ZORZAL, Marcos F. - Criatividade e Ensino - Uma Abordagem Histórico-Cultural (Dissertação de Mestrado)
ZORZAL, Marcos F. - Criatividade e Ensino - Uma Abordagem Histórico-Cultural (Dissertação de Mestrado)
ZORZAL, Marcos F. - Criatividade e Ensino - Uma Abordagem Histórico-Cultural (Dissertação de Mestrado)
Criatividade e ensino:
uma abordagem histórico-cultural
2
Resumo
Sumário
Introdução ................................................................................................................................ 1
Capítulo I: Senso comum, alienação e vida cotidiana .......................................................... 12
1.Senso comum e apreensão prático-sensível da realidade ........................................................ 16
2. Consciência, trabalho e alienação .......................................................................................... 22
3. Vida cotidiana ....................................................................................................................... 34
3.1. Vida cotidiana e gênero humano ........................................................................................ 34
3.2. Vida cotidiana e preconceitos ............................................................................................. 45
Capítulo II: Criatividade: aspectos conceituais ................................................................... 51
1. Conceitos e estudos tradicionais sobre criatividade ............................................................... 51
2. Sobre a ontologia humano-genérica da atividade criativa ..................................................... 65
3. Processos de criação e desenvolvimento humano.................................................................. 69
Capítulo III: Criatividade e Ensino ....................................................................................... 78
1. O papel do ensino formal no processo de apropriação de conhecimentos humano-
genéricos ................................................................................................................................... 80
2. Pensamento cotidiano e não-cotidiano e a especificidade do ensino formal .......................... 89
3. Indivíduos para-si ou cidadãos potencialmente transformadores de realidades e
contribuintes à consolidação do gênero humano ....................................................................... 95
4. Relações entre Ensino e Desenvolvimento: as contribuições de L. S. Vigotski e a
psicologia Histórico-Cultural .................................................................................................... 99
Considerações Finais
...............................................................................................................................................
120
Bibliografia
...............................................................................................................................................
128
―Todo inventor, por genial que seja, é sempre produto de sua época e de seu
ambiente. Sua obra criadora partirá dos níveis alcançados antes dele e se apoiará
nas possibilidades também existentes fora dele. Por isso, observamos uma estrita
seqüência no desenvolvimento histórico da ciência e da técnica. Nenhum
descobrimento ou invenção científica aparece antes que se criem as condições
materiais e psicológicas necessárias para seu surgimento. A obra criadora constitui
um processo histórico contínuo, em que cada nova forma se apóia nas precedentes.‖
2
faz surgir algo que ainda não existe, isso é criatividade‖ ou ―...se uma coisa é
diferente de tudo o que já existe, aí existe criatividade ‖ (com ênfase nas
características do produto); ―...criativa é aquela pessoa que é mais sensível e
deixa fluir alguma coisa nova‖ (ênfase nas características do sujeito).
De modo complementar, quando requisitados a explicar o que
fosse a criatividade e sua natureza (suas origens, o que a determina ou a
torna possível), parte considerável dos professores se lançava a explicações
baseadas em conceitos em geral ambientalistas (como resultado de
interações e estimulações advindas do meio, a exemplo das condições sócio-
econômicas, relacionais e culturais presentes ao desenvolvimento de cada
indivíduo), inatistas (criatividade relacionada a características genéticas)
ou, ainda, metafísicos (tomando-a como dom, dádiva ou graça supranatural).
Manifestações de mesma natureza puderam ser notadas, ainda,
em oito contatos que mantivemos com professores de uma escola estadual da
cidade de São Carlos, realizadas no decorrer deste trabalho, com o propósito
de levantarmos suas representações a respeito do tema. Ademais, embora a
maioria das opiniões admitisse um certo potencial criativo dado a todos os
seres humanos, as pessoas realmente criativas seriam indivíduos melhor
dotados de capacidades determinadas por relações cumulativas ou
exclusivas entre aspectos ambientais e inatos (sem menção a determinações
supranaturais). Enfim, as definições de criatividade estiveram sempre
relacionadas ao oferecimento de produtos inovadores ou originais, em geral
atribuídos a indivíduos que se destacam dos demais ou são, simplesmente,
considerados pouco comuns.
Partindo da premissa de ser a faculdade criativa uma
característica inerente e ineliminável ao gênero humano, compreendemos
por criatividade a capacidade humana para, a partir do confronto e
conjugação de conhecimentos adquiridos, elaborar e reelaborar sua própria
realidade (objetiva e subjetiva, inextricavelmente). Esta concepção de
criatividade deriva, portanto, da concepção de trabalho humano que
preconiza o mesmo enquanto atividade transformadora vital humana, e o
2
quê fundamenta toda a história do próprio desenvolvimento humano.
Em sendo a criatividade, portanto, uma faculdade
ontologicamente inerente ao gênero humano e, como veremos, fundamental
ao seu constante processo de consolidação, devemos supor que tal atributo
encontre-se de fato presente em todos os indivíduos do gênero, conquanto
apresente-se sob formas diversas.
Essa mesma premissa é, entretanto, contrariada na medida em
que desconheçamos ou desconsideramos a amplitude do caráter criativo que
fundamenta e caracteriza a atividade propriamente humana, sobretudo
devido a juízos de valor quanto às características dos produtos que nos são
oferecidos pelos indivíduos humanos em geral. Deste modo, a natureza
eminentemente criativa do gênero humano é subitamente confrontada ou
suprimida pelo valor socialmente atribuído, contextualmente, a criações
particularizadas, específicas. Seria a criatividade dada somente a alguns
indivíduos determinados, independentemente de quais sejam estas
determinações — se biológicas e hereditárias, se social ou ambientalmente
adquiridas, ou ainda por determinações sobrenaturais? Seria um Mozart,
um Picasso ou um Eintein, enquanto exemplos sui generis do potencial
humano para criar, também protótipos do que seja a atividade criativa?
A própria contradição, manifestamente presente às falas dos
professores, entre um dado potencial humano para a criatividade, e uma
certa condição restritiva para sua manifestação concreta entre os indivíduos,
remeteu-nos a considerações sobre como a questão da criatividade vem
sendo tratada, tanto em termos do senso comum como em termos dos
principais estudos e conceitos existentes. Entendemos que este tratamento
tem como principal característica a parcialidade, que se traduz em uma
compreensão da atividade criativa baseada eminentemente em seus
elementos empíricos e fenomênicos. Esta parcialidade, embora não negue a
criatividade enquanto potencialidade, tende a restringir a amplitude da
capacidade criativa a produções determinadas e, logo, a indivíduos
particulares, supostamente também determinados. Entretanto, como
3
sustentamos, essa compreensão restritiva do potencial criativo a que o senso
comum e, como veremos, também os estudos mais célebres sobre o assunto,
mantêm-se vinculados, não corresponde ao amplo significado e concretas
implicações do potencial humano para criar, faculdade essa que, segundo
entendemos, transcende muitíssimo os estreitos limites do âmbito de
individualidades particularizadas, assim como de produções consideradas,
contextualmente, sui generis.
Por conseguinte, as considerações manifestas pelos
participantes conduziram-nos, também, a questionar a procedência de se
buscar conceituar a criatividade humana a partir, em geral, dos elementos
imediatamente presentes ao fenômeno criativo, ou seja, tomando-se por
referência as características do indivíduo que cria (quem nos oferece algo
considerado criativo), os processos envolvidos no ato criativo (como um
indivíduo chega a oferecer determinadas produções consideradas criativas)
ou, ainda, as características do produto oferecido. Cremos, enfim, que as
próprias concepções de criatividade mais difundidas e em geral aceitas, são
histórico-culturalmente determinadas. Logo, são antes de mais nada o fruto
de crenças, valores e interesses contextualmente definidos e, por este motivo
não definitivos e portanto, passíveis de serem historicamente
reconsiderados. Mas não nos empenhamos em uma tal tarefa por mero
capricho ou proselitismo. Trata-se de, em meio às opiniões existentes,
julgarmos imperativo manifestarmos também a nossa, no propósito maior de
nos atermos à realidade cientificamente concreta dos fenômenos humanos
que nos lançamos a investigar. Neste processo, deparâmo-nos, pois, com
questões graves sobre como compreendemos e conceituamos determinados
processos. É suficiente que os processos criativos sejam investigados tão-
somente a partir de seu valor utilidade em determinado contexto de
produção? Consideramos que os aspectos funcionais e os produtos
relacionados ao fenômeno criativo, per se, não possibilitam uma adequada
apreensão, em toda a sua extensão e implicações possíveis, do que venha a
ser a criatividade humana. No entanto, tais elementos (componentes, mas
4
transitórios e parciais) têm subsidiado, sob a forma de ultrageneralizações, a
compreensão da faculdade criativa como um todo, tanto em termos leigos
como também conceituais.
Partindo, pois, da premissa que apresentamos, parece-nos
fundamental que além de quem produz, como produz e o quê produz, nos
lancemos também à questão preliminar e necessária ―o que é criatividade‖ e,
por conseguinte, por que a criatividade se tornou um atributo tão próprio ao
gênero humano e quais as reais implicações deste fato para o mesmo . Isto
equivale, portanto, a que levantamos a questão ―por que se produz?‖.
Por fim, ao nos pautarmos em uma compreensão apenas
fenomênica e particularizada da atividade criativa, tendemos a
preconceituá-la como também dada de modo particular a determinados
indivíduos em detrimento de outros, por sua vez considerados menos
criativos, ou mesmo, não-criativos.
Consideramos aqui que os conceitos e representações que
possuímos acerca da realidade orientam nossas percepções e ações
concretas, e, se assim é, devemos também supor que uma compreensão
parcial ou mesmo equivocada acerca de determinado fenômeno possa
também implicar em conseqüências por vezes indesejáveis ao mundo
humano e natural do qual fazemos parte. Ainda que em meio a uma enorme
diversidade de individualidades e condições de manifestação, parece-nos
consensual pretendermos que a igualdade de condições, direitos e deveres
tornem-se premissas básicas a um mundo mais justo e digno aos integrantes
do gênero humano (o que a humanidade tem, historicamente, aspirado para
si através das prerrogativas democráticas, por exemplo).
Mas estaríamos nós pretendendo suprimir, através de preceitos
idealistas, diferenças concretamente existentes entre indivíduos
historicamente singulares? Absolutamente, não. Partimos do pressuposto de
que, por ser a singularidade humana inalienável, esta inalienabilidade deva
sobrepujar quaisquer discriminações pretensamente justificáveis a partir da
própria realidade das diferenças individuais. Portanto, se por um lado
5
indivíduos particulares fazem uso singular de suas faculdades criativas, por
outro a criatividade é ontologicamente inerente a todos os indivíduos do
gênero humano, independentemente de suas singularidades. Do mesmo
modo, defendemos que o que seja historicamente contextual, e, portanto,
parcial, não seja suficiente para determinar uma concepção mais ampla e
genérica da própria atividade criativa. Devemos, sim, buscar fundamentar
tal conceito na historicidade mais ampla e multideterminada que,
concretamente, fundamenta todos as processos e conhecimentos humanos.
O problema a ser aqui confrontado está diretamente
relacionado, portanto, a uma compreensão ainda restritiva da condição
ontologicamente criativa do gênero humano, o quê, a nosso ver, se apresenta
como uma questão de especial importância e interesse para nossas
comunidades e, sobremaneira, ao meio educacional. Isto porque uma tal
compreensão poderá implicar em discriminações infundadas em sala-de-
aula, bem como em toda a vida cotidiana de indivíduos que, esperamos,
compreendam que a existência da diferença não justifica a crença numa
suposta não-criatividade ou inferioridade naturalmente dada a indivíduos
ou grupos de indivíduos. A diversidade, ao contrário do que ocorre aos outros
animais, faz parte da riqueza de possibilidades que caracteriza,
diferentemente, o próprio gênero humano.
Ora, em se tratando do ensino formal e seus constituintes
diretos (educadores e alunos) esta preocupação é ainda mais relevante por
tratar-se do lugar onde, por excelência, as novas gerações são conduzidas a
se apropriarem dos principais conhecimentos legados por toda a
humanidade para sua própria sobrevivência, seja pela manutenção, seja
pela superação do que esta humanidade tenha logrado alcançar no decorrer
de toda a sua história. Estes conhecimentos serão tão determinantes para o
desenvolvimento dos indivíduos envolvidos quanto o serão os aspectos
comunicacionais e afetivos do processo. Em sendo o professor o principal
mediador deste processo, torna-se imprescindível que este saiba ao máximo
sobre as possíveis implicações de suas crenças e atitudes em sala-de-aula
6
sobre o desenvolvimento saudável1 de seus alunos. Em outros termos, sobre
a imprescindibilidade de que venha a estabelecer uma relação crítico-
reflexiva não só com os conteúdos que ministra, mas com os próprios
princípios que norteiam sua ação. Este requisito é ainda mais justificável se
considerarmos, por fim, que os saberes com os quais o professor lida são,
essencialmente, científicos (historicamente sistematizados). Portanto,
embora esses saberes devam ter em conta a realidade cotidiana dos
indivíduos envolvidos no processo de aprendizagem, não podem ser
orientados pelo pensamento não sistematizado que ostensivamente flui da
imediaticidade sensível da mesma realidade cotidiana.
Se à primeira vista possa nos parecer, portanto, pouco
relevante que um tal tema deva fazer parte dos domínios epistemológicos de
educadores — sobretudo quando os saberes que em geral se espera que os
professores dominem, limitem-se tão-somente ao âmbito dos conteúdos de
suas disciplinas — convém, para os nossos propósitos, não nos contentar
com uma compreensão também imediata e superficial sobre qual seja o
âmbito real das competências destes educadores (ou seja, o papel do
professor em relação ao papel do ensino). Por um lado porque, como
procuramos demonstrar, a atividade criativa humana embasa e permeia o
próprio sentido da apropriação de conhecimentos pelos indivíduos humanos,
visando-se elaborá-los e reelaborá-los cotidianamente, conforme as
necessidades e exigências de nossas sociedades e da natureza
essencialmente especulativa e transformadora do gênero humano, aqui
defendida. Por outro porque, ao tomar parte da viabilização de
conhecimentos historicamente produzidos e sistematizados, os educadores
concorrem, concretamente, para que outros seres humanos sejam inseridos
na própria genericidade humana, apropriando-se de tais conhecimentos e
7
participando, através de suas contribuições singulares, da superação das
dificuldades e necessidades existentes, que desafiam incessantemente o
processo de consolidação do gênero humano, que deverá visar, antes de tudo,
a integridade e desenvolvimento saudável de todo ser humano.
Entretanto, como percebemos, o vínculo existente entre
criatividade, ensino e consolidação do gênero humano não é imediatamente
perceptível. Assim, torna-se comum que o tema criatividade humana suscite
interesses em geral relacionados a busca de estratégias para a ampliação do
chamado potencial criativo, sem que se considere, de modo adequado, o que
a criatividade represente, de fato, em termos do desenvolvimento humano
particular e genérico. Isto é ilustrado pela observação de que, embora a
maioria dos professores participantes das atividades citadas manifestasse
haver procurado os cursos motivada por uma temática que julgava, ainda
que intuitivamente, de grande importância para o processo educativo, esta
busca baseou-se, acima de tudo, numa relação pragmática para com os
elementos constitutivos da criatividade, em si considerados: ou seja, além da
atração por um tema intrigante e ainda obscuro, os professores foram
motivados, sobretudo, pela busca por técnicas que tornassem mais atrativas
e eficientes suas aulas e permitissem alcançar um melhor nível de
aproveitamento por parte de seus alunos.
Evidentemente, não há, a princípio, nenhuma objeção quanto a
objetivos como estes, que em si mesmos guardam importâncias. A questão é
de outra natureza e diz respeito aos preceitos que orientam o lidar com um
atributo que não pode ser reduzido simplesmente a um determinado
quantum de potencial criativo, ou que se restrinja ao que possa ser
estimulado ou ampliado mediante certas estratégias. O risco de um tal
pensamento está na crença que o orienta, de que a criatividade seja algo que
possa ser abstraído do indivíduo humano, podendo ou não vir a se
manifestar. A esta concepção objetamos que o gênero humano é, por
definição, criativo. Ou seja, só há uma natureza que chamamos humana
porque essa natureza é, em essência, criativa.
8
A constatação, portanto, da parcialidade histórica com que o
tema vem sendo tradicionalmente tratado pelas principais áreas de estudos
e entendido em termos do senso comum, e as possíveis conseqüências desta
visão parcial e imediata sobre o processo educativo, moveu-nos a tecer
considerações mais profundas, a partir de elementos da psicologia do
desenvolvimento, da filosofia e da sociologia, sobre a pertinência do domínio
epistemológico, por parte de educadores, sobre o tema criatividade humana,
no âmbito do ensino formal. Este estudo tem, portanto, por objetivo, propor
uma leitura que contribua para a superação de compreensões parcializadas
acerca da faculdade criativa humana, dirigida sobretudo àqueles envolvidos
com o ensino formal. Partindo da premissa de ser a atividade criativa
ontologicamente inerente ao gênero humano, pretendemos demonstrar sua
inextricabilidade do próprio processo de desenvolvimento humano e, por
conseqüência, também do ensino, principal meio de apropriação dos
conhecimentos socialmente produzidos e sistematizados. Imbricados, estes
elementos apresentam-se, como veremos, enquanto essenciais ao processo de
consolidação do próprio gênero humano — essencialmente explorador de
novas possibilidades e potencialmente transformador de realidades.
Mediante tal objetivo, estruturamos esse trabalho em alguns
tópicos imprescindíveis aos nossos propósitos. No capítulo I, em que
tratamos do Senso comum, alienação e vida cotidiana, tecemos
considerações sobre a apreensão prático-sensível da realidade pela
consciência humana, principal fundamento e característica do pensamento
comum. Dito de outro modo, se dadas compreensões acerca da criatividade
fazem-se presentes ao ideário de alguns educadores, convém que procuremos
desvendar como nós, enquanto seres humanos, nos relacionamos com a
realidade que nos cerca, dela formando idéias e representações. Enfim, como
se dá nossa apreensão da realidade e quais suas principais características?
Quais as relações deste processo com a formação de nossas representações
sobre os fenômenos que nos envolvem? O que entender por senso comum?
Quais suas relações com o fenômeno humano da alienação? Pretendemos,
9
neste tópico, caracterizar o âmbito dos saberes imediatos e espontâneos
humanos (dimensão da vida cotidiana), para já anunciarmos o âmbito dos
saberes mediatos que lhe é complementar (dimensão da vida não-cotidiana).
