Amor Sem Medida - Pe. M. Raymond PDF
Amor Sem Medida - Pe. M. Raymond PDF
Amor Sem Medida - Pe. M. Raymond PDF
A.I\10R .
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MEDIDA
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PADRE M. RAYMOND, O . C.S . O.
..~ EDITORA
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VOZES LIMITADA
PETRóPOLIS, RJ
19.64
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! Título do original: "The Family that Overtook Christ".
Copyright 1942 by P. ]. Kenedy & Sons.
New York, USA.
IMPRIMI POTEST
IMPRIMATUR
,I POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. E REVMO. SR.
l
1
DOM MANUEL PEDRO DA CUNH.A CINTRA ,
BISPO DE PETRóPOLIS.
FREI \VALTER WARNKE, O.f.M.
PETRóPOLIS, !0-8-1964 .
I
:I TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
l
INTRODUÇÃO
L
INTRODUÇÃO 7
* * *
Somente quero dar um aviso aos meus leitores. Não se
enganem! Pelo molde com que forjei êste livro, pode pare-
cer-lhes uma novela. Mas não se deixem enganar. E' uma
história. Os fatos são "fatos". Muitas das palavras são pa-
lavras de São Bernardo, tiradas de seus sermões ou de suas
cartas. Dramatizei muito. Inventei pouco ou quase nada.
INTRODUÇÃO 9
8 de setembro de 1942.
Natividade de Nossa Senhora.
·· \
SUMARIO
Introdução O 0 I I 4 ~ • I O o O ~ I O I 0 O O I I I O O O I I O O O I I I I O I O O 6 0 I 5
PARTE I
OS PAIS
O velho Guerreiro ............. . Venerável Tecelino 15
A Mãe que chegou a ser santa .. Beata Alice . . . . . . 47
PARTE II
PARTE lll
BERNARDO
O homem que se enamorou de Deus . São Bernardo . . . . 157
PARTE IV
Os Pais
CAPITULO 1
O VELHO GUERREIRO
fizeram com que êle batesse em seu ~ rosto. Lamento que ti-
vesse estado hoje no bosque. Lamento ainda mais que te-
nha falado do que aconteceu. Mas, já que assim fêz, venha
ao meu quarto para que eu expliqué o meu procedimento. Tra-
tarei de ensinar a ambos uma lealdade mais profunda e um
amor ainda maior.
Os três abandonaram o pátio em silêncio, dirigindo-se
para o castelo.
Passaram pelo corredor e subiram a escada. Sem uma
palavra, entraram no quarto de Tecelino. Uma vez fechada
a porta, sem ruído, Tecelino fêz sinal aos · filhos para que se
sentassem. Esticando o braço, apanhou uma lança quebrada
que pendia da parede. Dirigindo-se a Geraldo, pôs a lança
em sua mão, perguntando:
- Você sabe quando se quebrou essa lança e como foi?
- Sim, pai, respondeu sêcamente Geraldo que continuava
furioso. ·
- Então, meu filho, sabe também que quase perdi a vida
por causa dessa lança. Sabe que ela me feriu aqui, no cos-
tado direito. E se o cabo da lança não se partisse, teria pe-
netrado até o meu coração. ~sse é o ünico troféu que con-
servo de tôdas as batalhas em que tomei parte. Sabe por quê?
- Não, não sei, respondeu Geraldo agora com menos
aspereza.
- E você sabe, Guido?
- Também não, embora freqüentemente tenha feito a
mim mesmo a pergunta. O senhor venceu inúmeras batalhas,
e só conserva como recordação essa lança que quase lhe arran-
cou a vida.
- Sim. E' o único troféu que guardei como um tesouro.
Conservo essa lança quebrada para me recordar sempre de
Deus e do agradecimento que lhe devo. Como sabem, estive
muitas vêzes diante da morte; mas, nesse dia, se o cabo da
lança não se tivesse partido, estaria então diante de Deus.
E se isso tivesse acontecido naquela ocasião, teria de me
apresentar diante de Deus com as mãos vazias. Por isso, essa
lança é uma censura constante; diz-me que um dia terei de
enfrentar a Deus e que minhas mãos não deverão estar va-
ziàl). Essa lança ine lembra sempre que devo ser grato a Deus
pelá vida ao recordar-me como estive perto da morte. Só ~~
guardo essa lembrança da misericórdia de Deus. Compreen-
deu, Geraldo?
CAP. I: O VELHO GUERREIRO 21
faz de tal modo que nem o senhor, nem eu, nem mortal algum
nos sentimos atemorizados. Isso é o que eu chamo arte di-
vina. E digo mais. Digo que Alice, a castelã de Fontaines,
possuía essa arte em tôda a sua perfeição. Ângela, a viúva,
dir-lhe-á como fazia Alice feliz ao permitir-lhe que a vestisse
com roupas limpas e que depois as lavasse com suas pró-
prias mãos.
- Lavava-as com suas próprias mãos? perguntou Fre-
derico incrédulo.
- Sim, com as próprias mãos. Isso fazia parte de seu
encanto; podia fazer isso sem jamais perder sua dignidade.
Em sua presença todos, homens, mulheres e crianças, se sen-
tiam à vontade. Até me disseram que ela pessoalmente lim-
pava suas choças. Limpou a choça, fêz a cama e deu banho
num pobre paralítico. E pelo que parece a choça, o leito e o
corpo precisavam mesmo· de uma boa limpeza. ·
- Talvez fôsse uma mulher generosa e compassiva como
muitas mulheres em que há êsse instinto da generosidade.
- Talvez pudesse ter sido assim. Deus podia tê-la do-
tado dêsse caráter compassivo, sensível, dando-lhe além dis-
so uma tendência para a bondade. Mas devo dizer-lhe que
ela espiritualizava essa natureza e essa tendência, converten-
do-as em caridade divina.
- Como pode provar isso, jarenton? E' uma afirmação
gratuita.
- Os alemães são científicos e gostam de ter prova de
tudo, não é mesmo? Perfeitamente! Farei com que a pequena
Joana prove o que afirmei. Joana é uma criatura encantado-
ra. Tôda Dijon está encantada com ela. Tem uma imagina-
ção fértil e é mais romântica que qualquer jovem amorosa.
Um dia perguntou · à nobre castelã por que vinha sempre so-
zinha em suas visitas. - "Por que a senhora não vem acom-
panhada por algum escudeiro bonito ou algum valente pala-
dino? As damas nobres e bonitas, como a senhora, deveriam
sempre andar com escolta" .
A castelã sorriu, pegou a pequena nos braços e disse:
- Meu amorzinho, escolta-me o melhor cavaleiro do
mundo, aquêle que você precisa conhecer e amar também.
- E onde está êle? perguntou a menina assombrada.
- Aqui · mesmo, respondeu Alice, apontando o coração.
Depois continuou:
CAP. 11: A MÃE QUE CHEGOU A SER SANTA 59
nunca r:1e tinham ensinado tão bem. Vejo qc;c ela alcançou a
santidade · por ser simplesmente uma mãe e porque essa era
a vontade de Deus. E a iição que aprem'.ernos foJ que Cristo
nos alcançou a salvação, não por ter morrido na cruz, mas
porque a morte na cruz era a vontade ce Deus a seu res-
peito. Novamente não se trata• do que Cristo fêz, mas como
o fêz. Não nos remiu com seus so-frimentos, rnas por sua
sujeição ou, se o senhor preierc, pela conformidade c:e sua
voniade com a vontade do Pai.
- Está certo. Mas, agora, .demonstre-me como se pode
aplicar tudo isto com referência a Aíice.
