Contribuição de Michael Apple No Brasil PDF

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A CONTRIBUiÇÃO DE MICHAEL APPLE PARA O DESENVOLVIMENTO

DE UMA TEORIA CURRICULAR CRíTICA NO BRASIL

Antonio Flavio Barbosa Moreira*

1. Introdução; 2. Os EUA ao final dos anos 60 e in(cio dos


anos 70; 3. Os primeiros trabalhos de Michael Apple; 4. A fa-
se contemporânea; 5. Conclusões.

1. Introdução

A sociologia do currrculo constitui-se em área de estudos que se tem caracterizado


por discutir as relações entre o currículo e as esferas econômica, polrtica e ideológica
da sociedade mais ampla, assim como analisar as relações envolvidas no momento
em que o currículo é implementado nas escolas e nas salas de aula, buscando enten-
der se e como tais relações são permeadas por elementos de controle, reprodução
e/ou oposição. Pouco estudada em nosso país, a sociologia do currículo é associada
à nova sociologia da educação, desenvolvida no inrcio da década de 70 por um grupo
de sociólogos ingleses (Young, 1971), e a alguns especialistas em currículo america-
nos, dentre os quais destaca-se o nome de Michael Apple (Gomes, 1980; Whitty,
1985).

Em um dos poucos estudos que focalizam a evolução do pensamento curricular bra-


sileiro, Domingues (1986) menciona a importância de Apple para o desenvolvimento
de uma abordagem sociológica de questões curriculares no Brasil. Moreira (1988), em
recente pesquisa, chama a atenção para o fato de que Ideologia e curr(culo constava,
em 1987, de todas as bibliografias dos cursos de Currículos e Programas das univer-
sidades do Rio de Janeiro. Tanto Domingues como Moreira sugerem, porém, que a
contribuição de Apple parece estar sendo mais significativa no discurso que na práti-
ca curricular brasileira.

Apple já participou de seminários no Brasil e é bastante conhecido por nossos espe-


cialistas. Além de seu primeiro livro Ideologia e currrculo, alguns artigos e Educação e
poder foram traduzidos para o português (este último somente em 1989). No entanto,
sua produção tem sido intensa e boa parte dela continua desconhecida do grande pú-
blico brasileiro. Parece ser oportuna, então, a tentativa de apresentar uma análise crí-
tica da evolução de seu pensamento e de sistematizar os princípios básicos que têm
norteado seu trabalho. É este o propósito do presente artigo, que buscará demonstrar
que, embora Apple contribua para uma melhor compreensão dos aspectos reproduti-
vos e das resistências que ocorrem na prática curricular, propostas e sugestões que

"Doutor em Educação pela Universidade de Londres; professor nos cursos de graduação e pós-gra-
duação da Faculdade de Educação da UFRJ.

Forum educ., Rio de Janeiro, 13(4):17-30, set./nov. 1989


realmente auxiliem a elaboração e a implementação de um currículo comprometido
com a emancipação do homem e com maior justiça social continuam escassas em
seu discurso.

o artigo será estruturado da seguinte forma: apresentar-se-á inicialmente o contexto


no qual uma linha crítica de currículo, à qual a teoria de Apple se associa, emergiu nos
EUA. Tentar-se-á, a seguir, caracterizar as fases de seu pensamento, identificando-
se as principais influências teóricas, temas e categorias de cada uma delas. Final-
mente, nas conclusões, discutir-se-á até que ponto a teoria oferece contribuições sig-
nificativas para o desenvolvimento de propostas curriculares críticas adequadas à
realidade brasileira.

2. Os EUA ao final dos anos 60 e início dos anos 70

Problemas sociais cruciais como racismo, desemprego, violência Urbana, crime, de-
linqüência e condições precárias de moradia para a classe trabalhadora representa-
vam, nos anos 60, motivo de vergonha para os que desejavam ver a riqueza ameri-
cana mais bem distribuída e sonhavam com a concretização de uma sociedade mais
democrática, justa e humana. A revolta contra todos estes problemas e com a partici-
pação americana na Guerra do Vietnã levou a uma série de protestos e ao questio-
namento das instituições e valores tradicionais.

