A Desordem É Só Uma Ordem Que Exige Uma Leitura Mais Atenta (Carlos Nelson Ferreira Dos Santos) PDF

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Revista de Administração Municipal - MUNICÍPIOS - IBAM DESORDEM

A desordem é só uma
ordem que exige uma
leitura mais atenta
Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1943-1989)
Arquiteto e Urbanista pela Universidade do Brasil
Chefe do Centro de Pesquisas Urbanas (CPU)–IBAM entre 1975 e 1988

Publicado originalmente na Revista de Administração Municipal n.o 165,


outubro/novembro de 1982.

As categorias de significado casas de triagem? — O que vem expressões inaproveitáveis para


urbano são de uso comum. “Uso”, a ser Loteamentos Periféricos? — surdos? — Posta assim, a questão
aqui, implica não só o recurso a Cada pergunta terá tantas respostas até que seria simples.
representações teorizadas (em con- quantas sejam as visões e as razões Infelizmente, o problema não
ceitos e no discurso) mas também de cada ator implicado. E cada ator está na viabilização do diálogo, mas
a sua prática por meio de situações trará para a sua interpretação a carga no tom em que pode ser feito e em
quotidianas. Desde logo, destaca-se de sua pertinência de classe, mais quem determina onde começa e
a enorme possibilidade de confu- as especificidades de sua formação, onde acaba. Diálogos em que um
sões e de manipulações. O que é mais seus interesses de vida. Tudo dos interlocutores detém o poder
conhecido por todo o mundo e o isto será traduzido por uma lingua- de, em última análise, dizer o que
que todo o mundo sabe sempre é gem cultural. A não ser nos seus significa cada palavra e de agir
muito vago e abrangente. Se quem termos mais gerais, um empresário como tal acabam sendo perigosos.
se apropria deste conhecimento não capitalista, um tecnocrata de Go- Eles permitem que o outro lado se
faz referências precisas e não escla- verno e um morador de uma das revele, sem garantias de ganhar nada
rece os limites do próprio uso, o uso muitas formas de habitat para pobres em troca. Graças a Deus, esta é uma
vira abuso e, aos bem intencionados no Rio NÃO estão se referindo à imagem caricata, pois, no fundo,
apreciadores de lebre, acaba se ser- mesma coisa quando tentam bali- ninguém é tão bobo que entregue
vindo gato. zar o que entendem por problema o ouro todo em falações sem com-
— O que é uma favela? — E habitacional. promisso. Há poderes e poderes.
uma casa de cômodos? — O que — Quer dizer então que os O povo, no Brasil, há muito tempo
quer dizer morar em um Conjunto diálogos são inúteis, pois sempre que aprendeu a responder a palavras
Habitacional? — Por que se fazem se tratará de gagos articulando (ordens?) autoritárias e rígidas com

