Luis Fernando Dos Reis Pereira - Os Perpétuos e Os Incompletos, Permanência e Movimento Nos Gibis de Super-Heróis e Na Série Sandman PDF
Luis Fernando Dos Reis Pereira - Os Perpétuos e Os Incompletos, Permanência e Movimento Nos Gibis de Super-Heróis e Na Série Sandman PDF
Luis Fernando Dos Reis Pereira - Os Perpétuos e Os Incompletos, Permanência e Movimento Nos Gibis de Super-Heróis e Na Série Sandman PDF
OS PERPÉTUOS E OS INCOMPLETOS:
permanência e movimento nos gibis de super-heróis
e na série Sandman
São Paulo
2010
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OS PERPÉTUOS E OS INCOMPLETOS:
permanência e movimento nos gibis de super-heróis
e na série Sandman
São Paulo
2010
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BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
Somos feitos do mesmo material dos sonhos, e nossa pequena vida é rodeada pelo sono.
ABSTRACT. This thesis analyzes the fictional narratives of the comics books series
Sandman, written by the British author Neil Gaiman, originally published by DC Comics and,
in Brazil, by Globo, from 1989 to 1996, noting the translation and appropriation of elements
from different cultural contexts for the construction of the narrative, in order to demonstrate
that Sandman has a higher tendency to mobility and articulation than the superhero’s comic
books, which generally emphasize the structures of permanence and isolation. We investigate
how the principle of identity, developed by certain core of Western thought is used, as well as
different characteristics from other cultural backgrounds, bringing into play concepts such as
centrality and periphery, reality/fiction, stability/instability, etc. In support of our journey, we
turn to theories about the processes and semiotic systems of culture, exploring and articulating
studies of Yuri Lotman, Severo Sarduy, Amálio Pinheiro, Jesus Martín-Barbero and Edgar
Morin, while the theories of Scott McCloud and Will Eisner served as basis for studying the
“recent” and still “in process” language of the "comics" as art and media; we counted, as well,
with the major contributions of Bakhtin’s theories of novel and literary genres
carnavalization, to support aspects of narrative language on the studied comics. The Sandman
series, with 75 editions and some special publications, combines aspects of the American
superhero comics, mythology, pop culture, literature, religion, paganism, magic, fantasy,
gothic horror, historical facts, philosophical references, elements of the classic epic and
folklore to tell the story of Dream, also called Oneiros, Morpheus, etc., ruler of the Dreaming,
and their complex relations with humanity and other beings, including his siblings Destiny,
Death, Destruction, Desire, Despair and Delirium; modern gods and those who have been
forgotten; their mortal and immortal lovers; Lucifer and his demons; and even the angels. In
the periphery of such a mosaic plot, perverting the classic epic elements, remnants of the
drama of a “missing” hero, unfinished and absurd, unable to remain equal to himself, and who
insists in to inhabit different borders: islands between reality and the Dreaming; soft regions
where time becomes malleable (local of translations between the familiar and the foreign),
and his own kingdom, which is a metaphorical border between life and death. Such
arrangements allow the discussion of the signic operating environment proposed by Lotman,
the semiosphere, and its mobile/translation borders, a key concept to understanding the trends
of permanence and change of the cultural texts Finally, Dream, occasional actor, the
personification of the dream itself, questions, over the stories, the objective notions of
identity, truth and immutability, as well as we may question, similarly, the principle of
identity in self-centered and self-referencing cultures based on binary logic and mainly closed
systems that tend to generate several ways of exclusion, through the idea of truth and
tolerance, unlike the Sandman’s realm environments, linked to Derrida's discussion of the
idea of hospitality.
LISTA DE FIGURAS
Figura 5 Capa de primeira revista do Superman, de 1939, com arte de Joe Shuster.
Figura 8 Ilustração de Frank Miller em Batman: The Dark Knight Returns, capítulo 1.
Figura 11 Combate entre Tempestade e Ciclope, em The Uncanny X-Men #201, 1986, arte
de Rick Leonardi e Whilce Portacio.
Figura 15 Galactus na primeira edição de Silver Surfer, de 1968. Arte de John Buscema e
Joe Sinnot.
Figura 16 Norrin Radd sendo transformado no Surfista Prateado, em Silver Surfer #1, 1968,
arte de John Buscema e Joe Sinnot.
Figura 18 Primeira página de Superman #300, de 1976. Arte de Curt Swan e Bob Oksner.
Figura 19 Primeira página da edição #201 de The Uncanny X-Men (1986), arte de Rick
Leonardi e Whilce Portacio.
16
Figura 20 Primeira página de Web of Spider-Man #117. Arte de Steven Butler e Randy
Amberlin.
Figura 21 Encontro entre Aranha Escarlate e Venon durante a Saga dos Clones.
Figura 22 Luta entre o Homem-Aranha e o Duende Verde original. The Amazing Spider-
Man #122, 1973. Arte de John Romita e Tony Mortellaro.
Figura 23 Jean Grey se transforma em Fênix. X-Men #101, 1976. Arte de Deve Cockrum e
Frank Chiaramonte.
Figura 24 Fênix Negra destrói um sistema solar em X-Men #135, de 1980. Arte de John
Byrne e Terry Austen.
Figura 25 Última página de Superman #75, 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett Breeding.
Figura 26 Steel como Superman, em Superman: The man of steel #22, junho de 1993. Arte
de Jon Bogdanove e Dennis Janke.
Figura 30 O verdadeiro Superman, em Superman #81, 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett
Breeding.
Figura 35 Wolverine e Rachel Summers em X-Men #207, 1986. Arte de John Romita Jr. e
Dan Green.
Figura 36 Batman e Duas Caras em Batman: The Dark Knight Returns, de Frank Miller.
Figura 37 Capitão América #125, 1970. Arte de Gene Colan e Frank Giacoia.
Figura 41 Iron Man #231, 1988. Arte de Mark Bright e Bob Layton.
Figura 59 Sandman #21, p. 18. Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.
Figura 60 Sandman #22, p. 23-24. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.
Figura 65 Sandman #17, p. 12-13. Arte: Delley Jones e Malcolm Jones III.
Figura 66 Sandman #17, p. 19. Arte: Delley Jones e Malcolm Jones III.
Figura 74 Sandman #18, p. 14. Arte de Kelley Jones e Malcolm Jones III.
Figura 75 Sandman #25, montagem de várias páginas. Arte de Matt Wagner e Malcolm
Jones III.
Figura 78 Montagem, a partir de diversas edições de Sandman, das várias formas das Três
Mulheres.
Figura 79 Doutor Destino (DC Comics) dos gibis de super-heróis da década de 1970.
Figura 81 Capas dos gibis de Sandman, super-herói das décadas de 1970 e 1980, por,
respectivamente, Simon e Kirby; Thomas e Argondezzi.
Figura 87 Sandman #21, p. 24. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.
19
Figura 90 Capa de Sandman, Casa de Bonecas, por Dave McKean, em Capas na Areia.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 021
INTRODUÇÃO
Os quadrinhos possuem aspectos das artes plásticas e da literatura, que têm seus
elementos traduzidos e combinados para expressar ideias, narrativas ou provocar um efeito
estético. A partir do momento em que passam a fazer parte de uma história em quadrinhos,
tanto os elementos literários quanto os plásticos assumem funções e formas diversas das que
teriam num quadro ou num livro, sem perder, ao mesmo tempo, muitos de seus traços
distintivos, conforme as diferentes situações de elaboração.
McCloud (2005, p. 10) estudou documentos antigos em busca de formas de artes
sequenciais. Encontrou num manuscrito pré-colombiano, descoberto por Hernán Cortés em
1519, uma “tela brilhantemente colorida e pintada” que “conta sobre o grande herói militar e
político ‘8-Cervos Garras de Jaguatirica’” (Figura 1). Nela, segundo o autor, podemos
combinar as figuras, icônicas e simbólicas, e “ler” que no ano de 1049 d.C., na data de “Doze
Macacos”, num determinado local – indicado por outra figura –, de significado ainda
desconhecido, 8-Cervos conquistou o referido lugar e aprisionou um príncipe de 9 anos,
chamado 4-Ventos “Serpente de Fogo”, e assim por diante até o final da história, que relata
mais combates e mortes.
Também relata (MCCLOUD, 2005, p. 12) a existência de uma tapeçaria francesa
medieval, com figuras em sequência, sobre a conquista da Inglaterra pelos normandos, em
1066. Da esquerda para a direita, observa, leem-se os fatos em ordem cronológica (Figura 2).
23
Figura 1
Figura 2
Figura 3
Acima, exemplo egípcio de imagens que podem ser lidas em sequência, em zigue-zague, de baixo para
cima.
Obviamente, McCloud não atribui o nascimento dos quadrinhos aos antigos egípcios,
babilônios ou maias. Sua intenção é construir um percurso de utilização de imagens em
sequência deliberada com o objetivo de relatar determinado evento, seja ele histórico ou
mítico. Normalmente, contam-se ambos ao mesmo tempo, sem que haja uma contradição
entre eles.
Devemos considerar, no entanto, que o autor pode estar tentando qualificar de forma
“positiva” os quadrinhos ao identificar num passado longínquo exemplos dessa forma de
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expressão. Ao mesmo tempo, pode estar procurando indícios da construção histórica desse
tipo de expressão narrativa.
McCloud identifica também, nos relatos medievais do martírio dos santos, mais
especificamente numa série de 1460, detalhes das torturas que sofreu Santo Erasmo, desde
sua prisão até sua execução (Figura 4). Podemos traçar um paralelo com a sequência da Via
Cruzes de Cristo, retratada em doze quadros de diferentes estilos em praticamente todas as
igrejas católicas brasileiras. De forma semelhante, é uma narração em sequência, sem texto,
somente com imagens.
Em 1731, o pintor inglês William Hogarth (1697-1764) compôs uma história em seis
ilustrações chamada O progresso de uma prostituta. Foram expostas e vendidas para serem
vistas em ordem determinada, lado a lado, sequencialmente. Hogarth fez outras séries como
essa e seu trabalho serviu de inspiração para outros artistas, que começaram a criar sequências
pictóricas que, vistas lado a lado, transmitiam significação específica. Ou seja, apresentavam
uma linha narrativa sequencial (MCCLOUD, 2005, p. 16).
Entretanto, os quadrinhos modernos teriam surgido somente em meados do século
XIX, com Rodolphe Topffer, que empregava “caricaturas e requadros” e, pela primeira vez na
Europa, palavras, relacionadas de forma interdependente com imagens1.
Uma ideia bastante difundida – a de que todos os quadrinhos têm como traço
distintivo a combinação de imagens e palavras – só é realmente válida em certas tradições. A
presença e a importância das palavras na narrativa sequencial variam bastante de acordo com
as escolas e artistas.
É consenso que a primeira tira de jornal, tal como a concebemos hoje, apareceu em
18 de fevereiro de 1895 no jornal New York World e se chamava The Yellow Kid. Foi lançada
em preto e branco e, a partir de maio do mesmo ano, em cores, e contava as histórias de
Mickey Dugan, sendo desenhada por Richard Felton Outcault. Sua característica distintiva,
além de ser uma tira e estar num jornal, tal qual as tirinhas modernas, foi o surgimento do
balão de diálogo, aquela forma geralmente ovalada que representa a “voz” do personagem que
tem a propriedade da fala naquele momento determinado, possuindo dentro de seus limites
frases ou formas expressivas variadas.
1
É importante notar que estamos traçando uma linha de desenvolvimento da expressão comunicativa das
histórias em quadrinhos no contexto de certo ocidente, pois nosso estudo diz respeito especificamente a tal
tradição. Além do mais, estamos apenas observando alguns parâmetros para entender tal universo, sem o
objetivo de construir uma genealogia dessa forma de expressão de ideias e narrativas.
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Figura 4
As torturas sofridas por Santo Erasmo, com leitura sequencial – produção do século XV. Notar a
semelhança com os quadros que retratam a Via Crucis nas igrejas católicas.
28
2
A Marvel Comics foi fundada em 1939, em Nova York, tendo como nome original “Timily Comics”. Foi
recentemente comprada pela Disney.
3
A DC Comics foi fundada em 1934 e era chamada de National Allied Publications. É uma empresa do grupo
Time Warner.
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Figura 5
Capa da primeira edição da revista do Superman, de 1939. Em 2009, o gibi original com a primeira aparição
do Superman foi leiloado por mais de 300 mil dólares nos Estados Unidos.
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Figura 6
A arte acima é um exemplo das ilustrações de luxo para pôsteres e edições comemorativas. Essa, feita por
Alex Ross, é dos Vingadores, grupo de heróis da Marvel; numa ilustração eminentemente solar, mostra em
primeiro plano o Capitão América, usual líder do grupo, entre Henry Pym, o Homem-Formiga (à esquerda), e
o deus nórdico Thor. Acima dele, a Vespa (à esquerda) e o Homem de Ferro (à direita). Acima de todos,
Namor, o regente de Atlântida. Podemos notar que as imagens, que retratam os super-heróis de baixo para
cima, confirmam e reforçam sua dimensão grandiosa. Técnica de perspectiva semelhante é usada no cinema,
que realiza filmagens com câmera baixa e ascendente.
31
Não basta ler um único gibi para entendê-lo, temos de ler o próximo, e depois o
próximo e assim consecutivamente se quisermos acompanhar a história do personagem, do
super-herói daquele título, e ficar a par de sua saga, de sua “mitologia”. As tirinhas de jornal
também apresentam, algumas vezes, histórias maiores que podem ser acompanhadas ao longo
de várias edições, como no caso do clássico personagem Flash Gordon4, por exemplo. Mas,
hoje em dia, estas são formas narrativas mais raras e que não possuem comparação com a
amplitude das séries de super-heróis.
Se não atribuirmos somente à lógica de mercado tal fenômeno que, prendendo o
leitor à estrutura folhetinesca de expectativa pelo próximo episódio, garante as vendas,
podemos encontrar um prolongamento da leitura sequencial. A própria história do
personagem, para além da história específica de um único número, é estruturada de forma
sequencial, em pequenos capítulos de cerca de 20 páginas cada. Porém, diferentemente do
folhetim, não há expectativa alguma de conclusão. A trama possui início. Mas não possui,
nesse contexto, meio ou fim.
Uma história famosa: um ser muito evoluído, superior de várias formas à espécie
humana, envia seu único filho ao planeta Terra, onde ele é criado por um casal virtuoso de
humanos como se fosse um de nós, sem, na verdade, pertencer a este mundo. Ele logo
demonstra ter poderes sobre-humanos e um grande senso de justiça e de compaixão pelas
pessoas. Seu destino é salvar a humanidade, sobretudo de si própria.
A semelhança da história do Superman com o mito cristão do salvador do mundo não
é casual. Para além dos dramas humanos e das infelicidades banais do dia a dia, os super-
heróis, que não envelhecem e podem realmente salvar o mundo, constroem em torno de si
mesmos uma aura mítica. Próximos aos heróis míticos, dialogam com tais estruturas
narrativas primevas.
Apesar das implicações ideológicas que os quadrinhos de super-heróis têm e tiveram
ao longo de sua existência, seja pelas possibilidades de seu uso para a construção de
consensos políticos sobre determinados temas, seja por suas visões conservadoras sobre
outros assuntos, tais questões não são diferentes das alienações e manipulações atribuídas a
outros meios de comunicação massivos, como o rádio, a televisão, o cinema ou mesmo os
jornais e revistas, segundo a visão de certos teóricos e pensadores. Tendo em vista a vastidão
de tal debate, optamos por apenas mencioná-lo, sabendo que outros autores trabalharam
exaustivamente tais relações em outros espaços.
4
Herói espacial criado em 1934 por Alex Raymond e publicado pela primeira vez no New York American
Journal.
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Em todo caso, o sucesso dos super-heróis não está somente nos gibis. Alastrou-se
para a televisão, através dos desenhos animados e séries produzidos desde os anos de 1960, e
para os cinemas, mídia em que já foram produzidos, com grandes orçamentos, filmes bem-
sucedidos, como Superman, Homem-Aranha, Homem de Ferro, Batman, Hulk, etc.
Como já dissemos, há certo consenso, em determinados meios, sobre os quadrinhos
serem uma arte menor, apesar de divertida e até, algumas vezes, criativa.
Tal ideia nos parece antiga – a de que as formas de cultura que combinam diferentes
linguagens são menos interessantes, principalmente se forem resultado dos desenvolvimentos
da indústria de comunicação massiva e se deverem muito de sua elaboração às técnicas de
produção mais tardias. Os quadrinhos não são nem pintura, nem literatura, menos ainda
cinema. Ainda assim, fazem uso de elementos das artes plásticas, de certos gêneros literários
e da narrativa cinematográfica.
A presença em conjunto de tais elementos configura uma simplificação das
linguagens citadas ou uma forma de elaboração de novas linguagens, com seus traços
distintivos e códigos próprios?
A articulação entre linguagens quase sempre é vista como algo negativo, como uma
“queda” da linguagem original – ou das linguagens originais –, a qual seria vitimada por um
processo de empobrecimento decorrente da utilização de seus códigos para a construção de
formas terceiras, quartas, quintas de expressão, normalmente assim classificadas por ordem
hierárquica de influência, ou seja, da proeminência de uma sobre a outra. Dessa forma, a
fotografia seria uma queda da pintura, assim como o cinema seria uma degradação da
performance presencial teatral, por exemplo.
Outro fator que provoca uma visão negativa dos quadrinhos é a época de seu
nascimento. Tal linguagem se consolida no auge da formalização dos meios de comunicação
massivos, no período entre guerras, período de grande desenvolvimento da indústria das
comunicações, da produção em série dos jornais e da propaganda moderna.
Os quadrinhos estadunidenses mais populares, os de super-heróis, costumam sofrer
ao menos três formas de depreciação: em razão da mídia em que se inscrevem, massiva e de
produção em série a baixos custos; por conta da linguagem que utilizam, uma combinação de
desenhos, textos e recursos narrativos sequenciais; e, finalmente, por seus temas, que
envolvem as aventuras de super-heróis, ou seja, por tratarem de uma temática fantástica.
33
Figura 7
Em Watchmen, obra cult de Moore e Gibbons, super-heróis são mostrados como mascarados
perturbados. Acima, reprodução da primeira página, com policiais no local do assassinato do
vigilante sádico Edward Morgan Blake, conhecido como Comediante, que foi arremessado
através da janela de seu apartamento.
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Figura 8
6
GAIMAN, Neil. Gaiman se dedica à alegria de contar histórias. O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno
D2, 13 abr. 1995. Entrevista concedida a Gabriel Bastos Junior.
7
Apropriação: tornar próprio ou compartilhar o alheio, que também nos toma para si; retirar um elemento de
determinado contexto e rearranjá-lo em um novo ambiente, que também se altera, estabelecendo novos atritos e
38
série, nosso interesse está nas operações de sintaxe9 – de articulação e montagem dos
elementos, responsáveis pela criação de atritos e movimentos – ao mesmo tempo em que
conferem traços distintivos à obra, diferenciando-a das demais de sua série cultural, ou seja,
dos quadrinhos do universo de super-heróis, sem os negar ou se opor a eles e sem conferir,
tampouco, harmonização final e ideal.
relações; tornar o objeto outro que não ele próprio, sem integrá-lo ou diluí-lo em um si mesmo autorreferente;
apossar-se do estranho para que haja incômodo mútuo.
8
Tradução: interpretar e recriar um texto cultural (uma dança, um livro, um texto, um prato culinário, uma peça
teatral, uma expressão de alegria, um deus) a partir de uma estrutura de códigos de linguagem que não coincida
com a estrutura anterior, com o texto de partida. “Não há tradução se o que vier de fora não reagir, por sua vez,
sobre todo o conjunto lingüístico em que entrou, como uma pilha voltaica acelerando novas conexões a partir da
imantação entre dois ou mais sistemas de linguagem” (PINHEIRO, 1995, p. 52).
9
Sintaxe: segundo Amálio Pinheiro (1994), são operações de seleção, combinação e montagem de elementos no
processo de tecitura de determinado texto da cultura. A sintaxe não coincide com a gramática, apesar de partir
dela para subvertê-la. Ao selecionar determinados ingredientes culinários e combiná-los de uma forma
específica, determinada sintaxe está sendo realizada, assim como quando materiais de construção, como tijolos,
tintas, portas e azulejos, são selecionados e arranjados de forma específica para construir uma casa ou uma
igrejinha.
39
Adoro fazer quadrinhos porque há tanto a ser explorado, tanto que ninguém fez até
hoje. Desde o início quis levar os quadrinhos a sério, o que parece que não vinha
sendo feito. Sempre quis fazer quadrinhos para pessoas que não lêem quadrinhos. O
problema é que muita gente diz: ‘Eu não leio quadrinhos, leio Sandman.’ (...) É
claro que Sandman é quadrinhos. A diferença é que é bom. Ou pelo menos eu espero
que seja. Fui cogitado para receber um Pulitzer e a idéia foi descartada porque não
sou americano. Por mim tudo bem. Fiquei satisfeito assim mesmo.10
10
GAIMAN, Neil. Gaiman se dedica à alegria de contar histórias. O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno
D2, 13 abr. 1995. Entrevista concedida a Gabriel Bastos Junior.
41
O príncipe das histórias não tem uma história própria. Discutiremos isso mais
adiante. Por enquanto, basta citar que Sonho é um protagonista ausente. Na verdade, esta é
uma denominação equivocada. Não se trata de protagonismo nem de ausência. Como
personificação dos sonhos, sua ausência/presença é bastante questionável, assim como seu
papel em seu próprio arco de histórias – sua ausência pode ser presença constante e vice-
versa. Até que ponto ele é/pode ser considerado o protagonista das histórias que se pretendem
sobre ele?
As edições de Sandman foram sucesso de público e crítica. Gaiman esteve no Brasil
três vezes – em 1995, em 2001 e na 6ª edição da FLIP – Festa Literária Internacional de
Paraty, em 2008. A lista de prêmios ganhados pelo título inclui o maior prêmio do mundo dos
quadrinhos, o Eisner Award de Melhor Escritor, vencido por quatro anos seguidos, entre 1991
e 1994, e o de Melhor Série, em 1991, 1992 e 1993; o prêmio Harvey de Melhor Escritor em
1990 e 1991 e o de Melhor Série em 1992; e o mais notável, o World Fantasy Award, na
categoria Melhor História Curta, pela edição 19, Sonhos de uma Noite de Verão, de 1991,
primeiro grande prêmio literário dado a uma revista em quadrinhos.
Evidentemente, não são os prêmios conquistados que caracterizam a qualidade da
história. Os prêmios não são usados aqui para honrar a obra, mas apenas para ilustrar, de
forma breve, o impacto da série entre a crítica e os fãs.
Neil Gaiman continua escrevendo histórias em quadrinhos, romances e roteiros para
cinema. Algumas de suas obras, como Caroline, um livro infanto-juvenil, e Stardust, uma
espécie de conto de fadas em prosa, foram adaptadas pelo cinema hollywoodiano com êxito,
sendo encenadas por bons atores e rodadas com relativa qualidade, principalmente Caroline,
animação de estética interessante que fez jus ao clima sombrio do conto, publicado em 2005.
42
Como agora podemos supor, não existem por si só, de forma isolada, sistemas
precisos e funcionalmente unívocos que realmente funcionem. A separação destes
está condicionada unicamente por uma necessidade heurística. Tomado em
separado, nenhum deles tem, na verdade, capacidade de trabalhar. Só funcionam
estando submersos em um continuum semiótico, completamente ocupado por
formações semióticas de diversos tipos e que se acham em diversos níveis de
organização. A esse continuum, por analogia com o conceito de biosfera introduzido
por V. I. Vernadski, o chamamos semiosfera.11
11
Tradução livre. No original: “Como ahora podemos suponer, no existen por sí solos en forma aislada sistemas
precisos y funcionalmente unívocos que funcionan realmente. La separación de éstos está condicionada
únicamente por una necesidad heurística. Tomado por separado, ninguno de ellos tiene, en realidad, capacidad
de trabajar. Sólo funcionan estando sumergidos en un continuum semiótico, completamente ocupado por
formaciones semióticas de diversos tipos y que se hallan en diversos niveles de organización. A ese continuum,
44
A semiosfera parece ser, segundo Lotman, um ambiente operativo que não é formado
somente pelo conjunto das linguagens, códigos e textos culturais. É diferente da soma dos
signos. Ao mesmo tempo, não existe por si só, ou seja, sem a presença de textos em estado
dinâmico.
Mais adiante, no mesmo texto, há uma passagem elucidativa:
A semiosfera não é a soma dos elementos presentes em seu interior. Tais elementos
também não possuem uma hierarquia quanto à sua preponderância nesse ambiente de
operação sígnica. Podemos diferenciar os textos da cultura do conceito de semiosfera. Mas a
semiosfera, configurada como um ambiente operatório, caracteriza-se antes pelo conjunto
flutuante e transitório de operações, pelo movimento dos textos uns em relação aos outros, do
que pela soma dos textos separadamente. A semiosfera é forma de operação dos textos e não
sua mera reunião.
Da mesma forma, a biosfera não pode ser considerada a soma dos seres vivos. Como
sistema único, a biosfera é, de fato, o conjunto das relações desenvolvidas pelos seres vivos.
Não se trata de “algo”, mas de um ambiente.
Ainda na mesma linha de raciocínio, um organismo não é a soma de suas células ou
órgãos, mas sim os procedimentos operativos de seus conjuntos e unidades que, ainda que
delimitados, são incapazes de funcionar se apartados – não do conjunto, mas do organismo,
ou seja, da organização operatória.
Lotman estipula ao menos dois importantes traços distintivos da semiosfera: o
caráter delimitado e a irregularidade semiótica. Tais características são de difícil definição,
contudo são fundamentais para que haja uma melhor compreensão de tal ambiente operativo.
por analogía con el concepto de biosfera introducido por V. I. Vernadski, lo llamamos semiosfera” (LOTMAN,
1996, p. 22).
12
Tradução livre. No original: “Se puede considerar el universo semiótico como un conjunto de distintos textos
y de lenguajes cerrados unos con respecto a los otros. Entonces todo el edificio tendrá el aspecto de estar
constituido de distintos ladrillitos. Sin embargo, parece más fructífero el acercamiento contrario: todo el espacio
semiótico puede ser considerado como un mecanismo único (si no como un organismo). Entonces resulta
primario no uno u otro ladrillito, sino el “gran sistema”, denominado semiosfera. La semiosfera es el espacio
semiótico fuera del cual es imposible la existencia misma de la semiosis” (LOTMAN, 1996, p. 23-24).
45
13
Tradução livre. No original: “... la frontera semiótica es la suma de los traductores -- “filtros” bilingues
pasando a través de los cuales un texto se traduce a otro lenguaje (o lenguajes) que se halla fuera de la
semiosfera dada. El “carácter cerrado” de la semiosfera se manifiesta en que ésta no puede estar en contacto con
los textos alosemióticos o con los no-textos. Para que éstos adquieran realidad para ella, le es indispensable
traducirlos a uno de los lenguajes de su espacio interno o semiotizar los hechos no-semióticos. Así pues, los
puntos de la frontera de la semiosfera pueden ser equiparados a los receptores sensoriales que traducen los
irritantes externos al lenguaje de nuestro sistema nervioso, o a los bloques de traducción que adaptan a una
determinada esfera semiótica el mundo exterior respecto a ella” (LOTMAN, 1996, p. 24-25).
14
Tradução livre. No original: “Todos los grandes imperios que lidaban con nómadas, “estepa” o “bárbaros”,
asentaban en sus fronteras tribus de esos mismos nómadas o “bárbaros”, contratados para el servicio de la
defensa de la frontera. Esas colonias formaban una zona de bilinguismo cultural que garantizaba los contactos
semióticos entre los dos mundos. Esa misma función de frontera de la semiosfera es desempeñada por las
regiones con diversas mesclas culturales: ciudades, vías comerciales y otros dominios de formaciones de koiné y
de estructuras semióticas creolizadas” (LOTMAN, 1996, p. 27).
46
quais, para manter determinada estabilidade, evitam trocas, hibridações e outras formas de
contato – funcionam como tradutores dos textos exteriores a determinada cultura, incluindo-
os ao processá-los em suas linguagens e códigos, porém alterando a si mesmas no decorrer do
processo. Durante a tradução, não é somente o texto traduzido que enfrenta o atrito de novas
formas de codificação. Neste ato, o tradutor também tem seus mecanismos reorganizados pelo
contato relacional com o “diferente de si mesmo”.
A tradução como ato político desestabiliza não apenas a noção de identidade estável,
preguiçosa, mas sobretudo o fanatismo e a isoglossia. Um anacronismo latente faz
com que as literaturas compartilhem espaços e tempos heterogêneos e simultâneos.
Ao traduzir Homero, Haroldo de Campos heleniza o português ao mesmo tempo em
que lusifica o grego – com o que se amplia as identidades, bem como a compreensão
do presente. Mimética e não-mimética, a tradução é a “sobrevida” do texto original:
vive mais tempo e também de modo diferente. De onde ser a tradução uma
experiência expressionista, capaz de transformar uma coisa em outra, de ser ela
mesma e seu outro. (MATOS, 2006, p. 167)
15
Sincronia, em linguística, refere-se ao estudo dos elementos que coexistem num determinado momento na
língua. A diacronia, por sua vez, leva em consideração a sucessão dos textos ao longo do tempo.
48
Tais noções da semiótica da cultura irão nortear nosso estudo a respeito dos sistemas
identitários, estáveis, permanentes e rígidos da cultura, bem como de seus movimentos
dialógicos, abertos, instáveis e tradutórios, os quais propiciarão melhor entendimento sobre
como os textos culturais se articulam em Sandman e como a série articula-se com outros
textos ao redor, no ambiente de diferentes semiosferas.
Se, por um lado, Sandman inscreve-se na série cultural “quadrinhos” e, por local de
produção, na série estadunidense “quadrinhos de super-heróis”, há outras séries nas quais ele
também está inscrito.
Duas delas, concomitantes com os estudos teóricos apontados acima, interessam-nos
especialmente no entendimento dos movimentos de articulação de Sandman com os textos
culturais ao seu redor, possibilitando a leitura de uma obra complexa e que, analogamente,
talvez seja uma reflexão mais ampla do que pode, a princípio, parecer.
Dois operatórios culturais são importantes, em nosso estudo, para situar os
mecanismos de elaboração da obra de Neil Gaiman: a tendência à permanência e a tendência
à mudança16.
Ambos podem parecer meros conceitos, mas são algo diferente. Primeiramente, não
se trata de palavras que guardam oposição entre si. São textos da cultura, mas também são
operatórios. Por sua capacidade tradutória, todos os textos culturais possuem determinado
nível operatório17.
Porém, a respeito da permanência e da mudança, falamos de textos em que o
mecanismo operatório tem preponderância organizacional, hierárquica ou não, sobre outros
aspectos.
Lotman (1996, p. 29-30), ao descrever a irregularidade semiótica da semiosfera,
delimita o seguinte processo: se uma estrutura nuclear de dada semiosfera ocupa posição
dominante e se eleva ao estado de autodescrição, configurando sistemas de metalinguagem
com a ajuda dos quais descreve não somente a si mesma, mas também ao espaço periférico,
então é construído sobre a irregularidade semiótica real um nível ideal de unidade – que
podemos relacionar ao princípio de identidade.
16
Mudança e permanência são aspectos em jogo aproximativo e em fronteiras móveis, sendo tendências
raramente passíveis de ser encontradas de forma isolada nos diferentes contextos.
17
Se, tradicionalmente, certa segurança é atribuída à permanência, à estabilidade e à imutabilidade, tais
elementos também conferem certo “mal-estar”, mesmo angústia, pelas impossibilidades e exclusões que trazem
consigo. Portanto, não podemos considerar que opções por determinadas formas de organizar o conhecimento e
a cultura, assim como as escolhas pelo reforço ou manutenção do princípio de identidade, sejam meramente
buscas por consolo ou conforto.
49
Não obstante, embora o fato dessa divisão ser absoluta, as formas que toma são
relativas desde o ponto de vista semiótico e dependem em considerável medida da
metalinguagem de descrição escolhida – ou seja, de se estamos diante de uma
18
Tradução livre. No original: “La creación de autodescripciones metaestructurales (gramáticas) es un factor que
aumenta bruscamente la rigidez de la estructura y hace más lento el desarrollo de ésta. Entretanto, los sectores
que no han sido objeto de una descripción o que han sido descritos en categorías de una gramática “ajena”
obviamente inadecuada a ellos, se desarrollan con más rapidez” (LOTMAN, 1996, p. 30).
50
Tal operador não binário, não ortodoxo, alorreferente20 constituído pela pluralidade
de atritos e não pela harmonia do sistema, seria a possibilidade não de eliminar, mas de
relativizar o sistema centro/periferia que Lotman vê como lei fundamental da semiosfera,
criando, quem sabe, novas formas de organização da cultura, do conhecimento e dos próprios
processos de elaboração de textos.
Segundo tal lógica, culturas com acentuadas características abertas, curvas, móveis21,
curiosas, interessadas no estranhamento22 mais do que na conformidade, teriam maior
dinâmica interna a partir da suavização das hierarquias e da carnavalização23 dos núcleos
centralizadores em decorrência do próximo contato com as periferias “suaves”. O riso
desestabiliza o sistema ao evidenciar o absurdo da crença em “si mesmo”.
19
Tradução livre. No original: “Sin embargo, mientras que el hecho de esa división es absoluto, las formas que
reviste son relativas desde el punto de vista semiótico y dependen en considerable medida del metalinguaje de
descripción escogido – o sea, de si estamos ante una autodescripción (descripción desde un ponto de vista
interno y en términos producidos en el proceso de autodesarrollo de la semiosfera dada) o si la descripción es
llevada a cabo por un observador externo en categorías de otro sistema” (LOTMAN, 1996, p. 30-31).
20
Aquilo cuja referência se verifica a partir de qualquer ponto “estranho” ao próprio ambiente.
21
Cf. PINHEIRO, 1996, p. 15.
22
Estranhamento (ou Ostranenie, termo original russo), termo utilizado pelo formalista russo Viktor Chklovski,
seria o efeito criado pela obra literária para nos distanciar (ou estranhar) dela no que tange ao modo comum
como apreendemos o mundo e a própria arte, possibilitando que haja alteração em nossas formas perceptivas e
cognitivas.
23
Bakhtin considera a carnavalização e o riso formas de subversão das dicotomias alto/baixo, sagrado/profano.
Cf. A cultura popular na idade média e no renascimento, Brasília: EDUMB/Hucitec, 1999.
51
24
Discutiremos de forma mais aprofundada as questões de especialização no capítulo 3, após estruturarmos
certas questões pontuais a respeito do princípio da identidade, dos movimentos culturais e das formas de
organização do conhecimento.
55
A razão, que não se deixa enganar, ao contrário dos sentidos, reconhece a verdadeira
natureza da realidade. O princípio de identidade é algo central e imprescindível para os novos
tempos da racionalidade:
Penso, logo existo é uma verdade primeira e irresistível, apta a fundar a ciência,
referindo-se a si mesma, sem recorrer a qualquer forma de transcendência, seja ela
mítica ou teológica. (MATOS, 2005, p. 19)
oposto ou exótico, mas não alcança, tampouco, qualquer proeminência. Trata-se de outra
forma de organização, na qual o centro não está em lugar algum.
