MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais Projetos Globais - Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais Projetos Globais - Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais Projetos Globais - Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar
PROJETOS GLOBAIS
C o lo n ia lid a d e , sa b e re s su b a lte rn o s
e p e n sa m e n to lim in a r
Walter D. Mignolo
HimanitaS
Ao focalizar a subalternização
de saberes d e sq u a lifica d o s
pelos processos de colonização,
este livro preenche uma lacuna
que já se fazia notar entre os
trabalhos indispensáveis ao
acompanhamento dos estudos
culturais e pós-coloniais, em
seus desdobramentos recentes.
As afinidades entre o autor,
pesquisador argentino residente
nos EUA, e outros teóricos da
América Latina são uma razão
a mais para re co m e n d ar o
texto ao leitor brasileiro.
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PREFÁCIO E AGRADECIMENTOS 9
IN TR O D U ÇÃ O
A GNOSK E O IMAGINÁRIO DO SISTEMA MUNDIAL
colonial/ MODERNO 23
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P A R T E SO U O QUE PENSO
A GHOrOLtllCA D O CONHHOMFNTO FA S D//7ttfcVptSCOLOSIAIS
KHSTfMKAS
*
CAPÍTULO VI BILINGUAJANDO O AMOR
PENSANDO ENTRE LÍNGUAS 340
POSFÁCIO
UMA OirTRA LÍNGUA, UM OUTRO PENSAMENTO,
UMA OUTRA LÓGICA 421
BIBLIOGRAFIA 455
\
r
PREFÁCIO E AGRADECIMENTOS
10
247-256; 303-311), visto da perspectiva subalterna, o lócus
fraturado da enunciação define o pensamento liminar como
uma reação à diferença colonial. “Nepantla”, palavra cunhada
por um falante de Nahuatl na segunda metade do século 16,
é outro exemplo do pensamento liminar. “Estar ou sentir-se
entre”, como se poderia traduzir a palavra, pôde sair da boca
de um ameríndio, nào de um espanhol (cf. Mignolo, 1995b). A
diferença colonial cria condições para situações dialógicas nas
quais se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação
fraturada, como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica.
Assim, o pensamento liminar é mais do que uma enunciação
híbrida. É uma enunciação fraturada em situações dialógicas
com a cosmologia territorial e hegemônica (isto é, ideologia,
perspectiva). No século 16, o pensamento liminar permaneceu
sob o controle dos discursos coloniais hegemônicos. É por isso
que a narrativa de Waman Puma só foi publicada em 1936, ao
passo que os discursos coloniais hegemônicos (mesmo quando
críticos da hegemonia espanhola, como Bartolomé de las
Casas) foram publicados, traduzidos e amplamente divul
gados, aproveitando a emergência da imprensa. Ao fim do
século 20 o pensamento liminar já não pode ser controlado.
Oferece novos horizontes críticos em face das limitações às
críticas internas às cosmologias hegemônicas (tais como
marxismo, desconstrucionismo pós-moderno, ou análise de
sistemas mundiais).
A decisão de situar meu argumento dentro do modelo do
mundo colonial/moderno e não de acordo com a cronologia
linear que vai do moderno precoce ao moderno e ao moderno
tardio prende-se à necessidade de ultrapassar a linearidade
no mapeamento geoistórico da modernidade ocidental. A
densidade geoistórica do sistema mundial colonial/moderno,
suas fronteiras internas (conflitos entre impérios) e externas
(conflitos entre cosmologias) não podem ser apreendidas e
teorizadas de uma perspectiva inerente à própria modernidade
(como ocorre com a análise do sistema mundial, a descons-
trução e as diferentes perspectivas pós-modernas). Por outro
lado, a atual produção intelectual que se autodenomina
teoria crítica ou estudos “pós-coloniais” inicia-se no século 18,
descartando um momento crucial e formador da modernidade/
colonialidade, que foi o século 16.
A principal pesquisa para este livro foram conversas —
conversas de vários tipos, com estudantes dentro e fora da
li
sala de aula, com colegas e estudantes na -América Latina e
nos Estados Unidos, estudantes da graduação, colegas e estu
dantes da pós-graduação dentro e fora da Universidade de
Duke, e com todo tipo de pessoas estranhas à academia, desde
motoristas de táxi até médicos, de empregadas domésticas na
Bolívia até executivos de pequenas indústrias, todos os que
têm algo a dizer sobre suas experiências com histórias locais
e sua percepção de projetos globais. Não foram “entrevistas”,
apenas conversas, conversas informais. Embora inicialmente
não planejasse que essa pesquisa resultasse num livro, eu
pretendia, sim, escrever artigos sobre uma série de questões
que, como explico na Introdução, vieram à tona por volta de
1992. Tomei a decisão de adotar as conversas como método
de pesquisa no primeiro semestre de 1994. Eu havia terminado
o manuscrito de The Darker Side o f the Renaissance no verão
de 1993 e não estava disposto a iniciar outro longo e complexo
projeto de pesquisa, nem tinha uma idéia clara do que queria
fazer em seguida. Ademais, fui nomeado chefe do Departa
mento de Estudos Romãnicos, e, como todos sabemos, o
trabalho administrativo não inspira projetos de pesquisa.
Resolvi então que nos próximos três ou quatro anos iria
dedicar-me a conversar e escrever sobre questões ligadas
à colonialidade e à globalização, partindo do século 16 ,
primeiro período da globalização, até os séculos 19 e 20. Quando
falo de conversas, não me refiro a declarações que possam
ser gravadas, transcritas e usadas como documentos. Geral
mente as conversas mais significativas foram comentários
ocasionais, feitos de passagem, sobre um acontecimento, um
livro, uma idéia, uma pessoa. São documentos que não podem
ser transcritos, conhecimento que vem e vai, mas permanece
na mente e altera um determinado argumento. Essas conversas
me permitiram executar duas tarefas paralelas: diálogos com
intelectuais da América Latina, especialmente nos Andes e
no México; e a integração de docência e pesquisa, pois o que
se lerá neste livro foi inicialmente apresentado e discutido
em seminários de pós-graduação na Universidade de Duke e
na América Latina. O livro segue o trajeto dessas conversas,
e sou agradecido principalmente às pessoas que, com sua sabe
doria, guiaram meu pensamento, embora não possa citar o que
disseram, de que talvez elas nem se lembrem. Um sussurro
anônimo constitui os “dados” deste livro, além, evidentemente,
12
da bibliografia citada no fim. Mas trata-se também de um diá
logo indireto com Immanuel Wallerstein e Samuel Huntington.
No caso do primeiro, trabalho com seus conceitos de sistema
mundial moderno (1974) e com sua geopolítica e geocultura
(1991a). No segundo, Samuel Huntington (1996), com seus
conceitos de civilização, choque de civilização (para o qual o
pensamento liminar é uma saída) e, sobretudo, de “civilização
latino-americana”. Contesto a ambos, com base na história
espacial do mundo colonial/moderno e das relações entre a
América Latina e os Estados Unidos depois de 1848. Em resumo,
minha conversa com os dois autores diverge da perspectiva
das humanidades em diálogo com as ciências sociais. Indire-
tamente, este livro foi escrito com a convicção de que as huma
nidades perderam terreno depois da Segunda Guerra Mundial
e não reagiram diante da crescente influência das ciências
sociais e naturais. Os “Estudos Culturais” preencheram o hiato
de forma dispersa, como nos estudos étnicos ou de gênero.
O “affair Sokal”, que apareceu em Social Text, foi possível
precisamente em razão da falta de uma forte filosofia que
congregasse as humanidades no “confronto” com as ciências
naturais e as ciências sociais (“duras”). Se a razão alicerçava a
universidade kantiana, a humboldtiana baseava-se na cultura,
e a universidade neoliberal na excelência e no conhecimento
especializado, há que se contemplar uma universidade futura
(ou pós-histórica; Readings, 1996: 119-134) na qual as huma
nidades se rearticulem em função de uma crítica do conheci
mento e das práticas culturais. É dessa perspectiva, da pers
pectiva das humanidades, que me engajo no diálogo indireto
com as ciências sociais através de Wallerstein e Huntington.
Mas faço-o também da perspectiva do pensamento latino-
americano, através de Anibal Quijano, Enrique Dussel, Silvia
Rivera Cusicanqui, Salazar Bondy, Rodolfo Kusch e Nelly
Richard, entre outros. O diálogo também resulta das contri
buições de latino-americanos/as nos Estados Unidos, como
as de Gloria Anzaldúa, Norma Alarcón, Francês Aparicio, José
Saldívar, David Montejano, Rosaura Sánchez, José Limón e
Gustavo Pérez-Firmat, entre outros. Finalmente, entro nesse
diálogo com uma dupla perspectiva: da estrutura do conheci
mento (humanidades e ciências sociais) e das sensibilidades
de determinados locais geoistóricos na formação e transfor
mação do mundo colonial/moderno.
13
Minha primeira experiência nesse sentido foi um seminário
de duas semanas que coordenei no Instituto de Pesquisas
Sociais na Universidade de Puebla, México, no verão de 1994.
O tema foi “a razão pós-colonial”, embrião do que é agora o
Capítulo II. Fui convidado por Raul Dorra, Luisa Moreno, e
Marisa Filinich, que dirigiam uma oficina dentro do Instituto de
Pesquisas Sociais. Meus primeiros agradecimentos dirigem-se,
pois, a eles e a Alonso Vélez Pliego, diretor do Instituto. Enrique
Dussel proferiu uma das palestras do seminário sobre a colo
nização e o sistema mundial, uma das primeiras versões de
um artigo recentemente publicado com o título “Beyond
Eurocentrism: The World System and the Limits of Modernity”
(Dussel, 1998a). Não apenas temos mantido contato desde
esse encontro como também minhas próprias reflexões —
como o leitor logo observará — foram muito influenciadas
pelas de Dussel, no que diz respeito à articulação de moder
nidade, colonialidade e do sistema mundial.
O texto iniciador das mediações que resultaram neste
livro foi “The Postcolonial Reason: Colonial Legacies and
Postcolonial Theories”, inicialmente redigido para o congresso
sobre Globalização e Culturas, organizado por Fred Jameson,
Masao Miyhosi, et al., realizado na Universidade de Duke em
novembro de 1994. Reescrito em espanhol, o artigo foi publi
cado no Brasil (Mignolo, 1996a), na Alemanha (Mignolo,
1997c), e na Venezuela (Mignolo, 1998). Menciono essas
reimpressões por se relacionarem com a subalternização do
conhecim ento. Se a publicação for em inglês, há menos
necessidade de reimpressão por causa da circulação mais ampla.
Quando se publica em espanhol, as publicações geralmente
não ultrapassam o circuito local. Reescrito em inglês mais
uma vez, o texto passou a ser “The Post-Occidental Reason” e
é agora o Capítulo II deste livro.
