A Força Expedicionária Brasileira PDF

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Universidade Federal de Juiz de Fora

Pós-Graduação em História
Mestrado em História, Cultura e Poder

Marcos Antonio Tavares da Costa

A FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA:


MEMÓRIAS DE UM CONFLITO.

Juiz de Fora
2009
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Marcos Antonio Tavares da Costa

A Força Expedicionária Brasileira:


memórias de um conflito

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História, área de concentração:
História, Cultura e Poder, da Universidade
Federal de Juiz de Fora como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profª Drª Sônia Cristina da Fonseca Machado Lino.

Juiz de Fora
2009
Costa, Marcos Antonio Tavares da.

A Força Expedicionária Brasileira : memórias de um conflito / Marcos


Antonio Tavares da Costa. – 2009.
257 f. : il.

Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal de Juiz de


Fora, Juiz de Fora, 2009.

1. Exército. 2. Força Expedicionária Brasileira. I. Título.

CDU 355.31
A todos os homens e mulheres que
lutaram, lutam e lutarão pela Paz
no Mundo. A História lembrará de
seus feitos.
AGRADECIMENTOS

Quando me propus a desenvolver este trabalho sobre a Força Expedicionária


Brasileira, procurei sempre seguir uma direção na qual esse tema não fosse voltado
essencialmente para o campo do militarismo ou para um estudo sociológico de seus atores. A
fim de chegar a um equilíbrio entre essas duas áreas da História, tive apoio de pessoas minhas
conhecidas, conheci também muitas outras e fiz amigos que muito me ajudaram ao longo
desses cinco anos de pesquisa.
Primeiramente, agradeço a Deus por ter me dado saúde, forças e a oportunidade de
conhecer e conviver com pessoas que só me fortaleceram com suas lições e amizades.
Agradecer à minha esposa, Angelita, também historiadora, pela força que me deu nos
momentos mais difíceis e pela contribuição direta ao me assessorar, sempre de maneira franca
e competente, quando de minha fase da escrituração da dissertação. Obrigado por tudo.
Ao meu filho, Pietro, pela paciência e perspicácia em compreender que das muitas
vezes que lhe faltou atenção de minha parte, foi pelo tempo dedicado a este trabalho, cujo
resultado final era importante para mim. Obrigado como pai e amigo.
Aos meus pais, que sempre me incentivaram na busca incessante pelo conhecimento e
fizeram despertar em mim e em minha única irmã, desde muitos jovens, o interesse pela
História. Hoje compreendo suas preocupações e as transmito na educação de meu filho.
A minha amiga e orientadora, a professora doutora Sônia Lino, que desde a graduação
me incentivou e despertou pelo estudo da história contemporânea, guiando-me para o estudo
da Força Expedicionária por meio das memórias de seus veteranos. Obrigado por sua
dedicação a este humilde trabalho.
Aos meus professores da Universidade Federal de Juiz de Fora, que desde a graduação
sempre me foram solícitos e leais ao apontar os melhores caminhos e relatar suas experiências
enquanto pesquisadores e que assim pouparam-me de desvios desnecessários em minha
pesquisa. Gostaria de agradecer particularmente aos professores doutores Ângelo Carrara,
Ignácio Delgado e Ângela de Castro Gomes, esta da Universidade Federal Fluminense, pelas
orientações quando de minha qualificação e de minha defesa. E aos professores doutores
Maraliz Christo, Marcos Cabral e Alexandre Barata, pelos conhecimentos transmitidos
durante as aulas desse mestrado.
Agradeço, também, aos amigos e amigas do curso de graduação em História e da pós-
graduação em mestrado em História, Cultura e Poder pelos anos de convivência e trabalho
que muito contribuíram para o crescimento pessoal e profissional de todos nós. Que Deus os
acompanhe.
Agradeço também aos servidores e funcionários da bela UFJF, sempre dispostos a
cumprir suas obrigações e apoiar com dedicação todo o corpo docente e discente, em especial
as secretárias do Programa de Pós-graduação, a Mara e a Ana.
Durante minha pesquisa, tive a gentileza de pessoas que me facilitaram a abertura de
arquivos de fontes primordiais para o que pretendia como objetivos a serem atingidos.
Pessoas como o Capitão Ferreira Júnior do Arquivo Histórico do Exército, do Rio de Janeiro;
a Senhora Neusa do Carmo Bastos e o Senhor João Carlos Santana, ambos do Jornal A Voz
de São João, de São João Nepomuceno, ao liberar os jornais de seu organizado acervo; Eliane
Casarim, da Biblioteca Murilo Mendes, de Juiz de Fora; e o Senhor Antonio de Pádua Inham,
Presidente da Associação dos Veteranos da FEB em Juiz de Fora, ao ceder vasto material
iconográfico dos veteranos da Zona da Mata.
Gostaria de agradecer aos meus Comandantes do 10º Batalhão de Infantaria, Unidade
a qual sirvo atualmente no Exército Brasileiro, que durante o período em que estive envolvido
neste trabalho sempre se mostraram incentivadores e entusiasmados com o que pretendia
fazer. Minha gratidão ao Coronel Paulo Sérgio (2004), ao Coronel Denison (2005 e 2006) e
ao Coronel Maurmann (2007 a 2009).
Aos meus companheiros do 10º Batalhão de Infantaria pela força e apoio prestados
sempre que precisei para que pudesse dedicar um tempo à pesquisa. Especial agradecimento
ao Major Gérken, Major Duarte Martins, Tenente Arruda, Sargento Azevedo, Sargento
Bomfim e Subtenente G. Ribeiro. E a todos aqueles que com uma simples palavra de
incentivo ou até de curiosidade sobre o tema, faziam-me crer plenamente que estava no
caminho certo.
E por fim, mas com toda a certeza, o maior dos agradecimentos vai para os veteranos
da FEB que falaram de seus sentimentos, manifestaram suas opiniões, trouxeram fotos e
materiais, emprestaram livros e dividiram comigo suas lembranças do passado. Nunca poderei
retribuir à altura o que me ofereceram os senhores Ruy de Oliveira Fonseca, Evaristo dos
Santos, Antônio de Pádua Inham, José Maria da Silva Nicodemos, Geraldo Teixeira
Rodrigues, José Lopes de Oliveira, Antônio dos Reis, José Pedretti, Raimundo Nonato
Monteiro, José João da Silva e os já falecidos Albino Moreira e José Gomes Filho. Espero que
este trabalho esteja à altura do que os senhores fizeram por este país e pelo Mundo. Espero
que eu tenha tido a verdadeira sensibilidade, como historiador e como militar, para
compreender a dimensão do que para vocês foram a Segunda Guerra Mundial e as suas
participações pela Força Expedicionária. Aos senhores e aos seus familiares, que sempre
estiveram me apoiando a qualquer tempo, meu muito obrigado.
É muito melhor arriscar coisas grandiosas,
alcançar triunfos e glórias, mesmo expondo-se
a derrota, do que formar fila com pobres de
espíritos que nem gozam muito nem sofrem
muito, porque vivem nessa penumbra cinzenta
que não conhece vitória nem derrota.
THEODORE ROOSEVELT (Presidente dos
Estados Unidos - 1901-1909)
RESUMO

Em 16 de julho de 1944, desembarcaram na Itália, os primeiros cinco mil homens da Força


Expedicionária Brasileira (FEB) que participariam nos combates contra o poderoso Exército
Alemão, em um terreno desconhecido e com um treinamento e equipamento inferiores aos de
outras tropas. Muitas foram as dificuldades dos expedicionários ao longo das jornadas de
adaptação ao ambiente de guerra, onde a morte era vista a todo o momento nos campos de
batalha e nos lares dos italianos. No Brasil a expectativas não foram além de uma participação
curiosa de um Exército que ainda padecia de uma melhor organização e modernização, para
as famílias, no entanto, a Guerra era um pesadelo cruel, com a possibilidade da perda de
pessoas queridas. Após quase 11 meses de uma participação que poderia ser desastrosa, os
homens da FEB terminaram vitoriosos ao contribuírem para a derrota dos alemães e pela
libertação da Itália. A compreensão da história da FEB passa por compreender como eram os
homens que a formaram e que começaram sua epopéia pelo menos 01 ano antes do embarque.
Este trabalho estudará não somente aquela Guerra e nem somente a FEB, mas principalmente
esses homens.
Palavras-chave: FEB. Expedicionário. Exército.
ABSTRACT

In 16 of July of 1944, they had disembarked in Italy, first the five a thousand men of Force
Brazilian Expedicionária (FEB) that they would participate in the combats against the
powerful German Army, in an unknown land and with an inferior training and equipment to
the ones of other troops. Many had been the difficulties of the members of an expedition
throughout the days of adaptation to the war environment, where the death was seen all the
moment in the battlefields and the homes of the Italians. In Brazil the expectations had not
been beyond a curious participation of an Army that still suffered of one better organization
and modernization, for the families, however, the War were a cruel nightmare, with the
possibility of the loss of dear people. After almost 11 months of a participation that could be
disastrous, the men of the FEB had finished victorious people when contributing for the
defeat of the Germans and for the release of Italy. The understanding of the history of the
FEB passes for understanding as they were the men had formed who it and that they had
started its epic at least 01 year before the embarkment. This work will not only study that War
and nor only the FEB, but mainly these men.
Key-words: FEB. Expedition man. Army.
SUMÁRIO

1 Introdução...................................................................................................................12

2 O Brasil de Vargas na Guerra do Mundo................................................................19


2.1 Os caminhos da Guerra..............................................................................................20
2.2 Memórias: o começo... a mobilização.......................................................................25
2.3 Memórias: a convocação, a seleção e a formação da FEB........................................38

3 Treinar para lutar: a FEB parte para a Guerra......................................................60


3.1 O treinamento no Brasil: mais dúvidas do que certezas............................................62
3.2 A Hora chegou: o embarque......................................................................................80
3.3 O rumo incerto: a viagem de descobrimentos dos febianos.....................................96
3.4 O destino era a Itália...............................................................................................105

4 Brasileiros em combate: Guerra, Heroísmo e Morte...........................................117


4.1 O treinamento final..................................................................................................118
4.2 O Destacamento FEB ou 6Th Combat Team : o batismo de fogo da FEB..............133
4.3 Brasileiros, Americanos, Negros, Italianos e Alemães: a farra multicultural - A FEB
completa e o mito de Monte Castelo.............................................................................143
4. 4 A arrancada ao Vale do Pó.....................................................................................188
4.5 A vitória e a ocupação.............................................................................................218

5 De volta ao Brasil: festa e esquecimento.................................................................228


5.1 Heróis esquecidos....................................................................................................228
5.2 O destino de nossos depoentes................................................................................240

6 Conclusão..................................................................................................................248
Referências...................................................................................................................251
1 INTRODUÇÃO

Contos sobre guerras são sempre fascinantes por sua aura de aventura, heroísmo,
dramaticidade, um dose de terror, algumas tristezas e, às vezes, finais felizes.
Nas últimas décadas, os relatos orais daqueles que estiveram envolvidos em alguns
dos mais importantes conflitos da História, são mais facilmente compreendidos como
documentos de estudos históricos, deslocando-se, então, do fértil campo da literatura, para se
alinharem aos diversos outros tipos de fontes de eventos bélicos que marcaram a humanidade.
Quando ainda garoto, tive oportunidade de ouvir alguns desses relatos diretamente de
seus atores. Brasileiros, que décadas antes estiveram na “famosa” Segunda Guerra Mundial.
Das palavras que descreviam acontecimentos que somente nos filmes do cinema já havia
visto, transportava-me para o ambiente caótico e violento, mas ao mesmo tempo, mágico e
nonsense das batalhas e pequenas ações dos combatentes do Brasil, que, sem dúvidas
assemelhavam-se com os momentos vividos pelos outros milhões de homens e mulheres de
várias partes do Mundo que participaram da Grande Guerra. Não imaginaria que, anos mais
tarde, teria a grande satisfação de ouvir mais e mais relatos desses homens que ajudaram a
redefinir a Ordem Mundial.
A 2ª Guerra foi um dos primeiros conflitos da Era da Guerra Total1, em que as
conseqüências catastróficas dos combates chegavam diretamente às pessoas comuns, onde
cidades e famílias inteiras foram dizimadas por artefatos bélicos oriundos dos já mortíferos
aviões e dos conhecidos canhões, onde os soldados não se encontravam somente em locais
ermos e campos distantes, mas também em áreas urbanas, estando próximos da vida diária da
população civil, vivendo, lutando e morrendo juntamente às crianças, mulheres, velhos e
outros homens, que logo também deixavam seus lares para se tornarem também soldados e
continuarem a epopéia de glória, horror e desespero dos combates.
Mais de cinqüenta milhões de pessoas entre militares e civis pereceram nos cinco
anos de guerra2, outros tantas milhões permaneceram vivas como testemunhas de genocídios
_______________
1 – HOBSBAWM, Eric. A era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
p.29.
2- HOBSBAWM, Eric. Ibid. p. 56.
bárbaros executados em nome de Estados e de ideologias. Elas permaneceram como provas
de momentos de superação de seu povo, sejam aqueles que estiveram do lado vencedor ou dos
derrotados.
Muitas viram os momentos de ascensão do nazi-fascismo3 e da reação tardia da
democracia do ocidente. Não importa em qual parte do planeta estiveram, são testemunhas
por terem vivido um conflito mundial que não poupou as fronteiras, pois atingiu de alguma
maneira tanto o garoto hindu da Índia, quanto o judeu branco da Itália ou a menina mulata do
Brasil.
A Segunda Guerra Mundial foi um dos eventos que tornou, pela primeira vez, o
mundo com uma percepção de que poderia ser algo pequeno, fomentando uma infinidade de
visões sobre os motivos que levaram sua eclosão, sobre quem estava errado ou certo, sobre
como era a vida dos pobres e dos ricos naqueles tempos difíceis, sobre quem foram os heróis,
os vilões, os covardes, os mártires e os inocentes.
Em contraponto a uma incomensurável quantidade de documentação escrita, gerada
pelas instituições civis e militares, pelos órgãos governamentais e pelas pessoas comuns que
transmitiram para livros de memórias e de literatura os episódios ocorridos durante a Grande
Guerra, há a palavra daqueles que não tiveram a oportunidade de relatar para a História as
suas histórias de vida, que apesar de terem sua própria visão sobre o conflito e de muitas
vezes terem sido ativos participantes, tornaram-se apenas números nas estatísticas dos
exércitos e governos ou alvos de curiosos ávidos em saber dos “contos” de guerra do papai ou
vovô herói.
A utilização da evidência oral como fonte para o estudo da História é um recurso há
muito tempo praticado, sendo considerado por Thompson, como “a primeira espécie de
História”4.
Segundo este autor, Herótodo, no século V, utilizava um método que consistia em
entrevistar testemunhas oculares de acontecimentos, de forma rigorosa e minuciosa, para que
verdade fosse conhecida. Mesmo com a evolução da escrita dentre a população de culturas
mais letradas, a tradição oral permaneceu viva dentro dos contos populares, das cantigas, das
receitas, das narrativas de guerra, entre outras. Em sociedades menos letradas, a tradição oral
era essencial para a transmissão de suas raízes culturais para as gerações futuras, a chegada

_______________
3- HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. p.157.
4- THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 56.
e desenvolvimento tardio da escrita nesses ambientes, muitas vezes não altera a importância
dada a sua cultura oral5. Segundo Thompson, isso se deve ao fato de que o homem simples
acreditar que sua vida não tem importância para os outros, que somente o cotidiano e a
trajetória de vida dos homens ricos e importantes é que merecem a atenção de todos6.
Acrescento a isso o fato de que no Brasil, pelo tradicionalismo familiar de sua gente da
metade do século XX, principalmente daqueles oriundos de localidades agrárias, tem seu
sentido de privacidade ainda mais acentuado. Para essas pessoas, suas vidas e histórias eram
do seu íntimo, somente dividido com aqueles mais próximos, sendo para muitos, inconcebível
dividi-las com um estranho que busca analisar suas estratégias e caminhos para buscar uma
verdade histórica.
Desta forma, o militar da FEB pode ser citado como exemplo. Passados mais de
sessenta anos, a maioria das publicações mais conhecidas é somente de histórias dos combates
na Itália. O livro de memórias A FEB pelo seu comandante, de autoria do próprio Marechal
Mascarenhas de Moraes, comandante da FEB, trata, como diz o título, da visão de um oficial
general, privilegiando a estratégias de combates e a organização geral da Força7. Outro livro é
A verdade sobre a FEB, do Marechal Lima Brayner, que retrata criticamente o comando da
FEB, analisa sua organização e ações nas batalhas 8. O Brasil na II Grande Guerra 9 é outra
publicação antiga, que apesar de rica em dados e informações sobre a FEB, retiradas de fontes
oficiais, é de autoria de um membro da oficialidade do Exército, o Tenente Coronel Manoel
Thomaz Castelo Branco. Na atualidade, destacam-se os trabalhos de César Maximiano,
Irmãos de armas10, e de Francisco Ferraz, Os brasileiros na segunda Guerra Mundial11. Esses
livros são produtos de teses de doutorado e exploram a evidência oral nas histórias dos
pracinhas.
Mesmo com os últimos exemplos de obras que tratam da visão do homem comum,
pouco se vê sobre a intimidade do ser humano na guerra, quais foram os seus medos, como
foi o seu contato com a família e com os amigos... Desafios para o pesquisador que se
aventura por estes caminhos, mas que se torna gratificante a cada gesto de confiança de

______________
5- THOMPSON, Paul Ibid. p. 46-47.
6- THOMPSON, Paul. Ibid. p. 50-51.
7 - MORAES, João Batista Mascarenhas. A FEB pelo seu comandante. São Paulo: IPE, 1946.
8 - BRAYNER, Floriano de Lima. A verdade sobre a FEB. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
9 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. O Brasil na II Grande Guerra. Rio de Janeiro: Bibliex, 1960.
10 – GONÇALVES, José; MAXIMIANO, César Campiani. Irmãos de armas. São Paulo: Codex, 2005.
11 - FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,
2005.
seu colaborador no sentido de dar-lhe uma informação que até mesmo poucos de seu círculo
de amizades um dia ouviram.
Publicações norte-americanas e européias que utilizam a história oral vêm desde o
final da Guerra na década de 1940 realizando trabalhos de pesquisa sobre a visão das pessoas
comuns que combateram ou foram vítimas da Segunda Guerra. Muito tem sido feito na
atualidade sobre o holocausto 12 e sobre a resistência do povo subjugado, para citar exemplos.
Thompson afirmou da importância da história oral para a riqueza da ciência enquanto
meio em constante movimento evolutivo, para o autor:

(...) a história oral pode certamente ser um meio de transportar tanto o conteúdo
quanto a finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria
história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que
existiam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais
e o mundo exterior; e na produção da história – seja em livros, museus, rádio ou
cinema – pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar
fundamental, mediante suas próprias palavras. (2002, 22).13

Por meio da história oral teremos a possibilidade de buscar algumas respostas sobre a
Força Expedicionária e seu grande contingente de praças14, destas pessoas vindas de
localidades rurais, que viviam de forma simples e pacífica, sem sobressaltos e dificuldades.
Muitos eram iletrados e dispunham de poucas informações sobre a Guerra que há anos se
desenvolvia em terras distantes, mas que no Brasil só vinham sendo manchetes em notícias de
jornais, mesmo quando começaram a afundar os nossos navios mercantes.
Com a palavra do veterano soldado, a história brasileira da Guerra saberá como é o seu
pensamento sobre os momentos-chaves da formação de um contingente de mais de 25.000
militares. O que pensava o soldado quando se dirigia, dentro de um navio, para um país
desconhecido? O que pensava de seus chefes? Como encarou os momentos de aflição e
medo? Como é fazer parte da História?
O estudo das fontes orais sofre com um estigma, quase um preconceito por causa de
sua natural e característica subjetividade de conteúdo. Um relato obtido por meio de
condicionada à memória. Para eles, não há possibilidade de rigor científico em uma pesquisa,

________________
12 - Segundo Lecomte ‘Shoah’ é uma expressão que significa ‘catástrofe’ e que é utilizada para designar o
genocídio perpetrado pelos nazistas e seus aliados contra os judeus já ‘Holocausto’ significa sacrifício, e é
utilizada para o mesmo fim.
13 - THOMPSON, Paul. Op. Cit. p. 22.
14 – Na terminologia militar, “praça” é uma forma de designar aqueles com patentes inferiores aos oficiais.
um relato obtido por testemunhas é visto por alguns pesquisadores como uma fonte suspeita,
devido ao fato que esta dependa das flutuações e das imperfeições da memória.
Pollak15 já havia afirmado que as fontes orais são tão subjetivas quanto as fontes
escritas, haja vista que estas também sofrem influência da subjetividade daquele que a
escreve, não sendo, portanto, infalível do ponto de vista de sua veracidade. Para esse autor, a
crítica de qualquer tipo de fonte é que deve ser reforçada, sendo que a fonte oral, por sua
natureza, obriga que o historiador seja ainda mais crítico.
Não seria exagero afirmar que esta preocupação com a subjetividade da fonte oral seja
um resquício dos tempos do positivismo que instruía os historiadores a acreditar nas fontes
documentais e bibliográficas. A acreditar que o documento escrito é que realmente atesta a
possibilidade de uma pesquisa histórica obter o devido reconhecimento.
Ainda hoje é comum, por parte de alguns, a total aceitação da verdade que está escrita
nos documentos, que transmitem uma intensa aura de fidedignidade e superioridade ante a
palavra que sai da boca de pessoas. Gente que pode “alterar” a qualquer momento o seu modo
de pensar sobre um evento ou desmentir aquilo que foi dito há pouco por motivos pessoais ou
movidos por interesses institucionais. Em temas como o nosso, que trata da FEB, que é
considerado um dos maiores patrimônios imateriais que o Exército Brasileiro possui, os
depoimentos enfrentam um poderoso arsenal de documentação oficial muito bem elaborada e
devidamente filtrada para evitar dissonâncias com o tom de palavra do Estado que é adotada
nesses assuntos.
Os relatos não são de maneira alguma desprezados para a confecção dos relatórios militares e
boletins alusivos ao processo da participação na guerra, nem também para o reforço da
documentação pertinente na edição de livros e revistas que, existentes aos milhares em todo o
mundo, analisaram ou simplesmente narraram a Segunda Guerra. Logo, considerar os
depoimentos como fontes suspeitas é paradoxal, pois os documentos escritos são oriundos, de
alguma forma, de uma fonte oral. Cabe ao pesquisador oral sabê-las manejar para que a sua
subjetividade seja bem compreendida como parte do processo de resignificação da memória,
bem como para que a verdade do relato tenha valor histórico.
A visão dos veteranos do processo da participação brasileira na Segunda Guerra
Mundial é rica pela possível formação de uma outra versão dos fatos, diversa do que é
constantemente difundida, mesmo nos círculos mais eruditos. Fruto mesmo desta
subjetividade da palavra e do pensamento do homem.
______________
15 - POLLAK, Michel. Memória e identidade social. In: Estudos históricos, Rio de Janeiro, Vol 5, n. 10, 1992,
p. 207-208.
Em nosso trabalho, procuraremos alinhar de forma harmônica a visão dos militares de
patentes mais humildes que participaram da Guerra, como os sargentos, cabos e soldados,
com a visão predominante da literatura militar, exemplificada nos livros de memórias dos
generais e oficiais de alto escalão e, também, com o trabalho de alguns historiadores do tema,
evitando chegar a verdade absoluta sobre a participação da FEB, mas sim, procurando expor
qual o pensamento de veteranos sobre a Guerra e porque estes construíram determinada visão.
Ao longo de nosso trabalho, apresentaremos os relatos de várias pessoas que estiveram
nos combates na Itália, seja por meio dos relatos diretos, ou pelos indiretos. No entanto, a
base para nossa análise serão doze expedicionários que são oriundos da Zona da Mata Mineira
ou que nela são radicados há muito tempo, e que de lá saíram para compor a Força.
Procuraremos traçar, dentro dos limites de informações que por ventura encontramos, um
perfil deste Homem nos momentos pré-conflito, para assim compreendermos melhor a sua
atuação como soldado na maior Guerra da História.
Os doze veteranos foram escolhidos a partir de suas funções dentro da FEB, pois não
queríamos apenas a visão do soldado que esteve próximo ao inimigo alemão, mas também
aqueles que estiveram em atividades mais à retaguarda no conflito, como cozinheiros, os
enfermeiros e até os sepultadores. Desta forma, acreditamos que aumentaremos o leque de
informações deste tema, sem, no entanto, termos a pretensão de esgotá-lo, já que não seria o
objetivo idealizado para essa dissertação.
Além das memórias, adicionaremos à nossa análise, outros tipos de fontes que
tornarão ainda mais sólida nossas conclusões sobre alguns dos mais importantes
acontecimentos da História da FEB. O cruzamento de dados será uma constante ao longo dos
capítulos, pois além de reforçar a preocupação com a veracidade do relato oral, proporciona o
conhecimento de mais fontes pessoais dos veteranos, como fotos, cartas, desenhos e até
objetos, e que, também, nos dá uma dimensão holística do nosso tema. Conceitos como
Memória Coletiva, de Halbwaschs; Lugar-memória, de Nora; a questão do idoso, de Bosi; e a
Memória Cultural, de Montenegro; estarão intrínsecos nas páginas a seguir, para que dessa
forma, a narrativa, eixo principal desse trabalho, caminhe balizada pela teoria dos maiores
pensadores sobre a questão da memória.
Serão quatro capítulos em que abordaremos desde a vida dos veteranos antes do
ingresso no Exército Brasileiro, passando pela seleção de pessoal para a Guerra, pelos
treinamentos, partida para a Europa, combates, vida na Guerra, a vitória e a desmobilização.
Trataremos, também, sobre um breve retrato do que houve após a epopéia da FEB, passando
por lutas em torno do reconhecimento por seus direitos como veteranos, indo até os dias de
hoje, em que são considerados a memória viva da última participação brasileira em um
combate externo.
Ao final dessa dissertação, gostaríamos de não somente concluir um trabalho que já
dura cinco anos, mas, principalmente, dar voz a doze homens que têm a história de si e de
muitos outros para contar.
A todos eles, o nosso reconhecimento e admiração.
2 O BRASIL DE VARGAS NA GUERRA DO MUNDO

Em boa parte dos mais importantes livros que tratam da 2ª Guerra, as fases anteriores
aos combates são pouco analisadas, dispensando-se não mais do que uma pequena parte do
volume da obra. Razões específicas não existem para isso, mas, talvez, assuntos como os
planejamentos para a mobilização, a mobilização de civis e a de militares, a seleção dos
homens e mulheres aptos para a guerra, a preparação da população para os momentos difíceis
e entre outros aspectos, não são muito interessantes ou dispõem de poucas fontes para leitura
ou estudo para pesquisa..
Muitos leitores e até estudiosos se interessam mais pelos fatos mais emocionantes e
próprios da guerra, onde os combates já tomam sua forma, em que vê-se as ações das tropas,
os momentos heróicos e o dia-a-dia do homem no front.
São, no entanto, nas fases preliminares das guerras que se definem quais serão as
participações vitoriosas e quais fracassarão. A mobilização de meios materiais e de pessoal
pode ser considerada a mais difícil fase da vida de um Exército em guerra, e neste ponto a
Força Expedicionária Brasileira (FEB) não foi diferente, pois este momento significou a
reativação de sua máquina de guerra, quase oitenta anos após os últimos confrontos nas terras
paraguaias.
Neste capítulo inicial, procuraremos compreender como foi o processo de
envolvimento do Brasil que resultou na participação da única tropa latino-americana na maior
das guerras da História, procurando analisar menos o caráter ideológico e sim o caráter mais
prático, referente ao alinhamento brasileiro com os norte-americanos.
A partir daí, por meio de uma ampla análise de depoimentos de veteranos da FEB,
nascidos ou radicados na Zona da Mata Mineira, procuraremos compreender as atribuladas
fases de mobilização, convocação e seleção de pessoal que resultaram em uma tropa tão
heterogênea quanto a sua própria população e quanto ao seu Exército, o que foi, longe de ser
positivo, um grande problema em seus momentos iniciais.
2.1 Os caminhos da Guerra

Em 15 de agosto de 1942, o Baependi, navio mercante brasileiro, navegava


tranqüilamente na costa entre Salvador e Maceió quando foram sentidas explosões em seu
casco. Rapidamente, envolto na escuridão da noite, a embarcação afundava com seus 73
tripulantes e 233 passageiros, sendo 124 militares1. Destes, somente 36 pessoas saíram com
vida para serem testemunhas do horror em que viveram. Naquela mesma noite, às 21 horas,
outro navio, o Araraquara, a pouco mais de 30 quilômetros de Aracajú, também levava ao
fundo do mar 131 pessoas que ainda desconheciam o perigo que rondava as viagens ao longo
da costa marítima brasileira. Estes foram os primeiros ataques em território brasileiro.
Em fevereiro daquele ano, no entanto, outras embarcações já haviam afundado em
águas internacionais, como o Cabedelo, que rumava de Filadélfia, nos Estados Unidos, para a
Paraíba: 54 pessoas morreram no incidente. Não ficou comprovado ter sido um submarino
alemão o autor do naufrágio, mas os indícios apontaram para isso. Dias depois, outro
submarino não identificado pôs a pique o Buarque, com 74 pessoas, em região próxima da
Base Naval Norte-Americana de Nortfolk. Milagrosamente somente 01 pessoa não
sobreviveu. Até o incidente com o Baependi, outros 12 afundamentos ocorreram, deixando
um imenso saldo de mortos, destruição e medo.2

Fot 1- Navio “Porto Alegre” torpedeado, 03 de Nov


1942. Exército Brasileiro. Disponível em:
<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/ind
ex1.htm>. Acesso em: 15 Set. 2005.

O então soldado de Artilharia, Pedro Paulo de Figueiredo Moreira estava a bordo do


navio Itagiba que ia para Olinda, quando foi torpedeado em 17 de agosto de 1942.
______________
1 - SANDER, Roberto. O Brasil na mira de Hitler: a história do afundamento de navios brasileiros pelos
nazistas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p.97.
2 – SANDER, Roberto. Idem. p. 97
Em seu relato indireto, falou sobre seus momentos de terror como náufrago dessa
tragédia:

Embarcamos no dia 13 de agosto de 1942, às 13 horas, no armazém 13 do cais do


porto do Rio de Janeiro, no navio Itagiba, com destino a Olinda, em Pernambuco.
O navio conduzia 119 passageiros, entre militares, senhoras, crianças e a
tripulação.
A partida de Vitória para a Bahia aconteceu no dia 15, às 16h da manhã. Até o
amanhecer do dia 17, fazíamos boa viagem, sem nenhuma ocorrência anormal. Até
chegarmos à altura do Farol de São Paulo, mais ou menos a 30 milhas de Salvador,
às 10 horas e 50 minutos do dia 17, no momento em que em estávamos almoçando,
fomos surpreendidos por uma violenta explosão e o estremecimento geral do navio,
o que determinou a queda dos objetos que se encontravam nos camarotes, além da
quebra de vidros, etc. Ouvíamos: “Fomos torpedeados, vamos para as baleeiras!”.
Grande parte do navio ficou em destroços.
A princípio não sabíamos bem do que se tratava, mas logo, foi constatado tratar-se
de torpedeamento. Estabeleceu-se, naquele momento, pânico a bordo, correria de
um lado para outro, em busca de salva-vidas e em direção às baleeiras, das quais
poucas foram retiradas dos picadeiros e lançadas ao mar. Só houve uma explosão
embaixo da escotilha do porão número 3, a boreste, e não se viu a unidade inimiga
devido a inclinação do navio que adernava. Afundaríamos em cerca de dez
minutos, enfrentando uma forte ventania e um mar muito agitado.
Quando nos esforçávamos para sair do navio, a baleeira caiu em cima do convés,
encostando-se à chaminé. Gritos eram ouvidos para que os passageiros buscassem
salvamento de qualquer modo, pois o navio já começava a sua inclinação vertical.
Eu, particularmente, fui tomado de tremendo medo que chegou ao ponto de
transformar-se em total desprendimento, pois criei coragem para lançar-me ao mar
como única alternativa de salvamento.
Ao saltar, fui puxado pela sucção das águas provocada pelo afundamento do navio,
tendo sido arrastado a grande profundidade, voltando à tona, após muito esforço,
segurei-me em um pedaço de madeira, a fim de descansar e adquirir forças para
nadar em direção a uma das baleeiras que já se encontrava afastada do local da
tragédia.
Assisti cenas que jamais pensei de presenciar na minha vida durante o tempo em
que estive abraçado aos destroços do navio. Vi companheiros meus sendo puxados
por tubarões, dando gritos de dor e desaparecendo; outro mais fracos, perderam o
juízo diante de tanta barbaridade, proferindo frases sem nexo, tais como: “eu quero
café”; “espere minha mãe”; “vou à pé” e desapareciam na profundeza do mar.
Após presenciar esse espetáculo desesperador, nadei em direção a uma das
baleeiras. Devido à superlotação, a baleeira tombou lançando muita gente ao mar
pela segunda vez, inclusive eu. Após algumas horas de pavor e nervosismo, surge
um iate, parece-me enviado por Deus, o Aragipe, que presenciara o naufrágio do
nosso navio e viera em nosso socorro, recolhendo a bordo todas as vítimas,
levando-nos para a cidade de Valença, na Bahia.
Nessa localidade, os feridos foram levados ao hospital e os náufragos restantes
colocados em casas de família, gentilmente oferecidas pelos moradores, como
também nos salões da prefeitura.
Ao chegarmos em terra, foi imediatamente organizada a lista dos sobreviventes,
notando-se a falta de onze tripulantes, inclusive o comandante. Este apareceu no
dia seguinte, acompanhado de um taifeiro. Os passageiros desaparecidos, naquele
momento, eram cerca de 25. Hoje, sabemos que, naquele triste naufrágio, perdemos
36 brasileiros e, naquela mesma hora, próximos anos, mais vinte, com o
torpedeamento do Arará.
Após mais ou menos três dias, fomos para Salvador num navio de guerra o
cruzador Rio Grande do Sul. Chegamos a Salvador no mesmo dia e nos alojamos
no Forte Barbalho, onde ficamos até seguir destino para Olinda, como previsto. 3

Pedro Paulo foi à 2ª Guerra como sargento auxiliar de topografia e de Serviço de


Meteorologia, histórias como as dele ilustram o terror que os afundamentos na costa brasileira
representavam para todos. As ações deste tipo, mesmo em tempo de guerra, são criminosas
por atingirem embarcações civis, sem condições de defesa e por, naquele momento, os países
envolvidos não estarem em situação de guerra declarada. Para compreender as motivações
que levaram os alemães investirem contra navios indefesos, é necessário recuar alguns anos
no tempo e entender como se desenvolveram as relações diplomáticas brasileiras com a
Alemanha, os EUA e a Itália.
Antes mesmo do advento do Estado Novo, em 1937, Vargas procurava meios para
diversificar a produção brasileira e angariar novos mercados para estabelecer parcerias
econômicas. A Alemanha surge como este parceiro favorável, pois vinha em franca
recuperação econômica e se interessava pelos produtos primários vindos do Brasil, que por
sua vez aspirava ingressar na era industrial com o apoio germânico.4
Em relação à Itália, o relacionamento era marcado por uma grande identificação
cultural, devido aos laços de latinidade, e boa diplomacia entre os governos. No entanto, não
possuíam uma parceria econômica significativa.
Em 1936, os EUA implantavam o fim do pan-americanismo coercitivo, que foi
marcado pela imposição militar e pelo pouco diálogo entre os americanos e os governos da
América. Para o Brasil, neste período, destaca-se a dificuldade de cooperação militar, fato que
pontuou as relações por muito tempo, e a atuação positiva de Osvaldo Aranha junto à
Embaixada Brasileira em Washington.
A partir do Estado Novo, a atuação do governo brasileiro em relação a sua política
externa é dividida em duas fases: a 1ª, em meados de 1937, é a de estabelecimento de um
regime corporativo no País e de uma forte preocupação com o fortalecimento do
nacionalismo no Sul, haja vista as dificuldades de assimilação dos ensino de língua

________________
3 - História Oral do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2001. Vol I. p. 58.
4 - SEITENFUS, Ricardo. O Brasil vai à Guerra: o processo do envolvimento brasileiro na Segunda Guerra
Mundial. Barueri: Manole, 2003. p. 16
portuguesa pelos imigrantes alemães, principalmente, aliada às atividades do Partido Nazista
naquela área e do estrangeira, que eram apoiadas pelas embaixadas da Alemanha e da Itália.
Esta fase é marcada também pela ação criminosa dos integralistas, ao tentarem assassinar
Vargas dentro do Palácio Guanabara. Já na 2ª fase, ocorre uma lenta retomada do diálogo
brasileiro-americano, inclusive com esboços de um plano de cooperação econômica. Neste
período, de maneira paradoxal, há uma tentativa de reaproximação entre o Brasil e a
Alemanha.5
O governo possuía características próprias de um regime forte e, em seu gabinete,
vários elementos eram simpáticos a essa forma de governar, como o que era desenvolvido na
Alemanha, na Espanha e na Itália. Dutra, que era o Ministro da Guerra, e o General Góes
Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército, admiravam a disciplina e o poder militar
externado pelos alemães, antes mesmo do início da 2ª Guerra. Filinto Muller, chefe da
segurança de Vargas, e Waldemar Falcão, Ministro do Trabalho, também nutriam a mesma
admiração. Durante praticamente todo o processo de envolvimento do Brasil na 2ª Guerra
Mundial, os conflitos ideológicos entre este gabinete e os interesses americanos,
representados pela ação de Aranha e dos embaixadores dos EUA no País, perturbaram a
definição da posição brasileira.
Getúlio Vargas, também durante todo o período que antecedeu a entrada do Brasil
na Guerra, apresentou uma posição dúbia ante as propostas alemães de cooperação, em troca
da neutralidade diplomática, e de defesa do continente e de união das Américas, feitas pelos
norte-americanos. Com a 1ª Conferência Pan-americana realizada em Lima, em 1940, a
decisão brasileira era de se manter neutro ante o recrudescimento do conflito na Europa,
inclusive com a perspectiva de vitória do Eixo. Vargas decretava que o Brasil não iria tolerar
atos beligerantes no território nem apoiaria passagem de aeronaves ou navios pelo Brasil que
estivessem a caminho de ações de guerra. A Alemanha apoiava esta neutralidade, pois isto
enfraquecia os EUA.6
O ano de 1941 foi determinante para o Brasil em relação a sua política exterior, pois
saía desta posição dúbia para, junto à toda a América Latina, alinhar-se aos norte-americanos
em prol da defesa do continente e ante o avanço do nazi-fascismo em todo o mundo. A guerra,
inclusive, já aparecia em forma de intensos combates no continente africano, a poucos
milhares de quilômetros do Brasil.

________________
5 - SEITENFUS, Ricardo. Op. Cit. p. 178.
6 - SEITENFUS, Ricardo. Op. Cit. p. 176.
Após os acordos firmados na 3ª Conferência Pan-americana7, em Havana, que,
novamente, os países membros definem-se pela neutralidade do continente. O Brasil, assim
mesmo, resolve ceder aos americanos a instalação, já em 1941, da base aérea de
Parnamirim, em Natal8. O “trampolim da vitória”, como ficou conhecido, foi utilizado para
apoio às ações dos EUA na África e como ponto forte na defesa do litoral nordestino para a
ação contra submarinos e em caso de uma invasão alemã.
O Presidente Vargas, no entanto, mantinha-se firme em sua resolução de continuar
ligando-se diplomaticamente com seus ex-parceiros, alemães e italianos, apesar da queda do
comércio, da proibição de atividades do partido nazista alemão no Brasil (NSDAP) e da
utilização da língua alemã, pela expulsão de embaixadores, do fim da concessão da Lati
(Linhas Aéreas Transcontinentais Italianas) e da Condor, empresas aéreas italiana e alemã,
respectivamente, e de outras ações que foram tornando impossível a restauração da amizade
entre os países.
Quanto aos EUA, as relações, principalmente de cooperação militar, continuam
marcadas pela desconfiança de lado a lado, haja vista que o Brasil ansiava pelo recebimento
de material militar para modernizar suas Forças Armadas e os americanos queriam utilizar
seus próprios meios para garantir uma aliança protetora no continente, além de visualizarem
o Nordeste Brasileiro como região preocupante do ponto de vista estratégico.
Em 7 de dezembro de 1941, acontece algo que definiria a situação diplomática no
continente. Sem aviso prévio, os japoneses atacaram a base naval de Pearl Habor, no território
americano do Hawai, provocando a entrada dos EUA efetivamente na Guerra.9 Em nova
Conferência, desta vez no Rio de Janeiro, os ministros das relações exteriores das diversas
nações americanas, em nome dos seus governos, decidiram pelo afastamento das relações
diplomáticas com os governos alemão, italiano e japonês. Com exceção do Chile,
preocupado com a possibilidade de ataques do Japão, e da Argentina, que possuía
laços culturais com os dois países europeus.
A partir daquele momento não haveria volta para a diplomacia brasileira, calcada na
mão firme de Vargas, ensaiar qualquer tipo de aproximação. Foi uma vitória, principalmente,
do Senhor Osvaldo Aranha10, agora o Ministro das Relações Exteriores, artífice dos
movimentos diplomáticos que levaram o País ao alinhamento com os americanos. Para os
______________
7 - SEITENFUS, Ricardo. Op. Cit. p. 231.
8 – MCCANN JR, Frank D. A aliança Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro: Bibliex, 1995, p. 189.
9 - DAVIES, Norman. Europa na Guerra: 1939-1945. Rio de Janeiro: Record, 2009.p. 179.
10 - Sobre Osvaldo Aranha, ler Livro de Stanley Hilton: Osvaldo Aranha – Uma biografia.
principais generais brasileiros, não foi uma decisão correta, pois acreditavam (e estavam
certos) que o Brasil não teria condições de defender seu vasto território, mas também,
como foi dito, possuíam suas simpatias ideológicas com o Eixo.
Preocupados com a perda de um antigo parceiro, os alemães, por meio de seu
embaixador, Curt Prüefer, ainda tentaram convencer Osvaldo Aranha em repensar a atitude
tomada. O brasileiro negou-se a ir contra a decisão continental do Encontro do Rio de Janeiro,
mesmo porque, assim atingia um dos seus objetivos como ministro. Os italianos e japoneses,
da mesma forma que Prüefer, apelaram para uma possível retificação de Aranha, não sendo
atendidos também. Ao verem que seus pedidos não seriam aceitos, ameaçam com a
visualização de um estado de guerra entre os países, iniciando, então, os ataques aos navios
mercantes brasileiros. Em 30 de agosto, após o afundamento do Baependi, Vargas reconhece
do estado de guerra entre Brasil e Itália e Alemanha. Era o começo de uma nova fase para o
País.
Seguiram-se, então, medidas para preparação do País em vistas das conseqüências
que uma declaração de guerra pode trazer. Nisso, o presidente Getúlio Vargas, por meio do
decreto nº 10451, de 16 de setembro de 1942, ordena a mobilização nacional, de meios e de
pessoal.11 O Brasil entrava no “esforço de guerra”, entrava na Segunda Guerra Mundial.

2.2 Memórias: o começo... a mobilização.

Mesmo com a Guerra ocorrendo a algum tempo na Europa, na Ásia e na vizinha


África, o Brasil não possuía uma Força Armada preparada para executar a defesa de seu
território, tampouco para combater de igual para igual com os agora inimigos, alemães e
italianos.12 Naquele momento, inclusive, a preocupação primordial era a defesa da costa
marítima, pois além desse curto objetivo, qualquer outra ação era mais do que impensável. O
País possuía um Exército de 60 mil homens, apesar de já ter uma população de 50 milhões.
Seus militares estavam espalhados por muitos quartéis em todo o território, mas se
encontravam em maior concentração no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do
Sul. Havia também o problema de escasso material militar, mesmo os básicos, como
capacetes e mochilas, além de armamentos sem padronização e antigos, comprados
principalmente da Alemanha, da França e da Inglaterra.13
_______________
11 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op. Cit. p.127.
12 - SEITENFUS, Ricardo. Op. Cit. p. 290-291
13 - MCCANN JR, Frank D. Op. Cit. p. 298.
Abordando especificamente a mobilização, que foi o ato de impedir a saída dos
militares que se encontravam em serviço militar obrigatório e aumentar o efetivo de pessoal e
a convocação, momento em que era feito o chamamento obrigatório para o serviço militar ou
para a atuação na guerra, verificaremos, portanto, como estas ações foram compreendidas
pelos veteranos da FEB.
O senhor José Maria da Silva Nicodemos, ou simplesmente Zé Maria, nasceu na
pequena São João Nepomuceno, em 26 de Setembro de 1926, lutou na guerra como cabo
apontador do morteiro 81 mm da Companhia de Petrechos Pesados do 11º RI, e assim como a
maioria dos jovens que moravam na Zona da Mata Mineira procurou o serviço militar como
forma de conseguir o Certificado de Reservista, que naquela época, além da comprovação do
cumprimento do serviço militar, era um documento que servia como um aval de idoneidade
para aqueles que queriam entrar do mercado de trabalho.

Fot 2 - José Maria da Silva Nicodemos.


Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB – Seção Juiz de Fora.

Em seu depoimento inicial, Zé Maria nos fornece uma excelente visão de como era
estrutura do Exército e da Sociedade na qual estava inserido nos anos 1940:

O senhor tinha alguma ligação com algum partido político?


Naquela época? não... digamos assim: dezenove, vinte anos... no interior, a gente
queria era jogar futebol, ficar sábado quase a noite inteira, assim... batendo papo...
o próprio meio de comunicação: zero, zero, não é igual a hoje. São João
Nepomuceno não é servido pela estrada de ferro Leopoldina, né, o rápido, rápido
nada, que aquilo não é rápido, se o senhor saía correndo pegava, então não é
rápido. Era o que existia na época. Era um trenzinho e chegava lá duas e pouco da
tarde, duas e quinze, duas e meia, se não me engano, é que trazia os jornais do Rio
de Janeiro.
Passava o trem lá, então?
É. A noite, por exemplo, o Correio da Manhã.... (jornais) não lembro que tivesse
mais nada não. Era só isso. Nossa Senhora, era muito difícil. e o rádio era guardado
lá na casa das minhas irmãs. O primeiro rádio que entrou em nossa casa, não
funciona mais não.Tá guardado lá na casa das minhas irmãs, de bateria, né? De
automóvel. Era o que existia na época. Tinha determinado momento que eu não
conseguia escutar nada.... o telefone... o telefone funcionava da seguinte forma:
tinha o posto telefônico, se o sr tivesse um parente em Rio, Belo Horizonte, Juiz de
Fora onde quiser e este parente quisesse comunicar com o sr, telefonava para o
posto, em São João Nepomuceno ou qualquer lugar do interior, telefonava para o
posto, aí o funcionário do posto, mandava o mensageiro na sua casa dizendo que
fulano de tal lugar assim, assim, precisa falar com o sr. aí tinha que voltar lá e ligar
pro cara lá.... Nossa Senhora... pela amor de Deus... era a comunicação que existia.
Já tinha trem, pelo menos...
Tinha a Estrada de Ferro Leopoldina. Marcos: hoje em dia não tem mais nada? Zé
Maria: acabou... acabou...
Eu fui criado na religião Católica.....permaneci..sou..um crente, acredito que exista
um ser superior ..foi convencionado ser chamado de Deus , eu acredito que
existe ....se bem que tem hora que eu começo ...a estar pensando né?! a ..gente....
mas como? Isso me provoca mesmo uma pequena confusão. De tanta coisa que eu
já li a respeito de outras religiões ...elas são consideradas apenas três: cristianismo,
judaísmo e islamismo. Um Deus único. O resto são profetas, inclusive Jesus Cristo.
né?! Só que ele se destacou dos demais, então, numa dessas é Maomé. Até um dia
desses foi a professora que botou o nome de Maomé um bichinho e foi uma
confusão. Então a gente começa a ler muito sobre essas coisas e começa a
pensar..que tudo isso, ou melhor dali pra frente, daquela época que eles andavam
naquele pedacinho do Egito, da Judéia, Palestina, né, que andavam ali, pregando
aquela idéia religiosa, essa fé e principalmente Cristo ..que o forte dele era o
respeito uns aos outros e a todos. Então eu fico pensando que de repente os chefes
das tribos, depois os reis estão defendendo o seu lado aí começou o interesse ...
O sr morava em São João Nepomuceno ou em Juiz de Fora ?
Morava em São João Nepomuceno. Eu, antes de servir ao Exército, tive em Juiz de
Fora uma só vez era muito difícil, Nossa Senhora. Era muito difícil de todas as
formas, inclusive, dinheiro pra poder locomover. Inicialmente..eu vou contar um
pedacinho de minha história. São João Nepomuceno naquela época era composto
dos seguintes distritos: Descoberto , hoje é município também, Araci, Taruasú,
Roça Grande, Carlos Alves, pois bem, hoje Descoberto é município, ....Taruasú
que é a terra do Sampaio, José Gomes Filho, Taruasú, Roça Grande e Carlos Alves
continuam como São João. Isso mesmo..então eu nasci em Araci, minha mãe era
professora rural, ainda lembro como se fosse hoje , tem anos e anos que eu não vou
pra aquela região lá, então a escola era aqui assim, uma estradinha, do lado de cá
da estrada era a escola, e aqui do lado direito, em frente a escola, tinha uma casa,
era um tipo sobrado, eu nasci alí, era onde morava meus pais. E..uns três
quilômetros após Araci, existia e existe a chamada cachoeira da fumaça, ela é
formada pelo Rio Novo, que é um rio que passa em Rio Novo, faz uma curva na
região de Furtado de Campos, né e ..vai sair neste lugar...Araci, que é o lugar em
que eu nasci. Então o lado de lá dessa cachoeira, eram terras que pertenceram ao
pai da minha mãe. o pai da minha mãe, José Ângelo Nicodemos, ele é natural da
Calábria, coitado..imigrante... ele e um irmão, Pascoal, desembarcaram no Rio de
Janeiro e vieram para o interior, onde ele adquiriu essa terra, e o Pascoal ficou
dentro da cidade, mexendo mais com um pequeno armazém, coisas assim,
então...minha mãe fez curso de normalista na escola de São João Nepomuceno. Ela
fez normalismo e foi nomeada professora. Primeiro ela foi alí, onde eu nasci,
depois ela foi transferida para o Município de Taruasú, e lá que entrei para escola,
com sete anos de idade. No primário, isso por volta de 29, ou 30..por aí. Aí ela foi
transferida pra sede do município, São João Nepomuceno, aí fomos embora para
São João Nepomuceno, nesta altura do tempo morado em Taruasú, meu pai
montou um pequeno armazém, uma vendinha, foi uma parte de minha vida lá,
fomos pra São João e em São João a gente continuou ..aí vieram as irmãs, irmãos e
tudo...e...eu começei a aprender a... profissão de alfaiate essa altura já com vinte
anos a maioria de meus companheiros de idade lá de São João já estavam no
Exército e era o documento principal daquela época era o certificado de reservista.
Aí em outubro de 42, aí eu falei pros meus pais: “não adianta eu ..de qualquer
forma eu tenho que adquirir o certificado quem sabe amanhã eu vou querer sair pra
li e vão me pedir...”. Não houve objeção nenhuma, eu me apresentei
voluntariamente no 12 e aí eu permaneci, não era um craque do futebol, mas muito
ágil, muita força, não força física digamos assim, pelo tipo atlético, eu nunca fui,
meu peso sempre foi 56...nem pra cima nem pra baixo, mas eu pulava qualquer
barranco e corria como um danado, então eu já cheguei e..tinha um companheiro
meu lá de São João, já estava servindo, e estava sendo iniciado o campeonato de
futebol interno do Regimento e sabia que eu vinha, servia na companhia extra e era
datilógrafo na casa da ordem, era o que chamavam “casa da ordem”, ele sabia que
eu vinha, comunicou pro capitão, comandante da companhia extra e quando eu
cheguei já tava tudo arrumado..eu cheguei, apresentei, e logo fui levado pra
companhia extra, e não jurei bandeira nem nada, já vesti farda de
soldado....Marcos: já vinha da cidade direto pro quartel assim?! é
....é....Marcos: faziam algum teste? nada, nada , eu fiz um exame físico lá..não
tinha nada mesmo, graças a Deus eu não tinha nada mesmo. Eu fui direto pra
companhia extra, mas eu dei um azar danado, na primeira partida eu torçi a virilha
assim... aí não consegui jogar mais, não consegui mais jogar, naquela época não
tinha tratamento pra nada, coisa nenhuma, só tirava serviço uma vez ou outra, e por
aí, não tinha mais nada, aí veio o curso de cabo, de repente veio o
capitão...capitão...Armando...Armando.....bom o subtenente é que eu lembro muito
dele subtenente Valdomiro, Nossa Senhora, acho que quem mandava mais que ele
era só o Capitão, ninguém mais, subtenente Valdomiro era uma pessoa
extraordinária sabia tudo, sabia tudo.. de repente e chamou na reserva lá e - “ ó
você tá matriculado no curso de cabos, você tem que comparecer pra começar as
instruções” - e foi, foi.... transcorrendo minha vida, aí de repente, veio a
transferência, o desligamento do curso de sargento, transferência para São João Del
Rei, chegando em São João Del Rei já fui direto pra companhia de petrechos
pesados, que tava sendo organizada e na companhia de petrechos eu fui direto pro
morteiro 81 que faz parte, na época fazia parte e fiquei..fiquei, fui parar na Itália...
Mas o senhor foi selecionado dentro do pessoal, eles entrevistavam?
Nada, nada, nada!!!! já tava na relação e fui embora. Este rapaz que eu citei, que
trabalhava na Casa da Ordem, nem ele nem os outros dois irmãos dele foram para a
Itália.
Só foi quem não conseguiu sair!?
Não sei..só sei que a gente foi parar em São João Del Rei. eu era cabo apontador,
mas fazia tudo ..morteiro 81 da companhia de petrechos pesados. CPP II. O
morteiro, em função da instrução diária todo mundo tinha que fazer tudo
relacionado ao tiro , só que todo mundo tinha sua função: era o municiador, era o
cabo apontador, era o atirador todo mundo era obrigado a fazer pois de repente um
podia levar um estilhaço, um tiro e não podia parar ...então todo mundo
sabia..então normalmente era eu, da 2ª seção, era eu o cabo José Tomaz Barbosa,
aqui da região de Pompeu , cidade da represa de Três Marias, nunca mais vi o cabo
Barbosa. Marcos: depois da guerra? Nunca mais, nunca mais...na época ele veio
do 10º de Belo Horizonte para São João Del Rei , e ele era roceiro mesmo , era
roceiro mesmo, mas uma figura formidável , companheiro de primeira
Os seus pais moravam em São João, mas o senhor morava em Juiz de Fora, no
quartel?!
.................é ruim a gente falar, mas....era uma pobreza ...era uma pobreza de causar
espanto, as acomodações, os alojamentos, e naquela época não existia detergente,
não existia inseticida, não existia nada, então dormir numa cama ....era um
sacrifício! Que bastava apagar a luz que os percevejos juntavam e no outro dia tava
todo vermelho, cheio de calombo, uma coisa dolorosa. Já orientado pelos
companheiros, nós morávamos em pensões ali pela rua Bernardo Mascarenhas, nós
morávamos ali...
Dava para sobreviver por causa dos custos?
......é um “dava” “vendendo o almoço e comprando a janta” ........se eu não me
engano eram vinte e um cruzeiros o soldo de um soldado ..acho que era isso ...bem
então a gente morava em pensão..eu morava no 807 . O senhor desce o quartel, vira
a direita no sentido para a cidade. Dali a esquina deviam ser três casas, no máximo.
Ali que eu morava, a direita tinha a antiga fábrica Sedan, né!? Em frente à Sedan
tinha a pensão do Passarinho, a gente almoçava ali, que a comida do Regimento
era..... ah! Nossa Senhora..quando tava de serviço era difícil poder vim cá na rua
né?! Aí tinha que agüentar, mas era um negócio muito triste, não precisa mais nada
toda semana era obrigatório, que tivesse de serviço, era obrigatório. Juntava aquela
meia dúzia de soldado mais um cabo eram os responsáveis, colocar todas as camas
lá de fora do alojamento e fazer uma faxina. E essa faxina era feita com água,
sabão e às vezes querosene, por causa do percevejo. Era uma coisa assim....até hoje
eu ficando pensando..meu Deus ...como é que podia ser um negócio daquele
....todo aquele que tinha um pouquinho mais de visão da coisa, saía fora, saía fora,
ia morar numa pensão daquela alí. Alugava um quarto, não ficava dentro do quartel
de jeito nenhum. Só ficava de serviço, muito triste, muito triste mesmo.
Quando o senhor foi para a guerra qual foi a posição da sua família?
Eu recordo... apenas de um detalhe muito importante que foi o seguinte... eu já
estava em São João Del Rei já sabíamos no dia a dia, à conversa de pé de ouvido,
já sabíamos que iríamos para o Rio, então eu consegui ... uma fuga de São João Del
Rei, foi muito interessante, de São João Del Rei a Barbacena era o trenzinho da
rede mineira de viação, na época o soldado, nós soldados, não fui eu, mas nós
soldados, nós apelidamos o trenzinho de ruim mas vai , que realmente ele ia, se o
senhor ficasse com a janelinha do vagão aberta ia queimar a roupa todinha por
causa das faíscas... por causa da chaminé da máquina, máquina de tração, então é
ruim mas vai , então nós saímos, um grupo muito grande de São João Del Rei
todos conhecidos éramos conhecidos uns dos outros para Barbacena, era um
sábado de carnaval. Quando nós chegamos em Barbacena e naquela época qualquer
trovão, não quero dizer chuva... mas qualquer trovão, era suficiente para
interromper a ligação ferroviária de Juiz de Fora a Belo Horizonte, por causa dos
túneis e a precariedade, então quando nós chegamos em Barbacena, na própria
estação nós ficamos sabendo que não tinha trem descendo, aí “e agora o que nós
vamos fazer”. Aí não sei quem falou: “o gente, peraí, nós somos soldados
brasileiros, tudo indica que nós vamos para a guerra, prefeito de Barbacena tem
que arranjar um jeito de levar a gente para Juiz de Fora”. Aí todo mundo: então
vamos embora. Aí eu recordo, era de noite, me recordo que o prefeito estava num
clube carnavalesco lá, nós fomos até a porta do clube. Acredito que nós éramos, no
mínimo vinte e cinco homens, cabos e soldados, uns 25, não vou dizer que era
menos ou mais, mas acredito que uns 25. Aí nos atendeu, “nós precisamos ir para
Juiz de Fora” naquela época a economia de combustível era uma realidade, usava-
se gasogênio. O senhor já ouviu falar? Então ele arranjou lá um ônibus movido a
gasogênio, e esse ônibus por conta dele, da prefeitura, nos trouxe a Juiz de Fora.
Nós fizemos o resto da noite, graças a Deus, muito devagar, muita dificuldade,
estrada de chão e alguns trechos, pouquinho de barro, porque tinha chovido, mas
chegamos em Juiz de Fora paramos na praça da estação, essa nossa ali, João
Penido, era praticamente sete horas da manhã, essa imagem não me desapareceu
nunca mais. Eram sete horas da manhã, era o tempo certinho d’eu passar para trás
da central da rede, Estrada de Ferro Central do Brasil, onde tinha a estação da
estrada de ferro Leopoldina, foi só o tempo de eu descer do ônibus... “quarta-feira
nós estamos em São João Del Rei” cada uma falou uma coisa. Saí rapidamente,
peguei o trenzinho da Leopoldina, então Juiz de Fora, entre outros lugares, o bairro
Grama hoje, o bairro Grama naquela época era Mussungê. Hoje é bairro Grama...
Coronel Pacheco, Rio Novo até Furtado de Campos. Furtado de Campos
terminava, aí vinha de Ponte Nova a outra Leopoldina que ligava para o Rio de
Janeiro... então cheguei em São João.
Aí eu fiquei em São João, dois dias, três dias de carnaval, na terça feira de
carnaval, tinha uma linha de ônibus, naquela época não se falava muito “ônibus”
não: jardineira, era mais ou menos assim, mas alguém já falava ônibus, só que era
um ônibus pequeno, não era esse ônibus de 40 passageiros era ônibus de 20.
Antonio Salvador era o do ônibus. Aí eu vim, desembarquei em Santa Terezinha,
naquela época aquela ponte ali era uma ponte de madeira, o Manoel Honório
também era uma ponte de madeira, não existia a Avenida Brasil, é lógico, ou vinha
pela Américo Lobo do lado de lá do rio para o centro da cidade ou então
atravessava a ponte e pegava o Morro da Glória. Aí eu desci ali, e fui ...digamos
assim, para a pensão do Passarinho, lá mesmo eu arranjei qualquer coisa prá comer
que já era 11 horas talvez, aí fui no quartel. Fui no quartel, na rua conversei com
uns caras e tal, e no quartel fiquei sabendo que o caminhão da chamada
Subsistência ia para São João Del Rei, ia sair de tarde, arranjei uma carona, e nesta
carona, aconteceu que o Hélio Tomaz tinha vindo para juiz de fora, já estava de
carona nele e foi também de carona o sargento Durval, era um caminhãozinho
Chevrolet, carroceria levando mantimento e umas coisa assim. Nós viajamos a
noite inteira em cima da carroceria para chegar de manhã em São João Del Rei.
Mas não houve problema disciplinar, não houve nada, tava tudo mais ou menos
conversado. Então estes detalhes eu não esqueço, mas não esqueço mesmo foi,
marcaram muito minha vida .marcaram mesmo.. aí depois desta data que eu falei:
carnaval. ....eu não voltei mais, ...porém antes de ir embora, voltar de São João pra
São João Del Rei, eu falei com o irmão de meu pai, ..o Mário era meu padrinho,
falei “padrinho, vou dizer uma coisa pro senhor, não fala prá ninguém, não fala lá
em casa, não fala prá ninguém, mas o senhor vai ficar sabendo, qualquer momento
nós estaremos indo para o Rio de Janeiro”. _ “ ah... mas porquê?”. “não, questão de
treinamento, mas não fala isso prá ninguém não, deixa que na época oportuna eu
comunico pro senhor ou então, comunico direto”.14

Zé Maria em seu depoimento nos proporciona uma visão, talvez única, da vida do
jovem na Zona da Mata Mineira. Sua pequena cidade, com apenas 22 mil habitantes, é a
referência para a comparação com uma Juiz de Fora industrial e moderna, cinco vezes maior e
com maiores possibilidades de emprego e de vida. Foi criado em uma família humilde, com
pai lavrador e mãe professora de curso primário, que inclusive lhe possibilitou uma educação
acima das que muitos de seus companheiros possuíam. Seu dia-a-dia era de trabalho na
profissão de alfaiate, e de momentos de tranqüilidade, com conversas e jogos de futebol. O
interesse pela informação, sobretudo o que acontecia na Guerra, provinha dos poucos jornais
disponíveis e um pequeno rádio. A falta de comunicações e transporte eram problemas típicos
______________
14 – NICODEMOS, J.M.da S. José Maria da Silva Nicodemos. Depoimento [Dez. 2007]. Entrevistador:
Marcos A. Costa. Juiz de Fora: UFJF – MG, 2007. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida à dissertação do
autor.
(e ainda são) nas cidades do interior do Brasil de Vargas, grandes distâncias e falta
de investimentos dificultavam a integração e a vida dos habitantes. Zé Maria comenta, ainda,
como era a dificuldade em utilizar o telefone público, a única opção para a maior parte dos
moradores. E o que falar das peripécias para se locomover entre essas cidades!? O trem era a
maneira mais rápida e segura, mas havia também a “jardineira”, que segundo ele, aparentava
ser um pequeno e desconfortável ônibus.
O Certificado de Reservista era o documento que confirmava que o jovem alistado
cumpriu o ano de serviço militar em alguma unidade das Forças Armadas. Naquela época,
este documento possuía um alto valor, pois poderia representar um tipo de atestado de
idoneidade de seu possuidor, indicava que o homem havia passado por uma seleção, por pior
que ela fosse; por tarefas duras que comprovaram sua capacidade de resistir, de resolver
adversidades, de cumprir ordens e até, em alguns, casos, em que poderia ter aprendido uma
profissão que fosse útil no mercado de trabalho. E que era um jovem responsável e pronto
para outras atividades. Então, era isso que a maioria dos voluntários a servir desejava,
principalmente os mais pobres, que não tinham possibilidades de estudar, de receberem apoio
para exercer alguma atividade e que viam nos quartéis uma chance de futuro.
Zé Maria descreve a falta de critérios que existia na seleção dos homens que iriam
servir ao Exército: não havia exames médicos mais apurados, testes psicotécnicos ou
psicológicos, avaliações físicas ou entrevistas sociais. Ele próprio incorporou porque conhecia
alguém no quartel que sabia de suas qualidades como jogador de futebol, nada mais. Como
aconteceu com Zé Maria, pode ter ocorrido com tantos outros, uns que queriam servir, e
outros que queriam ser dispensados. Mais à frente, falaremos que, para a seleção da FEB, um
rigor maior foi exercido e métodos para a seleção de pessoal nos moldes norte-americanos
foram implantados no País. Ainda sim, problemas existiram e tiveram suas conseqüências na
Guerra.
Nesta primeira parte do depoimento do Zé Maria, o que mais impressiona é a
maneira franca e crua em que descreve o tratamento dispensado ao soldado pelo Exército
naquela época. A falta de estrutura é só uma das explicações para que homens dormissem
sobre percevejos nas camas dos alojamentos que, ao que tudo indica, eram péssimos, assim
como a alimentação, que afugentava os jovens para viveram em pequenas pensões que
existiam ao redor dos quartéis, gastando o pouco que ganhavam e vivendo como podiam.
Faltava na verdade, respeito ao homem, ao seu valor como Ser Humano e como material mais
importante na atividade-fim de preparação para a guerra, qualquer guerra. A visão de
tratamento inadequado de um Exército que ainda era primitivo em capacidade de combater e
tradicional na sua hierarquia, vai ser motivo de comparações mais contundentes quando
exposto ao modelo de valorização do homem que o EUA promoviam e que foi testemunha o
soldado brasileiro na 2ª Guerra.
Quanto ao Zé Maria, suas palavras carregadas de emoção remetem a um tempo de
dificuldades que foram vencidas no dia-a-dia por pessoas, que como ele, queriam sobreviver
de uma maneira mais digna e que para isso, aceitavam as privações e assimilavam as
novidades, boas ou ruins, de uma cidade grande. As lembranças da viagem para último
carnaval em São João Nepomuceno antes de partir para o Rio de Janeiro, onde enfrentaria os
treinamentos que visavam a partida para a Guerra, e a viagem em cima de uma carroceria de
caminhão para São João Del Rei ficaram em sua memória não porque foram desagradáveis,
mas porque foram significativas, foram selecionadas em meio a tantas outras por suas
importâncias. Provavelmente, apesar de não mencionar, estava feliz. Estava junto a amigos
seus, indo se encontrar com seus familiares, que naquele momento poderia ter sido a última
vez. E, depois, estava indo para um local ainda mais distante para enfrentar a maior desafio de
sua vida até então. Não há como não se recordar.
Capitão Francisco Albino Moreira, que foi 3º sargento comandante de Grupo de
Combate no 11º RI, na sua visão sobre o Exército e sobre a sociedade da época, não foi muito
diferente do que nos relatou Zé Maria:

Fot 3 - Francisco Albino Moreira.


Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB – Seção Juiz de Fora.

O senhor me falou que serviu na Itália no 11º RI, o senhor pode contar mais...
No 11º RIE, onze regimento de infantaria expedicionário. Existia outra unidade
que não foi à guerra. Vamos dizer, o 12º RI, continuou o 12º RI. foram indicados
três regimentos ...porque a FEB tinha o compromisso de enviar três divisões, então
começou a organizar a primeira divisão. A primeira divisão era..as unidades né!? :
Rio, São Paulo e Minas Gerais. ..O Sudeste: 1ª divisão. Então a preocupação
primordial era organizar a primeira divisão, dentro da Força Expedicionária
Brasileira. A Força Expedicionária Brasileira, compromisso assumido pelo Brasil,
organizar três divisões para compor a Força Expedicionária Brasileira, mas
constituiu a primeira divisão. então unidades do Rio, São paulo e Minas, ou Minas,
São Paulo e Rio, como queira, e veio uma Unidade de Mato Grosso, de
Engenharia,....Aquidauana. Engenharia veio de Mato Grosso. Mas o que você
pediu aí?!
Quando foi declarada a guerra pelo presidente Getúlio Vargas, qual era a
situação do senhor naquele momento?
Sim, nós até estávamos numa manobra, quando tomamos conhecimento que havia
designado um comandante para o regimento de São João Del Rei, e o comandante
que estava, o oficial que estava no comando era o Aristides Prados, o Prado de
Oliveira..era tenente coronel que pra guerra, pra paz não vou ligar.. largou o
regimento lá, em plena manobra, nas mãos do subcomandante. Foi uma manobra
que ficou conhecida como “manobra da fome”, nós fomos até um lugarejo que
era.....não me lembro mais o nome, em São João Del Rei...é onde iria terminar a
manobra, estávamos com o comandante que estava pra chegar e o que deixou a
unidade nas mãos do subcomandante. E daí pra frente já tinha conhecimento que a
Unidade era unidade expedicionária e começou a Unidade..... já começou a receber
elementos convocados, reservistas convocados, reservistas vieram de todos os
Estados do Brasil. Na época 20 estados e distrito federal, que era no Rio de Janeiro
tá. Aí 20 estados, cada um tinha sua representação, de todos os reservistas de cada
estado. O Brasil era conhecido como... era considerado subdesenvolvido nessa
época, só se falava em Rio de janeiro e São Paulo, Rio de janeiro e São Paulo. Os
demais Estados eram paupérimos, inclusive Minas Gerais. Nós tínhamos poucas
indústrias, não tínhamos estradas, meios de comunicação, difícil naquele
tempo...o ..e também..o número de habitantes é bem menos. hoje temos 175, 180
milhões né!?, mas naquele tempo tínhamos trinta..e..nove, quarenta milhões e tudo
era difícil...
O senhor já era terceiro-sargento?
Eu já era terceiro-sargento, praça de 01 de abril de 1942. eu..a incorporação foi em
abril, aliás foi em março, e eu apresentei em abril. eu me apresentei como
voluntário..e apresentei acho que no dia 28 de março e 1º de abril fui apto e
incorporado. Aí entrei já no curso de cabo, já tava funcionando o curso de cabo e
quando foi em setembro eu saí cabo, 07 de setembro de 1942, e entrei pro curso de
sargento, era pra mim ter saído sargento no mês de dezembro, mas eu já não
pertencia o...aí foi até uma ‘ossada’ que fizeram comigo né?! porque terminei o
curso e tinha vagas e eu não pude ser promovido porque um dia antes da
promoção, não! dois dias antes da promoção. Eu fui transferido para o 11º BC,
batalhão de caçadores..Vitória, Espírito Santo. Aí fui pra lá fiquei lá três meses
e ..como cabo. eu ia ter que revalidar curso lá em Vitória..mas apareceu lá um
rádio me consultando se eu aceitava transferência, voltar para o 11, transferência
por conta própria aí eu aceitei e voltei para o 11º RI e fui promovido, quando fui
promovido eu estava lá, mandei fazer uniforme era um uniforme todo alinhado,
parece que tinha um ‘cocar’, um quepe vermelho..era uma farda bem alinhada, mas
já estava quase pronta eu não cheguei ainda a sair à rua assim unifomizado de
sargento , dentro do quartel eu colocava as divisas aí o comandante me e: “ó nós
vamos que ter que tornar sem efeito sua promoção, porque não consultamos a
Diretoria de Infantaria, e nós vamos consultar, e vem logo a resposta.” isso foi em
abril, e só veio em 1º de junho. No dia primeiro de junho eu fui promovido à 3º
sargento, em 43, junho de 43, ainda bem que não passou muito tempo. e fui pra
Guerra nessa graduação. Em 09 de agosto de 43 foi organizada a Força
Expedicionária Brasileira.
O senhor foi voluntário para compor a FEB?
É o que eu digo aqui: (olhando um texto digitado). ‘eu poderia dizer sim, visto
que era arrimo de família, e como tal se quizesse, teria sido dispensado, da unidade
expedicionária, e iria para uma unidade não-expedicionária e não iria deixar o
Exército não, só ia mudar de lugar’.
O senhor tinha alguma informação sobre a guerra?
Já tinha algumas notícias sobre a guerra, estava acompanhando através dos jornais,
rádio. naquele tempo acho que não tinha televisão...15

O Capitão Albino, na época um soldado como o Zé Maria, também relata nuances


sobre a estrutura organizacional do Exército e da FEB, explicando como foi composta a
Força, de acordo com a historiografia militar, ressaltando o sentimento de “compromisso” do
Brasil em organizar três divisões para a Guerra. A palavra “compromisso” possui uma
conotação, na voz do veterano, de ser mais uma necessidade dos aliados em ter mais homens
nos combates do que propriamente ter sido um dos termos do acordo entre o Brasil e os EUA.
A crença da supervalorização da presença da FEB foi amplamente aceita por muitos militares
combatentes, de qualquer patente. O Capitão Albino, em suas memórias, tem a consciência da
inferioridade dos Estados fora do eixo Rio – São Paulo, o que será um motivo de nossa
análise sobre o porquê da escolha de determinados quartéis fora deste eixo, que acabaram por
dificultar a seleção do pessoal e o treinamento para os combates. Nosso veterano foi um dos
que saíram do perfil comum daqueles que não foram voluntários para a FEB, muito
provavelmente por ter uma melhor visão do seu emprego na tropa como sargento,
diferentemente da maioria dos nossos depoentes que eram apenas soldados. Como
sargento tinha uma consciência profissional mais aguçada do que o simples recruta,
entendendo assim, a importância da participação dos profissionais em uma missão como esta,
e também por passar por momentos difíceis em sua vida particular, com a perda da mãe e que,
segundo ele, o motivaram a sua inclusão no efetivo da FEB. E como observado nas memórias
de Zé Maria, o Capitão Albino também acompanhava os acontecimentos da Guerra apenas
por meio dos noticiários da época, o que acaba por evidenciar que dentro dos quartéis não
havia, até a formação da FEB, uma preocupação com o andamento do conflito, não havia uma
antecipação em buscar uma melhoria na qualidade da formação dos militares, algo que só
ocorreu dentro das Unidades da Força Expedicionária, para se adequarem às inovações
doutrinárias na forma de combater.
Outro veterano, o senhor Antonio de Pádua Inham, o “Toninho”, nasceu em 26 de
setembro de 1925, em Rio Novo, Minas Gerais, ingressou aos dezessete anos como soldado
________________________
15 – MOREIRA, F.A. Francisco Albino Moreira. Depoimento [Nov. 2004]. Entrevistador: Marcos A. Costa.
Juiz de Fora: UFJF – MG, 2004. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida para a dissertação do autor.
de um pelotão de infantaria do 12º Regimento de Infantaria (12º RI), sediado em Juiz de
Fora, antes de ser enviado para compor a FEB pelo 11º RI, de São João Del Rei. Na Guerra
lutou como soldado do 3º pelotão da 9ª Companhia do III Batalhão, o “Lapa Azul”. Sobre sua
incorporação ao Exército e o início dos trabalhos da FEB, relatou-nos o seguinte:

Fot 4 - Antônio de Pádua Inham.


Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB – Seção Juiz de Fora.