[A semiótica] pode ser definida a partir da distinção (...) entre semiótica do signo (a
tendência lógica de Pierce e Morris) e semiótica da linguagem como sistema cênico
(a tendência linguística inaugurada por Saussure). Enquanto na primeira interessa ao
pesquisador a relação do signo com o significado e o processo de semiose, na
segunda não é o signo isolado o objeto de estudo, mas sim a linguagem, quer dizer,
‘o mecanismo que utiliza um certo jogo de signos elementares para a comunicação
dos conteúdos.25
Os estudos focados nas relações sígnicas que se verificam através das linguagens
(sistemas de código) levaram à construção do conceito de semiosfera, isto é, de um continuum
25
Tradução livre. No original: “(...) puede ser definida a partir de la distinción (...) entre semiótica del signo (la
tendencia lógica de Pierce y Morris) y semiótica del lenguaje como sistema sígnico (la tendencia linguística
inaugurada por Saussure). Mientras en la primera interesa al investigador la relación del signo con el significado
y el proceso de semiosis, en la segunda no es el signo aislado el objeto de estudio, sino el lenguaje, es decir, ‘el
mecanismo que utiliza un cierto juego de signos elementales para la comunicación de contenidos” (SANCHES,
1996, p. 249).
59
metalinguagens com ajuda dos quais se descreve não só a si mesma, mas também ao
espaço periférico da semiosfera dada, então sobre a irregularidade do mapa
semiótico real se constrói o nível de sua unidade ideal. A interação ativa entre esses
níveis torna-se uma das fontes dos processos dinâmicos dentro da semiosfera.26
26
Tradução livre. No original: “El espacio semiótico se caracteriza por la presencia de estructuras nucleares (con
más frecuencia varias) con una organización manifiesta y de un mundo semiótico más amorfo que tiende hacia la
periferia, en el cual están sumergidas las estructuras nucleares. Si una de las estructuras nucleares no solo ocupa
la posición dominante, sino que también se eleva al estadio de la autodescripción y, por consiguiente, segrega un
sistema de metalenguajes con ayuda de los cuales se describe no sólo a sí misma, sino también al espacio
periférico de la semiosfera dada, entonces encima de la irregularidad del mapa semiótico real se construye el
nivel de la unidad ideal de éste. Le interacción activa entre esos niveles deviene una de las fuentes de los
procesos dinámicos dentro de la semiosfera” (LOTMAN, 1996, p. 30).
61
Seria possível uma pressão evolutiva ter algum papel na concepção de que os seres
vivos e especificamente os humanos possuem uma essência imutável? Uma identidade fixa?
A hipótese de que antes da mente moderna houve traços de consciência em nossos
antepassados que operavam conhecimentos especializados e de que a mente moderna pode ter
sido fruto da interação entre inteligências específicas e, de certa forma, bastante utilitárias,
não deixa de ser incômoda, afinal, pode nos levar a questionar certas noções sobre nossa
existência, liberdade e possibilidades de escolha. Seria preferível e mais agradável supormos
que nossas capacidades cognitivas foram desenvolvidas objetivando mais do que a
sobrevivência, por antepassados conscientes de seu percurso e de suas escolhas, não por mera
elevação de nosso pretenso papel no mundo, mas principalmente porque poderia implicar um
ser humano menos determinado pela natureza e mais autônomo em relação às suas escolhas e
culturas.
Contudo, há outros pontos de vista. Lacan, apesar de reconhecer os processos de
evolução, atribuiu ao surgimento da linguagem a divisão radical entre o ser humano e a
natureza, de tal ordem que as leis da evolução e da seleção natural não mais se aplicariam à
compreensão da mente humana. Propiciadora da cultura e da consciência, a linguagem teria
instaurado um espaço no qual as teorias evolucionistas e da seleção natural não seriam
aplicáveis satisfatoriamente ao fenômeno humano27. De todo modo, as questões concernentes
às interações entre natureza e cultura, separadas ou mais próximas, são bastante polêmicas e
extensas na história do pensamento, o que, provavelmente, continuarão a ser por muito tempo.
As possibilidades combinatórias são bastante amplas.
O segundo ponto é levemente mais pacífico que o primeiro. É o que aborda a
consciência como resultado da operação comunicativa interna e externa, a partir do
desenvolvimento da inteligência social e do aumento da comunicação entre as inteligências
especializadas, que teria se dado principalmente por meio do aprimoramento da inteligência
linguística. Dessa forma, teria sido possível a comunicação e a reflexão sobre conhecimentos
específicos, criando formas análogas de pensamento passíveis de serem aplicadas a outros
domínios.
27
As teorias da complexidade elaboradas por Edgar Morin, por exemplo, partem de uma analogia com o
biológico, assim como o conceito de semiosfera de Lotman e os sistemas auto-organizativos de Henry Atlan,
pressupondo, por meio de apropriações da genética e da cibernética, “programas” nos mecanismos de
funcionamento da cultura. “Mas não é certo que a natureza comporta um princípio de variedade que é
testemunhado pelos milhões de espécies vivas? Não comporta um princípio de transformação? Não comporta em
si própria a evolução, que conduziu ao homem? Será a natureza humana desprovida de qualidades biológicas?”
(MORIN, 2000, p. 16). Outras correntes de pensamento, baseadas em certas áreas do estudo da linguagem, com
as quais dialogam as teorias estruturalistas, bem como a psicanálise de Lacan, consideram que a teoria da
evolução darwiniana deixa de ser relevante para o ser humano a partir do surgimento da linguagem, quando
haveria ocorrido a ruptura do homem, de forma irreversível, com o mundo da natureza. A linguagem teria
“criado” o homem, e não o contrário.
66
Assim, talvez possamos supor que a consciência reflexiva seja resultado dos
processos comunicativos.
A consciência moderna seria originária de uma habilidade especializada que, em
comunicação com outras inteligências, tornou a mente humana mais complexa e com maior
potencial comunicativo.
Contudo, Mithen observa que é possível que o homem, em seu processo de
aprendizagem, tenha aplicado alguns aspectos especializados de forma equivocada, como a
atribuição de características sociais a animais, criando imagens de “felinos falantes”, que
podem ter colaborado na formação das bases para pensamentos religiosos e artísticos. Ou,
ainda, considerar certos grupos humanos como objetos inanimados, passíveis de utilização
funcional, aos quais não aplicamos nossas capacidades de empatia, imprescindíveis ao
convívio social.
Ao que parece, a procura por certas estruturas estáveis, imutáveis e essenciais foram
tão relevantes para a sobrevivência da espécie como a capacidade comunicativa e a “paixão
por metáforas, representações e analogias” (MITHEN, 1996).
28
Tradução livre. No original: “El intercambio dialógico (en sentido amplio) de textos no es un fenómeno
facultativo del proceso semiótico. La utopía de un Robinson aislado, creada por el pensamiento del siglo XVIII,
está en contradicción con la idea actual de que la consciencia es un intercambio entre los hemisferios cerebrales
hasta el intercambio entre culturas. La consciencia sin comunicación es imposible. En ese sentido se puede decir
que el diálogo precede al lenguaje e lo genera” (LOTMAN, 1996, p. 35).
67
Talvez por isso toda cultura possua em sua dinâmica, em diferentes níveis de
intensidade, atritos constantes entre forças especializadas e relacionais – simplificadas e
complexas.
Há indícios de que o processo comunicativo foi essencial para a ampliação da
consciência, assim como para seu desenvolvimento – não somente a comunicação que ocorre
no meio social, mas também a comunicação dentro da mente, entre diferentes módulos,
inteligências e campos cognitivos.
Além disso, a consciência, conforme explica Mithen (1996, p. 128), teria surgido
como um instrumento para ser usado no convívio social – a própria mente seria laboratório
individual que tenta prever o comportamento dos outros membros do grupo e, assim,
possibilita o uso de dissimulação e de estratégias para vencer disputas de poder contra os
adversários da mesma espécie. A consciência teria, dessa forma, tornado as relações mais
complexas pelo aumento do volume de informações dialógicas no convívio social. Da mesma
forma, é provável que a necessidade de conviver em bandos mais numerosos tenha exercido
pressão evolutiva para o desenvolvimento de uma consciência mais eficiente na prática da
empatia.
No processo de organização do conhecimento, o princípio de identidade reduz os
objetos a um traço distintivo que adquire primazia em sua descrição. Tal discurso isolado,
geral e absoluto anula as gradações, os níveis e os atritos com outras tendências e elementos
do sistema relacional. Assim, torna-se possível construir uma harmonia pretensamente
estática e disseminar a crença de que verdades totalizantes e exclusivas teriam sido
encontradas.
Como veremos a seguir, os quadrinhos de super-heróis, com seus personagens
altamente especializados em operar atitudes heroicas e ordeiras, criam discursos
predominantemente isolados e unívocos, diminuindo os espaços e as possibilidades de relação
com outras esferas de significado que poderiam fazer parte das narrativas. Nossa convivência
com tais seres é bastante agradável e pacífica por sua previsibilidade e pouca (ou mesmo
nenhuma) ambiguidade. Conhecemos suas motivações e posições frente à realidade. Nossa
empatia em prever o comportamento de tais seres é bastante eficiente e, consequentemente,
acabamos por sentir a segurança que as instâncias político-sociais, em suas estabilidades
funcionais, objetivam conferir aos variados agrupamentos de seres humanos, mais ou menos
repletos de contradições e imprevisibilidades.
68
69
Em 1988, foi lançada a primeira edição de Sandman, escrita por Neil Gaiman e
desenhada por David McKean29, nos Estados Unidos, pela DC Comics, editora estadunidense
de quadrinhos fundada em 1934 e responsável por títulos famosos como Superman, Flash,
Batman, Mulher-Maravilha, entre outros.
Publicada pelo selo Vertigo, criado em meados da década de 1980 para reunir
periódicos voltados para um público mais velho, que se convencionou chamar “adulto”,
diferenciado daquele que usualmente acompanhava as séries de super-heróis. A revista
possuía, como todas desse segmento, o selo de indicação “Mature Readers” (Leitores
Maduros), o que, normalmente, prejudicava as vendas entre os leitores usuais de quadrinhos.
De toda forma, a DC manteve a linha editorial, investindo na contratação de autores
britânicos, tradicionalmente criadores de roteiros mais complexos do que aqueles produzidos
pelos autores estadunidenses.
A formação dos roteiristas de gibi ingleses era mais literária, mais direcionada aos
livros do que propriamente ao universo dos quadrinhos, sobretudo os estadunidenses
(SANDERS, 2006, p. 14). De fato, houve no Reino Unido certas proibições e limitações
relacionadas aos quadrinhos estadunidenses, de forma que a leitura de gibis de super-heróis
não foi tão intensa quanto nos Estados Unidos. Uma tradição diferente, mais ligada ao terror e
ao gótico do que aos super-heróis, desenvolveu-se nos países britânicos. Com a perspectiva de
produzir histórias diferentes daquelas nas quais a editora havia investido com exclusividade
até então, houve a contratação de autores ingleses, escoceses e irlandeses pelo mercado
editorial estadunidense durante os anos 1980.
O inglês Neil Gaiman, que se tornaria conhecido como o autor de Sandman, foi um
dos ditos “invasores”. Convidado para produzir histórias para o selo Vertigo da DC, deu cara
29
David McKean nasceu em Berkshire, Inglaterra, em 29 de dezembro de 1963. Seu trabalho como artista
plástico e ilustrador incorpora elementos de desenho, pintura, fotografia, colagem, arte digital, entre outras áreas.
70
nova a alguns antigos personagens da chamada Era de Prata dos quadrinhos (1956-1970).
Depois do êxito alcançado com a minissérie Orquídea Negra30, a editora o convidou para
produzir uma série mensal de revistas sobre um antigo personagem da década de 1930 –
Sandman.
De acordo com Gaiman, a única exigência que lhe fizeram foi a de que o nome do
personagem fosse mantido. Os editores queriam que a revista (e o personagem principal) se
chamasse Sandman. Fora isso, tudo o mais poderia ser recriado e reelaborado por Gaiman.
Porém, as limitações de qualquer campo criativo não são somente comerciais. Ao
contrário do que diz o senso comum, não é apenas o mercado que rege a produção cultural.
Qualquer artista está inscrito em determinada tradição, sob os auspícios de certas correntes e
paradigmas, além de estar sujeito às limitações impostas por seu tempo, seu espaço criativo,
seu contexto cultural e suas interligações com os entornos próximos.
Nesse sentido, talvez uma das atribuições do artista seja distorcer o horizonte de
expectativa de certos contextos culturais, ampliando as possibilidades de expressão e de
linguagem.
Certa inquietação é necessária para romper convenções, assim como são importantes
algumas habilidades combinatórias. Muitas vezes, a inovação surge com novas formas de
interpretação, elaboração e combinação de elementos que já estavam presentes entre os textos
da cultura – a inovação pode ser uma nova forma de operação de sintaxe.
30
Orquídea Negra é uma super-heroína do Universo DC que apareceu pela primeira vez em 1973.
71
Contudo, as famas tradicionais da Marvel e da DC não parecem ter sido abaladas, tendo em
vista que não tardaram a abarcar os novos talentos e as novas tendências que faziam sucesso
no mercado e incorporá-los à sua linha editorial.
Um dos motivos da força dos quadrinhos da Marvel e da DC vem de um fenômeno
que se desenvolveu ao longo do século XX e criou sólida tradição entre os leitores de ambas
as editoras: o conceito de “universo”.
No mundo dos quadrinhos, “universo” é o nome dado ao ambiente existencial dos
super-heróis. Há o Universo DC e o Universo Marvel, por exemplo. Ambos utilizam, em
comum, certos aspectos do mundo contemporâneo, mas as organizações hierárquicas dos
super-heróis, das dimensões, dos mundos paralelos, dos vilões, etc., são bem diferentes e
distintivas.
Os heróis dessas editoras não se encontram por não pertencerem ao mesmo universo.
Parcerias entre as duas foram constituídas algumas vezes, e revistas com heróis populares dos
dois universos, atuando em conjunto ou como antagonistas, foram publicadas. Mas tais
eventos foram exceções à regra de isolamento das duas linhas editoriais. De maneira geral, é
importante manter a coerência interna de tais universos, tendo em vista que os leitores dos
quadrinhos dão grande valor à lógica dos eventos narrados. Isso quer dizer que um super-
herói pode muito bem morrer e renascer quantas vezes forem necessárias, contanto que esteja
dentro das regras do “universo” ao qual ele pertence. Tendo em vista tal aspecto, podemos
dizer que a produção dos quadrinhos de super-heróis se assemelha ao gênero cinematográfico
e literário da ficção científica.
A ficção científica, embora quase sempre mostre fatos inusitados e futuristas, tem
certa obrigação de explicar as tecnologias e as teorias que tornam possíveis seus eventos. Por
isso, a ciência faz parte de seu nome. Espera-se que qualquer coisa, por mais incrível e fora da
realidade que pareça, tenha algum tipo de explicação coerente e plausível. Ou, ao menos,
detalhada. Por isso mesmo, certos eventos envolvendo super-heróis até desgostam os fãs por
suas justificativas “lógicas” absurdas. Se a morte e ressurreição do Superman, ocorrida na
década de 1990, por exemplo, fosse menos explicada, talvez fizesse até mais sentido. A
questão é que, fazendo parte de um universo com muitos personagens – tendo os mais
importantes suas próprias revistas e contextos –, explicações e estruturas internas de lógica se
fazem necessárias para que as histórias dos personagens “parentes” possam ser coordenadas
entre si. De outra forma, seria impossível a convivência entre os personagens do mesmo
“universo”.
72
Figura 9
A primeira edição do gibi The Amazing Spider-Man, de 1963, custava apenas 12 centavos de
dólar. Aqui, o aracnídeo confronta o Quarteto Fantástico, família de heróis popular de Nova
York criada na mesma época do Aranha por Stan Lee.
74
Figura 10
Primeira página da segunda edição dos X-Men. Na imagem, Anjo, Ciclope, Fera, Homem de
Gelo e Garota Marvel atendem ao chamado telepático de seu líder e mentor, Charles Xavier,
conhecido como Professor X.
76
Além dos novos heróis, houve, por exemplo, a ressurreição do Capitão América, que
havia lutado na 2º Guerra Mundial e, em vez de ter sido morto – como se pensava –, apenas
sofrera um acidente, ficando em animação suspensa, congelado no Ártico durante décadas.
Sua volta ao mundo dos vivos resultou na criação do maior time de super-heróis da Marvel –
Os Vingadores.
Já na DC Comics, muitos personagens foram reformulados, recriados e
modernizados. Por razões de coerência, alguns desses heróis, com mais de duas décadas de
idade, foram reintroduzidos nas tramas com a criação da chamada Terra – 2, um planeta igual
ao nosso (Terra – 1), onde os super-heróis da era de ouro viviam. Tal mecanismo de mundos
paralelos, que podiam se comunicar entre si sob determinadas circunstâncias, desenvolveu-se
de tal forma na DC que, anos depois, foi escrita a série Crise nas Infinitas Terras31 como
meio de tentar resolver as contradições e complicações criadas pela existência de não apenas
duas, mas muitas Terras Paralelas no chamado multiverso.
A posterior era de bronze de quadrinhos de super-heróis inicia-se no começo da
década de 1970 e dura até meados da década de 1980.
O traço distintivo desta época, digno de nota, foi a introdução de novos temas às
histórias, antes sequer mencionados.
Para os quadrinhos de super-heróis, bastante conservador na maioria das questões,
sobretudo em relação às sociais, era um grande progresso abordar temas como o abuso de
drogas, como fez Stan Lee nos gibis do Homem-Aranha32, em 1971.
Tal relação com a sociedade da época é bem interessante. Se os grandes avanços da
ciência eram rapidamente transportados para os universos Marvel e DC, o mesmo não se dava
com os processos sociais, como os movimentos estadunidenses pelos direitos civis ou a
contracultura. Apesar disso, nos desenhos, nos textos, nas falas dos personagens e nos
namoros entre heróis e mocinhas apareciam elementos bastante modernos, gírias, roupas
ligadas às mais recentes tendências da moda. Assim, os quadrinhos apresentavam um
descompasso entre tempos e atitudes – modernos e antiquados, conservadores e liberais.
Surgiram super-heróis que representavam minorias. Antes da década de 1970, o
Pantera Negra33, rei de um país africano, e Falcão34, parceiro do Capitão América, eram duas
raras exceções à regra de super-heróis brancos, protestantes e anglo-saxões. Um grande
exemplo é Luke Cage35, primeiro personagem negro a ter publicação própria. Porém, somente
31
Minissérie com 12 edições, publicada originalmente em 1986.
32
É revelado que o melhor amigo de Peter Parker, Harry Osborn, é dependente de LSD.
33
A primeira aparição do Pantera Negra ocorreu em 1966.
34
A primeira aparição do Falcão foi em 1969.
35
Luke Cage estreou nos gibis em 1972 e foi criado por Archie Goodwin e John Romita.
77
nos anos 1980 é que Cyborg36 e Tempestade37 (Figura 11), super-heróis negros, tornaram-se
líderes de suas equipes, Novos Titãs e X-Men, respectivamente.
Outro evento marcante foi o surgimento do uniforme negro do Homem-Aranha
(Figura 12), que pode ser considerado como o marco de virada para a próxima era, a moderna,
que dura até hoje.
O Homem-Aranha sempre foi considerado o “amigo da vizinhança”. Um super-herói
popular em sua cidade, visto como o sujeito que enfrenta ameaças espaciais da mesma forma
que ajuda uma velhinha a atravessar a rua. Um sujeito de bem, vestido com uma roupa
vermelha e azul cheia de teias. Um super-herói camarada.
O uniforme negro deu-lhe outro aspecto. Se continuava o mesmo em seu
comportamento, a nova roupa lhe conferiu um tom sombrio inédito. Não por coincidência,
nunca ele havia sido tão agressivo como nessa época.
Peter Parker estava, afinal, sintonizado com o período que se iniciava.
A era moderna dos super-heróis parece ter começado não especificamente com a
publicação de novos títulos, mas com a revelação de alguns escritores: John Byrne no
comando da revista do Quarteto Fantástico, Frank Miller escrevendo Demolidor e Chris
Claremont no roteiro de X-Men.
Nesta época os roteiros se tornaram tão ou mais importantes que a arte gráfica,
mudando uma tendência que se mantinha mais ou menos regular desde o estabelecimento da
indústria dos quadrinhos de super-heróis.
Foi também o momento da “invasão” dos escritores ingleses nos quadrinhos
comerciais americanos. O resultado foi a transformação de uma arte considerada menor em
algo cult, moderno e inovador, levando, inclusive, à criação, pela DC, do selo de obras
maduras e adultas Vertigo, que abrigou os títulos mais inovadores e famosos dos anos 1980 e
1990. Muitas especulações foram feitas a respeito da importância da entrada dos autores
ingleses no universo dos quadrinhos de super-heróis estadunidenses. Uma hipótese bastante
aceita no meio é a de que os autores estadunidenses que trabalhavam com quadrinhos haviam
sido criados e formados nas artes lendo quadrinhos e, portanto, a renovação do meio era
muito difícil. Já os autores ingleses tinham tido contato com diversos gêneros de quadrinhos
europeus e alguns deles tinham na literatura sua maior influência. Em outras palavras, a
criação de um espaço comunicativo entre a literatura e os quadrinhos, através da chegada não
só de autores ingleses, mas também escoceses e irlandeses, escolhidos pela coincidência da
36
Cyborg é um super-herói da DC Comics criado em 1980.
37
Tempestade é uma mutante que controla o clima e integra a equipe de X-Men.
78
língua, tornou possível uma reelaboração das tradicionais formas criativas de contar as
histórias por meio da linguagem quadrinesca desenvolvida para os super-heróis até então, que
parecia alimentar-se de seus próprios temas, sem alcançar as variações presentes em outras
formas de expressão.
O crítico literário e tradutor russo Iuri Tinianov (1894-1943) ressaltou em seus
estudos a importância dos deslocamentos de signos entre diferentes séries culturais, por meio
de apropriações e traduções, para a renovação e revitalização de diferentes linguagens,
possibilitando novas formas de sintaxe.
O russo Iuri Tinianov (1975) levou para frente os estudos poéticos na segunda
década do século XIX, ao expor, contra a pretendida autonomia do verso, que cada
elemento construtivo de um poema, em caso de desgaste e repetição automatizada,
devia aproveitar-se dos procedimentos de outras “séries culturais”, por exemplo, a
escrita jornalística ou a fala cotidiana. Causava-se assim um “estranhamento” pelo
deslocamento construtivo das expectativas de leitura através da relação entre o texto
e os extra textos. (PINHEIRO, 2009, p. 11)
Neste momento surgiram as graphic novels. Por ocasião de sua obra Um contrato
com Deus, de 1978, Will Eisner, o criador de Spirit38, utilizou o termo graphic novel para
defini-la, querendo distingui-la da produção quadrinesca tradicional. A partir de então, essa se
tornou uma denominação comum para designar quadrinhas que teriam maior qualidade que os
títulos mensais usuais.
Já que a maioria dos gibis é produzida em forma de série, ou seja, em forma
semelhante à do folhetim, contando as histórias dos personagens a cada mês, mantendo o
suspense e a expectativa e fidelizando o leitor, uma das características das graphic novels é a
apresentação de uma história acabada, com princípio, meio e fim. No máximo, seria permitida
uma pequena série, uma minissérie, de poucas edições.
Além disso, de forma geral, a graphic novel é uma forma literária de quadrinhos –
um livro com imagens ajudando a contar a história.
Usualmente, considera-se o leitor e o produtor de graphic novels mais cultos e
sofisticados que o leitor e produtor de gibis.
Como já citamos na introdução, muitos escritores foram contra a denominação
graphic novel. Queriam que suas obras fossem vistas como quadrinhos, mídia com a qual
trabalhavam e na qual buscavam explorar os limites de uma linguagem muito nova e pouco
conhecida.
38
Spirit é um combatente mascarado do crime, criado em 1940.
79
Figura 11
Página de X-Men #201, de 1986. Tempestade luta com Ciclope pela liderança dos X-Men. Derrotado,
o antigo líder abandona o grupo e parte com a esposa, Madelyne Pryor, para o Alasca.
80
Figura 12
Na década de 1980, a série Guerras Secretas reuniu os maiores e mais populares heróis da Marvel numa
batalha cósmica promovida pelo Beyonder, um ser misterioso. Acima, a primeira aparição do Homem-
Aranha com o uniforme negro, mudança radical de figurino que trouxe a possibilidade de um herói um
pouco mais sombrio atuar sem perder, contudo, seu carisma e amabilidade característicos.
81
novels nasce nos Estados Unidos, configurando certa oposição que, em outros locais, com
suas próprias tradições quadrinistas, soa sem sentido, não fosse pela penetração massiva de tal
produto cultural ao redor do globo, em inúmeros países.
Há um princípio básico pelo qual se pode distinguir um meio quente, como o rádio,
de um meio frio, como o telefone, ou um meio quente, como o cinema, de um meio
frio, como a televisão. Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos
sentidos e em “alta definição”. Alta definição se refere a um estado de alta saturação
de dados. Visualmente, uma fotografia se distingue pela “alta definição”. Já uma
caricatura ou um desenho animado são de “baixa definição”, pois fornecem pouca
informação visual. O telefone é um meio frio, ou de “baixa definição”, porque ao
ouvido é fornecida uma baixa quantidade de informação. A fala é um meio frio de
baixa definição, porque muito pouco é fornecido e muita coisa deve ser preenchida
pelo ouvinte. De outro lado, os meios quentes não deixam muita coisa a ser
preenchida ou completada pela audiência. Segue-se naturalmente que um meio
quente, como o rádio, e um meio frio, como o telefone, têm efeitos bem diferentes
sobre seus usuários. (MCLUHAN, 2003, p. 38)
e mais envolvente – um reflexo da tradição literária do Ocidente, mas não a melhor opção
para o diálogo e a negociação de possíveis conflitos e antagonismos.
O meio frio tende ao analógico; o quente, ao digital. Dada a “baixa resolução” do
meio frio e sua não especialização em codificação, ou seja, sua transmissão usual de
mensagens em mais de um “canal” perceptivo, muitas lacunas devem ser preenchidas pelo
destinatário da mensagem. É como se muitos pontos que formam uma figura fossem
fornecidos, mas não todos. Cabe ao receptor completar os espaços restantes e colaborar na
construção do sentido.
Já o meio quente, de alta definição, especializado, fornece tamanha saturação de
informações que a participação do destinatário na elaboração da mensagem é mínima. A
escrita baseada no alfabeto é um bom exemplo.
tecnologia de impressão. A citação abaixo pode ser considerada referência para todos os tipos
de quadrinhos, mas se refere especificamente àqueles que aparecem nos jornais, as tirinhas.
Jornal, quadrinhos, cidades. Se, por um lado, os ritmos metropolitanos, exigem, nos
ambientes internos corporativos e burocráticos, meios quentes e de alta definição, por outro, a
urbanidade, seu comércio, seus fluxos, seus mercados, pregões, relações e proliferação de
códigos manifestam acentuada inclinação aos meios, linguagens e canais de baixa definição,
participativos e analógicos.
39
Deslocamento: mudança de posição; movimento para ocupar ou ceder espaço; desarticulação provisória;
movimento que configura novos sentidos e significados.
85
Como menciona o autor, o cartum é uma linguagem que amplia detalhes, por isso,
segundo ele, aproxima-se do campo do significado. A fotografia, que é de alta definição, por
exemplo, aproxima-se do campo da “coisa”, ou seja, do objeto, do referente.
Dessa forma, ele propõe o seguinte esquema (MCCLOUD, 2005, p. 48):
Figura 13
McCloud esquematiza o caminho que leva da imagem realista, mais próxima do objeto, até suas formas
mais abstratas.
86
Há uma sequência que leva da imagem realista até a abstração das palavras. As
imagens e as palavras estão distantes, mas nem tanto. O autor lembra, ainda, que elas já
estiveram muito próximas, como nas formas de registro maias, egípcias ou, hoje em dia, nos
ideogramas orientais.
Consequentemente, McCloud (2005, p. 51-52) apresenta restrições ao conceito de
que quadrinhos são o resultado da combinação de palavras e imagens, ainda que concorde que
muitas vezes tal definição ajuda a entender alguns aspectos dessa arte.
O autor vê os quadrinhos e as artes gráficas em geral como um jogo de forças entre
vértices-ideais de três categorias: há o plano das figuras (relacionado aos significantes), da
realidade (relacionado ao referente) e da linguagem (relacionado ao significado).
Ele entende que tais vértices, incorporando a linguagem escrita e outros ícones um
pouco abaixo da base que liga os objetos às ideias, representam o vocabulário pictórico dos
quadrinhos (MCCLOUD, 2005, p. 51. Figura 14).
Por meio de combinações de diferentes níveis de aproximação entre o significante, o
significado e o referente os signos são desenvolvidos, construídos, relacionados entre si e,
consequentemente, o estilo “quadrinhos” é concebido.
Mas os quadrinhos contam, ainda, com outros elementos, como a disposição dos
quadros na página – o traço que, para McCloud, é uma linguagem própria dos quadrinhos.
Além disso, diferentes tipos de traços, seja para compor desenhos ou para expressar
movimento, comunicam diferentes sensações, emoções, posturas, desejos, etc. Há também a
manipulação dos quadros para gerar efeitos temporais – quadros alargados podem ser usados
para tempos mais longos, enquanto sequências de quadros mais estreitos podem dar a ideia de
rápidos instantes. Porém, o autor alerta, esse é somente um dos componentes temporais. Se
num quadro pequeno há um “cof-cof” ou uma frase longa, o tempo nele varia
consideravelmente, pois este outro constituinte altera o tempo/espaço do quadrinho da
ação/situação.
Se nos quadros e na diagramação das páginas existe um movimento de seleção e
combinação de elementos, através de imagens e design, outros processos, para McCloud,
acontecem nos quadrinhos. Para ser mais específico, acontecem entre eles.
Os espaços entre os quadrinhos são chamados de “sarjeta”. De forma geral, é um
espaço vazio, em branco. Uma interrupção no fluxo de informação. Devemos lembrar que se
os quadrinhos são, como propôs Eisner, uma arte sequencial e, como completou McCloud, de
imagens justapostas, a existência desse vazio, dessa interrupção, é tão necessária quanto os
próprios quadros de ilustrações.
87
Figura 14
Pirâmide com o modelo de McCloud sobre a distribuição dos personagens de quadrinhos de acordo com sua
proximidade do plano da realidade, das figuras ou do significado. Os super-heróis ocupariam, nesse esquema, o
centro próximo à base, mais próximo ao vértice realista.
Outras mídias operam por imagens justapostas, como o cinema e a televisão. Mas os
quadrinhos contam com a visualização objetiva de fragmentos de espaço, que são
experimentados conscientemente inúmeras vezes durante a leitura de um gibi.
Acima, designamos a sarjeta como lugar de interrupção. Mas o mais adequado seria
entendê-la como lugar de passagem.
Segundo McCloud (2005, p. 67):
A partir dessas reflexões, o autor conclui que nenhuma arte exige tantos momentos
de conclusão do leitor – e, consequentemente, tanta participação imaginativa – quanto os
quadrinhos.
Esse excesso participativo é algo próprio dessa arte e, por isso, seria um erro
considerá-la somente “uma mistura de artes gráficas e ficção em prosa” (MCCLOUD, 2005,
p. 92), ainda que seja evidente a grande contribuição dessas duas formas de arte para a
linguagem dos quadrinhos. Devemos perceber, primordialmente, suas formas de expressão e
organização, isto é, suas formas específicas de sintaxe.
McLuhan profetizou a destruição dos quadrinhos pela televisão. Esta seria um meio
tão participativo quanto os quadrinhos, mas com a característica de exigir dois sentidos para
apreensão das informações ao invés de apenas um, sendo, por isso, mais envolvente.
Talvez pudéssemos teorizar sobre por que tal coisa não aconteceu. Porém, baseados
na falha das profecias quanto à morte do rádio pelo surgimento da TV, ou da fotografia pelo
aparecimento do cinema, podemos dizer que as mídias são mais do que certo estágio de
desenvolvimento técnico. Suas formas construtivas, combinatórias e suas linguagens
89
estabelecem relações com a cultura que não podem ser apagadas somente pelo surgimento de
técnicas consideradas mais avançadas por sua superior velocidade de transmissão de
informações ou maior definição digital. Existem relações culturais subjacentes bastante
complexas que não se baseiam apenas na eficiência quantitativa de dados, mas também nas
possibilidades de conexão dos textos culturais entre si e com outras séries da cultura.
90
91
Os super-heróis têm suas próprias histórias – os mais famosos, seus próprios gibis. O
Homem-Aranha, o Superman, o Batman e os X-Men, por exemplo, têm um ou mais títulos
mensais que narram suas trajetórias e aventuras. Alguns personagens e grupos criados há mais
de 50 anos continuam apresentando-se jovens, praticamente sem sinais de envelhecimento,
resguardados, nas páginas de papel, da ação do tempo.
Eles parecem, a princípio, viver no mesmo mundo em que vivemos e compartilhar de
nosso universo. A maioria deles vive nos Estados Unidos da América, mais especificamente
na cidade de Nova York, onde se passam muitas de suas aventuras, que podem,
eventualmente, se expandir para outros países, planetas, galáxias e dimensões.
O mundo retratado nos quadrinhos geralmente possui ciências e tecnologias mais
avançadas do que as sociedades contemporâneas, mas as ruas são muito parecidas com as
nossas, assim como os carros, os prédios, além de alguns problemas globais, como a poluição
e a pobreza; os penteados se assemelham aos de nossa época, da mesma forma que roupas e
acessórios, os modelos de óculos, os ternos dos executivos, os uniformes militares, a
decoração das casas, a arquitetura dos prédios universitários e os monumentos históricos.
Por vezes, esses super-heróis circulam por alguns países que não estão em nossos
mapas: como Latvéria, um território do leste europeu governado pelo Doutor Destino40, ou a
40
Doutor Destino é um supervilão do universo Marvel, criado por Stan Lee e Jack Kirby em 1962.
92
ilha de Genosha, onde os mutantes41 já passaram por horrores tão grandes quanto os que
ocorreram nos campos de concentração alemães da 2ª Guerra Mundial. Mas são lugares
minúsculos, incapazes de mudar a organização do mundo.
Ainda assim, são mundos com questões e problemáticas extras em relação à nossa
realidade. Os super-heróis também ficam horrorizados com a fome e as guerras ao redor do
mundo, porém têm preocupações maiores, como as investidas bélicas da espécie alienígena
Skrull42, ansiosa por dominar e colonizar o planeta, escravizando todos os humanos. Há
também ameaças que não vêm de outras civilizações, mas de seres ou entidades cósmicas
poderosas, como Galactus43, o Devorador de Mundos (Figura 15), que é um risco constante a
todos os planetas, ou Darkseid44, um dos grandes inimigos do Superman.
Tal mundo, com lugares que pretendem ser os mesmos que os nossos, apesar de
possuir história correlata, não apresenta entrelaces históricos. No mundo dos super-heróis, de
forma análoga ao que ocorre em nosso tempo, o presente possui uma força que se sobrepõe
aos aspectos passados e às implicações futuras. O hoje dos super-heróis é o motor das
narrativas e o passado não é mais que uma explicação, uma racionalização dos
acontecimentos – não comporta processo, haja vista a ausência de envelhecimento dos
personagens. O presente é absoluto e por isso não está sujeito às mudanças e às alterações
promovidas pelo cotidiano.
