Ana Bárbara Martins Pedrosa Escritoras Portuguesas e Estado Novo: As Obras Que A Ditadura Tentou Apagar Da Vida Pública PDF
Ana Bárbara Martins Pedrosa Escritoras Portuguesas e Estado Novo: As Obras Que A Ditadura Tentou Apagar Da Vida Pública PDF
Ana Bárbara Martins Pedrosa Escritoras Portuguesas e Estado Novo: As Obras Que A Ditadura Tentou Apagar Da Vida Pública PDF
Florianópolis
2017
ANA BÁRBARA MARTINS PEDROSA
ESCRITORAS PORTUGUESAS E ESTADO NOVO:
AS OBRAS QUE A DITADURA TENTOU APAGAR DA VIDA PÚBLICA
COMISSÃO JULGADORA:
__________________________________________________________________
Maria Bernardete Ramos Flores (Orientadora e Presidente) – Universidade Federal de Santa
Catarina
_______________________________________________________________
João Teixeira Lopes (Co-orientador) – Universidade do Porto, Portugal
_______________________________________________________
Maria Teresa Santos Cunha – Universidade do Estado de Santa Catarina
__________________________________________________________________
Élio Cantalício Serpa – Universidade Federal de Goiás
________________________________________________________
Patricia Peterle Figueiredo Santurbano – Universidade Federal de Santa Catarina
________________________________________________________
Cristina Scheibe Wolff – Universidade Federal de Santa Catarina
________________________________________________________
Maria de Fátima Fontes Piazza – Universidade Federal de Santa Catarina
________________________________________________________
Caroline Jacques Cubas (suplente) – Universidade do Estado de Santa Catarina
__________________________________________________________________
Luzinete Simões Minella (suplente) – Universidade Federal de Santa Catarina
In this work, we intend to analyze the works of the Portuguese female writers
that were censored during the New State (1933-1974), understanding both what
led to those prohibitions and the places those works have in Portuguese society
and in literary history. With this, we hope to be able to study the conditions of
the production of those works as well as the reception they had. We intend to
recover this group of authors as historical subjects, reinstating in history the
works that the dictatorship tried to eradicate or even the authors it tried to
boycott. We will proceed to that rescue here, analyzing the role of the
authors/works in the canon, whether they belong to it or not, as well as the
action of the censorial mechanisms that lead to that allegiance or absence.
1. Introdução......................................................................................................1
3. Maria Archer…………………………………………………...…………68
3.1. Dados biográficos……………………………………………………...………..68
3.2. Maria Archer na literatura portuguesa……………………………......………70
3.3. Ida e volta duma caixa de cigarros (1938)………………………….........…80
3.3.1. Ida e volta duma caixa de cigarros (1937)……………...…………..……83
3.3.2. Cai no mar a gota de água (1936)……………………….……………..….89
3.3.3. Recepção/Censura de Ida e volta duma caixa de cigarros…………..….99
3.4. Casa sem pão (1947)……………………………………………………....102
3.4.1. Recepção/Censura de Casa sem pão……….………………………...…106
3.5. Conclusões…………………………………...……………………...…..119
4. Carmen de Figueiredo…...…………………….………......…………….122
4.1. Dados biográficos………………………...……………………………..122
4.2. Carmen de Figueiredo na literatura portuguesa…...………....…………123
4.3. Famintos (1950)…………………………………………………...…....126
4.3.1. Recepção/censura de Famintos…………...……………..……………129
4.4. Vinte anos de manicómio! (195-)..........………………………...............134
4.4.1. Recepção/censura de Vinte Anos de Manicómio!...……………….......139
4.5. Conclusões.........................………...........................................................148
5. Maria da Glória.........................................................................................151
5.1. Dados biográficos.....................................................................................151
5.2. A Magrizela (1962)..................................................................................151
5.2.1. A Magrizela: o que terá levado à censura?...........................................160
6. Nita Clímaco..............................................................................................163
6.1. Dados biográficos.....................................................................................163
6.2. Falsos preconceitos (1964)......................................................................164
6.2.1. Recepção/censura de Falsos preconceitos............................................167
6.3. Pigalle (1965)...........................................................................................171
6.3.1. Recepção/censura de Pigalle................................................................174
6.4. O adolescente (1966)...............................................................................177
6.4.1. Recepção/censura de O adolescente......................................................178
6.5. Conclusões...............................................................................................180
7. Natália Correia..........................................................................................183
7.1. Dados biográficos....................................................................................183
7.2. Natália Correia na literatura portuguesa...................................................189
7.3. A censura..................................................................................................196
7.3.1. Comunicação (1959)………………………….............................……200
7.3.1.1. Introdução………………………………............…………………..200
7.3.1.2. Comunicação: a reclamação da liberdade para a poesia…................203
7.3.1.3. Recepção/censura de Comunicação…………........................………..205
7.3.2. O Homúnculo (1965)…………………………...................….....…….210
7.3.2.1. Introdução……………………………..........................……………210
7.3.2.2. O Homúnculo: um anão e um reinao……….................…………….211
7.3.2.3. Recepção/censura de O Homúnculo………….....................………….215
7.3.3. A Antologia de Poesia Erótica e Satírica (1965)………......................216
7.3.3.1. Introdução…………………………………………….....…………..216
7.3.3.2. Recepção/censura de A Antologia de Poesia Erótica e Satírica.......219
7.3.4. O Vinho e a Lira (1966)……...……………………………...........…..224
7.3.4.1. Introdução………………………...………………………...………225
7.3.4.2. Três poemas para três motivos…………...……..........................…..226
7.3.4.3. Recepção/censura de O Vinho e a Lira………...............................….230
7.3.5. A Pécora (1967)……………………………...............…….........……232
7.3.5.1. Introdução……………………………………………...……..……..232
7.3.5.2. A Pécora: romper os dogmas religiosos………….......................….234
7.3.5.3. Recepção/censura de A Pécora……….........................................….245
7.3.6. O Encoberto (1969)……………………..........……………...………..246
7.3.6.1. Introdução……………………………....................................……..246
7.3.6.2. O hibridismo de fronteiras…………….............................…………248
7.3.6.3. O pessimismo…………………………………......……...…………254
7.3.6.4. O messianismo……………………………….......……...………….257
7.3.6.5. Recepção/censura de O Encoberto…………………........................…262
7.4. Conclusões………………………………………………………………268
8. Fiama H. P. Brandão…………………...……….….............……………270
8.1. Dados biográficos………………………….....………………................270
8.2. Fiama na literatura portuguesa………………….....................................271
8.3. Informação da PIDE…………………………........………………….....276
8.4. O Testamento (1962)................................................................................279
8.4.1. O Testamento: razões da proibição.......................................................294
8.5. O Museu (1965)........................................................................................296
8.5. O Museu: razões da proibição………………...............................…………300
8.6. A Campanha, O Golpe de Estado, Diálogos dos Pastores e Auto da
Família….........................................................................................................302
8.6.1. A Campanha (1965)…...........................…………………………...……..302
8.6.1.1. Recepção/censura de A Campanha……...................................………309
8.6.2. O Golpe de Estado……………………................................................…311
8.6.2.1. Recepção/censura de O Golpe de Estado….............................………318
8.6.3. Auto da Família (1964)…………………...………….........………….319
8.6.3.1. Recepção/censura de Auto da Família………..................................323
8.6.4. Recepção/censura da obra………...……………....................……………325
8.6.5. Relatório completo……………………...........................................……..327
8.7. Quem move as árvores (1970)……………….......................................…..328
8.7.1. Recepção de Quem move as árvores………................………………….343
8.8. Conclusões………………………………......................................………….344
10. Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno..372
10.1. Introdução: o contexto em que a obra surge…..........................………372
10.2. A proposta da obra: um trabalho a três……….............................…….375
10.3. Novas Cartas Portuguesas: a intertextualidade……...................……..379
10.4. Exemplos práticos – breve análise………………….................………382
10.5. Novas Cartas Portuguesas: a actualidade da obra……....................….391
10.6. O papel transgressor da obra……......................................................…393
10.7. Anti-feminismo…………………………........................……………..397
10.8. Novas Cartas Portuguesas: um retrato da condição feminina?…....….399
10.9. Novas Cartas Portuguesas: o papel social da literatura........................401
10.10. A recepção da obra………………………………………….........…..403
10.10.1. No julgamento…………………………….................................…..410
10.10.2. A recepção internacional………………..........…………………….414
10.11. A recepção enquanto elemento constitutivo da obra............................421
10.12. Conclusões……………………………………………………………427
11. Conclusões……………………............…………………………………429
13. Fontes………………...................................................................……….440
13.1. Documentos de arquiv......................................………………………..440
13.2. Material de imprensa..............................................................................442
13.3. Revistas………………….....................……….......…………………..443
14 .Referências bibliográficas………………..……………...…………….444
1. Introdução
1
do Tombo, localizada em Lisboa, onde se encontra o arquivo da PIDE/DGS,
que nos permitiu não só ter acesso à lista das obras censuradas (que nos levou
ao objecto deste estudo: 21 obras escritas por 9 autoras), mas também aos
relatórios escritos pelos censores literários e às fichas que as autoras tinham na
polícia política. Contámos ainda com fontes generalistas do Arquivos
Nacionais da Torre do Tombo, os espólios da Biblioteca Nacional de Portugal,
o arquivo da Fundação Mário Soares e os arquivos de imprensa da
Bibliothèque François-Miterrand.
A definição deste corpus partiu de uma condição de partida transversal
no decorrer do Estado Novo português. Confinadas ao espaço doméstico pelo
regime, as mulheres não eram vistas como agentes históricos ou sociais,
estando dificultado o acesso que teriam à produção simbólica. Cabe-nos,
assim, recuperar para o presente obras literárias que o Estado Novo tentou
apagar da memória colectiva, proibindo-as e não raras vezes perseguindo as
suas autoras, partindo da ideia de que o acto de escrita era já, per se, um acto
performativo de desconstrução de uma ordem social politicamente imposta.
Um possível denominador simbólico comum às mulheres partiria de
uma identidade social que, por sua vez, partia de elementos culturais, sociais,
políticos. A criação de literatura por parte de quem via o seu acesso à produção
simbólico dificultado fazia com que o próprio acto da escrita fosse já
subversivo, ainda que o seu conteúdo não tivesse de sê-lo. Ou seja, era a
própria escrita o que era já uma acção performativa de subversão. O conteúdo,
por sua vez, teria várias matizes, sendo possível, no corpus que aqui
analisamos, encontrar obras que decalcam a realidade, sem qualquer pretensão
de alteração de status quo, ou de um debate sobre ele, e outras que têm no seu
cerne a formulação de um novo mundo. Desta forma, o tratamento do tema não
2
implica uma diferenciação da produção, mas nas condições de recepção da arte
literária produzida por este conjunto de autoras.
Longe de acharmos que as escritoras eram, no período a que aqui nos
referimos, um grupo homogéneo, estático, único, ou seja, não recusando nunca
o papel que a classe social a que pertenciam desempenhava, iremos de seguida
atentar na forma como o Estado Novo tentou atribuir papéis distintos aos
cidadãos portugueses, baseando-se num critério biológico, divindo-os em
homens e mulheres, inclusivé através da Constituição firmada em 1933. A
partir daqui, o nosso corpus estabelece-se e assumimos como objecto do nosso
estudo o conjunto das obras literárias de escritoras portuguesas que foram
censuradas pela PIDE no decorrer do Estado Novo: A Campanha (Fiama H. P.
Brandão), Casa Sem Pão, Ida e volta duma caixa de cigarros (Maria Archer),
Antologia de Poesia Portuguesa Erótica, Comunicação, O Encoberto, O
Vinho e a Lira, O Homúnculo, A Pécora (Natália Correia), O Testamento, O
Museu, A Campanha, O Golpe de Estado, Diálogos dos Pastores e Auto da
Família e Quem move as árvores (Fiama H. P. Brandão), Falsos Preconceitos,
Pigalle, O adolescente (Nita Clímaco), Famintos, Vinte Anos de Manicómio!
(Carmen Figueiredo), A Magrizela (Maria da Glória), Minha Senhora de Mim
(Maria Teresa Horta), Novas Cartas Portuguesas (Maria Teresa Horta, Maria
Isabel Barreno, Maria Velho da Costa). Este número de obras, num período
que abarca mais de quatro décadas, parece ainda mais reduzido se o
compararmos ao número de obras escritas por homens que foram censuradas.
Com este objecto delimitado, tentámos entender de que forma surgiram estas
obras e como foram recebidas, tenha sido somente pela PIDE ou por outros
receptores.
A questão da autoria feminina merece algum destaque neste contexto
3
em que o regime político tentava confinar as mulheres ao espaço doméstico,
afastando-as do acesso à produção simbólica. A arte tinha uma masculinidade
implícita, resistia à ideia da mulher como criadora, sendo necessário
diferenciá-la. Contudo, não se tratará aqui de “literatura feminina”, até porque,
como a história crítica da literatura demonstra, essa ideia menoriza a produção
literária feita por mulheres: contraposta à “literatura”, estaria a “literatura
feminina”, a única que teria a necessidade de explicitar o género face a uma
outra literatura com outro género implícito. Assim, falar de uma “literatura
feminina”, diferenciando-a da literatura per se, para além de menorizar a
produção literária de mulheres, estigmatiza-a, uma vez que se parte do
princípio de que a arte é masculina. Ao mesmo tempo, esta ideia anula um
sujeito e assume a produção simbólica como espaço privilegiado de acção
masculina. As classificações são fruto da criação de identidades colectivas,
feitas por oposição, e criam relações de alteridade. Através destas, são criadas
hierarquias e o privilégio da classificação, que estabelece o outro, é exclusivo
dos grupos dominantes, que para si garantem a manutenção do privilégio
social.
À época do Estado Novo, a cultura dominante impunha um paradigma
que afastava as mulheres do acesso à produção simbólica: a estas estava
destinada a vida doméstica e aos homens estava destinado o espaço público, o
que incluía a intervenção política. Esta divisão, fruto da ideologia do regime,
até em termos legais enquadrava homens e mulheres na sociedade de formas
divergentes: era a própria Constituição que dizia garantir a igualdade perante a
lei “salvo no que se relaciona com o sexo, considerando a diferença de
natureza da mulher e o bem da família”. Assim, o sexo definia o espaço e o
papel de cada um na sociedade:
4
Por detrás da ideia de aprendizagem dos papéis sociais,
escondem-se motivações ideológicas. O conceito de gênero
estabelece a constituição das identidades masculinas ou
femininas numa lógica relacional, isto é, definindo-se uma em
função da outra. (CUNHA, 2012, p. 2)
5
com o calor do seu afecto e a fortaleza do seu ânimo nos
amparam na luta. Elas servem de apoio aos que são tentados a
descrer e hesitam e se perturbam com dificuldades que vós não
receais e nós estamos seguros de vencer. (SALAZAR, 1967,
p.52)
6
importará ao mesmo tempo a relação de alteridade que deriva do processo de
escrita, uma vez que é essa a que é estabelecida entre intérprete e obra, ou seja,
a relação dialéctica entre interpretação e objecto textual. A segunda, por sua
vez, permitir-nos-á avaliar o impacto que a obra teve na sociedade, se o teve
(uma vez que os serviços censórios do Estado Novo agiam de imediato, há
obras que foram de imediato condenadas ao esquecimento e não tiveram
repercussão na sociedade portuguesa), e a forma como afrontou a moral ou a
política do Estado Novo.
A análise destas condições permitir-nos-á uma visão mais completa,
ou até dialecticamente íntegra, das obras literárias, uma vez que consideramos
que o seu valor não pode deduzir-se apenas das circunstâncias biográficas ou
históricas ou até do lugar que elas ocupam na evolução de um género; ao invés
disto, deve deduzir-se também por meio de outros critérios: produção,
recepção, influência exercida, valor reconhecido para a posterioridade (JAUSS,
1978, p. 24). Assim, talvez possa dizer-se que a junção entre literatura e
política permite aumentar-lhe o valor, uma vez que coloca a produção
simbólica no epicentro de um confronto e, portanto, de uma relação de poder e
que permite ao objecto literário ultrapassar o confinamento literário, podendo
ter acção sobre o mundo material.
É neste sentido que partiremos de uma formulação de Umberto Eco: a
obra deve ser analisada enquanto o todo orgânico que nasce da fusão de
diversos níveis de experiência (ECO, 1988, p. 28). Para que assim seja,
importarão particularmente o ponto de partida e o ponto de chegada dessa
criação.
A arte, estruturando certo material, pode dirigir o seu discurso sobre o
mundo e reagir à história da qual nasce, interpretando-a, julgando-a, fazendo
7
projectos (ECO, 1988, p. 33). Ao mesmo tempo, sendo criadora de realidade,
os seus efeitos no campo político e nas práticas sócio-culturais podem ser
analisados (LOPES, 2010, p. 52). É neste sentido que a relação dialógica entre
público e autoras será merecedora da nossa atenção. Daremos ainda
importância ao papel social da literatura e ao papel do social na literatura,
defendendo que este último seja operante enquanto elemento de compreensão e
até de avaliação da obra, que a sua análise só faz sentido se fundirmos texto e
contexto e que só se o segundo se imiscuir no primeiro podem ser criadas
obras com capacidade de agir sobre o mundo, alterando-o, ao invés de apenas
retratá-lo ou de serem simplesmente veículos de operações formais. Neste
sentido, referir-nos-emos ao papel da literatura para lá da estética e
defenderemos a necessidade de obras literárias cujas estruturas internas
ultrapassem o concatenamento de elementos literários, referindo-nos, para isso,
ao elemento social enquanto elemento interno da construção literária e à
necessidade que temos de que este seja incorporado assim. Assim, veremos as
autoras como modos de formar (ECO, 1972, p. 16): a obra expressa a criadora
e é uma forma da sua acção, incluindo, portanto, considerações e julgamentos.
Claro, a visão sobre as obras literárias foi mudando ao longo dos
tempos: se com o realismo a obra valia de acordo com a capacidade que tinha
de retratar a realidade, desvalorizando os demais aspectos, no expressionismo
(com um estilo ilógico, descontínuo, labiríntico, com vazios a completar pelo
leitor) e no surrealismo vencia a ideia de que a matéria da obra literária era
secundária. Assim, nestes últimos casos, a importância da obra literária residia
nas operações formais levadas a cabo pelo autor, o que fazia com que pudesse
rejeitar-se qualquer condicionamento social.
Terá sido Madame de Staël (1766-1817) a primeira a encarar a
8
literatura enquanto produto social. Na obra De la littérature considérée dans
ses rapports avec les institutions sociales, datada de 1800, a autora manifesta a
ideia de que a obra literária deve expressar o zeitgeist em que é concebida.
Depois disto, foram muitas as obras criadas com o intuito de alterar o contexto
de onde partem.
Utilizando os termos de Lukács, importar-nos-á saber se o elemento
social possibilita a realização do valor estético ou se é determinante desse valor
estético. Ou seja, na análise de uma obra, devemos ter em conta se o elemento
social conduz a narrativa ou actua na constituição do essencial da obra
enquanto obra de arte.
Veremos ainda em que medida as obras a estudar serão obras em
movimento (ECO, 1988), ou seja, obras que incluem a possibilidade de uma
multiplicidade de intervenções pessoais: a autora oferece uma obra a acabar e,
ao terminar o diálogo interpretativo, por ter sido a sua obra aquela que foi
objecto de análise, será a sua forma aquela que é atingida, ainda que
organizada por outra (ECO, 1988, p.62). O verdadeiro conteúdo da obra torna-
se, assim, no seu modo de ver o mundo e de julgá-lo, traduzindo-se em modo
de formar, já que é nesse nível que deverá ser conduzido o discurso sobre as
relações entre a arte e o mundo (ECO, 1988, p.258). A obra de arte será, assim,
ainda que fechada na sua perfeição de organismo calibrado, aberta, já que é
passível de múltiplas interpretações, não redundando isto na alteração da sua
singularidade irreproduzível. Em cada fruição, que será uma interpretação e
uma execução, a obra reviverá dentro de uma perspectiva original (ECO, 1988,
p. 41). Neste sentido, e porque a recepção cultural engloba a interpretação
como um acto de um processo estético que inclui toda uma cadeia de
construção, difusão e reconstrução dos textos (LOPES, 2010, p. 51),
9
tentaremos ver de que forma as obras a analisar superarão o seu valor literário
e o valor que têm enquanto ataque ao poder instituído. Claro que a forma como
esse poder percebeu o ataque será o resultado da relação dialógica que manteve
com o texto e claro que será apenas uma das muitas interpretações possíveis,
tão infinitas quanto a quantidade de intérpretes, ou seja, de leitores, cada um
com a sua forma de ver o mundo e a obra literária. Ao mesmo tempo, num
estudo da obra e das suas condições de produção e recepção, a obra terá de
incluir as interpretações e a reacção que suscitou, sendo vista como um objecto
literário que ultrapassou o confinamento literário enquanto exercício
meramente estético e se transformou em ferramenta social.
Assim, analisaremos a obra literária no seu contexto originário, tendo
em conta as condições culturais e o caso particular da ditadura, que impunha a
sua moral e perseguia quem a afrontasse. Desta forma, faremos uma análise da
relação entre a literatura e a história no decorrer do Estado Novo, focando-nos,
assim, no fenómeno de comunicação inerente à publicação da obra artística.
Será difícil destrinçar exactamente qual era o papel que a censura
literária desempenhava na canonização literária. O seu objectivo era calar a
diversidade e havia circulação livre de literatura que não fosse julgada pelos
censores literários como atentória do regime, ou da sua moral. Veremos, nos
pontos seguintes, que a PIDE censurou obras muito diversas, cujas autoras
tiveram percursos e intenções muito diferentes, assim como valores literários.
A selecção deste corpus permite não olhar a hierarquias ou ao cânone e dar a
todas as autoras, caídas no esquecimento ou não, estudadas ou não, um
tratamento por igual. Assim, forneceremos dados biográficos sobre todas,
dissertaremos sobre o seu lugar no panorama literário português, analisaremos
as obras censuradas e os processos de recepção que se seguiram às publicações.
10
Interessar-nos-á, no decorrer da análise literária, ponto fulcral deste trabalho,
entender se os elementos que levaram à censura das obras eram elementos
internos da estrutura narrativa ou se eram adereços da acção. A dificuldade de
analisar o papel da censura literária nos caminhos percorridos pelas obras
adensa-se quando pensamos que, para além dos livros censurados, existem
aqueles que foram alterados pelos autores de forma a contornarem a máquina
censória, e ainda aqueles que nem foram escritos.
No segundo ponto deste trabalho, contextualizamos o objecto desta
investigação, apresentando os traços gerais sob os quais se edificava o
salazarismo, fossem culturais, políticos ou morais, e abordando o documento
de grande conteúdo ideológico que foi a Constituição de 1933, que atribuiu
legalmente papéis sociais diferentes a homens e mulheres. Assim, abordamos
ainda o papel da família no quadro do Estado Novo, que a encarou como um
campo de batalha ideológico, já que a usava como forma de transmitir valores
tradicionais e de reproduzir um modelo hierárquicos. No mesmo ponto,
referimos as ligações entre a produção literária e o contexto a partir da qual se
erigiu, encarando a ditadura salazarista como zeitgeist, e analisando o impacto
de grande dimensão que esta teve na produção literária portuguesa. Finalmente,
mostramos o que entendemos sobre o papel da recepção na constituição de
uma obra literária, assim como o papel do leitor na relação dialógica
estabelecida entre autoras, obra e público.
A partir do terceiro ponto, apresentamos as autoras de forma
esquemática, padronizando a abordagem que lhes é feita, de forma a olhá-las
sem hierarquias. Tratamos aqui de autoras conhecidas pelo grande público,
ainda hoje lidas e estudadas, e outras caídas no esquecimento. A opção pelo
esquema (dados biográficos, o lugar que ocupam na história da literatura
11
portuguesa, resumo e análise da obra, recepção da obra) pretende dar a todas
um tratamento por igual, não olhando a mecanismos de canonização ou mesmo
ao sucesso ou insucesso das intenções da PIDE.
Assim, veremos, nos capítulos seguintes, se a PIDE teve sucesso nos
seus intentos, se a canonização ou o esquecimento das obras dependeu mais
delas do que das imposições do regime, se há algum denominador comum
entre as obras que foram lidas e estudadas e aquelas que foram esquecidas.
Verificaremos ainda se há ou não obras que tenham posto o peso da recepção
na parte do público leitor, e de que forma isso influiu, ou não, na vida que a
obra veio a ter no pós-publicação e no pós-censura.
12
2. A produção simbólica e o zeitgeist
13
específicas regulavam-no de forma a evitar-se “a perversão da opinião pública
na sua função de força social e para salvaguarda da integridade moral dos
cidadãos” (NOGUEIRA, 1981, p.9). Apesar disto, Salazar, à volta do qual o
regime se ergueu, é considerado por coevos, como Mário Soares, não um
doutrinário ou um ideólogo ou um homem de sistema ou de partido, mas antes
um “empirista”, tendo chegado ao poder “animado por quatro ou cinco ideias
simples, quase comezinhas, num momento particularmente difícil da vida da
República, e que ganhou gosto pelo exercício do poder ilimitado,
transformando, assim, um simples meio de actuação numa finalidade em si”
(SOARES, 1974, p.62). Mário Soares atenta ainda no papel da Igreja Católica
na ascensão de Salazar ao poder e na sua manutenção:
14
defendia: a Igreja Católica como forma de nortear a moral do país, a pátria
como versão colectiva do individual e a família como forma de estruturar a
sociedade e garantir a continuidade da raça. Assim, Salazar, para além do seu
papel de legislador, tinha um papel de doutrinador da população, querendo não
apenas introduzir mudanças no quadro político, económico e social, mas ainda
alterar as mentalidades.
Desta forma, o Estado Novo tentava congregar e formatar toda a
população portuguesa, sendo os ideais nacionalistas usados para a unificação
de um povo. Essa luta não era de então. Pelo contrário, tinha as suas raízes já
no século anterior: a partir da primeira metade do século XIX, procuraram-se,
na Europa, traços identitários que distinguissem identidades nacionais. Por
todo o continente, os construtores da nação não pararam de repetir que
pertencer a uma nação significava ser um dos herdeiros de um património
comum e indivisível (THIESSE, 2011, p.70). Neste sentido, os processos de
formações identitárias nacionais passavam, em primeiro lugar, pela
identificação de um património que pudesse ser comum a todos os herdeiros de
uma tradição, transformando-os, assim, num grupo de características únicas. O
ideário nacionalista sobreviveu durante décadas e o Estado Novo usou os
princípios nacionalistas erigidos no século XIX 1 de forma a edificar o conceito
1 No século XIX, o Romantismo, exaltante da nação, acabou por associar-se ao e fundir-se com o
nacionalismo, sendo ambos fundados sob o mesmo pensamento e o mesmo sentimento. Assim, era
criado um novo conceito de nação, que passava pela ideia de uma entidade comum (legitimada pelo
passado e, assim, pela tradição) e que acabou por atribuir um papel social muito forte à literatura, que
passou a ser vista como necessária para a auto-identificação colectiva e a ser usada para forjar uma
unidade entre elementos de uma mesma nação, que deviam identificar-se com a herança comum, uma
vez que pertenciam a uma identidade colectiva que era capaz de sobrepor-se a qualquer outra. Neste
contexto, Almeida Garrett teve um papel preponderante: fazendo com que a historiografia literária se
tornasse fundamental para o nascimento do Romantismo em Portugal, assim como para a criação de
15
de identidade nacional. Desta forma, o passado era presentificado (como, aliás,
já o tinha feito a literatura romântica portuguesa), construindo o imaginário de
um povo, e a identidade colectiva era forjada. Assim, a forma como o Estado
Novo levou a cabo esta ideia de Portugal pode ser vista como uma
metanarrativa que dava ao Estado a possibilidade de impor uma origem
ancestral da pátria, ao mesmo que tempo que procurava características
endógenas dos portugueses (MORAIS, 2005, p.9/10). Desta forma,
identificavam-se os traços do povo português que o distinguiriam dos demais e
a nação era apresentada como totalidade orgânica e sujeito histórico.
A presentificação do passado servia, para além da construção do
imaginário de um povo, para que os ideólogos do Estado Novo pudessem
difundir uma visão do país que, em verdade, contrariava a realidade. Num país
agrário, pobre, sem as novidades científicas da época e sem revolução
industrial, tal tornou-se possível devido à propaganda eficaz do Estado, que,
difundindo a ideia de que o país estava num período particularmente produtivo
e evolutivo, se tornou apta a manipular o povo e a mantê-lo à margem quer da
realidade do país, quer da realidade das colónias que Portugal mantinha. Ao
mesmo tempo, colonizando países africanos, o país criava uma imagem interna
de grande potência económica: “Portugal descobre a África, cobre a sua nudez
uma identidade comum portuguesa, feita através da tradição literária, estabelecia os textos que seriam a
base da tradição comum e das características comuns, ao mesmo tempo que fazia com que Portugal
tivesse uma literatura que pudesse competir com as outras. Os passos que deu neste sentido foram
motivados por objectivos tão literários quanto políticos. Assim, com Camões (1824), Garrett ergueu um
símbolo nacional, exaltando o sentimento patriótico. Anos mais tarde, publicou Parnaso Lusitano
(1826), uma recolha antológica que foi ainda uma tentativa de compilar a história da literatura
portuguesa, e o Romanceiro (1843), que significava uma nova valorização do nacional, sendo o que
faltava para que Portugal tivesse uma literatura nacional.
16
caseira com uma nova pele que não será apenas imperial mas imperialista, em
pleno auge dos imperialismos de outro gabarito” (LOURENÇO, 1992, p. 25).
Como nota Alexandre (2004, p. 67), desde a secessão brasileira, em 1822, as
elites políticas portuguesas argumentavam pela necessidade de que o país
tivesse um império de forma a poder sobreviver e não ser absorvido por
Espanha. Neste sentido, as colónias africanas deviam substituir aquela que fora
perdida, sob a soberania portuguesa, permitindo a Portugal um lugar de
destaque, tanto a nível económico como social, à escala mundial. Assim, o
pensamento nacionalista português, tanto do século XIX como do XX, foi
altamente influenciado por esta ideia, uma vez que olhava para um novo
sistema colonial como uma forma de preservar a herança histórica e de garantir
a sobrevivência da nação portuguesa, tendo feito com que o salazarismo tenha
vivido pelo “sonho de império, primeiro, e de nação multirracial e
multicontinental, depois, que sempre acalentou” (CRUZ, 1989, p. 70).
Para que a ideologia do Estado Novo se tornasse sólida, fosse a nível
da moral que apregoava, do fortalecimento do ideal nacionalista, do poder
incontestável do regime ou dos princípios económicos que defendia, o regime
usou meios de censura de forma a poder controlar a produção intelectual e
calar os discursos de carácter político que o afrontassem. Ao mesmo tempo, a
repressão policial silenciava todas as tentativas de dissidência ao regime.
Como aponta Fernando Rosas (2007: 26/27), a repressão policial, por
via da Polícia Internacional da Defesa do Estado (PIDE), actuava de duas
formas. A primeira, e mais abrangente, era a violência preventiva. Ainda que
mais silenciosa e até invisível, era a forma mais constante, garantindo a
intimidação e a contenção da mobilização. Neste contexto, a Igreja Católica
desempenhava um papel de relevo, garantindo a legitimação ideológica do
17
regime. Ao mesmo tempo, havia a violência punitiva, que era uma forma de
repressão directa sobre os desafios à ordem estabelecida. Para além disto,
enquanto polícia “internacional”, cabia à PIDE vigiar as fronteiras, reprimir a
emigração e relacionar-se com as polícias de outros países. Com estas medidas,
prevenia-se a contestação pública, neutralizando-se a oposição contra o Estado
Novo, apresentado como a entidade que podia decidir por todos. Neste cenário,
o país encontrar-se-ia paralisado pelo medo.
Segundo Irene Pimentel, o Partido Comunista Português (PCP) foi o
principal alvo da PIDE, que terá até moldado a sua acção defensiva de forma a
funcionar em função desse partido. Em simultâneo, a repressão da PIDE
também enformou grande parte da acção do partido (PIMENTEL, 2007, p. 11).
Ao mesmo tempo, a Mocidade Portuguesa (MP), em que as crianças
do sexo masculino entravam aos sete anos e da qual só eram desvinculadas aos
catorze, também contribuía para a manutenção do regime. Ainda que um dos
seus primeiros comissários dissesse que ela não visava a instituição da criança-
soldado ou adestrá-la nos exercícios militares, a verdade é que os anos de
prática desmentiriam esta ideia: as fórmulas inspiradas na orgânica militar
eram as únicas que permitiam o arregimento de tantos jovens (LOPES, 1976,
p.17), uma vez que o rigoroso código disciplinar a que os jovens eram
submetidos os moldava intelectualmente no “sentimento da ordem, no gosto da
disciplina e no culto do dever militar” 2. Assim, a “nova Renascença Pátria”3
seria o ideal que nortearia a MP, garantindo a Salazar a difusão dos seus
pensamentos. Paralelamente, existia a Mocidade Portuguesa Feminina (criada
2 Artigo 40º do Decreto-Lei n.º 26611, de 19 de Maio de 1936, Regimento da Junta Nacional de
Educação, Instituição da Mocidade Portuguesa.
3 Artigo 2º do Regulamento da Mocidade Portuguesa.
18
em 1937, um ano após a MP), que se destinava à formação de “mulheres
cristãs e portuguesas”, encaminhando-as para as suas missões futuras de
esposas e de mães. Um ano antes desta, já havia sido criada a Obra das Mães
para a Educação Nacional (OMEN), por António Carneiro Pacheco, ministro
da Educação Nacional, que assumia a missão de reeducar as mulheres e educar
as jovens no quadro mental do Estado Novo. Mesmo assim, Pimentel (2001: 9)
nota que a desvalorização das mulheres por parte do regime se estendeu ainda à
forma como este tratou a MPF, à qual deu pouca importância, ainda que tenha
organizado tanto ideológica como moralmente muitas jovens ao longo de trinta
e seis anos. Neste sentido, a propaganda do regime raramente mencionava a
MPF e, quando o fazia, remetia-se para um espaço lateral.
Ainda no sentido de submeter todas as crianças à ideologia do Estado,
em 1941, foi publicado o decreto-lei 31908, que estabelecia que “Todas as
organizações, associações ou instituições que tenham por objecto a educação
cívica, moral e física da juventude carecem, para se constituir e poder exercer
actividade, de aprovação dos estatutos pelo comissário nacional da
Organização Nacional Mocidade Portuguesa” (Artigo 1º). Desta forma, seriam
extintas todas as organizações que não estimulassem “nos seus afiliados o
sentimento patriótico e o culto dos ideais do Estado Novo português” (Artigo
3º).
Ao mesmo tempo, Salazar afirmava-se como líder através da imprensa
(Matos, 2003: 7). No final de 1933, foi criado o Secretariado da Propaganda
Nacional (SPN), que sobreviveu até 1945, ano em que foi substituído pelo
Secretariado Nacional de Informação (SNI). Durante os primeiros doze anos do
regime salazarista, o SPN era responsável por divulgar o ideário do Estado
Novo no concerne ao nacionalismo e à padronização da cultura, sendo
19
acompanhado pelos serviços censórios. O SNI seguiu este caminho, sendo o
órgão responsável pela propaganda política, sempre em prol do Estado, pela
regulação da comunicação social e pela acção cultural que o Estado levava a
cabo (por exemplo, através da atribuição de prémios literários).
Desta forma, Salazar era não só o detentor único do poder, mas ainda a
encarnação única da nação (GEORGEL, 1985, p. 64). Ao mesmo tempo, a
subordinação das pessoas ao interesse da nação permitia a Salazar livrar-se
mais facilmente dos seus adversários, uma vez que era o “único intérprete
autorizado do pensamento nacional” (GEORGEL, 1985, p. 66). Qualquer
ataque ao Estado Novo era visto como um ataque à nação, o que era visto
como um ataque de indivíduos contra a colectividade. O apoio do Estado Novo
na Igreja e nas confederações patronais da indústria e do comércio, juntamente
com o silenciamento e a repressão violenta da oposição, permitiu não só a
ascensão ao poder mas também a sua manutenção durante quarenta e um anos.
De acordo com Fernando Rosas (1989: 17), este fenómeno de
longevidade política deve-se a três condições exógenas: a situação de país de
primeira periferia do sistema económico mundial, dependente e pouco
industrializado, que fez com que, até aos anos sessenta, as grandes crises do
sistema se tenham repercutido sem grande violência, amortecidas pela
retaguarda rural e pelos mercados coloniais alternativos; a condição de país
colonizador, tendo o império colonial desempenhado um papel decisivo na
longevidade da estrutura económica; a situação geoestratégica, que deixava
Portugal numa posição privilegiada enquanto interlocutor das grandes
potências marítimas. Ao mesmo tempo, contribuíam para a manutenção do
regime a capacidade que este tinha de construir e reconstruir os seus equilíbrios
de acordo com as circunstâncias históricas (ROSAS, 1989, p. 23), a natureza
20
acanhada da burguesia portuguesa, parasitária, não produtiva, protegida pelo
Estado, desconfiada em relação ao progresso, que fazia com que se recusasse a
arriscar os capitais por temer mudanças que ameaçassem a sua hegemonia
económica (ROSAS, 1989: 25), e a incapacidade por parte da oposição de se
constituir enquanto alternativa política (ROSAS, 1989, p. 27).
Neste quadro, Salazar, ainda que não se considerasse um ditador
(SALAZAR, 1967, p. 38), considerava que o direito dos povos era uma
hipocrisia. A uma pergunta de Serge Groussard, “E se a propaganda
anticolonialista, arbitrária ou não, triunfasse? O direito dos povos a dispor de si
próprios...”, Salazar responde, dizendo: “Se um filho seu de tenra idade
quisesse abandonar o tecto paterno para correr mundo, consentir-lho-ia? Que
hipocrisia o direito dos povos.” (SALAZAR, 1967, p. 18). Ao mesmo tempo,
rejeitava a democracia, uma vez que defendia o governo enquanto obra da
elite, e não da massa. Assim, afirmava claramente que a hierarquia devia
sobrepor-se à ideia da igualdade:
21
Assim, o impulsionador do Estado Novo acreditava que o seu direito a
governar sobre os outros, ainda que contra a vontade destes, era um direito
legítimo, natural, que lhe era devido por estar no topo de uma hierarquia à qual
chegara por diferenciar-se dos demais. Acreditando nas desigualdades naturais,
argumentava que se sobrepusera aos outros por capacidades individuais
próprias e que estas lhe davam o direito de decidir sobre a vida política, social,
económica e até moral do país.
Ao mesmo tempo, e rejeitando a luta de classes, considerava os
interesses das classes coincidentes, ao invés de contraditórios:
Desta forma, dizendo que uma classe não dominava a outra e tratando
os interesses patronais e operários como coincidentes, ao invés de vê-los como
uma relação de forças em que uma – a dominante – se sobrepõe à outra – a
dominada –, tentava garantir a acalmia por parte dos trabalhadores. Aliás, com
ela garantiria, de facto, que as greves não fossem uma realidade, impedindo
lutas por interesses que desafiassem os interesses patronais.
Ao mesmo tempo, Salazar defendia a continuidade da censura, na
medida em que considerava que cabia ao Estado o papel de defender a opinião
22
pública de tudo o que pudesse desorientá-la “contra a verdade e a justiça”:
23
O Estado Novo preconizava uma ideologia de submissão das
mulheres. Neste sentido, a sua concepção de uma cultura feminina, que
nivelava todas as mulheres por critérios biológicos, legitimando a sua
segregação das esferas social e política, minimizava-as à sua função
reprodutora, o que era necessário à organização corporativista, uma vez que o
Estado Novo encarava a família enquanto cédula base da sociedade. Assim, foi
em nome de um biologismo, que clamou existir, que legalizou a discriminação
da mulher. O sexo, ao distinguir os cidadãos, imporia a necessidade de um
quadro legal diferenciado e de políticas específicas. Aliás, a própria
Constituição garantia a igualdade perante a lei “salvo no que se relaciona com
o sexo, considerando a diferença de natureza da mulher e o bem da família”,
nivelando toda a população feminina, de forma estática, agrupando-a
independentemente da classe social. Irene Pimentel (2000: 400) nota que a
legislação do Estado Novo teve no seu cerne um factor biológico – a natureza
da mulher. Ao mesmo tempo, atenta no factor ideológico que o moldou – o
bem da família. Neste sentido, as mulheres eram confinadas ao espaço
doméstico, pela crença do regime, que era per se uma concepção cultural, em
características biológicas que definiriam todas as mulheres e que aliava a
Família ao Estado.
Desta forma, são estabelecidos diferentes territórios de acção e
definidas as relações entre os sexos, tanto em termos de poder como de
identidade, assinalando-se o aspecto relacional entre ambos por muitas
exclusões: a exclusão num de tudo o que pertence ao outro (NEVES, 2001, p.
24). Desta forma, o espaço público, incluindo tudo o que é político, é dado aos
homens, e as mulheres ficam confinadas ao espaço doméstico, sendo
abrangidas pelas decisões sobre a sociedade que são tomadas no espaço cujo
24
acesso lhes está vedado, num quadro social em que a segregação sexista se
torna tão basilar quanto a classista. Isto não impedia o Estado Novo de tentar
organizar as mulheres em seu benefício, tendo sido criado, em 1961, o
Movimento Nacional Feminino (MNF), que durou até ao fim da ditadura. Esta
foi uma organização criada para apoiar as decisões do Estado Novo, tendo
partido da iniciativa de Cecília Supico Pinto e tendo sido apoiada por Salazar.
O seu objectivo era organizar o apoio das mulheres em relação à Guerra
Colonial, em particular a partir da intensificação dos conflitos em Angola, em
Moçambique e na Guiné.
Ao mesmo tempo, o Estado Novo tratava o confinamento das
mulheres ao espaço doméstico como um privilégio que lhes era concedido.
Quando, nos anos quarenta, o regime lançou o slogan “a mulher para o lar”,
encarava-o como uma libertação: o papel das mulheres no lar era visto como a
missão de um agente social que estaria no espaço privilegiado de reprodução
material e de reprodução do simbólico. Como o nacionalismo, também a
valorização do espaço doméstico como espaço de poder para as mulheres, em
detrimento do acesso ao espaço público, era uma herança do século XIX,
retomada e intensificada por Salazar. Assim, o papel da mulher no Estado
Novo, tido como sustentáculo do regime, consolidava a ideia de legitimação da
ordem política e social que o regime defendia. O papel que as mulheres
desempenhavam era, portanto, um pilar na estrutura social que o Estado Novo
arquitectara e contribuía para mantê-lo erguido. Aliás, é o próprio Salazar
quem, numa nota de agradecimento às mulheres que, no dia 28 de Abril de
1959, foram à residência do Presidente do Conselho levar-lhe flores, à época
do seu aniversário, as secundariza socialmente, atribuindo-lhes o papel de mero
amparo dos homens, ou seja, de figuras coadjuvantes:
25
São as mães, as esposas, as irmãs, as filhas dos portugueses que
com o calor do seu afecto e a fortaleza do seu ânimo nos
amparam na luta. Elas servem de apoio aos que são tentados a
descrer e hesitam e se perturbam com dificuldades que vós não
receais e nós estamos seguros de vencer. (SALAZAR, 1967, p.
52)
26
assim como o papel que deviam ocupar no seio da sociedade portuguesa.
Assim, o conceito universal de pessoa era pensado tendo como base o sexo
masculino, que seria a matriz e o modelo (SAMARA, 2007, p. 16), e, portanto,
um dos sexos seria sempre superior ao outro, a cada um cabendo as normas
sociais que eram impostas, no espaço público – político, portanto –, por
homens. As mulheres ficavam, assim, confinadas ao espaço doméstico,
economicamente dependentes, situação que só se alteraria a partir de metade da
década de 60. A dependência económica das mulheres por parte dos maridos
era ainda defendida como princípio por Salazar, que atribuía às mulheres a
tarefa de educar as crianças, defendendo, por isso, que o trabalho das mulheres,
principalmente casadas, não devia ser fomentado.
Assim, a visão do Estado Novo sobre as mulheres, afastando-as do
centro das decisões e vedando-lhes o acesso ao trabalho e a salários,
empurrando-as para a dependência económica dos homens, era a de esposa,
fada do lar e mãe. Mesmo assim, o regime diferenciava a formação de uma
elite feminina política do sujeito colectivo mulher e, nesse sentido, foi o
primeiro regime português, apesar de anti-democrático e anti-feminista, a
conceder a certas mulheres o direito de votar e de serem eleitas, criando uma
elite feminina que podia ter intervenção pública. De resto, como o privilégio
era apenas de elite, a opressão que foi feita a grande parte das mulheres,
submetendo-as à estrutura familiar, acantonando-as ali e impedindo-lhes o
acesso à vida política, era feita de forma invisível enquanto manipulação
psicológica.
Segundo Fernando Rosas, são as eleições de 1958, que opuseram
Américo Tomás, candidato da União Nacional, o partido único, ao general
Humberto Delgado, que concorreu enquanto candidato independente, aquilo
27
que marca o princípio do fim do salazarismo (ROSAS, 1996, p. 523). Com a
união das forças oposicionistas, o regime encontrava-se isolado em termos dos
apoios da ala direita, estando unificado o descontentamento popular; para além
disso, havia o isolamento internacional que derivava da condenação
internacional relativa à política colonial.
Apesar da vigilância da PIDE, as eleições presidenciais
proporcionavam o debate e a propaganda. Neste sentido, Humberto Delgado
pôde fazer um esforço pela movimentação da população da classe trabalhadora
e apresentar uma proposta política que diferia da de Salazar também em
relação ao papel das mulheres na sociedade. Ao invés de querer domesticá-las,
como fazia o Estado Novo, Delgado queria que tivessem direito à cultura:
Às mulheres de Portugal
De há muito acabou o tempo em que era o lar, cárcere da mulher,
a sua clausura. Hoje o lar continua a ser, porque é da natureza
humana, o verdadeiro centro de uma vida dignamente vivida,
mas já não impede a mulher de reconquistar o seu direito à
cultura, de alargar o seu interesse e o seu horizonte a todas as
actividades do espírito. E nessas se conta a intervenção na vida
pública.
Não é já papel exclusivo da mulher, embora esse aspecto não
deva desprezar-se, a presença dulcificadora das agruras, dos
obstáculos com que o homem se defronta mas ser também a mão
que auxilia e o espírito que acompanha. (DELGADO, 1958)
28
contexto em que o Código Civil se incompatibilizava cada vez mais com a
participação das mulheres na vida pública, exigindo que se submetessem à
autorização dos maridos para exercerem actividades profissionais ou para
saírem do país e permitindo que estes recebessem a remuneração que elas
aferissem. Para além disso, vários direitos consagrados em vários países da
Europa não existiam em Portugal. Por exemplo, no início dos anos 60, a pílula
contraceptiva começou a ser usada em vários países, dissociando a sexualidade
da sua mera função reprodutiva. Contudo, foi proibida em Portugal enquanto
método contraceptivo. É o próprio Salazar que afirma que é através da renúncia
que as mulheres atingem a felicidade, ao invés do prazer.
Com os pós-guerra, em vários países, as mulheres alcançaram o direito
ao voto, ao divórcio ou mesmo ao fim do poder marital e paternal (TAVARES,
2008, p. 101), o que não se verificava em Portugal. Mesmo assim, estas
medidas contaram ainda com oposição, surgindo campanhas pelo regresso à
domesticidade das mulheres e pelo abandono dos postos de trabalho em prol
dos homens. Estas campanhas, contudo, diferiam das que existiam noutros
países, uma vez que, em Portugal, estas se tratavam de continuidade e tradição
(TAVARES, 2008, p. 102).
Segundo Manuela Tavares, na campanha para a Presidência da
República, surgiram panfletos assinados por comissões de mães que apelavam
a que as mulheres votassem no candidato do regime:
29
op. cit. Tavares, 2008: 104)
30
Estado Novo se limitasse à luta contra o fascismo, mais do que à luta contra a
repressão específica que sofriam enquanto mulheres. Assim, a luta pelos
direitos das mulheres aparecia enquanto marginal da própria luta política.
31
entrelaçassem, a verdade é que há outros em que parece olhar-se para a
literatura como se esta não tivesse uma relação próxima com o contexto em
que é concebida. Ambos são redutores: afinal, se o primeiro vê o objecto como
directamente dependente das condições sociais e históricas, ficando alheio às
manipulações conscientes dos autores e aos seus papéis de agentes literários
conscientes, o segundo ignora a influência que o social tem no agente e na
criação artística. Desta forma, ambos os processos podem ser simplistas e
induzir a leitura em erro, uma vez que podem vedar o acesso à compreensão
das razões – portanto, às condições de produção – que norteiam o processo de
criação literária. Tem sido difícil encontrar um ponto de equilíbrio, mas é
precisamente da relação que o objecto literário tem com o seu tempo que aqui
tratamos.
Na literatura portuguesa, o impacto da ditadura é de grande dimensão.
Grande parte dos escritores fez do regime repressivo matéria da criação
literária, o que equivale a dizer que o zeitgeist em que as obras foram
concebidas foi usado como matéria artística e o objectivo crítico esteve sempre
inerente à criação. Assim, durante a ditadura salazarista, grande parte dos
escritores portugueses assumiu uma posição de confronto em relação à
ideologia oficial, recusando-se a compactuar com um sistema que, entre outras
opressões, se imiscuía na criação artística.
Ao longo dos quarenta e um anos da ditadura, houve inúmeros
contributos de dezenas de escritores, que vão desde os neo-realistas a autores
como Saramago ou Lobo Antunes, conseguindo-se, assim, uma memória
literária da ditadura bem sedimentada. Centenas de obras foram proibidas e
recolhidas no decorrer do regime do Estado Novo, o que levou ao
empobrecimento da criação literária, mas o pós-25 de Abril, para além de
32
trazer a abolição da censura daí em diante, permitiu resgatar várias obras a que,
antes do término da ditadura, não se teria acesso.
Contudo, os escritores, pelo exercício da ficção, podiam questionar o
que estava estipulado, afrontando-o. Ao mesmo tempo, no delineamento das
narrativas, tinham de fugir da política para mascararem o confronto, e isto
numa altura em que o regime impunha o mote “a minha política é o trabalho”,
mascarando a ideia de que também o imparcial é ideológico.
Os casos representados literariamente por muitos autores, como os já
mencionados ou Lídia Jorge, Cardoso Pires ou Mário Cláudio, focaram-se em
assuntos como a repressão da ditadura ou a guerra colonial, assumindo uma
postura de contestação. Assim, a literatura, vinculando uma clara mensagem de
consciência, tornou-se numa forma de poder simbólico, resistindo às
imposições de um regime opressivo que, inclusive, limitava a liberdade de
criação literária. Um dos casos de mais claro afrontamento do poder, uma vez
que satiriza a própria figura que o personaliza, será Dinossauro Excelentíssimo,
uma fábula satírica de José Cardoso Pires, cuja publicação data de 1972, e que
retrata a vida de Salazar e o país durante o Estado Novo.
Num cenário à escala europeia em que o poder era consagrado à volta de
uma figura individual, como Salazar, Franco, Mussolini ou Hitler, a literatura,
ao invés de reafirmar ou consagrar esse poder, questionava-o. Ainda que outras
artes também o tenham feito, esta foi a forma privilegiada de questionar a
dimensão mítica dos ditadores. Regra geral, o desafio era feito de maneira
metafórica, ambígua, de forma a que os autores pudessem fugir da censura ou
mesmo da prisão. No entanto, há excepções.
Numa obra organizada por Teresa Rita Lopes e publicada em 1993,
temos acesso a textos de Fernando Pessoa inéditos até então. Neles,
33
encontramos afrontas directas ao ditador, certamente impublicáveis na altura e,
também por isso, permanecidas na obscuridade até após a queda da ditadura.
Salazar
Um cadaver emotivo, artificialmente galvanizado por uma
propaganda...
Duas qualidades lhe faltam – a imaginação e o enthusiasmo. Para
elle o paiz não é a gente que nelle vive, mas a estatistica d'essa
gente.
Somma, e não segue. (LOPES, 1993, p. 366)
34
Assistimos à cesarização de um contabilista. (LOPES, 1993, p.
366)
Estas afrontas directas ao poder salazarista são raras. Aliás, estes textos
de Pessoa só foram conhecidos em 1993, décadas após a ditadura. Durante
esta, as afrontas ao poder tendiam a ser mais discretas, feitas de forma
indirecta, disfarçadas através de metáforas ou de intertextos clássicos.
Durante os quarenta e um anos de ditadura, foram vários os casos de
resistência através da produção literária, que conheceu alguns movimentos
distintos. Logo nos anos trinta, temos o exemplo do movimento neo-realista, o
exemplo mais evidente do comprometimento da arte com a realidade social.
Do ponto de vista periodológico, este movimento está historicamente
consolidado, estendendo-se desde o final dos anos trinta até ao final dos
cinquenta.
Nas obras neo-realistas, fortemente marcadas pela ideologia marxista,
nota-se que há um compromisso com a realidade e com o conteúdo. Assim, a
literatura tinha uma missão primordialmente social e a narrativa levava a cabo
um programa ideológico. Com uma linguagem artística comprometida –
opondo-se, assim, ao modernismo –, a literatura neo-realista fazia retratos das
contradições de classes e da vitória da burguesa sobre a trabalhadora. Assim, as
obras eram de feições militantes e o conteúdo sobrepunha-se à forma. Os
retratos da decadência da burguesia e da realidade social de operários e
camponeses podem ser vistos principalmente nas primeiras obras de Alves
Redol, Soeiro Pereira Gomes e Manuel Tiago.
Com Carlos de Oliveira, romancista e poeta, a situação era diferente.
Mesmo que não desistisse dos fundamentos ideológicos do neo-realismo, a
35
prática literária atentava muito mais nas potencialidades artísticas da narrativa,
contrapondo-se a uma literatura, ou a uma poesia, que não raras vezes era
panfletária.
O neo-realismo teve uma condição transnacional, uma vez que, não
constituindo uma ocorrência endógena ao sistema literário português, se
alimentou de movimentos afins e precedentes (REIS, 2005, p. 14/15). Desta
forma, acolheu modelos literários de forte vocação ideológica, erigidos sobre o
princípio de que cabia à literatura uma função de representação ideológica que
batalhasse pelo conteúdo sobre a forma e que fizesse da actividade literária
uma actividade política, com capacidade de acção sobre o mundo material. O
compromisso com a realidade seria, assim, o mote da criação literária.
Nos anos 50, surgiu uma nova geração de escritoras, que inclui nomes
como Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Natália Nunes ou Graça
Pina de Morais.
Na década de 60, vários acontecimentos tiveram uma grande
repercussão na solidez do regime: em 1960, Portugal perdeu Goa; no ano
seguinte, deu-se o início da guerra colonial; em 1962, começam grandes
agitações do movimento estudantil; em 1965, foi extinta a Sociedade de
Escritores, após a atribuição de um prémio a Luandino Vieira; em 1968, deu-se
a queda de Salazar e, no ano seguinte, o movimento estudantil intensificou-se
ainda mais; por toda a década, houve uma emigração massificada.
Neste contexto, deparámo-nos com uma conquista de um espaço crítico
por parte de quem se opunha ao regime, passando os ditames do Estado Novo a
ser afrontados de forma mais directa do que o que acontecia nas décadas
anteriores, seja a nível político ou moral. Assim, surgiram obras que
expressavam o descontentamento com o regime e formulavam as propostas de
36
outros mundos. No decorrer deste período, Isabel Allegro de Magalhães (2002:
367) nota que é difícil identificar-se “gerações”, “correntes” ou “movimentos”,
uma vez que a criação artística se fazia de forma individual, sem que houvesse
afinidades ou agrupamentos. Desta forma, a narrativa dos anos 60 marcou-se
por traços inovadores e por experimentalismos na prosa, ainda que se
verificasse ainda alguma continuidade, tendo havido várias narrativas de ficção
de cariz social, neo-realista ou realista.
Não será, pois, de espantar que a década de 60 tenha sido pautada por
uma grande variedade na ficção, seja no que concerne às estruturas, às
temáticas ou à linguagem. Assim, neste período, rompeu-se com a estética e as
temáticas do neo-realismo, tendo vindo à luz uma literatura que teria uma
grande capacidade de influência sobre a literatura posterior. Assim, surgiram
vários escritores, problematizando a história e a forma de se estar no mundo.
Neste quadro, consolidaram-se Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires, Fernando
Namora, Augusto Abelaira, Herberto Hélder e Urbano Tavares Rodrigues.
Saramago estreou-se como poeta (Os poemas possíveis, 1966) e aumentou o
número de mulheres escritoras: Ane Hatherly, Maria Alberta Ménères, Maria
Teresa Horta e Fiama Hasse Pais Brandão estrearam-se na poesia; Ana
Hatherly, Maria Gabriela Llansol, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e
Maria Isabel Barreno estrearam-se na ficção.
Ao longo dos quarenta e um anos de ditadura, vários escritores usaram
a sua literatura como forma de intervir, de rejeitar o discurso oficial do Estado
como único discurso possível. Assim, as ideias difundidas pelo regime eram
questionadas, intensificando-se a luta pelo poder simbólico e contrapondo-se
realidades possíveis à realidade angustiante. A função de contrapoder da arte
ficava, assim, evidente aos olhos de quem analisava o cenário literário da
37
época.
Ao mesmo tempo, a repressão por parte do poder instituído era
constante em todos os meios: várias obras eram censuradas e o regime movia
acções legais contra alguns escritores. Indisposto a abdicar da posição
dominante que ocupava também em termos da produção simbólica do
significado, o Estado Novo repelia e difamava as obras que o afrontavam e
encarava como delito público qualquer opinião que divergisse das posições que
apregoava. A censura que levava a cabo não podia ser questionada e não seria
alterada a menos que o regime o entendesse. Assim, servia para que se filtrasse
a produção, tornando-se público somente aquilo que conviesse ao regime. De
acordo com Fernando Rosas (1994: 293), António Ferro, na chefia da SPN,
terá inclusivamente dito que “politicamente só existe o que o público sabe que
existe”. A censura, através da anulação de um sujeito, servia, assim, para
neutralizar a oposição política.