Ja renton estava embaraçado. Talvez tivesse ido mais lon-
ge do que Fret~erico pensava. Quando foi mencionado o · no-
n:e <..~e Aiice, perturbou-se por um momento. Depois sor-
rindo disse:
-- Que os céus bendigam os alemães. Não há dúvida
de que os senliorcs sabem ater-se a um ponto e desta vez
o senhor me pegou no ponto exato. "Sujeição" era a última
palavra que me viera à mente. Pois bem: Posso dizer qLie
1\lice de lv\ontbar co:neçcu sua vida rea: por uma sujeição,
uma capitulação con; pleta, sem cond ições, a Deus. E tal su-
icição li1e proporc ionou a única vitória real da vida: a
santidade.
Jarenton · fêz uma pausa. Mas Frederico estava por de~
mais empolgado para se mostrar paciente.
-- Vamo:;! Continue. Conte-me tudo.
Seu hospedeiro sorriu. Vendo que Frederico estava intc-
rcssac:o, contim:ou:
-·- Alice cie r.:ontbar es~ava destinada por seus pais à
vida C.:~ convento. Com êsse fim educaram -na · como poucas
don ze:as foram educa( as, pois desc}avam qt:e reunisse con-
dições para ocupar um alto pôsto entre as mais cuitas re li-
giosas . Aí ice ·e\a uma jovem dócil e inteligente e fizera gran-
des progressos nos es,udos. Certo dia, o pai deu-lhe uma
noticia tu!minaníe. Era nada menos que isto: Tecclíno, Barba-
Ruivw , o senhor de Fontaines e conselheiro c:o Dllque de Bor-
gonha, pedira sua mão, e ête a havia concedido. Ance st;bme-
teu-se. Acatou a vontac:e do pai sem replicar. Quando anos
mais tarde lhe perguntaram o que sentira quando o, pai lhe
anuriciara seu casamento, respondeu : "Foi como se me arr::m-
cassem o coração do peito". Aquela sujeição custara-lhe um
sofrimento tremendo. Quando IÇJe perguntaram como suportara
64 PARTE I: OS PAIS
.I
CAP. II: A MÃE QUE CHEGOU A SER SANTA 69
* * *
O corpo da gloriosa Alice permaneceu onde o colocara
Jarenton até o dia 17 de outubro de 1250, quando uma santa
inveja moveu os monges de Claraval a obter um Breve do
Papa Inocêncio IV que lhes permitisse trasladar os restos mor-
tais para o mosteiro onde seu espõso e filhos viveram. Final-
mente, no dia 21 de março de 1251, o corpo desta grande
mãe foi colocado num jazigo em frente a Nosso Salvador
na igreja abacial de Claraval. Mãe e filhos reuniram-se no
mesmo lugar.
PARTE II
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CAP. I: O IRMÃO MAIS VELHO DE BERNARDO 81
I
CAP. I: O IRMÃO MAIS VELHO DE BERNARDO 85
com Bernardo e com a espôsa. Sabia que seu irmão era muito
veemente e se áchava demasiado absorto em seu projeto para
poder falar com calma; sabia também que sua espôsa não
tinha freios na língua. uma vez que a pusesse em movimento
para discutir com . Bernardo. Aquêle galope para casa tornou-
se desagradável para Guido e,. apesar da pressa que tinha
em chegar, Bernardo saltou da sela e pôs-se diante da porta
primeiro do que êle. Então sucederam,..se surprêsas sôbre sur-
prêsas. Bernardo saudou Isabel com um sorr.iso e um cum-
primento:
- As rosas c.orariam de vergonha se lhes fôsse dado po-
der contemplar as flôres de sua face, Isabel; e suas filhas,
continuou, enquanto se inclinava para pegar .a pequena Ade-
lina nos braços, são a mãe em miniatura.
Isabel era mulher, e embora ainda não estivesse acalma-
da do acesso de cólera, ao julgar-se pelo modo como olha-
va para seu marido, a saudação e a maneira de Bernardo a
abrandaram o suficiente para poder dizer em tom bastante
amistoso:
- E o que pretende meu belo cunhado em troca de sua
galanteria?
Guido ficou mudo, · sem poder articular uma palavra.
Aquilo era justamente o contrário do que êle havia anteci-
pado e temido. Bernardo continuou rindo, enquanto punha no
chão a pequena ·Adelina e lhe dizia::
- Continue, continue sendo tão bela como sua mãe,
Adelina; mas não adquira nunca sua intelígência penetrante.
Isabel fêz · eco à risada de Bernardo nurria oitava de es-
cala mais alta, e acrescentou:
- Seja tão prUdente como sua mãe, Adelina, e saiba
q11e todo o homem adulador é sempre um pedinchãci, por mais
belo e eloqüente que seja. O qüe estâ tramando, . Beniardo?
- Veja, Adelina, disse Bernardo dirigindo-se ainda à
pequena miniatura de Isabel, de cinco anos, veja! ApareÇo
para uma visita cordial, e desde o comêço torno-me suspeito.
- Sei que não veio para contemplar as rosas de mi-
nhas faces, nem as estrêlas dos olhos de minhas filhas, re-
plicou Isabel. Sei . também que sua presença aqui em compa-
nhia dêsse meu marido louco, acrescentou, mostrando Ouido
com um gesto .de desprêzo, ·de cá beça, signifíca uma discussão.
Estou disposta a sustentá-Ia. Comecemos.
CAP. I: O IRMÃO MAIS VELHO DE BERNARDO 87
Estranhos · caminhos
· As fôlhas douradas e castanhas que Adelina e sua irmã-
zinha amontoaram naquele memorável dia de outubro acha-
vam-se cobertas pelas primeiras · neves do inverno, quando
Bernardo cavalgou de nôvo rumo a Fontaines. Desta vez, con-
tudo, fôra mandado chamar por sua cunhada. Foi recebido
no solar silencioso habitado por uma enfermidade · temida.
Logo foi introduzido no quarto de Isabel, onde encontrou
Ouido inclinado sôbre sua palidíssima espôsa.
Apenas entrou, Isabel movimentou-se, e estendendo os bra-
ços, suspirou:
. ~~Quanto me alegro porque você veio, Bernardo! Quan-
to me alegro! .
Depois que Bernardo lhe beijou as mãos, deixou-se cair
novamente sôp\e os travesseiros e alisou um lugar sôbre a
colcha par~ que êle se sentasse. O monge virou a cabeça de
um lado para outro, procurando outro lugar para se sentar.
Mas Isabel moveu a cabeça, dando umas palmadas na colcha
e disse:
- ·Não, não! Sente-se aqui, a meu lado ...
, Bernardo o,bedeceu. Ouido achava-se de outro lado do
leito, seg.urando a mão da espôsa.
Isabel . estendeu a mão esquerda a Bernardo. Quando
êle a tomou 1 cerrou os olhos e. suspirou profundamente. Du-
PARTE li: OS IRMÃOS MAIS VELHOS
* * *
Transcorreram o verão e o outono sem que sobreviesse
mudança alguma no cisma causado pelo antipapa Pedro de
Leão. Durante aquêles meses Bernardo começou seus sermões
sôbre o "Cântico dos Cânticos", atemorizando a Ou ido que
temia que não fôsse prático abrir o coração e mostrar pro-
fundezas de cuja existência muitos nem sequer suspeitavam.
Foi uma época de provação para os dois irmãos. O cisma
pesava na mente de Bernardo, e tudo o que o preocupava
inquietava também a Ouido. Além disso estavam construindo
um nõvo mosteiro com capacidade para uns setecentos mon-
ges. Os príncipes e prelados solicitavam monges para novas
fundações em seus domínios. Cada nova fundação significava
novos trabalhos e preocupações para Guido, pois êle devia
preparar os monges para a jornada.