Nos remetemos, ainda, à relação possível entre o pensamento comum,
caracteristicamente presente à esfera da vida cotidiana, e os preconceitos,
aqui compreendidos enquanto juízos ultrageneralizados que não encontram
necessária fundamentação na realidade concreta, e que julgamos necessário
confrontar mediante a possibilidade de que esta categoria do pensamento
humano subsidie crenças infundadas, sobretudo no meio escolar.
No capítulo II, Aspectos conceituais da criatividade humana,
abordamos os principais conceitos e estudos tradicionais existentes sobre
criatividade. Como a criatividade tem sido compreendida e estudada ao
longo da história? Quais concepções de homem e de mundo orientam tais
compreensões e estudos? Sustentamos que, se por um lado estes estudos e
conceitos tornaram infundadas muitas das crenças equivocadas existentes
sobre criatividade, por outro, devido ao fato de pautarem-se numa
compreensão essencialmente a-histórica das atividades e atributos do
gênero e dos indivíduos humanos, estes estudos vêm contribuindo também
para que a criatividade seja tratada e compreendida em função tão-somente
das características particulares de indivíduos determinados. Em outros
termos, embora estes estudos representem a superação de inúmeros
aspectos presentes ao senso comum, mantêm-se eles próprios cristalizados
em considerações também parciais sobre o fenômeno criativo, sobretudo por
tratarem do tema e suas manifestações tendo por principal objetivo a
identificação de indivíduos denominados ―criativos‖, além das características
e condições das produções entendidas e difundidas como criativas. Estes
estudos, eminentemente pragmáticos, têm contribuído, ao nosso ver, para
uma compreensão também parcial dos processos criativos e, por decorrência,
mistificada acerca do tema. Neste capítulo anunciamos, por fim, nossa
concepção de humanidade enquanto gênero que se produz, se reproduz e se
supera historicamente através da transformação objetiva de sua realidade.
10
Expomos, aqui, de modo mais detido, os pressupostos que julgamos
necessários a uma compreensão que designamos ontológica sobre a
criatividade humana. Tratamos da questão da atividade transformadora
enquanto fundamento do trabalho e, por decorrência, do processo de
objetivação e apropriação para a conformação de um gênero único à
natureza planetária, capaz de projetar e modificar realidades.
No capítulo III, Criatividade e ensino, tratamos da relação
intrínseca existente entre o atributo da criatividade, os processos criativos e
os processos de produção e apropriação de conhecimentos historicamente
sistematizados. Abordamos como a socialização de saberes, sobretudo pelo
ensino formal, e a formação de cidadãos potencialmente transformadores de
realidades e contribuintes à consolidação do gênero humano, estão
relacionados. Por outro lado, abordamos também as relações existentes
entre o âmbito dos conhecimentos cotidianos, caracteristicamente
espontâneos e irrefletidos, e o âmbito dos conhecimentos não-cotidianos, que
conformam os saberes historicamente sistematizados pelo gênero humano.
Destas considerações procuraremos traçar o papel do ensino formal
necessário às crescentes demandas de cidadanização e transformações pelas
quais reclamam nossas sociedades. Encerramos o capítulo com algumas
elucidações, proporcionadas pela escola histórico-cultural, que teve em L. S.
Vigotski seu principal expoente, acerca do papel fundamental do ensino
sistematizado sobre o próprio desenvolvimento humano.
Por fim, em nossas Considerações Finais retomamos o ponto de
partida de todo o nosso raciocínio, e estabelecemos o contraponto dialético
relacionado à transcendência da compreensão parcializada do tema que
procuramos confrontar e, dentro de certos limites, superar em nossas
reflexões. Além disso, dedicamo-nos à tomada de algumas questões finais,
que pelos limites deste trabalho não puderam ser adequadamente tratadas,
mas sobre as quais lançamos breves considerações, sobretudo devido às suas
relevâncias para o tema em questão e seus estudos futuros.
11
Capítulo I
Senso comum, alienação e vida cotidiana
12
respeito, sobre as características do indivíduo altamente criativo e sobre
a forma como surge o produto criativo. Uma dessas idéias preconcebidas
é a crença de que a criatividade é um dom divino, que favorece apenas a
um grupo seleto de sujeitos, nada se podendo fazer no sentido de
incrementá-lo no indivíduo.2
2 Cf. ALENCAR, Eunice M.L.S. Psicologia da Criatividade. Porto Alegre, Artes Médicas,
1986, p. 12.
3 Cf. ALENCAR, Eunice M.L.S. Psicologia da Criatividade, op. cit. p. 12.
4 Cf. ALENCAR, Eunice M.L.S. Psicologia da Criatividade, op. cit. p.13.
13
Deste modo, condições como a preparação do indivíduo, sua
disciplina, dedicação, esforço consciente, trabalho prolongado e
conhecimento amplo de uma área do saber, passaram a ser considerados
pré-requisitos para a produção criativa, contrariamente à noção comum e
corrente de sua ―inexplicável gratuidade‖.
Não nos deteremos, aqui, nos aspectos que tomamos como
questionáveis às considerações desta e de outros autores sobre o assunto. A
isto reservamos espaço próprio no capítulo seguinte. Importa-nos, sim,
corroborar o fato que constamos em nossos contatos com professores, ou seja,
a presença relativamente comum de idéias ou representações que
consideramos parciais ou mesmo infundadas sobre o tema.
Antes de mais nada, percebemos que uma característica muito
presente a tais considerações ou representações refere-se a uma apreensão
imediata do fenômeno criativo, por sua vez intimamente relacionada a uma
apreensão prático-sensível da própria realidade. Já manifestamos
considerarmos insuficiente supor que a faculdade criativa possa ser
adequadamente compreendida tão-somente a partir de seus elementos
imediatamente observáveis. Isto porque se por um lado estes constituintes
nos permitem caracterizar ou descrever o fenômeno, não nos parecem
suficientes para explicar a faculdade enquanto tal ou, em outros termos,
compreender a natureza essencial da faculdade criativa. Assim é que, ao nos
depararmos com a questão ―o que é criatividade‖, resta-nos, caso nos
detenhamos em seus aspectos imediatamente constitutivos, recorrer a
abstrações para explicar-lhe tal natureza — o que resulta na busca por
explicações que têm, por característica principal, a unilateralidade baseada
em preceitos inatistas, ambientalistas ou mesmo metafísicos — o que, por
sua vez, concorre para crenças como a de que sua manifestação seja dada
com maior ou menor exclusividade a determinados indivíduos, inatamente
mais aptos, ambientalmente determinados ou divinamente agraciados. A
apreensão dessa natureza concreta, que segundo nossos pressupostos,
remonta a toda a história do desenvolvimento humano, implica numa
14
compreensão diversa acerca da faculdade criativa, quanto a todas as suas
propriedades e implicações possíveis. Implica, sobretudo, em que
transcendamos os aspectos apenas fenomênicos que já mencionamos.
É com o propósito de ultrapassarmos os limites do que temos
chamado de uma apreensão imediata e parcial da faculdade criativa, que
iniciamos nossas considerações a partir das próprias características do que
denominados uma leitura eminentemente prático-sensível acerca da
realidade e o senso comum que com base nela geralmente se conforma.
Julgamos que uma reflexão detida sobre a forma como nos relacionamos com
a realidade (a começar por suas manifestações mais imediatas) seja,
portanto, o primeiro passo na direção do que propomos, neste trabalho,
enquanto uma releitura das compreensões mais comuns acerca do tema . É
sobretudo com este objetivo que apresentamos o primeiro tópico deste
capítulo.
Entretanto, enquanto ser que se relaciona ativamente com os
aspectos imediatos e mediatos da realidade, mas sem necessariamente
apreender o núcleo essencial dessa realidade, pode o homem manter-se
indefinidamente, e sob graus variados, à margem da mesma, pois que dela
não se vê enquanto sujeito ativo. Isto significa, enfim, não se perceber
enquanto agente construtor da própria realidade, à ela submetendo-se
enquanto naturalmente dada. A este fenômeno estritamente humano,
chamamos alienação e a ela dedicamos o tópico seguinte. Por ser a
alienação, entretanto, fenômeno humano estreitamente vinculado à relação
que o homem mantém com a realidade — relação baseada na ação do
homem sobre os elementos naturais e humanos que o cercam —, deparâmo-
nos, aqui, com a necessidade de compreendermos de forma adequada a
atividade humana por excelência, a que chamamos trabalho. Isto porque,
como veremos, a própria gênese da consciência humana (logo, o que sustém
uma relação reflexiva com a realidade), assenta-se na atividade do trabalho.
Por fim, o terceiro tópico deste capítulo trata de uma outra
questão, não menos fundamental a todo o nosso raciocínio, referente à
15
compreensão da estrutura da vida cotidiana proposta por Agnes Heller.
Juntamente com os aspectos já citados, julgamos que este tema e suas
categorias nos proporcionem elementos importantes para analisarmos com a
devida profundidade as dimensões cotidianas e não-cotidianas do
pensamento humano que, complementarmente, conformam a própria
relação ativa do homem com suas objetivações (suas produções). Com base
em tais postulados, pretendemos explicitar as principais características que
envolvem as relações existentes entre o âmbito eminentemente
ultrageneralizador e pragmático da cotidianidade, e o âmbito das atividades
e conhecimentos refletidos e sistematizados de forma não-cotidiana. Faces
de uma mesma moeda, ou seja, a própria vida humana como um todo, essas
categorias, conjugadas às anteriores, constituem um quadro conceitual
muito elucidador e crítico do lugar e papel do homem frente aos produtos de
sua ação e, por conseguinte, de seu próprio processo de humanização ou,
como também nos referimos, processo de genericização. Portanto, remetêmo-
nos também a uma certa concepção de gênero humano, a qual
necessariamente abordamos no texto em questão.
Por fim, não poderíamos deixar de nos remeter aos riscos
indesejáveis a que o espontaneísmo e as ultrageneralizações do pensamento
cotidiano ostensivamente concorrem ou mesmo conduzem. Por este motivo,
reservamos o último item do terceiro tópico, sobre esta sociologia do
cotidiano, para algumas considerações sobre a forma de representações mais
comuns e importantes produzidas e veiculadas no âmbito da cotidianidade,
comumente designadas como preconceitos, cujas possíveis conseqüências
negativas, certamente, pretendemos salientar e confrontar no presente
trabalho.
16
Sendo assim, enquanto dimensão primária da assimilação e difusão de
conhecimentos acerca da realidade, o senso comum e a apreensão prático-
sensível do mundo fenomênico que lhe é característica, apresentam-se como
de especial importância para nossas considerações.
Neste estudo, nosso conceito de senso comum coincide com o
manifestado por GRAMSCI, que em suas ―Notas críticas sobre uma
tentativa de ‗Ensaio Popular‘ de Sociologia‖, reporta-se ao mesmo como...
5 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. 10. ed., Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 143.
6 Cf. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, op. cit., p. 144.
17
falso conhecimento. E esclarece:
18
abordagem do assunto, abre seu livro anunciando que:
19
nossos)
20
em tal fenômeno; e, logo, compreender o fenômeno é atingir a essência. 15
Quando falamos em pseudoconcreticidade, devemos ter em
conta que, nela, o aspecto fenomênico é tomado enquanto a própria essência,
desaparecendo, portanto, a diferença existente entre esta e o fenômeno.
Atingir o conceito da coisa implica em compreender a coisa e esta
compreensão significa, por sua vez, conhecer-lhe a estrutura, o que só se
torna possível pela decomposição da mesma. A constatação de que a essência
não se manifesta diretamente e que o fundamento oculto das coisas deve ser
descoberto remete-nos, por fim, à atividade e objetivos que são peculiares à
ciência e à filosofia. Cumpre, fundamentalmente à filosofia, segundo KOSIK,
o papel histórico de descoberta da estrutura da coisa e a coisa em si.
No que se refere à contribuição específica de uma concepção
dialética para a compreensão da realidade concreta, para KOSIK, ―conceito‖
e ―abstração‖ têm o significado de ―método que decompõe o todo para poder
reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa e, portanto, compreender a
coisa.‖16 O papel da dialética é, portanto, o de um pensamento crítico que se
propõe a compreender a ―coisa em si‖, questionando-se sistematicamente
sobre como é possível chegar à compreensão da realidade. Essa compreensão
não tem, contudo, um caráter contemplativo, implicando, antes, numa
posição de método revolucionário de transformação da realidade, pois que,
―para que o mundo possa ser explicado ‗criticamente‘,‖ nos diz KOSIK,
―cumpre que a explicação mesma se coloque no terreno da ‗praxis‘
revolucionária.‖17 Em suas palavras...
21
produtor desta última realidade.18
22
2. Consciência, trabalho e alienação
23
(necessariamente social, materialista, historicista e dialética). Portanto,
longe de ser um joguete de forças da natureza (ambiental-adaptativas,
genéticas etc.), o homem é simultaneamente resultante e agente de suas
relações ativas com a natureza e consigo próprio.
Os estudos antropomórficos sócio-historicistas indicam com
segurança uma estreita relação entre o processo de hominização — aqui
entendido como conjunto de condições antropomórficas da espécie que
possibilitaram o estabelecimento do gênero humano —, do qual decorre a
consciência reflexiva, e o advento do trabalho. MARX referiu-se do seguinte
modo a esta condição antropomórfica:
22MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). Tradução: José
Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 7a Ed., S. Paulo: Hucitec, 1989, p. 27.
24
naturais de sua corporalidade e que, por meio deste movimento, ao modificar
a ―Natureza‖, o homem modifica também a sua própria ―natureza‖ (a si
mesmo), MARX nos chama a atenção para a relação dialética havida entre a
atividade humana de transformação da natureza e seus resultados sobre o
próprio processo de hominização.
Naturalmente, haveremos de considerar que, ao nos referirmos
ao processo de trabalho e ao homem, referimo-nos, necessariamente, ao
caráter ineliminavelmente social desta relação. Ou seja, o trabalho só é
possível devido à condição humano-social que o engendra. Nas palavras de
LEONTIEV,
23 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Trad.: Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. 3a Ed., S. Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 142.
24 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 74.
25 LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo, op. cit., p. 76.
25
pode envolver ações que a complexificam e até contrariam, imediatamente, a
sua finalidade última (a satisfação da fome). É o caso, por exemplo, do
batedor primitivo da atividade de caça que, surpreendentemente, espanta a
caça ao invés de, a exemplo de outros animais, lançar-se sobre a mesma.
Verifica-se que a ação em questão só se torna possível diante de um processo
coletivo, que envolve a presença de associações entre ações e a divisão da
atividade com a conservação do significado global da atividade em questão.
O ―religamento‖ do resultado da ação de espantar a caça ao seu fim
(alimentar-se) é sua relação com a ação dos demais membros do grupo de
caçadores. Isto nos permite concluir, uma vez mais, que o que se interpõe
entre a ação e o objeto, para um determinado indivíduo, é, nada mais, nada
menos, que a consciência quanto à ação de outros homens na mesma
atividade. Isso confere à ligação entre motivo e objeto da ação humana um
caráter objetivamente social.26
Podemos retomar agora a questão do uso de instrumentos de
uma outra forma. Como dissemos, todo trabalho é mediado. ―O meio de
trabalho‖ nos diz MARX, ―é uma coisa ou um complexo de coisas que o
trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto de trabalho e que lhe serve
como condutor de sua atividade sobre esse objeto.‖ 27 O instrumento
caracteriza e realiza, necessariamente, ações de trabalho. A fabricação e o
uso de instrumentos só é possível, portanto, na medida em que há
consciência quanto ao fim da ação do trabalho. Desta forma, o uso acessório
de determinados objetos em certas atividades animais nada têm de
instrumental, uma vez que esses objetos não incorporam, em si, a
operacionalização de atividades voltadas a um fim. Segundo LEONTIEV,
26
considerada. Razão porque os animais não fabricam instrumentos e não
os conservam. O instrumento do homem, em contrapartida, é fabricado e
é procurado, é conservado pelo homem e ele próprio conserva o meio de
ação que realiza.28
27
da realidade, no homem. Esta forma é a linguagem. Linguagem que,
segundo Marx, é a ―consciência prática‖ dos homens. Razão por que, como
salienta LEONTIEV, a consciência é inseparável da linguagem. Como a
consciência humana, a linguagem só aparece no processo de trabalho e ao
mesmo tempo em que ele. Ela, como a palavra, surge da necessidade de os
homens comunicarem algo uns aos outros.32
Assim, os movimentos do trabalho tiveram uma dupla função:
uma, imediatamente produtiva, e outra, comunicativa. Posteriormente essas
funções se separaram e a função comunicativa transforma-se em gesto. O
gesto nada mais é que um movimento, uma ação separada de seu resultado.
Os gestos, acompanhados de sonoridade, transformam-se em linguagem
sonora e, por fim, em palavras. Uma vez que a palavra signifique, no
processo de trabalho, um dado objeto, esta distingue-o e generaliza-o para a
consciência individual, ou seja, representa na consciência individual algo
que é, objetivamente, uma generalização social.
Como vimos, o animal mantém uma relação prática com a
realidade objetiva. A principal característica da atividade animal é, pois, o
vínculo direto entre sua ação e a necessidade que a move e, portanto, a
coincidência entre o objeto e o motivo de sua atividade. Esta relação direta e
limitadora não se aplica, entretanto, ao homem. As atividades humanas são
tão motivadas por necessidades quanto as dos demais animais. Entretanto,
a divisão de tais atividades em ações é a primeira grande conseqüência (ao
mesmo tempo em que consolidação) da condição de não-coincidência que se
opera no psiquismo humano entre sujeito e objeto, em que o homem passa a
refletir sobre a realidade objetiva enquanto algo distinto de si mesmo. Há,
por decorrência, uma nova possibilidade de não-coincidência, ou seja, entre o
objetivo da ação do homem e o motivo que o conduz à mesma. Aliás, a
decomposição da atividade em ações pressupõe que os sujeito possa refletir
conscientemente sobre a relação existente entre o motivo da ação objetiva
que realiza, e a ligação desta com o fim da atividade global em que a ação se
28
insere. É, pois condição sine qua non para a divisão de uma atividade em
etapas, a possibilidade de projeção, no devir, dos resultados possíveis de
uma ação.
Evidentemente, esta não-coincidência se traduz, a princípio, em
ganhos para o ser social do homem, que logra, agora, através de etapas
definidas, tornar exeqüíveis atividades que antes lhe seriam impossíveis.
Basta que citemos a descoberta da produção do fogo, que só pôde ser obtido
artificialmente caso o sujeito que o objetivou dominasse as etapas básicas
necessárias à sua obtenção (como, por exemplo, apanhar gravetos, produzir
faíscas através do atrito entre pedras sobre os mesmos, alimentar a chama
com mais combustível etc.). Isto aumenta e complexifica, como observamos,
incalculavelmente o poder de ação transformadora dos homens. Em última
análise, isto representa um aumento das condições de humanização da
espécie, traduzidas sob a forma de conquistas de garantias de sobrevivência,
ampliação de conhecimentos, maior aproveitamento da natureza,
desenvolvimento e aprimoramento de inúmeras outras capacidades
humanas etc.