Paula Morais nota que, mais do que as pessoas, foram perseguidos e
silenciados os discursos que produziam, sempre que ameaçavam abalar aquilo
que sustentava a ditadura (MORAIS, 2005, p. 29). Já Salazar, numa entrevista
dada a António Ferro, dizia considerar a censura uma instituição injusta, uma
vez que, por vezes, estava sujeita ao livre arbítrio dos censores:
38
influir, por exemplo, no corte intempestivo duma notícia ou da
passagem dum artigo. Eu próprio já fui em tempos vítima da
censura e confesso-lhe que me magoei, que me irritei, que
cheguei a ter pensamentos revolucionários... (…) Não é legítimo,
por exemplo, que se deturpem os factos, por ignorância ou por
má fé, para fundamentar ataques injustificados à obra dum
Governo, com prejuízo para os interesses do País. Seria o mesmo
que reconhecer o direito à calúnia. Os factos são os factos e não
pode permitir-se que se ponham em dúvida os actos ou os
números que traduzem a própria vida do Estado, se há quem se
lembre de fazê-lo, como em Portugal. É uma questão de decoro e
dignidade pública.” (FERRO, 2003, p. 31/32)
39
ser apaixonada, pro ser humana, e que significará, sempre, para
quem escreve, opressão e despotismo. (FERRO, 2003, p. 33)
40
não fosse proibida. Sempre que não conseguiram iludir a máquina censória, a
publicação das obras foi inviabilizada. Aliás, devido aos critérios discutíveis da
PIDE, mesmo os que tentavam iludir a máquina, nunca conseguiam saber
exactamente se a censura os proibiria ou não. Assim, os escritores passavam
por um duplo processo de censura: aquela a que se impunham de forma a
conseguirem iludir a máquina censória e a própria censura do regime. Neste
processo, entre outros, recorriam a imagens visuais, como monstros,
metaforizando-as, ou usavam intertextos clássicos. Assim, a imagem literária
substituía o senso comum da realidade, apresentando uma realidade paralela,
colocando o leitor numa outra estrutura, feita com outro código verbal, e
obrigando, assim, quem lesse a mover-se numa estrutura planeada.
Assim, podemos encontrar nos textos da época algumas das
características que Umberto Eco encontra no discurso alquímico: a capacidade
de um sentido para além do literal, o que implica uma interpretação simbólica;
a utilização de referentes prosaicos para aludir a outras circunstâncias; a
utilização de uma máscara simbólica que camufle o discurso graficamente
explícito.
Os censores, vistos pelo Estado como um instrumento de defesa, liam
tudo o que era publicado. Os textos jornalísticos passavam pelo aparelho
censório antes da publicação e os textos literários passavam imediatamente a
seguir a serem publicados, podendo ser proibidos ou rasurados.
Posteriormente, os textos cortados vinham a público (a não ser quando toda a
edição era proibida), já inócuos. Assim, a censura actuava em dois planos: no
plano preventivo, ao impedir publicações e ao garantir, sob várias ameaças,
que não fossem escritas obras que afrontassem directamente o regime; e no
plano punitivo, ao proibir obras publicadas e mover acções legais contra os
41
autores. Ao mesmo tempo, com esta estratégia, ao apagar escritores da vida
pública, os censores excluíam-nos do capital simbólico, que pertencia ao
Estado e a quem o apoiava, reproduzindo os discursos que legitimavam e
reafirmavam o seu poder. Nos primeiros anos da ditadura, entre 1926 e 1934, a
censura só era feita a livros de carácter político e social. Contudo, acabou por
extremar-se e passou a censurar qualquer texto desde que houvesse uma
denúncia que desafiasse o status quo. Neste sentido, assumiu um papel
preponderante na produção literária, não só controlando/proibindo o que era
publicado, mas chegando ainda a ordenar a extinção da Sociedade Portuguesa
de Autores (1965) em virtude da atribuição do Prémio de Novelística a
Luandino Vieira, preso por pertencer ao MPLA, ou a condenar Natália Correia
por ter publicado a Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1965).
João Camilo dos Santos nota que a avaliação das obras literárias deve
ter em conta critérios de ordem estética e critérios de ordem ética (SANTOS,
2004, p. 217). Assim, os primeiros implicam a referência a noções como as de
género, estilo, técnica, etc., e os segundos obrigam a situar a obra como
“discurso” no contexto histórico, trazendo temas como a ideologia. A avaliação
da PIDE fazia-se somente no segundo plano, condenando o que a afrontava e
afrontando a idoneidade dos escritores, difamando-os e afastando-os da
produção simbólica. Ao mesmo tempo, ao rasurar estes aspectos e publicar as
obras sem eles, já inócuas, despojava-as dos seus elementos constitutivos e
desprovia a obra da relação problemática que esta estabelecia com o zeitgeist
em que era concebida.
A censura, imprescindível para a vigência da ordem, proibiu centenas
de livros, geralmente consideradas de carácter erótico ou pornográfico ou
críticas do regime. Neste ambiente nefasto à produção intelectual e à criação
42
artística, muitos jornais foram fechados e muitos autores foram atingidos, não
só através da proibição das suas obras mas também sob acusações de
imoralidade.
Este organismo tão necessário à manutenção do Estado Novo teve,
contudo, várias fases: em Junho de 1926, após o golpe militar de 28 de Maio,
foi instituído um regime de censura prévia; com a Constituição de 1933 e o
decreto-lei nº22469, a censura passou a ser legalmente instituída;
posteriormente, a Lei nº 150/72 previu que os artigos propostos para
publicação passassem a ser assinalados com “autorizado”, “autorizado com
cortes”, “suspenso”, “demorado” ou “proibido”.
Nos anos sessenta, contudo, a censura endureceu de forma
considerável. Salazar, ao invés de nomear os responsáveis pela censura, como
até então, pôs, no dia 20 de Outubro de 1962, os serviços censórios
directamente sob o seu controlo, dizendo que esta função caberia, a partir daí,
somente à Presidência do Conselho e que nenhum outro departamento do
Estado devia imiscuir-se na matéria.
Luiz Francisco Rebello nota que a censura, e aqui refere-se apenas ao
teatro, foi tríplice, tendo-se dado no campo ideológico, económico e geográfico
(REBELLO, 1977, p. 25). Assim, os órgãos repressivos ter-se-iam interposto
entre os trabalhadores teatrais e o público (censura ideológica), os empresários
teriam seleccionado os espectáculos que lhes eram rentáveis, condicionando-os
ao gosto burguês, tendo bilhetes a preços inacessíveis às classes trabalhadoras
(censura económica) e a concentração quase exclusiva do teatro em Lisboa
limitava a possibilidade de assistir a teatro a quase toda a gente (censura
geográfica). Com esta censura tríplice, o regime garantia que ficavam intactas
as estruturas que o sustentavam. Nos últimos anos, já com Marcelo Caetano ao
43
leme, podia julgar-se que as políticas repressivas iriam atenuar-se. Afinal, o
regime apresentava-se com uma mão que parecia mais branda e, da mesma
forma que as colónias passaram a chamar-se “províncias ultramarinas”, a
censura à imprensa passou a chamar-se “exame prévio” e a censura aos
espetáculos passou a chamar-se “exame e classificação”. Contudo, por muito
que os nomes mudassem, as políticas continuaram as mesmas e errou quem
pôde julgar que, a partir da queda de Salazar, a ditadura seria mais branda.
Assim, o aparelho censório foi central na manutenção da estrutura
orgânica do Estado Novo, necessária para que este pudesse ter o controlo
absoluto da produção intelectual e simbólica e para que pudesse controlar as
notícias que chegavam à população. Tendo como missão silenciar e ocultar o
inconformismo com o regime, não abrangia apenas a imprensa e a literatura,
imiscuindo-se em todas as formas de comunicação social, como a televisão, o
cinema e a rádio, para além do papel que desempenhava no ensino. Sempre que
uma opinião manifestada fosse inconveniente para a ditadura, a censura
exerceria os mecanismos necessários à impossibilidade de ser transmitida à
população. Desta forma, o Estado Novo salvaguardava-se de ver perturbada a
propaganda apologética que espraiava pelo país, manipulando a opinião
pública.
44
sem precisarem de recorrer a outras disciplinas. Será, assim, necessário
perceber a estrutura literária e pretende-se uma análise imanentista da
literatura, ou seja, uma análise de aspectos que sejam estritamentos literários.
Em 1915, o Formalismo Russo foi a primeira escola literária a
questionar o que seria o literário num texto literário, ou seja, a questionar o que
seria a literariedade, o que distinguiria esse texto de qualquer outro. Com o
formalismo, valorizava-se a realidade material do texto em detrimento da
reflexão sobre a realidade social, ou seja, a literatura era um pretexto para a
forma, sendo desvinculada de condicionantes históricos. O texto era um
caminho para que se procurassem moldes verbais que conferissem
literariedade. O indivíduo concebia a realidade pela sua consciência espírita e
transcendental, não como ser social, e o valor artístico dependia dos
componentes artísticos. Isto era exactamente o contrário do que defendia a
teoria literária marxista que, através de uma visão sociológica, ligava a
literatura à realidade social, ligava a obra literária a uma estética classista.
Segundo esta, apenas teriam valor as obras que pudessem relacionar-se com os
conflitos classistas.
Ultimamente, tem-se olhado para as obras de escritores tendo-se em
conta o contexto sócio-político a partir do qual nascem. Aqui a perspectiva
científica ganha espaço e passa a existir uma ciência da literatura, com métodos
próprios, que bebem da biografia, da psicologia, da sociologia, da filologia.
Iremos aqui dar um particular enfoque à Teoria da Recepção, que
propõe que se reformule a histografia literária e a interpretação textual. O
objectivo é considerar a literatura como produção, recepção e comunicação, ou
seja, considerá-la a partir de uma relação dinâmica e dialógica entre autor, obra
e leitor. Assim, rompe-se com o exclusivismo da teoria de produção e da
45
representação da estética tradicional, partindo-se do princípio de que o texto
literário é feito a partir de uma certa relação com o seu público potencial, ou
seja, que a proposta de formulação estética inclui a imagem dos receptores.
Assim, interessar-nos-á a noção de obra aberta (1962) de Umberto Eco, com a
perspectiva que inaugurou sobre a relação dialógica entre autor, obra e
receptor, um ponto de partida para o que aqui queremos tratar.
A Estética da Recepção surgiu na Universidade de Constança, numa
aula inaugural de 1967. Na palestra “O que é e com que fim se estuda a história
da literatura?”, Jauss criticava a forma como a teoria literária tinha vindo a
abordar a história da literatura. Em 1969, o conteúdo desta palestra foi
publicada com o título A história da literatura como provocação à teoria
literária, que tinha alguns acrescentos em relação ao que fora proferido. A
crítica de Jauss baseia-se na ideia de que a teoria seguia tendências gerais – ora
seguia sequências cronológicas, que deixavam de contemplar a historicidade
das obras, ora seguia biografismos. JAUSS (1993, p. 33) considera que a
sociologia da literatura e o método imanente de interpretação da obra se
desenvolveram como reacção às orientações positivistas e idealistas e que
aprofundaram o abismo entre história e arte literária. O antagonismo entre a
teoria literária marxista e a escola formalista testemunhá-lo-iam claramente.
Para mais, Jauss considera que a escola marxista trata o leitor, quando não o
ignora, como trata o autor: pergunta sobre a sua posição social ou tenta
reconhecê-lo no panorama de uma sociedade representada de determinada
forma, ou seja, chega a levar a dimensão social e histórica da obra e da
recepção a um limite, já que é a pertença social o que determina as condições
de recepção, ignorando que as trajectórias sociais e individuais têm infindáveis
elementos que multiplicam as possibilidades de interpretação de uma obra,
46
tornando-a individual para além de social. A escola formalista, por sua vez,
apenas precisa do leitor como sujeito, cuja função será a de discernir a forma e
os procedimentos do texto (JAUSS, 1993, p. 55/56). Assim, tenta reinserir o
facto literário isolado, como se a obra literária fosse autónoma, o que impede
que daqui possa resultar uma verdadeira história da literatura.
Jauss considera que os dois falham a compreensão do leitor e do seu
verdadeiro papel, compreensão imprescindível para o conhecimento estético e
para o histórico: a do leitor como aquele a quem a obra é inicialmente dirigida
(JAUSS, 1993, p. 56). Encara a recepção como social e histórica, analisa as
reacções do indivíduo pertencem às reacções do seu tempo (ou seja, que
também a interpretação é histórica) e considera que há uma intenção vinculada
ao início da relação dialógica por parte dos autores, o que torna o leitor num
elemento activo na relação dialógica: a sua intervenção, que é a leitura, faz
parte da constituição da obra, que só vive através da sua participação activa,
existente por meio da crítica e da reflexão.
Neste capítulo, iremos discutir a recepção de uma obra literária
enquanto elemento constitutivo dessa obra. Aqui partiremos da ideia de que
uma obra literária não pode deduzir-se apenas das circunstâncias biográficas ou
históricas ou até do lugar que ocupa na evolução num género; ao invés disso,
deve deduzir-se também por meio de outros critérios, que incluem as suas
condições de produção, a recepção que teve, a influência que exerceu, o valor
que teve para a posterioridade. A obra deve, desta forma, ser analisada
enquanto o todo orgânico que nasce da fusão de diversos níveis de experiência
(ECO, 1988, p. 28), importando particularmente o ponto de partida e o ponto
de chegada dessa criação. Assim, importará aqui também a relação de
alteridade que advém da criação de uma obra artística, uma vez que é essa a
47
que é estabelecida entre intérprete e obra. A arte, estruturando certo material,
pode dirigir o seu discurso sobre o mundo e reagir à história da qual nasce,
interpretando-a, julgando-a, fazendo projectos (ECO, 1988, p. 33). Ao mesmo
tempo, sendo criadora de realidade, os seus efeitos no campo político e nas
práticas sócio-culturais podem ser analisados (LOPES, 2010, p. 52). Assim, na
análise de uma obra literária, importa analisar o ponto de partida, para além do
ponto de chegada, dessa criação, já que uma análise abrangente exige que se
encare a obra enquanto o todo orgânico que nasce da fusão de diversos níveis
de experiência (ECO, 1988, p. 28). Se a análise for feita a este nível, ser-nos-á
possível avaliar a relação de alteridade, já que é essa a que é estabelecida entre
intérprete e obra. Eco chamou obra em movimento (ECO, 1988)4 àquela que
inclui a multiplicidade de intervenções pessoais: o autor oferece uma obra a
acabar e, ao terminar o diálogo interpretativo, por ter sido a sua obra aquela
que foi objecto de análise, será a sua forma aquela que é atingida, ainda que
organizada por outra (ECO, 1988, p. 62). O verdadeiro conteúdo da obra torna-
se, assim, no seu modo de ver o mundo e de julgá-lo, traduzindo-se em modo
de formar, já que é nesse nível que deverá ser conduzido o discurso sobre as
relações entre a arte e o mundo (ECO, 1988, p. 258). A obra de arte será,
48
assim, ainda que fechada na sua perfeição de organismo calibrado, aberta, já
que é passível de múltiplas interpretações, não redundando isto na alteração da
sua singularidade irreproduzível. Em cada fruição, que será uma interpretação
e uma execução, a obra reviverá dentro de uma perspectiva original (ECO,
1988, p. 41). Desta forma, a recepção fará parte da obra, será uma das formas
em que esta vive e revive e será uma das formas em que esta se expressa,
adicionando à criação de um autor, com a sua singularidade irreproduzível,
outras singularidades irreproduzíveis e outras possibilidades de formação da
própria obra, já que esta, criando realidade per se, permite ainda a análise das
múltiplas interpretações, o que nos permite conduzir as discussões sobre as
relações entre a arte e o mundo. Sem as interpretações, a análise da obra
literária fica confinada ao género e à verosimilhança, não se entendendo de que
forma a literatura age sobre o mundo.
António Cândido mostrou a forma como o externo (ou seja, o social)
importa não como causa ou significado mas como elemento que tem um papel
da constituição da estrutura, tornando-se, assim, num elemento interno
(CÂNDIDO, 2006, p. 14). Tratar o elemento externo como elemento externo,
contudo, pode ser o foco de estudos de sociologia da literatura, já que estes não
têm necessariamente de se versar no problema artístico, mas no que condiciona
a produção literária. Esses estudos não têm de ter a orientação estética que um
crítico literário tem de assumir.
Já em 1914, Lukács, discutindo o teatro moderno, se perguntava se o
elemento histórico-social possuiria per se significado para a estrutura da obra,
e como. Também se perguntava se seria o elemento sociológico na forma
dramática apenas a possibilidade de realização do valor estético, mas não
determinante dele.
49
Cabe à crítica literária avaliar a intimidade da obra, mas aqui queremos
também avaliar os factores que actuam na sua organização interna. Ou seja,
nos termos de Lukács, perceber se o facto social fornece matéria
literária/conduz a criação literária (se possibilita a realização do valor estético)
ou se actua na constituição do que existe de essencial da obra enquanto obra de
arte (se é determinante do valor estético). Não descurando o significado da
obra, queremos ter em conta o elemento social como elemento da própria
construção literária, ou seja, queremos ver de que forma este será explicativo e
não ilustrativo.
Convém ainda mencionar que a sociologia da literatura e o método de
interpretação das obras de arte foram desenvolvidas em reacção às orientações
positivistas e idealistas. De acordo com a estética da formatividade, o criador
inventa novas leis e o mundo possível que cria rege-se através delas. Esta
novidade, contudo, não nasce como geração espontânea; pelo contrário, nasce a
partir de um conjunto de sugestões propostas ao artista pelo zeitgeist em que
vive, com a tradição cultural que o influenciou. Assim, a estética da
formatividade e o conceito de interpretação criam formas e organismos, têm
compreensibilidade e autonomia próprias. Nas obras de arte, existem as
intenções dos autores, que esperam fruições particulares que conduzam as
reinterpretações do leitor, mas, em concomitância, existe uma pluralidade de
leitores que levará forçosamente a obra para interpretações não pensadas pelo
autor (uma vez que, a partir do momento em que é concluída, a obra de arte é
autónoma), que terá forçosamente outras características psicológicas e outras
experiências sociais e artísticas. Assim, por muito que se tente atingir, através
da leitura, as verdadeiras intenções das condições de produção, a interpretação
será forçosamente pessoal e não conseguirá atingir todos os significados
50
possíveis. Ao mesmo tempo, será difícil entender as intenções de condução de
leitura dos próprios autores, que não ignoram que a obra que apresentam, ainda
que calibrada, vá ser fruto de interpretações várias e que o texto literário é
forçosamente aberto a várias possibilidades de interpretação, ainda que tentem
orientá-las, o que impossibilita o estabelecimento de uma definição referencial
do texto literário. Cada leitura será, por isso, irrepetível, mesmo que a mesma
pessoa releia um texto, já que as duas leituras se farão em momentos diferentes
e que a segunda, e as seguintes, terá, ou terão, a experiência prévia da primeira
leitura, em que foi já formada uma ideia do texto que condicionará qualquer
leitura seguinte.
Analisaremos aqui vinte e uma obras literárias, mostrando de que
maneira, enquanto formas de poder simbólico, afrontaram um regime político,
debatendo a forma como trouxeram experiências históricas à obra
comunicativa. Se algumas delas, como veremos, foram claras ferramentas
políticas, agindo os seus elementos internos como forma de contraposição a um
regime social, noutras os elementos que activaram os mecanismos censórios
não desempenharam nenhum papel de relevo na construção da narrativa.
Teremos, contudo, o cuidado de evitar um sociologismo excessivo, não
reconduzindo os valores estéticos àquela que deveria ser a natureza extra-
estética. Ao mesmo tempo, ainda que reconhecendo a pertinência e a
relevância da análise marxista, que procura esclarecer qual é a relação entre a
base económica e os diversos episódios tratados na literatura, partindo do
processo real da vida e acabando a explicar-se o desenvolvimento dos reflexos
ideológicos, iremos evitar análises demasiado ortodoxas, uma vez que
considerar o valor da obra de arte na expressão do momento histórico e na
utilidade para a luta de classes ou mesmo na relação entre super-estrutura e
51
infra-estrutura dentro da obra literária se tornaria aqui redutor por não tocar
sequer no problema artístico. Iremos aqui tratá-lo, não fazendo do fenómeno
cultural apenas economia, sociedade e classe, ainda que reconhecendo a sua
importância, já que a obra não pode ser desligada dos contextos relacionais em
que foi produzida e recebida. Assim, usaremos a sociologia como disciplina
auxiliar, não para explicar o fenómeno artístico totalmente, mas só alguns dos
seus aspectos, uma vez que queremos saber qual é a influência que o meio
social exerce na obra de arte (condições de produção) e também analisar a
influência que a última exerce no primeiro (condições de recepção), o que nos
permitirá uma interpretação dialéctica. Para além disto, faremos a análise
literária – estética – das obras.
As obras literárias são permeáveis à realidade histórica (o que, aliás, é o
que leva a que os géneros não miméticos sejam negligenciados em detrimento
dos épicos). Contudo, reproduzir o processo económico, num paralelismo
exacto, seria reduzir a literatura a espelho do mundo, o que também reduziria o
potencial do seu efeito, dissolvendo até o carácter revolucionário da arte
literária. Com o decalque da realidade, não se abre uma nova percepção, um
debate, uma visão clarividente, ninguém se distancia das representações da
situação histórica. Ao mesmo tempo, a literatura servirá apenas como veículo
de reconhecimento do que já é conhecido. A repetição pretende a consistência,
torna-se num plano que não falha: afinal, reproduz o que existe. Ignora que,
assim sendo, é uma insistência. Assumir que é a realidade que determina a
criação da arte faz com que a arte seja vista apenas como campo de
reprodução. É que, se a obra de arte incorpora o lugar social em que se forma,
de onde parte, também não tem, graças à sua agencialidade, de ser determinada
por ele.
52
Se a arte for um reflexo, servirá apenas para que o que já é conhecido
reapareça, para a repetição do status quo, não podendo introduzir, inovar,
acrescentar. Assim, a história da literatura não pode ser considerada autónoma:
ela só existe na sua relação com a práxis histórica, na sua função social. Por
isso, será crucial analisar a história particular da literatura com a relação que
esta tem com a história geral, podendo perceber-se a função social da arte
literária ao perceber-se a visão dos autores e as experiências dos leitores da
época, analisando as ligações entre a produção material e a práxis social.
No realismo, o valor da obra era julgado consoante a capacidade que
esta tinha de reflectir a realidade. Posteriormente, com o surrealismo, veio a
acontecer o oposto: a matéria da obra de arte seria de somenos, o foco literário
seriam as operações formais. Aqui queremos fundir texto e contexto, analisar a
relação do trabalho artístico com a realidade, mesmo que o primeiro tente
reproduzi-la integramente. Afinal, como diz António Cândido, “a mimese é
sempre uma forma de poiese” (CÂNDIDO, 2006, p. 22). Contudo, estabelecido
o laço entre o comunicante (o artista), o comunicado (a obra) e o comunicando
(o público), temos de encarar a arte como um sistema de comunicação, e
comunicação expressiva, o que a torna em mais do que a vida do artista, em
mais do que decalque. Para mais, os elementos individuais ganham significado
social ao entrarem no esquema de comunicação colectiva, em que a obra de
arte é dirigida a um público indistinto, ou seja, em que os receptores não são
escolhidos pelo autor. Assim que publicada, a obra passa a pertencer ao
público, deixa de ser individual. Ainda assim, veiculará desejos pessoais,
alguns impossíveis de descortinar pelos leitores.
Para mais, perceber qual é o papel do social dentro da obra leva-nos a
uma interpretação dialecticamente íntegra. Analisá-lo como elemento condutor
53
das narrativas pode servir propósitos sociológicos, mas não abrange a obra na
sua essência literária. Atentemos nas declarações de António Cândido:
54
A determinação definitiva do âmbito da obra literária pressupõe a
captação e a determinação conceptual da própria essência da obra
literária. (INGARDEN, 1965, p. 23)
55
(TROTSKI, 1976, p. 14). Contudo, antes dela, há uma realidade a menos.
Depois, existe uma realidade que nem é sequer paralela ao mundo: ela só
existe na obra. É a própria obra. É essa realidade nova, criada intencionalmente
por uma autora, esse mundo possível, que nos propomos aqui analisar, com as
implicações que trouxe à sua época, com as convulsões que criou no seio de
um regime político.
Importa, de qualquer forma, salientar que nos referimos aqui a
literatura, ou seja, a textos em relação aos quais os leitores fazem os seus
juízos, mas sempre dentro das condições de verdade que existem dentro de um
mundo possível e pressupondo-se a presença desses leitores enquanto figuras
que percebem os elementos referenciais e linguísticos da criação literária. Este
mundo possível será autónomo, regido por leis próprias e pelos seus próprios
significados. Aí, o mundo ficcional é tido como mundo de referência. Na
literatura, existem sistemas de significação. Ao mesmo tempo, a literatura é
comunicação e, para se entender o processo comunicativo no seu todo, importa
conhecer o zeitgeist de concepção do texto. Não serve, por isso, uma análise
que seja feita só em termos de significação. Os censores literários,
principalmente quando se viam perante textos metafóricos (como serão os
casos de O Encoberto ou O Homúnculo, de Natália Correia, a que aqui nos
referiremos), tentavam perceber de que forma os mundos possíveis poderiam
imiscuir-se na vida social portuguesa, rejeitando o que não era inócuo para o
regime.
Não deixando que a literatura seja panfletária, já que isso também a
limita e que facilmente a denuncia (os leitores percebem de imediato quais são
as conclusões que os autores querem que sejam tiradas), fazer com que o
processo histórico seja um elemento interno da construção das narrativas e com
56
que conflua no delinear das personagens dar-nos-á mais mecanismos analíticos
e permitir-nos-á encarar a obra de arte sob múltiplos prismas. No entanto,
ainda que se assuma que a leitura não pode ser ingénua, também se partirá do
princípio de que todas as interpretações são parciais, estando sujeitas às
condições de partida dos próprios interpretantes, e que, portanto, nenhuma
conseguirá listar todos os significados possíveis de um texto. Assim, se a obra
vive nas interpretações que dela se fazem (ECO, 1972, p. 31), também se
assume a infinidade destas interpretações, não apenas pelo carácter fecundo da
forma literária, mas pela infinidade de interpretantes, sendo, assim, infinitos os
lugares de partida das interpretações, as influências culturais/sociais, os modos
de ver/pensar/interpretar. A obra será, assim, mais do que a intenção do seu
autor, já que, sendo forçosamente parte de um processo comunicativo, de uma
relação dialógica, se torna no conjunto de reacções interpretativas que provoca
(ECO, 1972, p. 32). Desta forma, de pouco importarão as intenções dos
autores, caso estas sejam totalmente prevaricadas pelas interpretações dos
leitores. Isto contraria a ideia de que a única interpretação válida é a que
descortina a intenção original do autor.
Ao mesmo tempo, e ainda que assumindo que a criação é singular, ou
seja, que vem de um indivíduo único e, por isso, será irrepetível, ela parte de
uma visão do mundo, está inserida num fenómeno colectivo. A classe tem um
ângulo ideológico, uma maneira de ver: “os elementos de ordem social serão
filtrados através de uma concepção estética e trazidos ao nível da fatura, para
entender a singularidade e a autonomia da obra.”, diz António Cândido (2006:
25). O que diz aqui é exactamente o contrário da crítica determinista, a que já
nos referimos – esta tenta anular a individualidade da obra, integra-a apenas
nos elementos sociais, julgando-os suficientes para explicar totalmente o
57
fenómeno artístico, o que leva a que alguns problemas pareçam facilmente
resolvíveis. Uma crítica determinista, por isso, usará sempre instrumentos
simplistas de interpretação da obra literária e do fenómeno artístico.
Parece-nos ainda que a intenção original do autor simplesmente molda
o texto, que o autor tem, de facto, uma intenção, mas que, a partir do momento
em que o objecto literário chega às mãos do leitor, deixa de pertencer por
inteiro ao criador. Se uma obra, por exemplo, servir uma luta feminista, de
pouco importa que os seus autores digam não terem tido o intuito de escrever
uma obra feminista: esta, independentemente da intenção do agente primeiro,
fará parte daquilo a que serve; a recepção não desempenha um papel de
somenos em relação à produção.
Na relação dialógica autor-obra-público, este último não é um elemento
passivo que pode apenas reagir em cadeia, mas antes uma contribuição para a
própria história. Por isso, importa aqui citar Jauss, quando este afirma a
necessidade da participação activa de quem lê:
58
resposta ou na relação entre problema e solução. (JAUSS, 1993,
p. 57)
59
literatura, percebe-se que o texto é feito para que alguém o actualize (ECO,
1993, p. 77), que o próprio texto postula a acção do leitor como condição da
actualização. Assim, a história da literatura implica a actualização de textos
literários, tanto através de leitores como de críticos. Como são os leitores quem
actualiza as obras, a recepção está em constante actualização. Neste sentido, e
porque a recepção cultural engloba a interpretação como um acto de um
processo estético que inclui toda uma cadeia de construção, difusão e
reconstrução dos textos (LOPES, 2010, p. 51), importa pesar o livro no que
acontece após a sua publicação. A leitura como actualização é crucial na
análise literária, histórica, de uma obra na medida em que o efeito de um livro
só existe se tiver novos leitores que reajam em relação a si, seja por imitação,
ultrapasse ou recusa. Assim, vemos a recepção enquanto parte integrante da
criação literária e a literatura constitui-se no horizonte da expectativa –
Erwrtungshorizont – da experiência dos leitores, sejam coetâneos ou
posteriores.
Assim, até ser lido, por não ter sido actualizado pelo leitor, o texto está
incompleto, o que faz encarar a recepção como uma parte integrante do texto,
já que toda a mensagem, linguística, literária, pressupõe a competência
gramatical do destinatário. O leitor precisa de movimentos cooperativos,
activos, conscientes, de perceber que está perante um processo de
comunicação, não de recepção passiva, e de ter noção de que o autor deixou
espaços em branco por uma razão, de que a obra inclui o não-dito, o que não
está manifesto no plano da expressão.
Aliás, Barthes afirma a necessidade de procura de um leitor por parte
do autor, de forma a criar-se um espaço de fruição. Aqui, não importaria a
pessoa, mas antes o espaço: é este que permite uma dialéctica e uma fruição
60
imprevista (BARTHES, 1973, p. 37). Os dados para esta relação estariam
assim lançados, caberia aos seus interenvenientes dar início à sua relação
dialógica. O acto de escrever é, aliás, a prova de um desejo pelo leitor: depois
de o autor assumir a iniciativa da obra, o texto, que se torna em significante,
existe para ser lido. Assim, se assumirmos a função social das obras literárias,
temos de pensá-las à luz da necessidade de satisfações dos autores, que podem
ser de várias ordens e incluir a vontade de alterar uma ordem social.
A partir daqui, o texto viverá ainda na multiplicidade de
interpretações, nos múltiplos sentidos que poderão ser atribuídos pelos leitores,
o que não significa que qualquer interpretação possa ser válida, ou seja, o facto
de a obra estar sujeita a interpretações não implica que possa derivar naquilo a
que Azevedo chamou “licenciosidade hermenêutica” (AZEVEDO, 1995, p.
13), já que os predicados ontológico-funcionais do texto permitem orientar as
interpretações, as actualizações semânticas. Pelo contrário, sugerir que a
interpretação seja potencialmente ilimitada não é o mesmo que dizer que todas
as interpretações seguirão raciocínios correctos, coesos: “Interpretar um texto
significa explicar porque é que estas palavras podem fazer várias coisas (e não
outras) segundo o modo como são interpretadas.” (ECO, 1993, p. 30), dizia
Eco. Aliás, quando o autor italiano publicou Obra aberta, em 1962, deparou-se
com o seguinte problema: como é que uma obra de arte poderia postular uma
livre intervenção interpretativa por parte dos leitores e, ao mesmo tempo, exibir
as características estruturais que estimulavam e regulavam a ordem das suas
interpretações? O autor diz ter concluído mais tarde que esse tipo de estudo
correspondia à programática do texto: abordava um aspecto, o da actividade
cooperativa, em virtude da qual o destinatário extrai do texto o que o texto não
diz. Ou seja, preencheria espaços vazios, conectaria o que aparece no texto
61
com tecido da intertextualidade (ECO, 1993, p. 13). Assim, assume-se que uma
obra literária nunca é uma total novidade. Há vários referentes comuns, o autor
partilha várias das referências culturais com os seus leitores:
62
2.5. A autoria feminina num contexto em que a ditadura afastava as mulheres
do acesso à produção simbólica
63
hierarquias. O privilégio da classificação, e do estabelecimento do outro, é
exclusivo das classes dominantes: estas determinarão diferentes valores aos
diferentes grupos, valorizando-os ou desvalorizando-os, garantindo para si
mesmas um lugar social privilegiado. Desta forma, prolongarão ou perpetuarão
a relação de poder que estabelecem com o outro. Assim, encaramos a
identidade e a diferença como criações sociais e culturais (SILVA, 2000, p.
76), resultantes de um processo de produção simbólica e discursiva (SILVA,
2000, p. 81). Para diferenciar, convém ainda naturalizar a classe diferenciada,
fazendo das classes dominadas as outras classes. É aqui que se vê que, quando
se fala de escrita feminina, se está a partir do princípio de que a escrita tem
uma masculinidade implícita, que a outra terá de ser diferenciada em relação a
ela, o que, também graças à prévia exclusão social, faz com que a literatura
criada por mulheres seja vista como marginal dentro da própria literatura.
A concepção de família do Estado Novo domesticava as mulheres,
encarava-as como coadjuvantes dos homens. Assim, forçosamente, estas
estiveram afastadas do acesso à produção simbólica. Aliás, para concluirmos
por este afastamento, bastará olhar para os números das obras literárias que a
PIDE proibiu, e constatarmos que apenas vinte e uma foram escritas por
mulheres (vinte e uma obras, nove autoras). Era a cultura dominante que
impunha um paradigma que afastava as mulheres do acesso a este tipo de
produção, que dividia o mundo em dois sexos, correspondentes a dois géneros,
aos quais estavam já previamente atribuídos papéis específicos:
64
femininas numa lógica relacional, isto é, definindo-se uma em
função da outra (CUNHA, 2012, p. 2)
65
pressupostos tradicionais da ficção. (JESUS, 2012, p. 49)
66
por mulheres começa a tornar-se significativa. A maior parte dos livros em que
aqui nos focaremos foi escrita a partir dessa altura. Compreende-se que a
produção literária por mulheres seja parca até então devido ao seu difícil
acesso à escolarização.
Podemos indagar sobre um possível denominador simbólico comum às
mulheres que produziam literatura, já que estas partilhavam uma identidade
social, que partia de elementos culturais, sociais, económicos, físicos, políticos.
Contudo, ao contrário dos homens, a quem a produção simbólica estava já
destinada, criar literatura era já uma subversão, ainda que o conteúdo não
tivesse necessariamente de ser subversivo, ou seja, a escrita seria, a priori, uma
acção performativa de subversão. Por isso, não será de estranhar que, nos
próximos capítulos, tenhamos livros que são subversivos e livros que são o
decalque da realidade, sem pretenderem uma mudança do mundo, sem
impulsionarem um debate sobre o status quo, sobre a história, sobre as relações
sociais. Partamos, então, para a análise das obras, assim como da recepção que
tiveram. A recepção que aqui nos interessa será aquela para além da proibição
da PIDE, sabendo de antemão que, em muitos casos, será possível que a
censura literária tenha impedido que houvesse uma recepção pública, ou seja,
por parte do público leitor, para além da acção dos agentes censores literários.
67
3. Maria Archer
68
sobre a sua vivência em África. Com o livro Viagem à roda de África (1938),
infanto-juvenil, ganha o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. Escreve ainda
uma série de seis livros sobre África na Colecção Cadernos Coloniais 5,
publicados entre 1936 e 1938.
Em 1945, adere ao MUD, um movimento que se opunha a Salazar e
que surgira em oposição ao Estado Novo no contexto do fim da Segunda
Guerra Mundial, já aqui referido. Uma vez regressada, dá-se início a processos
de censura dos seus romances. Em 1938, Ida e volta duma caixa de cigarros é
apreendida e o mesmo vem a suceder com Casa sem pão, desta vez em 1947.
Sem meios de subsistência, Archer refugia-se no Brasil, onde chega
em 1955 e onde permanece até 1979, já depois da derrota da ditadura
salazarista. Sobre este exílio, Elisabeth Batista cita uma entrevista que Archer
teria dado ao jornal carioca “Diário de Notícias” no dia 15 de Janeiro de 1956:
É possível que esta partida para o Brasil se deva mais a medo de uma
possível prisão do que apenas a um desapreço pessoal pelas posições do regime
salazarista. Tendo a autora seguido de perto o julgamento de Henrique Carlos
Galvão (no qual tirou várias notas, o que não passou despercebido aos agentes
5 Colecção com setenta livros publicados pelas Edições Cosmos entre 1920 e 1960.
69
da PIDE), que contestara a ditadura, e tendo-se proposto a escrever um livro
sobre o assunto, vira a sua casa ser invadida pelos agentes do regime no dia 20
de Junho de 1953.
Assim como assim, chegada ao Brasil, colabora com jornais como “O
Estado de São Paulo”, “Semana Portuguesa” e “Portugal Democrático”. Este
último, que existiu entre 1955 e 1974, tinha o objectivo de divulgar e denunciar
a situação portuguesa e tentava criar um grupo anti-Estado Novo a partir do
exílio.
Voltou para Portugal depois do 25 de Abril. Chegou em 1979 e ficou
internada na Mansão de Santa Maria de Marvila, um asilo, em Lisboa, onde
passou os seus últimos três anos de vida. Ali morreu três anos mais tarde.
Maria Archer foi escritora e jornalista numa altura em que o regime
político do seu país queria confinar as mulheres ao lar. Graças a isso, viu as
suas obras serem censuradas, perdeu o seu meio de subsistência e viu-se
afastada do seu país durante mais de vinte anos. Na sua obra, o seu pensamento
crítico e as suas posições interventivas são claros, assim como é claro que a
autora rejeitava o padrão da dependência e da subserviência femininas.
70
tenham tido reedições posteriores: no caso deste romance, a primeira e a
segunda edições saíram em 1944, pela Parceria A. M. Pereira; a terceira edição
saiu pela SIT, em 1952; a obra veio a ser recuperada pela Parceria A. M.
Pereira em 2001.
Em Outubro de 1949, João Gaspar Simões fez uma profecia que não
parece em vias de cumprir-se:
O facto é que esta obra de Maria Archer conheceu três edições, mas
nenhuma após a sua publicação imediata: a primeira (edição da autora) e a
segunda edição (Soc. Ind. de Tipografia) datam de 1949 e a terceira (Soc. Ind.
de Tipografia) de 1950. Parece que hoje, e entretanto, como então, não há nem
houve “um único editor” capaz de “perceber” (ou de “olhar para”?) este livro
como “uma colecção de obras-primas do conto português”. Por desinteresse,
falta de encanto ou desconhecimento, o certo é que a edição actual portuguesa
não tem dado grande destaque a Maria Archer, ainda que haja duas reedições
suas nas últimas duas décadas: em 2001, como já foi mencionado, a Parceria
71
A. M. Pereira reeditou Ela é apenas Mulher; em 2013, a mesma editora
reeditou Memórias da linha de Cascais, escrita com Branca de Gonta Colaço,
uma edição fac-similada da obra de 1943.
As declarações de João Gaspar Simões foram feitas enquando
apresentava, na sua coluna “O livro do mês”, esta obra, identificando a sua
edição enquanto edição de autora e apresentando-a como credencial do seu
pessimismo. Dizia ele: “Em qualquer país civilizado a autora de Há-de haver
uma lei... teria, pelo menos, meia dúzia de editores, e dos principais da nação, a
disputá-la como seu best seller” (SIMÕES, 1949, p. 15). Ao mesmo tempo,
dizia não ser fácil afirmar com segurança que um certo autor e/ou um certo
livro sobreviveriam ao tempo, que seriam lidos décadas após a sua publicação,
até porque ninguém sabia ao certo o que produzia a sobrevivência em
literatura, embora o seu apreço por Maria Acher lhe desse a certeza da
sobrevivência das suas obras. Ao referi-la, dizia aos seus leitores:
Desta forma, assumia já o cânone como atingível, por defeito, apenas por
escritores que fossem homens. Ao mesmo tempo, assumia que a mulher,
também por defeito, seria inferior ao homem, e com ela a sua produção: é que
72
precisou de afirmar que Maria Archer não o era. Não era inferior ao “sexo
nobre”, não era inferior ao “primeiro sexo”. O seu mérito estaria em igualar-se-
lhe. Com isto, sugeria que uma mulher não poderia fazer nunca mais ou melhor
do que um homem, que a sua relação de inferioridade seria sempre o seu ponto
de partida. Quanto às intenções literárias da autora, vale a pena aqui deixar
uma citação: “A minha obra literária tem sido norteada pelo princípio vital de
rebater o conceito arcaico da inferioridade mental da mulher.” (ARCHER,
1952, p. 5). Simões não a considerou mentalmente inferior, daí que tenha dito
que não pudesse “deixar de ser considerada desde já um grande contista, um
grande escritor” (SIMÕES, 1949, p. 15). Mas considerou-a mentalmente
inferior a priori, daí a sua grande surpresa ao constatar que não o era. A
referência no masculino a qualquer mulher que surpreendesse, que fizesse um
trabalho de qualidade, que criasse bom material literário, deixava implícita a
superioridade dos homens, revelava que pouco se esperava da capacidade
intelectual das mulheres. Contudo, e apesar da citação acima, Maria Archer
gostou, segundo Dina Maria dos Santos Botelho, de ser assim equiparada:
73
sobre o seu livro África Selvagem. Citando-o (“Este livro escrito por um
homem seria honroso para ele”), indigna-se: “Seria necessário estabelecer a
paridade ofensiva para me valorizar o trabalho?”
Referíamo-nos há pouco ao livro que motivou o comentário de João
Gaspar Simões, dizendo não se ter, para já, cumprido aquilo que então
vaticinava. Cabe, contudo, dizer que, apesar desta parca presença nas
prateleiras das livrarias, Maria Archer tem suscitado alguns estudos
recentemente: em 2002, Maria Leonor Pires Martins debruçou-se sobre a sua
obra, numa tese de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, intitulada Cadernos de memórias coloniais:
identidade de “raças”, de classe e de género em Maria Archer; em 2007,
Elisabeth Battista publicou a sua tese de doutoramento, apresentada à
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, intitulada Entre a literatura e a imprensa: percursos de Maria Archer
no Brasil; no dia 29 de Março de 2012, foi organizado um colóquio intitulado
“Vida e Obra de Maria Archer. Uma Portuguesa na Diáspora”, no Teatro da
Trindade, em Lisboa, por uma parceria entre a Fundação INATEL, a Câmara
Municipal de Espinho e a Fundação Professor Fernando de Pádua, que contou
com várias intervenções, divididas entre a evocação de Maria Archer enquanto
cidadã e enquanto escritora; em 2014, Guilherme Bordeira publicou a obra, já
referida, Acerca de Maria Archer, pelas Edições Vieira da Silva; no ano
seguinte, Elisabeth Battista publicou, pelas edições Colibri, Maria Archer: o
legado de uma escritora viajante. Anos antes, em 1994, já Dina Maria dos
Santos Botelho tinha apresentado à Universidade Nova de Lisboa a sua tese de
mestrado em Estudos Anglo-portugueses, intitulada “Ela é Apenas Mulher”:
Maria Archer, Obra e Autora, já aqui citada.
74
Estes estudos tendem a dar um grande relevo às posições políticas de
Maria Archer e à forma como estas enformavam a sua criação literária, para
além da forma como foram cruciais na definição da sua vida (particularmente
no exílio). Em pleno Estado Novo, a maneira de pensar de Maria Archer, que,
por um lado, se imbuía de uma visão anti-colonialista e, por outro, recusava o
confinamento doméstico das mulheres, perpassou toda a sua criação literária.
Daí que Botelho afirme que Archer pretendia “moralizar mesmo pela negativa”
(BOTELHO, 1994, p. 28): descrevendo as injustiças, pretendia a denúncia e a
prevenção.
É precisamente a isto que Guilherme Bordeira se refere quando, ao
mencionar Ela é apenas Mulher, dizendo que se dispôs a lê-lo sem grandes
expectativas, ficou impressionado com “o retrato impiedoso da sociedade
portuguesa dos anos 40 e, sobretudo, a luta da mulher no seio dessa mesma
sociedade com as armas de que dispunha” (BORDEIRA, 2014, p. 12).
Considera, assim, que a obra de Archer é “uma autêntica vergastada nos ditos
bons costumes quanto ao comportamento das heroínas nos romances da época”
(BORDEIRA, 2014, p. 50). No prefácio feito à edição desta obra em 2001,
Maria Teresa Horta viria a dizer que a verdade era que “Maria Archer não
cumpria enquanto mulher os cânones literários determinados pelos críticos, até
há bem pouco tempo sempre homens”. “Mas”, perguntava-se, “a História da
Literatura não tem sido toda ela feita pelos homens, à sua imagem e
semelhança?” (HORTA, 2001, p. VI). Isto remete-nos, aliás, para a dupla
censura por que passou Maria Archer, enquanto escritora e enquanto mulher.
Se, para a criação literária, estavam reservados mecanismos censórios que
impedissem a contestação através da arte, para as mulheres estavam reservados
mecanismos sociais, de controlo moral e político, que as impedissem de ser
75
agentes sociais. E é aqui que voltamos ao prefácio de Maria Teresa Horta,
também ela vítima dos mecanismos censórios:
(...) tudo o que Maria Archer dizia era proibido. Tudo o que ela
aqui escrevia, portanto, era assustador por esse motivo. A
desvirginização, o aborto, o prazer sexual das mulheres, a
violência masculina. O trabalho escravo que as mulheres então
executavam nas suas próprias casas. A violação diária na cama
do casal. A passividade ou revolta contra tudo isto. A
prostituição a que tantas raparigas eram obrigadas ou apenas
empurradas, por uma sociedade hipócrita, que em seguida a
condenava. (HORTA, 2001, p. X/XI)
76
(BORDEIRA, 2014, p. 59)
77
muitos meios oficiais e de muitos salões de tertúlias, arrastando-a para os
contatos com a oposição”. Descreve-a, ainda: “uma mulher livre, escritora de
garra, senhora de si e impondo-se pelo talento”. Terá pagado com o exílio este
afastamento, afastando-se inclusive do seu país de origem. Não é que se tenha
vergado por isso alguma vez: do exílio, tentava organizar a oposição ao
salazarismo, através do “Portugal Democrático”.
Antes disso, ainda durante a campanha presidencial de 1949, apoiou
Norton de Matos clara e publicamente, não contrapondo candidato a candidato,
mas contrapondo o princípio da liberdade à ditadura salazarista:
78
sua margem. As últimas reedições, muito recentes, por sinal, e o facto de ter
estado no cerne de alguns estudos científicos mostram, contudo, que esta é uma
autora de interesse, seja pela questão da estética literária, seja pela recuperação
da memória histórica, seja pela recuperação daquilo que pertence à história e
que passou por uma tentativa de apagamento. Este apagamento foi
consequência do lado oposicionista ao regime, mas começou a ser feito antes
de a autora ter escolhido conscientemente esse caminho:
79
em relação à autora, no dia 23 de Junho de 1973, Marcelo Caetano deu
autorização para que Archer regressasse a Portugal, o que, como já dissemos,
só viria a acontecer após o término da ditadura.
Nestas condições, Maria Archer produziu um repertório extenso, que
contou com mais de trinta volumes. Contudo, apenas Ela é apenas Mulher,
Nada lhe será perdoado e Memórias da linha de Cascais foram reeditados
recentemente. As suas restantes obras podem apenas ser encontradas em
alfarrabistas ou em websites de revenda e de leilões, o que nos leva a poder
afirmar que, apesar de algumas tentativas em sentido contrário, a sua obra, pelo
menos se olharmos para a sua dimensão total, não tem circulado. A autora foi
empurrada para o esquecimento pela PIDE, que agiu contra uma autora
dissonante do regime político que defendia – censurando-a, impediu-a de ser
escritora em Portugal, tirou-lhe o seu meio de subsistência e levou-a ao exílio,
quebrando-lhe laços, seja com o seu meio, seja com o seu público.
80
Duas novelas dêste livro foram escritas sob o deliberado
propósito de contribuir para a revelação da mulher.
– Vão-te acusar de autobiografia, disse-me quem as leu no
original.
– Que bom! pensei eu, lembrando-me da razão porque Arnold
Bennet fôra acusado de fazer autobiografia quando descreveu a
execução duma pena de morte.
Êle mesmo conta o saboroso episódio no prefácio do seu livro
“Conte de bonnes femmes”, ao publicar a tradução francesa.
Segundo informa Bennet a impresa britânica, pela altura do livro
ser editado em Londres, lavrara divertida sentença, conforme a
qual, só depondo de ver e ouvir Bennet poderia relatar com
tamanho realismo a execução capital a que assiste um dos seus
personagens. Or, escreve Bennet, je n'ai jamais assisté a une
execution capitale. J'ai puissé toutes mês informations a ce sujet
dans uns serie de comptes-rendus du Matin.
Aconteceu, porém, que Frank Harris veio ao prélio confessar a
mesma culpa. Sim, também êle acusa Arnold Bennet de fazer
auto-biografia na descrição do terrível cenário da guilhotina e na
cena da morte legal! Prova-o relatando, passo a passo, o que se
faz e o que se diz num dêsses dramas espantosos. Conclui que, a
quem o não tenha visto, não é possível imaginá-lo.
“Que pena não ter lido a tempo a sua descrição, respondeu
Bennet. Ser-me-ia muito útil. Lutei com falta de elementos
informativos, porque, posso garantir-lho, nunca assisti a uma
execução.”
“Quere saber? Eu também não”, acabou Frank Harris por
declarar.
81
Comentário de Bennet:
Cette petite anedocte merite d'etre retenue et d'etre servie en
reponse à cete quantité de lecteus qui, chaque fois qu'un
romancier les prend aux entrailles en leur donnat la convaincante
illusion de la realité, s'ecrient avec assurance: Oh! Ça, c'est de
autobiographie!
82
criaria realidade, teria efeitos no campo político, no campo social.
As duas novelas a que Maria Archer se referia são Ida e volta duma
caixa de cigarros (1937) e Cai no mar a gota de água (1936). Iremos referir-
nos a elas por esta ordem, uma vez que são a ordem pela qual se apresentam no
livro. São as duas primeiras, e a estas seguem-se Entre duas viagens (1938) e
Uma mulher como outras (1938)
83
“(...) o homem banal, de anatomia pobre – o animal inferior.
Nem fôrça, nem beleza, nem ardor, o impunham. Era sòmente
um homem, com necessidades e instintos como todos os outros,
que procurava um acto com princípio, meio, e fim, para
satisfazer essas necessidades e êsses instintos.” (ARCHER, 1938,
p. 17)
Ao mesmo tempo, quer ser amada por ele, dominá-lo pelo amor, e, por
alguma coisa querer, interessa-se por ele: o corpo acorda o que parece não
poder estar acordado. Quer que veja nela não um corpo, mas o seu corpo, uma
pessoa diferente das outras, de eleição. Quer captar só para si a sensibilidade
dele, sedenta de mulheres, independentemente da mulher. A sua vontade surte
o efeito desejado:
84
terra e regressava ao seu trono de núvens sem deflagrar o
milagre. (ARCHER, 1938, p. 22)
85
Aqui, percebe-se a intenção da autora em fazer com que confluam os
processos históricos na construção das personagens e fica claro que quer fazer
deles parte da estrutura interna da narrativa: percebe-se que entende haver uma
opressão de um sexo sobre o outro, com alcance no passado, e percebe-se um
desejo de vingança em que essa percepção encarna.
Marietta pergunta-se de onde virá o seu desejo de vingança, pergunta-
se até o que quer que seja vingado:
Vingava o quê? A sua própria dôr, a dôr que outro homem lhe
causara? Ou apenas a sua dôr de Mulher, de ser mais fraco,
vitima eterna do mais forte, arvorada em símbolo da feminilidade
oprimida. (ARCHER, 1938, p. 44)
O que aqui temos remete-nos para que foi dito anteriormente: ao lado
da possibilidade de uma vingança individual, de orgulho ferido, existe a
possibilidade de uma vingança histórica, individualizada num e noutro, estando
um e outro a simbolizar os papéis de uma relação opressiva, secular. E por isso
Marietta quer fazer-se amar sem esperança, quer enciumar sem razão, excitar
sem desejo. Sente prazer na burla, na consciência de que os homens sofrerão se
se souberem enganados, trava aqui a sua desforra individual de uma opressão
colectiva, social:
86
prazer de os burlar, pela certeza de que êles sofreriam se o
soubessem. Era a sua maneira de reagir contra o domínio, como
que uma desforra de oprimida. Muitas vezes tinha atitudes de
promessa, olhares que eram incentivos, silêncios de
consentimentos que não dava – e deleitava-se, imaginàriamente,
a revolver a dôr que assim causaria neste e naquele, nos que a
amavam, se adivinhassem a felonia. (ARCHER, 1938, p. 47)
Ah! sim, Vitor era um incomparável amante. Saia dos braços dêle
saciada e reconhecida. Só agora compreendia os terríveis laços da
carne, e como o amôr podia ser, na sua expressão sensual, o mais
forte dos entendimentos. Sim, a paixão sensual, quando
confirmada na posse, podia abranger a duração duma vida.
(ARCHER, 1938, p. 61)
87
de beleza e virilidade que amara, agora apoucava-se, rebaixava-
se, e já a não submetia. (ARCHER, 1938, p. 62)
Foge dele. Pega na mala e no casaco para fugir de casa, e pega ainda
na caixa de cigarros. Fica num hotel e fuma. Pensa em Vitor: nele, só o corpo a
interessara. Vê a caixa de cigarros, pensa em Manuel. Sentir-lhe-ia a falta?
88
Tendo tido duas experiências muito diferentes com dois homens, pode
agora saber o que esperar, pode escolher, saber o que deseja. Conclui que nem
um nem outro. Não pode satisfazer-se com um amor “da alma” ou “da carne”,
precisa de um que seja os dois. Um e outro haviam servido para que pudesse
individualmente desforrar-se do que via como uma opressão colectiva: burlava
os homens como reacção a esse domínio. Desta forma, Marietta existe como a
confluência intencional de um processo histórico, e provavelmente como mote
para que este se altere, na medida em que redesenha as relações sociais,
clamando a possibilidade do exercício do poder e da vingança.
89
rápido, fácil, e sem continuidade. (ARCHER, 1938, p. 91)
Olha para Julinha como para uma menina, não de forma sexual. Vê-a
frágil como ele, julga precisar de protecção:
90
Deitar-se-ia, ali, corpo contra corpo, e possui-la-ia, de novo, sem
consentimento, portanto sem culpa? Sentiria a suprema delícia de
lhe pertencer e não teria de que se acusar? Se êle viesse... se êle
viesse... ela não tinha culpa... Ansiava agora por êle, entontecida
de desejo, e pronta a cair nos braços que lhe acenassem. E
lentamente insinuava-se a idéia de que lhe pertencia, de que o
mal estava feito, de que a continuação não agravava o facto. Luiz
adquirira direitos... E o desejo, a trabalhá-la, levava-a,
mansamente, ao encontro de Luiz. (ARCHER, 1938, p. 107)
A vergonha vem de braço dado com a culpa. Acha errado que aquilo
aconteça com um homem com quem não é casada, ao mesmo tempo que tem
91
medo. Do lado dele, tudo é ignorado, Luiz segue impassível.
Ali ao lado, Rosa percebe outra presença, ouve tudo, finge que não vê.
Luiz volta ao seu quarto e, no dia seguinte, Isabel percebe o que ali acontecera.
Julinha, ainda sem saber que alguém o entendera, tem medo de ser descoberta e
confessa-o a Luiz, que lhe pede que o negue. Ela percebe “que o homem
amando a não amparava. De repente teve a visão do grande deserto que é a
terra, a vida, o amor...” (ARCHER, 1938, p. 121). Sentindo-se só,
desamparada, toma veneno. A sua tentativa de suicídio é recebida com total
indiferença, até maldade. Quando Rosa diz a Anica que Julinha se envenenara,
a resposta é seca: “Foi desmancho? Que é do feto?” (ARCHER, 1938, p. 123).
Rosa fica surpreendida, não sabia que Anica sabia do caso. Zangada, quase
ultrajada, manda chamar um carro para que levem Julinha ao hospital:
Ainda diz “– Vê lá... Se fôr preciso pagar alguma coisa...”, para depois
acrescentar “– Mais de vinte escudos, não...” (ARCHER, 1938, p. 124). Uma
vez socorrida, Julinha é salva na enfermaria e volta para casa, onde é recebida
por Anica, desagradada, com voz severa:
92
Julinha percebe que não a querem ali, que terá de voltar para casa dos
pais. Luiz despede-se dela, diz que haverão de ver-se, que aparecerá em
Loures, para onde ela vai, “num dia dêstes” (ARCHER, 1938, p. 128). Ela
percebe-se cada vez mais só:
Ela ia sentindo o tom falso das frases. Não tinha ambições nem
revolta, mas pena, uma pena maior, uma pena que ia crescendo,
subindo, submergindo-a numa onda completa e total.
Compreendia, vagamento, que lhe não devia falar assim o
homem que a impelira para o caminho donde se não regressa.
