Apostila 1 - Poesia I
Apostila 1 - Poesia I
Apostila 1 - Poesia I
APOSTILA
São Luís-MA
2018
1
SUMÁRIO
2
CURSO DE LETRAS
PROGRAMA DE DISCIPLINA
DISCIPLINA: LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA – POESIA I
OBJETIVOS:
GERAL: Estudar parte da significativa produção poética (épica, lírica e satírica) em língua
portuguesa do período que compreende a Idade Média até o século XVIII
ESPECÍFICOS:
- Contextualizar a produção literária em verso do período abrangido pela disciplina;
- Diferenciar as obras estudadas no período a partir das especificidades de sua
composição;
- Analisar poemas sob o viés da “investigação tópica”;
- Discutir o problema da origem da poesia brasileira.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO:
UNIDADE II – CLASSICISMO
- Contextualização histórico-cultural do Classicismo
- A lírica de Camões
- A épica de Camões: Os Lusíadas
UNIDADE IV – ARCADISMO
- Contextualização histórico-cultural do Arcadismo
- Correia Garção
- A lírica de Bocage
- A lírica mineira: Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS:
Aulas expositivas
Leitura e análise da produção poética dos autores relacionados
AVALIAÇÃO:
Prova escrita
Apresentação de seminários
BIBLIOGRAFIA BÁSICA:
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo; Cultrix, 2006
3
BRANDÃO, Roberto de Oliveira. Poética e poesia no Brasil (colônia). São Paulo: Unesp,
2001.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. Rio de
Janeiro: Ouro sobre azul, 2007.
COUTINHO, Afrânio. Conceito de literatura brasileira. Petrópolis: Vozes, 2008.
MOISES, Massaud. A Literatura portuguesa. São Paulo: ed. Cultrix. 1999.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR:
4
APRESENTAÇÃO
5
Uma tradição literária se estabelece por um processo mais ou menos consciente de
preservação, aperfeiçoamento e continuidade de um legado. Através das práticas de imitação
e emulação, os poetas da tradição entendiam que a criação literária passava por um processo
de assimilação do legado deixado pelos mestres do passado e pela internalização e
aprendizado de uma técnica a que se devia juntar o talento do escritor que, por sua vez, se
manifestaria na capacidade de dar seu toque pessoal e inovador aos antigos temas, estilos,
formas e modelos já consagrados. Assim, toda vez que dissermos, nesta apostila, que um autor
“imita” ou “emula” um outro, não é de plágio ou de furto que estamos tratando, mas sim de
uma prática não apenas comum durante séculos, mas que inclusive fazia parte do próprio
processo de legitimação do talento poético, já que a maestria de um poeta não estava em fazer
algo totalmente original, inédito ou desconhecido do público. Ao contrário, a prova de sua
habilidade e de seu valor estava justamente na capacidade de inovar os parâmetros já
estabelecidos.
Um exemplo: o tema poético do carpe diem.
Os poetas da Antiguidade, desde os mais remotos, como Homero, trataram do tema da
brevidade da vida, ou seja, exploraram a ideia de que o tempo passa e todos somos finitos. Já
na cultura romana, Horácio associou esse motivo poético (o da passagem do tempo) à
recomendação de que a vida precisa ser vivida antes que seja tarde e que ficar tentando
adivinhar o futuro é uma tolice. O resultado é um poema cujo verso final é introduzido pela
expressão latina carpe diem que, literalmente, significa “colhe o dia”, ou seja, aproveite o
instante, pois o tempo passa e amanhã será tarde demais. Eis o poema na tradução de Antonio
Cícero:
1
Recomendo a leitura do texto postado no blogue de Antonio Cícero de onde essa tradução foi retirada:
https://www.revistaprosaversoearte.com/o-famoso-poema-carpe-diem-do-poeta-romano-horacio/
2
“[...] motivos, temas e esquemas formais que se repetem ao longo dos tempos, permanecendo substancialmente
invariáveis – que têm a sua origem imediata em textos gregos, helenísticos e latinos e que se disseminaram nas
6
e a admoesta no sentido de não tentar desvendar o futuro (“nem tentes os cálculos
babilônicos”); recomenda a ela que aceite o que o destino lhe oferecer: sejam muitos anos
(“invernos”) seja o último. Ao final, propõe que a verdadeira sabedoria consiste em gozar o
presente (“decanta o vinho” – leia-se: prepara o vinho para ser bebido) e não alimentar
esperanças no amanhã.
Esse é apenas um dos tantos exemplos de topos poético que serviram de parâmetro
imitativo para inúmeros poetas de épocas literárias diversas. O desafio criativo de um poeta
tradicional seria, portanto, o de acolher um dado do patrimônio comum da poesia e inová-lo,
inscrevendo seu nome na grande cadeia da tradição poética. Como exemplos de imitação
poética do carpe diem na poesia brasileira da época colonial temos o soneto “Discreta e
formosíssima Maria” de Gregório de Matos (trabalhado nesta apostila) e a lira XIV da 1ª parte
da obra Marília de Dirceu do poeta árcade Tomás Antonio Gonzaga.
Eis, portanto, a ideia que serviu de fio condutor para este material: apresentar casos de
imitação/emulação a fim de que o estudante possa ser introduzido nos temas relativos às
questões de tradição literária. Não se trata, portanto, de um material que possa, de maneira
nenhuma, substituir os manuais de história da literatura existentes, tampouco a leitura de
textos críticos e teóricos, isso porque aqui não são apresentadas informações sobre os autores
nem sobre seus respectivos estilos de época. Tais informações, aliás, são importantes para a
compreensão mais ampla e completa dos mecanismos de imitação na poesia de língua
portuguesa do século XII ao XVIII.
