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DA JUSTIÇA AMBIENTAL
AOS DIREITOS E DEVERES 1
ECOLÓGICOS
Conjecturas político-filosóficas para
uma nova ordem jurídico-ecológica
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE
DE CAXIAS DO SUL
Presidente:
Roque Maria Bocchese Grazziotin
Vice-Presidente:
Orlando Antonio Marin
Reitor:
Prof. Isidoro Zorzi
2
Vice-Reitor:
Prof. José Carlos Köche
Pró-Reitor Acadêmico:
Prof. Evaldo Antonio Kuiava
Coordenador da Educs:
Renato Henrichs
DA JUSTIÇA AMBIENTAL
AOS DIREITOS E DEVERES 3
ECOLÓGICOS
Conjecturas político-filosóficas para
uma nova ordem jurídico-ecológica
EDUCS
c do autor
Direitos reservados à:
INTRODUÇÃO / 9
Capítulo 1
JUSTIÇA AMBIENTAL: UMA PERSPECTIVA EM EVOLUÇÃO / 13
1.1 A gênese do movimento por justiça ambiental / 13
1.2 A internacionalização do movimento por justiça ambiental / 23
1.3 Os conflitos ecológicos distributivos / 27
1.3.1 A mineração / 29
1.3.2 A exploração do petróleo / 31
1.3.3 A carcinicultura / 33 7
1.3.4 Direitos e terras indígenas / 34
1.3.5 A biopirataria / 37
1.3.6 A silvicultura industrial / 38
1.3.7 O uso e o acesso à água / 40
1.3.8 A dívida ecológica / 41
1.3.9 A injustiça climática / 43
1.4 O movimento por justiça ambiental no Brasil / 46
1.5 As causas das injustiças ambientais contemporâneas na perspectiva do
movimento por justiça ambiental / 56
1.6 Justiça ambiental e justiça ecológica: perspectivas desconexas? / 66
CAPÍTULO 2
JUSTIÇA AMBIENTAL E MODERNAS TEORIAS DA JUSTIÇA / 73
2.1 Teorias da justiça e suas diferentes abordagens / 73
2.1.1 A justiça como maximização do bem estar / 77
2.1.2 A justiça pela perspectiva da liberdade / 79
2.1.3 A justiça como virtude / 91
2.2 Justiça ambiental e uma adequada concepção de justiça / 94
2.3 Para além da redistribuição: reconhecimento e capacidades como questões
centrais / 100
2.3.1 Justiça ambiental e redistribuição / 101
2.3.2 Justiça ambiental e reconhecimento / 103
2.3.3 Justiça ambiental e capacidades / 114
2.4 Identificando as dimensões da justiça ambiental / 128
2.4.1 A justiça ambiental intrageracional / 129
2.4.2 A justiça ambiental intergeracional / 131
2.4.3 A justiça ambiental interespécies / 133
Referências / 189
Anexo 1 / 201
CARTA DE P RINCÍPIOS DE JUSTIÇA A MBIENTAL DA P RIMEIRA C ONFERÊNCIA
NACIONAL DE LIDERANÇAS AMBIENTALISTAS DE POVOS DE COR
Introdução
JUSTIÇA AMBIENTAL:
UMA PERSPECTIVA
EM EVOLUÇÃO
1
HERCULANO, Selene. Riscos e desigualdade social: a temática da Justiça Ambiental e sua
construção no Brasil. In: ENCONTRO DA ANPPAS, 1., 2002, Indaiatuba/SP. Anais…
Indaiatuba: ANPPAS, 2002.
2
SCHLOSBERG, David. Defining environmental justice: theories, movements and nature.
New York: Oxford University Press, 2009. p. 46.
ausência de regulamentação de despejos de resíduos tóxicos próximos a
comunidades humanas.3
O caso Love Canal, ocorrido na cidade de Niagara Falls, New York,
Estados Unidos, notabilizou-se pelo alto grau de mobilização social da
comunidade local contra poluição por dejetos químicos. A história de
Love Canal remonta ao ano de 1892. À ocasião, o empreendedor William
T. Love propôs um projeto que pretendia conectar as partes alta e baixa
do rio Niagara, por meio de um canal de cerca de 9,6 km de extensão e 85
metros de profundidade. Décadas mais tarde, em 1920, o projeto foi
abandonado, e a área então escavada foi vendida, tornando-se um grande
depósito de lixo até o ano de 1953. Dentre as principais indústrias, que
utilizavam o canal para depósito de dejetos, destacava-se a Hooker Chemical
Corporation. Também o Exército norte-americano se valeu do local como
área para despejo de dejetos bélicos. No ano de 1953, todo o canal estava
repleto de resíduos, sendo então coberto com terra. Naquela época, a área
adjacente ao aterro começou a ser urbanizada e ocupada com moradias,
14 sendo que em 1955 uma escola primária foi aberta sobre a área que abrigara
o antigo canal. No final da década de 70, a comunidade local, após
descobrir que suas casas foram erguidas sobre um grande aterro de um
canal com dejetos químicos industriais e bélicos, passou a identificar a
ocorrência de diversas doenças, sobretudo entre as crianças. A comunidade
local reclamava que as crianças não mais podiam brincar fora de casa
porque as solas de seus pés ficavam queimadas. Reclamavam também que
as árvores morriam na região e que os focinhos dos cães queimavam quando
em contato com a terra do quintal das casas.4
Em 1978, os moradores da região afetada decidiram fundar a Love
Canal Homeowners Association (LCHA),5 com cerca de 500 famílias filiadas,
cujos objetivos principais eram os de pressionar as autoridades políticas e
juntar fundos para evacuação dos moradores locais. A mobilização da
comunidade afetada, capitaneada por Lois Gibbs, uma moradora do local,
surtiu resultado. No mesmo ano, o Departamento de Saúde da região
recomendou a evacuação temporária das mulheres grávidas e das crianças
com menos de dois anos de idade, tendo em vista a ocorrência de diversos
3
SCHLOSBERG, Defining Environmental Justice: theories, movements and nature, p. 47.
4
HERCULANO, Selene. Justiça ambiental: de Love Canal à Cidade dos Meninos, em uma
perspectiva comparada. In: MELLO, Marcelo Pereira de (Org.). Justiça e sociedade: temas e
perspectivas. São Paulo: LTr, 2001. p. 215-238.
5
Associação de Proprietários de Casas em Love Canal. Tradução livre.
abortos espontâneos e o nascimento de crianças com defeitos genéticos
em mais de duzentas famílias. Menos de um mês depois, o governador de
New York, Hugh Caray, realocou definitivamente essas famílias e comprou
suas casas. Dois anos mais tarde, em 1980, em razão de um estudo realizado
pela Environmental Protection Agency (EPA), órgão ambiental federal norte-
americano, que apontava que os moradores da região de Love Canal
apresentavam uma quantidade anormal de quebra cromossômica e grandes
chances de contraírem cânceres, o presidente dos EUA, Jimmy Carter,
assinou uma lei sobre a evacuação permanente de todas as famílias lá
residentes por questões de angústia mental.6
Para a norte-americana Adeline Levine o caso Love Canal tornou-se
mundialmente famoso não apenas por se tratar de um caso emblemático
de poluição por dejetos químicos, que atingiu intensamente uma específica
comunidade norte-americana, mas também por ter servido de exemplo de
ativismo socioambiental.7 A partir de Love Canal, o movimento contra
contaminação tóxica norte-americano – que teve em Rachel Carson8 sua
grande inspiradora – ganhou definitivamente grande notoriedade nos EUA. 15
A esse respeito, Herculano assinala:
6
HERCULANO, op. cit., p. 215-238.
7
LEVINE, Adeline. Campanhas por justiça ambiental e cidadania: o caso Love Canal. In:
ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Org.). Justiça ambiental
e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 97.
8
A norte-americana Rachel Carson foi uma bióloga marinha, pesquisadora rigorosa e
romancista, que, no ano de 1962, publicou o clássico livro Silent spring (Primavera Silenciosa),
escrito durante quatro anos e meio, com centenas de fontes e documentos científicos
corroborando suas afirmações e que desencadeou a proibição do inseticida DDT nos EUA,
em razão de sua alta toxidade à saúde humana, dando forma e servindo de inspiração ao
movimento social contra a contaminação tóxica surgida nos EUA. (CARSON, Rachel.
Primavera silenciosa. Trad. de Cláudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Gaia, 2010).
ambiental das localidades (clean-up funds); uma lei que garante o
direito da vizinhança conhecer o que nela está ou será instalado –
The Community Right-to-know Act; bem como um programa de
financiamento aos cidadãos para que possam contratar assessoria
técnica especializada.9
9
E complementa Selene Herculano: “Em 1997 o presidente Clinton baixou uma ordem,
intitulada ‘Protection of Children from Environmental Health Risks and Safety Risks’,
tornando de alta prioridade os estudos sobre os riscos ambientais e de saúde que afetam
desproporcionalmente as crianças. Hoje a LCHA se ampliou para uma coalizão nacional, o
Center for Health, Environment and Justice, congraçando 8 mil entidades de base e 27 mil
cidadãos por todos os Estados Unidos e deslanchou em 1995 uma campanha contra a exposição
à dioxina – ‘Stop Dioxine Exposure Campaign’, que tem promovido conferências nacionais
dos cidadãos sobre os efeitos desta substância sobre a saúde da população, quais estratégias
tomar e que medidas propor”. (HERCULANO, op. cit., . 215-238).
10
ALIER, Joan Martínez. O ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2009. p. 35.
11
Ibidem, p. 231.
profundamente desigual e que o componente racial era fator determinante
nessa equação. Autores como Cole e Foster ilustram bem o quanto essa
desigualdade atingia a própria aplicação das leis ambientais pelo governo
dos EUA:
12
“There is a racial divide in the way the US government cleans up toxic waste sites and
punishes polluters. White communities see faster action, better results and stiffer penalties
than communities where blacks, Hispanics and other minorities live. This unequal protection
often occurs whether the community is wealthy or poor.ý” Trad. livre. (COLE, Luke W.;
FOSTER, Sheila R. From the ground up: environmental racism and the rise of environmental
justice movement. New York and London: New York University Press, 2001. p. 57).
13
ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In:
ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. Justiça ambiental e
cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 25-26.
14
ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do Amaral; BEZERRA, Gustavo das
Neves. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 19.
EUA, intitulado Siting of hazardous waste landfills and their correlation with
racial and economic status of surrounding communities.15 Segundo o sociólogo
norte-americano Robert Bullard, um dos primeiros autores a pesquisar
sobre o tema do racismo ambiental, o referido estudo demonstrou que
75% das áreas, nas quais se situavam os aterros comerciais de resíduos
perigosos da chamada “Região 4” dos Estados Unidos (que compreende
oito estados na região sudeste do país), se encontravam localizadas em
comunidades afroamericanas, situação que contrastava com o fato delas
representarem apenas 20% da população da referida região.16
Anos mais tarde, em 1987, um segundo importante estudo foi realizado
a pedido da Comissão de Justiça Racial da United Church of Christ (UCC),
uma importante igreja protestante dos EUA. Denominado de Toxic Wastes
and Races,17 tratou-se de um dos primeiros estudos voltados à correlação
dos fatores demográficos, que determinavam as escolhas locacionais para
as instalações de manipulação de resíduos.18 Segundo Bullard, para a
surpresa de muitos, este trabalho evidenciou que a questão racial era a
18 variável mais determinante na escolha de onde tais instalações eram
localizadas, superando a pobreza, o valor da terra e a propriedade de
imóveis. 19 A partir desse estudo, a expressão racismo ambiental foi
definitivamente cunhada. Seu autor foi o Reverendo Benjamin Chavis, da
UCC, que utilizou a expressão pela primeira vez quando se preparava para
divulgar publicamente os resultados do estudo em comento.20
O racismo ambiental exprime o fenômeno pelo qual muitas das
políticas públicas ambientais, práticas ou diretivas acabam afetando e
prejudicando de modo desigual, intencionalmente ou não, indivíduos e
comunidades de cor. Para Bullard, o racismo ambiental é, portanto, uma
forma de discriminação institucionalizada, que opera principalmente onde
grupos étnicos ou raciais formam uma minoria política ou numérica.21
15
Localização de aterros para resíduos perigosos e sua correlação com o estado racial e
econômico das comunidades vizinhas. Tradução livre.
16
BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In: ACSELRAD,
Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Org.). Justiça ambiental e cidadania.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 45.
17
Resíduos Tóxicos e Raças. Tradução livre.
18
UCC-CRJ. Toxic wastes and race at twenty: 1987-2007. Disponível em: <http://
www.ucc.org/justice/pdfs/toxic20.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2011.
19
BULLARD, op. cit., p. 45.
20
RECHTSCHAFFEN, Clifford; GAUNA, Eileen; O’NEILL, Catherine A. Environmental
justice: law, police & regulation. 2. ed. Durham, North Carolina: Carolina Academic Press,
2009. p. 105-106.
21
BULLARD, op. cit., p. 42-44.
Com efeito, a partir da definição clara daquilo que se denominou
racismo ambiental, o cenário político norte-americano passou a discutir
de forma mais intensa os elos existentes entre raça, pobreza e poluição. Da
mesma forma, os estudiosos e pesquisadores passaram a ampliar seus estudos
com ênfase na vinculação existente entre os problemas ambientais e a
desigualdade social. Segundo Acselrad, Mello e Bezerra, esse avanço no
campo teórico objetivava a busca por instrumentos que permitissem uma
efetiva “avaliação de equidade ambiental”, capaz de introduzir variáveis
sociais nos tradicionais estudos de avaliação de impacto.22 Os referidos
autores observam ainda:
22
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 22.
23
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 22.
24
Primeira Conferência Nacional de Lideranças Ambientalistas de Povos de Cor. Tradução
livre.
25
BULLARD, Enfrentando o racismo ambiental no século XXI, p. 45-46.
No final da conferência, foram aprovados pelos delegados presentes
os 17 Princípios da Justiça Ambiental,26 uma carta de princípios que, embora
gerada em uma conferência focada na questão racial, não se limitou a ela,
estabelecendo uma verdadeira agenda ambiental atenta às vulnerabilidades
sociais e étnicas.
De acordo com Schlosberg, podem ser identificadas diversas questões
incorporadas pela referida carta de princípios, tais como: políticas
ambientais baseadas no respeito mútuo; maior participação das minorias
no cenário político; e reconhecimento da autodeterminação dos povos. O
autor destaca ainda que os princípios, curiosamente, superaram o
característico viés antropocêntrico do movimento por justiça ambiental,
vinculando temas como o da integridade cultural à sustentabilidade
ambiental e o da sustentabilidade humana à sustentabilidade dos demais
seres vivos.27
Outro importante acontecimento ocorrido no cenário norte-americano
foi a publicação, no ano de 1992, do relatório Environmental equity:
20 reducing risks for all communities28 pela Agência de Proteção Ambiental dos
EUA (EPA). A importância desse estudo, segundo Bullard, reside no fato
de ter sido a primeira investida institucional do governo norte-americano
no tema da equidade ambiental.29 No documento, conforme destacam
Acselrad, Mello e Bezerra, o grupo de trabalho responsável pela sua
elaboração reconheceu que os estudos sobre a relação entre equidade e
meio ambiente “[...] apontavam tendências perturbadoras, sugerindo uma
participação maior das comunidades de baixa renda e das minorias no
processo decisório relativo às políticas ambientais”.30
Tais conclusões da Agência de Proteção Ambiental norte-americana
lastrearam a promulgação, pelo então presidente dos EUA, Bill Clinton,
de uma ordem executiva marcante sobre justiça ambiental no ano de
1994. Denominada Federal actions to address environmental justice in minority
populations and low-income populations,31 a Ordem Executiva 12.898/94
decretou que todas as comunidades e indivíduos, independentemente de
26
Vide anexo 1.
27
SCHLOSBERG, Defining environmental justice: theories, movements and nature, p. 49.
28
Equidade ambiental: reduzindo riscos para todas as comunidades. Tradução livre.
29
BULLARD, Enfrentando o racismo ambiental no século XXI, p. 47.
30
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 22.
31
Ações federais para justiça ambiental às populações minoritárias e de baixa renda. Tradução
livre.
raça ou nível de renda, possuíam o direito de viver em um ambiente
seguro e saudável. Decretou ainda que todas as agências e departamentos
do governo federal norte-americano deveriam incorporar as demandas por
justiça ambiental. Sobre isso, os autores Roberts e Toffolon-Weiss destacam:
32
ROBERTS, J. Timmons; TOFFOLON-WEISS, Melissa. Concepções e polêmicas em torno
da justiça ambiental nos Estados Unidos. In: ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene;
PÁDUA, José Augusto (Org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2004. p. 84.
33
Sobre a batalha travada no cenário político norte-americano, em torno das diretrizes
provisórias da Agência Ambiental dos EUA (EPA), ver: ROBERTS; TOFFOLON-WEISS,
Concepções e polêmicas em torno da justiça ambiental nos Estados Unidos, p. 81-95.
34
Bill Clinton exerceu o mandato de presidente dos EUA no período de 20 de janeiro de
1993 a 20 de janeiro de 2001.
35
“The EPA defines environmental justice as ‘the fair treatment and meaningful of all people
regardless of race, color, national origin, or income with respect to the development
implementation, and enforcement of environmental laws, regulations, and policies.” Tradução
livre. (BULLARD, Robert. The quest of environmental justice: human rights and the politics
of pollution. São Francisco: Sierra Club, 2005. p. 4).
Entretanto, com a transição do governo Clinton para o governo de
George W. Bush, a expressão justiça ambiental perdeu força institucional e
passou novamente a ser pautada pelas reivindicações de grupos e
movimentos sociais, estando sua sobrevivência condicionada ao
fortalecimento das lutas políticas, baseadas numa ampla coalizão dos
movimentos sociais de reivindicação de direitos civis e dos grupos de defesa
ambiental.36
Com efeito, pela retrospectiva histórica supradescrita, percebe-se que
as raízes do chamado movimento por justiça ambiental, surgido nos EUA,
estão vinculadas, ao menos para parte da doutrina especializada, aos dois
movimentos sociais anteriormente destacados: o movimento contra
contaminação tóxica e o movimento contra o racismo ambiental.
Entretanto, significativa parcela da doutrina abalizada no assunto discorda
dessa afirmação, enxergando tão somente nos movimentos de luta contra
o racismo ambiental a origem do movimento por justiça ambiental.
Tal divergência doutrinária é bem-retratada por Alier, para quem a
22 “insistência no racismo ambiental às vezes surpreende os analistas de fora
dos EUA”.37 Alier afirma que vários acadêmicos de fora dos EUA se negam
a reconhecer a questão racial como fator determinante para o surgimento
do movimento por justiça ambiental norte-americano, apontando o dia 2
de agosto de 1978, dia em que as redes de televisão norte-americanas CBS
e ABC difundiram pela primeira vez a notícia da contaminação causada
em Love Canal, como sendo a data do início do surgimento do movimento
por justiça ambiental. Ocorre que o caso Love Canal não possuía vinculação
direta com a questão racial, porquanto a população atingida pela
contaminação não era formada por pessoas de cor em sua maioria.
Essa a razão pela qual para grande parcela dos teóricos norte-americanos
a luta por justiça ambiental nos EUA originou-se, verdadeiramente, a
partir da mobilização ocorrida na cidade norte-americana de Afton em
1982, estando, portanto, diretamente atrelada ao movimento contra o
racismo ambiental.38
36
ROBERTS; TOFFOLON-WEISS, Concepções e polêmicas em torno da justiça ambiental
nos Estados Unidos, p. 91-92.
37
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 234.
38
Na opinião de Alier, a questão do racismo nos EUA é deveras peculiar. Segundo o autor,
“[...] nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que há racismo, há também uma forte corrente
anti-racismo. A raça é uma referência de importância prática para explicar, além da
controvertida geografia dos depósitos de lixo tóxico e as taxas carcerárias, os padrões residenciais
e escolares. Estabelecer um vínculo entre o movimento não-violento pelos direitos civis dos
Divergências à parte, entre os teóricos é unânime a conclusão de que,
atualmente, a expressão justiça ambiental traduz outros significados, para
além do racismo ambiental.
O racismo ambiental por certo é um discurso poderoso para o
enfrentamento das injustiças ambientais diretamente vinculadas ao
preconceito racial. Contudo, não serve para o enfrentamento de muitas
outras situações de injustiças ambientais contemporâneas, cujos fatores
determinantes não se vinculam a uma questão puramente racial.
O norte-americano Benford destaca que a ampliação das lutas
vinculadas ao movimento por justiça ambiental se deu, inclusive, como
uma estratégia para dar maior longevidade ao movimento, porquanto, tal
como acontece com todo movimento social, sem novas metas e prognósticos
há uma tendência à estagnação.39
Tal fenômeno fez com que o movimento por justiça ambiental, a
partir da experiência norteamericana, se difundisse pelo mundo, ganhando
contornos bem mais amplos que os originalmente vinculados às lutas contra
o racismo ambiental ou contra contaminação tóxica. Atualmente, o 23
movimento por justiça ambiental abarca todos os conflitos socioambientais,
cujos riscos sejam suportados de forma desproporcional sobre populações
socialmente vulneráveis ou mesmo sobre os países ditos de “Terceiro
Mundo”.
anos 1970 e a crescente consciência ambiental das décadas de 1970 e 1980 resultou atraente
por questões instrumentais”. Em complementação, Alier refere: “[...] para explicitar a
manifestação de racismo, não é suficiente comprovar que o impacto ambiental é diferente
(por exemplo, que o nível de chumbo no sangue das crianças varia de acordo com a raça),
mas igualmente que existiu uma intenção de provocar comprometimentos a um grupo
minoritário”. (ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 238).
39
BENFORD, Robert. The half-life of the environmental justice frame: innovation, diffusion,
and stagnation. In: PELLOW, David Naguib; BRULLE, Robert. Power, justice and
environmental: a critical appraisal of the environmental justice movement. Cambridge: MIT
Press, 2005. p. 41.
do Banco Mundial, que ficou conhecido por Memorando Summers.40 No
referido memorando, Lawrence Summers, economista chefe do Banco
Mundial à época, apontou três razões para que os países pobres fossem o
destino dos polos industriais de maior impacto ao meio ambiente. A
primeira delas: o meio ambiente seria uma preocupação “estética”, típica
dos países ricos; a segunda: os indivíduos mais pobres, na maioria das
vezes, não vivem tempo suficiente para sofrer os efeitos da poluição
ambiental; e a terceira: pela lógica econômica de mercado, as mortes em
países pobres têm um custo mais baixo do que nos países ricos, pois seus
moradores recebem menores salários.41
Tais revelações assustadoras só deram força ao movimento por justiça
ambiental em nível internacional. A década de 90, portanto, marca o
início do fenômeno da expansão global das lutas do movimento por justiça
ambiental. Segundo Acselrad, Mello e Bezerra, tal fenômeno fez com que
o movimento surgido nos EUA se consolidasse como uma rede multicultural
e multirracial internacional, “[...] articulando direitos civis, grupos
24 comunitários, organizações de trabalhadores, igrejas e intelectuais”.42
A expansão internacional do movimento por justiça ambiental fez
com que autores como Alier identificassem o movimento em questão,
como uma nova corrente do ecologismo, denominada ecologismo dos pobres,
diferente das até então estabelecidas. Uma corrente de pensamento que
assinala que o crescimento econômico implica maiores impactos ao meio
ambiente, destacando o deslocamento geográfico das fontes de recursos e
das áreas de descarte dos resíduos. Sua preocupação principal, portanto,
não está relacionada a uma reverência sagrada à natureza, mas, sim, a um
interesse pelo meio ambiente como fonte de condição para subsistência
humana. Sua ética nasce de uma demanda por justiça social. Uma corrente
ecológica de pensamento, que se expande internacionalmente, na exata
proporção em que se expande a economia globalizada, aumenta os impactos
sobre o meio ambiente e crescem as desigualdades sociais.43
40
Joan Martínez Alier destaca que o referido memorando interno do Banco Mundial foi
registrado no periódico The Economist, na edição de 8 de fevereiro de 1992, sob o título Let
them eat pollution, e que desde então tornou-se um material “canônico” para o movimento
por justiça ambiental. (ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 251).
41
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 7-8.
42
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 23.
43
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 34.
Alier ressalta, porém, que existe uma diferença entre o movimento
por justiça ambiental norte-americano e os movimentos por justiça
ambiental “terceiro-mundistas”. A diferença, que para muitos autores
sequer é percebida, é bastante significativa: enquanto o movimento por
justiça ambiental norte-americano se notabiliza por lutas em favor de
grupos minoritários e contra o racismo ambiental nos EUA, os movimentos
por justiça ambiental de fora dos EUA, “[...] lutam contra impactos
ambientais que ameaçam os pobres, que constituem a ampla maioria da
população em muitos países”.44
Embora tal distinção assinalada por Alier seja digna de nota, o próprio
autor reconhece que, apesar das diferenças decorrentes da realidade social
na qual se inserem as lutas e campanhas por justiça ambiental nos EUA e
no chamado “Terceiro Mundo”, todos integram uma idêntica corrente de
pensamento relativa à preocupação e ao ativismo ambientais.45
A esse respeito, Bullard ressalta que o “[...] clamor por justiça
ambiental e econômica não termina nas fronteiras dos EUA, mas estende-
se às comunidades e nações que são ameaçadas pela exportação de resíduos 25
perigosos, produtos tóxicos e indústrias sujas”.46 Em semelhante sentido, a
opinião de autores como Bullard, Schlosberg, Brulle, Pellow, entre outros,
está no sentido de que o movimento por justiça ambiental, surgido no
cenário norte-americano, passou a ter uma dimensão global, para muito
além das fronteiras dos EUA.
Brulle e Pellow referem que o movimento por justiça ambiental acabou
atingindo uma dimensão global por uma razão óbvia: as causas da
iniquidade ambiental num mundo globalizado também têm alcance e
impacto globais. Nesse particular, Brulle e Pellow destacam a
responsabilidade dos países do Hemisfério Norte com os países do
Hemisfério Sul, sobretudo pela dimensão global que as decisões políticas
tomadas, naqueles países, acarretam a estes, causando consequências sociais
e ecológicas negativas em continentes como a América Latina, África e
Ásia. Os autores salientam também que as principais fontes políticas de
44
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 35.
45
Joan Martínez Alier denomina tal corrente de pensamento de ecologismo dos pobres, nascida
dos “conflitos ambientais em nível local, regional, nacional e global causados pelo crescimento
econômico e pela desigualdade social”. Como destaca Alier, em muitos contextos os atores
da terceira corrente sequer utilizam um discurso ambientalista, sendo esta a principal razão
pela qual a terceira não foi, até os anos 80, plenamente identificada. ALIER, O ecologismo dos
pobres, p. 38-39.
46
BULLARD, Enfrentando o racismo ambiental no século XXI, p. 59.
decisão de esfera global se localizam nos países do Hemisfério Norte (como
o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização
Mundial do Comércio), situação que não passa despercebida pelo
movimento por justiça ambiental.47
No mesmo sentido, Schlosberg assinala que, muito embora a
perspectiva do movimento por justiça ambiental tenha se forjado no cenário
social norte-americano, ela foi adotada por muitos movimentos sociais de
fora dos EUA, sejam eles movimentos focados em reivindicações de
natureza global, sejam mesmo aqueles voltados exclusivamente às demandas
dos países do Hemisfério Sul.48
Como consequência dessa expansão, a expressão injustiça ambiental
passou a designar o fenômeno da destinação da maior carga dos danos
ambientais decorrentes do processo de desenvolvimento a certas
comunidades tradicionais, grupos de trabalhadores, grupos raciais
discriminados, populações pobres, marginalizadas e vulneráveis.
Ao conceito de injustiça ambiental contrapõe-se a atual noção de
26 justiça ambiental, concebida a partir da perspectiva teórico-discursiva do
movimento por justiça ambiental, que compreende um “[...] conjunto de
princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos
étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional de
degradação do espaço coletivo”.49 Assim, atualmente o movimento por
justiça ambiental exprime, nas palavras de Acselrad, “[...] um movimento
de ressignificação da questão ambiental. Ela resulta de uma apropriação
singular da temática do meio ambiente por dinâmicas sociopolíticas
tradicionalmente envolvidas com a construção da justiça social”.50
A partir dessas considerações, não é de estranhar que o movimento
por justiça ambiental tenha se difundido muito além das fronteiras norte-
americanas. Muito embora diversas injustiças ambientais sejam percebidas
47
BRULLE, Robert; PELLOW, David Naguib. The future of the environmental justice
movements. In: PELLOW, David Naguib; BRULLE, Robert. Power, justice and environmental:
a critical appraisal of the environmental justice movement. Cambridge: MIT Press, 2005. p.
296.
48
SCHLOSBERG, Defining environmental justice: theories, movements and nature, p. 79.
49
ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Agusto. A justiça ambiental e
a dinâmica das lutas socioambientais no Brasil: uma introdução. In: ACSELRAD, Henri;
HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 10-11.
50
ACSELRAD. Henri. Ambientalização das lutas sociais. Revista estudos avançados, São Paulo,
v. 24, n. 68, p. 103-119, 2010.
nos mais variados recantos do planeta, nos países em desenvolvimento
suas consequências são ainda mais severas para as populações pobres.
Evidencia-se, portanto, que a dimensão global alcançada pelo
movimento por justiça ambiental introduziu uma crítica nova ao debate
ambiental, direcionada ao processo de produção capitalista. No atual
modelo neoliberal de desenvolvimento, há uma lógica econômica perversa,
que ignora por completo a ideia de equidade na repartição das
externalidades negativas do processo produtivo. Ainda, a crítica do
movimento por justiça ambiental identifica as questões econômicas globais
diretamente relacionadas com casos de injustiças ambientais em diversas
partes do mundo, como, por exemplo, a ausência de uma efetiva regulação
sobre os grandes agentes econômicos do risco ambiental, situação que
possibilita a eles uma livre-procura por comunidades carentes, vítimas
preferenciais de suas atividades geradoras de riscos ambientais.51
Em semelhante sentido, Porto-Gonçalves destaca que “[...] há uma
geografia desigual dos proveitos e dos rejeitos conformando o sistema mundo
moderno-colonial, o que coloca na ordem do dia o movimento por justiça 27
ambiental”.52
A internacionalização do movimento por justiça ambiental fez com
que as demandas do movimento passassem a abarcar as lutas e os protestos
contrários à distribuição desigual dos perigos e riscos relacionados à poluição
do ar e das águas; aos desastres ambientais; às mudanças climáticas; à
insegurança alimentar; à degradação ambiental causada pelo setor
industrial; aos modos de vida, tradições e cultura; ao acesso aos recursos
naturais; sempre em abordagens vinculadas à desigualdade social e às
práticas discriminatórias.53
Exemplos não faltam. A seguir buscar-se-á examinar alguns deles.
51
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 30.
52
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da
globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 388.
53
TSCHAKERT, Petra. Digging deep for justice: a radical re-imagination of the artisanal
gold mining sector in Ghana. In: HOLIFIELD, Ryan; PORTER, Michael; WALKER,
Gordon. Spaces of environmental justice. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010. p. 118.
denomina conflitos ecológicos distributivos, cerne das demandas do
movimento por justiça ambiental.
A expressão distribuição ecológica, segundo Alier, congrega “[...] padrões
sociais, espaciais e temporais de acesso aos benefícios obtidos dos recursos
naturais e aos serviços proporcionados pelo ambiente como um sistema de
suporte da vida”. Ainda, os determinantes da distribuição ecológica podem
ter origens naturais (clima, topografia, padrões pluviométricos, etc.), bem
como podem estar atrelados a fatores sociais, culturais, econômicos, políticos
e até mesmo tecnológicos.54
Os principais conflitos de distribuição ecológica, na classificação de
Alier, relacionam-se com: (a) o racismo ambiental, fator determinante de
uma carga desproporcional de contaminação sobre certas comunidades
por motivos raciais; (b) a contaminação tóxica de origem industrial sobre
certas localidades pobres do planeta; (c) a dívida ecológica reclamada pelos
países em desenvolvimento; (d) a biopirataria, geradora de apropriação de
recursos genéticos silvestres ou agrícolas sem remuneração adequada ou
28 sem reconhecimento de direitos sobre tais recursos às comunidades
tradicionais ou indígenas; (e) os monocultivos de pinus, eucalipto e acácia,
geradores de profundas alterações nos ecossistemas naturais e impactos
sobre comunidades tradicionais; (f ) a destruição dos manguezais pela
carcinicultura, atingindo as comunidades que subsistem do mangue; (g) a
construção de grandes represas, barragens e usinas hidrelétricas, fonte de
alterações ecossistêmicas elevadas e desapropriações de terras de
comunidades tradicionais e indígenas; (h) a mineração, fonte de impactos
ambientais graves e danos à saúde dos trabalhadores e comunidades
vizinhas às minas; (i) as reivindicações indígenas por reconhecimento de
direitos territoriais; (j) os conflitos ambientais urbanos, relacionados com
a questão da poluição do ar e das águas e do lixo urbano; (k) as mudanças
climáticas e suas consequências sobre as populações e países pobres; (l) a
expansão do agronegócio e os impactos sobre o meio ambiente e sobre os
pequenos produtores rurais.55
É importante salientar, porém, que tais conflitos de distribuição
ecológica não estão apenas relacionados a questões de distribuição
econômica ou de renda. Nesse particular, merece destaque a lição de Leff,
para quem o “[...] campo conflitivo da ecologia política extrapola uma
54
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 113.