A autoridade da lei, da cultura, da tradição e da moralidade passou a ser abertamente


rejeitada por parcela significativa da população jovem. Um sentimento de crise acabou
por instalar-se em todos os setores da sociedade: foi uma crise que chegou a envol-
ver mesmo o significado e o sentido da vida (Silberman, 1973).

Pode-se entender, sem dificuldades, o surgimento de uma contracultura. Ao invés de


valorizar trabalho, esforço, paciência, disciplina, sucesso acadêmico, casa própria,
bens e casamento, a contracultura enfatizava prazeres sensuais, liberdade sexual,
gratificação imediata, naturalismo, experiências com drogas, vida comunitária, paz e
liberação pessoal. Embora rapidamente absorvida pela cultura dominante, a contracul-
tura desafiou seriamente as instituições americanas, dentre elas as que se dedicavam
a educar o jovem e a prepará-lo para viver em sociedade, segundo valores e normas
estabelecidas.

o protesto estudantil espalhou-se por todo o pars. A universidade tornou-se imediata-


mente alvo dos que buscavam afirmar sua oposição às instituições de uma sociedade
repressora e desumana. Como conseqüência, as mais famosas universidades ameri-
canas foram palcos de manifestações e conflitos, chegando mesmo a ser sacudi-
das por choques entre os jovens e forças policiais (Ravitch, 1983).

A escola primária e a escola secundária foram também fortemente questionadas e


acusadas de não contribuir para ajudar o aluno de origem social menos favorecida a

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ascender socialmente. Abalou-se a crença de que as escolas promoviam justiça so-
ciál, reduzindo as desigualdades entre os indivrduos. Começou-se a perguntar para
que serviam as escolas.

Mesmo aqueles a quem a escola ajudou a alcançar ou a conservar os privilégios re-


servados aos grupos dominantes passaram a criticar a escola, por não oferecer liber-
dade e por não ajudar a desenvolver o potencial do estudante. A escola foi chamada
de arbitrária, violenta, castradora e irrelevante. Era preciso que fosse radicalmente re-
formada ou, segundo alguns dos crlticos, abolida. Toda uma literatura altemativa foi
publicada (Featherstone, 1971; Goodman, 1972; Holt, 1975; lIIich, 1973; Kohl, 1967,
1969; Kozol, 1967, 1972; Silberman, 1973; Reimer, 1972). Apesar de diferentes enfo-
ques, os autores desta literatura comungavam da visão de que a sociedade america-
na e sua escola eram injustas e repressoras.

Nos anos 70, porém, pouco após a vitória de Nixon, uma onda conservadora buscou
"limpar" o panorama educacional da subversão dos anos 60. A linguagem da eficiên-
cia e da competência assumiu papel de destaque no cenário (Shor, 1986). O discurso
pedagógico ficou dominado, então, por três tendências básicas: idéias conservado-
ras, que enfatizavam excelência nas escolas, idéias românticas, que acreditavam que
escolas livres construiriam uma sociedade mais humana, e idéias utópicas, que pro-
punham a eliminação das escolas. Todas estas tendências permaneceram restritas a
uma postura liberal humanista, que não questionou profundamente a relação entre
educação e sociedade nem desejou ir além da moldura capitalista da sociedade ame-
ricana.

Como a teoria pedagógica americana não oferecia altemativas promissoras, os auto-


res comprometidos com uma concepção de educação emancipadora foram buscar
apoio em teorias européias para fundamentar suas proposições. É em meio a tal
contexto que uma linha critica de estudos de curnculo acabou por emergir. Neste no-
vo enfoque, destacou-se imediatamente o nome de Michael Apple.