(ARCHER, 1938, p. 128)
Parte e sabe que o perdeu. Sente que o ama, apesar da injustiça, da ingratidão:
93
que a ocultas tomavam dos seus olhos pisados eram de dor
humilde, não de revolta brava. (ARCHER, 1938, p. 129/130)
De seguida, sugere que talvez não tenha sido ali que Julinha tivera o
seu primeiro amante. Desta vez, é a mãe quem se indigna:
94
leva a melhor comigo. (ARCHER, 1938, p. 136)
Rosa, por sua vez, graças a conversas que ouvira, estava convencida
de que Luiz fora o primeiro amante de Julinha. Acabam todos por chegar a um
acordo: não haveria casamento, mas Luiz e Julinha viveriam juntos, como
casados, em casa mobilada por Luiz, e com criada, que seria Rosa. Julinha fica
inicialmente feliz com o desfecho, mas a relação com Luiz não é pacífica:
Mas Luiz não a gabava. Tinha sempre que desdenhar e nem uma
palavra para louvor da beleaza sàdia, juvenil, duma mulher que o
amava.
Não se adaptava ao lar feito à margem da lei, fóra dos usos
mundanos. A casa que mantinha, onde mandava, julgava-a mais
estranha que o hotel. O desejo fôra-se com a saciedade. E agora
via a amante tal como era, primitiva, rústica, apenas adornada
das graças da mocidade e da candura. Após os momentos de
amor, dia a dia mais espaçados, encontrava-a vazia de interêsse
ou atractivo.” (…) A posse desvalorizava Julinha aos olhos do
amante. E o lar, sem flor de luxo ou requinte, afigurava-se-lhe
canteiro murcho, amachucado, digno de enxada. (ARCHER,
1938, p. 142)
Infeliz com o rumo dos acontecimentos, Luiz está cada vez “menos disposto a
ler pela cartilha da moral legista.” (ARCHER, 1938, p. 144) Quando Julinha
engravida, abre-se um abismo entre os dois: ela está feliz e ele não, sentindo-se
numa situação irremediável, estando prestes a enlaçar o seu futuro com uma
mulher que está prestes a odiar. Pondera fugir, mas pensa que ela ficará só com
95
um filho, sem poder trabalhar devido à maternidade, a batalhar-se com os pais:
“Sabia que o mundo ia meter essa rapariga num tríplice inferno – o pêso do
filho, o repúdio, a deshonra.” (ARCHER, 1938, p. 146). Ao mesmo tempo, se
por um lado considera criminoso abandoná-la, por outro pensa que, se
conseguisse fugir, só ela seria prejudicada pelo que acontecera entre ambos:
Noutras vezes, pensa que nem um nem outro têm culpa pelo que
houvera acontecido, que nisso não havia nenhum mal. Pensa, conclui que o
crime está no mundo, na sociedade. É daí que parte a ideia da desonra sobre a
mãe solteira, o filho ilegítimo, é daí que vem a imposição do casamento. E, ao
concluí-lo, envia uma carta a António, seu irmão, que percebe de leis, e que
parte do Funchal para Lisboa. Os dois engendram um plano para que Luiz se
liberte da situação em que se encontra. António julga que o melhor seria se
houvesse rumores de que Julinha teria tido vários amantes, se muita gente a
difamasse. Assim, convidam amigos para jantar em casa e, às vezes, Luiz e
António faltam, o que faz com que não seja raro que Julinha jante a sós com
António Videira.
Ao mesmo tempo, Luiz é cruel com Julinha: deixa nos bolsos cartas de
outras mulheres, para que as veja, e retratos com dedicatórias; dorme fora;
passeia na rua com outras; vai ao teatro e ao cinema e nunca a convida.
António Videira acaba por perceber que Luiz e o irmão engendram um
esquema para dizerem que a paternidade do filho de Julinha é ilegítima:
96
Era encenada a solidão em que os deixavam. Chegavam as
visitas, êsses rapazes que vinham aos serões, e surpreendiam a
presença dum galaripo de boa pinta em dueto com a amázia do
amigo. Comentavam, espalhavam, avolumavam o caso para
escândalo. (ARCHER, 1938, p. 158)
Ao percebê-lo, denuncia o plano aos amigos que frequentam a casa. Estes dali
desertam, não querem compactuar. Ninguém quer correr o risco de ser
responsabilizado pela paternidade.
Perante a nova situação, urge mudar de plano: António diz que tem de
ir de imediato para o Funchal e Luiz diz que vai com ele até ao Algarve, onde
apanhará o vapor. Tudo é um esquema para desertarem. Na realidade, Luiz
apanha o Sud-Expressa, sai em França, não mais volta, e António fica em
Lisboa a ver como tudo corre.
Inicialmente, Julinha preocupa-se com o desaparecimento. Pensa em
roubo, sequestro, assassinato. Pede informações à polícia, que acaba por dizer-
lhe que Luiz vive em França com um passaporte regularizado. Percebe,
finalmente, que ele houvera fugido, que renegara o filho.
Os pais de Julinha consultam um advogado, mas Julinha está
preocupada com Luiz, defendendo-o com verdades e mentiras. Diz que deixa
de gostar do filho: afinal, fora por ele que fora abandonada. Finge que tivera
estado com vários homens.
Através de António, consegue fazer-se um negócio. O filho será criado
a expensas de Luiz, e Julinha receberá vinte contos e o recheio da casa. Pela
vila, espalha-se que o pai do filho seria um milionário. Rapazes com meios
97
reparam nela, estando dispostos a casarem com ela e a perfilharem a criança.
Socialmente, ganha méritos: torna-se numa coisa valiosa que um homem rico
quisera pagar.
A criança nasce, Julinha fica-lhe indiferente. Espera Luiz durante
anos, evita os outros homens. Só raras vezes se lembra do filho, nunca tenta vê-
lo. Os anos passam, Julinha vê que a vida passou como a de tantas outras. Luiz
fizera o mesmo que tantos outros. O tempo havia passado, os dois haviam
vivido:
98
levar a crer que Maria Archer não disfarçou que queria conduzir a narrativa
pela sua mão de autora e não de narradora. Claro que os autores estruturam o
material do mundo na literatura que criam e que esta os expressa, com as suas
considerações sobre o real e os seus vários julgamentos, mas aqui, por um certo
simplismo na criação das personagens, podemos crer que Maria Archer queria
ainda conduzir as conclusões dos leitores: é que Julinha é indisfarçavelmente a
vítima, tanto do colectivo como do individual, tanto da organização social,
feita por homens e mulheres, que tende a pôr nas mulheres o ónus do que acha
errado, como do indivíduo, homem, que percebe que pode lavar as mãos e não
sentir o peso das consequências. Desta forma, a autora não deixa margem para
grandes interpretações ou para mistério: Julinha aparece como vítima,
submissa, incapaz de regenerar-se. Se é certo que, em 1936, ano em que a
novela foi escrita, se vivia em Portugal uma situação de domesticação e de
opressão das mulheres, também será de estranhar que a personagem veja
nascer em si um amor de forma espontânea e que a ele fique presa, quase como
desígnio insondável, para o resto da sua vida, sem que a sua dor atenue alguma
vez.
99
obra:
INFORMAÇÃO
100
Decorridos mais de cinco anos, renovou a autora a sua
reclamação, pois em 1939 a Censura apreendeu-lhe o livro, “de
que não atingiu o alcance moral”.
O despacho dos S. de Censura traduziu apenas “um critério que
se julga de conveniencia pública fundada principalmente na
intenção de preservar leitores de formação incorrupta ou
imperfeita, de leituras que seriam perniciosas”.
Indidam-se algumas passagens, inicialmente assinaladas, e que,
me parece, justificaram a decisão tomada:
Pag. 18 – 22 – 26 – 99 – 110 – 111 (?) - 123
101
atacado por esta via. Proibir esta obra seria, assim, do interesse público: era
uma “conveniência pública” levada a cabo para que os “leitores de formação
incorrupta ou imperfeita” fossem preservados de leituras “perniciosas”. Assim,
chamava-se a atenção para o perigo, para a capacidade que o livro poderia ter
de agir sobre o mundo: os leitores, depois de terem pegado na obra, podiam
ver-se alterados, podiam ter outra percepção sobre o mundo.
Também se descobre, com este relatório, que a autora não recebeu de
forma pacífica a informação sobre a censura da sua obra. Pelo contrário,
contestou a decisão dos censores literários, atitude que viria a repetir-se após a
proibição de Casa sem pão.
De resto, a PIDE enumera as páginas que considera mais
problemáticas, dizendo-as justificativas da proibição de circulação da obra: as
seis primeiras têm em comum o facto de dizerem respeito a descrições eróticas,
a última refere-se à possibilidade de uma interrupção voluntária da gravidez
através da utilização de veneno6.
Casa sem pão foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e
deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras,
mas também ao processo mais longo que tratamos neste trabalho. A obra foi
proibida aquando da sua publicação, em 1947, vindo a ser autorizada, embora
102
com cortes, doze anos mais tarde. O processo, que trataremos no ponto
seguinte, foi complexo e o livro voltou várias vezes às mãos dos censores
literários. Antes de nos dedicarmos a essa parte, cabe-nos fazer uma breve
introdução à obra, de forma a podermos entender o que esteve no cerne de todo
o processo de censura.
A acção da narrativa começa com o coronel José Geraldes Ramalho a
mudar-se para Pedrouços com os três filhos: Clarisse, a mais velha, aleijada e
com ataques de histerismo; Adriana, de catorze anos, o amparo da família;
Gustavo, bebé de colo, enfermiço e triste. Inês, a mãe dos três, havia adoecido
após o parto do último. Viúvo, o coronel, chegado aos cinquenta anos, começa
a sentir-se sozinho e quer casar com Felismina. Adriana não reage bem à
intenção: vê a mãe ser substituída e zanga-se. O casamento avança, ainda
assim, e Rosa, a empregada da família, é despedida, porque a nova esposa do
coronel não quer em casa nada que a recorde do passado.
Após o casamento, nasce Georgina, e Clarisse e Adriana enojam-se,
horrorizam-se com o que fora feito para que o bebé nascesse. Adriana acha que
é horrível, desonesto, e é com a descrição do seu horror que termina a primeira
parte do livro.
A segunda começa com a apresentação de Eduardo. Com dezanove
anos, é descrito como um bon vivant – vive com os pais, tem boa voz de
barítono, é um bom pé de dança, tem sífilis. Conhece Clarisse e Adriana, por
intermédio de ambos os pais, José Geraldes e Eduardo Cardoso, e inicia uma
relação com Adriana, embora os pais dele não a aceitem. Com o avanço da
relação, Adriana começa a sentir-se humilhada por lhe parecer que desce na
consideração dos outros por amar um homem que não ganha o suficiente para
sustentar uma mulher. Ainda assim, gosta de sentir o culto dele, quer que esteja
103
perto a venerá-la e nisto não admite que vacile. Rejeita vários homens, e ricos,
para ficar com Eduardo. Promete-lhe amor e fidelidade. Zanga-se, no entanto,
quando ele lhe beija a fímbria do vestido – sente-se desrespeitada.
A relação avança, ainda assim, e Eduardo julga que a sua vida
económica dependerá dela. Toda a gente sabe que recebe pouco. Contudo, não
tem pressa para casar, agrada-lhe a condição de noivo, o prestígio social que vê
que isso lhe traz.
Lendo o jornal, José Geraldes depara-se com uma notícia sobre um
homem que se dizia falsamente médico para se introduzir na morgue. Era
avisado pelo cúmplice sempre que havia raparigas novas para poder deleitar-se
com os seus corpos. O seu nome era Eduardo Cardoso e era precisamente esse
o nome daquele que estaria para casar com a sua filha.
O rapaz vê-o com o jornal, diz que era outro com quase o mesmo nome.
Diz chamar-se Eduardo Meneses Cardoso. Fá-lo com naturalidade, não assume
estar implicado, só achar que a situação não lhe convém. E, de facto, no dia
seguinte, o jornal esclarece que aquele a quem se haviam referido não era
Eduardo Meneses Cardoso. José Geraldes quer ter a certeza e informa-se na
morgue, descobrindo que o homem em questão era de facto aquele que
brevemente casaria com a sua filha. Resolve calar-se.
Após o casamento, D. Aida, mãe de Eduardo, dá um passeio a sós com
Adriana na mata de Sintra. Conta-lhe as primeiras experiências sexuais que
havia tido com o marido, enojando-a.
O casamento começa com vários problemas económicos, grande parte
deles descritos na terceira parte do livro. Não há dinheiro para pagar as contas.
Apesar da vontade de Adriana, o casal não tem filhos porque Eduardo não os
quer. Assim, ela engendra um esquema para engravidar: diz que já está grávida
104
para que ele não se preocupe, de seguida, com a possibilidade de engravidá-la e
é assim que acontece a gravidez.
Apesar de tudo, a vida familiar decorre. Eduardo pensa que o casamento
fora uma asneira, mas não deixa de sentir ternura por Adriana. Desliga dela
qualquer ideia de luxúria, só pensar em dormir na mesma cama já lhe parece
que é estar a maculá-la. Mas casara e tem as obrigações do casamento, tem
agora de cumpri-las.
O fim da Grande Guerra traz a devastação da gripe pneumónica: José
Geraldes morre em 1918. Depois disto, nasce Nuno, filho de Adriana e
Eduardo. Eduardo gosta dele, mas preferia que fosse mais vilento e mais
vivaço. A criança já tem dez anos quando nasce Zèquinha, seu irmão.
No início da quarta parte, o tempo passou, Adriana tem sessenta anos, o
seu corpo alterou-se. Arranja-se e enfeita-se para que Eduardo a ache bela.
Durante toda a sua vida, esteve apenas com um homem, amou apenas um
homem. É admirada por quem a conhece: manteve um casamento, tem um
filho formado em Medicina, outro em vias de se formar em Direito.
Felismina sabe que Eduardo, ao longo do casamento, tivera várias
aventuras amorosas. Teme que Adriana as descubra, sabe que ela nunca
perdoaria a infidelidade e a República já instituíra a dissolução do casamento e
os divórcios haviam-se multiplicado pelo país.
Em 1946, também Eduardo está gasto e acabado. Sente que o seu
casamento falhou, mas foi sedimentado pelo hábito. Sofreria à morte de
Adriana, opor-se-ia a um divórcio. Muitas mulheres haviam passado pela sua
vida, mas nunca desejara trocar a presença da esposa em casa pela presença de
outra mulher qualquer. Os filhos não ocupam um grande lugar na sua vida,
nunca conviveu com eles, são uns desconhecidos na casa que é o mundo de
105
Adriana.
Isménia, empregada na casa, chega aos cinquenta anos ainda com o
desejo de casar. Tem esperança, mas olha agora para os homens feitos, às
vezes para os velhos, em vez de para os rapazes novos. Adriana havia-lhe
desmanchado, durante a juventude, qualquer hipótese de relação duradoura.
Nuno conta à mãe que o pai lhe era infiel. Adriana sente-se humilhada,
revoltada. Eduardo traíra-a no mais grave: sempre que lhe dissera que perdoava
tudo, excepto que tivesse outras mulheres. Não lhe perdoava que tivesse estado
com outras quando lhe dava tão pouco: quando o contacto era raro e de fugida,
quando precisara de meses para conseguir engravidar. Ele defende-se, diz que
todos os homens fazem o mesmo.
Adriana quer puni-lo, mas nenhum castigo parece suficiente. Pensa
inicialmente no divórcio, mas pouco depois o divórcio já não chega: quer
vingança. Quando ele lhe diz estar farto daquele casamento e ela pensa que ele
sairá de casa para viver com outra, recusa-se a deixar que a outra seja
vencedora: quer que ele morra e engendra um plano para matá-lo, pondo-lhe na
comida óleo de croton. O livro termina com este plano, sem que saiba se vem a
consegui-lo, mas adivinhando-se que sim.
Casa sem pão, obra proibida em 1947, acabou por ser autorizada em
1969, embora com alguns cortes. O processo foi complexo, tendo a obra
voltado às mão dos agentes da PIDE várias vezes. Para mais, é possível que
tenha havido uma atitude preconcebida da polícia política em relação ao livro,
106
já que haviam sido cortadas as notícias que se referiam à sua publicação
(recorde-se que a censura jornalística era feita a priori). A autora viria também
a afirmar que os seus livros haviam sido apreendidos sem que lhe tivesse sido
dada qualquer justificação para isso e sem que tivesse tido qualquer resposta
aos pedidos de explicação.
Contudo, Casa sem pão motivou muita correspondência dentro da
PIDE, tendo tido vários pareceres, que iremos aqui listar, começando pelo
relatório nº 1971 da censura, assinado por Rodrigues de Carvalho:
Para além disso, podemos ver as partes sublinhadas pelo censor literário (que
são as que mais “feriram” a sua “sensibilidade”), que aqui listaremos:
107
E às vezes, no quarto, às ocultas, as faces muito coradas,
sentindo o sangue a circular vivamente, Adriana chegava a bôca
da boneca ao bico do seu pequeno seio. (ARCHER, 1947, p. 9)
108
Nas páginas 60 e 61 do livro, são sublinhados os seguintes excertos:
“está fazendo uma coisa vergonhosa”; “Casam-se para fazerem porcarias”; “e a
sua cama range, range como se fôsse partir-se e agora as duas raparigas
passam”. E continua-se:
109
(ARCHER, 1947, p. 143)
110
Morgue, continua sendo o heroi do livro de Maria Archer, sem
aqueles incomodos que a lei impõe, em casos desta natureza, e
como seria de esperar.
Isto nos leva a crer que a narração desta noticia dum jornal foi
introduzida neste livro sem qualquer interesse romanesco, e
sòmente para que esta aberração sexual chegasse ao
conhecimento daqueles leitores ou leitoras que, possivelmente,
desconheciam esta perversão.
Acrescenta ainda:
111
risco de serem vistos...
…...............
Que porcaria, que grande porcaria... (ARCHER, 1947, p. 174)
Este mimo de literatura parece que foi inserto neste livro sòmente
para descrição desta cena porca e não para ser apresentada uma
descrição dum passeio à mata de Sintra, visto que nenhuma outra
ocorrencia deste passeio é relatada.
Os sublinhados continuam:
112
de insaciedade que sofrera em solteira. E quanto a... Nos
primeiros dias do casamento tudo aquilo fôra doloroso, porque o
Eduardo insistia, implacavel, exigente... Mas depois de a ter
desflorado, extinguira-se completamente o seu ardor de amante.
(ARCHER, 1947, p. 185)
113
os domingos vai passear para o campo e para as praias, comendo
ambos o farnel que Adriana lhe arranjava, apesar das
dificuldades económicas do lar, que, na época em que estes
factos ocorrem já em casa se recorria aos emprestimos sobre
penhores e já nada havia para penhorar, motivo do titulo deste
romance - “CASA SEM PÃO”.
O Adjunto
114
(a) M.Rodrigues Carvalho
A Bem da Nação
115
Lisboa, Polícia Internacional e de Defesa do Estado, em 5 de
Setembro de 1950.
A Bem da Nação
O SUB-DIRECTOR
116
uma obra má --- de cuja leitura póde advir o menor proveito
moral ou espiritual, antes pelo contrário.
Não se trata, porém, de julgar ou apreciar o livro, mas tão
sómente de observar se os córtes feitos pela autora, dentro das
normas restritivas que lhe foram apontadas, satisfaz, no minimo,
a esse critério restritivo.
Posto o problema assim, julgo serem aceitáveis esses córtes
(feitos a vermelho) desde que sejam feitos ainda e tambem os
córtes suplementares que indico (a lápis verde) a pag. 161 – 174
– 175- 176 – 189 – 222 – 291 – 302 – 316 – 319 – e 378.
Estes córtes fazem-se para dar sentido a várias passagens e
trechos (que, sem isso, ficariam dúbios ou desvirtuados) e para
dar satisfação à ideia e vizão expressas pelo censor nas suas
marcaç õe s --- a s quai s, se m t ai s córt es, fic aria m
incompletamente satisfeitas ou seriam iludidas.
Em 10 de Novembro – 1952
117
Mas tratando-se, segundo creio, de uma reedição que a autora
pretende fazer, julgo que poderá ser levantada a interdição e
autorizada a reedição do romance – com alguns “cortes” ou
eliminações, que vão marcadas a lápis vermelho, a páginas 185,
315 e 316 (esta última, ao que parece, já no espírito ou intenções
da Autora, uma vez que ela própria já a apontara no livro).
Julgo pois que, com a condição expressa dos “cortes” apontados,
possa ser autorizada a reedição do romance em causa.
(AZEVEDO, 1997, p. 85/86)
118
publicitar o que considera uma aberração sexual. De resto, é de notar que este
episódio não tem, de facto, qualquer papel na narrativa.
O mesmo acontece com o referido passeio à mata de Sintra, que, para
o censor literário, devia servir para “evidenciar” o “estilo descritivo” da autora
sobra a paisagem. Não o fazendo, condena-se que Archer tenha, uma vez mais,
feito descrições de relações eróticas, voltando à mesma consideração: a cena
parece ser apenas um pretexto para que essas descrições existam, já que, no seu
decorrer, não há ênfase noutro assunto.
Considera-se, por isto, que o livro tem partes indignas de uma mulher,
“expressões que pouco dignificam a auctôra, na sua qualidade de senhora”, o
que evidencia novamente que havia temas de um sexo e de outro, assuntos
proibidos para as mulheres, e que a ideia de moralidade consistia na
distanciação de qualquer contacto erótico, mesmo verbal.
3.5. Conclusões
119
censuradas que não passaram pelo crivo da PIDE, a autora considera-as
120
tolhendo-os, de forma a que pudessem passar pelos crivos da PIDE.
121
4. Carmen de Figueiredo
122
em 1954, que fez com que a autora fosse galardoada com o Prémio Ricardo
Malheiros. Atribuído pela Academia das Ciências de Lisboa 7, objectivando o
estímulo da cultura e da criação literária em Portugal, o prémio era atribuído a
originais de língua portuguesa e de autores portugueses publicados no ano de
abertura do concurso. Para além de Criminosa de Carmen de Figueiredo, o
prémio foi também atribuído a obras como As três mulheres de Sansão (1933),
de Aquilino Ribeiro, Terra fria (1934), de Ferreira de Castro, Uma pedrada no
charco (1958), de Urbano Tavares Rodrigues, Gaivotas em terra (1959), de
David Mourão-Ferreira, Canção diante de uma porta fechada (1966) e As
fúrias (1977), de Agustina Bessa Luís, ou O dia dos prodígios (1980), de Lídia
Jorge.
123
não o terá sido a autora. Iremos, nos pontos seguintes, tentar entender como ou
se a acção da PIDE foi um dos grandes factores de contribuição para que as
obras desta escritora, e a escritora em si, tenham sido apagadas do
conhecimento público.
No final dos anos 50, terminava o neo-realismo, um movimento
literário historicamente consolidado em Portugal, entre os finais dos anos 30 e
os finais dos 50. Vivendo-se, nessa época, a época do salazarismo, os escritores
foram formados no decorrer de uma crise social, formando-se este movimento
sob alçada ideológica do marxismo. O neo-realismo opunha-se ao modernismo,
opondo-se, em concomitância, ao movimento esteticista. Pelo contrário, queria
uma literatura engajada, comprometida, querendo explorar a potencialidade
social da arte. Os papéis da ficção e da poesia eram, assim, os de colocar as
contradições de classe no epicentro da criação artística. Neste sentido, este
movimento tornou-se não raras vezes panfletário.
O neo-realismo bebeu, claro, das motivações do realismo, embora
tenha diferido dele nas raízes ideológicas e nas preferências temáticas, já que o
primeiro tentou superar o paternalismo do escritor que observava a realidade e
os excessos subjectivos da representação realista (REIS, 1981, p. 14). Ao
mesmo tempo, a ideia da escrita neutra limitava a militância de que se imbuía
já a ideia da criação literária. É que, se o realismo oitocentista estava ligado ao
positivismo, o neo-realismo estava-o à concepção marxista da literatura.
Assim, no último, o escritor afirmava a priori o seu posicionamento político e
encarava a literatura enquanto acto político.
Do realismo, sobreviverá, contudo, a vontade de descrever fiel e
detalhadamente a contemporaneidade. Por isso, o olhar que se lança sobre a
matéria literária deverá ser desapaixonado, contrastando com o romantismo e,
124
através da valorização dos temas do quotidiano, dando primazia ao real,
embora seja claro que o analítico determina um papel. Afinal, ainda que o
realismo possa ter-se mascarado de neutro, todos os movimentos literários são
também estratégias literárias, na medida em que implicam na sua génese o
objectivo de se atingir certos efeitos. O neo-realismo valorizará abertamente o
carácter ideológico dos escritos, entendendo que à literatura, como ao discurso
político, caberia desmistificar os conflitos de classe, podendo até afirmar-se
que se encarava a literatura como uma extensão desse discurso.
Algumas das obras literárias de Carmen de Figueiredo, como Vinte
Anos de Manicómio!, que analisaremos, ainda que influenciadas pelos
movimentos realista e neo-realista, destoarão um pouco neste cenário, já que
não se caracterizam por uma estética criada em prol das modificações sociais
ou da criação de mundos possíveis que coloquem o mundo real em xeque.
Contudo, as narrativas que leva a cabo alternam os momentos de descrições
com os de acções e as personagens veiculam uma série de acções que podem
permitir a reflexão sobre as questões quotidianas. A prosa de Figueiredo –
simples, de enredo escorreito, sem grandes malabarismos retóricos – acabou
por activar os serviços censórios graças, como veremos, às descrições sexuais
explícitas, que, como a PIDE o dirá, e ainda que acompanhem a narrativa, não
têm nela um papel crucial. Afinal, as narrativas, sem estas cenas que levaram à
proibição das duas obras, permaneceriam as mesmas. Ao mesmo tempo, e ao
contrário do que acontece em Minha Senhora de Mim (Maria Teresa Horta,
1971), a que voltaremos mais tarde, não têm um papel político nem apresentam
uma visão do mundo, não denunciam nem reclamam. O inverso se passará com
Famintos, que também analisaremos, em que a pobreza e a exploração que
assolam os trabalhadores rurais é descrita com frequência, revelando-se o
125
conflito entre classes e assumindo-se o programa ideológico que foi o mote do
neo-realismo.
Não sendo a sua obra conhecida hoje, a verdade é que a autora terá
merecido alguma atenção por parte da imprensa no momento da sua actividade
literária. Assim, foram-lhe feitas algumas críticas. Por exemplo, Artur Portela
escreveu um texto sobre a autora no “Diário de Lisboa”, em 1954; O muro de
cristal teve uma crítica no mesmo jornal, em 1958, A raiz do pecado – Novelas
teve uma crítica na revista “O Século Ilustrado”, em 1960 8. Os três são
altamente favoráveis à autora, ainda que não mereçam aqui grande atenção,
uma vez que mais parecem críticas panfletárias do que literárias, resumindo-se
a meras enunciações de qualidades, sem sequer justificá-las, seja do ponto de
vista estético, historiográfico, social ou político.
8 Estes textos estão transcritos na obra Jornal De Uma Escritora Realista Do Real e
do Fantástico, de Carmen de Figueiredo.
9 Em entrevista dada ao jornal madrileno Digame, no dia 4 de Dezembro de 1951, a
autora afirma que o livro já aí teria conhecido três edições (FIGUEIREDO, 1997, p.
141), o que nos leva a crer que se referia a edições de autora.
126
com Ana Lúcia (Aninhas), filha de D. Lídia, é ainda pai de Maria Teresa e
Manuela. Felizes até ao nascimento das filhas, gémeas, o casal vê-se
mergulhado numa crise que o assolou depois do parto. Afinal, este último
provocara a Ana Lúcia uma apatia mental que a fizera votar todo o mundo ao
seu redor ao esquecimento. Incapaz de assistir à situação (“ficara assim
aparvalhada, tatebitate, de olhar distante, mortiço” in FIGUEIREDO, 1950, p.
13) e perante a recusa da sogra de internar a filha, António Luís resolve virar as
costas, partindo para Manaus, onde estivera em novo. Sendo aí assolado por
febres, acaba por voltar para junto da esposa e emprega-se na Câmara, onde já
antes tinha trabalhado. Ana Lúcia, contudo, não o reconhece, e ele lamenta não
ter sido mais firme, não ter insistido no internamento, contra a vontade da
sogra, que não cedia graças às “histórias horrorosas que ouvia contar, acerca de
pessoas encarceradas nesses miseráveis antros de loucura” (FIGUEIREDO,
1950, p. 62). No final da narrativa, sendo as gémeas já adultas, Manuela
morre. Ana Lúcia, que, nessa altura, já tinha permitido a António Luís
aproximar-se, e que se encontrava então grávida, fica num estado de depressão:
127
Num momento clarividente, que aparece na narrativa quase em
desígnio insondável, acaba por alegrar-se com o nascimento da filha, crendo
que substitui a que perdera:
128
4.3.1. Recepção/censura de Famintos
Lisboa
Nº17/L.
129
páginas: 4512-4713-4814-7115 a 7 31617-8318-8419-9220-9921-10022-
10723-10924/11025-11826-13927-14628-16229-17830-18031-18732-
20233-215-21634-21735-22136.
Pelo exposto proponho a proibição dêste livro.
Informo V. Exª. Que ordenei à livraria “PORTO -EDITORA”,
sita na Praça D. Filipa de Lencastre nº42, desta cidade, detentora
da propriedade literária da referida obra, para que providenciase
12 “(...) cosidos os rostos, donde escorre a cor roxa que não engana, pelas bebedeiras consecutivas, que
transformam um homem em farrapo alucinado, apodrecido o sangue e nervos descontrolados –
elementos principais da degenerescência da loucura e do crime, pobres e miseráveis elementos,
carregados para mais de perigosas taras ancestrais, que infelizmente continuam a enodoar as sociedades,
- só esses, rodilhões espúrios que negam a família, atascadas as almas vis em álcool peçonhento, após a
ceia saiam, encafuando-se nas tabernas, donde mais tarde, pela horta-morta rolavam aos tropeções,
vomitando injúrias desconexas.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 45)
13 “(...) onde as rendas das míseras de desconfortáveis habitações eram mais acessíveis a seus ganhos
pelintras, palmilhavam as congostas, falando alto dos seus dramas de famintos incompreendidos,
dizendo à noite a revolta que lhes desiquilibrava [sic] os nervos tensos pela labuta árdua e constante,
trabalhados de desespero, quando chegados aos tugúrios os filhos lhes pediam o pão que não podiam
dar-lhes. E essas vidas ignoradas de famintos, assim se arrastavam sob a noite duma vida inteira de
trabalhos, dúvidas e exaustações.
Só os bem empregados se fixavam na vila, nesse coração azougado de pequeno burgo,
atafulhado de gente ávida, tracejadas a almas pelos fios dourados de secretas e altíssimas miragens. Lá,
era o ventre onde se geravam anceios [sic] grandiosos e mesquinhas intrigas, numa amálgama fantástica
de ódios, perseguições e vinganças aos que subiam na escala dos valores sociais; na frente subservientes
e mesureiros, bajulavam a torto e a direito, para apunhalar torpemente pelas costas. Nesse ventre
miserável, pálida miniatura dos grandes centros citadinos, não faltava a alfurja como máscara de
trágicas mandíbulas, camuflada numa farmácia modesta, de fachada corroída pela lepra do tempo, e em
cujos escaninhos escorria e alastrava o líquido corrosivo dos mais perigosos venenos.” (FIGUEIREDO,
1950, p. 47)
14 “(...) acompanhado por essas vozes estranhas, vindas de bocas torturadas, arrepanhadas pelo rictus
selvagem que a miséria imprime como selo agressivo, nas faces glábras desses entes que só conhecem
privações e desconforto. (…) Eles lá seguiam, atalhos fora, discutindo os míseros salários, fazendo
130
sôbre a sua retirada da venda ao público, até ulterior resolução de
V. Exª.
Aproveito o ensejo para apresentar a V.Exª. Cumprimentos
muito respeitosos.
A Bem da Nação
comparações de mesquinho desenho, sempre à espera da hora redentora que lhes abra as portas
douradas dum viver mais humano e equitativo, perdido no escuro, o recorte fantástico das suas
sombras.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 48)
15 “Aninhas imperturbável, sustentava esse olhar do marido, afiado como espada rebrilhante, tinto pela
febre da lascívia, ardente como brasa de fogueira ateada, a retratar inteira a ideia da posse mil vezes
sonhada e desejada. Porém, nem o mais leve estremeção sacudia as linhas puras daquele corpo de
mulher jovem. Entretanto, a impetuosidade forte do macho, renascia em Luís; o desejo, violento como
grito de crime, esmagava-lhe a consciência, crescia dentro de si. Dominava-o a obsessão permanente de
possuir Ana Lúcia. Já lá iam quase treze anos de renúncia extrema e aflitiva.” (FIGUEIREDO, 1950, p.
71/72)
16 “E ele a adorar, a desejar a mulher, sem se atrever a possuir, a violar a carne magnífica da própria
esposa!” (FIGUEIREDO, 1950, p. 72)
17 “Seca e mirrada, Altina não consegui impressionar; além do mais, aquela fama suja que correra
como farrapos de fumo solto, muitos anos antes, é certo, mas presente na sua memória de homem,
acerca do seu prazer invertido de garota destrambelhada, fazia-lhe sentir repugnância e nojo pela mulher
que conseguira – assim se espalhara o boato! – prender nas malhas do seu amor anómalo outras
raparigas de temperamentos duvidosos. Mesmo que ela lhe despertasse simpatia sexual, a lembrança
antiga de tal incidente na vida da Pardal-sem-Rabo destruiria imediatamente esse rubro desejo da
carne.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 73)
18 “Manuel Tendeiro enfeitiçara-a. Casado e com um rebanho de filharada, nem por isso deixava de a
procurar todas as noites.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 83)
19 “A mulher parecia adorar a brutalidade agressiva de Manuel, pois que logo a seguir se entregava
inteira e nua, numa onda forte e ardente de estrangulador desejo. Era a fêmea, na revelação total do seu
instinto exacerbado por longos anos de àspera [sic] renúncia” (FIGUEIREDO, 1950, p. 84)
20 “(...) pela primeira vez, ele reconhecia na sobrinha mais nova uma interessante mulher (…) todo o
131
O Presidente” (AZEVEDO, 1997, p. 108/1098)
elançado correcto e belo do seu corpo apetecido de virgem, deslumbraram o padre” (FIGUEIREDO,
1950, p. 92)
21“(...) a impressão nítida de que um corpo estranho tacteava as suas carnes tapadas com as roupas, o
fez estremecer” (FIGUEIREDO, 1950, p. 99)
22 “(...) saltara do leito, e fazendo levantar a mulher implorativa, faminta dum amor impossível, um
amor que ele não podia dar-lhe” (FIGUEIREDO, 1950, p. 100)
23 “Sabia ela, entretanto, todos os subtis segredos da volúpia amorosa. E, nas horas vermelhas de
bárbara luxúria carnal, quando toda se entregava, à vista do rebanho pasmado, fazia enlouquecer os
moinantes, enlouquecendo também.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 107)
24 “por engano concebera, sabia-se lá de quem, se o homem era um safadito amaneirado”
(FIGUEIREDO, 1950, p. 109)
25 “- Você está tonta mulher! Eu não quero malhar com os ossos numa cadeia. De quatro meses? Ah!
não é a filha da minha mãe que a estas horas vai agatanhar este “útaro” mais fechado que laranja.”
(FIGUEIREDO, 1950, p. 110)
26 “Dizem que o desejo do homem morde mais que sarna, num alastrar de herpes por todo o sangue...”
(FIGUEIREDO, 1950, p. 118)
27 “Ai, ser padre sem castração, eis o grande crime, crime que não era dele, mas das leis absurdas que
regem os cânones...” (FIGUEIREDO, 1950, p. 139)
28 “um marotão, um lambre-cricas” (FIGUEIREDO, 1950, p. 146)
29 “Nu, avançou, tacteando febrilmente os móveis, sem saber o que desejava, sem adivinhar o que ia
fazer.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 162)
30 “quando, com a boca queimada por desejos ásperos, procurava ávido a saliência bicuda dos fartos
peitos da amante, para lá sorver, no requinte bárbaro da posse completada, toda a seiva perturbante de
prazer que a mulher lhe ofertava no cálice rubro do corpo magnífico.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 178)
132
mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Num contexto em que o sexo era
um tabu, as descrições que apresentámos em notas de rodapé eram mais do que
suficientes para que a circulação do livro fosse impedida. Este livro, contudo,
chega, neste prisma, a ser mais ousado do que alguns dos outros que aqui
tratamos: se a descrição de relações homossexuais não é novidade, são-no as
relações incestuosas. Afinal, se o Estado Novo vivia sob a moral católica, deve
ainda acrescentar-se que a impunha e que as relações incestuosas estavam
expressamente proibidas na Bíblia: “Nenhum homem se chegará a qualquer
parente da sua carne, para lhe descobrir a nudez.” (Lv 18.6); “A nudez da tua
31 “- Ora vai mas é à realíssima pata que te pariu, minha vaca! Nem depois de morta a deixas em paz!
Olha que não te comeu nada, que tiveste sempre a taça cheia!” (FIGUEIREDO, 1950, p. 180)
32 “(...) logo passante dias quisera abusar da pura virgindade da Marcelina como afinal fazia a todas as
outras. A pequena apanhada no celeiro, gritara, gritara, acabando por desprender-se dos braços que a
cingiam como tenazes em brasa, fugindo desgrenhada, correndo alucinadamente, ferindo-se nas pedras,
rasgando nas silveiras que saltava esbaforida” (FIGUEIREDO, 1950, p. 187)
33 “Tinha-te a me lado, dormíamos juntas, Amparo insinuava sensações espantosas. Pobre de mim, só
as vislumbrava em ti... Abraçava-te, e sentia logo o que Amparito me segredava nos corredores,
metendo-me ouvidos dentro o seu hálito escaldante; e não só nos corredores, era também nos intervalos,
no recreio e na própria retrete, onde ia ter comido, iludindo as professoras” (FIGUEIREDO, 1950, p.
202)
34 “Beijaram-se em religioso silêncio, tombando de seguida, enfebrecidos, presos ao mesmo abraço,
confundidos no cacho humano dum desejo vermelho, sobre a palha perfumada, enquanto os olhos semi-
cerrados gritavam alto a rebeldia da carne. Estrangulados de emoção, vencidos pelo mesmo desejo bruto
e másculo que é afirmação de vida no instante crucial da posse, os corpos misturaram-se com o feno,
enterrando-se com volúpia na sua macieza, como se de colchão de penas se tratasse.” (FIGUEIREDO,
1950, p. 215/216)
35 “(...) o traço das formas esculturais de seus corpos jovens, sensuais e ávidos, por onde a selva forte
do desejo corria em caudais de prazer, estoirando os próprios poros.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 217)
36 “Num ímpeto selvagem, começou a despi-la, beijando-a sofregamente, apaixonadamente. Ela
contorcia-se, púdica, dobrando-se nervosamente pelos rins.” (FIGUEIREDO, 1950, p. 221)
133
irmã, filha de teu pai ou filha de tua mãe, nascida em casa ou fora de casa, a
sua nudez não descobrirás (…) não descobrirás a nudez da filha da mulher de
teu pai, gerada de teu pai” (Lv 18. 9, 11). O livro não podia, por estes motivos,
passar incólume pelos serviços censórios, embora seja de notar que circulou até
que a autora tenha chamado a atenção já com Vinte Anos de Manicómio!, que
analisaremos de seguida.
Fora o Brasil que dera ao Bento uns bons patacos; e, mau grado
as mesquinhas invejozices dos vizinhos, ele mandara erguer a sua
casa, com alicerces no velho barracão já feito e deixado pelos
seus santos velhos, mal regressara dessas terras que não eram as
dele, e onde se lança mão seja de que trabalho for, dominadas as
almas pela ânsia de ajuntar dinheiro para deslumbrar quem em
distantes lugarejos ficou à sua espera, junto com os conhecidos
sem audácia (FIGUEIREDO, 195-, p. 8/9)
134
Macário, para ser seu sócio numa mercearia. Lídia deseja que Bento aceite a
proposta, que vá morar para Lisboa, já que o dinheiro vindo do Brasil já está
prestes a acabar. Acabam por mudar-se para a capital de Portugal com a sua
filha Lourdes. A partir daqui, a narrativa começa a explorar a vida quotidiana
da família, mostrando-se ainda a relação de dominação patriarcal do pai em
relação à filha, em relação à qual o primeiro “pressentia que só tinha a esperar
desgostos” graças ao seu “temperamento sensual” (FIGUEIREDO, 195-: 70/
71):
Para mais, Bento chegava “a temer estar só com a filha, com receio de
dar cabo dela com pancada, para amansá-la” (FIGUEIREDO, 195-, p. 71). Esta
ideia de obrigatoriedade de deserotização da mulher contrastará com a figura
do próprio Bento, que não se impede de ter desejos sexuais adúlteros, numa
visão que estará consonante com a socialmente aceite na sociedade portuguesa
da época, em que ao homem a vida sexual era permitida, mas devia ser
condenada na mulher, que devia viver enquanto esposa, fada do lar e mãe.
135
Vendo Bento uma aproximação entre Lourdes e Macário, “rastaquore
profissional” (FIGUEIREDO, 195-, p. 73), começa a pensar num casamento
entre ela e João Lúcio. Considerava ainda Macário impróprio para um
casamento com a filha:
136
casamento seria para ela a emancipação total. (FIGUEIREDO,
195-, p. 79)
Os dois acabam, assim, por casar, após Lourdes ter levado pontos de
uma parteira de forma a poder fingir a sua virgindade. Ainda que sem
“interesse carnal” (FIGUEIREDO, 195-, p. 88) pelo marido, acaba por
engravidar e, no dia em que tem o primeiro filho, Lídia dá uma queda e morre.
Posteriormente, reencontrando-se Lourdes com Paulo Macário,
Lourdes, ainda que inicialmente tente rejeitá-lo, inicia com ele uma relação
adúltera:
137
Hoje não se levantou e lá está entendido no leito, sem dizer
palavra... (FIGUEIREDO, 195-, p. 174)
Na sequência deste episódio, João Lúcio acaba por ser internado num
manicómio, e ali fica durante vinte anos. Lourdes permanece impávida face a
isto:
138
se no senhor Júlio. Com um mês de liberdade, porém, começa a pesar-lhe ter
perdido a sua própria identidade e suicida-se.
Finalmente, poder-se-á olhar para este como um romance que oferece a
visão de uma possibilidade de consequências para uma família que, da
província, se muda para a cidade, sendo corrompida pelo meio, que
poderosamente age sobre ela. O novo meio, que provoca alterações nas
personagens e nas suas relações com o social, provoca um processo de erosão
que culmina na forma descrita. As descrições longas ao longo das quais a
narrativa se tece, alternadas com episódios levados a cabo pelas personagens,
sobrevivem da vontade de decalcar a realidade do realismo, dando-se também
aqui primazia ao real e ao quotidiano.
139
lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher.
E, afinal, todos os esses trechos absolutamente condenáveis
podiam ter sido omitidos, sem prejuízo da contextura ou da acção
do romance.
Os trechos principais que me parecem mais condenáveis vão
assinalados a p. 1637, 1938, 23, 2439, 2540, 27-2841, 4242, 5143, 5444,
37 “Oh! Quantas vezes se masturbara ele (…) Masturbara-se, sim, furiosamente, pensando, doido, nas
formas promitentes e esplêndidas dessa mulher, sem querer provocante, que não tinha homem, e a
aldeia em peso acabara por apontar a dedo, por ela ter aparecido se barriga à boca, sendo como era
viúva... Masturbara-se, violento e frenético, possesso de desejos insensatos” (FIGUEIREDO, 195-, p.
16)
38 “Vezes acontecera já que, se calhava o cio impetuoso do macho acicatá-lo, bastava, ao chegar-se-
lhe, fixar a deformação monstruosa, para se lhe ir água abaixo todo o violento desejo da carne.”
(FIGUEIREDO, 195-, p. 19)
39 “queimada já na chama ardente dos pecadilhos da juventude que, quase sem maldade, as faz levar,
os deditos lambuzados de terra, a ensaiar no mistério das carnes tenras, o prelúdio dum prazer de
pecado, saltavam poças cheias de lama, esparrinhando-se umas às outras, que essa delambida da dona
Manuela, fora surpreendida, agarrada ao professor, um marmanjote casado, mas cão como o mais
refinado cão, toda descomposta e desgrenhada...” (FIGUEIREDO, 195-, p. 23/24)
40 “Umas gatas sempre a arderem em cio... Porém... a culpa muita vez nem era delas. Nem sempre o
sangue as queimava. Eles, homens, é que ateavam a fogueira. (…) Onde quer que haja um homem e
uma mulher, o pecado surge. Eis a imposição do instinto e dar carne. Brutalidade, animalidade, matéria,
só matéria...” (FIGUEIREDO, 195-, p. 25)
41 “Uma forte rajada de impetuoso desejo fez-lhe instantâneamente dilatar o sexo gordo, ao mesmo
tempo que na boca sentiu um travo acre, como líquido vertido duma esponja a retrair-se.”
(FIGUEIREDO, 195-, p. 27)
42 “O brilho maroto da pupila incendiada, apagava-se; seus lábios de arqueado perigosamente
luxuriante, amoleciam, e, toda a febre que o queimava durante o dia, e reflectia na face tumefacta, se ia
extinguindo lentamente, mergulhando-o em calma, cheio de pensamentos sérios.” (FIGUEIREDO,
195-, p. 42)
43 “(...) era diàriamente iniciada por ela, nos segredos perigosos dos palpitantes anseios da sua carne de
140
63-6445, 80-8146, 9247, 9348, 94, 9749, 135-13650, 16751, 20752 e
21653.” (AZEVEDO, 1997, p. 108)
fêmea desejeosa, e pervertida talvez pelo contacto dos muitos homens por quem se tinha roçado na vida,
desde os bancos do liceu até ao magistério” (FIGUEIREDO, 195-, p. 51)
44 “O próprio púbis, esse galvanizante triângulo de Vénus, que outrora beijara sôfrego, com requintes
de bruto e selvagem desejo, - macho cego pelo delírio da carne que requeria posses – não podia agora
vê-lo ou palpá-lo, sequer, inchado pela trama de veias que apareciam como tortulhos em eido de
castanheiros bem adubado pelo apodrecimento que é morte e renovação.” (FIGUEIREDO, 195-, p. 54)
45 “(...) macho forte, em permanente contacto com mulheres, impunha as suas necessidades físicas,
atormentado pelo desejo, um pouco esquecido das varizes deformadoras. Sim, nesses momentos rubros
de delírio, em que o amor é apenas uma palavra toda carne, sangrenta, de humanos desejos ou torpes e
selvagens ímpetos, Joaquim esquecia a rede de varizes, que já se enroscava no próprio sexo”
(FIGUEIREDO, 195-, p. 63/64)
46 “(...) dir-se-ia que, despertara em si um novo mundo de vivacidades e loucas ardências até ali
ignoradas (...) rasgando lhe sem escrúpulos o véu de sangrentas bistrações, para além do qual surgira a
mulher, birante e forte na grandeza sublime da posse que é redenção e pecado. Mas ela, levada por uma
amigalhaça, antiga condiscípula no liceu, fora logo, cautelosamente a uma misteriosa fazedora de
virgens, e, por trezentos escudos, aquela dera dentro dela certos pontanázios, garantindo que ficava à
prova do mais sabido macho.” (FIGUEIREDO, 195-, p. 80/81)
47 “Lourdes foi assim virgem uma segunda vez” (FIGUEIREDO, 195-, p. 92)
48 “Fingidamente púdica, não queria despir-se, acirrando mais e mais o desejo impetuoso que como
um véu, obscurecia a razão do rapaz. Em dado momento, Lúcio toma-a pela cintura, joga-a sobre a
colcha, rasga o vestido enfolharado, e colhe, todo ele queimado numa intensa labareda, a flor que mal
sangrou mas que por isso mesmo o fez delirar.” (FIGUEIREDO, 195-, p. 93)
49 “As ignoradas fibras da sua carne voluptuosa de grande amorosa, todas vibravam, desnorteando-a”
(FIGUEIREDO, 195-, p. 97).
50 “Lourdes recuava, tentava desprender-se, ginasticava os membros em desvios e curvas aliciantes,
141
Esta informação bate ainda certo com outros documentos que, esses
sim, se encontram na caixa 733 dos arquivos do Secretariado Nacional de
Censura, como, por exemplo, uma nota que solicita a apreensão da obra de
Carmen de Figueiredo, datada de 31 de Janeiro de 1952.
LISBOA
142
o livro intitulado “VINTE ANOS DE MANICÓMIO”, da autoria
de Carmen Figueiredo, editado pela “Empresa Literária
Universal”, Travessa da Era, nº 17, em Lisboa, por ter sido
proibido de circular no País, o que desde já muito agradeço.
A Bem da Nação
O DIRECTOR
A Bem da Nação
Lisboa, 1 de Fevereiro de 1952
143
O SUBDIRECTOR
Gaspar de Almeida
144
Gerente da Empresa Literária Universal
Rua da Era, 17
LISBOA
A Bem da nação
O SUBDIRECTOR
Exmo
145
Subdirector dos Serviços de Censura
Lisboa
Gaspar de Almeida
INFORMAÇÃO
146
Expuz-lhe a gravidade da falta cometida, mostrando-lhe as
disposições legais referentes ao assunto.
O SUBDIRECTOR
147
questioná-lo, menos ainda de afrontá-lo. Daí o comentário de Gaspar de
Almeida (“Como era feito por uma escritora – nunca supus que esta tivesse
escrito com tanta realidade”) e daí o comentário do próprio relatório de censura
(“trechos (por vezes páginas inteiras) de realismo tão cru e descrições de tal
basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”). De
resto, não foi sequer a estrutura da narrativa ou o subtexto aquilo que alarmou
os serviços censórios, mas os trechos com referências sexuais na primeira
incorporada. E, como previamente dito, e também dito pelo censor literário,
sem eles não haveria prejuízo da acção do romance. É que, ao contrário do que
acontece com Minha Senhora de Mim, a incorporação do erótico/sexual, que
não serve grande propósito para além do meramente realista, ou seja, do
decalque da realidade, não será um elemento interno da construção literária,
uma peça essencial na construção da narrativa literária, ou seja, é um elemento
que possibilita a realização narrativa, mas não é nela determinante: conduz a
narrativa, mas não actua na constituição do essencial da obra enquanto peça
literária. Assim, este elemento não será particularmente subversivo, estando a
sua capacidade de ferir o Estado Novo apenas no facto de afirmar a existência
da sexualidade e dos impulsos sexuais.
4.5. Conclusões
148
secundários das narrativas: existem de forma a conferirem algum realismo à
obra, possibilitando a construção da narrativa, mas não são o seu elemento
central. Os censores literários escandalizaram-se particularmente pelo facto de
tais descrições terem sido escritas por uma mulher, mostrando a forma como a
sexualidade parecia pertencer unicamente aos homens (a forma erótica,
portanto, não servia aqui para representar ou subverter relações de poder, não
tendo, por isso, aqui, um papel político).
Ainda assim, torna-se difícil dizer que à PIDE se deveu o
desaparecimento de Carmen Figueiredo da vida literária portuguesa e, pode
dizer-se, até da sua canonização. Ainda que tenha havido a sua clara intenção,
através das proibições, a verdade é que nem as outras obras sobreviveram,
havendo muito poucas reedições e sendo hoje muito difícil encontrá-las, nem a
reedição de Famintos, que aconteceu vinte e cinco anos após a sua primeira
publicação e um ano após o término da ditadura, lhe garantiu uma vida longa
ou até um espaço na vida pública. Mesmo Criminosa, agraciado com um
prémio também dado a muitos escritores conceituados e canonizados, acabou
por perder o seu espaço entre as prateleiras. Afinal, mesmo com as duas obras
proibidas, Carmen de Figueiredo contava ainda com uma obra literária extensa,
à qual se juntavam as publicações frequentes em jornais de tiragem diária.
Se as obras da autora foram apagadas do conhecimento público,
podemos dizer o mesmo da autora. Por isso, torna-se difícil falarmos das
condições de produção destas obras e podemos apenas referirmo-nos à
recepção com os parcos dados que temos: os dos relatórios dos serviços
censórios e os conhecimentos que temos das produções editoriais. Ao contrário
de livros como Novas Cartas Portuguesas, a que nos referiremos
posteriormente, os livros de Carmen de Figueiredo não agitaram e não agiram
149
sobre o mundo, não deixaram marcas para a posterioridade, não foram fulcrais
na redefinição de modelos sociais nem contribuíram de forma visível para os
debates sobre as relações de poder e muito menos para o derrubar da ditadura
(que, à época em que foram escritos, tinha ainda uma vida longa pela frente). O
término da ditadura, ao contrário do que aconteceu com Natália Correia,
também não viria a fazer grande diferença, já que, dos livros censurados,
apenas um veio a público.
Claro que há vários motivos para que uma reedição não surja: falta de
interesse de editores, falta de interesse de autores, o timing da suposta reedição,
a avalanche de livros que, tendo sido censurados ao longo de décadas,
inundaram as listas de publicações em 1974/1975. Poderiam, por isso, ficar por
explicar as razões que motivaram a reedição de Famintos, mas não levaram a
uma reedição de Vinte Anos de Manicómio!. Ainda assim, pelo facto de, como
já referimos, o primeiro reflectir de forma mais evidente o zeitgeist em que foi
concebido, podendo também servir para, após a ditadura, revelar as condições
materiais de uma parte da sociedade no seu decorrer, pode conceber-se que
colocá-lo (de novo) no mercado, de torná-lo, desta vez a sério, acessível para o
público, fosse mais premente. Neste caso, a própria percepção da autora em
relação à sua obra também muito dirá. Afinal, Carmen de Figueiredo considera
que esta foi a sua obra que conseguiu ter maior êxito, tendo, diz a mesma,
produzido uma grande discussão (FIGUEIREDO, 1997, p. 141). Contudo, essa
discussão terá sido datada, até porque também esta reedição se terá perdido
entre tantas, acabando por não haver nenhuma outra.
150
5. Maria da Glória
151
filha de um dono de várias tendas e tabernas. A menina, contudo, é maltratada
pela tia, negligenciada pelo pai, Lucas. As vizinhas, ao verem os maus tratos,
comentam-nos. Uma, Zulmira, diz que a mulher precisava de levar uma sova,
como a que levava às vezes. A outra, avó de Carlitos, concordava só para não
haver desentendimentos: sabia que o marido, Zoca, lhe batia quando a
apanhava a traí-lo.
Zulmira e Zoca, sendo Maria orfã de mãe e negligenciada em casa,
pedem a Lucas que lhes dê a filha. Este acede, desde que a filha o vá ver de vez
em quando e volte para a casa caso não se dê bem na outra. Maria muda-se,
assim, para a casa dos vizinhos, onde é bem tratada. Contudo, há “o
inconveniente de assistir às cenas amorosas dos seus benfeitos.” (GLÓRIA,
1962, p. 15)
Quatro anos mais tarde, já Maria anda na escola. Carlos, por sua vez,
rouba tabaco e fuma pelos campos. Namora com Maria, mas também gosta de
Adélia, de treze anos. Esta sente ciúmes de uma loira que desperta o interesse
de todos os rapazes:
152
Com o António a coisa era diferente, não havia dúvidas, porque o
Carlos tão inocente ainda mal a contentava, mesmo assim levou
o Carlitos para debaixo da figueira durante uma semana, até que
o António, cansado de tentar mais alguma coisa à lourita do que
umas beijocas e uns apalpões, resolveu continuar a acompanhar a
Adélia, que se lhe entregava totalmente. (GLÓRIA, 1962, p. 17)
153
continuam até aos onze anos. Maria está na quarta classe, Carlos prepara-se
para tirar a admissão ao liceu. Irá estudar para Faro.
Maria, quando não pode estar com ele, vai ao cemitério visitar o pai.
Faz mais:
(…) uma das suas grandes paixões era ir examinar algum corpo
que estivesse na casa mortuária, nas horas que o cemitério
estivesse fechado. Olhava o morto e, se era homem, remexia-o,
desabotoava-o e acariciava-o, contente de ter ali à sua disposição
um homem. (GLÓRIA, 1962: p. 19)
(...) que bom ir ali nos joelhos daquele homem a quem ela
chamava pai Zoca! Olhava-o com cobiça de fêmea, pois sempre
que o contemplava via-lhe o soberbo corpo nu atracado à mulher
e desejava-o para si. Gostaria de lhe beijar a boca bonita, de
dentes muito brancos. Ele, encantado por tê-la ali tão submissa
(amava-a, como se fosse sua), beijava-a no rosto, nos olhos
lindos e, sem saber que tinha nos braços um ente já viciado,
apertava-a, dando-lhe palmadinhas nas pernas. (GLÓRIA, 1962,
p. 21)
154
Da visita à Lisboa, resolve-se a estadia: ficará dois anos na casa dos
tios, depois irá para a dos primos. Na casa dos tios, vive ainda Célia, de
dezasseis anos. Chama Maria para o seu quarto, mostra-lhe revistas de
circulação proibida. Conta-lhe que tivera tido um namorado, que morrera na
tropa e a deixara grávida. Conta-lhe que tinha abortado. Envolvem-se:
Célia tem de partir para Coimbra. Combinam estar juntas uma noite,
antes da partida. Quando se enlaçam, não reparam que dois vultos se
aproximam. Dois rapazes observam-nas. Querem chacoteá-las, mas ficam
excitados. Maria sente-lhes a presença, foge do quarto. Célia deixa-se estar:
155
Horrorizada, chorava de vergonha. Célia, em vez de os repelir,
prostituíra-se! Conhecia-lhe bem as reacções para não perceber o
que se estava passando no quarto ao lado. Agora, Célia dir-se-ia
que ululava, uivava ganindo o prazer que sentia! (GLÓRIA,
1962, p. 29)
Quando termina o quarto ano liceal, Maria muda-se para a casa dos
primos. Ali ninguém fala com ela, come a sós na cozinha. Antipatiza com
Milá, filha da dona da casa. Um dia, ouve-a falar ao telefone com Rui, resolve
espiá-la. Acaba por vê-los juntos, escondida atrás de um espelho. Envolvem-se
e, no fim, Rui tenta pagar-lhe, mas ela diz que dele não quer dinheiro. Durante
estes anos, é ainda descrito que, no liceu, há uma cena de violação colectiva.
