These Teixeira M A R PDF
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PSYCHOPATHOLOGIE ET PSYCHANALYSE
JURY
ASSIS
2012
MARCO ANTÔNIO ROTTA TEIXEIRA
_____________________________________
Francisco HASHIMOTO - UNESP – Assis
Orientador
_____________________________________
Luiz Eduardo PRADO DE OLIVEIRA – Paris 7
Orientador
_____________________________________
Mareike WOLF-FEDIDA– Paris -7
Membro
_____________________________________
Maria Inês Assumpção Fernandes– USP – São Paulo
Membro
_____________________________________
Manoel Antônio dos Santos - USP – Ribeirão Preto
Membro
Para Aline
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos ao Prof. Dr. Francisco Hashimoto, que me orientou nesta tese e
em minha trajetória acadêmica, e não mediu esforços para que a realização da tese em
cotutela fosse possível.
Agradeço ao Prof. Dr. Luiz Eduardo Prado de Oliveira, que aceitou a co-orientação
deste trabalho, em cotutela pela Universidade Paris Diderot, e me recebeu gentilmente durante
o estágio na universidade parceira.
Agradeço ao Prof. Dr. Manoel Antônio dos Santos, à Profª Drª Maria Inês Assunpção
Fernandes e à Profª Drª Mareike Wolf-Fédida, por aceitarem tão gentil e atenciosamente o
convite de fazer parte da banca de defesa desta tese. Agradeço, ademais, ao Prof. Dr. Walter
José Martins Migliorini, pela sua participação em nosso exame de qualificação e ao Prof. José
Antônio Pavan pelas contribuições ofertadas à pesquisa no momento de meu seminário de
pesquisa.
Gostaria de agradecer aos amigos e colegas da Universidade Estadual de Maringá, e ao
Departamento de Psicologia desta universidade pelo apoio prestado à execução desta pesquisa
– em especial aos professores e amigos Hélio Honda (que participou do exame de
qualificação) e Lúcia Cecília da Silva (que apoiou a realização das atividades junto à
universidade estrangeira). Gostaria de agradecer, ainda, aos colegas da área de trabalho pela
compreensão diante de minhas ausências para dedicação à pesquisa. O apoio da Universidade
Estadual de Maringá foi fundamental para a realização deste doutorado!
Sou grato ao apoio sempre constante da UNESP durante a realização de meu
doutorado, com destaque para: a Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa, que tornou
possível o acordo de cotutela com a universidade Paris 7, assim como meu período de
trabalho no exterior; ao conselho de Pós-graduação em Psicologia da UNESP-Assis, que
compreendeu as dificuldades enfrentadas e me deu suporte para a continuação da pesquisa; e
a equipe da seção técnica de Pós-graduação (UNESP-Assis), pelo suporte prestado aos
trâmites burocráticos e demais exigências para que fosse possível a realização desta tese em
regime de cotutela. Agradeço, também, a Universidade Paris 7 – Denis Diderot, que nos
recebeu para a realização desta pesquisa em cotutela.
As grandes empreitadas à que nos lançamos ao longo da vida, sejam elas quais forem,
não seriam possíveis sem o apoio dos amigos; além disto, tais realizações só ganham sentido
com o seu compartilhamento com as pessoas queridas, que fazem valer a pena toda a luta e
investimento conferidos a esta tarefa tão dura! Assim, gostaria de agradecer especialmente aos
amigos que estiveram sempre presentes e contribuíram direta e verdadeiramente, em
diferentes momentos, para a realização de meu doutorado: Marcos Shiozaki, Ana Lúcia
Volpato, Guilherme Elias Silva, Leandro Anselmo Tavares, Marcos Casadore, Artur Molina,
Paulo Bezerra, Maytê Coleto, Flávia Bertão, Thiago Canonenco Naldinho, Jimena Menendez,
Josiane Bocchi, Rodrigo Barros Gewehr, Fábio Lopes, Hélio Honda, José Justo, Mariele
Correa, Christiane Girard Nunes, Jean-Michel Fourcade, Jacqueline Barus-Michel, Airton
Cattani, Ana Cattani e Bia Cattani – todos, amigos para toda a vida, com os quais eu me
alegro em dividir os méritos desta conquista.
Agradeço a todos os amigos, colegas e professores aqui lembrados e não citados
(injustamente), mas que, de algum modo, contribuíram para a realização deste trabalho.
Agradeço ainda o apoio incondicional de minha esposa Aline Sanches e de minha família que
souberam tolerar minhas longas ausências.
Para terminar, gostaria de fazer um agradecimento especial e homenagioso à Nobuko
Hashimoto (in memorian), amiga fiél e conselheira sábia, que sempre me apoiou durante o
doutorado (et ailleurs!): ela sempre permanecerá presente de algum modo em nossos espíritos.
“[...] se não existe escrita que não seja amorosa, não existe imaginação que não seja, aberta ou
secretamente, melancólica” (KRISTEVA, 1989, p. 13).
TEIXEIRA, M. A. R. DAS NEUROSES DE TRANSFERÊNCIA ÀS NEUROSES
NARCÍSICAS: contribuições aos fundamentos da teoria freudiana da melancolia. 2012.
429 f. Tese (Doutorado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade
Estadual Paulista, Assis, 2012.
RESUMO
ABSTRACT
From a consideration of the increasing importance of depressive states of mind today, and the
finding of relative lack of consensus on this topic in the psychoanalytic milieu, this research
proposes to recover the theoretical context that allowed the formulation of the melancholy’s
theory presented in the article Melancholy and Mourning (FREUD, 1917[1915]). It is to
analyze the foundations of Freud's theory of melancholia, in order to provide more accurate
conceptual elements that contribute to clarify the problems that exist around the subject until
today. The research methodology is based on reading and textual and conceptual analysis of
the subject delimited in selected works from a bibliographical review. The study revealed that
the foundations of Freud's theory of melancholia are set on a tripod formed by the etiological
model of the transference neuroses, by applying this model to the narcissistic neuroses
(through the formulation of the concept of narcissism and its derivatives), and by the dialogue
between Freud and his followers, who have directly contributed to the construction of several
elements that have shaped the Freudian propositions. Faced with this, it seems that the
Freudian theory of melancholia lies at the intersection of a theoretical and clinical path that
leads from transference neuroses to narcissistic neuroses, and culminating in the
establishment of the second topical theory of the psychic apparatus. The results of this
research show that the formulation of Mourning and Melancholia is due to the theoretical
development of Freudian theory, and also resulted from the dialogues and exchanges between
theoretical contributions coming from the psychoanalysts of his time, and the current
controversies reflect the discussions that occurred during this period. Finally, it is expected
that this research offers elements, arising from the theoretical context of elaboration of
Mourning and Melancholia, to better understand the sources of the currents debates about
depressive states of mind in the environment psychoanalytic - is the identification of
melancholy to neurosis or psychosis, is the definition of depressive phenomena as unitary or
heterogeneous.
RÉSUMÉ
À partir d’une considération sur l'importance croissante des états dépressifs aujourd'hui et de
la constatation de l'absence relative de consensus à ce sujet dans le milieu psychanalytique,
cette recherche se propose de récupérer le contexte théorique qui a conduit à la formulation de
la théorie de la mélancolie présentée dans l’article Deuil et Mélancolie (FREUD, 1917
[1915]). Il s’agit d'analyser la formation de la théorie freudienne de la mélancolie à partir de
ses fondations en cherchant des éléments conceptuels plus précis avec l’intention de clarifier
les problèmes qui existent autour du sujet jusqu’à aujourd’hui. La méthodologie de recherche
est basée sur la lecture et sur l'analyse textuelle et conceptuelle des œuvres sélectionnées par
un examen bibliographique. Cette étude a révélé que les fondements de la théorie freudienne
de la mélancolie sont fixés sur un trépied formé par le modèle étiologique des névroses de
transfert, par l’application de ce modèle aux névroses narcissiques (par le biais de la
formulation du concept de narcissisme et de ses dérivés), et par le dialogue de Freud avec ses
disciples, qui ont contribué directement à la construction de plusieurs éléments qui ont
façonné les propositions freudiennes. Face à cela, on voit que la théorie freudienne de la
mélancolie se trouve à l'intersection d'un chemin théorique et clinique qui part des névroses de
transfert et amène aux névroses narcissiques, en aboutissent à la création de la deuxième
topique de l'appareil psychique. Les résultats de cette recherche montrent que la formulation
de Deuil et Mélancolie est due au développement théorique de la théorie freudienne, mais elle
est aussi le résultat des dialogues et des échanges advenus des apports théoriques des
psychanalystes de son époque, et que les controverses actuelles reflètent les débats de cette
période-là. Finalement, on espère que cette recherche apporte des éléments récupérés du
contexte de formation théorique de Deuil et Mélancolie pour mieux comprendre les sources
des débats actuels sur les états dépressifs dans le milieu psychanalytique – soit l’identification
de la mélancolie à la névrose ou à la psychose, soit la définition des états dépressifs comme
des phénomènes unitaires ou hétérogènes.
Mots-clés : Psychanalyse ; Métapsychologie ; Narcissisme ; Deuil ; Mélancolie ; Dépression
mentale.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ESTADOS DEPRESSIVOS DA
ANTIGUIDADE AOS TEMPOS ATUAIS .......................................................................... 20
1.1 O ESTATUTO EPIDÊMICO DA DEPRESSÃO NA ATUALIDADE................................................ 20
1.2 A COMPREENSÃO DOS ESTADOS DEPRESSIVOS NO MEIO PSICANALÍTICO: UM CAMPO
PROBLEMÁTICO ...................................................................................................................... 25
1.3 O PERCURSO DOS ESTADOS DEPRESSIVOS NA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL ........................... 52
1.4 DO TRATAMENTO MORAL À PSIQUIATRIA MODERNA, OU COMO A MELANCOLIA SE TORNOU
DEPRESSÃO ............................................................................................................................ 71
1.5 A PSIQUIATRIA E O DSM: O PARADIGMA DOMINANTE NA ATUALIDADE E SUAS DEFINIÇÕES
.............................................................................................................................................. 77
1.6 A PATOLOGIZAÇÃO DA TRISTEZA E A BANALIZAÇÃO DO TERMO DEPRESSÃO.................... 81
1.7 A ABORDAGEM PSICANALÍTICA E O PROBLEMA DA MEDICALIZAÇÃO DAS PAIXÕES TRISTES
NA ATUALIDADE..................................................................................................................... 87
INTRODUÇÃO
1
Em nossa pesquisa, consideramos que o termo estados depressivos abarca uma série de fenômenos, desde a
tristeza profunda, o luto, a melancolia, a depressão, entre outras. A título de delimitação de um campo de
pesquisa, optamos por reunir indistintamente aos estados que abarcam os fenômenos depressivos, a melancolia, a
depressão, assim como os estados de luto, luto patológico e a tristeza profunda, entre outros, sob o termo estados
depressivos, todos estes como partes integrantes de um campo maior, a saber, o campo das depressões (Cf.
LAPLANCHE, 1987).
2
Ver, por exemplo, Corvi (2010), Castel (2009), Birman (2006) e Ehrenberg (2008; 2010).
3
Aristóteles (1998), Hipócrates (2005), klibansky, Panofsky & Saxl (1989), Pessoti (1994).
4
Widlöcher (2007) reconhece, no Problema 30 sobre a melancolia, de Aristóteles (1998), uma distinção relativa
entre uma depressão de natureza endógena e uma depressão adquirida, reacional, oriunda dos percalços e
fatalidades da vida.
5
Delouya (2001; 2002), Fédida (1999; 2002) e Widlöcher (1983, 2007).
6
Del Porto (2000); Wakefield & Horwitz (2007).
12
reconhecem um sentido psíquico associado à origem desses estados, cuja manifestação indica
a ocorrência de conflitos a serem elaborados e desequilíbrios na organização do psiquismo.
Sua ação terapêutica incide sobre a elaboração dos conflitos ou, ainda, na aquisição de
recursos psíquicos por meio da psicoterapia7, enquanto a psiquiatria centra seu tratamento na
administração de psicofármacos antidepressores. Embora se constate uma tendência crescente
na superação dessa dicotomia – a partir do reconhecimento de fatores multicausais e das
associações de diferentes estratégias terapêuticas –, a descrição anterior reflete muito a
realidade que permeia o cotidiano dos profissionais da área da saúde.
Na psicanálise, nosso campo de pesquisa, também encontramos um cenário
problemático a respeito dos estados depressivos, pois existe uma grande variedade de visões
sobre o assunto8 - e muitas delas não oferecem somente formas de explicações diferentes, mas
ainda contraditórias. Muitas simplesmente consideram aspectos diversos na sua origem,
outras se opõem e se contradizem. O que nos chama a atenção é que, apesar do grande volume
de produção sobre este assunto, a maioria parte de um lugar em comum9 - os artigos Luto e
melancolia (FREUD, 1917[1915]) e Préliminaires à l’investigation et au traitement
psychanalytique de la folie maniaco-dépressive et des états voisins10 (ABRAHAN,
1912[1911]) – e, mesmo ao chegarem a conclusões completamente diferentes, reivindicam
sua filiação ao pensamento freudiano; ainda que muitos considerem limitadas as contribuições
portadas por Freud a respeito desses estados11. Contudo, raramente os autores se demoram em
realizar uma contextualização e análise dos fundamentos teóricos e das premissas que
possibilitaram a Freud formular suas contribuições a respeito dos estados depressivos: trata-se
mais, naqueles casos, de propor soluções a partir de um contexto teórico próprio e de uma
investigação clínica determinada, e/ou de limitar as referências freudianas às contribuições
aportadas pelo artigo Luto e melancolia. A leitura acerca das contribuições freudianas a
7
Fédida, (1999; 2002).
8
Segundo Avila (1990), o complexo problema da descrição, compreensão e explicação dos processos
depressivos e seus fenômenos, esteve, está e provavelmente permanecerá ainda muito tempo no centro da
atenção da clínica psicológica. Para um exame das diversas teorias sobre os estados depressivos na psicanálise
ver AVILA, A. Psicodinámica de la depresión. Anales de psicología, 1990, 6 (1), 37-58 - Universidad
Complutense de Madrid.
9
Cf. Avila (1990), Rosenfeld (1959) e Wisdow (1962).
10
Preliminares a investigação e ao tratamento psicanalítico da loucura maníaco-depressiva e seus estados
vizinhos.
11
Como, por exemplo, os estudos de Khel (2009) e Delouya (2002), que partem da teoria freudiana, abordam
Luto e melancolia e chegam a conclusões completamente diferentes em suas pesquisas. Segundo Delouya
(2002), a depressão seria um afeto psíquico de recolhimento, e não pode receber o status de uma entidade clínica
como a histeria ou a neurose obsessiva, enquanto que, para Kehl (2009), a depressão deve ser compreendida
como uma estrutura distinta da neurose e da psicose, e deve ser considerada uma entidade clínica. Khel (2009)
considera limitada a contribuição de Freud a respeito da depressão.
13
respeito dos estados depressivos é realizada, geralmente, com grande liberdade e está
profundamente arraigada ao projeto pessoal de cada autor. Encontramos uma diversidade de
teorias - kleinianas, winicottianas, lacanianas etc. – que chegam a explicações e interpretações
bem diversas, mesmo dentre autores que poderiam ser agrupados em uma mesma tradição de
pensamento psicanalítico12. Mesmo aqueles que se propõem a realizar uma leitura freudiana
acabam por recorrer mais às explicações exteriores, tomadas de outras teorias para elucidar os
pontos obscuros nas formulações de Freud, e não se detêm em esgotar as respostas contidas
nos próprios fundamentos de sua teoria. Embora tais trabalhos tragam contribuições
inegáveis, corre-se o risco de desconsiderar abruptamente a perspectiva de que a teoria
freudiana contenha elementos suficientes, senão para a resolução de seus impasses, para, ao
menos, elucidar as afirmações obscuras a respeito da teoria da melancolia. O artigo Luto e
melancolia, assim como as suas contribuições, são extremamente condensados, e só podem
ser compreendidos a partir de elementos advindos de diferentes regiões conceituais da teoria
freudiana, que, em nossa pesquisa, privilegiamos como sendo o contexto do narcisismo e da
teoria das neuroses de transferência.
Segundo alguns autores, por exemplo, os estados depressivos devem ser entendidos a
partir da teoria do luto13; outros apontam para a teoria da melancolia14. Os primeiros insistem
que a melancolia da qual Freud tratou em seu artigo deve ser considerada uma psicose e, por
isso, nada tem a ver com a depressão, restando a esta última apenas as contribuições em torno
do luto. Isso ocorre mesmo diante da constatação de que Freud efetuou explicitamente uma
distinção entre a melancolia e a psicose, considerando a primeira uma neurose narcísica, cujo
conflito incide sobre o ego e o superego, e, a segunda, uma afecção caracterizada pelo conflito
entre o ego e a realidade. Outros autores consideram possível explicar os estados depressivos
a partir da teoria da melancolia, e insistem que a teoria freudiana da melancolia representa o
atual fenômeno clínico da depressão, e que sua psicodinâmica permite compreender os
estados depressivos de maneira geral. Os autores que assumem esta posição costumam
entender a melancolia e os estados depressivos em geral a partir de deficiências narcísicas15.
Assim, como se pode notar, ao se debruçar sobre o tema na psicanálise, não há consenso nem
ao menos acerca do fenômeno clínico a que Freud se referiu ao utilizar o termo melancolia:
alguns sugerem ter sido uma explicação oferecida ao fenômeno da depressão em geral, outros
12
Por exemplo, Khel (2009) e Lambotte (1993), que, ao basearem-se em Freud e Lacan, defendem a opinião de
que a melancolia é uma psicose (KHEL, 2009) e que seja uma neurose narcísica (LAMBOTTE, 1993) .
13
Como Berlinck e Fédida (2000), por exemplo.
14
Por exemplo, Marucco (1987).
15
Cf. Bleichmar (1997).
14
afirmam que tais contribuições se aplicam apenas à psicose maníaco-depressiva. Isso resulta
em teorias que consideram, de maneira completamente diversa, as formulações freudianas a
respeito da melancolia e suas relações com os estados depressivos16.
Frente ao exposto e tendo em vista a crescente importância dos estados depressivos na
atualidade, assim como a conjuntura de relativa falta de consenso em torno do assunto no
meio psicanalítico, esta pesquisa propõe-se a abordar o contexto teórico que permitiu a
formulação da teoria freudiana da melancolia, apresentada no artigo Luto e melancolia, e a
explicitar seus fundamentos. Trata-se de explicitar e analisar os fundamentos da formação da
teoria freudiana da melancolia, a fim de fornecer elementos conceituais mais precisos que
contribuam para clarificar os aspectos iniciais que serviram de base para o desenvolvimento
das diferentes teorias psicanalíticas sobre os estados depressivos. Desse modo, definimos
como campo de pesquisa, de um lado, a própria teoria freudiana, mais especificamente o
período da primeira tópica do aparelho psíquico, região conceitual em que foi gestado o artigo
Luto e melancolia, e, de outro, a investigação das contribuições propiciadas pelos discípulos
próximos de Freud que estiveram envolvidos na formulação da teoria freudiana da
melancolia, como Abraham e Ferenczi. Seguindo indicações encontradas na própria teoria
freudiana, de que o acesso inicial às neuroses narcísicas deveria ocorrer a partir do apreendido
com as neuroses de transferências17, nossa hipótese é que os fundamentos que permitiram a
formulação da teoria freudiana da melancolia são oriundos de, ao menos, três fontes: o
modelo etiológico das neuroses de transferência, a região conceitual do narcisismo e o
intercâmbio teórico de Freud com seus discípulos, entre os quais destacamos Abraham e
Ferenczi.
Assim, uma parte dos fundamentos que compreendem a teoria freudiana da melancolia
advém do modelo etiológico daquelas neuroses:
[...] os conceitos a que chegamos em nosso estudo das neuroses de transferência são
adequados para ajudar-nos a nos orientarmos nas neuroses narcísicas, que, na prática
são tão mais graves. As semelhanças vão muito mais longe; no fundo, o campo de
fenômenos é o mesmo. E os senhores podem imaginar quão reduzida é a perspectiva
16
Segundo Laplanche (1987, p.293) “Esse campo geral da depressão gera problemas sobre os quais até hoje não
se chegou a um consenso: unidade ou heterogeneidade desse domínio desde suas formas de aspecto normal,
desde as depressões “justificadas”, passando pelas depressões neuróticas, até a melancolia, que se concorda, em
geral, em designar por psicose”. O autor aponta que, na psicanálise pós-freudiana, convencionou-se considerar a
melancolia uma psicose.
17
No período da primeira tópica, as neuroses de transferência compreendiam o grupo formado pelas neuroses
obsessivas, histéricas e de angústia, enquanto as neuroses narcísicas eram formadas pelo grupo das parafrenias
(esquizofrenia), paranoias e melancolias. Mais tarde, Freud destacaria, do grupo das neuroses narcísicas, as
paranoias e as parafrenias, que formariam o grupo designado por psicose, enquanto que a melancolia
permaneceria atrelada àquela denominação.
15
que tem alguém para examinar esses distúrbios (que pertencem à esfera da
psiquiatria), se não estiver preparado para essa tarefa por um conhecimento analítico
das neuroses da transferência (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p.422).
***
em torno da temática dos estados depressivos, a fim de precisar o lugar ocupado por eles na
história da cultura ocidental até o início do século XX, período em que a psicanálise começa a
se interessar pelo tema. Ao realizar esta tarefa, mostramos que os estados depressivos se
fazem presentes na humanidade desde tempos antigos, acompanhados de um intenso debate, e
nem sempre foram considerados exclusivamente uma doença, recebendo, também, outros
sentidos e significados. Procuramos mostrar, ainda, que a falta de consenso em torno dos
estados depressivos acompanha sua história, e que o termo melancolia foi substituído pelo
termo depressão como uma tendência na psiquiatria do século XIX. Caracterizamos, ademais,
a situação de relativa oposição do paradigma psiquiátrico em relação à psicanálise, e
destacamos brevemente a visão psicanalítica sobre o debate em torno da depressão como
epidemia contemporânea. Assim, esse capítulo tem a função de apresentar o contexto geral
das problemáticas que acompanham os estados depressivos, e destacar sua posição em relação
à psicanálise atual.
No segundo capítulo, realizamos um recorte determinado que fora suscitado por uma
constatação feita a partir da própria teoria freudiana: de que o modelo etiológico das neuroses
de transferência foi um dos fundamentos a partir do qual ocorreu a formulação da teoria
freudiana da melancolia. Talvez isso possa ser aplicado, de modo mais geral, à formulação da
teoria das psicoses na obra freudiana e na psicanálise clássica. No entanto, centramos nosso
estudo no modelo das neuroses de transferência e à aplicação de seus fundamentos na
formulação da teoria freudiana da melancolia. Outro ponto abordado, nesse capítulo, advém
da constatação que Freud construiu suas formulações a partir de um intercâmbio constante
entre o normal e o patológico. Em relação a Luto e melancolia, é essa a metodologia adotada
ao longo do texto para que ambas se esclareçam mutuamente, através da comparação de seus
traços distintivos e comuns. Ainda no tocante à melancolia, após 1921, seu processo psíquico
central – a identificação narcísica – foi generalizado como sendo constitutivo do aparelho
psíquico, permitindo a Freud explicar a formação do ego e do superego18. Assim, a melancolia
acompanhou as formulações que resultaram na segunda tópica do aparelho psíquico19. Frente
a isso, nos voltamos para a noção de normal e patológico, para compreender quais são as
18
Segundo Laplanche e Pontalis (1998, p.132), “Da análise da melancolia e dos processos que ela põe em
evidência, a noção de ego sai profundamente transformada”.
19
Segundo Parmentier (2001, p.121) “Com Luto e melancolia se inicia uma virada na obra de Freud. A
introdução do narcisismo lhe permite vislumbrar a teoria das pulsões sob um novo ângulo já diferente e de
pensar em outros termos a constituição do ego e suas relações com os objetos, incluindo o próprio ego enquanto
objeto”.
17
bases que permitem a Freud efetuar generalizações para a vida psíquica em geral, a partir dos
processos observados nas psicopatologias.
O terceiro capítulo surgiu da constatação de que os fundamentos mais diretos e
explícitos, a partir dos quais Freud estabeleceu sua teoria da melancolia, fazem parte da região
conceitual do narcisismo, conceito formulado através das observações das neuroses narcísicas
e dos casos de homossexualidade. Ainda em 1924, Freud reservou uma classe específica à
melancolia, chamada de neurose narcísica, retirando desta denominação a parafrenia e a
paranoia, que foram agrupadas em torno do termo psicose. Dessa forma, é indiscutível a
relevância do narcisismo na formulação da teoria freudiana da melancolia. Frente ao exposto,
no terceiro capítulo, procuramos evidenciar o contexto de formulação do narcisismo,
abordando os elementos teóricos dessa região conceitual que tornou possível a formulação da
teoria freudiana da melancolia.
Visando a compreender os fatores mais diretos que acompanharam a elaboração do
artigo Luto e melancolia, no quarto - e último – capítulo, nos voltamos para o seu contexto de
formação. Se, por um lado, a elaboração desse artigo foi possibilitada pela introdução do
narcisismo na teoria psicanalítica, por outro, ele foi o resultado dos esforços realizados pelos
psicanalistas da época para alcançar uma elucidação satisfatória do tema da melancolia – o
que vinha sendo aguardado já há algum tempo. Frente a isso, abordamos o contexto de
formulação do artigo Luto e melancolia (1917[1915]), por meio da análise de suas influências
mais diretas, como as discussões realizadas nas reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena
e intercâmbio teórico de Freud com alguns de seus discípulos, além de destacarmos o
contexto da metapsicologia e da segunda guerra mundial. Procuramos compreender, ainda, a
que se deveu a inclusão de Luto e melancolia entre os artigos que compõem a metapsicologia
de 1915. Em um segundo momento, apresentamos as contribuições freudianas propiciadas
pelo artigo Luto e melancolia, com a intenção de decantar alguns elementos teóricos centrais,
e permitir uma visão geral de suas contribuições.
A título de conclusão, reunimos as principais contribuições trazidas por cada capítulo,
a fim de proporcionar uma visão integrada da problemática aqui tratada, e apontar os
elementos constitutivos dos fundamentos da teoria freudiana da melancolia.
No tocante à metodologia, esta pesquisa constitui-se em um estudo teórico, tratando-se
de uma investigação epistemológica dos processos que regem a construção de conceitos e
teorias. Pode-se definir nosso trabalho segundo a denominação de epistemologia da
psicanálise (MEZAN, 2002a, 2002b) – um trabalho de investigação que se detém na
racionalidade própria de psicanálise, procurando percorrer os caminhos de desenvolvimento
18
de suas premissas e conceitos, revelar os problemas que suas teorias tentam responder e
compreender a racionalidade que sustenta seus conceitos e métodos. Assim, nossa pesquisa
foi guiada pelo pressuposto de que o artigo Luto e melancolia fora concebido em meio a uma
série de fatores que procuramos reconstituir, não somente na teoria freudiana, mas, também,
no entorno em que esta estava inserida.
***
maior a cada ano, e cerca de 1/5 sofrerão de depressão em algum momento da vida;
confirmam, ainda, um aumento de 76% no número de pessoas que receberam tratamento por
depressão ou transtornos de humor. Ou seja, de maneira geral, constata-se atualmente, por
meio de dados assegurados por organizações de referências, o significativo aumento de casos
de desordens depressivas em todo o mundo. E, como devia ser esperado, constata-se também
um aumento no número de prescrições de anti-depressivos: seu uso por adultos quase
triplicou entre 1988 e 2000, sendo que a cada mês, 10% de mulheres e 4% de homens
começam a usar medição antidepressiva (WAKEFIELD & HORWITZ, 2007).
No Brasil, cerca de 17 milhões já foram diagnosticadas com algum tipo de transtorno
depressivo nos primeiros anos do século XXI, e o mercado de antidepressivos cresce
aproximadamente 20% ao ano - o que representa 320 milhões de dólares movimentados
anualmente (KHEL, 2009). Em suma, estudos mostram que a depressão apresenta prevalência
elevada e crescente, bem como um elevado envolvimento na causa de incapacitação na
sociedade, independentemente do local onde a pesquisa foi conduzida (BRANCO & cols.,
2009; MENEZES & NASCIMENTO, 2000). Os custos sociais com a depressão no mundo
têm sido enormes e não param de aumentar. Diante disso, a prevalência da depressão na
atualidade recebeu o status de epidemia e passou a ser considerada um grave problema de
saúde pública, mobilizando uma grande concentração de esforços no seu tratamento e na
adequação do seu diagnóstico.
Esses dados resultam de pesquisas e estudos realizados com o objetivo de
compreender e tratar as desordens depressivas, e dão provas de que os números de
publicações científicas a este respeito também aumentam vertiginosamente a cada ano. Por
exemplo, em 1966 foram publicados 703 artigos em revistas médicas contendo a palavra
depressão. Em 2006, esse número chegou a quase 8677 artigos. Além disso, a depressão é
alvo crescente de interesse pela mídia e pelo senso comum, estando presente em reportagens,
telenovelas, programas televisivos e em livros de autoajuda; muitos livros de testemunhos
biográficos de pessoas que sofreram com a depressão se tornaram best-sellers (WAKEFIELD
& HORWITZ, 2007).
Esse cenário alarmante encontrado nas pesquisas, somado à nossa vivência cotidiana,
causa a forte impressão de que a depressão tornou-se um dos problemas mais graves de
nossos tempos. Seria quase impossível afirmar a existência de pessoas no mundo
desenvolvido ocidental que nunca tiveram contato com o assunto. Um amigo, um familiar, a
estória de um conhecido, uma personagem de filme ou telenovela: em qualquer contexto,
mesmo nos mais inusitados (como em tribos indígenas, por exemplo) a depressão é
22
encontrada e se torna parte da realidade e do cotidiano dos seres humanos, ao lado de outras
doenças preocupantes da atualidade como, por exemplo, o câncer.
Em segundo lugar, em vista do exposto, já se tornou lugar comum afirmar, entre o
meio científico das áreas da saúde e das ciências humanas, que a depressão, ao lado do pânico
e das adições, figura entre as principais formas de manifestações do sofrimento psíquico atual,
sendo comum a referência a este período como “era das depressões”, em comparação ao final
do século XIX, que fora marcado pela histeria (BIRMAN, 2006; CASTEL, 2009;
EHRENBERG, 2010, 2008; KEHL, 2002, 2008, 2009; ROUDINESCO, 2000). Muitos
estudiosos compreendem a depressão como um “mal” da contemporaneidade e a
correlacionam com as formas de organizações sociais, econômicas, políticas e científicas
predominantes em nosso tempo (BIRMAN, 2001, 2006; COSTA, 2004; EHRENBERG,
2008, 2010; FUKS, 1999; KEHL, 2002, 2008, 2009; ROUDINESCO, 2000). Nessa vertente,
concebe-se que o sujeito é produzido não só por sua predisposição genética, mas também pela
organização social de seu tempo: fatores presentes na atualidade produziriam subjetividades
frágeis e vulneráveis à depressão. As relações interpessoais permeadas por laços afetivos
superficiais, a falta de referências e a crise de valores, o estilo de vida esvaziado de sentido, o
consumismo exacerbado, o estresse no trabalho e a valorização exacerbada da imagem
(aparência) seriam fatores fortemente implicados nas formas de sofrimentos psíquicos
predominantes na pós-modernidade, refletindo uma sociedade em que reina a lógica do
espetáculo (DEBORD, 1987) e uma cultura do narcisismo (LASCH, 1983). Em resumo,
entende-se que os valores e a organização de nossa sociedade atual favorecem o crescente
número de casos de depressão.
Assim, a depressão, juntamente com outras doenças chamadas de “as novas
patologias” ou “patologias atuais”, ganha status de efeito colateral da contemporaneidade, e
vemos o número de pesquisas a seu respeito crescer em escalas geométricas. Na sociologia,
na filosofia, na psiquiatria ou na psicanálise, é fácil encontrarmos o reconhecimento de um
mal-estar presente na atualidade, responsável pelo aumento considerável de inúmeras
psicopatologias, entre as quais a depressão.
Sem entrarmos no mérito de discutir a validade desses pontos de vista, é fato inegável
que se encontram presentes em nosso cotidiano estados emocionais que, embora muito
variáveis, são marcados por diferentes graus de inibição psíquica e física, tristeza profunda,
dor psíquica em maior ou menor grau, expressando-se em sentimentos de impotência, culpa,
vazio e sofrimentos sem representação. Essa constatação, embora nos coloque diante de um
tema de pesquisa significativamente relevante, para o qual as atenções estão voltadas na
23
atualidade, se faz acompanhar de uma série de dificuldades que tornam o estudo da depressão
muito complexo e problemático.
A primeira dificuldade diz respeito à própria definição do que é depressão e ao uso do
termo, que pode ter diferentes significados de acordo com o contexto em que é empregado.
Não existe “uma” depressão ou “a” depressão. Tal termo pode se referir, no cotidiano, por
exemplo, tanto a estados de tristeza passageira com causas bem determinadas, quanto a um
luto que sucede a perda de um ente querido ou, ainda, a um estado de tristeza profunda sem
causa aparente. O termo depressão, na linguagem corrente, pode designar estados muito
distintos, mas também correlatos. A título de ilustração, podemos listar quatro dos principais
usos do termo: depressão enquanto um estado afetivo normal, um sintoma, uma síndrome ou
uma doença. O primeiro uso diz respeito a uma forte sensação de tristeza, acompanhada ou
não de queda na autoestima ou de sentimentos de culpa. Nessa acepção, o termo designa um
estado normal e compreensível, facilmente relacionado à ocorrência de eventos externos
dolorosos, como, por exemplo, a morte de um ente querido ou uma frustração cotidiana no
trabalho: estar deprimido, nesse sentido, iguala-se a estar profundamente triste. O segundo uso
do termo, como sintoma, designa um estado presente nos mais diversos quadros clínicos,
como estresse pós-traumático, demência, esquizofrenia, alcoolismo, etc. Portanto, a depressão
é entendida, aqui, como um sintoma que acompanha, secundariamente, outras formas de
problemas. No terceiro caso, o termo depressão é utilizado para designar uma síndrome. Uma
síndrome é definida por um grupo de sintomas associados a uma mesma patologia e que, em
seu conjunto, definem o diagnóstico e o quadro clínico de uma condição. Assim, a depressão
enquanto síndrome inclui alterações de humor – tristeza, irritabilidade, diminuição da
capacidade de sentir prazer, apatia – como também uma gama de outros aspectos, incluindo
alterações cognitivas (diminuição da capacidade de pensar ou se concentrar), psicomotoras
(lentidão ou aceleração) e vegetativas (sono ou apetite). No quarto e último sentido listado - o
uso do termo enquanto doença -, encontra-se a depressão classificada de várias formas, de
acordo com seu período histórico, preferência dos autores ou corrente científica (DEL
PORTO, 2000). Na psiquiatria atual são encontradas, por exemplo, doenças depressivas como
o transtorno depressivo maior, a distimia, a depressão integrante do transtorno bipolar dos
tipos I e II, entre outros. Já na psicanálise, encontramos depressão narcísica, depressão
ansiosa, depressão culposa, depressão psicótica etc.
Embora cada uso do termo tenha implicações distintas, todos os seus empregos se
referem às diferentes formas de expressões das paixões tristes. A psicanalista francesa
Chabert adverte que é essencial ressaltar a pluralidade das formas depressivas, o que vai ao
24
encontro de sua generalização e, até mesmo, da confusão que domina hoje a abordagem
desses estados. Tal generalização consiste em englobar, sob uma mesma etiqueta, todos os
sintomas, mais ou menos conhecidos, corriqueiramente, como depressão. A confusão, que
ocorre, principalmente, com a banalização corrente do termo, consiste em nomear de
depressão qualquer distúrbio psíquico menor, ou seja, associar todo tipo de desordem menos
relevante no nível manifesto com referências psicopatológicas ou psiquiátricas. A autora
destaca a existência paradoxal, na atualidade, de uma posição epistemológica, que consiste em
banalizar os distúrbios depressivos, ao mesmo tempo em que os situa entre as doenças
mentais mais graves. A banalização deve-se à aplicação do termo depressão àquelas
dificuldades psíquicas recorrentes e, sobretudo, passageiras. Diante do exposto, cria-se uma
distância paradoxal entre, de um lado, as formulações das práticas e vivências cotidianas, que
abrigam sob o termo depressão distúrbios psíquicos diversos e, de outro, as formulações de
um rigoroso campo de pesquisa científico, que se prende a diferenciar as formas singulares e a
pensar em termos de depressões, no plural, a fim de sublinhar o caráter essencialmente
heterogêneo desses estados. (CHABERT, 2009, p.225-227).
O que está em questão é a definição do termo depressão e dos quadros clínicos
correspondentes. Os quadros clínicos de depressão são tão vastos e diversificados que,
segundo Solomon (2002), talvez fosse possível criar uma classificação diferente para cada
caso. A dificuldade de consenso e univocidade em torno do termo reside no fato de que (1) a
depressão não tem uma apresentação clínica única e específica, (2) os seus limites são
obscuros, (3) a sua história natural e seus prognósticos são difíceis de predizer em um nível
individual. “A causa e a resposta ao tratamento também se encontram mais relacionadas ao
indivíduo do que à condição clínica em si” (BRANCO & cols., 2009, p. 14).
Existem tentativas de lidar com esses problemas por meio dos manuais de
classificação, como o DSM, por exemplo, que se baseiam, sobretudo, nas descrições dos
sintomas. No entanto, essa referência própria da psiquiatria, embora hegemônica, nem sempre
encontra ressonância em outras áreas, como a psicanálise ou a sociologia, que tendem a
abordar os estados depressivos a partir de seus próprios paradigmas e bases epistemológicas.
Ao mesmo tempo, a definição da depressão torna-se um desafio mesmo quando se trata de um
único campo disciplinar, como a psicanálise, por exemplo. Nesta, existem discordâncias entre
o que é a depressão, o luto, a melancolia etc., e sobre os processos psíquicos a eles
subjacentes. Cada escola psicanalítica tende a ter uma teoria própria sobre e etiologia e a
psicodinâmica dos estados depressivos, de forma que a complexidade deste campo de
pesquisa faz-se aqui também presente.
25
forçar um objeto a fornecer provisões vitalmente necessárias, pois a afeição dos objetos
externos torna-se essencial para se opor ao superego acusador. Essas depressões, consideradas
mais simples, são caracterizadas por sentimentos de culpa e medo do abandono do superego,
como defesa contra os impulsos instintivos. Em grau mais elevado a depressão é, dentre todos
os sintomas, o mais terrível no tormentoso estado psicótico da melancolia. A depressão
severa, segundo Fenichel (2000 [1946]), um estado em que o individuo dependente oralmente
de provisões externas, chega quando lhe faltam provisões narcísicas vitais. Ocorre quando se
produz uma perda verdadeira e a ambivalência em relação aos objetos externos permanecem
visíveis; o embate interno se trava em nível narcísico e, por isso, essas depressões são
consideradas psicóticas. Os elementos psicodinâmicos em torno dos quais se estabelecem os
estados depressivos indicam fixações pré-genitais, em que se manifestam tendências a reagir a
frustrações de forma violenta. Assim, a depressão se deve à fixação no estado em que a
autoestima é regulada por provisões narcísicas externas, e a sentimentos de culpa que levam à
regressão. A dependência oral do objeto leva o deprimido a obter provisões narcísicas por
apropriação e submissão.
Fenichel (2000 [1946]) ainda revela que a ambivalência extrema associada ao modo
oral de relação objetal é a causa de uma importante incapacidade de amar e de obter
satisfação. O autor afirma que o ser humano, em geral, necessita de certa quantidade de
provisões narcísicas externas que, ao cessarem, levam-no a cair em uma situação análoga do
bebê que não é suficientemente assistido, uma condição de desamparo. De modo geral, diante
de privação e frustração intensas o ser humano tende a ficar apático, lentificado e
desinteressado. Essa reação, em analogia à condição de desamparo, são modelos de
depressões simples. Têm-se, ainda, estados transitórios entre as depressões simples e as
regressões a um estado passivo de realização alucinatória de desejo, em que não se dirige
exigências para o mundo externo, dando origem a estados extremos de catatonia,
caracterizado por uma existência vegetativa, catatônica, passiva, quase anobjetal.
Rosolato (1975) em L’axe narcissique des depressions, considera os estados
depressivos os quadros clínicos mais frequentes da atualidade e atenta para o fato de que a
relação entre depressão e melancolia há muito tempo tem ocupado a atenção da psicanálise.
Segundo o autor, os estados depressivos, por serem muito variados e complexos, evocam a
necessidade de compreender sua organização numa perspectiva na qual predomine um eixo
fundamental, que de seu ponto de vista é o eixo do narcisismo e suas relações entre
culpabilidade e depressão. Rosolato (1975) aborda a depressão da perspectiva de um
traumatismo inicial responsável por um ferimento narcisista, em que o objeto materno adquire
30
significação central. Entre as causas aparentes, o autor considera fatos reais, lutos, separações
e abandonos. Entretanto, o que se impõe, mais exatamente, é uma falha ao nível dos ideais:
uma relação de objeto idealizada e privilegiada se acha rompida ou não pode prosseguir.
Frente a isso, é uma defasagem entre o ego ideal e a realidade que provoca o sofrimento
específico da depressão. Isso ocorre na medida em que persiste uma exigência inflexível
ditada pelos rigores do ego ideal narcisista diante das imagens da realidade, que
correspondem a um ideal de ego realista, e não estabelecem um acordo possível. O
distanciamento, seja por exacerbação do ego ideal, seja por omissão, real ou imaginada, diante
do objeto ou do ego, faz eclodir a depressão e origina as acusações superegóicas. O autor,
ainda, identifica na depressão a conjugação de três reações primordiais. O enlouquecimento,
como uma forma de ruptura dos pontos de referência, a retirada, que é a própria depressão, e a
busca de proteção matricial, em um espaço restrito.
No entanto, Rosolato (1975) opõe, a partir de sua observação clínica, duas formas
fundamentais de depressões: a depressão simples e neurótica, e a melancolia psicótica – uma
distinção que deve ser mantida por se apoiar em uma sintomatologia facilmente verificável. A
depressão neurótica seria caracterizada por afetos de desprazer inseparáveis do conteúdo do
pensamento, desinteresse, pessimismo, falta de esperança, tristeza, astenia, inibição,
enfraquecimento vital e sentimento de inferioridade: para o autor, o termo depressão traduz o
conjunto desses enfraquecimentos. Nesse tipo de depressão, é o desprazer que se coloca em
primeiro plano. Marcada pelo excesso de perda de atividade, na melancolia, considerada pelo
autor uma organização psicótica, a organização delirante avalia a possibilidade de catástrofes
dissociadas da realidade presente, e o sentimento de culpabilidade assume uma característica
insistente e feroz, relacionados com crimes inexistentes.
A posição de Rosolato (1975) é que a melancolia não pode ser resumida na fórmula de
uma neurose narcisista, em função da retirada libidinal ser acompanhada de uma abordagem
invasora e indireta do mundo objetal. O narcisismo seria encontrado, sobretudo, nas
esquizofrenias hebefrênicas ou catatônicas, não se preocupando com nenhum objeto, nem
mesmo o próprio corpo, e levando à destruição do funcionamento psíquico. O autor
reconhece, no mecanismo melancólico, uma tentativa de cura por meio do delírio, em
analogia ao mecanismo da paranoia, o que o leva a considerar a melancolia uma “paranoia
interiorizada”, em que o objeto introjetado e o superego tornam-se os pólos de luta entre
perseguidor e perseguido e coloca em jogo o setor da realidade psíquica alienada no objeto
introjetado. Finalmente, Rosolato (1975) baseia-se também no sentimento de culpabilidade
para distinguir a depressão e a melancolia. Na depressão neurótica, o sentimento de
31
Parece útil lembrar antecipadamente as distinções que Freud operou entre luto,
melancolia e depressão, em 1917. Para ele o luto normal se refere a uma dificuldade
de substituir o objeto amado por um novo objeto, a melancolia consiste em uma
perda em si-mesmo do objeto de amor, a depressão implica uma impossibilidade de
encontrar no objeto o amor esperado. Estes três mecanismo referem-se então a
planos muito diferentes.
constata em nossa análise do artigo freudiano, que diferenciou o luto, a melancolia e o luto
patológico – uma forma de depressão relacionada a organização neurótico obsessiva.
Para Bergeret (1992[1975]), as depressões neuróticas, que permaneceram ligadas à
noção de consciência moral e à perda da estima de si-mesmo, teriam sido definidas por Freud
como tendo em sua origem um traumatismo real, intensificado pelo conflito devido à
ambivalência, enquanto seus mecanismos de defesa se detêm em uma clivagem do objeto. A
respeito da melancolia, um processo maníaco-depressivo psicótico, segundo o autor, Freud
supõe um objeto que permanece mais forte que o ego, ao passo em que seu mecanismo
defensivo é a negação da realidade e uma significativa clivagem do ego (BERGERT,
1992[1975]). Cabe salientar que, em Luto e melancolia, não se encontram enunciada tais
afirmações e que tais proposições consistem em uma leitura interpretativa não declarada do
texto freudiano. De modo geral, é possível afirmar que Bergeret vê nos estados depressivos
uma série de distinções, os tomando sob o ponto de vista da diferenciação etiológica e
psicodinâmica entre suas diversas manifestações, adotando uma posição a partir da
heterogeneidade desses estados.
Widlöcher (1983; 2007), autor da obra já clássica na psicanálise francesa intitulada
Les logiques de la dépression, considera que Freud abordou em Luto e melancolia o
fenômeno da depressão sem diferenciá-lo em categorias como depressão, melancolia, neurose
e psicose. O autor considera que, na obra em questão, Freud realiza uma abordagem
psicológica da depressão e que suas contribuições podem ser estendidas aos estados
depressivos. Nos trabalhos de Widlöcher (1983; 2007), encontramos os termos depressão e
melancolia praticamente indiferenciados, sendo o primeiro adotado preferencialmente pelo
autor. Segundo Widlöcher (1983; 2007), o grande debate em torno dos estados depressivos
recai, há muito tempo, sobre a questão da definição de uma univocidade ou dualismo desses
estados. Nesses debates se defende ou uma univocidade ou uma dualidade de natureza entre
os estados depressivos, compreendidos pela depressão da doença maníaco-depressiva, que
seria associada a fatores biológicos, constitucionais ou adquiridos, de origem interna e que
caracterizariam a depressão endógena e a depressão neurótica, que seria uma reação
psicológica às provações da existência ou às tensões intrapsíquicas. Diante disso, Widlöcher
(1983; 2007) retoma a tese de alienistas do século XIX que caracterizavam a melancolia como
um distúrbio da vida mental, e não pelo humor triste. Sua proposição é que tal tese define a
existência dos estados depressivos pela presença de uma inibição da implementação da ação,
uma inibição que afeta o conjunto da atividade do sujeito, tocando indistintamente todos os
conteúdos do pensamento e todos os atos motores. Assim, segundo o autor, os estados
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Esse campo geral da depressão gera problemas sobre os quais até hoje não se chegou
a um consenso: unidade ou heterogeneidade desse domínio desde suas formas de
aspecto normal, desde as depressões “justificadas”, passando pelas depressões
neuróticas, até a melancolia, que se concorda, em geral, em designar por psicose.
tempo bom e mal. Mesmo que o aspecto bom predomine na relação amorosa ambivalente, no
momento de sua perda ele é clivado e introjetado sob uma forma única, a de um objeto mal.
Frente a isso, o autor considera que todo objeto perdido é um objeto mau, por aludir à falta da
mãe. A perda desperta sentimentos ambivalentes por ser sentida como uma falta do objeto.
Ainda, o autor sugere que, na maioria das vezes, a perda na melancolia é uma perda parcial,
escondida, inconsciente, em suma, uma perda da parte boa do objeto. Com isso, Laplanche
(1987) conclui que o objeto perdido do melancólico é danificado e privado de sua parte boa,
aspecto que o tornava, para o sujeito, um objeto narcísico. Tal objeto danificado reduz-se,
assim, à sua parte má, introjetada no ego e que serve para estabelecer um conflito entre este,
julgado como mal, e o superego – a instância julgadora e punitiva. Como se pode notar,
mesmo um comentador do quilate de Laplanche, considerado por sua leitura rigorosa da obra
freudiana, apresenta uma leitura interpretativa do texto freudiano que não corresponde bem ao
que Freud propôs. Além disso, o autor se posiciona a favor da heterogeneidade dos estados
depressivos, diferenciando-os entre depressão simples, culposa, de inferioridade e melancolia
psicótica.
Em Sol Negro - Depressão e Melancolia, uma obra muito citada no círculo
psicanalítico atual, Kristeva (1989) aborda o tema dos estados depressivos ressaltando a
intrincada problemática que as envolve e admitindo a distinção fenomenológica entre a
melancolia e a depressão. A autora chama de melancolia a sintomatologia psiquiátrica “de
inibição e de assimbolia que, por momentos ou de forma crônica, se instala num indivíduo,
em geral se alternando com a fase, dita maníaca, da exaltação” (KRISTEVA, 1989, p.16),
enquanto que “quando os dois fenômenos, do abatimento e da excitação, são de menor
intensidade e frequência, podemos então falar de depressão neurótica” (ibid.). Mesmo diante
dessa distinção, a autora entende os estados depressivos e melancólicos como tendo um
núcleo comum, cujas diferenças recaem na intensidade da sintomatologia. De acordo com a
autora, o termo melancolia é comumente reservado em psiquiatria à patologia que necessita
de antidepressivos e que é considerada irreversível. Embora Kristeva (1989, 2001) não recuse
a diferença clínica e nosológica entre os estados depressivos e melancólicos, assim como dos
estados de tristeza passageira e de luto, ela ressalta que tais estados se apoiam indistintamente
na intolerância das experiências comuns de perda do objeto e na modificação dos laços
significantes, sendo então, em seu âmago, indistinguíveis – o que a leva a abordar a
melancolia e a depressão não a partir de suas particularidades, mas levando-se em
consideração sua estrutura comum. Frente a isso, a autora propõe que os termos melancolia e
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das teorias, a respeito da organização psíquica precoce, que não permite a diferenciação do
objeto objetivo e do objeto subjetivo, a respeito dos quais tratam Mahler, Greenacre,
Winnicott e outros. Assim, a autora, embora diferencie depressão da melancolia, não chega a
propor efetivamente uma teoria que dê conta de tal distinção – realizada, ao que parece, a
partir da fenomenologia dos quadros clínicos, em detrimento de sua etiologia.
Bleichmar (1983), em Depressão, um estudo psicanalítico, recorre ao termo
melancolia para nomear as psicoses, e à depressão para nomear a psicopatologia em
neuróticos. Entretanto, considera tanto uma quanto a outra como fenômenos depressivos,
destacando a questão da perda como a condição de produção destes estados. Para o autor, o
que Freud esclareceu em Luto e melancolia, independentemente da discussão que envolve as
especificidades de cada quadro, foi que, em todos os estados depressivos, os indivíduos
afetados sentem que algo se perdeu; trata-se de um estado no qual um desejo se apresenta
como irrealizável. Em seu primeiro trabalho sobre os estados depressivos, Bleichmar (1983)
leva em consideração tanto os aspectos narcísicos quanto os ambivalentes, propondo uma
divisão dos estados depressivos em “depressão narcísica”, “depressão culposa” e “perda
simples” – esta última, mais próxima do luto. A depressão narcisista seria o resultado de uma
tensão entre o ego e o ideal de ego, a depressão culposa, o resultado de se sentir responsável
por um mal causado ao objeto de amor, e a perda simples se deve ao processo de luto que
envolve a perda de um objeto de amor.
Anos mais tarde, Bleichmar (1997) volta a sustentar sua visão de unidade sobre a
depressão, e destaca que a essência dos estados depressivos reside nos sentimentos de
impotência e desesperança para a realização de um desejo no qual o indivíduo se encontra
intensamente fixado. Diante da condição em que o desejo é sentido - como irrealizável pelo
sujeito -, muitos processos psíquicos entram em operação dando origem aos estados
depressivos diversos, mesmo que de maneira breve. No entanto, tanto na depressão (em que
impera os sentimentos de vazio), quanto na melancolia (em que imperam culpa e
autodesvalorização), o desejo sentido como irrealizável revela uma questão narcísica – uma
preocupação do sujeito com sua autoavaliação. No que o autor denomina depressão narcisista,
há um desejo de identificação absoluta com o ideal, sempre inalcançável; desejo irrealizável
que leva o sujeito a situar-se no extremo negativo desse ideal. Entretanto, o autor assinala que
mesmo na depressão culposa – em que a preocupação gira em torno do estado do objeto, de
seu sofrimento ou de ter causado um dano ao mesmo – é a imagem de si que está em questão.
O sentimento de culpa traz em si uma autorepresentação do sujeito como mal, agressivo,
indigno, enfim, incapaz de satisfazer os ideais de bondade absoluta. Isso mostra que os
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uma teoria de base freudiana para a compreensão dos estados depressivos, tomando-os do
ponto de vista da unidade.
Segundo Berlinck e Fédida (2002, p.74), em A clínica da depressão, “Hoje, o
denominado melancolia passa a ser nominado depressão, conservando uma indistinção
reveladora de grandes dificuldades em se estabelecer diferenças específicas entre essas
manifestações”. A respeito da abordagem freudiana do problema acerca dos estados
depressivos, os autores afirmam que Freud, em seus trabalhos, dedicou sua atenção à
melancolia, fazendo pouquíssimas referências à depressão. Defendem que, em Luto e
melancolia, Freud (1917[1915]) teria estabelecido uma nítida diferença entre depressão e
melancolia, embora não explicitem como enxergam tal distinção no artigo freudiano; sugerem
que essa diferença é estabelecida tomando o luto como o paradigma da depressão e a
melancolia como o paradigma das neuroses narcísicas. Assim, depressão é apreendida pelos
autores em analogia ao luto, sendo visto como um estado muito primitivo deste, cuja
manifestação se encontra ausente de culpa. Nesse sentido, ainda segundo os autores, a
depressão é definida como um estado afetivo, enquanto a melancolia é considerada uma
afecção psíquica específica, uma neurose narcísica, composta de conflito, culpa e depressão, e
marcada por um “conflito intrapsíquico entre as instâncias do ego e superego implicando o
sujeito na culpa”. Essa distinção pode ser corroborada, segundo os autores, por meio da ação
dos medicamentos antidepressivos. Estes são muito eficientes no tratamento da depressão,
mas não são antimelancólicos – um limite que permite a observação de uma clara diferença
psíquica entre a melancolia e a depressão, pois ao realizar o tratamento com os
antidepressivos, os pacientes curam-se da depressão, extingue-se a sintomatologia depressiva,
mas permanecem os sintomas melancólicos. Mas o que caracterizaria a sintomatologia
depressiva, sobre a qual agem os antidepressivos? De acordo com Berlinck e Fédida (2002), a
depressão se manifesta por apatia, tristeza e sensações de impotência e desesperança. Sua
principal caracterização é a letargia, a lentificação e a insensibilização da sensorialidade.
Frente a isso, os autores definem o estado depressivo como uma alteração da condição
vegetativo-vital; a letargia da sensorialidade é acompanhada de alteração no sistema
vegetativo-vital, associando-se a uma série de manifestações somáticas.
Segundo os autores, a depressão não se manifesta só no humano, também os animais e
vegetais apresentam letargia e alteração da condição vegetativo vital, sendo a hibernação a
equivalente animal da depressividade humana. Os autores entendem, ainda, que do ponto de
vista filogenético, a depressão é uma reação à glacialização do planeta. Diante das
adversidades geradas pela era glacial, o homem reagiu com a insensibilização da
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lança, de forma indireta, uma luz sobre a origem e o caráter da depressão. O desenho
freudiano da melancolia arrastou consigo a depressão, que se confundiu com o largo escopo
de suas manifestações, estabelecendo com isso, em relação à depressão, a separação, o luto e a
perda de objeto como um eixo possível para a sua investigação.
O autor ainda enfatiza que a depressão e a melancolia não podem ser atreladas ou
tomadas como equivalentes, uma vez que a melancolia diz respeito a um fracasso no
momento de constituição da configuração simultânea do ego e do objeto, isto é, a um fracasso
do estabelecimento das identificações primárias relacionadas à formação do ego, enquanto a
depressão refere-se a uma perda de um espaço de gozo originário. O fracasso da conservação
do objeto no seio do ego, tal como o processamento e a elaboração da ambivalência afetiva
originária, compromete a formação de representação-coisas, situando a problemática da
melancolia, a partir de Freud e Abraham, no estágio ou momento constitutivo da configuração
do objeto, ocorrendo conjunta e concomitantemente a do ego do sujeito. Embora Freud nunca
tenha aplicado essa teoria à depressão, mas antes à melancolia, Delouya afirma que a
psicanálise moderna situa a sensibilidade depressiva nesse momento constitutivo do objeto e
do ego que ocorrem simultaneamente. Desse ponto de vista, a depressão emerge na
consciência de ser separado da mãe e da perda progressiva dela concomitantemente ao
nascimento do sujeito do ego e ao consequente reinvestimento de si. No entanto, Delouya
(2001; 2002) insiste que esse modelo se aplica à melancolia e não à depressão, já que esta não
se refere a uma perda de objeto, mas sim de um espaço originário de gozo. Assim, segundo o
autor, a depressão deve ser compreendida em analogia à teoria freudiana da angústia de 1926,
que considera o afeto da angústia uma reativação de uma expectativa diante do perigo, uma
forma de preparação ou, mais especificamente, um sinal ante o perigo. Nessa perspectiva, a
depressão pode ser associada ao trauma do nascimento, à prostração diante da perda de um
espaço de gozo mítico e originário, cujo modelo do desamparo viria a corresponder a uma
depressão originária fundamental no psiquismo (DELOUYA, 2002).
Em seus trabalhos recentes sobre os estados depressivos, Kehl (2008; 2009; 2011)
considera a melancolia e a depressão como estados distintos. A autora afirma que as
“semelhanças sintomáticas produzem frequentemente confusões entre os diagnósticos da
melancolia e depressão” (KEHL, 2009, p. 196) e que, nos debates sobre o tema, assim como
em suas pesquisas bibliográficas, “não é incomum encontrar certa confusão entre as
características dos quadros depressivos e melancólicos, que chegam a ser abordados,
indiscriminadamente, como se fossem a mesma coisa. Não são” (KEHL, 2009, p. 40). Frente
a isso, a autora revela que as características depressivas do melancólico – negativismo, falta
47
Como se pode notar, a autora se situa em uma perspectiva lacaniana para abordar a
melancolia, assim como os estados depressivos em geral. Ela considera, em comparação à
melancolia, que, na depressão, a identificação fálica ocorreu, o que torna o depressivo
marcado pela castração, embora esta não seja simbolizada. A castração, para os depressivos,
diferentemente dos neuróticos, é motivo de dor narcísica e de vergonha – elementos que
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compõem a dor moral. Isso ocorre porque o depressivo se instalou na condição de castrado
por covardia, para se esquivar da rivalidade fálica com o pai, e com seus substitutos ao longo
da vida, permanecendo em uma condição imaginária da castração infantil daquele que nada
pode.
Na visão de Kehl (2009; 2011), Freud situa a melancolia próxima da esquizofrenia,
como uma neurose narcísica, em oposição às neuroses de transferência. Segundo a autora, a
teoria freudiana sobre a melancolia pode ensinar muito pouco ou quase nada sobre a clínica
das depressões, pois a clínica da melancolia não esgota o campo das patologias da tristeza.
Assim, Kehl (2011) considera que a discussão das depressões foge ao alcance freudiano. A
autora afirma que a confusão existente no meio psicanalítico, entre os diferentes estados
depressivos que são reduzidos à teoria da melancolia, deve-se ao fato de Freud não ter
dedicado nenhum texto ao tema das depressões, enquanto Luto e melancolia trouxe uma
contribuição decisiva e inovadora para a compreensão clínica da melancolia. Diante disso,
Kehl (2009, p. 40) entende que “as noções de depressão, estados depressivos e psicose
maníaco-depressiva não terminaram de ser resgatadas do campo exclusivo da psiquiatria para
o da clínica psicanalítica”. Khel (2009) considera o fenômeno clínico tratado por Freud, em
Luto e melancolia, aquele que correspondia, no campo da medicina psiquiátrica de sua época,
à psicose maníaco-depressiva. De seu ponto de vista, Kehl (2011) considera que Freud
conhecia a terminologia psiquiátrica da época e adotou o termo melancolia para estabelecer
uma distinção entre a abordagem psicanalítica e psiquiátrica.
***
podendo tanto ser considerado um estado puro, de estrutura particular - em que impera uma
inibição generalizada e lentificação motora e psíquica ao lado de intensos sentimentos de
vazio, e que se manifesta independente dos quadros psicopatológicos atuais -, quanto
entendido como um afeto vital básico, que não recebe a categorização de entidade clínica
particular (como a histeria, neurose obsessiva, síndrome do pânico, por exemplo), mas a de
um afeto (em analogia com o afeto da angústia) que pode acometer estados neuróticos e
psicóticos etc., cujos contornos clínicos estarão relacionados ao quadro clínico em que se
manifesta. Segundo mostramos, há também um debate em torno da questão de saber se a
depressão é um fenômeno único, ocorrendo em qualquer estrutura, ou se ela se diferencia de
acordo com a forma de sua manifestação, o que apontaria para distinções estruturais e
etiológicas entre os diversos estados depressivos. Também no tocante à distinção entre
melancolia e depressão, pudemos constatar que não existe opinião consensual. Enquanto
alguns autores consideram depressão e melancolia duas faces de uma mesma problemática
psíquica, diferenciada apenas pela intensidade de sua manifestação, outros estudiosos fazem
questão de demarcar uma diferença radical entre esses estados. No entanto, conforme
observamos, isso pode variar muito de acordo com a escola teórica e com o autor que aborda
os fenômenos depressivos. Nesse sentido, a distinção entre melancolia e depressão ainda hoje
se faz com dificuldade e, segundo Delouya (2001, p.36), “permanece, neste fim de século XX,
um problema teórico e clínico: definir precisamente o que são as entidades psicopatológicas
melancolia e depressão, tanto na obra de Freud quanto no campo psicanalítico que o
sucedeu”. Na mesma linha, Moreira (2002, p.76) afirma que a bibliografia sobre o tema é
fértil em afirmar a falta de consenso e a diversidade de definições.
Vimos, ainda, no que concerne à teoria freudiana da melancolia, que a opinião
psicanalítica atual é diversa. À medida que alguns autores abordam os estados depressivos a
partir da teoria freudiana da melancolia, outros o fazem a partir da teoria do luto ou da
angústia. É possível, também, identificar autores que entendem que a teoria freudiana da
melancolia não aporta nenhum tipo de contribuição para a depressão, ao passo que outros
psicanalistas consideram que, embora não se trate da depressão, o conteúdo de Luto e
melancolia oferece algumas indicações para sua elucidação, como a importância da perda e
do papel central do narcisismo. Quanto ao fenômeno abordado por Freud em Luto e
melancolia tampouco há consenso. Enquanto Strachey, editor das obras completas de Freud
em língua inglesa, afirma categoricamente que Freud empregava habitualmente a expressão
melancolia para designar condições que hoje se descreveriam como depressão, outros autores
afirmam sem ressalvas que a melancolia do texto freudiano corresponde a entidades clínicas
50
que em nossa contemporaneidade são conhecidas como distúrbio bipolar, as antigas psicoses
maníaco-depressivas. Há autores, ainda, que consideram o fenômeno clínico denominado por
Freud de melancolia nem uma depressão, nem uma psicose maníaco-depressivo, mas somente
uma forma distintiva de neurose, chamada neurose narcísica. Dessa maneira, é possível
perceber que a interpretação da teoria freudiana da melancolia, bem como sua apropriação, é
ainda muito diversa na atualidade: as leituras realizadas a partir de Luto e melancolia a
respeito dos estados depressivos têm comportado uma série de apropriações particulares por
parte dos psicanalistas que podem mesmo ser completamente contraditórias e ainda levar a
conclusões muito diferentes.
Adotamos, em nosso trabalho, diante das dificuldades apresentadas, a expressão
estados depressivos, que compreende um campo teórico de pesquisa e reflexão, mais do que
necessariamente entidades nosológicas clínicas ou definições etiológicas. Com isso,
circunscrevemos um campo de pesquisa amplo e complexo, intitulado por Laplanche (1987)
de campo das depressões. Agrupar a depressão, a melancolia, o luto e a tristeza profunda sob
a expressão estados depressivos torna-se uma solução diante da pluralidade de definições na
literatura vigente e da necessidade de delimitar um campo de pesquisa. Assim,
independentemente das questões imprecisas e polêmicas que cercam o tema dos estados
depressivos na atualidade, como bem coloca Kristeva (1989), situamo-nos numa perspectiva
freudiana: é sempre pensando a partir desse lugar como referência principal que buscamos
compreendê-los. Do ponto de vista da psicanálise freudiana, os estados depressivos se referem
a formas de sofrimento psíquico que incluem, em maior ou menor grau, os sintomas
apontados por Freud em Luto e melancolia: estado de ânimo penoso, desinteresse pelo mundo
externo, inibição e falta de interesse em realizar atividades, falta de capacidade de
investimento em objetos externos, diminuição de autoestima e aumento de autorrecriminações
e autoenvilecimento. Segundo o paradigma freudiano, os estados depressivos guardam em seu
âmago uma problemática narcísica e consistem em reações psíquicas a situações de perdas.
Conforme mostramos, com este fértil resgate bibliográfico sobre o assunto dos estados
depressivos, há uma considerável falta de consenso e de diversidade de pontos de vista
imperando entre os psicanalistas. No entanto, é possível afirmar que, independente das
abordagens particulares e das diferentes definições, é consensual que o artigo Luto e
melancolia trouxe contribuições inaugurais para o campo das depressões na psicanálise, seja
direta ou indiretamente. Constata-se também que, de alguma forma, sempre há referências ao
artigo freudiano quando o tema dos estados depressivos é abordado a partir da psicanálise.
51
De acordo com o Oxford English Dictionary, a palavra depressão tem o sentido literal
de “pressionar para baixo”, e seu surgimento data do século XIV, no contexto da astronomia
renascentista. Sua etimologia advém do francês a partir do latim de-premere, que significa
pressionar para baixo, denotando um sentido oposto à elevação. É por volta de 1660 que o
termo depressão aparece pela primeira vez, nos Estados Unidos, significando tristeza e
desânimo (SOLOMON, 2002, p.264). Mas é somente por volta do séc. XVIII que passa a ser
adotado pela psiquiatria europeia. No início, seu uso foi introduzido em associação ao termo
melancolia, mas passou a substituí-lo de maneira crescente a partir do século XIX. O termo
melancolia, utilizado por quase dois mil e quinhentos anos, parecia à psiquiatria já muito
desgastado e próprio do senso-comum, sendo mais conveniente aos poetas, enquanto o termo
depressão teria um apelo mais científico e adequado para uma ciência nova como a
psiquiatria, cuja pretensão era consolidar-se como uma das áreas de especialidade da
medicina.
Melancolia é o mais antigo termo utilizado para referir-se aos estados de tristeza
profunda e às patologias dos humores tristes, sendo uma figura da condição humana presente
desde os tempos longínquos da cultura ocidental. Da Grécia antiga ao início do século XX, o
que chamamos hoje depressão era chamado melancolia – literalmente, humor da bile negra.
O termo melancolia é atribuído a Hipócrates e deriva-se de sua teoria da bílis negra,
composição do grego melas (negro) e kholé (bile), que corresponde à transliteração latina
melaina-kole, literalmente bílis-negra. Portanto, é a partir da teoria dos humores ou
temperamentos e da bílis negra que Hipócrates cunha o termo melancolia - associado ao verbo
mélancholân, que acrescenta sobre o verbo simples cholân “ter bile”, o “estar com raiva”, e
mais genericamente “ser louco”. As palavras bile (Kholé) e raiva (Kolos) são aparentadas em
grego: raiva significa também bile. Outro termo grego composto, picrocholos, “indivíduo de
bile amarga”, associa a bile a um sabor; melanchôlan atribui uma coloração à bile, que se
torna negra, melan, e ligada também a uma espécie de loucura. Finalmente, mélancholân
significa “louco por ter uma raiva amarga e negra” ou, como se diz em francês, “avoir les
idées noires”, ter ideias negras (DEMONT, 2005, p.34).
No conjunto dos escritos do Corpus Hipocraticus, encontramos a presença da raiz
melankhol em diferentes usos: trinta e cinco vezes como o adjetivo melankhólikos, cinco
53
vezes como o substantivo melankholía, duas vezes como a desinência verbal melankholao,
cinco vezes como o adverbio melankholas e três vezes o termo composto melankholodes, que
quer dizer ter a aparência melancólica (CONTI, 2007, p.13-14). Persistindo na época
moderna, a origem do termo melancolia repousa na convicção antiga de que a saúde e a
doença são reflexos do equilíbrio ou desequilíbrio entre quatro fluidos corporais, ou humores,
e de que o excesso de bile negra (humor supostamente produzido pelo baço) seria responsável
pelos sintomas depressivos. Os médicos da antiguidade concebiam a bile negra como
reguladora do humor e a melancolia testemunhava um defeito nessa função natural. Na
medida em tais convicções foram perdendo a sua pertinência, a palavra depressão acabou por
se impor até se tornar dominante nos séculos XIX e XX (WAKEFIELD & HORWITZ, 2007,
p.55).