Com referência ao início da FEB, eu gostaria de dizer que o Brasil foi à guerra
porque foi agredido pelos submarinos alemães. Afundaram 32 navios nossos,
matando 965, entre embarcados e tripulantes. Com essa agressão, os estudantes
foram às ruas e exigiram que o Brasil declarasse guerra aos alemães, o que foi feito
no dia 22 de agosto de 1942, pelo então presidente Getúlio Vargas. Aí em 43 foi
formada a Força Expedicionária Brasileira. Com a declaração de guerra, eu já
estava no Exército, eu tinha entrado para o Exército no dia do meu aniversário, dia
26 de setembro de 1942, como voluntário, eu tinha dezessete anos, a minha mãe
teve que assinar para eu entrar. Eu nem sabia que tinha guerra, eu me alistei porque
precisava do certificado de reservista para poder trabalhar. Hoje tem carteira de
trabalho, naquela época era o certificado. Com a declaração foram suspensas as
baixas, eu não dei baixa do Exército, em 1943 veio a convocação para a Força
Expedicionária Brasileira. Recebi, o senhor imagina: um menino de dezessete anos,
àquela época, o senhor imagina hoje um menino de dezessete, a sabedoria dele é
muito mais ampla do que eu na minha época. Eu tava convocado! Não sabia pra
quê que era, não acreditava que ia embora, até que foi formada a FEB e nós de fato
embarcamos...16

O General Mascarenhas de Moraes, comandante da FEB, chamou de traiçoeiros os


ataques dos submarinos alemães, ainda que argumente como imprescindíveis às ações do
governo em defender a costa marítima brasileira, inclusive com a cessão de bases aos norte-
americanos, completando com a afirmação de que os afundamentos fizeram surgir “o
_______________________
16 – INHAM, A. P. Antonio de Pádua Inham. Depoimento [Out. 2004]. Entrevistador: Marcos A. Costa. Juiz
de Fora: UFJF – MG, 2004. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida para a dissertação do autor.
nascimento da idéia de uma participação directa e mais viva no conflito. Com o decorrer do
tempo esse desígnio se desenvolveu, ganhando todos os recantos da Pátria”. 17 O General,
neste livro, escrevia com a polidez necessária para evitar possíveis críticas não somente à
FEB, mas a ação pouco nacionalista do povo brasileiro sobre a participação de uma tropa em
combate. A Pátria, pelo menos em todos os seus recantos, pouco se mobilizou para isso, pois
a Guerra nunca chegou aos lares brasileiros que não por meio de noticiários. Não sofremos
ataques de proporções de um Pearl Habor, mas sim afundamentos de navios que se
arriscavam em período de extremo perigo. A Pátria ainda estava muito jovem para
compreender que uma ferida bem localizada poderia ser sentida em todo o seu corpo.
O Senhor Antonio, a quem chamaremos de Toninho, por ser essa sua vontade, é uma
voz ativa dentro da Associação de Veteranos da FEB, em Juiz de Fora. É presidente desta
entidade desde o ano de 1989 e é considerado um líder dentre os seus companheiros. Seus
relatos sobre a maioria dos aspectos da FEB são sempre ricos de detalhes e de firme
convicção. No entanto, a análise de suas palavras torna-se mais difícil e requer atenção quanto
às frases feitas e a preocupação com a construção da memória, pois, diferentemente de Zé
Maria e o Capitão Albino, Toninho se preocupa com possíveis interpretações danosas à
imagem da FEB.
Toninho, um descendente de italianos, neste trecho acima, tem um discurso alinhado
com a historiografia militar que propagou a entrada brasileira na Guerra pela simples agressão
estrangeira aos indefesos navios mercantes, como foi descrito acima nas palavras do General.
O argumento foi muito bem elaborado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)18,
e motivou no povo um sentimento que condensava: a união por uma causa justa, a revolta
pela traição e covardia pela característica dos ataques e o apoio à reação armada do Governo.
Foram divulgadas imagens de restos de embarcações à deriva ou chegando às praias
brasileiras e, ainda pior: corpos de crianças em estado de putrefação. Tudo isso ficou no
imaginário não só dos nossos veteranos, mas também na memória social daquela sociedade,
permanecendo até os dias de hoje. Toninho não poderia, é claro, em sua simplicidade de
homem do interior, compreender todo o somatório político que antecedeu aos ataques não só
de alemães, mas também por embarcações italianas. Antes disso houve um comprometimento
brasileiro com o governo americano, um acordo não só político, mas também prático e com
futuros retornos econômicos e estratégicos ao Brasil.
O comprometimento que o País definia com os EUA era, na visão dos nazistas, como
______________
17 - MORAES, João Batista Mascarenhas. A FEB pelo seu comandante. São Paulo: IPE, 1946. p.21.
18 - Sobre o DIP, ler Estado Novo, um auto-retrato. Simon Schwartzman (org), UnB, 1983.
uma declaração de guerra. Não havia um “mocinho” indefeso e um “vilão” ardil, mas sim
uma Nação que não podia proporcionar a segurança para seu território e seus navios, mas que
dava um passo gigantesco para seu posicionamento na guerra, e outra que, abandonada por
seu antigo aliado, fazia o que vinha fazendo com seus inimigos.
Os alemães já torpedeavam os navios de seus inimigos e desafetos desde o início do
conflito. Foram uns dos primeiros a utilizar deste recurso como meio militar de combate e
como forma de levar o terror ao comércio marítimo e causar complicações às atividades de
suprimento e exportação. Na América Latina, Chile e a Argentina não tiveram seus navios
atingidos pelos U-boats, pois foram neutros em relação ao conflito.19 A visão simplista da
guerra atendeu não somente aos propósitos do governo em clamar um apoio popular para uma
decisão difícil que foi a entrada na guerra, mas também fixou na memória dos nossos
veteranos a “meia-verdade” sobre o porquê desta decisão.
Os números citados por nosso colaborador mostram uma atenção para dados
estatísticos que são chamativos para aqueles que buscam as curiosidades da guerra, mas
também demonstram, a preparação prévia para entrevista e a construção, mais uma vez, de
um discurso de afirmação de uma propaganda. Incorreções nestes números não são
importantes, pois são frutos de levantamentos existentes em diversos livros que tratam sobre o
assunto, e há sempre divergências sobre quantos são os mortos, quantos foram os navios e até
mesmo se foram afundados por submarinos alemães, já que os amantes de estudo de
conspirações afirmam que os próprios americanos teriam realizado o serviço sujo para forçar
a entrada em guerra do Brasil. Uma pura fantasia. “(..) estudantes foram às ruas e exigiram
que o Brasil entrasse em guerra contra os alemães..”.20 Após os primeiros naufrágios
brasileiros, parte da sociedade permaneceu indiferente ao fato, apesar de chocada pelas
imagens de destruição divulgadas pelos jornais e reforçadas pelos programas de rádio. Outra
parte, porém, resolveu ir às ruas exigir realmente uma definição do governo quanto ao
problema. A União Nacional dos Estudantes (UNE), que era de cunho comunista, organizou
passeatas pelo País pedindo a declaração de guerra aos alemães, pois afinal, apesar do
rompimento diplomático, Vargas adotava a situação de Estado não-beligerante para o Brasil.
Toninho declara, em suas palavras, que esta foi a atitude honrosa do governo, cuja
motivação foi a da agressão pelos submarinos. O clamor popular torna a empreitada mais
digna e justa e deixa o governo mais livre da responsabilidade por possíveis insucessos, já que
_________________________
19- SEITENFUS, Ricardo. Op Cit. p. 291.
20 – Depoimento [Out 2004].
era o povo que pedia a guerra pela primeira vez na História deste País. Este “povo”, no
entanto, talvez não teria indo tão longe com este clamor, se soubesse que um ano mais tarde,
uma tropa estaria sendo formada para efetivamente combater. Os estudantes marxistas de
1942, é bem provável, não estavam entre os pracinhas que embarcaram em 1944, suas
reivindicações eram mais motivadas por fins políticos do que propriamente a fim de garantir a
soberania brasileira, afinal não houve protestos quando os EUA instalaram sua base aérea em
Natal, ditando as regras para seu funcionamento no Brasil. A verdade para Toninho, todavia,
não é fruto de engodos de sua personalidade, é a verdade que permaneceu em sua memória e
que foi cada vez mais consolidada com uma construção de história nacional e institucional do
Exército que seguiu a tese de que houve ataques sem motivos e de que o povo é quem clamou
pela guerra.

1.3 Memórias: A convocação, a seleção e a formação da FEB.

Após a declaração de guerra, os afundamentos dos navios mercantes persistiram, mas


a Guerra, no Brasil, era pouco sentida, pois era reduzida às notícias de jornais, ao
racionamento de gasolina e aos black-outs. Em meados de 1942, Aranha e Vargas começaram
a vislumbrar a possibilidade de assegurar uma participação efetiva na Grande Guerra,
sonhando em estar como uma voz importante no conselho de paz do pós-guerra e assegurar
um assento permanente na futura organização que seria criada. Vargas, segundo McCann,
acreditava que aumentando a participação militar do Brasil poderia obter uma posição
internacional mais forte, além de proporcionar às Forças Armadas uma atividade de defesa
dentro de suas atribuições como Instituições, fazendo com que ficassem fora do cenário
político nacional.21
O encontro entre Vargas e Roosevelt em Natal foi o ponto chave da futura
participação, pois aumentou a confiança entre ambas as nações, apesar da influência de
germanófilos como Dutra e Góes Monteiro. No Brasil, os oficiais mostravam-se animados
com a formação de uma tropa para combater em qualquer teatro de operações, fosse para a
África, na Guiana Francesa ou na Europa.22 Dutra começou a encampar a idéia, pois apesar de
não confiar nos norte-americanos, sabia que era necessário o apoio destes para a preparação
brasileira e que isto poderia assegurar uma evolução no poderio bélico das Forças Armadas.
Os problemas para se atingir esse objetivo eram imensos, afinal, o Brasil tinha
________________________
21 – MCCANN, Frank D. Op Cit. p.242 a 244.
22 - MCCANN, Frank D. Op Cit. p. 273.
recursos tecnológicos escassos, uma economia subdesenvolvida, um Exército com poucos
homens, poucas armas, com treinamento deficitário e com a expectativa de terem que se
apoiarem exclusivamente nos americanos para que pudessem lutar e um presidente ditador
que ansiava lutar contra regimes totalitários. Mais à frente teriam, ainda, problemas com a
pouca confiança da própria população.
Para que enviar uma Força Expedicionária para a Guerra? Em meio a tantas
dificuldades em material humano e recursos? Preparar um grande efetivo de militares para
defender o País em seus próprios limites territoriais foi de um esforço hercúleo, imaginemos
para transportá-los para outro continente!? Vargas, a partir das palavras encorajadoras de
Roosevelt, que lhe disse que os brasileiros estavam na guerra para estabelecer a paz com
justiça e a segurança, resolveu ampliar as obrigações brasileiras dentro de conflito. O
presidente sabia dos problemas que adviriam com a participação efetiva, mas acreditava
que o País não poderia se limitar a fornecer materiais estratégicos e a servir de base
intermediária para tropas em deslocamento para a guerra na Ásia ou na África. O próprio
Aranha acreditava que não seria mais necessário homens serem enviados do Brasil para a
Guerra, mas concordava com a idéia de Vargas23. E ia além, vislumbrava papéis estratégicos
de vulto para o Brasil, como uma ascendência maior sobre Portugal e suas possessões,
aumento do poder militar, liderança sobre a América, a criação de uma indústria bélica, a
participação importante na reconstrução de mundo pós-guerra e a extensão de suas vias
férreas e rodoviárias. Após os combates e o reordenamento mundial, muitas destas previsões
não foram concretizadas.
Em agosto de 1943, a FEB foi finalmente criada por meio de decreto presidencial 24,
após terem sido realizadas reuniões com os EUA sobre a possibilidade de atuação brasileira
em combate. As negociações foram duras, pois ambos os lados sabiam que todo o material
teria que ser fornecido pelos americanos, o que representava um pesado encargo. O México já
havia tentado o mesmo e foi recusada a sua participação, mas para o Brasil, o tratamento foi
diferente. O País era um parceiro estratégico do ponto de vista de sua posição como liderança
na América do Sul, como a sua localização privilegiada e como importante fornecedor de
materiais de guerra, como minério de ferro, borracha e quartzo, este último, por sinal, era de
importância vital para a construção de equipamentos para radiocomunicação25, e o Brasil era o
único fornecedor para os americanos. Além disso, o alinhamento brasileiro com os ameri-
_____________________
23 - MCCANN, Frank D. Op Cit. p. 243.
24 – Boletim reservado do Exército Nº 16, de 13 de agosto de 1943.
25 - MCCANN, Frank D. Op Cit. P.226
canos ocorrido um ano antes não poderia ser esquecido.
Dutra, o responsável pelos acertos finais, quase pôs tudo a perder com a sua
intransigência, já que exigia a construção de três centros de treinamento no Brasil, com 50%
de material americano para uma divisão, sendo que na opinião dos americanos um centro
apenas era o suficiente, e que o material fornecido para as tropas das bases no Nordeste já se
prestavam para a finalidade. Dutra, no entanto, não queria que esses homens, já treinados à
meses fossem empregados fora do Brasil, por temer a ocupação americana nestas bases 26. Os
impasses, todavia, foram solucionados com a interferência direta do próprio Roosevelt.
Ficou decidido, então, que o Brasil enviaria três divisões de infantaria ao
modelo americano, sendo que a primeira deveria estar pronta para combater em dezembro de
194327. O material seria enviado pelos EUA, bem como os oficiais para treinar a tropa, além
dos brasileiros que já faziam estágios em solo americano. Foi acertado, principalmente, que o
Brasil estaria enquadrado no Exército Americano, mas que desfrutaria de um comando
independente. Para os pracinhas, restava esperar sobre como seria o processo de seleção
daqueles que combateriam, esperar que os homens que decidiriam sobre os seus futuros
tomassem as decisões.
A 1ª Divisão foi formada por quartéis do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais,
mas possuía representantes de todos os Estados do Brasil. Estranhamente três dos principais
quartéis saíram de cidades pequenas: o 6º RI, de Caçapava; o 11º RI, de São João Del Rei; e o
9º Batalhão de Engenharia de Combate, de Aquidauana, Mato Grosso. Ainda foram
designados o I Grupo do 1º Regimento de Obuses Auto-rebocado, o II Grupo do 1º
Regimento de Obuses Auto-rebocado, o I Grupo do 1º Regimento de Artilharia Pesada Curta,
todos do Rio de Janeiro, mais o I Grupo do 2º Regimento de Artilharia Pesada Curta, sediado
na cidade de São Paulo. Ainda houve o Esquadrão de Reconhecimento, oriundo do Rio de
Janeiro; o 1º Batalhão de Saúde, organizado a partir das Formações Sanitárias do Rio de
Janeiro e São Paulo e as seguintes Unidades de Tropa Especial, todas da Capital Federal:
Companhia do Quartel General da 1ª D.I Expedicionária, Companhia de Manutenções,
Companhia de Intendência, Companhia de Transmissões, Pelotão de Polícia, Banda de
Música e a Esquadrilha de Ligação e Observação. Como Órgãos Não Divisionários,
responsáveis pelo apoio às atividades da FEB, havia: o Depósito de Pessoal, o Serviço Postal,
a Justiça Militar, o Banco do Brasil, o Serviço Especial e o Serviço Religioso28.
_____________________
26 – MCCANN, Frank D. Op Cit. p. 278
27 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op Cit. p.
28 – MORAES, João Batista Mascarenhas. Op Cit. p.21 a 23.
O Comandante da 1ª Divisão escolhido seria o General de Divisão João Baptista
Mascarenhas de Moraes, que havia trabalhado junto aos norte-americanos no planejamento da
defesa do Nordeste. Tido como enérgico e austero e às vezes inflexível, Mascarenhas era um
homem respeitado e capaz para a grande responsabilidade que aceitara. A ele caberia o
comando da 1ª Divisão da FEB, com a partida para a Guerra e o cancelamento da formação
das outras duas Divisões, Mascarenhas de Moraes tornou-se o Comandante de toda a Força.

Fot 5 - General Mascarenhas de Moraes (à direita na foto), ao lado do General Truscott,


Comandante do IV Corpo de Exército Americano. SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Glio
Eroi Venuti Dal Brasile – Storia fotografica del Corpo di Spedizione brasiliano in Itália
(1944-45). Modena: Edizioni Il Fiorino, 2005. p.65.

O Serviço Militar Obrigatório no Brasil, desde a Guerra do Paraguai, segundo


Izecksohn,29 foi uma questão delicada para o governo e traumática para o recrutado e sua
família. Em tempos de conflitos, com o aumento repentino dos efetivos combatentes, há que
se esperar gestos patrióticos da população, aliados a uma campanha governamental, ou apelar
para a força pública em recrutar os homens necessários.
Celso Castro abordou que o sistema de sorteio militar, instituído em 1916, pretendia
selecionar jovens independentes de sua classe social ou econômica. Esse sistema só teve
resultados a partir de 1930, com a exigência do certificado de serviço militar para alistamento
em cargo público e a adoção de medidas mais claras e rígidas contra os insubmissos e
desertores30.
Em outro depoimento, Zé Maria é ainda mais crítico ao falar da formação da FEB:
_______________________
29 – IZECKSOHN, Vitor. Resistência ao recrutamento para o Exército durante as guerras Civil e do
Paraguai. Brasil e Estados Unidos na década de 1860. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 27, 2001. p.2.
30 – CASTRO, Celso. Insubmissos na Justiça Militar (1874-1945). ANPUH, 2005, RJ. p. 9-10.
Isso foi uma convicção que eu adquiri pós-guerra, naquele momento não. Eu
comecei a recordar...puxa vida! Não seria mais correto organizar a Força
Expedicionária com militares da ativa, convocar e aceitar voluntários para cobrir os
claros? Eu comecei a pensar nisso e tenho falado sobre isso e acho que não estou
errado não. Então o que aconteceu? Num determinado momento, como cabo, eu
servi um período curto na 5ª companhia do 12º RI, o comandante capitão
Armando. Começaram a chegar elementos novos, convocados. Em um
determinado dia, o capitão Armando me chamou e disse: ‘vê se você ensina esses
dois rapazes a marchar’. O senhor vê, não estou desfazendo deles, de maneira
alguma, mas eles não acertavam o passo de jeito nenhum. Eu cheguei arranjar
um cabo de vassoura para eles aprenderem a fazer isso. Hoje eu fico lembrando
isso disso e fico mais convicto: houve erros na formação da Força Expedicionária
Brasileira.
Sem desfazer de ninguém, o capitão de minha companhia foi comissionado. O meu
comandante de pelotão, um homem muito compreensivo, católico, era R1. O
comandante da minha seção de morteiros 81 mm era do NPOR, vou repetir, não é
desfazer, mas por que não colocaram ali um militar da ativa? Há muitos outros
casos, eu citei apenas esses. Por exemplo, em São João Nepomuceno tem um
conterrâneo meu, eu sou de lá, é uma pessoa maravilhosa, cumpriu todas as
obrigações, era do NPOR, de profissão: dentista. (...) comandante de pelotão de
fuzileiros. Não pode desfazer dele, pois cumpriu tudo que podia se esperar. Era
para levar os da ativa, não?
(..) podem até dizer: ‘a FEB foi representada por todos os Estados do Brasil’. Mas
isso tirou a homogeneidade da coisa. O capitão Evaristo, que era sargento na época,
pode falar sobre os atos de indisciplina que aconteceram, pois eles eram tirados do
trabalho deles, do seio da família deles.31

Sobre o mesmo assunto o Capitão Albino relatou o seguinte.:

O senhor falou que chegaram soldados de todo brasil, com pensamento e


culturas diversas, isso dificultou a formação desse contingente?
Ah, era difícil porque o soldados eram muito assim... tinham pouca instrução né!?
nós até ..nós pegamos elemento lá de Santa Catarina, Blumenau, Joinville, porque
alí são imigrantes alemães, eles sabiam mais a língua alemã do que o próprio
português. Então nós tivemos muitos soldados descendentes de alemães
convocados.
Esse pessoal sofria algum tipo de discriminação?
Não, não, eu tinha um soldado que se chamava Germano Karter (sic) era filho de
alemães, era um bom soldado.
Não chegou a ter o problema de lutar contra seu povo de origem?
Não, não,
Sua família se opôs ao senhor ir para a guerra?
Não, não. até...no meio do anos eu perdi minha mãe, já estava meio deslocado..eu
perdi minha dia 04 de agosto, em setembro eu fui pra guerra. eu acho que não
morri nessa guerra por causa de minha mãe, não tava ligando pra nada. a minha
mãe era muito..a minha mãe era muito...eu era muito ligado.
O senhor estava numa situação tipo: ‘agora eu não tenho nada a perder!”?
Era, eu não ligava muito. saí bem , saí bem. Eu comandava um grupo que só tem
elogio.32

O início do depoimento é importante observar a consciência que Zé Maria tem


_____________________
31 – Depoimento [Out 2004].
32 – Depoimento [Nov 2004].
ao falar que sua opinião foi formada nos anos do pós-guerra, ou seja, foi sendo moldada ao
longo de leituras em livros e conversas com outras pessoas que, no caso de Zé Maria, não se
confundiram com sua memória. Naqueles anos de pré-formação da FEB, ensinar os futuros
combatentes com um simples cabo de vassoura simbolizando um fuzil era comum, bem
como era comum receber elementos com pouca capacidade intelectual.
Quanto à FEB, Zé Maria aponta que foi um erro não ter tido mais oficiais e sargentos
da ativa em seus quadros. O Capitão Armando que tanto citou era um “comissionado”, nome
dado àqueles que eram promovidos a um ou dois postos acima, apenas para a atuação durante
a 2ª Guerra. Muito provavelmente Armando era um 1º tenente e foi alçado ao posto de capitão
pela falta destes. Bem como o seu comandante de pelotão, que ao estar no posto de tenente,
deveria ser um 1º sargento, e foi promovido para esta função, por isso era chamado de “R1”.
Além da crítica feita também aos oficiais do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da
Reserva) ou NPOR (Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva), que eram militares
formados em apenas 1 ano de instrução, durante os finais de semana e com parcos meios,
com previsão de integrar a reserva mobilizável do Exército, e enquanto um oficial formado na
época pela Escola Militar, em Realengo, tinha 3 anos de formação com o total apoio do
Exército, com objetivo de cumprir a carreira nas Forças Armadas. A falta de oficiais da ativa
de carreira na guerra foi tratada por McCann e Lima Brayner e chegou-se realmente a fatos
como descritos por Zé Maria, em que um dentista foi convocado para comandar um pelotão
de fuzileiros, algo totalmente diferente de sua formação profissional, enquanto homens
formados na Escola de Realengo ficaram no Brasil, dentro dos quartéis. De 807 oficiais
subalternos (tenentes) de Infantaria na FEB, 302 eram oficiais da reserva.33
Zé Maria e o Capitão Albino falam do problema da heterogeneidade da formação da
FEB, que recebeu homens de todas as regiões do País. Tal fato, que se apresenta na
historiografia como um ato de prestígio do governo em dar a oportunidade a todos os Estados,
na verdade, contribuiu para a dificuldade em nivelar a instrução dos homens, que possuíam
diferenças regionais importantes, com a agravante, no caso dos filhos dos imigrantes do Sul,
que mal sabiam o português34. Esta situação poderia ser aceitável se a FEB tivesse um efetivo
muito maior ou se as perdas de combatentes durante o conflito ocasionasse um
recompletamento constante de seus contingentes, o que não houve durante os combates.
O senhor José Gomes Filho é natural de Paruassú, distrito de São João Nepomuceno
- MG, nascido em 22 de dezembro de 1917, era filho de um pequeno comerciante e lutou na
____________________
33 - MCCANN, Frank D. Op Cit. p. 289.
34 – Depoimento [Nov 2004].
Guerra como sargento comandante de Grupo de Combate. Sobre sua convocação, relatou o
seguinte:

O senhor foi convocado para a guerra?


Eu não fui convocado.
O senhor morava onde?
Eu estava no Rio. eu nasci em São João Nepumoceno. Eu tinha um tia que morava
no Rio, eu tava lá. e o marido dela era militar, e então falaram: "quem quer ir para a
guerra?" aí eu apresentei voluntário. o capitão me chamou lá e falou: "o senhor tá
doido? quer inventar de ir para a guerra." o Henrique Lott, aquele famoso da
guerra, ele tava lá... e eu fiquei no chamado Depósito, o senhor era de uma
companhia e precisava de um sargento, aí eu já estava no Depósito sobrando, eu
conhecia ele desde a época que servia no regimento.. aí ele me falou: "escuta aqui,
por que você tá aqui no Depósito?". aí eu falei: "eu estou aqui esperando vaga". Ele
me perguntou se eu estava com medo de ir para a guerra, se eu estava com doença
venérea. aí disse: "toma o nome dele aí".
Então o senhor partiu para um batalhão!?.
Aí me colocaram dentro do navio.
Mas e a família do senhor?
Minha mãe morreu eu estava com 7 anos eu já estava com a família... na raça e no
peito.
O senhor morava no Rio, tinha alguma profissão?
Eu morava com uma tia no Rio.
Qual o grau de instrução antes de ir para a guerra?
Eu estudei muito mal o primário.
Muita gente da roça foi para a guerra amigo do senhor?
Tinha quatro companheiros do mesmo lugar de onde eu estava, de São João
Nepomuceno saíram 38. Lá em São João tem um monumento.
E os amigos do senhor eram voluntários também?
Acho que só o José Gentil. Eu não tinha serviço, tinha um sargento que era casado
com a minha tia eu morava com eles. Aí eu me entusiasmei.
E qual era o objetivo do senhor antes da guerra?
Eu não tinha objetivo no Exército.
O senhor tinha idéia do que estava acontecendo na Europa? que gente estava
morrendo?
Eu não sabia que era aquilo.35

José Gomes, assim como o Capitão Albino, também foi voluntário para a FEB, mas
por motivo diferente: José aparenta que não possuía objetivos concretos para a sua vida
profissional, não conhecia nem acompanhava os acontecimentos da Guerra, possuía pouca
instrução e apenas foi incentivado por um parente seu para ingressar no Exército. Ambos,
porém, eram órfãos naquele momento, para Albino, no entanto, a decisão de ir a guerra foi
mais difícil, por ter perdido a mãe havia dois meses. José se difere dos demais por ter saído do
Depósito de Pessoal, durante o andamento da Guerra, e ter sido ferido em combate. Esta sua
história iremos analisar no 3º capítulo.
___________________
35 – FILHO, J. G. José Gomes Filho. Depoimento [Jan. 2005]. Entrevistador: Marcos A. Costa. Juiz de Fora:
UFJF – MG, 2004. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para a dissertação do autor.
O Senhor José João da Silva é natural do Distrito de Paraíso Garcia, em Barbacena,
Minas Gerais, nasceu em 20 de julho de 1920, ingressou no Exército em 1941, no 12º RI de
Juiz de Fora, possuía o antigo 2º Grau completo e lutou na Guerra como enfermeiro do
Pelotão de Saúde do II Batalhão do 11º RI, sobre a sua vida antes da incorporação ao Exército
e sua convocação para a FEB, relatou o seguinte:

Seu Zé o senhor se lembra como foi a convocação para a guerra?


Eu estava servindo no 12º RI, em Juiz de Fora, atualmente o 12 é em Belo
Horizonte, mas antigamente era em Juiz de Fora. Pedi baixa, mas veio... o pedido..
a determinação do Ministro, evitando as baixas, quer dizer, cortou...nós tivemos
uma situação de esperar...nesse interím...nós ficamos 43, 44......... aguardando a
ordem de baixa, esperando a baixa, aí não veio a baixa. Então eu trabalhava com
um médico muito bom, João Batista Oliveira Bicudo, morreu como general, não
é?!... e...nós....na expectativa, aí veio a ordem de preparação para a guerra isso foi
em 43..
O senhor foi praça de ..?
De 1941, eu já estava servindo.. aí foi aquela luta, de preparação para a guerra..
todo aquele trabalho...exame sobre exame.....fui classificado...categoria “A”, quer
dizer apto... aí veio a mobilização para formar três batalhão: um do 12, um do 11 e
um do 10º...quer dizer o 10º naquela época tava em Belo Horizonte, o 12 em Juiz
de Fora, o 11 em São João Del Rei. Para formar os três batalhões. e eu me
classificar em um desses batalhão, fui trabalhar no 2º batalhão do 11 RI...lá no 11
eu trabalhei na enfermaria até ir para o Rio de Janeiro. Logo que eu sentei praça eu
fui para o pelotão de saúde. Minha função era de enfermeiro.....no 11...deslocamos
para o Rio de Janeiro, já formando os três batalhão. (sic).1º, 2º e 3º....eu continuei
no 11, Comandante Orlando Gomes Ramagem...no Rio de Janeiro, fiquei no
Orlando Ramagem até a baixa, feliz porque não tive um problema
qualquer...entendeu...tive um arranhão, isso é natural...bobagem..
Então no Rio de Janeiro formou-se o batalhão de saúde.....batalhão de saúde
formado dos grupos do 6º, Caçapava, 11º RI...então esse batalhão formou-se aí
aumentou o número de médicos..de Juiz de Fora veio o médico Dr Pantaleone
Arcuri, médico....de São Paulo, Dr Murilo Paiva, isso para servir no 11 e....e no Rio
de Janeiro. De Juiz de Fora, dois...João Batista Pereira Bicudo...esse formou o
batalhão de saúde. Aí veio sargentos...Colombo Costa, veio .....enfim..cabos e
soldados, do qual eu fiz parte.... aí veio..ficamos um ano no Rio de Janeiro, mas já
com instruções de preparação de guerra...aí já entrou um batalhão do Rio, que
foi...o 1º RI...formando as unidades de guerra....nós..batalhão de saúde foi
crescendo...aumentando, aí veio.. uniforme..tudo de preparo para a guerra. dalí
....veio o general Meigs, navio que nos transportou para a Itália. Aí foi duro,
mineiro, não conhecia nem o mar.
O senhor já tinha visto o mar?
Só quando cheguei ao Rio, que já tinha visto algumas vezes.
A família quando o senhor foi convocado, aceitou bem? eles queriam que o
senhor fosse pra guerra?
Não...não..acreditavam muito em mim, eu dizia que era necessário. A minha
palavra é o que valia em casa... meu pai vendia muito arroz, feijão. Mamãe,
coitada, tinha pouca cultura. e eu dizia, não isso é coisa à toa, nós vamos lá
e....vamos dar um passeio, isso é bobagem...eu desfazia. Então eles aceitava. (sic).
O senhor foi voluntário pra ir para a guerra?
Sim, fui voluntário.
O senhor morava aqui em Juiz de Fora ou em Antonio Carlos ainda?
Morava em Antonio Carlos.
Teve algum amigo seu da cidade que foi pra guerra também?
Não de Antonio Carlos, não foi não. Foi de Barbacena.
O senhor encontrou-o na guerra também?
Encontrei.36

José João possui quase as mesmas características dos febianos já citados: a origem de
pequena cidade, morador de área rural e a família humilde. Diferente dos outros, porém, é a
sua boa formação intelectual, apesar de seus pais, segundo ele próprio, não terem muita
“cultura”. José João possuía o antigo 2º Grau completo, o que lhe possibilitou a convocação,
já no 12º RI para trabalhar na função de enfermeiro, que necessitava de pessoas mais
capacitadas para o aprendizado deste trabalho. Na sua voz reticente, devido a problemas de
saúde, conseguimos mesmo assim compreender a progressão da formação do único Batalhão
de Saúde brasileiro na Guerra, deduzindo sobre as dificuldades desta formação, devido às
necessidades de médicos e enfermeiros especializados, que terminaram por vir de todo o País.
Mascarenhas de Moraes também falou dos grandes problemas surgidos com a formação de
militares técnicos para a FEB, assim como os enfermeiros, os engenheiros e determinados
motoristas e mecânicos foram elementos de difícil convocação e formação.37
Observando-se os relatos diretos e indiretos que compõem as nossas memórias de
guerra, e que serão analisadas neste trabalho e os diversos livros sobre o tema, percebemos
que este é um dos assuntos mais polêmicos e que até hoje levanta críticas e dúvidas tanto de
superiores e subordinados, de militares e de civis estudiosos da guerra.
De um efetivo inicial de três divisões de infantaria com mais de 60.000 homens,
número razoável para uma população de 50 milhões, acabou sendo formada apenas 01(uma)
única divisão, acrescida com seus elementos de apoio. No total, 25.000 homens foram para a
guerra e, aproximadamente, 15000 entraram efetivamente em combate.38
Hobsbawm fala das grandes mobilizações populares que existiram em outros países
beligerantes e que atingiram cifras muito maiores, os números são sempre próximos dos 20%
da população.39
É claro que existem nesta conta aqueles que ficam no país para a defesa do território,
______________________
36 – SILVA, J. J. José João da Silva. Depoimento [Fev 2007]. Entrevistador: Marcos A. Costa. Juiz de Fora:
UFJF – MG, 2004. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida para a dissertação do autor.
37 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op Cit. p. 148 a 150.
38 – MORAES, João Batista Mascarenhas. Op Cit. p.41.
39 - HOBSBAWM, Eric. A era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras,
1995. p.29.
os americanos, por exemplo, fizeram e fazem isto hoje em dia. A Austrália, como
comparação, possuía 7 milhões de habitantes na época da guerra, e levou para os combates 1
milhão de homens.40
Se levarmos esse raciocínio para o caso brasileiro, nós teríamos o impressionante
número de 10 milhões de pessoas mobilizadas para um estado de guerra! Mas por que não
tivemos um número que pelo menos se aproximasse do que havia sido acordado com os
norte-americanos? Onde foram os problemas que levaram a apresentarmos tímidos números
de combatentes?
Um dos grandes problemas é constatado pela má higidez dos homens levados para a
convocação. Carlos Paiva Gonçalves, um dos médicos responsáveis pelas inspeções feitas
nos selecionados para FEB, escreveu que o Exército pretendia que fossem avaliados e
escolhidos 200.000 homens41, dentro de parâmetros norte-americanos, para compor o efetivo
para a guerra. Este tipo de procedimento era novidade dentro meio militar, como afirmou Zé
Maria quando, relembrando, disse que:

(..) quando eu cheguei já tava tudo arrumado. Eu cheguei, apresentei, logo fui
levado para a companhia extra e...não jurei bandeira nem nada já vesti farda de
soldado... (perguntado se fez algum exame médico para entrar no Exército,
respondeu) ..nada, nada, nada, eu fiz um teste físico é lógico, mas graças a Deus
eu não tinha nada mesmo, aí eu já fui direto para a companhia extra.42

A experiência norte-americana na guerra mostrou ser importante realizar uma


excelente verificação de saúde nos militares designados para o combate, não só nos aspectos
médicos como também mentais. Com isso foram instaladas em várias capitais do Brasil,
juntas militares de seleção destinadas para esse fim. Na capital federal, localizava-se a
principal, e onde eram coordenadas todas as demais.
A avaliação médica, segundo Gonçalves, foi realizada inicialmente dentro do maior
rigor possível, utilizando-se critérios físicos onde somente os mais hígidos poderiam
permanecer aptos a integrar à FEB, estes eram classificados como categoria “E”, de
especial. Havia também aqueles que possuindo algum tipo de anomalia que
impossibilitasse a ida para a guerra, mas poderiam servir ao Exército no Brasil,
eram classificados como N, de normais. E havia também aqueles que eram incapazes para o
serviço nas Forças Armadas.43
________________________
40- Depoimento de Oficiais da Reserva sobre a FEB. São Paulo: SD, 1950. p 119.
41 – GONÇALVES, Carlos Paiva. Seleção médica do pessoal da FEB. Rio de Janeiro: Bibliex, 1951. p. 45-46.
42 – Depoimento [Dez 2007].
43 - GONÇALVES, Carlos Paiva. Op Cit. p. 67-69.
Em fins de 1943, com um ano do comprometimento brasileiro em enviar uma tropa
para a guerra, apenas 60.000 homens, aproximadamente, haviam sido inspecionados e a FEB
ainda não estava formada. Mesmo com o rápido acréscimo no efetivo do Exército que passou
de 60.000 antes da guerra, para 180.000 naquele ano, havia prontos para serem empregados
nos treinamentos e que compunham os indivíduos de categoria E, somente, possivelmente,
20% do total, o que levou ao Ministro da Guerra, o General Dutra, a decidir pela reavaliação
de todos que foram considerados como categoria “N”, para serem aproveitados para a FEB. A
decisão foi criticada pelos médicos responsáveis pelo Serviço de Saúde (S. S), mas foi
cumprida. Suas futuras conseqüências foram informadas aos superiores, principalmente
porque ao se confrontar com as estatísticas americanas, onde a inspeção de saúde de seus
militares apresentava um índice de rejeição de 47%, próximo do que estava sendo feito no
Brasil, observava-se que uma taxa de aptidão de soldados com 81% em categoria “E” era
artificialmente irreal. Em relatório, Gonçalves alertou:

(..) Iniciadas as inspeções em ritmo intenso, como então fora determinado,


verificou-se com espanto geral, embora sem surpresas para o S.S, que muito
reduzido era o número dos incluídos na categoria E. Temendo-se, então, que a
seleção por este critério – e sem dúvida o mais acertado – acabasse por criar um
impasse na organização dos efetivos apontados para constituírem o primeiro
escalão, expediram-se recomendações e ordens visando o abrandamento das
exigências; assim, o rigor das condições dentárias.Foi posto de lado como
também o foram de outras condições orgânicas. Resultado, houve uma inversão
geral de dados e as taxas percentuais igualmente se alteraram, passando a
figurarem nas estatísticas em elevado número os arrolados na classe especial.
Opusemo-nos, dentro de nossas atribuições, à decisão adotada, argumentando com
razões de ordem médica, e até de natureza militar, como seja, a dificuldade que
haveria de ter o Comando de recuperar homens que fatalmente, em curto prazo,
iriam superlotar as reduzidas disponibilidades hospitalares de além mar. Essa
alteração da normativa de trabalho, explica a média geral de 72% de inspecionados
na categoria E, resultado colhido por nós computando as 85.000 fichas que já nos
foram remetidas pelas diferentes juntas de seleção. Tão elevada cifra percentual,
embora não exprima a realidade brasileira, é fiel, dentro do critério então em voga,
e traduz o trabalho honesto da seção encarregada da verificação dos dados
recebidos dos diversos pontos do país. É uma ressalva que desejo fazer para
salvaguardar a correção com que foi feito o serviço e a exatidão dos quadros
encaminhados ao Gabinete do exmo. Sr Ministro da Guerra.
(...) A adoção desse sistema vem evidenciando a verdadeira situação do nosso
soldado, vale dizer, do homem brasileiro. A maioria é constituída por subnutridos,
parasitados e intoxicados crônicos, com desenvolvimento físico deficiente, quando
não o é presa de doenças venéreas, sífilis, tuberculose, lepra e outras doenças
endêmicas. 44

_____________________
44 - GONÇALVES, Carlos Paiva. Op Cit. p. 100-101.

Apenas tratar dos problemas de saúde que afligiam as autoridades na formação da


FEB, não resolve as questões de ter-se atrasado tanto o cronograma de envio de tropa quanto
de não selecionar os melhores homens para a missão, que era, basta lembramos, de defender a
honra da Nação arranhada pelos torpedeamentos alemães.
Outros problemas foram as várias razões alegadas pelos convocados para não serem
efetivamente incorporados. Quando da formação da FEB havia aqueles que, com maiores
condições econômicas, estudavam em escolas tradicionais que ministravam o ensino
militarizado, os chamados Centros de Instrução Militar, o que garantia o certificado de serviço
militar. Em Juiz de Fora este foi o caso do Instituto Granbery, da Academia de Comércio e do
Instituto Bicalho.45
Havia também aqueles que se declaravam arrimos de família, pois eram casados ou
tinham que sustentar os pais, filhos ou irmãos. Havia aqueles que simulavam problemas
físicos para não servirem. Havia, é claro, aqueles que tinham um conhecido dentro das juntas
de alistamento ou dos próprios quartéis e também não foram para a Guerra.
Ao final do processo de seleção, aqueles que não conseguiam “escapar” ou os poucos
soldados voluntários é que terminaram por embarcar rumo aos combates na Europa. Vale
dizer que oficiais e sargentos, salvo algumas exceções, foram indagados se eram voluntários
para integrar a FEB. Para os cabos e soldados não houve a possibilidade de levar apenas os
voluntários.
A própria seleção dos oficiais para compor os Estados-Maiores, os comandos de
regimentos, batalhões, subunidades e pelotões, não foi das tarefas mais fáceis. O comandante
da FEB, o então general João Batista Mascarenhas de Moraes foi o único, dos três generais
procurados, que aceitou a missão, que inicialmente era de comandar uma das três divisões. Os
outros alegaram problemas médicos e particulares para a recusa.46
Único de nossos depoentes que lutou na Guerra como oficial subalterno, o senhor
Ruy de Oliveira Fonseca é natural do Rio de Janeiro e Major reformado, nascido em 12 de
março de 1915. Foi formado pelo CPOR da Capital Federal, após de ter freqüentado um curso
de seminarista. Foi declarado aspirante-a-oficial da reserva em 1938. Convocado para estagiar
por três meses, em 1940, no 2º RI do Rio de Janeiro, era na vida civil professor e funcionário
diarista do Instituto Nacional de Tecnologia. Convocado de maneira regular em 1941 e 1942
lutou na Guerra como comandante do Pelotão de Petrechos da 4ª Companhia do II Batalhão
do 11º RI. Em 1943 trabalhava no 1º Batalhão de Engenhos, Unidade pioneira no estudo e
_____________________
45 - Boletim do Exército Nº 46, de 14 de novembro de 1942, p. 4168
46 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op Cit. p. 131.
emprego de armas anti-carro, que eram utilizadas nos combates contra os blindados. Sua
convocação aconteceu em um momento dramático de sua vida, conforme nos relatou:

Foi um momento difícil; tive muito apoio da minha mãe e dos meus antigos sogros.
Minha mulher morreu no parto, junto com meu terceiro filho, de certa forma fui
responsável por isso, pois se ela não tivesse engravidado não teria morrido. A
Guerra foi como uma válvula de escape para aquilo que estava sentindo. Foi como
esquecer do sofrimento, os meus dois filhos, um de quatro e outro de dois anos,
ficaram com meus sogros.47

A sua visão sobre a convocação, do ponto de vista militar, extraída da introdução de


seu diário de guerra, foi a seguinte:

(...) Por causa de nossa especialidade, a FEB ao organizar os seus regimentos com
a companhia Anti-carro, foi-nos buscar a todos, no Batalhão.
Assim minha guerra particular começou, quando minha mulher faleceu
repentinamente em maio de 1944 e em julho seguinte, fui transferido do Batalhão
de Engenhos para o Depósito de Pessoal da FEB, em Caçapava, São Paulo.
Desligado de minha Unidade, fui apresentar-me no Quartel General da FEB,
instalado num velho casarão da Rua São Francisco Xavier, nº 409, na Tijuca.
Nesse QG, que formigava de gente, tomei o primeiro contato com outro exército,
completamente diferente daquele em que eu vivera; nada de culotes, nem botas,
nem talabartes e muito menos quépis...Nem estrelas metálicas e nem
esporas..Nada! Tudo mais feio, porém mais funcional. Os uniformes internos
pareciam mais uns pijamas de cor verde-oliva: eram os “expedicionários”, como se
chamavam na época os febianos.
Feitas as apresentações, recebi um memorando apresentando-me à Intendência do
Exército, no Campo de São Cristóvão, para receber os uniformes e os demais
apetrechos para me transformar também num “expedicionário”; no dia marcado, lá
compareci e não consegui com meus dois braços, abarcar o monte de coisas que
recebi: verdadeira impedimenta, na real acepção do termo.
Uniformes de passeio, de campanha, de lã, capa, japona, camisas, cuecas, ceroulas,
meias, bibicos, chapéu de pano, botinas, bota preta, bota amarela, porta-carta,
estojo de toalete, cama rolo e até uma caneta tinteiro e malas A e B e o saco C, para
colocar tudo dentro...Entulhadas as malas e o saco, passei o competente recibo de
material e roupa e tratei de arrastar os volumes até a porta da rua, onde chamei um
táxi, que dividi com o cinegrafista do DIP, FERNANDO STAMATO, que
incorporado à FEB como correspondente de guerra, ali também se encontrava, com
a respectiva “tralha”, aguardando transporte; deixei-o em São Januário, onde
morava e segui para a casa de minha mãe, onde me alojara provisoriamente desde
que ficara viúvo, na Penha, subúrbio do Rio, onde morava. A alegria quase infantil
com que comecei a mostrar-lhe aquelas roupas, não me deixou perceber o olhar
triste e o semblante preocupado da doce criatura que me trouxe ao mundo em seu
seio...
____________________
47 – FONSECA, R.O. Ruy de Oliveira Fonseca. Depoimento [Jul 2005]. Entrevistador: Marcos A. Costa. Juiz
de Fora: UFJF – MG, 2004. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida para a dissertação do autor

Fot 6 - Ruy de Oliveira Fonseca – Arquivo pessoal.

De adido ao QG da FEB, fui mandado apresentar-me ao Depósito de Pessoal da


FEB, que estava sendo instalado no quartel do 6º RI, em Caçapava, São Paulo, uma
vez que aquele regimento já tinha se deslocado para a Vila Militar, no Rio de
Janeiro.48

Ao apresentar-se em Caçapava, em 07 de julho de 1944, Ruy observou a grande


movimentação de militares vindos de muitas regiões do Brasil e que aguardavam ordens para
constituir, possivelmente, os quadros das Unidades que se encontravam na Capital Federal. O
Depósito de Pessoal foi criado exclusivamente para a Guerra, e tem por missão preparar
oficiais, sargentos, cabos e soldados para o recompletamento dos efetivos que, devido aos
acontecimentos dos combates, vão sendo desfalcados. Então, quando foram iniciadas as ações
na Itália, os feridos e mortos eram substituídos por militares saídos desta Organização. Ruy
era responsável pela instrução e pela disciplina
de uma Companhia de Petrechos Pesados, até que sua situação definitiva fosse decidida.
Sobre o mês que passou em Caçapava, no seu diário, relatou:

(...) Tudo iria bem, não fosse o afluxo de mais e mais gente de todos os estados,
sobrecarregando as instalações, havendo até alojamento com três e as vezes, quatro
camas superpostas; como facilmente se imagina, a situação foi se complicando.
Caçapava era então uma pequena cidade, marginal da estrada de ferro que liga o
Rio de Janeiro a São Paulo; tinha sua Igreja Matriz, seu campo de futebol sua
pracinha principal com o tradicional coreto, sua cadeia e pouco mais que isso...
Terminado o expediente no depósito, ninguém se afastava do quartel, à espera do
jantar; servido o ‘rancho”, aí sim, a debandada era geral, todos rumo à pracinha,
que era ocupada militarmente. Verdadeira muralha verde-oliva enquadrava as aléas
_____________________
48 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
do passeio do jardim, por onde escasso elemento feminino desfilava pra lá e pra
cá...
A situação começou a ficar constrangedora; os civis reclamaram, os comerciantes
também, pois os grupos de soldados atravancavam as calçadas e tapavam-lhe as
vitrines e os mostruários... O comando teve que agir e ordenou: cada sub-unidade
passará a dispensar somente a metade de seus homens diariamente. Tudo bem, na
teoria; mas quem seguraria outra metade no quartel?...
Assim, como a disciplina devesse ser mantida, as punições começaram a figurar
com abundância, na quarta parte do Boletim Interno, assinado pelo duríssimo
Comandante que era o Coronel ARQUIMÍNIO PEREIRA.
A instrução dessa tropa tão desigual foi tentada, sem muito êxito, pelo S/3
designado – o capitão FRANCISCO RUAS SANTOS (ex- estagiário em Forte
Benning do Exército Americano) – apesar dos esforços desse e outros dedicados
oficiais, pouco ou nada se conseguia, porque os problemas administrativos de
alojamento, alimentação e de saúde, de tantos contingentes que chegavam e que
saíam, absorviam todo o trabalho dos oficiais e sargentos que por lá passavam.
Para alojar os oficiais que já superlotavam as pensões, os hotéis e as instalações do
quartel, o Comando resolveu alugar um casarão na praça principal; a “Casa da
Coruja”, como era chamada, pelo fato de que, uma dessas aves recusou-se
terminantemente a abandonar o seu pouso, na chaminé do velho fogão a lenha
desativado. Fui designado para encarregado dessa espécie de “hotel de trânsito”,
por ser o seu morador primeiro e mais antigo.
Pela manhã e à noite comparecia à estação ferroviária e recebia os oficiais que
chegavam pelos trens do sul e do norte, e os encaminhava para a “Casa da Coruja”
onde logo assinavam uma cautela por uma cama patente, um lençol, uma colcha,
um travesseiro, e um colchão; não havia fronhas. Quanto ao mais, eles que “se
virassem” pelos vários cômodos do velho casarão colonial, que logo ficou todo
atravancado com sacos, malas e malotes, caixas, cordas de roupas e todos os
demais “badulaques” que constituem a impedimenta dos oficiais em serviço.
Foi nessa época que travei conhecimento e fiz amizades que até hoje me
gratificam, por aqueles pequenos obséquios que por força de minha função, terei
prestado aos companheiros.
Aos poucos, as coisas iam se acalmando e já se podia considerar o DEPÓSITO DA
FEB como uma unidade razoavelmente organizada, quando nos chegou a notícia
do desembarque do 1º escalão da FEB, em Nápoles, na Itália, em 16 de julho de
1944; com essa boa notícia, chegou também uma ordem para que o Depósito
preparasse um contingente para recompletar o 11º Regimento de Infantaria,
desfalcado de cerca de duas companhias, que foram transferidas para completar os
efetivos daquela Força.
Dias depois, organizado o contingente com oficiais, incluindo-me, graduados e
praças, tomamos o trem para o Rio de Janeiro, onde no morro do Capistrano, na
Vila Militar, encontrava-se acantonado, em barracões de madeira, o regimento de
Minas Gerais, desde os primeiros dias de março de 1944, e que daí por diante, seria
nosso Regimento.
Apresentei-me ali no dia 11 de agosto de 1944, e fui classificado na 3ª Companhia,
depois remanejado para a 4ª, onde permanecia até o final da guerra e pouco mais.49

Ruy, no Rio de Janeiro, conheceu os homens que com ele iriam combater na Itália,
antes disso passariam por treinamentos e ajustes na formação final de seu pelotão. No seu
relato acima transcrito, podemos analisar como foi conturbada a estadia de tantos militares na
____________________
49 - Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
pequena cidade de Caçapava, sendo que o grosso da FEB já se encontrava na Capital do País
desde março daquele ano. A escolha desta cidade deve ter ocorrido pela falta de instalações na
Vila Militar para suportar mais homens e, também, para aproveitar a estrutura do 6º RI que já
se encontrava em treinamento final.
O General Mascarenhas de Moraes, inclusive, não pretendia treinar a tropa em uma
cidade como o Rio de Janeiro, mas sim em Rezende, no Vale do Paraíba50, pois acreditava que
isto facilitaria a concentração dos homens no objetivo principal, que era a Guerra. A capital,
com suas praias, cassinos, mulheres e outras diversões acabaram por dificultar o treinamento.
Sobre isso, falaremos melhor no próximo capítulo.
Em depoimento direto, Ruy nos relatou que a escolha de pequenas cidades como
Caçapava e São João Del Rei para serem a base das Unidades de Infantaria da FEB, foi
provavelmente devido estas localizadas em eixos ferroviários que facilitavam a sua
locomoção ao Rio de Janeiro. Em todas as referências que encontrei sobre as escolhas das
cidades-sede, esta afirmação de Ruy é a mais direta. Nem Mascarenhas de Moraes fez
comentários sobre isto em seu livro. Lima Brayner criticou a escolha de São João Del Rei
devido a sua pequena população, em torno de 55000 pessoas, enquanto Juiz de Fora, com o
12º RI como Unidade principal, era uma das cidades mais industriais do Estado e com uma
população três vezes maior, sendo também sede de Comando da 4ª Região Militar, o que
facilitaria o apoio administrativo, sem falar da Capital Belo Horizonte, onde estava localizado
o 10º RI51. Como resultado, tanto o 12º quanto o 10º RI enviaram juntos 1600 homens
para completar o efetivo do 11º RI de São João, sem contar as centenas de homens oriundos
do Sul e do Nordeste do País.
O Depósito de Pessoal, para alguns dos febianos, ficou caracterizado por ser um local
de espera angustiante, mesmo quando esta Unidade chegou à Europa, pois a ansiedade de
participarem dos perigos dos combates era amplificada com a longa rotina de instruções
diárias, que para os veteranos eram atividades cansativas e, muitas vezes, sem propósito. É
interessante perceber que as comunicações internas na FEB não funcionaram muito bem, pelo
menos aqui no Brasil, pois quando Ruy fala da notícia do desembarque do 1º escalão na Itália,
vemos a sua surpresa sobre o ocorrido, sendo que o embarque aconteceu quatorze dias antes,
ou seja, eles não sabiam do embarque dos primeiros homens, fato importantíssimo, pois
confirmou a participação definitiva do Brasil na Guerra e que definiu o local de atuação.
___________________
50 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op Cit. p. 144.
51- BRAYNER, Floriano de Lima. A verdade sobre a FEB: Memórias de um Chefe de Estado – Maior na
Campanha da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p 31 a 33.
A seleção de pessoal foi repleta de pontos negativos e suspeitas de favorecimentos e
injustiças, ainda que se constatasse uma evolução dos métodos anteriormente realizados.
Métodos pouco legais foram utilizados para que os efetivos fossem completados, foi o
que verificamos no caso do senhor Raimundo Nonato Monteiro, cearense de Crato,
nascido em 02 de março de 1925, e que lutou como cabo do 3º pelotão da 9ª Companhia do
III Batalhão do 11º RI, o Batalhão “Lapa Azul”:

Como o senhor foi convocado para a guerra?


Eu era interno no colégio Pedro Segundo, o internato era só para homens e para o
segundo grau. Eles faziam a seleção em todas as capitais, os dois primeiros
colocados tinham direito. Eu fui um dos dois que veio de Crato. Já estavam
torpedeando navios, a minha mãe não era rica, a gente só viajava de navio, avião
era caro, eu fiquei três anos lá, no Rio, sozinho, não tinha família não tinha nada.
Eu entrei no CPOR junto com um amigo meu, que veio de Pernambuco, era sábado
e domingo, alí perto da Quinta da Boa Vista. Aí eu arrumei uma namoradinha da
sala-de-aula, aí nunca mais apareci naquela porcaria (CPOR), aí chegou o
sargento.... como era o nome dele? esqueci..?! chegou na sala de aula e me disse :
“você passou a desertor”. e eu disse: “eu, desertor de quê?”. Tomei o maior susto.
Ele falou que eu não estava na Unidade Militar, estava no CPOR e nós estivemos
lá, “ e você fez o primeiro período de CPOR, mas como você está com sorte, o
11° RI está precisando de gente, aí você vai como cabo”. Aí eu fui direto para a
nona companhia. O de Abreu de cara foi me dizendo: “ ô estudante, você sabe
bater a máquina?”.
O senhor não tinha uma maneira de sair? De dizer que estava estudando?
Não, ele disse que eu tinha passado a desertor, e a família, já pensou que vergonha.
Eu também não tinha conhecimento, não sabia nada. Fiquei quatro meses desertor.

Fot 7 - Raimundo Nonato (à esquerda na foto) com o


amigo Sebastião Agostinho. Arquivo da Associação dos
Veteranos da FEB – Seção Juiz de Fora.
O senhor já estava para embarcar?
Sim já estava para embarcar, já estava nas últimas. Fui como cabo, já com oito ou
nove dias já estava dentro do navio.52

O senhor Raimundo Nonato era um jovem simples saído de uma pequena cidade
nordestina com uma população de pouco mais de 10.000 habitantes 53 e que por necessidade
em estudar teve que mudar de sua cidade e Estado, ficando longe da família e de seus amigos,
para viver na maior cidade do País na época, sob um ritmo de vida diverso do seu. Para
complicar sua situação, Raimundo não compreendeu que a atividade que realizava no CPOR,
no Rio de Janeiro, era um tipo de serviço militar obrigatório, só que voltado para pessoas com
maior grau de instrução e com vistas a formar oficiais da reserva do Exército. Raimundo,
desta maneira e segundo a Lei, poderia realmente ser convocado para integrar o contingente
expedicionário, pois, como foi dito, em 1942 todas as baixas haviam sido suspensas e o
efetivo só aumentaria em todo o Brasil54.
Na sua visão, porém, o sargento que foi buscá-lo no Colégio foi propor uma troca:
para não ser preso como desertor e envergonhar a família, ele seguiria para a Guerra, mesmo
sem treinamento ou aviso à família, como cabo do Exército. Naquele momento não havia o
que pensar! Seus sonhos em estudar para conseguir algo melhor teriam que ser adiados, não
para defender a sua Pátria, mas para defender sua própria honra.
O desertor, pelo Código Penal Militar da época, era o militar que faltasse às
atividades do quartel ao qual estava vinculado por mais de 08 dias corridos55. A pena era de
dois anos com trabalho forçado. Para o febiano, no entanto, a vergonha era a maior das
punições, era desonrar a família e até os membros de sua comunidade, mesmo assim, foram
comuns as deserções durante o período em que a FEB esteve em treinamento no Brasil, Senna
Campos narra, inclusive, que no momento do embarque para a Itália, dois militares
simplesmente deixaram a bagagem no chão do porto e, silenciosamente, evadiram-se do
local56.

________________________
52 – MONTEIRO, R.N. Raimundo Nonato Monteiro. Depoimento [Abr 2006]. Entrevistador: Marcos A.
Costa. Juiz de Fora: UFJF – MG, 2004. 1 cassete sonoro. Entrevista concedida para a dissertação do autor.
53 - Anuário Estatístico do IBGE, 1942.
54 - Decreto Nr 10.451, de 16 de setembro de 1942.
55 - Art 117 do Código Penal Militar, em sua pena máxima.
56 - CAMPOS, Aguinaldo José Senna. Com a FEB na Itália – páginas do meu diário. Rio de Janeiro:
Imprensa do Exército, 1970. p. 62.
O então 2º sargento João Evaristo dos Santos, hoje Capitão reformado, mineiro
de Santos Dumont, era furriel do II Batalhão do 11º RI, função responsável pelo
ressuprimento em alimentação das tropas de infantaria em combate. Sobre os desertores,
relatou que:

Teve dia que dava no Boletim, quatro ou cinco desertores, todos os dias. Eu tive
um amigo meu que era 3º sargento e lá no Capistrano, quando ele viu que ia
embarcar, deu no pé...(sic) 57.

Fot 8 - João Evaristo dos Santos.


Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB – Seção Juiz de Fora

Toninho também fez referências sobre os desertores confirmando que mais do que a
sanção penal quanto ao fato, havia a consciência coletiva e moral contra essa atitude:

Teve muito “nego” que não pulou fora por causa da vergonha. Porque quem é que
não tem vergonha de ser um desertor? É um homem arrasado! Perante seus
companheiros, seu País...58

Nascido em Tabuleiro, José Lopes de Oliveira era lavrador e filho de lavradores,


incorporou em 10 de agosto de 1943, no 12º RI, lutou na Guerra como cozinheiro da
Companhia de Petrechos Pesados I, sobre a convocação e a situação de deserção no Exército,
relatou-nos o seguinte:

(...) o capitão me pôs na lista pra fazer curso de alimentação. Fiz no CIE, o Rio,
Campos dos Afonsos, lá no Rio de Janeiro. e...aí eu falei com ele:
_________________________
57 – Depoimento [Out 2004].
58 – Depoimento [Out 2004]
- ‘ Ô capitão, tenho que ir pra frente, eu sou voluntário’.
- ‘Não, mas eu pus o primeiro da lista, eu pus você porque eu quero que você faça
o curso’.
O senhor incorporou como soldado infante!?
Sim.
CM2 como o senhor falou?! o que era CM2?
CM2 era uma companhia, era a companhia CM2, eu fiquei nela até fazer exame
né!?
Eu queria saber o que era CM2..o senhor não se lembra?
Não, não me lembro não, mas na guerra já foi outra companhia. Mas então eu fui
fazer o curso, porque o americano pediu, que era batalhão americano pediu cada
companhia ter sua cozinha separada. Então foi três cozinheiro (sic) de curso, três
auxiliares, um cabo e um sargento, compôs a cozinha. E lá eu fui, fiquei assim
durante a guerra, e.....na área eu servi na CCPI, companhia de petrechos pesados,
né?! Meu capitão era o Capitão Tório..era paulista. Eu fiquei lá..
Era cozinha da Companhia!?
Da companhia. A gente fazia assim, a companhia mudava a gente mudava também,
tinha os jipes que levava a alimentação, eles tinha ração (sic), com eles na frente,
quem estava lá na frente, tinha ração que eles usava, comia, quando não ia, não
podia ir alimentação da cozinha, que tinha o jipe que levava, e quando estava em
descanso, ia uma companhia, fica no lugar, outra vinha pra trás descansar, a gente
servia a alimentação no campo, era assim...
Quando o senhor incorporou, em 43, o senhor era da roça, os seus pais
também eram da roça, o senhor tinha quantos irmãos?
Da roça, nós éramos seis irmãos, seis Marcos:quantos homens? fora eu? Dois, e
três mulheres.
Qual era o seu estudo na época?
4º ano primário, aliás nem o 4º ano, 3º ano.
O senhor tinha algum partido político na época?
Não senhor, não senhor. Isso foi no tempo de Getúlio Vargas, a gente nem
conhecia nada. Foi no tempo dele que nós fomos pra guerra.
Religão?
Sou católico, somos católicos.
Onde o senhor morava antes de ir para o Exército?
Antes de ir para o exército eu morava em Coronel Pacheco, numa fazenda em
Coronel Pacheco.
Então o senhor incorporou aqui no 12º RI?!
É, fiquei alguns meses, depois fomos completar o efetivo, ..em São João Del Rei, e
de lá para o Rio.
E o senhor foi voluntário para servir?
Eu vim voluntário, sem saber de guerra.
De Coronel Pacheco foi muita gente para a Guerra?
Não, da onde eu vim, foram dois, eu e mais um outro, da mesma fazenda, sabe.
José Tavela.
Como é que era, o senhor se alistava..
É o seguinte, naquela época a gente não comparecia, a classe saía sorteada, a minha
classe saiu sorteada, então aí eu vim voluntário. Era sorteio, sorteava a classe, a
gente vinha e se apresentava...
Cada um, conscientemente, vinha e se apresentava.
Se apresentava, a classe era sorteada, todo ano eu ia à cidade mais próxima pra ver
né!?
Mas se não se apresentasse também...
Aí ficava sobremisso (sic), igual a hoje. Ficava devendo, porque naquela época,
quando ..aparecia, desconfiava, qualquer coisa lá, que não compareceu, mandava
buscar. ..de formas que o meu caso foi esse assim.
O senhor se lembra qual o efetivo desta região que foi para a guerra?
Lembro não senhor. Daqui não lembro não senhor. Não lembro mesmo.
Como o senhor reagiu quando ficou sabendo que iria para a guerra?
Sim, aceitei, aceitei, fui convidado a desertar muitas vezes, até na hora de
embarcar, ..eu não quis, eu disse pra pessoas assim: - se eu não for, eu sou covarde
duas vezes, primeiro, porque ninguém me chamou, e depois porque eu vim
voluntário.
E quem é que chamava?
É filho de fazendeiro, essas coisa de Uberaba, esses lado de lá sabe?! eles sempre
eram meus amigos. (sic)
- “ vamo embora, fica aí não”. “vai pra guerra não”. “vamo pra fazenda você não
vai fazer nada lá”.
– não eu não tenho fazenda. Não vou não, não posso.
E tinha algum desertor lá?
Tinha, até na hora de embarcar, desertaram. Porque era assim..não proibia não. Não
obrigava ir não, sabe. Ia quem quis, tal. Sabe que deveria ir, né?! Eu acho que
desertar do Exército é uma covardia,
A família do senhor aceitou o fato bem?
A minha família era neutra neste caso, da roça, essa coisa toda, sabia nem o que
era isso, nem o que era isso59.

Zé Lopes lutou na 2ª Grande Guerra em uma função que pouco é lembrada nos livros
de memórias ou nas literaturas de guerra, a atividade de confeccionar a comida daqueles que
partem para o combate é vista como secundária, até mesmo como
irrelevante diante das impressões e perigos que o soldado que enfrenta o perigo da morte a
cada vez que vai para o front, entretanto, como poderíamos entender a vitória desses homens
sem a participação eficaz do cozinheiro?
Nosso depoente observou a guerra sob este ângulo, a sua convocação e seleção para
FEB não diferiu muito dos demais já analisados neste capítulo, mas ele teve a possibilidade
de, a partir do treinamento específico para lutar no conflito, viver a situação na retaguarda do
seu exército, onde passavam os soldados da Infantaria, os enfermeiros, os rádio-operadores,
os comandantes, os feridos, a população civil, enfim, boa parte dos que estavam envolvidos.
Ele veio da zona rural da pequena Coronel Pacheco, possuía pouco estudo e poucas
informações sobre a Guerra e a vida política do País, mas compreendia a força autoritária do
Presidente Vargas do regime do Estado Novo. Como tantos outros procurava o quartel para
cumprir seu dever como cidadão, como explicou a maneira de que sua classe era sorteada para
a incorporação, e como os outros, foi voluntário para servir apenas ao 12º RI e não à FEB. Zé
Lopes, no seu jeito mineiro de falar, explicou muito bem como era o sentimento de aceitação
do dever que muitos homens da Zona da Mata, criados em regime de disciplina e respeito à
_________________________
59 - OLIVEIRA, J.L. José Lopes de Oliveira. Depoimento [Abr 2008]. Entrevistador: Marcos A. Costa. Juiz de
Fora: UFJF – MG, 2004. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida para a dissertação do autor.
família e às instituições. Quando estavam comprometidos com suas obrigações, em nosso
caso com o serviço militar, sentiam-se envergonhados com a situação de insubmissos e
desertores. Nosso depoente tinha esse mesmo sentimento, ao taxar de covardes as pessoas
nesta situação e ao recusar propostas de seus amigos para que desertasse.
As fases de mobilização e convocação para a Guerra não terminaram com o início
dos treinamentos na Vila Militar, o Estado de Guerra pressupõe um constante estado de
mobilização nacional, tanto de meios quanto de pessoas. Já a convocação, por falta de um
melhor planejamento do Governo e do Ministério da Guerra, apresentou problemas desde a
sua origem, fazendo com que se arrastasse até praticamente a ida dos últimos homens para a
Itália, em fevereiro de 1945, três meses antes do fim dos combates.
A falta de uma política de mobilização constante, com o cadastramento de pessoas
em condições de servir, em qualquer época, em funções de qualquer espécie, e em condições
de rapidamente estarem aptas para o combate, proporcionou inúmeras dificuldades para o
único país latino-americano na 2ª Guerra. O fraco engajamento da população, principalmente
os mais jovens, em participar de um acontecimento justo e digno para a História da Nação e
daquela geração também nos fez diminutos ao comparados com os líderes do conflito. Tanto
que Lima Brayner, chefe do Estado-Maior da FEB, afirmara que nosso povo só acreditava em
samba e futebol60.
Alia-se a esses fatos, a pouca confiança de toda a população na capacidade de seu
Exército em estar em combate, confiança que faltou, inclusive, para os profissionais de
carreira que não se voluntariaram para a FEB e que demonstraram desprestígio com que
acreditavam, levando ao Comando da Força, por falta de pessoal, a convocar
temporários e até médicos e dentistas para atuarem como infantes na linha de frente.
Na Zona da Mata Mineira, 680 homens foram convocados do 12º RI para compor a
FEB61. A convocação seguiu quase que um padrão para a convocação do soldado, cabo e
sargento: jovem, pouco letrado, origem humilde, roceiro, forte formação moral, vontade em
servir, mesmo para a Guerra, e crente na tarefa difícil que a Nação depositava em seus
ombros. Era esse o homem que seguiria para a fase de treinamento, e depois para a Guerra do
Mundo.
_____________________
60 – Brayner, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 73.
61 - Boletim Interno nr 12, de 14 de janeiro de 1944. Arquivo do 12º RI – Belo Horizonte – MG.

3 TREINAR PARA LUTAR: A FEB PARTE PARA A GUERRA

No capítulo anterior, foi tratado sobre o início da Segunda Guerra, com a mobilização
de pessoal e material e a formação da FEB. Neste capítulo, falaremos sobre o treinamento dos
homens no Rio de Janeiro e suas conseqüências para a atuação nos combates e da partida de
todo o contingente para o além-mar.
O ano já era o de 1944 e a FEB permanecia no País, atrasada em sua formação e em
sua preparação. Lembremos que o acordo feito aos EUA era de uma Força, ao final de 1943,
sendo empregada em algum Teatro de Operações (TO) dos Aliados1. No entanto, a formação
da tropa ainda prosseguia envolta de problemas. O General Mascarenhas de Moraes,
preocupado com a situação, determinou a sua concentração na Capital Federal, como forma
de reunir a FEB antes dos embarques e nivelar as instruções com apoio de militares
americanos e de oficiais brasileiros que estagiaram nos EUA, em busca de conhecimento
sobre novos armamentos e novas técnicas. Moraes, segundo Branco 2, desejava, e assim havia
planejado, uma concentração e treinamento na cidade de Resende, no interior do Estado, no
Vale do Paraíba, pois seguindo o que era feito em outros países, era importante um local
afastado das facilidades da cidade grande, para não dispersar o militar de seu objetivo, que era
a Guerra. No Brasil já havia uma base de treinamento pronta próximo à cidade pernambucana
de Paulista, distante 50 Km de Recife, que se não chegava ao nível do que era executado pelos
principais países em guerra, era um local pronto para acolher o efetivo pretendido para
embarcar3. Mas a escolha das Unidades para o conflito, como dito anteriormente, recaiu sobre
quartéis do Eixo Rio - São Paulo - Minas, o que dificultaria o envio de um imenso contingente
para o Nordeste.
A escolha do Nordeste, bem verdade, era a mais acertada para o envio das tropas para
a Segunda Guerra, e foi motivo de discussões entre os militares brasileiros, liderados pelo
General Dutra, que exigia material para treinamento completo de uma divisão inteira em cada
base solicitada (uma divisão tinha cerca de 20000 homens), e os militares e autoridades
norte-americanas, que não entendiam o porquê do Brasil não utilizar os soldados do
Nordeste, que já estavam treinados com material moderno e melhor preparados para o
________________
1 – MACCANN, Frank D. Op. cit. p.277.
2 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op. Cit. p. 144.
3 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op. Cit.. p 149.
conflito desde em que os EUA ali montaram suas bases de apoio à Guerra na África4.
Dutra, na verdade, não confiava nas intenções dos norte-americanos em não se manterem no
Nordeste após o fim dos combates, então preferia manter os já adestrados soldados
nordestinos próximos às instalações americanas5.
Moraes, juntamente com oficiais do seu Estado-Maior, havia conhecido as áreas de
estágios das tropas americanas na África e tinha a intenção de freqüentá-las antes dos
combates, mas tinha que, antes, fornecer a instrução básica para a tropa no Brasil e capacitá-
los fisicamente para as ações de combate. Atividades como manusear os novos tipos de
armamentos, aprender como utilizar os materiais especiais, como minas terrestres,
equipamentos de radiocomunicação, as novidades na área médica, entre outras informações
importantes para que a Força estivesse, pelo menos, apta para atuar em conjunto, dentro de
suas pequenas frações, como os pelotões, e também enquadradas em suas companhias,
batalhões e regimentos. O mais difícil agora, era transformar planejamentos e ensinamentos
colhidos no exterior em ações executáveis por milhares de homens, fazendo com que
abandonassem os antigos conceitos, por um novo pensamento militar.

3.1 O treinamento no Brasil: mais dúvidas do que certezas

Em 18 de agosto de 1943, o Estado Maior do Exército expediu as “Diretrizes de


Instrução dos Quadros e da Tropa do Corpo de Exército”6 procurando orientar a FEB em
como seria desenvolvida a instrução de todos os seus integrantes, desde os oficiais aos
soldados. As diretrizes também fixavam os objetivos e prazos para que em, no máximo, 27
semanas, a Força estivesse em condições de embarcar.
As instruções da FEB eram voltadas para as frações específicas, mas também havia
assuntos em comum para todos. Elas eram ao todo de sete tipos7: Instrução Comum, voltada
para todos os militares, eram as instruções de armamento, progressão sob fogos, primeiros
socorros, entre outras; Instrução Peculiar a cada Arma ou Serviço, que eram vários tipos de
instruções sobre como cada homem de determinada área da tropa deveria atuar, como
combateria o soldado da Infantaria e o de Cavalaria, por exemplos; a Formação de Cabos

_______________
4 - MACCANN, Frank D. Op.cit. p.284.
5 - MACCANN, Frank D. Op.cit. p.280 – 281.
6 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.cit. p 147.
7 – Ibdem.
e Sargentos, dedicada à formar novos Cabos e Sargentos, elementos importantes dentro
das frações da FEB, e que com o aumento de efetivos do Exército, não havia sido
providenciado a formação em número necessário para o momento vivido; Formação de
Especialistas, que eram as instruções que se preocupavam com os elementos mais técnicos,
como os enfermeiros, os mecânicos de viaturas e de equipamentos de radiocomunicações, os
cozinheiros, entre outras; o Aperfeiçoamento da instrução dos graduados, que eram as
instruções somente para os oficiais e sargentos; e a Instrução da Tropa, que era voltada para o
adestramento de toda a Divisão. O planejamento estava feito, faltava torná-lo realidade.
Na Capital, muitos problemas surgiram, o 11º RI, por exemplo, Unidade que deixou o
seu quartel em São João Del Rei e veio para acantonar no chamado Morro do Capistrano, no
Bairro de Marechal Deodoro, foi uma das que mais sofreram. Em suas memórias, Ruy assim
relatou:

Se em Caçapava estávamos mal acomodados, no Capistrano, nem vale a pena


comparar...
Nesses anos todos do após guerra, com cada febiano com quem conversamos e que
passou pelo acantonamento nos barracões do CAPISTRANO, nenhum desses –
nenhum mesmo – deixou de se lastimar pelos tempos sofridos que ali convivemos.
O conjunto de uma dezena de pavilhões fechados, de madeira, completado por
meia dúzia de galpões abertos, constitui o que militarmente se denominava
“ACAMPAMENTO DO CAPISTRANO”.
Sem vegetação alguma, nem mesmo uma árvore siquer, o sol castigava telhados e
táboas das paredes, transformando cada alojamento num forno durante o dia e
numa estufa durante a noite; era um verdadeiro campo de concentração pois tinha
até cercas de arame farpado ao redor. E quem se esquecerá do tormento das moscas
e dos mosquitos, provenientes das precárias instalações sanitárias, nem sempre tão
limpas como deveriam estar, até por força da água racionada.
O rancho, - ah! o rancho! – Meu Deus! Hoje, passados mais de quarenta anos,
ainda me lembro da moscaria que enfrentávamos: era uma das mãos segurando o
talher e com a outra, abanando o prato, ora a boca, para comer somente a
comida....isso no tempo em que a tropa era alimentada à moda brasileira: de
repente, de acordo com ordens superiores, as refeições, bem como a ordem de
servi-las, foram alteradas, para que nos adaptássemos ao sistema americano – ou
europeu, sei lá – de alimentação.
Aí sim! – pela manhã era o “BREQUEFESTE”: café, leite à vontade, ovos fritos ou
cozidos, bacon, (leia-se toucinho), manteiga, frutas ou suco das ditas e
legumes...Dito assim, conforme “cantou” o boletim, parece ótimo; mas entre o que
foi lido e o que era servido pelo aprovisionamento, a diferença atinge o infinito:
ovos? – sim; mas quando cozidos era aquela montoeira de ovos duros e moles, com
as cascas esmigalhadas, aderente e sem forma que cozidos desde a madrugada,
eram empilhados nos panelões, para serem servidos às seis e meia da manhã e
quando fritos, eram ainda piores, pois fritos em banha reiúna, desde o amanhecer,
eram servidos frios e endurecidos com a gordura esbranquiçada envolvendo-os; era
azia para o dia inteiro....
Quanto ao “bacon”, o problema foi resolvido “manu militari”: foi convocado o
presunto cru existente no Serviço de Subsistência do Exército, mas esqueceram de
mobilizar também as máquinas para cortá-lo em fatias finas, susceptíveis de serem
consumidas normalmente... Foi então usado mesmo, o facão de cozinha do soldado
rancheiro. Agora, já experimentaram comer, ou melhor mastigar, um naco de
presunto cru, com cerca de quatro dedos de largura, por dois de espessura? Isso era
o “bacon”(....)8

Ruy é objetivo ao afirmar que a falta de organização imperou durante a preparação da


Força Expedicionária. A pouca estrutura disponível nos quartéis que alojaram os militares foi
o que de mais desagradável ficou para aqueles que partiam em nome defesa do seu País e em
prol da existência da própria Humanidade, segundo diziam seus comandantes e governantes.
O que se viu, porém, foram homens sendo tratados quase como animais ao serem acomodados
em instalações precárias de madeira sob o calor da Cidade do Rio de Janeiro. Falta de
condições de higiene e de água, segundo Ruy, foram sentidas por todos aqueles que se
submeteram aos mais de seis meses de treinamentos, em um local que se assemelhava a um
“campo de concentração”.
Na visão do então tenente Ruy aquilo era terrível, principalmente a comida,
sarcasticamente descrita por ele como uma tentativa dos cozinheiros brasileiros em
“transformar” o presunto em bacon americano, um produto incomum no Brasil da década de
1940. Para os soldados mais humildes, que não tiveram a possibilidade de ficar em seus locais
de origem, o sofrimento foi ainda pior, afinal não havia a possibilidade de apoio da família.
Ainda sobre o treinamento, Ruy afirmou em depoimento direto, que este ainda era voltado
para a parte física, de doutrina francesa, com ênfase na ordem unida, no tiro, e que os
cozinheiros faziam o possível para imitar as condições de alimentação dos americanos 9, mas
que ainda estavam aprendendo, e o insucesso foi evidente.
Zé Maria, também um integrante do 11º RI, descreve de maneira semelhante a Ruy, os
acontecimentos que antecederam o embarque da Força:

(...) bom, então vim embora, aí o tempo foi seguindo, seguindo, seguindo, fomos
para o Rio de Janeiro, ao chegar no Rio de Janeiro nós fomos alojados no morro do
Capistrano, nuns barracões de madeira, de tábua, muito rústico, muito arcaico, um
negócio muito maluco mesmo e respeitando a pobreza brasileira, hoje, lendo muita
coisa a respeito da Segunda Guerra Mundial, sobre os exércitos que lá estiveram, e
fazendo comparações, eu acho que foi mais um erro do comando do Exército
Brasileiro na época, com a tropa sendo preparada para participar de um conflito
armado, tinha que ter até...eu digo tinha que estimular os próprios militares, que
compunham esta tropa especial, não... fomos ... é bivaque que fala né?
________________
8 – Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
9 – A alimentação disponibilizada aos brasileiros durante os combates não será apenas uma imitação da
refeição, mas, fornecida com as características próprias do brasileiro, e com isso, será um ponto positivo nas
lembranças dos expedicionários.