O seminário em Puebla foi o primeiro de uma longa série
de palestras e seminários que fiz na América Latina (Argentina,
Brasil, Bolívia, Colômbia). A lista de pessoas a quem devo
agradecimentos é demasiado extensa. Limito-me a agradecer
primeiro aos participantes de todos aqueles seminários, estu
dantes da pós-graduação e colegas. Em segundo lugar, gostaria
de agradecer pessoalmente aos que me convidaram e com quem
mantive conversas mais longas e continuadas. Na Argentina,
Enrique Tandeter e Noé Jitrik, da Universidade Nacional de
14
Buenos Aires; Laura e Mónica Scarano e Lisa Braclford, da
Universidade de Mar dei Plata; Mirta Antonelli, da Universi
dade de Córdoba; e David Lagmanovich e Carmen Pirilli, da
Universidade de Tucumán. Na Bolívia, tenho uma grande dívida
para com Javier Sanjinés, por me ter apresentado a muitos
grandes pensadores bolivianos para os quais a colonialidade,
longe de ser algo confinado ao passado, continua viva e vigo
rosa nos Andes hoje. Também na Bolívia, Guillermo Mariacca
e Ricardo Kaliman convidaram-me para as primeiras Jornadas
de Literatura Latino-Americana (em 1993) e para proferir uma
conferência na Faculdade de Humanidades da Universidade
de San Andrés. Essa visita a La Paz na verdade orientou grande
parte deste livro. Na Colômbia Carlos Rincón e Hugo Nino
facultaram-me experiências pessoais e conversas com colegas
e estudantes da pós-graduaçào em Bogotá e Cartagena de índias.
No Brasil devo a Jorge Schwartz e Ligia Chiapini o convite
para, por duas vezes, participar de oficinas e conferências no
centro Angel Rama e no Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo; a Ana Lúcia Gazzola, a organi
zação de um “tour” pelo Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais
e Sào Paulo, em maio de 1995; a Juan Carlos Olea e Rebecca
Barriga, o convite para dirigir um seminário em El Colégio de
México, em maio de 1997.
De todos esses seminários com colegas e estudantes de
pós-graduaçào aprendi, antes de tudo, a avaliar histórias
locais dentro de projetos globais: a pesar histórias locais e inte
resses na América Latina e nos Estados Unidos — a prosseguir
refletindo sobre meu próprio lugar como latino-americano
(hispânico) e como especialista em estudos latino-americanos
nos Estados Unidos (Mignolo, 1991); a avaliar até que ponto
o fim da Guerra Fria estava influindo sobre os “Estudos Latino-
Americanos”, um projeto acadêmico entranhado em projetos
globais (isto é, estudos de área); a avaliar como “pensamentos
latino-americanos” (um empreendimento filosófico voltado
sobretudo para a definição e recolocação de uma identidade
que, paralelamente à construção nacional latino-americana,
estava sendo alocada pelos novos impérios coloniais) também
estavam mudando, com o fim da Guerra Fria. Conseqüen-
temente aprendi também que as disciplinas das “ciências
humanas” já não podem permanecer como árbitro intelectual
de projetos globais desvinculados das histórias locais. Aprendi,
15
finalmente, que a globalização estava crianclo condições para
a construção de saberes que se desviam da força latente dos
saberes que tinham sido eliminados nas histórias locais; o
quanto tal construção, enfrentando a inevitável difusão cia
epistemologia moderna e ocidental, teve, para obter êxito,
de atuar nas margens, pois a fronteira divisória e a afirmação
de “autenticidade” contribuiríam para a supressão do saber nas
fronteiras internas e externas do sistema mundial moderno.
O que essa experiência também me ensinou foi uma
suspeita, sobretudo no Cone Austral e na Colômbia, sobre a
colonialidade e a pós-colonialidade. A suspeita ligava-se
geralmente à confiança em conceitos e teorias de pensadores
europeus. O fato de que a independência da maioria dos
países latino-americanos foi conquistada no início do século
19 significava que o foco da discussão passava a ser a moder
nidade, e não a colonialidade; a pós-moderniclade e não a
pós-colonialidade. Esforcei-me, neste livro, por compreender
por que as coisas são como são e por distinguir o “período
colonial” (expressão referente sobretudo á colonização espa
nhola e portuguesa) da “colonialidade do poder” que hoje
continua viva e saudável sob a nova forma da “colonialidade
global”. Também adquiri a suspeita, em diversos lugares, de
que os estudos culturais e a pós-colonialidade eram modas
imperiais que estavam sendo importadas para a América Latina.
O que me chamou a atenção, entretanto, foram os entusiás
ticos partidários e mediadores do pensamento da Europa
Ocidental, Derrida, Lacan, Foucault, da Escola de Frankfurt,
de Raymond Williams. Isso pareceu-me um exemplo muito
sugestivo para a compreensão da colonialidade do poder e
do conhecimento na América Latina, onde a Europa ainda
mantém sua posição epistemológica hegemônica, ao passo
que os Estados Unidos, especialmente depois de 1898, trans-
formaram-se no “outro imperial”. Tive também outra surpresa
no Brasil. Em contraste com minha experiência em países
latino-am ericanos, encontrei uma tendência crítica, mas
também mais generosa, para receber e avaliar teorias “estran
geiras”, sejam da Europa ou dos Estados Unidos. Talvez a
figura dominante de Milton Santos tenha tido algo a ver com o
tipo de conversas em que me envolvi. Não foi por acaso que,
na Bahia, depois de uma de minhas conferências, chamaram
minha atenção para o nome desse arquiteto, ambientalista e
16
teórico da globalização. Suas opiniões, bem como as de outros
participantes em conferências e livros organizados por ele,
influíram sobre os Capítulos III e VII.
Na Universidade de Duke, as principais conversas que se
mostraram decisivas para a construção deste livro ocorreram
em seminários de pós-graduação e graduação, e em duas
oficinas internacionais e interdisciplinares, “Globalização e
Cultura” (novembro de 1994) e “Recolocação de Línguas e
Culturas” (maio de 1997). A primeira oficina, organizada por
Fredric Jameson e Masao Miyoshi, com a colaboração de Ariel
Dorfman, Alberto Moreiras e minha, muito influiu sobre a
concepção geral do livro. O Capítulo VII é a versão de um paper
que li naquela conferência. E uma versão inicial, mimeografada,
do Capítulo II apareceu no “Workshop Reader”. A segunda
oficina, organizada por mim com a participação de um grande
comitê dirigente com posto por colegas e estudantes da
graduação e pós-graduação, foi igualmente importante para tudo
que tenho a dizer neste livro, sobre língua, transnacionalismo
e globalização (Capítulos V, VI e VII). Os colegas e estudantes
da pós-graduação e da graduação, com quem discuti os
problemas relacionados com os temas da conferência, são Mi riam
Cooke, Leo Ching, Eric Zakim, Mohadev Apte, Catherine Ewin,
Teresa Vilarós, Lynn Jam es, Helmi Balig, Alejandra Vidal,
Gregory P. Meyjes, Jean Jonassaint, Chris Chia, Ifcoma Nwankwo,
Meredith Parker, Benjamin B. Au e Roberto González. O Capí
tulo V é uma versão ampliada de um artigo que escrevi antes,
que foi a plataforma da segunda oficina.
Entre o segundo semestre de 1994 e o primeiro semestre
de 1997 ocorreram duas experiências docentes paralelas.
Primeiramente, Bruce Lawrence, que dirigiu “Globalização e
Mudanças Culturais”, uma das unidades de Focus (programa
interdisciplinar destinado aos estudantes de primeiro ano no
semestre inicial na Universidade de Duke) transferiu a direção
para mim. Dirigi o programa, lecionando nele, de 1994 a 1997.
Como cada unidade de Focus compõe-se de quatro seminários
— e, portanto, de quatro professores, um assistente, estu
dante da pós-graduação, e um estudante da pós-graduação
encarregado da disciplina Composição em Inglês — e como
o programa se constitui de um constante fluxo de conversas
interativas entre os estudantes e os assistentes, tirei enorme
proveito dessa experiência. Não apenas porque adquiri mais
17
“conhecimento” mas sobretudo porque discutir problemas da
globalização com os estudantes recém-saídos do curso secun
dário foi um bom aprendizado. Meus agradecimentos, portanto,
aos colegas e estudantes da pós-graduaçào que participaram
dessa experiência: Bruce Lawrence, Marcy Little, Miriam
Cooke, Bai Gao, Orin Starn, Michael Hardt, Sybille Fischer,
Silvia Tendeciarz, Freya Schiwy e Pramod Mishra.
Em 1994, Miriam Cooke e eu organizamos um seminário de
três anos sobre o legado colonial e a teorizaçào pós-colonial.
Miriam encarregou-se principalmente da África do Norte e do
Oriente Médio e eu da América Latina, incluindo o Caribe e a
questào latino/a nos Estados Unidos. Além dessa configuração
geoistórica, resolvemos concentrar o primeiro seminário na
língua, o segundo no espaço, e o terceiro na memória. Infeliz-
niente, Miriam entrou em licença sabática e eu tive de conduzir
sozinho o segundo seminário, sobre o espaço. Contudo, a
experiência de conceber mentalmente o seminário e de dividir
as aulas em dois deles, náo apenas ensinou-me muito sobre
áreas do mundo sobre as quais pouco sabia, mas também
estabeleceu um diálogo frutífero cujas conseqüências sào
evidentes em todo o livro. Agradeço novamente a Miriam
Cooke por organizar uma oficina sobre Estudos Mediterrâneos,
na Tunísia. O convite que me fez para participar da oficina
deu-m e, durante três dias, a oportunidade de ouvir as
apresentações de intelectuais tunisianos e de conversar com
eles fora da sala de conferências.
Findo o seminário de três anos, dividi com Irene Silverblatt,
no segundo semestre de 1997 e no primeiro de 1998, a coorde
nação de um seminário de graduação e um de pós-graduaçào
sobre modernidade, colonialidade e a América Latina. Além
de todas as atrações desses seminários, para os quais os estu
dantes contribuíram amplamente, a experiência mais marcante
para mim foi a diferença de tratamento do mesmo tópico na
pós-graduaçào e na graduaçào (principalmente do terceiro e
quarto anos), pois o seminário versou exatamente sobre o
mesmo tema mas em níveis diferentes. Ademais, ambos os
seminários integravam o programa sobre estudos culturais
latino-americanos.
Finalmente, no primeiro semestre de 1998, Enrique Dussel
e eu dividimos a orientaçào de um seminário sobre formas
18
alternativas de racionalidade. Esse seminário, mais as longas
conversas antes das aulas e em ambientes diferentes, foi real
mente uma experiência crucial para a formulação do “pensa
mento liminar” neste livro, bem como para confirmar minhas
dúvidas e divergências anteriores, com a enorme contribuição
intelectual de Dussel para diversas das questões discutidas
neste livro. Esse seminário foi decisivo para as mudanças que
introduzí no Capítulo III, anteriormente publicado como artigo
(Mignolo, 1995c). Elizabeth Mudimbe-Boyi (que infelizmente
deixou Duke no outono de 1994) e depois Jean Jonassaint
aproximaram la Francophonie da universidade e de meus
próprios interesses. A aproximação feita por Jonassaint foi
literal, pois, nos últimos três anos, trouxe a Duke líderes da
intelligentsia francófona e caribenha.
Em todos esses anos, a participação ativa dos estudantes da
pós-graduaçào foi na verdade tão proveitosa como o diálogo com
meus próprios colegas. Não é possível mencionar os nomes
de todos os estudantes que participaram dos quatro semi
nários, mas gostaria de lhes agradecer coletivamente. Gostaria
de mencionar, entretanto, os nomes dos estudantes cujas disser
tações se relacionaram intimamente com os problemas discutidos
neste livro e que influenciaram minhas próprias perspectivas.
Cronologicamente, Juan Poblete mostrou-me um novo pano
rama sobre a política do Chile relativa à língua e à literatura
no século 19. Com Verônica Feliú aprendi a avaliar melhor
as dificuldades de escrever “daqui” “sobre pessoas” de lá,
especialmente porque Verônica, que participou da ação polí
tica de mulheres chilenas no fim dos anos 80, escreveu uma
dissertação a respeito do assunto em meados dos anos 90.