CAP. I: O IRMÃO MAIS VELHO DE BERNARDO 107
- Também não. . ,
- Pois André e Guido são mais dois ànéis ~ ..
- Que quer você dizer, Geraldo? O que se está pas-
sando? Já nem parece você mesmo. Fala como se fô'sse uma
pessoa desconhecida para mim. Está com um aspecto esqui-
sito. Vamos, coragem, homem! ~ste cêrco não durará muito
tempo. Tomaremos Grancy antes que . a neve desapareça. Va-
mos, ria ...
- Dionísio, disse Geraldo, você que está há mais tem-
po no exército do que eu, diga-me, você acredita que este-
jam com o juízo no lugar aquêles · que abandonam o cêrco
para se fazerem monges?
Dionísio colocou de lado a couraça de aço e sentou-se
no tõco.
- Neste exército pode-se ver de tudo, Geraldo. Mas eu
digo que homens . de . verdade nunca abandonam um cêrco.
Mas por que pergunta você? E por que essa cara tão séria?
Ria, homem, que o riso não faz mal ...
- O riso me mataria. E para que o riso se afaste de
seus lábios, vou dizer-lhe que Gauderico e meus dois irmãos
abandonaram êsse cêrco para 'se 'fazerem · monges. Mortges
cistercienses. · · · '
_:__ O quê? exclamou ·Dionísio, pondo-se de · pé num sal-
to e pegando Geraldo· pelo braço. Repita isso, depressa.
Geraldô rtwveu os cantos dos lábios com impaciência,
enquanto empurrava Dionísio e foi dizendo:
...,- Fique quieto, senão você acordar.á todo o acampa-
mento. Sente-se e medite comigo.
Dionísio protestou, mas Geraldo .o fê.z retroceder e sen-
tar-se novamente no tõco caído. Dionísio era homem . peque-
no, orgulhoso, vivaz, rápido ·· e forte ·como o aço. Geraldo,
com sua juventude, sua constituição robusta · e sua grande
fôrça, era um contraste vivo junto a seu companheiro. Quando
conseguiu fazer sentar seu amigo alvoroçado, Geraldo, em pé
:a seu lado, dominando~o com sua estatura, disse-lhe:
- Chamam-me "Geraldo, o de idéia fixa", não é mesmo?
CAP. li: O HOMEM DE IDÉIA FIXA 113
não é lugar para meninos bons que querem ser monges. Por
isso, vá-se embora!
- Assim o farei, Geraldo. Mas antes de ir, quero que
ouça o seguinte: é evidente que só o sofrimento será capaz
de tirar de sua cabeça essa idéia fixa. . . Pois bem! Escute:
Avançou um passo para perto do irmão e disse :
- Em breve êsse lado será traspassado. Pôs a mão no
lado direito de Geraldo, bem embaixo das costelas. Por essa
chaga serão abertos seu coração e sua cabeça.
Geraldo soltou uma gargalhada.
- Lembrar-me-ei do lugar exato, Bernardo.
Tirou a mão de Bernardo que apontava seu lado.
- Mas agora seja um bom irmãozinho e vá-se embora.
Tenho de cuidar dêsse parapeito.
Bernardo virou-se nos calcanhares e seu silêncio foi mais
eloqüente. Dirigiu-se ràpidamente para seu corcel que o es-
perava. Quando o tropel dos cascos do cavalo se perdia na
distância, Dionísio fêz o primeiro movimento desde a apari-
ção de Bernardo. Levantando-se do chão, tomou a couraça
de aço de Geraldo, examinou-a atentamente e exclamou:
- Veja se está em condições, Geraldo. Veja se está boa
de fato. Não me agradou o que seu irmão disse. Que vulcão
aceso! Então Bernardo é assim, hein? Agora compreendo por
que Gauderico, André e Guido abandonaram o cêrco. f:sse jo-
vem Bernardo tem mais ardor do que dez de nós. Que homem!
Você tem razão em dizer que não fala só com a bôca, mas
com todo o seu ser. Parece-me que acabei de ver uma ca-
tapulta. Alegro-me que não tenha me dito nada ...
- Acho que você teria ido com êle, respondeu Geraldo
troçando.
- Não digo nem que sim, nem que não, respondeu o
atarracado guerreiro, movendo a cabeça. Tenho minhas idéias
próprias a respeito do assunto.
- Eu .também. Você as ouviu. Acho melhor esquecermos
Bernardo e acomodar-nos neste lugar do melhor modo pos-
sível. Talvez tenhamos de passar semanas aqui.
Com essas palavras puseram mãos à obra. Mas enquan-
to as mãos 'de Dionísio pegavam uma coisa ou outra, e seus
pés iam de um lado para outro, sua mente estava ocupada,
estudando o contraste daqueles dois caracteres. A primeira
aparição de Bernardo deslumbrara-o, maravilhando-se da fôr-
ça concentrada em sua esbelta figuar. Depois contemplou Ge-
CAP. 11: O HOMEM DE IDÉIA FIXA 117
verti. Não foi você quem conseguiu isso, nem o jovem Nivaldo,
nem sequer seu pai. Mas cada um de vocês contribuiu para
alguma coisa. Dediquei-me à meditação porque você se fêz
monge; porque seu irmão mais nôvo se uniu ao bando; por-
que seu nobre pai morreu no mosteiro. Mas o que me fêz
abandonar as armas e vestir •esta capa de peregrino foi a
entrada de sua irmã Umbelina no convento de Jully. Quando
a vi abandonar tudo o que possuía, disse para mim mesmo:
Dionísio, já é hora de você também começar sua viagem. E
aqui estou. O resto, porém, de minha história terá de aguar-
dar esta manhã para ouvi-la, se é que posso vê-lo ainda.
- Claro que poderá, respondeu Geraldo. Venha depois
da missa. Mas ...
- Sim. Estarei aqui quando a missa estiver terminada.
Agora · conte-me alguma coisa sôbre você. Como está
passando?
- Realmente não sei. Não tenho tempo para averiguar
isso. Bernardo chama-se a si mesmo "a quimera do século",
porque diz que não é nem monge nem secular. E tem moti-
vos para dizer isso, já que está sempre em movimento. E
como me designou para acompanhá-lo em todos os lugares,
eu poderia chamar-me o "maior camaleão do mundo".
- Por que dar-se êsse título fantástico?
- Olhe Dionísio, na última vez que nos vimos, lutava
para ser um contemplativo enclausurado. Para conseguir, tive
de mudar de côres muitas vêzes. Não acredita?
- De acôrdo. De guerreiro vermelho, converteu-se em
pacífico monge branco.
~ Realmente. E ainda não me convertera naquilo que
queria ser e já me enviaram a Claraval. Uma vez aí, Bernar-
do nomeou-me ecônomo. Mais trocas de côr. Tive de ser
Marta e Mar+~ ao mesmo tempo, e apenas comecei a ser, meu
irmão converteu-se na "voz do século", e me designou para
seu porteiro plenipotenciário. Creio que já vi tôdas as cidades
da França, Alemanha e Itália. Sou tão contemplativo enclau-
surado como você.