Os super-heróis enfrentam desafios bem maiores que eles próprios. Ou, ao menos,
que assim parecem ser. Quando o inimigo alcança a escala de ameaça planetária, galáctica ou
até mesmo cósmica, os “mocinhos” se unem e geralmente conseguem repelir o perigo.
Nesses momentos críticos, super-heróis como o Surfista Prateado45 (Figura 16) – ser
alienígena que viaja pelo universo e esporadicamente visita a Terra – lutam ao lado de seres
com poderes mais modestos, como o Homem-Aranha, que possui força e agilidade sobre-
humanas, teias artificiais (criadas por ele mesmo) e um “sentido de aranha” que o alerta sobre
qualquer perigo eminente. Apesar disso, o Aranha, também conhecido como “O Cavaleiro das
Teias”, “Aracnídeo”, “Amigo da Vizinhança” ou “Cabeça de Teia”,possui tamanha
determinação, coragem e senso de responsabilidade que sua ajuda quase sempre é vital em
qualquer contexto, nem que seja para colaborar apenas com seu bom humor.
41
Mutantes é um termo usado no Universo Marvel para denominar seres humanos com poderes especiais em
decorrência de mutação genética do Gene X – trata-se do Homo sapiens superior, suposto passo evolutivo do
Homo sapiens.
42
Os Skrulls são uma civilização alienígena do universo Marvel, criados por Stan Lee e Jack Kirby em 1962.
43
Galactus é uma entidade cósmica do universo Marvel, criada em 1966 por Stan Lee e Jack Kirby.
44
Darkseid é um supervilão do universo DC, criado por Jack Kirby em 1970.
45
O Surfista Prateado é um super-herói cósmico do universo Marvel, criado em 1966 por Stan Lee e Jack Kirby.
93
Figura 15
Figura 16
Norrin Radd é transformado no Surfista Prateado, com sua armadura de prata virtualmente
indestrutível. A mão da Galactus, ligeiramente acima do Surfista, de joelhos, dá o tom da
grandiosidade da cena, com a energia circulando ao redor como se fossem relampejos de algum
deus antigo.
95
Figura 17
Cena de um dos gibis da série Fallen Son (Filho Caído), sobre a morte do Capitão América. Acima, vemos o
escudo do super-herói voando pelo céu noturno e retornando às mãos de seu amigo de longa data, o Gavião
Arqueiro, sob os olhos do Homem de Ferro. A estrela branca no meio das faixas circulares vermelhas e brancas
tornou-se um dos maiores símbolos do universo Marvel.
49
Frank Castle, também conhecido como Justiceiro, é um anti-herói do universo Marvel, criado por Gerry
Conway, Ross Andru e John Romita em 1974.
97
Figura 18
Nessa edição especial, a #300, de Superman, de 1976, é contada uma história futurista e
hipotética do homem de aço que se passa no ano de 2001. Superman voa pelos céus de
Metrópoles. Os jovens, no canto inferior direito, apontam e fazem as mesmas perguntas daqueles
de décadas atrás: “Olhem lá em cima! É um pássaro? É um Strato-Jet? Não, é o Superman!”
Podemos ver que o termo “avião”, clássico, da segunda pergunta, é substituído pelo de uma nave
“futurística” ficcional – Strato-Jet. É o tom de humor na cena lendária do defensor do planeta.
98
Figura 19
A identidade secreta, cultivada e protegida por muitos deles, os resguarda, bem como
a seus amigos e familiares, mas somente até certo ponto. Os preceitos que os guiam, elevados,
não são deixados de lado em suas vidas comuns, apesar de muitos deles serem vistos, em seu
cotidiano, como tolos, irresponsáveis ou egoístas. Aparentam estar despreparados para a vida,
mas no fundo possuem um espírito elevado. Estão prontos a dar a vida pela moça que nem
sabe que eles existem ou pelo chefe que os trata de forma injusta, sem pedir nada em troca. O
senso de dever é superior a qualquer desejo pessoal. As motivações podem ser as mais
diversas, mas os ideais são os mesmos – nobres e valorosos.
A seguir, três narrativas que servirão como estudo de caso. Elas referem-se a
diferentes épocas, contextos e super-heróis.
Peter Parker era um adolescente inseguro, frágil, meio adoentado, tímido e amolado
por outros garotos na escola. Órfão, vivia com os tios, Ben Parker e May Parker, no bairro de
Queens, Nova York.
Não tinha muitos amigos nem namorada, mas era bastante inteligente, fascinado por
ciências, dedicado aos estudos e um bom sobrinho.
Durante uma visita a um laboratório científico foi picado por uma aranha radioativa.
Teve seu corpo alterado, ganhando força e agilidade proporcionais às de uma aranha,
habilidade de escalar paredes, capacidade de dar grandes saltos e um “sentido de aranha”,
capaz de alertá-lo sobre perigos antes de qualquer sinal ser notado por pessoas comuns. Seu
corpo ficou atlético, sua visão melhorou e ele pôde dispensar os óculos. Continuava
desajeitado socialmente no dia a dia, porém mais seguro sobre si mesmo.
Assim que descobriu os poderes sobre-humanos, revolveu ganhar dinheiro e fama
com as mudanças. Começou a participar de exibições de luta livre.
100
Enquanto contava o dinheiro recebido por uma das lutas, um ladrão passou correndo
ao seu lado, fugindo dos policiais. Quando perguntaram por que ele não havia feito nada para
impedir o malfeitor, Peter respondeu que não era problema seu.
Seu tio, Ben Parker, acabou sendo baleado e morto pelo mesmo ladrão, logo em
seguida, levando Peter a uma crise de consciência. Por fim, o bandido morreu após ser
perseguido por Peter, num acidente, e o rapaz incorporou para si as palavras que seu tio lhe
dissera uma vez: “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Assim surgiu o
Homem-Aranha.
Algumas preocupações são constantes na vida de Peter Parker desde os anos de
1960/1970: zelar pela frágil tia May e tentar manter o relacionamento com Mary Jane, seu
interesse romântico permanente, apesar dos perigos de sua vida dupla, entre outras.
Entre as muitas aventuras vividas por ele, resumimos abaixo a chamada Saga dos
Clones, publicada nos anos 1990 e que envolveu muitos detalhes da vida desse popular
personagem.
Em meados dos anos 1990, Peter estava casado com sua namorada dos anos 1970,
Mary Jane Watson. Como Homem-Aranha, estava se excedendo um pouco com os
criminosos, sendo mais violento que de costume. Mary Jane se sentia um pouco abandonada
pelo marido, muito dedicado à vida de vigilante. Nesse período, tia May, que sempre teve
uma saúde frágil, piora e entra em coma.
Um homem chamado Ben Reilly aparece para ver a tia de Peter. Muito parecido com
Peter, revela ser um clone (Figura 20).
Realmente, numa história dos anos 1960, um vilão chamado Chacal clonou Peter
Parker e a cópia tentou matar o original. Peter venceu o confronto, matando acidentalmente o
clone, cujo corpo jogou na chaminé de uma fábrica.
Ben Reilly conta que, na verdade, ele não estava morto. Acordou desorientado, saiu
da chaminé e foi viver sua vida isolado e escondido durante todo aquele tempo, reaparecendo
somente por conta de tia May. Como clone, compartilhava dos sentimentos e características
de Peter.
Após se entender com Peter, Ben resolve assumir a identidade de um super-herói e
adota o nome de Aranha Escarlate (Figura 21). Ambos vivem suas aventuras até que o
Chacal, que todos pensavam estar morto, reaparece, trazendo consigo vários clones de Peter
Parker e causando grande confusão na cidade. Surge também o clone da primeira namorada
de Peter, Gwen Stacy, morta nos anos 1960 pelo Duende Verde.
Um geneticista chamado Seward Trainer decide fazer um exame de DNA em Ben e
Peter. O resultado do teste revela que Ben Reilly era o verdadeiro Peter Parker.
101
Figura 20
Em Web of Spider-Man #117, Peter Parker e Ben Reilly, seu até então desconhecido
clone, se encontram nos telhados de Nova York, dando início aos eventos da Saga dos
Clones.
102
Figura 21
O clone Ben Reilly assume a identidade do super-herói Aranha Escarlate e luta contra Venon,
inimigo clássico do Homem-Aranha, durante a Saga dos Clones. A cena, nas alturas, sob
relâmpagos, nuvens ameaçadoras e chuva, dá aos dois personagens um cenário de luta bastante
intenso, reforçado pelo hiperdimensionamento de ambos, que são retratados sob perspectiva
baixa.
103
Voltando à história dos anos 1960, depois que Peter jogou seu suposto clone na
chaminé da fábrica, ele teve dúvidas sobre se não poderia ser, ele próprio, o clone. Pediu
exames a um amigo cientista, mas nunca chegou a ver o resultado. Decidiu, na época, que não
precisava de tal prova para saber quem era, ou seja, o verdadeiro Peter Parker.
Diante de tal revelação de que era um clone, seu mundo cai. Decide se mudar com a
esposa para longe, deixando a tarefa de super-herói para Ben Reilly, que assume a identidade
de Homem-Aranha.
Outras reviravoltas ainda aconteceriam. O vilão Norman Osbourne, grande inimigo
de Aranha que todos acreditavam estar morto, também retorna. Ele é o Duende Verde (Figura
22), responsável pela morte de Gwen Stacy, a namorada de Aranha, nos anos 1960. Revela
que sobreviveu graças a um soro especial e que se escondeu na Europa para planejar sua
vingança contra o Homem-Aranha.
Ele fez muita coisa para arruinar a vida de Peter. Ele havia, inclusive, contratado
cientistas para forjar os resultados dos testes de DNA feitos por Peter e Ben. Desse modo,
Peter não era o clone. Ben Reilly sempre fora o clone. O objetivo do vilão era apenas
confundir Parker antes de “destruí-lo”.
Ao fim, numa batalha final, o Duende Verde morre, assim como o clone Ben Reilly,
depois de grandes atos de heroísmo.
Peter volta a ser ele mesmo. Volta a ser o Homem-Aranha, o querido e bem-
humorado super-herói da cidade de Nova York.
Figura 22
O Homem-Aranha luta contra o Duende Verde na história de 1973, após a morte de Gwen Stacy,
primeiro grande amor do super-herói.
105
O grupo mudou sua formação muitas vezes ao longo dos anos, mas sempre se
manteve fiel ao “sonho” de Xavier – o fim da discriminação, do preconceito e da intolerância
entre humanos e mutantes.
Inicialmente, Jean, primeira e única mulher do grupo à época, mostrava certa
fragilidade, apesar de seus poderes. Aparentava ser uma espécie de eterna “donzela em
perigo”. Mas esse foi uma característica que se modificou ao longo do tempo, desaparecendo
eventualmente e dando lugar a uma personalidade mais segura.
Em 1976, quando outros mutantes já haviam sido recrutados para o grupo, algumas
mudanças importantes ocorrem na vida dessa personagem.
O local é Manhattan (provavelmente, o local preferido de todos os vilões do
universo). Jean e outros dois X-Men, Wolverine50 e Banshee51, são raptados por robôs
gigantes conhecidos como Sentinelas.
Tais máquinas são uma ameaça constante aos mutantes. Criados por humanos e
normalmente ligados a algum programa secreto do governo, os Sentinelas são programados
para perseguir e destruir mutantes. Os humanos são, em realidade, os piores inimigos do
grupo.
Após serem aprisionados, os três são levados para uma base na órbita da Terra, onde
um ativista antimutantes planeja construir uma nova geração de Sentinelas.
Os outros X-Men conseguem chegar ao local e resgatar seus companheiros. Contudo,
frente à destruição da estação espacial, têm de fugir numa nave danificada. Para tornar a
situação ainda mais dramática, uma tempestade de raios cósmicos ameaça matar todos a
bordo. A única saída é se proteger num compartimento especial da nave. Porém, alguém
precisa pilotar e pousar o veículo.
Apesar dos protestos, Jean se oferece para tal tarefa, dizendo que tem maiores
chances de sobreviver.
A nave chega à Terra, caindo no rio Hudson. Todos escapam e procuram por Jean,
mas não a encontram. De repente, ela emerge das águas, com um novo uniforme, dizendo:
Escutem X-Men! Eu não sou mais a mulher que vocês conheceram! Eu sou fogo! E
vida encarnada! Agora e sempre, eu sou Fênix! (Figura 23)
50
Wolverine, ou Logan, é um super-herói mutante do universo Marvel, criado por Len Wein e John Romita em
1974.
51
Banshee (Sean Cassidy) é um super-herói mutante do universo Marvel, criado em 1967 por Roy Thomas,
Werner Roth e Stan Lee.
106
Figura 23
Nessa página, vemos Jean Grey emergir de forma triunfal das águas do rio Hudson como a
Fênix. Ela não perde tempo em anunciar o poder e o nome dessa nova versão de si mesma.
107
Daí em diante, Jean Grey se torna um dos seres mais poderosos do universo Marvel.
Desenvolve poderes bem acima daqueles que tinha, como a habilidade de manipular energia e
matéria. Pode, por exemplo, transformar os elementos – pedra em metal, água em oxigênio,
etc. Seus poderes telepáticos e telecinéticos ficam praticamente ilimitados.
Para os leitores, quatro anos se passam. Então, em 1980, outro evento ocorre na vida
de Jean. Na pele de Fênix, virtualmente invencível, ela começa a ser manipulada por um
mutante chamado Mestre Mental, que utiliza ilusões e sonhos para tentar dominar sua mente.
Ele pertence a um grupo chamado Clube do Inferno, que deseja Jean para o papel da Rainha
Negra do Clube; eles já contam com a Rainha Branca, o Rei Branco e o Rei Negro.
Jean sucumbe a esse plano, voltando-se contra seus amigos. Depois de vários
embates, o Clube é derrotado pelos X-Men. Ao ser libertada do jugo do Mestre Mental, Jean
sofre uma transformação e se torna a Fênix Negra.
Como essa nova entidade, ela ataca seus amigos e voa para o espaço. Alimenta-se de
uma estrela, destruindo todos os planetas em sua órbita e levando à morte cinco bilhões de
seres alienígenas (Figura 24).
Quando ela volta à Terra, o professor Xavier consegue trazê-la ao seu normal, mas
sob o risco de, a qualquer momento, perder novamente o controle sobre o seu lado obscuro.
O Império Shiar, uma civilização intergaláctica, exige que Jean pague pelas mortes
que causou. Sob a ameaça da Guarda Imperial de Shiar, Jean percebe que perderá o controle e
se tornará a Fênix Negra novamente. Após declarar seu amor por Scott, ela realiza seu último
ato heroico ao decidir cometer suicídio, sacrificando-se para evitar mais mortes.
Quatro anos mais se passam e, no mesmo lugar onde a nave pilotada por Jean havia
caído anos atrás, um estranho fenômeno energético acontece. Os Vingadores52 são chamados
e descobrem, no fundo do rio Hudson, um casulo do qual tal energia está saindo. Dentro dele,
está o corpo adormecido de Jean Grey.
Isso se explica pelo fato de que, enquanto Jean pilotava a nave para salvar seus
amigos, uma entidade conhecida como Força Fênix reconheceu nela um hospedeiro perfeito.
Já que a heroína se encontrava bastante ferida, Força Fênix clonou seu corpo para poder usá-
lo como “veículo”, e protegeu o original num casulo, para que se recuperasse com o tempo.
De volta, Jean Grey encontra os velhos amigos, os X-Men originais, e forma com
eles um novo grupo para ajudar mutantes.
52
Os Vingadores são um grupo de super-heróis do universo Marvel, criados por Stan Lee e Jack Kirby em 1963.
108
Figura 24
Na Saga da Fênix Negra, Jean Grey atravessa o espaço e consome uma estrela, levando uma
civilização inteira à morte. Tal evento não poderia passar sem uma punição à altura – no caso, o
suicídio da personagem.
109
Figura 25
Última imagem da primeira parte da série A Morte do Superman. Enquanto o super-herói agoniza, de forma
dramática, com sua capa suspensa ao seu lado como uma bandeira, Lois Lane se desespera e Jimmy Olsen
captura com suas lentes o momento histórico, em meio às ruínas da cidade de Metrópoles.
110
O Superman é o “último filho de Krypton” enviado à Terra por seu pai para salvar-se
da destruição de seu planeta natal e se tornar protetor da atrasada e promissora espécie
humana. Desde os anos 1930, quando foi criado, o Superman mudou pouco.
Sua perda, para seus colegas super-heróis, é devastadora. O planeta se sente órfão,
privado de seu maior ícone. O símbolo de tudo quanto é bom e verdadeiro caiu em batalha
contra o mal.
Após o evento, os quatro títulos mensais que contavam a história do Homem de Aço
foram cancelados.
Três meses depois, todos os títulos foram relançados ao mesmo tempo. E, em cada
um deles, um personagem diferente, com alguma característica ligada ao “maior herói do
planeta”, clamava pelo posto deixado pelo Superman. Foram eles:
O Último Filho de Krypton – com visual moderno, óculos verdes, tratava-se de uma
manifestação do objeto “consciente” kryptoniano conhecido como “O Erradicador”
(Figura 27);
Figura 26
John Henry como o Homem de Aço, um dos candidatos a ocupar o lugar deixado vago pelo
Superman. Sem dúvida, há uma sedução na permanência do símbolo para além da morte, sendo a
volta dos mortos o triunfo último do símbolo – da esperança humana numa vida que ultrapassa a
finitude e se perpetua no tempo, talvez com um significado elevado e inspirador.
112
Figura 27
O objeto kryptoniano Erradicador assume a forma do Superman como O Último Filho de Krypton.
Ao encontrar Lois Lane, ele mostra possuir as memórias do super-herói, mas sem emoções. O
uniforme, cuja capa vermelha ficou mais destacada, assume formas mais nobres – dignas, talvez,
do único herdeiro da civilização kryptoniana.
113
Figura 28
O clone Conner Kent, A Maravilha de Metrópoles, em sua primeira aparição como possível
substituto do Superman. Irreverente, talvez seja a melhor versão do Superman garoto – o
Superboy.
114
Figura 29
O violento Homem do Amanhã, um ciborgue que diz ser o Superman reconstruído com elementos
tecnológicos, entra em ação ao lado de outros super-heróis.
115
Figura 30
Kal-El, o verdadeiro Superman, reaparece após se recuperar de seus ferimentos, com cabelos compridos e um
uniforme negro. Lois Lane está presente em sua ressurreição, assim como esteve em sua morte.
Essas três histórias fazem parte da vastíssima coleção de narrativas dos três
personagens enfocados. Poderíamos ter dado outros exemplos. Alguns aspectos seriam
diferentes, outros seriam semelhantes. Essas histórias, publicadas durante vários meses em
diversos gibis das séries, dão conta de acontecimentos de grandes proporções nos contextos
116
do universo Marvel e foram batizadas, pelas editoras e pelos fãs, com o nome de “sagas” –
Saga dos Clones, Saga da Fênix, etc. Saga era o nome dado aos relatos de caráter épico
escritos pelos povos nórdicos que foi estendido, por analogia de heroísmo e aventura, a
narrativas modernas diversas.
Se, por um lado, notamos que nessas sagas alguns acontecimentos, temas e situações
se repetem, podemos perceber também a presença de elementos bastante diferentes em cada
uma das três histórias. Discutiremos, a seguir, tais generalidades e especificidades à procura
de alguns fios condutores que nos possibilitem elaborar observações sobre as histórias de
super-heróis sob o ponto de vista de sua forma narrativa e de suas relações com a dinâmica
cultural.
O Homem-Aranha, como relatamos anteriormente, foi criado na era de prata dos
quadrinhos com uma proposta diferente e ousada para a época: incorporar no super-herói
elementos do dia a dia do “jovem médio americano” leitor de gibis, aficionado por ciências e
ficção científica. Peter Parker representava esse garoto, que supunham tímido, desajeitado,
introspectivo e inteligente. Quando se torna o Homem-Aranha, outras características surgem:
o senso de responsabilidade, a postura heroica, o altruísmo. Tais elementos, combinados,
criaram um super-herói mais próximo dos leitores da época, o que deve explicar grande
parcela de seu sucesso.
O Homem-Aranha dificilmente entra numa luta sem proferir piadas a respeito de
algo, seja um gracejo sobre a roupa ou sobre os modos do adversário. E, durante o embate,
não consegue ficar calado, sem fazer algum comentário bem-humorado, mesmo nos
momentos mais críticos. E tudo isso apesar da preocupação com o pagamento do aluguel
daquele mês (e de outros). Sem dúvida, o Aranha representou uma mudança considerável no
universo dos super-heróis.
Constatamos isso ao recordarmos a história da criação do Superman. Um alienígena
de uma civilização avançada, mandado à Terra por seu pai, como último de sua espécie. Aqui,
por causa do sol amarelo (o de Krypton era vermelho), o personagem desenvolve poderes
quase ilimitados. E, em vez de dominar o planeta ou realizar seus desejos, decide cumprir um
destino maior: salvar a humanidade de perigos diversos e de si mesma.
No longa-metragem “Superman”, de 1979, cujo roteiro foi escrito por Mario Puzzo,
podemos ouvir, através da voz de Marlon Brando, que representou Jor-El, o pai biológico do
herói, algo sobre o destino do Homem de Aço:
Mesmo tendo sido criado como um ser humano, você não é um deles. Eles podem
ser um grande povo, Kal-El. Eles desejam ser. Somente lhes falta a luz para mostrar
117
o caminho. Sobretudo por essa razão, pela capacidade deles para o bem, eu lhes
enviei você, meu único filho.53
53
SUPERMAN. Direção de Richard Donner. EUA: Warner internacional, 1978. (82 minutos). Inglês.
118
Figura 31
Nessa aventura de janeiro de 1985 – The Spectacular Spider-Man #98 – o Aranha aparece no
primeiro painel “caindo de rir” após um novo vilão se apresentar com o nome de “O Mancha” (The
Spot). Para ele, tratava-se de um dos nomes de bandido mais hilários que já tinha ouvido. O humor
é uma marca do Homem-Aranha, famoso por suas piadas entre um golpe e outro. Certamente, seu
riso não é só em relação ao outro – trata-se de uma gargalhada também sobre si mesmo.
119
Figura 32
Após derrotar o Homem de Ferro do Futuro, Iron Man 2020, o qual tentava matar um garoto que
se tornaria um terrorista, o Homem-Aranha encontra o pai do menino que salvou. Precisando
pagar o aluguel, recusa os 15 mil dólares que lhe são oferecidos, mas aceita um empréstimo de
275,36 dólares para pagar o aluguel de seu apartamento. Estava buscando um jeito de conseguir
o dinheiro quando foi defender o garoto de Arno Stark, o dono da armadura do futuro.
120
Figura 33
Nas primeiras edições de X-Men, nos anos 1960, Jean aparecia como uma moça frágil e, como
a maioria dos super-heróis, com uma roupa que escondia contornos. No primeiro painel, Scott,
seu interesse amoroso, ampara-a após uma luta.
122
Figura 34
Nesta edição, do começo dos anos 1990, Jean volta aos X-Men. Usa uniforme colado junto ao
corpo ultradefinido, com salto alto e cabelos volumosos e soltos. Ela própria questiona, no
painel número 1, a necessidade daquele tipo de uniforme, para embaraço do amigo Sean
Cassidy, o Banshee.
123
Peter, como já observamos, perdeu seu tio por ter deixado um criminoso fugir, apesar
de ter poderes para prendê-lo. À época, era um jovem deslocado, de vida modesta e órfão.
Tais elementos conferem considerável fardo ao jovem fotógrafo.
Quanto a Clark, nem mesmo seus poderes ilimitados o protegeram de desventuras:
último sobrevivente de sua espécie, também órfão, criado num rancho, sozinho entre os seres
humanos comuns, sem poder fazer o que todos faziam – como praticar esportes –, sempre
preocupado em esconder seus poderes e sua origem extraterrestre. Seu local de refúgio,
construído no Ártico, se chama “Fortaleza da Solidão”.
Contudo, a presença desses elementos trágicos não torna tais heróis imperfeitos ou
ambíguos. Suas histórias reforçam as grandes qualidades presentes em seus atos heroicos e
altruístas. O sofrimento de suas existências não só explica suas escolhas – notabiliza ainda
mais seus comportamentos diante dos infortúnios da vida. Geralmente, não há neles o
egoísmo ou qualquer intenção de revanche em razão de suas histórias. Recriminam somente a
si mesmos e aceitam seus destinos. Suas tristezas são parte de seu fado, não havendo espaço
para ressentimentos ou revoltas.
Assim, é bastante questionável se as experiências vividas pelos personagens
implicam mudanças. As circunstâncias alteram a visão de mundo de tais super-heróis? Seus
amores, por exemplo, raramente mudam; geralmente há um amor platônico ou histórico que o
persegue durante todo o tempo. Surgem novas paixões, mas há a ideia de um amor ideal e
verdadeiro.
Não parece haver, a princípio, um desenvolvimento da visão de mundo dos
personagens para além de mudanças que acompanham certa visão média da sociedade sobre
determinados temas e suas implicações.
Uma indicação de tal disposição é o fato de que, quando existe a intenção de mudar a
personalidade do herói, reelaborando-a, escritores são contratados para fazer uma
reformulação completa: escrevem novas histórias para explicar suas origens54, transportam-
nos para dimensões paralelas, nas quais os super-heróis são recriados, e então os trazem de
volta, com algumas novas características.
54
O Batman, por exemplo, teve sua história recontada em Batman: Ano 1, escrita por Frank Miller e ilustrada
por David Mazzuccheli em 1987.
124
Tais núcleos assumem outras formas nos universos dos heróis, não ficando
reservados apenas às posturas morais ou éticas. Modelam o que os circunda, fazendo que o
próprio sentido do mundo ao redor seja como um reflexo de tais leis internas que conferem o
comportamento super-heroico55. Os personagens coadjuvantes estão presentes sob as normas
do super-herói, não sendo mais que fantasmas na ausência de sua narrativa específica. Os
super-heróis, contudo, têm vida própria. Autonomia sem limites. Seu comportamento é um
fim em si mesmo, raramente um meio, porque não há processo, há essência sem traços de
experiência. O presente absoluto esgota o passado e afasta a memória, assim como a reflexão
e a alteração.
Superman, por exemplo, morre sob os olhares cuidadosos de Jimmy Olsen e Lois
Lane, seus amigos de sempre do jornal Planeta Diário, constantes das histórias do
personagem.
É significativo que esses dois estejam com ele no momento de sua morte, criando
uma cena clássica dos quadrinhos. Novos personagens com presença constante nas histórias
são raros, assim como o desaparecimento daqueles de longa data. Mudanças acontecem, mas
são lentas e pequenas, se levarmos em consideração que os quadrinhos super-heróis têm sido
publicados mensalmente, de forma praticamente ininterrupta, há pelo menos quarenta anos.
Jean tem consigo que os X-Men são sua família. É para eles que ela volta depois de
ter sido encontrada no casulo pelos Vingadores. É uma constante seu amor por Scott, com
quem ela sempre fica no final e para quem volta depois de alguma aventura difícil ou
sofrimento intenso. É da imagem dele que ela se recorda nos momentos de desespero, de
morte iminente, de perigo extremo. E o sentimento é recíproco.
Peter tem também seu núcleo de personagens: seus amigos Harry e Flash, sua
namorada/esposa Mary Jane, seu patrão J. J. Jameson, sua tia May.
Na morte e ressurreição do Superman, alguns elementos chamam nossa atenção: o
ato de extremo heroísmo do kriptoniano ao sacrificar sua vida em defesa dos cidadãos de
Metrópoles; a posterior proliferação de personagens que clamam ser o Superman original; o
verdadeiro Homem de Aço se revelando num momento de perigo, vencendo um inimigo que
tentava se passar por ele mesmo.
Jean Grey, na Saga da Fênix, morre ao salvar seus amigos, cometendo um sacrifício
heroico. Quando o clone de Jean se suicida para evitar que a Fênix tome controle novamente
55
Podemos considerar que tais leis internas são, nesses contextos, formas microcósmicas de leis universais, pois
indicam comportamentos morais, éticos e sociais que estão de acordo com contextos maiores, como a sociedade,
a civilização ou o transcendente.
126
de seu corpo e coloque em risco o universo, comenta-se no gibi que foram as qualidades
intrínsecas da super-heroína, herdadas pela Fênix ao clonar o corpo de Jean, as reais
responsáveis pelo fim da ameaça. Foi a humanidade de Jean que levou o clone a acabar com a
própria vida pelo bem do universo.
Na aventura do Homem-Aranha com seus clones, que causou uma reviravolta no
universo do herói, por piores que possam parecer alguns deles, as cópias têm algo de nobre
em suas atitudes – como o assassino Kane, que matava para proteger Mary Jane. Seria porque,
apesar de meras réplicas do verdadeiro herói, não poderiam fugir da influência benéfica do
original?
Nas três aventuras, há o retorno dos super-heróis originais. Suas ausências foram um
acidente de percurso em sua história. Ou talvez não. Poderiam ser apenas mais uma provação
pela qual todo super-herói, de alguma forma, tem de passar. Entretanto, esses seres enfrentam
provações não por acaso: eles parecem prontos e destinados a vencer tais batalhas árduas e
impossíveis. O sofrimento próprio, reconhecido e incorporado, reforça a identidade heroica,
com sua aura de sacrifício e superioridade, em contraste com a do ser humano comum e
ordinário, repleto de contradições e cuja existência parece permeada por sentimentos pouco
nobres.
Jean, Peter e Clark, nas sagas relatadas e em diversas outras, têm sua identidade
roubada, questionada ou desafiada. Em todas elas, retornam a si mesmos, até mesmo de suas
próprias mortes. Ao voltarem, algumas mudanças acontecem: um uniforme diferente, algum
poder novo, a descoberta de algum fato perturbador, a criação de um novo arquivilão, um
traço inédito de personalidade – como um pouco mais de risos irônicos ou até mesmo alguma
agressividade extra. Mas alguns elementos parecem invariantes na maioria dos super-heróis:
os ideais, a tendência ao altruísmo, a coragem extrema, o senso de justiça. Mesmo os
superanti-heróis possuem algumas características que não se alteram: Wolverine, um X-Men
famoso, pode matar muitas vezes, mas o faz com finalidades nobres – uma vez causou a
morte de uma amiga para impedi-la de assassinar a sangue frio um inimigo56 (Figura 35). O
Justiceiro, ainda que tenha seus métodos questionados por super-heróis clássicos, não é visto
como um vilão, mas como aquele personagem que não tem os limites que os outros possuem
e, por isso, está apto a realizar o “trabalho sujo” que precisa ser feito por alguém. A lei, numa
sociedade decadente e corrupta, pode ser tão inimiga do bem e da boa ordem social quanto o
próprio crime, nos ensina Frank Castle, o Justiceiro.
56
Durante a saga dos X-Men conhecida como Massacre de Mutantes, da década de 1980, Wolverine fere
mortalmente sua amiga Rachel Summers para impedi-la de matar a Rainha Branca, uma vilã.
127
Figura 35
Wolverine fere gravemente sua colega Rachel Summers, a Nova Fênix, para impedi-la de
assassinar uma inimiga. No último painel, as letras que indicam que ele desembainhou suas
garras de adamantium – snikt.
128
Figura 36
Batman, o Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, encontra o vilão Duas Caras e vê seu inimigo
como um reflexo de si mesmo.
130
Jean Grey passa por uma morte parecida, em sacrifício por seus amigos, e tem seu
corpo clonado e possuído por uma entidade cósmica chamada Fênix, que luta ao lado dos X-
Men contra inúmeros perigos, perde o controle, transforma-se na Fênix Negra, destrói um
sistema solar, assassina bilhões de integrantes desse sistema, é capturada e julgada por uma
civilização intergaláctica, sacrifica-se pelo bem do universo, reaparece anos depois, revela
que nunca morreu (nem matou) de fato, nem foi a Fênix que tanto perigo trouxe ao universo.
O que se altera são seus poderes, agora um pouco mais fortes do que antes, e, além disso, Jean
Grey sente-se perdida com tantos acontecimentos. Porém, ao final da trama, forma um grupo
com seus antigos companheiros, veste um uniforme um pouco diferente e continua
apaixonada por Scott Summers que, apesar de casado, nunca a esqueceu. Tais eventos
contados durante a história da Fênix, de grande magnitude, aconteceram, mas podiam muito
bem não haver ocorrido, porque foram irrelevantes para a organização da vida da
personagem. Jean Grey age, dali para frente, como se quase nada tivesse acontecido. E, de
certa forma, não aconteceu. Ela ficou num casulo enquanto seu clone interagiu com todos e
colocou o mundo em perigo. Tanto é assim que, com o tempo, todos eles voltam a ser X-Men
– o sonho de Xavier não pode morrer.
Peter Parker deixou de ser o Homem-Aranha, ficou deprimido, quase perdeu a
esposa e a tia, teve até mesmo seus poderes usurpados para, ao fim da história, ver os clones
deixarem sua vida, readquirir seus poderes, reaver seu núcleo familiar e, descobrir que seu
primeiro e mais lendário inimigo nunca morreu. Por fim, reassumiu a identidade de Homem-
Aranha.
Os exemplos são exaustivos. Grande parte dos super-heróis tem histórias e sagas cuja
estrutura básica é um estado primeiro de ordem, seguido de um evento aparentemente
espetacular que desestabiliza suas vidas. Vencidos os desafios impostos por tal situação,
também de forma grandiosa, a ordem é restabelecida.
As mudanças – de uniformes, poderes, vinculações – não modificam os ideais ou a
visão de mundo, levando-os antes, como já citamos, à adaptação e não à alteração, impensável
em contextos que primam pelo acabamento.
Num evento recente do universo Marvel, chamado Guerra Civil, Peter Parker revela
ao mundo que é o Homem-Aranha, deflagrando uma série de consequências que culminam no
assassinato de tia May.
Pouco tempo depois, Peter faz um acordo com um ser de outra dimensão para que tia
May volte à vida, sendo o fim de seu casamento com Mary Jane o preço desse resgate. O
tempo é alterado, sua tia volta à vida em segurança e todos se esquecem de que Peter Parker é
132
o Homem-Aranha. Mary Jane continua na vida do herói, pois sua memória, apesar da
mudança, não foi apagada completamente.
Há, em tal ritmo contínuo de eventos, uma restauração das qualidades do super-
herói. As provações que ameaçam sua identidade e sua existência resultam na reafirmação de
suas posturas e de seu destino. Há alguma similaridade entre tais acontecimentos e certas
narrativas míticas que tratam de tema parecido.
No século XIII, Wolfram Von Eschenbach escreveu Parsifal, romantizando histórias
da tradição oral ao estilo dos romances de Cavalaria. Fala sobre um cavaleiro nobre chamado
Parsifal (Percival) e sua busca pelo Santo Graal.
A busca do Graal, identificada na Europa, após as Cruzadas, com a busca do cálice
usado na última ceia por Cristo, tendo em vista certos elementos que compõem algumas
versões mais antigas da história, parece ser uma lenda bastante antiga, pagã, proveniente do
norte europeu.
Em todo caso, é uma história bem interessante, sobretudo nessa versão alemã. Nela,
Parsifal, em sua peregrinação em busca do Graal, expia seus erros e se purifica através da
prestação de inúmeros serviços aos necessitados e do sofrimento pelo isolamento e a solidão.