3. Os primeiros trabalhos de Mlchael Apple


A primeira fase do trabalho de Apple estende-se até o inrcio dos anos 80 e caracteri-
za-se, fundamentalmente, por discutir a relação entre poder e cultura. Apple (1982a, p.
56) propõe "explorar como a distribuição cultural e o poder econômico estão intima-
mente entrelaçados" não apenas nos valores transmitidos na escola, mas também no
que é considerado como conhecimento escolar. Ele volta-se, assim, seguindo o
exemplo dos autores da nova sociologia da educação e dos teóricos da reprodução,
para a análise do conhecimento e tenta mostrar como o que se ensina nas escolas
Mtem de ser considerado como uma forma de distribuição mais ampla de bens e servi-
ços numa sociedade" (id. ibid. p. 72).

O estudo do conhecimento educacional é visto por Michael Apple como um estudo em


ideologia, já que se trata de entender como o curnculo pode contribuir para criar e re-

Teoria curricular 19
criar a hegemonia ideológica dos grupos e classes dominantes. Tal preocupação en-
contra-se em sua tese de doutorado (Apple, 1970), que estuda o problema da re-
levância na ação escolar: o estudo reflete a influência das criticas à escola americana
mencionadas anteriormente e busca entender como a decisão do que é relevante nas
escolas relaciona-se a questões de distribuição de poder.
Apple parte do pressuposto de que a transformação de relevâncias faz com que dife-
rentes cosmovisões emerjam. Interpreta, então, a introdução de estudos do negro nas
escolas, bem como o movimento do currículo centrado nas disciplinas, como in-
tenções de substituir velhas relevâncias por novas, de modo a capacitar o aluno a
"ver" seu mundo de forma diferente.

A influência teórica que se pode observar na tese inclui a fenomenologia, a sociologia


do conhecimento, a sociologia da ciência e o marxismo (principalmente via Marcuse).
A principal falha do estudo é a ausência de uma análise mais lúcida de como fatores
estruturais contribuem para diluir e mesmo impedir tentativas de transformações. A
crença de que através do currículo é possível mudar relevâncias, conscientizar os
alunos e humanizar a sociedade, presente na tese, é ingênua. Apple não desenvolve-
ra ainda uma compreensão mais profunda da relação entre a ação humana e estrutura
social.
No esforço de explorar o nexo entre educação e estrutura econômica, entre conheci-
mento e poder, Apple volta-se, em outro estudo, para investigar o currrculo oculto, im-
portante tema desta fase inicial. Ele discute o ensino de estudos sociais e de ciências
e argumenta que ambos refletem e alimentam uma ideologia orientada para uma pers-
pectiva estática (Apple, 1982a, p. 125 seg.). Para Apple, o currículo oculto incute no
aluno disposições e propensões que possam ser funcionais, em sua vida futura, em
uma ordem social e econômica estratificada. Apesar da ênfase na importância do con-
flito, tanto para a transformação da ciência como da sociedade, a análise tende a real-
çar o papel reprodutor do currrculo oculto, refletindo o caráter determinista das teorias
da reprodução.

Outro foco central dos primeiros trabalhos é a denúncia das limitações da concepção
positivista da ciência adotada por muitos educadores. Apple rejeita a visão de que
educação tem que ser estudada "cientificamente" e, baseando-se na teoria dos inte-
resses de Habermas (1987), chama a atenção para o interesse em controle subjacen-
te a tal atitude. A mesma crrtica é feita aos procedimentos "objetivos" de avaliação, ao
processo de atribuir rótulos aos alunos a partir de instrumentos "cientificamente"
construídos e à pesquisa educacional empírica, supostamente apolrtica e neutra. Ap-
pie aponta os problemas decorrentes do culto do positivismo e propõe que se busque
o apoio da fenomenologia, da nova sociologia da educação, do marxismo e da escola
de Frankfurt para superá-los e que se substituam as pesquisas educacionais "cientffi-
cas" por pesquisas etnográficas que busquem entender a realidade da sala de aula e
do currículo (Apple, 1974, 1975-a, 1975-b, 1982-a). Apple expressa ainda o desejo de
que um interesse em emancipação venha, na teoria e na prática educacionais, a to-
mar o lugar do interesse em controle: ele espera, em síntese, que o processo de es-
colarização possa vir a ser "menos pessoal, racial e economicamente opressivo"
(1975-b, p. 128).