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contrapalavras que lhe tornam viá- Falar de favelas, conjuntos, dem, pelo menos) não é a de ganhar
vel a vida do dia-a-dia. Nos campos centros de triagem ou loteamentos dinheiro mesmo...
da habitação e do urbano, isto é também corresponderia a individua- É claro que este assunto não é
muito óbvio. Se o analista for atento, lizações e desagregações de um pro- tão simples. Não caberia em uma
é capaz de evitar tanto o idealismo blema que perde muito quando não análise de duas páginas explicar o
de certos modelos de explicação é visto como um todo. Não se trata que são as cidades brasileiras e dar
da sociedade, um tanto teóricos de formas de morar simplesmente, os “comos” e os “porquês” da ação
demais, quanto os empirismos que mas de formas de morar na cidade. do Estado e do Capital em cima
dispensam exercícios paralelos de De novo, não se trata de um “pro- delas. Porém, atacar problemas
reflexão. blema urbano” e deve-se ter muito setoriais como o da moradia, sem
O papel de um analista é jus- cuidado para não começar a inventar pelo menos mostrar que eles não
tamente este: o de varar todas as uma teoria do (ou contra o...) urba- estão soltos no ar, só serve para
palavras, anulando o seu preten- no, sob o risco de escamotear o que deixar as coisas confusas. Aliás, esta
so valor universal e procurando verdadeiramente está por trás do é uma trapalhada feita de propósito
devolvê-las ao conjunto específico que se passa com nossas moradias muitas vezes. Cidades e formas de
que lhes deu o primeiro sentido. e nossas cidades. Não são elas que habitação são apostrofadas, dis-
Para fazê-lo, é preciso lançar mão de andam erradas, mas sim a maneira secadas e até “resolvidas” como
teorias que ultrapassem o episódico em que estão sendo apropriadas, se constituíssem em um quadro
e que permitam explicar o particular com uma terrível simplificação fechado e referenciado a si mesmo,
dentro do “caldo grosso” em que dos seus significados, sem nenhum quando é tudo ao contrário. As cida-
está mergulhado. Quando sentidos respeito pelas representações a que des brasileiras estão representando,
e significados são vistos para além correspondem. Nos últimos tem- ou melhor, tendem a representar,
do que dizem os indivíduos, ad- pos, o Estado e o Capital no Brasil de forma concreta, no espaço uma
quirem valor social. É assim que é têm disputado para ver quem é mais ordem que as ultrapassa de muito e
possível entender contradições: um capaz de olhar as cidades apenas que tem de ser imputada a modelos
empresário pode se expressar como como campos privilegiados do eco- políticos, ideológicos e econômicos
ser moral de uma forma, enquanto nômico, como meios de obtenção que vêm sendo impostos ao País,
está agindo de outra, como acio- de lucro e de mais valor. Por mais com regularidade, desde o início
nador de um determinado modo incrível que pareça, o Estado está do século. Em suma, além de se-
de produção; um representante do ganhando. Recentemente, até certas rem cidades, são cidades legíveis
Governo revela as boas intenções unidades do Capital já andam se por meio dos processos históricos
políticas da agência na qual trabalha, manifestando para que o Governo que consubstanciam. A questão de
enquanto omite o seu suporte eco- volte a ter mais compostura, dei- morar, e em particular a questão
nômico, impossível de ter a crueza xando as preocupações empresariais do morar para os pobres, é, pois, o
disfarçada atrás de ambiguidades com quem de direito e se limitando reflexo, em um nível e em uma de-
sutis; um morador está praticando ao seu papel de “representar todas terminada instância particularizada,
seus próprios valores e suas próprias as classes” para além delas mesmas. de um processo histórico mais geral.
percepções do mundo, ainda que se É claro que, ao Capital não interessa — E qual é este processo?
expresse altruisticamente pela sua o Estado como concorrente, o que Seria ingênuo caracterizá-lo em
“comunidade”. Quem se debruce seria desleal diante da ética dos uma frase certamente carregada de
em tal material como um estudioso seus interesses. O Governo deve se apriorismos teóricos. Um processo
tem de se dispor a desvendar adivi- limitar a prover as boas condições histórico, em especial, quando é
nhações que, à primeira vista, ou são de produção e de reprodução do Ca- decifrado pelas de suas consequ-
facílimas, ou nem existem formula- pital, desembaraçando-o de gastos ências materiais (no nosso caso,
das como perguntas. Tem de revelar básicos referentes à mão de obra. o espaço urbano), apresenta-se
metáforas que encobrem o que é a Para tal, deve prover condições muito turvo. Não há formas puras
sociedade para ela mesma, adoçan- mínimas de transporte, de moradia de assentamentos físicos, como
do um prato amargo e meio azedo. e de alimentação à população, ainda não há formas puras de exploração
Tarefa antipática, cheia de riscos de que perca dinheiro com o negócio. econômica em uma sociedade dada.
desagradar a gregos e troianos. Afinal, sua função (até segunda or- As cidades se apresentam sempre