Apesar dos terríveis combates, é extremamente bem-sucedido, não restando dúvidas sobre sua
predestinação como o maior dos cavaleiros. Ao encontrar, finalmente, o castelo onde o Graal
está guardado, comete um erro e falha em restaurar a saúde do rei ferido, guardião do Graal, e
a própria terra. Após novo ciclo de redenção, consegue uma segunda chance para cumprir sua
demanda.
Parsifal, através de provações que afirmam seu caráter heroico e o conduzem ao
cumprimento pleno de seu destino, restaura a Terra. De forma similar, o super-herói, ao
passar por suas batalhas e dificuldades, acaba por salvar o mundo. Mas, enquanto Parsifal
amadureceu e é reconhecido e aclamado, o super-herói apenas realiza o retorno ao seu estado
“natural”, continuando sua vida dupla: como mascarado é lendário; porém, como homem
comum é um reles desconhecido, como no caso de Peter Parker. Mas podemos pensar, por
outro lado, que só superficialmente ele é um homem comum. Sua essência é parecida com a
de Parsifal. Suas solidões servem para reforçar o caráter moral do sacrifício.
Não é gratuitamente que o Homem-Aranha recebe o epíteto de Cavaleiro das Teias,
assim como Batman é chamado de Cavaleiro das Trevas. As séries culturais desses dois
relatos de heroísmo, apesar das enormes distâncias, comunicam-se em alguns aspectos,
promovendo traduções e novas leituras a partir da apropriação de certos elementos. São
heroísmos bem diversos, mas aparentados.
133
O mito cristão do salvador, assim como vários outros, também apresenta a reparação
do mundo pelo sacrifício heroico. Cristo enfrenta a morte para cumprir seu destino: salvar os
homens e restaurar o mundo. O herói retorna, transfigurado, com sua divindade reafirmada e
fortalecida, não restando dúvidas sobre seu destino. A morte do Superman se apropria de
alguns elementos de tal história, recriando o contexto do herói que dá sua vida pelos outros,
retorna da morte e, assim, restitui a esperança dos homens nos ideais que simboliza.
Os super-heróis salvam o mundo regularmente – três ou quatro vezes ao longo de um
ano, dependendo da área de atuação do personagem. Alguns, que atuam contra o crime
organizado, o fazem mais esporadicamente do que aqueles que protegem o planeta inteiro.
Tal ritmo cíclico aumenta a fama lendária do personagem sem interferir em sua
estabilidade. Demonstra que o uniforme negro do Aranha, por exemplo, não altera seu caráter
heroico ou seu altruísmo, apesar de ser evidentemente mais sombrio do que a vestimenta azul
e vermelha. O Superman, após seu retorno da morte, também adota um novo uniforme que,
por coincidência, é igualmente negro.
Se, por um lado, é evidente que faz bastante diferença o aspecto visual do super-
herói no imaginário dos leitores, isso não se manifesta da mesma forma no contexto das
histórias. Algumas vezes, os escritores conseguem criar narrativas mais complexas, do ponto
de vista das relações estabelecidas, interagindo com códigos visuais e aproveitando elementos
variantes na composição das tramas dos personagens. Porém, em geral, serve como regra a
acentuada semelhança do herói a si próprio.
Na história de Jean Grey e da Fênix, o desenlace da história se dá com o caráter
benéfico de Jean triunfando sobre os delírios e frenesi da Fênix Negra.
O espaço para que o personagem possa mudar e, eventualmente, contradizer ou
reinterpretar seus feitos anteriores, dialogando com suas experiências e assumindo novas
formas de organização de vida, aparece raramente nas histórias em quadrinhos de super-
heróis, que vivem num presente afastado das outras tensões temporais.
Nossa impressão é de que o super-herói é aquilo que ele é. Sua exterioridade
coincide com sua interioridade. Seus atos são um reflexo de seu caráter, sem espaços para as
circunstâncias ou para os acasos. Seu heroísmo é definido como essencial, e não como
resultados processuais. Os subtextos estão usualmente ausentes de suas condutas ou
motivações. Os elementos que costumam compor as histórias, ou a grande história de suas
vidas, são normatizados pela especialização no heroísmo de aventura, núcleo de tal gênero de
gibi. Personagens, tecnologias, grupos sociais, civilizações espaciais, magia: os elementos são
descritos a partir desse núcleo, sendo instrumentalizados para o enfrentamento e para a
134
Uma vez que, desde Kafka e Camus, a literatura dos intelectuais está como que
corroída pelo absurdo, a cultura de massa se esforça em aclimatar, aclimar e,
finalmente, sufocar o absurdo, dar um sentido à vida por meio da exclusão do
contra-senso da morte. (MORIN, 1997, p. 97)
57
Na tradição cartesiana, o homem não doma somente a natureza, mas a si próprio. O interno e o externo devem
ser reduzidos à semelhança algébrica da fórmula e aos elementos básicos, imutáveis, essenciais, o que torna
capaz o mútuo reconhecimento – em outra palavra, a identidade. O homem que não se domina não pode dominar
o seu entorno.
135
58
“Falo de cultura das bordas e não das margens, para não trazer a noção de pejorativa ou mesmo reversora de
marginal ou de alternativa. Com "bordas" quero enfatizar a exclusão do centro, aquilo que fica numa faixa de
transição entre uns e outros, entre as culturas tradicionais reconhecidas como folclore e a daquelas que detêm
maior atualização e prestígio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos populares de vários tipos,
inclusive àqueles das periferias urbanas” (FERREIRA, dez 89-fev 90, p. 169-174).
137
princípio da hospitalidade constitui outro operativo: o estrangeiro chega sem aviso ou convite
e, mesmo assim, não cabe a ideia de invasão. Em nosso espaço de convivência com o outro,
os idiomas, as linguagens, os discursos, e os próprios objetos de nossa cultura se reorganizam
de forma cambiante e instável para dar conta das diferenças bem-vindas. Não existe risco à
identidade dos diversos, não por respeito ou tolerância entre eles, mas porque os pensamentos
de essência não se fazem presentes.
Segundo Lotman59, o fluxo abundante de textos externos no interior de dada cultura
tende a desestabilizar o discurso autorreferente e as relações hierárquicas do contexto, sendo
uma das formas de aceleração do que podemos chamar de desenvolvimento da cultura, mas
que, de fato, são movimentos de tradução e de geração de novos textos, a partir da elaboração
colaborativa, no interior da cultura, de novos códigos e linguagens – gramáticas e semânticas
– e, consequentemente, de novos sentidos e discursos.
As estruturas centrais das histórias de super-heróis estadunidenses da Marvel e da
DC Comics têm a ver, na maioria dos casos, com ideais fixos dos personagens, relacionados a
elevados códigos morais e ao altruísmo em relação à sociedade organizada. A defesa dos
valores centrais e a restauração da ordem frente aos perigos dos inimigos responsáveis pelo
caos, pelo mal e pela desordem são uma forma de solapar o questionamento. A predestinação
do herói ao sucesso, diante dos defeitos natos e irreversíveis dos vilões (que concentram todos
os refugos e fragmentos que não pertencem à constituição do herói), representa o próprio
discurso da inutilidade da mudança na ordem instituída. O que é é; o que não é não é. Aos
super-heróis, que algumas vezes também são trabalhadores/consumidores, cabe a tarefa da
adaptação. As formas, os penteados e as roupas, para o super-herói, são mudanças superficiais
de um presente absoluto que não comporta alteração. A tais novidades o super-herói adapta
seu figurino, suas cores, suas relações. Clark Kent, com a emergência de televisão, deixa o
jornal impresso e vai para o noticiário televisivo da mesma empresa em que trabalhava. Ele e
Lois Lane se tornam um casal de apresentadores jornalísticos.
Superman, quando retorna dos mortos, dá provas de sua identidade através de seu
heroísmo, do próprio ato heroico capaz de restaurar a ordem e a paz. Ao vencer a batalha
contra o impostor que tenta usurpar seu lugar, a ordem retorna ao mundo.
Contudo, os textos externos, mesmo que evitados ou ressignificados a partir dos
contextos centrais, promovem modificações nas linguagens dos quadrinhos que alteram os
discursos identitários, ainda que de forma discreta.
59
Cf. a Introdução e o Capítulo 1.
138
O lugar das indústrias culturais nesses processos exige redefinir esse conceito para
além do sentido inicial dado pela Escola de Frankfurt: dessublimada “queda da arte
na cultura” e sua redução à mercadoria. Pois isso nos impediria pensar as
contradições que dinamizam a complexidade cultural da sociedade de início de novo
século. Ainda reconhecendo a articulação histórica entre capitalismo e
industrialização, as transformações vividas pelas sociedades ocidentais têm
desvendado a densidade de relações que liga a criação cultural com as lógicas da
produção industrial: nem o cinema deixa de ser arte pelo fato de ser indústria,
constituindo, isso sim, outro tipo de arte, nem a estandardização implica a total
ausência de inovação. É a tensão entre criação e produção que faz hoje das
indústrias culturais – desde o cinema até a música discográfica, desde a televisão até
a videoarte – espaços de entrecruzamento de diferentes espaços da produção social e
da criatividade cultural, conformados por dispositivos complexos que não são de
ordem meramente tecnológica, mercantil ou política e nos quais pesam tanto as
filiações como as alianças, as pesadas máquinas de fabricação como as sinuosas
trajetórias de circulação, e em que os estratagemas de apropriação devem ser
levados em conta tanto quanto as lógicas de propriedade. (MARTÍN-BARBERO,
2004, p. 358)
139
diversas manifestações criativas mais recentes: há filmes épicos, romances épicos, peças
teatrais épicas, etc.
Por uma definição ampla: entende-se, segundo o Dicionário Houaiss, que o adjetivo
“épico” é próprio do “que relata, em versos, uma ação heroica” ou que é “relativo a ou
próprio de epopéia ou de heróis”. Segundo o mesmo dicionário, epopeia é um “poema épico
ou longa narrativa em prosa, em estilo oratório, que exalta as ações, os feitos memoráveis de
um herói histórico ou lendário que representa uma coletividade”, além de uma “sucessão de
eventos extraordinários, ações gloriosas, retumbantes, capazes de provocar a admiração, a
surpresa, a maravilha, a grandiosidade da epopeia” e, ainda, uma “aventura fabulosa”60.
Convém, antes de prosseguirmos, diferenciarmos os termos “épico” e “epopeia”.
Figura 37
Nessa edição especial dos anos 1970, o Capitão América vai cumprir uma missão no Vietnã. Podemos
ver que ele luta contra muitos inimigos “anônimos” ao mesmo tempo, vencendo um pequeno exército.
Na história, o arquivilão chinês Mandarim está envolvido na guerra do Vietnã.
142
Figura 38
Aquiles também possui armas específicas, forjadas pelo próprio deus Hefesto e que
representam seu poder e anunciam sua presença nos campos de batalha, incentivando aliados
e amedrontando os inimigos, mesmo que sejam numerosos. No canto XII do poema épico, os
troianos são incitados a avançar contra os gregos sob o aviso de que Aquiles não está entre
eles.
Nas sagas nórdicas e lendas europeias, as armas também são associadas aos heróis,
sendo sinais de sua identidade e de sua força – são exemplos famosos a espada Balmung de
Siegfried e a Excalibur de Rei Arthur.
144
As armas dos super-heróis raramente são mágicas, mas contam com truques
inesperados e miraculosas tecnologias. São também bastante específicas: os bastões do
Demolidor61, as garras de adamantium de Wolverine, o escudo inquebrável do Capitão
América, o cinto de utilidades do Batman, o anel do Lanterna Verde, o martelo de Thor62, o
laço da Mulher-Maravilha, etc. Tais instrumentos, muitas vezes, são únicos ou feitos
especialmente para eles, sendo impensável, quando não impossível, serem usados por outras
pessoas. O martelo de Thor só pode ser empunhado por alguém tão digno quanto o deus
nórdico do trovão; o Capitão América foi um dos poucos mortais a conseguir levantá-lo.
Em ao menos uma ocasião, durante a série Guerras Secretas, da década de 1980, a
imagem do escudo quebrado do Capitão América (Figura 40) foi usada para ilustrar a morte
de todos os heróis.
Os superpoderes – cada vez mais sofisticados e criativos, conforme os universos
heroicos foram se desenvolvendo nos quadrinhos – muitas vezes se assemelham aos poderes
dos deuses. Super-heróis disparam raios das mãos, tal qual Zeus durante a Guerra de Troia,
como narrado no Canto VIII de Ilíada63; têm força sobre-humana como Hércules; velocidades
divinas como Mercúrio. Não por acaso, o Capitão Marvel usava a palavra mágica Shazam
para invocar a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, a resistência de Atlas, o poder de
Zeus, a coragem de Aquiles e a velocidade de Mercúrio – as iniciais de tais seres míticos dão
forma à palavra mágica usada para a transformação.
A capacidade de enfrentar dezenas ou centenas de inimigos, que lembram algo das
lutas de Ulisses em sua casa ou Aquiles e outros heróis, como Ajax e Agamêmnon nos
campos de batalha de Troia, ou mesmo dos cavaleiros medievais, é sempre usada nos gibis,
não somente como modo de criar grandes momentos de ação, mas também para ilustrar até
que grau se diferencia o herói das pessoas comuns, que fazem pouca diferença perto dele.
Todo herói, como já citamos em exemplos acima, se encontra em desvantagem numérica
contra muitos inimigos, e uma de suas características é conseguir vencer, muitas vezes
sozinho, pequenos grupos ou mesmo grandes exércitos. Esse é um dos atributos desse tipo de
herói. Os filmes hollywoodianos, nos quais um único policial, por exemplo, consegue acabar
com toda uma organização criminosa, terrorista ou mesmo frustrar os planos de conquista do
ditador de uma nação, seguem lógica semelhante.
61
Demolidor é um super-herói do universo Marvel, criado por Stan Lee e Bill Everett em 1964.
62
Thor, deus nórdico do trovão e da guerra, é também um super-herói do universo Marvel, criado por Stan Lee,
Larry Lieber e Jack Kirby em 1962.
63
“Da altura do Ida, Zeus troa e contra os Dânaos fulgura e flameja. Espantam-se os Aqueus, tomados do
cloroso medo verde” (HOMERO, 2001, p. 299).
145
Figura 39
Figura 40
O escudo do Capitão América quebrado, no último número das Guerras Secretas, se torna símbolo do
aparente extermínio dos super-heróis pelo Doutor Destino. Contudo, eles ressuscitariam em breve
através dos poderes e da imaginação do próprio inimigo.
147
Aquiles tem um ponto fraco, seu calcanhar; Siegfried, a parte anterior de seu ombro.
O Superman, personagem inaugural dos “modernos” super-heróis dos gibis, tem seu ponto
fraco na kryptonita, um mineral que lhe é mortal oriundo de seu planeta natal. O Lanterna
Verde possui também uma fraqueza: a luz amarela, que inibe a energia verde de seu anel.
O favor dos deuses e a magia, presentes algumas vezes nos clássicos épicos citados,
existem de maneira muito diversa nos quadrinhos. Alguns super-heróis possuem poderes
mágicos, como os personagens místicos Zatana, da DC Comics, e a Feiticeira Escarlate ou o
Doutor Estranho, da Marvel. Contudo, a maioria dos heróis tem instrumentos forjados a partir
da sua criatividade e engenhosidade, e não de seres mágicos. Podemos dizer que elementos da
ficção científica estão muito mais presentes nos quadrinhos do que os contextos míticos
quando se trata de fornecer material para a criação de instrumentos de batalha aos
personagens. Ou, talvez, a ficção científica tenha ocupado alguns espaços análogos aos
ocupados pela magia em outros gêneros de narrativa. De qualquer forma, os o papel dos
objetos especiais, que são símbolos dos personagens, foi ampliado64 nas histórias. A “magia”
de Tony Stark, responsável pela construção de armaduras com tecnologias inéditas, design
sofisticado e cores repletas de simbolismo, é um dos elementos mais cativantes das histórias
do Homem de Ferro (Figura 41). O Senhor Fantástico, líder do Quarteto Fantástico, é um
cientista genial, capaz de inventar instrumentos que civilizações muito mais avançadas que a
terrestre ainda não conhecem. Até mesmo o Homem-Aranha, que não tem laboratório próprio,
criou a fórmula do fluido de teia ultrarresistente que usa em seus lançadores.
Os super-heróis possuem a habilidade de vencer exércitos, têm armas especiais
únicas, são lendários; seus grandes inimigos são, como eles, seres especiais e possuem
fraquezas mais ou menos secretas. Podemos observar também algumas cenas marcantes,
verdadeiros painéis que procuram dar conta de grandes momentos das histórias, retratando o
grupo ou suas batalhas em dimensões ampliadas, procurando demonstrar a grandiosidade
única dos super-heróis, daquela determinada saga ou do grupo ao qual eles pertencem.
Podemos chamar tais cenas de “épicas”, porque apresentam os personagens em momentos
que se querem lendários e dignos de lembrança por parte dos fãs (Figuras 42 a 48).
64
Devemos lembrar que os super-heróis estão lutando durante grande parte do tempo e, dessa forma, suas armas
e poderes são ainda mais importantes para eles do que o arco foi para Ulisses ou a armadura para Aquiles.
148
Figura 41
Primeira aparição de uma nova versão da armadura do Homem de Ferro, que retoma o vermelho e o
dourado da armadura original clássica, da década de 1960.
149
Figura 42
Primeira cena dos super-heróis reunidos durante as Guerras Secretas pelo ser extradimensional Beyonder. A
cena tem ares grandiosos: o cenário imenso e o encontro de tantos seres lendários numa aventura no meio do
universo por motivos misteriosos contra seus piores inimigos. Presentes: Capitão Marvel, Tempestade, Capitão
América, Senhor Fantástico, Vespa, Hulk, Ciclope, Professor X, Thor, Wolverine, Coisa, Aranha, Vampira,
Homem de Ferro, Tocha Humana, Magneto, Mulher-Hulk, Gavião Arqueiro, Colossus, Noturno e o dragão
Lockheed, mascote da heroína Lince Negra.
150
Figura 43
Cena da série Inferno, de 1989, que mostra os X-Men “modernos” (à esquerda) encontrando os X-Men
“clássicos” (à direita). A divisão do campo de batalha, a provocação de Wolverine beijando seu amor proibido
Jean Grey na frente de Ciclope, as poses de batalha e o cenário amplo criam o efeito de um evento memorável.
151
Figura 44
Como um raio divino uraniano saído da mão de um deus, Doutor Destino atinge os super-heróis
durante as Guerras Secretas com uma rajada de energia. A visão de heróis como Hulk, Thor e
Colossus, entre outros, tombando sob um único golpe, é bastante impressionante e mostra a
imensidão do poder do vilão.
152
Figura 45
A edição #36, de dezembro de 2001, de The Amazing Spider Man, mostra o Homem-Aranha assistindo,
impotente, à queda das Torres Gêmeas após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Na página
seguinte, dois cidadãos perguntam onde ele estava e por que não impediu aquilo. Ele não consegue
responder e pensa: “Como você diz que “não sabia” [que terroristas atacariam as Torres Gêmeas com
aviões]? Nós não poderíamos saber. Nós não poderíamos imaginar” – frases semelhantes às respostas do
governo estadunidense frente ao questionamento do público sobre possíveis avisos das agências de
inteligência sobre os atentados. Até o Doutor Destino e outros vilões vêm ajudar os super-heróis, os
bombeiros e os policiais no resgate às vítimas em meio aos escombros, ou seja, mesmo eles, os bandidos,
choram ao ver tamanha destruição causada por “loucos” que nem mesmo os piores vilões do universo
Marvel seriam capazes de realizar.
153
Figura 46
Numa edição especial, todos os super-heróis estão presentes enquanto o Capitão Marvel, um super-herói
cósmico, agoniza devido a um câncer. A presença de tantas personalidades poderosas e honradas
evidencia a gravidade do momento.
154
Figura 47
Figura 48
Disso decorre que “o homem dos grandes gêneros distanciados é (...) inteiramente
perfeito e terminando. Ele é concluído num alto nível heróico, (...) coincide consigo próprio e
é igual a si mesmo. Ademais, ele é completamente exteriorizado. Entre a sua verdadeira
essência e o seu aspecto exterior não há a menor discrepância” (BAKHTIN, 1998, p. 423).
157
A vida atual, o presente ‘vulgar’, instável e transitório, esta ‘vida sem começo e sem
fim’ era objeto de representação somente dos gêneros inferiores. Mas, antes de mais
nada, ela era o principal objeto de representação daquela região mais vasta e rica da
criação cômica popular. (...) O presente, a atualidade enquanto tal, o “eu próprio”, os
“meus contemporâneos” e o “meu tempo” foram originalmente o objeto de um riso
ambivalente, objetos simultâneos de alegria e destruição. (...) O “passado absoluto”
dos deuses, dos semideuses e dos heróis – nas paródias e particularmente nos
travestimentos – ‘atualiza-se’: rebaixa-se, é representado em nível de atualidade, no
ambiente dos costumes da época, na linguagem vulgar daquele tempo. (BAKHTIN,
1998, p. 412)
perda eventual de suas roupas na pressa de vestir o uniforme azul e vermelho para salvar
algum cidadão em perigo.
A vida de Clark Kent, o Superman, também tem seus momentos. Quantas vezes não
vislumbramos um Clark tímido, até mesmo ridículo? Os comportamentos engraçados que
deve assumir para esconder que é o Superman são momentos clássicos dos gibis e dos filmes
do herói.
65
KILL BILL. v. 2. Direção de Quentin Tarantino. EUA: Imagem Filmes, 2004. (137 minutos). Inglês.
159
torna o núcleo por excelência de convivência dos super-heróis, seja durante as aventuras ou
entre elas, não sobrando espaço para a vida sem a vestimenta ou sem a máscara. O que
podemos observar, como já citamos, é o caráter “familiar” que tais grupos tendem a adquirir,
tornando-se eles próprios a polarização de alguma atuação cotidiana, que difere de
intensidade de acordo com a mitologia que envolve cada grupo.
Como grupo, os X-Men apresentam variações interessantes de temática,
provavelmente porque lidam com alguns temas bastante contemporâneos, como a
discriminação e a genética. Durante sua fase “australiana”66, o grupo, após uma ressurreição
mística, se refugiou numa cidade abandonada no deserto da Austrália. À época, faziam parte
da equipe os remanescentes do evento Massacre de Mutantes, que se passou nos esgotos de
Nova York e causou muitas mortes. O professor Xavier havia sido levado por uma civilização
intergaláctica para ser curado de uma enfermidade mortal e a liderança estava sendo exercida
por Ororo, a Tempestade.
Considerada uma das fases mais interessantes dos X-Men, estas foram as últimas
histórias escritas por Chris Claremont67 à frente do título, depois de mais de 15 anos criando
histórias sobre os mutantes.
Sob grande pressão após eventos dramáticos, como o ataque dos aliens da Ninhada68,
as mulheres decidem sair às compras e os homens resolvem passar uma tarde na cidade,
enchendo a cara. Assim, as moças seguem através de um portal dimensional para um
shopping em algum lugar do mundo, para fazer compras (onde acabam enfrentado uma
paródia dos “Caça-Fantasmas”) e os rapazes seguem para alguma cidade próxima em busca
de um bar, alguma diversão e conversa fiada, como muitos de nós depois de um dia
estressante.
Enquanto bebem no “boteco”, veem gigantescas naves chegando. Uma invasão
extraterrestre é o que está ocorrendo. Porém, a cidade ignora a intenção dos invasores,
somente revelando incômodo pelo número de tanques nas ruas atrapalhando o trânsito (Figura
49).
Vemos outras cenas de paródia: jornais que sabem dos fatos, mas consideram que há
coisas mais importantes para serem noticiadas; o mutante Longshot, antes astro de TV
66
Publicada entre 1988 e 1990 pela Marvel.
67
Roteirista americano de história em quadrinhos que criou personagens como Vampira, Lince Negra, Senhor
Sinistro, Gambit e Fênix.
68
Alienígenas parasitas do universo Marvel que tentam invadir a Terra desde 1982, quando apareceram pela
primeira vez nas revistas dos X-Men.
160
interdimensional, fazendo invasoras inimigas, após alguma luta, se apaixonarem por seu
charme (Figura 50); Wolverine jogando cartas e blefando, enquanto aposta sua vida, com o
comandante dos invasores (Figura 51); o super-herói Destrutor, bêbado, mostrando aos
alienígenas que suas armas são pequenas perto do disparo de sua rajada de plasma (Figura
52). Ao final, com a retirada incondicional dos invasores, os quatro chegam bêbados e
cantando como bons e velhos camaradas em casa, para diversão das moças. Wolverine,
inclusive, beija Tempestade, para desconcerto da amiga (Figura 53).
Entre um movimento restaurador e outro ao redor destes ciclos constantes, das
mudanças de poderes, de uniformes, nos quais o espírito heroico permanece e o super-herói
não deixa seus ideais, sua luta, seu destino e sua identidade, elementos “baixos” dão espaço a
deslocamentos, a certo humor e ao despretensioso. Nesses momentos, surgem histórias com
elementos diferentes dos usuais, provocando mudanças mais contundentes do que a destruição
de um planeta, a união de duas dimensões ou a reaparição de um terrível vilão.
Nos quadrinhos de super-heróis as experiências mais inovadoras surgem quando
elementos de pouca relevância ou ausentes nas maiorias das narrativas são articulados com
outros temas, sobretudo os mais centrais, como o caráter heroico, os valores elevados, etc.
São nesses momentos que se permitem deslocamentos e variações combinatórios, porque os
elementos altos são relativizados e os baixos, praticamente ausentes nas narrativas usuais, são
desenvolvidos e destacados a partir de operação contributiva, sem ganhar relevância superior.
São desvios que rejuvenescem o gênero e são, ao mesmo tempo, retorno reelaborado –
restauração inventiva – aos tradicionais cartuns críticos e às tirinhas com humor inusitado
presentes nos jornais desde o surgimento dos quadrinhos.
Elementos estimulantes do riso69, como a incompletude, a falha e a fissura, abrem
espaços para os deslocamentos de significados, caracterizando novas formas de relação entre
os textos e trazendo para a esfera cotidiana os elementos de heroísmo, que são reelaborados
segundo novos parâmetros.
69
“Na realidade, a função do grotesco é liberar o homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam
as idéias dominantes sobre o mundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter relativo e
limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo sério, incondicional e peremptório.
Mas historicamente as idéias de necessidade são sempre relativas e versáteis. O riso e a visão carnavalesca do
mundo, que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação
incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim
disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades. Daí que uma certa “carnavalização” da consciência
precede e prepara sempre as grandes transformações, mesmo no domínio científico” (Bakhtin, 1999, p. 43).
161
Figura 49
X-Men #245 – invasores de outro planeta chegam à Austrália. O clima é de paródico. No segundo
painel, o homem na churrasqueira se preocupa com a chegada de tantos turistas à cidade. No painel
4, um motorista reclama com um dos invasores pelo congestionamento causado por seu tanque,
enquanto no painel seguinte um dos alienígenas toma cerveja australiana batendo papo com um
homem que diz também ter estado no exército – “Você sabe, eu também estive no Exército!”
162
Figura 50
Figura 51
Wolverine joga pôquer com o comandante dos invasores. Bêbado, aposta sua vida no jogo –
“Que tal deixar esse jogo realmente interessante? Eu aposto minha vida. Você ganha, você me
mata. Eu ganho...”
164
Figura 52
Figura 53
Os super-heróis voltam para casa contando histórias sobre suas aventuras. Wolverine beija a colega
Tempestade.
166
Bakhtin (1998, p. 423) nos explica que uma das características do herói épico é não
só sua completude absoluta, como também o fato de ser “completamente exteriorizado”:
Nessa cena, que dura uma página (Figura 54), ficamos sabendo do caráter nobre do
Surfista que, junto ao seu incrível poder, o torna um ser aparentemente completo,
característica acentuada pela sua aparência – tem o corpo completamente revestido por uma
armadura de prata invulnerável, em lugar da pele.
Enquanto o Quarteto enfrenta Galactus, atrapalhando-o de todas as formas possíveis,
já que vencê-lo é impensável, na casa de Alicia o Surfista usa seu poder para criar objetos e
alimentos.
Surfista - Depois que o Grande Galactus tiver acabado, tudo será reduzido a pura
energia!
Alicia - Você... Você vai mesmo! De alguma louca, inacreditável e terrível
maneira você vai! Sua intenção é destruir a Terra!
Surfista - Destruir é meramente uma palavra! Nós simplesmente mudamos as
coisas! Nós mudamos elementos em energia... A energia que sustenta
Galactus! Pois somente ele importa!
Alicia - Não! Não! Nós todos importamos! Todo ser vivo... Todo pássaro e toda
fera... Este é nosso mundo! Nosso! Talvez nós não sejamos tão poderosos
quanto seu Galactus... Mas nós temos corações... Nós temos almas... Nós
vivemos... Respiramos... Sentimos! Você não pode ver isso? Você é tão
cego quanto eu???
Surfista - Nunca havia eu ouvido tais palavras... Sentido tal coragem ou conhecido
este estranho sentimento... Essa nova emoção...! Há uma palavra que
algumas raças usam... Uma palavra que eu nunca havia entendido... Até
agora!
Alicia - Então você não é somente um monstro sem alma! Você também tem
emoções! Eu sabia! Eu senti desde o princípio!
Surfista - Não! Não diga mais nada! Não crie ilusões! Eu sou o que eu devo ser! Eu
sirvo Galactus!
Alicia - Mas olhe! Olhe a cidade abaixo de você! Olhe as pessoas! A cada uma
delas é permitido viver, ser feliz. Cada uma delas é... Humana!
Surfista - Humana? O que tal palavra pode significar para mim? E, mesmo assim,
eu nunca havia visto uma espécie tão de perto! Nunca havia eu sentido
esse novo sentimento... Essa coisa que alguns chamam... Piedade!
Alicia - De acordo com a rádio, nosso planeta inteiro está em grande perigo! Mas
eu tenho a forte sensação de que de alguma forma você possui o poder
para nos salvar!
Surfista - Eu? Desafiar Galactus?? É impensável!
Alicia - Então você poderia ficar parado e ver um mundo ser destruído? Como...
Como eu pude estar tão errada sobre você... Quando eu senti nobreza...
Quando eu pensei que você possuía.... Compaixão!
Surfista - Talvez, humana... Você não estivesse totalmente errada! Talvez pela
primeira vez na história... Eu tenha encontrado alguma coisa... Alguma
coisa que valha a pena proteger!
(Figura 55)
168
Figura 54
Alicia Masters encontra o Surfista Prateado e lhe oferece ajuda, enquanto o Quarteto Fantástico
enfrenta Galactus.
169
Figura 55
Convencido pelas palavras de Alicia a olhar para si mesmo e para a humanidade de outra forma, o
Surfista se apressa em ajudar o Quarteto e impedir que Galactus destrua o planeta.
170
70
Em 1968, em plena Guerra Fria, cabia aos estadunidenses salientar os aspectos emocionais da humanidade,
tendo em vista que a propaganda era a de que os soviéticos possuíam apenas atributos intelectuais e técnicos,
como lógica, racionalidade, inteligência, etc., e os usavam de forma maquiavélica, sendo incapazes de
sentimentos e compaixão. Alicia em momento algum menciona que o ser humano pensa ou tem consciência, mas
sim que possui emoções, coração e alma, sendo tais elementos dignos de valor por parte do alienígena
“insensível”, tal qual um homem-máquina.
171
espaços por onde outros discursos poderiam se mover, gerando novas significações, tensões e
relações.
Não por acaso, o Surfista só percebe o novo e o diferente ao vislumbrar que a
humanidade não corresponde plenamente ao seu exterior. E esse “choque”, esse atrito, leva-o
a se questionar sobre si mesmo. Tal rebaixamento de sua superioridade, antes absoluta, abre
espaços, “brechas”, onde novas relações podem se desenvolver, assim como deslocamentos.
O presente absoluto cede à possibilidade do processo. A completa exterioridade, que inibe os
textos paralelos, é colocada em jogo e desestabilizada.
Ao se questionar sobre si mesmo, suas responsabilidades e seus limites, o Surfista
Prateado está se perguntando se não pode haver um pouco de espaço, mesmo diante de seu
aparente acabamento e rígido destino, para algum movimento, alguma mudança e,
consequentemente, alguma possibilidade de liberdade.
172
173
OS SONHOS COTIDIANOS
A dificuldade de encontrar sentido no mundo onírico parece ser algo que perturbou o
homem desde muito tempo. Sonhos, de forma isolada, podem adquirir sentido. Mas os
sonhos, noite após noite, se contradizem, abordam temas extraordinários sem linha condutora
clara, diferentemente de alguns aspectos da realidade, que têm uma relação um pouco mais
cristalina entre causa e efeito. Porém, de forma geral, queremos atribuir aos sonhos, da mesma
forma que à vida, um sentido que ultrapasse as aparências efêmeras.
Se a humanidade e as diferentes culturas construíram, ao longo do tempo, variadas
formas de se relacionar com os sonhos, os distintos contextos científicos, da mesma forma,
procuraram meios de interpretar tais eventos diários, cotidianos, que apresentam uma imensa
diversidade de imagens, sensações e elementos.
Sonhos não são completos. São fragmentos de imagens, sensações e informações.
Possuem muitos personagens e nem sempre o sonhador se faz presente. A autoria dos sonhos
pode ser perturbadora exatamente por ser indefinida e fluida.
O mundo criado por Neil Gaiman para contar a história do Sandman, também
chamado Sonho, Morfeus, Oneiros ou Tecedor de Formas, possui algumas dessas
características: mobilidade, diversidade e modificações.
A princípio, Sandman foi um personagem da era de ouro dos gibis de super-heróis
(década de 1930) do universo DC, um detetive noir chamado Wesley Doods, que andava pela
noite com uma máscara e uma pistola de gás sonífero. Saía pelas ruas lutando contra o crime e
deixando os bandidos desacordados, aguardando a chegada da polícia.
Convidado a criar histórias para a DC no selo de revistas adultas Vertigo, em
1987/1988, o autor usou apenas o nome do personagem em suas criações no universo da
publicação, reorganizando uma série de elementos, a fim de propiciar a narrativa de diversas
histórias.
Sonho, de Neil Gaiman, é um dos Perpétuos, seres irmãos que seriam a representação
de certas constantes dos seres vivos: o destino, a morte, o sonho, a destruição, o desejo, o
desespero e o delírio.
Sua história foi contada em 75 edições. Ao revelar que a série teria um fim, ao
contrário do que acontece com a maioria dos gibis – que só cancelam um título por razões
comerciais ou financeiras –, o autor comentou:
(...) no número 75 acaba a história que começou no número 1. É bom que a história
termine senão acaba virando uma soap opera. As únicas histórias que realmente
importam são as que têm um fim.71
71
GAIMAN, Neil. Gaiman se dedica à alegria de contar histórias. O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno
D2, 13 abr. 1995. Entrevista concedida a Gabriel Bastos Junior.
175
Alguns títulos de Sandman são ligados entre si, num conjunto de histórias que
formam séries menores de narrativas dentro da série. A essas sequências de histórias
relacionadas dá-se o nome de arcos ou sagas, como é comum na tradição dos quadrinhos
estadunidenses. Outras edições contam histórias isoladas, episódios que não fazem parte de
narrativas maiores. Todas, de alguma forma, estão preocupadas em mostrar aspectos dos
sonhos e da imaginação. Em muitas delas, o personagem Sonho aparece bem pouco, se
levarmos em consideração que os quadrinhos deveriam falar sobre ele; afinal, quando um gibi
tem o nome de Lanterna Verde ou Quarteto Fantástico, as páginas são dominadas, de forma
absoluta, por tais personagens.