A teleologia que distingue a atividade dos homens da dos
demais animais é, pois, necessariamente, a ação transformadora consciente
da instrumentalidade de outras ações e suas conseqüências possíveis, seja
no âmbito de um mesmo indivíduo e os recursos socialmente elaborados dos
quais se apropriou, seja na conjugação à ação de outros indivíduos, dentro de
uma atividade dotada de significado social. A relação que é imediata entre
atividade e motivo nos animais é, no caso do homem, mediada pelo caráter
instrumentalizado de sua relação consciente com os objetos de sua realidade,
sejam eles mãos, coisas, outros homens, outras ações, outros conhecimentos
etc. Poderíamos, por fim, dizer que as ações, enquanto etapas de uma
atividade, são mediadoras da relação consciente entre homens e a satisfação
de suas necessidades, entre o objeto de suas ações e o motivo que a elas
conduz.
Como vemos, o caso do batedor de caça primitivo, que tem como
29
objetivo de sua ação imediata espantar um animal, tem consciência do fim
de sua ação, que se reflete traduzida na relação objetiva desta para com a
ação dos demais caçadores sob a forma de uma significação. LEONTIEV
assim se remete a este conceito:
30
nos diz.35
A principal característica da consciência humana primitiva era
a de que o sentido dos fenômenos reais coincidiam totalmente com as
significações elaboradas socialmente e fixadas na linguagem. Nas palavras
de LEONTIEV,
31
é. Seu sentido, para o operário, não coincide com sua significação objetiva.
Evidentemente, o trabalhador nas condições da sociedade
capitalista conhece o significado social da atividade de tecer, por exemplo.
Entretanto, a tecelagem não tem para ele o sentido subjetivo de tecelagem.
Nas palavras de LEONTIEV,
32
―consciente‖. Para se tornar consciente, deve entrar para a consciência nas
significações, elaboradas socialmente, que refletem a natureza real destas
relações.39
A consciência é condição para a consecução e consolidação da
própria vida humana. Portanto, somente com a ―reintegração‖ da
consciência humana o homem se deparará com o desenvolvimento livre e
completo de sua humanização. Contudo, esta ―reintegração‖ não equivale a
um retorno à coincidência entre sentidos pessoais e sistema de significações
sociais. O que se presume como necessário é o deslocamento do processo de
conscientização para esferas mais variadas e profundas, de que o homem
deve tomar consciência para si, para tornar a se ver presente nelas.40
O raciocínio até aqui apresentado é de fundamental
importância para que apreendamos a magnitude dos processos e
conseqüências envolvidos nas relações que o homem estabeleceu, desde suas
origens primitivas, com a realidade natural e social da qual historicamente
toma parte. Entendemos que o processo de apreensão da relação real entre
sentidos e significados implica, antes de tudo, num constante processo de
desvelamento da realidade tal e qual se apresenta imediatamente à
consciência. Este processo só se mostra possível se o homem, munido de
determinado método de leitura dos fenômenos que o envolve, apropriar-se,
ostensiva e conscientemente, dos conhecimentos socialmente elaborados e de
suas relações e implicações sobre seu ser e seu lugar no gênero ao qual
pertence.
Entrementes, devemos considerar, ainda, que ao nos referirmos
a um tal processo de desvelamento, não queremos dizer com isso que há
duas realidades essencialmente distintas e excludentes, uma capciosamente
ocultando outra. Não se trata disso mas sim de uma realidade total, única,
captada, amiúde, de modo parcial em seus aspectos mais imediatos, por
diversas características próprias à consciência humana devidas às múltiplas
33
determinações que a engendraram historicamente, como acabamos de ver. E
o fenômeno não implica em uma apreensão verossímil da essência própria
da realidade a que corresponde. Contudo, ao nos referirmos à captação da
essência da realidade, não podemos supor, com isso, a ―execração‖ da vida
em seus aspectos imediatos, mecânicos, habituais e mesmo consensuais.
Deles depende a própria consecução da vida, com todas as suas relações e
implicações possíveis e necessárias. Deles, em suma, depende a realização, a
possibilidade da própria vida cotidiana.
Por decorrência, é deste conceito e desta condição da existência
humana que devemos nos ocupar agora. Isto porque não nos importa apenas
captar a existência de níveis de apreensão da realidade, mas como esses
níveis (não apenas dois, mas diversos) relacionam-se entre si como condições
de produção de uma mesma realidade (realidade humana).
3. Vida cotidiana
34
realizações humanas e, por conseguinte, ao próprio processo de humanização
do gênero humano, devemos nos deter no conceito aqui adotado de vida
cotidiana, suas características e suas conseqüências.
Contudo, para que apreendamos ao máximo o significado
concreto da vida cotidiana, tanto quanto o significado de sua dimensão
complementar — a vida não cotidiana — necessário se faz que explicitemos,
ainda que introdutoriamente, o que entendemos por gênero humano.
Como sabemos, a principal característica do desenvolvimento
filogênico diz respeito ao fato de que as propriedades de uma espécie são
transmitidas, hereditariamente, de uma geração à outra, sendo
reproduzidas nos e pelos organismos que a compõem. Em termos dos
organismos que dela fazem parte, suas características serão, pois,
determinadas pelo estágio de evolução atingido pela espécie e as
transformações que nela se expressam dependem de igual modo das
transformações que eventualmente tais organismos sofram durante sua
ontogênese (processo de desenvolvimento do organismo particular da
espécie). Dizemos transformações que tais organismos sofram porque essas
mudanças encontram-se intimamente ligadas às interações de cada
organismo com seu meio. Em outras palavras, os organismos vivos mantêm-
se submetidos a todas as conseqüências de seus contatos com a natureza e
demais organismos sobre sua biologia.
Destarte todas as complexidades e multiplicidade de
determinações que envolvem o processo de desenvolvimento das espécies
(filogênese) e de seus organismos individuais (ontogênese), cabe-nos ter em
mente, aqui, que toda relação entre espécie e evolução é, antes de mais
nada, uma relação marcadamente natural e espontânea. Assim, o conjunto
de todos os recursos e adversidades do hábitat, a adaptabilidade e a
interação social entre organismos, certamente concorrerão para a
caracterização morfofisiológica que configura cada espécie.
Naturalmente, tais princípios se aplicam também à espécie
homem. Entretanto, não são apenas os princípios em questão que regem o
35
desenvolvimento humano. Diferentemente das demais espécies, o homem
desenvolveu atributos que permitiram que passasse a interferir em seu
próprio processo evolutivo. E, como vimos, a principal condição para tal foi o
desenvolvimento da consciência, ou seja, o poder de refletir abstratamente
sobre si e a realidade objetiva com a qual se relaciona. A consciência e seus
recursos instrumentais, patentemente o pensamento e a linguagem, passam
a mediar, portanto, a relação ativa entre o homem, seus pares e a natureza.
Por outro lado, se considerarmos que a própria consciência só
pode mediar as relações entre sujeito e objeto por que há uma relação ativa
daquele para este último — referimo-nos às atividades intencionais de
satisfação de necessidades que incidem em relações com o mundo objetal —
concluiremos que a consciência coincide inteiramente com a própria
atividade vital. Logo, dela se origina e a ela subsidia, de modo intrínseco.
Esta atividade vital é o que chamamos trabalho e sua principal
característica, contrariamente à atividade dos demais animais, é a de ser
uma atividade produtiva.41
Vemos assim que, de forma inseparável, essas novas condições
de relacionar-se com a realidade, nela interferir e dela obter uma enorme
gama de resultados, imprime em tais produções propriedades
especificamente humanas ou seja, o caráter histórico-cultural humano se
objetiva em seus produtos. Estas propriedades, experiências, processos,
implicam necessariamente em informações. As objetivações humanas
encerram, portanto, propriedades resultantes de todo o processo de
experiências histórico-culturais da humanidade, cristalizadas sob a forma de
conhecimentos.
Entretanto, para que as próprias objetivações se tornem
possíveis — e este é o aspecto essencial de nosso raciocínio — devemos
considerar que seus significados, resultado de milhares de anos de
experiências as mais variadas, sejam apropriados (assimilados,
incorporados) por cada indivíduo particular de cada nova geração. É,
36
portanto, em se apropriando das objetivações histórico-culturais humanas
que cada indivíduo da espécie humana se insere no gênero humano,
tornando-se, também ele, capaz de realizar objetivações humanas.
Como percebemos, a relação entre ambos os processos é
indissociável e fundamenta o advento de uma condição que supera o simples
desenvolvimento filogenético da espécie homem. Em outras palavras, o
processo de objetivação-apropriação inaugura e fundamenta o
desenvolvimento do que aqui entendemos por gênero humano. Isto tem, por
conseqüência, o fato de a humanidade não se encontrar submetida tão-
somente a determinações biológicas, mas, e acima disso, histórico-culturais.
O gênero humano corresponde, portanto, a todas as produções e
conseqüências das ações sócio-históricas humanas sobre a natureza e o
próprio homem, que permitiram e permitem que este minimize cada vez
mais sua submissão às determinações biológicas e naturais, criando para si
condições exclusivamente humanas de existência. O fato de a humanidade
reproduzir-se, enquanto gênero, pelo processo de apropriação de suas
objetivações, permite-nos afirmar que, diferentemente do que ocorre no
âmbito puramente animal, o homem não nasce humano, mas sim, torna-se
humano na medida em que apropria-se dos legados de seu gênero. Do
mesmo modo, inserir-se na genericidade humana equivale a libertar-se do
jugo da natureza e, logo, o processo de genericização humano é um processo,
antes de mais nada, libertário.
Porém, devemos considerar com a devida atenção esta
afirmação, já que, como vimos, o processo de humanização tem se
apresentado como essencialmente contraditório com sua finalidade
libertária, sobretudo no interior das relações de produção das sociedades
modernas. Ou seja, enquanto a humanidade conquista para si condições sem
precedentes em sua história para libertar-se das adversidades naturais (com
avanços tecnológicos vertiginosos), mais e mais homens vêm-se colocados à
margem de seus benefícios e, portanto, à margem do próprio processo de
37
humanização. Como já abordamos, a maioria dos homens vêm-se cada vez
mais alienados das conquistas que a humanidade logra para si.
Isto dito, podemos agora nos lançar à nossa questão inicial, ou
seja, a consecução da própria genericidade humana através da vida
cotidiana. Pautâmo-nos, aqui, nos postulados de HELLER, que se refere à
vida cotidiana do seguinte modo:
38
Pela evidente amplitude de todos os conteúdos, significados e
atividades que da vida cotidiana, não há para os homens ―tempo‖ ou
―possibilidade‖ de absorverem inteiramente, em todos os seus aspectos, os
elementos que constitutivos da cotidianidade.43 Por isso mesmo a principal
característica do pensamento cotidiano é a espontaneidade — embora nem
toda atividade cotidiana o seja em mesmo grau. Entretanto, o caráter
tendencialmente espontâneo torna-se necessário, ou, do contrário, não
haveria como atender-se às exigências das atividades cotidianas e tornar-se-
iam impossíveis a produção e a reprodução da vida das sociedades humanas.
De fato, não há como, na vida cotidiana, calcular com segurança científica as
diversas conseqüências possíveis de uma ação. Por esta razão o homem age
de forma probabilística, o que por sua vez evidencia o caráter
eminentemente econômico da vida cotidiana.
O pensamento cotidiano orienta-se sobretudo para a realização
das atividades cotidianas, havendo, desta forma, uma unidade imediata
entre pensamento e ação. Entretanto, isto não implica em que as idéias
pertinentes à cotidianidade elevem-se ao plano da teoria, nem tão-pouco
caracterizem-se enquanto praxis. Para HELLER, praxis é atividade
humano-genérica consciente.44
A unidade imediata entre pensamento e ação implica, por outro
lado, na tendência de não diferenciação entre ―correto‖ e ―verdadeiro‖, que
tendem a identificar-se espontaneamente. Portanto, as atitudes da vida
cotidiana são essencialmente pragmáticas, sendo que a identificação
espontânea entre ―correto‖ e ―verdadeiro‖ não implica em maiores problemas
para a vida cotidiana — se e na medida em que nela não devemos ter em
mente atitudes necessariamente ―científicas‖.
Por conseguinte, e porque o homem não pode discriminar todos
os elementos e condições que o envolvem, a fé e a confiança apresentam-se
com maior intensidade no pensamento cotidiano. A fé e a confiança têm em
39
comum o fato de prescindirem de verificabilidade, distinguindo-se, por outro
lado, na relação existente entre o sujeito e o objeto de sua crença. Assim, a
confiança traz consigo a possibilidade de fundamentações empíricos, sendo
portanto o afeto de um indivíduo que se identifica inteiramente com o que
motiva sua crença. A fé, embora compartilhe da mesma função que a
confiança, presume uma relação dogmatizada entre sujeito e objeto de sua
crença. A fé é um afeto do indivíduo particular. De uma forma ou de outra,
ambos os ―afetos‖ permitem que os homens transitem em meio a uma
infinidade de situações e condições prescindindo de um suposto domínio
pleno da realidade concreta que os envolve. HELLER assim se refere e
exemplifica tais questões:
40
ultrageneralização. Tratam-se de juízos provisórios que, segundo HELLER,
a prática confirma ou, pelo menos, não refuta, de modo que, a exemplo do
que ocorre com a fé e a confiança, possamos, baseando-nos neles, atuar e nos
orientar na cotidianidade. Assim, a ultrageneralização permite-nos, também
a seu turno, a formulação de juízos menos precisos mas suficientes para
possibilitar nossa própria ação. Entretanto, enfatiza, a autora,
41
possibilidades concretas de desenvolvimento genérico da humanidade.47 Em
outras palavras, as mesmas condições que nos permitem a mobilidade e a
realização da vida cotidiana (elementar e imprescindível à realização e
desenvolvimento do próprio gênero), podem prestar-se ao imobilismo e à
estagnação da genericidade. Nas palavras de HELLER,
42
Contudo, como enfatiza HELLER, embora a estrutura da vida
cotidiana apresente-se como ―terreno propício à alienação‖, esta não é, de
nenhum modo, necessariamente alienada. 49 Permito-me lançar mão uma vez
mais das próprias considerações apresentadas pela autora:
43
haver se expandido e passado a penetrar esferas onde não só não se
apresenta como necessária, mas também como empecilho de realização. Nas
palavras de HELLER:
44
cotidiana necessariamente alienada. Isto significa dizer que é a partir dela
que o humano-genérico é engendrado. Mas como e com que intensidade o
processo de humanização se dê dependerá de como os homens lancem mão
dos próprios conhecimentos genéricos de que já dispõem —
fundamentalmente, os conhecimentos historicamente sistematizados e que
concebemos como científicos e filosóficos. Ao homem é sempre possível,
ainda que diante das restrições da alienação, superar o ―abismo‖ que esta
impõe entre este e o significado humano e humanizador de suas
objetivações.
Evidentemente, a superação necessária da hierarquia
espontânea da vida cotidiana não implica numa suposta abolição dessa
hierarquia. Trata-se, antes, do estabelecimento de uma relação não mais
espontânea com a cotidianidade e sim, consciente do indivíduo com essa
esfera das realizações humanas, o que implica numa necessária
aproximação deste indivíduo com a humano-genericidade. Conforme
salienta HELLER, trata-se pois de um processo de condução consciente da
vida pelo próprio indivíduo.
45
natureza efêmera de suas motivações, além da fixação repetitiva do ritmo54
— uma certa rigidez do modo de vida. De modo semelhante, o pensamento
cotidiano (que também é comportamento) também tem, por característico, a
fixação na experiência, sendo portanto essencialmente empírico e
ultrageneralizador.
A ultrageneralização do pensamento e comportamento
cotidianos é atingida na medida em que assumimos estereótipos, analogias e
esquemas já elaborados socialmente ou quando estas formas de pensamento
nos são simplesmente impingidas pelo meio social que nos envolve e no qual
nos movemos.
Por outro lado, a ultrageneralização é inevitável na vida
cotidiana, dado que cada uma de nossas atitudes, como vimos, fundamenta-
se numa avaliação apenas probabilística de cada evento. Em breves lapsos
de tempo nos vemos obrigados a realizar inúmeras atividades que, dada a
sua heterogeneidade, não poderíamos efetuar, sobre as mesmas, avaliações
baseadas na cientificidade.
Toda ultrageneralização é, também, um juízo provisório (por
provisório devemos entender que tais juízos em geral antecipam-se às
atividades, não encontrando, entretanto, verificabilidade no próprio processo
prático posterior).
A vida cotidiana caracteriza-se, como sabemos, pela unidade
imediata entre pensamento e ação (com a ressalva de não ser o pensamento
cotidiano teoria, nem tampouco a atividade cotidiana praxis). Esta unidade
imediata entre pensamento e ação conduz ao fato de que o verdadeiro e o
correto se identificam. Como nos diz HELLER, ―o que revela ser correto, útil,
o que oferece ao homem uma base de orientação e de ação no mundo, o que
conduz ao êxito, é também ‗verdadeiro‘‖.55
Ora, uma ultrageneralização pode ser correta ou falsa. Será
correta quando corresponder ao objetivo cuja realização deve promover e
46
falsa quando por ela não pudermos nos orientar ou, em outros termos,
quando sua orientação conduz ao erro ou fracasso.
Quando estivermos diante da relação entre homem e natureza
(objetivações, atividades que envolvem produção e consumo), a coincidência
entre verdadeiro e correto não pode implicar em problemas. Isto porque,
mesmo que generalizemos incorretamente, a própria atividade haverá de
nos corrigir praticamente, pois um produto de má qualidade não
corresponderá a seus objetivos, experimentaremos prejuízos se consumirmos
algo inadequado etc. Contudo, as generalizações da estrutura pragmática da
vida cotidiana poderão implicar em conseqüências problemáticas, embora
menos evidentes, quando o que se põe em questão são as relações sociais,
muito mais complexas e de implicações as mais variadas. Eis aqui um sério
motivo para que consideremos com a devida cautela a transposição de
procedimentos de análise pertinentes à referida relação entre homem-
natureza (relação essencialmente pragmática) para o âmbito das relações
homem-genericidade (essencialmente mediatas e multi-determinadas).
