Contribuição de Michael Apple No Brasil PDF
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1. Introdução
"Doutor em Educação pela Universidade de Londres; professor nos cursos de graduação e pós-gra-
duação da Faculdade de Educação da UFRJ.
Problemas sociais cruciais como racismo, desemprego, violência Urbana, crime, de-
linqüência e condições precárias de moradia para a classe trabalhadora representa-
vam, nos anos 60, motivo de vergonha para os que desejavam ver a riqueza ameri-
cana mais bem distribuída e sonhavam com a concretização de uma sociedade mais
democrática, justa e humana. A revolta contra todos estes problemas e com a partici-
pação americana na Guerra do Vietnã levou a uma série de protestos e ao questio-
namento das instituições e valores tradicionais.
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ascender socialmente. Abalou-se a crença de que as escolas promoviam justiça so-
ciál, reduzindo as desigualdades entre os indivrduos. Começou-se a perguntar para
que serviam as escolas.
Nos anos 70, porém, pouco após a vitória de Nixon, uma onda conservadora buscou
"limpar" o panorama educacional da subversão dos anos 60. A linguagem da eficiên-
cia e da competência assumiu papel de destaque no cenário (Shor, 1986). O discurso
pedagógico ficou dominado, então, por três tendências básicas: idéias conservado-
ras, que enfatizavam excelência nas escolas, idéias românticas, que acreditavam que
escolas livres construiriam uma sociedade mais humana, e idéias utópicas, que pro-
punham a eliminação das escolas. Todas estas tendências permaneceram restritas a
uma postura liberal humanista, que não questionou profundamente a relação entre
educação e sociedade nem desejou ir além da moldura capitalista da sociedade ame-
ricana.
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criar a hegemonia ideológica dos grupos e classes dominantes. Tal preocupação en-
contra-se em sua tese de doutorado (Apple, 1970), que estuda o problema da re-
levância na ação escolar: o estudo reflete a influência das criticas à escola americana
mencionadas anteriormente e busca entender como a decisão do que é relevante nas
escolas relaciona-se a questões de distribuição de poder.
Apple parte do pressuposto de que a transformação de relevâncias faz com que dife-
rentes cosmovisões emerjam. Interpreta, então, a introdução de estudos do negro nas
escolas, bem como o movimento do currículo centrado nas disciplinas, como in-
tenções de substituir velhas relevâncias por novas, de modo a capacitar o aluno a
"ver" seu mundo de forma diferente.
Outro foco central dos primeiros trabalhos é a denúncia das limitações da concepção
positivista da ciência adotada por muitos educadores. Apple rejeita a visão de que
educação tem que ser estudada "cientificamente" e, baseando-se na teoria dos inte-
resses de Habermas (1987), chama a atenção para o interesse em controle subjacen-
te a tal atitude. A mesma crrtica é feita aos procedimentos "objetivos" de avaliação, ao
processo de atribuir rótulos aos alunos a partir de instrumentos "cientificamente"
construídos e à pesquisa educacional empírica, supostamente apolrtica e neutra. Ap-
pie aponta os problemas decorrentes do culto do positivismo e propõe que se busque
o apoio da fenomenologia, da nova sociologia da educação, do marxismo e da escola
de Frankfurt para superá-los e que se substituam as pesquisas educacionais "cientffi-
cas" por pesquisas etnográficas que busquem entender a realidade da sala de aula e
do currículo (Apple, 1974, 1975-a, 1975-b, 1982-a). Apple expressa ainda o desejo de
que um interesse em emancipação venha, na teoria e na prática educacionais, a to-
mar o lugar do interesse em controle: ele espera, em síntese, que o processo de es-
colarização possa vir a ser "menos pessoal, racial e economicamente opressivo"
(1975-b, p. 128).