A compreensão e a visibilidade atuais da depressão e da melancolia, seja em termos de
classe diagnóstica ou em termos de processos psíquicos, são muito recentes. São cerca de
duzentos anos de estudos científicos, em que duas disciplinas se destacam: inicialmente a
psiquiatria, a partir do final do século XVIII, e depois a psicanálise, no final do século XIX.
Assim, a melancolia é um termo presente há muito tempo na humanidade, designando desde
estados muito graves que envolvem alucinações até estados mais brandos, como as emoções
dolorosas, paixões tristes, humores, sentimentos e temperamentos normais e confunde-se
facilmente com o recente termo depressão. As dificuldades de consenso e determinação dos
quadros diagnósticos e do uso dos termos são consideravelmente mais antigas que as novas
discussões em torno do DSM-IV-R. São dificuldades que remontam às primeiras tentativas do
homem de compreender os estados de sofrimento psíquico, dor e tristeza profunda.
As doenças da alma, entendidas como loucura, alienação ou doença mental
dependendo do período histórico, preocuparam os escritores, os filósofos, os pensadores e os
artistas desde os tempos mais remotos. Os estados depressivos despertam o interesse do
mundo ocidental há pelo menos vinte e cinco séculos e são fenômenos onipresentes na
história humana. Já no período do classicismo grego, encontram-se tentativas de compreender
e decifrar o enigma da melancolia, ora associada à loucura, ora à genialidade. Sua presença
recorrente na história ocidental não é nada discreta: os mais renomados pensadores, filósofos,
médicos, escritores e pintores realizaram algum tipo de incursão no campo da melancolia,
como se ela fosse um tema corriqueiro ou mesmo incontornável da vida humana, que deveria
ser pensada por grandes homens. Possivelmente, os estados depressivos sejam os fenômenos
relacionados à loucura mais facilmente reconhecíveis na história, pois seu percurso é longo,
denso e insistente. Assim, vemos que a melancolia é o termo mais antigo e usual para se
54
referir a estados análogos aos distúrbios depressivos atuais. (JACKSON, 1986; WAKEFIELD
& HORWITZ, 2007).
De acordo com Jackson (1986) – autor da mais célebre pesquisa atual sobre a história
da depressão e melancolia no campo médico, intitulada Melancholia and Depression: from
hippocratic times to modern times –, a investigação dos distúrbios depressivos ao longo do
tempo não é uma tarefa fácil, pois não é possível se guiar apenas pelos termos, que embora
sejam pistas importantes, são muitos. Jackson mostra que o mundo ocidental abriga muito
mais de dois milênios de história, em que se utilizaram formas diferentes para se referir a um
grande número de estados diversos, caracterizados por abatimento e tristeza. Segundo o autor,
em determinados momentos, durante esses muitos séculos, o termo em uso comum para se
referir a tais estados poderia significar: (1) uma doença, uma condição incômoda de gravidade
e duração suficientes para ser concebido como uma entidade clínica; (2) uma síndrome, para
se referir a um grupo de sintomas que foram pensados para constituir um estado; (3) um
humor ou um estado emocional de alguma duração, talvez incômoda, certamente incomum, e
ainda não patológica, não uma doença; (4) um temperamento ou tipo de condição que envolve
certa tonalidade emocional e disposição e ainda não patológico; (5) um estado de sentimento
de curta duração relativa, de tonalidade infeliz, mas dificilmente uma doença. Notamos, com
isso, que os usos atuais do termo melancolia e depressão consistem em um desdobramento
dos sentidos a eles conferidos ao longo da história ocidental. Certamente, as diversas
condições aqui designadas consistem em estados mentais incomuns, mas abrangem um
espectro muito mais amplo do que aquele coberto pelo termo doença. Assim, melancolia nem
sempre significou um estado de adoecimento, abrangendo, ao contrário, um largo escopo de
estados. Foram realizados relatos dessas descrições clínicas em escritos médicos por cerca de
dois milênios e meio de história, e estes relatos foram intermitentemente complementados por
outras fontes ao longo desse espaço prolongado de tempo (JACKSON, 1986). Em função da
vasta gama de usos do termo melancolia, Jackson propõe a descrição clínica como a principal
orientação na investigação desses estados ao longo da história, ou seja, deve-se centrar a
atenção não só na denominação, mas principalmente nos sintomas e sinais descritos.
Encontramos variações na descrição dos conteúdos desses quadros clínicos; no entanto,
há uma consistência e coerência notáveis no núcleo básico de sintomas. E a melancolia como
uma das três formas principais de loucura em épocas anteriores, ao lado da paranoia e da
mania, é claramente correlata das depressões atuais (JACKSON, 1986).
Nessa direção, os autores da magistral obra histórica Saturno e Melancolia identificam
vários sentidos para o termo melancolia:
55
Desde os primeiros textos médicos na Grécia antiga até o presente DSM, a tristeza
profunda e suas variantes – desesperança, mágoa, abatimento, desânimo, vazio,
desespero, desencorajamento – foram mencionadas frequentemente como traços
nucleares do distúrbio depressivo, juntamente de sintomas relacionados, tais como
aversão à comida, insônia, irritabilidade, agitação, sentimentos de inutilidade ou
desesperança, tentativas e ideias suicidas, medo da morte, a ruminação de um
pequeno número de ideias negativas, a falta de prazer ou de interesse nas atividades
cotidianas, fadiga, e reclusão social.
20
Parte de um fosso que se estendeu, na Londres medieval, da parede norte entre Moorgate e Bishopsgate.
Shakespeare pode ter pensado naquele como um lugar de ‘melancolia’ por causa da qualidade de sua água ou
porque era perto de Bedlam hospital, onde os doentes mentais eram alojados.
56
Diante do exposto, percebe-se que desde há muito tempo são descritos e observados
certos estados entre os seres humanos que incluem tristeza profunda, apatia, desânimo,
prostração, inibição generalizada, em meio a outros sintomas. Esses estados foram vagamente
designados pelo termo “melancolia”, que aparece expressivamente em diferentes épocas da
história ocidental. Assim, a história permite reconhecer os atuais estados depressivos nos
antigos estados melancólicos. Apreende-se que a melancolia ou, como preferimos definir em
nosso trabalho, os estados depressivos – aqueles que incluem genericamente estados de
tristeza profunda, humor depressivo, melancolia, luto e transtornos depressivos – estão
presentes ao longo da história, descritos de diferentes formas, com diferentes nomes e
associados a diferentes causas. O que sua história nos leva a constatar é uma notável
persistência desses estados e de suas variáveis, ao lado de tentativas de sua compreensão. O
fato de sua presença incontestável na civilização humana assinala sua importância
(TEIXEIRA, 2007).
Em busca das origens históricas dos estados depressivos, talvez o mais distante em que
possamos recuar seja o século V a.C., época em que o termo melancolia foi forjado pelo
médico grego Hipócrates de Cós. No entanto, a patologia ou o sofrimento dos humores tristes
podem ser encontrados de forma não nomeada na descrição de sinais e sintomas em escritos
ainda mais antigos, como na tragédia grega, na Ilíada de Homero ou mesmo no antigo
testamento, texto ainda vigente e interpretado em nossos dias, que exerceu influência
considerável na formação de nosso pensamento ocidental judaico-cristão. Não podemos
desconsiderar que a história da melancolia se confunde facilmente com a história das ideias
dessa civilização, já que foi descrita e pensada praticamente em todos os períodos pelos seus
mais notáveis representantes. Dessa maneira, para compreender a história dos estados
depressivos, em uma pesquisa anterior, percorremos os escritos dos mais diferentes campos,
como a religião, a arte, a literatura, a filosofia, a medicina entre outros (TEIXEIRA, 2007).
Frente ao exposto, vemos que a melancolia21 nem sempre esteve sob o domínio do campo
psiquiátrico, mesmo porque se trata de um termo muito mais antigo, anterior ao advento das
ciências e da filosofia modernas. Suas diferentes formas de uso relacionam-se com a história,
com os costumes, valores e regras de um grupo social de determinada época. Suas origens
remontam a alguns séculos antes de Cristo, época em que arte, tragédia e filosofia se
encontravam nas obras de arte, nos escritos literários trágicos, nos textos da antiga filosofia de
Aristóteles e nos textos da pré-história médica, daquele que é considerado o pai da medicina –
21
Ver nosso trabalho anterior: A concepção Freudiana de Melancolia, Dissertação, UNESP, 2007.
57
para o interior do ser humano. Assim, a loucura triste de Fedra é fruto de um conflito
decorrente de uma paixão adúltera. Fedra cai melancólica por um conflito entre paixão e
proibição social – a personagem teme tanto a censura social quanto o que mais tarde será
chamado por Freud de “força da libido”. Na obra de Eurípides, a loucura se psicologiza, fato
que representa o nascimento da concepção do homem como dotado de uma individualidade
intelectual e afetiva. Temos aí uma concepção passional da loucura (PESSOTI, 1994).
Hipócrates, em cerca de V a.C., explicava a loucura como resultado de um
desequilíbrio de humores corporais. A melancolia deve-se ao acúmulo de bílis-negra no baço.
A passagem mais conhecida e importante de Hipócrates, a quem é atribuído a origem do
termo, a esse respeito, se encontra nos Aforismos e diz o seguinte: “Se medo ou tristeza
persistem duravelmente, o caso é melancólico” [Literalmente: atra-bilioso] (HIPÓCRATES,
2005, Aphorismes, VI, 23, p.34). Hipócrates associa os estados de medo e tristeza persistente
à melancolia. Mas, mais fundamental ainda, é a tentativa de reconhecer a desproporção dos
sintomas diante das circunstâncias. Outra passagem muito conhecida associa a melancolia à
epilepsia. Diz Hipócrates: “Frequentemente os melancólicos tornam-se também epiléticos e os
epiléticos, melancólicos. Uma ou outra aparece segundo o lugar atingido pela doença; se ela
atinge o corpo: estamos na presença de epiléticos; se é o espírito: são melancólicos” (2005,
Epidemias, VIII, 17,2). Segundo Demont (2005, p.34), a passagem reflete a associação
corriqueira entre melancolia, mania e epilepsia e revela que, para Hipócrates, o componente
psíquico é reconhecido e decisivo para o diagnóstico. Assim, em Hipócrates se encontram os
empregos corriqueiros do termo melancolia - no sentido de estar louco - e os empregos
médicos, no sentido de estar doente de biles negra. A bílis negra representava o outono e,
como a terra, era fria e seca, hostil à vida e podendo causar melancolia, uma doença resultante
do acúmulo de bílis negra no baço:
A teoria da bílis negra como causadora da melancolia atravessará os séculos por meio
dos escritos de diversos pensadores, ainda que com variações. Convém destacar que, segundo
muitos autores, Hipócrates concebe a melancolia como uma doença orgânica, um estado
anormal do cérebro, cujos estados emocionais são meros sintomas (GINZBURG, 2001;
KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL, 1989; DANDREY, 2005; HERSANT, 2005;
59
JACKSON, 1986; SCLIAR, 2003; PERES, 1996; PESSOTTI, 1994). De acordo com Pessoti
(1994), o Corpus Hipocraticus inaugura a distinção, clínica e etiológica, entre os dois estados
de loucura que se tornaram clássicos: a mania e a melancolia. Os mencionados delírios,
perturbações de condutas, desequilíbrios emocionais, são meros sintomas e não o elemento
decisivo para identificar um ou outro quadro. Outra observação sobre a visão Hipocrática diz
respeito à interdependência mente-corpo. De acordo com Widlöcher (1983), muitos veem a
representação Hipocrática da doença como puramente orgânica em função de sua ligação com
a bile negra. No entanto, em Hipócrates a alma encontra-se estritamente dependente do corpo,
no sentido de que as paixões da alma podem influenciar os estados dos humores e vice-versa.
Nessa direção, os sintomas psíquicos são descritos como perturbações do funcionamento da
alma devido à poluição dos humores.
Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à
ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e alguns a
ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem, como contam,
entre os relatos relativos aos heróis, os que são consagrados a Hércules?
(ARISTÓTELES, 1998, p.81).
melancólico sobre os outros, o que torna o indivíduo um melancólico de natureza. Esta última
forma de melancolia possuía uma configuração inteiramente particular quando o sujeito tinha
perfeita saúde, tornando-o assim, fundamentalmente e constitutivamente, diferente e superior
ao homem comum. Já o homem ordinário é suscetível de contrair a melancolia, mas sob a
forma de problemas temporários, sem significação psíquica, nem efeitos duráveis sobre sua
constituição. “Quanto aos homens normais de natureza – a maior parte dos homens – não
podiam jamais adquirir as características de que era dotado o melancólico natural em virtude
de sua disposição habitual” (KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL, 1989, p.76). A
melancolia natural não exclui a doença melancólica, pois os portadores da melancolia da
natureza eram particularmente sujeitos às doenças melancólicas de forma mais virulenta e
acentuada. O melancólico de natureza é dotado de uma singularidade espiritual, como
resultado do fato de que a bile negra possuía uma propriedade ausente nos outros humores,
isto é, a propriedade de influenciar a disposição da alma. Para Aristóteles, existiam
substâncias em que sua absorção pelo corpo não tinha nenhuma influência sobre a alma,
enquanto outras desencadeavam efeitos imediatos e potentes sobre o espírito, levando o
homem a experimentar toda variedade de estados espirituais que lhe são cotidianamente
estrangeiros (KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL, 1989).
Assim, desde épocas longínquas é possível encontrar teorias segundo as quais os
escárnios divinos e o não cumprimento das vontades supremas tornam o homem sofredor e
melancólico. Ou teorias de que os conflitos entre as paixões e as limitações das satisfações
destas na vida social levam ao padecimento dos humores. Ou ainda de que, se os fluídos da
bile negra se acumularem no baço podem causar um estado duradouro de tristeza e apatia.
Vemos diferentes maneiras de compreender a loucura, que continuaram presentes em nossa
cultura ocidental sob diferentes roupagens, ao longo da história até o século XIX e o advento
da psiquiatria.
Segundo Amati-Mehler (2004), ligações e inferências derivadas dos quatro humores22
foram colocadas em relação com teorias cosmológicas e dos temperamentos, e não variaram
22
É através de sua conhecida ‘teoria dos humores’ que Hipócrates explica a melancolia. Os temperamentos dos
homens dependiam do equilíbrio de quatro humores básicos presentes no corpo. Esses humores controlavam
toda a existência e o comportamento humano e, segundo a maneira em que eles estavam combinados,
determinavam o caráter do indivíduo (KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, 1989, p.31). O acúmulo de algum
dos elementos dos humores resultava no predomínio de determinado temperamento. Para cada humor
correspondia um elemento do universo, uma estação do ano e suas respectivas qualidades. O sangue
correspondia à primavera e ao ar, sua qualidade era ser quente e úmido: dava origem ao temperamento
sanguíneo. A linfa, análoga ao inverno e à água, era úmida e fria e originava o temperamento fleumático. A bílis
amarela, como o verão e o fogo, era quente e seca, e resultava no colérico. Klibansky, Panofsky & Saxl (1989, p.
39), propõe o seguinte quadro visual:
62
Pessotti (1994, 1999) denomina de “concepção demonista” o período que vai da Idade
média ao século XVI, representado por Agostinho e Tomás de Aquino. As formas aberrantes
de conduta, as insanidades mentais e a melancolia são explicadas pela possessão diabólica, ou
pela condenação divina em decorrência do pecado. Segundo Solomon (2002, p.271-72),
Agostinho considerava a melancolia como especialmente prejudicial, pois suas manifestações
doentias sugerem que o melancólico não estaria coberto pela graça divina ou, simplesmente,
não teria reconhecido tal graça; a melancolia consiste em um afastamento do sagrado, uma
prova da possessão demoníaca.
O monge João Cassiano (teólogo cristão do séc. V) usa os salmos da Bíblia para
revelar o demônio do meio-dia, que foi associado à melancolia, que teria vindo arrancar a
alma do homem de Deus. Para Cassiano, o melancólico deve ser abandonado por todos e
colocado para fazer trabalhos manuais. Com Tomás de Aquino, chegamos à época da
inquisição e, nesse período, iniciado por volta do séc. XIII, os melancólicos podiam ser
comumente presos por seu pecado e identificados como hereges. A fogueira passa a ser o
principal destino para os melancólicos. A acedia, termo correspondente à atual depressão, era
tida como um pecado condenável. Os monges eram especialmente propensos a desenvolvê-la,
com manifestações de exaustão, apatia, tristeza, aversão à cela, à vida ascética e, também,
com um insistente anseio pela família e pela vida anterior. Em escritos da época encontramos:
“No momento em que Adão desobedeceu à lei divina, naquele exato instante, a melancolia
coagulou-se em seu sangue”. De maneira geral, Solomon (ibid.) aponta que a idade média
moralizou a melancolia e foi responsável por um estigma ainda hoje sobrevivente na
depressão.
No século XII, o estudo da melancolia tem como principal representante a escola de
Salermo e a sua doutrina dos temperamentos. A teoria da melancolia, neste momento, aparece
vinculada à ciência árabe e à astrologia, para a qual Saturno é tido como o astro que guia e
governa o melancólico. Constantinus Africanus (1010-1087), mulçumano convertido e
associado à escola de Salermo, traduziu do árabe24 para o latim Hipócrates e Galeno,
retomando suas concepções. Em Constantinus, a melancolia aparece como um mal do amor,
resultado de uma paixão não correspondida ou da busca de um ideal amoroso impossível de
atingir, além de também estar relacionada ao aumento da bílis negra no organismo.
Constantinus introduziu no ocidente a obra De melancolia (Sobre a melancolia) – do médico
24
Os escritos greco-romanos haviam sido traduzidos para o árabe e, agora, com o retorno do interesse por tais
conhecimentos, eram traduzidos para o latim. Os escritos, então, saíram do mundo ocidental, foram para o
mundo árabe e agora retornavam à Europa.
64
de Bagdá Ishaq ibn Imran –, texto que distingue várias formas de melancolia, envolvendo
conduta agressiva, temor, ansiedade, desânimo, choro, risco de suicídio e licantropia – delírio
em que a pessoa se imagina transformada em lobo. Nesse texto encontra-se, ainda, a
afirmação de que os melancólicos temem situações que de fato não são ameaçadoras
(SCLIAR, 2003, p.73; CORDÁS, 2002, p.47).
Do século V ao XIII, os médicos árabes se referem às doenças da alma que podem
afetar as três principais virtudes do cérebro: a imaginação, a cognição e a memória. Enquanto
a religiosidade domina a Europa ocidental, tornando-a um lugar inóspito para os pensadores, o
mundo árabe recebe os refugiados e os perseguidos com entusiasmo. Os pensadores gregos
migram para o império árabe para continuar produzindo e difundindo o pensamento greco-
romano. Em certa época, as escolas islâmicas tinham a medicina como primeira ciência grega
a ser estudada. Assim, os considerados doentes não eram perseguidos ou queimados na
fogueira, mas estudados e tratados, mesmo que de maneira rudimentar. Já no final do século
X, quase todas as obras científicas gregas haviam sido traduzidas para o árabe. A melancolia
era amplamente estudada, com abundantes descrições e discussões sobre a forma mais comum
de loucura. As ideias de Hipócrates e Galeno eram aceitas e associadas à melancolia, como a
outros temperamentos. A melancolia, no mundo árabe, não era entendida como possessão
demoníaca ou manifestação da cólera divina, mas como um desequilíbrio humoral do cérebro
pelo predomínio da bile negra (CORDÁS, 2002, p.42-43). A medicina árabe dos séculos IX e
X influenciaram a medicina ocidental até a renascença. Os autores árabes estabeleceram uma
relação entre a teoria dos humores de Hipócrates e a astrologia. O humor melancólico é ligado
à influência de Saturno, que no corpo humano governava o baço, sede da bílis negra. Vem daí
a qualificação humoral de soturno, que designa a pessoa triste, sombria e silenciosa, expressão
esta que se tornou sinônimo de melancólico. A influência de Saturno não se exercia, porém,
em pessoas vulgares, mas em pessoas extraordinárias: fica assim mantida a ligação aristotélica
entre melancolia e genialidade (SCLIAR, 2003; PERES, 2003). Ao fim da idade média, a
melancolia é cada vez mais empregada como sinônimo de uma simples tristeza, mesmo
quando nenhuma razão reconhecível podia explicá-la.
Segundo Amati-Mehler (2004), o dicionário de língua italiana contém o verbete
malinconia, não encontrado em nenhuma outra língua, que designa um sentimento de tristeza
leve, quase melancólico e nostálgico. Desse modo, uma pessoa malincolic, segundo a autora,
é definida, nesse dicionário, como invadida por um estado de espírito reconfortante, calmo e
melancólico, temporário ou durável. A significação do adjetivo melancolia se alargou
consideravelmente nessa língua, passando da qualificação de um estado individual para uma
65
descrição mais geral das coisas ou das situações, como, por exemplo, uma paisagem, uma
noite, ou um outono, todos qualificados como melancólicos. Essas expressões passaram a
fazer parte dos textos literários e poéticos (AMATI-MEHLER, 2004). Já na França, o termo
melancolia foi particularmente adotado pelos escritores das belles-lettres em suas histórias,
poesias e prosas, no final da idade média. É possível encontrar na literatura francesa o verbo
merencolier como sinônimo de entristecer: na literatura amorosa, a expressão petites
merencolies fora utilizada para falar das querelas entre os amantes. Por volta do século XV, a
fusão dos termos melancolia e tristeza adquire significações mais complexas, indo de
sentimentos subjetivos a doença psíquica objetiva misturada a um sentimento de dor e
infelicidade. Também o sentimento de tristeza é evocado como fazendo parte da consciência
humana da finitude e da morte. No início do século XIX, a melancolia romântica, tão cara aos
escritores, poetas e músicos, exprime a expressão alemã de Welr Schmertz, que alude à dor e à
tristeza causadas pelos desgostos e injustiças inerentes à vida humana. Finalmente, a autora
destaca que a melancolia tem uma relação particular com o planeta Saturno, considerado
responsável pelo caráter triste e infeliz do melancólico (AMATI-MEHLER, 2004).
Na renascença, período de profundas transformações culturais, sociais e intelectuais
entre os séculos XIV e XVI, a melancolia tornava o homem capaz da produção intelectual e
artística. O conhecimento greco-romano voltava a circular com força nos círculos científicos e
os textos de Hipócrates e Aristóteles são abundantemente estudados. Começam as traduções
dos originais gregos para o latim. Há, paulatinamente, uma revalorização do homem e uma
insubordinação às regras impostas pela Igreja (CORDÁS, 2002, p.50). Enfim, o renascimento
é uma época de retomada científica e libertação dos grilhões impostos pela Igreja. Mais do
que a presença dos médicos clássicos, havia aqui a presença da concepção filosófico-
aristotélica, que concebia a genialidade aliada à condição do estado melancólico. Os
pensadores da época acreditavam que a melancolia era sinal de profundidade.
A melancolia é o tema central do manual de higiene mental Da vita tríplice, escrito
pelo renascentista Marsilius Ficinus (1433-1499), médico, filósofo, mago, astrólogo e...
melancólico. O manual reunia quatro teorias sobre a melancolia: a hipocrática (teoria dos
humores), a platônica (poesia e furor), a astrológica (Saturno e melancolia) e a aristotélica
(melancolia e genialidade). Esse estudioso considerava a melancolia um grande tormento, mas
também uma grande oportunidade para os homens de estudo. Saturno seria o planeta
inspirador dos sábios e estudiosos. A melancolia, presente em todo homem, representava o
66
anseio pelo grande e eterno; sendo o representante de Deus na Terra, o homem sempre seria
perturbado pela nostalgia da terra natal celestial25. Ficinus postula, ainda, que a melancolia é
revelada no atropelo da vida diária, sendo uma característica comum da alma. No entanto, só
os homens de exceção, como os filósofos e artistas, precisam estar em contato com sua
melancolia, na qual a profundidade de sua experiência refletirá seu sucesso ao erguer a mente
acima da vida comum (SOLOMON, 2002, p.274). A melancolia seria, então, um pré-requisito
para a inspiração. É impossível não lembrarmos aqui das ideias do Problema XXX de
Aristóteles.
Ainda havia aqueles que associavam a melancolia à capacidade de prever o futuro,
como era o caso do médico, filósofo, mago e ocultista Cornelius Agripa (1486-1535). Outra
teorização da época relacionava a melancolia às paixões. Os médicos e filósofos da
renascença distinguiam duas formas de paixão: a pudique e a impudique. A primeira
relaciona-se ao amor devotado entre marido e esposa, pai e filho, do súdito pelo senhor etc. A
segunda é representada pela luxúria, o amor carnal que “queima os humores do corpo” e gera
a melancolia (SCLIAR, 2003; PERES, 1996, 2003).
No renascimento, gradualmente, o racionalismo científico foi triunfando sobre a
superstição medieval. Com o Renascimento inglês, é possível observar um movimento que
vai desde compreender a melancolia como uma pré-disposição à possessão até pensadores que
sugeriam que as bruxas eram apenas velhas desafortunadas, doentes e melancólicas. Assim, o
que antes era possessão passa a ser agora um delírio mental, vinculado à melancolia
(SOLOMON, 2002, p.276).
Em 1599, o francês Andréas Du Laurens redime os melancólicos perante a igreja,
dizendo que a melancolia seria uma doença da imaginação, deixando a alma e a razão
intactas. Para Laurens, a melancolia podia assumir diversos graus, o que possibilita distinguir
se elas se mantinham dentro dos limites da saúde ou não. O cérebro do melancólico seria
tomado pela bile negra, fazendo com que ele enxergasse escuridão em toda parte
(SOLOMON, 2002, p.277).
No século XVI, época da reaparição da palavra psicologia e do crescente interesse
pelo estudo da alma, a melancolia – como uma doença – começa a ser estudada
abundantemente por médicos e pensadores. As fronteiras entre medicina e filosofia eram
tênues e, portanto, a compreensão alcançada sobre a melancolia era mais filosófica. Todavia,
25
Seria interessante lembrarmos aqui da psicanálise e de suas postulações sobre os ideais narcísicos
excessivamente elevados dos melancólicos, ou do anseio pela ausência de tensão, representada pelo paraíso.
67
predominava a teoria dos humores que, segundo Scliar (2003, p.78), constituiu-se em uma
“metáfora poderosa”: “a teoria humoral permaneceu praticamente intocada durante quatorze
séculos”. Na verdade, as teorias da época seguiam ainda duas correntes: os adeptos da
corrente aristotélica, que colocavam a melancolia como condição de erudição, genialidade e
dotes para a arte; e os da corrente hipocrática ou galênica, caracterizando a melancolia tão
somente como um distúrbio de humores relacionado à bile negra. Portanto, não havia um
consenso a respeito da melancolia como doença, questão que sofrerá profundas mudanças
com o advento da ciência mental, como veremos posteriormente.
Solomon (2002, p.277-79) mostra que a melancolia entra em voga no final do século
XVI e ao longo do século XVII, sendo considerada comum e quase normal, tornando-se uma
aflição tão prazerosa quanto desprazerosa, passando a significar profundidade da alma,
complexidade e genialidade. Autores de toda a Europa retomam a romântica concepção
aristotélica e escrevem sobre como a melancolia torna um homem melhor e mais inspirado.
Todos os que se consideravam homens geniais, ou que desejavam sê-lo, ansiavam por senti-
la. Assim, essa manifestação vai se tornando uma doença da aristocracia. De acordo com
Solomon, todo o mundo parecia estar ficando deprimido e o homem se reconhecia na ideia de
melancolia. As pessoas assumiam comportamentos melancólicos sem serem vítimas da
doença, ficavam horas a contemplar o sofrimento e a sustentar dúvidas existenciais para as
quais nunca encontrariam respostas, confessavam medo de qualquer coisa que fosse difícil ou
assustadora. Desse forma, esse estado mental, do qual tantos sofreram penosamente ao longo
dos séculos, agora emergia como uma melancolia branca, algo mais brilhante do que
sombrio.
Ainda a propósito do século XVII, não podemos deixar de mencionar uma das
publicações de maior importância no que se refere ao tema em questão. Com um feito
admirável para a época – cinco edições publicadas em vida –, Robert Burton publicou, em
1621, A anatomia da melancolia. Trata-se de uma interminável compilação que tenta
apresentar e reconciliar todo o conhecimento sobre a melancolia produzido até aquela época.
Assim, Solomon (2002, p.279) revela que, no livro, podemos encontrar as “filosofias de
Aristóteles e Ficino, os personagens de Shakespeare, os insights médicos de Hipócrates e
Galeno, os impulsos religiosos da Igreja medieval e renascentista e as experiências pessoais
de doença e introspecção”. Muitas das ideias de Burton (2001[1621]) antecedem, de alguma
forma, as modernas compreensões em torno da melancolia e da depressão. Para Burton
(2001[1621]), a melancolia se diferenciava de afetos do cotidiano, tais como a apatia, a
tristeza, a indisposição, a letargia, a solidão e o descontentamento. Essas características
68
estariam dentro de qualquer homem vivo e não poderiam ser tomadas como doença. Burton
destaca, também, a interessante ideia de que cada homem tem um nível diferente de tolerância
ao trauma, e que a interação entre os níveis de trauma e tolerância é determinante na
melancolia26. Situações como injúria, dor, desgraça, perda, aborrecimento, boato, podem,
segundo Burton, deixar um homem tomado pela melancolia. Ora, o que seriam tais condições,
senão frustrações que acompanham a vida de todo homem, e para as quais o melancólico não
tem tolerância?27 Finalmente, Burton (2001[1621]) diz que a melancolia é uma doença tanto
do corpo quanto da alma, e que para se tratar o doente deve abrir-se com seus amigos, buscar
alegria e música. O principal tratamento, assim, consistiria em combater diretamente as
paixões e as perturbações da mente (SOLOMON, 2002, p.281). É nesse mesmo período,
segundo Solomon (2002, p.264), que o termo depressão aparece pela primeira vez, por volta
de 1660, nos Estados Unidos, significando tristeza e desânimo. No entanto, ele entrou em uso
comum apenas no século XIX, na Europa, com o advento da psiquiatria.
O espírito romântico retoma a melancolia pelas seguintes qualidades: inibição, solidão,
amargura e tristeza. Vemos o nascimento de uma corrente contrária à da idade da razão, e a
visão puramente científica do homem. No romantismo, movimento que se inicia no final do
século XVIII, a melancolia foi uma marca constante, já que designava o amor pelos aspectos
selvagens e melancólicos da natureza. A melancolia retorna mais amada do que na época da
renascença. Segundo essa visão, ela é atributo de valor: seu estado é valorizado, algo que nos
remete diretamente à tese aristotélica (GINZBURG, 2001; PERES, 1996, 2003). Na corrente
romântica, a melancolia era mais vista como fonte de conhecimento e maneira de ficar
próximo da verdade, do que como loucura (SOLOMON, 2002, p.289).
Solomon (2002, p.282) distingue o romantismo em duas linhas: a poética e a
filosófica. A primeira é representada por escritores da época. Na Alemanha, Goethe, com sua
tristeza-do-mundo, esforçava-se por mostrar a natureza tempestuosa e trágica da existência.
Com seu livro Spleen de Paris, Baudelaire28, representante do romantismo francês, apresenta
o mundo frio e triste, sendo impossível para o homem transcender a melancolia. A Itália é
representada por Giacomo Leopardi e por sua ideia de que o dom do homem é morrer. O
inglês Wordsworth considera a passagem do tempo e a impotência humana frente a ela como
26
Concepção próxima daquela que temos em psicanálise, de que a maneira como cada sujeito irá lidar com as
adversidades da vida depende de seus recursos psíquicos e do significado subjetivo dado aos acontecimentos.
Assim, o mesmo acontecimento que, para alguns, pode ser terrível ou carregado de emoções negativas, para
outros, pode simplesmente não ter relevância em sua vida afetiva.
27
Como Freud apontou séculos mais tarde, no âmago da melancolia podemos encontrar uma situação de perda
ou desconsideração que pode ser interpretada pelo sujeito como uma intensa frustração, uma ferida narcísica.
28
O termo francês spleen significa um tipo de tristeza pensativa associada à melancolia.
69
fatores inerentes à melancolia. Do mesmo modo, John Keats, em sua Ode à melancolia,
refere-se a esse mal pela insuportável tristeza de uma temporalidade que faz da coisa mais
querida a mais triste, não havendo, portanto, nenhuma separação entre a alegria e o
sofrimento.
Conforme nos mostra Solomon (2002), a linha filosófica do romantismo aparece em
Hegel, Kierkegaard, Shopenhauer e Nietzsche. Para o primeiro, o homem nasce na aflição e
nela permanece, sendo aqueles que vivem intimamente com ela os que conhecem mais
profundamente o passado e o futuro. Hegel insere, assim, uma ideia de desnaturalização da
felicidade. Solomon considera Kierkegaard como o “garoto propaganda da depressão”. Esse
filósofo via a humanidade como melancólica e escrevia sobre seu sofrimento ser um castelo,
sobre como amava sua grande melancolia e da raridade que é alguém não estar em desespero.
Shopenhauer, o conhecido filósofo pessimista, respondendo à tese aristotélica, escreveu que o
homem de gênio é aquele que reconhece a infelicidade da condição humana. Segundo sua
visão, o homem vive simplesmente porque tem o instinto básico de fazê-lo. Se a procriação
fosse um ato de razão, o homem, por solidariedade, não teria coragem de trazer um novo ser a
um mundo no qual a existência é um fardo. Assim, tanto o sexo, quanto o trabalho, são atos
para remover o desespero das pessoas e distraem o homem de sua condição essencial. Para
finalizar, Nietzsche entendia que a doença era uma ótima condição para se pensar e ter
insights sobre a saúde e o mundo. Sua concepção era de que saúde e doença não são estados
realmente diferentes, mas, na verdade, há apenas diferenças de grau entre eles; o exagero, a
desproporção, a não harmonia dos fenômenos normais constituem o estado patológico.
Desse modo, é fato notável que, até por volta do século XVII, de maneira geral, a
melancolia e a mania eram os principais termos utilizados para se referir à loucura dos mais
diferentes tipos. Na Idade Média, os estados depressivos se faziam muito presentes, sendo
alvo de reflexão em longos textos que pretendiam relacioná-los a atividades demoníacas. Por
outro lado, no romantismo alemão, a melancolia poderia ser uma oportunidade de enxergar as
coisas mais claramente e de forma mais verdadeira, e seu portador era tido como genial. Se
observarmos cuidadosamente, porém, em alguns períodos a melancolia era entendida como
desvio da norma, como um estado impróprio. Em outros períodos, o mesmo estado
melancólico era revelador de um aspecto da natureza humana. Estar melancólico é estar mais
perto da verdadeira condição humana, diziam os filósofos do romantismo. Isso denota que a
melancolia, embora sempre se apresentando de maneira nebulosa e, portando, com diferentes
roupagens, mostra algo consistente sobre a expressão dos afetos humanos e sua condição de
existência (TEIXEIRA, 2007).
70
Pinel afirma que estes devem se submeter a um tratamento asilar, de completo isolamento:
“Pinel dá início ao primeiro asilo destinado exclusivamente aos alienados, o que se estende
posteriormente a Salpêtrière, e isso possibilita a observação sistemática da loucura pelo saber
médico; nasce a clínica psiquiátrica” (AMARANTE, 1996, p.50). Para se estabelecer como
estudiosa das perturbações mentais, a medicina buscava as causas físicas da loucura, mas não
as encontrava; entretanto, Pinel parte de outras bases epistemológicas, as “causas morais”, e
eleva as perturbações mentais ao estatuto de objeto passível de ser estudado e tratado pela
medicina, dando origem à medicina mental. Ao propor e possibilitar um tratamento para a
loucura, ele atende pelo menos a um dos pré-requisitos da medicina: a sua pretensão da
“cura”.
Pinel foi um dos principais defensores de tratamento adequado para as doenças
mentais. Diferentemente dos médicos do século XVIII – que, além de imporem bizarras
formas de “domesticação” aos doentes mentais, não acreditavam em sua cura –, os estudiosos
influenciados por Pinel no século XIX acreditavam que os loucos deveriam receber um
tratamento moral: “Pinel levanta a possibilidade de cura da loucura, por meio do tratamento
moral, ao entender que a alienação é produto de um distúrbio da paixão, no interior da própria
razão, e não a sua alteridade” (AMARANTE, 1996, p.42). No entanto, o louco, e também o
melancólico, eram privados do convívio com sua família, recebendo um lugar para se tratar e
não interromper – atrapalhar e incomodar, melhor dizendo – o bom andamento da interação
social (SOLOMON, 2002, p.296). Isso não era entendido como perda de liberdade, mas antes
o contrário, uma vez que o tratamento poderia restituir ao homem a tal liberdade subtraída
pela alienação. Seguindo a tradição da história natural e da filosofia do conhecimento de
Locke, Pinel insiste que a loucura deveria ser rigorosamente observada, descrita e
classificada: eis o nascimento da nosografia. Ele foi, pois, o responsável pelo nascimento e
pela consolidação da medicina mental, estabelecendo para a loucura um estatuto patológico:
“Com ele, a loucura passa a receber definitivamente o estatuto teórico de alienação mental, o
que impedirá profundas alterações no modo como a sociedade passará a pensar e a lidar com a
loucura daí por diante” (AMARANTE, 1996, p.42).
Assim, Pinel inicia, no século XIX, a era das classificações e dos cuidados asilares.
Havia um interesse em definir o que realmente era a melancolia, e os estados que antigamente
eram vagamente classificados com esse termo receberam uma infinita série de classificações
em categorias e subcategorias (SOLOMON, 2002, p.296). A melancolia torna-se alvo de
estudo dos alienistas e é apropriada pela ciência médica. Para Pinel, a melancolia fazia parte
dos quadros patológicos, sendo descrita como uma doença cujas vítimas tinham fixação em
73
Para o médico francês, o termo “melancolia” era uma palavra desgastada, de noção
muito literária e um tanto vaga: “A palavra melancolia, consagrada na linguagem vulgar para
exprimir o estado habitual de tristeza de alguns indivíduos, deve ser deixada aos moralistas e
aos poetas que, nas suas expressões, não são obrigados a tanta severidade quanto os médicos”
(ESQUIROL apud PIGEAUD, 1998, p.62). Ele cunhou, na França, os termos “lipomania”
(lypémanie - transtornos de humor) e “monomania triste” (mono-manie - transtornos de juízo),
para renomear, dividir e se opor à tão velha e já desgastada melancolia.
29
A quem Freud deve um grande número de suas ideias, Cf. Parmentier, 2001.
75
É sob esse pano de fundo que, no meio do século XIX, surge uma abordagem
organicista, cujo principal representante é o médico alemão Wilhelm Griesinger (1817-1868).
Seu famoso livro Tratado sobre patologia e terapêutica das doenças mentais, publicado em
1845, tornou-se amplamente difundido, obtendo reconhecimento internacional e constituiu-se
como uma referência fundamental no meio psiquiátrico. A obra, dividida em termos
nitidamente médicos, vai inaugurar o modo de abordar e classificar as doenças mentais que
será adotado por um grande número de tratadistas posteriores. Essa divisão consistia em
considerações gerais, semiologia, etio-patogenia, formas clínicas, anatomia patológica,
prognóstico e tratamento. Segundo Pereira (2007, p.687) “mesmo Freud foi um leitor atento
do Tratado de Griesinger” e “seu exemplar dessa obra estava inteiramente anotado a lápis,
sobretudo nas passagens relativas à teoria do Eu e de suas transformações no delírio”.
Griesinger postulava que as doenças mentais eram a consequência de doenças do cérebro, um
órgão que seria acometido de loucura, explicáveis por ações reflexas, e que uma falha nessa
estrutura deveria ser encontrada para ser tratada e curada. Diante disso, as manifestações
sintomáticas são entendidas como reações e tentativas de restabelecimento do órgão cerebral,
cujo funcionamento estaria morbidamente perturbado nas doenças mentais: “o cérebro
funcionaria segundo um sistema mais complexo de arco reflexo, tal como observado em
níveis neurológicos inferiores” (PEREIRA, 2007, p.688).
Griesinger apresentou, também, pela primeira vez, a ideia de que algumas doenças
mentais são apenas tratáveis, enquanto outras são curáveis. Assim, nas mãos de Griesinger, a
melancolia veio a ser completamente medicalizada e biologizada (SOLOMON, 2002, p.297).
76
Griesinger teve, ainda, um grande papel na psiquiatria por propor a teoria de uma psicose
única, na qual a melancolia seria apenas o estágio inicial de uma única doença que progrediria
até outros estágios mais severos, podendo chegar até a insanidade total (CORDÁS, 2002,
p.78). Para Griesinger e seus alunos, o grupo dos delírios é estudado no capítulo das
paranoias, com alucinação ou não. Eles distinguem, também, uma paranoia secundária da
mania, da melancolia ou das emoções; e ainda, de uma paranoia originária decorrente de uma
degenerescência (PARMENTIER, 2001).
George H. Savage (1842-1921), em seu Insanity and allied Neuroses, de 1889,
afirmou que a melancolia é um estado de depressão mental cuja dor mental depende de
mudanças físicas e corporais, e não diretamente do meio ambiente (SOLOMON, 2002,
p.300).
Nesse período, a melancolia foi aproximada da mania sob o nome de “loucura
circular” por Jean-Pierre Falret (1794-1870). Na Alemanha, Emil Kraepelin (1856-1926),
considerado o pai da psicobiologia, integrou a melancolia à insanidade maníaco-depressiva,
dentro da seção das psicoses, fundindo-a mais tarde à psicose maníaco-depressiva. O famoso
psiquiatra acreditava que toda doença tinha uma base bioquímica. Sua nosologia pretendia
separar as doenças mentais adquiridas das hereditárias. Kraepelin continuou a usar o termo
“melancolia” e seus subtipos, utilizando o termo “depressão” para descrever afetos
(KRAEPELIN, 2001 [1905]).
No entanto, contrariando uma corrente que ia se estabelecendo na psiquiatria, Henry
Maudsley (1835-1918), respeitado médico, foi o primeiro a descrever a melancolia como uma
doença que se reconhece, mas que não se consegue explicar. Segundo ele, não existe um
verdadeiro desarranjo na mente presente na melancolia, há apenas uma profunda dor da
mente, paralisando suas funções (SOLOMON, 2002, p.299).
Com o desenvolvimento científico, no século XIX, começou-se uma preferência pelo
termo “depressão” em detrimento do termo “melancolia”. O primeiro entrou em uso na
psiquiatria européia por volta do séc. XVIII, vindo do francês a partir do latim, de-premere,
que significa pressionar para baixo. No início, seu uso foi introduzido em associação ao termo
“melancolia” e a sua substituição pelo termo “depressão” se deve a uma tendência surgida na
psiquiatria no final do século XIX, consolidada no século XX (DELOUYA, 2002). Moreira
(2002) revela que os desenvolvimentos psiquiátricos e seus movimentos de substituição do
termo “melancolia” criaram o que ela chama de invisibilidade da melancolia. Foi Adolf
Meyer (1866-1950) que favoreceu a substituição de “melancolia” por “depressão”, já que o
primeiro remetia a um estado do romantismo muito presente na literatura e inadequado à
77
ciência psiquiátrica, que estava em pleno desenvolvimento, o que, como vimos, já havia sido
observado por Esquirol algumas décadas antes (DELOUYA, 2001; FARINHA, 2005;
MOREIRA, 2002; PERES, 1996, 1999, 2003).
A esse respeito, é importante frisar que, no século XIX, “depressão” e “melancolia”
eram termos indistintos na psiquiatria alemã, embora houvesse a tendência de abandonar o
segundo deles. No entanto, só em meados do século XX, com a elaboração da CID 6, é que
firmou-se “oficialmente” uma definição. Nessa edição da CID, apenas três tipos de depressão
eram reconhecidos: a reação maníaco-depressiva, a melancolia involutiva e a depressão
neurótica. Ao chegar à sua décima edição, a CID 10 contava com mais de vinte e cinco tipos e
subtipos depressivos catalogados. A psiquiatria passa a se consolidar definitivamente no
século XX, representada por Pierre Janet, que enfatiza a dimensão orgânica e alimenta a visão
biológica da doença mental. Devido ao apelo poético e banal do termo melancolia, no século
XIX, os psiquiatras optaram progressivamente pela primazia do termo depressão e, na
segunda metade do século XX, a melancolia desaparece definitivamente da nosografia
psiquiátrica. A psiquiatria, baseada na descrição objetiva e acurada dos sintomas e na
definição de síndromes, passou a catalogar as diversas formas de manifestações depressivas
diferenciando-as rigorosamente. O que no passado era chamado “melancolia” foi subdividido
em diversos subtipos – distúrbio bipolar, depressão maior, ciclotima, distimia, entre outros –
dentro de uma classe denominada Transtornos de Humor (DSM-IV) ou Transtornos Afetivos
(CID-10). Conjuntamente com a nosografia, os avanços das neurociências permitiram, enfim,
reduzir a depressão a sintomas causados por disfunções químicas nas fendas sinápticas das
células neuronais. Com isso, o campo do psíquico cede o terreno para o campo do biológico,
no qual o comportamento humano passa a ser explicado por interações químicas no cérebro.
As incansáveis sistematizações e enumerações descritivas das formas de sofrimento psíquico
realizadas pela psiquiatria tornaram-se cada vez mais necessárias para orientar a terapêutica
farmacológica, sua principal forma de tratamento.
diagnósticos que correspondam entre si, passíveis de serem agrupados e comparados para fins
estatísticos, epidemiológicos, científicos, etc.
Há muito tempo o diagnóstico e a definição dos estados depressivos são cercados de
dificuldades, debates e desacordos, e isso permanece até a atualidade, tanto para os clínicos –
psiquiatras, psicoterapeutas, psicanalistas – como para os pesquisadores que procuram a
forma mais adequada de sua classificação nosográfica. Atualmente, os estudos
epidemiológicos costumam se basear em uma referência diagnóstica única e hegemônica, o
DSM (Manual de Diagnósticos e Estatísticas de Distúrbios Mentais da Associação Americana
de Psiquiatria), para avaliar o prejuízo da depressão no funcionamento do indivíduo, assim
como fundamentar as decisões políticas em saúde mental, ou seja, o acesso ao atendimento
médico e à frequência de utilização dos serviços de saúde (BRANCO & cols., 2009).
A psiquiatria atual é a referência hegemônica no tocante ao campo dos estados
depressivos – e das desordens mentais em geral –, e também se baseia nos critérios definidos
e acordados pelo DSM para realizar pesquisas, diagnósticos e tratamentos. O DSM, que se
encontra em sua quarta edição revisada, já estando a sua quinta em preparo, serve ainda como
suporte para as pesquisas em áreas da saúde e afins, para as pesquisas sobre os resultados de
tratamentos, para a comercialização de antidepressivos, para os programas de prevenção e
conscientização, para as decisões judiciais, entre outros. Diante do fato de que a psiquiatria
ocupa o lugar de referência científica, política e social na atualidade, é quase impossível
realizar uma pesquisa no campo dos estados depressivos sem recorrer ou se referir às suas
definições em algum momento. Quase todos os profissionais da saúde mental recorrem ao
DSM e às suas definições para estabelecer um diagnóstico formal. Em suma, as definições do
DSM30 se tornaram, em nossa sociedade, o critério para decidir o que deve ou não ser
considerado como um transtorno mental (WAKEFIELD & HORWITZ, 2007).
Até meados dos anos 1970, a psiquiatria baseava-se em um modelo binário de
classificação dos transtornos depressivos, que enfatizava uma dicotomia entre endógeno-
30
Destacamos ainda outro manual de referência muito adotado, que é o CID-10 (Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, frequentemente designada pela sigla CID; em
inglês: International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems). Nele, os estados
depressivos estão definidos dentro de uma grande classe denominada Transtornos do humor ou afetivos, e
incluem as seguintes subclasses: episódio maníaco, hipomania, transtorno afetivo bipolar, episódios depressivos,
transtorno depressivo recorrente, transtornos de humor [afetivos] persistentes, ciclotimia, distimia, outros
transtornos do humor [afetivos] e transtorno do humor [afetivo] não especificado. Em nosso trabalho, optamos
por abordar, a título de ilustração, somente o DSM-IV. A escolha se justifica pelo número superior de pesquisas
que o adotam como referência.
79
ser corrigida pela ação dos psicofármacos. No entanto, não se conhece de fato a causa dessa
disfunção que estaria na base da depressão.
Na perspectiva do DSM-IV e do CID-10, os estados depressivos, com seus inúmeros
subtipos, situam-se sob as modernas classes de transtornos de humor. A depressão pode
manifestar-se como um transtorno mais grave – a “depressão maior” – ou mais brando – a
“distimia”. Os transtornos bipolares – a antiga psicose maníaco-depressiva – são incluídos nos
capítulos sobre os transtornos de humor e afetivos, e se referem à “depressão-mania”, e não
mais à “melancolia-mania”, como se fazia no passado. A desordem bipolar pode apresentar-se
de maneira mais suave, recebendo o nome de “ciclotimia”. O termo “melancolia”, por sua
vez, aparece como uma subclasse da depressão, sendo utilizado para designar características
que abarcam os sintomas vegetativos – alterações do sono e do apetite – e as alterações
psicomotoras e de ritmos cardíacos. O que atualmente é designado por melancolia, dentro
desse quadro de referência, é o que outrora se designou por características endógenas (DEL
PORTO, 2000).
Consideremos por um instante, a título de ilustração, a definição proposta pelo DSM
para o diagnóstico do Transtorno Depressivo Maior, o mais comumente utilizado. Segundo
esse Manual, que orienta os diagnósticos nos consultórios, na saúde pública ou privada, quem
apresentar cinco entre os nove sintomas descritos abaixo por mais de duas semanas está
sofrendo de uma Desordem ou Transtorno Depressivo Maior (lembrando que entre os cinco
sintomas devem obrigatoriamente constar o humor depressivo ou a diminuição acentuada de
interesse e prazer):
1. Humor depressivo durante a maior parte do dia, praticamente todos os dias,
segundo informação subjetiva do paciente ou observação de outros;
2. A diminuição do interesse ou do prazer nas atividades durante a maior parte do
dia, praticamente todos os dias;
3. A perda ou ganho de peso ou modificações de apetite, sem dieta (mudança de mais
de 5% do peso corporal em um mês);
4. Insônia ou sono excessivo praticamente todos os dias;
5. Agitação ou lentidão psicomotora praticamente todos os dias, observáveis pelos
outros;
6. Cansaço ou perda de energia praticamente todos os dias;
7. Sentimentos excessivos ou inapropriados de desvalorização ou culpabilidade
praticamente todos os dias;
81
poder-se-ia questionar se o problema atual com a depressão não seria o aumento de sua
incidência, mas a intolerância ou a patologização da tristeza, de um modo mais geral. Ou seja,
o que nossa cultura antes considerava como reações esperadas diante de um fracasso, perda ou
frustração, está sendo visto como doença psiquiátrica.
Os panfletos sobre depressão distribuídos pelos laboratórios fabricantes de
medicamentos antidepressivos enfatizam os novos critérios diagnósticos das depressões, entre
os quais se incluem as manifestações de tristeza, luto, irritabilidade e outras expressões de
conflito subjetivo entre os transtornos indicativos de depressão, que podem ser tratados por
meio de medicamentos. Nota-se que a indústria farmacêutica tem, atualmente, um importante
papel no aumento dos diagnósticos de transtornos depressivos, por basear suas estratégias de
sucesso na promoção de uma versão patológica e medicalizável de todas as formas de
inquietação, oscilação de ânimo e inadaptação à norma que caracterizam a vida e a vitalidade
psíquica (KHEL, 2009). Assim, entre as causas da epidemia atual, pode ser atribuída a
modificação da definição psiquiátrica vigente dos transtornos depressivos, que considera a
tristeza profunda uma desordem, mesmo quando ela não o é realmente (WAKEFIELD &
HORWITZ, 2007).
Segundo uma matéria publicada pelo jornal francês Le Point, a próxima edição do
DSM, a sair em 2013, considerará que o estado de pesar após um luto pode ser uma forma de
depressão. Em outras palavras, o DSM-V definirá que o sentimento de tristeza, perda, falta de
sono, choro, incapacidade de se concentrar, fadiga e falta de apetite, frequentemente
observadas em circunstâncias de luto, merecem um tratamento medicamentoso31. Os
psiquiatras teriam constatado que, nos dias atuais, devido ao crescente individualismo e
solidão que fazem parte da vida de um grande número de pessoas, a vivência de um luto
poderia se beneficiar da ajuda de um medicamento antidepressor. Diante da justificativa de
que pode ser proposta uma ajuda medicamentosa, breve e pontual, para se suportar as
dificuldades da solitária travessia de um luto, a jornalista que assina a matéria se pergunta se
chegamos ao ponto em que seria preciso prescrever medicamentos para compensar os efeitos
do individualismo característico de nossa sociedade. Segundo a matéria, várias pesquisas
alertam para o fato de que medicalizar o pesar de maneira a legitimar a administração regular
de um tratamento antidepressivo, é perigosamente simplista e falso. Nesse sentido, não
existiria nenhuma evidência de efeitos benéficos dos tratamentos antidepressivos em
31
FONTE: ANNE JEANBLANC. "Le deuil n'est pas une maladie!" in Le Point 22-02-2012:
http://www.lepoint.fr/chroniqueurs-du-point/anne-jeanblanc/le-deuil-n-est-pas-une-maladie-22-02-2012-
1434096_57.php - acessado em 13/03/2012.
83
[...] um interesse social em dizer que a depressão é causada por processos químicos
internos que estão de algum modo além do controle do afligido. [...] É nesse
contexto que os remédios antidepressivos se tornaram tão populares. Se sua função é
interna e relativamente incompreensível, devem afetar algum mecanismo impossível
de controlar através da mente consciente. É como ter um motorista; você
simplesmente se senta relaxado no banco de trás e deixa alguém enfrentar os
desafios dos sinais do trânsito, policiais, mau tempo, regras e desvios por você.
Solomon acredita que a publicação dessa teoria marca definitivamente a divisão entre
a psicanálise e a psiquiatria, assim como a teoria sobre as drogas antidepressivas baseada nos
receptores que propõe que, se houver falha nos neuroreceptores, o cérebro age como se
tivesse uma carência de neurotransmissores, independente da quantidade real deles.
Após os anos 1970, muitos pesquisadores se empenharam em redefinir a depressão
como um problema no sistema da serotonina e, na segunda metade dos anos oitenta, lançou-se
a primeira droga ligada à serotonina – a citalopram (Celexa). Em 1987, outra droga foi
lançada, a fluoxetina, sob o nome de “Prozac”, o mais famoso antidepressivo. Seguiu-se o
lançamento de uma série de drogas, todas bloqueadoras de receptação da serotonina. Contudo,
Solomon insiste em mostrar que as diversas teorias sobre a ação das drogas antidepressivas
são tão passíveis de falhas e dúvidas quanto as teorias psicológicas da psicanálise. As
explicações neuroquímicas são baseadas em hipótese, diz o autor, aprovadas e desaprovadas
ao longo do tempo. Há debates e discordâncias que põem em dúvida o estatuto de
universalidade e exatidão que muitos psiquiatras tentam conferir à origem biológica da
depressão (SOLOMON, 2002).
Birman (2001; 2006) também questiona o advento dos neurotransmissores e da
psicofarmacologia e revela que, com o fundamento aparentemente incontestável fornecido
pelas neurociências a partir dos anos 50, a psiquiatria encontra finalmente a cientificidade tão
aspirada no final do século XVIII. Nessa época, o discurso psiquiátrico não encontrava
legitimidade nas bases epistemológicas das ciências médicas e permanecia na posição
incômoda de pretensa especialidade médica. A psiquiatria se estabeleceu originalmente
86
afastada das bases do saber médico, como uma “falsa medicina”, uma “pseudomedicina” que
não conseguia fundamentar seu discurso dentro das molduras da ciência. Seus fundamentos
estavam nas causas e tratamentos morais, que mais se aproximavam da filosofia, como pode
ser visto, por exemplo, no tratamento moral proposto por Pinel. Com o avanço das
neurociências e da psicofarmacologia, a psiquiatria pôde finalmente se transformar em uma
ciência médica, aproximando-se da medicina somática. Pretendendo construir uma leitura do
psiquismo de base inteiramente biológica, as neurociências forneceram ao campo psiquiátrico
instrumentos teóricos e técnicos que passaram a orientar sua prática. Segundo Birman, as
neurociências pretendem construir uma teoria do psiquismo de base inteiramente biológica e,
com isso, reduzir o funcionamento psíquico ao funcionamento cerebral, expresso em uma
linguagem bioquímica. Com isso, “a economia bioquímica dos neurotransmissores poderia
explicar as particularidades do psiquismo e da subjetividade”, uma transformação
epistemológica que produziu mudanças imediatas na terapêutica psiquiátrica (BIRMAN,
2001, p.182). A medicação psicofarmacológica passou a ser a principal modalidade de
intervenção da psiquiatria, transformando-se em seu referencial fundamental. Diante disso, o
autor mostra que a psicoterapia tende a ser eliminada do dispositivo psiquiátrico,
transformando-se um uma modalidade de intervenção secundária, somente considerada frente
à poderosa intervenção medicamentosa.
Birman (2001) aponta alguns desdobramentos diretos desse fato. Um deles, e talvez o
mais direto, é que a psiquiatria, seduzida pela pretensão de se alçar ao status de ciência
médica respeitável, não deseja ter mais nenhuma proximidade com a psicanálise. O próprio
paradigma psicanalítico passa a ser questionado em sua cientificidade. O não afastar-se da
psicanálise implica o risco de afetar a identidade médico-científica da psiquiatria, o que soa
irônico. De maneira geral, a psicopatologia contemporânea é caracterizada pelo paradigma
biológico, sustentada pelo referencial teórico das neurociências. Nesse contexto, a
psicoterapia torna-se secundária, já que a intervenção terapêutica centra-se na ação dos
psicofármacos. A psicanálise, nesse panorama, passa a ocupar um lugar periférico no discurso
psicopatológico atual, já que as intervenções assumiriam uma incidência pontual nos
disfuncionamentos neuroquímicos, diante do que o registro das histórias dos sujeitos é
desconsiderado em prol dos possíveis antecedentes genéticos das doenças psiquiátricas.
Outro desdobramento, segundo Birman (2001), é que os psicofármacos, ao se
tornarem os mais poderosos reguladores do sofrimento psíquico na atualidade, levam o
mundo ocidental a se relacionar com a dor de uma maneira muito específica. A utilização
indiscriminada de drogas eficazes contra a angústia e a depressão indicam uma mudança
87
Após abordar a história dos estados depressivos e ressaltar o modo como seus
inúmeros significados foram reduzidos a uma disfunção neuroquímica, neste tópico
apresentaremos o problema da depressão na atualidade a partir do viés psicanalítico. A leitura
de Luto e melancolia (FREUD, 1917[1915]) permite conceber os estados depressivos como
reações psíquicas diante de situações de perdas que exigem do psiquismo um “trabalho”.
Desse ponto de vista, as experiências de perdas são consideradas um acontecimento
traumático, pois metapsicologicamente entende-se que elas geram um excesso instintual no
interior do aparelho psíquico, que o ego não pode “ligar” prontamente. A atividade a ser
desempenhada pelo aparelho psíquico é elaborar as quantidades desse excesso geradas em seu
interior. Esses processos serão abordados mais detalhadamente no capítulo 4; neste momento,
introduziremos noções gerais que servem de base para compreender, segundo a psicanálise, o
problema dos estados depressivos na atualidade. Desse modo, podemos compreender esses
processos se desenrolando em três momentos.
O primeiro seria o violento impacto psíquico causado pela perda de um objeto de
grande importância para o sujeito – um objeto idealizado narcisicamente. Essa perda,
necessariamente, provoca dor e sofrimento psíquico – mesmo quando é esperada – devido à
quantidade de afeto que é tornada livre, sem possibilidade de satisfação. A perda de objeto, no
88
entanto, precisa ser compreendida em um sentido mais amplo que, por exemplo, a morte de
uma pessoa: em termos metapsicológicos, trata-se da perda de qualquer objeto de satisfação,
seja uma pessoa, um ideal ou um trabalho, o que impossibilita a descarga de certas
quantidades instintuais. A natureza narcísica da ligação com esse objeto justifica sua
importância para a economia psíquica. O segundo momento seria aquele em que, no campo
do imaginário, o sujeito se confronta com o acontecimento de perda. Nesse momento, o
sujeito pode tanto aceitar quanto recusar a perda, porém nunca deixar de sofrê-la. A culpa
seria sua marca principal, já que uma reação habitual é a avaliação de sua responsabilidade
diante de tal perda. Torna-se determinante o grau de desenvolvimento do aparelho psíquico e
o vínculo narcísico na relação com o objeto, para que possa ser efetuada a tarefa de ligação do
afeto que permanece sem satisfação. Seja em um luto, seja em uma melancolia, o processo
pode ser igualmente doloroso, uma vez que a tarefa de ligar as excitações sempre resulta em
dor psíquica. A inibição e o recolhimento, típico dos estados depressivos, indicam a retirada
do interesse do mundo, necessária para a realização de uma atividade psíquica que consome o
sujeito. O terceiro momento seria a resolução do impasse psíquico causado pela perda, cuja
tarefa de ligação resulta na simbolização dessa vivência. Nesse entremeio temos duas saídas.
A esperada é a elaboração da perda através de sua simbolização. A penosa tarefa de elaborar o
excesso de quantidades gerado pela impossibilidade de satisfação causada pela perda do
objeto resultaria em ganhos por meio do desenvolvimento de recursos psíquicos. Ao
simbolizar a perda – ligar as representações do objeto perdido e suprimir o seu estatuto
psíquico de objeto de satisfação –, o indivíduo passa por uma transformação interna ao final
da qual está novamente disponível para as atividades habituais da vida. Outra saída possível
para o terceiro momento é a melancolia ou o luto patológico, significando uma dificuldade de
elaborar a perda – uma estagnação no segundo momento. Aqui, a tarefa de ligação não pode
ser efetuada, de forma que a quantidade segue casando dor e imobilização psíquica: “com a
melancolia e o luto patológico, o sujeito se empobrece simbolicamente, pois não pode
transformar a perda real em invenção simbólica” (BIRMAN, 2006, p.402).
A intervenção medicamentosa, nesse caso, pode significar um atalho a fim de se evitar
esse processo doloroso, mas, ao erradicar o sofrimento depressivo, pode impossibilitar ao
sujeito o encontro do caminho da simbolização. Com isso, ele permanece em uma posição
empobrecida, dependente do que Birman chamou de pilularia proteica (2006). Entrando em
cena como um paradigma quase que oposto a essa tendência vigente, a psicanálise se
interroga sobre os seus sentidos da depressão para a organização psíquica do sujeito,
auxiliando na tarefa de elaborar o luto patológico ou a estagnação da melancolia por meio da
89
simbolização. Por conceber a depressão como uma expressão afetiva inerente à existência
humana, isto é, uma expressão da atividade psíquica de elaboração da perda, o objetivo da
psicanálise não consiste em evitá-la, muito menos em tomar atalhos para sua travessia. A
psicanálise, ao contrário da psiquiatria, entende que a experiência depressiva, embora
dolorosa, é fundamental para o enriquecimento simbólico do sujeito. Os estados depressivos
representam o espaço de realização da tarefa psíquica de elaboração diante do desequilíbrio
gerado pelas experiências de perdas. Com isso, a psicanálise nos mostra, ao contrário do que
se pensa normalmente, que o desenvolvimento psíquico, desde o início de sua formação, se dá
através da elaboração das perdas. A perda impõe ao psiquismo um trabalho, um processo de
ressignificação da experiência vivida.
Finalmente, é possível esclarecer algo sobre a história da melancolia: se a melancolia
esteve presente em todos os momentos da humanidade, representando insistentemente, através
das vivências de “perda”, os limites do ser humano frente ao desejo de controlar o curso das
eventualidades inerentes à existência, ela também pode ser encontrada na vida de cada
indivíduo frente às mesmas condições de se perceber limitado e desamparado. Scliar (2003)
relaciona o renascimento melancólico do homem após a Idade Média à devastação provocada
pela peste negra, trazendo à Europa do século XIV uma incessante preocupação com a morte.
A melancolia foi abordada incansavelmente pela arte renascentista – vide Anatomia da
melancolia, de Robert Burton, publicação da época –, e podemos especular que isso de deve à
situação de perda traumática imposta à civilização europeia, tanto pelas perdas materiais
ocasionadas pela peste negra, quanto pela perda dos ideais absolutos da religião. O progresso
do conhecimento científico, intelectual e das artes, as dissecações dos anatomopatologistas e
seu conhecimento sobre o corpo, as grandes explorações rumo ao novo mundo, ao lado das
guerras e das pestes, demonstram que essa era uma época de grandes mudanças, um período
de perdas. Época de desamparo diante do novo e de impotência diante das tragédias. A
melancolia foi o clima emocional que dominou parte do Renascimento, de forma análoga às
muitas fases do desenvolvimento do indivíduo, que são permeadas por transformações e
perdas, por lutos e, muitas vezes, por estados depressivos.
Frente a isso, os estados depressivos não são simplesmente um desvio ou uma doença
a ser erradicada da humanidade através de poderosas pílulas, como se faria com um vírus
nocivo. Seriam, ao contrário, uma condição de recolhimento do psiquismo em que se elabora
a dor psíquica causada pela perda, com maior ou menor dificuldade e inibição – o que permite
concluir que os estados depressivos existem potencialmente em todo ser humano. O luto é o
paradigma da depressão e a condição arraigada a toda vida humana diante dos limites
90
impostos pela mortalidade. Pois é no luto que todo ser humano vivencia perdas, separações e
frustrações. Assim, encontramos fundamentos para relacionar a visão psicanalítica da
depressão no indivíduo com registros sobre a melancolia ao longo da história da humanidade.
Para muitos autores da psicanálise, as questões em torno dos estados depressivos não
devem ser consideradas de forma isolada, mas em conjunto com a configuração da sociedade
atual. Como mostramos, a depressão se encontra definida, ao lado do pânico e das
toxicomanias, como uma das formas de mal-estar predominantes na contemporaneidade.
Vejamos, a título de ilustração, alguns psicanalistas que apontam para essa relação.
sentido, Mendlowicz (2006, p.56) salienta a relação entre o desamparo e o tempo histórico
atual:
Nesta acepção, as “pequenas” tragédias podem ter um valor traumático, pois o que
interessa é a invasão do sentimento de desamparo, a ruptura da continuidade
significativa do eu sem que, necessariamente, a causa traumática em si seja algo de
dimensão maciça e avassaladora, como no caso das guerras.
32
Para um aprofundamento destas questões, ver Arquivos do mal-estar e da resistência, Birman, 2006.
93
criativo nas mutações e mudanças aceleradas que vivemos” (FÉDIDA, 2002, p.182). Dessa
maneira, por afetar o desempenho, a disposição à interação social, a flexibilidade e a
produtividade, a depressão torna-se o negativo dos valores sociais da atualidade. Vale
relembrar que a perda muitas vezes necessita ser elaborada por meio de recolhimento, em que
o sujeito possa conectar-se com o corte que a provocara, isto é, com a ferida traumática
causada pela dor da perda. É a elaboração que permite simbolizar e, assim, transformar
sofrimento em criatividade, esperança e liberdade. No entanto, o que se impõe em primeiro
plano não é o reconhecimento da função dos estados depressivos, mas um neopragmatismo do
tratamento psíquico, que atribui aos psicofármacos competências para produzir representações
de si renovadas e protegidas do sentimento de qualquer alteração. Assim, se estamos
deprimidos, não é preciso buscar os sentidos dos acontecimentos traumáticos e, muito menos,
as suas causas na história singular de cada um, ou seja, em suas experiências particulares de
perda, abandono, separação etc. E mesmo quando essa busca é efetuada por meio de um
processo psicoterapêutico, ela não resulta na erradicação das alterações das paixões. Ela não
possibilita nada além do que favorecer o trabalho psíquico na retomada de seu curso, e mostra
que a superação da perda por meio da elaboração só pode ser realizada acompanhada de dor
psíquica e tristeza. Pois, na realidade, “a adaptação performante pressupõe que o estado
deprimido seja tratado ali onde é incapacitante, ou seja, ao nível de seus sintomas
comportamentais”; ou seja, a cura desejada na atualidade não é a assimilação dos estados
depressivos, mas a eliminação de seus sintomas indesejados como vimos, por exemplo, na
sugestão de medicalização do luto prevista no DSM-V: o ideal almejado é não ser obrigado a
vivenciar períodos de tristeza, dor, inibição, restrição da energia vital, pesar etc., mesmo que
estes sejam considerados necessários e normais. Ora, se o próprio trabalho psíquico é
acompanhado de dor e tristeza, isso não pode ser evitado por uma psicoterapia, que tem como
finalidade mesma, possibilitar a realização desse trabalho. Portanto, a cura psicoterápica, ao
contrário da psicofarmacológica, não é feita sem dor e sofrimento.