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por meio de configurações conjun- das camadas dominantes. Ao grosso sava no Rio de Janeiro sobre os pro-
turais. Há significados mais vivos da população (talvez de 70% a 80% blemas de moradia para os pobres,
e pujantes que outros, capazes de dos moradores da aglomeração me- poderá haver uma surpresa. É que
conviver com anacronismos. Mais tropolitana do Rio), nada mais resta encontrará, expresso sob diversas
ainda, incapazes até de sobreviver do que salvar-se como puder. formas, o mesmo preconceito ide-
sem eles. Isto é muito verdadeiro
para as cidades dependentes, de
cujo time fazem parte as nossas,
onde a existência de formas de
vida e de desenvolvimento espacial
modernos exige corolários, como
favelas, conjuntos, loteamentos e
outras formas de “submoradia”
(“sub” só porque há “super”).
A leitura do que é estrutural nos
meios urbanos não é nada fácil.
O Rio de Janeiro até que apre-
senta certas vantagens para apre-
ensão do seu modelo. É que aqui
as relações entre estratificação da
sociedade e segregação no espaço
estão adquirindo com muita rapidez
contornos quase que caricaturais.
Os lugares onde é melhor morar
por qualquer razão, cada vez mais,
são mais reservados aos que podem
consumi-los. O que, em termos ca-
pitalistas e sem rodeios, quer dizer
aos que podem pagar por eles. O
que faz um local ser melhor que
o outro não são as determinações
divinas nem as dádivas da natureza,
são os investimentos do Estado
(redes de infraestrutura, facilidades Denunciar a novidade do fenô- ológico que nos parece tão atual e
de acesso, níveis de equipamento) meno e imputá-lo a esta ou àquela familiar. Os pobres empesteavam a
logo monopolizados pelo Capital ação localizada ou ao programa do cidade. A sua miséria materializada
privado. A terra é usada como um Governo seria sem sentido. Isto no espaço era altamente contamina-
bem produzido, como um fator de equivaleria a condenar, no golpe e dora dos padrões urbanísticos civili-
geração de lucros apropriáveis indi- no ferimento, a arma que os come- zados. Incomodavam por participa-
vidualmente. Quando, na verdade, teu e não a cabeça que os determi- rem, à força, da festa para a qual não
ela só é valorizada por meio de uma nou e a mão que os executou. Fazer haviam sido convidados, e ninguém
inversão coletiva, justificada pelo uma guerra santa contra o BNH, estava disposto a dividir com eles o
interesse público. Sob o pretexto por exemplo, e jogar-lhe em cima pouco que havia digno de ser usado.
de atendimento às necessidades de todos os seus erros e fracassos até Era preciso, portanto, acusá-los de
consumo coletivo, o Estado acaba poderia parecer que, se as coisas fos- muitos males verdadeiros e imagi-
concedendo privilégios às necessi- sem feitas de outra forma, dariam nários, torná-los sujeitos de culpa
dades de produção e reprodução do certo. E isto não é verdade, porque atribuída. Depois disto, só restava
Capital, aos seus interesses especula- o problema não está aí. decretar a sentença: banimento. Um
tivos estéreis ou às necessidades de Para quem for buscar, desde o banimento que já inequivocamente
consumo ostentatório e diferencial início do século XX, o que se pen- favorecia aos interesses do poder e