José M unoz, que já estava terminando o curso de pós-
graduaçào quando cheguei a Duke, trouxe-me uma nova pers
pectiva sobre as políticas de identidade, com suas reflexões
sobre desidentificaçào étnica e sexual. Ifeoma Nwankwo
trouxe sua perspectiva de jamaicana nos Estados Unidos e
ensinou-me a refletir sobre as diferenças entre os afro-cari-
benhos e afro-americanos. Chris Chia mostrou-me a importância
de Gloria Anzaldúa para um estudante chinês de pós-graduaçào
chegando a Duke no início dos anos 90, e mostrou-me
como escrever sobre a história cultural norte-americana da
perspectiva de “alguém de fora”. Com Zilkia Janer aprendi a
pensar mais detalhadamente sobre o colonialismo nacional
19
cm Porto Rico, e com Lucía Suárez a imaginar conexões inter-
lingüísticas entre escritoras caribenhas usando inglês, francês
e espanhol. Com Pramod Mishra mantive longas conversas
sobre suas opiniões a respeito da cultura e da literatura
sulistas nos Estados Unidos, misturadas com seus contos
autobiográficos sobre o Nepal e a índia. Muito devo a Shireen
Lewis por escrever uma dissertação sobre “Negritude”, “Anti-
llanité” e “Créolité”, desdobrando um panorama de quase um
século de produção intelectual afro e afro-caribenha, de modo
que devo agradecer pelas conversas que tivemos no decorrer
do processo. Fernando Gómez fez-me refletir sobre a diferença
entre escrever “utopias” na Europa e sobre o “planejamento”
de utopias por frades franciscanos do Novo Mundo. Final
mente, sou grato a Marc Brudzinski e Doris Garroway por
organizar uma esplêndida conferência sobre a pós-coloniali-
clade e o Caribe. O desenrolar dessa conferência demonstrou
que o Caribe, longe de ser uma ilha repetitiva, é uma complexa
configuração histórica de colonialismos rivais na estrutura
cambiante do sistema mundial colonial/moderno.
Fora da Universidade de Duke duas experiências de diá
logo foram importantes para configurar a parte final do livro.
Uma diz respeito às discussões dentro do Grupo de Estudos
Subalternos Latino-Americanos do qual me tornei membro
em fevereiro de 1994. O Capítulo IV é uma ilustração direta
de minha dívida para com o grupo. Devo a segunda expe
riência a Kelvin Santiago e Agustin Lao, que gentilmente me
convidaram para participar do grupo de trabalho sobre a
colonialidade do poder. No ano passado, houve discussões
e conversas com membros do grupo, as quais influenciaram
significativamente a versão final do manuscrito. Quanto a
indivíduos fora de Duke, continuo a agradecer, pelo que
escrevem e pelo que dizem, a Norma Alarcón, Francês Aparicio,
Fernando Coronil e Jo sé Saldívar. Agradeço a Roberto
Fernández Retamar, em primeiro lugar por sua generosidade
intelectual; por ser o único intelectual hispano-americano que
conheço que considera a Revolução Haitiana um aconteci
mento crucial para a formação da modernidade/colonialidade
caribenha e latino-americana; também por possibilitar o
prosseguimento de nossas conversas em Cuba em janeiro de
1998; e por possibilitar conversas com outros intelectuais
cubanos. Meu contato pessoal com Michel-Rolph Trouillot
20
veio tarde, em março de 1998, embora seu trabalho sobre a
Revolução Cubana já fizesse parte de minhas próprias reflexões.
Entre aquele ano e as correções finais do manuscrito tive,
contudo, três oportunidades de falar com ele e de ouvi-lo.
Nessas conversas, percebi afinidades entre o seu projeto e o
meu, das quais antes nào tomara consciência apenas pela leitura
de sua obra, especialmente de seu último livro, Silencing the
Past (1995). Lembrei-me constantemente delas enquanto fazia
as correções finais. Eduardo Mendieta e Santiago Castro-Gómez
também entraram no domínio de conversações nos dois últimos
anos, mas ambos contribuíram com sua formação filosófica
para uma discussão que ocorreu principalmente — com exceção
de Enrique Dussel — entre críticos literários e culturais, antro
pólogos, historiadores (incluindo historiadores de religiões)
e sociólogos. Ramón Grosfoguel ensinou-me a considerar a
teoria da dependência no contexto do sistema mundial e a
repensar Porto Rico no horizonte colonial da modernidade.
Uma última consideração, não menos importante, é sobre
o muito que devo a colegas e amigos de Duke que ainda não
mencionei: Ariel Dorfman, por muitas razões, mas sobretudo
por escrever Heading South, Looking North (1998) e por me
contar, antes de terminá-las, histórias sobre sua experiência
bilíngue. Agradeço também a Gustavo Pérez-Firmat por
escrever Next Yearin Cuba (1995) e por expressar constante
mente suas dúvidas a respeito do que escrevo. Nos Capítulos
V e VI trato, num estilo argumentativo, de problemas que
Dorfman e Pérez-Firmat projetaram em poderosas e sedu
toras narrativas. Discussões no Grupo de Trabalho Marxista,
conduzidas por Fred Jameson e Michael Hardt, também foram
decisivas para a compreensão e a elaboração do problema
do marxismo nas Américas e das compatibilidades e incom
patibilidades entre o marxismo do Sul e o do Norte. Neste
livro, desenvolvi o assunto através das reflexões de José Aricó
sobre o marxismo e a América Latina.
Sou também grato a Gabriela Nouzeilles e Alberto Moreiras
por nossas longas e repetidas conversas que, entre outras coisas,
redundaram no projeto de publicação da revista Nepautla.
Views fro m South, que breve virá à luz; a Tereza Vilarós por
trazer a Duke uma Espanha multilíngüe e multinacional; a
Cathy Davidson por iniciar o diálogo entre “Estudos (Norte-)
Americanos” e “Estudos Latino-Americanos”; a Karla Holloway
21
e Rick Powell por abrir uma nova perspectiva para problemas
afro-americanos neste país; a Rick particularmente pelo
esforço de apontar as conexões entre a arte negra norte-
americana e a latino-americana; e a Andréa Giunta, dentro
do mesmo espírito, por me mostrar os elos entre ideologias
de desenvolvimento e a teoria da dependência, por um lado, e,
por outro, entre produção artística, museus e exposições inter
nacionais financiadas por instituições privadas na América
Latina depois dos anos 60. Desejo também agradecer a Leo
Ching, que me orientou a respeito de algumas leituras básicas
sobre o colonialismo e a tomada de contato do Japào com o
sistema mundial colonial/moderno; a John Richards, por me
deixar partilhar suas obsessões, tratadas em grupos de leitura
e de trabalho sobre o atual significado e as possibilidades de
uma história mundial e/ou universal; a Sucheta Mazundar,
que colocou a China em contato com as Américas para mim;
a Erik Zakim, que participou de um dos seminários que coor
denei com Miriam Cooke e relacionou, tanto no seminário
como em suas obras publicadas, a questào judaica com a (pós-)
colonial; a Jean Sullivan-Beals, pelo apoio e por ajudar a compor
o primeiro rascunho do manuscrito; a Avital Rosenberg, pela
paciência de montar a versào final.
Pramod Mishra reapareceu na última fase do livro, lendo
a versào final do manuscrito e contribuindo com sua habili
dade de escritor, suas experiências coloniais no Nepal, e sua
competência como professor de redação em inglês. Valentin
Mudimbe e Nick Dirks tiveram a gentileza de me convencer
de que o manuscrito era promissor quando viram sua primeira
versão. Finalmente meus agradecimentos a Mary Murrell, da
Editora da Universidade de Princeton, por seu entusiasmo e
profissionalismo.
22
I N T R O D U Ç Ã O
24
artigo com lim longo parágrafo que gostaria de reproduzir
aqui, agora como paralelo temático à afirmativa de Weber:
25
de se construírem novos loci de enunciaçâo e para a reflexão de
que o “conhecimento e compreensão” acadêmicos devem ser
complementados pelo “aprender com" aqueles que vivem e
refletem a partir de legados coloniais e pós-coloniais, de Rigoberta
Menchú a Angel Rama. Do contrário, corremos o risco de estimular
a macaqueaçào, a exportaçào de teorias, o colonialismo (cultural)
interno, em vez de promover novas formas de crítica cultural de
emancipação intelectual e política — de transformar os estudos
coloniais e pós-coloniais em um campo de estudo em vez de
um lócus de enunciaçâo liminar e crítico. O “ponto de vista
nativo” também inclui os intelectuais. Na divisáo de trabalho
científico depois da Segunda Guerra Mundial, táo bem descrita
por Carl Rletsch (1981), o Terceiro Mundo produz não apenas
“culturas" a serem estudadas por antropólogos e etno-historia-
dores, mas também intelectuais que geram teorias e refletem
sobre sua própria história e cultura (Mignolo, 1993a: 129-130.
26
Historicamente, a emergência do individualismo como força
motivadora na sociedade ocidental pode ter sido entrelaçada
com tradições políticas, econômicas, éticas e religiosas alta
mente particularizadas. Parece razoável que se possa endossar
uma percepção do eu como base para a igualdade e a liberdade,
sem aceitar a idéia de Locke a respeito da propriedade privada,
de Adam Smith e Hobbes sobre o interesse privado, a idéia de
John Stuart Mill a respeito da privacidade, a idéia de Kierkegaard
sobre a solidão, ou a idéia de liberdade na obra inicial de
Sartre (l 19851 1993: 78).
27
próprias científicas mas, em vez disso, podem ser conhecidas
através das abordagens científicas da epistemologia ocidental.
Na passagem anterior, Tu Wei-ming sugere claramente que um
estágio pós-ocidental está sendo elaborado e que tal estágio
constitui um ponto sem volta, rasurando a diferença episte-
mica colonial e incorporando a perspectiva daquilo que vem
sendo considerado uma forma subalterna de «conhecimento.
Por outro lado, na perspectiva de intelectuais chineses esquer
distas, poder-se-ia criticar Tu Wei-ming por apoiar o uso do
confucionismo na China visando combater a ideologia do capi
talismo ocidental com uma ideologia de capitalismo oriental.
Ou poderia ser criticado também por usar a própria lógica de
Weber para criticar a ética protestante na perspectiva da ética
confuciana (Wang, 1997: 64-78). Ambos os casos, entretanto,
introduzem um novo jogador na partida, embora nào o jogador
ideal para todos os técnicos envolvidos. Poderiamos imaginar
roteiros semelhantes no futuro, nos quais as religiões subal
ternas ocuparão o lugar esvaziado pelo colapso histórico do
socialismo. Também poderiamos imaginar que elas poderíam
ser usadas para justificar a expansão capitalista além do
Ocidente e para combater o cristianismo e a ética protestante
sobre os quais o capitalismo ocidental alicerçou seu imagi
nário e sua força ideológica. Essa possibilidade nào impede
o confucionismo e outras formas de conhecimento subalterno
de serem praticados com diversos objetivos. Uma vez que as “auten-
ticidades” já nào estão em causa, restam as marcas deixadas
pela diferença colonial e a colonialidade do poder, articulando
tanto a luta por novas formas de dominação (por exemplo,
confucionismo e capitalismo) quanto as lutas por novas formas
de libertação. Enfatizo “libertação” porque estou argumen
tando aqui na perspectiva das fronteiras externas do sistema
mundial colonial/moderno. E todos nós sabemos que “eman
cipação” é o termo usado para o mesmo propósito dentro das
fronteiras internas do sistema mundial colonial/moderno.