Diante da cultura do evitamento da dor, do imperativo do gozo e do culto à
performance, a psicoterapia, com suas premissas teóricas particulares a respeito do
funcionamento psíquico e suas técnicas limitadas, a relação transferencial, permanece
impossibilitada de contribuir para a realização destes ideais (FÉDIDA, 2002, p.182). No
entanto, é preciso advertir que a questão em torno dos estados depressivos não é somente a de
uma doença amplificada pelas transformações e ideais da cultura atual. Conforme afirma
Fédida (2002, p.177), “a depressão é sem dúvida a afecção por excelência do humano”, assim
como “a depressividade pertence à vida psíquica” o que significa que ela está incrustada em
96
nossa própria natureza, participando do aparecimento da qualidade que nos distingue dos
outros animais: a vida psíquica. Assim, o fenômeno depressivo é um indicativo de uma
angústia de perda, mas, ao mesmo tempo, sua queixa e seus sintomas protegem o sujeito
contra qualquer atenção mais vigilante que poderia suscitar a emergência intensa do psíquico
sob a forma de uma catástrofe alucinatória – esta última entendida como um acréscimo de
excitações internas a tal ponto que o aparelho psíquico não seria capaz de suportar (FÉDIDA,
2002).
Uma constatação intrigante surge de um fenômeno clínico notável, presente entre
alguns pacientes diagnosticados com depressão e que fazem uso de medicação antidepressiva.
Embora a importância da utilização dos antidepressivos no tratamento da depressão seja
inegável, em muitos casos não são suficientes, e a medicação sem o acompanhamento
psicoterapêutico pode não ter os efeitos esperados ou, ainda, não trazer benefícios. O que se
observa como fato clínico é que muitos pacientes tratados com antidepressivos apresentam
melhoras nos sintomas da depressão, mas permanecem com sintomas melancólicos: a
medicação elimina o sintoma de inibição motora e psíquica, mas não age nos conflitos que
subjazem esses estados33 (BERLINK e FÉDIDA, 2002, p.73-91). Ou seja, o paciente volta à
atividade, recupera sua energia vital, mas permanece com profundos conflitos emocionais,
vivencia um grande sofrimento, expresso por autoacusações e rebaixamento de autoestima.
Embora o medicamento proporcione a volta à atividade do paciente depressivo, pode não agir
nos conflitos ligados à causa depressiva, conflitos psíquicos ligados geralmente à culpa e à
desvalorização de si mesmo. Essa constatação permite compreender por qual motivo muitos
pacientes, ao serem medicados com antidepressivos, ao se sentirem mais dispostos, cometem
suicídio. A explicação para esse fenômeno seria que o paciente, ao deparar-se com conflitos
psíquicos insuportáveis, utiliza a sua energia vital recuperada pelo uso dos antidepressivos,
para realizar o ato suicida. Ato que era incapaz de realizar anteriormente, pois não dispunha
de energia para levá-lo a cabo. O fenômeno do suicídio, mediante a ação de medicamentos
antidepressivos, indica que, sem dúvida alguma, existe uma relação mais profunda entre os
estados depressivos e o funcionamento psíquico – um papel de autoconservação, para o qual
Fédida (1999; 2002) procura insistentemente chamar a atenção em seus trabalhos sobre os
estados depressivos. Dessa forma, eliminando-se apenas os sintomas depressivos, sem tratar
suas causa psíquicas, muitas vezes, elimina-se também a sua função de defesa psíquica.
33
Estes autores distinguem depressão e melancolia. Os sintomas depressivos estão ligados à inibição e
lentificação motora e psíquica e ao sentimento de vazio, enquanto a melancolia está mais ligada aos conflitos que
se expressam sob forma de autoacusações e desvalorização de si.
97
Assim, em função de seus efeitos não serem absolutos, o tratamento farmacológico quase
sempre precisa ser associado a inúmeros outros tratamentos, entre os quais destacamos a
psicoterapia.
***
Diante do exposto, constatamos mais uma vez a existência de uma oposição entre o
discurso psiquiátrico e o psicanalítico, o que pode ser estendido para uma oposição entre este
último e os ideais de nossa cultura atual. Segundo procuramos mostrar, o aumento exacerbado
de diagnósticos de depressão leva os estudiosos a tomar como epidêmica sua condição no
mundo atual. Diante do avanço vertiginoso da compreensão das bases químicas e do
tratamento medicamentoso dos estados depressivos e de tristeza profunda e luto, a psiquiatria,
como modo hegemônico de tratamento na atualidade, elege a medicação como o meio
privilegiado. No geral, para a corrente psiquiátrica, uma psicopatologia não tem outro
significado do que uma desregulação na ação dos neurotransmissores a ser corrigida pela ação
de medicamentos. No entanto, vimos que, no âmbito social, constata-se que os ideais e os
modos de vida atual contribuem para o aumento dos estados depressivos. Elementos como o
culto à performance, a cultura do evitamento da dor, o imperativo do gozo, o empobrecimento
e a superficialidade das relações afetivas, entre outros fatores, estariam associados a uma
predisposição aos estados depressivos. Constata-se, assim, a vigência de ideais que
consideram os estados depressivos, bem como os sentimentos dolorosos em geral, como
indesejáveis e que, com a ajuda da medicação psicofarmacológica, tendem a ser evitados e
não vivenciados. Os estados de tristeza passam a ser compreendidos como anormais ou, ao
menos, como um mal a ser evitado. Dessa maneira, torna-se cada vez menos natural o contato
de nossa sociedade com as paixões tristes. Associado a isso, teríamos uma crescente
fragilização dos indivíduos, que os tornam cada vez mais intolerantes a esses estados.
Os estudos psicanalíticos insistem sobre o papel das paixões tristes na organização
psíquica, afirmando que a tristeza e a depressão, embora sejam estados dolorosos e muitas
vezes perigosos (uma depressão grave pode levar ao suicídio), precisam ser vivenciados e que
a única saída é a elaboração psíquica. A vivência desses estados significa a possibilidade de
realização de um trabalho psíquico necessário para a ampliação da vida psíquica, cujo
resultado é a aquisição de recursos e o aumento da capacidade de simbolização. Trata-se,
aqui, de compreender que, assim como os processos psíquicos considerados normais, como o
luto e a tristeza profunda, a psicopatologia também tem um significado na vida psíquica, que
precisa ser reconhecido e trabalhado pelo sujeito. A psicoterapia é vista, nessa vertente, como
98
Neste capítulo procuramos situar o campo que abarca os estados depressivos, a partir
da constatação de sua incidência epidemiológica atual e de sua formatação pelo discurso
psiquiátrico vigente, assinalando as consequências dos excessos da terapêutica
psicofarmacológica. Inserimos o discurso psicanalítico em oposição ao paradigma
hegemônico que envolve os estados depressivos para, com isso, colocar em relevo a noção de
que tais estados, embora considerados como afecções psicopatológicas, estão ligados à
constituição humana, exercendo um papel na organização psíquica.
Iniciamos este capítulo mostrando que os estados depressivos estão associados, na
atualidade, a um discurso alarmante que os tomam como epidêmicos e que desperta grande
preocupação de saúde pública. No entanto, a história dos estados depressivos no ocidente nos
mostra que nem todas as vezes os estados depressivos estiveram exclusivamente associados a
estados patológicos, guardando também outros sentidos e significados. Constatamos, ainda,
que a preocupação acerca dos estados depressivos remonta aos tempos antigos, e que sua
dificuldade de consenso não é recente. As dificuldades de determinação de suas causas, a falta
de precisão e de consenso na utilização dos termos e a definição de suas formas clínicas são
dificuldades comuns em torno do estudo dos estados depressivos, e vemos que são questões
para as quais se permanece sem respostas precisas, mesmo no campo científico – são questões
com as quais a humanidade se debate desde os tempos antigos. Mostramos, além disso, que
através da apropriação da psiquiatria os estados depressivos deixam de ter múltiplos sentidos
para se tornar apenas uma doença. É nesse contexto em que os psicanalistas do início do
século XX estão inseridos: em meio a uma psiquiatria que procurava definir o mais
precisamente possível os estados depressivos, por meio da descrição e agrupamento dos
sintomas sob as classes diagnósticas que se multiplicavam em sua época.
Apontamos, também, que o DSM se tornou a referência hegemônica na definição do
que se reconhece atualmente como estados depressivos e quais são os seus critérios
diagnósticos. A psicanálise, ao abordar o tema dos estados depressivos, revela quais são os
problemas de se atribuir a tais estados um sentido único de doença neuroquímica e de um mal
a ser eliminado. Destacou-se, ainda, como a abordagem hegemônica, representada pelo DSM,
afeta também os estados não patológicos como o luto e a tristeza profunda, revelando uma
tendência atual em considerá-los indesejáveis. Por fim, procuramos destacar que os sentidos
atribuídos aos estados depressivos a partir da psicanálise consideram os estados depressivos
não só como doença, mas como uma tentativa de executar um trabalho psíquico.
Como veremos ao abordar a melancolia sob a ótica freudiana, Freud insistia que os
sintomas só interessavam à psicanálise enquanto indicadores de processos psíquicos, e que
100
sua atenção deveria se voltar para os mecanismos distintivos de cada afecção, assinalando sua
função de defesa no psiquismo. Para Freud, a atenção dispensada às psicopatologias e, entre
elas, aos estados depressivos, deveria ocorrer a partir da abordagem da escolha das neuroses,
isto é, considerar os elementos distintivos que justificariam, diante de uma frustração, alguns
a formar um quadro clínico de melancolia, enquanto outros formam um quadro de histeria ou
neurose obsessiva, por exemplo (FREUD, 1913).
101
34
Segundo Laplanche e Pontalis (1998, p.132), “Da análise da melancolia e dos processos que ela põe em
evidência, a noção de ego sai profundamente transformada”.
35
Segundo Parmentier (2001, p.121) “Com Luto e melancolia se inicia uma virada na obra de Freud. A
introdução do narcisismo lhe permite vislumbrar a teoria das pulsões sob um novo ângulo já diferente e de
pensar em outros termos a constituição do ego e suas relações com os objetos, incluindo o próprio ego enquanto
objeto”.
102
gerais do psiquismo que estavam sendo compreendidos pelos psicanalistas nesse período - a
saber, os elementos narcísicos e a formação do aparelho psíquico. Esta segunda dimensão se
refere ao processo de identificação como constitutivo do aparelho psíquico e da formação de
suas instâncias a partir da diferenciação de um núcleo comum. Assim, as contribuições desse
estudo que tratam da melancolia, enquanto uma psicopatologia, contribuem, também, para a
compreensão da constituição do aparelho psíquico. Com o estudo da melancolia, Freud acaba
por compreender não apenas um estado psicopatológico, a melancolia, mas, ainda, diversos
processos e elementos do presentes no psiquismo de maneira geral. Em vista disso, pode-se
tomar as contribuições de Luto e melancolia, e analisá-las nestes dois campos: o dos estados
patológicos, os estados depressivos, e o campo de revelador de processos psíquicos gerais.
Dessa forma, da elucidação de um estado patológico foi possível compreender processos
psíquicos gerais e universais.
A primeira dimensão, a mais explicita do artigo Luto e melancolia, é a que trata da
psicodinâmica dos estados de luto e de melancolia. Esta dimensão se estende às contribuições
do estudo da melancolia para a compreensão dos estados depressivos. Muitos autores, ao
abordar os estados depressivos, partem das noções desenvolvidas nesse texto freudiano. Do
ponto de vista dos estados psicopatológicos, a elucidação da melancolia é inestimável.
Embora Luto e melancolia seja o único trabalho de Freud dedicado exclusivamente ao estudo
dela, o tema é ali tratado de modo breve. No entanto, inaugura questões fundamentais e
proporciona um riquíssimo ponto de partida para a compreensão da dinâmica psíquica que
envolve os estados depressivos, a partir da noção de perda de objeto e do conceito de
identificação narcísica, que a insere no campo conceitual do narcisismo. De acordo com
Bleichmar (1997, p. 36),
Dessa maneira, o estudo do narcisismo pode ser mais bem compreendido se colocado
em relação a estas três afecções: a demência precoce (esquizofrenia), a paranoia e a
melancolia. As duas primeiras levaram as compreensões que desaguaram no artigo
Introdução ao narcisismo, enquanto a melancolia permitiu aprofundar as formulações a
respeito da formação do aparelho psíquico, levando à segunda tópica. Segundo Andrade
(1999, p.638), o texto Luto e melancolia “contém o embrião de quase tudo que será novo na
psicanálise, além de ser o complemento natural do artigo sobre o narcisismo, o qual
dificilmente seria bem compreendido sem aquele complemento”. Assim, o valor de Luto e
melancolia é também altíssimo no que se refere ao desenvolvimento da teoria freudiana,
podendo ser considerado um divisor de águas dentro da psicanálise, por tratar de temas que
abrirão caminhos para a elaboração da segunda tópica do aparelho psíquico. Em Luto e
melancolia, Freud considera que a melancolia oferece uma visão privilegiada da constituição
do ego, por ser uma condição em que este adoece por si próprio, e tem a insatisfação moral
consigo próprio como sintoma em destaque:
106
Mas essas melancolias mostram ainda algo mais, que pode ser importante para
nossas considerações posteriores. Elas nos mostram o Eu dividido, decomposto em
dois pedaços, um dos quais se enfurece com o outro. Esse outro pedaço é aquele
transformado pela introjeção, e que contém o objeto perdido. Tampouco o pedaço
que se conduz tão cruelmente nos é desconhecido. Ele contém a consciência moral,
uma instancia crítica do Eu que também em épocas normais se contrapôs
criticamente a este, mas nunca de maneira tão inexorável e tão injusta. Já em
ocasiões anteriores (“Narcisismo”, “Luto e Melancolia”) fomos levados à suposição
de que em nosso Eu se desenvolve uma instancia que pode se separar do resto do Eu
e entrar em conflito com ele. Nós a chamamos de “ideal do Eu” e lhe atribuímos
funções como auto-observação, consciência moral, censura do sonho e principal
influência na repressão. Dissemos que é a herdeira do narcisismo original, em que o
Eu infantil bastava a si mesmo. Gradualmente ela acolhe, das influencias do meio, as
exigências que este coloca ao Eu, as quais o Eu nem sempre é capaz de cumprir, de
modo que o indivíduo, quando não pode estar satisfeito com o seu Eu em si, poderia
encontrar satisfação no ideal do Eu que se diferencia do Eu. Constatamos, além
disso, que no delírio de observação se torna patente a decomposição dessa instância,
desvelando sua origem nas influencias das autoridades, sobretudo dos pais. Mas não
deixamos de acrescentar que a medida da distancia entre esse ideal do Eu e o Eu real
varia bastante de um indivíduo para outro, e que em muitos essa diferenciação no
interior do Eu não é maior que do que na criança (FREUD, 1921, p.67-68).
Aqui nós temos que abarcar um âmbito maior. Foi-nos dado esclarecer o doloroso
infortúnio da melancolia, através da suposição de que um objeto perdido é
novamente estabelecido no Eu, ou seja, um investimento objetal é substituído por
uma identificação. Mas ainda não reconhecíamos, então, todo o significado deste
107
Com isso, Freud acaba por considerar o mecanismo princeps da melancolia como
aquele que atua na formação do aparelho psíquico. O superego, uma instância que se
desenvolve a partir do ego e internaliza as críticas morais através da identificação edípica, é
formulado inicialmente a partir da observação da paranoia e, mais tarde, da melancolia. Se na
melancolia encontramos um sujeito que se critica, se despreza, se ataca e se denigre, Freud
entende que uma parte do ego se separou e entrou em conflito com a outra. Vemos, assim, que
as idéias de superego, da identificação e sua importância na constituição do ego, a maneira de
o aparelho psíquico lidar com a ambivalência, a relação do narcisismo com a autoestima, a
reação do ser humano às perdas e seus caminhos para elaborá-las, enfim, as diversas noções
psicanalíticas que nos permitiram compreender a formação do psiquismo, são contempladas,
de algum modo, no estudo do luto e da melancolia, ou recebem sua contribuição que, de
maneira geral, trata dos aspectos depressivos do psiquismo. É nesse sentido que Laplanche
(1987, p.288) afirma:
Não só Laplanche (1987), mas também Rosenberg afirma que o ensaio sobre a
melancolia assume um importante papel nos posteriores desenvolvimentos freudianos:
Desse ponto de vista podemos dizer que os problemas colocados pelo trabalho de
melancolia em Luto e melancolia abrem a via e implicam as transformações radicais
que são produzidas na teoria freudiana depois de 1920. (ROSENBERG, 2003,
p.149).
Rosenberg, o artigo Luto e melancolia estaria fortemente relacionado a essa “revolução” que
se segue aos artigos metapsicológicos. O texto sobre a melancolia teria, assim, apresentado
problemáticas que desaguariam no grande desenvolvimento da teoria psicanalítica dos anos
1920.
Estando de acordo com essas colocações, Ogden (2004), sobre o artigo Luto e
melancolia, afirma: “Muito do som corrente no pensamento psicanalítico atual – e, desconfio,
também no pensamento psicanalítico vindouro – pode ser ouvido em Luto e melancolia, de
Freud, se soubermos ouvi-lo” (OGDEN, 2004, p.97). Tal afirmação consta em um importante
trabalho do autor, publicado no International Journal; trata-se de um original artigo que versa
sobre as contribuições de Luto e melancolia (1917[1915]) para o desenvolvimento da
psicanálise e da teoria das relações objetais. Neste, o psicanalista mostra que não apenas a
teoria freudiana, e as teorias sobre os estados depressivos, mas também a teoria geral de
outros importantes psicanalistas, foram consideravelmente influenciadas pelas idéias
presentes no artigo de Freud:
Além de demonstrar, de maneira muito pertinente, como este “novo modelo de mente”
se desenha nas páginas do texto freudiano, Ogden lembra, ainda, que a conhecida teoria de
Klein sobre o desenvolvimento do psiquismo – a teoria da relação de objetos internos, os
mecanismos de cisão, as defesas maníacas etc. – podem ser encontrada nas entrelinhas do
artigo Luto e melancolia, mesmo que ainda de forma embrionária ou apenas sugerida. Assim,
Ogden enfatiza que Luto e melancolia, além de tratar da melancolia como um quadro
psicopatológico, inaugura um modelo de psiquismo inédito, formado por objetos internos que
se relacionam e que podem ser inconscientes.
Marucco (1987), ademais, considera fundamentais as contribuições a respeito da
melancolia, tanto para o campo da psicopatologia, quanto para o da constituição do
psiquismo:
melancolia, quanto pelo impacto conceitual e pelo valor de suas contribuições teóricas para o
desenvolvimento da teoria psicanalítica em geral.
Frente a isso, no tópico que se segue, pretendemos analisar quais são as premissas que
permitem a Freud, a partir da abordagem das afecções psicológicas, realizar generalizações
para o funcionamento e a constituição do psiquismo. Assim, esperamos ressaltar a
importância do procedimento que permite o intercâmbio entre o normal e patológico na
construção da teoria freudiana e ressaltar quais são as premissas que sustentam como válida
tal abordagem.
que Freud encontrará suas grandes influências diretas, inicialmente como pesquisador em
neurofisiologia e depois, como médico neurologista.
Em suas pesquisas iniciais, Freud realizou estudos que tinham por objeto a periferia
nervosa e o córtex cerebral e recebeu influências da fecunda neurofisiologia de sua época, que
considerava o corpo e o cérebro como uma rede de circulação de fluxos. Após formar-se em
medicina, Freud iniciou sua carreira como pesquisador, em 1876, na área de neurofisiologia,
ao ingressar no instituto de fisiologia de Ernest Brücke36. Em 1879, sob a supervisão de
Brücke, Freud desvendou as conexões nervosas da lampreia marinha, uma espécie muito
primitiva de peixe. Nessa época, empenhou-se em compreender os meios pelos quais as
células e fibrilas nervosas funcionavam como uma unidade e suas descobertas comprovavam
os processos evolutivos revelados pelas estruturas nervosas desse tipo de enguia marinha.
Assim, quando estuda o sistema nervoso da lampreia, Freud compreende o desenvolvimento
do organismo inteiro: o corpo e o cérebro, no contexto de sua época, advêm de uma
concepção em rede que concebe suas origens a partir de um núcleo em comum, na medida em
que o corpo é considerado como uma arborescência saída do sistema nervoso ramificado
(FOREST, 2010). Nas Conferencias introdutórias sobre psicanálise, Freud recorda as suas
descobertas realizadas nessa época:
Uma vez, quando eu era um jovem estudante, dediquei-me, sob direção de Von
Brücke, a meu primeiro trabalho científico e interessei-me pela origem das raízes
nervosas da medula espinal de um pequeno peixe de estrutura muito primitiva;
constatei que as fibras nervosas dessas raízes tinham sua origem em células grandes
do corno posterior da substância cinzenta, o que já não acontece mais com outros
vertebrados. Mas também descobri, logo depois, que células nervosas desse tipo
estão presentes fora da substância cinzenta, por toda a extensão do chamado gânglio
espinal da raiz posterior; e desse fato concluí que as células dessas massas
ganglionares migraram da medula espinal ao longo das raízes dos nervos. Isto
também é demonstrado pela sua história evolutiva. Nesse pequeno peixe, porém,
todo o percurso de sua migração foi demonstrado pelas células que ficaram para trás
(FREUD, 1917[1916-1917], p.344).
36
Considerado fundador da fisiologia na Áustria, Ernst Brücke foi professor e pesquisador da cátedra de
fisiologia da Universidade de Viena a partir de 1849. Teve muitos trabalhos reconhecidos e tornou-se
respeitado em sua área. Freud passou seis anos – de 1876 a 1882 – pesquisando e estudando fisiologia nos
laboratórios de Brücke, afastando-se definitivamente da filosofia, e nunca escondeu a intensa admiração que
tinha pelo fisiologista, considerando-o seu “mestre” mesmo depois de abandonar tais estudos. Freud deu o
nome de Ernst ao seu quarto filho (ROUDINESCO & PLON, 1998, p.95).
112
das psiconeuroses. Em sua prática clínica, Freud se deparou com um elevado número de casos
dessa doença incompreensível para a época e, intrigado por seus enigmas, decidiu empenhar-
se no seu desvendamento e compreensão. Consolidou-se, assim, o seu interesse pelo estudo
das perturbações psicológicas e dos processos mentais a elas relacionados. Freud nunca mais
se afastaria deste campo de pesquisa. Ainda motivado pelos enigmas que cercavam a histeria,
realizou um estágio em Paris, assistindo as aulas de Charcot, médico dedicado ao estudo da
histeria através da hipnose. Nessa viagem, Freud interessou-se pela hipnose e encontrou
respaldos para começar a utilizá-la com seus pacientes em Viena (GAY, 1989). Ao voltar de
Paris, começou a exercer sua clínica particular e a receber pacientes que se queixavam de
diversos tipos de sofrimentos, em que Freud procurava discriminar suas causas. Começou a
praticar uma forma rudimentar de psicoterapia ao escutar pacientemente o que seus pacientes
lhe contavam sobre a história de seus sofrimentos e, assim, procurava as determinações para
os sintomas. Sua intenção era estabelecer uma relação causal entre as afecções nervosas e a
história dos conflitos emocionais do indivíduo. Nota-se, aqui, a presença de um pressuposto
básico, o de que os sintomas psiconeuróticos atendem a uma funcionalidade na organização
psíquica que precisaria ser compreendida.
Inicialmente, Freud utilizou a hipnose, mas com o tempo percebe suas limitações e a
deixa de lado, passando a escutar seus pacientes por meio da técnica que denominou de
associação livre. Para Freud, fatos ocorridos na infância teriam uma relação causal com a
doença nervosa que acometia o paciente na atualidade. Convém salientar aqui a mudança no
papel do médico que, ao invés de ser o portador único de todo o conhecimento sobre a doença
e sua causa, passa a dividir a responsabilidade com o paciente, considerando o doente como
conhecedor das causas de seu sofrimento; bastaria apenas que ele fosse escutado com atenção.
É o início da “cura pela fala”. No entanto, o que nos interessa destacar é que, ao escutar seus
pacientes, Freud partia de uma suposição de que as manifestações psicopatológicas tinham um
sentido que precisaria ser desvendado e explicado. Para ele, os sintomas neuróticos nada
teriam de casual e denotariam intenções determinadas que não encontram outra forma de
expressão devido à sua situação psíquica momentânea. Essa breve história das raízes da
psicanálise, embora muito conhecida, é útil para ilustrar o quanto o interesse clínico de Freud
voltava-se para as psicopatologias, que até então eram pouco estudadas cientificamente.
Lembremos que a psiquiatria da época se restringia à descrição e classificação dos sintomas,
que eram organizados e agrupados dentro de entidades nosológicas. Foi a maneira particular
em abordar cientificamente fenômenos como os da histeria, conjugando clínica e pesquisa
neurológica e entendendo os sintomas como sinais de perturbações funcionais, que
114
Vemos, nessa carta, que Freud possuía sentimentos ambivalentes em relação a esse
projeto. Sua intenção inicial era versar sobre o que ele chama de defesa; no entanto, acabou
impelido a realizar o Projeto de sua psicologia científica, que buscava uma explicação
cientificamente válida para o funcionamento psíquico, isto é, tomar a “psicologia” como uma
ciência. Isso o levou a investir grande energia no referido texto e, embora o tenha abandonado
depois, percebe-se a sua importância para Freud neste período. Em 25 de maio de 1895, ele
escreve novamente a Fliess sobre o Projeto:
Tenho tido uma quantidade desumana de coisas por fazer e, após períodos de dez a
onze horas de trabalho com as neuroses, fico regularmente impossibilitado de tomar
a pena para escrever-lhe um pouco, embora, na verdade, muito tivesse a dizer. A
principal razão, porém, é esta: um homem como eu não pode viver sem um cavalo
de batalha, sem uma paixão devoradora, sem – nas palavras de Schiller – um tirano.
Encontrei um. A serviço dele, não conheço limites. Trata-se da psicologia, que foi
sempre minha meta distante a acenar-se, e que agora, desde que me deparei com os
problemas das neuroses, aproximou-se muito mais. Estou atormentado por dois
115
Nessa passagem, quando Freud refere-se à psicologia, ele está se referindo ao Projeto
e ao quanto este trabalho consumia suas energias e ocupava suas preocupações. É evidente o
motivo pelo qual esse trabalho se tornara o seu cavalo de batalha, se consideramos que nele
residem as ambições que impulsionam todo o desenvolvimento de sua psicanálise: (1)
explicar o funcionamento psíquico a partir de considerações quantitativas e por meios
energéticos – foi o que constituiu sua teoria dos instintos e dos afetos, e resultou na dimensão
econômica de sua metapsicologia; (2) extrair da psicopatologia a compreensão da psicologia
normal, vinculando a concepção das psiconeuroses com os pressupostos gerais dos processos
psíquicos – foi o caminho tomado por Freud para o desenvolvimento de toda sua teoria das
neuroses e da constituição do aparelho psíquico. Talvez tenha sido um dos projetos mais
ambiciosos de Freud: o de condensar, em apenas um livro, toda a explicação do
funcionamento da mente e da etiologia das neuroses. Sua intenção era desvendar a economia
das forças nervosas a partir de um ponto de vista quantitativo e tirar da psicopatologia um
proveito para a psicologia normal. Hoje, pode-se ver claramente que Freud logra nesse
objetivo: ele dedicou toda sua vida a desenvolver tal psicologia, que chamou mais tarde de
“metapsicologia”, propondo um modelo de aparelho psíquico complexo, visto em três
aspectos: dinâmico, tópico e estrutural. À energia postulada no interior desse aparelho, Freud
chamou de instinto, e sempre considerando os destinos quantitativos desta, como pode ser
conferido, por exemplo, em A pulsão e seus destinos: “um conceito básico assim
convencional, provisoriamente ainda um tanto obscuro, mas que não podemos dispensar na
psicologia, é o de instinto” [Trieb]37 (FREUD, 1915, p. 53).
No tocante ao ponto que muito nos interessa aqui, o que se refere a tirar da
psicopatologia proveito para a psicologia normal, Freud entendia o normal e o patológico
como estados complementares. Na medida em que se avança na compreensão da patologia,
surgem pistas do funcionamento normal.
37
Na tradução utilizada (Paulo César Souza, Editora Companhia das Letras), o tradutor adota o termo instinto
para o que normalmente se traduz por pulsão.
116
A psicologia é mesmo uma cruz. Jogar boliche ou catar cogumelos, pelo menos, são
passatempos muito saudáveis. Tudo o que eu estava tentando fazer era explicar a
defesa, mas experimente só tentar explicar algo que vem bem do âmago da natureza!
Tive que abrir caminho palmo a palmo através do problema da qualidade, do sono e
da memória – em suma, a psicologia inteira. Agora, não quero mais ouvir falar nisso
(FREUD, 16-08-1895 in MASSON, 1986, p. 137).
sobre a histeria daquele período, em uma linguagem específica. Segundo Monzani (1989, p.
139), boa parte do edifício teórico postulado por Freud no Projeto é retomado no capítulo 7 da
Interpretação dos Sonhos, tanto no que se refere ao modelo de aparelho psíquico, quanto no
que se refere à sua teoria dos sonhos. Laplanche (1985, p.61) considera que o Projeto, além
de apresentar um modelo abstrato e filosófico, trata-se também de um modelo clínico, pois “o
que dá vida a esse modelo e que faz dele outra coisa que não uma montagem puramente
especulativa, é a experiência clínica da recém-nascida psicanálise e os fatos bastante estranhos
que ela traz à tona”. Assim, em termos gerais, Freud postulou no Projeto, ainda em meados de
1895, os fundamentos do edifício teórico que iria desenvolver ao longo de sua vida, ao
conjugar experiência clínica e especulação teórica38. Nesse sentido, noções fundamentais
como a compulsão à repetição, apresentada em Além do princípio do prazer (1920), e as de
trauma e desamparo, tratadas em Inibições, sintomas e Angústia (1926[1925]), já se
encontram esboçadas no Projeto (CAROPRESO e SIMANKE, 2006; MONZANI, 1989).
Frente a isso, consideramos o Projeto de uma psicologia (FREUD, 1895 [1950]) um trabalho
de fundamental importância para compreender a lógica e a dinâmica interna do
desenvolvimento do pensamento freudiano, conforme afirmam Simanke (2002), Monzani
(1989), Gabbi Jr (2003) e Forest (2010). Nessa direção, também Strachey (1954/1996, p.342),
em nota introdutória ao texto (que pode ser encontrada no primeiro volume da Standart
Edition), ressalta que, além do auxílio que presta à compreensão do sétimo capítulo de
Interpretação, o texto do Projeto “contém em si o núcleo de grande parte das teorias
psicológicas que Freud desenvolveria mais tarde”, e “sua descoberta não tem apenas interesse
histórico; na verdade, esclarece, pela primeira vez, algumas hipóteses fundamentais mais
obscuras de Freud”. Nesse sentido, Forest (2010) afirma que em A interpretação dos sonhos,
Freud não mais se refere a neurônios, mas a representações psíquicas, enquanto o fluxo e a
função de regulação no interior do aparelho figuram nesta obra como investimento psíquico e
afeto. Embora as teses contidas no Projeto sejam expressas em uma linguagem neurológica,
entendemos que elas contêm muitas das teses freudianas fundamentais, que serão mais tarde
aplicadas às explicações dos processos psíquicos em sua metapsicologia como, por exemplo,
a noção de neurônios, que pode ser mais bem compreendida pela noção de representação; a de
38
Há aqueles que discordam desse ponto de vista. O modelo de mente pré-psicanalítico, segundo Caper (1990
p.39), deve ser visto como “um novo ramo da fisiologia, cujo expositor está um pouco constrangido com o fato
de não dar ao leitor o tipo de precisão que se poderia encontrar num tratado de física sobre o movimento dos
fluídos”. Caper afirma, ainda, que essa tentativa revela o esforço de Freud para construir uma psicologia sem
psique. Assim, os estudos daquela época podem ser lidos como textos de um psiquiatra que se baseava na
neurofisiologia, ou de um neurofisiologista interessado na psiquiatria (CAPER, 1990).
118
quantidade, que corresponde à função do afeto; a de ocupação, que pode ser compreendida
como investimento de representações; e a tendência de ocupação de neurônios pela
quantidade, que corresponde à definição de desejo contida no capítulo 7 de A interpretação.
Pode-se, assim, considerar o Projeto um trabalho de inspiração clínica como tantos outros
escritos freudianos, pois suas construções teóricas são realizadas a partir dos dados e dos
problemas que a prática clínica lhe fornecia. É o trabalho de leitura, interpretação e
deciframento dos sintomas patológicos que orienta suas construções teóricas (MONZANI,
1989). Esta conjugação da experiência clínica e da especulação teórica é marcada com clareza
logo no início do Projeto:
Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui preparado para
empregar diagnósticos locais e eletroprognósticos, e ainda me causa estranheza que
os relatos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, falta-
lhes a marca de seriedade da ciência (FREUD; BREUER, 1895, p.184).
Em Estudos, Freud recorre à outra linguagem que, segundo ele, se assemelha mais a
contos literários. Isso poderia despertar a desconfiança dos leitores da época, por estar se
afastando da linguagem científica corrente. Haveria, assim, em torno da elaboração do Projeto
e dos Estudos, um conflito entre a necessidade de ajustar-se ao paradigma científico da época
e a percepção da insuficiência deste para elucidar os fenômenos das psiconeuroses com as
quais se deparava. Sabe-se da insatisfação de Freud com o capítulo teórico de Estudos e,
diante disso, Gabbi Jr (2003) reconhece que a aposta depositada no Projeto é a de dar conta
de relações de intencionalidade no quadro de uma psicologia científico-naturalista, ou seja,
uma psicologia que toma os seres humanos como objetos naturais submetidos a causas
naturais. No entanto, sabemos que Freud abandona a publicação do Projeto posteriormente, a
120
despeito do quanto este despertara suas paixões. Mas, segundo Monzani (1989), praticamente
todas as teses contidas no capítulo 7 de A intepretação dos sonhos (FREUD, 1900) já estavam
formuladas no Projeto (FREUD, 1950[1895]).
Ao procurar uma linguagem científica para expressar suas investigações, Freud
experimentava, simultaneamente, uma linguagem mais próxima da neurofisiologia no Projeto
e uma linguagem mais próxima da literatura e dos filósofos em Estudos. De qualquer forma,
termina por criar uma linguagem apropriada para expressar suas descobertas, sem ter de se
adequar às exigências neurofisiológicas da época. A metapsicologia e o modelo de aparelho
psíquico apresentados em A interpretação dos sonhos (1900) permitem que algumas das
principais teses formuladas anteriormente no Projeto (1950[1895]) e em outros trabalhos do
período considerado pré-psicanalítico sejam apresentadas.
Ainda em Estudos sobre a histeria (1895), Freud concentra seus esforços na busca de
uma etiologia da histeria na história da neurose de suas pacientes. Conflitos emocionais
estariam em sua origem:
Os casos clínicos dessa natureza devem ser julgados como psiquiátricos; entretanto,
possuem a vantagem sobre estes últimos, a saber: uma ligação íntima entre a história
dos sofrimentos do paciente e os sintomas de sua doença - uma ligação pela qual
ainda procuramos em vão nas biografias das outras psicoses (FREUD; BREUER,
1895, p.184).
Sob pressão do procedimento técnico que eu usava na época, a maioria dos pacientes
reproduzia cenas da infância cujo conteúdo era a sedução sexual por um adulto. Nas
mulheres o papel sedutor cabia quase sempre ao pai. Dei crédito a essas
comunicações e supus que havia encontrado a fonte da futura neurose nessas
vivências de sedução sexual na infância. [...] Quando fui obrigado a reconhecer que
tais cenas de sedução não haviam jamais ocorrido, eram apenas fantasias que meus
pacientes tinham inventado, que eu próprio talvez lhes havia imposto, fiquei
desorientado por algum tempo. A confiança em minha técnica e em seus resultados
sofreu um duro golpe; afinal, eu havia chegado àquelas cenas por um procedimento
técnico que me parecia correto, e seu conteúdo relacionava-se claramente com os
121
Freud partiu dos desejos sexuais infantis das histéricas para alcançar a noção de uma
sexualidade infantil presente no desenvolvimento normal e na formação do psiquismo. Foi
também nesse contexto que Freud vislumbrou o complexo de Édipo e o papel da repressão na
vida psíquica. Isso ilustra como Freud encontra as leis gerais do funcionamento psíquico
122
Vemos, com isso, que em seu trabalho clínico, Freud aliou sua experiência adquirida
como médico, fisiologista e neurologista à produção de conhecimento nos registros
123
fisiologia e, com isso, mais centrada no estudo dos processos psicológicos básicos presentes
no funcionamento normal. Referindo-se aos primórdios do período psicanalítico, Freud
afirma:
Vimos que Freud parte do campo da psicopatologia, e acaba encontrando neste uma
via de acesso aos processos psíquicos normais, por meio da compreensão da função dos
sonhos. A relação entre o sonho e o sintoma toca em um ponto caríssimo à psicanálise: o
sonho é constituído de maneira muito próxima do sintoma, de modo que o trabalho de
formação dos sonhos permite elucidar o trabalho de formação dos sintomas. O sonho é uma
formação que visa a proteger o sono, ao mesmo tempo em que permite a realização de um
desejo inconsciente e reprimido, o qual encontra uma forma de satisfação pela via das
formações oníricas. O sintoma também permite a “realização” de um desejo inconsciente e
reprimido, com a diferença de que suas consequências não são inócuas como as do sonho.
Para Freud, o sintoma consiste em um derivado distorcido da realização de desejo
inconsciente que, por meio da uma formação de compromisso, representa um acordo entre as
exigências defensivas da censura pré-consciente e as exigências do desejo inconsciente.
Assim, o sonho e o sintoma representam processos psíquicos básicos que atendem às
necessidades de organização do psiquismo.
Dessa forma, identifica-se que há, na teoria freudiana, uma grande preocupação em
desenvolver teorias amplas o suficiente para compreender o funcionamento universal do
125
psiquismo, a chamada psicologia do aparelho psíquico. Como vimos no início deste capítulo,
para Freud era “impossível ter uma concepção geral satisfatória dos distúrbios neuropsicóticos
se não puder vinculá-la com pressupostos claros sobre os processos mentais normais” e, com
isso, “extrair da psicopatologia um lucro para a psicologia normal” (FREUD, 25-05-1895 in
MASSON, 1986, p.130). E talvez aqui também reencontremos raízes de sua formação médica
como neurologista, cujas bases epistemológicas só se tornam realmente aceitas e válidas como
um saber científico quando são estendidas até o funcionamento normal de um órgão. Não
basta compreender as raízes de uma doença no fígado, por exemplo, se não se compreende
como o fígado se comporta em seu estado normal e quais são as alteração ocasionadas pela
patologia em questão. E foi talvez essa a maior fonte de angústia e inspiração que
acompanhou Freud nos anos de 1890: a intenção de alcançar as explicações gerais do
funcionamento e da formação da mente, isto é, desenvolver uma verdadeira “psicologia”. Tal
anseio se realizou pouco a pouco ao longo do desenvolvimento da psicanálise, sendo
possibilitado inicialmente pelo estudo das psiconeuroses, que levarão à primeira tópica e à
teoria da sexualidade, e mais tarde sendo permitido também pelo estudo das psicoses e da
melancolia, que conduzem às formulações da segunda tópica do aparelho psíquico e da
psicologia do ego39.
Além disso, é preciso considerar que Freud experimentava em si próprio o que
descobria nas análises de seus pacientes, ou seja, ele próprio se tornava objeto de investigação
e análise para avançar em suas incursões no campo das neuroses. Freud sofria de inúmeros
sintomas nessa época, como dores fortes de cabeça, oscilações de humor, alterações da
frequência cardíaca, entre outros. Em alguns momentos, Freud chegou mesmo a se considerar
depressivo ou histérico. Assim, no período que se seguiu à morte de seu pai, Freud exercia a
tão conhecida autoanálise e, com isso, experimentava em si próprio o que descobria nos
atendimentos de seus pacientes. O famoso Sonho da Injeção de Irma, que ocorreu no verão de
1895, após exaustivas análises, ajudam Freud a compreender o enigma dos sonhos, isto é, que
os sonhos são a realização de desejos. Também a reação à morte de seu pai desencadeou em
Freud um profundo sofrimento, levando-o a comprometer-se seriamente com sua autoanálise
para entender a origem de seus sintomas e de sua neurose. Portanto, de certa forma, A
39
Freud (1933[1932], p.193) costumava opor a expressão psicologia do ego à psicologia da neurose, utilizando a
primeira para se referir à teoria geral do aparelho psíquico, cujo funcionamento era compreendido a partir das
neuroses narcísicas, enquanto a segunda era utilizada para referir-se ao campo da teoria da psicossexualidade,
deduzida a partir das neuroses de transferência.
126
Interpretação dos sonhos pode ser compreendida como fruto da elaboração da morte de seu
pai:
Pois este livro tem para mim, pessoalmente, outra importância subjetiva – uma
importância que só aprendi após tê-lo concluído. Ele foi, como verifiquei, parte de
minha própria auto-análise, minha reação à morte de meu pai – isto é, ao evento
mais importante, à perda mais pungente da vida de um homem (FREUD, 1900,
p.32).
Temos, assim, o Freud que buscava a cura das neuroses, o Freud que procurava
incansavelmente a causa destas, o Freud que buscava desenvolver uma psicologia geral e o
Freud empenhado em sua autoanálise; todos esses, juntos, levam à criação da psicanálise e de
uma inovadora maneira de se abordar as chamadas psicologia e psicopatologias – a primeira
entendida como versando sobre os processos psíquicos normais e a segunda consistindo em
explicações a respeito das psiconeuroses e das psicoses. Finalmente, Freud (1923a, p.274)
afirma que psicanálise é um termo que se refere a (1) “procedimento para a investigação de
processos psíquicos que de outro modo são dificilmente acessíveis”; (2) “um método de
tratamento de distúrbios neuróticos, baseado nessa investigação”; e (3) “uma série de
conhecimentos psicológicos adquiridos dessa forma, que gradualmente passam a constituir
uma nova disciplina científica”. Diante disso, é possível perceber um pressuposto básico da
teoria freudiana: a neurose como caminho para a compreensão dos processos psíquicos
universais. A própria psicanálise se define primeiramente por um procedimento de
investigação particular a que Freud chegou, em sua busca pela compreensão do
funcionamento psíquico universal. Vimos que Freud procurou desenvolver procedimentos que
lhe possibilitassem, ao mesmo tempo, conjugar a compreensão dos processos psíquicos que
subjaziam às psiconeuroses e ao funcionamento normal. Vimos, também, que Freud
considerava imprescindível articular o que encontrava na observação das psiconeuroses com a
psicologia, a fim de validar suas descobertas.
Já em 1890, em Tratamento Psíquico (ou anímico), Freud (1905 [1890], p.274)
afirmava: “Só depois de estudar o patológico é que se compreende a normalidade”. Assim, ao
tratar as neuroses, Freud estava, ao mesmo tempo, constituindo uma nova abordagem de
pesquisa da vida psíquica, um método de tratamento cujos meios para tanto precisavam ser
desenvolvidos, e uma nova disciplina científica.
É que existe uma classe de seres humanos a quem, não um deus, mas uma deusa
severa – a Necessidade – delegou a tarefa de revelar aquilo de que sofrem e aquilo
que lhes dá felicidade. São as vítimas de doenças nervosas, obrigadas a revelar suas
fantasias, entre outras coisas, ao médico por quem esperam ser curadas através de
tratamento mental. É esta nossa melhor fonte de conhecimento, e desde então
127
sentimo-nos justificados em supor que os nossos pacientes nada nos revelam que
não possamos também ouvir de pessoas saudáveis (FREUD, 1908[1907], p.137).
Desde cedo, baseando-se no método da cura pela fala, Freud considerava que, através
dos relatos dos pacientes sobre suas fantasias, seus desejos e seus sonhos, ele alcançaria a
compreensão dos distúrbios psíquicos. O estudo da psicopatologia também poderia fornecer,
por sua vez, a compreensão sobre o funcionamento psíquico normal (a psicologia), ou seja, o
não patológico. Assim, Freud leva em conta que o conteúdo das revelações de seus pacientes
não seria particular a determinados estados patológicos, mas poderiam estar presentes em
pessoas saudáveis. Frente a isso, Freud parece considerar que, entre os estados normais e os
patológicos, teríamos elementos comuns. Assim, afirma que, além de ser possível
compreender o funcionamento normal por meio do patológico, o limite entre estes dois
estados é tênue:
Mas o limite entre o que se descreve como estado mental normal e como patológico
é tão convencional e tão variável, que é provável que cada um de nós o transponha
muitas vezes no decurso de um dia. Por outro lado, a psiquiatria estaria cometendo
um erro se tentasse restringir-se permanentemente ao estudo das graves e sombrias
doenças decorrentes de severos danos sofridos pelo delicado aparelho da mente.
Desvios da saúde mais leves e suscetíveis de correção, que hoje podemos atribuir
apenas a perturbações na interação de forças mentais, atraem igualmente seu
interesse. Na verdade, só através deles é que se pode chegar à compreensão dos
estados normais, assim como dos fenômenos das doenças graves (FREUD,
1907[1906]).
40
A aplicação do princípio de Broussais à clínica médica foi bastante criticada por Canguilhem em sua obra O
normal e o patológico.
130
Partindo da comparação, agora invertida, do normal para o patológico, Freud pode, por
exemplo, partir do luto para elucidar a melancolia, ou ainda, partir do modelo do trabalho do
sonho para a compreensão da alucinação nos estados narcísicos: “depois que o sonho nos
serviu como modelo normal dos distúrbios narcísicos, façamos a tentativa de elucidar a
natureza da melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto” (FREUD, 1917[1915],
p.171). Há, portanto, uma relação entre os diversos fenômenos e os processos psíquicos que
lhes subjazem, de forma que Freud procura sempre tomar o caminho de acesso ao estudo da
vida psíquica, comparando as suas formações correlatas (como, por exemplo, o sonho e a
alucinação, o luto e a melancolia) que, com isso, permitem o seu esclarecimento mútuo.
Assim, formação do sintoma e formação dos sonhos se esclarecem simultaneamente: quanto
mais se compreende um, mais se esclarece o outro. É esse procedimento que Freud
(1917[1915]) adota no artigo Luto e melancolia. O texto é todo concebido nesse movimento;
à medida que se esclarece um ponto da melancolia a partir de sua comparação com o que se
sabia sobre o luto, Freud realiza novas hipóteses sobre o trabalho efetuado por este último. Há
que se considerar, ainda, que, ao observar aspectos do funcionamento psíquico da melancolia,
Freud compreendeu não só o luto, mas processos psíquicos que serão mais tarde tomados
como gerais, como, por exemplo, o da identificação. Isso nos leva à constatação de que
131
41
Klein (1940; 1946), por exemplo, postulou a presença de um funcionamento psíquico de natureza psicótica
logo nos primeiros meses de vida do bebê, nos quais a mente estaria desintegrada. Esse funcionamento operaria
normalmente no início da vida de todo ser humano, e estaria na base de toda manifestação psicótica posterior.
Ao grupo de traços e defesas que caracterizariam tal funcionamento psicótico, Klein denominou de posição
esquizo-paranóide. Segundo ela, há um processo de integração que se segue a essa posição, dando lugar a uma
posição depressiva no desenvolvimento normal. Por volta dos seis meses de idade, o bebê entraria em um
funcionamento mental mais integrado e, consequentemente, perceberia a separação e a ausência de seus objetos
de amor. Isso faria com que ele vivesse um processo depressivo normal, permeado por sentimentos de culpa e
reparação. Os lutos vivenciados nas situações de perda ao longo da vida do sujeito estariam relacionados à
elaboração da posição depressiva. A nosso ver, esse exemplo mostra uma compreensão da vida psíquica que
segue o método de Freud e admite a existência de elementos, traços e funcionamentos considerados
psicopatológicos na dinâmica psíquica normal, ainda que ocultos ou pouco operantes.
132
Essa afirmação nos evidencia dois pontos em relação à teoria freudiana da melancolia
e à sua abordagem das neuroses narcísicas. Em primeiro lugar, Freud esclarece que, embora a
técnica psicanalítica ainda não produza um resultado efetivo no trabalho realizado com as
neuroses narcísicas, é possível, por meio da observação destes estados, compreender seus
aspectos psicológicos. Em segundo lugar, Freud indica que tal compreensão deve acontecer a
partir das proposições teóricas formuladas por meio do trabalho com as neuroses de
transferência. E, segundo nosso ponto de vista, foi este o caminho tomado por Freud para
134
E são, entre outros fatores, as neuroses narcísicas que levarão Freud à formulação da
segunda tópica, em analogia ao papel conferido às neuroses de transferência na primeira
135
tópica. É o que nos indica um fragmento em que Freud reúne suas indicações para a
abordagem das neuroses narcísicas, e as contribuições que tal abordagem traria à psicanálise.
Freud procura indicar que a compreensão do narcisismo não pode ocorrer por outra via que
aquela da observação direta dos estados narcísicos, formações patológicas que poderiam
evidenciar as relações normais desse aspecto do aparelho psíquico:
Assim, seu interesse por tal fenômeno pode ter contribuído de forma particular aos
desenvolvimentos fundamentais que vão do narcisismo, em 1914, ao livro sobre o ego e o id,
em 1923. O quadro clínico da melancolia, em particular, pode ser destacado, em meio ao
grupo das neuroses narcísicas, como um dos fenômenos que ocupou um lugar, entre 1910 e
1923, análogo ao ocupado pela histeria no final do século XIX, conforme afirma Parmentier:
[…] estas neuroses narcísicas são inacessíveis a transferência, segundo Freud, e esta
inacessibilidade encontra sua explicação no que Freud chamou de ‘muro’ do
narcisismo. Assim, na 26ª conferência de Introdução a psicanálise, ‘Die
libidotheorie und der Narzissmus’, Freud escreve: ‘Nas neuroses narcísicas, a
resistência é intransponível; nós podemos, quando muito, lançar um olhar de curioso
por cima do muro, para espiar o que se passa do outro lado’. Esta dificuldade não
impede Freud de continuar a exploração do funcionamento do aparelho psíquico a
partir dos anos 1915, justamente graças as neuroses narcísicas. Com efeito, se ao
início de seu trabalho é a histeria que foi o ponto central da teoria e o fio condutor
na maneira de conceber o aparelho psíquico, a partir do narcisismo é a melancolia
que desempenha o mesmo papel. Esta o leva a distinguir a partir de 1924: as
neuroses que são caracterizadas por um conflito entre o ego e o id; a melancolia é
que é caracterizada por um conflito entre o ego e o superego; as psicoses que são
caracterizadas pelo conflito entre o ego e o mundo exterior (PARMENTIER, 2001,
p. 119).
Desse modo, segundo a autora, não seria exagero afirmar que, da mesma forma que o
fenômeno clínico da histeria e das neuroses de transferência levou ao desenvolvimento da
primeira tópica, o fenômeno clínico da melancolia, ao lado das outras neuroses narcísicas,
teriam acarretado os desenvolvimentos concernentes à segunda tópica do aparelho psíquico.
Freud, partindo de seu trabalho com as neuroses de transferência, constrói um modelo
de funcionamento psíquico particular, apoiado na ideia de desenvolvimento psicossexual, ou
evolução libidinal. Dessa forma, Freud realiza um intercâmbio constante entre o normal e o
136
patológico são tomados como distintivos apenas em termos quantitativos e seus processos
psíquicos são considerados, de um lado, processos infantis e, de outro, uma forma de proteção
da vida psíquica frente a um excesso instintual que não encontra possibilidade de satisfação. É
esse modelo etiológico, advindo do trabalho com as neuroses de transferência, que servirá de
base, em combinação com os elementos decorrentes do recém-introduzido conceito de
narcisismo, para a formulação do mecanismo explicativo da melancolia.
É objetivando compreender os sentidos atribuídos ao psicopatológico e sua relação
com os processos psíquicos considerados normais, assim como destacar os elementos
envolvidos na formação da teoria da melancolia, que nos voltaremos, agora, para as noções
fundamentais que sustentam a etiologia das neuroses na teoria freudiana. Veremos que, para
Freud, a patologia e o normal não são noções estanques, mas que estão em relação de
continuidade, cujo fator quantitativo é seu aspecto distintivo. Com isso, poderemos perceber o
que permitiu a Freud construir um modelo de aparelho psíquico e compreender seus modos de
operação a partir dos estados patológicos. Podemos identificar ao menos cinco noções que
subjazem a formação neurótica, segundo a teoria freudiana: a noção de conflito psíquico, que
postula a neurose como um jogo de forças em oposição; a noção de fixação nas fases iniciais
do desenvolvimento libidinal, que explica a ocorrência de processos psíquicos infantis no
funcionamento atual; a noção de regressão, que permite compreender o caminho pelo qual tais
processos arcaicos entram em operação na vida presente; a noção de frustração, enquanto
desencadeadora do desequilíbrio energético que leva ao conflito; e, finalmente, a noção de
sintoma, em que os elementos anteriores se articulam em torno de uma formação considerada
patológica, mas que permite a satisfação da libido de maneira deformada. Pretendemos
explicitar essas noções e, ao mesmo tempo em que elas permitirão a compreensão da
formação das neuroses, mostrarmos que foi esse o modelo a partir do qual foi formulada a
explicação do mecanismo da neurose melancólica.
Tal tarefa a ser empreendida baseia-se nas indicações de Freud, que considera
imprescindível o conhecimento do modelo das neuroses de transferência para a abordagem
das neuroses narcísicas:
[...] os conceitos a que chegamos em nosso estudo das neuroses de transferência são
adequados para ajudar-nos a nos orientarmos nas neuroses narcísicas, que, na prática
são tão mais graves. As semelhanças vão muito mais longe; no fundo, o campo de
fenômenos é o mesmo. E os senhores podem imaginar quão reduzida é a perspectiva
que tem alguém para examinar esses distúrbios (que pertencem à esfera da
psiquiatria), se não estiver preparado para essa tarefa por um conhecimento analítico
das neuroses da transferência (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p.422).
138
forças ou exigências contrárias se imbrica com toda a rede de conceitos presente na teoria
freudiana e, embora fundamental, abordá-la em detalhes nos levaria muito distante de nossos
objetivos; em função disso, nos restringiremos à tarefa de explicitar as noções de normalidade
e patologia em Freud, a partir das noções que compõem a etiologia das neuroses de
transferência visando a compreender de que maneira elas permitiram a formulação da teoria
freudiana da melancolia. A noção de conflito constituiu-se como uma parte integrante
fundamental da teoria freudiana da melancolia. Primeiramente, Freud (1917[1915]) entende a
melancolia como a internalização de um conflito vivido com um objeto externo. Após a
introjeção desse conflito no interior do aparelho psíquico, Freud antevê o estabelecimento de
um conflito interno, cuja expressão será a melancolia. Assim, como se pode perceber, o
conflito, que demarcou a concepção dos mecanismos das neuroses, fez também vigente na
teoria da melancolia. Portanto, passaremos à compreensão da noção de conflito na teoria
freudiana.
Segundo Laplanche e Pontalis (1998), no curso de toda obra de Freud, o problema do
conflito psíquico recebeu diferentes soluções e foi tematizado, ao menos, em dois níveis
distintos: ao nível tópico, como conflito ente sistemas (consciente x inconsciente) e entre
instâncias (ego x superego); e ao nível dinâmico-econômico, como no conflito entre os
instintos (instintos do ego x instintos sexuais e instinto de morte x instinto de vida).
A noção de conflito é originalmente introduzida na teoria freudiana em associação
com a de processo de defesa, tendo como meta explicar a psicodinâmica da histeria
(KAUFMANN, 1998). Em As neuropsicoses de defesa (1894), Freud reconheceu a existência
de uma força de oposição às representações de desejo, que denominou então de defesa, cuja
função era justamente defender o ego das lembranças incompatíveis, portadoras de aparições
que geram grande desprazer. Em Estudos sobre a histeria (FREUD e BREUER, 1895), a
ideia de conflito começa a se delinear por meio do fenômeno clínico da resistência: ao evocar
as recordações patogênicas das pacientes histéricas durante o tratamento, Freud observava a
incidência de uma força de resistência que se opunha às representações de desejo
incompatíveis.
Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento
em que houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa –
isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um
sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo,
pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação
incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento (FREUD, 1984, p. 55).
140
A defesa exerce papel central na histeria, pois gera uma pressão para um tipo de
“esquecimento” da lembrança que é sentida como incompatível. Essa lembrança incompatível
se torna causadora de desprazer em função de sua associação à representação do desejo
reprimida. A defesa consistia, portanto, em um esforço voluntário de eliminar da mente
representações associadas ao campo das experiências e das sensações sexuais. Os estados
neuróticos provocados por estes conflitos foram chamados de psiconeuroses de defesa,
caracterizando justamente o conflito entre o desejo e a instância crítica do ego (não formulada
dessa maneira naquele período), ocasionando uma defesa contrária àquele, pressionando no
sentido de seu esquecimento – é o início da formulação da teoria da repressão como um
processo de defesa, segundo o qual aquilo que é considerado desprazeroso, por ser
incompatível com a consciência, é esquecido. Afirma Freud (1894, p.55),
Freud considera patológico, não a reação diante do conflito, e sim a falha da defesa em
provocar um esquecimento das lembranças de desejo incompatíveis: “Sei apenas que esse tipo
de ‘esquecimento’ não funcionou nos paciente que analisei, mas levou a várias reações
patológicas que produziram ou a histeria, ou uma obsessão, ou uma psicose alucinatória”
(FREUD, 1894, p.55). A etiologia das neuroses recai sobre a falha da defesa diante do conflito
provocado por duas forças, que exercem exigências contrárias e desencadeiam uma
contradição com a qual o ego é confrontado. A natureza do conflito psíquico é de uma
contradição moral diante de lembranças de natureza sexual. Para libertar-se da contradição
com a qual o ego é confrontado, este “transforma essa representação poderosa numa
representação fraca, retirando-lhe o afeto – a soma de excitação – do qual está carregada”
(FREUD, 1894, p.56). Após esse processo, a representação incompatível é tornada fraca; no
entanto, a soma de afeto separado daquela, é direcionada para e inervação somática pelo
processo denominado de conversão histérica.
Em A etiologia da histeria, Freud (1896, p.206) afirma: “Propus então a ideia de que a
eclosão da histeria pode ser quase invariavelmente atribuída a um conflito psíquico que
emerge quando uma representação incompatível detona uma defesa por parte do ego e solicita
um recalcamento”. O conflito psíquico é posto na origem da histeria, devido à oposição entre
duas exigências contrárias que figuram nesta: de um lado, uma pressão exercida por uma
141
força chamada de representação do desejo sexual infantil e, de outro, uma força de defesa do
ego que exerce uma pressão para a repressão da força primeira.
O conflito recai, então, na ideia de defesa, que ganha proeminência na vida psíquica à
medida que o ego adquire seu desenvolvimento moral e intelectual e, assim, atribuí à
representação de desejo uma conotação incompatível com sua organização: “os esforços
defensivos do ego dependem do desenvolvimento moral e intelectual completo do sujeito”
(FREUD, 1896, p.206-207). No quadro geral dessa teoria, o sintoma permanece definido
como o resultado de uma ação de compromisso entre dois grupos de representação que
exerciam pressões como forças de sentidos opostos: uma pressionando para a satisfação e
outra se impondo contra a realização do desejo (PRATA, 1999).
Nesse período da teoria freudiana, o conflito psíquico é atribuído ao conflito entre o
desejo sexual e os obstáculos que se opõem à sua satisfação. Fundamental ressaltar que este
mesmo processo, de maneira geral, está na base de outros considerados normais, como os
sonhos, lapsos, atos falhos etc, e todas as formas de formações substitutivas que são aceitáveis
socialmente. O conflito traduz-se como uma luta que apresenta, como resultado, formações de
compromisso, nos quais a satisfação do desejo é simultaneamente reprimida pela censura e
toma outros caminhos ser obtida, de maneira disfarçada. Entre as satisfações disfarçadas
encontramos o sonho, cuja formação é atribuída por Freud (1900) a este processo conflituoso
entre desejo e repressão. A famosa expressão “o sonho é a realização de um desejo”,
encontrada na Intepretação dos sonhos (FREUD, 1900, p.157), é uma formulação desse tipo
de satisfação disfarçada do desejo.
No entanto, gostaríamos de destacar que é a análise e o estudo de uma patologia, a
histeria, que levam Freud a formular uma série de postulados sobre o funcionamento psíquico
normal. Na histeria, havia um conflito psíquico diante de representações de desejo
incompatíveis, assim como a ação de uma força de defesa que opera a repressão do afeto
desprazeroso e, finalmente, uma formação de compromisso que confere um destino
142
Qual seria a natureza destas forças que interagem ou inibem uma à outra? A teoria dos
instintos encontra sua formulação básica nesse interjogo de forças antagônicas, que se opõem
e entram em conflito. A noção de conflito como constitutiva do funcionamento psíquico
recebe formulações no quadro da teoria dos instintos. Na realidade, o conceito de instinto e
sua divisão em uma dualidade irredutível – os instintos sexuais em oposição aos instintos de
autoconservação – vêm apoiar aquelas noções anteriores de conflito que recaem sobre as
noções de representação e repressão.
144
Ainda a respeito da etiologia da histeria, dez anos após a Interpretação dos sonhos,
Freud oferece explicações sobre a causa de alterações psicogênicas da visão – cegueira
histérica – por meio do ponto de vista da psicanálise, isto é, por meio da noção de conflito
psíquico. Afirma Freud (1910a, p. 223):
Mas qual pode ser a origem dessa oposição que provoca repressão entre o ego e os
vários grupos de ideias? [...] Nossa atenção foi atraída para a importância dos
instintos na vida ideacional. Descobrimos que cada instinto procura tornar-se efetivo
por meio de ideias ativantes que estejam em harmonia como seus objetivos. Estes
instintos nem sempre são compatíveis entre si; seus interesses amiúde entram em
conflito. A oposição entre as ideias é apenas uma expressão das lutas entre os vários
instintos. Do ponto de vista de nossa tentativa de explicação, uma parte
extremamente importante é desempenhada pela inegável oposição entre os instintos
que favorecem a sexualidade, a consecução da satisfação sexual, e os demais
instintos que têm por objetivo a autopreservação do indivíduo – os instintos do ego
(FREUD, 1910a, p. 223).
que podem revelar-se perigosos para o reprimido, e à reações incômodas por parte do ego. Os
sintomas das neuroses emergem, segundo Freud (1910a), dessas duas classes de fenômenos e
têm em sua origem um conflito entre duas forças contrárias que exigem serem atendidas.
Nota-se que a distinção entre dois instintos básicos que entram em oposição
representam um suporte econômico para a ação da instância repressora. Se, em 1896, no
quadro das psiconeuroses de defesa, o recalque era atribuído ao simples desenvolvimento da
moralidade, aqui o conflito psíquico se torna mais complexo na medida em que estão servindo
a interesses fundamentais do ser humano, isto é, a instintos do ego e a instintos sexuais. O
conflito causador do sintoma ocorre uma vez que os instintos sexuais se tornam ameaçadores
para o ego, e se revelam contrários aos instintos de auto-conservação, que visam a protegê-lo.
Esses instintos de autoconservação operam a repressão dos instintos sexuais indesejáveis,
mas, com isso, desencadeiam uma situação em que perdem o domínio sobre o órgão ligado à
visão, como, por exemplo, no caso da cegueira histérica. Em função de exigências excessivas,
os instintos sexuais que estavam associados ao prazer de olhar, atraem a atenção da ação
defensiva dos instintos do ego. A repressão destes incide sobre as ideias através das quais os
desejos sexuais se expressam, impedindo-as de se tornarem conscientes. A visão seria
perturbada porque os instintos do ego perderam seu domínio sobre o órgão para os instintos
sexuais reprimidos.
Portanto, neste contexto da primeira tópica e da primeira teoria instintual, Freud
(1910a) explica a natureza das neuroses como fruto de um conflito entre as duas grandes
classes instintuais. “O conflito primário que leva às neuroses é um conflito entre os instintos
sexuais e os instintos que sustentam o ego”, e as neuroses consistem em casos em que o
interesse sexual deixa de coincidir com os interesses de autopreservação (FREUD, 1913b,
p.184). “As neuroses representam uma dominação mais ou menos parcial do ego pela
sexualidade, depois de terem falhado os esforços do ego para reprimi-la” (FREUD, 1913b,
p.184). Finalmente, Freud (1913a, p.270) considera toda neurose como “os produtos finais
desses conflitos que levaram à ‘repressão’ e à ‘cisão’ da psique”. Os sintomas neuróticos são
produtos da repressão dos instintos sexuais e, nesse sentido, são formações substitutivas
disfarçadas para a satisfação daqueles. Freud afirma que não há diferenças fundamentais entre
o normal e o patológico, e que a distinção entre tais estados estaria na solução realizada pelos
conflitos:
O conflito psíquico, base da qual Freud parte para explicar a patologia, está presente,
também, nos estados normais. A ideia de conflito é assim vista como inerente ao psiquismo e
à vida em sociedade. O que caracterizaria a diferença entre os estados patológicos e os estados
considerados normais é a solução encontrada diante do conflito psíquico. Quanto maior for o
prejuízo que a solução traz para o ego, maior é o grau de comprometimento do psiquismo.
Assim, a patologia difere dos processos normais na medida em que têm seu funcionamento
comprometido por conta da intensidade do conflito e da solução diante deste.
Como vimos, a noção de conflito psíquico pode ser considerada em dois vieses que se
relacionam: o da teoria dos instintos e o dos dois sistemas do aparelho psíquico. Segundo
Caropreso (2011), nesse momento da teoria freudiana (1900-1915), a repressão e a formação
dos sintomas são concebidas como processos oriundos de desejos e da oposição exercida
sobre estes pelo processo secundário. Dessa maneira, a noção de conflito como constitutiva do
aparelho psíquico pode ser formulada seja em termos de interação e oposição de forças
instintuais – termos econômicos –, seja em termos de interação e oposição entre os sistemas
inconsciente e pré-consciente/consciente na primeira tópica.
A respeito do conflito com base na teoria dos instintos, cuja formulação última
encontra-se em Além do princípio do prazer, Freud (1905, 1914, 1920) produziu basicamente
três pontos de vista ao longo de sua obra. Inicialmente, a partir de dois instintos básicos: os
instintos sexuais em oposição aos instintos do ego ou de autoconservação. Os instintos
sexuais que, segundo Freud, estão ligados à etiologia das neuroses de transferências, foram
descritos mais detalhadamente que os instintos do ego, mais relacionados às neuroses
narcísicas – estas permitirão uma compreensão aprofundada da constituição e da ação dos
instintos do ego. Escreve Freud (1916-1917[1915-1917], p.347):
Devemos estar preparados para constatar que nossos pontos de vista estarão sujeitos
ainda a outras ampliações e reavaliações, quando pudermos levar em consideração
não apenas a histeria e a neurose obsessiva, como também as outras neuroses, as
neuroses narcísicas.
Em 1914, o conflito psíquico é tematizado por meio da oposição entre libido do ego
(libido narcísica) e libido objetal. Freud reconhece que também a libido a serviço do ego,
como aquela investida nos objetos, é de natureza sexual; a libido adota, primariamente, o
próprio ego do sujeito como objeto, tornando uma porção dos instintos do ego de natureza
147
libidinal. No entanto, mantém-se a oposição entre duas energias instintuais: a libido do ego
como oriunda de fontes eróticas, em oposição a um interesse do ego ou interesse em geral.
Ainda nesse contexto, a oposição conflituosa entre amor e ódio, fruto da ambivalência
afetiva, é formulada em consonância com a oposição instinto sexual e instinto do ego. As
tendências de ódio derivam dos instintos do ego e das sensações desprazerosas, enquanto o
amor deriva dos instintos sexuais e das relações de prazer com os objetos. Segundo Freud
(1915), a oposição entre o amor e o ódio, que caracteriza a ambivalência afetiva, não surge de
uma cisão de algo primariamente comum e, sim, de origens diversas, nas quais cada um segue
sua própria evolução, antes de se formar um par de opostos. O amor e ódio tornam-se par de
opostos mais tardiamente, somente com o estabelecimento da organização genital sob a
influência da relação prazer-desprazer. De acordo com o autor, o amor deriva da capacidade
do ego para satisfazer autoeroticamente uma parte de seus impulsos instintuais para obter o
prazer de órgão. Sendo em sua origem narcísico, ou seja, consistindo em um amor pelo
próprio ego, o amor passa, em seguida, deste para os objetos que são incorporados em seu
interior, e revela uma busca desse ego por esses objetos enquanto fontes de prazer. O primeiro
estágio do amor coincide então com o narcisismo, um tipo de amor compatível com a
abolição da existência separada do objeto, cuja principal característica é o incorporar ou o
devorar. Em seguida, no estágio de organização sádico anal pré-genital da libido, surge a
busca de objeto, caracterizada pelo impulso de apoderamento. Na fase seguinte, com a
organização genital, o amor se torna finalmente o contrário do ódio (FREUD, 1915). Já o ódio
é muito mais antigo que o amor, e surge da rejeição primordial do mundo externo como fonte
de afluxo de estímulos, por parte do ego narcísico. Assim, o ódio é expressão da reação de
desprazer provocada pelos objetos, permanecendo em relação com os instintos de
autoconservação ou de conservação do ego.
