Psicologia Social e Práticas de Atenção Ao Usuário de Drogas
Psicologia Social e Práticas de Atenção Ao Usuário de Drogas
Psicologia Social e Práticas de Atenção Ao Usuário de Drogas
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QUEIROZ, I. S. Um olhar da psicologia social sobre as práticas de atenção ao usuário de álcool e outras
drogas. Belo Horizonte, 2014. Disponível em: <http://www.saogabriel.pucminas.br/psicologia/wp-
content/uploads/2014/02/Psicologia-social-e-práticas-de-atenção-ao-usuário-de-drogas.pdf>.
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ponto de partida que este é um campo de disputas, que envolve atores bastante hierarquizados
– por classe social, raça/etnia, escolaridade e gênero –, o que define de modo essencial a nossa
maneira de ver e tratar o usuário de drogas. Deste modo, podemos começar pensando: quem é
o usuário de drogas? E, complementando, qual é o nosso papel, como psicólogos, frente ao
problema do uso abusivo de drogas?
vivida pelo usuário pode advir do uso de substâncias mas também de tudo aquilo que se
encontra em seu entorno: o tráfico de drogas, condições anteriores de exclusão, falta de acesso
à saúde, educação, lazer, cultura e trabalho.
Sugerimos aqui, então, que o contexto de vida do usuário de álcool e drogas seja
considerado em todos os casos atendidos, o que contribui para a inscrição da discussão sobre
o uso de álcool e outras drogas no campo da política, fazendo com que a experiência com
drogas passe a ser discutida no interior de sua própria produção, o que colabora para a
compreensão do usuário em sua particularidade e para a ampliação do debate sobre uso de
drogas do campo meramente moral e pessoal para o campo social.
Cabe ao psicólogo, portanto, promover através da sua atuação o deslocamento da
discussão sobre o uso de álcool e outras drogas de um registro exclusivamente terapêutico
para um registro social e político. Tarefa esta que se apresenta como desafiadora, seja por
lidarmos com um campo inscrito na ilegalidade, seja porque através dessa proposição
daríamos voz a um grupo social até então tido como incapaz de elaborar sentidos e
significados às suas experiências, caracterizadamente marginais. Pensar estratégias e elaborar
reflexões coletivas sobre a subalternidade da condição de “drogado”, através da criação e
manutenção de espaços de sociabilidade e reflexão, poderia, então, indicar uma abordagem
mais inclusiva da questão do uso de álcool e outras drogas. Tais espaços podem se constituir
nas práticas grupais. Trataremos desse ponto a seguir.
reconstrução, concepções e valores presentes nos discursos sobre o uso e o usuário de drogas
deverão ser repensados. Identificar a origem de tais valores e suas consequências para a vida
dos usuários é essencial para a prática do psicólogo nesse campo: O que entendemos como
saúde? Quais são os fatores determinantes do processo saúde-doença? Quem define ou
qualifica o que é risco?
Trata-se, portanto, de uma prática que tem como foco privilegiado as narrativas dos
usuários sobre si mesmos, num processo de produção de sentidos de caráter coletivo e
interativo. Conforme Spink (2004, p. 42), “a produção de sentidos não é uma atividade
cognitiva intra-individual, nem pura e simples reprodução de modelos predeterminados. Ela é
uma prática social, dialógica, que implica a linguagem em uso”.
Tal prática dialógica pode acontecer em trabalhos grupais de caráter emancipatório,
nos quais pode-se constituir, por meio do compartilhamento de experiências, um senso de
continuidade, de trajetória, de narrativa, essenciais para a construção da noção de
coletividade. Além disso, no grupo os usuários podem se sentir úteis, contribuindo com algo
de importância para si mesmos e para os outros. “Ir além da reflexão centrada no indivíduo,
na subjetividade, buscando as referências estruturais dos problemas, as que implicam os
traços constituintes da formação social e não somente as pessoas e sua competência.” (Soares,
2007, p. 174)
O sentimento do humano nasce da possibilidade de reflexão e ação no mundo e o
grupo é um receptáculo potente para sua emergência. Viver requer vinculação, afeto, ligação a
projetos. O desenvolvimento de laços pessoais e sociais concretamente representados por
projetos de vida e afiliações a grupos apresenta-se como possibilidade de construção de
sujeitos capazes de enfrentar os desafios do cotidiano coletivamente, a partir do resgate da
dignidade de cada e um e de todos, e da atuação direta nas questões que lhes dizem respeito,
não apenas no âmbito individual mas, e principalmente, no âmbito público, coletivo. “Ter
responsabilidade e compromisso com o desenvolvimento de habilidades e tarefas
apresentadas pela vida social, colocando-se como sujeito das escolhas que deve fazer.”
