zona de estacionamento.
A multidão começava a adensar‐se na expectativa do Theyyam principal, Muchilot
Bhagavathi, anunciado para as 14.00. O calor era muito (suponho que próximo dos
40ºC) e para se ver qualquer coisa do que se passava no terreiro era necessário
encavalitar‐se sobre os restantes assistentes, o que os locais faziam com aparente
gosto mas que para mim era insuportável.
Cerca das 15.00 entrou Muchilot Bhagavathi mas não consegui ver nada. As
restantes entidades estavam ainda no terreiro. Recolhi ainda algumas informações
e retirámo‐nos cerca das 15.30.
O teyyakaran que encarnou Muchilot Bhagavathi, e que tive a oportunidade de ver
no thottam de Koodiela, era um senhor maduro, muito seguro do seu desempenho
e, ao mesmo tempo, discreto e humilde. Causou‐me muito boa impressão e por isso
recolhi o seu nome: Narayannan Peruvannan (Peruvannan é um título honorífico
para teyyakaran Vannan, significa grandioso Vannan) da localidade de Ozhakrome.
Tentarei estabelecer contacto.
Nesta noite tinha programado um chá com Manju e Shimna, nossos vizinhos e que
conheço da minha anterior visita a Vengara. Manju é Malayan e está ligado à
performance de Theyyam pois, embora ele não o faça, todos na sua família o fazem.
O seu contributo é confeccionar os adereços; em tempos fez a maquilhagem para
os membros da sua família mas agora a vida profissional não lho permite (é chef e
professor de culinária numa escola de hotelaria).
A minha ideia era recolher informações necessárias ao meu estudo, com grande
tacto e discrição. É regra conhecida das ciências sociais: quando se sabe sob
observação, a pessoa altera o seu comportamento. De igual forma, quando sujeito a
interrogatório, alterará as informações. Sobretudo quando o tema do
questionamento é algo tão intimo quanto a crença religiosa do indivíduo.
Ia eu pois proceder com a maior cautela e colocar as minhas questões de forma
circunspecta. Mas cometi a imprudência de, por educação e esperando uma recusa,
convidar a que se juntasse a nós um casal de turistas polacos que estão
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Diário de Estudo de Campo
temporariamente a viver na mesma casa que nós. Não só aceitaram como a
senhora monopolizou a conversa, bombardeando Manju com toda a espécie de
perguntas estouvadas e inconvenientes sobre o Theyyam. Não só perdi a
oportunidade como terei que deixar passar algum tempo para que se desvaneça a
impressão causada.
30 de Janeiro de 2015 / 16 de Makaram de 1190 / Sexta‐feira
Organização de notas.
Fui visitar Rajesh Peruvannan a sua casa em Kunhimangalam. Fiquei a saber do seu
calendário e vou prestar atenção à sua performance.
Fomos jantar a casa de Manju e Shimna mas não abordei questões relacionadas
com o Theyyam. Mas Manju ofereceu‐se para vir a minha casa no dia seguinte e
esclarecer‐me as minhas questões.
31 de Janeiro de 2015 / 17 de Makaram de 1190 / Sábado
Organização de notas.
A meio da tarde Manju veio cá a casa e esclareceu‐me sobre algumas questões de
vocabulário. Eu procedi com casualidade, não mostrando um interesse muito
grande e, de quando em quando, desviando a conversa para temas diversos. Ajudou
o facto de a Madina estar a pintar um quadro com uma representação de Gulikan
vellattam e isso suportava uma conversa com alguma informalidade. Até que a
nossa companheira de casa decide vir juntar‐se a nós com um chorrilho de
queixumes e disparates acerca das suas aventuras de turista de Theyyam que me
estragou de novo as possibilidades de continuar a recolher informações fiáveis.
Convidei Manju para vir jantar amanhã mas antes vou ter que ter uma conversa
com a senhora para lhe explicar a inconveniência dos seus comportamentos.
1 de Fevereiro de 2015 / 18 de Makaram de 1190 / Domingo
Organização de notas e leituras.
Manju escusou‐se educadamente a vir jantar e eu compreendo‐o. Ficará para outra
altura mas terei que reganhar a sua confiança.
2 de Fevereiro de 2015 / 19 de Makaram de 1190 / Segunda‐feira
Viagem para Thrissur.
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Diário de Estudo de Campo
3 de Fevereiro de 2015 / 20 de Makaram de 1190 / Terça‐feira
Visita ao Kerala Kalamandalam, academia de artes performativas tradicionais de
Querala.
Embora não faça parte do presente estudo, deixo aqui algumas notas para
referência futura.
Fundado em 1930, o Kalamandalam tem cerca de 500 alunos, em regime de
internato, que entram com a idade máxima de 14 anos (idealmente 12 ou 13) para
um curso de 10 anos.
A academia está dividida em cinco faculdades e 14 departamentos:
‐ Kathakaly ‐ Música
‐ Vadakan
‐ Thekan
‐ Chenda
‐ Maddalam
‐ Maquilhagem
Kutiattam ‐ Masculino
‐ Feminino
‐ Mizhavu
Thullal
Dança Clássica
Música Clássica
‐ Thimila
‐ Mridangam
Aos 14 departamentos correspondem 14 licenciaturas.
4 de Fevereiro de 2015 / 21 de Makaram de 1190 / Quarta‐feira
Regresso a Vengara.
Definição de prioridades:
‐ preparar entrevistas formais com académicos;
‐ preparar entrevistas semi‐estruturadas com performers;
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Diário de Estudo de Campo
‐ resolver as questões para a realização de um documentário;
‐ ver Muthappan em kaliyattam e no templo de Parassinikadavu;
‐ perceber as funções e hierarquia dos oficiantes na cerimónia (e indumentária);
Temas:
‐ a deriva estrutural de Muthappan e a sanscritização e modernização do Theyyam;
‐ o “autêntico” e o “falso” na performance;
‐ o processo de preparação;
‐ a transformação, descrição do fenómeno;
‐ o fim da performance e o “eu”;
5 de Fevereiro de 2015 / 22 de Makaram de 1190 / Quinta‐feira
Estudo de textos vários.
6 de Fevereiro de 2015 / 23 de Makaram de 1190 / Sexta‐feira
Estudo de textos vários.
17.00, saída para uma observação participante
Observação / Participação Parcial na cerimónia anual de Parayil Madappuram
(templo de Muthappan), Kunhimangalam, Payyanur, distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _06‐07_/ _Fev_/ 2015
Tipologia ______kaliyattam__________ Duração ____22 horas (2º informantes)___
Localidade ___Kunhimangalam__ Templo __ Sree Muthappan Temple_________
Comunidade do Templo _o templo foi outrora pertença de uma família Thiyya mas
esta não foi capaz de manter o funcionamento e este foi assumido pela comunidade
local, que elege uma comissão para a sua gestão.____________________________
Comunidade dos performers _________Vannan ____________________________
Horário da observação __________17.30_/ 20.15 – 06.20 / 07.40______________
Entidades encarnadas __ Sree Muthappan__________________________________
____________________ Thiruvappan Theyyam______________________________
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Diário de Estudo de Campo
O ritual desenvolveu‐se de forma muito diferente do que tive a oportunidade de
observar no templo da estação ferroviária de Cananor4.
Quando chegámos às 17.30 estava‐se ainda numa fase preparatória. O templo é
pequeno, um recinto de aprox. 10m x 20m, completamente coberto por um telhado
metálico. Dentro do recinto, um único santuário, em frente a este e alinhado com a
entrada do recinto um grande nilavilakku e à esquerda, a meio caminho entre a
entrada e o santuário, uma kalashathara. No canto direito, à frente, um poço. Por
trás do santuário, o aniara (vestuário). Em frente ao recinto do templo, uma grande
imagem em bronze de um cão, o companheiro de Muthappan (ver Imagem 60).
Às 18.00 iniciou‐se um ritual junto a uma instalação fora do arangu e que consistia
num suporte com várias grinaldas de flores, um grande cântaro e comida (flocos de
arroz, lascas de coco e feijões cozidos) colocada em folhas de bananeira. Deste
ritual, que durou cerca de 8 minutos, resultou uma pequena quantidade de
prasadam que foi distribuída pelos participantes (chendakkaran e oficiantes). Uma
pequena parte deste prasadam foi levado para o santuário onde foi multiplicado,
resultando numa generosa quantidade de comida ritual que foi distribuída em
folhas de bananeira por todos os assistentes.
06.30, toque de sanku (búzio) em frente ao santuário. Um grupo de pessoas,
homens mulheres e crianças, acende pavios (naithiri) no grande nilavilakku central.
Informam‐me que estes são os doadores que contribuíram para a realização da
cerimónia (ver Imagem 62).
Durante ente tempo o teyyakaran maquilha‐se e veste‐se por si só (ver Imagem 61),
recorrendo apenas à ajuda dos auxiliares para as partes impossíveis de executar ou
vestir sozinho. Faz estas operações por trás do santuário, na área de aniara, mas à
vista. Verifico que a barba não é colada ao rosto mas consiste em duas peças,
superior e inferior, que são amarradas na nuca.
19.00, inicio da percussão com cinco chenda, a que se juntam um tocador de
ilathalam (címbalos) e um tocador de cheena kool (instrumento de sopro).
Muthappam vem para afrente do arangu, contornando o santuário no sentido dos
ponteiros do relógio. Usa apenas um kireedorn sobre a cabeça. Vem agitado. Faz
uma breve saudação em frente ao santuário e procede para a kalashathara onde
está pousado o mudi. Executa o mudiyettu com pouca ajuda dos auxiliares. O corpo
treme. Vai ao santuário buscar arroz que distribui pelos oficiantes e músicos. Todos
lançam punhados de arroz cru em direcção ao nilavilakku. Saem os músicos, com
excepção de um chendakkaran que acompanhará o thottam. O canto é realizado
4
Mais tarde Dinesan Vadakkiniyil chamar‐me‐á a atenção para que hesistem vários rituais
que Muthappan pode desempenhar e que não se podem comparar as performances de
rituais distintos. O Doutor Vadakkiniyil ficou muito surpreendido quando soube desta
minha observação de Muthappan com Thiruvappan num templo de aldeia pois, segundo
ele, este ritual só é habitualmente realizado no templo de Parassinikadavu.
51
Diário de Estudo de Campo
por três auxiliares, Muthappan não canta. Fiquei com a impressão que os cantores
não conheciam as palavras do canto pois não as articulavam correctamente.
Às 19.20 entram todos os músicos e acaba o canto. A partir daqui e até às 20.10,
Muthappan não parará de dançar a um ritmo muito acelerado, cumprindo as
funções rituais, oferendas, bênçãos, etc. sem nunca parar de dançar. O madayan,
que entrou nesta altura, executou as suas funções com uma postura hierática,
dançando apenas o necessário para acompanhar Muthappan, quando necessário.
Mas foi a dinâmica do Theyyam que mais impressionou e que tornou a performance
totalmente distinta da observada no templo da estação ferroviária. Muthappan
exibia uma atitude irreverente a fazer jus ao mito que explica a sua origem. Por
várias vezes pareceu sair do guião do ritual e desafiar as convenções.
Às 20.10 a divindade parou de dançar, tendo cumprido todas as funções rituais e
instalou‐se no peedam onde recebeu uma longa fila de crentes que lhe vieram pedir
bênçãos ou conselhos.
Mas as filas (uma para homens e outra para mulheres) que se formavam em frente
ao refeitório ao ar livre eram muito maiores e, pareceu‐me, ultrapassavam
largamente o número de pessoas que tinham estado a assistir ao ritual. Fiquei com
a impressão, que já tinha tido antes, de que muita gente vem apenas para usufruir
de uma refeição gratuita, apesar de consistir no mesmo de que usufruem
diariamente nas suas próprias casas, ao almoço e ao jantar: invariavelmente arroz
com caril. Não se pode evocar o pretexto da sociabilidade da refeição em grupo: as
pessoas aguardam calmamente numa fila, sem grandes conversas, pela sua vez de
se sentarem no refeitório. Uma vez aí, deglutem uma grande quantidade de arroz
com caril no tempo mínimo de sete ou oito minutos, sem conversar com os vizinhos
de mesa e concentrados apenas no acto de levar a comida à boca. Não sendo pela
sociabilidade nem pela variedade da comida, só vejo a gratuitidade como explicação
para o grande afluxo de gente a estas refeições.
Regressei a casa, voltarei pela manhã.
7 de Fevereiro de 2015 / 24 de Makaram de 1190 / Sábado
Partimos para Kunhimangalam às 06.00.
Chegámos ao templo às 06.20, já o ritual ia avançado. Ainda a questão do uso do
tempo pelos indianos: na maioria das vezes em que me dizem que o ritual começa
às cinco horas, tenho que esperar até às sete, oito ou nove antes que aconteça
alguma coisa. Hoje decidi aproveitar mais uma hora de descanso, julgando que
chegaria muito a tempo, começaram à hora marcada (cinco horas). A lua parecia ter
passado o zénite cerca de uma hora antes. Seria esse o sinal para o começo do
ritual? Algumas vezes verifiquei essa coincidência mas os informantes não me têm
ajudado, provavelmente porque também eles não sabem. Tentarei esclarecer essa
questão com os performers.
Sree Muthappan e Thiruvappan Theyyam dançavam lado a lado frente a um
‘penitente’ (chamo‐lhe assim porque me sugeriu essa imagem) que carregava à
52
Diário de Estudo de Campo
cabeça a ‘instalação’ que referi no dia anterior: o suporte com grinaldas de flores
montado sobre um grande cântaro parecia uma árvore dentro de um vaso. O
‘penitente’ recuava, as divindades enfrentavam‐no com ar feroz e um cortejo de
músicos e auxiliares seguia atrás dos dois Theyyams. O conjunto fez várias voltas ao
santuário, circulando‐o no sentido dos ponteiros do relógio56.