A seguir, faremos um breve resumo da história de Sonho para facilitar a posterior
análise.
As oito primeiras edições trazem o arco chamado Prelúdios e Noturnos e mostram
Sonho sendo aprisionado em 1916 por uma ordem mística inglesa. Após conseguir sua
liberdade, Sonho procura suas ferramentas – seu elmo, sua algibeira e seu rubi dos sonhos –
que lhe foram tomadas por seus captores e, posteriormente, levadas ou negociadas.
Em Sandman #9 conhecemos Morte, irmã mais velha de Sonho, com quem ele passa
um dia conversando sobre o tempo em que ficou cativo e sobre suas motivações diante da
recém-adquirida liberdade. A seguir, em Sandman #10, conhecemos, pela boca de um
narrador de uma tribo provavelmente africana, a história de uma princesa ancestral que, por
não aceitar o amor de Sonho, é condenada por ele a ficar presa 10.000 anos no Inferno.
O arco Casa de Bonecas vai do Sandman #11 ao Sandman #16 e mostra a busca de
Sonho por sonhos e pesadelos que fugiram do Sonhar, assim como sua procura por Rose
Walker, uma jovem que representa perigo para o reino dos Sonhos. Em meio a essa série,
Sandman #14 é um pequeno interlúdio, no qual vemos a amizade de Sonho com um jovem do
século XIV que não acredita na morte. É também nessa história que ocorre o primeiro
encontro entre Sonho e Shakespeare, momento em que um pacto entre eles é firmado.
Após esses relatos, foram escritas três histórias autônomas, que receberam o nome de
Terra dos Sonhos. Sandman #17 trata de Calliope, a musa das epopeias e de Homero, feita
prisioneira por um jovem escritor que a usa como inspiração para suas obras épicas. Sandman
#18 relata uma reunião de gatos ansiosos pelas palavras proféticas de uma gata que diz ser
possível aos felinos se livrarem do jugo dos humanos, pois assim lhe contou o Gato dos
Sonhos. Em Sandman #19 vemos a primeira apresentação pública, ao ar livre, nos campos da
Inglaterra, da peça Sonho de Uma Noite de Verão. O público é o povo das fadas. E em
Sandman #20 é contada uma história sobre máscaras, morte e antigos deuses egípcios.
176
A seguir, temos o arco Estação das Brumas. De Sandman #21 ao Sandman #28 é
contada a história sobre a ida de Sonho ao Inferno para libertar Nada, aquela mesma princesa
condenada por ele milhares de anos antes.
De Sandman #29 a Sandman #31 são contadas histórias isoladas, reunidas sob o
nome Espelhos Distantes. A primeira versa sobre a recuperação, durante a Revolução
Francesa, da cabeça de Orfeus, que seria filho de Sonho com a musa Calliope. A segunda,
sobre a interferência de Sonho junto ao Império Romano, sendo mensageiro da vontade de um
deus. O terceiro episódio fala de um homem que, no século XIX, se declarou imperador dos
Estados Unidos.
O arco Um Jogo de Você vai de Sandman #32 a Sandman #37. Ele narra as aventuras
oníricas de Barbie, uma jovem que é procurada por seus sonhos de infância para salvar a
Terra de um tirano chamado Cuco.
A seguir foram lançadas mais três histórias autônomas denominadas Convergências.
Sandman #38 retrata um avô que conta histórias para sua neta sobre lobos, lobisomens e
noites de caçada. Sandman #39 mostra o encontro de Sonho e Marco Polo. E no #40
conhecemos Daniel, um bebê gerado no mundo dos sonhos que sonha com os habitantes do
Sonhar – Caim, Abel e Eva – e suas conversas numa sala de estar.
O arco Vidas Breves ocupa os episódios de Sandman #41 a Sandman #49. Mostra
Sonho e sua irmã mais nova, Delírio, viajando à procura de outro de seus irmãos, chamado
Destruição, que deixou seu reino há muito tempo e parece não querer ser encontrado.
Sandman #50 se passa em Bagdá, na época das Mil e Uma Noites, e mostra um
acordo entre o califa e Sonho.
A seguir, temos o arco Fim dos Mundos. De Sandman #51 ao Sandman #56, seres
presos numa taverna por conta de uma terrível tempestade se entretêm contando histórias.
Sandman #57 a Sandman #69 mostra o arco Entes Queridos. Daniel, o menino
gerado nos sonhos, desaparece. Sua mãe, Lyta Hall, atribui seu desaparecimento à intervenção
de Sonho, que tempos antes lhe avisara que um dia viria buscar o garoto. Fora de si, ela
invoca as Fúrias, que perseguem Sonho, levando-o à morte.
De Sandman #70 a Sandman #73, no arco chamado Despertar, são apresentados os
funerais de Sonho, nos quais todos os sonhadores se fazem presentes, e os primeiros
momentos da vida de Daniel como novo senhor do reino dos sonhos.
Sandman #74 relata o encontro de Daniel com um sábio chinês exilado no deserto. E
em Sandman #75 vemos Shakespeare escrevendo sua última peça, A Tempestade,
encomendada por Sonho como parte do acordo firmado entre eles anos antes.
177
Calvino ressalta nessa passagem as inovações que a Odisseia pode ter trazido em
relação ao gênero épico tradicional da antiguidade grega. Cita o herói épico tradicional como
exemplo da nobreza entre seus contemporâneos.
Tal elemento aparece algumas vezes nos quadrinhos de super-herói estadunidenses.
Há, sim, super-heróis que são reis de países distantes, como o Pantera Negra72. Mas a maior
parte deles não tem ligação direta com altas estirpes familiares ocupando cargos de poder. Os
heróis, normalmente, possuem pais ou famílias lendárias, heroicas ou extraordinariamente
ricas. Bruce Wayne/Batman é filho de um bilionário altruísta que morreu ao defender a
família de um assalto. Kal-el/Clark Kent/Superman, cujos pais adotivos terrestres são
sitiantes, donos de uma pequena propriedade rural no estado do Kansas, é filho de fato de um
grande cientista de Krypton, chamado Jor-El. Peter Parker/Homem-Aranha descobre, já
adulto, que seus pais, mortos quando ele era muito criança, foram espiões que deram a vida
72
O Pantera Negra é um personagem da Marvel, criado em 1966 por Stan Lee e Jack Kirby.
178
É nesse aspecto que ganha relevância a figura do herói épico e da heroína épica, aqui
tomados como sujeitos épicos. Desde as primeiras manifestações do discurso épico,
esse e essa se revelaram como sujeitos em descolamento, aos quais era atribuído o
papel de circular entre os planos históricos e maravilhoso e atuar em ambos de modo
a agenciar o fato e o mito. (SILVA; RAMALHO, 2007, p. 229)
longe de casa por dez anos, desaparecido, inalcançável para os familiares e para os
ex-companheiros de armas. Para conseguir isso, deve fazê-lo sair do mundo
conhecido, entrar em outra geografia, num mundo extra-humano, num além (não por
acaso suas viagens culminam na visita aos Infernos). Para tal extrapolação dos
territórios da épica, o autor da Odisséia recorre a tradições (estas, sim, mais
arcaicas) como as peripécias de Jasão e dos argonautas. Portanto, constitui a
novidade da Odisséia ter colocado um herói épico como Ulisses às voltas “com
bruxas e gigantes, com monstros e devoradores de homens”, isto é, em situações de
um tipo de saga mais arcaico, cujas raízes devem ser buscadas “no mundo da antiga
fábula e até de primitivas concepções mágicas e xamanísticas (CALVINO, 2009, p.
51)
73
Os jogos de video game e os livros que são associados aos “épicos” geralmente tem em seus enredos
elementos fantásticos, míticos ou mágicos.
180
Sempre fui solitário, mas aqui, nas praias noturnas de sonho, a solidão flui sobre
mim em ondas que envolvem e arrastam meu espírito. Jogo areia nas águas escuras.
Os grãos queimam enquanto caem e me trazem de volta um passado distante.
Quando meu rosto era altivo e os olhos cheios de orgulho. É hora de enfrentar o
abismo. É hora de reclamar o que me pertence. (Sandman #4, p. 1. Figura 56)
Figura 56
Em Sandman #4, Sonho olha para o abismo e pensa em sua solidão e desamparo antes de descer ao
Inferno para reclamar seu elmo.
182
Já diante dos portões do Inferno, que lembram os de cemitérios, só que com corpos e
gosma pendurados nas grades, Sonho encontra o demônio Etrigan, um personagem do
universo DC que é relatado como tendo sido o demônio do mago Merlin. É curiosa a
introdução desse personagem nas portas do Inferno, num momento, até certo ponto,
cerimonioso, considerando-se as forças envolvidas. O mundo dos super-heróis aparece
repentinamente, quebrando certo aspecto mais compenetrado da jornada.
É interessante notarmos também que Etrigan não aparece exatamente como um
personagem do universo dos super-heróis. Ele fala em versos, como é o padrão dos demônios
“superiores” do Universo DC, e segue ao cerimonial para receber o rei dos Sonhos. Enquanto
caminham pelo Inferno, Etrigan comenta sobre a natureza do lugar e sobre as mudanças que
ocorreram por ali desde a última vez que Sonho os visitou.
Um dos locais pelos quais eles passam é o Bosque dos Suicidas, relatado por Dante
na Divina Comédia. Tal menção recria a tensão do grandioso, como acontece novamente
quando Sonho, Lúcifer e os outros reis do Inferno (que é governado por um triunvirato),
sobem ao alto de uma colina (Figura 57) para avistar o demônio que está em posse do elmo.
Ao ser procurado por Sonho, o demônio – Choronzon – afirma que adquiriu o elmo
de acordo com as regras dos demônios. Então, um desafio é lançado para se estabelecer com
quem deve ficar o elmo.
No mundo dos super-heróis, isso é pouco comum. Em vez de um acordo, haveria
algum tipo de ação, provavelmente uma batalha física, para resolver a contenda.
O desafio escolhido por Choronzon é a realidade e o lugar, o “Clube do Inferno”.
No inferno, os jogos de barganha e o humor andam juntos com a crueldade. Surge
um clube com um palco, com versões grotescas de demônios se divertindo num bar como se
fosse um sábado à noite. As vestimentas mudam. Em vez das roupas em forma de túnica,
Sonho agora está vestido com um terno negro e chapéu.
O desafio em questão, cujo palco é a realidade, se dá com os dois escolhendo formas
– um diz ser um lobo, o outro um caçador, outro uma mosca que derruba o caçador de seu
cavalo, o outro uma aranha que captura a mosca e assim por diante até o momento final,
quando Sonho vence o desafio e recupera o seu elmo.
A grandiosidade da batalha no inferno pelo elmo de Sonho é a toda hora questionada
por outros elementos que insistem em procurar um lugar na narrativa. Certo contexto clássico
ligado ao inferno, evidenciado na narrativa com a citação de Dante, cede espaço a outros
elementos, como o desafio numa espécie de cabaré demoníaco. Além disso, podemos ver que
183
os desenhos (Figura 58) rompem as barreiras dos quadros, os personagens explodem (Figura
58, canto superior esquerdo) sobre outros espaços, quebrando delimitações e invadindo
imagens de outras figuras, compondo exageros junto ao grotesco de um Inferno colorido e
diversificado.
Tal visita de Sonho aos infernos possui aspectos grandiosos, mas também alguns
elementos épicos traduzidos para formas maleáveis, ambíguas, que parodiam a gravidade do
momento. O clássico, o moderno, o universo dos super-heróis, a figura mitológica de Lúcifer,
o enfrentamento através do jogo e as imagens exageradas são articulados para narrar a história
de como Sonho recuperou seu elmo das regiões infernais.
Figura 57
Sonho e Lúcifer avistam, do alto, os demônios do Inferno em busca daquele que se apoderou do
elmo. O grotesco domina as formas demoníacas.
184
Figura 58
Sonho e o demônio Choronzon se preparam para duelar no “Clube do Inferno” pela posse do elmo.
Figuras grotescas vestidas a caráter para o evento podem ser vistas nas mesas. Sonho também está
vestindo roupas de “inferninhos” dos anos de 1920, 1930.
185
Ao final dessa história, Lúcifer jura destruir Sonho, que desdenhou de seu poder,
dizendo, diante de todos os demônios, que o Inferno só tem sentido porque seus habitantes
sonham com o Céu – outra passagem apropriada da Divina Comédia de Dante.
A vingança de Lúcifer terá lugar em edições posteriores. No arco Estação das
Brumas, a história começa com uma reunião de família convocada por Destino (Figura 59), o
mais velho dos irmãos, um homem vestindo uma túnica, corpo coberto por um capuz, cego,
acorrentado a um livro no qual tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá está escrito. Ele o
faz porque estava escrito, em seu livro, que tal evento deveria acontecer, pois assim lhe fora
avisado pelas Moiras, as senhoras do destino às quais, segundo a mitologia grega, até os
deuses estão submetidos.
Nessa reunião, estão presentes seis dos sete irmãos Perpétuos: o próprio Destino,
Morte, Sonho, Desejo, Desespero e Delírio. Apenas está ausente o irmão pródigo, Destruição,
cujo paradeiro é desconhecido pelos presentes, os quais apenas sabem que ele deixou seu
reino e suas responsabilidades há séculos.
Desejo, que é homem e mulher ao mesmo tempo, e qualquer outra coisa também,
porque Desejo é “tudo o que qualquer um deseja”, provoca Sonho, que parece com ele ter
certas querelas não resolvidas, trazendo à tona, durante o jantar, o nome da princesa Nada, a
mortal condenada milênios antes ao Inferno por Sonho, por não ter aceitado a vida eterna de
deusa ao lado dele, alegando que mortais e imortais não deveriam se relacionar, sob pena de
grandes tragédias para a humanidade.
Humilhado e constrangido, Sonho se lembra da história e aceita, após alguma
hesitação, que pode ter errado ao enviá-la para o reino de Lúcifer. E decide que a única coisa
que pode fazer, diante da constatação, é resgatá-la de sua prisão. Para isso, terá que ir
novamente ao Inferno e enfrentar Lúcifer, que lhe jurou vingança, como citamos acima.
De forma dramática, Sonho convoca no Sonhar uma audiência, ocasião em que
explica o que vai fazer e avisa que muita coisa pode dar errado, como sua prisão ou destruição
no Inferno. Dá ordens, faz recomendações, visita um amigo humano em sonhos, com quem
toma um cálice de vinho. Envia, para avisar Lúcifer de sua chegada, Caim, que vive em seu
reino junto ao irmão Abel. Caim tem a marca do Criador e ninguém pode lhe fazer mal.
Lúcifer, contudo, ignora a marca de Caim e o tortura, mandando que avise seu mestre de que
“está ansioso” por sua chegada. O segundo título desse arco termina com Sonho se dirigindo
ao Inferno com grande dramaticidade (Figura 60).
186
Figura 59
Na primeira edição de Estação das Brumas, os Perpétuos se reúnem nos jardins de Destino. No painel 2,
Destino; no 3, Morte; no 4, Sonho; no 5, Desejo; no 6, Desespero e nos painéis 7, 8 e 9, Delírio.
187
Figura 60
Com todas as pompas, Sonho se prepara para ir novamente ao Inferno durante o capítulo 1 de Estação das
Brumas. Usa seu elmo, que faz as vezes de estandarte e coroa. Lucien, seu bibliotecário, o observa. Caim está
caído ao seu lado quando o vemos atravessar um portal. Antes de partir, Sonho fala sobre caminhos e escolhas:
“Fazemos o que devemos... Algumas vezes podemos escolher a trilha que seguimos. Algumas vezes nossas
escolhas são feitas por nós. E, algumas vezes, não temos qualquer escolha”.
188
Ao chegar ao Inferno (Figuras 61 e 62) trajando suas vestes reais e seu elmo, após
descer por aquele mesmo abismo, encontra um lugar abandonado, vazio, onde entra sem
resistência alguma e não avista nenhuma alma atormentada, demônio ou prisioneiro.
Desconcertado pela ausência, flutua pelos céus alaranjados, chamando por Lúcifer, Estrela da
Manhã, que finalmente aparece.
Os acontecimentos que se seguem, vão, aos poucos, desconstruindo a dramaticidade
que se apresentava até então. A grandiosidade dos cenários continua, mas agora são vastos
vazios desabitados e desolados, onde a ameaça é a ausência e não a proximidade de um
embate, dando certo ar de broma à preparação anterior. O próprio Lúcifer confirma com suas
falas:
Sonho - Lúcifer. Onde está ela? O que você fez? Onde a escondeu?
Lúcifer - Olá, Sonho. Tire esse elmo idiota e vamos conversar.
Sonho - Não serei enganado por você, Lúcifer Estrela da Manhã.
Lúcifer - Ora, doce Morpheus, está com medo?
Sonho - Sim.
Lúcifer - Muito bem. Então prometo que enquanto estivermos dentro do Inferno,
não farei nada para prejudicá-lo. Pronto. Agora tire seu elmo. E eu
contarei o que aconteceu à sua amada... E aos outros. Assim melhorou
muito. Você ainda quer saber o que está acontecendo?
Sonho - Sim.
Lúcifer - Não é óbvio, Rei dos Sonhos? Eu me demiti.
(Sandman #23, p. 7. Figura 63)
A gravidade de Morpheus, com seu tom ameaçador, contrasta com o tom de galhofa
de Lúcifer, que insiste no aspecto ridículo do elmo de Sonho e, procurando explicar o que se
passa no Inferno, responde que se demitiu de seu destino eterno e imutável. Sonho fica
confuso e perdido (Figura 64), sem saber como agir diante de situação meio jocosa e
inesperada.
Lúcifer o convida para acompanhá-lo enquanto termina de esvaziar o Inferno, que
deve ser fechado com sua partida. Eles sobrevoam paisagens grandiosas até que chegam à
última alma penitente.
Lúcifer anuncia sua liberdade, manda que se vá com os outros. Mas esse homem,
acorrentado a um rochedo, com a pele completamente rasgada, se nega a ir. E justifica seu
tormento e a razão de não poder deixar o Inferno.
Breschau - Sou Breschau, da Livônia. Arranquei as línguas dos que falavam contra
mim e matei os bebês nos ventres das mulheres de meus inimigos, para
que não se tornassem guerreiros contra mim. Tomei minha mãe à força
e estrangulei minha irmã quando ela rejeitou meus avanços. À noite,
meu nome passou a ser sussurrado pelas mães para fazer com que seus
189
Figura 61
Sonho chega ao Inferno, no segundo capítulo de Estação das Brumas. A paisagem é vasta e grandiosa,
lembrando algumas cenas que pudemos ver nos gibis de super-heróis. Porém, os elementos da construção do
Inferno são notavelmente mais proliferantes e expansivos.
190
Figura 62
Sonho, ao encontrar um Inferno vazio, flutua na imensidão desolada, gritando por Lúcifer.
191
Figura 63
Lúcifer aparece, destrata Sonho e vê seu rosto amedrontado por baixo do elmo. Notemos os
suores no quadro 7 e os sorrisos e gracejos do anjo caído.
192
Figura 64
Ao receber a notícia de que Lúcifer está se “demitindo” do Inferno, Sonho mostra total desconcerto. O
anjo caído o convida para caminhar com ele enquanto acaba algumas tarefas. Vencida a condição de
oposição, ambos tocam o chão, no último painel. Não são mais monarcas em guerra com suas insígnias
e estigmas – rebaixados, podem estabelecer algum diálogo.
193
si mesmo, ou seja, de rei dos Sonhos. Contudo, pronto para um embate, vestido em suas
armas, encontra um Lúcifer nu, sorridente, que denuncia o ridículo daquele elmo feito a partir
dos ossos de um deus morto e há muito esquecido. Diz a Sonho para tirar o “elmo idiota”. Ele
quer conversar. No contexto clássico de descida aos infernos, o elmo é profundamente
cabível, relevante e efetivo como símbolo. Mas a familiaridade com que Lúcifer se dirige a
Sonho e a forma contemporânea de falar, fora do tempo clássico e mítico, tornam o elmo, a
cerimônia e a pompa fora de lugar, e, de repente, vemos que, realmente, o elmo está ridículo
naquela situação. E, após retirá-lo, vemos o rosto confuso de Sonho, o suor escorrendo por
sua face, por medo e tensão, totalmente fora de lugar em relação à imagem clássica de
realeza, poder e heroísmo míticos. Lúcifer, especialista em quedas desde que foi expulso do
Paraíso, esboça um sorriso irônico na gravidade esperada para aquele momento.
O que mais impressiona Sonho talvez não seja a decisão inusitada de Lúcifer em
abandonar seu reino. Seu estranhamento pode vir do fato de o anjo caído decidir que pode
mudar de vida e seguir em frente em seu propósito. Após bilhões de anos, acabou por ficar
entediado de sua prática e está enfastiado de cumprir o papel que lhe foi atribuído. E, apesar
de aproveitar o momento para se vingar de Sonho, dando-lhe a chave do Inferno (o que lhe
trará, sem dúvida, alguns problemas), não houve um grande evento que o tenha levado à
mudança. Parece ter sido mera questão de observação, tempo, alguma reflexão e
oportunidade.
Se alguns elementos comuns aos épicos são apropriados e traduzidos em Sandman,
podemos notar que enquanto alguns são modificados para dar novas formas de elevação e
nobreza à história de Sonho, o que efetivamente acontece, há outros que primam pelos
rebaixamentos e deslocamentos que subvertem o sentido tradicional e a expectativa média,
criando textos paralelos, o que por si só se contrapõe ao estilo predominante na série cultural
de quadrinhos de super-heróis que, como vimos, possuem certo acabamento e exterioridade
em comum com heróis de gêneros narrativos clássicos. Veremos mais adiante que a mudança
– desconhecida entre os épicos super-heroicos – é um tema recorrente em Sandman, de tal
forma que parece ser um ponto de referência de toda a história, articulada pelo autor ao longo
dos 75 episódios do gibi.
A revista #27 nos traz outras indicações desse diálogo com os gêneros clássicos,
sobretudo com o épico.
O número traz uma história que não faz parte dos arcos, chamada Calliope,
ambientada no tempo presente, ou seja, após a libertação de Sonho da prisão física e mística
em que ficou por décadas.
195
Não sei. Voltar às mentes da humanidade, eu suspeito. Meu tempo acabou. E esta
era do mundo não é minha era. (Sandman #17, p. 23)
Ao ser libertada, a musa diz que não faz parte “desse tempo”. Provavelmente está
certa, se pensarmos que o épico é o gênero do passado absoluto, apartado do cotidiano do
tempo presente (BAKHTIN, 1998, p. 412). Mas, como ela frisa, voltará às mentes da
humanidade, talvez como o eco de tempos muito distantes a serem atualizados e traduzidos
em novas formas de criação artística.
O estilo de vida do famoso “Ric” Madoc não deixa de ser “ridículo”, com seu
glamour de piadas de premiação do Oscar, com sua caracterização como um escritor “da
moda”, um tanto quanto decadente e presunçoso por ser absolutamente contemporâneo – sem
passado e, consequentemente, talvez sem futuro –, de forma semelhante ao riso de Lúcifer
diante de Sonho flutuando no Inferno com vestes esvoaçantes e seu elmo ancestral. Tais
leituras, porém, só são possíveis ao estabelecermos relações de atrito com outros textos que
possam promover uma desestabilização da estrutura já configurada, tal qual acontece no
relato da carreira épica de Madoc e sua posterior “queda” pública (Figuras 65 e 66) devido a
um fluxo de ideias novas enviadas diretamente do mundo dos sonhos, por Morpheus, para
dentro de sua cabeça. No segundo painel da Figura 66 (canto superior direito) tal quebra fica
evidenciada ao ser mostrado o rosto do escritor com traços fortes e angulados, com um efeito
de fragmentação, como um espelho partido, enquanto as ideias surgem de forma desenfreada.
Quanto mais o modelo autodescritivo atua tentando eliminar os textos paralelos e
criando uma aura de seriedade e conformidade ao redor do objeto, maior é a possibilidade e a
intensidade da paródia74. Em A Queda, de Albert Camus, vemos que o ridículo não está na
pequenez, no egoísmo ou nas tolas vaidades do narrador – que interessam pouco, por serem
bastante familiares à humanidade – mas no fato do personagem-narrador haver acreditado por
tanto tempo, com convicção absoluta e seriedade inabalável, de que era virtuoso, admirado,
bem-sucedido, repleto de amigos, bom e generoso – exemplo para toda a gente.
Eu havia sonhado, isso agora ficava claro, em ser um homem completo, que se
fizesse respeitar tanto na sua pessoa como no seu ofício. Meio Cerdan, meio de
Gaulle, se prefere. Em suma, queria dominar em todas as coisas. Eis o motivo pelo
qual eu me dava certos ares superiores e recorria a todos os requintes para mostrar
antes a minha habilidade física que meus dotes intelectuais. Mas, depois de apanhar
em público sem reagir, já não me era possível acariciar esta bela imagem de mim
mesmo. Se eu fosse o amigo da verdade e da inteligência que pretendia ser, que me
importaria esta aventura já esquecida por aqueles que a tinham presenciado?
(CAMUS, [s.d.], p. 44-45)
74
“Textos que na obra estabelecem um diálogo, um espetáculo teatral cujos portadores de textos – os actantes de
que fala Greimas – são outros textos, daí o caráter polifônico, estereofônico, diríamos, incorporando um
neologismo que certamente teria agradado a Bakhtin, da obra barroca, de todo código barroco, literário ou não”
(SARDUY, 1979, p. 69).
197
Figura 65
Em “Calliope”, o escritor Ric Madoc tem uma vida perfeita com suas histórias épicas, seus lançamentos
disputados, suas relações com a alta sociedade inglesa e com os estúdios de Hollywood, suas palestras
espirituosas nas universidades, suas mansões, suas entrevistas para a televisão, seus best-sellers, suas peças
teatrais. Ele é, de fato, “a loucura das multidões” – nome de sua mais nova peça, como vemos no último painel à
direita.
198
Figura 66
Após se recusar a libertar Calliope, Ric Madoc é castigado por Sonho, recebendo o que ele mais
deseja: ideias em abundância. Ocorre, assim, a queda pública do escritor de sucesso. Sua
fragmentação pode ser vista no painel 2. A perfeição de sua existência “inspirada” se parte.
199
segmento específico e podemos quase sempre procurar motivos em suas ações e posturas que
ele próprio, não raramente, desconhece – coisas que os super-heróis admitem bem pouco,
tendo posturas mais retas, conscientes, coerentes e unívocas. Sob esse aspecto, os personagens
de Sandman, sobretudo Sonho, não são exteriorizados como os super-heróis, como também
não possuem um acabamento sólido, pois, entre outras coisas, é evidente que eles não se
conhecem. E tampouco são felizes, no sentido melodramático do termo.
Quanto ao protagonismo, há bastante espaço para outros personagens. Em muitas
histórias, como em Calliope, Sonho aparece pouco – sua presença não ultrapassa quatro das
vinte e três páginas da história. Veremos coisas semelhantes em outras edições: no arco de
histórias Um Jogo de Você, de seis edições – cerca de 120 páginas – Sonho aparece
brevemente em duas páginas no primeiro capítulo do arco, em nove páginas do quinto
capítulo e em sete da última parte, totalizando dezoito páginas com sua participação. Tal
protagonismo ausente acontece em jogo constante com outros protagonismos ocasionais,
procedendo à inclusão de vozes que, de outra forma, seriam meras participações de suporte à
história do rei dos Sonhos, modelizadas e normatizadas por sua presença solar que faria
orbitar os outros elementos. Lembremos que é bastante raro um super-herói não ser o
protagonista das histórias que acontecem em sua própria série. Tal diferença não é gratuita,
mas faz parte de uma estratégia de criação de espaços: quanto menos Sonho estiver presente,
maior a variedade de histórias que poderão ser contadas. Ainda assim, ele nunca está
realmente ausente, já que também é conhecido como o príncipe das histórias. Pensar apenas
em termos de presença/ausência e protagonismo/anonimato não parece muito adequado. O
que podemos considerar como certo é que são contadas diversas histórias ao longo das 75
edições de Sandman. E algumas delas envolvem Sonho mais ou menos diretamente. Outras o
mencionam apenas de relance em dois ou três painéis de uma página qualquer – como um
sonho breve, difícil de ser recordado ao despertar.
caminho um pouco diferente, estabelecendo relações diversas daquelas observadas nos textos
sobre super-heróis.
A história começa com Sonho sendo feito prisioneiro por uma ordem ocultista
inglesa, que pretendia, na verdade, capturar sua irmã mais velha, a Morte. Tomam suas
ferramentas – o elmo, o rubi e a algibeira das areias. Durante setenta anos ele fica preso numa
redoma de vidro e cercado por símbolos antigos que impedem qualquer tipo de ação. Fica
completamente isolado do mundo. Não responde a uma única pergunta que lhe fazem. Assiste
ao envelhecimento de seus captores, à sucessão das gerações, à mudança das roupas. E apenas
observa, calado, os homens que o vigiam e tomam estimulantes para prevenir o sono e a
possibilidade de sonhar. Seu isolamento é completo (Figura 67).
Num momento de descuido, escapa de seus captores e volta a seu reino, o Sonhar,
não sem alguma dificuldade. Ao chegar, é recebido por Caim e Abel, habitantes de seu mundo
e personagens da primeira história – sobre o primeiro assassinato. Vemos que ambos ocupam
seu tempo em repetir tal ato, dia após dia, todas as noites, sendo que Abel sempre revive,
mantendo a inocência e a confiança no irmão, que maquina formas diferentes e mais cruéis de
matá-lo. Ambos ajudam Sonho a se fortalecer para chegar ao seu castelo, no coração do
Sonhar, mas avisam-no de que muita coisa mudou desde sua partida, décadas antes. Seu
castelo se encontra destruído e os habitantes do Sonhar, dispersos. Ainda fraco, Sonho
começa uma jornada em busca de seus instrumentos roubados.
No Inferno, para onde segue em busca do elmo, é recebido pelo demônio Etrigan,
com quem conversa:
Após recuperar a algibeira e o elmo, ele vai em busca do rubi, que diz conter muito
de seu poder. Para recuperá-lo, enfrenta um ser humano, um supervilão do universo DC que
controla os sonhos e os pesadelos. Neil Gaiman se apropriou desse personagem, o Senhor
Destino, cujo poder é atribuído ao fato de ele haver tomado para si o Rubi dos Sonhos tempos
antes. Encontram-se e, após batalharem entre imagens oníricas confusas, o vilão destrói o
rubi. Sonho recupera o poder que estava contido na pedra e, assim, assume total controle de
seu reino e dos sonhos novamente. Diz:
Fazia tanto tempo... Eu tinha esquecido... Eu tinha esquecido quanto poder coloquei
nessa jóia. Quanto me foi negado... (Sandman #7, p. 21)
202
Figura 67
No número seguinte, enquanto conversa com sua irmã Morte, temos outra afirmação
de Sonho sobre o rubi:
E, acreditando que esmagava minha vida, ele destruiu o rubi. Ele destruiu. Isso me
libertou. Mais do que isso... Libertou tudo de mim que havia na pedra. Recuperei
tudo. (Sandman #8, p. 8)
Tal fala de Sonho no oitavo título da série, chamado O som de suas asas, pode ser
mais significativa do que parece. Não parece se tratar apenas de um relato sobre uma vitória
difícil.
Essa história, a de #8, é a primeira após o arco Prelúdios e Noturnos, que relatou a
prisão, a libertação e a busca inicial de Sonho. Alguns críticos consideram a história dessa
edição a primeira “realmente” autoral, crendo que as anteriores, do citado arco, foram como
uma primeira experiência de apresentação do personagem e avaliação de alguns caminhos que
a narrativa poderia explorar. O próprio Gaiman confirma tal avaliação:
Só queria fazer uma história em que Sandman e Morte vagassem por Nova York, e
nada acontecesse... Eu não sei. Foi provavelmente a primeira história de “Neil
Gaiman”. As outras sete, você sabe, elas eram bastante competentes, mas você olha
para ela e vê de onde elas vieram. Você pode me ver fazendo coisas como Alan
Moore, você pode me ver fazendo várias outras coisas. Eu acho que o episódio #8
foi o primeiro episódio que começou a soar como eu mesmo.75
Nesse número, Sonho está alimentando pombos, sentado numa praça, de cabeça
baixa, alheio ao mundo ao seu redor. Garotos jogam bola próximo a ele. Uma moça jovem se
aproxima e se senta ao lado dele. Ela veste roupas pretas e tem a pele pálida como a de
Sonho. É sua irmã Morte, que puxa papo com ele, sem muito sucesso, falando sobre Mary
Poppins e outras amenidades. Frente ao silêncio do irmão mais novo, ela vai direto ao ponto e
pergunta qual o problema, pois é óbvio que há algo errado e ela quer saber o que se passa. Diz
não ser do feitio do irmão tal comportamento. Sonho começa então a se explicar, parecendo
mais estar divagando sobre seus próprios pensamentos do que estabelecendo um diálogo com
a irmã.
Sonho - Eu não sei o que está errado, mas você tem razão. Há algum problema,
sim. Quando me capturaram e me aprisionaram naquela caixa, eu só tinha
75
Trecho da entrevista concedida por Neil Gaiman a J. C. Vaughn em 1996, publicada na revista Fan. Tradução
livre. No original: “Just doing a story in which the Sandman and Death wandered around New York, and nothing
happened... I don’t know. It was probably the first “Neil Gaiman” story. The other seven, you know, they’re very
competent, but you can look at them and you can see where they came from. You can see me doing Alan Moore,
you can see me doing various other things. I think issue eight was the first issue that started to sound like me”
(GAIMAN apud MURPHY, 2006, p. 18).
204
Após esses esclarecimentos, Morte o repreende por não haver pedido ajuda e por
estar ali, sentado, com “auto-piedade, porque seu joguinho acabou e você não tem culhões pra
achar outro!” (Sandman #8, p. 9).
Ela então o convida para caminhar, pois tem trabalho a fazer e não pode ficar ali
parada. Ambos visitam vários lugares, presenciando a morte de diversas pessoas. Sonho pensa
em sua irmã, no medo que a humanidade sente dela e como sua chegada pode ser, na verdade,
uma “dádiva”. Sonho acaba a história feliz, após haver concluído que:
Minha irmã tem uma missão a cumprir, assim como eu. Os Perpétuos têm
responsabilidades. (Sandman #8, p. 20)
Ele, após sua prisão e libertação, a busca por seus objetos, a destruição do rubi dos
sonhos, uma ferramenta que lhe privava de seu poder e que havia se tornado talvez um tipo de
prisão e de limitação, expressa melancolia e ausência de motivação. O encontro com sua irmã,
a Morte, a qual enaltece, devolve-lhe um sentido: assumir suas responsabilidades como
regente dos sonhos, tal qual parece sempre ter feito antes de seu aprisionamento.
Porém, na citada conversa com o demônio em sua ida ao Inferno, quando nota que a
dimensão de Lúcifer mudou, Etrigan sugere que Sonho também pode ter mudado.