(Soares, 2007, p. 174).
Se as razões para o uso de drogas nascem, em grande parte das vezes, da exclusão e da
desigualdade social, pensar e agir no mundo significa conhecer esta mesma realidade e
mobilizar recursos coletivos de enfrentamento dela. Assim, pensamos que uma atuação junto
ao usuário de álcool e outras drogas deve incluir um processo de reflexão baseado na
construção da autonomia (no lugar da lógica da dependência e da inércia), através da
exploração dos recursos pessoais e coletivos que cada sujeito poderá dispor para lidar com os
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desafios da vida.
Cabe mencionar ainda que organizar-se socialmente e constituir processos de
solidariedade motiva as pessoas emocionalmente. De outra forma, acabam sucumbindo na
luta individual pela sobrevivência. “Desejamos uma sociedade em que [as pessoas] possam
desenvolver plenamente seu potencial humano, sendo úteis, fazendo-se presentes, criando;
possam participar da riqueza socialmente produzida, não para consumir, mas para libertar-se
das artimanhas da sobrevivência e construir uma verdadeira cultura.” (Soares, 2007, p. 173).
Assinalamos por fim que esta estratégia metodológica se justifica pela possibilidade
que carrega de reconstrução de discursos e práticas que historicamente foram desqualificadas
e invisibilizadas pela lógica hegemônica de um mundo sem drogas. Ao considerar o usuário
como sujeito capaz de reflexão e ação e o uso de drogas como uma possibilidade humana, o
psicólogo poderá contribuir para os processos de conscientização e responsabilização
necessários para o enfrentamento dos riscos e danos presentes nessa prática.
E como podemos trabalhar, como psicólogos, na ampliação da dimensão da reflexão e
ação junto ao usuário de álcool e outras drogas? A proposta da educação para a autonomia
apresenta algumas possibilidades, discutidas a seguir.
2.3 Autonomia, responsabilização e foco nos direitos humanos
Na atuação junto ao usuário de álcool e outras drogas, o psicólogo, frente à
inquietação provocada pela formulação de uma atuação crítica, muitas vezes opta por um
discurso já pronto acerca da questão, pautado por uma visão do usuário marcada pelas noções
de periculosidade, doença e desvio social.
Desse modo, são raros os programas direcionados ao usuário de álcool e drogas que
esclarecem as diferentes formas de uso da droga: experimental, ocasional, habitual,
dependente – este último, sem dúvida, de manejo complexo. A responsabilidade individual, a
carência de autoridade parental e de vida religiosa são justificativas comumente aceitas como
fatores de risco para o uso de drogas. É significativa a atribuição individualizada de
responsabilidades e muito raramente promove-se uma discussão sobre a influência do modelo
de sociedade de consumo no uso abusivo de drogas. As bases estruturais da sociedade, nas
quais se localizam os determinantes do processo saúde-doença, não são consideradas,
havendo uma ênfase excessiva no esforço individual de adesão a escolhas saudáveis como o
foco das ações preventivas.
Na perspectiva aqui apresentada para a atuação do psicólogo na política de álcool e
outras drogas, propomos como fundamentos orientadores gerais, para além da abordagem
teórica específica de cada profissional psicólogo, os princípios da educação para a autonomia,
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conta por si sós de compreender e elaborar formas de lidar com a relação sofrimento/prazer
representada pelo uso de drogas.
Desse modo, a atuação do psicólogo deverá sempre incluir o debate coletivo, aberto e
verdadeiro sobre a história do consumo de drogas, mantida a responsabilidade de educar,
através de um projeto de construção de sujeitos de reflexão e ação, como foco nos direitos
humanos. “Entendendo que a convivência com o risco implica a construção de fatores
protetores da qualidade de vida, esta reflexão permite, o que é fundamental: perceber que a
sociedade brasileira vive outros problemas muito mais sérios e que organizam um mal-estar
no mundo – desigualdade social, desemprego estrutural, discriminações – questões que
precisam ser pensadas.” (Acselrad, 2000, p. 167).