O ódio mesclado ao amor procede em parte dos estágios preliminares do amor, não
superados inteiramente, e de outra parte se fundamenta nas reações de rejeição dos
instintos do Eu, que nos frequentes conflitos entre interesses do Eu e do amor podem
invocar motivos reais ou atuais (FREUD, 1915, p.80).
No quadro geral da segundo tópica, o conflito instintual recebe nova formatação sob as
ideias de instinto de vida e instinto de morte em Além do princípio do prazer (FREUD, 1920).
Tal noção é amplamente discutida no livro Mal-estar na civilização (FREUD, 1930), e o
conflito surge entre as exigências opostas dos instintos de vida e de morte e, mais ainda, entre
as necessidades da civilização em oposição às do indivíduo. O instinto de vida está ligado ao
estabelecimento e à expansão da civilização, ao que o instinto de morte opõe-se, exigindo sua
satisfação sob a forma de impulsos destrutivos. O indivíduo é pressionado a renunciar a seus
impulsos diante das limitações civilizatórias. E assim, ao empreender tal renuncia, é obrigado
a lidar com um conflito intrapsíquico que se estabelece em função da exigência dos impulsos
agressivos não satisfeitos se voltarem contra o próprio ego. O sentimento de culpa, nesse
contexto, é compreendido como expressão do conflito que resulta da interdição da satisfação
exigida pelo instinto de morte que se volta para o próprio ego.
Em O eu e o id (FREUD, 1923), encontramos a formulação do conflito em termos
tópicos. Na esfera da segunda tópica, o conflito psíquico é tematizado em função da interação
entre as instâncias psíquicas: ego, id e superego. O id representa as exigências dos instintos,
enquanto o superego representa as proibições morais e as exigências dos ideais. O aparelho
psíquico estaria, dentro desse quadro, sujeito a constantes conflitos, já que sempre seria
obrigado a lidar com as oposições advindas das exigências de satisfação dos instintos diante
das proibições impostas pelo superego. O conflito neurótico é, então, deslocado da oposição
anterior entre os sistemas consciente e inconsciente para uma oposição entre o ego coerente e
o reprimido que se desprendeu dele.
Em Neurose e psicose, Freud (1924[1923]) descreve o ego como sendo
constitucionalmente vulnerável a possíveis conflitos, já que se encontra na difícil posição de
servir a três “senhores” ao mesmo tempo: o id, o superego e a realidade externa. Assim, a
neurose seria o resultado de um conflito entre o eu e o id; a psicose, um resultado do conflito
entre o ego e a realidade externa; já a melancolia, também denominada de neurose narcísica,
seria o resultado de um conflito entre o ego e a instância crítica do superego. Freud reconhece
a etiologia comum da neurose e da psicose como advinda de uma frustração externa dos
desejos sexuais da infância, considerando-se que tal frustração também pode resultar da
agência interna que se encarrega de representar as exigências da realidade, o superego. A
frustração incide sobre o ego, e seu efeito, patológico ou não, depende da maneira como este,
diante da tensão conflituosa, procura silenciar o id e se manter fiel à realidade externa. Nos
casos de psicose, o ego se deixa derrotar pelo id e se afasta da realidade para amenizar o
conflito. Freud (1924[1923], p.182) afirma que “neuroses e psicoses nascem dos conflitos do
149
Frente a isso, a diferença essencial entre o normal e o patológico repousa nos destinos
conferidos ao conflito e no quanto eles são mais ou menos comprometedores do
funcionamento do ego. Este é responsável por administrar o conflito, buscando o mínimo de
prejuízo possível para suas funções, o que nem sempre é possível, diante de poderosas forças
que entram em jogo.
Vemos, assim, que a noção de conflito é formulada por Freud de maneiras diversas ao
longo de sua obra. Há, contudo, um conflito básico que, segundo a psicanálise, constitui o
conflito nuclear do ser humano: o complexo de Édipo. Embora sua ideia seja muito anterior, o
complexo de Édipo aparece explicitamente formulado pela primeira vez em 1910, em Um tipo
especial de escolha de objeto feita pelos homens (FREUD, 1910c). Nesse complexo, é
possível observar a ação de todas as formas de conflitos apontadas anteriormente, seja no
registro instintual ou no tópico. Assim, ele acompanha as diversas reformulações e avanços
operados na noção freudiana de conflito psíquico. Tal conflito também é inerente ao aparelho
psíquico, sendo impossível escapar desse complexo ao qual, segundo Freud (1916-
1917[1915-1917]), todos os seres humanos estão submetidos. No entanto, o que diferencia a
pessoa normal e o neurótico é que este permaneceria submetido ao complexo, enquanto o
primeiro teria alcançado sucesso em se desembaraçar dele.
O período decisivo para essa tarefa é a puberdade, fase na qual os sentimentos
edípicos ressurgem em toda sua potência: “Dessa época em diante, o indivíduo humano tem
de se dedicar à grande tarefa de desvincular-se de seus pais e, enquanto essa tarefa não for
cumprida, ela não pode deixar de ser uma criança para se tornar membro da comunidade
150
O superego é fruto desse conflito, na medida em que, por meio da identificação com as
figuras paterna e materna, leva a criança a internalizar as proibições morais e as exigências e
ideais próprios de nossa civilização. Enquanto o superego tem um papel importante na
repressão dos impulsos advindos do id, o eu se encontra diante do conflito de satisfazer suas
exigências e ser castigado pelo sádico superego, ou de renunciar àquelas permanecendo
suscetível à neurose. Segundo Laplanche e Pontalis (1998, p.92), no complexo de Édipo, o
conflito “já está inscrito de forma pré-subjetiva como conjunção dialética e originária do
desejo e da interdição”.
Tal conflito, chamado “edipiano”, se instala à medida que, no caso do menino, por
exemplo, os impulsos amorosos direcionados à figura materna se intensificam na fase fálica,
ao mesmo tempo em que os impulsos agressivos e a rivalidade com a figura paterna também
se intensificam, por esta figura assumir o papel de interdição da satisfação. No entanto, esse
conflito não é tão simples como é comumente abordado.
Tanto a menina quanto o menino vivenciam esse complexo em duas direções, já que
vivenciam sentimentos ambivalentes, isto é, sentimentos concomitantes de amor e ódio, em
relação a ambos os genitores. Além disso, há o papel desempenhado pela bissexualidade. Esta
exerce um aspecto fundamental nesse contexto, pois, além de estar ligada ao conflito, devido
à ambivalência afetiva, incrementa as dificuldades da dissolução dele. Segundo Freud (1923),
o desenlace da situação edípica, na qual estão imersos tanto a menina quanto o menino, em
identificações com as figuras materna ou paterna, depende da força relativa das suas
disposições sexuais relativas à bissexualidade. Esta intervém no complexo de Édipo, se
expressando em conflitos ambivalentes em relação aos genitores e está ligada à sua resolução.
Na esteira do que procuramos elucidar, essa afirmação traz à tona a noção freudiana de
que os mesmos elementos estão presentes na normalidade e na patologia, sendo o complexo
de Édipo parte do caminho que o desenvolvimento humano percorre rumo à vida adulta. Os
elementos mais assustadores, que geralmente estão em evidência nos estados alterados, ou
seja, neuróticos, como os desejos incestuosos, assassinos e pervertidos, fizeram parte da
evolução de todos de tal maneira que é necessário tornar claro em que medida a neurose se
diferencia da normalidade na visão freudiana. Nesse longo caminho do desenvolvimento
humano, que na linguagem freudiana é chamado de desenvolvimento da libido, são deixadas
marcas que, junto à intensidade do conflito gerado, resultam em possíveis regressões e
distorções do funcionamento psíquico. Freud não considera nítida a fronteira entre o normal e
153
o patológico e, no que se refere à distinção, ele recorre ao complexo de Édipo para traçar ao
menos uma delimitação entre aqueles.
Assim, Freud atribui à passagem pelo complexo de Édipo e, à sua dissolução em maior
ou menor grau, a definição de normal ou patológico, supondo que se o complexo persiste de
maneira viva no Id, seus elementos poderiam se tornam patogênicos. A teoria do conflito
assume contornos mais precisos quando analisada sob esta ótica: é justamente a submissão ou
rivalidade em relação à figura paterna, no caso do menino, ou uma intensa fixação à figura
materna e uma dificuldade de se desprender desse objeto original, que será a fonte do conflito,
e, por sua vez, da patologia à qual o sujeito permanecerá submetido em sua neurose. O
indivíduo, desse modo, permanecerá submetido a um conflito entre duas forças: o desejo e a
interdição; mas não tão simples assim, também pode haver um desejo de liberdade dessa
triangulação original, que demanda ao indivíduo escolher outros objetos e outras modalidades
de relações. No entanto, a força original ligada ao complexo de Édipo pode se tornar
aprisionadora, não permitindo ao indivíduo sair desse registro e o submetendo aos sintomas
neuróticos. Nesse caso, além do conflito entre o desejo e a interdição, haveria também o
embate entre o desejo de constituir-se como indivíduo autônomo e independente e uma força
contrária que o prende e o submete ao complexo.
Na passagem anteriormente citada, notamos, também, o papel da repressão como
central na dissolução do complexo de Édipo. Presente desde muito cedo em sua teoria, ela não
é abandonada jamais: “a teoria da repressão tornou-se o pilar da compreensão das neuroses”,
sendo possível “partir da repressão, como de um centro, e pôr e relação com ela todos os
elementos da teoria psicanalítica” (FREUD, 1925[1924], p.106-107). Freud destaca o papel da
repressão em relação aos processos normais e, adiante, aos processos patológicos:
Foi simples, então, reconstituir o processo patogênico. Para ficar num exemplo fácil,
digamos que aparece na vida psíquica uma única tendência, à qual outras tendências
poderosas se opõem. Segundo nossa expectativa, o conflito psíquico que então surge
deveria transcorrer de modo que as duas grandezas dinâmicas – vamos chamá-las,
para nossos propósitos, ‘instinto’ e ‘resistência’ – lutassem entre si por algum
tempo, com forte participação da consciência, até que o instinto fosse rechaçado,
154
Mas na neurose – por razões ainda não conhecidas – o conflito tem outro desfecho.
O Eu como que se retrai no primeiro encontro como o impulso instintual repulsivo,
barra-lhe o acesso à consciência e à descarga motora direta, mas este conserva seu
pleno investimento de energia. Denominei este processo de repressão. Era algo
novo, nada semelhante a ele fora notado antes na vida psíquica. Era claramente um
mecanismo de defesa primário, comparável a uma tentativa de fuga, um precursor
do julgamento condenatório normal. (ibid.).
Portanto, Freud reconhece, na repressão, uma defesa primária contra o conflito. Trata-
se, contudo, de uma solução que tem um alto preço, pois, como veremos abaixo, exige do ego
um consumo de energia contínuo para suportar a realização dessa tarefa, em um processo
chamado de contrainvestimento. Acontece que, no tocante a essa repressão primária, o
conflito é eliminado por meio de uma barragem do instinto repulsivo da consciência e de seu
exílio no inconsciente. Todavia, o instinto permanece portador de toda sua potência
energética, que não pode ser eliminada e, muito menos, descarregada pelas vias adequadas.
Vejamos as consequências do referido processo, que nos trará de forma clara a sua diferença
em relação à normalidade:
É possível vislumbrar, nessa passagem, dois aspectos que, em seu conjunto, formam a
noção de patologia, segundo a teoria freudiana do conflito. O primeiro aspecto patogênico, a
partir da teoria do conflito, consiste em um empobrecimento do ego: uma vez que o ego vê-se
obrigado a reprimir um instinto em função do conflito gerado por este, uma grande soma de
sua energia será direcionada para manter a repressão. A repressão, nesse sentido, exige um
dispêndio de força para a sua manutenção. O segundo aspecto patogênico, segundo Freud,
está na possibilidade da formação dos sintomas por meio das satisfações substitutivas. Estes
155
Sabe-se que as precondições etiológicas da neurose ainda não são conhecidas com
certeza. Os fatores que a ocasionam são frustrações e conflitos internos, conflitos
entre as três grandes instâncias psíquicas, no interior da economia libidinal,
consequentes à nossa constituição bissexual, e entre os componentes instintuais
eróticos e agressivos. A psicologia das neuroses se empenham em averiguar o que
torna patogênico esses processos, pertencentes ao curso normal da vida psíquica
(FREUD, 1931, p. 370).
156
rico desenvolvimento teórico, Freud se lançou a inferir de que maneira são atingidas tais
formatações. A neurose e a psicose foram compreendidas, nesse contexto, como falhas,
inibições ou desvios ao longo desse processo evolutivo.
Freud (1916-1917[1915-1917]) parte da premissa de que a função libidinal passa por
uma prolongada evolução até ser posta a serviço da reprodução. No entanto, essa evolução
não ocorre sem perigos, devido ao fato de que nem todas as fases iniciais são ultrapassadas
com êxito de maneira ideal e muito menos superadas completamente: “partes da função serão
retidas permanentemente nesses estádios iniciais e o quadro total do desenvolvimento será
limitado por determinada quantidade de inibição de desenvolvimento” (FREUD, 1916-
1917[1915-1917], p. 343). Assim, é possível que alguns aspectos das funções sexuais fiquem
para trás, em estádios anteriores de seu desenvolvimento, enquanto outros aspectos possam ter
atingido o seu objeto final. O retardamento ou a retenção de uma tendência parcial em um
estádio anterior é definido como fixação do instinto.
Como vimos, o conflito é inerente à vida psíquica e deve ser absorvido pelas funções
do psiquismo, o que depende da aquisição de recursos ao longo do desenvolvimento. Da
mesma maneira que a sexualidade adulta, uma mente sadia também depende de uma história
evolutiva, que envolve relações de objetos e não somente uma determinação biológica. Os
conflitos atuais e as possibilidades de lidar com eles dependem dessa história de
desenvolvimento. Portanto, as perturbações no funcionamento adulto devem ser
compreendidas na história dessa evolução e, quanto mais perturbações sofridas durante a
evolução, mais provável será o aparecimento de neuroses ou comprometimentos na vida
adulta. Tais noções constituem os princípios básicos da psicanálise.
As noções de fixação e regressão, em conjunto com a de conflito, oferecem as bases
para compreender a concepção de normal e patológico, bem como os mecanismos de
formação dos sintomas na teoria freudiana. A fixação se refere às marcas sofridas ao longo da
evolução do desenvolvimento do psiquismo e é definida basicamente como um apego intenso
da libido a determinadas fases do desenvolvimento psicossexual e a objetos libidinais da
infância. No entanto, conforme pudemos observar no tocante à noção de conflito, a noção de
fixação não é simples e nem pode ser reduzida a uma única definição, já que se entrelaça ao
emaranhado de conceitos e noções que compõem o edifício da psicanálise freudiana.
A que se devem os conflitos descritos anteriormente? O que está na raiz de um desejo
que, na idade adulta, entra em conflito com as proibições superegoicas e origina um conflito
neurótico? A noção de fixação é inserida justamente neste espaço, entre um conflito atual e as
marcas constitutivas do desenvolvimento psicossexual, que compõem a história de cada ser
158
humano. Tais marcas são preservadas e poderão ter papel preponderante no funcionamento
psíquico atual, definindo não só quais conflitos o afetarão, mas também as características de
seu caráter e a maneira pela qual ele se relacionará com seus objetos. Como vimos, para
Freud, os comprometimentos psíquicos não se devem a uma diferenciação entre o normal e
patológico em nível de diferença estrutural, mas a uma diferença de grau e intensidade de
conflitos. A noção de fixação também será compreendida sob esse prisma: todos são
marcados por fixações ao longo do seu desenvolvimento; contudo, o que torna a fixação fonte
da determinação de um caráter ou de um distúrbio maior ou menor é a intensidade de tais
fixações. Desse ponto de vista, da mesma maneira que ninguém está livre de conflitos, é
impensável escapar das fixações: são elas mesmas que nos definem e oferecem contornos
particulares à nossa personalidade.
Segundo Freud (1916-1917[1915-1917], p. 345), para compreendermos as neuroses, é
importante ter em vista a relação entre fixação e regressão; “isto lhes dará maior segurança, ao
enfrentarem a questão da formação das neuroses – a questão da etiologia das neuroses”, diz o
autor. Assim, de acordo com a importância dessas noções para o entendimento dos aspectos
etiológicos das psicopatologias, pretendemos realizar uma explanação das noções de fixação e
regressão na teoria freudiana, procurando compreender suas implicações para a formação do
psiquismo e dos estados patológicos. Dessa forma, estaremos mais aptos a compreender o
papel da fixação e do conflito no distúrbio da melancolia. Neste tópico, abordaremos a noção
de fixação e, no seguinte, a de regressão.
Laplanche e Pontalis (1998) definem a fixação como o apego intenso da libido a
pessoas ou a imagos, à reprodução de determinados modos de satisfação aos quais a pessoa
permanece apegada e à permanente organização da libido, segundo a estrutura característica
de um ou mais de seus estágios evolutivos. A noção de fixação é estreitamente ligada à de
regressão, pois aquela pode ser manifesta e atual ou constituir uma virtualidade prevalente
que abre ao sujeito a via de uma regressão a fases anteriores do desenvolvimento, às quais a
libido permaneceu fixada. A noção de fixação é geralmente compreendida no quadro da teoria
da sexualidade infantil, que passa por uma progressão ordenada ao longo do desenvolvimento.
A fixação ocorre, assim, em relação a um ou mais estádios do desenvolvimento, em que a
libido ficaria ligada a modos de satisfação específicos, a tipos de objetos de satisfação ou de
modos de relação arcaicas. Segundo os autores, de maneira mais geral, a fixação pode
designar o modo de inscrição de certos conteúdos representativos - como experiências,
imagos, fantasias -, que persistem no inconsciente de maneira inalterada e nos quais a pulsão
permanece ligada.
159
A ideia de fixação surge, na pena de Freud, como uma marca deixada por um trauma
passado que permanece ligado ao sujeito. A neurose, explicada de maneira mais simples, se
deveria à incapacidade de assimilar o evento traumático que, por sua vez, permanece fixado
no psiquismo. Ao longo de sua obra, a noção de fixação vai sendo elaborada e torna-se cada
vez mais complexa, embora este sentido inicial, de uma marca que persiste, não seja
descartado. Assim, a noção de fixação é mais comumente ligada à teoria da libido e
desenvolvida em torno das noções de sexualidade infantil, instinto sexual e desenvolvimento
psicossexual, propostas nos Três ensaios (FREUD, 1905).
Embora a noção de fixação já apareça em seus primeiros trabalhos psicanalíticos para
descrever o apego a um evento traumático passado relacionado à origem das neuroses, é
somente em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade que Freud (1905) formula tal noção
de maneira mais completa. De modo geral, a noção de fixação aparece associada à
sexualidade infantil e aos momentos iniciais da constituição do psiquismo. Como vimos
anteriormente, Freud postula sua teoria do conflito a partir de uma dualidade, de um par de
opostos, entre uma força e um grupo que a ela se opõe. Vejamos: “Já mencionei que a
pesquisa das causas e motivações da neurose nos levou, com frequência cada vez maior, aos
conflitos entre os impulsos sexuais da pessoa e as resistências à sexualidade” (FREUD,
1925[1924], p. 111). Em função dos conflitos serem de natureza sexual, Freud é levado a
compreender o papel da sexualidade na vida psíquica, o que acarreta descobertas e
formulações importantes em sua teoria. Seguiremos os passos da importância da sexualidade
na vida psíquica e na formação da patologia por meio da noção de fixação. Segundo Freud
(ibid.):
Isso leva Freud a postular não só a existência de uma relação entre a patologia e a
sexualidade, mas a formular o desenvolvimento da sexualidade infantil desde a mais tenra
infância:
Foi apenas com a ajuda da investigação psicanalítica das neuroses que se tornou
possível descobrir as fases ainda mais precoces do desenvolvimento da libido. Para
dizer a verdade, estas não são senão hipóteses; mas, se os senhores efetuarem a
psicanálise na prática, verificarão que são hipóteses necessárias e úteis. Em breve
irão saber como sucede a patologia poder, aqui, revelar-nos a existência de conexão
que inevitavelmente deixaríamos de perceber em uma pessoa normal (FREUD,
1916-1917[1915-1917], p. 331).
Quanto mais primitivas e graves eram as neuroses de seus pacientes, mais se tornava
possível para Freud compreender aspectos do início da formação do psiquismo, e postular, em
seguida, uma linha evolutiva de desenvolvimento normal. A todo o momento, observamos
que a teoria freudiana da normalidade é constituída e balizada pelo paradigma da patologia.
No tocante à temática da sexualidade, a ampliação oferecida foi assim resumida:
Diante disso, vemos que Freud considera os elementos que observa nos adultos como
constitutivos do aparelho psíquico. Por sexual, Freud (1905) entende as atividades de prazer,
incertas e indeterminadas, de toda a primeira infância. Sobre a ampliação do conceito de
sexualidade, Freud escreve:
161
Primeiro, a sexualidade é afastada de seu vinculo por demais estreito com os genitais
e caracterizada como uma função somática mais abrangente, que visa o prazer e só
secundariamente entra a serviço da procriação. Em segundo lugar, são incluídos
entre os impulsos sexuais todos aqueles apenas afetuosos e amigáveis, para os quais
a linguagem corrente utiliza a polivalente palavra ‘amor’. (FREUD, 1925[1924], p.
118).
Freud procura desfazer a noção corriqueira e comum de que sexual e genital são
coincidentes. Assim, podemos ler: “não podemos evitar de postular a existência de algo
‘sexual’ que não é genital – que não tem nenhuma relação com a reprodução” [e de] “estender
a descrição de ‘sexual’ também às atividades do início da infância que buscam o prazer do
órgão” (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p. 326-329). Dito de outra forma, Freud desconstrói
a concepção popular que atribui ao instinto sexual um fim e objeto único e específico, e que o
localiza nas excitações e no funcionamento do aparelho genital. Para Freud (1913, p. 333), “a
psicanálise depende em absoluto do reconhecimento dos instintos sexuais parciais, das zonas
erógenas e da expansão que assim se obteve do conceito de ‘função sexual’, em contraste com
o mais estrito de ‘função genital’”. O autor vai procurar mostrar como o objeto do instinto
pode ser variável e contingente e que toma suas formas definitivas na idade adulta em função
das vicissitudes da história de cada indivíduo e de suas relações. Freud também mostra que os
objetivos ou metas do instinto sexual são múltiplos, parciais e estritamente dependentes de
fontes somáticas. Estas, igualmente múltiplas, são suscetíveis a ter, para o sujeito, funções
prevalentes – embora variáveis (LAPLANCHE e PONTALIS, 1998).
Como vemos, Freud (1905) opera várias mudanças de perspectivas estabelecidas por
sua época; não só postulando uma atividade sexual infantil e descolando as inseparáveis
noções de sexual e genital, mas, também, fazendo coincidir o desenvolvimento do psiquismo
com o do sexual, de tal forma que se tornou mais pertinente se referir ao desenvolvimento
psíquico como psicossexual da libido. Isso explicaria o motivo de as neuroses de transferência
apresentarem comumente conteúdos de natureza sexual, pois tal evolução faz parte da
formação mesma da vida psíquica. O fato de se atrelar a evolução do psiquismo à da
sexualidade torna a constituição de ambas indissociáveis. Para se compreender melhor essa
relação entre sexualidade e desenvolvimento psíquico, é necessário nos determos por um
instante no conceito de instinto/pulsão. Afinal, tal relação está assentada sobre o princípio de
constância, de maneira que o desenvolvimento psíquico ocorre para atender às exigências das
pressões geradas pelo instinto sexual.
A introdução dos termos pulsão ou instinto constitui-se em outra contribuição
marcante dos Três ensaios (FREUD, 1905). Ambos os termos correspondem à palavra alemã
162
Trieb, empregada por Freud, e, em torno deles, existem muitas polêmicas não só sobre o seu
significado conceitual, mas, também, sobre os termos mais apropriados para sua tradução. Em
suma, Freud utilizou de maneira diferenciada os termos Trieb e Instinkt, reservando o
primeiro para um uso mais específico em sua teoria, como um conceito, e o segundo,
raramente utilizado, para referir-se à noção de instinto determinante característico da biologia.
No entanto, em inglês e em português, é comum se utilizar instinto para traduzir Trieb,
enquanto, em francês, o comum é o termo pulsão. O termo instinto foi introduzido para
designar um processo dinâmico, consistindo em um impulso que tende o organismo para um
fim ou objetivo, que é, em última instância, a descarga das tensões. Por conta das polêmicas e
discussões em torno do termo instinto, este é um conceito que requer, quando abordado, certa
precisão. Segundo Laplanche e Pontalis (1998), um instinto tem sua fonte em uma excitação
corporal que gera um estado de tensão. Seu objetivo ou meta é suprimir tal estado de tensão
que impera sobre a fonte instintual. E é no objeto ou graças a ele que o instinto pode atingir
sua meta. Em 1915, Freud define, no artigo O instinto e seus destinos, a pulsão/instinto, como
um conceito limite entre o psíquico e o somático e afirma que o desejo é o representante
psíquico do instinto. Com isso, ele liga a noção de instinto à de representação, pela qual
entende uma maneira de delegação enviada ao psiquismo pelo somático. A pulsão ou instinto
– termos que usamos aqui como sinônimos para corresponder à palavra alemã Trieb –, do
lado somático, acha sua fonte nos fenômenos orgânicos geradores de tensões internas das
quais o sujeito não pode escapar, enquanto, pela meta que ela visa e os objetos aos quais ela
se liga, encontra um destino essencialmente psíquico. Freud formula tal noção da seguinte
maneira:
É a essa situação fronteiriça do instinto que Laplanche e Pontalis (1998) vão se referir
para explicar o fato de Freud recorrer à noção de representante, que consistiria em uma forma
de delegação, isto é, de representação, do somático no psíquico. Os autores mostram que
instinto adquire, então, duas faces: uma enquanto representante psíquico das excitações que
provém do interior do corpo, e outra como o próprio processo de excitação somática. Ou seja,
o instinto é representado no psiquismo pelos representantes do instinto – estes
compreendendo dois elementos, o representante-representação e o quantum de afeto.
163
[a] vida sexual (ou, conforme dizemos, a função libidinal) não emerge como algo
pronto e nem tem seu desenvolvimento ulterior ditado pelo seu próprio aspecto
inicial, mas passa por uma serie de fases sucessivas que não se parece entre si; sua
evolução repete-se, portanto, várias vezes – como o da lagarta em borboleta
(FREUD, 1916-1917[1915-1917], p. 332).
A teoria das fases não é uma teoria desenvolvimentista nem no sentido de Gesell,
nem no sentido de Piaget. Isto é, ela não implica nem na ideia de que as fases
existam em potência no indivíduo, Gesell, nem que a presença de uma fase acarrete
o desaparecimento anterior, como em Piaget. A construção das fases se dá como
camadas sobrepostas, cuja interação permite dar conta de seus efeitos. Em nenhum
momento, uma fase pode ser entendida como englobando todas as anteriores ou
realizando uma síntese. É no interior de cada estrutura que se produz o processo que
leva à produção da seguinte. Esta é inteiramente descontínua com a anterior, não era
esperada, mas coexiste com aquela.
165
Para uma caracterização geral dos instintos sexuais podemos dizer o seguinte: eles
são numerosos, originam-se de múltiplas fontes orgânicas, atuam de início
independentemente uns dos outros, e apenas bem depois são reunidos numa síntese
mais ou menos completa. A meta que cada um deles procura atingir é o prazer do
órgão; somente após efetuada a síntese eles entram a serviço da função reprodutiva,
tornando-se geralmente conhecidos como instintos sexuais. Ao aparecer, apoiam-se
inicialmente nos instintos de conservação. Dos quais se desligam apenas aos poucos,
e seguem também na busca de objeto os caminhos que lhes mostram os instintos do
Eu. Uma parte deles permanece a vida inteira associada aos instintos do Eu,
dotando-os de componentes libidinais, que na função normal são facilmente
ignorados, e apenas quando há doença surgem claramente. Caracterizam-se pelo fato
de poderem, em larga medida, agir vicariamente uns pelos outros, e trocar
facilmente seus objetos. Devido a esses atributos, são capazes de realizações que se
acham bem afastadas de suas originais ações dotadas de objetivo (sublimação)
(FREUD, 1915, p. 63-64).
anal. Ademais, Freud afirma que os instintos escopofílicos (olhar) e epistemológicos (adquirir
conhecimento) estão fortemente em atividade.
Os instintos componentes parciais desta fase não existem sem objetos, mas esses
objetos não convergem necessariamente em um único objeto. A organização sádico-
anal é o precursor imediato de primazia genital. Um estudo detalhado mostra quanto
dele se mantém na forma definitiva e ulterior das coisas, e, revela a forma em que
seus instintos parciais são compelidos a tomar seu lugar na nova organização genital
(FREUD, 1916-1917[1915-1917], p. 331).
Vem daí o nome conferido a essa organização, já que, mais que sobre a primazia dos
genitais, o que encontramos neste estádio, segundo Freud, é a primazia do falo. Esse órgão,
que se excita facilmente, ocupa um alto grau de interesse no menino e continuamente impõe
tarefas ao seu impulso investigador. As características que esse membro adquirirá na vida
169
adulta se manifestam, aqui, como esforço de investigação, como curiosidade sexual. Quanto
ao par de opostos atividade-passividade que predomina na organização anal, se transforma no
par fálico-castrado. A oposição masculino-feminino encontrará uma definição somente na
puberdade, na qual o primeiro reúne o sujeito, a atividade e a posse do pênis e, o segundo,
assume o objeto e a passividade (FREUD, 1923b). O complexo de Édipo e o chamado
complexo de castração têm, nessa fase, papel determinante - e a este último é atribuído o
papel da dissolução do complexo de Édipo. O menino reconhece somente o órgão masculino e
interpreta a ausência do pênis no sexo feminino como fruto de uma perda, de uma castração.
Ao mesmo tempo, as atividades excitatórias e masturbatórias da criança serão coibidas pelos
adultos, por meio de ameaças direcionadas ao seu órgão genital ou a membros relacionados,
como a mão, por exemplo (FREUD, 1923b).
Assim, a ameaça de castração é responsável pela coibição dos impulsos sexuais e o
abandono da “organização genital fálica”. No período da organização fálica, simultâneo ao
complexo de Édipo, observamos já uma sexualidade próxima à do adulto, ainda incompleta,
na qual encontramos um objeto sexual e certa convergência das tendências sexuais – à espera
de alcançarem seus objetivos - sobre este objeto.
A criança se encontra em uma atitude edípica ante seus pais, na qual ocorre eleição de
um objeto de amor e o estabelecimento de um rival que se opõe à realização dos objetivos
amorosos. Assim, segundo Freud (1905, p. 220):
Tivemos que registrar como uma das mais surpreendentes descobertas, que essa
eflorescência precoce da vida sexual infantil (dos dois aos cinco anos) também
acarreta uma escolha objetal, com toda a riqueza das realizações anímicas que isso
implica, de modo que a fase correspondente e ligada a ela, apesar da falta de síntese
entre os componentes pulsionais isolados e da incerteza do alvo sexual, de ser
apreciado como uma importante precursora da posterior organização sexual
definitiva.
A autoridade do pai, ou dos pais, introjetada no Eu, forma ali o âmago do Super-eu,
que toma ao pai a severidade, perpetua a sua proibição do incesto e assim garante o
Eu contra o retorno do investimento libidinal de objeto. As tendências libidinais
próprias do complexo de Édipo são dessexualizadas e sublimadas em parte, o que
171
Portanto, declaro, sem mais delongas, que no caso de cada uma das tendências
sexuais, considero possível que algumas partes das mesmas tenham ficado para trás,
em estádios anteriores de seus desenvolvimentos, embora outras partes possam ter
atingido o objeto final. Aqui os senhores reconhecerão que estamos delineando cada
uma dessas tendências como uma corrente que tem sido continua desde o começo da
vida, a qual, porém dividimos, em certa medida artificialmente, em sucessivos
avanços separados. [...] Permitam-me ainda esclarecer que nos propomos descrever
o retardamento de uma tendência parcial num estádio anterior como sendo uma
fixação – isto é, uma fixação do instinto (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p. 344).
Diante disso, a fixação pode ser definida, mais precisamente, como o resultado de
fatores que perturbam o desenvolvimento psicossexual de alguma maneira, por conta de
experiências precoces de satisfações. No fragmento abaixo, Freud (1925[1924], p.116)
escreve sobre a importante conexão entre desenvolvimento sexual infantil, fixação, regressão
e origem da patologia (neurose):
longo percurso de desenvolvimento pode transformar-se num ponto de fixação, cada ponto de
articulação nessa complexa montagem pode ensejar a dissociação da pulsão sexual”.
Importante notar que, no início, os instintos são considerados parciais e independentes e que a
fixação pode ocorrer em uma ou mais dessas atividades instintuais. Em 1915, Freud definiu a
fixação da seguinte maneira:
Desse modo, pode ocorrer a fixação em uma forma de satisfação experenciada nessas
fases, ligadas ou não a objetos que, segundo Freud (1905), não se restringem aos pais da
criança, mas abrangem a gama de pessoas que estabelecem relações afetivas significativas
com aquela. Vale notar, também, que os objetos aos quais é possível se fixar relacionam-se
com a criança de forma particular, estabelecendo, então, modelos de relacionamentos mais ou
menos determinantes. Compreender a fixação não se resume em considerar a fixação como
um simples apego, mas como paradas no desenvolvimento, de forma que os elementos mais
avançados neste podem retornar por um movimento de regressão a uma dessas fases
anteriores. Assim, segundo a noção apresentada por Freud (1905), a função sexual se
desenvolve seguindo um ritmo gradual, cada uma das pulsões parciais podendo apresentar
uma evolução independente, mais ou menos acabada, e se integrando à corrente geral sobre o
primado da organização genital. Pode-se, assim, parar no meio do caminho, fixando-se a uma
fase anterior do desenvolvimento sexual ou a um objeto primitivo de satisfação.
A noção de trauma tem também um papel determinante para essa noção, já que
intervém sob uma sucessão de experiências sexuais e favorece a fixação a um ou outro ponto
determinado durante os estádios de evolução. Nas Lições introdutórias de psicanálise, Freud
(1910d) vai reconhecer a possibilidade de fixação a um traumatismo, noção que se assemelha
ao gênero de traumatismos abordados em seus primeiros trabalhos sobre a histeria. Freud
(1910d, p.33) afirma que a fixação aos traumatismos patogênicos consiste em uma das
características mais importantes da neurose: “essa fixação da vida psíquica aos traumas
patogênicos é um dos caracteres mais importantes da neurose e dos que têm maior
significação prática”. O autor reforça, ainda, a ideia de que uma expressão instintual muito
intensa, em tempos ainda muito precoces, pode produzir uma fixação parcial que consistirá, a
partir disso, em um ponto frágil, um lugar de oposição do reprimido:
174
Enquanto disposição patológica, a fixação deixará um caminho aberto para que, diante
de determinadas condições – frustrações –, a neurose possa se manifestar por meio de um
processo de regressão.
Em seu estudo sobre o presidente Schreber, Freud (1911) procura definir a fixação de
modo ainda mais preciso, como constituindo a primeira fase de toda repressão. Enquanto um
dos instintos componentes não pode seguir sua evolução normal, ele permanece imobilizado
em um estágio infantil, e há uma parada de desenvolvimento. Portanto, o instinto componente
em questão passa a pertencer ao inconsciente como uma corrente reprimida, e como uma
forma de predisposição a uma neurose posterior. A psicanálise, de maneira muito geral, deriva
os fenômenos patológicos do processo de repressão, no qual a fixação ocupa lugar
fundamental na primeira fase do processo:
A primeira fase [da repressão] consiste na fixação, que precede e é condição para
toda ‘repressão’. O fato da fixação pode ser enunciado da seguinte forma: um
instinto, ou parte de um instinto, não acompanha o desenvolvimento previsto como
normal e, graças a essa inibição no desenvolvimento, permanece num estágio
infantil. A corrente libidinal em questão se comporta, diante das formações
psíquicas posteriores, como se fizesse parte do sistema do inconsciente, como
reprimida. Já dissemos que em tais fixações dos instintos se acha a predisposição
para a futura doença, e, podemos acrescentar, sobretudo a determinação para o
desfecho da terceira fase da repressão (FREUD, 1911, p.91).
A articulação com o processo de repressão assume tal complexidade que irá enriquecer
consideravelmente a ação da fixação. A fixação é vista como passiva, como um resto no
175
Assim, notamos que é aquilo que foi fixado que irá sucumbir ao reprimido: derivados
psíquicos dos instintos, tendências psíquicas ou, como tratamos anteriormente, os instintos
parciais componentes. Nessa passagem, vemos dois elementos importantes em ação no
processo de repressão: a fixação e o conflito psíquico. A fixação, dos instintos componentes e
de seus derivados, vai representar uma corrente instintual presa a etapas ou a objetos do
desenvolvimento precoce, enquanto, em segundo lugar, o conflito psíquico representará uma
oposição à primeira, por parte do ego e das tendências que alcançaram um desenvolvimento
maior. Aqui, mais uma vez, Freud recorre à oposição entre os instintos do ego - que
favorecerão a ação da repressão - e os instintos sexuais, que permanecerão fixados em etapas
precoces do desenvolvimento psicossexual.
A terceira fase resulta no fracasso da repressão mediante o retorno do reprimido, uma
irrupção que nasce no ponto de fixação e implica uma regressão da libido até este ponto
preciso:
contém uma fixação, nem toda fixação seria conduzida necessariamente a uma neurose, como
mostra o exemplo do luto – tomado, aqui, como uma espécie determinada de fixação, um
apego, a um objeto perdido:
Freud concebe o aparelho psíquico como sendo formado por uma sucessão orientada
de sistemas, em que a energia psíquica segue determinada direção. Portanto, a regressão pode
178
Nos Três ensaios de uma teoria da sexualidade expressei a opinião de que cada
etapa no desenvolvimento da psicossexualidade trás uma possibilidade de ‘fixação’
e, com isso, um ponto de predisposição. Pessoas que não se desprenderam
inteiramente do estágio do narcisismo, ou seja, que tem ali uma fixação que pode
atuar como predisposição à doença, acham-se expostas ao perigo de que um grande
afluxo de libido, não encontrando outro escoamento, submeta os seus instintos
sociais à sexualização, fazendo assim recuar as sublimações conquistadas no curso
do desenvolvimento. Pode conduzir a um resultado desses tudo o que produz uma
corrente libidinal que retrocede (‘regressão’), tanto um fortalecimento colateral
graças à decepção com a mulher, um represamento direto devido a fracassos nas
relações sociais com os homens – ambos casos de ‘frustração’ –, como também uma
179
elevação geral da libido, muito forte para que pudesse achar saída pelos caminhos
abertos, e que por isso rompe a barragem nos pontos fracos da construção (FREUD,
1911, p.82).
A imagem oferecida por Freud para ilustrar a complexidade de tal noção é a do povo
que migra e que, ao longo do caminho, deixa para trás em suas paradas contingentes da
população. Diante das dificuldades que surgem no caminho, o grupo que continuou a viagem
tenderá a retornar aos pontos de paradas onde se encontra um grupo conhecido e familiar.
Mas, ao mesmo tempo, quanto maior for o número de paradas e de pessoas deixadas para trás,
menor será o poder de resistir e de enfrentar as dificuldades encontradas.
182
Há muito mais coisas a dizer acerca das regressões da libido, quando levamos em
consideração também outros grupos de neurose, as narcísicas, que, por ora, não
pretendemos abordar. Esses distúrbios dão-nos acesso a outros processos de
desenvolvimento da função libidinal que ainda não mencionamos, e nos mostram,
por conseguinte, ainda outras formas de regressão (FREUD, 1916-1917[1915-1917],
p.345).
Freud já anunciava, sutilmente, aquilo que hoje sabemos com clareza: as neuroses
narcísicas lhe proporcionaram uma visão consideravelmente nova sobre os aspectos mais
primitivos do funcionamento psíquico e de sua formação. Diante disso, vemos que o estudo
das neuroses narcísicas e, em nosso caso, da melancolia, nos oferece não só uma compreensão
mais clara dos seus próprios processos patológicos, mas revelam, também, aspectos
importantes dos processos de desenvolvimento do ego e de outras formas de ações regressivas
presentes no funcionamento psíquico.
Freud (1916-1917[1915-1917], p.348) situa a frustração da satisfação libidinal na
origem da neurose e, a esse respeito, formula a seguinte sentença: “as pessoas adoecem de
neurose quando impedidas da possibilidade de satisfazer sua libido – que adoecem devido à
‘frustração’, conforme costumo dizer – e que seus sintomas são justamente um substituto para
sua satisfação frustrada”. Vimos que a “regressão” ocorre quando poderosos obstáculos
183
externos se opõem ao exercício da função libidinal, isto é, à sua satisfação. Ainda, para que a
frustração tenha efeito patogênico, ela deve incidir sobre o modo de satisfação mais
importante para o indivíduo, aquele que é o único desejado pela pessoa, o único meio da
satisfação possível para aquele indivíduo.
Na histeria, diz Freud (1916-1917[1915-1917], p.347), alcançou-se a unificação dos
instintos parciais sob a primazia dos genitais, mas, em função da repressão sexual, ocorre uma
rejeição dessa condição por parte do sistema consciente-pré-consciente. Já no caso da neurose
obsessiva, encontramos a regressão que se faz a uma fase anterior da organização sexual.
Segundo Freud (1916-1917[1915-1917], p.347), esta é, “de longe, a mais surpreendente”.
Nessa neurose, a regressão da libido ocorre na etapa preliminar da organização sádico-anal, na
qual o impulso amoroso é obrigado a se disfarçar de impulso sádico – fase esta, na qual a
ambivalência afetiva impera sobre o funcionamento psíquico.
O terceiro tempo se situa após os anos de 1920, período no qual a reflexão freudiana
irá recair principalmente sobre a patologia da regressão, como o estudo mais particular da
melancolia e das neuroses narcísicas. Os principais trabalhos em que a regressão recebe
destaque são Inibições, sintomas e ansiedade de 1926 e As Novas Conferências Introdutórias
de psicanálise, de 1933. Estes não serão abordados aqui por não se encontrarem no campo de
formulações que antecederam a teoria freudiana da melancolia. No tocante à melancolia,
Freud reconhece uma regressão a etapas anteriormente fixadas, a organização narcísica da
fase oral, mas também uma regressão para formas de funcionamento psíquico arcaicos, que
subjasem das formas de relações objetais precoces.
Cabe, diante do exposto, perguntar: o que leva um corrente libidinal a regredir para um
ponto de fixação determinado? O que dispara a regressão? Como já pontuamos anteriormente,
toda regressão se deve a uma frustração da libido, isto é, a um impedimento da obtenção de
satisfação. É para a noção de frustração que nos voltaremos agora.
entre diversos fatores – sendo que o econômico recebe certo privilégio diante dessa visão: o
aumento da libido, em função da impossibilidade de satisfação, é entendido como o fator
quantitativo que vai gerar um desequilíbrio psíquico e colocar em marcha a necessidade de
um trabalho psíquico para lidar com o aumento da tensão, por meio de processos que podem
ser de natureza mais saudável ou mais patogênica.
Dessa maneira somos lembrados que não podemos desconsiderar o fator quantitativo
em nenhuma reflexão sobre as causas da doença. Todos os outros fatores –
frustração, fixação, inibição do desenvolvimento – ficam sem efeito, enquanto não
tocam a uma certa medida de libido e provocam um represamento libidinal de
determinada altura (FREUD, 1912, p. 237).
185
[...] podemos supor que não é uma questão de quantidade absoluta, mas da
proporção entre o montante da libido atuante e a quantidade de libido com que o Eu
individual pode lidar, ou seja, manter sob tensão, sublimar ou aplicar diretamente
(FREUD, 1912, p. 237).
caminhos para alcançar a descarga. Uma pré-condição básica para o conflito é que esses
outros caminhos e objetos suscitem desaprovação em uma parte da personalidade, de forma
que se impõe um veto que impossibilita o novo método de satisfação, tal como se apresenta.
privava de satisfação, ou seja, em seus pontos de fixação. O sintoma é uma repetição de uma
forma infantil de satisfação, que é deformada pela censura pré-consciente surgida no conflito.
Em sua definição inicial, Freud (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p. 361) afirma que
os sintomas “são atos, prejudiciais, ou, pelo menos, inúteis à vida da pessoa, que por vez,
deles se queixa como sendo indesejados e causadores de desprazer ou sofrimento”. Freud
ancora a formação dos sintomas nas noções de fixação, frustração, regressão e conflito, e
propõe, de maneira geral, que o sintoma nada mais seria do que uma forma de satisfação
alternativa, ainda que regressiva, da libido que sofreu uma frustração. Entretanto, como
sabemos, essa forma infantil de satisfação do sintoma é “via de regra transformada em uma
sensação de sofrimento e mesclada com elementos provenientes da causa da doença”
(FREUD, 1916-1917[1915-1917], p. 368). Frente a isso, o indivíduo geralmente sente o
sintoma como sofrimento, como algo estranho a si mesmo, e essa transformação da satisfação
em sofrimento é o produto final do conflito psíquico sob pressão, a partir do qual o sintoma
formou-se. Para Freud, embora cause sofrimento, o principal prejuízo do sintoma é o grande
dispêndio de energia que ele gera:
O principal dano que causam [os sintomas] reside no dispêndio mental que
acarretam, e no dispêndio adicional que se torna necessário para se lutar contra eles.
Onde existe extensa formação de sintomas, esses dois tipos de dispêndio podem
resultar em extraordinário empobrecimento da pessoa no que se refere à energia
mental que lhe permanece disponível, e, com isso, na paralisação da pessoa para
todas as tarefas importantes da vida. Como esse resultado depende principalmente
da quantidade de energia que assim é absorvida, os senhores verão facilmente que
‘ser doente’ é, em essência, um conceito prático. Se, contudo, assumirem um ponto
de vista teórico e não considerarem essa questão de quantidade, os senhores podem
muito bem dizer que todos nós somos doentes – isto é, neuróticos –, pois as
precondições da formação dos sintomas também podem ser observadas em pessoas
normais (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p. 361).
Um sintoma, tal qual um sonho, representa algo como já tendo sido satisfeito: uma
satisfação à maneira infantil. Mediante uma condensação extrema, porém, essa
satisfação pode ser comprimida em uma só sensação ou inervação, e, por meio de
um deslocamento extremo, ela pode se restringir a apenas um pequeno detalhe de
todo o complexo libidinal (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p.369).
Do mesmo modo [que o sonho], aquilo que representa a libido no inconsciente tem
de contar com a força do ego pré-consciente. A oposição formada contra ela no ego
persegue-a como se fora uma ‘anticatexia’ e compele-a a escolher uma forma de
expressão da própria oposição. Assim, o sintoma emerge como um derivado
múltiplas-vezes-distorcido da realização de desejo libidinal inconsciente, uma peça
da ambiguidade engenhosamente escolhida, como dois significados em completa
contradição mútua (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p. 362-363).
vimos, as fixações necessárias para romper as repressões são encontradas nas atividades da
sexualidade infantil, nas tendências parciais e nos objetos da infância que foram abandonados.
O que justifica a aproximação entre o sonho e o sintoma, conforme o fragmento
anterior, é a noção de trabalho de formação, que Freud utiliza frequentemente em sua obra
para designar a operação responsável por tratar as excitações. São equivalentes as expressões
formação do sonho e trabalho do sonho. A formação do sintoma é uma expressão utilizada
para se referir a uma atividade de elaboração psíquica que está na base de sua formação.
Assim, entendemos por trabalho psíquico toda forma de atividade do aparelho psíquico
destinada a tratar das excitações instintuais (CORNILLOT, 2005). Em A interpretação dos
sonhos, Freud (1900) se refere à formação dos sonhos como o resultado de um trabalho
efetuado pelo aparelho psíquico que permite, por meio dos processos de condensação e
deslocamento, a realização de desejo. Da mesma forma, o sintoma é o resultado de um
trabalho psíquico de formação que possibilita uma forma de satisfação que atenda, ao mesmo
tempo, as exigências da instância repressora e do reprimido - por isso, é considerado uma
formação de compromisso.
Após termos percorrido os elementos que compõem o modelo etiológico das neuroses,
passaremos, agora, à ilustração do modo como tal modelo serviu de base para a formação da
teoria freudiana da melancolia.
busca alcançar a satisfação da libido, como uma espécie de desfecho dado ao conflito
inconsciente, era preciso desvendar os elementos inconscientes de tal conflito. A noção de
conflito estará, assim, permeando continuamente a busca da explicação freudiana do
mecanismo da melancolia.
Freud (1917[1915]) considerava a melancolia expressão de um conflito inconsciente
com o objeto externo; mesmo anos antes da publicação de Luto e melancolia, já se especulava
sobre a possibilidade de as autoacusações melancólicas consistirem em formações
inconscientes de impulsos dirigidos originalmente a um objeto de amor, motivadas por uma
expressão ambivalente42. No entanto, o que permanecia em aberto era a explicação do
mecanismo distintivo da melancolia; isto é, o mecanismo de formação da patologia pelo qual
um conflito ambivalente com o objeto era transformado em autoacusações e
autodesvalorizações – ou seja, transformado em culpa e rebaixamento da autoestima.
Já nas primeiras discussões em que o tema da melancolia se faz presente, no contexto
de uma discussão a respeito do significado do suicídio, nas reuniões da Sociedade
Psicanalítica de Viena, Freud especulava sobre a probabilidade de a sintomatologia
melancólica estar relacionada a um conflito inconsciente com o objeto. Foi Stekel que
sugeriu, na reunião do dia 27 de abril de 1910, que o suicídio, na realidade, deveria se tratar
de um assassinato de um outro, sendo que o sentimento de culpa se ajustaria mais exatamente
ao castigo pelo ódio que se dirige a este outro, que é atacado com o ato suicida (STEKEL in
NUNBERG e FEDERN, 1978[1967], p.487). Nessa reunião, Freud (in NUNBERG e
FEDERN, 1978[1967], p.491) afirmou que o suicídio “não tem nada além de uma saída, uma
ação, um desfecho do conflito psíquico”. Freud considera que, diante do conflito psíquico,
que segundo vimos, é uma característica de toda neurose, assim como do funcionamento
psíquico geral, uma saída possível é acabar com a própria vida. A conexão da temática do
suicídio com a melancolia é realizada da seguinte maneira: “o acesso ao complexo do suicídio
a partir da um estudo das doenças reside na melancolia”. Nesta afirmação, Freud aponta para
um campo de compreensão do suicídio, por meio da elucidação do mecanismo da melancolia,
e afirma que somente a compreensão de seu mecanismo distintivo levará à compreensão da
formação da neurose melancólica: “o sentimento de culpa é também presente nas outras
neuroses. Em todos os casos; trata-se de elucidar o mecanismo específico da melancolia”
(FREUD in NUNBERG e FEDERN, 1978[1967], p.491-492). Alguns anos mais tarde, em
1914, quando a discussão acerca da melancolia vem à tona na Sociedade Psicanalítica de
42
Conforme nosso capítulo 4.
194
Desse modo, como se pode ler, Freud considerava o conflito com o objeto perdido a
chave que daria acesso à compreensão do mecanismo psíquico da melancolia. Ele justifica seu
ponto de vista por meio da observação clínica, a qual o teria levado à conclusão de que as
acusações que se voltam contra o próprio ego do melancólico são destinadas originalmente a
um objeto externo: “A conduta dos doentes também fica mais compreensível agora. Para eles,
queixar-se é dar queixa, no velho sentido do termo. Não se envergonham nem se escondem,
195
pois tudo de desabonador que falam de si mesmos se refere, no fundo, a outra pessoa”
(FREUD, 1917[1915], p.179). Após concluir que as autoacusações se tratam de queixas
contra um outro, restava a Freud esclarecer o processo a partir do qual a neurose melancólica
se forma, ou seja, o caminho de formação de sua sintomatologia: “Isso tudo é possível apenas
porque as reações exibidas nesse seu comportamento ainda vêm da constelação psíquica de
revolta, que, por um determinado processo, foi transportada para a compunção melancólica”
(FREUD, 1917[1915], p.180). O processo psíquico particular que diferencia cada neurose
será, na melancolia, atribuído à identificação narcísica com o objeto perdido. Esse processo
levará à introjeção do objeto perdido e à transformação do conflito vivenciado com aquele em
um conflito entre o ego modificado pela identificação e sua instância crítica:
Assim, a sombra do objeto caiu sobre o Eu, e a partir de então este pôde ser julgado
por uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado. Desse modo a
perda do objeto se transformou numa perda do Eu, e o conflito entre o Eu e a pessoa
amada, numa cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação
(FREUD, 1917[1915], p. 181).
Freud irá, então, atribuir o conflito com o objeto à ambivalência afetiva, que pode se
originar tanto na realidade, como na constituição do sujeito. Assim, considera que o
automartírio prazeroso do melancólico significa a satisfação de tendências sádicas e de ódio
relativas a um objeto que, pela via da identificação, se voltaram contra a própria pessoa. O
conflito da ambivalência será explicado como um jogo de forças em oposição, no qual se
travam inúmeras batalhas em torno do objeto introjetado, “nas quais ódio e amor lutam entre
si, um para desligar a libido do objeto, o outro, para manter essas posição da libido ao ataque”
(FREUD, 1917[1915], p.191). Estas lutas são situadas no sistema inconsciente, cujo caminho
até a consciência se acha bloqueado devido à ambivalência. Portanto, a melancolia é
conformada à teoria do conflito: de um lado, uma força que procura manter a ligação com o
objeto perdido, procurando manter o vínculo amoroso e a satisfação narcísica e, de outro, uma
força contrária que busca satisfazer seus impulsos de ódio dirigidos ao objeto. Como desfecho
para tal impasse, e visando a alcançar um caminho para a satisfação de ambos os impulsos em
conflitos, tem-se a formação de um sintoma: as autoacusações, que consistem em uma
maneira de satisfazer os impulsos destrutivos dirigidos ao objeto perdido, atacando-o por
meio da destruição de si mesmo:
ou seja, devido a uma frustração neurótica – que compreende situações de decepção, ofensa,
desconsideração etc. – há a vivência de uma perda da satisfação narcísica anteriormente
obtida na relação objetal. Devido a essa frustração de natureza narcísica, ocorre uma regressão
da libido para o narcisismo, ou, em outras palavras, uma regressão do investimento libidinal
para o ego. Dessa maneira, nota-se que Freud reúne, sob o termo “perda”, todas essas formas
de abalos, que levam o sujeito a abandonar o investimento de objeto. Assim, é a perda que
desencadeia o conflito ambivalente em que se tem, a um só tempo, uma oposição entre um
investimento objetal narcísico, do qual se é dependente e pelo qual se obtém satisfação - que
exerce uma pressão para que o investimento seja mantido - e uma força contrária, que exerce
uma pressão no sentido do abandono e ataque do objeto amado, que visa à satisfação dos
impulsos agressivos. A perda, então, elemento presente em Luto e melancolia como
desencadeador da neurose, nada mais é do que uma forma de frustração narcísica inconsciente
que desperta a ambivalência afetiva e estabelece um conflito inconsciente. No caso da
melancolia, a frustração caracteriza-se por um impedimento de satisfação da libido narcísica
que dependia da relação narcisista com o objeto para alcançar a descarga.
Em outros casos ainda, achamos que é preciso manter a hipótese de tal perda, mas
não podemos discernir claramente o que se perdeu, e é lícito supor que tampouco o
doente pode ver conscientemente o que perdeu. Esse caso poderia apresentar-se
também quando a perda que ocasionou a melancolia é desconhecida do doente, na
medida em que ele sabe quem, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso nos
inclinaria a relacionar a melancolia, de algum modo, a um a perda de objeto
subtraída à consciência; diferentemente do luto em que nada é inconsciente na
perda (FREUD, 1917[1915], p. 175, grifo nosso).
Tudo o que é ligado aos conflitos ambivalentes com o objeto permanecem subtraído à
consciência, de forma que, para o sujeito, tal conflito permanece desconhecido. Quando
sobrevém o desenlace característico da melancolia, ou seja, quando a sua expressão
sintomatológica aparece, o que se poderá saber do conflito é somente as autoacusações e tudo
que as acompanha. Como se pode notar, Freud realiza um trabalho de interpretação e
desvelamento do sintoma para compreender o mecanismo de formação da neurose
melancólica, que é formulado pela combinação dos elementos que explicavam a formação das
neuroses de transferência (conflito, frustração, regressão e fixação), como a histeria e a
neurose obsessiva. Mas por qual motivo o conflito ambivalente com o objeto dará origem à
melancolia e não à neurose obsessiva – uma neurose também marcada pela ambivalência?
Tendo em conta que toda neurose é desencadeada, inicialmente, por uma frustração –
interna ou externa – que leva a uma regressão, é justamente o conceito de fixação que
permitirá a Freud explicar os traços distintivos dela, atribuindo, para cada uma das neuroses,
198
pontos diferentes aos quais se dirigirá a regressão libidinal. Freud (1917[1915]) reconhecerá
os pontos de fixação da neurose melancólica por meio da elucidação do conflito melancólico.
Conforme afirmamos anteriormente, será suposto que as autoacusações do melancólico se
devem a um deslocamento de um conflito ambivalente e inconsciente, vivido na relação com
o objeto, para o interior do aparelho psíquico. Diante do reconhecimento do deslocamento
desse conflito, restava explicar o mecanismo a partir do qual ele se transformava na neurose
melancólica. Para formular a explicação desse mecanismo, Freud irá recorrer à noção de
fixação, procurando identificar em qual período do desenvolvimento poderiam ser
reconhecidos, como predominantes, os processos e mecanismos psíquicos em ação na
melancolia. O mecanismo em questão é a identificação narcísica, definido como a introjeção
do objeto no ego. Assim, os processos psíquicos característicos da melancolia são oriundos de
uma regressão a funcionamentos psíquicos arcaicos: escolha objetal narcísica e identificação
narcísica são processos psíquicos referentes a uma fase de desenvolvimento precoce,
localizada na organização oral canibalística, narcísica e sádica, cujos principais modos de
relação são a incorporação do objeto. Já a neurose obsessiva, também caracterizada por
intensos sentimentos de culpa, é fruto de uma regressão até a fixação na organização anal-
sádica, um período menos precoce que o da melancolia. Dessa forma, o mecanismo da
melancolia decorre de uma regressão a determinado ponto a que o sujeito está fixado – a
organização oral:
Esse tipo de relação objetal narcísica é característico da fase oral canibalística, na qual
não há ainda uma separação estabelecida entre o sujeito e objeto, permitindo ao sujeito
identificar-se narcisicamente com aquele (FREUD, 1905). O narcisismo do sujeito se constitui
durante esse período precoce, que servirá de base para a formação dos ideais. Eis a passagem
em que Freud realiza tal consideração:
Por um lado, deve ter havido uma forte fixação no objeto amoroso; por outro, e
contrariando isso, uma pequena resistência do investimento objetal. Essa
contradição parece requerer, conforme uma pertinente observação de Otto Rank, que
a escolha objetal tenha ocorrido sobre a base narcísica, de modo que o investimento
objetal possa, ao lhe aparecerem dificuldades, regredir ao narcisismo. A
identificação narcísica com o objeto se torna, então, substituto do investimento
amoroso, do que resulta que a relação amorosa não precisa ser abandonada, apesar
do conflito com a pessoa amada. Tal substituição do amor objetal pela identificação
é um mecanismo importante nas afecções narcísicas; Karl Landauer pôde mostrá-la
recentemente no processo de cura de uma esquizofrenia. Corresponde, naturalmente,
à regressão de um tipo de escolha de objeto ao narcisismo original. Expusemos, em
outro lugar, que a identificação é o estágio preliminar da escolha de objeto, e o
primeiro modo, ambivalente em sua expressão, como o Eu destaca um objeto. Ele
gostaria de incorporar esse objeto, e isso, conforme a fase oral ou canibal do
desenvolvimento da libido, por meio da devoração. (FREUD, 1917[1915], p. 181-
183).
Assim, a melancolia nada mais é do que uma formação sintomatológica efetuada com
vistas a obter satisfação narcísica. Tal formação é oriunda de uma regressão a modos de
funcionamentos arcaicos, em que o sujeito está fixado, cujo desencadeamento é uma
frustração vivida na relação com o objeto amado narcisicamente.
Se nos fosse permitido supor que a observação concorda com nossas inferências,
não hesitaríamos em acolher em nossa caracterização da melancolia a regressão do
investimento objetal à fase oral da libido, ainda pertencente ao narcisismo
(FREUD, 1917[1915], p. 182, grifo nosso).
43
Será analisado em nosso capítulo sobre o narcisismo.
200
como, por exemplo, no sono, em que todas as noites a libido é retirada de seus investimentos
e reinvestida no ego, constituindo o ato de dormir. Assim, na realidade, nem toda retirada da
libido objetal para dentro do ego pode ser considerada patogênica. O que, então, caracterizaria
a patogeneidade desse movimento regressivo nas neuroses narcísicas? Encontramos uma
resposta para a questão na seguinte afirmação: ocorre “algo bem diferente quando
determinado processo muito vigoroso força a retirada da libido, dos objetos. Aqui, a libido
que se tornou narcísica não consegue retornar aos objetos, e essa interferência na mobilidade
da libido certamente se torna patogênica” (FREUD, 1916-1917[1915-1917], p.423). Portanto,
segundo Freud (1916-1917[1915-1917], p.423-424), é a imobilização da libido no ego que
caracteriza a patogenia da regressão libidinal; mais uma vez, é uma questão de intensidade
que caracteriza a formação patológica. O mecanismo distintivo da melancolia pode ser
considerado, conforme procuramos mostrar, a regressão narcísica e a consequente
identificação narcísica com o objeto perdido. Freud (1916-1917[1915-1917], p.424) procura
diferenciar as neuroses narcísicas afirmando que “o ponto fraco no desenvolvimento libidinal
desses pacientes situa-se numa fase diferente” em relação às neuroses de transferência, e “a
fixação determinante que, [...] permite a irrupção que leva à formação dos sintomas, situa-se
em outro lugar, provavelmente na fase do narcisismo primitivo, ao qual a demência precoce
retorna em seu resultado final”. De maneira geral, Freud (1916-1917[1915-1917], p.424)
considera que “no caso de todas as neuroses narcísicas”, entre as quais se incluem a
melancolia, “temos de supor que os pontos de fixação da libido remontam a fases muito
anteriores do desenvolvimento, em comparação ao que se observa na histeria e na neurose
obsessiva”. Frente a isso, nota-se que, embora o modelo etiológico das neuroses de
transferência tenha servido de base para o esquadrinhamento do mecanismo de formação da
neurose melancólica, esta última se refere a um período mais arcaico do que aquelas afecções,
o chamado período pré-genital. Os modos de satisfação que constituem a formação de seus
sintomas são também mais arcaicos do que aqueles que constituem as formações
sintomatológicas das neuroses de transferência. Ao mesmo tempo, nota-se, ainda, que a
elucidação do mecanismo da melancolia só se tornara possível efetivamente por meio da
introdução de elementos conceituais oriundos da região conceitual do narcisismo, recém
introduzida na teoria psicanalítica – isto, tendo em conta que seu mecanismo distintivo é a
identificação narcísica, isto é, a regressão ao narcisismo. Assim, poder-se-ia formular a
questão de saber se uma diferenciação fundamental entre o modelo etiológico das neuroses de
transferência e o das neuroses melancólicas não consistiria no fato de que, no primeiro, a
frustração é vivida na esfera da libido da ligação objetal e, no segundo, consiste em uma
202
frustração sofrida na libido narcísica constitutiva da escolha narcisista de objeto. Tal questão
se fará mais clara ao nos voltarmos para a formulação do conceito de narcisismo e para as
teorizações propostas em Introdução ao narcisismo (1914), em nosso próximo capítulo.
***
Após termos efetuado um longo percurso sobre as noções freudianas construídas por
meio do trabalho com as neuroses de transferências, e explicitado suas contribuições para a
formulação do mecanismo de formação da melancolia, resta-nos agora o trabalho de abordar o
essencial da dimensão que é comumente contraposta àquela, a dimensão das neuroses
narcísicas, constituídas pela região conceitual do narcisismo, como aquele se opõe ao conceito
de instinto sexual. Procuraremos mostrar de que maneira o conceito emerge no pensamento
freudiano, e quais foram os desdobramentos que a sua construção permitiu. Assim, até por
volta dos anos de 1910, o essencial da teorização freudiana – complexo de édipo,
desenvolvimento psicossexual, libido, regressão, fixação, conflito – foi baseado nas neuroses
de transferência e no papel desempenhado pelo instinto sexual, que fora muito bem
compreendido e explicitado.
Diante do exposto, no capítulo seguinte pretendemos lançar um olhar sobre o papel
desempenhado pelo conceito de narcisismo no desenvolvimento da teoria freudiana e na
formulação da teoria freudiana da melancolia, no período que recobre a formulação do
conceito de narcisismo até por volta da publicação do artigo Luto e melancolia, em 1917.
203
O sintoma vem do reprimido, é como que o representante dele ante o Eu, mas o
reprimido é, para o Eu, terra estrangeira, terra estrangeira interior, assim como a
realidade – permitam-me a expressão insólita – é terra estrangeira exterior. Partindo
do sintoma, o caminho nos levou ao inconsciente, à vida instintual, à sexualidade
[...] (FREUD, 1933[1932], p.192).
Nesse fragmento, Freud descreve seu percurso inicial, em que, por meio do estudo dos
sintomas, formulou-se a teoria do funcionamento psíquico geral, caracterizado pelo
inconsciente e pela repressão. No entanto, segundo o autor, até determinada época, por volta
de 1910, a psicanálise teria se restringindo a uma região determinada, aquela dos instintos
sexuais. Sua teoria do conflito, que se baseava basicamente na oposição entre instintos sexuais
e instintos do ego, calcava-se na iluminação do desenvolvimento psicossexual, em seus
pontos de fixação e suas possíveis regressões.
204
[...] desde o início sustentamos que o ser humano adoece graças ao conflito entre as
exigências da vida instintual e a resistência que nele se estabelece contra elas, e em
nenhum instante esquecemos essa instância que resiste, rechaça, reprime, que
imaginamos dotada de suas forças particulares, os instintos do Eu, e que coincide
justamente com o Eu da psicologia popular. No entanto, dado o laborioso progresso
do trabalho científico, também a psicanálise não pôde estudar simultaneamente
todos os campos e manifestar-se de uma só vez sobre todos os problemas (FREUD,
1933[1932], p.193).
Freud revela que, embora tenha, desde cedo, percebido a importância da instância
repressora que representa os instintos de autoconservação (o ego), os quais se opõem aos
instintos sexuais por meio da censura, a atenção da psicanálise estava mais voltada para o
reprimido (os instintos sexuais). Sabemos que o motivo desse privilégio teórico se deve,
principalmente, ao fato de as neuroses de transferência serem patologias mais acessíveis à
observação e à técnica psicanalítica. Vimos que a psicanálise se origina da compreensão
dessas formas de afecção. No entanto, não se tardou a encontrar um caminho para o estudo
dos instintos do ego e da instância repressora:
Por fim, avançamos de modo a poder afastar nossa atenção do reprimido e volta-la
para o repressor, e achamo-nos diante desse Eu, que parecia ser tão evidente, com a
segura expectativa de também ali achar coisas para as quais não podíamos estar
preparados; mas não foi fácil encontrar o acesso inicial a ele (FREUD, 1933[1932],
p.193).
Foi por volta de 1910, contando com a contribuição de seus discípulos, que Freud
vislumbrou o acesso para a compreensão do ego e de sua segunda tópica do aparelho
psíquico. O acesso inicial à psicologia do ego44 se deu através da análise do delírio de
observação das paranoias, do fechamento psíquico próprio das esquizofrenias e da observação
de um tipo de relação objetal característico da homossexualidade:
É essa tríade que encaminha Freud para a elaboração do conceito de narcisismo, assim
como prepara o terreno para a segunda tópica do aparelho psíquico. Portanto, o conceito de
44
Freud (1933[1932], p.193) costumava diferenciar o termo psicologia do ego de teoria das neuroses, utilizando
o primeiro para se referir à teoria geral do aparelho psíquico, ou seja, seu funcionamento normal, enquanto o
segundo era utilizado para referir-se ao campo explicativo da psicopatologia.