Se um dos pontos para a permanência dos super-heróis é a ausência de
questionamentos sobre si e sobre o mundo, ou seja, uma ideia de acabamento, ao se perguntar
sobre si mesmo Sonho abre o espaço para o movimento, para a possibilidade de mudança76.
Ainda assim, é sugerido que ele deve se centrar em suas responsabilidades, em
realizar as tarefas que parece sempre ter feito.
76
Mudança pode ser entendida, de forma geral, como desorganização/reorganização de determinado sistema,
através da variação dos fluxos de informação e de sentido. Segundo Lotman (1994), os textos culturais sofrem
alterações ao estabelecerem relações com textos e códigos diversos – quanto maiores forem as diferenças e a
abertura de tais textos, maior será a probabilidade de modificações e geração de novos sentidos –; Morin (1998)
atribui às variações e interações entre as brechas e rupturas nos imprintings (determinismos da cultura) e ao
desenvolvimento de desvios (efervescência dialógica da cultura, ruídos, acaso) a possibilidade de mudanças
culturais.
205
As referências sobre mudança e permanência, sobre tal jogo de forças, tal atrito de
tendências, assim como a discussão sobre as possibilidades de que as coisas se mantenham ou
mudem, aparecem várias vezes no decorrer das edições de Sandman.
Os símbolos de Sonho desaparecem cedo na série. O rubi dos sonhos é destruído no
primeiro arco. O elmo, após o mencionado encontro com Lúcifer no terceiro arco, Estação
das Brumas, praticamente desaparece, surgindo de forma breve em um único episódio. O
mesmo se passa com a algibeira. É importante lembrar que, no caso dos super-heróis, eles são
praticamente inseparáveis de seus símbolos: armas características, uniformes, ideários, etc.
Não é exagerado dizer que, sem eles, não há heróis.
Quando liberta Calliope de seu cativeiro, esta lhe diz:
Você mudou, Oneiros. Nos velhos tempos, você me deixaria lá, apodrecendo para
sempre, sem mexer um fio de cabelo. (Sandman #17, p. 23)
Na história, ele convenceu o gênio a voltar à garrafa. Mas o gênio era um tolo,
orgulhoso e solitário. Não sou nenhuma dessas coisas. (Sandman #50, p. 22)
Mesmo que deseje acreditar nisso, sabemos que Sonho é solitário e profundamente
orgulhoso, além de tolo. Por vaidade e orgulho ferido, Sonho condena Nada ao Inferno e
ignora o sofrimento de seu filho. Também o vemos desconcertado em vários momentos. Em
Sandman #16, confuso com certos acontecimentos, diz a uma mulher que não compreende o
que está ocorrendo, ao que ela responde:
Claro que não. Você não é muito esperto, mas eu não deveria incomodá-lo com isso.
(Sandman #16, p. 13)
206
Essa não coincidência de discursos, a variação entre as formas altas que Sonho
procura manter e as formas baixas denunciadas a todo momento pela narrativa, por seus atos e
pela relação com outros personagens, promovem espaços de questionamento, deslocamento e
possíveis alterações. Tais diferenças geram movimentos de sentido – de formas e significados,
aceitando a contradição e o conflito como integrantes do sistema, e não como elementos
antagônicos a serem excluídos das relações. Lembremos que, nas narrativas de super-heróis,
são os supervilões os representantes de tais elementos “instáveis” e, dessa forma, representam
também ameaça à ordem, à permanência e à estabilidade. Logo, a variabilidade, a diferença e
o incompleto como componentes maléficos classicamente ligados ao irracional e à barbárie
(que não podem corresponder ao princípio de identidade) são refugos e ruídos da civilização,
da cultura e da sociedade que devem ser evitados, rechaçados ou destruídos – quanto maior a
ameaça promovida pelo supervilão, maiores as medidas de contenção que devem ser
realizadas pelo super-herói.
No começo do século XVII, Sonho tem um último encontro com Shakespeare. Essa
história é contada no último número da série. Sonho, em determinada ocasião, fez uma
espécie de pacto com o escritor. Ele daria vida a histórias que seriam lembradas “por toda
uma era” e, em troca, Shakespeare deveria escrever duas peças para ele. Um delas teria sido
Sonho de uma noite de verão, escrita como homenagem ao povo das fadas, que decidira
deixar nossa dimensão. A segunda e última, A tempestade.
Essa peça é considerada como a última escrita por William Shakespeare e foi
encenada pela primeira vez por volta de 1611. Conta a história do mago Próspero, duque de
Milão desterrado, e de sua filha Miranda, ambos exilados numa ilha desabitada. Por meio de
sua magia e com a ajuda de um espírito dos ares, chamado Ariel, Próspero provoca o
naufrágio de um navio, trazendo os viajantes à sua ilha. Entre eles estão seus inimigos,
responsáveis pelo seu desterro.
Vemos Shakespeare impaciente, cansado, ansioso por acabar a peça. Deseja
“aposentar a pena”. Sair de cena. É uma história em que nada importante parece acontecer.
Vemos o dramaturgo escrevendo, conversando com a família, ouvindo queixas da mulher e da
filha, caminhando pela vida com algum amigo, falando de peças passadas, dos tempos de
Londres e de apresentações para a corte.
Shakespeare, no final de sua vida, parece se perguntar se teve uma vida ou se viveu
para as palavras e para as histórias. Sabe que fez um pacto com algum ser misterioso para que
tivesse como escrever grandes histórias, mas não sabe quem é esse ser, se um demônio ou
outro qualquer. Ouve sua filha falar de suas ausências constantes, sua mulher tratá-lo como
207
Quando Shakespeare termina a peça, eles se encontram novamente nos sonhos, por
razão do término do pacto. Já que a segunda peça prometida a Sonho está pronta, eles se
sentam para tomar vinho. E conversam:
Shakespeare - Então, por que esta peça? É algo muito tópico. Eu me inspirei no
naufrágio do Sea-Venture, nas Bermudas, ano passado. A história é
apenas um conto de fadas como os que os pais contam para os
filhos. Há muito de mim nela. Um pouco de Judith. Coisas que vi,
coisas que pensei. Roubei uma fala de um dos ensaios de
Montaigne. E encerrei com um final feliz, direto e barato. Por que
não quis uma tragédia? Algo grandioso, algo sombrio, a história de
um herói nobre com uma deficiência trágica...
Sonho - Eu queria um conto de finais graciosos. Queria uma peça sobre um
Rei que submerge seus livros, quebra seu cajado e deixa seu reino.
Sobre um mago que se torna um homem. Sobre um homem que
volta suas costas para a magia.
Mas esta magia rosca eu aqui renuncio... Quebrarei meu cajado e
enterrá-lo-ei muitas braças debaixo da terra; e em profundezas
maiores do que alcança a sonda de medição, eu mergulharei meu
livro...
Shakespeare - Mas... Por quê?
Sonho - Isto não lhe diz respeito, Will.
Shakespeare - Não me diz respeito? Eu lhe dei vinte anos, escrevi suas peças. E
ainda que tenha me “aberto a porta”, fiz minha parte. Eu redigi cada
palavra e fiz os atores falarem. Concedi a suas histórias as formas
com que serão lembradas. Eu fiz por merecer uma resposta à minha
questão. Por quê?
Sonho - Porque eu jamais deixarei minha ilha.
Shakespeare - O senhor vive numa ilha?
Sonho - Eu sou... A meu modo... Uma ilha...
Shakespeare - Mas isso pode mudar. Todo homem pode mudar.
Sonho - Eu não sou um homem. E eu não mudo. Eu lhe perguntei se você se
via refletido na sua história.
Shakespeare - Sim.
Sonho - Eu não. Eu não posso. Sou o Príncipe das Histórias, Will; mas não
tenho uma história própria. E jamais terei.
(Sandman #75, p. 34-38. Figura 68)
208
Figura 68
Sonho não desejou a história de um herói, ainda que trágico, talvez como Hamlet,
desajustado em seu próprio destino. Quis algo diferente – a história de um rei isolado numa
ilha, dominando seres de magia, e que, um dia, consegue dar as costas para tais coisas e partir,
buscando ter uma vida diferente.
Essa história com Shakespeare acontece ao final da série. Já conhecemos o final da
história de Sonho. Incapaz de mudar tanto quanto gostaria, ou deveria, ele morre. Em seu
funeral, Lucien, o bibliotecário do Sonhar, conversando com o corvo Matthew, pondera:
Lucien - Às vezes, talvez uma pessoa deva mudar ou morrer. E, no fim, houve talvez
limites de quanto ele poderia se deixar mudar.
(Sandman #71, p. 19)
Durante a leitura de Sandman, vemos que Sonho muda consideravelmente após sua
prisão. Alguns personagens comentam suas mudanças, como já citamos aqui. Curiosamente, é
a busca por seu irmão pródigo, que se escondeu de toda a família após deixar seu reino e suas
responsabilidades, que desencadeia a série de eventos que culminarão na morte de Sonho.
Destruição é mostrado em alguma ilha grega ou em alguma metrópole acompanhado
por um cão falante. Passa todos os seus dias tentando pintar, esculpir, escrever, etc. Tenta
criar algo belo, ou seja, que dure e permaneça. O cão, contudo, não parece acreditar nos
talentos do dono, sempre fazendo críticas severas a seu desempenho criativo.
Agente da mudança, Destruição, cansado de suas responsabilidades, deixou seu
reino. Queria fazer algo diferente de destruir as coisas para que novos elementos pudessem
surgir. Se a destruição, nesse contexto, existe para que possam ocorrer mudanças, Destruição
mudou para que as coisas pudessem permanecer.
Eu gosto das estrelas. Acho que é a ilusão da perpetuidade. Quer dizer, elas estão
sempre se queimando, piscando e desaparecendo. Mas, daqui, eu posso fingir...
Posso fingir que as coisas duram... Posso fingir que as vidas duram mais do que
momentos. Deuses vêm e vão. Mortais lampejam, reluzem e se apagam. Mundos
não duram, estrelas e galáxias são coisas transitórias e fugidias que piscam como
vaga-lumes e se desfazem em pó e frieza. Mas eu posso fingir. (Sandman #48, p. 14-
15)
sangue). Com isso, é questão de tempo até que as três mulheres cheguem a ele e acabem com
sua existência.
Tal evento ocorre no arco seguinte, Entes Queridos, que se encerra mostrando a
morte de Sonho, que é levado por sua irmã mais velha, Morte (Figura 69).
Sonho - Desde que matei meu filho... O Sonhar não tem sido o mesmo... ou talvez
eu já não era mais o mesmo. Eu ainda tinha minhas obrigações... Mas até
mesmo a liberdade do Sonhar pode se tornar uma prisão para mim, minha
irmã.
Morte - Destruição simplesmente partiu, pegou seu símbolo, disse que não era
mais responsável pelo reino da Destruição, que não era mais do seu
pecúlio... E desapareceu no sempre. Você podia ter feito isso.
Sonho - Não. Eu não podia.
Morte - Não. Você não podia. É verdade.
Após sua morte, um novo aspecto de Sonho surge. Também se chama Sonho, mas
não usa os outros nomes pelos quais o antigo era chamado – Morpheus, Tecedor de Formas,
etc. Ao invés das roupas negras e do ar introvertido, parece mais atencioso com aqueles que
estão próximos, usa vestes brancas, usa uma esmeralda, tal qual o antigo Sonho possuía o rubi
dos sonhos, no começo da série. Sabe que é “mais velho que as estrelas”, mas que, ao mesmo
tempo, é muito recente, acaba de surgir e tem muito a aprender. Parece mais jovem e menos
rígido – é capaz de sentar na entrada de seu palácio e acariciar os guardiões do portão: um
grifo, um dragão e um pégaso. Em suma, demonstra gentileza e até mesmo certa humanidade,
para surpresa dos habitantes do Sonhar (Figura 70).
Enquanto o funeral de seu “antecessor” acontece, ele não participa, isolando-se no
palácio. Diz que não seria adequado estar presente. Caim, Abel e o bibliotecário Lucien,
frente à confusão de alguns participantes do velório de Sonho, que não entendem bem quem é
o “jovem” que também é Sonho e reside no palácio, comentam:
Figura 69
Na última edição de Entes Queridos, Sonho aguarda sua morte após ser ameaçado pelas Fúrias. Sua
irmã, Morte, conversa com ele pela última vez.
212
Figura 70
O novo aspecto de Sonho, Daniel, conversa com o corvo Matthew durante o arco Despertar. O
Sonhar, como tudo ao redor, muda com ele. Tem um aspecto mais leve e jovial do que o Sonho que
o precedeu.
213
angustiadas não duram muito, pois ninguém consegue mirar a si mesmo durante muito tempo;
Delírio é qualquer coisa que não seja substância, constância, integridade – ela está sempre
“entre lugares” (Sandman #48, p. 4); e Destruição, o próprio agente da mudança, deixou seu
reino, cansado de sempre assistir a transições.
Nessa posição, Sonho contradiz a figura do herói clássico e do super-herói,
apresentados como seres acabados e aptos a cumprir um grande destino.
Lucien - Milorde... Eu imploro que reconsidere. Por favor, não é tarde demais...
Sonho - Fazemos o que devemos, Lucien. Algumas vezes podemos escolher o
215
caminho que seguimos. Algumas vezes nossas escolhas são feitas por nós.
E algumas vezes não temos escolha alguma.
(Sandman #22, p. 23)
Cuco - Meninos e meninas são diferentes, sabia disso? Meninos têm fantasias nas
quais são mais rápidos, espertos ou capazes de voar. Eles escondem seus
rostos em identidades secretas e ouvem as pessoas que os desprezam
admirando seus feitos notáveis. (...) Meninas, por outro lado, têm fantasias
diferentes. Muito menos complicadas. Os pais delas não são seus pais. Suas
vidas não são suas vidas. Elas são princesas. Princesas perdidas de terras
distantes. E um dia, o rei e a rainha, seus verdadeiros pais, virão buscá-las
de volta e serão todos felizes para sempre. Pequenos cucos.
Barbie - Eu sonhei isso? Não me lembro...
Cuco - Claro que sonhou. Você criou uma terra mágica e a povoou com seus
brinquedos. (...)
Barbie - Meus brinquedos! Tinha me esquecido deles.
Cuco - Não, não tinha. Não no fundo. E eles nunca te esqueceram.
Barbie - Isto é real? Ou é só minha imaginação?
Cuco - Se me disser a diferença, talvez eu possa te dizer.
(Sandman #35, p. 5 e 6)
O Cuco conta que precisa deixar a Terra, por isso quer que Barbie cumpra um
determinado pacto, necessário para que a Terra acabe e ele fique “livre para voar”. Por fim,
com o pacto cumprido, Sonho aparece para destruir a Terra. A Terra que Barbie habitou
quando criança em sua imaginação, onde o Cuco ficou preso, é uma ilhota nos limites do
216
Sonhar. Compete a Sonho dar um fim à Terra. O Cuco é liberto e pode voar para outros
lugares que não aquela Terra, aquela ilhota nos sonhos. Vemos, nas imagens de sua partida,
que a liberdade e a mudança são elementos muito próximos. O Cuco se torna uma ave
multicolorida, gigante e livre (Figura 71).
Ao voltar ao mundo desperto, Barbie fica sabendo que sua melhor amiga, Vanda,
morreu durante sua ausência. Transexual, a família nunca a aceitou, sempre se referindo a ela
por seu nome de nascença, Alvin. No funeral, Barbie encontra a família de Vanda. Encontra a
tia do rapaz, que pede que ela tome cuidado ao falar com os pais de Alvin, afinal, eles não são
tão “abertos” quanto ela é. Tratando Vanda sempre como Alvin, avisa que no caixão ele
estava lindo, de cabelo cortado bem curto e terno, e complementa:
Tia de Vanda - Deus te dá um corpo. É seu dever cuidar dele direito. Ele te faz um
menino, você se veste de azul. Ele te faz uma menina, você se
veste de rosa. Você não deve sair mudando as coisas.
(Sandman #37, p. 14)
Se fica evidente, na narrativa, que Barbie deveria ter “permitido” que o Cuco voasse
no tempo certo, que a Terra deveria ter sido abandonada de forma “adequada”, e que a
permanência do Cuco como uma Barbie criança aprisionada foi a causa de todos os
problemas, também fica evidente, na reprovação da conservadora tia ao comportamento e à
vida de Alvin/Vanda, que mudanças são pouco aceitáveis num mundo criado de forma
acabada, afinal, na visão da tia, as coisas são como deveriam ser, a partir da vontade divina. A
mudança, geralmente, é um elemento de subversão das totalidades e dos acabamentos,
colocando em jogo, assim, o próprio conceito de identidade.
Na história Ramadan (Sandman #50), numa Bagdá do passado, que remonta às eras
das Mil e Uma Noites, o califa Haroun Al Raschid tem a mente perturbada. Observa as
maravilhas de sua cidade, repleta de gente de todo o mundo, verdadeira joia das Arábias, e
sente angústias que não confessa a ninguém. Um dia, sobe ao alto de seu palácio e invoca
Sonho, ameaçando libertar demônios e gênios terríveis caso ele não venha. Sonho aparece,
não muito contente pela forma como foi chamado. Conversam. O califa convida Sonho a ver
a cidade do alto, voando com ele num tapete. No mercado, diante das maravilhas e dos
pregões dos mercadores, ouvindo histórias fantásticas, Haroun Al Raschid pergunta a Sonho:
Figura 71
Barbie e Thessaly observam o Cuco voando para além da Terra, a ilhota do Sonhar que Sonho
acabou de destruir. Nos painéis números 1 e 2, vemos a transformação do Cuco de “criança
Barbie” para um grande pássaro de plumagens coloridas.
218
Califa - Não. Você me entendeu mal. Esta é a maior cidade com a qual Allah, que
ele seja louvado do nascer do sol até o poente à noite e também nas horas
antes do amanhecer, julgou por bem abençoar o mundo. E esta era é a era
perfeita. Quanto irá durar? Por quanto tempo as pessoas vão se lembrar?
Eu já vi o mundo, Rei dos Sonhos. Cavalguei através dos desertos, vi
rochas, velhas muralhas e estátuas fustigadas pelo vento nas desoladas
terras de areia. Então, os ventos e a areia retornaram e os vestígios de
cidades, palácios e deuses desapareceram cedendo lugar a outra era,
esquecidos e olvidados. É isso que vai acontecer, não?
Sonho - Pode ser.
Califa - Mas apenas Allah sabe, não?
(Sandman #50, p. 27-28)
Sonho recebe a cidade do califa e a leva para o Sonhar. Ao final, vemos um contador
de histórias, que também é um mendigo, contar a um garoto, entre os escombros de uma
Bagdá destruída pela guerra, as maravilhas de uma cidade magnífica que existiu há muito
tempo naquele mesmo lugar, com aquele mesmo nome. O menino, faminto e deficiente em
razão das explosões, anda pelas ruínas maravilhado com as imagens daquela Bagdá fantástica,
rezando a Allah para que ela ainda exista “nas trevas dos sonhos”.
No arco Fim do Mundo, que mostra viajantes, pegos de surpresa por uma
tempestade, abrigados numa taverna onde contam histórias enquanto esperam o clima
melhorar, um dos contos se passa numa cidade de serviços fúnebres, uma necrópole. O
narrador conta seu encontro com Destruição, um dos raros viajantes a passar um dia pela
cidade:
Os sonhos, muitas vezes referidos como contrários à realidade, são apresentados não
como mais estáveis ou permanentes que o real, ou como mais caóticos, instáveis e
misteriosos. A Bagdá das Mil e Uma Noites e o Cuco existem nos sonhos. Não são, com isso,
mais ou menos reais na lógica de Sandman. Ao que parece, existir nos sonhos ou no mundo
desperto não configura realidade, mas diferentes formas de existência, de organização e de
relação. O real não é necessariamente mais verdadeiro que o imaginário. Ou que o sonhado.
Jorge Luís Borges, numa conversa sobre sonhos com Osvaldo Ferrari (2009) diz que
não se trata de que os sonhos sejam mais ou menos reais do que outras coisas, mas de que eles
219
77
O elmo só será usado novamente em Sandman #68, aparecendo de forma breve, em apenas poucos painéis ao
longo de 5 páginas.
78
No artigo “Prospero framed in Neil Gaiman’s The Wake” (In: SANDERS, 2006, p. 79-92), Joan Gordon
discute as aproximações entre Shakespeare, Sonho e Neil Gaiman em A Tempestade.
220
Citamos a cena em que Sonho está sentado numa praça, alimentando os pombos, e
sua irmã Morte se aproxima para conversar, depois de muito tempo – ele havia ficado mais de
setenta anos preso. Ele está desanimado, sem perspectivas ou objetivos. Está insatisfeito e
infeliz, apesar de haver conseguido sua liberdade, vingar-se do filho de seu captor e recuperar
suas ferramentas.
Nessa passagem, Sonho comenta que se sente exausto e desapontado. Diz sentir-se
“um nada”. Contudo, após seguir com sua irmã e vê-la “trabalhar”, acompanhando a morte de
diversas pessoas, sente-se mais tranquilo e reconhece que tem responsabilidades a cumprir.
Ao que parece, Sonho se sentia sem propósito. Havia perdido o “sentido” de sua
existência. Mesmo com sua prisão a humanidade continuou sonhando, apesar de alguns
contratempos. Após sua jornada, teve seu maior símbolo destruído, o rubi dos sonhos. E
notou que, com a destruição de sua ferramenta, de seu apetrecho de trabalho, sentiu-se mais
forte. Notando que havia se privado da consciência de si mesmo e de seu poder até o rubi ser
destruído, sentiu-se mais livre. Talvez livre de seus deveres. Após caminhar com Morte,
pareceu recuperar tal crença e se apegou novamente às suas responsabilidades, que, apesar de
não estarem explícitas, podemos presumi-las relacionadas ao desempenho do papel de regente
dos sonhos e do Sonhar. Resta saber se ele voltou a acreditar em tal “cargo”, de rei e senhor
dos Sonhos, ou se apenas resolveu, despretensiosamente, seguir com seus afazeres, seu dia a
dia, assim como Morte, cujas tarefas ele acompanhou. Talvez ambas as hipóteses sejam
possíveis.
Mais tarde, ao final do arco Casa de Bonecas, Sonho visita seu irmão/sua irmã
Desejo.
Quando o último ser vivo deixar este Universo, nossa tarefa estará encerrada. E nós
não os manipulamos. Elas nos manipulam. Eles! Somos seus brinquedos. Seus
bonecos, se preferir. (Sandman #16, p. 23)
Durante o arco Vidas Breves, Sonho encontra-se com a antiga deusa suméria do amor
Ishtar, que é dançarina num clube de striptease; ganha a vida e um pouco de veneração nesse
“pequeno templo do desejo”. Ela diz:
Eu sei como surgem os deuses, Roger. Nós começamos como sonhos. Então saímos
dos sonhos para a terra. Nós somos idolatrados, amados e sorvemos muito poder.
Então, um dia, não resta mais ninguém nos adorando. No fim, cada pequeno deus ou
deusa faz sua última jornada de volta aos sonhos... E, o que vem depois, nem mesmo
nós sabemos. (Sandman #45, p. 21)
221
Em seu encontro com Shakespeare, Sonho diz que ele é como uma ilha. Solitário,
diversas vezes ouviu, durante as histórias , sobretudo de sua irmã Morte, que deveria se
“relacionar” mais com as pessoas, conhecer a humanidade, ser menos fechado.
Isolado dos outros seres por ter um temperamento intransponível e ser conhecedor de
todos os deuses, que sempre passam de alguma forma pelo Sonhar, sente-se sem propósito.
Possui apenas suas responsabilidades como forma de se apegar à existência, porém há
indicações de que sua fé em seus deveres tem falhado em tempos mais recentes. Sua prisão
por “mortais” representou uma queda daquela situação anterior, quando parecia repleto de
certezas sobre sua condição nobre, isolada e poderosa. Tal deslocamento abrupto – do poder
da liberdade absoluta para a impotência e o aprisionamento completos – parece haver trazido
à tona dúvidas que, outrora, ele parecia ignorar completamente. Daí a sensação, após sua
busca por tão importantes ferramentas, de esvaziamento e falta de sentido quando de seu
encontro com sua irmã Morte. Para um personagem que se acreditava acabado, nada pode ser
mais absurdo do que o questionamento dos absolutos que sempre pareceram reger não
somente o mundo, mas ele mesmo.
segurança de um estado aparentemente permanente e das “regras comuns” que segue como
administrador (e personificação integral) de uma dimensão onírica, destino ao qual não parece
se ajustar, assumir ou rejeitar.
Sonho declara várias vezes, alternando sentimentos de tristeza e orgulho, que não
muda nem tem uma história. Ironicamente, sua narrativa acaba por ser uma história sobre as
dificuldades, os limites e as possibilidades de mudança num universo pretensamente acabado
e absoluto.
Após receber de Lúcifer a chave do Inferno e voltar confuso para seu reino, Sonho é
incomodado em sua autocomiseração pelo anúncio de seus guardiões de que há muitos seres
diante dos portões do palácio – seres antigos e, alguns deles, poderosos. A notícia de que a
dimensão infernal estava vaga e de que Sonho era o protetor de tal território se espalhou
rapidamente pelas dimensões e, por diferentes razões, todas aquelas “pessoas” haviam vindo
de longe para requisitar o Inferno para si próprias.
Sonho os recebe na sala do trono, dizendo:
Ao final do arco Estação das Brumas, Sonho afirma, após ser desafiado pelo
demônio Azazel, que:
Não foi sábio tentar me ferir, Azazel. Em outro lugar, talvez, mas não aqui. Este é o
meu lar, Azazel, meu local de poder. Este é o Coração do Sonhar. A realidade aqui
responde aos meus desejos; ela é o que eu quero que seja... Nem mais, nem menos.
(Sandman #27, p. 18)
Quando vemos pela primeira vez o Sonhar, durante o arco Prelúdios e Noturnos,
somos informados de que o castelo de Sonho pode ser movido para qualquer lugar no reino. E
que, onde quer que ele esteja, está também o centro do reino de Sonho.
Tais elementos nos indicam a importância da ideia de centralidade. Em alguns
momentos, realmente, indicações de valoração clássica do núcleo e do centro aparecem na
série, normalmente ligadas ao poder dos regentes de diferentes reinos. Esse discurso, muito
223
embora aponte certos contextos culturais aos quais a série está relacionada, no caso, certo
ocidente e certos aspectos culturais com algumas formas binárias de organização do
pensamento e do conhecimento, há outros elementos em jogo que devemos considerar para
ver qual o tratamento dado à identidade, como conceito e forma de representação de mundo.
Sonho, ainda que seja “o mais idiota, mais egocêntrico, mais estarrecedor arremedo
de personificação antropomórfica” (Sandman #8, p. 10), isto é, ainda que tenha algo de
humano ou de semelhante ao ser humano, ele é também outros seres, tem outros nomes e
existe de outras formas que não a do sujeito parecido com Robert Smith, vocalista da banda
de rock The Cure.
Em Prelúdios e Noturnos, Sonho vai procurar informações sobre o paradeiro de seu
rubi com os super-heróis da Liga da Justiça. Encontra-se com o último marciano, Ajax, que
vive em refúgio na Terra (Figura 72). Ele reconhece Sonho – não como os humanos o veem,
mas como um ser com feições muito diferentes, envolto em chamas e fumaça, com olhos
rasgados e traços que lembram, vagamente, os do alienígena. Sonho é chamado por ele de
Lorde L’Zoril, “um antigo deus, muito antigo” (Sandman #5, p. 16). L’Zoril diz por que está
ali:
Eu procuro um rubi, último dos marcianos... Conhecido por sua raça como D’Orilar,
a Pedra das Ligações. (Sandman #25, p. 16)
A forma de Sonho não é fixa. Enquanto regente dos Sonhos, ele tem a forma com a
qual é sonhado pelos sonhadores. Não se trata de assumir determinada forma. Sua forma é
aquela mesma, porque é definida pelas relações e não por uma essência que se mantém de
forma perpétua, independentemente de tempo e lugar. Quando tais dimensões fazem
diferença, significa que estamos no terreno da existência, da variabilidade e da diversidade.
Em Sandman #9 sabemos, por uma história contada por um habitante dos desertos,
como a princesa Nada, há muitos milênios, conheceu um estranho, um forasteiro, e se
apaixonou por ele. Ela descobre, ao procurá-lo, que seu nome é Kai’ckul, o Senhor dos
Sonhos. Trata-se de um homem vestido com roupas à moda dos habitantes da cidade onde
vive Nada, com cabelos trançados e pele negra, assim como a princesa (Figura 73).
224
Figura 72
O super-herói marciano Ajax, do Universo DC, encontra Sonho, que busca por seu rubi.
Diferentemente de seu colega, ele o vê como uma face inumana incandescente e o chama de Lorde
L’Zoril.
225
Figura 73
Nesse antigo conto/mito tribal, Sonho é retratado como um jovem estrangeiro por quem a princesa
Nada se apaixonou milênios atrás. Sonho tem a pele negra, cabelos trançados e usa roupas conforme
a cultura local.
226
Em outra história, sobre gatos que vão a um cemitério ouvir as falas de uma gata que
profetiza o final do jugo dos humanos sobre os felinos, Sonho tem outras formas. É chamado
de Gato dos Sonhos e é um grande felino de pelos negro-azulados e olhos vermelhos (Figura
74). Vive não em um palácio, mas numa toca, dentro de uma profunda caverna situada no
meio de uma floresta (Sandman #18).
Em Estação das Brumas, Sonho confirma sua hospitalidade, anunciada por ocasião
dos visitantes que aparecem no Sonhar. Recebendo cada um dos seres ali presentes, para ouvir
seus pedidos e ofertas em relação ao Inferno (Sandman #26), ele nunca realiza uma audiência
é igual à outra (Figura 75).
O deus viking Odin o chama de Tecedor de Sonhos. A sala do trono tem velas
organizadas em forma circular no chão e Sonho está sentado num rochedo, que lembra uma
runa. Susano-O-No-Mikoto, deus do panteão de Nippon, uma divindade tempestuosa
japonesa, diz que precisa do Inferno para se expandir. Os deuses de seu reino estão
adaptando-se aos tempos modernos, já que o culto a eles diminuiu consideravelmente. Avisa
que já contam com outros altares e ícones, como Marilyn Monroe, por exemplo. Durante o
encontro, Sonho veste um quimono e está sentado sobre uma base de madeira, enquanto
cerejeiras aparecem ao fundo, com flores amarelas. Na audiência com Lady Bast, a deusa
egípcia dos felinos, o trono do rei dos Sonhos adquire características egípcias e seus olhos se
assemelham aos de gatos.
Se a hospitalidade, como discutimos anteriormente, é a abertura ao estrangeiro não
somente nos termos de seu próprio reino, mas concedendo a liberdade para que aquele que
chega modifique o lugar onde se encontra, podemos observar que o Sonhar não é estático,
tampouco Sonho é imutável. Os lugares, os seres, os nomes e as formas se modificam de
acordo com os sonhadores, os visitantes e as culturas, não havendo parâmetros fixos, ainda
que não estejam ausentes traços distintivos gerais, como o brilho pontiagudo no olhar de
Sonho, os guardiões à porta do palácio, a biblioteca infinita e labiríntica80, o discurso sempre
envolto em balões escuros, com letras brancas, amplificando a sensação de introspecção e a
densidade de Sonho dos Perpétuos.
80
A pesquisadora Leonora Soledad Souza e Paula, em seu artigo “Imaginary places and fantastic narratives:
reading Borges through Sandman” (In: SANDERS, 2006, p. 135-145), estabelece diálogos entre certos contos de
Jorge Luís Borges e as narrativas de Neil Gaiman, notando as aproximações entre os jardins-labirintos onde vive
Destino e o conto O jardim dos Caminhos que se Bifurcam, e entre a Biblioteca do Sonhar com O livro de areia
e A Biblioteca de Babel. “O contínuo movimento de apropriação cultural em que leituras e releituras circulam
para construir textos artísticos não envolve necessariamente subordinação do presente ao passado. (...) Mais que
simples influência, a transformação da tradição atua como deslocamento de elementos formais, e não como
despersonalização de estilos anteriores”.
227
Figura 74
A gata profetisa encontra o Gato dos Sonhos em sua toca no meio da floresta, em meio a um sonho.
228
Figura 75
Sonho, em Estação das Brumas, recebe os reclamantes da dimensão vazia do Inferno em audiências particulares.
À esquerda, seu encontro com o deus nórdico Odin, sentado em rochedos. Acima, à direita, seu encontro com
uma divindade tempestuosa nipônica em meio a cerejeiras em flor. Abaixo, com a deusa egípcia felina Bast. Os
olhos de Sonho se tornam como os dela – como os de um gato – e seu trono toma formas egípcias.
229
Há mais nomes pelos quais ele é chamado pelas diferentes culturas e povos: Titânia e
Alberon, rainha e rei das fadas, o chamam de Modelador; Calliope o chama de Oneiros
(Oneirói), tal qual eram chamados na Grécia antiga os irmãos que eram os Sonhos –
Morpheus (representante das imagens humanas), Icelos (representante das imagens de feras) e
Phantasos (representante das imagens dos elementos) –, filhos da Noite, segundo Hesíodo, e
irmãos de Hypnos (Sono), Thanatos (Morte) e Geras (Velhice); Sonho é chamado de
Morpheus por Lúcifer e outros demônios. Não recusa nenhum nome, assim como não recusa
nenhuma fé.
Não se trata de tolerância para com todas as religiões, fés, culturas ou tradições, mas
de comungar delas. Como já foi discutido, a tolerância faz parte da lógica binária, de uma
cultura de identidades e oposições. Toleramos aquilo que de alguma forma nos desagrada ou
não é confortável. Toleramos aquilo que não somos nós, mas que temos de suportar porque,
afinal, existe. O termo usado por sonho é “comungar”, que indica uma ação partilhada,
compartilhada, sem ser idêntica, podendo, mesmo, guardar certos conflitos que não excluem,
evidentemente, a relação.
As roupas de Sonho reforçam esse entendimento. Encontra o califa Haroun Al
Raschid vestindo uma túnica adornada com desenhos de vários objetos celestes, com muitas
cores e arabescos, coisa que Sonho faz poucas vezes, usando normalmente roupas
monocromáticas e negras. As vestes, ademais, têm elementos, como os tecidos sobrepostos,
que lembram as do próprio califa (Sandman #50, p. 21. Figura 76).
Outra ocasião em que os trajes de Sonho são dignos de menção é durante seus
sucessivos encontros com Robert “Hob” Gadling (Figura 77). Ambos se conhecem numa
taverna nos século XIV. Morte está com Sonho, levando-o para ver como vivem os mortais de
maneira mais próxima, em seu próprio ambiente. Ouvem então Hob Gadling dizendo que a
morte é uma idiotice, que as pessoas só morrem porque pensam que têm de morrer, e que ele
não morrerá. Aparentemente, Morte gosta da ideia, assim como Sonho, que promete encontrar
Hob a cada cem anos naquele mesmo lugar, querendo, talvez, observar como será sua
existência com o passar do tempo.
230
Figura 76
Sonho é convocado pelo califa de Bagdá. Sua túnica lembra as vestes árabes, com estampas ricas
em cores e desenhos.
231
Figura 77
Sonho e seu amigo imortal Hob Gadling através dos séculos. Desde a Idade Média até o pós-punk
londrino.
232
apresentadas como oráculos ambíguos, mensageiras irônicas e algozes inevitáveis (Figura 78).