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Coerentemente, Apple esforça-se por desvendar os elementos de controle social que
permeiam a teoria e a prãtica curricular americana. Controle social é mesmo uma im-
portante categoria de anãlise desta primeira fase. Apple parece partilhar, assim, da
opinião de que é essencial identificar e eliminar as intenções de controle social coer-
civo presentes no campo do currículo nos EUA desde sua emergêneia (Franklin,
1974).

Apesar da importância de tal propósito, recentes estudos têm mostrado que hâ uma
considerãvel distância entre o pensamento curricular e o que realmente ocorre nas
escolas americanas. Tais estudos mostram que a tentativa de pautar a prãtica curri-
cular por padrões de eficiência e controle social, por exemplo, tem sido bem menos
eficaz do que se poderia inicialmente julgar (Franklin, 1982, 1985, 1986). Apple,
porém, ao utilizar a categoria controle social, não oferece espaço para as reinterpre-
taçóes que ocorrem quando as idéias teóricas são aplicadas à realidade escolar. A
compreensão da complexidade envolvida no processo curricular torna-se, por conse-
guinte, limitada.

Pode-se concluir a apresentação desta primeira fase chamando-se a atenção para o


fato de que Apple passa de uma postura predominantemente fenomenológica, na qual
o conhecimento é visto como uma construção social, para um posicionamento mais
político, no qual o papel desempenhado pelo currículo na reprodução de desigualda-
des sociais e no controle de comportamentos, normas e valores que favorecem as
camadas dominantes é bastante enfatizado. Tal mudança é nítida em sua crítica à
proposta de desescolarização de Ivan IlIich, considerada por Apple (1977) como sen-
do ingênua em relação às possibilidades de mudança social, como não oferecendo
esperança a não ser no nível da ação individual e como subestimando a influência dos
aspectos econômicos na educação.

No entanto, pode-se dizer que o próprio Apple oscila, na década de 70, entre a mes-
ma posição ingênua que ele critica em lIIich, quando julga que o simples reconheci-
mento da alienação na prãtica escolar permite superã-Ia, e uma posição pessimista e
determinista, baseada nas teorias da reprodução, na qual vê o currículo como resulta-
do de uma conspiração das camadas dominantes visando à preservação de seus pri-
vilégios. Em ambos os casos, a realidade é simplificada e as possibilidades de elabo-
ração de currículos caracterizados por interesses emancipatórios não são devida-
mente examinadas. Na década de 80, porém, a anâlise torna-se mais complexa.

4. A fase contemporânea

Em 1982 Apple edita o livro Cultural and economic reproduction in education, no qual
inclui o artigo curricular lorm and the logic 01 technical control (1982-b), que pode ser
considerado como representante de um momento de transição em seu trabalho. Apple
tenta mostrar que hã uma relação entre o formato de currículos ("pacotes curricula-
res") impostos nas escolas americanas e a forma de controle nas relações de pro-
dução. Segundo ele, o formato dos materiais curriculares contribui significantemente
para a formação de um indivíduo possessivo, bastante apropriado ao presente estãgio
do desenvolvimento do sistema capitalista. Apple denuncia como, através destes ma-

Teoria curricular 21
teriais, tenta-se controlar o trabalho do professor. Evidencia-se nova preocupação: o
formato do currrculo.