55
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 343.
análise de distribuição ecológica que acaba remetendo a um cálculo
econômico”.56
Amparando-se no princípio da incomensurabilidade, que traduz a
impossibilidade de redução dos processos ambientais, sociais e culturais, a
simples valores de mercado, Leff encontra na perspectiva da justiça
ambiental uma forma de reinterpretar os conflitos de distribuição ecológica,
não limitada a uma simples “[...] negociação em torno de um conflito
econômico-ecológico, com critérios técnicos de impacto ambiental e de
custo-benefício”.57
Os movimentos sociais que clamam por justiça ambiental, portanto,
no entendimento de Leff, são movimentos de resistência cultural, de estilos
de vida e de defesa do meio ambiente, que almejam a construção de
projetos produtivos e sociais alternativos, nos quais a luta por justiça e
equidade é travada a partir de “[...] princípios de diversidade e diferença,
de identidade e autonomia, e não das transações e compensações
estabelecidas pelas regras de valorização, negociação, complementação e
distribuição da globalização econômico-ecológica”.58 29
Essa afirmação é melhor compreendida quando analisados alguns casos
concretos de conflitos ecológicos distributivos à luz da perspectiva da justiça
ambiental.
1.3.1 A mineração
O primeiro exemplo de atividade que acarreta conflitos de distribuição
ecológica é a atividade de mineração.
Na América Latina, talvez o melhor exemplo de problemas
socioambientais decorrentes da mineração seja o caso do Peru, país no
qual as injustiças ambientais decorrentes dessa atividade assolam
comunidades locais há pelo menos cem anos.
Segundo Alier, por volta do ano 1900, em razão da difusão dos
instrumentos elétricos, vias férreas e máquinas em geral, estava em alta no
mundo a atividade de mineração de metais como cobre, chumbo e zinco.
Assim, no ano de 1901 o governo do Peru alterou o código de exploração
mineral autorizando a apropriação privada das jazidas de minérios em
56
LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder.
Trad. de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 72.
57
LEFF, Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder, p. 73.
58
LEFF, Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder, p. 69.
território peruano, em substituição da até então propriedade estatal e do
regime de concessões administrativas para exploração. A partir daí, a
Corporação Cerro de Pasco, de New York, passou a adquirir muitas jazidas,
iniciando uma exploração mineira subterrânea de grandes proporções.
Referida corporação norte-americana construiu vias férreas, diques, usinas
hidrelétricas e campos de mineração em altitudes de cerca de quatro mil
metros acima do nível do mar. Também ergueu diversas fundições de
pequeno porte, até que, em 1922, construiu uma grande fundição, bem
como uma refinaria na localidade de La Oroya, as quais acarretaram
inúmeros impactos ambientais à população local. Alier refere que a nova
fundição fez com que os pastos murchassem e pessoas adoecessem em
virtude da contaminação do ar, do solo e dos rios da região com arsênico,
ferro, zinco e ácido sulfúrico.59
A partir da década de 60, a mineração subterrânea no Peru passou a
ser substituída pela mineração a céu aberto. Ainda atualmente, sobretudo
na parte sul do Peru, minérios como o cobre são obtidos em minas a céu
30 aberto, causando enormes remoções de terra, que geram sedimentos e
contaminam a escassa água disponível em tal região do país, onde as chuvas
são raras e existe pouca água subterrânea.60
Outro grave problema socioambiental, decorrente da atividade de
mineração no Peru, relaciona-se com a contaminação de populações locais
com o dióxido de enxofre, que é expelido nas fundições. Segundo Alier,
59
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 94.
60
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 95.
61
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 95-96.
A atividade da mineração no Peru atingiu enorme proporção não
apenas no sul do país, mas em diversas localidades, como Antamina, Cuzco,
Tintaya e Cajamarca. Tantos são os conflitos socioambientais relacionados
à atividade mineradora no Peru, que foi fundada pelos movimentos sociais
locais a Confederación Nacional de Comunidades del Peru Afectadas por la
Minería (Conacami).62
Trata-se de um flagrante exemplo de mobilização social em torno da
bandeira da justiça ambiental no Peru. A Conacami representa as
comunidades tradicionais peruanas, focando suas ações na justiça social e
ambiental, reivindicando o reconhecimento de direitos coletivos contra os
abusos das corporações transnacionais, extrativistas e das atividades
econômicas e políticas nacionais e globais.63
52
Confederação Nacional de Comunidades do Peru Atingidas pela Mineração. Tradução
livre. (ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 96).
63
CONFEDERACIÓN NACIONAL DE COMUNIDADES DEL PERÚ AFECTADAS
POR LA MINERÍA (CONACAMI PERÚ). Nuestra organización. Disponível em: <http://
w w w. c o n a c a m i . o r g / we b s i t e / i n d e x . p h p ? o p t i o n = c o m _ c o n t e n t & v i e w = s e c t i o n
&layout=blog&id=15&Itemid=265>. Acesso em: 6 jul. 2011.
cânceres, distúrbios respiratórios, doenças de pele e mortandade infantil.
No final da década de 80, as comunidades afetadas passaram a organizar
grandes manifestações de protesto, que resultaram na primeira lei ambiental
de Curaçao, obrigando a refinaria, pela primeira vez, a obter uma licença
ambiental. Entretanto, os avanços foram muito mais aparentes do que
concretos, porquanto a legislação estabelecida se mostrou frágil, não
impondo quaisquer obrigações de reparação com relação aos danos já
causados. Como se não bastasse, referida legislação estipulou que o governo
local deveria suportar a metade dos custos das medidas ambientais futuras
que viessem a ser adotadas.64
Nesse contexto, não é difícil compreender por que as demandas por
justiça ambiental em Curaçao ainda estão longe de um final feliz.
Outro bom exemplo de luta e reivindicações de justiça ambiental,
atrelado à atividade de exploração de petróleo, ocorre no Equador, onde
diversas organizações equatorianas se uniram em torno de uma campanha
pela preservação do Parque Nacional Yasuni e pela garantia dos direitos
32 territoriais dos povos indígenas que habitam o local.
Desde 2004, organizações ambientalistas, indígenas, sociais e
científicas passaram a denunciar os impactos que as atividades petrolíferas
previstas para uma área intacta do Parque Nacional Yasuni acarretam ao
ecossistema local e à autonomia dos povos indígenas da região. Em 2006,
a ação articulada dos movimentos sociais obteve êxito político quando da
suspensão da licença que foi concedida à Petrobras, em 2004, para operar
dentro do Parque. Ocorre que no Brasil não é permitida a exploração
petrolífera em Parques Nacionais e em territórios indígenas. Assim, um
dos principais argumentos utilizados pelos movimentos sociais equatorianos,
além da fragilidade e importância ecológica da área protegida pelo parque,
é o de que, ao explorar petróleo em Yasuni, a Petrobras estaria se
aproveitando de uma legislação mais permissiva, exportando a injustiça
ambiental do Brasil para o Equador. Atualmente, a luta dos movimentos
sociais equatorianos, que combatem a exploração de petróleo no Equador,
objetiva a conquista de uma moratória petroleira junto ao parque.65
64
FRIENDS OF THE EARTH INTERNATIONAL. Our environmental, our rights: standing
up for people and the planet. Amsterdam: Primavera Quint, 2004. p. 12-13.
65
REDE BRASILEIRA DE JUTIÇA AMBIENTAL. Exploração de petróleo no Equador:
sociedade civil brasileira apóia proposta equatoriana de manter o Parque Nacional Yasuni
livre de exploração petrolífera. Disponível em: <http://www.justicaambiental.org.br/
justicaambiental/pagina.php?id=1659>. Acesso em: 9 jul. 2012.
Ante tais exemplos, fica fácil compreender por que as demandas
socioambientais atreladas à atividade de exploração do petróleo são uma
das bandeiras de luta do movimento por justiça ambiental.
1.3.3 A carcinicultura
A atual perspectiva do movimento por justiça ambiental perpassa
também reivindicações de comunidades tradicionais atingidas por
atividades industriais que afetam o meio de subsistência de ditas
comunidades. A carcinicultura é um bom exemplo disso.
Inúmeros são os conflitos ecológicos distributivos existentes em países
como Brasil, Equador, Honduras e Colômbia, decorrentes do tensionamento
entre as comunidades tradicionais que retiram sua subsistência dos
manguezais e a indústria do cultivo de camarão.
Segundo Alier, o cultivo industrial do camarão implica a extirpação
de manguezais para que no seu lugar sejam construídas piscinas de
carcinicultura.66 Ocorre que os manguezais são fonte de subsistência de
33
comunidades tradicionais de baixa renda, que vivem do comércio de
caranguejos e da pesca, além de se utilizarem da madeira dos manguezais
para a construção de suas moradias. Os mangues geralmente são
classificados como terras públicas, porquanto situados em zonas das marés.
Contudo, como refere Alier,
66
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 120.
67
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 120.
68
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 128-135.
Os manguezais são ecossistemas essenciais não apenas para a
subsistência de comunidades humanas tradicionais, mas também para a
própria proteção da biodiversidade a eles associada e para a manutenção
do equilíbrio ecológico em geral, já que também desempenham uma função
ecológica que auxilia no amortecimento do aquecimento global.
Assim, a destruição dos manguezais, para a implantação dos viveiros
de camarão gera não só um grave problema ambiental, como também
injustiças sociais severas, tais como a exclusão de diversas comunidades de
seus territórios e a insegurança alimentar decorrente da inviabilização de
práticas, que dão sustentação aos tradicionais modos de vida dessas
comunidades.
69
FRIENDS OF THE EARTH INTERNATIONAL. Our environmental, our rights: standing
up for people and the planet, p. 8-9.
70
CARVALHO, Guilherme; IIRSA; PAC: ameaças e conflitos para as Terras Indígenas na
Amazônia brasileira. In: CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os
povos indígenas no Brasil – Dados de 2010. Brasília: CIMI, 2010. p. 31.
Segundo esclarece Carvalho,
71
CARVALHO; IIRSA; PAC: ameaças e conflitos para as Terras Indígenas na Amazônia
brasileira, p. 32.
72
CARVALHO; IIRSA; PAC: ameaças e conflitos para as Terras Indígenas na Amazônia
brasileira, p. 35.
Exemplos como esses permitem perceber o porquê da questão indígena
ser um dos focos do movimento por justiça ambiental, o qual busca
demonstrar que o desenvolvimento econômico pretendido por muitos países
não pode ser implantado às custas de violações de direitos indígenas,
porquanto tal situação só aumentará a exclusão social, a pobreza, a miséria
e as desigualdades no interior de cada país, tornando o índio mais um
excluído social.
1.3.5 A biopirataria
A biopirataria também acarreta conflitos ecológicos distributivos, sendo
um típico problema de injustiça ambiental, sobretudo nos ditos países de
Terceiro Mundo.
Tal expressão sintetiza a prática do acesso e patenteamento de recursos
genéticos da biodiversidade de um determinado país e de conhecimentos
tradicionais a ela associados, por empresas multinacionais e instituições
científicas, sem destinar aos países de origem ou às comunidades
tradicionais locais – que sempre usufruíram livremente de tais recursos e 37
desenvolveram tais conhecimentos tradicionais – quaisquer participação
nos lucros obtidos com as patentes.
Um bom exemplo de injustiça ambiental, relacionado ao tema da
biopirataria, é retratado por Shiva. Na Índia, o nim (Azadirachta indica),
uma árvore nativa, durante séculos vem sendo utilizada como fonte de
biopesticidas e remédios. Em certas localidades do país, a população
desenvolveu o hábito de iniciar cada ano novo comendo brotos do nim.
Em outras regiões, referida árvore é venerada como algo sagrado. Shiva
destaca que durante séculos o mundo ocidental ignorou as propriedades
do nim. Contudo, nos últimos anos, com o aumento da oposição ao uso
de pesticidas no mundo ocidental, as atenções de empresas químicas de
diversas regiões do mundo se voltaram com entusiasmo às propriedades da
árvore indiana. Segundo a autora, desde 1985 empresas americanas e
japonesas obtiveram diversas patentes para soluções e emulsões à base do
nim. Embora as empresas donas das patentes afirmem que as patentes se
justificam em razão dos processos inventivos associados ao produto original,
há muita controvérsia sobre o assunto.73
73
SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Trad. de Laura
Cardellini Barbosa de Oliveira. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 95-98.
No caso específico do nim, Shiva salienta:
74
SHIVA, Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento, p. 97.
Conforme Alier, até poucos anos atrás, a matéria-prima que abastecia
a indústria do papel era produzida em sua maioria nos países do Norte.
Entretanto, com a expansão mundial do mercado da madeira e do papel,
a produção industrial da madeira tem se deslocado, de modo cada vez
mais evidente, para os países do Sul, tendo em vista que, nesses países,
sobretudo na América Latina e África, as terras são mais abundantes e
mais baratas.75
As grandes indústrias do papel e da celulose, que atuam no ramo da
silvicultura industrial, procuram incorporar discursos ligados ao conceito
de sustentabilidade, porquanto estar-se-ia diante de uma atividade industrial
pautada pelo plantio de florestas e pelo uso sustentável da extração da
madeira. Porém, inúmeros exemplos, sobretudo nos países pobres,
demonstram que a silvicultura industrial está longe de ser uma atividade
ambientalmente sustentável.
Diversas são as razões. As grandes plantações de florestas não possuem
características de verdadeiras formações florestais, já que são compostas de
um única espécie de árvores. Geralmente a espécie escolhida para o plantio 39
em larga escala é uma espécie exótica, não pertencente ao ecossistema
local, de crescimento rápido, tais como o pínus e o eucalipto em muitas
regiões do mundo, inclusive no Brasil. Ademais, a introdução das florestas
exóticas cultivadas no lugar de matas ou campos nativos, deteriora muitas
das funções ecológicas dos ecossistemas, comprometendo a fertilidade dos
solos e a retenção de água dos lençois freáticos. Tal situação acarreta
problemas, sobretudo aos pequenos agricultores. Alier cita o exemplo da
Tailândia, onde, a partir do final dos anos 70, dezenas de milhares de
hectares de florestas naturais foram substituídas por plantações de
eucaliptos, para abastecimento da indústria papeleira japonesa. Os
pequenos agricultores locais tiveram suas lavouras de arroz afetadas pela
proximidade dos plantios de eucalipto, que “[...] tragam a água e esgotam
o solo; também lamentavam a perda das matas heterogêneas, nas quais
obtinham forragem, combustível, frutas e ervas medicinais”.76
Não obstante, tal atividade vem sendo cada vez mais incentivada
pelos governos dos países em desenvolvimento, do que se conclui que os
conflitos de distribuição ecológica e as injustiças ambientais decorrentes
da silvicultura industrial estão longe do fim.
75
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 160.
76
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 161.
1.3.7 O uso e o acesso à água
O uso da água, sobretudo em áreas rurais, também é fonte de conflitos
ecológicos distributivos e injustiças ambientais em diversas localidades do
planeta.
Um bom exemplo disso é a atividade de construção de grandes represas
voltadas à geração de energia hidrelétrica, a qual tem provocado efeitos
socioambientais graves em diversos países.
Barlow e Clarke asseveram que, durante os últimos cem anos, a Rede
Internacional de Rios, grupo que inspeciona megarrepresas, identificou a
construção de cerca de 40 mil grandes represas nos rios do planeta,
acarretando a inundação de cerca de um por cento da superfície terrestre,
uma destruição sem igual em ecossistemas e na biodiversidade, bem como
o deslocamento de cerca de sessenta milhões de pessoas, que, na grande
maioria, ficaram mais pobres após o deslocamento.77
Em diversos países, a construção de represas acarreta problemas de
40 ordem social, relacionados ao deslocamento populacional de comunidades
tradicionais em face da implantação dos gigantescos reservatórios de água
das represas. Afora isso, Alier aponta outros riscos socioambientais de tal
atividade:
77
BARLOW, Maude; CLARKE, Tony. Ouro azul: como as grandes corporações estão se
apoderando da água doce do nosso planeta. Trad. de Andréia Nastri. São Paulo: Makron
Books do Brasil, 2003. p. 238.
78
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 181.
A privatização da água, nesse contexto, tende a agravar o problema.
Barlow e Clarke ilustram bem essa questão ao referir que, nos países do
dito “Terceiro Mundo”, a privatização, na maioria das vezes orquestrada
pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, é exigida
para renegociação das dívidas externas desses países. As consequências são
cruéis: sobretudo a população pobre se torna incapaz de pagar os crescentes
custos tarifários referentes à água e ao saneamento básico.79
Caubet, amparado em dados científicos, apresenta números desse
quadro de injustiça relacionado ao acesso à água. Segundo o autor, cerca
de 1,1 bilhões de seres humanos vivem sem água potável e 2,4 bilhões não
têm acesso a instalações sanitárias. Ainda, cerca de dois milhões de seres
humanos, principalmente crianças, morrem nos chamados “países do sul”,
em virtude de doenças relacionadas à falta de redes de distribuição de
água e saneamento, sendo que em cada 10 crianças uma morre por causa
de diarreia ou desidratação antes de alcançar a idade de cinco anos. Caubet
ressalta, ainda, que 40% da água do planeta são consumidos por apenas
20% da população que vive nos países desenvolvidos.80 41
Percebe-se, portanto, que a desigual distribuição do acesso à água, no
cenário mundial, atinge de modo muito mais intenso os países em
desenvolvimento e as populações vulneráveis do planeta. Essa é a razão
pela qual os conflitos ecológicos distributivos, decorrentes do uso e do
acesso à água geram demandas por justiça ambiental, as quais se voltam
contra o discurso da privatização, da precificação e da excessiva
mercantilização de tão indispensável bem ambiental.81
79
BARLOW; CLARKE, Ouro azul: como as grandes corporações estão se apoderando da
água doce do nosso planeta, p. 91.
80
CAUBET, Christian Guy. A água, a lei, a política... e o meio ambiente? Curitiba: Juruá,
2004. p. 19-20. A fonte de consulta informada pelo autor é a revista New Scientist de 7.9.2002.
81
SGARIONI, Márcio Frezza; RAMMÊ, Rogério Santos. Acesso à água: uma questão de
justiça ambiental em um contexto de globalização e consumismo. Revista de Direitos
Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 11, n. 11, p. 202-223, jan./jun. 2012.
Tais demandas assumem uma postura de reivindicação de vantagens
econômicas aos países pobres do Hemisfério Sul em face dos países ricos
do Hemisfério Norte. Busca-se, portanto, uma compensação histórica pelos
séculos de exploração das florestas, da biodiversidade, dos minerais, do
petróleo e dos conhecimentos tradicionais, a que os países do Sul foram
submetidos. Nesse particular, vale destacar o pensamento de Shiva:
82
SHIVA, Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento, p. 33.
83
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 287.
As demandas por justiça ambiental, vinculadas ao tema da dívida
ecológica, portanto, buscam mecanismos de compensação econômica em
favor dos países pobres, na medida em que se reconhece o direito de todos
os habitantes do planeta à utilização da mesma quantidade de recursos
naturais e da mesma porção de espaço ambiental.
84
No quarto Relatório de Avaliação do Clima (AR4) publicado em 2007, o IPCC afirma que
o aquecimento global é inequívoco. Diferentemente dos relatórios anteriores, o quarto relatório
do IPCC aponta, com mais de 90% de certeza, que a principal causa do aquecimento de
temperatura, observado nos últimos 50 anos, é o aumento das emissões de gases de efeito
estufa na atmosfera, em decorrências de atividades humanas. INTERNATIONAL PANEL
ON CLIMATE CHANGE (IPCC). AR4 Synthesis Report. Disponível em: <http://
www.ipcc.ch/publications_and_data/ar4/syr/en/main. html>. Acesso em: 13 jan. 2011.
85
E complementam Acselrad, Mello e Bezerra: “Tanto pior quando se leva em conta as
populações indígenas e tradicionais em geral, pequenos agricultores e pescadores artesanais,
para quem a alteração do clima desestabiliza os recursos naturais dos quais dependem
diretamente para sua reprodução material e simbólica.” ACSELRAD; MELLO; BEZERRA,
O que é justiça ambiental, p. 38.
86
Sobre premissas e objetivos que devem pautar a construção de uma agenda política pautada
pela perspectiva da justiça climática ver: RAMMÊ, Rogério Santos. A política da justiça
Um exemplo claro de injustiça climática é retratado por Eliane Moreira,
em estudo recente sobre os efeitos das mudanças climáticas sobre
comunidades tradicionais:
90
RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO 2007/2008 DO PROGRAMA
DAS NAÇÕES UNIDAS. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/rdh/>. Acesso em: 6
jan. 2011.
91
GIDDENS, Anthony. A política da mudança climática. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010. p. 259.
92
MILANEZ, Bruno; FONSECA, Igor Ferraz da. Justiça Climática e Percepção Social: uma
análise do contexto brasileiro. In: ENCONTRO DA ANPPAS, 5., 2010, Florianópolis.
Anais... Florianópolis: ANPPAS, 2010.
93
“Resulta inconcebible pensar que haya justicia climática mientras países enteros y en
especial las gentes más empobrecidas en esos países, sean condenados a la miseria por
mecanismos de saqueo y explotación que han sido y siguen siendo impostos históricamente;
mientras las inequidades de ingresos sigan el patrón actual y la economia mundial siga los
patrones de intercambio económico y ecológico desigual instaurados mediante relaciones
colonialistas; mientras la explotación de la naturaleza y los seres humanos sea la fuente del
O conceito de injustiça climática, portanto, surge da constatação de
que as comunidades tradicionais de pequenos agricultores e pescadores, os
índios, e de modo geral as populações pobres do planeta, em razão de sua
vulnerabilidade social, são mais suscetíveis de se tornarem vítimas de
processos de alterações do clima provocados pelo aquecimento global,
mesmo sendo quem menos contribui para o problema.
A constatação de que tal situação é injusta e acarreta conflitos
socioambientais graves fez com que as demandas por justiça climática
ganhassem fôlego junto ao movimento por justiça ambiental em nível
internacional, sendo hoje uma das grandes bandeiras do movimento.
bienestar de los países de alto consumo y de las élites globales; [...] Así la justicia nos seguirá
siendo esquiva.” Tradução livre. (VÉLEZ, Hildebrando. Negociando com el clima: otro jaque
mate a la democracia? In: AMIGOS DE LA TIERRA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE.
Voces del sur para la justicia climática. Chile: Codeff, 2009. p. 37-57).
94
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 347.
95
ALMEIDA, José Roberto Novaes de. Desigualdades brasileiras: aspectos econômicos
históricos. In: PÁDUA, José Augusto. Desenvolvimento, justiça e meio ambiente. São Paulo:
Peirópolis, 2009. p. 170.
culturas, não é de se estranhar que a busca incessante pelo desenvolvimento
econômico da nação, aliada à histórica fragilidade político-institucional
brasileira, transformem o país em campo fértil para a ocorrência de
inúmeras injustiças ambientais.
Acselrad, Herculano e Pádua destacam que no Brasil tanto a injustiça
social quanto a discriminação de parcelas da população são percebidas no
modelo elitista de apropriação do espaço territorial e dos recursos naturais
da nação, bem como na exposição desigual da população brasileira à
poluição e aos custos ambientais do desenvolvimento.96 Em razão disso, os
autores destacam as razões pelas quais os movimentos sociais que
reivindicam justiça ambiental adquirem elevado potencial político no Brasil:
96
ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, A justiça ambiental e a dinâmica das lutas
socioambientais no Brasil: uma introdução, p. 10.
97
ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, A justiça ambiental e a dinâmica das lutas
socioambientais no Brasil: uma introdução, p. 11.
agricultura, em razão dos riscos que tal prática acarretava ao meio ambiente
e à saúde humana.98
O mesmo pode ser dito com relação a outros movimentos sociais
bastante significativos na história recente do Brasil, caso do movimento
dos atingidos por barragens e do movimento de resistência dos seringueiros
na Amazônia. Este último teve em Chico Mendes uma liderança que
sacrificou a própria vida na luta contra o modelo predatório de exploração
de recursos naturais, que ameaçava a vida e a cultura das populações
tradicionais da Amazônia.99
Referidos movimentos, embora não se utilizassem originalmente da
expressão justiça ambiental, são típicos exemplos de movimentos sociais
brasileiros que, desde suas origens, sempre clamaram por aquilo que hoje
se entende por justiça ambiental.
No ano de 1998, representantes do movimento por justiça ambiental
norte-americano vieram ao Brasil para trocar experiências e estabelecer
relações com movimentos sociais locais dispostos a formatar alianças na
48 luta contra a injustiça ambiental. Foi realizado um encontro na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que reuniu os representantes do
movimento por justiça ambiental dos EUA, bem como representantes de
organizações não-governamentais e pesquisadores brasileiros.100
Como resultado desses primeiros debates sobre justiça ambiental no
Brasil, foi publicada a coleção intitulada Sindicalismo e Justiça Ambiental,
no ano de 2000, pela Central Única dos Trabalhadores (CUT/RJ), em
98
Augusto Cunha Carneiro, pioneiro do movimento ambientalista no Brasil e um dos
fundadores da Agapan, narra com detalhes os primeiros desdobramentos da campanha contra
os agrotóxicos liderada por Lutzenberger: “Lutz, pioneiramente, de maneira contundente,
levantou a questão dos agrotóxicos através de palestras e denúncias. A primeira na Agapan,
em 5 de outubro de 1972, e a segunda em 17 de abril de 1973, para os estudantes da escola
de Agronomia, patrocinada pelo Diretório Acadêmico. A terceira na Sociedade de Agronomia
do Rio Grande do Sul. As conferências tiveram os nomes “A insensatez da Agroquímica” e
“Contaminação Insidiosa”. Constituíram trabalhos escritos que um agrônomo, que também
era dono de uma tipografia, imprimiu para a Sociedade de Agronomia, sendo que, para a
Agapan, doou uns dois mil exemplares extras. A distribuição foi completa pelo Brasil e todas
as sociedades de agronomia do país receberam cópias. Em consequência, várias entidades,
inclusive da Amazônia, convidaram Lutzenberger para fazer conferências e explicar o problema
dos agrotóxicos.” CARNEIRO. Augusto Cunha. A história do ambientalismo. Porto Alegre:
Sagra Luzzatto, 2003. p. 86.
99
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade
biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005. p. 32.
100
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 39.
conjunto com o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase),
com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/
UFRJ), e com apoio da Fundação Heinrich Böll.101 Segundo destacam
Acselrad, Mello e Bezerra, “[...] os três volumes da série Sindicalismo e
Justiça Ambiental tiveram circulação e impacto restrito, mas estimularam
outros grupos da universidade, do mundo das ONGs e do sindicalismo a
explorar o veio de tal debate”.102
No ano seguinte, em setembro de 2001, foi organizado na cidade de
Niterói/RJ, no Campus da Universidade Federal Fluminense (UFF), o
Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania, evento
que teve por objetivo “[...] ampliar o diálogo e a articulação entre sindicatos,
movimentos sociais, ambientalistas e pesquisadores, no sentido de estimular
o fortalecimento da luta por justiça ambiental no Brasil”.103 O colóquio,
uma das primeiras iniciativas de cunho acadêmico e político a debater o
tema da justiça ambiental no Brasil, reuniu representantes de diversos
movimentos sociais, ONGs, pesquisadores de diversas regiões do Brasil,
além de representantes dos movimentos por justiça ambiental norte- 49
americanos, dentre os quais o sociólogo Bullard.104
No referido evento, foram debatidas propostas sobre possíveis enfoques
teóricos, implicações políticas e parcerias para o desenvolvimento de uma
coalizão por justiça ambiental tanto em nível nacional quanto internacional.
De concreto, durante o evento, foi criada a Rede Brasileira de Justiça
Ambiental, juntamente com a elaboração de uma declaração de seus
princípios norteadores. A chamada Declaração de Princípios da Rede Brasileira
de Justiça Ambiental 105 é um documento histórico que fortaleceu a
perspectiva do movimento por justiça ambiental no Brasil, definindo-a
como o conjunto de princípios e práticas que:
101
ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, A justiça ambiental e a dinâmica das lutas
socioambientais no Brasil: uma introdução, p. 12.
102
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 40.
103
ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, A justiça ambiental e a dinâmica das lutas
socioambientais no Brasil: uma introdução, p. 13.
104
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 40. Sobre a relação
completa de todos os participantes do Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental,
Trabalho e Cidadania ver: HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra
o racismo ambiental. In: INTERFACEHS – Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho
e Meio Ambiente, v. 3, n.1, Artigo 2, p. 1-20, jan./ abril 2008,
105
REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL. Declaração de Princípios da Rede
Brasileira de Justiça Ambiental. Disponível em: <http://www.justicaambiental.org.br/
_justicaambiental/pagina.php?id=229>. Acesso em: 12 jul. 2011.
(a) asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou
de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências
ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de
políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como
da ausência ou omissão de tais políticas;
(b) asseguram acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos
recursos ambientais do país;
(c) asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso
dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de
fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e
participativos na definição de políticas, planos, programas e
projetos que lhes dizem respeito;
(d) favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos,
movimentos sociais e organizações populares para serem
protagonistas na construção de modelos alternativos de
desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos
50 recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso.106
106
A Rede Brasileira de Justiça Ambiental consolidou-se, desde 2002, como um espaço de
identificação, solidarização e fortalecimento dos princípios de Justiça Ambiental – marco
conceitual que aproxima as lutas populares pelos direitos sociais e humanos, a qualidade
coletiva de vida e a sustentabilidade ambiental. Constituiu-se como um fórum de discussões,
de denúncias, de mobilizações estratégicas e de articulação política, com o objetivo de
formulação de alternativas e potencialização das ações de resistência desenvolvidas por
movimentos sociais, entidades ambientalistas, ONGs, associações de moradores, sindicatos,
pesquisadores universitários e núcleos de instituições de pesquisa/ensino. REDE BRASILEIRA
DE JUSTIÇA AMBIENTAL. Quem somos. Disponível em: <http://
www.justicaambiental.org.br>. Acesso em: 12 out. 2011.
plantas industriais poluentes, das encostas perigosas e dos esgotos a céu
aberto”.107
A Rede Brasileira de Justiça Ambiental, desde sua criação, passou a se
envolver em uma série de campanhas e iniciativas de cunho coletivo,
visando a articular os movimentos sociais envolvidos em conflitos
socioambientais. Dentre as mais significativas, destacam-se:108
107
Acselrad, Mello e Bezerra ressaltam que são justamente esses grupos que acabam sendo
“[...] privados do acesso aos recursos naturais de que dependem para viver ao serem expulsos
de seus locais de moradia para a instalação de grandes projetos hidroviários, agropecuários
ou de exploração madeireira ou mineral”. (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça
ambiental, p. 42).
108
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 42-45.
da injustiça ambiental e saúde no Brasil, fruto de um projeto desenvolvido
em conjunto pelas entidades Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Federação
de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), com o apoio do
Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério
da Saúde. Trata-se de um amplo e aprofundado estudo que objetiva
sistematizar e socializar as informações disponíveis sobre a situação da
injustiça ambiental no Brasil.
O estudo da Fiocruz e da Fase revela que no Brasil há uma maior
ocorrência de conflitos socioambientais em áreas rurais do que em áreas
urbanas, sobretudo em razão de atividades produtivas ligadas ao
agronegócio, à mineração e aos grandes empreendimentos de infraestrutura,
como hidrelétricas e rodovias. Também revela que as principais populações
atingidas nos conflitos socioambientais existentes no território nacional
são aquelas que residem nos campos, em regiões florestais ou na região
costeira, como agricultores familiares, povos indígenas, comunidades
quilombolas, pescadores artesanais e ribeirinhos.
52 Nos centros urbanos do Brasil, o Mapa da injustiça ambiental e saúde
no Brasil revela que as principais populações vítimas de injustiças ambientais
são os moradores do entorno de aterros sanitários e lixões, bem como
operários e trabalhadores das indústrias. No que refere às atividades
responsáveis pelas injustiças ambientais no Brasil, o estudo realizado
demonstra claramente que todas as atividades econômicas que interferem
nos territórios e modos de vida das populações estão dentre as principais
causadoras de impactos e conflitos socioambientais. Entre as principais
atividades econômicas estão o agronegócio, a mineração e siderurgia, a
construção de barragens e hidrelétricas, as madeireiras, as indústrias
químicas e petroquímicas, as atividades pesqueiras, a carcinicultura, a
pecuária e a construção de rodovias, hidrovias e gasodutos.
Entretanto, seguramente o dado que mais impressiona no estudo da
Fiocruz e da Fase é o que aponta a atuação deficitária do Poder Público como
a principal atividade responsável pelas injustiças ambientais brasileiras, tanto
pela forma deficitária como os licenciamentos ambientais são realizados, quanto
pela ausência de políticas públicas mais efetivas, ou ainda pela própria
morosidade e deficiência das instituições da Justiça, na defesa dos interesses
coletivos das populações vítimas de injustiças ambientais no Brasil.109
109
MAPA DA INJUSTIÇA AMBIENTAL E SAÚDE NO BRASIL. Resumo. Disponível em:
<http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=resumo>. Acesso em: 12 jul.
2011.
Outros estudos também merecem destaque. O Atlas da exclusão social
no Brasil: dinâmica e manifestação territorial110 elaborado por pesquisadores
da Universidade de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), fruto de ampla pesquisa realizada no
ano de 2000 em 5.507 municípios brasileiros, teve por objetivo traçar
uma geografia da exclusão social no Brasil. Com efeito, tal publicação
revelou dados significativos sobre a relação entre a exclusão social e a
degradação ambiental no cenário brasileiro. Um bom exemplo dessas
revelações é destacada por Acselrad, Mello e Bezerra, no tocante aos distritos
da cidade de São Paulo:
114
PAIXÃO, Marcelo. O verde e o negro: a justiça ambiental e a questão racial no Brasil. In:
ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Org.). Justiça ambiental
e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 161.