Maria é infeliz e maltratada naquela casa e Zulmira decide que ela não
mais ficará em Lisboa. Assim, volta para a aldeia, e reencontra Carlos. Passam-
se os anos do liceu, os dois continuam apaixonados um pelo outro.
Maria vai viver para Braga, correspondem-se, juram amor, mas Carlos
envolve-se com Rosa Rita. Esta havia-lhe dito que já havia estado com vários
homens, mas mentira-lhe:
156
Quanto à noiva, fartou-se de o seguir por toda a parte e de lhe
ouvir dizer que casaria com ela porque ela assim o quisera e
porque a lei o obrigava, mas que o deixasse em paz até ao dia em
que teria de a suportar, que a detestava, que não passava de uma
sonsa, que havia de a ver o menos possível. (GLÓRIA, 1962, p.
55)
Em Braga, Maria não entende por que razão Carlos não lhe responde
às cartas. É o seu próprio pai, sem saber como a fere, que lhe diz que Carlos
157
vai casar. Diz-se que houvera abusado da noiva. Casam precisamente no dia
em que lhe escreve.
Os noivos recolhem-se ao quarto, não se tocam. Assim se passam
meses, mas Rosa Rita está grávida de Filipe. Convém-lhe que tenham sexo
pelo menos uma vez, mas Carlos continua a recusar-se, esperando que ela peça
o divórcio. Em simultâneo, envolve-se com outras mulheres, acaba por
engravifaz Palmira, que com trabalha.
Maria, sabendo do casamento, planeia vingar-se. Quer casar com um
qualquer. Mas tem saudades dele, acaba por ir à aldeia, dizendo visitar o pai
Lucas. Encontra-se com Carlos, ouve a sua versão, ele promete conseguir um
divórcio, esperarão um pelo outro, juram amor eterno.
Rosa Rita, estando grávida e sabendo que não poderá ocultá-lo muito
tempo, diz a Carlos que irá passar uns tempos a Lisboa, com a família, e que
pondera adoptar uma criança. Ele acede.
Em Lisboa, Maria descobre que Rosa Rita está grávida, presume que
Carlos lhe tenha mentido. Escreve-lhe uma carta, fria, diz ter encontrado
alguém que ama e que não quer perder esse amor. Diz estar feliz, envia-lhe a
carta.
Entretanto, Rosa Rita volta para Lisboa, com o filho nos braços,
dizendo que é adoptado. Filipe, claro, sabe que ela estivera grávida, mas
julgara que iria abortar. Ao saber da criança, bate-lhe.
Ainda revoltada com Carlos, Maria acaba por conhecer Vitório, um
italiano. Não lhe interessa, mas casa com ele por vingança e para tentar
esquecer Carlos.
Carlos, conversando com um médico, acaba por descobrir que Rosa
Rita houvera feito um parto. Pergunta-se quem será o amante. Forja um
158
encontro entre ele e a esposa, que, ao ver o primeiro, empalidece e cai. Deitada
na cama, delira, revela coisas que queria manter ocultas. Pede a Filipe que fuja
com ela.
Iniciam o processo de divórcio. Maria descobre. Pensa que, agora que
Carlos se vai divorciar, talvez fosse melhor divorciar-se também. Não precisa
de planear nada, há uma noite em que Vitório bebe demais, cai, bate com a
cabeça e acaba por morrer. Maria fica obcecada com a ideia de casar com
Carlos. Entretanto, faz uma viagem à Madeira.
Na ilha, conhece Miguel, que por ela se apaixona. Envolvem-se, mas
ela pensa em Carlos. Rejeita-o. Diz-lhe que ama outro. Miguel diz que esperará
por ela.
Voltam para Lisboa. Na noite em que se vão despedir, Miguel anuncia
que um amigo do liceu passará aquela noite com eles. O amigo em questão é
Carlos, que, no decorrer do serão, finge indiferença em relação a Maria, e ela
faz o mesmo. Carlos está revoltado ao encontrá-la ali:
159
começa o adultério. Depois de seis meses, já Carlos trai Maria:
Com o resumo que aqui deixámos, não será muito difícil tentar
perceber por que razão esta obra foi censurada. É que ela inclui muito do que
160
feria a moral do Estado Novo no que concerne à sexualidade (a mera afirmação
da sua existência era suficiente para motivar uma censura), e ainda muito além
do que seria expectável. Já vimos, neste trabalho, os censores literários a
proibirem a circulação de obras por conterem descrições de relações eróticas
(por exemplo, com Carmen de Figueiredo), e já vimos os censores
particularmente escandalizados com actos necrófilos (com Casa sem pão, de
Maria Archer). Aqui, nessa matéria, a narrativa vai mais longe: não só vemos
muitas situações sexuais (algumas destas listadas no resumo do ponto anterior),
como vemos muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas
para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças),
atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas
homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais.
Noutro tópico, no início da narrativa, há ainda situações de maus-tratos a
crianças e de violência doméstica.
Contudo, esta obra de Maria da Glória, ao contrário das obras, por
exemplo, de Maria Teresa Horta e de Natália Correia que aqui trataremos, não
nos parece ter qualquer intento político. A exposição da sexualidade não serve
para mostrar um confronto nem para fazer uma reivindicação. A forma como
as personagens estão delineadas, por sua vez, tende até a ser um tanto
reaccionária: os homens são vistos como animais sexuais, as mulheres
procuram afecto; no caso dos primeiros, amor e infidelidade não são
contraditórios; no caso das segundas, não podem ser concomitantes, a não ser
por vingança.
A autora parece optar pela contínua novidade para prender o leitor. A
acção tem muitas reviravoltas, sempre inesperadas, e no fim vence o amor, que
aqui aparece como uma força espontânea intransponível, um baluarte apesar
161
dos problemas, e que existe sempre apesar de: apesar do tempo, apesar das
separações, apesar de outros homens, de outras mulheres, apesar de as duas
personagens principais acreditarem em traições. Assim, nada na narrativa, para
além dele, parece deixar marcas: as pessoas que passam nas vidas das
personagens não voltam a ser referidas, os casos de necrofilia e de relações
homossexuais são referidas uma vez só, sem grande papel na narrativa, sem
que se perceba de que forma contribuem para a formação das personagens.
Não havendo referência a outros assuntos, parece-nos, por isso, que
esta foi uma obra que não passou pelo crivo da PIDE graças à mera existência,
e não afirmação, do erotismo no seu cerne. Pela sua inclusão, e pela forma tão
evidente como existe, e de forma reiterada, não nos parece que a sua proibição
tenha sequer sido matéria de questionamento e acreditamos que a obra tenha
sido proibida assim que foi lida.
Sem outras informações, torna-se impossível analisarmos a recepção
desta obra. Também não sabemos de que forma esta obra censurada terá
influenciado a vida da autora. Ainda assim, podemos arriscar que muito
dificilmente esta obra sobreviveria até hoje, muito dificilmente se poderia
canonizar. Não traz em si a força do seu tempo nem do intemporal, não
questiona, não provoca, não incita, não acrescenta matéria a um leitor
coetâneo.
162
6. Nita Clímaco
54 Nos arquivos da PIDE da Torre do Tombo não consta uma ficha sua.
163
O exílio foi um tema recorrente na obra de Nita Clímaco, retratando
ficcionalmente a autora a vida dos portugueses emigrados em França, ou
visitantes do país, e o choque cultural que desta condição advinha. Assim
sendo, não é de somenos notar de que forma o exílio influenciou a criação
literária da autora. Contudo, Isabelle Simões Marques quis ir aqui mais longe,
querendo descobrir “o papel que a literatura pode desempenhar na assimilação
do exílio como forma de vida” (MARQUES, 2014, p. 48) no caso de Clímaco.
Neste sentido, acabou por considerar que a autora viu na literatura uma forma
de manutenção dos laços culturais com Portugal e de repressão dos motivos
que a conduziram à saída do país.
Obras como Pigalle e A salto retratam de forma negativa a emigração
portuguesa em França. Contudo, a primeira foi proibida e a segunda não. Nos
próximos pontos, iremos deter-nos sobre as obras e tentar entender as razões
dos censores para estas decisões.
164
cinco anos, empregada num hospital, que vive em Lisboa. Mariana conhece
Monique há três anos, em Cascais, quando esta a convida para passar com ela
uns tempos em Paris. A capital francesa é apresentada como um lugar de
cultura e progresso e Mariana sonha com “Paris romântico, de lenda, de
filmes” (CLÍMACO, 1964, p. 10). Assim sendo, aceita prontamente o convite
que lhe é feito.
Perto da sua partida, contudo, inicia uma relação afectiva com Filipe,
médico no hospital em que trabalha. Filipe, no decorrer da narrativa, irá
simbolizar um “amor tranquilo” (CLÍMACO, 1964, p. 74), desprovido de
artifícios ou promiscuidades. O médico, por sua vez, irá sentir-se ameaçado por
Monique, que julga homossexual: “A sua amiga, vê logo, pelo seu ar e à-
vontade, é daquelas a quem as outras raparigas, principalmente as raparigas
engraçadas como você, interessam mais do que aquilo que seria normal
esperar.” (Clímaco, 1964: 25). Pedindo-lhe Mariana provas, este afirma não tê-
las. Mariana, assim, talha o seu retrato de Monique, encontrando-lhe um “ar de
rapaz” e dizendo ter “a impressão [de] que Monique é apenas uma revoltada
contra os convencionalismos sociais, contra o que ela chama falsos
preconceitos” (CLÍMACO, 1964, p. 26).
Uma vez chegada a Paris, Mariana conhece, pela mão de Monique,
“Saint-Germain-des-Prés, reino dos tesos, berço do existencialismo, país do
inverosímil, onde as convenções foram abolidas e cada um faz o que quer”
(CLÍMACO, 1964, p. 40), assim como José e Alain, dois rapazes
homossexuais. Os dois começam a fazer insinuações sobre uma possível
relação amorosa/erótica entre as duas mulheres, embora Mariana, no início,
seja incapaz de entendê-las:
165
– Não exageraste a tua hospitalidade e não a cansaste muito?
Esta pergunta foi sublinhada por um sorriso enigmático, que
Mariana não compreendeu. (CLÍMACO, 1964, p. 53)
Mariana começa a julgar aquilo que vê, pergunta-se que tipo de prazer
pode encontrar-se numa vida de “aventura” e “imprevistos” (CLÍMACO, 1964,
p. 55), perguntando-se se será “um prazer de sentidos contrários, como se diz,
às leis da natureza” (CLÍMACO, 1964, p. 55). Custa-lhe entender que “dois
homens se procurem pelo simples prazer dos sentidos, pelo conforto sexual que
um possa procurar no outro, como José deve procurar em Alain” e acredita que
depressa José será um “velho repugnante, estigmatizado pelo vício, apontado a
dedo e inferior à sua própria condição humana” (CLÍMACO, 1964, p. 56).
Posteriormente, Mariana acaba por conhecer Eric, um pintor amigo de
Monique, por quem, pela sua simpatia, sente uma atracção imediata. Pouco
depois, “Mariana, trânsida de medo, depois dum tímido pedido de Monique,
aceitou que esta se deitasse na sua cama” (CLÍMACO, 1964, p. 65). A partir
daí, as duas começam, no apartamento de Monique, a dormir na mesma cama
e, para Mariana, a francesa começa a substituir a imagem de Filipe. Depois dos
primeiros momentos, contudo, Mariana começa a pensar em Eric. Tendo-o
idealizado, começa a sentir que são “incompletas as carícias que passivamente
deixava a outra proporcionar-lhe” (CLÍMACO, 1964, p. 72). Para mais,
pergunta-se se “aquela sofreguidão de sensações que Monique ainda lhe não
fizera conhecer, mas apenas deixado adivinhar” seria amor, perguntando-se
ainda se poderia amar uma “mulher de espírito e ao mesmo tempo de sentidos”
(Clímaco, 1964, p. 74), concluindo pela impossibilidade. Quanto a Filipe,
acredita ter por ele “um “amor tranquilo”, de “prancha de salvação”, um amor
166
que se confunde com “o respeito, com a admiração, com a amizade”
(CLÍMACO, 1964, p. 74). Posteriormente, Mariana envolve-se com Eric, que,
por sua vez, “representava a concretização dos carinhos e das práticas
incompletas em que Monique a tinha viciado e excitado, mas que apenas
haviam servido para a enervar, para tornar maior a sua vontade de amar, de se
iniciar nos verdadeiros carinhos, de se entregar por inteiro aos prazeres do
amor, dum amor sem limites e sem sentidos proibidos.” (CLÍMACO, 1964, p.
111). Até então, Eric havia somente tido experiências homossexuais e Mariana
queria impedir que Eric “voltasse às práticas de um amor anormal.”
(CLÍMACO, 1964, p. 112).
No final da obra, Mariana descobre que Eric fazia parte de uma
organização clandestina que realizava e distribuía filmes pornográficos, tendo
esta sido descoberta pela polícia e noticiada na comunicação social. Eric acaba
preso e Mariana escandalizada. Comentando a história, Monique diz-lhe:
“Talvez sejas tu que tenhas razão e que os teus preconceitos de portugueses,
que me fizeram rir, sejam justos e verdadeiros” (CLÍMACO, 1964, p. 148).
Mariana parte para Portugal no dia seguinte, desejando deixar para trás a sua
experiência em França. Uma vez regressada, já no fim da narrativa, toma
rapidamente uma dose de comprimidos sedativos e adormece, adivinhando-se
que se terá aí suicidado.
167
interdita por despacho no dia 7 de Agosto de 1964. O parecer da PIDE diz o
seguinte:
168
escondê-la. A homossexualidade era um assunto tabu e nenhuma obra que a
referisse, ainda que levemente, poderia passar pelo crivo da censura. A
exclusão social ultrapassava a literatura e os homossexuais eram, no decorrer
do regime, remetidos para uma semi-clandestinidade: era um assunto de que
ninguém falava, mas que toda a gente sabia que existia, sendo alvo, assim, de
uma espécie de guetização conceptual (ALMEIDA, 2010, p. 169). A ideia da
homossexualidade chocava com o que o Estado Novo apregoava, já que,
mexendo nos códigos sociais que norteavam as relações entre os dois sexos e
criando relações amorosas/sexuais que não tinham como objectivo a
procriação, afrontava a instituição familiar, um dos pilares do Estado Novo,
negligenciando o padrão burguês, que, no seu quadro socio-económico, a
encarava como tendo uma função reprodutiva, e questionando a ordem moral e
social que o regime não só defendia mas impunha.
No entanto, e ainda que tenha uma relação homossexual a guiar a
narrativa, o facto é que esta obra é profundamente reaccionária e, em certas
partes, até chega a ser favorável ao que o Estado Novo apregoava. Ainda que,
inicialmente, pareça querer opor a ideia de um Portugal socialmente tacanho,
preso a uma moral católica, à de uma França moderna e aberta (fazendo-o,
neste caso, através das considerações das próprias personagens em relação à
sexualidade e à orientação sexual), acaba por condenar as relações homo-
eróticas e por sugerir que Paris é um terreno de imoralidade, contrastando com
Portugal. Para mais, a homossexualidade chega a ser perspectivada enquanto
doença, na medida em que chega a falar-se de uma cura: “Tentei curar-me, mas
nunca o consegui.” (CLÍMACO, 1964, p. 107), diz Eric. Ao mesmo tempo, é
vista como uma anormalidade pela protagonista, que quer impedir que Eric
volte “às práticas de um amor anormal” (CLÍMACO, 1964, p. 112).
169
Para além disto, há uma clara diminuição qualitativa das relações
homossexuais entre mulheres, sempre descritas como insuficientes: “[Eric]
representava a concretização dos carinhos e das práticas incompletas em que
Monique a tinha viciado e excitado, mas que apenas haviam servido para a
enervar, para tornar maior a sua vontade de amar, de se iniciar nos verdadeiros
carinhos, de se entregar por inteiro aos prazeres do amor, dum amor sem
limites e sem sentidos proibidos.” (CLÍMACO, 1964, p. 111). Para além da
relação homossexual ser encarada como proibida, é ainda considerada limitada
e limitante: só as relações heterossexuais poderão ser de um “amor sem
limites” e só com elas os amantes podem entregar-se “por inteiro aos prazeres
do amor”. Esta ideia vai ainda de encontro à de uma ideologia patriarcal,
pensando a sexualidade tendo os homens como referência. Neste caso, o papel
das mulheres, mesmo numa relação homossexual, é considerado secundário,
parecendo nem sequer passar obrigatoriamente pelo sexo: por ser considerado
limitado, assume-se na narrativa que as relações homossexuais entre mulheres
são sempre vilipendiadas em relação às outras, sejam elas homossexuais entre
homens ou heterossexuais.
Seja por via das descrições das relações homossexuais, condenadas e
diminuídas, ou pelo culminar da construção de uma personagem que inclui um
negócio de realização e distribuição de filmes pornográficos, Paris, que é
inicialmente apresentada como uma cidade moderna e livre, acaba por ser
vista, à luz da narrativa, como um lugar de perversões, sem regras nem moral.
Claro, esta descrição acaba por ser contraposta à de Portugal, outrora descrito
como provinciano (no início da narrativa), mas finalmente apresentado como o
lugar onde não ocorre a “libertinagem de Paris” (CLÍMACO, 1964, p. 152).
Os “falsos preconceitos”, a que Monique se refere algumas vezes,
170
tratando ainda Mariana por “Mademoiselle Faux Prejugés” (CLÍMACO, 1964,
p. 149), não seriam, assim, falsos, mas antes uma forma válida, e certeira, de se
nortear moralmente as acções quotidianas. Os preconceitos, desta forma,
apresentados como enraizados na cultura portuguesa, contrastariam com a
devassidão que é, na narrativa, associada a França. Aliás, é a própria Monique
quem o diz a Mariana: “Talvez sejas tu que tenhas razão, e que os teus
preconceitos de portuguesa, que me fizeram rir, sejam justos e verdadeiros.”
(CLÍMACO, 1964, p. 148). Desta forma, aquilo que inicialmente é visto como
tacanhez cultural é, no final da narrativa, o caminho para “o carácter”, ou não
se acusasse Mariana “[d]a sua leviandade, [d]a sua falta de vontade e de
carácter” (CLÍMACO, 1964, p. 151), estando a linha de fundo da narrativa não
só moralmente próxima da apregoada pelo Estado Novo, mas também ao
serviço da sua política anti-emigração, já que, apresentando o que existe fora
de barreiras como imoral e promíscuo, ajuda a quebrar, no quarto ideológico e
moral do regime, os incentivos para a saída do país.
171
literatura portuguesa pela primeira vez, derivada da experiência em primeira
mão. Aliás, a própria badana do livro faz alusão a este aspecto, ditando o
seguinte: “Em Pigalle, pela primeira vez, uma escritora portuguesa, com
conhecimento de causa, debruça-se sobre o problema de adaptação dos
emigrantes portugueses que vêm para Paris.”
E m Pigalle, a acção gira à volta de Anisabel, que, não aguentando
mais “viver em Lisboa, naquela rua horrorosa e sombria, acorrentada a todas as
desilusões da juventude, a lidar dia a dia com aquelas vizinhas mesquinhas”
(CLÍMACO, 1965, p. 13/14), decide partir para Paris, procurando uma vida
melhor e levando consigo José, o namorado. Anaisabel fora ama numa família
francesa e, uma vez chegada a Paris, consegue um lugar de secretária numa
clínica dentária. Começando a interessar-se por Serge, dentista que lá trabalha,
começa, concomitantemente, a afastar-se do noivo. Posteriormente, acaba
mesmo por acabar a relação com José, que se muda para outra cidade,
iniciando uma relação amorosa com Serge. O francês, por sua vez, acaba por
anunciar-lhe que teve uma proposta de venda da sua parte do negócio de
medicina dentária e que tenciona aceitá-la caso Anisabel aceite mudar-se com
ele para a Tunísia, fazendo ainda planos para um casamento:
172
fazer a minha felicidade. (CLÍMACO, 1965, p. 248)
Anaisabel diz que quer acompanhá-lo e, juntos, preparam-se para partir para a
Tunísia a partir de Marselha, sendo precisamente na cidade do sul de França
que acaba por cair numa rede de tráfico de mulheres. A caminho do barco, de
onde deveriam partir os dois para África, Serge finge esquecer-se do dinheiro e
do seu bilhete no hotel, voltando para trás e prometendo a Anisabel encontrá-la
no barco, ao qual nunca chega. É no final da narrativa, precisamente nas
últimas três páginas, que Anaisabel percebe o que lhe aconteceu e em que
situação se encontra. Serge não seria, afinal, seu amante, mas um cúmplice
numa rede de tráfico. Ancer, que a esperava no barco, desvenda-lhe a verdade:
173
estás mais confortàvelmente na minha boite do que na prisão, aguardando o
processo.” (CLÍMACO, 1965: 308).
Como em Falsos Preconceitos, o romance parece, inicialmente, querer
contrastar o que seria uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre,
moderna, descomprometida. Como no primeiro, acaba por mostrar-se uma
França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico de carne
branca, de redes de prostituição com destino à África do Norte.
174
narrativa culmina num episódio em que se desvendam as intenções de Serge:
levar Anaisabel para uma rede de tráfico de mulheres destinadas à prostituição,
tema tabu do regime. Ainda que não tenhamos tido acesso ao relatório do
censor, pode adivinhar-se, pela leitura, que seriam estes os dois temas que
golpeariam a moral vigente. Afinal, mesmo olhando para os relatórios
referentes a obras de outros autores, portugueses e não só, vemos que há não só
um claro desejo de, também na literatura, se apresentar uma cara limpa do
regime e um Portugal paradisíaco mas também um vilipêndio total por tudo o
que ao sexo diz respeito.
Claro que os critérios dos censores da PIDE foram sempre dúbios: não
só não havia um único censor como não havia uma tabela de motivos de
censura. Assim, o inverso viria a acontecer com A salto (1967), livro
permitido. É certo que este romance não versava a temática da prostituição,
mas era também um romance cuja temática versava sobre a emigração.
Na nota introdutória, Nita Clímaco deixou já um alerta em relação ao
conteúdo da obra: “Quis escrever um romance e não um livro de tese sobre a
emigração. Não me compete aprofundar estes e outros problemas da
emigração, mas penso que deverão ser encarados e inteligentemente estudados
por quem de direito, de maneira a encontrar-se-lhes as soluções que se
impõem” (CLÍMACO, 1967, p. 10). Ainda que a autora alerte para o carácter
ficcional do romance, escreve ao longo do texto várias notas que atestam a
veracidade do que é dito. Por exemplo, “Em 1965 o tráfico dos portugueses
rendeu aos passadores mais de 35 milhões de francos (L’Aurore, de 13 de
Setembro de 1966, artigo de Didier Leroux).” (CLÍMACO, 1967, p. 49).
Assim, parte-se do princípio de que o objectivo da autora era fazer um
romance, ficcional, claramente saído da realidade – a história versa sobre
175
personagens fictícias que podiam ser reais, que representam situações reais,
que ocorrem num cenário real.
A acção gira à volta de Toino, português que, cansado de trabalhar
sem ter grande retorno monetário, sonha com a emigração para França e com o
enriquecimento, tendo acabado por emigrar “a salto”. Para trás, deixa a sua
família, o filho e a esposa, Eugénia, que corresponde à figura feminina
estimada pelo regime – submissa, esposa e mãe, dona de casa. Por toda a obra,
perpassa a sombra do arrependimento de Toino: ao contrário do esperado, a
vida em França é de miséria, não há tantos empregos quanto o português
julgava, as diferenças culturais causam grandes entraves. O choque cultural é
ampliado com a desadequação das expectativas da personagem, que cria noutra
realidade, incluindo no que à própria jornada concerne:
176
correspondente a isto, não se encontra na Torre do Tombo). Seria pertinente
termos a certeza dos motivos do censor, mas talvez possamos adivinhá-los:
nesta obra, depois da emigração, há um fracasso. Toino emigra e, no final, diz
que “não pensa voltar, porque em Portugal está-se melhor. Lá em França a vida
nem para todos é boa. São mais aqueles que passam fome e miséria – como eu
passei – do que os que conseguem pôr dois patacos de lado” e que “quando um
tipo se empenha para ir para França, convencido que parte para desenrascar a
vida, depressa se convence que aquilo não é nenhum paraíso” (CLÍMACO,
1967, p. 181). Para mais, ao contrário de Pigalle, o seu conteúdo sexual é
quase nulo e não se faz qualquer referência a prostituição.
No início da narrativa, é certo, os leitores deparam-se com a descrição
das más condições de vida da personagem principal (“a vida mostrava-se
difícil. Chovia quando não devia chover, a geada queimava os rebentos e o
vento arrancava as flores das árvores.” in CLÍMACO, 1967, p. 12). Contudo, a
vida fora de Portugal é apresentada como ainda mais difícil. Ao contrário de
outros livros sobre o exílio, este não aliciava as partidas. Alinhavava-se com o
discurso de Salazar, de querer impedir a saída de quem fosse útil para a guerra
colonial – o que veio a alterar, através do número de desertores, os paradigmas
da emigração. Neste sentido, seria um livro útil ao regime.
177
e com ele inicia uma aventura amorosa. Uma vez regressada a Paris, Françoise
deixa para trás um adolescente perdidamente apaixonado que pensa nela o
tempo todo e acredita que terá de lutar por um amor entre ambos. Assim, este
decide partir para Paris, de forma a encontrá-la, depois de ter recebido um
curto postal com uma fotografia de Paris e a frase: “As minhas recordações de
Portugal confundem-se com os bons momentos que juntos passámos.”
(CLÍMACO, 1966, p. 132). No final do livro, contra todos os avisos do dr.
Cruz, patrão de Rui, que afirma ser aquela paixão um fogo-fátuo e lhe garante
uma desilusão assim que reencontrar Françoise, Rui decide apanhar um
comboio para a capital francesa.
Uma vez em Paris, acaba por dar razão ao dr. Cruz: afinal, apanha a
adivinhável decepção amorosa. Françoise, depois de uma certa relutância em
encontrá-lo, acede ao pedido, ainda que contrariada. Contudo, desvia-se dele e
não desembrulha os presentes que Rui lhe dá. A viagem de Rui para França,
enquanto prova de amor, é-lhe totalmente indiferente: “E que culpa tenho eu
disso? Não te mandei vir!” (CLÍMACO, 1966, p. 277).
Contudo, no final da narrativa, Rui, numa carta enviada ao dr. Cruz,
mostra-se feliz e encara Françoise como uma recordação, afirmando ainda
procurar outras mulheres para poder aperfeiçoar o seu francês. Para além disso,
mostra-se grato, tanto ao destinatário quanto a Françoise, por o terem ensinado
a não acreditar em paixões.
178
dos daquelas outras a que nos referimos nesta tese.
179
Como a primeira solução tem muito de contingente parece-me
melhor a segunda. (AZEVEDO, 1997, p. 116/117)56
A segunda solução sugerida pelo censor foi a que foi posta em prática,
tendo o livro acabado por ser proibido no dia 27 de Agosto de 1966
(AZEVEDO, 1997, p. 117). A obra, portanto, que não apresentava, per se,
grande perigo ou ameaça ao regime, acabou por ser apagada da história da
literatura portuguesa: a primeira e única edição foi proibida e o livro pode
apenas ser encontrado em lugares como a Biblioteca Nacional de Portugal ou
em websites de revenda.
6.5. Conclusões
56 Como no que se refere ao relatório sobre Falsos Preconceitos, não conseguimos aqui apurar a fonte
usada por Cândido de Azevedo.
180
expatriação. No que Nita Clímaco, emigrada em França, nos apresenta,
podemos vislumbrar um profundo pessimismo inerente à emigração: afinal, ou
acontece o que é, nas narrativas, encarado como depravação moral, prejudicial
para o próprio bem-estar psíquico e emocional das personagens, ou a desgraça
económica e o mergulho em péssimas condições materiais de vida.
Pode dizer-se que a matiz crítica das obras é difusa. É certo que a
formulação literária inclui a intenção de denúncia. Afinal, há uma crítica clara
à realidade social e cultural de Portugal, notada pela forma como a autora a
menoriza em relação a França: Portugal é constantemente apresentado como
tacanho e provinciano, as personagens que de lá partem para França, regra
geral, ficam fascinadas com o progresso que lá vêem e a condição de alteridade
coloca no centro da narrativa o que é ser português, o que distingue esta nação
das outras. Assim, após a partida, as personagens parecem perder as suas
identidades individuais e as suas condições de vida, por motivos diversos,
pioram de forma considerável.
Nas obras, o pacto de veracidade pode ser o do pano de fundo, não o
da acção principal, e pode ser esse o ponto de questionamento. Afinal, é no
pano de fundo que tenta mostrar-se os abismos sociais, tanto materiais como
morais, e é em prol dele que, em A salto, a autora pontua o texto com notas
atestatórias da veracidade do que é apresentado no decorrer da narrativa.
Assim, o pano de fundo da obra global de Nita Clímaco será a relação de
alteridade que se estabelece entre os emigrantes portugueses em França e o
meio que os recebe. Neste globo, encontram-se situações diversas (a
descoberta da sexualidade, uma rede de prostituição, o desencanto com o
mercado laboral francês) e não se crê que o objectivo, ou mesmo a posição da
autora, fosse muito claro. Apesar de a autora ter sido tão perseguida pela PIDE,
181
não pode dizer-se que grande parte dos seus livros não pudesse ser-lhe
abonatória. Tal, per se, não será de condenar nem significará que a autora
estava presa aos grilhões da ditadura. Talvez possa apenas dizer-se que não se
deixou enlaçar nos grilhões da instrumentalização da arte nem usou os seus
romances para marcar uma posição política inequívoca.
182
7. Natália Correia
183
que o salazarismo impunha. Quatro anos mais tarde, publicou, com Luiz
Pacheco, o Cântico do País Emerso, obra em que exaltava o desejo de
liberdade em Portugal, usando o texto literário enquanto acto de denúncia do
regime.
Na década de 50, começou a fazer oposição ao regime mais
abertamente, tendo ainda, com oito livros, aumentado largamente as suas
publicações, entre os géneros de teatro, poesia e ensaio. Neste conjunto,
encontra-se Comunicação, o seu primeiro livro censurado: proibido em
Outubro de 1959, viria a ser apreendido pela PIDE no mês seguinte. A sua
actividade política valeu-lhe o olhar atento da PIDE. Assim, é possível
encontrar, no documento 16 do seu processo na PIDE, escrito em 1962, um
texto que dá conta desse apoio:
Claro que a leitura dos documentos da PIDE não deve ser feita de forma
acrítica, uma vez que estes tinham o objectivo de incriminar. Assim, é possível
que o que nos é dito sobre um presumível apoio de Natália Correia a Arlindo
Vicente não seja verdade. Afinal, a autora tinha feito campanha pela oposição
em 1958, mas apoiando Humberto Delgado, em virtude do qual Arlindo
Vicente desistiu da sua própria candidatura, mas apenas a oito dias do fim da
184
campanha. Natália, por sua vez, exercia actividade política desde 1957
enquanto membro da Comissão Cívica Eleitoral de Lisboa, que objectivava
unir a oposição no ano seguinte. Ainda assim, o papel incriminatório da PIDE
surtiria um maior efeito se conseguisse ligar Natália a uma candidatura do
Partido Comunista Português, mostrando-a como um agente político
subversivo.
O envolvimento político de Natália valeu-lhe uma vigília próxima da
PIDE, que, para além de lhe censurar e apreender livros, viria a dar-lhe vários
problemas com a justiça. A perseguição política, contudo, nunca lhe enformou
a acção, tanto literária como política, valendo-lhe, ao invés disto, o apoio do
sector cultural do país.
A década de 60 foi um período de clara oposição ao Estado Novo,
feita especialmente através da escrita literária. Assim, em 1965, a publicação
d a Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica valeu-lhe três anos de
prisão (suspensa) por abuso de liberdade de imprensa, assim como aos autores
que constavam da antologia: Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ary dos Santos e
Ernesto Melo e Castro; no ano seguinte, a sua obra O vinho e a lira foi
proibida. Para além disto, a autora escreveu A Pécora (1967) e O Encoberto
(1969), obras que também foram apreendidas.
A Editora Estúdios Cor contratou-a em 1971, como directora literária,
função que desenvolveu até 1973. Em 1972, foi iniciado um processo judicial
graças à publicação de Novas Cartas Portuguesas, de Maria Teresa Horta,
Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa.
Natália Correia foi ainda coordenadora da Editora Arcádia, que tinha
uma dimensão considerável nas décadas de 70 e 80, e foi autora da letra do
Hino dos Açores. Em 1974, começou a colaborar com “A Capital” - Crónicas
185
Vagantes -, acompanhando o curso do 25 de Abril. A sua vida cultural activa
contou com trabalhos como editora, a escrita de ensaios, poemas, peças de
teatro, a organização de antologias, exposições e eventos culturais.
Com uma grande obra literária, principalmente poética (a autora
assumia-se como poetisa), Natália Correia era mais conhecida pelas suas
intervenções políticas. Isto acontecia pelo público em geral, que não era o
público leitor, e não agradava à autora, que dizia estar na política pela cultura.
Altamente comprometida com a vida social, a obra literária de Natália remete-
nos sempre para a sua intervenção, que, longe de se fazer apenas pela via
artística, contou com vários momentos de intervenção directa. Aliás, é a
mesma que, num documento que pertence ao seu espólio na Biblioteca
Nacional de Portugal, o diz:
186
obras tinham um forte cunho político e atentavam claramente contra a moral e
a política que o regime apregoava. Por vezes, atentavam ainda contra a figura
do ditador.
Como dissemos, a vida política da autora não se fez somente por meio
da literatura, tendo-se esta oposto ao Estado Novo em vários movimentos.
Assim, em 1945, integrou o Movimento de Unidade Democrática (MUD); em
1949, apoiou a candidatura à Presidência da República do general Norton de
Matos e, em 1958, como já foi dito, apoiou a de Humberto Delgado; em 1969,
participou na Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD). Aliás, foi
precisamente a partir do apoio à candidatura de Humberto Delgado que Natália
Correia se tornou mais activa no meio político. Posteriormente, tornou-se
assessora do Gabinete de David Mourão-Ferreira no período em que este foi
Secretário de Estado da Cultura (1976-78 e 79) e, em 1980, foi eleita para o
Parlamento pelo Partido Popular Democrático (PPD), enquanto deputada
independente. Enquanto exercia esta função, a autora teve polémicas
intervenções parlamentares, das quais se destacará um episódio ocorrido em
resposta a João Morgado, deputado do CDS, no dia 3 de Abril de 1982, durante
o primeiro debate parlamentar sobre a interrupção voluntária da gravidez.
Depois de o deputado ter dito que o acto sexual servia para a procriação,
Natália escreveu um poema e leu-o na sua intervenção parlamentar:
187
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou — parca ração! —
uma vez. E se a função
faz o órgão — diz o ditado —
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
188
7.2. Natália Correia na literatura portuguesa
Natália Correia, pela sua obra e pela sua postura perante a vida e a
arte, produzia uma certa admiração em quem a rodeava. Gabavam-lhe a
elegância e a paixão, o inconformismo e a obra, a capacidade de trabalho e o
trabalho multifacetado. Chamavam a atenção para aquela incongruência de
termos, para aquela mulher que afrontava a ditadura abertamente, mas que
tinha medo do escuro e de estar sozinha em casa.
José Augusto Mourão enaltecia-a no panorama da cultura portuguesa,
dizendo que esta última lhe devia
189
mais original, audaciosa e polivalente dramaturga portuguesa da segunda
metade do século XX (ROSA, 2011, p. 103). Não será de espantar, uma vez
que o teatro escrito nataliano, apesar do silenciamento cénico e editorial que
sofreu no decorrer do Estado Novo, evoluiu e existiu em vários registos
estéticos:
190
que a autora vivia, e que, não raras vezes, é precisamente o cenário da sua
dramaturgia, aliando a autora, desta forma, a estética, ou várias estéticas, à
formulação de uma proposta do mundo. Assim, assinala-se, na sua literatura,
para além de críticas ao sistema vigente ou a tradições sociais, o efeito
castrador da censura, para além dos três séculos da Inquisição que marcaram
Portugal.
Afrontou abertamente a ditadura, enfrentando de seguida penas
correspondentes ao seus actos insubmissos, como os três anos de pena
suspensa pela publicação de uma antologia de poesia erótica; a proibição de
representação de algumas das suas peças; a proibição de algumas das suas
obras; perseguição por ter editado Novas Cartas Portuguesas. As penas não só
não a demoveram como a estimularam a agir mais contra o Estado Novo.
Foi por via de textos riquíssimos no que concerne à estilística que
Natália levou a cabo os seus intentos, usando uma linguagem que referia a
cultura, a literatura ou a religião e que era rica, por isso, não só do ponto de
vista semântico ou lexicográfico, mas principalmente cultural. Era, assim, uma
linguagem que se extrapolava de si mesma, atingindo novos níveis de
significância no seu subtexto. Desta forma, uma análise dos seus textos
poéticos que se queira completa e significante terá de notar a sua intrínseca e
ecuménica subtextualidade. Se a análise ignorar o subtexto, onde o símbolo se
revela, sendo meramente uma análise textual, será impossível alcançar a
significação simbólica do corpus literário. Assim, no caso da literatura de
Natália Correia, a análise do simbólico deve ser primordial. Afinal, é o nível
subtextual que justifica e enriquece o texto e, concomitantemente, a criação
artística.
Ao mesmo tempo, a linguagem simbólica – ora visível, ora oculta –,
191
enriquecida pelo uso constante de recursos estilísticos, responsabiliza o leitor
no processo comunicativo com a autora: esta trabalha a palavra e apresenta-a
ao leitor, a quem cabe a análise do subtexto e a interpretação do universo
onírico, e isto se pretender o alcance da significação do texto, que terá ainda de
contar com a análise da estilística textual e da estilística simbólica. Essa
responsabilização do leitor põe peso na recepção da obra, uma vez que esta
nasce para que as interpretações e os alcances das significações caibam aos
leitores.
É impossível, por isso, ignorarmos o zeitgeist em que o texto literário é
produzido. Este último, aliás, só é explicável através do primeiro, uma vez que
a literatura nataliana tem uma relação directa com o seu tempo, que procura
ainda ser interventiva, nem que seja através da provocação ou do abalo de
cânones. Assim, note-se ainda a forma como, em D. João e Julieta (peça
escrita em 1959 e publicada em 1999), Natália Correia, recuperando o mito de
Don Juan (El burlador de Sevilla y el convidado de piedra, 1630, Tirso de
Molina), o adapta ao seu tempo e às suas crenças e evidencia a hipocrisia do
casamento pela voz de D. João:
192
concebida no cobarde desafogo da tua carne. É bem possível... E
depois?... Acaso alguma de vocês me soube reter ou mostrar-me o
verdadeiro rosto do amor? Agiste com esse atavismo das fêmeas
vulgares que comprometem a divina loucura do amor a troco da
segurança. Uma apólice contra o abandono - eis o que a mulher
procura quando se dá. Não me amaste a mim... Ou melhor, pelo
amor. A tua entrega não foi mais do que um assomo de revolta
contra a obrigação do acto de amor oficial, entrega que se cancelou
quando surgiu entre nós o ponto de interrogação "futuro".
(CORREIA, 1999, p. 56/57)
193
palco e as figuras históricas, aos quais voltaremos em breve). Talvez esta
distanciação da autora em relação ao movimento, que se reafirma pela sua
ausência da antologia O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973), se deva à
crítica que a autora faz sobre o que este devia ser em Portugal no contexto,
tanto literário como social, em que vivia. Podemos sempre questionar a sua
opção por não se incluir na antologia: interessada pelo surrealismo e tendo
convivido com os surrealistas portugueses, seria de esperar que, com o seu
conhecimento abrangente deste movimento, pudesse ter incluído poemas da
sua autoria que se aproximassem dele. Assim como assim, a verdade é que a
autora procurava fugir às catalogações, afirmando não ter sido nunca
surrealista. Distanciava-se do surrealismo também pelo que achava acerca do
que o movimento devia ser em Portugal.
A verdade é que, ao fazer a sua literatura, Natália Correia alia o antigo
ao moderno. Ainda que opte, não raras vezes, por uma estética moderna, não
desiste de chamar a tradição à cena. “Arcaica e futura”, assim chamou
Armando Nascimento Rosa (2011, p. 103) à obra dramatúrgica da autora:
194
Ao mesmo tempo, ainda que influenciada pelo Surrealismo, a que está
conotada uma falta de interesse pela evocação do passado, a autora foca uma
parte considerável da sua obra literária em figuras históricas da cultura
portuguesa, como D. Sebastião em O Encoberto.
A intenção de que a modernidade dialogue com a tradição na sua obra
vê-se, por exemplo, na obra Sonetos Românticos, datada de 1990. Logo no
título, fica óbvia a intenção da autora de conciliar a modernidade com a
tradição, aliando a liberdade formal dos românticos às formas clássicas rígidas.
A escrita de sonetos românticos, per se, não será uma novidade. Muitos
românticos os escreveram, embora se tenham confinado a formas clássicas,
sendo influenciados por movimentos literários anteriores. O caso de Natália
Correia é bem diferente. Aqui, a junção dos dois movimentos é intencional e
serve precisamente para esbater as fronteiras entre movimentos literários, até
porque a autora não via contradições entre estes, aliando-os na sua obra e
permitindo-se ir do Barroco ao Romantismo e ao Surrealismo. Ao mesmo
tempo, e em pleno século XX, Correia segue processos formais que os autores
que lhe eram coetâneos não tinham já o hábito de seguir e que eram até
questionados, como a rima ou a métrica.
Para além de autora, ainda que principalmente autora (Natália afirmava-
se poeta), tem obra de reflexão teórica, e é nessa obra que justifica as opções
que regem a sua produção literária: a sua literatura, especialmente a sua poesia,
reflecte as suas posições teórico-estéticas. Aliás, é nos seus textos teóricos que
se evidencia o apreço pela abolição das fronteiras entre as estéticas. Será
também neste sentido que os sonetos são românticos e não neo-românticos,
uma vez que este último já traria uma marca temporal que tornaria os
movimentos literários mais sólidos e impenetráveis e os arrumaria de forma
195
cronológica, ao invés de fazer das suas estéticas uma possibilidade formal de
qualquer autor coetâneo, e até posterior. Para além disto, se assim Natália
tivesse optado, estaria simbolicamente a dizer que as estéticas literárias não se
mesclam.
7.3. A censura
196
Tombo), podemos dar conta deste seguimento da PIDE e do seu conhecimento
da actividade literária e política insubmissas:
197
prosseguir intacto e imperturbável, já tendo desfeito e desvalorizado a
oposição.
Num artigo publicado no “Le Nouvel Observateur”, datado de 28 de
Dezembro de 1966, J. Barre descreve a acção da PIDE, considerando que esta
“vela para que não seja perturbado o silêncio do país, apreende livros que acha
indiscretos, mete os autores na cadeira, passa busca aos editores e não hesita
em empregar, contra os inimigos do silêncio, ora os recursos sábios da lei, ora
os mais elementares recursos do “cão e gato”...”. No mesmo texto, informa
sobre aquela que teria sido a última ofensiva da PIDE, que fora dirigida contra
os escritores que haviam assinado o apelo dos 118 para pedir ao Presidente da
República que demitisse Salazar. No mesmo movimento, entre outros,
intentavam-se processos contra Natália Correia, “culpável” de ter publicado
peças eróticas (às quais voltaremos mais tarde). A expressão “inimigos do
silêncio” será merecedora de alguma atenção. Como já foi dito em capítulos
anteriores, o Estado Novo, para que pudesse continuar erguido de forma
impassível e estável, tinha de neutralizar a oposição e impedir a publicação de
posições que o afrontassem. Assim, silenciava todas as vozes que se lhe
opunham, permitindo, fosse através de livros ou da imprensa, que chegasse ao
público apenas aquilo que tentava legitimá-lo. Os escritores que não
enformavam a sua produção literária tendo por base os mecanismos censórios
afrontavam, assim, um dos maiores mecanismos de manutenção do regime.
Desta forma, eram inimigos do Estado Novo como o eram do silêncio, na
medida em que o primeiro se erguia apenas pelo garante do segundo.
Em 1969, noutro documento que consta do ficheiro da PIDE de
Natália Correia, dá-se conta da sua subscrição de um documento intitulado
“Dos escritores ao país”, que fora cortado pela censura, e em que os
198
subscritores defendiam o restabelecimento das liberdades no país e acusavam a
máquina repressiva do regime. Ao mesmo tempo, prestavam homenagem
àqueles que a combatiam e apelavam para a sua dissolução. Finalmente,
indicavam os candidatos que se opunham ao regime como os únicos capazes de
restituírem Portugal aos portugueses e os seus direitos mais elementares.
O papel dos escritores enquanto agentes sociais não era de somenos para
Natália. Assim, no dia 10 de Outubro de 1969, num artigo publicado no
“Diário Popular”, intitulado “O momento eleitoral e a honra do escritor”, a
autora defende que a própria noção de literatura tem já implícita a ideia de
compromisso: o artista comprometer-se-ia com a arte, que seria a área
privilegiada de recusa do que reprime a libertação humana. Assim, a escritora
acrescenta que, se a solidariedade do escritor radica numa ideologia política
que o faz sacrificar algumas liberdades em prol de outras, a criação literária
perde “a base tradicional da sua força negativa”, perigando ainda a
independência do escritor, uma vez que converte a literatura na estética de um
programa ideológico. Desta forma, perde-se, segundo a autora, a liberdade
crítica que promoveria a reconstrução da sociedade.
O papel do escritor seria, assim, recusar o seu voto a movimentos que
não estabelecessem os direitos e as liberdades sonegadas às classes oprimidas.
A autora conclui que, quando a necessidade de uma transformação política e
económica junta “a inteligência inconformista do escritor e as ideologias que
interpretam as aspirações e os interesses dos grupos agredidos”, a intervenção
do escritor obedece a uma estratégia racional inserida na recolha de materiais
que alarguem o domínio da liberdade.
Natália encontrava ainda dois níveis de inibição da criação literária. O
primeiro seria manifestamente implantado para calar as ideias por parte do
199
regime totalitário e consistia na invasão da criação literária por parte da
censura política, que a forçava a abdicar da sua autenticidade. O outro partiria
da desmotivação do acto criador, uma vez que o entusiasmo seria abortado pela
inviabilidade de comunicação (CORREIA, 2005, p. 383). Aliás, já nos
referimos anteriormente ao plano preventivo de acção dos serviços censórios,
que impediam publicações e até redacções de obras, na medida em que os
autores sabiam que certas obras nunca seriam publicadas. Para além disso, a
autora notava a “vontade indirecta de silenciar a cultura” (CORREIA, 2005, p.
384), que respondia ainda na forma de cerco económico, uma vez que a
vontade de dificultar os meios editoriais que difundiam a literatura era
manifesta.
Foi contra estas tentativas de amputar a liberdade e,
consequentemente, a cultura que Natália Correia fez a sua vida política e
literária. Nos próximos pontos, iremos deter-nos nas obras da autora que a
PIDE quis proibir, analisando a forma como afrontavam os ditames do Estado
Novo.
7.3.1.1. Introdução
200
A polícia política, a partir da publicação desta obra, esteve mais atenta
às actividades de Natália. Para mais, na década de 60, a oposição da autora ao
Estado Novo tornou-se mais frontal, levando não só à atenção da PIDE, mas
também, e consequentemente, a vários problemas com a justiça, não só através
da censura e da apreensão de obras, mas também de processos judiciais. Ainda
assim, a autora conseguiu, ao longo do tempo, reunir o apoio de uma parte do
sector cultural português.
O texto é uma peça teatral e um poema ao mesmo tempo. Talvez
possamos chamar-lhe peça teatral em verso e talvez possamos chamar-lhe
tragédia. A autora chama-lhe, numa carta endereçada ao director da PIDE,
datada de Outubro de 1959, poema dramático, mas talvez a definição textual
pouco importe, já que nem a autora se preocupa particularmente com ela.
Assim como assim, ainda que o subtítulo Auto da Feiticeira Cotovia o remeta
para o teatro escrito, o facto é que a autora veio a incluí-lo várias vezes na sua
obra poética, como aconteceu nos casos de Poemas a Rebate (1975) e O Sol
nas Noites e o Luar nos Dias (1992). Para mais, na bibliografia que aparece no
início de vários dos livros da autora, Comunicação aparece listada enquanto
poesia.
De qualquer forma, este é um texto em que a autora apresenta uma
ambiguidade entre poesia e teatro. O hibridismo das formas ser-lhe-á um tema
caro ao longo da sua produção teatral, vindo a atingir o seu expoente máximo
na obra O Encoberto (1969), que viremos a analisar em diante. Em
Comunicação, a Feiticeira Cotovia, personagem à volta da qual a trama se
erige, é uma feiticeira que é poeta, ficando por entender se a sua poesia é
mágica ou se a sua magia é poética. De uma ou de outra forma, a poesia é
usada enquanto conceito mágico, numa formulação muito típica do
201
surrealismo, de que Natália quis desvincular-se tantas vezes. Sendo assim
usada, a poesia era concebida enquanto forma de reivindicação, de alteração,
de formação de alguma coisa. Desta forma, a poética colocava no centro do
fenómeno artístico a relação do fazer – portanto, da poiesis –, revelando assim
o seu potencial de força material.
No texto, Lusitânia obviamente metaforiza Portugal, aqui reduzido a
uma cidade. Esta redução merecerá alguma atenção: numa altura em que
Portugal acalentava a ideia de construir o seu império, apesar de o país ser
iminentemente rural e de não acompanhar os progressos tecnológicos de outros
Estados soberanos da Europa, a autora ridiculariza o projecto megalómano,
reduzindo o país a uma cidade, não se referindo ao tamanho geográfico, mas
àquela que seria uma pequenez mental e cultural. A reconfiguração do espaço
passa, assim, por uma formulação política, manifestando-se uma subversão
política contra a Lusitânia – e, portanto, contra Portugal. Assim, a autora
expressa não só o zeitgeist, mas ainda a sua perspectiva sobre o zeitgeist, não
se abstendo, assim, de se imiscuir no mundo através da literatura. Pelo
contrário, em Natália Correia, a literatura é uma forma de intervenção política.
Na obra, os inquisidores que condenam a Feiticeira Cotovia
metaforizam a repressão política do Estado Novo, denunciando-se a ligação da
Igreja ao Estado. Esta ligação, aliás, era um tema caro a Natália, que o
exploraria ainda em A Pécora (1967), que analisaremos mais tarde.
Num texto em que não passam ao lado as referências surrealistas, a
que voltaremos no ponto seguinte, convém ainda referir a hibridez de estéticas
literárias: ainda que a autora tente distanciar-se do surrealismo, várias vezes
criticando-o ferozmente, é frequentemente conotada com o movimento.
202
7.3.1.2. Comunicação: a reclamação da liberdade para a poesia
203
também soterrada, metaforizando um Portugal agrilhoado na inquisição:
204
precisava de outros actos mais empenhados (Nobre, 1993: 32/33).
Voltando à mensagem veiculada na obra, constata-se facilmente que
existe uma clara rejeição às opressões de ordem política e religiosa. Numa
linguagem literária diversificada, em que se mistura o popular com o erudito, a
obra, até pela apresentação da ideia da poesia como magia condenável pelas
representações do poder, reclama para a poesia o direito à expressão. Ao
mesmo tempo, através da linguagem, a autora opta pela ruptura ao mesmo
tempo que mantém a tradição literária.
À distância, não é difícil ver que a obra é auto-referencial: a autora
sempre havia usado da palavra como poder e reclamava o direito a ambos,
assim como ao simbolismo da primeira; para além disto, vivia num contexto
político em que se queria esvaziar da arte tudo o que pudesse ameaçar a
manutenção das estruturas do regime. Porém, na altura em que foi escrita, nem
Natália podia adivinhar o quão bem a personagem seria, mais tarde, capaz de
metaforizá-la: no espaço de dez anos, a contar da publicação desta obra, já a
autora tinha seis obras censuradas (peças teatrais e poesia), tornando-se na
autora portuguesa com mais obras proibidas pelo regime.
205
Natália Correia é, para quem souber debruçar-se de alma limpa e
desprevenida sobre a sua obra, um dos casos mais sérios da nossa
poesia actual. Pedindo ao surrealismo a pureza insólita das
imagens libertas e aos valores da tradição a musicalidade de
ritmos e rimas que soube renovar, Natália Correia atingiu, graças
precisamente a essa síntese do surreal e do clássico, uma
atmosfera de rara insinuação poética.
O seu último livro “Comunicação”, para além da verve que se
esmerilha ao longo do poema, dá-nos, no próprio título, o sentido
de toda a poesia autêntica – o seu poder de comunicar, de incitar
o leitor (ou o ouvinte) a colaborar com o poeta. Mercê dessas
qualidades, o pendor satírico deste livro, por onde deslizam
“patriotas a bailar/ o seu repique de finados”, ganha
efectivamente a percuciência e a força requeridas.
206
sequência nem sequer se torna possível sujeitá-la a quaisquer
cortes de saneamento.
O LEITOR
Rodrigo de Freitas
207
venda.
A bem da nação
Natália Correia
208
Não se consegue, através dos arquivos da Torre do Tombo, saber se a
carta de Natália Correia teve resposta. Sabe-se, no entanto, que não surtiu
qualquer efeito. No dia 29 de Abril do mesmo ano, foi publicado um auto de
busca e apreensão que informava acerca da apreensão de mais três exemplares
da obra:
209
Guimarães), estando o texto original microfilmado na Biblioteca Nacional de
Portugal.
7.3.2.1. Introdução
210
o mito sebastiânico. As três interrogam a identidade portuguesa, compõem uma
visão panorâmica de uma parte relevante do imaginário nacional.
Nascimento Rosa considera que as três apontam várias formas de
escapar a uma circunscrição geocultural exclusiva e que as três dialogam com
arquétipos de recorrência transtemporal tanto na experiência da psique
individual quanto na colectiva (ROSA, 2011, p. 112). Assim, trataremos aqui
da mundividência expressa em O Homúnculo, reflectindo sobre a forma como
esta afrontou o regime político em que foi concebida.
A obra, cujo alvo era “o fantoche lusitano”, “o abutre que durante
longas décadas dominou o País e amordaçou o povo português” (REBELLO,
1989, p. 144), contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e,
pasme-se, com a admiração de Salazar. De facto, o ditador leu a obra num
serão e ficou profundamente impressionado com Natália Correia, ainda que a
sua figura se visse por ela ridicularizada. Quando lhe comunicaram a apreensão
da obra e a iminente prisão da autora, pediu que retirassem a obra de
circulação, mas que não fizessem mal a quem a houvera escrito, gabando-lhe a
inteligência.
211
senhor absolutíssimo da Mortocália, país de dez milhões de habitantes e outras
estátuas de heróis que outrora o glorificaram, antiquissimamente alojado na
Europa” (CORREIA, 2015, p. 21). No mesmo movimento, há provocação e
transparência. As alusões das metáforas são transparentes: é fácil entender que
Salarim remete para Salazar, não só pelas parecenças semânticas e fonéticas
dos nomes, mas também pelo lugar que ambos ocupam no topo da hierarquia
de um poder sobre dez milhões de habitantes; ao mesmo tempo, Mortocália
funciona como epónimo de Portugal, o lugar amordaçado pelos ditames
ditatoriais onde milhares de pessoas são condenadas à morte através da guerra
colonial. Esta informação que é dada aos leitores faz parte de uma longa
didascália que contém muita informação de que a peça não deve abdicar (daí
que, na encenação de José Maria Dias, de 2015, no Teatro Estúdio Fontenova,
um conjunto de actores a tenha dito).
Fica claro nesta didascália inicial, através daquilo para que remete os
leitores, que a obra que se tem em mãos se trata de uma sátira política. Nela,
Natália Correia, metaforizando, retrata Salazar e aqueles que o rodeavam no
palco de um Portugal miserável, ao qual as inovações da época não haviam
chegado, iminentemente rural, com aspiração a ser império. Ao mesmo tempo,
Salazar é ridicularizado também através do próprio título da peça. A palavra
homúnculo serve para gozar com as suas pretensões, para deslegitimar o lugar
que ocupa no topo da hierarquia do poder ou, pelo menos, para desvalorizá-lo.
Com ela, Natália Correia tenta espezinhar e minimizar o ditador através de um
olhar superior sobre o mesmo. Desta forma, torna-o motivo de gozo e de riso,
destrói as hierarquias simbólicas, desafia o poder que Salazar queria
incontestável. Neste cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e
explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista.
212
Assim, logo no primeiro quadro, é introduzido o Bispo, que representa
o poder eclesiástico e, ao longo da peça, desempenha um papel de revelo na
denúncia da cumplicidade entre o poder que representa e o poder político,
representado por Salarim, denunciando-se, desta forma, a submissão da Igreja
aos ditames políticos do salazarismo. No entanto, a aparente máscara de
submissão serve para que o Bispo consiga controlar Salarim. Para além da
relação metafórica que existe na representação literária dos poderes, podemos
ainda extrapolar uma relação de inspiração directa no Bispo e na sua servidão,
já que estes nos remetem para o cardeal Cerejeira, aliado de Salazar.