Os juízos provisórios refutados pela ciência e por uma
experiência cuidadosamente analisada (e que se revelam falsos, portanto),
mas que se conservem inabalados diante deste fato e de todos os argumentos
da razão, são preconceitos. Portanto, nos diz HELLER, podemos concluir
pelo fato de que os preconceitos são, antes de mais nada, produtos da vida e
do pensamento cotidianos.56 O preconceito figura, deste modo, como a
principal categoria do próprio pensamento e comportamento cotidianos e,
muito embora os preconceitos desempenhem importantes funções em esferas
que se encontram acima da cotidianidade, não só não procedem
essencialmente das mesmas como, pelo contrário, também obstaculizam as
possibilidades humano-realizadoras destas.
Procedendo a uma rigorosa análise antropomórfica dos
preconceitos, HELLER conclui, inicialmente, haver uma fixação afetiva do
sujeito para com o preconceito. Seria por esta razão que a presumida
47
subversão iluminista dos preconceitos pelo uso da razão, haveria se
apresentado sempre como pouco exeqüível. É preciso que se considere, neste
sentido, que o principal afeto dos preconceitos é a fé.
Em termos antropológicos, para HELLER a fé nasce da
particularidade individual, servindo à satisfação de suas necessidades. A fé
carrega consigo a propriedade, como vimos, de resistir inabalavelmente ao
pensamento e à experiência concreta, ou, em outros termos, ao saber
científico. Estabelecer uma relação baseada na fé com preconceitos é cômodo
porque isso nos protege de conflitos, confirmando nossas ações. Dito de outro
modo, na medida em que não logramos realizar a vida em seus objetivos
através de sua verdadeira atividade humano-genérica, temos sempre a
possibilidade de estabelecer-lhe um sentido através de preconceitos.
Tomando como exemplo o preconceito de grupo, o homem
predisposto ao preconceito rotula o que tem diante de si e o enquadra numa
estereotipia de grupo. Desse modo, passa por cima até mesmo das
propriedades do indivíduo que não coincidam com as do grupo. E, mesmo
percebendo-as, registra-as como exceções à regra que acredita fundamentar
a idéia preconcebida sobre o grupo. Assim, as propriedades individuais
divergentes do estereótipo estabelecido são apreendidas pela idéia
preconcebida como se dando apesar da integração do indivíduo em questão a
seu grupo (e contrariamente a essa integração).
A questão de se saber qual grupo produz preconceitos, por quê e
como, é sem dúvida uma questão histórica, e como tal, só encontra
possibilidades se ser respondida por uma análise histórica. Mas o que
realmente deve nos interessar, assevera HELLER, não é a historicidade da
produção dos preconceitos (que está fora de dúvida), mas sim, se a
existência dos preconceitos é, enquanto tal, necessária, ou um fenômeno
histórico relativo. Por decorrência, a questão que se nos apresenta é: podem
os preconceitos desaparecerem? Segundo HELLER,
48
...a possibilidade antropológica permanente do preconceito está
constituída pela estrutura da vida cotidiana, pelo ―movimento do
individual-particular nessa cotidianidade e pelo seu pragmatismo diante
das relações sociais. (...) os grupos que se sentem ameaçados em sua
coesão produzem constantemente preconceitos sociais, satisfazem as
―demandas‖ do particular-individual e lhe emprestam conteúdo.
Portanto, os preconceitos poderiam deixar de existir se desaparecessem
a particularidade, que funciona com inteira independência do humano-
genérico, o afeto da fé, que satisfaz essa particularidade, e , por outro
lado, toda integração social, todo grupo e toda comunidade que se
sintam ameaçados em sua coesão.57 (itálicos nossos)
49
preconceitos.58 (itálicos nossos)
50
Capítulo II
Criatividade: aspectos conceituais
1 MIEL, Alice et. alii, Criatividade no Ensino, São Paulo, IBRASA, 1972, p. 11.
51
comuns e, portanto, atípicos.
Num sistema social impulsionado pela satisfação de questões
relacionadas às suas necessidades, necessidades estas que se reproduzem e
se complexificam a cada dia, tornou-se evidente que os indivíduos que
melhor contribuíssem para a resolução de ―problemas‖ relacionados às
mesmas adquirissem importância distinta. Daí o interesse crescente
depositado, principalmente neste século, de ampliação vertiginosa de
necessidades, sobre as características do que fosse o homem criador,
inventivo, e o que explica o interesse explosivo de muitos setores da
comunidade científica sobre o assunto.
Assim, a autora em questão acrescenta:
2 STEIN, C.M.I. & HEINZE, S.J., Criativity and the Individual. Glencoe, Illinois : The
Free Press, 1960. (apud MIEL, Alice, op. cit., idem, ibidem).
3 TAYLOR, Calvin W., Criatividade: progresso e potencial, São Paulo : IBRASA, 1976, p.
22.
52
sobretudo a partir dos anos 50.
Para MIEL e seus colaboradores do Teachers College,
Universidade de Columbia, EUA, a criatividade teria sido principalmente
descrita, até então, como o ―processo de relacionar coisas não relacionadas‖
(citando P. Smith, 1959, p.18) ou da constituição de ―deliberado processo de
fazer uma nova combinação ou disposição de materiais, movimentos,
mundos, símbolos ou idéias e de alguma forma colocar o produto à disposição
de outras pessoas, visivelmente ou por outros meios ‖ (citando D. Schary, na
15ª Conferência Anual sobre Educação Superior de Chicago, 1960).
Entretanto, assinala que para alguns autores, só haveria ―criatividade‖, se o
produto resultante fosse reconhecido como excepcional, segundo a avaliação
de indivíduos competentes. Estes avaliadores ―competentes‖ seriam,
sobretudo, pesquisadores do comportamento humano.
De modo geral, segundo MIEL, aceita-se que esteja
demonstrada a qualidade de criatividade se o indivíduo faz algo novo para
si, que seja satisfatório e que, nesse sentido, seja útil para ele; se relaciona
coisas que antes não estavam relacionadas em sua experiência e se o
produto é surpreendente, isto é, novo para ele e demais pessoas.4
Por fim, assume o conceito de que a criatividade deve ser o
resultado de um processo deliberado, surgido a partir de um ato
intuitivamente frutífero, cujo produto seja, finalmente, considerado como
verdadeiro — isto é, na acepção da autora, precisa ser construtivo, levando
na direção de crescimento e vida, em oposição a destrutivo, com
características de dano e morte. Julga que, ao invés de rotular-se um
determinado processo como ―criativo‖ ou ―não-criativo‖, dever-se-ia
estabelecer uma certa escala que variasse entre um tanto criativo e um
altamente criativo, conforme o grau de utilidade do produto. 5 Este conceito
de criatividade, por conseguinte, está intimamente relacionado ao juízo de
que, a princípio, a criatividade deva ser avaliada em função da utilidade de
53
que se reveste seu produto.
O indivíduo considerado criativo viu-se, por conseguinte, de
todos os modos investigado e avaliado. Inúmeras hipóteses surgiram a seu
respeito, de sua produção à sua possível reprodução. Superdotado, especial,
excepcional, são apenas algumas das denominações que viria a receber.
Para MITJÁNS, a conferência intitulada Creativity, proferida
em 1950 por P. Guilford, então presidente da American Psychological
Association, traduziu-se num dos principais impulsos para a deflagração de
inúmeras pesquisas sobre o assunto, principalmente nos EUA 6, e,
concordante com este fato, SISTO acrescenta a importância dos trabalhos
desenvolvidos por J. P. Torrance (anos 60), para o surgimento dos principais
instrumentos de avaliação de potenciais criativos. Dentre estes, merece
especial destaque o Test of creative thinking, de Torrance, que viria a se
tornar referência para todos os demais, pautando-se principalmente em
critérios como a fluência e originalidade dos processos e produções criativos
(fatores estes avaliados em termos estatísticos), e flexibilidade e
originalidade de elaboração (fatores submetidos a critérios denominados
qualitativos/quantitativos).7 Entretanto, contrariamente à posição de
Guilford, Torrance não vincula seus trabalhos a considerações teórico-
conceituais sobre o assunto, e sim, a tentativas experimentais de
diagnósticos e prognósticos acerca da manifestação dos potenciais criativos
entre os indivíduos. Segundo SISTO,
54
produto encontrado.8
55
comunicação e produção podem ser atribuídos ao pensamento criador de
um número relativamente pequeno de pessoas.11
56
fundamentados sobretudo em pressupostos naturalistas do desenvolvimento
humano.
TAYLOR, ainda ocupado com o papel da criatividade nos rumos
da corrida internacional pela hegemonia técnico-científica e econômica do
globo, e imbuído do mais típico espírito competitivo de sua época, chega a
tecer considerações como as que seguem:
57
concebida, antes de tudo, como o resultado de um aprimoramento filogênico
e de interações sócio-ambientais da humanidade. A história, aqui,
corresponde às sucessivas ―lutas‖ da humanidade com seu meio natural e,
tanto quanto, ao desenrolar dos eventos, conhecimentos e produtos mais
significativos, que se registraram e acumularam espaço-temporalmente
durante o processo de aprimoramento evolutivo da humanidade.
Outros autores, como KNELLER, um representante transitório
entre o pragmatismo até aqui suscitado e uma posição que lança mão de
elementos da psicologia humanista sobre o tema, afirma que:
58
indivíduo ou, nos termos de Rogers, um meio vital para sua auto-
atualização.
É oportuno mencionar que, para ROGERS, a tendência do
homem para auto-realizar-se é ―a tendência para se realizar a si próprio,
para se tornar no que em si é potencial‖.16 Esta tendência encontrar-se-ia
presente em todos os indivíduos, aguardando, de modo latente, as condições
que lhe serão propícias para libertar-se e manifestar-se. Por conseguinte, a
criatividade seria, para ROGERS, ―a tendência para exprimir e ativar todas
as capacidades do organismo, na medida em que essa ativação reforça o
organismo ou o eu‖.17
Por esta perspectiva, o processo criativo consta como a
emergência de um novo produto relacional, que surge da singularidade do
indivíduo e dos objetos, acontecimentos ou circunstâncias de sua vida. Kubie
e Maslow aditam que a criatividade teria suas raízes no não-racional, sendo
necessário, para sua emergência, chegar até suas fontes não-conscientes,
fazendo uso dos processos primários e aceitando os próprios impulsos, de
forma espontânea.18
É de se ressaltar, portanto, que ainda aqui os aspectos
possivelmente históricos do desenvolvimento de tal potencial apresentam-se
estanques. Ou seja, KNELLER e ROGERS, assim como outros pensadores
humanistas, situam suas considerações sobre o potencial criativo tão-
somente no nível de indivíduos que, de modo particularizado, deparam-se
com o desafio constante de desenvolver seus potenciais em um contexto
fenomenológico imediato, pessoal e abstraído dos elementos que concreta e
historicamente multideterminam os processos criativos e seus propósitos.
Contudo, se às abordagens tradicionais acerca da criatividade
ainda não foi possível compreender e conceber com segurança o que seja seu
16 Cf. ROGERS, Carl. Tornar-se pessoa. Lisboa, Moraes Editores, 1970, p. 302.
17 ROGERS, Carl. Toward a theory of creativity, p. 72. (apud ASSUMPÇÃO, J. A. M. –
Criatividade e orientação educacional. São Paulo, Autores Associados, 1981, p. 19).
18 Cf. ALENCAR, Eunice M.L.S. de, Psicologia da Criatividade, p. 34.
59
objeto de estudos, por outro lado elas próprias deparam-se com indícios do
que provavelmente não venha a ser. Isto ocorre particularmente quanto aos
aspectos e questões relacionadas à inteligência.
Neste sentido, autores como KNELLER nos assinalam que a
inteligência não implica em criatividade, sendo que o inverso também não se
apresenta como necessariamente verdadeiro.19
Já na década de quarenta, pesquisas como as de WITTY,
demonstravam que o mau rendimento de alguns estudantes de ―elevado QI‖
(quociente inteligente) e o bom rendimento de outros, de ―baixo QI‖,
bastavam para apontar que a inteligência raramente explica o rendimento
escolar e o desempenho acadêmico.20
A mesma posição já era defendida também por TORRANCE, ao
sustentar que ao se lançar um segundo olhar sobre os testes de inteligência,
muitas deficiências acabaram por se evidenciar. Uma das principais estaria
relacionada à sua ênfase em elementos do pensamento convergente (também
denominado conformista) estritamente ligados somente aos processos
―inteligentes‖, desconsiderando-se, por outro lado, os aspectos relacionados
ao pensamento divergente (principal característica dos processos criativos).21
E, justamente pelo pensamento criativo ser essencialmente especulador e
inovador, torna-se absolutamente questionável o uso de instrumentos
baseados em condutas e valores esperados (se é que tais critérios possam
validar os não menos controvertidos testes de QI, cuja validade estes autores
defendem no que se refere a avaliações de inteligência).
Contudo, considerações ligadas a um suposto padrão de
inteligência em geral exercem ainda uma mística atração e influência, até
nossos dias, sobre a concepção e conduta pedagógica de inúmeros educadores
ligados tanto à teoria quanto à prática educativa, parâmetros estes ainda
presentes a muitas conclusões acerca do sucesso ou fracasso escolares.
60
Pelos aspectos e considerações levantados, procuramos
caracterizar, ainda que de modo breve, a forma pela qual a questão da
criatividade humana veio sendo abordada, pelas duas principais
perspectivas que têm, historicamente, se apropriado do assunto, ainda que
tais abordagens possam ser consideradas essencialmente distintas, como a
pragmática e a fenomenológica-humanista. Independentemente dos aspectos
epistemológicos a que uma tal discussão nos remeteria, e as considerações
dos inúmeros outros estudiosos e pensadores que de alguma forma se
manifestaram a este respeito, tomamos, como constatação inicial de nosso
raciocínio, as seguintes observações:
A abordagem pragmática visa a criatividade humana em
termos da utilidade de suas produções para o indivíduo e para sua
sociedade; a criatividade é uma potencialidade generalizada humana mas,
como há extensa variabilidade nos caracteres individuais, sua ocorrência e
nível de produção são funções da relação havida entre heranças genéticas e
repertórios comportamentais adquiridos por seus indivíduos,
particularizadamente. A abordagem pragmática visa ainda desenvolver
métodos experimentais para a aferição, prognosticação (predictors) e
categorização da criatividade humana e, por fim, pretende que tais métodos
visem o próprio processo de ―aprendizagem‖, de modo a proporcionar
métodos e técnicas que atinjam o propósito maior de identificação de
indivíduos criativamente superiores e sua adequada estimulação para
atividades e produções interessantes e úteis para si próprios e seu meio
social.
A abordagem pautada em preceitos da psicologia humanista
visa a criatividade enquanto via de auto-realização pessoal; a criatividade é
também uma atribuição inerente a todo ser humano, e por ela o ser humano
especula, explora e transforma sua realidade, conquanto, a princípio, de
modo também particularizado. Há diferenças individuais quanto ao
potencial criativo, em função da liberação ou repressão do poder criativo de
cada indivíduo.
61
Em síntese, há em tais pressupostos a ausência de uma análise
mais ampla do fenômeno da criatividade humana, uma vez que a ação
criativa é tomada enquanto coisa per se, seja de modo natural e
individualizado, ou mesmo primitivista e subjetivado.
Uma das principais limitações apresentadas por tais concepções
do fenômeno criativo, ao nosso ver, refere-se ao fato de permitir que a
criatividade possa ser tomada enquanto algo per se, ou seja, de modo
parcial, abstraído do caráter histórico-social (genérico) da humanidade,
aspecto este que consideramos essencial a uma compreensão real, concreta,
da atividade criativa para a humanidade, e cuja historicidade, como já
anunciamos, não coincide, em nossa concepção, ao aprimoramento
filogenético da espécie.
Por fim, conforme nossas investigações22 e concordante com o
que salienta ALENCAR, quanto ao status atual do assunto, embora não
haja consenso, em termos teórico-científicos, quanto ao significado exato do
que deva designar o termo ―criatividade‖ (principalmente pela
multiplicidade de definições existentes), podemos notar aspectos gerais
muito próximos quanto às definições existentes sobre esta faculdade, ainda
que por pressupostos diversos. Estes aspectos comuns referem-se à
caracterização geral e comum da criatividade como ―a emergência de um
produto novo, seja uma idéia ou invenção original, seja a reelaboração e
aperfeiçoamento de produtos ou idéias já existentes‖23.
Considerações muito semelhantes nos propõe MITJÁNS, ao
afirmar que:
62
por nossa ciência não nos tem permitido encontrar uma definição que
supere todas as ambigüidades semânticas e conceituais existentes até
agora para caracterizá-la. Na etapa atual de nossa disciplina, seria mais
válido falar de uma caracterização da criatividade que de uma definição
da mesma.24 (itálicos nossos).
p.4.
63
função da integração ou conjunção de mais de um dos aspectos citados
(geralmente, o sujeito e as condições).26 (itálicos nossos).
64
mas não se prestam à elucidação da real natureza genética da atividade
criativa humana. Ora, isto nada mais representa que nos perguntarmos,
antes de mais nada, o que é criatividade? Para que esta questão possa ser
adequadamente investigada e compreendida, por deconrrência, necessário se
faz que uma questão precedente às demais seja realizada: por que, afinal, é
possível ao homem produzir? E no que implica uma tal questão, senão que
nos remete à elucidação do que seja o próprio ser humano, uma vez que a
atividade transformadora produtiva somente ao homem seja possível?
Eis que nos deparamos, aqui, com o caráter defendido como
ontologicamente criativo do próprio gênero humano. E, como procuramos
demonstrar no capítulo precedente, esta ―natureza genérica‖ é necessária e
ineliminavelmente histórico-cultural. Logo, sob nossa perspectiva, tornam-
se não só incompletas (parciais) as considerações tradicionalmente
existentes sobre a criatividade, como passíveis de grandes equívocos ao
pautarem as suas avaliações e conceituações tão-somente sobre
individualidades e suas características particulares. É esta parcialidade
teórico-conceitual, fundamentalmente a-histórica, que concorre para a
corroboração de interpretações e conclusões obtusas, inverossímeis e
motivadoras em potencial de discriminações infundadas sobre a
singularidade das expressões criativas humanas. E é sobre esta ontologia
da atividade criativa que nos debruçamos agora.
65
modificar a própria natureza para tais fins. A este processo de
transformação da natureza, segundo fins determinados, chamamos trabalho.
MARX teria sintetizado de modo muito adequado tal
característica intencional da atividade humana, valendo-se da seguinte
elucidativa observação:
66
histórico dado o caráter ativo de seu psiquismo.28
67
salienta VÁZQUEZ, ―Se o homem aceitasse sempre o mundo como ele é, e se,
por outro lado, aceitasse sempre a si mesmo em seu estado atual, não
sentiria a necessidade de transformar o mundo nem de transformar-se.‖30
Assim fosse e certamente estaria suprimido o próprio caráter
ontologicamente transformador, próprio ao gênero humano.