Dionísio achou muita graça nos gestos de Geraldo em
seu rápido resumo da vida nos últimos vinte anos. ·
- 'Não sei se você é um "camaleão", Geraldo; mas te-
nho de reconhecer que troca de côres com a mesma rapidez
como age. Não me cabe dúvida de que é o maior do rnundo.
l44 PARTE 11: OS IRMAOS MAIS VELHOS
I
148 PARTE li: OS IRMÃOS MAIS VELHOS
* * *
CAP. Il: O HOMEM DE IDÉIA FIXA 153
..\
PARTE Ili
Bernardo
CAPITULO úNICO
11*
Voltou-se para a jovem e. acrescentou:
I
164 PARTE l!l : BERNARDO
Se poeta fôsse,
teria preferido
escrever como Bernardo
de Deus Pai e Filho
e Espírito Santo,
antes de escrever
os queixumes de paixão
que Abelardo dirigia,
escrevendo à Heloísa.
Depois dessa introdução, não há mais que apreciar
o final do brinde.
E levantando outra vez a mão, como se segurasse um
copo, tornou a declamar:
"f:ste é meu hosana
ao poeta Bernardo
que escreve cartas de amor
melhor que Abelardo".
Desta vez o Prior fechou a carranca. Voltou as costas
ao secretário Godofredo, olhou para os campos onde as sea-
ras verdejavam lindamente. Por cima das macieiras pesada-
mente nevadas de flôres brancas e côr de rosa, seus olhos
chegaram até a turva corrente do Aube. Murmurou para si
mesmo várias vêzes os versos e terminou dizendo:
- Não me agrada, Godofredo, não me agrada.
- O que não lhe agrada? perguntou o secretário qua-
se gritando. Ohl Padre Prior! O senhor terá perdido o senso
artístico? Isso é estranho! Aqui está a história completa de
duas personagens mais salientes da época, captadas, aprisio-
nadas e retratadas nas linhas de uns versos brancos.
- Aprecio o conceito atrevido. O contraste agudo e evo-
cativo. Não encontro a menor falta na expressão do poeta.
Escreveu bem. Como está dizendo, nuns poucos versos faz
brilhar ilustres personagens. Mas não posso compartilhar seu
entusiasmo, Godofredo, porque encontro mais fantasia que
realidade, Seu poeta mostra nítida habilidade· literária, não
uma profunda penetração lógica ou psicológica. Em resumo:
Godofredo, seus versos são históricamente injustos tanto para
com Bernardo como para Abelardo. Não ine agradam as In-
justiças históricas.
O sorriso do secretário desapareceu. A veemência que
animava seu semblànte quando entrara na cela teve igual
sorte; e o fulgor de seus olhos sob espêssas sobrancelhas
CAP. úNICO: O HOMEM QUE SE ENAMOROU DE DEUS 201
vivendo com uma alegria e uma paz como nunca antes havia
desfrutado. E é uma vida penosa, uma vida dura, mental e
fisicamente, uma vida que me priva da companhia de minhas
preferências gêmeas: a amizade e os livros. Admiro-me de
mim mesmo agora, até que olho para Bernardo, porque en-
tão vejo o homem que me mudou a mente e o coração, a alma
e a vontade. Em lugar de covardia, proporcionou-me forta-
leza; em lugar de debilidade, deu-me fôrças. Deu-me olhos
para olhar para o fim dos tempos e mãos que só desejam
estender-se para Deus a fim de que Êle as tome e deposite
nelas e delas tire o que quiser. Que transformação!
Godofredo sentiu-se comovido pela emoção com que seu
superior falava.
- Eu poderia fazer a mesma confissão que o senhor,
embora não tenha refletido tanto, nem penetrado tão pro-
fundamente as coisas. Chama-me a atenção ainda mais o fato
de que o segrêdo de Claraval seja Bernardo.
- E' indiscutível. Êle é o ímã. Atraiu o ferro e o aço
de cada caráter, moldando-os neste Vale da Luz. Depois, como
verdadeiro ímã, realiza o milagre do magnetismo e nos con-
verte também em ímãs ao converter-nos em amantes de Je-
sus Cristo. O segrêdo de Bernardo tem raízes em sua paixão
pelo Crucificado. ·
O Prior fêz uma pausa, olhou para longe como que a
meditar profundamente. Por fim, levantou ràpidamente a ca-
beça para olhar com firmeza o secretário e dizer-lhe:
- Godofredo, vou revelar-lhe um segrêdo, um segrêdo
que quero que fique inviolável. Compreende?
O secretário fêz um gesto de afirmação quase imper-
ceptível com a cabeça, e o Prior prosseguiu:
- Acabo de dizer que Bernardo ama a Jesus Crucificado.
Isso não é nenhum segrêdo, pois todos nós o sabemos de so-
bra. Mas o que nem todos sabem é que Jesus Crucificado a111a
também a Bernardo de maneira surpreendentemente íntima.
O Prior tornou a fazer uma pausa. Desta vez Oodofre-
do não foi capaz de esperar e com um gesto que denotava
s.ua tensão de espírito, perguntou:
- Que quer o senhor dizer? Explique-me logo.
O Prior abaixou o tom de voz e continuou:
- Faz pouco tempo, nosso abade estava or~ndo ao pé
de um Crucifixo, de tamanho natural na igreja. Um dos tr-
mãos entrou casualmente e o encontrou só. Vendo-o tão absor.-
CAP. úNICO: O HOMEM QUE SE ENAMOROU DE DEUS 213
para com êsse Judas, pois até o fim, como o mesmo Cristo,
chamou-o de amigo.
O Prior fêz uma pausa e, fixando atentamente Oodofre-
do, continuou:
- Deus quase enlouquec~ seus santos antes de havê-los
moldado totalmente. Seria isso o que nos ensina o grito de
abandono que lhe escapou no Calvário?
Oodofredo não respondeu, O Prior falava de modo que
não queria resposta. Monologava em forma interrogativa. Por
fim Oodofredo, olhando pàra suas anotações, disse:
- E' uma carta de pêsames bastante triste.
Num assomo de cólera, o Prior voltou-se para êle e
exclamou:
- Estamos escrevendo a um irmão de Bernardo. Pelas
suas veias corre o mesmo sangue que impulsionava o cora-
ção do nosso grande guerreiro e santo abade. Nasceu do mes-
mo pai e da mesma mãe e aprendeu na mesma escola de
Cister. Bernardo foi mais do que um irmão para Nivaldo.
Foi também seu pai espiritual. Por isso temos que dizer a
verdade. Ao lê-la, achará consôlo na verdade. Bernardo per-
correu a Via-Sacra coroado de espinhos e carregando a Cruz .
Nosso abade seguiu passo a passo as pegadas d'Aquêle a
quem tanto amava.
O Prior calou-se. Um olhar sombrio apareceu . em seus
olhos. Suas palavras seguintes foram lentas e ·deliberadas.
- E se Nivaldo perguntar se o lado de Bernardo foi
aberto <e traspassado ·seu coração, diga-lhe como Roma e como
o Papa Eugênio - seu amado filho anteriormente - se vol-
taram contra êle por causa do Cardeal Hugo. Conte-lhe a
absurda hist&na de como foi Hugo eleyado à dignidade car-
dinalícia, saindo da abadia de Três Fontes, e de como seu
candidato não sendo escolhido para assumir o seu pôsto na
abadia, voltou-se contra Bernardo com a fúria de um demen-
te, espalhando em público e em particular tôda a sorte de vis
calúnias contra o homem que tanto lhe queria e o havia guia-
do nos primeiros anos de sua vida religiosa. Não lhe oculte
que todo o mundo romano, inclusive o Sumo Pontífice, deu cré-
dito ao caluniador. Faça-o saber que seu it·mão escreveu ao
218 PARTE lll: BERNARDO
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e espinhos, de tal modo . que causaria inveja ao mais bravo
cavaleiro. Vi-a saltar os obstáculos mais difíceis, cair e le-
vantar-se com a agilidade e despreocupação do guerreiro e
chegar à meta .d esejada. Isso eu não poderia dizer de todos
os homens. Está começando a compreender-me? Umbelina de
Fontaines tem ,person(l.lidade. E isso, para mim, significa mui-
to mais que ·uma cara bonita.