205
narcisismo em seu livro sobre o Caso Schreber (1911), a fim de explicar um fenômeno de
origem psicótica – a paranoia. Nesse trabalho, o narcisismo não se restringe apenas um tipo de
escolha de objeto, mas é colocado como uma fase do desenvolvimento a partir da qual se
efetua a eleição narcísica. A seguinte linha de desenvolvimento é traçada sobre a relação de
objeto: inicialmente o sujeito passa por uma fase autoerótica, em seguida o ego se unifica sob
a égide do narcisismo; ao que se segue, teríamos as primeiras relações de objeto,
caracterizadas pela escolha homossexual (narcisista) e, finalmente, pela constituição da
escolha de objeto heterossexual. Já em Totem e Tabu (FREUD, (1913 [1912-13]),
encontramos o conceito de narcisismo enquanto uma fase do desenvolvimento mais
claramente definido, sendo utilizado para compreender o pensamento animista. O conceito de
narcisismo ganhava uma crescente importância no meio psicanalítico e restava a Freud
rearticular sua trama conceitual sob essa nova ótica. Assim, em 1914, Freud publicará
Introdução ao narcisismo, procurando situar tal conceito em sua trama teórica, destacando
suas contribuições e implicações.
Na análise, que durou cinco meses, pareceu não ser o caso da pesada
hereditariedade, mas a vita sexualis que está em primeiro plano. No curso do
tratamento, seus ataques epiléticos foram inteiramente interpretados e curados, mas,
tornou-se evidente que na maior parte da homossexualidade uma série de outras
aberrações sexuais dominava o quadro clínico – por exemplo, certas formas de
autoerotismo, onanismo, narcisismo, uma forma de auto coito, um erotismo anal
pulsante, exibicionismo, tendências voyeuristas, uma mania por estátuas, desejos
sadomasoquistas, etc (SADGER in NUNBERG e FEDERN, 1978[1967], p. 287).
Sadger atribui a falta de interesse pelo sexo feminino, da qual sofre o seu paciente
homossexual, ao fator narcísico, ou, mais exatamente, a um amor do tipo narcísico, em que a
pessoa reencontra, no amor objetal, os traços de seu amor autoerótico. Vemos que o interesse
de Sadger pelo narcisismo está relacionado à identificação do objeto primário – a mãe – e à
consequente homossexualidade.
45
Sadger tinha um grande interesse pelos casos de homossexualidade e pretendia curá-los de sua perversão
(MIJOLLA, 2005). O psicanalista ficou conhecido por suas pesquisas sobre a homossexualidade, perversão e
fetichismo, assim como por ter cunhado o termo de narcisismo em um artigo intitulado A sensação sexual
contrário é curável?, publicado em 1908 – embora o uso do termo ocorra em um sentido diferente daquele
tomado por Freud (1914). Segundo Mijolla (2005, p.1665), Freud recusa o “[...] essencial do trabalho de Sadger
sobre o narcisismo, que mistura a teoria da bissexualidade de Wilhelm Fliess e a palavra Narzissmus, inventada
por Paul Näcke, a fim de construir, graças à sedução infantil, uma ontogênese da sexualidade na qual a
manifestada pelo adulto é reatada pela criança num amor em circuito fechado sobre si mesmo”.
208
Dessa maneira, mais uma vez delineia-se uma característica que em seu início era
considerada patológica – um amor do tipo narcísico – como parte do desenvolvimento
humano normal: o narcisismo é uma etapa do desenvolvimento necessário na passagem do
autoerotismo para o aloerotismo46 (JONES, 1989, p.274). Ainda, no tocante à origem da
posição homossexual, Freud complementa: “Comumente, o eu é substituído pelo pai, que não
tarda, entretanto, a ocupar uma posição hostil. É neste lugar que bifurca a homossexualidade.
O indivíduo não se liberta tão cedo dele mesmo, como o caso em questão o demonstra tão
belamente” (FREUD in NUNBERG e FEDERN, 1978[1967], p. 307). Ao considerar o
narcisismo como um estágio do desenvolvimento, a sua presença em períodos posteriores só
pode ser compreendida como uma exceção da evolução habitual. Na medida em que o menino
não se liberta de seu amor narcísico por ele mesmo, ele passará a amar uma parte de si
presente em seus objetos de amor. Ao situar o narcisismo como este estágio intermediário
entre o autoerotismo e o amor objetal, Freud mantém-se fiel à posição adotada nas discussões
do círculo de Viena, segundo as quais a relação com a mãe remete a um período que precede
46
Orientação da libido para objetos externos; heteroerotismo.
209
ao autoerotismo, tempo este que remete ao escoramento dos instintos, enquanto o narcisismo
acontece após o autoerotismo e relaciona-se com a pessoa do pai (TERRAZAS, 1990).
Não por acaso, Freud apresenta apenas vinte dias mais tarde, em 1º de dezembro de
1909, uma conferência intitulada Uma fantasia de Leonardo da Vinci, na qual realiza uma
série de conjecturas sobre a homossexualidade e sobre o narcisismo como estágio do
desenvolvimento normal, o que resultará na publicação do artigo sobre Leonardo da Vinci
pouco tempo depois47. É a partir de um tipo específico de amor, um tipo de ligação objetal
que tem como referência um amor a si mesmo, que o narcisismo surge na psicanálise como
etapa do desenvolvimento: o amor narcísico, encontrado nos homossexuais, nada mais é do
que a persistência de um amor por si mesmo desfrutado em um estágio precoce do
desenvolvimento. Eis que o narcisismo aparece na pena freudiana nessa ocasião da análise de
Leonardo da Vinci, reintegrando o que Sadger vinha propondo há algum tempo (FREUD in
NUNBERG e FEDERN, 1978[1967]).
Essa definição, no entanto, somente é publicada por Freud em 1910. Assim, o termo
surge pela primeira vez, em seus textos, em uma nota de rodapé acrescentada na segunda
edição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Nessa nota, inserida no primeiro
capítulo, no contexto das “aberrações sexuais”, o termo narcisismo é usado em um sentido
muito próximo ao do comentário da reunião da Sociedade, com a função de explicar a
determinação da escolha do objeto sexual do mesmo sexo nos casos de inversão masculina
(homossexualidade). A nota diz o seguinte:
47
Esta era uma prática habitual de Freud, que pode ser notada na leitura das minutas das reuniões da Sociedade
Psicanalítica de Viena. Diante de uma contribuição importante para a teoria psicanalítica realizada pelos
membros dessa sociedade, Freud se apropriava dela à sua maneira e publicava um artigo sobre o assunto em
questão. O esboço de Luto e melancolia foi enviado a Ferenczi apenas alguns dias após uma apresentação de
Tausk sobre a melancolia.
210
visando a satisfazer seu narcisismo. Desse modo, um dos pontos de destaque dessa passagem
é a alusão a um processo identificatório na origem da escolha homossexual de objeto. Com
isso, esboça-se a noção de que a identificação é um processo desencadeado em consequência
de uma separação ou uma perda de objeto ou posição de satisfação libidinal – formulação que
alicerça Freud em Luto e melancolia (1917[1915]). Os homossexuais permanecem fixados
nas mães e, diante da necessidade de renunciar ao seu amor, se identificam com o objeto
amado – não se trata de uma identificação qualquer, mas de uma identificação com a mãe ou
com uma figura materna equivalente: as complexas inter-relações entre narcisismo,
identificação e escolha de objeto começam a delinear-se aqui. Vale lembrar que nessa nota o
narcisismo ainda não aparece como uma fase do desenvolvimento.
uma posição homossexual manifesta. O que está na base dessa identificação é o horror diante
da descoberta da castração da figura materna, fato que leva o sujeito à regressão e à
consequente substituição do amor objetal pela identificação com o objeto. O sujeito toma a si
mesmo como modelo e, a partir dele, realiza a escolha de seus novos objetos sexuais. Essa
tese, sem dúvida, serve de base para a elaboração do mecanismo da melancolia, em que uma
ligação com o objeto é substituída pela identificação com ele, levando a uma regressão ao
narcisismo. A forma de ligação narcísica - e sua regressão via identificação ao narcisismo - é
amplamente esboçada em Leonardo da Vinci e uma lembrança da infância (1910) e servirá de
base para as explicações acerca da melancolia – embora Freud não aluda à relação entre
homossexualidade e melancolia. O que será generalizado, em sua teoria do aparelho psíquico,
é o mecanismo de identificação narcísica, que é de fato elaborado no artigo em questão. A
tese que será desenvolvida é que o aparelho psíquico é formado pela identificação com os
primeiros objetos de amor. No início da vida, sempre que um investimento libidinal precisa
ser abandonado, a ligação com o objeto é substituída por uma identificação com o mesmo
(FREUD, 1923). Assim, a melancolia será designada como uma regressão a essas formas de
vinculações iniciais do desenvolvimento em que predominam a identificação com o objeto e
sua incorporação no ego mediante introjeção (FREUD, 1921).
Detenhamo-nos, por um momento, no fragmento do texto em que Freud expõe a sua
tese:
O amor da criança por sua mãe não pode mais continuar a se desenvolver
conscientemente — ele sucumbe à repressão. O menino reprime seu amor pela
mãe; coloca-se em seu lugar, identifica-se com ela, e toma a si próprio como um
modelo a que devem assemelhar-se os novos objetos de seu amor. Desse modo ele
transformou-se num homossexual. O que de fato aconteceu foi um retorno ao
autoerotismo, pois os meninos que ele agora ama na medida em que cresce, são,
apenas, figuras substitutivas e lembranças de si próprio durante sua infância —
meninos que ele ama da maneira que sua mãe o amava quando era ele uma criança.
Encontram seus objetos de amor segundo o modelo do narcisismo, pois Narciso,
segundo a lenda grega, era um jovem que preferia sua própria imagem a qualquer
outra, e foi assim transformado na bela flor do mesmo nome (FREUD, 1910,
p.106).
Embora o termo narcisismo seja usado, aqui, no mesmo sentido que o da nota de
rodapé dos Três ensaios, suas ideias estão mais bem explicitadas. Dessa forma, o narcisismo
constitui-se como uma forma de identificação com a mãe, que leva a um tipo específico de
escolha e de relação com os objetos sexuais: a escolha narcísica ou relação objetal narcísica, a
que Freud mais tarde irá relacionar ao vínculo que subsiste na melancolia (1917[1915]).
Nesse sentido, Leonardo amava seus aprendizes enquanto estes o representassem quando
menino, permitindo-o reviver o amor que recebeu de sua mãe nessa época precoce: por estar
212
identificado com sua mãe em função de ter tido de renunciar ao seu amor por ela, Leonardo se
relaciona amorosamente com seus aprendizes remetendo ao modo com que sua mãe se
relacionou com ele, ou então, ao modo como ele gostaria de ter sido amado por ela. Segundo
Steiner (1997, p.61), Freud descreve um tipo de relação objetal narcisista, em que o sujeito
relaciona-se com o objeto não enquanto uma pessoa separada, dotada de características
próprias, mas “como se estivesse relacionando-se consigo mesmo”. Embora Freud tenha se
referido ao narcisismo como um possível estágio do desenvolvimento, na reunião da
Sociedade Psicanalítica de Viena do dia 10 de novembro de 1909, de início, o narcisismo é
tematizado em sua obra como um tipo de relação de objeto, associado a um processo
característico do aparelho psíquico, a identificação. Os principais conceitos que compõem o
conjunto dos elementos narcísicos surgem embrionariamente nesse texto: a escolha/relação
narcísica e a sua substituição por meio da identificação narcísica. Freud indica, no fragmento
anterior, uma fixação a um tipo de amor precoce, uma fixação ao primeiro objeto sexual, ou
seja, a figura materna da tenra infância. É assim, segundo Freud (1910), que os homossexuais
encontram seus objetos de amor na via do narcisismo, em função de permanecerem fixados
inconscientemente na imagem da mãe e em um amor reprimido. No entanto, Simanke (1994)
chama a atenção para o fato de que, ao escolher outros homens como objeto de amor, o sujeito
não escolhe apenas a figura materna em seu aspecto fálico, mas também escolhe a si mesmo
como objeto sexual, na medida em que seus parceiros possuirão também um pênis. Assim, a
escolha narcísica, nesse contexto, consiste em uma dupla escolha: o sujeito escolhe, a um só
tempo, ambos os objetos, a mãe fálica da infância e a si mesmo, na medida em que regride a
um estágio em que o ego não se distingue do objeto, estágio que antecede a escolha de objeto
propriamente dita. Tal escolha forma, então, “uma tripla igualdade, em que os termos são ele
mesmo, a mãe e o seu objeto homossexual, que faz com que o sujeito reencontre apenas sua
própria imagem, para onde quer que se volte” (SIMANKE, 1994, p.117). Para o autor, a
percepção de tais nuances é fundamental para se compreender a verdadeira função do
narcisismo na vida psíquica.
anteriores. Mais uma vez, o narcisismo aparece associado aos desejos homossexuais, a partir
dos quais foi possível, retroativamente, inferir um estágio narcísico presente no
desenvolvimento normal. Na realidade, Freud procura evidenciar o modo pelo qual ocorre a
passagem do autoerotismo para o investimento do objeto, ou, em outros termos, o caminho
que parte do amor autoerótico e conduz o sujeito para o amor objetal. Segundo Freud, é
possível identificar um desejo homossexual atuante na formação da paranoia, que passa a ser
considerada como um caso agudo de defesa frente à emergência de poderosas quantidades de
energia instintual de natureza homossexual. O delírio persecutório, sintoma típico da
paranoia, surge à medida que o sujeito defende-se das fantasias de desejo homossexuais e
transforma o objeto homossexual anteriormente amado em um objeto perseguidor. Vejamos o
primeiro fragmento em que Freud introduz a discussão do narcisismo, nas páginas iniciais do
terceiro capítulo do Caso Schreber:
Esse fragmento pode ser considerado a primeira definição mais explícita e sistemática
do narcisismo como uma “fase normal do desenvolvimento humano”, necessária e que impõe
a passagem do autoerotismo para o amor objetal. E de que maneira Freud explica essa
passagem? Algo precisa ocorrer no desenvolvimento da libido para torná-la possível. Segundo
Freud, o indivíduo em curso de desenvolvimento reúne em uma unidade seus instintos
sexuais, que até então trabalhavam autoeroticamente e independentes, e toma seu próprio
corpo como objeto de amor, antes de passar à escolha de um objeto de amor heterossexual.
Frente a isso, o estágio do narcisismo é definido como um estágio intermediário da libido, em
que os instintos autoeróticos que sofreram a unificação tomam primariamente a si mesmo
como objeto de investimento dos instintos sexuais. Freud afirma que, entre um extremo que
214
parte do autoerotismo ao outro extremo, que conduz ao amor objetal, teríamos, além do
estágio do narcisismo, a escolha de um objeto sexual com os genitais do mesmo sexo, ou seja,
uma escolha homossexual que, em seguida, é substituída por uma escolha heterossexual. E
mesmo quando é alcançada a escolha heterossexual de objeto, as tendências homossexuais
não desaparecem completamente, mas são inibidas em sua meta sexual e dirigidas para o
plano social. As tendências homossexuais juntam-se com partes dos instintos do ego e
compõem os instintos sociais, o que, segundo Freud, é a “contribuição do erotismo à amizade,
à camaradagem, ao sentido comunitário e ao amor pelos seres humanos em geral” (1911,
p.82).
No caso de um indivíduo fixado no estágio do narcisismo deparar-se com uma
frustração, ele pode estar sujeito, mediante um grande afluxo libidinal sem possibilidade de
escoamento, à sexualização desses instintos sociais que se nutriram da sublimação dos
instintos homossexuais inibidos em sua meta. Assim, além de postular a existência de um
estágio narcísico, Freud postula a existência de uma tendência homossexual presente no
desenvolvimento normal, conforme o trecho que se segue, a respeito do ponto de fixação na
paranoia. Nesse caso, os paranoicos são aqueles que procuram se defender de uma regressão
dos instintos sociais, ou, em termos mais precisos, procuram defender-se da sexualização de
seus investimentos instintuais sociais:
isso, tudo para ele tornou-se indiferente e sem relação, e tem de ser explicado, numa
racionalização secundária” (FREUD, 1911, p. 93). O paranoico retira sua libido do mundo
externo, e o reconstrói internamente à sua maneira, mediante o trabalho do delírio, para nele
poder viver. O mecanismo de repressão vigente na paranoia, diante do exposto, consiste em
desprender-se da libido relacionada aos objetos antes amados. No entanto, o processo de
retirada da libido de seus objetos não ocorre exclusivamente na paranoia, e Freud se interroga
se tal mecanismo não seria a essência e a regra geral de toda repressão. Embora não responda
à questão, Freud estende sua especulação à vida psíquica normal: “É certo que na vida
psíquica normal (e não só no luto) realizamos constantemente esses desprendimentos da
libido em relação a pessoas ou outros objetos, sem adoecer por isto” e, ainda, em condições
normais, “buscamos de imediato um substituto para a conexão anulada; até esse substituto ser
encontrado, mantemos a libido livre flutuando na psique, onde ela produz tensões e influi no
ânimo” (FREUD, 1911, p. 95-96). Esta “libido livre flutuando na psique que produz tensões e
influi no ânimo”, talvez nos aproxime do estado de duas características básicas dos sintomas
melancólicos: enquanto fruto de tensão, o abatimento doloroso e sua influência no ânimo
reflete-se em um estado de ânimo penoso, o afeto depressivo, representado habitualmente por
uma tristeza profunda (FREUD, 1917[1915]). Ainda no tocante ao Caso Schreber, se,
normalmente, o emprego da libido retirada do mundo e dos objetos encontra um substituto, no
caso da paranoia ela recebe um emprego especial, e se torna a base dos delírios de grandeza:
narcisismo. A paranoia será arrolada entre os distúrbios narcísicos nos anos seguintes, ao lado
da melancolia e da esquizofrenia, justamente porque essas patologias se caracterizam pela
introjeção da libido ao ego. O processo de retirada da libido do objeto e sua introjeção no ego,
além de servirem de base para a explicação das parafrenias (demência precoce e
esquizofrenia), será o mecanismo básico também da melancolia, o que justifica a sua inclusão
no grupo das neuroses narcísicas realizado por Freud nessa época. O problema de saber se a
melancolia se trata de uma neurose e psicose, do ponto de vista psicanalítico, nos remete
justamente ao fato de que grande parte de seus mecanismos atuantes surgiram do contexto de
compreensão das parafrenias (psicose). No entanto, é preciso sublinhar que Freud
(1924[1923]) acabou por distinguir a melancolia do grupo das psicoses, considerando-a uma
neurose narcísica – isto é, uma neurose cujos mecanismos atuantes são relativos à etapa do
narcisismo.
Inicialmente, o narcisismo foi definido como escolha objetal e identificação; no
momento seguinte, se soma à noção de uma fase narcísica no desenvolvimento. Assim,
megalomania, paranoia e homossexualismo são definidos como uma regressão às etapas
iniciais do desenvolvimento, ou seja, um retorno a pontos precoces de fixação da libido que,
nesse caso, é o estágio do narcisismo. A partir de seus achados sobre a paranoia, Freud ainda
especula se, no caso da demência precoce ou parafrenia48 (o grupo das esquizofrenias), a
regressão da libido chega até a falta total de amor de objeto e ao retorno do autoerotismo
infantil, o que supõe uma fixação ainda mais precoce do que aquela encontrada na paranoia. A
investigação das patologias e suas contribuições para a compreensão da vida psíquica normal
se justificam em função de
[...] duas teses principais que a teoria libidinal das neuroses e psicoses aspira
demonstrar: que as neuroses resultam essencialmente do conflito do Eu com o
instinto sexual, e que suas formas guardam as marcas da história do
desenvolvimento da libido – e do Eu. (FREUD, 1911, p. 103).
Diante do exposto, cabe ressaltar que o narcisismo, concebido como fase necessária
de transição entre o autoerotismo e o aloerotismo, retira essa noção do campo exclusivo das
psicopatologias e a integra na chamada psicologia geral, ou seja, a teoria psicanalítica que
explica o desenvolvimento e os processos psíquicos normais – tal passagem ocorre
48
Neste período, segundo Laplanche e Pontalis (1998), Freud utilizava o termo parafrenia para o grupo das
esquizofrenias. Nesse sentido, esquizofrenia, parafrenia e demência precoce são utilizados como sinônimos.
Ainda nesse livro, Freud insiste na necessidade de diferenciar a esquizofrenia das paranoias: na primeira, a
regressão vai até um estágio mais precoce que o narcisismo, típico da paranoia, consistindo em uma regressão
até o autoerotismo infantil. Em geral, Freud costumava utilizar o termo demência precoce de Kraepelin e se opor
ao termo esquizofrenia de Bleuler.
217
Em Totem e tabu, Freud afirma que as manifestações dos instintos sexuais podem ser
observadas desde o início da vida, mas que, nesse período, eles não são dirigidos para
qualquer objeto. No início, os componentes instintuais são independentes uns dos outros,
agem de forma parcial e buscam a satisfação no próprio corpo. Como visto anteriormente, tal
fase é chamada de autoerotismo e é sucedida por outra na qual um objeto externo é escolhido
como alvo dos investimentos libidinais unificados. No entanto, em função das descobertas
realizadas no campo das parafrenias e dos desejos homossexuais, Freud situa a fase do
narcisismo entre o autoerotismo e a escolha de objeto:
Podemos destacar, do texto acima, uma psicodinâmica referente ao ego: este é tomado
como um objeto para a libido, constituindo-se em seu primeiro objeto de investimento
libidinal. Mesmo após o abandono desse estágio, em prol do investimento objetal
propriamente dito, pode haver uma regressão da escolha de objeto ao narcisismo diante de
uma frustração, conforme observado na paranoia, na esquizofrenia e na melancolia. Talvez o
aspecto mais inovador desse fragmento esteja contido na frase em que Freud faz coincidir o
estágio do narcisismo com a constituição do ego. Resta saber se o ego se constitui em função
da unificação dos instintos libidinais que o investe, ou se aquele torna possível o seu
investimento por conta de ter recém se constituído. No fragmento abaixo, Freud considera que
a posição libidinal não é jamais abandonada completamente, de forma que os investimentos
que dele emanam estarão susceptíveis de a ele retornar em determinadas condições. O que
testemunhamos, até o momento, são as bases para o estabelecimento do conceito de
identificação narcísica, segundo o qual, diante da perda de um objeto libidinal, a quantidade
de libido investida deverá retornar ao ego.
são, por assim dizer, emanações da libido que ainda permanece no ego e pode ser
novamente arrastada para ele. A condição de apaixonado, que é psicologicamente
tão notável e é o protótipo normal das psicoses, mostra essas emanações em seu
máximo, comparadas com o nível do amor a si mesmo (FREUD, 1913 [1912-13],
p.99).
Mais uma vez, Freud, através da exceção e dos estados patológicos, compreende a
normalidade. O narcisismo, como fase normal e depois como remanescente presente no
psiquismo ao longo da vida, surge dos estudos da paranoia, da megalomania e da onipotência
do pensamento. Outra ideia importante nesse texto é aquela em que o ser humano nunca
abandona totalmente seu narcisismo. A implicação imediata dessa afirmação pode ser notada
por ser ela a base sobre a qual Freud irá postular, no texto sobre o narcisismo, o conceito de
ideal de ego – a instância herdeira do narcisismo, que nunca é renunciado completamente e é
conservado como um ideal –, ao lado das noções que abarcam as bases da autoestima, a qual
depende dos resquícios do narcisismo vivenciado na infância. O narcisismo jamais totalmente
abandonado torna possível dar sustentação para a noção de que o ego é um lugar para o qual a
libido sempre pode retornar quando necessário – em situações de frustração, perda e de
separação. O “estar apaixonado” seria o extremo do esvaziamento libidinal, ou do
emanamento da libido para os objetos, como Freud preferia. Já psicose seria o outro extremo,
o polo que representa o narcisismo, em que toda a libido estaria investida no ego. Neste
último caso, a relação com o mundo externo e a ligação com os objetos ficam completamente
prejudicadas.
Ainda em Totem e Tabu, Freud realiza uma associação entre o narcisismo e o
pensamento onipotente, que será abordada mais tarde em Introdução ao narcisismo.
Há, nesse fragmento, uma comparação entre o homem primitivo e o homem neurótico,
no sentido de que em ambos predomina o pensamento onipotente, que nada mais é do que
221
campo da teoria dos instintos, cuja necessidade era a de encontrar um lugar para a libido
egóica (o narcisismo é um investimento da libido no ego, o que cria uma aproximação entre
instinto sexual e instinto de autoconservação do ego), seja ainda no campo da tópica psíquica
– então compreendida como inconsciente, pré-consciente e consciente – em que se torna
preciso situar o ego, assim como conhecer melhor o seu funcionamento.
Laplanche (1985) considera o artigo em questão como um verdadeiro questionamento
da teoria freudiana em seu conjunto, constituindo uma espécie de monumento teórico
psicanalítico. Lembremos que o conceito de narcisismo atua com destaque em três dos cinco
artigos metapsicológicos publicados. Ele toma a cena na segunda parte de Os instintos e seus
destinos (1915), na discussão sobre a ambivalência; tem papel central em Luto e melancolia
(1917[1915]), constituindo a base a partir da qual Freud explica a psicodinâmica da
melancolia; e é a principal característica do fenômeno da alucinação e do sonho, conforme foi
abordado em Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos (FREUD, 1917a [1915]).
Em Introdução ao narcisismo, encontra-se o essencial das teses apresentadas nos
trabalhos anteriores, além de uma série de teorizações e apontamentos inéditos. Laplanche
(1985) condensa a tese de Freud sobre o narcisismo em três posições básicas. A primeira
consiste em definir o narcisismo como amor de si mesmo por meio de um investimento
libidinal de si; a segunda consiste em definir esse investimento libidinal de si mesmo, como
passando necessariamente pelo investimento libidinal do ego. E a terceira consiste em
considerar que o investimento libidinal do ego é inseparável da própria constituição do ego
humano. Pretendemos efetuar, aqui, uma apresentação detalhada dessas posições, a partir do
artigo sobre o narcisismo, o qual, além de ser conhecido por suas contribuições ao
desenvolvimento da segunda teoria do aparelho psíquico, ofereceu os elementos fundamentais
para a elucidação da melancolia e de seus processos psíquicos, elementos fundamentais em
nosso estudo.
Introdução ao narcisismo (FREUD, 1914) é composto de três seções, cujas
contribuições abordaremos em sua ordem de apresentação original. Esquematicamente,
podemos resumir cada seção da seguinte maneira:
A primeira seção refere-se à definição do narcisismo enquanto investimento libidinal
no ego, no estabelecimento do narcisismo primário e secundário, e na decorrente distinção
entre libido egóica e libido objetal. A segunda seção consiste em uma distinção substancial
entre dois modos originais de relação objetais, o modo de apoio e o modo narcísico. A terceira
seção, por sua vez, foca-se na introdução do conceito do ideal de ego, enquanto instância
223
49
Mais tarde, em nota acrescentada à edição de 1920 de Os três ensaios, Freud reconheceria que foi, na verdade,
Havelock Ellis o primeiro a utilizar o termo narcisismo, ainda em 1898. Ellis, em sua obra Autoerotismo, um
estudo psicológico, utilizou o termo narcisismo para descrever um tipo determinado de comportamento perverso,
o qual relacionou com o mito de Narciso.
224
contemplação e nas carícias do próprio corpo, o que permanece para Freud é a tomada do
próprio corpo como se este fosse um objeto sexual, na medida em que ele é “tratado como um
todo, afagado, contemplado e acariciado: contemplação, cuidados e carícias são constituição e
confirmação da forma total, do limite, do invólucro fechado que constitui o revestimento
cutâneo” (LAPLANCHE, 1985). Com isso, Freud opera o deslocamento habitual, segundo o
qual a expressão de uma patologia atual representa uma regressão a organizações e
funcionamentos arcaicos do psiquismo, aumentados ou deformados. Diante disso, se um
adulto pode tomar a si mesmo como objeto sexual, isso pode não se tratar apenas de um
distúrbio atual, mas da reedição de uma organização primitiva do desenvolvimento. O
patológico revela, ao observador atento, as etapas do desenvolvimento inicial do psiquismo,
que permanecem encobertas na vida adulta normal. Diante do contexto de surgimento e de sua
definição na psiquiatria clássica (Näcke), Freud se preocupa em “retirar o termo narcisismo de
sua vinculação exclusiva com a patologia sexual e garantir-lhe um lugar no desenvolvimento
regular do homem, confirmando assim a posição defendida quando da alusão ao conceito no
caso Schreber” (SIMANKE, 1994, p.120).
Como sabemos, a conduta narcisista foi observada, inicialmente, nos homossexuais,
que elegem como objeto de amor um representante de si mesmo. O estudo da
homossexualidade levou Freud – por meio das contribuições de Sadger e Stekel – a postular a
existência do estágio de narcisismo presente no desenvolvimento da libido, ao qual o
homossexual está ainda preso, não conseguindo se liberar do amor vivido por si mesmo no
início de seu desenvolvimento. Além da conduta homossexual, o narcisismo recebeu atenção
no meio psicanalítico quando se procurou compreender as parafrenias e um de seus principais
sintomas, a megalomania, encontrada não só nas paranoias e nas esquizofrenias, mas,
também, entre as características da vida anímica dos povos primitivos e das crianças. Foi
justamente a tentativa de compreender as psicoses (esquizofrenia e paranoia) sob as premissas
da teoria da libido que levou Freud a supor um narcisismo primário e normal no
desenvolvimento inicial.
libidinal nos objetos. Se nesses pacientes a libido não estava normalmente investida nos
objetos, impõe-se a questão de saber o que acontece com a libido retirada dos objetos. De
acordo com Freud, Abraham responde a essa questão sem hesitar: “ela se volta novamente
para o ego e esse retorno reflexivo é a fonte da megalomania na demência precoce” (FREUD,
1917 [1916-1917], grifo nosso). Tal ideia é aceita por Freud e torna-se, para ele e para a
psicanálise, em geral, a chave para explicar de modo mais preciso os fenômenos psicóticos e a
melancolia.
É no contexto dos destinos libidinais que Freud (1914) faz uma reserva ao termo de
introversão da libido sugerido por Jung, reservando-o apenas para descrever a maneira como
ocorre o abandono da relação com a realidade nas neuroses de transferência (neurose
obsessiva e histeria). Nesses casos, diferentemente das parafrenias, o abandono do objeto
ocorre apenas parcialmente: os neuróticos obsessivos e histéricos mantêm a relação erótica
com os objetos na fantasia, substituindo pessoas reais por objetos imaginários, e deixam de
tentar alcançar as metas de satisfação relativas a esses objetos. No caso dos parafrênicos,
ocorre uma retirada da libido das pessoas e coisas do mundo externo, análogo ao caso da
neurose, sem que, no entanto, ocorra a sua substituição por objetos na fantasia. Quando Freud
acusa Jung de utilizar indiscriminadamente o conceito de introversão da libido, ele tem a
intenção de conservar o termo apenas para as neuroses, nas quais a libido é retirada dos
objetos externos e investida nos objetos da fantasia. Para Freud, é importante manter essa
distinção, pois, no caso das neuroses, a libido funciona essencialmente segundo o modo dos
instintos sexuais, enquanto, no caso das psicoses, a libido é retirada dos objetos e investida no
ego (narcisismo), funcionando segundo o modo dos instintos de autoconservação do ego.
Segundo Terrazas (1990), esse é o motivo para Freud se referir à introversão em um sentido
oposto ao narcisismo, uma vez que a introversão é entendida como o retorno da libido para os
objetos da fantasia, enquanto o narcisismo consiste no retorno da libido para o ego.
Freud já demonstra, em o Caso Schreber (1911), que, quando a realidade é substituída
por objetos da fantasia nos casos de parafrenias, trata-se de um movimento secundário de
tentativa de cura, realizado a partir do mecanismo de projeção, em que a libido é reconduzida
para o mundo externo e seus objetos, produzindo, assim, a conhecida deformação da realidade
– movimento que pode ser observado, por exemplo, nos delírios de perseguição dos
paranoicos. Cabe fazer aqui, ainda, alguns apontamentos sobre a psicose. Em Introdução ao
narcisismo (1914), Freud estaria tentando compreender a psicose por meio do modelo da
neurose, levando em conta que os sintomas são efeitos de um conflito e, por conta disso, são
dotados de sentidos. Na neurose, encontra-se o esquema básico frustração – introversão –
227
3.8 Reformulações e contribuições à teoria dos instintos: a libido do ego como possibilidade
de abordagem das psicoses e da melancolia
Ainda na primeira seção de Introdução ao narcisismo, Freud (1914) propõe uma
distinção básica no campo do narcisismo, distinguindo-o entre um narcisismo primário e um
secundário. O narcisismo primário designa um estado originário, um estágio infantil do
desenvolvimento, em que a libido está investida no ego e que é anterior ao investimento
libidinal de objeto, enquanto o narcisismo secundário designa o restabelecimento de um
estado narcísico, em função da retirada da libido do mundo externo para o ego. Assim, o
narcisismo primário é um estado original, presente no “desenvolvimento regular do ser
humano”, caracterizado como “o complemento libidinal do egoísmo do instinto de
conservação, do qual justificadamente atribuímos uma porção a cada ser vivo” (FREUD,
1914, p.14-15). Tal afirmação referente à complementaridade dos instintos e à distinção entre
dois narcisismos traz implicações significativas, que examinaremos a seguir.
Os instintos de conservação do ego, cujo protótipo é a fome e cuja energia é
denominada de interesse, são considerados como anteriores aos instintos sexuais, ao mesmo
230
50
Mais tarde, na XXI conferência introdutória, Freud indicará que a mãe é o primeiro objeto de satisfação ligado
ao instinto sexual (Freud 1917[1916-1917]).
233
submetido a uma dupla função: a sua própria conservação, por meio da satisfação da fome, e a
conservação da sua espécie, enquanto depositário do plasma germinal que se transmite por
meio da relação sexual. Embora Freud se esforce para afastar da psicologia tudo o que é
diferente dela, inclusive a biologia, no tocante a essa diferenciação entre instintos sexuais e do
ego ele se escora essencialmente na biologia, e afirma que essa hipótese poderia ser
abandonada se, “a partir do trabalho psicanalítico mesmo avultar outra suposição, mas
aproveitável, acerca dos instintos” (1914, p.21).
Se Freud insiste em manter a distinção dos instintos em duas classes básicas e em
defender a hipótese de que a perda da realidade na esquizofrenia deve-se à retirada da libido
para o ego, é porque se apoia no modelo do conflito psíquico que fundamenta a sua teoria das
neuroses, conforme mostramos anteriormente. Aí reside o seu interesse em conservar a
distinção entre interesse sexual e interesse em geral, fazendo corresponder este último aos
instintos do ego. Essas duas classes de instintos, com metas opostas, sustentam o conflito
psíquico como a raiz da explicação das neuroses. Mas como o conflito psíquico, que origina a
neurose, não é concebível sem um dualismo instintual, a divisão entre libido do ego e libido
do objeto torna-se o abrigo do dualismo, situado, agora, no próprio campo da sexualidade
(TERRAZAS, 1990). Segundo o autor, Freud não podia ainda antever, nesse momento, o
caráter indomável da sexualidade originária, isto é, enquanto sexualidade anárquica e não
ligada, que vai ser conceituado, ainda de acordo com o autor, alguns anos mais tarde, sob a
insígnia do instinto de morte.
A partir do narcisismo, “a primeira teoria das pulsões começa a demonstrar suas
debilidades” e ainda, a “insuficiência desta teoria fica mais clara ao longo dos artigos de
metapsicologia, nos quais Freud, por diversas vezes, revela a disposição de abandoná-la, no
caso de dispor de uma teoria mais proveitosa”– (SIMANKE, 1994, p. 122). Tal abandono se
dará apenas cinco anos mais tarde, em Além do princípio do prazer (FREUD, 1920), quando
assistiremos a construção de uma nova dualidade instintual que opõe Eros e Tânatos. Vemos
que a introdução do narcisismo e a consequente introdução da libido do ego começam a abalar
alguns postulados fundamentais de sua teoria, o que obriga Freud a redefinir suas posições e
admitir o parentesco entre o instinto de autoconservação e o instinto sexual, reunidos sob a
categoria das pulsões de vida.
problemas que a introdução desse conceito traz à teoria psicanalítica. Freud (1914, p. 18)
formula a questão de saber “que relação há entre o narcisismo, de que agora tratamos, e o
autoerotismo, que descrevemos como um estágio inicial da libido?”. Para o autor, essa
questão “nos leva ao centro das dificuldades do tema” [do narcisismo]. No entanto, tal
questão é respondida en passant por Freud, pois ele não fornece esclarecimentos suficientes
acerca da relação entre narcisismo e autoerotismo, de maneira que a psicanálise permanece,
até a atualidade, com a tarefa de desvendar e compreender tais relações. Até 1914, temos a
seguinte configuração: o autoerotismo é definido, nos Três ensaios (FREUD, 1905), como a
atividade do instinto sexual que obtém prazer no próprio corpo. Tal atividade surge no
momento da amamentação, apoiada na satisfação da necessidade de nutrição gerada pelo
instinto de autoconservação e, mais tarde, se separa dele, constituindo o autoerotismo.
Compreender essa questão é importante para a melancolia, pois o narcisismo consiste no
ponto de fixação dessa afecção.
Encontramos uma primeira formulação sobre o autoerotismo em uma carta enviada a
Fliess, em 9 de dezembro de 1899. Nela, Freud se refere ao problema da escolha da neurose,
ou seja, à questão de saber por que uma pessoa adoece de histeria ao invés de paranoia, por
exemplo. Ou, dito de outra forma, o que leva alguém a desencadear uma ou outra doença
psíquica diante de um trauma ou de uma frustração? Freud comenta ter encontrado uma pista
para a investigação desse problema, antevendo uma importante ligação entre a escolha da
neurose e a sexualidade. No contexto de compreensão etiológica da paranoia, Freud situa o
autoerotismo, na origem da vida sexual, como a primeira forma de satisfação.
paranoia. Como sabemos, tal relação será extensamente desenvolvida no Caso Schreber,
considerando o viés do narcisismo, (FREUD, 1911).
A respeito do autoerotismo, cabe destacar que, além de estar situado no núcleo da vida
sexual como a camada mais inferior, sua atividade sexual ocorre de maneira parcial, ou seja,
“visa apenas sensações localmente gratificantes”. A sua presença no início da vida sexual e a
sua atividade parcial de satisfação são noções que caracterizam o autoerotismo em toda a obra
freudiana, praticamente sem mudanças: o início da atividade do instinto sexual de forma
independente sempre será considerado como parcial e autoerótico. Uma terceira característica
a ser considera, ainda na carta a Fliess acima citada, é a continuidade do autoerotismo
enquanto atividade concomitante ao aloerotismo, mesmo depois que este último se estabelece.
Em Os três ensaios, por exemplo, Freud (1905) associa a satisfação sexual de beijar os lábios
de um objeto sexual a uma reedição da atividade autoerótica original do chuchar. De acordo
com essa primeira definição de autoerotismo, que permanecerá ao longo da teoria freudiana, o
autoerotismo jamais desaparece e persiste ao lado de atividades sexuais unificadas. Para
Baranger (1991), a principal implicação da passagem retirada da carta a Fliess reside na
definição do autoerotismo como a fase mais original da evolução psicossexual, ao lado da
inclusão de relações particulares com os objetos nas situações constitutivas dessa fase, o que
levará Freud a diferenciá-la do narcisismo, anos depois.
Por volta de 1910, ao introduzir o narcisismo em sua teoria, Freud procura situá-lo em
relação ao desenvolvimento psicossexual e à atividade autoerótica da libido. Na reunião da
Sociedade Psicanalítica de Viena, de 10 de novembro de 1909, Freud define o narcisismo
como “um estádio do desenvolvimento necessário na passagem do autoerotismo ao amor de
objeto” (FREUD in NUNBERG e FEDERN, 1978, p. 307).
Em Leonardo da Vinci, Freud (1910) afirma que, no homossexualismo, ocorre uma
regressão ao autoerotismo, isto é, um retorno a formas de satisfação do instinto sexual no
próprio corpo; no entanto, essa regressão envolve um objeto por meio do qual se obterá tal
satisfação: o objeto narcísico. Em outras palavras, a escolha objetal narcísica consiste em uma
regressão à atividade autoerótica do instinto sexual. Essa regressão ocorre em função de uma
fixação no amor desfrutado durante a infância na relação com a figura materna – é a fixação à
mãe fálica que propicia um retorno ao autoerotismo e à eleição de objetos narcísicos,
conforme observado na homossexualidade. No entanto, é preciso ter em mente que a
regressão ao narcisismo, nesse contexto, consiste em dizer que o sujeito regrediu a um estágio
em que o ego não se distingue do objeto. Segundo Simanke (1994), no livro sobre Leonardo
da Vinci, Freud (1910) refere-se ao narcisismo situando-o, ainda que implicitamente, no
236
caminho que leva do autoerotismo para o amor objetal, por meio da constituição do ego como
imagem de si, o qual é tomado como primeiro objeto, por via da unificação da atividade
instintual. É por ver na mãe fálica (dotada de um pênis) um igual que o menino a toma como
objeto, o que torna capaz de substituir essa escolha por uma identificação. Assim, o
narcisismo tem a função de realizar a transição da satisfação autoerótica para o amor objetal
aloerótico: é investindo primeiramente em um outro como imagem de si mesmo que, pela
primeira vez, elegemos um objeto de satisfação sexual. O passo seguinte, no desenvolvimento
da relação de objeto, seria o investimento objetal propriamente dito. Segundo Simanke, a
forma como autoerotismo e narcisismo se articulam nesse texto, como veremos a seguir, nos
dá
[...] é uma suposição necessária, a de que uma unidade comparável ao Eu não existe
desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido. Mas os instintos
autoeróticos são primordiais; então deve haver algo que se acrescenta ao
autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se forme o narcisismo (FREUD,
1914, p.19).
Essa passagem nos obriga a examinar duas questões. A primeira refere-se à afirmação
de que o autoerotismo é o estágio inicial da libido, isto é, o estágio precoce dos instintos
sexuais primordiais, e de que maneira ele se constitui; a segunda questão consiste em
compreender que nova ação psíquica é necessária para que o narcisismo ocorra e qual é a sua
relação com o pressuposto de que o ego precisa ser desenvolvido.
Ao reconhecer um investimento primário de libido no ego, como fruto de um processo
de unificação dos instintos sexuais, Freud parece estar tentando entender os processos
envolvidos na evolução do ego, enquanto um objeto total e diferenciado, com o que surge a
representação de si mesmo e de um corpo unificado. Ao mesmo tempo, é necessário explicar
a passagem de um estado inicial de relação de objeto autoerótico e fragmentado, no qual a
atividade da libido é parcial, localizada e independente de um objeto externo (o objeto parcial
do instinto autoerótico está no próprio corpo e coincide com sua fonte) para uma relação com
um objeto total e externo do qual se dependa. Em nosso ponto de vista, a constituição do ego
enquanto unidade e a constituição de relação de objeto total é o núcleo dos problemas que
envolvem o narcisismo, desde que levando em conta dois pressupostos da teoria freudiana:
não existe um ego desde o início, ele precisa se desenvolver; e não existe relação sexual com
um objeto total desde o início, a sexualidade também precisa passar por uma evolução,
partindo de um princípio em que exerce atividade parcial até o momento ideal em que atinge
sua maturação sob a primazia dos genitais e estabelece uma relação de objeto total com um
objeto de amor (sexual). Freud busca resolver tais problemas ao definir um investimento
primário de libido no ego, temporariamente, que forma um reservatório de libido no ego,
favorecendo sua constituição, e que, a partir dele, a libido poderá ser investida nos objetos. O
investimento primário de libido no ego (que corresponde ao narcisismo de Introdução ao
narcisismo) serve, então, a dois fatores: constituir um ego e, ao mesmo tempo, um
reservatório de libido – que, por sua vez, possa ser enviada aos objetos e constituir as relações
de objeto.
238
***
de uma vivência originária, processo que apresentaremos mais adiante. Segundo Terrazas
(1990), os Três ensaios apresentam um primeiro tempo do desenvolvimento do indivíduo, em
que não é possível distinguir satisfação sexual e nutrição, ocasião em que o seio constituía-se
como o mais originário objeto de satisfação do instinto. Nesse contexto, o autoerotismo é
situado como o início do desenvolvimento sexual, o que não coincide necessariamente com o
início do desenvolvimento do indivíduo. Compreender o autoerotismo como o estado mais
primordial não significa, necessariamente, que ele esteja presente desde o início da vida, mas,
mais precisamente, presente desde o inicio da vida sexual independente dos instintos de
autoconservação. Estamos de acordo com Terrazas (1990) quando de sua afirmação de que o
autoerotismo, ao ser definido como o primeiro estágio independente da sexualidade – o
estágio auto, da volta do instinto sobre si mesmo – não é absolutamente o primeiro, mas
somente o primeiro tempo da constituição da sexualidade, sucedendo uma configuração ainda
mais primordial.
Nesse mesmo sentido, Laplanche e Pontalis (1998) analisam a primeira teoria do
autoerotismo, contida em Três Ensaios, e mostram que seu modelo, representado pela
satisfação obtida no ato de chuchar, é secundário a uma fase mais originária, em que o instinto
sexual se satisfaz em um objeto externo – o seio –, ainda apoiado no instinto de
autoconservação (fome). Assim, é somente ao separar-se da fome e do momento de nutrição
que o instinto sexual (oral) perde o seu objeto e torna-se autoerótico. Esse é o início da vida
sexual, em que a satisfação é obtida independentemente e sem recorrer a um objeto.
Diante disso, o autoerotismo, enquanto uma atividade sem objeto, não pressupõe que
ele aconteça antes de qualquer relação de objeto ou que o início da vida seja anobjetal; seria
mais exato dizer que, no autoerotismo, “o modo natural de apreensão do objeto se acha
clivado: a pulsão sexual separa-se das funções não sexuais (a alimentação, por exemplo) nas
quais se apoiava e que lhe indicavam a sua meta e o seu objeto” (LAPLANCHE e
PONTALIS, 1998, p.48). Desse modo, mais do que localizar o autoerotismo em um tempo
determinado, importa considerá-lo como o momento em que “a sexualidade se separa do
objeto natural, se vê entregue à fantasia e por isso mesmo se cria como sexualidade”
(LAPLANCHE e PONTALIS, 1998, p.48).
Essas considerações nos levam a uma questão, também fundamental, a respeito da
relação de objeto na teoria freudiana. A noção de relação objetal no contexto freudiano
corresponderia ao investimento de objeto total por parte do instinto sexual independente, em
oposição à relação parcial (narcísica ou autoerótica) que se caracteriza pela satisfação
libidinal e relação de objeto parcial e indiferenciado com o ego. Para Terrazas (1990), o termo
240
51
Basta levar em consideração que o principal livro sobre o tema, Os três ensaios, é constituído de, ao menos,
quatro edições modificadas e aumentadas, ou seja, cinco versões: 1905, 1910, 1915, 1920 e 1924.
241
A criança não se serve de um objeto externo para sugar, mas prefere uma parte de
sua própria pele, porque isso lhe é mais cômodo, porque a torna independente do
mundo externo, que ela ainda não consegue dominar, e porque desse modo ela se
proporciona como que uma segunda zona erógena, se bem que de nível inferior
(FREUD, 1905, p.171).
52
Vem daí a noção de apoio, a qual tomaremos em consideração a respeito dos tipos de escolha de objeto.
243
O primeiro objeto erótico de uma criança é o seio da mãe que a alimenta; a origem
do amor está ligada à necessidade satisfeita de nutrição. Não há dúvida de que,
inicialmente, a criança não distingue entre o seio e o seio próprio corpo. (FREUD,
1940[1938], p.202).
Dois pontos são explicitados nessa passagem. Primeiro, que o tipo de relação com o
objeto, no momento inicial, já é erótico, ou seja, constitui-se como fonte de gratificação da
libido, e, o mais importante, que essa relação é parcial, isto é, não ocorre com a pessoal total,
mas apenas com o seio. Um terceiro ponto diz respeito à incapacidade do bebê de distinguir
entre o seio e o próprio corpo, o que significa dizer que, do ponto de vista da criança, o seio é
parte dela – trata-se de uma relação objetal narcísica, em que sujeito e objeto estão
identificados, fusionados. Após esse momento inicial, “o seio tem de ser separado do corpo e
deslocado para o “exterior”, porque tão frequentemente a criança o encontra ausente”; com
isso “ele carrega consigo, como um ‘objeto’, uma parte das catexias libidinais” (FREUD,
1940[1938], p.202). Essa afirmação espelha aquela anterior, presente nos Três ensaios, mas
agora explicita que o bebê perde o objeto na medida em que sente sua necessidade e o
244
Este primeiro objeto é depois completado na pessoa da mãe da criança, que não
apenas a alimenta, mas também cuida dela e, assim, desperta-lhe um certo número
de outras sensações físicas, agradáveis e desagradáveis. Através dos cuidados com o
corpo da criança, ela se torna seu primeiro sedutor.
Freud descreve, nessa afirmação, o momento posterior, em que a criança integra o seio
que o alimentou na pessoa total da mãe, com quem passa a se relacionar como um objeto de
satisfação libidinal, o mais fundamental – é a relação objetal propriamente dita. Encontramos,
aqui, o complexo de Édipo como fruto de relações precoces. Ao dizer que “[...] a pulsão
sexual torna-se auto-erótica, e só depois [...] se restabelece a relação originária”, Freud (1905,
p. 210) se refere ao estabelecimento de uma relação de objeto total, agora em uma perspectiva
aloerótica, baseada no restabelecimento de uma anterior, a primeira de todas as relações: a
relação com o seio, com quem o bebê mantinha uma relação indiscriminada, como sendo
parte de si mesmo. É baseado nisso que Freud termina por dizer: “Não é sem boas razões que,
para a criança, a amamentação no seio materno torna-se modelar para todos os
relacionamentos amorosos. O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (1905, p.
210). O objeto reencontrado é aquele original, do período em que, do ponto de vista da
criança, era não mais que um seio nutridor, um objeto parcial e parte de si mesmo.
Vemos que a trajetória, que parte de uma situação precoce de indiscriminação com o
objeto até o autoerotismo, é possibilitada pela perda do objeto, sob a forma de suas ausências.
Em Três ensaios (1905), Freud afirma que a criança abandona o objeto porque lhe é mais
cômodo, porque assim se torna independente do mundo externo que não consegue dominar,
ou seja, o desprazer causado pela ausência do objeto impõe a necessidade de se buscar
alternativas para satisfação, cuja saída é a atividade autoerótica. Diante do surgimento de um
impulso instintual, é gerado um aumento de excitação no interior do aparelho psíquico, o qual,
por sua vez, impõe-se ao lactante como necessidade de satisfação. Esse aumento de tensão é
sentido como desprazeroso e impele à descarga pela ação da motilidade e ao investimento de
representações do objeto ligado à vivência de satisfação. A ausência desse objeto é suprida
pelo dedo, que é levado à boca como forma de satisfação autoerótica, isto é, pela descoberta
de uma forma de satisfação sexual independente daquele. O que se caracteriza como perda de
objeto é a ausência do objeto diante da necessidade de satisfação do instinto.
245
53
Segundo Laplanche (1985), a noção de quantidade representa o aspecto econômico da teoria, e deriva das
observações clínicas de Freud a respeito das representações hiperintensas nos casos histéricos, noção
apresentadas em Estudos sobre a histeria. Assim, a quantidade que percorre os sistemas neuronais nada mais
seria que o afeto que percorre o aparelho psíquico.
54
A noção de um aparelho neuronal, ou uma organização de neurônios, é correlata à noção de representação.
Assim, ao se referir à ocupação de neurônios, pode-se inferir que, na realidade, Freud estaria tratando de
investimento de representações. O aparelho seria, então, mais apropriadamente um sistema ou organização de
representações, cujo elemento excitatório seria o afeto (LAPLANCHE e PONTALIS, 1998).
248
assim como das sensações e dos movimentos reflexos. Com isso, se formariam os primeiros
traços de memória, em que estariam associados o objeto (o seio), o movimento reflexo (a
sucção) e a sensação prazerosa proporcionada pela descarga. Diante o reaparecimento do
estímulo, o aparelho colocaria em ação a tendência a eliminar as excitações por meio da
ocupação dos traços de memória associados à primeira vivência que possibilitou a satisfação.
Assim, a representação de objeto ligada à sensação de prazer seria ocupada (investida) pelas
excitações, bem como o movimento reflexo de sucção; essa ocupação dos traços de memória
daria origem a uma alucinação do objeto. Por instantes, o bebê permaneceria em uma vivência
de satisfação alucinada. À tendência de investir representações de objeto diante da origem de
um estímulo endógeno, Freud denominou desejo. E ao processo que visa à ocupação
desmedida de representações objetivando a descarga imediata das excitações, Freud chamou
de processo primário, que consiste em uma livre propagação de excitação, no interior do
aparelho, até a geração de imagens alucinatórias. O desejo obedeceria às leis do processo
primário, em que as energias atuantes no aparelho se encontrariam em estado livre e não
ligadas. Sua natureza representaria uma tendência compulsiva à descarga, por meio do
superinvestimento de representações.
Voltando ao caso hipotético, o estímulo da fome permaneceria atuante e crescente e,
diante da imagem alucinada e do movimento de sucção, o bebê se frustraria, pois o leite não
vem e o desprazer permanece. A formação do ego ocorreria na medida em que o aparelho
começasse, a partir de uma energia mantida constante, a realizar a atividade de inibir a
satisfação alucinatória de desejo. Assim, o ego de O projeto tem função essencialmente
inibidora e é caracterizado por uma massa dominante de representações ligadas. A
permanência de um nível de investimento constante de energia (de origem endógena), em seu
interior, permite ao ego inibir os processos primários que levam à alucinação e ao
consequente desprazer.
A alucinação é o resultado da livre passagem de quantidades de energia no interior do
aparelho neuronal, mais especificamente na região em que se alojam as recordações dos
objetos hostis e gratificadores. Isto significa dizer que o ego se constitui ao exercer a função
fundamental de inibir o processo primário e permitir a distinção entre percepção e recordação.
Segundo Laplanche (1985), o ego executa um processo de ligação que retém e imobiliza a
energia no sistema de fantasias e, com isso, impede a energia de circular livremente e de
superinvestir as representações – o que provocaria a alucinação. A partir de O projeto,
Laplanche (1985) demonstra que o ego, enquanto uma formação particular no interior dos
sistemas de memória, constitui-se como um objeto interno, investido pela energia do aparelho.
249
Este “ego-objeto” narcísico é suscetível de ação ao realizar uma dupla função: a função
inibidora, que é a função de ligação do afeto com as representações, e a função defensiva,
designada pelo termo repressão. Portanto, o ego exerce uma função primordial, que é a
inibição dos processos primários e a ligação das excitações livres, impedindo, desse modo, a
formação da alucinação (diante da necessidade de satisfação gerada pelo instinto que
impulsiona o reinvestimento da lembrança da vivência de satisfação) e da liberação do
desprazer (diante da lembrança da vivência de dor/defesa primária). O ego é, então, o
resultado do estabelecimento do processo secundário, o qual é estabelecido por uma massa de
representações ligadas por um limite psíquico, cuja representação é a superfície corporal.
Segundo Mezan (1998), desde os momentos iniciais da obra freudiana, é possível destacar
uma concepção de ego como uma organização psíquica em contato com o mundo externo,
caracterizada pela percepção e controle da motilidade e, ao mesmo tempo, em contato com o
mundo interno, isto é, em contato com o aparelho mental propriamente dito. Assim, desde o
início, o ego é concebido como fruto de um desenvolvimento responsivo às necessidades de
adaptação do aparelho psíquico, diante da realidade e do mundo interno. O seu não
desenvolvimento significaria a morte para o indivíduo, por conta de deixá-lo entregue à
alucinação e ao desprazer sem fim. Ao realizar a função de inibir o desejo e o processo
primário, o ego se apodera das quantidades geradas no interior do aparelho e as mantém
controladas, em estado ligado. Com isso, essas excitações passariam a obedecer às leis do
processo secundário, o qual é caracterizado pelo escoamento controlado das excitações, assim
como a ocupação em baixo nível das representações.
É fundamental considerar esse processo inicial do desenvolvimento do aparelho
psíquico para que possamos compreender a nova ação que dará origem ao narcisismo. Isso
nos permite explicar diversos aspectos que caracterizam o narcisismo, como a constituição do
reservatório de libido, a unificação da imagem de si mesmo, a constituição de um ego total,
por qual motivo o ego se torna um objeto de amor, e por quais processos ocorre a passagem
de uma atividade autoerótica independente para a relação de objeto total. Isso ocorre por meio
da tarefa de inibição dos processos primários, o que permite, ao armazenamento das energias
anteriormente livres, formando um sistema separado com funções específicas, o ego.
Frente a isso, a nova ação psíquica a que Freud (1914) se refere consistiria justamente
na necessidade de constituição de um ego como imagem unificada de si mesmo, pela qual o
sujeito se representa, permitindo à libido tomar essa imagem representacional de si como um
objeto total, em oposição à fase anterior, na qual os instintos autoeróticos seriam parciais,
fragmentados, desconectados e independentes. Segundo Freud, “os instintos autoeróticos são
250
conceber uma gênese real da relação objetal, unicamente pela pressão interna (estímulos
endógenos) e por meio da alucinação primitiva. Laplanche considera que “a alucinação supõe
um conteúdo representativo mínimo”, que nada mais é do que o superinvestimento de
imagens do objeto de satisfação, o que supõe uma clivagem primeira, entre a satisfação
imediata de uma necessidade e os signos que acompanham toda satisfação retardada que é
trazida pelo outro (1985, p.76). Assim, a alucinação nasce da insatisfação de um desejo e
cessa pelo mesmo motivo, pois “uma certa insatisfação encontra sua saída na alucinação, mas
que para além de um determinado limite energético, a via alucinatória é abandonada”
(LAPLANCHE, 1985, p.76). A alucinação da satisfação “resolve”, a princípio, mas logo se
torna intolerável para o organismo. A satisfação proporcionada pela alucinação, nesse sentido,
é mais a realização do desejo do que a satisfação do desejo, e pressupõe que elementos
presentes no momento da vivência de satisfação já tenham sido constituídos internamente sob
a forma de representações de objeto. A seguir, nos voltaremos ao problema a respeito da
diferenciação entre estes dois modelos de narcisismos, um definido em Introdução ao
narcisismo, e outro predominante no pensamento freudiano principalmente após 1915.
3.11 Breve nota sobre as relações entre o autoerotismo e o narcisismo depois de 1914
A definição do autoerotismo como precursora do narcisismo perdura somente até
1914. Já em 1915, em Os instintos e seus destinos, o narcisismo é definido como “a fase
inicial de evolução do Eu, durante a qual os instintos sexuais têm satisfação autoerótica”
(FREUD, 1915, p.70). Freud faz coincidir o narcisismo com o autoerotismo, que em
Introdução ao narcisismo era tido como anterior. Se acompanharmos essa transposição ao pé
da letra, considerando nossas conclusões anteriores, temos que, no autoerotismo, o instinto
sexual independente não investe o objeto total – o mundo exterior e seus objetos não estão
investidos como objetos totais, realisticamente percebidos – e procura satisfazer-se no próprio
corpo, de maneira localizada, fragmentada e parcial; as fontes de satisfação sexuais são as
zonas erógenas do próprio corpo (zona oral). Esse período, conforme mostramos, não é
primeiro, mas sucede à fase em que a satisfação sexual é dependente da satisfação de
autoconservação.
Em 1915, Freud sustenta não só a equivalência entre o narcisismo e o autoerotismo,
mas, também, com o início da constituição do ego: “Habituamo-nos a chamar de narcisismo,
sem pôr inicialmente em discussão o nexo entre autoerotismo e narcisismo, a fase inicial de
evolução do Eu, durante a qual os instintos têm satisfação autoerótica” (FREUD, 1915, p.70).
252
ego indiferenciado no início da vida, o qual constitui um acumulo inicial de libido, chamado
de narcisismo primário absoluto. Se seguirmos as indicações de O projeto, temos que o
“começo” do ego, enquanto sistema fragmentado e parcial, ocorre devido às inscrições dos
primeiros traços mnêmicos da vivência de satisfação, como possibilidade de armazenamento
de quantidades constantes no interior do aparelho. É nesse sentido que o ego se constitui
como reservatório de libido narcísica. Laplanche (1985) observa, a este respeito, que o ego
deve sempre manter armazenada uma energia constante e, por mais que ele envie
investimentos a um objeto se empobrecendo de quantidades de libido, ele permanece como
lugar de ume reserva permanente de energia, mantendo, em si, certo nível mínimo. Assim,
Freud (1950[1895]) vai diferenciar uma parte fixa do ego, o chamado núcleo do ego, na qual
não se pode falar propriamente de processos secundários e uma parte móvel, constituída pela
parte inibidora e pelos processos secundários. Portanto, entendemos que situar um narcisismo
primário absoluto no início corresponde ao armazenamento inicial das quantidades
excitatórias advindas dos estímulos endógenos, mas sob a forma de representações de traços
parciais do objeto percebido na vivência de satisfação, assim como as demais sensações que a
acompanha, como o prazer, o movimento reflexo etc. Finalmente, esse narcisismo primário
inicial estaria mais próximo da satisfação alucinatória de desejo e dos processos primários.
Não teríamos, aqui, a concepção de um sistema fechado que se constitui de forma anobjetal,
pois, segundo Freud (1923) procurou mostrar, o ego inicial começa a se constituir a partir do
processo de identificação com os objetos externos, e que, podemos assim afirmar, tais objetos
precisam receber a caracterização apropriada: na verdade, a identificação é com os objetos
parcialmente percebidos e introjetados por meio das primeiras representações na fantasia. O
objeto faz-se presente, enquanto objeto percebido parcialmente, como uma imagem frontal do
seio, ou de uma mão, por exemplo. É com esses objetos que o ego vai se identificar, ao
impedir seu investimento alucinatório, se moldando como parte deles. Com a inserção dos
processos de identificação como constitutivos do ego, o narcisismo deixa de significar um
estado puramente anobjetal, e passa a ser considerado como a internalização das relações com
o outro (SIMANKE, 1994). Frente ao exposto, podemos postular que, por narcisismo, Freud
compreenderia não a ausência de relações objetais, mas a presença de relações de natureza
muito específica, como procuramos descrever anteriormente. Assim, Freud fará coincidir o
narcisismo e o autoerotismo, considerado a satisfação autoerótica como característica do
estágio narcísico:
Assim, Freud dá mais um passo no que concerne à etiologia das parafrenias, supondo
que a frustração estaria não só na origem dos estados neuróticos, mas, também, na dos estados
psicóticos, sendo que a natureza da libido frustrada difere-se na medida em que as neuroses de
transferência envolvem uma frustração na esfera da libido objetal, enquanto que as parafrenias
envolvem uma frustração da libido do ego55. Mas por que o represamento da libido no ego
também é sentido como desprazeroso? Segundo Freud (1914, p.29), a resposta está no
princípio de que o desprazer é, normalmente, expressão de um aumento de tensão: “é uma
quantidade do suceder material que aqui, como em outros lugares, se transforma na qualidade
psíquica do desprazer”.
Aí também se encontra a justificativa para que o aparelho psíquico abandone o
narcisismo primário e passe a investir os objetos. Freud recorre a uma explicação quantitativa,
segundo a qual a necessidade da psique investir a libido em objetos surge quando o
investimento libidinal do Eu supera uma determinada média. Segundo Freud (1914, p.29),
“Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas afinal é preciso começar a amar, para
não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar”. Em
55
Hipótese que será investigada também no caso da melancolia, já que Freud (1917[1915]) irá reconhecer, em
sua origem, um represamento da libido narcísica.
259
outros termos: uma parte de nosso narcisismo nos protege contra o adoecimento, mas é
preciso investir a libido nos objetos para não adoecer devido ao aumento de libido represada
no ego. A neurose, conforme mostramos, resulta de um represamento da libido, em razão dos
obstáculos ao seu escoamento, quando não se podem encontrar meios para sua satisfação.
Encontramos, aqui, o princípio que rege o psiquismo: todo aumento de energia gera
uma tensão sentida como desprazer e, por isso, o psiquismo tem como princípio eliminar ou,
ao menos, diminuir as quantidades de energia em seu interior (FREUD, 1915). A função do
aparelho psíquico é, portanto, “lidar com excitações que de outro modo seriam sentidas como
penosas ou de efeito patogênico”, o que se dá por meio de uma elaboração psíquica (trabalho
psíquico), que atua no sentido de desviar internamente as excitações que não encontram,
externamente, a possibilidade de descarga direta (FREUD, 1914, p.30). A noção de trabalho,
ou elaboração psíquica, aparece continuamente nos escritos de Freud, designando a tarefa
realizada pelo aparelho psíquico de conferir um destino às excitações que chegam até ele.
Cada psicopatologia é, assim, o resultado de um trabalho psíquico distinto, ou de destinos
particulares conferidos ao excesso libidinal.
Mas no principio é indiferente, para uma tal elaboração interna, se ela ocorre em
objetos reais ou imaginários. A diferença mostra-se apenas depois, quando o voltar-
se da libido para objetos irreais (introversão) conduz a um represamento da libido
(FREUD, 1914, p.30).
satisfação primárias. Vimos, anteriormente, que a atividade dos instintos sexuais emerge
apoiada na satisfação dos instintos do ego, ou seja, o bebê experimenta as primeiras
satisfações sexuais eróticas em estreita ligação com as funções vitais de autoconservação.
Assim, o ato de mamar se torna não só um meio de satisfação do instinto de autoconservação,
mas, também, fonte de uma vivência de satisfação sexual autoerótica, que modela as futuras
relações objetais. Nesse sentido, os instintos de conservação acabam por indicar à sexualidade
seu primeiro objeto: o seio materno.
O desamparo inicial do ser humano impõe a necessidade de um objeto cuidador para
satisfazer as suas necessidades vitais; no contato do bebê com o objeto cuidador, surgem as
primeiras satisfações sexuais: a sexualidade emerge no contato erogeneizador com o seio
nutriz, e apenas em um momento posterior, os instintos sexuais tornam-se independentes dos
instintos de autoconservação, buscando a satisfação em partes de seu próprio corpo.
Posteriormente, a criança aprenderá a amar, como objeto total, as pessoas que se ocupam de
seus cuidados e satisfazem suas necessidades. Esse é um resumo da teoria do apoio, que já
havia sido amplamente desenvolvida em Os três ensaios. Desse modo, os primeiros objetos
sexuais escolhidos pela criança explicam-se por este apoio inicial entre os instintos, já que,
geralmente, tais objetos estão entre as pessoas encarregadas de nutrição, cuidado e proteção.
Freud (1914) denomina esse tipo de escolha sexual de escolha objetal de apoio, o que revela
uma modelação do desejo a partir das primeiras relações objetais.
Já em Interpretação dos sonhos (1900) e em Três Ensaios (1905), Freud buscava
compreender as primeiras relações objetais parciais como modeladoras do desejo, na medida
em que o impulso a investir as representações de objeto constituídas no interior do aparelho
psíquico, diante do surgimento de um estímulo endógeno, vai se atualizar sob a marca de uma
compulsão à repetição. É nesse sentido que o encontro com o objeto é compreendido como
um reencontro, já que este será permeado pela atualização do desejo sob a forma da
compulsão à repetição. São essas modelações arcaicas do desejo que se atualizam na relação
analítica, constituindo a chamada relação transferencial, que permite o processo analítico. No
entanto, tais formulações precedem o postulado do narcisismo como fase presente no início
do desenvolvimento. Assim, da mesma maneira que as primeiras satisfações por apoio são
modeladoras, o postulado da fase narcísica, que leva do autoerotismo para a relação de objeto,
também mostra a sua influência nas escolhas de objeto.
Frente a isso, a retomada da teoria do apoio, em Introdução ao narcisismo, serve para
situar as postulações já estabelecidas diante de formulações emergentes: Freud prepara o
terreno para inserir uma segunda modalidade de escolha objetal, que havia permanecido
262
obscura até o momento, e o narcisismo passa a ser tão atuante nas relações de objeto quanto a
já conhecida escolha por apoio. Trata-se de outro tipo de escolha sexual, revelado pela análise
de pessoas que sofreram algum tipo de perturbação no início de seu desenvolvimento
libidinal: os homossexuais não escolhem seu posterior objeto sexual segundo o modelo da
mãe que os nutre, mas conforme a si mesmos.
Segundo Freud, os homossexuais “buscam a si mesmos como objeto amoroso,
evidenciando o tipo de escolha de objeto que chamaremos de narcísico” (1914, p.32). Mas a
modalidade narcísica de escolha de objeto não se restringe ao campo exclusivo da
homossexualidade, sendo descoberta como constitutiva de todo ser humano. Por meio da
noção de escolha narcísica, Freud circunscreve um modo de relação objetal, marcado por
processos psíquicos determinados, que estão na base da predisposição às neuroses narcísicas.
Freud revela que os indivíduos que efetuam sua escolha sob a modalidade narcísica são os
mais propensos a apresentarem quadros psicopatológicos como a paranoia, a esquizofrenia e a
melancolia. Aliás, a análise da melancolia encontra na escolha narcísica o seu elemento
central.