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Coerentemente, Apple esforça-se por desvendar os elementos de controle social que
permeiam a teoria e a prãtica curricular americana. Controle social é mesmo uma im-
portante categoria de anãlise desta primeira fase. Apple parece partilhar, assim, da
opinião de que é essencial identificar e eliminar as intenções de controle social coer-
civo presentes no campo do currículo nos EUA desde sua emergêneia (Franklin,
1974).
Apesar da importância de tal propósito, recentes estudos têm mostrado que hâ uma
considerãvel distância entre o pensamento curricular e o que realmente ocorre nas
escolas americanas. Tais estudos mostram que a tentativa de pautar a prãtica curri-
cular por padrões de eficiência e controle social, por exemplo, tem sido bem menos
eficaz do que se poderia inicialmente julgar (Franklin, 1982, 1985, 1986). Apple,
porém, ao utilizar a categoria controle social, não oferece espaço para as reinterpre-
taçóes que ocorrem quando as idéias teóricas são aplicadas à realidade escolar. A
compreensão da complexidade envolvida no processo curricular torna-se, por conse-
guinte, limitada.
No entanto, pode-se dizer que o próprio Apple oscila, na década de 70, entre a mes-
ma posição ingênua que ele critica em lIIich, quando julga que o simples reconheci-
mento da alienação na prãtica escolar permite superã-Ia, e uma posição pessimista e
determinista, baseada nas teorias da reprodução, na qual vê o currículo como resulta-
do de uma conspiração das camadas dominantes visando à preservação de seus pri-
vilégios. Em ambos os casos, a realidade é simplificada e as possibilidades de elabo-
ração de currículos caracterizados por interesses emancipatórios não são devida-
mente examinadas. Na década de 80, porém, a anâlise torna-se mais complexa.
4. A fase contemporânea
Em 1982 Apple edita o livro Cultural and economic reproduction in education, no qual
inclui o artigo curricular lorm and the logic 01 technical control (1982-b), que pode ser
considerado como representante de um momento de transição em seu trabalho. Apple
tenta mostrar que hã uma relação entre o formato de currículos ("pacotes curricula-
res") impostos nas escolas americanas e a forma de controle nas relações de pro-
dução. Segundo ele, o formato dos materiais curriculares contribui significantemente
para a formação de um indivíduo possessivo, bastante apropriado ao presente estãgio
do desenvolvimento do sistema capitalista. Apple denuncia como, através destes ma-
Teoria curricular 21
teriais, tenta-se controlar o trabalho do professor. Evidencia-se nova preocupação: o
formato do currrculo.
Apesar do novo foco, pouca diferença há, aparentemente, em relação à postura re-
produtivista da fase anterior. No entanto, Apple acentua mais intensamente que antes
como resistências e contradições são inevitáveis e como sua ocorrência leva a resul-
tados diferentes dos esperados. Uma visão mais dinâmica do processo curricular pa-
rece surgir.
Nos livros subseqüentes - Education and power e Teachers and texts, bem como
nos inúmeros artigos recentes, tal visão consolida-se. Apple volta-se, fundamental-
mente, para os seguintes temas e preocupações: a) o papel da cultura na forma como
as escolas contribuem para reproduzir e mudar configurações sociais; b) a relação
entre Estado, escola e currrculo; c) resistências e oposições que permeiam a prática
curricular; d) influência de raça e gênero, além de classe social, nos elementos de
discriminação e/ou libertação presentes em escolas, currrculos e salas de aula.
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precisam ser continuamente reconstrufdas em instituições como a escola" (Apple,
1982-c, p.17).
Que funções desempenham as escolas para o Estado? Segundo Apple, elas: a) auxi-
liam o processo de acumulação de capital ao fornecer algumas das condições que
ajudam a conservar uma economia que se baseia na existência de desigualdades; b)
contribuem para que o governo, a burocracia estatal, o sistema econômico e o siste-
ma educacional pareçam naturais e justos; c) produzem o conhecimento técnico-ad-
ministrativo necessário à produção, distribuição e consumo. Tais funções referem-se
às esferas econômica, cultural e ideológica, cujos interesses nem sempre coincidem.