Apesar do novo foco, pouca diferença há, aparentemente, em relação à postura re-
produtivista da fase anterior. No entanto, Apple acentua mais intensamente que antes
como resistências e contradições são inevitáveis e como sua ocorrência leva a resul-
tados diferentes dos esperados. Uma visão mais dinâmica do processo curricular pa-
rece surgir.

Nos livros subseqüentes - Education and power e Teachers and texts, bem como
nos inúmeros artigos recentes, tal visão consolida-se. Apple volta-se, fundamental-
mente, para os seguintes temas e preocupações: a) o papel da cultura na forma como
as escolas contribuem para reproduzir e mudar configurações sociais; b) a relação
entre Estado, escola e currrculo; c) resistências e oposições que permeiam a prática
curricular; d) influência de raça e gênero, além de classe social, nos elementos de
discriminação e/ou libertação presentes em escolas, currrculos e salas de aula.

Apple rejeita a visão simplista de sociedade oferecida pelo modelo base-superestrutu-


ra, que reserva à economia o controle quase total dos aspectos culturais. Ele insiste
em que se entenda determinação como um complexo conjunto de relações: se, em úl-
tima instância, é a esfera econômica que estabelece limites para a esfera cultural, es-
ta última, no entanto, também pressiona a primeira. Determinações não são, então,
apenas decorrentes de condições materiais externas: práticas e significados ideológi-
cos ativamente criados e internalizados pelos indivrduos constituem também impor-
tantes elementos destas determinações. Apple enfatiza que cultura e ideologia têm al-
guma autonomia real e que a consciência do homem é mais que mero reflexo das re-
lações econômicas (Apple, 1982-c).

Observa-se o destaque, no momento atual, às categorias cultura e ideologia, já bas-


tante importantes no estágio anterior. Cultura é entendida em duas dimensões: expe-
riência que se vive diariamente em interação com indivrduos e grupos (produção cul-
tural) e transformação de produtos culturais em mercadoria, seguida da acumulação
destes produtos (capital cultural). A primeira dimensão permite entender-se como he-
gemonia é produzida e contestada no processo social, ao passo que a segunda apon-
ta para as razões que tomam certos produtos disponrveis para uso nas práticas coti-
dianas (Apple, 1982-c). Quanto à concepção de ideologia, Apple sugere que seja
concebida, ao invés de como uma falsa consciência, como um conjunto de significa-
dos e práticas que fazem parte da cultura vivida e que contêm elementos que eviden-
ciam bom senso e elementos que sugerem opressão e reprodução. As ideologias, em
srntese, não apenas submetem um indivrduo a uma ordem social existente; elas
também o qualificam para ação e mudança social. Elas, dialeticamente, enfraquecem
e fortalecem (Apple & Weis, 1986-c). As influências de Gramsci, Raymond Williams e
Erik Wright são mencionadas por Apple.

A relação entre ideologia e educação é vista da seguinte forma: as escolas "desem-


penham funções vitais na recriação das condições necessárias para que a hegemo-
nia ideológica seja mantida Tais condições, porém, não são impostas. Elas são e

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precisam ser continuamente reconstrufdas em instituições como a escola" (Apple,
1982-c, p.17).

o foco na criação de hegemonia ideológica e na autonomia relativa da cultura é com-


plementado pelo foco no Estado, visto como local de conflito entre classes e segmen-
tos de classes e entre diferentes sexos e raças. Ao Estado vincula-se a noção de he-
gemonia, considerada como o processo pelo qual as camadas dominantes tentam
conseguir um consenso que seja aceito pelos demais grupos da sociedade. Tal con-
senso precisa ser obtido entre numerosos grupos que se opõem, o que significa que
terá de incorporar interesses de grupos diferentes (Apple, 1984).

Educação, sendo parte do Estado, constitui importante instrumento para a obtenção


deste consenso. No entanto, Apple (1982-c, p. 29) enfatiza que, por ser a educação
um aspecto do Estado, não se deve entender "que todos os aspectos do currículo e
do ensino sejam redutrveis aos interesses de uma classe dominante".