Em Prelúdios e Noturnos elas são oráculos, chamadas de Três-Em-Uma e de Hécate;
apresentam-se como Tisiphone, Alecto e Magaera, e também como Diana, Mary e Candy. O
jogo entre os nomes gregos clássicos e os ingleses corriqueiros faz as representações
transitarem entre o alto e o baixo, retirando-as da tradição e jogando-as no cotidiano, ao qual
retornam, modificadas, com a menção celta e, portanto, pagã, dos nomes de Mildred, Mordred
e Morgaine. A três permitem e estimulam o procedimento de proliferação e enumeração de
seus nomes, assumindo desde aspectos ligados à cultura pop até imagens de padrões clássicos
(Sandman #2, p. 20). Também aparecem como oráculos, vítimas, mensageiras e vingadoras.
São chamadas de Damas Cinzentas, Três Irmãs e Trioditis.
Diferentes personagens, mitos e fatos históricos, com suas éticas e estéticas
características, são apropriados e traduzidos para a construção da obra, que conta com diversos
fragmentos, nem sempre vitais para o enredo, mas contributivos para a história, as formas e as
ambiguidades da obra. As relações trafegam do clássico ao pop, sem se tornarem polarizadas, o
que significaria a destruição dos textos paralelos e ameaçaria o inacabamento pretendido com o
elogio à mudança. Como já mencionamos, estamos em um ambiente que tende à hospitalidade,
onde combinações, jogos e tensões são bem recebidos, não por “enriquecerem” a obra, mas por
serem o que a constituem. Não há algo a ser enriquecido, pois não há um núcleo mais ou menos
estável que recebe sucessivas camadas de elementos sem se modificar, ou melhor, mantendo
integridade e permanência junto ao exotismo de enfeites bem montados.
Contudo, há a questão sobre certa totalidade que podemos encontrar em Sandman, ou
melhor, a tendência à totalidade. Já mencionamos que, no Sonhar, há um centro. Tal centro não
é fixo, pois depende de onde está situado o castelo de Sonho. Apesar da movimentação, sempre
há um centro de poder. Porém, a mobilidade e as metamorfoses do palácio – que ora é uma toca
de gato, ora a caverna de uma raposa, ora uma construção romana ou ainda um castelo gótico –
relativizam o conceito de centralidade. Fora isso, tal centro não é ordenador das outras regiões
do Sonhar. Sabemos disso por ocorrências significativas se darem em outros lugares que não o
castelo – nas periferias, onde ficam as ilhotas; na Casa dos Mistérios de Caim e Abel; nas praias
do Sonhar, onde estão as areias que Sonho usa para moldar pesadelos. Outro ponto importante
é o caráter labiríntico do castelo, as salas e passagens que aparecem e desaparecem, as
constantes reformas e as mudanças de decoração dos salões e corredores, de acordo com os
humores de seus habitantes e as culturas a que pertencem os convidados. Se não há uma
destruição do centro, há uma suavização da rigidez imposta pelo conceito. O centro do Sonhar é
o lugar onde estão os sonhos, matéria fluida e plástica, sujeita a variações repentinas e
imprevisíveis, ainda que pareçam sólidas ao sonhador.
234
Figura 78
As várias formas, faces e nomes da deusa tríade em Sandman – vítimas, inglesas clássicas, bruxas neoceltas,
oráculos e vingadoras.
235
As três mulheres bruxas poderiam ser interpretadas como uma ideia única que
assume muitas formas na série. Isso lhes conferiria certo aspecto ligado ao princípio de
identidade. Porém, elas não são reconhecidas por aqueles que a veem nem como a mesma e
nem como diversas. Tal questão, simplesmente, não é abordada. Quando há a declaração –
ligada à ideia de tolerância – de que todos os deuses são, na verdade, o mesmo deus, é porque
se considera que a redução das multiplicidades e das formas levará a um princípio comum,
seja o bem, o amor, a justiça, o eterno, a ordem ou a estabilidade. As possíveis tensões e
contradições se dissolvem em nome de um princípio de unidade final.
Podemos considerar que as três mulheres são as três bruxas, assim como as clássicas,
as gregas, as vingadoras, as mensageiras, as oraculares, as que ajudam Sandman, as que o
perseguem, as que são assassinadas – não há um aspecto regendo todos os outros,
subordinando outras manifestações ou totalizando a diversidade.
Nessa situação, especificamente, o autor faz uso de elementos relacionados a
aspectos mítico-lunares, usualmente ligados a essa trindade feminina, para aumentar o grau de
variações possíveis em seu processo de apropriação e tradução, talvez por possuírem signos
mais abertos a tais processos. Não sem razão, Neil Gaiman minimiza a participação de
personagens míticos ou fictícios que tenham relação com aspectos solares – em uma de suas
únicas menções a tais representações, relata que o deus solar egípcio Rá, um ser pouco
amistoso, usa como máscara o próprio Sol (Sandman #20, p. 23) e, em outra, apresenta Sonho
negando ser Apolo, pois não é “nenhum deus solar” (Sandman #30, p. 19). Personagens como
Loki, o astuto deus nórdico das muitas formas e das trapaças, e o Puck, um ser das fadas,
travesso e falante, que Shakespeare utiliza em Sonho de Uma Noite de Verão, têm maior
participação, apontando, ao menos, certa preferência do autor.
Com aparências, nomes e ações que diferem umas das outras, as três mulheres, que
são mais de três, apesar de “andarem” em trio, podem, contudo, ser totalizadas e identificadas
com uma espécie de aspecto único que assume diferentes formas, que seriam menos valiosas
para a experiência do que a essência fixa. Para tal procedimento, contudo, a razão do leitor
deve ser instrumentalizada para a busca do princípio de identidade, tendo em vista que a obra
não é produzida somente pelo autor, mas pelos processos comunicativos, sociais e históricos.
São formas que utilizamos para organizar e produzir conhecimento sobre o mundo,
participando em sua construção.
Vê-se aí a grande ligação entre os sistemas digitais (...) e as dicotomias que dividem
o mundo em identidades e não-identidades. Instaura-se, então, o aprisionamento da
mente nos duplos vínculos, oposicionalmente binários, que obrigam sempre à
236
escolha entre o 1 e o 2, pai ou filho, alto ou baixo, erudito e popular, etc., que são
ordens diversas em que a identidade ou a não-identidade se manifestam.
(PINHEIRO, 1995, p. 22)
O Sonho de vestes negras que morreu e o Sonho de vestes brancas que surgiu são o
mesmo Sonho, no fundo? Ou aparentam ser o mesmo, mas são de fato completamente
diferentes? Provavelmente, algo anterior a tais afirmações assertivas:
Tudo é muito novo pra mim, Matthew. Este lugar. Este mundo. Eu existi desde o
início dos tempos. Esta é a verdade. Sou mais velho do que mundos, sóis e deuses.
Mas amanhã encontrarei meus irmãos e irmãs pela primeira vez. E estou com medo.
(Sandman #71, p. 9)
Eles não são o mesmo e não são opostos. Estão “aquém da identidade e da
oposição”81, o que abre espaços para a criação, já que a organização do personagem não tem
de ser inédita, do ponto de vista do Sonho que acompanhamos até sua morte, e nem
subordinada diretamente ao ente falecido. Isto torna Sonho um personagem aberto ao
aproveitamento de diversos elementos, através de traduções e incorporações, sem negar ou
afirmar o antigo ou o novo personagem.
Inscrito, a princípio, na série das histórias de super-heróis, tais personagens,
símbolos de um heroísmo ilimitado, não aparecem de forma contundente na obra, como
também não são negados em favor de uma utilização pretensiosa de elementos “altos”, como
poderiam ser considerados certos fatos históricos, temas mitológicos ou referências literárias.
Quando aparecem, sofrem transformações tradutórias que não destroem suas trajetórias como
vilões ou heróis, mas também não os resguardam de interagir com mitos, ironias e universos
mais facetados, o que, consequentemente, desloca os ideários de justiça, bem, mal, e outras
constantes dos universos heroicos/vis.
O Doutor Destino, cujo nome verdadeiro é John Dee, é um vilão do Universo DC,
criado em 1961, que pode manipular os sonhos, tornando-os reais ou prendendo as pessoas
em mundos oníricos. Neil Gaiman utilizou esse personagem ao atribuir a ele a posse da pedra
dos sonhos, o rubi de Sonho, de onde provinha o seu poder. Antes da criação de Sandman,
John Dee já fazia tudo isso. Já tinha uma pedra que lhe fora dada por sua mãe, Ethel, que teria
pertencido ao Sandman e que podia ajudá-lo a manipular os sonhos e as mentes dos
adormecidos. Por ocasião do surgimento da série Sandman, John Dee estava preso num local
para criminosos loucos chamado Asilo Arkhan, após ter sido derrotado pelos heróis do
81
Referência ao título do livro de Amálio Pinheiro, Aquém da identidade e da oposição: formas na cultura
mestiça. Piracicaba: Unimep, 1994.
237
Universo DC da famosa Liga da Justiça, que também lhe tomaram a pedra dos sonhos.
Passava seus dias preso, delirando com outros criminosos famosos, como o Curinga, o
Espantalho, etc., e tinha o corpo deformado, com o rosto na forma de uma caveira (Figuras 79
e 80).
A partir destas informações, John Dee foi tratado menos como um vilão e mais como
um psicótico cuja mente foi ainda mais arruinada e deturpada pelo poder do Rubi dos Sonhos.
Enquanto Sonho procura por sua pedra, Dee foge do hospício e, nu, com o rosto deformado,
rende uma mulher e a faz dirigir até onde o rubi está guardado. No carro, os dois conversam,
após as ameaças de praxe. Ela lhe oferece um casaco, ele agradece a gentileza e fala da
origem de seu nome, conta que foi médico, que foi sua mãe quem o batizou; ela lhe oferece
sanduíches, então conta ser enfermeira, pergunta se ele tem AIDS, mas ele não sabe do que se
trata e ela se surpreende, perguntando por onde ele andou nos últimos cinco anos; conversam
sobre a Liga da Justiça, que passou a ser internacional, para admiração de Dee, que conta ser
cientista e um filósofo hermético, descrevendo então as complexas operações que realizou na
pedra. Chegam ao seu destino e se despedem com carinho. E, então, ele atira nela, após a
confirmação de que seu marido não faz parte da máfia.
Temos, então, um Senhor Destino que não é mais um supervilão. Não é mais
exatamente o Senhor Destino. Agora ele é Dr. Dee, um louco com a pedra dos sonhos sob seu
controle. Por sentir que “alguém” virá atrás dele, entra numa lanchonete 24 horas e aguarda,
mantendo todos presos lá dentro e espalhando pesadelos por toda a humanidade. Mas são
pesadelos diferentes – se antes os pesadelos quase derrotavam ou prendiam os heróis, agora as
pessoas são levadas a grandes atrocidades: assassinatos, agressões e mutilações. Na
lanchonete, ele manipula a mente dos presentes, criando passatempos em que as pessoas se
agridem, contam segredos terríveis e realizam seus sonhos mais primitivos. É uma história de
terror bastante forte, provavelmente a mais intensa de toda a série.
Ao contrário do que poderia ser esperado nas tradicionais histórias de super-heróis
estadunidenses, a volta do Doutor Destino não é meramente o retorno de um vilão, renovado
por novos poderes, desejo de vingança ou uma nova roupa e um plano-mestre, com
modificações em seu passado em nome de um presente absoluto. Ele tem um rosto mais
sombrio, não usa qualquer máscara ou uniforme, nem capa ou capuz, não tem seus
equipamentos ou mesmo a genialidade maléfica dos grandes criminosos. Psicótico, cruel,
inocente e vítima, ao ver que perdeu o poder sobre a pedra e que Sonho o venceu, fica
desconcertado e diz que quer descansar. Sonho observa que é difícil imaginar o tamanho dos
danos causados pela pedra à mente de Dee.
238
Figura 79
Figura 80
O Doutor Destino não parece ser mais um supervilão. Os símbolos se foram, assim
como seu título de vilania, levando junto tais elementos centrais. A crueldade sem motivos,
gratuita, é acompanhada de carência, solidão e delírios. John Dee pode ser uma ameaça, mas foi
Sonho quem fez a pedra. Quem criou tal armadinha foi ele próprio. Dee, de certo modo,
também é uma vítima do poder que nem mesmo Sonho compreendia antes de a pedra ser
destruída.
Outro exemplo é a utilização dos personagens Hector Hall, Lyta Hall, Brute e Glob.
Houve um personagem criado por Joe Simon e Jack Kirby, em 1974, chamado Sandman, de
uniforme e capa, que teve apenas seis edições. Tratava-se de um super-herói auxiliado por
dois pesadelos, Brute e Glob, que, utilizando tecnologias, entrava na “Corrente dos Sonhos”,
ou “Fluxo dos Sonhos”, e defendia as crianças contra terríveis pesadelos que as perseguiam
durante o sono. Seu pior inimigo era o Mago do Pesadelo (Figura 81).
Em 1988, um gibi recuperou o herói. Segundo a história, o Sandman de 1974 não
aguentou a solidão da Dimensão dos Sonhos, ficou louco e cometeu suicídio. Hector Hall
assumiu o papel de Sandman, com o mesmo uniforme e os mesmos assistentes, Brute e Glob.
Hector na verdade havia morrido, mas enganou o Destino e foi parar nos Sonhos. Sua esposa,
Lyta Hall, conhecida como a super-heroína Fúria, foi visitada várias vezes pelo marido em
sonhos, até que Hector descobre que ela espera um filho seu e a transporta para a Dimensão dos
Sonhos.
Em 1990, no arco A Casa de Bonecas, Gaiman se apropria de todos esses personagens,
traduzindo-os para a narrativa de Sonho, sem retirá-los do mundo super-heroico. Não houve
necessidade de destruir esse contexto. O recurso foi introduzir elementos, a princípio, de
paródia, como mecanismo de reelaboração dos sentidos e dos significados dos textos anteriores.
Brute e Glob, em Gaiman, são pesadelos que fugiram do Sonhar durante a ausência
de setenta anos de Sonho. Esconderam-se na mente de um menino que sofre abusos e é
mantido preso num porão. Para criar um mundo de sonhos só deles, bloquearam o acesso da
criança ao Sonhar e trouxeram um homem para ser o Sandman. O primeiro se matou –
Stanford, o Sandman criado em 1974. Então, eles resolveram pegar um morto, Hector Hall,
para ver se, desencarnado, ele aguentava o “trabalho”.
A Dimensão dos Sonhos passou a ser o interior da mente de um garoto que, por
sofrer violências, se refugiava em sua própria imaginação, criando barreiras “naturais”, onde
Hector, Brute, Glob e Lyta Hall encenavam lutas do Sandman e de sua esposa contra diversos
monstros e o menino era, além de protegido, um assistente de valor para aventuras fantásticas.
Gaiman coloca nessas passagens elementos infantis que contrastam com a vida miserável
vivida pelo garoto, o que acentua a crueldade cometida pelos pesadelos (Figura 82).
240
Figura 81
O Sandman como super-herói tradicional, nos anos de 1970, à direita, e nos anos de 1980, à esquerda. As
mesmas cores e nomes foram usados por Neil Gaiman para retratar um fantasma vaidoso que se acreditava um
herói com uma grande missão, mas que em realidade era apenas um fantoche dos pesadelos.
241
Figura 82
O super-herói clássico Sandman na série de Sonho. Gaiman não subestima (como todo bom criador de
horror) as perturbadoras crueldades contidas nos universos infantis.
242
Sonho acaba por intervir, retirando todos da mente do rapaz. Após punir os
pesadelos, envia o espírito de Hector para a morte. Sua esposa, Lyta, fica enfurecida com
Sonho, que mal lhe dá atenção, apenas avisando que o bebê que ela espera lhe pertence, pois
foi gestado nos sonhos. Gaiman ainda usará Lyta Hall, que como super-heroína se chama
“Fúria” e está ligada às figuras mitológicas das três mulheres, como a desencadeadora da
vingança das Erineas contra Sonho.
Gaiman modifica alguns dos elementos das histórias anteriores do personagem
Sandman, transformando o super-herói em um peão submetido àqueles que considerava seus
assistentes – na verdade pesadelos – sem eliminar sua história, apenas reconfigurando
algumas de suas facetas. Seu uniforme amarelo e vermelho muito vivos, em contraste com o
clima sombrio dos sonhos e do Sandman, do qual ele é paródia, recordam as vestes
espalhafatosas dos palhaços e dos bobos da corte. E Lyta se torna uma mulher alienada,
passiva frente a um marido maravilhado pelas aventuras infantis vividas ao lado dos
companheiros, cheio de si por sua suposta importância, nobreza e relevância – provavelmente,
da mesma forma que Sonho dos Perpétuos (Figura 83).
Finalmente, devemos notar os aspectos gráficos, que sugerem formas menos fixas e
tradicionais de elaboração e que variam de acordo com as histórias, os temas e os personagens
envolvidos no quadros.
Mike Dringenberg desenhou alguns números de Sandman. No #13, fez uso de
imagens trabalhadas em tons monocromáticos, em mosaico, em meio às cores mais vivas dos
quadros, para contar a história dos Colecionadores, serial killers que realizam uma convenção
num hotel do meio-oeste americano para debater ideias, métodos e relações de sua atividade
com outros campos, como a religião e a política. Elabora, dessa forma, representações
realistas ambíguas, relacionando quadros com traços que destacam a anatomia ao tom
vermelho pastel, com variações de intensidade e sombras, procurando representar memória,
pensamento e fantasias dos assassinos, frente a conversas corriqueiras que acontecem nos
corredores do congresso (Figuras 84 e 85).
A representação dos reinos habitados pelos Perpétuos contribui para desenvolver
certas características dos personagens. O reino de Destino, repleto de jardins labirínticos e
móveis, possui também características mais ortogonais, com cores mais sóbrias. Certa neblina
suave, que nunca deixa de existir em seu reino, encobre parcialmente as vastidões das
planícies desérticas, com construções que indicam solidez. Mas, em um ponto ou outro,
vemos pequenas brumas e algumas curvas que quebram os traçados angulados, retirando um
243
pouco da exatidão constantemente proclamada por Destino. Guiado pelo livro, busca, de fato,
ser o que está escrito. Porém, aspectos das artes gráficas e dos textos relativizam o discurso
supostamente onisciente do personagem, demonstrando que sua rigidez pode esconder
dúvidas sobre seus próprios limites, sobre o quanto conhece os labirintos de seus jardins
(Figuras 86 e 87).
No entanto, eu vejo as coisas como são, foram e serão. E ele (Sonho) foi o senhor
das coisas que não são, não foram e jamais serão. (Sandman #72, p. 05)
Figura 83
Sonho desfaz a fantasia heroica, após se divertir ao ouvir o discurso patético e vaidoso do super-herói Sandman
que, ironicamente, se parece muito com o seu próprio – ao menos na presunção.
244
Figura 84
A história dos colecionadores aparece no arco Casa de Bonecas. Os serial killers fazem uma
conferência. Em meio às histórias, memórias de seus assassinatos e frustrações.
245
Figura 85
Cena de assassinato em meio aos painéis com diálogos sobre religião e estilos de matança.
246
Figura 86
Destino, no Prelúdio de Estação das Brumas. Sua dimensão é como o pensamento que envolve a ideia de
“destino” – ortogonal, precisa, escrita num livro. Porém, há brumas em todo canto e aparentes lacunas no
livro, que o mais velho dos Perpétuos não percebe devido à cegueira. Ou percebe?
247
Figura 87
Sonho observa os jardins de Destino em roupas clássicas, no mais rígido dos reinos perpétuos. O
sol lusco-fusco ao longe, as brumas abaixo, entre jardins ortogonais atravessados por diagonais
curvadas. O entardecer – a zona do crepúsculo, na qual a realidade se altera.
248
Figura 88
Sonho chega à dimensão de Delírio. Recortes, cores, mosaicos, palavras soltas, fotos, objetos,
brinquedos, etc., formam um mosaico típico da mais jovem dos Perpétuos.
250
Figura 89
No centro do reino de Delírio, um relógio de sol quebrado com a inscrição, em latim, “o tempo é frágil”.
251
Figura 90
Capa de McKean para um dos títulos de Casa de Bonecas: uso de recortes, fotos, sobreposições e
fragmentos. Destaque para os olhos dentados no rosto sorridente.
252
Figura 91
Essa capa de Convergências, de Dave McKean, utiliza a colagem, a combinação de objetos, fotos e desenhos
para formar uma atmosfera de sonho e fantasia. Acima, uma boneca da irmã de Sonho, Morte.
253
É provável que um dos aspectos mais interessantes de Sandman tenha sido a variação
das técnicas gráficas usadas nas revistas. A proliferação delas e das formas de representação,
mais ou menos distantes dos gibis de super-heróis, que costumam valorizar certo realismo,
fazem deslizar algumas separações mais tradicionais entre artes e mídia massiva,
aproximando as artes plásticas do suporte quadrinesco. Diferentes artistas contribuíram para a
criação dos personagens, alterando a percepção das narrativas, ao mesmo tempo em que
procuravam formas de contribuir com as ideias do escritor da série, cujos roteiros para as
histórias eram bastante detalhados.
Nesse sentido, interessa menos quem pode ter tido o controle criativo de Sandman –
atribuído tradicionalmente à Neil Gaiman, e mais as contribuições e as combinações que, de
forma contínua, reelaboraram significados e trajetos da história. Elementos considerados
mínimos de certo ponto de vista tradicional, como a capa do gibi, mais valorizada por seu
apelo comercial, tal qual uma embalagem, tem grande efeito sobre a constituição da obra, se a
sintaxe dos conjuntos constituintes é elaborada de forma adequada. No caso da arte de
McKean, as capas se tornaram tão (ou mais) complexas que a história, pois nelas já
encontramos diversos elementos que serão valorizados em Sandman – a tradução de
diferentes textos para a composição quadrinesca, a ênfase à apropriação de fragmentos, o jogo
com as instabilidades e certo elogio à diversidade. As capas de McKean devem ser lidas a
partir das relações entre os pedaços que as constituem, sendo o centro aspecto cambiante, pelo
uso da técnica em função da liberação do olhar.
um sonho que diz estar ali para pensar e relaxar. Após alguma conversa, tal cavalheiro explica
o que se passa, esclarecendo as características do lugar onde estão:
Vocês estão em uma das regiões brandas. Havia mais delas, nos velhos tempos.
Quanto eu era apenas uma jovem vizinhança, havia regiões brandas por toda parte.
Bem, não toda parte, mas eram bem mais vistas do que agora. Mesmo no seu tempo,
elas eram mais comuns do que hoje. Às vezes penso que a perda delas é culpa sua.
Sua, de Hwen T’Sang, de Ibn Battuta... De todos vocês. Os exploradores, e os que
vieram através de vocês, congelaram o mundo em padrões rígidos. (...) Nas regiões
brandas, a fronteira entre sonhos e realidade é erodida, ou ainda não se formou... (...)
Aqui, nas regiões brandas, onde a geografia do sonho penetra no real. (...) Não
restam muitas agora... Esta região ainda é branda. Por isso estamos todos aqui
juntos. (...) Há outra na Austrália Central, algumas ilhas no pacífico, um campo na
Irlanda, uma montanha ocasional no Arizona. (Sandman #39, p. 16-17)
Figura 92
Em viagem para o exílio, mestre Li entra em uma região branda e vê objetos que não são de seu tempo.
A técnica de nanquim aproxima as duas eras.
258
Figura 93
Após “pescar” uma ponte de brinquedo, Mestre Li a utiliza para atravessar um precipício no deserto.
259
Saiba então que este é um conto de Baghdad, a Cidade Celestial, a jóia das Arábias,
e que aconteceu no tempo de Haroun Al Raschid, Rei dos Reis, Príncipe dos Fiéis.
Havia sábios, filósofos, alquimistas, geógrafos, geomantes, matemáticos,
astrônomos, tradutores, arquivistas, juristas, gramáticos, cádis e escribas.
Em sua corte estavam os mestres dos Hebreus, que eram os primeiros dos três povos
dos livros e os maiores monges dos pálidos Cristãos (uma gente suja, que venerava o
estrume seco a quem chamavam de Papa) e, como você deve imaginar, ele tinha os
maiores eruditos do Alcorão, a palavra de Allah, conforme foi revelado ao Seu
profeta Maomé, cento e oitenta anos antes. Assim, seu palácio era um lugar de
Sabedoria.
Em seu harém havia mulheres infiéis e fiéis, de peles alvas como a areia do deserto,
amarronzadas como as montanhas vistas à noite, amarelas como a fumaça e negras
como a obsidiana. Todas eram adeptas das artes do prazer.
Também havia muitos meninos belíssimos, de faces ainda imberbes, com negros
olhos libertinos e libidinosos, saborosos como o damasco colhido no orvalho.
Assim, seu palácio era um lugar de Prazer.
Havia magos e astrólogos que interpretavam a vontade de Allah a partir das danças
de estrelas distantes; feiticeiros da China e da Mongólia com altos chapéus de pele e
mangas cheias de segredos; ascetas beduínos, que conheciam os segredos dos anjos,
dos djinns e dos homens.
E havia poetas e músicos, homens de senso elevado e gosto apurado.
E havia estranhos prodígios naquele lugar – homens com cabeças de animais,
animais que falavam feito homens e maravilhas mecânicas que simulavam a vida,
cantavam e se moviam quando ordenadas.
Assim, seu palácio era um lugar de Maravilhas. (Sandman #50, p. 3-5)
Essa Bagdá, de forma semelhante à Bagdá que podemos conhecer ao lermos os livros
das Mil e Uma Noites, tem suas maravilhas à vista dos homens, na convivência urbana, pelo
grande fluxo de gente que ali se reúne nas ruas, nas casas, na corte, nos mercados, vindos de
terras distantes, para participar de um verdadeiro encontro de objetos, ideias, pessoas,
costumes, tradições, etc.
É diferente, por exemplo, dos romances de cavalaria europeus, muitos escritos em
épocas próximas à compilação das Mil e Uma Noites, aproximadamente do século XI ao XIII.
Em tais histórias, são nas ermidas, na solidão, nos lugares muito distantes das cortes e dos
palácios dos cavaleiros, que o extraordinário pode ser encontrado. A demanda do Graal, que
representa a busca dos cavaleiros pelo cálice da última ceia, faz os cavaleiros vagarem pela
260
terra, num misto de aventura e purgação de seus pecados e, longe de casa e do cotidiano,
acabam por vislumbrar maravilhas e horrores sem igual.
Ainda que aventuras em lugares distantes e desconhecidos também estejam presentes
nos contos de Sherazade, como nas histórias do marujo Simbad, notáveis jornadas se dão
principalmente nos cenários urbanos, em casas, nos mercados, nas ruas ou no próprio castelo.
Nessa mesma história, o califa chama Sonho. Ambos seguem para o mercado para
tratar de certos assuntos. E escutam, em meio à multidão, os pregões dos comerciantes:
cotidiano na obra e nos quadrinhos em geral, parecem contar com outras formas de
construção que atuam com maior amplitude e profundidade. A diversidade das histórias, das
narrativas, das imagens e dos discursos não pode ser explicada completamente apenas pela
temática evidente de movimento e mudança, presente de diversas maneiras ao longo dos
gibis. A temática do absurdo em Sonho, com suas angústias e amarguras, que cremos estar
relacionada às motivações do personagem por mudanças capazes, talvez, de projetá-lo para
além de suas “funções” perpétuas e “banais” e de lhe possibilitar a construção de uma história
que lhe seja própria e significativa, também não nos parece que, sozinha, poderia agir como
forma de operação de todos os elementos da série, por mais que – e disso não temos dúvida –
possa servir de fio condutor desde aquele momento, no primeiro arco, quando o rubi dos
sonhos foi destruído, passando imediatamente para a história do passeio de Sonho e Morte
pelas ruas de Nova York e se estendendo para as discussões sobre liberdade, possibilidades e
escolhas que se desenrolam em diversos outros episódios.
Outro mecanismo tradutório parece estar presente: uma forma operatória que permite
a reelaboração dos diversos elementos (dos quadrinhos de super-heróis tradicionais, dos
elementos clássicos e dos traços de horror e fantasia da série), que não exclui e, pelo
contrário, potencializa os movimentos de mudança, a relativização das formas absolutas e de
identidade, além de colaborar na discussão sobre as relações entre a liberdade, a morte e o
absurdo das certezas instransponíveis e imutáveis, que demonstramos estarem presentes ao
longo da série.
Por fim, ma não menos importante, tal operatório não poderia ser estranho ao
cotidiano. Deveria, antes, estar bastante ligado às dinâmicas do dia a dia da cultura, afinal, já
constatamos tal presença na série na qual Sandman se inscreve, os quadrinhos de super-
heróis, com a qual está em constante diálogo e da qual, usualmente, se torna texto paralelo.
Verificando o movimento, de um lado, do acabamento e das polarizações dos
personagens super-heroicos e, do outro, dos processos de deslocamento, abertura e
inacabamento presentes nas histórias de Sonho, parece-nos evidente a presença de elementos
carnavalizantes na obra, conforme estudados e desdobrados por Bakhtin em relação à sua
presença nos gêneros literários.
A complexidade do carnaval, “forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito
complexa, variada, que (...) apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença
de épocas, povos e festejos” (BAKHTIN, 2008, p. 139), vai muito além das possibilidades do
presente estudo. Por isso, limitaremos nosso diálogo à carnavalização presente da literatura,
conforme entendida pelo autor russo, e na presença de certos elementos em Sandman.
262
O carnaval, como festa em que se vive num tempo diferenciado, altera a ordem
habitual da vida e do mundo, promovendo familiaridade com o que antes parecia distanciado
por fronteiras intransponíveis. É o momento em que os governantes são insultados e
enaltecidos como grandes sábios tolos; os santos proferem impropérios contra os deuses; a
sensualidade perturba a elevação do espírito. Durante o carnaval, festa que se desenvolve, de
diversas formas, ao longo de todo o Ocidente, tudo deixa de lado a “ridícula vaidade” de
acreditar ser exatamente o que parece ser (de forma monológica e unívoca), rebaixando os
absolutos à familiaridade entre os homens.
Por suas formas fluidas e móveis, o carnaval tende a escapar ao tempo ritual de sua
realização e “contaminar” diversos aspectos da vida, sendo uma forma de operar a mobilidade
e a renovação, notadamente das formas artísticas e dos movimentos do cotidiano. Não se
trata, é claro, de identificar as formas artísticas os rituais carnavalescos, mas sim de perceber a
penetração de formas semelhantes e modificadas, traduzidas, que estejam relacionadas à
cosmovisão carnavalesca. Bakhtin demonstra como, por meio das tradições e dos movimentos
de gêneros literários, diferentes aspectos carnavalizantes estão presentes, em suas formas
artísticas, em toda a poética de Dostoiévski, em tal intensidade que, no autor, conduziram à
elaboração de formas radicalmente dialógicas de escritura e ao romance polifônico, do qual
uma das características é a pluralidade de discursos e de ideias que guardam independência e
autonomia, sem se confundir com a fala do autor e sem chegar à síntese dialética usual
(BAKHTIN, 2008).
Em Sandman, a carnavalização está presente de diversas formas. A imagem do
destronamento simbólico provavelmente é a mais evidente: Sonho perdendo seu elmo ao ficar
desconcertado frente à alteração completa da ordem infernal; o escritor de épicos destronado
em “praça pública”, local por excelência da festa carnavalesca. Outras formas de
263
destronamento, mais sutis e reduzidas, também estão presentes, como nos momentos em que
Sonho é confrontado por discursos que atestam suas atitudes ridículas ou injustas, que o
“destronam” de sua vaidade e orgulho.
Ao discutir a presença de elementos carnavalizantes da cosmovisão na literatura,
sobretudo na obra de Dostoiévski, Bakhtin enumera uma variedade de formas de
manifestação: a ênfase nas mudanças, o destronamento, o rebaixamento, a paródia, o riso
(ainda que bastante reduzido, quase irônico), a familiaridade que aproxima e humaniza, o
escândalo que subverte as regras sociais comuns, o sonho que revela novas possibilidades, os
“bobos sábios” e os “bobos trágicos”, a ambiguidade, as imagens infernais e divinas
satirizadas, a aproximação de oximoros (o ateu e o crente, a virtuosa e a prostituta), os
excessos, a imagem do banquete e a sensualidade, etc. (BAKHTIN, 2008, p. 139-206). Ao
mesmo tempo, esclarece que “quando as imagens do carnaval e o riso carnavalesco são
transpostos para a literatura, em graus variados eles se transformam de acordo com as metas
artístico-literárias específicas” (BAKHTIN, 2008, p. 189).
Em Sandman, as figuras do destronamento e da mudança são bastante presentes; o
caráter mutável de tudo é acentuado e ressaltado em diversos episódios, personagens e na
própria forma de construir determinada unidade da obra. A seguir, procuraremos identificar,
de forma breve, algumas imagens de caráter carnavalizante.
Morte, irmã de Sonho, é uma mulher não somente atraente e simpática, como
também bastante familiarizada e humanizada, a ponto de sempre falar sobre seu animal de
estimação, um peixe dourado. Tal familiaridade e proximidade são, de certa forma,
destronamentos que retiram a gravidade de certos elementos classicamente distantes e os
aproximam dos campos de relação. Devemos chamar a atenção para o fato de que enquanto
Sonho, Destino e todos os outros Perpétuos possuem balões de diálogos estilizados e com
fontes próprias (Sonho com os balões negros e letras brancas, Destino com os caracteres em
itálico), Morte é a única que apresenta balões comuns, como os da maior parte dos
personagens humanos.
A irmã/o irmão ambivalente de Sonho, Desejo, vive no Limiar (segundo Bakhtin,
esse espaço limite/fronteira está presente na literatura carnavalizada – a confissão às portas da
morte, a revelação na situação-limite) e tudo o que há no Limiar é uma gigante imagem de
Desejo, onde o Perpétuo/a Perpétua vive. Vemos o personagem caminhar pelas aortas, pelos
labirintos dos ouvidos, pelo coração, no cristalino dos olhos. Essa corporeidade, ou esse corpo
amplificado e não orgânico, repartido, como se estivesse destroçado, dilacerado, também é
típica da “anatomia carnavalesca” (BAKHTIN, 2008, p. 187).
264
Desespero, gêmea de Desejo, é uma figura fisicamente grotesca, excessiva, anã e até
mesmo tumorosa, (Figura 59, painel 6), fazendo parte daquela tradição de corpos
carnavalescos de corcundas, bufões, anões e gigantes.
Em Estação das Brumas, temos muitas imagens carnavalescas. A história se inicia
com Destino reunindo a família para conversar e iniciar algo, que ele mesmo desconhece, mas
que se revelará com a ida de Sonho ao Inferno para libertar Nada. Nesse episódio, a cena do
banquete durante a reunião familiar já remete à carnavalização do encontro, culminando na
situação de “escândalo” entre Desejo e Sonho, que tira a ordem “normal” do evento, com o
riso irônico de Desejo provocando Sonho e trazendo à tona seus fracassos amorosos enquanto
comem frutas.