De qualquer forma, o ponto para o qual gostaria de chamar
a atenção pode ser sublinhado pela elegante e sucinta formu
lação de Tu Wei-ming ao fim da introdução a Confiician Thought:
28
tentativas, longe de transmitir e interpretar a concepção confuciana
cia essência do eu, sugerem estratégias para explorar os ricos
recursos da tradição confuciana de modo que possam ser utili
zados na difícil tarefa de interpretar a essência confuciana do
eu como transformação criativa ([ 19851 1993: 16).
29
além da universalização tanto do neoliberalismo ocidental
como do neomarxismo ocidental. Contudo, preciso agora
declarar que minhas referências a Tu Wei-ming e Deloria não
foram feitas com a intenção de propor que o confucionismo
ou as religiões dos índios norte-americanos necessariamente
constituem alternativas para o protestantismo. Muito pelo
contrário, foram feitas para sugerir que a ética protestante não
era necessariamente uma alternativa nem para o confucionismo
nem para as religiões dos índios norte-americanos (Deloria,
1999; Churchill, 1997), e, sobretudo, para ressaltar um dos
principais argumentos deste livro. Se os estados-nações já
não são concebidos em sua homogeneidade, se a produção
de bens já não está ligada a um país (haja vista, por exemplo,
os vários lugares envolvidos na indústria de automóveis),
então já não devemos também conceber como homogêneas a
ética protestante ou a de Confúcio ou as religiões de índios
norte-americanos. Portanto, as relações entre fé e conheci
mento, distinção que devemos à concepção moderna e secular
de epistemologia, precisam ser repensadas. Essa é a principal
razão que me levou a comparar Tu Wei-ming e Deloria com
Weber. Embora, se eu tivesse de escolher, escolhería a segunda
possibilidade. A boa nova é que temos outras escolhas, até a
possibilidade de preferir pensar nas e a partir das margens,
de adotarmos o pensamento liminar como uma futura ruptura
epistemológica. Tu Wei-ming e Deloria não estão interpre
tando, traduzindo de uma perspectiva ocidental hegemônica,
ou transmitindo saber na perspectiva dos estudos de área.
Suas reflexões analíticas e críticas (mais do que “estudos reli
giosos”) engajam-se num poderoso exercício de pensamento
liminar sob a perspectiva da subalternidade epistemológica.
Alternativas para a epistemologia moderna dificilm ente
nascerão apenas da epistemologia (ocidental) moclenia.
n
Permitam-me explicar minha concepção de pensamento
liminar introduzindo “gnose” como um termo que evitaria o
confronto — na epistemologia ocidental, entre epistemologia
e hermenêutica, entre as ciências nomotéticas e ideográficas. A
gnose permite falar de um “conhecimento” além das culturas
30
acadêmicas. Gnose e gnosiologia nào sào hoje em dia palavras
familiares dentro das culturas acadêmicas. Familiares sào
palavras como epistemologia e hermenêutica, que sào as bases
das “duas culturas”, as ciências e as humanidades. Na verdade,
hermenêutica e epistemologia sào mais familiares porque
vêm sendo articuladas dentro da cultura acadêmica desde o
Iluminismo. A partir daí, a hermenêutica foi remodelada em
termos mais seculares que bíblicos e a epistemologia também
foi remodelada e deslocada de seu sentido filosófico original
(referente ao conhecimento verdadeiro, episteme, em contraste
com opinião, doxa, e situada como reflexào a respeito do
conhecimento científico). Coube à hermenêutica o domínio
do sentido e da compreensão humana e à epistemologia, o do
conhecimento e da verdade. Assim, as duas culturas discu
tidas por Snow (1959) nasceram como uma reconversão do
campo do conhecimento na segunda fase da modernidade,
localizada no Norte da Europa e desenvolvida nas três principais
línguas do conhecimento a partir de então (inglês, francês,
alemão). Esse arcabouço é crucial para minha discussão no
decorrer de todo este livro. A gnose pertencia a esse campo
semântico, embora tenha desaparecido da configuração oci
dental do saber, depois que uma certa idéia de racionalidade
começou a ser formada e diferenciada de formas de conheci
mento consideradas duvidosas. A gnose foi na verdade apro
priada pelos gnósticos 0 onas> 1958), um movimento religioso
e remissório hostil ao cristianismo, de onde decorre a recepção
negativa dada ao “gnosticismo” no moderno mundo colonial
(da Renascença até o pós-Guerra Fria). Contudo, essa nào é
a genealogia que me interessa.
Embora a história seja mais complexa, o sumário que se
segue visa mapear meu uso da gnose e da gnosiologia. Os verbos
gignosko (saber, reconhecer) e epistemai (saber, ter conheci
mento de) sugerem uma conceitualização diferente do conheci
mento e do conhecer. A diferença, na obra de Platão, entre doxa
e episteme é bem conhecida, a primeira indicando um tipo
de conhecimento guiado pelo bom senso e a última um conhe
cimento de segundo grau, um conhecimento sistemático, orien
tado por regras lógicas explícitas. A gnose parece ter surgido
da necessidade de indicar um tipo secreto de conhecimento. Os
filólogos gregos, entretanto, recomendam que nào se estabe
leça uma distinção rígida entre gnose e episteme e sim que se
examinem seus usos específicos em cada autor.
31
Ora, o Oxford Companion o f Philosophy associa a gnosio-
logia à palavra grega significando “conhecimento” e, portanto,
não estabelece um contraste claro com episteme. Mas neste
ponto introduz-se uma distinção importante e moderna de
acordo com a qual a gnosiologia diz respeito a um tipo de
conhecimento não acessível à experiência dos sentidos —
conhecimento atingido através da contemplação mística ou por
puro raciocínio lógico e matemático. O interessante é que o
Oxford Companion o f Philosophy trai seu próprio posiciona
mento ao esclarecer que gnosiologia é um termo arcaico, suplan
tado pela epistemologia (no sentido moderno, pós-cartesiano
de razão e conhecimento) e pela metafísica, uma forma de concei-
tualização do conhecimento que se associou (em Heidegger e
Gadamer, por exemplo) ao sentido e à hermenêutica. Assim,
o termo gnosiologia, no início do mundo colonial moderno,
passou a designar o conhecimento em geral, ao passo que
epistemologia ficou restrita á filosofia analítica e à filosofia das
ciências (Rorty, 1982). No mundo alemão Erkenntnistheorie,
em francês théorie de la connaissance, e em espanhol teoria dei
conocimiento tornaram-se expressões equivalentes a gnosio
logia. Em espanhol, Ferrater Mora, ([19441 1969), por exemplo,
faz uma distinção entre “teoria dei conocimiento” e “epistemo
logia”, pelo fato de que a última diz respeito ao conhecimento
científico, enquanto a primeira refere-se ao conhecimento
em geral.
É interessante notar que Valentin Y. Mudimbe empregou
gnose no subtítulo de seu livro The Inuention o f África:
Gnosis, Philosophy and the Order o f Ktiowledge (1988). O livro
originou-se de um pedido para que escrevesse uma introdução
à filosofia africana. Como, na verdade, escrever uma história
dessas, sem destorcer o próprio conceito de filosofia?
M udim be expressa seu mal-estar ao ter de apresentar uma
visão panorâmica da filosofia como um tipo de prática disci
plinada imposta pelo colonialismo e, ao mesmo tempo, lidar
com outras formas indisciplinadas de conhecimento, reduzidas
a conhecimento subalterno pelas práticas coloniais discipli
nadas de investigação, rotuladas como filosofia e relacionadas
com a epistem ologia. O “sistema africano tradicional de
pensamento” opunha-se ã “filosofia” da mesma forma que o
sistema moderno ao tradicional: em outras palavras, a filosofia
tornou-se um instrumento para a subalternização de formas
32
de conhecim ento fora de suas fronteiras disciplinadas.
Mudimbe introduziu a palavra gnose para captar uma ampla
gama de formas de conhecimento que a “filosofia” e a
“epistemologia” haviam descartado. A apreensão da comple
xidade do conhecimento sobre a África, por aqueles que lá
viviam há séculos e pelos que lá foram para ocidentalizá-la,
exigia uma conceitualização da produção do saber que ultra
passasse as duas gnoses e fosse capaz de, simultaneamente,
enfatizar a relevância crucial do “sistema africano tradicional
de pensamento”. Mudimbe observou que, etimologicamente,
gnose liga-se a knosko, que no grego antigo significa “saber”.
Mas, mais especificam ente (Mudimbe observa), significa
“procurar saber, indagar, método de conhecimento, investi
gação e, mesmo, conhecimento de alguém. A palavra é
freqüentemente usada num sentido mais especializado, o do
conhecimento superior e esotérico.” (Mudimbe, 1988: ix).
Mudimbe tem o cuidado de especificar que gnose não equivale
nem a doxa nem a episteme. Episteme, Mudimbe esclarece,
significa tanto ciência quanto configuração intelectual sobre
o conhecimento sistemático, ao passo que doxa é o tipo cie
conhecimento de que a própria conceitualização de episteme
necessita como seu exterior: a episteme não é apenas a
conceitualização do conhecimento sistemático, mas é também
a condição de possibilidade da doxa; não é o seu antônimo.
Utilizando a configuração anterior do campo do conheci
mento na memória ocidental, usarei a palavra gnosiologia para
indicar o discurso sobre a gnose e tomarei gnose no sentido de
conhecimento em geral, incluindo doxa e episteme. A gnose
liminar, enquanto conhecimento em uma perspectiva subalterna,
é o conhecimento concebido das margens externas do sistema
mundial colonial/moderno; gnosiologia marginal, enquanto
discurso sobre o saber colonial, concebe-se na intercessão
conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos
colonialismos modernos (retórica, filosofia, ciência) e do conhe
cimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais
na Asia, África, nas Américas e no Caribe. A gnosiologia liminar
é uma reflexão crítica sobre a produção do conhecimento, a
partir tanto das margens internas do sistema mundial colonial/
moderno (conflitos imperiais, línguas hegemônicas, direcio-
nalidade de traduções etc.), quanto das margens externas
(conflitos imperiais com culturas que estão sendo colonizadas,
33
bem como as etapas subsequentes de independência ou descolo
nização). Exemplifico o conceito de margem interna com o
deslocamento da Espanha de sua posiçào hegemônica pela
Inglaterra no século 17, ou com a entrada dos Estados Unidos
e o gradativo deslocamento da Inglaterra de sua posiçào hege
mônica imperial, no concerto das nações imperiais em 1898.
Margens externas sào, por exemplo, as fronteiras com a Espanha
e o mundo islâmico, bem como com os incas ou astecas no
século 16, ou as que existiram entre os britânicos e os indianos
no século 19, ou as lembranças da escravidão no concerto das
histórias imperiais. Finalmente, a gnosiologia liminar poderia
ser contrastada com a gnosiologia ou epistemologia territorial,
a filosofia do conhecimento, como a conhecemos hoje (de
Descartes, a Kant, a Husserl e todas as suas ramificações na
filosofia analítica das línguas e na filosofia da ciência). Enquanto
a epistemologia é uma conceitualizaçào e reflexão sobre o
conhecimento articulado em harmonia com a coesào das línguas
nacionais e a formação do estado-naçào (ver Capítulo VI), a
gnose liminar constrói-se em cliálogo com a epistemologia a
partir de saberes que foram subalternizados nos processos
imperiais coloniais.