...acantonamento, é acantonamento...Nossa Senhora um negócio maluco meu Deus,


não tinha cozinha das companhias, não tinha nada, tinha o cabo Armando, cabo
Armando era um roceiro lá da região do interior de São João Del Rei, era roceiro
mesmo, ....companheiro, o cabo Armando, juntamente com meia dúzia de soldados
arranjaram lá umas ferramentas, uns machados, facões, cortaram uns paus lá, num
mato que tinha lá e fizeram um rancho..pra poder botar as panelas da companhia,
pra poder....na beradinha de um brejo, ....
o senhor passou quanto tempo lá?
........nós fomos para o Rio de Janeiro, vamos colocar...... em janeiro, vamos
colocar assim.... em janeiro,...44 então fevereiro, março, abril, maio, junho, julho,
agosto, 7 meses, em setembro nós fomos embora. Aí sim, aí cabe a pergunta que o
senhor fez, minha família. A esta altura o 6º RI já tinha seguido e para o 6º RI
seguir foi preciso recompletá-lo, que nesta altura eu acredito que tenha sido isto,
não é que ninguém me falou, que eu li, nem nada, eu que faço esta suposição.
Quando o 6º RI ficou decidido que o navio ia encostar e ia levar o 6º, o
comando tomou conhecimento do número exato da formação de um
regimento, número de cabo, soldado, sargentos, oficiais, companhias em fim
tomou conhecimento de tudo. Então foi, foram transferidos do 11 RI, do 1º RI,
um determinado número de militares, para completar o 6º. Tô falando isto porque
da minha companhia foi o cabo Odin, Odin Machado...natural de Santa Rita do
Sapucaí, já falecido, era um, naquela época, já era um técnico de transmissão, ele
era danado sabe?! ele não era fácil não, Odin, da minha companhia eu lembro que
foi o Odin, um dos transferidos para o 6º. Encontrei em Juiz de Fora, algum tempo
depois e nunca mais encontrei. Quando o 6º RI foi embora, eu dei uma fugida, um
final de semana, não ia acontecer nada, digamos assim, eu dei uma fugida a São
João Nepomuceno, aí eu sabia que nós iríamos a qualquer momento, isso já era
julho, agosto e a qualquer momento nós iríamos também. Aí eu retornei a falar
com este meu padrinho Mário:
-agora não tem escapatória não, o 6º RI já foi, nós devemos... mais uns 30 dias ir
embora...fica a cargo do senhor, que eu não vou falar com o pai mais a mãe, não
vou falar com ninguém, fica a cargo do senhor, se quiser falar com todo mundo o
sr fala, se não quiser, o dia em que eu tiver uma chance eu mando uma carta
dizendo onde estou.
seus pais sabiam que o senhor estava no Rio? sabiam... sabiam que eu já tinha
através de correspondência informado direitinho, só foi assim que eles ficaram
sabendo, eu acredito, né?! não dou muita afirmativa não mas acho que o meu
padrinho, falou com eles. nesses 7 meses o sr tinha dispensa para ir a São João
Nepomuceno? não era muito fácil arranjar dispensa prá nada, mas a gente, da
maneira disciplinada que a gente vinha, eu, por exemplo, posso dizer isto, e grande
número de companheiros, pela maneira disciplinada, é... a gente falava com o
comandante de pelotão, por exemplo... “não tem nada essa semana, vou dar uma
fugida”, balançava a cabeça, “você sabe como proceder”, normalmente era a
recomendação “você sabe como proceder”, “não tem problema não” aí a gente ia ...
eu por exemplo ia para a estação da Leopoldina, pegar o trenzinho, se eu não me
engano do Rio de Janeiro eu só fui uma vez em casa, não fui mais, só fui uma vez.
o senhor era solteiro, não é e o pessoal casado? o pessoal que tinha esposa e
filhos? geralmente eram sargentos, eram de sargento prá cima.
tinha algum grande amigo do senhor que foi para a guerra de São João
Nepomuceno?
sim..... no âmbito de guerra propriamente dito, ou seja, no front né.... daqueles que
compunham a minha companhia, só existia um sargento, que quando nós voltamos
ele foi minha testemunha de casamento no civil, a viúva dele reside ali ao lado
daquele Bretas grandão lá embaixo. 3º sargento Jofre Louzada, ele era da minha
companhia ele era o furriel da minha companhia. Então ele, digamos assim, ele não
participou de nenhum combate, mas ele era o furriel da minha companhia. Ele
estava sempre junto com o comando da companhia, um pouquinho mais para o
lado, um pouquinho mais para trás, para poder manter as coisas da companhia.
Essa era a função dele. De São João Nepomuceno diretamente foi só esse. Agora
existiam em outras unidades, existiam. Lá estava o sargento Luiz Gonzaga da
Silveira, que era irmão da esposa deste meu padrinho, estavam os dois irmãos
Rezende, João Rezende e Nestor Rezende. O então sargento João Rezende, hoje é
coronel reformado, muito doente já não mora mais em juiz de fora, tá morando em
Belo Horizonte. O sargento Nestor já faleceu. Agora, tem o sargento Rodrigues,
que mora aqui no JK, que era do pelotão de sepultamento e eu não tinha contato
com ele, então, de São João Nepomuceno, o único contato mesmo era com o
Louzada, porque nós éramos da mesma companhia. A localização do
acantonamento, enfim, o regimento todo não havia esta probabilidade10.

Da mesma forma que Ruy, Zé Maria também não aprovou a maneira com que os
militares da Força foram alojados para se prepararem para a 2ª Guerra, talvez não tivesse a
consciência disso naquele momento, talvez achasse normal um tratamento rústico para
quem em pouco tempo estaria em condições muito piores de bem-estar, como foi o que
realmente aconteceu na Itália. Mas naquele momento, na Vila Militar de uma das maiores
cidades das Américas, os brasileiros ainda não estavam em guerra, não havia o porquê o Alto
Comando desprezar o conforto dos seus homens, como se isso fosse uma prerrogativa para
aqueles que se preparassem para os combates. Nem tampouco justificaria a falta de recursos
para não deslocar os homens para melhores locais dentro da Capital. Os militares da época,
febianos ou não, deixaram suas impressões e alívios quando comparam o tratamento
dispensado aos soldados das décadas anteriores à Guerra, para com o que foi sendo feito nos
anos posteriores. Zé Maria já havia deixado seu testemunho, comentado no capítulo anterior,
sobre os percevejos que se acumulavam nos colchões do 12º RI de Juiz de Fora e sobre a falta
de comida ou comida ruim fornecida aos soldados. A pouca atenção ao militar,
principalmente aos menos graduados, era algo culturalmente arraigado na própria Sociedade,
que via com naturalidade o desprezo para com o mais humilde, tratado, muitas vezes como
um servo, quase escravo, e não um empregado digno de respeito. No caso de um soldado, a
questão é ainda mais complexa. Homens que partem para a defesa de seu País não podem ser
tratados como “empregados”, “servos” ou “escravos”, o fato de estarem sendo conduzidos
para o inferno que é a guerra, não quer dizer que devessem dormir quase ao relento,
comer mal ou não ter direito de ver suas famílias. Homens a quem a Pátria exigirá a própria
vida em combate deveriam ser valorizados, como constatou Zé Maria ao comparar os exerci -
________________
10 – Depoimento [Dez. 2007].

tos estrangeiros com o de seu País. A mentalidade moderna que pregavam aqueles que
estagiaram nos EUA em busca de novos conhecimentos de combate, precisava também se
modernizar quanto ao seu tratamento dispensado ao subordinado. Até aquele instante nada
havia mudado.
O acantonamento, como disse Zé Maria, é a ocupação de um local ou instalação que
aloje uma tropa por um tempo curto e determinado, e não pelo período de pelo menos sete
meses pelo qual passaram os febianos. Seu companheiro, o Cabo Armando, soube como
contornar os problemas da falta de uma cozinha para a sua companhia, indo para o mato à
procura de madeira para garantir a refeição dos homens! Estamos falando de algo ocorrido na
capital federal, dentro do ambiente de maior infra-estrutura do Exército Brasileiro naquela
época, que era a Vila Militar. Lá estava abrigado o maior contingente de homens que
partiriam para a primeira missão de tropas desde a Guerra do Paraguai. Não foi por menos
que Mascarenhas de Moraes preferiu o Rio de Janeiro para concentrar a FEB, ele sabia que lá
o apoio seria melhor para o Comando da Força e para os seus homens. Não foi isso que
aconteceu, segundo Zé Maria.
Ao comentar detalhes sobre o embarque, Zé Maria acredita que os efetivos de cada
regimento só foram decididos quando da partida do 1º escalão de viagem, que levou o 6º RI e
mais algumas frações de tropas constituídas. Na verdade a organização de cada efetivo da
FEB já era conhecida desde 1943, quando foram publicados no Boletim Reservado do
Exército11, o que faz com que nosso depoente deduza sobre isso é o fato de às portas de
chegarem ao seu destino, homens ainda estarem sendo remanejados dentre as Unidades para
completar os claros nos efetivos, principalmente no embarque do 6º RI. Quando esta Unidade
chegou à Itália teve dois meses de preparo antes de ser lançada ao front devido a falta de
pessoal no V Exército. Mais à frente, nós veremos que um de nossos depoentes, o sargento
Rodrigues, também passou por esta situação, ele, inclusive, foi citado por Zé Maria, um de
seus conterrâneos dentro da FEB.
Sobre a única visita que fez à família durante o período no Rio de Janeiro, observa-se
que as liberações não eram autorizadas abertamente, mas, dependendo de cada comandante, o
militar de fora da Capital poderia ir até o seu lar. Para o jovem soldado era uma
possibilidade de “matar” uma saudade que já durava meses e que com a dúvida sobre
quando seria o embarque, a angústia aumentava ainda mais, o que era um convite para a
______________
11 – Boletim Reservado do Exército nº 16, de 13 de agosto de 1943.

deserção. Para Zé Maria, a partida já estava próxima, devido o embarque do 6º RI, mas
faltava a coragem de falar com a família sobre isso, tarefa delegada ao seu padrinho Mário,
algo normal naquela sociedade dos anos 1940. O padrinho era como um pai, às vezes até mais
amigo.
Lima Brayner, na época coronel, criticou posteriormente o que chamou de
“inexperiência”, “primarismo e falta de objetividade” as ações de improvisação no simples
alojamento de tropas para o início dos treinamentos12. A Vila Militar não possuía, como se
supunha, a infraestrutura necessária para suportar um efetivo que não ultrapassava 10.000
homens, contando somente os quartéis de fora do Rio de Janeiro, já que o restante ocupou
suas próprias instalações? Então, barracões mal feitos de madeira procuraram inutilmente
imitar o que havia sido visto nas instalações temporárias africanas, onde o Alto Escalão da
FEB foi colher ensinamentos. Mas as ações de instruir a FEB permaneciam lentas, à espera de
maior apoio das autoridades militares, mas também sofriam pela organização ultrapassada do
Exército, e que havia sido de maneira abrupta transformada de um tipo francês para uma
Divisão Americana, sem a total compreensão de muitos de seus comandantes.
Pior ainda ficaram os homens do 9º Batalhão de Engenharia de Aquidauana, que
tiveram que permanecer durante o período de fevereiro a agosto de 1944 na cidade de Entre-
Rios, hoje rebatizada de Três Rios, no Rio de Janeiro, até que fosse reunida na capital, para
fim de embarcar. Vendo por outro lado, passaram melhor do que os febianos que estiverem na
Vila Militar disputando os espaços com os soldados que permaneceriam no Brasil, pois estes
se sentiam incomodados com o convívio com o grupo que iria para a Guerra, surgindo
momentos de indisciplina. Sobre as condições destes homens em sua preparação para a
Guerra, o então capitão Raul Júnior escreveu:

(...) Após as manobras com os comboios, prosseguimos viagem, tendo por destino
a cidade de Entre-Rios, no Estado do Rio de Janeiro, onde chegamos no dia 1º de
março. Uma desagradável surpresa nos aguardava: nosso novo aquartelamento era
um imenso armazém regulador de café. Era numa enorme construção quadrangular,
com um desvio de linha férrea passando pelo centro. Lá deveria caber milhões de
sacas de café, pois o Batalhão inteiro ficou alojado dentro do imenso galpão; as
Companhias foram separadas por um gradil de madeira.
Algumas adaptações indispensáveis foram realizadas para permitir seu uso pela
tropa, tais como: chuveiros, privadas, cozinhas, tudo indicando que lá ficaríamos
apenas em trânsito para melhores paragens. O Comando do Batalhão e órgãos
anexos foram alojados em casas da pequena cidade de Entre-Rios; outras foram
alugadas para moradia provisória dos oficiais.
A localidade não oferecia condições favoráveis ao treinamento militar; a não ser o
rio Paraíba, que servia para instrução de pontes, tudo mais foi construído pelo
______________
12 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 41-42.
próprio batalhão: uma pista de aplicações militares, um estande de tiro, com
estrada de acesso, e, aos poucos, o provisório começou a se tornar permanente13.

Esta falta de rumos da FEB, quando ainda no Brasil, foi um fato. Tanto que, com mais
de um ano de oficialmente formada, não se sabia para qual lugar os homens seriam
deslocados para combaterem, quantos definitivamente participariam e quando e se sairiam do
Continente. Faltavam materiais e armamentos modernos, e os poucos que existiam estavam
nas mãos dos instrutores americanos e brasileiros que tentavam ensinar de maneira
expositiva e para um grande número de soldados14, algo que deveria ser feito na prática.
Quando da viagem ao continente africano, no entanto, o Alto Comando da FEB já
visitara o TO do mediterrâneo, e sabia do emprego dos homens na Itália, esta informação
permaneceu restrita a um pequeno número de pessoas.
A lentidão e falta de objetivos sobre o que ministrar aos febianos, fez surgir a bizarra
idéia de se construir um imenso navio de madeira próximo aos barracões do 11º RI, com a
preocupação de treinar os homens para um hipotético naufrágio de embarcação e desenvolver
a parte física. O “navio” possuía várias cordas de sisal ao lado de seu “costado”, em que os
homens desciam apenas com o auxilio dos pés e mãos e vestidos com o colete salva-vidas.
Não deixa de ser interessante que o principal treinamento da Força aqui no País, fosse voltado
para o insucesso de nem chegarem vivos a outro continente.
________________
13 – JÚNIOR, Raul. Quebra Canela. Rio de Janeiro: Bibliex, 1981. p. 31.
14 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op. Cit. p 148-149.

Fot 9 - Treinamento de desembarque. SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 31.

Sobre este estranho treinamento, Ruy escreveu assim em seu diário:

(...) Também praticávamos o embarcar e o desembarcar bem como a abordagem,


subindo e descendo por escadas de corda, numa geringonça que os soldados logo
batizaram de “CAPISTRANO MARU”, por analogia a uns navios cargueiros
japoneses, cujos nomes eram seguidos da palavra “Maru”.
Pois bem, o “CAPISTRANO MARU” foi mais uma improvisação que tivemos de
enfrentar antes de embarcar e tratava-se de uma enorme armação de madeira,
alta uns seis metros, bem larga e comprida como o bojo de uma embarcação e
com um tablado em cima. Redes de abordagem desciam pelos dois lados; subia-se
por um lado, atravessava-se o piso do tablado no alto, sem proteção lateral alguma
e descia-se do outro.
Todos os dias as companhias praticavam esse exercício, sempre com o fuzil a tira-
colo; exposta ao sol e às chuvas e com a freqüência dos exercícios, a tal construção
foi perdendo a rigidez e já balançava tanto como um verdadeiro navio em águas
agitadas. Os próprios soldados, nas subidas e descidas, forçavam propositalmente
os movimentos fazendo com o “CAPISTRANO MARU” jogar mais e mais....Foi
realmente Deus que nos protegeu e nos salvou de um naufrágio no seco, levando-
nos para o “GEN MEIGS” cujo balanço era muito mais suave e menos perigoso...
(...) 15

O Brasil, até então, já havia perdido boa parte de sua frota de navios mercantes e
também com a perda de centenas de mortos. O perigo real de um afundamento por
_______________
15 – Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
submarinos, aliado a um exercício que desenvolvia o físico e a coragem, foi uma das formas
de manter os homens focados e empregados nos treinamentos, já que materiais modernos,
espaços e tempo não havia em abundância. As boas intenções que havia na criação deste
aparelho, não resistem às críticas de militares já experientes como o tenente Ruy.
Toninho relembra sua agonia com o enfrentamento de seus primeiros inimigos
naquele momento da Força, os enfermeiros da FEB:

(...) Fomos preparar para embarcar, para formar a Força Expedicionária Brasileira.
Tudo quanto era qualidade de exames foi feito no corpo da gente..era tirar sangue
hoje, “nego” desmaiava, porque faziam um semi-círculo e começavam a tirar
sangue na frente de todo mundo, tinha “nego” que não agüentava e desmaiava ali.
No dia seguinte: injeção atrás. Preparavam tudo para embarcar. Todo o nosso
preparativo foi pra ir para África, eu fiquei sabendo que não ia para a África porque
fui no 2º escalão, o primeiro já estava na Itália, tava na cara que ia para a Itália
(sic)... 16

O veterano de guerra Toninho tem toda a razão ao afirmar que toda a preparação que
foi feita tinha por objetivo uma participação dentro do continente africano, pois seus
superiores durante os treinamentos comentavam sobre isto. No entanto, como relata em suas
memórias, editadas no livro Com a FEB na Itália, o então Coronel Senna Campos, oficial
responsável pela Logística da FEB, narra a referida visita que fez acompanhando o
comandante da FEB e outros oficiais, nos campos de treinamento do Exército
Americano, na Argélia17. Estes campos, segundo o autor, serviriam como um local de
“estágio” para inserção na nova doutrina de guerra americana que vinha tendo sucesso contra
os alemães e, também, ficava próximo do Teatro de Operações do Mediterrâneo, o que
facilitaria a ambientação na zona de combates para os brasileiros, contando inclusive com
instrutores com experiência na Normandia e na invasão da Itália, e não os despreparados
oficiais da reserva, que mal falavam o português que os EUA enviaram para o Brasil. O
desejo do Comando da FEB era conduzir todo o efetivo para a África antes de atuar na Europa
ao lado do V Exército, comandado pelo General Mark Clark. Naquela região seria
possível um treinamento de melhor qualidade, com material e armamento apropriado que não
existia no Brasil, possibilitando, inclusive, uma melhor estadia para tropa. Lá o militar estaria
longe de seus familiares no Brasil, da rotina distante da Guerra vivida no País e passaria a
estar concentrado em aperfeiçoasse para o que estaria por vir.
______________
16 – Depoimento [Out. 2004].
17 – CAMPOS, Senna. Op. Cit p. 30 a 56.
Isto acabou não ocorrendo, muito provavelmente por causa do tempo escasso para que
a FEB partisse para o conflito, já que os inimigos do Eixo demonstravam que não suportariam
por muito tempo. Pode ter havido, também, pouca disponibilidade de meios, inclusive de
transporte para que a tropa fosse para a Argélia. De qualquer forma foi mais um planejamento
que não deu certo, nesta fase de descaminhos da FEB.
Exército Brasileiro, desde que a Missão Militar Francesa, em 1921, veio pela primeira
vez ao País, vinha tendo seus militares adestrados à maneira de combater utilizada pelos
franceses. Os fundamentos de guerra franceses eram, primeiramente, difundidos nas Escolas
militares, para que os oficiais pudessem repassá-los aos restantes dos militares aquartelados.
Estes fundamentos privilegiavam uma forma passiva de combate, mesmo nas ações em que a
ofensiva fosse a mais indicada18. A França, vitoriosa na 1ª Guerra Mundial, ainda estava presa
à “Guerra de Trincheiras” de 1914-1918, ainda enaltecia os desfiles de ordem unida, as
sessões de educação física, o rigor disciplinar, as linhas de defesa lineares, entre outros
ensinamentos que foram destroçados diante da Blitzkrieg alemã, com seus avanços
rápidos e objetivos, utilizando-se dos blindados e da aviação. A Retirada de Dunquerque foi
prova que a forma de combater dos franceses e também dos ingleses era parte do passado. A
guerra agora era de movimento, agressiva, eficaz.

Fot 10 - Tenente Ruy (à direita) e seus homens durante uma


formatura em passo acelerado. Arquivo pessoal do Maj Ruy de
Oliveira Fonseca.
______________
18 – SILVA, Major Alcebíades Tamoyo; MENEZES, Capitão Amilcar Dutra de. Guia para o Comandante de
Pelotão de Fuzileiros. Rio de janeiro, 1942.
Fot 11 - Tropa em exercício de tiro. Observa-se a
metralhadoras francesas HOTKISS e os velhos
capacetes da 1ª Guerra Mundial e, ainda, os
homens dispostos de forma linear para a
execução do tiro. SULLA, Giovanni; TROTA,
Ezio. Op. Cit. p. 13.

Fazer com que homens, de uma hora para outra abandonassem o antigo modelo para
outro, mais moderno, mas nunca visto, ia contra a natureza destes homens. Ensinar ao soldado
brasileiro, que agora, ao invés de cavar tocas para se abrigar e dalí combater, teria que lutar
sempre pensando na ofensiva, em que todas as ações devem priorizar o ataque, para isso, por
exemplo, o homem deve correr com seu fuzil, em direção do inimigo, em zigue-zague,
utilizando brechas no terreno e atacar a posição final. Mudar esse pensamento não era,
definitivamente, algo fácil de aprender em pouco tempo. Ressalte-se que somente a FEB,
naquele momento, introduzia estes novos conceitos para seus soldados. Era uma “Ilha” de
novidades, envolta de conceitos antigos e ultrapassados .

Fot 12 - Exercício de tropa em Guaratinguetá.


CPDOC/FGV. Arquivo Cordeiro de Farias.
Disponível em www.cpdoc.gov.br/acessus. Acesso
em: 25 Jan. 2008

Não somente a preocupação em ensinar a combater com armas de matar eram o


principal para a FEB, dentro de imensas novidades táticas e tecnológicas surgidas neste
período e necessárias para se opor aos alemães, havia soldados e materiais que não eram
usados para a morte, mas sim para manter a vida. O Senhor Zé João, assim nos relatou a sua
visão sobre a fase de treinamento feito no Brasil:

- O senhor era do pelotão de saúde, o material que o senhor treinou no Brasil


foi o mesmo utilizado na guerra? serviu o treinamento aqui no Brasil?
- Serviu, a maioria do medicamento americano...eles tinham um sistema de
tratar ..por exemplo: eles internavam o sujeito com dores, corte, ferida eles usavam
um remédio: água quente. Água quente. Eles colocavam algo dentro da água, não
sei o que eles punham, na base da água. Americano foge muito de medicamento, o
medicamento americano é pesado. Naquele tempo a penicilina era famosa, mas
quem queria tomar a penicilina?! Naquele tempo quem queria tomar a penicilina.
Penicilina era um sinal de preparo pra morte.
- O senhor conhecia a penicilina aqui no Brasil?
Não, eu fui conhecer depois, na Guerra, lá eu conheci, lá era na base da injeção,
sempre trabalhava com tubos de gelo. Penicilina é à base de gelo.
- O senhor achava que o treinamento que tiveram era o correto, ou não? ou
achava que não iria embarcar?
- Eu achava que se fosse seria mais um passeio, porque americano tavam contando
umas histórias deles: bombardeando não sei aonde, bombardeando não sei aonde,
daqui a pouco está tudo na mão do americano. Aí eu pensava em ir e.....ser um
passeio... Mas não foi não.
Ficamos um ano no Rio de Janeiro, mas já com instruções de preparação de
guerra...aí já entrou um batalhão do Rio, que foi...o 1º RI...formando as unidades
de guerra....nós..batalhão de saúde foi crescendo...aumentando, aí veio..
uniforme..tudo de preparo para a guerra. dalí ....Veio o General Mann, navio que
nos transportou para a Itália. Aí foi duro, mineiro, não conhecia nem o mar. 19

Zé João não possuía curso de saúde antes de incorporar ao Exército. O Exército foi sua
escola para tornar-se apto a salvar vidas e minorar o sofrimento. Para ele, o treinamento,
voltado para o lado técnico da medicina e não para a sua atuação como enfermeiro na zona de
guerra, foi profícuo. Aprendeu dois lados da doutrina americana de tratamento de feridos, de
um lado, o que privilegiava a simplicidade, pois usava água quente como principal elemento
médico; de outro, que se definia pela modernidade com o uso da penicilina, recém
apresentada ao Mundo em 1941. Medicamento conhecido por Zé João e seus companheiros
de enfermagem somente quando estavam na Guerra. Zé João, inexplicavelmente, não acredita
que fosse água simplesmente, pois comenta que algo mais era posto em sua composição. A
simplicidade do uso simples da água quente se justifica pelas condições precárias que o
combate impõe aos seus homens. Na hora do tratamento que objetiva o salvamento imediato
antes de uma evacuação para a retaguarda da Zona de Guerra, o que se tivesse à mão poderia
ser utilizado para salvar, os primeiros socorros no combate são os mais importantes para
_______________
19 – Depoimento [Fev. 2007].
manter vivo o soldado. O tratamento mais avançado, com o uso de remédios e técnicas
especiais, são prerrogativas de médicos em seus hospitais de campanha, que ficavam à mais
de 50 Km do front. Nada mais simples e comum, portanto, que o uso da água quente para a
assepsia e relaxamento do corpo.
Sobre a preparação do Serviço de Saúde, o então 1º Tenente Médico Geraldo Augusto
D’Abreu, carioca de nascimento e servindo no 12º RI quando foi voluntário para a FEB,
comandou o 1º Pelotão de Triagem do Batalhão de Saúde na Guerra. Chegou até o posto de
general-de-divisão, e sobre o treinamento voltado para a doutrina militar americana, em
detrimento da derrotada visão francesa da forma de combate, relatou o seguinte:

(...) Lembro-me de um filme que retrata a guerra de posição, de trincheiras – Sem


novidades no front – se não estou enganado. Reproduz o campo de batalha da
Primeira Guerra Mundial. Os nossos pracinhas e os nossos chefes procuraram,
imediatamente, adaptar-se à nova doutrina e inovações técnicas, por assim dizer.
Neste filme, que cito como exemplo, no que se refere ao serviço de saúde,
vemos a ambulância hipomóvel, isto é, tracionada a cavalo, com os
inconvenientes facilmente previsíveis. Ou então, um grupo de padioleiros
divisionários, modelo do Exército Francês, com um carrinho porta-padiola
empurrado à mão. Tudo isso mudou, foi deixado de lado e o ferido passou a ser
apanhado no Posto de Socorro do Batalhão por uma ambulância motorizada e
trazido para os órgãos de evacuação e triagem. Foi o que mudou completamente. 20

O general fala, ainda, que o Batalhão de Saúde era localizado na cidade de Marquês
Valença e que quando a unidade foi transferida para o Rio de Janeiro visando os treinamentos,
todos ficaram alojados no antigo jardim zoológico de Vila Isabel, para depois ser deslocado
para a Vila Militar. Sua Unidade era responsável para treinar todos os militares envolvidos no
serviço de saúde, não só dos hospitais de guerra, como também das unidades do front. O
general, ao citar o clássico filme de 1930 de Lewis Miliestone, exemplifica bem a forma de
prestar o apoio em saúde no modelo francês, em que cavalos e a força humana eram usados e
não viaturas militares. A forma de atuação mais móvel e agressiva da 2ª Guerra fez surgir a
necessidade destas mudanças.
Já Zé Lopes tinha por missão principal, matar a fome dos brasileiros em campanha,
para isso teve que aprender a cozinhar de acordo com o material oferecido pelos americanos,
e para atender o paladar dos brasileiros:

Como é que foi o treinamento? o senhor treinou como cozinheiro?


Não..eu fui aprender no Rio, inclusive nós tivemos instrução de um americano,
como procedia na alimentação lá. Mandavam pôr o açúcar no feijão, (o americano
______________
20 - História Oral do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2001. Tomo I. p. 83.
mandava?) mandava! (ele falava português?) ele falava um pouco português,
então mandava pôr o açúcar no feijão que era pra dar caloria, que lá era muito frio,
a neve lá ficava dessa altura assim de um dia pro outro, ele mandava colocar açúcar
no feijão. (o senhor chegava a falar que o brasileiro não gostava?) não, mas
enquanto ele estava presente o que nós fizemos, instrução aqui no Rio, e lá
também, nos primeiros dias, tivemos também americanos conosco instruindo,
enquanto ele estava ali, nós punha açúcar, virou as costas punha sal.. aí continuou
sal o mesmo tempo.
E esse treinamento no Rio usava o material que iria ser fornecido pelo
americano, ou usava o nosso material? nossos legumes..
Não, era a mesma coisa, era a mesma coisa, recebia todo o dia, Evaristo era o
aprovisionador, era o que, entregava tudo no carro, no caminhão. (eu falo no
treinamento no Brasil, como era o material que vocês usavam?) era o mesmo
que a gente se alimenta, normal. arroz, feijão, frango...legume, couve, tal, essas
coisas. (aceitavam bem a comida?) aceitavam.
Vocês colocavam açúcar no feijão, mas no treinamento vocês não colocavam
açúcar no feijão?
Não! comida normal. (eles só ensinavam, mas não viam se estava sendo feito?!)
é só, e...de formas que foi assim.
E quando chegou à Itália o senhor teve o treinamento?
Outro treinamento, aí mandou..que aqui a gente pôs sal...(chegando lá não teve
jeito) lá por causa da neve, do frio, aí põe açúcar no feijão, (mas o pessoal
comia?) não gostava não. Aí ele deixou a gente, abandonou a gente ..vamos pôr
sal, porque tinha tudo, tinha sal, tinha tudo, igual aqui. 21

O treinamento do cozinheiro, tão pouco falado nas crônicas de guerra, ficava


concentrado na confecção da comida que normalmente era fornecida ao homem brasileiro,
neste ponto, o elemento cultural foi respeitado pelo instrutor americano, já que procuravam
utilizar os mesmos produtos nacionais. Quando, no entanto, é ensinado que se deve colocar
açúcar no tradicional feijão brasileiro, com a intenção de proporcionar um maior grau de
calorias ao homem, não há cumprimento do dever e paladar militar que aceite tal fato. Mais à
frente veremos que na viagem, embarcados em navio dos EUA, alguns brasileiros
estranharam a comida agridoce americana, mas não sabiam qual a razão disto.

_________________
21 – Depoimento [Abr. 2008].
Fot 13 -Escola de Arte Culinária. Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Acesso em:15 Set 2005.

Ainda sobre a comida, faltou ensinar ao brasileiro como é o consumo das rações
enlatadas de guerra que iriam utilizar nos combates. Algo que nem mesmo os militares mais
antigos conheciam, e que foi surpresa quando no desembarque na Europa.
Senna Campos expôs os problemas administrativos que afetaram a execução de um
melhor treinamento brasileiro. Segundo ele relatou:

O tempo curto trouxe, em conseqüência, a balbúrdia na confecção e entrega dos


uniformes, pois a apresentação dos oficiais, nem sempre ordenadamente,
perturbava o serviço. Às vezes os uniformes não correspondiam ao desejo de uma
apresentação correta e muito menos impecável. Os modelos, por vezes, não
obedeciam ao que estava estipulado e as cores das fazendas variavam de fabricante
para fabricante.
(...) os preparativos da tropa seguiram em ritmo irregular, porque não eram
conhecidas, com exatidão, a data da partida nem, tampouco, a composição dos
escalões, condicionada à capacidade dos transportes. 22

As memórias de guerra de Senna Campos, bem como de alguns oficiais mais


graduados da FEB, como as de Lima Brayner, se coadunam com a visão dos nossos mais
humildes colaboradores. A questão do uniforme será ainda analisada, pois foi motivo de
mágoas e vexames para os militares, quando já na Europa, onde nada mais podia ser feito.
O General Mascarenhas de Moraes em “A FEB pelo seu comandante”, reflete suas
memórias pessoais e observações contidas no seu Relatório Final sobre a missão. Este
documento foi chancelado como secreto durante vários anos, sendo restrito seu manuseio
_________________
22 - CAMPOS, Senna. Op. Cit. p. 47.
durante esse período. Mascarenhas de Moraes foi considerado como um militar disciplinado e
introvertido, porém com atitudes sérias e sinceras. Suas observações sobre os problemas de
adestramento e preparação do homem para a Guerra, não escondem a verdade, mas tornam
pequenas as dificuldades diante à comparação com a vitória dos expedicionários e dos aliados
em terreno inimigo.
Em seu Relatório Final é possível entender a dimensão dos problemas vividos pela
FEB aos olhos de seu mais graduado oficial. Neste documento ele pôde realmente exprimir
para os seus chefes, os pontos negativos de toda a campanha. Para o grande público, porém, o
acesso às suas observações foi reduzido ao seu livro, que por ser uma obra seletiva e
“diplomática”, torna-se superficial. Em sua obra, o General relatou:

Tudo então se processava lentamente na organização e na preparação da tropa


expedicionária, com alternativas de entusiasmo e desânimo, como que a reclamar
um sopro de uma vontade.
Mesmo assim, demo-nos por mui bem recompensados quando verificamos a ordem
e a disciplina com que os nossos expedicionários partiram do Brasil, atravessaram
o Atlântico e desembarcaram na Itália. 23

A maneira quase pendular com que escreve sua visão sobre a FEB é observada nestas
duas transcrições. Primeiro o General fala do desânimo de alguns e logo após, exalta a ordem
e disciplina de seus comandados. No trecho a seguir, procura valorizar os seus chefes
subordinados e responsabilizar as dificuldades materiais pelos problemas, ressaltando, porém,
que já fora planejado uma fase de instrução na Zona de Guerra, como que deixando claro que
o que houve de errado no Brasil não teria a devida importância:

Mau grado a actividade dos chefes expedicionários, nos diferentes escalões da


hierarquia militar, a escassez de armamento e outros materiais de guerra
entorpeceu a obtenção de um nível alto de adestramento, particularmente na
instrução táctica. Ademais, no próprio ciclo do “desenvolvimento geral de
instrução” existia a previsão de um período final, que seria realizado no próprio
teatro de guerra, o que possibilitaria melhor lucro no adestramento táctico das
unidades.24

Observando-se pela visão de um outro febiano que esteve nos baixos escalões da
Força, encontramos referências elogiosas ao treinamento feito no Brasil, como é o caso do
General Sebastião José Ramos de Castro, tenente de Cavalaria à época do conflito, em que
afirma que o treinamento foi eficaz e o tratamento dispensado aos seus homens foi muito
bom:
______________
23 – Moraes, João Baptista Mascarenhas de. Op. Cit. p. 11.
24 - Ibdem.
Havia também necessidade de familiarizar-se com o emprego de viaturas,
especialmente com o carro de reconhecimento blindado M-8, que equipava o
Esquadrão de Reconhecimento. A instrução iniciava às sete horas da manhã e
prolongava-se diariamente até às 23h. Era efetuada uma intensa prática de
patrulhamento em viaturas e a pé, de dia e à noite, e tínhamos o assessoramento de
um major do Exército dos Estados Unidos.
(..) podemos afirmar que foi eficaz o treinamento, porque todos os elementos que
recompletaram o esquadrão foram muito bem recebidos. 25

O caso deste oficial é peculiar, pois a sua área de atuação, a Cavalaria, foi uma das que
mais inovações tecnológicas receberam. Do uso do cavalo, passaram a empregar um blindado
de aço, tornando-a mais apta a sobreviver em um campo de batalha que utilizava armamentos
mais letais e precisos e tornando-a mais ágil, para acompanhar a nova guerra de movimento
que surgiu desde a Guerra Civil Espanhola, e que era bem exemplificada pela Blitzkrieg
alemã.
Da mesma área que o General Castro, o tenente José Conrado de Souza, 3º sargento
àquela época, serviu no Depósito de Pessoal, fez outras afirmações:

O nosso preparo no Brasil foi, basicamente, treinamento fisico. Muito pouco de


preparação psicológica. Naquele tempo não havia psicólogo no Exército.
Aproveitavam alguns oficiais que tinham conhecimento do assunto e, então, eles
nos orientavam. Lembro que quando eu estava no Esquadrão ficamos um mês
fazendo treinamento físico. Entrávamos em forma, corríamos, nadávamos,
treinávamos defesa pessoal, voltávamos para o acampamento, comíamos e
dormíamos. Assim era nossa vida.
Depois o Esquadrão saiu e foi para o Morro do Capistrano e nos instalamos num
galpão enorme com beliches, sanitários, etc. Ficamos muito mal
acomodados. A instrução era igual à do quartel. Para mim, especificamente, muito
pouco foi ensinado. Eu sei que alguns tiveram instrução mais adequada, mas eu
não. Eu era sargento e achavam que, por ter cursado a Escola de Motomecanização,
já conhecia o armamento que iríamos usar na guerra. Armamento que acabei não
usando porque eu fui para o setor de transporte. O que sabíamos transmitíamos aos
soldados em nossas instruções. Havia um ou dois sargentos americanos que nos
ajudavam. Mas só aqueles que possuíam algum conhecimento de inglês é que
tinham capacidade para entender. Eu lembro, por exemplo, da palavra click. Nós
sabíamos que para regular a alça de mira da arma dava-se dois, três ou quatro
clicks. Mas não sabíamos o que era click. O americano foi quem nos ensinou isso.
Ali nós ficamos cuidando das viaturas e ministrando instrução. Eu tenho lembrança
ainda de que nós passávamos, uns para os outros, a animação de ir para a guerra. É
da minha geração. Como já disse, uma geração de machismo, uma geração que,
necessariamente, teria que fazer a guerra.26

O depoimento de José Conrado é um reforço à questão de que o treinamento feito no


______________
25 - História Oral do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2001. Tomo I. p. 83.
26- História Oral do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2001. Tomo I. p. 83.
Brasil tinha mais por objetivo em reunir um grande contingente de homens, de diversas
localidades do Brasil, mostra-lhes algo de novo que iriam conhecer melhor na Guerra,
prepara-lhes fisicamente para as dificuldades que seriam enfrentadas e mostrar a todos,
inclusive a população e os governantes, que a FEB estava entrando em condições de ir ao
conflito. Alguns tiveram melhor instrução do que outros, alguns foram melhor orientados e
comandados do que outros, não foi possível, ao se analisar os depoimentos transcritos e
observados, que houvesse um nivelamento entre todos os integrantes da Força, o que teria
sido o ideal. A estrutura do Exército de então, e a infra-estrutura dele disponível afinal,
dificultaram, realmente, uma melhor preparação dos homens.
Alguns não tiveram tantos problemas no treinamento, já que não tiveram nenhum, o
Raimundo Nonato foi um deles:

O senhor teve algum treinamento?


Nada, nada. Não sabia nada.
E como fez para desempenhar a função de cabo?
Não estou desmerecendo o pessoal não, mas 40% era analfabeto, gente do interior,
da roça, o nível do nosso soldado era baixíssimo, não era verdade? até os oficiais...
na minha companhia tinha dois do CPOR.... um era dentista e outro foi sargento,
esse se acovardou e o Fonseca assumiu o comando e foi promovido de terceiro
sargento à 2º tenente. Fonseca... tomou conta de um pelotão na guerra, o cara se
acovardou. 27

Por maior que fosse o esforço de todos os oficiais e graduados da FEB, inclusive os
militares americanos enviados para auxiliar nos treinamentos, não foram bons os
resultados que almejavam para que a tropa estivesse realmente pronta para combater.
Mascarenhas de Moraes argumentou que a instrução no TO da Itália já estava prevista para
corrigir os erros do que havia sido feito no Brasil, mas admitiu a preocupação pelo fraco
desempenho da maioria dos homens. Pouco foi feito para entender a nova doutrina americana
e para que abandonassem a decadente doutrina francesa, o brasileiro teria que demonstrar sua
adaptabilidade em outro país, fazer de maneira mais eficaz e rápido o que não foi feito em
mais de um ano de formação da FEB e de mais de seis meses em que todos estavam reunidos
no Rio de Janeiro. O desafio tornou-se maior, mas era a hora de superação de cada um. A
Guerra, enfim ,estava próxima.

________________
27 – Depoimento [2006].
3.2 A Hora chegou: o embarque

A convivência já duradoura entre os militares da Força Expedicionária e os habitantes


da então Capital Federal começou, a partir de determinado momento, a criar uma descrença
em relação a uma participação efetiva daqueles homens na 2ª Guerra, onde quer que a Força
pudesse ser empregada. Eram já pelo menos seis meses de treinamentos “intensivos”, desfiles
de tropas formadas e discursos efusivos aclamando nossos batalhões que iriam defender a
Pátria ultrajada. A Guerra, porém, estava a cada dia mais distante do sentimento de cada
brasileiro. Os afundamentos, felizmente, acabaram desde outubro de 194328, o perigo, para
cada brasileiro comum, estava muito longe: nos teatros de guerra da Europa e da Ásia. O final
dos combates, no entanto, que ainda assim eram muito duros e propagadores de muita
destruição, não era mais algo tão distante, para isso demonstravam as vacilantes atuações das
tropas nazistas. Mas o tempo corria contra a preparação da FEB, e a presença brasileira
poderia ser novamente, como foi na 1ª Guerra Mundial, apenas no papel com uma declaração
formal de estado de guerra. Naquela oportunidade, houve o envio de uma flotilha, que foi
esmagada pela gripe espanhola.
Foi aí que provavelmente tenha surgido a expressão jocosa: é mais fácil uma cobra
fumar, que a FEB embarcar. Não se sabe com certeza a origem desta frase, para o veterano
Joaquim Silveira, a frase foi lançada por elementos da 5ª Coluna com o intuito de
desmoralizar a tropa29. A 5ª Coluna eram todos aqueles considerados simpatizantes do Eixo e
contrários ao alinhamento brasileiro com os países aliados. A origem mais provável da cobra
fumando, segundo o autor, era uma analogia de uma propaganda comercial de casa lotérica
carioca que dizia o seguinte: “é mais fácil um burro voar do que a Esquina da Sorte falhar”. A
propaganda foi difundida justamente na época de formação da FEB, e devido sua
popularidade, foi utilizada pelos simpatizantes do Eixo.
Alguns outros veteranos falaram que a origem da frase, seria sobre a história de um
soldado brasileiro que ao executar seu serviço de sentinela na FEB foi pego por um sargento
fumando um cigarro. Surpreendido, ele jogou o seu cigarro no chão. O sargento teria visto o
brilho da brasa do cigarro aceso e interpelado o soldado que o teria respondido que era apenas
uma cobra fumando no mato.
No jornal Diário Mercantil foi feita uma referência que o significado de “a cobra está
fumando” seria “a fúria do inferno desencadou-se”30 expressão já existente no Brasil,
______________
28 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op. Cit. p 56.
29 – SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 124.
segundo o Diário. E caía bem ao gosto daqueles que amavam expressões fortes típicas do
jargão militar.
Outra versão, e bem mais verossímil, foi criada pelos febianos paulistas, que sempre
que podiam viajavam para visitar seus parentes em São Paulo. Nesta versão, diz-se que a
cobra fumando se refere a um trem puxado por uma locomotiva a carvão, a famosa “Maria-
fumaça”, que ao serpentear nos trilhos e curvas entre o Rio de Janeiro e a cidade de São
Paulo, se assemelhava a uma cobra com a fumaça saindo por sua boca31. Independente da
origem ou até o significado, a provocação evoluiu para uma gozação do povo carioca
quanto ao provável rumo da FEB. Alguns militares já achavam que não seguiriam para a
Guerra, tamanha era a demora, outros, no entanto, viam seu destino lutando por seu País,
como relatou o José Maria:

(...) ali, naqueles treinamentos do Rio de Janeiro, que a gente já tinha uma
proximidade maior com as comunicações, por causa dos jornais, no Rio de Janeiro
existia um número grande de jornais. Então era fácil a gente ter acesso às notícias
de guerra. Era comum toda sessão de cinema passava, a gente chamava, era o
próprio título, era um jornal cinematográfico, digamos assim, 70% do noticiário era
sobre a guerra, das mais variadas frentes, então não tinha como, a gente “ah, não
vai acontecer nada”, não tinha como, porque a freqüência dos exames sanitários
era muito grande, toda semana, quinze dias, é... os exames de saúde completos,
mais uma aplicação de uma vacina, não tinha como... ‘ah! não vai, isso é conversa
fiada.’ A intensificação dos exercícios físicos, e.... graças a Deus aconteceu, mas
não sei porquê, nós do morteiro éramos muito acionados. então a gente tá sempre
fazendo exercícios e.... sem desfazer das outras companhias de petrechos, nem
desfazer dos outros pelotões de petrechos, o nosso pelotão era muito rápido, volta e
meia a gente fazia exibição. Fizemos uma exibição de tiro real no Gericinó, no Rio
de Janeiro, e a carga da granada estava com defeito e a gente viu direitinho a
granada subindo, passou por cima do palanque, sorte nossa caiu dentro de um brejo
e não explodiu, mas mesmo assim veio um major, com um sargento e dois
soldados segurança, e arrumou uma confusão: ‘major, tá aqui. quem pediu os tiros,
tá lá anotado, faz a conta lá e faz a conta aqui major.” assim com respeito, mas com
este
tipo de conversa, ‘aqui não foi à toa que nós fomos chamados para fazer isso. é
dada a nossa experiência’. Isso quem falou fui eu. Não foi o sargento da seção não,
fui eu. ‘Estamos interessados em fazer o melhor’. Ele concordou e...não aconteceu
nada de mais grave e ele foi embora. São coisas incompreensíveis, hoje quando eu
lembro desta história, se aquela granada cai em cima do palanque, tinha feito uma
‘lenha’, Estado Maior do Exército, adidos militares... da França.....não tinha
proteção nenhuma, nenhuma....32

______________
30 – Diário Mercantil. Juiz de Fora. 21 Out 1944. p. 1.
31 - História Oral do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2001. Tomo VI. p. 65.
32 – Depoimento [Dez. 2007].
Fot14-Símbolo oficial da FEB. Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Acesso em:15 Set 2005.

A explicação da origem da frase a cobra vai fumar é tão singular que permaneceu viva
na cultura brasileira, bem como o próprio símbolo dentre as Unidades do Exército. Quem já
não disse que em um momento de fúria a cobra vai fumar, para afirmar que uma atitude
enérgica será tomada? O próprio General Mark Clark, comandante do V Exército Americano,
quando da chegada dos Brasileiros na Itália, incentivou a criação de um símbolo que
identificasse a tropa, substituindo assim a bandeira nacional que era costurada no braço
esquerdo33. Foi adotada, então, a figura da cobra fumando um cachimbo. Logo após a
extinção da FEB, tornou-se comum a adoção de emblemas nas organizações militares do País,
várias Unidades criaram seus distintivos que as caracterizavam, e que possuem a inspiração
nos modelos que os americanos adotavam no uniforme. A figura de uma cobra comum em
posição de ataque com um cachimbo na boca, foi de uma simplicidade genial, pois era
facilmente identificada e não requeria maiores elaborações em sua confecção para o
uniforme dos febianos, já que todas foram feitas no Brasil e enviadas para a Itália.
Walt Disney, criador de personagens como Mickey Mouse e Pato Donald, também
criou a sua versão para a cobra fumando da FEB, dentro da aproximação cultural Brasil-
EUA34. Versão que não “pegou”, por ser considerada por demais agressiva. Mesmo após
tantos anos, a cobra fumando cachimbo da extinta FEB é a mais conhecida dentre as tropas já
existentes.

______________
33 - CAMPOS, Senna. Op. Cit. p. 95 a 98.
34 – O Globo Expedicionário. Rio de Janeiro. 22 de fevereiro de 1945. p 1.
Fot 15 - Símbolo da FEB, por Walt Disney. SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 18.
Na fase final dos treinamentos, a tropa não sabia que o destino da FEB era a partida
para a Europa, somente o Alto Escalão do Exército e autoridades do Governo sabiam o dia do
embarque, como seria feito, qual seria o meio de transporte, enfim, de que forma seria
executada a viagem de mais de 25 mil homens através de um mar ainda infestado de
submarinos inimigos.
O Comando logístico da FEB trabalhava para assegurar que nada faltaria para que os
homens chegassem em boas condições de combate no seu destino. Senna Campos afirma que
havia sido definido, após a observação nos campos africanos, que várias medidas
administrativas deveriam ocorrer durante o treinamento e na preparação para o embarque,
como: marcação de veículos automóveis, marcação de caixotes e fardos, marcação de
bagagem individual, numeração de oficiais e praças, organização de bases brasileiras, aqui e
no exterior, organização de cantinas, para funcionarem, junto às bases e à tropa, organização
de um cardápio próprio, e sugestões sobre uniformes e outras medidas para providenciar o
embarque35.
Em 24 de maio de 1944 - data significativa para o Exército àquela época, por se tratar
do aniversário da Batalha do Tuiutí, ocorrida na Guerra do Paraguai e até hoje a maior batalha
campal da América do Sul - a FEB desfilou no centro do Rio de Janeiro como uma tropa já
formada e treinada dentro dos moldes americanos, e dando o seu recado que estava pronta
para partir. O então Presidente Getúlio Vargas fez a despedida oficial afirmando que “a
________________
35 - CAMPOS, Senna. Op. Cit. p. 57.
esperança e a fé do Brasil no feliz desenlace da nobre missão que a conduziria aos campos
de batalha do Velho Mundo” 36. Mesmo com o tom emotivo e oficial de despedida, levaria
mais um mês para que a Força partisse para a Guerra.

Fot 16 - Formatura da FEB no centro do Rio de Janeiro. Disponível


em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em:15 Set 2005.

Enquanto isso, os homens permaneciam em treinamento, agora já com o material de


uso próprio pronto para embarcar e com inúmeras formaturas para acerto e contagem de
efetivo. Ruy observou desta forma as atividades que antecediam a partida de seus homens:

(...) O toque de “formatura” paralizava (sic) toda e qualquer atividade; mal


terminavam os últimos acordes e todos, de onde estivessem, deveriam correr em
acelerado, para o local de reunião da respectiva sub-unidade e entrar em forma. De
início as formaturas se limitavam a conferir os efetivos, constantemente alterados
pelas baixas aos hospitais, pelas exclusões por incapacidade física, por deserções,
por transferências dos arrimos e dos apadrinhados....Depois vieram as formaturas
para as vacinas, inspeções de saúde com juntas médicas brasileiras, depois com
americanas, depois juntas mistas. A seguir, formava-se para conferência das placas
de identidade e para distribuição dos cordões para pendurar as ditas placas...
Mas o pior ainda estava por vir: formaturas para revista do material dos sacos A e
B; de acordo com as instruções elaboradas, o saco A estava com o pracinha, assim
como a concha para o caramujo: grudado às suas costas com roupas, material e
objetos de utilização imediata e permanente. Já o saco B deveria ser guardado o
restante das roupas e do material que não fosse de uso imediato. Essa revista do
material e equipamento era tão importante que, pela 3ª seção do regimento, foi
expedido um documento denominado “ ARRANJO DO EQUIPAMENTO” que

_______________
36 - Moraes, João Baptista Mascarenhas de. Op. Cit. p. 32.
além de instruções detalhadas para o arranjo, trazia no verso um croquis mal feito
– da posição em que deveríamos arrumar cada peça de roupa, o armamento e o
equipamento para a inspeção do embarque, tudo com base no manual americano
FM 21-15. 37

As verificações dos sacos A e B e das plaquetas de identidade foram os maiores sinais


que a partida estava próxima, fato que somente alguns poucos sabiam, mas que foram
executadas a partir dos ensinamentos colhidos no exterior. O saco A, como bem explicou
Ruy, continha todo o material de uso imediato do febiano.
Quando, finalmente, no início de julho de 1944 - 01 (um) mês após ter acontecido a
maior ofensiva militar de todos os tempos, A Invasão da Normandia - o caminho da FEB para
os combates dava seu primeiro passo, com o embarque dos primeiros cinco mil homens que
seguiriam para o conflito, no navio de transporte de tropas US General Mann. Geraldo
Teixeira Rodrigues, mineiro nascido no dia 24 de junho de 1923, na cidade de Além Paraíba,
sargento do 11º RI, embarcou no 1º escalão com o 6º RI para completar o efetivo previsto no
navio, dias depois, foi-lhe determinado que integrasse o único Pelotão de Sepultamento da
FEB. Geraldo assim nos relatou a sua experiência:

(...) O capitão virou e nos disse: “vocês podem ir para o Rio, procurem cartório,
façam procuração de herdeiro para Pai e Mãe e às 0400 horas (da tarde) eu vou
colocar vocês em forma”.
Não faltou um às 0400 horas da tarde, isso foi no dia 29 de junho. Fomos ao
rancho e às 0900 horas, entramos em forma com o saco A. Descemos
o Capistrano, entramos no 1º RI, entramos numa composição hermeticamente
fechada, não podia abrir nenhuma janela. Quando foi meia-noite chegamos no
porto, ninguém sabia nada. Chegamos na Praça Mauá. Em frente aquele baita
navio, era o General Mann.
Fomos a última tropa e entrar, fiquei em um compartimento de 24 homens, oito
beliches.
Uma parte do 11º RI foi para o Recreio dos Bandeirantes, ficou no Capistrano só
quem ia embarcar: 01 pelotão de morteiro pesado, a metade de uma companhia de
fuzileiros, a companhia de obuses. Entramos no navio e ficamos até o dia 02 de
julho e aí é que ele zarpou. Éramos 5054 soldados naquele navio. 38

______________
37 - Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
38 – Depoimento [Dez. 2004].
Fot 17 - Geraldo Rodrigues . Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB –
Seção Juiz de Fora.

Geraldo, testemunha do que aconteceu naquele embarque da 1ª e única tropa latino-


americana a deslocar-se para os combates na Europa, parecia saber que não bastava falar qual
dia foi o embarque e que era um navio o meio de transporte ou que ele estava lá,
simplesmente. Naquele momento o Geraldo de 1944 procurou estar atento a tudo que
lhe passava aos olhos e também aos ouvidos, sem perder nenhum detalhe daquele fato que se
tornaria histórico para o País, mas que para ele já era inesquecível. Quando o entrevistei, não
havia até então falado com um historiador sobre sua história. Apenas amigos e familiares
tiveram essa oportunidade. Ele não sabia exatamente o que eu lhe perguntaria, não se
preparou antecipadamente para revirar a sua memória, deixou apenas as coisas acontecerem.
No começo da entrevista emocionou-se e, após, procurou lembrar com o máximo de detalhes
sobre os dias mais importantes de sua passagem pela Guerra. Do depoimento acima,
constatamos afirmações que dificilmente poderemos obter provas por meio de cruzamentos de
informações oficiais ou até outros depoimentos. Mas aí vem a pergunta: precisaríamos
realmente de provas para isso?
Geraldo viaja no tempo para narrar como foi aquele dia. As palavras de recomendação
de seu capitão, os horários mais importantes, a visão noturna da praça Mauá, o
deslumbramento diante do navio de transporte de tropas General Mann, quantos beliches
possuía o compartimento, quem embarcou e, exatamente, quantos homens ocupavam a nave.
Outras fontes podem comprovar o que Geraldo nos disse, vários livros e outros depoimentos
dizem como foi o embarque das primeiras tropas, cada qual com um detalhe a menos ou a
mais. Raramente teremos pelo menos duas visões iguais, pois cada homem viu o que
acontecia ao seu redor segundo suas próprias crenças, segundo sua capacidade intelectual, suas
redes de amizades, seus interesses, suas convicções... Para o nosso colaborador, que foi um
dos 5 mil homens que embarcaram primeiro para a Guerra, quando ainda a partida era incerta,
quando o dia e o local eram incertos, fazendo com que todos os acontecimentos fossem uma
novidade para os olhos e para os corações, diferentemente dos escalões de viagem que vierem
depois, no total de cinco, pois muitas informações já eram de conhecimento do País, por meio
das notícias da imprensa. Para o senhor Geraldo, o dia 29 de junho de 1944, aconteceu
exatamente da forma descrita acima.

Fot 18 - USS General Mann.


Disponível em www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Acesso em:15 Set 2005.

O navio norte-americano de transporte de tropas General W. A. Mann era considerado


uma das fortalezas de uma frota de seis navios, tinha a capacidade de transportar mais de 6000
homens de uma só vez, possuía defesa própria com artilharia, radares modernos e grande
capacidade de velocidade em alto-mar, atingindo a marca de 28 milhas horárias, o que
facilitaria a sua fuga de possíveis submarinos39. Apesar disto, a viagem da FEB foi escoltada
por navios de guerra do Brasil, substituídos depois pelos norte-americanos.
A utilização de navios nacionais no transporte da tropa brasileira foi tratada como uma
possibilidade por parte do Comando da FEB, o que representaria uma vitória das Forças
Armadas do Brasil, já tão dependentes dos americanos. Pensava-se em utilizar navios do
_______________
39 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 59.
Lóide Brasileiro, da Costeira e da Companhia Comércio e Navegação. Os comandantes da
FEB, no entanto, não sabiam que desde maio de 1942, no acordo de cooperação entre Brasil e
EUA, para casos como este, já havia sido acertado que o transporte seria dos americanos.
Anos depois isso gerou a crítica de Lima Brayner:

(...) hoje, meditando friamente sobre o transcurso daqueles fatos, tenho a impressão
de que, naquele regime de ditadura, em que os interesses giravam
em torno de um individualismo chocante e desastroso, a FEB nunca foi realmente
levada a sério, a não ser pelo seu Comandante e pelo seu Estado-Maior. Mais de
uma vez alertei Mascarenhas para este verdade. 40

O desabafo de Lima Brayner atingia não somente o ex-presidente Getúlio Vargas,


como também o então chefe do Estado-Maior do Exército, o general Góes Monteiro. Este que
foi um simpatizante do Eixo e quem menos proporcionou as condições necessárias aos oficiais
da FEB para o sucesso nas fases que antecediam a ação nos combates.
Ademais as idealizações patrióticas do Comando da FEB em usar navios nacionais
para levar os soldados para a Grande Guerra, isto não deixaria de ser uma decisão arriscada,
pois 31 navios da Marinha Mercante foram afundados pelos alemães, o que se tornou um
grande desfalque para uma já modesta frota. O que sobrou, no que se refere aos navios de
passageiros, 70% levariam no máximo 10000 homens para a Europa, com isso cada viagem,
ida e volta, levaria 42 dias, pois os navios eram lentos. Teria que ser formado um imenso
comboio de 18 embarcações, o que dificultaria a segurança por parte da Marinha, gastando-se
quatro meses de viagens ininterruptas para que os 25.445 integrantes da Força fossem todos
transportados41. Recorrer aos americanos, mais do que uma necessidade, foi a única saída para
que a participação dos brasileiros fosse garantida.
No 1º escalão no qual embarcou Geraldo, estava todo o Comando da FEB e
basicamente o 6º RI; parte do 11º RI; o II grupo do 1º Regimento de Obuses Auto-
rebocados/105 e frações de cada elementos de apoio, como o 9º Batalhão de Engenharia, seção
de suprimento, seções de apoio em saúde, de manutenção e de Polícia Militar do Exército 42.
Tudo para que fosse dado o mínimo de apoio a esta parcela da FEB que chegaria primeiro em
seu destino. Lima Brayner, diferentemente de Geraldo, aponta que 4834 homens embarcaram
naquele dia.
O embarque, como destacado por Geraldo, foi cercado de sigilo. Os homens se
preparavam para o que seria um treinamento para o embarque. Foram formados três grupame-
_______________
40 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 73.
41 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op. Cit. p.159.
ntos com toda a FEB. O 1º grupamento, formado basicamente pelo 1º RI, foi deslocado, via
ferrovia, para o bairro de Santa Cruz; o 3º grupamento, do 11º RI, seguiu para a região do
Recreio dos Bandeirantes, onde acampou. Por fim o 2º grupamento do 6º RI, que foi
informado que seguiria para Nova Iguaçu, desembarcou por volta das 20 horas, no porto do
Rio de Janeiro. O deslocamento foi todo feito como descreveu Geraldo: janelas fechadas e
cortinas abaixadas, não houve paradas, ninguém pôde descer dos trens e não houve
despedidas.
No porto, Lima Brayner era o chefe de desembarque dos trens, cabia a ele coordenar
todas as ações para que, rapidamente, todos os 5 mil homens estivesse a bordo do navio. Foi
feito um planejamento para a atividade de embarque e o sigilo era o objetivo principal;
poucos que estavam no local sabiam do que se tratava, e não era pouca gente que trabalhava
naquela área: tropas de fuzileiros navais guardavam a área de embarque e 600 homens do 6º
RI já tinham feito um reconhecimento no navio dois dias antes, para estudar o seu ambiente e
determinar onde ficaria cada fração. Ninguém podia sair ou entrar sem autorização, o que
levou a um incidente com um cidadão português que, inadvertidamente, havia avançado por
sobre as barricadas e teve o carro metralhado, sem conseqüências para a sua vida43. Lima
Brayner e o General Mascarenhas, mesmo anos depois, entenderam que este sigilo foi
necessário, pensando na segurança da tropa, pois temiam que poderia haver ações de
sabotagem contra o embarque da FEB. Os próprios chefes assinalaram que não puderam se
despedir de seus familiares como deveriam, pois era dever deles não informar do embarque,
ainda que concordassem que “faltou a emoção da despedida”44 para àqueles que talvez nunca
retornassem.
Analisando este atitude, ficamos em dúvida se realmente isto era necessário, pois
afinal, já havia sido feito um grande desfile de despedida com a FEB; depois era de se
estranhar um imenso navio de transporte americano no porto, sem que motivos houvesse; 600
homens já tinham ido reconhecer o General Mann; e o que foi pior...o embarque foi em 30 de
junho de 1944, mas a partida só ocorreu em 02 de julho, ou seja, todos já sabiam que
brasileiros partiam para a Guerra45.
Lamentável também foi a visão que os brasileiros embarcados tiveram dos marinheiros
americanos sendo liberados para conhecer o Rio de Janeiro e voltarem altas horas, bêbados,
______________
42 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 167 a 169.
43 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 83.
44 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 80.
45 – Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
pelo porto, enquanto eles não puderam se despedir de seus familiares. Os americanos
“estavam saturados da guerra”, disse Brayner46.
Não houve desespero, lamentações ou insubordinações, segundo Brayner e
Mascarenhas, houve apenas duas faltas de militares, que foram constatadas pela sobra de dois
sacos A no chão do porto, ou seja, dois homens que fugiram na hora do embarque47. Houve
também, uma situação inversa, com um militar tentando embarcar sem estar previsto. Este
indivíduo só viajou no próximo escalão. Talvez este fosse o maior dos temores dos
comandantes da FEB: a deserção. Nas palavras dos chefes, enaltecendo o sigilo planejado, o
sucesso no embarque de tantos homens foi como uma surpresa para quem pensava que
pudesse haver resistências na tropa. Nada mal para uma tropa recém-formada e um “tapa-de-
luva” por parte de seus soldados.
Após a partida do 1º escalão, o Governo Brasileiro anunciou o cancelamento da
formação de mais duas Divisões de Infantaria Expedicionária 48, não havia mais tempo, pessoal
e recursos para isso. A FEB agora seria apenas uma única Divisão, que carregaria em seus
ombros os louros de um sucesso em terras distantes, que defenderia o orgulho ferido pelos
ataques aos seus navios, mas que também, seria a única responsável por um eventual

Fot 19 - Expedicionário embarcando, saco “A” na cabeça e violão na mão.


Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Acesso em:15 Set 2005.
_________________
46 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 86.
47 - CAMPOS, Senna. Op.Cit. p. 62.
48 - Boletim Reservado do Exército nº 12, de 25 de julho de 1944. p. 444.
vexame na Europa.
Ainda sobre o embarque, mas com o 2º escalão, ocorrido dois meses depois, os
mesmos procedimentos foram tomados, mesmo que parte da FEB já estivesse na Itália,
inclusive lutando desde o dia 16 de setembro de 1944. Ruy, que embarcou no General Meigs,
outro navio que veio apoiar o General Mann no transporte, assim relatou a sua experiência:

Como foi a expectativa do soldado ao embarcar para a Guerra? É verdade


que muitos não conheciam o mar?
Sim, muitos dos soldados nunca tinham visto o mar, antes da concentração da FEB
no Rio de Janeiro. Nós tínhamos idéia que o embarque estaria próximo e o soldado
encarou com muita tranqüilidade a espera pela viagem, o primeiro escalão já tinha
ido. Havia uma ansiedade que foi sendo controlada sem muitos problemas. Na
viagem o problema foi logo no embarque, pois recebemos no porto muito material
e ficava difícil levá-lo. Eu tive que apresentar o bilhete de embarque pendurado na
boca, pois minhas mãos estavam ocupadas levando as malas. Para subir no navio,
era uma rampa estreita em que íamos nos equilibrando até chegar no navio. Os
oficiais ocupavam um camarote e as praças ficavam em alojamentos nos
compartimento do navio, não tínhamos contato com eles durante a viagem. Nós
tirávamos serviço nos compartimentos e identificávamos possíveis alterações. Cada
camarote dos oficiais tinha um responsável, se o camarote não estivesse em boas
condições ele era chamado à atenção. Os camarotes tinham três colunas de
beliches, cada beliche com três camas. Eram então nove pessoas. Lá tinha ainda
uma pia e uns cabides para pendurar a roupa.
Quando estavam próximo de embarcar, tinha alguém que queria desistir?
Não, na hora você fica até eufórico, havia uma ansiedade, mas não era medo.
Quando saímos da Vila Militar no trem, criaram uma atmosfera ruim, fecharam as
janelas, aquilo não foi bom....não sei por que fecharam as janelas. Estava todo
mundo sabendo, aquilo das janelas deixou alguns com meio medrosos. Todo
mundo já sabia, era a segunda vez, os paisanos já sabiam. O trem entrou no cais do
porto, desembarcamos, separaram os oficiais as praças, entramos em coluna por
um e conforme fomos entrando recebíamos um tíquete do camarote.
Dos soldados não sei como foi porque não assisti. Havia um americano guiando o
pessoal, aquilo era um labirinto. Beliche, do lado de fora havia um gancho para
pendurar o equipamento. Nosso equipamento inclusive era o mesmo do Brasil, na
adaptação ao material americano é que recebemos outro. Na viagem éramos
obrigados a ter o cantil sempre cheio no equipamento. Utilizar o colete salva-vidas,
só tirávamos para dormir, usávamos de travesseiro, inclusive recomendavam não
fazer isso porque poderia aplainar e não flutuar.
Para o embarque não tínhamos onde colocar todo o material que recebemos,
segurei as malas com os dois braços, joguei nas costas e pendurei a carteira na
boca. A cama-rolo não dava para segurar, ela escorregava, o americano ainda
“pagou” um saco de dormir, mas só para aqueles que ficaram no buraco. Quem
pôde ficar, na Itália, em alguma casa, ficava neste saco. Você fechava e só deixava
o rosto do lado de fora.....mas se precisasse correr ele abria rápido49.

_______________
49 – Depoimento [Jul. 2005].
Fot 20 - Gen Meighs. Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Acesso em:15 Set 2005.

No depoimento de Ruy, comprova-se que os temores do Comando da


FEB em acontecerem deserções, a ponto de manter um sigilo exacerbado, não possibilitou a
transmissão das informações mais básicas para os seus subordinados. Atitude por demais
exagerada, ainda mais para os homens do 2º e 3º escalões, que saíram juntos do Rio de
Janeiro, a bordo do General Mann, com a tropa do 1º RI, e do General Meigs, com o 11º RI.
Não havia mais motivos para ocultar a partida, ainda mais, quando, nas palavras de Ruy, os
homens estavam tranqüilos com o seu destino. O medo veio com o clima de suspense em
fechar, novamente, as janelas dos vagões dos trens.
O embarque do 2º escalão foi diferente do 1º quanto ao recebimento de mais materiais
no porto, na hora de embarcar. Com as informações vindas da Europa e o tempo que foi mais
disponível, algum material distribuído para os homens no exterior, foi passado ainda no Brasil
para o 2º escalão. O que levou a se tornar cômica a entrada dos homens em uma pequena
ponte que levava ao navio. Não é difícil imaginar que além da dificuldade natural em conduzir
tanto material, havia a emoção, como disse Ruy, uma ansiedade, em partir para a guerra.
Guerra que se tornava real ao adentrarem no navio americano, descrito por muitos como
“gigantesco”. Visão que se tornará maior com o passar dos dias embarcados e que naquele
momento de impacto se materializa com a confirmação do gigantismo do próprio EUA como
potência e líder continental e mundial.
Este visão do soldado humilde e deslumbrado com o primeiro exemplo do poder
militar americano é ainda melhor assinalada com o relato de Zé Maria, que embarcou junto
com Ruy no General Meighs:

Como é que foi a viagem para lá, o senhor foi de navio, não é?
Navio, USS,.. não US General Meighs, o nome do navio, vou contar como foi o
embarque, e aí eu vou fazer uma crítica, uma crítica, conforme eu sempre falo é
uma crítica construtiva porque o senhor é um oficial do Exército de hoje, .......um
dia, ..uma dia, só nós que não sabíamos, mas o alto comando sabia, a data e o
horário do embarque, todo mundo sabia, ....Nossa senhora...eu também não sabia
nada, hoje eu fico refletindo sobre aquele passado, .......nós fizemos um desfile de
despedida, olha só o termo, ......despedida! da Força Expedicionária Brasileira, e
estava encaminhando, ou estava a caminho de uma participação do último período
da Segunda Guerra Mundial, nós fizemos um desfile de despedida na Avenida Rio
Branco...gente! Naquela época usava-se muito o termo: 5ª coluna. 5ª coluna era
todo aquele que não aceitava a entrada do Brasil na Guerra, e o 5ª coluna era
também considerado um elemento perigoso ...pela possibilidade de passar
informações estratégicas ou militares para o chamado inimigo, no caso Alemanha e
Itália. Nós fizemos um desfile de despedida, a imprensa publicou, um desfile de
despedida, então fico pensando, gente, onde nós brasileiros estávamos com a
cabeça que fizemos isso, agora pra completar isso. Tô falando eu, meu trem de
transporte, o vagão onde eu estava dentro dele, nós saímos da vila militar no vagão
da central do Brasil, vagão de passageiro, aqueles vagões antigos né!? .....com
todas as janelas fechadas não me pergunta porque não, porque se perguntar eu vou
falar, com as janelas fechadas para ....dar a certeza do sigilo no embarque....para a
frente italiana.....e dois antes nós tínhamos feito o desfile de despedida .. um calor
desgraçado dentro dos vagões, e tudo fechado até dentro do cais do porto e do lado
de fora do cais do porto tá assim de curiosos ...assistindo.. o embarque da
gente...armazém 10, armazém 10, muitos anos depois alguém colocou um tabuleta
lá, ..um cartaz né?!, ...com dizeres né ?!: “por aqui passou a Força Expedicionária
Brasileira”, um negócio assim. Gente...é...eu gosto de contar isso porque é incrível,
é incrível. Pois bem, então conforme eu já estava falando vou continuar, o ....na
ida, na ida, nós embarcamos da seguinte forma: o 3º batalhão...o 11 RI foi o
primeiro a embarcar, também da seguinte forma: 1ª companhia embarcada,
companhia de petrechos pesados, certo!? e na companhia de petrechos os primeiros
homens a embarcar foram os componentes do pelotão de morteiro, então, os nossos
alojamentos foram abaixo do nível da água, compartimento c402 l, lá mesmo no
fundo do navio e depois aí veio 9ª , 8ª, 7ª , comando, não é?! Então nós fomos lá
embaixo, ....já na volta foi ao contrário, nós fomos os últimos a embarcar, então
nós viemos em cima e durante a volta a gente, inteiramente livres por que não tinha
mais guerra, tinha o perigo de minas, mas de ataque aéreo, submarino não tinha
mais. Então de lá prá cá não descia do convés do navio pra nada, a não ser pra ir
tomar um banho ou qualquer coisa no alojamento, né, não saía.... cabia todo
mundo no convés do navio? Nossa senhora, era um navio enorme. Foi o General
Meigs de novo? Engraçado, ida e volta.. Um navio de capacidade prá 5000
homens, fora a tripulação que devia ser mais de 800. Nossa senhora era grande
demais, então esse foi nosso embarque. Agora dentro do navio muita ansiedade...
Ansiedade, quando eu menciono ansiedade, eu quero dizer disfarçadamente um
receio, talvez até um medo pelo desconhecido, aquela imensidão d’água e sabendo
através de noticiário de jornal, rádio, enfim, até dos telejornais do cinema, as ações
dos submarinos não era surpresa prá ninguém50.
________________
50 – Depoimento [Dez. 2007].
Antes da partida Getúlio Vargas foi até os febianos embarcados no General Mann e
pelo sistema de alto-falante fez a sua saudação aos soldados falando sobre a glória de lutar
pela Pátria e por um ideal e fazendo votos para uma boa viagem.
O General Mascarenhas de Moraes aproveitou a oportunidade para entregar uma carta
confidencial, nesta ele destacou seus problemas para organizar e preparar a FEB, um desabafo
de um general, que assim escreveu:

(...) os óbices e dificuldades que na organização dessa grande unidade


encontramos, e território nacional, próximo dos poderes públicos e perto das fontes
provedoras, vantagens aliás neutralizadas em grande parte pelo ambiente de
incompreensão em que agíamos, levam-nos a admitir ou recear dificuldades
maiores, quando estivermos apenas ligados ao Brasil pelo espírito e pelo coração.
É desnecessário dizer que muito confiamos na clarividência e patriotismo de
V.Exa. e na ação vigilante e eficiente do exmo Sr. Ministro da Guerra, mas, em
regra, as determinações e decisões governamentais são lamentavelmente retardadas
pelos processos burocráticos e a rotina de tempos de paz, qe se não se justificam
nestas circunstâncias, já que o tempo é vital para todos nós e o brilho e eficiência
da representação militar brasileira no exterior vão depender da presteza e
oportunidade com que seja atendida em suas inúmeras e complexas
necessidades(...)
(...) Com alto apreço, respeito e distinta consideração, subscrevo-me. Patrício
amigo e admirador de V.Exa (a) General J.B. Mascarenhas de Moraes, comandante
da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária51 .

Fot 21 - Getúlio Vargas e Dutra a bordo do General Mann. Disponível


em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em:15 Set 2005.

______________
51 - SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
p. 62.
Na baía de Guanabara, no convés do grande navio General Meigs, Evaristo observava a
cidade do Rio de Janeiro lentamente se afastando de suas vistas, sessenta anos depois se
recordou assim desse momento “(...) me lembro quando embarcamos para a Itália, tinha
companheiro se perguntando se veria o Corcovado de novo. A gente ia indo embora e o Cristo
Redentor ia ficando pequenininho, até desaparecer por completo (...)”52.
Para alguns, a visão do Corcovado deixado para trás naqueles dias de 1944, foi a
última que tiveram do Brasil.
Às 0630h do dia 02 de julho de 1944, ainda com o destino ignorado para a maioria dos
febianos, uma parte da Força Expedicionária Brasileira partia rumo à Guerra. Muitos
ainda não sabiam, mas estavam entrando, naquele momento, para a História.

3.3 O rumo incerto: a viagem de descobrimentos dos febianos

Dentro do navio as condições eram de mínimo espaço e regras rígidas. Como disse
Geraldo eram oito beliches com três colunas de camas por compartimento, totalizando 24
homens, mas esse número podia variar dependendo do camarote e a quem este se destinava:
oficiais ou praças. Ruy fala de dezoito homens, já Senna relatou doze. Estes homens eram
designados previamente para ocuparem determinados camarotes ou alojamentos, de modo que
a ocupação fosse feita de maneira organizada.
Geraldo ainda fala da rotina diferente em que tiveram que se habituar durante os 14
dias que o 1º escalão esteve embarcado, para ele e tantos outros, foi uma viagem de
descobertas, algumas boas e outras ruins:

(...) comíamos duas vezes ao dia. A primeira às 0500 horas e a outra às 1600 horas.
Só comida americana, sem tempero, os temperos ficavam na mesa.
Nem o comandante do navio sabia para onde ia, era o que se comentava no navio.
Ele ia abrindo os envelopes que davam o itinerário. Ninguém pensava nisso, eu não
pensava em nada, se ia morrer, se ia viver. Parece que fizeram uma lavagem
cerebral na tropa.
Dentro do navio era tudo pertinho do outro. Onde eu fiquei havia mais três andares
para baixo. Ficávamos abaixo do nível d´água. Teve dia...eles não avisaram
nada..eu passei um mal, vomitei muito.
Nós recebíamos um cartão, quando entrávamos no rancho, um soldado americano
picotava o cartão e você não podia voltar lá. O calor era tanto, nós que ficamos lá
dentro ficamos pelados, mudando de posição no beliche. (...) uns tentavam me
levar e eu falava para deixar, para nos deixar, pois havia só uma escadinha para
subir. Se aquilo fosse à pique, nós morríamos deitados. Teve soldado que foi pro
convés pelado, porque o navio atirava tanto que tinha gente que achava que ele
_______________
52 – Depoimento [Out.2004].
tinha sido torpedeado. Aí no alto-falante avisava que era exercício de tiro e como a
escada era pequena, só dava pra subir um. Um após o outro.
O pessoal tinha medo do navio afundar? Você sabe de uma coisa, eu não
pensava em nada! E outra coisa, quando recebemos o salva-vidas, podia dormir
sem ele, pois era desconfortável. Quando foi no 4º dia, eles falaram comigo, por eu
estar passando mal. Eles falavam comigo assim: ‘vamos lá pra cima, tem uma
brisa, você melhora.’ Nós fomos e de fato melhoramos. Aí nós fomos para o
rancho. O rancho era uma mesa alta, de sua altura.
Uma bandeja de cá e uma bandeja de lá, uma escorava a outra. Eu não sei o que é
que houve, tinha um cheiro esquisito, eu comecei a enjoar, não de tempo de eu
abaixar, eu vomitei na minha bandeja e na do outro. E aquilo era tão natural...
(enjoava) até o 4º dia, era um barato. Depois que eu estava bem, falavam que havia
uma lista lá no convés e eu fui ver. Quando eu fui andando, tinha um rolo de cordas
e tinha dois soldados sentados no rolo de cordas, dois conterrâneos, eles eram do
Batalhão de Engenharia que ficou em Três Rios. Eu virei pra eles e falei assim:
‘Hamilton e José Garcia, que vocês estão fazendo aqui perdidos no meio deste
Mundo?’. E eles disseram: ‘ estamos fazendo o mesmo que você está!’. Encontrei
com eles dentro do navio e nunca mais encontrei de novo. A Letícia me escreveu
um dia e falou que havia uma notícia de que o Zé Garcia havia morrido. Eu na
mesma hora, já no front fui ver a lista e tinha morrido mesmo. Mas o Hamilton
não. Tempos depois, em Juiz de Fora, soube que o Hamilton havia sido
classificado na FEA e eu na 12ª CR. E aí é que nós nos encontramos de novo.
Umas coisas que a gente não entende53.

Fot 22 - Camarote dos soldados embarcados no navio General Meigs.