O Bobo Mnemésicus, que vem “vestido de catedrático” (CORREIA,
2015, p. 25), por sua vez, representa o poder legitimado pelo Estado Novo.
Dele depende Salazar, e de forma emocional: “Mnemésicus, minha alma”
(CORREIA, 2015, p. 24); “sol do meu espírito” (CORREIA, 2015, p. 25).
Salarim expõe a dependência do Bobo de forma dramática: “Sem ti anoiteço.
Extingue-se a minha condição de reinante e revela-se a minha propensão para
verme.” (CORREIA, 2015, p. 25).
Já o poder militar é personificado pela figura do General, que se
preocupa mais com o seu quintal do que com a guerra, caricaturando um
Portugal rural que tenta expandir-se para África e criar o seu império, grande,
poderoso, temível, que não acompanhou as evoluções tecnológicas que já se
manifestavam noutros países da Europa.
Ao longo da peça, Salarim vai revelando a sua obsessão com a ideia de
matar e com a ideia do poder. Ao Bobo, revela o “sadismo necrófilo com que
conduz os destinos de uma Mortocália, submissa da tutela norte-americana,
face à qual não aspira a ser nada mais do que estância turística com “jazigos”
visitáveis, dado que a “preocupação” do seu líder consiste em “dar mortos às
213
sepulturas” (CORREIA, 1965, p. 21)”” (ROSA, 2015, p. 15).
É neste cenário que o Bispo incita o General à guerra, ainda que a uma
guerra sem sangue, contra o despotismo de Salarim (que, por sua vez, é
influenciado pelo Bobo). Assim, o poder eclesial manipula o poder militar de
forma a neutralizar o poder intelectual, de forma a que este não tenha
influência sobre o poder político. Caso isso aconteça, ao poder eclesial fica
reservada a prática do poder político. O intento do Bispo de neutralizar o poder
político é cumprido quando Salarim mata a tiro o Bobo Mnemésicus: como
consequência do acto, Salarim perde a memória e, com ela, a sua identidade. O
Bobo torna-se num desconhecido (“Teria sido eu quem matou este
desconhecido?” in CORREIA, 2015, p. 39) e, em concomitância, também
Salarim se esvazia de si mesmo: “Estou vazio, vazio. Apenas sobrevivo como
um saco que se esvaziou. Oh! Oh! Quem sou eu? Quem sou eu?” (CORREIA,
2015, p. 39). Desta forma, o poder político é anulado pela conspiração entre o
poder eclesial e militar e, no percurso, destrói o poder intelectual, mostrando o
que acontece quando a intelectualidade se alia aos poderes ditatoriais:
inicialmente submissa aos privilégios que daí pode obter, acaba neutralizada.
No quinto quadro, Salarim quase encarna um espantalho e são
descritos os estragos que as fizeram ao devorarem o seu corpo: “Eu sou um
espantalho.”; “Manifestamente demente, Salarim permanece em atitude de
espantalho massacrado por bandos de pássaros, até ao fim da peça.”
(CORREIA, 2015: 43).
Décadas volvidas após a publicação da peça, O Homúnculo torna-se
em muito mais do que uma sátira à situação do Portugal da década de 60.
Estando ligada ao seu tempo, ultrapassa-o e questiona as estruturas dos poderes
absolutos, impondo com a sua leitura a reflexão sobre os modelos sociais
214
totalitários e as imagens fabricadas dos ditadores. Para impor esta reflexão, a
autora usou uma arma que voltaria a usar na sua produção dramatúrgica: o
humor que o ridículo provoca. Ridicularizando o ditador, a autora
deslegitimava-o e tirava-lhe a carga do medo que impunha. O escárnio que
usava na literatura era, assim, uma arma política, daí que não possa estranhar-
se que O Homúnculo tenha de imediato conhecido a censura por parte do
regime. A mundividência da autora sobre o ditador projectava-o para o lado
contrário da imagem que ele tinha e queria ter: ao invés de um homem forte,
decidido, independente, poderoso, com um grande Império nas mãos, havia um
homúnculo, um anão, um homem insignificante, pequeno, vil, que agia como
fantoche às mãos de outro poder, não tendo poder real, alimentando as suas
fantasias de poder imperial numa terra iminentemente agrícola.
A curta peça é, assim, uma peça densa, não uma peça que prime pelo
enredo, mas pela profundidade de pensamento expresso e pela inerente
incitação à reflexão. Ainda que satírica, a peça visa mais do que o escárnio:
visa atacar os pilares de um regime ditatorial, centrado na figura de Salazar.
Partindo do seu zeitgeist e desafiando-o, a obra torna-se numa ferramenta de
reflexão sobre o mundo, extravasando o seu conteúdo social e expressando o
que extravasa o palco.
Esta foi uma das obras escritas contra Salazar que mais o perturbaram.
Leu-o numa noite e, impressionado com a obra e com a autora, não conseguiu
dormir. No dia seguinte, Silva Pais comunicou-lhe a apreensão da obra e a
215
prisão da autora. Disse que tinham feito bem em tirarem o livro de circulação,
mas pediu que não tocassem na autora, gabando-lhe a inteligência.
Posteriormente, alguém próximo do director da antiga PIDE contou este
episódio à autora, que veio depois a divulgá-lo. Anos mais tarde, Marcelo
Caetano viria a processar a autora, com três anos de pena suspensa, graças à
publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965). Na
audiência, o advogado da autora, Palma Carlos, convenceu-a a não ler um
poema contra os juízes, acreditando que, se o fizesse, aumentaria
consideravelmente a sua pena.
Mesmo tendo a obra sido proibida, teve uma representação clandestina
na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no final dos anos 60.
Tratou-se de uma leitura encenada, à porta fechada, e foi feita por um grupo de
estudantes universitários dirigidos por José Manuel Osório, à data aluno da
Faculdade de Direito de Lisboa. O evento aconteceu já depois de Salazar ter
caído da cadeira, numa altura em que era já o espantalho no poder que Natália
Correia retratara na peça.
A peça acabou por ser levada a cena no ano 2015, no Teatro Estúdio
Fontenova, tendo sido encenada por José Maria Dias, depois de quase meio
século no “purgatório das gavetas” (CORREIA, 1990, p. 9).
7.3.3.1. Introdução
216
levou Natália Correia a ser condenada a três anos de prisão com pena suspensa
e a ver mais uma obra sua apreendida. Ao mesmo tempo, os autores que
constavam da antologia (Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ary dos Santos,
Ernesto Melo e Castro) também se viram judicialmente perseguidos.
Já previamente nos referimos aqui ao desejo de Salazar de que, face à
apreensão de O Homúnculo, não fizessem mal a Natália Correia. Marcelo
Caetano, contudo, não teria os mesmos intentos e o seu governo viria a
processar a autora. No decorrer do julgamento, o advogado da autora, Palma
Carlos, convenceu-a a não ler um poema que escrevera contra os juízes,
intitulado “A Defesa do Poeta”, que foi posteriormente publicado em As
Maçãs de Orestes (1970), dizendo-lhe que poesia e justiça não deviam ser
mescladas e que seria melhor guardar a primeira para usos mais dignos.
Considerava que, caso o fizesse, a pena que iria sofrer seria muito mais pesada
do que os três anos de pena suspensa. Natália, por sua vez, considerava que o
poema em questão era não apenas uma forma de defender-se, mas também de
defender os poemas que houvera antologiado. Ao mesmo tempo, seria uma
defesa da liberdade dos poetas, daí a utilização do masculino, “poeta”, ao invés
da palavra que usava para si mesma, “poetisa”.
No julgamento, Natália discutiu ainda com José-Augusto França, sua
testemunha de defesa, por não concordar com o que este dizia a respeito do
prefácio, que, embora aos olhos de hoje possa parecer anódino, na altura era
visto como ousado. José-Augusto França, para tornar mais fidedigno o seu
depoimento de apreço, houvera dito que não estava de acordo com o prefácio,
mas empenhado na publicação da obra (FRANÇA, 1993, p. 9). Natália não terá
gostado daquilo que interpretou como uma crítica e quis discuti-la na sala do
tribunal. O juiz não terá gostado da atitude, dizendo-se ali unicamente para o
217
andamento do processo, e não para discutir literatura.
A obra, resultado de um estudo da poesia erótica portuguesa, contém
poemas de noventa e quatro autores. A lista inclui poemas não só de autores
como Camões, Garrett, Pessoa e Herberto Helder ou Bocage e Botto, mas
também de cinco anónimos, três do século XVII e dois do século XVIII. Inclui
ainda poemas de Maria Teresa Horta, Cesariny e Luiz Pacheco, também eles
com obras censuradas pela PIDE, e dois da própria Natália Correia, um deles
inédito até então. O resultado da publicação da antologia foi aquilo a que
Natália chamou “abalo sísmico” (CORREIA cit. COSTA, 2006, p. 139).
Afinal, como se atreveria uma mulher a um trabalho a que homem nenhum se
houvera dedicado?
Com a obra, Natália pretendia “a revolucionária recriação do mundo a
partir do censurável e do proibido” (CORREIA, 2005, p. 33). Para isso,
necessitaria de encarecer “o poder físico da palavra” e desintegrá-la do “seu
enfeixamento contrastante que a torna ofensiva pela relatividade da lógica
discursiva” (CORREIA, 2005, p. 33). Assim, a autora cria que a antologia era
prova de que as repressões que constrangiam os versos fesceninos se haviam
descomprimido.
Assim como assim, o facto é que a obra foi proibida (e com particular
escândalo, já que, como foi previamente dito, a autora foi ainda condenada a
três anos de prisão com pena suspensa) e, mesmo após o 25 de Abril, tardou a
vir a público. Ninguém manifestara interesse em fazê-lo, incluindo Natália
Correia. A obra foi, assim, publicada pela primeira vez após a sua publicação
em Junho de 199957.
57 Isto para além de uma edição pirata, pela F. A. Edições S. A., não datada, mas anterior, no Rio de
Janeiro.
218
7.3.3.2. Recepção/censura de A Antologia de Poesia Erótica e Satírica
A obra foi proibida por despacho logo após a sua publicação, tendo sido
firmada a data de 30 de Dezembro de 1965. O parecer para a pena, que consta
do relatório nº 7677 do arquivo dos livros censurados pela PIDE, dizia o
seguinte:
219
Em primeiro lugar, cabe uma referência à acusação de “tendências
sartreanas” da antologia de Correia. Também Sartre era um autor malquerido
pelo Estado Novo, tendo seis obras na lista das obras proibidas, o mesmo
número que Natália viria a ter: As Mãos Sujas, pela Europa-América (1960);
Os Sequestradores de Altona, pela Europa-América (1961); Os Mortos Sem
Sepultura, pela Presença 1961); As Moscas, pela Presença (1962);
Baudelaire58, pela Europa-América (1966); e O Escritor não é Político, pela D.
Quixote (1971). Pretendia-se, assim, colar Natália a um intelectual que apoiava
causas políticas de esquerda publicamente, políticas essas que naturalmente
entravam em confronto com as preconizadas pelo Estado Novo. Desta forma, a
autora seria vista como uma inimiga do Estado, numa oposição que seria
visível muito para além da sua obra literária, já que não atentaria somente a
moral oficial. Ainda assim, este atentado desempenharia um papel de destaque
na apreensão da obra, daí que, para diminuí-la, a PIDE a tenha considerado
“pornográfica”. Como já acontecera antes, a expressão do erotismo era
considerada uma afronta inadmissível à moral do Estado, principalmente se
levada a cabo por uma mulher que afrontava uma moral que tentava desprover
a sociedade do erotismo e que tentava ainda que coubesse aos homens o direito
de decidir sobre o que faziam as mulheres, impondo-lhes a domesticação. A
acusação de pornografia serviria ainda para a deslegitimação da autora tanto do
ponto de vista moral como do político.
O prefácio, a que já nos referimos previamente, atentando no seu
carácter ousado para a época, foi considerado pretensioso. É um prefácio
58 A proibição desta obra variava entre a metrópole e as colónias. Por ter sido de alguma forma
censurada, optamos por incluí-la aqui.
220
extenso, e referir-nos-emos aqui a alguns dois dos seus pontos.
O primeiro é o exemplo que a autora dá de Carolina Michaëlis de
Vasconcelos, que se havia ocupado das cantigas satíricas dos Cancioneiros
medievais portugueses, garantindo que não evitaria as obscenidades do género
burlesco dos Cancioneiros. Desta forma, a autora afrontara “uma moral onde à
feminilidade sempre coube observar a regra de uma discreção apetecida pelo
idealismo patriarcal.” (CORREIA, 2005, p. 11). Também Natália, na antologia
que aqui comentamos, não evitaria obscenidade alguma, e isto por muito que
se adivinhasse o impacto que a publicação da obra teria na sua vida. A autora
já conhecia, e em primeira mão, os processos de censura, e era óbvio que esta
publicação contaria com resposta – ou, digamos até, com um contra-ataque ao
contra-ataque da autora – por parte do Estado Novo. Desta forma, também ela
afrontava a moral católica apregoada, imposta pelo regime, recusando a
domesticação que este tentava impôr às mulheres.
O segundo é o da justificação da obra. Com a antologia, a autora
queria “Normalizar o que uma civilização empecida pelo remorso desfrutou
envergonhadamente no irresistível gozo do proibido, desprestigiar a fascinação
do mal, fazendo explodir a carga da sua concomitante angústia, trazer à
superfície as recalcadas supurações do instinto, desinibindo-as da compreensão
estimulante dos tabus, eis o que nos parece ser o canal de uma estabilização
psicológica apaziguadora”, exumando, para isso, “do cemitério das obras
malditas” (CORREIA, 2005, p. 12) grande parte das obras que compõem a
antologia. Assim, pretendia-se descobrir a hipocrisia moral que remetia para o
secretismo, através do proibido, as manifestações dos instintos, acabando com
tabus e com a sua inerente angústia.
O parecer da PIDE acusa ainda a obra de revelar “falta de escrúpulos”,
221
dizendo que poemas cuja autoria é apontada como sendo de António Botto
seriam, na verdade, obras de Vasco de Matos Sequeira. O relator diz saber “de
ciência aberta” que a autoria seria deste último, que nunca houvera publicado
nenhum dos poemas apontados como inéditos de António Botto, cedidos por
Francisco Esteves. Nada nos leva a crer que o relator da PIDE esteja correcto, e
para isso muito contribui a total ausência de argumentos ou de provas do
parecer. Os dois poemas têm sido comummente aceites como firmados por
António Botto.
Finalmente, o parecer da PIDE indica a obra como “contribuição
comunista para as comemorações bocageanas que estão em realização”,
proibindo, por isso, rigorosamente, a sua circulação. Tentar colar a autora ao
comunismo é uma interpretação claramente forçada, sendo um enviesamento
despudorado. O Estado Novo via no comunismo a ameaça principal e tentava
espalhar a sua imagem enquanto imagem de terror. Desta forma, considerar
Natália Correia comunista serviria para mostrá-la enquanto inimiga do Estado.
Contudo, a verdade é que a autora nunca teve qualquer proximidade com o
marxismo. O Estado Novo tentava fazer do comunismo e da oposição a mesma
coisa. Desta forma, e porque o comunismo seria o grande inimigo do regime,
qualquer pessoa que se opusesse ao último seria igualmente um alvo a abater,
moral e politicamente.
Com estas justificações, Antologia da Poesia Erótica e Satírica foi
considerado um abuso de liberdade de imprensa. Uma notícia do jornal
“República”, de 21 de Março de 1970, dá-nos conta do julgamento que se
seguiu à acusação.
222
imprensa
223
considerada pelo Tribunal Plenário como “ofensiva do pudor geral, da decência
e da moralidade pública e dos bons costumes”. Ainda assim, com excepção dos
textos de Cesariny, cujo mérito literário foi considerado nulo, a obra foi
reconhecida enquanto detentora de mérito literário. O julgamento contara com
a presidência do desembargador Fernando António Morgado Florindo e com a
presença de Costa Saraiva, adjunto do procurador da República.
Posteriormente, Natália Correia veio considerar que as penalidades
exercidas vieram a ter o efeito contrário do pretendido pelo regime,
considerando que é na sequência da sua condenação que se abre se abre um
novo campo à literatura feminina: o erotismo. Dando ainda o exemplo de
Novas Cartas Portuguesas, conclui que, com esta intervenção literária da
mulher no domínio erótico, cairia o último tabu imposto à literatura feminina (
CORREIA cit. COSTA, 2006, p. 139). Também Inês Pedrosa viria a considerar
que fora esta a obra que havia iniciado a revolução sexual em Portugal
(PEDROSA, 2006, p. 13). A obra terá, assim, dupla importância. O primeiro
ponto será de carácter histórico-literário. A autora compilara poemas eróticos e
satíricos, fazendo um apanhado que percorria séculos de história e juntando
autores muito diferentes. Importará, portanto, enquanto registo escrito de uma
série de poemas e de autores, acerca dos quais são ainda fornecidas
informações. O segundo ponto será de natureza política. Natália Correia havia
ignorado a moral do Estado Novo, partindo para uma compilação que faltava
na literatura portuguesa. Desta forma, atentou o regime e sofreu na pele as
consequências, deixando patente a sua insubmissão.
224
7.3.4.1. Introdução
225
Novo, como fazem O Homúnculo ou A Pécora. Contudo, a obra anuncia
volumes publicados na Colecção Afrodite, da mesma editora, como o Kama
Sutra, a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica e A Filosofia na
Alcova, sendo esta lista o “pior mal” identificado pela PIDE: considerando
serem estas obras da “maior inconveniência social”, a sua mera anunciação já
seria suficiente para justificar uma punição à autora.
Não nos cabe aqui fazer uma interpretação de todos os poemas que
compõem a obra, seja porque grande parte seria infrutífera, seja porque uma
análise tão exaustiva não serviria os propósitos deste trabalho. Assim, referir-
nos-emos aqui a três poemas, que, por suas vezes, têm temáticas diferentes,
todas paradigmáticas: o erotismo, a consciência social como única forma válida
de existência, o contraste entre a evolução técnica e humana e a força material
do amor.
O poema “O encontro” terá o pendor erótico condenado
ecumenicamente pela PIDE. Nele, fantasia-se um encontro erótico, figurando
certamente aqui aquilo que a política política viria a considerar “expressões
eróticas imorais”. Versos como “um novilho atravessasse/ meus flancos de
seda branca/ e o trajecto me deixasse/ uma açucena na anca” (CORREIA,
1966, p. 18) ou “como se deus cá em baixo/ fosse um cigarro moreno/ como se
deus fosse macho/ e as minhas coxas de feno” (CORREIA, 1966, p. 19)
deverão ter sido o suficiente para desagradar à PIDE, e aqui não poderá passar
despercebida a inclusão da imagem de Deus no poema, o que terá sido
226
certamente recebido como “imoral” por parte de quem tratou da censura da
obra.
No poema “Autogénese”, a ideia que dá título ao poema é a de que o
poeta é a génese de si mesmo: nascerá com as dores que tenha e,
concomitantemente, com a tomada de consciência social. Assim o diz a autora:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores
(CORREIA, 1966, p. 41)
Eu nasci de haver
os bairros da lata
do dedo que escapa
dos sapatos rotos
da fome que mata
o que quer nascer
e que o sábio guarda
em frascos de abortos
(CORREIA, 1966, p. 413)
227
É a partir daqui que Natália Correia começa a recordar os horrores nazis,
dando ênfase à matança de judeus, recordando o aglomerar de cadáveres que
permitia aumentar o volume de mortos:
eu nasci de ver
cheirar e ouvir
dum odor a mortos
(judeus enlatados
para caberem mais
mas desinfectados)
(CORREIA, 1966, p. 43)
228
alienação na vida, reclamando para si e para todos um lugar na vida pública:
quem viver alheado do status quo, indiferente ao que se passa no mundo, não
viverá de facto. Ter consciência do mundo será, desta forma, o equivalente a
ser parte do mundo.
“As Silvas do Mandala”, por sua vez, é um poema surrealista,
dramático, com traços formais que fazem recordar Comunicação (1959). O
poema dramático tem uma lista de personagens muito diversificada: um
autómato (que ama Anaíta), um avião, uma noiva, um sábio, um adolescente,
um herói, Deus, o chefe do Partido Conservador O tempo em que os homens
falavam (referência à censura), o director da sociedade protectora dos robustos
desvalidos e o presidente da Liga pela Cristianização de Andrómeda
(referência ao papel da Igreja no regime salazarista, com o seu ímpeto
messiânico e catequizador).
As personagens vão, ao longo da narrativa, procurando satisfazer os seus
desejos. A noiva, por exemplo, procura “o país dos lilases outrora”
(CORREIA, 1966, p. 94), vindo ainda a procurar “o país dos lilases agora”
(CORREIA, 1966, p. 98). Nesta altura, metendo uma bomba de relógio no
seio, explode, fazendo com que também a Humanidade expluda, “com os
idealistas à frente” (CORREIA, 1966, p. 99).
A NOIVA
Oh a bomba de relógio
de tanto nos querermos outrora
no país dos lilases agora
amemo-nos entretanto.
229
A noiva mete a bomba de relógio no seio e apaixonadamente
explode sinal que a humanidade aguarda para escalar os céus
com os idealistas à frente como se verá
(CORREIA, 1966, p. 98/99)
230
atentatório, tanto no conjunto geral – ou seja, na sua avaliação a solo – como
no conjunto das obras de Natália Correia. De facto, há outras obras, e outras
obras suas, que afrontam de forma muito mais clara os pilares da política e da
moral do Estado Novo. No entanto, justifica-se o parecer da PIDE com a
história pessoal de Natália, com os seus sucessivos embates com a PIDE, e
também com a história da própria editora, já vigiada pela polícia política.
Neste sentido, o parecer datado de 6 de Junho, que já aqui citámos e ao
qual já nos referimos, diz o seguinte:
O leitor:
Joaquim Palhares
231
Não se sabe se esta obra passou por mais alguma condenação, sabe-se
apenas que, depois da censura da PIDE, não voltou a ser editada. Natália
Correia viveu muitos anos após o término da ditadura e julga-se que não terá
tido vontade de recuperar a obra. Se assim fosse, o empreendimento não lhe
teria sido particularmente difícil, uma vez que veio a recuperar outras, e isto
apesar da maré de recuperação de obras censuradas e escondidas da vida
pública que invadiu a literatura portuguesa após o 25 de Abril.
Regista-se ainda o carácter vago do parecer da PIDE e ainda a sua
incongruência: apesar de dizer que não cabe naquele parecer “uma apreciação
do valor literário” da obra, Joaquim Palhares vem considerá-lo “nulo”, ainda
que não apresente para isso qualquer justificação. De seguida, refere-se a
“expressões eróticas imorais”, também não justificando ou exemplificando, e
acrescenta ainda que a obra contém “insinuações de ordem política com
tendência dissolvendo”, não dizendo também em que consistem. Finalmente,
acaba por revelar que o “pior mal” da obra reside no anúncio que faz a outras
obras. Poderá, por isso, concluir-se que a publicação da obra, pelos seus
conteúdos, não seria suficiente para abalar o Estado Novo e que esta censura
poderá mais advir da necessidade que o regime teria de censurar as obras de
Natália Correia (afinal, em poucos anos, a autora tinha escrito obras como
Comunicação, O Homúnculo e A Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e
Satírica) do que de uma análise séria dos seus perigos para a manutenção do
regime ou de um presumível desafio que esta pudesse constituir à moral que
alicerçava o salazarismo e que este tentava impôr.
232
7.3.5.1. Introdução
Obra dos anos 60, A Pécora foi escrita numa década visceral
(MARQUES, 2012, p. 99) para o teatro português. Num contexto em que,
como já vimos, eram castradas as liberdades políticas, sociais e culturais (já
aqui nos referimos ao mote do Estado Novo Deus, Pátria e Família, que
implicava a Igreja Católica enquanto bússola da moral do país), a autora
arriscou esta peça em que se opunha claramente ao regime vigente, com a sua
moral oficial pro-catolicismo, questionando a Igreja e a relação que esta
estabelecia com o Estado, sendo das obras da literatura portuguesa em que
mais claramente se denuncia o comércio religioso, banalizado pela ideia do
milagre de Fátima (1917) e pela consequente turistificação que o fenómeno
provocou. Mexendo, assim, num dos pilares fundamentais do Estado Novo,
não espanta ainda que a obra tenha sido proibida e que só tenha podido ir a
cena após o 25 de Abril, já na década de 80. Aliás, não era sem propósito da
autora que tal acontecia: interessava-lhe a subversão da linguagem
dramatúrgica e usava-a de forma a opor-se aos ditames ditatoriais,
denunciando, através de um teatro político e militante, as hipocrisias políticas e
as contradições sociais.
Assim, Natália Correia escolheu o caminho do desmascaramento dos
mitos pátrios (MARQUES, 2012, p. 99), já iniciado com O Homúnculo, sendo A
Pécora a segunda parte da já mencionada trilogia dos mitos lusitanos (RPSA,
2007a, p. 109). Assim, esta obra foi o segundo passo de Natália na sua
produção dramatúrgica enquanto forma de denunciar e criticar regimes
opressores. A receita não se esgotaria aqui, já que, dois anos mais tarde, O
Encoberto iria fechar esse ciclo.
233
A respeito do título da peça que aqui tratamos, cabe ainda uma nota
sobre a sua decisão, a que a autora alude no prefácio da primeira edição
comercial que veio a público, datada de 1983. David Mourão-Ferreira houvera
sugerido que a peça se intitulasse Auto da paixão de Santa Melânia, sugestão
que a autora vem lamentar não ter seguido: “Mal andei, porventura, em não
seguir o conselho do poeta que tanto estimo.” (CORREIA, 1990, p. 10). Assim
como assim, optou por um termo popularmente cunhado como “prostituta”. No
próximo ponto, iremos entender por que razão, assim como iremos entender o
carácter provocatório do título.
234
Não digas, ó pecado,
que os milagres não mentira!
Que um anjo andou pela terra
e raptou uma donzela
dois pastorinhos o viram (CORREIA, 1990, p. 18)
235
se no bordel de Madame Olympia, onde Melânia renasce enquanto Pupi.
No II acto, desvenda-se ao público leitor o que motivou a fraude.
Melânia tinha um romance com um padre. Tendo sido os dois apanhados em
flagrante por duas crianças, viram-se obrigados a inventar um estratagema que
lhes permitisse não serem denunciados. Assim, o padre desempenharia o papel
de anjo e Melânia o de santa. Melânia, que reencontra Ardinelli, de quem fora
noiva, no bordel, confessa-lhe o embuste:
Eu tinha que vir para a cidade sem deixar rasto. E isto só era
possível se pensassem que eu tinha ido para o céu, que é um sítio
onde ninguém nos vai procurar. Foi quando o padre Salata teve a
ideia de se servir das duas crianças (…) Quando o ventre
começou a inchar-me (…), anunciei-lhes: «Chegou o dia. Ireis
ver o anjo que vem para me levar ao céu. Fostes eleitos para
testemunhar o prodígio porque a voz da inocência é o clarim que
Deus escolhe para proclamar as suas maravilhas.» E assim foi.
(CORREIA, 1990, p. 55/56)
236
é este caixote do lixo, lá se vai o maior centro turístico da
Europa. (CORREIA, 1990, p. 56)
237
mãos postas e a sua expressão é indescritivelmente beatífica. Um medonho
grito, em uníssono, sai de todas as bocas, de forma a perfurar os tímpanos dos
espectadores.” (CORREIA, 1990, p. 116). Assim, este acto volta-se
precisamente para a encenação da maquinação e é nesta encenação que a
crítica ao comércio religioso, através da ironia, encontra os seus pontos mais
fortes: no III episódio, há a já referida contratação da empresa “Ardinelli &
Tricoteaux, Investimentos em Gal”; no IV, o Bispo, que simboliza o luxo da
Igreja, e Ardinelli combinam a produção do milagre, mostrando-se os
interesses do poder religioso e do poder político, aqui respectivamente
representados pelas figuras mencionadas. No V episódio, dá-se finalmente o
milagre, apresentando-se Melânia em público enquanto a santa de Gal. O
fenómeno tem aceitação imediata e até os dois representantes das Ciências
Positivas, o Sociólogo e o Cientista Especializado em Medicina Retrospectiva,
caem no embuste, aludindo-se aqui à submissão das ciências ao poder
religioso:
238
também por terra, ficando este de quatro patas no chão e
rastejando, aquele, como um verme, nesta posição, espreitam,
com terror, para o sítio da aparição. (CORREIA, 1990, p. 116)
239
onde não faltam a crueldade e a infâmia.
(CORREIA, 1990, p. 129/130)
240
amigável aperto de mão/ selada está a minha fidelidade” (CORREIA, 1990, p.
152).
O VIII episódio do terceiro acto passa-se trinta anos mais tarde e a
Igreja prepara-se para canonizar a santa, numa altura em que “Já a povoação se
desenvolveu à sombra dos milagres inventados” (PORTO, 1985, p. 100).
Melânia está envelhecida, persegue Paco, implora-lhe amor, ele despreza-a, ela
está arrependida, quer contar a verdade. Chegados aqui, o problema é um: o
povo não aguenta a verdade. Como virá a acontecer em O Encoberto, o
embuste vê a necessidade de continuar a ser um embuste em causa própria,
para sua própria segurança.
É precisamente a ruína do poder na família de Ardinelli, que entretanto
ficou preso na alienação do embuste que manteve e no poder que ganhou, que
leva Melânia a revelar a sua identidade: “Porque esta é uma peça em que o
herói, ou a heroína, é menos uma personagem do que a sua revolta, do que a
ideia da possibilidade de existir uma verdade, que nela surge no final”
(PORTO, 1985, p. 100).
No VIII episódio, quando Paco já tem dinheiro nas mãos, repudia e
humilha Melânia: “Repartir o meu dinheiro com essas carnes engelhadas
quando com ele posso comprar todas as virgens do mundo?” (CORREIA,
1990, p. 162), pergunta-lhe, ácido, sarcástico, enquanto ele, impotentemente,
tenta impedi-lo de partir. Furiosa, Melânia quer revelar a verdade que ninguém
suportará ouvir, que ninguém aceitará: “Uma puta! A vossa santa é uma puta.”
(CORREIA, 1990, p. 165).
Ao ouvi-la, a multidão enfurece-se, avança sobre ela, quer agredi-la:
241
Avançam todos. Os Aleijados com as muletas no ar, os Cegos
brandindo as bengalas, os paralíticos e os Doentes de Macas
fazendo rodar estas e as cadeiras de rodas. As Mulheres Estéreis
lançam-se, como búrias, preparando as garras para o ataque. As
Pagadoras de Promessas acorrem da D., sempre de joelhos e de
velas na mão assim como os Quatro Flagelantes e o Sociólogo e
o Cientistas, estes sem abandonarem as respectivas posições.
(CORREIA, 1990, p. 166).
242
episódio, contudo, mostra-nos a alegoria de um povo submisso, incapaz de
reagir, decidir ou questionar a ortodoxia religiosa.
Cabe ainda acrescentar que a autora usa os rimances medievais e os
autos-de-fé, levando para a coetaneidade do salazarismo outras opressões.
Desta forma, mostra como as práticas opressivas se houveram perpetuado no
tempo, ao mesmo tempo que age no sentido inverso, conferindo às opressões
salazaristas um alcance no passado. Um fenómeno semelhante viria a acontecer
c o m Novas Cartas Portuguesas: esta revisitaria Cartas Portuguesas,
resgatando-a, e, ao recuperá-la, iria contribuir para a sua contemporaneidade
(AGAMBEN, 2010); ao mesmo tempo, ao usarem a intertextualidade com uma
obra de 1669, as autoras conseguiriam que a sua obra tivesse alcance no
passado, mostrando ainda que as opressões em que se focavam não era um
problema pontual.
Na obra de Natália Correia, a figura de Melânia é usada como
personificação da libertação das mulheres. Para mais, ao ter em Pupi, a
prostituta, o seu duplo, Melânia, a santa, equipara-se a Maria Madalena
enquanto imagem do erótico divinizado, naquele que é um traço de carga
representativa ímpar.
A Pécora é, assim, uma obra em que o poder religioso é mostrado
enquanto poder alienante, denunciando ainda o comércio religioso e as ligações
perversas entre o Estado e a Igreja e reivindicando a informação e o
questionamento como forma de vencer as opressões, o que terá levado
Marques a considerá “ omarco supremo dessa denúncia do comércio religioso”
(MARQUES, 2012, p. 97). Através da obra, Natália Correia não só questionou
fortes estereótipos sociais, prezados pelo Estado Novo, como desrespeitou os
dogmas que o regime impunha. A obra é, assim, iconoclasta, herética,
243
profundamente irónica.
Há ainda um ponto ressaltado por Armando Nascimento Rosa que
convém referir: a peça, que “detém alcance hierológico”, “ressalta esse
profundo desagrado nataliano por um cristianismo oficioso que usa o suplício
do crucificado, e não a libertação do ressuscitado, para subjugar os indivíduos
à autoridade eclesial, aliada que se faz dos poderes económicos para implantar
o seu muito terreno império.” (ROSA, 2007a, p. 114). De facto, a aliança entre
o poder económico e o poder religioso fica clara no IV episódio do II acto, na
altura em que o Bispo e Ardinelli combinam a produção do milagre; o
prevalecimento do “suplício do crucificado” pela “libertação do ressuscitado”,
por sua vez, fica clara no último episódio, na acção que resulta na morte da
protagonista. Para mais, outras pistas são dadas ao longo da peça no sentido da
louvação da dor como identificação e forma de manipulação de um grupo,
como fica claro no V episódio do II acto, pela voz dos Padres: “Sofrei, sofrei,
enfermos e pecadores! É a dor que reúne os átomos do efémero mundo.”
(CORREIA, 1990, p. 102).
Luiz Francisco Rebello irá ainda considerar a obra “um sulco
vertiginoso de luz que não se extinguirá”, considerando que A Pécora é uma
244
frontalmente combateu, não podia conceder-lhe e a que, mesmo
depois de derrubado, a subsistência de velhos preconceitos e
surtos rançosos de sacristia tudo fez para retardar o acesso.
(REBELLO, 1993, p. 9).
A Pécora, assim, não será uma obra a relevar apenas pelas suas
características textuais, em que podemos incluir a sátira, a construção narrativa
e o trabalho de linguagem, embora estas, per se, sejam já impressionantes, mas
também pela virtualidade levada a cabo, virtualidade essa que, por mostrar o
que existe potencialmente e não em acção, extrapola a obra literária para lá da
ficção, pondo-a directamente em confronto como um regime político.
245
mental gangrenado pela repressão –” (CORREIA, 1990, p. 9) ofuscaria a
mensagem de A Pécora. O texto viria, assim, a público em 1983 e acabou por
ser um dos êxitos do teatro português, já que permaneceu durante meio ano em
palco, na Comuna-Teatro de Pesquisa, tendo sido encenada por João Mota. No
que concerne ao teatro nataliano, merecerá também ser destacada, já que foi a
única peça da autora que foi representada no estrangeiro: a encenação,
integrada no I Festival de Teatro da Convenção Teatral Europeia, foi ainda
levada a palcos franceses, em Saint Etienne e Paris, e irlandeses. A música da
peça foi feita por José Mário Branco e a protagonista, Manuela de Freitas, seria
premiada graças à sua actuação.
Partindo de um ponto de vista claramente avesso a sistemas
totalitários, não será de espantar que A Pécora tenha sido censurada pela
“jagunçada do regime” (CORREIA, 1990, p. 9). O Estado Novo, que sabia
durar (ROSAS, 2013), sabia que precisava de um poder alienado e A Pécora
apresentava demasiadas semelhanças com um país que, na década de 60,
continuava preso ao seu ditador.
7.3.6.1. Introdução
246
altura, a autora tinha quarenta e cinco anos e contava já com cinco obras
censuradas, a primeira das quais uma década antes.
Uma vez publicada a obra dramatúrgica, os serviços censórios não só
proibiram que fosse levada a cena como proibiram que circulasse em livro.
Tendo o mito de D. Sebastião como cerne da narrativa, a autora não o confinou
à circunscrição histórica da crise dinástica de 1580 que levou ao poder régio a
dinastia Filipina. Pelo contrário, o reinado filipino funciona aqui apenas como
paisagem simbólica do drama, uma vez que este se dilui na intemporalidade do
mito para dar aso ao desenvolvimento de uma acção sobre um povo – neste
caso, o português – que vive numa situação de privações, sem poder tomar as
rédeas da própria vida. D. Sebastião aparece como a presumível salvação desse
povo e todas as personagens têm uma carga simbólica que as reconfigura à luz
da necessidade de um povo se libertar de grilhões ditatoriais.
O Encoberto refere-se, assim, a um episódio da história portuguesa
ocorrido em 1578 e às suas consequências. Recorde-se que, nesse ano, a
derrota portuguesa na batalha de Alcácer-Quibir levou ao desaparecimento de
D. Sebastião no campo de batalha, assim como ao da nata da nobreza
portuguesa. Consequentemente, iniciou-se uma crise dinástica que levou ao
poder régio português a dinastia Filipina, passando o rei de Espanha a ser, em
simultâneo, o rei de Portugal. O mito de D. Sebastião nasceria, assim, como a
crença de que, um dia, o rei português voltaria e restituiria a independência ao
seu povo.
A lenda de D. Sebastião foi difundida a partir de finais do século XVI.
Dizia-se que o rei sobrevivera à batalha contra os mouros de Marrocos e que
havia escapado para Itália. Ali se manteria, usando uma identidade falsa, até
estarem reunidas as condições para que se pudesse reconquistar a
247
independência perdida desde 1580.
Escrita durante o Estado Novo, em que o poder político tudo ditava e
não havia liberdade de acção ou de expressão, a obra estaria ainda intrincada
no seu tempo, para além de ser, em concomitância, intemporal, de uma
actualidade permanente, uma vez que muito dirá a qualquer circunstância
histórica em que da vontade de um povo não dependam as resoluções políticas
que o regem.
A hecatombe histórica, com a sua consequente perda de liberdade por
parte do povo, servirá ainda de mote para que ressurja o mito, uma vez que este
está historicamente reconfigurado como símbolo de esperança e de
independência. Cumpri-lo seria, assim, o reganhar das rédeas da vida política e
social e da dignidade e voltar a ele, e à esperança que personificava, seria uma
consequência da manutenção de um regime que amordaçava as liberdades.
O enfoque que a autora dá ao restaurar da independência não será de
somenos. Ao longo da obra, é esse um dos pontos fulcrais e é através dele que
não só se faz uma ponte entre as duas circunstâncias históricas (a perda do
poder régio para a dinastia Filipina e o Estado Novo) como se interligam todos
os episódios em que os povos estão submissos a ditames alheios. É no sentido
desta última que Natália Correia, pondo Portugal como expoente da crise
ocidental, alcança a mundialização do mito: através da sua carga messiânica,
ele poderia ser evocado sempre que os povos ou os países se vissem omissos
de liberdade.
248
Na peça dramatúrgica, a autora opta deliberadamente pelo hibridismo
das fronteiras entre o teatro e a representação do mundo:
Esta será uma das marcas de maior destaque na obra, já que não só põe
o social no cerne da criação literária como, em concomitância, faz extravasar
da literatura o seu conteúdo social, transformando-se a obra numa ferramenta
de reflexão sobre o mundo. Assim, a acção situa-se no teatro, é verdade, mas é
expressiva do que extravasa o palco, reflectindo-o. Esta última palavra terá
aqui duplo sentido: a obra pensa sobre o que extravasa o palco ao mesmo
tempo que o espelha.
No decorrer da peça, fica por desvendar se o actor Bonani escondia de
facto o rei de Portugal ou se tudo se motiva porque o comediante Bonani quer
levar D. Sebastião para além do palco, fazendo ainda de D. João de Castro um
cúmplice. A pergunta sobre a identidade de Bonami nasce e morre sem
resposta. Para mais, a autora resolveu satisfazer a vontade da personagem: «A
partir deste ponto, Bonami e D. Sebastião são uma e a mesma pessoa pelo que
249
a autora, respeitando o arbítrio da personagem, passará a denominá-la
Bonami-Rei.» (Natália, 1969: 25), tornando ainda mais híbridas as fronteiras
entre vida e teatro.
No terceiro acto, no julgamento de Bonami-Rei, estão presentes
pessoas de diferentes estratos sociais. A testemunha de Floriana, sua amante, é
importante. Inicialmente, começa por dizer-lhe “Deixa-te dessas facécias de
comediante falhado.” (CORREIA, 1969, p. 27). Posteriormente, não tendo
perdoado que Bonami a houvesse trocado, desmascara-o, dizendo que é apenas
um actor:
FLORIANA
Até que enfim te apanho, meu tratante. Com que então agora és rei, hã?
Quando este malandro fez com que eu deixasse a casa dos meus pais
teve artes de me convencer que era o Cavaleiro da Boca de Ouro.
JUIZ
Quer dizer que o réu é useiro e veseiro em fazer-se passar por pessoas
célebres?
FLORIANA
Era a peça que ele representava na altura. E eu tão parva que julguei que
aquilo era a sério e fui cair nas mãos de um chulo. (CORREIA, 1968, p.
93)
250
Mais tarde, num disfarce de actriz, Floriana interpreta a marroquina
Huria, que teria tido uma relação com D. Sebastião. Em tribunal, vem
confirmar que o réu é D. Sebastião. “Mais um golpe de teatro no teatro que esta
peça nunca quer deixar de ser.” (ROSA, 2011, p. 109):
HURIA
JUIZ
HURIA
JUIZ
HURIA
251
O meu pai poderá matar-me por eu ter fugido com o rei cristão,
mas ai daquele que duvidar da palavra da filha do Xerife.
(CORREIA, 1968, p. 99)
252
daqui! Que raio de peça é esta?” (CORREIA, 1969, p. 106). Quando acalma,
volta a proclamar-se rei: “Sou D. Sebastião. Acudam! Estão a martirizar a
própria humanidade.” (CORREIA, 1969, p. 106). Pouco depois, ao azorrague
de Cristóvão de Mouro, desdiz-se e desdiz-se uma vez mais: “Isto não é coisa
que se faça a um pobre actor. (…) Sou D. Sebastião.” (CORREIA, 1969, p.
107).
Bonami-Rei encoraja a insurreição popular contra a dominação
popular. Nesta fase, não pode fugir usando a desculpa de ser um actor. Pelo
contrário, tem de manter a máscara até ao fim (aconteceu o mesmo com
Melânia, em A Pécora). D. João de Castro, num ímpeto tragicómico, diz-lhe
que os revoltosos o matam se ele desfizer a ilusão da identidade (CORREIA,
1969, p. 56) e considera que a vontade de Bonami de dizer que não é mais do
que um actor “transtorna a ordem do mundo” (CORREIA, 1969, p. 56). A
acção e a vontade do indivíduo são, assim, enformadas pelas expectativas da
sociedade e este tem de agir de acordo com o que lhe será mais conveniente.
O hibridismo, nesta obra, acontece ainda no plano formal, uma vez
que aquilo que inicialmente parecia ser uma fábula histórica acaba por tornar-
se em ficção científica. Notem-se os seguintes excertos:
253
vestem as pessoas. (CORREIA, 1969, p. 118)
7.3.6.3. O pessimismo
254
piolhos. (CORREIA, 1969, p. 38)
1ª MULHER
255
2º HOMEM
3º HOMEM
256
representação, pareceria não só anacrónica, mas também inoportuna.
Podemos, por isso, concluir que a obra, apesar de inovadora na forma
(voltaremos a este ponto mais tarde), é ideologicamente conservadora, já que
formula a ideia de que todas as revoluções são inócuas, sonegando a esperança
que as motivou e tornando todas as situações perfidamente equivalentes: “leia-
se a conclusão realista de que aconteça o que acontecer, o mundo está coberto
de piolhos.” (CORREIA, 1969, p. 38).
7.3.6.4. O messianismo
257
Tratamos aqui de O Encoberto, obra em que Natália Correia
caricaturiza uma das personagens mais emblemáticas do imaginário nacional
português. Ocupando a figura de D. Sebastião este papel na cultura portuguesa,
é natural que também a história da literatura portuguesa lhe tenha atribuído um
lugar de destaque, que se tornou mais preponderante a partir do século XIX, na
altura em que surgem o Romantismo e o romance histórico.
Ao longo da história literária, são vários os exemplos em que D.
Sebastião figura como personagem literária (como Frei Luís de Sousa, de
Almeida Garrett, ou O Conquistador, de Almeida Faria). Neste caso, a autora
explora a ambiguidade, deixando um final em aberto, privilegiando a confusão
entre D. Sebastião e o seu duplo.
Esta confusão será acentuada pelo coro das Catadeiras de Piolhos, a
que, por toda a obra, estão associados um pessimismo profético e o constante
desprestígio de D. Sebastião. As Catadeiras revelam os factos históricos,
acabando por tirar ilações simplistas. Ainda que desprestigiando D. Sebastião,
vacilam e desdizem-se ao assumirem que o actor pode ser e pode não ser o
monarca, ou seja, a sua posição vai mudando, existe uma ambivalência entre
actor e personagem. Assim, começam por desprestigiá-lo, mas depois
reproduzem o hibridismo de que já falámos anteriormente e que é repetido
pelas próprias personagens e pelo desenrolar da história, intenção da autora,
havendo inicialmente uma identificação plena que se transforma num grande
distanciamento.
Aliás, como nota Maria de Fátima Marinho, o cerne do enredo é
precisamente “a estrutura em abismo que faz periclitar reciprocamente as duas
acções” (2003, p. 35). Ou seja, o actor Bonami vai se transformando em D.
Sebastião, chegando a autora a mudar-lhe o nome, tratando-o por Bonami-Rei.
258
A acção continua ambígua e ambos se confundem. A acção gira, por isso, à
volta da temática do messianismo e as personagens, como Floriana ou até
mesmo Bonami/Bonami-Rei, ou afirmam ou desmentem a identidade do actor.
A dualidade é instável. Quem lê desconfia, mas também a
desconfiança vacila. O jogo ambíguo da autora foi feito de forma
irrepreensível: as personagens argumentam, endrominam, usam o que lhes é
mais conveniente. Perante o texto que é apresentado, cabe a quem lê reflectir
apenas sobre a questão messiânica, servindo esta dualidade apenas para pensá-
la. No final, não se entende se Bonami é o rei, mas talvez tal não interesse.
Pelo menos, descobri-lo não foi a intenção da autora. A frase de Bonami
“Vejo-me na difícil situação de um actor em que o público acredita”
(CORREIA, 1969, p. 53) dá um novo alcance à ironia: a partir daqui, torna-se
impossível sair da ironia, torna-se impossível sair da ambiguidade. Para mais, é
o próprio Bonami-Rei quem diz não ter culpa pelas duas faces da verdade
(CORREIA, 1969, p. 92). Aliás, fá-lo sempre em tumulto, uma vez que oscila
entre a identidade de Bonami e a de rei. Parte-se assim da ideia de que as
situações são ambíguas e as interpretações variam de acordo com o que for
mais conveniente ao interpretante. Daí que o facto de ter dito anteriormente
“Pois fica sabendo que somos quem supomos ser” (CORREIA, 1969, p. 85),
mostrando uma vez mais a sua identidade oscilante, anule e esvazie a ideia de
verdade: as pessoas/personagens são quem crêem ou fingem ser e é tendo isto
por base que o mundo fará as suas interpretações, também resvalando para o
que mais lhe convier. A verdade será, assim, inútil, ou, em última instância,
inexistente.
Como se vê, o absurdo contribui para que se misture tão eficazmente a
realidade e a ficção. Natália Correia, várias vezes conotada com o movimento
259
surrealista, ainda que dele se tenha tentado afastar, recupera-o para
ridicularizar o espírito messiânico (MARINHO, 2003, p. 36). A visão
pessimista tem aqui o seu auge, na medida em que são ridicularizados os
símbolos, apresentados como forma de endrominar ou acalmar as pessoas que
neles podem ver algum sinal de esperança. Ao mesmo tempo, mostra-se que a
verdade é modificável consoante as conveniências do Estado ou as
necessidades de crença num messias. Assim, é o próprio Bonami-Rei que
admite fazer flutuar a sua identidade, embora aqui o faça em detrimento das
necessidades alheias. Quando D. João de Castro lhe diz que ele simboliza a
liberdade, Bonami-Rei opta pela outra identidade em jogo:
BONAMI-REI
Se estão convencidos disso é preciso tirar-lhes essa mania da
cabeça. Dir-lhes-ei que sou um actor. (CORREIA, 1969, p. 55)
260
a de que algo só deve mantido se agradar ao público, se lhe der esperança, se o
fizer acreditar que tudo há-de melhorar.
Por sua vez, Filipe II, perante a condenação de Bonami, diz a
Cristóvão de Moura, que hesitava em relação à identidade do prisioneiro,
temendo que este fosse o rei, que a identidade de rei serviria a Bonami na hora
da morte: assim, morrendo o mito, morreria também o futuro:
FILIPE II
Mete de uma vez para sempre nesses teus miolos de magarefe
que a segurança do Estado exige que esse homem seja D.
Sebastião e, como tal, será executado a fim de impedir que haja
futuro. (CORREIA, 1969, p. 108)
FILIPE II
Se o prisioneiro morrer como impostor, D. Sebastião continuará
vivo e o génio da desordem teimará em provocar insónias ao
poder. (CORREIA, 1969, p. 109)
261
África, alertando o povo para a manipulação de que era alvo, é linchado
(Correia, 1969, p. 44); posteriormente, reaparece enquanto cientista do século
XX, retomando o mesmo discurso e sendo uma vez mais alvo de maus-tratos.
Assim, o mito aparece ainda como forma de alienação, que, por sua vez,
representará a esperança, sendo, assim, o grau máximo do pessimismo por que
perpassa toda a obra: só pode acreditar no mito quem recusa a razão; sendo o
mito uma ilusão, não há caminho viável.
A questão messiânica enquanto cerne desta obra dramatúrgica torna-se
ainda evidente pela relação entre o texto e o hipotexto bíblico: à afirmação “A
minha realeza não é deste mundo” (Jo, 18, 36), contrapõe-se a de Bonami, que
vai no sentido inverso, “Porque troçam de mim se o meu reino é deste
mundo?” (CORREIA, 1969, p. 111). Desta forma, texto e hipotexto ligam-se
em linhas concomitantes e divergentes: marca-se a semelhança e a diferença. A
primeira, contudo, é acentuada quando, após a morte de Bonami/Bonami-Rei,
este desaparece do seu túmulo.
Finalmente, nota-se que a ambiguidade se alia à questão do
messianismo e, com esta junção, Natália Correia, herdeira da tradição
surrealista, recusa a afirmação unívoca da identidade, antes mesclando
identidades e optando por uma abordagem ambígua da história. As
personagens estão perfeitamente alinhadas, dizendo-se e desdizendo-se,
consoante vontades momentâneas e usando da palavra de forma manipuladora,
de forma a que este jogo ambíguo possa ser exercido e a que sobreviva a ideia
de que a realidade não chega, porque é preciso um símbolo de algo que partiu,
que representa o que poderia ter sido, para que a esperança se acalente.
262
7.3.6.5. Recepção/censura de O Encoberto
Assim que a obra foi publicada, foi censurada pela PIDE, não podendo
ser posta em cena. Nos arquivos da polícia política, há um parecer, datado de 3
de Fevereiro de 1970, a ditar a proibição da obra60:
Relatório nº 8.665
“O Encoberto” - 123 páginas
de
Natália Correia
263
No entanto, há registos de uma carta de Natália Correia a Marcelo
Caetano, datada de 7 de Abril de 1969, em que a autora pedia ao Presidente do
Conselho de Ministros que a decisão pela censura fosse alterada, o que torna
fácil adivinhar que, antes do relatório de Fevereiro de 1970, a autora já tinha
conhecimento da proibição da obra, embora não tenhamos como descobrir o
motivo pelo qual o parecer da PIDE só foi assinado quase um ano após a
publicação da obra. O intento da autora não surtiu efeito. Ainda assim,
apresentamos a referida carta, transcrita no segundo volume da obra Cartas
particulares a Marcello Caetano, organizado por José Freire Antunes (1985, p.
381/382):
Excelência:
264
Desejou vivamente o Teatro Experimental de Cascais, há cerca
de um ano, levar à cena uma peça da minha autoria, intitulada O
Encoberto, por enquanto inédita e cujo tema é, sucintamente, um
novo tratamento do mito sebástico, não só representativo de um
saudosismo tipicamente português, mas também de um
messianismo universal. Entendeu, no entanto, a Censura da
época descortinar abusivamente, em certos pontos, menos
veracidade histórica onde na realidade existia uma interpretação
poética – e crítica – da História, dentro daquela liberdade de
criação dramatúrgica sem a qual não admitiríamos,
nomeadamente, o teatro de um Shakespeare. Refuto, por outro
lado, como igualmente abusiva, qualquer interpretação tendente a
ver um propósito de crítica à actualidade portuguesa, porquanto,
no final da peça, quando se dá uma transposição do mito para a
actualidade, essa actualidade é declaradamente universal,
propondo-me eu um confronto de natureza mítica entre a
imaginação e os valores oníricos, por um lado, e, por outro, o
condicionalismo tecnológico que despersonaliza dos homens.
Assombrou-me, por isso mesmo, que uma peça que contém
valores puramente espiritualistas, isentos de toda e qualquer
ideologia política, pudesse incorrer no desagrado da Censura; e
verifiquei assim que essa Censura não estava então culturalmente
preparada para entender o conteúdo desta minha obra. Na
esperança de que tal óbice tenha sido entretanto remediado, e
confiando sobretudo na dignidade intelectual de Vossa
Excelência, é que me atrevo a chamar a sua esclarecida atenção
para o caso que acabo de expor. Devo ainda precisar que não me
move um interesse meramente pessoal: com efeito, o Teatro
265
Experimental de Cascais, que tanto prestigiou o teatro português
no recente Festival de Barcelona, insiste em levar à cena aquele
meu original e desejaria fazê-lo, por conveniência de repertório,
com a maior brevidade, - se possível, mesmo, a seguir à peça que
tem actualmente no cartaz. Para isso, todavia, necessita da pronta
revisão, por parte da Censura, do veredicto que, há cerca de um
ano, injusta e precipitadamente condenou a obra.
Na esperança de que Vossa Excelência, cujas decisões são tão
relevantes para a Cultura portuguesa, tome em devida
consideração o assunto que expus.
Subscrevo-e, com os protestos da mais alta consideração,
Natália Correia
A carta não surtiu efeito algum e a peça continuou sem poder ser
encenada. Assim sendo, só viria a cena em 1977, no Teatro Maria Matos, em
Lisboa, pela Repertório-Cooperativa Portuguesa de Teatro. Liderada por
Armando Cortez, a peça contou com a encenação de Carlos Avilez, com a
realização plástica de Lima de Freitas, com a música de Fernando Guerra e
com um vasto elenco que incluía Ruy de Carvalho no papel de
Bonami/Sebastião.
O texto do programa de estreia, da autoria de Natália Correia, refere-se
à intemporalidade do tema a que já nos referimos anteriormente:
266
O seu enquadramento é histórico. Situa-nos no período
paradigmático da monarquia filipina. Paradigmático porque em
“ocupação estrangeira” se traduz o poder sempre que exercido
despoticamente. Na altura em que a peça foi escrita, essa
conotação com o regime que então vigorava em Portugal foi-me
recurso para provocar uma situação presente que o rigor censório
não permitia abordar às claras. Mesmo assim não conseguiu a
peça passar às malhas da severíssima censura que nela só
descortinou um manifesto contra o fascismo exótico à vontade
dos portugueses e por isso identificável com o reinado filipino.
Dentro da moldura histórica adensavam-se contudo os valores
mais importantes de O Encoberto. No negativo da alienação dos
povos e dos indivíduos germina o sonho que liberta. A
irracionalidade do poder que escraviza só pode ser destruída, no
sentir dos que impotentemente a sofrem, por outra
irracionalidade: a do libertador impossível, o Monarca da Bruma.
O Encoberto é a confrontação surda destas duas irracionalidades.
A insolução é, consequentemente, a poética e o humor que se dão
lide na peça. (CORREIA, 1977, folha de sala)
267
tragicomédia de uma situação em que o povo tem de acreditar no impossível
para vencer o que é possível? O que poderá ser mais pessimista – e, acrescente-
se, desesperante – que resgatar o impossível como medida única de combate ao
possível? De que forma pode analisar-se as pretensões de que Bonami, ao ser
condenado à morte, finja/diga ser um actor que fingia para que a sua morte não
represente o fim daquilo que ele queria representar/representava até então, o rei
impossível capaz de vencer o possível?
O pessimismo é, assim, o mote principal do carácter tragicómico da
peça. No entanto, a peça foi publicada já no pós-PREC e talvez aí tenha
parecido estar um tanto fora de tempo. Afinal, veio a cena já depois de tempos
convulsos em que não só se havia derrotado uma ditadura que parecia arrastar-
se indefinidamente, uma ditadura que soube durar (Rosas, 2013), como se
arriscavam sucessivas tentativas de reorganização da sociedade, que incluíam
não só o Verão Quente de 1975, mas também o Golpe Militar de 25 de
Novembro do mesmo ano.
7.4. Conclusões
A acção censória da PIDE não serviu para afastar Natália Correia dos
leitores. Claro, enquanto durava, enformou a sua carreira literária (mas não a
criação) e afastou-a dos leitores. Contudo, uma vez terminada a ditadura, a
autora ganhou o seu lugar no cânone, sendo lida, premiada, estudada e
reeditada.
Apresentámos neste trabalho mais de cinquenta páginas sobre a sua
obra. Pode parecer que lhe foi dado um tratamento preferencial por se haver
268
canonizado, mas a verdade é que o que deu azo a essa atenção particular foi o
mesmo conjunto de razões que a levaram ao cânone: Natália Correia tornou-se
numa das grandes autoras portuguesas do século XX devido a uma grande
profundidade intelectual da sua obra e foi nessa profundidade que quisemos
atentar.