“Gnosticismo”, disse Hans Jonas (1958: 32), foi o nome de
numerosas doutrinas “dentro e à volta do cristianismo
durante seu crítico século inicial”. A ênfase era no conheci
mento (gnosis), tendo a salvação como objetivo final. Quanto
ao tipo de conhecimento indicado pela gnose, Jonas observa
que o termo em si é uma denominação formal que nào especifica
nem aquilo que se quer conhecer nem o aspecto subjetivo de
possuir conhecimento. A diferença em relaçao ao contexto
gnóstico pode ser situada no conceito de razào.
35
densidade, uma tensão entre a situação descrita e o local do
sujeito no interior da situação que está descrevendo.
36
colonial”), a classificação do planeta no imaginário colonial/
moderno praticada pela colonialidade do poder, uma energia
e um maquinário que transformam diferenças em valores. Se
o racismo é a matriz que permeia todos os domínios do imagi
nário do sistema mundial colonial/moderno, “ocidentalismo”
é a metáfora sobranceira, construída e reconstruída pelas
muitas mãos pelas quais passaram a história do capitalismo
(Arrighi, 1994) e as ideologias em transformação, motivadas
pelos conflitos imperiais. A emergência de novas áreas de
colonização teve de ser articulada dentro da conflituosa
memória do sistema (por exemplo, a colonização do Norte da
África pela França quatrocentos anos depois que os espanhóis
expulsaram os mouros da Península Ibérica).
Em minha própria história intelectual, poder-se-ia encontrar
uma primeira formulação da gnose/gnosiologia liminar na
noção de “semiose colonial” e “hermenêutica pluritópica”, que
introduzí há vários anos (Mignolo, 1991) e que se tornaram
dois conceitos-chave para o argumento e a análise de meu
livro anterior sobre o colonialismo no período inicial (Mignolo,
1995a). O conceito de semiose colonial (que alguns leitores
julgaram ser apenas mais um exemplo de jargão, embora os
mesmos leitores não julgassem extravagantes “história colonial”
e “econom ia colo n ial”) foi necessário para explicar um
conjunto de complexos fenômenos sociais e históricos e para
evitar a noção de “transculturação”. Embora não veja nada de
errado nessa noção, tentei evitar um dos sentidos (na verdade
o mais comum) atribuídos à palavra: a transculturação quando
associada a uma mistura biológica/cultural de pessoas. Quando
Ortiz sugeriu o termo, descreveu da seguinte forma o sentido
atribuído à aculturação por Malinowski:
38
O fumo chegou ao mundo cristão junto com as revoluções da
Renascença e da Reforma, quando a Idade Média desmoronava
e se iniciava a época moderna, com seu racionalismo. Dir-se-ia que
a razão, entorpecida e privada de alimento pela teologia, para
reviver e libertar-se precisava da ajuda de algum estimulante
inofensivo que não a embriagasse de entusiasmo e depois a
entorpecesse com ilusões e bestialidade, como fazem as velhas
bebidas alcoólicas que levam ã embriaguez. Com esse fim, para
ajudar a razão enferma, o fumo veio da América. E com ele o
chocolate. E da Abissínia e da Arábia, aproximadamente na
mesma época, veio o café. E o chá surgiu do Extremo Oriente.
O aparecimento coincidente desses quatro produtos exóticos
no Velho Mundo, todos eles estimulantes dos sentidos bem
como do espírito, não carece de interesse. É como se eles
tivessem sido enviados dos quatro cantos da terra pelo demônio
para revivificar a Europa quando “chegou a hora", quando o
continente estava pronto para salvar da extinção a espirituali
dade da razão e devolver aos sentidos o que lhes era devido
(Ortiz, [1940] 1995: 206).
39
fundamental segundo o qual foram feitas descrições semelhantes
que chegaram a ser introduzidas no vocabulário das culturas
acadêm icas. Em lugar disso, o encontro de produtos exó
ticos chegando à Europa dos quatro cantos do mundo para
formar um novo cenário social e gnosiológico é uma boa imagem
da transculturaçào sem “mestizaje”. O que falta na análise de
Ortiz é a colonialidade, e falta porque, para Ortiz, a questào
principal é a nacionalidade. Assim, a colonialidade situa a
questào dentro mas também além da naçào, no sentido em
que os estados-naçòes estào firmemente estabelecidos no hori
zonte da colonialidade: ou o estado-naçào torna-se um império
(como a Espanha ou a Inglaterra) ou, ao viver levantes e rebe
liões, torna-se autônomo enquanto caminha para a formaçào de
uma naçào (i. e. as Américas no fim do século 18 e início do 19).
Talvez parte da resistência à semiose colonial vinda de
pessoas que aceitam facilmente uma história ou economia
colonial deva-se ao fato de que a semiose colonial supõe uma
hermenêutica pluritópica. E isso, certamente, nào só complica
a questào mas também introduz mais jargào obscuro. Algumas
vezes, entretanto, o jargào é necessário, pois, sem ele, como
seria possível mudar os termos e nào apenas o conteúdo da
conversa? Necessitei da combinaçào dessas duas noções para
afastar-me do perigo contrário, sem cair em sua armadilha: o
lugar-comum da economia ou história colonial começando da
superfície do “visível”, e os riscos do que Michel-Rolph Trouillot
(1995) denominou o “inconcebível” na Revoluçào Haitiana.
Assim, o jargào nem sempre é desnecessário e, muitas vezes,
palavras pouco familiares revelam o invisível. De qualquer
forma, a hermenêutica pluritópica foi necessária para indicar
que a semiose colonial “acontece" no entrelugar de conflitos
de saberes e estruturas de poder. Meu entendimento da colo
nialidade do poder pressupõe a diferença colonial como sua
condiçào de possibilidade e como aquilo que legitima a subal-
ternizaçào do conhecimento e a subjugaçào dos povos.
III
40
do Caribe e da Costa Atlântica, assim como nas memórias
ligeiramente mais conhecidas (embora nào tanto quanto as
dos legados gregos) dos povos dos Andes e da Mesoamérica.
O momento prolongado do conflito entre povos, cujo cérebro
e pele foram formados por diferentes memórias, sensibilidades
e crenças entre 1492 e hoje, é a intercessào histórica crucial
onde se pode situar e cleslindar a colonialidade do poder
nas Américas. Quijano identifica a colonialidade do poder
com o capitalismo e sua consolidação na Europa dos séculos
15 a 18. A colonialidade do poder implica e se constitui,
segundo Quijano (1997), por meio do seguinte:
1. A classificação e reclassificaçào da população do planeta
— o conceito de “cultura” torna-se crucial para essa tarefa de
classificar e reclassificar.
2. Uma estrutura funcional institucional para articular e
administrar tais classificações (aparato de Estado, universi
dades, igreja etc.).
3. A definição de espaços adequados para esses objetivos.
4. Uma perspectiva epistemológica para articular o sentido
e o perfil da nova matriz de poder e a partir da qual canalizar
a nova produção de conhecimento.
Isso é, em suma, o que para Quijano constitui a coloniali
dade do poder através do qual o planeta inteiro, incluindo
sua divisão continental (África, América, Europa) se articula
para a produção de conhecimento e seu aparato classifica-
tório. O eurocentrismo torna-se, portanto, uma metáfora para
descrever a colonialidade do poder, na perspectiva da subal-
ternidade. Da perspectiva epistemológica, o saber e as histórias
locais européias foram vistos como projetos globais, desde
o sonho de um Orbis uniuersalis christianus até a crença de
Hegel em uma história universal, narrada de uma perspectiva
que situa a Europa como ponto de referência e de chegada. !
A história universal contada por Hegel é um a história uni- j
versai na qual a maioria dos atores não teve a oportunidade
de ser também narradores. '^A semiose colonial visa identi
ficar momentos precisos dé tensão no conflito entre duas
histórias e saberes locais, uma reagindo no sentido de avançar
para um projeto global planejado para se impor, e outros
visando às histórias e saberes locais forçados a se acomodar
a essas novas realidades. Assim, a semiose colonial exige
uma hermenêutica pluritópica pois, no conflito, nas fendas c
fissuras onde se origina o conflito, é inaceitável uma descrição
unilateral. Mas nào é só isso, porque, enquanto o primeiro
problema era examinar os espaços intermediários, o segundo
era como gerar conhecimento a partir desses espaços limi
nares, em vez de, por exemplo, do Espírito ou Ser. De outra
maneira, a hermenêutica nào teria sido pluritópica, mas mono-
tópica (isto é, um a perspectiva de um sujeito cognoscitivo,
situado numa terra-de-ninguém universal), descrevendo o
conflito entre povos feito de saberes e memórias diferentes.
Estou agora introduzindo a noçào de “pensamento liminar”
com a intenção de transcender a hermenêutica e a epistemo-
logia, bem como a distinção correspondente entre aquele que
conhece e aquele que é conhecido, na epistemologia da
segunda modernidade. O problema nào é descrever na “rea
lidade” os dois lados da fronteira. O problema é fazê-lo a
partir de sua exterioridade (no sentido de Levinas). O objetivo
é apagar a distinção entre o sujeito que conhece e o objeto
que é conhecido, entre um objeto “híbrido” (o limite como
aquilo que é conhecido) e um “puro” sujeito disciplinar ou
interdisciplinar (o conhecedor) nào contaminado pelas ques
tões liminares que descreve. Para mudar os termos do diálogo,
é necessário ultrapassar, por um lado, a distinção entre sujeito
e objeto, e, por outro, entre epistemologia e hermenêutica.
O pensamento liminar visa ser o espaço no qual se elabore
essa nova lógica. No Capítulo I, exploro o conceito de “um
outro pensamento” desenvolvido por Abdelkebir Khatibi,
como resposta a esse problema. No Capítulo VI, adotando a
expressão de Alfred Arteaga, exploro a possibilidade de “uma
outra língua”.
IV
42
últimos vinte anos, cujo veículo visível vem sendo a revista Rcuiew
(cf., por exemplo, Rcuiew 15, n. 4 [1992]), publicada pelo Centro
Ferdinand Braudel em Binghamton). Comecei a tomar carona na
análise do sistema moderno mundial e, ao fazê-lo, segui, por um
lado, o exemplo de Edward Said, e, por outro, o Grupo de
Estudos Subalternos da Ásia do Sul. Nos dois casos a manobra
foi justificada com referência, em primeiro lugar, a Foucault e,
em segundo, a Karl Marx e Antonio Gramsci. Os debates
sobre o colonialismo situavam-se num domínio “universal”
de discussão, promovendo-a do terreno mais local e descritivo
que ocupara até os anos 80. Mas, se assim é, por que náo
estou tomando carona nos estudos subalternos da Ásia do
Sul, ou no Orientalism de Said, ou mesmo na teoria crítica
alcmà ou no pós-estruturalismo francês, mais prestigiados nos
estudos culturais e nos debates pós-coloniais do que a teoria
do sistema mundial moderno? E por que o modelo ou metáfora
do sistema mundial, que tem sido muito criticado e conside
rado com suspeita por muitos dentro das ciências sociais e
passou quase despercebido dentro das humanidades?
Uma das respostas possíveis a essa pergunta é, ao mesmo
tempo, minha justificativa para adotar esse paradigma: o
modelo ou metáfora do sistema mundial moderno tem no
século 16 a data crucial de sua constituição, ao passo que
todas as outras possibilidades que acabei de mencionar (Said,
Guha, teoria crítica, pós-estruturalismo) têm no século 18 e
no Iluminismo a fronteira cronológica da modernidade. Como
meus sentimentos, educação e pensamento têm como âncora
as heranças coloniais dos impérios espanhol e português nas
Américas, “começar” no século 18 seria excluir-me do jogo.
Essa é também a resposta a Valentin Mudimbe, que me per
guntou certa vez: “O que é que você tem contra o Iluminismo?”