Museu da Associação dos Veteranos da FEB – Seção Juiz de Fora

Quanto às observações de Geraldo sobre a rotina no navio, os estranhos horários das


refeições têm a ver com a disponibilidade de trabalho da equipe das cozinhas do General
Mann, afinal eram mais de cinco mil homens sendo alimentados. Então os horários buscavam
sim a praticidade e não apenas conciliar com os costumes brasileiros. Refeições fortes às cinco
da manhã e dezesseis horas, decididamente não são parte da cultura nacional. Tão pouco as
características da comida americana, que serão bem descritas por Ruy.
_________________
53 – Depoimento [Out. 2004].
Geraldo ainda comenta um fato que ficou na memória coletiva de diversos febianos
que embarcaram no 1º escalão. Como foi dito, poucos oficiais sabiam para onde a FEB estava
sendo deslocada, por motivos de sigilo para evitar sabotagens ou atentados. Ainda que
deduzíssemos que preocupações com a partida no porto do Rio de Janeiro, já não deveriam
existir, pois em alguns dias o Mundo saberia onde os brasileiros aportariam e quem estava no
navio não tinha condições de informar alguém em terra. Então, os praças em geral,
comentavam que nem o comandante do General Mann nem o Comandante da FEB sabiam
qual o destino final. Como foi dito anteriormente, muitos oficiais já sabiam que o Teatro de
Operações da FEB seria na Itália, inclusive já haviam visitado aquele País, e um comandante
de navio do porte do General Mann, em época de guerra, jamais navegaria sem conhecer todos
os detalhes de seu itinerário. As dúvidas dos soldados são justificáveis pela decisão infeliz
do Comando Expedicionário em não manter seus homens informados, o que alimentava
temores e boatos.
Enjôos eram freqüentes na embarcação, Geraldo sofreu com esses sintomas, como
devem ter sofrido seus superiores, a ponto de nenhum deles ter ido visitá-lo nem aos outros
que padeciam com os vai e vens do navio em alto-mar. Para este tipo de problema o normal
era aguardar de maneira tranqüila o fim dos enjôos.
Ainda no depoimento de Geraldo, ressalta-se o seu encontro com dois de seus
conterrâneos da Cidade de São João Nepomuceno: José Garcia e Hamilton. A FEB apesar de
ter sido apenas uma única Divisão de Infantaria, reuniu homens de todos os cantos do Brasil,
mostrando seu caráter imparcial e aglutinador, mas isso não quer dizer que todos os seus
integrantes fossem como uma família. Seu espírito de corpo, é bem verdade, foi se
desenvolvendo ao longo da Guerra, tornando-os conscientes que faziam parte de algo singular,
mas isso não indicava que o contato entre seus membros era comum. A Força ocupava uma
grande área na Itália, começando desde os homens da infantaria, que estavam próximos do
inimigo, e indo até aqueles que estavam na retaguarda, no Depósito de Pessoal, esperando e
treinando para serem empregados. Amigos e famílias separados pela guerra é algo comum em
outros exércitos e em outras sociedades, o que atesta que, como em outros lugares, a FEB
provou desses e de outros mesmos sentimentos.
José Garcia, o amigo morto de Geraldo, aparecerá mais vezes em nosso trabalho, como
elo de ligação de outras histórias.
Zé Maria, que foi no 2º escalão dois meses após Geraldo, sentiu menos a viagem que
muitos febianos, pois o vai e vem do mar não lhe incomodou, o que lhe deu maiores
oportunidades de observar a rotina daquela embarcação:
(...) fazia-se exercícios de desembarque.... no mínimo duas vezes por semana, a
viagem nossa durou 14 dias completos entre a saída e a chegada no porto de
Nápoles, foram 14 dias.... acho que o negócio era esse assim, né?! Fazia zigue -
zague?! é, em zigue - zague mesmo para o sistema de segurança. Dava prá
reparar que o navio fazia isto? se o senhor fica na proa, tivesse possibilidade de
ficar na proa, dava prá ver, em grande distância, mas dava bastava o senhor marcar
no céu...mas 6 horas todo mundo tinha que descer mesmo. Agora dentro do navio,
se o senhor quer tomar conhecimento de alguma coisa que eu recordo... dentro do
navio era uma vida....também desagradável, por causa do calor que fazia dentro dos
compartimentos... a disciplina muito rígida porque não podia também... (faz o
gesto de fumar com dois dedos da mão direita). Número fantástico de homens
circulando, complicava até a função dos marinheiros, então.... e o banho era muito
complicado, porque ninguém avisou nada, essa que é a verdade ninguém avisou
nada. Em função do calor e pela dificuldade do uso do cigarro, não era permitido
usar cigarro dentro do alojamento, e não tinha jeito mesmo, o cara que fumasse um
cigarro ele iria, talvez até matar um companheiro, naquela dificuldade de
respiração, então usava-se muito o banheiro prá fumar, e ao usar o banheiro prá
fumar, nego enfiava debaixo do chuveiro e deixava a água cair e era água potável,
chegou num determinado ponto foi proibido, e aí era banho de água do mar. Então
complicava, mas mesmo assim ninguém abria mão. Era muito quente mesmo,
então na travessia do equador esquentou prá valer. Agora o sistema de refeição era
da seguinte forma: era um cartão e na porta do restaurante o encarregado
picotava, significava que o senhor já....aí passava.... era tipo self-service, hoje. Aí
eu vou contar um detalhe.... Quem servia, eram eles? sim eram eles, os
americanos. Aí eu vou contar um detalhe, uma vantagem que eu levei: eu não senti
nada na viagem, agora um grande número, passava os dias enjoados, mas enjoados
mesmo, a ponto de até de fazer vômito. Então acontecia o seguinte, como a comida
era farta, não era, por exemplo, de encher muito os pratos, vamos colocar assim,
então o senhor estava enjoado –“Zé Maria, traz a fruta prá mim” – aí eu pegava o
seu cartão, ia lá com o meu e almoçava, pegava a fruta, Aí fazia a volta entrava no
rabo da fila e ia lá... Com o cartão do outro!?...se tivesse com vontade de comer
comia mais um bocadinho, com o cartão do outro, aí pegava as frutas, laranja,
maçã, pêra o que fosse, aí levava pro senhor no alojamento. Lembro que eu
almoçava com o meu, comia mais um bocadinho conforme o tipo do almoço, ou do
jantar comia mais um bocadinho com o cartão do outro. Levava laranja pro outro,
levava tudo. A minha também fica prá você, estou satisfeito54.

A rota em “zigue-zague” efetuada pelo navio é bem apontada por Zé Maria como
uma das medidas de segurança tomadas pela tripulação, além da boa velocidade de até 28
milhas executada. Talvez isso é que tenha levado à alguns deduzirem que o comandante da
embarcação tomava aos poucos ciência do itinerário a seguir. As manobras no General Meigs
eram também complementadas por exercícios de desembarque para todos a bordo. Alguns não
sabiam que estas atividades eram treinamentos, então a confusão estava instalada, como nos
relatou Zé João:

Só (vi o mar) quando cheguei ao Rio, que já tinha visto algumas vezes. Então.
________________
54 – Depoimento [Dez. 2007].
..pegamos esse navio, o General Meigs, com cinco mil homens neste navio. Navio
tinha 12 andares, eu estava no sétimo andar, que era o do meu batalhão, aí começou
a ..o perigo. Você sabe que está em guerra, sabe que está viajando para a
guerra , ..nós ..começou..aquela brincadeira, vômito, vontade de comer...coisas...só
tinha coisas diferentes para comer, então, você ia pro convés, sentia mal, só vivia
de remédio, bom até aí não tinha nada, um dia lá nós estávamos deitado já
tranqüilo, já acostumado com a situação,... uma ordem....: “atenção
batalhão...atenção batalhão, preparar para abandono de navio”. ....para quem tá
deitado, não é?!.....dá vontade...aí veio aquele calafrio....então..isso feito, tomar
posição de abandono..subiu a escada, pegar o convés. Lá tem os barquinhos,
pequenos, vesti o colete, ...não foi fácil não. Quando tava tudo nessa posição ...de
abandono, eu já sentado no caíco (sic) para sair fora...o comando: “terminou as
instruções”........era instrução, preparação. já pensou que situação. Ninguém sabia,
só sabia o comando, nem os comandantes de batalhão sabiam. Não foi fácil não,
isso eu posso dizer, eu digo, se algum dia eu tive medo na vida foi neste dia. Eu ía
tentar me salvar, mas não é fácil não. Bom venci essa batalha55.

Situações cômicas como estas não foram incomuns durante a viagem dos febianos
para a Guerra. Eram muitas situações novas para a imensa maioria, sem que tivessem sido
preparados para isso, ainda mais para ocasiões de grave crise como essa que seria a de um
abandono de navio.
Voltando ao depoimento de Zé Maria, o fato de sentirem um calor desagradável
durante o caminho foi uma constante em todos os escalões, inclusive no 1º, que trazia os
Comandantes da Força, por isso era costume de todos estarem durante o dia no convés do
navio para conversarem, respirarem melhor, jogarem cartas, xadrez e até fazerem uma roda
de viola. Tudo era válido para passar o tempo e diminuir a angústia da viagem. Às seis horas
da noite, por medida de segurança, somente o pessoal de serviço permaneceria no convés. O
hábito de fumar era bem comum naqueles anos 1940, tanto que o cigarro fazia parte do rol de
materiais de consumo dado aos soldados, assunto que veremos mais à frente. Consciência
ecológica e social ainda não estava na pauta daqueles jovens, desta forma, se não podia fumar
nos camarotes, então, fumavam no banheiro, mesmo que gastassem toda a água disponível
para o banho. O resultado, segundo Zé Maria, foi mais desconforto, com a proibição de uso de
água doce e o uso da água do mar para os banhos.
O sistema mecanicista da sociedade industrializada norte-americana seria por diversas
vezes visto pelos soldados da FEB. A divisão de trabalho impulsionou as gerações do pré-
guerra e foi levada para os combates não só por este povo, mas pelos outros países líderes do
conflito. Zé Maria observou um desses exemplos no simples avançar para as refeições dos
soldados. Cada homem possuía um cartão, que era picotado pelo americano que o
__________________
55 – Depoimento [Fev. 2007].
servia, a comida era servida em uma bandeja e consumida no próprio refeitório. A partir
dali aquele homem não poderia repetir a refeição, a não ser que fizesse como Zé Maria,
e estivesse com o cartão de outro soldado que estava passando mal. O sistema hoje apontado
pelo nosso depoente como o conhecido Self-Service56 , desta forma, era eficiente para servir a
um grande contingente de homens, de forma ágil e ordenada.
Ruy, por ser professor e consciente do momento histórico que vivia, procurou estar
atento a tudo e preparar um diário com os eventos que achou mais importantes. A sua
descrição da rotina na embarcação foi uma das mais completas que encontrei em
minhapesquisa, principalmente por seu caráter humano e sensível, que são um dos objetivos
neste trabalho. Ruy, em seu diário, relatou:

O navio
(...) o camarote nº 109 é bem no meio do corredor que dá para um salão que serve
para palestras, serviços religiosos, cinema, etc. com três ordens de beliches triplos
de cada lado, comporta dezoito ocupantes e, na parede do fundo, junto à vigia
permanentemente fechada, há um lavatório e cabides para roupas e toalhas.
Confortável mesmo e, não fosse a tensão que nos domina a todos, poderíamos até
apreciar o conforto que nos proporciona.
No meu beliche triplo estamos eu, o Newton (Ten Newton de Oliveira Ribeiro),
sub-comandante da minha Companhia e o Montanha (Ten Mário Montanha
Teixeira) Comandante do 1º Pelotão; nesse camarote só há Primeiros-tenentes
porque a coisa é assim: oficiais superiores com oficiais superiores, capitães com
capitães, primeiros-tenentes com primeiros-tenentes e segundos-tenentes e
aspirantes com segundos-tenentes e aspirantes. Todos em seus camarotes, seguindo
a hierarquia.
Arriei minhas posses no beliche, cansado, suando feito um estivador e tratei de
procurar o banheiro tão logo nos liberaram: aí começaram as surpresas: no
banheiro, os boxes com chuveiro, dispostos ao longo da parede de um grande
salão, ficavam defronte a uma série de vasos sanitários, (privadas), para uso
comum, tudo aberto, arejado e limpo. Embora os chuveiros já estivesse sendo
utilizados, ninguém ainda tinha se aventurado se servir das patentes (na verdadeira
expressão da palavra).... A inibição é total e é partilhada por todos.
Fui ao banho e, no que abri o registro, quase tive um olho vazado, pois a ducha
fortíssima que deveria bater no peito ou nas costas de um americano U.S.A, não
estava adaptada para um americano U.S.B e atingiu-me no meio da testa com uma
pedrada...afastando-me para fora do box, consegui tomar um bom banho.
De volta ao camarote, tomamos conhecimento das normas disciplinares, de
circulação, e de higiene que deveríamos manter a bordo. Horários das refeições,
dos banhos, dos ofícios religiosos e das sessões de cinema, exercícios de
salvamento, tudo cronometrado e para ser cumprido à risca. Diariamente, a partir
das dez horas da manhã, haveria inspeção nos camarotes por uma comissão
de oficiais brasileiros e americanos, sendo anunciado o resultado da verificação
para o melhor e para o pior, com o nome dos responsáveis, pois cada camarote
haveria um “sherife’ que responderia pela boa apresentação do alojamento; no 109
o “sherife” é o Belfort, (Ten Newton Romanguera Belfort), que ganhou logo o
apelido de “chefão”. Felizmente, com a colaboração de todos, se nunca tivemos
__________________
56 – Utilizamos essa expressão tão atual para facilitar a compreensão dos leitores.
deméritos, também nunca obtivemos a melhor classificação.... Fomos também
avisados que o uniforme para o jantar, no refeitório dos oficiais era o de passeio, é
com túnica, durante toda a viagem – assim, comparecemos ao primeiros jantar a
bordo; a impressão foi de deslumbramento: o salão, fortemente iluminado, a louça
e os talheres, como os de um restaurante ou hotel de luxo. Os bules e travessas
pareciam de prata e o serviço era perfeito, operado por garçons a caráter. E nas
mesas até flores! A comida – ah a comida! – colorida: suflês amarelos, verdes e
vermelhos; cremes brancos, cinzas e roxos; saladas multicores; leite, café e sucos
diversos, mostarda, catchup, tudo a vontade....
Fiquei de olho para as bandas dos oficiais que eu sabia já haverem estagiado nos
Estados Unidos, para ver como se digerir aquela festa multicor... nada feito, porque
eles estavam tão espantados quanto eu; aí arrisquei na salada pois nela eu já
identificara a batata e a beterraba, minhas conhecidas do Capistrano. Belisquei aqui
e ali, mas não gostei pois tudo era bem adocicado; como havia frutas, comi uma
maçã e enfiei outra dentro da manga. Para emergência, é claro...
Logo que começamos a navegar, fomos tomando conhecimento de outras normas
para a convivência neste imenso quartel flutuante: assim devemos manter, sempre,
o cantil cheio d’água e preso ao cinto; recebemos todos, um colete salva-vidas que
devemos trazer sempre vestidos. Esses coletes, por serem acolchoados, quando no
corpo, são incômodos porque nos forçam os braços para cima, fazendo-nos parecer
um bando de senhoras gordas ou de pinquins (sic) secando as asas ao sol...Foram
logo apelidadas de “Mãe West”, pela semelhança com a conhecida artista.
Diariamente, em horas incertas, haveria exercícios de abandono do navio,
anunciados pelos toques do sinal de alarme de bordo; para isso, os compartimentos
e os camarotes, receberam uma planta do navio, com o itinerário que cada sherife
ou oficial de serviço, deveria seguir, para conduzir os homens até suas baleeiras ou
botes de salvamento, no caso de afundamento causado por torpedeamento, choque
com minas ou bombardeio aéreo. Ao primeiro sinal, todos devem se dirigir para os
respectivos camarotes ou compartimentos; ao novo sinal, todos se deslocam,
guiados pelos responsáveis segundo o itinerário previsto.
(...) tomamos contato também com uma outra operação anunciada pelos alto-
falantes e essa, creio eu, nos acompanhará por toda a viagem: é o “Darken Ship”;
esse aviso repetido várias vezes ao escurecer significa que todas as portas e
aberturas devem ser fechadas, pois nenhuma claridade pode ser vista do mar; o
escurecimento total do navio é sumamente necessário à sua segurança. Outrossim,
todos os passageiros devem recolher-se para o interior do navio, somente
permanecendo no exterior os M.P (Polícia Militar) e os elementos da guarnição
destinados à vigilância.

O dia-a-dia no mar

23 de setembro de 1944 – sábado


Quando eu ouvia dizer: “Céu e Mar” nunca podia imaginar a realidade que a
expressão representa...Agora sei, porque vi e vivi a própria imensidão desses
elementos que nos cercam por todos os lados; o horizonte é no infinito; o céu é
uma abóbada que nos aprisiona no meio deste mar sem fim, azul como a água de
anil em que minha mãe mergulhava as nossas roupas brancas. Ao mesmo tempo
que nos empolga, nos impregna de um sentimento de solidão e temor e essa
resultante, de ordem psicológica, tem suas conotações de ordem material, pois fui
tomado por um terrível enjôo, o “sea sick” dos americanos e aí só queria morrer.
Não consigo manter-me de pé, nem comer nada; deitado no beliche para não
vomitar as vísceras, penso até em chamar o capelão, pois acho que estou nas
últimas.
25 de setembro de 1944 – Segunda-feira
Que noite, meu Deus! O navio jogou terrivelmente ou fui eu que me debati no
beliche. Amanheci indormido (sic), cansado fraco e morto de fome, mas ainda não
agüento me levantar para ir ao café – o Montanha e o Newton continuam me
socorrendo: cada um me trouxe uma maçã e uma lata de “grape-fruit-juice” que fui
tomando aos poucos. À tarde já consegui me levantar e andar pelo camarote – a
noite já pude ir ao salão, onde tomei conhecimento de que entrei na escada de
serviço de bordo, na área do compartimento C-505-L. Soube também que, estando
na escala de serviço, tenho direito à uma terceira refeição, o que é bom, pois
começo a sentir muita fome.
O meu serviço de permanência é no compartimento 505, ou seja onde os dois
costados do navio se encontram – a quilha atravessa todo o compartimento – pois
ali, é o lugar mais abaixo da linha d’água do gigantesco barco.
Os soldados chamam-me a atenção para a grande quantidade de água que corre
pelo chão, de um lado para o outro, segundo o balanço; há já uns dois dedos dela,
pra cá e pra lá...chamo um marinheiro e mostro-lhe a água que escorre pelas
paredes e já se ajunta no fundo; ele ri e diz, segundo pude entender, com meu
inglês de Praça Mauá; inda falta muito para encher todo o navio!...contudo,
providenciou a ligação de aspiradores que, num instante sugaram toda a água,
deixando-nos todos, muito mais tranqüilos.
O serviço me faz bem; o balanço lá no fundo é menor e já não sofro o enjôo além
do que, com a fome voltando, essa terceira refeição vem bem a calhar.

29 de setembro de 1944 – sexta-feira


Hoje tivemos um espetáculo diferente, como eu só tinha visto em cinema; de
repente toda a formação do comboio e um destróier da escolta lançou bombas de
profundidade, acho eu, que ouvimos explodir surdamente, enquanto jatos d’água se
levantavam. Os outros navios – nós viajávamos juntamente com outro transporte
de tropas, o General Mann – começaram a fazer zig-zag e um deles se deslocou
velozmente numa direção determinada, como se estivesse perseguindo alguma
coisa em grande velocidade. Foi grande a agitação à bordo e os boatos fervilharam.
Em quinze ou vinte minutos tudo voltou à normalidade e circularam as notícias
sobre o incidente: submarino inimigo, diziam os alarmistas; exercícios de rotina,
diziam os incrédulos. De um modo ou de outro, houve gente que, por via das
dúvidas, foi-se chegando para o lado dos escalares e das baleeiras de salvamento,
para o caso de, sabe-se lá o que...

1º de outubro de 1944 – Domingo


Passo bem. Durmo bem e me alimento melhor. Já me adaptei razoavelmente a estas
comidas adocicadas que complemento com bolachas salgadas e chocolates que
compro na cantina. O marujo americano que atende ali, já ganhou o apelido de
“charuto” por causa do dito cujo que ele rola de um lado para outro da boca, entre
os beiços grossos. O câmbio é feito na base de treze cruzeiros por um dólar e ele, o
‘charuto”, não aceita moedas.
Hoje a monotonia foi quebrada com o aparecimento de dois barcos de pesca com
bandeiras portuguesas e cujos tripulantes acenavam para nós; à noite tivemos um
show depois dos serviços religiosos. A orquestra do navio nos deliciou com
músicas de Glenn Miller, Jerome Kern e outros mais. Uma delícia! Vivi instantes
de enlevo e ternura – o serviço Religioso ofereceu-nos missa e ofício protestante57.

Para homens que saíam de instalações mal feitas e com pouco conforto do Morro do
Capistrano, como os expedicionários do 11º RI, viajarem em um navio de guerra que parecia
________________
57 – Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
um transatlântico de luxo era para deixar o indivíduo vibrante e deslumbrado. Deslumbrado
com as novidades para quem nunca havia entrado em um navio, com a preocupação dos
aliados americanos com os detalhes na recepção, com o esforço da tripulação em tratá-los o
melhor possível, mesmo que já estivessem fazendo esse tipo de trabalho desde a entrada dos
EUA na Guerra. Era sem dúvida, um tratamento digno para aqueles que partiam para a defesa
de sua Pátria.
Ruy deixou ainda anotadas importantes informações sobre as características do
General Meigs que nos dão a dimensão do gigantismo daquela embarcação e o modo de vida
que seria desenvolvido por todos os passageiros. As acomodações nos camarotes e com o
banheiro são já, de início, elementos surpreendentes para o jovem Ruy, bem como a beleza do
refeitório de oficiais e da composição do cardápio oferecido, ainda que este não se
coadune com o paladar de costume do brasileiro, mas mantêm a coerência de alimentos
agridoces na dieta do militar. Como foi falado por José Lopes anteriormente.
Ruy e seus companheiros viram, principalmente, não elementos de opulência, mas sim
de organização. Tudo estava de acordo com que alguém planejou desde a criação e até a sua
execução, desde a construção de um imenso navio que transportasse uma valiosa carga de
homens, passando pelas medidas de segurança fortes e necessárias à segurança de todos até
chegar nas “saladas multicores” que eram oferecidas aos expedicionários. Surpresa, também,
devem ter sentido com as apresentações da orquestra do navio, que os fazia esquecer um
pouco da saudade de casa e da apreensão com a chegada aos campos de batalha.
Saudades que Ruy comenta em seu diário ao sentir a falta de seus dois filhos, que
ficaram no Brasil com os sogros; e que se reconforta com a admiração da paisagem do mar e
com belezas naturais, como o histórico Estreito de Gibraltar. Para aplacar ainda mais sua
tristeza, redige cartas para seus familiares, uma prática que será comum a muitos
expedicionários ao longo da Guerra.
Fot 23 - Os expedicionários no convés do navio: à espera da
chegada, jogam cartas e xadrez.
SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 34.

Os enjôos não foram problemas apenas dos soldados que ficavam nos andares mais
abaixo da proa do navio. Ruy e com certeza outros oficiais sentiram o mesmo problema, mas
o sea-sick foi o que menos preocupou o Comando da FEB nesta travessia. Havia, ainda, a
possibilidade, aventada pelo Comando, que houvesse alguma interceptação do comboio por
aviões ou submarinos inimigos, principalmente na viagem do 1º escalão, que levava todo o
Alto Comando. Temor reforçado por ter sido irradiada uma notícia pela rádio BBC de
Londres que uma tropa brasileira se deslocava para a Europa. Lima Brayner cita a informação
de que um esquadrão de bombardeios inimigo se deslocava da Itália em direção aos
brasileiros e que se preparassem para efetuar uma reação de defesa, caso a aviação aliada não
a interceptasse58. A informação ficou restrita aos oficiais, já que não observei nos
depoimentos do 1º escalão, nenhuma referência ao caso, ainda mais que, segundo Lima
Brayner, os americanos lhe teriam orientado que todas as ações de defesa antiaérea seriam
exclusivas da tripulação. Por felicidade, o inimigo foi interceptado antes de chegarem ao
comboio e aviões aliados garantiam a chegada da Força.
Alguns que compunham a FEB, não foram de navio para a Europa, mas sim, via aérea
Rio de Janeiro-Natal-Dakar-Nápoles, foi o caso de oficiais da logística que deveriam chegar
antes para preparar a recepção aos expedicionários e alguns médicos e todas as enfermeiras
que iriam trabalhar nos hospitais59.
À FEB restava agora aguardar a chegada, para o 1º escalão tudo foi surpresa até
aquele momento, faltava saber apenas qual seria o país em que desembarcariam.
________________
58 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 103.
59 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op. Cit.
A Guerra estava mais próxima do que nunca.

3.4 O destino era a Itália

Em 16 de julho de 1944, o 1º escalão da FEB, a bordo do USS General Mann,


adentrou na baía do porto da cidade italiana de Nápoles, no sudoeste daquela nação. Para os
italianos e americanos que estavam no local, era apenas mais um grupo de soldados naquela
campanha que já tinha consumido milhares de mortos somente na Itália, para os brasileiros,
porém, era um momento histórico para o Exército e para o Brasil.
Em meio a destruição de navios semi-afundados e destroços que eram vistos em terra
firme, o General Mann atracou e teve início do desembarque às 1325h. No porto esperavam
pelos brasileiros uma pequena comitiva de oficiais brasileiros e americanos e um
correspondente de guerra do Diário Associados, Barreto Leite, que cobriu o evento60.
Geraldo mais uma vez estava atento aos acontecimentos daquele dias e dos próximos
que viriam, e sobre o desembarque na Itália, desta forma nos relatou:
No dia 16 de julho, às 1530h, estávamos em Nápoles e íamos desembarcar naquele
mesmo dia e hora. Desembarcamos, entramos em um metrô, tudo escuro, só nos
pontos de embarque era que dava uma claridade. Só depois é que soubemos que era
um metrô. Eu passava a mão no encosto, na claridade, eu ...ví que era um veludo
com bolinhas pretas...uma maravilha!
Paramos em Nápoles e fomos andando acompanhando um cabo americano até
uma cratera – que ficamos sabendo depois que era o pátio de caça do Rei Victor
Manuel – ficamos dois dias ao relento, depois é que recebemos as barracas. Não
tinha cozinha, comemos durante quarenta e cinco dias ração. Recebíamos duas
latas por dia, uma pesada que tinha carne e outra leve que tinha biscoito, açúcar,
suco de limão, o outro não dava pra entender, um pacote de café, dois cigarros e
uma caixinha de fósforo. Aquilo batia no estômago e.... No começo ninguém comia
a lata toda, parecia que ela estufava o estômago, o pessoal reclamava, mas não
adiantava. Alguns esquentavam... depois nós acostumamos e comíamos a lata toda.
Ficamos em Nápoles quinze dias.
Um dia vimos um caixotão no alto da cratera. Nós só ficamos sabendo o que era
aquilo quando precisamos ir lá. Eram privadas em fossas secas. Aqueles caixotões
todos. Sentávamos um do lado do outro, nos buracos, sem privacidade nenhuma.
Ficávamos até conversando. Tinha do lado alguns rolos de papel higiênico, tudo
direitinho, não tinha banheiro, ninguém reclamava de nada. Tudo era feito com
muita naturalidade61.

Algumas razões levaram a FEB ser empregada no território italiano e não em outra
frente européia ou até no Pacífico: a primeira envolvia a necessidade de tropas na área do
XV Exército de Campanha, localizada no front italiano, principalmente o V Exército Ameri-
________________
60 – O Globo. Rio de Janeiro. 18 de julho de 1944. p 1.
61 – Depoimento [Out. 2004].
cano, comandado pelo General Mark Clark. Este front havia perdido nove divisões,
principalmente francesas, para a invasão da Normandia, ocorrida em 06 de junho de 1944.
Todavia, o Teatro de Operações italiano ainda era importante para manter as divisões alemães
ocupadas e evitar que fossem compor as forças de defesa na Áustria e na Alemanha, por outro
lado, os alemães não poderiam ceder a Itália por sua posição estratégica62. A outra razão era a
própria pessoa de Mark Clark, um general jovial, apenas 46 anos, e com um espírito de
compreensão das diferenças e peculiaridades de outros povos e culturas. Clark, em
entrevista63, declarou que quando foi lhe perguntado sobre se aceitaria uma tropa brasileira em
seu V Exército, não pensou duas vezes em dizer sim. E não foram apenas os brasileiros que
Clark não mediu esforços em prestigiar para atuar na Guerra; a 92ª Divisão Americana, a
“Divisão dos Negros” também atuou ao lado dos brasileiros e sob o comando deste General.
A própria 10ª Divisão de Montanha dos EUA, famosa por seu preparo e profissionalismo, não
havia sido aceita pelo polêmico General Patton, que a achava uma tropa específica demais
para a Guerra (por ser especialista em terreno de montanha), mas Clark acreditou que sua
utilização era perfeita na Itália, como o foi. Neste país, no lado Inglês, o VIII Exército, ainda
havia uma Divisão Indiana, outra Sul-Africana e além de diversas Unidades inglesas64.
Lima Brayner afirmou que os oficiais em curso nos EUA, antes da FEB partir,
estudavam com afinco operações do tipo “diversionárias”65, idênticas às que foram
empregadas na Normandia, o que o levou a acreditar que poderiam ter sido empregados na
Operação Overload, o Dia D. É claro que seria necessário que a FEB estivesse pronta em
dezembro de 1943, como havia sido acordado com os americanos e que outros fatores fossem
levados em consideração, como a capacidade e experiência que a FEB alcançaria com os
combates. Tudo isso são suposições.
É fato, contudo, que foi dado uma zona de ação do Teatro de Guerra italiano, onde
seria mais tranqüilo para as primeiras ações dos brasileiros, para que estes fossem “inoculados
pelo combate”, como afirmou Clark66. Não seria mesmo uma missão fácil, afinal era a
Guerra.
Os EUA já travavam terríveis confrontos na península itálica desde 1943, com muitas
baixas e dificuldades, mas já haviam liberado metade do país, inclusive a capital Roma, e
_______________
62 – DAVIES, Norman. Op.Cit. p.133-134
63 – Documentário SD do Exército Brasileiro da Série Vídeo-Revista. Provavelmente da década de 1970.
64 – CLARK, Mark W. Risco Calculado. Rio de Janeiro: Bibliex, 1970.
65 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 103.
66 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 71.
deposto o ditador Mussolini, tendo o Rei Victor Emanuel retornado ao trono. Mesmo um país
cansado e destruído pela Guerra, possuía benfeitorias que saltavam à admiração dos
brasileiros, como relatou Geraldo quando viu que estava em um metrô em Nápoles. A
chegada do 1º escalão, porém, não foi das mais tranquilas, pois no Brasil foram cortadas do
embarque materiais como barracas e apetrechos de acampamento, por serem consideradas
desnecessárias, no entanto, na Itália, os oficiais que estavam escalados para recebê-los, não
sabiam que tinham que providenciar estes materiais. Então, os brasileiros ficaram por dois
dias dormindo ao relento em uma cratera de vulcão extinto, sob um frio de 10º centígrados e
sem cozinhas para alimentar a tropa67. O Comando da FEB ficou aborrecido com esta falha,
mas os soldados, segundo Geraldo, nada reclamaram. Talvez porque ali, tão longe de casa e
resignados perante a situação de combatentes em terra estrangeira, compreendessem que o
melhor não era reclamar, era adaptar-se, pensar de forma positiva e trabalhar. Atitudes que
foram características da FEB durante toda a Campanha.
A falta de comida foi resolvida com a distribuição da Ração C, de fabricação, é claro,
americana, e que não tinha sido oferecida aos brasileiros em nenhuma oportunidade no
treinamento. Imaginaram que treinar para comer poderia ter sido algo desnecessário na visão
de alguns, mas na Itália isto apresentou seus problemas, como o desconforto natural em
digerir por quarenta e cinco dias seguidos esta alimentação. A ração C era composta de
ensopados de carne, legumes, biscoitos, chocolate (ou café), sopa, balas, açúcar e cigarros,
tudo acondicionado em duas latas para cada refeição68. Os problemas continuaram com a
necessidade de conscientização da tropa, para que o depósito das latas inservíveis fosse feito
em lugar adequado e não poluíssem a área. Eram mais de 30 mil latas por dia que poderiam
ser jogadas no meio-ambiente. Algumas críticas foram feitas pelos norte-americanos quanto
aos hábitos sanitários dos brasileiros que demoraram a se adaptar ao uso das latrinas de
campanha como descritas por Geraldo. O uso do “matinho” para defecar ou urinar não é
incomum para o homem brasileiro, principalmente aquele vindo do interior, mas era estranho
ao estrangeiro. Tudo era questão de adaptação, que seria feita com o tempo. O 1º escalão
ficou quinze dias naquela cratera, durante este período poucas atividades foram realizadas, já
que o material, como viaturas, armas e equipamentos de combate não vieram com a FEB, o
que não possibilitou a realização de todos os treinamentos previstos na preparação final,
dando prioridade para exercícios de marcha e de recebimento de materiais de acampamento,
como camas, cobertores, entre outros. Sobre isso, veremos com mais detalhes no 3º capítulo.
________________
67 - MCCANN, Frank D. Op.Cit. p 319.
68 – Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
Fot 24 - Desembarque do 1º escalão em Nápoles. Disponível
<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Acesso em:15 Set 2005.

O 2º e 3º escalões, com mais de dez mil homens, só se deslocaram em 22 de setembro,


chegando à Itália em 06 de outubro. Diferentemente do 1º escalão, estes não pararam em
Nápoles, mas apenas desembarcaram dos navios General Mann e General Meigs e foram
embarcados em uma frota de 60 LCI (Land Craft Infantary) 69 que os levaram para a cidade de
Livorno, já que a outra parte da FEB já se encontrava em combate bem mais ao Norte do País,
e nesta área não era possível a navegação de grandes navios, devido à destruição do porto. Foi
uma viagem de três dias muito desconfortável, pelas características destas embarcações, muito
pequenas e de fundo chato, o que fazia com que balançassem bastante.
Sobre a sua primeira visão da Itália, Zé João nos relatou o seguinte:

(...) aí veio a passagem do Equador. Bom.. no Equador, tinha barba, bigode, eu tirei
tudo, raspei a cabeça. Em homenagem à passagem do navio pelo Equador, que é
quente, um calor fora de série. Atravessamos aquele ambiente ali foi terrível, mas
deu para passar. Esse navio...foi ....nos levou..a primeira cidade italiana: Nápoles

..no dia seguinte, fomos...transportados..numa cidade..onde tem hoje, a Torre


dePisa...? fomos pra lá, cada barco carregava 200 homens, dezoito barcos cheio de
gente carregando pra lá....meu caro..aí foi sofrimento, aí foi guerra. Você ia ao
banheiro, até pra urinar era difícil, quando você tava preparando..ele descia três
quatro metros. Era um troço de doido, o mar brigando e nós..brincadeira. Tudo
bem! foram três dias de luta, enfrentamos o mar...70

________________
69 – Depoimento do senhor José Maria em 11 de dezembro de 2007.
70 – Depoimento [Fev. 2007].

Fot 25 - Modelo de um LCI semelhante ao que transportou os


brasileiros. Disponível em: www.historyofwar.org. Acessado
em: 27 Dez 2006.

Ruy também estava no 2º escalão, e de maneira mais detalhista, mas com a mesma
visão dramática de Zé João, relatou assim as suas primeiras impressões sobre o continente que
iria atuar:

09 de outubro de 1944
Deixamos hoje este navio, depois de vinte dias confinados no bojo. Foi o meu
primeiro combate! Houve horas e dias em que eu só queria morrer! Felizmente
agüentei firme e aqui estou, meio marcado, mas vivo.
Adeus “Gen Meigs” – US 116 – Adeus.
Desembarcamos por volta do meio-dia e após uma pequena espera no cais semi-
destruído, embarcamos ali mesmo e, navios menores, os “LCI”, da Marinha
Americana, que comportavam uns duzentos e poucos homens. O meu, tinha o
número “U.S.N. – 449 e prontamente engoliu a minha companhia e mais metade de
outra. Enquanto estávamos no cais, conversei com alguns italianos; eles julgavam
que nós fossemos prisioneiros alemães, porque o nosso uniforme tinha a mesma
cor, verde petróleo (oliva) das fardas dos alemães.
Os L.C.I. – LAND CRAFT INFANTARY – eram barcos de fundo chato com
pranchas de desembarque que transportavam tropas com rapidez recolhendo-as ou
deixando-as na praia à beira d’água.
Pelas três horas da tarde, largamos do porto de Nápoles e navegamos cerca de uma
hora e meia, até ao cair da tarde, quando atracamos novamente. Conversando com
civis que por ali vendiam frutas, soube que o lugar se chama POZZUOLI. Olhando
o mapa, verifico que POZZUOLI é um povoado a beira-mar, ao norte de Nápoles.
Quer dizer, que vamos para o norte. Para onde? Outros L.C.I. , foram chegando e
se acomodando por ali, uns ao lado dos outros.
Acho que são uns cinqüenta ou sessenta, todos cheios de soldados. Troquei
algumas maçãs por cigarros e guardei-as para comer na viagem. Pelo visto vai
começar tudo outra vez! Valha-me Deus! Para o jantar havia rações de “Corned
Beef”, que podíamos pegar na cozinha do barco71

_______________
71 – Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
A confusão dos italianos em confundir os expedicionários com prisioneiros alemães
foi a primeira indicação que aquele uniforme traria ainda mais problemas para a Força. A sua
cor é bem próxima da utilizada pelos nazistas, com o agravante que a brasileira era de
qualidade ruim, com um corte também ruim, imprópria para a situação de insalubridade que
passariam os febianos, principalmente com a aproximação do inverno. Outros relatos, diretos
ou indiretos, falam que alguns italianos chegaram a ofender os brasileiros por causa desta
confusão. O uniforme já chegara desgastado à Itália por causa do treinamento e uso diário no
Brasil, segundo Senna72. Mas mais problemas aconteceriam por causa da indumentária,
principalmente com a chegada do mais rigoroso inverno que a Itália sofreu em cinqüenta
anos.
A viagem prosseguiu agora dentro os LCI, muito utilizados na invasão à Normandia
por sua boa capacidade de abordagem junto às praias. Ruy pôde observar a beleza natural da
Itália, apesar da destruição ocorrida durante os ataques aliados, bem como identificar
características que traduziam o porquê daquele ser o “Velho Mundo”, como as ruínas de
castelos medievais que ficavam às margens do Mar Tirreno. Voltavam os enjôos e a viagem
não chegava ao fim, ficando ainda pior com a falta de conforto dos LCI:

11 de outubro de 1944 – quarta-feira


A chuva que começou a cair ao entardecer de ontem, transformou-se durante a
noite em um vendaval com o mar agitadíssimo que ouvíamos chicotear o fundo e
os bordos do barco, jogando-os para todos os lados. A embarcação parecia um
cachorro molhado, sacudindo-se para tirar a água do corpo. Muitos companheiros
foram lançados dos beliches para baixo. Com o blecaute, muita gente patinava no
chão úmido e visguento – os vômitos se espalhavam de um lado para outro –
procurando onde agarrar-se ... Um pandemônio. Foi uma longa, bem longa noite.
Hoje pela manhã, com a claridade do dia, após uma “fachinada” (sic), o ambiente
foi melhorando. Foi servido um café, - ainda com o mar agitado – nas outras
refeições, como a cozinha não funcionou, tivemos que enfrentar de novo as
malsinadas “rações C” que outra coisa não eram se não a já detestada carne
enlatada, julgada e condenada por todos, como a causadora da noite terrível que
passamos...até o fim da guerra, essa tal de “ração C” foi odiada por todos aqueles
que viajaram nos L.C.I. – a soldadesca, não sei porque, diz que a tal ração é base de
carne de búfalo, razão pela qual a chamam de “bufa”73.

Em 12 de outubro estes escalões chegaram à Livorno, pequena cidade próxima da


famosa Pisa, para se juntarem ao Comando da Força. Na chegada foram vistos mais sinais de

______________
72 - CAMPOS, Senna. Op.Cit. p. 121-122.
73 - Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
destruição, como navios emborcados e semi-destruídos. Sobre uma terra enlameada
pelos temporais anteriores, embarcaram em caminhões que os esperavam. No deslocamento,
de pelo menos uma hora, viram mais destruição: casas e edifícios esburacados por tiros à bala,
apesar da boa conservação da estrada. Continuando com o relato de Ruy:

(...) e então tive uma grande surpresa e emoção: avistei a torre inclinada de Pisa...
era uma das coisas que, desde menino, no Ginásio, tinha vontade de ver e de
admirar, assim como Gibraltar, que já vi, o Vesúvio, que também já vi, São Pedro e
o Coliseu em Roma, que ainda espero ver... (será?). Fiquei olhando a Torre até
perdê-la de vista, com as curvas que meu caminhão fez, quando tomando por uma
estrada larga e bem arborizada, a viatura percorreu mais alguns quilômetros e
entrou em uma espécie de parque, onde já se viam barracas armadas e num grande
mastro, tremulava ao vento da Itália, a Bandeira Brasileira: Tenuta di San Rossore.
Parou o comboio e depois de receber instruções dos guardas postados ali,
prosseguiu pela alameda principal, até um local onde uma tabuleta em que se lia:
“BEF – 330”, (11º R.I.), indicava uma área à direita, onde estacionou. Ouvi então a
voz do cap. MOTTA, comandante de Companhia, ordenando:
- Desembarcar! É aqui que vamos ficar!
Apeamos das viaturas e eu olhei em volta: era um bonito lugar. Copadas árvores
tornavam fresco e agradável. Um relvado extenso se estendia até a parte mais
baixa, limitada por um bosque, cercado pelas já conhecidas fitas brancas.
Um forte cheiro de gasolina saia das imensas barracas armadas à beira do caminho
que como vimos depois, eram as barracas-cozinhas. Logo, logo o cheiro de comida
cozinhando foi se espalhando pelo ar e recebido pela soldadesca, que gritava: olha
a chêpa! Olha o rancho!....Bom, Muito bom!
Cada Sub-Unidade foi sendo conduzida por um guia para a respectiva área e
quando chegou a nossa vez, nos deslocamos rapidamente e no local que nos foi
designado, arriamos nossas posses: ali já encontramos armadas as barracas para
oficiais e uma para a cozinha, que com uma equipe de soldados cozinheiros
americanos, chefiada por um cabo, já nos aguardava com uma excelente refeição
que foi servida imediatamente.
Após o almoço começaram os trabalhos de instalação do acampamento que
duraram até ao anoitecer. Foi montada mais uma barraca das grandes, para a
sargenteação e depósito da companhia. A barraca destinada aos oficiais era ampla e
confortável e tratamos de nos alojar. Como ainda não tínhamos recebido as camas
de campanha, tratei de utilizar essa maldita cama-rôlo, ou rôlo-cama – sei lá que
tanto me azucrinou a paciência todo o tempo. Recheei-a com palha – agulhas de
pinheiro – e consegui fazer um colchão até razoável e, é sentado nele que escrevo
estas linhas. Acho que vou sentir falta do balanço do navio, para dormir...afinal
foram mais de vinte dias no mar!74

Por sua maior clareza e conhecimento geral, Ruy sentiu que estava realmente em um
país estrangeiro quando viu um dos símbolos italianos: a Torre inclinada de Pisa. Parece que
muitos foram os brasileiros que perceberam melhor o momento e o local em que estavam na
Guerra, quando viram a materialização da destruição, por meio dos navios afundados e
das casas furadas à bala, ou quando identificavam uma característica inconfundível de um
_________________
74 - Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
país, que no caso, foi a Torre de Pisa. Mas, é um outro momento que se percebe o valor da
chegada da FEB na Itália, depois de tantos revezes durante o treinamento no Rio de Janeiro:
é a bandeira brasileira tremulando e marcando um território em San Rossore, que naquele
instante fazia parte do próprio Brasil. Diferentemente da Guerra do Paraguai, onde, na visão
dos paraguaios, fomos os inimigos invasores. Agora éramos os “libertadores”, expressão que
foi bem utilizada pelos italianos durante a Guerra. Em relação aos italianos, a primeira visão
sempre era do horror que a população vivia com as conseqüências da guerra. Ruy nos relatou
assim sua primeira impressão daquele povo:

Emocionante era a necessidade deles em termos de comida, de roupa, até de


sabonete, de cigarro, agulha. Agulha na Itália valia dinheiro. A gente quando
chegou já notou isso, desde Nápoles, pois próximo aos navios, apesar da polícia
americana agir, sempre ficavam pessoas pedindo chocolate, cigarros....ao
desembarcarmos e seguirmos para o acampamento, vimos uma miséria ainda
maior, em Pozzuoli paramos para ajustar o comboio e vimos que cidades menores
sofriam ainda mais. Muita mulher pedindo dinheiro, comida, vendendo coisas. Eu
mesmo comprei algumas maçãs..na verdade troquei por cigarros, pois eu não
fumava. Passamos por cidades com casas furadas de balas, bombardeadas, isso
causou uma impressão não muito boa, o pessoal começou a ver que estávamos
realmente chegando na Guerra75.

O maior contato com a população fez surgir um sentimento de aproximação e


solidariedade que se tornou uma marca da presença brasileira na Itália. Com o início dos
combates e a perfeita compreensão das dimensões da guerra, o soldado brasileiro encontrou
no povo italiano, mais e melhores motivos para ter atravessado o Atlântico e enfrentar o
exército alemão. A experiência negativa do 1º escalão foi bem aproveitada para melhorar a
recepção dos brasileiros que vieram em seguida. Então, quando o 2º e 3º escalões chegaram,
já havia barracas armadas a esperá-los e comida quente para serem servidas e que ajudariam a
esquecer um pouco das rações C. Foram pequenos cuidados tomados, mas, como podemos
sentir nas palavras escritas no diário de Ruy, proporcionaram uma grande satisfação aos
homens, que já começavam a sentir o espírito de corpo que se formava e que era natural em
um ambiente militar e que se torna primordial para o sucesso em um conflito. No entanto, o
fazer parte de um grupo e ter consciência disso é bem mais que barracas montadas com
antecedência e comida bem feita e quente, mas já era um bom começo.
Zé Maria continuou muito bem de saúde durante a viagem nos L.C.I. e, portanto, fez

_____________
75 – Depoimento [Jul. 2005].
importantes observações sobre o que viu entre a chegada em Nápoles e a chegada em San
Rossore:

(...) então o senhor sabe a gente foi até Gibraltar comboiado pela , ..barcos da
marinha de guerra brasileiro né?! barcos, o comboio era misto, navios de guerra
americanos, de vez em quando à noite a gente escutava o ronco dos motores dos
aviões, né?! esquadrilhas de proteção e durante o dia era só olhando, de tantas em
tantas horas de repente você olhava pro céu ..formação..até Gibraltar, de Gibraltar
até o porto de Nápoles ...aí já ....em Gibraltar foi feito a ...uma cerimônia de
despedida , todo mundo no convés ou a maioria da tropa no convés e os barcos
brasileiros perfilados voltando, dali pra frente foi o comboio americano ...ao
entramos no porto de Nápoles ...e eu por exemplo, modéstia a parte eu sabia que
era Nápoles porque era muito bom em geografia ......era mesmo, gostava muito
mesmo de geografia, eu sabia que era Nápoles, a gente chegou de manhã, tipo 6
horas, 7 horas, e o navio sendo rebocado, em zig- zag tamanho era o número de
embarcações afundadas no porto e ainda com a parte do casco pra cima, então,
..até atracar, mas era muito barco afundado , o porto todinho, olhava ...de lado, pra
frente, pra trás, só via casco de navio em todas as posições ..e as instalações do cais
tudo, ..destruída por bombardeio de aviação, encostamos, permanecemos naquele
dia, permanecemos estou me referindo a minha companhia, eu, meu pelotão! né?!
Aconteceram movimentos de desembarque já prá....prá seguir pro local de destino
a gente notava muito, da armurada (sic) do navio, a gente via muito, ....civis
italianos, né?! e..carregados, na descarga de coisas que deveriam ser descarregadas
e aí nós soldados descobrimos que ..o primeiro lado da miséria em que eles viviam,
porque bastava ..jogar o cigarro no espaço da ..do cais ..o primeiro que via o
cigarro cair saía correndo , cadinho e vinha correndo outro atrás, quem chegasse
primeiro apanhava ...uma coisa dolorosa, é um dos grandes males, de guerra é
isso, a miséria que a população civil passa , que para o militar, seja de uma maneira
ou de outra, tem uma ração diária, tem qualquer coisa..no dia seguinte, nós
desembarcamos, caminhamos, o navio tava assim ó..nós caminhamos à esquerda,
aí 500 metros talvez à esquerda, aquela barcaça da invasão da Normandia
ancoradas e pelo fato da minha companhia ser a última companhia do regimento, o
meu pelotão ser o último da companhia, nós embarcamos, eu embarquei na última
barcaça , eu lembro que nós embarcamos 18 , 18 brasileiros, a tripulação..não
confirmo muito não, ....era um tenente americano, ......soldados, sargentos, era uns
oito a dez homens, não era mais do que isso não. A tripulação da barcaça.
Desatracamos bem da linha, desatracamos..era o Mar Mediterrâneo, não é?! nós
íamos em direção ao norte, ..Mar Mediterrâneo, não peraí...era de tarde,de tardinha
não, de tardinha era outra história... aí de repente o tempo mudou, um dos
espetáculos mais bonitos que eu vi da natureza, é aquilo que nós chamamos de
tromba d’água, mas o senhor via direitinho, uma ducha saindo da nuvem e caindo
dentro d’água, à grande distância....um dos espetáculos mais bonitos da natureza é
essa história dessa chuva. A gente navegou uma hora, uma hora e pouco, de
repente nossa barcaça parou, a gente estava no convés não animava descer do
compartimento, porque era tudo pequenininho, ia ter que agachar para poder, né?!
tinha que ficar no convés, não era proibido... daqui a pouco chegou um marinheiro
americano e por meio de gestos falou alguma coisa, aí a gente viu ... estava
navegando bem próximo da costa, Nossa Senhora, uma quantidade enorme, sem
exagero, enorme de minas, era tipo um tambor, mas um número enorme mesmo,
assim a olho nu, era como o sr chegar na janela e olhar do lado de fora, daí um
bocadinho veio o tenente que era o comandante, veio com a carabina, veio o
sargento também com a carabina, para tentar explodir as minas. E como explodir?
não tinha como... eu tô falando porque peguei a carabina e tentei. O senhor ficava
assim... senhor mirava querendo ia levar o dedo no gatilho prá puxar a proa da
barcaça abaixava, tava perdido o ângulo do tiro, quando o senhor tornava... ela
suspendia, aí o tenente desistiu, a gente já não estava enxergando o comboio lá na
frente, desistiu, naturalmente pelo rádio e informou a quem de direito, aí nós fomos
embora. Aportamos em um...sinceramente até hoje não sei como é que chama o
pequeno lugarejo que nós aportamos... pescadores era lugar de pescadores, muito
pequeno o local. Aí nós aportamos, passamos a noite ali, no dia seguinte cedo,
saímos até o porto de Livorno, né?! já é a metade do sul, norte italiano. A
destruição de Livorno também era bem semelhante à de Nápoles. Muita chuva prá
gente....área do porto toda protegida por aqueles balões dirigíveis, amarrados e o
piso tudo destruído e eu lembro que tinha tábuas para não pisar no barro, eram
tábuas até os caminhões de transporte de tropa, carroceria com aquele toldo de
lona, e dali nós fomos até o chamado campo de caça do Rei Emanuel, denominado
San Rossore nos arredores da cidade de Pisa, famosa cidade da torre inclinada.. o
senhor levava o material do saco “b”? não, o “A” era aquele do uso imediato
cada um tinha o seu, e o “B” é na carga, né?! ficava na carga era depois. Eu
confesso ao senhor que eu, eu acho que eu nem usei o saco “B” porque, houve
muito furto, houve muito roubo. Estivadores, vamos dar este nome, italianos, muito
roubo. Então a maioria nem ficou sabendo onde andou. o “A” era mais comum76.

A passagem do comando da segurança dos comboios dos navios brasileiros para os


americanos fazia parte do acordo entre os dois países, para que a Marinha tivesse uma maior
participação na Guerra e foi feita em todos os escalões. O ritual de transmissão foi carregado
de simbolismos: primeiro que os marinheiros brasileiros haviam cumprido a sua missão; e que
segundo, a partir dali começávamos a passar definitivamente para a ingerência dos norte-
americanos, fato que se concretizou com a formatura de apresentação da tropa ao General
Mark Clark, feita pelo 1º escalão.
A destruição de obras materiais e a infra-estrutura da Itália foi semelhante à muitos
países da Europa, bem como da maneira em que suas populações encararam o sofrimento
advindo com os combates. Zé Maria expôs a dura realidade a que foram apresentados os
expedicionários e que seria comum no dia-a-dia de convívio com os italianos. Vários viram o
que acontecia se jogassem uma ponta de cigarro no chão: quase uma luta entre os italianos
para fumar a última parte de tabaco existente. Se com cigarros, que apesar de serem utensílios
de prazer, principalmente naquela época, acontecia isto, o que dirá com algo mais necessário?
Dirão alguns.
Com muito boa capacidade de memória, Zé Maria se lembra dos detalhes da viagem
que fez no LCI, até da tripulação que o compunha e como eram exíguos os seus
compartimentos. Ressalta-se a sua visão do estado em que ficou a costa marítima
________________
76 – Depoimento [Dez. 2007].
italiana com os “objetos de guerra”, não somente os inservíveis, como aviões e navios
destruídos, mas como também os que ainda eram altamente destrutivos, como as minas
marítimas que viu e que foram alvo de diversão do tenente americano e dele próprio. No pós-
guerra levaria muito tempo para que alterações desse tipo fossem resolvidas no território
italiano.
Após um treinamento deficitário, com uma difícil concentração de tropas na Capital
Federal para os homens, uma viagem cheia de novidades e problemas, com uma chegada não
menos conturbada, restava à Força cumprir a missão que lhe fora dada. Viriam os
treinamentos finais e a entrada em combate. Aquela tinha que ser a sua Guerra.
Em 07 de dezembro de 1944 e 22 de fevereiro de 1945, chegaram à Itália, os 4º e 5º
escalões, respectivamente. Neles estavam somente os expedicionários do Depósito de Pessoal,
aqueles que estavam na reserva da FEB77. Muitos sem qualquer treinamento, mas que foram
enviados para estarem em condições na própria Itália e substituírem febianos que se ferissem
ou morressem em combates.
Muito antes de suas chegadas, a FEB já provava da Guerra: a cobra já estava fumando.

______________
77 - MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit.. p. 44 e 45.
4 BRASILEIROS EM COMBATE: GUERRA, HEROÍSMO E MORTE

Desde a partida do primeiro escalão da tropa do Brasil, o Comandante da FEB e seu


Estado-Maior sabiam que o treinamento realizado neste País havia sido deficiente, devido a
fatores como o despreparo logístico da Vila Militar, falta de materiais modernos e instrutores
capacitados, dificuldades na formação final dos contingentes e um maior apoio e coordenação
do Governo Federal e do Comando do Exército para minimizar estes problemas já citados.
Mesmo assim, com todos os pontos negativos que envolveram os acontecimentos
anteriores, os brasileiros conseguiram desembarcar na Itália. Mas teriam, no entanto, que
ultimar o seu treinamento para poderem atuar, definitivamente, como tropa junto aos aliados.
A chegada dos soldados na Europa foi motivo de euforia na imprensa brasileira e
desencadeou na população alguns exemplos de patriotismo, seja na forma de angariar doações
aos febianos como alimentos, objetos de uso pessoal, como cigarros e sabonetes, entre outros
utensílios; seja em organizar campanhas para incentivar o envio de cartas do Brasil aos
expedicionários1. Essas foram algumas das formas de que a população encontrou para fazer a
sua parte. Com o desenrolar dos combates, a cobertura da imprensa foi se tornando cada vez
melhor, inclusive com o envio de seus próprios correspondentes de guerra, e a população,
mais esclarecida com informações dos noticiários, vivia a guerra pelas ações dos soldados
brasileiros. Nada que se assemelhasse com a angústia que sentiam os familiares,
principalmente com as notícias das primeiras mortes e dos primeiros feridos. Os combates e
as dificuldades com o terreno montanhoso e as condições meteorológicas, principalmente a
neve que veio com o mais forte inverno em cinqüenta anos, foram obstáculos duros para os
jovens e inexperientes brasileiros, e custaram a vida de muitos, mas também ajudaram a
formar a mística do soldado da FEB.
Neste capítulo, trataremos primeiro dos preparativos de FEB para os combates que já
se desenvolviam, há mais de um ano, em território italiano e que demandariam grande esforço
do Comando brasileiro e dos seus comandados no sentido de rapidamente estarem em
condições de lutarem. Com a fase de preparação concluída, os brasileiros finalmente
enfrentariam os temidos e, até aqueles momentos, inatingíveis alemães nas perigosas
montanhas da Itália. A Guerra, desde que seus primeiros homens entraram em ação, em 06 de
________________
1 – Diário Mercantil. Juiz de Fora. 23 de julho de 1944. p 1.
setembro de 1944, na participação da 1ª Companhia de Engenharia do 9º Batalhão de
Engenharia de Combate2 até a rendição alemã, em 2 de maio de 1945, desenvolveu-se sem
interrupções para os brasileiros. Foram 246 dias em que pelo menos alguma das frações que
compunham a Força realizasse algum tipo de ação contra o inimigo. Neste período, pelos
olhos dos veteranos, analisaremos como se desenrolou o conflito e a vida de cada um. Serão
abordados aspectos como o contato com os aliados estrangeiros e com o povo italiano, bem
como com o inimigo alemão; a questão da adaptabilidade do brasileiro em combate, tão
reforçada pela Literatura Militar no Brasil, como um dos pontos fortes nesta campanha; as
vitórias e reveses no campo de batalha; serão tratados, também, sobre o dia-a-dia do
expedicionário, suas amizades, seu contato com a família e amigos no Brasil e como
enxergava seu papel no conflito. Didaticamente, este capítulo será dividido em cinco partes,
que foram, por nós, identificadas como situações de inflexão na participação brasileira.

4.1 O treinamento final

No 2º capítulo falamos sobre a chegada da tropa de 1º escalão em Nápoles, onde os


homens ficaram por quinze dias na cratera do extinto vulcão Astronia e dos primeiros
problemas enfrentados com a falta de barracas e de alimentos quentes para os brasileiros. Más
situações que foram contornadas com dificuldades pelo Comando da Força, problemas que
surgiram muito devido a pouca fluência na língua inglesa quando na comunicação com o
Comando Americano, o que fazia com que ficassem dependentes dos intérpretes3. Outro fator
que dificultou os primeiros momentos na Itália, foi a postura de dependência culturalmente
arraigada nos brasileiros, segundo McCann, que os limitava na tomada de decisões, esperando
pelas ordens e orientações dos americanos4. Ressalta-se, também, o fato da falta de
comunicação que existiu entre os homens que traçaram o acordo entre o Brasil e os EUA com
os chefes militares da Força5, o que fez com que não ficasse claro, até onde iria a
responsabilidade de cada governo na participação brasileira. Para Lima Brayner, faltou,
também, um melhor planejamento do Comandante da FEB em sua visita à Itália, meses antes
do desembarque6.
A falta de barracas e comida quente, além de dificuldades na coordenação entre
________________________
2 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 71.
3 – MCCANN, Frank D. Op.Cit. p. 319.
4 - MCCANN, Frank D. Op.Cit. p. 285.
5 - MCCANN, Frank D. Op.Cit. p. 319.
6 – BRAYNER, Floriano de Lima . Op.Cit. p. 115.
brasileiros e americanos, foram apenas os primeiros dissabores desta chegada. Haveria muito
pior ainda por vir.
Os primeiros dias em Nápoles foram cruéis e apontaram o despreparo da tropa
brasileira. A começar pelo estado de saúde de parte dos homens, que apresentavam moléstias
como caxumba, gripe e doenças venéreas. Doenças respiratórias tornaram-se preocupantes
devido à necessidade de dormir ao relento sob um frio intenso nos primeiros dias. Houve,
ainda, os danos à saúde causados pela má conservação dos dentes e que não foram
devidamente verificados pelas inspeções de saúde no Brasil. Em um efetivo de 4200 homens,
segundo Senna Campos, de um total de 5.075 que vieram no 1º Escalão, 19.116 dentes foram
arrancados com cáries de 3º grau, mais de quatro dentes por homem, o que gerou críticas dos
americanos, que primavam pelo boa capacidade higiênica das tropas em combate7.
A partir do 5º dia é que começaram a entrega de material de acampamento, como
mosquiteiros, camas, cobertores e gêneros para confecção de comida quente, abrandando as
dificuldades enfrentadas pelos homens. Em poucos dias, com as primeiras instruções, mesmo
sem todo o material a ser recebido, os calçados apresentaram problemas em suas solas, pois se
soltavam com as atividades um pouco mais intensas, como as marchas à pé. Foi constatado
que esses calçados foram feitos de qualidade ruim, o que levou ao Comando que solicitasse
aos americanos 5000 pares dessas botinas, pedido que mais à frente tornou-se um grande
vexame para a FEB. Para os homens que ainda viriam em outros escalões foi providenciada a
correção deste problema, pois havia tempo hábil para isso devido ao lento processo de retorno
dos navios de transporte americanos. Senna Campos relatou que a complicação surgida nesse
apoio dos EUA foi a falta de botinas menores para os pés dos soldados brasileiros, primeiro
pela compleição física dos americanos e segundo porque estes gostavam de usar os calçados
dois a três números maiores8. Com o passar do tempo, os uniformes, com as lavagens,
foram encurtando e desbotando, deixando um aspecto ruim na apresentação dos homens,
vislumbrando mais dificuldades com o desenrolar das atividades que se tornariam mais
intensas.
Com as primeiras instruções realizadas, voltadas para oficiais e sargentos, com
objetivo de se adestrarem na condução das patrulhas, um grupo de brasileiros, bem como o
Comando da FEB, sofreu com a constatação de que o preparo realizado no Brasil fora quase
desprezível. Segundo testemunhou Lima Brayner quando de uma visita do comando da

_________________
7 – Relatório do Marechal Mascarenhas de Moraes. p. 18. Arquivo Histórico do Exército.
8 – CAMPOS, Senna. Com a FEB na Itália. p. 78.
Fot 26 Soldado brasileiro em instrução de Minas. Na figura, um
militar opera mina anti-carro. Disponível
em :
<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Força à Escola de Liederships, após o convite do oficial americano responsável pelas
instruções, que já duravam quinze dias:

Presente, no dia combinado, por sinal com tempo chuvoso e muito frio, o General
Mascarenhas, a quem acompanhei na inspeção, defrontou-se com o oficial
americano, recebendo as continências de um pelotão composto por trinta oficiais
brasileiros, todos armados de fuzis ordinários.
Nesta ocasião, o Comandante da Escola Liederships fêz os mais veementes elogios
aos jovens oficiais que ali se encontravam, salientando sua dedicação, capacidade
técnica, espírito de sacrifício e fibra invulgar, apesar de estreantes naquele terrível
mister.
Falando em tom patético, o oficial americano, apoiado pelo intérprete, mostrou que
sua preocupação principal era outra, ao mesmo tempo que exaltava o excelente
estado moral. Era o lamentável estado dos uniformes e calçados que não tinham
um mês de uso. As capas, ditas ‘impermeáveis’, não o eram absolutamente. As
chuvas as havia encharcado e os oficiais que as portavam estavam molhados até a
medula. As polainas verde-oliva, de tecido impróprio, tinham-se transformado em
sanfonas caídas sobre os tornozelos, alguns dos quais se apresentavam feridos e
inflamados. Os coturnos, na sua quase totalidade, tinham descosido as solas,
tornando o uso um verdadeiro suplício nos deslocamentos prolongados. Para
cumular o ridículo, o Comandante da Escola exibiu uma manta (cobertor) levada
por um oficial nosso, cuja notória transparência denunciava que, na confecção, não
existiria talvez 10% de lã.
No entanto, aquele grupo de jovens oficiais brasileiros, silenciosos e resignados,
hirtos de frio, não tinham uma só palavra de queixa contra os suplícios que estavam
sofrendo, por amor e respeito ao nome do seu país, que não podia ser
responsabilizado pelo que estava acontecendo.9
A atitude do militar americano, segundo Lima Brayner, tinha por objetivo informar ao
Comando da FEB sobre os problemas dos fardamentos e dos equipamentos que os brasileiros
_______________
9 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 116
utilizavam. Em sua experiência na lida da guerra, aquele oficial não tinha por finalidade
humilhar o Brasil, ao apontar a falta de cuidado com o preparo de seus representantes, mas
sim contribuir para que os problemas fossem corrigidos o mais rápido possível, visando o
melhor rendimento de toda a tropa quando estivesse em combate. Não havia, portanto, como
fechar os olhos para os graves problemas de logística que se desenhavam para a FEB, e que
transpareciam em um simples exercício no terreno com oficiais. Algo deveria ser feito, antes
que toda a Força passasse por situações de vexame que pudessem prejudicar, inclusive, seu
rendimento na guerra.

Fot 27 - Soldado do Serviço de Saúde em treinamento. Disponível


em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Acesso em: 04 Jul 2006

Mascarenhas relatou os problemas aos seus superiores no Brasil e decidiu, após ser
assessorado por seus oficiais mais próximos, inclusive Lima Brayner e os oficiais de ligação
americanos, em pedir apoio à Peninsular Base Section (PBS), que era um grande órgão de
apoio logístico do V Exército. A saída para esta situação parecia a mais sensata e correta, o
que deixou a todos que souberam desta possibilidade, eufóricos e otimistas. Foi feito um
pedido por escrito, mas o Comandante da FEB tratou de resolver pessoalmente o problema.
Lima Brayner diz que seguiu com Mascarenhas de Moraes para o PBS que ficava em
Caserta, no antigo palácio real e aguardaram uma audiência com o general americano
responsável por aquele órgão. Ao serem recebidos pelo general, este estava acompanhado por
um capitão americano – J.Russo - que falava muito bem o português, por ter trabalhado em
Recife quando era civil. Tratando os oficiais brasileiros de maneira pouco amistosa, o general
solicitou à Mascarenhas que justificasse a necessidade de que fosse atendido um pedido tão
extenso, já que eram equipamentos e uniformes, além de armas e viaturas, para toda a FEB,
principalmente para o primeiro escalão, que somava cinco mil homens e aguardava este apoio
para impulsionar o treinamento. Lima Brayner descreveu assim esse encontro:

Meu pressentimento não foi lisonjeiro, tão acostumados já estávamos em tratar


com outras personalidades e a sofrer decepções, que começavam a gerar, entre nós,
um perigoso complexo de inferioridade.
A doçura e a quase humildade, típicas do brasileiro, mormente quando não está
cheio de razões, vieram a tona na personalidade do Comandante da FEB e de seu
Chefe de Estado-Maior.
O desempenho e o arrebatamento do General anglo-saxão constituíram um violento
impacto. E repentinamente, sumido os dois no fundo do sofá, sentimo-nos, além de
pedintes, como se fôssemos réus do feio crime de querer morrer aos pés do
Olimpo.
Teríamos querido, talvez, ouvir uma referência carinhosa ao Brasil, uma palavra de
estímulo e de entusiasmo pelo esforço que estávamos despendendo.
Convidado a explicar o vulto daquele pedido, o Gen. Mascarenhas fêz ver que se
julgara autorizado a requisitar tudo o que necessitava sua tropa e seu Comando,
comprometendo-se a recomendar aos demais escalões, que ainda estavam para vir,
que não incorressem nas mesmas faltas e deficiências em que incorrera o 1º
Escalão de Transporte.10

O Comando da FEB, no entanto, não sabia que o PBS não tinha por finalidade apoiar,
em material, tropas que, como no caso da FEB, chegassem sem o mínimo material de
combate. O PBS preocupava-se com as Unidades que já estavam engajadas em combate, na
reposição de equipamentos, como carros de combates e viaturas, e no transporte destas
Unidades.
O PBS não era um órgão provedor, mas isso não havia sido informado nem pelas
autoridades americanas na Itália nem pelos responsáveis pelos acordos feitos pela Comissão
Mista de defesa Brasil – EUA (JBUSDC), que previam a entrega de equipamentos de guerra,
como armas e capacetes, mas não de vestimentas, pois estas eram de responsabilidade dos
brasileiros. Os termos dos acordos feitos no ano anterior, não foram bem sintonizados com
aqueles que efetivamente cumpririam a missão na Guerra.
Lima Brayner continua sua versão do fato:
O General da PBS quis nos fazer uma recriminação por desconhecermos as
finalidades de sua Grande Base. Não era destinada ao aparelhamento das Unidades
que chegavam. As Grandes Unidades americanas, após seus primeiro estágio na
região de Oran, no norte da África, deslocavam-se para o front completamente
aparelhadas.

___________________
10 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 119.
Essa era a norma a que se acostumara o comando da PBS. Defrontando-se com o
volumoso pedido de Comando Brasileiro, o General americano não escondeu a sua
surpresa e, sem conter a irreverência, perguntou, por intermédio do intérprete, em
tom irônico, que a rigor representava uma censura:
- Afinal de contas, o que o senhor trouxe para brigar? (grifo nosso)
A pergunta brotou, talvez impensadamente, mas com alta dose de sinceridade. Nós
a entendemos perfeitamente, sem necessidade do intérprete. Este, por sua vez,
moço educado e conhecedor de certos aspectos da vida brasileira, mostrou-se
ruborizado e aflito ante a desolação que nos atingira. E, sem receio das
conseqüências, dirigiu-se ao seu Chefe americano:
- Meu general, quero informar-vos de que o Gen. Mascarenhas foi o Chefe
brasileiro que organizou a defesa do Nordeste brasileiro para a América!
E o General Comandante da FEB em tom veemente, acrescentou:
- Para a América não! Para o mundo ameaçado!11

O general americano tratou de se explicar dizendo que a culpa era dos americanos que
não trataram com devida importância sobre o assunto de fornecimento do material ainda no
Brasil, procurando assim contornar a situação, prometendo estudar o pedido e atendê-lo.
Porém, sua atitude anterior, ao debochar da falta de equipamento da tropa, abateu o orgulho
dos dois oficiais brasileiros que saíram “tristes e silenciosos”.12
Mais tarde, parte do pedido feito foi atendido, apesar de corte considerável,
principalmente em não fornecer à FEB o fuzil semi-automático Garand, que era a arma
empregada pelos americanos, mais moderna do que os fuzis de repetição Springfield que
seriam postos à disposição dos brasileiros, e que segundo Lima Brayner, eram inferiores aos
velhos fuzis Mauser usados no Brasil, datados de 1908. Os Garands, considerados pelo
General Patton “a melhor arma já fabricada”, proporcionavam maior poder de fogo, por
dispensarem a recarga manual de tiro à tiro dos fuzis de repetição. Além do fato de que os
alemães utilizavam em suas linhas de defesa armas automáticas, como metralhadoras, o que
demandaria boa capacidade de fogo para as tropas atacantes. Fornecer os Springfield era uma
demonstração de desapreço.13
Os americanos se justificaram dizendo que não havia quantidade suficiente de Garand
sendo fabricados e que estes eram destinados às tropas na Normandia e como ele era um fuzil
semi-automático, aumentava em muito o consumo de munição, principalmente em tropas
inexperientes, acarretando em problemas de logística no remuniciamento.14

_________________
11 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 119-120.
12 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 120.
13 – MCCANN, Frank D. Op.Cit. p. 323.
14 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit.. p. 122.
O descontentamento caiu sobre todos aqueles que tiveram conhecimento desta notícia,
aquilo significava que os febianos entrariam em combate ao lado dos maiores exércitos do
Mundo, contra um poderoso inimigo, com um armamento pior do que utilizavam no Brasil!
Houve depois, uma outra decisão vinda dos EUA que beneficiou os brasileiros, ao remeter
uma quantidade de Garands para a FEB. Segundo Toninho, aos sargentos e oficiais foram
fornecidos os Garands e os cabos e soldados ficaram mesmo com os obsoletos Sprinfield. 14
Segundo McCann, os americanos não entendiam o descontentamento dos brasileiros, pois
acreditavam que mais importante que o armamento moderno era um bom treinamento, e os
febianos ainda não haviam treinado com nenhum dos dois fuzis.15
Com quase um mês da chegada da FEB, o treinamento estava quase inexistente, a
tropa se deslocou inteira para a cidade de Tarquínia, que fica próxima à Civittavecchia, onde
ficava o porto em que desembarcariam os materiais para serem entregues à Força.
Tarquínia ficava há mais de 350 quilômetros de Nápoles, o que exigiu um grande
deslocamento feito em quatro dias de viagem, a partir de 01 de agosto de 1944, em viaturas
do PBS. Chegando ao destino e levantando novo acampamento em 05 de agosto, tiveram
conhecimento da primeira atitude do Comando do V Exército Americano em proporcionar os
meios necessários para que os brasileiros entrassem em ação. Mark Clark ordenou que
rapidamente o armamento e o material restante que faltava fosse entregue à FEB, pois já havia
rumores de que este seria desviado para tropas americanas ou francesas 16. Os brasileiros
viviam ainda na expectativa de serem preteridos nos seus pedidos, ainda que as garantias
fossem dadas. Era o ônus de depender das disponibilidades de outra Nação.
O primeiro contato de Clark com a tropa brasileira ocorreu alguns dias depois, em uma
visita de inspeção que se mostrou logo, de boas vindas. Clark levou seus principais
assessores, incluindo seis generais, para verificar as condições dos homens e conhecer de
perto a FEB, apesar de já ter tido contato com alguns oficiais, inclusive Mascarenhas de
Moraes.17
Mark Wayne Clark era filho de um militar do Exército Americano e nasceu Sackets
Harbor, no Estado de Nova Iorque, em 01 de maio de 1896. Graduou-se sem grandes méritos
na Academia de West Point e lutou como tenente de infantaria na 1ª Guerra Mundial. Pouco
antes da entrada dos EUA na 2ª Guerra, foi promovido ao posto de General - de - Brigada
__________________
14 – Depoimento [Out. 2004].
15 - MCCANN, Frank D. Op.Cit. p. 323.
16 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 131.
17 – CLARK, Mark. Op.Cit. p. 408.
com apenas 46 anos de idade, um dos mais jovens daquele Exército. 18 Como comparação,
Mascarenhas de Moraes tinha 58 anos nesta época. Amigo íntimo de Eisenhower, comandante
das forças aliadas e mais tarde presidente dos EUA, Clark foi escolhido para comandar o
recém-criado V Exército Americano na campanha da África, obtendo importantes vitórias que
o credenciaram para atuar na invasão da Itália.19 Até a chegada da FEB, havia sido criticado
pelo planejamento da invasão de Salerno, onde quase um desastre ocorreu com a morte de
milhares de soldados americanos e também por ter ordenado a destruição do milenar mosteiro
em Monte Cassino, onde havia sido informado, de maneira errônea, que no local havia
inimigos alemães.
Foi descrito pelos brasileiros como um homem simples e comunicativo, vivia em um
pequeno trailer na guerra e procurava estar próximos de seus subordinados dando- lhes as

FFot
Fot 27 - Mark Clark em revista à tropa brasileira. Observa-se que os homens
perfilam ainda sem suas armas. SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 53.

melhores condições para que lutassem.20 Disse anos depois que nunca se furtou a receber a
FEB como uma das suas Unidades, mesmo com a falta de experiência em combates, o que de
fato foi um facilitador para os brasileiros naquele ambiente, que segundo Lima Brayner, já se
tornava “hostil”.21 A primeira notícia que havia recebido sobre a possibilidade de receber

______________
18 - MCCANN, Frank D. Op.Cit. p. 324.
19 - CLARK, Mark. Op.Cit.
20 – Brayner constantemente enaltece a contribuição de Clark, não apenas como um chefe militar, mas como um
homem preocupado com as condições para o combate de seus subordinados.
21 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 123.
brasileiros foi em 1943, na África, pelo Brigadeiro Eduardo Gomes e desde então mostrou-se
favorável e receptivo a esta idéia.22
Não se importava com a origem ou a tradição cultural de suas tropas, já havia tido
contato com militares e povos de diversas etnias na guerra da África, quando chegou à Itália
comandou a única Divisão negra americana na Guerra, a primeira Divisão Nipo-americana,
uma Divisão Sul-africana e uma Divisão Indiana, além de franceses, ingleses, poloneses,
neozelandeses, palestinos e italianos, todos que ao lado dos americanos, formavam o V
Exército Americano e o VII Exército Inglês, onde ambos constituíam o XV Grupo de
Exércitos. Clark compreendia a multiculturalidade e a humanidade da Guerra, bem como o
esforço destas Nações em enviar seus homens.
José Gomes teve um breve contato com Clark, que exprime bem seu caráter:

Quando eu estava na enfermaria, o comandante do 5º exército de campanha,


general Mark Clark, foi me cumprimentar, um ferido de outro país. O homem
chegou lá de mão na pala, pedindo licença, ao tirar a mão foi cumprimentar os
feridos de outro país. Só você vendo, eu tava lá de manhã, com o intérprete do
lado, e o general pedindo para cumprimentar os feridos de outro país!!23

Clark sabia da importância daquela guerra para os brasileiros, não somente para
aqueles que ali estavam, mas para o País, e compreendeu que deveria dar-lhes todas as
oportunidades de provarem o seu valor. Para José Gomes, a atitude de Clark, que demonstra-

Fot 28 - General Mark Clark. Disponível em:


www.history.amedd.army.mil/booksdocs/wwii/images/illus459

______________
22 - CAMPOS, Senna. Op.Cit. p. 52-53.
23 – Depoimento [Jan. 2005].
va prestígio e reverência aos feridos de outros países que lutavam ao lado dos americanos, foi
uma das grandes lembranças daquele conflito.
Finalmente, um mês depois da chegada do 1º escalão, a tropa recebia todas as suas
armas, equipamentos e viaturas próprias, dando-lhe condições de trabalho e de independência.
Nas primeiras instruções naquele local, ocorreram as primeiras baixas, com a explosão de
minas terrestres que feriram três militares do 6º RI em uma patrulha, 24 essa que seria uma
atividade das mais importantes durante toda a guerra. A pouca experiência na condução dos
caminhões militares e a disciplina rígida na rodagem nas estradas próximas ao inimigo, que
exigiam as luzes dos veículos apagadas, acarretaram nos primeiros acidentes fatais da FEB,
mas com o recebimento de armamentos, equipamentos e viaturas, já era possível colocar os
homens em atividade.
O tempo corria contra a Força, era preciso esforço para estar à altura daqueles que já
combatiam naquela Guerra. Para isso foi dada prioridade na instrução de tiro, de marchas à pé
e treinamento físico25, essas últimas para capacitar o homem ao terreno diferente e hostil que
estariam atuando, com muitas elevações, temperatura baixa e condições meteorológicas
adversas.
Os tempos difíceis no acampamento do 1º Escalão em Nápoles serviram para evitar
novos entraves no treinamento de adaptação dos escalões seguintes. Em 13 de outubro de

Fot 29 - Soldados em marcha de instrução. Disponível


em :
<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm

____________________
24 -BRANCO. Manoel Thomaz Castello. A FEB na II Grande Guerra. p. 170-171.
25 -BRAYNER, Floriano de Lima. A verdade sobre a FEB. p. 143.
1944, vindo com o 2º escalão, Ruy escreveu suas observações como era o acampamento em
San Rossore em que estava sua Unidade, o 11º RI:

Prosseguem os trabalhos de instalação do acampamento e melhoria das condições


de vida neste local, onde – dizem – faremos a aclimatação em solo italiano. Nas
áreas das subunidades, após às três grandes barracas que margeiam a estrada
principal, há sempre espaço limpo, utilizado para local de reunião do pessoal, bem
como para colocação dos três latões com água quente e fria, para limpeza das
marmitas. A seguir vem o espaço ocupado pelas barracas das praças, armadas por
ordem dos pelotões.
Distante uns vinte metros das ultimas barracas situam-se as fossas de detritos e as
latrinas, tudo muito limpo, constantemente desinfetados com cal virgem e com
hipoclorito, onde o plantão nos fazia mergulhar as mãos, assegurava a desinfecção
e, para enxugá-las, um rolo de papel higiênico estava sempre à disposição. Aliás o
papel higiênico aqui, tem um desempenho tão importante que chego a pensar que
ele é indispensável ao bom andamento da guerra...ele é toalha, é lenço, é
guardanapo, é atadura; tanto está nas mesas como nas cantinas, nas rações e nos
embornais e tudo isso sem levar em conta a sua função precípua.
Hoje fomos levados ao local dos banheiros, para conhecê-los e aprender a utilizá-
los. Obedecendo a uma escala organizada, em horários fixados, todos podem tomar
um bom banho que, devido ao frio do outono que já vai a meio, é de água tépida:
nem muita fria e nem muito quente.
Um quadrado de 20 x 20 m, mais ou menos, cercado por uma lona verde-escura,
envolvendo um grande tablado de ripas; por cima de tudo, uma rede de canos com
furos espaçados, por onde jorra a água aquecida pela caldeira próxima; uma bomba
acionada por um motor a gasolina, se encarrega da pressão. O caldereiro-bombeiro
é um paisano, italiano que se chamava inicialmente GUISEPPE – BEPO OU
PEPINO – mas que com o passar das horas ficou sendo chamado de ALFREDO
OU CALDAS. Explico: é que quando a água está muito quente, a gente grita:
“FREDDO! FREDDA!” e a contrário, quando está muito fria a gritaria é pelo
“CALDO! CALDA!” tudo para que o pobre homem, correndo de um lado para
outro, regulasse a mistura na bomba de pressão....recebemos as camas de
campanha.26

Fot 30 - A vida na guerra tinha quase as mesmas atividades de um quartel,


como a barbearia nas horas de folga. SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op.
Cit. p. 56.
________________
26 – Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
As observações negativas feitas ao 1º escalão fizeram com o Comando da FEB exige
rigor dos militares na higiene dos acampamentos, como bem descreveu Ruy ao falar da
organização das barracas, da preocupação com a limpeza do local, das marmitas utilizadas
para as refeições, da distância das latrinas e fossas dos locais de alimentação e de repouso,
bem diferente do que aconteceu meses antes quando alguns soldados faziam suas
necessidades no mato. A organização incluía instruções de uso de banheiros de campanha e
escalas com horários para os banhos com o equipamento próprio para uso em guerra. Era uma
outra FEB que aparecia com menos de quatro meses na Itália.
Os primeiros contatos com os italianos geralmente eram como o descrito por Ruy: nos
acampamentos da FEB com aqueles que trabalhavam em atividades de apoio aos soldados.
Evitava-se empregar os soldados em tarefas simples ou que não eram previstas pessoal militar
específico, deixando-os para trabalhos mais especializados ou que fossem exclusivos ao
combate, e o custo para isso era baixo, geralmente era dada a alimentação para o italiano.
Somente em 23 de outubro, portanto dez dias depois, é que Ruy e sua Unidade
começaram a receber o material previsto, bem como o armamento que iriam finalmente travar
contato e utilizar em combate. Ruy relatou que receberam os dois fuzis – Springfield e Garand
– fuzis-metralhadoras, metralhadoras leves e pesadas, morteiros 60 mm e 81 mm, lança
granadas, bazucas, bússolas, fogareiros, entre outros.27
Atividade que se prolongou durante mais um dia, tamanha era a quantidade de
material a ser entregue, inclusive mais roupas, o que fez com que deixassem “de parecer com
os tedescos”. O uniforme brasileiro, durante toda a campanha, sempre foi objeto de críticas
por parte dos febianos. Os capacetes, que eram bem diferentes dos utilizados no Brasil, eram
em dois conjuntos, um de aço e outro de fibra, que eram utilizados quando em combate, de
forma combinada. Em situação de tranquilidade na retaguarda podia-se usar apenas o de fibra.
Receberam galochas, capotes, capas e o famoso field-jacket, que era uma jaqueta pesada de
cor verde-amarelada utilizada por sobre as blusas de lã verde-oliva dos brasileiros.
Na partida do 2º e 3º escalões do Brasil, dissemos que os febianos haviam recebido
alguns materiais que não foram distribuídos aos homens do 1º escalão, quando da viagem,
como a cama-rolo. Esta nova postura foi fruto, mais uma vez, das lições aprendidas com as
dificuldades dos meses anteriores. Para os homens que vieram depois, os ensinamentos
tornaram as coisas mais fáceis. Mas o aprendizado era algo constante no dia-a-dia da FEB,
como relatou Ruy sobre o capacete de aço:
________________________
27 - Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
Fot 31 – Febiano costurando seu uniforme. SULLA,
Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 57.