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do Capital. Todas as maravilhosas aos subordinados. Daí para frente, muito valorizadas e já congestiona-
obras feitas na cidade, na época, e os serviçais eram mais “livres” e das. Começam a surgir os primeiros
das quais nos ensinaram a nos or- teriam de prover por sua conta e planos e ações de remoção.
gulharmos na escola foram, de fato, risco suas necessidades de moradia. Vai ser preciso, porém, que
feitas à custa dos pobres removidos Nas favelas da Zona Norte, foram a esfera do político seja muito
para longe e com prejuízos para morar os trabalhadores da indústria, modificada para que os interesses
seus esquemas de vida. Mas, o que esta também já convencida da inu- econômicos se façam valer sem um
importava isto se o que vinha pela tilidade de construir vilas operárias. conflito social declarado. Isto é o
frente era o progresso? Os proletários vinham aos magotes que vai acontecer logo em seguida,
E o progresso veio mesmo... A e dispostos a qualquer coisa, desde a partir de 1964. As políticas de
cidade que tinha 800 mil habitan- que recebessem um salário com o habitação passam então a refletir,
tes, hoje, comanda um complexo qual não morressem de fome. na área específica do urbano, uma
urbano com quase 10 milhões. Ninguém deixava os favelados ordem globalizante que se pretende
Capital privilegiada da República, onde estavam porque gostasse deles, para o País. Note-se que o aconteci-
lugar da primeira grande industria- ou porque achasse que as oportuni- mento não pode e não deve ser lido
lização do País, o Rio cumpriu uma dades de uso do espaço urbano (o como um evento isolado. Coroa um
escalada crescente no sentido de se que inclui muitos mais usos do que o processo de desenvolvimento do
adaptar mais e mais às modernas da moradia, sendo o primeiro deles capitalismo no Brasil cujos rumos
formas de produção capitalista que o uso para o trabalho) devessem ser estavam apontados desde muito
o País almejava. Do processo, fazia iguais para todos. As favelas, apesar antes.
parte a criação de mecanismos pro- de sempre muito ameaçadas, foram Nas propostas trazidas pelas
gressivamente sofisticados para o aceitas durante algum tempo porque mudanças a partir de 1964, a
controle da terra, controle que não eram úteis e porque não havia con- habitação teve um lugar particu-
deve ser visto na sua conotação mais dições de mexer com elas. Por “con- lar. De fato, sobre este assunto
abrangente, mas como controle da dições” entendam-se força política tão complexo e naturalmente pela
terra valorizada pelo próprio fato da (na época, o populismo contava) e percepção correta de todas as suas
expansão urbana, beneficiada por força econômica (ninguém sabia potencialidades conectivas, o Go-
investimentos públicos, diferencia- como criar os enormes recursos verno investiu muito. As políticas
dores do espaço e favorecedores financeiros necessários para resolver habitacionais foram as únicas que
do Capital. o problema). faziam algumas concessões populis-
O caso das favelas é bem signi- Lá pelo início dos anos 60, tas: prometiam casas para os pobres
ficativo. Elas já aparecem em cena as condições concretas vão mudar. e visavam criar empregos em massa
desde fins do século passado. A sua As pressões do Capital vão se fazer nos meios urbanos. Mas tinham
grande explosão, no entanto, dá-se sentir de forma crescente. As favelas também outros objetivos políticos:
entre as décadas de 30 e 50. É que, não estão mais nas desvalorizadas eram a compensação oferecida ao
na ocasião, o País estava submetido entrelinhas urbanas. A pequena Capital produtivo e financeiro na-
a uma expansão industrial acelerada, capacidade de expansão dos inves- cional, enquanto eram fechadas as
que dava muita importância às cida- timentos urbanísticos na cidade vai suas perspectivas em outras áreas.
des e, para elas, atraía massas de mi- obrigar a um superuso dos espaços Serviriam ainda como armas no
grantes rurais. Já existiam inclusive que já concentram as melhores combate à inflação.
os mecanismos legais para impedir condições. Neste quadro, as favelas Seria inútil descrever o que
o surgimento e a proliferação de perdem sua funcionalidade: os ter- aconteceu depois da criação do
favelas. Mas elas foram toleradas renos que ocupam passam a valer SFH. O assunto já foi bastan-
por serem altamente funcionais ao demais para o uso que têm. São te explorado em todas as suas
quadro estrutural urbano. Nas fave- agora cobiçados para a expansão das consequências. O que vale a
las da Zona Sul, foi morar a mão de atividades produtivas, ou para serem pena destacar é que não há, no
obra barata que prestaria serviços comercializados para provimento de momento, no Brasil, ação e re-
à nova classe média emergente, moradias das classes mais abastadas, flexão sobre habitação que não
que assim ficava desobrigada dos ou para desenvolvimento de equi- diga respeito ao sistema oficial,
deveres de patronagem em relação pamentos e infraestrutura em áreas mesmo que seja por oposição.