Como as escolas relacionam-se com os três setores, as atividades nelas desenvolvi-
das tendem a ser, com grande freqüência, contraditórias. A ênfase no conflito, e não
no consenso, é clara.
Apple destaca a importância do curnculo para as três funções acima. No entanto, co-
mo instrumento central para o desenvolvimento de atividades contraditórias, o currícu-
lo pode ser usado por educadores progressistas em favor das crianças das classes
subalternas. Uma das dificuldades que surgem, porém, é o ensino do currículo
acadêmico para as crianças da classe trabalhadora. "Pela ausência total de conexão
orgânica com a vida da classe trabalhadora e por agir, na verdade, como um instru-
mento estratificador, com base em gênero e classe social, o currículo acadêmico tor-
na mais diffcil a atuação dos professores. Além de estratificar os alunos por classe e
gênero, tal currfculo também estratifica os professores em hierarquias de prestrgio,
hierarquias estas que são um elemento constitutivo da escola" (Apple, 1986-b, p.
455). É clara a rejeição da imposição do currículo acadêmico aos alunos da classe
trabalhadora.
Teoria curricular 23
cesso. Em sfntese, classe é tanto uma posição estrutural como algo vivido, e não
apenas "uma entidade abstrata ou um conjunto de determinações em algum lugar lá
fora, situado em um igualmente abstrato e isolado setor econômico da sociedade"
(Apple, 1982-c, p.92).
Como conseqüência, os membros das classes subalternas não podem ser passivos
portadores de uma ideologia dominante. São, sim, seres ativnc; que somente reprodu-
zem as estruturas existentes através de contestação e luta, o que se harmoniza com
os princfpios da teoria da resistência de Paul Willis (1983), autor inglês bastante in-
fluente no pensamento contemporâneo de Apple. Tal visão leva a concluir-se que as
mensagens da escola não são aceitas pacificamente pelos alunos das camadas do-
minadas, podendo mesmo ser recusadas por eles.
Apple (1980, 1982-c) rejeita, assim, a visão determinista de currfculo oculto da primei-
ra fase e afirma que não se pode subestimar o fato de que alunos e trabalhadores
comportam-se criativamente, indo, muito freqüentemente, contra as regras e valores
da escola e do local de trabalho. Mesmo que as práticas de oposição não sejam tão
fortes quanto as forças ideológicas e materiais que visam à reprodução da ordem vi-
gente, elas sempre ocorrerão. Caberia, então, ao educador progressista entendê-Ias e
esforçar-se por organizá-Ias.
Apple não oferece, no entanto, muitas pistas para a concretização de tais tarefas. O
que deve ser entendido como resistência permanece um pouco vago, o que dificulta a
ação do educador. Fica faltando, em sua análise, um melhor esclarecimento a respei-
to dos tipos de atitude que possam vir a constituir-se em formas de resistência politi-
camente viáveis, que contribuam para reduzir as injustiças sofridas pelos alunos da
classe trabalhadora, quer em decorrência de sua classe social, quer em decorrência
de seu sexo.
Gênero é outra categoria importante nos atuais artigos e livros de Apple. A opressão
sofrida pelas mulheres, no mundo contemporâneo, é um dos temas centrais de sua
recente obra Teachers and texts (1986-a). Apple volta-se particularmente para o tra-
balho feminino e tenta demonstrar que a história do magistério primário é a história de
uma força de trabalho constitufda predominantemente por mulheres. Discute, então,
as causas e as implicações de tal fato e busca também analisar as conseqüências de
serem homens os editores que tomam as decisões referentes aos textos que são pu-
blicados. Apesar de realçar sempre elementos de resistência, Apple não esclarece
bem como a interação entre gênero e classe social afeta a forma final que venham a
tomar o ensino e os textos. Talvez uma pesquisa etnográfica, aliás por ele mesmo
sugerida, que siga o trajeto de um texto desde o momento em que é produzido até o
momento em que é vendido e utilizado, possa iluminar um pouco mais a questão.