O conjunto de obras aqui estudado faz-se de vários extractos, o que
deixa um grande alcance no quadro do subtexto. É verdade que os textos de
Correia são ricos no que concerne à estilística, mas foi ao seu alcance cultural
que demos atenção. Analisar Natália é adentrar na subtextualidade e
compreender a sua obra passa por alcançar a significância do subtexto.
A sua criação literária, neste caso, poética e dramatúrgica, questiona e
confronta, mesclando cidadania e arte. Assim, torna-se num lugar de reflexão
sobre o mundo e essa reflexão é atingível mediante a análise do que é
simbólico. É este que mostra em que grau a produção literária nataliana é
política e ideológica (rompe os dogmas religiosos, mergulha nas vísceras dos
mitos portugueses, põe em causa a simbologia sob a qual se cria a
portugalidade, desafia a história portuguesa). Ao mesmo tempo, pelas
metaforizações constantes, pela sátira, pela mundividência apresentada sobre a
situação histórica e política de Portugal, o leitor é responsabilizado na relação
dialógica, cabendo-lhe a análise do subtexto. Assim, cabe-lhe interpretar o
universo onírico e, se pretender alcançar a significação do texto, não pode ser-
lhe indiferente.
Natália Correia era censurada por tudo isto. Nela, a literatura era uma
forma de fazer política, punha em causa os pilares do Estado Novo, não tinha
medo do embate. Criando uma literatura tão densa e tendo a possibilidade de
estar tantos anos em actividade literária após o término da ditadura, não será de
269
estranhar que seja uma autora lida, estuda e apreciada.
8. Fiama H. P. Brandão
270
recebeu o prémio de poesia do P.E.N. Clube Português graças a Cenas Vivas.
Mesmo tendo a sua produção poética uma grande envergadura (além
da sua produção prosaica, das suas traduções e da sua produção de ensaios
académicos), Fiama Hasse Pais Brandão não é, nesta altura, uma prioridade
nos estudos literários em Portugal, e isto apesar do panorama literário
português já lhe ter dado um lugar de destaque, até pela atribuição de quase
todos os prémios relevantes.
61 O Museu, que faz parte da mencionada antologia Novíssimo teatro português (1962), descreve em
três cenas uma visita ao museu de Antropologia Histórica. O tom da peça é absurdista, fértil em
ambiguidades. No final, um grupo conversa de forma evasiva, sem que estabeleçam entre si uma relação
dialógica.
271
de forma clara teatro militante. Esta obra, proibida juntamente com A
Campanha e O Golpe de Estado, viria a ser republicada – e recuperada,
portanto – em 1977.
Jorge Fernandes Silveira vem considerar que o lugar que Fiama ocupa
na poesia de língua portuguesa do século XX é “claramente marcado e datado:
Poesia 61” (Silveira, 2006: 28). De facto, esta é a altura em que a autora e a sua
geração se apercebem do valor da criação literária enquanto agente de
transformação sócio-cultural e é precisamente por isso que criam um marco no
panorama literário português. Com isto, os autores exercitam a estética em prol
de uma alteração do status quo, almejando uma sociedade justa que não reserve
espaço para regimes totalitários, criando uma arte que, ao invés de estar à
frente do seu tempo, rompendo com ele, dialoga com ele e tenta alterá-lo, e
encarando a escrita como um gesto social e a leitura como um gesto de
descodificação.
Poesia 61 – que não era um movimento, por não ter um programa –
nasceu como reacção ao discurso neo-realista, que, à época, pensavam, já se
tornara redundante e cuja fórmula já se havia esgotado, com uma estética
baseada na subjectividade e na emotividade. Na estética de Poesia 61, havia a
plasticidade do significante, nascendo, assim, uma nova estética em que a
linguagem poética era estética e rigorosa, despojando-se da expressividade
discursiva que marcara o neo-realismo. Ainda que os seus autores fossem
coetâneos de autores como Herberto Helder ou Ruy Belo, contrapunham à
criação destes uma estética reduzida ao essencial, em que o material poético
era valorizado em detrimento do referente (Mendes, 2005: 4). Assim, o poema,
ao invés de ser o veículo da realidade, tornava-se na própria realidade, não
havendo necessariamente uma ligação entre as frases e os sintagmas que as
272
constituíam. Pelo contrário, a significação imediata da palavra não
desempenhava, na construção poética, um papel central, desligando-se esta do
seu sentido, sendo que o sentido era anulado também por ser passível de conter
marcas ideológicas. Ao mesmo tempo, também o eu representado diferia do do
neo-realismo, vendo-se desprovido de biografia e, se o neo-realismo veio
propor que, na literatura, era mais urgente combater o fascismo do que
defender a “obra de arte”, contrariando o presencismo, Poesia 61 veio usar a
lição do neo-realismo (a literatura comprometida com o zeitgeist), ao mesmo
tempo que usava a lição dos modernistas (a autonomia da escrita).
A obra poética de Fiama, feita ao longo de mais de cinco décadas, é
extensa, contando com várias obras em que podemos identificar duas fases em
termos de poéticas. A primeira inicia-se com a publicação de Morfismos (1961)
e inclui livros como Matéria (1960-1965) ou Era (1974). Aqui, procura-se um
depuramento formal que perpasse toda a construção poética, através de uma
escrita impessoal, que rejeita as marcas auto-biográficas. Os textos tendem a
ser herméticos e a autora tenta uma renovação da linguagem poética,
retornando ao significante. Há uma clara referência à poesia Concreta ou
Espacial (anti-discursiva) e o signo linguístico aparece frequentemente de
forma sintéctica ou isolada. A segunda fase, por sua vez, inclui livros como
Área Branca (1978) ou Cenas Vivas (2000) e desliga-se da tendência para o
criptográfico da primeira, sendo mais discursiva. Aqui, os versos são simples,
as metáforas são claras e há até marcas de oralidade, atingindo-se uma
construção poética que é quase prosaica, existindo ainda uma grande reflexão
sobre os seres humanos e a forma como agem. A passagem de uma para a outra
foi bem resumida por Fernando Guimarães: “A poesia da imagem, que se
deslocava para a palavra enquanto signo, era uma das características da poesia
273
inicial de Fiama. Agora a imagem aparece desfocada, ficando a oscilar entre
um plano textual e um plano subjectivo que se pode apresentar mais ou menos
perturbado.” (GUIMARÃES, 2001, p. 47). Assim, se numa primeira fase a
poesia de Fiama se destacava pelo lugar que conferia ao signo linguístico,
muitas vezes sintéctico e isolado, numa segunda fase a poética sofre alterações
ao nível da significação do texto, que passa então a incluir marcas de oralidade
e uma simplicidade textual que contrastam com a depuração formal da
primeira, e isto sem que a autora abdique alguma vez da linguagem
densamente metafórica, com um grande alcance subtextual.
A obra de Fiama, como a de Natália Correia, a que já aqui nos
referimos, imbui-se de uma reclamação de justiça, universal, que se mostra
avessa a qualquer sistema totalitário. Através da linguagem, a autora expressa o
compromisso entre as dimensões estética, social e política da criação literária.
Ainda que engajada, a produção literária de Fiama nunca foi
panfletária, contrastando com muita da produção neo-realista, a que também
nesta tese fazemos referência. Pelo contrário, ainda que assumindo uma
perspectiva universalizante, a autora buscou sempre o implícito, mesmo
quando, como Natália Correia, tratava, de forma crítica, de mitos da construção
identitária nacional portuguesa. Neste campo, o livro a destacar será Barcas
Novas (1967), que escapou à censura apesar do “ligeiro e muito disfarçado
intento contestador da vida nacional” (AZEVEDO, 1997, p. 151) que o censor
literário viu nele. Assim, a autorização para a circulação da obra viria a ser
concedida por despacho no dia 26 de Março de 1969, por, de acordo com o
ponto de vista do censor, não representar grande ameaça.
Os mitos da construção identitária nacional, uma vez ultrapassadas as
barreiras censórias do Estado Novo, fariam parte, em grande força, da
274
produção literária nacional: se a Natália Correia se junta Fiama Hasse Pais
Brandão, temos nisto um alcance até à coetaneidade, com obras como Deus-
dará, de Alexandra Lucas Coelho (Tinta-da-china, 2016), ou Não se pode
morar nos olhos de um gato, de Ana Margarida de Carvalho (Teorema, 2016),
livros que, partindo dos traços da identidade cultural historicamente
consolidada portuguesa, se voltam para o passado e recontam a versão da
história nacional apregoada pelo Estado Novo.
Na obra de Fiama, converge, assim, uma ideia do mundo: nela,
imiscuem-se elementos de denúncia e propostas de altercação do status quo.
Ao mesmo tempo, será de notar que isto se tenha tornado mais intenso após o
fim da censura literária. Podíamos, à primeira vista, crer que se devia isto a
uma maior liberdade de criação literária. Contudo, analisando os movimentos
literários da época, como a influência de movimentos vanguardistas como é o
caso da Poesia Concreta (a obra da autora reflecte as correntes literárias que a
antecedem e lhe são coetâneas, embora expresse o individual da autora),
podemos ver que a relação aqui estabelecida, nas duas fases de Fiama, foi
primordialmente estética, girando à volta do papel do signo da construção
poética (e isto, claro, sem abdicar nunca do engajamento político e social da
literatura). É que, se é errado ignorar as contingências histórico-sociais que
influenciaram a produção literária de Fiama (ou qualquer outra), também é
aqui necessário analisar as inovações vanguardistas que influenciavam os
autores. Poesia 61, por exemplo, foi um acontecimento feito em prol da
renovação formal, valorizando a autonomia do discurso poético.
Por tudo isto, a poesia de Fiama, apesar de não partir de dados
objectivos, não é um discurso subjectivo sem a dimensão transcendente da
realidade (Rosa, 1992: 7). É que o reconhecimento do real existe e conduz as
275
narrativas, embora não siga rumos objectivantes, tornando-se as coisas
representadas em sinédoques de toda a realidade (Fonseca, 2002: 14): partem
do simples, mas este simples tem em si imbuído o todo, funcionando como
ponto de partida de um movimento em ascese, funcionando o “eu” como ponto
axial, responsabilizando-se pelo sentido das coisas em quadro maior, elas
mesmas destituídas dele caso não sejam integradas numa rede de significações
que atingem o universal.
Detentora do Prémio Revelação de Teatro, do Grande Prémio de
Poesia da Associação Portuguesa de Escritoras e do P.E.N. Clube Português,
Fiama Hasse Pais Brandão tem, nos últimos anos, sido alvo de alguns estudos
académicos, embora não seja, nesta altura, uma autora prioritária e de ser de
leitura inexpressiva no espaço universitário. Ainda assim, os estudos que nela
se centram são de envergaduras várias (de artigos científicos a teses de
doutoramento) e não se são exclusivos de Portugal. A lista de estudos
publicados inclui um dossier em “Letras & Letras” (1992) sobre a autora; a
oitava edição da revista “Relâmpago” (2001), em jeito de homenagem; a sexta
edição de “Metamorfoses” (2005), com ensaios, depoimentos e documentos; o
livro Lápide e Versão (2006), em que Jorge Fernandes reune ensaios seus sobre
Fiama; o número 2 da revista “Pessoa - revista de ideias” (Março de 2011),
publicação das participações no “Colóquio - Fiama Hasse Pais Brandão”,
realizado em Outubro de 2010.
276
concernentes à sua actividade política. O primeiro data de 1965, ano em que
viu três das suas peças de teatro censuradas, e informa sobre a subscrição de
um pedido de amnistia:
EM 20-4-965
277
Em 1968, foi escrita uma nota informativa que dá conta da sua acção
no movimento estudantil, de uma subscrição de um documento, da sua
pertença à “oposição democrática” e da assinatura da revista “Seara Nova”:
INFORMAÇÃO
1 de Abril de 1968
278
solta ao fim deste dia.
- Solteira
- Estudante da Faculdade de Letras
- Nascida a em Lisboa
- Filha de Gustavo Wilson Perey Brandão e de Carmem Pereira
de Vasconcelos Hasse Brandão
- Residente, na Rua de Malpique, nº. 2-1º Dto – Lisboa
279
uma peça com o título que dá nome ao livro, “O Testamento”. Vão ver a peça
porque é um amigo, João, quem a representa. Não estão contentes: queixam-se
porque pagam pelo bilhete para concluirem que hão-de morrer, ilação que
tiram do próprio nome da peça.
O casal é apresentado como rico e desligado do mundo. Não quer ser
incomodado. Afirma poder comprar lugares para todos os espectáculos e não
querer coisas tristes nem maçadoras: já que tem dinheiro, quer divertir-se. Para
além disso, “ser espectador é cómodo” (Brandão, 1962: 18). Assim, os ricos
são apresentados como aqueles que se desligam do curso das coisas. Os
problemas sociais não os preocupam, não querem imiscuir-se neles, querem
somente que tudo continue como está. Não querem pensar nem sentir,
procuram tão-só o entretenimento inócuo:
MARIDO 1
Não nos venham com mortes, nem com misérias, nem com
outras coisas que façam pensar. Nós não pensamos nem
sentimentos; distraímo-nos, sentados nos nossos fauteuils
de veludo, a ver os outros andarem sem saber que jeito
hão-de dar à vida. (BRANDÃO, 1962, p. 19)
280
senta em plateias e nos esquece. Vamos aproveitar para dizer
qualquer coisa fora de portas. Vamos gritar de encontro às
portas. (BRANDÃO, 1962, p. 38/39)
Uma das vozes do coro, distinguível entre as restantes, diz que “Um de
nós quis falar e não o deixaram. E apenas pedia o que necessitava. Sempre a
necessidade é crime. Em todos os decretos se proíbe a necessidade.”
(BRANDÃO, 1962, p. 39). Esta ideia será reiterada no final da peça de Pais
Brandão. Assim, e porque a necessidade houvera sido ignorada, até proibida, o
povo, aproveitando o lazer, a distracção do poder, quer fazer ouvir a sua voz:
“Começámos enfim a gritar por todas as ruas. A nossa força é a da justiça. É a
força das mãos e dos corpos. Agora começámos a marcha e não há obstáculos
contra o nosso corpo. A luta é feita com as nossas mãos.” (BRANDÃO, 1962,
p. 39) Assume-se, portanto, que há dois lados em conflito e que a relação que
estabelecem é maniqueísta: um dos lados vive da força da justiça. No
seguimento disto, convém prestar ainda atenção ao discurso de um homem,
identificado como Velho, que se refere a uma pretensa volatilidade da moral,
que dependerá do lugar que cada pessoa ocupa. O homem diz que, num teatro,
a moral é proporcional ao preço do assento: estará, assim, ligada ao lugar que
se ocupa fisicamente, o que metaforizará o lugar social, ou seja, estará ligada
às condições materiais em que se vive – é o dinheiro que cada um tem que o
posiciona moralmente. Como pudemos observar anteriormente, os ricos, de
bem com o status quo, não querem interferir no alinhamento das condições
materiais:
VELHO
281
A moral desta história é, para o público, um pau de dois bicos. É
a moral da injustiça e a moral da justiça, a moral da razão e a da
prepotência. Cada qual tirará a moral a seu modo, como cada
qual tirou um bilhete a seu modo, conforme o conteúdo do porta-
moedas. Num teatro, a moral é directamente proporcional ao
preço do assento (BRANDÃO, 1962, p. 57)
Ao mesmo tempo, o Velho, dizendo que o medo subsiste, que a sua pólvora se
arrasta pela cidade, diz que “Só pelas mãos a vitória é possível. Só as mãos, o
suor, os corpos, hão-de arrombar os sofres do luxo e do excesso e do medo.”
(BRANDÃO, 1962, p. 58). O povo é, assim, incitado a tomar as rédeas do seu
futuro e do seu lugar na sociedade, a rejeitar os lugares sociais como estes se
desenham, a questionar a conjuntura social e a alterá-la e, por isso, o coro
reitera o seu intento, dizendo que tem a força da justiça e que irá gritar por
todas as ruas.
Numa cena surrealista, o casal a que previamente fizemos referência
sai do teatro, perguntando-se por que razão, sendo nove horas, está já tudo
escuro e não há movimento. Afirma inclusivamente que “O mundo está
diferente” (BRANDÃO, 1962, p. 63). Perguntando as horas a um homem que
está na rua, este diz-lhe que são, afinal, quatro e um quarto.
Na segunda parte da peça, o Marido 1 encontra-se a montar uma nova
fábrica, que se juntará às cinco que já tem. A inauguração acontecerá no dia
seguinte. O seu objectivo é o lucro exponencial:
MARIDO 1
No primeiro mês, devo ter uma produção de dois milhões, no
282
segundo, de cinco, e assim progressivamente até ao infinitivo.
SENHORA 1
O infinito? Não lhe parece excessivamente ousado?
MARIDO 1
Não, minha senhora. É muito fácil atingir o infinitivo por
acumulação. (BRANDÃO, 1962, p. 69)
MARIDO 1
Peço a vossa colaboração, meus amigos, para executar um ideal
por que há muito venho lutando. É um ideal nobre e altruísta.
Temos de auxiliar o povo, salvar os homens menos favorecidos
pela fortuna. Com a vossa colaboração, levaremos a cabo uma
grande obra. A minha intenção é fundar uma sociedade que tenha
por título “Para uma vida melhor”. Lutaremos por um mundo
mais moral, mais feliz. É um ideal nobre e uma causa nobre.
Realizaremos uma grande obra. (BRANDÃO, 1962, p. 87)
283
SENHOR 2
É preciso salvar a humanidade.
SENHORA 1
Temos de lutar por esse ideal.
MULHER 1
Vamos ser os benfeitores da humanidade.
SENHOR 1
A nossa obra! (BRANDÃO, 1962, p. 87)
FOTÓGRAFO
Eu acho que é vulgar, já tenho visto muitos casos destes. Na
minha profissão, sabe, vê-se muita coisa. O público é que nunca
vê. Os pés nunca vêm nas fotografias. Tiro sempre de meio
corpo, já por causa disso. São ordens superiores.
284
JORNALISTA
Mas espere, o pior é se não são os pés. O pior é se é a cabeça.
FOTÓGRAFO
O quê? A cabeça? Pois tem razão. Se é a cabeça, então o assunto
é complicado. Estas fotografias não servem. Estão às avessas.
JORNALISTAS
E como é que hei-de fazer a entrevista. Pois, as cabeças têm que
ver com a entrevista. Mas estão ao contrário!
FOTÓGRAFO
Vá-se lá saber se o que está certo é a cabeça ou os pés. Não há
profissão mais ingrata do que ser fotógrafo. É que se eles ficam
com a cabeça às avessas, ainda vêm deitar as culpas para cima de
mim. Aposto que estão convencidos que têm os pés do mesmo
lado que a cabeça.
JORNALISTA
Ou a cabeça do mesmo lado que os pés. Ora sem cabeça, não
posso fazer a entrevista. (BRANDÃO, 1962, p. 89)
JORNALISTA
285
(Com um bloco de notas): Projectos?
MARIDO 1
Uma inauguração. Mais dez fábricas nos próximos dez anos. Um
lucro infinitamente progressivo. Redução progressiva de
salários. Dentro de cinco anos, abolição, até alcançar um saldo
total. Mão-de-obra gratuita, um grande progresso. Bairros
económicos para os empregados, para as famílias dos
empregados, para os amigos dos empregados, para os
conhecidos dos empregados. Aumento progressivo dos salários.
Cem por cento. (BRANDÃO, 1962, p. 94)
MARIDO 1
Na segunda fase do plano, redução do número de empregados.
Economia de mão-de-obra, cem por cento, ou seja, zero.
Aumento do número de empregados. Expansão.
286
respondendo ao Jornalista, diz qual será o nome da empresa:
JORNALISTA
Nome da empresa?
MARIDO 1
Exploração Ilimitada.
JORNALISTA
A Sociedade?
MARIDO 1
Para Uma Vida Melhor. (BRANDÃO, 1962, p. 95/6)
287
2 quer proibir os habitantes do planeta de deixarem as ruas vazias. Ao mesmo
tempo, também diz querer procurá-los para as suas próprias salvações.
SENHOR 1
Não demorem. Eles precisam de nós. Temos de os ir buscar antes
que se afastem para muito longe.
SENHORA 2
Vamos procurá-los pelas ruas, salvá-los. (BRANDÃO, 1962, p.
99)
ENCENADOR
Mas o que se está a passar aqui? Quem são os senhores? Estão a
abusar, deixem o público em paz. Peço as minhas desculpas. O
público não tem nada a ver com a peça.
FOTÓGRAFO
Mas devia ter.
ENCENADOR
O público é para ser respeitado. Pagou o seu bilhete. Veio aqui
288
assistir ao espectáculo.
JORNALISTA
Mas a peça diz directamente respeito ao público. Não podem
estar ali sentados e mais nada. Nós estávamos a tentar conversar
com todos. Queríamos fazer umas entrevistas, pedir opiniões.
Interessa sempre saber o que é que o público pensa duma peça.
(BRANDÃO, 1962, p. 101)
JORNALISTA
Precisam de inválidos para fazer assistência.
ENCENADOR
O quê, foram buscar inválidos?
JORNALISTA E FOTÓGRAFO
Não, foram salvar o mundo. (BRANDÃO, 1962, p. 102/103)
289
No epílogo da peça, o povo, nas ruas, quer, de facto, salvar o mundo.
Clama justiça, reitera o que havia dito:
CORO
Começámos enfim a gritar por todas as ruas. A nossa força é a da
justiça. É a força das mãos e dos corpos. Agora começámos a
marcha e não há obstáculos contra o nosso corpo. A luta é feita
com as nossas mãos. Um de nós levantou-se por todos. Um de
nós quis falar e não o deixaram. E apenas pedia o que
necessitava. Sempre a necessidade é crime. Em todos os decretos
se proíbe a necessidade. (BRANDÃO, 1962, p. 107/108)
ENCENADOR
Minhas senhoras e meus senhores, o espectáculo vai prosseguir,
pois os actores estão de novo em cena. Regressaram
afortunadamente sãos e salvos, se bem que tenham sofrido
alguns dissabores. Não conseguiram ainda levar a cabo a sua
missão, pois um mal-entendido inesperado os fez desistir
provisòriamente. Foram apedrejados e insultados. Um homem
ergueu-se de entre a multidão e falou por todos. Falou do ódio,
da fome e do medo. Estes senhores tiveram de regressar sem
terem ainda cumprido a sua missão. Houve um erro, um
equívoco tremendo. Aquele homem que ali vêem, bem, é difícil e
ingrato de explicar... Por amor à humanidade, por amor à
290
humanidade.., estes senhores... para tranquilizar a população...
encarregaram-me de o enforcar. Desconheço os motivos, é claro,
mas, apesar de ser o Encenador, em momentos graves como este
obedeço apenas. Compete-me descobrir o melhor processo de
executar as ordens. Enforquei-o num guindaste para não trair a
actualidade. Um guindaste é a forca ideal do século vinte.
(BRANDÃO, 1962, p. 108)
291
MARIDO e MULHER 2
Mas nós também assistimos à peça.
PORTEIRO
Qual peça?
MULHER 2
“O Testamento”, pois qual havia de ser?
PORTEIRO
Mas isto aqui não é uma peça.
MARIDO 2
Confundimos?
PORTEIRO
Não estamos num teatro, estamos no mundo.
MARIDO 2
No mundo?
MULHER 2
Quer dizer que aquele homem morreu a sério?
PORTEIRO
Está morto. (BRANDÃO, 1962, p. 127/ 128)
292
tornam-se equiparáveis ao público, já que vêem a partir de fora uma obra que,
à partida, foi planeada e calibrada, cujos efeitos foram manipulados pelo seu
autor. Assim, ao pôr-se, no palco, uma personagem a confundir um e outro, ou
a mesclá-los, traz-se a vida para dentro do palco, podendo ambos ser
analisados no mesmo plano, em simultâneo. É que, aqui, não é apenas o teatro
que, enquanto criação, é realidade, e portanto pode ser analisado: é a colocação
dos dois planos num só de forma a que possa ver-se que esta obra de Pais
Brandão não descura nem olvida nem esconde a sua ligação directa com o real.
A peça termina ao encontrar-se o testamento no bolso do homem que
acabara de ser morto: a herança que este deixa é para todos.
INVENTOR
O testamento?
PORTEIRO
Deve estar no bolso.
(…)
“INVENTOR
(Lê): meus amigos, a herança é para todos. Um homem quando
morre deixa o mundo aos outros. A responsabilidade é de todos.
Unidos, o mundo é para todos. Meus amigos, é uma grande
responsabilidade. (BRANDÃO, 1962, p. 129)
293
da peça representada dentro da peça, que queriam apenas enterter-se), cabe a
cada um decidir o seu destino. E não o cabe somente em termos de direitos: a
intervenção cívica é vista como uma responsabilidade, o estado de coisas será o
resultado de uma relação de forças que pode ser sempre alterada consoante os
realinhamentos de classes, as lutas populares, as vontades em conflito.
294
isto umas às outras, porque essa responsabilidade foi herdada do passado
histórico (neste caso, é simbolizada no homem que morreu por falar por todos).
Assim, o povo é incitado a tomar as rédeas do seu futuro e do seu lugar na
sociedade, a rejeitar os lugares sociais tais como estes se desenham (e que as
classes dominantes quererão perpetuar), a questionar a conjuntura social e a
alterá-la.
Vinda a público em plena ditadura salazarista, e numa época em que
várias ditaduras se alastravam pela Europa, uma obra que punha nas mãos do
povo o seu destino contrastava com as imposições do regime político,
rompendo com elas, desafiando-as. Um povo em rebelião não podia ser
dominado e a chamada de atenção para o poder da organização popular podia
romper com os pilares do regime. Para mais, assumir uma visão crítica como
uma responsabilidade e uma dívida põe o ónus da dominação também nos
dominados, já que sugere que estes têm o poder da sua própria libertação. Ao
mesmo tempo, na obra, é feita uma crítica à sociedade capitalista e às relações
estabelecidas entre patrões e trabalhadores, mostrada, sem disfarces, como uma
relação de exploração directa. Desta forma, a obra de Pais Brandão, para além
de mexer com a ideia do povo amorfo que era necessário à manutenção do
Estado Novo, alterando-a, acicatando, também mostrava as contradições de
classe, rejeitando a ideia constitucionalmente consagrada em 1933, que
recusava a ideia de luta entre as classes, já que toda a gente seria igual perante
a lei e que, na teoria, as oportunidades que as pessoas tinham na vida não
estavam dependentes da classe a que pertenciam.
295
8.5. O Museu (1965)
296
proposto arquivar, iniciava-se ali a apresentação de quadros-vivos, onde
podiam ver-se prateleiras com gatos embalsamados e gaiolas com pássaros
embalsamados. O público – o Criado e o Alto-Magistrado –, ao ver a
exposição, apercebe-se de que os gatos estão mortos.
Enquanto o Cicerone anuncia que será então vista uma cena chamada
“Os meus sentimentos”, o Alto-Magistrado, noutra porção do palco, então
iluminada, elogia o Secretário e afirma querer condecorá-lo. Ao iniciar a
condecoração, diz que “As testemunhas têm as mãos amarradas, mas isso não é
de importância. (…) eu não o podia condecorar sem testemunhas. O facto de
estarem condenados a prisão perpétua é um pormenor sem importância.”
(BRANDÃO, 1965, p. 70). A condecoração é quádrupla, quer dar-lhe quatro
medalhas: “A medalha das Boas-Intenções, a medalha das Boas-Obras, a
medalha do Sacrifício, a medalha da Obediência-Cega.” (BRANDÃO, 1965, p.
71). Vangloria-se, assim, a submissão perante o poder, representado num Alto-
Magistrado (portanto, com o poder da decisão), e isto acontece perante a
passividade de testemunhas impotentes: afinal, não só têm as mãos amarradas
(não têm, ao não terem a capacidade de mexer-se, a capacidade de mudar),
como estão condenadas à prisão perpétua (nunca terão um papel na vida
pública).
De seguida, na apresentação de um novo quadro, “O banquete”, o
Cicerone pede, em nome da direcção, ajuda ao público: serão necessárias dez
pessoas, que devem estar sentadas numa mesa durante uns minutos e, quando o
Cicerone bater palmas, devem levantar-se, fazer uma vénia e dizer “à saúde, à
saúde do nosso benfeitor”. Acrescenta: “Espero que não se importem de
representar este papel. Pois, têm razão, não é agradável. Mas já todos sabemos
qual é a verdade. Os senhores vão apenas fazer de figurantes. Tomem os
297
vossos lugares, por favor.” (BRANDÃO, 1965, p. 74). Aqui, reitera-se o que
foi dito no parágrafo anterior: existe uma relação de comando em que um
grupo recebe ordens de forma acrítica, servindo apenas para viabilizar uma
acontecimento tal como foi projectado ou planeado pela figura que domina.
No quadro final, os dez sentam-se à volta de uma mesa e começam a
apresentar-se. Frederico, por exemplo, de cinquenta anos, mostra-se enquanto
servil – sorri à distância, julga que toda a gente que conhece é sua amiga, ainda
que diga poder estar enganado e assuma que essa convicção o torna feliz.
Casado com Sara, têm os dois dois filhos, Ricardo e Filipe. Um deles está
também à volta da mesa, o outro desapareceu. Sara acaba por revelar que ela e
Frederico foram traídos, que um filhos os abandonou, embora não saiba qual.
O pai vem em defesa dos filhos, mas a mãe não os desresponsabiliza:
FREDERICO
A culpa não é deles.
SARA
A culpa é em parte sempre de cada um. Já o sabemos, embora
façamos sempre o possível por esquecer tudo e ficarmos
ilibados. (BRANDÃO, 1965, p. 75)
298
o que pensa. Cada pessoa fica só a dizer o que pensa e não ouve nada do que os
outros dizem.” in BRANDÃO, 1965, p. 76), da necessidade de um recomeço
para que possa dar-se um testemunho de vida. Assim, conversam uns com os
outros sem que haja uma relação dialógica, evidenciando o tom absurdista que
perpassa toda a obra. Discutem os vários assuntos e concluem:
CONVIDADO 9
Já não se pode respirar aqui. Todos fechados numa sala tão
pequena.
CONVIDADO 5
É preciso sair daqui. É necessária a liberdade.
CONVIDADO 4
Já estamos fartos. Sujeitámo-nos a ficar aqui tempo demais.
CONVIDADO 3
Vamos embora todos.
CONVIDADO 7
Embora.
CONVIDADO 10.
Já não é sem tempo. (BRANDÃO, 1965, p. 77)
Acabam por levantar-se todos em tumulto e a peça termina com uma deixa do
Cicerone:
299
CICERONE
O quê? De novo a empurrarem, mas, meus senhores, acalmem-
se. Sim, saiu tudo mal. Os senhores tanto falaram de si próprios
que não houve deixa para mais ninguém. Assim como a criaram
hoje esta cena foi apenas vossa. Não é esta a intenção deste
museu. Mas apesar de tudo estamos muito gratos a todos. E
agora, senhoras e senhores, vamos prosseguir na nossa visita.
Deste lado, agora. Por favor, por aqui, por este lado. Atenção.
(BRANDÃO, 1965, p. 78)
300
António Quadros publicado no dia 3 de Maio de 1962, no “Diário Popular”,
peças de tipo experimental em que os autores ensaiaram processos, formas de
diálogo e estilo. O autor conclui ainda que nenhum dos textos se impõe por si
mesmo, embora todos revelem virtudes. Na peça de Fiama, destaca o
pessimismo radical e considera que o drama revela momentos de notável
teatralidade. A obra serviria, assim, propósitos dentro do teatro, demonstrando
“eloquentemente o fenómeno de acordar do português para o teatro” e
sentindo-se como mais sólida característica uma capacidade inventiva.
Também Urbano Tavares Rodrigues, num artigo publicado no “Jornal de
Letras e Artes” no dia 13 de Junho de 1962, analisa as peças procurando-lhes a
marca da renovação e das transformações próprias do teatro jovem: “tal
transformação pode ser ao nível social e moral: a transformação de uma
mentalidade, a de uma concepção da vida ou da sensibilidade, da forma como
se vêem, como se recebem e se julgam sensorialmente as coisas. E isto
significa mudança de estilo”. Assim, conclui que a urdidura da peça envolve
mais do que habilidade de dramaturgo – envolve o sentido de teatro social.
Parece-nos, assim, que o papel desta peça terá um significado mais
relevante dentro das potencialidades do teatro enquanto obra de arte do que no
que concerne ao conteúdo da peça (e talvez possamos estender isto a toda a
antologia, que lançava ao público uma geração de dramaturgos), ainda que as
relações conflituais que norteiam a narrativa (que se tece num tom absurdista)
evidenciem lugares sociais díspares. Talvez seja a isto que se deve a proibição
da PIDE (não contamos com o relatório dos censores, mas apenas com a data e
com o exemplar lido pelos censores, que se encontra na Torre do Tombo e que
está todo agrafado à excepção desta peça de Fiama, que tem, nas suas páginas,
carimbos que ditam a proibição), mas calculamos que para muito contará a
301
inclusão da peça na antologia, já que esta, no seu todo, fixava uma geração de
jovens dramaturgos que não só tencionavam fazer teatro social como o faziam
realmente, usando elementos da ditadura como elementos internos e centrais da
criação dramatúrgica (como é o caso de O delator, de Maria Teresa Horta).
302
d'Arc ou Penélope de Ítaca, parodiando as instituições militares.
Entre o título e a lista de personagens, ou seja, ainda antes da peça, está
fixada uma citação de um panegírico do Rei D. João III (1502-1557), que
iniciou a colonização efectiva do Brasil, feito por João de Barros 62 (1496-
1570), que nos parece de interesse reproduzir na totalidade:
303
mar as naus e galeões arrombados de tiros de fogo, ũas delas
irem-se ao fundo, outras arderem em fogo e chamas de alcatrão,
as ondas vermelhas com sangue, o fumo da pólvora, os homens
lançarem-se ao mar e afogarem-se...
JOÃO DE BARROS
Panegírico do Rei D. João III
304
instituição militar, todos os generais militares. Despessoalizar uma personagem
desta forma torna-a, mais do que numa personagem, numa pessoa única com
características, num símbolo, e cremos ter sido esse o intuito da autora.
Também a visão das personagens sobre o Inimigo é despessoalizada, sendo
este demonizado, desumanizado, visto através de uma lente de um simplismo
que parte do estabelecimento de uma relação de alteridade:
GENERAL
O Inimigo não nasceu de pai e mãe, como nós; não tem, pois,
família. Não conhece a família, não a defende como nós. Só a
nossa sociedade assenta na família, que é sagrada. A nossa
família é sagrada porque descende da Sagrada Família.
(BRANDÃO, 1965, p. 25)
CORONEL:
O inimigo não tem coração como nós, pois a sua caixa toráxica é
um antro de fogo. Além disso, meus filhos, nós somos
omnívoros, o que quer dizer que comemos de tudo, o que por sua
vez quer dizer que não nos falta de comer. (BRANDÃO, 1965, p.
26)
305
Após esta deixa do Coronel, introduz-se um novo elemento da peça, que
é o da não-vontade dos soldados em perpetuar as guerras, as desvantagens e o
sofrimento que delas tiram e da forma como agem enquanto autómatos,
movendo-se em prol de interesses alheios, cumprindo ordens, não tendo sequer
uma relação ideológica com os motivos da guerra. Ao invés disto, queixam-se
da fome em que vivem e maldizem os responsáveis pela guerra:
2º SOLDADO
(À parte):
Maldita guerra! Tenho uma fome dos diabos, e o tipo não pára
com a conversa.
1º SOLDADO
(À parte):
Há-de ser marchar com a barriga a dar horas. Malditas guerras e
quem as inventou. (BRANDÃO, 1965, p. 26)
306
1º SOLDADO
Tu vais para o teu lado e eu para o meu.
INIMIGO
Eh, amigo, e se a gente se voltar a ver lá na guerra?
1º SOLDADO
Com a poeirada e os tiros há-de se ver muito! Os homens na
guerra não têm cara.
INIMIGO
Se eu te matar é porque foi sem querer. Tu és um tipo como eu,
também foste mandado para aqui. Venham de lá esses ossos!
(BRANDÃO, 1965, p. 34)
A asserção “Os homens na guerra não têm cara” reitera a ideia já aqui
apresentada de movimentos autómatos que existem para que a guerra possa ser
executada. Os soldados matam-se, por isso, porque para isso receberam ordens,
mas não há uma ligação entre os seus estados mentais, psicológicos,
emocionais e ideológicos e aquilo que executam.
Finalmente, os quatro generais entram em diálogo, regozijando-se pelo
“tão grande número de heróis” da Nação, após as “lutas gloriosas travadas pela
Pátria” (Brandão, 1965: 36), dizendo que são então inaugurados os
monumentos levantados em sua honra e agradecendo à Nação a recepção
calorosa que lhes fez (Brandão, 1965: 37). Os soldados, por sua vez, que
levaram com o sofrimento da guerra sem que dela tenham tirado as glórias do
reconhecimento pelas quais os generais se regozijam, enfurecem-se pelos
307
efeitos que a guerra teve neles, por terem sido manipulados, pelas maleitas em
que ela resultou:
1º SOLDADO
Eu que o diga! Fui-lhes na conversa e vim de lá com um bocado
a menos!
308
Este último parágrafo iria alarmar particularmente a PIDE, mas
voltaremos a isto no ponto seguinte. Para já, cabe-nos referir a consciência dos
soldados do seu próprio papel na guerra – comandado, levado a cabo em prol
de outrém –, assim como o seu arrependimento por nela terem participado.
309
ao olhar de paródia sobre as instituições militares e algumas figuras históricas.
Contudo, aquilo a que se refere como “linguajar escatológico” não deverá ter
sido uma questão de grande importância, já que, para além de não ser
determinante na constituição da narrativa e de haver vários livros publicados
no decorrer do Estado Novo com o mesmo tipo de linguagem, não fere
qualquer aspecto político ou moral. Ao mesmo tempo, será de ressalvar que a
PIDE não tenha mencionado aquela que nos pareceria a maior razão para, do
seu ponto de vista, justificar a censura da obra: a posição dos próprios militares
em relação à guerra. É que esta não apenas denuncia a guerra como um
confronto de elites, indiferente aos povos em combate, assim como os povos
indiferentes em combate, como mostra que a própria ideia do nacionalismo era
uma ideia da elite política do Estado Novo, que servia para forjar Portugal
enquanto nação forte e não enquanto constituição de um povo, de um sujeito
colectivo cujos sujeitos individuais se faziam das mesmas características,
distinguindo-se de outros povos.
Num contexto em que imperava política e socialmente o mote “Deus,
Pátria e Família”, esta obra vem sugerir uma realidade em que os próprios
militares, forças armadas da pátria, que através deles deve fazer cumprir o seu
poder ou os seus intentos, defender-se ou atacar, estão dela desinteressados,
deixando cair por terra as teses nacionalistas e os confrontos entre os povos.
Esta será, por isso, uma obra que confronta os papéis das elites e dos povos e
que mostra que, dentro daquilo que o Estado Novo tentava mostrar como
unidade – ou seja, Portugal –, havia ramificações que, ainda que
concomitantes, eram contraditórias.
310
8.6.2. O Golpe de Estado
VELHO
Há muitos anos nisto! E no entanto a nossa vida foi muito curta.
Porque, não podem deixar de concordar, um homem só pode
dizer que vive quando trabalha e come.
VELHA
A nossa vida há muitos anos que é assim. Aqui e além um
contrato. Não é justo ter sessenta anos e apenas um terço de vida.
VELHO
Mas hoje viemos finalmente protestar. Somos velhos, não vale
sequer a pena ter medo. Já não há tempo para protestar nem tão
pouco para remediar. Todavia não podemos deixar de vos dizer
que sofremos, que não nos conformámos nunca, embora sempre
311
aceitássemos. (BRANDÃO, 1965, p. 45/46)
312
espectáculo a oferecer à plateia, Público 1 resolve fornecer alguns dados
autobiográficos, vindo depois a arrepender-se. Posto isto, apresenta-se como
benevolente, ainda que venha a contradizer-se de seguida:
PÚBLICO 1
A minha autobiografia... bem, devo contar-vos o que fiz até hoje.
Nasci, como é óbvio. Sou director de uma companhia. Ora! Não
devo descer a pormenores tão íntimos.
Acredito na liberdade. A liberdade é o maior direito do homem.
O mundo livre é livre. Em toda a minha biografia tenho lutado
pelos direitos do homem.
E além de tudo isso? Ora bem, tenho-me vacinado
cuidadosamente contra a varíola de quatro em quatro anos. De
doze em doze meses recebo um juro líquido de capital em
rendimento, bem, uns contos, da ordem dos milhares. E todas as
semanas compro a lotaria. A minha autobiografia é a de uma
pessoa de bem. Devo confessar modestamente que sou muito
humanitário. Tenho muita pena destes velhos, mas não posso
fazer nada por eles. Ao serão é perigoso para a digestão. Sou tão
humanitário que dou sempre esmolas em minha casa à quinta-
feira. (BRANDÃO, 1965, p. 50)
Se, por um lado, deve destacar-se a apologia da liberdade, por outro, não
deve olvidar-se que o mesmo sujeito que se considera “uma pessoa de bem” e
“muito humanitário” se demite da possibilidade de alterar o status quo. Para
mais, ainda que afirme nada poder fazer pelos Velhos, torna-se claro que o que
o imobiliza é a falta de vontade. Ao mesmo tempo, considera-se “humanitário”
313
por dar esmolas às quintas-feiras. Esta ideia remete-nos para uma relação
social de caridade e não de solidariedade: nada nas acções de Público 1
prejudica a manutenção das mesmas hierarquias sociais e económicas, podendo
ainda retirar daquilo que faz satisfação pessoal. Nada pode fazer pelos Velhos,
é o que diz, mas o pouco que faz, que permite que tudo continue como até
então, serve para que possa atribuir-se a denominação de “humanitário”.
De seguida, ao resolverem levar ao palco o Presidente da Companhia, e
ao, perante o mesmo, discutirem o que é uma companhia, Público 1 e Público 2
resolvem levar a cabo o espectáculo, dizendo que a moral da história a contar
terá de ser a do público, terá de ser a moral vigente (o que nos remete para a
ideia da moral vigente como moral imposta e inultrapassável, característica da
sociedade portuguesa do Estado Novo sob pena de perseguição política e
policial):
PÚBLICO 2
(…) Têm de respeitar a moral vigente.
PÚBLICO 1
O público é quem dita a moral.
PÚBLICO 2
Evidentemente. A moral da história tem de ser a moral do
público.
PÚBLICO 1
Se não, não se riem. Mas vamos à história. (BRANDÃO, 1965,
p. 60/61)
314
Contudo, assim que começam a contar a história, saem estrondos e
guinchos do altifalante que está no peito do Presidente e clarões iluminam-no
por dentro. Os Públicos afirmam que alguma coisa lhe aconteceu, mas que está
vivo. De seguida, a acção gira em dois sentidos, dizendo-se primeiramente que
o Presidente está em coma e a ser tratado pelos melhores especialistas e que já
apresenta melhorias; descobre-se que um fusível rebentara, o Presidente volta
lentamente a si; morre, os seus restos ficam no Mosteiro dos Jerónimos; indica-
se que em breve será anunciado o seu restabelecimento.
Neste cenário, com um Presidente em estado de convalescença, fica a
faltar definir os destinos da nação.
PÚBLICO 2
(…) Os destinos da nação... hã?, não se trata agora de política.
Nem todos os presidentes são políticos. A economia é por
sofisma apolítica... hã?, as grandes verdades encontram-se onde
menos se espera.
A nossa Nação tem um grande destino, Camões dixit. Não
podemos deixar morrer nenhum presidente. Segundo a moral
vigente são os presidentes que fazem as nações. (BRANDÃO,
1965, p. 63)
É a partir daqui que se inicia a parte final da narrativa, parte essa que a
PIDE considerou de uma crítica policial e anti-social particularmente
assinalável dentro da peça, estando as personagens, que, depois destes
incidentes, podem finalmente contar a história, a preparar um golpe de Estado.
O Presidente está vivo, e a História prossegue, mas as personagens incitam o
315
conflito, e fazem-no também dentro da ficção:
PÚBLICO 1
É melhor alterar a natureza da presidência. A história tem de ser
contada com tudo nos seus devidos lugares. Só quando tudo está
nos seus devidos lugares é que pode haver conflitos.
PÚBLICO 2
O senhor é equívoco e obscuro. O público vai pensar que há
entre nós qualquer conflito. Ora um conflito em literatura é um
conflito em sentido lato. (BRANDÃO, 1965, p. 65)
PÚBLICO 1
Ora, e se combinássemos um golpe de Estado? Estão nas nossas
mãos os elevados destinos da Nação.
PÚBLICO 2
Oh, não, meu caro colega, seria fundar a nossa felicidade numa
traição.
316
PÚBLICO 1
Meu caro colega, a nós, como deputados convem-nos zelar pela
Nação e não pelo Presidente. (BRANDÃO, 1965, p. 65)
O HOMEM JOVEM
Nós viemos aqui esclarecê-los, senhores espectadores, para não
julgarem que o golpe de Estado foi a solução. Um logro, mais um
logro. Bem viram como eles se comportaram com os velhos e
ouviram tudo o que eles disseram.
Mas podem ir agora para casa tranquilos, senhores espectadores.
Os nossos pais estão a descansar e nós comprometemo-nos a
continuar a nossa acção para que todos possam ter tudo o que
necessitam. (BRANDÃO, 1965, p. 69/70)
317
A peça termina com uma fala da Mulher Jovem, que afirma ter havido
mudanças na distribuição do trabalho, passando a haver trabalho para todos.
A MULHER JOVEM
Nós vamos daqui a para o nosso trabalho, porque agora já há
trabalho para todos. (BRANDÃO, 1965, p. 70)
O relatório da PIDE sobre este livro que inclui quatro peças refere-se a O
Golpe de Estado de forma particularmente breve, dizendo apenas o seguinte:
Ainda que numa curta frase, a razão apontada pela PIDE é clara e
remete-nos para aquilo a que já nos referimos no ponto anterior: para a obra
literária enquanto obra política, com capacidade de reacção ao mundo e,
consequente e concomitantemente, de intervenção no mundo. Fiama não se
abstinha de usar a literatura como arma política e de intervenção social,
constituindo algumas das suas peças exemplos claros de teatro militante, de
teatro que olhava para o mundo e nele se imiscuía.
Claro, elementos de crítica social, fossem ou não criações ficcionais,
não podiam passar ilesos pela PIDE, como não passava nada que afrontasse ou
318
tivesse no seu cerne a proposta de enfraquecimento do regime – a crítica social
era uma forma de fazê-lo e incumbia à PIDE silenciá-la para que a ditadura
salazarista pudesse seguir impassível e inescrutável. Assim, a ideia de um
golpe de Estado pareceria particularmente revolucionária, já que sugeria que
era possível que um chefe de Estado fosse derrubado e que o zelo era devido à
Nação e não ao Presidente, contrapondo-se assim os interesses de um país aos
interesses ou à imagem da sua figura política e diplomática máxima.
Escrita em 1964, esta peça viria a ser publicada no volume que aqui
tratamos, no decorrer do ano seguinte, tendo também sido rejeitada pelos
serviços censórios. No oitavo volume da Revista Relâmpago, publicado no ano
de 2001 e dedicado a Fiama, Luís Miguel Cintra vem dizer que a representação
desta peça em 1965 a prova enquanto teatro militante: “E o Auto de Família
era teatro militante. Era mesmo, evidentemente, a defesa dos oprimidos, o
direito ao pão. O teatro antes proibido e escrito com a paixão nossa
companheira da luta antifascista. Tal qual. Português.” (CINTRA, 2001, p.
131)
De enredo simples, é feita através de onze personagens: Maria, José, três
vizinhas, três lavradores e três juízes. A peça abre com as três vizinhas, que
comentam o facto de José e Maria estarem no curral de um lavrador, em
situação de pobreza: “Se não comem eles, que fará o filho”; “E dormem na
palha como dorme o gado” (BRANDÃO, 1965, p. 106). É graças a esta
situação de pobreza que os dois matam o boi e a mula que têm no curral (do
319
presépio) e que pertencem ao lavrador, por precisarem de carne.
Em nova cena, as três vizinhas dizem que José e Maria deixaram a
criança à porta do Lavrador de Cima (2º Lavrador), e que este a rejeitou. O 1º
Lavrador, aquele a quem pertence o curral em que o casal mora, critica-o por
ter matado o boi e a mula, julgando-os ainda ingratos: “É a paga que mereço/
Por lhes ter eu dado um tecto?” (BRANDÃO, 1965, p. 118) Pondera levá-los à
Justiça para que o caso seja resolvido, mas acaba por desistir da ideia, dizendo
perdoá-los por caridade, mas acrescentando que é justo que façam penitência e
que, para serem perdoados, lhe dêem trabalho dobrado. O 2º Lavrador, por sua
vez, indigna-se por lhe terem posto o filho à porta. Na mesma conversa, os três
Lavradores comentam a possibilidade de o casal andar à procura de trabalho
noutra zona, julgando o 1º que, com a fama que ganharam entretanto, será
difícil encontrarem outro. Maria e José apercebem-se disto mesmo,
comentando um com o outro que não há trabalho ou, aliás, que há, mas que não
lhes é dado:
JOSÉ
Não há trabalho. Em toda a parte dizem que não há.
MARIA
A acabar o Inverno, e não há trabalho?
JOSÉ
Os lavradores já sabem da boca uns dos outros. Nenhum nos
quer.
MARIA
320
As terras que há e não nos dão trabalho! (BRANDÃO, 1965, p.
122)
Ao mesmo tempo, temem pela vida do filho. Não têm como alimentá-lo: “Já
não tenho leite.” (BRANDÃO, 1965, p. 123), diz Maria.
Na cena seguinte, entram três vizinhas em alvoroço. A criança está
morta, José e Maria são acusados de a terem matado. Haviam-na encontrado na
moita das silvas nessa manhã. Especulam que terá sido Maria a matá-la,
dizendo ainda que já muitas mães naquela terra haviam visto filhos morrer, que
ali as mães não tiravam o luto. A 1ª vizinha considera que “Mais vale a fome
do que matá-lo a mãe.” (BRANDÃO, 1965, p. 125), mas acabam por concluir,
pela voz da 3ª vizinha, que “Matou-o o Lavrador e matou-o à fome.”
(BRANDÃO, 1965, p. 125).
Quando o 1º e o 2º Lavrador passam, as mulheres fazem gestos
ameaçadores, dizendo: “Maldito seja quem nos mata à fome!” (Brandão, 1965:
125). Estes, por sua vez, ignoram (por desconhecimento ou de forma
propositada) que desempenharam um papel relevante na morte da criança,
demonizando os pais (“Há gente que é como feras/ Capazes de todo o mal.”,
diz o 1º lavrador; “Não é humano decerto”, diz o 2º, in BRANDÃO, 1965, p.
126).
Finalmente, Maria e José encontram-se perante três juízes, assim como
perante o 1º e o 2º lavradores. O 1º juiz considera que quem mata o próprio
filho atenta contra as leis dos tribunais e as da natureza e o terceiro diz que,
sendo a família a base de toda a sociedade, terá de haver uma punição. Maria e
José são, pois, condenados.
As vizinhas, por sua vez, não parecem estar certas da necessidade de
321
punição, já que atentam nas condições que levaram à morte da criança. Se, por
um lado, uma delas não sabe a que outrem condenar, por outro, há quem
considere que a fome é pior que a morte, o que faz com que, através dela, a
criança tivesse sido poupada a um mal maior:
3ª VIZINHA
E quem havia o Juiz de condenar?
1ª VIZINHA
Não sei. Mas eles, se mataram o filho por o terem à fome...
2ª VIZINHA
Ora, é mau pecado.
1ª VIZINHA
E haver esta fome não é pior ainda? (BRANDÃO, 1965, p. 130)
1ª VIZINHA
Maneira de acabar a fome.
2ª VIZINHA
Haverá alguma?
322
3ª VIZINHA
Há-de haver.
1ª VIZINHA
Haverá decerto. (BRANDÃO, 1965, p. 132)
323
desta obra: é que a análise falha ao considerar que a peça apresenta Maria e
José como dois criminosos quando o que esta faz é atentar no crime social que
é haver um mundo desigual que leva a que crianças morram à fome. Aliás, é
esta a conclusão das três vizinhas e é claro que é para esta conclusão específica
que a peça se encaminha, usando-a como mote final. A visão do censor da
PIDE falha ainda ao pensar nesta peça como uma peça sobre o “Natal de
Cristo” e não sobre o quadro social que envolve a família representada. É que,
ainda que tendo figuras centrais do cristianismo no seu cerne, ela serve para
que seja debatido um quadro social de indiferença e superioridade económica,
que condena as vidas de quem se encontra na parte inferior da hierarquia
monetária, sem conclusão daí tirar que não seja a culpabilização desses que
nela se encontram, tendo de optar entre dois caminhos sem saída, nunca
pensando no papel que desempenha quem tem as condições materiais
necessárias para que desobstruir esses caminhos. Até porque, aqui, não é a
família sacra que é representada: é uma família pobre, um menino que é um
filho esfomeado e não um deus, uma pertença à sociedade igual a tantas outras,
uma família pobre como as outras, social e economicamente espezinhada e
obrigada a matar para não deixar morrer.
A peça chama, por isso, a atenção para o que é viver encurralado e
para a facilidade com que quem não o faz pode alhear-se das condições
miseráveis dos seus dependentes, sempre julgados sob um quadro moral
menor, estreito, em que se ignora não só o papel económico e social de cada
um dos agentes sociais, mas também as condições materiais que determinam as
acções.
324
8.6.4. Recepção/censura da obra
325
como nós, de que gostávamos muito e que todos deviam
conhecer; que alguém devia também levar à cena.
(CINTRA, 2001, p. 131)
Escrevendo em 2001, Luís Miguel Cintra viria a dizer que tudo aquilo
pareceria então datado: a fome, o presépio, a procissão, tudo pareceria “coisa
de velhas, curiosidade etnológica ou turismo rural” (CINTRA, 2001, p. 131).
Mas, para o grupo em que estava,
isso era razão para lutar, escrever, fazer teatro. Com a pureza
esquemática da arte popular nos sentíamos solidários, tanto como
nos sentíamos solidários com todos os explorados. Da aberta
violência da vida que conhecemos nos ficou uma estrutura de
valores fundamentais que, de facto, se sente mal na permanente
dissimulação em que vive agora a nossa sociedade. (CINTRA,
2001, p. 131/132)
326
mentira, e era o núcleo da vida vedada, a morte. Era um texto
que chamava à revolta. Já tinha havido o 25 de Abril, o pequeno
texto era já “antigo”, tinha aparecido em 65, editado pela
Portugália com outras peças da Fiama, mas tornou-se ainda,
naturalmente, numa espécie de bandeira, ou profissão de fé.
(CINTRA, 2001, p. 132)
Assim, em 1977, este grupo que levou Auto da Família a cena fê-la
reviver, ser pensada, vista, discutida, sentida, libertando-a do confinamento
prévio de uma censura que a ocultara dos olhares públicos. Doze anos depois
da sua escrita, após uma proibição e um término da ditadura, havia ainda quem
a usasse como ferramenta artística e política.
327
Por toda a peça são apresentados sob um ângulo de ridículo ou
odioso ou chefes militares: generais e coronel. E o final da peça
(pg. 38 e 39) é um incitamento à revolta, pelo seu linguajar
escatológico e revoltado.
A segunda pecita, O Golpe de Estado, é de ferina crítica policial e
anti-social (notavelmente de p. 63 até ao final).
A terceira peça, Diálogo dos Pastores é a mais inócua das quatro,
pois se trata de uma espécie de auto vicentino, no tom e quanto
possível na linguagem e tom irónico de observação crítica de
Mestre Gil.
Finalmente a quarta: Auto da Família, consiste numa versão ou
visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo,
apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de
terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio,
abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria
onde os deixara alojar.
Assim, e pelo menos, por três das suas quatro peças formativas,
este livrinho é uma obra inconveniente, política e moralmente,
que julgo, portanto, de proibir.
328
A ausência de um registo físico de uma publicação prévia pode ser, e já
foi, prejudicial à investigação sobre esta matéria. Assim, num estudo em que
compara A Pécora, de Natália Correia, a esta obra de Fiama, Ana Catarina
Marques parte do princípio de que a edição de 1979 é a primeira edição da
obra: “Repare-se que, ao contrário de A Pécora, a peça foi escrita em pleno
pós-25 de Abril” (MARQUES, 2012, p. 104). Naturalmente, isto acabará por
levá-la a conclusões erradas: por exemplo, ao afirmar que a emergência do
povo como força de afirmação social fazia a ponte com o 25 de Abril (2012:
97) ou ao afirmar que a mudança do regime vigente, que acontece na peça, e
que é a instauração da República, se relaciona com o 25 de Abril (MARQUES,
2012, p. 106). Ainda que falhe no enquadramento e que parta para conclusões
que falham nas suas géneses, a verdade é que a análise que faz à obra é
pertinente, principalmente através do paralelismo que estabelece com a obra de
Natália Correia a que também aqui fazemos referência. De facto, ainda que
tendo, como identifica, concepções dramatúrgias díspares (2012: 97), ambas as
obras satirizam o poder religioso na sociedade portuguesa, contestando-o.
Como já dissemos, a acção de A Pécora situa-se em 1917, ano das aparições de
Fátima; a desta peça de Fiama, por sua vez, é anterior, situando-se desde os
fins da monarquia até à implantação da República, ocorrida em 1910.
A narrativa de Quem move as árvores começa por referir António, um
camponês que, tendo nascido com capacidade de fala, veio a tornar-se mudo e,
posteriormente, a recuperar a fala. Também havia tido uma paralisia e
recomeçara a andar, razão pela qual o seu caso era considerado milagroso. Este
episódio será o mote para uma narrativa em torno dos papéis do que representa
a monarquia, a religião e a república, no meio de uma crise ideológica que não
só põe em causa os papéis e os poderes do Governador e do Bispo como
329
ressignifica o papel político e social do povo.
António apresenta-se ao Governador, apresentando a sua cura súbita
como um milagre, mas o Governador considera que o camponês está apenas a
tentar endrominá-lo e, ao sentir o seu poder ameaçado pelo crescimento das
forças republicanas, previamente anunciado, condena-o a ser chicoteado. Desta
forma, mostra-se um abismo entre o poder executivo e o do povo, ao mesmo
tempo que, de imediato, se clarifica o contexto histórico ao perceber-se que a
chegada da República é iminente na narrativa.
O Governador rejeita os intentos dos republicanos, afirmando que estes
se aproveitam da ignorância: os republicanos dizem que o povo é ignorante e
que precisa de ser ensinado; o Governador acha que o povo só não quer
trabalhar. Usa o exemplo de António, visto como uma patranha por parte dos
camponeses:
GOVERNADOR
E é da ignorância que os republicanos se aproveitam. Oiça-lhes a
propaganda: dizem que o povo é ignorante e que precisa de ser
ensinado. Propaganda! Mas o povo não quer aprender. Quer
apenas que o deixem em paz, que não o façam trabalhar. Um
homem de trabalho, como aquele camponês, e dizia-se
miraculado! E a mulher e toda a vizinhança o diziam. O Governo
expulsou-o a chicote. É um caso que compete mais a vós,
Reverência. (BRANDÃO, 1979, p. 34)
330
congeminar formas de aumentar o seu domínio e a sua influência. Afinal, seria
necessário conter as ideias republicanas (já espalhadas pelos camponeses):
BISPO
Um auto de fé poderá neste momento político consolidar o nosso
poder.
GOVERNADOR
Excitará, talvez, a população. Se as ideias republicanas andam já
espalhadas entre estes camponeses...
BISPO
Se as ideias republicanas andam já espalhadas entre os
camponeses, um auto de fé servirá, neste momento, para as
conter. Há que mostrar ao povo a nossa força. E a força, só a
sentirão se tiverem medo. Não se trata de uma repressão
propriamente política, não se excitarão ânimos contra a
Monarquia. É, apenas, um castigo de Deus. Espalhar-se-á assim
o medo, é o que importa. O medo, mesmo que seja somente às
autoridades religiosas, é um freio, em si. (BRANDÃO, 1979, p.
41)
331
medo, servirá, neste contexto, para conter as ideias republicanas, perniciosas ao
poder religioso, já que se supõe a separação entre o poder de Estado e o poder
religioso, não havendo uma influência totalitária do segundo sobre o primeiro.
Neste cenário, a mulher do Governador preocupa-se com a tomada de
posição do Bispo – é que, se é através dele que o medo é imposto, o agente do
medo é a Igreja, o que leva à supremacia do poder religioso. Se o povo tiver
medo da Igreja, será a Igreja a sustentar o Rei e o papel do Governador não terá
impacto nenhum. O Rei passa a dever o seu poder ao Bispo.
MULHER DO GOVERNADOR
O Bispo pretende muito claramente obter a supremacia do poder
religioso. Espalha-se o medo, atemorizam-se os camponeses.
Mas como agente do medo impõe-se a Igreja. Ou antes, o Bispo,
que é o seu representante nesta diocese. E nós? Se é a Igreja que
o povo teme, será a Igreja que sustenta o Rei. O Governador
outro mérito não terá que ser supérfluo. Ao Bispo, e não ao seu
Governador, deverá El-Rei o apoio deste distrito. (BRANDÃO,
1979, p. 42)
Por esta altura, já está claro que há três forças em conflito: a do poder
executivo, a do poder religioso e a do povo (para já reduzido, controlado pelos
dois primeiros). Neste cenário, os dois primeiros disputam o exercício e a cara
do medo, encarando-o como uma ferramenta de controlo político e de
contenção de possíveis vontades populares: o seu agente será aquele que terá
uma maior capacidade de exercer o poder. Assim como assim, avança-se com
o auto de fé, em que António e Mécia, curandeira, são acusados de heresia,
332
superstição e fraude. Aqui, convém ainda referir que os carrascos se
identificam como “os representantes da autoridade. Os agentes da ordem.”
(BRANDÃO, 1979, p. 47). A autoridade representa-se, assim, de forma
directa, por aqueles cujo papel é executar quem a perturba, o que, em última
instância, significará que ter o poder significa ter o controlo não só sobre o que
pode ou não ser dito ou feito, mas também sobre quem pode ou não viver.
Enquanto Mécia é levada para a mata do Bispo, onde será queimada,
pergunta a um dos soldados que a acompanham quantas léguas a mata tem: “É
que ainda lá fica muita árvore para mais fogueiras. Hão-de queimar o povo
todo, ou então é o povo que os há-de queimar a eles.” (BRANDÃO, 1979, p.
47). Fica, desde logo, explícita a ideia de duas partes em conflito, sendo que
uma domina a outra, mas sugere-se que a correlação de forças pode ser
alterada. O que não pode acontecer é que ambos – poder e povo – vivam em
concomitância tranquilamente. Uma força terá sempre de sobrepôr-se à outra.
Por sua vez, os soldados também são apresentados como máquinas ao
serviço do poder executivo, cujas acções não têm de ser consonantes com as
posições – aliás, sugere-se que não devem ou podem sequer ter posições. Veja-
se este excerto:
1º SOLDADO
Cala-te. Não tens ordem de falar a caminho da fogueira.
MÉCIA
Se não te dessem a ti ordem de falar, que fazias?
1º SOLDADO
333
Não falava. (BRANDÃO, 1979, p. 47)
1º SOLDADO
Às vezes também a mim as ordens não me agradam.
MÉCIA
Então não as cumpras.
1º SOLDADO
Puniam-me!
MÉCIA
Então cumpre.
1º SOLDADO
Mas às vezes tenho vontade de não fazer o que mandam.
334
MÉCIA
Se não aprendes a pensar e a decidir-te por uma ou outra, vais ter
uma vida difícil. (BRANDÃO, 1979, p. 48)
1º CARRASCO
(Para o 1º Soldado:) Olha que ela sabe as falas do diabo.
Se lhe dás ouvidos vais também para a fogueira.
1º SOLDADO
Cala-te endemoninhada! Anda! Enganavas o povo! Não
tens ordem de falar! (Mais baixo:) não fales mais para
mim, mulher. Estão a ouvir-nos. O que eu te digo é que
sózinho tenho medo de desobedecer às ordens. (Mais alto:)
Anda, endemoninhada!” (Brandão, 1979: 49)
335
“BISPO
(…) o fogo a atear
será a enxada.
A semente é o medo.
A enxada o fogo.
Enterro-a neste solo,
refreio a ousadia
da gente, a quem não basta já
pedir.
O fogo ateia o medo,
ensina.
Temendo-o, o povo
não ousa mais
do que estender a mão à esmola. (BRANDÃO, 1979, p. 51)
336
a “choça”, palavra ambígua que tanto pode querer dizer “casa pobre” como
“prisão”, sendo que as duas podem aqui ser aplicadas, podendo, por isso, a
ambiguidade ter sido intencional. Para mais, o primeiro não gosta da vida de
camponês, mas o segundo gosta da vida de soldado. Inicia-se, então, o auto de
fé:
FREI SIMÃO
Auto de fé! Para que sirva de exemplo a todo o povo, às aldeias.
Temei a Deus e Deus será benfazejo. Quem do povo ofende o
povo, ofende a Deus. Auto de fé! Para exemplo no tempo
presente e futuro, António camponês e Mécia curandeira vão ser
punidos pelo fogo. (BRANDÃO, 1979, p. 54)
337
Castro, que deseja tomar pela força, de forma a resolver-se o litígio entre o
Governador do distrito e o Bispo da diocese sobre quem deverá usufruir das
taxas e dos impostos pagos pela vila. António segue em paz, sem condenação.
Este cerco da vila do Castro faz parte do conflito estabelecido entre o
governo e o bispado, que disputam as terras. Aliás, será pertinente reproduzir
aqui uma das epígrafes que precedem a obra de Fiama Hasse Pais Brandão (a
outra é uma citação de MacBeth, de Shakespeare), que é uma notícia publicada
no “Diário de Lisboa” no dia 25 de Janeiro de 1964:
Fiama Hasse Pais Brandão transpôs este acontecimento para a sua obra
338
literária: também aqui há uma disputa de terras entre o governo e a instituição
religiosa e também aqui a disputa ignora os interesses da maioria. Este
paralelismo com a notícia servirá até como o mote para o título da obra.
Apesar da disputa pela terra – neste caso, a terra da vila de Castro –,
estando o Bispo e o Governador às portas desta, o primeiro diz ao segundo que
sabe que ele pretende anular o seu prestígio e o seu poder; que, no que toca aos
camponeses, a vitória é dele; mas que há uma necessidade comum de lutar
contra o republicanos. Os representantes da vila, por sua vez, não abrem as
portas a nenhum. Abri-las-iam a ambos, mas ambos julgam ter o mesmo direito
e seria injusto abri-las a um e não ao outro. Assim, o povo mostra-se
indiferente à luta pelo poder, roga ao Governador e ao Bispo que decidam entre
eles e mostrando que, no conflito entre três forças, é aquela que se põe à
margem das disputas, não se identificando como agente social com
possibilidade e capacidade de assumir o poder: “pagar por pagar, a qualquer
um se paga. Assim, a voz do povo é que não lhe sobrecarreguem a pobreza
com tributos.” (BRANDÃO, 1979, p. 62).
Para “aquietar os ânimos” (BRANDÃO, 1979, p. 66) do povo, como a
própria mulher do Governador o diz, o Governador resolve que o Bispo deve
entregar a mata aos camponeses, que passarão a poder usá-la consoante
entenderem, em proveito próprio. Com esta oferta, espera-se que o povo se
esqueça da vila:
GOVERNADOR
O Bispo entregará a mata à população. Retalhem-na, façam
baldios, façam pastagens, recolham lenha, tudo o que quiserem!
É preciso fazer esquecer ao povo a vila do Castro. Esquecerá?
339
(BRANDÃO, 1979, p. 67)
BISPO
Entreguei-lhes a mata, que mais querem?
FREI LOURENÇO
Querem ser ricos. Só se vêem destes dizeres pelas paredes e
muros. (BRANDÃO, 1979, p. 69)
FREI LOURENÇO
Brigam e maldizem-se uns aos outros. Partilham assim a Mata.
BISPO
Melhor. Se entre si disputam, depõem por momentos a ira contra
as autoridades. A Mata fá-los esquecer o Castro, e mais, cria
desavenças. (BRANDÃO, 1979, p. 70)
340
73). À morte de um dos guardas pelas mãos do povo, conclui-se que é
necessário atemorizá-lo ainda mais. Na cena seguinte, os camponeses debatem
sobre esta morte: uns dizem que ninguém o devia ter matado, outros dizem que
deviam ter matado ainda mais e outros acham que legitimaram mais violência
por parte do governo.
2º CAMPONÊS
Danados já eles estão com os republicanos.
3º CAMPONESA
Dizem que a república é o Governo do povo.
3º CAMPONÊS
Tu, que és do povo, como é que queres mandar, se não matares
os guardas que são do Governo?
2º CAMPONÊS
São do Bispo.
3º CAMPONÊS
Para o caso é o mesmo. (BRANDÃO, 1979: 78/79)
341
possibilidade de punição, dirá ao Delegado que as mortes se deveram a traições
por parte daqueles que morreram:
1ª CAMPONESA
Que diremos ao Delegado?
2ª CAMPONESA
Que eram traidores o Bispo e o Governador.
1º CAMPONÊS
Que por isso os matámos! (BRANDÃO, 1979, p. 143)
O delegado acaba por dizer que o povo devia ter esperado pelo
julgamento dos magistrados, que, assim como assim, teriam considerado o
mesmo que consideraram os camponeses. Logo de seguida, muda de tom,
saudando os camponeses em nome do novo Governo:
DELEGADO
A vossa justiça deveria ter aguardado os magistrados. Por
traidores os julgaria o novo Governo. (Mudando de tom:) O novo
Governo envia-me a saudar os laboriosos camponeses deste
distrito! (BRANDÃO, 1979, p. 145)
342
2º CAMPONÊS
Que move as árvores e colhe os traidores nos seus palácios. Que
o povo tem muita força! Que o povo tem muita força!
(BRANDÃO, 1979, p. 146)
Ainda que se tenha acesso à data de proibição desta obra, não há registos
de qualquer parecer da PIDE, seja no arquivo pessoal de Fiama na PIDE, seja
nos arquivos da Direcção Geral dos Serviços de Espectáculo (onde
encontrámos apenas apenas a data referida). Contudo, após a análise da obra e
conhecendo nós o quadro político-ideológico do regime, assim como a forma
como a censura agia, para além do acesso a outros pareceres, as justificações
que motivaram esta proibição não são dificilmente adivinháveis.
Nesta obra, como defendemos nas páginas anteriores, denuncia-se o
poder religioso no Portugal do início do século XX, podendo estabelecer-se a
343
relação com um regime que usava a religião como um dos seus baluartes de
norteamento político e moral. Na acção, o povo emerge de um estado amorfo,
em que estava inconsciente de que podia ter poder, de um estado em que estava
bem enquadrado num papel social dependente e mudo, alheio aos mecanismos
de tomadas de decisões, ainda que estas influenciassem e decidissem as suas
vidas, e passa a ter noção do poder que tem quando age enquanto agente
colectivo. Desta forma, é ele que faz mover não só as árvores, parafraseando o
próprio título, mas também o estado do país.
A perversão do poder político-religiosa, aqui denunciada, era vivida na
monarquia, em que a acção começa, mas manifestava-se ainda claramente à
época do Estado Novo. Prova disso é a epígrafe que transcrevemos, notícia de
um acontecimento do Estado Novo, cujo conteúdo é o mote para a própria
peça, não havendo como escamotear a ligação – em paralelo – entre os dois
períodos. Ao mesmo tempo, a experiência fascizante, de poder vertical e
unilateral, paralelizava-se com a que existira antes da vitória republicana: as
vozes discordantes eram caladas e condenadas, o medo era a base de contenção
da vontade popular.
8.8. Conclusões
344
baseando-se na imposição do medo como ferramenta de controlo. Nestes
contextos, afirmar que “o povo tem muita força” é afirmar que este não tem de
estar submisso aos ditames alheios – tem nas suas mãos o poder de transtornar
o mundo como é conhecido, revolucionando as relações de força e, no mesmo
movimento, toda a estrutura social. Se em O Testamento cabe ao espectador
um papel crítico, em Quem move as árvores este papel cabe ao próprio povo,
apresentado enquanto sujeito colectivo: inicialmente, furtava-se à discussão
política; posteriormente, não só nela se imiscui como vence a disputa entre os
três poderes – executivo, religioso e popular –, contrariando grande parte do
curso da narrativa, em que os dois primeiros se limitavam a servir-se do
segundo, numa relação de forças que evidenciava o conflito, mostrando que
não há classes diferentes sem domínio.
A afirmação do povo enquanto força social contrastava com as
imposições do Estado Novo, contrariando a dominação e sugerindo que podia
romper-se com os pilares do regime, sugerindo, como fora feito com O
Testamento, que este tem o poder da sua própria libertação. Ao mesmo tempo,
a obra mostra o domínio de uma classe sobre a outra, contrariando a ideia que
o Estado Novo tentava disseminar, de que as classes podiam conviver
tranquilamente, trabalhando em conjunto para o bem-comum.
Mexendo, desta forma, com a ideia da inevitabilidade dos pilares do
Estado Novo, denunciando as contradições dos dois regimes, aqui
paralelizados, a produção simbólica de Fiama Hasse Pais Brandão mostra-nos
que, para a autora, teatro é militância. A sua produção literária é uma produção
política e ideológica e os mecanismos censórios do regime não podiam deixar
passar uma obra que tão claramente afrontava a política e a moral oficial.
345
9. Maria Teresa Horta
346
relevante na censura feita à autora, tentando activamente boicotar a sua carreira
literária.
Inicialmente, a autora publicava poemas em Suplementos Literários,
no “Diário de Lisboa”, onde foi jornalista, antes de sê-lo no jornal “A Capital”.
Iniciou a sua produção literária na década de sessenta, uma época em que a
literatura reflectia a busca da percepção do lugar dos seres humanos no mundo
e a busca pela liberdade, tendo publicado nove obras no decorrer dessa década.
A primeira, Espelho inicial, é já uma obra transgressora, desconstruindo a
identidade feminina. A obra da autora, extensa, que se divide entre poesia e
ficção, é essencialmente pautada pela temática do erotismo e pelo engajamento
político da autora. Nas duas dimensões, encontra-se uma: a luta contra o
patriarcado, pelos direitos das mulheres, reconhecendo-lhes o direito à
sexualidade e à participação política.
347
da história da literatura portuguesa ao valor da criação literária enquanto agente
de transformação sócio-cultural.
A intertextualidade é uma das características mais notáveis da sua
obra. Dedicaremos, num capítulo seguinte, um ponto à relação intertextual que
Novas Cartas Portuguesas tem com outras obras. Para além desta, existe ainda
Educação Sentimental (1975), que dialoga com a quase homónima obra de
Flaubert, L'Éducation Sentimentale (1869). No mesmo movimento, uma outra
obra dialogou com uma sua: Minha Senhora de Quê, de Ana Luísa Amaral,
publicada pela Quetzal Editores em 1990, que dialoga com Minha Senhora de
Mim.
A poesia de Maria Teresa Horta, iniciada em plena ditadura
salazarista, é mais do que poesia de resistência. É uma poesia de avanço. Não
se limita a resistir ao patriarcado, confinando-se a uma bandeira num canto.
Pelo contrário, desafia-o e traz no desafio a ameaça da sua extinção. Assim, a
poesia erótica de Maria Teresa Horta afronta o patriarcado e a moral do
fascismo – a mulher é dona de si, procura a independência, não se sujeita à
mão do homem. A estética literária é usada como forma de fazer política (note-
se ainda a descoberta formal de que se imbui Novas Cartas Portuguesas,
escrita a seis mãos, a que voltaremos em diante) e essa política feita não é mera
denúncia: ao invés de limitar-se a evidenciar as desigualdades de género,
subverte-as e recusa-as, reclama um lugar social para as mulheres. Assim,
Maria Teresa Hora não dá apenas voz à sexualidade das mulheres, antes as põe
como centro da relação sexual. Neste ponto, será de notar o tom imperativo
usado em tantos dos poemas, que também denotará a forma como a estética
literária se põe ao serviço de uma visão política e social do mundo.
A autora afrontou abertamente a ditadura, tendo tido de enfrentar as já
348
referidas tentativas de boicote à sua carreira literária por parte de Moreira
Baptista. A publicação de Minha Senhora de Mim trouxe-lhe graves
consequências, a que nos referiremos no ponto seguinte, e serviu ainda de mote
para a escrita de Novas Cartas Portuguesas, um dos grandes marcos das
políticas feministas no decorrer do Estado Novo, que contou ainda com uma
grande onda de apoio internacional. Graças à sua literatura, enfrentou
processos judiciais, não tendo acabado presa graças ao 25 de Abril de 1974.
Como se vê pelo mote da obra a três, a perseguição do Estado Novo, e social,
antes de demovê-la, estimulou-a. Usou a literatura como arma, pondo o poder
simbólico no centro da luta política que levou a cabo. Neste sentido, caberá
ainda referir novamente a antologia Novíssimo teatro português (1965)63, em
que a autora publicou a peça O delator, sobre a qual nos debruçaremos em
breve. Nesta peça de Horta, há um grupo de jovens revolucionários que
planeiam um ataque a um regime ditatorial. No decorrer da acção, suspeita-se
da existência de um delator entre eles, o que motiva a discussão sobre os
motivos revolucionários. O texto mereceu a atenção da PIDE, tendo sido
representado apenas duas vezes, no Bairro do Castelo, em Lisboa, por um
grupo de amadores. De resto, foi impedida de ir a cena.
Como vemos, Maria Teresa Horta usou a literatura não só para
desafiar os cânones literários (se aos homens se destinava a produção
simbólica, a eles se devia o cânone cultural), mas para afrontar uma ordem
social. A sua literatura exige um lugar no mundo, destrói a ordem simbólica
das estruturas da sociedade patriarcal. Por isso, Minha Senhora de Mim
63 Reprovado no dia 6 do Maio de 1965, o exemplar lido pela PIDE encontra-se todo agrafado à
excepção da peça de Fiama Hasse Pais Brandão, O Museu, que tem carimbos a dizer “Proibida”.
Este exemplar encontra-se na Torre do Tombo e corresponde ao processo 7841 dos Arquivos do
SNI da Direcção Geral dos Serviços de Espectáculos.
349
escandalizou a sociedade da época e Novas Cartas Portuguesas foi
vilipendiada pelo regime. Hoje, a primeira faz parte do Plano Nacional de
Leitura e a segunda foi alvo de um projecto de investigação científica,
intitulado “Novas Cartas Portuguesas 40 Anos Depois”, e debatida no colóquio
“Novas Cartas, Novas Cartografias: Re-configurando Diferenças no mundo
Globalizado”, que teve lugar na Universidade de Évora, entre 13 e 15 de Março
de 2014.
350
motivos revolucionários, o papel da revolução e o objectivo da revolução, para
além do papel do indivíduo, e das suas motivações individuais, dentro desta.
Jaime, uma das personagens, respondendo a Miguel, outra das personagens,
que afirma ter o direito de escolher com quem luta, afirma:
JAIME
Uma revolução não se faz por desporto, ou heroísmo, Miguel. Na
revolução, cada um de nós só conta num conjunto, nunca
individualmente. Não se faz o que gostamos, mas o que for
melhor para essa revolução. Queres a liberdade, a razão, o direito,
apenas para ti?
(HORTA, s/d, p. 109)
De facto, Miguel, que vem a ser confirmado como delator, está nos
planos revolucionários por amor a Inês, que simboliza a abnegação dos
projectos revolucionários, desejando afastá-la de Raimundo. Quando lhe
sugere fugirem os dois do país para “um sítio onde não sejam precisas
revoluções” (HORTA, s/d, p. 127), esta enfurece-se:
INÊS
(gritando) Eu não quero revoluções para me entreter, nem
colaboro com elas por obrigação, amo-as neste país, agora,
porque há homens que precisam delas, aqui. Apenas uma e tudo
poderia ser diferente... não as provoco sem serem necessárias
nem fujo quando é necessário lutar!” (HORTA, s/d, p. 127)
351
necessidade da revolução para benefício de um povo inteiro, enquanto
necessidade histórica de milhares, como ainda mostra que esta não pode ser
instrumentalizada, que os interesses individuais não podem sobrepor-se aos
colectivos nem podem comprometê-los. A traição à revolução, esta
sobreposição dos interesses individuais aos colectivos, é apresentada como
pérfido, egoísta, auto-centrado, imoral. No final, com a traição de Miguel, a
revolução fica comprometida, comprometendo-se o futuro de milhares de
pessoas. No mesmo movimento, o seu intento não é cumprido: Inês não lhe
perdoa a traição, vira-lhe as costas.
352
frequentes certas agitações sociais. Nestes termos, se bem que
considere melhor, a leitura desta peça por outro membro da
Comissão, julgo que será melhor reprová-la.
MIGUEL
Mas então porque não me impedes quanto te beijo?
(Começa a desapertar-lhe o fato.)
MIGUEL
Abre-se como uma concha, assim... quero-te totalmente nua...
(O fato cai, beija-a nos ombros e leva-a para cima
do sofá, acariciando-a nos seios.)
353
LISBOA
Espera Deferimento
Pel'A Direcção
José da Conceição
(Vice-Presidente)
1842/64/CV
Exmo. Senhor
Delegado da Inspecção dos Espectáculos
GRANDOLA
354
Maria Teresa Horta, pelo que a referida peça não pode ser
representada.
Junto devolvem-se dois selos fiscais de 5$00 por desnecessários.
A Bem da Nação
O INSPECTOR CHEFE
355
“nitidamente marxista”, daí que não seja inesperado que a obra tenha contado
com dupla proibição – a do guião e a do livro Novíssimo Teatro Português.
Assim, a obra foi levada a cena apenas duas vezes por um grupo de amadores
no Bairro do Castelo, em Lisboa, no ano de 1964. Eram acções pequenas, de
subversão e de marcação de uma arte viva, ligada ao seu tempo, com potencial
de questionar, de entrar em conflito, de subverter, de se renovar a si mesma e
ao mundo. É Bernardo Santareno quem diz, numa nota que precede as peças de
teatros que compõem o volume Novíssimo Teatro Português, que “uma peça
tem de ser conflito – claro e escuro, belo e feio, verdade e mentira, natural e
monstruoso” (Santareno, 1965: 7). A arte teatral devia, assim, estar enraizada
na realidade, ter a coragem de olhar para ela e sair dela, dirigindo-se
novamente a ela enquanto obra calibrada que incluía, na sua formulação, uma
análise do mundo em que estava já imiscuida uma proposta de mundo.
As proibições da PIDE terão confinado esta peça à quase total
invisibilidade. Contudo, os textos tiveram uma recepção diferente, motivando
debates sobre a produção teatral portuguesa da altura, já que vários críticos se
debruçaram sobre a obra, tanto em tom elogioso como identificando falhas.
Na edição do “Jornal de Letras e Artes” de 31 de Janeiro de 1962,
discutem-se os motivos revolucionários dos textos. Artur Ramos considera que,
nas cinco peças, há uma constante: “uma ácida tentativa de ataque a um
determinado regime de vida.” A peça de Horta, individualmente, parece-lhe
“um esboço imperfeito de uma peça grande”. Paulo Renato, por sua vez,
considera o seguinte:
356
assumindo formas diversas em cada peça. Todavia, julgo que
essa revolução é um mero acessório, porque qualquer das peças
poderia existir, tal como é, sem a revolução. Não sei se o
ambiente revolucionário em que as peças decorrem foi escolhido
premeditamente ou por acaso. Por exemplo “O Delator”, de
Maria Teresa Horta, surge-me mais como uma peça de
tendências românticas, em que se pretende desculpar um
denunciante, do que um texto revolucionário. Denunciantes tanto
aparecem em revoluções como em assembleias gerais.
De seguida, Maria Teresa Horta concorda com esta posição: “Com certeza”.
No entanto, a ideia da revolução não nos parece somente uma ideia condutora
da narrativa, mas uma ideia que lhe é central. A peça terá tendências
românticas, é certo, na medida em que a própria revolução é usada e
manipulada em prol de uma ideia de amor, mas esse amor acaba por ser
menosprezado por ser pernicioso às tentativas de acções revolucionárias. Ao
longo de toda a peça, a revolução é apresentada como algo superior às
vontades individuais e, portanto, às vidas e desejos privados. Paulo Renato
pergunta-se se as peças desta obra pretendem demonstrar uma tese ou se a
revolução é apenas o ambiente em que decorrem e parece-nos, pelo papel que a
ideia de delação ocupa enquanto fio condutor da narrativa, que os elementos
relacionados com a revolução são elementos internos da narrativa, e não
apenas condutores. Afinal, finda a leitura, o debate que se faz é precisamente
sobre revolução e sobre o papel de cada pessoa dentro dela.
António Quadros, num artigo publicado no dia 3 de Maio de 1962, no
“Diário Popular”, considera que, do conjunto da antologia, a peça de Horta é a
357
que se encontra mais próxima de um ritmo teatral comunicável imediatamente
ao público. De todas as peças, seria a que procurava menos a originalidade,
mas seria, ao mesmo tempo, a que vinculava uma ideia mais clara, tendo
personagens com verosimilhança psicológica.
Urbano Tavares Rodrigues, por sua vez, num artigo publicado no
“Jornal de Letras”, no dia 13 de Junho de 1962, analisa as peças do ponto de
vista do seu potencial de renovar e transformar: “tal transformação pode ser ao
nível social e moral: a transformação de uma mentalidade, a de uma concepção
da vida ou da sensibilidade, da forma como se vêem, como se recebem e se
julgam sensorialmente as coisas. E isto significa mudança de estilo”. Talvez
isto se entrelace com a necessidade de um teatro que reflicta a realidade a que
Bernardo Santareno se refere no seu apelo, um teatro que fosse, em simultâneo,
denúncia e esperança político-social (Santareno, s/d: 7): um teatro, por isso,
que tivesse na sua formulação, imbuída de mundo, uma reacção e uma resposta
a esse mundo. Também Dórdio Guimarães, num artigo publicado no “Diário
Popular”, em 12 de Julho de 1962, vem dizer que “No autor é que nasce o
teatro, na sua concepção de um conflito.” Desta forma, o teatro seria a
transposição de um desconcerto social e/ou político para a obra artística.
O delator, de Maria Teresa Horta, sofrendo dupla censura pelo regime,
teve, assim, parcas representações, não tendo sido recuperado após o término
da ditadura, mas obtendo, na altura da publicação de Novíssimo Teatro
Português, críticas de alguns dos nomes mais avisados da cultura portuguesa
de então, particularmente literária. A obra também não contou com edições
posteriores, encontrando-se para venda apenas em alfarrabistas, regra geral
especializados em obras raras da literatura portuguesa.
358
9.4. Minha Senhora de Mim (1971)
359
Assim, ao alterar a relação entre os sexos da forma como o Estado Novo a
preconizava, instalava um novo modelo de estrutura social, ou sugeria-o,
desafiando a moral instituída. A moral do fascismo, ao mesmo tempo, era
afrontada pela independência e pela liberdade das mulheres – estas seriam
donas de si, não se confinando ao quadro de dominação em que o Estado Novo
as arrumava. Assim, contra a dominação patriarcal, apresentada como prática
política do regime, Maria Teresa Horta, através da produção simbólica
geralmente atribuída aos homens, reclamou para si e para as outras mulheres
um lugar social. Ao mesmo tempo, Minha Senhora de Mim, pelas pontes que
faz, evidencia o patriarcado enquanto base da cultura ocidental. Afinal, traz
para o seu tempo a Idade Média, com a tradição literária que esta acarreta, que
se mostra nas cantigas.
Nos poemas de Minha Senhora de Mim, a novidade não está apenas
em dar-se voz à sexualidade das mulheres, mas no tom imperativo que é usado
nos poemas, pondo-se a mulher a comandar a acção, dizendo ao homem o que
deve fazer para agradar-lhe. Para além disso, é a mulher quem toma a iniciativa
e chega a descrever como agradar ao parceiro. O sexo torna-se numa busca
pelo prazer, esvazia-se do seu carácter procriador ou, ao reclamar o prazer para
a mulher, de uma relação de poder do homem sobre a mulher. Recorde-se que,
à época, Portugal estava tolhido por uma moral católica: ainda que o prazer
masculino fosse permitido ou socialmente aceite, o da mulher, por motivos de
moral imposta ou religiosos, não o era. A vida pública regia-se pela ideia de
que as mulheres deviam reger-se por um espírito de sacrifício, e que este devia
verificar-se também no sexo. Por isso, a mulher devia estar subjugada. Foi
contra isto que Maria Teresa Horta criou uma voz de comando feminina, uma
voz que ordena e orienta. Com ela, precisa, incisiva, a procura pelo prazer
360
sexual é clara, indisfarçada, indisfarçável.
O poema “O meu desejo” trará essa buscar de forma clara. Note-se:
361
que eu sinta de ti a queimadura
e a tua mordedura nos meus rins
ignorada e perdida
ou nos meus seios
entornada
Em retorno da partida
amigo de sua amada
362
Com meu ventre e sua espada
(HORTA, 1971, p. 24)
Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito
pois suspeitas
É a raiva
363
então ciúme
a tua boca
é dor e não
queixume
a tua espada
é vício as palavras
com que falas
E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse
E queres-me de amor
e dás-me o tempo
a trégua
a entrega
e o disfarce
364
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes
Despertas-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo
e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vais descobrindo vales
(HORTA, 1971, p. 86/87/88)
365
desperta-a até que ela, saindo “do sono/onde resvala [resvalo]”, repila a noite.
O homem, por sua vez, terá o que almeja desde o início, ainda que contra os
desejos da mulher: “vais descobrindo vales”.
Maria Teresa Horta traz, assim, para a poesia, um novo sujeito poético
– só rompendo com a tradição literária podia romper-se com a condição da
subjugação das mulheres, até porque a primeira compactuava com o silêncio,
anulava sujeitos. Até que aquelas que pareciam trazer sujeitos novos – as
cantigas de amigo – eram, na verdade, escritas por homens, e eram portanto
estes quem moldava, na tradição literária, as relações afectivas e sexuais. Os
poemas que compõem este livro são, portanto, veículos de actos políticos
indispensáveis: afinal, eles mesmos são actos políticos, é a apropriação da
linguagem que funciona como desafio ao instituído.
Minha Senhora de Mim foi o nono livro de poesia que Maria Teresa
Horta publicou. À época da sua publicação, a autora já contava com o olhar
atento da PIDE. Aliás, na ficha desta polícia política, que se encontra na Torre
do Tombo, já se encontra um documento em que se pede informações sobre a
autora, que data do início de 1967:
RELATÓRIO
366
à Conservatória da Propriedade Literária – Biblioteca Nacional
de Lisboa. Número do Bilhete de Identidade se possível.
367
estando alguns dos autos respeitantes acessíveis no processo de Maria Teresa
Horta, na Torre do Tombo. O auto do dia 14 de Junho de 1971 informa sobre a
apreensão da obra numa livraria em Setúbal, tendo ainda uma nota à mão que
diz “Devolveram 75 exemplares e os outros venderam-nos”:
AUTO DE APREENSÃO
368
dactilografei e revi.
Excelentíssimo Senhor
A BEM DA NAÇÃO
369
INFORMAÇÃO
Excelentíssimo Senhor
O Agente de 2ª cl.
José Cláudio Conceição Foz
9.5. Conclusões
370
a à quase total invisibilidade. Contudo, os textos fixados na antologia tiveram
uma recepção diferente, tendo conseguido motivar debates sobre a produção
teatral portuguesa então coetânea.
Minha Senhora de Mim, ao trazer para a literatura um novo modelo de
relações entre sexos e ao reclamar para as mulheres o direito ao prazer sexual,
trazia já no seu cerne uma nova formulação social, rejeitando a moral que o
Estado Novo impunha. Claro, o regime, pouco afeito a contradições, fez o que
pôde para apagar o livro da vida pública: não só o proibiu e apreendeu como
ainda intimidou quem o publicou de forma a poder boicotar a carreira literária
da autora.
O discurso libertador de Maria Teresa Horta incomodou o poder
instituído, que teve necessidade de vilipendiar a obra da autora: esta, afinal,
ofenderia “a moral tradicional da nação” e tudo o que o fazia era visto como
herético. Assim como assim, a acção da PIDE, por muito violenta e
persecutória que tenha sido, não conseguiu apagar Minha Senhora de Mim da
vida pública. A obra viria a contar com uma edição da Editorial Futuro, em
1974, ou seja, logo após o término da ditadura, e viria ainda a ser republicada
décadas mais tarde, pela Gótica, em 2001, e pela LeYa/ Dom Quixote, em
2015. No ano de 1990, Ana Luísa Amaral escreveu Minha Senhora de Quê,
que, pelo seu carácter intertextual, dialoga com a obra de Maria Teresa Horta,
mantendo-a viva. Para além disso, a obra faz parte do Plano Nacional de
Leitura (PNL) desde o ano lectivo de 2016/2017 64, chegando assim às novas
gerações de estudantes e leitores.
Ocupando um lugar no sistema de ensino português, a obra não só
64 A obra Poemas para Leonor também está integrada no PNL, com recomendação para o Ensino
Secundário.
371
sobreviveu à ditadura como garantiu o seu lugar no cânone. O facto de Maria
Teresa Horta não ter deixado de ter uma produção literária intensa e de
excelente qualidade, aliada ao facto de ser uma das figuras mais proeminentes
da cultura portuguesa, ajuda a que as obras que a PIDE proibiu não tenham
caído no esquecimento.
372
10. Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno
373
regime ditatorial em vigor. O processo judicial que se seguiu a esta publicação
– que revelava que a censura de Marcelo Caetano não divergia muito da de
António de Oliveira Salazar –, e de acordo com o qual a obra era pornográfica
e atentatória da moral pública, levou as autoras a interrogatórios da PIDE/DGS
separadamente. A obra, escrita a seis mãos, desafiava as noções de autoria,
uma vez que não se sabia quem tinha escrito cada fragmento textual. Assim,
nos interrogatórios, tentou saber-se quem tinha escrito o quê, embora as autoras
– até hoje – nunca o tenham revelado. O julgamento começou a 25 de Outubro
de 1973 e só não teve lugar, após alguns adiamentos, por se ter dado o 25 de
Abril de 1974, que marcava o término do regime ditatorial.
O impacto que a obra teve pode ser entendido se tivermos em conta as
suas condições de produção. O livro, escrito por três mulheres, denunciava as
opressões de classe, o pântano da guerra colonial e a situação das mulheres,
numa época em que o Estado Novo, com a sua polícia política, condenava tudo
o que se lhe opunha ou o condenava. Mais: ameaçava perpetuar-se com o
indefectível apoio das classes dominantes, uma vez que continuava a estender-
se até nas fases de crise.
Assim, o livro teve uma uma recepção internacional ímpar: motivou,
na 1ª Conferência Feminista Internacional (Cambridge, de 1 a 4 de Junho de
1973), a primeira acção feminista internacional (TAVARES, 2011, p. 183),
passou por traduções rápidas em vários países ocidentais, tendo uma enorme
repercussão junto de figuras ligadas ao movimento feminista, como Doris
Lessing, Jean-Paul Sartre, Marguerite Duras, Simone de Beauvoir e Christiane
Rochefort. Aliás, as autoras contrabandearam o livro para França,
endereçando-o aos editores destas três últimas. As “três Marias”, como viriam
a ficar conhecidas internacionalmente, viram, assim, a sua obra tornar-se num
374
caso mediático. Não é de somenos: uma obra tão manifestamente contra a
ideologia vigente, denunciando as inúmeras opressões do regime ditatorial, não
teria como não abanar o status quo.
Em Portugal, a obra teve a sua segunda edição no ano em que a
ditadura caiu (Futura, 1974), vindo a ter mais quatro nas décadas posteriores
(Moraes Editores, 1980; Dom Quixote, 1998; Dom Quixote, 2001; Dom
Quixote, 2010).
375
Isabel Barreno levou para o almoço a primeira carta. A partir daí, decidiram
avançar para a redacção da obra. Logo no início, havia três regras: cada uma
escreveria cinco cartas, haveria liberdade absoluta e tudo seria assinado pelas
três. Esta última terá particular relevância, uma vez que foi uma experiência
inédita no mundo, já que, até então, ainda que vários autores pudessem juntar-
se para escreverem livros, cada um assumia os seus textos. O resultado da
experiência foi aquilo a que Isabel de Jesus chamou perturbada recepção
(JESUS, 2012, p. 44).
Composta por cartas, em prosa e em poesia, pequenos contos,
monólogos, ensaios e uma transcrição do Código Penal Português, a obra
apresenta uma miríade de personagens diversas que permitiu às autoras
fazerem um retrato abrangente da condição feminina em Portugal no decorrer
do Estado Novo e, concomitantemente, das relações pessoais e políticas que
estruturavam a sociedade portuguesa. Tocando em temas tabu para a
sociedade, como a guerra colonial ou a sexualidade feminina, o livro rompia
com barreiras estabelecidas pela política e pela moral do regime salazarista,
utilizando inúmeros artifícios literários e dando voz a personagens diversas,
colocando as discriminações de género no centro da narrativa, e isto num
contexto em que, legalmente, as mulheres não viam reconhecidos os mesmos
direitos que os homens. Com retratos de mulheres vítimas de violações pelo
próprio pai (conto “O PAI”), acostumadas à sua própria dominação, de
mulheres enclausuradas em conventos contra a sua vontade (e aqui é ainda
mais evidente a ponte com Cartas Portuguesas) ou de mulheres que se
recusam a permanecer num lugar de subjugação, decidindo-se a não cederem
mais (“A luta”), as autoras criaram uma obra impactante que confronta quem a
lê com as contradições de uma sociedade. Ao exporem as injustiças de forma
376
tão clara, incluem já, através da formulação literária, a proposta de um mundo
diferente, uma vez que desnaturalizam as desigualdades de género.
Para levarem a cabo este projecto literário, as autoras aliaram a
capacidade analítica ao exercício estético e incluíram o elemento social na
estrutura interna da obra, fazendo da própria escrita um acto social. O acto
culminou numa obra literária impactante, com força material, que lhes permitiu
ainda resgatar a recepção enquanto experiência. Nos pontos seguintes, veremos
como.
A obra é ainda a procura, e o alcance, de uma forma literária capaz de
marcar a experiência de se ser mulher durante o Estado Novo. Com uma
panóplia de personagens que vão desde aquelas acostumadas à sua dominação
àquelas que a recusam, as autoras, entre outras coisas, traçaram um retrato
panorâmico da condição feminina à época, que incluía ainda um olhar sobre o
passado e uma nova proposta de futuro.
Tendo como símbolo a mulher enclausurada, a obra desenvolve-se
principalmente de forma epistolar, tornando análogas as situações das mulheres
ao longo dos tempos e expondo, assim, as discriminações sofridas pelas
mulheres no tempo coevo. Para além disso, o livro foca-se noutras relações de
poderes reais e simbólicos da sociedade portuguesa, denunciando ainda os
traumas provocados pela guerra colonial e das marcas estruturantes que esta
deixou na sociedade portuguesa.
Uma vez escrita a obra, muitos editores rejeitaram publicá-la, também
por temerem a PIDE. No entanto, a Estúdios Cor, pela mão de Natália Correia,
aceitou-a de imediato:
377
ameaçando que, se o livro não fosse publicado, sairia. Fomos
depois as três processadas, a Estúdios Cor e a Natália Correia
enquanto directora literária. Em tribunal ela disse que não estava
minimamente arrependida, que se tratava de um belo livro e que
voltaria a editá-lo as vezes que fossem necessárias. Foi das
primeiras pessoas a dar o seu depoimento em julgamento.
(COSTA, 2006, p. 139)
378
masculino que se arrogava o direito de decidir o que às mulheres
convinha ou servia, para que servidos eles fossem. (JESUS, 2012,
p. 44)
Mesmo hoje, volvidas décadas, esta obra tem actualidade, pela forma
como desestabiliza relações de poder, sejam exercidas no campo
público/político ou no campo privado e individual. É nesse sentido que a obra,
até por suscitar discussões actuais, é uma obra que fez data, ao invés de ser
datada (JESUS, 2012, p. 44).
379
varia entre prosa e poesia. Assim, as nove cartas são interrompidas por poemas,
ensaios e outros textos, de difícil catalogação, subvertendo a regra que
costumava nortear a correspondência epistolar. A leitura da obra fará com que
derivem os leitores da mesma forma que o fizeram as autoras, sem indicações
autorais e sem um género fixo.
Apesar disto, os textos, não assinados, obedecem a um princípio
orgânico que o hibridismo textual é capaz de disfarçar:
380
terceiro, Isabel Barreno põe personagens femininas no centro da narrativa,
recuperando-as enquanto sujeitos históricos.
Ao mesmo tempo, as autoras nunca esconderam que a sua obra
dialogava com aquela que Claude Barbin publicara anos antes. Aliás, o próprio
título já impede que se fuja à obra cuja autoria, ainda que contestada por muito
tempo, se tem atribuído a Gabriel de Guilleragues (1628-1685) (GREEN,
1926; SPITZER, 1953; ROUGEOT, 1961; DELOFFRE, 1962). Ainda assim,
há edições que a atribuem à própria Soror Mariana Alcoforado. Tendo as cartas
sido assinadas com este nome, Mariana Alcoforado não foi vista como uma
personagem literária, mas antes como a autora dos próprios textos, que, assim,
eram vistos não como ficção mas como documentos históricos.
O livro de que as três Marias partiram consiste em cinco cartas de
amor dirigidas por Mariana ao Marquês Noël Bouton de Chamilly, Conde de
Saint-Léger e oficial francês, e tornou-se num clássico da literatura mundial.
Exacerbada, exagerada, não raras vezes desesperada, a obra, escrita numa
época marcada pelo barroco na arte, apresenta já algumas característica que
viriam a marcar o estilo romântico.
O diálogo de Novas Cartas Portuguesas com Cartas Portuguesas é
iniciado no título, ao mesmo tempo que a nota que acompanha o título, ainda
antes da “Primeira Carta I”, evidencia o diálogo intertextual com obras das três
autoras:
(ou de como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu
dos
381
outros legítimos superiores) (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 1)
382
Sendo assuntos como a violência doméstica, à altura, do foro
exclusivamente privado, a obra contribuiu para que fossem alvos de discussão
pública, transformando-as, portanto, em assuntos políticos. Assim, as relações
de poder, que naturalizavam as opressões de género, eram questionadas
abertamente, ao mesmo tempo que as autoras desconstruíam a naturalização da
violência machista, combatendo a impunidade e tendo sempre em conta as
outras relações de poder na sociedade (por exemplo, as de classe).
A naturalização das relações de poder, tão conveniente às classes
dominantes, uma vez que dizima a legitimidade das forças que se lhe opõem,
será um dos grandes entraves à alteração de relações de forças sociais. Contra
isto, a acção dos movimentos feministas permitiu que a violência doméstica
tenha passado a ser entendida como um problema social, garantindo, assim, a
possibilidade de que fosse enfrentada. Em Novas Cartas Portuguesas, são
vários os casos que mostram que a condição das mulheres não derivava de uma
condição natural, mas política, ao contrário do apregoado pelo Estado Novo,
que tentava atribuir características biológicas a cada um dos sexos, definindo,
dessa forma, o lugar social de cada um.
Assim, faremos aqui referência a textos de Novas Cartas Portuguesas
que ilustram a luta que este livro também representou, para além do seu valor
estritamente literário, encarando-os como propostas de vida e denúncias de
vidas possíveis.
Em “O PAI”, um pequeno conto de duas páginas, vemos aquela que
será uma das mais perturbadoras cenas deste livro: a violação de uma mulher
(menina?) pelo próprio pai. Ao escrevê-la, as autoras não desculparam o
culpado nem fizeram da vítima heroína, que aqui aparece a desempenhar um
papel submisso, assumindo o papel que lhe está destinado por um princípio
383
simbólico que é conhecido por dominantes e dominados (BOURDIEU, 2012,
p. 8). Mesmo tendo consciência de que a relação sexual que entre os dois se
estabelece é contra a vontade dela, ou não necessitaria de calá-la (“Curva-se
quando ela acorda e tapa-lhe a boca com força, br ut al” in
BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 130), o homem considera que a
culpada é a filha, que “Era perversa: tinha um riso liberto, sedento, e uma
maneira envolvente de olhar os outros; um odor enlouquecido a entreabrir-se
aos poucos, como um fruto, obsessivo: obsessivamente, obsessivamente”
(BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 130). Viola-a, porque, afinal, ela
“andava em casa com as blusas desabotoadas” (BARRENO/HORTA/COSTA,
2010, p. 129) e, no dia seguinte a tê-la violado, diz-lhe que tem de abandonar a
casa:
Mariana, a filha, assume a culpa: “Claro que sou uma puta, podes estar
tranquilo, pai, sou uma puta.” (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 130).
Como se vê, a mulher é apresentada como um ser imoral, isentando o agressor,
e também ela, ainda que tendo consciência de que a relação sexual se
384
desenvolveu contra a sua vontade, assume a responsabilidade.
O desenrolar da narrativa não será ainda de somenos: com uma carga
erótica que se vai adensando de parágrafo para parágrafo, a acção culmina na
rejeição de ambos os pais, que culpam a filha pela violação, e na consequente
expulsão da casa. Termina com um insulto que a mãe dirige à filha: “Grande
cabra” (BARRENO/HORTA/COSTA , 2010, p. 130).
O “Texto sobre a solidão”, outra curta narrativa, descreve uma cena
em que a relação sexual é utilizada como mera manobra de subjugação:
Mónica, que se debate, “todavia imóvel, hirta” (BARRENO/HORTA/COSTA,
2010, p. 191), vê-se forçada a manter relações sexuais com um homem que não
ignora o horror que lhe provoca. Aliás, é nesse horror que se faz a sua
excitação sexual: “Gosto que tenhas nojo mas que venhas comigo para a cama”
(BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 191), pensará ele. Dessa forma, o seu
prazer sexual contará como vitória sua, como subjugação dela: “se veio de
novo a vingar-se dela; lambuzando-lhe com o sexo, em seguida, a boca cerrada
a dar-lhe a conhecer o gosto da sua vitória.” (BARRENO/HORTA/COSTA,
2010, p. 193). Esta visão estará de acordo com a de Bourdieu, que interpreta a
relação sexual como uma relação social de dominação, construída através do
princípio de divisão entre o masculino, activo, e o feminino, passivo. Este
princípio dirigirá o desejo masculino como desejo de posse e o feminino como
desejo de dominação masculina, aliando-se aqui a dominação e a subordinação
erotizadas, passando mesmo a haver um reconhecimento erotizado da
dominação (BOURDIEU, 2012, p. 31). Assim, neste texto, o gosto do homem
na subjugação feminina prova o desejo de posse e a necessidade de assumpção
de poder. Desta forma, o poder assume a figura da subjugação física da mulher.
O texto “Carta de D. Joana de Vasconcelos para Mariana Alcoforado
385
freira no Convento de Nossa Senhora da Conceição em Beja”, para além do
seu carácter intertextual, já referido, com Cartas Portuguesas, permite que se
faça referência à falta de liberdade que as mulheres tinham para decidirem os
seus destinos, consequência da dominação patriarcal, que tinha o poder de
decidir sobre elas. Assim, Mariana, encarcerada num convento contra a sua
vontade, será invejada por Joana, casada contra a vontade com um homem que
não quer: “Antes aprouvera a meus pais me darem hábito tal como a ti,
Mariana; monja me agradaria mais ser que mulher odiando seu marido e tão
vulnerável, tão ansiosa, tão sequiosa de amor.” (
BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 135). Assim, contra a clausura do
convento, Joana contrapõe a forma como o marido usava o seu corpo contra a
sua vontade: “Sabes tu o que é sermos tomadas nuas por mãos apressadas e
bocas moles de cuspo? O corpo dilacerado por membro estranho, escaldante, a
magoa sobretudo a alma?” (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 135).
Posteriormente, na resposta de Mariana Alcoforado a Joana, esta vai dizer-lhe
que preferia a sua reclusão: “(...) de bom grado me casaria com quem meus
pais escolhessem e mesmo repugnada me daria, embora isso, sei, fosse uma
infância, a homem a quem eles me vendessem. Tudo faria, Joana, a fim de me
libertar deste convento onde sufoco e endoideço, dia após dia lentamente.”
(BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 144). Consciente da clausura de ume e
de outra, vai ainda reflectir sobre o papel da mulher na sociedade, ao mesmo
tempo que se encontra feliz por Joana, estéril, não estar condenada ao papel de
mãe a que está simbolicamente destinada:
386
domínio, terra onde se pernoita e semeia. - Vingança é tua
esterilidade, desforra; por ela te negas a ser utilizada: mãe te
tornando de homem ou mulher gerados por marido que odeias.
Fêmea para dar crias: filho varão que siga a casta, em montada e
nome do pai... a isso te recusas pelo útero, em tua revolta, Joana,
e abençoada sejas! (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 145).
387
pena, o homem pode-se revoltar sempre que quer mas a mulher está presa a
eles, a um filho e depois? Que o meu António no fundo até não é mau, não
senhora, e é o pai do meu Antoninho, pobrezinho, tão fraquinho me saiu do
corpo...” (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 164). Esta será, assim, uma
representação de um caso em que a mulher não se reivindica como sujeito por
estar simbolicamente destinada à resignação e à submissão.
Com esta cena, as autoras tiraram a violência doméstica dos confins da
vida privada, inacessível pela política pública (só no ano 2007, contudo, ela
passaria a ser considerada crime público em Portugal), escancarando as portas
que davam acesso à política dentro da casa, num avanço feminista que
desconstruía a naturalização da violência machista.
O texto “O Cárcere”, por sua vez, apresenta uma personagem
habituada à violência que sofre. Aliás, a personagem, sem nome, chega até a
ver essa violência como inevitável, independente do que quer que fizesse,
constitutiva daquela relação. Assim, à entrada do marido em casa, percebe-lhe
“o olhar mau dos dias em que choviam novas acusações, novas suspeitas,
renovadas injúrias.” (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 169). A partir daí,
fica claro que a personagem não terá salvação, que a violência que dali advirá
não terá justificação naquilo que fizer ou não. É por esse motivo que diz
“porquê contar pormenores e suas sequências, tudo foi provocação, táctica de
extrair o pretexto do seu silêncio” (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p.
170), uma vez que ele continuava “buscando o mínimo pretexto que lhe
permitisse passar ao ataque, à brutalidade” (BARRENO/HORTA/COSTA, p.
170). Daí que seja dito que “o que foi seu [da mulher] gesto ou sua resposta
não interessa” (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 170), uma vez que,
assim como assim, ele passaria ao ataque. E assim o fez: “ele saltou do catre
388
com as suas botas pesadas, e começou a dar-lhe pontapés meticulosamente,
primeiro nas canelas, depois nas coxas, depois no sexo, as botas subindo
sempre, à medida que o seu corpo se dobrava, se curvava, se enrodilhava”
(BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 170).
No final, a vítima lembra-se de que quando José, o marido agressor,
fora preso, “todos eles tinham protestado então, com alarido e com ódio aos
polícias, e viera mesmo um senhor com um papel para se assinar o nome a
protestar” ( BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 171). Nota ainda que, por
ela, “não há papéis nem zangas”. Por que a tratará ele assim, a ela, que lhe coze
as batatas, lhe trata da roupa e lhe pariu os seis filhos?
(BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 171).
Cabe, aqui, fazer duas notas sobre este texto. A primeira diz respeito à
mobilização em torno da pessoa sobre a qual a violência é exercida: Maria nota
que, quando José fora vítima – neste caso, da polícia –, tinha havido
mobilização para que sobre ele não fossem cometidas injustiças ou violências;
por ela, contudo, ninguém se mobiliza, sofre violência em silêncio – uma
violência naturalizada, portanto – e a sua condição não choca ninguém. A
segunda nota refere-se à confusão da personagem, que não entende como pode
ser mal tratada, se cozinha, trata da roupa e dá à luz. Ou seja, considerando que
cumpre o seu papel de mulher – esposa, empregada doméstica e mãe –, não
pode haver motivos para a violência. A confusão deixa em aberto a sua
perspectiva sobre potencial violência sobre quem não cumpre estes papéis,
sendo claro que se conforma com o seu papel submisso, assumindo-o como
natural e contribuindo para a sua própria dominação.
Finalmente, fazemos ainda uma referência ao texto “A Luta”. Ao
contrários dos textos anteriores, neste há uma recusa da submissão: Maria,
389
também vítima de violência doméstica, abandona o marido, António, decidida
a não mais ceder. Assim, “corre sem ver para onde, sem saber se ele a
persegue a fim de a tentar levar para casa” (BARRENO/HORTA/COSTA,
2010, p. 231). Sem olhar para trás, a decisão está tomada: não mais cederá às
súplicas, às ameaças, à ternura ou à tortura física. António, por sua vez, não
aceitará a decisão: diz a sua ameaça num tom que quase parece uma jura de
amor: “Tudo hei-de fazer para que voltes” (BARRENO/HORTA/COSTA,
2010, p. 232). Nesse tom, que é já a ameaça de violência, tenta agrupar a
agressão com o amor: “Não penses que me vingo. Sabes que te amo. Somente
agora os gestos são diferentes e outros os processos de to demonstrar.”
(BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 232). A violência que exerce será,
assim, um gesto diferente, um outro processo de demonstrar amor. Refere-se
ainda ao poder que terá sobre ela, dizendo que nunca a obrigou “a alguma coisa
mais do que seria normal exigir um homem de uma mulher”, tendo somente
empregado “os direitos (que me são devidos) sobre minha mulher”
(BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 233). Ou seja, a mulher aparece como
propriedade do homem, sobre a qual o homem pode exercer os direitos que
entender, fruto de uma relação de forças que objectifica e hierarquiza.
Ele refere-se ainda à sua [dela] “presença frágil aqui em casa onde é o
teu lugar” (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 232), o que nos remete para
a divisão do espaço: numa sociedade em que os homens dominam o espaço
público e o poder, as mulheres ficam destinadas ao espaço privado. Estando
excluídas das tomadas de decisões e do exercício do poder, as mulheres
confinam-se à vida privada e doméstica numa casa que é, assim, o lugar delas,
aparecendo como cárcere a que estão confinadas, e não lar.
Desta forma, pondo as mulheres, só por serem mulheres, no centro da
390
narrativa, para além de denunciarem a sua herança histórica negativa e de
obrigarem à reflexão sobre as discriminações, também do ponto de vista legal,
sofridas pelas mulheres, as autoras puderam delinear um retrato panorâmico da
condição feminina durante o Estado Novo, ao mesmo tempo que rompiam a
ausência das mulheres na História. Neste sentido, criaram uma série de
personagens distintas, mostrando, e ainda que não negando a existência de
classes, antes pelo contrário, que a questão de se ser mulher durante o Estado
Novo mostra que há uma discriminação alheia a classes, ainda que o regime
tenha criado elites femininas. Assim, a literatura foi aqui usada como arma
política, sendo usada para marcar uma História, ao mesmo tempo que
ressignificava o passado, resgatando-o para lutas presentes.