Depois seguiram‐se várias sequências dançadas, mimando situações de caça e de
interacções diversas entre os dois Theyyams (ver Imagens 64 e 65). Thiruvappan,
usando poyii kannu (óculos metálicos), tinha dificuldades de visão e Muthappan
ajudava‐o. Muthappan muito irreverente, vocifera, arremessa objectos, senta‐se no
meio da assistência. Esta, composta por cerca de trinta pessoas, não se ri, parece
ignorar o humor contido no comportamento da divindade.
Num momento mais agitado da dança, o performer que personifica Thiruvappan
finge um excesso, um transe. Os auxiliares intervêm, levam‐no a sentar no peedam
e a dança chega ao fim com naturalidade. O performer exibe uma tremura mas é
evidentemente fingida. Muthappan continua a vociferar, parte em malaiala e,
pareceu‐me, outra parte em linguagem inventada. Os crentes alinham‐se e recebem
conselhos e bênçãos dos Theyyams.
Às 12.00 haverá nova sequência, com Muthappan de certeza, de Thiruvappan não
sei. Tenho outros compromissos, não posso ficar.
8 de Fevereiro de 2015 / 25 de Makaram de 1190 / Domingo
Fomos assistir ao casamento de Krishnendu, sobrinha de Santhosh. A família trata‐
nos como se fossemos velhos amigos, são extremamente atenciosos e gentis.
Sentimo‐nos optimamente no ambiente familiar do casamento, até porque
conhecemos ou somos amigos de muitos dos convidados.
Tomei conhecimento de um kaliyattam de Muchilot muito próximo da nossa casa,
esta noite. No regresso a casa passámos pelo templo para averiguar do interesse
que podia ter para a minha investigação. Gostei do que vi, decido regressar à noite.
Regressamos ao templo cerca das 20.00.
5
Mais tarde fiquei a saber que o objecto é a kalasha e esta parte do ritual é o kalasham.
6
O performer que fazia Muthappan era Rajesh Peruvannan, não o mesmo que fizera a
performance de Muthappan na noite anterior.
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Diário de Estudo de Campo
Observação / Participação Parcial na cerimónia anual de Madayi Sree Muchiloottu
Bhagavathi Temple, Payangadi, distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _08‐09_/ _Fev_/ 2015
Tipologia ______kaliyattam__________ Duração ____sem dados_______________
Localidade ___Payangadi__ Templo __ Sree Muchiloottu Bhagavathi Temple_____
Comunidade do Templo ___________Vaniyar_______________________________
Comunidade dos performers _____Vannan e Malayan (os komaram são Vaniyar)___
Horário da observação __________20.00_/ 22.30 – 00.30 / 02.30 ______________
Entidades encarnadas __ _Pulyoor Kanan Vellattam__________________________
____________________ Vishnumurty Thottam______________________________
____________________ Kunnangat Bhagavathi Thottam ______________________
____________________ Pulyoor Kali Thottam ______________________________
____________________ Narambil Bhagavathi Thottam ______________________
(apenas registo o programa das entidades observadas)__________________
A presença neste ritual aconteceu quase por acaso, só no próprio dia soube do
evento e compareci principalmente por ser muito perto de minha casa e por ser
mais uma oportunidade para observar um kaliyattam num templo de Muchilot, que
tem alguma especificidade. Mas o teyyakaran que fez o vellattam de Pulyoor Kanan
impressionou‐me muito positivamente e decidi voltar à uma hora para tentar ver o
Theyyam do mesmo. Foi a primeira vez que tive a impressão de que o performer
estava num estado alterado de consciência, com um tremor genuíno e uma energia
extraordinária. Depois de dançar energicamente passou a distribuir bênçãos pelos
assistentes mas parecia que essa função o incomodava e interrompia
frequentemente para voltar a dançar, como que a restabelecer a energia. O
performer tem apenas 15 anos, é estudante e teyyakaran esporádico (só volta a ter
um kaliyattam a 30 de Abril). Consegui falar com o pai e obtive o seu contacto,
espero entrevistá‐lo em breve.
Thottam de Vishnumurty também muito bem executado, energético mas sem a
qualidade sobre‐humana denotada na anterior performance.
Às 22.30 regresso a casa durante um par de horas. As informações que recolhi sobre
o programa da noite são todas contraditórias: de sete ou oito informantes, todas as
informações são diferentes. Decido regressar às 00.30 a ver o que resulta.
A assistência resumia‐se a uma vintena de pessoas.
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Diário de Estudo de Campo
Estava a decorrer o thottam de Kannangat Bhagavathi. Seguiram‐se os thottams de
Pulyoor Kali, à 01.00 e o de Narambil Bhagavathi, às 01.20. todos os Thottams
foram executados com energia e ritmo e sempre interagindo com quatro komaram,
indivíduos vestidos como guerreiros, com uma coroa dourada na testa, enfeites
dourados, com chilampu nos pés e portando uma espada pallival. A performance
dos komaram teve especial importância em todos os thottams. O teyyakaran que
fez o thottam de Narambil Bhagavathi teve uma performance especialmente
energética e demonstrava um estado de consciência alterado.
No fim dos thottams os komaram fizeram um ritual próprio. Os komaram
pertencem ao jati que detém o templo, são Vaniyar. Reuniram‐se fora do arangu,
acompanhados pelos músicos, e dançaram energicamente. Depois ficou só um que,
enquanto dançava, ‘sorvia’ o fogo de uma lamparina e manifestava um estado de
excitação extraordinário. Celebrou um sacrifício junto a um kothirithattu, degolando
uma galinha com o pallival. Depois bebeu grande quantidade do sangue da ave e,
com a espada, derrubou o kothirithattu. Deslocaram‐se todos para a frente do
santuário principal onde continuaram a dança e fizeram oferendas de cocos,
partindo‐os sobre o peedam. Estes cocos serão usados para confeccionar prasadam.
Estavam cinco homens jovens num espaço contíguo ao terreiro onde havia uma
fogueira num buraco escavado no chão. Explicaram‐me que estes homens tinham a
função de fazer o prasadam. Estavam no templo desde há dois dias e cumpriam
uma série de restrições alimentares e banhos de purificação regulares para
poderem cumprir esta função.
No redor do terreiro estavam afixadas pancartas indicando a proibição total de
fotografar ou videografar o ritual. Como a informação estava em malaiala, ainda fiz
algumas fotografias (que depois apaguei) antes de perceber a proibição, que saúdo
como muito benéfica para o kaliyattam e para a prática ritual do Theyyam em geral.
Gostaria que servisse de modelo a outros templos.
Às 02.00 ninguém me sabia dizer qual era a sequência do programa. A lua parecia
próxima do zénite e, embora todos os membros da organização me dissessem que
os Theyyams não começariam antes das 06.00, havia no vestiário um performer
quase pronto para entrar. Coloquei a hipótese de o performer entrar quando a lua
estivesse no zénite (mais tarde, em casa, verifiquei pelo calendário que o dia tithi
começaria cerca das 04.35).
Às 03.00 a lua estava ainda muito longe do zénite; o teyyakaran estava meio
maquilhado e meio vestido mas não parecia apressado em ultimar a preparação.
Decidi regressar a casa pois tinha compromissos pela manhã.
Definitivamente, parece‐me que as comunidades de performers não dão aos
organizadores todas as informações sobre o horário do ritual. Os administradores
do templo estão interessados em ter o Theyyam no “horário nobre”, quando haja
mais público que contribua para o sucesso do evento e para as receitas monetárias
em dádivas para o templo. Mas os teyyakaran terão razões que os levam a realizar
parte das funções em horários específicos, das quais não dão explicações.
Tentarei perceber melhor esta questão.
55
Diário de Estudo de Campo
9 de Fevereiro de 2015 / 26 de Makaram de 1190 / Segunda‐feira
11.00, visita a Rajesh Peruvannan; apenas para me informar da sua agenda de
rituais e construir uma relação de confiança. Irei esta noite vê‐lo mais uma vez,
desta a fazer Kandanar Kelan.
Organização de notas.
Às 17.30 partimos para observar/ participar num kaliyattam.
Observação / Participação Parcial na cerimónia anual de Kutti Tharavadu,
Kunhimangalam, Payyanur, distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _09‐ 10_/ _Fev_/ 2015
Tipologia ______kaliyattam__________ Duração ____sem dados_______________
Localidade ___Kunhimangalam__ Templo __ Kutti Tharavadu_________________
Comunidade do Templo ___________Thiyya________________________________
Comunidade dos performers _____Vannan _________________________________
Horário da observação __________18.00_/ 19.30 – 04.40 / 06.20 ______________
Entidades encarnadas __ _Kandanar Kelam_________________________________
(apenas registo o programa das entidades observadas)__________________
A participação neste kaliyattam ocorre com o propósito principal de observar a
performance de Rajesh Peruvannan. Ele não me deu pormenores sobre o horário
(começa a perecer‐me que é um segredo dos performers) pelo que fui para o
tharavadu antes do início da cerimónia.
O tharavadu é pequeno e numa área rural, embora próxima da cidade. Segundo
informantes, todo o complexo foi reconstruído e este é o primeiro kaliyattam que
se faz depois da reconstrução. De resto, o tharavadu tem cerca de 35 anos, neste
mesmo local mas com instalações mais humildes e sempre se fez um kaliyattam
anual, pelo que esta é a 36ª cerimónia anual. A família tem cerca de uma centena
de membros e é matrilinear; confirmei que os meus informantes tinham o nome
das mães, Kutti. As gentes são muito humildes mas muito simpáticas e generosas,
com muita vontade de comunicar. Ensaiámos umas frases em malaiala, o que
contribui para o bom humor geral.
Os performers Vannan estão ocupados a construir as indumentárias, entrançando
flores e ervas. Estão concentrados e, apesar de já conhecer vários entre eles, pouco
disponíveis para comunicar.
56
Diário de Estudo de Campo
Em frente aos santuários há uma mandala desenhada no chão, já meio apagada.
Explicam‐me que foram os brâmanes que a desenharam quando vieram consagrar
os santuários, após a reconstrução.
Cerca das 18.30 começou o thudangal que durou até cerca das 19.00. Dois
performers cantaram em frente do santuário, acompanhados pelos músicos.
Às 19.20, à falta de informações sobre o programa, decidi retirar‐me e voltar mais
tarde.
Saímos de casa às 04.15 e chegámos ao tharavadu às 04.40. Antes disso tínhamos
estudado a posição da lua e obtido a informação de que estaria no zénite às 04.47.
não tínhamos qualquer informação sobre o programa do kaliyattam e estávamos a
apostar na hipótese da coincidência entre o zénite lunar e o ritual do Theyyam
principal. Que se confirmou.
Às 04.40 estava tudo pronto no arangu para a entrada de Kandenar Kelam. Quatro
montes de brasas no terreiro, muita assistência (cerca de 200 pessoas que, para o
tamanho do terreiro, era muita gente), todos silenciosos e expectantes.
Às 05.05 começou a entoar‐se o thottam de Kandanar Kelam no vestiário. Sinais de
muita agitação, como é próprio deste Theyyam. Às 05.15 entrou Kandenar Kalan,
subiu para o peedam no meio das brasas, recitou as suas falas, desceu do banco,
pontapeou as brasas violentamente, atirando carvões ardentes sobre a assistência.
Prosseguiu o ritual com as passagens sobre a fogueira, muto prejudicado pelas
escassas dimensões do arangu que não lhe permitiam ganhar velocidade para a
passagem. Mas o performer soube aceitar a contrariedade e, já que não podia
correr, assumiu caminhar muito calmamente pelo meio da fogueira, algumas vezes
parando mesmo no centro das labaredas.
Ao fim de 15 minutos de passagens sucessivas sobre as chamas, o performer
parecia exausto mas a divindade ainda não satisfeita. A intervenção dos auxiliares
obrigou‐o a encerrar esta fase do ritual e a passar às fases seguintes.
Observei o ritual até ao fim (cerca das 06.10); não havia sinais de acontecer mais
nada de imediato e às 06.20 retirei‐me.
10 de Fevereiro de 2015 / 27 de Makaram de 1190 / Terça‐feira
Ida a Cananor para percorrer o circuito das livrarias à procura de alguns livros
essenciais de que só recentemente tomei conhecimento. Infelizmente as livrarias
estão cheias de álbuns fotográficos de Theyyam e algumas publicações em malaiala.
As obras importantes não estão disponíveis. Pedi que mas encomendassem.
Organização de notas.
Preparação de entrevistas com teyyakaran.
57
Diário de Estudo de Campo
11 de Fevereiro de 2015 / 28 de Makaram de 1190 / Quarta‐feira
No kaliyattam do domingo passado identifiquei um jovem performer que achei
muito interessante pela seriedade e pelos indícios de estar num estado alterado de
consciência. Ontem telefonei‐lhe e tínhamos marcado para eu o visitar em casa às
17.00.
Cedo pela manhã começou a telefonar‐me. Queria que me encontrasse com ele na
escola às 15.00. Achei que me queria exibir na escola como atracção e que não ia
ter oportunidade de o entrevistar. Disse‐lhe pois que não podia, que tinha que ser
às 17.00 em casa dele. Disse‐me então que a essa hora não podia pois tinha que ir
para um kaliyattam. Óptimo, então vou ao kaliyattam. Indicou‐me o endereço de
Ramapuram Pathikal, para lá de Mathamangalam. Decidi ir por volta das 23.00,
sozinho porque a Madina está com gripe. Andei muitos quilómetros por caminhos
de terra batida pelo meio da floresta; por sorte encontrei quem me indicasse o
caminho e até me levasse lá. Chegado ao templo, como os meus acidentais guias já
me tinham advertido, não se passava nada.