No entanto, estes dois tipos de escolha – por apoio ou narcísica – não resultam,
necessariamente, em duas classes diferenciadas de pessoas. Na verdade, “para cada pessoa
ficam abertas ambos os caminhos da escolha de objeto, sendo que um ou outro pode ter a
preferência” (FREUD, 1914, p.32-33). As duas modalidades de escolha são possíveis, por se
tratarem de atualizações dos dois objetos sexuais originários do ser humano: “Dizemos que o
ser humano tem originalmente dois objetos sexuais: ele próprio e a mulher que o cria, e nisso
pressupomos o narcisismo primário de todo indivíduo, que eventualmente pode se expressar
de maneira dominante em sua escolha de objeto” (FREUD, 1914, p.33). Evidencia-se uma
tese básica de Freud, a de que as primeiras vivências de satisfação, obtidas nas relações com
os objetos amorosos primitivos, são modeladoras das futuras relações objetais. No entanto,
Freud considera que não só a relação com o objeto externo se torna determinante, mas aquela
vivida com o próprio ego também pode ser atualizada nas futuras relações objetais, o que
torna muito mais complexa a sua teoria.
Parte-se, então, da seguinte premissa: além da satisfação obtida com a pessoa
cuidadora, o bebê experimenta a satisfação advinda de outro objeto particular, o próprio ego.
A relação com este é permeada por satisfações narcísicas de completude e de perfeição. Essas
formas de satisfações arcaicas, propiciadas pela formação do ego como unidade e do seu
investimento pela libido, também são atuantes no modo como o indivíduo se relaciona com
seus objetos em busca de prazer. Tanto o modo por apoio, quanto o modo narcísico são
263
modeladores. A escolha por apoio, embora ocorra, inicialmente, na relação parcial com o seio,
evolui até o investimento de objeto total. Na verdade, trata-se de um modo que, embora tenha
uma base muito primitiva, será atualizado nas relações edípicas e influenciarão na escolha da
neurose. Por isso, ela está mais próxima das neuroses de transferência. No entanto, vale
destacar que o caminho que leva até a escolha de objeto total por apoio passa, antes, pela
vivência de relações parciais de duas naturezas: com o objeto externo primário (o seio) e com
o próprio corpo (autoerotismo). Essas relações levam à primeira relação de objeto total, que é
estabelecida não com a pessoa cuidadora, mas, por definição, com o próprio ego enquanto
unidade. É só a partir da constituição do narcisismo (enquanto investimento libidinal e
formação de uma unidade egóica) que se torna possível, secundariamente, passar às relações
de objeto total.
Se retomarmos o caminho do desenvolvimento proposto por Freud, teríamos,
teoricamente, a seguinte linha evolutiva: a princípio, tem-se a relação por apoio, em que os
instintos se satisfazem com um objeto externo parcial, cujo paradigma é o seio e o leite. Em
seguida, tem-se a forma de relação autoerótica, na qual os instintos sexuais se tornam
independentes dos de autoconservação e se satisfazem no próprio corpo. Aqui, também, se
trata de uma modalidade de relação parcial. Ao que segue, tem-se a primeira relação de objeto
total, em que a satisfação é obtida no próprio ego: o narcisismo. E é somente a partir daí que o
investimento total de objeto pode entrar em cena, e a satisfação pode, finalmente, ser
vivenciada com um objeto total externo.
Assim, temos que o ego é o primeiro objeto total, e é a sua constituição que permite a
passagem para o investimento de objetos totais na realidade. Isso nos leva a entender que a
relação objetal narcísica é, na realidade, o resultado de fixações no primeiro objeto total,
quando este coincide com o próprio ego – já que, para Freud, só podemos considerar amor
uma relação de objeto total. Em outros termos, é devido a complicações vivenciadas na
passagem do narcisismo para o aloerotismo, que o sujeito terá a marca do narcisismo em suas
relações objetais. Com isso, é possível afirmar que a relação objetal de apoio, como total,
corresponde a um tempo mais evoluído no desenvolvimento do que a modalidade narcísica -
sendo que esta última é, na verdade, a mais arcaica e reveladora de problemas na constituição
das primeiras relações de objeto total.
As implicações dessa definição de modalidade narcísica de relações de objeto são
enormes, e são elas que abrem uma via de acesso à clínica das psicoses e da melancolia. Isso
porque, até então, Freud se pautava no modelo do apoio para sustentar a técnica da análise de
transferência: a reedição dos amores primários na relação com o analista. Mas esse modelo
264
e fazer parte de uma formação de grupo – encontramos uma característica em comum: o ser
amado, o hipnotizador e o líder do grupo constituem objetos idealizados para o sujeito, isto é,
pessoas que foram colocadas no lugar do ideal do ego. São objetos que desfrutam, da parte do
sujeito, de certa liberdade quanto à crítica, e da elevação de suas características e qualidades,
as quais são altamente valorizadas.
Ao abordar o amor, Freud (1921) adverte o leitor de que esse fenômeno não é simples
e nem unívoco, o que indica uma gama diversa de possibilidades que pode ser incluída dentro
dele.
Freud (1921, p.69) toma, como ponto de partida para a compreensão do amor o
enamoramento, sua forma mais comum, o qual designa uma forma de amor sensual
caracterizada pelo “investimento de objeto por parte dos instintos sexuais para satisfação
direta”. Quando a satisfação é alcançada, o amor sensual tende a se extinguir; no entanto, a
tendência de seu retorno leva a um duradouro investimento libidinal do objeto, de tal forma
que será possível amá-lo também nos intervalos sem desejo. Assim, Freud (1921) distingue
duas formas básicas de expressão dos instintos sexuais, as correntes inibidas e não inibidas
em sua meta, as quais podem aparecer de forma individual ou mista. Freud vai trabalhar com
a premissa energética, de que o amor é a expressão da busca de satisfação libidinal. Por isso,
parte de um modelo mais simples, que é a do amor sensual, o qual poderia ser mais bem
designado por desejo sensual, o simples desejo por um objeto com fins de descarga do instinto
sexual por meio da relação sexual. Assim que o sujeito alcança a descarga sexual, a excitação
psíquica que levou ao investimento do objeto é descarregada, de tal modo, que o objeto não
seria mais desejado, até que uma nova tensão sexual se estabeleça no interior do aparelho
psíquico e incite o sujeito para a busca de satisfação por meio da uma relação sensual com um
objeto. Desse modo, Freud vai, durante todo este texto sobre o enamoramento e a hipnose,
trabalhar com a premissa de que a ligação com os objetos e os processos psíquicos envolvidos
estão sujeitos ao acúmulo e descarga do instinto sexual. É a dinâmica dessa energia sexual
que estará em jogo na relação com o objeto e definirá os modos de ligação com aquele.
Nesse sentido, no desenvolvimento da vida amorosa, o “amor sensual” (desejo
sensual) tem seu primeiro objeto nos pais, ainda na fase edípica. Com a repressão
característica dessa fase, esse amor sensual se transforma em um “amor terno”, o qual Freud
(1921, p.70) denomina de instintos “inibidos em sua meta”. Mesmo tendo passado pela
repressão, a corrente de amor sensual continua a existir de maneira inconsciente. Com isso,
Freud (1921) diferencia duas formas básicas de expressão do amor: o amor sensual, com
tendências à satisfação das metas sexuais diretas, e o amor terno, com tendências sexuais
267
inibidas em suas metas. É a combinação dessas duas formas básicas e a quantidade presente
de cada uma delas, em uma relação com o objeto, que caracterização as diferentes expressões
amorosas. A partir disso, Freud supõe uma síntese entre os laços sensuais e os laços de
ternura. Segundo o autor (1921), o esperado é que, na adolescência, quando essas duas
modalidades de correntes amorosas ressurgem, elas alcancem um determinado grau de
síntese, resultando na forma de amor objetal mais completa, na qual cooperam instintos não
inibidos e instintos inibidos em sua meta. Portanto, temos a forma de amor “completa”, na
qual se aspira à satisfação sexual direta e, nos intervalos do desejo, o amor é mantido pela
satisfação dos instintos sexuais inibidos em sua meta, o amor terno. Mas, lembra Freud
(1921), existem casos em que essas duas expressões dos instintos sexuais permanecem
separadas, como, por exemplo, no caso de homens que têm sentimentos ternos, pela mulher
que admira, e sentimentos sensuais por mulheres que despreza. Diante da definição das duas
formas de amar, Freud (1921, p.71) chega à seguinte sentença: “a intensidade do
enamoramento, em contraste ao puro desejo sensual, pode ser medida segundo a contribuição
dos instintos inibidos em sua meta”. Assim, temos, de um lado, o amor que é fruto do desejo
sensual, o qual busca somente a satisfação sexual direta; de outro lado, o amor terno, inibido
em sua meta, que torna possível uma ligação duradoura com um objeto. No caso do
enamoramento, o “estar apaixonado”, sua intensidade depende da contribuição dos instintos
de ternura.
Nesse ponto, Freud (1921) introduz uma discussão sobre o fenômeno da
superestimação sexual que, segundo o autor, salta às vistas nos quadros de enamoramento. De
que maneira é caracterizado o fenômeno da superestimação sexual presente nos quadros de
enamoramento? Freud (1921) afirma que, nesta, o objeto sexual goza de certa isenção de
crítica e de uma supervalorização de todos os seus atributos. Com isso, temos, aqui, as
características de uma relação distorcida pela idealização, a qual aumenta psiquicamente as
características do objeto amado. De certa parte, a idealização é um processo que resulta de um
fator econômico, um acúmulo de libido, investido sobre o objeto (seja ele o ego ou um objeto
externo), o qual será engrandecido psiquicamente. Diante disso, Freud (1921) atribui à
repressão das tendências sensuais o aumento da intensidade da superestimação sexual.
Segundo o autor, nos casos em que há repressão do desejo sensual, a idealização pode
produzir a ilusão de que se ama o objeto sensualmente por suas qualidades mais elevadas,
mesmo que só o desejo sensual tenha contribuído para o enamoramento. Em outras palavras,
o sujeito será vítima de um autoengano: para ele, o objeto é desejado sensualmente por suas
qualidades de personalidade, atitudes etc., em suma, por qualidades sublimes, enquanto, na
268
realidade, o objeto pelo qual o sujeito está enamorado pode ter sido escolhido por permitir a
satisfação dos desejos sensuais. Com isso, Freud (1921) está construindo bases para o
argumento de que o instinto sexual que se expressa sob a forma de desejo sensual, uma vez
inibido, empresta sua quantidade energética (libido) para o engrandecimento das qualidades
do objeto, isto é, para uma distorção de sua real condição operada pelo processo de
idealização. Lembremos da premissa básica com a qual a psicanálise freudiana opera: de que
a energia gerada no interior do aparelho não desaparece simplesmente, mas precisa ser
descarregada ou utilizada de alguma maneira. Nesse sentido, para Freud (1921), o processo
psíquico que está na base da superestimação é a idealização, a qual é responsável pelo que o
autor chamou de falseamento do juízo, que distorce a percepção da real condição do objeto.
Vejamos, rapidamente, algumas precisões sobre esse conceito. Em Introdução ao
narcisismo, Freud (1914) definiu a idealização como um processo psíquico que pode incidir
tanto na esfera da libido objetal como na esfera da libido narcísica. Segundo Freud (1914), a
libido é narcísica enquanto está investida no ego, por isso é chamada libido do ego, e se torna
libido objetal quando investida no objeto. Originalmente, a libido está toda investida no ego
sob o estado de narcisismo e, desse investimento originário, ela emana para os objetos, como
o corpo de uma ameba que emite e recua seus pseudópodes. Essa imagem representa, para
Freud (1914), a dinâmica básica da libido, de tal forma que quanto mais se emprega uma,
mais se empobrece a outra. Diante disso, ao estado enamoramento corresponde a “mais
elevada fase de desenvolvimento a que chega esta última [libido de objeto]” (FREUD, 1914,
p.17) Assim, a idealização é fruto de um excesso de libido narcísica, que, ao não ser
descarregada, incide sobre os investimentos de objetos. Consequentemente, o objeto se torna
engrandecido, ou seja, superestimado. No caso da superestimação sexual, estaríamos perante
um superinvestimento na esfera da libido de objeto, o qual passa a ser tratado da mesma
maneira que o ego idealizado, isto é, superinvestido de libido. Assim, segundo Freud (1921,
p.71) “percebemos que o objeto é tratado como o próprio Eu”, e que neste caso, “no
enamoramento, uma medida maior de libido narcísica transborda para o objeto”.
É nesse ponto que as coisas se complicam, pois Freud (1914) está considerando o
enamoramento como o estágio mais desenvolvido da relação de objeto. Entretanto, é nele que,
também, encontramos as distorções provocadas pela idealização do objeto amoroso. Portanto,
surge uma contradição: em Introdução ao narcisismo (FREUD, 1914) a escolha amorosa por
apoio exibe, como característica básica, a superestimação sexual, cujo processo psíquico, a
idealização, é considerada, por Freud (1921), um fenômeno mais próximo da escolha
narcísica do que da forma de apoio. Em outros termos: a superestimação sexual é um traço da
269
seu próprio narcisismo em prol do amor objetal. Tal fascínio é comparável ao que exerce o
bebê sobre os adultos, por sua autossuficiência e inacessibilidade; de modo análogo, exercem
também um fascínio narcísico, os animais que parecem não se importar com ninguém, cujo
olhar é dotado de grande indiferença em relação ao mundo que os rodeia, como se pode
observar no caso dos felinos e das aves de rapina, por exemplo. Também na literatura, Freud
retira, como exemplo da fascinação que os narcísicos exercem nas pessoas “comuns”, os
grandes criminosos e os humoristas; estes conseguem conservar sua coerência narcísica
mantendo afastado de seu ego tudo o que os diminua. Em geral, os “narcisistas”, aqueles que
gozam de uma fruição narcísica abandonada pelas pessoas em geral, exercem tal fascínio
devido à conservação de seu estado de narcisismo original: “é como se os invejássemos pela
conservação de um estado psíquico bem aventurado, uma posição libidinal inatacável, que
desde então nós mesmos abandonamos” (FREUD, 1914, p. 34). A esta fascinação narcísica
será atribuído, também, o domínio que exercem os líderes de uma massa sobre seus liderados
(FREUD, 1921). Temos, aqui, a definição de uma importante característica da relação
narcísica: o fascínio que o narcísico exerce sobre seu objeto de amor.
No entanto, não nos enganemos: a superioridade dessas pessoas não consiste em nada
mais que uma ilusão, já que estão susceptíveis aos grandes problemas oriundos de sua posição
narcísica. Tais pessoas podem depender mais do que nenhuma outra de, por exemplo, serem
amadas de tal maneira que, quando não alcançam tal necessidade, caem doentes,
melancólicas. É nesse sentido que o pré-requisito para a melancolia é uma a escolha objetal
narcísica e, sua desencadeante, uma frustração na relação objetal vivenciada como perda de
satisfação narcísica. Na medida em que a satisfação é perdida, o investimento narcísico
regride para o ego, o qual, empobrecido e carregado de ambivalência, é tomado pelo conflito
melancólico.
Freud (1914) aborda outra via possível de condução das mulheres narcísicas ao amor
objetal: trata-se do misterioso e intenso amor nutrido por um filho a que dão à luz. Um filho
constitui, para uma mulher, uma parte de seu próprio corpo que dele se diferencia e se
constitui enquanto outro objeto – a quem podem amar segundo o pleno amor objetal. Freud
(1914) lembra, também, do caso de mulheres que se sentiam masculinas antes da puberdade,
as quais, devido à maturação de sua feminilidade, veem interrompida a inclinação anterior
para a masculinidade, restando-lhes apenas a capacidade de almejar um homem como
representante de um ideal masculino perdido.
Freud (1921) vai acrescentar, ainda, a respeito da escolha narcísica que, nela, o que se
observa é uma busca por satisfações narcísicas:
272
Em não poucas formas da escolha amorosa torna-se mesmo evidente que o objeto
serve para substituir um ideal não alcançado para o próprio Eu. Ele é amado pelas
perfeições a que o indivíduo aspirou para o próprio Eu, e que através desse rodeio
procura obter, para satisfação de seu narcisismo (FREUD, 1921, p.71).
autor, seria aquele em que a pessoa se vincula ao objeto por este apresentar uma semelhança
com o ego que o elege, ou seja: “a eleição narcísica se faz a imagem e semelhança do ego”
(BLEICHMAR, 1983, p.33). Segundo Freud (1914), esse seria o caso dos homossexuais, por
exemplo, que elegem um objeto conforme o tipo narcísico de escolha objetal. Bleichmar
(1983) compreende outro tipo de escolha narcísica presente no texto de forma implícita,
aquela em que o sujeito se liga a algo que o engrandeça, que satisfaça seu narcisismo, que
incremente sua autoestima. Esse é o caso a que Freud (1914) se refere, das mulheres que
sentem uma grande necessidade de se sentirem amadas, que se apaixonam pelos homens que
as elogiam e as admiram, que lhes permitem se sentir lindas e perfeitas, ou seja, que as
hiperestimam. Bleichmar (1983, p.33) comenta sobre essas duas possíveis definições de
eleição narcísica de objeto, contidas no artigo sobre o narcisismo de Freud, da seguinte
maneira: “Vemos então que em Freud a eleição narcísica de objeto abarca tanto a eleição que
se realizou à imagem e semelhança do ego como a que se realizou para elevar a autoestima, a
vivência de perfeição, de plenitude, de onipotência”. Assim, segundo o autor, é possível
distinguir entre a eleição narcísica de objeto à imagem e semelhança e a eleição narcisista de
objeto cuja finalidade é restituir a autoestima.
3.16 Breve nota sobre a modalidade do amor dos pais por seu bebê: a superestimação
sexual
Ainda na segunda seção de Introdução ao narcisismo, antes de encerrar sua exposição
sobre a vida amorosa dos seres humanos, Freud (1914) aborda a natureza de um amor em
particular: o amor que os pais nutrem por seus bebês. Segundo o autor, o “amor dos pais,
comovente e no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo dos pais renascido,
que na sua transformação em amor objetal revela inconfundivelmente a sua natureza de
outrora” (FREUD, 1914, p.37). Vimos que o narcisismo primário, definido como uma fase do
desenvolvimento, é supostamente localizado nas fases iniciais da vida humana, ainda na fase
oral do desenvolvimento, e, por suas características próprias, é muito difícil de ser apreendido
por observação direta. Segundo procuramos mostrar, sua apreensão ocorre por meio das
observações das patologias, ou de determinados fenômenos mais gerais da vida relacionados
ao narcisismo, como o sono, ou a atitude humana mediante uma doença, por exemplo. Assim,
Freud (1914) afirma que o narcisismo primário é suposto por meio de inferência retrospectiva,
a qual parte de um fenômeno atual, facilmente observável, e procura reconstituir suas origens
no desenvolvimento. É dentre os vários fenômenos em que podemos inferir o narcisismo, que
encontramos, em meio à vida amorosa dos seres humanos, o da atitude terna dos pais para
274
com seus filhos, o qual, segundo Freud (1914), consiste na revivescência e reprodução de seu
próprio narcisismo abandonado e projetado nos filhos. A relação afetiva de pais para com seus
filhos é dominada pela marca da superestimação sexual que aparece como estigma narcísico
na relação de objeto. Assim, os pais atribuindo, à criança, todas as perfeições e ocultando
todos os defeitos, tendem a dispensá-la da obrigação de reconhecer as conquistas culturais que
foram obrigadas a reconhecer em detrimento de seu narcisismo, e a reivindicar para ela as
exigências e privilégios renunciados. Com isto, Freud estabelece que a modalidade do amor
dos pais por seu bebê é caracterizada pelo tipo narcísico de escolha. Ao idealizar o seu bebê
por meio da projeção de seus ideais, os pais estabelecem uma relação narcísica, e, ao mesmo
tempo, propiciam a formação de um ego idealizado com o qual o bebê se identifica. Deste
modo, o narcisismo pode ser entendido como sendo um fenômeno que depende da
sustentação dos investimentos narcísicos dos pais em seu bebê.
condição para a repressão. E é para esse ideal que se dirige a libido do ego que constitui o
narcisismo primário originário. O ideal do ego surge como uma parte diferenciada do ego, por
meio do deslocamento do narcisismo, e se constitui em um herdeiro do ego que recebe, como
herança, parte da libido narcísica (libido do ego) e, com ela, se torna proprietário de toda
“preciosa perfeição” desfrutada anteriormente pelo ego:
Freud (1914) parte da ideia recorrente em sua obra de que o aparelho psíquico não
abandona facilmente uma satisfação libidinal desfrutada anteriormente. Com isso, o ego,
diante da pressão exercida para o abandono do narcisismo (pressão exercida por
admoestações do desenvolvimento e o despertar do juízo), procurará um modo de evitar a sua
renúncia completa. A perfeição narcísica, que o indivíduo só consegue renunciar
parcialmente, é readquirida por meio da relação com o ideal do ego. O ideal que um indivíduo
projeta diante de si e por meio do qual mede seu ego atual é o substituto ou, mais exatamente,
o herdeiro do narcisismo perdido da infância, durante o qual, ego e ideal coincidiam. Ao
abandonar o narcisismo, ego e ideal deixam de coincidir; no entanto, a satisfação vivenciada
nessa fase é novamente obtida a cada vez que, ao medir-se com o ideal do ego, o indivíduo
pode constatar que se aproxima deste. Aqui, entramos no campo de formação da instância
psíquica que se diferencia do ego e passa, por meio da energia obtida da libido do ego, a ter
um funcionamento autônomo. A instância psíquica, chamada nesse período de ideal do ego, é
a precursora do que Freud (1923) dominará mais tarde de superego. Nesse momento, Freud
(1914, p.41) se refere a uma “instância psíquica especial” cuja tarefa seria de “assegurar a
satisfação narcísica a parir do ideal do Eu”. Para atingir o propósito de obter satisfação
narcísica, tal instância psíquica observa continuamente o ego atual, medindo-o pelo ideal,
assumindo, assim, as características da conhecida “consciência moral”. Suas funções
consistem na auto-observação e na autocrítica, de tal modo que exerce o papel de “censor” do
aparelho psíquico, uma “instância censória”, afirma Freud (1914, p.43), como pode ser
observado em ação na censura do sonho e no processo de repressão.
276
Quanto ao ideal do ego, este importante conceito para se compreender a psicologia das
massas contém, além de sua dimensão individual, como herdeiro do narcisismo primário, uma
277
dimensão social, como o ideal comum de uma família, classe ou nação. O ideal do ego exerce
a função não somente de ligação da libido narcísica, mas, também, uma porção considerável
da libido homossexual que retorna ao ego pela via do ideal – conforme Freud (1911) mostrou
no Caso Schreber, a libido homossexual dessexualizada constitui as bases do instinto social.
É justamente, revela Freud (1914, p.50), “a insatisfação pelo não cumprimento desse ideal”
que libera libido homossexual transformada em consciência de culpa (angústia social).
Assim, Freud (1914) procura estabelecer, diante da definição do ideal do ego, a
diferença e as relações entre formação ideal e sublimação. Segundo o autor, a sublimação é
um processo que atua na esfera da libido objetal, o qual inibe o instinto de sua meta de
satisfação sexual e o desvia para outra direção não sexual, descrevendo algo que ocorre no
instinto: “a ênfase recai no afastamento ante o que é sexual” (FREUD, 1914, p.40). Já a
idealização é um processo que ocorre com o objeto, por meio do qual ele é aumentado
psiquicamente sem alterações em sua natureza, consistindo, assim, em um processo que pode
ocorrer tanto no âmbito da libido objetal quanto no da libido do ego. Diante disso, a
superestimação sexual do objeto consiste em uma idealização deste. Em resumo, segundo
Freud (1914), a idealização descreve algo que ocorre com o objeto, enquanto, a sublimação,
algo que ocorre com o instinto. Assim, a formação do ideal do ego é um processo distinto da
sublimação do instinto. O ideal do ego requer a sublimação de seus instintos libidinais. A
sublimação é um processo particular, sua iniciação pode ser estimulada pelo ideal, sua
execução, no entanto, é independente de tal estímulo, como podemos observar, por exemplo,
na formação da neurose; a formação ideal e a sublimação atuam distintamente: a primeira
aumenta o nível das exigências do ego e, por isso, favorece a ocorrência da repressão,
enquanto que, a segunda, representa uma saída possível para cumprir a exigência do ideal por
outros meios, sem provocar a repressão.
Freud (1914) vai apontar, ainda, que a instância crítica também exerce um papel
preponderante na formação dos sonhos. Segundo o autor, a formação dos sonhos acontece sob
o domínio da censura, a qual sempre foi atribuída ao ego, que provoca a distorção dos
pensamentos oníricos. Na Interpretação dos sonhos, Freud (1900) chamou de censura o lado
das tendências repressoras que dominam o ego e se voltam contra os pensamentos oníricos.
Por meio do narcisismo, Freud (1914) reconhece, agora no ideal do ego e nas exteriorizações
dinâmicas da consciência, o papel de censor do sonho, partindo da premissa de que sua
atividade (autocrítica e auto-observação) contribui para o conteúdo do sonho.
278
O ideal do ego terá papel determinante na elucidação da melancolia, uma vez que
Freud (1917[1915]) reconhece nesta instância a ação acusadora que se voltará contra o ego
identificado com o objeto perdido.
narcisismo originário, no qual não se diferencia libido de objeto e libido do ego. Em outras
palavras, o amor narcisicamente pleno é aquele em que sujeito e objeto não se diferenciam.
Diante das noções desenvolvidas, Freud (1914) tece uma série de considerações que se
enquadram no campo das relações amorosas, do amor próprio e do ideal do ego.
Inicialmente, Freud (1914) afirma que o desenvolvimento do ego consiste no
afastamento do narcisismo primário, o que gera um anseio pela restauração desse estado
originário. O afastamento do narcisismo primário ocorre de dois modos: por meio do
deslocamento da libido do ego para uma parte que se diferencia deste, uma instância censora
imposta a partir da realidade externa (crítica dos pais), o que constitui o chamado ideal do
ego, e pelo deslocamento da libido para um ideal do ego, o investimento libidinal de objetos
externos, acarretando um empobrecimento do ego. Assim, Freud (1914) mostra que, ao se
afastar do narcisismo primário, parte da libido é enviada para o ideal e outra parte para os
objetos. Diante do distanciamento do narcisismo primário, o ego se empobrece em favor
desses investimentos, e voltará a se enriquecer ao obter satisfação em dois campos: no da
libido objetal e no da libido do ego deslocada para o ideal. A satisfação narcísica ocorrerá na
medida em que o ego cumprir as exigências do ideal do ego. No campo da libido objetal, a
satisfação ocorrerá quando o ego receber satisfações ligadas aos objetos. Freud (1914, p.48)
resume da seguinte maneira as fontes do amor-próprio anteriormente apresentadas: “Uma
parte do amor próprio é primária, resto do narcisismo infantil; outra parte se origina da
onipotência confirmada pela experiência (do cumprimento do ideal do Eu); uma terceira, da
satisfação da libido objetal”.
“Ser novamente o próprio ideal, também no tocante às tendências sexuais, tal como na
infância – eis o que as pessoas desejam obter, como sua felicidade” (FREUD, 1914, p.49). O
ideal do ego, que se desenvolve como instância crítica censora, estabelece uma série de
limitações à satisfação libidinal nos objetos, rejeitando parte delas como intolerável. A
perversão consiste em uma condição em que o ideal não se desenvolveu, o que torna a
tendência sexual inalterada na personalidade. No estado de apaixonamento, ocorre um
transbordamento da libo do ego para o objeto, o que eleva o objeto sexual a ideal sexual. No
tipo objetal ou de apoio, a idealização do objeto sexual acontece na medida em que este
preenche as condições de amor infantis: o apaixonamento acontece com base no cumprimento
de condições de amor infantis e “tudo [na relação com o objeto] o que preencher tal condição
de amor será idealizado” (FREUD, 1914, p.49).
O ideal sexual pode se colocar num interessante vínculo auxiliar com o ideal do Eu.
Onde a satisfação narcísica depara com obstáculos reais, o ideal do Eu pode ser
280
usado para satisfação substitutiva. Então a pessoa ama, em conformidade com o tipo
da escolha narcísica de objeto, aquilo que já foi e que perdeu, ou o que possui os
méritos que jamais teve. A fórmula paralela à de cima é: aquilo que possui o mérito
que falta ao Eu para torná-lo ideal é amado (FREUD, 1914, p.49).
Amar segundo o tipo de escolha narcísica constitui um vínculo entre o ideal sexual
(objeto de amor idealizado) e o ideal do ego. Se o indivíduo se depara com obstáculos reais
para obter satisfação narcísica (carência narcísica), então ele pode amar segundo preceitos do
ideal do ego; o tipo de escolha narcísica é um tipo de relação idealizada. Ela consiste em amar
“aquilo que já foi e que perdeu, ou o que possui os méritos que jamais teve” ou em outras
palavras “aquilo que possui o mérito que falta ao Eu para torná-lo ideal é amado” (FREUD,
1914, p.49).
Freud (1914) se refere ao tipo de escolha narcísica como um recurso utilizado pelos
neuróticos que, em função de excessivos investimentos de objeto, se encontram incapazes de
cumprir as exigências de seu ideal do ego. Os neuróticos desses casos, após um grande
esbanjamento de libido, afirma Freud (1914), vão utilizar a via de regresso ao narcisismo por
meio da escolha de um objeto sexual ideal segundo o tipo narcísico, objeto este que contém as
qualidades para ele inatingíveis – utilizando a fórmula anterior, amaram o ideal sexual que
possui o mérito que falta ao ego para torná-lo ideal. Esse processo constitui um tipo de cura
pelo amor; no entanto, em função das extensas repressões que estão na base da incapacidade
de amar do paciente neurótico, acaba se convertendo em um empecilho a esse tipo de cura. Na
realidade, afirma Freud (1914, p.50), esse tipo de cura pelo amor narcísico enseja um grande
perigo, pois ela traz “os perigos de uma opressiva dependência de tal salvador”. Desta forma,
pode-se reconhecer que a neurose melancólica em sua relação narcísica com o objeto é
pautada pelo ideal de ego. A melancolia consiste em uma neurose que se forma a partir do
estabelecimento de uma escolha narcísica de objeto. Na medida em que o objeto é perdido, a
autoestima é abalada pelo fato de o melancólico não sentir-se amado pelo objeto. Segundo o
exposto anteriormente, tudo indica que para o indivíduo melancólico, falta as bases narcísicas
precoces da autoestima, o que lhe torna dependente dos ganhos narcísicos da relação
estabelecida com os objetos narcísicos, ao mesmo tempo em que se tem uma grande
dependência das realizações determinadas pelo ideal do ego.
***
como narcísica. Vimos então que, ainda em 1909, nas reuniões da Sociedade de Psicanálise de
Viena, Freud procurou compreender essa posição em relação ao desenvolvimento da libido e
sugeriu a existência de um período narcísico, ainda no início da evolução psicossexual. Ao
mesmo tempo, a noção de um investimento de libido no ego levou Freud a compreender a
paranoia, uma patologia que demonstra um pobre investimento objetal e o predomínio do
mecanismo de projeção. Ao mesmo tempo, ao efetuar o intercâmbio entre o normal e
patológico, Freud pode sugerir uma série de processos psíquicos que foram apresentados no
artigo sobre o narcisismo, no qual este é pensado em todas as suas implicações: ao sugerir o
narcisismo como uma fase de desenvolvimento, tornou-se possível explicar uma série de
processos, como a natureza dos investimentos libidinais, a origem e definição da instância
crítica que se diferencia do ego, as bases da autoestima (amor próprio) e uma série de
apontamentos em relação aos processos parafrênicos. É somente em Luto e melancolia que
Freud irá articular esses elementos em torno de uma psicodinâmica específica que explique o
mecanismo dessa afecção. Assim, o artigo Luto e melancolia pode ser tomado como herdeiro
do narcisismo, e sua função, além de esclarecer os mecanismos desses estados, é abordar o
mecanismo específico que permite ao sujeito abandonar o investimento de objeto via
regressão da libido para o narcisismo. Desse modo, com o esclarecimento do mecanismo da
melancolia, Freud esclarece, também, um mecanismo atuante na formação do aparelho
psíquico. Com isso, é possível notar o quanto o intercâmbio entre o normal e o patológico
exerce um intercâmbio contínuo na teoria freudiana. Portanto, Luto e melancolia pode ser
tomado em duas dimensões: aquela mais evidente, que se refere à elucidação de tais estados, e
uma mais indireta, que leva à compreensão de mecanismos arcaicos que só podem ser
observados a partir de seu funcionamento nas psicopatologias.
282
abertura de Luto e melancolia, Freud faz uma observação sobre a dificuldade de definição da
melancolia:
56
Conforme é possível constatar a partir das cartas enviadas a Fliess. Ver por exemplo a carta de 21 de maio de
1894 e o rascunho D in MASSON, J. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess –
1887 – 1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
284
Com isso, Freud toma partido das tendências classificatórias de sua época e divide a
melancolia em duas classes, as orgânicas e as psicogênicas - restringindo as contribuições
apresentada em Luto e melancolia ao grupo de melancolias psicogênicas. Dessa forma,
delimita seu campo de pesquisa e ação, pois, segundo o autor, a psicanálise nada teria a
contribuir sobre as melancolias de natureza hereditária57. Ao retomar o assunto da melancolia
em Psicologia das massas e análise do Eu (1921), Freud confirmará esee ponto de vista:
Sabe-se que existem pessoas cuja disposição geral de humor oscila periodicamente,
de um abatimento excessivo a uma elevada sensação de bem-estar, passando por um
estado intermediário. Tais oscilações aparecem com amplitudes bem diversas, desde
aquelas que mal se notam até as extremas, que na forma de melancolia e de mania
interferem na vida do sujeito. Em casos típicos dessa má disposição cíclica, causas
exteriores não parecem ter papel decisivo; quanto a motivos interiores, nesses
doentes não se encontra algo mais ou algo diferente dos outros. Por isso nos
acostumamos a ver estes casos como não psicogênicos (FREUD, 1921, p.96).
Dessa maneira, pode-se notar que Freud (1921, p.97) considera uma classe de
melancolia não psicogênica, da qual ele distingue uma segunda classe: “trataremos de outros
casos bem semelhantes de má disposição cíclica, que no entanto podem facilmente remontar a
traumas psíquicos”. A classe das melancolias psicogênicas apresenta, como fator etiológico,
traumas psíquicos sob a forma de “perda de um objeto amado, seja por morte deste ou devido
a circunstancias que forçaram a retirada de libido do objeto”, como os casos “em que o objeto
foi abandonado porque se mostrara indigno de amor” (FREUD, 1921, p.98). Assim, é
evidente para Freud que suas contribuições psicodinâmicas e etiológicas se restringem ao
grupo de melancolias psicogênicas.
Vale destacar que a utilização, por Freud, do termo melancolia, em sua obra, contraria
o uso corrente da psiquiatria da época, que adotara o termo psicose maníaco-depressiva.
Parmentier (2001) considera que a publicação da sexta edição, de 1899, do tratado de
psiquiatria de Kraepelin, que divide o campo da alienação em três grupos – psicose maníaco-
depressiva, demência precoce e paranoia –, constituiu uma nova tendência no quadro
nosológico da nascente psiquiatria contemporânea. Segundo a autora, Freud foi herdeiro do
vocabulário da escola alemã de psiquiatria do século XIX, em que melancolia e depressão
eram termos sinônimos. Deve-se a essa herança o estatuto particular da melancolia na obra de
Freud, que recebe uma explicação inteiramente nova. Para a autora, esse legado permitiu
conservar uma diferença entre a doença maníaco-depressiva e as outras patologias psíquicas,
57
Conforme minutas da reunião do dia 30 de dezembro de 1915: “Os processos orgânicos que existem talvez por
trás da melancolia não nos concerne” (FREUD in NUNBERG e FEDERN, 1983, p.312).
285
pois Freud enquadrou a melancolia em uma classe única, diferenciada das psicoses e das
neuroses de transferência. Parmentier (2001) sugere que, se fizermos uma comparação entre
as diferentes entidades clínicas na teoria freudiana, do ponto de vista da relação de objeto,
notaremos que a melancolia, enquanto uma neurose narcísica, ocupa um lugar na charneira
entre as neuroses de transferência, de um lado, e as psicoses (paranoia e esquizofrenia) de
outro.
O termo depressão na obra freudiana, é reservado geralmente para descrever um afeto
ou um sintoma que pode se encontrar em qualquer tipo de psicopatologia, inclusive na
melancolia. Estes afetos ou sintomas depressivos se caracterizam por uma natureza penosa e
aflitiva e se expressam como tristeza, desgosto, preocupação e inibição. Assim, encontramos
em Luto e melancolia o seguinte: “exatamente como a mania e em absoluto contraste com a
depressão e a inibição que há na melancolia” (FREUD, 1917[1915], p.188); e, em Psicologia
das massas e análise do Eu: “a mudança para a mania não é um traço indispensável no quadro
da depressão melancólica” (FREUD, 1921, p.188). Em ambos os casos, a depressão é tomada
como um afeto sintomático que, ao lado da inibição, compreende o quadro da melancolia.
Observamos ainda que, nesses dois casos, o termo foi utilizado no contexto de discussão
sobre a mania. Esta constatação nos leva a compreender que Freud utilizava o termo
depressão como um estado afetivo oposto à mania, e que o termo melancolia era reservado ao
nome de um quadro psicopatológico específico, em que o afeto depressivo e a inibição, ao
lado das autoacusações, formavam a fenomenologia clínica geral. Portanto, no contexto mais
amplo de sua obra, é possível encontrar recorrentemente o termo depressão, empregado como
um estado afetivo sintomático presentes em diferentes quadros, neuróticos ou psicóticos.
Frente a isso, encontra-se no texto freudiano, ainda que não explicitamente, uma diferença
entre melancolia e depressão: a primeira constitui-se em um quadro particular, cujos sintomas
principais são ou depressão ou mania, e a segunda consiste em um afeto, que pode estar
presente em qualquer afecção, como o caso da angústia, por exemplo (TEIXEIRA, 2007).
Finalmente, uma leitura atenta possibilita perceber que, na maior parte das vezes, os
termos depressão e melancolia são usados de maneira distinta em seus textos. A melancolia,
nesse sentido, seria um estado depressivo puro, muito intenso e acentuado, ao qual se
acrescentam alguns elementos próprios. Assim, Freud utiliza o termo melancolia dentro de
um campo teórico circunscrito, desenvolvido a partir de seu artigo Luto e melancolia
(1917[1915]), cujos mecanismos particulares a diferenciava da neurose obsessiva, da
esquizofrenia, da paranoia e de outras formas de afecções. Ao recorrer ao termo melancolia,
Freud faz alusão aos processos psíquicos a ela associados, bem como a seus elementos
286
58
Em pesquisa anterior, realizamos uma análise minuciosa do texto freudiano para compreender a problemática
em torno dos usos e significados do termo melancolia e depressão. “A Concepção freudiana de melancolia”,
TEIXEIRA, 2007.
287
de sua redação. Entre muitos outros, ao menos dois acontecimentos significativos na vida
pessoal de Freud merecem ser destacados: o alistamento de seus filhos Ernst e Martin nas
forças militares e a morte de seu irmão mais velho, Emmanuel. Em relação ao primeiro fato, a
partida de seus filhos ao front de batalha gerou em Freud a angustiante expectativa da
experiência subjetiva do luto e inquietudes permanentes a este respeito, como podemos ler,
por exemplo, na carta a Abraham, de 27 de março de 1915: “Meu filho escreveu do norte, que
está vivendo em condições desagradáveis e difíceis e que não tem se sentido bem desde sua
vacinação do tifo, mas que espera melhorar. Meu outro filho ainda está esperando ser enviado
para Klagenfurt” (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.302-303). Nesse mesmo sentido, Freud
escreve, em 1º de abril de 1915, a Lou Andreas-Salomé:
Eu sinto muito em saber que você ainda não está restabelecido, e que sua mulher
agora também está doente. Nestes nossos tempos, é preciso, ao menos, ter saúde.
Entre nós, a epidemia familiar cessou, mas Ernst deve permanecer acamado em
Klagenfurt com uma grave angina, da qual ele, sem dúvidas, se restabelecerá
somente lentamente. Evidentemente, ninguém pode fazer nada por ele. De acordo
com a carta de hoje, ele retornou para o quartel, embora ainda febril. Eu sempre
odiei a impotência e a miséria acima de tudo, e temo que ambos nos ameacem neste
momento. Deuticke me avisou que ele não quer publicar o Jahrbuch em 1915,
considerando que ele não pôde distribuir nem mesmo a edição de 1914. Ele disse
que toda a sua atividade está reduzida, e ele cita o exemplo de renomados editores
alemães que, em boa parte, suspenderam todos seus negócios durante a guerra. [...]
meu próprio trabalho está parado. Eu não pude ir além de certas dificuldades, e
devido ao meu humor, as descobertas que eu fiz até o momento não me agradaram
muito. Por causa deste estranhamento, eu me pergunto frequentemente perdido sobre
o que fazer comigo mesmo. O remédio óbvio, é claro, é aquele que geralmente
recomendamos neste momento: ter paciência e aguentar. [...] Você talvez receba a
Teoria da sexualidade antes desta carta. Desejando a todos vocês uma recuperação
rápida, com devotada cordialidade, seu Freud (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.294).
Caro amigo, um longo tempo se passou desde o seu último lacônico e desagradável
cartão postal, que devo escrever-lhe novamente. Primeiro sobre mim. Fisicamente,
estou bem novamente e espiritualmente estável, mas não estou trabalhando e tenho
abandonado tudo o que começo, inclusive algumas coisas bastante promissoras. Eu
ainda acho que esta é uma longa noite polar, e que se deve esperar pelo nascer do sol
novamente. Se isto é parte de um desenvolvimento progressivo ou somente um
estado orgânico que vêm à tona agora, em meio a tanta privação, só pode ser
decidido depois (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.295-296).
59
De fato, Abraham acaba sendo enviado para hospitais em regiões distante de Berlim, na Prússia ocidental
(FREUD-ABRAHAM, 2002). A despeito disso, continua a sua correspondência com Freud, praticamente sem
interrupção.
290
Freud compartilha das dificuldades em que todos estavam imersos durante a guerra.
Apesar de comentar de sua melhora física, tal como de seu humor, não deixa de se queixar da
dificuldade em trabalhar e de acreditar em suas ideias promissoras. Refere-se a este período
sombrio de privações como uma “longa noite polar”, a que restava somente esperar o nascer
do sol para compreender e avaliar o significado das dificuldades que todos enfrentavam
naquele momento. No entanto, ainda na mesma carta, Freud anuncia boas notícias, em tom
sereno:
Sobre outras coisas, tenho boas notícias pra você. Eu temia que Heller se recusasse a
continuar com a publicação das duas revistas. Isto não aconteceu. A decisão final
não será feita até a próxima quinta, mas estamos de acordo que as novas séries
anuais de ambas devem começar em um formato levemente reduzido, a
Internationale Zeitschrift com 6 temas como antes, cada um com 4 assinaturas, e
Imago com 4 temas de 6 assinaturas. Portanto, nossas expectativas sobre as revistas
foram revertidas. Naturalmente, nós do círculo interno devemos escrever tudo nós
mesmos, e prevemos uma grande quantidade para você (FREUD-ABRAHAM,
2002, p.295-296).
A notícia de que os periódicos seguiriam sendo publicados soa para Freud como um
fio de esperança, pois prezava bastante pela continuidade da produção do conhecimento
psicanalítico durante os tempos de guerra. Freud contava com a contribuição de Abraham nos
artigos para os números das revistas de psicanálise. Abraham, mesmo servindo nos hospitais
de guerra, se dedicou a produzir artigos a pedido de Freud. Evidentemente, a boa notícia vem
acompanhada de novas queixas e temores trazidos pela guerra, agora a respeito de seus filhos.
Ainda nessa mesma, em carta de 25 de janeiro de 1915, podemos ver Freud se expressando
em tom melancólico:
Na última manhã de quarta, entre dois trens, eu pude ver meu filho Martin vestido
elegantemente como militar, antes de sua partida ao front da Galícia. Eu especulei
com lucidez sobre a dúvida se nós os veremos novamente, e como. Atividade
médica, permanentemente reduzida para um quarto; no mais, sem novidades. No
último volume de sua semanal holandesa, van Eeden publicou um comentário sobre
a guerra que ele havia me pedido, no qual eu deixei naturalmente a psicanálise falar.
Minhas cordiais saudações, à você e aos seus, e aguardo suas notícias, de Berlim eu
espero (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.295-296).
A guerra ameaça a vida de seus filhos e essa preocupação acompanha Freud nesse
período. A sua atividade clínica foi consideravelmente reduzida e a sua produção científica
diminuía, pois sua disposição para a produção intelectual também encontrava limitações.
Como se não bastasse, outro fato considerável assolou Freud nesse período, a perda de seu
irmão mais velho, Emmanuel. Este, que morrera em 17 de outubro de 1914, havia sido muito
291
Eu disse da última vez que, a cada dia, alguma coisa se esfacela. Ontem recebi a
notícia da morte de meu irmão mais velho. Ele tinha, sem dúvida, oitenta e um anos,
mas o comunicado disse: acidente ferroviário. Eu penso que ele não teria suportado
a guerra; ele tinha uma grande vitalidade e chegou exatamente na mesma idade de
meu pai. Eu hoje lamento que o Emden tenha afundado, nós éramos
verdadeiramente apegados (FREUD-FERENCZI, 1996, p.32-33).
Tudo o que queríamos cultivar e cuidar, agora temos que deixar à deriva. É claro que
eu não temo o resultado final da causa, pela qual você é tão tocantemente dedicado,
mas o futuro próximo, que só pode interessar a mim, me parece eclipsado sem
esperanças, e eu não culparia nenhum rato que eu visse abandonando o navio
afundando. Estou tentando agora reunir, em uma espécie de síntese, o que eu ainda
292
posso contribuir. É um trabalho que já rendeu muita coisa nova, mas que
infelizmente está sendo perturbado por minhas bruscas mudanças de humor.
(FREUD-JONES, 25-12-1914).
Seu anúncio de uma série de artigos, que considero como uma promessa definitiva, é
muito bem-vinda. Afinal, nós queremos manter as revistas ativas a todo o custo
durante a guerra e gerenciá-las de forma que, mais tarde, seremos capazes de realizar
isto com satisfação. Mas os autores são muito poucos. Teremos que fazer tudo nós
mesmos. Decidi publicar três capítulos de minha síntese em gestação (instintos,
repressão, inconsciente) gradualmente na Zeitschrift. Para Imago, estou até
escrevendo o trecho de uma conversa sobre a guerra e a morte, para deixar o auto-
sacrificado editor feliz. Tudo isso, naturalmente, contra a resistência interna
(FREUD-ABRAHAM, 2002, p.300; grifo nosso).
Você sabe que eu me preocupo com o particular, e que espero que o universal daí
293
Freud faz uma menção indireta a Luto e Melancolia, o quinto artigo metapsicológico,
já escrito nessa data. Nele, Freud aplica o conceito de narcisismo na elucidação das afecções
relacionadas aos instintos de ego, as chamadas neuroses narcísicas. De fato, sob o prisma do
conceito do narcisismo, conforme veremos adiante, Freud compreendeu a alucinação das
demências precoces e a melancolia, duas das três afecções agrupadas sob o rótulo de neuroses
narcísicas nesse período60. O universal ao qual ele se refere na primeira frase é o narcisismo,
conceito que remete a uma fase normal do desenvolvimento e que possibilita compreender
estados particulares, como as neuroses narcísicas. Assim, a elucidação da melancolia é uma
decorrência direta da descoberta do narcisismo. Freud escreve a Abraham, em 4 de maio de
1915, para dizer que cinco dos seus artigos metapsicológicos já estão acabados:
O trabalho agora está tomando forma. Tenho 5 ensaios prontos: aquele sobre
Instintos e seus destinos, que certamente pode ser mais árido, mas indispensável
como introdução, encontrando suas justificativas em todos os outros artigos
seguintes, depois Repressão, o Inconsciente, Suplemento metapsicológico, e Luto e
melancolia. Os quatros primeiros devem ser publicados no recém-volume do
Zeitschrift, e o resto eu estou mantendo comigo. Se a guerra durar muito, eu espero
reunir cerca de uma dúzia de artigos como estes e, nos tempos de paz, oferecê-los ao
mundo ignorante sob o título: ensaios preliminares de metapsicologia. Acredito que
em seu conjunto isto será um progresso. Mesma forma e mesmo nível que o capítulo
7 de interpretação dos sonhos (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.309).
60
É somente em 1924 que Freud retira a paranoia e a demência precoce da classe das neuroses narcísicas e as
agrupa sob o termo de psicoses. A melancolia permanece como a única neurose narcísica.
294
Freud confirma que seus artigos estão praticamente terminados; contudo, sem ser
conhecermos os motivos, Freud somente publicou cinco do conjunto de doze artigos
previstos. Além de Luto e melancolia (1917[1915]), foram publicados Os instintos e seus
destinos (1915), a Repressão (1915a), O Inconsciente (1915c) e Complemento
Metapsicológico à Teoria dos Sonhos (1917a [1915]). Tardiamente, em meados dos anos
1980, foi encontrado e publicado um manuscrito de Freud enviado a Ferenczi, reconhecido
como fazendo parte dos doze artigos metapsicológicos. Intitulado Neurose de Transferência:
uma síntese, foi identificado como o décimo primeiro rascunho dentre os doze ensaios
metapsicológicos de 1915; com isso, temos um total de seis desses artigos conhecidos e
publicados. Quanto aos seis restantes, é possível que tenham sido destruídos pelo próprio
Freud, ou que nem tenham sido realmente redigidos. Eis um dos maiores enigmas que paira
sobre a psicanálise freudiana.
Luto e melancolia foi um dos doze trabalhos concebidos por Freud para abordar os
elementos fundamentais da teoria freudiana. Isso ressalta a sua importância em termos de
contribuições teóricas fundamentais, no quadro de trabalhos metapsicológicos que compõem a
psicanálise freudiana. O artigo só pode ser bem compreendido se tomado em relação aos
outros quatro artigos metapsicológicos vizinhos, pois Freud se utiliza de elementos de todos
eles para explicar a psicodinâmica do luto e da melancolia. Ao longo de todo o texto de Luto e
melancolia, Freud nos remete aos outros artigos metapsicológicos, ao abordar, por exemplo, a
questão da ambivalência e das diferenças entre ódio e sadismo (Os instintos e seus destinos) e
a descrição tópica dos trabalhos do luto e da melancolia (O inconsciente).
Logo na abertura do artigo Luto e melancolia e de Complemento metapsicológico a
teoria dos sonhos, Freud evoca a comparação efetuada entre estados afins para se referir ao
procedimento psicanalítico de aproximar os estados normais e os patológicos, a fim de que
ambos se esclareçam mutuamente – tema que abordamos amplamente no segundo capítulo.
Na abertura de Complemento metapsicológico a teoria dos sonhos, Freud (1917a[1915],
p.152) afirma:
Em mais de uma ocasião veremos como é vantajoso para a nossa pesquisa comparar
certos estados e fenômenos apreendidos como modelos normais de afecções
patológicas. Entre eles estão estados afetivos como o luto e o enamoramento, mas
também o estado do sono e o fenômeno do sonhar.
nos serviu como modelo normal dos distúrbios psíquicos narcísicos, façamos a tentativa de
elucidar a natureza da melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto” (FREUD,
1917[1915], p.171). Nota-se que Freud utiliza exatamente o mesmo procedimento: no
primeiro toma o sonho como modelo normal das afecções narcísicas, e, no segundo, toma o
luto como modelo normal da melancolia. Esse procedimento, que abordamos com tanta
ênfase em nosso segundo capítulo, está na base do desenvolvimento da teoria freudiana, que
concebe como intercambiáveis os estados normais e patológicos.
Luto e melancolia é um artigo permeado de referências metapsicológicas, isto é, de
explicações tópicas, dinâmicas e econômicas. Pois, nesse momento, ao edificar sua
metapsicologia, Freud reunia os elementos para que os processos psíquicos e as
psicopatologias pudessem ser explicados a partir de três registros que, em seu conjunto,
formam a identidade da teoria psicanalítica: os registros tópico, dinâmico e econômico. Em
cada um dos cinco artigos, Freud aborda os fenômenos apresentados a partir de tais registros,
colocando-os em evidência. Frente a isso, para compreender Luto e melancolia, além do texto
Introdução ao narcisismo, do qual é uma continuação, é necessário recorrer constantemente
às explicações dos quatro primeiros artigos metapsicológicos – Os instintos e seus destinos, A
repressão, O inconsciente e Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos -, pois, ao
longo do texto, Freud nos reenvia constantemente às explicações neles contidos. Iremos
ilustrar brevemente essa afirmação. Vejamos, por exemplo, uma referência a respeito do
trabalho do luto:
Em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Não me parece descabido expor esse
trabalho da forma seguinte. O exame da realidade mostrou que o objeto amado não
mais existe, e então exige que toda libido seja retirada de suas conexões com esse
objeto. Isso desperta uma compreensível oposição – observa-se geralmente que o ser
humano não gosta de abandonar uma posição libidinal, mesmo quando um substituto
já se anuncia. Essa oposição [ao desligamento do objeto] pode ser tão intensa que
se produz um afastamento da realidade e um apego ao objeto mediante uma psicose
de desejo alucinatória (ver ensaio anterior). O normal é que vença o respeito à
realidade. Mas a solicitação desta não pode ser atendida imediatamente. É cumprida
aos poucos, com grande aplicação de tempo e energia de investimento, e enquanto
isso a existência do objeto perdido se prolonga na psique. Cada uma das lembranças
e expectativas em que a libido se achava ligada ao objeto é enfocada e
superinvestida, e em cada uma sucede o desligamento da libido. Não é fácil
fundamentar economicamente por que é tão dolorosa essa operação de
compromisso em que o mandamento da realidade pouco a pouco se efetiva. É
curioso que esse doloroso desprazer nos pareça natural. Mas o fato é que, após a
consumação do trabalho do luto, o Eu fica novamente livre e desimpedido (FREUD,
1917[1915], p. 173-174, grifo nosso).
Por outro lado a patologia nos ensina que o exame da realidade pode ser suspenso ou
colocado fora de ação, e aprenderemos isso de modo mais inequívoco na psicose de
desejo, na amentia, do que no sonho: a amentia é a reação a uma perda que a
realidade afirma, mas que o Eu rompe a relação com a realidade, subtrai ao sistema
das percepções Cs o investimento ou, melhor talvez, um investimento cuja natureza
especial ainda pode ser objeto de investigação. Com este afastamento da realidade o
seu exame é posto de lado, as fantasias de desejo – não reprimidas, inteiramente
conscientes – podem penetrar no sistema e a partir de lá são reconhecidas como uma
realidade melhor. Uma tal subtração pode ser encontrata entre os processos de
repressão: a amentia nos oferece o interessante espetáculo da desunião entre o Eu e
um de seus órgãos, aquele que talvez o servisse mais fielmente e lhe fosse mais
ligado (FREUD, 1917a[1915], p.167).
Temos, agora, elementos para compreender com mais detalhes a afirmação contida em
Luto e melancolia, de que a oposição ao desligamento do objeto pode ser tão intensa a ponto
de provocar um afastamento intenso da realidade, sob a psicose alucinatória de desejo. No
caso do trabalho do luto, a realidade confirma a perda de objeto, declarando ao ego que aquele
não existe mais; no entanto, essa constatação acaba se tornando insuportável para o ego,
gerando fortes sentimentos de frustração. O ego, então, rompe com a realidade, e as
298
representações do objeto podem ser investidas como se fossem o fruto de percepções atuais e
reais, provocando a alucinação. Não nos estenderemos mais neste processo, em função de
evitar que nos afastemos de nosso propósito, que é ilustrar como Luto e melancolia se
sobrepõe aos outros artigos metapsicológicos.
A preocupação metapsicológica atravessa Luto e melancolia. Freud utiliza a noção de
trabalho psíquico, que remete à tarefa econômica designada como elaboração. Esse trabalho
reside em uma tarefa realizada pelo psiquismo, com a finalidade de dominar excitações que
chegam até ele e cuja acumulação desencadeia o risco de provocar desprazer e adquirir uma
conotação patogênica (LAPLANCHE e PONTALIS, 1998). De maneira geral, o conceito de
trabalho se refere à atividade do aparelho psíquico destinada a tratar das excitações
instintuais. Ora, o que se passa, então, com o trabalho econômico do luto? Ele desaparece
após um tempo sem deixar traço de grandes mudanças, como no luto. Como explicar o seu
fim?
No caso deste [do luto], tivemos a explicação de que é preciso tempo para a
detalhada execução do mandamento do exame da realidade, e depois desse trabalho
o Eu tem liberada do objeto perdido a sua libido. Podemos imaginar o Eu ocupado
em trabalho semelhante na melancolia; nos dois casos, falta-nos a compreensão
econômica do processo (FREUD, 1917[1915], p.186).
talvez uma conjectura possa ajudar quanto a isso. A cada uma das recordações e
expectativas que mostram a libido ligada ao objeto perdido, a realidade traz o
veredicto de que o objeto não mais existe, e o Eu, como que posto diante da questão
de partilhar ou não esse destino, é convencido, pela soma das satisfações narcísicas
em estar vivo, a romper seu vínculo com o objeto eliminado. Podemos imaginar que
esse rompimento ocorra de modo tão lento e gradual que, ao fim do trabalho,
também o dispêndio que ele requeria foi dissipado (FREUD, 1917[1915], p.189,
grifo nosso).
Nesse fragmento, Freud oferece uma explicação econômica do trabalho de luto. Ele
sugere que há um investimento das representações do objeto perdido, de sua memória, que é,
ao mesmo tempo, confrontada com o exame da realidade; isso permite constatar, por meio de
uma compreensão interna, que o objeto não existe mais na realidade e, portanto, a libido não
encontra mais satisfação. O ego é colocado diante de uma dolorosa constatação: é preciso
desinvestir o objeto perdido e se ligar a outros objetos de amor ou, então, continuar investindo
esse objeto na fantasia e partilhar, assim, de seu destino, inicialmente sob a forma de uma
psicose alucinatória de desejo e, levado às últimas consequências, à morte, em função do
desinteresse da realidade e de si mesmo. O rompimento do vínculo com o objeto – ligado à
sua existência – que deixa de trazer gratificação, exige um trabalho lento e gradual, que
consome quantidades de energia psíquica já que, ao investir as representações e não encontrar
satisfação, o investimento continua emanando estímulos que, não a encontrando, causarão
desprazer. Essas quantidades de energia que não encontram satisfação com o objeto precisam
ser dominadas, isto é, desligadas do objeto perdido e (re)ligadas a outras representações de
objetos de satisfação. Assim, Freud afirma que “a característica de executar passo a passo o
desligamento da libido deve ser atribuída igualmente ao luto e à melancolia, baseia-se
provavelmente na mesma situação econômica e serve às mesmas tendências” (FREUD,
1917[1915], p.191).
Para compreender mais exatamente as explicações metapsicológicas desses processos,
precisamos avançar na compreensão econômica da melancolia. Diante de uma perda, que
pode ser entendida como qualquer situação de desprezo ou decepção vivida na relação com o
objeto, trava-se uma batalha entre o ódio e o amor, atribuída à ambivalência afetiva:
“Portanto, na melancolia travam-se inúmeras batalhas em torno do objeto, nas quais ódio e
amor lutam entre si, um para desligar a libido do objeto, o outro, para manter essa posição da
libido contra o ataque” (FREUD, 1917[1915], p.191-192). O ódio luta para desligar a libido
do objeto; o amor, exercendo uma forte oposição, se esforça para manter a ligação com o
objeto. Isso faz com que Freud se pergunte sobre o aspecto tópico da melancolia, que nos
envia para o seu aspecto topográfico: “Não podemos situar essas lutas em outro sistema que
300
não o Ics, a região dos traços mnemônicos das coisas (em oposição aos investimentos de
palavras)” (ibid.). A ambivalência afetiva tem lugar no sistema inconsciente e, assim, o sujeito
não pode reconhecer a fonte de seu conflito como sendo ligada ao objeto. Tanto o ódio pelo
objeto, quanto o amor, se tornam inconscientes. O que diferencia, então, nesse caso, o luto da
melancolia? Freud afirma que também no inconsciente “ocorrem as tentativas de
desligamento no luto, mas nesse último nada impede que esses processos continuem pela via
normal até a consciência, através do Pcs” (ibid.). No caso da melancolia, “tal caminho se acha
bloqueado para o trabalho da melancolia, talvez devido a muitas causas ou à ação conjunta de
causas” (FREUD, 1917[1915], p.191-192). Assim, o conflito devido à ambivalência
permanece subtraído da consciência, e o que se conhece dele é o conflito consciente, expresso
nas autoreprovações.
Assim tudo que diz respeito a esses conflitos da ambivalência permanece subtraído à
consciência, até que sobrevém o desenlace característico da melancolia. Ele consiste,
como sabemos, em que o investimento libidinal ameaçado abandona finalmente o
objeto, mas apenas a fim de se retirar para o lugar do Eu, de onde havia partido.
Refugiando-se no Eu, o amor escapa à eliminação. Após essa regressão da libido, o
processo pode ser tornar consciente e é representado na consciência como um
conflito entre uma parte do Eu e a instância crítica (FREUD, 1917[1915], p.191-
192).
Freud, aqui, segue seus preceitos etiológicos de formação da neurose, que parte de
uma frustração – a perda de objeto –, segue regressivamente aos pontos de fixação – no caso,
a regressão às etapas associadas à ambivalência – e o decorrente estabelecimento do conflito
inconsciente, que leva a uma formação de compromisso entre o ódio e o amor. O resultado é o
sintoma melancólico, que se expressa como autoacusação, redução da autoestima,
desinvestimento da realidade externa e desinteresse, inibição, entre outros. O que se conhece
da melancolia é apenas o seu conflito consciente; seu aspecto latente, inconsciente, é
desconhecido pelo melancólico. No entanto, Freud insiste que esse conflito é o resultado de
um complexo mecanismo, que retira a libido do objeto, opera uma regressão ao narcisismo, e
encontra satisfação no conflito que se estabelece entre o ego e sua instância crítica.
Freud também relaciona o tema dos aspectos ambivalentes da melancolia com o seu
primeiro artigo metapsicológico, Os instintos e seus destinos. É nesse artigo que devem ser
procuradas as explicações sobre a ambivalência afetiva, que Freud remete aos períodos
iniciais do desenvolvimento do ego. Para ilustrar brevemente, vejamos o que Freud afirma
sobre a relação entre ambivalência e perda, em Luto e melancolia: “A perda do objeto
amoroso é uma excelente ocasião para que a ambivalência das relações amorosas sobressaia e
301
A história da origem e das relações de amor nos torna mais compreensível o fato de
tão frequentemente ele aparecer como ‘ambivalente’, isto é, em companhia de
impulsos de ódio contra o mesmo objeto. O ódio mesclado ao amor procede em
parte dos estágios preliminares do amor, não superados inteiramente, e de outra
parte se fundamenta nas reações de rejeição dos instintos do Eu, que nos frequentes
conflitos entre interesses do Eu e do amor podem invocar motivos reais e atuais. Em
ambos os casos, portanto, o ódio entremesclado se reporta à fonte dos instintos de
conservação do Eu. Quando a relação de amor com um determinado objeto é
rompida, não é raro que o ódio tome o seu lugar, com o que temos a impressão de
que o amor se transformou em ódio. Seremos levados além dessa descrição se
adotarmos a concepção de que nisso o ódio motivado de maneira real é fortalecido
pela regressão do amor ao estágio sádico preliminar, e portanto odiar assume um
caráter erótico e a continuidade de uma relação amorosa é garantida (FREUD,
1915, p.80, grifo nosso).
Frente ao rompimento de uma relação amorosa, ou seja, de uma perda, pode ocorrer a
regressão do amor ao estágio sádico preliminar, dotando o ódio de caráter erótico. Abraham
insiste bastante neste ponto, defendendo que o sadismo e o erotismo oral se combinam e
formam o conflito da melancolia. No entanto, Freud explica a melancolia como uma
continuidade narcisista de uma relação amorosa, por meio da introjeção. Abraham, como
veremos adiante, credita à incapacidade do melancólico para o amor.
Ao considerar os aspectos econômicos, tópicos e dinâmicos, Freud pretende construir
uma teoria da melancolia segundo os preceitos de sua metapsicologia. Isso o permitiu ilustrar
de que maneira os processos psíquicos discutidos teoricamente nos três quatro primeiros
artigos metapsicológicos (Os instintos e seus destinos, A repressão, e O inconsciente) devem
ser articulados na explicação dos mecanismos das psicopatologias. Para Freud, a elucidação
de mecanismos psicopatológicos que não atenda às descrições econômicas, dinâmicas e
tópicas, permanece incompleta. É sobre esse ponto que ele insistira em suas discussões com
seus discípulos acerca do assunto da melancolia.
Finalmente, gostaríamos de ressaltar que Luto e melancolia permitiu a Freud articular
diversos elementos teóricos de sua metapsicologia, e, por isso, adquiriu a função de ilustração
de como tais elementos devem ser articulados para explicação de uma afecção. O contexto
teórico da metapsicologia marcou esse trabalho, que não pode ser bem compreendido, senão
em um contexto cujas fontes são heterogêneas. No contexto da formulação de Luto e
melancolia, encontramos desde influências teóricas mais diretas, como os artigos
metapsicológicos aqui citados e o artigo Introdução ao narcisismo, abordado no capítulo 3,
até influências mais distantes, como as concepções etiológicas fundamentais da teoria
302
4.5 Breve nota acerca dos primeiros trabalhos psicanalíticos sobre os estados depressivos
De acordo com alguns trabalhos científicos61 sobre a história dos estados depressivos
na psicanálise, poucos artigos se dedicaram ao tema no meio psicanalítico até meados de
1915, quando Luto e melancolia foi escrito. Os trabalhos habitualmente reconhecidos como
sendo os pioneiros sobre os estados depressivos na psicanálise são os artigos Notas sobre as
investigações e o tratamento psicanalítico da psicose maníaco-depressiva e estados afins, de
Abraham (1912[1911]) e Luto e melancolia (1917[1915]), de Freud. No entanto, May (2001)
revela que os primeiros trabalhos que procuraram compreender os estados depressivos na
psicanálise não foram os de Abraham (1912) e de Freud (1917[1915]), mas os artigos de
Groos (1907) e de Ferenczi (1908), além do livro de Stekel (1908), que inclui uma discussão
sobre dois casos de pacientes depressivos. No mesmo período, o autor destaca, também, a
publicação dos trabalhos de Jones (1909), Notas psicanalíticas sobre um caso de hipomania,
que aborda o quadro da mania, de Maeder (1910) e de Brill (1911). O próprio Abraham já
havia publicado, antes do artigo de 1912 ao qual nos referimos, um estudo em que procurava
compreender os estados depressivos em 1911, intitulado Giovanni Segantini: ensaio
61
Foi possível identificar os artigos psicanalíticos sobre os estados depressivos na época inicial da psicanálise a
partir dos trabalhos de May (2001), Lussier (2007), Rosenfeld (1959) e Wisdow (1962).
305
psicanalítico. Contudo, May (2001) ressalta que esses trabalhos não resultaram em
contribuições significativas sobre a compressão psicanalítica dos estados depressivos (com
exceção de Abraham 1912[1911]), pois não especificam as razões e os caminhos pelos quais o
conflito psíquico (que segundo Freud estava na base das neuroses) resulta em depressão - e
não em outra afecção, como a histeria ou a neurose obsessiva. Isso está de acordo com a
observação de Freud a respeito da melancolia, cuja “natureza é por instante desconhecida; seu
mecanismo, em particular, não foi ainda examinado” e, ainda, que “o sentimento de culpa é
também presente em outras neuroses, em todos os casos; trata-se de elucidar o mecanismo
específico da melancolia” (FREUD in NUNBERG e FEDERN, 1978[1967], p.491). Para
Freud, o fundamental não é identificar os elementos associados a um quadro psicopatológico,
mas explicar porque, diante de um conflito, o caminho da organização psíquica leva a uma e
não à outra afecção. Assim, Freud insiste, nesse período, que o fundamental é explicar porque
o amor não correspondido e os sentimentos de culpa derivados dos desejos de morte levam à
depressão e não a outras formações sintomáticas.
encontra em sua família. Mas, desapontada em sua esperança de amor por ambos os lados,
não encontrando mais o amor do mestre, a criança pode ser levada definitivamente ao
desespero de não encontrar amor, o que a conduz ao suicídio. Diante da associação entre
suicídio, melancolia e falta de amor, Freud (in NUNBERG e FEDERN, 1978[1967], p.481)
realiza a seguinte observação: “De início, alguns casos mais raros de tentativa de suicídio:
entre eles, o caso psicologicamente mais significativo e aquele, já mencionado por Sadger, de
identificação com as pessoas amadas”. Assim, se estabelece uma associação entre o suicídio e
a identificação, avizinhando a melancolia como o estado extremo em que isso pode ser
observado. Para Freud, o suicídio permanecia como um grande enigma, pois não havia ainda
uma explicação aceitável para o instinto de autoconservação ter falhado em seu objetivo de
conservar a vida.