Pode-se verificar que o segundo momento da obra de Apple reflete claramente uma
tentativa de vencer o caráter reducionista da primeira etapa. Apple busca ir além das
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teorias da reprodução, superar a supervalorização da esfera econômica encontrada
em muitos estudos que relacionam educação e currfculo à sociedade mais ampla e,
ainda, enfatizar sua crença de que gênero e raça não podem ter suas especificidades
reduzidas a classe social. A contribuição geral de sua teoria curricular para o pensar
e fazer currículo no Brasil será discutida nas conclusões.
5. Conclusões
Conforme ficou claro na apresentação dos temas, categorias e enfoques das duas fa-
ses do pensamento de Apple, o principal interesse do autor americano não é, em ne-
nhuma delas, o "como fazer currículo". Sugestões relativas a como elaborar e imple-
mentar currículos são bastante escassas. Pode-se considerar que tal postura deriva
de uma forte rejeição do paradigma tecnicista do currículo americano, que, ao maximi-
zar a importância de técnicas e procedimentos, secundarizou, indevidamente, os as-
pectos éticos e polrticos do processo. Assim, Apple reage contra a visão de que de-
cisões curriculares são fundamentalmente técnicas e esforça-se por evidenciar e
desvendar os mecanismos que as ligam às esferas econômica, polrtica e cultural do
contexto social. Ele deseja que as importantes questões relacionadas a conteúdo e a
metodologia não sejam dissociadas dos fatores éticos e polrticos que as acompanham
(Apple, 1987). É sem dúvida alguma grande a sua contribuição neste ponto, princi-
palmente na fase atual, quando a visão determinista inicial é abandonada.
Considerando-se que somente princfpios gerais são oferecidos por Apple, é necessá-
rio que se busque realçar alguns pontos que implícita ou explicitamente são sugeridos
em seus estudos, principalmente nos da fase contemporânea. Apple chama a atenção
para: a) a necessidade de se pensar currfculo sempre em relação ao contexto social
mais amplo; b) a importância de se buscar entender os significados subjacentes à
prática curricular; c) a necessidade de se identificar (e eliminar) elementos repressi-
vos porventura presentes nos currículos; d) a possibilidade de uma prática curricular
emancipatória; e) a necessidade de não se dissociar conteúdo de metodologia; f) a
necessidade de se planejar o currículo a partir da cultura do aluno; e g) a conveniên-
cia de se estabelecer alianças com setores progressistas externos à escola.
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dos aspectos reprodutivos da prática curricular para o dinamismo e as contradições
que ocorrem quando alunos e professores interagem.
Finalmente, dois importantes pontos, não devidamente explorados por Apple, estão a
merecer aprofundamento. O primeiro é se e como o professor adotará a postura crrti-
ca desejada por ele, colaborando, então, para que currículos baseados em interesses
emancipatórios tornem-se realidade. Pode-se esperar que o professor brasileiro de-
senvolva tal posicionamento nas atuais condições de formação e de salário? Como
favorecer seu comprometimento com um interesse emancipatório?
O segundo ponto, fundamental para que as idéias defendidas por Apple não se limitem
a mera especulação teórica, é a urgente necessidade de que seus princípios gerais
sejam traduzidos em sugestões mais concretas que possam, realmente, constituir-se
em auxilio para o especialista e para o professor. O próprio Apple (1987) reconhece a
importância do "como fazer", desde que articulado com o "por que fazer". As duas
pespectivas, então, precisam fazer parte de uma linha crítica de currículo, voltada pa-
ra a realidade brasileira, que aproveite a significativa contribuição do pensamento do
especialista americano.
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tizar alguns dos aspectos de sua teoria que carecem de aprofundamento e/ou de opa-
racionalização.
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