De regresso passei pelo templo de Putiya Bhagavathi em Cheravicheri, onde estava
a decorrer um kaliyattam. Parei, estava a decorrer o thottam de Kativenur Veeram.
Pouca gente a assistir, o performer parecia enfadado. Maus exercícios de kalari
paiattu, péssima acrobacia.
Enfadei‐me também e regressei a casa, onde cheguei cerca das 02.00.
12 de Fevereiro de 2015 / 29 de Makaram de 1190 / Quinta‐feira
Leituras, reflexão sobre o rumo da investigação. Sinto que estou a perder tempo: os
académicos a quem escrevi não me respondem, está difícil de conseguir entrevistas
com os performers.
Manju informou‐me de um kaliyattam em Payyanur onde aparecerá Thee
Chamundi. Decido ir lá pela madrugada. O zénite da lua será às 07.10, as
informações que tenho indicam a Thee Chamundi às 04.00. Decido ir às 04.00 e ver
o que acontece.
13 de Fevereiro de 2015 / 30 de Makaram de 1190 / Sexta‐feira
A gripe da Madina agravou‐se e ela não estava capaz de sair de casa. Fico também
em casa para tratar dela. Aproveito para ler, escrever e descansar.
14 de Fevereiro de 2015 / 1 de Kumbham de 1190 / Sábado
Continuo em casa; aproveito para me organizar, ler e escrever.
Às 22.30 saio para ir a um kaliyattam. Como a Madina continua doente, vou
sozinho.
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Diário de Estudo de Campo
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Diário de Estudo de Campo
tão corpulento a dançar com tanta graça e elegância; atitude muito feminina.
Discretamente, sacrificou uma galinha. Recebeu a chama do santuário, executou
vários actos simbólicos e foi visitar todos os santuários. Depois visitou o tharavadu
onde, como habitualmente, foi recebido pelas mulheres. De seguida foi para o
vestiário.
Nota sobre a posição das mulheres no tharavadu. Claro que o tharavadu é ocupado
pelas mulheres. Pois se o jati Thiyya é matrilinear, é às mulheres que pertence a
casa, é por elas que se transmite o nome e a herança. Que a sociedade seja
machista é outra história, ou talvez a continuação da mesma história: com as
mulheres presas à casa, os homens gozam de maior liberdade de acção. Devo tentar
verificar se em tharavadus de linhagem patrilinear o comportamento em relação a
receber os Theyyams no tharavadu é o mesmo. Verificação difícil, até agora todos
os kavus visitados pertencem a Thiyyas, com excepção dos que pertencem à
comunidade e são administrados por uma comissão (sem tharavadu portanto) e de
dois templos de Muchilot Bhagavathi, dos Vaniyars, onde não vi um tharavadu com
as características dos dos Thiyya. Mas ficarei atento.
Pouco depois de terminar o thottam descrito começou o thottam de Manhalama
junto ao santuário exterior consagrado às deidades desempenhadas pelos
Chingathan. A este propósito: quando no início da observação visitei os diferentes
santuários e vestiários para me inteirar das divindades e grupos sociais presentes, o
elemento do grupo Chingathan que, com muita dificuldade de se expressar em
Inglês, me deu algumas informações, fez muita questão de sublinhar que os
Chingathan são uma tribo, não uma casta.
O thottam de Manhalama, frente ao santuário em esteira construído à volta de uma
árvore, começou com as habituais bênção aos oficiantes e co‐performers, após o
que o teyyakaran recebeu a chama do interior do santuário das mãos do oficiante.
Levanta‐me aqui a questão: no thottam qual é o momento certo para a recepção da
chama? Kunhavue Kurathi recebeu‐a no final da cerimónia, Manhalama recebeu‐a
no início. Será variável? Será indiferente?
Com a chama o teyyakaran passou a fazer um ritual no chão, distribuindo vários
pavios da chama principal por várias folhas mais pequenas, distribuindo arroz por
cada uma das folhas, abençoando, recitando… no final deixou a chama no chão, ela
acabou por ser varrida para fora da área do ritual. O teyyakaran, assistido, coloca a
coroa (kireedorn) e passa à entoação do thottam. Em voz baixa, quase sussurrada,
entoa um canto muito bonito por cerca de vinte minutos (ver Imagem 66). Depois,
vai visitar os santuários e retira‐se para o vestiário onde, entretanto, se estava a
preparar o Theyyam de Vannathi Bagavathi.
Verifiquei ao longo desta noite que os Theyyams ou teyyakaran cujo santuário se
situa fora do arangu, isto é, Velan e Chingathan, quando visitam os santuários,
visitam‐nos todos. Os Theyyams ou teyyakaran Malayan nunca visitam os
santuários fora do arangu. Isto traduz o desprezo de que são alvo Velan e
Chingathan, mesmo por parte dos Malayan, um grupo de outrora ‘tribais’ e
‘intocáveis’.
60
Diário de Estudo de Campo
O Theyyam de Dumarbagodi decorreu ao mesmo tempo que o thottam de
Manhalama. Não podia prestar atenção aos dois mas pude ver que o Theyyam
começou por receber a chama no santuário principal e procedeu a visitar os
restantes santuários no interior do arangu. Pareceu‐me energético e de curta
duração. Uma grande parte do tempo foi usada numa digressão fora do recinto do
templo, não sei se terá ido visitar a aldeia ou os bosques.
Pouco depois entrou o Theyyam de Vannathi Bhagavathi, pelo corpo de um
performer muito jovem e de pequena estatura. Executou uma performance
dançada, muito bonita e bem ritmada. A certa altura mimou o acto de lavar roupa,
usando um pano branco comprido que esfregou, bateu, enxaguou. Depois mimou o
acto de lavar os cabelos, executando no lenço que traz na cabeça e lhe cobre as
costas, os gestos que me habituei a ver as mulheres minhas vizinhas a fazer nos
pátios das suas casas. Por fim, mimou o acto de se lavar.
Para executar o sacrifício de sangue, o Theyyam segurou uma galinha pela cabeça e
pelos pés, mantendo‐a na horizontal. Com os braços erguidos, apresentou‐a
primeiro na direcção do santuário principal, depois na direcção do seu santuário e
depois nas direcções cardinais restantes. Depois trincou a base do pescoço da
galinha, segurando‐a com os dentes enquanto com a mão direita lhe torcia o
pescoço até lhe arrancar a cabeça, espalhando sangue em seu redor. A galinha foi
largada e ignorada e, em estertor, derramou o sangue no chão.
O pano que tinha servido para mimar a lavagem de roupa foi embrulhado numa
trouxa que foi colocada sobre a cabeça do Theyyam e é carregado assim que vai
visitar o tharavadu, onde lhe oferecem mais dois panos novos: trata‐se de um
mattu? Depois retirou‐se.
Eram 03.00 e entrou Karivadi Bhagavathi. Colocou o mudi no terreiro e queria ter
visto o momento de se olhar ao espelho mas fui distraído por pessoas locais que, na
sua enorme vontade de me serem prestáveis, insistiam em me explicar o que se
estava a passar. A dança foi regular, energética, ritmada, nada me chamou a
atenção particularmente. O sacrifício foi executado pelos auxiliares. O sangue foi
recolhido pelos auxiliares numa taça e depois entornado no chão em frente a um
altar sacrificial (kothirithattu).
O Theyyam abandonou o recinto às 04.00 e eu estava a considerar retirar‐me
também quando, logo de seguida, entrou Pottam Theyyam. Durante mais de uma
hora o Theyyam dançou de forma muito energética, batendo nos chootu com que
os auxiliares o iluminavam, assim provocando um festival de faúlhas sob o qual se
divertia dançando (ver Imagem 67). Foi buscar todos os membros masculinos do
tharavadu, vizinhos, patrocinadores e colaboradores, levou‐os para a frente do
santuário onde os abençoou.
O grande atractivo de Pottam Theyyam é que ele se deita sobre um monte de
carvões em brasa e se deixa repousar aí. Sentado nas bordas de um monte de
brasas, reclina‐se para trás e cruza a perna direita sobre a esquerda e pretende
repousar‐se até que os auxiliares o retirem do braseiro.
61
Diário de Estudo de Campo
Eu estava já muito cansado e quando o Theyyam entrou precipitei‐me para junto do
braseiro para ter uma boa visão do acto. Fiquei assim mais de uma hora a três
metros de uma grande fornalha, com uma fogueira ao lado onde ardiam os troncos
que não tinham sido reduzidos a carvão, em equilíbrio instável a tentar defender a
minha posição dominante da multidão que me pressionava. O calor era tanto e eu
estava tão esgotado que temia desmaiar. O Theyyam iniciou uma recitação que
parecia ir prolongar‐se.
Decidi pois retirar‐me cerca das 05.30. O ar fresco da madrugada durante a viagem
de scooter reanimou‐me.
Logo que cheguei ao templo, ao recolher algumas informações junto dos membros
do tharavadu, apontaram‐me um cavalheiro de cerca de 60 anos que seria o
patrocinador do kaliyattam e que falava bem inglês. Logo que tive oportunidade
entabulei conversa com ele. Depois das apresentações perguntei‐lhe porque é que
patrocinava o evento. Pareceu surpreendido por eu saber dessa sua participação
mas explicou‐me que há dois anos atrás a sua filha padeceu de um problema de
saúde e que, nessa altura, tinha feito a promessa. A resposta pareceu‐me adequada
mas, com a continuação da conversa, comecei a divisar uma pessoa culta, um
empresário pragmático e bem sucedido, com explicações causais e práticas para
vários aspectos do ritual. Sem descartar a sinceridade dos seus propósitos
explícitos, julgo que o patrocínio ao evento lhe poderá trazer outros benefícios
práticos: peso político, vantagens negociais ou o reconhecimento da comunidade
também entrarão nos cálculos do patrocinador.
Não é membro deste tharavadu, embora o seu avô paterno fosse. Não é pois
directamente membro da linhagem matrilinear mas, indirectamente, sente‐se
ligado a ela. O tharavadu é tão antigo que ninguém lhe saberá determinar a origem.
Os presentes edifícios foram reconstruídos no início dos anos 80 do século passado
mas logo depois o tharavadu ficou inactivo. Há catorze anos atrás foi feito um
kaliyattam mas não teve continuidade. Este ano é o primeiro de um novo ciclo, que
se pretende que tenha continuidade. Já há pessoas envolvidas nas actividades, um
homem para acender as lamparinas todas as noites, uma senhora para limpar as
instalações, os membros estão interessados em continuar.
O grande problema desta casa é a dimensão do evento preconizado: com 26
Theyyams ao longo de três dias, este é um festival muito caro e é difícil reunir as
verbas para o realizar.
As datas do kaliyattam não são fixas: tem que ser durante o mês de Kumbham mas
a data foi fixada em função de razões práticas, como a existência de outros eventos
na área, por exemplo, com o objectivo de trazer mais gente, mais doações. As datas
escolhidas, logo no início do mês malaiala, recaíram sobre um fim‐de‐semana. Não
houve intervenção de astrólogos ou adivinhos nesta escolha e a data não foi fixada:
no próximo ano pode ser escolhida outra data mais conveniente, desde que seja no
mês de Kumbham.
Confirmou‐me que no passado as datas eram determinadas em função do ñattuvela
mas que isso mudou porque houve um crescimento do número de kavus: hoje isso
62
Diário de Estudo de Campo
seria impossível, os templos que têm um kaliyattam anual têm que ter uma data
fixa.
Confirmou‐me também que nos últimos quarenta anos, depois de ter parecido que
a prática do Theyyam iria desaparecer, houve um recrudescimento, traduzido na
reconstrução e reactivação de muitos kavus que estavam abandonados e na
introdução de outros novos.
15 de Fevereiro de 2015 / 2 de Kumbham de 1190 / Domingo
Organização de notas e planificação.
16 de Fevereiro de 2015 / 3 de Kumbham de 1190 / Segunda‐feira
Saí cedo pela manhã, sozinho, para participar num kaliyattam. O tharavadu fica
longe e fora da área definida para o meu estudo mas trata‐se da família da esposa
de Narayanan, sogra de Santhosh portanto, e é uma obrigação familiar a que não
nos podemos escusar. Estou definitivamente integrado: já assisto a casamentos e
tenho obrigações familiares. Se a minha família soubesse disto pasmava!
Observação / Participação Parcial na cerimónia bienal de Koyithattil Tharavadu,
Kayyoor, distrito de Kasaragod.
Ficha de Observação de Evento
Data _16_/ _Fev_/ 2015
Tipologia ______kaliyattam__________ Duração _+/‐_20 horas (2º informantes)___
Localidade ___Kayyoor___________ Templo __ Koyithattil Tharavadu______
Comunidade do Templo ___________Thiyya__(tharavadu: Koyithattil)___________
Comunidade dos performers _____Vannan e Malayan________________________
Horário da observação __________08.00 / 13.30______________ ______________
Entidades encarnadas __ ____10.30 Raktcha Chamundi (Malayan)______________
________________________11.30 Kanakkara Bhagavathi (Vannan)____________
________________________12.30 Vishnumurthy (Malayan)__________________
(apenas registo o programa das entidades observadas)__________________
Cheguei muito cedo ao tharavadu porque quis aproveitar para fazer a viagem pela
hora mais fresca e com menos trânsito.
63
Diário de Estudo de Campo
Tive assim oportunidade de falar com a filha de Narayanan, cunhada de Santhosh, e
recolher algumas informações sobre o tharavadu: é matrilinear, tanto ela própria
como os filhos de Santhosh têm o nome de Koyihattil. Grande parte dos familiares
vive nas casas à volta do tharavadu. Adjacente ao complexo do tharavadu há um
recinto, naga, que é dedicado às serpentes (ver Imagem 68). Mais distante, um
muro em torno de uma árvore delimita um santuário de Gulikan.