115
Os percentuais constatados pelo IBGE, levando-se em conta o fator racial da população
brasileira residente em áreas urbanas são os seguintes: (a) 82,8% dos brasileiros de cor branca
dispõem de água canalizada e rede de distribuição de água, comparados aos 67,2% de
brasileiros de cor preta ou parda que dispõem dos mesmos serviços de infraestrutura urbana;
(b) 62,7% dos brasileiros de cor branca dispõem de serviços de esgoto e fossa séptica, em
comparação aos apenas 39,6% dos brasileiros de cor preta ou parda que dispõem dos mesmos
serviços, sendo que na região norte do país esse número chega a incríveis 12,7%. INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional por amostra de domicílios
1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.
isso ocorre onde todas as evidências são absolutamente
incontestáveis (direitos humanos, pobreza e indigência, trabalho
infanto-juvenil, acesso à terra, etc.), acaba ocorrendo de forma
ainda mais intensa em frentes de luta e intervenção relativamente
novas em nosso país, tal como é o caso da justiça ambiental.116
116
PAIXÃO, Marcelo. O verde e o negro: a justiça ambiental e a questão racial no Brasil,
p.166-167.
117
ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, A justiça ambiental e a dinâmica das lutas
socioambientais no Brasil: uma introdução, p. 10.
118
Nesse particular, Acselrad, Herculano e Pádua asseveram: “É preciso considerar, por
exemplo, tanto as carências de saneamento ambiental no meio urbano quanto, no meio
rural, a degradação das terras usadas para acolher os assentamentos de reforma agrária. Não
são apenas os trabalhadores industriais e os moradores no entorno das fábricas aqueles que
pagam, com sua saúde e suas vidas, os custos das chamadas ‘externalidades’ da produção de
riquezas, mas também os moradores dos subúrbios e periferias urbanas, onde fica espalhado
o lixo químico, os moradores das favelas desprovidas de esgotamento sanitário, os lavradores
induzidos a consumir agrotóxicos que envenenam suas famílias, terras e produção; as
populações tradicionais extrativistas, progressivamente expulsas de seus territórios de uso
comunal. A expansão do modelo de desenvolvimento dominante na agroindústria brasileira,
por exemplo, tem-se associado à inviabilização da pequena agricultura familiar, da reprodução
dos grupos indígenas, da pesca artesanal e do abastecimento de água para as comunidades.
Ao erodir e compactar solos, reduzindo seus nutrientes, alterando microclimas e afetando
negativamente a biodiversidade animal e vegetal, os efeitos dessa expansão têm atingido em
particular os mais pobres.” (ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, A justiça ambiental e a
dinâmica das lutas socioambientais no Brasil: uma introdução, p. 12).
Buscar-se-á, a seguir, identificar os principais fatores que, dentro da
perspectiva da justiça ambiental até aqui analisada, contribuem para as
injustiças ambientais contemporâneas.
119
BAGGIO, Roberta Caminero. Justiça ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a
necessária democratização da proteção da natureza. 2008. 259 f. Tese (Doutorado em Direito)
– Programa de Pós-Graduação em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, SC, 2008.
120
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo.
Trad. de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia da Letras, 2010.
121
LIPOVESTKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo,
p. 26-27.
Lipovetsky destaca que, na primeira fase do capitalismo de consumo,
a produção em larga escala pôs em marcha um processo de “democratização
do desejo”. Os mercados de massa e os grandes magazines revolucionaram
a relação das pessoas com o consumo, passando a estimular, com o auxílio
de técnicas de marketing, a necessidade e o desejo de consumir, a falta de
culpa no ato de compra e o gosto pelas novidades. O consumo, no final
dessa primeira fase, passou a ser sinônimo de felicidade moderna.122
Outro traço característico da primeira fase do capitalismo de consumo,
segundo Bauman, era o desejo de segurança.123 Toda produção objetivava
suprir o desejo humano de um ambiente confiável, ordenado, duradouro,
resistente ao tempo e seguro. O consumo ostensivo dessa fase era distinto
do atual, porquanto, ao fim e ao cabo, o que se pretendia era ostentar
publicamente riqueza e status social. Tal sentimento refletia na produção
de produtos mais duráveis, sólidos e resistentes.124
A segunda fase do capitalismo de consumo é descrita por Lipovetsky
como a do surgimento da “sociedade de consumo de massa”, consolidada
ao longo das três décadas do pós-guerra. Se na primeira fase ocorreu o 57
fenômeno da democratização e da sedução pela aquisição de produtos
duráveis, a fase seguinte colocou-os à disposição de todos, ou de quase
todos, em decorrência do excepcional crescimento econômico, da elevação
do nível de produtividade de trabalho e da extensão da regulação fordista
da economia, que multiplicou por três ou quatro o poder de compra dos
salários à época. Lipovetsky destaca que essa fase é marcada pela lógica da
quantidade. É nessa fase também que começam a se esvair as antigas
resistências culturais às frivolidades de uma vida mercantilizada. Os desejos
passam a impregnar o imaginário dos indivíduos, nas mais diversas direções.
A publicidade passa a entrar em cena com força total, conquistando novos
espaços cultivadores de desejos e sonhos de felicidade. Também é nessa
fase que surgem as políticas de diversificação de produtos e de redução do
tempo de vida das mercadorias produzidas, gerando um aumento na
geração de lixo, como decorrência do descarte de produtos menos
duráveis.125
122
LIPOVESTKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo, p. 31.
123
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias.
Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 42.
124
A esse respeito, Bauman assinala que nesse período os produtos “[...] eram tão duradouros
quanto se desejava e esperava fosse a posição social, herdada ou adquirida, que representavam”.
(BAUMAN, Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias, p. 44).
125
LIPOVESTKY, A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo, p. 32-34.
Essa segunda etapa do capitalismo de consumo se encerra no final
dos anos 70, momento em que se inicia o terceiro ato do capitalismo de
consumo. Entra em cena a era do hiperconsumo, definida por Lipovetsky
como aquela na qual os consumidores se tornam imprevisíveis e voláteis,
movidos por motivações privadas que superam finalidades distintivas.
Embora as satisfações sociais não desapareçam em sua totalidade, a busca
pela felicidade privada é a motivação principal. A curiosidade torna-se
uma paixão de massa, movida pelos apetites experimentais dos sujeitos. O
hiperconsumidor não anseia mais em ostentar um signo exterior de riqueza
e sucesso, mas sim revelar-se como indivíduo singular por meio dos bens
que consome.126
A sociedade de hiperconsumo põe em curso um processo de consumo
contínuo, ininterrupto. Tudo é potencializado nessa fase: a produção, a
publicidade, os sonhos, as sensações, os desejos, bem como o descarte, o
desapego, o lixo e a poluição. A cultura do hiperconsumo atinge até mesmo
classes periféricas e empobrecidas. Segundo Bauman, atualmente os pobres
58 gastam o pouco dinheiro que possuem com objetos de consumo que não
atendem diretamente suas necessidades básicas, tão somente com o intuito
de evitar uma ainda maior humilhação social.127 Isso porque na era do
hiperconsumidor, todos aqueles que não dispõem de condições de se
inserirem no mercado de consumo passam a ser considerados como
fracassados, subclasse, excluídos sociais, enquadrados nas estatísticas como
pessoas “abaixo da linha de pobreza”.128
Percebe-se, portanto, que o fenômeno do consumo permite perceber
o capitalismo como sistema social. A esse respeito Baggio assevera que
“[...] um dos grandes feitos da lógica desse sistema econômico de
acumulação foi o de ter transformado o consumo em uma prática
antropológica de encontro da felicidade e do prazer, o que reforça a ideia
do capitalismo como sistema também social”.129 E é justamente a partir
dessa percepção do capitalismo como sistema social que é possível
compreender que a globalização econômica neoliberal faz com que os
126
LIPOVESTKY, A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo, p. 44-
46.
127
BAUMANN, Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias, p. 74.
128
BAUMANN, Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias, p. 85.
129
BAGGIO, Justiça ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza.
mercados financeiros rompam com a soberania dos Estados e passem a
influenciar diretamente o contexto social por meio do poder da exclusão.
A hegemonia dos mercados financeiros e a “mundialização do
capital”130 são, portanto, traços característicos da globalização neoliberal
capitalista. A esse respeito, Azevedo refere que, após o Estado deixar de ser
totalitário, a economia passou a sê-lo. Esse totalitarismo econômico
neoliberal é definido pelo autor como
130
Expressão cunhada por François Chesnais em: CHESNAIS, François. A mundialização do
capital. Trad. de Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 1996.
131
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Ecocivilização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.
18.
132
AZEVEDO, Ecocivilização, p. 18-19.
133
ALVES, Giovanni. Dimensões da globalização: o capital e suas contradições. Londrina:
G.A.P. Alves, 2001. p. 51.
134
CHOMSKI, Noam. Democracia e mercados na nova ordem mundial. In. GENTILLI,
Pablo (Org.). Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem
mundial. Petrópolis: Vozes, 2000.
Entretanto, tal como afirma Azevedo, embora o núcleo da crise
provocada pelo capitalismo na conjuntura da globalização neoliberal seja
econômico, é no meio ambiente e nas relações socioambientais que os
resultados da atual conjuntura econômica se mostram mais avassaladores.
Segundo o autor, o neoliberalismo capitalista é fonte de inúmeras injustiças
no cenário socioambiental, porquanto para “[...] baratear custos e produzir
cada vez mais, o sistema econômico atual recorre a externalização dos
custos, o que significa que parte destes é paga por terceiros, seja o Estado,
a sociedade ou a natureza”.135
Deve ser salientado, porém, que embora no período da globalização
neoliberal capitalista os impactos e conflitos socioambientais tenham sido
muito potencializados, a conflituosidade socioambiental já se fazia presente
bem antes do advento do neoliberalismo.136
Marx e Engels se incluem dentre os primeiros a relacionar as
contradições do sistema capitalista sobre o meio ambiente. Modernas
releituras da obra de Marx evidenciam tal afirmação. A esse respeito,
60 Andrioli destaca que, embora os efeitos ecológicos da sociedade industrial
capitalista não tenham sido a preocupação central de Marx, a problemática
ambiental não foi esquecida ou subestimada em sua obra. Andrioli refere
que é preciso interpretar a obra de Marx, conforme o contexto de sua
época. Daí porque não se poderia pretender que Marx antevisse as crescentes
catástrofes ambientais e a dimensão das injustiças ambientais de nosso
tempo. Contudo, como bem refere Andrioli, Marx previu o potencial
destrutivo do meio ambiente pelo capitalismo, quando, em O Capital,
teceu críticas à industrialização capitalista da agricultura, a forma de
apropriação privada da natureza, como base da exploração de seres humanos
e da destruição das condições de vida das futuras gerações.137
Em semelhante sentido, John Bellamy Foster enxerga na obra de Marx
críticas de cunho ecológico ao sistema industrial capitalista. Para o autor,
em O Capital, o filósofo alemão, influenciado pela filosofia epicurista138
135
AZEVEDO, Ecocivilização, p. 79-80.
136
A esse respeito, Plauto Faraco de Azevedo destaca os extensos danos ambientais ocorridos
na Polônia e na ex-Tchecoslováquia, ao tempo da União Soviética. Na palavras do autor: “Foi
no que deu o intuito de concorrer com o modelo de produtividade capitalista, buscando
superá-lo, ainda que com os meios de produção nas mãos do Estado. É certo, entretanto que
sob o império neoliberal as agressões ambientais não fizeram senão crescer.” (AZEVEDO,
Ecocivilização, p. 80).
137
ANDRIOLI, Antônio Inácio. A atualidade do marxismo para o debate ambiental. Revista
Espaço Acadêmico, n. 98, p. 1-8, jul. 2009.
138
Baseada na ótica do filósofo ateniense Epicuro (341 a.C.- 271 a.C.).
que tinha como ponto de partida o princípio de conservação e culminava
numa visão de mundo ecológica, já afirmava que o capitalismo esgotava as
forças de trabalho e as riquezas naturais da Terra.139 Foster destaca ainda
que para Marx a classe trabalhadora (proletariado), vítima da exploração
da produção capitalista, se via diretamente exposta à poluição universal,
sendo este o ambiente no qual a classe trabalhadora vivia. Assim, no
entender de Marx, o sistema de produção industrial capitalista vitimava o
proletariado a um sofrimento universal e a uma perda de humanidade.140
Possível afirmar, portanto, que a moderna visão da teoria marxista,
denominada de marxismo ecológico, fornece base teórica que contribui para a
identificação das causas das injustiças ambientais contemporâneas; afinal, Marx
já previa que o capitalismo gerava externalidades negativas que eram suportadas
de modo muito mais intenso e direto pelos indivíduos mais vulneráveis do
cenário social, e que a hegemonia do lucro e do hiperconsumo, traço
característico da economia neoliberal contemporânea, desconsidera a ideia de
satisfação de necessidades humanas como razão do sistema produtivo.
A crise socioambiental provocada pela globalização neoliberal 61
capitalista também pode ser melhor compreendida por meio da tese centro-
periferia, desenvolvida pelo economista argentino Raúl Prebisch a partir
de 1949, buscando explicações para os problemas de desenvolvimento
enfrentados pelos países latino-americanos.141
Em síntese, como assinalam Carlos Eduardo Frickmann Young e Maria
Cecília Junqueira Lustosa, a tese centro-periferia desenvolvida por Prebisch
evidenciava a existência de um sistema de relações econômicas
internacionais, no qual os países industrializados estariam no centro e os
países subdesenvolvidos, tais como os latino-americanos, estariam na
periferia. A lógica interna desse sistema favorecia o centro, “[...] que se
organizava de maneira a atender seus próprios interesses, fazendo com que
a inserção da periferia tivesse um caráter passivo”. Dessa forma, os ganhos
de produtividade não eram uniformes entre os países do centro e os da
periferia, gerando um ciclo vicioso que tornava os países periféricos cada
vez mais dependentes dos países do centro.142
139
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Trad. de Maria
Teresa Machado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 61.
140
FOSTER, A ecologia de Marx: materialismo e natureza, p. 160.
141
PREBISCH, Raúl. O desenvolvimento econômico da América Latina e seus principais
problemas. Revista Brasileira de Economia, n. 3, p. 47-109, 1949.
142
YOUNG, Carlos Eduardo Frickmann; LUSTOSA, Maria Cecília Junqueira. A questão
ambiental no esquema centro-periferia. Economia, Niterói-RJ, v. 4, n. 2, p. 201-221, jul./
dez. 2003.
Com apoio na obra de Prebisch, Young e Lustosa inserem a questão
ambiental no “esquema centro-periferia”, no que contribuem
substancialmente para a identificação das causas das injustiças ambientais
contemporâneas. Segundo os autores, com o despertar ecológico; a partir
da década de 70, a matriz industrial dos países do centro, substancialmente
baseada na queima de combustíveis fósseis, e, consequentemente, de alto
grau poluente, passou a ser seriamente questionada por movimentos sociais
desses países, que reivindicavam que as atividades produtivas fossem mais
severamente controladas pelos governos ou mesmo banidas de seus
territórios.143 Com as crescentes restrições ambientais para atividades
poluidoras nos países do centro, ocorreu o fenômeno da expansão das
indústrias poluentes para os países da periferia, fazendo com os países
periféricos, além da dependência crônica dos países do centro, decorrente
da desigual distribuição dos ganhos de produtividade, também passassem
a conviver com elevados níveis de poluição industrial.144
O esquema centro-periferia, segundo Young e Lustosa, revela, portanto,
62 uma dupla exclusão. A primeira, de cunho econômico, referente à
distribuição desigual dos frutos do progresso entre a população mundial; a
segunda, de cunho ambiental, porquanto as camadas excluídas são as que
mais sofrem com os problemas gerados pela poluição.145
A lógica do esquema centro-periferia também revela que a globalização
capitalista neoliberal fez com que os padrões de consumo adotados pelos
países periféricos se assemelhassem aos dos países do centro, acarretando,
sobretudo para as populações de baixa renda dos países periféricos, pressões
crescentes à qualidade do meio ambiente e à exaustão dos recursos naturais.
A partir de tais apontamentos teóricos, torna-se facilitada a tarefa de
localizar as principais causas das injustiças ambientais contemporâneas,
na perspectiva do movimento por justiça ambiental.
A primeira delas é a transformação do consumo numa prática
antropológica. Tal situação faz do capitalismo um sistema social injusto,
porquanto não voltado para a realização das necessidades humanas básicas,
mas sim para falsas necessidades criadas pelos mercados, que se tornam
143
Um bom exemplo são as manifestações ambientais do tipo “Not in my backyard” (não no
meu quintal), traço característico de muitos protestos populares contra poluição em países
industrializados do chamado “centro”, ocorridos a partir da década de 70.
144
YOUNG; LUSTOSA, A questão ambiental no esquema centro-periferia, p. 201-221.
145
YOUNG; LUSTOSA, A questão ambiental no esquema centro-periferia, p. 201-221.
soberanos por deterem o poder da exclusão social de todos aqueles que
não se inserirem na lógica consumista.
A segunda causa relaciona-se com a soberania dos mercados financeiros
e o enfraquecimento do Estado. A esse respeito, Azevedo destaca que a
hegemonia dos mercados faz com que prevaleça a lógica da flexibilização
dos direitos sociais.146 Tal flexibilização é fator decisivo para que condutas
marcadas pelo preconceito ou pela recusa de reconhecimento à dignidade
humana se proliferem, fazendo surgir os cenários de injustiça ambiental,
sobretudo em parcelas socialmente vulneráveis da população mundial. O
enfraquecimento do Estado decorre tanto da adoção de políticas públicas
insatisfatórias, quanto da omissão na adoção de políticas voltadas ao
enfrentamento de injustiças ambientais.
A terceira causa das injustiças ambientais contemporâneas decorre da
segregação socioespacial ditada pelas forças de mercado em tempos de
globalização neoliberal. A esse respeito, Acselrad, Mello e Bezerra enfatizam:
146
AZEVEDO, Ecocivilização, p. 61.
147
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 78.
“desperdício da chance de gerar empregos e desenvolvimento”, acabam
cedendo à pressão do capital e fomentando a segregação socioespacial que
só “[...] faz coincidir a divisão social da degradação ambiental com a divisão
espacial desta mesma degradação”.148
A quarta causa é a desigual aplicação da legislação ambiental. Acselrad,
Mello e Bezerra tecem interessante crítica a esse respeito quando referem
que a legislação ambiental “[...] é mais rigidamente aplicada quando se
tratam de pequenos agricultores, pescadores, e extrativistas do que quando
se trata do agronegócio e de grandes corporações industriais”.149
Por fim, uma quinta causa das injustiças ambientais contemporâneas
resulta clara: a neutralização da crítica potencial. Esta pode se manifestar de
diferentes modos. Uma forma decorre da ação estratégica de grandes setores
da economia global que incutem a ideia de que a contaminação e a poluição
são um mal necessário decorrente da necessidade de desenvolvimento.
Outra forma é a prática, por grandes empresas e indústrias, de ações
políticas simpáticas aos olhos de comunidades carentes, visando a evitar o
64 surgimento de manifestações que venham a questionar as condições de
funcionamento de atividades poluidoras ao ambiente ou prejudiciais à
saúde das comunidades vizinhas. Também os discursos de negação das
injustiças ambientais, de culpabilização dos pobres e de descrédito ou
ridicularização de reivindicações de cunho ecológico ou cultural, são
exemplos de estratégias de neutralização de críticas e reivindicações contra
injustiças ambientais.150
De modo geral, as reflexões acima vêm ao encontro das conclusões a
que chegaram os participantes do recente encontro internacional
denominado de Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental,
evento organizado pela sociedade civil global que aconteceu entre os dias
15 e 23 de junho de 2012, no Aterro do Flamengo, na cidade do Rio de
Janeiro, Brasil, paralelamente à Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. Ao final da plenária que versou
sobre direitos, justiça social e ambiental, restaram identificadas pelos
participantes do evento (movimentos sociais e populares, sindicatos, povos,
organizações da sociedade civil e ambientalistas), como causas estruturais
da injustiça social e ambiental, as seguintes: (a) o sistema capitalista; (b)
148
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 78.
149
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 79.
150
ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, O que é justiça ambiental, p. 79.
enxergar o ser humano como o centro e não como parte de uma
biodiversidade; (c) a mudança na forma de entendimento da economia –
uma economia que não está a serviço das necessidades humanas e se
converte somente em fonte de acumulação financeira; (d) a mercantilização
da natureza, da água, do ar e dos alimentos; (e) a organização social feita
pela lógica do patriarcado; (f ) o racismo; (g) a exploração dos países do
Hemisfério Sul pelos países do Hemisfério Norte; (h) a exclusão das práticas
tradicionais e dos saberes tradicionais de uso da terra e imposição de um
modo de exploração mercantil dela; (i) o modelo neoliberal e a cultura do
consumo; (j) os investimentos dos bancos nacionais em uma estratégia de
desenvolvimento com base no modelo capitalista do uso da terra; (k) a
distribuição desigual da terra e acumulação de poder na mão de poucos; e
(l) a privatização do espaço público.151
Percebe-se agora, com mais clareza, a amplitude dessa perspectiva
introduzida no cenário social pelo movimento por justiça ambiental e o
quanto ela aponta para a superação do atual modelo desenvolvimentista,
bem como para uma retomada “[...] da velha dialética entre dominação e 65
resistência, entre a Realpolitik e a utopia, entre o cinismo e a esperança.152
Entretanto, uma crítica pode ser tecida à perspectiva do movimento
por justiça ambiental: ao conjugar demandas por justiça sociail e ambiental,
o movimento não consegue superar uma forte tendência antropocêntrica.
Apenas interesses humanos (individuais ou coletivos) são objeto das
considerações de justiça pelo movimento, bem como as causas das injustiças
ambientais também são analisadas por um prisma antropocêntrico. Daí a
crítica que é tecida por muitos ecologistas: ao fim e ao cabo, o objetivo a
ser alcançado pelo movimento por justiça ambiental é a justiça social e
não a justiça ambiental propriamente dita.
Essa crítica, contudo, não diminui em nada o valor do movimento
por justiça ambiental. Não se trata de uma crítica negativa, mas apenas
uma constatação de que a expressão justiça ambiental talvez possa traduzir
outros significados para além desse utilizado com grande força pelo
movimento por justiça ambiental. Isso é o que se procurará analisar a
seguir.
151
CÚPULA DOS POVOS NA RIO+20 POR JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL.
Declaração Final e Sínteses das Plenárias. Disponível em: <http://cupuladospovos.org.br/wp-
content/uploads/2012/06/Declaracao-final-PORT.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2012.
152
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. de Klauss Brandini Gerhard. São Paulo:
Paz e Terra, 1999. p. 166. v. II.
1.6 Justiça ambiental e justiça ecológica: perspectivas desconexas?
Até aqui, procurou-se demonstrar de modo exaustivo a amplitude das
demandas e reivindicações do chamado movimento por justiça ambiental,
tanto no cenário internacional quanto no cenário nacional. Procurou-se
também analisar a evolução de um discurso que ganhou força no cenário
das reivindicações sociais em tempos de degradação ambiental. Atrelado a
isso, fez-se necessário analisar as principais causas que contribuem para as
injustiças ambientais contemporâneas, na ótica do movimento por justiça
ambiental.
Como corolário, constatou-se que o movimento por justiça ambiental
é pautado por uma ética antropocêntrica e por reivindicações de caráter
redistributivo muito intensas. Assim, ao término deste primeiro capítulo
cabe uma indagação preliminar: Será totalmente incompatível com a
perspectiva do movimento por justiça ambiental reivindicar justiça ou
tratamento justo para além dos seres humanos?
Referida indagação remete a uma prévia diferenciação dos significados
66 das expressões justiça ambiental e justiça ecológica. Muito embora existam
autores que compreendam tratar-se de expressões sinônimas,153 para a
maioria dos teóricos são expressões que refletem perspectivas distintas.
Como já ressaltado, a perspectiva da justiça ambiental, tal como
desenvolvida pelo movimento por justiça ambiental, notabiliza-se por um
interesse material no meio ambiente como fonte de condição de subsistência
humana. Sua preocupação, a princípio, nasce de uma demanda por justiça
social entre humanos, atrelada à constatação de uma desigual distribuição
dos riscos ambientais no espaço social. Percebe-se, assim, um claro viés
antropocêntrico na perspectiva teórica da justiça ambiental, porquanto,
ao menos aparentemente, a preocupação com o meio ambiente não está
atrelada a uma valoração intrínseca dos bens ambientais.
No entanto, ainda que o caráter antropocêntrico do discurso teórico
do movimento por justiça ambiental seja bastante evidente, é possível
reconhecer que o viés ético contido em tal perspectiva não está atrelado a
153
O norte-americano Peter S. Wenz é um exemplo de autor que se utiliza da expressão
environmental justice (justiça ambiental) em um sentido distinto daquele contido na perspectiva
desenvolvida pelo movimento por justiça ambiental, e que traduz uma ideia de justiça
ecológica, pautada por uma ética ecocêntrica. (Ver: WENZ, Peter S. Environmental justice.
New York: State University of New York Press, 1988).
um antropocentrismo tradicional,154 mas compatibiliza-se com o propagado
antropocentrismo fraco ou alargado,155 pautado pela solidariedade entre
humanos e natureza. Essa compatibilidade é ressaltada por Baggio em
razão da
158
Corrente ética que propõe um rompimento radical com o antropocentrismo tradicional.
Correntes de pensamento ecológico como a da ética da terra, proposta por Aldo Leopold na
década de 50, e a da ecologia profunda (deep ecology), cujas bases foram lançadas por Arne
Naess nas décadas de 60 e 70, fazem parte desta corrente ética. Concebe a proteção do meio
ambiente como uma luta pela conservação da natureza, pelo culto à vida silvestre e pelo
igualitarismo biológico. Nesse sentido: OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia
à prova do direito. Trad. de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 174-177;
PEPPER, Ambientalismo moderno, p. 41.
159
ALIER, O ecologismo dos pobres, p. 22.
160
FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Trad. de Rejane
Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2009. p. 125.
161
PEPPER, Ambientalismo moderno, p. 41.
de uso da razão”, reconhecendo em todos os seres vivos um valor intrínseco
equivalente.162
A perspectiva da justiça ecológica, portanto, estende os debates sobre
justiça também para as demais formas de vida e para a natureza em si. A
esse respeito, Giménez destaca que o objetivo da justiça ecológica não é
apenas incorporar à teoria da justiça uma dimensão de observância à
natureza e às demais formas de vida, mas sim reconhecê-las como partes
constitutivas do ato justo. Com efeito, a determinação do justo e do devido,
como objetos de uma justiça ecológica, requerem a configuração do
ecossistema como paradigma sociocultural, definidor de limites para as
necessidades do homem e da sociedade.163
A perspectiva da justiça ecológica desencadeia uma tendência ao
reconhecimento dos animais e da própria natureza como sujeitos de direito.
Segundo Ost, a característica mais evidente desse modelo “natureza-sujeito”
162
BAGGIO, Justiça ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza.
163
GIMÉNEZ, Teresa Vicente. El nuevo paradigma de la justicia ecológica. In: GIMÉNEZ,
Teresa Vicente (Coord.). Justicia ecológica y protección del medio ambiente. Madrid: Trotta,
2002. p. 64-66.
164
OST, A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito, p. 177.
165
GIMÉNEZ, Teresa Vicente. Orden ambiental-orden jurídico: interdependencia,
participación y condicionalidad. In: GIMÉNEZ, Teresa Vicente (Coord.). Justicia ecológica y
protección del medio ambiente. Madrid: Trotta, 2002. p. 49.
Percebe-se, portanto, existir uma desconexão entre as perspectivas
teóricas da justiça ambiental e da justiça ecológica. Essa desconexão não
passou despercebida por Schlosberg:
166
“The vast majority of works on environmental justice does not concern itself with the
natural world outside human impacts, and most work on ecological justice does not pay
attention to issues raised by movements for environmental justice.” Tradução livre.
(SCHLOSBERG, Defining environmental justice: theories, movements and nature, p. 6).
167
BAGGIO, Justiça Ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza.
tema justiça, será possível confirmar a hipótese inicialmente formulada de
que para o adequado enfrentamento da crise ecológica contemporânea,
faz-se necessário superar o paradigma antropocêntrico distributivo ainda
predominante nos debates sobre justiça, edificando uma concepção mais
dinâmica e abrangente de justiça ambiental.
Esse é o desafio a seguir.
71
72
Capítulo 2
JUSTIÇA AMBIENTAL E
MODERNAS TEORIAS DA JUSTIÇA
168
OST, A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito, p. 9.
Contudo, ambos os modelos têm seus problemas. Como constata Ost,
homem e natureza possuem um vínculo, sem que, no entanto, possa-se
reduzir um ao outro. Este é o limite.
O primeiro modelo (natureza-objeto) peca por romper com o vínculo,
obstaculizando a capacidade de compreensão do elo existente entre homem
e natureza. É um modelo que desnatura a natureza. O segundo modelo
(natureza-sujeito) falha ao extrapolar o limite, desconsiderando a diferença
implícita existente entre homem e natureza. Com isso, desnatura o próprio
homem.
Assim, segundo Ost,
169
OST, A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito, p. 210-211.
170
Segundo Ost, o meio justo “[...] surge como uma alternativa radical: radicalidade da
exigência ética da partilha, radicalidade epistemológica do ‘espaço intermédio’ (o meio como
tensão entre objecto e sujeito)”. OST, A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do
direito, p. 19.
Logo, para que se alcance esse meio justo referido por Ost é necessário
que se compreenda a complexidade conformadora do “meio injusto”. Essa
complexidade perpassa pela compreensão de que a injustiça das relações
sociais é fonte geradora de relações injustas entre homem e natureza. O
“meio injusto”, portanto, não é fruto do acaso tampouco mera fatalidade;
“[...] ele resulta, pelo contrário, de desequilíbrios econômicos e sociais
perfeitamente identificáveis”.171
Dessa afirmação de que é necessário desvendar a complexidade do
meio injusto, para que se atinja um modelo que ao menos se aproxime de
um meio justo, surge a conclusão que dá início à segunda etapa deste
trabalho: as perspectivas da justiça ambiental e da justiça ecológica
apresentam potencial teórico que muito pode contribuir para a complexa
missão de identificar as causas que convergem para o meio injusto, bem
como para a não menos complexa tarefa de edificar uma nova concepção
de justiça, nem só do homem, nem só da natureza, mas sim de suas relações.
Necessita-se, porém, analisar a possibilidade de aproximar tais
perspectivas à luz de modernas teorias da justiça, objetivando identificar 75
uma concepção de justiça capaz de abarcar, na totalidade, os anseios e as
demandas sociais decorrentes do desrespeito a direitos humanos
fundamentais em contextos de degradação e exploração da natureza, bem
como que seja capaz de incluir também as demais formas de vida e a
natureza em si no rol dos sujeitos destinatários de considerações de justiça.
Mas, afinal, o que é a justiça? Essa é uma pergunta preliminar que,
neste momento, se impõe. O grande problema é que tal pergunta comporta
muitas respostas, as quais podem variar consideravelmente em razão da
racionalidade dos interlocutores envolvidos no discurso.
A justiça, tal como já destacara Chaïn Perelman em suas clássicas
“cinco aulas sobre a justiça”, embora seja uma das noções mais prestigiosas
do universo espiritual humano, apresenta “rostos diversos”, que acabam
por torná-la uma noção bastante confusa.172
Justiça pode ser definida de muitos modos. Por justiça pode-se entender,
conforme Ricardo Castilho, a “[...] virtude determinante da conduta
humana na direção do que é justo e no rechaço do que é injusto”.173
171
OST, A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito, p. 393.
172
PERELMAN, Chaïn. Ética e direito. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: M.
Fontes, 2006. p. 146.
173
CASTILHO, Ricardo. Justiça social e distributiva: desafios para concretizar direitos sociais.
São Paulo: Saraiva, 2009. p. 15.
Também se pode compreender por justiça, segundo observa Serge-
Christophe Kolm, a resposta justificada à pergunta: “O que se deve fazer
quando os desejos ou os interesses de diferentes pessoas se opõem entre si
e não podem ser plenamente satisfeitos?”174 Ainda, pode-se compreender
por justiça algo bastante simples, tal como dar às pessoas aquilo que lhes é
devido.175
Pegoraro afirma que a noção de justiça tanto pode ser concebida por
um viés subjetivo, como virtude moral dos indivíduos, como também por
um viés objetivo, como princípio de ordem jurídico-social.176
Outros conceitos básicos de justiça podem ser mencionados; contudo,
todos, sem exceção, convergem para a mesma problemática que tem
alimentado o debate filosófico ao longo de séculos: aquilo que é justo, o
que deve ser feito, ou o que é devido – para ficar só na esfera dessas
afirmações – pode variar significativamente conforme a racionalidade dos
interlocutores e conforme o sentido que se atribua à noção de justiça. Essa
questão é bem ilustrada pela afirmação de MacIntyre:
76
Algumas concepções de justiça consideram central o conceito
de mérito, enquanto outras não lhe atribuem relevância
alguma. Algumas concepções apelam para os direitos humanos
inalienáveis, outras para alguma noção de contrato social, e
ainda outras para algum padrão de utilidade. Além disso, as
teorias conflitantes de justiça que expressam estas concepções
opostas também externam discordâncias quanto à relação entre
a justiça e os outros bens humanos, o tipo de igualdade que a
justiça exige, a variedade de transações e de pessoas para as
quais as considerações sobre a justiça são relevantes e quanto
à possibilidade de um conhecimento sobre a justiça sem um
conhecimento da lei de Deus.177
174
KOLM, Serge-Christophe. Teorias modernas da justiça. Trad. de Jefferson Luiz Camargo e
Luís Carlos Borges. São Paulo: M. Fontes, 2000. p. 3.
175
SCHMIDTZ, David. Os elementos da justiça. Trad. de William Lagos. São Paulo: WMF
M. Fontes, 2009. p. 11.
176
PEGORARO, Olinto A. Ética é justiça. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 15.
177
MAcINTYRE, Alasdair. Justiça da quem? Qual racionalidade? Trad. de Marcelo Pimenta
Marques. São Paulo: Loyola, 2001. p. 11.