“aprendemos que ele tem mais utilidades que a específica: ele será nossa pia e o nosso tanque
portátil pois nele poder-se-à armazenar água para a higiene individual e para lavar pequenas
peças de roupa. Aqui, cada dia se aprende algo de novo!...”28
Geraldo Rodrigues também estava em treinamento na reserva de pessoal do 6º RI,
aguardando ser chamado. Quando o V Exército decidiu que utilizaria o FEB com apenas
uma parte de seu pessoal, o “Destacamento FEB” ou 6Th Combat Team, observou-se, então,
que os brasileiros não possuíam uma fração que fizesse a atividade de recolhimento e
sepultamento dos mortos, que com certeza, ao iniciar os combates, seriam mais comuns. A
Guerra, para Geraldo, começava a ter um novo rosto, uma nova missão:

(...) quando nós chegamos em Vada, apareceu um capitão e botaram o meu pelotão
em forma. Ele era um cara muito tosco, muito ignorante. E disse: ‘eu preciso de
oito soldados e dois sargentos, agora eu preciso de gente desprendida, de gente que
vai pra pá, pra picareta, que vai pra isso...’.
Ai eu tinha combinado com um sargento de Belo Horizonte, Luiz Martins de
Silveira, que se aparecesse alguém pedindo voluntários, eu vou sair voluntário. E
ele disse que me acompanhava. Como precisava de oito soldados, ele pegou quatro
da peça dele e eu peguei quatro da minha. Aí quando ele pediu um dos sargentos,
eu não sabia para o que era, eu dei um passo à frente, ele disse: ‘o senhor é
motorista ?’
- eu disse: ‘não senhor!’
- ele disse: ‘então não serve!’
Então eu voltei. Aí o Martins que era motorista, ele aceitou o Martins. Aí ele disse
que precisava de outro sargento. Aí eu dei um passo à frente. Ele virou pra mim e
falou: ‘ o senhor é insistente!’. Eu respondi que não era insistente e que ele
estava com a situação resolvida e eu queria resolver a minha. Não queria ficar

__________________
28 - Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
no Depósito, eu já estava no Depósito do 6º, eu não quero ficar no Depósito, aí ele
me aceitou.
Então eu e Martins arrumamos nossas coisas e partimos sem sabermos para onde
íamos. Aí depois de andarmos um tempão, chegamos na intendência e eu disse ao
Martins: ‘ou nós vamos transportar munição ou outra coisa qualquer’. Ficamos na
intendência todos.
No dia seguinte chegaram dois soldados americanos e nós entramos na viatura
deles e calculamos que iríamos estagiar. Tamo andando, tamo andando..aí paramos
em um lugar e o Martins disse: ‘Ô Rodrigues, olha pra sua direita!’. E eu olho pra
direita que nada. Depois resolvi olhar. Nós estávamos em Vada, em um cemitério
americano, 1200 mortos, de toda maneira que o senhor olhava, as cruzes estavam
alinhadas. Aí nós descemos e eu não falava nada de inglês nem de mexicano nem o
Martins e tamo acompanhando os caras e entramos no cemitério. Aí pegamos uma
outra turma. Aí o cara fez sinal e eu peguei do lado de uma lona de mais ou menos
12 metros de largura por vinte de comprimento, eu peguei de um lado e o Martins
de outro, e descobrimos aquilo. Aí que o Martins falava pra mim assim, ele era
prático de farmácia, tinha estado na fronteira com a Bolívia: ‘Rodrigues olha pra
trás’.
E eu disse: ‘que olha pra trás o quê, vou olhar frente!’.
Mas depois eu resolvi olhar pra frente e vi que nós estávamos descobrindo
cadáveres. E aí é que tomamos ciência do que iríamos fazer.
Não fomos preparados nem avisados, era tudo assim, de repente. 29

Geraldo jamais imaginaria que após ter realizado seu curso de formação de sargento
de infantaria e um treinamento de seis meses no Rio de Janeiro voltado para a Guerra, 30 ainda
que este tivesse sido realizado com todos os problemas analisados, teria que compor uma
fração tão singular como o pelotão de sepultamento. Este grupo de homens em tempo de paz
não era previsto nos quadros de pessoal das unidades do Exército, já que sua necessidade é
para a guerra. Mas com a possibilidade da FEB entrar em combate antes da chegada dos 2º e
3º escalões, que traziam o pessoal previsto para essa atividade, a saída foi mais uma vez
improvisar: recrutar elementos para cumprir a atividade de sepultamento.
Geraldo e o sargento Martins descobriram da forma mais inusitada que não iriam para
o combate enfrentar o inimigo alemão, estavam destinados a recolher aqueles que não foram
felizes no dia da batalha. Não conquistariam terrenos, mas sim o limpariam das conseqüências
de um ataque. Não sorriam pela conquista, pela vitória, lamentariam a infelicidade dos
companheiros mortos. Assim mesmo era a importante missão a que teriam que cumprir. A
guerra real a que os brasileiros, sem experiência em combates, não estavam familiarizados
não era feita de tiros de festim ou mortos imaginários, ela era feita de potentes tiros de fuzis e
metralhadoras e pelos terríveis canhões e minas, e com eles os mortos eram reais, os ferimen-

_________________
29 – Depoimento [Out. 2004].
30 – Ibdem.
tos eram reais, as mutilações eram reais, o sofrimento era real. O rápido treinamento com os
americanos não significou que o trabalho fosse fácil, nada é fácil na guerra, mas para Geraldo
e seu amigo e os soldados que os auxiliariam, treinar a mente para isso era o que deveriam se
preocupar. Ao medo da morte foram treinados para não sentir, mas e o medo da face da
morte? Estavam preparados?!

Fot 32 - Homens observam e preparam-se para enterrar um corpo.


SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 136.

Em fins de agosto, a FEB já era integrada ao IV Corpo de Exército do V Exército


Americano, este, com dificuldades em repor as sete Divisões de Infantaria que perdeu para a
guerra na França, cessou o avanço das tropas para reajustar seu dispositivo, e com a intenção
de utilizar-se dos recém chegados brasileiros, organizou um exercício para avaliação da
capacidade combativa da FEB, prevendo colocá-la em combate antes mesmo que a maioria de
seus homens, vindos no 2º e 3º escalões, chegassem do Brasil. Um desafio e tanto, pois nem
todos haviam tido contato com os materiais e equipamentos. Mas tamanha era a necessidade
que os brasileiros tinham em provar seus valores como soldados, em justificar a partida para a
Guerra, que a instrução foi intensificada. Para Clark era preciso homens dispostos para
continuar o avanço rumo ao norte da Itália e os cinco mil brasileiros não podiam ser
desprezados naquele momento. Com o treinamento individual feito, faltava agora o
adestramento como um todo, com as frações atuando juntas, como uma equipe.
O “Destacamento FEB” foi comandado pelo General Zenóbio da Costa, 2º na escala
hierárquica, e seria formado apenas pelo 6º RI e homens do 11º RI que vieram no navio do 1º
escalão e seriam utilizados como reservas. Foram rapidamente organizados órgãos do Serviço
de Saúde, de Intendência e de Polícia, além de um grupo de oficiais do Estado- Maior que
assessorariam o General Zenóbio.31
Após as últimas instruções, o Destacamento FEB realizou o exercício de dois dias, 10
e 11 de setembro, em que simulou uma marcha para o combate por mais de 30 quilômetros e
um ataque, empregando-se sempre munições reais. Os homens foram observados e avaliados
por mais de 200 oficiais americanos, inclusive sob os olhares do General Clark. Para os
americanos, os resultados foram muito bons, Clark comentou: “ Diante do que me foi dado
ver, a mim e aos colaboradores da arbitragem, não há mais o que esperar para lançar a FEB
em combate. É uma tropa adestrada, à qual só faltam as reações do inimigo.”32
Então, depois de dez meses desde a concentração das unidades no Rio de Janeiro, e de
dois meses da chegada conturbada e dos problemas nos treinamentos na Itália, em apenas dois
dias de demonstração no exercício, aquela parte da FEB, com apenas 5.000 homens, estava
considerada adestrada. Mais do que a pura necessidade do V Exército em prosseguir seu
avanço rumo ao Norte, a decisão de empregar uma tropa inexperiente em um setor que,
naquele momento era visto como tranqüilo, mas que se mostraria como importante para os
alemães, foi um misto de aposta e um voto de confiança na capacidade de superação dos
brasileiros.

4.2 O Destacamento FEB ou 6Th Combat Team : o batismo de fogo da FEB.

Com a decisão da V Exército em empregar a tropa brasileira, medidas para reforçá-la


foram tomadas, haja vista que a maior parte do seu efetivo e dos elementos de apoio ainda
estavam no Brasil. Então, o Exército Norte-Americano passou ao comando do General
Zenóbio uma companhia do 701º Batalhão de Tanques Destroyers, uma companhia do 751º
Batalhão de Tanques Médios e um pelotão de transmissões. As duas primeiras companhias
possibilitariam maior poder de fogo e combate à tropa brasileira, que não possuía tanques, e o
pelotão de transmissões impulsionaria a atividade de comunicações, importantíssima
naquela guerra de movimento que foi inaugurada com a 2ª Guerra Mundial e que devido às
características do relevo italiano, que dificultava a propagação de ondas de rádio, ganhava
ainda mais atenção.

_______________________________
31 - BRANCO. Manoel Thomaz Castello. A FEB na II Grande Guerra. p. 171-172.
32 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op.cit. p. 147.
Fot 33 - O segundo da esquerda para direita é Mascarenhas de Moraes, e o
quarto no mesmo sentido é Zenóbio da Costa. Estão ladeados por oficiais
americanos. Disponível
em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Ao Destacamento FEB foi atribuída uma zona de ação entre a planície do mar Tirreno
e o Vale do Serchio, próximo ainda aos contrafortes dos Apeninos. É uma região com grandes
elevações e apenas quatro rodovias penetrantes em direção ao norte e uma transversal, o que
canalizava a direção de progressão das tropas aliadas e proporcionava boas condições de
defesa por parte dos alemães, que permaneciam entrincheirados nas encostas das elevações,
em áreas de linha de defesa.33 A próxima destas Linhas era chamada de Linha Gótica, onde
os brasileiros atuariam. Vale repetir que a primeira tropa brasileira a efetivamente entrar em
combate foi a 1ª Companhia do 9º Batalhão de Engenharia, que havia passado a disposição do
IV Corpo de Exército e cumpria missões em uma das pontes do rio Arno, desde o dia 06 de
setembro de 1944.
Os alemães ocupavam desde a invasão aliada em 1943, diversas linhas de defesa ao
longo do território italiano, do sul ao norte, com a intenção de proteger a entrada da porção
sul da Áustria e da Alemanha, evitando também uma maior concentração de tropas aliadas na
invasão da França.
As derrotas em Stalingrado34 e El Alamein35 naquele ano determinaram aos alemães
uma nova fase na guerra, onde, antes, era de ofensiva baseada na formidável Blitzkrieg, com
_____________________________
33 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. A FEB pelo seu comandante. p. 72.
34 – SHIRER, William L. Ascensão e Queda do Terceiro Reich: o começo do fim. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
V II, 1ª reimpressão.
35 - DAVIES, Norman. Europa na Guerra.
Fot 34 - A Engenharia Brasileira em ação, construindo uma ponte provisória.
Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.>
Acesso em: 04 Jul 2006.

inúmeros aviões e blindados em ataques relâmpagos. Agora, a Alemanha partia para a luta
em grandes defesas, mas ainda com admirável poder de fogo e valor de seus homens, que,
assim como seu líder supremo, ainda acreditavam na vitória. Naquele momento da Guerra, a
Alemanha sofria em várias frentes com o avanço aliado. O desembarque na Normandia foi um
sucesso e prosseguia rumo à libertação de Paris; Os russos na frente oriental, após imporem
mais de 200 mil mortes ao Eixo, sempre mantiveram sua ofensiva em direção à Berlim, 36
obtendo sucessos que preocupavam, inclusive, aos americanos e ingleses quando da
realização da futura negociação de paz. Restava pouco para a Alemanha, mas seus exércitos
mantinham-se firmes, bem como seus comandantes, apesar da tentativa de assassinato de
Hitler, em julho de 1944, e também o povo alemão, que já começava a preparar suas próprias
defesas em seu país.
No início da campanha da Itália, os alemães procuraram deter o avanço dos aliados
nos portos de desembarque, principalmente para evitar com que o importante porto de
Nápoles caísse em mãos aliadas. Como ficara provado nesta Guerra, os meios ofensivos,
muito bem explorados pelos alemães por sinal até aquele momento, se sobrepuseram aos
meios de defesa, então as tentativas de barrar o acesso dos aliados ao território italiano tinham
por objetivo razões táticas de pouca profundidade, queriam apenas atrasar o avanço final
contra a Alemanha.
________________
36 – Para uma boa leitura sobre o tema ler Berlim 1945, de Antony Beevor.
Nos campos de batalhas italianos havia 27 Divisões alemães e mais outras 6 italianas.
Na Linha Gótica havia 18 dessas Divisões guarnecendo suas defesas, que careciam de
recompletamento em pessoal e material, e sofriam com a falta das ações de sua aviação, que
nesta época já era reduzida e estava priorizando a defesa da Alemanha. No território havia
outras linhas de defesa sendo construídas: ao longo do rio Pó e, por fim no rio Adige, já
próximo à fronteira da Alemanha.37
O Destacamento FEB iniciou sua primeira missão em 13 de setembro de 1944, que
consistia em substituir elementos aliados do II Batalhão do 370º RI e o 434º Grupo de
Artilharia Anti-aérea, ambos norte-americanos e manter contato com a 1ª Divisão Blindada, e
que em caso de contato com o inimigo, ficaria livre para ações de ataque.38 Havia informações
que a sua frente estava a 16ª Divisão S.S. Ao seu lado, à este, operava a 1ª Divisão Blindada,
norte-americana. Em 16 de setembro, essa missão, apesar de simples, marcou a primeira ação
de tropas de infantaria em uma guerra externa desde o fim das ações na Guerra do Paraguai, e
serviu para proporcionar ao Comando do Destacamento a possibilidade de planejar e executar
uma missão de substituição e de possível ataque ao inimigo, além de possibilitar às frações o
emprego de seu conhecimento nas ações táticas de progressão em ambiente hostil.
Ao final do dia 16 para 17 de setembro, o Destacamento ocupava as regiões de
Massarosa e Bozzano, as duas primeiras localidades a serem liberadas pelos brasileiros. As
reações alemãs não foram sentidas durante esse período, mas a partir daí, o contato foi cada
vez mais intenso, e em 19 de setembro, ao capturar Monte Prano e outras elevações próximas,
a FEB teve os três primeiros mortos em ações de combate na Itália, todos feridos por
estilhaços de granadas de artilharia lançadas pelo inimigo, todos do 6º RI. Foi lá também, que
foram capturados os primeiros prisioneiros, quatro alemães da 7ª Companhia do 25º
Regimento de Infantaria.39
A primeira vitória brasileira foi noticiada com orgulho pela imprensa no Brasil. Em 18
de setembro, apenas dois dias depois da ação, O Globo noticiava:

BATISMO DE FOGO DOS SOLDADOS DO BRASIL


Ombro a ombro com os norte-americanos, britânicos e indianos, a Força
Expedicionária Brasileira toma parte ativa nos encarniçados combates de assalto à
Linha Gótica. Ante ímpeto da investida recuam os nazistas em vários pontos do
sistema de fortificações castigados pela artilharia do V Exército.40
________________________
37 – BRANCO. Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p 183.
38 - BRANCO. Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p 191.
39 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p 193.
40 – O Globo. Rio de Janeiro. 18 de setembro de 1944. p 1.
Ao final de setembro, devido uma ruptura de posições alemães em uma região à direita
dos brasileiros, o IV Corpo decidiu deslocar a 1ª Divisão Blindada e o Destacamento FEB
para a direita de sua zona de ação inicial, buscando o vale do Serchio, penetrando no terreno
ocupado anteriormente pelas tropas nazistas. A missão prosseguiria como uma ofensiva em
direção ao norte, desta vez para a região de Castelnuovo di Garfagnana.
No início de outubro, o Destacamento prosseguiu em sua zona de ação sem enfrentar
grandes posições defensivas, mas tendo contato com fortes patrulhas e sendo alvo da artilharia
alemã. Neste ínterim liberou outras cidades, como Fornachi e Barga. As investidas brasileiras
para a ocupação das localidades eram antecipadas por patrulhas que buscavam informações
sobre o inimigo, sobre rodovias e pontes existentes, sobre a população ou qualquer
informação que pudesse ser importante do planejamento e execução das ações ofensivas não
só brasileiras, mas de todo o IV Corpo. As patrulhas seriam um ponto alto da participação do
nosso soldado, pois exigiam pequenos efetivos, muita perspicácia, coragem e disciplina.
Toninho computou várias patrulhas em sua participação na guerra, e segundo nos relatou, era
o grande momento do soldado, onde medo e orgulho se misturavam:

O senhor sabe como é um ataque? Um encontro com o inimigo? O que fazíamos


nas patrulhas à noite? O senhor recebe uma missão, tipo o Morro do Cristo tá ali, o
sargento tem uma carta, a patrulha vai até o pé do Morro do Cristo e nunca volta
pelo mesmo lugar. Onde eram os americanos você tinha que ter uma senha pra eles
te receber, senão eles te passavam fogo. E quando eles viam a gente eles estavam
preparados porque às tantas nós íamos chegar, senha tinha que ser dita para
passarmos, eu tô falando isso, mas quem devia dizer isso era o comandante de
pelotão. É um dos momentos mais tristes, pois tínhamos que sair e só voltar se
houvesse contato com o inimigo, se não tiver contato não pode voltar. Por que?
Porque se você não viu ninguém e vai embora, é que tava um alemão escondido em
uma casamata e você não viu, e avisa o pessoal que pode vir, aí “come” todo
mundo. Tem que ter o contato pra saber que ali tem alguém, então o comandante
de pelotão, do grupo comunicava que em tal local Tinha um ninho de
metralhadora, etc..aí um morteiro caía em cima deles. Tendo contato nós
voltávamos. 41

O medo também estava presente na hora de escapar das granadas da poderosa


artilharia alemã, e que aterrorizaram quase todos os febianos que estiveram no front, como o
nosso veterano José Pedretti, natural de Juiz de Fora, e que atuou como cabo no pelotão de
petrechos da 9ª Companhia do III Batalhão do 11º RI. Pedretti, em seu pequeno relato,
mostrou que os ensinamentos sobre os perigos da artilharia foram bem aprendidos:

_________________
41 – Depoimento [Out. 2004].
O perigo era que mesmo que não caísse em cima da gente, a granada provocava um
deslocamento de ar que era perigoso. Em Montese, ao dar um lanço para cruzar um
campo, eu sabia que o alemão estava me olhando, e eu pensei: ‘ vai me comer
mesmo!’. Eu fui um dos últimos, quando eu vi o cara deitado, eu parei, ele deitou
vou me deitar também. Meus companheiros de longe gritaram: ‘deita! Deita!’. Aí
eu corri e me abriguei. 42

Fot 35 - José Pedretti. Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB – Seção Juiz de Fora.

A granada não atingia somente aqueles que mais se aproximavam das linhas de defesa,
todos que estavam ao alcance de seus canhões e obuses corriam o mesmo perigo, até mesmo
os enfermeiros, como José João que nesse relato se encontrava a quilômetros dos primeiros
alemães:

(...) eu dormia num 2º andar de uma casa, casa de uma família...isolou a família e
ficou um pedaço para nós casa grande..aí tudo bem! uma noite lá eu senti ..eu saí
do forro e tinha uma galera embaixo tá todo..alí já caiu neve, já começou a pegar
seis, sete, oito graus abaixo de zero, então para dormir eu tinha um fox hole ..e
todos tinham, os enfermeiros todos tinham fox hole ...dormia junto comigo lá numa
área um ..esqueci o nome dele..o nome dele é um Washington... um nome
americano esse amigo era dentista ..ele fumava muito cigarro de cheiro, que
cheirava muito..como cachimbo..era um cheiro extraordinário, então ele dizia: “ eu
quero dormir perto do José João, o que ele fizer eu faço” ..então tá bom , então a
noite nós subíamos no 2º andar, a gente dormia no gabinete dentário montado e nós
fazia nosso fox hole no chão mesmo, cada um tinha o seu. Uma noite lá rapaz,
...uma dor nós pés, parecia que o mundo ia acabar.....mas uma dor, aí eu falei:
“dotô, não tô agüentando a dor nos meus pés ...eu vou voltar lá pras lareiras..vou
esquentar meus pés” . Quando eu desabotoei o fox hole ele falou assim: “ eu
também vou”. Eu ..ele primeiro tenente, eu peguei...ele levantou, tava deitado com
a roupa de briga né, ninguém dorme nuzão. Eu levantei, ele levantou..eu..trouxe
uma lanterna, ..uma bolsa com vários documentos, vários...remédios, aí eu
peguei...tinha uma lanterna..aquele tipo de lanterna....
_______________
42– Depoimento [Out. 2004].
ao invés de ser direto ela é assim, você vê assim. Peguei a lanterna e por
educação...não podia apontar assim ó (para cima) mas para o chão podia. Eu
coloquei assim na frente, e saí na frente e ele me acompanhando e eu dando luz
para ele....e veio a escada, a escada tinha dois lances, um lance assim de quatro
metros e mais um lance de quatro metros, ..tava todo mundo lá, perto do fogo,
e..quando chegamos no segundo lance...caiu uma .....bomba em cima ...do nosso,
do nosso....ela pegou ela desceu..forro de madeira?! ela entrou, rebentou, acabou
com o gabinete dentário, fez oito furos no meu fox hole , quando chegamos lá
embaixo...deu um segundo lance, e quando chegamos lá embaixo não tinha
ninguém, tava todo mundo fora, a turma tava toda fora, médicos, enfermeiros,
capelão, sei lá ..tava todo mundo lá, quando chegamos na porta ....”que que há
pessoal? “ “ sai daí, sai daí” . “tem nada não já acabou”. Eu era meio atrevido, aí a
turma começou a voltar para o fogo. “eu tô queimado de dor aqui e vocês enchendo
o saco!”. Eu voltei pro meu cantinho e fiquei lá com o dôto, mais ou menos uma
hora e pouco, a essas alturas já dez, onze horas. A hora lá é diferente daqui
resultado fomos vê nossa casa lá em cima, e não tinha nada lá em cima pra nós(...)
43

A ação da Artilharia alemã provocou muitas mortes e baixas na FEB,44 era a principal
arma utilizada na defensiva em que se encontravam para dificultar o avanço dos aliados. A
precisão dos obuses, que realizam um tiro curvo, sem a necessidade de estar vendo o alvo,
depende da experiência e adestramento de seus homens, o que os alemães na Itália, já
possuíam. Mas o armamento não é 100% preciso, a sua correção depende de observadores
avançados que orientam os artilheiros quanto às correções que devem ser feitas para uma
melhor eficácia do tiro. Então, algumas granadas podem, eventualmente, caírem em locais
que não haja interesse militar, como foi o caso do local onde estava José João, e também,
tantos outros locais que tiveram o azar de serem atingidos pela artilharia, inclusive a
brasileira, por que não? E que ocasionaram muitas mortes de pessoas inocentes. Sobre o relato
de José João, ele se refere ao fox hole como um objeto de uso, na verdade, ele se confunde
com a cama-rolo chamada também de saco de dormir. O fox hole, literalmente, “buraco de
raposa” é um abrigo individual cavado no chão, utilizado pelos soldados nas situações de
defensiva.
Ao longo do mês de outubro o Destacamento cumpriu pequenas missões de
reconhecimento para preparação para conquista das elevações que dominavam a localidade de
Castel Nuovo Di Garfagnana, considerada de importância para as tropas nazistas. O
Comandante do IV resolveu aguardar o ataque até que as informações sobre o inimigo
estivessem esclarecidas. Antes do ataque, ocorrido em 30 de outubro, já se sabia que o
inimigo na região era formado pela 232ª Divisão de Infantaria e que poderia partir em seu

___________________________
42-Depoimento [Fev. 2007].
43 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p 302 a 3025.
reforço uma outra Divisão de Fascistas Alpinos. Durante as ações de patrulhas e pequenos
ataques para avaliar o poder dos alemães, o Destacamento conseguiu ocupar as localidades de
Sommacolonia, Trassilico e Verni, que serviram de pontos de apoio para o ataque à Castel
Nuovo Di Garfagnana.
Enquanto isso, Ruy continuava seu treinamento em San Rossore, aguardava sua vez
para iniciar o estágio junto aos que já estavam no front, e começava a sentir alguns dos
grandes sentimentos da Guerra: a saudade, o medo, a aflição, a fé, a camaradagem.

25 de outubro de 1944 - quarta-feira


Saudade, quanta saudade....saudade de tudo o que me resta na vida: meus filhos e
minha mãe! Hoje saiu o primeiro grupo de nossa Companhia, para estagiar na
frente de combate: um oficial e vários sargentos. Já, já chegará minha vez.
Acho que essa ocorrência, embora esperada, trouxe melancolia e ansiedade para
todos nós, pois cada um fica pensando na sua própria hora... o estágio é de três
dias; é o batismo de fogo de cada um.
Sinceramente que sinto medo, um medo danado ainda maior de ter medo na hora
‘H’. Tenho porém, consciência de minhas responsabilidades, e acredito firmemente
em minha capacidade de dominar esse apavoramento inicial. Tenho convivido com
os homens do meu pelotão durante todo o tempo e eu os conheço bem e eles a
mim; temos um bom relacionamento e já formamos uma fraternidade; a maioria
deles é de Santa Catarina, e oriundos do Depósito da FEB, desde Caçapava. Há
também baianos e sulistas. Uns extrovertidos, outros caladões, mas de qualquer
maneira procuro atingir a todos; eles são minha responsabilidade e eu que os
trouxe, tenho a obrigação de fazer tudo para levá-los de volta para o Brasil! Fui à
missa no Batalhão, às 18:00 horas; frei Orlando, falou da confiança que devemos
ter em Deus e na proteção de N.S. Aparecida, Padroeira do Brasil. Voltei
confortado porque eu confio em Deus e em Maria Santíssima, nossa mãe do céu –
Escrevi hoje cartas para casa. 44

A aflição do homem que se depara com um grande desafio é bem retratada nos
escritos de Ruy. A descrição do medo foi uma constante nos depoimentos dos veteranos,
todos descreviam que o sentiam e o que faziam para superá-lo. Este sentimento normal no ser
humano, em nosso entendimento, ia gradualmente sendo vencido à medida que o soldado
tornava-se mais confiante em suas ações, a ponto de torná-lo quase insensível à possibilidade
de sua morte. Ruy se amparava na sua família e na responsabilidade que sentia por cada
homem de seu pelotão, era o seu líder e a ele cabia a segurança e vida daqueles soldados.
No dia designado para o ataque à região de Castel Nuovo di Garfagnana, uma forte
chuva acompanhada por pesada neblina caíram por sobre a tropa, atrasando o início do

__________________
44 - Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
deslocamento do III Batalhão do 6º RI, comandado pelo Major Gros, e que ficou encarregado
pelo ataque principal. Das 0945h às 1830h as companhias do III Batalhão conquistaram as
elevações de La Rochette, Lama Di sopra, Prodoscello, De Los Rios, Colle e San Quírico.45 O
sucesso dos ataques foi positivo para o moral da tropa, afinal o objetivo final, que era Castel
Nuovo, estava a apenas quatro quilômetros dos brasileiros. Naquele mesmo dia, Ruy chegava
para estagiar, cansado pela viagem e ansioso pelo que viria:

Estirei minha manta no chão e deitei-me, tendo por travesseiro o próprio capacete.
O zum-zum na sala somente diminuiu quando às tantas da noite, foi ligado um
rádio e a voz do locutor anunciou a RADIO NACIONAL DO BRASIL, com um
programa de notícias e de músicas com o “TRIO DE OURO”. Fiquei calmo e feliz,
ouvindo as notícias e as melodias da nossa terra, do meu Brasil. De barriga pra
cima, mãos sob a nuca fico olhando para o teto, decorado artisticamente com
festões e guirlandas pintados a muito e muitos anos, ou séculos, quem sabe? Do
centro pende um candelabro, cujas luminárias perfeitas, deveriam irradiar uma
imensa luminosidade, se luz houvesse....infelizmente a claridade é enfumaçada ,
transformando em vultos e sombras as pessoas, graças aos fogareiros e lampiões de
campanha, que funcionam com aquele chiado característico. Estou cansado e penso
no que me espera amanhã. Trouxe comigo as fotos de minha querida morta e de
meus filhos. Rezo por ela e por eles. Quanto a mim, entrego-me a vontade de Deus
– consegui dormir. 46

No dia seguinte, 31 de outubro, Ruy permaneceu ao lado do Tenente Caetano, que


comandava também um Pelotão de Petrechos Leves. Ruy passou a observar na prática como
era a atuação deste pelotão, que era composto por seções de metralhadora e por uma seção
de morteiro 81 mm. Ruy conheceria também como poderia ser melhor aproveitada a parte
técnica do material de seu pelotão, e procurava absorver todo o conhecimento para passá-los
aos seus homens que ficaram em San Rossore. Aprendeu também que no front não se devem
usar insígnias do posto, nem binóculos a tira-colo, pois a possibilidade de virar alvo de
atiradores era grande, e estes instrumentos indicavam que ele era o líder do pelotão. Então,
em um desses momentos de aprendizado, Ruy observou algo que lhe marcou:

(...) Num desses locais assinalados pelo Capitão, pude ver através do binóculo, dois
vultos que se deslocavam, provavelmente alemães. Tive um arrepio! – pela
primeira vez na minha vida, eu via criaturas que podiam a até queriam tirar minha
vida e que, por minha vez, eu também tinha que abatê-los.47

______________
45 – BRANCO. Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 207.
46 - Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
47 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
Nesse dia, ainda, pôde ouvir pelo rádio de campanha que uma tropa alemã realizava
um contra-ataque contra uma posição brasileira e que três companhias haviam recuado e
abandonado as suas posições. Nesta ação, morrera o Tenente Pinto Duarte, do I Batalhão do
6º RI, então Ruy escreveu:
(...) a tristeza tomou conta do ambiente por alguns momentos e nada tínhamos para
dizer uns aos outros. Lá pelas seis horas, a 8ª Companhia recebeu um pelotão da
Companhia Anti-carro, que atuando como fuzileiros, iria reforçá-la, em vista do
contra-ataque dos alemães ao I Batalhão, cujos resultados todos lamentávamos. O
tenente CAETANO, comigo, saiu para distribuir esse reforço pelas posições, de
acordo comas ordens do capitão De Los Reis. Mas começara a explicar a missão
aos homens do pelotão anti-carro, quando chegou ao local o General ZENÓBIO,
vindo das posições do I Batalhão,e, não escondendo a irritação de que estava
possuído, falava em altas vozes, concitava os presentes a resistir nas posições e não
procederem como os covardes que entregaram as posições conquistadas ao
inimigo; chamando-os de frouxos, sem moral e outros impropérios...podia-se ver
que o General estava transtornado apesar dos esforços que seus assessores faziam
para acalmá-lo – acho que fiz um bom estágio bem proveitoso, pois tive de tudo:
ataque, contra-ataque, com mortos e feridos e até um general na área.... 48

Ruy se referia ao primeiro insucesso da FEB nos campos de batalha da 2ª Guerra.


Após a conquista do dia anterior, por volta das três da madrugada, muitos homens dormiam
devido ao cansaço do ataque bem sucedido, e aprenderam que uma das táticas dos experientes
alemães que ali estavam, é que sempre que sofriam um ataque, devolviam com um contra-
ataque, com a intenção de recuperar o terreno perdido.49 Então a tropa inimiga avançou e
vários homens de uma das companhias fugiram e abandonaram as posições, pois estavam
despreparados para esse tipo de ação dos alemães ou tiveram os flancos de seus pelotões
vulneráveis pelo abandono de quem estavam ao seu lado. Na ação morreu também o jovem
aspirante R2 Jerônimo Mesquita, morto pela explosão de uma mina. Pelo menos um Grupo de
Combate, composto por nove homens, caiu prisioneiro. No local desta companhia, apenas sete
homens permaneceram, entre oficiais e praças, inclusive o Tenente Pinto Duarte. Um pouco
mais tarde, veio a ordem de todos recuarem devido a falta de homens na posição, o Tenente
Pinto Duarte sofreu tiros de metralhadora em uma de suas pernas e faleceu nos braços do
Capitão Atratino. Devido ao fogo inimigo, somente após a guerra e com o degelo do inverno,
meses depois , é que seu corpo foi recuperado pelo próprio capitão. Assim como o Tenente

________________
48 - Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
49 – Toninho referiu-se a esse aspecto tático dos alemães, em sua entrevista de 01 de outubro de 2004.
Pinto Duarte, o aspirante Jerônimo Mesquita só teve o seu corpo recuperado no final da
guerra.50
Também entrevistado para esta pesquisa, o Coronel Haboult Carrão comandava um
pelotão que estava em uma elevação ao lado, Carrão sofreu e repeliu por três vezes contra-
ataques alemães,51 que segundo ele, tratavam-se de elementos da S.S, pois traziam em
distintivos de seus gorros que os identificavam.52
No outro dia as posições foram retomadas pelos brasileiros, mas os ensinamentos
foram vitais para que tal fato não mais pudesse ocorrer e foi visto como altamente negativo
entre a tropa brasileira, pelo modo como ocorreu: a fuga de posições já conquistadas. Na
própria Itália foram julgados e condenados pelo crime de covardia, os comandantes das
frações que abandonaram as posições. A lição foi dura, mas será vista como proveitosa para
todos os que se deparassem com situações semelhantes.

4.3 Brasileiros, Americanos, Negros, Italianos e Alemães: a farra multicultural -


A FEB completa e o mito de Monte Castelo.

Coincidentemente, no dia 30 de outubro, Clark reuniu todos os comandantes das


tropas do V Exército em Passo de Futa, para realizar uma análise da situação de momento da
guerra na Itália. Apoiado em informações do campo de batalha, Clark entendeu que o seu 2º
Corpo de Exército estava em estado deplorável, devido ao cansaço das últimas batalhas, e da
dificuldade que ofereceu o inimigo em sua zona de ação 53. A falta de reservas só piorou a
situação do 2º Corpo, já que no V Exército somente a FEB e a 92ª Divisão de Infantaria
americana, formada por negros, possuía reservas. O inimigo por sua vez, aumentou a
quantidade de tropas naqueles dois últimos meses de ofensiva, passando de sete Divisões para
dezesseis, somente na Linha Gótica. Por fim, houve a dificuldade de remuniciamento devido a
precariedade das estradas, podendo levar à falta total de munição de todo o V Exército.
Após entendimentos com o Comandante do XV Grupo de Exércitos na Itália e o
General Eisenhower, na França, ficou decidido que apesar dos problemas, os aliados deveriam
manter a todo custo os alemães em suas posições na Itália, de modo que não deslocassem
tropas para as frentes na França e na Rússia.

______________
50 – BRANCO. Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 211.
51 - BRANCO. Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 212.
52 - O Cel Carrão gentilmente concedeu-me uma entrevista sobre o tema, no dia 07 de agosto de 2008.
53 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.

Com isso, Clark decidiu também, reajustar o dispositivo dos 2º e 4º Corpos, o que
levou a deslocar o Destacamento FEB do vale do Serchio para o vale do Reno, na zona de
ação atual da 1ª Divisão Blindada e ordenou todas as medidas para colocar em condições de
emprego o restante da FEB que se encontrava em treinamento em San Rossore54. Para
Mascarenhas de Moraes aquilo foi mais uma oportunidade do V Exército em valorizar a
presença da FEB na guerra, pois estava sendo enviada para um local que se travava “uma luta
severa e difícil”, e não em uma região de fraco interesse de defesa do inimigo e
consequentemente para os aliados.
A coincidência foi que, com isso, o Destacamento FEB foi extinto e toda a 1ª Divisão
Expedicionária Brasileira (1ª DIE), ou simplesmente Força Expedicionária Brasileira, foi
assumida pelo General Mascarenhas de Moraes a partir do dia 1º de Novembro de 1944, um
dia depois do vexame de Castel Nuovo di Garfagnana. É compreensível e comum que reveses
como esses aconteçam em guerras longas como foi a 2ª Guerra. O Exército Britânico havia
sido ridicularizado em Dunquerque no início do conflito e os americanos foram pegos de
surpresa em Pearl Habor, e o que falar dos franceses que se renderam praticamente sem lutar?
Para Lima Brayner, aquilo foi uma infelicidade do General Zenóbio, pois a perda do comando
acontecia justamente naquele momento, e segundo ele a confiança na tropa foi abalada e esse
General não teve os reconhecimentos de seu trabalho à frente do Destacamento FEB55. A
verdade é que o comando da FEB sentia que não podia errar, que cada erro era maior do que
os de seus aliados. A FEB se esforçava para que tudo fosse perfeito, mas o perfeito em uma
guerra não existe. A literatura militar, anos mais tarde, incorrerá neste desatino de mostrar a
perfeição na FEB.
A confiança, em nossa análise, ouvindo as testemunhas e lendo os relatos, não foi
abalada por causa de um acontecimento pontual que não gerou prejuízos no desenrolar das
operações. Mas dentro do comando da FEB, houve uma divisão, que duraria até o final do
conflito, entre aqueles que ficaram com o General Mascarenhas de Moraes e aqueles que
defendiam o General Zenóbio da Costa. A partir dali, cresceria a importância do oficial de
operações: o coronel Humberto Castello Branco.
Mascarenhas de Moraes determinou os ajustes necessários para a mudança de frente
de combate, que ficava mais à direita de onde estavam. Antes passou o comando da zona de
ação do vale do Serchio para a 92ª Divisão de Infantaria e iniciou a jornada de cinco dias até
________________
54 - MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p 98.
55 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 219.
levar toda a FEB até o vale do Reno que oferecia o valor defensivo do inimigo por seu relevo
e pela importante estrada 64 que leva Porreta Terme à Bolonha, esta um objetivo do V
Exército para chegar ao vale do Pó. Logo de início, no vale do Reno, a FEB identificou a
importância de Monte Castelo para o prosseguimento de suas ações, e naquele local o seu
futuro como tropa aliada se decidiria. A FEB substituiu a 1ª Divisão Blindada e ficou até 15
de novembro instalando-se no setor e realizando planejamentos para os ataques preliminares a
posições importantes que levariam ao seu 1º objetivo no Reno: a conquista Monte Castello. A
FEB então ocupou e manteve as elevações de Boscaccio, Il Sasso e Monte Cavarollo,
resistindo a algumas tentativas de contra-ataque.
Mascarenhas de Moraes criticou a determinação do IV Corpo em apressar o
adestramento da tropa em San Rossore e empregá-la no Reno. Segundo o general, faltavam
entregar inclusive todos os armamentos para o 1º RI e para o 11º RI, este com o III Batalhão
do qual fazia parte Zé Maria e Toninho e que em apenas dois dias de saídos de San Rossore
seriam empregados em Monte Castello56.
Os brasileiros estavam há algum tempo se conhecendo como membros de um grande
corpo social que foi a FEB, apesar de suas diferenças regionais, em que amazonenses
conheciam como eram os gaúchos, e mineiros lutavam com pernambucanos, tornando-se
amigos a cada dia. As diferenças nunca foram empecilhos, já que as semelhanças como a
mesma língua e religião, por exemplos, são fatores aglutinadores. Mas às vezes surgiam
dificuldades, como relatou Geraldo em seu contato com os seus soldados do Mato Grosso:

(...) aí chegou o 2º escalão, e chegou um pelotão de sepultamento. Aí o tenente


Nilo falou assim: ‘chegou aí um pelotão de sepultamento, comandado por um 1º
tenente intendente’. Aí eu falei pra ele:
- ‘tenente, o senhor faz o seguinte: tira dez de lá e nós põe lá, pois nós já estamos
com prática de tudo, sabemos o que se faz, o que não se faz..’.
E assim ele fez, tirou oito soldados, tirou dois sargentos e formamos o pelotão de
sepultamento, esse pelotão que veio era de Ponta Porá. Tinha hora que eles
juntavam e falavam em guarani, aí eu falava: ‘ pelo amor de Deus, não nos xinga
em guarani, fala nossa língua’. Aí eles passaram a falar nossa língua.57

Se entre os brasileiros ainda havia espaço para o conhecimento do Outro, o que dirá
em relação aos outros povos que entraram em contato com os febianos?
Ao americano, dependendo da situação em que se encontrava o veterano brasileiro,
houve uma determinada visão e concepção de povo, que não mudou, mesmo após a Guerra.

________________
56 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 114-115.
57 – Depoimento [Out.2004].
O senhor Geraldo admirava a preocupação deles com a segurança dos homens: “ (...)
pro americano, a política deles era que se pudesse fazer, você faz, se não puder, não faz. Um
avião faz em fração de segundo, um homem leva vinte anos pra fazer. Vocês não podem
morrer à torto e à direito” 58. O homem era visto como peça mais importante de uma
engrenagem que movimentava milhões de dólares, e que são, à exceção do próprio homem,
produtos descartáveis. Após a guerra, tudo se transformaria em sucata, menos o homem, que
permaneceria como elemento ativo em um novo sistema. Este sistema vivido na 2ª Guerra,
movido pela poderosa indústria dos EUA, trouxe mais do que máquinas de guerra. Como foi
dito, na viagem de navio da FEB à Europa, o conforto ao homem era um dos pontos altos da
logística americana. Geraldo foi testemunha disso:

(...) agora o americano era impressionante, em pleno front, eu assisti um filme


americano, outra coisa, sabe como tomava banho?! Num circo enrolado, o senhor
entrava, aí tinha uma sala de espera. Aí tinha o balcão, eu não podia trocar a calça
nem a camisa, o resto trocava tudo, cueca, meia, camiseta. Aí chegava no balcão e
pedia um saco. Aí eu pegava a minha mochila, pegava a calça, a camisa e colocava
dentro do saco. Aí eu tomava banho. Aí você subia uma escada pisava aqui
embaixo na água fria. Ali você recebia um sabão e entrava no chuveiro: era um
cano furadinho. Aí você descia a escada do outro lado, pisava na água fria outra
vez, recebia uma toalha, enxugava e ia pegar seu saco lá na frente, você nem sabia
o rumo que ele tinha tomado. A água era quente? Era morna, e eu chegava no
balcão, falava o meu número, da minha roupa, e recebia uma cueca, um par de
meia, uma camiseta de baixo, recebia o material que eu tinha deixado...
Eu chegava no front, tinha uma cozinha lá e eles estavam “pagando” a comida, eu
entrava na fila, olhava pra trás e tinha major, tinha tenente..eles não furavam a fila
não, é que aqui é tudo separado. Isso tudo me revoltou, de sair de um exército
liberal e ir para um exército “prussiano”, de jeito nenhum(...)59

Já para Zé Maria que, ao contrário de Geraldo, atuou mais à frente no campo de


batalha, sua visão quanto ao soldado americano era mais crítica:

(...) a minha visão é o seguinte: primeiro, não sei se eles, americanos, mudaram..tô
falando naquela época, o sistema deles...eu não gostaria de fazer parte de uma
patrulha ou de um pelotão em combate ou de uma companhia em combate. Eu não
gostaria, porque é diferente, já eram diferentes dos brasileiros, e tenho certeza que
eram diferentes dos alemães. Suponhamos, vai fazer um deslocamento de uns cem
metros, com o pelotão. Sai daqui pra ir lá, naquele lugar. O brasileiro, já viu como
é que é, não é burro...ele dá um lanço, dá uma olhada, dá outro lanço, vai
procurando no meio do caminho, um pequeno abrigo, alguma coisa. Entendido?!
até chegar lá. Já o americano não, vai quatro, cinco, seis de uma vez só, e...brrrrrrrr,
e pronto! Não sei se o senhor já tomou conhecimento... eles entraram em

________________
58 – Depoimento [Out.2004]
59 – Depoimento [Out. 2004].

combate, eles entraram em combate dia 20 de fevereiro de 45. a guerra terminou


em dois de maio de 45. eles perderam mais homens que os brasileiros. O senhor
fala da 10º Divisão? é ..da 10º divisão, perderam mais gente que nós, mas é isso , é
o jeito deles, vai aquele bando de uma vez só, quer dizer, o cara que tá do outro
lado lá vai fazer uma colheita, e o brasileiro não, o brasileiro espalha no terreno, ele
se esconde no terreno para atingir o objetivo (...)60

José João, atuando como enfermeiro, transitava entre o front e a retaguarda, e foi
mais agressivo em suas observações quanto ao militar americano:
(...) o americano é muito fraco, péssimo soldado...ele vive de bebida. Se ele tiver
bêbado ele faz, se não tiver ele não faz. Ele só anda armado na estrada, ele é fraco.
O russo não, o russo e o alemão não. Eles têm um poder de mando...seguro. A
Alemanha tinha que perder, era muito pequeno, muito pequeno, mas deu trabalho
e muito. Mas é o que eu tô de falando se não é a Rússia, a gente não estaria aqui
hoje.61

Sendo oficial e mais experiente quando na Guerra, Ruy apresentou uma visão um
pouco mais específica sobre as qualidades e defeitos do americano em combate, para ele a
questão é de caráter cultural:

(...) Olha eu acho que nós chegamos a ficar um pouquinho melhor, talvez pela
exigência nossa pelo nosso Exército antigo, que era muito rigoroso. Antigamente
para falar com o capitão, tinha que pegar autorização com o sargenteante por
escrito. Eu sempre exigi muito a limpeza do meu pelotão, chegava em uma posição
já mandava limpar o local, tirar entulho, depois instalávamos na posição eu dizia
que iríamos repousar em um local limpo. Muitas vezes substituíamos os
americanos e a posição deles era uma “pocilga”. Era urina por todo lado, eles
ensinavam, mas os soldados deles não faziam o que eles ensinavam. Restos de
comida de um lado, escatoleta rasgada de outro. O americano era muito rigoroso
nisso, mas acredito que os soldados não faziam isso que eles ensinavam, inclusive
nos quartéis deles você acaba de fumar, desmancha o cigarro e espalha o fumo no
chão e guarda o papel no bolso. Eu me lembro que a última posição que ocupamos
tinha sido dos alemães, depois passou para os americanos, nós tivemos que
desinfetar de tão suja que estava. Tinha um morto perto, tivemos que enterrar. Ele
já estava morto um tempão, um fedor do cão, ele estava próximo de uma casamata,
enterramos e colocamos uma cruz(...)
E na parte operacional, ficamos perto dos americanos?
Nós tivemos uma surpresa muito grande, pois quando substituímos os americanos,
meu caso que tinha metralhadora e morteiro, você não tirava a arma deles da
posição, você trocava com ele. Ele dava as metralhadoras e morteiros que estavam
em posição e você dava os seus e as coordenadas do ponto. A gente não mexia na
posição, eles falavam: ‘não, não!’ os telefones também,a gente usava muito aquele
de magneto, era tudo igual, a mesma coisa, estávamos acostumados (...)62
______________________

60 – Depoimento [Dez. 2007].


61 – Depoimento [Fev. 2007].
62 – Depoimento [Jul. 2005].
Para Raimundo Nonato, que atuou no front como Zé Maria e Ruy, os americanos
foram vistos de uma outra forma: “o exército americano naquela época tinha exército
separado, até sargento podia ser preto, oficial só branco. O americano é patriota, o povo mais
patriota do mundo. O alemão era fanático, eram bons soldados, talvez o melhor do mundo.”63
Nas descrições acima, não se observa uma sintonia quanto ao que cada veterano
entendia do americano. Com certeza, do outro lado, haveria opiniões diversas sobre a visão
quanto aos brasileiros. O que analisamos e podemos concluir é que o tempo em que já
estavam em guerra e a imensa capacidade tecnológica e logística dos EUA, e que já fazia
parte da cultura de seu povo e de seu Exército, tornaram-o insensíveis a alguns de
ensinamentos de que sua própria corporação defendia, como a limpeza nas áreas de utilização
e o cuidado com o descarte de materiais. Os americanos não eram de guardar restos de
produtos utilizados e isso inclui materiais de guerra como estojos vazios de munição como
escreveu Ruy em seu diário, ainda mais se considerarmos que lutavam em outro país. Sabiam
que o consumo era parte de sua cultura, e que sua capacidade de apoio logístico se
encarregaria de tudo. O tempo em que estavam em luta, também, podem tê-los tornado mais
displicentes quanto aos detalhes de segurança, inclusive, pois para Geraldo eles primavam
pelo bem estar do homem, logo não seriam levianos em atentar pela vida, como disse Zé
Maria. Mas por que Zé Maria levou consigo este conceito?
A resposta está em acreditar que nada pode acontecer a si, como nos relatou Ruy:
“achamos que algo só aconteceria com os outros.”64 Fazer um ataque de peito aberto não era
um sinal de falta de inteligência, mas um sinal de que, com a experiência, vem a imprudência
com a própria vida.
Outra informação é de que todos os veteranos demostraram surpresa em ver com que
discriminação eram tratados os negros americanos na Guerra. A separação racial existente nos
EUA não foi esquecida na Europa. Negros, antes de Clark, realizavam serviços na área de
retaguarda, como apoio em cozinhas e transporte de material. Chegavam por vezes a trabalhar
até nas unidades de artilharia e carros de combate. Com Clark, integraram a 1ª Unidade de
infantaria no front. A visão humanista de Clark já foi explanada neste capítulo, mas o passo
dado pelas tropas americanas ainda era pequeno no longo caminho a ser percorrido pelos
negros. Coisa que bem ou mal, não acontecia na FEB, independente da cor ou da região
de nascimento, todos
___________________
63 - Depoimento [Abr. 2006].
64 – Depoimento [Jul. 2005].
integravam o mesmo Exército. É interessante observar o que pensou Clark logo após a guerra,
e sua decisão quanto aos negros da 92ª Divisão, logo após um revés na Itália:

A má atuação da 92ª tem dado motivo ao argumento de que não se pode confiar nas
tropas negras nas situações de emergência. Havendo comandado a única Divisão de
infantaria negra da Segunda Guerra Mundial, que esteve continuamente em
combate num período de seis meses, acho que devo referir-me , em termos
concretos, à atuação dela naquele espaço de tempo. Das dez divisões de infantaria
americanas em ação no quinto Exército, na Itália, a 92ª foi a que apresentou
resultados menos satisfatórios, no cômputo com as divisões brancas. Por outro
lado, registraram-se muitos momentos de heroísmo individual e êxito nas ações de
pequenas unidades, como a companhia e o batalhão. Logo depois da guerra me
perguntaram acerca da capacidade em combate das tropas negras de infantaria e
repliquei que a 92ª Divisão desempenhara um papel útil e sua presença na costa
ocidental da Itália nos ajudara de modo considerável no arranco final para o vale do
Pó.
Ao mesmo tempo, seria incorreto e injusto que os futuros militares negros
substimassem os sérios obstáculos que tenham de superar. Um dos maiores
problemas foi a questão da chefia. Existiam muitos analfabetos entre os soldados
pretos, o que exigiu mais longo período de treinamento deles, havendo, de modo
geral, relutância pelos rígidos princípios de disciplina corrente tão essenciais na
guerra. Esta falha, vejo-a não como um reflexo sobre o soldado ou oficial negro,
mas como uma decorrência do tratamento que se dedica, em nosso país, ao
problema das minorias. O preto não tivera oportunidade de desenvolver qualidades
de liderança. Acima de tudo, talvez, o soldado negro careceu de maior incentivo;
de algo assim como o sentimento de que estivesse lutando pelo próprio lar e pela
Pátria, e lutando como um igual. Somente o meio adequado, na própria terra dele,
pode propiciar tal incentivo.
Seria grave erro, entretanto, admitir a inexistência de oficias capacitados com
vistas às tropas negras em combate. Na verdade, eles existiram na Itália. Quando se
tornou necessário reorganizar a 92ª nas semanas seguintes, pudemos selecionar
certos oficiais e praças experimentados em combate que se haviam saído bem num
treinamento especial, e constituir grupamentos táticos na base de batalhões, que
atuaram muito mais eficientemente que dantes. Condecorei por bravura oficiais e
praças negros da 92ª Divisão e soube de outros que morreram em ações altamente
meritórias no campo de batalha.
Permitam-me esclarecer que sou contrário à discriminação. Creio haver um modo
de resolver os problemas que inferiorizam o soldado negro, embora ache que, nesta
altura do jogo, não deva existir uma mistura indiscriminada de militares pretos e
brancos em nosso Exército. Com base no exemplo da última guerra, ela não
produziria o melhor conjunto combatente nem seria justa para ninguém. Acredito,
todavia, que possa haver uma integração legítima de tropas negras e brancas no
nível batalhão e unidades menores, que os regimentos possam incluir um batalhão
negro completo, em qualquer das armas, e que se lhes possa proporcionar uma
liderança sólida e responsável. De fato, disse-me o General Eisenhower, depois da
guerra, que, numa hora crítica, na França, teve ocasião de convocar voluntários de
infantaria entre centenas de militares pretos de que dispunha. Grande número deles
se apresentaram, sendo organizados em pelotões de combate especiais, que foram
integrados em veteranas divisões de infantaria acostumadas aos piores combates e
lutaram muito bem.
Penso que não se deve aplicar tal sistema em unidades maiores que o batalhão.
Nossa experiencia na Itália mostrou que uma divisão negra não pode atuar tão
eficientemente quanto unidades menores sob as severas condições da guerra
moderna. Deu-se à 92ª Divisão o preparo e o treinamento mais completos para a
ação e forneceu-lhe o melhor equipamento disponível. Ela entrou em linha
gradualmente numa zona de ação relativamente calma e sob a chefia bastante capaz
do General - de – divisão Ned Almond. A despeito de todas estas vantagens, ela
não correspondeu ao teste quando chamada a atacar e quando os alemães
golpearam o vale do Serchio. Os comandantes regimentais não puderam exercer
controle suficiente sobre os homens nas horas críticas, em grande parte porque
faltou aquele rígida disciplina exigida em combate e porque os jovens oficiais
fugiram, muitas vezes, às responsabilidades correntes e careceram das qualidades
essenciais de chefia. São defeitos passíveis de correção – e estão sendo alvos de
pleno cuidado em nosso atual programa de instrução – mas o tempo urge, e devo
reiterar que seria grave erro tentar o Exército misturar indistintamente militares
brancos e negros.65
A primeira lição que tiramos é que não havia apenas praças negros como falavam os
febianos, havia também oficiais de baixa patente, sendo que alguns chegaram a ser
condecorados por Clark. Outra lição é que Clark compreendia que as razões da ineficiência da
tropa negra estava em suas diminutas possibilidades de acesso a educação, o que dificultaria
seu treinamento em um ambiente militar, e mais ainda, eles necessitavam de uma aspiração
para lutarem por sua Pátria e não pelos país dos outros, trazer o negro para junto da Nação era
importante para torná-los filhos daquela Pátria americana. Depois do revés no vale do
Serchio, justamente na zona de ação onde atuava a FEB, a 92ª foi dissolvida como Divisão,
apesar de estar na formação oficial do V Exército. Os negros na Guerra do Vietnã foram
melhores empregados nas tropas de infantaria, desta vez “misturados” com os brancos.
Apesar da visão liberal e à frente de seu tempo, Clark entendia que o militar negro não
deveria estar “misturado” com o branco, por não gerar uma tropa uniforme, mas os negros
deveriam ser agrupados em unidades até o valor batalhão, mesmo que em regimentos brancos,
para que pudessem ter melhor rendimento. Ainda é um pensamento discriminatório, mas era o
melhor para aqueles tempos de racismo instituído pelos EUA.

______________________________
65 – CLARK, Mark. Risco calculado. p. 430 a 432.
Fot 35 - Soldado americano da 92ª Divisão de Infantaria.
Disponível em:
www.history.amedd.army.mil/booksdocs/wwii/images/.
Acessado em 14 de agosto de 2008

Fot 36 - Cena de homens da 92ª Divisão na hora do “rancho”.


Disponível em:
www.history.amedd.army.mil/booksdocs/wwii/images/.
Acessado em 14 de agosto de 2008
Fot 36 - Morto sendo conduzido por negros. Teatro de
guerra da Itália. Disponível em:
www.history.amedd.army.mil/booksdocs/wwii/images/.
Acessado em 14 de agosto de 2008

Elogios incontestáveis só podemos observar nos relatos que descreviam a 10ª Divisão
de Montanha americana como uma unidade altamente preparada, com meios e pessoal, para
as ações em terrenos de montanha como os da Itália. A 10ª chegou à região somente após os
primeiros ataques à Monte Castello, e foi uma das responsáveis pela arrancada do V Exército
na Ofensiva da Primavera, fatos que analisaremos mais adiante. A 10ª Divisão possuía em
seus quadros esquiadores famosos e materiais que nenhuma outra possuía ou sabia como
utilizar, como trenós especiais e lançadoras de fateichas66, este testemunhada por Zé Maria.
Foi treinada em Camp Hale, Colorado, e apesar de ter sido recusada por muitos comandantes
militares na Europa, devido a sua excessiva especialização, caiu como uma “luva” para Clark,
pois naquela altura da Guerra, havia necessidade de alguém que transpusesse com maior
facilidade os Apeninos. A 10ª lutaria ao lado dos brasileiros a partir de fevereiro de 1945.
Aos italianos, os brasileiros, em sua maioria, nutriam um saudável sentimento de
cordialidade, que bem definiu Buarque de Holanda67. Antes, com as promessas de Mussolini,
que idealizava uma Itália-potência, agora havia um povo sofrido com as conseqüências dos
combates, com crianças sofrendo pela fome e pela perda de irmãos, pais, familiares e amigos,
isto fazia transbordar no brasileiro um misto de impotência e compaixão. Enquanto os
americanos pensavam em maneiras de vencer as batalhas e depois ajudar de alguma forma
diretamente a população, os brasileiros dividiam, primeiro, a comida com as famílias
____________________
66 - Equipamento que se assemelha a um ‘garfo’ para possibilitar a escalada em uma montanha.
67 - Ler o clássico desse autor: Raízes do Brasil.
italianas, apaixonavam-se pelas mulheres italianas, algumas tão diferentes para a maioria dos
soldados, e sentiam-se em casa quando se sentavam à mesa destas famílias, já que podiam
dividir as casas, principalmente quando o inverno chegasse. Como escreveu Ruy em seu
diário no dia 01 de novembro de 1944:

A casa onde estamos é habitada por uma típica família de camponeses –


Contadini – com a qual dividimos as acomodações. Eles nos acolhem com
simpatia e amizade. Como me levantei cedo, aproveitei para escrever as
coisas que aconteceram ontem.
Já faz muito frio aqui – os donos têm uma neta – a Mirela – que é uma
menina alegre e barulhenta. Toda a família nos agrada muito e participa de
nossas refeições, com a mesa posta e tudo..., mas logo que começa o
bombardeio eles somem todos: vão para a “cantina”, que é uma espécie de
adega abaixo do nível do solo e lá ficam quietos e rezando (...)
Ao jantar, um soldado apareceu com uma panela e um galo já morto e
depenado...à dona da casa competiu temperá-lo e guizá-lo, após o que foi
devidamente saboreado, acompanhado de um bom vinho trazido, também
não sei de onde...ótimo, o jantar(...)68

A valorização deste tipo de relação, de amizade e fraternidade, é uma característica da


família, independente do momento cruel em que viviam. Aquilo era uma espécie de troca, não
de meios materiais, que eram bem vindos, claro! Mas de restauração de uma rotina familiar
que existia antes da guerra, tanto para os italianos quantos para os brasileiros.

Fot 37 - Típica família do norte da Itália e partisans.


SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 113.

_______________
68 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
Havia alguns abusos nessa relação, Ruy relatou que os oficiais e mais graduados
orientavam no trato com o povo, para que a proximidade não gerasse desrespeito. Houve
vários casos de febianos que se casaram, mesmo durante a Guerra, com italianas e
constituíram família. Miguel Pereira, falecido em 2006, nem voltou ao Brasil, casou-se e foi
designado como responsável pelo Cemitério Militar em Pistóia. Quando o Cemitério acabou,
continuou assim mesmo na Itália. Uma frase interessante sobre esse tipo de relação entre
brasileiros e italianos é o disse Ruy: “o italiano dizia o seguinte: ‘o inglês nem namora nossas
moças, nem faz nada com elas. O americano namora, namora, mas não casa. O brasileiro
namora nossas moças, mas casa com elas’.”69 Era o que eles pensavam sobre a nossa
convivência.

Fot 38 - Desenho de Ruy retratando uma moradia camponesa italiana em


Gaggio Montano. Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.

Com toda a FEB na região próxima de Monte Castello, o IV Corpo decidiu realizar,
em 24 de novembro de 1944, um ataque às elevações de Monte Castello e Monte Belvedere,
utilizando a 45ª Divisão americana e reforçando-a com o III batalhão do 6º RI, o Esquadrão
de Reconhecimento e um pelotão de engenharia do 9º Batalhão de Engenharia. O ataque foi
mal sucedido, mas foi repetido com a mesma tropa, cansada e abatida, em 25 de novembro.
Desta vez conseguiram atingir o topo das elevações, mas devido às baixas e os desgastes
sofridos, foram repelidos e voltaram para as posições de partida. Lima Brayner comentou que
essa atitude do IV Corpo em empregar uma unidade brasileira a comando de outra americana
foi prejudicial para a tropa que atacou como para o Comando Brasileiro, que se sentiu despre-
_________________
69 – Depoimento [Jul. 2005].
stigiado, mas que segundo Brayner, não foi feito nenhuma reclamação formal por parte
Mascarenhas de Moraes70. Brayner fez coro com Clark ao criticar a tropa aliada que atacou ao
lado direito do 6º RI, o II batalhão do 370º RI, um dos batalhões negros, Brayner apontou que
esta tropa, que para ele era realmente limitada, recuou sem aviso aos brasileiros, o que os
deixou vulneráveis aos alemães71.
Os ataques repercutiram mal no V Exército e serviram para aumentar o número de
tropas inimigas naquele local, já que se despertou o interesse por sua conquista por parte dos
aliados, além disso, o batalhão brasileiro sofreu muitas baixas que prejudicaram-o nas ações
seguintes.
O IV Corpo decidiu passar essa frente, de 15 quilômetros, para a FEB, a comando o
General Mascarenhas de Moraes para que iniciasse as atividades visando à conquista daquelas
elevações e em seguida partisse para a ofensiva em direção à Castel Nuovo. Mascarenhas de
Moraes relata que nessa época as divisões americanas foram colocadas em repouso ou
estavam em uma área de menor atividade72.
Apesar de cônscio de que a maioria da sua tropa não estava devidamente adestrada, o
comandante de FEB determinou os preparativos para mais um ataque à Monte Castello e
Monte Belvedere. Para o dia 29 de novembro, a tropa que iria realizar o ataque seria formada
por três batalhões de cada um dos regimentos: o I do 1º RI, o III do 11º RI e o III do 6º RI,
este último em reserva, além de três grupos de artilharia da FEB mais um grupo do IV Corpo
americano, mais ainda elementos de apoio como as Transmissões, a Engenharia, a Cavalaria
e a Logística. Faltou, no entanto, o importante apoio da aviação, que com seu poder
combativo e falta de adversário aéreo, poderia facilitar a missão da FEB. No período em que a
FEB esteve na Itália, por sinal, os aliados tiveram a soberania aérea, ou seja, sem inimigos no
ar.
Zé Maria estava na 1º ataque à Monte Castelo e nos relatou o seguinte:

Como foi a primeira ação que o senhor participou na guerra? a primeira ação
de guerra da qual eu participei, ela foi....ela teve antes o fim do período de
treinamento, treinamento de combate numa montanha.... nas margens do rio Arno,
rio que banha pisa, nós fomos deslocados de San Rossore para esta região...
Filetolli....uma aldeia nas margens de uma pequena rodovia, por sua vez nas

________________
70 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 218.
71 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 238
72 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 114.
margens do rio Arno. Nós acampamos nestas barraquinhas pequenas prá dois, duas
pessoas, dois homens, até o meu companheiro de barraca era o
sargento da minha peça, sargento Amin Murad. Religioso, Nossa Senhora, crente
na fé. Na fé católica, excelente figura, homem muito humano, também nunca mais
vi o sargento Amin, nunca mais. Nem notícia, nunca mais tive dele. Bom... aí nós
fizemos um treinamento ali, eu vou falar eu, minha companhia, meu pelotão,
participei deste treinamento, uns três ou quatro dias, não foi uma semana, no
último dia, debaixo de muita chuva, muita chuva mesmo, né?! nós já tínhamos
atingido o cume do tal morro, aí foi dado como encerrado o treinamento e
regressamos à base, quando nós chegamos embaixo no acampamento o dia estava
clareando, o sargento Amin, muito cansado espichou dentro da barraca e eu ainda
fiquei do lado de fora, conversando com ele, aí eu escutei, numa estradinha de
chão, eu escutei um barulho de uma viatura, e fiquei olhando prá lá, aproximou
uma viatura, um jipe, eu estava do lado de fora bem próximo, o cara desceu e veio
na minha direção, e me perguntou: “onde é que fica a barraca do seu comandante?”
e aí eu falei, aqui. Aí fui com eles na barraca do comandante, mas fiquei do lado de
fora, chegou assim falou qualquer coisa entregou também uma mensagem escrita,
lógico um envelope, aí quando voltou pro jipe eu falei : ‘que que era?’ “você
vão...é uma ordem pra vocês irem..para ..para a frente para substituírem um pessoal
do 6º RI, mas ele não soube explicar aonde nem nada.. Bom aí o dia já estava claro,
o jipe foi embora, eu voltei pra barraca, e falei pro sargento Amim – sargento, má
notícia...- que que é?- você escutou o barulho do jipe? – escutei- pois é, eu
conversei com o cara lá , é o seguinte nós vamos nos deslocar daqui, daqui a uma
hora no máximo, nós vamos nos deslocar pra substituir um pessoal do 6º RI.
– pôxa vida que isso....
Aí não deu outra, daí a um bocadinho, já..era sete horas, era oito horas e já tava
todo mundo em movimento, e a companhia já tinha entrada em forma, e já tinha
sido dada a ordem de levantar o acampamento. Levantar o acampamento quer dizer
o seguinte: é recolher o chamado material, individual..barraca não, barraca é ponto
de..outra gente, né?! não é de nossa conta. Bocadinho os caminhões encostaram,
embarcamos e seguimos ..em direção ao norte, aí nós passamos por fora de
Florença, de Pistóia, fomos embora, começamos a subir aquelas montanhas, tal..e
tal..aí de repente....nós, bom hoje eu falo, mas naquele dia não, porque eu não sabia
né?! depois é que eu fiquei sabendo, aí de repente nós chegamos, na..na....já
descendo a montanha, uma das montanhas, já bem embaixo, nós chegamos em
Porreta Terme, que para os italianos é um tipo de estação de águas, como é aqui em
Caxambú, São Lourenço. Aquele dia eu não sabia, depois eu fiquei sabendo, alí
nós, máximo dois quilômetro na frente, de noite, nós desembarcamos, e subimos à
esquerda, foi em uma pequena aldeia, chamada Granallione, entende? e nesta
pequena aldeia, nós ocupamos umas casas de italianos, ..bom aí, aí já ..já
..entendendo um pouco já no idioma italiano, não só entendendo, mas falando
também, aí a gente já ficou sabendo, eu fiquei sabendo, eu e meus companheiros, lá
atrás era Porreta Terme, e alí chamava-se Granallione, e aquela montanha que
estava lá na frente Monte Castelo..nós fomos....certo?!..nós passamos ..nós
passamos aquele resto de noite, né?! e o dia seguinte neste chamado Granallione .
Quando foi na tarde do dia seguinte, aí bom, aí nós já...já havíamos recebido ..carta
topográfica...o sargento passava a missão por senhor e para os soldados? não,
não era isso, ..ninguém falava nada, porque ninguém tava sabendo ainda, nós
sabíamos que íamos substituir....o pessoal do 6º, aí ..ficamos sabendo, aí é Monte
Castelo, lá é Gaggio Montano, mais pra direita é a rota 64, estrada 64, na direção
de Bolonha, ..e tendo recebido mapa topográfico da região, era fácil né?! era olhar
e saber. Então foi na tarde do dia seguinte, naquela época já existia a chamada
ponte de Silla, ponte de Silla, famosíssima ponte de Silla, então aquela parte baixa
alí, aquilo ficava tudo coberto com uma cortina de fumaça artificial, e mesma parte
alta ..aquela névoa, não se enxergava nada, não enxergava nada, aí nós descemos,
atravessamos a ponte de Silla, pegamos uma estrada, uma estrada ..lá eles
chamavam mulatiera estrada de mula, mulatiera . Aí subimos, aí começou então a
guerra, porque começou a guerra?! 1º: nós estávamos extenuados do exercício que
nós tínhamos acabado de fazer, já tinha vinte e quatro horas, após, mas nós
estávamos extenuados, porque não foi brincadeira o que a gente fez de esforço,
carregando material pesado, e subindo, e descendo, e pedra, não sei o que , não sei
o que, então nós estávamos extenuados. Então nós..até nós chegarmos, na posição,
onde nós íamos substituir uma seção do morteiro igual a nossa, do 6º RI, eu lembro
que o dia estava clareando, quando nós chegamos em Bombiana, uma aldeia a
meio caminho do cume de Monte Castelo, entendido?! então o dia já estava
clareando, e foi feito tudo numa rapidez incrível, e com isso, com isso não deu,
aquela seção do 6º..saísse da ..das posições, então nós ficamos tudo embolado, até
que..terminou, aquilo que foi a estréia do 11º RI no primeiro ataque à monte
castelo, que foi em novembro de 44. Que até então nós não sabíamos, quando nós
já estávamos em posição mesmo, já era umas sete..e alguma coisa da manhã, é que
então a comunicação por telefone, né?! aí que começamos a receber ordem de tiro
aqui, tiro alí, né?! então é que nós ficamos sabendo que era um ataque a Monte
Castelo, até aquele momento nós sabíamos da substituição do 6º RI, ...não escreve
não, é só uma lembrançinha aqui, ..o primeiro tiro de minha peça, foi eu que dei,
..foi eu que dei. Eu peguei a granada..como é que fala, uma granada anti-
pessoal, ..porque a comunicação através comunicação telefônica, é de que
elementos inimigos estavam deslocando do ponto x, ..então foi pedido tiro de anti-
pessoal, então eu lembro que eu... tinha uma namorada, noiva, que depois da guerra
nós nos casamos, ..mães dos meus filhos, então eu coloquei a granada na boca do
morteiro e lembro que falei por companheiro, ela se chamava Alvina, que era o
nome de minha patroa, - “ isso é homenagem pra minha namorada Alvina”., e
soltei a granada. ,,foi o primeiro tiro, foi em nome dela. Ô Deus foi muito bom
lembrar, e ali nós permanecemos, quando foi mais ou menos, três pras quatro horas
da tarde, foi suspenso o ataque. Elemento do meu batalhão né?! do terceiro
batalhão, ..da nona, da oitava, da sétima. que eram os mais avançados, chegaram a
botar o pé lá em cima, mas faltou..a segunda linha. ..né?! o senhor sabe o que é a
segunda linha, segunda linha é aquele que vai em apoio àqueles que já estão na
frente, faltou a segunda linha, então, digamos assim, 2, 3, pelotões, 1 pelotão de
uma companhia já na posição, é...um contra-ataque não vai deixar ninguém ficar
ali, não tinha como fazer tiro de artilharia, porque senão pega eles mesmos porque
o tiro de artilharia não tem curva, tiro de artilharia é direto, agora o morteiro atira,
não há dúvida nenhuma, mas só os morteiros é pouco, para a posição da
importância daquela. Aí tipo 3, 4 horas da tarde foi suspenso o ataque, aí foi aquela
dificuldade, os pelotões da nona da oitava e da sétima, não conseguiram ao maior
avanço, retornar a sua base de partida. Um negócio esquisito prá caramba, aquela
outra, a gente não vê muito bem não, mas hoje passado, e sabendo disso, sabendo
daquilo foi muito estranha aquela história....minha Nossa Senhora se a segunda
linha tivesse se movimentado não tinha...amanhã faz mais 63 anos de um dos
ataques à monte castelo, amanhã não é doze? pois é amanhã faz. 73

Os americanos, segundo Mascarenhas de Moraes, foram incumbidos de conquistar


Monte Belvedere, que era uma região mais alta que Monte Castello, ou seja, ela possuía
“comandamento”74 sobre o objetivo brasileiro, as armas automáticas do inimigo, se não
________________
73 – Depoimento [Dez. 2007].
74 – termo militar que indica que uma elevação está com seu ponto mais alto acima do ponto mais alto de outras
elevações.
fossem silenciadas pelos americanos, bateriam a tropa brasileira em Castello, e foi o ocorreu.
Os americanos não conseguiram e o flanco esquerdo brasileiro ficou desprotegido. O ataque
foi iniciado às seis horas do dia 29 de novembro, após uma marcha noturna de sete horas onde
foram percorridos dezessete quilômetros sobre um chão escorregadio, uma marcha à pé, na
escuridão, feita em silêncio para surpreender os alemães. Zé Maria relatou que a tropa estava
cansada de um exercício anterior em que muito esforço havia sido feito, logo não era a mais
indicada para um ataque em uma frente que era tida como melhor defendida do que as que
anteriormente atacadas pela FEB, onde por duas vezes os americanos não tiveram sucesso,
mas assim mesmo, o Comando resolveu seguir adiante seu planejamento e empregou tropas
sem experiência e cansadas do 11º RI e do 1º RI.
Sem nenhum tipo de informação prestada aos soldados, a Unidades atacaram Castello
com boa precedência da artilharia aliada, com a finalidade de aplacar a força defensiva dos
alemães. No entanto, com os problemas na zona de ação dos americanos, o cansaço da tropa,
houve um recuo do 1º RI, que ocasionou também um recuo do 11º RI, sendo que esta, que era
a Unidade de Zé Maria, progredia muito bem e já estava próxima do cume de Castello, mas
não conseguiria atingi-lo sem apoio das outras tropas. Com o crescente número de baixas e a
noite chegando, o ataque foi suspenso.
O próprio Clark já havia observado que os alemães procuravam explorar a falta de
experiência dos brasileiros em combate e espalhavam propaganda na América Latina dizendo
que os brasileiros eram utilizados como “carne de canhão”75 pelos americanos, principalmente
em ações como essas, que custaram muitas vidas brasileiras, entre mortos e feridos. O III/11º
RI teve 28 baixas e o I/1º RI 157 baixas, um número alto comparando-se o que até então
ocorreu nos meses anteriores nas missões de combate.
Geraldo também atuou no apoio ao 1º ataque à Monte Castelo, perguntado como foi
realizado seu trabalho e sentia algo ao recolher os corpos de seus companheiros, ele nos
respondeu:

Nada. Teve um dia, no primeiro ataque à Monte Castelo, foi a maior mortandade
da FEB. Foi 28 e 29 de novembro de 44. aí eu recebi uma ordem de ir à Monte
Castelo com todas as viaturas, mas como tava quase à quarenta quilômetros do
cemitérios, eu fui com a minha. E nós subimos, já de tarde, já estava anoitecendo,
não dava pra tirar. Tinha dois que eles tiraram e colocaram em uma casa. Aí nós
tiramos, colocamos no caminhão, já de noite. Tiramos do caminhão e colocamos
aonde era uma garagem. No dia seguinte, de manhã, fomos identificar. Tirei a
coberta e vi que era um cabo do 12º: Francisco de Paula Lopes. Ele tinha os dentes
pra fora, não queria ir para guerra. Pedia pra não ir por causa da mãe dele.
______________
75 - MCCANN, Frank D. Op.Cit. p. 333 .
Eu sai fora, não quis tomar conhecimento. ‘vocês identifiquem, meu Deus servi
com esse cabo, ele não queria ir para guerra, por causa da mãe dele’.
Aí passou, eu não podia ir para o cemitério, eu cuidava da frente com cinco
soldados, um cozinheiro e quatro pra me ajudar. Nunca mandei nenhum deles
pegar na frente, eu era um terceiro sargento, mas tinha moral à frente dos homens,
fiz vinte e um anos lá. Eu não podia começar a mandar pegar, porque ia perder a
moral dos homens. Pegar na frente é pegar na frente da padiola, eu era o primeiro a
chegar e pegar na padiola.76

Com mais um fracasso em relação à conquista de Monte Castello, as críticas ficaram


mais fortes. Ao se levantarem os problemas, ficou constatado que até a hora o ataque, não
havia sido definida qual seria a melhor tropa para ser empregada como reserva, apesar de III
batalhão do 11º RI, o mesmo que havia feito o ataque em 29 de novembro, ter sido escalado
na ordem do comandante da FEB, mas o 1º RI precisava de uma reserva sua e não o tinha. O
Chefe de Operações, Tenente-coronel Castelo Branco, afirmava que não haveria tempo para
acertos com o IV Corpo, pois o problema surgiu às 22 horas do dia 11 de dezembro, e o
ataque se iniciaria às 06 horas de 12 de dezembro, o que gerou conflito com Lima Brayner.
Segundo este, o 1º RI já estava no terreno, em movimento, desde o dia 09, realizando o
deslocamento em direção ao inimigo, e chegou fatigado no dia 12, o dia D. Outro problema
foi novamente a não ocupação do Monte Belvedere, à esquerda de Monte Castello, que havia
sido conquistado pelos americanos e reconquistado pelos alemães, um dia antes. Novamente a
FEB atacaria Castello sem proteção pelo flanco esquerdo. Lima Brayner afirmou que o 4º
ataque àquela elevação era uma releitura: “os mesmo erros, os mesmos vícios de origem”.77
O ataque propriamente dito começou com um avanço prematuro, antes da hora
marcada às 06 horas, do III batalhão do 1º RI. O II batalhão do mesmo regimento que atuava
ao seu lado, só começou o ataque às 0830 horas, mais de duas horas depois. Isto gerou o
desnível no movimento das duas tropas, que prejudicou o apoio da artilharia e pesadas baixas.
O falta de impulsão levou a suspensão do ataque às 1500 horas.
O General Crittenberger, comandante do IV Corpo, pediu explicações para a
suspensão do ataque, mesmo que a reserva ainda não tivesse sido empregada e nem que ainda
2/3 da munição de artilharia e morteiro não tivessem sido usados. Para o americano aquilo foi
uma renúncia ao cumprimento da missão. Por coincidência visitava o campo de batalha nesse
dia, o Ministro da Aeronáutica do Brasil, Salgado Filho, que assistiu a reprimenda do General
Crittenberger ao comandante da FEB.