O Iluminismo surge em segundo lugar em minha própria
experiência de histórias coloniais. A segunda fase da moder
nidade, o Iluminismo e a Revolução Industrial, foi secundária
na história da América Latina. Entrou no século 19 como a
exterioridade que precisava ser incorporada para construir a
“república” depois de conquistada a independência da Espanha
e de Portugal (cf. Capítulo III).
A gnose liminar ou pensamento liminar empreende neste
livro um diálogo, por um lado, com o debate sobre o universal/
particular e, por outro, com a noção de “insurreição dos
43
saberes subjugados” de Foucault. Ademais, a gnose/pensamento
liminar pode servir como mediador entre as duas questões
interrelacionadas que aqui estou introduzindo: saberes subju
gados e o dilema universal/particular. O elo entre a noção de
saberes subjugados de Foucault e de saberes subalternos de
Darcy Ribeiro permite-me recolocar o dilema do universal/
particular através da diferença colonial.
Em sua aula inaugural no Colégio de França ([19761 1980)
Foucault introduziu a expressão “insurreição dos saberes
subjugados” para descrever uma transformaçào epistemoló-
gica que ele percebia como atuante nos cerca de quinze anos
anteriores à sua aula. Dedicou uns dois parágrafos para
especificar seu entendimento de saberes subjugados: “Para
mim é duplo o significado de saberes subjugados. Por um
lado, refiro-me aos conteúdos históricos soterrados e disfar
çados numa sistematizaçào funcionalista ou formal” (81). Com
a expressáo “conteúdo histórico” Foucault referia-se a algo
enterrado “atrás” das disciplinas e da geraçào do conheci
mento, que nào era nem a semiologia da vida nem a sociologia
da delinquência, mas a repressão da “emergência imediata
dos conteúdos históricos”.
Sua segunda abordagem dos saberes subjugados foi vazada
nos seguintes termos:
44
Foucault atentava naturalmente para a disparidade entre
os tipos de saberes com que se confrontava, saber acadêmico
e disciplinar, de um lado, e nào acadêmico e popular, do
outro. Tinha também consciência de que nào estava procu
rando opor a “unidade abstrata da teoria” à “multiplicidade
concreta dos fatos” (83). Foucault estava usando a distinção
entre saberes disciplinares e saberes subjugados para ques
tionar a própria fundação do saber acadêmico/disciplinar e
especializado, sem o qual a própria noção de saber subjugado
nào teria feito sentido. Denominava genealogia a união de
“saber erudito e memórias locais” e especificava que o que a
genealogia realmente faz é “apoiar o direito à atenção dos
saberes locais, descontínuos, desqualificados, ilegítimos, contra
as pretensões de um corpo unitário de teoria que pretendia
filtrar hierarquias e ordená-las em nome de um saber verda
deiro e uma idéia arbitrária do que constitui uma ciência e
seus objetos” ((1972-19771 1980: 83).
Minha intenção, nesta introdução, e em todo o livro, é
transportar os saberes subjugados até os limites da diferença
colonial onde os saberes subjugados se tornam subalternos
na estrutura da colonialidade do poder. E concebo os saberes
subjugados em pé de igualdade com o ocidentalismo como o
imaginário dominante do sistema mundial colonial/moderno:
o ocidentalismo é a face visível do edifício do mundo moderno,
ao passo que os saberes subalternos são seu lado sombrio, o
lado colonial da modernidade. Essa mesma noção de saberes
subalternos, articulada em fins dos anos 60 por Darcy Ribeiro,
torna visível a diferença colonial entre os antropólogos do
Primeiro Mundo “estudando” o Terceiro Mundo e os “antropo-
logianos” do Terceiro Mundo refletindo sobre suas próprias
condições geoistóricas e coloniais. Permitam-me repetir,
com ênfase particular, o parágrafo de Ribeiro citado anterior
mente, na página 36:
45
f
46
presente, mesmo que a tendência mais visível seja transformar
o planeta em um mercado global. Contudo, não é difícil
enxergar que, atrás do mercado, como objetivo último de um
projeto econômico que se tornou um fim em si mesmo, existem
a missão cristã do colonialismo moderno inicial (Renascença),
a missão civilizadora da modernidade secularizada e os
projetos de desenvolvimento e modernização posteriores à
Segunda Guerra Mundial. O neoliberalismo, com sua ênfase no
mercado e no consumo, não é apenas uma questão econô
mica, mas uma nova forma de civilização. A atual impossibi
lidade ou falta de credibilidade de histórias universais ou
mundiais não é postulada por uma teoria pós-modema, mas pelas
forças econômicas e sociais a que geralmente nos referimos
como globalização e pela emergência de formas de conheci
mento que foram subalternizadas nos últimos quinhentos
anos, dentro dos projetos globais mencionados — isto é,
durante o projeto de expansão planetária que aqui chamo
de colonialismos modernos e de modernidades coloniais.
Entendo aqui com o “colonialidade” tão-somente o lado
reverso e inevitável da “modernidade” — seu lado sombrio,
como a parte da lua que não enxergamos quando a obser
vamos da terra. A colonialidade traz para o primeiro plano a
coexistência e interseção tanto dos colonialismos modernos
quanto das modernidades coloniais (e, obviamente, a multipli
cação das histórias locais que substituem a história mundial
ou universal), na perspectiva dos povos e histórias locais que
têm de confrontar o colonialismo moderno.
O conceito necessário, que ultrapassa os anteriores, de i
colonialidade/modernidade implica a necessidade, na verdade
a forte necessidade, de construir macronarrativas na perspec
tiva da colonialidade. Essas narrativas não são a contrapar
tida da história mundial ou universal (seja ela sagrada como
a história cristã ou secular como a de Hegel), mas uma ruptura «
radical com tais projetos globais. Não são (ou, pelo menos, ^r
não apenas) nem narrativas revisionistas nem narrativas que 5
pretendam contar uma verdade diferente, mas, sim, narra- I
tivas acionadas pela busca de uma lógica diferente. Este livro
pretende oferecer uma contribuição para a mudança dos termos
do diálogo, bem como de seu conteúdo (persuadido pela
insistência de Trouillot nesse ponto), de forma a deslocar o
“universalismo abstrato” da epistemologia moderna e da
41
história mundial com uma totalidade alternativa concebida
como uma rede de histórias locais e múltiplas hegemonias
locais. Sem tais macronarrativas, relatadas a partir das expe
riências históricas de múltiplas histórias locais (as histórias
da modernidade/colonialidade), seria impossível escapar ao
beco sem saída construído, com formas hegemônicas de
conhecimento, pela epistemologia moderna e pela reconfi-
guração das ciências sociais e das humanidades após o século
18. A expansão ocidental posterior ao século 16 não foi apenas
econômica e religiosa, mas também a expansão de formas
hegemônicas de conhecimento que moldaram a própria con
cepção de economia e de religião. Em outras palavras, foi a
expansão de um conceito “representacional” de conhecimento
e cognição (Rorty, 1982), que se impôs como hegemonia epis-
têmica, política e ética. Tentarei deslocar essa hegemonia a
partir da perspectiva de epistemologias/gnosiologias emer
gentes, que exploro e entendo como gnose/gnosiologia liminar
e associo a colonialidade/modernidade.
48
o capitalism o e o sistema mundial m oderno.” Defino o
pensamento liminar como os momentos de fissura no imagi
nário do sistema mundial colonial/moderno. O “pensamento
liminar” situa-se ainda dentro do im aginário do sistema
mundial m oderno, mas reprimido pelo domínio da herme
nêutica e da epistemologia enquanto palavras-chave que
controlam a conceitualizaçào do saber.
Mas permitam-me explicar primeiro minha concepção, neste
livro, do sistema mundial colonial/moderno. Não discuto se
o “sistema mundial” tem quinhentos ou cinco mil anos (Gunder
Frank e Gills, 1993; Dussel, 1998a; 1998b). Para meu argumento
é importante distinguir entre o “sistema mundial” teorizado
por Gunder Frank e Gills e o “sistema mundial colonial/
moderno”, cujo imaginário é o tema deste livro. Esse imagi
nário é poderoso não apenas para a estrutura econômica sócio-
histórica estudada por Wallerstein (1974; 1980; 1989) e o que
ele intitula “geocultura” (Wallerstein, 1991a), mas também para o
imaginário ameríndio.
É necessário distinguir “imaginário” de “geocultura”. Para
Wallerstein, a geocultura do moderno sistema mundial situa-se
entre a Revolução Francesa e maio de 1968 na França (e no
resto do mundo), mas define-se nos termos da hegemonia
intelectual francesa, enraizada na Revolução Francesa. Esse
é um local interessantíssimo na geocultura do mundo moderno,
pois sua história econômica, tal como a do capitalismo (de
Veneza a Gênova até a Holanda e a Inglaterra (Arrighi, 1994),
não inclui a França como um capítulo especial de sua narrativa.
A França forneceu, portanto, a geocultura da modernidade
depois da Revolução Francesa, embora a participação francesa
na história do capitalismo tenha sido marginal (Arrighi, 1994).
Por outro lado, Wallerstein afirmou que, até a Revolução
Francesa, não existe geocultura do sistema. Com o podemos
então descrever a perspectiva cristã global e geoideológica
dos séculos 16 ao 18? Prefiro, portanto, pensar em termos do
imaginário do circuito comercial Atlântico, que se prolonga
(e assim inclui o que Wallerstein denomina “geocultura”) até
o fim do século 20 e é resemantizado no discurso do neolibe-
ralismo como um novo processo civilizador impulsionado
pelo mercado e pelas corporações transnacionais. De acordo
com minha argumentação, o imaginário do sistema mundial
colonial/moderno é o discurso sobrepujante do ocidentalismo,
49
com sua transformação geoistórica, em tensão e conflito com
as forças da subalternidade geradas pelas reações iniciais dos
escravos ameríndios e africanos e agora pelo ataque intelectual
ao ocidentalismo e pelos movimentos sociais em busca de
novos caminhos para um imaginário democrático.
Leslie Marmon Silko, escritora de Laguna, inclui um “mapa
de quinhentos anos” no início de seu romance, The Alm anac
o f the D ead(\99l), (Figura 1); e a primeira frase da declaração
“zapatista” datada da floresta de Lacandon em janeiro de 1994
reza: “somos o produto de 500 anos de luta” (EZLN, CG 1995a).
A história de 500 anos tem a mesma importância para os índios
norte-americanos (como Marmon Silko) e ameríndios (como os
“zapatistas”) que a história de 2000 anos para os espanhóis ou
os franceses. Doze de outubro é comemorado pelos espanhóis
e, oficialmente, nas Américas, como o dia da “descoberta”.
Recentemente os ameríndios começaram a comemorar 11 de
outubro, em vez de 12, como o último dia de “liberdade”. Supo
nho que uma imagem semelhante possa ser criada, se já não
existir, entre a população afro-caribenha e afro-americana.
O uso do conceito de “imaginário” por Glissant é mais
socioistórico que individual. O filósofo espanhol Jo sé
Ortega Y Gasset, preocupado com a mesma questão da densi
dade da memória coletiva, entendia cada ato locutivo como
algo inscrito em uma tripla dimensão: o solo “suelo”, o sub
solo “subsuelo” e o inimigo “el enemigo” (Ortega y Gasset,
1954). O subsolo é algo existente mas não visível. O T/O cristão2
esteve, desde o século 16 , invisivelmente inscrito em todos os
mapas mundiais onde se “vêem” quatro continentes. Pode
mos não “saber” que os quatro continentes não estão “lá” no
mapa, mas a inscrição simbólica “quarto” na divisão cristã
tripartida do mundo, em Ásia/Shem, África/Ham e FAiropa/
Jafé começou a ser aceita desde o século 16. E podemos não
saber que as Américas foram consideradas filha e herdeira da
50
Europa porque eram, na verdade, um quarto continente, mas
nào como os outros. Noé nào teve quatro filhos. Conseqüente-
mente, as Américas tornaram-se a extensão natural, rumo ao
oeste, de Jafé. O imaginário do sistema mundial colonial/
moderno nào é apenas o visível sobre o “solo”, mas o que
permanece escondido da vista no “subsolo” por sucessivas
camadas de povos e territórios mapeados.