Tal confusão, que decorre das distintas concepções do justo e do
injusto, exige daqueles que pretendam realizar quaisquer conjecturas no
campo da justiça uma análise cuidadosa, de modo que se possa compreender
com melhor exatidão a variedade de seus sentidos e usos e qual a
racionalidade empregada pelo interlocutor.
No presente trabalho, o referencial teórico inicial, utilizado como fio
condutor do tema que se está adentrando, é o filósofo norte-amenricano
Michael Sandel.
Em recente obra, publicada no Brasil com o título Justiça: o que é fazer
a coisa certa, Sandel afirma que para saber se uma sociedade é justa, basta
indagar sobre o modo como essa sociedade distribui os bens, ou seja, as
coisas que valoriza, como renda e riqueza, deveres e direitos, poderes e
oportunidades, cargos e honrarias. Uma sociedade justa distribui
adequadamente esses bens, dando a cada um o que lhe é devido.
Entretanto, os problemas surgem a partir do momento em que se questiona
o que é devido a cada um e por quê. Diante dessa constatação, Sandel faz
menção a três diferentes maneiras de se pensar sobre a justiça na distribuição 77
de bens: “[...] a que leva em consideração o bem-estar, a que aborda a
questão pela perspectiva da liberdade e a que se baseia no conceito de
virtude. Cada um desses ideais sugere uma forma diferente de pensar
sobre a justiça”.178
Para fins didáticos, o modelo descritivo de Sandel será aqui adotado.
Saliente-se, por oportuno, que as diferentes abordagens da justiça a seguir
examinadas não seguem necessariamente uma ordem cronológica.
178
SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011. p. 28.
O fundador da doutrina utilitarista foi o inglês Jeremy Bentham (1748-
1832). Sua ideia central era bastante simples: a maximização da felicidade
era vista como o objetivo mais elevado da moral, de forma a assegurar a
hegemonia do prazer sobre a dor.179 Desse modo, Benhtam definia
“utilidade” como tudo aquilo que produzisse prazer ou felicidade e que
evitasse a dor e o sofrimento.180
A partir da premissa básica de que todos os seres humanos gostam do
prazer e não da dor, a filosofia utilitarista de Bentham fez da maximização
da utilidade a base da vida moral e política, já que também direcionada
aos legisladores. Assim, na visão de Bentham, ao determinar as leis a serem
seguidas, um governo deveria fazer o maior esforço possível para maximizar
a felicidade do maior número possível de indivíduos de um sociedade.
Ainda, Bentham não admitia qualquer possibilidade de rejeição da ideia
de maximização da utilidade. Como observa Sandel, Bentham acreditava
que “[...] todas as divergências morais, devidamente compreendidas, são
discordâncias sobre como se deve aplicar o princípio utilitarista da
78 maximização do prazer e da minimização da dor”.181
Mill (1806-1873), na obra clássica On liberty, procurou reformular o
utilitarismo hedonista de Bentham.182 A proposta de Mill era conciliar os
direitos e as liberdades individuais com a filosofia utilitarista herdada de
Bentham. Mill também considerava a utilidade como instância final do
debate moral, porém pregava uma visão mais ampla da utilidade, baseada
em interesses permanentes do homem numa perspectiva evolutiva.
Mill acreditava na maximização da utilidade a longo prazo. Assim,
numa perspectiva temporal não imediatista, o respeito aos direitos e às
liberdades individuais acabariam por proporcionar a máxima felicidade
humana. Ao contrário, a ideia de utilidade numa perspectiva imediatista
poderia, a longo prazo, tornar a sociedade pior e menos feliz.
Uma distinta concepção do utilitarismo, digna de nota, foi desenvolvida
pelo filósofo contemporâneo Peter Singer. Em sua obra Ética prática, Singer
defende a ideia de uma ética universal, que conduz à adoção de uma
posição utilitária. Segundo Singer, a admissão de que os juízos éticos são
179
BENTHAM, Jeremy. An introduction to the principles of morals and legislation. New York:
Oxford University Press, 2005.
180
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 48.
181
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 49.
182
MILL, John Stuart. On liberty. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
formados a partir de um ponto de vista universal acarreta a aceitação de
que os interesses de um indivíduo não podem se sobrepor aos de outro
indivíduo. Assim, para Singer, pensar eticamente é estender a todos aqueles
diretamente afetados por certas escolhas, uma igual consideração de
interesses. A filosofia utilitarista de Singer, portanto, perpassa pela reflexão
de todos os interesses envolvidos, inclusive não humanos, culminando
com a adoção das ações mais aptas a maximizar os interesses dos afetados.183
183
SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: M. Fontes, 2009. p. 20.
184
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 29.
185
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 29.
fraude, execução de contratos, e assim por diante, se justifica;
entretanto, qualquer Estado mais extenso irá violar os direitos
das pessoas de não serem forçados fazer certas coisas, sendo isso
injustificável.186
186
“Individuals have rights, and there are things no person or group may do to them (without
violating their rights). [...] Our main conclusions about the state are that a minimal state,
limited to the narrow functions of protection against force, theft, fraud, enforcement of
contracts, and so on, is justified; that any more extensive state will violate person’s rights not
to be forced to do certain things, and is unjustified.” Tradução livre. (NOZICK, Robert.
Anarchy, state, and utopia. Oxford: Blackwell, 1974. p. IX).
187
KUKATHAS, Chandran; PETTIT, Philip. Rawls: uma teoria da justiça e seus críticos.
Trad. de Maria Carvalho. Lisboa: Gradiva, 2005. p. 94-95.
188
A esse respeito, Sandel cita os exemplos da venda de órgãos humanos, o suicídio assistido
e até mesmo o canibalismo consensual. (SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 90-
94).
excesso de liberdade pode conduzir a diversas situações de injustiça social
e econômica. Assim, a justiça requer diretrizes que assegurem a todos
oportunidades justas de alcançar o sucesso.
Kant (1724-1804) desenvolveu sua filosofia liberal argumentando
que a moral não pode ser associada ao aumento da felicidade ou utilidade,
mas sim ao respeito das pessoas como fins em si mesmas. Como destaca
Sandel, o argumento moral de Kant não se baseia em vontades ou desejos
humanos (os quais contaminam, segundo Kant, a liberdade de escolha),
mas sim no exercício daquilo que define por “pura razão prática”.189 Com
efeito, o agir ético atende a um imperativo categórico que deriva do exercício
da razão pura, assim descrito por Kant: “Age somente, segundo uma
máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei
universal.”190
Para Kant, as capacidades humanas, para serem livres e para raciocinar
são aquelas que tornam únicos os seres humanos e os diferenciam do restante
da existência animal. Ambas estão diretamente relacionadas; porquanto,
agir livremente e de acordo com a moral, para Kant, é encontrar o motivo 81
correto para agir. O exercício da razão permite isso. A esse respeito, Sandel
assevera:
189
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 137-139.
190
KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa:
Edições 70, 1997. p. 51.
191
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 143.
A obra de Rawls adquiriu reconhecida importância no âmbito do
debate filosófico da justiça e será, aqui, objeto de especial atenção, até
mesmo porque muitas das modernas abordagens sobre a justiça, que adiante
serão analisadas, objetivam complementar ou demonstrar a insuficiência
da teoria rawlsiana para a uma adequada concepção de justiça.
Em Uma teoria da justiça, Rawls propôs um rompimento com a
preferência dos filósofos da primeira metade do século XX pela análise de
ideais e princípios éticos, em detrimento da exploração dos ideais e
princípios a defender. Como asseveram Kukathas e Pettit, a obra de Rawls
marcou um “[...] retorno ao estudo básico da ‘desejabilidade’, em particular
do que é desejável ao nível da organização política e social”.192
Ao desenvolver sua teoria, Rawls se propôs a combater tradições
filosóficas rivais à sua, em especial, a concepção utilitarista. Para Rawls, o
utilitarismo clássico assenta-se na ideia de que a sociedade está ordenada
de forma justa “[...] quando suas instituições mais importantes estão
planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido
82 a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros”.193
Rawls direciona sua crítica ao utilitarismo, apontando sua fragilidade
como fundamento moral das instituições da democracia constitucional.
Para o autor, o utilitarismo não é capaz de explicar as liberdades e os
direitos básicos dos cidadãos, como pessoas livres e iguais. Rawls parte do
pressuposto de que toda teoria ética define-se pela forma como articula os
conceitos de justo e de bem. Ocorre que, na visão de Rawls, o utilitarismo,
em qualquer das suas versões,194 assume a prioridade do bem sobre o justo,
com apoio no princípio da utilidade. Desse modo, Rawls conclui que
eventual violação do sistema de liberdades e direitos básicos dos cidadãos,
na visão utilitária, não caracteriza uma situação de injustiça desde que,
em contrapartida, haja uma maximização das vantagens sociais.195
Entretanto, tal forma de relacionar o justo à maximização de vantagens
sociais acarreta, na visão de Rawls, a seguinte consequência: a justiça passa
192
KUKATHAS; PETTIT. Rawls: uma teoria da justiça e seus críticos, p. 19.
193
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São
Paulo: M. Fontes, 1997, p. 25.
194
Sobre as diferentes versões da doutrina utilitarista, ver KOLM, Teorias modernas da justiça,
p. 499-533.
195
Dessa forma, Rawls entende o utilitarismo como uma teoria na qual o bem se define
independente do justo, e o justo representa aquilo que maximiza o bem. (RAWLS, Uma
teoria da justiça, p. 26).
a ocupar uma posição secundária na fundamentação moral da sociedade,
já que a maximização das vantagens sociais não garante uma distribuição
justa, ou como prefere Rawls, equitativa dessas vantagens.
A proposta de Rawls em Uma teoria da justiça, portanto, é a de
demonstrar a fragilidade do utilitarismo como teoria moral estruturante
de uma sociedade justa. A visão utilitária de que as violações de direitos
de alguns podem ser justificadas por um bem maior partilhado por todos
não serve à Rawls, porquanto entende que “[...] implícita nos contrastes
entre o utilitarismo clássico e a justiça como equidade está a diferença nas
concepções fundamentais da sociedade”.196
O escopo principal da teoria de Rawls vincula-se à estruturação das
instituições básicas da sociedade. Além disso, também o viés distributivo
da teoria de Rawls se evidencia pela definição de que o autor faz quanto
ao objeto da justiça:
196
E prossegue Rawls na sua crítica: “Num caso, pensamos numa sociedade bem-ordenada
como sendo um sistema de cooperação para a vantagem recíproca regulada por princípios
que as pessoas escolheriam numa situação inicial que é equitativa; no outro, como sendo a
administração eficiente de recursos sociais para maximizar a satisfação do sistema de desejos
construído pelo observador imparcial a partir dos inúmeros sistemas individuais de desejos
aceitos como dados.” (RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 36).
197
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 7.
constituição política e os elementos principais do sistema econômico e
social.198 Dessa forma, Rawls acredita que é possível alcançar uma justa
distribuição social dos bens materiais e imateriais, de modo a impedir que
os indivíduos, fazendo valer suas aspirações pessoais ilimitadas, entrem
em conflito pela titularidade de tais bens.199
Rawls pensa a sociedade em dois níveis de atuação. O primeiro nível,
tal como destaca Castilho, “[...] corresponderia ao aspecto comportamental
da vida em sociedade, baseado nas liberdades fundamentais negativas e
condicionado pelas normas jurídicas em sentido estrito”. Já o segundo
nível identifica-se com a estrutura básica da sociedade e com suas
instituições mais essenciais “[...] especialmente tangentes à declaração e à
aplicação dos direitos fundamentais dos cidadãos”.200 É, portanto, ao
segundo nível de atuação social que se destina a teoria de Rawls.
O contratualismo também assume grande importância na teoria de
Rawls.201 O autor prevê a existência de um contrato hipotético, firmado
sob certas condições ideais e por indivíduos livres e iguais. Assim, a primeira
84 questão formulada por Rawls diz respeito à posição original do contrato,
momento em que os indivíduos de uma sociedade elegeriam sua estrutura
sociopolítica. Para tanto, a estratégia de Rawls é fazer com que, na posição
original do contrato, os indivíduos estejam desprovidos de interesses
pessoais, sob um véu de ignorância, assim idealizado pelo autor:
198
RAWLS, Uma teoria da justiça, pp. 7-8.
199
CASTILHO, Justiça social e distributiva: desafios para concretizar direitos sociais, p. 82.
200
CASTILHO, Justiça social e distributiva: desafios para concretizar direitos sociais, p. 83.
201
A esse respeito, Roberto Gargarella afirma que a especial atenção que a tradição filosófica
e política liberal destinam à concepção contratualista refere-se ao fato dela ajudar a responder
duas perguntas básicas de qualquer teoria moral. A primeira delas é: “O que a moral exige
dos indivíduos?” Já segunda é: “Por que devem os indivíduos obedecer a certas regras?”
Segundo Gargarella, a resposta do contratualismo à primeira pergunta é que a moral exige
que sejam cumpridas aquelas obrigações que os indivíduos se comprometem a cumprir. Já a
resposta à segunda pergunta é uma consequência da primeira: a razão pela qual devem ser
obedecidas certas regras é porque os indivíduos se comprometem a isso. (GARGARELLA,
Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Trad. de
Alonso Reis Freire. São Paulo: WMF M. Fontes, 2008. p. 14).
tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e sociais em seu
próprio benefício. Com esse propósito, assumo que as partes se
situam atrás de um véu de ignorância. Elas não sabem como
várias alternativas vão afetar o seu caso particular, e são obrigadas
a avaliar os princípios unicamente com base nas considerações
gerais.202
202
E continua Rawls: “[...] ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de
classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes
naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece
a sua concepção do bem, as particularidades do seu plano de vida racional, e nem mesmo os
traços característicos de sua psicologia [...]. Mais ainda, admito que as partes não conhecem
as circunstâncias particulares de sua própria sociedade.” (RAWLS, Uma teoria da justiça, p.
146-147).
203
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 148.
204
Cumpre esclarecer que para Rawls, “[...] a posição original não deve ser considerada como
uma assembléia geral que inclui, num dado momento, todas as pessoas que vivem numa
determinada época; e menos ainda como uma assembléia de todos os que poderiam viver
numa determinada época. Ela não é uma reunião de todas as pessoas reais ou possíveis. Se
concebermos a posição original de uma dessas duas maneiras, a concepção deixaria de ser um
guia natural para a intuição e não teria um sentido claro. De qualquer forma, a posição
original deve ser interpretada de modo que possamos, a qualquer tempo, adotar a sua
perspectiva. deve ser indiferente a ocasião em que alguém adota esse ponto de vista, ou que,
o faz: as restrições devem ser tais que os mesmos princípios são sempre escolhidos. O véu de
ignorância é uma condição essencial na satisfação dessa exigência. Ele assegura não apenas
que a informação disponível é relevante, mas também que é a mesma em todas as épocas”.
(RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 149).
é possível a um único indivíduo imaginar-se como a única pessoa que faz a
escolha na posição original, partindo do princípio de que os demais
escolheriam da mesma forma.205
Rawls pressupõe que os seres imaginários que integram a posição
original estão motivados a obter bens primários, que seriam os bens
indispensáveis à satisfação de qualquer plano de vida. Esses bens primários
supostos por Rawls, na descrição de Gargarella, seriam de dois tipos:206
205
A esse respeito, Rawls assevera que “[...] como as diferenças entre as partes são
desconhecidas, e todos são igualmente racionais e estão situados de forma semelhante, cada
um é convencido pelos mesmos argumentos. Portanto, podemos considerar o acordo na
posição original a partir do ponto de vista de uma pessoa selecionada ao acaso. Se qualquer
pessoa, depois da devida reflexão, prefere uma concepção da justiça a uma outra, então todos
a preferem, e pode-se atingir um acordo unânime”. (RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 150).
206
GARGARELLA, As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política,
p. 23. Importante destacar, ainda, que John Rawls refere que o mais importante bem primário
é a autoestima, ou seja, a confiança sólida que o indivíduo tem de seu próprio valor, talvez
seja o mais importante bem primário de todos. (RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 439).
207
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 438.
208
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 438.
No processo de escolha pelas partes na posição original, Rawls previu
a possibilidade de surgimento de dúvidas e incertezas sobre a escolha a ser
feita. Para buscar o consenso na posição original, Rawls estabeleceu a
regra maximin, que determina que as alternativas sejam classificadas a
partir de seu pior resultado possível.
Segundo Rawls, a regra do maximin seria a opção ideal, já que, em
virtude do véu de ignorância, os participantes não conhecem as
probabilidades que estão ao seu alcance; logo, não têm interesse particular
em obter benefícios maiores que o mínimo, nem em correr graves riscos. A
regra do maximin, portanto, conduz a uma opção que diminui ao máximo
riscos e perdas.209 A esse respeito, Gargarella exemplifica afirmando que se
uma das alternativas “[...] permite que alguns terminem em uma situação
de virtual escravidão, essa situação será inaceitável, por mais que possa
outorgar grandes benefícios à maioria restante”.210
Deve ser bem-compreendido que a regra maximin difere radicalmente
da estratégia utilitarista, porquanto naquela, como bem destaca Ricoeur,
há uma maximização da “[...] parte minimal numa situação de partilha 87
desigual”, o que é bem diferente da proposta utilitarista de maximização
do interesse da maioria.211
Com efeito, nesse cenário hipotético onde pessoas imaginárias, livres
e racionais, em condições de igualdade e sob um véu de ignorância, se
valem da regra maximin para nortear suas escolhas, Rawls conclui pela
possibilidade de um consenso na posição original em torno de dois
princípios básicos de justiça, assim definidos:
209
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 165.
210
GARGARELLA, As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política,
p. 24.
211
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Trad. de Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto
Piaget, 1995. p. 64.
212
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 64.
O primeiro princípio descrito por Rawls, denominado princípio da
liberdade igual, assegura liberdades igualitárias de cidadania, tais como
liberdades de expressão, de reunião, de voto, de elegibilidade para cargos
públicos, dentre outras.213 Ademais, como observa Gargarella, trata-se de
uma decorrência natural do pressuposto estabelecido por Rawls de que os
participantes da posição original, sob o véu de ignorância, desconhecem
suas próprias concepções de bem, o que faz com que se preocupem com o
direito à liberdade em sentido amplo, bem como com que “[...] as
instituições básicas da sociedade não os prejudiquem ou discriminem”.214
Já o segundo princípio, denominado de princípio da diferença, objetiva
regular a distribuição dos recursos econômicos e sociais entre todos os
integrantes de uma sociedade. Na opinião de Gargarella, o segundo
princípio de Rawls, implica uma superação da noção tradicional de justiça
distributiva, segundo a qual o que um indivíduo obtém para si é justo
desde que os benefícios ou as posições em questão também sejam acessíveis
aos demais. Para Rawls, a simples igualdade de oportunidades não traduz
88 a ideia de justiça, porquanto os beneficiados pela “loteria natural” estariam
em vantagem. Assim, Rawls admite violações à ideia de igualdade, sempre
que elas servirem para beneficiar os menos favorecidos.215
A boa-compreensão dos dois princípios de justiça propostos por Rawls
perpassa pela ordem de prioridade serial ou lexical que os liga um ao outro.
A esse respeito, Rawls assevera que tal ordenação de prioridade entre os
princípios (o primeiro antecedendo o segundo) “[...] significa que as
violações das liberdades básicas iguais protegidas pelo primeiro princípio
não podem ser justificadas nem compensadas por maiores vantagens
econômicas e sociais”.216 Em outras palavras, a ordem de prioridade
estabelecida por Rawls estabelece que somente sejam aceitas restrições à
liberdade para o bem da liberdade, mas nunca em favor da obtenção de
vantagens puramente econômicas ou sociais.217
213
RICOEUR, O justo ou a essência da justiça, p. 73.
214
GARGARELLA, As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política,
p. 25.
215
GARGARELLA, As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política,
p. 25-26.
216
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 65.
217
A esse respeito, Paul Ricoeur assinala: “A ordenação lexical confere a todos os constituintes
um peso específico sem os tornar mutuamente substituíveis. Aplicada à teoria da justiça:
nenhuma perda de liberdade, qualquer que seja o grau, pode ser compensada por um
crescimento de eficácia econômica. Não se compra o bem-estar a custa de liberdade.”
(RICOEUR, O justo ou a essência da justiça, p. 74).
A partir da definição de seus dois princípios básicos de justiça, Rawls
busca descrever a estrutura básica da sociedade justa, capaz de garantir
padrões democráticos e cooperativos de convivência. Como bem observa
Baggio, para Rawls não basta que as oportunidades em uma sociedade
sejam igualmente oportunizadas, para que se tenha um sistema justo de
distribuição social, porquanto as diferenças naturais – que para Rawls não
são justas nem injustas, apenas fatos – podem representar vantagens para
os que as possuam, mesmo diante da igualdade de oportunidades. Portanto,
uma estrutura social justa é aquela que é capaz de diminuir ao máximo as
diferenças decorrentes de um sistema natural arbitrário de qualidades, de
modo a beneficiar os menos favorecidos.218
Com o intuito de tornar clara a relação entre os princípios de justiça
escolhidos pelos participantes na posição original, Rawls propõe uma
sequência de acontecimentos em quatro estágios, na qual o véu de
ignorância vai sendo retirado. No primeiro estágio, “[...] os únicos fatos
particulares conhecidos pelas partes são os que podem ser inferidos das
circunstâncias da justiça”.219 Já nos estágios seguintes, “[...] fatos genéricos 89
sobre a sociedade estão à disposição das partes, mas não as particularidades
de suas próprias condições”.220 Segundo Rawls, após a eleição dos princípios
da justiça, as limitações do conhecimento podem ir sendo reduzidas, porém
em cada estágio as informações das partes são determinadas por aquilo
“[...] que se exige para a aplicação desses princípios ao tipo de problemas
de justiça em questão; e, ao mesmo tempo fica excluído qualquer
conhecimento que tenda causar distorções e preconceitos ou a colocar os
homens uns contra os outros”.221
A ideia de Rawls é que a aplicação racional e imparcial dos princípios
é que define o tipo de conhecimento em cada uma das etapas, até que, na
última delas, todas as restrições são retiradas por completo, pois as partes
já detêm integral compreensão da estrutura básica de uma sociedade justa.
Os autores Kukathas e Pettit ilustram bem a sequência de quatro estágios
proposta por Rawls para retirada do véu de ignorância:
218
BAGGIO, Justiça ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza.
219
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 216-217.
220
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 217.
221
RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 217.
[...] na primeira etapa, na posição original, os princípios são
escolhidos, após o que as partes na posição original se reúnem
numa assembléia constituinte, na qual decidem sobre a justiça
das formas políticas e escolhem uma constituição. Esta é a segunda
etapa, em que se estabelecem claramente os direitos e liberdades
fundamentais. A partir de então é possível legislar – fazer leis que
dizem respeito à estrutura econômica e social da sociedade: é a
terceira etapa, em que se trata da justiça das leis e políticas
econômicas e sociais. Quando esta se completa, já só nos resta,
na quarta etapa, a aplicação das regras pelos juízes e outras
autoridades.222
222
KUKATHAS; PETTIT. Rawls: uma teoria da justiça e seus críticos, p. 65.
223
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 255.
Com efeito, uma terceira abordagem sobre justiça e distribuição,
pautada justamente pelas noções de virtude e de vida boa, apresenta-se
como um via alternativa de pensar essas questões.
224
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 296.
desconsiderar o contexto social que condiciona os valores e fins dos
indivíduos. Já o segundo pressuposto falha porque não consegue explicar
certas experiências humanas básicas, decorrentes de propósitos que são
compartilhados pela comunidade na qual o indivíduo se insere.225
Com efeito, na referida obra, Sandel já sustentava que o grande
problema da teoria rawlsiana é a inadequação de uma concepção de sujeito
moral como sendo um indivíduo dissociado das características e dos valores
provenientes da experiência social. Isso porque o sujeito moral, nessa
concepção, perde sua identidade e a capacidade de decisão, não lhe restando
alternativa senão concordar com o que lhe é colocado como justo.
Críticas como essa de Sandel fizeram parte daquilo que se denominou
por reivindicações comunitárias.226 Curiosamente, na sua mais recente obra
sobre justiça, Sandel alerta que “[...] os ônus da vida em comunidade
podem ser opressivos”; assim a justiça não pode ser simplesmente aquilo
que uma determinada comunidade defina que ela seja. Daí o problema:
Como conciliar o peso moral de uma comunidade sem, com isso, abrir
92 mão da liberdade humana?227
Quem apresenta uma resposta interessante a esse questionamento é
outro filósofo contemporâneo: Alasdair MacIntyre.
A obra de MacIntyre se caracteriza pelo acento no caráter sócio-
histórico dos conceitos morais e pela concepção narrativa do sujeito. No
livro Depois da virtude, MacIntyre afirma que com o iluminismo se deu o
rompimento com a tradição filosófica clássica. Houve assim, a partir de
então, uma total negação da existência de uma função ou finalidade
225
Direcionando sua crítica à Rawls, Sandel afirma: “A unidade antecedente do ‘eu’ significa
que o sujeito, não importa quão condicionado por seu encontro se encontre, sempre é
irredutivelmente anterior a seus valores e fins e nunca completamente construído por eles.”
(SANDEL, Michael. El liberalismo y los limites de la justicia. Trad. de María Luz Melon.
Barcelona: Gedisa, 2000. p. 39).
226
Segundo Roberto Gargarella o comunitarismo se caracteriza “[...] como uma corrente de
pensamento que surgiu na década de 1980, e que se desenvolveu em permanente polêmica
com o liberalismo em geral e com o liberalismo igualitário em particular. Esta disputa entre
comunitaristas e liberais pode ser vista como um novo capítulo de um enfrentamento filosófico
de longa data, como o que opunha as posições ‘kantianas’ às ‘hegelianas’. De fato, e em boa
parte, o comunitarismo retoma as críticas que Hegel fazia a Kant: enquanto Kant mencionava
a existência de certas obrigações universais que deveriam prevalecer sobre aquelas mais
contingentes, derivadas do fato de pertencermos a uma comunidade em particular, Hegel
invertia essa formulação para dar prioridade a nossos traços comunitários.” (GARGARELLA,
As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política, p. 137).
227
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 273.
humana essencial (telos), que transcendesse a escolha individual. O homem
passou a ser visto como indivíduo e deixou de ser um conceito funcional.228
Entretanto, para o autor o projeto iluminista fracassou, porquanto sem o
telos os juízos morais se tornaram meros imperativos, não suscetíveis à
verdade ou à falsidade. Daí o desacerto moral da modernidade na visão de
MacIntyre.
Diante de tal conclusão, em lugar daquilo que define por concepção
emotivista do sujeito, MacIntyre antepõe uma concepção narrativa do
sujeito em busca do pleno florescimento e uma ética (aristotélica) baseada
em virtudes que capacitam à realização de um plano de vida, acompanhadas
de uma ênfase contínua na importância da tradição. MacIntyre também
acentua a importância da narrativa, pois a ação humana deixa de ser vista
como um fato isolado, uma história individual, mas como parte de um
conjunto de narrativas conectadas.
A esse respeito, Gargarella observa:
228
MAcINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Trad. de Jussara Simões. Bauru: Edusc, 2001.
p. 110.
229
GARGARELLA, As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política,
p.148.
Para MacIntyre, essa liberdade pregada pelo liberalismo é falsa,
porquanto as escolhas individuais jamais estarão livres de ônus morais
relacionados às histórias das comunidades às quais determinado indivíduo
estiver vinculado. Inviável, portanto, adotando-se a concepção narrativa
do sujeito, separar os debates sobre a justiça dos debates sobre as diferentes
concepções de vida boa.
Traçado esse panorama teórico acerca das diferentes concepções sobre
a justiça, resta analisar qual delas melhor se molda ao que aqui se propõe,
ou seja, uma concepção de justiça conformadora do meio justo para as
relações entre homem e natureza.
230
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 322.
231
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 51-55.
A filosofia utilitarista de Mill também é criticada. Sandel destaca que
embora as especulações de Mill sobre os benefícios sociais de se incorporar
o princípio da liberdade na filosofia utilitária sejam bastante plausíveis,
elas “[...] não fornecem uma base moral convincente para os direitos do
indivíduo”. A um, porque vincular o respeito de direitos individuais ao
alcance de um progresso social torna os direitos “reféns da contingência”,
já que se porventura o progresso social for alcançado por meios despóticos,
os direitos individuais passariam a ser considerados, na visão utilitária,
desnecessários. A dois, porque vincular o respeito a direitos individuais a
considerações utilitaristas inviabilizaria o reconhecimento de que a violação
dos direitos de um indivíduo inflige-lhe um mal, uma injustiça,
independentemente dos efeitos negativos que tal violação possa vir a
produzir no bem-estar geral a longo prazo.232
Deve ser salientado, ainda, que as versões utilitárias de Benthan e
Mill sequer cogitam a inserção de interesses não humano nos âmbito dos
interesses a serem considerados. Logo, tais concepções de justiça não servem
ao fim aqui buscado. 95
Mesmo o utilitarismo proposto por Peter Singer, de inegável valor
para fins de inclusão de interesses não humanos no debate moral, contém
seus problemas. Como destaca Nussbaum, muitas doutrinas religiosas e
morais discordam de Singer quanto a ser a satisfação de interesses e
preferências a forma mais adequada para se alcançar o bem-estar. Isso
porque noções como as de interesse e preferência contêm problemas, já
que podem resultar da ignorância, do medo, da ganância, bem como serem
preferências adaptativas, decorrentes de uma adaptação do indivíduo ao
seu padrão de vida e ao que aspira alcançar ao longo do tempo.233 Logo,
como garantir que a maximização de tais interesses representa o justo em
um caso concreto?
A grande falha do utilitarismo como modelo de justiça norteador das
relações entre homem e natureza é justamente aquilo que o torna
interessante: a maximização do bem-estar. Mesmo quando leva em
consideração interesses não humanos, a fórmula utilitária não
necessariamente será de fato a mais justa para as relações entre homem e
natureza, até porque partirá sempre do homem o parâmetro de definição
232
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 65.
233
NUSSBAUM, Martha C. Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión.
Barcelona: Paidós, 2007. p. 337.
dos interesses (humanos e não humanos), o que põe em dúvida a
capacidade de mensuração dos verdadeiros interesses em conflito.
Já as teorias liberais resolvem o problema pelo lado da liberdade do
ser humano. Contudo, sua grande falha reside na tentativa de afastar o
debate moral dos debates sobre justiça. Isso porque, como bem refere
Sandel, “[...] questões de justiça são indissociáveis de concepções divergentes
de honra e virtude, orgulho e reconhecimento. Justiça não é apenas a
forma certa de distribuir as coisas. Ela diz respeito à forma certa de avaliar
as coisas”.234
A impossibilidade de a fórmula liberal servir de parâmetro para uma
adequada concepção de justiça para as relações entre homem e natureza,
mesmo nas suas concepções mais igualitárias, caso das concepções kantiana
e rawlsiana, está no foco exacerbado sobre o indivíduo, bem como no fato
de considerarem que aqueles que definem os princípios básicos de uma
sociedade são os mesmos destinatários dos princípios projetados. Isso pode
ser um erro. A esse respeito, Nussbaum observa que, na tradição liberal do
96 contrato social, a noção moral básica é o benefício mútuo e a reciprocidade
entre as pessoas que celebram o contrato. Assim, os princípios eleitos
regulam, em primeiro lugar, os acordos entre elas. Outros interesses, não
humanos, podem estar incluídos de forma derivada, por meio dos
compromissos e interesses próprios das partes contratantes. Porém, os
sujeitos primários de justiça são os mesmos que elegem os princípios.235
Dessa forma, a estratégia contratual liberal não permite um
alargamento desses sujeitos primários de justiça, estratégia inadequada para
quem busca a justiça nas relações entre homens e natureza. Mesmo que os
princípios de justiça sejam eleitos “sob um véu de ignorância”, eles jamais
se destinam àqueles seres que não são parte na eleição de tais princípios.
Essa questão é fundamental. Nesse sentido, Felipe assevera:
234
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 322-323.
235
E complementa a autora: “Se podría proponer una teoría en la cual muchos seres vivos,
tanto humanos como no humanos, sean sujetos primarios de la justicia, aunque no tengan
capacidad para participar en el procedimiento por el cual se escogen los principios políticos.
Si partimos de la idea de que hay muchos tipos distintos de seres vivos dotados de dignidad
y merecedores de respeto, existem poderosas razones ensayar una teoría de este tipo y separar
las dos cuestiones.” (NUSSBAUM, C. Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la
exclusión, p. 36-37).
Na teoria da justiça de Rawls não vimos contemplados interesses
de seres humanos incapazes de estabelecer contratos de cooperação
econômica e social, incapazes de cooperação para a produção dos
bens sociais primários, nem os interesses dos demais seres vivos,
não aptos, em razão de suas condições biológicas naturais, a
estabelecerem acordos de cooperação social. Entre esses,
contamos, então, os interesses de humanos não-paradigmáticos,
de animais sencientes e não-sencientes, de plantas e ecossistemas.
Excetuando-se os humanos não-paradigmáticos, os demais
ocupam um mesmo lugar na concepção de Rawls: são meros
meios, para suprimento de matéria-prima, que os humanos, no
caso os sujeitos interessados no modelo de produção de bens que
pressupõe a exploração desses recursos naturais, necessitam para
atender às suas exigências de bem-estar. 236
Kant sustentava que os seres humanos não têm deveres morais diretos
para os animais. Já Rawls afirmava que se os tiverem são deveres de caridade 97
ou compaixão, não propriamente de justiça. Esse é outro traço da tradição
liberal, que não se mostra adequado para a construção de uma concepção
ampliada de justiça ambiental.