Que funções desempenham as escolas para o Estado? Segundo Apple, elas: a) auxi-
liam o processo de acumulação de capital ao fornecer algumas das condições que
ajudam a conservar uma economia que se baseia na existência de desigualdades; b)
contribuem para que o governo, a burocracia estatal, o sistema econômico e o siste-
ma educacional pareçam naturais e justos; c) produzem o conhecimento técnico-ad-
ministrativo necessário à produção, distribuição e consumo. Tais funções referem-se
às esferas econômica, cultural e ideológica, cujos interesses nem sempre coincidem.
Como as escolas relacionam-se com os três setores, as atividades nelas desenvolvi-
das tendem a ser, com grande freqüência, contraditórias. A ênfase no conflito, e não
no consenso, é clara.

Apple destaca a importância do curnculo para as três funções acima. No entanto, co-
mo instrumento central para o desenvolvimento de atividades contraditórias, o currícu-
lo pode ser usado por educadores progressistas em favor das crianças das classes
subalternas. Uma das dificuldades que surgem, porém, é o ensino do currículo
acadêmico para as crianças da classe trabalhadora. "Pela ausência total de conexão
orgânica com a vida da classe trabalhadora e por agir, na verdade, como um instru-
mento estratificador, com base em gênero e classe social, o currículo acadêmico tor-
na mais diffcil a atuação dos professores. Além de estratificar os alunos por classe e
gênero, tal currfculo também estratifica os professores em hierarquias de prestrgio,
hierarquias estas que são um elemento constitutivo da escola" (Apple, 1986-b, p.
455). É clara a rejeição da imposição do currículo acadêmico aos alunos da classe
trabalhadora.

Classe social continua, conforme se observa, uma categoria central do discurso. A


ênfase vai, no entanto, para a relação dialética entre estrutura social e luta de classes:
o conflito entre as classes é visto como afetando, constantemente, a composição da
estrutura da sociedade. Chega-se a uma noção dinâmica, na qual classe social não é
considerada apenas como o "salário que se ganha" ou o "emprego que se tem", mas
sim como a relação que se estabelece com o controle e a produção de capital
econômico e cultural. A concepção aponta, assim, para um complexo e criativo pro-

Teoria curricular 23
cesso. Em sfntese, classe é tanto uma posição estrutural como algo vivido, e não
apenas "uma entidade abstrata ou um conjunto de determinações em algum lugar lá
fora, situado em um igualmente abstrato e isolado setor econômico da sociedade"
(Apple, 1982-c, p.92).

Como conseqüência, os membros das classes subalternas não podem ser passivos
portadores de uma ideologia dominante. São, sim, seres ativnc; que somente reprodu-
zem as estruturas existentes através de contestação e luta, o que se harmoniza com
os princfpios da teoria da resistência de Paul Willis (1983), autor inglês bastante in-
fluente no pensamento contemporâneo de Apple. Tal visão leva a concluir-se que as
mensagens da escola não são aceitas pacificamente pelos alunos das camadas do-
minadas, podendo mesmo ser recusadas por eles.

Apple (1980, 1982-c) rejeita, assim, a visão determinista de currfculo oculto da primei-
ra fase e afirma que não se pode subestimar o fato de que alunos e trabalhadores
comportam-se criativamente, indo, muito freqüentemente, contra as regras e valores
da escola e do local de trabalho. Mesmo que as práticas de oposição não sejam tão
fortes quanto as forças ideológicas e materiais que visam à reprodução da ordem vi-
gente, elas sempre ocorrerão. Caberia, então, ao educador progressista entendê-Ias e
esforçar-se por organizá-Ias.