Ao mesmo tempo, com personagens de fôlego, Novas Cartas
Portuguesas deixa uma semente para a recusa da resignação: o vínculo
matrimonial não deve ser um contrato de posse. Por isso, a pergunta retórica:
“Acaso será a mulher obrigada a suportar a um homem todas as humilhações
só porque ele é marido: dono, senhor?” (BARRENO/HORTA/COSTA, 2010,
p. 213). Perguntando-o, e esperando reflexão e não resposta, as autoras incitam
as sublevações das classes oprimidas, fazendo com que a sua obra literária, tão
comprometida com a realidade, funcione contra a dominação cultural. Desta
forma, denunciando de forma crua os problemas que advêm das hierarquias de
poder, deixam a semente para a transgressão do modelo social vigente.
Maria Alzira Seixo diz que há pelo menos quatro razões para se ler
391
Novas Cartas Portuguesas ainda hoje: o confronto dos tempos, a questão
literária, a repartição das vozes no texto e o hibridismo intertextual (SEIXO,
2001, p. 179-183). Talvez a mais importante seja precisamente a primeira, uma
vez que esta permite “verificar como a situação para a qual o livro apelava (a
situação social da mulher) não foi passível de qualquer alteração significativa”
(SEIXO, 2001, p. 179). Assim, este olhar das autoras – para o passado,
ressignificando-o e resgatando-o –, com o qual as autoras partiram para a
escrita da obra, não é unilateral, voltando-se ainda para o futuro: permite-nos,
ainda hoje, ver que, apesar de alguns progressos na questão dos direitos das
mulheres, mesmo depois do 25 de Abril, o poder patriarcal mantém-se mais ou
menos da mesma forma. Claro que, mesmo assim, as outras três razões não
serão de somenos: a dimensão poética da obra tem um forte impacto, assim
como o seu carácter intertextual e o hibridismo dos textos; a escrita plural, que
transcende as autorias; o papel histórico-literário que a obra desempenha.
Novas Cartas Portuguesas mostra, assim, de que forma o destino das
mulheres se vai repetindo ao longo dos tempos, legitimando-se pela cultura e
pela tradição, justificado pela ideia de sempre ter sido assim (BESSE, 2006, p.
16). Ao mesmo tempo, torna claro que o privilégio de classificação pertence às
classes dominantes, que atribuem diferentes valores aos diferentes grupos,
mantendo-se sempre no lugar social privilegiado, fruto da sua relação de poder
e da sua necessidade de perpetuá-lo. O livro foi, do ponto de vista político,
uma arma tão forte precisamente por rejeitar a naturalização da relação de
forças, influindo, assim, para que não se perpetuasse, ao mostrá-la enquanto
criação cultural e social.
392
10.6. O papel transgressor da obra
393
costumes que tomou conta do caso. (AZEVEDO, 1999, p. 141)
Maria Velho da Costa, citada por Maria João Guimarães (1998: 4),
acredita que toda a perseguição se deveu às referências à guerra colonial, tema
tabu durante o regime. A acusação por pornografia seria, contudo, aquela que
desvalorizaria as autoras tanto do ponto de vista moral como do ponto de vista
político.
Não há dúvida de que Novas Cartas Portuguesas não foi um mero
exercício retórico: a proposta de um mundo novo incluiu a proposta de uma
nova condição feminina no cerne de um regime que tentava domesticá-la:
394
publicados nunca a fez alterar a sua escrita. Contudo, no que toca à censura da
escrita jornalística, feita previamente, a atitude já era outra:
a censura aos livros (…) era uma censura não prévia, fazia-se
posteriormente à publicação dos livros: as pessoas sabiam que o
livro podia ser apreendido, mas era publicado intacto. No que me
diz respeito, este tipo de censura nunca me levou a alterar
qualquer escrita minha, nunca me provocou qualquer medo, nem
nunca me coagiu, ao contrário do que sucedia com a escrita
jornalística, onde realmente me sentia coagida, porque era uma
censura directa, imediata, antecipada, susceptível de atrasar ou
até de impedir a saída do jornal. (AZEVEDO, 1999, p. 140)
395
(BARRENO/HORTA/COSTA, 2010, p. 222). Partindo deste princípio,
facilmente se conclui que a escrita literária era já aqui uma formulação política,
uma vez que permitia que as mulheres se reivindicassem enquanto sujeitos
sociais.
Barreiros considera ainda que a própria epígrafe é transgressora,
“porque não remete a obra de autor alheio, mas a textos das próprias autoras,
asseverando-se, desde a primeira página, a autoria feminina e coletiva, em
alusão às manifestações populares de cultura.” (BARREIROS, 2014, p.
147/148). Assim, a obra não apareceu como um trabalho individual, como era
até então habitual, mas antes como uma manifestação colectiva de mulheres
que reivindicavam os seus direitos.
As autoras, com o estudo do próprio género e conscientes de uma
herança histórica negativa para o sexo feminino, apetrecharam-se com uma
ferramenta fundamental para a análise das relações de poder entre os géneros:
uma consciência intelectual crítica que lhes forneceu uma capacidade analítica
crucial para a criação de uma obra política com capacidade de agitar, expondo
um sistema ideológico que legitimava a violência contra as mulheres.
Desta forma, as três autoras tentaram desnaturalizar a condição
feminina que retrataram, expondo-a como consequência de relações de poder
que usavam a discriminação das mulheres de forma a que se fortalecesse um
status quo. É ainda neste sentido que não é difícil entender a razão pela qual a
censura de Marcelo Caetano agiu meros três dias após a publicação de Novas
Cartas Portuguesas, considerando-a imoral e pornográfica: a classe dominante
impunha a sua moral como moral natural, impondo os seus fins à sociedade e
servindo, assim, os seus interesses de classe e a divisão sexual que queria como
estruturante da sociedade. Aliás, a ditadura tinha tido, desde o início, a
396
urgência de fundar/manter uma “política nacional”, a única que poderia ter
lugar no Estado Novo (ROSAS, 2013, p. 24). Tudo o que a afrontasse teria,
através do repúdio frontal da democracia, uma censura à vista. O próprio
Salazar o assumia: “(...) importa-nos ser intransigentes na defesa e na realidade
dos princípios que a constituem. Nestas circunstâncias não há acordos, nem
transições, nem transigências possíveis” (SALAZAR, 1967, p. 139). Marcelo
Caetano continuou, assim, o seu legado ditatorial e intransigente quando
assumiu o poder.
10.7. Anti-feminismo
397
luta específica, tornou-se constitutivo dessa luta. Novas Cartas Portuguesas
tornou-se, assim, num dos grandes marcos das lutas feministas em Portugal no
decorrer do século XX, marcando a história literária e, concomitantemente, a
história das reivindicações dos direitos das mulheres.
Com a obra, as autoras lograram a inscrição das mulheres, e das
repressões sofridas, na história literária portuguesa. Assim, desempenharam um
papel relevante na constituição de uma historiografia que fosse capaz de
inscrever as vivências das mulheres na sociedade, tornando-as em agentes
sociais e políticos, agrupadas e confinadas ao lar por processos sociais e
políticos, e rejeitando a naturalização deste confinamento. Assim, afrontavam o
regime e a moral que este queria impôr ao país, rejeitando, para isso, o
feminismo e todas as acções que iam no sentido da emancipação das mulheres.
Numa entrevista dada a Manuela Tavares em 27 de Abril de 2004, Maria
Teresa Horta refere-se à forma como o regime lidava com a ideia do
feminismo, ridicularizando as mulheres, de forma a evitar qualquer ruptura:
398
E estraguei. (TAVARES, 2008, p. 192)
399
complexa de determinações culturais que estruturavam a sociedade portuguesa.
Para além disso, conjugam-se diferentes tempos e universos, ao mesmo tempo
que se deambula entre vários tipos de textos, nem todos literários, uma vez que
foi ainda feita a transcrição de um artigo do Código Penal português.
Neste sentido, e ainda que o faça, a obra não é um mero retrato da
condição feminina no contexto em que foi escrita. Pelo contrário, ela tenta
expôr os problemas estruturais do Estado Novo, denunciando assuntos tabu
como as explorações de classe65 e a guerra colonial. Há, desta forma, a
65 Num texto publicado no “Expresso” no dia 9 de Março de 1974, Maria Isabel Barreno alia a
exploração de género à exploração classista. O texto, intitulado “A trabalho igual, salário igual”,
confronta a aceitação do princípio de igualdade salarial contemplado na legislação portuguesa e nas
recomendações da ONU com a realidade laboral. Assim, a autora nota que se poderia, “numa primeira
tentativa de explicação, imputar aos patrões a resistência à prática do salário igual: para estes as
mulheres são um manancial de mão-de-obra a baixo preço, que importa manter como tal,
inclusivamente como elemento de controlo de mercado de trabalho; consideradas as coisas assim, é fácil
ladear as leis, classificando, por exemplo, as mulheres em categorias profissionais diferentes das dos
homens, embora executando as mesmas tarefas que estes.”, mostrando de que forma a exploração
classista se serve da discriminação de género, mostrando ainda de que forma o trabalho realizado por
mulheres é subvalorizado. Para que isto aconteça, a autora identifica três causas: uma menor
qualificação por parte das mulheres, uma vez que os rapazes eram encaminhados para cursos técnicos e
as mulheres recebiam uma formação geral, uma vez que o seu futuro era pensado a partir das obrigações
familiares que teria de cumprir; uma menor duração das carreiras das mulheres, que as abandonavam
graças ao casamento ou aos filhos; um maior número de faltas dadas por mulheres, graças a obrigações
familiares, e um menor número de horas extraordinárias; uma maior prática, por parte das mulheres, de
empregos a meio-tempo. Nota-se, assim, que a primeira se refere a uma desigualdade de condições à
partida que as seguintes vêm perpetuar, subordinando a vida profissional das mulheres às suas
obrigações familiares. Barreno atenta ainda no carácter complementar do trabalho feminino, que era
sempre visto como uma ajuda à vida económica familiar, uma vez que às mulheres caberia a vida
doméstica, sendo a sua educação voltada para preparar as suas tarefas de esposa e mãe, e aos homens
caberia a responsabilidade de levarem rendimentos para casa. Sendo isto assumido por toda a sociedade,
era natural que também os patrões o fizessem, desvalorizando o trabalho feito por mulheres.
400
proposta de um novo paradigma social no seu cerne. Ou seja, partindo da
crítica ao patriarcado, usando-o como cerne da narrativa, como fio condutor da
narrativa, a obra traz à discussão uma série de outros aspectos da vida
portuguesa durante o Estado Novo, juntando elementos culturais a elementos
políticos e sociais.
401
inegável: enquanto produto social, incluía no seu cerne a proposta de uma
mudança radical na estrutura da sociedade portuguesa. Para que tal fosse feito,
as autoras tiveram de olhar para o contexto de onde a obra parte e
incorporaram o elemento social enquanto elemento interno da obra. Utilizando
os termos de Lukács (1916), não se limita a usar o elemento social enquanto
veículo de realização do valor estético; pelo contrário, é determinante do valor
estético. Ou seja, o elemento social não serve para meramente conduzir a
narrativa, mas para actuar na constituição do essencial da obra enquanto obra
de arte. Aliás, só desta forma é que o livro pôde tornar-se num “acto político”
(BESSE, 2006, p. 16) e ter tido o impacto que teve, tanto a nível nacional como
internacional.
É neste sentido que o carácter revolucionário de Novas Cartas
Portuguesas é evidente: era intenção das autoras que a obra agisse sobre o que
existia, produzindo consequências que extravasassem o mundo da literatura e
reajustando o mundo material: a expressão literária (cultural, portanto) deveria
contribuir para que se realinhassem as relações de poder que arquitectavam a
sociedade, influindo, por isso, a surperestrutura. A obra não tentava apenas
abalar o status quo: ameaçava destruí-lo.
402
existem através do homem. O guerreiro tem seu repouso; por
enquanto nada há onde a mulher possa firmar-se e compensar-se
das suas lutas. Chegará o dia? Até lá fica sem sentido a vida de
mulheres como eu. (BARRENO/HORTA/COSTA. 2010, p.
143)
403
(v.g. pp. 48, 88, 98, 102, 122, 140, 164, 188, 214, 216, 246, 284,
316 e 318), constituindo uma ofensa aos costumes e a moral
vigente no País.
Concluindo: Sou do parecer que se proíba a circulação no País do
livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária
para efeitos de instrução do processo-crime.
404
O Moreira Baptista, que me detestava pessoalmente, pensava que
assim me tornava mais vulnerável, e procurava que a polícia me
incriminasse. Ele tinha por mim um ódio pessoal que começara
com uma história muito simples: Eu fui a primeira mulher
directora de um cine-clube em Portugal, o ABC – Cine-Clube de
Lisboa. Acontece que ele tinha proibido a exibição dos três
filmes de um ciclo de cinema, e eu fui lá, à Secretaria de Estado
da Informação, com o Manuel Neves e outro colega, tentar que o
Moreira Baptista levantasse a proibição. Na altura tinha 18 anos
de idade. Ele, a primeira coisa que fez, quando me viu, foi
perguntar: “Quem é esta menina?” O Manuel Neves respondeu:
“Esta menina é a directora do cine-clube.” Ao que ele respondeu:
“Desgraçado país este, em que já as mulheres são directoras de
cine-clubes.” (AZEVEDO, 1999, p. 144)
405
Horta. Ainda que não tenha cumprido o objectivo, uma vez que David Mourão-
Ferreira disse que, caso o fizessem, se recusaria a receber o prémio de poesia
que lhe fora oficialmente atribuído nesse ano, fazendo constar as razões do
protesto, a autora deixou de poder assinar qualquer artigo. Entretanto, Maria
Teresa Horta recebia telefonemas anónimos, com ameaças, tanto em casa
quanto na redacção do jornal.
Em Portugal, chegou a haver a proibição de informações em relação a
este caso via imprensa escrita ou falada. Assim, os nomes das autoras não
podiam aparecer em veículos de comunicação social, sob a ameaça de serem
fechados. A pressão acabou por surtir o efeito contrário e o caso teve várias
repercussões na Europa, o que incluiu uma ocupação de mulheres na
Embaixada Portuguesa da Holanda, manifestações de repúdio em Washington
e várias manifestações em Paris, com figuras como Simone de Beauvoir,
Marguerite Duras ou Jean-Paul Sartre. Aliás, a obra teve recepções muito
diferentes em Portugal e em França: proibida no primeiro, teve o interesse da
Grasset e da Galimard para publicação.
Por uma série de condicionamentos que se prendem com os
mecanismos censórios ao serviço do Estado Novo, o facto é que o caso Novas
Cartas Portuguesas não teve grande repercussão na imprensa portuguesa.
Ainda assim, conseguimos encontrar uma série de notícias que lhe dizem
respeito.66
O jornal “República” do dia 19 de Dezembro de 1972 publicou uma
notícia intitulada “Três escritoras incriminadas por abuso de liberdade de
66 Com vários intelectuais da época, passou-se precisamente o contrário e as três autoras contaram com
o apoio público de pessoas como Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Lamas, Augusto
Abelaira, Natália Nunes, Vasco Vieira de Almeida, Carlos Jorge Correia Gago e José Tengarrinha.
406
imprensa” em que informava que as três autoras, assim como o editor Romeu
de Melo, haviam sido notificados, na véspera, pelo 6º Juízo Correcional da
acusação do crime de abuso da liberdade de imprensa. Noticiava-se ainda a
proposta do Ministério Público de atribuir a caução de vinte contos a cada uma
das escritoras e de trinta ao editor.
O “Expresso” do dia 17 de Março de 1973 noticiou que as três autoras
aguardavam julgamento por atentado à moral pública. Nela, informou a
inspiração da obra em Lettres Portugaises e que a obra das três Marias
pretendeu denunciar a situação da mulher em Portugal. Referenciou ainda a
técnica literária singular e os tipos de textos que a obra incluía.
O “Diário de Lisboa” de 2 de Maio de 1973 faz ainda referência à
crítica literária, que terá considerado que a obra trouxera contribuições
significativas ao estudo da situação da mulher da sociedade então coeva,
acrescentando ainda que se encontrava já retirado do mercado, em resultado
daquilo a que os serviços censórios consideraram problemas de ordem moral.
O “Expresso” do dia 12 do mesmo mês deu conta da marcação do
julgamento das três autoras, noticiando ainda que era a segunda vez que Maria
Teresa Horta tinha um livro seu apreendido.
O primeiro número de “Fronteiras”, datado de Julho de 1973, noticiou
a marcação do mesmo julgamento, referindo ainda o grande movimento de
apoio que o caso tinha tido tanto à escala internacional. Referiu um panfleto
que circulava por Paris, apontando o livro como uma experiência colectiva de
descrição da situação das mulheres portuguesas. A notícia termina dizendo que
tanto na Europa como nos Estados Unidos tinha havido movimentos
importantes de solidariedade, que tinham a esperança de influírem nos juízes
de Lisboa.
407
A “República” de 3 de Julho de 1973 informou do julgamento a
ocorrer pela acusação de liberdade de imprensa, dando ainda notícia das trinta
testemunhas em favor da autora. O “Diário de Lisboa” do mesmo dia referiu
que o julgamento tinha sido adiado devido a doença de Maria Teresa Horta,
que não pôde comparecer.
No dia 25 de Outubro de 1973, a “República” publicou uma notícia,
informando do início do julgamento das três autoras, nessa mesma manhã.
No dia seguinte, o “Diário de Lisboa” noticiou o adiamento do
julgamento das autoras, informando que este prosseguiria no dia 31 de Janeiro
de 1974 e que, na primeira audiência, feita à porta fechada, as três autoras e o
seu editor apresentaram longas exposições ao juiz Galina Barbosa. No mesmo
dia, o “Diário de Notícias” publicou um notícia que ia no mesmo sentido,
acrescentando ainda pequenas notas biográficas referentes às autoras e listando
algumas das testemunhas em favor destas, como Jacinto do Prado Coelho,
Urbano Tavares Rodrigues, Augusto Abelaira, David Mourão-Ferreira,
Alexandre O'Neill, José Manuel Tengarrinha, Maria Natalina Carvalho e João
Gaspar Simões. Informou ainda os nomes dos advogados de defesa: Salgado
Zenha e Duarte Vidal defendiam Maria Isabel Barreno, Sá Borges e Alcada
Baptista defendiam Maria Velho da Costa e Luís Francisco Rebelo defendia
Maria Teresa Horta.
No dia 12 de Novembro de 1973, o suplemento Presença da Mulher,
do jornal “República”, publicou uma fotografia das três autoras e noticiou que
a primeira audiência do julgamento tinha decorrido à porta fechada, sem a
presença de jornalistas, e que o julgamento fora adiado para Janeiro do ano
seguinte.
No dia 24 de Novembro de 1973, Maria Isabel Barreno assinou no
408
“Expresso” um artigo intitulado “Novíssima carta portuguesa”: “Eu adverti-
me, adverti-vos: é o exercício da paixão, o que conta. O objectivo, só sabemos
intuí-lo parcialmente – pretexto ou não. (...) Nós só não sabíamos então o
sentido do que vivíamos, do que construíamos – esperamos só um sentido dos
nossos produtos finais, então sim, dizemos, quando pudermos oferecer aos
outros qualquer coisa de concreto – é a contaminação racionalista; a troca.”
Já em 1974, no dia 9 de Fevereiro, a mesma autora publicou um artigo
intitulado “O sexismo vulgar”, em que se referia a injúrias sexistas e a acções
feitas em prol da manutenção da ideologia da inferioridade da mulher, assim
como da sua exploração enquanto objecto sexual. O texto dialoga com outro de
Simone de Beauvoir.
No dia 22 de Fevereiro do mesmo ano, o “Diário de Lisboa” publicou
uma fotografia das três autoras a saírem do tribunal, na audiência desse dia,
com uma pequena legenda.
No dia 9 de Março de 1974, no jornal “A Opinião”, foi publicado um
texto, intitulado “O feminismo e a emancipação da mulher. A propósito de uma
entrevista de Maria Teresa Horta”, assinado pelas iniciais O. G., que se refere a
uma entrevista de Maria Teresa Horta, considerando-a “de ideologia burguesa
mais disfarçada” e acusando a autora de dividir a sociedade em “duas classes:
homens e mulheres”. Diz ainda que “este feminismo pouco ou nada tem a ver
com a emancipação da mulher. Porque quando as mulheres, não como classe
em si, mas como vítimas, lutam por igualdade de salários não lutam contra os
homens tão explorados quanto elas, mas sim contra quem as explora. Porque
quem paga menos às operárias não são evidentemente os seus companheiros de
trabalho, mas os patrões. E se a mulher é duplamente explorada, é porque foi
mantida à margem da produção durante demasiado tempo por aqueles a quem
409
isso convinha.” Assim, acusava a autora de ignorar a divisão da sociedade em
classes sociais, antes dividindo-a em homens e mulheres, sendo indiferente às
explorações, neste caso materiais e económicas, de que também os primeiros
eram vítimas.
10.10.1. No julgamento
410
referências à vida erótica da obra se referem antes ao aprofundamento do ser
humano na vida de relação (VIDAL, 1974, p. 39).
No mesmo julgamento, Augusto Abelaira considerou que o erotismo
da obra visava “fins que ultrapassam o próprio erotismo” (VIDAL, 1974, p.
41). Assim, as imagens não deviam ser entendidas literalmente, na medida em
que procuravam contestar a hipocrisia da sociedade portuguesa, visando, desta
forma, as próprias instituições sociais consideradas esmagadoras da liberdade
humana.
Natália Nunes, por sua vez, fez referência à actividade literária de
Maria Isabel Barreno enquanto contribuição para uma maior liberdade e
dignidade humana (VIDAL, 1974, p. 45) e José Tengarrinha considerou que
Novas Cartas Portuguesas era uma obra séria e de alto valor artístico (VIDAL,
1974, p. 47).
Na audiência de 1 de Março de 1974, Maria Lamas considerou que a
obra era muito significativa, na medida em que era uma vertente da luta da
mulher na defesa da sua própria dignificação (VIDAL, 1974, p. 53).
No 6º juízo correcional, Maria Isabel Barreno, pelo advogado Duarte
Vidal, fez saber que se sentia honrada pela companhia, fosse qual fosse o
resultado do processo. Ainda assim, informou que considerava penoso que o
resultado sancionasse uma acusação que já no tempo de Flaubert e Baudelaire
era reaccionária e anti-cultural. Neste sentido, considerar Novas Cartas
Portuguesas um livro “imoral” e “pornográfico” seria adoptar uma atitude
retrógrada perante o fenómeno literário-artístico e aceitar uma visão muito
estreita da moral (VIDAL, 1974, p. 32).
No dia da leitura da sentença, tudo indicava que as três autoras seriam
condenadas. Aliás, à entrada do tribunal, Maria Teresa Horta e Maria Velho da
411
Costa, vendo o espaço cheio de carrinhas da polícia, resolveram perguntar a
um agente o que estava a passar-se, tendo obtido a seguinte resposta: “Bem
vêem, hoje é a última audiência das três Marias; elas vão ser condenadas, e aí
pode haver tentativa de manifestação. Nós estamos cá para que isso não
aconteça.” (AZEVEDO, 1999, p. 149).
No meio da multidão, estava ainda a televisão norte-americana, que
tinha pedido ao juiz para filmar o julgamento, não tendo conseguido que o
pedido fosse aceite. No próprio dia do julgamento, o juiz do caso disse estar
doente e marcou a audiência para o dia 7 de Maio de 1974.
No dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas
derrubou a ditadura fascista, pondo fim ao salazarismo. O processo sobre
Novas Cartas Portuguesas não foi anulado e seguiu o seu curso até à sessão do
dia 7 de Maio de 1974, que ditaria o destino do processo. Nessa sessão, Maria
Isabel Barreno afirmou o seguinte:
412
O livro não é pornográfico, pois que a sua intenção foi a de
evidenciar a situação da mulher em sociedades dominadas por
formas de moral tradicional e lutar pela sua libertação; As
passagens apontadas como imorais ou pornográficas integram-se
como elemento restricto e necessário da obra pois que as
relações de sexo têm sido o elemento dominante da sujeição da
mulher e da sua situação inferior (VIDAL, 1974, p. 78).
Uma vez anunciada a absolvição, foi feita uma ovação por uma
multidão que gritava “Mulher unidas jamais serão vencidas”. Com o 25 de
413
Abril, os jornais tiveram finalmente liberdade para escreverem de forma livre
sobre o caso e, pela primeira vez, o “Diário de Lisboa” deu um grande
destaque ao caso, referindo-o na primeira página: “Absolvição para as “Novas
Cartas Portuguesas” – o juiz mandou em paz três Marias de cravo ao peito”.
Três dias depois da absolvição, reuniu-se em Lisboa o primeiro grupo do
Movimento de Libertação das Mulheres, que contou com a participação de
Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno.
As autoras, citadas por Maria João Guimarães (1998), têm posições
divergentes em relação à ilibação: Maria Teresa Horta considera-a
consequência do 25 de Abril, Maria Isabel Barreno fala de duas facções, uma
pela condenação, outra pela absolvição; Maria Velho da Costa acha que já
havia intenção de retirar a queixa antes do 25 de Abril, devido à movimentação
militar e à pressão tanto nacional como internacional.
414
dá conta do apoio manifestado também na Escócia: “Women's liberation group
wish to register strong protest ar discriminatory treatment and trial of Maria
Teresa Horta, Maria Costa and Maria Barreno”.
Segundo Manuela Tavares (2008: 198), surge um abaixo-assinado, no
dia 20 de Junho de 1973, de sessenta e cinco escritores/artistas norte-
americanos de renome68. O texto protesta contra o governo português em
relação à opressão exercida sobre as três autoras, considerando-a um atentado à
liberdade de criação literária e à liberdade cívica.
No dia 24 de Outubro de 1973, foi ainda endereçado a Marcelo
Caetano um telegrama que dava também conta do apoio de vários intelectuais
vindos do Brasil, como Lígia Fagundes Telles ou António Cândido 69. Os
autores reiteraram o movimento de solidariedade internacional e consideraram
penoso que, no vigésimo aniversário da declaração dos direitos humanos, esses
direitos fossem violados no que concernia às liberdades fundamentais de
68 Nanette Rainone, Bel Kaufman, Martin Tucker, Ann Amabile, Jesse Kornblutz, Jim Hendricks,
Judith Hennessee, Jan Crawford, Barbara Sove, Una Ellis, Claudia Dreifus, Judy Feiffer, Dalores
Aleipuder, Minda Bickman, Jill Ward, Barbara Probst Solomon, Lois Gould, Barbara Seaman, Jill
Robinson, Jean McTigar, Judith Pasternak, Leslie Allen, Julian Beck, Judith Malina, Gione Lewis,
Vivien Leone, Elaine Livingston, Regina Ryan, Sidney Offit, Kirstan Michalski, Elizabeth Janeway,
Ella Dasaro, Dian Terry, Suzanne Stocking, Gilda Grillo, Robert E. Gould, Mary Jean Tully, Arlie
Scott, Sidney Abbot, Ti-Grace Atkinson, Dolores Alexander, Minka Bikman, Caroline Bird, Jacqui
Ceballos, Marjorie DeFazio, Nora Ephron, Nina Finkelstein, Ellen Frankfort, Betty Furness, Wilma
Scott Heide, Patrícia Horan, Jill Johnston, Lucy Komisar, Myrna Lamb, Kate Millett, Eleanor Holms
Norton, Christine Rochefort, Nora Sayre, Gloria Steinem, Elizabeth Harris, Barbara Love.
69 Para além destes, Anésia Pacheco Chaves, Carlos Queiroz Telles, Ilka Matinho Zanotto, Radha
Abramo, Gilda de Mello e Sousa, Helena Silveira, Mário Schemberg, Ely Bueno, Tónia Carrero, Maria
Bethânia, Etty Frazer, Elizabeth Hart Mam, Paulo Emílio Salles Gomes, Cristian de Queiroz, Amélia
Toledo, Isaac e Pstein, Lourdes Cedra, António Bivar, Paulo Duarte, Maria Augusta Fonseca, Sábato
Malgadi e Maria Lúzia Mello Oliveira também assinam o telegrama.
415
pensamento e de expressão.
Contudo, foi de França que veio a maior onda de solidariedade ao
caso. Aliás, a imprensa francesa deu um grande destaque tanto ao caso quanto
às manifestações de apoio que provocou.
No dia 18 de Maio de 1973, o jornal “Le Monde” publicou uma
notícia em que informava acerca do processo judicial que decorria, informando
ainda sobre o risco de prisão que as autoras corriam. Referiu ainda uma petição
assinada por escritores do Porto e de Lisboa contra aquilo que consideravam
ser um atentado à liberdade de expressão.
Em 24 de Maio de 1973, foi publicado um artigo no jornal “Politique
Hebdo”, da autoria de Evelyne Le Garrec, intitulado “Maria a ses seurs”. Nele,
é denunciada a perseguição exercida pelo regime em relação às três autoras,
acusando-as de ultraje à moral pública. O artigo referia ainda a intenção, por
partes de grupos de mulheres em França e nos Estados Unidos, de se criar um
movimento internacional de apoio que pressionasse os juízes do caso. Incluía
ainda a tradução de fragmentos da obra, feita por Gilda Grillo.
Um artigo no “L'Express”, na edição de 9 a 15 de Julho de 1973,
assinado por Janick Jossin, referia a amplitude dos movimentos de mulheres
em França que constituíram formas de apoio às três Marias, naquela que foi
uma acção internacional, que marcou presença na primeira Conferência
Feminista Internacional, acontecida no dia 4 de Junho do mesmo ano, em
Cambridge, Massachusetts.
Em Outubro de 1973, no primeiro número, volume dois, da “Paris
Feminist Group Newsletter”, considera-se esta a primeira causa feminista
verdadeiramente internacional e convoca-se uma concentração:
416
The case of the 3 Marias, the first truly internacional feminist
cause, is the focus of a rally in Paris on Sunday, October 21, 9
p.m. At the Salle Gémier, Palais de Chaillot (métro Trocadéro).
417
Estado.
No dia 15 de Dezembro de 1973, o número 675 do “Jeune Afrique”
publicou um artigo intitulado “Trois femmes et un livre pour un affaire de
pornographie”. No artigo, informou-se sobre a acusação de pornografia por
parte do regime e da marcação de uma sessão no tribunal para o dia 31 de
Janeiro do ano seguinte, assim como do apoio internacional de dezenas de
jornalistas, intelectuais e amigos das três autoras, que se deslocariam a Lisboa
para apoiá-las. Fez ainda referência à forma como a imprensa portuguesa
estava a tratar o caso:
418
attaque l'establishment portugais, d'une part, et, d'autre part, fait
appraître une nouveau phénomène social au Portugal. Or, ce
fémininisme n'est pas celui de la três orthodoxe et très sage
Association des femmes portugaises (organisation corporative
inspirée par le gouvernment) qui, dès la sortie du livre, a
poursuivi de as haine l'ouvrage et ses auteurs. La campagne a
porté ses fruits. Le livre a été retiré de la circulation et les trois
écrivains poursuivis pour outrage à la morale publique et
pornographie.
419
No dia 25 de Abril do mesmo ano, aconteceria o golpe militar do qual
resultaria o derrube da ditadura. A partir daí, começaram a surgir mais artigos
na imprensa francesa sobre o caso, particularmente sobre o que dele resultou,
como a formação do Movimento de Libertação de Mulheres (MLM).
O “Libération” de 30 de Maio publicou um artigo anunciando a
absolvição ocorrida no dia 7 do mesmo mês, acrescentando que as autoras
consideravam que a melhor notícia que se podia levar para França, naquele
momento, era precisamente a criação do Movimento de Libertação das
Mulheres em Portugal.
O 179º número do Boletim das Edições Le Seuil de Setembro de 1974
noticiou a apresentação da edição francesa de Novas Cartas Portuguesas, feita
por Evelyne Le Garrec e Monique Witting. Ao mesmo tempo, faz referência ao
processo judicial acontecimento previamente e à onda de solidariedade
ocorrida como consequência.
A edição de 30 de Setembro a 6 de Outubro de 1974 do “L'Express”
publicou um artigo intitulado “Le souffle des trois Maria”, assinado por
Madeleine Chapsal, em que se abordava o processo político que tinha
envolvido a história da publicação da obra, traçando o percurso desde o
momento em que foi escrito à acusação de que foi vítima e, finalmente, à sua
absolvição já após a queda da ditadura.
O “Politique Hebdo” de 14 a 30 de Outubro de 1974 publicou um
artigo elogioso assinado por Josiane e Christian Limousin em que se publicita a
edição francesa da obra.
O prefácio à edição francesa, da autoria de Evelyne Le Garrec e
Monique Wittig, descreve o trajecto da obra tanto em Portugal quanto no
estrangeiro, assim como o papel que teve no delineamento de movimentos
420
feministas.
421
engajamento feminista. Mesmo assim, considera que o processo e a
sobrevalorização da vertente feminista fizeram com que a obra fosse vista de
uma perspectiva redutora. Citada por Maria João Guimarães (1998: 4), a autora
diz que a obra “tratava da sociedade, das relações pessoais, da influência da
literatura – e não só do feminismo”.
Maria Teresa Horta, por sua vez, numa entrevista dada a Claude
Servan-Schreiber e publicada no “Nouvel Observateur” de 26 de Outubro de
1973 (número 467), diz ter escrito um livro feminista, ainda que destaque que a
obra era ficcional e não da teoria feminista (GUIMARÃES, 1998: 4):
Moi oui, dit Maria Teresa Horta. Pendant des années, jái vécu
mon féminismo en chambre, dans ma vie privée. Au Portugal,
une “vraie” femme reste viergue jusqu'à son mariage. Elle se
marie à l'église. Même malheureuse, elle s'accommode d'une
union de convenance. A tout cela j'ai dit non, depuis l'enfance, à
mon père, à mon mari qui voulaient faire de moi un êter soumis.
422
e a Novas Cartas eram, na melhor das hipóteses, simples leitoras
fragmentárias deste texto. (MARTINS, 2012, p. 150)
423
literária, pensada simplesmente em critérios estéticos. Por muito que a estética
literária levada a cabo não seja de somenos, tanto pela técnica como pelas
inovações que apresenta na convergência de vários estilos e de autoria
colectiva, o livro vale também enquanto instrumento político, pensado para
abanar o status quo, missão que cumpriu. O seu cunho político e social é o que
salta à vista agora e foi o que saltou à vista na altura da publicação. Por isso,
ainda que proibido três dias após a sua publicação, pode dizer-se que foi bem
sucedido, uma vez que cumpriu o intento inicial e chamou a atenção para a
condição feminina em Portugal. É certo que a recepção internacional se baseou
em fragmentos da obra e não na obra em si, mas tal não impediu que se
colocasse no centro de uma discussão um regime político que permitia uma
hierarquia entre sexos e que domesticava as mulheres por uma questão
ideológica, impedindo-as de terem um papel social e/ou político e até de
acederem à produção simbólica.
Aliás, tendo ainda em conta a proposta de Maria Isabel Barreno e o
seu intento, talvez possamos ainda dizer que dificilmente as autoras poderiam
arrojar a mais do que a criarem uma literatura que se tornaria em mais do que
ela mesma: incluindo o elemento social, ou seja, fazendo da própria escrita um
acto social, conseguiram que a sua obra tivesse força material. Motivando
aquele que foi considerado o primeiro caso feminista internacional, com
marchas de centenas de pessoas pelas ruas de Paris, apoiando as três Marias, o
livro, por ser uma proposta de tomada de consciência, transformou-se em
símbolo político, não deixando de ser literatura. Mais: é uma literatura útil,
com capacidade de olhar para o mundo, entendendo-o, e com a proposta de - e
força para - alterá-lo.
Assim, ainda que as autoras possam não ter querido tornar a obra
424
literária numa bandeira feminista (Maria Velho da Costa afirma-a como uma
obra literária, rejeitando o cunho feminista, por exemplo), o facto é que este
acabou por transformar-se, na percepção pública, na interpretação geral que
teve. Aliás, numa entrevista dada por Maria Teresa Horta a Manuela Tavares
(2008: 193), a autora diz que “Um livro é aquilo que os outros lêem. E cada um
tem a sua leitura”. Assim, se a obra servia lutas feministas, então teria um
conteúdo feminista. Foi, aliás, este conteúdo, assim entendido, que motivou os
movimentos de solidariedade internacionais. O livro seria, assim, para além do
seu conteúdo, o conjunto de interpretações que motivara, compreendendo-se
assim as razões pelas quais, na percepção pública, se transformou num
instrumento da luta feminista, colocando no cerne de um debate as injustiças
sociais, até legalmente consagradas, que eram exercidas sobre as mulheres. A
perseguição interna foi ainda um dos grandes pontos de contribuição para isto,
uma vez que permitiu aos intelectuais da época discutirem publicamente o
papel da arte, considerando o carácter artístico da obra, contrapondo-o à
imoralidade de que o Estado Novo a acusava.
Aberto à multiplicidade de interpretações, importava aqui o diálogo
interpretativo que o livro iria motivar. Planeada para chocar e como reacção à
repressão que a obra Minha Senhora de Mim, de Maria Teresa Horta,
provocara, a obra reviveria em cada interpretação feita, que se tornaria no seu
verdadeiro conteúdo. Assim, a obra, ainda que fosse fechada enquanto
organismo calibrado, seria aberta (ECO, 1988, p. 41), uma vez que as
interpretações feitas já não estariam ao alcance das suas autoras. Desta forma, a
segunda parte da relação dialógica, ou seja, aquela que era feita pela parte do
público, já não estaria nas mãos de quem iniciara o processo comunicativo.
O facto de a obra se ter tornado tão famosa internacionalmente antes
425
de ter sido traduzida terá contribuído para que tenha sido articulada e debatida
mais em termos políticos que teóricos. Será também por isso que a obra ocupa
um lugar na cultura portuguesa mais como uma ferramenta política que serviu
para afrontar o Estado Novo do que como uma obra literária. Neste caso, a
expressão literária serviu particularmente para afrontar a ditadura, estando a
produção cultural, assim, ao serviço da visão de mundo que as autoras
desejavam que pudesse sobrepor-se ao status quo de então.
A obra de arte será, então, figurativa, na medida em que ilustra a
condição feminina em Portugal à época do Estado Novo tal como é vista pelas
autoras, ou seja, reflecte as suas visões do mundo. Será, por isso, o seu
conteúdo, mas terá sempre de ser avaliada pelo impacto que tem na evolução
de um género ou pelo papel que representa num determinado contexto
histórico. Sob este prisma, Novas Cartas Portuguesas valerá essencialmente
pelo ataque descarado que constituiu ao poder instituído e pela sua própria
proposta de formulação, que incluía já a proposta de um desafio.
Assim, a própria interpretação já sustentará a ideia de que a obra de
arte tem um conteúdo e essa interpretação significará que uma série de
elementos do trabalho é colhida, transformando a interpretação numa
tradução (SONTAG, 2001, p. 5). Assim, o processo de hermenêutica será um
dos pressupostos da criação artística: é ele que garante a relação dialógica, uma
vez que a obra não tem significado se não tiver interpretações. É neste sentido
que também a interpretação deve ser avaliada enquanto resultado da relação
dialógica, uma vez que dita a forma como essa relação se estabelece. Assim,
interpretar significa fazer uma leitura viva, entrar no processo comunicativo ao
invés de receber a comunicação acriticamente. A interpretação torna-se, por
isso, numa avaliação.
426
10.12. Conclusões
427
conteúdo real, difamando-as. Assim, o processo estético que norteou a escrita
das três Marias seria inserido na cadeia que inclui a interpretação – e que, logo
após a publicação da obra, terminou em censura e, imediatamente a seguir,
motivou um caso ímpar de mobilização internacional em torno de uma causa
feminista.
A recepção, seja a nível nacional ou internacional, desempenhou um
papel relevante na forma como a obra passou a ser vista: a obra fez com que se
atentasse na condição da mulher à época e motivou, após a ilibação das autoras
em tribunal, a criação do primeiro grupo do Movimento de Libertação das
Mulheres, em que participaram Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno.
Assim, e porque a recepção cultural engloba a interpretação como um acto de
um processo estético que inclui toda uma cadeia de construção, difusão e
reconstrução dos textos (LOPES, 2010, p. 51), podemos entender que a
importância de Novas Cartas Portuguesas supera, e muito, o seu valor
literário, ainda que este não seja de somenos: a obra vale essencialmente pelo
ataque que constitui ao poder instituído. Tendo em conta o lugar único que
ocupa nos movimentos feministas ocorridos em Portugal durante o século XX,
ao olharmos para ela, importa-nos principalmente o contexto em que foi
produzida, porque foi ele que permitiu que se estabelecesse a relação dialógica
autoras-trabalho-público a que aqui fazemos referência e que se resgatasse a
recepção enquanto experiência.
428
11. Conclusões
429
Sendo a família um campo de batalha ideológico, já que era um dos pilares do
Estado Novo, também servia para impedir que as mulheres fossem encaradas
como agentes sociais com acesso à produção simbólica. Sobre isto, há dois
pontos a relevar: de facto, era também o próprio mecanismo censório, nas
mãos dos agentes da PIDE, que o fazia, daí que se tenha dito que a obra Maria
Archer não a “dignifica” na sua “qualidade de senhora”; o número de obras
escritas por mulheres censurado pela PIDE, ou seja, que afrontaram o Estado
Novo de forma inequívoca, era tão exageradamente reduzido que, tendo já em
conta tudo o que foi dito sobre a domesticação das mulheres, só se pode
concluir pela eficácia do mecanismo censório social que as afastava da escrita
literária e mais ainda da crítica política. Como já dissemos que até a
Constituição subalternizava as mulheres, tal não causará surpresa a quem nos
estiver a ler.
Os nomes das mulheres que conheceram o crivo da PIDE são estes:
Maria Archer, Carmen de Figueiredo, Maria da Glória, Nita Clímaco, Natália
Correia, Fiama H. P. Brandão, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa,
Maria Isabel Barreno. Nesta pequena amostra, encontra-se o cânone, encontra-
se gente apagada pela história, encontra-se quem não poderia nunca pertencer-
lhe, quem não poderia nunca sobreviver ao tempo, quem nunca passaria pela
PIDE e quem não passou pela PIDE graças a uma ninharia, quem incluía na
sua formulação literária propostas do mundo e quem o decalcava, quem usava
a sublevação como um elemento literário interno, denunciando e exigindo, e
quem a tratava sem qualquer conteúdo político. Encontram-se autoras
conhecidas pelo grande público português, estudadas e conhecidas, e autoras
que passaram ilesas pelos tempos, sem que as suas biografias tenham chegado
até nós. Este trabalho permitiu-nos estudá-las sem olharmos a essas
430
hierarquias, recuperando quem foi apagado pela PIDE, recuperando quem foi
apagado pelos mecanismos da história e dos processos de canonização.
No caso de Maria Archer, parece-nos que a acção da censura teve um
peso relevante. Graças a ela, a autora perdeu o seu meio de subsistência, tendo
de viver mais de duas décadas fora de Portugal. Para além disso, enformou-lhe
a criação, já que teve de alterar a sua obra de forma a que esta pudesse passar
ilesa pela mão dos agentes censórios. Tem havido algumas tentativas de
recuperação da sua obra – e, consequentemente, do seu lugar na história
literária –, mas estas têm sido insuficientes para que seja conhecida pelo grande
público.
Carmen de Figueiredo foi censurada pela inclusão, na estrutura da
narrativa, de descrições sexuais. Estes são elementos secundários da narrativa:
possibilitam-na, mas não são um elemento interno, não clamam, não acicatam.
Não havendo, assim, nada de particularmente subversivo na sua obra, não nos
parece que esta autora pudesse alguma vez ter-se canonizado, já que não só não
faz dos seus elementos internos elementos sociais como não é pródiga em
termos de criação linguística e/ou estética. Não tem um papel de relevo na
história da literatura/estética e não desempenha nenhum papel em relação ao
que é social e político do seu tempo de actividade.
Nita Clímaco também se encontra ausente do cânone, contando
apenas, ao longo de toda a sua carreira literária, com uma segunda edição (fora
do país). O nome da autora figura apenas em (poucos) estudos sobre
emigração, tema central da sua obra ficcional. Neste caso, ao contrário do
anterior, é evidente que as obras trazem elementos históricos na sua
constituição, que falam directamente com os seus leitores coevos, que a ficção
marca o ponto da história. A autora faz contrastar Portugal, pobre,
431
iminentemente rural, culturalmente tacanho, a França, moderna, culturalmente
viva. No entanto, essa modernidade acaba por ser apresentada como uma
devassidão moral.
A matiz crítica das obras de Clímaco é difusa. Por um lado, pode
encontrar-se um certo pessimismo em relação à emigração, já que quem sai de
Portugal fica psíquica e emocionalmente abalado ou encara péssimas condições
materiais de vida. Por outro, é feita uma crítica à realidade social e cultural
portuguesas, menorizadas em relação a França. A verdade é que, com a
primeira, as obras de Nita Clímaco poderiam ser favoráveis ao Estado Novo, já
que poderiam abonar em prol das suas políticas anti-emigração.
No entanto, nem o seu conteúdo político/social é particularmente
relevante nem a autora contribui para a renovação da linguagem literária,
razões pelas quais nos parece que, mesmo sem a acção da PIDE, a autora não
teria, enquanto escritora, sobrevivido até aos dias de hoje.
A acção censória da PIDE contra Natália Correia teve pouco efeito na
sua vida literária pós-ditadura. Se lhe censurou várias obras, impedindo a
autora de ser lida, a verdade é que esta veio não só a reeditar algumas delas
após o 25 de Abril mas também a tornar-se num dos nomes mais proeminentes
da cultura portuguesa nas décadas seguintes. Correia é lida e estudada, foi
premiada e a sua obra foi reeditada várias vezes.
Parece-nos que a ineficácia da acção da PIDE se deveu à profundidade
intelectual da obra da autora. Para além disso, claro, cabe mencionar que esta
viveu muito para lá da ditadura. As obras de Natália têm uma ligação histórica
com a realidade, tendo ainda um grande alcance no quadro do seu subtexto.
Exigem do leitor o contacto com o mundo e uma capacidade de análise atenta,
respondendo ao que lhes é ofertado no texto. Sem isto, não será possível
432
alcançar a significância do subtexto. É uma obra que mescla arte e cidadania,
questionando e confrontando, pondo em xeque dogmas religiosos, os mitos da
portugalidade, as imposições do Estado Novo, as suas próprias figuras. Através
da sátira, torna-se numa forma de fazer política, obrigando à responsabilização
dos leitores no quadro da relação dialógica. Imbuída da vontade da autora de
agir sobre o mundo, para além de ser rica em recursos estilísticos, a obra de
Natália Correia canonizou-se, apesar das tentativas dos serviços censórios de a
apagarem da vida pública e da história do Portugal.
A obra de Fiama aqui estudada prima pelas relações dialógicas. A autora
estabeleceu paralelismos com alcance no passado, fez com se confundissem
vida e peça. Destas formas, mostrou casos em que o poder é imposto. Assim,
vimos casos em que a religião exerce um poder brutal, que se baseia na
imposição do medo como ferramenta de controlo.
A obra teatral da autora é militância, uma produção política e
ideológica. Por estes motivos, os alarmes dos censores literários soaram e
Fiama viu obras suas serem proibidas. Contudo, a autora não foi apagada da
história. Após o término da ditadura, seria levada a palco e contou ainda com
uma longa carreira poética. Mesmo antes do 25 de Abril, já havia garantido um
espaço de grande importância na história literária portuguesa. Com Poesia 61,
marcava um lugar na história da estética, reagindo ao neo-realismo e criando
uma linguagem rigorosa, diferente da expressividade discursiva que marcara o
neo-realismo.
Maria Teresa Horta é uma das mais proeminentes figuras da cultura
portuguesa do século XX e do início do século XXI. Em Minha Senhora de
Mim, a autora fez exactamente o contrário do que fez Carmen de Figueiredo ao
incorporar, nas suas narrativas, descrições sexuais: são um elemento central,
433
interno, da formulação literária, significam a reclamação de um direito,
rejeitam uma moral imposta pelo regime político. O discurso da obra
incomodou o poder instituído, que teve necessidade de vilipendiá-la: perseguiu
a autora, intimidou quem a publicara, tentou boicotar-lhe a carreira. Contudo, a
autora viria ainda a ser uma das escritoras de Novas Cartas Portuguesas, a que
já voltaremos, e contaria ainda uma longa carreira literária pós-ditadura. Hoje,
esta obra é estudada nas escolas, fazendo parte do Plano Nacional de Leitura.
A autora continua com uma produção literária intensa, tendo sido
agraciada com vários prémios literários. As tentativas de boicote da sua obra
por parte da PIDE foram, assim, infrutíferas. A obra literária de Maria Teresa
Horta, para além da sua riqueza em recursos estilísticos, inclui propostas de
mundo, olha para o mundo e tenta alterá-lo, formula uma nova proposta social.
Novas Cartas Portuguesas, escrito com Maria Isabel Barreno e Maria
Velho da Costa, teve um lugar de destaque neste trabalho, e tal deveu-se ao
papel de destaque que desempenhou na história literária e na história
portuguesa. Em primeiro lugar, como já vimos, é uma obra intertextual, dialoga
com outras, conseguindo alcance no passado. Ao mesmo tempo, foi escrita a
seis mãos, acção rara em literatura, desafiando as noções de autoria. De resto,
incluía na sua proposta de génese uma proposta de desafio ao que o regime
político tentava impor.
Ainda que o livro, também devido à sua censura pela PIDE, não tenha
sido muito lido, teve um papel político ímpar dentro daqueles que aqui
tratámos, contando com solidariedade internacional, manifestações e levando à
criação do primeiro grupo do Movimento de Libertação das Mulheres. Sendo a
única obra claramente feminista da história literária portuguesa, chamou a
atenção para a relação de subalternidade em que as mulheres viviam,
434
denunciando-a como construção social e rejeitando a naturalização que o
Estado Novo tentava fazer passar. Claro, uma vez publicada, teve o destino
adivinhável no que à censura diz respeito, embora o alcance da sua recepção
fosse inimaginável. Afinal, nunca ocorrera uma onda de solidariedade tão forte
pela proibição de uma obra literária em Portugal.
Com uma recepção tão intensa e combativa, a importância de Novas
Cartas Portuguesas supera, e muito, o seu valor literário, ainda que este não
deva ser ignorado. Aqui, foi analisada enquanto ataque que constitui ao poder
instituído e é principalmente como forma de luta e denúncia que é ainda hoje
lida e estudada.
Posto isto, concluímos que nem todas as obras estudadas foram capazes
de expressar o zeitgeist em que foram concebidas, nem todas tinham imbuída a
proposta de um mundo diferente, nem todas fizeram daquilo que as fez ser
censuradas elementos internos das estruturas narrativas. Se nuns exemplos é
claro que se procura a relação dialógica autora-obra-púbico, noutras há
elementos que não parecem exigir uma resposta do leitor, que não parecem
responsabilizá-lo no processo de comunicação ou mesmo na vida pública. Se
numas a estruturação das obras foi norteada por um claro controlo crítico,
noutras esse controlo não parece sequer ter existido.
Assim, como nos parece que as autoras que caíram no esquecimento
foram aquelas que não questionaram o mundo nem quiseram intervir sobre ele
de forma inequívoca, que não desempenharam qualquer papel na estética
linguística, não se adentraram nas entranhas da sociedade portuguesa ou nas
construções psicológicas das personagens, concluímos que essa ausência do
cânone se deveu mais aos vários processos de canonização de autores do que à
acção dos serviços censórios. Não queremos com isto dizer que o primeiro é
435
independente do segundo, queremos apenas sugerir que, mesmo sem a censura
imediata dessas obras, elas não teriam nem o deslumbramento estético nem a
reflexão sociológica nem a capacidade interventiva necessárias para
sobrevivem dentro da história literária ou da história do país. As autoras aqui
tratadas que caíram no esquecimento não tiveram qualquer impacto nos
movimentos literários do século XX nem na sociedade portuguesa. As que,
mesmo apesar da ditadura, conseguiram o seu lugar fizeram-no graças à
capacidade interventiva das suas obras e ao seu olhar atento ao zeitgeist, assim
como à sua vontade de alterá-lo. Exigiam do leitor; iniciavam relações
dialógicas e não discursos unilaterais.
As linhas de censura da PIDE eram quase sempre previsíveis: foram
censuradas as obras de cariz erótico e aquelas que, de alguma forma,
incentivavam à sublevação. Se uma mexia com a moral católica do Estado
Novo, altamente repressiva, a outra ameaçavam a prossecução imperturbável
do regime. No primeiro caso, o ser-se mulher era particularmente
problemático, e os agentes da PIDE consideravam sempre que o cariz erótico,
para além de imoral ou pecaminoso, era indigno de mulheres. Tal está de
acordo com essa moral referida, que impelia a dessexualização das mulheres.
As escritoras que aqui tratamos, de um modo geral, têm muito pouco
em comum entre si. Ou melhor, podemos reuni-las em dois grupos. Se é certo
que podem partir de um lugar social com algumas semelhanças (por exemplo,
fazerem parte de uma maioria social tratada como minoria, estarem às mãos de
um regime que tenta domesticá-las e diminuí-las intelectualmente e diferirem
de grande parte das outras mulheres do país, já que tinham acesso à
escolarização e, por isso, de alguma forma, podiam já estar enquadradas em
alguma elite intelectual do país), também é certo que tratámos aqui obras
436
muitíssimo diferentes. Assim, se Maria Archer, Carmen de Figueiredo, Maria
da Glória e Nita Clímaco não fizeram das suas obras uma busca constante pelo
diálogo com o leitor, se dele não exigiram respostas e acção, se não tentaram
acicatá-lo e provocá-lo, se não fizeram das suas criações literárias inequívocas
acções políticas, o mesmo não se poderá dizer de Natália Correia, Fiama H. P.
Brandão, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno,
que olharam para o seu tempo e quiseram alterá-lo, fazendo da criação artística
uma ferramenta política e social.
437
12. Obras analisadas
438
_________________________ (s/d). O Museu i n Novíssimo Teatro
Português. Lisboa: Ao Sol.
439
GLÓRIA, Maria da (1962). A Magrizela. Lisboa: edição de autora.
13. Fontes
440
– 7546 – 1549
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI/DGE/1/874-A, SNI,
Censura, cx. 423
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI/DGE/5572
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI, Censura, cx. 733
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT/TT/SNI-DSC/19/137
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI/DGE/7596
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI/SGE/5890
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI, cx. 812
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI/SGE/7841
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI, Relatório nº 2971
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI, Relatório nº 6395
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI, Relatório nº 7677
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI, Relatório nº 7782
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI, Relatório nº 8665
Torre do Tombo, arquivo da PIDE, PT-TT/SNI, Relatório nº 9562
Torre do Tombo, arquivo do SNI/SGE, processo nº 7596
Torre do Tombo, arquivo do SNI/DGE, PT/TT/SNI-DGE/1/7841, processo
nº 7841
Torre do Tombo, arquivo do SNI/DGE, PT/TT/SNI-DGE/6/1, processo nº 33
Torre do Tombo, arquivo do SNI/DGE, PT/TT/SNI-DGE/2/5, liv. 5
Torre do Tombo, arquivo do SNI/DGE, PT/TT/SNI-DGE/1/7297
Torre do Tombo, arquivo do SNI/DGE, PT/TT/SNI-DGE/1/7596
Torre do Tombo, arquivo do SNI/DGE, PT/TT/SNI-DGE/2/6
441
13.2. Material de imprensa
442
“L’Express”, 8 a 14 de Abril de 1974
“L'Express”, 30 de Setembro a 6 de Outubro de 1974
“Le Nouvel Observateur”, 28 de Dezembro de 1966
“Le Nouvel Observateur”, de 26 de Outubro de 1973
“Libération”, 30 de Maio de 1974
“Libération”, 25 de Outubro, 1973
“Libération”, 30 de Maio de 1974
“Observateur”, 26 de outubro de 1973, nº 467
“Paris Feminist Group Newsletter”, primeiro número, volume dois, Outubro
de 1973
“Politique Hebdo”, 24 de Maio de 1973
“Politique Hebdo”, 31 de Janeiro a 6 de Fevereiro de 1974
“Politique Hebdo”, 14 a 30 de Outubro de 1974
“Politique Hebdo”, número 14, 30 de Outubro de 1974
“Público”, 25 de Novembro de 1998
“República”, 4 de Novembro de 1953
“República”, 15 de Maio de 1958
“República”, 21 de Março de 1970
“República”, 19 de Dezembro de 1972
“República”, 3 de Julho de 1973
“República”, 25 de Outubro de 1973
“República”, suplemento “Presença da Mulher”, 12 de Novembro de 1973
13.3. Revistas
443
UFRJ e Caminho.
“Dossier Fiama Hasse Pais Brandão” (1992). “Letras & Letras”. Porto: Ano
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444
ALMEIDA, São José (2010). Homossexuais no Estado Novo. Porto:
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ARRIAGA, Lopes (1976). Mocidade Portuguesa - breve história de uma
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Maria Archer no Brasil. Tese de doutoramento. São Paulo: Faculdade de
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BOTELHO, Dina Maria dos Santos (1994). “Ela É Apenas Mulher”: Maria
Archer, Obra e Autora. Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-
portugueses. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa.
447
CINTRA, Luís Miguel (2001). “Quando representámos o Auto da Família”
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DACOSTA, Fernando (2015). “Salazar não dormiu” in O Homúnculo
(Correia, Natália). Lisboa: Redil Publicações.
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FONSECA, Luís Miguel da (2002). A percepção do real na poesia de
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Filosofia de Braga, Extensão do Funchal.
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“Modern Language Review 21 (2). The Modern Language Review”, Vol. 21,
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Temas e Debates.
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de Salazar - Estado Novo e violência política. Lisboa: Editora A Esfera dos
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descosura: filosofia de liberdade em Cartas Portuguesas e Novas Cartas
Portuguesas. Dissertação (Mestrado em Literatura e Cultura Comparadas).
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
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Portugal (1947-2007), Doutoramento em Estudos sobre as Mulheres.
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