· Guido emocionou-se, ouvindo aquêle bosquejo sôbre o ca-
ráter de sua prometida feito pelo Duque num tom colérico.
Não pôde evitar de fazer, sorrindo, êsse comentário:
- Está bem, Excelência. Podemos chamá-la Diana, a
deusa caçadora.
- Não lhe dê outro nome senão Umbelina, tornou a
grunhir o Duque. As deusas e as heroínas da literatura nun-
ca viveram realmente. Sua Umbelina é de carne e ôsso. E,
além âisso, asseguro-lhe, tem talento. Uma vez, ouvi.,.a dis-
cutir com seu irmão Bernardo e fiquei surpreendido.
- Com sua vivacidade?
- NãM ,rovejou o Duque. Com a fôrça dialética de sua
lógica! Possui o talento de dois homens e meio. Isso me pro-
porciona outro motivo de alegrar-me por sua causa.
- Quer dizer que suprirá minhas deficiências intelectuais,
não é?
- Exatamente! Se depois de tantos anos a cortejá-la,
só pode entusiasmar-se com sua pele, seu talhe, não há dú-
vida que precisa de uma mulher que tenha maitl inteligência.
Não sabe que o importante numa mulher é seu caráter e .não
sua pele?. . . Contemple seus '.olhos. Pode ver nêles, se assim
Amor sem M edida - 15
226 PARTE IV: OS IRMÃOS MAIS NOVOS
Agridoce
O Duque e seu sobrinho acreditaram ter feito uma aná-
lise sagaz do caráter de Umbelina, quando na realidade só
fizeram um pequeno esbôço. De fato, Umbelina era um ca-
valeiro melhor que muitos moços e poderia participar com
destreza das mais violentas sortidas e caçadas. De fato, tinha
sido em sua infância um verdadeiro rapaz travêsso. Era a
única mulher no meio de seis homens. Três mais velhos do
que ela: Ou ido, Oera,ldo e Bernardo. Três mais novos: An-
dré, Bartolomeu e Nivaldo. Com isso tinha tôdas as vanta-
gens e desvantagens de estar no meio dêles. Muitas vêzes
seus olhos se enchiam de pranto quando algum de seus
irmãos a mandava embora dizendo: "Você não pode brincar
conoscq. ~ste é um brinquedo de homens e não de mulheres".
Pelo contrário, que suma delícia quando a convidavam a ser
a "rainha de um torneio" ou ouvia seu pai admoestar os ra-
pazes dizendo: "Os cavaleiros devem inclinar-se sempre dian-
te das damas". Não é de estranhar que Umbelina qualificas-
se de travêssos e tormentosos seus primeiros anos. Freqüen-
temente mais brincara em atirar uma lança de soldado do
CAP. I: COLABORADORA NO SERVIÇO DO AMOR 229
Tecelino sorriu:
- Minha filha, você tem o dom de apresentar as coisas
de maneira tão bonita. . . Meu velho coração desejaria que
tudo o que diz fôsse certo; mas temo muito que seja um re-
flexo de sua mente delicada e sensível. Agora, enfim, posso
afirmar que penso só em você. Tem vinte e dois anos e há
de se casar êste ano. E' meu desejo e estou seguro também
que é a · vontade de Deus.
- Sim, papai, e eu também estou certa de que êstes cin-
co ·anos foram vontade de Deus, 'igualmente. Mamãe . insistia
sempre que para Deus não há casualidades. O que nós cha-
mamos "acidentes" não são senão uma parte· de Seu sa-
pientíssimo plano providencial. E veja como é bom. Se me
tivesse casado, como o senhor falou, em 111 O, ·quantas tris- ·
tezas teria havido em tôda parte. Não creio que, sem a cer-
teza de que eu o consolaria em sua ausência, meus irmãos
teriam tido a coragem de entrar no convento para seguir
sua vocação.
Tecelino lhe apertou as mãos em sinal de assentimento.
- E' certo, minha rainhazinha. Não sabe quanto me
consolou! Que belo coração possui você. Como preencheu êle
o vácuo deixado pela morte de sua mãe e pela ida ao con-
vento de seus irmãos. Foi às vêzes Alice e Umbelina, Guido
e todos os irmãos. Muito obrigado, pequena rainha!
Umbelina ficou aterrada pelo tom de voz de seu pai.
Não era homem comunicativo, e aquela expressão emotiva de
afeto e de gratidão a surpreendeu. Percebeu um leve tremor
na voz e com sua rápida intuição de mulher compreendeu que
devia acalmar a tempestade antes que ela se apoderasse da
alma vigorosa do velho guerreiro. E retribuindo o cálido apêr-
to de mãos, falou:
- Dê graças a Deus e não a mim, papai. t:le criou o
meu coração; eu apenas o uso ... Isso me faz lembrar ma-
mãe. Um dia a ouvi falar com a duquesa. Pelo que percebi,
sua alteza opinava que tanto eu como as demais meninas
deveríamos aprender a humildade à fôrça de que nos dis-
sessem que éramos feias e bôbas. Mamãe soltou uma risada
tôda sua, tôda musical, e respondeu:
- "Existem espelhos, duquesa, e eu prefiro que minha
filha, ao contemplar-se no seu, veja a formosíssima face que
Deus lhe deu e faça uma ação de graças por tal dom, ao
invés de, ao ver-se, encontre no fundo dêle o rosto de uma
CAP. I: COLABORADORA NO SERVIÇO DÓ AMOR 233
V ma capitulação difícil
Seis anos mais tarde ocorria uma cena semelhante à que
acabamos de contar. Mas o lugar de Tecelino era ocupado
por Guido de Marcy. Umbelina e êle falavam de Isabel, a
espôsa de Ouido de Fontaines, o irmão mais velho de Umbe-
lina, agora nomeada Superiora do convento de jully.
- Ela é feliz, dizia Umbelina, muito feliz.
- Duvido, respondeu Guido, incrédulo.
- Eu sei positivamente. Várias vêzes a visitei e uma
mulher sabe quando outra diz a verdade ou está mentindo.
Sei que há muitos que duvidam de sua felicidade. Crêem que
foi mais oti menos obrigada a ingressar no convento quando
seu marido foi para Cister.
- E seria para admirar, Umbelina? Era espôsa e mãe.
Isso me parece um noviciado não muito apropriado para
tornar-se monja.
- Por favor, Ou ido! Só os homens e as mulheres su-
perficiais podem falar dessa maneira. Os homens porque não
conhecem os corações das mulheres; as mulheres superficiais
porque não conhecem a si mesmas. justamente os anos em
que foi espôsa e mãe a prepararam como nenhuma outra
coisa poderia ter feito para ser o que é agora: uma supe-
riora de verdade, perfeitamente compreensiva e autênticamen-
te compassiva. Há certos ângulos no amor que só podem .ser
imaginados por quem os experimentou e renunciou. Existe
certa compreensão cálida, que somente procede de quem sen-
CAP. l: COLABORADORA NO SERVIÇO DO AMOR 235
lidão sem ter um momento sequer para mim. Você deve sa-
ber, irmã, que verdadeiramente valiosas não são as máximas
colocadas à parede, mas o modo de vivê-las. Talvez o la-
conismo de Bernardo possa parecer amargo, ao expressar
nessas palavras uma ardorosa condenação de minhas mur-
murações. Também me pmgorcionou uma inspiração. esse
pequeno pergaminho me dá mais matéria de meditação do
que muitos livros piedosos que li. Nesta manhã, durante a
oração mental, ocorreu-me a idéia de quão acertadas são
essas palavras para o Crucifixo. Terei de dar muitas gra-
ças a Bernardo por ter-me chamado a atenção, além de inspi-
rar-me e encher-me de otimismo.