Encontrei também os irmãos de Rajesh7, que conheci em casa dele, que vêm fazer o
Theyyam de Kanakkara Bhagavathi. O indivíduo que me serviu de condutor
aquando da chegada a Vengara (6 de Janeiro) é o performer que fará Raktcha
Chamundi.
Depois chegou Narayanan que me deu mais algumas informações. Entre outros,
explicou‐me o processo para extrair a seiva do coqueiro para fazer toddy.
Na sua opinião os performers estão a atrasar o começo do Theyyam (que devia
começar às 09.00) porque quanto mais próximo da hora do almoço, mais gente
haverá e isso significa mais hipóteses de receber doações dos crentes. Estas
doações são pequenas: as pessoas dão geralmente 10 rupias (0,14€) em troca da
bênção do Theyyam mas, no todo, significativas para os teyyakaran.
Às 10.30 começou o Theyyam de Raktcha Chamundi. Colocou o mudi e a placa
peitoral no arangu. O pé treme mas parece‐me falso. Performance sem brilho nem
interesse. A certa altura a deusa usa uma máscara em frente ao rosto (ver Imagem
74); decerto evocativa de algum aspecto do mito. Sacrifício executado pelos
auxiliares. Parece‐me identificar um padrão nos sacrifícios das deusas: são sempre
feitos pelos auxiliares. A primeira explicação seria que a elaborada indumentária
torna difícil executar o sacrifício sem se sujar. A acompanhar8…
11.30 Kanakkara Bhagavathi entra agitada. Dança energicamente mas sem grande
brilho. Nada de excepcional a apontar nesta performance.
12.30 Vishnumurthi sem surpresas: dança agitada e relativamente ritmada. A certa
altura usa uma máscara de peixe (ver Imagem 75). Um dos sacerdotes do tharavadu
finge um estado de êxtase, revirando os olhos e tremendo, enquanto segura na
espada do Theyyam. É obviamente falso.
Às 13.30 estou esgotado e à beira de uma insolação. Despeço‐me e regresso a casa
onde me hidrato e descanso.
17 de Fevereiro de 2015 / 4 de Kumbham de 1190 / Terça‐feira
Visita matinal a Cananor para resolver assuntos da exposição da Madina e visitar as
livrarias.
7
Mais tarde percebi que Rajesh não tem irmãos, apenas irmãs. O tratamento por ‘irmão’ é
de carácter afectuoso, indica intimidade.
8
Raktcha Chamundi, literalmente ‘Chamundi sanguinária’ é suposta de fazer um sacrifício
muito sangrento, arrancando a cabeça da galinha à dentada. Mas talvez haja variações
regionais pois não foi o que vi aqui.
64
Diário de Estudo de Campo
À tarde organizo notas e fotografias.
18 de Fevereiro de 2015 / 5 de Kumbham de 1190 / Quarta‐feira
Organização de notas.
À medida que o meu entendimento dos vários aspectos do ritual vai aumentando,
dou‐me conta de observações erradas nas semanas anteriores. Por exemplo, a
“procissão” registada a 7 de Fevereiro, dou‐me agora conta, era um kalasam.
Decido que não devo fazer correcções às observações anteriores e deixá‐las como
testemunho para mim mesmo da evolução da minha percepção.
19 de Fevereiro de 2015 / 6 de Kumbham de 1190 / Quinta‐feira
Organização de notas.
Manju e Shemna vieram jantar e recolhi muitas informações:
‐ sobre o ritual do mattu, que é realizado antes de começar o kaliyattam, um
homem do jati Vanathan entrega aos teyyakaran e eventualmente aos poojari um
mundu limpo. No final da cerimónia a veste é devolvida ao Vanathan e dentro do
pano é colocado um punhado de arroz e uma pequena oferta em dinheiro;9
‐ sobre a hierarquia no kavu:
Antittiriyan é o líder do kavu; também por vezes chamado karnore, que
significa ‘tio’;
Dependendo dos kavu, existem outros elementos do tharavadu com funções
no ritual: achanman distinguem‐se por trazerem um lenço preto à cintura; kodanar,
portadores de guarda‐sol; e outros;
Karmi é o sumo‐sacerdote do kavu, só ele pode entrar nos santuários; por
vezes pode ser o antittiriyan, mas são funções diferentes;
Parikarmi são os ajudantes do karmi; já vi parikarmi a entrarem nos
santuários, ao contrário do que Manju me afirma;
Kalashakaram, é o portador da kalasa durante o kalasam; é
necessariamente um Thiyya;
Teyyakaran, o performer do Theyyam;
Chendakkaran, o tocador de chenda;
‐ sobre o ritual ‘Ganapathy Homon’, literalmente ‘fogo de Ganesha’, executado por
Brâmanes na madrugada anterior ao kaliyattam e que consiste em acender as
lamparinas dos santuários com a chama trazida do templo bramânico. Que é
seguido do Theertham, que consiste em aspergir os edifícios do kavu com água
9
Ashley (1993:67) refere‐se a ‘Vanathis’ como as mulheres do Vannan, lavadeiras. Faz
sentido mas entra em contradição com a informação de Manju.
65
Diário de Estudo de Campo
trazida do templo bramânico, com o fim de purificar. A água restante é deitada no
poço do kavu, assim purificando a água do poço também;
‐ sobre o thottam de Pottan Theyyam que vi a 14 de Fevereiro: é suposto ser
cantado com todo o grupo sentado em frente ao santuário e com ingestão de
grande quantidade de toddy, Pottan é uma divindade ébria;
‐ sobre o processo de elevação de um Vannan a Peruvannan ou de um Malayan a
Panikkar. Quando um kavu ou uma comunidade pretende distinguir um performer
com um destes títulos compra‐lhe uma pulseira em ouro e vai entregá‐la ao palácio
do Rajá da Cananor. Este convocará o performer e entrega‐lhe a pulseira,
chamando‐o pelo título distintivo e assim o elevando;
‐ sobre a indumentária: mundu, à volta da cintura, e vesti, usado por cima do
mundu, mais curto, ou sobre os ombros;
‐ para Manju não faz sentido a observação de que os teyyakaran atrasem a
performance para terem mais público e mais donativos; os horários são definidos
pelos responsáveis do kavu e os performers tentam seguir o horário. Até porque se
houver mais gente e os performers receberem mais donativos, o kavu também
receberá mais;
‐ os thottam de Kudiveeran Theyyam e Kathivanoor Veeran são efectivamente
muito semelhantes, quase iguais, e as roupas são as mesmas. Manju entende que
são variações do mesmo Theyyam;
‐ sobre vários termos do glossário.
20 de Fevereiro de 2015 / 7 de Kumbham de 1190 / Sexta‐feira
Organização de notas.
Preparação da entrevista com o Professor Dinesan Vadakkiniyil.
21 de Fevereiro de 2015 / 8 de Kumbham de 1190 / Sábado
Entrevista com o Professor Dinesan Vadakkiniyil (anexo Entrevistas).
Às 22.00 fomos assistir a um kaliyattam próximo de casa.
Observação / Participação Parcial na cerimónia anual de Karapat Tharavadu,
Vengara, distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _21_/ _Fev_/ 2015
Tipologia ______kaliyattam__________ Duração _+/‐_18 horas (2º informantes)___
66
Diário de Estudo de Campo
Localidade ___Vengara___________ Templo __ Karapat Tharavadu________
Comunidade do Templo ___________Thiyya__(tharavadu: Karapat)_____________
Comunidade dos performers _____Vannan e Malayan________________________
Horário da observação __________22.00 / 24.00______________ ______________
Entidades encarnadas ____Tondachan Thottam___(Vannan)___________________
______________________Vishnumurthy Thottam (Malayan)__________________
__ ____________________Raktcha Chamundi Thottam (Malayan)______________
(apenas registo o programa das entidades observadas)__________________
Não tinha especial interesse em observar este kaliyattam, apenas fui por ser perto
de casa e porque não tinha mais nada para fazer nesta noite. Dos três thottams que
observei, Tondachan pareceu‐me muito inspirado (ver Imagem 76). A alvorada
seguinte poderia ser interessante, mas eu estava demasiado cansado para me
levantar de madrugada e, não havendo um objectivo específico que justificasse a
participação neste kaliyattam, decidi dar por finda a minha observação cerca das
24.00.
22 de Fevereiro de 2015 / 9 de Kumbham de 1190 / Domingo
Dia de descanso e leituras.
23 de Fevereiro de 2015 / 10 de Kumbham de 1190 / Segunda‐feira
Visita a Rajesh e entrevista semi‐estruturada (ver anexo Entrevistas).
Visita malograda à biblioteca central da Universidade de Cananor.
24 de Fevereiro de 2015 / 11 de Kumbham de 1190 / Terça‐feira
Organização de equipamentos para filmagens; visita a vários estúdios de vídeo à
procura de um tripé para alugar.
Visita a Panneri para estudar o local de filmagens de 6ª feira.
25 de Fevereiro de 2015 / 12 de Kumbham de 1190 / Quarta‐feira
Saímos de casa às 08.00 para nos encontrarmos com Rajesh no seu estúdio. Faziam‐
se os preparativos para a cerimónia que se seguiria, numa casa particular. Com
Rajesh estavam mais quatro Vannans que já conheço e que por vezes fazem de
teyyakaran e outras vezes são auxiliares.
Cerca das 10.00 seguimos para a casa onde se faria a cerimónia.
67
Diário de Estudo de Campo
Observação / Participação na cerimónia familiar dos Kodakal, Kunhimangalan,
distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _25_/ _Fev_/ 2015
Tipologia ______ Theyyam Koodal__________ Duração _+/‐_4 ½ horas ______
Localidade ___Kunhimangalan___________ Templo __ n.a._______________
Comunidade do Templo ___________Nambiar (subgrupo de Naiar)______________
Comunidade dos performers _____Vannan _________________________________
Horário da observação __________10.00 / 14.30______________ ______________
Entidades encarnadas ____Muthappan___(Vannan)__________________________
Trata‐se de uma tipologia de cerimónia que não tinha ainda tido a oportunidade de
observar: o Theyyam koodal, a visita do deus. A casa desta família Nambiar (um
subgrupo dos Naiar, uma casta elevada e matrilinear) foi acabada de construir há
pouco e a família mudou‐se recentemente. A visita do deus pretende ser
propiciatória para a nova fase da vida da família Kodakal. O karmi (sacerdote) da
cerimónia é Thiyya, pois os Nambiar não exercem este tipo de actividades.
A cerimónia iria decorrer no pátio da casa e a preparação do espaço foi
extremamente eficiente: altares improvisados, um banco a servir as funções de
peedam, oferendas de itens alimentares, um espaço para o teyyakaran se vestir,
tudo se organizou em poucos minutos (ver Imagem 80).
Depois de uma cerimónia inicial (thudangal?) foi distribuída uma grande quantidade
de prasadam de Muthappan (grão cozido, flocos de arroz e pedaços de coco) que
todos comeram. Os performers comeram‐no, não como um petisco, mas como uma
verdadeira refeição, acompanhando com toddy e pequenos golos de brandy.
Aproveitei para provar o toddy, que ainda não tinha bebido este ano e já não me
lembrava de como era. É uma bebida muito agradável, fresca, com um ligeiro travo
a coco e pouco grau alcoólico (talvez 6º a 8º). Houve um momento de total
descontracção durante o tempo da refeição. De seguida todos se tornaram muito
activos e os preparativos para a cerimónia foram muito eficazes e rápidos.
Rajesh maquilhou‐se e vestiu‐se com rapidez e quase sempre sozinho (ver Imagem
79). À medida que se maquilhava, pude observar que se transformava, não apenas
na imagem mas principalmente na qualidade da atenção e na auto‐confiança.
Rajesh é um tipo discreto, tímido até. Muthappan, que já descrevi na interpretação
de Rajesh, é irreverente e transgressor, vocifera e dá ordens.
68
Diário de Estudo de Campo
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Diário de Estudo de Campo
Horário da observação _____aprox._10.00 / 10.30______________ _____________
Trata‐se de uma cerimónia de compromisso entre os donos do templo e os
performers. Trata‐se do mais bonito kavu em que já estive, situado junto ao rio, as
construções sóbrias, pintado em cores discretas.
Rajesh recebeu uma folha de betel e um fruto da mesma planta como sinal do
compromisso.
No regresso perguntei a Rajesh se queria parar num ‘hotel’ para tomar o pequeno‐
almoço. Recusou com uma expressão de quase terror. Mais tarde disse‐me que não
podia por causa do vritha.
27 de Fevereiro de 2015 / 14 de Kumbham de 1190 / Sexta‐feira
Encontro‐me com Rajesh às 15.00. Hoje vou filmar o kaliyattam com o propósito de
fazer um documentário.
No pequeno estúdio que Rajesh partilha com os seus companheiros fazem‐se os
preparativos. No sábado, em acabando este kaliyattam, Rajesh deve partir para
Chenai com mais alguns para ai fazerem um ritual de Muthappan. Há pois que
deixar as coisas adiantadas porque o tempo vai ser curto.
Cerca das 16.00 partimos todos para Panneri.
Observação / Participação na cerimónia anual de Velluvalappil Vayanattu Kulavan
Temple, Panneri, distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _27 ‐ 28_/ _Fev_/ 2015
Tipologia ______ Kaliyattam__________ Duração _+/‐_ 20 horas _____________
Localidade ___Panneri___ Templo _Velluvalappil Vayanattu Kulavam Temple
Comunidade do Templo ______Thiyya_(Tharavadu Velluvalappil)_______________
Comunidade dos performers _____Vannan ____(chendakaran Malayans)_________
Horário da observação ______16.50 / 12.30 (28 Fev)____________ _____________
Entidades encarnadas __ ___ Kandanar Kelan Velatam (Suresh)________________
________________________Tondachan Velatan (Rajesh)_____________________
________________________Kudi Veeran Thottam (Kalesh) ___________________
________________________Kudi Veeran Theyyam (Ganesh) _________________
________________________Kudi Veeran Theyyam (Kalesh) __________________
70
Diário de Estudo de Campo
________________________Kandenar Kelan Theyyam (Suresh) _______________
________________________Vayanattu Kulavam Theyya (Rajesh) _____________
Observei o ritual na sua totalidade, cheguei com os performers e parti depois deles.