A atividade da consciência se nos apresenta, portanto, como
inseparável de toda atividade verdadeiramente humana. Quando a
atividade consciente, teleológica, torna-se passível de transformar a
realidade concretamente, isto é, objetivando sua finalidade, deparâmo-nos
com a condição efetivamente genérica de toda atividade humana, e esta
condição é o que chamamos praxis.
Entretanto, para VÁZQUEZ, a atividade da consciência per se
(ou seja, que se limita à esfera da idealização) em se tratando de uma
atividade eminentemente teórica (pois que não pode conduzir, por si só, a
transformações da realidade), não é, por esta razão, praxis. Da mesma
forma, o mesmo pode ser dito quando nos deparamos com a esfera
puramente prática da atividade humana. Prescindindo de uma relação
consciente para com o significado da atividade, também neste caso a praxis
humana perde seu caráter humano-genérico. Neste sentido, não mais
poderíamos falar em praxis, mas sim, em simples atividade prática.
Entendido, pois, o caráter humano-genérico da praxis, devemos
supor, por decorrência, que a atividade criativa a que nos referimos não se
confunde com a mera atividade prática, muito embora por ela se exprima. A
atividade humano-genérica a que chamamos praxis implica em relação
consciente do sujeito para com o objeto de sua ação e, por conseguinte, para
com a finalidade da mesma. É somente nesses termos que podemos supor a
atividade criativa como efetivamente transformadora de realidades, e não
apenas de matérias-primas inertes.
68
Vemos, deste modo, que a atividade criativa, tal qual a
concebemos, confunde-se, isto sim, com a própria praxis e, portanto, a ela
fundamenta e nela se funda.
69
3. Processos de criação e desenvolvimento humano
31 Cf. VIGOSKII, L.S., La imaginación y el arte en la infancia, Colonia del Carmo, Mex.:
Hispánicas, 1987.
32 Nota: para evitarmos ambigüidades devidas às diversas grafias existentes sobre o
sobrenome do autor (p. ex., Vigotsky, Vygotski, Vygotsky, Vigotski, Vigotskii ou ainda
Vigoskii), optamos pela forma aportuguesada mais recente, difundida no Brasil, ou seja,
Vigotski. Contudo, as referências bibliográficas mantêm-se fiéis às grafias das respectivas
edições nacionais e estrangeiras.
70
primeiro é o que denominou reprodutor ou reprodutivo (estreitamente
vinculado aos processos mnemônicos) e que tem por principal característica
a reprodução, seja de informações, impressões ou normas de conduta já
criadas e elaboradas. Ao recordarmos a existência de fatos, objetos e
impressões de experiências do passado, ou quando nos lançamos a
representar fidedignamente a natureza, descrever dada situação ou
representar uma dada imagem, não fazemos mais que reproduzir o que foi
assimilado anteriormente. Esses casos, nos diz VIGOSTSKI, têm em comum
o fato de que a atividade em questão não cria algo de novo, limitando-se a
repetir, com certa margem maior ou menor de precisão, algo previamente
existente.33
Além de permitir reconhecer fatos e coisas, a função
reprodutiva do cérebro é de fundamental importância para que os homens
logrem realizar diversas atividades e agir de forma eficiente diante das mais
diversas situações, segundo condutas e ações utilizadas em condições
semelhantes. Ora, este fato é imprescindível para a própria sobrevivência e
podemos perceber que o pensamento reprodutivo proposto por VIGOTSKI
apresenta-se como mais um elemento necessário à consecução da esfera da
vida cotidiana proposta por Heller (vide Capítulo I, Vida Cotidiana).
Todavia, se a atividade cerebral se limitasse à reprodução e
conservação de experiências, o homem não seria capaz de ajustar-se às
mudanças que forçosamente ocorrem em seu meio. Aqui deparâmo-nos com
a segunda espécie de atividade do cérebro humano, ou seja, a atividade
criadora ou combinadora. Por ela não nos limitamos a reproduzir fatos e
impressões vividas, mas criamos e reelaboramos imagens e ações para o
devir.
Portanto, além de ser capaz de conservar e reproduzir nossas
experiências, o cérebro é também um órgão combinador e criador, passível
de reelaborar, a partir dos elementos de nossas experiências, novas formas e
projeções. Fosse o contrário e o homem seria um ser condenado a repetir o
71
passado e voltado exclusivamente para o agora. Portanto, segundo
VIGOTSKI, ―É precisamente a atividade criadora do homem que faz dele um
ser projetado para o futuro, um ser que contribui criando e modificando seu
presente‖. 34 Desta forma, podemos concluir, em primeiro lugar, que todo
processo ligado à atividade criadora tem, por base, a inadaptação, fonte
suprema de todas as necessidades humanas.
A atividade criadora estaria, ademais, na base de todos os
aspectos da vida cultural, possibilitando as manifestações artísticas,
científicas e técnicas. Desta forma, tudo o que nos rodeia e que haja sido
criado pelos homens (todo o mundo cultural, portanto) se diferencia do
mundo natural precisamente por ser produto da imaginação humana, ou,
por outros termos, algo como fantasia cristalizada.
Este raciocínio vem reforçar nossas afirmações sobre o caráter
ontologicamente criativo do gênero humano. Nas palavras de VIGOTSKI:
72
Esta afirmação se torna ainda mais significativa se
considerarmos a agregação coletiva de inumeráveis contribuições dos mais
variados indivíduos ―anônimos‖, ainda que, isoladamente, estas
contribuições revelem-se pouco perceptíveis. Por conseguinte, isto nos
remete ao caráter necessariamente coletivo de toda e qualquer produção
criativa, já que dificilmente haveríamos como conceber um só ato
imaginativo que não envolva, de algum modo, elementos humano-genéricos
em sua conformação.
Assim, no que se refere ao caráter da criatividade que aqui se
nos revela, podemos concluir, com segurança, que a faculdade criativa é bem
mais uma regra necessária que uma exceção caprichosa entre os seres
humanos. Certamente, pondera VIGOTSKI, os exemplos mais elevados de
criação parecem ser mais acessíveis a determinados indivíduos, cujo número
parece ser restrito, que à maioria das pessoas, mas as premissas necessárias
para se criar encontram-se presentes em tudo o que nos rodeia e, ―tudo o que
excede a marca da rotina, encerrando sequer uma mínima partícula de
novidade, tem sua origem no processo criador do ser humano‖. 36
Por conseguinte, se desejarmos compreender adequadamente
estes pressupostos gerais da atividade criativa (em termos ontológicos,
portanto), devemos antes considerar que os processos criativos encontram-se
submetidos às múltiplas e complexas determinações que envolvem o
desenvolvimento humano (envolvendo aspectos afetivos, conjunturais, de
satisfação de necessidades, de disponibilidade de recursos para um
desenvolvimento saudável, de condições, enfim, de os indivíduos virem a ser
seres humanos plenos e íntegros). E, para tal compreensão, não podemos
deixar de considerar os processos criativos a partir da infância.
De fato, desde a mais tenra idade nos deparamos com a
presença dos processos criativos, a começar pelos jogos infantis. É fácil
verificar a presença ostensiva do uso da imaginação quando a criança,
73
fazendo uso de um cabo de vassoura, imagina-se cavalgando um cavalo, a
menina que brinca com suas colegas imagina-se como mãe ou como uma
profissional qualquer, os meninos que brincam de polícia e ladrão etc. —
ainda que, conforme salienta VIGOTSKI, muitos destes jogos e seus
personagens baseiem-se, sobretudo, na imitação. Entretanto, as crianças
não se limitam à simples reprodução de elementos de suas experiências, mas
sim, realmente reelaboram e combinam, criativamente, tais elementos.
Como surge a atividade criadora e a que leis estaria submetida?
Para VIGOTSKI,
74
mesmo reelaborando os elementos desta realidade.
De forma semelhante, a presença dos conhecimentos que
possuímos refletem-se também em nossas construções não diretamente
vividas da realidade. Neste sentido, baseando-nos em estudos e relatos de
historiadores, podemos imaginar um quadro da Revolução Francesa ou
sobre o deserto do Saara, sem contudo havermos experienciado tais ocasião
ou lugares. Ora, nada mais faço que lançar mão de inúmeras informações
que, retiradas da realidade, combinam-se a ponto de tornar possível
imagens que vinculo ao fato histórico ou ao lugar geográfico. Isto é de vital
importância para o desenvolvimento humano, já que, segundo VIGOTSKI, a
imaginação converte-se em meio de ampliar a experiência do homem que, ao
ser capaz de imaginar o que não tem visto, ao poder concebê-lo baseando-se
em relatos e descrições alheias ao que não experimentou pessoal e
diretamente, não está encerrado no estreito círculo de suas próprias
experiências, podendo ultrapassar muito de seus limites, assimilando, com a
ajuda da imaginação, experiências históricas e sociais alheias.39
É desta forma que a própria fantasia auxilia-nos como
mediadora da ampliação de nossas experiências sobre a realidade, sem que a
tenhamos vivenciado pessoalmente (podemos inferir, neste caso, a
relevância dos conhecimentos científicos em tal processo). Logo, devemos,
por fim, também considerar o papel da imaginação sobre nossas
interferências sobre a própria realidade. Ou seja, não podemos perder de
vista que mesmo as elucubrações mais fantásticas aspiram à realidade (a se
tornarem concretas). Um exemplo deste fato é a imagem que temos sobre
qualquer adiantamento tecnológico, máquina ou instrumento, que de algum
modo suscita-nos vir a ser objetivamente plasmado.
Todas estas funções, devidamente agregadas, ainda, aos
aspectos afetivos e emocionais que necessariamente subjazem as condutas
humanas, conformam um universo ilimitado de possibilidades de
75
combinação e reelaboração da realidade (ou, ao menos, limitado tão-somente
à riqueza dos elementos que conformam a própria realidade que logramos
assimilar).
Entretanto, embora a necessidade e o desejo impulsionem a
criação, estes elementos nada criam por si. É necessário, portanto, que
determinadas condições objetivas sejam dadas para atingirmos determinado
nível de criação. Nenhuma invenção científica ou criação artística torna-se
passível de aparecer antes que se criem as condições materiais e psicológicas
necessárias para seu surgimento. A obra criadora constitui, portanto, o
resultado de um processo histórico em que cada nova forma se apóia nas
precedentes.40
Compreendidos todas estas características gerais da
imaginação criadora, podemos agora perceber que tão falsa quanto a suposta
separação entre imaginação e realidade é, pois, a crença comum em que as
crianças possuiriam maior riqueza imaginativa que os adultos, uma vez que,
supostamente, a infância corresponderia à época em que mais se
desenvolveria a fantasia e que, a partir daí e conforme cresce a criança,
decresceria sua capacidade imaginativa. Mas esta crença, nos diz
VIGOTSKI, não resiste ao exame científico, já que sabemos que a
experiência da criança é, de fato, muito mais pobre que a do adulto, tanto
quanto seus interesses são mais simples e elementares. Por esta razão,
podemos concluir que os ápices criativos encontram-se diretamente
relacionados ao processo de amadurecimento (histórico) de cada indivíduo.
Por estas razões tornam-se também evidentes os motivos pelos
quais as classes sociais mais privilegiadas têm sido pródigas no oferecimento
de um número desproporcional de inventores e inovadores. Isto se deve,
fundamentalmente, ao fato de estas terem, à sua disposição, muito mais
condições objetivas necessárias para se criar.41
76
Por sua vez, os constructos imaginativos surgidos em resposta a
nossos anseios, tendem a encarnar-se na vida, ou seja, tendem a tornar-se
ativos, transformando aquilo em face do que tende sua atividade. Baseando-
se em Ribaud, VIGOTSKI compara a suposta ―contemplação criadora‖ à
vontade impotente. Assim, a imaginação puramente intelectual
corresponderia à vontade que não se torna ação, na esfera do movimento:
77
intelectuais para os processos de criação, devemos ter em conta que a
atividade criativa só possa ser concebida, enquanto tal, na medida em que se
objetive. Objetivando-se, o que era apenas concepção encarna-se na
realidade, nela interferindo e, possivelmente, ela transformando.
Se já se torna possível percebermos as reais dimensões e
implicações da atividade criativa para o processo histórico de consolidação
do gênero humano, ao considerarmos que o processo de apropriação, pelos
indivíduos humanos, de conhecimentos humano-genéricos, é a matéria-
prima da própria atividade criativa, evidencia-se, por sua vez, o
imprescindível papel das formas de transmissão de saberes genéricos entre
as gerações humanas. E, indubitavelmente, o lugar que se nos revela
possuidor dos principais atributos para uma tal tarefa, é o processo
educativo formal. Passemos, portanto, a considerá-lo a partir de agora,
segundo esta perspectiva.
78
Capítulo III
Criatividade e ensino
79
conhecimentos que enquanto objetivações genéricas sistematizadas,
apresentam-se como essenciais ao próprio processo de consolidação do
gênero humano e da integração sócio-histórica dos indivíduos humanos ao
gênero.
No tópico 2, ―Pensamento cotidiano e não cotidiano e a
especificidade do ensino formal‖ munimo-nos uma vez mais dos postulados
de HELLER para explicitarmos as relações existentes entre cotidiano e não-
cotidiano, entendendo que com esta última esfera deva se identificar todo e
qualquer trabalho educativo formal. Em outras palavras, trata-se de
demonstrar que a realidade humana é composta de duas esferas essenciais
que, por serem dialeticamente complementares, são pois marcadas por
antagonismos e conflitos. Longe de serem naturais, tais relações conflituosas
refletem a própria luta que o gênero humano realiza, cotidiana e
arduamente, para superar suas limitações próprias de seu espontaneísmo
natural. Ora, certamente que isto nos remete, uma vez mais, ao papel
histórico da educação enquanto lugar destinado a mediar a apropriação de
conhecimentos e técnicas elaboradas e acumuladas milenarmente pela
humanidade. Tais produções constituem o conteúdo e fundamentam, em
outras palavras, o âmbito não-cotidiano da educação formal.
No tópico seguinte, ―Indivíduos para-si ou cidadãos potencialmente
transformadores de realidades e contribuintes à consolidação do gênero humano”,
procuramos esboçar, por fim, qual ser humano pretendemos atingir, afinal,
com todo o raciocínio do presente trabalho. A individualidade que
pretendemos é aquela que em linhas gerais, apreende, dentro de suas
possibilidades, o máximo de conhecimentos à respeito da humanidade, da
natureza e sobre si próprio, por meio de relações mantidas conscientemente
com sua genericidade. Trata-se, enfim, do homem que reflete livremente
sobre as relações imediatas e mediatas de sua realidade. Apropriando-se de
objetivações essenciais que a humanidade produziu no decorrer de sua
história, este homem se vê diante do desafio de questionar o mundo que o
rodeia e qual o seu papel diante do mesmo.
80
Por fim, o último tópico que apresentamos, intitulado ―Relações
entre Ensino e Desenvolvimento: as contribuições científicas de Liev
Semiónovitch Vigotski (1896-1934) e a psicologia histórico-cultural‖, visa
finalizar nossa caminhada teórica e científica resgatando os aspectos
fundamentais das descobertas de Vigotski e seus colaboradores acerca da
efetiva relação existente entre desenvolvimento humano e ensino. Neste
sentido, este tópico visa apresentar elementos que corroboram de modo
decisivo o que postulamos em termos teóricos, além de também prestar-se a
uma digna e oportuna rememoração das inestimáveis contribuições de L. S.
Vigotski a uma psicologia e uma pedagogia verdadeiramente
revolucionárias.
81
elementos da realidade imediata e mediata, de apropriação de objetivações
históricas humanas1, que nosso ―homem criador‖ encontra subsídios para
especular, recriar e potencialmente transformar a própria realidade que o
envolve, bem como as características de seu próprio gênero, das mais
variadas formas.
O ser humano é, portanto, um ente que, no decorrer de sua
história deve, necessariamente, apropriar-se das produções humano-
genéricas para inserir-se no gênero e, portanto, podemos dizer que não nasce
humano, mas sim, torna-se humano. Vejamos, o que nos diz LEONTIEV a
este respeito:
82
indivíduos que não se apropriam dos rudimentos da linguagem falada e,
ademais, dos da escrita. Estes indivíduos estarão muito sujeitos a
permanecerem à margem das condições e exigências contemporaneamente
elementares para a sua própria existência enquanto seres genéricos. À
margem, portanto, da condição básica de seres humanos.
No que respeita à educação, o pressuposto do processo de
apropriação nos sugere, portanto, o ensino formal como lugar fundamental
tanto a que elementos essenciais do conhecimento humano sejam
apropriados pelas novas gerações, como também lugar possível à promoção
de reelaborações sobre tais apropriações e objetivações a que correspondem.
A conjugação de ambos os aspectos funcionais do ensino resulta, por
conseguinte, na ampliação de possibilidades de transformações concretas e
satisfatórias sobre e para as diversas esferas da realidade humana.
Estas possibilidades de transformações, concretas e
satisfatórias, vêm corresponder, por sua vez, aos anseios de democratização
da própria sociedade majoritária, seja através de contribuições para o
enriquecimento cultural de sua época, seja pela produção de novos
conhecimentos imprescindíveis para a superação dos problemas que nela se
acumulam e se complexificam, com vistas à constante conquista de uma vida
em comunidade mais saudável, eqüitativa e humanamente realizadora para
seus membros.
Como percebemos, isto nos aponta, por conseguinte, uma
determinada concepção quanto à função própria do ensino formal. Sem
desconsiderarmos os inúmeros determinantes que conformam e interferem
no processo educativo humano, conquanto indivíduos e gerações possam
apropriar-se de inúmeras informações e conhecimentos em momentos,
lugares, formas e condições contextuais diversas, foi especialmente através
da educação formal que se tornou possível um mais amplo e rápido acesso a
conhecimentos essenciais à sobrevivência, reprodução e desenvolvimento
das comunidades humanas. Educação sistematizada que surge e se
83
consolida, bem claro, a partir da complexificação incessante das
necessidades, produções e formas de organização das sociedades humanas;
ou seja, a partir da necessidade de que conhecimentos historicamente
elaborados e acumulados sobre a própria humanidade e natureza que a
envolve, fossem transmitidos-assimilados pelos membros humanos para a
própria manutenção, reprodução e transformações histórico-culturais
características e necessárias ao gênero, em seu longo e constante processo de
humanização. Conhecimentos e produções, portanto, correspondentes a
contextos e organizações sociais determinados e, tanto quanto,
determinantes dos mesmos.