Compreendendo, por fim, que a decisão do uso se dá no espaço privado, que a decisão
do uso é, portanto, em última instância, sempre pessoal, aposta-se na consciência crítica, na
responsabilidade de cada um diante de si mesmo e diante do outro, como alternativa à
interferência do Estado na vida privada, assim como de outras figuras de autoridade – pai,
mãe, liderança religiosa – na vida pessoal, como forma de superação dos problemas. “O que
desaparece nessa prática é a relação de poder autoritária que pretende erradicar uma prática
que tem raízes na história pessoal e social.” (Acselrad, 2000, p. 167). Trata-se de potencializar
o autocuidado como estratégia de prevenção orientada pelo direito e responsabilidade,
considerando que a prática de autocuidado refere-se à realização consciente de algo que
pressupõe a decisão da pessoa envolvida. (Orem, 1993)
Informações realistas sobre o uso de substâncias devem ser disponibilizadas, mas, mais
importante que as informações sobre os produtos em si, a educação sobre drogas deve
promover o debate sobre os valores sociais, políticos, sobre as relações entre os sujeitos, sobre
a liberdade individual, sobre o direito a dispor de seu próprio corpo. É necessário discutir
sobre as políticas públicas, sobre a organização da cidade, esclarecendo a totalidade dos
problemas vividos pelos diferentes grupos sociais e abrindo possibilidades reais de
intervenção nas condições de vida.
Na atuação junto aos usuários dependentes, aconselha-se evitar o excesso de
informação, o sensacionalismo, que devem ser substituídos pela auto-observação e construção
do senso crítico. O “problema” da droga deve ser tratado como um entre outros problemas
vividos pelos usuários, que devem ser considerados na construção coletiva de um saber e de
formas coletivas de uso controlado, reduzindo-se os danos. Trata-se de aprender a aprender,
aprender a pensar, aprender a agir.
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2.4 Compromisso ético com o usuário: projeto terapêutico singular e produção de vida
O Ministério da Saúde, por meio do Núcleo Técnico da Política Nacional de
Humanização da Secretaria de Atenção à Saúde, preconiza como orientação para a atuação do
profissional de saúde o desafio de lidar com os usuários enquanto sujeitos, buscando sua
participação e autonomia no projeto terapêutico (Brasil, 2007). Quanto mais longo for o
seguimento do tratamento e maior a necessidade de participação do sujeito no seu projeto
terapêutico tanto maior será este desafio. Para vencê-lo, devemos, antes de tudo, buscar
estabelecer um compromisso radical com o sujeito, visto de modo singular.
É preciso também equilibrar o combate à doença com a produção de vida, desse modo,
o profissional de saúde deve ser capaz de contribuir para que o sujeito não só combata sua
“doença”, aqui, no caso, o uso abusivo de álcool e drogas, mas também busque transformar-se
a partir dela, de forma que, mesmo sendo um limite, ela não o impeça de viver outras coisas
na vida. Como no caso do uso de drogas o resultado sempre depende da participação da
pessoa, produção de vida significa o reconhecimento de que essa participação não pode ser
entendida como uma dedicação exclusiva ao tratamento, mas, sim, como uma capacidade de
“inventar-se”, apesar dele.
O Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização (Brasil, 2007) apresenta
algumas sugestões práticas de como atuar sob a perspectiva da clínica ampliada e do projeto
terapêutico singular, transcritas abaixo:
Aprimorar e investir na escuta do usuário. Primeiramente, é preciso escutar toda queixa
ou relato do usuário, mesmo quando não pareçam importantes para seu diagnóstico e
tratamento. Mas, mais do que isto, a escuta deverá ajudar o usuário a reconstruir os
motivos que ocasionaram o seu adoecimento. Desse modo, quanto mais o uso abusivo
de drogas for compreendido e correlacionado com a vida, menos chances haverá de se
tornar um problema somente do serviço de saúde, sendo reconhecido pelo usuário
como algo que lhe diz respeito diretamente. É mais fácil assim evitar a infantilização e
a atitude passiva diante do tratamento. É muito comum que o uso abusivo apareça
após um estresse, como falecimentos, desemprego ou separações. Ao ouvir as
associações causais, a equipe pode saber em que situações similares o usuário pode
piorar e o quanto o tratamento pode depender do desenvolvimento da capacidade do
usuário de lidar com essas situações.
Considerar a interferência de vínculos e afetos do profissional na relação com o
usuário. É necessário prestar atenção ao fluxo de afetos existentes entre profissionais e
usuários, tanto individual quanto coletivamente, para melhor compreender-se e
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REFERÊNCIAS
COLETIVO DAR. Coletivo antiproibicionista de São Paulo. Quem somos. Disponível em:
<http://coletivodar.org/quem-somos/>.
SISSA, G. O prazer e o mal: filosofia da droga. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,
1999.