_________________________

76– Depoimento [Out. 2004].


77 - BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 278.
As 145 baixas, incluindo 17 soldados mortos do mesmo pelotão e com seu
comandante, o tenente Rezende, e que ficaram na região de Abetaia, um local anterior à
Monte Castello, homens que só foram retirados em fevereiro de 1945, por Geraldo.
O ataque de 12 de dezembro e, logo após, a captação de emissões de rádio em que a
propaganda alemã fazia-se ouvir no Brasil atemorizando os brasileiros sobre o fracasso da
FEB, fez com que o General Mascarenhas enviasse o Coronel Lima Brayner ao Brasil, para
explicar a situação da FEB antes que maiores danos fossem causados. Lima Brayner
realmente encontrou a capital federal, o seu Presidente, Dutra e famílias de febianos em
estado de tensão com as notícias de mortos, feridos e de que a FEB era trucidada na Itália.
Conseguiu ser ouvido por todos, explicou os problemas que a Força enfrentou desde a
chegada na Europa, e deixou o Brasil com um pouco mais de crédito, mas não era possível
haver mais insucessos.78
Todo o XV Grupo de Exércitos foi imobilizado naquela 2ª quinzena de dezembro e
iniciou uma estabilização devido ao inverno que se aproximava. Problemas como cansaço de
todos os efetivos, condições meteorológicas, variando entre frio do inverno para chuvas que
cobriam o terreno transformando estradas em atoleiros, e o já mencionado acréscimo de
tropas inimigas naquele território. Para a FEB era a hora de se ajustar ao novo modo de atuar,
uma defensiva agressiva na neve, e de rever o que ocorreu de errado nos dias anteriores,
preparar-se para as novas ordens do novo comandante do V Exército, General Truscott,
substituto de Clark, que assumira o XV Corpo de Exércitos. A ofensiva até o vale do Rio
Pó, que poderia determinar o fim da guerra na Itália, teria que esperar um pouco mais. Para os
brasileiros era um ponto de inflexão em suas histórias, viveriam intensamente patrulhas para
reconhecer de maneira intensa a área de Monte Castello, seus comandantes teriam mais
informações e se debruçariam sobre a melhor forma de desfecho da missão que ainda não fora
cumprida. Antes, porém, tinham que se adaptar à desconhecida neve.
Enquanto isso, atuava a propaganda psicológica alemã, que antes era tida como
formidável instrumento de combate nazista, mas nos momentos finais da guerra, padecia de
meios e inovação. Mesmo assim, jogavam folhetos para a tropa por meio de bombas de
artilharia, escritos em português, concitando aos soldados abandonarem a guerra; utilizavam
carros de som no alto das montanhas; usavam figuras sobre o Brasil insinuando que o país era
invadido pelos americanos enquanto os soldados eram mortos na Itália, entre outras.

________________
78 - MCCANN, Frank D. Op.Cit. p. 324.
Fot 39 - Situação típica das estradas italianas no início do inverno de 1944.
Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB - Seção Juiz de Fora.

Nos relatos colhidos não observamos que este tipo de estratégia tenha dado certo entre
os brasileiros, até porque não houve situação amplamente desfavorável para que a propaganda
desse certo. A FEB, apesar de Monte Castello, ainda estava em melhor situação do que os
alemães, que por sinal sempre tinham desertores pegos em sua frente. Não havia fome,
desconforto, insubordinação, maus-tratos, nada que sugerisse descontrole do comando em
relação à tropa. Não havia, por sinal, para nenhum dos lados, algo parecido com o cerco às
tropas nazistas em Stalingrado.79 Mesmo assim, há o caso do soldado Bruno Larsen, tido
como o único caso de deserção da FEB em solo italiano. 80 Ruy relatou que Larsen, segundo
consta oficialmente, foi aprisionado e morto pelos alemães.81 Já Pedretti afirma que conheceu
Larsen, e ele disse para alguns soldados de sua companhia que iria desertar, no dia seguinte,
para o lado alemão.82
Iniciada a defensiva, a FEB recebeu uma frente de 20 quilômetros, que foi considerada
extensa para uma Divisão, que deveria ser de no máximo 15 Km. Teria a sua direita ou a este,
a 6ª Divisão Blindada Sul-africana, e à esquerda ou a oeste, a Task Force 45, em sua zona de
ação havia a 232ª Divisão de Infantaria alemã, que já havia confrontado os brasileiros.

_______________________
79 – Há bons livros sobre o assunto, mas a obra de Antony Beevor, Stalingrado: o cerco fatal é o mais
indicado.
80 – OLIVEIRA, Dennison. Os soldados alemães de Vargas. Curitiba, Juruá, 2008. p. 139 a 148.
81 – Depoimento [Jul.2005].
82 – Depoimento [Out.2004].
Fot 40 - Propaganda psicológica alemã.
SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 107

Fot 41 - Outro exemplo de panfleto de


propaganda psicológica alemã lançado às
tropas brasileiras. SULLA, Giovanni;
TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 107
A defesa organizada pelos brasileiros era formada por uma grande Linha de Postos
Avançados, que era uma série de pequenos postos com no máximo nove homens, à frente da
Posição de Resistência, que é a principal instalação de defesa, formada pelos pelotões dentro
de suas companhias, todos os regimentos da FEB estavam presentes nesta área. E por fim
havia a reserva da posição de defesa, que estava pronta para atuar em caso de rompimento da
Posição de Resistência em caso de ataque inimigo. A defesa da FEB era apoiada por quatro
grupos de obuses da artilharia, que durante este período se limitaram a dar suporte às
patrulhas que atuavam próximo ao inimigo ou em caso de informações de agrupamento de
homens, fora isso, ambos os lados evitaram lançar granadas e tão pouco houve ataques de
vulto às posições brasileiras. Durante essa fase atuou positivamente a Bateria de Artilharia
Anti-aérea inglesa defendendo o Posto de Comando da 1ª Divisão Expedicionária Brasileira e
a americana 179ª Companhia Química de Geradores de Fumaça, que trabalhava
produzindo fumaça para envolver com uma névoa branca as cercanias de Silla, protegendo
sua ponte da artilharia inimiga, ponte essa importante para a condução de materiais vitais para
a FEB.83
A defesa contava ainda com 57 canhões anti-carros, 585 lança-rojões (também
conhecidos por Bazuca), 60 carros de combate e campos de minas.
Nesta fase diversas missões de patrulhas foram realizadas para levantar informações
sobre o formato da defesa inimiga, quais as Unidades à frente, se havia campos de minas, se
havia obstáculos artificiais e naturais e como se configurava o terreno para planejar a futura
ação ofensiva. As patrulhas também tiveram a intenção de treinar o homem como combatente,
pois as falhas ocorridas antes não poderiam voltar a acontecer, principalmente no tocante às
medidas de progressão sob fogo inimigo. O Comando da FEB, inclusive, previu mais
instruções com a finalidade de corrigir outros tipos de vícios apresentados nas tentativas
frustradas à Monte Castello, como a execução de tiros e minas, até mesmo instruções para
deslocamento em esqui foram ministradas a um grupo de febianos.84 Foram também previstas
instruções de educação física e ordem unida para os febianos, medida criticada por Lima
Bryner e Manoel Thomaz Castelo Branco, que viam essas ações despropositadas e com um
sentido punitivo aos homens que fracassaram na conquista de Monte Castello.85 Em pleno frio
e de frente para os alemães, pensar que educação física e ordem unida ajudariam em vencer
as próximas missões era demonstração de falta de bom senso. Em nossos relatos diretos
_____________________
83 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 282.
84 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 299.
85 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 332.
nada foi comentado sobre isso. A instrução em si foi vista como inoportuna, pois o importante
era o descanso dos homens e os preparativos para a ofensiva após o inverno.
Em uma das patrulhas realizadas, o então 3º sargento José Gomes comandava um
pequeno grupo de homens e foi atingido pelos alemães em um “golpe de mão” que consistia
em uma ação ofensiva de pequena intensidade com a finalidade de provocar baixas,
reconhecer o dispositivo inimigo e apavorar o adversário:

- Como é que o senhor foi ferido?


- os alemães deram um “golpe de mão”, eles jogaram um fire light (sic).
- isso aconteceu comigo, eles colocavam um cordão no chão com um fio
atravessado geralmente com uma metralhadora e quem tropeçasse nele ficava
mais claro que o maracanã. quando aconteceu isso comigo ficou só iluminado
mas não tinha a metralhadora. (Toninho)
- foi dessa maneira que eu fui ferido.
- e o senhor foi atingido aonde?
- de 32 tiros um atingiu minha perna. (mostrou a perna).
- como é que o senhor se sentiu naquela hora?
- eu caí em cima da perna e um soldado da patrulha me apanhou. Aí eu fui para o
serviço de enfermagem. Eu vim me arrastando na padiola. Eu não me agüentava.
- o padioleiro fez os primeiros socorros ou só tirou o senhor de lá?
- ele me levou para o hospital.
- e o tiroteio continuou por lá?
- eu não vi mais nada, ele me botou no carro e levou. 86

Fot 42 - Homens em instrução de esqui. SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 94.

____________________
86 – Depoimento [Jan.2005].
A fire light citada por Toninho, que participou da entrevista, e por José Gomes, era um
aparelho que iluminava o campo de batalha, atordoando o inimigo e possibilitando o ataque
de quem a lançava, no caso de José Gomes, a ação dos alemães quase lhe custou a vida.
A adaptação ao frio foi menos traumática para os brasileiros do que se imaginaria
meses atrás. Para um país com grande parte de seu território em área tropical e subtropical,
onde não existe frio intenso e muito menos neve, os brasileiros rapidamente encontraram suas
formas próprias de diminuir os efeitos do frio. Tiveram, no entanto, de obter mais apoio dos
americanos no tocante a uniformes mais apropriados ao clima, pois como já foi analisado, o
uniforme trazido do Brasil não era ideal. Receberam jaquetas brancas que além de esquentar,
camuflavam o homem quando no terreno coberto de neve.

Fot 43 - Soldados em patrulha na neve. SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 95

Na Linha de Defesa os brasileiros ocupavam abrigos individuais, quando estavam de


prontidão observando os alemães, os fox holes, os “buracos de raposa”, na própria neve,
camuflados no terreno. Em descanso, próximos ainda na Linha de Defesa, ocupavam
casamatas abandonadas pelos alemães ou construídas pela Engenharia, e ainda mais à
retaguarda dividiam as casas dos italianos ou ocupavam as que estavam abandonadas. A
logística também teve que buscar alternativas para manter seu apoio às Unidades brasileiras,
para isso valia-se muito das mulas para condução da alimentação dos militares que se
encontravam mais à frente, próximo dos alemães.
Fot 44 - Engenharia atuando na detecção de minas com
equipamento especial, o DM 1000. SULLA, Giovanni;
TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 95

Fot 45 - Nos momentos de descanso, homens em


camas improvisadas nas casamatas. SULLA,
Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p. 93
Ruy explicou como foi a adaptação ao frio que rendeu os maiores elogios dos aliados e
que diminuiu a ocorrência de uma doença nos pés chamada de “pé de trincheira”:

As idéias de adaptação ao frio surgiram lá. A nossa botina feita no Exército, foi
feita no início pelos presos, depois pelas fábricas. Com o frio nossa botina não
suportava o frio, e todo mundo só usava o galochão. Você usava a botina, mas
com a galocha por cima que ia até o meio da canela. Era impermeável. Ela fechava
por cima da lingüeta...aí com o tempo o pessoal tirava a botina, mas o pé ficava
‘sambando’. Aí começamos a usar o jornal e vimos que o jornal esquentava e
passaram a usar também a palha, aí uns largaram a botina para lá, mas outros
também pegavam uma das mantas que nós recebemos e pagavam uma italiana
para fazer um mocassim, uma sapatilha de manta de lã para depois usar a palha,
pois a palha direto no pé não era macia. Mas o bom mesmo era o jornal, tanto que,
quando vinha o ‘Globo Expedicionário’ todo mundo corria atrás para usar nos pés.
Usavam também livros velhos, folhas de mimeógrafos.... 87

Fot 46 - Mulas em trabalho de transporte de alimentação para soldados do front.


SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p.114.

O Serviço de Saúde da FEB confeccionou um quadro estatístico comparativo entre o


Exército Americano e suas cinco divisões de infantaria na Itália e a FEB, nele mostra que a
maneira brasileira de evitar o pé-de-trincheira deu resultados positivos, ainda mais se tratando
da experiência dos americanos em combate, inclusive tendo já passado um inverno na Itália.

TABELA 1 - COMPARAÇÃO DE BAIXAS DE MILITARES


Mês EUA Brasil
Nov 1944 54 10
Dez 41 78
Jan 1945 37 76
Fev 48 12
Mar 16 10
Abr 10 12
Tabela elaborada a partir de dados encontrados nas obras de Branco e Moraes.

_______________________
87 – Depoimento [Jul.2005].
Em relação a todo o período de guerra, os americanos tiveram 93 casos por mil
homens perdidos por doenças de qualquer tipo, enquanto os brasileiros tiveram a taxa de
62,7.88 Apesar de todos os problemas apresentados na seleção de pessoal antes da partida para
a Itália, a higidez do brasileiro foi melhor em quase todas as doenças identificadas,
principalmente nas de ordem neuro-psiquiátricas, o que se pode explicar pelo maior tempo de
período em combate de grande parte do efetivo americano.
O Serviço de Saúde trabalhava desde o posto de socorro de cada Regimento, como era
o caso do trabalho de José João, após os primeiros socorros, o ferido era levado para os Postos
de Evacuação, que ficavam ao longo das estradas de evacuação à retaguarda, e depois para o
Posto de Triagem, que definiam o grau de urgência de atendimento do ferido e o
encaminhavam para os hospitais de campanha. Cada hospital de campanha possuía uma seção
brasileira de saúde, onde trabalhavam os médicos e enfermeiras do Brasil e onde os feridos da
FEB eram tratados. Apesar de solicitado, não foi organizado um hospital totalmente
brasileiro, mas, provavelmente por motivos logísticos, as seções funcionavam dentro dos
hospitais norte-americanos.89 Se o ferido tinha condições de recuperação em menos de 120
dias era tratado na Itália e, se fosse o caso, devolvido para o front, se o período de tratamento
excedesse esse prazo devido a gravidade, ele era encaminhado para os EUA.
O Serviço de Saúde também trabalhou nos momentos de trégua, em prol da população
italiana, deixando um legado de gratidão daquele povo, bem como já faziam os combatentes
quando dividiam sua comida com as famílias que viviam em sua zona de ação. No total,
mais de 10 mil homens da FEB foram atendidos de alguma forma pelo Serviço de Saúde,
quase 50% do total da Força, sendo que 1549 foram efetivamente feridos em combate.90
Nesse período estático em relação ao movimento de grandes efetivos de homens, mas
com intensas atividades de patrulhas, o brasileiro supriu sua saudade de casa comunicando-se
com seus familiares e amigos por meio de cartas e telegramas. Alguns, como foi dito no 1º
capítulo, já estavam desde o início de 1944 longe de seus lares, ou seja, completavam um ano
de distância.
O contato com suas famílias foi uma das formas utilizadas pelos exércitos para que os
militares tivessem alguns momentos de alívio psicológico de todas as pressões que eram
__________________
88 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 324.
89 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 317.
90 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 303.
Fot 47 - Tenente médico do Brasil medicando criança italiana.
SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p.116.

submetidos no combate.
O soldado estava exposto ao perigo de morte em todos os dias de sua permanência na
guerra. Presenciava a população faminta, crianças órfãs lhe pedindo ajuda, mortos e
destruição por todos os lados e sentia, também, a saudade e a incapacidade de chefiar sua
família ou estar próximo de seus entes. Havia também outras formas de arejamento em
combate, como pequenas dispensas para viajar à retaguarda e conhecer outros lugares, com
hotéis, dependendo do local, à disposição dos militares para descanso ou a exibição de filmes
e apresentações teatrais e musicais em situações de calma. A FEB, seguindo o modelo
norte-americano de arejamento, possuía um setor somente para esse fim, era o Serviço
Especial. Outros países, inclusive a Alemanha, faziam o mesmo, dedicando a devida atenção
ao componente psicológico do soldado, para que suportasse melhor as condições de guerra e
não se tornasse uma “fera” desumana. Os russos, ao contrário, não perceberam a importância
desta necessidade, e um dos resultados foi quando da invasão de Berlim, 100 mil mulheres
alemãs, segundo relatos, teriam sido estupradas pelos militares. Em toda a Alemanha,
estimasse em 2 milhões de mulheres.91
Já especificamente a atividade de organizar o sistema de correios, de modo que as cartas
vindas do Brasil e de saída da Itália fossem direcionadas em segurança para seus destinatários,
era de responsabilidade do Serviço Postal da FEB, que, além disso, orientava a
escrituração e a tarefa de censura das cartas.

_________________
91 – BEEVOR, Antony. Berlim, 1945: a queda. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 501.
O tenente Ruy, em seu diário de guerra, relatou algo que nos proporciona entender a
importância das cartas para o soldado em combate:

Abri primeiro a de minha mãe. Cartas de mãe devem ser todas iguais, porque todas
amam seus filhos do mesmo modo; saudade, recomendações, cuidados e notícias,
tudo nessa ordem... Lí e relí (sic), primeiro com pressa, depois devagar, depois
lentamente, procurando nas entrelinhas algo mais que pudesse conter. A segunda,
de meu ex-sogro, dava notícias de meus filhos, dos parentes em geral e de meus
interesses. A última, finalmente, consistia numa folha de papel cheia de garatujas, e
por baixo de tudo, alguém guiara-lhes as mãozinhas para escreverem as palavras:
PAPAI, saudades e as assinaturas: PAULO E CELSO.
Bem, Deus seja louvado! Dia feliz! Sinto-me um novo homem, com uma enorme
vontade de viver e lutar para isto! 92

Fot 48
Fot 48 - Ruy, em um momento de reflexão, descreve em
desenho o ambiente em que estava em fevereiro de 1945.
Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.

As cartas que chegavam eram esperadas assim como descrito por Ruy, com ansiedade
e satisfação, principalmente para alguém que como ele havia deixado dois filhos com os
sogros. As cartas vindas do Brasil traziam as notícias mais rotineiras e comuns do ambiente
em que vivia anteriormente o expedicionário, eram informações da família, de resultados
esportivos, de amigos, enfim, de tudo que fosse de interesse do febiano e que não tivesse
problemas com a implacável censura. Como a carta a seguir, enviada pela então noiva de Zé
Maria, Alvina Henriques:

______________
92 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
Cabo 3560 314 FEB
de: Alvina Henriques
S. J. Nepomuceno / MG

saudoso Zé p.

Tive hontem (sic) alegria louca por receber a sua primeira cartinha, apezar (sic) de
pequenina notícias que mito (sic) me alegraram, poes (sic) estás com saúde e se
dando bem ai, e tenho fé na vigem santíssima que dentro em breve voltarás com o
“V da vitória” tenho certeza que não tardará. Querido tens recebido minhas cartas,
poes (sic) tenho ti escrito a miudo como tambem tenho dado aos seus amigos os
envelopes acompanhados do papel e já subscritados (sic), de modo que em breves
dias receberás muitas cartinhas que tenho certeza muito ti alegrarão. Tivemos
ontem a linda festa do rosário (sic) tivemos um bom padre que discreveu toda a
vida de nossa senhora do rozário (sic) que fêz muita gente chorar, pois foi de fato
comovedor o sermão. Querido então já conheces a terra do vovô Angelo, sinto
também não estar junto de você nesta viagem maravilhosa que muito aproveitarás
se Deus quizer. Vou dar-te uma grande novidade, o Paulo passou 7 dias em
Barbacena na casa do oscarzinho, ficando assim noivo da Pompéia, ambos estão
louquinhos de satisfação, sabes como não é, poes também nós passamos este
adorável tempo, que se deus quizer breve voltarão e assim ficaremos juntinhos para
sempre. Outra novidade: o casório da comadre Cirene sairá em 20 de janeiro. A
minha diversão continua sendo os passeios em casa dos compadres e de vez em
quando na sogra e da vó, o Mário já foi para a nova morada, não imaginas a
cazinha dele como ficou; também o Binha já arrumou a casa que ele comprou,
ficou muito jeitozinha ambas tem um grande quintal. Estou te escrevendo da casa
dos nossos compadres ambos satisfeitíssimos por receber carta sua e enviam muitas
lembranças e a Neinha ti pede a bençam, está cada vez mais linda. como tens
passado com o frio. já recebestes os doces e biscoitos que ti mandamos? não
calculas a alegria aqui é geral quando chega uma carta de vocês quero quando
escreveres não dares tão pouca notícia como desta vêz sim? bem meu grande amor
vou parar poes já falei bastante não é, mais ainda esqueci de uma novidade, o
Chiquinho Scapolatenpore esteve aqui hoje e eu dei também a ele envelope para ti
escrever que tal... bem agora vou parar deixando aqui o meu amor e pedindo a sua
bençam para a Magali meu beijinho para você. C. L. Z. P.93

A transcrição desta carta começa pelo seu endereçamento que seguia no envelope.
Nela não foi colocado o nome, apesar de permitido, mas somente o número do militar, com a
numeração de sua companhia, no caso 314, com a indicação da FEB, tudo dentro do modelo
preconizado pelo Exército. Observa-se também, que a noiva de Zé Maria procurava descrever
como se desenvolvia normalmente a vida na pequena São João Nepomuceno, que a única
diferença era a ausência daqueles que foram à Guerra. As pessoas continuavam a ir às festas
religiosas, viajavam, casavam. E no caso desta carta, elas poderiam achar que a Guerra era um
“passeio”. Desta forma os febianos estavam ligados aos seus familiares e ao seu lugar,
fazendo planos e mantendo-se firmes em sua missão dentro de cada fração da FEB.
__________________
93 – Carta pessoal de José Maria da Silva Nicodemos.
O soldado, a cada momento de trégua no campo de batalha ou quando estava na
retaguarda do front sentia-se motivado para escrever, acreditava que para cada carta
respondida, uma nova seria enviada do Brasil, trazendo-lhe mais notícias e conforto. Para isso
bastava um pedaço de papel, um lápis, o nome com o número do pracinha e o envelope
padrão da guerra, nem era preciso selar, pois até as cartas vindas do além-mar eram gratuitas.
Mesmo os analfabetos que compunham a FEB tinham a oportunidade de se
comunicar por meio das cartas. O Correio Regulador, órgão responsável pelo envio das cartas
e telegramas originários da guerra na Itália, desenvolveu junto aos regimentos um sistema que
consistia em um tipo de cartão postal que já vinha com toda a mensagem pronta, só faltando
colocar o nome do militar, do destinatário e o local para envio. Um amigo ou o próprio militar
responsável pelo envio liam a mensagem do cartão para o interessado e colocavam seu nome
e o endereço. O único empecilho era que esse sistema era impessoal, todas as mensagens eram
de conteúdos muito semelhantes, tornando a correspondência artificial, como o que consta nos
modelos de sugestões para correspondência de analfabetos do 11º RI:

4) Meu bom Pai – Estou bem de saúde e muito satisfeito. O frio aqui é bem forte
mas tenho muitos agasalhos. Mande dizer-me como andam as cousas aí em casa e
também se já recebeu dinheiro enviado daqui. Já fiz mais uma remessa. Dê um
grande abraço em Mamãe e abençoe o seu filho.
5) Querido Pai – Recebi suas notícias e fiquei contentíssimo em saber que todos
em casa vão bem. Eu também gozo muita saúde e bôa disposição. Sempre que
puder mande dizer-me o que vai por nossa boa terra. Abrace os manos e Mamãe e
receba o mais saudoso abraço de seu filho.94

Se o militar possuía algum amigo que soubesse escrever, então, o modo mais fácil
era pedir-lhe que escrevesse a carta, após o interessado lhe ditasse, assim as notícias saíam
mais pessoais e mais próximas do que o combatente queria exprimir.
No front o soldado entregava sua carta na própria Unidade a qual estava
vinculado. Esta, por sua vez, tratava da censura dentro do regulamento que era amplamente
difundido a todos e organizava os malotes para envio. Após isso, um veículo chamado carro-
correio coletava as cartas e telegramas e seguia para o porto de Nápoles,95 onde eram
embarcadas em um avião para o Brasil. Já no País, elas eram enviadas para os dois Postos
Coletores existentes, um em Natal para atender à região Norte e Nordeste, e outro no Rio de
Janeiro, que atendia o restante dos Estados. Até o final da guerra, mais de 1.400.000
correspondências saíram da Europa para os seus destinatários no Brasil, com uma média
______________
94 – Modelo de correspondência para analfabetos – Arquivo Histórico do Exército.
95 – Relatório da Censura Postal Militar – Arquivo Histórico do Exército.
mensal de quase 100.000.96 Um número notável para um efetivo de 25.000 homens que
estiveram na Itália.
Os jornais, no início ainda das viagens dos escalões para a Guerra, publicavam as
orientações do Departamento de Correios e Telégrafos para a remessa de cartas, telegramas e
encomendas para os expedicionários. O Diário Mercantil, de Juiz de Fora, publicou desta
forma essas orientações:

Serviço de Mensagens Telegráficas entre os expedicionários e suas famílias


Instalado o serviço postal da Força Expedicionária Brasileira – a especificação
das encomendas
RIO, 19 (A.M.) – O Departamento de Correios e Telégrafos inaugurará, dentro de
alguns dias, o serviço telegráfico internacional denominado “ Mensagem da Força
Expedicionária”. O referido serviço consistirá em telegramas de texto fixo a serem
trocados entre os membros da Força Expedicionária e suas famílias.
As famílias dos expedicionários receberão instruções quanto aos textos fixos dos
telegramas, que terão o custo de doze cruzeiros aproximadamente.
CARTAS E ENCOMENDAS
RIO, 19 (A.M) – O diretor geral dos Correios e Telégrafos comunica a instalação
do serviço postal da Força Expedicionária Brasileira no antigo edifício do Banco
Germânico, nesta capital.
Qualquer agencia postal do Brasil aceitará cartas e encomendas independente de
pagamento de tara. As cartas deverão ter as dimensões de 240 a 106 milímetros, até
o peso de 50 gramas, e as encomendas serão de 30 centímetros de comprimento por
15 de largura e cinco de espessura, com o peso máximo de 1 quilo. As encomendas
só poderão conter chocolate, mate, café, doces secos e biscoitos, cigarros, fumo,
desfiado ou em rolo, sabonete, escova, pasta para dente, lamina e pincel para barba,
roupa não usada, pequenas peças de uso pessoal, estampas, imagens religiosas,
retratos e artigos de otica. 97

Mais tarde foram expedidas mais recomendações sobre o envio das cartas, como o
endereço de guerra do destinatário, e como proceder na embalagem do material enviado como
encomenda, principalmente no caso dos perecíveis.
Em 27 de julho de 1944, o mesmo Diário Mercantil publicou as orientações para a
escrituração das mensagens, de forma que não se confrontassem com as normas da censura
postal militar:
A organização do Serviço Postal da Força Expedicionária Brasileira
Estão instalados, no Rio, no edifício que funcionou o Banco Germânico, as

_____________________
96 – Relatório da Censura Postal Militar – Arquivo Histórico do Exército.
97 – Diário Mercantil. Juiz de Fora. 19 de julho de 1944. p. 1.
diversas seções do Serviço Postal da Força Expedicionária, sob a direção
geral do major Gilberto da Cruz Messeder.
Esta é uma iniciativa de grande significação, que virá proporcionar amplas
facilidades a correspondência de nossos soldados que se encontram no teatro
de guerra europeu para dar combate ao nazi-fascismo, com suas respectivas
famílias.
(...) Para colocação de carimbos, notas de censura, etc.. o endereço deve ser
concentrado, ocupando, apenas, o centro da sobrecarta.
Toda a correspondencia seja da F.E.B. para o Brasil ou deste para ela, fica
isenta de taxas e prêmios postais.
Na correspondência entre os elementos da FEB e suas famílias e amigos é
proibido cogitar de assuntos que possam interessar ao inimigo, tais como
objetivo, organização de forças, armamentos, equipamentos, posição ou
descrição de aquartelamentos, estacionamento ou acampamento, ou
declarações que possam trazer desharmonia entre as nossas forças e as dos
nossos aliados. Não é permitido o uso de códigos, cifras e estenografia,
convindo evitar toda e qualquer notícia que possa influir, nocivamente, sobre
o moral do combatente.98

O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939, foi o braço


administrativo e operacional na execução de uma propaganda ideológica que procurava
controlar, centralizar, orientar e coordenar a propaganda oficial que se fazia em torno da
figura de Vargas.
Inspirado em modelos de outras ditaduras no mundo, o DIP foi se tornando cada vez
mais poderoso, chegando a distorcer elementos informativos da História do Brasil, ao elaborar
e distribuir em escolas, cartilhas de exaltação do Estado Novo e criar curtas para exibição
obrigatória em cinemas.
O DIP também agia por meio da censura, ao proibir a vinculação, em jornais, revistas,
rádios ou qualquer outro meio de comunicação de massa, notícias que, ao seu critério,
denegrissem a imagem do Presidente, seus atos ou de qualquer membro do governo, ou que
ainda estivesse em desacordo com a ideologia proposta pelo regime.
Com a declaração de guerra e o envio de tropas para os combates, a instalação da
Censura Postal Militar foi um ato necessário, pois foram questões de segurança nacional e
mundial, as medidas de contra-inteligência que evitassem que informações sobre o que
ocorria nos campos de batalha caíssem em poder dos Estados em guerra. No envio das cartas,
às vezes de maneira involuntária, o soldado acabava fornecendo esses dados, que se não
fossem devidamente monitorados por algum órgão, seriam tratados como informação de
guerra.
Os americanos já tinham em funcionamento seus órgãos de censura postal e que foram

_________________
98 – Diário Mercantil. Juiz de Fora. 27 de julho de 1944. p.4.
base para o Brasil elaborasse o seu mecanismo. Os EUA, no entanto, bem como os outros
países aliados, preocupavam-se com a censura estritamente de informações militares, evitando
que fosse utilizada como meio de cercear a liberdade de expressão dos seus militares. A
censura era pouco utilizada nas cartas que saíam do território americano, pois não havia
objetivos militares em correspondências remetidas por civis.
O fato de alguém abrir as correspondências de outras pessoas enseja uma necessidade
que somente uma guerra poderia justificar. Entrar na intimidade de um compatriota que se
encontra em uma missão fora de seu local, longe de sua família e com uma tradicional
formação cultural que valorizava a privacidade, poderiam ser mal entendidos, se não fossem
de conhecimento da população as reais necessidades destas ações.
A doutrina ideológica do DIP quanto aos procedimentos na censura em prol do Estado
Novo influenciou, segundo nossa análise, o modo de operar da censura postal militar, fazendo
com que as regras de escrituração das cartas dos expedicionários e de seus correspondidos,
abrangessem uma série de outras restrições que não somente as informações de cunho militar.
Como descrito no Relatório da Censura Postal Militar feito após a Guerra, em que não
somente as orientações descritas nos jornais eram as que os censores observavam nas cartas:

Muitas das vezes, na confecção do relatório era procurada a opinião do Chefe da


Censura, ou deliberação do Chefe do Coletor Sul. A carta podia ser liberada após a
feitura do relatório, condenada ou retida, condenada sem relatório ou finalmente
liberada após o corte do trecho. No caso do assunto da mesma, não achar-se
enquadrada nos sete títulos, que originavam comumente a realização do relatório,
como assuntos imorais, intrigas que pudessem ocasionar o desassocego de
espírito dos combatentes, eram condenadas sem relatório. (grifo nosso) Havia o
caso em que, o assunto da carta apesar de contrariar as normas em vigor, não dava
no entanto motivo a relatório, era encaminhada ao Chefe do Coletor, que enviava
um memorando ao remetente, solicitando o comparecimento desse, afim de expor
lhe as medidas proibitivas que a missiva incidia. Morando o remetente no interior
do país, era-lhe devolvida a carta juntamente com instruções, que visavam
orientar o missivista, na eliminação total de palavras pouca animadoras ou
notícias que, além de não interessar, poderiam refletir-se muito mal no moral
dos soldados (...). (grifo nosso)99

A comissão da Censura Postal, da forma descrita acima, atuava como um braço da


polícia política, pois poderia condenar cartas sem o relatório formal, desde que o censor as
considerasse “imorais” ou que provocassem “intrigas”. Além de serem autorizados a
solicitarem o comparecimento do autor da carta. Mas a maior ato de autoritarismo era

____________________
99 – Relatório da Censura Postal Militar – Arquivo Histórico do Exército.
considerar que as notícias poderiam ser “sem interesse”. Como um funcionário público
desconhecido do remetente poderia concluir que as informações constantes de uma carta
seriam sem interesse? Outro fato que questiona a preocupação somente com a espionagem de
guerra, foi que as atividades de censura permaneceram até setembro de 1945, 4 meses depois
do fim das hostilidades na Europa.
Inaugurando seus trabalhos em 12 de julho de 1944, quatro dias antes da chegada do
1º escalão da FEB à Itália, a seção da Censura Postal Militar do Posto Coletor Sul funcionava
no centro do Rio de Janeiro, onde foram extraídas as fontes desse assunto. A censura
brasileira foi organizada dentro dos moldes da censura norte-americana, tendo seus censores,
a grande maioria de civis, realizado um curso de censura, ministrado pela Escola de Censores
da Censura Postal Brasileira (CPB).
Ao final daquele ano, os 41 censores civis foram substituídos por apenas 15 militares,
enquanto a quantidade de entrada de cartas para serem verificadas era de 3.500 por dia,
número que foi aumentando até o final dos trabalhos em setembro de 1945. O volume de
cartas que entravam no Posto Coletor Sul era muito superior à capacidade de trabalho de
grupo de censores, pois ao contrário do que acontecia na Alemanha, onde se realizava uma
verificação por amostragem, aqui todas as correspondências eram vistoriadas.
Os 15 militares da censura postal tiveram um curso de emergência de apenas 10 dias,
para poderem assumir as atividades dos civis, mas mesmo assim se sentiam orgulhosos
de seus trabalhos, pois se entendiam como “combatentes anônimos da retaguarda”: “É motivo
de orgulho para nós, a equiparação feita por um membro da censura norte-americana, dos
nossos censores, aos seus colegas do país amigo, considerados os melhores do mundo.”100
A primeira atividade do censor era o exame do envelope, onde eram verificadas as
cartas que deveriam ser retidas, de acordo com uma relação nominal já em suas mãos,
verificando também se era isenta de censura, no caso de ser endereçada à militar oficial
general. Era verificado também o envelope em si, retirado o selo que por ventura tivesse,
substituído o que estivesse em precárias condições de uso e retirados materiais impróprios
para a remessa em envelopes, como por exemplo, dinheiro em espécie.
Após, a carta era examinada por meio de uma leitura minuciosa, a fim de constatar as
informações que eram contrárias não somente aos objetivos da guerra, mas também ao
regime. Questões pessoais também foram alvo de cortes, caso o censor considerasse a carta
“imoral” ou que afetasse a moral do militar. Encontrando essas informações, o censor
_________________
100 - Relatório da Censura Postal Militar – Arquivo Histórico do Exército.
entregava-a ao chefe do grupo, que relatava em um livro especial. A preocupação com moral
do expedicionário fez com que a família de Antonio José dos Reis, o “Toinzinho”, soldado
natural de Sarandira e que lutou como telefonista do 11º RI, tomasse uma atitude extrema,
segundo nos relatou: “minha mãe, quando eu cheguei aqui, tinha morrido, tinha um ano que
tinha morrido”.101 A sua família não havia informado o fato, principalmente pelas
recomendações do Serviço Postal para o tipo de notícias que seriam transmitidas para o
familiar.

Fot 49 - Antonio José dos Reis, o Toinzinho


Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB- Seção Juiz de Fora.

No interior da carta, que poderia ser totalmente ou parcialmente condenada, era


colocado um aviso de censura para o destinatário (no caso de censurada parcialmente) ou
para o remetente (no caso de censurada totalmente). Esses cortes eram sugeridos pelo
censor, que ouvia as opiniões do seu chefe de grupo e do chefe de censura, em caso de
discordância, a decisão era unicamente do censor. Há de supor que, na dúvida, as cartas eram
facilmente censuradas.
As cartas censuradas, por fim, eram motivos de relatório sobre o seu teor e trechos
censurados. Caso não fosse necessária a confecção do relatório, o remetente, como dissemos,
era chamado ao posto coletor para ser-lhe explicado pessoalmente as medidas proibitivas, e se
morasse em local distante, uma carta com a mesma recomendação era enviada a sua
residência.
Com igual rigor foram feitas as verificações em cartas redigidas em idioma estrangeiro

______________
101 - Depoimento [Out.2004].
fato comum ante a quantidade de soldados recrutados no Sul do País. No início eram
devolvidas aos remetentes, mas com a grande quantidade de reclamações, foi providenciada
uma equipe de tradutores para sua tradução para o português e envio à Itália, caso não
houvesse problemas em seu teor informativo.

Fot 50 - Carta censurada. SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Op. Cit. p.86.

A difícil e polêmica atividade de censura realizada pela Censura Postal Militar só não
era maior que o trabalho semelhante feito na Itália para as cartas dos cabos, soldados e
sargentos, de responsabilidade das próprias Unidades dos militares, por uma equipe destinada
para esse serviço.102 No entanto, talvez por estarem dentro de um sistema de disciplina militar,
os relatos dos veteranos atestam poucos casos de censura em suas cartas, ante o volume
expedido em menos de um ano. Para o militar que recebia uma carta censurada, só restava a
frustração de algo que foi perdido e não poderia ser recuperado, mais uma vez Ruy relatou:

Recebi hoje diversas cartas, sendo duas de minha mãe e por isso estou contente e
feliz, tanto quanto pode estar aqui. Também muitos soldados do Pelotão receberam
correspondências e é bom quando todos estão eufóricos e alegres: como não há
felicidade completa, alguns receberam as cartas com recortes da censura e, é claro,
não gostaram e xingaram os censores do serviço postal da FEB, dos piores nomes
em português e italiano....Também não é para menos. É preciso sempre explicar-
lhes que eles, da censura, tem também, um dever a cumprir. É o que faço sem
muita convicção.103

Quanto aos familiares, reféns do trabalho desenvolvido pelos censores, restava

_________________
102 - Relatório da Censura Postal Militar – Arquivo Histórico do Exército.
103 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
cumprir fielmente as determinações do Correio Coletor, para que pudessem ter suas
correspondências devidamente encaminhadas. As reações ou eram de resignação e aceitação,
chegando até a se desculparem por terem escrito algo que desagradou os censores. Outras
faziam uso de “códigos” próprios que revelavam intimidade entre namorados ou casados.
Alguns, no entanto, chegavam a enfrentar os censores, diante a arbitrariedade da censura e o
sentimento de impotência por parte das pessoas comuns.
Uma senhora, de nome Torquata P., do Rio de Janeiro, escreveu assim para os
membros da censura:

(..) Assim sendo, peço vossa indulgência para a supracitada carta, no sentido de
que seja a mesma remetida ao seu destino, pois tem (sic) o maior empenho que
meu filho a receba com uma recente fotografia minha que vai dentro da mesma e
por cuja a data verificarei a veracidade do que ela vos afirma, ao mesmo tempo,
reafirmo a promessa que vos fiz verbalmente de, em cartas posteriores, não
empregar termos que, embora escritos sem a menor intenção maldosa, possam
entretanto, ser interpretados como alusões menos lisongeiras (sic) ao vultuoso
serviço que está sob vossa eficiente jurisdição... 104

Já outra senhora chamada Marieta Clemente escreveu uma dura carta aos
censores, criticando o trabalho realizado e pedindo informações do paradeiro das cartas
enviadas ao seu irmão na Guerra:

Lavras, 20 de março de 1945


Ilm Snr Membro da Censura
Saudações
Esta é dirigida justamente àquele encarregado de visar as correspondências de
expedicionários a quem eu peço as seguintes interrogações:
Desejo saber por que motivo meu irmão que está no front não recebe minhas
cartas? Se por acaso elas têm sido portadoras de alguma cousa que não possa ser,
peço-lhe a fineza de me devolve-las que eu terei o cuidado de corrigi-las. Porque, o
senhor qualquer que seja naturalmente é um dos muitos homens brasileiros inúteis
que só souberam gritar: guerra, guerra! Reconhecendo que não poderiam ir para
linha de frente e que outros inocentes é que seriam os sacrificados, o snr
naturalmente que deve ter encontrado uma boa mina de dinheiro neste tal emprego
esquece-se que longe da Pátria morrem seus compatriotas sem ao menos terem o
consolo de receber noticias da família, porque os senhores membros da censura só
sabem inutilizar as correspondências, digo assim porque ao contrário esta
correspondência estaria mais em dia. Portanto faço-lhe o seguinte pedido: caso
minhas cartas tenham alguma cousa ilegal é favor me devolve-las e não
desaparece-las, porque eu faço questão que meu irmão seja se não feliz, ao menos
consolado e confortado em nossas noticias.

______________
104 – Cartas recebidas em 1945 – Arquivo Histórico do Exército.
Muito grata subscrevo-me
Marieta Clemente
Lavras – Minas Gerais 105

As cartas, apesar do trabalho meticuloso dos censores, não sofriam com a demora
excessiva no trâmite entre o remetente e destinatário. A atividade aérea entre a América e a
Europa já não era prejudicada nessa época pela aviação alemã. As encomendas maiores, no
entanto, foram alvos de imensas críticas, ou pelo longo prazo para recebimento do que era
enviado ao expedicionário ou até pelo sumiço de objetos. Essas encomendas eram levadas
pelos navios que transportaram os diversos escalões da FEB, o que ocasionou em grandes
amontoados de materiais que foram acondicionados nas apenas três viagens à Itália.
No Brasil parte da população se mobilizou para angariar objetos ou até dinheiro para
enviar aos febianos, principalmente com a chegada do Natal. Comissões eram formadas
pelas senhoras da sociedade e madrinhas de cada febiano se voluntariavam para mandar cartas
e donativos. Em Juiz de Fora, até partidas de futebol foram realizadas para esse fim.106
Exemplos vieram de todo país, como o que foi publicado no jornal A Voz de São João, de São
João Nepomuceno:

Presentes para os expedicionários


As Madrinhas dos combatentes continuam em sua tarefa, angariando donativos
para nossos soldados. Encontrando a melhor boa vontade de todos os sanjoanenses.
Segundo instruções recebidas, a Comissão está se interessando, principalmente
pela obtenção de agazalhos: pull-overs cache-cols, sweaters, etc . tendo em vista o
rigoroso frio europeu.
A Comissão, resolveu, também, aceitar quaisquer quantia em dinheiro, destinados
a compra de lã para confecção dos aludidos agazalhos.
Todos que estão colaborando em tão simpática campanha devem trabalhar com
rapidez, pois a Comissão deverá enviar os donativos até o dia 25 desse mês. 107

As pessoas no Brasil não sabiam que o aparato logístico dos EUA apoiava a FEB em
quaisquer necessidades materiais: alimentação, vestuário, higiene e até em cigarros, que eram
enviados do Brasil para os expedicionários, mas que devido a sua qualidade ruim eram
recusados até pelos italianos. O brasileiro, como disse Pedretti gostavam de: “Luke Strik,
Camel,..”108 e não o mais comum dos cigarros brasileiros: o Iolanda. José João era como
muitos, um apreciador dos cigarros:
______________
105 – Cartas recebidas em 1945 – Arquivo Histórico do Exército.
106 – Diário Mercantil. Juiz de Fora. 22 de outubro de 1944. p.2.
107 – A Voz de São João. São João Nepomuceno. 08 de outubro de 1944.
108 – Depoimento [Out.2004].
(...) as namoradas mandavam pra mim cigarros, cigarro Saratoga. Eu não posso
esquecer, cigarro ruim, ..... molecagem...eu pegava as carteiras de cigarro brasileiro
e do americano; Luke Straike, Phillipe Monts, Camel, Shepperfild, eu pegava as
carteiras, tinha caixas cheias de cigarros, das namoradas aqui do Brasil, dos
amigos, então vinha muito cigarro. Na guerra cigarro é um instrumento de guerra.
Então eu recebia aquilo tudo lá, e trocava, tirava o americano, abria direitinho,
punha o cigarro brasileiro, um dia o americano: daí-me um cigarrete . e eu: si, si.
Peguei as carteiras e falei: quatrocentas liras, quatrocentas liras,, ele: si, si. Pegou
as quatrocentas liras pra mim pagar, mas cheirou o cigarro, e sabe o que ele falou?:
queste non, biomba cativa!, biomba quer dizer ‘loira’. Porque o cigarro Iolanda
vem um retrato de uma mulher loira. Lamentavelmente esse não me comprava o
cigarro, a gente trocava, era um jogo terrível, mas há coisas importantes na guerra,
há coisas. 109

E por fim, a demora no envio das encomendas maiores por navios, fez com que este
belo esforço da população, que ansiava em fazer sua parte, não fosse traduzido em conforto
aos febianos, pois muitos não receberam este tipo de carinho.
A censura acabou por dificultar a exposição das impressões dos febianos quanto à
Guerra, principalmente, àqueles que estavam no front. As cartas eram de pouca profundidade
emocional, relatando apenas que estavam bem, como estava o clima, que estavam com
saudades ou como era a Itália. Os combates, a miséria da guerra e os problemas
enfrentados pela FEB não passaram despercebidos pelos expedicionários, os diários são
testemunhas disso, pois estes têm um tom mais real de um ambiente de conflito. A censura de
alguns aliados, pela análise de cartas, era um pouco mais permissiva do que a brasileira, que
como já dissemos, era influenciada pelo DIP e a situação política no Brasil.
O jornal A Voz de São João publicava uma vez por semana as cartas dos
expedicionários para as suas famílias, como forma de transmitir a um número maior de
pessoas, o que se passava na Guerra, aos olhos de seus habitantes ilustres que compunham a
FEB:

(...) Dando início a essa coluna, ocupamo-nos hoje com o expedicionário Walter
Elias Lamah, 3º sargento, n. 402, F.E.B Itália.
É filho do snr. Elias Lamah e de sua esposa d. Adélia Chalub Lamah, residentes
em nossa cidade.
A 21 de dezembro, o jovem sargento escreveu ao seu pai, chegando a carta a 12
deste mez. Diz o missivista: - ‘ Itália, 21 de dezembro de 1944.
Papai. Saúde. Feliz Natal. Nada de anormal. Não passei muito bem no navio, pois a
primeira viagem por mar não é lá muito agradável ao estômago. Certo é que,
agradável ou não, aqui estou com todos os meus ossos, na terra do Mussolini. Vi
muita cousa bonita: - a saída da Guanabara, a pedreira de Gibraltar e finalmente a
Itália, que ,creio eu não ser preciso falar de suas magníficas catedrais e castelos
construídos com rara arte. Minha única diferença é o General Inverno, que é

________________
109 – Depoimento [Fev.2007].
impiedoso. Não há de ser nada uma vez que temos bons agasalhos e ótima
alimentação.
Sei que o snr. não acredita, mas estou satisfeito, pois não me falta absolutamente
nada. Estou achando graça por ser esta a primeira vez que digo para o snr. que me
sinto satisfeito. Como de fato é muito interessante.
Pelo pouco tempo que aqui estou, já conheço algumas cidades e também já falo
alguma coisinha de italiano.
As cidades daqui são quasi todas antigas de ruas estreitas(...)’
Continua o sargento Walter com outras considerações, sempre demonstrando o seu
contentamento, o seu otimismo, interessando-se por seus pais e irmãos.
No próximo número esperamos dar notícias de outros expedicionários, para isso
contando com a cooperação de seus parentes e amigos, os quais devem fornecer as
notas à redação, com a necessária antecedência.110

Na carta acima, percebemos a ausência de fatos lamentáveis da guerra, como a


destruição das casas e a fome da população, ou de assuntos como a desorganização da FEB na
sua chegada à Itália e a morte de brasileiros na linha de frente, mesmo que o sargento Walter
tenha vindo no 2º escalão e não tenha participado das primeiras ações.
Diferentemente, os americanos não censuravam cartas sem que houvesse a clara
percepção de vazamento de informação estratégicas, ou outros exércitos, como os canadenses,
que admitiam na cartas comuns a democracia pela qual lutavam seus soldados. A
realidade era mais crua, e segundo Carroll, “a cultura popular frequentemente romantiza a
guerra”111:

(...) como demonstrado pelas próprias cartas, essa reclamação não é nova. ‘ afirmas
que gostarias de estar aqui’, escreveu o major Oscar Mitchell a sua amiga Sylvia
Helene Hairston, em 15 de abril de 1944. Mitchell estava servindo no cenário
China-Burma-Ìndia da Segunda Guerra Mundial, e apressou-se em desencorajar
Sylvia e qualquer um que desejasse idealizar a vida nas linhas de frente. ‘ embora a
maioria das pessoas acredite saber o que é a guerra, será que sabe mesmo? –
estando tão distantes das frentes de batalha, será possível saber?’ e continua:
‘só se sabe o que é a guerra quando se vêem os aviões, em formação, no começo da
manhã, voando em direção aos alvos...e se vê esta mesma formação voltando à
noite. Mas o número já não é o mesmo! Doze partiram, nove voltaram. Fica-se ali
parado, olhando para o alto, observando-os afastarem-se, na direção do horizonte, e
então desaparecer. O que de fato aconteceu? Aqueles que mergulharam em
chamas...terão morrido como nos filmes? Creio que não. Não com um sorriso nos
lábios e um brilho alegre nos olhos, mas talvez com a dolorosa e terrível
consciência de que tudo chegava ao fim! É preciso ver a leva de feridos voltando
da frente de batalha....acima de tudo ver a luz se apagar nos olhos desses homens.
Jovens tremendo devido à exaustão nervosa e chorando como bebês. São, ou
foram, homens fortes, que não tiveram ou que jamais terão a chance de viver uma
vida normal...as pessoas podem acreditar que sabem o que é a guerra, tomado pelo

_________________
112 - A Voz de São João. São João Nepomuceno. 21 de janeiro de 1945.
111 – CARROL, Andrew. Cartas do Front: relatos emocionantes da vida na guerra. Rio de Janeiro: Zahar,
2007. p. 29
pavor até o fundo da alma. Quando estava nos Estados Unidos, a guerra era
distante, irreal. Eu lia, via as fotos, mas agora eu sei.’112

Independente da patente do remetente da carta, se o sargento brasileiro, ou major


americano, ou do grau de instrução dos dois, não é possível fechar a questão de que a censura
postal militar do Brasil exerceu poder decisivo na descrição da guerra por meio das cartas. A
profundidade e emoção das palavras do oficial americano não encontramos algo semelhante
em nenhuma das cartas dos febianos, mas observamos esta mesma emoção nos relatos orais e
nos diários originais que analisamos.
Também era por meio de uma carta que o Ministério da Guerra informava ao familiar
do expedicionário que este estava desaparecido ou havia falecido. Era uma notícia quase que
direta, mas carregada de emoção pelo fato em si, e assinada por um oficial general. A
mensagem, segundo relatos, chegava sem um aviso prévio, nem era trazida por uma comitiva,
mas sim pelo próprio correio. O que a tornava, até certo ponto, desumana. A carta enviada ao
pai do tenente Márcio Pinto, de Juiz de Fora, foi publicada no jornal Diário Mercantil, ela é
baseada em uma estrutura formal que encontramos em outras diversas cartas do gênero:

Secretaria do Ministério da Guerra – em 07 de setembro de 1944.


Senhor Noberto Pinto Júnior
Bastante pesaroso, comunico-vos, em ordem do exmo. sr. Ministro, o falecimento
do 2º tenente Márcio Pinto, do 11º Regimento de Infantaria, no dia 30 de outubro
do corrente ano, vítima de explosão de mina terrestre, na Itália. Entregue
inteiramente ao serviço da Pátria, disposto a honra-la nos campos de batalha de
além – mar, veio a morte a colhê-lo quando ultimava seu preparo em um “Curso de
Minas”, roubando a glória de participar das brilhantes ações de seus camaradas,
como ele, fieis às tradições de bravura do Exército Brasileiro. Transmito-lhe esta
triste noticia, com as homenagens do meu mais profundo respeito e admiração pela
memória dos que, como o tenente Márcio Pinto, morreram no cumprimento do
dever.
2. Canrobert Pereira da Costa, gal. bda.,
secretario geral do M.G. 113

Observa-se, logo de início, um erro na transcrição da carta para o jornal, pois a data de
escrituração foi em 07 de setembro, quando a morte ocorreu em 30 de outubro. Como o jornal
é de 15 de dezembro, a data correta da mensagem foi 07 de dezembro, segundo os arquivos do
Arquivo histórico do Exército114. A notícia deste fato, ocorrido em uma instrução, não
demorava para ser transmitida para o Brasil, apesar de terem se passado mais de trinta dias
________________
112 - CARROL, Andrew. Cartas do Front. p. 29-30.
113 – Diário Mercantil. Juiz de Fora. 18 de março de 1945.
114 - Cartas às famílias comunicando o falecimento ou desaparecimento – Arquivo Histórico do Exército.
para que o pai do expedicionário recebesse uma carta de pesar. Sobre a mensagem em si, ela,
apesar de possuir sempre o jargão “entregue inteiramente a serviço da Pátria”, continha em
suas linhas a preocupação em deixar o familiar a par de que maneira ocorreu a morte do
militar, que no caso do tenente Márcio Pinto, que por sinal era amigo de Ruy, foi causada por
uma explosão acidental em uma mina terrestre.
Outra carta a seguir descrita, mostra a difícil situação de uma mãe que além de ter
perdido seu filho para a Guerra, esperava pelo resgate de seu corpo:

Em 16 de abril de 1945
Sra Ruth de Albuquerque Silveira

Bastante pezaroso comunico-vos, de ordem do Exmo. Sr. Ministro, o falecimento


em operações de guerra na Itália, no dia 20 de novembro de 1944, do 2º tenente
AMARO FELÍCISSIMO DA SILVEIRA da Fôrça Expedicionária Brasileira, que
era considerado desaparecido conforme carta que vos dirigi em 25 de janeiro de
1945.
O óbito foi constatado por ter sido encontrado o cadáver em Montelloco, Comuna
de Gaggio Montano, onde fora sepultado pelos alemães.
Lamento sinceramente de ter que vos transmitir essa infausta notícia, mas é
oportuno e confortador, principalmente para os parentes mais próximos, saber que
o 2º tenente AMARO FELICÍSSIMO DA SILVEIRA em terra estrangeira soube
honrar as tradições gloriosas do soldado Brasileiro, demonstrando no campo de
batalha nobres virtudes morais.
Entregue inteiramente ao serviço da Pátria, cuja a honra defendeu com o sacrifício
da própria vida, deu assim um sublime exemplo de amor ao Brasil, tornando-se um
legítimo orgulho e grande incentivo aos seus parentes, amigos, camaradas e
compatriotas.
Perdeu deste modo a Pátria um fiel e dedicado servidor e por esse motivo,
apresento-vos bem como à Família do 2º tenente FELICÍSSIMO DA SILVEIRA,
em nome do Exército, as mais sinceras e sentidas condolências.
CANROBERT PEREIRA DA COSTA
Gen. Bda. Secretário Geral do M.G.115

No final de 1944, o V Exército Americano elaborou o Plano ENCORE, em que


planejaria retomar a ofensiva em direção ao vale do rio Pó ao final do inverno. A 10ª Divisão
de Montanha, com três regimentos de infantaria de montanha chegava ao campo de batalha
após treinamento em Colorado, nos EUA, e recebera a missão de conquistar em 19 de
fevereiro, a partir da 23 horas o conjunto de elevação do Monte Belvedere, que flanqueava
Monte Castello. Zé Maria viu como trabalhava esta Divisão:

(...) a 10ª Divisão de Montanha, elite do Exército Americano, ficou um ano


treinando nas rochosas americanas, antes de ir para a guerra. Eles chegaram na
Itália já em dezembro de 44, eles chegaram e foram gradativamente se
aproximando da linha de frente, porque eles iriam substituir alguém e esse
________________
115 – Depoimento [2004].
alguém chegou a ser nós mesmos brasileiros. Eles tinham de um simples triciclo
ou biciclo para transportar um canhãozinho de 75mm, a poder de força muscular,
até aquele sistema que o senhor atira aquele gancho na montanha, agora Pedretti,
Toninho, Zé Maria e outros mais, subia na canela, placa base nas costas, só isso
mostra a diferença, então aparece realmente o valor do soldado brasileiro.116

Da mesma que Zé Maria, Toninho entendeu que a 10ª Divisão era a mais apta para a
conquista do Monte Belvedere, e relata sua missão naqueles últimos dias de fevereiro de
1945:

Eu fiquei no período da neve no Monte Belvedere, nas vésperas, no dia 18 de


fevereiro de 1945, chegou lá a 10ª Divisão de Montanha, pra nós substituir, para
atacar Monte Belvedere, que era um morro bem íngreme. Eu tinha cansado de subir
ele, chegava na metade e voltar, nós ficamos ali dois meses, o período da neve para
subir lá, no entanto, veio uma tropa especializada pra nos substituir, no dia 19, no
dia 20 pra atacar, pra 21 conquistar o morro Belvedere, quando eles chegaram na
crista do morro Belvedere, o 1º RI conquistou monte Castello. Eles eram
preparados para aquele morro, e nós estivemos ali dois meses, em patrulhas,
recebendo ataques, conseguimos rebater os ataques. Aquele morro também a gente
subia.
(...) eu ouvi, como soldado, que toda vez que o regimento atacava monte Castello e
estava quase chegando no topo do monte, ele não conseguia passar dali. Dizem que
foi um general brasileiro que falou que se não tomássemos monte Belvedere, que é
onde estava a 10ª Divisão de Montanha, nós não tomaríamos monte Castello,
porque monte Belvedere era um monte mais alto do que monte Castello, toda vez
que atacávamos monte Castello, passávamos a receber fogo do flanco esquerdo. Eu
que estava lá, o Zé e todos aqui sabem que monte Castello foi uma carnificina,
nunca chegando ao pé de Montese, mas quando a 10ª Divisão de Montanha, no dia
19, praticamente subia Belvedere, chegando até em cima, o que eu vi de morto
americano não tá no “gibi”, eles chegaram no dia 21 de fevereiro, no dia 21 de
manhã, o 1º Regimento atacou monte Castello e conquistou, sem grande perdas
como foi anteriormente (...)117

A FEB continuaria com a tarefa de conquistar Monte Castello, mas desta vez somente
após a conquista de Belvedere e de Mazzancana pelos americanos, a partir das 05:30 horas do
dia 21 de fevereiro. O tempo de planejamento e levantamento de informações sobre o inimigo
pelas patrulhas, desta vez foi suficiente, os erros cometidos em outros ataques não poderiam
mais ocorrer. A FEB sabia agora que o inimigo era formado por quatro batalhões alemães.
Seu ataque agora teria a força de unidades de carros de combate, 150 canhões de artilharia, a
atuação da Força Aérea Brasileira e o principal: seria uma manobra desbordante e não a
frontal como das outras vezes.118
A ação de conquista de Monte Castello ficou sob responsabilidade do 1º RI, com ação

_______________
116 – Depoimento [2004].
117 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p. 365.
118 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 362.
diversionária119 em direção a Abetaia pelo 2º batalhão do 11º RI e o restante do 11º RI em
reserva, onde se encontrava a maioria dos nossos depoentes.
Em 19 de fevereiro a 10ª Divisão de Montanha conquistou Belvedere e Mazzacana,
apesar de ter sofrido pesadas baixas, permanecendo ocupando a região para evitar contra-
ataques. Em 20 de fevereiro o 1º RI ultrapassou os americanos em Mazzacana e ficou em
condições, já de madrugada, de partir para a conquista de Monte Castello. A ação
diversionária do 2º batalhão do 11º RI iniciou às 23 horas do dia 20 de fevereiro e foi feita
para iludir o inimigo da real direção principal do ataque, levando os alemães a deslocarem
seus fogos de apoio e reserva para esse local.
Outra parte da 10ª Divisão de Montanha partiu para conquistar o Monte Della
Torraccia e a FEB prosseguiu a partir do horário marcado o ataque à Monte Castello, 0530h.
As dificuldades foram menores do que os ataques anteriores, devido ao melhor planejamento,
mas não foi uma conquista fácil, pois os alemães batiam as tropas brasileiras com forte fogo
de artilharia; a frente do ataque era extensa, com 2,5 Km; e o terreno era muito acidentado.
Somente às 1800h, ou seja, mais de 12 horas após iniciado o ataque, a 1ª Companhia do 1º
Batalhão do 1º RI chegava ao cume de Monte Castello. O 2º Batalhão do 11º RI só conquistou
Abetaia na madrugada de 22 de fevereiro, quase 24 horas de combate ininterrupto. A ação dos
brasileiros foi elogiável, apagando os reveses anteriores, ainda mais que, após cumprirem suas
missões, apoiaram os americanos da 10ª Divisão na conquista de Monte Della Torraccia, que
só foi alcançada às 11:30h do dia 22.
Todas atuaram com o máximo de suas forças, os expedicionários do Serviço de Saúde
estavam entre as tropas para assegurar não somente a sobrevivência dos feridos, como
também ser um apoio moral para cada homem que pelejasse o avanço rumo ao topo do monte.
Zé João nos relatou a sua primeira experiência em combate:

Como era o trabalho dos enfermeiros e padioleiros, procuravam primeiro o


socorro ou trazê-los para maior segurança?
Primeiro o socorro trazia ele pro posto....no posto as ambulância levavam para os
hospitais, os hospitais ficam geralmente há 50 quilômetros à retaguarda, bem
longe..então..eu, Monte Castelo não foi brincadeira, foi minha primeira ação. Teve
um momento terrível, um soldado veio a mim, com um braço...o
braço...preso...deixa ver se eu lembro o braço, é um braço (mostra o esquerdo preso
no direito) preso neste braço. Ele chegou e disse pra mim, “faz um curativo aqui,
que eu tenho que salvar meu capitão que tá preso lá ” era o capitão Covas, ... eu só
tive o tempo de ...tirar , injetar em cima da roupa, que pude pegar ele..injetei....e

________________
119 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 367.
Fot 51 - Soldados em uma das encostas de Monte Castello.
Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em:15 Set 2005.

graças a deus...e que fui pegar o braço dele, ele tava com um braço pensando que
era igual a um fuzil. aquilo...foi ....fazia...(mostra com a mão simulando um
esguicho de sangue que saía de seu braço). Graças a Deus que consegui tirar ele
daquela situação, não foi mole, ele tava lá e o batalhão dele tava sendo
castigado...ele foi ferido e tava pensando que tava com o fuzil na mão...era o braço
dele, queria o curativo no toco do braço. Isso não foi mole também, tem horas que
você tem que crescer, alí foram horas difíceis que passei. Três dias depois: a
notícia, para nós era notícia porque nós não estávamos atirando né?!: caiu Monte
Castelo. ..caiu Monte Castelo nas mãos dos brasileiros..foram três dias sem
parar .....tototototo, praprraarra.....toto tototo..........um monte de tiros...tanto é que
quando passava meio hora sem tiro, a gente tava tão acostumado com o tiroteio que
falava: “ hoje tá meio parado”....... Jesus..eu sou católico, mas eu te digo... “puxa
hoje tá meio parado”. A gente sentia falta do tiroteio, porque era noite e dia sem
parar. o negócio é encrencado, pois bem, aí caiu Castelo,(...) 120

Situações como a descrita acima, eram comuns durante uma batalha, homens eram
mutilados com a ação de granadas, minas e tiros de fuzis, quando morriam instantaneamente
eram um problema do pelotão de sepultamento, mas quando tinham um sopro de vida, o
soldado do serviço de saúde era visto como um anjo salvador capaz de devolvê-lo à vida.
Esta missão era tão difícil quanto a ofensiva executada pela infantaria, exigia preparo
psicológico tanto quanto o preparo profissional, e quando chamados a atuar, geralmente era
para tentar o impossível.
A conquista de um ponto importante na zona de ação da FEB foi motivo de orgulho
para seus integrantes. Quando a 10ª Divisão chegou ao Teatro de Operações, houve a
possibilidade dos brasileiros serem substituídos e mandados para a reserva, o que não seria
________________
120 – Depoimento [Fev.2007].
nada incomum, pois havia casos de Divisões inteiras colocadas em repouso na retaguarda. No
entanto, depois dos erros dos ataques de 1944, isto poderia significar uma falta de confiança
na capacidade brasileira, como ocorreu com a 92ª Divisão. Mas não houve grandes problemas
desta vez. Pelo lado americano, houve um incidente, ao confundirem uma tropa brasileira com
o inimigo, atacando-a e matando um soldado.121 O ânimo da FEB mudou após Monte Castello,
bem como a maior confiança dos aliados. Todos os ataques a este objetivo custaram 478
baixas brasileiras122, entre mortos e feridos, somando-se às baixas ocorridas durante o
período de defensiva, por causa dos fracassos anteriores, o custo em vidas humanas foi alto.
Seu simbolismo é motivo até hoje de celebrações no meio militar, com tropas formadas e
leitura de Ordem do Dia, mas haveria outras ações tão importantes e sangrentas quanto esta.

Fot 52- Monte Castello após a conquista.


Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em:15 Set 2005.