Segundo SAVIANI, a compreensão da natureza da educação
passa, necessariamente, pela compreensão desta natureza humana. Como
vimos, a atividade intencionalmente transformadora da natureza é o que
funda a diferença entre o homem e demais animais. Se o trabalho
fundamenta todo o mundo da cultura humana, tomar a atividade educativa
como um fenômeno humano implica em reconhecer que ela é tanto resultado
como exigência do processo de trabalho. Também ela é, enfim, um processo
de trabalho.3
O processo de produção da existência humana refere-se, antes
de mais nada, à garantia de sua sobrevivência física, o que se dá através do
trabalho material, portanto. Todavia, para produzir ―materialmente‖ é
necessário que o homem antecipe idealmente os fins de sua ação
(representação mental). Essa representação diz respeito a aspectos
relacionados desde às propriedades do mundo real (respeitantes ao âmbito
da ciência), passando por aspectos de valoração (respeitantes à ética) como
também aspectos simbólicos (respeitantes à arte). Estes aspectos engendram
uma categoria complementar de produção, que poderíamos denominar
―trabalho não-material‖.4 Enquadram-se aqui a produção das idéias em
84
geral, conceitos, valores, símbolos etc., que caracterizam, em outras
palavras, o próprio saber humano acerca da realidade.
A natureza do ensino diz respeito, sobretudo, ao trabalho não-
material, conquanto devamos ainda distingui-lo em duas formas principais,
ou seja, uma primeira, em que a produção e o consumo do produto
encontram-se separados (a produção e posterior leitura de um livro, por
exemplo) e outra em que ambos, produção e consumo, encontram-se
imbricados; este é o caso específico do ensino formal. Nele, ao mesmo tempo
o ato de ensinar implica necessariamente a existência concomitante do
aprendiz, que o consome. A natureza própria da educação corresponde,
portanto, a um processo de trabalho eminentemente intelectual, cuja
produção e consumo dão-se simultaneamente. Mas com que objetivo?
Se desejamos responder esta pergunta deveremos levar em
consideração, desta feita, a natureza propriamente humana.
Especificamente no caso humano, o que não é fornecido pela natureza bio-
física deve, necessariamente, ser produzido pelos próprios homens. Esta
produção é o que compreende todas as atividades e produtos histórico-
culturais humanos, e esta produção histórica e cultural fundamenta o que
aqui chamamos de natureza humana, ou seja, uma natureza genérica
constituída sobre a natureza bio-física, mas que a ela não se limita e que
com ela não mais se confunde espontaneamente, a exemplo do que ocorre às
demais espécies. Nas palavras de SAVIANI,
Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas
é por ele produzida sobre a base da natureza bio-física.
Conseqüentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. 5
85
adequadas para se atingir tal objetivo. Em outros termos, a escola é uma
instituição cujo papel consiste na socialização dos saberes historicamente
sistematizados.6 ―Sistematizados‖ porque não é sua função tratar de saberes
espontâneos, relacionados meramente à imediaticidade cotidiana e ao senso
comum que lhe é característico, mas sim aos conhecimentos metódica e
historicamente constituídos. Estes saberes são aqueles que compreendemos
como científicos.
Ora, os saberes científicos são aqueles que superam a mera
opinião ou a mera experiência. Se estes dois tipos de conhecimentos
encontram na espontaneidade cotidiana seu lugar e subsídios, o mesmo não
se dá com os saberes científicos, não apreensíveis espontaneamente e que,
portanto, justificam e suscitam um lugar e meios específicos para sua
difusão e apreensão. Eis, portanto, o papel fundamental cabível à instituição
escolar, historicamente compreendido.
O conhecimento historicamente elaborado e sistematizado
constitui, em nosso entendimento, o saber humano em seu mais alto e
significativo grau, pois é tal saber tanto o resultado de milenares lutas e
conquistas do homem, quanto condição para o constante processo de
manutenção e consolidação do gênero humano. Em outros termos, enquanto
condição de consolidação do processo de humanização da espécie e, logo, de
superação dos limites biofísicos (naturais) a que estão submetidos todos os
seres vivos.
Podemos, pois, vislumbrar, a partir do exposto, a
imprescindível importância de que estes saberes sejam, ao máximo,
socializados. Entretanto, não fazemos, aqui, uma apologia romântica do
papel da instituição escolar para o processo de humanização. Quando
propomos que o papel da instituição escolar é o de mediadora possível da
socialização de saberes sistematizados, não a admitimos, passivamente, tal e
qual comumente nos tem sido proposta e sistematicamente imposta. Não
86
será jamais suficiente que a instituição escolar apenas atenda às exigências
de difusão de saberes (o que sequer atende no Brasil), mas sim, que
contribua de modo efetivo para a superação do mero senso comum, o que
implica em que os indivíduos atinjam uma consciência filosófica acerca do
mundo natural e humano. Por consciência filosófica entendemos uma
apreensão e compreensão do mundo coerente conscientemente elaborada,
por oposição ao caráter eminentemente fragmentário, espontâneo e
incoerente do senso comum. Entretanto, segundo GRAMSCI,
87
submetendo-se aos interesses das classes dominantes através da assimilação
acrítica das concepções de homem e de mundo por elas difundidas,
concepções estas que, por esta razão, tornam-se hegemônicas, mas não
correspondem aos interesses das classes subalternas.
Como assinala SAVIANI,
7 GRAMSCI, Antonio – Concepção dialética da história. (Nota II), op. cit., p. 13.
8 SAVIANI, Dermeval – Educação: do senso comum à consciência filosófica. 10a. ed. São
Paulo, Cortez & Autores Associados, 1991, p. 10.
9 Cf. SAVIANI, Dermeval – Educação: do senso comum à consciência filosófica. op. cit., p.
10-11.
10 Cf. GRAMSCI, Antonio – Concepção dialética da história . op. cit., p. 37.
88
saber, o proletariado.11 Contudo, o proletariado não pode se elevar enquanto
força hegemônica sem a elevação de seu nível cultural. Eis aqui, portanto, a
importância capital da educação. Segundo SAVIANI,
11 Cf. SAVIANI, Dermeval – Educação: do senso comum à consciência filosófica . op. cit.,p.
11.
12 SAVIANI, Dermeval – Educação: do senso comum à consciência filosófica, op. cit., p.11.
13 GRAMSCI, Antonio – Concepção dialética da história, (Nota I), op. cit., p. 12.
89
processo que visa a realização e consolidação do próprio homem. E ―que é o
homem?‖, pergunta GRAMSCI — que ―é a primeira e principal pergunta da
filosofia‖, nos diz ele. O homem é um contínuo devir, conclui, e, portanto, a
questão a ser formulada deveria ser, segundo o pensador, ―o que é que o
homem pode se tornar‖, isto é, ―se o homem pode controlar seu próprio
destino, se ele pode ‗se fazer‘, se ele pode criar sua própria vida‖. 14 O homem,
em nosso entender, é criador e criatura de si mesmo, a humanizar
constantemente sua condição de homem tanto quanto mais livre for para
revolver e transformar realidades. Impedir a realização desta necessidade
ontológica é subverter a realização de sua própria natureza. É, em outras
palavras, desumanizá-lo.
90
ao conjunto de tarefas, ações, normas e hábitos necessários à realização da
vida diária em comunidade. Do mesmo modo, também a escola possui sua
cotidianidade, necessária a viabilizar seus objetivos. Entretanto, a
instituição escolar, como vimos, lida com conteúdos determinados por
objetivos que não se identificam, imediatamente, com os conteúdos e
objetivos da vida cotidiana de nossas sociedades.
Segundo as proposições de HELLER, ―a vida cotidiana é o
conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos homens
particulares, os quais, por sua vez, criam a possibilidade da reprodução
social‖15, ou, pela qual, garantir-se-á a reprodução e manutenção do próprio
gênero humano (atividades que os indivíduos já incorporaram para sua
sobrevivência e que se tornaram parte imprescindível da consecução da vida
diária).
Já nos referimos, no tópico anterior, ao papel e propósitos que
são atribuíveis à instituição escolar, e que se distinguem substancialmente
dos conteúdos e propósitos das atividades ligadas ao dia-a-dia e ao senso
comum de nossas vidas. Ora, o papel da escola é, sobretudo, o de mediar a
socialização de saberes historicamente elaborados e sistematizados; estes
saberes e as atividades correspondentes à sua veiculação e aquisição
conformam uma esfera de exigências e atividades humanas distinta da que
denominamos cotidiana. A esfera não-cotidiana (conquanto indissociável da
esfera cotidiana), corresponde, pois, ao conjunto de atividades relacionadas à
reprodução das características próprias das sociedades humanas, em termos
sócio-históricos (atividades relacionadas ao que não é imediatamente
apreensível pela consciência, senão pela atividade reflexiva, metodicamente
orientada).
Assim, as produções, conhecimentos e hábitos já espontâneos e
necessários para as atividades de reprodução e manutenção humanas
(características da vida cotidiana), encontram seus exemplos mais comuns
91
em elementos como objetos, utensílios e/ou bens materiais, no uso da
linguagem e pelos costumes estabelecidos em nossas sociedades. Estas
atividades não implicam, portanto, em uma relação intencionalmente
consciente dos homens para com a natureza das mesmas, sobretudo para
com seus contextos de produção16. Em outros termos, são assimiladas como
naturalmente dadas pelos indivíduos em geral.
Por sua vez, as produções e conhecimentos mediatizadores da
reprodução histórica da sociedade (conhecimentos e produções humano-
genéricos) e que portanto ultrapassam o âmbito da vida cotidiana,
espontânea e imediata, constituirão a esfera não-cotidiana das atividades
humanas, tendo por principais exemplos as produções relacionadas à
ciência, à arte, à filosofia, à moral, à ética e à política, dentre outras áreas do
conhecimento historicamente conquistadas pela humanidade, no decorrer de
seu desenvolvimento milenar.
Deste modo, diferentemente do que se dá com a esfera das
atividades cotidianas, caracteristicamente espontâneas e não
necessariamente refletidas, o mesmo não pode se dar com a esfera das
atividades não-cotidianas, já que aos homens torna-se necessário uma
relação reflexiva com a ciência, a arte, a filosofia, a moral, a ética ou política,
para que estas possam ser efetivamente compreendidas, reproduzidas e
reelaboradas no decorrer da história do gênero.17
Por fim, ambas as dimensões influenciam-se mutuamente, o
que implica, portanto, que da esfera cotidiana das atividades humanas haja
surgido a esfera não-cotidiana das mesmas atividades e que, a seu turno, a
esfera não-cotidiana haja continuamente influenciado e transformado a
esfera das atividades, produções e conhecimentos cotidianos humanos. Esta
relação não se dá, entretanto, de modo espontâneo e natural, sendo histórica
e contextualmente determinada por inúmeras variáveis sócio-culturais e
92
econômicas. É preciso, pois, enfatizar que a esfera não-cotidiana apresenta-
se, antes de tudo, como a própria superação, por incorporação, da esfera
cotidiana das atividades e conhecimentos humanos e, portanto, com ela não
mais coincide ou se identifica.
A esfera não-cotidiana dos conhecimentos e atividades
humanas corresponde, portanto, ao conjunto de saberes que dizem respeito à
natureza genérica da humanidade e, por conseguinte, fundamentam e
possibilitam o próprio pensamento elaborado acerca da realidade (não
espontâneo, metodicamente orientado).
Aqui uma primeira questão de grande importância em nossas
considerações, que a relação existente entre cotidiano e não-cotidiano
suscita: o que é realidade? Entrementes, se nos pautarmos nos postulados
apresentados por Kosik18 acerca da apreensão prático-sensível da realidade,
concordaremos quanto ao fato de que a essência da realidade não é,
necessariamente, tal e qual é apreendida imediatamente pelos nossos
sentidos. Dado o caráter pragmático de nossas atitudes cotidianas para que
seja possível a consecução da própria vida humana, e que desse modo não há
como apreendermos a essência mesma da realidade, senão pela análise e
pela reflexão, torna-se estranha a afirmação segundo a qual haveria
coincidência e identificação entre cotidiano e realidade. Entretanto,
observamos haver se tornado muito comum a opinião daí derivada, segundo
a qual a escola pouco ou nada teria a ver com a realidade concreta ao lidar
com saberes e realizar atividades diversas daquelas com as quais as pessoas
lidam no seu dia-a-dia. Esta opinião encontra, inclusive, eco na vida diária,
em ditos populares como ―mais vale a prática que a gramática‖ ou ―as
crianças aprendem apesar da escola‖.19
Uma vez tomada a cotidianidade como a própria realidade,
tornaram-se comuns as posturas teóricas e práticas que procuram
18 Vide Capítulo I, 1.1. ―Senso comum e apreensão prático-sensível da realidade‖, pág. 15-
20.
19 Cf. SAVIANI, Dermeval - Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, p. 23.
93
aproximar, ao máximo, as atividades e conteúdos escolares da cotidianidade
em geral, considerada parâmetro ideal para o trabalho educativo formal,
porque verdadeiramente corresponde à vida concreta dos alunos.
Não há nada, ao nosso ver, que seja passível de objeções quando
se trata de buscar aproximar a escola da vida concreta da coletividade de
indivíduos que esta tem por função formar enquanto cidadãos. De modo
algum supomos que à escola seja cabível um pretenso distanciamento
asséptico da vida cotidiana, fundamentado numa falsa neutralidade
institucional. É propósito da escola aqui defendida, como já dissemos,
justamente a interferência político-revolucionária na realidade que a
envolve.
A questão a ser elucidada, como torna-se presumível, diz
respeito ao equívoco de se tomar, em primeiro lugar, a realidade cotidiana
como a realidade. Longe disto, a esfera das atividades e saberes cotidianos
tem, por principal característica, a imediaticidade e a espontaneidade no
trato com os fenômenos da realidade. E os fenômenos são manifestações da
realidade mas, não necessariamente correspondem à sua essência.
Ora, se a vida cotidiana tem, como vimos, por principais
características, a ultrageneralização, o trato pragmático-utilitário com os
fenômenos humanos e naturais, a imediaticidade e a espontaneidade nas
relações com as manifestações da realidade, torna-se paradoxal que a escola
nela fundamente suas ações e conteúdos. Se o papel da escola diz respeito, a
priori, à socialização dos saberes histórica e metodicamente elaborados, seus
conteúdos e a forma como atingirá seus objetivos não podem basear-se em
elementos da cotidianidade. O cotidiano é expressão da realidade, mas não
é, de forma alguma, a realidade.
Por conseguinte, resta-nos resgatar o lugar da esfera não-
cotidiana em nossa reflexão. Eis que ela nos surge como o locus dos
conhecimentos e atividades que, historicamente elaborados, possibilitam, de
fato, que reflitamos coerentemente sobre a realidade, de modo a superarmos
sua manifestação aparente, nos aproximando, ao máximo, de sua essência. A
94
escola traz consigo, portanto, também a finalidade maior de contribuir para
a superação dos limites ostensivamente impostos pela própria cotidianidade.
Logo, a escola visa a não-cotidianidade num movimento de superação
dialética da vida cotidiana, ou seja, negando-a por incorporação.
Temos motivos para crer, entretanto, que tais questões têm
passado desapercebidas das reflexões da maioria de nossos educadores, a
ponto de a escola, suas atividades e conteúdos, verem-se constantemente
ameaçados por uma variada gama de proposições, que pouco ou nada têm a
ver com seus reais fundamentos e objetivos. 20
Se entendido o pensamento cotidiano como essencialmente não-
refletido, espontâneo e imediato, e o âmbito da educação formal como
dimensão da organização social cujo papel deva ser regido pela
intencionalidade consciente diante do fato de lidar com conhecimentos
historicamente sistematizados, respeitantes, portanto, à esfera das
atividades e produções não-cotidianas, concluímos pela não pertinência de
que concepções pautadas em representações essencialmente cotidianas ou
mesmo fundadas no senso comum venham a influir e até mesmo conformar
o pensamento daqueles responsáveis pela ação pedagógica escolar, ou seja,
de nossos educadores.
95
pertinentes enquanto ―obviedades‖ (caracteristicamente de senso comum ou,
em outros termos, assimiladas acriticamente pela maioria dos educadores).
Nas palavras de DUARTE,
96
―portadoras‖ do gênero humano, segundo DUARTE. 22
Entretanto, devemos ter em mente, aqui, que as objetivações
genéricas humanas não se limitam a um único caráter comum. Neste
sentido, devemos distinguir entre várias esferas de objetivação, que
correspondem desde as objetivações genéricas em-si, caracteristicamente
presentes à esfera das atividades e conhecimentos cotidianos, até as
objetivações genéricas para-si, termo pelo qual designamos as atividades e
conhecimentos não-cotidianos.
Os termos marxianos em-si e para-si, utilizados por HELLER
em suas análises categoriais sobre as objetivações genéricas, servem ao
propósito de caracterizarem: a) a relação entre homem-natureza, por um
lado, caso em que em-si designa o ―ser-em-si‖ da natureza e para-si o ―ser-
para-si‖ da sociedade, ou b) a relação possível entre o homem e a prática
social humana, podendo esta tender a ser em-si, quando a genericidade se
realiza sem que haja uma relação consciente dos homens para com a mesma,
ou para-si, quando verificamos uma relação consciente para com sua
produção. Por outro lado, HELLER acrescenta que estas categorias são não
só relativas, como nos casos citados, como também tendenciais, ou seja, não
se referem a estados puros. E, tomando como exemplo a distinção efetuada
por Marx entre classe em-si e classe para-si, nos esclarece a autora:
É em-si aquela classe que, com respeito a seu lugar na divisão social do
trabalho e a sua relação com os meios de produção, está simplesmente
presente, considerando que a ordem econômica e social determinada não
existiria nem poderia existir sem seu próprio ser-assim. Se converte em
classe para-si quando reconhece seu próprio ser-classe e seus
conseqüentes interesses, quando desenvolve uma consciência de classe
própria... Indubitavelmente, entre estes dois estados são possíveis
inumeráveis graus e nada estaria em condições de determinar um
ponto, um instante histórico nele em que tenha lugar o salto do em-si ao
para-si.23
97
Estas tendências refletem, portanto, o nível de consciência das
quais se aproximam ou se afastam indivíduos e comunidades frente a
relação que mantêm com a genericidade. Este grau de consciência nas
relações existentes entre os seres humanos e as objetivações genéricas,
98
própria vida converteu-se em objeto. E isso precisamente por tratar-se de
um ser capaz de assumir-se conscientemente enquanto um ser genérico‖.25
Em linhas gerais, o indivíduo para-si será, então, aquele que
apreende, dentro de suas possibilidades, o máximo de conhecimentos à
respeito da humanidade, da natureza que o rodeia e sobre si próprio diante
das relações que mantém com sua genericidade. Mais que isto, será o
homem que reflete livremente sobre as relações imediatas e mediatas
havidas entre estas instâncias de sua realidade. Neste sentido, e munido de
informações essenciais que a humanidade produziu no decorrer de sua
história, este homem se vê diante do desafio de questionar o mundo que o
rodeia e qual o seu papel diante do mesmo. Vê-se, enfim, diante da
possibilidade de, consciente e ativamente, correlacionar fatos e informações,
compará-los, confrontá-los e, portanto, explorar crítica e constantemente
novas possibilidades para sua realidade, contribuindo, possivelmente, para
sua transformação.