Filmei todas as sequências. Não descrevo aqui todo o ritual pois tenho o vídeo que
me servirá como “notas”.
Registo aqui apenas algumas dúvidas e questões por resolver.
Tondachan (significa avô) é o vellatam que corresponde a Vayanattu Kulavam.
Porque têm um nome diferente? Preciso de conhecer o mito associado.
No final da performance Vayanattu Kulavam ficou mais de quatro horas a dar
bênçãos e conselhos aos crentes. Pareceu‐me que resolveu questões pendentes na
comunidade. Falou sempre com ar autoritário, mais do que conselhos parecia‐me
que dava ordens. Depois de a cerimónia acabar Rajesh estava com pressa porque
estava atrasado para apanhar o comboio para Chenai, mas houve uma senhora que
o interpelou a chorar, pareceu‐me que não tinha ficado satisfeita com a intervenção
da divindade e reclamava com o performer. Apesar de muito atrasado, Rajesh
ouviu‐a e falou com ela com tom apaziguador. Preciso de falar com Rajesh sobre
este assunto.
Fiquei satisfeito com as filmagens. Vamos a ver o que consigo fazer…
Regressei a casa cerca das 14.00 do dia seguinte. Cansado mas muito animado.
28 de Fevereiro de 2015 / 15 de Kumbham de 1190 / Sábado
Almocei, bebi duas cervejas e, por volta das 16.00, fui dormir.
1 de Março de 2015 / 16 de Kumbham de 1190 / Domingo
Dia de descanso e tarefas domésticas.
2 de Março de 2015 / 17 de Kumbham de 1190 / Segunda‐feira
Organização de notas, fotografias e vídeos. Planificação de trabalhos.
3 de Março de 2015 / 18 de Kumbham de 1190 / Terça‐feira
Saímos às 01.30 à procura de um kavu onde iríamos ver Karim Chamundi.
Circulámos por zonas rurais até às 03.30 sem encontrar o local (que não aparece no
mapa) e sem cruzar vivalma que nos pudesse orientar. Provavelmente estivemos lá
perto mas não havia forma de encontrar o sítio. Desistimos e regressamos a casa
onde chegamos às 05.00. Estas alterações constantes do ritmo são muito cansativas
e o resto do dia foi pouco produtivo.
71
Diário de Estudo de Campo
4 de Março de 2015 / 19 de Kumbham de 1190 / Quarta‐feira
Saio de casa às 03.45 em direcção a Parassinikadavu. Chego ao templo às 05.00.
Observação / Participação na cerimónia diária de Sree Muthappan Temple,
Parassinikadavu, distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _04_/ _Mar_/ 2015
Tipologia ______ Puja__________ Duração _+/‐_ 1 hora_______________
Localidade ___Parassinikadavu___ Templo _Sree Muthappan Temple_______
Comunidade do Templo ______n.a._______________________________________
Comunidade dos performers _____Vannan _________________________________
Horário da observação ______05.00 – 07.00__________________ _____________
Entidades encarnadas __ ___ Muthappan__________ _______________________
____________________ Thiruvappan Theyyam______________________________
O templo é um complexo enorme, preparado para receber milhares de devotos. As
ruas de acesso ao templo são ocupadas por lojas de artigos religiosos e bugigangas,
ainda fechadas à hora a que cheguei.
O templo situa‐se na margem do rio (ver Imagem 85). Uma escadaria permite aos
crentes fazerem as suas abluções no rio (ver Imagem 86) antes de entrarem no
templo, o que vários faziam à hora a que cheguei. Cães e cachorros, os animais de
Muthappan, circulam e brincam no complexo. Cartazes anunciam merchandizing do
templo e restaurantes próximos (ver Imagens 83 e 84).
As portas do templo, propriamente dito, abrem‐se às 05.30. Os dois teyyakaran
recitam mantras em frente ao santuário enquanto vários auxiliares acabam de os
pintar e vestir.
Dois seguranças fardados (com uma farda em tudo igual à da polícia de Querala, só
pelas insígnias percebo que são seguranças privados) garantem a segregação
sexual, distribuindo as mulheres para a esquerda e os homens para a direita.
A sala terá cerca de 20mx40m, com uma galeria elevada a toda a volta e uma
galeria no andar superior (ver Imagem 88). Diria que, bem apertados como os
indianos tem por hábito estar nestas ocasiões, poderão aqui caber 2.500 pessoas.
Há um um kudimera, mas não vi nenhum lingam.
72
Diário de Estudo de Campo
Cerca das 06.00 os Theyyams estão completos e com os muti colocados. Começa a
performance, muito rígida, hierática, bem ensaiada em demasia: não há
espontaneidade. O carácter irreverente e transgressor de Muthappan não aparece
aqui.
Cerca das 06.20 organiza‐se o kalasan: Theyyams, pujari e chendakkaran seguem
em procissão perseguindo o portador da kalasa (kalasakaran) que progride
recuando por três voltas ao redor do santuário, no sentido dos ponteiros do relógio.
Cinco minutos depois os Theyyams estão de costas para o santuário, enfrentando a
assistência, e os seguranças fazem sinal aos devotos que se precipitam para receber
bênçãos.
Os Theyyams distribuem bênçãos de forma maquinal, despachando os crentes
rapidamente, pensava eu. Decidi pois que ficava até ao final das bênçãos para ver o
que se seguiria. O que aconteceu foi que continuava a chegar mais e mais gente: as
pessoas não vieram para ver o ritual, vieram para receber bênçãos e, se no início do
ritual estariam cerca de 120 pessoas no templo, às 07.00 os Theyyams já teriam
abençoado o triplo desses crentes e o número de pessoas que afluíam era
crescente.
Decidi pois dar por finda a minha observação.
Regressei a casa onde passei grande parte do dia a dormir e o restante a organizar
notas e fotos e a ler.
5 de Março de 2015 / 20 de Kumbham de 1190 / Quinta‐feira
Saímos às 04.00 à procura de uma performance de Thee Chamundi num kavu muito
próximo de nossa casa. Quando lá chegámos o templo estava deserto mas o lixo em
redor indicava que tinha ali havido um kaliyattam há pouco tempo. Informação
errada, acontece.
O resto do dia ocupado com leituras e notas.
6 de Março de 2015 / 21 de Kumbham de 1190 / Sexta‐feira
O dia foi totalmente ocupado pela abertura da exposição de pintura da Madina em
Cananor.
7 de Março de 2015 / 22 de Kumbham de 1190 / Sábado
Fui com a Madina visitar Rajesh para lhe oferecer um quadro que a Madina pintou
para ele, uma imagem de Thondachan. Ficou muito comovido, visita‐nos amanhã.
73
Diário de Estudo de Campo
8 de Março de 2015 / 23 de Kumbham de 1190 / Domingo
Rajesh visitou‐nos pela manhã e aproveitei para lhe colocar mais algumas questões
sobre a performance do Theyyam (ver anexo Entrevistas).
À tarde fomos visitar Narayanan com o principal propósito de entrevistar o seu
vizinho, Balakrishnan Panikkar (ver anexo Entrevistas).
9 de Março de 2015 / 24 de Kumbham de 1190 / Segunda‐feira
É o nosso último dia em Querala mas levantamo‐nos às 04.00 para ir assistir a parte
de um kaliyattam. Queremos ver Thee Chamundi, que já por várias vezes falhámos.
Observação / Participação na cerimónia anual de Chengal Puthia Bhagavathi
Kshethram (Kundathil Kavu), Payangadi, distrito de Cananor
Ficha de Observação de Evento
Data _09_/ _Mar_/ 2015
Tipologia ______ Kaliyattam__________ Duração _dois dias (não observado)____
Localidade ___Chengal__________ Templo _Puthia Bhagavathi Kshethram___
Comunidade do Templo ______sem dados__________________________________
Comunidade dos performers _____Vannan _e Malayan_______________________
Horário da observação ______04.50 – 06.40__________________ _____________
Entidades encarnadas __ ___ Padarkulangara Veeran (Vannan)__________ ______
______________________ Puthia Bhagavathi Theyyam (Vannan)_______________
______________________ Thee Chamundi_(Malayan)______________________
__________________(apenas listo as entidades observadas)___________________
A vinda a este kaliyattam foi motivada pela vontade de observar Thee Chamundi
que já tínhamos falhado algumas vezes.
O templo é um complexo muito grande, aparentemente gerido pela comunidade
com uma estrutura política necessariamente bem organizada. Situado numa
encosta com uma fantástica vista sobre o rio Perumba, existem várias áreas
adjacentes ao templo com propósitos sociais. No socalco abaixo do templo, um
anfiteatro com um palco, destinado a espectáculos. Toda a área do templo é
pavimentada, os edifícios estão bem cuidados. Pancartas enunciam a proibição de
filmar ou fotografar o ritual.
74
Diário de Estudo de Campo
Num socalco acima do templo, um enorme braseiro, o maior que jamais vi. O centro
do cone de brasas terá cerca de 1,70m de altura e a circunferência estende‐se por
um raio de cerca de 2m. Brasas bem acesas, ao rubro, sem cinzas.
Depois de termos circulado pelo templo para perceber a disposição e o que se
estava a passar, começou a performance de Padarkulangara Veeran, que me
disseram estar associado ao mito de Puthia Bhagavathi, embora eu nunca o tivesse
visto. Pareceu‐me muito semelhante a Puliyoor Kanan, que já vi associado a Putya
Bhagavathi, mas em vez de espada e escudo trazia uma moca e uma sombrinha.
O sacrifício de uma galinha fez‐se de forma muito discreta.
Entrou Puthia Bhagavathi, mas a esta altura Thee Chamundi estava também a
preparar‐se para entrar e toda a multidão (mais de um milhar de pessoas)
procurava lugar nos socalcos que permitiam a visão sobre o braseiro. Fiz o mesmo.
Tinha já antes reparado num grupo de uma quinzena de jovens adultos que se
preparavam com rituais no terreiro do templo. Estes ‘penitentes’ vieram a correr do
templo para o socalco do braseiro e, um a um, correram sobre as brasas. O braseiro
era enorme e alto. Cada um teve que dar sete ou oito passos sobre as brasas para
passar sobre o braseiro, passando pelo topo. Numa situação normal, imagino que
os pés se enterrem nas brasas mas tal não aconteceu com estes ‘penitentes’: as
suas pegadas deixavam um rasto de labaredas mas os passos que davam sobre o
braseiro eram rápidos e ágeis. Fiquei com a clara impressão de estar a assistir a um
ritual de passagem.
Depois foi a vez de Thee Chamundi se lançar sobre o fogo. Completamente envolta
numa veste de tiras de caule fresco de bananeira, só como rosto de fora, a deusa
atira‐se de frente para o braseiro, ficando deitada de bruços nas brasas, que
estavam completamente rubras e limpas de cinzas pela passagem dos ‘penitentes’.
Dois ajudantes tiram‐na do braseiro puxando por duas cordas que traz amarradas à
cintura, arrastando‐a pelas brasas até a tirar do braseiro, quando a ajudam a
levantar‐se. Thee Chamundi repetiu esta proeza cerca de cinquenta vezes num
espaço de cerca de 25 minutos. Ao ponto de, não obstante o arrojo da
performance, se tornar demasiado. A assistência começou a dispersar ainda antes
de a deusa dar por terminada a performance. Esperámos que acabasse e retirámo‐
nos também.
Hoje é o meu último dia em Querala, dou por findo o Estudo de Campo. Partirei
amanhã pela madrugada para Gokarna, Karnataka, onde passarei uns dias a
organizar e processar os dados recolhidos. Depois passarei mais uns dias em Goa,
fazendo o mesmo, antes de regressar a Portugal.
75
Diário de Estudo de Campo
Nota Final
O meu estudo de campo prolongou‐se por 63 dias, 9 semanas, apenas com uma
pausa de dois dias para visitar o Kalamandalam em Thrissur e me informar sobre o
kathakali, a sua aprendizagem formal e suas possíveis relações com o Theyyam.
Estimo ter feito mais de 2.000 km de scooter, a maior parte dos quais de noite e em
estradas rurais, por vezes caminhos de terra batida.
Do estudo resultaram 19 participações em cerimónias: dois adeyalam, dois poojas
em templos de Muthappan, um Theyyam koodal e catorze kaliyattams. Obtive
ainda quatro entrevistas semi‐estruturadas: com um responsável por um kavu, com
dois performers e com um antropólogo estudioso do Theyyam.
Nas primeiras três semanas a minha pesquisa foi deliberadamente errática.
Procurava integrar‐me na lógica e na linguagem do ritual. O critério preferencial era
a dimensão e localização do templo, escolhendo kavus familiares de pequena
dimensão e em zonas rurais. Ao fim desse tempo dispunha de elementos para
poder escolher um novo rumo que, defini, passaria por acompanhar
preferencialmente um teyyakaran em que identificasse qualidades performativas. A
partir da quarta semana passei a acompanhar Rajesh Peruvannan, construindo com
ele uma relação de confiança e amizade que me permitiu levantar questões a que
os performers preferem escusar‐se. Comecei também a ser conhecido entre as
comunidades de performers que me começaram a tratar com camaradagem e a
aceitar a minha presença em momentos e locais normalmente pouco acessíveis a
estrangeiros.