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Mesmo quando não é onipotente, papel de auxiliar na intensificação urbanização básica, prepara a terra,
o BNH é onipresente e representa de imposição de um modelo de e os pobres fazem o resto. Para os
uma espécie de linha divisória nas estrutura metropolitana já apontado empresários, a coisa também é um
cidades brasileiras, entre o que é desde os anos 50. Um modelo que, bom negócio. O Estado libera o
oficial, aceito, reconhecido e cen- a um Núcleo privilegiado, com as capital que acumula para financiar
tralizado e o que é autônomo e fora melhores condições de consumo moradias aos que, de fato, podem
de controle. Outro fato remarcável urbanístico apropriadas pelo Capital pagar por elas, já que o sonho de
é que, após uma eficientíssima ação e pelas camadas de mais alta renda, uma grande demanda cativa e inesgo-
no setor no final da década de 60, corresponde uma sucessão de Peri- tável entre os pobres acabou. Além
desde 1972, o BNH tem refreado os ferias cada vez mais desprovidas, à disto, os empresários também estão
seus programas ditos “de interesse medida que se afastam do Núcleo interessados em ganhar dinheiro
social”. e habitadas por uma população com os esquemas de implantação de
No Rio, em particular, pode ser também cada vez mais miserável. O infraestrutura. Como alguém tem de
acompanhada a curva da atuação BNH serviu não só para “limpar” pagar, as Prefeituras (quais? as dos
do BNH para os pobres. O Rio foi estes Núcleos dos indesejáveis mas municípios periféricos, os tais onde
tratado como um caso de demons- também fortaleceu em muito as moram os miseráveis...) pagarão.
tração, pois era a cidade do Brasil condições de sua monopolização Pagarão as obras e a terra que terá de
com o maior número absoluto de pelo Capital. O Rio agora é uma ci- ser estocada para fornecer lotes, com
favelas e de favelados. Em termos dade bem segregada, onde as ordens o dinheiro que o BNH lhes empres-
da política pretendida, conseguiram do espaço andam bastante alinhadas tará. Um esquema que seria perfeito
ótimos resultados, pois, em 1972, com as das hierarquias sociais dita- se as Prefeituras tivessem de onde
já cerca de 20% das favelas do Rio das pelo poder econômico. tirar dinheiro (cada dia, têm menos)
haviam sido erradicadas e extintas. A outra consequência notável é e se o que se estivesse propondo não
Foi aí que se percebeu que não havia que, atualmente, tanto o BNH como acabasse por reforçar a tendência já
como conciliar a oferta forçada de os ditos empresários imobiliários assustadora de Periferias crescendo
uma casa, que tinha de ser paga, a estão de acordo em que pobre pre- cada vez para mais longe...
pessoas que não tinham condições cisa comer e, por isso, não pode ter A expansão das Periferias Me-
para fazê-lo. A contradição absoluta dinheiro para ter casa. É surpreen- tropolitanas é a grande marca do
entre a vocação social de uma enti- dente que fossem necessários mais Brasil urbano dos anos 70. Só a
dade e a sua essência como Banco de 10 anos de experiências arrasa- do Rio já deve andar entre quatro
ficou revelada de forma irremedi- doras para os pobres, para que se e cinco milhões de habitantes,
ável. A truculência das remoções, descobrisse esta verdade elementar. morando em lotezinhos esparsos,
verdadeiras violências contra a De qualquer forma, seria louvável a sem água, sem luz, sem esgoto, sem
forma de vida dos favelados, foi descoberta, ainda que tardia, se não transporte, sem segurança e com
respondida por um ciclo vicioso trouxesse outras implicações. Quan- precárias condições de proprieda-
de inadimplências, expulsões, de- do o Estado admite que os pobres de. Já não são raros os casos de tra-
fecções e explorações de diversas não podem ter casas, o que está balhadores viajando mais de duas
ordens em nível individual. O povo, admitindo mesmo é que não podem horas desde o local que moram até
que não foi consultado sobre como pagar por elas e que ele não tem onde podem obter emprego.
queria e podia morar, acabou dando nada a ver com isto. Aliás não tem Sem minimizar o problema
a resposta final. O resultado é que a mesmo, porque, no caso, o Estado é das favelas situadas no Núcleo
“solução” gerou um problema mais o BNH, e o BNH VENDE capital metropolitano ou próximas a ele,
amplo do que o que queria sanar. para construir casas e não tem obri- vale ressaltar que os números que
As ações do BNH sobre po- gação de dar nada a ninguém. Por lhes são relativos empalidecem
pulações de muito baixa renda consequência, também o Estado quando comparados aos das Peri-
no Rio andam meio congeladas está desobrigado de providências. ferias. Acontece que, nas últimas,
e, desde então, estão sendo revistas. Os programas de lotes urbani- já nem se pode enumerar as “van-
Mesmo assim, geraram dois efeitos zados parecem muito simpáticos à tagens” que a favela tem. Não há
dignos de algumas considerações. primeira vista. Para o BNH, apon- escolas acessíveis nem transporte
O primeiro é que fica patente o seu tam uma saída: o Governo provê a fácil, nem uma interação, positiva