Este indivíduo para-si é o que poderíamos entender, por
conseguinte, como cidadão — um ser que se reaproxima e se apropria das
características que compõem as produções e conquistas do gênero ao qual
pertence, objetivamente refletido pela comunidade em que se encontra
inserido.
Certamente, o ser humano ao qual nos reportamos não se trata
de um ser amiúde existente. Tampouco, por outro lado, de um ser
meramente ―ideal‖, abstrato. Referimo-nos à sua natureza genérica, antes
de mais nada, que potencialmente tende a ser-para-si. Trata-se, portanto, de
um ser que se realiza moto continuum, a partir do já objetivado por seu
gênero até o presente e que se projeta no devir de seu processo particular de
apropriação.
Se já nos referimos, portanto, ao papel da escola enquanto
mediadora do processo de socialização dos saberes humano-genéricos, resta-
99
nos complementar que seu objetivo principal é a formação de indivíduos
conscientes, críticos, responsáveis, sãos e, por conseguinte, potencialmente
contribuintes à transformação concreta de sua realidade.
Enquanto mediadores do processo de ensino formal junto às
novas gerações, os professores apresentam-se como os grandes depositários
da função de proporcionar oportunidades concretas para tais apreensões de
conhecimentos, suas elaborações e reelaborações, a partir da sala-de-aula,
com vistas à formação de cidadãos contribuintes ao processo de
desenvolvimento e democratização social por meio de interferências
construtivas sobre e para a realidade.
26Pautâmo-nos, aqui, na tradução que consideramos mais fidedigna desta obra, qual seja, a
da edição espanhola de ―Pensamiento y Lenguaje‖ constante em Obras Escogidas II:
problemas de psicología general. Trad.: José Maria Bravo. Madrid: Visor Distribuciones,
1993. (Col. Aprendizaje, Vol. XCIV).
100
Estes estudos e as proposições em questão são de incomparável
importância para que tenhamos parâmetros científicos para uma
compreensão mais profunda da real extensão do papel do ensino para o
desenvolvimento dos indivíduos humanos.
Em tais estudos, VIGOTSKI parte das seguintes premissas:
primeiro, que os conceitos (ou significados das palavras) se desenvolvem;
segundo, que os conceitos científicos também se desenvolvem e não são
assimilados, como era suposição geral à época, de ―forma acabada‖, pré-
definida ou imutável; terceiro, a generalização das conclusões obtidas no
estudo dos conceitos cotidianos ao campo dos conceitos científicos carecia de
legitimidade; quarto, o problema, em seu conjunto, deveria, por fim e
efetivamente, ser estudado experimentalmente.
As experiências conduzidas por VIGOSTSKI levaram a uma
série de constatações, que permitiram concluir que a acumulação de
conhecimentos conduz à elevação dos níveis dos tipos de pensamento
científico, o que reflete no desenvolvimento do pensamento espontâneo e
demonstra o papel determinante da instrução na evolução da criança em
idade escolar. Convém, portanto, para os nossos propósitos finais neste
trabalho, que os referidos estudos de VIGOTSKI e suas conclusões sejam
devidamente expostos.
Uma hipótese de VIGOTSKI em tais investigações fora a de que
o desenvolvimento dos conceitos científicos segue um caminho particular em
comparação com o desenvolvimento dos conceitos cotidianos, muito embora
isso não represente que entre ambos não haja relações. Os conceitos
cotidianos tendem, segundo o autor, à generalização, e se produzem fora de
um sistema determinado. De modo distinto, os conceitos científicos
remetem-se ao concreto, conquanto sob as condições de um sistema
organizado.27 Em outras palavras, uma das principais conclusões das
investigações em questão foi a de que os conceitos científicos são produzidos
101
nas condições do processo de instrução, que constitui a forma mais singular
de cooperação entre adultos e crianças. Aliás, a cooperação é o principal
aspecto do processo de instrução, juntamente com os conhecimentos que são
transmitidos à criança, segundo um determinado sistema (o que conjuga
métodos, conteúdos e objetivos orientados a um fim).
VIGOTSKI levanta, fundamentalmente, a questão de se
existiriam relações entre ―processo de ensino‖, ―assimilação de
conhecimentos‖ e o ―processo de desenvolvimento interno do conceito
científico‖ (ou seja, na consciência). O processo de desenvolvimento
coincidiria com o processo de ensino ou não? Quais as implicações caso as
respostas fossem positivas ou negativas?
A chamada Psicologia Infantil teria então duas respostas para
tal questão: uma primeira, que afirmava que os conceitos científicos
careceriam de história própria (ou seja, não se submetem a qualquer
processo de desenvolvimento). São simplesmente assimilados pelas crianças,
que os ―absorveriam‖ do mundo dos adultos. Entretanto, VIGOTSKI pôde
constatar que, na verdade, o conceito não é um simples conjunto de
associações assimiladas pela memória, mas sim o resultado de um complexo
conjunto de atos do pensamento. Este processo não seria dominado pela
simples aprendizagem, exigindo que a criança na verdade elevasse, antes, o
seu desenvolvimento interno a um grau mais alto de possibilidades de
conscientização. Aliás, a formação dos conceitos científicos dependia
diretamente do grau de voluntariedade atingido pela criança (não
implicando isso na simples premissa da maturação do organismo).
Estas constatações corroboraram as suspeitas de inúmeros
educadores de que o método do ensino direto e mecânico seria na verdade
infrutífero. E de fato, VIGOTSKI menciona que já Tolstói havia se
aproximado do fato essencial do insucesso de tal modelo, ao manifestar que
―quase sempre não é a palavra que é incompreensível, mas o aluno que não
102
dispõe do conceito a que se refere a palavra‖.28 Isto estaria correto; o erro do
pensamento de Tolstói, segundo VIGOTSKI, fora julgar que o processo de
desenvolvimento dos conceitos fosse, contudo, tão complexo e misterioso que
não haveria como nele interferir. Entretanto, enfatiza VIGOTSKI, é
plenamente possível ensinar intencionalmente ao aluno novos conceitos e
formas de uma palavra, o que pode resultar no desenvolvimento superior
dos próprios conceitos de que a criança já dispõe. Eis uma proposição
diversa, portanto, da apresentada pela primeira resposta conceitual.
A segunda resposta conceitual sobre uma possível relação
entre desenvolvimento e ensino é, para VIGOTSKI, a mais difundida de
todas e propõe que o desenvolvimento dos conceitos científicos na mente da
criança que recebe instrução não se diferencia, essencialmente, do
desenvolvimento dos conceitos que se desenvolvem na mente das crianças
não submetidas à instrução (ou que se formam durante a experiência
própria da criança), e que, portanto, não se torna procedente diferenciá-los.
VIGOTSKI objeta que, entretanto, um dos erros desta posição científica
seria o de tomar, como objeto para o estudo da formação dos conceitos, os
próprios conceitos cotidianos (espontâneos), o que conduz à sua conseqüente
indiferenciação dos conceitos científicos. Contudo, ambos os conceitos não
pertenciam ao mesmo gênero, guardando entre si muitas diferenças.
Para VIGOTSKI, Jean Piaget teria atentado tanto para a
existência de tais diferenças entre um e outro tipo de pensamento,
denominando uns de ―conceitos espontâneos‖ e os demais de ―conceitos não
espontâneos‖, como para o caráter ativo, por parte da criança, na
assimilação dos conceitos não espontâneos. Entretanto, Piaget estabelece
que as idéias espontâneas são próprias do pensamento infantil, sendo as não
espontâneas próprias do pensamento adulto. Ao propor esta separação,
segundo VIGOTSKI,
103
quando assimila o conceito, o transforma, refletindo nele as
características próprias de seu próprio pensamento neste processo de
transformação. De fato, Piaget é partidário de atribuir esta situação
unicamente aos conceitos espontâneos e renuncia a considerar que isto é
aplicável igualmente aos conceitos não espontâneos. Esta dedução
totalmente infundada encerra o primeiro aspecto errôneo da teoria de
Piaget.29
104
importantes então existentes, mas suas contradições tornavam necessárias
investigações que visassem a superação de seus equívocos. Para isso se
orientavam seus estudos e estes acabaram por confirmar suas principais
hipóteses, diversas das conclusões a que chegou Piaget. Uma delas, a de que
os conceitos científicos não são simplesmente assimilados nem apreendidos
pelas crianças, deslocando dessa forma os preexistentes conceitos
espontâneos, mas sim, se formam graças à atividade do próprio pensamento
da criança, que o tempo todo reflete a atividade com que concretamente
encontra-se envolvida.
Contrariamente à segunda proposição de Piaget, os dados das
investigações revelaram que os conceitos científicos das crianças, tanto
quanto os mais puros dos seus conceitos espontâneos, não manifestavam
apenas traços contrários, mas também traços comuns. VIGOTSKI pôde
concluir, neste caso, que antes de rígida, a fronteira entre ambos era, na
verdade, muito tênue, e mais interseccional que delimitadora. Na verdade,
os conceitos científicos só se tornavam possíveis na medida em que os
conceitos espontâneos alcançassem determinado nível, comumente próprio
da idade escolar. Segundo ele,
105
principais fontes de desenvolvimento dos conceitos na idade infantil, tanto
quanto uma potente força organizadora deste processo. 31 Isto não quer
significar, vale lembrar, que os conceitos científicos surjam sem que as
formas mais elementares de generalização já existam.
Os resultados de suas pesquisas indicaram, ainda, o fato de que
a formação dos conceitos científicos, do mesmo modo que no caso dos
espontâneos, não ―termina‖ no momento em que a criança assimila pela
primeira vez o novo significado, mas, pelo contrário, a partir daí se inicia.
Na verdade, segundo VIGOTSKI, são seus momentos iniciais que se
distinguem uns dos outros.
Para tornar isto mais compreensível, VIGOSTSKI lança mão da
analogia do aprendizado da língua materna e de uma língua estrangeira,
cujas formas, experiências e conteúdos, embora distintos, dizem respeito a
um mesmo processo: o desenvolvimento da linguagem. 32 Assim, do mesmo
modo que o aprendizado de uma língua estrangeira se fundamenta no
conhecimento da língua materna, também o desenvolvimento dos conceitos
científicos se fundamenta nos conceitos espontâneos. Entretanto, note-se
bem, ambos os processos obedecem a diferentes condições e determinações
contextuais, instaurando-se em momentos diversos e sob determinadas
circunstâncias. Entretanto, tanto o aprendizado de uma língua estrangeira
como o desenvolvimento dos conceitos científicos encontram-se submetidos a
uma situação muito peculiar, qual seja, a de se constituírem como atividades
sistematizadas. Em outras palavras, é o contexto promovido pela instrução
que fundamenta a distinção entre o surgimento e desenvolvimento dos
conceitos cotidianos (espontâneos) do surgimento e desenvolvimento dos
conceitos científicos. O contexto instrucional é, pois, a ―pedra de toque‖ entre
o desenvolvimento de ambos os tipos de conceitos.
Essa conclusão, entretanto, não se presta a uma relação
mecânica de aprendizagem, ou por uma simples transmissão sistemática de
106
dados conceitos. Na verdade, salienta VIGOTSKI, entre o ensino e a
formação dos conceitos científicos existem relações mais complexas que
entre o ensino e a formação de hábitos33 (hábitos que, aliás, têm sustentado
algumas das principais concepções psicológicas da atualidade acerca da
aprendizagem, acrescentamos).
Além disso, VIGOTSKI chama a atenção para o fato de que,
para que os conceitos possam tornar-se científicos, a criança deve deles se
conscientizar. E como se leva a cabo, durante a idade escolar, a transição
dos conceitos não conscientes aos conscientes? — pergunta VIGOTSKI. E
mais uma vez este depara-se com o fato de que um conceito só atinge um
caráter voluntário e consciente dentro de um contexto necessariamente
intencional e sistematizado. Eis aqui, uma vez mais, o caráter fundamental
do processo de instrução. É ele o protótipo do contexto intencional e
sistematizado em questão.
Lançando mão da célebre frase de Marx, VIGOTSKI procura
assim resgatar o sentido mais profundo dos conceitos científicos: ―Se a forma
de manifestação e a essência das coisas coincidissem, toda ciência seria
supérflua‖.34 De fato, conscientizâmo-nos do que antes permanecia
desapercebido, oculto, velado. Se à ciência cabe levar à consciência a
essência das coisas, os conceitos científicos surgem enquanto mediadores do
processo humano de conhecer e sistematizar seus conhecimentos acerca da
realidade concreta.
VIGOTSKI passa, então, à desmistificação de inúmeras
posições conceituais ao seu ver equivocadas acerca da questão da relação
entre instrução e desenvolvimento. A começar pelo fato de que ambas
vinham sendo tratadas como elementos independentes pela psicologia de seu
tempo. Por esta primeira concepção, haveriam questões devidas ao
desenvolvimento e outras, próprias do ensino. O resultado prático de uma
107
tal premissa é a crença em que o desenvolvimento pode seguir seu curso
normal e alcançar um nível superior independentemente da instrução, ou
que as crianças que não tenham recebido instrução desenvolvam formas
superiores de pensamento em mesmo grau que as que não vão à escola.35
Uma variação de um tal pensamento adota uma posição um
tanto distinta, propondo que, se por um lado o desenvolvimento cria as
possibilidades, por outro o ensino as realiza. Contudo, segundo VIGOTSKI,
essa posição não reconhece que o ensino possa, num tal processo, incidir
sobre o processo de desenvolvimento, influenciando-o. Trata-se, no final das
contas, do pressuposto de que toda instrução exige a existência de um certo
grau de maturação de determinadas funções psíquicas. Por conseguinte, a
própria análise do processo psíquico acerca da instrução se reduz a aclarar
que funções são necessárias ou qual deverá ser o grau de maturação para
que a instrução seja possível:
108
instrução depende diretamente de que certos ciclos do desenvolvimento
sejam superados. Contudo, essa dependência não é, segundo VIGOTSKI, tão
estreita, estando ela na verdade subordinada a uma relação de outro nível.
À instrução, por esse ponto de vista, parece apenas caber o ―recolhimento‖
dos frutos da maturação infantil, mas, per se, continua a não interferir sobre
o próprio desenvolvimento. Para VIGOTSKI, essa visão, que tendeu a
dominar toda a ―velha psicologia pedagógica‖, encontra seu ápice na teoria
de Piaget. Seu ponto de vista é o de que o pensamento da criança recorre
obrigatoriamente a determinados estágios, independentemente de que a
criança receba ou não instrução.37 O papel da instrução será, portanto,
sempre externo, complementar e ocorrerá à retaguarda do processo de
desenvolvimento. Nas palavras de VIGOTSKI:
109
haveria pretendido demonstrar que o processo de formação de associações e
os hábitos serviriam de base também à instrução e ao desenvolvimento
mental, sendo portanto a essência de ambos os processos idênticos. Mas,
objeta VIGOTSKI, se há de fato uma identificação total entre ambos, não
parece procedente continuar a considerá-los separadamente, diferenciando-
os. Na verdade, esta teoria fundamentar-se-ia na concepção central da
chamada psicologia tradicional, ou seja, o associacionismo, então
incorporado pela reflexologia de Thorndike. Segundo VIGOTSKI, diante da
questão sobre o que representa o processo de desenvolvimento do intelecto
da criança, esta teoria tem como resposta que o desenvolvimento é o
resultado conseqüente e paulatino da acumulação de reflexos condicionados,
servindo esta resposta rigorosamente para responder também em que
consiste a instrução.39 E acrescenta que, para tal concepção:
110
Por um lado deve-se ter em conta que os processos de desenvolvimento e de
instrução são independentes um do outro, o que Koffka propõe ao afirmar
que o desenvolvimento é uma maturação, que em suas leis não depende da
instrução. Por outro, que toda instrução é desenvolvimento. E isto, para
VIGOTSKI, implica em reconhecer a essência dos dois pontos de vista
anteriores, unindo-os. Segundo VIGOTSKI,
111
Era importante apresentar, aqui, tais aspectos gerais do
contexto da chamada psicologia pedagógica de princípios do século para
compreendermos melhor o lugar próprio em que se instituiu a concepção
histórico-cultural, uma concepção singular em meio às já citadas. Neste
sentido, VIGOTSKI e sua equipe partiram da tese de que os processos
instrução e desenvolvimento não são independentes entre si, como também
não conformam um único e mesmo processo. O que se verificava eram
relações profundamente complexas entre os mesmos, mas que não tinham
sido adequadamente investigadas e compreendidas, até então. 44
Não cabe, aqui, que adentremos nas especificidades dos
experimentos então realizados, restringindo-nos, portanto, aos seus
principais achados e conclusões. O primeiro grupo de investigações, que se
referia à busca de esclarecimentos acerca das relações existente entre
maturidade e instrução, foi realizado a partir de estudos sobre como a
criança passa a se relacionar com as atividades das disciplinas essenciais do
começo de sua escolarização. A primeira conclusão, daí advinda, foi que,
contrariamente ao que se acreditava, as crianças que superam com êxito o
processo de instrução desse período não mostram o menor traço de
maturidade das premissas psicológicas que, segundo a primeira teoria,
deveriam preceder o começo da mesma. É o próprio processo de instrução e o
contato com novos elementos do conhecimento que, por suas exigências às
funções psicológicas da criança, as arrastam para outros níveis. E isto
tampouco quer representar que as novas exigências possam ser tomadas
enquanto necessidades. Basta tomar o exemplo da escrita para entender
isto: a linguagem escrita, contrariamente à aquisição da fala, não é uma
necessidade que possa ser interpretada como vital ao indivíduo. Pelo
contrário, ao princípio da aprendizagem da escrita a sua necessidade é
totalmente nula para a criança. É o contato com a linguagem escrita que
inaugura uma etapa de exigências ao processo de desenvolvimento da
criança, o mesmo se dando com as demais disciplinas a serem aprendidas.