As minhas fichas de observação dos rituais passaram a incidir mais sobre aspectos
performativos e menos sobre os aspectos formais das cerimónias. A certo ponto,
passam a ser apenas um cabeçalho que refere a data, o local e as entidades que se
manifestaram, apenas um auxiliar de memória a acompanhar questões que iam
sendo levantadas.
Integrei‐me na comunidade local, fazendo e recebendo visitas frequentes dos meus
vizinhos, participando nos eventos da comunidade (procissões, visitas aos templos,
visitas cerimoniais de sacerdotes ao bairro) e das famílias, assumindo mesmo a
participação em actividades familiares, como a ida a um casamento. A minha
esposa tornou‐se uma celebridade local por ocasião da abertura da sua exposição
de pintura (tendo por tema o Theyyam), com entrevistas em todos os jornais locais
e alguns nacionais e destaque nas televisões regionais e cadeias nacionais.
O não conhecimento da língua não foi um óbice: a disponibilidade e desejo de
comunicar dos meus interlocutores permitiram vencer as barreiras linguísticas. Os
problemas conceptuais que os temas abordados levantam não se resolveriam tão
pouco por um conhecimento razoável da língua; eles são bastante complexos e
requerem um grau de conhecimento que terei que procurar nos especialistas.
Ao fim de nove semanas sinto que teria condições para começar a aprofundar o
meu estudo sobre o Theyyam e os seus aspectos técnicos e performativos. Uma vez
76
Diário de Estudo de Campo
que as condições não o permitem, terei que me dar por satisfeito com os dados
recolhidos e os progressos alcançados
77
Glossário
Glossário
Glossário
Termos da língua malaiala usados na descrição e discussão do ritual e prática do Theyyam.
A língua malaiala tem variações regionais e, no que respeita ao Theyyam, os termos e
conceitos variam para cada família de performers e para cada templo. Os termos aqui
traduzidos são aqueles foram usados pelos informantes durante o Estudo de Campo e não
serão os únicos para descrever os mesmos objectos ou acções. Os mesmos termos podem
ter traduções completamente diversas noutros contextos regionais.
Adeyalam ‐ compromisso, sinal; cerimónia que ocorre um mês antes do
kaliyattam e em que as partes (organizadores e performers)
acordam as condições;
Aniara ‐ vestiário reservado aos teyyakaran;
Antittiriyan ‐ líder do kavu;
Arangu ‐ terreiro do kavu;
Arangu Keli ‐ toque musical anunciando o início de um ritual; kelikottu
Attam ‐ dança;
Bhagavathi ‐ deusa‐mãe;
Chai ‐ chá preto com muito leite e muito açucarado;
Cheena kool ‐ instrumento de sopro;
Chenda ‐ tipo de tambor;
Chendakkaran ‐ tocador de tambor (chenda);
Chera ‐ pequeno lago para abluções junto ao kavu;
Chilampu ‐ adorno de pé;
Chilanka ‐ adorno de tornozelo;
Chootu ‐ feixe de folhas de coqueiro secas; olachootu;
Churika ‐ espada curta;
Ekacintha ‐ pensamento único; pensamento focado;
Guru ‐ professor;
1
Glossário
Gurukkal ‐ professor;
Jati ‐ divisão social; casta;
Kalari payattu ‐ arte marcial ancestral e originária de Querala;
Kalasa ‐ pote em barro ou madeira, contendo toddy e decorado com
folhas frescas de coqueiro e sementes de betel;
Kalasakaran ‐ o que faz o ritual kalasam; tem que ser do jati Thiyya;
Kalasam1 ‐ parte do ritual em que se forma uma procissão seguindo o
portador da kalasa;
Kalashathara ‐ altar em cimento;
Kaliyattam ‐ cerimónia no kavu com Theyyams; literalmente: história dançada
(kali = história, attam = dança);
Karmi ‐ sumo‐sacerdote do kavu; tantri; poojari;
Kavu ‐ bosque / bosque sagrado / templo das castas baixas; kottam;
Kelikottu ‐ toque musical anunciando o início de um ritual; arangu keli;
Kireedorn ‐ coroa; mais pequeno que o mudi, é usado por alguns Theyyams
ou em vellattams ou thottams;
Kothirithattu ‐ lamparinas em hastes, montadas sobre caules de bananeira,
formam um altar térreo para a maioria dos sacrifícios de sangue;
Kottam ‐ kavu;
Kudimera ‐ pau‐de‐bandeira, coluna simbólica à entrada de alguns templos;
Kuttitheyyam ‐ Theyyam pequeno; fase da transformação de alguns Theyyam ou
um Theyyam pequeno que acompanha o Theyyam principal;
Lingam ‐ símbolo de forma fálica que representa Shiva;
Madayan ‐ co‐actuante do ritual de Muthappan;
Madelam ‐ instrumento de percussão usado à cintura e que se percute com
as palmas das mãos;
Malaru ‐ imitação de seios ou soutien, metálico ou em madeira usado
pelas deusas;
Mandala ‐ desenho simbólico hinduísta;
Manjil ‐ turmérico, curcuma, açafrão‐da‐Índia;
1
Rajesh Peruvannan usa o termo ‘kalasam’ para se referir às acções do Theyyam, à sua
‘partitura’. Balakrishnan Panikkar usa o termo com esse mesmo sentido (ver Entrevistas).
2
Glossário
Mattu ‐ muda de roupa; vestes purificadas que são entregues aos
oficiantes de uma cerimónia para serem usadas durante esta;
Mudi ‐ coroa ornamental do Theyyam; literalmente: cobertura;
Mudiyerakku ‐ retirar do mudi;
Mudiyettu ‐ coroação, colocação do mudi;
Mundu ‐ peça de vestuário usada pelos homens, consiste em um pano
enrolado à cintura e que cobre as pernas até aos tornozelos;
noutras partes da Índia, dhoti;
Nada ‐ degraus sagrados conducentes ao santum santorium;
Naga ‐ santuário das serpentes;
Naithiri ‐ pavios;
Nilavilakku ‐ lamparina sagrada de bronze;
Olachootu ‐ feixe de folhas de coqueiro secas; chootu;
Pallival ‐ espada da deusa; espada curta em forma de Z;
Parikarmi ‐ sacerdote ajudante; poojari;
Pathi ‐ santuário temporário construído com esteiras ou folhas (kavu
será sempre em pedra);
Peedam ‐ banco de madeira usado pelos Theyyams no ritual, ao mesmo
tempo altar e trono;
Perum ‐ grande, grandioso;
Perumkaliyattam ‐ grande kaliyattam, festival de kaliyattam grandioso;
Perumpara ‐ tambor grande;
Pooja ‐ cerimónia religiosa, oração, dádiva, prática religiosa básica;
Poojari ‐ sacerdotes; inclui o karmi e os parikarmi;
Poyii Kannu ‐ óculos metálicos (ou venda) com micro perfurações usados por
algumas deidades;
Prakriti ‐ natureza, mundo selvagem;
Prasadam ‐ comida sagrada, abençoada pela divindade e que é oferecida aos
crentes
Sakthi ‐ energia;
Sanku ‐ búzio;
Sree (Sri) ‐ Senhor; título respeitoso;
3
Glossário
Tantri ‐ sacerdote chefe; karmi
Teyyakaran ‐ o performer do Theyyam;
Teyyamkettal ‐ a actividade do teyyakaran, exercício da performance de
Theyyam;
Tharavadu ‐ unidade social, família alargada;
Thengha kallu ‐ pedra de cocos; altar com uma pedra encastrada para oferenda
de cocos;
Thottam ‐ canto narrando o mito do deus que vai ser encarnado;
Thrissul ‐ tridente;
Thudangal ‐ cerimónia inicial do kaliyattam;
Toddy ‐ vinho de seiva de coqueiro;
Uranjattom ‐ clímax da dança;
Vadyakkars ‐ músicos;
Valkannadi ‐ espelho sagrado em bronze;
Vellattam ‐ parte da cerimónia, dança inicial;
Vritha ‐ votos; abstinência a que o performer é obrigado; estado de
espírito com que o crente vai ao ritual;
4
Entrevistas
Entrevistas
Entrevista semi‐estruturada com Shyju Valsan Kaniyal no Mykeel Sri
Karimkuttysastham Temple, Pulimparamba, Taliparamba, distrito de Cananor.
8 de Janeiro de 2015
Conheço Shyju Valsan Kanial desde há dois anos: visitei o kaliyattam no seu templo
familiar em 2013 e desde aí temos trocado mensagens, por correio electrónico ou
pelas redes sociais. Shayju é engenheiro informático e até há pouco tempo atrás
estava a trabalhar no Dubai. Como o contrato acabou, voltou para Querala por uns
tempos enquanto renova o visto e procura uma nova posição nos Emirados Árabes
Unidos. Terá cerca de 33 anos e é o filho mais velho do líder da família alargada
(tharavadu) que detém um templo em Pulimparamba.
Informações recolhidas:
O kaliyattam tem uma data fixa no calendário malaialo; varia em relação ao calendário
gregoriano porque estes não coincidem no número de dias do ano. A data do
kaliyattam neste templo foi fixada pela data da fundação do templo. Nos outros
templos é também uma data memorável, seja a fundação, a reconstrução ou qualquer
outro facto de importância maior. Não tem a ver com o calendário lunar ou astral
senão indirectamente.
O templo foi fundado pelo avô de Shyju, Sri Mykeel Kunhappu Vaidyar que era físico
ayurvédico. Mykeel é o nome da família (tharavadu) e esta pertence ao jatis dos
Thiyyas (Shyju usou o termo “casta”), que eram tradicionalmente colectores de
‘toddy’, seiva de coqueiro usada principalmente para fazer vinho. Presentemente,
como são uma das comunidades “agendadas”, têm preferência na admissão para
empregos na administração pública. O nome é transmitido por via matrilinear; “Valsan
Keniyal” é o nome da avó paterna de Shyju que passou para o pai deste. O pai de
Shayju, quando registou o filho, optou por lhe dar o seu nome de família em vez do
nome da família da mãe. Mas isso não é incomum nos dias presentes, as pessoas
podem dar aos filhos o nome de família matrilinear ou patrilinear, não têm
importância.
No kaliyattam participam duas comunidades de performers que fazem os seguintes
Theyyams:
Vannan:
‐ Vayanattu Kullavan;
‐ Kandenarkelan;
‐ Kudiveeran.
Malayan:
‐ Pottan Theyam;
1
Entrevistas
‐ Karimkuttysasthan;
‐ Gulikan.1
Os Malayan fazem ainda as percussões para toda a cerimónia, incluindo os Theyyams
dos Vannan. Esta situação não é viável entre todas as comunidades mas com estas
duas é possível.
Na próxima 4ª‐feira, 14 de Janeiro, 29 de Dhanu, será dado o adeyalam: as três
comunidades envolvidas no kaliyattam encontram‐se no templo e chegam a um
acordo sobre as condições para a realização da cerimónia. O líder da comunidade que
detém o templo (o pai de Shyju) pede aos líderes das duas comunidades de performers
que realizem as acções necessárias para que se faça o kaliyattam e acorda‐se um
pagamento; se houver preferências, pode pedir que este ou aquele Theyyam seja feito
por este ou aquele performer, caso contrário o líder da cada comunidade designa os
performers, percussionistas, maquilhadores, etc. que entenda adequados.
O líder do tharavadu é sempre o filho mais velho do anterior líder. O avô de Shayju,
fundador do templo, era o líder da comunidade e, para além de ser físico ayurvédico,
era uma pessoa ‘ligada às forças’. Todas as pessoas têm um ou vários Theyyams que as
acompanham; quando o avô quis saber se Gulikan estava com ele, lançou um desafio:
“Se Gulikan está comigo, amanhã todas as folhas desta mangueira terão caído”; no dia
seguinte a mangueira não tinha nenhuma folha e o avô colocou uma pedra no local
onde construiu depois a santuário de Gulikan (ver Imagens 5 e 6). A energia está na
pedra em que assenta a santuário e transmite‐se à lamparina que aí está sempre
acesa. O performer do Theyyam vai, antes de mais, ao santuário receber a lamparina, a
força. Depois é que se retira para “escrever” o rosto. Os Theyyams do templo foram
escolhidos pelo fundador por serem os mais adequados para si e para a sua
comunidade.
O pai de Shyju é o líder da comunidade e preside aos Pujas e outros rituais que se
fazem duas vezes por semana. Alguns destes rituais incluem sacrifícios de animais.
No templo há símbolos que são sagrados e que são importantes. Outras coisas são
decoração (design) e não têm importância, mesmo que sejam bonitas. Antigamente o
templo era de madeira e tijolo, sem reboco ou pintura, e algumas das construções
eram apenas de esteira de coqueiro. Pergunta da Madina: “porque é que as
decorações são desenhadas com tanta precisão e os símbolos que são mais
importantes têm um traço tão impulsivo, rudimentar?” Precisamente porque são
importantes, são sagrados e não precisam de ser bonitos. “Mas a escrita facial do
Theyyam e as suas vestes são muito elaboradas, muito precisas”. Pois, o Theyyam tem
que ser rigoroso, as medidas e proporções têm que ser as certas. O Deus vive no
santuário durante todo o ano; uma vez por ano os crentes querem ver o Deus e ele sai
do santuário para ser visto. Tem que ser perfeito.
Algumas cerimónias com Theyyams são realizadas nas casas familiares ou em outros
sítios, porque as pessoas querem obter um favor: um filho, um emprego melhor, etc.
1
O Web site do templo refere ainda Karimchamundi e Pulamaruthan. Esclarecido na 2ª parte
da entrevista.
2
Entrevistas
No kaliyattam não, as pessoas só vêm ver o Deus e pedir a sua bênção. Às vezes o
Deus fala e dá conselhos, isso é um extra, não é por isso que os crentes vêm, é só para
ver o Deus.