A Priora observou atentamente Umbelina enquanto esta
falava, e viu como a sinceridade e a franqueza de sua alma
assomavam a seus olhos ao expressar a idéia de viver ao pé
da letra aquela máxima "Amar é servir". Ao mesmo tempo
percebeu nêles outras chamas que a intrigaram e escaparam
a sua intuição feminina até ao ponto de obrigá-la a
perguntar:
- A senhora gosta muito de Bernardo, não é mesmo,
Reverenda Madre?
Umbelina, que continuava olhando para o pedaço de per-
gaminho, voltou-se ràpidamente para responder surpreendida:
--'-'- O quê? Se eu amo Bernardo? ... Se duvida, ·não é
preciso outra prova que experimentar falar mal dêle. Ber-
nardo é a metade do meu coração. E' meu irmão predileto.
Foi meu companheiro e meu amigo tôda a minha vida. E'
meu carinho, minha inspiração e. . . se me ·atrevo a dizer,
minha adoração. As vêzes o carinho que sinto por êle chega
a m~ assustar e se não estivesse certa de que estamos "asso-
ciados no serviço do Amor", onde ambos lutamos e damos
o que somos para dar a Deus tudo quanto espera de nós,
não sei o .qpe aconteceria com êsse carinho que tenho por
êle. Aí tem, nessas três palavras, a prova de que Bernardo
me quer do mesmo modo que eu lhe quero e por isso me
faz essa reprimenda. Sabe o que significa êsse pergaminho?
Quer dizer: "Umbelina, nosso Amado é um amante ciumento
que não tolera regateios no sacrifício. Trabalhe por ele até
morrer e faça isso sorrindo!" Estava certo de que eu have-
ria de. compreender ai:é a .mínima coisa oculta nessas três
palavras. Sabia que me espicaçariam até o fundo do cora-
ção. Representam para mim a prova mais sincera e positiva
248 PARTE IV: OS IRMÃOS MAIS NOVOS
Morte feliz
A Priora tinha razão: Umbelina praticava as mais he-
róicas penitências para compensar as vaidades de seus pri-
meiros tempos ·. de casada. Sua vida reduzia-se à oração e
à penitência. Embora ainda lhe faltasse a tranqüilidade qúe
anelava .·e conduz à contemplação, não deixava · de ser con-
templativa, uma vez que mesmo no meio de seus traba-
lhos tinha a consciência de Qeus no fundo de seu coração.
250 PARTE IV: OS IRMÃOS MAIS NOVOS
.. \ Reconhecimento
Bernardo não pronunciou o elogio de U mbelina como
fizera com Geraldo. Há ocasiões em que o coração está de-
masiado cheio e ocasiões em que está demasiado vazio para
falar. Suas lágrimas falaram por êle. E muitos presenciaram
o pranto do abade enquanto oficiava os funerais; muitos
o escutaram, com voz entrecortada pelos soluços, ler as pre-
ces junto ao túmulo de sua irmã. Muitos fizeram eco às pa-
lavras pronunciadas pelos judeus, quando Jesus se encon-
trou junto de outra tumba s,oluçando pelo amigo:
252 PARTE IV: OS IRMÃOS MAIS NOVOS
Finos observadores
Oito anos mais tarde, Tecelino compreendeu que sua
àguiazinha emplumada começava a bater as asàs para en-
cetar vôo. A prova disso deixou-o um tanto embaraçado.
Achava-se na presença do Duque Hugo, enquanto se senta-
vam ao seu lado Raniero, o mordomo-mor do Ducado, e
Séguin de Volnay. O cenho carrancudo do Duque prenun-
ciava tempestade, enqúanto os lábios apertados de Raniero
denotavam decisão.
- Barba-Ruiva, não sei se meu mordomo-mor me acusa
de favoritismo ou de loucura. · Diz que seu pequeno André
é demasiado jovem para ser armado cavaleiro. Eu digo que
os anos nada têm a ver com a bravura. Eu não armo ca-
valeiros meus homens por causa da idade, mas pela bra-
vura de seus atos. Dizem-me que André não tem ainda de-
zessete anos. E' verdade?
- Sim, Excelência, respondeu Tecelino tranqüilamente.
- E' certo também que é capaz de montar qualquer
cavalo que galopeie e ficar em cima dêle apesar de receber
duros golpes de lança, que não tem mêdo de ninguém e que
respeita, reverencia e rende culto às damas?
Tecelino observou as chispas que desprendiam os olhos
do Duque ao acentuar cada uma de suas frases e sentiu-se
Intimamente comovido diante do preito de homenagem que
seu soberano tributava a seu filho. Sabia-o pouco dado aos
louvores.
Os surpreendentes elogios pronunciados pelo Duque Hu-
go fizeram Tecelino duvidar se seu soberano e senhor os
fazia para honrar seu filho ou para ridicularizar a oposi-
ção do mordomo-mor. Olhou para Raniero a certificar-se de
sua reação. Encontrou, porém, um rosto impassível. Seus
olhos estavam frios. Seus lábios, uma linha reta. Seu quei-
xo firme, .mas normal.
Como soubesse ser Raniero um conselheiro sincero e
consciencioso, não tardou a tirar a conclusão de que sua opo-
sição à proposta do Duque ·não tinha antagonismo pessoal
e que devia, portanto, obedecer a algum motivo bem funda-
CAP. li: O HOMEM QUE GUARDAVA A ENTRADA 257
.
Quando houver desaparecido o encanto
André manteve a promessa feita a sua mãe naquela
tarde. Mas cumpri-la quase despedaçou seu coração. Ao tirar
a armadura e dependurar o escudo, soluçou. Sentia-se como
se tivessem tirado de sua vida o sol e não tivesse diante
dos olhos senão trevas.
Cavalgava furiosamente pelos caminhos e através dos
bosques, fazendo sua montaria galopar até cobrir-se de
espumas.
E ainda que voltasse para casa quase esgotado fisica-
mente, sentia a cabeça rodar e uma dor tremenda no
coração.
Durante muitos dias ficou inconsolável. Bernardo, compa-
decido, chamou-o para ler a lista daqueles que haviam dado
o nome para Cister. Ao ouvir um depois do outro os nomes
de tão ilustres cavaleiros, André não podia sair de seu assom-
bro. Quando Bernardo terminou sua relação, André deu um
salto gritando:
- Por Deus, Bernardo, isso parece a lista de parti-
cipantes de um torneio!
- E para onde você pensa que vamos? Para um en-
têrro? respondeu Bernardo rindo-se. Vou dizer-lhe uma coi-
sa, André: Em sua vida você nunca lutou nuni torneio como
êste para o qual vamos. Vamos chamá-lo "Torneio do Amor"
e lem@re-se de que foi o sorriso de sua mãe que para êle
mandou você, para triunfar.
- Não me esquecerei, Bernardo. Não posso esquecê-lo.
Naquele dia •. '(i minha mãe com a mesma clareza com que
vejo você. Ela quer que eu vá, e eu irei. Irei e ficarei para
sempre! ... Deixe-me ler novamente a lista. Posso?