Inegavelmente muitas das ações humanas afetam diariamente a vida
das espécies não humanas, causando-lhes, muitas vezes, grandes sofrimentos.
E isso, como bem observa Nussbaum, é um problema de justiça, não de
caridade. Entretanto, para ampliar o espectro dos sujeitos de justiça, é
preciso que haja um debate no campo moral sobre a ampliação das
considerações da dignidade da vida não humana.
Poderia-se argumentar que com algumas modificações básicas, o
liberalismo igualitário de Rawls poderia servir de modelo de justiça para o
movimento por justiça ambiental. Aqui vale relembrar que a perspectiva
da justiça ambiental, presente no movimento, é antropocêntrica, voltada
para a justiça social em cenários de degradação ambiental. Não se busca a
extensão da dignidade ou dos debates sobre justiça para além da fronteira
humana. Com efeito, nesta perspectiva, bastaria incluir o equilíbrio
236
FELIPE, Sônia T. Por uma questão de justiça ambiental: perspectivas críticas à teoria de
John Rawls. Revista Ethic@, Florianópolis, v. 5, n. 3, p. 7. Deve ser ressaltado que a autora se
vela da expressão “humanos não-paradigmáticos”, referindo-se a indivíduos humanos
desprovidos de capacidades de agir autônoma e responsavelmente, tais como os recém-nascidos,
crianças e pessoas com deficiências físicas ou mentais.
ecológico como um bem primário a ser adequadamente distribuído na
sociedade e estabelecer princípios para sua justa distribuição, sob um véu
de ignorância. Ademais, o princípio da diferença e a regra maximim de
Rawls dariam conta de favorecer os mais necessitados na distribuição
desigual das externalidades ambientais negativas.
Entretanto, existem outros problemas de justiça ambiental que ficariam
de fora dessa abordagem. Estará na simples redistribuição dos bens sociais,
mesmo que incluído o equilíbrio ecológico na escala de bens a serem
adequadamente distribuídos, a solução para todos os casos de injustiça
ambiental do cenário contemporâneo? E mais, qual a razão moral para
não serem incluídos os demais seres vivos e a própria natureza nos debates
sobre justiça? Será possível falar em justiça ambiental, sem levar em conta
tais interesses? Felipe também questiona essa situação:
237
FELIPE, Por uma questão de justiça ambiental: perspectivas críticas à teoria de John
Rawls, p. 7.
Uma boa definição de bem comum é formulada por John Finnis.
Para esse autor, bem comum pode ser compreendido como o conjunto de
condições que permita aos membros de uma comunidade atingir “[...]
objetivos razoáveis, ou que realizem, de modo razoável, por si mesmos, o
valor em nome do qual eles têm razão de colaborar uns com os outros
(positiva ou negativamente) em uma comunidade”.238 Com efeito, o bem
comum assim compreendido assume um sentido semelhante ao de interesse
público, como bem observa Finnis.
A justiça ambiental nesse contexto passa a ser uma exigência do bem
comum. Semelhante é a conclusão de Di Lorenzo. Segundo o autor, “[...]
uma das relações de justiça fundamentais para o bem comum universal é
a justiça ambiental”.239
As relações entre homem e natureza estão em permanente evolução.
Assim, os debates sobre justiça ambiental necessitam acompanhar o debate
ético sobre as relações entre homem e natureza, sob pena de entrarem em
conflito deveres de justiça e deveres morais, algo que não é concebível em
uma teoria de justiça confiável.240 99
Como refere Sandel, é deveras tentadora a busca de um princípio ou
procedimento capaz de justificar adequadamente a distribuição de renda,
poder ou oportunidade dele resultante. Afinal, a definição desse princípio
ou procedimento permitiria evitar ferrenhas discussões sobre as diferentes
concepções de vida boa.241 Tal tarefa, contudo, talvez não seja viável.
238
FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. Trad. de Leila Mendes. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2007. p. 155.
239
E complementa o autor: “A diminuição do impacto destrutivo da atividade humana e a
busca de atividades que permitam a reposição dos bens naturais utilizados é uma exigência
do bem comum universal e um imperativo da solidariedade para com outrem, tanto
considerado como contemporâneo quanto em relação às gerações futuras.” (DI LORENZO,
Wambert Gomes. Teoria do estado de solidariedade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 128-
129).
240
A esse respeito, Felipe demonstra como tal conflito pode ocorrer na teoria de justiça de
Rawls, após a retirada do véu de ignorância: “A retirada do véu, isto é, a constatação pura e
simples, dos que se encontram na posição privilegiada, de que não fazem parte do grupo
prejudicado, de que não se encontram, por exemplo, na condição de humanos deficientes,
dos animais e de outras espécies vivas que não têm como defender-se do domínio predatório
de outro, pode levar o sujeito a agir, buscando exatamente apenas a garantia de seus privilégios,
sem consideração pelos interesses oprimidos.” (FELIPE, Sônia T. Por uma questão de justiça
ambiental: perspectivas críticas à teoria de John Rawls. Revista Ethic@, Florianópolis, v. 5, n.
3, p. 5-31).
241
SANDEL, Justiça: o que é fazer a coisa certa, p. 322.
Isso porque, por tudo o que foi exposto, parece impossível debater
sobre justiça ambiental sem adentrar no debate moral. Essa a razão principal
para que deva prevalecer uma abordagem de justiça ambiental pautada
pelo bem comum, numa visão teleológica, pluralista,242 não presa a certos
fins inalteráveis, mas sim aberta ao diálogo e à evolução dos tempos e das
relações. Acredita-se que tal abordagem é a que melhor indica os caminhos
teóricos para a implementação de uma concepção de justiça ambiental
ampla e efetiva.243
Buscar-se-á confirmar tal afirmação a partir da análise de modernas
abordagens sobre a justiça, que contribuam para que se construa uma
adequada concepção de justiça ambiental, pautada pelo bem comum.
244
BAGGIO, Justiça Ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza.
245
HERCULANO, Riscos e desigualdade social: a temática da Justiça Ambiental e sua construção
no Brasil.
imposta a certos grupos, quer seja pela denúncia à insuficiência
da neutralidade do Estado para atender às demandas coletivas
inerentes aos movimentos sociais por justiça ambiental.246
246
BAGGIO, Justiça Ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza.
247
SCHLOSBERG, Defining Environmental Justice: theories, movements and nature, p. 55.
248
SCHLOSBERG, Defining environmental justice: theories, movements and nature, p. 56.
distributivos dos riscos e benefícios ambientais atingem sobretudo as
comunidades, tornando-se parte de suas experiências, de suas histórias e
de suas identidades, são as comunidades que melhor podem reivindicar
justiça ambiental. O segundo ponto importante destacado por Schlosberg
é que pela perspectiva do movimento por justiça ambiental se constata
uma limitação da abordagem distributiva tradicional. Muito embora a
equidade distributiva seja sempre a primeira e central definição de justiça,
utilizada por ativistas e grupos pertencentes ao movimento por justiça
ambiental, ela não abrange todas as críticas e os desejos do movimento.
Prova disso que os adeptos de movimento por justiça ambiental dão
preferência ao termo justiça em detrimento do termo equidade, tipicamente
utilizado na abordagem distributiva tradicional, por considerar aquele mais
abrangente e inclusivo que este. Em síntese, o autor defende que a justiça
distributiva, na alocação dos impactos e benefícios ambientais, é uma
questão necessária, mas não suficiente para promover a justiça ambiental.249
Essa limitação do paradigma distributivo tradicional fica ainda mais
evidente quando se busca criar uma conexão entre justiça ambiental e 103
justiça ecológica, tendo em vista que incluir interesses não humanos nos
debates sobre justiça ultrapassa a esfera da simples redistribuição.
249
SCHLOSBERG, Defining environmental justice: theories, movements and nature,
p. 57-59.
definitórias mais importantes”. 250 Taylor procura demonstrar que a
identidade dos indivíduos se define a partir das relações sociais e culturais
em que estão inseridos ao longo de suas vidas. Porém, o mais importante é
que a identidade dos indivíduos se constrói também a partir do
reconhecimento dos outros. Com efeito, o não reconhecimento ou o
reconhecimento inadequado, na visão do autor, pode se tornar um fator
de opressão e injustiça social:
104
Para Taylor, as democracias contemporâneas adotam uma política de
reconhecimento igualitário que muito embora assegure direitos e liberdades
iguais para todos, baseia-se nas universais características humanas e na
“cegueira das diferenças”, dando margem a diversas formas de discriminação
social. Em contrapartida, Taylor defende que um verdadeiro
reconhecimento igualitário requer direitos e autorizações especiais para
grupos aviltados ou cuja cultura se encontre limitada. 252
250
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad. de Adail
Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997. p. 54.
251
Ainda segundo Taylor: “Perante estas considerações, o reconhecimento incorreto não
implica só uma falta do respeito devido. Pode também marcar a suas vítimas de forma cruel
subjugando-as através de um sentimento incapacitante de ódio contra as mesmas. Por isso, o
respeito devido não é um acto de gentileza para com os outros. É uma necessidade humana
vital.” (TAYLOR, Charles. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento.
Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 45-46).
252
Embora o pensamento de Taylor contenha um forte viés comunitarista, na medida em
que defende uma maior atenção ao problema de como preservar e proteger tradições, culturas,
modos heterogêneos de vida, e menos às pretensões dos indivíduos, o curioso é que Taylor
acredita na possibilidade de conciliar sua proposta com os ideias do liberalismo. Contudo,
defende um tipo de liberalismo distinto daquele proposto por Rawls, no qual o Estado
assume uma postura de primazia dos direitos individuais e permanece neutro com relação às
diferentes identidades sociais, culturais ou religiosas. O liberalismo defendido por Taylor, ao
contrário, exige um comprometimento do Estado com a proteção e com o florescimento da
diversidade cultural de uma nação, na medida em que, além dos direitos individuais básicos,
sejam igualmente reconhecidos e assegurados os direitos desses mesmos indivíduos como
Também enfatizando a questão do reconhecimento, Young, Fraser e
Honneth argumentam que os debates sobre justiça não devem se preocupar
apenas com as clássicas questões de distribuição ou redistribuição, mas
também devem abordar os processos que geram má-distribuição. Tais
autores referem que o reconhecimento individual e social é elemento-
chave para se alcançar a justiça. Tanto o componente psicológico do
reconhecimento quanto o status social, que se atribui aos menos abastados
nos esquemas de distribuição são questões centrais nessas abordagens.
Young, na obra Justice and the politics of difference, enfatiza as razões
pelas quais sustenta a insuficiência do paradigma distributivo para uma
adequada compreensão dos problemas de justiça. Segundo a autora, o
paradigma distributivo define a justiça social como a distribuição
moralmente correta dos benefícios e das cargas sociais entre os membros
da sociedade. A lógica do paradigma distributivo contempla, inclusive,
bens sociais imateriais, como direitos, oportunidades, poder e autorrespeito,
marcando, dessa forma, uma tendência em conceber a justiça social e a
distribuição como conceitos complementares. Contudo, é justamente aí 105
que reside o problema: a falta de reconhecimento de limites na aplicação
da lógica distributiva. Isso porque aplicar a lógica distributiva a certos
bens sociais imateriais e incomensuráveis acarreta uma compreensão
inadequada das questões de justiça que estão em jogo.253
Na visão de Young, existem processos de opressão e dominação nas
estruturas de poder que acarretam injustiças sociais, as quais não
encontrariam no paradigma distributivo soluções adequadas, mesmo
quando a estratégia utilizada for a materialização e redistribuição dos bens
imateriais. Um bom exemplo dado por Young vincula-se diretamente a
uma questão de justiça ambiental. Segundo a autora, em uma cidade de
Massachussets, nos EUA, moradores locais se mobilizaram contra uma
decisão governamental que impunha a construção de uma indústria de
tratamento de resíduos na região. Em uma situação como essa, a injustiça
está vinculada, muito mais do que a uma redistribuição, ao processo de
opressão e dominação que retira dos referidos cidadãos qualquer
254
YOUNG, La justicia e la política de la diferencia, p. 38-39.
255
YOUNG, La justicia e la política de la diferencia, p. 65.
um segundo tipo de reivindicação de justiça social na “política
do reconhecimento”. Aqui, o objetivo mais provável é um mundo
que aceite a diferença, no qual a integração à maioria ou a
assimilação das regras culturais dominantes não sejam o preço
cobrado por respeito e igualdade. Como exemplos, podemos citar
as reivindicações de reconhecimento das perspectivas pertencentes
a minorias étnicas, “raciais” e sexuais, bem como da diferença de
gênero. Este tipo de reivindicação tem atraído o interesse de
filósofos políticos, alguns dos quais estão tentando, inclusive,
desenvolver um novo paradigma de justiça que situe o
reconhecimento em seu centro.256
Assim como Young, Fraser insiste que o contexto social das distribuições
injustas deve ser objeto da teoria da justiça, sendo esta a chave para entender
e corrigir injustiças existentes. Se e como os indivíduos ou comunidades
são socialmente reconhecidos é questão crucial na abordagem de Fraser.
Para a autora, a abordagem do reconhecimento evidencia um novo perfil 107
das demandas por justiça, sem vinculação direta com a lógica distributiva,
porquanto atreladas a reclames de igualdade cultural (não material) que
não podem ser objeto de redistribuição. Daí a concepção bivalente da
justiça sustentado por Fraser: as injustiças econômicas geram demandas
por redistribuição; já as injustiças culturais ou de status social geram
demandas por reconhecimento.
Fraser propõe, portanto, uma ampliação do conceito de justiça, de
modo a incluir, numa mesma teoria, respostas tanto às demandas por
redistribuição quanto às demandas por reconhecimento. Com efeito,
observa a autora:
256
“[...] las reivindicaciones redistributivas igualitarias han constituido el paradigma de la
mayor parte de la teorización sobre la justicia social durante los últimos 150 años. Hoy dia,
sin embargo, encontramos cada vez más un segundo tipo de reivindicación de justicia social
en la ‘política de reconocimiento’. Aquí, el objetivo, en su forma más verosímil, es un mundo
que acepte la diferencia, en el que la integración en la mayoría o la asimilación de las normas
culturales no sea ya el precio de un respeto igual. Como ejemplos, podemos mencionar las
reivindicaciones del reconocimiento de las perspectivas características de las minorias étnicas,
‘raciales’ y sexuales, así como la diferencia de género. Este tipo de reivindicación ha atraído
no hace mucho el interés de los filósofos políticos, algunos de los cuales están intentando
desarrollar, incluso, un nuevo paradigma de justicia que sitúe el reconocimeiento en su
centro.” Tradução livre. (FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribución o reconocimiento?
Madrid: Paidéa/Morata, 2006. p. 19).
Justiça hoje, requer tanto redistribuição quanto reconhecimento;
nenhum deles, sozinho, é suficiente. A partir do momento em
que se adota essa tese, entretanto, a questão de como combiná-
los torna-se urgente. Sustento que os aspectos emancipatórios
das duas problemáticas precisam ser integrados em um modelo
abrangente e singular. A tarefa, em parte, é elaborar um conceito
amplo de justiça que consiga acomodar tanto as reivindicações
defensáveis de igualdade social quanto as reivindicações defensáveis
de reconhecimento da diferença.257
257
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Revista Lua Nova, São Paulo, n. 70, p.
101-138.
humanos. Para o autor, há um contexto histórico de racismo que alcança a
esfera pública e se traduz em um “racismo institucional”, perpetuando
práticas, políticas e instituições racistas. Dessa forma, uma lógica puramente
distributiva e de análise das forças de mercado não enfrenta adequadamente
os problemas do racismo ambiental, porquanto “[...] separa o contexto
sócio-histórico do racismo da desigual distribuição das cargas ambientais
sobre as minorias e sobre os pobres”.258
No Brasil, Baggio realizou pesquisa semelhante. Entretanto,
diferentemente de Figueroa, Baggio não identifica na proposta dualista de
Frasier aquela que melhor responde aos desafios que cercam a tentativa de
edificar uma adequada concepção de justiça ambiental.
Segundo Baggio, a proposta de Fraser esbarra na tentativa de superar
uma dicotomia entre moralidade e ética tão presente nos debates filosóficos
travados entre Kant e Hegel. Isso porque, na tentativa de vincular o
reconhecimento a uma moralidade universal, Fraser rompe com a teoria
tradicional do reconhecimento vinculado à identidade dos sujeitos e às
diferentes concepções de vida boa, tal como desenvolvido por Hegel. Em 109
substituição, Fraser propõe analisar o reconhecimento como status social,
centrado nas estruturas institucionais que determinam os padrões de
valoração cultural em sociedade, valendo-se de um princípio deontológico
denominado de paridade participativa. Tal abordagem, na opinião de Baggio,
acarreta problemas:
258
“[...] separates the socio-historical context of racism from the disparate distribution of
environmental burdens upon minorities and the poor.” Tradução livre. (FIGUEROA, Robert
Melchior. Bivalent environmental justice and the culture of poverty. Rutgers University Journal
of Law and Urban Policy, 1(1). Disponível em: <http://www.rutgerspolicyjournal.org/sites/
rutgerspolicyjournal.org/files/issues/issue1vol1figueroa.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2012).
esquema heurístico, em que só na teoria pode-se imaginar
reconhecimento e redistribuição como esferas separadas, já que
nos atuais contextos sociais complexos, tais demandas estão
sempre presentes em graus diferenciados.259
259
BAGGIO, Justiça ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza.
260
Segundo observa Honneth, “[...] o jovem Hegel, muito além do espírito da época, seguiu
em seus escritos de Jena um programa que soa quase materialista: reconstruir o processo de
formação ética do gênero humano como um processo em que, passando pelas etapas de um
conflito, se realiza um potencial moral inscrito estruturalmente nas relações comunicativas
entre os sujeitos. Mas como é evidente, essa construção se encontra ainda sob a pressuposição
idealista de que o processo conflituoso a ser investigado é determinado por uma marcha
objetiva da razão que, ou desdobra, aristotelicamente, a natureza comunitária do homem
ou, mos termos da filosofia da consciência, a autorrelação do espírito.” (HONNETH, Axel.
Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São
Paulo: Editora 34, 2009. p. 117-118).
261
A esse respeito, Honneth afirma que “[...] com a inclusão da psicologia social de Mead, a
ideia que o jovem Hegel traçou em seus escritos de Jena com rudimentos geniais pode se
tornar o fio condutor de uma teoria social de teor normativo; seu propósito é esclarecer os
processos de mudança social reportando-se às pretensões normativas estruturalmente inscritas
na relação de reconhecimento recíproco.” (HONNETH, Luta por reconhecimento: a gramática
moral dos conflitos sociais, p. 155).
Com efeito, para Honneth são três os padrões de reconhecimento: o
reconhecimento pelo amor ou afeto; o reconhecimento jurídico; e o
reconhecimento pela comunidade de valores.
O reconhecimento pelo amor vincula-se a uma ideia de autoconfiança.
Aqui, os sujeitos buscam, por meio das relações íntimas estabelecidas desde
a infância, adquirir autoconfiança, que segundo Honneth é “[...]
indispensável para a participação autônoma na vida pública”.262 O
reconhecimento jurídico vincula-se a uma ideia de autorrespeito. Está
atrelado a um fenômeno da modernidade, no qual o sistema jurídico passou
por um movimento normativo de universalização, impondo uma igualdade
de direitos e deveres básicos em virtude da situação de humanidade dos
sujeitos e do reconhecimento da dignidade humana. 263 Já o
reconhecimento pela comunidade de valores está vinculado a uma ideia
de estima social. Segundo Honneth, diferentemente do reconhecimento
jurídico,
262
HONNETH, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, p. 178.
263
Sobre o reconhecimento jurídico, Honneth complementa: “No curso das transformações
descritas, uma parte não desconsiderável do que os princípios de honra, escalonados segundo
o estamento, asseguravam até então ao indivíduo em termos de estima social migra para a
relação jurídica reformada, onde alcança validade universal com o conceito de ‘dignidade
humana’: nos catálogos modernos de direitos fundamentais, é garantida a todos os homens,
em igual medida, uma proteção jurídica de sua reputação social, embora continue obscuro
até hoje que consequências jurídicas práticas estariam ligadas a isso.” (HONNETH, Luta
por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, p. 204).
264
HONNETH, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, p. 200.
O reconhecimento pela comunidade de valores perpassa por uma
autocompreensão cultural da sociedade, porquanto as capacidades e
realizações individuais são julgadas conforme cooperem para
implementação de valores culturalmente definidos. Portanto, nesse padrão
o reconhecimento pressupõe “[...] um contexto de vida social cujos
membros constituem uma comunidade de valores mediante a orientação
por concepções e objetivos comuns”.265
Ocorre que para cada um dos padrões de reconhecimento Honneth
identifica formas negativas de interação social, que implicam, como
corolário, recusa de reconhecimento.
A recusa de reconhecimento pelo amor e pelo afeto é a violência
física. Ela atinge a autoconfiança dos indivíduos que sofrem a violência.
Como observa Baggio, para Honneth “[...] esse é o modo mais elementar
de rebaixamento pessoal, e o abalo moral dessa situação não se resume à
dor física exposta ao mundo, mas a impossibilidade de perceber-se
compreendido na sua relação com o outro e com o mundo”.266
112 A recusa de reconhecimento jurídico ocorre quando se nega a um
determinado indivíduo ou grupo a condição de igualdade perante direitos
universalmente reconhecidos. Atinge o autorrespeito daqueles que são
tratados com desigualdade. 267
Já a recusa de reconhecimento pela comunidade de valores decorre
das práticas que degradam certas formas de vida, crenças ou culturas,
considerando-as de menor valor ou deficientes, tirando “[...] dos sujeitos
atingidos toda a possibilidade de atribuir valor social às suas próprias
capacidades”.268 Tal forma de recusa de reconhecimento atinge a estima
social dos sujeitos.
265
HONNETH, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, p. 200.
266
BAGGIO, Justiça Ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza, 259 f.
267
Sobre a recusa de reconhecimento jurídico, Honneth assevera: “[...] para o indivíduo, a
denegação de pretensões jurídicas socialmente vigentes significa ser lesado na expectativa
intersubjetiva de ser reconhecido como sujeito capaz de formar juízo moral; nesse sentido,
de maneira típica, vai de par com a experiência da privação de direitos uma perda de
autorrespeito, ou seja, uma perda da capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em
pé de igualdade na interação com todos os próximos.” (HONNETH, Luta por reconhecimento:
a gramática moral dos conflitos sociais, p. 216).
268
HONNETH, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, p. 217.
A partir desse quadro sobre as possíveis situações de desrespeito,
Honneth critica a lógica distributiva, sustentando a ideia de que todas as
lutas sociais estão relacionadas a ofensas morais de recusa de
reconhecimento. Como bem observa Baggio, para Honneth tais ofensas
morais consolidam-se como lutas sociais contra a recusa de reconhecimento
quando extrapolam o horizonte individual e atingem o horizonte coletivo
de grupos, movimentos e comunidades. Com efeito, são as lutas sociais
por reconhecimento que proporcionam a evolução moral da sociedade e
restituem “[...] aos sujeitos, pelo menos em parte, uma parcela da dignidade,
por meio da valorização de suas capacidades e habilidades no processo de
engajamento político, retirando-os da situação de rebaixamento”.269
Como salientado, Baggio conclui que a teoria monista de Honneth,
na comparação com a perspectiva dualista de Fraser, é que melhor responde
o desafio de identificar os processos de desrespeito a Direitos Humanos
em processos de degradação ambiental. Isso porque tal teoria permite
compreender que as injustiças ambientais são, na verdade, formas de recusas
de reconhecimento envolvendo seres humanos e seu ambiente, algo que o 113
paradigma distributivo, por si, não é capaz de fazer.270
Teorias como as de Young, Fraser e Honneth, embora possuam suas
diferenças e peculiaridades, contribuem de diferentes modos para a
compreensão de que as injustiças ambientais contemporâneas estão sempre
ou quase sempre vinculadas a processos de recusas de reconhecimento e
de desrespeito moral. Ademais, tais teorias corroboram a conclusão de que
as demandas por justiça ambiental extrapolam o paradigma distributivo
da justiça.
Referidas teorias também contribuem para aproximar as perspectivas
da justiça ambiental e da justiça ecológica, porquanto permitem
compreender que a desconsideração de interesses não humanos nos debates
sobre justiça também decorre de processos de recusa de reconhecimento,
em padrões semelhantes aos da recusa de reconhecimento social (recusa
afetiva, jurídica e da comunidade de valores).
269
BAGGIO, Justiça ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza.
270
BAGGIO, Justiça Ambiental entre redistribuição e reconhecimento: a necessária democratização
da proteção da natureza. Importante esclarecer que em sua tese, Baggio não buscou o
alargamento teórico da perspectiva da justiça ambiental, objeto deste trabalho. Logo, o
conceito de injustiça ambiental referido pela autora é aquele compreendido na perspectiva
teórica do movimento por justiça ambiental.
A recusa afetiva de reconhecimento de interesses não humanos decorre
do rompimento do vínculo entre homem e natureza, já identificado por
Ost. O homem praticamente perdeu sua animalidade, deixando de
perceber-se como um animal que depende do equilíbrio ecológico para
manter sua existência no planeta. Essa recusa de reconhecimento se
manifesta por meio das constantes agressões à natureza, destruição de
ecossistemas, poluição do ar e das águas, e pela coisificação da vida animal.
A recusa jurídica de reconhecimento de interesses não humanos está
vinculada ao antropocentrismo jurídico decorrente do modelo natureza-
objeto, também ilustrado por Ost. Tal recusa de reconhecimento jurídico
tem como razão central o não reconhecimento da dignidade intrínseca às
demais formas de vida e à natureza em si.
Há também uma recusa de reconhecimento de interesses não humanos
pela comunidade de valores. Não raro os adeptos da justiça ecológica, no
debate político, são tachados de obstaculizadores do progresso e do
desenvolvimento, pessoas que propõem um retorno ao passado, e que vivem
114 na contramão da história. Tais alegações não permitem que se estabeleça
um debate moral adequado sobre as reivindicações de fundo dos ecologistas
e servem como tática de esvaziamento e rebaixamento dos argumentos
adversários. A esse respeito, merece destaque a observação de Schlosberg:
“A falta de reconhecimento e a exclusão dos interesses da natureza nas
teorias da justiça levaram a modernidade a uma crise de sustentabilidade.
O laço social da modernidade é insustentável sem um simultâneo
reconhecimento e vinculação com o resto do mundo natural”.271
Com efeito, conclui-se que a abordagem do reconhecimento constitui-
se em elemento central para uma adequada concepção de justiça ambiental.
271
“[...] the lack of recognition of nature, the exclusion of the nature from theories of justice,
and the dismissal of parity for nature have led modernity to a crisis of sustainability.
Modernity’s social bond is unsustainable without a simultaneous recognition of, and bond
with, the rest of the natural world. That is a status-based argument for the recognition of
nature in a theory of ecological justice.” Tradução livre. (SCHLOSBERG, Defining
environmental justice: theories, movements and nature, p. 142).
Autores como Sen e Nussbaum desenvolvem suas abordagens sobre a
justiça com foco nas capacidades básicas necessárias para que os indivíduos
possam viver plenamente e com dignidade. A abordagem das capacidades,
basicamente, destaca a importância ética do pleno funcionamento e
florescimento das capacidades básicas dos indivíduos, vendo na limitação
deles um fator gerador de injustiças. Ademais, tal abordagem complementa
a abordagem do reconhecimento, oferecendo um caminho alternativo que
permite identificar os traços conformadores da dignidade para além dos
seres humanos.
Muito embora a abordagem das capacidades desenvolvida tanto por
Sen quanto por Nussbaum objetive complementar lacunas que identificam
na teoria da justiça de John Rawls,272 e haja por parte dos referidos autores
uma manifestação clara em favor da perspectiva da justiça como liberdade,
acredita-se ser possível conjugar tais teorias numa concepção de justiça
como virtude, pautada pelo bem comum.
Isso porque a abordagem das capacidades é uma abordagem voltada
para o resultado e não para o procedimento ou para os arranjos sociais. 115
Ainda, tal abordagem demonstra que o paradigma distributivo da justiça,
traço marcante, sobretudo na tradição liberal, mesmo nas suas versões
mais igualitárias, não alcança o propósito de identificar os fins da boa
vida. A seguinte passagem do pensamento de Sen, abaixo transcrita, ilustra
essa corrobora essa conclusão:
272
Sen entende que sua abordagem das capacidades desempenha um papel melhor que o dos
bens primários no princípio da diferença de Rawls, para tratar de questões de distribuição.
Já Nussbaum acredita que sua abordagem das capacidades é uma forma de solucionar os três
problemas não resolvidos pela teoria da justiça de Rawls: o problema da justiça para pessoas
com discapacidades físicas e mentais; o problema de estender a justiça para todos os cidadãos
do mundo; e a não inserção nos debates de justiça ao trato que os seres humanos dispensam
aos animais.
enfrenta dificuldades em converter essa vantagem em boa vida
(ou seja, vivendo de forma que tenha razão para celebrar) devido
às adversidades da doença e à deficiência física. [...] Compreender
que os meios para uma vida humana satisfatória não são em si
mesmos os fins da boa vida ajuda a gerar um aumento significativo
do alcance no exercício avaliativo.273
273
SEN, A ideia de justiça, p. 268.
274
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 27.
275
Nas palavras de Nussbaum: “[...] mi enfoque introduce la idea de un umbral para cada
capacidad, por debajo del cual se considera que los ciudadanos no pueden funcionar de un
modo auténticamente humano; la meta social debería entenderse en el sentido de hograr
que los ciudadanos se sitúen por encima de este umbral de capacidad. (Ésa no seria la única
meta social importante: en esta medida, sólo pretendo ofrecer una versión parcial y mínima
de la justicia social).” (NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la
exclusión, p. 83).
O principal argumento de Nussbaum é que a abordagem das
capacidades se mostra adequada para identificar questões de justiça básica
e titularidade, humana e animal, superando as estreitas concepções
kantianas de reciprocidade moral para os sujeitos de justiça, bem como a
proposta de Rawls no sentido de que os seres humanos possuem apenas
obrigações morais indiretas para os demais animais, ou seja, “deveres de
compaixão e humanidade”, mas não deveres de justiça.276
Diferentemente de Sen, que opta por não estabelecer uma lista de
capacidades básicas, Nussbaum define sua lista, aplicando-a tanto para os
seres humanos quanto para os animais sencientes. A lista defendida pela
autora, no caso dos seres humanos, é a seguinte:277
1. Vida. Ser capaz de viver até o final da vida humana em uma extensão
normal.
2. Saúde física. Ser capaz de ter boa saúde, incluída a saúde reprodutiva;
ser capaz de se alimentar adequadamente; ter um lugar adequado
para viver.
3. Integridade física. Ser capaz de mover-se livremente de um lugar a 117
outro; estar protegido de ataques violentos, violência sexual e violência
doméstica; ter oportunidades de satisfação sexual e escolhas em questões
reprodutivas.
4. Sentidos, imaginação e pensamento. Ser capaz de usar os sentidos, a
imaginação, o pensamento e a argumentação de um modo
autenticamente humano, cultivado e configurado por meio de uma
educação adequada, liberdade de expressão e liberdade religiosa.
5. Emoções. Ser capaz de amar, sentir tristeza, vivenciar saudade, gratidão
e raiva justificada.
6. Racionalidade prática. Ser capaz de formar seu conceito de vida boa
e planejar a própria existência.
276
Na opinião de Nussbaum, o que falta nas concepções de Kant e Rawls “[...] é a percepção
do próprio animal como um agente e um sujeito, uma criatura com a qual vivemos em
interação. [...] a abordagem das capacidades de fato, trata os animais como agentes em busca
de uma existência próspera; esta concepção básica, creio, é um de seus maiores poderes.”
(NUSSBAUM, Martha C. Para além de compaixão e humanidade – Justiça para animais
não-humanos. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura
de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os
direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum,
2008. p. 92).
277
NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión, p. 88-89.
7. Associação. (a) Ser capaz de conviver e preocupar-se com outros
seres humanos, bem como envolver-se em diversas formas de interação
social. (b) Ser capaz de ser tratado como um ser dotado de dignidade
e em pé de igualdade com outros seres humanos, sem discriminação
de raça, sexo, etnia, casta, religião e nacionalidade.
8. Outras espécies. Ser capaz de viver uma relação próxima e respeitosa
com os animais, as plantas e o mundo natural.
9. Jogos. Ser capaz de rir, brincar e desfrutar de atividades recreativas.
10. Controle sobre o próprio ambiente. Essa capacidade possui duas
esferas, uma política e outra material. A esfera política implica a
capacidade humana de participar da vida política sem qualquer
prejuízo à liberdade de expressão e associação. A esfera material implica
a capacidade de dispor e usufruir de propriedades (sejam bens móveis
ou imóveis), na mesma medida que os demais; ser capaz de desfrutar
de reais oportunidades de trabalho e de exercê-lo com dignidade e
em plano de igualdade com os demais, estabelecendo relações de
118 reconhecimento mútuo com os demais trabalhadores.
278
“[...] la idea es que las capacidades en cuestión son importantes para todos los ciudadanos,
en todos los países, y que toda persona debe ser tratada como un fin. En este sentido, se
parece al enfoque de los derechos humanos internacionales; es más, veo el enfoque de las
capacidades como una especificación de lo enfoque de los derechos humanos.” Tradução
livre. (NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión, p. 90).
Para Nussbaum, a lista das capacidades humanas básicas é uma lista
aberta, sempre sujeita à revisão. Trata-se também de uma lista geral e um
tanto abstrata. Desse modo, a autora acredita ser possível conciliar o
enfoque das capacidades com as distintas concepções sobre a vida boa,
havendo espaço para debate, especificação e deliberação pelos cidadãos,
parlamentos e tribunais. E o mais importante, é um enfoque voltado ao
resultado, ou melhor, para a justiça no mundo dos fatos como alhures
referido.