4.4 A Arrancada ao Vale do Pó

Os jornais no Brasil, logo após a vitória em Monte Castello, trataram de anunciar


aquela que era a maior ação de sucesso da FEB até então, que poderia ser a grande
contribuição do Brasil para a vitória dos aliados na 2ª GM, e que poderia ser, também, a
justificativa de toda a estratégia política entre os dois países, de toda a mudança de doutrina
__________________
121 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 355.
122 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 369.
militar existente no Exército, no grande planejamento e execução (ainda que pontuada por
falhas) da formação da Força, que mais tarde seria reduzida a uma Divisão, a 1ª DIE. E por
fim, justificaria o envio de, até aquele momento, 20 mil homens para a Itália e, ainda, dos
mortos e feridos que aumentavam quase todos os dias. Não era só uma simples vitória em um
objetivo militar, dentre tantos outros na Guerra, era um símbolo que nascia para aqueles
homens. O Globo assim anunciou, no dia 24 de fevereiro de 1945, os acontecimentos
ocorridos em Monte Castello:

VITÓRIA!
REALIZARAM A SUA MAIOR FAÇANHA NA GUERRA, AS TROPAS DO
BRASIL.
Enquanto a infantaria avançava, tomando de assalto o Monte Castelo, a artilharia
desenvolvia um fogo nutrido, disparando cinco mil tiros.
Com a FEB na Itália, 23 (De Egydio Squeff, correspondente de guerra d’O
GLOBO) – No momento em que escrevo, terminou a intensa e ininterrupta batalha
que se vinha travando entre brasileiros e germânicos desde o alvorecer pela posse
de Monte Castelo. Este monte, os nossos expedicionários chamavam de ‘morro
maldito’, pois já havíamos tentado capturá-lo por duas vezes, a primeira a 29 de
novembro e a segunda a 12 de dezembro. Apesar de termos atingido as suas cristas,
fomos naquela época obrigados a regressar as nossas posições. Por isso, tomar
Monte Castelo tornou se quase um compromisso de honra para os nossos oficiais e
soldados, que aguardavam ansiosos a ordem do General Mascarenhas de Moraes
para se lançarem à conquista definitiva do difícil objetivo. O momento
ardentemente esperado chegou hoje, quando os nossos homens começaram o
avanço em direção a Monte Castelo, circulando a notícia imediatamente por toda a
F.E.B. Aqueles que não participaram das operações passaram toda a manhã e a
tarde procurando saber de detalhes da mesma, e quando chegou a informação de
que havíamos atingido o ‘morro maldito’, grande júbilo se apossou de todos que se
cumprimentaram radiantes (...) acompanhei parte das operações do posto de
observação do General Mascarenhas de Moraes e vi grandes de rolos de fumaça
que emanavam das linhas germânicas. O comandante da F.E.B. acompanhou toda a
fase da luta, bem como os generais Cordeiro de Farias e Zenóbio da Costa, cada
um em seu posto de observação. Assisti, também, a pilotos americanos e brasileiros
bombardearem Monte Castelo durante a progressão dos infantes, enquanto a
artilharia castigava também o inimigo. O objetivo, terminada a batalha, estava
reduzido a ruínas. 123

A importância da conquista de Monte Castello foi maior no sentido de elevação da


moral da FEB do que mesmo de ordem estratégica, pois, apesar da situação de bom posto de
observação e ponto forte na defesa alemã para acesso ao vale do rio Manaro, o
prosseguimento da ofensiva nos dias seguintes e a posterior conquista pelos brasileiros do 1º e
11º RI das alturas de 958 e Monte La Serra, mostraram-se mais úteis do ponto de vista militar,

_________________
123 – O Globo. Rio de Janeiro. 24 de fevereiro de 1945.
já que facilitaram a conquista por parte da 10º Divisão de Montanha do Monte Della
Torraccia e geraram maior prestígio à Força do que Castello.124
No dias seguintes, a missão dada aos brasileiros seria concentrada na conquista de uma
série de elevações cuja maior dominância era o Monte Castelnuovo. Para isso, foram
escalados o 6º e o 11º RI, para que o 1º RI, que teve a principal atividade na conquista de
Monte Castello, fosse passado para a reserva para descanso. Na noite de 03 para 04 de março
as Unidades ficaram em condições de iniciar o ataque, que só foi realmente iniciado após a
certeza do sucesso na progressão da 10ª Divisão de Montanha, que novamente possuía a
prioridade nas ações ofensivas do IV Corpo, e que se deslocava a Este da FEB. Então,
somente às 1200h, os brasileiros começaram a sua ofensiva, horário que não foi considerado o
ideal, devido a boa visibilidade da tropa na defesa, mas que devido a pouca resistência alemã,
que só mostrou-se efetiva em zonas de ações de alguns pelotões, não prejudicou o avanço
brasileiro.
Com tudo isso, somente às 2200h do dia 05 de março é que a 3ª Companhia do 1º
Batalhão do 11º RI conquistava Monte Castelnuovo. No ataque, houve uma retirada das
forças alemãs e a informação de que a defesa estava reforçada, mais à retaguarda, pelas 114ª
Divisão Ligeira e pela 29ª Divisão Panzer, Unidades blindadas, com alto poder de choque.125
A notícia fez com que o V Exército parasse o deslocamento e decidisse pela manutenção das
áreas conquistadas, encerrando, desta forma o Plano ENCORE, determinando o reajuste das
tropas para a nova ofensiva que decidiria guerra. A FEB e a 10ª Divisão não estavam em
condições de confrontarem-se com esses tipos de Unidades, sem um maior apoio de
blindados,126 mas possuíam os postos de observação de Monte Castello, Monte Della
Torraccia, Soprassasso e Castelnuovo e também, a soberania aérea por toda a região. Zé João,
novamente, relata como atuava os homens do serviço de saúde nas batalhas da FEB:
(...) - Zé João, desce com seu batalhão, ..transferido, ...houve um tiroteio na
estrada de Vergato.
– eu falei: o objetivo?
- Você vai lá e vai encontrar os feridos, deve ter vinte e três feridos.
Os feridos eram do sargento, daquela época, hoje capitão Albino, você conheceu
Albino?!. Albino com os feridos dele tudo machucado, vinte e três feridos num
pelotão??? não é mole não velho!! eu chego lá com os meus doze homens, para
carregar vinte e três feridos, já pensou? ..aí, La Torracia, tava escrito lá o local.
Tinha um tenente, de engenharia, falando por meio de um aparelho, fala: alô, alô,
ilha, alô, alô, ilha. Eu tô chegando com o meu pelotão, eu tenho de chegar, tenho
que entrar e lá tá assim ‘minas’, um porção de fitas demonstrando que o terreno tá

________________
124 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 371 a 373.
125 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 380.
126 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op. Cit. p.392.
minado. E eu tinha que passar, e eu falei pra ele.
e ele falou: não vai poder passar.
- Mas tenente eu tenho que passar!
Eu tinha que buscar o pessoal do Albino, hoje capitão. Aí, ele disse: então o senhor
assume a responsabilidade.
- eu disse : eu vou assumir. ...
Coluna por um vamos embora. Eles pararam, e eu passei. Quando eles viram eu
passar pela fita branca, eu passei e eles deslocaram. Eles não me atenderam não, no
grito. Aí atravessamos a mina, graças a Deus. Andei mais 500 metros, uma casa e
lá estavam os feridos. Nesta casa tinha uns três ou quatro. .....de metralhadora, os
feridos estão naquela casa lá. então tá bom. Três padiolas, era o que nós tínhamos,
eram recursos muito pequenos. Tava lá o Albino..tava nervoso, o estado dele
era ....aí quando tá para entrar na porta da sala, o alemão viu que nós estávamos
com sinal vermelho, cruz vermelha...saúde...ele pra molecar deu umas
...rrrraaaarrraaaaaraaar (tiros de metralhadora) e uma no chão, com a folha seca na
neve, o tiroteio no chão, perto de você. não é pra matar não ..pra
sacanear.rrraaarrararaarra.
O pessoal de saúde andava armado, podia atirar?
Não! não! a saúde não usa arma. Aí quando eu ví as folhas pulando..entramos na
casa. ‘véio’, só víamos feridos...falando sozinho ..falando...entendeu.......você não
queira saber, dos vinte e três, dois foi de tipóia, o resto foi de padiola. Três viagem
para a estrada, leva para a estrada, na estrada tinha uma ambulância e um jipe
americano, o camarada “bebinho”, cheio de uísque.... ele era americano. Pedi
ajuda a ele, ele emprestou o jipe, tirou a...peguei a ..padiolas , botei a padiola
assim, tava todo mundo já ......anestesiado , deitei os caras assim..(um perto do
outro), botei quatro no jipe americano e na ambulância botei os outros. Botei
assim, um deitado em cima do outro, só com a cabeça de fora. Quando cheguei no
posto, o Dr Bicudo :
- João quantos você trouxe.
- Trouxe todos.
- Ah, não é possível.
- Trouxe todos aí, olhe lá.
Rapaz ficaram bobos, tinha um general lá, no posto, general Macarthur,
...Macthur..um nome assim americano . Quis me conhecer, quem falava inglês...aí
chegou mais três ambulância, ....pra levar pro hospital. Não ficou nenhum alí, o
curativo que eu fiz foi o que valeu, não tinha jeito não. É rápido...pois bem, alí eu
tive minha vantagem no Exército..porque a turma passou a respeitar o José João,
entendeu?! ..porque eu passei em lugar que não podia passar mais, já tinha as fitas
marcando área perigosa, mas eu tinha que passar, chama-se La Torracia é uma
pedra, monstro de pedra, grande. Se não passar, ninguém passa. Passar em torno
dela, entendeu?!....pois bem..josé joão trabalhou...eu fui saber que eu estava
ferido..depois que já estava todo mundo no hospital, não tinha mais ambulância,
mais ninguém. Foi esse corte aqui (mostra o braço), na hora eu fiz um
curativo..naquele tempo não existia, existia penicilina, ......tinha na
época...........tinha que tomar gelada.......a primeira penicilina de guerra, era no gelo,
gelada, um troço....e eu fiz meu curativo e fui embora pro meu posto. Lá encontrei
o doutor.... - vamo fazer a revisão disso aí - Eu fiquei três dias esquecidos mais ou
menos aqui. Depois dalí....esse foi o ataque de Castelnuovo, quer dizer, lá teve o
monte castelo, depois teve o Castelnuovo na estrada de vergato,(...) 127

Situações como essa mostram que atos heróicos não foram encontrados somente nas
________________
127 – Depoimento [2007].
tropas e homens da infantaria. Zé João utilizou de sua inteligência e muita coragem para
retirar do campo de ação do inimigo, homens que necessitavam de cuidados urgentes do
serviço de saúde. Como ele, ações de heroísmos foram encontradas em todos os pontos da
zona de atuação do Brasil.
A partir do início de março até a metade do mês de abril de 1945, todo o XV Grupo de
Exércitos permaneceu em situação de defesa nas áreas já ocupadas, com a finalidade de
preparar-se para a “Ofensiva de Primavera”, que pretenderia esmagar as forças alemãs ainda
em atividade na Itália. Esta defensiva foi semelhante ao que ocorreu no final de 1944, mas
com ampla vantagem para os aliados, que agora ocupavam as melhores elevações e tinham
acesso livre pela rodovia 64. Enquanto eram realizadas patrulhas para levantamento de
informações e reorganização da logística das tropas aliadas, foi proporcionado repouso aos
homens, de forma escalonada.
A “Ofensiva da Primavera” foi um plano organizado pelo General Mark Clark, que
consistiria em três fases: a conquista e estabelecimento de uma base em volta de Bolonha;
desenvolvimento de posições no rio Pó; e após transposição do rio Pó, conquistar Verona,
fechar o Passo de Brenner e organizar novas posições no rio Adige. A preocupação era de se
evitar a fuga dos alemães para fora do território italiano.128
Em 24 de março de 1945, o General Clark expediu sua ordem de operações em que
dizia, de forma geral, que o VIII Exército, a partir de 14 de abril, penetraria nas defesas do rio
Saturno, em direção a Budrio e Bastia, enquanto o V Exército deveria isolar ou capturar
Bolonha. Após esta 1ª fase, o VIII Exército prosseguiria no ataque para bloquear os alemães
em Ferrara e Bondeno, enquanto o V Exército fecharia o cerco em qualquer dessas duas
cidades e depois transporia o rio Pó em Ostiglia. Ao final, os dois Exércitos partiriam para
conquistar Verona.
A ordem acima descrita é elaborada de forma ampla, cabendo aos comandantes
imediatamente subordinados elaborarem suas ordens de maneira que os seus próprios
subordinados compreendam qual será a parte de cada um, para o que todo o objetivo seja
atingido. À 1ª DIE, em 02 de abril, o Comandante do IV Corpo determinou que em um
primeiro momento ficasse em condições de perseguir o inimigo em retirada pela auto-estrada
6423 ou pela auto-estrada 6423 C.
Considerando a sua missão muito simples, comparando-se com a 1ª Divisão
Blindada e com a 10ª Divisão de Montanha, o General Mascarenhas de Moraes solicitou a sua
____________________
128 – CLARK, Mark. Op.Cit. p. 436.
ampliação. O General Crittenberg autorizou, então, à FEB atacar a região de Montese e
Montelo, que, com isso, facilitaria à própria FEB chegar próximo do leito do rio Panaro e
também, facilitaria as atribuições da 10ª Divisão de Montanha.129 Feito isso, ao 11º RI foi dada
a ordem para que, a partir de 14 de abril, apoderasse da região de Montese, Morro 888 e
Montelo.
Para melhor entendimento da missão, ela poderia ser dividida em cinco fases: a 1ª fase
consistia em uma intensa preparação de fogos de artilharia disponíveis; a 2ª fase era o
lançamento de várias patrulhas para reconhecer a ocupar pontos importantes da região; a 3ª
era o próprio ataque, a ser realizado por três batalhões, em uma frente total de 5 Km e 2,5 Km
de profundidade; a 4ª fase seria o aproveitamento do êxito do ataque, para evitar o
reagrupamento dos alemães. E por fim, a última fase, que não seria desencadeada
sucessivamente como as anteriores, ela consistia em realizar a cobertura do flanco esquerdo
da 10ª Divisão de Montanha.130
A situação dos alemães naquele momento era de resistir em uma nova linha de defesa,
a “Genghis Khan”, que ia de Vergato, atravessava o rio Reno, prosseguia pelos montes Sole,
Adone, Belomonte e Grande, seguindo pelo rio Sênio e terminando no lago Comacchio. Os
alemães, que já não tinham a sua Força Aérea, lutavam mais sob a esperança de uma
improvável retomada das ações ofensivas do que mesmo a possibilidade de atuar como em
épocas anteriores, em que pessoal e material eram em abundância. Naquele momento, no
entanto, trabalhavam para evitar o acesso dos aliados no valioso vale do rio Pó, para isso
ainda possuíam 19 Divisões prontas para o combate.131
Desse total, havia 09 Divisões na zona de ação do V Exército, e onde se encontrava a
1ª DIE havia elementos da Divisão Itália, da 148º Divisão de Infantaria alemã, da 232ª
Divisão de Infantaria, da 114ª Divisão Ligeira, da 334ª Divisão de Infantaria e da 94ª Divisão
de Infantaria.132
O tempo em que já estavam em guerra, a falta de meios, a condições de superioridade
dos aliados e a própria situação de defesa desde o início da campanha na Itália, foram fatores
negativos para a moral e para a crença em possibilidades de vitória por parte dos alemães.
Mas ainda era o Exército Alemão que estava à frente para defender aquela região. Para o
soldado descuidado, a situação de perigo era constante e a morte estava sempre presente.

_________________
129 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 396.
130 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 166.
131 – CLARK, Mark. Op.Cit. p. 444.
132 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 416.
Nessa mesma época, Zé Maria começou a relatar seus dias em um pequeno diário,
feito em um bloco de anotações e escrito em lápis preto, nos momentos em que sua peça de
morteiro não estava atuando. Suas primeiras impressões foram estas:

1º DE ABRIL

Durante toda a manhã passaram centenas e centenas de civis vindos das linhas
alemãs. Na noite de ontem uma patrulha alemã tentou um golpe de mão na frente
do 1º Btl, porém estavam de azar porque nosso bloco estava atento fazendo varis
(sic) prisioneiros e destruindo o resto. O 1º Exército Francês atravessou o Reno,
estando agora todos os aliados dentro da Alemanha. Dentre os prisioneiros feitos
pelos nossos ontem, um dise (sic) demonstrando sua ignorância que a França ainda
está no poder de Hitler.
Depois de 4 meses, encontrei-me hoje com o Sgt Nestor, disse –me ele que havia
recebido várias cartas de casa reclamando notícias minhas, francamente não sei
mais o que fazer.

Nada tenho a registrar.


Esta noite eu Louzada e Nogueira conversamos muito lembrando coisas passadas e
fazendo planos futuros.
............para Pistóia pela manhã, voltei a tarde, não gostei.

Aproveitando o descanso houve hoje uma injeção sanitária.


Hoje era dia de uma instrução de uma instrução de minas a qual não foi realizada
devido a um trágico acidente no qual perderam a vida três homens nossos ficando
feridos outros seis, porém não era para ------ pois explodiram 38 minas anti-carro.
Um dos mortos não foi encontrado.

hoje seguiu para o Brasil um sol. De nossa Cia devido ter sofrido pé de trincheira
no 2º dia de front nosso.
Tivemos uma visita do Gen Clark Junnot e Crittemberg, além dos nossos. Todos
ficaram mais uma vez impressionados com nossa tropa e com ----- orgulhosos
devido ter sido nosso Rtg o escolhido para essa inspeção.

Com a chegada da Primavera é possível ler um jornal as 9 horas da noite sem o uso
da luz.
Hoje cheguei a contar 500 fortalezas voadoras em direção ao norte da Itália tenho a
impressão que vai começar a ofensiva muito em breve.

Hoje eu Louzada e Nogueira tiramos a sorte do fim de guerra, eu pessimista como


sou tirei para fim o dia 12 de novembro, o Nogueira dia 13 de junho e o Louzada
mais próximo, 23 de Maio, Será? Fui a Lézano e na volta passei por uma Cia da
Engenharia encontrando-me com o Sanabio, esta foi a primeira vez que
encontramos e infelizmente para a mais triste surpresa disse-me ele que o Garcia
morreu dia 17 de Dezembro vítima das assassinas granadas alemãs quando
trabalhava em um “by pass” perto de Gagio. Que Deus lhe dê descanso e consolo a
D. Pedrina são minhas súplicas. O Louzada ficou abatidíssimo com essa notícia e
muito mais eu pois depois de tanto tempo aqui jamais pude encontrá-lo. Escrevi
para mamãe e para maninha, vamos ver se ao menos estas chegam aos destinos.

Depois de um munido (sic) repouso voltamos hoje para o front. Interessante


voltamos para o mesmo local em que estávamos, até a casamata é a que eu e o cabo
Thomas fizemos. Devido a forte chuva de granizo, esta fazendo um frio louco.
Nossa situação e perigosa, pois em uma frente que era ocupada por um Btl está
agora somente com uma Cia. A 5ª, estamos a disposição dela e o restante do Btl,
está em 2ª linha.

Continuamos em Rochido de (capela). A nossa esquerda toda a tropa brasileira foi


cambiada pelos pretos americanos. Nossa artilharia fuminou (sic) durante uma hora
e 40 e tanto na nossa frente....a direita, juro (???) que esta noite os tedescos não
dormiram.

esta madrugada a luordinha falou um bocado, felizmente não houve nada. Ontem à
noite quando estava na hora pude obs. O movimento dos nossos tanques e
caminhões com munição que se dirigiam para a direita, pressinto (??) que é lá que
o pau vai comer.
O Nogueira veio hoje para a minha seção, ótimo.
O Gen. Paton aprisionou hoje 100 mil toneladas de ouro dos alemães. Nossa
artilharia continua no seu baile, penso que o inimigo não se sente a vontade porque
responde com alguns tiros, que graças a Deus caíram coutano(??).

10

esta madrugada quando estava na hora, não pude recordar de casa por causa do
terrível bombardeio que nossa art. fez francamente assim. Tedesco anda via de
Montespechio, caiu virnas(???) em poder dos nossos, graças a Deus.
Fui até o Obs. Olhar um pouco as terras que ainda estão com alemães e que breve
serão nossas se Deus quizer, esteve lá muito tempo nossa Art. Destruiu várias
casas, gosto muito de observar a frente inimiga, apesar do perigo é bem mais
interessante pois que se avista até o Modena onde comiam as planícies. Ainda
estamos longe, mais (sic) chegaremos lá.133

Dos primeiros dez dias do diário de Zé Maria, podemos fazer algumas observações. A
primeira se refere ao seu testemunho quanto a presença dos refugiados de guerra italianos na
zona de guerra. Em qualquer conflito após a 1ª GM, a população civil foi a mais prejudicada

________________
133 – Diário de Guerra de José Maria da Silva Nicodemos.
com os efeitos do combates. Se antes os combates eram realizados em locais restritos e
distantes da população, no século XX, a Guerra Total passava a atingir as cidades mais
densamente povoadas. Com isso, famílias inteiras desapareciam sob os escombros resultantes
dos bombardeios de ambos os lados.
Já no fim da guerra, 40 mil morreram em Dresden, na Alemanha, com um dos
maiores ataques aéreos realizados.134 Mais mortos que o 1º ataque nuclear em Hiroshima,
meses depois. Com a possibilidade dos combates mais próximos de suas casas, as pessoas
eram incentivadas a deixarem suas casas, a fim de não se tornarem alvos no centro de fogo
cruzado. Os veteranos afirmaram que muitos não abandonavam o local por não terem para
onde ir, ou porque possuíam algum impedimento, como um familiar doente, ou, segundo nos
parece, compreendiam que a possibilidade de algo de ruim acontecer era remota, afinal a
guerra já durava tanto que até os civis se tornaram insensíveis aos seus efeitos. Mas o fato é
que muitas pessoas abandonavam seus lares e caminhavam por entre as tropas oponentes,
dificultando por vezes as ações de exércitos e contribuindo para agravar os problemas de
coordenação na execução dos planejamentos.
Outro fato a analisar foi a informação sobre seu encontro com um conterrâneo, o
sargento Nestor, pois Zé Maria escreveu que há quatro meses não o encontrava. Ora, estando
no mesmo território, como isso poderia acontecer?
Geraldo já tinha relatado que FEB ocupava uma grande área na Itália, pois suas
Unidades se desdobravam desde os primeiros homens no front até aqueles que permaneciam
em situação de expectativa de emprego no Depósito de Pessoal, passando por frações de
Comando, Unidades em Reserva, Artilharia, Comunicações, Logística e as diversas
instalações de apoio de saúde. Além disso, os deslocamentos, mesmo quando nas dispensas
para arejamento, eram controladas pela Polícia Militar em postos de controle para evitar
indisciplinas, grandes aglomerações de soldados em determinados locais, abusos de
autoridade, entre outros. Então, nem sempre era possível o encontro de amigos que estavam
em locais diferentes na FEB.
No dia 05 de abril, Zé Maria testemunhou a passagem de pelo menos quinhentos
bombardeiros, os chamados “fortalezas voadoras” em direção ao norte da Itália. Sua
preocupação em acompanhar as novas ações ofensivas do V Exército, foi relatada dia após dia
em seu diário. Mas em relação às aeronaves, o mais provável era que essas estavam se
deslocando para os ataques na Alemanha, que nesse momento, tinham a prioridade nas

__________________
134 – DAVIES, Norman. Op.Cit. p. 330.
missões aéreas.
Em 06 de abril, Zé Maria relata sobre a informação da morte de um amigo seu, o
Garcia. Geraldo que também era amigo de Garcia, já tinha relatado sobre esse assunto. Zé
Maria em depoimento explicou o que aconteceu após saber da morte de seu amigo:

(...) eu fiz uma confusão, já contei isso pro senhor. Eu fiz uma confusão tremenda,
tudo por causa da censura, do José Garcia, eu estava em Gaggio Montano na beira
de um barranco numa estradinha, em cima de uma bueira de uma estradinha
chamada secundária , de repente parou um caminhão do 9º batalhão, parou um
caminhão, fiquei olhando prá lá, de repente parou outro, quando o outro parou,
parou em frente aonde eu estava, quando eu olhei assim, era o José Garcia, ele me
chamava de Pereira por causa do meu pai, seu era José Pereira da Silva, ô
Pereira...olhei assim...ô Garcia....como é, e tal e casa? e correspondência como é
que está.....ah, tá tudo em ordem.... aí os caminhões foram embora, ele foi embora,
daí um bocadinho, a curva da estrada dois quilômetros prá frente, eu vi caindo
umas granadas e tal, aí recolhi, fui para onde eu tinha que ir, passaram-se uns dias,
talvez uma semana, encontrei com outro de São João, é, não recordo agora, qual
deles.... ele falou que o Garcia tinha morrido exatamente neste bombardeio. Ele
também fazia parte do 9º Batalhão de Engenharia, acho que era isso Admilson
Sanabio, era isso mesmo, ele que falou. Garcia morreu em função deste
bombardeio, muitos... e muitos anos depois, o então tenente comandante do pelotão
dele de engenharia, lançou um livro aqui no Granbery, ele tinha estudado aqui em
Juiz de Fora, tinha estudado no Granbery, depois da guerra ele entrou na política,
chegou até ser interventor, no Amapá, sei lá.... chegou a ser interventor num lugar
destes, foi deputado federal, então ele lançou o livro ali no Granbery, eu fui lá,
comprei o livro dele... entende? aí eu perguntei: “por acaso, o senhor ainda lembra
do nome de alguma soldado? do seu pessoal do 9º Batalhão de Engenharia _ ah!
graças a Deus eu lembro, Nossa Senhora, lembro sim... o senhor lembra do José
Garcia Lopes Filho? ‘- claro, meu comandado direto, morreu assim.... assim.... e
eu quase fui também....’ aí contou como é que foi, aí que eu fiquei sabendo
direitinho, só que a minha carta chegou lá, a mãe dele já havia recebido a
comunicação oficial da morte dele, quando a carta chegou, minha mãe, falou: ‘o
Zezé, que sou eu, esteve com o Garcia’ ela, coitada, na santa ingenuidade,’ mas
teve como?’ aí deu nela uma semana de esperança que o Garcia tava vivo. tava
morto...135

Por uma infeliz coincidência, Zé Maria e Garcia se encontraram momentos antes desse
último ter sido colhido pelas granadas de artilharia do inimigo, em dezembro de 1944, quando
ainda estavam na defensiva de inverno na região de Monte Castello, ou seja, quatro meses
antes daquele encontro. Nesse período, Zé Maria escreveu algumas cartas para sua mãe em
São João Nepomuceno, e relatou o encontro com Garcia. Sua mãe já sabendo da morte do
jovem, falou do encontro para a mãe de Garcia, que acreditou que o filho ainda estivesse vivo.
Para uma mãe que recebe a má notícia do falecimento de um filho, qualquer esperança era
bem vinda.

________________
135 – Depoimento [2007].
Na cidade de São João Nepomuceno toda a população ficou sabendo da infelicidade
de Garcia. Tudo foi noticiado pelo jornal A Voz de São João, logo após a sua morte:

SOLDADO JOSÉ GARCIA


A cidade recebeu, com a mais profunda mágua, a notícia do falecimento, no
campo de batalha, da Itália, do nosso estimado conterrâneo, soldado José
Garcia Lopes Filho, que integrava o primeiro escalão da Força
Expedicionária Brasileira que chegou em Nápoles no meado do ano passado.
Logo que se divulgou entre nós a coatristadora notícia, grande foi o número
de pessoas que compareceram à residência da progenitora do glorioso
expedicionário, a qual foi quem recebeu a comunicação do Ministério da
Guerra (...)136

Durante várias edições do jornal, muitas referências foram feitas à morte de Garcia,
eram os efeitos da 2ª Guerra chegando de fato àquela pequena cidade. Um de seus habitantes
perecia do outro lado do Atlântico, era alguém conhecido, que morava próximo de todos, e
que de maneira trágica assumia as atenções de toda uma população. Para Zé Maria, a
confusão só foi constatada muitos anos depois com a confirmação de que naquele mesmo dia
do encontro seu amigo havia morrido.
Enquanto Zé Maria aguardava o início de mais um ataque, patrulhas eram realizadas
para levantamento de informações. Ruy, em 13 de abril de 1945, relatou como foi a
preparação de uma patrulha e como era a disposição dos homens para esta perigosa atividade:

13 de abril de 1945 – sexta-feira


Já me adaptei novamente a vida no front e naturalmente, como sou o mais folgado,
acabo de receber ordem para me preparar para sair numa patrulha de
reconhecimento e se possível fazer prisioneiros. Devo sair com meus homens lá
pelas oito da noite e então reúno os que vou levar, para ‘aquela ‘ conversa e tratar
dos preparativos. Um por um se despoja de documentos, carteiras, dinheiro, etc.
entregam tudo a mim, que faço pequenos pacotes com papel higiênico – ele de
novo! – colocando o nome. Somente devem levar as placas de identidade. Entrego
tudo ao sargento ROCHA, que ficará respondendo pelas posições. Com o sargento
JÚLIO, estudo o itinerário pois devemos reconhecer as localidades: Molino
Coverale, Maserno Vecchio e se possível Maserno, no casario que fica sobre a
estrada que vai de Maserno Vecchio para Maserno. Vou levar toda a Seção de
Morteiros, ao todo somos doze homens, uma vez que a seção de metralhadoras está
toda empenhada e os atiradores e os cabos chefe de peça devem ficar nas posições,
em vigilância, com tiros programados para a região onde vamos. As informações
que tenho, coletadas por patrulha anterior é que: na região de I Sordi e 659, havia
um americano morto; em 612, outro morto parecendo alemão, estava sem roupas.
Em Molino Della Riva, há posições tedescas ativas e durante o dia há
movimentação nas casas, parecendo alemães trabalhando. Na saída à direita, que
vai para Molino de La Coveraie, perto da ponte, há um canhão tedesco e um

______________
136 – A Voz de São João. São João Nepomuceno. 21 de janeiro de 1945.
caminhão com material; parecem abandonados. É isso que sei; o resto é com Deus.
Vamos lá! A noite é bem escura o que facilita por um lado e dificulta por outro.
Junto ao grupo rezo mentalmente o ‘Actiones Nostras’ e dou uma geral verificando
o equipamento, o armamento, a munição (principalmente os pinos de segurança das
granadas de mão e as travas das armas portáteis, pois estão todas municiadas e
engatilhadas).
São nove horas p.m., como se diz aqui. Testo o ‘hand-talk’ e tudo positivo, demos
a largada. Vamos agora!

14 de abril de 1945 - Sábado


Uma e meia da madrugada. É hora que regressamos da patrulha. Estou cansado e
vou dormir um pouco; do que ocorreu durante a patrulha, direi mais tarde, pois
quero ordenar minhas idéias e gozar em silêncio, espichado no meu girau a alegria
de estar vivo... já rezei o ‘Agimus Tibi Gratias’ - ...duas
vezes!.......................................................
Não cheguei a dormir muito pois desde às quatro da manhã os telefones começam
a chamar: é que a grande operação começou. O I e o III Batalhão estão
empenhados nela, enquanto nós estamos colaborando na base de fogos com as
metralhadoras e morteiros, que os apoiará, além da artilharia. Aqueles Batalhões
atacarão Montese, e nós, do II, temos que ficar em condições de ocupar todo o
espaço aberto por eles, no caso de êxito. Deus os ajude e que dê tudo certo – a
preparação da Artilharia foi tremenda e nós, eu e o BARRETO, colaboramos com
nossos tirinhos, nas zonas intermediárias; a partir das dez horas cessamos de atirar
e ficamos atentos aos telefones com informações que vinham dos PC. Foi uma
longa espera e de ansiosa espectativa. As rajadas de metralhadoras não pararam e
os canhões alemães não davam folga. Vez por outra uma granada perdida, vinha
bater aqui em para os nossos lados. Mantive todos os homens abrigados e alerta.
Não dá para facilitar, mesmo porque a nossa Artilharia também, a intervalos,
voltava bombardear; certamente eram pedidos de fogo do observador que estava lá
na frente, e suas granadas passam por cima de nós, já no ramo descendente da
trajetória, zunindo e frigindo, como torresmos na frigideira....finalmente, lá pelas
sete horas da tarde, recebemos finalmente a boa notícia: Montese era nossa, mas
ainda havia gente brigando lá dentro. A Artilharia alemã não cessava de martelar.
Aliviada a tensão, aliviamos também o serviço, voltando à vigilância normal. Já é
bem tarde e agora me reporto aos acontecimentos da patrulha: 137

Antes de relatar o que houve na patrulha comandada por Ruy, que o deixou feliz por
“estar vivo”, é importante analisarmos suas observações quanto a preparação dos seus homens
e dele próprio para essa patrulha. Ruy deveria colher informações sobre a região à frente dos
primeiros homens da infantaria da FEB, para facilitar o ataque que aconteceria logo no outro
dia, para a conquista da localidade de Montese, e também poderia fazer prisioneiros alemães,
que também são fontes importantes de informações.
Patrulhas desse tipo geralmente são noturnas, para a melhor segurança, o que, no
entanto, dificulta a coordenação dos homens pela pouca visibilidade. O estado de tensão dos
homens é ampliado pela escuridão e pelo medo da morte ou de cair prisioneiro e até em se
perder, logo a preparação mental é importante, primeiro do próprio líder da patrulha, que deve
________________
137 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
estar sereno e confiante, para poder passar segurança aos homens, e depois por cada membro
da equipe. Ruy se agarrava à religião, devido a sua formação de seminarista, mas qualquer
que fosse a maneira de se concentrar no que seria feito, era importante para o sucesso de
todos. Não levar nada além de armas, munição e a placa de identidade, garantiriam negar
informações importantes ao inimigo, em caso de morte ou se fosse pego. Além disso a placa
era obrigatória para reconhecimento do corpo.
O itinerário que Ruy deveria seguir foi dado pelo seu Comandante de
Companhia e as informações anteriores eram importantes para evitar atropelos e
emboscadas. Mortos eram um perigo para os incautos, pois os alemães costumavam
colocar armadilhas, as bobby traps, em seus corpos, fossem estes quem fossem. Outra
informação curiosa era o fato da seção de morteiro de seu pelotão permanecer apontada para a
região em que se encontrava a patrulha, esta medida visava a pronta possibilidade de, em caso
de necessidade, os morteiros apoiarem um retraimento da patrulha sob fogos.
O relato de Ruy coincide com o início do ataque à Montese, nosso próximo assunto e
uma das mais significativas batalhas da FEB. Ruy, no entanto, descreveu importantes fatos
sobre o que ocorreu em sua patrulha:

Eram nove horas quando nos deslocamos pela mulateira que desce de nossas
posições para a estrada que vai a Maserno. Pouco antes, recebemos a informação
do Batalhão que um grupo de alemães, se encontravam na Igreja de Maserno,
dispostos a se entregarem. Menos mal que eles não queriam briga....o meu estado
de espírito era semelhante àquele que tinha quando fui estagiar no front do 6º
RI...só que agora eu estava sozinho; não tinha nem o capitão LOS REIS, nem o
tenente CAETANO ao meu lado...eu tinha somente a minha própria competência e
decisão...pensei irônicamente: se tudo der certo, poderei até ser ‘herói’, mas se der
errado, que prato feito para a ‘trepação’. Voltei a calma e pensei: já estou nessa a
quase cinco meses. Já tenho cancha...já agüentei Guanella, Santa Maria e Rocca
Pitigliana, Castelnuovo. Respirei fundo, enchi o peito e dei a ordem: atenção!
Comigo, em frente! Caminhamos em silencio até o posto de passagem, na posição
do 3º pelotão, onde estava minha metralhadora com o sargento GUIDO, e o
soldado ÁLVARO na posição. Ali, fizemos alto para as últimas recomendações.
Fiz o reconhecimento de todos, chamando-os pelos pré-nomes e eles respondendo
o sobrenome, assim: JÚLIO? Resposta: RODRIGUES, DANIEL?
CAMPIOGOTO; WILLIMAR? RISTOW; CRISTOVÃO? SHRAM. E assim por
diante. Todos identificados, demos a senha (TATU) e a contrasenha (JACARÉ),
para a volta. Com dois homens à frente como batedores, a uns vinte passos seguia o
grupo comigo, distanciados de três a cinco passos um do outro. Fechando, cerrando
a fileira o sargento JÚLIO e mais um soldado. Quando já estávamos a meio da
descida, recebemos uma violenta barragem de morteiros; abandonamos a
mulateira, abrigando-nos no valão lateral. Felizmente as granadas explodiram mais
acima, no lugar onde já tínhamos passado. Descemos com cuidado, atingindo a
estrada que nos levaria ao moinho. Na estrada de terra, que vem de Albarelli e vai
até MASERNO, tomamos outro dispositivo: duas colunas, uma de cada lado da
estrada, escalonadas e com os batedores à frente, eu no meio e o sargento JÚLIO
cerrando. Assim, andando e parando a cada cinqüenta ou cem metros, verificamos
as margens cuidadosamente; nas paradas, fazíamos a escuta. Tudo ia bem, quando
começaram a aparecer casas semi-destruídas pelas artilharias. Após verificação
seguimos até a ponte sobre o riacho Coveraie. Passamos a vau. Não era bom
negócio enfrentar a ponte. O Coveraie é pouco mais que um córrego. A uns cem
metros da ponte, a estrada se bifurca, seguindo larga, para Maserno e estreita para
Maserno Vecchio e Moinho Coverais que se localizam a uns quinhentos metros.
Deixei o sargento JÚLIO com dois homens na bifurcação e demos uma olhada no
Moinho e em Maserno Vecchio. O Moinho estava abandonado e bem avariado e
Maserno Vecchio é um grupo de casas bem castigadas por bombardeio. Não
encontramos nada por ali; tudo quieto e silencioso. Só destroços. Voltamos à
bifurcação e deixamos ali três homens, uma vez que em Molino Della Riva, podia
haver alemães, e seguimos para Maserno, um casario maior, também silencioso.
Passamos o cemitério e vimos vultos furtivos entrando na Igreja. Paramos para
reajustar e disposição da abordagem. E agora, seu FONSECA? Procurava me
lembrar das regras, das técnicas que lêra, das instruções em Filetole, nas aulas do
capitão Sodré, no C.P.O.R..tudo isso me vinha à cabeça, enquanto reunia a patrulha
numa sombra mais recuada e decidi: ‘vamos rodear a Igreja’. Além da porta
principal, uma lateral e uma que dava para o cemitério. Todas fechadas. As janelas
são altas demais para alguém pular. Bem: dois homens cobrindo a porta lateral;
dois no cemitério. O sargento JÚLIO com o resto, cinco homens ao todo cobrindo
a estrada e a porta principal da Igreja, enquanto eu agiria protegido pela grossa
parede do templo. O combinado era: eu batia forte e aguardava o atendimento.
Caso alguém atendesse, eu jogava sobre a pessoa o foco da minha lanterna e
mandava abrir a porta toda. As duas folhas. No caso de reação ou tiros, eu me
atiraria ao solo, junto ao paredão, e toda a turma do JÚLIO abriria fogo e, seria o
que Deus quisesse...técnica meio crioula, mas era o que havia no momento. Assim
foi. Aproximei-me rente ao muro do cemitério, até perto da porta e, ao estender o
braço para bater, reparei que havia um vão entre as folhas e que a porta não estava
fechada. Fiz sinal ao JÚLIO que veio juntar-se a mim, e um de cada lado, fomos
escancarando as folhas, com as armas engatilhadas e com a cobertura do resto da
patrulha.
Proteção de Deus – que é brasileiro – ou força das orações, o certo é que nada
aconteceu. Quando metemos o foco das nossas lanternas para dentro do templo,
constatamos que o que ali havia era um grande dormitório de velhos, mulheres e
crianças. Encolhidos e medrosos, eles nos olhavam temerosos e ninguém falava
nada...só olharam.
- Chi commanda qui? Avette um capo?
Falei alto e claro.
- C’ é l’arcipreste in camera – falou uma mulher.
- Dove é la camera?
- in fondo.
Deixei o sargento JÚLIO, cuidando das quase cem criaturas que se abrigavam ali,
naquela casa de Deus e caminhei a procura do padre. Achei-o deitado na cama e
quando iluminei o recinto, tentou levantar-se, fazendo-o com dificuldade. Era
velho e gordo. Pedi-lhe desculpas e disse-lhe que era um soldado brasileiro, em
serviço de reconhecimento. Perguntei-lhe quem era aquela gente e se havia alemães
– tedeschi? Niente tedeschi! – brutta gente!. Andaranno via, ter giornafá!
Na igreja só havia refugiados – sfolati – que os alemães reuniram e mandaram que
ele os vigiasse; não queriam que ninguém andasse por ali de dia, então eles se
movimentavam à noite, para buscar o que vestir e o que comer, nos destroços de
suas propriedades.
Perguntei onde estavam agora os alemães, ele me respondeu que provavelmente
eles estavam se reunindo em Montese, mais para diante. Perguntei se entre aquela
gente não havia alemães que quisessem se entregar, ele me respondeu que não.
Disse-lhe então que viesse comigo, para que eu verificasse pessoalmente. Ele me
acompanhou e pedi que ele reunisse junto do altar, todos os homens deixando as
mulheres e as crianças em seus lugares. O sargento JÚLIO com um praça, fez uma
revista nas dependências da Igreja enquanto eu conversava com os dez ou doze
velhotes que se apresentaram. Deixando-os ali, fui passando junto das mulheres e
crianças já acomodadas ou dormindo, pedindo que lhes deixasse ver as fisionomias
– não fosse algum tedesco se vestir de mulher e se esconder ali – sofridas e
submissas.
Tudo correu bem, e dei por encerrado o reconhecimento e tratei de recolher o
pessoal com os mesmo cuidados da vinda, utilizando agora a estrada larga até a
ponte. Levamos uma nova rajada de tiros de morteiro e de canhão. Desta vez eles
nos pegaram na subida para nossas posições e o pior é que eles iam alongando os
tiros, de maneira que não podíamos progredir, pois andar para frente seria ir ao
encontro das explosões das granadas. Voltamos para a base da elevação e ali
ficamos, colados ao solo, aguardando o ‘tempo melhorar’.138

Ruy ainda teve problemas com o sumiço de um dos seus homens que havia se perdido
da patrulha para ir “ao mato” fazer suas necessidades, mas que após algumas buscas nas
redondezas foi encontrado. Depois, só restou voltar para seu acampamento e fazer o relatório
para seu capitão. No diário de Ruy vemos um depoimento sem aumentativos da coragem de
um homem quando na guerra. Sua sinceridade é a verdadeira coragem, ao admitir seu medo
em partir para a “terra de ninguém” com mais onze de seus subordinados, tateando o espaço
escuro e desconhecido à procura de inimigos e mais informações. Medo natural de quem pode
encontrar a morte e quem pode deixar morrer aqueles que dependem de sua liderança. A cada
momento os acontecimentos levavam a uma ou mais escolhas, e a decisão era somente dele. O
enfrentamento do medo pela coragem é fruto de um preparo moral e intelectual, forjado ainda
pela experiência da guerra, da qual já estava há mais de seis meses, mas o medo, nesse caso,
tempera a cautela e ampara a melhor decisão. O que não seria a cautela caso a Igreja estivesse
tomada de alemães? Caso o medo vencesse a razão, muitos inocentes seriam mortos se a
decisão fosse de atirar antes de bater à porta do templo, fatos semelhantes aconteceram
naquele conflito.
Ruy e seus homens ainda foram alvos das sempre mortíferas granadas da artilharia,
mas a “manha” já adquirida nas batalhas encurtaria os caminhos para a segurança. A patrulha
de Ruy foi semelhante a tantas outras que os brasileiros executaram na 2ª Guerra. Algumas
trágicas, outras heróicas e muitas outras que cumpriram sua missão sem grandes alardes.
A patrulha comandada pelo sargento Max Wolff Filho dias antes do ataque à Montese
tornou-se famosa pela morte desse militar, um dos mais admirados na Força, e por ter sido
testemunhada pelo correspondente de guerra Joel Silveira, que a relatou em alguns de seus
livros.
________________
138 - Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
Fot
Fot 53 - Esquema do itinerário da patrulha de Ruy.
Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.

Em todas, havia a certeza de que o preparo militar, a coragem e a fé, naqueles


momentos, formavam apenas um único elemento, um sentimento, que o soldado possuía ao
continuar avançando naquela “terra de ninguém”.
Nessa mesma noite, os bombardeios começaram a ficar mais intensos. Era o início da
preparação da artilharia brasileira para o ataque à Montese.
Zé Maria continuou a relatar o que acontecia em seu pequeno diário. Nos dias que
antecederam ao ataque à Montese sua apreensão se confirmaria com uma das maiores ações
da FEB até então. Se Monte Castello foi um “baluarte inexpugnável” que levou três
tentativas brasileiras até a sua queda, Montese foi a prova de fogo para uma tropa que
atingiria a sua maturidade.
Historicamente as tropas brasileiras tinham pouca experiência em combates no interior
de localidades. A própria 2ª Guerra apresentaria um bom número de batalhas ocorridas nessa
situação e não em campos abertos, longe das populações.
Fot 54 - Max Wolff e sua patrulha, pouco antes de morrer.
Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em:15 Set 2005.

A guerra travada em cidades e vilas tornasse mais complicada por sua dificuldade em
coordenar os homens envolvidos; em visualizar o inimigo, que utiliza as casas e prédios para
se abrigar e disparar contra os atacantes; em haver a necessidade de vasculhar casa por casa
em busca do inimigo, expondo-se às armadilhas; na dificuldade de apoio da aviação e dos
blindados, estes que pelo tamanho, são impedidos de avançar em determinados locais; e entre
outras tantas dificuldades, há a sempre existência de uma população sofrida e desamparada,
que se recusa a sair da localidade ou de suas imediações.
Zé Maria esteve próximo dos primeiros homens que avançaram em Montese, sua
missão era de apoiar com a sua peça de morteiro 81 mm seus companheiros. Sua visão
imediata daqueles dias de abril de 1945, foi assim relatada:

11

Hoje era o dia que diziam os profetas terminaria a guerra, porém o dia terminou e a
guerra continua.
Ondas e ondas e de fortalezas voadoras continuam a passar para bombardear o lado
inimigo, se for assim quando chegarmos lá não encontramos mais nada. Às 4 horas
da tarde fomos mandados para Abetaia nos reunir ao rest. da cia. para seguirmos
com o btl. para novas posições em Abetaia ficamos muito tempo esperando ordem
de seguir para o local designado para início da ofensiva do quinto exército, pois
agora está mais que claro que toda esta enorme quantidade de homens e material
nada mais é do que nota marcante da nossa arrancada final. Sentisse no ar um certo
nervosismo e justo porque só Deus sabe quantos chegaram ao final da grande
ofensiva. Recebemos ordem de regressar as antigas posições porque o avanço foi
adiado, porém não é mais segredo nosso btl iniciaria a ofensiva atacando
importante posição inimiga. Voltamos as posições e depois de rezarmos nosso
terço fui fazer força para dormir pois eram duas da manhã e havia dado em
ummm(???) grande.
O 8º já começou avanço na nossa direita.
O Nogueira foi incluído na minha peça.

12

Hoje as 4 horas da tarde fomos para a região fronteira a Montese, afim de atacar.
Lá chegando organizamos as posições do melhor modo possível, pois a região era
perigosa. Trabalhei toda a noite fazendo um bom ‘abrico’, neste serviço fui
interrompido várias vezes pelas rajadas da terrível lourdinha alemã, isto porque o
tedesco estavam por cima de nós. Nossa art. não dá descanso ao inimigo, barragens
de granadas de grosso calibre sibilam sobre nós com destino ao inimigo de 5 em 5
minutos caem no mínimo 5 mil tiros, pois canhões tem as centenas e munição aos
montes juntos as peças.

13

Depois de dormir umas duas horas fomos despertados por u’a meia dúzia de tiros
inimigos que caíram vizinhos a nós.
Bom o alto comando adiou por 24 horas o ataque devido as informações das
patrulhas que foi ontem a noite reconhecer o caminho para nosso avanço.
Interessante o alto comando fica a dezenas de km a retaguarda e afirma não sei
como que o inimigo está ligeiramente instalado. resultado: morreu sgt. Wolf que já
havia feito 54 patrulhas e que comandava a de ontem, além dele 4 ou 5 soldados e
ainda dois desaparecidos. Isto no meu pensar é mal sinal.

14

Iniciamos o ataque, desde ontem a noite a nossa art. estava preparando o terreno.
começam a passar os primeiros prisioneiros feitos pela nossa 8ª. pelo telefone e
pelo rádio escutamos anciosos (sic) os primeiros avanços. não somos únicos a
atirar, o inimigo também está fazendo uma reação jamais esperada, suas granadas
felizmente passam sobre nós e caem a nossa retaguarda a pouco mais de 20 metros,
é preciso estar atento para não ser apanhado de surpresa fora do abrigo e pedir a
deus que não caia nenhuma encima (sic) do mesmo porque se isto acontecer adeus,
não sobra nem penas.
meio-dia, a cammm(??) está dura, o inimigo resiste, e ao contrário do que
esperávamos nenhum avião nos apoiando. todos os que passam, vão em direção a
retaguarda inimiga, nem ao menos o costumeiro “teco-teco” . é preciso gritar para
ser ouvido, pois o barulho é ensurdecedor. nossos morteiros não param. 5 horas da
tarde recebemos ordem de avançarmos, o nosso material apesar de pesado será
levado a braços. 5 e 15 partimos, já estamos sob as vistas do tedesco, precisamos
ganhar a estrada, nosso destino é La Torri, bem, estamos nos primeiros 500 metros
da estrada, apesar de ainda estar claro parece que não nos viram, avançamos mais
um pouco e... caem as primeiras granadas a poucos metros a nossa direita, cada um
por sua vez se abriga o melhor possível, eu e todos da minha seção graças deus nos
juntamos na valeta debaixo da estrada. agora alem do forte bombardeio o inimigo
atira com suas armas automáticas. estamos detidos, nosso abrigo já não cabe mais
ninguém pois a valeta é pequena e todo o pel. se reuniu aí (ao todo 60 homens)
enquanto esperamos anoitecer o pensamento é um só: que deus nos proteja.
Ali naquela incomoda mais oportuna valeta, ficamos sob fogos inimigos cerca de
40 m. até que meio a noite e com ela, o inimigo nos deu uma folga. continuamos o
avanço enquanto toda aquela confusão de tiros havia desviado um pouco para a
nossa direita e a frente. estamos indo para La Torri mais ai é o pior, a noite está
escura e não conseguimos encontrar nosso destino, perguntamos a elementos
fuzileiros se sabiam onde era, disseram que seguiríamos em frente e as duas
primeiras casas a esquerda era o local. bem, continuamos avançando a 10 metros
um do outro mais um quilômetro: resultado, penetramos cerca de 200 metros em
um campo de minas e deus mais uma vez nos protegeu e o pior tivemos que voltar
pois o caminho não era aquele. quando não vamos obrigados a deitar por causa de
uma granada, sentimos um mal cheiro orrivel de coisa podre. tomamos por uma
caminho onde haviam passado vários tanques, não sabíamos se estávamos certos,
porém ao menos livres das minas estávamos, e assim chegamos as tais 2 casas,
mais outras poucas casas eram casas, porém agora eram somente algumas paredes
de pé ainda por cima não era nosso destino. bem, paramos naquele ponto enquanto
os oficiais procuravam identificar o terreno com a carta não estávamos ali mais de
10 minutos quando caíram 2 granadas bem encima da parede onde estávamos
abrigados nos cobrindo de tijolos, poeira, fumaça e um terrível cheiro de enchofre.
passados os primeiros momentos constatamos mais um milagre, não havia nenhum
morto ou ferido. mais 10 minutos são passados e voltamos para a estrada e como
não achamos nosso destino cavamos nossas posições atrás dos escombros de uma
casa na beira da estrada pois já era 1,30 da manhã e cansado como estávamos
dormimos de qualquer jeito sem ao menos preocupar em abrigarmos. hoje durante
o dia e toda a noite o inimigo nos martelou com fogos de art. mort. e armas aut.
tenho a registrar como nota final desta terrível jornada o comovente e ao mesmo
tempo horroroso gritos e lamentos dos infelizes feridos que não puderam ser
evacuados. bem com a graça de Deus fomos dormir, pois nem pensar e recordar
nos era permitido.

15

Logo após dormimos cerca de 2 horas, recebemos ordem de avançarmos para a


margem esquerda da estrada e instalar os mort. num grupo de casas de nome
“fazzoni”. para lá nos dirigimos homem-a-homem, pois o lugar onde devíamos
cruzar a estrada estava sendo batido pelo inimigo. depois de reunidos colocamos as
peças em posição fomos procurar lugar abrigado para descansarmos e se possível
dormimos, enquanto isso, nossa cia. fuz. Continuavam no seu avanço que tinha
por fim as últimas elevações depois de Montese que a custa de grandes sacrifícios
já era nossa. nossa preocupação era uma só, que a aviação viesse nos apoiar, pois
nem o “teco-teco” aparecia e nada nenhum avião. somente alguns tanques que
felizmente foram de grande valor, assim mesmo, o alemão destruiu três. bem o
ataque continuava e o inimigo ainda está lá emcima opondo como loucos uma
desesperada resistência, não querem ceder um palmo de terra, nossos mort. e art.
não param um instante, pois munição não falta, e a turma de remuniciamento
também não para um momento siquer (sic), todos pensam uma coisa só, quanto
mais munição melhor, pois precisamos vencer e vingar nossos mortos e feridos,
que infelizmente já são muitos! pelo rádio e telefone recebemos a triste notícia:
uma granada caiu dentro do fox hole do sgt Oliveira, despedaçando-o e ferindo o
sol Alvarenga, que morreu quando era levado para o posto de saúde, e ainda o sol.
Silva que sendo ferido na mão levemente se encaminhava para o PS entrou em um
campo minado tendo morte imediata. além destes, foram feridos ainda, sgt Arino,
cabo Kuiava, sol. Adão, Correa, Pacheco, todos da met. sendo os 1º do 2º pel e os
últimos do 1º pel. campos minados aqui é mato, logo atrás de nós existe um e
dentro dele está um sol. brasileiro, de cor preta que morreu quando veio com a
patrulha do sgt Wolf está ali a três dias e só será retirado quando terminar o ataque.
é um quadro triste, e que ao mesmo tempo nos dá ódio e coragem para continuar.
hoje mais ou menos dez horas da manhã, retiraram os feridos que passaram a noite
pedindo socorro, vi um deles era um cabo estava com a perna estilhaçada quando o
apanharam estava já sem fala, não sei se morreu.
3 horas da tarde o inimigo tenta um contra ataque, nossa art. e mort. martelam
cerca de hora e meia e conseguimos desbaratá-los. encontro com um sol. da 8ª e
soube por ele que o sgt. Rander morreu logo no início do ataque vitima da
lourdinha do tedesco mais um amigo que se foi.
Cai a noite e o bombardeio continua de ambos os lados.
Nosso pel. apesar das baixas conseguiu ocupar todos os obgetivos: Pasavento,
Pasavento de Montese, Sunto, cota 927. falta Montelo e parte mais alta porém já
não somos nós a atacar porque nosso tempo finda amanhã às 9 da manhã.

16
Graças a Deus terminou nossas 48 horas de ataque. fomos cambiados pelo 3º do 6º
e regressamos a base de partida enquanto o 6º está tentando ocupar Montelo, nós
estamos em 2ª linha, afim de reorganizarmos. recebi carta de papai continua
reclamando não receber notícias minhas. francamente, hoje presenciei um fato que
muito desagradou-me pela 1ª vez o S. E. apareceu e distribuiu umas caixas de
cerveja para o btl. mas além de ser a 1ª vez, eu ainda tive oportunidade de ouvir
um sub. dizer para o correspondente que seria bom tirar uma fotografia de nós que
ali estávamos cada um com uma garrafa o que daria uma ótima reportagem, o S.E.
em pleno front e pleno ataque distribuindo cerveja para nós, ao que o corresp.
respondeu que já havia tirado em outro local, assim mesmo tiraram ali uma na
qual não tomei parte porque não sou objeto de propaganda comenta-se os apertos
por que passamos durante o nosso ataque e sobre o avanço da notável 10ª D.M.A.
que ataca fazendo junção conosco pelo flanco direito. logo nas 1ªs horas de ataque
ele não conseguiram andar um passo si quer, apesar de apoiados pelas aviação
tendo perdido cerca de 500 homens. 5 horas da tarde, o inimigo tenta novo contra-
ataque, recebemos ordem de abrirmos fogo o mais rápido possível e atirarmos
quantos tiro tivéssemos o que fizemos durante cerca de meia hora, logo recebendo
ordem de cessar por que os 1ºs presos feitos pelo 6º disseram que nossos tiros os
apanharam de surpresa causando grandes baixas e completamente desorganizados.
estive no PC da Cia e fui informado pelo Louzada que o F. Bressani havia morrido
ontem em conseqüência de ferimentos recebidos ontem. bem triste, pois a mesmo
de uma semana estivemos conversando, mais que fazer, assim é a guerra.
Morreu também o sgt. Clério vitima das terríveis minas alemãs. calcula-se entre
mortos, feridos e desaparecidos em 150 a 200 homens no btl.139

Antes do início da ofensiva da Primavera os generais comandantes a qual a FEB


estava subordinada emitiram mensagens de incentivo a todos os seus homens,
proclamando a necessidade de esforço total para aqueles que poderiam ser os últimos dias de
campanha. Em sua ordem do dia especial, o Marechal Alexander, Supremo Comandante
Aliado no Teatro de Operações do Mediterrâneo, assim se dirigiu às suas tropas:

________________
139 – Diário de Guerra de José Maria da Silva Nicodemos.
QUARTEL DAS FORÇAS ALIADAS
ABRIL DE 1945
ORDEM DO DIA ESPECIAL
Soldados, marinheiros e aviadores das forças aliadas no Teatro de Operações
do Mediterrâneo
A vitória final está próxima. As forças alemãs já estão cambaleantes e só
necessitam de um golpe poderoso para ficar para sempre fora de combate. Chegou
o momento de nos lançarmos à ultima batalha que terminará a guerra na Europa.
Sabeis o que nossos camaradas estão fazendo nos campos de batalha de Leste e
Oeste. É agora a nossa vez de executar nossa missão decisiva. Não será um
passeio; um animal mortalmente ferido, ainda pode ser muito perigoso. Deveis
preparar-vos para uma luta difícil; mas o fim é bastante certo e não há a menor
sombra de dúvida sobre ele. Vós, que venceste todas as batalhas em que vos
empenhaste, vencereis também esta última. Lançais-vos, então, ao combate com
confiança, fé e determinação de liquidá-lo. Deus vos guie e boa sorte para todos
vós.

H.R. ALEXANDER
Field Marshal
Supremo Comandante
Aliado no Teatro de
Operações de Mediterrâneo140

O comandante da FEB também redigiu sua mensagem diretamente aos seus


subordinados:

QUARTEL GENERAL DA 1ª DIE


Soldados do Brasil
A hora decisiva chegou. O fim do nosso inimigo se aproxima com extrema rapidez.
A arrogante Alemanha, invadida por leste e oeste, já não suporta os duros golpes
que lhe assestam os bravos Exércitos das Nações Unidas. Na Itália, onde nos
trouxe o compromisso militar e o desejo indiscutível de participação no conjunto,
que ora faz extinguir o mais tirano dos regimes de todos os tempos, as fôrças
aliadas, sob o comando geral do marechal Alexander, reiniciaram a ofensiva.
A nossa Divisão, que tem sabido cumprir com galhardia as honrosas missões
impostas pelo 4º Corpo de Exército, aguarda o momento de lançar-se ao inimigo. E
quando esta hora for indicada, quero ver os valentes soldados do Brasil, em
ímpetos que o sentimento da honra militar incentiva, atirando-se sôbre o alemão,
com a vontade férrea de não o deixar mais respirar, até a completa asfixia.
Avante, pois. É o último esforço que o Brasil exige de nós. Tenhamos certeza do
êxito, que depende exclusivamente de cada um dos soldados da FEB. A vitória
decisiva já se faz anunciar. Ela, mais uma vez vô-lo digo, depende de cada um.
Saibamos cumprir o nosso dever, único meio de podermos, cabeça alçada,
chegada a Paz, retornar ao nosso País, tão querido, com a convicção firme e
indiscutível de o haver servido com amor e desinterêsse.

JOÃO BATISTA MASCARENHAS DE MORAES


Gen Cmt da 1ª DIE141

_________________
140 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
141 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 431.
Nos dias que antecederam a Batalha de Montese, Zé Maria demonstrava a apreensão
vivida pelos homens à espera daquilo que estaria por vir. Não era mais novidade, para boa
parte daqueles soldados, o combate e suas conseqüências. Perder amigos e viver os terríveis
momentos de um ataque foi uma situação que já havia sido provada por todas as Unidades da
Força, mas nada nesse sentido era simples de se acostumar. A mente sentia a tensão dos
momentos de preparação - tal qual analisamos na patrulha de Ruy - e até com a sempre
presente possibilidade da morte; e o corpo pouco descansava com os deslocamento para o
local de início do ataque, com o pouco tempo para dormir e com o peso do material que
deveria ser carregado, principalmente aqueles que estavam nos armamentos coletivos, como
as metralhadoras e morteiros. Zé Maria também lembrou da perda de Max Wollf, que ainda
vivo, já era uma referência para muitos dos expedicionários. O campo de batalha, tal como
descrito por Zé Maria, é como se fosse uma grande armadilha, pronta a capturar as suas
presas. Há muita escuridão, terrenos difíceis de serem vencidos, minas, mortos, feridos,
armadilhas pessoais e granadas da artilharia caindo a todo momento, perigos que causam mais
angústia e falta de confiança em qualquer homem que se desloque nesta área.
Nesta batalha, foram mortos muitos amigos de nossos entrevistados, em especial o
sargento Clério Bortollo, que também foi convocado no 12º RI, em Juiz de Fora. Sua morte
foi singular, pois segundo Tonhinho, ocorreu em decorrência do deslocamento de ar
provocado pela explosão de uma mina, que foi acionada por um prisioneiro alemão, ao tentar
fugir do grupo que o escoltava.142
Em 14 de abril a 10ª Divisão de Montanha e a FEB iniciaram seus ataques. Na zona
dos americanos a progressão foi lenta e difícil, como relatou Zé Maria, o que poderia indicar,
naquele momento, boa capacidade defensiva dos alemães, aliada às dificuldades do terreno.
Os três batalhões da 10ª Divisão tiveram, somente neste dia, 533 baixas143, entre mortos,
feridos e desaparecidos, e pouco havia a comemorar do ponto de vista tático.
A 1ª Divisão Blindada também enfrentou dificuldades na sua ação, já que o uso de
blindados em sua região acabou não sendo positiva, devido ao terreno impróprio para o
deslocamento. O primeiro dia já se mostrava que o começo da ofensiva da Primavera não
seria realmente um “passeio”, como dissera o Marechal Alexander.
No dia 14 de abril, após a indispensável preparação do ataque da artilharia, o I e o III
batalhões do 11ºRI iniciaram o ataque às 10:15h, procurando ocupar as elevações próximas à

____________________
142 – Depoimento [Out. 2004]
143 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 422.
localidade e que proporcionariam o avanço dentro de Montese. Os alemães responderam com
a costumeira agressividade, e um dos pelotões, apenas, não conseguiu atingir o seu objetivo
inicial, o próprio comandante de pelotão, tenente Ary Rauen faleceu na ação.144 O II batalhão
do 1º RI se deslocava à retaguarda na reserva.
Após essa ação inicial e reajuste do dispositivo, os batalhões reiniciaram o ataque às
1330h, o III batalhão foi o escolhido para a missão principal e para isso contava com alguns
carros de combate norte-americanos, que são essenciais neste tipo de missão, por serem uma
proteção para a progressão dos homens à pé.
As companhias do III batalhão adentraram na localidade de Montese e foram recebidas
por uma forte defesa, com tiros vindos do interior das casas e do topo das elevações
circunvizinhas. Campos de minas também foram importantes obstáculos, a ponto de
causarem, em dois dos pelotões da FEB, 44 baixas, com três mortes145. Apesar das
dificuldades, antes do escurecer do dia 14 de abril, Montese já estava nas mãos dos
brasileiros. Diferentemente do que conta a literatura militar sobre essa batalha, não foi na
conquista da cidade em si que houvera as maiores dificuldades para a Força, já que o último
ataque durou das 1330h até aproximadamente 1800h, ou seja, menos de 5 horas de
progressão, com muitas baixas. É claro que baixas são negativas em qualquer ação, mas o que
viria após mostraria que o pior estava nas conquistas das elevações que dominavam a
localidade, as alturas 927, 888 e Montelo. Outras elevações próximas também foram duros
objetivos, como o morro de altura 778, cuja missão para conquista foi dada ao II batalhão do
1º RI. Nesse local, as companhias receberam uma violenta carga de tiros de todos os calibres,
ocasionando a morte do jovem aspirante Mega, militar que meses antes saíra da Academia
Militar para lutar na Itália. Mega, por sinal, tornou-se um símbolo para os jovens cadetes
daquela Escola.
Os fogos de artilharia e morteiros alemães continuaram a bater a Unidades brasileiras
durante toda a noite de 14 para 15 de abril, ocasionando baixas e afetando o reajustamento do
dispositivo que reiniciaria o ataque na manhã de 15 de abril, para conquistar as elevações após
a área de Montese. Os brasileiros observaram que habitantes da região, já acostumados e
indiferentes aos horrores da guerra, mas também sem opção de refúgio em local seguro,
permaneceram em áreas próximas à zona de ação da FEB, assistindo o ataque, como se os
tiros não fossem capazes de causar ferimentos e destruição.146
__________________
144 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 424.
145 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 426.
146 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit.
Em 15 de abril o ataque prosseguiu com o objetivo principal de conquistar os morros
de altura 927, 888 e Montelo. Mesma apoiada por carros de combate, a 7ª Companhia do III
Batalhão do 11º RI teve dificuldades em progredir para conquistar 927, chegando próximo
de cumprir seu objetivo, mas com a forte resistência perdeu um de seus pelotões devido às
baixas e permaneceu detida na encosta da elevação. A 8ª Companhia e a 9ª, esta reserva do
Batalhão, também não tiveram sucesso, o que levou ao Comandante da Divisão a utilizar o III
Batalhão do 6º RI, que estava na reserva da Divisão. Este Batalhão também não obteve
sucesso, pois não conseguiu ajustar seu dispositivo devido ao forte bombardeio.
A 7ª Companhia do 11º RI, mesmo com os problemas enfrentados foi motivo de
elogios, pois permaneceu na posição, não recuando para dar terreno ao inimigo. Nesse dia
somente a 2ª Companhia do 11º RI e a 2ª Companhia do 1º RI tiveram algum sucesso em suas
progressões.147
No dia 16, terceiro dia desta Batalha, o ataque prosseguiu com problemas nas
comunicações entre o Comando e a tropa, baixas e cansaço dos homens. Era uma situação
delicada para se obter qualquer sucesso naquelas ações. A 3ª Companhia do 11º RI, por
exemplo, estava com metade de seu efetivo fora de combate, o que foi determinante para que
se retirasse da zona de ação, mas as outras frações dos batalhões não estavam melhores. O 1º
RI, ainda em ação, teve 94 baixas, entre elas, um capitão, dois tenentes e treze sargentos148,
todos elementos importantes na liderança e na condução dos homens. Com tantas
dificuldades, o comandante do 6º RI, responsável pelo ataque daquele dia, resolveu
realizar mais reconhecimentos e preparativos maisdetalhados, adiando o ataque para 17 de
abril. Com a gravidade da situação foi acertado que o novo ataque só seria realizado após
forte preparação de Artilharia e com presença da Força Aérea.
Com todos preparativos feitos, as Unidades entraram em posição para iniciar o ataque
na manhã de 17 de abril, 4º dia de combates. No entanto, veio a ordem de suspensão da
ofensiva, pois a 10ª Divisão progredia com sucesso ao lado direito da FEB e com isso
ampliava sua zona de ação, não necessitando que os brasileiros continuassem na ataque de
uma posição que já havia sido ultrapassada pelos americanos149.
O objetivo de conquistar Montese havia sido concluído, mas era importante a
conquista dos morros 888 e Montelo, para que essa conquista facilitasse a progressão da 10ª

____________________
147 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 429.
148 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 430.
149 - MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 177.
Divisão de Montanha, que atacava na zona de ação à leste. A FEB realizava um ataque
secundário, que do ponto de vista tático, deve apoiar àquela tropa que faz o ataque principal,
que é o mais importante. Esse apoio significava deter o inimigo em sua zona de ação para que
ele não reforçasse as tropas inimigas na área da 10ª Divisão.

Fot 55 - Evacuação de ferido em Montese.


Disponível em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em:15 Set 2005.

A ação de Montese não se restringiu apenas à localidade. Mas também às elevações


que a dominavam. As ações realizadas pela FEB foram, em sua maioria, semelhantes às
outras ações nas batalhas anteriores. O ataque à área construída de Montese não deixa, no
entanto, de ser um fato importante nessa campanha, pois em nenhum momento, nos
treinamentos no Brasil ou na Itália, os homens tiveram a possibilidade de atuar em um
terreno nestas características e, que, por sinal, se tornaria o exemplo mais comum nas guerras
posteriores: a guerra em centros urbanos. Aliado a isso, a resistência alemã na zona de ação de
todo o V Exército foi algo de notável. Os alemães lançaram em torno de 3200 granadas de
artilharia150 e outras incontáveis granadas de morteiros, utilizaram campos de minas que
ceifaram muitas vidas e souberam utilizar o terreno de uma forma que impediram a
progressão de duas Divisões, a 10ª de Montanha e a FEB, por mais de três dias, apesar do
tempo suficiente de reconhecimento e planejamento que os aliados tiveram. O resultado foi de
mais de 426 baixas na FEB durante os dias de combate e, no caso da 10ª Divisão de
Montanha, só no 1º dia foram 553. No lado inimigo, a FEB aprisionou 453 alemães, sendo

__________________
150 - MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 176.
que 5 eram oficiais.
Ao final da guerra, que duraria mais alguns dias, ficou constatado que este foi o
momento de maior dor, no que se refere aos mortos e feridos, para os brasileiros. No entanto,
foi confortador verificar que a evolução técnica e tática da FEB era uma realidade, já que as
dificuldades se apresentavam cada vez maiores, mas a resposta dos homens era firme e
segura.
Entre o dia 17 ao dia 22 de abril, o V Exército realizou a ação tática denominada
aproveitamento do êxito, que consiste em manter a impulsão do ataque procurando ganhar
terreno e destruir a tropa inimiga, que já estava em um movimento de retirada do campo de
batalha. A FEB realizou um reajuste de suas tropas, procurando lançar as Unidades mais em
condições de avançar em direção ao Norte, no vale do Pó. Foram realizadas ações de
reconhecimento ao longo do leito do rio Panaro com carros de combate da cavalaria brasileira
e com caminhões transportando a infantaria, procurando retomar o contato com o inimigo,
que nesse momento só era sentido por meio de esparsos tiros da artilharia, pelas destruições às
pontes, mortos deixados para trás, pelos prisioneiros que iam sendo capturados e pelos
campos de minas e booby-traps que foram sendo encontrados. A finalidade era executar uma
“limpeza” naquele eixo do Panaro. Neste período foram capturadas a Vila de Zocca e a
localidade de Vignola, já próximas do vale do rio Pó, onde se encontrava a 1ª Divisão
Blindada, que por suas características era muita mais veloz nesse tipo de ação. Mesmo tendo
encontrado pouca resistência nestes quatro dias, mais especificamente nos núcleos de
retardamentos feitos pelos alemães, a FEB teve 10 mortos, 70 feridos e 2 desaparecidos,
mesmo que a maioria destes fosse atingido por minas, isso indica o poder de reação ainda
presente nas tropas alemães. O V Exército neste período conseguiu ocupar diversas cidades ao
longo do rio Panaro, inclusive a importante Bolonha, que foi entregue sem grande resistência.
Mais de 30000 alemães foram aprisionados na zona de ação do V Exército nesse período.
À medida que encontravam habitantes livres das tropas nazistas, os brasileiros eram
recebidos como libertadores daquele povo, bem como acontecia com os americanos do V
Exército e os outros soldados que combatiam na Itália.151 Era o fim da Guerra que se
aproximava. Para aquele sofrido povo, uma nova fase de suas vidas se iniciava naquele
momento, teriam que reconstruir seu local e suas vidas, ambos arruinados pelas destruições de
seus lares e bens e pelas mortes de familiares, mas pelo menos estavam livres.

_________________
151 – Entrevista de Antonio de Pádua Inham, concedida em 01 de outubro de 2004.
26 de abril de 1945
Saímos cedo de Puianello e, pelas onze horas, chegamos a S.Polo d’Enza, cidade
distante uns dez quilômetros, ficando alojados em uma escola pública. No
percurso, anotei a passagem por Montecavaloro, Rocale, Quatro Castella e
Monticelli. A entrada na cidade, foi um verdadeiro delírio popular. Passamos entre
as alas do povo que nos aplaudia e nos oferecia vinho e flores. Foi meio difícil
segurar os homens nas viaturas pois eles queriam pegar as garrafas de vinho, com
risco de despencar dos caminhões. 152

E assim foi acontecendo em cada vilarejo que os homens passavam, o povo aclamava-
os como os libertadores depois de anos de jugo alemão em uma guerra sem sentido,
principalmente para os italianos, atraídos pelas palavras de seu ditador e pelo exemplo infeliz
vindo das pretensões da Alemanha.
Em 22 de abril, o General Mascarenhas de Moraes recebia ordens do IV Corpo de
Exército para que a FEB avançasse no vale do rio Pó na direção NW para bloquear as saídas
das montanhas dos Apeninos para o N e para NE, evitando a retirada das tropas alemãs
remanescentes, para as fronteiras da Áustria e Suíça.
A missão, à primeira análise, parecia simples, no entanto, a intenção de bloquear
possivelmente três Divisões inimigas, a 114ª, a 232ª e a 334ª, em uma grande faixa de limites,
com diversas estradas a serem utilizadas, e até os leitos dos rios que se encontravam já secos,
se tornava uma tarefa difícil. Além disso, a FEB não possuía uma quantidade de transportes
suficientes para levar a infantaria rapidamente à região de bloqueio, já que seus meios
automotivos estavam espalhados por toda a área de atuação, inclusive na retaguarda, com a
Logística. A solução foi a Artilharia ceder seus caminhões para esse fim, com o problema de
perder o apoio dos seus canhões e obuses caso fosse necessário153. Então o grupamento
organizado para esta missão era formado pelo Esquadrão de Reconhecimento e os batalhões
do 11º RI, do 6º RI e do 1º RI.
Com pouca resistência, os brasileiros chegaram aos seus locais de partida, para iniciar
a perseguição no dia 24 de abril. O III do 11º RI estava com o Esquadrão de Reconhecimento
em Marano do Sul; o III do 6º RI em Magreta; o I do 1º RI em Formígine; o I do 11º RI estava
em Cá di Sola; o II do 6º em uma região da margem oposta do rio Panaro; e o I do 6º RI
estava entre Monte Guerro e Rochetta.154
O Esquadrão de Reconhecimento teve o importante papel de levantar informações da
região à frente da zona de ação das Unidades, procurando saber da localização das tropas
________________
152 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
153 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 192-193.
154 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit p. 445 a 451.
das tropas alemãs e locais de passagem dos brasileiros. O Esquadrão possuía muito boa
agilidade devido ao seu emprego tático de veículos mais leves e com pouco efetivo, menos
apta, no entanto, a se engajar no combate. Ao longo desse dia, italianos continuavam a receber
os brasileiros com festa, e prisioneiros nazistas, desertores ou capturados, iam sendo cada vez
mais freqüentes nessa zona de ação.
No dia 25, o Esquadrão rumou para a localidade de Collecchio, também para
reconhecimento, e ao chegar entrou em choque com forte guarnição alemã. O Comandante do
esquadrão, o Capitão Plínio Pitaluga, resolveu adentrar na localidade para verificar qual o
valor e natureza do inimigo que ali estava. As suas dificuldades tornaram-se maiores com a
defesa realizada por tiros de carros de combate alemães. O Comandante da Força enviou o 6º
RI para reforçar o Esquadrão e depois enviou também o II do 11º RI.
Às 1930h o ataque iniciou com a finalidade de vencer a resistência que impedia o
prosseguimento do avanço das tropas em direção ao noroeste da Itália. A manobra pensada
pretendia cercar a cidade, identificar onde eram os pontos de resistência e anula-los. Houve a
informação de prisioneiros, de que a resistência era mais consistente em um castelo chamado
de Villa M. Padori, próximo a uma estação de trem, onde vinte alemães barravam as tropas.
Esse grupo possuía morteiros, metralhadoras e boa quantidade de munição. A resistência
nessa característica é feita com a intenção de deter avanço do oponente e proporcionar tempo
para a fuga da maior parte da tropa. Os homens que ficam para trás devem possuir veículos
ágeis para também se retirarem do local ou então cairão vítimas na ação.
Com a notícia do valor do inimigo e com a escuridão da noite, o Comandante do II
Batalhão do 11º RI, o major Ramagem, decidiu esperar o amanhecer do dia para reiniciar o
combate, já que havia dificuldades na coordenação das tropas brasileiras.
Às 0600h de 26 de abril o ataque foi reiniciado e os alemães reagiram ao avanço das
companhias de fuzileiros, que permaneceram detidas sem condições de progredir. Um
soldado, Mateus do Santos, conseguiu subir as paredes da torre de uma Igreja para visualizar
de onde vinham os fogos de morteiros que atingiam as tropas. Fazendo isso pôde informar a
localização do inimigo, que foi neutralizado pelos fogos de morteiro brasileiros.155 Com essa
resistência anulada, as Unidades avançaram pela localidade de Collecchio, com fuzileiros e
carros de combate, fazendo prisioneiros e capturando materiais. No castelo, o grupo de vinte
alemães retirou-se do local, desistindo assim da resistência, que afinal foi proveitosa, já que
atrasou em dois dias a progressão da FEB. A partir disso, foi feito o vasculhamento da cidade

____________________
155 - BRANCO, Manoel Thomaz Castello. A FEB na II Grande Guerra. p. 453.
em busca de mais inimigos e materiais.
Nesse mesmo dia foi informado que havia pequenos grupos de soldados alemães
fugindo pela região de Fornovo di Taro e Sala Baganza, levando os brasileiros a lançarem
mais unidades em seu encalço, entre essas Unidades estava o III batalhão do 11º RI, de Zé
Maria:
(...) como eu fiquei sabendo, foi o seguinte: ainda, graças a Deus ainda é vivo, deve
estar com 90 anos, o tenente Renato Pitanga Maia, ele era um oficial da ativa,
extraordinário oficial, tudo quanto era soldado respeitava ele demais, ele era do
primeiro pelotão de metralhadora da minha companhia, então num determinado
momento, já no vale do Pó, na perseguição ao inimigo, quando os brasileiros foram
desviados do rumo norte, pelo Comando Americano, nos colocaram então, ao invés
da gente ir sempre em frente colocaram uma pouco à esquerda, no sentido tático de
impedir a passagem das tropas alemãs que vinham da zona do mediterrâneo, no
sentido de pegar ao Alpes Suíços, os Alpes Franceses, aquelas montanhas aí para
atravessar pra Áustria por exemplo, então nós fomos desviados, então, o rio for?
vem aqui assim ao invés de nós ir em frente para o lado de lá, os americanos
colocaram nesta direção aqui, então num determinado dia já bem...., Nossa
Senhora, já bem além de, muito além de Montese, muito além, já estávamos no
vale do Pó mesmo eu participei de uma patrulha motorizada comandada pelo
tenente Pitanga, 3 jipes e ele comandando, mais um sargento, mais dois cabos, um
dos cabos era eu, e os soldados equipados com armamento individual,
metralhadora ponto 30, nós fomos numa estradinha secundária, de repente nós
atingimos uma pequena subida, nesta subida ele deu sinal de alto, aí os 3 jipes
pararam, como nós estávamos do lado de cá deste morrinho, não via nada, coisa
nenhuma, nós desembarcamos, ao desembarcarmos nós estávamos tão perto da
crista do morrinho, e a curiosidade nos levou a olhar o que tinha do lado de lá,
quando nós olhamos do lado de lá... a uns poucos quilômetros além de onde nós
estávamos uma pequena estrada de asfalto, os alemães recuando! Não existe nos
escritos militares nada, nada sobre este dado que eu estou passando pro senhor, eu
mais esses soldados, mais esses sargento e o tenente Pitanga Maia fomos os
primeiros brasileiros a entrar em contato com a 148º divisão de infantaria alemã
que depois, poucas horas depois, se renderam. Havia viaturas, bicicletas e eles
andando. A gente não podia fazer nada porque nós éramos quinze homens, sei lá, 5
em cada jipe, vamos dizer nós éramos 15 homens. Então o tenente Pitanga pensou
em como informar a nossa retaguarda, o comandante da companhia ou diretamente
ao comandante do batalhão, nisso que nós estávamos ali naquela coisa, atrás de
nós fez um barulho de viatura, ninguém se apavorou que era viatura nossa,
realmente, de repente, surgiu 1,2,3,4,5 jipes brasileiros equipados por militares,
quando eles chegaram eles não tinham passagem, pois o nosso jipe estava no meio
do caminho, eles pararam, então nós estávamos no ‘barranquinho’, viemos descer,
prá perto das viaturas prá quem é que estava chegando, quando nós estávamos
chegando quase no primeiro jipe... o cara que estava sentado ao lado do motorista
no primeiro jipe: “ô Pereira, o que que você está fazendo aí?” Nossa Senhora,
arregalei o olho é o segundo tenente Elmo Levi de Mendonça, filho da diretora do
grupo escolar onde minha mãe era professora e onde eu havia feito o primário, o
tenecião que alegria, que tenente que nada “ô Elmo” “ô Pereira, como tá a saúde,
família?” vi logo em seguida o major Henrique Oreste do 6º RI, eles eram do 6º, o
Elmo era do 6º, primeira vez que eu encontrei e a última, depois só encontrei ele
uma vez em São João Nepomuceno, né?! nunca mais encontrei o Elmo, porém
fiquei sabendo por terceiros do falecimento dele como coronel reformado, lá no
Rio de Janeiro. Bom aí, chegou o major Henrique, aí o tenente Pitanga foi passar o
comando e expôs prá ele, aí eles chegaram a ver ainda algumas viaturas, aí então
tinha uma assim do lado, prá cá tinha um pequeno povoado, uma pequena aldeia,
foi onde surgiu a história do padre que foi o intermediário, eu esqueci o nome dele
agora, eu conversei com ele, nós ainda fomos antes de entardecer, vamos colocar
assim, nós ficamos ali batendo papo à toa, e o major Henrique é um detalhe muito
interessante: na época eu fiquei sabendo que o 6º RI que ele, Henrique Oreste era
comunista... meu Deus do céu, isso já é o lado político eu fico até impressionado
com isso, o major é comunista, lá mesmo eu fiquei sabendo, bom, o tenente
Pitanga passou para ele o comando e ele tomou as providências, comunicou à
retaguarda, do 6º, nesta altura o 6º nos tinha ultrapassado o nosso 3º, sabe como é
esse negócio, já nos tinha ultrapassado, então eles assumiram o comando, então
não existe nenhum escrito sobre a FEB pela rendição da divisão, de forma que os
primeiros brasileiros a esbarrar com eles, a encontrar com a retaguarda foi esse
grupo (..)156

Zé Maria e a patrulha que ele integrava, e segundo os documentos de nossa pesquisa,


foram realmente um dos poucos homens da FEB que testemunharam a retirada do Exército
Alemão do campo de batalha. Eles viram os inimigos pelas costas, o que de fato pouco havia
acontecido naquela Guerra, mesmo nos momentos mais inglórios, para os alemães. Mas
aqueles últimos dias de abril mostrariam que seriam os piores para todo aquele povo e sua
antiga formidável máquina de guerra.
Em Medesano, o Esquadrão capturou quase 1000 alemães, que após pouca resistência,
se renderam. As estradas mais importantes estavam monitoradas, bastava identificar a
localização do inimigo para pôr fim às últimas resistências alemãs, a Batalha de Collecchio
estava encerrada com muitos prisioneiros feitos, pertencentes à 148º Divisão de Infantaria, e
poucas baixas na FEB. Desertores aumentavam cada vez, em uma noite, Toinzinho foi
surpreendido por um deles:

Teve uma vez, eu estava instalando uma linha telefônica, meia-noite, quando eu
olho para trás, tinha um alemão, atrás de mim, com um porrete, eu virei pra ele, ele
largou o porrete, eu voltei para a companhia e ele veio me acompanhando e eu
entreguei ele para o capitão, tava morrendo de fome, coitado! Pegou um pão com
manteiga e comeu.157

________________
156 – Depoimento [Dez.2007].
157 – Depoimento [Out. 2004].
4.5 A vitória e a ocupação

Em 27 de abril o General Mascarenhas de Moraes recebeu ordem do IV Corpo para


que articulasse a 1ª DIE no sentido de impedir que a 148º Divisão de Infantaria alemã
transpusesse o rio Pó e escapasse para o norte do País.
A missão de impedir a fuga do inimigo foi dada ao 6º RI que recebeu ainda as
informações de que poderia haver em torno de 2000 homens na região de Fornovo di Taro. O
Regimento deveria realizar uma ação convergente para forçar a rendição desses homens ou
destruir a 148ª Divisão de Infantaria.
Ainda em 27 de abril, foram identificadas colunas de marcha na região de Neviano di
Rossi, indo em direção à Respício, cidade próxima à Fornovo. À noite, os brasileiros se
preparavam para a ação do dia seguinte que poderia determinar um duro golpe para o Exército
inimigo, quando um religioso, D. Alessandro Cavalli, padre de Neviano di Rossi, voluntariou-
se para ser mediador entre os brasileiros e alemães. A idéia foi aceita e o padre levou uma
carta dando um ultimato às tropas nazistas158. A resposta dos alemães foi evasiva, nitidamente
para ganhar tempo. Em 28, às 1300h, o 6º RI iniciou o ataque. A ação conseguiu deter a fuga
dos alemães, com muitas baixas de ambos os lados, até que às 2200h, três oficiais alemães,
entre eles, o major W. Kuhn, Chefe do Estado-Maior da 148ª Divisão de Infantaria, chegaram
às tropas brasileiras para negociar com o Coronel Nelson de Melo, comandante do 6º RI,
evitando novos combates. Utilizando um intérprete brasileiro, Major Kunh declarou que a
148ª Divisão de Infantaria era formada por 16000 homens, 4000 animais e 2500 viaturas,
sendo que 1000 motorizadas. Havia homens da Divisão Bersaglieri Itália e também da 90ª
Divisão Panzer. Kunh informou também que 800 homens deste grupamento estavam feridos e
necessitavam de socorro imediato159.
O General Mascarenhas de Moraes foi informado da situação e ficou acertado que a
partir das 1200h do dia 29 de abril, as tropas alemãs deveriam se dirigir ao Posto de Coleta de
Prisioneiros, que foi organizado em Scodogna e Segalara. As primeiras unidades que
chegaram revelaram o tom solene que seria visto em toda a rendição do Exército alemão:
homens em ordem de marcha, disciplinados e ostentando suas insígnias. Chegavam unidades
com inúmeros canhões, armas anti-carros, morteiros, canhões antiaéreos, tropas hipomóveis e
até equipadas com bicicletas. Todas com boa quantidade de munições160.
___________________
158 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 459.
159 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 208 a 210.
160 – MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p. 210.
Às 1830h daquele dia se apresentava o General Mário Carloni, italiano, comandante
da Divisão Bersaglieri, juntamente com 18 oficiais do seu Estado-Maior. Um tesoureiro
italiano entregou a quantia de 6000000 de liras que foi despachado para o Comando do V
Exército.161
Os alemães se negavam a se render aos partigiani, os guerrilheiros da Itália, fazendo-o
apenas às tropas regulares, e o faziam dentro dos acordos internacionais de proteção aos
prisioneiros de guerra, que garantia proteção, cuidados médicos, alimentação, entre outros
direitos. Os partigiani, por sinal, foram os primeiros a liberar várias cidades do norte do país,
com a brutal queda de Mussolini e todo o aparato fascista, em 25 de abril. A fúria do povo foi
avassaladora, com a execução sumária de todos os assessores do ex-ditador. Os meses
posteriores foram de grande perseguição aos simpatizantes dos nazistas e seguidores de
Mussolini.162
O grosso da 148ª Divisão de Infantaria se rendeu no amanhecer do dia 30 de abril,
composta por uma imensa coluna de viaturas e animais, trazendo homens e armas da
Infantaria e Artilharia. Mais uma vez, as tropas nazistas se apresentaram com um “alto
padrão de disciplina e invejável grau de instrução”163.
Ao final do dia apresentava-se o seu comandante, o General Otto Fretter Pico,
juntamente com 31 oficiais, que foi recebido pelo próprio General Mascarenhas de

Fot 56 - Mussolini, esposa e seus seguidores executados em Milão. CPDOC/FGV. Arquivo Cordeiro
de Farias. Disponível em www.cpdoc.gov.br/acessus. Acesso em: 25 Jan. 2008

__________________________
161 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 463.
162 – DAVIES, Norman. Op.Cit. p. 216.
163 - MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op.Cit. p 210.
Moraes. Coincidentemente, neste mesmo dia, Adolf Hitler dava fim a sua vida em seu
buncker em Berlim, sem saber do fim dos combates na Itália164. Geraldo estava nas
proximidades do local em que a 148ª Divisão se rendia à FEB:

Eu vi quando os alemães estavam se entregando, eu fui chamado pra ir lá buscar


um corpo. Eu vi! Não estou mentindo, vi uma parte daquela famosa divisão
entregar-se. Um negócio...fico até arrepiado. Jogava o armamento de um lado e o
material de comunicações de outro. Aí eu ví, vieram três carrinhos pequenos,
pararam e o da frente parou, o motorista desceu, abriu a porta para o oficial descer,
estenderam o braço, fizeram o cumprimento deles para depois se entregar. Aquilo
arrepia! 165

Nas palavras de Geraldo sentimos a emoção do homem simples de Minas Gerais que
integrou a mais modesta das Divisões do V Exército. Modesta pelos números dos efetivos
de seus homens e pelas modestas possibilidades de autonomia que não deixaram de
existir em toda a Guerra. Mas naquele momento, o mais preparado dos soldados que
combateram na Grande Guerra entregava seu armamento solenemente aos mulatos brasileiros.
O relato de Geraldo, segundo sua própria visão, ganha contornos de um testemunho histórico,
na medida em que precisa enfatizar que não está mentindo ao descrever a rendição “daquela
famosa divisão”.
“Eu vi!”. Exclama Geraldo, para deixar claro que seus olhos e sua memória trazem
uma visão da história da Segunda Guerra, frisando que sabe daquele fato não por ouvir dizer o
que acontecera naquele dia de abril na Itália, mas sim que ele próprio viu!
A imagem do oficial nazista realizando o gesto característico de saudação do III Reich
é retratada como uma fotografia de uma cena inesquecível que cristalizou em sua memória.
Naquele momento do relato, esta imagem é novamente resgatada para ganhar auras de
fato histórico. Para o febiano, era o poderoso Exército da Alemanha que a sua frente se rendia
para o seu País, e se rendia de forma solene, com pompa e dignidade. “Aquilo arrepia!”
segundo Geraldo, “arrepiava” pela emoção de estar naquele instante presenciando o inimigo
famoso derrotado e “arrepiava” porque era o final da guerra que se aproximava com aquele
evento. Mesmo após tantos anos, aquilo que presenciou ainda é motivo de emoção para
Geraldo.
A FEB, nestes dias que culminaram com a rendição alemã, perdeu 5 homens e teve 51
feridos, em ações para evitar a fuga das tropas inimigas, além de combater uma insurgência de

__________________
164 – SHIRER, William L. Ascensão e queda do Terceiro Reich. p. 686 a 688.
165 – Depoimento [Out.2004].
um grupo de alemães contrários à rendição.
Em toda a Itália, as tropas inimigas se rendiam aos aliados pela impossibilidade de
retirada completa para a fronteira, o que poderia resultar em uma saída para a Alemanha,
apesar de estarem informados da situação insustentável do seu país com o avanço sistemático
dos americanos e, principalmente, dos russos.
Os brasileiros permaneceram em movimento para barrar todas as saídas da Itália,
enquanto se desenvolviam as atividades de rendição da 148ª Divisão, mas os combates já não
existiam. Em 02 de maio as hostilidades foram encerradas na Itália, a guerra permanecia ativa
em parte da Europa, mas as tropas nazistas iam se rendendo em cada Teatro de Operações, até
que no dia 07 de maio, o Almirante Dönitz, sucessor de Hitler, assinara a rendição
incondicional da Alemanha, que a partir da zero hora do dia seguinte já não poderia ser
atacada166.
Era fim do III Reich. Zé Maria se recorda bem do momento em que tomou
conhecimento do fim da Guerra:

(...) aí nós estávamos da cidade de Novar, já tinha ultrapassado Versegle, outra


cidade bastante importante no norte da Itália, então eu tava outra vez, junto com o
tenente Pitanga numa patrulha, então nós atingimos um pequeno córrego com uma
ponte, e logo depois da ponte já existia umas casas era uma aldeia também, dali o
senhor olhava assim e via os Alpes, a olho nu, não precisava de binóculo nem
nada, à esquerda um pouco prá frente era a localidade de Suza onde os brasileiros
fizeram a junção com os franceses, era Suza, então nós já estávamos quase, aí eu
fiquei do lado de cá com o jipe né, com a metralhadora e o jipe e 3 soldados,
motorista e o tenente foi até mais um pouco prá frente, 5 horas da tarde mais ou
menos, aí tamo ali batendo papo e coisa, por conta da ponte, lógico, até um pouco
ele voltou e digamos assim, ou nós vamos ocupar a aldeiazinha ali e vamos mandar
mensagem prá trás prá companhia, onde nós estamos porque eles estavam prá trás,
nisto ele estava naquele negócio assim e chegou um mensageiro, chegou um
mensageiro e entregou para ele, uma comunicação que estavam encerradas as
hostilidades, não fossem disparados nem um tiro mais aí nós pegamos as armas
individuais e prá dentro d’água brbrrrrrrr......pápápápá, granada de mão foi aquela
farra, qualquer coisa dali prá frente era preso. Aí começamos a voltar e ao voltar a
gente já foi parando nas casas de camponeses, aí eles começaram a ficar sabendo,
teve lugar que até ovo cozido eles deram prá nós....até ovo cozido eles deram prá
nós....167

No Brasil, O Globo estampava a manchete: “CHURCHILL E TRUMAN


ANUNCIAM A VITÓRIA”,168 iniciando comemorações no País. A partir daquele momento, a
1ª DIE estaria envolvida na importante missão de ocupar uma parte do território italiano,
___________________________
166 - SHIRER, William L. Op.Cit. p. 693-694.
167 – Depoimento [Dez.2007].
168 – O Globo. Rio de Janeiro. 08 de maio de 1945.
atividade normal em um pós guerra, para restaurar as atividades mais simples do Estado,
como prover a segurança da população, que poderia revidar os sofrimentos contra àqueles
que, de alguma maneira tenham simpatizado com o inimigo ou que tenham se alinhado com o
extinto fascismo, ou proporcionar a infraestrutura mínima para a retomada da vida normal
daquele povo.
A Vitória foi recebida com alegria pela população e pelos soldados, que tiveram
muitas oportunidades de comemorar com as festas organizadas pelo Serviço Especial e pelas
dispensas concedidas pelos comandantes para que os homens pudessem visitar alguns pontos
turísticos da Itália, afinal, o retorno não deveria demorar tanto. Apenas dois dias depois da
rendição da Alemanha, a vida na Europa tomou um rumo bem diferente daqueles dias de
combate, apesar das novas atividades que viriam dentre pouco tempo. Ruy relatou assim em
seu diário:

10 de maio de 1945 – Quinta – feira


Baile da Vitória no clube Brasileiro de Alessandria, que foi instalado pelo Serviço
Especial da FEB. Foi uma festa muito bonita e bem organizada – coisa rara do
SE/FEB – o clube está localizado num antigo palácio, ou coisa assim, que encerra
belos salões espelhados e com decoração antiga e rica. Diverti-me dançando
bastante. Conheci a Luciana, uma das moças convidadas que parece pertencer a
alta sociedade local. Respondi, feliz, às muitas perguntas que ela me fez sobre o
Brasil – acho até que exagerei um pouco....ao despedirmo-nos ela me convidou
para jogar tênis, no sábado, no clube que freqüenta....Eu, heim?
Recebi muitas cartas que respondi. Agora as cartas já chegam mais rapidamente.
Acho que é porque não há mais o que censurar, abreviando assim, o fluxo no
Correio da FEB. Ainda bem.

11 de maio de 1945 – Sexta-feira


Aqui estamos nós neste ramerrão que é a vida de um quartel. Como dizem os
soldados, estamos voltando ao “Caxias”: alvorada, café, formatura matinal,
expediente, almoço, “tora” regulamentar, expediente curto da tarde e toque de
ordem. Aí começa a debandada geral. Cada um procura o que fazer. Os que ficam
no quartel procuram distração: voleiball, futebol, cinema à noite, “cercare
signorine” também e tudo que possa proporcionar um derivativo. Durante o
expediente tratamos de preparar a volta; já recolhemos todo o armamento e em
seguida começaremos a recolher o material de Campanha.
Os meus passeios se limitam aos lugares próximos daqui: Casteleto, San Salvatore
e Casale; assim hoje fui a San Salvatore onde jantei com a “mama” Pascuarelli que
está com a Marinina, pois os pais estão em Torino. Passei rapidamente nos Vescovi
e a família estava em festa: é que chegara um irmão da signora Elena que era
Capelão militar, de uma unidade italiana desmobilizada. Justo motivo! Penso no
dia em que eu chegar em casa. Meu Deus, que felicidade! 169

A missão da FEB na ocupação foi realizar a guarda de alguns serviços públicos e


_________________
169 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
reprimir qualquer movimento que pudesse perturbar a ordem interna no país, como
saques,vinganças, crimes de ordem pessoal, entre outras.
Para isso a FEB foi organizada em três grupamentos; o 1º foi comandado pelo general
Cordeiro de Faria e foi formado basicamente pelo 1º RI e tinha por missão ocupar a região da
Placência; o 2º grupamento foi dado ao comando do General Falconièri da Cunha,
encabeçado pela tropa do 6º RI e ocupou a região de Tortona, Voghera e Castelnuovo; e por
fim, o maior grupamento foi comandado pelo General Zenóbio e ocupou San Salvatore,
Alessândria e Solero. 170
As atividades de ocupação se restringiram às rondas policiais por militares escalados
diariamente pelos regimentos. Ações que não duraram muito, pois a decisão de retorno da
FEB foi tomada já em Junho, com a definição de que o Brasil não tomaria parte das
negociações de Paz, pois havia sido preterido pela França, e que não participaria da
Guerra no Pacífico. Acelerou-se então, a devolução do armamento e material de campanha
que foi utilizado, notícia foi recebida com tristeza por muitos, pois se esperava que este
equipamento moderno seria empregado no Brasil. As viaturas e armamentos aprisionados
quando da rendição da 148ª DI também tiveram que ser entregues aos americanos, para
descontentamento dos comandantes brasileiros.171
A visão exposta por Ruy sobre a rotina da FEB após a Guerra, dá a dimensão do que
foram os últimos dias na Itália: a existência das “tochas”, as chamadas dispensas em que cada
um procurava se divertir segundo sua convicção e oportunidade; o “Caxiismo”, com a volta
do rigor existente antes nos quartéis do Brasil; o marasmo devido o tempo morto nos
acampamentos; e a vontade imensa de voltar para casa.
As “tochas” eram vistas como salutares pelos comandos aliados, como eram quando
os combates ainda aconteciam, mas sempre houve a preocupação com os excessos de alguns
com a bebida alcoólica e com as mulheres, afetando a disciplina e tornando-se um mau
exemplo aos olhos do povo italiano, já tão sofrido pela guerra. Zé Maria relatou que o
Comando para evitar problemas, determinou que somente 10% deveriam ser liberados do
acampamento. O rigor apontado por Zé Maria tornou-se maior, com a previsão de ordem
unida para a tropa, mais formaturas, as punições e a indiferença dos oficiais com os seus
subordinados. Além dos problemas com o já mal falado uniforme, chamado de “Zé Carioca”
por sua cor, a falta de cigarros e chocolates americanos. Sua insatisfação estava clara em seu
diário:
__________________
170 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 273 a 274.
171 – BRAYNER, Floriano de Lima. Op.Cit. p. 511.
10

Hoje o Nabi foi transferido para o deposito só por ter faltado a duas revistas
consecutivas. Sinceramente nosso Exército só serve quando estamos no front,
porque lá a coisa é diferente quando está caindo “ mecha (?)” todos se metem no
mesmo buraco sem distinção de cap a sold.
Não outra coisa a fazer e como já começaram as caxiadas fomos nadar no rio que
fica próximo ao quartel.
Hoje ouvi pelo rádio da cia uma noticia formidável: a FEB está aquartelada em
uma das maiores cidades do N. da Itália em quartel apropriado com instalações
ótimas alem de boas dimensões. Foram punidos hoje por terem faltado a revista o
Marques e o Fadel, o primeiro no regimento este foi o prêmio que tiveram pelos
sacrifícios feitos durante nossa estadia em cita (?).
Elogiaram em boletim vários homens de nossa cia e ainda os oficiais de meu pel.
Devido suas ações no ataque de Montese, não concordo porque eu estive lá e sei
como foi.

11

Hoje pela manhã fomos jogar um foot-baal no pateo resultado: machuquei uma
unha do pé direito a qual está doendo muito. Recebemos uniforme novo?
Interessante dia 9 o bol. Da DI dizia que o aspecto de nossa tropa era desolador,
mais esperava que dentro de poucos dias esperava que com os novos uniformes
nossa tropa seria a 1ª entre todos os nossos aliados aqui na Itália.
Bem, recebemos uniforme, que desilusão: o antigo “Zé carioca” é a roupa com
que os nossos chefes esperavam abafar. (grifo nosso). Os americanos são os Sol
mais bem vestidos que eu já vi, assim dá prazer.
O cap dispensou a revista das 9 ½ para a cia, também pudera era a única a ter
revista. Recebi um telegrama de manhã.

21

Hoje resolvi ir à instrução, mais arrependi, é tanta caxiada que francamente só a


baixa é que nos serve. Logo após a formatura foi lido o Bol, houve então um trecho
interessante: “de ordem do comando do RJ é permitido (aconselhável) recortar o
uniforme de instrução a fim de causarmos melhor impressão no desembarque no
Rio”.
Essa é mesmo boa, nos pagam uns uniformes que são uns verdadeiros abacaxis e
agora vem com essa conversa que só causou repulsa entre nós, pois é uma
vergonha.
28

Foi cortado o cigarro americano, o chocolate e o chicles. Daqui por diante


passaremos a receber cigarro brasileiro. Isto para nós é pior que proibir passeios
pois o cigarro brasileiro nem o italiano aceita (Cine) (??).
Comenta-se os passeios de ontem e o dia passa sem mais novas.

29

Fizemos um desfile na cidade mais foi um desfile sem aclamações, o povo estava
de cabeça baixa talvez nos julgando invasores.
Como já esperávamos como resultado do controle brasileiro hoje já ficamos sem
cigarros. Muito temos que falar.
Jogamos foot-baall e mais um dia se passou.
30

Novamente sem cigarro pelo que vejo se passarmos aqui mais 30 dias acabaremos
por passar fome. 172

Mas o que mais enfureceu Zé Maria foi relatado em depoimento direto:

O Presidente Vargas esteve dentro do navio ancorado no cais do porto, já com a


tropa acomodada dentro do navio para fazer suas despedidas.
Quando ele disse que nós fossemos tranqüilos, porque o governo
brasileiro cuidaria de nós e dos nossos que aqui ficariam. Só que isso é muito
bonito, mas foi tudo diferente. Por exemplo, o nosso certificado de reservista foi
impresso numa gráfica em Milão na Itália, dias antes do navio americano encostar
no porto de Nápoles para nós regressarmos ao Brasil, nós estávamos em uma
estrada próxima a um lugarejo chamado Francolise. Uma manhã, os comandantes
de pelotão, auxiliados pelos sargenteantes, furriéis, etc...colocaram os homens em
forma para que cabos e soldados fossem identificados para licenciar, com dedo
sujo de tinta, fomos com isso chamados de analfabetos, lá na Itália. Então eu digo
que, por acaso o americano não tivesse cumprido o compromisso de colocar o
transporte para retornarmos ao Brasil, eu ainda estaria na Itália até hoje. Porque
fomos licenciados antes da viagem. A entrega de medalhas de campanha foi feita
com o sargento auxiliar passando um gorro com medalhas, onde cada um ia
pegando uma, quando na verdade era para ser em formatura com a tropa. Essa foi a
cerimônia de condecoração do soldado brasileiro que bem ou mal havia cumprido a
maior missão do Exército Brasileiro até hoje. Não tem Guerra do Paraguai, não tem
Guararapes, não tem nada. Eu digo isso com raiva, pois a participação do Exército
Brasileiro não tem comparação na História. Agora dizem que a medalha sem
diploma não vale nada, pois nas ruas das Marrecas, no Rio de Janeiro, eles vendem
estas medalhas. Pois bem, o meu diploma eu consegui receber porque trabalhava
como motorista profissional, “puxava” a gasolina do Rio de Janeiro para Belo
Horizonte e um determinado dia não consegui carregar. E a seleção brasileira
estava desembarcando no Rio de Janeiro por ter sido campeão do Mundo em 1958,
como eu não ia conseguir carregar, eu peguei um ônibus e fui até o Ministério da
Guerra, e lá existia uma Seção Especial para tratar dos assuntos da FEB. Eu
cheguei, me identifiquei e um major com um sargento resolveram minha situação e
meia hora depois entregaram o meu diploma. 13 anos depois.173

Enquanto havia os combates, a união entre comando e comandados era algo belo. A
austeridade sem sentido que havia antes da FEB e foi deixada no Brasil, era coisa do passado.
A FEB foi um exército típico americano, inclusive com o respeito ao homem e sua capacidade
de compreender sua missão e suas responsabilidades. Mas ao que parece, tudo desmoronou
com a rendição dos alemães. E a gota d’água, na visão de Zé Maria e de seus companheiros
de menor patente, foi o licenciamento na Itália, uma ordem vinda do Brasil. Vargas se
preocupava com a existência de uma tropa profissional, bem treinada em combate, com

_________________
172 – Diário de Guerra de José Maria da Silva Nicodemos.
173 – Depoimento [Out.2004].
valores liberais aprendidos com os americanos, sendo incorporada aos velhos quartéis
brasileiros. O pior foi a ordem ter sido assimilada pelos comandantes da FEB e do próprio
Exército. A entrega das medalhas de campanha, feita daquele forma, foi mais uma
frustração, apenas o início dos lamentos dos homens da FEB, já que faltou a pompa e a
dignidade para recompensar os homens com tão importante condecoração.
Ruy em diário escreveu sobre o deslocamento da tropa para a cidade de Fancolise:

(...) a partir do almoço do dia 18 de junho, o quartel está impedido; não se pode
mais sair pois devemos embarcar a qualquer momento. O longo comboio de
viaturas está formado e aguardamos ordens. O primeiro lance será até Bolonha e ali
embarcamos no trem, que nos levará até o local onde aguardaremos o transporte
para o Brasil.
Às primeiras horas do dia 19 deixamos para trás o quartel de Il Christo e ‘ciao’
Alessandria. Levamos rações para quatro dias. A viagem nas viaturas em
comboio decorreu tranqüila em direção à estação ferroviária de Bolonha, passando
por Tortona, Voghera, Piacenza, Fidenza, Parma, Reggia nella Emília e Modena; a
cidade está bastante castigada pelos bombardeios, principalmente ao redor da
estação, que por ser um entroncamento rodo-ferroviário foi muito visada.174

Ruy e seus companheiros chegaram em Francolise em 21 de junho de 1945. Era uma


cidade não muito agradável, com infestação de malária, muito calor e poucos lugares para
arejamento. Estavam de volta à porção sul da Itália, próximo ao porto de Nápoles, uma área
ainda destruída e com muitos problemas sociais. Ruy comenta ainda que apesar do bom
acampamento, a região é formada por uma fina poeira que torna ainda mais insipiente o
ambiente.
Foram dias de espera com poucas atividades para fazer, a não ser aguardar a vez de
embarcar. Americanos e outros povos também se concentravam naquela região, à espera do
retorno para casa. Era um clima de “fim de festa” descrito por Ruy, mas ao menos parte dos
homens era liberada por rodízio para visitarem outros lugares. Roma era uma das cidades
mais desejadas.
Em julho, o 6º RI era o primeiro a embarcar de volta para o Brasil, já que foi o
primeiro a chegar. Alguns oficiais voltariam de avião, o que foi visto como um ato pouco
dignificante175, pois abriram mão de desfilarem com seus homens na chegada ao seu país. A
guerra se tornava uma lembrança cada vez mais distante para cada um deles, era preciso
recomeçar uma outra vida. Seria no Brasil que viveriam uma outra guerra: a de readaptação à
sociedade. Para Ruy e a maior parte dos mineiros do 11º RI, incluindo os nossos entrevista-
_______________
174 – Diário de Guerra do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
175 – Entrevista do Major Ruy no dia 08 de julho de 2005.
dos, a partida só ocorreu em 04 de setembro no US General Meigs, o mesmo navio que os
havia trazido. E assim foi, de escalão a escalão até que os últimos homens desembarcassem no
Rio de Janeiro em 03 de outubro. Junto aos navios americanos, foi enviado o Pedro II, navio
brasileiro, para transportar as esposas e filhos daqueles que havia constituído família na Itália,
nada mais que uma gentileza do governo do Brasil.176
Na Europa, daquele contingente da FEB, só ficariam os seus mortos e sua lembranças.
Neste capítulo, analisamos os pouco mais de oito meses em que a FEB deixou de ser
uma bisonha tropa de latinos-americanos para poderem combater com a mesma
competência apresentada pelos americanos e pelos rivais alemães. Procuramos traçar uma
trajetória de problemas e vexames, para atingirmos um panorama em que a lida na guerra
havia transformado as mentes de milhares de soldados brasileiros. O complexo de
inferioridade, que teimava em aparecer nos momentos de pouca habilidade do Comando,
havia sido domado em grande parte da tropa. Tropa que também se tornava mais crítica de si
mesma e de seus comandantes, um dos frutos da luta pela democracia na qual, muitos
acreditavam.
Com a partida de retorno ao Brasil, a FEB deixava de existir..... pelo menos naqueles
palcos de batalhas.

______________
176 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 497.
5 DE VOLTA AO BRASIL: FESTA E ESQUECIMENTO

No navio General Meighs, após uma viagem sem atropelos pela mesma rota
percorrida na ida, o 1º escalão de retorno da FEB chegou ao Rio de Janeiro no dia 18 de julho
de 1945, conduzindo o 6º RI e outras Unidades que haviam sido as primeiras a chegarem à
Itália. Foram mais 365 dias desde a partida, até que, aquele momento de volta ao lar
acontecesse e se tornasse realidade para todos que sonhavam pelo fim deste grande desafio.
A cidade e o povo se prepararam para que a recepção fosse apoteótica, garantindo
presença e carinho para seus heróis de guerra. Mas com o fim das festas, o que aconteceria
com a vida daqueles que mereceram tamanha distinção nas ruas da Capital?
Este último capítulo tem por finalidades: analisar as consequências da participação
brasileira na 2ª Guerra; como foi a reinserção dos expedicionários naquela sociedade que os
recebia; e quais foram os destinos dos nossos entrevistados após a dissolução da FEB.

5.1 Heróis esquecidos

Quando o General Meighs aportou no cais do Rio de Janeiro trazendo 271 oficiais,
4.660 praças da FEB e os integrantes do 1º Grupo de Caça Brasileiro1 que se empenharam na
maior guerra de todos os tempos, as atenções se voltaram para oferecer a melhor recepção
para esses homens. O centro da cidade do Rio de Janeiro foi tomado por milhares de pessoas
de muitos lugares do Brasil, que tinham por intenção manifestar seu carinho e gratidão por
aqueles que, de maneira decente e correta, lutaram contra um inimigo mais forte e o fizeram
por uma justa razão.
Uma semana antes, o General Mascarenhas de Moraes já desembarcava no Rio de
Janeiro vindo de Recife por via aérea, bem como outros membros da Força que compunham
um destacamento precursor para preparar o desembarque do contingente.
Naquele dia, além das autoridades políticas e militares do País, havia elementos
importantes dentro do contexto de participação da FEB. Estavam lá, em um palanque: Os
Generais Mark Clark, Crittenberger e Donald Brand. No desfile, após o desembarque, estava
uma pequena representação da 10ª Divisão de Montanha, representando o soldado

_____________________
1 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. A FEB na II Grande Guerra. p. 496.
americano, uma merecida lembrança àqueles que sempre tiveram a admiração do soldado
brasileiro.
Neste dia, O Globo publicou em sua primeira página:

TRIUNFAL A CHEGADA DO 1º ESCALÃO DA FEB


O “General Meyghs” transpôs a barra precisamente às 8 horas, sob os
aplausos delirantes do povo.
A baía coalhada de embarcações – Empolgante o espetáculo no mar – A atracação
ao Armazém 10 do cais do Porto, sob a indescritível emoção do público e do
mundo oficial – sobem a bordo os generais Mark Clark e Crittenberger, e pouco
depois, o Chefe de Governo2.

No mesmo dia, em uma edição especial, o mesmo jornal publicou:

DESFILAM EM MEIO AO DELÍRIO DO POVO!


Indescritível o espetáculo de patriotismo e emoção cívica vivido pela cidade na
tarde de hoje – as vibrações da grandiosa massa humana comunicam-se aos
expedicionários comovendo-se até às lágrimas.
Gritam, riem e choram de alegria mães, esposas, irmãs, noivas e filhas. Desfalece
de emoção a venerada genitora do general Zenóbio da Costa – as palavras de
entusiasmo e de felicidade do presidente Vargas – os generais Mark Clark e
Crittenberger falam emocionados e orgulhosos, a O Globo (...)
(...) a emoção que está eletrizando a cidade e se estende arfante pelas águas da
Guanabara, não a experimentam apenas os que vão rever e tocar os que partiram
para a guerra áspera do norte da Itália, e de lá regressaram com as suas cicatrizes e
com as saudações que os atormentam, doravante para senti-la em toda a sua
profundeza e vibração basta que se ame o Brasil e se reconheça como foram seus
filhos que chegam os que melhor glorificaram na luta pela liberdade. É esse
sentimento que desde o alvorecer está fazendo do nosso povo uma família única,
ligando as criaturas mais desconhecidas, os moradores dos bairros mais opostos
por um elo de simpatia invencível, pelo poder mágico dessas comunicações de
alma e de pensamento, pelo milagre dessas solidariedades que improvisa e afirma o
contagio das alegrias comuns, tão forte como a das tristezas e inquietações
coletivas (...)3

A tropa desfilou em meio à população que lotava a Avenida Rio Branco. O feriado que
foi decretado pelo Governo, estimulou para que o povo não poupasse esforços nessas
homenagens, mas não foi somente isso. Pelas palavras dos colunistas do Jornal O Globo, toda
aquela demonstração de orgulho e reconhecimento fora um sinal de que em situações de crise
como foi a 2ª Guerra, a sociedade tende a dar exemplos de união e de patriotismo, apesar de
________________
2 – O Globo. Rio de Janeiro. 18 de julho de 1945.
3 - O Globo. Rio de Janeiro. 18 de julho de 1945.
Fot 57 - A FEB aportando no Rio de Janeiro. Disponível
em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em:20 Fev 2009.

em poucos momentos ter apoiado em sua plenitude, a participação brasileira no conflito.


Mesmo após, com a vitória nos campos de batalha, o reconhecimento não foi duradouro, haja
vista que a visão de uma tropa bem disposta e saudável, suscitou comentários de que a guerra
havia sido tranquila, já que no imaginário popular, guerra significa sofrimento, fome, homens
feridos, mortos e mutilados4. E naquela manhã do dia 18 de julho, eram homens que
apresentavam um aspecto melhor do que quando saíram do Brasil.
O que poderia faltar no entendimento de muitos era que a FEB nunca passou por
privações enquanto esteve ao lado dos americanos e de sua formidável logística, que a sua
situação era favorável, bem como de todos os países aliados, ao contrário dos abatidos
exércitos do Eixo. E por mais inacreditável que fosse, enquanto estiveram no Brasil, muitos
soldados jamais tiveram uma alimentação farta, uma possibilidade de atendimento médico e
odontológico e um salário que lhe possibilitasse algum conforto. E tiveram isso quando
estavam em combate. Mesmo que tivessem que enfrentar os alemães, o frio e a morte, muitos
dos febianos eram melhores tratados do que em suas localidades, estas, que careciam da
presença efetiva do Estado. Juntamente com a tropa que chegou pelo General Meighs, outros
navios americanos e também brasileiros chegaram trazendo viaturas, armamentos que
ficariam para o Brasil e outros materiais bélicos. Eram as embarcações Ruth Lykes, o
Elizabeth Lykes, o Pedro I, o Pedro II, Sweepstake, Mariposa e o Duque de Caxias5.

___________________
4 - SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado.
5 – BRANCO, Manoel Thomaz Castello. Op.Cit. p. 496-497.
Fot 58 - A população recebeu com carinho os brasileiros da FEB. Disponível
em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em: 15 Mar 2007.

Em 17 de setembro mais um escalão chegava trazendo brasileiros. Era novamente o


General Meighs, que trazia agora o 11º RI. Neste dia, Ruy escreveu suas últimas impressões
no diário:

17 de setembro de 1945 – Segunda-feira


Cruzamos hoje a Barra da Baía de Guanabara, exatamente como fizemos a um ano
atrás; só que no sentido inverso. A alegria que se estampa em cada rosto é
indescritível – as fortalezas nos saúdam com os tiros de salva de cerimonial...o
navio responde e cada estampido, a embarcação estremece toda, aumentando as
batidas de nossos corações. Todos estão emocionados e se abraçam, como que
antecipando uma despedida que acontecerá brevemente.
Sentado Aqui no beliche, descrevo estes últimos momentos que passamos no “AP
116 – GEN MEIGHS”. Encerrando este diário da minha participação na II Guerra
Mundial, como integrante da Força Expedicionária Brasileira na Itália.
Em volta do navio circulam muitas embarcações menores que nos saúdam com
faixas, com apitos prolongados e até uma lancha do Corpo de Bombeiros com
esguichos d’água, formando leques de espuma.
Prontos para desembarcar, aguardamos a hora prevista com ansiedade; recolho-me
com meus pensamentos e fico imaginando o que me sucederá de agora para a
frente.... o Exército deverá me dispensar e, voltando a vida civil, começo a
preocupar-me...será que o meu emprego no Ministério do Trabalho, me será
restituído? Voltarei a luta no magistério, correndo colégios à procura de vaga de
professor? Também não descarto a idéia de continuar no Exército, se houver
oportunidade. Enfim, tudo se afigura nebuloso e me causa uma ponta de revolta
íntima, pois a razão, deturpada ainda pelos percalços que sofri, sugere que tenho
direitos especiais e que devo reclamá-los. O bom senso porém, me alerta que os
sofrimentos e os riscos da guerra, foram cobertos pelos vencimentos triplicados,
pela boa alimentação, pelo armamento moderno e pela excepcional oportunidade
de servir à Pátria, que tudo me proporcionou para que eu me criasse, me educasse e
me tornasse um cidadão.
Vou até o convés para acalmar-me e já se pode ver a multidão que nos aguarda no
cais e nas voltas ao “lounge” e escrevo essas palavras finais. Gostaria de fazê-lo
com letras de ouro e no momento, volto o meu pensamento para Deus; agradeço-
lhe do fundo do meu coração, por me ter protegido todo esse tempo e rendo-lhe
graças pelas vitórias que alcançamos; peço-lhe pelo repouso eterno dos
companheiros mortos, da nossa 4ª Companhia: Sgt MIGUEL, Soldados AMÉRICO
ROCHA, COSTA, NOGUEIRA, CARMO, BORGES, JAMIL E SIMIÃO –
Revisto-me de muita esperança de muita energia para enfrentar o futuro que me
aguarda – será uma nova guerra e já estou preparado para ela. Como no Capistrano,
tempos atrás, aguardo a ordem do Comandante Supremo da Vida:
EM FRENTE, MARCHE! 6

Ruy, novamente, deixa interessantes e humanas impressões em seu diário. Já


antecipava os problemas que não somente ele teria ao ser licenciado da Força para lutar pela
criação de seus dois filhos, sem esposa e com a incerteza se o retorno ao antigo emprego
estaria garantido. Mais do que isso, reflete que nos maus e bons momentos que viveu na
Itália, há de tirar boas coisas, como a comida e o salário triplicado, em que uma boa parte, em
torno de 1/3, seria sacado para agora facilitar a reinserção do ex-febiano na vida civil. E,
além disso, o fato de estar vivo é a maior vitória para o nosso depoente.
Evaristo, em seu depoimento, recordou como foi a sua chegada ao Brasil:

Começamos o desfile na Candelária por seis, tudo organizado, o povo invadiu,


terminamos desfilando por um. Uma expectadora saiu de onde estava, pulou no
meu braço, tentou arrancar a divisa de 2º sargento da farda, não conseguiu e disse:
‘que pena!’. Queriam pedaço da roupa da gente, boné, cobra fumando..o povo
estava alucinado com a nossa chegada, em São João Del Rei também foi assim, no
Arco da Vitória.7

Os cabos e soldados, antes de serem licenciados definitivamente, foram conduzidos,


após o desfile pelas ruas do Rio de Janeiro, para os quartéis da Vila Militar.
Zé Maria, juntamente com todo o 11º RI, estava no acampamento do Morro do
Capistrano, e nos relatou:

Quando nós conseguimos chegar no morro do Capistrano na Vila Militar


houve uma invasão civil naquilo que eram considerados alojamentos, que
eram barracões de madeira, e com isso um, dois ou três dias após o
pagamento daquela parte que foi depositada, pelo menos aconteceu isso na
minha companhia, alguns companheiros meus ficaram sem nenhum tostão,
porque no meio daquelas crianças e mulheres, tinha bandido já naquela
época, batedor de carteiras e roubaram o dinheiro de dois companheiros e
para eles irem embora nós nos unimos e cada um deu cinco ou dez cruzeiros
para fazer uma determinada importância.8
____________________
6 – Diário do Maj Ruy de Oliveira Fonseca.
7 – Depoimento [Out.2004].
8 – Depoimento [Out.2004].
Geraldo após ser transferido à revelia para longe de Minas Gerais, resolveu pedir o seu
licenciamento, mesmo sendo 2º sargento, o que não era necessário, já que somente cabos e
soldados da FEB foram dispensados. Resolveu voltar para São João Nepomuceno e depois
para Além Paraíba, onde viviam seus pais. Em São João, foi recebido, bem como todos os
febianos, por uma comissão que promovia o bom retorno dos expedicionários, além do
carinho da população. O Jornal A Voz de São João, anunciava sempre as chegadas dos
militares daquela cidade e das localidades próximas:

Chegou o Sgto. Rodrigues


Em princípios do corrente mês, chegou à baía de Guanabara, mais um transporte de
guerra, trazendo ao nosso País, novo pugilo de bravos expedicionários brasileiros,
que se bateram nos campos de batalha em defesa do pavilhão auri-verde. Entre os
expedicionários trazidos pelo navio Pedro I, encontrava-se também um
sanjoanense: o segundo sargento Geraldo Teixeira Rodrigues.
O sargento Rodrigues foi incorporado ao 1º escalão da Força Expedicionária
Brasileira, como elemento integrante do 11º .R.I, e após sua chegada Itália, foi
transferido para o Pelotão de Sepultamento da referida Divisão.
O sargento Rodrigues, conforme notícia publicada em um dos últimos números de
“ Voz de São João”, foi promovido no campo de luta, ao posto de 2º sargento.
É ele filho de nosso particular amigo Sr Sebastião Rodrigues da Silva, competente
gerente da Cia. Força e Luz, de nossa cidade, pessoa altamente benquista em nosso
meio social, e de sua d.d esposa D. Diva Teixeira Rodrigues, pessoa de destaque da
sociedade sanjoanense.
A Gare de Leopoldina se achava repleta, dia 8 p.p., para receber o jovem
expedicionário, destacando-se entre os presentes os componentes da Comissão
designada pelo Sr Dr Prefeito Municipal, para receber os jovens sanjoanenses que
integraram a F.E.B.
Sob viva emoção chegou o sargento Rodrigues. Grande massa popular levou-o à
sua moradia.
Ao chegar à residencia do Sr Sebastião Rodrigues, foi o seu bravo filho saudado
pelo Dr Nagib Camilo Ayupe, ilustre clínico local, que lhe deu os votos de bôas
vindas em nome da comissão receptora e lhe externou a satisfação dos
sanjoanenses, pelo regresso do jovem sanjoanense ao seu lar. Em seguida usou da
palavra o jovem Clésio Teixeira Rodrigues, que em nome de seu irmão de sua
família agradeceu tamanha prova de estima por parte de nosso povo.
A casa do casal Rodrigues da Silva, tem sido pequena para comportar o elevado
número de pessoas que ali vão cumprimentar o 2º sargento Rodrigues, dar-lhe os
seus parabéns pelos seus brilhantes feitos e externar sua satisfação pelo seu
regresso.9

Assim foi em várias cidades de Minas Gerais e do País. O povo recebia com festa e
admiração dos heróis de guerra brasileiros. Imitava as comemorações realizadas em todo
Mundo com a chegada dos exércitos vencedores. França, Grã-Bretanha, EUA, todos festeja-

________________
9 – A Voz de São João. São João Nepomuceno. 26 de agosto de 1945.
ram o fim das hostilidades. Lá como aqui, a alegria extravasada foi pelo fim dos conflitos,
dos racionamentos, da perda de pessoas da família e de ter derrotado um forte inimigo. Mas as
diferenças entre esses países e o Brasil ficariam mais evidentes quando cessou a emoção do
fim das comemorações. Muitas foram as conseqüências da Guerra, principalmente para os
novos heróis.
Sobre os anos posteriores da dissolução da FEB, Ruy nos relatou o seguinte:

Os primeiros dez anos depois da Guerra, nós comemos o pão que o diabo amassou.
A maioria chegou com dinheiro no bolso, e mal ou bem tinha o fundo de garantia,
que na época era mais ou menos 400, 500 mil reis, cruzeiros, era muito dinheiro,
muitos ao invés de ir embora para casa, ficaram no Rio de Janeiro, “batendo
pernas”, bebendo. Então você encontrava bêbado caído na rua e diziam: ‘ah, é
expedicionário’. Depois inventaram um tal de Centro de Recuperação de Incapazes
das Forças Armadas, mas o CRIFA era mais uma prisão do que um centro de
recuperação. Quiseram fazer como o americano, que tinha psicólogos... era um
quartel velho, em que o cara ficava o dia inteiro lá internado. A maioria fugia ou
então fazia bagunça no bairro. Era ali em Lins de Vasconcelos. Nós só tivemos um
pouco de reconhecimento quando os filhos de nossos companheiros fizeram
carreira militar, quando eles chegaram à oficial superior, eles começaram a ver o
que o pai tinha passado, e começaram a prestigiar a FEB. Mas antes disso não.
Você para usar uma medalha, você ficava constrangido. Eu tive um soldado
chamado Ruiz, ele era meio ‘alterado’, na Itália chegou em um galpão quando o
pelotão estava todo dormindo, pegou uma metralhadora de mão e atirou lá dentro,
não pegou em ninguém. Eu dei 04 dias de prisão para ele, depois o comandante de
companhia agravou. Um dia, quando eu era ajudante de ordens do general Olímpio
Mourão Filho, minha mulher disse que tinha um soldado me esperando, era o Ruiz.
Ele queria ajuda, pois estava no CRIFA e lá não tinha nada. Ele queria que eu fosse
com ele no Serviço Especial da FEB, consegui que ele baixasse no HCE para ser
reformado como 2º sargento. Depois ele fugiu e foi lá em casa pedir ajuda pois
tinha dado alteração e queriam coloca-lo na solitária.
No final ele foi reformado e voltou para São Paulo. Ele era torneiro mecânico e
fiquei sabendo que ele morreu de bebida. Os soldados eram assim, ficavam sem
amparo por parte do Exército e nos procuravam para ajudar, não foi só ele que me
procurou ou procurou outros da FEB. Até o General Covas que está em cadeiras de
rodas tem gente que procura ele. Eles achavam que a gente é que tinha que resolver
os problemas deles.10

Ruy expôs muito bem a situação de abandono que os soldados da FEB, antes os heróis
de todo um País, sofreram apenas poucos anos após o fim do conflito. Alcoolismo, doenças,
desilusão e medidas pouco efetivas (como foi o caso do CRIFA), foram a tônica do fim triste
da história da Força, antes que algumas pessoas tomassem a decisão de corrigir o grave erro
de não se preocupar com a desmobilização total e responsável daqueles homens, e não um

______________
10 – Depoimento [Jul. 2005].
licenciamento puro e simples. Foram pessoas que passaram por situações de limite físico e
psicológico, mesmo que não tivessem em um combate no front, mas o fato de seguirem para
uma viagem quase inesperada para um destino ignorado, sem a despedida de suas famílias,
afetou o psicológico de muitos deles. A ajuda chegou tarde para muitos, que acabaram
sucumbindo diante da falta de perspectivas.
O pós-guerra foi determinante para que a situação do Governo Vargas, já há quinze
anos no poder, se tornasse insustentável. Não haveria como permanecer como presidente
alguém que adiou por diversas vezes as eleições, que maquinou um golpe com motivações
esdrúxulas e que ainda pensava em se candidatar novamente. Em 29 de outubro de 1945,
Vargas era deposto pelos militares, que convocaram as eleições para 1946, onde acabou eleito
o ex-ministro da guerra, Marechal Dutra. Dutra em sua campanha não se rogou em utilizar a
vitória da FEB para colher algum capital eleitoreiro que, ao final, deu-lhe algum fruto.
No campo político internacional, o Brasil consolidou uma posição de liderança na
América do Sul, apesar de não ter havido uma continuidade na aproximação com os EUA,
que por sua vez, voltaram suas atenções para a Europa, para a África e para a Ásia. O sonho
acalentado por Vargas em participar da negociação para as reparações de guerra, não foi
concretizado, o Brasil, com isso, ficou com os prejuízos dos afundamentos dos navios
mercantes, dos materiais perdidos em combate e das compras não liquidadas aos alemães, sem
que houvesse qualquer intervenção americana.
O impulso econômico do pós-guerra não foi muito além de um fortalecimento da
siderurgia no país, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda,
resultado dos acordos com os americanos. O capital adquirido em tempo de guerra não foi
bem aproveitado em desenvolver a indústria ou melhorar a integração pelos meios de
transportes, por exemplos. As diferenças regionais e a grande concentração de renda
permaneceram em níveis preocupantes durantes vários anos. Nações derrotadas na 2ª Guerra,
arrasadas em vários aspectos, em alguns anos se recuperaram economicamente, enquanto o
Brasil permaneceu preso ao atraso.
A influência da cultura norte-americana no Brasil não se encerrou com o fim da
política de boa vizinhança, aqui, como em outras partes do mundo, as presenças de fortes
elementos do modo de vida dos cidadãos dos EUA passaram a serem identificados como
modelos a serem seguidos, sem que se abandonassem a cultura local. No Brasil, esta
influência também se firmou na doutrina militar nacional. Após a Guerra, os modos de
treinamentos, manuais, armamentos, organização das Unidades e a própria conscientização da
importância do homem dentro do sistema das Forças Armadas foram adotadas em grande
parte dos americanos. Aos poucos, as antigas lições francesas de combate passivo foram
sendo substituídas e, tempos depois, o militar brasileiro também criou suas próprias doutrinas,
em vários tipos de ambientes existentes no território. Mas sempre observando o que se
passava no seu antigo aliado.
A nova doutrina só não foi mais rapidamente difundida pelos quartéis brasileiros,
devido à decisão em não aproveitar muitos dos oficiais e sargentos da FEB nas escolas de
formação, para que as suas experiências de combate fossem assimiladas pelos jovens
militares, que poderiam ser propagadores de novos métodos e técnicas. Pelo contrário, muitos
foram transferidos para locais distantes, como aconteceu com Geraldo, ou permaneceram em
quartéis sem visibilidade, dificultando a modernização da maneira de pensar e de combater do
soldado do Brasil.
Assim mesmo, militarmente a participação da FEB trouxe uma pequena melhoria na
qualidade de material militar das Forças Armadas, principalmente o Exército, ainda que muito
tenha sido devolvido aos americanos ao final do conflito. Houve uma acentuada preocupação
com a seleção médica e física dos novos militares, abandonando-se o empirismo e adotando
métodos científicos. O efetivo das organizações militares também cresceu, mesmo com o
grande licenciamento de muitos militares após a vitória. Com a guerra, não somente a FEB,
mas todas as Forças Armadas tiveram seus contingentes aumentados, não voltando aos níveis
anteriores à declaração.
As mudanças ocorridas em elementos estruturais do país, foram conseqüências diretas
do grande conflito mundial, mas não há de negar que o ocorreu no seio das Forças Armadas,
incluindo a Marinha e a Força Aérea, aconteceu devido, principalmente, a participação efetiva
nos combates na Europa.
Aos agora chamados de veteranos, houve promessas de apoio para que rapidamente
fossem reintegrados à sociedade, ou até fossem amparados por um programa eficiente como o
que ocorreu nos EUA. Mas nem sempre os febianos conseguiram que as leis que já existiam
garantindo o retorno aos antigos empregos fossem cumpridas, até porque muitos não
possuíam uma profissão ou mesmo um emprego fixo. Para aqueles que não tinham formação
profissional, um emprego anterior ou apoio da família, o horizonte poderia ser uma vida de
dificuldades, problemas como alcoolismo ou até suicídio, como relatou Toninho:

Algumas leis saíram dez, quinze anos depois ou vinte, mas era tudo soldado, não
tinha como saber quais eram nossos direitos. Até que alguém foi indo e falando que
nós tínhamos direito a isso. Eu por exemplo fui receber a pensão do Exército
quarenta anos depois. Em 1984 eu e Zé Maria fomos os últimos a ir para o hospital
fazer exames e outra, você tinha que ir ao hospital e dizer que era doido. Quando
eu estava no hospital eu fui ver eles estavam fechando o local e falaram que a gente
não podia mais sair, pois éramos considerados doidos. No almoço tínhamos que
comer com prato de alumínio e colher, pois era proibido receber garfo e faca. Tinha
companheiro que dormia na merda e fazia as coisas lá e dormia no chão. Hoje
estamos amparados, mas o passado é triste.11

A quantidade de leis envolvendo a FEB prejudicou a efetiva ação de amparo dos seus
ex-expedicionários. Xavier ressaltou que em 1989 havia mais 288 tipos de diplomas legais
criados desde 1943, que tratavam desde a criação da Força até algum tipo de direito que por
ventura teria o veterano. Mas isso trouxe uma falta de entendimento sobre como essas leis,
portarias e resoluções deveriam ser executadas. Muitas englobavam vários elementos que não
foram à Guerra, mas que por terem ficado no Brasil em algum tipo de proteção ao território,
foram beneficiados da mesma forma que àqueles, o que resultou em maiores dificuldades em
apoiar os verdadeiros veteranos, já que o número de pessoas incluídas foi maior que a
capacidade do governo executar.
O CRIFA, citado por Ruy, foi o primeiro órgão que foi criado para esse apoio, e se
mostrou deficiente, até ser fechado mais de trinta anos depois. Aos mutilados na Guerra,
somente em 23 de janeiro de 1946, é que um Decreto Presidencial deu amparo para que
aqueles incapacitados fisicamente para o trabalho. O lapso de seis meses desde a dissolução
da FEB deve ter prejudicado vários nessa situação, apesar de não termos dados concretos
sobre isso.
Nesta busca dos direitos, cabe falar da importância das Associações dos Veteranos da
FEB, presentes em várias cidades do Brasil, e que desde suas fundações em 1946, procuraram
orientar seus veteranos e familiares na obtenção das vantagens oferecidas pelas Leis.
Chamada anteriormente de Associação dos Ex-combatentes, nome conhecido em todo o
Mundo, essas entidades reuniam também os ex-militares que ficaram no País. Com um
acordo, esses saíram da Associação e formaram a sua própria instituição, levando o nome Ex-
combatente, o que para Zé Maria foi uma falha, já que essa designação é utilizada em todo os
exércitos do Mundo ao se referir àqueles que efetivamente lutaram nos campos de
batalha12. No entanto, aqui no Brasil esses, os que foram à Itália, são chamados de Veteranos,
e utilizam a boina azul; e aqueles que ficaram no Brasil, são os Ex-combatentes, e utilizam a
boina verde.
Com o tempo, vieram leis que acabaram sendo específicas para o veterano, como a
______________
11 – Depoimento [Out.2004].
12 – Depoimento [Out.2004].
que concedia bolsa de estudos para os seus filhos. Veio a lei que permitiu a pensão aos
herdeiros dos que morreram na Itália, principalmente amparando aqueles que não eram do
efetivo permanente do Exército, como os soldados. Ambas tiveram sucesso, apesar de que,
para ter acesso a esses direitos, muita burocracia e tempo tiveram que ser percorridos.
Outra lei que deu resultado foi a de nº 3160, de 1º de junho de 1957, incluindo no
efetivo do Exército todas as enfermeiras que foram à Guerra. Com isso, os hospitais puderam
colher as experiências destas mulheres no difícil trabalho dos ambulatórios militares.
Somente em 1954 é que surgiu uma lei que amparava os homens que adquiriram
alguma enfermidade durante a Campanha, mas que não eram considerados inválidos e
necessitavam de tratamento e não possuíam recursos para isso.
Em 1963, no governo Goulart, foi concedida pensão especial àqueles que se
tornaram incapacitados para o trabalho, garantindo uma pensão especial, como foi o caso do
ex-soldado de Ruy.
Durante algum tempo, os órgãos públicos tornaram mais flexíveis seus concursos para
o ingresso dos veteranos, onde muitos acabaram sendo funcionários de carreira dessas
instituições, como foi o caso dos Correios e Telégrafos, da Rede Ferroviária Federal, da
Indústria de Material Bélico do Exército, entre outras. Além de casos como o Ruy, que
mesmo sendo convocados como oficiais temporários foram efetivados pelas Forças Armadas.
Em 1988, com a nova Constituição, todos os veteranos e ex-combatentes, esses que
foram amparados por leis anteriores, tiveram a concessão de uma pensão no valor do salário
de 2º tenente do Exército. Para os veteranos, a pensão é estendida, após a morte, até as suas
filhas; para os ex-combatentes, somente até as viúvas. Neste ano, somente existiam vivos,
pouco mais de dez mil veteranos que foram à Itália13.
Apesar de todos considerarem-se amparados pelo Estado, há ainda a falta de um
maior reconhecimento da população que nasceu e foi criada no pós-guerra. Muitos não sabem
ou conhecem de forma deturpada a história dos homens brasileiros da FEB. Os livros pouco
ou nada falam dessa participação, os filmes e documentários, quando realizados, acabam
reforçando apenas os fatos pitorescos e até pouco lisonjeiros ocorridos durante os combates,
como os namoros e as dispensas para viajar, como se a história do conflito se resumisse
somente a isso. Considerar uma efeméride a história de FEB, continua sendo uma injustiça do
meio acadêmico, apesar de haver já alguns historiadores fora do círculo militar interessados
em aprofundar e divulgar os estudos sobre a Força. Não ajudou, também, a iniciativa do
______________
13 – FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed, 2005. p. 70.
Estado e do Exército em criar um mito nacional com as vitórias dos brasileiros, atribuindo
uma participação decisiva na vitória dos aliados em todo o conflito. Desde um documentário
atribuído a Jean Mazon, na década de 196014, a importância da FEB é superestimada. Ora,
uma pesquisa superficial feita por qualquer estudante iniciante pode enterrar esta hipótese, já
que uma Divisão de Exército apenas, em meio há mais de cem outras divisões aliadas, com
graves problemas de logística e de seleção de pessoal, não poderia ter um papel de
importância capital, como os militares, principalmente durante o regime de 1964 até 1985,
pretendiam atribuir. No entanto, a história poderia sim ser mais generosa em reservar um
espaço maior para os expedicionários.
Hoje, a FEB é lembrada basicamente nos quartéis quando em datas específicas e ditas
como marcos na participação, como o 21 de fevereiro, dia da Tomada de Monte Castello; o
dia 14 de abril, que lembra o combate de Montese; e o dia 08 de maio, em que
internacionalmente é comemorado o Dia da Vitória na Europa. Nesses dias, são lidas Ordens
do Dia referentes às datas; cantada a Canção do Expedicionário, talvez a mais bela das
canções militares do Exército; entoado o toque de silêncio; e realizado o desfile em
homenagem aos últimos heróis de guerra brasileiros. Diferentemente de outros países, o povo
não participa, e nada ou pouco sabe dessas homenagens. Na Itália, nessas datas, os brasileiros
ainda são recebidos como os libertadores daquelas populações por onde passaram. Uma
dívida de gratidão que os italianos não cansam de lembrar, haja vista a existência de 23
monumentos naquele país homenageando a FEB, mesmo após tantos anos da guerra e da
retirada dos restos mortais do febianos, realizada em 1960. No Rio de Janeiro, no Aterro do
Flamengo, as urnas mortuárias desses brasileiros repousam no maior monumento construído
no País para os heróis da Força, lembrando que um dia, no maior dos conflitos que a
Humanidade já viveu, havia também brasileiros contribuindo para a restauração da Paz e da
Liberdade.

______________
14 – COSTA, Marcos Antonio. A cobra vai fumar: a Força Expedicionária Brasileira por meio de
audiovisuais, sessenta anos de criações. ANPUH RJ, 2005.
Fot 59 - O Monumento aos mortos à época da sua construção. Disponível
em :<www.exercito.gov.br/01inst/feb/imagens/banco/index1.htm.> Acesso em: 21 Mar 2009.

5.2 O destino de nossos depoentes

Encerrando nosso trabalho, não poderia deixar de falar sobre como se desenhou o
destino de cada um dos nossos entrevistados, do momento da dissolução da FEB até a
participação de cada um nessa pesquisa.
Como foi descrito no subcapítulo acima, vários foram os possíveis destinos para cada
grupo de febianos após o fim da Força. Tudo dependeu da função ou patente do indivíduo ou
se o militar havia sofrido algum dano físico durante os combates ou se, mais tarde, tivesse
sido englobado pelas inúmeras leis de amparo aos ex-expedicionários.
Ruy de Oliveira Fonseca conseguiu permanecer no Exército, já que a instituição
resolveu proporcionar para os oficiais temporários um Curso de Formação da Escola Militar,
que no caso de Ruy, foi no CPOR do Rio de Janeiro. Este curso os equiparou aos oficiais
formados na recente inaugurada Academia Militar de Resende, apesar de terem sidos
preteridos durante anos em suas promoções, permaneceram no efetivo do Exército até se
aposentarem. Ruy serviu, após a Guerra, em Cruz Alta, Caçapava e Rio de Janeiro. Foi, por
sinal, ajudante-de-ordem do General Olímpio Mourão Filho, antes do mesmo deflagrar o
Movimento Militar de 31 de março de 1964. Ruy deixou o Exército em 1958, no posto de
major, e passou a se dedicar ao magistério, sendo professor do Colégio Piedade e das
Faculdades Reunidas Nuno Lisboa, ambas no Rio de Janeiro. Passou também, a ser um
membro atuante na Associação Nacional dos Veteranos da FEB, onde foi vice-presidente e
chegou a publicar um livro sobre suas reminiscências da Guerra. Hoje reside em Juiz de Fora,
como todos os outros entrevistados, e está ligado às atividades da Associação dos Veteranos
desta Cidade.

Fot 60 - Ruy, em 2007

João Evaristo dos Santos voltou a servir em sua antiga Unidade, o 12º RI, em Juiz de

Fora, e ao longo da carreira serviu na 4ª Infantaria Divisionária, na mesma Cidade, quando, já

no seu último posto, o de capitão, em 1964, testemunhou o seu Comandante, o General

Mourão Filho, comandar o Movimento Militar que determinou o fim do governo do

presidente João Goulart. Permaneceu no Exército até 1971, quando passou a atuar nas

atividades da Associação de Veteranos, sendo até hoje um de seus principais membros.

Fot 61 - Capitão Evaristo, em 2008


O Capitão Francisco Albino Moreira, assim como Evaristo, já era do efetivo
permanente do Exército, e serviu em Unidades de Minas Gerais até se aposentar, em 1967,
quando estava na 12ª Circunscrição de Serviço Militar, em Juiz de Fora. Também passou a
atuar na Associação, até o seu falecimento, em 2008.

Fot 62 - Capitão Albino, em uma cerimônia no 10º BI, em 2006.

Geraldo Teixeira Rodrigues, após pedir o seu licenciamento, foi trabalhar com o seu
pai em Além Paraíba, casando-se logo depois com uma jovem de São João Nepomuceno.
Anos após, procurou o Hospital Militar em Juiz de Fora e teve a reforma concedida por
doença adquirida em Guerra. Em 1990 sua reforma foi transformada em pensão de 2º tenente,
de acordo com a Constituição Federal. Vive hoje, em Juiz de Fora, com sua esposa, filhos e
netos.

Fot 63 - Geraldo, em sua residência, em 2006.


Raimundo Nonato Monteiro voltou ao Rio de Janeiro, após passar por uma
recuperação, devido a um ferimento na mão ocorrido em Montese, em um Hospital Militar,
no Colorado, EUA. Foi, assim como os outros soldados e cabos, licenciado por não ter sido
considerado com seqüelas pelos ferimentos de combate. Formou-se em economia e foi
aprovado em concurso para auditor fiscal da receita federal, seguindo carreira até se
aposentar. Vive hoje com a família, em Juiz de Fora, onde constantemente participa dos
eventos que celebram a FEB.

Fot 64 - Raimundo Nonato, em 2007

Situação semelhante aconteceu com José Gomes Filho, que passou por uma
recuperação mais difícil nos EUA, devido ao seu grave ferimento na perna, após um tiro de
metralhadora. De volta ao Brasil, foi considerado incapaz e reformado por invalidez. Foi
político em Taruasú e atuou como membro da Associação dos Veteranos em Juiz de Fora, até
que os problemas de saúde prejudicaram sua locomoção e a fala. Durante a pesquisa tive o
gentil apoio de sua esposa, a Senhora Maria de Lourdes. Ambos faleceram em 2009.
Fot 65 - José Gomes, em 2007.

José João da Silva permaneceu no Rio de Janeiro após a volta e conseguiu ser
empregado no Ministério da Educação e Saúde, seguindo o caminho o qual já tinha a
experiência de enfermeiro. Passou vinte e seis anos naquela cidade, onde se aposentou, e
residiu. Voltou para a Zona da Mata, fixando residência, há poucos anos, em Juiz de Fora,
onde vive com a família.

Fot 66 - José João da Silva, em 2007

Antonio de Pádua Inham, o Toninho, trabalhou como comerciante e empresário,


mesmo após conseguir em 1984, a pensão de 2º sargento como ex-expedicionário. Em 1990 a
sua pensão foi ampliada para de 2º tenente. Atuou e atua sempre com destaque na Associação
de Veteranos, lutando pelos direitos dos seus companheiros e de suas famílias, e pelo
fortalecimento dessa instituição, a qual é Presidente desde 1989. Ao falar dos expedicionários
na Zona da Mata, não há como não citar Toninho e seus relatos sobre a Guerra.
Fot 67 - Toninho, em 2007

Zé Maria seguiu a carreira de motorista profissional, fixando residência em Juiz de


Fora. Foi reformado como cabo com soldo de 3º sargento em 1984, a reforma foi ampliada,
em 1990, para pensão de 2º tenente. Sempre esteve próximo dos companheiros da Força e
atuando como membro da Associação. Estudioso, é um dos mais procurados para tratar da
FEB e de sua importância para a História do Exército e do Brasil. Viúvo, vive hoje com um
dos filhos nesta Cidade.

Fot 68 - Zé Maria, em 2009

José Lopes de Oliveira não continuou seu ofício de cozinheiro, como havia trabalhado
na Guerra. Depois de atuar em várias profissões, ingressou na antiga FEA (Fábrica de
Explosivos e Artifícios), hoje conhecida como IMBEL (Indústria de Material Bélico). Em
1990 foi beneficiado com o amparo a todos os veteranos de Guerra. É viúvo e vive com os
filhos.
Fot 69 - Zé Lopes, em 2008

Antonio dos Reis, o Toinzinho, permaneceu sem emprego fixo durante muito tempo,
até ter ingresso concedido, no governo Goulart, para a Empresa de Correios e Telégrafos,
onde trabalhou por doze anos, até a aposentadoria. Como outros, teve concedida a pensão de
2º tenente após a Constituição de 1988.

Fot 70 - Toinzinho, em 2009.

José Pedretti retornou à Juiz de Fora e teve vários empregos, como por exemplo de
vendedor no comércio, até ser admitido no Hospital Geral do Exército da cidade, onde
trabalhou na secretaria por sua habilidade com a máquina de escrever. Após se aposentar,
montou seu próprio negócio de vendas. Também recebeu na década de 1990 a pensão de 2º
tenente como veterano da FEB. Teve três filhos e sete netos. Vive hoje com a esposa e uma
das filhas.
Fot 71 - Pedretti, em sua residência, em 2009.

A trajetória dos nossos entrevistados, a quem considero meus caros amigos, foi
semelhante às de muitos outros veteranos da Zona da Mata de Minas. Jovens que saíram da
zona rural ou de famílias humildes, que ingressaram no Exército e acabaram combatendo pelo
seu País no maior conflito de todos os tempos. No retorno, todos os cabos e soldados foram
sumariamente licenciados e lutaram com suas possibilidades por uma sobrevivência que, se
não podia ser amplamente amparada pelo Exército, ao menos poderia ter sido melhor
planejada para que a desmobilização não ocorresse de maneira abrupta, sem um
acompanhamento de suas vidas. Muitos não viveram tanto para receberem o reconhecimento
da Nação, no sentido social, vindo anos mais tarde.
Mas como disse anteriormente, ainda falta o reconhecimento da própria História, que
ainda reluta em acreditar na importância da participação daqueles homens da FEB. Quando
isso finalmente acontecer, espero que alguns veteranos ainda estejam vivos, para que com os
seus próprios olhos e próprias mentes, vejam que cada esforço seus despendidos em prol da
vitória em um país distante, contra um forte inimigo e contra todos os prognósticos, sejam um
modelo para um povo que carece de exemplos e de heróis.
6 CONCLUSÃO

Quando nos propusemos a desenvolver este trabalho sobre a Força Expedicionária


Brasileira, procuramos sempre seguir uma direção para que esse tema não fosse voltado
essencialmente para o campo do militarismo e da política ou somente para um estudo
sociológico de seus atores. Mas sim, procuramos chegar a um equilíbrio entre esses enfoques.
Com isso passamos a compreender como se comportaram alguns dos homens que
participaram dos momentos derradeiros de um conflito que moldou o Mundo em que
vivemos. E ao nos aproximarmos desses homens, pudemos não só enxergar como se
desenhou o conflito na terra italiana, mas, também, como era toda uma sociedade da qual eles
eram oriundos.
Estudando os seus pontos de vistas, seus relacionamentos, questionamentos,
lembranças, crenças, sentimentos, dúvidas e certezas, procuramos nessa dissertação extrair o
ser humano: vencível, social, falante, orgulhoso, tímido, discreto...que aparecia em cada
depoimento ou relato escrito em que nos defrontávamos. A FEB foi constituída por pessoas
diferentes, de lugares diversos, com elementos culturais próprios de suas regiões, que
interagiram com os elementos por nós escolhidos para a pesquisa: os jovens da Zona da Mata
Mineira. Estes, em sua maioria, criados em localidades rurais, de pouco recursos, meios de
informação e com pequenas populações.
Ao longo do trabalho, entrelaçamos esses depoimentos com outros relatos indiretos,
com as diversas publicações existentes, com um pouco da imensa documentação disponível,
inclusive àquelas que privilegiavam a visão de homens que detinham o poder de comando nos
campos de batalha e o poder da escrita na história daquela guerra. Não quisemos criar uma
oposição entre homem comum versus homem da elite, procuramos, primeiro, os pontos de
convergência, que não foram poucos, e depois nos detemos nos pontos divergentes, em que
cuja visão tenha sido muito particular, mas que respondia algumas das mais importantes
questões da FEB. E, por, fim procuramos entender o porquê daquela determinada visão,
individual ou coletiva, ter sido consolidada como verdade histórica.
Assim traçamos a história da FEB desde sua gênese até seu epílogo, passando pelos
difíceis momentos de afirmação como uma tropa capaz de enfrentar o temido soldado alemão,
e procuramos analisar o que houve nos anos do pós guerra com aqueles que sobreviveram aos
anos de descaso e ostracismo.
Nessas considerações finais sobre esse trabalho, compreendemos que a história da
FEB vai muito além dos contos de literatura militar, em que as simples explicações sobre um
treinamento deficitário da tropa, da rápida adaptação aos diversos nuances que envolvem o
combate real, da irreal participação decisiva brasileira nos momentos finais do conflito e da
recepção gloriosa dos heróis, logo depois descartados da história do País.
A história da FEB é complexa por esta ter sido, desde sua origem, baseada em
indivíduos e não caracterizada por um espírito de grupo, dentro de normas definidas, formada
a partir uma população mais homogênea e consciente do papel que foram desempenhar.
Todos os organismos são constituídos por indivíduos diferentes em sua forma de pensar e de
agir, mas a FEB surgiu pela vontade de Vargas, um único indivíduo que decidiu pelo lado
americano de lutar, pela participação de todos os Estados do Brasil naquele grupo, pelas
exceções paternalistas que regiam quem iria ou não para a Guerra e que transformou uma
participação, de improvável para dignificante. E nesse individualismo que esteve presente na
FEB, as histórias de seus homens, desde o seu comandante – Mascarenhas de Moraes – até
um de nossos entrevistados – Geraldo Rodrigues - podem ajudar a compreender melhor, fatos
importantes como o treinamento no Brasil, o deslocamento para um território desconhecido
por muitos até o embarque, a interação com o estrangeiro, a tão propalada adaptação do
brasileiro aos campos de batalha, a importância da Força em algumas das batalhas do V
Exército, que teve também no nome de um homem – Mark Clark – um fator decisivo, e, por
fim, entender o destino de muitos dos veteranos.
Isto posto, o componente oral em nosso trabalho foi importante para compreender
ações destacadas da FEB na Itália, como a Tomada de Monte Castello e a Conquista de
Montese, como também para conhecer a atuação pouco comentada, mas relevante, de homens
que trabalhavam nas cozinhas, nas enfermarias e nos sepultamentos. A oralidade e os
documentos pessoais foram primordiais para compreender como estavam as famílias, amigos
e o povo em geral no Brasil. Neste ponto, muitas dessas pessoas não sabiam dos problemas
enfrentados pelos brasileiros nem do que realmente acontecia na Guerra, por estarem sob o
manto opressor do Estado Novo, que censurava as notícias dos jornais e das cartas.
A vontade e persistência dos brasileiros, generais ou soldados, em mostrar um bom
rendimento nos combates foi inquestionável. Pelas circunstâncias negativas em que foram
treinados e embarcaram, pelo sentimento de inferioridade que existia perante aos americanos
e ingleses, por exemplo, em lutar em outro continente, por uma guerra que não era deles, os
febianos de maneira muito positiva se adaptaram a uma nova realidade que estavam
enfrentando e, mesmo com alguns revezes, foram importantes para o V Exército no
prosseguimento da ofensiva contra os alemães na Itália, para evitar que esses mudassem a
prioridade de tropas para a defesa da Alemanha. As missões que lhes foram dadas, enfim,
foram muito bem cumpridas, mas, no entanto, não se pode atribuir à FEB um lugar de decisão
no resultado de todo o conflito.
Não ter sido decisiva e ter números modestos de efetivo, de conquistas e até de baixas,
pode ajudar a explicar o esquecimento da história da FEB, não só em algumas páginas dos
livros de história, mas também do sentimento de seu povo. Mas há também outras razões,
como o caráter pacifista do Brasil, a inviolabilidade do território durante o conflito e também
um projeto para consolidar uma identidade histórica sobre essa participação, como fizeram e
fazem americanos, russos, ingleses e até os franceses, independente do valor de participação
de cada um.
Ao final, de acordo com o que dizemos sobre a individualidade, o veterano da FEB
não foi diferente do combatente russo, americano ou alemão, no sentido do que sentiu nos
momentos mais difíceis quando teve que enfrentar a morte ou matar ou quando sentiu
saudades de casa. Todos foram homens de carne e osso, com sentimentos de sobreviver, de
medo, de heroísmo e de lutar por suas pátrias. E foi assim que procuramos compreender a
FEB nesse trabalho.
REFERÊNCIAS

Instituições pesquisadas.
- Arquivo Histórico do Exército – AHEX – Rio de Janeiro - RJ.
- Arquivo da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora – Juiz de Fora – MG.
- Arquivo do jornal A Voz de São João – São João Nepomuceno – MG.
- Arquivo e Museu do 10º Batalhão de Infantaria – Juiz de Fora – MG.
- Biblioteca Murilo Mendes – Juiz de Fora – MG.
- Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora – AHUFJF – Juiz de Fora
– MG.
- Arquivo Histórico e Biblioteca do Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora – MG.
- Fundação Getúlio Vargas – CPDOC – Rio de Janeiro – RJ.
- Arquivo, Biblioteca e Museu da Associação de Veteranos da FEB – Juiz de Fora –
MG.
- Arquivo Público Mineiro – Belo Horizonte – MG.
- Arquivo e Museu do 12º Batalhão de Infantaria – Belo Horizonte – MG.
- Arquivo da 12ª Circunscrição de Serviço Militar – Juiz de Fora – MG.

Fontes e Bibliografia
Fontes Impressas:
- Jornais:
Diário Mercantil, Juiz de Fora; Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e
Dezembro de 1944. Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio de 1945.
O Globo, Rio de Janeiro; Julho, Agosto e Setembro de 1942; Junho, Julho, Setembro,
Outubro, Novembro e Dezembro de 1944; Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio de 1945.
Voz de São João, São João Nepomuceno; Outubro, Novembro e Dezembro de 1944;
Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro de 1945.
O Cruzeiro do Sul, Itália; Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e Maio de 1945.

- Informativos:
“E a cobra fumou”, Itália; Setembro de 1944.
“Zé Carioca”, Itália; Março e Abril de 1945.
“Saco B – A voz da pátria”, Itália; Fevereiro de 1945.
“Expedicionário”, Itália; Janeiro e Fevereiro de 1945.
“A tocha”, Itália; Setembro de 1945.

- Revistas
O Expedicionário, de 1976 a 1978.

- Publicações oficiais
Boletins do Exército de 1943, 1944 e 1945.

Fontes Manuscritas
Diário de Guerra do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
Diário de Guerra do Senhor José Maria da Silva Nicodemos.
Cartas pessoais do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
Cartas pessoais do Senhor José Maria da Silva Nicodemos.
Cartas pessoais do Senhor Geraldo Teixeira Rodrigues.
Cartas pessoais do Senhor José Gomes Filho.

Iconografia
Fotos pessoais do Major Ruy de Oliveira Fonseca.
Fotos pessoais do Senhor José Maria da Silva Nicodemos.
Fotos pessoais do Senhor Antonio de Pádua Inham.
Fotos pessoais do Senhor Antonio José dos Reis.
Fotos pessoais do Senhor Francisco Albino Moreira.
Fotos pessoais do Senhor Geraldo Teixeira Rodrigues.
Fotos pessoais do Senhor José Gomes Filho.
Fotos pessoais do Senhor José Pedretti.
Fotos pessoais do Senhor João Evaristo dos Santos.
Fotos pessoais do Senhor Raimundo Nonato Monteiro.
Fundação Getúlio Vargas – CPDOC.
Arquivo Histórico do Exército – AHEX.
Arquivo da Associação dos Veteranos da FEB – Seção Juiz de Fora.
Arquivo Público Mineiro.
Endereço oficial do Exército Brasileiro na Internet.
Museu da Associação dos Veteranos da FEB – Juiz de Fora – MG.
Audiovisuais
- A FEB por Jean Manzon, 1946-47. (produzido pelo DIP).
- Reminiscência da guerra, década de 1980. (produzido pelo Exército).
- La Línea Góttica, década de 1990. (produzido pela RAI).
- Rádio Auriverde-A FEB na Itália, 1990. (Sílvio Back);
- E a cobra fumou, 2002. (Vinícius Reis).
- O “Lapa Azul” – a história dos homens do III Batalhão do 11º RI, 2007. (Durval Jr).

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TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na
época da segunda guerra mundial. São Paulo: Companhia das letras, 2000.
VELHO,Gilberto. “Memória, Identidade e projeto. Uma visão antropológica”. In:
Tempo brasileiro. No.95. Rio de Janeiro, out/dez 1988. 119-126.

Fontes Orais
- Entrevistas documentadas, gravadas e transcritas, com os seguintes veteranos da
Segunda Guerra Mundial:
- Antonio de Pádua Inham, soldado de infantaria do 11º RI.
- Antonio José dos Reis, soldado telefonista do 11º RI.
- Francisco Albino Moreira, sargento comandante de grupo de combate do 11ºRI.
- Geraldo Teixeira Rodrigues, sargento do Pelotão de Sepultamento.
- José João da Silva, soldado enfermeiro do 11º RI.
- José Gomes Filho, sargento comandante de grupo de combate do 1ºRI.
- José Pedretti, soldado do morteiro 60 mm.
- José Lopes de Oliveira, soldado cozinheiro do 11ºRI.
- José Maria da Silva Nicodemos, cabo chefe de peça do morteiro 81 mm do 11º RI.
- João Evaristo dos Santos, sargento furriel do 11º RI.
- Raimundo Nonato Monteiro, cabo de infantaria do 11º RI.
- Ruy de Oliveira Fonseca, tenente comandante de pelotão de petrechos pesados do
11º RI.
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