51
Contudo, não estou argumentando em favor da “represen
tação” do invisível ou do “estudo” dos subalternos. Argu
mentar nesse sentido seria argumentar na perspectiva de uma
presunção epistêmica “denotativa”, que rejeitei em meu livro
anterior (1995a: 16-28) e que aqui continuo a rejeitar. Pressu
põem-se hipóteses denotativas epistêmicas naquilo que aqui
denomino “epistemologia territorial” e que é, nos termos de
Ortega y Gasset, “o inimigo”. Ortega y Gasset presumia que
cada ato locutivo era um “pronunciamento contra”. No meu
argumento essa não é uma restrição necessária. Seria mais
exato dizer que cada ato locutivo é ao mesmo tempo um
“pronunciamento contra” e um “pronunciamento em direção
a”. Esse duplo movimento vai adquirir uma dimensão com
plexa quando considerado na interseção das histórias locais
e dos projetos globais e na interseção dos solos e subsolos
hegemônicos e subalternos. Nessa perspectiva, as discussões
recentes sobre “fatos” e “ficçòes” integrantes da narrativa
de Rigoberta Menchú (1984) situam-se em uma epistemologia
denotativa e territorial. A história de Rigoberta Menchú não é
menos “fato e ficção” do que qualquer outra narrativa conhe
cida da Bíblia até The Clash o f Ciuilizations. Uma pergunta
melhor seria: quais são o solo, o subsolo e o inimigo dessas
e outras narrativas? Argumentar nessa direção exige uma
mudança de terreno, primeiro de uma epistemologia denota
tiva para uma ordenadora, e, segundo, o deslocamento de
uma epistemologia territorial para a liminar, que pressupõe
consciência e sensibilidade em relação à diferença colonial.
Rigoberta Menchú argumenta com base em uma epistemo
logia ordenadora e liminar. Seus críticos, diversamente, loca
lizam-se numa epistemologia denotativa e territorial. Essa
tensão entre a epistemologia hegemônica com ênfase na deno-
tação e na verdade e as epistemologias subalternas que enfa
tizam o desempenho e a mudança, expõem a altercação e a
luta em torno do poder. Ela também mostra como o exercício
da colonialidade do poder (ancorada numa epistemolgia
denotativa e no desejo da verdade) concede-se o direito de
questionar alternativas cujo desejo de verdade é precedido
pelo desejo de mudança. Esse desejo de mudança e de justiça,
igualdade, e direitos para aqueles que sofrem opressão e
injustiça, como no caso de Rigoberta Menchú, emerge da expe
riência da diferença colonial, arraigada no imaginário e, com
52
toda a certeza, na estrutura social do mundo colonial/moderno
a partir de 1500.
Janet L. Abu-Lughod (1989) descreveu a ordem mundial
entre 1250 e 1350 da era crista em oito circuitos comerciais
dominantes, que se estendiam de Pequim a Gênova (Figura
2). Nesse ponto, interesso-me por dois aspectos desse mapa.
Um é o fato de que, durante esse período, Gênova, Bruges e
Troyes situavam-se nas margens dos circuitos comerciais,
dominados pelo circuito viii. Essa é uma das razões pelas
quais os espanhóis e portugueses interessavam-se por alcançar
a China. Mas não há registro de uma atração irresistível dos
chineses pelo cristianismo, à medida que ele emergia do
fracasso das Cruzadas. Meu segundo ponto de interesse é
que a Figura 2 desconsidera totalmente o que mostra a Figura
3. O mapa exibido na Figura 3 inclui dois outros circuitos
comerciais “ocultos” das narrativas eurocêntricas. O primeiro
circuito comercial tinha seu centro em Anahuac, no que hoje
é o México, e estendia-se ao sul em direção á Guatemala e ao
Panamá e, ao norte, em direção ao Novo México e Arizona. O
outro tinha seu centro em Tawantinsuyu, no que hoje é o
Peru, e prolongava-se ao norte em direção ao Equador e
Colômbia atuais, a leste, até a Bolívia de hoje e ao sul, até a
parte norte da Argentina e do Chile atuais.
Enrique Dussel (1998a) sugeriu que, dada a ordem mundial
descrita na Figura 2, o fato de que foram os espanhóis e não
os chineses ou os portugueses que “descobriram” a América
harmoniza-se com uma lógica histórica óbvia. A China estava
em posição dominante. Portanto, mesmo considerando que os
navegadores chineses tenham atingido as costas do Pacífico
e da América antes dos espanhóis, não foi um evento que se
devesse qualificar como o mais importante depois da criação
do mundo, como fez o historiador López de Gómara ao narrar
a história do mundo na perspectiva cristã e espanhola, por
volta de 1555. Os portugueses nào precisavam tentar encontrar
a rota atlântica porque já controlavam a costa da África, de
norte a sul, e em volta do Oceano Índico, com fácil acesso a
Málaca, Cantào e Pequim. Não foi por acaso que Colombo
procurou primeiro a corte de Portugal, e só depois que seus
planos foram recusados aproximou-se de Isabel e Fernando
da Espanha. O que Colombo fez, nesse contexto, foi abrir as
portas para a criação de um novo circuito comercial ligando
o circuito 1, no mapa de Abu-Lugohod, com o de Anahuac e o
outro em Tawantinsuyu. Estou narrando outra vez essa história
bastante conhecida porque é a história que liga o Mediterrâneo
ao Atlântico, que criou novas fontes de riqueza (minas e plan
tações) no Atlântico e lançou os alicerces do que Wallerstein
conceituou como sistema mundial moderno. Ora, o começo
de um novo circuito comercial, que seria a base da economia
e do domínio ocidental, associa-se a uma rearticulaçào do
imaginário racial e patriarcal, cujas conseqüências perma
necem vivas até hoje. Duas idéias tornaram-se centrais nessa
rearticulaçào, a “pureza de sangue” e os “direitos dos povos”.
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54
O princípio da “pureza de sangue" foi formalizado na
Espanha no início do século 16 e estabeleceu o “corte” final
entre cristãos, judeus e mouros (Sicroff, 1960; Netanyahu,
1955: 975-980, 1.041-1.047; Harvey, 1990: 307-340; Constable;
1997). Ao mesmo tempo, criou o conceito de “converso”.
Enquanto a expulsão dos mouros demarcou a fronteira
externa do que seria um novo circuito comercial, tendo como
fronteira o Mediterrâneo, a expulsão dos judeus determinou
uma das fronteiras internas do sistema emergente. Foi real
mente o “converso” que instaurou a região fronteiriça, lugar
onde nem as fronteiras externas nem as internas têm vali
dade, embora sejam condição necessária para a existência de
regiões fronteiriças. O/a “converso/a" nunca ficará em paz
consigo, nem será confiável do ponto de vista do Estado. O
“converso” não foi tanto um híbrido como um lugar de medo
e passagem, de mentira e terror. As razões para a conversão
poderíam facilmente ser tanto convicção profunda quanto mera
conveniência social. Em qualquer caso, ele ou ela saberia
que os governantes sempre suspeitariam da autenticidade
dessa conversão. Ser considerado ou considerar-se judeu,
mouro ou cristão era algo claro. Ser “converso” era navegar
nas águas ambíguas dos indecisos. À época, a região fron
teiriça não constituía um lugar confortável onde se situar. Hoje,
a região fronteiriça é o lugar de um potencial epistemológico
desejado que se manifesta no “desconforto” gerado por
Rigoberta Menchú e nas acusações acadêmico-disciplinares
lançadas contra ela por ter “mentido” (ver Capítulos I, V,
VI e VII).
Se a “pureza de sangue” rearticulou as três religiões do
Livro (Judaísmo, Islã, Cristandade) e o campo de força do
Mediterrâneo, adaptou-se também às colônias espanholas
da América e depois transferiu-se para o período republi
cano. Meu interesse em sublinhar aqui a “pureza de sangue”
deve-se ao fato de que, na Península Ibérica do século 16, o
Atlântico se organizava de acordo com um princípio dife
rente e oposto: os “direitos dos povos”, que emergiram dos
debates iniciais de Valladolid entre Gines de Sepúlveda e
Bartolomé de las Casas sobre a humanidade dos ameríndios
e foi seguido de longos debates na Escola de Salamanca
sobre cosmopolitanismo e relações internacionais (Hõffner,
55
1957; Ramos et al., 1984). Ao contrário de “pureza de sangue” 1
que era um princípio punitivo, os “direitos dos povos” foi a
primeira tentativa legal (de natureza teológica) de redigir
um cânone de direito internacional, reformulado com um
discurso secular no século 18 como “direitos dos homens
e do cidadão” (Ishay, 1997: 73-173). Uma das diferenças
importantes entre os dois (“direitos dos povos” e “direitos
dos homens e do cidadão”) é que o primeiro está no âmago
colonial, escondido da modernidade e busca a articulação
de uma nova fronteira, diferente tanto da fronteira com os
mouros, como da com os judeus. Em vez disso, a segunda é
o imaginário atuante dentro do próprio sistema, buscando
a “universalidade” do homem tal como era vista numa Europa
já consolidada e possibilitada pelas riquezas que fluíam do
mundo colonial de oeste a leste, através do Atlântico.
O princípio dos “Direitos dos Povos” teve outra conse-
qüência importante para a construção do imaginário do
sistema mundial moderno, que seria revelada após a decla
ração dos “direitos dos homens e do cidadão”. “Os Direitos
dos Povos” foi uma discussão a respeito não de escravos
africanos, mas de ameríndios. Os ameríndios eram conside
rados vassalos do rei e servos de Deus; como tal, não pode-
riam, teoricamente, ser escravizados. Deveriam ser instruídos
e convertidos ao cristianismo. Os escravos africanos não
pertenciam à mesma categoria: faziam parte do “comércio”
atlântico (Manning, 1990: 23-27) e já estavam assimilados
no imaginário cristão como descendentes de Ham, filho
desprezado de Noé. Não participavam da questão teológica
sobre o grau de essência humana que Las Casas e Vitoria
estavam formulando em relação aos povos indígenas. Os
africanos já pertenciam â escala mais baixa do imaginário
cristão. Contudo, e talvez por causa da diferença de status,
os ameríndios fracassaram em sua tentativa revolucionária.
Fracassou a revolta mais conhecida, a de Tupac Amaru, no
século 18. A Revolução Haitiana, que antecipou os movi
mentos pela independência na América espanhola, triunfou,
mas permaneceu “silenciosa” na autodescrição do sistema
mundial moderno (Trouillot, 1995) para o qual só valem a
Revolução Francesa e a independência da Nova Inglaterra
em relação à Inglaterra.
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57
FIGURA 4 - Até 1848, o Império Espanhol estenclia-se por quase
todas as Américas. (Cf. WOOLF, Eric R. Europa and tbe People
Witbotit History. Berkeley: University of Califórnia Press. 1982.
Usado com permissão da University of Califórnia Press.)