No que tange às injustiças ambientais que atinjam comunidades
humanas vulneráveis, o enfoque das capacidades permite perceber que
tais injustiças não estão atreladas apenas a uma má-distribuição de bens
sociais, mas também à limitação de capacidades essenciais para o
florescimento pleno dos indivíduos que compõem tais comunidades
humanas.
Nesse sentido, Schlosberg observa que, no enfoque das capacidades
de Nussbaum e Sen, questões como reconhecimento e participação política
estão inter-relacionadas com as questões distributivas. Ainda, trata-se de 119
um enfoque holístico, que inclui noções cruciais de saúde corporal,
integridade, respeito e não humilhação. Dessa forma, o enfoque das
capacidades pode ser visto como algo que incorpora reconhecimento e
redistribuição em uma teoria ampla de justiça, enfatizando os direitos de
participação e liberdades como capacidades adicionais necessárias para
transformar os bens sociais em uma boa-vida. Ainda, a abordagem das
capacidades de Sen e Nussbaum expande o campo de distribuição, uma
vez que não se concentra apenas na distribuição de bens de que precisamos
para florescer, mas nos processos necessários para esse florescimento ocorrer.
Com efeito, como bem destaca Schlosberg, a partir do enfoque das
capacidades, o teste definitivo para a justiça passa a ser este: a possibilidade
de pleno florescimento e funcionalidade dos indivíduos.279
Ademais, como salientado anteriormente, o enfoque das capacidades
também serve para uma ampliação das questões de justiça, para além dos
interesses humanos individuais. Presta-se, portanto, para inserir no debate
político-filosófico da justiça os interesses de grupos e comunidades humanas,
bem como os interesses não humanos, os quais normalmente são alijados
dos debates tradicionais sobre justiça.
279
SCHLOSBERG, Defining environmental justice: theories, movements and nature, p. 33-34.
Ocorre que a inclusão de tais interesses nos debates sobre a justiça mostra-
se essencial para construir uma adequada perspectiva de justiça ambiental.
Isso porque, não raro, as demandas que estão por trás do movimento por
justiça ambiental dizem diretamente às injustiças suportadas por comunidades,
para além da esfera individual. Outrossim, porque a exclusão de interesses
não humanos das análises sobre justiça é fator determinante para o
distanciamento das perspectivas da justiça ambiental – tal como concebida
pelo movimento por justiça ambiental – e da justiça ecológica.
No que tange aos animais sencientes, Nussbaum levanta uma questão
básica fundamental: o fato de os seres humanos se comportarem de modo
que negam aos animais uma existência digna constitui uma questão de
justiça. E mais, na concepção da autora, trata-se de uma questão urgente
de justiça, não havendo razão alguma que justifique a não extensão dos
mecanismos de justiça básica para além da barreira entre as espécies.280
Para tanto, Nussbaum defende uma concepção de dignidade que
supere a tradicional concepção kantiana, segundo a qual a capacidade de
120 raciocínio moral é essencial para um status ético.281
Nussbaum destaca que Kant não faz referência aos animais em suas
principais obras sobre filosofia moral e política. Segundo a autora, Kant
nega que os seres humanos tenham deveres diretos com os animais. Tais
deveres diretos, para Kant, devem estar dirigidos apenas aos seres dotados
de consciência própria, algo que os animais não possuem. Assim, os deveres
humanos com os animais, reconhecidos por Kant, são meramente indiretos,
voltados para a humanidade como um todo. Ou seja, na visão kantiana,
os animais existem simplesmente como meios para um determinado fim,
e esse fim é o ser humano.282
Essa concepção kantiana de dignidade também influenciou filósofos
contemporâneos como John Rawls. Embora Rawls tenha admitido que os
280
NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión, p. 322.
281
Nas palavras de Nussbaum: “[...] Kant basa todo su argumento favorable al trato amable
hacia los animales sobre una serie de frágiles pretensiones empíricas de carácter psicológico.
En ningún momento concibe la posibilidad de que esas criaturas que (desde su punto de
vista) carecen de conciencia propria y de la capacidad de reciprocidad moral sean objeto de
un deber moral. [...] En un sentido más general, no cree que un ser así pueda tener dignidad
o un valor intrínseco. Su valor ha de ser derivado e instrumental.” (NUSSBAUM, Las fronteras
de la justicia: consideraciones sobre la exclusión, p. 326).
282
NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión, p. 325.
seres humanos possuam deveres morais com os animais, definiu-os como
deveres de compaixão e humanidade e não como deveres de justiça.283
Entretanto, o enfoque das capacidades de Nussbaum busca superar a
concepção kantiana de dignidade, resgatando a ideia aristotélica de que o
ser humano é uma criatura que necessita de uma pluralidade de atividades
vitais, sendo a racionalidade apenas um aspecto típico do animal humano,
mas não o único que define o funcionamento de uma vida autenticamente
humana. Nesse sentido, o enfoque das capacidades reconhece a existência
de diversos tipos de dignidade animal, todas merecedoras de respeito.284
No Brasil, questionamentos semelhantes ecoam. Sarlet e Fensterseifer,
por exemplo, sustentam a necessidade de uma reformulação conceitual
da dignidade da pessoa humana, de modo a se ajustar aos novos valores
ecológicos. Sustentam ainda que tal ajuste acarreta a própria superação de
uma concepção especista (biológica) da dignidade, unicamente atrelada
aos seres humanos.285 Aliás, em recente atualização de sua obra sobre o
tema da dignidade da pessoa humana, Sarlet lança interessantes argumentos
nesse debate em torno da dignidade para além dos seres humanos: 121
283
Nesse sentido, a afirmação de Rawls: “Embora eu não tenha afirmado que a capacidade
para um senso de justiça é condição necessária para termos direito à justiça, realmente parece
que não se exige que concedamos justiça estrita a criaturas que não têm essa capacidade. Mas
disso não decorre que não haja exigência alguma relativa a elas, nem nossas relações com a
natureza. Certamente, é errado tratar os animais com crueldade, e a destruição de toda uma
espécie pode ser um grande mal. A capacidade para sentimentos de prazer e dor e para as
formas de vida das quais os animais são capazes impõe deveres de compaixão e humanidade
no caso deles. Não tentarei explicar essas convicções ponderadas. Elas estão fora do escopo da
teoria da justiça, e não parece possível estender a visão contratualista de modo a incluí-las de
um modo natural. Uma concepção correta de nossas relações com os animais e com a natureza
parece depender de uma teoria da ordem natural e de nosso lugar dentro dela. Uma das
tarefas da metafísica é elaborar uma visão do mundo que seja adequada para esse propósito;
ela identificaria e sistematizaria as verdades decisivas para essas questões. É impossível dizer
em que medida a justiça como equidade terá de ser revisada de modo a enquadrar-se nessa
teoria mais ampla.” (RAWLS, Uma teoria da justiça, p. 568-569).
284
NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión, p. 167.
285
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão
ecológica da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. In: MOLINARO, Carlos
Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang;
FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos
humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 191.
[...] considerando que nem todas as medidas de proteção da
natureza não humana têm por objeto assegurar aos seres humanos
sua vida com dignidade (por conta de um ambiente saudável e
equilibrado) mas já dizem com a preservação – por si só – da
vida em geral e do patrimônio ambiental, resulta evidente que se
está a reconhecer à natureza um valor em si, isto é, intrínseco. Se
com isso se está a admitir uma dignidade da vida para além da
humana, tal reconhecimento não necessariamente conflita (nem
mesmo por um prisma teológico, ousaríamos sugerir), com a
noção de dignidade própria e diferenciada – não necessariamente
superior e muito menos excludente de outras dignidades – da
pessoa humana, que, à evidência somente e necessariamente é da
pessoa humana.286
286
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 40-41.
287
NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión, p. 386-394.
as formas de crueldade e sofrimento que possam ser causadas a animais
vivos.
2. Saúde física. Implica o respeito à capacidade dos animais de levar
uma vida saudável e a proibição de comportamentos e práticas que
atentem contra essa capacidade, tais como confinamento, maus-tratos,
e submissão a trabalhos excessivos a sua capacidade física de suporte.
3. Integridade física. Corresponde ao respeito à integridade física dos
animais e à proibição de submeter os animais a mutilações físicas
efetuadas com o único propósito de acentuar a beleza animal aos
olhos humanos.288
4. Sentidos, imaginação e pensamento. Essa capacidade, com relação
aos animais, implica a vedação de práticas cruéis e abusivas, bem
como a garantia do acesso dos animais a fontes de prazer, como
liberdade de movimentos em ambientes que lhe estimulem os sentidos,
conforme as características de cada espécie animal.
5. Emoções. Muitos animais experimentam uma grande quantidade
de emoções, tais como medo, raiva, ressentimento, gratidão, inveja, 123
alegria. Assim como os seres humanos, muitos animais não humanos
possuem capacidade de estabelecer vínculos sentimentais com outros
animais. Práticas humanas como o confinamento e o isolamento de
animais, que inviabilizam o florescimento dos vínculos naturais, devem
ser proibidas.
6. Racionalidade prática. Trata-se de uma capacidade tipicamente
humana. Entretanto, Nussbaum defende que deve ser observado até
que ponto certos animais possuem a capacidade de estabelecer
objetivos e planejar sua vida. Estando identificada essa capacidade
ela deve ser defendida, sobretudo em termos de livre movimentação e
oportunidades de uma variedade de atividades.
288
Com relação à proibição de mutilações físicas aos animais, Nussbaum faz uma importante
ressalva no que tange à esterilização/castração, salientando que, em muitos casos, tais práticas
são necessárias e benéficas ao florescimento da vida animal, seja individualmente, no caso
dos animais violentos que a partir da castração tornam-se mais dóceis no convívio com os
demais animais, seja para a espécie como um todo, evitando superpopulações que poderão
sofrer em virtude da escassez de alimentos. Mas tais práticas devem ser analisadas, caso a caso
segundo a autora. (NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia: consideraciones sobre la exclusión,
p. 389).
7. Associação. Tal como no caso dos seres humanos, essa capacidade
possui duas partes, uma interpessoal e outra pública, que também se
aplicam aos animais. A primeira diz com a necessidade de respeitar a
capacidade dos animais de estabelecer relações e vínculos com os
demais animais e com os próprios seres humanos, de modo
recompensador e não tirânico. A segunda implica a necessidade de se
desenvolver uma cultura pública mundial de respeito à dignidade
animal, que lhes permitam serem tratados de modo diferente do atual.
8. Outras espécies. Assim como os humanos possuem a capacidade de
viver preocupando-se e relacionando-se com os animais, plantas e o
restante do mundo natural, aos animais também deve ser observada e
respeitada a capacidade de interação e relacionamento com a própria
espécie, com as demais formas de vida e com o mundo natural.
9. Jogos. Trata-se de uma capacidade central para a vida de todos os
animais sensíveis. Implica respeito ao espaço, à iluminação e
estimulação sensorial adequados à vida de cada espécie animal e na
124 possibilidade de convívio com os demais membros da própria espécie
e com outros seres vivos.
10. Controle sobre o próprio ambiente. Assim como no caso humano,
essa capacidade animal possui duas esferas, a política e a material. A
esfera política perpassa pela estruturação de uma concepção política
de respeito, comprometida com um tratamento justo aos animais.
Aqui, Nussbaum defende claramente a ideia do reconhecimento de
direitos animais, para que um guardião tenha interesse jurídico para
ir ao Poder Judiciário reivindicar tais direitos. Já na esfera material,
em analogia ao direito humano de propriedade, estende-se aos animais
o respeito pela integridade territorial de seus habitats, sejam domésticos,
sejam naturais.
289
SARLET; FENSTERSEIFER, Algumas notas sobre a dimensão ecológica da pessoa humana
e sobre a dignidade da vida em geral, p. 191.
290
No Brasil, o enfoque das capacidades desenvolvido por Nussbaum sofreu forte crítica de
Ferreira Neto, justamente pela tentativa de conciliar elementos relevantes da tradição liberal
contratualista com elementos relevantes da tradição ética aristotélica. Na opinião de Ferreira
Neto, “[...] verifica-se a clara inviabilidade de se pretender conjugar livremente os distintos
paradigmas filosóficos acima confrontados. Percebe-se, pois, que em Frontiers of Justice, Martha
Nussbaum opta por realizar uma contribuição duvidosa de pressupostos teóricos que partem
de duas tradições filosóficas opostas e inconciliáveis, tendo em vista a clara oposição entre
seus princípios iniciais e seus elementos conceituais básicos.” (FERREIRA NETO, Arthur
Maria. Justiça como realização de capacidades humanas básicas: é viável uma teoria de justiça
aristotélica-rawlsiana? Porto Alegre: Edipucrs, 2009. p. 221).
O enfoque das capacidades, ao identificar os traços mínimos
conformadores da dignidade da vida humana e animal, complementa a
abordagem do reconhecimento, na medida em que propõe uma lista
mínima de funcionalidades essenciais dos seres humanos e dos animais,
que devem ser plenamente respeitadas e reconhecidas, sob pena de
inviabilizarem a justiça ambiental numa perspectiva mais ampla.
O referido enfoque também é muito útil para incluir no debate
político-filosófico da justiça os interesses de grupos e comunidades. Tal
questão é essencial para uma adequada concepção de justiça ambiental.
Afinal, como já salientado, muitas das injustiças ambientais contemporâneas
estão atreladas a fatores que extrapolam a esfera individual.
Como observa Schlosberg, mesmo que as abordagens de Sen e de
Nussbaum enfatizem o aspecto individual das capacidades, muitas vezes
tais capacidades somente podem ser satisfeitas dentro de grupos ou
comunidades. Schlosberg exemplifica, citando as capacidades de associação
e de controle político sobre o próprio ambiente (participação política), as
126 quais só podem florescer dentro da vida em comunidade. Significa dizer
que as capacidades individuais de associação e de participação política só
são realizadas em um contexto coletivo construído.291
Aquela que talvez seja a principal teórica a desenvolver o enfoque das
capacidades na esfera de grupos e comunidades chama-se France Stewart.
Ela não vê nos grupos ou comunidades o simples papel de fornecer
ambientes para o florescimento das capacidades individuais. Sua abordagem
procura identificar separadamente as capacidades de grupos, tratando-as
como capacidades distintas das capacidades individuais.
Segundo Stewart, os grupos de indivíduos influenciam o florescimento
das capacidades individuais de diferentes maneiras. O fato de pertencer
ou não a um determinado grupo ou comunidade pode afetar diretamente
o bem-estar dos indivíduos. Por vezes, o simples fato de pertencer a um
grupo ou comunidade eleva a autoestima dos indivíduos. Outras vezes, a
mesma situação acarreta impactos negativos aos indivíduos, como ocorre
em situações de preconceito ou discriminação racial, sexual ou religiosa. A
influência dos grupos sobre as capacidades individuais também pode ser
de natureza instrumental, já que pertencer a certo grupo pode trazer
benefícios ou malefícios, tanto em termos políticos quanto econômicos.
291
SCHLOSBERG, Defining environmental justice: theories, movements and nature, p. 36.
Por fim, a influência dos grupos também atinge os valores, comportamentos,
as preferências e escolhas individuais.292
A violência política, a criminalidade, a violência doméstica, a falta de
identidade coletiva, de representatividade e de organização política são
apontadas por Stewart como fatores descapacitantes para grupos e
comunidades. A partir dessas considerações, a autora conclui ser necessário
pesquisar as capacidades dos grupos e não apenas as capacidades
individuais. Muito embora não formule uma lista de capacidades básicas
de grupos ou comunidades, a autora formula uma série de questionamentos
que servem para identificá-las:
292
STEWART, Frances. Groups and Capabilities. Journal of Human Development, 6(2), p.
185-204, 2005.
293
“Why do group inequalities emerge and persist? How can the salience of conflictual
identities be reduced? What are the policies which would assist the poor in forming efficiency
or claims groups? Can external agents play a role? How can social conditions be changed so
as to promote the choice of valuable capabilities, and discourage non-valuable ones.” Tradução
livre. (STEWART, Groups and Capabilities, p. 185-204).
No término do presente tópico, é possível concluir que as abordagens
do reconhecimento e das capacidades oferecem contribuições teóricas que
possibilitam uma ampla compreensão dos processos que dão origem às
injustiças contemporâneas, aqui inseridas tanto as injustiças para seres
humanos em processos de degradação ambiental, quanto às injustiças
humanas com as demais formas de vida não humanas ou com a natureza
em si. Referidas abordagens, igualmente, servem para confirmar a hipótese
de que a lógica do paradigma distributivo da justiça não enfrenta
adequadamente todas as demandas seja do movimento por justiça
ambiental, seja dos movimentos tipicamente ambientalistas, que atuam
na perspectiva da justiça ecológica, necessitando de uma complementação
tanto pela via do reconhecimento quanto pela via das capacidades.
Ademais, as teorias do reconhecimento e das capacidades demonstram
não apenas que a ampliação de perspectiva aqui analisada – aproximando
justiça ambiental de justiça ecológica – é possível, como também
demonstram que a justiça ambiental pode ser concebida como um conceito
128 trivalente. Isso porque as considerações de justiça e injustiça ambiental
envolvem simultaneamente questões de redistribuição, de reconhecimento
e de respeito a capacidades básicas essenciais ao florescimento da vida em
geral, bem como de grupos e comunidades.
Faz-se necessário agora analisar a possibilidade de delimitar, no tocante
aos destinatários das considerações de justiça, o marco teórico básico de
uma perspectiva ampliada de justiça, conformadora do meio justo nas
relações entre homem e natureza.
294
SALADIN, Peter. Wozu noch Staaten? Bern: Stämpfli, 1995. p. 93-98.
295
BOSSELMANN, Klaus. Human rights and the environment: the search for common
ground. Revista de Direito ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 23, p. 35-52,
2001.
296
RIECHMANN, Jorge. Tres principios básicos de justicia ambiental. In: CONGRESSO
DE LA ASOCIACIÓN ESPAÑOLA DE ÉTICA Y FILOSOFIA POLÍTICA, 12., 2003,
Castellón. Anais... Castellón, 2003.
297
SACHS, Wolfgang; SANTARIUS, Tilman (Dir.). Un futuro justo: recursos limitados y
justicia global. Barcelona: Icaria, 2007. p. 42-46.
298
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão
ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental
de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 204.
299
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 154-162.
300
PERALTA, Carlos E. A justiça ecológica como novo paradigma da sociedade de risco
contemporânea. Revista Direito Ambiental e Sociedade, Caxias do Sul: Educs, v. 1, n. 1, p.
251-271, jan./jun. 2011.
atinge, sobretudo, os seres humanos integrantes de gerações humanas
contemporâneas, que diferem das futuras gerações.
Sachs e Santarius, por exemplo, tratam a dimensão intrageracional da
justiça ambiental como aquela em que o objetivo é alcançar justiça sobre
a distribuição dos recursos naturais. Afinal, a exploração dos recursos da
natureza e as consequências ambientais decorrentes dessa exploração podem
trazer grandes benefícios para uns e grandes malefícios para outros. A
partir dessa constatação, os referidos autores apontam aquilo que entendem
como sendo as questões centrais da dimensão intrageracional da justiça
ambiental:
301
“Quién toma cuánto de la ecosfera y qué utilidad de los recursos naturales puede
apropriarse? Quién ha de soportar qué cargas y debe pagar los múltiples costes del consumo
ambiental? […] Dichas preguntas surgen porque los pros – propiedad, prestigio, beneficio,
poder, etc. – y los contras – contaminación, impacto visual, privación, pobreza, etc. – del
consumo ambiental rara vez recaen en el mismo lugar y al mismo tiempo, sino que el reparto
es desigual. Vantajas y desvantajas se concentran en grupos sociales diferentes, en lugares
distintos y posiblemente también en momentos dispares.” Tradução livre. (SACHS;
SANTARIUS, Un futuro justo: recursos limitados y justicia global, p. 45).
exigiria um tratamento desigual, Riechmann sustenta que as grandes
diferenças na apropriação dos recursos do planeta, por parte de diferentes
coletivos humanos, estão muito mais relacionadas ao atual “metabolismo
industrial” e às “desigualdades de poder”, do que às distintas necessidades
decorrentes dessas eventuais desigualdades naturais.302
Já Bosselmann, citando Saladin, destaca o princípio da solidariedade
como núcleo ético central dessa dimensão intrageracional da justiça
ambiental.303 O princípio da solidariedade é aqui compreendido como a
base ética de um “[...] respeito mútuo entre gerações humanas
contemporâneas, mesmo que originárias de diferentes Estados nacionais”.304
A perspectiva teórico-discursiva do movimento por justiça ambiental,
amplamente analisada no primeiro capítulo desta exposição, encaixa-se
perfeitamente na dimensão intrageracional da justiça ambiental.
Isso porque é nessa dimensão que as considerações sobre justiça voltam-
se para as disparidades na apropriação dos recursos naturais do planeta;
para a relação existente entre pobreza e meio ambiente; para a desigualdade
na distribuição do espaço ambiental ecologicamente equilibrado e das 131
externalidades ambientais negativas; sempre tendo como destinatárias as
gerações humanas contemporâneas.
Entretanto, mesmo que as reivindicações redistributivas realmente se
destaquem no âmbito da dimensão intrageracional da justiça ambiental,
como visto nos tópicos anteriores, as abordagens do reconhecimento e das
capacidades muito têm a contribuir para uma adequada compreensão das
injustiças ambientais intrageracionais.
302
RIECHMANN, Tres principios básicos de justicia ambiental.
303
BOSSELMANN, Human rights and the environment: the search for common ground.
p. 41.
304
FENSTERSEIFER, Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito,
p. 206.
Nela as considerações de justiça ambiental pautam-se pelas relações entre
os seres humanos vivos e as gerações humanas futuras. Há, pois, uma
ampliação do círculo da comunidade humana numa escala temporal
evolutiva, voltada para o futuro da humanidade. Aqui, as futuras gerações
passam a integrar o rol dos justiciávies, ou seja, dos destinatários das
considerações de justiça ambiental.
A esse respeito, Peralta observa na dimensão intergeracional da justiça
ambiental a ideia de que as gerações de hoje não são as atuais proprietárias
dos recursos naturais do Planeta, mas sim apenas “[...] uma espécie de
fideicomissárias de uma herança que deverá ser entregue aos sucessores
em tal estado que lhes permita o seu desenvolvimento pleno”, de modo
que cada geração humana seja “[...] capaz de dispor do capital ecológico
básico que lhe permita a satisfação das necessidades ecológicas mínimas”.305
Nesse particular, acredita-se que a autora que melhor aprofunda as
considerações de justiça ambiental entre as gerações presentes e futuras é
Weiss. A tese da autora funda-se no princípio da equidade intergeracional,
132 o qual traduz um conceito bastante simples, porém significativo: cada
geração humana possui deveres de justiça com as gerações futuras, devendo,
assim, repassar a elas recursos naturais equivalentes aos que recebeu das
gerações anteriores.
Weiss aponta a existência de três graves problemas que a relação
homem-natureza acarreta numa perspectiva de equidade intergeracional:
o esgotamento de recursos naturais; a degradação da qualidade ambiental;
e o acesso e uso discriminado dos recursos naturais. Tais situações, segundo
a autora, são situações geradoras de potenciais injustiças com as gerações
humanas futuras. Com apoio no princípio ético da equidade
intergeracional, a autora sustenta a existência de “obrigações planetárias”
que derivam da relação temporal entre gerações com respeito ao uso dos
recursos naturais e culturais do planeta. Tais obrigações planetárias dão
origem a deveres ecológicos, voltados não apenas às presentes, mas também
às futuras gerações.306
305
PERALTA, A justiça ecológica como novo paradigma da sociedade de risco contemporânea,
p. 265.
306
WEISS, Edith Brown. Un mundo justo para las futuras generaciones: derecho internacional,
patrimonio común y equidad intergeracional. Traducción de Máximo E. Gowland. Madrid:
Ediciones Mundi-Prensa, 1999. p. 42-50.
A equidade intergeracional é princípio compatível com a trivalência
(redistribuição – econhecimento – capacidades) presente na perspectiva
ampliada da justiça ambiental, sobretudo porquanto serve como princípio
norteador da justa distribuição do equilíbrio ecológico entre gerações
humanas presentes e futuras. Também contribui para o reconhecimento
das futuras gerações humanas, como sujeitas de considerações de justiça
ambiental, em razão da dignidade da vida humana futura, bem como o
reconhecimento da existência de deveres humanos (ecológicos) com as
próximas gerações.307
307
A força que o enfoque do reconhecimento adquire na dimensão intergeracional da justiça
ambiental pode ser exemplificada pela seguinte passagem de Weiss: “A fin de definir lo que
significa la justicia intergeneracional en cuanto al uso y conservación de nuestro patrimonio
común, es útil ver a la comunidad humana como una sociedad entre todas las generaciones.”
(WEISS, Un mundo justo para las futuras generaciones: derecho internacional, patrimonio
común y equidad intergeracional, p. 56).
308
“Todo lo vivo forma parte de la biosfera. La vida no está diseminada aquí y allá, sino que
existe como un conjunto continuo. Todo lo que corre o vuela, todo lo que sucede y pasa, sea
Já Bosselman e Saladin preferem a expressão justiça interespécies,
pautando-a com base no princípio ético do respeito humano ao ambiente
não humano.309
A dimensão interespécies da justiça ambiental avança para além das
desigualdades sociais e da questão temporal entre gerações humanas. Trata-
se de dimensão que reflete o discurso teórico daquilo que, parte da doutrina
especializada, denominou por justiça ecológica, ligada a valores ecológicos
profundos.
O reconhecimento da dimensão interespécies da justiça ambiental
torna-se, portanto, questão-chave para ampliar a perspectiva da justiça
ambiental, tornando sem sentido distinguir justiça ambiental de justiça
ecológica. Forja-se assim uma perspectiva unitária, porém tridimensional
no tocante aos destinatários das considerações de justiça.
Aliás, a maior prova de quanto é possível essa ampliação de perspectiva
reside no fato de que a própria Carta de Princípios da Justiça Ambiental,
firmada na Primeira Conferência Nacional de Lideranças Ambientalistas
134 de Povos de Cor, no ano de 1991, tida até hoje como um dos referenciais
mais importantes do movimento por justiça ambiental, amplia a
perspectiva que tem marcado a atuação do movimento, para além dos
interesses humanos. Nos princípios primeiro e terceiro da referida Carta
de Princípios, afirma-se:
135
311
SACHS; SANTARIUS, Un futuro justo: recursos limitados y justicia global, p. 45.
136
Capítulo 3
312
“Both aspects of man’s environment, the natural and the man-made, are essential to his
well-being and to the enjoyment of basic human rights the right to life itself.” Tradução
livre. UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAME. Declaration of the United
Nations Conference on the Human Environment. Disponível em: <http://www.unep.org/
Documents.Multilingual/Default.asp?documentid=97&articleid=1503>. Acesso em: 13 fev.
2012.
Também a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas (ONU), em 1990, publicou a Resolução 1.990/41, intitulada
Human rights and the environment,313 reconhecendo que a degradação
ambiental, em muitos casos, provoca alterações irreversíveis no meio
ambiente, ameaçando os ecossistemas que sustentam a vida, a saúde e o
bem-estar humanos.
Essa relação entre preservação do ambiente planetário, Direitos
Humanos e justiça ambiental decorre de uma óbvia constatação: o
equilíbrio ecológico do planeta Terra é condição essencial para que não
sejam violados os Direitos Humanos, provocando assim injustiças
ambientais.
O desequilíbrio ecológico do ambiente, na sua maioria provocado
por ações antropogênicas, acarreta inúmeras situações que equivalem a
verdadeiras recusas à dignidade de certos indivíduos e comunidades
humanas, sobretudo quando em situação de pobreza ou vulnerabilidade
social. Percebe-se, portanto, a estreita relação entre direitos humanos e
138 justiça ambiental, decorrente da também estreita relação entre equilíbrio
ecológico e dignidade humana. A esse respeito, Carvalho observa:
313
Direitos Humanos e Meio Ambiente. Tradução livre. UNITED NATIONS
COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Human rights and the environment, 6 March
1990, E/CN.4/RES/1990/41. Disponível em: <http://www.unhcr.org/refworld/docid/
3b00f04030.html>. Acesso em: 18 fev. 2012.
314
CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio ambiente & direitos humanos. Curitiba: Juruá,
2006. p. 78.
y Ambiente (Cedha), organização não governamental sediada em Córdoba,
Argentina, intitulado Una Nueva Estrategia de Desarrollo para las Américas:
desde los derechos humanos y el médio ambiente.315 Tal estudo, assinala que a
degradação ambiental e o esgotamento dos recursos naturais gera:
315
Uma nova estratégia de desenvolvimento para as Américas: a partir dos direitos humanos
e do meio ambiente. Tradução livre. CENTRO DE DERECHOS HUMANOS Y MEDIO
AMBIENTE. Una Nueva Estrategia para el Desarrollo para las Américas: desde los Derechos
Humanos y el Medio Ambiente. Disponível em: <http://wp.cedha.net/wp-content/uploads/
2011/05/Una-Nueva-Estrategia-de-Desarrollo-para-las-Am%C3% A9 ricas.pdf>. Acesso em:
18 fev. 2012.
316
Direitos Humanos e meio ambiente. Tradução livre. CONSELHO PERMANENTE DA
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS/COMISSÃO DE ASSUNTOS
JURÍDICOS E POLÍTICOS. Direitos humanos e meio ambiente. Resumo do documento
apresentado pela professora Dinah Shelton. 2002. Disponível em: <http://www.oas.org/
consejo/pr/cajp/Documentos/cp09488p09.doc>. Acesso em: 20 fev. 2012.
No estudo realizado por Shelton, ao menos três enfoques – não
excludentes – dessa relação merecem destaque. O primeiro enfoque enfatiza
que o meio ambiente sadio é precondição para o gozo de direitos humanos
internacionalmente garantidos. Em outras palavras, a proteção ambiental se
torna instrumento essencial para o efetivo gozo universal dos Direitos
Humanos, tais como o direito à vida, à saúde e à cultura. O segundo
enfoque salienta que o gozo efetivo de determinados direitos humanos são
essenciais para se conseguir a proteção do meio ambiente. Aqui, a vinculação
entre direitos humanos e proteção ambiental é tratada, em geral, em termos
procedimentais, tais como o acesso à informação, à participação pública e
aos efetivos procedimentos judiciais e administrativos, inclusive no que se
refere à compensação e reparação de danos. O terceiro enfoque trata os
Direitos Humanos e a proteção do meio ambiente como temas indivisíveis
e inseparáveis. Estabelece, portanto, o reconhecimento do direito ao meio
ambiente sadio e equilibrado como um direito humano independente,
substantivo.
140 Como destacado, Shelton acredita que os referidos enfoques não são
excludentes, mas sim complementares. Nesse particular, acredita-se que
uma teoria metajurídica como é o caso da perspectiva tridimensional da
justiça ambiental aqui desenvolvida comprova a conclusão de Shelton. A
seguir procurar-se-á demonstrar tal afirmação.
317
CARVALHO, Meio ambiente & direitos humanos, p. 140.
O melhor modo de tratar as questões ambientais é com a
participação de todos os cidadãos interessados, em vários níveis.
No plano nacional, toda pessoa deverá ter acesso adequado à
informação sobre o ambiente de que dispõem as autoridades
públicas, incluída a informação sobre os materiais e as atividades
que oferecem perigo a suas comunidades, assim como a
oportunidade de participar dos processos de adoção de decisões.
Os Estados deverão facilitar e fomentar a sensibilização e a
participação do público, colocando a informação à disposição de
todos. Deverá ser proporcionado acesso efetivo aos procedimentos
judiciais e administrativos, entre os quais o ressarcimento de
danos e recursos pertinentes.319
318
CONSELHO PERMANENTE DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS/
COMISSÃO DE ASSUNTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS. Direitos humanos e meio ambiente.
Resumo do documento apresentado pela professora Dinah Shelton. 2002. Disponível em:
<http://www.oas.org/consejo/pr/cajp/Documentos/cp09488p09.doc>. Acesso em: 20 fev.
2012.
319
“Environmental issues are best handled with the participation of all concerned citizens,
at the relevant level. At the national level, each individual shall have appropriate access to
information concerning the environment that is held by public authorities, including
information on hazardous materials and activities in their communities, and the opportunity
to participate in decision-making processes. States shall facilitate and encourage public
awareness and participation by making information widely available. Effective access to
judicial and administrative proceedings, including redress and remedy, shall be provided.”
Tradução livre. UNITED NATIONS. Rio Declaration on Environment and Development.
1992. Disponível em: <http://www.un.org/documents/ga/conf151/aconf15126-
1annex1.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012.
320
Um bom conceito de soft law é dado por Alan Boyle: “Do ponto de vista legislativo, o
termo ‘soft law’, é simplesmente uma descrição conveniente para uma variedade de
instrumentos juridicamente não-vinculativos utilizados nas modernas relações internacionais
tanto pelos Estados quanto pelas organizações internacionais.” Tradução livre. (BOYLE, Alan.
Soft law in international law-making. In: EVANS, Malcolm (Org.). International law. Oxford:
Osford University Press, 2006. p. 142).
matéria de acesso, o que culminou com a celebração de um acordo
internacional vinculante entre os países contratantes, denominado de
Convenção sobre acesso à informação, participação pública na tomada de decisões
e acesso à justiça em questões ambientais, mais conhecida como Convenção de
Aarhus.321
A referida Convenção deu forma ao reconhecimento dos Direitos
Humanos procedimentais em matéria ambiental. No que tange ao acesso
à informação, Acuña destaca que a Convenção prevê de modo amplo
tanto a legitimidade para o acesso (toda pessoa), quanto à definição de
“informação ambiental”, o que torna bastante extenso o alcance do direito
em questão.