- Pegue-a e estude-a bem. Veja se você é capaz de
ser o melhor cavaleiro dentre todos os que nela figuram. Você,
André, vai numa companhia seleta. Prepare-se!
E afastou-se, deixando o irmão absorvido na leitura
daqueles- nomes, a flor da cavalaria da Borgonha:
Que êle se preparou, prova-o o fato de qúe sua entre-
ga à nova forma cavalheiresca foi feita com a mesma intre-
266 PARTE JV: OS IRMÃOS MAfS NOVOS
\
274 PARTE IV: OS IRMÃOS MAIS NOVOS
aquela casa está enfeitiçada. Deus não nos criou para vi-
vermos como vivem aqui. Nunca! Armado cavaleiro antes de
completar os dezessete anós, o que foi desde então?. , . Por
pura cortesia qualifiquei isto de engano. Para ser mais exa-
to, devia ter dito · que se trata de uma verdadeira loucura.
- Efetivamente, Carlos, 'falou André com a mais per-
feita calma. E' uma loucura e foi um engano. E por isso creio
que você tem nossa · família e a mim por uma turma de lou-
cos, não é ·mesmo?
- Com tôda a franqueza lhe direi que sim. Que outra
qualificação mereceriam, homens sensatos,
- E êsses quinhentos ou mais monges que vivem nos
mosteiros cistercienses, são também loucos?
- Quinhentos ou mais? surpreendeu-se Carlos. Mas re-
cuperando sua atitude desdenhosa, acrescentou em seguida:
- Sim, se todos eram nobres como você e seus irmãos.
- E que somos agora, Carlos? Acaso somos servos?
- Mas não são nobres, André! Os nobres não vivem
como aqui. Os nobres compreendem que Deus foi quem di-
vidiu a sociedade. Continuam na mesma camada em que
Deus os colocou. Sua vida é degradante, e Deus não a dis-
pôs assim. Deus ordenou que nos enobrecêssemos e não nos
aviltássemos.
- E' assim mesmo? E não percebe que ensinou sua
lição de um modo muito diverso?
-Como?
- Nada mais do que dês te modo: Cristo. disse: "Vem e
segue-me". E quando · os homens aceitaram seu convite, o
primeiro lugar para onde os conduziu foi a uma gruta, abri-
go de• animais, onde nasceu, no meio de um burro e de um
boi. Você deve recordar-se, Carlos, de que o Menino de Be-
lém é o Deus dos vivos e dos mortos.
À medidà que falava, a voz e o gesto de André iam-se
inflamando.
- Depois os levou para o Egito, um país estranho, dan-
do-lhes a entender que deviam conhecer a solidão e o des-
têrro. Depois levou-os novamente a Nazaré, onde pràtica-
mente passou tôda a sua vida, retendo-os aí. Você pensou
alguma vez o que significa ser nazareno, Carlos?. . . Não
supõe 'ã nobreza como você a julga. Supõe .ser despreza-
·do e olhado de cima parà baixo. Desta cidade desprezada,
para onde nos conduiiria Cristo? À Cruz de um criminoso
276 PARTE IV: OS IRMÃOS MAIS NOVOS
você ·diz, levei trinta anos gu<!rdando essa porta e não pos-
so mostrar majs resultados materiais do que Jesus Cristo
depois de seus trinta anos aqui nessa terra. Agora, ouça:
espero ter algo semelhante do que t:le mostrou na ordem
espiritual. Sabe o que era, Carlos? Nada mais nada menos
que isto: a .salvação do mundo!
-"--- O quê? perguntou Carlos assombrado .
. - Aquilo q4e . você ouviu. Meu objetivo ê a salvação
do mundo. Se o Evangelho é devidamente interpretado, o
mu.ndo também é salvo por · quem, na aparênçia, não faz
nada. Olhe a insignificância da gruta de Belém! Olhe a in:-
significãncia dos seus trinta e três anos de vida .oculta! Olhe
a insignificância da Cruz!. .. Onde estava e o que fazia Je:-
sus, quando podia estar pregando e ensinando aos homens
o caminho de Deus? A resposta vem de Belém, do Egito ç
de Nazaré. Quando o cravaram na cruz, o que fêz? Pregou
ou ensinou por acaso? Não! Orou e padeceu! Desceu da
cruz quando para isso o tentaram? Não! Permaneceu nela
até expirar. E o silêncio, a obscu.ddade e a insignifícânci<t do
Tabernáculo? Não são pavqrosos? Contudo, Deus salvou a
humanidade com a gruta e com a çruz e a santificou com o
Sacramento da Eucaristia. Eu . vou seguindo seu trilho, · Car-
los. Tenho meus silêncios, padecimentos, obscuridades e ora-
ção. Com f:le, por .f:le e para f:le ·luto por salvar o mundo.
Sou um viajante de Cristo pelo caminho real do Rei dos reis
e, como tal, . procuro ser um salvador. Se vivo enganado,
como você diz, Cristo deve ter sidÓ simplesmente um so-
nhador iludido. Mas nem posso pensar que Carlos, o En-
ganador, se atreva a dizer tanto.
- Não, não! repetiu Carlos vivamente. jamais poderia
dizer isso. E ainda quando , não compreenda tôdas as suas
palavras, devo reconhecer que você fala como um homem
plenamente convencido da razão de sua . atitude.
' '
- . Não compreende . totalmente, · Carlos, porque .n unca
o
estudou o Crucifixo e . olha como coisa · corriqueira . Taber-
náculo. Mas venha ' comigo. Vou levá-lo à igreja. Poderá
assistir às Vésperas e Completas e rezar para qúe a Luz do
mundo ilumine êsse mundo em treva.
- Que quer você? Quer que aquêle que veio para zom-
. bar, fique para rezar?
:·.:
CAP. li: O HOMEM QUE GUARDAVA A ENTRADA 279
j
··!··
..·•...·.·.·.•..·.•.
"Nunc dimittis"
A "águia" de Tecelino realizou seu último e grandioso
vôo, pondo fim ao "engano" do qual falou Carlos, o "En-
ganador", num dia de 1144.
Pode-se dizer que não só alcançou a Cristo, mas que
foi pràticamente arrebatado por Cristo. E o seu "nunc di-
mittis" da terra foi um "nunc coepi" dos céus. Bernardo acha-
va-se ausente de Claraval, negociando a paz entre Luís VII
da França e Teobaldo, conde de Champagne.
Bartolomeu era abade de La Ferté e Nivaldo prior de
Buzay. Por isso, André morreu pràticamente sozinho, coisa
que não lhe importou demais, pois o convertia num viajante
perfeito. Também seu Rei morrera sozinho. Poderia seu fiel
seguidor esperar morrer de outra maneira? O caminho real
do R~i dos céus conduz a todos ao cimo solitário do Cal-
vário, no qual, penosamente alcançado, se descobre a alvo-
rada clareando o vale da eternidade.
O calén'Mário da Ordem de Cister chama "Beato An-
dré", ao nosso porteiro, e menciona o dia 5 de abril como
sua festa.
Os bolandistas lhe dão simplesmente o título de "irmão
de São Bernardo".
Mas não lhe agrada mais, leitor, pensar nêle como o
"camif!jlante do Rei", avançando infatigável com o seu "Nunc
coepi'; e suas mordazes réplicas, que em mais d.e uma ocasião
faziam arrepios na pele?
..,
CAPITULO III
Um magnífico vagabundo
Uns dez anos mais tarde, quando tôda a Europa esta-
va suspensa dos lábios de Bernardo e seguia suas diretri-
zes no horrível cisma que dilacerava a Igreja, Bartolomeu
voltou a La Ferté, depois de ter feito uma visita oficial a
sua primeira fundação.