Apple não oferece, no entanto, muitas pistas para a concretização de tais tarefas. O
que deve ser entendido como resistência permanece um pouco vago, o que dificulta a
ação do educador. Fica faltando, em sua análise, um melhor esclarecimento a respei-
to dos tipos de atitude que possam vir a constituir-se em formas de resistência politi-
camente viáveis, que contribuam para reduzir as injustiças sofridas pelos alunos da
classe trabalhadora, quer em decorrência de sua classe social, quer em decorrência
de seu sexo.

Gênero é outra categoria importante nos atuais artigos e livros de Apple. A opressão
sofrida pelas mulheres, no mundo contemporâneo, é um dos temas centrais de sua
recente obra Teachers and texts (1986-a). Apple volta-se particularmente para o tra-
balho feminino e tenta demonstrar que a história do magistério primário é a história de
uma força de trabalho constitufda predominantemente por mulheres. Discute, então,
as causas e as implicações de tal fato e busca também analisar as conseqüências de
serem homens os editores que tomam as decisões referentes aos textos que são pu-
blicados. Apesar de realçar sempre elementos de resistência, Apple não esclarece
bem como a interação entre gênero e classe social afeta a forma final que venham a
tomar o ensino e os textos. Talvez uma pesquisa etnográfica, aliás por ele mesmo
sugerida, que siga o trajeto de um texto desde o momento em que é produzido até o
momento em que é vendido e utilizado, possa iluminar um pouco mais a questão.

Pode-se verificar que o segundo momento da obra de Apple reflete claramente uma
tentativa de vencer o caráter reducionista da primeira etapa. Apple busca ir além das

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teorias da reprodução, superar a supervalorização da esfera econômica encontrada
em muitos estudos que relacionam educação e currfculo à sociedade mais ampla e,
ainda, enfatizar sua crença de que gênero e raça não podem ter suas especificidades
reduzidas a classe social. A contribuição geral de sua teoria curricular para o pensar
e fazer currículo no Brasil será discutida nas conclusões.

5. Conclusões

Conforme ficou claro na apresentação dos temas, categorias e enfoques das duas fa-
ses do pensamento de Apple, o principal interesse do autor americano não é, em ne-
nhuma delas, o "como fazer currículo". Sugestões relativas a como elaborar e imple-
mentar currículos são bastante escassas. Pode-se considerar que tal postura deriva
de uma forte rejeição do paradigma tecnicista do currículo americano, que, ao maximi-
zar a importância de técnicas e procedimentos, secundarizou, indevidamente, os as-
pectos éticos e polrticos do processo. Assim, Apple reage contra a visão de que de-
cisões curriculares são fundamentalmente técnicas e esforça-se por evidenciar e
desvendar os mecanismos que as ligam às esferas econômica, polrtica e cultural do
contexto social. Ele deseja que as importantes questões relacionadas a conteúdo e a
metodologia não sejam dissociadas dos fatores éticos e polrticos que as acompanham
(Apple, 1987). É sem dúvida alguma grande a sua contribuição neste ponto, princi-
palmente na fase atual, quando a visão determinista inicial é abandonada.

Considerando-se que somente princfpios gerais são oferecidos por Apple, é necessá-
rio que se busque realçar alguns pontos que implícita ou explicitamente são sugeridos
em seus estudos, principalmente nos da fase contemporânea. Apple chama a atenção
para: a) a necessidade de se pensar currfculo sempre em relação ao contexto social
mais amplo; b) a importância de se buscar entender os significados subjacentes à
prática curricular; c) a necessidade de se identificar (e eliminar) elementos repressi-
vos porventura presentes nos currículos; d) a possibilidade de uma prática curricular
emancipatória; e) a necessidade de não se dissociar conteúdo de metodologia; f) a
necessidade de se planejar o currículo a partir da cultura do aluno; e g) a conveniên-
cia de se estabelecer alianças com setores progressistas externos à escola.