Na reunião do dia 27 de abril de 1910, o tema do suicídio é retomado na discussão. As
afirmações de Stekel, ao lado das de Freud, são as mais notáveis, por evidenciar aspectos que
posteriormente servirão de base para a elucidação da melancolia:
Uma circunstância não foi tomada em consideração até o presente, ainda que ela
tenha um papel importante; trata-se do princípio do talião. O suicida é atormentado
por um profundo sentimento de culpa e se suicida ao querer matar algum outro.
Todo o resto tem apenas uma função desencadeadora (STEKEL in NUNBERG e
FEDERN, 1978[1967], p.487).
vida. Observa, então, que entre tudo o que foi discutido, permanece um problema a ser
resolvido: “o suicídio deve em cada caso ser interpretado como uma reação do ego ao poder
superior da libido, ou é preciso admitir ao lado deste a existência de um suicídio que provenha
exclusivamente do ego?”. Diante da questão insolúvel no momento, Freud considera que “nós
fizemos bem de não responder a esta questão; pois estas coisas não são acessíveis à pesquisa.
O acesso ao complexo do suicídio, a partir de um estudo das doenças, reside na melancolia”.
De fato, ao abordar a melancolia em Luto e melancolia, Freud alcançará a explicação sobre o
enigma do suicídio, elucidando seu mecanismo:
Agora a análise da melancolia nos ensina que o Eu pode se matar apenas quando,
graças ao retorno do investimento objetal, pode tratar a si mesmo como um objeto,
quando é capaz de dirigir contra si a hostilidade que diz respeito a um objeto, e que
constitui a reação original do Eu a objetos do mundo externo (FREUD, 1917[1915],
p.185]).
Freud formula uma explicação plausível, em seu ponto de vista, por meio do
mecanismo da identificação narcísica. Isso é possível quando se considera que a melancolia
consiste em uma regressão do investimento do objeto ao narcisismo, em que o ego se
identifica com o objeto perdido, para o qual os impulsos ambivalentes estão dirigidos. Para
Freud, a explicação se torna evidente: “Assim, na regressão da escolha de objeto narcísica o
objeto foi eliminado, é verdade, mas demonstrou ser mais poderoso que o próprio Eu”
(FREUD, 1917[1915], p.185]). Ao se identificar narcísicamente com o objeto, o melancólico
desloca o conflito com o objeto para o interior do aparelho psíquico, onde seu ego será
subjugado pela instância crítica como um objeto odiado.
Freud encerra a discussão acerca do suicídio, na Sociedade Psicanalítica de Viena,
demarcando um campo de estudo para o suicídio por meio da compreensão do mecanismo da
melancolia que, naquela época, em 1910, era ainda incompreendido. Freud é prudente em
suas observações, sugerindo cautela ao tratar o assunto, embora pareça ter alguma noção dos
rumos a serem tomados na abordagem da questão. Diante disso, afirma que “o sentimento de
culpa é também presente nas outras neuroses. Em todos os casos; trata-se de elucidar o
mecanismo específico da melancolia” (FREUD in NUNBERG e FEDERN, 1978[1967],
p.491-492). Ora, se o sentimento de culpa se torna presente em toda neurose, cabe à
psicanálise elucidar o mecanismo específico da melancolia, em que tal sentimento se torna
central. O próprio Adler (in NUNBERG e FEDERN, 1978[1967], p.489) observa que o
problema do suicídio “é tão complexo que todas as relações da vida humana, assim como
todos os fenômenos psicológicos, aparecem na discussão”, o que acentua a diversidade das
308
opiniões expressadas. Na Standard Edition, foi publicada a intervenção de Freud nesta mesma
segunda reunião de 27 de abril de 1910. As observações que Freud aí realiza são mais
significativas e nos interessa notavelmente:
Senhores. Tenho a impressão de que, a despeito de todo o valioso material que nos
foi exposto, nesta discussão, não chegamos a uma decisão sobre o problema que nos
interessa. Estávamos ansiosos sobretudo em saber como seria possível subjugar-se
ao extraordinariamente poderoso instinto da vida: isto pode apenas acontecer com o
auxílio de uma libido desiludida, ou se o ego pode renunciar à sua autopreservação,
por seus próprios motivos egoístas. Pode ser que tenhamos deixado de responder a
esta indagação psicológica porque não temos meios adequados para abordá-la.
Podemos, eu creio, apenas tomar como nosso ponto de partida a condição da
melancolia, que nos é tão familiar clinicamente, e uma comparação entre ela e o
afeto do luto. Os processos afetivos na melancolia, entretanto, e as vicissitudes
experimentadas pela libido nessa condição nos são totalmente desconhecidos. Nem
chegamos a uma compreensão psicanalítica do afeto crônico do luto. Deixemos
nosso julgamento até que a experiência tenha solucionado o problema (FREUD,
1910a, p.244).
sugeriu que a compreensão das vicissitudes da libido diante da decepção amorosa (do instinto
sexual frustrado) e sua relação com o instinto de autoconservação do ego forneceriam a chave
para a explicação do fenômeno suicida. Frente a isso, em 1910, Freud parece já vislumbrar as
contribuições que a melancolia poderia trazer para a elucidação de questões caras de sua
teoria, como a constituição do ego, do superego e da atividade dos instintos. Assim, é possível
especular que Freud já estivesse se ocupando sobre o assunto, cujo meio de abordagem seria a
introdução e o esclarecimento do conceito de narcisismo. Aliás, a explicação do mecanismo
da paranoia, no caso Schreber, já contém elementos importantes da teoria do narcisismo,
como a noção de regressão narcísica e de projeção, por exemplo. Salientamos, ainda, que os
elementos presentes na discussão a respeito do suicídio irão tomar corpo, de maneira mais
refinada, por meio da identificação narcísica em Luto e melancolia: é por se identificar
narcisicamente com o objeto amado, com o qual se viveu uma decepção na esfera da libido, e
devido à sua introjeção no ego, que se torna possível cometer o suicídio – pois, ao matar-se, o
sujeito está cometendo uma vingança contra o objeto. Segundo mostramos, a melancolia
consiste no deslocamento de um conflito externo, vivido com o objeto, para o mundo interno,
em que se manifesta sob o fenômeno das autoacusações, indicando um conflito de si para
consigo mesmo.
Há, ademais, outra questão a ser destacada no fragmento anterior, que é a aproximação
da melancolia com afeto do luto, para alcançar a sua compreensão. De fato, como sabemos,
esta será a abordagem do problema da melancolia no artigo Luto e melancolia. Conforme
também vimos, essa comparação começou a ser cogitada ainda no final do século XIX, nos
rascunhos G e N, enviados a Fliess. Todavia, seria um pouco de ingenuidade tomá-la como
uma ideia original e restrita ao pensamento freudiano, pois, de acordo com o que explanamos
no primeiro capítulo, durante séculos a melancolia foi aproximada a diversos estados
depressivos, entre eles, o luto. No entanto, segundo Lussier (2007), no meio psiquiátrico da
época de Freud, no período pré-psicanalítico, essa comparação já era assinalada. A autora
realizou uma pesquisa na biblioteca pessoal de Freud, procurando identificar os tratados de
psiquiatria mantidos em sua coleção. Entre os sete encontrados e analisados, a autora se
deparou com um tratado de autoria de Meynert, psiquiatra e neurologista de quem Freud havia
sido discípulo na penúltima década do século XIX, durante seu trabalho no hospital de Viena.
Nesse livro, há um capítulo sobre a melancolia, no qual Meynert oferece, em termos
fisiológicos, uma explicação a respeito do rompimento dos laços amorosos com o objeto
perdido em um caso clínico de melancolia precipitada por um luto. Em seu tratado de
psiquiatria, Meynert defende que essa coincidência não deve ser considerada fortuita ou
310
aleatória, e coloca a perda como possível precipitadora de surtos melancólicos. Tal descrição
corresponde, quase que exatamente, àquela efetuada por Freud no artigo Luto e melancolia, o
que sugere uma transposição para a esfera psíquica da explicação fisiológica meynertiniana62.
Meynert, ainda, volta-se para o diagnóstico diferencial da melancolia, efetuando uma
comparação com o luto, afirmando que, em um primeiro momento, quanto às suas
manifestações, a melancolia pode ser confundida com o afeto fisiológico do luto; prossegue
acrescentando que as perdas afetam componentes do ego63. Por fim, Meynert afirma que,
entre as causas psíquicas da melancolia, o afeto do luto vem em primeiro lugar (LUSSIER,
2007).
Não cabe aqui insistir na afirmação de que Freud tenha efetivamente se inspirado no
estudo de Meynert sobre a melancolia. Lussier (2007) encontra evidências de que Freud lera o
tal capítulo sobre a melancolia de Meynert, que fora primeiramente proferido como uma
conferência em 1899, antes de ser publicado no tratado de psiquiatria. No entanto, a autora
constatou que entre os sete manuais práticos de psiquiatria encontrados na biblioteca pessoal
de Freud, esse foi o único a esboçar uma abordagem do luto, a desenvolver uma ligação entre
este e a melancolia, e a sugerir a ligação destes com a constituição do ego. Em nosso ponto de
vista, o que isso demonstra é que, se Meynert escreveu sobre essas aproximações, é muito
possível que elas rondassem o meio científico vienense em que Freud estava inserido; pois
encontramos, nos primeiros rascunhos enviados a Fliess, em 1894, conforme tópico anterior,
algumas noções a respeito da melancolia em aproximação com o luto – ainda que não
consistisse efetivamente em uma teoria do mecanismo psíquico da melancolia como tal. Dessa
forma, observamos que Freud não foi exatamente original, ou o primeiro a sugerir a
aproximação da melancolia com o luto e a antever sua contribuição para a compreensão da
constituição do ego – o que certamente não diminui o mérito de suas contribuições sobre o
62
A passagem diz o seguinte: Um exemplo da conexão entre o humor tristonho e a inibição funcional é a morte
de um ente querido. A imagem dessa pessoa se liga a uma grande quantidade de associações, e a toda a nossa
atividade voltada para o exterior e a tudo quanto possamos ter atrelado à pessoa em causa, devido a seu apoio a
todas as nossas iniciativas e atividades, no caso de uma esposa; ou, em se tratando de crianças, como o objetivo
disso. Essa imagem cortical abrangente constituiu, por assim dizer, um ponto nodal de associação, qualquer que
tenha sido o rumo de nossas reflexões. A ausência de seu objeto dá origem a uma inibição, de longo alcance, do
desencadeamento e conclusão das associações. A inibição funcional bloqueia a hiperemia funcional e surge,
então, em lugar desta, uma restrição do fluxo arterial; o córtex frontal percebe a fase de respiração dispneica de
suas células como um sentimento de luto. Um prolongado sentimento de luto tem repercussões sobre o centro
vascular geral, a tez da pessoa de luto torna-se pálida e seu ingerir alimentar diminui (MEYNERT, 1890, p.7
apud LUSSIER, 2007, p.68).
63
Primeiramente, quanto às suas manifestações, a melancolia pode ser confundida como o afeto fisiológico do
luto. Nas perdas de pessoas ou mesmo de propriedade, esse possui, realmente, uma afinidade com o mecanismo
da micromania. Afinal, as perdas efetivamente afetam componentes do ego secundário, estendido; a sensação de
contração fisiológica do ego é parte integrante do afeto do luto (MEYNERT, 1890, p.16 apud LUSSIER, 2007,
p.68).
311
assunto. Contudo, sua originalidade está, sem dúvida, na maneira como abordou a melancolia,
em comparação com o luto, em termos psíquicos, sob o registro das formulações a respeito do
narcisismo e da constituição do ego.
***
melancolia prevalecem aspectos narcísicos, mas que se manifestam sob a forma contrária de
um engrandecimento do ego, isto é, sob a forma de desprezo de si mesmo, é também o motor
das análises freudianas realizadas em Luto e melancolia. A regressão à libido, ao invés de
causar um engrandecimento de si mesmo, provoca, na melancolia, um empobrecimento
extremo do ego. Tausk liga isso ao sentimento de culpa que acompanha as atividades infantis
sadomasoquistas da tenra infância. Freud examinará em detalhes como se passa a
transformação do sadismo em masoquismo em Os instintos e seus destinos, e situará essa
transformação inicial na fase preliminar narcísica do sadismo, em que se incorpora
prazerosamente o objeto amado e se expele de si aquilo que causa desprazer. Finalmente,
Tausk, ao afirmar que os melancólicos adoecem ao renunciar ao objeto de amor, está
realizando uma conclusão baseada em Introdução ao narcisismo, em que Freud associa o
adoecimento a uma regressão narcísica. O melancólico, de Luto e melancolia, adoece ao
renunciar ao objeto de amor e identificar-se com ele, mantendo a satisfação da libido, mas
deslocada para o próprio ego.
Na discussão que se segue à conferência de Tausk sobre a melancolia, Rank chama a
atenção para o fato de Abraham (1912[1911]), em “Notas sobre a investigação e o tratamento
psicanalítico da psicose maníaco-depressiva”, já ter mostrado que a melancolia e a mania são
expressão dos mesmos complexos. Rank sugere que a aparente autoacusação de pacientes
após a perda de pessoas amadas – “eu nunca a amei” –, deveria ser compreendida como uma
tentativa de realizar o objetivo do luto – “se ao menos eu não tivesse amado essa pessoa!”.
Já as observações de Freud à conferência de Tausk soam como um esboço do
conteúdo de Luto e melancolia. Freud inicia seus comentários dizendo que encontrou certas
coisas novas e outras que são já conhecidas. Ele tece, também, um interessante comentário
sobre a definição da melancolia:
Nessa observação, Freud insiste, como fizera nas reuniões acerca do suicídio, que para
a psicanálise, o fator mais importante para distinguir as afecções é explicar o seu mecanismo
psíquico. Em outras palavras, a descrição dos sintomas só serve à psicanálise enquanto
indicativo de mecanismos psíquicos subjacentes à sua formação. Assim, por trás das variadas
formas clínicas da melancolia, Freud sugere que teríamos o mesmo mecanismo psíquico em
315
atividade, o que permitiria agrupá-las em uma unidade. Bem como a histeria e a neurose
obsessiva têm seus mecanismos particulares que justificam o estabelecimento de uma
entidade clínica a que cada uma delas corresponde, no que concerne à melancolia, uma vez
identificado seu mecanismo psíquico de formação, seria permitido também considerá-la uma
entidade única, sob a égide de um mesmo mecanismo atuante em todas elas. Na abertura de
Luto e melancolia, Freud se refere justamente a este problema, a dificuldade de agrupar as
melancolias em uma única unidade em função de suas variadas formas clínicas. Como
solução, Freud define como o grupo cujo mecanismo pretende elucidar, aquele das
melancolias de etiologia psíquica indubitável. Com isso, percebemos que Freud considera
fundamental explicar os traços distintivos das doenças, por meio da compreensão de seu
mecanismo. À melancolia, apesar de sua variação, estaria subjacente um mecanismo
particular, que permitiria, então, explicá-las a partir de um núcleo comum.
Voltando às observações de Freud à conferência de Tausk, Freud se refere à
dificuldade do tratamento das melancolias pelas técnicas psicanalíticas. Esse era um dos
principais problemas com o qual Freud se debatia naquele período, isto é, compreender as
neuroses narcísicas e encontrar um meio para seu tratamento. Freud menciona dois casos que
foram tratados com sucesso, cuja técnica residiu no tratamento durante os intervalos situados
entre os ataques de melancolia, ou seja, nos períodos de remissão da doença.
Freud afirma, também, ser fato conhecido que a melancolia e a mania são somente
duas fases da mesma afecção: a melancolia é uma tentativa que fracassou, a mania uma
tentativa secundária. As autoreprovações do melancólico visam a outras pessoas que são
apenas redirecionadas contra o próprio indivíduo. Essa constatação vai ser a base de seu
argumento, de que o mecanismo básico da melancolia é a identificação narcísica, isto é, de
que as autoacusações do melancólico são dirigidas originalmente ao objeto amado, e se voltou
contra o próprio ego em função deste se identificar narcísicamente com o objeto perdido –
mediante a internalização de um conflito externo, há uma passagem de um conflito com o
objeto externo para um conflito entre o ego e a instância crítica. Como sabemos, Freud leva
em conta que as afecções psíquicas são sempre o resultado de um conflito inconsciente
disparado por frustração; isso aplicado à melancolia pode ser mais bem compreendido se a
perda de objeto for tomada como a frustração desencadeante do conflito inconsciente com o
objeto, que é vivido internamente. Isso satisfaz suas premissas etiológicas básicas. Freud
relata, ainda, que os casos de remissão espontânea da melancolia servem como prova de que é
a ocasião que determina a eclosão do conflito – em outras palavras, as situações de
desconsideração, desprezo etc.
316
deve ao fato de a melancolia, explicará Freud em Luto e melancolia, estar ligada a uma
regressão à fase oral canibalística, em que o objeto é devorado por introjeção.
Para finalizar, Freud observa que o processo orgânico que pode existir por detrás da
melancolia não concerne à psicanálise. Com isso, delimita o campo de atuação da psicanálise
aos problemas psíquicos, que segundo assinalamos anteriormente, é a delimitação realizada
em Luto e melancolia. Finalmente, Freud tece relações entre a libido e os distúrbios do ego,
afirmando que nas psicoses trata-se de perturbações da libido, enquanto que nas neuroses,
trata-se de problemas da libido de objeto; no limite entre elas, situa-se a paranoia, com sua
luta que provém do narcisismo contra a escolha de objeto. Embora os problemas da libido
possam ser secundários, a perturbação do ego não se produz sem uma perturbação relativa ao
objeto; “é o que nos coloca no direito de qualificar de libidinais os problemas do ego”
(FREUD in NUNBERG e FEDERN, 1983[1975], p. 312). Com essas afirmações finais, Freud
nos remete, aqui, à problemática tão enfatizada em Introdução ao narcisismo, uma vez que o
ego constitui-se enquanto investimento de libido sobre si mesmo - o que justificaria a
formulação teórica de uma libido do ego, que estaria na base das neuroses narcísicas. A
psicose é, assim, um distúrbio da libido do ego, e a neurose um distúrbio na libido de objeto.
Mais tarde, em 1924, Freud situará a melancolia - e não a paranoia - entre as neuroses e as
psicoses, sendo a primeira definida como uma neurose narcísica.
Em 3 de fevereiro de 1915, o tema da melancolia reaparece, de modo muito breve.
Tausk realiza um pequeno relato de um caso de uma paciente melancólica, cuja doença estava
ligada a uma história de amor. Esse é o segundo caso que Tausk prometera apresentar em sua
conferência sobre a melancolia, em 30 de dezembro de 1914. Na paciente em questão, a
traição de seu chefe, que foi a causa aparente de sua doença, acha sua contrapartida na traição
de seu amante, quando ele se casa com outra mulher; é quando o chefe de sua paciente deixa o
trabalho que sua depressão dispara. Freud assinala a apresentação desse caso, que pode
confirmar as observações de Tausk; no entanto, insiste que a melancolia produz sintomas por
meio de uma identificação com o objeto, pois o adoecimento da paciente de Tausk é, na
verdade, uma condenação de seu amante. Freud afirma que “trata-se de uma desilusão
amorosa que é, por meio da identificação, projetada sobre o próprio ego da pessoa em
questão” (FREUD in NUNBERG e FEDERN, 1983[1975], p. 312). “A sombra do objeto caiu
sobre o Eu”, diria Freud mais tarde em Luto e melancolia, ao que acrescenta: “e a partir de
então este pôde ser julgado por uma instância especial como um objeto, o objeto
abandonado”, com isso, “a perda do objeto se transformou numa perda do Eu, e o conflito
318
64
Para um exame aprofundado do debate em torno dos estados depressivos entre Freud e seus discípulos ver
Lussier, D. Le travail de deuil. Paris: Puf, 2007 ; e LAUFER, L. Préface à Deuil et mélancolie. Paris: Éditions
Payot, 2011.
319
65
Em 1916 Tausk publica um artigo em que compara as psicoses de guerra com a melancolia. Nesse artigo, o
autor se refere à escolha narcísica de objeto e à identificação narcísica. Tausk atribui a originalidade destas ideias
a um artigo não publicado na época de Freud, certamente Luto e melancolia, e ressalta o consentimento deste
último para utilizar esses conceitos em seu trabalho. Cf. TAUSK, V. (1916) Diagnostic considerations
concerning the symptomatology of the so called war psychoses. Psychoanal. Q., 38:382-404.
321
Eu acho muito boa a ideia sobre a melancolia. De ponto de vista do Sr. a melancolia
seria alguma coisa intermediária entre as neuroses de transferência e as neuroses
narcísicas propriamente ditas: o luto da perda de objeto de amor se transforma em
luto pelo ego narcísico. O ponto de fixação se acha então provavelmente no estágio
de transição do narcisismo ao amor objetal. O fato que se tratasse aqui de um duplo
mecanismo de projeção e de introjeção (delimitação do ego em relação ao não ego)
falaria inteiramente a favor desta ideia. A melancolia seria então (segundo seu
mecanismo) a psicose de introjeção propriamente dita (deslocamento do afeto, do
objeto sobre o ego), enquanto que a histeria, etc. realiza somente um deslocamento
de um objeto sobre outro, e a paranoia a projeção do ego sobre o mundo exterior.
Com vossa permissão, eu guardarei as páginas sobre a melancolia ainda um a dois
dias, para enviá-las, em seguida, a Abraham (FREUD-FRENCZI, 1996, p.60-61).
introjeção. Em Luto e melancolia, no entanto, Freud não utiliza o termo introjeção, mas, em
contrapartida, irá desenvolver a sugestão de Ferenczi em situar a fixação da melancolia
justamente neste estágio de discriminação do ego e não ego – o que também foi uma sugestão
de Abraham, conforme veremos adiante. Segundo Ferenczi, a melancolia, enquanto uma
afecção cuja disfunção recai sobre o mecanismo de introjeção, estaria situada entre a histeria,
que desloca sua libido de um objeto para outro, e a paranoia, que, ao projetar o seu ego para o
exterior, indica uma disfunção de sua relação com a realidade e da predominância do
mecanismo de projeção diante do mundo externo.
A carta seguinte deveria ser uma resposta de Freud a Ferenczi que, no entanto, não
consta nas edições publicadas das correspondências entre os psicanalistas. O que nos leva à
carta seguinte, enviada por Ferenczi em resposta a Freud, em 25 de fevereiro de 1915:
Não penso ter compreendido mal vossa ideia sobre a melancolia. Mas, é verdade que
eu aproveitei também desta ocasião para colocar mais uma vez o valor minha
‘introjeção’. (Você chama projeção da sombra do objeto sobre o ego narcísico, o que
eu preferiria chamar de introjeção). Mas, chamando sua atenção para este termo, eu
não queria esgotar meu julgamento e minha interpretação de vossa ideia sobre a
melancolia. Eu não penso tê-lo compreendido mal (FREUD-FERENCZI, 1996,
p.62-63).
O início dessa carta nos indica que, na carta anterior, Freud, diante das sugestões de
Ferenczi, acusa-o de ter compreendido mal suas proposições acerca da melancolia. Por
conseguinte, Ferenczi destaca explicitamente que sua intenção era sublinhar que a melancolia
permite reconhecer o valor de seu conceito de introjeção. A resposta de Ferenczi é tão rica em
elementos teóricos que podemos considerar que seus comentários tiveram o status de
contribuições para Freud na elaboração do artigo Luto e melancolia. Ao fragmento anterior, se
segue o seguinte:
66
[com ponderação]
323
realidade trás consigo, por meio de uma discordância dolorosa, a obrigação de “distinguir de
seu ego, como constituindo o mundo externo, certas coisas malignas que resistem à sua
vontade, ou seja, a separar os conteúdos psíquicos subjetivos (sentimentos) dos conteúdos
objetivos (impressões sensoriais)” (FERENCZI, 1913, p.53). Assim, Ferenczi é levado a
distinguir projeção e introjeção:
Encontramos aqui uma distinção entre projeção e introjeção próxima àquela feita na
carta enviada a Freud no dia 25 de fevereiro de 1915. No entanto, segundo sabemos, a relação
da projeção com a introjeção não será abordada por Freud em Luto e melancolia, como era de
se esperar, mas em Os instintos e seus destinos, escrito no mesmo período, para explicar o
papel desses mecanismos atuantes no estágio do narcisismo:
Nesse artigo, que parece ser o primeiro emprego do termo no contexto da teoria
freudiana67, Freud adota o termo introjeção e o contrapõe ao termo projeção, ao considerar a
origem da oposição fundamental ego/sujeito/prazer x mundo exterior/objeto/desprazer.
Assim, Freud (1915) vai chamar esse ego autoerótico/narcísico de “Eu prazer purificado”, que
se constitui na medida em que introjeta tudo aquilo que sente como fonte de prazer, e projeta
para o exterior o que é fonte de desprazer. Apreendemos, por meio das cartas enviadas a
Abraham nesse mesmo período, que Os instintos e seus destinos foi escrito entre 15 de março
– “Após esta carta, eu começo a redação de Instinto e destinos dos instintos” – e 4 de maio de
1915: “Eu terminei cinco ensaios: sobre “Instintos e destinos dos instintos”, que é sem dúvida
um pouco árido, mas indispensável como introdução, e que achará significação nos seguintes”
(FREUD-ABRAHAM, 2002, p.302-308). Ou seja, as formulações que constam nesse artigo,
do qual extraímos o fragmento anterior, datam de pouco mais de 15 dias após a troca de cartas
67
Cf. nota do editor James Strachey em Os instintos e suas vicissitudes (1915).
325
com Ferenczi, cujo debate em torno dos mecanismos de projeção e introjeção vieram à tona
sob o pano de fundo da melancolia. Vale destacar, ainda, sobre essa questão, que ao
considerar O instinto e seus destinos (1915) “indispensável como introdução, e que achará
significação nos seguintes”, Freud insere indiretamente o conceito de introjeção no campo da
melancolia, pois esse artigo e sua discussão sobre os mecanismos atuantes na fase do
narcisismo/autoerotismo colocam o mecanismo em posição nuclear em relação àquela
afecção.
Embora não figure em Luto e melancolia, o conceito de introjeção irá marcar a teoria
freudiana da melancolia, visto que, ao retomar o assunto, em Psicologia das massas e análise
do Eu (1921) e em O Eu e o id (1923), Freud o utilizará muitas vezes. Segundo Prado de
Oliveira (2011, p.54-55), “Freud desloca de Luto e melancolia para Psicologia das massas e
análise do Eu as considerações sobre a melancolia e a introjeção que Ferenczi teria esperado
em seus primeiros artigos”. Assim, em Psicologia das massas e análise do Eu (1921), ao
tratar da identificação, Freud (1921, p.65-67) escreve:
[Freud] procede um longo desenvolvimento, onde a outra parte do ego a qual ele se
refere, aquela que ‘inclui a consciência, instância crítica no ego’, ela, não é
resultante da introjeção, mas provém do narcisismo originário em seu reencontro
com a coletividade ao meio de uma refeição tomada em comum. Freud deixa mais
326
um extenso lugar a introjeção, como condição que este lugar pudesse incluir suas
próprias teses de Totem e tabu e sua relação curiosa à Robert Smith. A ambivalência
de Freud a respeito de Ferenczi e de sua contribuição a psicanálise se traduz em
elaboração teórica.
Como vemos, Prado de Oliveira (2011) destaca que, embora Freud reserve um lugar
mais amplo para a introjeção em sua obra, isso é feito como uma maneira de valorizar suas
próprias teses e a partir delas. Em O eu e o id (1923), ao abordar a formação do ego e do
superego, Freud introduz, mais uma vez, o assunto da melancolia associado ao conceito de
introjeção, como aquela em que permite ilustrar os processos de formação do aparelho
psíquico. Aqui, o termo introjeção aparecerá mais uma vez:
Se um tal objeto sexual deve ou tem de ser abandonado, não é raro sobrevir uma
alteração no Eu, que é preciso descrever como estabelecimento do objeto no Eu,
como sucede na melancolia; ainda não conhecemos as circunstâncias exatas dessa
substituição. Talvez, com essa introjeção que é uma espécie de regressão ao
mecanismo da fase oral, o Eu facilite ou permita o abandono do objeto. Talvez essa
identificação seja absolutamente a condição sob a qual o Eu abandona seus objetos.
De todo modo, o processo é muito frequente, sobretudo nas primeiras fases do
desenvolvimento, e pode possibilitar a concepção de que o caráter do Eu é um
precipitado dos investimentos objetais abandonados, de que contém a história dessas
escolhas de objeto.
68
Para uma visão mais detalhada das contribuições de Abraham às teorias psicanalíticas sobre os estados
depressivos e as diferenças de perspectivas concernentes a estes estados entre as suas elaborações e aquelas de
Freud, remetemos o leitor ao artigo de Ulrike May, “Abraham’s Discovery of the “bad mother”: a contribution to
the history of the theory of depression”, International Journal of Psycho-Analysis, 82 (2), 2001, p. 283-305.
328
Lussier (2007), que tomou os comentários de Abraham sobre o artigo Observações sobre o
amor de transferência (FREUD, 1915c) erroneamente, como sendo concernentes ao esboço
da melancolia. Assim, a autora interpreta a crítica de Abraham, que trata com certa
indiferença o artigo Observações sobre o amor de transferência (FREUD, 1915d), como uma
indiferença relativa ao esboço da melancolia e constrói o argumento de que o psicanalista
berlinense estaria incomodado com o conteúdo deste último. Como vemos, isso não é
verdade, pois Abraham estava se referindo às Observações sobre o amor de transferência
(FREUD, 1915d) e não ao esboço da melancolia, que não havia recebido ainda. Abraham
escreve o seguinte:
Antes de qualquer coisa, eu lhe agradeço pelas provas que me enviou. Eu não tenho
nenhuma objeção desde a primeira até a última linha. Minha grande satisfação é que
o que se disse neste ensaio confirma minhas muitas experiências. Se eu disse que é o
primeiro ensaio de vossa autoria que não me trouxe nada de novo, isto significa
simplesmente que, por uma vez, eu não me senti obrigado a rever nenhum ponto. Ao
contrário, minhas observações não estavam ainda ordenadas com tanta clareza; é
pela estruturação do artigo que eu aprendi tantas coisas (FREUD-ABRAHAM,
2002, p.299).
A única constatação que pode ser feita é que, além da fria reação ao conteúdo do artigo
Observações sobre o amor de transferência, conforme pode ser lido no fragmento citado,
Abraham não escreve sequer uma palavra sobre o esboço da melancolia. Ainda, ao momento
dessa carta, que data de 28 de fevereiro, é possível que Abraham tampouco tivesse recebido o
esboço, pois, segundo vimos, Ferenczi pediu a Freud, em 22 de fevereiro para permanecer
com o texto mais alguns dias. Em resposta a Abraham, Freud escreve, logo em seguida, em 4
de março de 1915:
O sentido muda, mas o resultado é o mesmo. Quando o Sr. diz que minha última
contribuição não lhe ensinou nada de novo, isto é tão gratificante para mim, quanto a
vossa ênfase costumeira do oposto. Eu acredito que esta contribuição é a melhor e a
mais útil de toda a série, assim estou preparado para que ela evoque a mais forte
oposição (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.300).
Freud comunica a Abraham que, mesmo se habitualmente este costumava receber cada
novo trabalho freudiano com entusiasmo, ao dizer, dessa vez, que não enxergara nada de novo
em seu artigo Observações sobre o amor de transferência (FREUD, 1915d), sentia-se
igualmente gratificado provavelmente por entender que o “não trouxe nada de novo” de
Abraham poderia indicar que ele estava em sintonia com suas ideias. No entanto, conforme
pode ser lido, Freud não deixa de atribuir à indiferença de Abraham certa resistência ao
conteúdo do artigo citado, por considerar que de toda a série de artigos sobre a técnica, esse é
o que traz contribuições mais significativas e, portanto, poderia provocar fortes resistências.
331
Não nos alongaremos mais sobre a discussão do artigo, pois a nossa intenção é apenas
esclarecer que a discussão em questão não se trata em absoluto sobre o esboço da melancolia,
além de esclarecer um importante erro de interpretação contido em um relevante artigo sobre
a gênese de Luto e melancolia69. Em função disso, não seria correto acusar uma reação
problemática da parte de Abraham suscitada pelo esboço da melancolia, o que ficará mais
evidente ao tratarmos da carta em que Abraham expressa seu ponto de vista sobre o assunto.
Veremos que Abraham se coloca diante de Freud como um debatedor com propriedades
teóricas consistentes sobre o assunto da melancolia.
Foi em 5 de março de 1915 que Abraham enviou um catão postal acusando ter
recebido o esboço da melancolia enviado a ele por Ferenczi: “Caro Professor, somente para
lhe dizer que eu recebi de Ferenczi o pequeno manuscrito sobre a melancolia. Uma vez o
tendo estudado em detalhes, devo mandá-lo de volta para você” (ABRAHAM-FERENCZI,
2002, p.301). Abraham permaneceu o mês inteiro de março de 1915 em silêncio a respeito do
esboço, e seus comentários sobre o manuscrito só viriam, no entanto, em 31 de março de
1915. É verdade que exatamente nesse período Abraham estava ingressando no exército como
médico de guerra, e seguiria trabalhando em hospitais militares fora de Berlim, com grande
sobrecarga de atividades. Nessa época, conforme pode se ler de sua troca de cartas com
Freud, Abraham estava também preocupado com sua família, que deixara em Berlim. Em 13
de março de 1915, responde a uma longa carta de Freud com apenas algumas linhas sobre
temas gerais, informando a Freud seu novo endereço de correspondência:
Caro Professor, eu cheguei aqui ontem e devo realizar trabalhos cirúrgicos, embora
eu espere ter mais tempo para meu próprio trabalho que eu tinha em casa. Trouxe
comigo o artigo que recentemente lhe prometi. Meu endereço é: Allenstein (Prussia
oriental), hospital de guarnição, n.1, Hohensteinerstrasse. Quais são vossas notícias?
O que o Sr. sabe de vossos filhos? Eu espero que também aqui, eu receba notícias
frequentes do Sr.. Com minhas cordiais saudações ao Sr., vossa casa e aos amigos
vienenses, Seu Abraham (FREUD-ABRAHAM, 2002, p. 301).
69
LUSSIER, M. (2000). Mourning and Melancholia. Int. J. Psycho-Anal., 81:667-686.
332
Caro amigo, eu espero com impaciência notícias de vossa nova estadia, mas eu
tenho de meu lado pouca coisa a dizer. Eu trabalho com lentidão e constância em
meus artigos para a Imago e a Zeitschrift. Eu encontrei a confirmação de minha
explicação da melancolia em um caso que estudei durante dois meses, sem atingir no
entanto um sucesso terapêutico visível, que pode, é verdade, se manifestar
subitamente (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.302-303).
Freud comenta sobre o caso que confirma sua explicação da melancolia e, com isso,
traz à tona o assunto na correspondência com Abraham. Finalmente, Abraham se manifesta
sobre o assunto em 31 de março de 1915, com uma longa carta, em que questiona uma série
de pontos a respeito das ideias de Freud. Logo na abertura de sua carta, Abraham revela o
motivo de sua demora para se manifestar sobre o assunto:
Caro Professor, eu demorei muito tempo para me pronunciar sobre vosso esboço de
uma teoria da melancolia; e não somente porque me faltava a tranquilidade
necessária para o trabalho. Há muitos anos atrás, eu mesmo fiz uma tentativa nesta
direção, mas eu sempre estive consciente de suas imperfeições, e, além disto, temia
que minha atitude frente à vossa nova teoria resultasse demasiado subjetiva. Penso
ter superado este dificuldade, e aceito todo o essencial pelo Sr. exposto, mas penso
que apenas um elemento de meu trabalho anterior deveria estar mais fortemente
acentuado do que o Sr. o faz, e por último, quero submeter à vossa consideração
uma proposta para resolver a questão que o Sr. deixou aberta. Obviamente, ficam
sem resolução ainda questões importantes, para as quais, no momento, não tenho
explicação (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.303-305).
Logo de início, Abraham afirma que se conteve diante do esboço sobre a melancolia
com a preocupação de ser demasiado subjetivo em função de ter realizado já contribuições
importantes sobre esse assunto. Até o momento, o artigo de Abraham era o único entre tantos
que havia reconhecidamente trazido contribuições propriamente psicanalíticas ao tema.
Contribuições estas que Freud ignorou em seu esboço, e para a qual Abraham vai lembrar sua
pertinência. O clima da carta é de um verdadeiro diálogo científico, entre dois titãs da
psicanálise. Abraham reflete profundamente sobre as teses de Freud e procura trazer uma
série de contribuições, advindas não somente de seu trabalho anterior sobre a melancolia, mas
também das recentes publicações freudianas, além de sua prática clínica com pacientes
melancólicos. Abraham começa por retomar pontos de seu artigo “Notas sobre a investigação
e o tratamento psicanalítico da psicose maníaco-depressiva”, e assinala a Freud que já havia
realizado a comparação entre o luto e melancolia, sugerindo uma coincidência entre eles.
Explica que, em 1911, se baseou no trabalho de Freud sobre a neurose obsessiva (o homem
333
dos ratos) – derivando, dela, a depressão do sadismo, cuja intensidade impedia o melancólico
de desenvolver sua capacidade de amar. Em seguida, afirma que teve “de deixar inteiramente
sem resposta a questão de por que em uns casos surge melancolia e, em outros, a obsessão.
Naquela época, não tínhamos ainda dois importantes trabalhos de vossa autoria, o do
narcisismo e o da organização pré-genital” (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.303-305). Como
vimos nos comentário das reuniões da Sociedade de Viena sobre a melancolia, para Freud,
essa afecção permanecia sem explicação em função de não ter sido nela identificada um dos
pontos mais fundamentais da psicanálise, a da escolha da neurose, ou seja, explicar o motivo
de determinados elementos levarem a uma patologia e não a outra. Assim, na época em que
Abraham escreveu seu artigo sobre a melancolia, em 1911, lhe faltava justamente a
compreensão considerada mais fundamental por Freud, que residia em explicar os elementos
que distinguiam os traços em comum presentes na neurose obsessiva e na melancolia, isto é, a
que se atribuiria a articulação desses elementos sob uma ou outra forma de afecção. Talvez
tenha sido justamente por este motivo que Freud, ao considerar o problema da melancolia,
não tenha se referido às contribuições anteriores de seus colegas psicanalistas: porque lhes
faltava a chave para explicar o mecanismo distintivo da melancolia. Como o próprio Abraham
reconhece, são as contribuições trazidas pelo conceito de narcisismo que permitirão avançar
no sentido de se reconhecer os traços distintivos da melancolia, hipótese que procuramos
sustentar em nossa pesquisa, segundo o capítulo anterior.
A referência à organização pré-genital deve-se ao conteúdo exposto no artigo A
predisposição à neurose obsessiva (1913), no qual Freud aborda justamente o problema da
escolha da neurose, conforme mostramos ao abordá-lo no capítulo 2. Abraham menciona
muitas vezes durante essa carta o quanto os elementos trazidos por esse artigo mudaram sua
perspectiva sobre a melancolia. Embora Freud tenha intitulado o artigo A predisposição à
neurose obsessiva (1913), esta afecção só servirá, como uma forma de pretexto (no melhor
sentido do termo), para ele destacar a importância de se identificar os traços distintivos de
cada afecção, e por quais meios essa tarefa deve ser empreendida; além de introduzir a
importante noção de organizações pré-genitais, o que está na superfície do artigo. Assim
Freud, ainda no início desse artigo, salienta que a orientação do trabalho da psicanálise é
deduzir as condições normais estudando seus distúrbios. Freud destaca, ainda, que as fases do
desenvolvimento da libido caminham lado a lado com as do desenvolvimento do ego e que
estas se articulam no estabelecimento da predisposição da neurose. Assim, na abertura de seu
artigo, Freud escreve:
334
Sem dúvida, o problema de por que um indivíduo adoece de uma neurose se inclui
entre aqueles que devem ser respondidos pela psicanálise. Mas é provável que a
resposta seja obtida apenas quando se resolver outro problema mais específico:
saber por que este ou aquela pessoa tem uma determinada neurose e não outra. Esse
é o problema da ‘escolha da neurose’ (FREUD, 1913, p. 325).
É possível depreender, desse breve fragmento, a importância que Freud atribuía a essa
questão; ele somente escreveu sobre a melancolia quando pôde colocá-la sob o prisma da
escolha da neurose e da elucidação de seu mecanismo distintivo. No capítulo 2, procuramos
mostrar que a origem da predisposição a uma neurose, conforme indica Freud, deve ser
procurada na história do desenvolvimento das funções psíquicas, tanto as funções sexuais,
quanto as funções do ego, que começam a ser mais bem elucidadas com a introdução do
narcisismo. O ponto de fixação indica que parte das funções psíquicas sofreu algum tipo de
alteração ao longo de seu desenvolvimento e, diante da frustração, a função pode regredir para
esses pontos fixados. Assim, Freud vai reunir duas novidades introduzidas no problema da
escolha da neurose:
Apesar de não ver que o melancólico transfira para si mesmo as censuras que estão
referidas ao objeto de seu amor e que servem para desvalorizá-lo, considero
completamente possível tudo o que o Sr. disse sobre a identificação com o objeto
amoroso. É provável que a concisão de seus argumentos seja a única causa para que
eu não tenha me aprofundado mais aqui. Em meus pacientes, pareceu-me como se o
melancólico, incapaz de amar como é, queria a todo custo apoderar-se de seu
objeto amoroso, não podendo suportar sua perda; é hipersensível à mais mínima
atitude não amistosa. Não poucas vezes se deixa atormentar pela pessoa amada em
uma autopunição masoquista. As censuras que por esse motivo quereria fazer a ela,
põe-nas em sua própria conta, porque inconscientemente causou-lhe um dano muito
maior (onipresença do pensamento). Isto é o que havia deduzido de minhas análises.
Mas com o Sr. sabe, caro professor, estou disposto a mudar meu ponto de vista.
Apenas lamento que nosso diálogo tenha de ser por escrito (FREUD-ABRAHAM,
2002, p.303-305, grifo nosso).
336
Abraham, para expressar sua opinião, parece se cercar do cuidado em afirmar que
talvez não tenha compreendido bem, que está disposto a mudar de opinião etc., chega a
sugerir que sua incompreensão se deve ao aspecto sintético das ideias de Freud. Mas o que
conta é que ele mantém sua posição em afirmar que para ele, segundo sua experiência clínica,
as autoacusações do melancólico não se devem a um desvio do objeto original para o ego. O
que ele observa? Muito mais no registro da culpa e no campo da neurose obsessiva, Abraham
vai sublinhar que as autoacusações são fruto da incapacidade de amar em função do sadismo,
que se expressa sob a forma de impulsos hostis inconscientes. Assim, as autoacusações são,
na realidade, decorrentes do sentimento de culpa inconsciente por ter danificado o objeto
amoroso, e da incapacidade do melancólico tomar o objeto enquanto objeto de amor. Diante
de sua incapacidade de suportar a perda e de sua hipersensibilidade narcísica, o melancólico,
segundo Abraham, vai reagir agressivamente à mínima atitude não amistosa do objeto e, com
isso, em função dos ataques sádicos inconscientes, será tomado por sentimentos de culpa e
necessidades de punição. Dessa maneira, é possível notar que Abraham está realmente
considerando a melancolia em um registro diverso de Freud: não é a identificação narcísica a
chave de sua explicação, mas a incapacidade de amar, o sadismo inconsciente, e o sentimento
de culpa delirante. Embora Abraham afirme estar pronto para aceitar a identificação, não
reconhece que as autoacusações do melancólico se dirigem originalmente ao objeto perdido.
Abraham não se dá conta que, ao questionar esse ponto, está também pondo em questão todo
o argumento de Freud, que será extensivamente desenvolvido em torno da ideia de que o
conflito do melancólico é um deslocamento de acusações voltadas para o objeto perdido.
Conforme se pode notar, já de antemão, é mais sobre a vertente de Abraham, que considera o
melancólico como incapaz de amar em função do sadismo e do ódio, que vão se pautar
autores como Radó (1928), Klein (1940) e Deutsh (1930, 1933), os quais irão privilegiar os
sentimentos de culpa como explicação da melancolia.
Voltando às considerações de Abraham, ao que se segue, o autor formula a seguinte
questão: “Mas qual é o delito que o melancólico praticou em relação ao objeto com o qual se
identifica?” (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.303-305). Ao formular tal questão, Abraham
demarca uma importante separação entre sua teoria da melancolia e a de Freud: para o
primeiro, o melancólico realmente cometeu um delito (ataques inconscientes ao objeto em
função do sadismo), enquanto, para Freud, quem cometeu o delito foi o objeto com o qual o
sujeito se identifica (as autoacusações são fruto do ódio suscitado pelo dano causado pelo
objeto). A resposta que Abraham oferece à questão anterior é conciliatória, e entrega a chave
do mecanismo da melancolia para Freud:
337
Assim, como se pode notar nesse fragmento retirado dos Três ensaios, Abraham está
incorporando, em sua teoria da melancolia, as mais recém-publicadas novidades da teoria
freudiana. Nessa passagem é a primeira vez que Freud introduziu o conceito de uma
organização oral canibalística da libido, que foi abordada em seguida em Os instintos e seus
destinos – o qual estava em processo de escrita no momento (1915). Nesse último artigo, à
incorporação oral canibalística, Freud vai associar, à ambivalência afetiva, o termo introjeção
proposto por Ferenczi, conforme mostramos anteriormente. Abraham traz, com suas
observações, consideráveis contribuições à teoria da melancolia na psicanálise, com destaque
para a noção da ambivalência presente na atividade oral de incorporação melancólica. Freud
irá desenvolver a noção de ambivalência dessa fase em Os instintos e seus destinos,
abordando os pares de opostos sadismo e masoquismo, atividade e passividade e odiar e amar.
Sobre a transformação do sadismo em masoquismo, Freud (1915, p.70) afirma que
“significaria um retorno ao objeto narcísico, enquanto nos dois casos o sujeito narcísico é
338
trocado, mediante a identificação por um outro Eu”. A observação de Freud parece estar às
voltas com os apontamentos de Abraham e Ferenczi, e procura insistir nas atividades
ambivalentes dos instintos na fase oral e narcísica:
A fase descrita aqui nos parece ser aquela em que os processos da melancolia estão
mais próximos. Freud coloca em relevo uma atividade sádica, anterior ainda àquela da fase
anal em que Abraham insiste com tanta veemência em seus comentários.
Nota-se que Freud, ao tematizar sobre a melancolia, está realizando a passagem do
patológico ao normal: os processos psíquicos observados na melancolia revelam as atividades
precoces de um período do desenvolvimento primitivo que estava sendo explorado naquele
momento. Conforme mostramos no segundo capítulo, é justamente observando os processos
psíquicos em ação nas psicopatologias que Freud reconstitui sua teoria do desenvolvimento.
Se na melancolia é possível identificar processos narcísicos, a compreensão deles levará,
também, à compreensão dos processos psíquicos dessa fase inicial do desenvolvimento
psíquico. Para Freud, a explicação da melancolia não se reduz à compreensão da melancolia;
mas é, na verdade, a terra prometida para preencher aquilo que o autor considera senão a
maior, uma das consideráveis lacunas da psicanálise até o momento: explicar o
desenvolvimento dos instintos do ego e suas atividades, assim como os mecanismos das
neuroses narcísicas. Ao lado disso, é possível observar o quanto a troca de cartas com seus
discípulos resultavam em contribuições fundamentais para a teoria freudiana, obrigando Freud
a rever suas posições teóricas e a incrementar seus conceitos.
Voltando à carta de Abraham e aos seus comentários sobre o esboço da melancolia, ao
insistir sobre a tendência canibalística na identificação melancólica, ele recorre a uma série de
argumentos relacionados às dificuldades de alimentação do melancólico. Como primeiro
argumento, ele apresenta o medo de morrer de fome do melancólico, sublinhando que o
comer ocupa o lugar de amar. Também a repulsa ao alimento, em quadros melancólicos,
indica que o comer adquire uma significação particular relativa à ambivalência da fase oral,
pois comer é devorar o objeto amado. Abraham lembra, ainda, dos delírios de licantropia, tão
339
associados na antiguidade com a melancolia, em que o melancólico delira ser um homem lobo
que devorou seres humanos. Um último argumento consiste na brincadeira que os médicos
fazem com pacientes melancólicos quando estes expressam suas autocensuras e sentimentos
de culpa: “bem, o que o Sr. pode ter feito? Acaso comeu criancinhas?”, indagam os médicos.
Todos esses casos indicam a favor de uma importante constatação: “Atrever-me-ia supor que
o papel que na neurose obsessiva corresponde à zona anal é ocupada, na melancolia, pela zona
oral” (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.303-305). Assim, Abraham reúne dois elementos
etiológicos, de um lado o sadismo, advindo da fase anal e, de outro, o erotismo oral, advindo
da incorporação ambivalente da fase oral canibalística. Sua conclusão, então, é a seguinte:
“Parece-me que a partir deste ponto de vista fica mais compreensível o “empobrecimento do
eu”. O eu não recebe, por assim dizer, para comer, o que desejaria. Perdeu seu conteúdo, ou
seja, o que queria incorporar” (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.303-305).
Na sequência, Abraham termina sua carta resumindo o que ele propõe como um
acréscimo à teoria freudiana da melancolia:
Os pontos fundamentais de sua exposição: o melancólico perdeu algo, mas não sabe
o quê, o empobrecimento e eu e suas consequências; a identificação com o objeto
amoroso, a localização do processo do luto nas catexias do eu, a anulação das
catexias objetais na identificação narcísica; tudo isto tem que manter-se de maneira
absoluta. Creio, de minha parte, que há que somar a tudo isto, o sadismo e o
erotismo oral (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.303-305).
carta, Freud informa a Abraham que terminara seus cinco artigos metapsicológicos, que
planejava publicá-los sob o nome de Ensaios preliminares a metapsicologia e que estes
seriam do mesmo gênero do capítulo 7 da Interpretação dos sonhos.
Em Luto e melancolia (1917 [1915], p.182), Freud vai considerar o essencial das
observações de Abraham:
Freud constrói sua tese sobre o processo de identificação narcísica, definindo-a como
uma regressão da escolha narcísica de objeto para o narcisismo. Narcisismo este que é
caracterizado por Freud (1917[1915], p.182) como pertencente à fase oral canibalística: “não
hesitaríamos em acolher em nossa caracterização da melancolia a regressão do investimento
objetal à fase oral da libido, ainda pertencente ao narcisismo”. Ademais, Freud irá considerar
a comparação com a neurose obsessiva sugerida por Abraham, mas irá enfatizar a distinção
entre uma depressão-obsessiva e uma melancolia:
Freud considera que a melancolia tem como aspecto distintivo a regressão da libido ao
ego; este é, segundo o seu ponto de vista, a mola do conflito melancólico, enquanto, no caso
das depressões-obsessivas, a mola do conflito é a ambivalência e a relação com o erotismo e o
sadismo anal, exatamente como propunha Abraham em relação à melancolia. Questionamo-
nos, frente a isso, se provavelmente Freud considerava que os apontamentos de Abraham,
pautados em sua prática clínica, ajustavam-se mais às depressões-obsessivas do que aos
estados propriamente melancólicos. No entanto, é difícil afirmar com certeza uma resposta
para esse problema.
Retomando a correspondência em torno do esboço da melancolia, o debate continua.
Abraham se mostra irredutível em seu ponto de vista, que desenvolveu ao longo de anos, em
seu trabalho com pacientes melancólicos. Na carta de 3 de junho de 1915, escreve:
Abraham concorda com Freud sob o fato de não haver elucidado o aspecto tópico, mas
insiste que as autoacusações do melancólico não são originalmente dirigidas a outro objeto,
como sublinha Freud, e sim que se tratam de sentimentos de culpa por algum dano
inconsciente causado ao objeto. Aponta ainda que Freud não havia apresentado provas
detalhadas sobre esse ponto e pede maiores explicações sobre a questão. Contudo, em 3 de
julho de 1915, Freud mostra que não estava tão aberto ao debate quanto Abraham supunha.
Freud encerra o debate taxativo:
343
Gostaria de tentar, com base em nosso material relacionado com a organização pré-
genital inicial, trazer duas contribuições À teoria psicanalítica, ou seja, considerar a
questão dos estados psíquicos da depressão e examinar o problema da escolha da
neurose (ABRAHAM, 1916, p.56).
344
Ao tratar dos estados depressivos, Abraham ataca justamente os pontos que Freud
indicara que eram seus pontos fracos a respeito de sua teoria dos estados depressivos. Com
isso, Abraham vai considerar que os estados depressivos podem ser entendidos como uma
regressão à primeira fase psicossexual da libido, a fase oral, na qual há uma tendência a
devorar o objeto. E, ao mesmo tempo, vai se antecipar a Freud, que acabara por publicar Luto
e melancolia apenas em 1917. Teria Freud adiado sua publicação em função do artigo de
Abraham? Não saberemos. No entanto, vale salientar que o artigo de Abraham de 1916,
guardada as devidas diferenças, constitui-se em uma interessante preparação ao artigo Luto e
melancolia. Na realidade, o artigo pode ser lido como um desdobramento do debate com
Freud em torno do esboço da melancolia.
Para finalizar, gostaríamos ainda de sublinhar uma breve passagem de um artigo de
1924, em que Abraham volta a abordar o problema da melancolia. Abraham (1924) volta a
publicar um importante artigo no qual aborda extensamente o assunto da melancolia, em uma
seção intitulada Os estados maníaco-depressivos e os níveis pré-genitais da libido. Nesse
trabalho, ressalta a relação da melancolia com a neurose obsessiva, assim como a confirmação
freudiana de sua relação com o luto. No Entretanto, a passagem que vale destacar é a
seguinte:
Abraham acaba por curvar-se diante da tese freudiana que questionara com tanta
veemência no debate com Freud, e reafirma justamente o que Freud apontava com tanta
insistência para seus discípulos: a importância de se esclarecer o mecanismo distintivo da
melancolia, o que, segundo vimos, Freud considerava que Abraham não havia feito,
reivindicando para si tal realização. O que acabamos de abordar ao longo deste tópico, mostra,
de um lado, a importância de Abraham na teorização da melancolia, e de outro, o quanto era
controverso os aspectos distintivos dessa afecção. Contudo, fica claro que, para Freud, a
principal função de Luto e melancolia estava em reconstituir o processo psíquico
característico da fase do narcisismo, a identificação narcísica e, por isso, sua compreensão do
mecanismo da melancolia sempre privilegiou esse aspecto.
345
(2012), é no artigo O inconsciente, no entanto, que Freud torna público o procedimento que
deve orientar a pesquisa psicanalítica:
Portanto, observa Prado de Oliveira (2012, p.23-24), com esse parágrafo, contido em
O inconsciente, publicado no final de 1915, e com a carta enviada a Abraham, “ao curso de
um intercâmbio a respeito das articulações entre a psicopatologia e a vida normal, Freud
revoluciona todas as suas teses anteriores e a psicanálise” e, com isso “transforma a
metapsicologia em método de apresentação e de abordagem clínica, que é a consumação da
pesquisa psicanalítica”. Ainda, segundo Prado de Oliveira (2012), não é a apresentação da
repressão, nem de seu retorno, nem do inconsciente ou dos instintos que são propriamente
metapsicológicos; “como as fontes de excitação, aquelas são também ubiquitárias, presentes
em toda formação do psiquismo”, afirma o autor. Desse modo, Prado de Oliveira (2012, p.24)
aponta que a verdadeira “revolução da metapsicologia reside na definição do imperativo de
uma tríplice abordagem” – a dinâmica, a tópica e a economia dos processos psíquicos.
Seguindo essas indicações, em nosso ponto de vista, uma das funções que Luto e
melancolia desempenha entre os artigos metapsicológicos é justamente a de “ilustrar” a
tríplice abordagem da metapsicologia freudiana, pois Freud demonstra ao longo do texto,
principalmente em sua segunda parte, a preocupação em evidenciar os mecanismos psíquicos
a partir dos pontos de vistas tópicos, econômicos e dinâmicos – e, com isso, oferecer um
delineamento que defina a abordagem da pesquisa psicanalítica. Nesse sentido, segundo
Laufer (2011, p.10) a função do artigo Luto e melancolia é traçar as características estruturais
da clínica melancólica e estreitar seu procedimento e os fundamentos teóricos da psicanálise
em torno da “feiticeira metapsicologia”.
Não é possível afirmar com certeza que tenha sido justamente os questionamentos de
Abraham sobre a melancolia, e seu pedido de “uma carta explicando mais precisamente o que
o senhor quis dizer e quais são as vossas considerações” a respeito do assunto, que tenha
levado Freud a realizar uma abordagem metapsicológica tão extensa dos mecanismos do
trabalho do luto e da melancolia (FREUD-ABRAHAM, 2002, p.311). No entanto, essa
348
***
70
A tradução de Luto e melancolia utilizada neste tópico é de Luiz Alberto Hans, in FREUD, S. Escritos sobre a
psicologia do Inconsciente, volume 2. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
349
segundo ponto que levou Freud a comparar esses dois estados – e aqui o luto e a melancolia
realmente têm pontos em comum – foi o quadro clínico que neles se manifesta. No luto e na
melancolia, os sintomas são muito parecidos, o que o leva a aceitar que os processos
psíquicos dos dois estados guardam elementos em comum. Entretanto, Freud não deixa de
distingui-los minuciosamente. Temos o luto e a melancolia, ambos tomados como reações à
perda de objeto libidinal, e também como quadros clínicos semelhantes, isto é, com sintomas
equivalentes. Mas esses dois estados se diferenciam em um ponto crucial: na melancolia faz-
se presente uma intensa e notável perda do sentimento de autoestima, do sentimento de amor
próprio, da autovalorização; essa perda se expressa em autorrecriminações e autoinsultos,
podendo chegar até a uma expectativa delirante de punição.
A situação de perda remete-nos diretamente à vivência do luto. É no processo de luto
que as perdas são vivenciadas e elaboradas. E Freud nos explicará os processos psíquicos
subjacentes a essa vivência. Conforme assinalamos, tanto o luto quanto a melancolia se
constituem em estados responsivos à perda. Nas palavras de Freud (1917 [1915], p.103), o
luto, [...] “é, em geral, a reação à perda de uma pessoa amada, ou à perda de abstrações que
colocadas em seu lugar, tais como pátria, liberdade, um ideal etc”. Frente a isso, é esperado
que, diante da perda e/ou da separação de algo ou de alguém que amamos e admiramos em
nossa vida, vivenciemos um processo penoso de doloroso sofrimento. Em A Transitoriedade
(1916[1915], p.318), Freud afirma que “o luto pela perda de algo que amamos ou admiramos
se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo”. Devido ao
sentimento imposto pela ausência do objeto amado, instala-se um sofrimento que, de tão
comum e usual, é aceito com ou sem resignação. Sem a presença do objeto, o mundo se torna
pobre e vazio, desinteressante e penoso. Portanto, é esperado, em condições normais, que um
período de dor e sofrimento seja necessário para o sujeito “habituar-se” psiquicamente à
ausência do objeto. Corriqueiramente, costuma-se dizer: “isto passa, é só dar tempo ao
tempo”, “logo você se acostuma”. Assim é o luto, tão natural e usual que sua existência nem
chega a ser questionada. Todavia, a naturalidade do luto não significa que ele seja de fácil
explicação; trata-se de um estado muito penoso, em maior ou menor grau, diz Freud. Mas
qual é o sentido do luto? Em que ele consiste?
É através da teoria da libido que o luto será inicialmente explicado: “quando o objeto
não tiver um significado – reforçado por milhares de elos – que o torne tão fundamental para
o Eu, sua eventual perda não será suficiente para causar nem luto, nem melancolia” (FREUD,
1917[1915], p.115). Quando ama, uma pessoa estabelece uma relação demasiado
significativa, havendo, segundo a psicanálise, um investimento psíquico em um objeto. Trata-
350
se, aqui, de um laço afetivo psíquico que liga sujeito e objeto por meio do investimento de
uma energia instintual de origem sexual: a libido. Cargas de energia libidinal são investidas
nas representações psíquicas do objeto afetivo. Costuma-se dizer que há uma ligação libidinal
com o objeto, ou um enlace entre a libido e o objeto. Esse objeto pode ser tanto uma pessoa
querida quanto um ideal, projetos a realizar, uma meta a cumprir, uma crença significativa,
até mesmo a casa ou a cidade na qual residimos. Tudo aquilo com o que nos ligamos
afetivamente. O que acontece depois que o enlace é realizado é que o objeto se constitui em
um objeto de gratificação libidinal, e passa a ter um papel relevante na vida psíquica do
sujeito; pois permite o deslocamento de quantidades de instinto sexual que, de outra forma, se
acumulariam e provocariam desprazer. Segundo Freud (1916[1915], p.318), numa etapa ainda
muito inicial do desenvolvimento, a libido está dirigida para o próprio ego, ou seja, é
narcísica. Mais tarde, essa libido é desviada do ego para os objetos, que são incorporados no
ego, através do investimento da libido (a energia do instinto sexual) nas representações
internas do objeto no interior do aparelho psíquico.
O problema que acontece após isso tem a ver com a percepção psíquica da
transitoriedade que, segundo Freud (1916[1915]), é um aspecto inerente à vida: ao nascer,
fazemos um luto pelo corpo materno, ao deixarmos de ser criança, fazemos um luto pela
infância perdida – saímos da casa dos pais, mudamos de cidade, separamo-nos de velhos
amigos, perdemos os amores da adolescência, descobrimos novas paixões, temos de
abandonar velhas crenças e convicções, o corpo e a representação corporal são alteradas
durante o ciclo vital, os objetos afetivos morrem; enfim, separações e perdas são
completamente inerentes à vida. Portanto, o luto se impõe como um processo necessário no
qual nos defrontamos com a transitoriedade da existência por meio de vivências de perdas. O
luto é, por assim dizer, o espaço paradigmático de elaboração psíquica da perda. As
frustrações e decepções também podem ser concebidas dentro do registro das perdas e
separações, no entanto, são muitas vezes complicadas por sentimentos agressivos e sádicos
que são despertados nessas situações; caso isso ocorra, pode se originar um luto patológico.
Ao nos depararmos com um limite e nos frustrarmos, também se faz necessário um luto pelo
que se deixou de conseguir ou de realizar. Um luto pelo impedimento daquilo que era
almejado, e para cuja satisfação a frustração impôs um limite.
Perda, separação, renúncia, decepção e frustração são tão certas na vida quanto a
certeza de que um dia ela chegará ao seu fim. Sobre esse tema, Freud escreveu um breve
artigo intitulado A Transitoriedade, no qual narra uma caminhada em um belo campo
acompanhado de dois amigos. Estes, durante a caminhada, diminuem o valor da natureza e da
351
vida ao constatarem sua efemeridade. O argumento deles era o seguinte: se um dia toda essa
beleza está fadada a deteriorar-se, então qual seria seu valor? Por que admirá-la? Surge para
Freud um enigma a decifrar que será solucionado por esta explicação: a constatação da
transitoriedade das coisas leva muitas pessoas a se defenderem inconscientemente da vivência
do luto que está implícita na finitude das relações. A percepção de que um dia aquela beleza
se reduzirá ao pó remete geralmente as pessoas à vivência do luto inevitável. A lógica seria:
“se um dia as flores morrerão e os campos irão secar, toda esta beleza terá fim; quando isto
acontecer nos enlutaremos pela perda destes belos campos”. Segundo Freud, o psiquismo
apresenta uma tendência a recuar frente ao que é penoso. Assim, a psique desvaloriza esses
objetos – no caso, os campos e sua beleza – como uma tentativa de se defender contra a dor
que seria infringida pela vivência de um futuro de perda e do decorrente luto. De fato, a
capacidade de investir nos objetos, mesmo quando constatamos a finitude que se impõe a tudo
que é vivo, é uma das maiores, mais sofisticadas e difíceis conquistas do psiquismo. E
preservar tal capacidade é um desafio que permeia toda a existência de uma pessoa – sua falta
estaria intimamente relacionada à melancolia.
Mas avancemos em direção à explicação do processo psíquico no qual elaboramos
essas vivências: o luto. Convém frisar que, no artigo Luto e melancolia, Freud se refere ao
luto como reação à perda por morte de um ente querido. É sobre esse fato específico que ele
está pensando nesse momento. A noção apresentada aqui, de que o luto é um processo que
pode ser aplicado à compreensão dos mais diversos tipos de vivências de perdas e frustrações,
é uma compreensão posterior.
De acordo com Freud (1917[1915]), quando algum objeto de enlace da libido deixa de
existir real ou psiquicamente, ou seja, quando ocorre uma perda de um objeto ou de um ideal,
é necessário que o investimento libidinal seja retirado do objeto perdido e direcionado para
outro. Esse processo resulta em um grande afastamento e em uma perda de interesse pelo
mundo externo (realidade), com exceção daquilo que esteja ligado ao objeto perdido. Trata-se
de um recolhimento para realizar um trabalho psíquico: o “trabalho de luto”, um trabalho de
constatar e aceitar que o objeto deixou de existir na realidade e da decorrente retirada dos
investimentos instintuais das representações ligadas àquele objeto. Isso porque, embora o
objeto deixe de existir, o vínculo subsiste, continua atuante no interior do aparelho psíquico,
resistindo à sua destruição. A libido, ao investir as conexões com o objeto, é confrontada com
o exame de realidade que constata sua inexistência e, com isso, não permite que ocorra a
gratificação libidinal esperada; o investimento libidinal aumenta intensamente por não
encontrar a satisfação que lhe apazigue, que é a relação real com o objeto. Esse processo
352
provoca dor em função da crescente quantidade de energia livre que é gerada no aparelho
psíquico. Esse princípio já era enunciado em A interpretação dos sonhos, em que Freud liga o
desprazer ao aumento de energia e à sua não satisfação. O trabalho do luto consiste em
desinvestir as representações de objeto e ligá-las, ou seja, conferir-lhes outro destino no
aparelho psíquico que possibilite satisfação. É necessário que o investimento tão intenso das
representações do objeto perdido, ligadas à satisfação do instinto, seja inibido para que não
continue gerando desprazer diante da ausência do objeto. Esse processo é lento e penoso,
sendo acompanhado das seguintes manifestações: perda da capacidade de adotar um novo
objeto de amor (um novo objeto de satisfação libidinal), estado de espírito penoso, perda de
interesse pelo mundo externo e inibição de toda e qualquer atividade – na medida em que o
mundo externo e as atividades não evoquem o objeto ou a sua perda.
O afastamento e a inibição característicos do luto podem ser explicados pelo processo
ao qual o ego é submetido. Conforme explicado, o mecanismo do luto baseia-se em um
trabalho de desinvestimento da quantidade de energia libidinal que fora colocada no objeto
em período anterior à sua perda e à sua ligação. O amor consiste na capacidade de colocar
libido em um objeto externo, com o qual se estabelece uma relação de satisfação – o termo
satisfação ou gratificação é aqui entendido como descarga de libido, e o termo frustração,
como sua não descarga diante de um limite imposto pela realidade. Diante da perda do objeto,
faz-se necessário que esse impulso libidinal seja retirado de suas ligações com o objeto que,
agora perdido, não pode mais atendê-lo ou satisfazê-lo. Dessa forma, o investimento libidinal
é retirado aos poucos, num processo lento e gradual; por conseguinte, a existência do objeto é
prolongada psiquicamente. O enlutado apresenta-se como uma pessoa recolhida, inibida, sem
interesse pelo mundo, fechada sobre si mesma e imersa em uma situação desprazerosa que a
consome. O sujeito enlutado assim se apresenta, justamente porque está se ocupando desse
trabalho do luto: está desligando-se psiquicamente do objeto para não compartilhar de seu
destino. Cada uma das conexões com o objeto é sobreinvestida, e mediante cada uma delas o
exame de realidade constata a ausência do objeto – diante do que a satisfação não vem,
gerando desprazer; o trabalho psíquico em questão consiste em retirar de cada representação
ligada ao objeto seu significado de satisfação real. Com isso, diante de uma nova
possibilidade de investimento, essas representações serão investidas de maneira menos
intensa, constituindo-se em uma lembrança do objeto e não em sua evocação enquanto objeto
de satisfação possível.
Perante isso, há uma questão que intriga Freud: a de saber por que o ser humano não
abandona facilmente uma posição de satisfação libidinal, nem mesmo diante de um substituto
353
que lhe proporcione gratificação. Ao perder um ente querido, o sujeito continua ligado a ele,
mesmo frente à constatação de sua ausência e à disponibilidade de um substituto equivalente.
Freud revela que, no ser humano, há uma tendência em não abandonar de boa vontade um
objeto libidinal. Diz ele em Escritores criativos e devaneios (1908[1907], p.136):
Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o
homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca
renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma
renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado.