literaturas europeias em língua vulgar durante a Idade Média e em épocas posteriores ou que se formaram já nas
literaturas europeias modernas, no âmbito do código de determinados estilos de época – por exemplo, os tópicos
de código petrarquista ou os tópicos do código barroco – ou no âmbito do código de determinados gêneros
literários - os tópicos, por exemplo, do código bucólico. Estes tópicos, todavia, embora funcionando
semioticamente num raio temporal de longue durée – e daí lhes advém a relativa transtemporalidade que os
marca como tópicos – não só estão enraizados originariamente numa historicidade peculiar, como também se
transformam funcionalmente em conformidade com o sistema literário em que, diacronicamente, possam vir a
integrar-se – o tópico das ruínas, por exemplo, assume significados diversos no código da poesia barroca e no
código da poesia romântica - , de modo que a historicidade de cada sistema literário relativiza necessariamente
a sua constância sêmica e/ou formal. Na memória do sistema literário observa-se assim uma tensão contínua
entre factores meta-históricos e factores históricos, entre a lógica da invariância e a impositividade da
transformação temporal, entre a conservação e a inovação [...]” (AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria
da literatura. 8ª edição. Coimbra, Livraria Almedina, 2002. P. 262-263)
7
Introdução ao Trovadorismo3
O fragmento abaixo está escrito em galego moderno, idioma que praticamente não
oferece dificuldades ao leitor brasileiro. O trecho trata das diferenças entre os três principais
tipos de cantigas trovadorescas: a cantiga de amor, a cantiga de amigo e a cantiga de escárnio
e maldizer. Observe que o autor (Arias Freixedo) estabelece uma divisão entre as cantigas
baseada no grau de idealização, acerca da temática amorosa, que elas apresentam:
OBSERVAÇÃO: para elucidações acerca do vocabulário das cantigas ou mesmo para ter acesso
a comentários sobre elas, acesse o link indicado na nota de rodapé 3 e use a ferramenta de busca
para localizar a cantiga no portal.
Cantiga 1
3 As cantigas n. 1 e n. 2 foram extraídas de MONGELLI, Lênia Márcia. Fremosos cantares. Antologia da lírica medieval
galego-portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2009. A cantiga n. 3 foi copiada do sítio
http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=549&pv=sim
4 ARIAS FREIXEDO, Xosé Bieito (Ed.). Antoloxía de poesía obscena dos trobadores galego-portugueses. Santiago de
8
Cantiga 2
E rompestes í o brial,
que fezestes ao meu pesar.
Poilo cervo í ven
esta fonte seguídea ben,
poilo cervo í ven.
E rompestes í o vestir,
que fezestes a pesar de min.
Poilo cervo í ven
esta fonte seguídea ben,
poilo cervo í ven. (Pero Meogo)
Cantiga 3
Preguntar-vos quero por Deus,
senhor fremosa, que vos fez
mesurada e de bom prez,
que pecados forom os meus
que nunca tevestes por bem
de nunca mi fazerdes bem.
9
Questões:
2. Do que trata cada uma das três cantigas? Quais as diferenças de linguagem entre elas?
(valor: 2,0 pontos)
***
Cantigas sobre o “morrer de amor”5
Cantiga 4
COMENTÁRIO: temos, na cantiga abaixo, uma típica cantiga de amor (com refrão) em que
o eu lírico diz que viver na coita é “pior que a morte”. Na segunda estrofe (versos 2 e 3) ele
diz que melhor lhe será morrer pela sua amada. Observe, também, algo que era muito
recorrente nas cantigas dessa época: a importância da visão da mulher amada como momento
deflagrador do sentimento amoroso! Nesta cantiga, por exemplo, o verbo “ver” ocupa um
lugar de destaque: “vi polo meu gram mal”/ “Polo meu gram mal vi” (leia-se: foi por ver a
amada que o eu lírico se viu subjugado ao estado de sofrimento [“meu grande mal”] intenso
em que se encontra). Prova da importância da experiência da visão é a seguinte passagem do
Tratado do amor cortês (obra medieval que trata sobre o amor) de André Capelão: “Amor é
uma paixão natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da lembrança obsedante dessa
beleza. [...] (CAPELÃO, 2002, p. 5) A cegueira é um obstáculo para o amor porque um cego
não enxerga e, por essa razão, nada pode provocar reflexões obsendantes em seu espírito: o
amor não pode, portanto, nascer nele, como mostrei claramente antes.” (CAPELÃO, 2002, p.
15)6
5 Cantigas n.1 e n.2 extraídas de MONGELLI, Lênia Márcia. Fremosos cantares. Antologia da lírica medieval galego-
portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2009. A cantiga n. 3 foi extraída de LAPA, Manuel Rodrigues (Ed.). Cantigas
d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses. 3. ed. ilustr. Lisboa: João Sá da Costa, 1995. Para
esclarecimentos sobre vocabulário, consulte o site: http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=549&pv=sim
6
CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
10
Em gram coita, senhor,
que peior que mort'é,
vivo, per bõa fé;
e polo voss'amor
esta coita sofr'eu
por vós, senhor, que eu
Cantiga 5
COMENTÁRIO: a cantiga abaixo é um caso atípico por mesclar elementos de dois gêneros:
a cantiga de amigo e a cantiga de escárnio e maldizer. O “ai amigas”, presente logo no segundo
verso da primeira estrofe, assim como a palavra “amigo” (que, em galego-português medieval
quer dizer “namorado”), no primeiro verso, indicam se tratar de um eu lírico feminino, algo
próprio das antigas de amigo, como sabemos. Entretanto, o assunto da cantiga é uma clara
sátira ao emprego retórico de dois clichês poéticos da época: o enlouquecer (“ensandecer”) e
o morrer de amor! Esse tom de deboche e ridicularização enquadra a cantiga no gênero
escárnio e maldizer.
11
Ora vejamos o que nos dirá
pois veer viv' e poys sandeu non for!
Ar direy-lh'eu: "Non morrestes d'amor!"
Mays ben se quite de meu preyto ja:
ca nunca lh'eu vejo morte prender
nen'o ar vejo nunca ensandecer.
CANTIGA 6
COMENTÁRIO: “Dirigida ao trovador Rui Queimado, esta composição é uma das mais
célebres paródias ao cliché da morte de amor, tão repetidamente jurada nas cantigas de amor
de todos os trovadores galego-portugueses (Pero Garcia Burgalês não sendo, aliás, exceção).