Em relação às linhas de pesquisa que podem derivar da teoria de Apple, é extrema-


mente importante que os estudos etnográficos que ele sugere, visando uma melhor
compreensão do que ocorre quando o currfculo "acontece" nas salas de aula, conti-
nuem a ser desenvolvidos em nosso país. Embora diversos autores estejam procu-
rando entender o nosso cotidiano escolar (ver, por exemplo, André, 1987; Domingues,
1985; Ramos, 1988), ainda há muito a ser pesquisado. A atual concepção de currfculo
oculto de Apple, que reserva espaço para a ocorrência de resistências e mediações,
tem muito a oferecer. Estudos que simplesmente apontem os efeitos reprodutivos da
prática escolar não são mais suficientes. É necessário entender mais profundamente
possibilidades e limitações da ação escolar. Daí a necessidade de se desviar o foco

Teoria cu"icular 25
dos aspectos reprodutivos da prática curricular para o dinamismo e as contradições
que ocorrem quando alunos e professores interagem.

É fundamental que se investiguem também experiências inovadoras que possam es-


tar sendo realizadas, a fim de que não apenas as práticas tradicionais, mas também
as que se fundamentem em interesses emancipatórios, sejam melhor compreendidas.
Somente assim poder-se-á avaliar mais acuradamente a viabilidade dos prindpios crí-
ticos advogados por Apple.

Importa, porém, que se esclareça bem a concepção de resistência (Giroux, 1983;


Hargreaves, 1982; Whitty, 1985), particularmente em termos de sua presença e es-
pecificidade na realidade brasileira. É necessário, então, que se analisem criticamente
trabalhos como os de Anyon (1981), Everhart (1983), McLaren (1986) e Willis (1983),
além dos de Apple e Giroux, a fim de que se verifique em que medida eles fornecem
subsídios para a discussão do que ocorre em nossas salas de aula, principalmente
nos grandes centros urbanos, onde a reação dos alunos elas camadas populares tem
sido não mais de passividade frente à escola e ao professor, mas de contestação, re-
jeição e até violência. As conseqüências desta resistência precisam tornar-se claras.

Finalmente, dois importantes pontos, não devidamente explorados por Apple, estão a
merecer aprofundamento. O primeiro é se e como o professor adotará a postura crrti-
ca desejada por ele, colaborando, então, para que currículos baseados em interesses
emancipatórios tornem-se realidade. Pode-se esperar que o professor brasileiro de-
senvolva tal posicionamento nas atuais condições de formação e de salário? Como
favorecer seu comprometimento com um interesse emancipatório?

O segundo ponto, fundamental para que as idéias defendidas por Apple não se limitem
a mera especulação teórica, é a urgente necessidade de que seus princípios gerais
sejam traduzidos em sugestões mais concretas que possam, realmente, constituir-se
em auxilio para o especialista e para o professor. O próprio Apple (1987) reconhece a
importância do "como fazer", desde que articulado com o "por que fazer". As duas
pespectivas, então, precisam fazer parte de uma linha crítica de currículo, voltada pa-
ra a realidade brasileira, que aproveite a significativa contribuição do pensamento do
especialista americano.

Domingues (1986), analisando tal contribuição, realçou a importância do foco no currí-


culo oculto e no conflito no currículo. Por outro lado, Domingues reconheceu, correta-
mente, a falta de trabalhos traduzindo a teoria de Apple em ação. Pode-se sugerir que
tal tradução, para ser efetivada, requer uma maior compreensão da mencionada teo-
ria. Como Domingues limita-se a comentar a primeira fase da obra de Apple, esta
compreensão torna-se difícil de ser atingida (Moreira, 1988). Espera-se que o presen-
te estudo tenha ajudado, ao menos parcialmente, a completar tal lacuna, não só ao
explorar um pouco a evolução do discurso do renomado autor, mas também ao enfa-

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tizar alguns dos aspectos de sua teoria que carecem de aprofundamento e/ou de opa-
racionalização.

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