Em 1132 enviara uma colônia para fundar um mosteiro
em Mazieres, na Borgonha. Quando seus monges partiram,
sentiu-se invadido pela idéia de que, apesar de não ter ain-
da trinta e cinco anos de idade, a responsabilidade dos dois
mosteiros recaíam sôbre si: o de La Ferté, diretamente por-
que era seu abade, o de Mazieres indiretamente por inter-
médio de seu padre imediato.
Com ansiosa solicitude, acorria cada ano a visitar a casa
filial, e sempre voltava maravilhado com os caminhos que
Deus adota para com as almas.
<&·
Em 1135 cavalgava de volta de La Ferté com o cora-
ção fervente de gratidão, porque havia achado no mosteiro
de Maria de Maceriis perfeita consonância com as diretrizes
de Cister. Eclbora fatigado pelo duro trabalho e preocupa-
ção, sentiu o espírito elevar-se quando no final de sua lon-
ga jornada divisou a brilhante cruz de seu próprio mosteiro
de La Ferté.
- Ah! - exclamou - vosso rebento é digno de vós!
Quando vejo a mãe, tenho de felicitá-la por causa da filha;
quando,_ visito a filha, tenho de felicitá-la por causa da mãe.
Não faço isso por diplomacia ou por cortesia, -mas por sin-
ceridade e honradez.
300 PARTE IV: OS IRMÃOS MAIS NOVOS
ria por vós com todos os meus brios, pois sei que recompen-
sais com fartura o valor de vossos soldados. Mas servir
ao Rei dos reis como cavaleiro de Cister, requer muito mais.
Exige fé. Não ~ fé que move montanhas, mas uma fé ainda
maior. A fé que transforma homens. Talvez penseis que sou
um vaidoso quando digo isto ...
- De modo algum. O que está fazendo é envergonhar-
me e a todos como eu. Somos indivíduos de mentalidade tão
estreita, tão egocêntricos, e tão cheios de nós mesmos, que
medimos todos os homens pelo metro de nossa própria mes-
quinhez. Duvido que existam no ducado muitos nobres que
não pensem que os senhores são homens entrincheirados atrás
dessas muralhas por temor da outra vida. Acho que nenhum
pensará que são cavaleiros de Cristo, empolgados por um ar-
dente amor que os faz desprezar a vida para que !?.!e possa
ser louvado e os homens sejam salvos. Ajoelho-me diante
do senhor, reverendo pai abade, ajoelho-me e rendo-lhe meu
atributo de admiração para solicitar seu perdão por meu
juízo precipitado e estulto.
- Levantai-vos 1 Lembrai-vos de que eu só vos disse
o que aprendi de Bartolomeu de La Ferté. Também eu me
ajoelho diante dêle por pura admiração e para que me absol-
va. Bartolomeu é outro Cristo. E' o abade perpétuo de
São Bento.
- Julg~~o um guerreiro oculto sob a cogula?
- Em certo sentido, sim. Embora fôsse melhor defini-lo
como um homem de mente e ações de Jesus Cristo. O aba-
de Bartolomeu jamais feriu os sentimentos de algum de seus
subordinados, e contudo não deixou nenhuma falta sem cor-
rigir. Todos o amam, porque êle ama a todos. Quando eu
vim para cá para ocupar meu cargo de abade, exortou-me
a tomar como lema as palavras de São Bento: "Prodesse
magis quam praeesse". Lute para ser o servo, disse-me, em
vez de senhor. Lute para ser o que o chamam: um pai.
Estou certo de que essas palavras breves me transmitiram
o segrêdo de sua vida e de seu serviço.
- Quanto mais o senhor fala, tanto mais admiro êsse
homem. Aprendeu tôdas essas táticas com seu irmão Bernardo?
- Não. Pelo que sei, a fôrça de Bernardo reside no
amor; a de Bartolomeu na fé. Uma vez lhe perguntei quem
mais lhe ensinara, Estêvão Harding ou seu irmão. A única
resposta que obtive foi uma sonora gargalhada e estas pa-
CAP. III: O HOMEM SEM ARTIFíCIOS 309
* * *
Na cromca cisterciense, no dia 9 de dezembro, o sem-
pre amável Bartolomeu é chamado "Beato". Os bolandistas
mencionam seu nome no dia 1" de julho.
Quanto ao ano em que partiu para Deus, não se sabe ao
certo. O fogo, o saque e as revoluções destruíram muitos
documentos preciosos .. . Manrinque, Mabillon e Le Nain afir-
mam que morreu em 1144, no mesmo ano que seu irmão,
o Beato André.
Mas outros, com mais probabilidade, em vista de cer-
tos documentos que trazem seu nome e são posteriores a
1144, assinalam as datas de 1158 e até de 1160.
_. ,.,._
CAPITULO IV
O cavaleiro ladrão
Quando Bernardo regressou de sua campanha em favor
do Papa Inocêncio li, Nivaldo contou-lhe os pormenores da
visita de seu primo Maurício.
O abade sorriu repetidas vêzes enquanto o escutava,
e quando Nivaldo terminou dizendo: "Despedi-o, asseguran-
do-lhe que a prata e os adornos dos arreios deveriam servir-
lhe para recordar que "uma só coisa é necessária" ... , Ber-
nardo soltou um.a garg.:ilhada.
- Indubitàvelmente, suas receitas contêm muito purgan-
te, meu bom doutor Nivaldo. Espero que não tenha dado a
morte a seu paciente. Às vêzes os médicos exageram a dose
e deixam o paciente muito pior do que. estava antes. Contu-
do, alegro-me que tenha abaixado um pouco o topete de
Mauríci€l, pois sempre foi algo pedante. Mas, diga-me: você
ouviu alguma vez falar a respeito de um cavaleiro ladrão?
- Isso não existe! replicou Nivaldo rindo. Um ladrão
não pode ser· tt:avaleiro por maior que seja sua cortesia, e,
se é um cavaleiro, não pode ser ladrão.
- Ouviu falar de Hugo d'Oisy?
- Hugo d'Oisy?.. . Hugo?. . . Ah! já sei. . . Hugo
d'Oisy é o escândalo de Cambraia ...
- Diga melhor: '~foi o escândalo" . Devo dizer-lhe que
se tratava do escândalo mais cortês que conheci em minha
vida. A polidez acentuava cada uma de suas palavras e de
seus gestos, a cortesia parecia emanar de sua pessoa. . . Hugo
era, na realidade, a encarnação da cortesia.
Amor sem Medida - 22
338 PARTE IV: OS IRMÃOS MAIS NOVOS
tO·\.
·(ntrodução ...... . . . . .. .... . . . ..... .... .. : ... . . .. .. . . .. . . ~ .... .. . 5
~u.mário .. ·.· . ... .. ·.· o. ... . ·.· ..... o. o • • ••• · : ••• • •• ... . .. • .• • ••• ••• o. 11
PARTE I:
OS PAIS
.capítulo I: O Velho Guerreiro ... .. ... .' .. ... .... .'.. ·...... . .. ..
.. . Recordações das cic'atrizes ... ... . . . .... . . ........ .' . .. .... .
O Duque enfurecido .... .... : . .. . .. . .. . ........ . . ... ...•.
Bodas de pratà .... .. .. ... .... ...... . .... . ·......... .... .
·. . . O senhor ·n ão pode rezar? . . ..... ........... . ...... .
A morte no mais am<;~rgo campo de batalha ....... . .... . .
PARTE 11:
PARTE 111:
BERNARDO
PARTE . IV: