Intertextualidade

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– CAPÍTULO 2 –

A BIBLIOTECA DE PAPEL:
INTER(TEXTO) – LABIRINTO – (INTER)TEXTO

[...] a Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade


cujo corolário imediato é a eternidade futura do
mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O
homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra
do acaso ou dos demiurgos malévolos; o Universo,
com seu elegante provimento de prateleiras, de
tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o
viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado,
somente pode ser obra de um deus. Para perceber a
distância que há entre o divino e o humano, basta
comparar esses rudes símbolos trêmulos que minha
falível mão garatuja na capa de um livro, com as
letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas,
negríssimas, inimitavelmente simétricas.
(BORGES, J.L., p. 71, 2007)

2.1. Intertextualidade: como, por onde e por quem?

“Tudo está dito, e chegamos demasiado tarde, há mais de sete mil anos que há
homens, e que pensam” (LA BRUYÈRE Apud SAMOYAULT, 2008, p. 68),
sentenciou Jean La Bruyère (1645-1696). Somente dois séculos depois,
aproximadamente, que a dramática, e um tanto quanto trágica, visão de La Bruyère viria
a ser, ironicamente, “corrigida”. Isidore Lucien Ducasse (1846-1870), mais conhecido
pelo seu pseudônimo, o Conde de Lautréamont, que contestou: “Chegamos cedo, nada
foi dito” (LAUTRÉAMONT Apud PERRONE-MOISÉS, 2008, p.63). Dois extremos.
E por meio e por dentro deles todo um Infinito – e a essência da intertextualidade
(quiçá, talvez, também a essência da própria Literatura e de toda a comunicação
humana).
Não será difícil observar, como veremos doravante, que a noção de
intertextualidade parece caminhar sobre uma grande pluralidade teórica – Tiphaine
Samoyault chega mesmo a afirmar “imprecisão teórica” (SAMOYAULT, 2008, p.13) –
que ora reduz a sua ciência a mera definição usual e cotidiana da relação existente entre
um texto e outro; ora estrutura-se nas mais obsessivas investigações teóricas – e que vão
da linguística e da teoria literária, passando pela visão sociocultural e psicanalítica (ou,
claro, também da (con)fusão, permuta e síntese de um pouco de cada uma dessas
teorias). Em suma: os trajetos teóricos possíveis para abordar a intertextualidade são tão

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vastos quanto o espaço imaginário/metafórico – que aproxima ou afasta – as
cosmovisões presentes nas afirmações de La Bruyère e de Lautréamont.
Noutras (ou nas mesmas?) palavras: a dimensão abissal que atrela as assertivas
anteriores dos dois escritores franceses pode ser encontrada nas mais diversas
concepções, e compreensões, da ideia de intertextualidade que estão presentes na crítica,
e na história, literária. E, claro, na própria Literatura. Crítica e história literária. A
própria Literatura. E será assim, basicamente, que iremos dividir este capítulo (ainda
que, esperamos, da forma menos estanque possível): 1) um rápido desvio teórico; 2) um
longo mergulho poético.
Desta maneira, assim como no primeiro capítulo, que não buscamos uma
descrição extensiva sobre a poesia contemporânea, também não iremos, aqui,
propormos uma abordagem descritivamente abusiva das ideias sobre a intertextualidade
– seja na classificação, e evolução, das diversas concepções que o termo foi sofrendo ao
longo do tempo; seja nos valendo de um único referencial teórico (que, por diversas
vezes, ocasiona no costumeiro erro de fazer prevalecer a teoria em detrimento do objeto
de estudo). Existirá, apenas, uma breve exposição acerca das concepções teóricas da
intertextualidade seguindo uma rota conhecida.
Explica-se: sobre a exposição (falaremos da rota adiante), essa terá como
objetivo apenas delimitarmos alguns pontos que, das diversas abordagens possíveis
sobre a intertextualidade, foram nos dando pistas de como intuir melhor uma concepção
da poética de Geraldo Carneiro. Esse primeiro momento terá como escopo, portanto, o
de erigir as bases da estrutura que virá a ser desenvolvida com, e através, da própria
poesia de GC.
Com base nesta visão, é importante já adiantarmos que, de todos os percursos e
percalços teóricos, o livro A Intertextualidade, da crítica literária francesa Tiphaine
Samoyault, será um de nossos portos seguros (eis a rota). Além de percorrer toda a
história e desdobramentos da ideia de intertextualidade, apontando aproximações e
afastamentos dentre as mais diversas vertentes da teoria – e que nos levou a nomes
fundamentais que irão também figurar aqui como, por exemplo, os que já eram por nós
conhecidos: Roland Barthes, Gerard Genette e Antoine Compagnon; mas, sejamos
francos, também a algumas gratas surpresas: Michael Riffaterre, Laurent Jenny e
principalmente Michel Schneider – o trabalho de Samoyault vai além da mera revisão
bibliográfica como o modesto título pode deixar supor.

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Em realidade, o título original da obra de Samoyault é L’Intertextualité:
mémoire de la littérature (2005). A segunda parte do título da obra, mémoire de la
littérature, subtraído na tradução brasileira, é basilar, pois repousa ali a grande
contribuição da teórica francesa: não só como ponto de partida para pensarmos a
intertextualidade, e consequentemente essa com a memória, mas como auxílio na
reflexão de tal questão de maneira mais ampla e, sobretudo, primordial de nosso tempo
– embora subsistente desde sempre. Como já dito, as abordagens teóricas possíveis
acerca do intertexto são várias – e não raro divergentes, complementares ou mesmo
repetitivas (reflexões que Samoyault aponta competentemente). Mas para além das
diversas modalidades de teorias, segundo a autora francesa, prevalece subscrito por
dentro do próprio movimento da matéria intertextual a reflexão do intertexto como
memória da literatura. Mais: tal procedimento possui relação direta com certo modo
de ponderar o texto literário e que seria muito característico da modernidade e, talvez,
ainda mais da contemporaneidade – e que nos interessa demasiadamente, claro.
Conjecturar sobre o intertexto através do viés da memória parece ser, portanto,
caminho fundamental para entendermos a literatura moderno-contemporânea, segundo
Samoyault. E iremos nos apoiar nesta ideia. Assim sendo, resumidamente, sobre a
intertextualidade, eis o nosso itinerário: 1) Julia Kristeva, via Mikhail Bakhtin:
responsável pela elaboração e difusão do termo; 2) Roland Barthes e Michael Riffaterre:
aprofundando e especificando (sem deixar de expandir) o campo de estudo intertextual;
3) Gérard Genette e Antoine Compagnon: estruturando e descrevendo as ferramentas
intertextuais; 4) Laurent Jenny e Michel Schneider: flexibilizando e até ampliando
algumas noções do intertexto 5) finalmente a própria Tiphaine Samoyault: com a sua
proposta da memória da literatura como mediadora da noção intertextual (podemos
considerar também, mas envolvidos pela noção de pós-modernidade, Linda Hutcheon e
Fredric Jameson – mas esses não irão figurar neste capítulo, pois devem aparecer no
terceiro. Motivo: ambos acabaram focando seus estudos sobre a intertextualidade em
um aspecto particular dessa, a paródia, e que irá ficar em mais sintonia quando falarmos
dessa categoria intertextual junto com a evocação épica na poesia de Geraldo Carneiro).
Portanto, ainda que nossa proposta geral seja, daqui por diante, o de navegar
pela poesia e poemas de GC sem necessariamente o intuito da chegada, mas, sim, com o
objetivo específico da travessia em si através de um devir/desvio constante (e, aí sim, a
partir desse oportuno movimento, deixar submergir suas próprias soluções e/ou
problemas), é preciso adotar algumas bússolas e astrolábios antes de nos lançarmos ao

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mar. E é aí que esperamos que a intertextualidade seja não aquela chave que nos faz
escapar do labirinto, mas a que nos dá acesso a ele (e sair já é outra história...) ou, ao
menos, o nosso “fio de Ariadne” que irá nos possibilitar caminhar – para trás e para
adiante – neste tortuoso campo. Pois, em realidade, e já que falamos (e falaremos mais)
em espelhos, elegemos espelhar nossa postura na do poeta e professor Wilberth
Salgueiro – adotada no já citado Forças & formas: aspectos da poesia brasileira
contemporânea (dos anos 70 aos 90):

quero falar muito dos poemas. A chamada análise de textos está fora
de moda há algum tempo, sei. O que mais se vê é a teorização (não
entro aqui em valoração) que fica na “periferia” do poema: não fala
dele. Sabemos, todos, dos riscos que envolve enfrentar um texto
diretamente, o que se agrava, penso, se não textos de autores
contemporâneos – como se fossem vizinhos. Mas são riscos que
levam ao suor e ao prazer [...] Não quero repetir um tipo de análise
que fala de uma característica qualquer de um autor e, depois, larga
um (monte de) poema como exemplo – e parte para a próxima. Quero
conversar com os poemas, apresentá-los uns aos outros.
(SALGUEIRO, 1999, p. 13-14)

“Conversar com os poemas, apresentá-los uns aos outros” é, sem dúvida, nossa
maior pretensão neste Capítulo – e nos próximos. Como iremos notar, dentre os vários
elementos que poderiam ser escolhidos para abordar a poética de Carneiro, a
intertextualidade, em relação a um outro/Outro (texto ou poeta), e até mesmo entre os
poemas da própria lavra de GC, parece ser o seu aspecto mais fundamental. Ou seja:
esperamos retirar daí, do choque/cruzamento entre textos diversos e textos do poeta, o
nosso maior referencial.
Por conseguinte, como já dito, apontaremos algumas considerações acerca do
conceito de intertextualidade, mas não iremos apenas dispor longamente as suas mais
diversas teorias durante todo um capítulo à parte e depois exemplificá-las nos poemas.
Entendemos que o movimento deve ir muito além disso. Pois “não quero repetir um tipo
de análise que fala de uma característica qualquer de um autor e, depois, larga um
(monte de) poema como exemplo – e parte para a próxima”. Ao contrário, esperamos
que durante a própria análise/interpretação dos poemas, entre si e com os temas que os
(e nos) cercarem, a teoria vá surgindo. A teoria complementando o texto literário e o
texto literário complementando a teoria. Daí o espelho; daí o labirinto.
E é certo que para a decifração de ambos (tanto espelho, quanto labirinto – e,
por conseguinte, o texto literário) um fator emergirá para nós como essencial

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(retomando Samoyault): a memória. É a memória que reconhece, ou desconhece, o
eu/Outro que nos fita ao espelho; é a memória que percorre, grava, recolhe e (des)monta
as peças do labirinto. E, mais uma vez, utilizando Borges: pois se “bastam dois espelhos
opostos para construir um labirinto” (BORGES, 2011a, p.80), basta um labirinto para
construirmos uma memória – e consequentemente um espelho, pois o que é filtrado, ou
não, pela memória diz muito sobre nós mesmos (E eis mais um motivo do nosso apreço
pela visão de Samoyault).
Sendo assim, este capítulo, para além do já implícito primeiro subcapítulo com
algumas das breves reflexões teóricas descritas acima, seguirá uma divisão que poderá
ser vista tanto separadamente, como elementos constituintes da poética de GC, como
complementares – pequenas “engrenagens” da Máquina do Mundo (re)quebrada do
poeta. Por conta disso poderemos notar que os poemas analisados numa parte, às vezes
(em realidade: muitas vezes), bem poderiam estar “desfilando” em um momento
subsequente – ou anterior. Sim: A Máquina (do mundo e do poema) não para de girar.
Portanto, veremos a relação do Eu (lírico) e do Outro (sobretudo via Octavio
Paz) e tendo como o mediador de todo este contato, claro, o intertexto e a memória (da
literatura). Além da já citada Samoyault, destacaremos nesta parte também os textos do
poeta Paulo Henriques Britto, Poesia e memória (2000), e da professora Célia Pedrosa,
“Traços de memória na poesia brasileira contemporânea” (2000).
Em seguida, da necessidade de reconhecer no Outro a figura do Eu, ou vice e
versa – que vão sendo encontrados/perdidos através do tempo e da memória – será
explorada os vultos de Orfeu e Odisseu (Predominantemente. Embora algumas outras
personas da mitologia greco-romana acabem fazendo algumas participações especiais),
inclusive por meio da mistura, ou resgate, que ambos proporcionam no diálogo entre o
contemporâneo48 e o próprio clássico. Sobre o contemporâneo, recorreremos a Giorgio
Agamben; sobre o Clássico, recorreremos a Ítalo Calvino.
E após percorrermos o Eu/Outro, e personificarmos um pouco mais essa fusão
através de Orfeu/Odisseu, terminaremos nosso percurso na concretização de um Outro
(eu?) supostamente mais palpável – embora, paradoxalmente, tão perfeito e ludibriante
quanto qualquer espelho: Olavo Bilac, amado e/ou ironizado, mas indubitavelmente
essencial.

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De certa maneira este momento de discussão sobre o contemporâneo serve como complemento mais
direto ao primeiro capítulo – em que muito se falou da poesia contemporânea, mas praticamente nada do
contemporâneo em si.

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Em cada uma dessas paradas outros nomes (poéticos ou teóricos) irão,
certamente, sendo agregados. Sobre os teóricos, embora possa não ficar claro, um
apreço considerável pela visão fenomenológica – de Gaston Bachelard, Maurice
Blanchot e Mauro Maldonato. Sobre os poéticos, semelhantes aqueles depoimentos de
romancistas que contam que durante o ato da escrita de determinado romance “a
personagem tomou vida própria”, alguns nomes/temas acabaram se impondo mais fortes
que nós e pediram, caprichosamente, um capítulo à parte. É o caso da linguagem épica,
da paródia, e da figura de Camões, e do Capítulo 3, e da própria metalinguagem (“Eros-
dicção”, segundo o poeta) e da sombra do bardo inglês, William Shakespeare, no
Capítulo 4. E é claro: não conseguimos dizer não.
Mas, por agora, retornemos. Espelhos e labirintos – texto; textos; memória;
poesia poesia: Eppur si move.

2.2. Uma ou duas (todas ou nenhuma) palavrinhas sobre a Intertextualidade

Quando nos deparamos com algum material didático de língua portuguesa,


tanto do Ensino Fundamental quanto do Ensino Médio, é muito comum encontrarmos,
naquelas primeiras aulas introdutórias sobre a importância e/ou a noção do texto
(literário ou não), a lembrança de que a palavra texto tem origem no latim texere e que
essa possui como significado a ideia de construir, tecer, trançar – já o particípio textus,
utilizado como substantivo, por sua vezes, exprimiria “maneira de tecer” ou coisa
“tecida”49. Tal introdução normalmente é feita para lembrarmos aos alunos que a
concepção de texto nada mais é do que a costura, o coser, de palavras umas às outras.
Entretanto, quando saímos (se é que saímos...) da noção de texto e partimos para a de
intertextualidade, observamos que, na realidade, se estamos “tecendo” algo, isto é, uma
grande colcha de retalhos em que mal sabemos quem deu tal ou qual nó – e onde o
“tecer” confunde-se com um “colher”:

Se cada texto constrói sua própria origem (sua originalidade),


inscreve-se ao mesmo tempo numa genealogia que ele pode mais ou
menos explicitar. Esta compõe uma árvore com galhos numerosos,
com um rizoma mais do que com uma raiz única, onde as filiações se
dispersam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais. É
impossível assim pintar um quadro analítico das relações que os
textos estabelecem entre si: da mesma natureza, nascem uns dos

49
Dicionário Etimológico Online. Disponível em <https://goo.gl/8r3whz> e acessado em 25/02/2018.

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outros; influenciam uns aos outros, segundo o princípio de uma
geração não espontânea; ao mesmo tempo não há nunca reprodução
pura e simples ou adoção plena. A retomada de um texto existente
poder ser aleatória ou consentida, vaga lembrança, homenagem
explícita ou ainda submissão a um modelo, subversão do cânone ou
inspiração voluntária (SAMOYAULT, 2008, p. 9-10, grifo nosso)

Talvez o caso fosse, se isso não ocasionasse demais confusões para alunos do
segundo grau (e até para nós), afirmar que enquanto estamos “tecendo” um texto há
alguém, ao nosso lado, desfazendo todos os nós. E há também um outro alguém, do
outro lado, refazendo o trabalho desconstruído. No fazer e desfazer constante sobra
muito pouco (ou sobra absolutamente tudo e não damos conta do absoluto?) para
conseguirmos saber quem deu o primeiro nó, o último, e até mesmo quem está
realmente cosendo e quem está “descosendo” – inclusive, não raro, as funções também
entram em permuta. Mais que isso: no trabalho de tecer um texto, ao puxarmos um fio
para nossa agulha, diversas vezes estamos puxando fios alheios – e, claro, em outros
momentos, são os nossos próprios que estão sendo extraviados.
E é basicamente deste emaranhado de ligações que surgirá a primeira ideia do
conceito de intertextualidade. Foi a pesquisadora franco-búlgara Julia Kristeva, nos
anos 60 – através, primeiramente, de publicações na revista francesa Tel Quel – a
responsável pela criação e difusão do termo.
Retomando algumas das discussões desenvolvidas pelo russo Mikhail Bahktin50
em torno dos conceitos de dialogismo e polifonia, Kristeva aponta como “a palavra (o
texto) é um cruzamento de palavras (de textos) em que se lê pelo menos uma outra
palavra (texto)” sendo que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto
é absorção e transformação de outro texto [...]” (KRISTEVA, 1974, p.64). Se uma
palavra sozinha já é ambígua por si só (pensemos na palavra “manga”: que pode
representar tanto a fruta quanto a parte de uma simples camiseta), um conjunto de textos
tende a ser ainda mais ambíguo. Entretanto, para além das definições e significações
próprias das palavras, e dessas dentro do texto em que estão inseridas, elas também
estão dialogando incessantemente com diversos outros textos (que, por sua vez, também
estão dialogando com diversos outros textos). Tal constatação possibilitou deduzir uma
infinita reinvenção/repetição de temas, formas e conteúdo, e criar, assim, uma visão
50
Bakhitin não chegou a utilizar em nenhum instante, dentro de sua vasta obra, os termos
intertextualidade ou intertexto. E embora a definição de intertextualidade, de Kristeva, deva-se muito a de
dialogismo, de Bahktin, há certa divergência de opiniões acerca da diferenciação, ou não, entre os
conceitos. Entretanto, Samoyault esclarece que “o conceito de intertextualidade não é tão metodológico
quanto o de dialogismo” (SAMOYAULT, 2008, p. 22).

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dinâmica e repleta de entrecruzamentos numa rede inesgotável de conexões que
persistiria por dentro da trama textual.
Desta maneira, a grande contribuição de Kristeva esteve em definir e reforçar o
caráter intrinsicamente intertextual da descrição – seja no pensamento ou na análise – da
língua. Tanto em seu caráter sócio-histórico, quanto eu seu caráter específico e
fenômeno linguístico, consequentemente literário, encontramos na língua “o estatuto da
palavra como unidade minimal do texto” que “revela-se como mediador que liga o
modelo estrutural ao ambiente cultural (histórico)” e, assim, “como o regulador da
mutação da diacronia em sincronia (em estrutura literária)” (KRISTEVA, 1974, p. 64).
A palavra é, portanto, não apenas o nó que liga contextos, histórico-culturais diversos,
mas também o ponto de encontro de textos/tempos outros. Como já apontava o próprio
Bakhtin anteriormente:

Até que ponto a palavra pura, sem objeto, unívoca, é possível na


literatura? Uma palavra na qual o autor não ouvisse a voz do outro, na
qual houvesse somente ele, e ele por inteiro – tal palavra pode tornar-
se material de construção de uma obra literária? A qualidade de
objeto, em certo grau, não é a condição necessária de todo estilo? O
autor não se mantém sempre fora da língua que lhe serve de material
para a obra? O escritor (mesmo no lirismo puro) não é sempre um
“dramaturgo”, no sentido de que redistribui todas as palavras entre as
vozes dos outros, incluindo-se nelas a imagem do autor (assim como
as outras máscaras do autor)? (BAKHTIN, 1992, p. 337).

Essa ideia do estatuto plural da palavra na essência da língua, que podemos notar
que Kristeva desentranhou do mestre russo, predispõe a palavra numa ambivalente
dimensão erigida através do tripé “sujeito-destinatário-contexto” e onde “a linguagem
poética lê-se pelo menos como dupla” (KRISTEVA, 1974, p.64). Além de deslocar para
segundo plano a tradicional crítica das fontes que imperava até então – pautada por
aspectos biográficos e psicológicos – tal visão de Kristeva expandiu a dimensão
possível da compreensão do texto. E, sendo assim, esse estatuto da palavra passou então
a definir-se: 1) horizontalmente: a palavra no texto pertence simultaneamente ao sujeito
da escritura e ao destinatário; 2) verticalmente: a palavra no texto está orientada para o
corpus literário anterior ou posterior. Portanto, um espectro ronda o texto: o espectro de
um outro texto. E, com ele, toda as suas potencialidades históricas, sociais, culturais, e
inevitavelmente dialógicas – de outros, e outros, e outros textos.

100
O termo intertextualidade designa esta transposição de um (ou de
vários) sistema(s) de signos em um outro, mas já que esse termo tem
sido frequentemente entendido no sentido banal de “crítica das fontes”
de um texto, preferimos a ele o de transposição, que tem a vantagem
de precisar que a passagem de um sistema significante a um outro
exige uma nova articulação do tético – posicionamento enunciativo e
denotativo (KRISTEVA Apud SAMOYAULT, 1974, p. 60).

Do estatuto da palavra chegamos à ideia de transposição: a “simples” referência


a algo/alguém/alguma coisa (tudo isso através do texto) evidencia que esse algo está em
um lugar diferente daquele que deveria estar – ou, ao menos, que está adentrando um
outro “espaço” que não era o seu. Para Kristeva, aquilo que está fora do lugar é
referenciado como um sistema de signos complexos e a transposição é então percebida
no momento em que esse signo realiza a travessia, inevitável, entre sistemas
significativos. Desta forma, ao ocupar um novo lugar em determinado texto, este novo
signo, agora ressignificado, exige uma mudança na postura dos sujeitos envolvidos no
processo comunicativo, pois esses não estão sozinhos: a palavra, o texto, comunica-se
tanto no plano horizontal (emissor-destinatário) quanto no plano vertical (corpos
literários posteriores ou anteriores) e tudo isso concomitantemente.
Mas já avançando um pouco em tais questões, embora, no início, ainda muito
próximo das constatações de Kristeva, encontramos Roland Barthes – no artigo Théorie
du texte (1974), escrito para Encyclopaedia Universalis. Barthes inicia afirmando que a
questão da intertextualidade “não se reduz evidentemente a um problema de fontes ou
de influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem é
raramente localizável, de citações inconscientes ou automáticas, feitas sem aspas”
(BARTHES Apud SAMOYAULT, 2008, p. 24). A intertextualidade praticamente não
faz parte de uma intenção, ou não, do autor – ou da astúcia do leitor. Ela é um efeito
colateral inevitável da língua (é daí que podemos entender a posterior “Morte do Autor”
proposta pelo teórico francês. Não foi um assassinato, apenas uma constatação. No
máximo, oficialmente, uma certidão de óbito). Sendo assim, para Barthes, o texto é

tecido, inteiramente, com citações, referências, ecos, linguagens


culturais (qual linguagem não o é?), anteriores ou contemporâneas,
que o atravessam em uma vasta estereofonia. A intertextualidade em
que cada texto é organizado, sendo, ele mesmo, o entre-texto de outro
texto, não deve ser confundida com alguma origem do texto: tentar
encontrar as ‘fontes’, as ‘influências’ de uma obra, é cair no mito da
filiação; as citações que organizam o texto são anônimas, não podem
ser seguidas, e, ainda assim, são já lidas: são citações sem aspas
(BARTHES, 2004, p.70-71)

101
Consequentemente, cada autor acabaria por fazer uso do intertexto de forma
particular. Ou seja: construindo (tecendo) seu mosaico de citações, como já dizia
Kristeva, de forma especial e a fim de poder cunhar, deste modo, seu próprio discurso.
Contudo, de certa forma, como dito anteriormente, isso está fora de controle: o texto
pertence ao texto. Ou melhor: os textos pertencem a outros textos (e a literatura à
própria literatura – adiantando um pensamento da própria Samoyault). Mas é seguindo
essa abertura que o próprio Barthes ampliará suas constatações – ainda no mesmo ano
de 1973, em Le plaisir du texte:

Saboreio o reino das fórmulas, a derrubada das origens, a desenvoltura


que faz vir o texto anterior do texto ulterior. Compreendo que a obra
de Proust é, pelo menos para mim, a obra de referência, a mathesis
geral, a mandala de toda a cosmogonia literária [...] Proust [...] isso
não é uma “autoridade”, simplesmente uma lembrança circular. E isso
é bem o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito –
que este texto seja Proust, ou o jornal cotidiano, ou a tela de televisão:
o livro faz o sentido, o sentido faz a vida. (BARTHES apud
SAMOYAULT, 2008, p. 24)

A ideia do texto infinito, embora Barthes cite Proust, liga-se indefectivelmente a


Mallarmé e a sua concepção de O Livro51. A recusa de Barthes à designação das fontes
ou da origem intertextual, da qual o texto seria derivado, explica-se se tivermos em
mente que a intertextualidade está operando por dentro do texto como um processo
quase autônomo – seja pelo viés do autor; seja pelo viés do leitor. Seja para trás; seja
para adiante. Ainda em O Prazer do Texto, Barthes observa o processo intertextual
como “a inversão das origens, a desenvoltura que faz com que o texto anterior provenha
do texto ulterior”52 e que dá margem a uma memória circular: “E é bem isto o
intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito – quer esse texto seja Proust,
ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida”
(BARTHES, 2002, p. 45). O texto é “texto infinito”, com origem impossível de ser

51
Para Mallarmé, Le livre seria concebido como uma estrutura extremamente flexível que “conteria a
totalidade das relações existentes entre todas as coisas”. Esse livro utópico permitiria infinitas
possibilidades de leitura e seria a soma de todos os livros, configurando-se como a essência definitiva da
literatura.
52
Tal constatação é muito similar à que irá chegar Borges em seu famoso ensaio “Kafka e seus
precursores”: “No vocabulário crítico, a palavra precursor é indispensável, mas seria preciso purificá-la
de toda conotação de polêmica ou rivalidade. O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu
trabalho modifica nossa concepção do passado, assim como há de modificar o futuro” (BORGES, 2007a,
p.130)

102
demarcada, sempre em cruzamento – diacrônico ou sincrônico – com outros textos e
balançando a estabilidade da língua. Muito por isso que o texto, visto desta forma,
escapa da categoria de mera representação/imitação (mímesis) clássica. E, assim, “a
reflexão se estreita sobre a literatura e a referência a Proust funciona como uma medida
de leitura, ligada à memória e ao mergulho definitivo no universo dos textos”
(SAMOYAULT, 2008, p. 24)53.
De toda forma, embora Barthes caminhe numa corda bamba que oscila entre
classificações diretas e divagações (formidáveis) acerca da intertextualidade – o teórico
francês não possui nenhum livro específico sobre a questão da intertextualidade, embora
essa esteja disseminada, de um modo ou de outro, por toda a sua obra – ele dispõe uma
noção de leitura do texto construída através da escritura e da leitura, em que poderíamos
observar uma “intertextualidade de superfície (estudo tipológico e formal dos gestos de
retomada)” e uma “intertextualidade de profundidade” (estudo das numerosas relações
nascidas dos contatos dos textos entre si) (SAMOYAULT, 2008, p. 24-25). De certa
maneira, tais constatações, mais específicas no primeiro caso e mais amplas no segundo,
abrirão caminho para os teóricos que virão a seguir.
É o caso de Michael Riffaterre, tanto em La production du texte (1979) quando
em Sémiotique de la poésie (1983), que, calcado por algumas referências da estilística
(através da análise das figuras de linguagem de um texto), encaminha a discussão da
intertextualidade em paralelo à noção de recepção literária, pois o intertexto estaria
fundamentalmente definido através da percepção do leitor – tanto em relação a uma
obra anterior; quanto em relação a uma obra posterior.
Em seguida, o autor dispõe uma diferenciação entre intertexto e
intertextualidade, sendo o primeiro, para ele, “o fenômeno que orienta a leitura do texto,
que governa eventualmente sua interpretação, e que é o contrário da leitura linear”
(RIFFATERRE apud SAMOYAULT, 2008, p. 25), enquanto o segundo “uma categoria
de interpretância e designa qualquer índice, qualquer traço, percebidos pelo leitor, sejam
eles citação implícita, alusão mais ou menos transparente ou vaga reminiscência”
(RIFFATERRE apud SAMOYAULT, 2008, p. 25).
Poderíamos dizer, aproximadamente, que o intertexto seria a (constatação da)
referência em si (que nos faz “parar” a leitura por conta do resgate de um outro texto) e

53
Mas com o perdão de Barthes, e Proust, nós, assim como o nosso Belchior, que por força do destino
sabia que um “tango argentino/me vai bem melhor que um blues”, também sabemos que um escritor
argentino nos vai bem melhor que um francês. Obviamente (vide a citação anterior, além das diversas
referências a sua literatura durante o nosso trabalho): Jorge Luis Borges.

103
a intertextualidade o estudo, ou “interpretância”, dessa referência. Ou seja: “a
continuação da obra pelo leitor é uma dimensão importante da intertextualidade [...] e
pode ser considerada uma ‘anacronia’ que é da memória do leitor.” (SAMOYAULT,
2008, p. 26). Entretanto, como não poderia ser diferente, “o texto e o intertexto são
polos inseparáveis” (RIFFATERRE apud SAMOYAULT, 2008, p. 27).
Se pudermos então, muito brevemente – embora talvez também muito
precariamente –, resumir as contribuições dos autores citados até aqui, poderíamos dizer
que a Kristeva coube a criação e a popularização do termo, além da problematização de
questões bakhtinianas que ainda estavam em aberto (com os prejuízos ou não dos
termos utilizados); De Barthes o aprofundamento da concepção original de
intertextualidade, especialmente abrindo caminho para a sua circularidade e
predisposição ao inumerável e infinito; e de Riffaterre, propondo a diferenciação entre
intertexto e intertextualidade, além da análise das figuras de linguagens, mas, sobretudo,
dispondo forte carga de responsabilidade ao leitor no processo investigativo do texto.
Portanto, no breve percurso pela intertextualidade até aqui, ainda parecia faltar uma
obra que pudesse, ao mesmo tempo, discutir o inumerável universo da concepção
intertextual e, ainda sim, retirar um pouco mais de ordem desse caos.
E é o que apresenta Gérard Genette, em 1982, com Palimpsestes – la littérature
au second degré, pois embora acabe de “semear a confusão em torno do termo,
deslocando-o definitivamente da linguística para a poética”, também proporciona “um
trabalho decisivo para a compreensão e a descrição da noção, inscrevendo-a numa
tipologia geral de todas as relações que os textos entretêm com os outros textos”
(SAMOYAULT, 2008, p. 28). É notável que depois de Palimpsestos

os usuários da intertextualidade não podem mais utilizar impunimente


o termo: devem escolher entre sua extensão generalizante e
essencialmente dialógica (Bakhtin, mesmo que a aplicação incida
sobre análises poéticas) ou sua formalização teórica, visando atualizar
práticas (Genette) (SAMOYAULT, 2008, p. 28).

Uma visão histórico-cultural, em Bakhtin, um visão mais prática, estrutural, em


Genette. Mas, então, e em síntese, como estaria ligada a ideia do palimpsesto com a do
intertexto? O próprio Genette explica logo no início de sua obra:

Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada


para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode
lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido

104
figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente
hipertextos), todas as obras derivadas de uma outra obra anterior, por
transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que
se escreve através da leitura o lugar e a ação no campo literário
geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui
explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim
por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa à regra: ele
a expõe e se expõe a ela. Quem ler por último lerá melhor.
(GENETTE, 2006, p.7, grifo nosso).

O movimento intertextual está inserido na tarefa do infindável, assim como a


própria análise do processo. Mas embora admita que sua proposta teórica figure no
plano do provisório, Genette não deixa corajosamente de buscar um rigor e alicerçar
uma complexa arquitetura para as veredas textuais. Inclusive, em se falando de
arquitetura, as noções desenvolvidas em palimpsestos já eram elas mesmas um
desenvolvimento do que havia sido apresentado por Genette em Introduction à
l´arquitexte, de 1979. Para Genette o objeto da poética não seria apenas o texto, mas o
arquitexto (ou arquitextualidade do texto) e que poderia ser entendido como “o conjunto
das categorias gerais ou transcendentes – tipos de discurso, modos de enunciação,
gêneros literários, etc. – do qual se destaca cada texto singular” (GENETTE, 2010,
p.11). Dizendo de outra forma, a ideia de arquitextualidade englobaria todo texto
literário.
Contudo, como dito, Genette vai além e em Palimpsestos amplia este conceito
através da transtextualidade – e que seria “tudo que o coloca [o texto] em relação,
manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE, 2010, p. 11) – e que conteria a
própria arquitextualidade. E desenvolvendo ainda mais essas estruturas textuais, Genette
propõe cinco tipos de relações transtextuais – mas deixando claro que elas não
possuiriam definições estanques, fechadas, sendo comum a “invasão” de uma na outra e
de uma pela outra: 1) intertextualidade, 2) paratexto, 3) metatextualidade, 4)
hipertextualidade e 5) arquitextualidade.
A intertextualidade seria, basicamente, para Genette, a presença efetiva de um
texto em outro texto. Em realidade, o teórico fala em “co-presença” entre dois ou vários
textos. Os principais tipos de intertextualidade seriam: a citação, que “é imediatamente
identificável graças ao uso de marcas tipográficas específicas. As aspas, os itálicos, a
eventual separação do texto citado que distinguem os fragmentos emprestados”
(SAMOYAULT, 2008, p.49); o plágio (quando a referência ao outro texto não é
declarada); e a alusão (quando a relação entre os textos é perceptível), sendo “às vezes

105
exclusivamente semântica, sem ser intertextual propriamente dita [...] ela pode permitir
uma conivência entre o autor e o leitor que chega a identificá-la.” (SAMOYAULT,
2008, p. 50). Resumidamente, poderíamos dizer que estudar a intertextualidade seria,
portanto, analisar os elementos que se realizam dentro (inter) de determinado texto.
Já o paratexto, considerado pelo autor como “uma mina de perguntas sem
respostas” (GENETTE, 2010, p.14), seria a relação que um texto manteria com “textos
externos” como, ou através, do título; subtítulo; prefácio; posfácio; notas marginais;
epígrafes; ilustrações; etc. Em suma: tudo aquilo que estaria “ao redor” do texto (e,
portanto, se pode ser “tudo” aquilo que está ao redor do texto, sem dúvida, as
possibilidades são infinitas – muito provavelmente, por isso, perguntas sem respostas).
Por sua vez a metatextualidade poderia ser entendida como a interação de
comentário que une um texto a outro texto sem que o primeiro, em relação ao segundo,
necessariamente, tenha que “citá-lo (convocá-lo), até mesmo, em último caso, sem
nomeá-lo” (GENETTE, 2010, p. 15). Seria, de modo geral, a relação crítica por
excelência.
Na ordem de Palimpsestos, Genette adianta a quinta relação transtextual, a
arquitextualidade (e o motivo é simples: a hipertextualidade terá valor capital em
Palimpsestos). De toda forma, a arquitextualidade trataria da “determinação do status
genérico de um texto” que “não é sua [do autor], mas, sim, do leitor, do crítico, do
público, que podem muito bem recusar o status reivindicado por meio do paratexto”
(GENETTE, 2010, p. 15). O autor pode não evidenciar de qual gênero trata a obra –
pela obviedade dessa; para não acabar tendo o trabalho rotulado; ou qualquer outro
motivo. Contudo, o crítico, e o público/leitor, podem aceitar ou não a designação
“evidenciada” pelo autor.
E, finalmente, a hipertextualidade – que, como dito, terá importância central
em Palimpsestos. Embora possua afinidade óbvia com o conceito geral de
intertextualidade, a hipertextualidade irá propor ir um pouco além – tentando atingir
interações mais íntimas entre os textos (inclusive tendo o leitor, mais uma vez, como
mediador). “Entendo por hipertextualidade toda relação que une um texto B (que
chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do
qual ele brota de uma forma que não é a do comentário” (GENETTE, 2010, p. 16, grifo
do autor). Deste modo, podemos entender agora a diferenciação que Genette faz entre
intertextualidade e hipertextualidade: a primeira se faz através de uma relação de co-
presença (O texto A está presente no texto B), enquanto a segunda numa relação de

106
derivação (B retomando/transformando A). E especificando a importância da
hipertextualidade, podemos entendê-la como “um aspecto universal da literalidade: é
próprio da obra literária que, em algum grau e segundo as leituras, evoque alguma outra
e, nesse sentido, todas as obras são hipertextuais” (GENETTE, 2010, p. 18). Por
conseguinte

O longo e minucioso trabalho sobre a hipertextualidade desenvolvido em


Palimpsestes – este título remete ao manuscrito apagado e re-escrito que
deixa aparecer, em filigrana, vestígios variáveis do texto anterior – permite
em primeiro lugar esclarecer relações entre um texto presente e um texto
ausente, entre o atual e o virtual [...] o hipertexto remete desta maneira ao
texto ao mesmo tempo fragmentário e infinito (SAMOYAULT, 2008, p. 32).

A fragmentação e a infinitude do texto remete à própria advertência de Genette


para o caráter interativo entre as classes transtextuais, pois, por exemplo, a estrutura
arquitextual de algumas obras é indicada por elementos paratextuais que, por sua vez,
não deixam de ser uma forma de metatexto – o posfácio de um livro de poemas que
reforce a característica poética daquela produção, ao mesmo tempo que dialogue com
ela, transita por essas três classes54. Assim como as transformações, diretas ou indiretas,
possíveis do hipertexto, sendo elas, especialmente, a paródia, o pastiche e o
travestimento (ou disfarce burlesco).
Basicamente, a paródia, retomando a origem do termo – para, “ao lado”, mais
aoidé, “canção”, ou seja, canção/canto ao lado, paralelo –, e que teria, por isso, como
característica básica “cantar num outro tom: deformar, pois, ou transpor uma melodia”
(GENETTE, 2010, p. 27), possuiria três possibilidades: a aplicação de um texto nobre,
modificado ou não, a um diferente assunto, geralmente vulgar; a transposição de um
texto nobre para um estilo vulgar; e o emprego de um estilo nobre (epopeia) de uma
obra singular a um assunto vulgar ou não-heroico. Por sua vez, o pastiche seria, ao
contrário da paródia, que trabalha com a transformação, a imitação de um estilo
desprovida propriamente da função satírica. Já o travestimento, ou disfarce burlesco,
modificaria o estilo sem modificar necessariamente o assunto, pois ainda que na maioria
das vezes trate de temas consagrados, sua forma é vulgar, burlesca, aproximando-se dos
gêneros cômicos (ao contrário da paródia, que modificaria o assunto sem modificar o
estilo). Segundo Genette:

54
E é o que encontraremos no posfácio de por mares nunca dantes, de Carneiro – mas disso falaremos
apenas no Capítulo 3.

107
a paródia modifica o assunto sem modificar o estilo, e isso de duas
maneiras possíveis: seja conservando o texto nobre para aplicá-lo o
mais literariamente possível a um assunto vulgar (real e atual): é a
paródia estrita; seja forjando, por meio da imitação estilística um novo
texto nobre para aplicá-lo a um assunto vulgar: é o pastiche herói-
cômico (GENETTE, 2010, p. 33).

Sempre em direção a definições ainda mais precisas da hipertextualidade,


Genette predispõe ainda mais duas classificações: uma funcional e outra estrutural. A
primeira arranjar-se-ia em duas funções: as satíricas (paródia, travestimento e charge) e
as não-satíricas (pastiche); já a segunda estaria presa relações hipertextuais, onde a
paródia e o travestimento seriam dispostos como textos que manteriam uma relação de
transformação com o hipotexto, enquanto a charge e o pastiche figurariam como textos
de imitação. Genette também propõe uma terceira forma para as classificações
hipertextuais, acrescentando as ideias de transformações – ou transposição – e imitações
sérias, ou forjação – num total de seis grandes categorias de hipertextos.
Em realidade, a obra de Genette, e a articulação proposta pelo teórico francês,
acabam estabelecendo tantas redes e interconexões que, para além da ideia de
palimpsesto, em que a teoria e a exemplificação confundem-se, é perceptível o grande
labirinto teórico engendrado em tantas definições e categorizações. Tanto é que
optamos, aqui, apenas por salientar aqueles aspectos que julgamos mais relevantes a
nossa pesquisa, embora saibamos que as contribuições e conceituações que estão
presentes em Palimpsestos dispenderiam um capítulo, ou uma tese, à parte. Contudo,
como dito acima, embora não tenhamos o intuito de fazer um estudo sistemático de cada
um dos teóricos citados neste momento, isso não nos impede de resgatarmos algumas de
suas ferramentas – como as de Genette, que serão muito úteis nas análises poéticas
vindouras.
Se Genette expande ao mesmo tempo em que limita o estudo da
intertextualidade (ou, para ele, hipertextualidade) em Antoine Compagnon
encontraremos “uma preocupação menos teórica que crítica (no sentido em que ele não
se dedica simplesmente a descrever de modo formal fatos, mas procura também
interpretá-los” (SAMOYAULT, 2008, p. 35) com o surgimento, em 1979, de La
seconde main ou le travail de la citacion. A citação, prática intertextual dominante por
excelência, é “a reprodução de um enunciado (texto citado), que se encontra extraído de
um texto de origem (texto 1) para ser introduzido num texto de acolhida (texto 2)”
(SAMOYAULT, 2008, p. 35) – e que é exatamente o que acabou de acontecer aqui.

108
Compagnon adentra as particularizações desse mecanismo – tão corriqueiro que quase
deixa passar desapercebidas suas nuances, especificidades e finesses:

Quando cito, extraio, mutilo, desenraízo [...] A releitura a desliga do


que lhe é anterior e do que lhe é posterior. O fragmento escolhido
converte-se ele mesmo texto, não mais fragmento do texto, membro
de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro amputado [...]
não seria isso simplesmente reconhecer que, em um livro, há algumas
frases que leio e outras que não leio, variando a proporção entre as
duas, segundos os livros, segundos os dias? Mas as frases que leio,
aquelas que me prendem e que afixo no meu mostruário, com certeza
eu as cito (COMPAGNON, 1996, p. 13)

Transcrever este trecho, além de seu efeito catártico, é um salto vertiginoso por
dentro do mise em abyme da escrita/escritura (onde, durante alguns instantes, a citação
nos olha e nós olhamos de volta: ninguém pisca): “a citação é uma cirurgia estética em
que sou ao mesmo tempo o esteta, o cirurgião e o paciente” (COMPAGNON, 1996, p.
37). Mas o Frankenstein textual, ainda que assuste, e embora alcance sua autonomia, tal
qual o monstro de Mary Shelley, ele é muito mais piedoso para com o seu criador (que
também é criatura). Da arbitrária escolha do gesto depredativo das frases eleitas, tal qual
a criança com a tesoura e o lúdico recortar e colar, passando pelo grifo – traço, modelo
do recorte –, até chegar à colagem, à glosa, ao comentário, e finalmente à citação, é
preciso “enfatizar uma transferência exterior mais do que o diálogo” em que notamos
“marcas de uma passagem, de um empréstimo mais do que o processo de
transformação” (SAMOYAULT, 2008, p. 36). Além disso

Escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação,


graças a confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une
o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de
criação [...] Toda prática do texto é sempre citação, e é por isso que
não é possível nenhuma definição da citação. Ela pertence à
origem, é uma rememoração da origem, age e reage em qualquer
tipo de atividade com o papel. (COMPAGNON, 1996, p. 41).

A concepção do escrever como reescrever encontrará eco não apenas nos


estudos sobre intertextualidade como um todo, mas também nas postulações já feitas
por Barthes – e, posteriormente, na crítica desconstrucionista – através, mais uma vez,
da escritura. Compagnon, a exemplo de Riffaterre, mais uma vez amplia o papel do
leitor colocando-o no mesmo patamar do autor em se tratando de criação – podemos
considerar que a leitura do texto também é um ato de criação no sentido que exige do

109
leitor a invenção dos sentidos dispostos num texto. Se a obra literária é citação, e a
leitura está no mesmo patamar da criação, logo, a leitura também é citação – e, por
conseguinte, todo texto é citação. A ideia não é muito diferente daquela que já era
postulada anteriormente por Bakhtin ao dizer que “o falante não é um Adão bíblico, só
relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela primeira
vez” (BAKHTIN, 2006, p.300), pois falante/autor/leitor carregam consigo,
indefinidamente, as marcas de outros discursos. Mas a diferença parece estar em
Compagnon emoldurar esses diversos discursos possíveis através da citação e o fazer
por entendê-la como movimento físico (recortar, colar, grifar) e intelectual (aludir,
referenciar, citar) permeado de memória (concretas e afetivas). Portanto,
resumidamente, Compagnon estabelece quatro etapas – o autor fala em “figuras” –
básicas de leitura por dentro do movimento da citação: 1) ablação, 2) grifo, 3)
acomodação e 4) solicitação.
A primeira etapa, a ablação, possui o sentido de cortar, extrair, retirar – o que já
predispõe, portanto, uma escolha. É o Frankenstein referenciado anteriormente.
Complementando a ideia: “Porque minha leitura não é monótona nem unificadora; ela
faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o” e, sendo assim, “é por isso que, mesmo
quando não sublinho alguma frase nem a transcrevo na minha caderneta, minha leitura
já procede de um ato de citação que desagrega o texto e o destaca do contexto”.
(COMPAGNON, 1996, p. 13). O texto, tornado autônomo, também reverte o contexto
original da leitura – que passa a ser necessariamente outro, ou seja, também autônomo.
Já o grifo denuncia “uma etapa de leitura, é um gesto recorrente que marca, que
sobrecarrega o texto com o meu próprio traço” e “é a prova preliminar da citação [...]
toda citação é primeiro uma leitura – assim como toda leitura, enquanto grifo, é citação”
(COMPAGNON, 1996, p.19). O grifo, portanto, denunciaria um movimento duplo,
leitura e citação, e já é, por si só, significativo enquanto função criadora e mais do que
mero exercício de leitura – antecedendo a citação e, por conseguinte, a escrita.
E justamente a acomodação estaria neste ato de reconhecimento do leitor na
leitura, pois

Dentre as numerosas definições em torno da citação, proporemos esta:


a citação é um lugar de acomodação previamente situado no texto. Ela
o integra em um conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia
das competências requeridas para a leitura; ela é reconhecida e não
compreendida, ou reconhecida antes de ser compreendida. Nesse
sentido, seu papel é inicialmente fático, de acordo com a definição de

110
Jakobson: – Estabelecer, prolongar ou interromper a comunicação,
[...] verificar se o circuito funciona (COMPAGNON, 1996, p. 23).

Ao falar da solicitação, o estudioso questiona o que faria o leitor parar diante de


determinado trecho de um livro – afirmando, assim, que a solicitação é anterior à
citação: “é uma comoção total e indiferenciada do leitor, um encantamento que precede,
compreende e oculta a atribuição para si mesma de uma causa” (COMPAGNON, 1996,
p. 24). Compagnon ainda diz que a solicitação, porém, não é feita pelo livro ou por
quem o lê, mas por um encontro casual. Portanto, ela estaria unida ao desejo do leitor
através do trecho ou da palavra extraída do texto – e tendo possibilidade de ser
eternizada por esse desejo.
E essa visão mais ampla de Compagnon, de um único elemento, e
enganosamente tão simples, gerou (ou apenas ampliou?) um paradoxo nos estudos
intertextuais, pois apresentou “não somente uma restrição progressiva de sua definição
mas também, concomitantemente, uma flexibilização cada vez maior de seu uso”
(SAMOYAULT, 2008, p. 38). Contudo, isso não proporcionou a banalização do termo,
como destacou Laurent Jenny no texto “La stratégie de la Forme”, publicado na revista
francesa Poétique em 1976: “herdamos um termo ‘banalizado’ e cabe-nos torná-lo tão
pleno de sentido quando possível” (JENNY apud SAMOYAULT, 2008, p. 39).
Nesta perspectiva, os esforços dispostos para a compreensão da intertextualidade
não caminharam para a definição específica, ou definitiva, do conceito, embora
trabalhos como o de Genette e o de Compagnon possam ter dado tal impressão, mas, ao
contrário, expandiu suas perspectivas no sentido de mostrar a amplidão tanto nas
matrizes “macrotextuais” (pensando em Genette e na arquitextualidade e
hipertextualidade); quanto nas “microtextuais” (agora pensando em Compagnon e na
citação – que desdobra-se em diversos mecanismos). Poderíamos dizer, aproveitando
um diálogo com a ciência e a Física, que os estudos sobre a mecânica celeste
(movimento dos astros) e os da Física Quântica (átomos e núcleos subatômicos) acabam
por caminhar juntos, pois uma perspectiva está intimamente ligada ao desenvolvimento
da outra, assim como as questões mais gerais do intertexto (Kristeva, Barthes,
Riffaterre) ou as mais específicas (Genette e Compagnon).
Sendo assim, no caminho de mais uma abertura, embora sem dispor do rigor que
já havia assumido o campo, Jenny define o intertexto como aquele texto que “fala uma
língua cujo vocabulário é a soma dos textos existentes” e, por conta disso, “Fora da

111
intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal qual
como a palavra duma língua ainda desconhecida” (JENNY apud SAMOYAULT, 2008,
p. 39).
Pensando o intertexto enquanto língua – o que retoma de certa forma as
primeiras impressões de Kristeva – o pensamento de Jenny irá residir, como já está
explícito no título do seu texto, sobre a análise das formas por dentro de um texto (o
autor utilizada o termo “enxerto” intertextual para reforçar a ideia de inevitável
acréscimo), mas diferenciando a intertextualidade implícita, que “condiciona o uso do
código”, da explícita, isto é, da intertextualidade “presente no nível do conteúdo formal
da obra” (JENNY, 1979, p.6) – mais uma vez remetendo ao conceito de dialogismo de
Kristeva via Bakhtin.
Laurent Jenny propõe, portanto, duas classificações para uma poética da
intertextualidade: através de suas figuras (retóricas, de linguagem), ou seja: o conteúdo
formal da obra; e através de suas ideologias, condicionante para o uso do código. No
modelo desse último caso, através do levantamento que o primeiro proporciona,
poderíamos observar, por exemplo, que

- a paranomásia consiste em retomar um texto segundo as


sonoridades, mas sem conservar sua grafia;
- a elipse é a retomada truncada de um texto anterior;
- a ampliação consiste em transformar o texto original “mediante
desenvolvimentos de suas virtualidades semânticas”
- a hipérbole é a transformação de um texto por expansão e dilatação
formais;
- a intervenção consiste em inverter os valores das frases retomadas ou
citadas, como ocorre em Poiésis, em que as proposições de Pascal ou
de Vauvenargues são sistematicamente reviradas;
- a mudança de nível de sentido consiste em retomar um termo
mudando seu nível de sentido, num novo contexto (retomada literal de
um elemento simbólico e alegórico ou o inverso)
(SAMOYAULT, 2008, p. 40)

A análise de tais figuras completa-se apenas quando disposta também através da


visão cultural/ideológica – memória do tempo e do sujeito. Jenny percebe que critérios
estruturais podem servir para provar um fato intertextual. Mas há um problema a ser
resolvido: confirmar se o fato intertextual deriva do uso do código ou se ele é a própria
matéria da obra (como ocorre em textos metalinguísticos). Sendo assim

O que caracteriza a intertextualidade é introduzir a um novo modo de


leitura que faz estalar a linearidade do texto. Cada referência

112
intertextual é o lugar duma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo
apenas no texto um fragmento como qualquer outro, que faz parte
integrante da sintagmática do texto – ou então voltar ao texto-origem,
procedendo a uma espécie de anamnese intelectual em que a
referência intertextual aparece como um elemento paradigmático
“deslocado” e originário duma sintagmática esquecida [...] Sejam
quais forem os textos assimilados, o estatuto do discurso intertextual é
assim comparável ao duma super-palavra, na medida em que os
constituintes deste discurso já não são palavras, mas sim coisas já
ditas, já organizadas, fragmentos textuais. (JENNY, 1979, p. 21-22)

Jenny observa que todo texto é constituído por “arquétipos – por sua vez
abstraídos de longas séries de textos, de que constituem, por assim dizer, a constante”
(JENNY, 1979, p.5). Isto significa que todo texto se relaciona com outros textos, outros
enunciados já dotados de significação, daí a “super-palavra” intertextual.
E se falando em arquétipos e “super-palavras”, também a psicanálise contribuiu
para os estudos intertextuais. Voleurs de mots, de 1985, de Michel Schneider “utiliza a
psicanálise para apreender as relações constituintes do eu e do outro na atividade de
leitura-escritura” (SAMOYAULT, 2008, p. 41).
Em mais de quinhentas páginas, Schneider divide sua reflexão em três partes: “O
roubo das palavras”, “o comunismo das ideias” e “a apuração da escrita”. Mas, de forma
geral, o grande questionamento do psicanalista durante o extenso livro é até que ponto o
texto literário seria, realmente, uma criação – haja vista que a apropriação de textos ao
longo da histórica confunde-se com a própria criação textual.
E, por conta disso, a noção de plágio ser mais fundamental em seu trabalho do
que a de autoria. Sendo assim, a intertextualidade não poderia ser outra coisa que não
uma forma de plágio, “um procedimento de escritura como outro qualquer”
(SCHNEIDER, 1999, p.59) – a literatura, enquanto recriação, assim como a transcriação
e a variação, estariam distante do plágio criminoso que omite as fontes. Mas na
literatura, de modo geral, não haveria como chegarmos a uma fonte (na esteira de
Barthes e Bakhtin).
Daí que a relação entre autor e leitor confunde-se ainda mais – assim como a do
eu e Outro e toda as potencialidades que possam emanar da alteridade. O texto é um
reflexo do ser humano (se foi criado por ele, não poderia ser diferente – Deus não teria
nos criado a sua própria imagem e semelhança também?) e, assim, poderíamos nos
indagar (e até constatar)

113
De quê é feito um texto? Fragmentos originais, reuniões singulares,
referências, acidentes, reminiscências, empréstimos voluntários. De
quê é feita uma pessoa? Pedações de identificação, imagens
incorporadas, trações de caracteres assimilados, o todo (se se pode
dizer assim) formando uma ficção chamada eu (SCHNEIDER
SAMOYAULT apud, p. 41)

No atrito preexistente entre as minhas palavras – que não são nunca,


necessariamente, “minhas” – reflete-se o choque entre o eu e o Outro, intermediado pela
identidade, fragmentária, e, obviamente, pelos labirintos da memória que também é
criação (e por isso retalhos), pois “a própria memória é uma forma de imaginação, uma
ficção que reescreve os vestígios deixados, enquanto a imaginação, por mais criativa
que seja, procede da lembrança daquilo que não se produziu”. (SCHNEIDER, 1999, p.
19) – autor e outro, em francês, auteur e autre. Em literatura: eu, mas sempre nós.
Em suma, e finalmente, Schneider afirma que “cada livro é o eco dos que o
anteciparam ou o presságio dos que o repetirão” (SCHNEIDER, 1999, p. 19). Sendo
assim, voltamos a La Bruyère e Lautréamont: talvez ambos estejam certos, pois ambos
disseram a mesma ideia – e que é completamente diferente.
Mas todo esse nosso rápido percurso por diversos nomes que trataram do
intertexto buscou, sem grandes pretensões, desenhar o desenvolvimento que o tema foi
encarando ao longo do tempo – especialmente na crítica francesa. Obviamente que
trazer tantos nomes, com abordagens tão diversas, ainda que possua a vantagem de
aplicar nosso escopo teórico, também corre o risco de inferir visões limitadas sobre
teorias tão vastas.
Entretanto, como dissemos na introdução deste capítulo, buscamos recortar (e
depois de Compagnon nunca mais será possível usar este termo de maneira impune),
com o máximo de cuidado possível e sem o prejuízo metonímico de perder o todo em
detrimento da parte, aqueles aspectos que seriam, de alguma forma, utilizados
(explicitamente ou não) nas análises subsequentes dos poemas de Geraldo Carneiro (que
será o nosso passo seguinte). Mas, antes disso, e além disso, procuramos encontrar
também os pontos que em cada um desses teóricos parecem ter servido de base para a
confecção da ideia de memória da literatura de Tiphaine Samoyault.
A proposta de Samoyault está metaforicamente contida no postulado – um tanto
quanto mallarmaico; muito borgiano – de que o universo é uma biblioteca e de que, por
conta disso, o principal assunto da literatura é ela mesma, pois

114
A literatura se escreve como a lembrança daquilo que é, daquilo que
foi. Ela exprime, movimentando sua memória e a inscrevendo nos
textos por meio de um certo número de procedimentos de retomadas,
de lembranças de reescrituras, cujo trabalho faz aparecer o intertexto.
Ela mostra assim sua capacidade de se constituir em suma ou em
biblioteca e de sugerir o imaginário que ela própria tem de si. Fazendo
da intertextualidade a memória da literatura, propõe-se uma poética
inseparável de uma hermenêutica: trata-se de ver e de compreender do
que ela procede, sem separar esse aspecto das modalidades concretas
de sua inscrição (SAMOYAULT, 2008, p. 47)

Nas tomadas e retomadas das diversas abordagens sobre o intertexto que foram
expostas aqui, podemos observar um movimento por entre dois polos (exemplificados
acima por Samoyault): 1) a compreensão da intertextualidade enquanto aspecto textual
amplo, repleto de singularidade e abstrações, em que pese a reflexão do conceito de
intertextualidade e não necessariamente as suas ferramentas; 2) os mais diversos
mecanismos (linguísticos, retóricos, textuais) de retomada que são utilizados para
concretizar o intertexto.
Mas, como destacado por Samoyault, e observado nas teorias dispostas
anteriormente, é impossível pensarmos a intertextualidade de forma plural sem o tráfego
por entre esses dois pontos – e, na realidade, embora vejamos teóricos que fiquem mais
num ou noutro ponto (por exemplo: Barthes no primeiro e Genette no segundo), a
questão é que as posturas confundem-se. Ou seja: é impossível pensar “uma poética
inseparável de uma hermenêutica” quando se trata do intertexto.
Além disso, parece ser que a junção dessas duas posturas estão intimamente
ligadas à dinâmica da memória, pois se ela é a mediadora fundamental do intertexto, a
literatura acaba por reafirmar “sua capacidade de se constituir em suma ou em
biblioteca e de sugerir o imaginário que ela própria tem de si”. Como a própria
Samoyault irá ressaltar mais adiante, enxergamos (e enxertamos) “na literatura apenas
um espelho da literatura, no qual ela se reflete sem cessar” (SAMOYAULT, 2008, p.
72) e que “poderíamos assim enunciar sob forma de pleonasmo: a literatura só existe
porque já existe a literatura. Um outro ainda: o desejo da literatura é ser literatura”.
(SAMOYAULT, 2008, p. 74).
Sendo assim, se a literatura é um espelho da própria literatura, e o universo uma
grande e infinita biblioteca, logo, nada deve escapar do intertexto – e, por consequência,
da memória.

115
Desde a origem, a literatura está duplamente ligada à memória. Oral,
ela é recitada, seus ritmos e suas sonoridades são organizados de
maneira que se inscrevam por muito tempo na memória [...] Em
seguida, mas quase simultaneamente, a literatura, continuando a
carregar a memória do mundo e dos homens (se não fosse pela forma
de testemunho), inscreve o movimento de sua própria memória.
(SAMOYAULT, 2008, p. 75)

Da figura da deusa Mnemosyne, passando pela própria construção textual da


Ilíada, de Homero – repleta de repetições como “glorioso Heitor, domador de cavalos”,
“divino Aquiles, de pés velozes” ou “Odisseu, herói de mil ardis” – reverbera a
necessidade intrínseca da lembrança e da memória tanto do texto literário, quanto do
próprio ser humano. Utilizando mais uma vez a Ilíada como exemplo, na descrição do
escudo de Aquiles presente no Canto XVIII, versos 470-617, topamos com o
cruzamento da memória da literatura e do mundo: ali encontramos a
representação/descrição de diversos momentos da vida humana, até ali conhecida, e do
mundo grego. A obra literária descreve um mundo ou um mundo descreve a obra
literária?55 Dificilmente uma resposta possa existir sem a outra – assim como, para nós,
a visão de La Bruyère sem a de Lautréamont e vice e versa. Até mesmo quando a
literatura

se esforça para cortar o cordão que a liga à literatura anterior, quando


ela reivindica a transgressão radical ou a maior originalidade possível
(ser sua própria origem), a obra põe em evidência esta memória, já
que, aliás, se separar de alguma coisa é afirmar sua existência
(SAMOYAULT, 2008, p. 75)56