112
Mais que isso, VIGOTSKI se depara com um dado que deve ser
tomado como fato central de todo processo de instrução, ou seja, que este
incide fundamentalmente sobre a tomada de consciência e a voluntariedade
da criança.45 Por ela, e sobretudo no caso da linguagem escrita, a criança
toma consciência de relações que envolvem o que até então só realizava
espontânea e inconscientemente, a começar pelos fundamentos e inter-
relações possíveis de sua própria língua. É deste modo que a criança
aprende, na escola, a tomar consciência do que faz e, portanto, a operar
voluntariamente seus próprios hábitos. Como nos diz VIGOTSKI, ―seus
hábitos passam de inconscientes, do plano automático, ao plano voluntário,
intencional e consciente.‖46
Enfim, estas constatações tornam-se básicas à perspectiva
histórico-cultural, que toma como sua primeira premissa o fato de que ―o
desenvolvimento do fundamento psicológico do ensino das principais
matérias não precede o começo da mesma, mas sim, tem lugar em uma
indissolúvel conexão interna com ela, no curso de seu avanço progressivo.‖ 47
Complementarmente, a segunda série de experimentos visou
esclarecer, de modo efetivo, a questão da correlação temporal dos processos
de instrução e desenvolvimento. Por tais estudos foi possível constatar,
desta feita, que os processos relacionados ao desenvolvimento nunca
coincidem com os relativos à instrução, sendo que o processo de instrução,
contudo, tende sempre a se antecipar ao desenvolvimento. Nas palavras do
próprio VIGOTSKI:
113
instrução se adianta fundamentalmente ao desenvolvimento.48
114
efetiva e, diríamos, decisiva influência do primeiro sobre o segundo processo.
Entretanto, resta-nos ainda nos reportarmos ao quarto e último
grupo de investigações sobre o assunto em questão. Esclarece-nos
VIGOTSKI que, até então, as investigações psicológicas sobre o problema do
ensino se limitavam a estabelecer o nível de desenvolvimento mental
atingido pela criança. Para tanto, recorria-se sempre às tarefas que a
criança conseguiria resolver por si mesma e, por conseguinte, se já se
encontraria madura para determinadas resoluções em cada suposta etapa
de seu desenvolvimento. Para VIGOTSKI, era evidente que com tal método
poder-se-ia estabelecer unicamente o que já havia madurado na criança, até
então. Mas, se seus achados estavam corretos, o desenvolvimento não se
limitaria exclusivamente à parte madura atual. E cita a seguinte metáfora:
115
receitando nada de novo à escola, senão que nos livremos do velho
equívoco de que o desenvolvimento deve recorrer, obrigatoriamente, a
seus ciclos, preparando por completo os fundamentos sobre os quais a
instrução deve erigir-se. (...)
116
desenvolvimento humano, na medida em que esclarece a caráter
determinante da atividade humana sobre suas diversas etapas de
desenvolvimento.
O primeiro aspecto a ser observado, nos diz ele, refere-se ao fato
de que, durante o desenvolvimento da criança, sob influências concretas
diversas, o lugar que objetivamente esta ocupa no seio das organizações e
relações humanas se altera.53 LEONTIEV procura demonstrar este fato
descrevendo os estágios reais do desenvolvimento de uma criança.
Partindo da condição de uma criança em idade pré-escolar,
LEONTIEV chama-nos a atenção não só para as características próprias do
estágio de amadurecimento em que se encontra a criança, mas
principalmente para as condições objetivas que envolvem e orientam suas
ações. É assim que este conjunto de condições e circunstâncias proporciona à
criança uma série de atividades fundamentalmente caracterizadas pela
imitação de um mundo adulto do qual depende inteiramente, e para o qual
ainda não desempenha papel ativo. Assim se remete LEONTIEV à esta
questão:
cit., p. 59.
117
atos.54
118
da vida da criança. Somente desta forma poderemos compreender
adequadamente ―o papel condutor da educação e da criação operando
precisamente em sua atividade e em sua atitude diante da realidade, e
determinando, portanto, sua psique e sua consciência‖.57
Entretanto, LEONTIEV distingue, em seus graus de
importância, as atividades que envolvem o desenvolvimento da criança. Em
outros termos, não se refere a toda e qualquer atividade, e esclarece-nos que:
119
sentido mais estrito do termo, que se desenvolve em primeiro lugar já na
infância pré-escolar, surge inicialmente no brinquedo, isto é,
precisamente na atividade principal deste estágio do desenvolvimento.
A criança começa a aprender de brincadeira.
120
decisivamente determinantes das condições concretas nas quais se dá o
processo de desenvolvimento. Dessas condições dependerão os próprios
conteúdos dos estágios de desenvolvimento (cada indivíduo pertence a uma
dada geração, em dadas condições de vida, que determinam os conteúdos de
suas atividades etc.).
Portanto, se por um lado VIGOTSKI lançou uma perspectiva
totalmente inovadora para a compreensão do papel real do processo de
instrução sobre o desenvolvimento de suas potencialidades cognoscitivas,
LEONTIEV, por sua vez, procura demonstrar que, efetivamente, a atividade
principal do ensino encontra-se inserida em um contexto sócio-histórico
concreto, que incita o indivíduo a transformar em ação o que agora já lhe é
possível. LEONTIEV, em outras palavras, mostra o caráter determinante da
atividade principal sobre a própria personalidade em desenvolvimento,
enquanto individualidade que vislumbra uma série de novas possibilidades
para tomar parte e interferir objetivamente no mundo que o envolve. A
atividade principal, enfim, tanto define o, quanto é delineada pelo, ser em
desenvolvimento; ela é, em última instância, mediadora entre o ser
particular e o mundo das objetivações sociais humanas.
121
Considerações Finais
122
humanidade; afinal, como vimos, a gênese e a essência da própria história é
a subordinação da natureza a propósitos humanos. Segue daí a insuficiência
de condições, a quem quer que se baseie exclusivamente em elementos
parciais e a-históricos (imediatos e estanques) para conceituar, com estatuto
de ―científicas‖, suas considerações sobre os fenômenos humanos.
Por conseguinte, se ao considerar-se a atividade criativa, o
investigador limita-se a inquirir ou investigar o indivíduo que produz algo
considerado criativo, quais as características do que foi produzido, ou, por
fim, em que condições e circunstâncias se deu tal produção, tais perguntas
serão muito oportunas, caso nos ocupemos ou nos contentemos,
pragmaticamente, com a busca de como determinados resultados, ditos
criativos, são ou possam ser atingidos. Entretanto, para quem já percebeu
que nenhum fenômeno humano é fortuito, a pergunta deverá ser formulada
de outro modo: por que produzimos? Por que, diferentemente dos outros
animais, transformamos intencionalmente as coisas? Por que, enfim,
recriamos a natureza à nossa volta e a nós mesmos, em um tal movimento?
Como foi nossa intenção evidenciar, indo às raízes históricas
desta questão deparâmo-nos com respostas e possibilidades não só
relevantes do ponto-de-vista científico, mas vitais, no que diz respeito à
compreensão da própria existência humana. No que se refere aos propósitos
deste trabalho, a principal dessas respostas é a de que a humanidade é,
enquanto gênero, ontologicamente criativa. Mas isto nos remete a uma outra
questão: se o ser do homem é ontologicamente criativo, todos os indivíduos
humanos deverão ser, a priori, criativos em mesmo grau? A resposta, a
princípio, poderia ser positiva. Contudo, há a objeção possível de que o ser do
homem, entretanto, não é naturalmente dado, formando-se, pelo contrário,
histórica e socialmente. Logo, a criatividade, a partir deste raciocínio, tanto
quanto o processo de humanização, não estaria garantida a todos os seres
humanos. Afinal, as pessoas teriam que aprender a ser criativas, fazendo
uso de suas faculdades humanas e se apropriando ao máximo dos legados do
seu gênero.
123
De fato, este raciocínio parece pôr em xeque aquele postulado,
pois, de fato, se levarmos em consideração as inúmeras formas e graus de
manifestação e desenvolvimento do potencial criativo, haveríamos de
concluir que a criatividade não esteja presente a toda e qualquer atividade
humana, podendo então existir em grau muito pequeno ou, até mesmo,
tornar-se inexistente. Entretanto, é fundamental examinarmos esta questão
por outra forma.
Quando nos referimos à criatividade como ontologicamente
inerente ao gênero humano, devemos, antes de mais nada, nos perguntar o
que de fato caracteriza um ser humano. Em outros termos, o que torna o
Homo também sapiens? Já sabemos que é a consciência reflexiva, que em
última análise implica na possibilidade de tornar a ação humana projetada
no devir. Ora, não vem ao caso, aqui, se um indivíduo humano faz tal ou
qual uso de suas faculdades humanas, e logo, de sua criatividade. Em outros
termos, é absurdo dizer-se que um homem, em sendo humano, possa não
fazer uso de sua faculdade criativa. Todo homem é criativo porque é
humano, assim como é humano porque é criativo. Esta ―tautologia‖ é
necessária porque estamos diante de uma condição sine qua non, e não há
concessões possíveis no que se refere a este postulado. Portanto, ao
concebermos a possibilidade de um ente humano não ser criativo, estaremos
negando a essência mesma do que o torna homem ou o insere no gênero
humano. Evidentemente, esta condição humana é também historicamente
mediada, em se considerando que não há como concebermos que uma
individualidade humana, por mais tenra que seja, não esteja embebida de
elementos humanos assim que posta no universo no seu universo genérico.
Enfim, esta condição em nada se identifica, advertimos, com pressupostos de
caráter inatista, que aqui, pelo contrário, procuramos confrontar.
Mas se não há concessões quanto às determinações e
características humano-genéricas básicas do que devemos entender por ser
humano (que compõem o que Heller designa por genericidade em-si), há
concessões e variações muito amplas no que se refere aos diversos graus em
124
que um homem pode fazer uso de seus atributos humanos ou, no nosso caso,
de sua criatividade. Estas possibilidades, sócio-historicamente
determinadas, remetem-nos, uma vez mais, ao papel fundamental do
fenômeno da alienação em nossas vidas. É sem dúvida, portanto, que ao nos
remetermos aos diversos graus em que possamos fazer uso de nossa
criatividade, deveremos ter em conta o que concorre para um uso mais
amplo da criatividade ou, pelo contrário (e como tem sido regra geral em
nossas sociedades até presentemente), para o seu comprometimento,
supressão e desuso. Isto pode se dar por inúmeras vias, sendo que não
podemos deixar de levar em consideração as próprias possibilidades que o
gênero tem logrado alcançar, ou não. A questão é de enorme complexidade,
mas, certamente, podemos ao menos apontar com segurança ser o processo
de alienação o maior antagonista à exploração plena de tais possibilidades
humanas, às mais das vezes relacionadas ao estabelecimento de padrões
determinados de comportamento, atividades e valores socialmente
inculcados e irrefletidamente aceitos.
A questão da alienação e sua contrariedade ao processo de
humanização (processo cujas possibilidades tanto procuramos ressaltar
neste trabalho) certamente nos faz retomar as questões iniciais que
orientaram toda a nossa caminhada, acrescentando-lhes, finalmente, uma
outra. Se, para elucidarmos os fundamentos históricos da atividade criativa
tivemos que nos remeter — mais que a quem produz, como produz e o quê
produz —, à questão fundamental ―por que se produz‖, não podemos perder
de vista que para compreendermos como os processos criativos e seus
produtos têm sido compreendidos e valorados, deveremos considerar
profundamente uma questão crucial: para quem, afinal, se produz? É por
ela, sem dúvida, que nos depararemos com a necessidade de desvelarmos,
ainda, os inúmeros fatores, produtivos e ideológicos, que têm determinado,
histórica e contextualmente, concepções e atribuições à atividade criativa
humana.
Entretanto, apesar da crucial importância dos fenômenos da
125
alienação e da ideologia dominante, não contamos com o oportuno espaço
para nos remetermos, neste trabalho, aos diversos aspectos que os envolvem
e inúmeras conseqüências que deles advêm, limitando-nos a demonstrar
apenas os mecanismos que, em termos psicológicos e da atividade geral
humana, os engendram. Acreditamos que os demais aspectos (contextuais,
econômicos e políticos) encontram o devido lugar e atenção em outros
estudos, especificamente dedicados aos mesmos. O que procuramos, como já
dissemos, foi contribuir, em primeiro lugar, para o desvelamento da
natureza concreta da atividade criativa entre os seres humanos. Se
houvermos podido contribuir efetivamente para com este propósito e o
debate necessário que o assunto suscita, já nos daremos por satisfeitos.
Por outro lado, este trabalho encontra-se completamente
subordinado às questões do processo de ensino formal. Foi lidando com elas
e com os profissionais da educação, que nos deparamos, no decorrer deste
estudo, com a pertinência e verdadeiro significado deste tema para a
compreensão do devido lugar da educação formal no processo de
desenvolvimento de individualidades e sociedades. Hoje, notaríamos que a
busca intuitiva dos professores por informações sobre o tema criatividade,
guarda relações mais efetivas e importantes com a realidade das
necessidades humanas do que nós poderíamos supor, quando da realização
dos cursos a eles destinados no ano de 1994. E isto de certo nos remete a
uma outra questão, complementar às anteriores e pertinente às experiências
citadas: de que modo pode o ensino contribuir, efetivamente, para o
desenvolvimento do que chamamos potencial criativo das novas gerações ou
indivíduos a ele submetidos?
Entretanto, do mesmo modo que, heuristicamente, o estudo da
criatividade humana tem sido orientado por questões ainda muito parciais,
devemos também reformular a presente questão com relação ao ensino, nos
seguintes moldes: qual o papel do ensino no processo de desenvolvimento
dos indivíduos humanos e, por decorrência, do gênero humano? Ora, como
vimos, este gênero é ontologicamente criativo e, segundo nossos estudos,
126
tanto mais uso de sua criatividade o indivíduo fará quanto mais e melhor
apropriar-se dos legados de seu gênero. Isto quer significar que, quanto mais
o indivíduo torne seus os elementos que mediam sua compreensão e
integração com o mundo humano e natural (linguagem, signos diversos,
utensílios, criações artísticas, literárias, filosóficas e científicas), maiores e
melhores serão as suas possibilidades de interferir consciente e
concretamente no processo de desenvolvimento de si próprio e do mundo à
sua volta. Em outros termos, maiores e melhores serão as possibilidades de
agir efetivamente enquanto um ser que é, ontologicamente, criativo. Isto é
não só inferido teoricamente por Vigotski nos trabalhos aqui mencionados,
como também cientificamente constatado pelas importantes investigações
que presidiu, e que fundamentaram o surgimento da própria escola
histórico-cultural russa.
Subsidiados por tais estudos, podemos dizer que o ensino não
tem uma relação apenas desejável, do ponto-de-vista pragmático, com a
obtenção de bons e melhores resultados pelo uso acessório de determinadas
técnicas ou estratégias pedagógicas — muito embora nada tenhamos contra
que este se torne melhor e mais eficiente. O problema está em uma
mistificação dos meios aos tentar-se atingir determinados fins, o que pode
concorrer (e via de regra concorre) para que o próprio processo de ensino
possa ser considerado extrínseco e também acessório ao próprio
desenvolvimento humano. Vigotski e seus colaboradores provaram o
contrário.
Do mesmo modo, nosso estudo presume a devida distinção
também entre métodos e técnicas criativas acessórias e um ensino
fundamentado no princípio de que é parte crucial do desenvolvimento de um
gênero essencialmente criativo. Esta última noção deveria, portanto,
preceder toda e qualquer ação pedagógica e o papel acessório que atribuímos
à primeira concepção de criatividade encontra-se presente à maioria dos
trabalhos que visam o desenvolvimento de potenciais criativos.
Esta questão certamente nos remete ainda a uma outra, final
127
aos presentes questionamentos: qual o critério que deverá orientar a escolha
do que seja, de fato, criativamente relevante? Eis uma questão que
certamente merecerá a devida atenção por parte dos trabalhos que
continuem a debruçar-se sobre este tema, sobretudo em seus aspectos éticos.
Evidentemente, todo e qualquer produto humano encontra-se submetido a
certa atribuição de valor e, como podemos notar, a criatividade suscita, como
poucas questões humanas, juízos de valor os mais variados. Não pudemos
entrar devidamente nos méritos de tal questão neste trabalho, mas não nos
limitaremos tão-somente a apontá-la como uma nossa lacuna. Assim, se bem
entendidos nossos propósitos e os elementos dos quais lançamos mão em
nossa caminhada, é certo que o primeiro aspecto que nos saltará aos olhos é
a concepção distinta que adotamos para nossas considerações. Esta
concepção, de per se, implica em uma posição frente aos fenômenos humanos
necessariamente histórica e dialética. Quer isto dizer que o critério de valor
que adota é, presumivelmente, sócio-histórico e, logo, identifica-se,
aprioristicamente, com o que seja social e historicamente relevante. Se o que
é relevante é o que visa a concretude (essência) das objetivações e questões
humanas que daí advêm, deveremos também presumir que qualquer
estabelecimento de critérios de valor quanto ao que seja concretamente
relevante social e historicamente, deve abster-se de qualquer tendência
meramente pragmático-utilitária, princípio básico, como vimos, de toda
leitura que se atém aos aspectos mais imediatos dos fenômenos humanos. O
pragmatismo, ainda que socialmente necessário à consecução de aspectos
básicos da própria vida, não pode reger indistintamente todas as questões
humanas, sobretudo, em nosso entendimento, as que envolvam juízos de
valor. Daqui derivam concepções por vezes infundadas e que conduziram
sociedades inteiras à impingir sentenças impiedosas a diversos indivíduos e
grupos, justamente porque não fossem ao encontro do que,
pragmaticamente, fora estabelecido enquanto verdadeiro e útil, através de
determinados critérios. Portanto, se não nos julgamos em posição e lugar
adequados para nos aprofundar nesta questão, gostaríamos, ao menos, de
128
chamar a atenção para sua importância. Convém que, modestamente
assinalemos, de nossa parte, acreditarmos que o primeiro passo na direção
de uma resolução para tal questão é demonstrar (senão, denunciar), por
todos os meios, o que concretamente determina a compreensão
caracteristicamente parcial que temos tido das questões humanas, com
vistas a, como sugere Marx e, posteriormente, reitera Gramsci, fazermos
germinar um novo senso comum, substancialmente crítico-reflexivo e
revolucionário. O ensino se nos apresenta, acreditamos, como a principal via
para que atinjamos esse novo e transformador senso comum. Em outras
palavras, esse senso comum nada mais representa que o estabelecimento de
uma relação que vise, conscientemente, a consolidação da condição
ontológica que fundamentou todo o processo de humanização até
presentemente, ainda que deste fator a imensa maioria da humanidade
ainda não se tenha dado conta, a saber, o de ser a humanidade um gênero
essencialmente criativo, ou seja, especulador de novas e melhores
possibilidades e, portanto, potencialmente transformador de realidades.
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