A sátira que aqui desenvolve talvez tivesse sido propiciada por uma particular cantiga de Rui
Queimado, na qual este trovador, por amor da sua senhor, lhe diz que se arrepende da sua
anterior decisão de querer morrer, cantiga esta que tem, aliás, também ela, um tom semi-
jocoso. Note-se, entretanto, que esta paródia de Pero Garcia Burgalês visa, ao mesmo tempo,
e mais especificamente, os dotes poéticos de Rui Queimado, cujo problema, para Pero Garcia,
seria querer "meter-se" a fazer aquilo que não sabe7.”
7
Comentário retirado de: http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1411&tr=6&nl=0&pv=sim
12
E se mi Deus a mi desse poder
qual oj’el á, pois morrer, de viver,
já mais morte nunca [eu] temeria. (Pero Garcia Burgalês)
QUESTÃO:
13
CAMÕES E A IMITAÇÃO POÉTICA
8
HORÁCIO. “Arte Poética”. In.: ARISTÓTELES, HORÁCIO & LONGINO. A poética clássica. Tradução de
Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1981; p. 63
9
DIONSÍO DE HALICARNASSO. Tratado da imitação. Tradução, introdução e notas por Raul Miguel
Rosado Fernandes. Lisboa: INIC/Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, 1986; P. 51-52
14
associação com a aemulatio, não apenas a reverência e a admiração que levariam um autor a
tomar um outro como modelo, mas também um ímpeto de transcendê-lo na perícia poética.
Dessa forma, a relação de um autor com seus predecessores ou contemporâneos estabelecer-
se-ia no plano de uma disputa, positiva, decerto, mas que pressupõe rivalidade e concorrência.
Foi nesse mesmo viés, o da concorrência literária, por assim dizer, que Longino,
após afirmar serem a imitação e a emulação dos grandes escritores antigos uma das vias de
acesso ao sublime, fez o elogio da contenda literária utilizando um vocabulário que chega a
entrar no campo semântico bélico ao usar exemplos de disputas da tradição (aqui, no caso,
Platão versus Homero):
Nem me parece que ele [Platão] haveria introduzido tantas e tão grandes coisas em
tratados de filosofia, nem passado tão frequentemente para matérias e locuções
poéticas, se não quisesse disputar com todas as forças a primazia com Homero, à
maneira de um antagonista ainda novo com um que já tem servido de admiração a
todos, e, ainda que talvez com emulação sobeja e quase à ponta de lança, contudo
não sem utilidade, porque, conforme Hesíodo, “é nobre entre os mortais esta
contenda”. E na verdade é agradável e digníssimo de gloriosa vitória este campo e
esta coroa, onde ainda o ser vencido pelos mais antigos não é sem honra nem
glória10. (LONGINO, 2014, p. 777)
10
LONGINO. Do sublime. In: SOUZA, Roberto Acízelo de (Org.). Do mito das Musas à razão das Letras.
Textos seminais para os estudos literários (século VIII a. C. – século XVII). Chapecó: Argos, 2014.
15
por séculos no universo das letras neolatinas. Na França, por exemplo, A arte poética de
Boileau (1674) chega a parafrasear várias sentenças horacianas.. Transcrevo a paráfrase de
Boileau a um trecho da poética de Horácio citado por mim anteriormente: “Entre esses dois
excessos, a estrada é difícil. Para encontrá-la, siga Teócrito e Virgílio. Que suas mãos não
deixem de folhear, dia e noite, os termos escritos pelos dois poetas11.” Já em Portugal, para
ficarmos apenas com um exemplo, vale mencionar a Dissertação do poeta Correia Garção
que, naquela altura (o ano é 1757), preocupado com o processo de saturação da prática
imitativa cujos sinais se deixavam verificar na redução da imitação a produções servilmente
copistas ou tradutórias assinala: “Devemos imitar e seguir os Antigos: assim no-lo ensina
Horácio [...]. Mas esta doutrina, este bom conselho, devem abraçá-lo e segui-lo de modo que
mais pareça que o rejeitamos, isto é, imitando e não traduzindo.”
Soneto 1
COMENTÁRIO: este talvez seja, para nós brasileiros, o mais conhecido soneto camoniano,
dada a popularidade que ganhou na versão musicada da banda Legião Urbana12. Ao lado do
soneto de Camões, pusemos um soneto do poeta barroco espanhol Francisco de Quevedo.
Atente para os recursos que o poeta emprega para manter a ideia central do poema português.
Eis o comentário de Benjamin Abdala Júnior ao soneto de Camões e que vale, de certa
maneira, para sua versão em espanhol: “este poema sobre as contradições do amor começa
com a palavra ‘Amor’ e termina com ela de forma interrogativa. O poeta tenta definir o que é
o amor e não o consegue. Fica apenas com o registro de seu caráter ambíguo.”
11
BOILEAU, Nicolas-Despréaux. A arte poética. Tradução de Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 2012;
p. 30
12
O título da canção é “Monte castelo” e está no álbum “Quatro estações”. Ouça a canção e atente para o
intertexto com trechos da Carta de Paulo aos Coríntios.
16
Amor é um fogo que arde sem se ver; Es hielo abrasador, es fuego helado,
É ferida que dói, e não se sente; es herida que duele y no se siente,
É um contentamento descontente; es un soñado bien, un mal presente,
É dor que desatina sem doer. es un breve descanso muy cansado.
É um não querer mais que bem querer; Es un descuido que nos da cuidado,
É um andar solitário entre a gente; un cobarde con nombre de valiente,
É nunca contentar-se e contente; un andar solitario entre la gente,
É um cuidar que ganha em se perder; un amar solamente ser amado.
Mas como causar pode seu favor Éste es el niño Amor, éste es su abismo.
Nos corações humanos amizade, ¿Mirad cuál amistad tendrá con nada
Se tão contrário a si é o mesmo Amor? el que en todo es contrario de sí mismo13!