Quando Sonho recebe os diversos seres para discutir com quem deve ficar o Inferno,
o faz num banquete, no qual deuses ficam bêbados, demônios grotescos e deuses estúpidos
flertam entre si e sonhadores vestindo pijamas servem vinho e outras iguarias. Thor, o deus do
trovão nórdico, está presente. Ao invés da forma nobre e apolínea do super-herói do universo
Marvel, ali ele é um deus brutamontes, com um corpo exageradamente musculoso e seu
martelo encantado, Mjolnir, é um instrumento pequeno e desprezível. As aproximações e
imagens carnavalescas se prolongam e chegamos ao final desse arco com os anjos
observadores que não tocam o chão sendo feitos “reis” do Inferno por seu Criador, frustrando
as chances dos outros visitantes que reclamavam para si o Inferno.
No epílogo do arco, após apresentarem tristeza e revolta por seu destino, esses anjos,
Remiel, aquele que está (sugestivamente) acima dos Elevados, e Duma, o anjo do silêncio,
encontram uma “verdade profunda” no Inferno – a reabilitação dos pecadores, chegando
mesmo a vislumbrar a perfeição do plano do criador, discursando, inclusive, sobre ele aos
castigados, enquanto estes são torturados pelos demônios. Lúcifer, por sua vez, tendo
abandonado o Inferno, aparece numa praia, tomando sol e, por fim, elogiando Deus com um
sorriso sarcástico: “Os pores do sol são maravilhosos, seu velho bastardo. Satisfeito?”
A inversão e a relativização de polos absolutos, tal qual acontece com os anjos e
Lúcifer, é própria do carnaval, guardando relações estreitas com os destronamentos e
coroações que alteram a ordem comum do mundo. Da mesma forma, as imagens infernais são
muito desenvolvidas nos contextos carnavalizantes, assim como as conversas reveladoras com
o diabo (BAKHTIN, 2008, p. 179), como aquela, já referida, que Sonho tem com Lúcifer
quando vai ao Inferno resgatar Nada.
Os personagens também se apresentam como “tolos sábios” diversas vezes,
alternadamente e nunca de forma absoluta. Destino diz “verdades” chocantes à Sonho em
265
determinadas passagens, como no arco Vidas Breves, mas ao mesmo tempo é “destronado”
por Delírio, que diz haver coisas que ela sabe que não estão escritas nem mesmo no pesado
livro ao qual o irmão mais velho está acorrentado. Ou nos momentos em que Sonho profere
seus julgamentos e discursos de forma pretensamente absoluta, repleto de justiça e razão, e
acaba confuso e constrangido por um comentário simples e ambíguo que parece conter, mais
do que meramente uma “verdade” melhor, outra “verdade”, que opera como elemento de
rebaixamento do discurso absoluto proferido anteriormente.
Mas não se trata, somente, da presença artística de imagens em que podemos
encontrar formas carnavalizantes. Trata-se, antes, da própria cosmovisão do carnaval
articulando diversos elementos da obra. Podemos observar seus contornos nas características
que já discutimos, como o já citado “destronamento”, nas elaborações e traduções que são
realizadas a partir dos quadrinhos de super-heróis, tornando ambíguos e mais complexos
personagens que antes se apresentavam de forma monológica e absoluta.
Podemos notar também a carnavalização nas regiões brandas ou zonas suaves – soft
places, aqueles locais em que o tempo, o espaço e a realidade deixam de ser absolutos e os
sonhos se encontram com os viajantes, para além das determinações dos mapas e das
cartografias rígidas, familiarizando o que se encontra hierarquicamente distanciado.
As presenças, importantes no enredo, de Puck – personagem de Sonho de Uma Noite
de Verão, também conhecido como Robin Goodfellow (bom companheiro), baseado numa
antiga figura da mitologia inglesa ligada à trapaça e à esperteza, uma personificação do “sábio
tolo” – e do deus da trapaça nórdica Loki – complexa personificação da trapaça e da mudança
de formas – também estão ligadas à cosmovisão carnavalesca. Seres não solares, relacionados
aos elementos e à queda de intensidade da luz do dia, fazem parte dos contextos ambíguos e
em transformação. Em Sandman, no arco Entes Queridos, tais seres têm papel relevante nos
eventos que desencadeiam a morte de Sonho.
Podemos citar, ainda, a deusa suméria do amor e da fertilidade, dançarina num clube
periférico de striptease, Ishtar. Ela é procurada por Sonho e Delírio, que buscam informações
sobre Destruição, o perpétuo da mudança. Ela foi amante do perpétuo pródigo no passado e a
boate é seu “templo” de veneração na atualidade, onde ainda consegue ser “cultuada” após o
colapso dos povos que lhe prestavam adoração.
O próprio tema maior de Sandman dialoga diretamente com o núcleo da cosmovisão
do carnaval: “a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação. O carnaval é
a festa do tempo que tudo destrói e tudo renova” (BAKHTIN, 2008, p. 142).
266
Dessa forma, fica mais evidente o caráter libertador da morte do Sonho “anterior” e
do “renascimento” de um “novo” Sonho com outro ponto de vista, menos rígido e absoluto
em suas posições. Renovado, e não restaurado, é outro Sonho, afinal, já se passou a era da
musa Calliope e dos heróis épicos absolutos e monológicos. O Sonho que renasce da morte
carnavalesca é mais humanizado e familiarizado.
Alguns detalhes chamam a atenção no enredo que envolve, de forma mais direta, a
morte de Sonho: a ação central das míticas “três mulheres” lunares; a participação de figuras
lendárias da trapaça, da transformação e da mudança; e, de forma notável, a origem do novo
Sonho a partir da transformação de Daniel, o filho de Lyta Hall que foi gestado nos sonhos. O
“sucessor” de Sonho não é seu filho ou um personagem ligado a qualquer nobreza ou
linhagem especial – ele simplesmente foi gestado nos sonhos. Devemos lembrar que nos
movimentos de carnavalização dos gêneros literários o sonho, a ilusão e os delírios são temas
importantes e sempre presentes, assim como nas imagens carnavalescas como um todo.
Carnavalizada, a morte de Sonho é um movimento de morte/vida indissociável – nos
termos de tal cosmovisão, o símbolo de mudança mais amplo e radical, uma retirada brusca
do engessamento e da estabilidade de um estado certo e impossível. Em certa medida,
absurda.
O absurdo, ligado ao irredutível e à certeza, é um estranhamento profundo diante do
“mundo comum” em que vivemos sem, aparentemente, levarmos em consideração aspectos
fundamentais da condição humana, preponderantemente a morte e outras consciências sobre a
existência. O absurdo é também a indiferença do mundo – do universo – frente ao olhar e às
perguntas dos homens. A sensação de que o “mundo comum” não nos diz respeito, assim
como não dizemos respeito algum a ele. Afinal, o cotidiano possui esta ambivalência: espaço
das relações e dos movimentos que ao mesmo tempo se encontra repleto das rotinas, das
regras sociais e das angústias da repetição diária.
A visão carnavalesca, segundo Bakhtin, rompe com tal lógica – a lógica da vida
comum que distancia os homens e o mundo. Subverte, através de formas próprias, as
condições de ordem que são aparentemente indiferentes ao humano.
Basta, e estou certo de que todo o resto é absurdo. O principal são os dois ou três
meses de vida e, no fim das contas, bobók. Sugiro que todos passemos esses dois
meses da maneira mais agradável possível, e para tanto todos nos organizamos em
outras bases. Senhores! Proponho que não nos envergonhemos de nada!
(...) Mas por enquanto eu quero que não se minta. É só o que eu quero, porque isto é
o essencial. Na Terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são
sinônimos; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora,
porque o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as
nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada. Serei o primeiro de todos a
contar a minha história. Eu, sabei, sou dos sensuais. Lá em cima tudo isso estava
preso por cordas podres. Abaixo as cordas, e vivamos esses dois meses na mais
desavergonhada verdade! Tiremos a roupa, dispamo-nos! (DOSTOIÉVSKI apud
BAKHTIN, 2008, 160-161)
O mais significativo, para nosso estudo, em tal conto satírico, é a relação, sem dúvida
carnavalizada, entre a morte e a libertação das “cordas podres” de certa ordem da vida, de
certas premissas. Comenta Bakhtin (2008, p. 160) que
Cria-se com isso uma situação excepcional: a última vida da consciência (dois – três
meses até o sono completo), liberta de todas as condições, situações, obrigações e
leis da vida comum é, por assim dizer, uma vida fora da vida. Como será
aproveitada pelos “mortos contemporâneos”? A anácrise, que provoca a consciência
dos mortos, manifesta-se com liberdade absoluta, não restrita a nada.
82
Menipeia é um gênero sério-cômico da antiguidade clássica fortemente relacionado, segundo Bakhtin (2008,
p. 121-139), ao folclore carnavalesco e ao diálogo socrático, entre inúmeras outras características importantes. O
autor relaciona diversos elementos desse gênero à poética de Dostoiévski, sobretudo à prática e ao
desenvolvimento do discurso dialógico.
268
liberdade e morte. Parece que é disso mesmo que se trata. Não podemos, evidentemente, crer
em uma leitura que identificasse a morte literal com a obtenção de maior liberdade. Essa é
apenas parte da construção artística, que também encontramos em Sandman. Trata-se,
principalmente, da familiaridade com a morte e o mundo, que subverte sua certeza e
inevitabilidade, sendo capaz de promover também a relativização das estruturas rígidas, das
repetições monológicas, da prisão por “cordas podres”.
A experiência do limiar, do limite, como ponto de crise e transição radical é própria
do absurdo, em que se decide, diante do extremo silêncio do mundo e da ausência de
significados, pelo salto para a morte, através do suicídio, ou participar alegremente das
representações da vida. Ao mesmo tempo, o limiar tem uma aplicação muito semelhante nas
formas carnavalizadas: “o alto, o baixo, a escada, o limiar, a sala de espera e o patamar
assumem o significado de ponto em que se dão a crise, a mudança radical, a reviravolta do
destino, onde se tomam as decisões, ultrapassa-se o limite proibido, renova-se ou morre-se”
(BAKHTIN, 2008, p. 195-196. Grifos do autor). Nessa região fronteiriça é que vemos se
passarem as histórias de Sandman.
Sonho, em suas angústias e amarguras, parece próximo aos textos de Camus sobre o
absurdo, com os tratamentos específicos que o escritor dá ao tema da liberdade e do sentido
da existência humana diante da morte.
Contudo, o contato de Sonho com o absurdo de sua própria existência, sem história e
sentido, solitária, parece estar relacionado de forma mais profunda com a mudança e a
alteração da ordem “comum” e distante do mundo em que vive, questões bastante evidentes e
amplas na obra, assim como na cosmovisão carnavalesca exposta e discutida por Bakhtin.
Lembremos, ainda, que Sonho é um personagem fora de época, um “tolo romântico”,
um desajustado. A excentricidade e o desajuste são temas recorrentes nos movimentos
carnavalescos (BAKHTIN, 2008, p. 140), além de serem uma condição indissociável para a
apreensão (ou para a sensação) do absurdo do filósofo argelino83.
Se a construção da obra nos parece carnavalizada, Sonho, como já dissemos, é um
personagem próximo do absurdo e da angústia, respondendo à ausência de sentido e
83
“Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço,
bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta sábado no mesmo ritmo, um
percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por que” e tudo começa a
entrar numa lassidão tingida de assombro. (...) Um grau mais abaixo e surge a estranheza: perceber que o mundo
é “denso”, entrever a que ponto uma pedra é estranha, irredutível para nós, com que intensidade a natureza, uma
paisagem pode se negar a nós. (...) Os homens também segregam desumanidade. Em certas horas a lucidez, o
aspecto mecânico dos seus gestos, sua pantomima desprovida de sentido torna estúpido tudo o que os rodeia”
(CAMUS, 2009, p. 27-29).
269
Esse riso, em suas formas mais contidas e irônicas, parece estar presente no
pensamento do absurdo, olhando o mundo como um grande jogo de representações, nessa
vida que se dá no limite entre a morte e a profunda liberdade. Entretanto, tal possível diálogo
entre tais dimensões que se entrecruzam (a cosmovisão carnavalizada e determinadas
filosofias e formas literárias) é muito complexo e extenso. Evidentemente, não há intenção de
abordar tal discussão para além dos nossos interesses específicos neste estudo. Nosso objetivo
foi apenas relacionar planos aparentemente muito distanciados para colaborar com a
compreensão de determinados movimentos da obra.
É plausível conceber a presença de certas formas e temáticas em Sandman a partir
das formas carnavalizadas presentes no gênero romanesco, questão bastante abordada por
Bakhtin, a partir de seus estudos da poética de Dostoiévski e, posteriormente, de seu vasto
trabalho a respeito da carnavalização dos gêneros literários. Dessa forma, o conhecimento
prévio ou independente da cosmovisão do carnaval não seria uma condição necessária para
que as obras literárias apresentem ou não aspectos carnavalizados.
84
O desejo pela morte é evidente, mas não mais que suas tentativas em mudar e representar um papel no mundo.
Sonho apresenta essa ambiguidade até o final da história. Ele se encontra sempre entre a angústia de um
esperado fim e o riso de uma possível renovação.
270
Neil Gaiman, autor de Sandman, como já citamos, foi um dos muitos autores
contratados pelas editoras estadunidenses de quadrinhos de super-heróis na década de 1980.
Pretendia-se renovar certas estruturas a partir de autores que não estivessem, necessariamente,
envolvidos pelos quadrinhos em toda sua formação, ou seja, que não fossem os habituais
leitores dos gibis de super-heróis os criadores dos mesmos. Até então, a indústria parecia
apresentar tal tendência. Segundo alguns pesquisadores, a diferente formação literária de
autores britânicos e sua menor exposição aos quadrinhos estadunidenses de super-heróis, com
suas fórmulas e estruturas pouco variáveis, foram fatores importantes para que tais escritores
desenvolvessem estilos diferenciados e inovadores (SANDERS, 2006, p. 3-22).
Assim, é razoável pensarmos que os elementos carnavalizantes em Sandman podem
ser provenientes dos gêneros literários, com os quais Gaiman pode ter entrado em contato
através da leitura de diversos autores. Porém, somente um estudo pormenorizado poderia nos
situar de maneira mais adequada na vasta paisagem dos percursos criativos.
Sabemos, contudo, que Gaiman deve ter lido, por exemplo, Hoffmann (1776-1822),
autor romântico alemão de fantasia e horror, que escreveu o famoso conto Der Sandmann (O
Sandman), sobre o mesmo personagem folclórico ligado ao sono e aos sonhos que depois
serviria como uma das bases para as elaborações do autor britânico. Na história de Hoffmann,
o personagem apareceria à noite para roubar os olhos das crianças. Em Gaiman, há um
pesadelo chamado Coríntio que tem dentes no lugar dos olhos e que come os olhos de suas
vítimas.
Bakhtin comenta que Dostoiévski “encontrou a combinação da carnavalização com
uma idéia do tipo romântica (e não racionalista, como em Voltaire e Diderot) em Edgar Poe e
sobretudo em Hoffmann” (BAKHTIN, 2008, p. 183).
Trata-se, é claro, apenas de um exemplo para explorar possibilidades. Porque
devemos levar em consideração que, além de estarem presentes em certos gêneros e tradições
271
CONCLUSÕES E DESLOCAMENTOS
85
“Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional:
é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é
claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os
laboratórios hoje” (FOUCAULT, 2005, p. 17).
86
Lotman vê na manutenção de certa ordem que exclui o ruído, de forma análoga, a busca pela totalização dos
sentidos e da manutenção do ordenamento. “Sin embargo, puesto que la cultura es un sistema que se
autoorganiza, en el nivel metaestructural ella se describe constantemente a si misma (con la pluma de los
críticos, los teóricos, los legisladores del gusto y, en general, de los legisladores) como algo unívocamente
predecible y rigurosamente organizado. Estas metadescripciones, por una parte, se introducen en el proceso
histórico vivo, lo mismo que las gramáticas se introducen en la historia de la lengua, ejerciendo una influencia
inversa sobre su desarrollo, y, por otra, hacen patrimonio de los historiadores de la cultura, que se inclinan a
278
identificar tal metadescripción – cuya función cultural consiste precisamente en el riguroso reordenamiento de lo
que en lo profundo del espesor adquirió una excesiva indefinición – con el tejido real de la cultura como tal”
(1994, p. 75-76).
87
Em parte, a redundância explica como alterações de arte, linguagem e contexto podem ocorrer sem que tal
núcleo seja “corrompido”. Há uma repetição de sistemas de conservação que promovem a estabilidade do
sistema diante dos “ruídos” que poderiam criar novos sentidos e discursos. Ao mesmo tempo, os sistemas de
repetição não são absolutos – basta notar as novas significações que os bairros, as ruas e os grupos constroem ao
se apropriarem de enredos, personagens e imaginários que, a princípio, tenderiam à simplificação e à percepção
monológica.
279
aqui exposta, só faz aumentar o interesse pelas diversidades elaboradas no interior da série. E,
evidentemente, em outras próximas, como já comentamos.
Se os super-heróis tendem ao caminho do acabamento, de forma diversa, Sonho
segue pelo caminho da humanização progressiva. Nem herói nem vilão, tem sua identidade
desmontada progressivamente pelos ruídos e textos alheios, pelo que desconhece, pela
frustração e pelos suores sob seu elmo – secreções que comprometem a pretensa integridade
do corpo por revelarem suas fraquezas. Procura a mudança de seu estado fechado em si
mesmo: uma ilha destinada à morte, tal qual o Império Romano de Augustus ou a Ilha-Terra
de Barbie.
Nesse caminho, elementos provenientes dos mitos, da filosofia, dos gibis, etc.,
colaboram para criar uma atmosfera de certa ambiguidade, na qual, por vezes, Sonho
apresenta discursos e atitudes próprias dos super-heróis ou, ao menos, muito próximas. Por
vezes quase imperceptíveis, estes traços lembram o uniforme heroico, superpoderes ou uma
elevação próxima àquela presente nas certezas e retidão dos seres superiores. Cremos que tal
situação, que pode ser lida como continuidade, promover um necessário diálogo. As
linguagens não são situadas em oposição e assim, em jogo, sugerem novos significados.
Lembremos um comentário de Atlan (1992, p. 193):
formas que, por diferentes caminhos, combatem os sentidos totalitários, semelhantemente aos
textos paralelos, que podem rebaixar os significados unívocos e elevados.
Em Sandman, o ridículo colabora na desconstrução da identidade, elemento bastante
importante no universo heroico, que não se mantém íntegro diante do riso, estilhaçando-se em
fragmentos.
(...) este riso está interessado em deslocar a idéia de uma substância ou essência
estáveis, que necessitam de um lugar a ser incessantemente recuperado pelos rituais
das linguagens. Ao tirar o ouvinte da estabilidade do discurso oficial – que o prende
ao lugar, ao lar, à substância (sejam quais forem os substitutos metafóricos que as
sociedades concretas se encarregaram de facilitar) – com sua fala segunda, outra, o
riso faz com que riamos do fato de que, lúcidos, tenhamos percebido a não-
substância, o não-lar, ou seja, nomadismo, solidão e morte. (PINHEIRO, 1995, p.
36)
88
Evidentemente, muitos autores vêm tratando das misturas e das mesclas culturais. A escolha desses dois
pesquisadores deve-se ao fato de que trabalham com a mestiçagem, e não com o hibridismo, como Nestor Garcia
Cancline, ou com o sincretismo – mais do que diferenças semânticas, tais termos encerram concepções históricas
diferentes. Delimitamos também o foco das pesquisas no campo das artes, das linguagens e da cultura, tendo em
vista que alguns teóricos enfocam, de forma mais específica, questões políticas e sociais.
281
desconhecidas, excessivas e curvilíneas gerou tal curiosidade pelo outro que as identidades
não tiveram lugar ou foram diluídas e reaproveitadas, assim como foram descartadas, por
inadequação ao cotidiano e por terem estruturas rígidas pouco afeitas à mescla e à
contribuição.
89
PINHEIRO, Amálio. Mestiçagem Latino-Americana. Entrevista concedida ao jornal O Povo, Fortaleza, 10
maio 2008. Disponível em <http://opovo.uol.com.br/opovo/vidaearte/787818.html>. Acesso em: 08 jan. 2010.
283
Evidentemente, Sandman não faz parte das culturas latino-americanas, tendo sido
composto em contextos culturais, a princípio, anglo-saxões. Por isso a dificuldade, apesar dos
elementos de mescla, diálogo e mobilidade que cremos presentes na obra de colocá-la em
relação imediata com as elaborações da mestiçagem. Fazer isso sem mediações complexas e
análises cuidadosas seria, provavelmente, um prejuízo tanto à mestiçagem quanto ao gibi.
Contudo, não podemos deixar de sublinhar as possíveis conexões e diálogos, mesmo porque o
pensamento mestiço foi fundamental para nortear nossas análises, interpretações e analogias,
as quais buscamos selecionar, articular e traduzir a fim de, em conjunto com outros estudos
próximos, trabalhá-las com textos e contextos diferentes daqueles em que tais teorias vêm
sendo desenvolvidas. Tal tarefa, inclusive, é característica das formas mestiças.
(...) a série de inventos, como armas, meios de locomoção e navegação, etc., saídos
da expansão do mundo europeu e renascentista em crescimento contínuo, tinham
aqui sido readaptados, para efeitos de tradução científico-civilizatória (a
interpretação kuhniana), conforme o aparato local de linguagens e muito
provavelmente conforme, juntamente, os influxos arábigo-ibéricos trazidos já dos
muitos séculos de convivência peninsular. (PINHEIRO, 1995, p. 51)
sobretudo nas ruas da cidade, entre o povo, nas lojas de tecidos, nos açougues, nas casas
repletas de frutas e fontes, nos balcões de frente para as ruas, nos palácios e nos haréns.
Serge Gruzinski, num trabalho de 1999, analisou as relações de mestiçagem entre os
nativos mexicanos e os invasores ibéricos durante o século XVI. Ele observa como elementos
indígenas começaram a se fazer presentes nas linguagens e nas expressões culturais dos
espanhóis e vice-versa. O pesquisador acompanha, em suas reflexões, os latino-americanos na
interpretação de tais fenômenos movediços:
As aproximações que podemos esboçar entre Hong Kong e a Cidade do México não
suprimem nenhuma das inúmeras diferenças que as separam. Servem, antes, para
marcar os “pólos” de um imenso espaço mestiço em que as questões fazem eco
umas às outras. Os pintores da Cidade do México ajudam-nos a abordar os cineastas
de Hong Kong antes que, por sua vez, o exemplo chinês incite em retomar o
exemplo mexicano. (GRUZINSKI, 2001, p. 318)
(...) a mestiçagem é o tornar-se devir mais do que o devir, e pede para ser pensada
em si própria na sua incompletude. Transitória, imperfeita, inacabada, insatisfeita,
vive continuamente a aventura de uma migração, as transformações de uma
actividade de tecelagem e urdidura ininterrupta. Isto significa dizer o quanto esta
noção é eminentemente contraditória. Não pode ser invocada como resposta, já que
ela é a própria questão que perturba os indivíduos, a cultura, a língua e as sociedades
na sua tendência para a estabilização. (LAPLANTINE; NOUSS, [s.d.], p. 86)
O que essas Américas – que não são, portanto, apenas latinas – inventaram, foi um
estilo de vida, maneiras de ser, modos de ver o mundo, de encontrar os outros, de
falar, de amar, de odiar, nos quais a pluralidade é afirmada não como fragilidade
provisória, mas como valor constituinte. (...) Isto nos impede que seja ilusório
procurar nessas sociedades o tipo de coerência que organiza as sociedades da
“tradição” ou as da “razão”. (...) O que nos surpreende nos Latino-Americanos (sic)
286
Essas características citadas pelo autor, presentes nos contextos culturais da América
Latina, são ressaltadas, em suas resultantes, no prefácio de seu livro A Colonização do
Imaginário – Sociedade Indígenas e ocidentalização no México Espanhol (Séculos XVI –
XVIII).
Inventado outro olhar, [Gruzinski] mergulha nos mundos construídos pouco a pouco
sobre os destroços, acompanha o laborioso e sutil trabalho de fabricação de novos
elementos e novas conexões para retecer a rede. Não é relato da destruição nem da
resistência, mas de numerosos processos de transformação cultural que caracterizam
o mundo colonial. (...) nem decadente nem periférico, o mundo colonial mexicano
aparece em seu aspecto mesclado, mestiço, para usar uma palavra cara ao autor.
(PERRONE-MOISES, 2006, p. 12)
História diferente desde o início, já que esta terra americana foi palco do mais
extraordinário encontro étnico registrado nos anais de nosso planeta: o encontro do
287
Por isso, o mais importante a ser investigado nos processos de mestiçagem são essas
intertraduções, uma sintaxe interna nas junturas das dobras encrespadas dos textos,
que produz, por exemplo, um poema-som, um poema-tango. (PINHEIRO, 2009, p.
12)
90
Sugerimos a leitura de Barroco e de Escrito sobre um corpo, ambos de Severo Sarduy. Porém, dificilmente
encontramos uma definição conceitual do barroco latino-americano. É preciso apropriar-se deste conceito pelos
seus modos operatórios: a substituição, a proliferação, a paródia, a citação, o erotismo, o espelhamento, etc. “O
barroco estava destinado, desde o seu nascimento, à ambigüidade, à difusão semântica” (SARDUY, 1979, p. 57).
289
ademais, não deixaria de ser discurso autorreferente, prática pouco afeita aos mecanismos
operatórios barrocos e mestiços.
91
Mourisco é aquele mouro em movimento de mescla que permaneceu na península ibérica após a reconquista
cristã, ao final do século XV.
290
92
Devemos notar, ainda, que com as identidades secretas eles conseguem manter o anonimato e o
distanciamento estratégico do público, desejo confesso de tantas celebridades, que buscam privacidade sem
perder a devoção de seus fãs.
93
Sandman faz referência a isso usando John Dee. Após destruir o rubi dos sonhos e acreditando haver matado
Sonho, John diz: “Eu consegui. Eu... Eu matei. Seja lá quem fosse, já era... Está morto. O rubi também sumiu.
Sinto-me estranho... Diferente. É. Agora, eu governo o mundo dos sonhos. Vou me esconder nos sonhos. Nunca
mais vou voltar, nem trocar este lugar pelo mundo onde só me machucam... Lá, as pessoas morrem quando a
gente precisa delas. Serei um monarca sábio, tolerante e justo, mas só enviarei pesadelos pros maus e perversos.
Ou para qualquer um que eu não goste. Eu sou o rei dos sonhos. De tudo.” (Sandman #7, p. 19).
94
A Epopeia de Gilgamesh, que conta a história do herói sumério do mesmo nome em busca da imortalidade
após a perda do amigo Eikidu, data de mais de 2000 a. C., tendo sido encontrada escrita em tábuas de argila.
95
Tal interpretação do mito de Perseu e da Medusa não é nossa; foi ouvida em conversa de amigos sobre suposta
palestra televisionada que abordou o tema. Contudo, apesar da insistência, não conseguimos encontrar as
referências de autoria dessa leitura da narrativa. Ficam em aberto, então, os créditos aos autores, nossos credores.
291
especialização. A forma de construção dos objetos e de textos da cultura, assim como a das
teorias e dos métodos, representa, através de analogias, metáforas e espelhamentos,
concepções, crenças, mitologias, princípios, conceitos, parâmetros e reflexões que orientam a
organização do pensamento, da cultura e do conhecimento de determinada sociedade, bem
como as formas de relações que estabelecemos (ou não) com os textos culturais. Os sonhos,
delírios, artifícios e ficções que articulamos são formas de significar a existência, por meio de
procedimentos característicos de tecitura dos discursos, que expressam, em jogo, tendências e
desejos de permanência e de mudança, em meio às variabilidades dos condicionamentos e às
relativas possibilidades de movimento.
292
293
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GIBIS
A Morte do Superman
Batman: The Dark Knight Returns I e II (O retorno do Cavaleiro das Trevas) – Frank Miller
Civil War (Guerra Civil): Amazing Spider-Man #529 a #538, Civil War #1a #7
Guerras Secretas II: [#1] New Mutants #30, [#2] Fantastic Four, [#3] Daredevil #223, [#4]
Dazzler #40, [#5] The Thing #30, [#6] Cloak and Dagger (1985 series) #4, [#7] New Mutants
#36, [#8] New Mutants #37, [#9] Avengers #266.
O retorno do Superman
Spider-Man – The Clone Sage (A Saga dos Clones): Web of Spider-Man #117 a #129,
Sensational Spider-Man # a #11, Amazing Spider-Man #394 a #418, Spider-Man #51 a #75,
Spectacular Spider-Man #217 a #240, Spider-Man Unlimited (v. 1) #7 a #14.
GIBIS DO SANDMAN
Sandman #1 - Sono dos justos - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Mike
Dringenberg. Editora Globo, 1989.
Sandman #2 - Anfitriões imperfeitos - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Mike
Dringenberg. Editora Globo, 1989.
Sandman #3 - Dream a little dream of me - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e
Mike Dringenberg. Editora Globo, 1990.
Sandman #4 - Uma esperança no inferno - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Mike
Dringenberg. Editora Globo -1990
Sandman #5 - Passageiros - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Sam Kieth e Malcolm Jones III.
Editora Globo, 1990.
Sandman #6 - 24 horas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones
III. Editora Globo, 1990.
Sandman #7 - Som e fúria - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e Malcolm
Jones III. Editora Globo, 1990.
Sandman #8 - O som de suas asas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e
Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.
Sandman #10 - Casa de bonecas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e
Malcolm Jones III. Editora Globo -1990
Sandman #11 - Dia de mudança - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e
Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.
Sandman #12 - Casa de brincadeiras - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Chris Bachelo e
Malcolm Jones III. Editora Globo, 1990.
Sandman #14 - Homens de boa fortuna - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Zulli e Parkouse.
Editora Globo, 1990.
Sandman #15 - Dentro da noite - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e
Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.
Sandman #16 - Corações perdidos - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike Dringenberg e
Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.
Sandman #17 - Calliope - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Delley Jones e Malcolm Jones III.
Editora Globo, 1991.
Sandman #18 - Um sonho de mil gatos - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley Jones e
Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.
Sandman #19 - Sonho de uma noite de verão - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Charles Vess e
Steve Oliff. Editora Globo, 1991.
Sandman #20 - Fachada - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Colleen Doran e Malcolm Jones
III. Editora Globo, 1991.
Sandman #21 - Estação das brumas: um prelúdio - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike
Dringenberg e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.
Sandman #22 - Estação das brumas: capítulo 1 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley
Jones e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.
Sandman #23 - Estação das brumas: capítulo 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley
Jones e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.
Sandman #24 - Estação das brumas: capítulo 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley
Jones e P. Craig Russell. Editora Globo, 1991.
Sandman #25 - Estação das brumas: capítulo 4 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Matt
Wagner e Malcolm Jones III. Editora Globo, 1991.
Sandman #26 - Estação das brumas: capítulo 5 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley
Jones e George Pratt. Editora Globo, 1991.
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Sandman #27 - Estação das brumas: capítulo 6 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Kelley
Jones e Dick Giordano. Editora Globo, 1992.
Sandman #28 - Estação das brumas: epílogo - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Mike
Dringenberg e George Pratt. Editora Globo, 1992.
Sandman #29 - Thermidor - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Stan Woch e Dick Giordano.
Editora Globo, 1992.
Sandman #30 - Augustus - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Brian Talbot e Stan Woch. Editora
Globo, 1992.
Sandman #31 - Três setembros e um janeiro - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn
McManus. Editora Globo, 1992.
Sandman #32 - 1: Matança na quinta avenida - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn
McManus. Editora Globo, 1992.
Sandman #33 - 2: Canções de Ninar da Broadway 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn
McManus. Editora Globo, 1992.
Sandman #34 - 3: Lua má nascente - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Collen Doran, George
Pratt e Dick Giordano- Editora Globo, 1992.
Sandman #35 - 4: Começando a ver a luz - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn McManus.
Editora Globo, 1992.
Sandman #36 - 5: Sobre o mar, até o céu - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shawn McManus,
Brian Talbot e Stan Woch- Editora Globo, 1992.
Sandman #37 - Eu acordei e um de nós estava chorando - Argumento: Neil Gaiman; Arte:
Shawn McManus. Editora Globo, 1992.
Sandman #38 - A caçada - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Duncan Eagleson e Vince Locke.
Editora Globo, 1992.
Sandman #39 - Regiões brandas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: John Watkiss. Editora
Globo, 1993.
Sandman #40 - O parlamento das gralhas - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e
Vince Locke. Editora Globo, 1993.
Sandman #41 - Vidas breves 1 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
Sandman #42 - Vidas breves 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
Sandman #43 - Vidas breves 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
302
Sandman #44 - Vidas breves 4 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
Sandman #45 - Vidas breves 5 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
Sandman #46 - Vidas breves 6 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
Sandman #47 - Vidas breves 7 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
Sandman #48 - Vidas breves 8 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
Sandman #49 - Vidas breves 9 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jill Thompson e Vince
Locke. Editora Globo e Devir Livraria, 1994.
Sandman #50 - Ramadã - Argumento: Neil Gaiman; Arte: P. Craig Russel. Editora Globo,
1994.
Sandman #51 - Fim do mundo - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Bryan Talbot, Alec Stevens,
Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.
Sandman #52 - Fim do mundo 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Bryan Talbot, John
Watkiss, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.
Sandman #53 - Fim do mundo 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli, Bryan
Talbot, Dick Giordano, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.
Sandman #54 - Fim do mundo 4 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Allred, Bryan
Talbot, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.
Sandman #55 - Fim do mundo 5 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Shea Anton Pensa, Vince
Locke, Bryan Talbot, Mark Buckingham. Editora Globo, 1996.
Sandman #56 - Fim do mundo 6 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Bryan Talbot, Gary
Amaro, Dick Giordano, Tony Harris, Mark Buckingham, Steve Leiahola. Editora Globo,
1996.
Sandman #57 - Entes queridos: 1 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel. Editora
Globo, 1996.
Sandman #58 - Entes queridos: 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli.
Editora Globo, 1996.
Sandman #59 - Entes queridos: 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli.
Editora Globo, 1996.
303
Sandman #60 - Entes queridos: 4 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli.
Editora Globo, 1996.
Sandman #61 - Entes queridos: 5 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli.
Editora Globo, 1996.
Sandman #62 - Entes queridos: 6 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, D’Israeli,
Glyn Dillon, Charles Vess, Deam Ormstron. Editora Globo, 1996.
Sandman #63 - Entes queridos: 7 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel - Editora
Globo, 1997.
Sandman #64 - Entes queridos: 8 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Teddy Kristiansen.
Editora Globo, 1997.
Sandman #65 - Entes queridos: 9 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, Richard
Case. Editora Globo, 1997.
Sandman #66 - Entes queridos: 10 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, Richard
Case. Editora Globo, 1997.
Sandman #67 - Entes queridos: 11 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, Richard
Case. Editora Globo, 1997.
Sandman #68 - Entes queridos: 12 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel, Richard
Case. Editora Globo, 1997.
Sandman #69 - Entes queridos: 13 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Marc Hempel. Editora
Globo, 1998.
Sandman #70 - Despertar - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli. Editora Globo,
1998.
Sandman #71 - Despertar 2 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli. Editora Globo,
1998.
Sandman #72 - Despertar 3 - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli. Editora Globo,
1998.
Sandman #73 - Despertar: um epílogo - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Michael Zulli.
Editora Globo, 1998.
Sandman #74 - Exílio - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Jon J. Muth. Editora Globo, 1998.
Sandman #75 - Tempestade - Argumento: Neil Gaiman; Arte: Charles Vess. Editora Globo,
1998.