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para os pobres, com a vida e as que muitos dos que se evadem dos opção.
atividades dos ricos. As Periferias conjuntos do BNH vão morar nelas. Foi dito, no início, que o papel
são vizinhanças relativamente Se se chegar a comprovar isto, será do analista era o de varar todas as
homogêneas. Basta lembrar que completado o ciclo hierarquizante e palavras e o de anular seu pretenso
a maioria dos Conjuntos Habita- selecionador proposto pela ação do valor universal. Também foi dito
cionais da COHAB e Cooperativa BNH. Quando os favelados foram que lhe caberia elucidar metáforas.
está situada nestes locais. Não é à removidos, os que puderam ficaram É preciso dizer ainda que, quando
toa que os favelados fazem tanta nos conjuntos. Os outros ou acaba- o faz, não pode abandonar as suas
força para não irem para eles. ram sendo removidos outra vez para próprias palavras. Estando cons-
No entanto, há muita gente os malafamados centros de triagem, ciente disto, pode, aí sim, dirigir
indo morar em Periferias de modo ou saíram por sua conta. Para estes seus pensamentos para um com-
próprio. No Rio, a proporção do últimos, a opção era ou voltar as fa- promisso. No caso, o compromisso
crescimento habitacional autônomo velas ou ir para as Periferias (onde há é claro: se há uma maioria absoluta
(isto é, por meio da construção de de tudo, até favelas também). Como de interessados tendo de resolver
casas em loteamentos) em relação o acesso às favelas do Núcleo está um problema que afeta diretamente
ao oficial (BNH) é de quatro para ficando muito difícil e controlado suas estratégias de sobrevivência, o
um nos últimos 10 anos. É que, (às vezes, principalmente pelos analista assume o seu viés.
Os moradores pobres do Rio de
Janeiro têm tido muito poucas opor-
tunidades de fazer valer suas opiniões
sobre onde e como morar. Quando
o podem, revelam uma clareza típica
de quem tem de contar com uma
“ideologia do quotidiano” a mais
pragmática possível. Ao ouvi-los, fica
claro que não lhes servem as máqui-
nas burocráticas e empresariais que
o Estado oferece para que resolvam
seus problemas. Tampouco podem
funcionar como peças dos jogos eco-
nômicos favoráveis ao Capital, pois
isto só colide com os mecanismos, às
vezes, muito complicados, que têm
de manipular (redes de solidariedade,
de amizade e de parentesco) para
aguentar as dificuldades da vida.

dianta da ausência de perspectivas, moradores mais antigos), sobra a


morar em Periferias acaba represen- Periferia. Sobra para os que foram
tando a melhor solução, a menos expelidos dos Conjuntos ou para os
repressiva e a menos controlada bu- recém-chegados à cidade, para os
rocraticamente. Há mesmo indícios quais está representando a grande

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