Quevedo (1580 – 1645)
Soneto 2
Neste soneto Camões trata de um tema abordado por diversos poetas de várias épocas: a
“profecia ameaçadora”. A ideia pode ser resumida da seguinte maneira: o eu lírico,
apaixonado, não recebe, em troca, o amor de sua dama. Diante dessa “ingratidão” ele,
vingativo, profetiza um futuro ameaçador para a mulher: chegará o dia em que, perdida a
beleza e sozinha, ela se arrependerá, já tarde demais, de não ter correspondido às suas
investidas amorosas.
Se as penas com que Amor tão mal me trata Já, Marfiza cruel, me não maltrata
Quiser que tanto tempo viva delas, saber que usas comigo de cautelas,
Que veja escuro o lume das estrelas, que inda te espero ver, por causa delas,
Em cuja vista o meu se acende e mata; arrependida de ter sido ingrata.
Vereis, Senhora, então também mudado Pois se sabes que a tua formosura
O pensamento e a aspereza vossa, por força há de sofrer da idade os danos,
Quando não sirva já sua mudança. por que me negas hoje esta ventura?
13
Eis a tradução de José Bento para o soneto de Quevedo: É gelo abrasador, fogo gelado,/é ferida que dói e
não se sente, /é um sonhado bem, um mal presente, /é um breve descanso fatigado; // é um sossego que nos
dá cuidado,/um cobarde com nome de valente,/solitário andar por entre gente,/um amar nada mais que ser
amado; //é uma liberdade encarcerada,/que dura até ao último momento;/doença que piora se é tratada.//
Este o menino Amor, o seu tormento. /Vede a amizade que terá com nada/o que em tudo vai contra o seu
intento!
17
SONETO 3
Cara minha inimiga, em cuja mão Afortunada essa, se foi celebrada por minha
Pôs meus contentamentos a ventura, pequena obra!
Faltou-te a ti na terra sepultura, Minhas poesias serão tantos monumentos à tua
Por que me falte a mim consolação. beleza.
Pois nem os custos das Pirâmides, elevados até os
Eternamente as águas lograrão astros,
A tua peregrina formosura: Nem a morada de Júpiter Eliano feita à imagem do
Mas enquanto me a mim a vida dura, céu,
Sempre viva em minha alma te acharão. Nem a riqueza opulenta do túmulo de Mausolo
Escapam da condição final da morte;
E, se meus rudos versos podem tanto, Ou o fogo ou a água destroem sua beleza.
Que possam prometer-te longa história Ou a massa vencida ruirá ao peso dos golpes dos
Daquele amor tão puro e verdadeiro, anos.
Mas um nome adquirido pelo talento desafiará o
Celebrada serás sempre em meu canto: tempo:
Porque, enquanto no mundo houver memória, A glória, para o gênio, permanece imortal
Será a minha escritura o teu letreiro.
(Camões) Propércio (47-14 a.C.)
QUESTÃO:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Seis horas enche e outras tantas vaza
muda-se o ser, muda-se a confiança; A maré pelas margens do Oceano,
todo o mundo é composto de mudança, E não larga a tarefa um ponto no ano,
tomando sempre novas qualidades. Depois que o mar rodeia, o sol abrasa.
19
POESIA NO BRASIL
PROSOPOPEIA (1601) de Bento Teixeira
Após a leitura do texto de Afrânio Coutinho sobre a origem da literatura no Brasil, o
aluno certamente compreendeu que as primeiras produções literárias aqui realizadas durante
o período colonial deram seguimento ao processo imitativo realizado na Europa. Isso levou,
e ainda leva, alguns estudiosos a desconsiderar como brasileira a poesia feita no Brasil durante
o século XVI. De acordo com esse ponto de vista, o que aqui se produziu durante esse período
foi literatura portuguesa realizada em solo brasileiro. Essa não é, como se sabe, a visão de
Afrânio Coutinho, para quem a poesia efetivamente brasileira começa com os primeiros
escritos dos jesuítas que aqui puseram os pés.
O caso que examinaremos aqui é o do primeiro registro de uma epopeia (ou tentativa
de epopeia) da poesia brasileira: a Prosopopeia, de Bento Teixeira. Trata-se, ao mesmo tempo,
da primeira obra que apresenta traços de imitação da grande epopeia portuguesa, Os Lusíadas
(vale destacar, aqui, o pouco tempo de diferença entre os anos das duas publicações. Os
Lusíadas é de 1572 e a Prosopopeia é de 1601). Obedecendo ao método da “leitura cruzada”,
faremos um paralelo entre algumas estrofes da Prosopopeia e dos Lusíadas, estabelecendo
algumas relações entre ambas as obras. Antes disso, contudo, um breve comentário sobre a
obra de Teixeira.
As opiniões sobre a obra em questão não são das mais elogiosas. Para J. Galante de
Souza, por exemplo, esteticamente a Prosopopeia não resiste a um juízo mais acurado e seu
único mérito reside em ser a primeira obra literária no Brasil, cujo esquecimento não traria
grave prejuízo para as nossas letras. Segundo José Veríssimo o poema é “cheio de
reminiscências, imitações, arremedos e paródias dos Lusíadas. Não tem propriamente ação, e
a prosopopeia de onde tira o nome está numa fala de Proteu, profetizando post facto, os feitos
e a fortuna, exageradamente idealizados, dos Albuquerque, particularmente de Jorge, o
terceiro donatário de Pernambuco, ao qual é consagrado”. José Castello, por sua vez, vê alguns
méritos na Prosopopeia ao constatar, nela, um primeiro documento da influência de Camões
no Brasil, o início da poesia laudatória e a apresentação de atitudes nativistas. Apesar disso,
constata sua fraqueza poética. Nelson Werneck Sodré diz só se salvar na Prosopopeia a sua
intenção literária, o mais, para ele, seria defeito. Por fim, Wilson Martins considera Bento
20
Teixeira um sub-Camões e Massaud Moisés diz que o fato de considerar o poema como de
grande relevância histórica não o salva de quase nenhuma relevância estética14.
Sobre a história, essa tem como narrador Proteu15, guardador do rebanho marinho,
possuidor do dom da metamorfose e da profecia. Proteu reúne os seres do mar, comandados
por Netuno, na entrada do porto de “Paranambuco”, de maneira a antecipar as glórias de D.
Jorge de Albuquerque Coelho e sua “valerosa” família. Basicamente o poema exalta a figura
de D. Jorge e suas qualidades de bravo guerreiro, ao retratar a colonização da Capitania de
Pernambuco, com a família, lutando contra os índios e os invasores franceses; exaltação da fé
católica, no episódio do naufrágio da nau Santo Antônio (1565), em que Jorge Albuquerque
repudia e condena a antropofagia dos sobreviventes para se manterem vivos, preferindo
acreditar na providência divina, que deverá guiá-los em segurança a Lisboa. E, finalmente,
exaltação da sua fidelidade e vassalagem ao rei D. Sebastião, a quem defende, juntamente com
o irmão Duarte de Albuquerque, dos árabes na batalha de Alcácer-Quibir (1578), onde o
jovem rei perde a vida.
Na aproximação que faremos a seguir, perceba, logo de início, como o poema de Bento
Teixeira (segunda coluna) segue o modelo camoniano (primeira coluna) já na própria estrutura
das estrofes, na organização das rimas e na métrica: estrofes de 8 versos cada, com versos
decassílabos heroicos e rimas mistas do tipo ababacc:
As armas e os Barões assinalados, Cantem Poetas o Poder Romano,
Que, da Ocidental praia Lusitana, Sobmetendo Nações ao jugo duro;
Por mares nunca dantes navegados, O Mantuano pinte o Rei Troiano,
Passaram ainda além da Taprobana, Descendo à confusão do Reino escuro;
Em perigos e guerras esforçados, Que eu canto um Albuquerque soberano,
Mais do que prometia a força humana, Da Fé, da cara Pátria firme muro,
E entre gente remota edificaram Cujo valor e ser, que o Ceo lhe inspira,
Novo Reino, que tanto sublimaram; Pode estancar a Lácia e Grega lira. (I)
14
Essas informações de críticos literários sobre a Prosopopeia foram extraídas do estudo introdutório presente
na seguinte edição: TEIXEIRA, Bento. Prosopopeia. Organização de Milton Marques Júnior, Fabrício Possebon
e Juvino A. Maia Junior. João Pessoa: Ideia (editora universitária), 2004.
15
Filho da nereida Tétis com o titã Oceanos, Proteu é uma divindade do panteão grego que tem como atributo
fundamental predizer o futuro. Contudo, evita ao máximo revelar os segredos da fortuna aos homens e assume
formas monstruosas para tentar fugir dos apelos mortais em relação ao conhecimento do devir
21
As navegações grandes que fizeram; As Délficas irmãs chamar não quero,
Cale-se de Alexandro e de Trajano que tal invocação é vão estudo;
A fama das vitórias que tiveram; Aquele chamo só, de quem espero
Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A vida que se espera em fim de tudo.
A quem Neptuno e Marte obedeceram. Ele fará meu Verso tão sincero,
Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Quanto fora sem ele tosco e rudo,
Que outro valor mais alto se alevanta. Que per rezão negar não deve o menos
(Canto I, 2 e 3) Quem deu o mais a míseros terrenos. (II)
***
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
22
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza. (X,145)
23
A IMITAÇÃO POÉTICA EM GREGÓRIO DE MATOS
Muito provavelmente, Gregório de Matos teria tido, como modelo, o seguinte soneto
do poeta espanhol Lope de Vega:
Un soneto me manda hacer Violante,
que en mi vida me he visto en tal aprieto:
catorce versos dicen que es soneto,
burla burlando, van los tres delante.
16
Trata-se de um caso de um poema imbuído de metalinguagem, ou seja, um poema cujo assunto diz respeito
à própria poesia.
17
Esses dois termos (encomiástico e laudatório) aparecem nas informações críticas a respeito do poema
Prosopopeia. Trata-se da poesia cuja função era a de enaltecer alguma figura pública. Esse gênero era bastante
praticado, como sabemos, já que, na época, interessava ao poeta os possíveis favorecimentos que poderiam
advir do “marketing” público a que seu poema prestaria.
24
Yo pensé que no hallara consonante,
y estoy en la mitad de otro cuarteto;
mas, si me veo en el primer terceto,
no hay cosa en los cuartetos que me espante.
Segundo João Carlos Teixeira Gomes, em seu livro O Boca de brasa- um estudo
intertextual de plágio e criação intertextual, “não se julgue, porém, que a ideia de Lope de
Veja era original. O soneto acima é considerado imitação de outro, atribuído a Diego Furtado
de Mendonça (“Pedes, reina, um soneto, y lo hago”), parecendo tratar-se de mais um caso de
emulação entre poetas, pois há indicação de novos autores, entre os quais D. Diego de
Mendonza Barros. O de Lope ganhou notoriedade, estando incluído em várias antologias,
tendo estimulado imitações dentro e fora da Espanha” (GOMES, 1985, p. 98)
Outro caso de emulação em Gregório faz-se presente no conhecido soneto “Discreta
e formosíssima Marília”:
Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:
18
Numa tradução livre, o poema ficaria mais ou menos assim: Violante me manda fazer um soneto/Nunca na
minha vida me vi em tal aperto/Catorze versos dizem que tem um soneto/brincando, brincando, vão os três
adiante.// Eu pensei que não chegaria tão longe/ E estou na metade de outro quarteto/ Mas se eu chego ao
primeiro terceto/ Não há nada nos quartetos que me espante// No primeiro terceto vou entrando/E parece
que entrei com pé direito/ Pois um fim com este verso lhe vou dando// Já estou no segundo e suspeito/ Que
estou os treze versos acabando/Conta se são catorze e está feito.
25
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada
Antes de compararmos o soneto citado com seus modelos espanhóis, vale destacar que,
do ponto de vista temático, Gregório, neste poema, está recuperando um tema muito caro à
tradição poética, o carpe diem, sobre o qual falamos ligeiramente na apresentação desta
apostila. Nesse poema percebe-se, portanto, a retórica da persuasão praticada pelo eu lírico
que associa o ápice da jovialidade e da beleza da mulher (marcado em metáforas como a
“rosada aurora” do rosto, o “sol” dos olhos etc.) ao momento mais oportuno para o
aproveitamento da vida (“goza da flor da mocidade”). Há, ainda, uma das marcas principais
do carpe diem: a constatação da passagem impiedosa do tempo que consome a tudo e a todos.
Isso posto, passemos a dois sonetos do poeta espanhol Luís de Gongora:
Mientras por competir con tu cabello, Ilustre y hermosísima María,
oro bruñido al sol relumbra en vano; mientras se dejan ver a cualquier hora
mientras con menosprecio en medio el llano e en tus mejillas la rosada aurora,
mira tu blanca frente el lilio bello; Febo en tus ojos y, en tu frente, el día,
goza cuello, cabello, labio y frente, antes que de la edad Febo eclipsado
antes que lo que fue en tu edad dorada y el claro día vuelto en noche oscura,
oro, lilio, clavel, cristal luciente, huya la Aurora del mortal nublado;
no sólo en plata o vïola troncada antes que lo que hoy es rubio tesoro
se vuelva, mas tú y ello juntamente venza a la blanca nieve su blancura,
en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en goza, goza el color, la luz, el oro20.
nada19.
26
originais. Com isso opera sobre eles um verdadeiro trabalho de rasura, seleção e recombinação
das imagens e ideias recebidas, resultando num poema novo, mas que deixa ver (ou exibe) as
fontes de que proveio. Ficam assim conciliados a criatividade pessoal do poeta, em verdade
menos importante no período, e os princípios contidos nos modelos anteriores.
Ao excluir os termos particularizantes: “Febo” (mitológico), “Arábia” e “Tajo”
(geográficos), que ancoram os poemas-fonte na história e na cultura europeias, Gregório
confere ao seu poema um campo semântico mais amplo, pois menos definido, possibilitando,
assim, uma adequação e receptividade ao leitor de outro tempo e lugar, para quem aqueles
elementos não eram familiares. Com isso temos a impressão, estilisticamente “moderna”, de
que nosso poeta levou às últimas consequências a tarefa de apropriação e recriação de sua
fonte, atualizando a relação entre tema, forma e linguagem, como o discípulo atento e sensível
que, ao aprender com competência a técnica do mestre, é capaz de reproduzi-la criativamente
em sua própria obra. (BRANDÃO, 2001, p. 37-38)
21
Sugerimos a audição da versão musicada desse soneto por Caetano Veloso no belíssimo álbum “Transa” de
1972: https://www.youtube.com/watch?v=cs2L70ZfVTI
27
A IMITAÇÃO NO ARCADISMO
DISSERTAÇÃO TERCEIRA
de Correia Garção
OBSERVAÇÃO: A Arcádia Lusitana foi uma academia literária criada em Portugal e que
funcionou de 1756 a 1776. Essa academia congregou os representantes do Arcadismo
português, como Correia Garção, autor do discurso reproduzido abaixo. Trata-se de uma
conferência proferida para os membros da Arcádia sobre o seguinte assunto: “Sobre ser o
principal preceito para formar um bom poeta procurar e seguir somente a imitação dos
melhores autores da Antiguidade.” A conferência foi realizada no dia 7 de Novembro de 1757
e nela é possível perceber claramente como os ensinamentos de Horácio, sobretudo o da
imitação, ainda eram de extrema importância.
Se assim como vós, ó Árcades, desejais formar em mim um membro digno de tão ilustre
sociedade, quisesse a fortuna dar a mão a meus desejos, ajudando-me, ao menos, com a
tranquilidade de que necessita quem escreve, poderia eu de algum modo desempenhar vossa
generosa eleição, e assentar-me menos envergonhado em um lugar que por sorte do escrutínio
tocava a um dos nossos melhores e mais distintos sócios. Substituir as vezes de um sábio,
eloquente e erudito, as vezes de um Elpino Nonacriense23 não é peso com que possam meus
ombros. Para cometer tão árdua empresa necessitava de mais brilhantes armas. Longo estudo,
profunda erudição, um vasto conhecimento dos autores mais versados e de melhores tempos,
uma natural elegância e delicada pureza de linguagem, são predicados e talentos que não
descubro em mim, e os que só me podiam desculpar a confiança com que me sacrifiquei a tão
difícil empenho. A glória de obedecer-vos é a única e feliz circunstância que me anima e me
promete a indulgência de que me fazia talvez indigno o meu atrevimento. Se não satisfaço, ao
menos obedeço.
Entre as sólidas máximas com que Horácio pretende formar um bom poeta, não é, como vós
sabeis, menos importante a imitação. Não falo da imitação da Natureza, mas da imitação dos
bons autores, daquela imitação à qual deve a Arcádia sua grande reputação e não pequena
parte dos honrados elogios com que foi recebida de nossos mais prudentes e doutos patrícios,
e que há-de espalhar seu nome pelas nações estrangeiras. Este foi em todos os séculos e será
em todas as idades o maior segredo de tão divina arte.
22
Trecho da Arte poética de Horácio cuja tradução é: “Como tradutor, tomarás cuidado para não traduzir
palavra por palavra”. Trata-se de um trecho em que Horácio diferencia a imitação da simples tradução. A ideia
será retomada por Correia Garção nessa conferência.
23
Elpino Nonacriense: pseudônimo arcádico de Antonio Dinis da Cruz e Silva
28
Os Gregos e os Latinos, que dia e noite não devemos largar das mãos, estes soberbos originais,
são a única fonte de que manam boas odes, boas tragédias e excelentes epopeias.
Este é o verdadeiro génio a que o vulgo chama veia poética e os doutos entusiasmo.
Muito pode o espírito humano! Mas nunca terá força para subir tão alto se não for pela estrada
que trilharam os antigos poetas e oradores. Entre nós, depois que acabaram os bons dias da
poesia portuguesa, poucos foram os que penetraram semelhante mistério, de que são
miseráveis testemunhas as obras dos seiscentistas. Guardava o Céu para a Arcádia a honra e
a vaidade de erguer esta bandeira e levar consigo seus compatriotas. Hoje todos desejam imitar
os Antigos, todos estudam pelos Gregos, pelos Latinos e pelos nossos bons autores: mas,
fugindo de Cila, quantos varam em Caríbdes24?
Para evitar tão depravado extremo, nos recomenda Horácio o modo com que devem ser
imitados os Antigos; e ainda que neste lugar estabeleça outras regras para conseguirmos tão
desejado fim, a mim me pareceu, olhando para o vício mais comum, que devia escolher para
assunto as poucas mas importantes palavras com que tão grande crítico nos ensina a imitar e
nos mostra o perigo de que devemos fugir. Muitos, querendo imitar Virgílio, fazem uma má
tradução desta ou daquela imagem de tão grande poeta; e escravos de suas palavras não
passam de tradutores. Não imitam, roubam e despedaçam as obras alheias: desfiguram o que
lhes agradou, como se tomassem por empresa fazer-nos aborrecer o que admiramos. Disto
acha-se que enfermam tantas quantas são as obras que todos os dias aparecem cheias de
lugares dos poetas, não imitados, mas servilmente traduzidos. É tão forte a preocupação de
que nascem tão lastimosas desordens que muitos com vaidade e com soberba apontam e
mostram os pensamentos ou ideias que roubaram ou traduziram.
Esta epidemia, que talvez reinava no tempo de Horácio, lhe deu razão para advertir aos poetas
dos vícios de que deviam fugir, quando quisessem imitar, recomendando-lhes que não
traduzissem palavra por palavra, como um fiel intérprete: assim explicam este lugar os
melhores comentadores da sua Poética. E não sei com que razão o tradutor português trabalha
por mostrar que Horácio nestas palavras dá regras para as traduções. Julgo que a ninguém
deixará de parecer óbvio e natural o sentido do texto, tão livre da anfibologia25.
Todos sabem que Horácio, ainda quando parece passar de umas para outras coisas, guarda o
melhor método e conserva o fio da sua doutrina. Dom que não podia faltar em um tão grande
lírico acostumado às digressões, que parecendo-lhe alheias do assunto, nascem dele, e o
deixam mais brilhante, majestoso e sublime.
Não falta quem compare os poetas com os navegantes. A agulha que lhes mostra os rumos é
a estrela que os guia e leva a salvamento; sem ela seriam mais frequentes os naufrágios e não
poucas vezes os que demandassem remotas praias, não voltariam com a feliz notícia de novos
continentes. O poeta que não seguir aos Antigos, perderá de todo o norte, e não poderá jamais
24
“Fugindo de Cila, quantos aram em Caríbdis?” = fugindo de um rochedo perigoso (Cila), situado junto à Sicília,
os navgantes caiam no abismo em que se converteu Caríbdis, filha de Netuno e da Terra, por haver roubado os
bois de Hércules.
25
Anfibologia: em Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e na lingüística moderna, duplicidade de sentido em uma
construção sintática (ex.: venera o filho o pai); ambigüidade, anfibolia
29
alcançar aquela força, energia e majestade com que nos retratam o famoso e angélico
semblante da Natureza.
Devemos imitar e seguir os Antigos: assim no-lo ensina Horácio, no-lo dita a razão, e o
confessa todo o mundo literário. Mas esta doutrina, este bom conselho, devem abraçá-lo e
segui-lo de modo que mais pareça que o rejeitamos, isto é, imitando e não traduzindo. Os
poetas devem ser imitados nas fábulas, nas imagens, nos pensamentos, no estilo; mas quem
imita deve fazer seu o que imita. Se imito a fábula, devo conservar a acção, ou alma da fábula;
mas devo variar de forma os episódios que pareça outra nova e minha. Se imito as pinturas,
não devo no meu poema introduzir um Polifemo, mas do painel deste gigante posso tirar as
cores para um Adamastor. Se imito o estilo, não devo servir-me das palavras dos Antigos, mas
achar na linguagem portuguesa termos equivalentes, enérgicos e majestosos, sem torcer as
frases, nem adoptar barbarisimos.
Olhando para a prática dos Latinos e bons Modernos, achamos religiosamente guardados estes
preceitos. Asim imita Virgílio a Homero na sua Eneida; assim imita a Teócrito na sua
Bucólica. Assim imitou Camões a Virgílio; António Ferreira a Horácio; Sófocles a Teócrito;
Bion a Mosco. Todos conhecem o original que achou Ovídio em Eurípedes para formar a
soberba pintura do carro de Faetonte, dos conselhos com que o pai encaminhou a resolução
do filho, do cuidado com que se assusta, e da paternal misericórdia com que pranteia a
desgraça do atrevido mancebo. Quando em idade mais adulta observamos mais atentamente
estes formosos astros da Poesia, se não fosse irrefragável a cronologia, se não constasse da
História, poderíamos duvidar de quem era o original; assim como tem havido quem ponha em
problema qual das duas nações merece a primazia. Se falasse com homens menos instruídos,
cansar-me-ia em confrontar as cópias com os originais, os Latinos com os Gregos, os
Portugueses com uns e outros. Mas na presença de Árcades não me atrevo a mostrar como
cabedal meu o que tem feito trivial a inundação de Poéticas e Retóricas, que já cansam o
espírito mais ávido de erudição e mais cobiçoso de ciência.
Não pareça que levado desta doutrina, quero dizer, do muito que Horácio e todos os bons
críticos recomendam a imitação dos Antigos, tiro por consequência que o poeta não deve dar
um passo livre, e que não pode adornar seus poemas com pinturas de que não conheça
originais. Bem será que não chegue a perdê-los de vista; mas, seguindo este rumo, pode largar
as velas à sua fantasia e voar até descobrir novos mundos. Feliz aquele que não só imita, mas
excede ao seu original. Virgílio não poucas vezes cortou esta palma, excedendo na concepção
e energia a abundância do poeta que imitava. Nas poucas palavras deste hemistíquio "Jovis
omnia plena", abrangeu as circunstâncias com que Arato descreve a omnipotência. Outras
vezes aplicando e vestindo de mais formosas cores a imagem que imitava, como nestes versos:
[Olli dura quies oculos et ferrus urget |Somnus in aeternam claudientur luna noctem ] nos
quais acrescentou majestade à majestade de Homero. Algumas, servindo-se dos oradores
gregos, dava a seus pensamentos a luz e a pompa da poesia, como nestes versos: [Aut furiis
Caci mens effera nequid inausum. Aut intentatum scellerisve dolive fuisset. ] que os críticos
conhecem ser imitação de outra semelhante sentença de Demóstenes ou de Esquines. Esta
generosa liberdade concede Horácio aos poetas, e tanto se não envergonha que se jacta de
havê-la tomado, quando, falando dos imitadores servis, disse de si mesmo: [O imitatores tetrui
pecus, ut mihi saepe | Bilem, saepe jocum vestri movere tumultus | Libera per vacuum posui
vestigia princeps | Non aliena meo pressi pede; qui sibi fidit | Dum regit examen. ] Solto de
tão pesada escravidão, imita o mesmo Horácio o lírico grego, sendo em muitos lugares
conhecidamente superior a Píndaro. Quantas vezes a simples mudança de uma palavra
aformoseia um verso, de forma que parece não só outro, mas fica na verdade melhor. É bem
conhecido o verso de Eurípedes que se lê em Sófocles, sem mais diferença que a de um
30
vocábulo; mas tão diferente, que nada tem Sófocles que resistir a Eurípedes, nem Eurípedes
que pedir a Sófocles.
Eis aqui o que não penetram a maior parte dos nossos poetas, pois adoram com tal superstição
seus antigos originais que, querendo imitá-los, não têm valor para mudar uma sílaba, quanto
mais uma palavra.
Sobem pela estrada que pisaram nossos bons poetas; seguem as pisadas dos Latinos e dos
Gregos, mas tão cobardes e medrosos que tarde ou nunca chegarão aonde eles subiram.
Semelhantes ao desgraçado caminhante que em uma tenebrosa noite pisa o caminho tão
carregado de susto que finalmente tropeça, cai e se precipita. O poeta é senhor da matéria de
que trata: se a invenção é toda sua, pode formá-la como lhe parecer; se a pediu emprestada a
algum dos antigos poetas, deve, quanto lhe for possível, reduzi-la a tão nova figura que pareça
outra e que fique sendo sempre a mesma.
31
IMITAÇÃO POÉTICA EM MARÍLIA DE DIRCEU DE TOMÁS ANTONIO GONZAGA
Como foi possível perceber no texto de Correia Garção dirigido à Arcádia Lusitana,
os princípios da tradição clássica, sobretudo os horacianos, são acolhidos como diretrizes para
a escola árcade, o que por si só já lhe confere o caráter de movimento neoclássico.
Entre os princípios que deveriam ser seguidos para a boa realização da poesia está,
portanto, a imitação. Particularmente na obra Marília de Dirceu, do poeta mineiro Tomás
Antonio Gonzaga, os casos de imitação são variados e bastante ricos. Temas como o carpe
diem (lira XIV da 1ª parte) ou o da perenidade da poesia (lira XXII da 1ª parte) estão presentes
nessa obra assim como tantos outros elementos da tradição lírica. Já na primeira lira da
primeira parte do livro, dedicada à apresentação do personagem Dirceu, percebemos um caso
de imitação de um soneto do árcade Correia Garção. Interessante notar como no soneto
português, o nome da amada, Dirceia, servirá de modelo para o nome do pastor que atua como
o eu lírico do poema de Gonzaga, o Dirceu. Além disso, em sua apresentação, o eu lírico do
soneto apresenta-se como um pastor humilde, de poucas posses, porém honrado, e que não
terá riquezas materiais para oferecer à amada, ao contrário de Dirceu que se vangloria de ter
posses e criados, além dos dotes artísticos e de juventude:
SONETO
32
Lira I de Marília de Dirceu
33
Irás a divertir-te na floresta,
Sustentada, Marília, no meu braço;
Aqui descansarei a quente sesta,
Dormindo um leve sono em teu regaço;
Enquanto a luta jogam os pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Toucarei teus cabelos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores
Graças, Marília bela,
Graças à minha estrela!
A lira XX da 1ª parte de Marília de Dirceu apresenta uma situação bastante semelhante à descrita
num poema da Grécia arcaica atribuído ao poeta Anacreonte. Interprete os poemas à luz da ideia de
imitação poética:
O Amor e a Abelha
Eros26, no meio das rosas,
Uma abelha, ali escondida,
Não viu. Dela foi picado
Seu dedinho. As mãos mimosas
Sacode, desesperado,
Olha e, abrindo os braços para
A bela mãe Citeréia27:
- “Eu morro, minha mãe cara!
Eu morro! Expiro, mãe-déia28!
Picou-me a serpentezinha
Alada, que abelha chamam
Aqueles homens da terra!”
E ela disse: - “A agulhazinha
De uma abelha te dói tanto...
Julga, ó Eros, os que feres
Como hão de sofrer e quanto!” (Anacreonte)
26
Eros é o deus do amor na mitologia grega.
27
Citeréia refere-se a Afrodite, deusa do amor e mãe de Eros. O nome é em alusão a Citera, lugar onde a
deusa era cultuada.
28
Déia = divindade feminina.
34
Em uma frondosa
Roseira se abria
Um lindo botão.
Marília formosa
O pé lhe torcia
Com a branca mão.
Marília gritando,
C’o dedo fugiu.
Amor, que no bosque
Estava brincando,
Aos ais acudiu.
35