Quando a libido se liga a um objeto, dificilmente irá renunciar a ele, mesmo quando
um substituto se acha à mão, mesmo quando existe um substituto disponível e acessível. Em
Introdução ao narcisismo, ao se referir ao apego do ser humano à sua condição narcísica
vivenciada na infância, Freud (1914, p.40) afirma: “Aqui, como sempre no âmbito da libido, o
indivíduo se revelou incapaz de renunciar à satisfação que uma vez desfrutada foi desfrutada.
Ele não quer se privar da perfeição narcísica de sua infância [...]”. De forma geral, diante da
renúncia do primeiro objeto de amor, o ego narcísico, o que Freud constata é uma força de
oposição existente em todo ser humano e que pode ser entendida quase como um princípio
universal da vida psicológica; a saber, a resistência a desligar-se de seus objetos de amor, ou,
em termos metapsicológicos, a desinvestir sua libido dos objetos que permitem obter
gratificação libidinal e evitar o desprazer. A retirada ou desligamento da libido em relação ao
objeto perdido se realiza por meio do trabalho de luto que, segundo Freud, só pode ser lento e
penoso. O desligamento só pode ser feito a expensas de grande quantidade de dor psíquica.
Enquanto esse trabalho estiver ocorrendo, a existência do objeto é prolongada psiquicamente:
o objeto não existe mais e que não pode mais satisfazê-lo. Ceder ao teste da realidade é uma
obrigação dolorosa, mas imprescindível. Nesse processo, cada lembrança, cada expectativa,
cada vivência com o objeto perdido, são lembradas e reinvestidas de um modo especial,
permitindo ao ego constatar que o objeto não existe mais, obrigando-o, dessa forma, a
desvencilhar sua libido do objeto perdido:
Cada uma das lembranças e expectativas que vinculam a libido ao objeto é trazida à
tona e recebe uma nova camada de carga, isto é, de sobreinvestimento
[Überbesetzung]. Em cada um dos vínculos vai se processando então uma paulatina
dissolução dos laços de libido (FREUD, 1917 [1915], p.104-105).
[...] cada vez que surgem as lembranças e as inúmeras situações de expectativa que
mostram quanto a libido ainda está vinculada ao objeto perdido, a realidade logo se
apresenta com o veredicto de que o objeto não mais existe; assim, o Eu é por assim
dizer confrontado com a questão de se deseja partilhar o destino desse objeto;
entretanto, em face das inúmeras satisfações narcísicas que a vida propicia, o Eu
acaba persuadido a ir dissolvendo seus liames [Bindung] com o objeto aniquilado
(FREUD, 1917[1915], p.114).
Quando esse processo, ao qual Freud se refere como trabalho de luto, se conclui, o ego
fica livre e desinibido para se ligar a novos objetos. O objeto é, então, considerado pelo ego
como definitivamente morto ou perdido: “o luto compele o Eu a desistir do objeto,
declarando-o morto e oferecendo ao Eu o prêmio de continuar vivo [...]” (FREUD, 1917
[1915], p.115). Entretanto, persiste a lembrança de um vínculo que já existiu no passado e
proporcionou gratificações. A lembrança, que geralmente é sentida na vivência da saudade, é
sentida sempre em relação a um vínculo que não existe mais na realidade, o que significa que
as representações ligadas ao objeto passaram a ser investidas de um modo particular – a
lembrança por si só pode se constituir em um modo de satisfação; no entanto, nunca
comparável à satisfação obtida com o objeto investido em vida. Se o sujeito ainda não
elaborou a perda do objeto, seu sentimento será sempre de dor por um objeto cujo vínculo foi
interrompido, mas que necessita ser restaurado. A dor do luto se mantém enquanto não for
realizado todo o recolhimento da libido, pois uma das condições para que o ego volte a
desfrutar da vida é que restabeleça novamente suas ligações com o mundo, que torne a
desfrutar de seus vínculos libidinais e invista em novos objetos. Aquele objeto perdido não
será esquecido, mas preservado na lembrança que é acompanhada do sentimento de saudade.
Sua ausência não provocará mais a terrível dor do luto – desligar a libido do objeto é um
355
na periferia e irrompe através dos dispositivos do escudo protetor contra estímulo, e passa
atuar como um estímulo instintual contínuo. No caso do luto, as representações ligadas ao
objeto estão altamente investidas pela necessidade instintual e não encontra satisfação na
realidade; isso, acompanhado da natureza contínua do processo de investimento e a
impossibilidade de inibi-lo produzem o estado de dor psíquica.
Tendo apresentado brevemente o trabalho do luto, vejamos agora o que Freud
compreendeu acerca da melancolia.
***
Nesse sentido, na melancolia ocorre uma perda objetal retirada da consciência. Temos,
então, definidas duas características que estão presentes na melancolia e ausentes no luto: a
perda retirada da consciência e a redução da autoestima - um empobrecimento do ego. A
pessoa que se encontra melancólica faz questão de declarar que é a pior entre as pessoas, de
exaltar suas fraquezas e se dizer merecedora das mais duras punições:
357
O paciente nos descreve seu Eu como não tendo valor, como sendo incapaz e
moralmente reprovável. Ele faz autocensuras e insulta a si mesmo e espera ser
rejeitado e punido. Rebaixa-se perante qualquer outra pessoa, e lamenta pelos seus
parentes, por estarem ligados a uma pessoa tão indigna como ele. O doente não
chega a pensar que uma mudança das circunstâncias de vida se tenha abatido sobre
ele; ao contrário, estende sua autocrítica ao passado e afirma, em verdade, nunca ter
sido melhor (FREUD, 1917 [1915], p.105).
71
Ver VIOLANTE, 1994.
360
72
Termo que também pode ser referido por ligação narcísica ou eleição narcísica.
361
influência nos níveis mais desenvolvidos. O amor pelo objeto que não pode ser renunciado
tem a ver com níveis mais desenvolvidos; liga-se à capacidade de investimento libidinal e
precisa respeitar a tendente oposição ao desligamento do objeto, que é evidenciado pelo luto.
No entanto, é possível perceber a atividade de níveis mais primitivos de organização, que
exercem uma pressão para o abandono do objeto – como descrito na organização oral
canibalística, que incorpora o objeto devorando-o. Assim se explica a contradição geral que
caracteriza o quadro da melancolia: o melancólico está preso em um conflito contraditório
entre o amor e o ódio, e sua forma sádica de se relacionar com o objeto, cujo despertar é
suscitado pelo evento da perda. É preciso sublinhar que são de formas primitivas de
vinculação com o objeto. É nesse ponto que o narcisismo é relacionado à melancolia e
definido como uma de suas pré-condições. Se Freud parte da analogia com o luto e percebe
que a melancolia é também a reação à perda de um objeto, nesse momento é distinguido o
tipo de perda que está presente na melancolia; ao que tudo indica, nela ocorreu uma perda no
ego, ou de aspectos do ego. Como vimos, essa perda é, na verdade, a perda de um objeto que,
a partir da identificação narcísica, foi transformada em uma perda do ego.
Nesse momento, cabe fazermos algumas considerações que vão além do que está
explícito no texto freudiano. Deparamo-nos, aqui, com a primeira contribuição fundamental
de Luto e melancolia: se examinarmos mais profundamente as colocações de Freud nesse
sentido, relacionando-as com o texto sobre o narcisismo, de 1914, perceberemos que, na
realidade a perda melancólica consiste em uma perda ligada às bases narcísicas do psiquismo.
Nesse caso, destaca-se uma perda muito específica: a perda de uma relação narcísica, ou seja,
aquela que de alguma forma traria satisfação para o narcisismo do sujeito. Na passagem
anteriormente citada, Freud afirma que houve uma transformação que se inicia em uma perda
de um objeto afetivo e termina com a perda de aspectos do ego. Não seria muito díspar
afirmar que tal perda já existia, mas estava sendo compensada na relação com o objeto. Freud
(1917 [1915], p.109) insiste que na melancolia acontece “uma regressão que parte de certo
tipo de escolha objetal e volta para o narcisismo original”. O sujeito estabelece uma ligação
com o objeto segundo o tipo de escolha narcísica e, frente a algum obstáculo, regride ao
narcisismo – fase em que o bebê é completamente dependente do objeto por não ter o mínimo
de recursos para sobreviver por conta própria. Ele é desprotegido, dependente e limitado. Sua
sobrevivência depende de maneira absoluta de um objeto externo, seja ele a mãe ou a
cuidadora. A percepção em relação ao mundo externo está comprometida, o que o faz tomar o
mundo como uma parte de si mesmo. Se coisas boas acontecem, como uma gratificação em
função da experiência de ser alimentado, o bebê toma o seio como parte sua e como criação
362
de sua mente. Se ocorre algo ruim, a mesma lógica é aplicada, fazendo com que o bebê se
sinta responsável pela ocorrência negativa. Essa imagem de um bebê em sua fase narcísica
pode ser denominada de onipotente, uma fase em que ele é o centro do mundo, como se tudo
que existisse e fosse percebido fosse criação de sua mente. Estamos frente aos postulados
propostos em Os instintos e seus destinos, em que Freud (1915) descreve as relações precoces
do ego com a realidade, sugerindo que, nessa fase inicial, o sujeito narcísico é trocado, via
identificação por outro ego: as vicissitudes dos investimentos instintuais, observa Freud
(1915), para se voltarem contra o próprio ego e se converterem de ativo em passivo,
dependem da organização narcísica e carregam a marca dessa fase; a isso podem corresponder
as tentativas de defesa que, diante de fixações em estágios precoces, predominam em estágios
mais elevados da evolução do ego.
Caso se faça uma superposição entre essa imagem do bebê narcísico e a do
melancólico, veremos que elas se parecem em muitos aspectos. Como o bebê, o melancólico
descreve-se frágil e dependente, sem condições e recursos para enfrentar as mínimas
dificuldades. Tudo o que acontece com ele e à sua volta, principalmente infortúnios, decorre
de sua falta de valor, incapacidade ou deficiência. Ao esbarrar em uma dificuldade, não a
reconhece enquanto dificuldade, mas como fracasso – seu fracasso é mera prova de sua
deficiência. Qualquer um é tomado como possuidor de maior dignidade e valor do que ele
mesmo. Sempre se coloca como um sujeito limitado e desprovido de recursos. Há, ainda, o
sentimento de culpa onipotente que o persegue de maneira insistente, sempre o
responsabilizando e o recriminando por uma série de coisas que não são necessariamente
ligadas às suas limitações. Poderíamos continuar com mais uma série de descrições; contudo,
apenas essas já nos permitem aproximar analogamente o melancólico do bebê, na fase do
narcisismo, extremamente dependente, limitado e dotado de uma grande onipotência. No
entanto, não custa lembrar uma alusão freudiana à regressão, processo comum entre as
neuroses:
uma fase muito inicial do desenvolvimento humano, ainda na primeira infância. Com isso,
vigoram formas de ligação e organização psíquica próprias desses períodos.
Se analisarmos por esse lado, nossa comparação entre o melancólico e o bebê não
seria tão imprópria. Se, por algum motivo, o bebê, ainda na fase em que o narcisismo é
predominante, venha a se dar conta de sua condição frágil e dependente, angústias
inomináveis e aterrorizantes se apossariam de seu psiquismo. É possível supor que o
melancólico é um sujeito que toma consciência de sua dependência narcísica do objeto e
regride ao narcisismo, aproveitando-se de sua destacabilidade. Se aceitarmos essa comparação
entre o melancólico e o modelo do bebê narcísico e desamparado, compreenderemos com
maior clareza a afirmação de Freud, de que o melancólico parte da escolha objetal narcísica e
retorna ao estado de narcisismo. Seria, assim, a regressão da relação narcísica até a vivência
precoce de um narcisismo que sofreu possivelmente uma perturbação anterior.
Isso nos leva imediatamente a pensar em uma ferida constitucional na época do
narcisismo ou da dependência. Falhas no desenvolvimento inicial do sujeito, em função de
falta de sustentação na época da dependência, tornariam o sujeito portador de uma
insuficiência narcísica. Essa insuficiência impeliria o sujeito a ligar-se aos objetos sempre
segundo o tipo narcísico de escolha para, com isso, tentar suprir aquela falha narcísica
originária. Frente às situações de decepções, ou falta de gratificações (perdas), em suas
relações narcísicas (com seus objetos narcísicos), o sujeito seria compelido a regredir até
essas vivências precoces – que deixaram suas marcas como falta de constituição de suas bases
narcísicas. Nesse viés, o melancólico assim o seria antes mesmo de “cair melancólico”. Seria
essa uma forma de se pensar em uma melancolia estrutural, isto é, o sujeito estruturaria seu
psiquismo melancolicamente. Essa falha afetaria diretamente o sentimento de si mesmo
(sentir-se integrado com recursos, sentimento de identidade, capacidade de criatividade e
pensamento), tornando o sujeito susceptível à melancolia. De todo modo, se reconhe o
pressuposto de que a melancolia está ligada a uma perda narcísica. Assim, o que é de
fundamental importância nesse ponto de Luto e melancolia é a revelação de Freud, que
definirá todo o desenvolvimento teórico psicanalítico posterior; a saber, a ligação estabelecida
entre melancolia e narcisismo e, de forma mais abrangente, entre o narcisismo e as patologias
depressivas. Retornaremos a essas questões no decorrer deste capítulo.
Retomando o curso de nossa reflexão sobre Luto e Melancolia, vamos agora à próxima
contribuição fundamental contida nesse texto. Se a escolha narcísica é uma pré-condição da
melancolia, não é a única. Freud retoma duas pré-condições da melancolia:
364
Com essa retomada, Freud prepara o terreno para introduzir uma terceira condição
fundamental para a psicodinâmica da melancolia: “a perda do objeto de amor mostra-se como
uma ocasião muito excepcional para que a ambivalência que havia nas relações amorosas
agora se manifeste e passe a vigorar” (FREUD, 1917[1915], p.109-110). É nesse ponto que
ele acrescenta a importância dos sentimentos ambivalentes e dos conflitos decorrentes, sendo
que tal ambivalência explicará a autodestrutividade do melancólico.
Sua intenção é tentar explicar a satisfação encontrada na melancolia em suas
autorrecriminações e autocensuras. Fazendo primeiramente uma alusão à neurose obsessiva,
Freud mostra-nos que o luto poderia seguir um curso patológico devido à marcante
ambivalência presente nessa neurose. Assim, ao nutrir sentimentos de ódio – coexistindo
junto ao amor – contra a pessoa amada, o sujeito obsessivo se sentiria responsável ou
causador da perda do objeto por tê-la desejado; isso desencadearia intensos sentimentos de
culpa expressas em autorrecriminações – é sobre essa hipótese que insiste Abraham. Contudo,
não seria esse o caso do melancólico, pois não encontramos a presença da identificação
narcísica, isto é, a regressão da libido ao narcisismo ou, dito de outra forma, a fase narcisista.
Seria essa uma forma de luto patológico. Freud estaria indicando, nessa parte, que uma perda,
somada a uma forte ambivalência presente na relação com o objeto perdido, daria origem a
um luto patológico. Novamente faremos uso das significativas palavras de Freud, no
momento em que ele insere a questão da ambivalência, para então comentá-las:
Vários pontos merecem ser considerados nessa passagem. O primeiro deles é aquele
que diz respeito ao fato que ocasiona a melancolia. Como já comentamos anteriormente, e
Freud o confirma nessa passagem, a perda sofrida pelo melancólico não é somente da morte
de um ente querido, mas frustrações vividas na relação objetal: por ofensa, desprezo,
365
73
Na tradução de Marilene Carone (1992, p.136), encontramos: “ofensa, desprezo e decepção”. Na de Jaime
Salomão (1996, p.256), temos: “desconsideração, desprezo e desapontamento”. Na de Hanns (2006, p.110):
“ofensa, negligência e decepção”. Em todos os casos, fica evidente que se trata de uma frustração vivida na
relação com o objeto.
366
Uma vez tendo de abdicar do objeto, mas não podendo renunciar ao amor pelo
objeto, esse amor refugia-se na identificação narcísica, de modo que agora atua
como ódio sobre este objeto substituto, insultando-o, rebaixando-o, fazendo-o sofrer
e obtendo desse sofrimento alguma satisfação sádica. A indubitavelmente prazerosa
autoflagelação do melancólico expressa, como fenômeno análogo na neurose
obsessiva, a satisfação de tendências sádicas e de ódio (FREUD, 1917[1915],
p.110).
libido é que o processo pode tornar-se consciente e se faz representar na consciência como um
conflito entre uma parte do eu e a instância crítica”.
Freud comenta, ainda, sobre uma satisfação presente nas autorrecriminações do
melancólico. A satisfação obtida dos sentimentos hostis dirigidos ao ego corresponde à
regressão à etapa do sadismo. Esse ódio, dirigido primariamente ao objeto e que acaba sendo
[re]dirigido ao ego, explicaria o suicídio. Segundo Freud, “o Eu só pode matar a si mesmo se
conseguir, através do retorno do investimento objetal, tratar a si próprio como um objeto” –
objeto perdido e alvo original do ódio. Nesses termos, a melancolia é entendida sempre
primariamente como uma vingança contra o objeto perdido (frustrante). O melancólico realiza
uma vingança velada que acaba destruindo a si mesmo.
Assim como o luto, a melancolia desaparece após certo tempo. O trabalho do luto
chega ao fim após o ego ─ compelido pela realidade de que o objeto não mais existe, junto ao
incentivo narcísico de continuar a viver ─ desistir do objeto e desligar todo o investimento
depositado neste. Na melancolia, os conflitos ambivalentes seriam responsáveis por um
afrouxamento da fixação da libido ao objeto, “desvaloriazando-o, rebaixando-o, como que
matando-o a pancadas”. A melancolia chegaria ao fim ou pelo esgotamento da raiva ou pelo
abandono do objeto como destituído de valor – o objeto não seria mais alvo do enlace
narcisista, sendo assim tomado como não tendo valor, um valor narcísico. Dessa forma, a
melancolia seria, como o luto, um trabalho de desligamento, mas um desligamento de um
objeto narcísico, que opera seu trabalho de maneira inconsciente e é complicado pela
ambivalência (sadismo e erotismo oral): “Talvez nesse processo o Eu acabe por desfrutar a
satisfação de poder considerar-se melhor e superior ao objeto” (FREUD, 1917 [1915], p.115).
Isso só pode acontecer se o objeto narcísico, que foi perdido e abandonado, puder ser
substituído por outro, também narcísico, ou pela recuperação do narcisismo do ego. Tanto em
um caso como em outro, isso seria efetuado pelo trabalho da melancolia.
A melancolia chega ao seu fim, o qual muitas vezes é seguido da mania. Vejamos,
agora, as considerações tecidas por Freud sobre a mania, ainda neste artigo:
liberada. Assim, a intensa euforia nada mais seria do que uma intensa descarga de energia que
há muito se via consumida no trabalho melancólico. Da mesma forma que a melancolia, a
mania é um processo inconsciente, “pois aquilo que o ego dominou e aquilo sobre o qual está
triunfando permanecem ocultos dele” (FREUD, 1917 [1915], p.259). O homem maníaco
parece liberado do objeto perdido e procura vorazmente novas catexias objetais. Mas essa
hipótese – sobre a origem de mania ─, afirma Freud, gera um problema: se no trabalho de luto
também há um grande dispêndio de energia, por que, ao seu fim, ele não resulta em mania?
Segundo Freud, é impossível responder a esse impasse diretamente; no entanto,
oferece uma conjetura. Diz o autor que, no luto, o trabalho de desinvestimento das catexias
objetais colocadas no objeto perdido é feito de forma tão gradual e lenta que, ao seu término,
a energia necessária a esse trabalho de luto tenha também se dissipado. Freud afirma que tanto
a melancolia como o luto partilham da característica de separar aos poucos a libido de suas
catexias de objeto. Já a melancolia agiria como um buraco que, exercendo uma pressão sobre
a energia psíquica, consumi-la-ia. Portanto, ao se encontrar livre da pressão ao fim do acesso
melancólico, ocorreria uma grande descarga de energia. A energia consumida no trabalho da
melancolia, que, ao seu término, estaria livre, tornando possível a mania, estaria ligada à
regressão da libido ao narcisismo e, consequentemente, à regressão dessa libido ao ego. Essa
regressão, que instala a luta pelo objeto dentro do ego, exigiria uma quantidade de catexia
muito elevada, podendo posteriormente, ao fim dessa luta, resultar em mania. Freud detém
suas conjecturas nesse ponto, apontando ser necessário, antes de compreender a mania, ter
maior compreensão da economia da dor física e da dor mental.
***
corpo da mãe, ilusão característica do narcisismo primário de uma união simbiótica que reina
desde o útero materno até o início da vida. Esse modelo hipotético será aplicado ao processo
de diferenciação das instâncias psíquicas – o ego e o ideal do ego/superego –, na medida em
que o ego e o superego se constituem a partir do abandono do objeto de amor e de sua
identificação com ele (FREUD, 1923).
Dessa forma, o nascimento psíquico ocorre a partir da narcisação do ego, como
consequência das experiências de perdas. No caminho que leva da díade primitiva mãe-bebê
do início da vida à unificação do ego, intervém um conjunto complexo de operações: a
separação da mãe provoca no bebê angústia e ameaça de desintegração, estado de desamparo
que será superado pela constituição do ego narcisado e do objeto de amor total; o ego
narcisado encontra, no amor que tem por si mesmo (expressão de sua relação com um objeto
consubstancial), uma compensação pela perda do amor fusional (GREEN, 1988, p.28).
No início da vida, o narcisismo primário é sustentado pelos cuidados maternos,
segundo o modelo de um seio à disposição, pronto a satisfazer as necessidades do bebê de
maneira quase absoluta; a mãe busca satisfazer todas as necessidades do bebê e assegurar a
eliminação de todo o desconforto e desprazer. Nessa sequência, os momentos de sua ausência
instauram no psiquismo a existência de um objeto, justamente pela constatação de sua falta,
provocando, assim, a mutação simbólica das relações entre prazer e realidade. É o momento
inicial de uma transformação que acontece passo a passo, que vai desde a primazia absoluta
do princípio do prazer até sua renúncia, nunca completa, em nome do princípio de realidade.
O afeto depressivo poderia ser situado nesse ponto de transição que é também constitutivo do
psiquismo, por meio da necessária abdicação do narcisismo, da onipotência e da fusão com o
objeto primário. Dessa forma, para Delouya (2002), a depressão emerge na consciência de
“ser”[-se] separado da mãe, ou, mais exatamente, com a perda progressiva da condição
fusional, na esteira da constituição psíquica do ego e o consequente reinvestimento de si
através das identificações narcísicas, cujo processo psíquico foi tão bem evidenciado pelo
trabalho da melancolia.
Diante do exposto, foi por meio do processo psíquico de identificação narcísica
observado na melancolia que se tornou definitivamente possível explicar a constituição do
aparelho psíquico por meio do modelo da perda de objeto. Pois, até por volta das publicações
de Introdução ao narcisismo e Luto e melancolia, o recalque consistia na principal explicação
de uma diferenciação tópica das instâncias psíquicas. O surgimento do ego ainda permanecia
inexplicado, ou simplesmente atribuído a uma constituição espontânea. A compreensão do
mecanismo da constituição de um ego permanecia como uma lacuna na teoria freudiana,
371
como questão de pesquisa a ser abordada em outro momento, a análise do papel dessas teorias
iniciais nos desenvolvimentos posteriores do campo psicanalítico, bem como o modo de suas
apropriações.
374
CONCLUSÃO
Esta pesquisa foi suscitada pela condição problemática dos estados depressivos na
psicanálise atual. Conforme procuramos mostrar, as diferentes visões psicanalíticas propõem
teorias particulares a respeito desses estados, reservando para eles aspectos etiológicos muitas
vezes diversos. Mesmo a utilização de termos como melancolia e depressão é abordada de
maneira relativamente vaga, assim como suas definições acerca de sua estrutura, enquanto
neurose ou psicose. Ainda que partindo de uma fonte em comum - o artigo freudiano Luto e
melancolia -, essas diversas teorias chegam a explicações muitas vezes completamente
diferentes. Quando se referem à teoria freudiana da melancolia, também costumam apresentar
interpretações divergente como, por exemplo, quanto à definição conferida por Freud a essa
afeção: uma psicose ou uma depressão comum. Podem-se encontrar, facilmente, autores que
tomem toda sua interpretação dos estados depressivos sobre uma perspectiva do narcisismo,
ou, de outro modo, sobre a teoria dos conflitos da ambivalência. Assim, diante de um campo
de relativa falta de consenso e de uma multiplicidade de interpretações, nos voltamos para o
contexto de formulação de Luto e melancolia, com a intenção de compreender os
fundamentos que se relacionaram à formação da teoria freudiana da melancolia: compreender
a que se deveu a formulação do artigo e a que problemas ele veio responder, além de
explicitar quais foram suas principais influências. Ao remontar aos fundamentos das
formulações que compõem Luto e melancolia, contamos com a possibilidade de estabelecer
bases a partir das quais poderemos, em trabalhos posteriores, dialogar com as diferentes
abordagens psicanalíticas atuais sobre os estados depressivos.
No primeiro capítulo, partimos de um discurso alarmante que toma os estados
depressivos na atualidade como epidêmicos e como um grave problema de saúde pública. No
entanto, vimos que a preocupação em torno dos estados depressivos remonta aos tempos
antigos, e que sua incidência não é exatamente uma novidade; assim como as dificuldades de
tratamento, diagnóstico e definição de suas causas. Além de mostrar que nem sempre os
estados depressivos estiveram associados exclusivamente a estados patológicos, a história dos
estados depressivos no ocidente nos revelou, também, que eram conferidos outros sentidos e
significados a tais estados. As dificuldades de determinação de suas causas, a falta de precisão
diagnóstica, a relativa imprecisão na utilização dos termos e a indefinição de suas formas
clínicas são dificuldades comuns em torno do tema dos estados depressivos e constituem
questões com as quais a humanidade se debate desde os tempos antigos, e para as quais
permanecemos ainda sem respostas precisas. Isso talvez indique que a natureza desses estados
375
exija uma abertura maior do que o paradigma psiquiátrico vigente possa oferecer em sua
metodologia de abordagem científica desses fenômenos. O fato é que, por meio da
apropriação dos estados depressivos pela psiquiatria moderna, eles deixaram de conter os
múltiplos sentidos e significados que lhes foram atribuídos por mais de dois mil anos, para se
restringirem a apenas uma doença baseada em disfunções neuroquímicas. É também no
contexto de ascensão da psiquiatria moderna, no final do século XIX e no início do século
XX, que Freud e os psicanalistas de sua época estão inseridos. Muitos haviam recebido
treinamento em psiquiatria, e estavam bem informados sobre suas metodologias e
procedimentos diagnósticos, que procuravam definir o mais precisamente possível os estados
depressivos, por meio da descrição e agrupamento dos sintomas sob as classes diagnósticas
que se multiplicavam em sua época. No entanto, a abordagem psicanalítica, sob a ótica
freudiana, insistia que os sintomas só interessavam enquanto indicadores de formações e
processos psíquicos – Freud afirmava que a atenção da psicanálise deveria se voltar para os
mecanismos distintivos de cada afecção, assinalando sua função na organização do psiquismo.
Assim, a psicanálise considera os estados depressivos não propriamente como uma doença a
ser eliminada, e revela que tais estados estão relacionados à tarefa de executar um trabalho
psíquico – a atividade psíquica de tratar das excitações instintuais. Ao definir o luto e a
melancolia como estados subjacentes à realização de trabalhos psíquicos, Freud atribuiu
sentidos outros aos estados depressivos, revelando sua função elaborativa no aparelho
psíquico – mesmo que o fruto de tal trabalho possa ser a formação de uma organização
sintomática, como observada na melancolia.
Se, por um lado, o DSM se tornou a referência hegemônica na definição do que se
reconhece atualmente como estados depressivos e de quais são os seus critérios diagnósticos,
por outro, a psicanálise, ao abordar o tema dos estados depressivos, revelou quais são os
problemas de se atribuir a tais estados um sentido único de doença neuroquímica ou de um
mal a ser eliminado. Não se trata aqui de negar os benefícios propiciados pelas medicações
antidepressoras, e nem de levantar barreiras contra a sua prescrição. Trata-se , mais
exatamente, de destacar como a abordagem hegemônica, representada pelo DSM, afeta
também os estados não patológicos como o luto e a tristeza profunda, e revela uma tendência
atual em considerá-los indesejáveis – fato que está ligado ao abuso da medicação das paixões
tristes e a sua evitação. Desse modo, a incidência epidemiológica atual dos estados
depressivos e sua formatação pelo discurso psiquiátrico vigente apresentam consequências
preocupantes, e podem estar relacionados aos excessos das terapêuticas psicofarmacológicas.
Os estados depressivos, embora considerados afecções psicopatológicas, estão ligados à
376
papel nuclear na teoria freudiana, pois os processos psíquicos contidos no primeiro estão
evidenciados no segundo. Por isso, mostramos em nosso trabalho que Luto e melancolia pode
ser tomado nestas duas dimensões: aquela mais evidente, que se refere a elucidação desses
estados, e uma mais indireta, que leva à compreensão de mecanismos arcaicos que só podem
ser observados a partir de seu funcionamento nas psicopatologias.
Isso é possibilitado por uma série de postulados que consideram o normal e o
patológico distintos apenas quantitativamente: a patologia consiste em uma reação defensiva
diante de uma frustração – esta entendida, aqui, como um impedimento de satisfação libidinal
que provoca um desequilíbrio na economia libidinal. A saída perante uma frustração
intolerável é o retorno, pela via da regressão, a pontos de fixação e formas de organizações
psíquicas primitivas. Nessa perspectiva, o conflito psíquico diante da frustração é a forma de
se explicar a patologia; ou, mais exatamente, esta consiste em uma saída diante de um
conflito. Frente a isso, em nossa pesquisa, evidenciamos ainda que o modelo etiológico das
neuroses de transferência teve um papel fundamental na formulação da teoria da melancolia, e
o estabelecemos, ao lado do narcisismo, como um de seus fundamentos. A teoria da
melancolia, advinda de uma conjunção de fatores, foi concebida no registro da primeira
tópica; mais especificamente sob as perspectivas e questionamentos colocadas ao modelo
etiológico das neuroses de transferências em função da introdução do conceito de narcisismo
na teoria freudiana. Assim, consideramos válido nosso ponto de vista de que os fundamentos
da teoria freudiana da melancolia residem no entrecruzamento do modelo etiológico das
neuroses de transferência com a construção do modelo teórico conceitual do narcisismo, cuja
função foi permitir à psicanálise elucidar e abordar as neuroses narcísicas. Essa constatação
nos permite afirmar que a teoria freudiana da melancolia tem seus fundamentos em um
percurso que parte das neuroses de transferências e segue até as neuroses narcísicas, e tem seu
ponto de chagada nas formulações da segunda tópica do aparelho psíquico e da última
dualidade instintual.
Frente a isso, é possível levantar a questão se, em função de seus fundamentos estarem
profundamente arraigados ao contexto das neuroses narcísicas (as psicoses, na primeira
tópica), a melancolia não teria acabado por ser incluída entre as psicoses por um considerável
número de psicanalistas atuais. Embora seja um problema que permanece ainda sem resposta,
e para o qual poderíamos nos voltar em pesquisas posteriores, podemos ensaiar uma
conjectura. Segundo Peres (2011), a abordagem do artigo Luto e melancolia (FREUD,
1917[1915]) não se adequa à tradicional dualidade neurose-psicose, inserindo, diante desse
impasse, uma terceira modalidade, entre essas duas categorias anteriores, que será definida
378
alguns anos mais tarde em Neurose e Psicose (FREUD, 1924[1923]): a neurose narcísica, que
segundo a autora, acaba por constituir uma categoria nosográfica particular para dar conta do
mecanismo distintivo da melancolia. De nosso ponto de vista, baseados no pressuposto
freudiano de que toda neurose é fruto de uma frustração da libido, a melancolia poderia ser
compreendida como uma neurose cuja etiologia recairia não na frustração da libido objetal,
mas da libido narcisista – segundo o modelo da dualidade instintual inserida em Introdução
ao narcisismo (FREUD, 1914), e a diferenciação entre ligação narcísica e ligação por apoio.
Essa frustração da libido narcisista, segundo vimos, provoca a regressão aos pontos de
satisfação narcísicos que constituem as etapas precoces do desenvolvimento do ego, e
estabelece, com isso, um conflito entre a instância crítica e o objeto introjetado no ego.
Portanto, na neurose melancólica, o modelo da neurose se entrelaça ao da psicose, situando a
melancolia em uma encruzilhada entre estas duas últimas, pois nela se opera uma regressão da
libido ao ego e não à fantasia – mecanismo distintivo das psicoses na primeira tópica
conforme a proposição de Freud em Introdução ao narcisismo (1914). Mas, ao mesmo
tempo, a melancolia é oriunda de uma frustração e um conflito vivido na esfera objetal, em
conformidade ao modelo das neuroses – embora a parte afetada refira-se aos investimentos
narcísicos, que se situam na esfera da economia do narcisismo e da libido narcísica. Não
obstante essa proposição ser apenas uma conjectura preliminar, oriunda de nossas
investigações no presente trabalho, consideramo-la passível de futuras investigações,
contando com a possibilidade de que tal estudo contribuísse para esclarecer o problemático
debate em torno da melancolia enquanto neurose ou psicose.
Quanto ao contexto de formação de Luto e melancolia (FREUD, 1917[1915]), vimos
que ele é heterogêneo e não pode ser reduzido a apenas uma ou outra influência. Fatores mais
indiretos, como a grande guerra e o isolamento por ela gerado, ao lado de fatores mais diretos,
como a introdução do conceito de narcisismo na teoria psicanalítica, as discussões realizadas
nas seções da Sociedade Psicanalítica de Viena e os diálogos realizados com os seus
discípulos contribuíram para que Freud formulasse o conteúdo tão significativo apresentado
em Luto e melancolia. Se, segundo vimos, suas ideias não são totalmente originais ou de sua
exclusiva autoria, a maneira como elas são dispostas e articuladas ao longo do texto, ao lado
da intensidade teórica com que ela é abordada indicam a capacidade de Freud de apropriar-se
de elementos diversos para compor novas explicações. Seria impossível privilegiar a
formação de Luto e melancolia a um ou outro fator, senão, mais adequadamente, a uma
combinação heterogênea de fatores.
379
escolas que se encontram no meio psicanalítico atual. Essas talvez sejam o reflexo desta
história que tende a ser encoberta com o passar do tempo. Esperamos que nosso trabalho
tenha contribuído, em alguma medida, a lançar luz sobre mais uma das inúmeras questões
caras à teoria psicanalítica, questões que aguardam ainda por novas pesquisas.
381
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JURY
RÉSUMÉ
À partir d’une considération sur l'importance croissante des états dépressifs aujourd'hui et de
la constatation de l'absence relative de consensus à ce sujet dans le milieu psychanalytique,
cette recherche se propose de récupérer le contexte théorique qui a conduit à la formulation de
la théorie de la mélancolie présentée dans l’article Deuil et Mélancolie (FREUD, 1917
[1915]). Il s’agit d'analyser la formation de la théorie freudienne de la mélancolie à partir de
ses fondations en cherchant des éléments conceptuels plus précis avec l’intention de clarifier
les problèmes qui existent autour du sujet jusqu’à aujourd’hui. La méthodologie de recherche
est basée sur la lecture et sur l'analyse textuelle et conceptuelle des œuvres sélectionnées par
un examen bibliographique. Cette étude a révélé que les fondements de la théorie freudienne
de la mélancolie sont fixés sur un trépied formé par le modèle étiologique des névroses de
transfert, par l’application de ce modèle aux névroses narcissiques (par le biais de la
formulation du concept de narcissisme et de ses dérivés), et par le dialogue de Freud avec ses
disciples, qui ont contribué directement à la construction de plusieurs éléments qui ont
façonné les propositions freudiennes. Face à cela, on voit que la théorie freudienne de la
mélancolie se trouve à l'intersection d'un chemin théorique et clinique qui part des névroses de
transfert et amène aux névroses narcissiques, en aboutissent à la création de la deuxième
topique de l'appareil psychique. Les résultats de cette recherche montrent que la formulation
de Deuil et Mélancolie est due au développement théorique de la théorie freudienne, mais elle
est aussi le résultat des dialogues et des échanges advenus des apports théoriques des
psychanalystes de son époque, et que les controverses actuelles reflètent les débats de cette
période-là. Finalement, on espère que cette recherche apporte des éléments récupérés du
contexte de formation théorique de Deuil et Mélancolie pour mieux comprendre les sources
des débats actuels sur les états dépressifs dans le milieu psychanalytique – soit l’identification
de la mélancolie à la névrose ou à la psychose, soit la définition des états dépressifs comme
des phénomènes unitaires ou hétérogènes.
RESUMO
ABSTRACT
From a consideration of the increasing importance of depressive states of mind today, and the
finding of relative lack of consensus on this topic in the psychoanalytic milieu, this research
proposes to recover the theoretical context that allowed the formulation of the melancholy’s
theory presented in the article Melancholy and Mourning (FREUD, 1917[1915]). It is to
analyze the foundations of Freud's theory of melancholia, in order to provide more accurate
conceptual elements that contribute to clarify the problems that exist around the subject until
today. The research methodology is based on reading and textual and conceptual analysis of
the subject delimited in selected works from a bibliographical review. The study revealed that
the foundations of Freud's theory of melancholia are set on a tripod formed by the etiological
model of the transference neuroses, by applying this model to the narcissistic neuroses
(through the formulation of the concept of narcissism and its derivatives), and by the dialogue
between Freud and his followers, who have directly contributed to the construction of several
elements that have shaped the Freudian propositions. Faced with this, it seems that the
Freudian theory of melancholia lies at the intersection of a theoretical and clinical path that
leads from transference neuroses to narcissistic neuroses, and culminating in the
establishment of the second topical theory of the psychic apparatus. The results of this
research show that the formulation of Mourning and Melancholia is due to the theoretical
development of Freudian theory, and also resulted from the dialogues and exchanges between
theoretical contributions coming from the psychoanalysts of his time, and the current
controversies reflect the discussions that occurred during this period. Finally, it is expected
that this research offers elements, arising from the theoretical context of elaboration of
Mourning and Melancholia, to better understand the sources of the currents debates about
depressive states of mind in the environment psychoanalytic - is the identification of
melancholy to neurosis or psychosis, is the definition of depressive phenomena as unitary or
heterogeneous.
SOMMAIRE
CHAPITRE 1 - Considérations sur les états dépressifs depuis l’antiquité jusqu’aux temps
actuels ..................................................................................................................................... 406
INTRODUCTION
Les états dépressifs74 occupent une place considérable dans les débats en cours dans
les sciences humaines, cliniques et de la santé, au point de son incidence avoir été étiqueté
comme épidémie contemporaine75. Le volume des publications scientifiques sur la dépression
est énorme et la quantité de recherche portant sur la question est encore en croissance dans le
monde entier - ce qui révèle l'importance qui est attribuée à ce sujet aujourd'hui. Cependant, il
n'y a pas de consensus sur les nombreux aspects qui entourent le phénomène de la dépression
dans la communauté scientifique, de sorte qu'on constate un scénario marqué par des
discussions controverses. Des questions telles que l'unité ou l'hétérogénéité des phénomènes
dépressifs, ses fondations psychiques et / ou neurochimiques, la proximité de la névrose ou de
la psychose, s'ils composent une structure unitaire particulière ou une affection de base, les
définitions étiologiques et les distinctions entre les cadres, les définitions des termes, le statut
d'épidémie actuelle, une maladie de l'âme, de la nature humaine, etc., sont des questions qui
impliquent les chercheurs du domaine de la santé dans les problèmes dont l'humanité est prise
depuis des siècles. Le débat sur les états dépressifs accompagnent l'humanité depuis au moins
2.500 années, comme en témoignent les œuvres des philosophes, des écrivains tragiques et
des médecins de l'antique Grèce76. Depuis cette époque lointaine on débat sur ses causes77 et
ses définitions et les termes mélancolie et dépression, les termes souvent plus associés au
champ des états dépressifs, portent de problèmes que, encore aujourd'hui, restent sans
réponses et consensus.
Parmi ce panorama entouré de controverses et de nombreux problèmes qui constituent
le domaine des états dépressifs, on peut mettre en évidence l'existence d'une opposition
relative entre le paradigme psychiatrique et le paradigme psychanalytique, dans la mesure où
ce dernier-là estime que la dépression joue un rôle dans l'organisation du psychisme -
d'élaboration ou de protection psychique78 - et ne peut pas être réduite à des
74
En guise de délimiter un domaine de recherche, nous avons choisi de réunir indistinctement sous le terme états
dépressifs un éventail de phénomènes dépressifs, comme la dépression et la mélancolie, ainsi que la tristesse
profonde, le deuil et le deuil pathologique, entre autres, tous ceux comme faisant partie d'un domaine plus large,
à savoir, le champ de la dépression (cf. LAPLANCHE, 1987).
75
Voir, par exemple, Corvi (2010), Castel (2009), Birman (2006) et Ehrenberg (2008; 2010).
76
Aristóteles (1998), Hipócrates (2005), klibansky, Panofsky & Saxl (1989), Pessoti (1994).
77
Widlöcher (2007) reconnait, au sujet du Problème 30 sur la mélancolie de Aristotle (1998), la distinction
relative entre une dépression de nature endogène et une dépression acquise, réactionnel, provenant des accidents
et des fatalités de la vie.
78
Delouya (2001; 2002), Fédida (1999; 2002) et Widlöcher (1983, 2007).
400
79
Del Porto (2000); Wakefield & Horwitz (2007).
80
Fédida, (1999; 2002).
81
Selon Avila (1990), le problème complexe de la description, la compréhension et l'explication des processus et
de phénomènes dépressifs, a été, est et restera probablement longtemps dans le centre de l'attention de la
psychologie clinique. Pour un examen des diverses théories sur les états dépressifs dans la psychanalyse voir
AVILA, A. Psicodinámica de la depresión. Anales de psicología, 1990, 6 (1), 37-58 - Universidad Complutense
de Madrid.
82
Avila (1990), Rosenfeld (1959) et Wisdow (1962).
83
Comme on peut voir, par exemple, dans les études de Khel (2009) et Delouya (2002), qui partent de la théorie
freudienne, approchent l’article Deuil et mélancolie et parviennent à des conclusions complètement différentes
dans leurs recherches. Selon Delouya (2002), la dépression serait un affect psychique de recueillement et ne peut
pas recevoir le statut d'une entité clinique telle que l'hystérie ou la névrose obsessionnelle, alors que selon Kehl
(2009), la dépression doit être comprise comme une structure distincte de la névrose et de la psychose, et
considérée comme une entité clinique. Khel (2009) pense que la contribution de Freud à propos de la dépression
est restreinte.
401
proposer des solutions à partir d'un cadre théorique spécifique et d'une recherche clinique
déterminée, et /ou de réduire les références freudiennes aux contributions apportées par
l'article Deuil et mélancolie. La lecture des contributions de Freud à l'égard des états
dépressifs est réalisée habituellement avec une grande liberté et est profondément enracinée
dans le projet personnel de chaque auteur. On peut trouver une variété de théories -
kleiniennes, winicottiennes, lacaniennes etc. - qui arrivent à des interprétations et explications
très différentes, et ils peuvent être différentes même parmi les auteurs groupés autour de la
même tradition de la pensée psychanalytique84. Même ceux qui proposent de réaliser une
lecture freudienne sont finis pour recourir à des explications plus externe, prises d'autres
auteurs, dans le but d'élucider les points obscurs dans les formulations de Freud, et n'épuisent
pas les réponses contenues dans les fondements mêmes de leur propre théorie. Bien que ces
travaux apportent des contributions indéniables, on court le risque d'ignorer la possibilité que
la théorie freudienne contient assez d'éléments pour clarifier les énoncés obscurs de la théorie
de la mélancolie, et peut-être pour la résolution des quelques impasses. Les contributions de
l'article Deuil et mélancolie sont extrêmement condensées et ne peuvent être comprises qu'à
partir des éléments provenus d'autres régions conceptuels de la théorie freudienne. Dans cette
recherche, on privilégie les théories du narcissisme et des névroses de transfert.
Selon certains auteurs, par exemple, les états dépressifs doivent être compris à partir
de la théorie du deuil85, autant que d'autres soulignent la théorie de la mélancolie86. Les
premiers insistent pour que la mélancolie présentée par Freud dans son article doit être
considérée comme une psychose et n'a rien à voir avec la dépression ; donc, il ne concerne à
la dépression que les considérations autour du deuil. Cela se produit même quand on constate
que Freud explicite la distinction entre la mélancolie et la psychose, la première étant une
névrose narcissique, dont le conflit se concentre sur le moi et le surmoi, et la seconde étant
une affection caractérisée par le conflit entre le moi et la réalité. D'autres auteurs considèrent
possible expliquer les états dépressifs à partir de la théorie de la mélancolie et insistent pour
que la théorie freudienne de la mélancolie représente l'actuel phénomène clinique de la
dépression et que sa psychodynamique permet de comprendre les états dépressifs en général.
Les auteurs qui assument cette position comprennent souvent la mélancolie et les états
84
Par exemple, Khel (2009) et Lambotte (1993), que, d'après Freud et Lacan, prônent l'idée que la mélancolie est
une psychose (Khel, 2009) et une névrose narcissique (Lambotte, 1993).
85
Comme Berlinck et Fédida (2000), par exemple.
86
Par exemple, Marucco (1987).
402
dépressifs en général comme carences narcissiques87. Donc, comme on peut le voir, quand on
se penche à ce sujet dans la psychanalyse, il n'y a pas de consensus ni sur le phénomène
clinique que Freud appelait de mélancolie : certains suggèrent qu'il s'agite là d'une explication
donnée au phénomène de la dépression en général, d'autres prétendent que ces contributions
ne s'appliquent qu'à la psychose maniaque-dépression. Il en résulte des théories qui tiennent
compte de façon complètement différent les formulations freudiennes sur la mélancolie et
leurs rapports avec les états dépressifs88.
Compte tenu de ce qui précède, à savoir, l'importance croissante des états dépressifs
aujourd'hui, ainsi que le constat de l'absence relative de consensus autour de ce sujet entre le
domaine psychanalytique, cette recherche se propose d'aborder le contexte théorique qui a
permis le développement de la théorie freudienne mélancolie, tel que présentée dans l'article
Deuil et mélancolie papier. Il s'agit d'expliquer et d'analyser les fondements de la formation de
la théorie freudienne de la mélancolie dans le but de fournir plus de précision aux éléments
conceptuels qui contribuent à clarifier les aspects qui ont formé la base pour le développement
des différentes théories psychanalytiques sur les états dépressifs. Ainsi, le champ de recherche
est défini d'une part par la théorie freudienne, plus précisément la période de la première
topique de l'appareil psychique, la région conceptuelle dont l'article Deuil et mélancolie a été
conçu et, d'autre part, par une enquête sur les contributions offertes par les disciples proches
de Freud, comme Abraham et Ferenczi, qui ont été impliqués dans la formulation de la théorie
freudienne de la mélancolie. Quand on suit les directions qui se trouvent dans la théorie
freudienne, on voit que l'accès initial aux névroses narcissiques devrait se produire à partir des
éléments provenus des névroses de transfert ; donc, notre hypothèse est que les principes qui
ont permis la formulation de la théorie freudienne de la mélancolie sont provenus d'au moins
trois sources : le modèle étiologique des névroses de transfert, la région conceptuelle du
narcissisme et l'échange théorique entre Freud et ses disciples, parmi lesquels on souligne
Abraham et Ferenczi.
87
Bleichmar (1997).
88
Selon Laplanche (1987, p.293) «Cette champ général de la dépression provoque des problèmes pour lesquels
jusqu'à présent personne n'a atteint un consensus: l'unité ou de l'hétérogénéité de ce domaine depuis leurs formes
d'aspecte normale, dès les dépressions « justifiée », en passant par la dépression névrotique, jusqu`à la
mélancolie, qui s’accepte généralement le designer dans la psychose » ; l'auteur souligne que, dans la
psychanalyse postfreudienne, il a été convenu de considérer la mélancolie une forme de psychose.
403
Donc, une partie du sol qui soutient la théorie freudienne de la mélancolie est doné par
le modèle étiologique des névroses de transfert :
[…] les notions que nous avons acquises à la suite de l'étude des névroses de
transfert permettent également de s'orienter dans les névroses narcissiques, beaucoup
plus difficiles au point de vue pratique. Les traits communs sont très nombreux, et il
s'agit au fond d'une seule et même phénoménologie. Aussi vous rendez facilement
compte des difficultés, sinon des impossibilités, auxquelles doivent se heurter ceux
qui entreprennent l'explication de ces affections ressortissant à la psychiatrie, sans
apporter dans ce travail une connaissance analytique des névroses de transfert
(FREUD, 1916-1917[1915-1917], p.189).
Si d'un côté les découvertes données par les névroses de transfert ont été l'un des
fondements de la théorie freudienne de la mélancolie, d'autre côté la région conceptuelle du
narcissisme fournit une autre partie, souvent considérée comme la plus immédiat, à partir des
constructions théoriques qui ont été introduites dans la psychanalyse environ 1910 - en
particulier la notion de libido narcissique (investissement de la pulsion sexuelle (libido) dans
le moi). Dans la conférence introductive sur la théorie de la libido et le narcissisme, Freud
(1916-1917 [1915-1917], p.429), pour faire face aux mécanismes distinctifs entre la
mélancolie et la paranoïa, affirme telles conclusions « ont été obtenues par l'application de la
psychanalyse aux troubles narcissiques » et « chacun d'eux, nous leur devons l'utilisation du
concept de libido du moi ou libido narcissique, à l'aide duquel on peut étendre les névroses
narcissiques les vues qui étaient valables pour les névroses de transfert ». Ainsi, à notre avis,
les fondements de la théorie freudienne de la mélancolie sont à l'intersection du modèle
étiologique des névroses de transfert avec les formulations qui viennent de la théorie du
narcissisme, dont l'objectif était d'appliquer les résultats de la psychanalyse dans les névroses
narcissiques. Ces sources, aux côtés de l'échange continu de Freud avec ses disciples, forment
le champ d'étude délimitée par cette recherche. Bien que d'autres sources pourraient être
également envisagées, on pense que les énoncées ci-dessous sont les plus proches et directes
des formulations de Deuil et mélancolie. De plus, on considère être aussi fondamentale
d'aborder la trajectoire historique des états dépressifs, ainsi que les points de débats actuels de
ce domaine, même si on ne fait que de façon plus générale. On part de l'idée qu'il y aurait
assez d'éléments dans le cadre théorique dans lequel s'est produit le développement de Deuil
et mélancolie (FREUD, 1917[1915]) pour clarifier certaines des incertitudes entourant le sujet
des états dépressifs dans le champ psychanalytique actuels. Ainsi, on espère que cette
recherche contribuera à établir des références pour baser l'étude et la compréhension du débat
actuel sur les états dépressifs dans la psychanalyse.
404
2. MÉTHODOLOGIE DE RECHERCHE
En ce qui concerne la méthodologie, cette recherche est une étude théorique, dans le
cadre d'une enquête épistémologique sur les processus qui régissent la construction des
concepts et des théories. On peut la définir dans le domaine de l'épistémologie de la
psychanalyse (Mezan, 2002a, 2002b), c'est-à-dire, une recherche qui se penche sur la
rationalité de la psychanalyse elle-même, en cherchant parcourir les chemins de
développement de leurs concepts et hypothèses, révéler les problèmes que les théories avaient
essayé de répondre et comprendre la rationalité qui sous-tendent les concepts et méthodes.
Ainsi, cette recherche a été guidée par l'hypothèse selon laquelle l'article Deuil et mélancolie
avait été conçu au milieu d'une série de facteurs qu'on cherche à reconstruire, non seulement
dans la théorie freudienne, mais aussi dans l'environnement dans lequel elle était insérée.
3. DEVELOPPEMENT DE LA RECHERCHE
Cette recherche a été motivée par la condition problématique des états dépressifs dans
la psychanalyse aujourd'hui. Tel qu'on a vu, les différentes perspectives psychanalytiques
proposent des théories particulières sur ces états, souvent les réservant des facteurs
étiologiques diverses. Même l'utilisation des termes mélancolie et dépression est traitée de
manière relativement vague, ainsi que les définitions à propos de sa structure autant que
névrose ou psychose. Bien qu'elles partent d'une source commune - l'article de Freud Deuil et
mélancolie - ces théories arrivent à des explications souvent complètement différent. Par
ailleurs, lorsqu'on se réfère à la théorie freudienne de la mélancolie, trop souvent on trouve
des interprétations divergentes, par exemple, quand il s'agit de la définition qui Freud donne à
cette affection : une psychose ou une dépression commune.
Ce n'est pas difficile de trouver des auteurs qui appuient toute l'interprétation des états
dépressifs sur la perspective du narcissisme ou, d'une autre façon, sur la théorie des conflits
d'ambivalence. Ainsi, face à un domaine d'absence relative de consensus et d'une multiplicité
d'interprétations, nous nous tournons vers le contexte de la formulation de Deuil et mélancolie
avec l'intention de comprendre les principes fondamentaux qui ont été liés à la formation de la
406
Ainsi, la psychanalyse considère les états dépressifs non pas exactement comme une
maladie à éliminer et révèle que ces états sont liés à la tâche d'exécuter un travail psychique -
l'activité psychique de travailler des excitations pulsionnelles.
En montrant le deuil et la mélancolie comme des états sous-jacent à la réalisation d'un
travail psychique, Freud attribue aux états dépressifs autres sens, révélant leur rôle
d'élaboration dans l'appareil psychique - même si le fruit de ce travail soit-il la formation
symptomatique, comme on l'observe dans la mélancolie.
Il ne s'agit pas de nier les avantages acquis par les médicaments antidépresseurs, ni de
mettre des obstacles contre leur prescription. Il s'agit plutôt de mettre en évidence comment
l'approche hégémonique, représenté par le DSM, affecte également les états non
pathologiques tels que le deuil et la tristesse profonde, en montrant une tendance d'aujourd'hui
à les considérer comme indésirables - un fait qui est lié à l'abus de la médicalisation des
passions tristes et de leur évitement. Donc, l'incidence de l'épidémie actuelle des états
dépressifs et leur formatage par le discours psychiatrique actuel ont des conséquences
inquiétantes et peuvent être liés aux excès des thérapies psychopharmacologiques.
Les états dépressifs, bien que considérés comme des affections psychopathologiques,
sont liés à la constitution humaine jouent un rôle défensif dans l'organisation psychique. Que
ce soit ou non états psychopathologiques, le discours psychanalytique indique qu'ils assument
une fonction dans la formation, le développement, la réglementation et la défense du
psychisme. Il est important de considérer que même les états psychopathologiques ont des
sens et que quand on les analyse par la psychanalyse, ils rendent possible la récupération du
sujet, la restauration et la reprise du développement psychique.
Dans le deuxième chapitre, on examine un aspect déterminé à partir d'un constat basé
dans la théorie freudienne : le modèle étiologique des névroses de transfert a été l'un des
fondements de la formulation de la théorie freudienne de la mélancolie.
Peut-être ce constat puisse-t-il être appliqué plus généralement à la formulation de la
théorie de la psychose chez Freud et la psychanalyse classique. Cependant, on doit limiter
cette étude au modèle des névroses de transfert et à l'application de ses fondements dans le
développement de la théorie freudienne de la mélancolie. Un autre sujet de ce chapitre
provient du fait que Freud a construit ses formulations appuyé sur une échange constant entre
le normal et le pathologique. En ce qui concerne Deuil et mélancolie, tel est la méthodologie
utilisée tout au long du texte pour préciser que les deux soient mutuellement éclairés, par la
comparaison de leurs caractéristiques communes et distinctives. Toujours à propos de la
mélancolie, après 1921, son processus psychique central - l'identification narcissique - a été
généralisé comme étant constitutive d'appareil psychique, ce qui permet à Freud d'expliquer la
formation du moi et du surmoi89. Ainsi, la mélancolie accompagnée les formulations qui ont
abouti à la deuxième topique de l'appareil psychique90. Compte tenu de cela, on se tourne vers
la notion de normal et pathologique, pour comprendre quelles sont les bases qui rendent
possible à Freud d'effectuer des généralisations à la vie psychique en général, basé sur les
processus observés dans les psychopathologies.
La fonction de Deuil et mélancolie, en plus de clarifier les mécanismes de ces états,
contribue également à mettre en évidence le mécanisme spécifique qui permet à l'ego
d'abandonner l'objet d'investissement par le chemin de la régression au narcissisme :
l'élucidation du mécanisme de la mélancolie permet Freud de préciser également un
mécanisme actif dans la formation de l'appareil psychique. Cela nous montre que l'échange
89
Selon Laplanche et Pontalis (1998, p.132), « À partir de l'analyse de la mélancolie et des processus qu'elle met
en évidence, la notion de moi va être profondément transformé ».
90
Selon Parmentier (2001, p.121) « Avec « Trauer und Melancholie » s’amorce un tournant essentiel dans
l’œuvre de Freud. L’introduction du narcissisme lui permet d’envisager la théorie des pulsions sous un angle
déjà différent et de penser en d’autres termes la constitution du moi et ses relations avec les objets, y compris le
moi en tant qu’objet. Ce qui amène Freud à préciser ses positions, c’est aussi, d’une part, la séparation d’avec
Jung et son interprétation des psychoses en contradiction avec la théorie freudienne sexuelle de la libido ; et,
d’autre part, son opposition à Sadger sur le terrain de la libido narcissique dans l’homosexualité ».
410
entre le normal et le pathologique joue un rôle central dans la théorie freudienne, parce que les
processus psychiques qui sont contenues dans le premier sont mis en évidence dans la
seconde. Par conséquent, on voit que Deuil et mélancolie peut être pris dans ces deux
dimensions : la plus évidente, en ce qui concerne l'élucidation de ces états, et la plus indirecte,
ce qui mène à la compréhension des mécanismes archaïques qui ne peuvent être observés que
dans son fonctionnement dans les psychopathologies.
Cette procédure est possible grâce à une série d'hypothèses qui considèrent que le
normal et le pathologique ne sont distincts que quantitativement : la pathologie serait une
réaction défensive face à la frustration, cela comprise comme l'empêchement de la satisfaction
libidinale, ce qui provoque un déséquilibre dans l'économie libidinale. La sortie devant une
frustration intolérable est le retour, par le chemin de la régression, aux points de fixation et
aux formes primitives d'organisations psychiques. Dans cette perspective, le conflit psychique
face à la frustration est la façon d'expliquer la pathologie, ou plus exactement, la pathologie
est une sortie face au conflit. À cet égard, on a observé dans cette recherche que le modèle
étiologique des névroses de transfert a joué un rôle fondamental dans la formulation de la
théorie de la mélancolie, au côté du rôle du narcissisme. La théorie de la mélancolie, en
résultant d'une combinaison de facteurs, a été conçue dans le domaine de la première topique ;
plus précisément à partir des perspectives et questions posées au modèle étiologique des
névroses de transfert en raison de l'introduction du concept de narcissisme dans la théorie
freudienne. Ainsi, on considère valide le constat que les fondements de la théorie freudienne
de la mélancolie se trouvent dans l'intersection du modèle étiologique des névroses de
transfert avec la construction du modèle théorique conceptuel du narcissisme, dont la fonction
a été de permettre à la psychanalyse de clarifier et de résoudre les névroses narcissiques. Ce
constat permet de dire que la théorie freudienne de la mélancolie a ses fondements dans un
parcours que part des névroses des transfert et suit jusqu'aux névroses narcissiques, en
arrivant dans les formulations de la seconde topique de l'appareil psychique et de la dernière
dualité pulsionnelle.
Par conséquent, il est possible de poser la question de savoir si, en raison des principes
fondamentaux de la mélancolie étaient-ils profondément enracinés dans le contexte des
névroses narcissiques (les psychoses, en accord avec la première topique), est justifié le fait
que la mélancolie soit incluse dans les psychoses par un nombre considérable de
psychanalystes actuels. Même si c'est un problème qui reste encore sans réponse, et pour
lequel on pourra revenir dans des recherches ultérieures, on peut tester une conjecture. Selon
Peres (2011), l'approche de l'article Deuil et mélancolie (Freud, 1917 [1915]) ne correspond
411
pas à la traditionnelle dualité névrose-psychose et face à cette impasse elle s'insère dans une
troisième voie entre ces deux catégories précédentes, qui sera définie quelques années plus
tard dans Névrose et psychose (Freud, 1924 [1923]) : la névrose narcissique, qui, selon
l'auteur, constitue une catégorie nosographique particulière pour tenir compte du mécanisme
distinctif de la mélancolie. De notre point de vue, fondé sur l'hypothèse que toutes les
névroses freudiennes découlent d'une frustration de la libido, la mélancolie peut être comprise
comme une névrose dont l'étiologie ne tomberait pas sur la frustration de la libido d'objet,
mais de la libido narcissique - selon le modèle de la dualité pulsionnelle inséré dans
Introduction au narcissisme (Freud, 1914) et la différenciation entre le choix d'objet
narcissique et le choix d'objet par étayage. Cette frustration de la libido narcissique, comme
on l'a vu, est à la cause de la régression aux points de satisfaction narcissiques qui constituent
les premiers stades du développement du moi et établit donc un conflit entre l'instance critique
et l'objet introjecté dans le moi. Par conséquent, dans la névrose mélancolique, le modèle de la
névrose s'entrelace au modèle de la psychose et la situe dans la croisée des chemins entre ces
deux modèles, car la régression que la caractérise est laquelle de la libido au moi et non au
fantasme - cette dernière s'agissant du mécanisme spécifique de la psychose dans la première
topique, comme a proposé Freud le premier d'actualité proposition dans Introduction au
narcissisme (1914). Mais la mélancolie est en même temps venue d'une frustration et d'un
conflit vécu dans la sphère de l'objet, selon le modèle des névroses - bien que la partie
affectée est référée aux investissements narcissiques, qui se trouvent dans la sphère de
l'économie du narcissisme et de la libido narcissique. Cependant, cette proposition n'est
qu'une conjecture préliminaire, un résultat de notre recherche qui peut être soumis à une
enquête plus approfondie ultérieurement dans l'expectative de qu'elle puisse contribuer à
clarifier le complexe débat sur la mélancolie autant que névrose ou psychose.
Le troisième chapitre est né du constat que les principes fondamentaux les plus directs
et explicites qui ont permis Freud d'établir la théorie de la mélancolie font partie de la région
conceptuelle du narcissisme, qui a été formulé à partir des observations des névroses
narcissiques et des cas d'homosexualité. C'est également en 1924 qui Freud a nommé une
classe spécifique pour la mélancolie, la névrose narcissique, en supprimant de cette
désignation la paraphrénie et la paranoïa, qui passent à se grouper autour du terme psychose.
Ainsi, il est incontestable l'importance du narcissisme dans la formulation de la théorie
freudienne de la mélancolie. Donc, le troisième chapitre vise à montrer le contexte de
l'élaboration du narcissisme, en approchant les éléments théoriques de cette région
conceptuelle qui a rendu possible la formulation de la théorie freudienne de la mélancolie.
Dans ce chapitre, on a réalisé une longue exposition sur le concept de narcissisme,
révélant que Freud partait de phénomènes particuliers comme l'homosexualité et la psychose
pour insérer une nouvelle région conceptuelle dans la théorie psychanalytique. Freud et les
psychanalystes de son temps ont cherché à comprendre la position narcissique des psychoses
en rapport avec le développement de la libido et ils ont fini pour postuler l'existence d'une
période narcissique universelle dans le début du développement psychosexuel - et ainsi ils ont
fait les premiers pas vers la compréhension du développement du moi.
413
Dans le but de comprendre les facteurs plus immédiats qui ont suivi la rédaction de
l'article Deuil et mélancolie, dans le quatrième - et dernier - chapitre, on s'est tourné vers son
contexte de formation.
414
Si, d'une part, la préparation de cet article a été rendue possible par l'introduction du
narcissisme dans la théorie psychanalytique, d'autre part, il a été le résultat des efforts
dépensés par les psychanalystes de l'époque pour obtenir une explication satisfaisante du
thème de la mélancolie - ce qui avait été attendu depuis quelques temps. À cause de cela, on
réalise l'approche du contexte de la formulation de l'article Deuil et mélancolie (1917 [1915])
en analysant leurs influences les plus directes, tels que les discussions tenues lors des réunions
de la Société psychanalytique de Vienne et les échanges théoriques entre Freud et certains de
ses disciples, en plus de détacher le contexte de la métapsychologie et de la Seconde Guerre
mondiale. On cherche à comprendre aussi à quel motif on doit l'inclusion de Deuil et
mélancolie parmi les articles qui composent la métapsychologie de 1915. Dans un second
temps, on présente les contributions de Freud rendues possibles par l'article Deuil et
Mélancolie, dans l'intention de décanter quelques éléments théoriques centraux et de
permettre une vue d'ensemble de leur contribution.
En ce qui concerne le contexte de la formation de Deuil et mélancolie (Freud, 1917
[1915]), on a vu qu'il est hétérogène et ne peut pas être réduite à une seule influence. Des
facteurs plus indirects, comme la grande guerre et l'isolement engendré par celle-ci, ainsi que
des facteurs plus directs tels que l'introduction de la notion de narcissisme dans la théorie
psychanalytique, les discussions dans les sessions de la Société psychanalytique de Vienne et
les dialogues menés avec ses disciples, ont tous contribué par que Freud élabore un contenu si
significatif tel que présenté dans Deuil et mélancolie. Si, comme on a vu, ses idées ne sont pas
tout à fait originale ni lui appartient exclusivement, la manière dont ils sont organisés et
articulés dans le texte, ainsi que l'intensité théorique avec laquelle elles sont abordées
indiquent la capacité de Freud s'approprier de divers éléments pour composer de nouvelles
explications. Il serait impossible de favoriser n'importe quel facteur à la formation de Deuil et
mélancolie, car il s'agit-là, plus précisément, d'une combinaison de facteurs hétérogènes.
En ce qui concerne les contributions aux problèmes actuels entourant les états
dépressifs, on constate que Freud n'a pas été tenu à une préoccupation structurelle et son
attention s'est dirigée plutôt sur le mécanisme caractéristique de la mélancolie et le problème
du choix de la névrose. De plus, on a trouvé des extraits où Freud suggère que la mélancolie
ne serait qu’une, indépendamment de ses différentes présentations cliniques. Cependant,
comme on a vu, Freud avait le soin de différencier une mélancolie endogène d'une mélancolie
psychogène, ce qui rencontre la tradition scientifique qui cherche à différencier la dépression
endogène et la dépression réactionnelle. Mais pour répondre à la question de son mécanisme,
Freud applique les mêmes hypothèses pour les deux types de mélancolie. Il a été observé, en
415
outre, que, même dans le champ psychanalytique il n'avait pas de consensus sur les états
dépressifs, ce qu'on trouve dans le dialogue entre Freud et Abraham.
Les auteurs avaient des opinions différentes sur les facteurs les plus importants dans la
formation et l'étiologie de la névrose mélancolique - bien que les deux se sont influencés
mutuellement dans les formulations de ses travaux à ce sujet. Il est à noter que Freud
n'utilisait jamais le terme psychose maniaque-dépressive, courante dans la psychiatrie de son
époque, tandis qu’Abraham a souvent utilisé ce terme dans ses œuvres. Cependant, Freud n'a
jamais réalisé une discussion au sujet de la mélancolie être ou ne pas être considérée comme
une psychose, bien qu'il la considère dans le groupe des psychoses lors de la formulation de
Deuil et mélancolie, sa position finale a été de la définir comme une névrose narcissique
distincte des paraphrénies et paranoïas. Pour Freud, la mélancolie n'a pas été établie sur un
conflit entre le moi et la réalité, comme est le cas de la psychose, mais dans un conflit interne
entre le Moi et le Surmoi. Par conséquent, dans les recherches futures, il serait approprié de
prendre quelques théories actuelles sur les états dépressifs et de les confronter avec les
principes fondamentaux et les débats entourant la formulation des théories de Freud et
Abraham à ce sujet.
4. CONCLUSION
Enfin, en face à ce long travail réalisé, nous considérons que l'évolution même de la
théorie psychanalytique ne se doit pas au mouvement isolé de la pensée de Freud, mais à une
conjonction de facteurs, parmi lesquels nous soulignons la participation de psychanalystes qui
ont théorisé la psychanalyse ensemble, comme Abraham, Rank et Ferenczi, par exemple. Si le
développement de la psychanalyse est encore, dans de nombreux cas, attribués uniquement à
Freud, c'est parce qu'on ne donne pas assez d'attention au contexte de la formulation de ses
idées par rapport à ceux qui ont activement participé à son élaboration. Cette conclusion
indique la nécessité d'effectuer des recherches du type épistémologique qui cherchent à
récupérer les origines des formulations des idées freudiennes et contribuer à la compréhension
des fondements sur lesquels se sont installés la diversité de théories et écoles qu'on trouve
dans la psychanalyse aujourd'hui. Cette diversité peut-être le réflexe d'une histoire qui tend à
être occulté au fil du temps.
Nous espérons que notre travail a contribué dans une certaine mesure, de mettre en
lumière l'une entre de nombreuses questions qui sont chères à la théorie psychanalytique, des
questions qui sont toujours en attendant de nouvelles recherches.
416
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