55
Embora esta não seja uma visão consensual, como podemos observar no Dicionário de Termos
Literários de Massaud Moisés – que opta por ver no escudo do herói mítico, além do perfeito exemplo de
écfrase, uma “écfrase imaginária, sem realidade histórica”. Diz o crítico: “O escudo de Aquiles, descrito
por Homero na Ilíada (c. 18, v. 470-167) tem sido considerado tradicionalmente um exemplo acabado de
écfrase. Écfrase imaginária, sem correspondente na realidade histórica ou na pintura, a sua fabricação por
Hefaísto é narrada nos mínimos detalhes [...] Como se vê, aí se encontram três características peculiares à
écfrase: 1) ‘uma descrição em movimento’; 2) ‘um quadro destacável e reproduzível’ [...]; 3) ‘é a
metáfora em grau zero, a ponto de se poder analisá-la como ‘a antimetáfora por excelência’” (MOISÉS,
1974, p.135-136). É claro que podemos entender a relação imaginária/sem realidade histórica como a
interpretação do objeto não existir (ao menos não concretamente e comprovadamente) no mundo real. Por
outro lado, o termo “sem realidade histórica” pode acabar soando ambíguo, pois também pode ser
compreendido como sem lastro nenhum com a história do mundo grego – o que não é, em absoluto,
verdade, pois ainda que o mundo ali descrito não seja uma correspondência do real, ele não deixa de ser
uma leitura do mundo grego feito, obviamente, através do mundo grego (o que o faz, necessariamente,
componente pré-existente para a interpretação de uma realidade).
56
Essa negação que acaba por se fazer afirmação pode ser encontrada, por exemplo, em alguns aspectos
da Poesia Marginal em relação à Poesia Concreta – como vimos no Capítulo 1 – e da paródia em relação
ao texto parodiado – como veremos no Capítulo 3.

116
Através dessa visão, Samoyault estabelece que na relação contraditória, embora
inseparável, entre a referência (a literatura referindo-se a si mesma) e a refencialidade
(o liame entre a literatura e o mundo) está a “ausência de inteligibilidade de um e do
outro. Desde então, o fim a que se propõe a literatura não parece o de se constituir como
reflexo do mundo, mas de sublinhar que sua inteligibilidade, cuja percepção é sempre
adiada” (SAMOYAULT, 2008, p.102). O intertexto, na maioria das vezes, caminha
indiscriminadamente por entre os espaços da referência e da refencialidade.
Podemos pensar que a citação, por exemplo, em seu sentido mais direto, seria a
importação de um fragmento do real, pois embora seja texto ele também subsiste no
mundo (fisicamente, enquanto objeto, livro, tela de computador, etc.). Tal fato permite
sairmos da aparente barreira entre a referência e a refencialidade, literatura e mundo,
pois “a intertextualidade reúne estas duas propriedades opostas” e “O recurso a
intertextualidade aparece então como meio essencial para a literatura construir esta
diferença, marcar a extensão de seu universo (SAMOYAULT, 2008, p.103).
Na percepção da intertextualidade como recurso paradoxal que marca tanto a
diferença quanto a fusão da literatura com o mundo, Samoyault propõe uma “teoria da
referencialidade” (em francês através do neologismo “référencialité”) e que
“corresponderia bem a uma referência da literatura ao real, mas mediada pela referência
propriamente intertextual” (SAMOYAULT, 2008, p. 108). Em outras palavras, na
mediação do texto literário com o mundo, devemos considerar que

Se é verdade que não lemos a literatura unicamente por ela mesma,


mas também por aquilo que ela nos diz e nos revela do mundo, e
continua também sendo verdade que seus enunciados não remetem a
ele diretamente. Eles provêm de fato de um discurso que tem suas
regras, suas convenções e que permaneceu nisso heterogêneo à
realidade (SAMOYAULT, 2008, p.111)

Da memória lúdica, passando pelos jogos de erudição (do autor ou do leitor),


poderíamos encontrar, segundo Samoyault, ao menos três tipos de intertextualidade: a
substitutiva, onde “Diante da dificuldade de dar conta do mundo enquanto tal, o
escritor recorre à biblioteca” (SAMOYAULT, 2008, p.112) – as referências à própria
literatura; a aberta, em que “permite ver nos textos, além de seus próprios caracteres,
signos do mundo: sem serem diretamente referenciais, estes remetem ao mundo como
generalidade, à história, ao social” (SAMOYAULT, 2008, p.113) – a citação, por
exemplo, enquanto objeto real (existente no mundo físico); e a integrante, sendo onde

117
apresenta-se “provisoriamente o mundo para que [este] seja lido ao vivo”
(SAMOYAULT, 2008, p. 113) – a colagem, em que se recorte o real para dentro do
textual. A crítica ainda destaca três tipos de relações do autor com a biblioteca (em
detrimento da visão de A Angústia da Influência, de Harold Bloom, pois, na visão de
Samoyault, não há, necessariamente, a tentativa de superação do “pai poético”. Muitas
vezes prevalece, apenas, o jogo com a biblioteca): a) Admiração: imitar os bons
autores antes; b) Desenvoltura: A biblioteca é convocada da mesma maneira que seu
próprio pensamento; c) Denegação: O novo deforma o antigo; d) Subversão: “As obras
que se afastam voluntária e radicalmente de toda memória, que recusam a biblioteca,
são muito raras e há quase sempre na preocupação de afastamento uma denegação que
valoriza a contrário o modelo” (SAMOYAULT, 2008, p. 135).
A proposta de referencialidade de Samoyault poderia ser vista através do jogo da
referência como um lugar intermediário entre o texto e o mundo, encontrando seu
sentido do lado de uma totalidade – que incluiria um e outro. Com tal apanhado, a
crítica francesa espera retirar uma visão do texto literário que apoie uma memória da
literatura através da intertextualidade, pois se “a literatura sempre privilegiou o sentido
em relação à forma ou o assunto, a retomada pode ser um aspecto de sua definição”
(SAMOYAULT, 2008, p. 123) – o que faria, portanto, toda literatura “de segunda mão”
(Compagnon) ou “de segundo grau” (Genette) e

os estudos intertextuais substituíram a sucessão pelo movimento,


substituíram a fixidez dos encadeamentos histórico-lógicos pelo
estudo da circularidade dos liames entre os enunciados. Os textos não
são aí atribuídos a um lugar fixo, contrariamente ao que tentam
estabelecer o cânone e a instituição literária (SAMOYAULT, 2008,
p.138).

O estudo do texto literário através da intertextualidade possibilitaria uma


abertura para diversas visões e propostas de análises, valendo-se da ideia de que a
biblioteca possuía tamanho poder sobre o texto que, por exemplo, o passado deve
sempre ser reconsiderado através do novo assim como o presente ser avaliado a partir
do antigo – mais uma vez: memória e movimento, aspectos fundamentais dessa visão,
onde “a citação clássica repousaria sobre uma hierarquia, [e] a citação moderna
funciona no modo de interação” (SAMOYAULT, 2008, p. 136) – como veremos,
doravante, nas análises. Desta forma

118
aqui [na intertextualidade] as questões de anterioridade e de influência
não contam mais; só importa a possibilidade que oferece a
intertextualidade de mostrar como se constitui, em profundidade, em
espessura e em tempo, um estilo ou uma linguagem. É assim que se
medirá plenamente o que se poderia chamar, para concluir este estudo,
o efeito palimpsesto, ou seja, o efeito difração, na obra, de um brilho
particular emanando do intertexto e que prolonga um no outro
(SAMOYAULT, 2008, p. 139).

Finalmente, após a análise nos meandros da literatura envolta no entrelaçamento


da memória e do intertexto, Samoyault conclui que a intertextualidade seria muitas
vezes mal amada devido à descoberta do “monstro de uma totalidade que atemoriza ou
que faz dela a companheira servil de um estruturalismo abusivo, que isola
definitivamente a literatura do mundo” (SAMOYAULT, 2008, p. 143). Ainda, a crítica
reafirma a constatação de que “a memória da literatura atua em três níveis que não se
recobrem jamais inteiramente: a memória trazida pelo texto, a memória do autor e a
memória do leitor” (SAMOYAULT, 2008, p. 143).
Por essas junções de memórias, que funda e faz emergir a intertextualidade,
poderíamos intuir, além de uma teoria ampla, um método (em constante movimento e
interação) que, no mais das vezes, nos aparece repetitivo, autofágico, como se tantas e
diversas reflexões semelhassem um andar em círculo e redizer o que foi (ou não?) dito;
redito – tal qual essas linhas: que disseram (quase) tudo ou (quase) nada.
E fechamos.

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