Shyju tem muito má opinião dos que fazem o Theyyam fora dos lugares adequados e
por razões que não são religiosas. Todas as procissões ou encenações em palco não
são Theyyam, são apenas uma pessoas vestida e pintada como se fosse um Theyyam,
mas não é um Theyyam. Não está certo tentar comercializar o Theyyam. Então, e
sendo o seu templo exclusivamente familiar e não dizendo respeito a mais ninguém
fora do tharavadu, porque têm um web site2 em inglês com toda a informação sobre o
templo, o kaliyattam e os Theyyams? Porque têm orgulho na sua herança cultural e
tem gosto em a comunicar e a dar a conhecer.
2ª Parte
15 de Janeiro de 2015
O significado de adeyalam é “compromisso”, “pagamento de sinal” (inglês token).
Afinal os Theyyams a apresentar no próximo kaliyattam serão sete; aos anteriormente
apontados acresce Pulamaruthan.
Este kaliyattam em Fevereiro é o kaliyattam oficial do templo. Mas quando os crentes
querem agradecer uma graça divina podem oferecer um kaliyattam no templo. Em
Outubro houve um kaliyattam oferecido por um devoto e em Maio provavelmente
haverá outro. Nessa cerimónia de Maio será feito também o Theyyam de
Karimchamundi que não será feito agora em Fevereiro.
A razão para o avô não ter sido cremado é por ser um guru de qualidades excepcionais.
Nestes casos coloca‐se o corpo numa campa porque não está morto, está em Samadhi.
O chão do terreiro do kavu estava a ser retocado com bosta de vaca. A bosta estava
diluída em água num balde que uma senhora despejava no chão e varria com uma
vassoura de palhas rijas e compridas de forma a uniformizar a camada. Quando seco,
este produto apresenta uma consistência de cimento e, em relação à terra batida, tem
a vantagem de não levantar pó. É este tipo de pavimento que iremos encontrar em
todos os kavus visitados.
2
http://www.mykeel.in/
3
Entrevistas
Entrevista semi‐estruturada com Rajesh Peruvannan em casa do próprio,
Kunhimangalan, Payyanur, distrito de Cananor.
23 de Fevereiro de 2015
Desde há um par de semanas que tenho seguido as performances de Rajesh em vários
kavus e que o tenho visitado em casa com o pretexto de saber quais as próximas datas
dos rituais. Comecei assim a construir uma relação de confiança com vista à realização
desta entrevista.
Rajesh Peruvannan tem 38 anos de idade, é casado há 12 anos com Manju e pai de um
rapaz e uma menina. É do jati Vannan e é um theyyakaram conceituado, como indica o
título Peruvannan. Como profissão conduz um auto‐riquexó mas durante a época do
Theyyam quase não exerce essa actividade, pois desempenha a função de teyyakaran
cerca de 3 a 4 vezes por semana. Esta prática aprendeu‐a com o pai. Pratica kalari
payattu mas durante a época dos kaliyattam não tem tempo para o fazer. Começou
por fazer os “pequenos Theyyams”(kuttitheyyam) aos 6 anos de idade e aos 13 anos já
desempenhava Theyyams. Está preparado para fazer qualquer dos Theyyam que estão
atribuídos ao jati Vannan e verifiquei que executou variados Theyyam durante o
período em que acompanhei a sua actividade. Há dois anos atrás foi com um grupo de
teyyakaran à Polónia fazer o Theyyam num grande festival. Também já foi a Paris por
duas vezes para apresentar o Theyyam e faz inúmeras apresentações fora de Querala,
em Bombaim, Deli, Chenai, Bangalore, entre outros.
Questionado sobre vritha, Rajesh segue um regime alimentar de abstinência durante
dois dias antes de cada Theyyam. Alguns Theyyams requerem 21 ou 40 dias de regime
alimentar; sabendo que Rajesh desempenha variados Theyyam, em média três vezes
por semana, poderá haver incompatibilidade na abstinência, se os requisitos forem
diferentes para os diferentes Theyyam; mas Rajesh não compreende esta minha
questão, pelo que assumo que pratica um regime único e que o não altera durante
toda a época de kaliyattam. Durante esta época também não dorme com a esposa e
mantém estrita abstinência sexual.
Ekacintha é um conceito que Rajesh reconhece. Toca no peito e diz: “é estar aqui”.
Alcança‐o através da recitação de mantras. Recita mantras cedo pela manhã, quando
sai para os campos ou para a floresta para colher as ervas medicinais e as flores com
que são elaboradas as vestes dos Theyyam. Recita também os mantra durante o
processo de maquilhagem e colocação dos adereços pois é nessa altura que começa a
‘transformação’.
Transformação é também um conceito que Rajeh entende e que não lhe causa
dúvidas. Resulta da recitação dos mantra e da maquilhagem e indumentária do
Theyyam. Os Theyyam são todos diferentes e a transformação também; nota‐o na voz:
quando são entidades femininas a voz fica mais fina, quando são masculinas, a voz é
4
Entrevistas
mais grave. Mas atenção: a transformação é mental (mind foi o termo inglês usado).
Sem a transformação mental não há nada.
O sakti vem com a transformação. É o poder interior que localiza no peito. A chama
recebida no santuário não tem grande importância para Rajesh:”sim, tem a ver com
sakti. Mas o sakti é do Theyyam e acontece com a transformação. Mas atenção: isto é
a minha opinião pessoal, a forma como eu sinto. Outras pessoas pensam de outra
maneira”. Também sobre o sakti Rajesh não hesite em tocar no peito com a mão: ‘é
aqui que o sinto’.
Quando pergunto a Rajesh porque é que o Theyyam tem tremuras, diz que isso é
kalasam (que é também o nome da cerimónia de transportar a kalasa, o que me deixa
confuso). O kalasam resulta da história do Theyyam, faz‐me entender que é uma
urgência em desempenhar a performance, o Theyyam precisa de fazer a sua
performance. Essa necessidade coloca‐a também no peito. Com o desenvolver da
conversa em torno deste conceito, e porque o termo me tinha deixado baralhado,
começo a perceber kalasam como sinónimo de ‘partitura’, aquilo que o Theyyam tem
que fazer.
Se há uma transformação, onde está Rajesh durante a performance? “ Isso não sei! Sei
que o meu corpo está lá e realiza a performance. Mas a minha mente, não sei para
onde ela vai”.
2ª parte
8 de Março de 2015
Pedi a Rajesh que viesse a minha casa em Vengara para continuarmos a falar sobre a
performance do Theyyam.
O título de Peruvannan recebeu‐o do Raja de Thaliparamba por proposta do
Valadakkath Kavu, de Kannon, em 2000.
O tio Peruvannan, irmão mais velho da mãe, foi, juntamente com o pai, muito
importante na sua aprendizagem, com ele aprendeu muitos Theyyam.
Quem dá conselhos aos crentes é o Theyyam, não Rajesh. O Theyyam age através de
Rajesh. Por vezes as pessoas dirigem‐se a ele, Rajesh, para o responsabilizar pelo que o
Theyyam disse ou fez mas ele não pode fazer nada porque o Theyyam é muito forte e
faz e diz o que quer. Perguntado se o Theyyam não se perde durante as longas horas
em que fica sentado a dar conselhos e bênçãos aos crentes, diz‐me que o Theyyam é
muito forte.
Perguntado sobre, se Rajesh não está lá quando o Theyym está presente, como
acontece que Rajesh se lembra do que o Theyyam fez? Rajesh acha uma pergunta
muito difícil (embora a tenha percebido) e admite que não sabe responder.
Quando o Theyyam está embriagado, por exemplo Vayanattu Kulavan, depois do
Theyyam acabar, Rajesh está sóbrio.
5
Entrevistas
O receber da chama no santuário é o início do processo; o Theyyam vem junto com a
chama e entra em Rajesh. O processo de transformação fica completo quando se vê ao
espelho. A transformação fica completa e o Theyyam está totalmente presente no
corpo. Acaba quando entrega os atributos que tem nas mãos, armas ou outros
objectos próprios de cada divindade, e ao mesmo tempo lhe é retirado o muti.
Se ganhasse muito dinheiro e não precisasse de ser teyyakaran para ganhar o
sustento, Rajesh diz‐me que ainda assim teria que continuar a fazer os Theyyams: é
parambariam, uma obrigação para com o pai e o pai do pai, até ao fim das gerações.
6
Entrevistas
Entrevista semi‐estruturada com Balakrishnan Panikkar em casa do próprio,
arredores de Cheruvathur, distrito de Kasaragod.
8 de Março de 2015
Cruzei‐me pela primeira vez com Balakrishnan fortuitamente há mais de um mês,
aquando de uma visita a Narayanan e o carisma do personagem interessou‐me de
imediato. Desde essa altura que pretendia entrevistá‐lo mas Cheruvathur fica a cerca
de 35 km de minha casa e só nesta ocasião consegui disponibilidade para aqui me
deslocar.
A entrevista é arriscada: para um primeiro encontro, sem uma base de confiança e
cumplicidade estabelecida, as questões serão necessariamente respondidas pelo
discurso oficial. Ainda por cima, Balakrishnan fala pouco inglês ou escudou‐se nesse
pretexto para requerer a presença de Narayanan como tradutor, a funcionar
simultaneamente como inibidor e filtro do discurso. Tentei ainda assim estabelecer
contacto directo com ele, interrogando‐o directamente e tentando perceber as suas
respostas, para lá da tradução de Narayanan (a quem fico muito grato, apesar do que
fica dito).
Balakrisnan Panikkar tem 68 anos e é do jati Malayan. É casado e tem quatro filhos.
Presentemente está reformado mas trabalhou toda a sua vida como administrativo
num serviço público municipal (Panchayat, equivalente à Câmara Municipal em
Portugal). O seu interesse pela política resume‐se a ir votar e não tem actividade ou
filiação partidária.
Aprendeu o Theyyam com o pai, os irmãos e outros e começou a fazer Theyyam aos 16
anos. Deixou de participar nas cerimónias aos 55 anos porque não lhe permitiam
dormir e alimentar‐se devidamente. A essa altura já só participava como cantor de
Thottam, actividade de que se orgulha muito. Ainda canta mas para a rádio nacional,
cantando os Thottam dos Theyyam mas também canto clássico (carnático). Acha que
os Thottam são sempre muito bons mas que um cantor com formação em canto faz
muita diferença e orgulha‐se da sua carreira como cantor, tanto como do filho que é
professor de canto numa escola superior nacional (fiquei com a impressão de que se
referia ao Kalamandalam mas não tenho a certeza).
Quando jovem fazia os Theyyam de Vishnumurti, numa versão local que envolve fogo,
Pottam, Guligan, Raktcha Chamundi, Uchita Baghavathi e Dumar Bhagavathi, entre
outros. Estas duas últimas deusas são feitas para as pessoas que têm pedidos
específicos a fazer às deusas, relacionados com maternidade e saúde.
Em 1975 recebeu a pulseira dourada e o título de Panikkar do senhor feudal de
Chirakkal, Cananor. Mostrou‐me uma dúzia de troféus com que foi agraciado ao longo
da vida, entre os quais o prémio da Kerala Folklore Academi de 2012.
Não transmitiu o conhecimento sobre o Theyyam a ninguém porque os filhos não se
interessaram.
7
Entrevistas
Balakrishnan teve sincera dificuldade em perceber a minha questão sobre como se
prepara para fazer o Theyyam. ‘Preparar’ era uma noção que não conseguia associar
ao Theyyam. Acabou por me falar de vritha, que para Raktcha Chamundi exige 16 dias
de abstinência sexual e dieta alimentar e que para os outros Theyyams requer apenas
três dias. Durante esse tempo pernoita no templo e ocupa‐se de preparar as roupas
para o Theyyam.
Também não recita mantras. Apenas no momento de receber a chama recita um breve
mantra, que é diferente consoante o Theyyam. Este mantra é silencioso, interior,
mental.
Também teve dificuldade em perceber o que é que eu queria saber sobre ekacintha,
pensamento único. Pensamento único é só pensar no Theyyam, só no que tem a fazer
e em mais nada. Mas como consegue isso? Não percebe a pergunta… acaba por me
falar em força de vontade (will power). Neste ponto tive muito cuidado para não lhe
pôr palavras na boca nem deixar que Narayanan interpretasse. Foi da sua própria boca,
já exasperado perante a minha insistência em querer saber como executar uma acção
que para ele se apresentava como muito simples, que saiu a expressão will power,
quando eu lhe coloquei a situação de que, estando com o pensamento focado
(focused), lha aparecessem outros pensamentos na mente que o perturbassem.
O shakti (energia) está na mente. Recebe‐o do Theyyam, faz parte do karma do
Theyyam e transmite‐se automaticamente. Quando oferece bênçãos ou prasadam aos
crentes, o shakti transmite‐se. Por isso, quando as pessoas vêm ao Theyyam com
pedidos, ao receberem a bênção ou prasadam do Theyyam, ficam com a energia para
que os seus desejos se realizem. O kalasam, a performance do Theyyam, faz parte do
seu karma. Quando o teyyakaran cumpriu todas as obrigações rituais, está pronto para
que o Theyyam aconteça, porque esse é o karma do Theyyam. À pergunta sobre em
que parte do corpo está o sakti, Balakrishnan contesta: ‘está na mente, não é no
corpo’.
A minha pergunta: ‘onde está Balakrishnan durante o Theyyam?’ não faz sentido.
Durante a performance ele não pensa sobre Balakrishnan. Por isso a pergunta não tem
resposta, não faz sentido.