No que tange ao acesso à participação cidadã, a Convenção assegura o
direito do público322 de participar das discussões sobre projetos ou atividades
específicas, que possam ter um efeito significativo no ambiente ou na
saúde, bem como sobre políticas e programas específicos.323
A Convenção de Aarhus também estabelece os procedimentos que
devem ser adotados para garantir o direito ao acesso à justiça em matéria 143
ambiental. Acuña aponta os principais:324
(a) procedimento de revisão para impugnar respostas a solicitações de
informação;
(b) procedimento de revisão para questionar as decisões referentes a
projetos que exijam a participação pública;
(c) procedimento de revisão para denunciar violações da legislação
ambiental.
321
ACUÑA, Guillermo. O princípio de acesso à informação, participação e justiça em matéria
ambiental na America Latina: novos espaços, novos direitos? In: FREITAS, Vladimir de
Passos (Coord.). O direito ambiental em evolução 4. Curitiba: Juruá, 2005. p. 150.
322
A Convenção define o termo público da seguinte maneira: “uma ou mais pessoas singulares
ou coletivas, bem como as suas associações, organizações ou agrupamentos de acordo com a
legislação ou práticas nacionais”. UNITED NATIONS ECONOMIC COMMISSION FOR
EUROPE. Convenção de Aarhus. 1998. Disponível em: <http://www.unece.org/env/pp/
EU%20texts/conventioninportogese.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2012.
323
ACUÑA, O princípio de acesso à informação, participação e justiça em materia ambiental
na America Latina: novos espaços, novos direitos?, p. 152.
324
ACUÑA, O princípio de acesso à informação, participação e justiça em matéria ambiental
na America Latina: novos espaços, novos direitos?, p. 152.
A Convenção de Aarhus, mesmo que não tenha um efeito jurídico
vinculativo para além dos países que a ratificaram, é reconhecidamente
um dos instrumentos jurídicos de direito internacional mais avançados e
importantes sobre o acesso em matéria ambiental.
Segundo Bosselmann, a Convenção de Aarhus surgiu como uma
convenção regional, promovida pela Comissão Econômica das Nações
Unidas para a Europa, que se restringia aos Estados europeus. Entretanto,
já no fim de 2007, havia sido assinada e ratificada por 40 países, sobretudo
da Europa e Ásia Central. Para Bosselmann, muito embora o escopo do
acordo ainda seja regional, “[...] a importância da Convenção de Aarhus é
global e ela representa o mais primoroso tratado do Princípio 10 da
Declaração do Rio de Janeiro”.325
Tanto o Princípio 10 da Declaração do Rio quanto a Convenção de
Aarhus mantêm uma forte vinculação não apenas com a efetividade de
direitos humanos como com a efetividade da justiça ambiental. Como
demonstrado no capítulo anterior, muitas das injustiças ambientais
144 decorrem de processos de recusa de reconhecimento, que atingem aà própria
dignidade humana. E o combate a essa recusa de reconhecimento se dá
justamente pelo fortalecimento de Direitos Humanos procedimentais, tais
como os do acesso à informação, acesso à participação cidadã na tomada
de decisões e acesso à justiça em matéria ambiental.
Contudo, Bosselmann faz uma importante observação quando refere
que, embora os Direitos Humanos procedimentais sejam direitos
democráticos e importantes, eles constituem somente um pré-requisito
para uma melhor tomada de decisões ambientais, porém “[...] não
salvaguardam, por conta própria, a sustentabilidade ecológica”.326
Há, pois, uma aparente limitação dos direitos procedimentais na tutela
do ambiente e na concretização da justiça ambiental no mundo dos fatos.
Nesse particular, à luz da perspectiva da justiça ambiental, mostra-se
possível concluir que o acesso à justiça em matéria ambiental perpassa por
um novo enfoque, qual seja o de garantir um efetivo acesso à justiça
ambiental. A esse respeito, Cavedon e Vieira asseveram:
325
BOSSELMANN, Klaus. Direitos humanos, meio ambiente e sustentabilidade. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010. p. 81.
326
BOSSELMANN, Direitos humanos, meio ambiente e sustentabilidade, p. 82.
O novo enfoque do acesso à justiça que se propõe corresponde a
uma fusão das teorias sobre o acesso à justiça e a justiça ambiental
que possuem em comum a constatação de que grupos fragilizados
por questões socioeconômicas e informacionais, que afetam a
sua aptidão para o exercício da cidadania, enfrentam maiores
dificuldades no que se refere à defesa e representação de seus
direitos e interesses.327
327
E complementam os autores: “Justamente aqueles que arcam com uma parcela
desproporcional dos custos e riscos ambientais, que são excluídos dos processos decisórios e
do acesso aos recursos e benefícios ambientais e, portanto, que necessitam acessar e operar
instrumentos jurídicos de maneira eficiente para reverter esta situação de injustiça ambiental
são os que enfrentam maiores dificuldades de acesso à justiça. Portanto, a discussão no que se
refere ao acesso à justiça em matéria ambiental deve incorporar a justiça ambiental.”
(CAVEDON, Fernanda de Salles; VIEIRA , Ricardo Stanziola. Acesso à justiça ambiental:
um novo enfoque do acesso à justiça a partir da aproximação com a teoria da justiça ambiental.
In: ENCONTRO PREPARATÓRIO PARA CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI,
15., 2007, Florianópolis/SC. Anais... Florianópolis: Conpedi, 2007).
328
Especificamente sobre o tema do acesso a uma decisão judicial justa, por meio do exercício
da atividade jurisdicional, à luz dos princípios da justiça ambiental, reportamos o leitor ao
tópico 3.5 deste livro.
3.1.3 O direito humano ao meio ambiente sadio e equilibrado
O primeiro instrumento jurídico de direito internacional, a tratar da
existência de um direito humano ao meio ambiente sadio, foi a Declaração
de Estocolmo de 1972, no seu Princípio 1:
329
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Declaração de Estocolmo. 1972. Disponível em:
<www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/estocolmo.doc>. Acesso em: 18 mar.
2012.
330
BOSSELMANN, Direitos humanos, meio ambiente e sustentabilidade, p. 85.
331
CONSELHO PERMANENTE DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS/
COMISSÃO DE ASSUNTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS. Direitos humanos e meio ambiente.
Resumo do documento apresentado pela professora Dinah Shelton. 2002. Disponível em:
<http://www.oas.org/consejo/pr/cajp/Documentos/cp09488p09.doc>. Acesso em: 20 fev.
2012.
332
CARVALHO, Meio ambiente & direitos humanos, p. 173-175.
(c) assegura o acesso à justiça e impulsiona a outorga de remédios
jurídicos apropriados à proteção ambiental perante as cortes
internacionais;
(d) implica uma flexibilização das normas jurídicas de legitimação
ativa, isenção de ônus sucumbencial e até inversão do ônus da prova;
(e) estimula o ativismo político e jurídico, bem como o debate e as
ações em defesa do meio ambiente;
(f ) legitima a supervisão internacional das políticas ambientais no
âmbito interno dos Estados nacionais;
(g) favorece a adoção de um padrão não discriminatório do direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado;
(h) amplia o direito de petição na esfera internacional;
(i) produz mudanças na linguagem, na consciência e nas ações das
pessoas, induzindo a adoção de comportamentos mais ecológicos e a
reprovação social e jurídica dos infratores.
147
Tais considerações demonstram que o terceiro enfoque salientado por
Shelton – que trata os direitos humanos e a proteção do ambiente como
temas indivisíveis – também é fortalecido pela perspectiva ampla da justiça
ambiental aqui defendida, implicando o reconhecimento e a existência
de um direito humano específico ao meio ambiente sadio e equilibrado.
333
BOSSELMANN, Direitos humanos, meio ambiente e sustentabilidade, p. 92-93.
334
BOSSELMANN, Direitos humanos, meio ambiente e sustentabilidade, p. 93.
335
A esse respeito, Bosselmann complementa: “[...] os direitos humanos (como p. ex.,
dignidade humana, liberdade, propriedade, desenvolvimento) precisam corresponder ao fato
de que o indivíduo opera não só num ambiente social, mas também num ambiente natural.
Da mesma maneira como o indivíduo tem de respeitar o valor intrínseco de seus outros
pares, os demais seres (animais, plantas e ecossistemas)”. (BOSSELMANN, Direitos humanos,
meio ambiente e sustentabilidade, p. 97).
elo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: S. Fabris, 1993. p. 94.
Essa abordagem ecológica dos Direitos Humanos, manifesta, pelo
prisma intrageracional, uma forte preocupação social voltada, em especial,
aos grupos humanos vulneráveis. Como observa Trindade, “[...] a proteção
dos grupos humanos vulneráveis surge hoje na confluência da proteção
dos direitos humanos e da proteção ambiental”.336
É também Trindade quem destaca que desde a Comissão Mundial
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Comissão Brundtland), em 1987,
no famoso relatório Our Common Future,337 já se sinalizava com a proteção
e o fortalecimento dos grupos humanos vulneráveis, bem como, que muito
embora os processos de desenvolvimento tenham conduzido a maioria das
comunidades locais a se integrarem a uma estrutura socioeconômica mais
ampla, tal fenômeno não atingiu todas as comunidades.338
Povos indígenas e diversas comunidades tradicionais acabaram ficando
de fora dessa “globalização socioeconômica”. Isso as torna cada vez mais
vulneráveis em sua tentativa de manter preservados seu modo de vida
tradicional e o meio ambiente adequado aos seus modos de vida. Com
efeito, por restarem isolados, à margem dos processos de desenvolvimento 149
econômico, referidas populações acabam sendo vítimas da marginalização,
pobreza e discriminação de diversas ordens.
Tal situação faz com que dentre os Direitos Humanos ecológicos seja
reconhecido o direito das comunidades tradicionais e dos povos indígenas à
suas terras e a outros recursos nos quais se apoia seus modos de vida, tal como já
fora ressaltado pela Comissão Brundtland há mais de duas décadas atrás.339
336
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio ambiente: paral
337
Nosso Futuro Comum. Tradução Livre.
338
TRINDADE, Direitos humanos e meio ambiente: paralelo dos sistemas de proteção
internacional, p. 94.
339
“O ponto de partida para uma política justa e humana em relação a esses grupos é o
reconhecimento e a proteção de seus direitos tradicionais à terra e a outros recursos nos quais
se apóia seu modo de vida – direitos que eles podem definir em termos que não se enquadram
nos sistemas legais regulares. As próprias instituições esses grupos para regulamentar direitos
e obrigações são fundamentais para a manutenção da harmonia com a natureza e da consciência
ambiental característica do modo de vida tradicional. Por isso, o reconhecimento dos direitos
tradicionais deve se associar a medidas de proteção das instituições locais que enfatizam a
responsabilidade no uso dos recursos. Faz parte também desse reconhecimento dar voz ativa
às comunidades locais nas decisões referentes ao uso dos recursos das áreas onde vivem.”
(COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso
Futuro Comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. p. 126).
A forte preocupação social que emana dos Direitos Humanos de cunho
ecológico, como bem observa Santilli, põe em marcha um “novo paradigma
de desenvolvimento”, voltado tanto à sustentabilidade ambiental (de
espécies, ecossistemas e processos ecológicos), quanto à sustentabilidade
social (redução de desigualdades sociais e promoção de valores como justiça,
ética e equidade social). Nesse contexto, Santilli destaca a importância
que adquirem os direitos ecológicos coletivos, “[...] conceitualmente
inovadores, que superam os estreitos limites do individualismo
economicista”, os quais exigem dos ordenamentos jurídicos internos
instrumentos jurídicos de legitimação ativa, capazes de facilitar o exercício
e o acesso à justiça pelas próprias coletividades titulares de tais direitos.
Dentre os direitos ecológicos coletivos (ou socioambientais como prefere a
autora), inserem-se tanto a proteção jurídica de territórios tradicionais de povos
indígenas, quilombolas e demais populações tradicionais (pescadores, agricultores
familiares, seringueiros, catadores de caranguejo, dentre outros segmentos sociais
representativos), bem como dos conhecimentos, inovações e práticas culturais de
150 tais comunidades tradicionais associados à biodiversidade e ao acesso aos recursos
naturais.340
Ainda a esse respeito, Santilli assevera:
340
SANTILLI, Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e
cultural, p. 245-247.
341
SANTILLI, Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e
cultural, p. 248.
Ao fim e ao cabo, a ideia contida no projeto dos direitos humanos
ecológicos é ecologizar o antropocentrismo tradicional que marca a
perspectiva dos Direitos Humanos, enfatizando não apenas a existência
de novos direitos humanos de cunho ecológico, mas também, e sobretudo,
a existência de deveres humanos de cunho ecológico, que passam a ser vistos
como verdadeiras limitações ecológicas ao exercício de outros direitos
humanos.
Um bom exemplo para esse projeto dos Direitos Humanos ecológicos
pode ser extraído da Carta da Terra, adotada em junho de 2000 em Haia.342
Conforme Bosselmann, a Carta da Terra considera os Direitos Humanos
tanto como base da vida e bem-estar humanos, quanto como uma limitação
destes.343
Isso porque além de fortalecer os direitos humanos, a Carta da Terra
estabelece, por meio de deveres humanos de cunho ecológico, verdadeiras
limitações aos Direitos Humanos tradicionais. Entre essas limitações,
destaca-se:344
(a) o reconhecimento de que todos os seres são interligados e cada 151
forma de vida tem valor independentemente de sua utilidade para os
seres humanos (Princípio 1);
(b) a aceitação de que, com o direito de possuir, administrar e usar os
recursos naturais vem o dever de impedir o dano ao meio ambiente e
de proteger o direito das pessoas (Princípio 2).
342
“A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção,
no século 21, de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Busca inspirar todos os
povos a um novo sentido de interdependência global e responsabilidade compartilhada voltado
para o bem-estar de toda a família humana, da grande comunidade da vida e das futuras
gerações. É uma visão de esperança e um chamado à ação. A Carta da Terra se preocupa com
a transição para maneiras sustentáveis de vida e desenvolvimento humano sustentável.
Integridade ecológica é um tema maior. Entretanto, a Carta da Terra reconhece que os objetivos
de proteção ecológica, erradicação da pobreza, desenvolvimento econômico equitativo, respeito
aos direitos humanos, democracia e paz são interdependentes e indivisíveis.
Consequentemente, oferece um novo marco, inclusivo e integralmente ético para guiar a
transição para um futuro sustentável.” (A CARTA DA TERRA EM AÇÃO. O que é a Carta
da Terra. Disponível em: <http://cartadaterrabrasil.org/prt/what_is.html>. Acesso em: 16
mar. 2012).
343
BOSSELMANN, Direitos humanos, meio ambiente e sustentabilidade, p. 107.
344
A CARTA DA TERRA EM AÇÃO. O texto da Carta da Terra. Disponível em: <http://
cartadaterrabrasil.org/prt/text.html>. Acesso em: 16 mar. 2012.
Essa abordagem ecológica dos Direitos Humanos, em suma, estabelece
uma interdependência entre direitos e deveres humanos, por razões de
cunho ecológico que superam o antropocentrismo tradicional. Muitas das
razões ecológicas que influenciam essa nova abordagem dos Direitos
Humanos são razões ético-filosóficas pautadas pelas considerações de justiça
ambiental, numa perspectiva tridimensional, tal como enfatizado na
presente exposição.
Com efeito, a partir das considerações acima, extrai-se mais uma
implicação jurídica que a perspectiva ampliada da justiça ambiental
acarreta no âmbito dos direitos humanos: põe em marcha uma abordagem
ecológica dos direitos humanos, para além da abordagem antropocêntrica
tradicional, que enfatiza a existência de novos direitos e deveres humanos
de cunho ecológico limitadores de outros direitos humanos reconhecidos.345
345
A esse respeito, Bosselmann assevera: “Os direitos humanos, como todos os instrumentos
jurídicos, precisam respeitar as fronteiras ecológicas. Essas fronteiras podem ser expressas em
termos éticos e jurídicos na medida em que definem conteúdo e limitações de direitos
humanos. Será que as instituições conseguirão se adaptar a esses novos direitos humanos
ecológicos? Para o bem da coerência e eficácia do Direito, elas deveriam-no. Para o bem da
sobrevivência humana, a elas o urge!” (BOSSELMANN, Direitos humanos, meio ambiente
e sustentabilidade, p. 109).
346
CARVALHO, Meio ambiente & direitos humanos, p. 352.
devem ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras,
mediante um cuidadoso planejamento ou gestão, conforme o caso”.347
Após a Declaração de Estocolmo, diversos outros tratados de direito
internacional passaram a regular os interesses das futuras gerações no
equilíbrio e na preservação do meio ambiente.348 Entretanto, o primeiro
tratado internacional a consagrar o direito das futuras gerações ao meio
ambiente sadio e equilibrado, com efeitos jurídicos vinculativos, foi a já
comentada Convenção de Aarhus.
Como observa Carvalho, a Convenção de Aarhus reconheceu a
existência de um direito das futuras gerações ao ambiente saudável. Já no
artigo primeiro da Convenção ficou disposto que, para proteger o direito
de toda pessoa, bem como das gerações presentes e futuras, de viver em
um ambiente sadio, incumbe a cada Estado-parte a garantia dos direitos
de acesso estabelecidos na referida Convenção (acesso à informação, à
participação cidadã e à justiça em assuntos ambientais).349
No âmbito do direito interno dos países, diversas constituições
nacionais passaram a dispor sobre o direito das futuras gerações a um 153
ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. A Constituição Federal
brasileira de 1988 é um bom exemplo, ao dispor no seu art. 225, caput,
que o equilíbrio ecológico do ambiente é um direito de todos e um bem
de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se
347
“The natural resources of the Earth, including the air, water, land, flora and fauna and
especially representative samples of natural ecosystems, must be safeguarded for the benefit
of present and future generations through careful planning or management, as appropriate.”
Tradução livre. UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAME. Declaration of the
United Nations Conference on the Human Environment. Disponível em: <http://www.unep.org/
Documents.Multilingual/Default.asp?documentid=97&articleid=1503>. Acesso em: 13 fev.
2012.
348
Edson Ferreira de Carvalho cita diversos exemplos de documentos jurídicos internacionais
que passaram a expressar preocupação a tutela ambiental voltada às futuras gerações da
humanidade: o art. 4º da Convenção para Proteção do Patrimônio Cultural e Natural Mundial,
de 1972; o preâmbulo da Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Silvestres da
Fauna e Flora Ameaçadas de Extinção, de 1973; o preâmbulo da Convenção sobre Conservação
sobre Conservação de Espécies Animais Silvestres Migratórios, de 1973; a Carta da ONU de
Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, em seu art. 30; a Carta Mundial da Natureza e
a Declaração de Nairobi, ambas de 1982; o conceito de desenvolvimento sustentável formulado
pela Comissão Mundial para o Ambiente e Desenvolvimento em 1987; o art. 3º da Convenção
sobre Mudanças Climáticas, em 1989; o art. 3º da Declaração do Rio, em 1992.
CARVALHO, Meio ambiente & direitos humanos, p. 352-353.
349
CARVALHO, Meio ambiente & direitos humanos, p. 353.
tanto ao Poder Público quanto à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Percebe-se assim que as formulações normativas, contidas em inúmeros
instrumentos jurídicos de direito internacional, bem como nas constituições
nacionais que reconhecem direta ou indiretamente a existência de um
direito das gerações futuras a viver em um ambiente sadio e equilibrado,
vêm ao encontro da perspectiva intrageracional da justiça ambiental.
Contudo, faz-se necessário analisar os argumentos daqueles que
sustentam a existência de óbices ao reconhecimento do direito das futuras
gerações ao ambiente. Carvalho elenca os principais: 350
(a) as futuras gerações estariam sujeitas às transformações cumulativas
e às limitações de suas opções e de seus recursos pelas prévias gerações;
(b) as gerações futuras ainda não existem, carecendo de representação
jurídica adequada, logo não podem promover a tutela adequada de
seu direito;
154 (c) como as gerações futuras ainda não existem, seus interesses também
não são claramente conhecidos, portanto aquilo que não se conhece
não pode ser violado.
350
CARVALHO, Meio ambiente & direitos humanos, p. 361-364.
351
DERANI, Cristiani. Direito ambiental econômico. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 258.
A perspectiva da justiça ambiental intergeracional, portanto, ao inserir
as futuras gerações nas considerações de justiça relacionadas com a
exploração e utilização do ambiente e dos recursos naturais, repercute no
mundo jurídico de forma direta. Como bem observam Morato Leite e
Ayala, não se trata simplesmente de transmutar o direito ambiental em
um direito ao futuro ou um direito de proteção do futuro, mas sim um
direito “[...] essencialmente ordenado e orientado pelo futuro”. 352
Os deveres ambientais intergeracionais que advêm do reconhecimento
de um direito das futuras gerações ao ambiente sadio, encontram na teoria
de Weiss um excelente referencial. Na visão da autora, tais deveres
intergeracionais delimitam as “obrigações planetárias” que derivam da
relação temporal entre as gerações no que tange à exploração e utilização
dos recursos naturais e culturais existentes no planeta. Segundo Weiss, tais
obrigações abrangem:
(a) o dever de conservar para as futuras gerações os recursos naturais –
renováveis e não renováveis – bem como os recursos culturais;353
(b) o dever de assegurar a todas as gerações acesso equitativo aos recursos 155
naturais e culturais;354
352
Cumpre salientar que na visão dos autores a proteção jurídica dos interesses das futuras
gerações avança para além dos interesses humanos futuros: “É conveniente que se esclareça
que objetivamos evidenciar, também, que a nova proposta de ‘olhar de integridade do direito
ambiental’ estrutura-se a partir da realização da proteção da equidade intergeracional e da
transmutação da definição do ‘alter’, de modo que a atuação responsável do homem em face
do outro, e que esse respeito e reconhecimento da dignidade desse outro, conduz ao
reconhecimento do novo ‘ethos’ para a definição dos sujeitos envolvidos nas relações
ambientais, qual seja a natureza, inserindo-se ambos no espectro global da ‘proteção de
condições adequadas para o desenvolvimento e conservação da vida’, e não simplesmente da
vida ‘qualificada pelo elemento humano’. Assim, quando tratamos da proteção dos interesses
das futuras gerações, pretende-se desenvolver o discurso da ‘proteção integral da vida’,
compreendendo aqui, como sujeitos, os seres vivos.” (LEITE, José Rubens Morato; AYALA,
Patryck de Araújo. A transdisciplinariedade do direito ambiental e sua equidade
intergeracional. Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 22, p. 73-
74, 2001).
353
Sobre esse dever de conservação dos recursos naturais e culturais, Weiss esclarece: “[...] la
conservación de los recursos naturales y culturales para las futuras generaciones, se extiende
a los recursos para los cuales aún no existen acuerdos internacionales, ni tampoco planes
consensuados de conservación y desarrollo. Estas nuevas áreas incluyen los recursos genéticos,
bosques, recursos acuáticos, conocimiento humano sobre los sistemas naturales y residuos
peligrosos y nucleares.” (WEISS, B. Un mundo justo para las futuras generaciones: derecho
internacional, patrimonio común y equidad intergeracional, p. 83).
354
Sobre o dever de assegurar o acesso equitativo aos recursos naturais e culturais, Weiss tece
interessante observação que vêm ao encontro da perspectiva da justiça ambiental: “Dentro
(c) o dever de evitar impactos desfavoráveis decorrentes das ações
humanas sobre os recursos naturais e culturais, enfatizando a prevenção
e não apenas a reparação dos danos;355
(d) o dever de prevenir desastres, minimizar danos e providenciar
assistência emergencial;356
(e) o dever de recompor e compensar danos ambientais.357
156
de los países, a menudo existen serios problemas de acceso de las poblaciones rurales a los
recursos naturales circundantes dado que con frecuencia son cosechados para benefício de las
zonas urbanas de país. En forma similar, la población urbana más indigente puede no tener
acceso al uso y beneficios de sus recursos naturales y culturales. La obligación planetaria de
asegurar el uso equitativo requeriría que esas poblaciones empobrecidas tengan un acceso
razonable a los recursos naturales, tales como el agua dulce, y tierra cultivable, o sus beneficios.”
(WEISS, B. Un mundo justo para las futuras generaciones: derecho internacional, patrimonio
común y equidad intergeracional, p. 87).
355
Para Weiss, duas classes de atividades causam impactos desfavoráveis sobre os recursos
naturais e culturais: “1) discretas acciones unitarias tomadas ya sea dentro o fuera de las
fronteras nacionales, y que causan daños identificables a los recursos naturales o culturales,
tales como la eliminación de desechos nucleares o grandes proyectos de desvío de cauces
fluviales; y 2) múltiplas actividades progresivas que causan daños de contaminación en forma
acumulativa, tal como las precipitaciones ácidas.” (WEISS, B. Un mundo justo para las futuras
generaciones: derecho internacional, patrimonio común y equidad intergeracional, p. 88-
89).
356
Na opinião de Weiss, tal dever se aplica “[...] a los accidentes que tienen significativos
efectos transfronterizos sobre el medio ambiente, a los accidentes y desastres naturales que
afectan recursos naturales compartidos, y a los accidentes y desastres naturales que afectan el
patrimonio mundial natural y cultural o los bancos genéticos. (WEISS, B. Un mundo justo
para las futuras generaciones: derecho internacional, patrimonio común y equidad
intergeracional, p. 97).
357
Tal dever, segundo Weiss, decorre tanto “[...] de las obligaciones que la actual generación
tiene para con las generaciones futuras, como de las obligaciones que los miembros de la
actual generación tienen entre sí de utilizar racionalmente el legado de los recursos naturales
y culturales, para que otros también puedan hacerlo.” (WEISS, B. Un mundo justo para
las futuras generaciones: derecho internacional, patrimonio común y equidad
intergeracional, p. 105).
Nabais, por exemplo, é um dos autores que sustenta a inadequação
dos deveres jurídicos para com as gerações futuras, por não se poder
identificar quem seriam os atuais titulares (ativos) desses direitos. Para
Nabais, “[...] estes ou são as futuras gerações, o que não é factível, ou se
reconduzem a geração atual, o que originaria a curiosa categoria de direitos
a que futuras gerações tenham direito(s) a uma vida digna a ser vivida”.358
Não se pode concordar com Nabais nesse particular. A crítica tecida
pelo autor ignora o forte traço solidarizante que caracteriza o direito
ambiental. Assim, pelo prisma ético da justiça os argumentos de Nabais
não se sustentam. Não se pode concordar com a negativa do
reconhecimento das futuras gerações como titulares do direito ao meio
ambiente sadio e equilibrado, sobretudo levando-se em consideração a
dimensão intergeracional da justiça ambiental, sob pena de admitir-se um
Direito Ambiental injusto, não orientado para o futuro da humanidade.
No que tange à titularidade ativa do direito das futuras gerações a um
meio ambiente sadio, Carvalho observa, a partir de diversas disposições
contidas em instrumentos internacionais de soft law, “[...] o nascimento e 157
a evolução histórica de um novo sujeito de direitos humanos na esfera do
direito internacional: a humanidade como um todo”.359
Em semelhante sentido, Kiss e Shelton defendem a ideia de que tais
obrigações planetárias derivam de uma noção de sociedade humana, que se
estende para além da totalidade da população atual do planeta, dando-
lhe uma dimensão temporal.360
Tais apontamentos evidenciam uma tendência evolutiva do direito
internacional no sentido de “coletivizar” a perspectiva dos Direitos
Humanos, superando o simples indivíduo como sujeito ativo titular de
tais direitos, e reconhecendo ou estendendo à humanidade como um todo
a titularidade ativa, sobretudo no que tange aos chamados direitos humanos
de terceira dimensão, cuja característica marcante é o forte traço
solidarizante para sua efetiva concretização.
358
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009. p. 54.
359
Carvalho identifica no autor francês Jean Charpentier, a melhor concepção para o termo
humanidade: “Para Charpentier (1998), o termo humanidade designa os povos da Terra,
desconsiderando sua repartição em Estados, incluindo não somente os povos de hoje, mas
também os de amanhã; assim a humanidade é o gênero humano na sua perpetuação.”
(CARVALHO, Meio ambiente & direitos humanos, p. 387).
360
KISS, Alexandre; SHELTON, Dinah. Guide to international environmental law. Leinden:
Martinus Nijhoff Publishers, 2007. p. 106.
Entretanto, é inegável que muito ainda tem-se que avançar na esfera
jurídica internacional, para que se possa efetivamente reconhecer a
existência inequívoca de um direito humano das gerações futuras ao
ambiente sadio e equilibrado, ou mesmo deveres jurídicos ambientais
intergeracionais.
Essa questão, como já salientado no final do tópico anterior, será
adiante melhor analisada. Por ora, resta concluir que a dimensão
intergeracional da justiça ambiental, sobretudo em face da ampla aceitação
do princípio da equidade intergeracional no âmbito dos instrumentos
jurídicos de direito internacional, fortalece a tendência mundial de
reconhecimento do direito humano das futuras gerações de viver em um
ambiente sadio, conduzindo, como corolário, ao reconhecimento de
“obrigações planetárias” das gerações presentes para as gerações futuras.
A força cogente dessas obrigações no mundo jurídico é questão que
mais adiante será analisada.
158
3.3 Direitos dos animais e direitos da natureza? Limitações impostas
pelo antropocentrismo jurídico
Ao incluir os animais não humanos e a natureza em si considerada no
rol dos sujeitos destinatários de considerações de justiça, de pronto instaura-
se o debate acerca da possibilidade de reconhecimento da existência de
direitos dos animais ou mesmo de direitos da natureza.
Como demonstrado no capítulo anterior, autores como Martha C.
Nussbaum defendem a ideia de que a inserção dos animais não humanos,
como sujeitos de justiça, por meio do enfoque das capacidades, é um dos
caminhos que permite avançar no debate do reconhecimento dos direitos
dos animais.361
No campo da ética e da justiça, parece não subsistir mais qualquer
justificativa aceitável para a não inclusão dos interesses não humanos como
361
Para Nussbaum: “El enfoque de las capacidades proporciona una mejor orientación que
otros para la cuestión de los derechos de los animales. Al permitir reconocer una amplia
variedade de tipos de dignidad animal (y de las correspondientes necesidades para su
florecimiento), y al dedicar atención a la diversidad de actividades y de objetivos de criaturas
de múltiples clases, el mencionado enfoque es capaz de producir normas de justicia
‘interespecies’ que, aun siendo sutiles, resultan a la vez exigentes e implican derechos
fundamentales para criaturas diversas.” (NUSSBAUM, Las fronteras de la justicia:
consideraciones sobre la exclusión, p. 323).
também dignos de um tratamento ético e justo. Como bem ressaltam
Sarlet e Fensterseifer, a tendência jurídica contemporânea é a de reconhecer
um conteúdo de indignidade nas condutas humanas predatórias da natureza
e cruéis aos animais, situação essa que implica o reconhecimento do valor
intrínseco da vida em geral e do patrimônio ambiental como um todo.362
A proposta de Nussbaum, como demonstrado no capítulo anterior,
comunga dessa conclusão. Mas o fato de haver uma tendência jurídica
para reconhecer a dignidade para além da vida humana, pautada por
considerações de justiça interespécies, por si, é suficiente para que se
reconheça a existência de direitos dos animais ou direitos da natureza?
Segundo Medeiros, existem basicamente duas correntes de pensamento
que reivindicam a proteção jurídica dos animais não humanos. A primeira
corrente pugna pelo bem-estar de tais seres vivos, por meio de uma regulação
de sua exploração pelo ser humano com o mínimo de dor e sofrimento. Já
a segunda corrente, luta pelos direitos dos animais não humanos, de forma
a abolir “[...] qualquer benefício que o homem possa tirar dos animais que
traga malefício a eles”.363 159
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela
Unesco em sessão realizada em Bruxelas, Bélgica, em 27 de janeiro de
1978, tinha muito mais uma conotação voltada ao bem-estar animal do
que propriamente à abolição animal. Talvez por ser um dos primeiros
instrumentos internacionais de soft law a tratar sobre o assunto, é inegável
que a referida declaração se deixou contaminar pela visão jurídico-
antropocêntrica tradicional. A esse respeito, Silva observa:
362
SARLET; FENSTERSEIFER, Direito constitucional ambiental, p. 76.
363
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais: proteção ou legitimação
do comércio da vida? In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza
Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da
vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte:
Fórum, 2008. p. 278.
proteção e salvaguarda dos animais [...]. Todavia, no seu final há
um sinal que poderíamos interpretar como uma tentativa de
superação do jurídico-antropocentrismo, ao referir: Art. 14 [...]
b) Os direitos do animal devem ser defendidos por leis, como os
direitos do homem. Contudo, o contexto é declaradamente
antropocêntrico, pela exegese material simples.364
364
FERREIRA DA SILVA, Olmiro. Direito ambiental e ecologia: aspectos filosóficos
contemporâneos. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 32-33.Nota 15.
365
Deve ser salientado que também Peter Singer reivindica uma igual consideração de interesses
em favor de todos os seres sensíveis, de modo a modificar profundamente as relações dos
seres humanos com os animais. Contudo, diferentemente de Regan, Singer não reivindica
abertamente direitos subjetivos aos animais. Nesse sentido ver: SINGER, Peter. Libertação
animal. Trad. de Maria de Fátima St. Aubyn. Porto: Via Optima, 2000.
366
REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Trad. de Regina
Rheda. Porto Alegre: Lugano, 2006. p. 65-66.
367
SARLET; FENSTERSEIFER, Direito constitucional ambiental, p. 68.
É digna de nota, nessa perspectiva de reconhecimento de direitos
animais uma importante inovação introduzida pela Constituição Suíça,
no ano de 1992, ao reconhecer expressamente no texto constitucional
suíço (art. 24) a necessidade de se respeitar a “dignidade da criatura”,
sobretudo nos casos relacionados à engenharia genética.368
Outra reivindicação jurídica recente e talvez ainda mais polêmica do
que a dos direitos animais é aquela que pugna pelo reconhecimento dos
direitos da natureza.
Talvez o passo mais arrojado e concreto que tenha sido dado no campo
dos direitos da natureza seja o seu reconhecimento expresso na atual
Constituição da República do Equador, em vigor desde 20 de outubro de
2008. Nos seus artigos 71 e 72, a Constituição Equatoriana inova
substancialmente ao reconhecer os derechos de la naturaleza, nos seguintes
termos:
368
SARLET; FENSTERSEIFER, Algumas notas sobre a dimensão ecológica da pessoa humana
e sobre a dignidade da vida em geral, p. 188.
369
Texto original (tradução livre): Art. 71. La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce
y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento
y regeneración de sus ciclos vitales, estrucutura, funciones y processos evolutivos. Toda persona,
comunidad, pueblo o nacionalidade podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de
los derechos de la naturaleza. El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas y a los
colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que
forman un ecosistema. Art. 72. La naturaleza tiene derecho a la restauración. Los servicios
ambientales no serán susceptibles de apropriación; su proteccion, prestación, uso y
aprovechamiento serán regulados por el Estado. ASAMBLEA CONSTITUYENTE.
Constitución del Ecuador. Disponível em: <http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/
constitucion_de_bolsillo.pdf >. Acesso em: 20 mar. 2012.
Muito embora a previsão constitucional expressa, não está claro como
serão tutelados os direitos da natureza no ordenamento jurídico equatoriano,
tampouco em que grau eles serão efetivamente respeitados quando em
choque com outros direitos constitucionalmente assegurados. Não obstante,
é inegável o caráter vanguardista da Constituição do Equador no que pertine
a superação do antropocentrismo jurídico.370
Propostas como as de Regan, da Constituição Suíça ou da Constituição
Equatoriana, rompem com o tradicional antropocentrismo jurídico. Elas
encontram, porém, resistência em diversos autores que enchergam no
antropocentrismo jurídico um obstáculo insuperável ao desafio dos direitos
animais ou direitos da natureza. O autor brasileiro Fiorillo assim se manifesta
sobre a visão antropocêntrica do direito ambiental:
Não há, por assim dizer, como não se ver que o direito ambiental
possui uma necessária visão antropocêntrica. Necessária pelo
motivo de que, como único animal racional que é, só o homem
162 tem possibilidades de preservar todas as espécies incluindo a
sua.371
370
Sobre o tema, o equatoriano Hugo Echeverria dimensiona a inovação trazida pela
Constituição de seu país: “La nueva Constitución de la República del Ecuador ratifica y
sistematiza la importante evolución normativa ecuatoriana en materia ambiental que ha sido
evidente deste, al menos, las reformas constitucionales de 1983; con posteriores avances en
las reformas de 1996 y la codificación de 1998. Además, amplía el âmbito de protección
constitucional para reconocer y garantizar derechos de la naturaleza, convirtiéndose en la
primera Constitución del mundo en aplicar esta nueva tesis jurídica.” (ECHEVERRIA,
Hugo. Delitos ambientales em las areas protegidas de Galápagos. In: SEA SHEPHERD,
WWF Y GALÁPAGOS ACADEMIC INSTITUTE FOR THE ARTS AND SCIENCES.
Manual de aplicación del derecho penal ambiental como instrumento de protección de las áreas
naturales em Galápagos. Quito: Impresores Myl, 2011. p. 104-105).
371
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Direito ambiental e patrimômio genético. Belo
Horizonte: Del Rey, 1996. p. 132-133.
372
FIORILLO, Direito ambiental e patrimômio Genético, p. 131.
refere que tal impossiblidade decorre do fato de ser o Direito um fenômeno
da cultura, “[...] que regula relações entre seres livres e responsáveis que,
por isso mesmo, devem ter consciência dos seus deveres de preservação do
meio ambiente”.373
Outra crítica de relevo está diretamente direcionada ao pensamento
de Tom Regan, é tecida por François Ost. Muito embora Ost reconheça
na proposta de Regan o resumo mais impressionante acerca da ideia dos
direitos animais, levanta uma série de objeções para sua concretização.
Ost refere que mesmo que se reconheça o valor intrínseco da vida não
humana, este valor será sempre medido e apreciado “[...] aos olhos de
critérios humanos, na linguagem humana, através de categorias de
percepção, de explicação e de valorização que são nossas”.374 Outra barreira,
para Ost, ao reconhecimento de direitos animais diz respeito aos problemas
práticos, sobretudo no tocante à identificação dos titulares desses direitos
e à determinação do seu caráter absoluto ou relativo quando em comparação
ou confronto com outros direitos. Daí a conclusão de Ost sobre o assunto:
163
Na realidade, os direitos que alguns se aprazem em atribuir aos
animais, não são mais do que a contrapartida puramente lógica e
formal, o efeito reflexo de algum modo, dos deveres que, a justo
título, nos impomos a seu respeito. Uma vez que temos deveres,
eles devem ter direitos, pensar-se-á. E, no entanto, essa lógica
sinalagmática não é aplicável, a partir do momento em que
prevalece a assimetria radical dos parceiros nesta relação (há
assimetria na relação dos valores, dos direitos, dos deveres; em
contrapartida, em outras relações, como a do jogo, por exemplo,
podem observar-se formas bastante conseguidas de cumplicidade
e de reciprocidade entre o homem e o animal).375
373
PEREIRA DA SILVA, Vasco. Verde cor de direito: lições de direito do ambiente. Coimbra:
Almedina, 2002. p. 31.
374
OST, A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito, p. 262.
375
OST, A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito, p. 264.
376
SILVA, Direito ambiental e ecologia: aspectos filosóficos contemporâneos, p. 34.
(a) a relação de pertença pela titularidade entre sujeito jurídico e seu
objeto de propriedade;
(b) a inexistência de paridade jurídica entre seres humanos e os demais
entes do repertório ambiental;
(c) a inexistência de inter-relação de subjetividade/intersubjetividade
decorrente da paridade possível entre os sujeitos para além dos seres
humanos;
(d) o viés antropocêntrico que contamina o próprio conceito de justiça
ou mesmo de justiça ambiental.
379
SILVA, Direito ambiental e ecologia: aspectos filosóficos contemporâneos, p. 37-38.
dedicando a essa árdua e necessária tarefa, embora muito se precise avançar
para que essa nova perspectiva seja efetivamente incorporada pelos
operadores do direito.
Sem embargo, o que se procura ressaltar é que mesmo dentro da
lógica antropocêntrica alargada que contamina os vasos normativos do
direito ambiental é possível elevar o nível de proteção dos interesses não
humanos, à luz de uma nova e ampla concepção de justiça ambiental.
Obviamente, os referidos deveres jurídicos interespécies, tal como
ressaltado nos tópicos anteriores, devem ser dotados de juridicidade sob
pena de ficarem adstritos à esfera dos deveres morais.
Com efeito, é chegada a hora de analisar essa questão.
380
BORDIN, Fernando Lusa. Justiça entre gerações e proteção do meio ambiente. Revista de
Direito Ambiental, . São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 52, p. 50-51, 2008.
381
BORDIN, Justiça entre gerações e proteção do meio ambiente, p. 50-51.
382
Nas palavras de Weiss: “Estas obligaciones pasan a ser exigibles a medida que son
especificadas e codificadas en acuerdos internacionales y leyes nacionales y locales,
transformadas en derecho internacional consuetudinario, o adoptadas como principios
generales de derecho.” (WEISS, B. Un mundo justo para las futuras generaciones: derecho
internacional, patrimonio común y equidad intergeracional, p. 77).
Duas questões essenciais merecem especial análise: a possibilidade ou
não de se reconhecer uma abertura material a deveres humanos
fundamentais e a questão da aplicabilidade – mediata ou imediata – de
tais deveres.
383
No texto Nabais analisa a cláusula geral de deverosidade social prevista no art. 2º, parte
final, da Constituição Italiana e o no art. 9º da Constituição Espanhola. Até mesmo a Lei
Fundamental da Alemanha (art. 1º) poderia ensejar um entendimento de uma lista aberta
de deveres. (NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão
do estado fiscal contemporâneo, p. 61-62).
384
NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do estado
fiscal contemporâneo, p. 63.
Entretanto, a tese da impossibilidade de abertura material dos deveres
fundamentais é alvo de críticas por alguns autores brasileiros, em especial
quando se está tratando do dever fundamental de proteção ambiental.
Nessa senda, Fensterseifer discorda da posição adotada por Nabais, na
medida em que o reconhecimento de um dever fundamental deve pautar-
se pelo critério da fundamentalidade material “[...] considerando sempre
a possibilidade de se reconhecer um novo dever fundamental, conexo ou
autônomo, a partir da abertura material da Constituição”.385 Ocorre que
Fensterseifer, para fundamentar a inaplicabilidade do princípio da
tipicidade (numerus clausus) menciona a existência de uma cláusula geral do
dever fundamental ao ambiente contida no caput do art. 225 da
Constituição Federal de 1988,386 espécie de supradever, tão combatido
por Nabais.
A questão, como salientado, é tormentosa. Contudo, acredita-se que
uma eventual abertura material a deveres fundamentais passa por um
tratamento diferenciado nos casos de deveres fundamentais autônomos e
nos casos de deveres fundamentais conexos (ou associados a direitos 169
fundamentais). Quanto aos deveres fundamentais conexos, a simples
abertura material dos direitos fundamentais prevista no art. 5°, § 2°, da
Constituição Federal de 1988, possibilita que a aceitação de novos direitos
fundamentais traga consigo novos deveres fundamentais. Já no que tange
aos deveres autônomos, surge uma maior dificuldade de admitir uma
abertura material dos deveres fundamentais, sob pena de gerar insegurança
jurídica. Nesse particular, parece permanecer hígida a teoria de Nabais.387
Mas o problema não se encerra aí. No que tange ao direito
fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado, não se está diante
de um novo direito fundamental reconhecido em razão da abertura material
possibilitada pela Constituição. Ao contrário, está-se diante de um direito
fundamental positivado no texto constitucional. Mesmo assim será possível
admitir a existência de uma abertura material dos deveres ambientais
fundamentais?
385
FENSTERSEIFER, Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito,
p. 203.
386
FENSTERSEIFER, Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito,
p. 203-204.
387
SGARIONI, Márcio Frezza; RAMMÊ, Rogério Santos. O dever fundamental de proteção
ambiental: aspectos axiológicos e normativo-constitucionais. Revista de Direito Público, Porto
Alegre: Síntese, v. 42, p. 42, 2011.
No caso específico da Constituição brasileira, o constitucionalista
Steinmetz assim se posiciona sobre os deveres ambientais decorrentes do
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
insculpido no art. 225, caput, do texto constitucional:
170
Na ausência de positivação expressa dos deveres ambientais de cunho
ecológico que emanam de uma perspectiva tridimensional da justiça
ambiental, faz-se necessário reconhecer a necessidade de uma atividade
interpretativa constitucional voltada à inteligência do meio justo, de modo
a agregar ao marco normativo-constitucional do dever fundamental de
proteção ambiental suas dimensões intrageracional, intergeracional e
interespécies. Assim agindo, é possível admitir que o intérprete sustente a
existência de novos deveres associados ao direito fundamental do ambiente
ecologicamente equilibrado, muito embora deva ser ressaltado que tal
entendimento ainda é minoritário no âmbito da doutrina dos direitos
fundamentais.
388
STEINMETZ, Wilson Antônio. Educação ambiental, Constituição e legislação: análise
jurídica e avaliação crítica após dez anos de vigência da Lei 9.795/1999. Revista de Direito
Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 55, p. 190, 2009. Em outra de suas obras,
Steinmetz assevera: “No § 1º do art. 225 da CF, especificam-se os deveres do Poder Público
para a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas não se
especificam os deveres dos particulares. Em relação aos particulares, dispõe-se, genericamente,
que é dever defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF, art. 225,
caput) e que ‘as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independente da
obrigação de reparar os danos causados’ (CF, § 3º do art. 225 – sem grifo no original).”
(STEINMETZ, Wilson Antônio. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São
Paulo: Malheiros, 2004. p. 285).
3.4.2 A aplicabilidade (mediata ou imediata) dos deveres humanos
fundamentais de cunho ecológico
A questão é tormentosa porquanto também passa pela
aplicabilidade – mediata ou imediata – que uma abertura material a
deveres ambientais possa acarretar.
Sob o ponto de vista da vinculação dos particulares a direitos
fundamentais, Steinmetz entende que os deveres ambientais constitucionais
vinculam os particulares de forma mediata (indireta), carecendo, para
uma efetiva concretização, de mediação pelo legislador.389
Na doutrina estrangeira, a tese da inaplicabilidade direta (ou imediata)
dos deveres fundamentais é sustentada por Nabais e por Vieira de
Andrade.390 Os deveres, de acordo com esses autores, não têm o seu
conteúdo concretizado ou totalmente concretizado na constituição e por
isso necessitam de previsão normativa expressa para tornarem-se fonte
concreta de obrigações jurídicas. Segundo Nabais, independentemente
do grau de concretização normativa de que disponham na constituição, os
deveres fundamentais “[...] carecem sempre da intervenção do legislador 171
para estabelecer as formas e os modos do seu cumprimento e a sancionação
do correspondente não cumprimento”.391
Na doutrina nacional, a discordância desse entendimento vem
capitaneada por Medeiros. A autora sustenta a tese de que no dever
fundamental de proteção ao meio ambiente a questão é “[...] singular
quanto à importância do seu conteúdo e da urgência de sua exigibilidade”.
Assim, complementa a autora, a Constituição Federal de 1998, ao regular
a norma que disciplina o dever do Estado e da coletividade em preservar o
ambiente sadio e equilibrado, inseriu na norma “[...] princípios e valores
jurídicos e éticos que determinam a sua aplicabilidade imediata para que
se preserve a vida na Terra”.392
389
STEINMETZ, A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, p. 284-286.
390
NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do estado
fiscal contemporâneo, p. 148. (ANDRADE, José Carlos Vieira. Os direitos fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2009. p. 160).
391
NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do estado
fiscal contemporâneo, p. 155. Contudo, para o autor isso não quer dizer que os preceitos
constitucionais relativos aos deveres estejam desprovidos de qualquer força ou eficácia jurídica
(p. 157).
392
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 128.
Tal questão, como salientado alhures, é tormentosa e ainda está aberta
a novas construções interpretativas.393
De resto, concorda-se aqui com Sarlet e Fensterseifer no que tange a
necessidade da humanidade migrar da esfera moral de suas
responsabilidades e, sobretudo, da esfera moral da justiça, para a esfera
jurídica dos deveres constitucionais de proteção do ambiente,394 de modo
a que todos os destinatários de considerações de justiça (gerações humanas
atuais, futuras, animais não humanos e o meio ambiente em si) sejam
efetivamente objeto de tratamento justo pelo Direito.
393
Em outra oportunidade, num singelo ensaio sobre o tema em questão, sugerimos,
172 juntamente com Márcio Frezza Sgarioni, fundamentar a aplicabilidade imediata do dever
fundamental de proteção ao meio ambiente sob outra perspectiva, nunca esquecendo seu
conteúdo de direito-dever: “[...] para tanto precisamos dividi-lo em seus dois aspectos
relevantes: a) como abstenção; b) como prestação. No caso de abstenção, não há dúvida, por
exemplo, que os direitos fundamentais à vida e à liberdade, são imediatamente aplicáveis. E
nesse contexto, não se questiona como se dá o cumprimento desse direito (ou seja, a abstenção
pelo Estado e pelos demais indivíduos), mesmo que o legislador, p. ex. no Código Penal vá
estabelecer a pena em face daquele que atentar contra a vida de outrem. Como o dever
fundamental de proteção ao meio ambiente é conexo (ou associado) ao direito fundamental
ao meio ambiente sadio e equilibrado, poder-se-ia estabelecer o mesmo raciocínio jurídico
no caso da abstenção: na medida em que a Constituição Federal integra o direito ao meio
ambiente como um direito fundamental, resta claro que a todos (ao Estado e à coletividade)
é dirigido o dever fundamental de proteção. Nesse caso, é possível que o Poder Judiciário
emita uma ordem a quem quer que seja, independentemente de qualquer lei ordinária, no
sentido de que se abstenha de causar um dano ao meio ambiente (pois, como assinalado
acima, ninguém duvida de que essa ordem seria cabível quando afrontada a vida de outrem,
independentemente da existência de um código penal). Os problemas que ainda não foram
superados, no nosso modesto entendimento, referem-se ao modo de cumprimento nas
prestações positivas e na sanção (tanto na abstenção como na prestação de dar ou fazer).
Parece que a liberdade e o princípio constitucional da legalidade tornam-se barreiras
instransponíveis para defender a tese da aplicabilidade imediata do dever fundamental de
proteção ao meio ambiente, em especial quando se está a tratar de prestações positivas. As
sanções, tanto no caso positivo (deveres fundamentais prestacionais) como negativo (deveres
fundamentais defensivos), demandam a existência de uma norma infraconstitucional.
Entendimento diverso abriria as portas para um ativismo judicial e um decisionismo que se
chocaria com os demais princípios constitucionais (princípio democrático, princípio da divisão
dos poderes, princípio republicano, princípio da legalidade), razão pela qual a tese da
aplicabilidade imediata resta enfraquecida.” (SGARIONI; RAMMÊ, O dever fundamental
de proteção ambiental: aspectos axiológicos e normativo-constitucionais, p. 44-45).
3.5 A importância da atividade jurisdicional na efetividade dos
direitos e deveres ecológicos e da justiça ambiental
Muito embora seja imprescindível o desenvolvimento teórico-analítico
da perspectiva da justiça ambiental e dos direitos e deveres de cunho
ecológico decorrentes dessa perspectiva, de nada adiantarão os esforços
acadêmicos e doutrinários se, no âmbito da atividade jurisdicional,
predominar uma racionalidade jurídica obtusa, estanque e, pior, amparada
no paradigma desenvolvimentista dominante.
Isso porque dito paradigma reduz em muito a potencialidade e o
alcance dos direitos e deveres ecológicos, porquanto não apenas obstaculiza
uma visão mais abrangente da complexidade que cerca as relações sociais,
econômicas e ambientais da atualidade, como também inviabiliza uma
interpretação adequada dos princípios constitucionais que devem orientar
o aplicador do direito, quando instado a solver conflitos de distribuição
ecológica e injustiças ambientais – sejam elas intergeracionais,
intrageracionais, sejam interespécies.
Afinal, para a lógica do paradigma desenvolvimentista dominante 173
interessa apenas uma ordem jurídica ambiental estática, eminentemente
técnica e desenraizada da prática social dos sujeitos, como bem observa
Derani.395
Com efeito, o Estado-juiz, ao exercer o poder-dever da jurisdição
para solver conflitos de distribuição ecológica, deve pautar sua atuação
pelos valores, objetivos, princípios e normas constitucionais que amparam
a perspectiva tridimensional da justiça ambiental aqui analisada, dentre
os quais destacam-se: a dignidade da pessoa humana; a redução das
desigualdades sociais; a vedação de qualquer forma de discriminação; a
preservação do meio ambiente para as gerações presentes e futuras; e a
vedação de práticas que importem em desequilíbrio ecológico, extinção
de espécies ou submissão de animais à crueldade.
Dessa forma, a atividade jurisdicional pode sim transformar esse direito
ambiental estanque e narcisista em um efetivo direito socioambiental,
cuja aplicação prática em casos concretos de injustiça ambiental seja capaz
de restabelecer a justiça e a equidade ambiental, mesmo que em casos
pontuais, colocando em marcha o surgimento de um novo modelo de
394
SARLET; FENSTERSEIFER, Direito constitucional ambiental, p. 33.
395
DERANI, Direito ambiental econômico, p. 154.
Estado de Direito. Modelo esse, como apregoa Canotilho, que transporte
“nos seus vasos normativos a seiva da justiça ambiental”.396
A esse respeito, merece transcrição o pensamento do Magistrado
Bodnar, sobre o papel da jurisdição ambiental:
396
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Jurisdicização da ecologia ou ecologização do direito.
Revista do Direito Urbanismo e do Ambiente, Coimbra: Almedina, n. 4, dez. 1995.
397
BODNAR, Zenildo. Os novos desafios da jurisdição para a sustentabilidade na atual
sociedade de risco. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p. 101-119, jul./dez.
2009.
398
ZHOURI. Andréa; OLIVEIRA, Raquel. Paisagens industriais e desterritorialização de
populações locais: conflitos socioambientais em projetos hidrelétricos. Teoria & Sociedade,
Belo Horizonte, v. 12, n. 2, p. 10-29, jul./dez. 2004.
constitucionais que dão sustentação à justiça ambiental deve nortear o
aplicador do direito.
Ressalta-se que não se está aqui a pregar um ativismo judicial ou uma
jurisprudência de valores, que permitam ao Magistrado “decidir conforme
sua consciência”, em favor do meio ambiente ou das vítimas de injustiças
ambientais. Concorda-se aqui com Streck quando afirma que “[...] a decisão
jurídica não se apresenta como um processo de escolha do julgador das
diversas possibilidades de solução da demanda”, mas sim deve estar
amparada em um processo interpretativo no qual o julgador extraia o
sentido do direito projetado pela comunidade política.399
É muito provável que seja justamente o ativismo judicial e uma elevada
carga de discricionariedade das decisões judiciais aplicadas a conflitos
socioambientais que estejam prejudicar a efetividade dos direitos e deveres
ecológicos. Afinal, não se necesita de juízes ambientalistas, mas sim de
juízes que interpretem adequadamente a Constituição. Dessa forma, como
bem-assevera Streck, percebe-se não haver razão para juízos subjetivistas,
mesmo quando favoráveis aos direitos e deveres de cunho ecológico. 175
A justiça ambiental não pode ficar à mercê da consciência ou do
ativismo do julgador. Ela emana, como salientado, do todo principiológico
da Constituição e dos direitos e deveres humanos e fundamentais ecológicos
consagrados em seu texto.
Não se necessita, portanto, de decisionismos ou de ativismos judiciais.
Basta interpretar adequadamente a Constituição, para tornar efetivos não
apenas os direitos e deveres ecológicos, mas a própria justiça ambiental.
399
STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 2. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 106.
400
Essa denominação é utilizada, por exemplo, por Carlos Alberto Molinaro. (MOLINARO,
Carlos Alberto. Direito ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007).
Para Santos esse novo modelo de Estado trata-se, em verdade, de uma
utopia democrática, já que aspira transformar e repolitizar o exercício da
cidadania individual e coletiva, de modo a incluir nessa transformação e
repolitização uma Carta dos direitos humanos da natureza.401
Esse novo modelo de Estado de Direito contemporâneo, segundo Sarlet
e Fensterseifer, ergue-se à luz de um novo objetivo fundamental, qual seja,
a proteção do ambiente, que se articula com os demais objetivos
fundamentais consagrados ao longo da história constitucional: proteção
dos direitos fundamentais, democracia política participativa, regulação da
atividade econômica e justiça social.402
Muito embora outras denominações sejam encontradas na doutrina
nacional e internacional,403 dá-se preferência aqui a denominação Estado
Socioambiental e Democrático de Direito, porquanto acredita-se que tal
definição é a que melhor define o modelo de Estado de Direito que
incorpora a perspectiva da justiça ambiental, sobretudo porque enfatiza o
dimensão democrática que um Estado de Direito deve ter para que a
176 justiça ambiental possa ser alcançada.
Sobre a importância da dimensão democrática de um Estado de
Direito, merece destaque a clássica lição de Novais:
401
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. Porto: Afrontamento, 1994. p. 42.
402
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo
existencial (ecológico): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado
socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 18-19.
403
Sarlet e Fensterseifer preferem a denominação Estado Socioambiental. Os autores citam
algumas outras denominações encontradas na doutrina, “[...] tais como Estado Pós-social,
Estado Constitucional Ecológico, Estado de Direito Ambiental, Estado do Ambiente, Estado
Ambiental de Direito, Estado Ambiental e Estado de Bem-Estar Ambiental”. (SARLET;
FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico): algumas
aproximações, p. 15-16).
404
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina,
2006. p. 14.
E complementa o autor lusitano,
405
NOVAIS, Contributo para uma teoria do Estado de Direito, p. 14.
406
SARLET; FENSTERSEIFER, Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico):
algumas aproximações, p. 13.
407
SARLET; FENSTERSEIFER, Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico):
algumas aproximações, p. 13 e 18.
A grande e, talvez, a maior dificuldade em construir um Estado
de Direito Ambiental é transformá-lo em um Estado de justiça
ambiental. [...] Para se formular uma política ambiental com
justiça ambiental, é necessário que o Estado se guie por princípios
que vão se formando a partir da sedimentação das complexas
questões suscitadas pela crise ambiental.408
408
LEITE, Sociedade de Risco e Estado, p. 158.
409
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 41.
410
Para Canotilho a caracterização do Estado de não direito está atrelada à três ideias centrais:
“(1) é um Estado que decreta leis arbitrárias, cruéis ou desumanas; (2) é um Estado em que
o direito se identifica com a ‘razão do Estado’ imposta e iluminada por ‘chefes’; (3) é um
estado pautado por radical injustiça e desigualdade na aplicação do direito.” (CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 12).
Essa reflexão só pode ser exercida por uma crítica que atenda aos
princípios de um direito justo e de uma Justiça que esteja preparada
para interpretar justamente o direito, vale dizer, a necessidade de,
em momentos definidos da história, negar a realidade do fático e
de sua injusta realidade, propugnando por um “anseio” universal
de esperança [...].411
411
MOLINARO, Direito ambiental: proibição de retrocesso, p. 96.
412
SARLET; FENSTERSEIFER. Direito constitucional ambiental, p. 59.
413
SARLET; FENSTERSEIFER. Direito constitucional ambiental, p. 60.
[...] para além dos direitos já identificados doutrinariamente como
“possíveis” integrantes da noção de um mínimo existencial
(reconhecidamente controversa, a despeito de sua popularidade),
como é o caso de uma moradia digna, de assistência social, de
uma alimentação adequada, entre outros, é nosso intento sustentar
a inclusão nesse elenco da qualidade ambiental, objetivando a
garantia de uma existência humana digna e saudável, especialmente
no que diz com a construção de um bem-estar existencial que
tome em conta também a qualidade do ambiente.414
414
SARLET; FENSTERSEIFER, Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico): algumas
aproximações, p. 14.
de recursos deve ser solvida “[...] por uma ordem de prioridade nas políticas
econômico-finaceiras do Estado”,415 estando o legislador obrigado a “[...]
estabelecer e modelar essa ordem de prioridade de modo a atender as
necessidades ambientais, constitucionalmente, minimamente
asseguradas”.416
Cabe destacar que a edificação desse Estado Socioambiental e
Democrático de Direito também passa pela consolidação de uma ordem
constitucional materialmente aberta a novos direitos fundamentais
socioambientais,417 os quais decorrem, como observam Sarlet e Fenstenseifer,
de uma compreensão integrada e interdependente dos direitos sociais e da
proteção do ambiente.418
Essa abertura a novos direitos fundamentais socioambientais se
apresenta como uma resposta necessária pelo direito à problemática
socioambiental que hoje se reflete, como bem observa Enrique Leff, em
uma crise civilizacional, na qual o sonho dourado do desenvolvimento e
modernização, guiado pelo crescimento econômico e pelo progresso
tecnológico, apoia-se em um regime jurídico forjado por uma ideologia de 181
liberdades individuais que privilegia os interesses privados em detrimento
dos coletivos.419
415
MOLINARO, Direito ambiental: proibição de retrocesso, p. 113.
416
MOLINARO, Direito ambiental: proibição de retrocesso, p. 113.
417
A utilização da expressão direitos fundamentais nesse momento se torna mais adequada do
que a utilização direitos humanos, porquanto inserida no contexto de uma ordem constitucional
concreta. Importa ressaltar aqui a distinção didaticamente estabelecida por José Joaquim
Gomes Canotilho, para quem as “[...] expressões direitos do homem e direitos fundamentais
são frequentemente utilizadas como sinónimas. Segundo sua origem e significado poderíamos
distinguí-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os
povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais
são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-
temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu
caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos
objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.” (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p.
359).
418
SARLET; FENSTERSEIFER, Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico):
algumas aproximações, p. 32.
419
LEFF, Enrique. Los derechos del ser colectivo y la reapropriación social de la naturaleza:
a guisa de prólogo. In: LEFF, Enrique (Coord.). Justicia ambiental: construción y defensa de
los nuevos derechos ambientales, culturales y colectivos en América Latina. México: Pnuma,
2001. p. 7.
Contudo, em resposta a essa cultura jurídica que reproduz a lógica de
mercado globalizante, a edificação de uma concepção ampla de justiça
ambiental contribui para essa guinada em direção a uma nova racionalidade
jurídica, impulsionando o surgimento de uma nova concepção de Estado
(Socioambiental e Democrático) de Direito.
Nesse sentido, a observação do autor lusitano Amaral:
420
AMARAL, Diogo Freitas do. Direito do ambiente. Lisboa: INA, 1994. p. 17.
421
LEFF, Los derechos del ser colectivo y la reapropriación social de la naturaleza: a guisa de
prólogo, p. 10.
Em tal contexto, essa abertura material a direitos fundamentais
socioambientais implica um alargamento da proteção jurídica da autonomia
de comunidades tradicionais; dos costumes e culturas locais; dos espaços
geográficos onde se assentam tais culturas; bem como da biodiversidade e
dos processos ecológicos essenciais à manutenção da vida em todas as suas
formas. A abertura mateiral a novos direitos fundamentais socioambientais
implica, ainda, a possibilidade de rever, à luz de critérios e considerações
de justiça, a regulação acerca das formas de utilização e apropriação da
biodiversidade.
Não se trata de tarefa simples. Como observa Leff, “[...] as palavras
adquirem novos significados que mobilizam a sociedade, porém encontram
obstáculos e dificuldades para sua codificação dentro dos ordenamentos
jurídicos”. O problema, complementa Leff, não é de tradução, mas de
sentido político que adquirem tais significados na estratégia discursivas do
ambientalismo, rompendo com o sentido único dos termos e com as
verdades absolutas pré-estabelecidas.422 E isso não é de fácil assimilação
pelo Direito. 183
A justiça ambiental, nesse cenário, em sua perspectiva ampliada,
fomenta essa proposta de ressignificação dos conceitos e verdades jurídicas,
de modo a transformar as relações de poder e de apropriação da natureza.
422
LEFF, Los derechos del ser colectivo y la reapropriación social de la naturaleza: a guisa de
prólogo, p. 12.
184
Considerações finais
200
Anexos
ANEXO 1
Carta de Princípios de Justiça Ambiental da Primeira Conferência Nacional de
Lideranças Ambientalistas de Povos de Cor
24 a 27 de outubro de 1991, Washington, DC, EUA
Preâmbulo
Nós, pessoas de cor, reunidas nesta Primeira Cúpula Nacional de Lideranças
Ambientalistas de Cor para iniciar a construção de um movimento nacional e
201
internacional de todos os povos de cor para combater a degradação e proteger nossas
terras e comunidades, restabelecendo assim nossa interdependência espiritual com a
sacralidade da Mãe Terra; em respeito e celebração a cada uma de nossas culturas,
linguagens e crenças sobre o mundo natural e os nossos papéis em curar a nós mesmos/
as; para assegurar a justiça ambiental; para promover alternativas econômicas que
possam contribuir para o desenvolvimento de meios ambientalmente seguros de
subsistência; e para garantir a liberdade política, econômica e cultural que foi nos
negada ao longo de mais de 500 anos de colonização e opressão, resultando no
envenenamento de nossas comunidades e da terra e no genocídio de nossos povos,
afirma e adota estes Princípios de Justiça Ambiental:
1) A justiça ambiental afirma a sacralidade da Mãe Terra, a unidade ecológica,
a interdependência de todas as espécies e o direito de se estar livre da degradação
ecológica.
2) A justiça ambiental exige que as políticas públicas tenham por base o respeito
mútuo e a justiça para todos os povos, libertos de toda forma de discriminação
ou preconceito.
3) A justiça ambiental reclama o direito a usos éticos, equilibrados e responsáveis
do solo e dos recursos naturais renováveis em prol de um planeta sustentável
para os seres humanos e demais formas de vida.
4) A justiça ambiental clama pela proteção universal contra os testes nucleares,
contra a produção e descarte dos venenos e rejeitos tóxicos e perigosos que
ameaça o direito fundamental ao ar, à terra, à água e alimentos limpos.
5) A justiça ambiental afirma o direito fundamental à autodeterminação política,
econômica, cultural e ambiental de todos os povos.
6) A justiça ambiental exige o encerramento da produção de todas as toxinas,
resíduos perigosos e materiais radioativos, e que todos os produtores atuais e do
passado sejam severamente responsabilizados a prestar contas aos povos para
desintoxicação e sobre o conteúdo no momento da produção.
7) A justiça ambiental exige o direito de participar em grau de igualdade em
todos os níveis decisórios, incluindo avaliação, planejamento, implemento,
execução e análise de necessidades.
8) A justiça ambiental afirma o direito de todos os trabalhadores a um ambiente
de trabalho seguro e saudável, sem que sejam forçados a escolher entre um
trabalho de risco e o desemprego. Afirma também o direito daqueles que
trabalham em casa de estar livres dos perigos ambientais.
9) A justiça ambiental protege o direito das vítimas de injustiça ambiental de
receber compensação e reparação integrais por danos, bem como o direito à
qualidade nos serviços de saúde.
Fonte: Washington Office of Environmental Justice, citado por Web Resources for
Environmental Justice Activists. Versão original em inglês disponível em: <http://
www.ejnet.org/ej/principles.html>. Acesso em: 12 jun. 2011. Tradução livre.
203
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