Balakrisnan foi convidado a fazer Theyyam fora de Querala, noutras cidades indianas,
inclusive num grande evento em Nova Deli, facto de que se mostra orgulhoso. Mas
nessas ocasiões o karma do Theyyam não está lá, não é o Theyyam, é só espectáculo,
só as roupas do Theyyam.
Ri‐se da minha pergunta sobre como se sente depois de acabar o Theyyam, quando lhe
retiram o muti. Sente‐se normal, como havia de se sentir? Não, não há cansaço, nem
satisfação… quem fez a performance foi o Theyyam, quando Balakrishnan regressa,
sente‐se normal.
8
O Calendário Kollam
O Calendário Kollam.
A diversidade cultural no subcontinente indiano é extensível aos calendários, cujo
número não encontrámos nenhum autor que arriscasse definir. Apesar dos esforços
do Governo da União em tentar impor um calendário unificado, apenas o calendário
gregoriano (dito “inglês”) funciona a nível global, sendo usado pela Administração,
pelas escolas, pelas instituições, etc. Em Querala é comummente usado o
calendário malaiala, ou calendário Kollam. Um vulgar calendário gráfico de parede
será normalmente ordenado por meses segundo a estrutura do calendário
gregoriano, contendo em corpo mais pequeno e em cores diferenciadas as
correspondências ao calendário malaiala, à era ‘saka’ (calendário criado pelo
governo em 1957 EC) e à Hégira, além de um conjunto de informações astrológicas
necessárias à compreensão do calendário malaiala e dos horários do nascer e pôr‐
do‐sol, necessários às práticas islâmicas.
No decorrer do nosso Estudo de Campo apercebemo‐nos da necessidade, já antes
intuída, de compreender minimamente o calendário local. A tarefa não é fácil, dada
a complexidade de que se reveste este instrumento de datação e a escassez de
fontes credíveis sobre a matéria. No entanto a nossa pesquisa etnográfica dependia
de perceber em que dias e horários poderíamos observar e participar nas
cerimónias rituais e estas são regidas e anunciadas pelo calendário malaiala.
O calendário malaiala denomina‐se Kolla Varsham no idioma local, ou Era Kollam
em tradução literal, e tem o seu ano 1 em 825 EC. Quanto à razão da instauração
deste calendário, as teorias são quase tantas quantos os dias do ano e nenhuma é
confirmável. O que parece certo é que este calendário foi utilizado desde a sua
instauração num pequeno território e só a partir do séc. XII da Era Comum começou
a ganhar predominância regional (cfr. Menon, 2007: 104 ‐ 110).
A dificuldade é acrescida por o mesmo calendário Kollam existir em duas versões:
no sul de Querala o ano começa no primeiro dia do mês de Chingam (constelação
de Leão) e no norte no primeiro do mês de Kanni (Virgem). As duas versões do
mesmo calendário podem ainda variar no número de dias de cada mês pelo que
pode haver dissemelhança (cfr. Tarabout, 2002 : 194), (cfr. Sarma, 1996 : 93).1
Centramos a nossa atenção apenas no calendário em uso no norte do Estado,
aquele que mais nos interessa.
O ano Kollam, que até 17 de Setembro de 2015 EC foi o de 1190, está dividido em
12 meses que correspondem às constelações do zodíaco:
1
No início do nosso Estudo de Campo sentimos essa dificuldade: tínhamos obtido pela internet um
calendário Kollam mas os eventos que nos eram anunciados pareciam estar nas datas erradas. Ver o
anexo Diário de Estudo de Campo na entrada de 13 de Janeiro.
1
Mês Kollam Correspondência Gregoriana Constelação
O mês divide‐se em semanas de sete dias, como no calendário gregoriano: Njayar
(Domingo), Thinkal (Segunda‐feira), Chowva (Terça‐feira), Budhan (Quarta‐feira),
Vyazham (Quinta‐feira), Velli (Sexta‐feira) e Shani (Sábado). Esta prática de dividir o
mês em semanas de sete dias é conhecida na Índia desde o início do séc. IV EC mas
só nos sécs. IX / X EC se tornou de uso corrente (cfr. Tarabout, 2002 : 200). Mas não
tem grande utilidade nas actividades tradicionais ou mágico‐religiosas pelo que, na
prática, acaba por ser uma tradução malaiala dos dias da semana “inglesa”.
Mas o ano divide‐se ainda em vinte e sete séries lunares (ñattuvela) de catorze dias,
cada uma designada pelo nome de uma estrela, e estas são da maior importância.
Antes de mais porque a divisão do ano em ñattuvela ligadas ao ano Kollam é de
utilidade para a planificação agrícola (cfr. Devi, 1986: 39). Depois, porque são estas
quinzenas que determinam algumas datas comemorativas ou funções religiosas. As
ñattuvelas são de dois tipos que se sucedem alternadamente: ‘claras’ (amavasi),
com começo na lua nova, e ‘escuras’ (pournami), com começo na lua cheia. Os dias
nesta divisão do tempo chamam‐se tithi e os de lua cheia e lua nova têm um nome:
velutha vanu, literalmente lua cheia e karutha vanu, a lua nova. Os restantes tithi
2
são numerados de um a treze. O dia 24 de Janeiro de 2015, por exemplo,
corresponde a 10 de Makaram de 1190 e com o tithi panchami, o quinto dia depois
da lua nova na ñattuvela Pururuttathi (nome da estrela), que é amavasi (clara).
Mas a classificação do tempo no calendário Kollam não se fica por aqui: os dias são
ainda designados tendo em consideração a revolução sideral da lua, que determina
27 ou 28 ‘casas lunares dominantes’ ou naksatra, igualmente designadas por nomes
de estrelas (Cfr. Tarabout, 2002 : 196). O nakshatra para o dia 24 de Janeiro de 2015
EC é pooruttathi. Na cultura queralesa a determinação do naksatra tem mais
importância do que o tithi, ao contrário de outras zonas da Índia. Assim, muitas
celebrações religiosas ou a comemoração do aniversário de um nascimento ou
falecimento, por exemplo, têm em conta o naksatra e não o tithi ou o dia do mês.
O momento exacto em que a lua entra no quadrante da casa lunar dominante, isto
é, a mudança do naksatra, bem como o momento em que a lua atinge o zénite, isto
é, a mudança do tithi, fazem parte do calendário e são‐nos indicados, não em horas
e minutos mas em unidades de sexagésimos do dia, nazhika, que corresponde a 24
minutos e a sexagésimos do nazhika, vinazhika, que correspondem a 24 segundos,
contados a partir da meia‐noite.
Quanto à calendarização das cerimónias de kaliyattam, todos os nossos
informantes foram unânimes: a data é determinada pelo dia do mês Kollam. Já
quanto ao horário das diferentes fases dos rituais não encontrámos a mesma
concordância mas, em alguns casos verificámos haver correspondência entre o
início da cerimónia do Theyyam principal de um dado kalyiattam e o início do
naksatra.
Em todo o caso, à minúcia e rigor da determinação do tempo não corresponde
análoga precisão na sua aplicação: da mesma maneira que um comboio pode
naturalmente atrasar‐se quatro ou cinco horas, os horários anunciados para os
kaliyattam raramente são cumpridos e ninguém parece saber porquê ou sequer
preocupar‐se com isso. É que para o queralês hinduísta, que convive no seu
quotidiano com a diversidade de calendários referida, todas estas eras se inserem
numa sequência mais ampla: vivemos no yuga Kali, que comporta 432.000 anos, o
qual faz parte de um conjunto de quatro yuga que totalizam 4.320.000 anos e
constituem um milésimo de um ciclo superior, o kalpa, com uma duração de
4.320.000.000 de anos (Cfr. Tarabout, 2002 : 200). Perante tais valores, umas horas
a mais ou a menos não têm significado.
Referências
Devi, R. Leela (1986), History of Kerala. Kottayam: Vidyarthi Mithram Press & Book Depot.
Menon, A. Sreedhara (2007) A Survey Of Kerala History. Kottayam: DC Books.
Sarma, K.V (1996), “Kollam Era”, Indian Journal of History of Science, nº 31, pp. 93 – 99.
Tarabout, Gilles (2002), “Elaborations indiennes du temps”, Les Calendriers. Leurs enjeux
dans l’espace et dans le temps. Paris: Somogy éditions d’art, pp. 193‐204.
3
Imagens
Imagem 1 – Mapa da zona onde se desenvolveu o Estudo de Campo, sensivelmente
delimitada pelo triângulo definido por Kannur – Thaliparamba – Payyanur. Na inserção, o
sudoeste da Índia com o distrito de Cananor destacado. Fonte: Google Maps.
Imagem 2 – Sree Muthappan com arco e flecha no Railway Sree Muthappan Kshethram,
Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 3 - O teyyakaran que vai executar Gurukkal Theyyam é maquilhado à vista dos
presentes. No santuário atrás estão pendurados os vários adereços e elementos da sua
indumentária. Chera – Vellakkeel Theeyakandi Kathivanoor Veeran Temple, Vellakkeel,
distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 4 - Kathivanoor Veeran. Chera – Vellakkeel Theeyakandi Kathivanoor Veeran
Temple, Vellakkeel, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 5 – Santuário de Gullikan no Mykeel Sri Karimkuttysastham, Pulimparamba,
Thaliparamba, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 6 – Interior do santuário de Gullikan no Mykeel Sri Karimkuttysastham contendo
dois nilavilakku (lamparinas) acesos, a máscara da deidade e vários objectos rituais.
Pulimparamba, Thaliparamba, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 7 – Entrada do Mykeel Sri Karimkuttysastham, Pulimparamba, Thaliparamba,
distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 12 – Enquanto não são chamados a participar no ritual, dois músicos descansam no
templo de Odan Valappu Kathivanoor Veeran em Cherukunnu, distrito de Cananor, Janeiro
de 2015.
Imagem 13 – Um poojari prepara o kothirithattu, altar térreo com tochas para o sacrifício
de sangue por Gurukkal Theyyam. Kavu de Odan Valappu Kathivanoor Veeran, Cherukunnu,
distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 14 – Kindi recipiente que os Theyyam usam para beber, sorvendo pelo bico.
Konhan Tharavadu Sree Thondachan Devasthanam, Thaliyil, Dharmsala, distrito de
Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 19 – Cozinha ao ar livre e uma panela usada para cozer o arroz. Dermal Tharavadu,
Pilathara, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 20 – Vayanattu Kulavam vellattam. Konhan Tharavadu Sree Thondachan
Devasthanam, Thaliyil, Dharmsala, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 21 – Gulikan vellattam. Konhan Tharavadu Sree Thondachan Devasthanam,
Thaliyil, Dharmsala, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 22 – Imagem rara no nosso Estudo de Campo: uma mulher alumia Gulikan
vellattam com archotes de folhas de coqueiro secas (olachootu). Konhan Tharavadu Sree
Thondachan Devasthanam, Thaliyil, Dharmsala, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 40 – Kandenar Kelan Theyyam passa pela fogueira acompanhado por dois
auxiliares. Dermal Tharavadu, Pilathara, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 41 – Kandenar Kelan Theyyam passa pela fogueira acompanhado por dois
auxiliares. Dermal Tharavadu, Pilathara, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 51 – Puliyoor Kanan Diyvan vê-se num simples espelho de plástico no momento da
transformação. Muchilot Kavu, Valapattanam, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 52 – Dança de Puliyoor Kanan Diyvan. Muchilot Kavu, Valapattanam, distrito de
Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 53 – Nilavilakku (lamparina). Muchilot Kavu, Valapattanam, distrito de Cananor,
Janeiro de 2015.
Imagem 54 – Kannangat Bhagavathi vê-se num simples espelho de plástico no momento da
transformação. Muchilot Kavu, Valapattanam, distrito de Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 55 – Dança de Kannangat Bhagavathi. Muchilot Kavu, Valapattanam, distrito de
Cananor, Janeiro de 2015.
Imagem 56 – Kannangat Bhagavathi. Muchilot Kavu, Valapattanam, distrito de Cananor,
Janeiro de 2015.
Imagem 76 – Tondachan thottam. Karapat Tharavadu, Vengara, distrito de Cananor,
Fevereiro de 2015.
Imagem 77 – Os thottam de Vishnumurti e Raktcha Chamundi são realizados em
simultâneo. Karapat Tharavadu, Vengara, distrito de Cananor, Fevereiro de 2015.
Imagem 78 – A casa da família Kodakal vai receber a visita de Muthappan. No pátio, à
esquerda, os performers improvisam um vestiário. À direita serão instalados os altares e
será executado o ritual. Kunhimangalan, Payyanur, distrito de Cananor, Fevereiro de 2015.
Imagem 79 –
O teyyakaran,
‘escreve’ no corpo
e no rosto para
fazer Muthappan.
Kunhimangalam,
Payyanur, distrito
de Cananor,
Fevereiro de 2015.
Imagem 80 – Muthappan visita uma casa de família. Kunhimangalan, Payyanur, distrito de
Cananor, Fevereiro de 2015.
Imagem 81 – Uma imagem em cartão da deusa Puthia Bhagavathy sobreposta a um
símbolo do Partido Comunista da Índia – Marxista e emoldurada por bandeiras do mesmo.
Cherukunnu, distrito de Cananor, Fevereiro de 2015.
Imagem 82 – Um aprendiz de chendakkaran leva muito a sério a sua tarefa de acompanhar
os familiares durante o ritual. Velluvalappil Vayanattu Kulavan Temple, Panneri, distrito de
Cananor, Fevereiro de 2015.
Imagem 85 – Templo de Sree Muthappan, Parassinikadavu, distrito de Cananor, Março de
2015.
Imagem 86 – Degraus para o rio. Templo de Sree Muthappan, Parassinikadavu, distrito de
Cananor, Março de 2015.
Imagem 87 – Interior do Templo de Sree Muthappan, Parassinikadavu, distrito de Cananor,
Março de 2015.