58
o deslocamento da fronteira entre os Estados Unidos e o
México, quando o México perdeu seu território ao norte em
1848, seguido por Cuba e Porto Rico em 1898. O sistema
mundial colonial/moderno foi profundamente alterado ao fim
do século 19. Os Estados Unidos (ex-colônia inglesa) tornou-se
uma potência líder, e o Japào desligou-se da China e foi rece
bido na família das nações que respeitavam os padrões das
civilizações. No início do século 20 (como mostra a Figura 5,
Huntington, 1996), o imaginário do sistema mundial “moderno”’
reduziu o “Ocidente” praticamente às nações de língua inglesa.
Por outro lado, uma perspectiva complementar do lado oculto
da “colonialidade” (Figura 6, Osterhammel, 1997) chama a
atenção para as áreas colonizadas do mundo, em vez de enfa
tizar o “Ocidente”. Esses dois mapas (Figuras 5 e 6) sugerem
mais uma vez que a modernidade e a colonialidade sào olhadas
separadamente, como dois fenômenos diferentes. Nào poderia
haver outra razào para que Wallerstein conceituasse um mundo
“moderno” e nào um sistema mundial “colonial/moderno” c
para que todas as suas análises mais recentes sejam feitas de
dentro da história do “moderno” (Wallerstein, 1991a), que
ele situa na Revolução Francesa.
Neste ponto, mencionarei uma nova e crucial reviravolta
no imaginário do sistema mundial colonial/moderno. Se os
séculos 16 e 17 foram dominados pelo imaginário cristão (cuja
missão se estendia dos católicos e protestantes nas Américas
até os jesuítas na China), o fim do 19 testemunhou uma
mudança radical. A “pureza de sangue” já nào era mais medida
em termos de religião, mas da cor da pele, e começou a ser
usada para distinguir a raça “ariana” das outras “raças” e,
cada vez mais, para justificar a superioridade da “raça” anglo-
saxônica sobre todas as outras (de Gobineau, 1853-1855; Arendt,
[1948] 1968: 173-180). Proponho que o momento da virada
ocorreu em 1898, quando a guerra EUA-Espanha foi justificada,
na perspectiva dos EUA, pela superioridade da “raça branca
anglo-saxônica”, cujo destino era civilizar o mundo, sobre os
“brancos cristãos católicos c latinos” (Mahan, 1890; Burgess,
1890; Fiske, 1902b). A idéia do “latino” foi introduzida pela
intelectualidade política francesa e usada na época para traçar
as fronteiras, tanto na Europa como nas Américas, entre anglo-
saxônicos e latinos.
59
O Ocidente e o resto: 1920
Atop /./
n ImdoporuUníej do O d Jm ê o . do fo to om *
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Território d o s P a is e s B a ixo s
Tenltório P o rtu gu ês
Território Esp an h o l
&8S Território Italiano
6i
FIGURA 7 - A Guerra Fria redesenhou o mapa do mundo colonial/moderno em seu
início, convertendo a dicotomia Ocidente/Oriente em Norte/Sul. A distinção
geopolítica Norte/Sul é curiosa, pois a Argentina e a Austrália encontram-se no mais
extremo sul, mas, nesse caso, a diferença colonial se situa entre Primeiro e Terceiro
Mundo. Essas transformações explicam novamente por que a “América Latina”
começou a desvanecer nos anos 20. (Ver Figura 5) (Cf. LEWIS, Martin W.; W1GEN,
Karen E. TheMyth of'Continente A Criticism of Metageography. Berkeley: University
of Califórnia Press, 1997. Usado com permissão da University of Califórnia Press.)
VI
62
O mundo da Guerra Fria: década de 1960
MundoLivro
63
ocidentais” ([1957] 1992: 103). Rara Zea, a crescente seculari-
zaçào do imaginário ocidental hegemônico relegou a Rússia
e a Espanha para as bordas do Ocidente:
64
O Mundo das Civilizações: pós-1990
Ocuknul
Latino
Americana
Q ] Afric*n»
0 Ulimica
; I ChÍDCM
m
Q Ortodoxa
] Budista
Japoneaa
FIGURA 9 - O fim da Guerra Fria deu maior visibilidade a algo que, grafica
mente, permanece invisível: o colonialismo global efetivado pelas corporações
transnacionais. A diferença colonial já nào se situa na arena geográfica. A dife
rença colonial desloca-se aqui para “civilizações”, nào mais para pontos cardeais
no mapa. Subitamente, a “América Latina” tornou-se uma “civilizaçào” cuja
configuração nào pode ser entendida sem a compreensão da diferença colonial
tal como evoluiu na complexa história espacial do mundo colonial/moderno.
(Cf. HUNTINGTON, Samuel P. The Clash o f Civilizations and the Remaking
o/the World Ordcr, 1996. Usado com permissão de Simon and Schuster.)
65
mundial, da desconstruçào e diferentes perspectivas pós-
modernas). P o r outro lado, a produção atual que responde
pelo nome cie estudos ou teorias ou críticas pós-coloniais
começa no sé cu lo 18, desconsiderando o momento crucial e
constitutivo d a modernidade/colonialidade que foi o século 16.
Partindo das premissas de uma análise do sistema mundial,
direciono-me para uma perspectiva que, por razões pedagó
gicas, estabeleço como análise do sistema mundial colonial/
moderno. Se também privilegiarmos a perspectiva dos estudos
subalternos, com o sugere Veena Das (1989), a análise do sistema
mundial colonial/moderno introduzirá a perspectiva subal
terna articulada com base nas memórias e legados da experiência
colonial, isto é , as experiências coloniais com suas diversi-
dades históricas. Neste ponto, o conceito de “colonialidade do
poder” introduzido por Anibal Quijano (1992, 1997, 1998)
permite um deslocamento que passa de “mundo moderno”
para “mundo colonial/moderno”. Uma vez que a colonialidade
do poder tenha sido introduzida na análise, a “diferença colonial”
torna-se visível, e as fraturas epistemológicas entre a crítica
eurocêntrica d o eurocentrismo distinguem-se da crítica ao
eurocentrism o apoiada na diferença colonial — articulada
como pós-colonialism o — e que, tendo em vista a singulari
dade de cada história e experiência colonial, prefiro entender
e teorizar com o pós-ocidentalismo (cf. Capítulo II). Assim, a
geopolítica d o conhecimento torna-se um conceito poderoso
para evitar a crítica eurocêntrica do eurocentrismo e para
legitimar as cpistemologias liminares que emergem das feridas
das histórias, memórias e experiências colonias. A modernidade,
repito, leva nos ombros o pesado fardo e responsabilidade
da colonialidade. A crítica moderna da modernidade (pós-
modernidade) é uma prática necessária, mas que termina onde
começam as diferenças coloniais. As diferenças coloniais do
planeta sào a morada onde habita a epistemologia liminar.
Há, finalm ente, outro esclarecimento a prestar. Dentro da
discussão entre os teóricos e historiadores que aderem ao
sistema m undial moderno, as “origens” do capitalismo e as
“origens” do sistema mundial moderno constituem um ponto
controvertido. A discussão de Giovanni Arrighi sobre o
nào-debate entre Ferdinand Braudel e Immanuel Wallerstein
(Arrighi, 1998: 113-129) versa sobre o origem do capitalismo,
que Braudel situa na Itália do século 13- Quando Wallerstein
66
toma 1500 como ponto de referência, não fica claro se está se
referindo à origem do capitalismo ou à origem do sistema
moderno mundial, que implica, mas ultrapassa, o capitalismo.
Minha própria ênfase recai sobre a emergência de um novo
circuito comercial que teve, na fundação de seu imaginário, a
formalização da “pureza de sangue” e os “direitos dos povos”.
Esses dois princípios eram contraditórios em seus objetivos:
o primeiro era repressivo, o segundo expansivo, (no sentido
de que eram necessários uma nova lógica e novos princípios
legais para incorporar no imaginário povos desconhecidos).
Os princípios da “pureza de sangue” e os “direitos dos povos”
ligaram o Mediterrâneo ao Atlântico. Aglutinava-se uma
nova configuração imaginária, que complementava a transfor
mação da ordem mundial geopolítica criada pela “descoberta”
da América: o imaginário do sistema mundial colonial/
moderno emergente.
V II
67
l
marcante entre civilização e cultura. A civilização, como para
Norbert Elias (Elias, [19371 1982), está para Béji associada à
modernidade, progresso, tecnologia. A cultura, por outro
lado, é entendida como o domínio da tradição, o domínio e
as esferas da vida que os projetos civilizadores tentam
domesticar. A cultura associa-se também à paixão, enquanto
a civilização é retratada em termos da razão:
68
componente é um conceito da razào colonial/imperial. Num
artigo anterior tentei expressar uma idéia semelhante com o
conceito de “razào pós-colonial” (1994, 1996a, 1997a) e, no
Capítulo II deste livro, com “razào pós-ocidental”, que também
exploro sob o título de pensamento/gnosiologia liminar.
As tensões entre a cultura e a civilizaçào, encenadas por Béji,
caminham paralelamente com meu próprio conceito de saber
subalterno, na constituição do sistema mundial colonial/
moderno. Seu conceito de “cultura mundial” equivale a meu
pensamento liminar, como, precisamente, a multiplicação de
energias epistêmicas em diversas histórias locais (diferentes
espaços e momentos na história do capitalismo; Arrighi, 1994) e
sua sombria e inevitável companheira, a história do colonia
lismo (ainda por escrever na perspectiva aqui adotada). Na
escuridão dessa companhia, nas fissuras entre a modernidade e
a colonialidade reside(m) a(s) diferença(s) colonial/is. A “cultura”
de Béji caminha paralelamente com minhas “histórias locais”,
tanto hegemônicas, quanto subalternas, e, portanto, “cultura
mundial” poderia ser traduzida em meu vocabulário como a
rearticulaçào e apropriação dos projetos globais pela e na
perspectiva das histórias locais, que precisam ocupar-se dos
projetos globais mas não podem, em si mesmas, produzir tais
projetos. Permitam-me oferecer outra citação de Béji, onde minha
própria noção de pensamento liminar, da perspectiva do subal
terno, torna-se o potencial epistêmico que remapeia a(s)
diferença(s) colonial/is visando a uma futura “culture mondiale”
(cultura mundial) de diversidade epistêmica. Aqui a hegemonia
(o rosto) da civilizaçào e a subalternidade das culturas se
transformaria na múltipla diversidade das histórias locais (sem
rosto), mas não mais subalternas aos projetos globais.
69
reivindica uma razão universal. A civilização possuía um rosto,
enquanto a “cultura mundial" nào o tem. A “cultura mundial" é
uma entidade anônima na qual o Oriente e o Ocidente, ao se
confrontar, adquirem (dévcloppent) traços comuns instigantes.
A ascensão e a queda periódicas da civilização estão agora
entrando na metamorfose de uma cultura mundial sem nome,
sem lugar, sem época.1
70
Hannerz (1987a), pensando a globalizaçào precisamente da
perspectiva das “culturas periféricas” (Hannertz, 1991) e, ademais,
tem sido procedimento “normal” na moderna epistemologia
deslocalizar conceitos e destacá-los de suas histórias locais
(por exemplo, “logocentrismo”, “arqueologia”, “capitalismo”,
cogito etc.)- Por um caminho diferente, Glissant chega a uma
imagem e descrição do futuro semelhante à de Hélè Béji, a
perspectiva de uma cultura mundial como uma nova civilização
sem hegemonia:
71
se seguiu à Segunda Guerra Mundial, e que a complexa desco
lonização do Brasil e subseqüente processo de construção da
naçào ocorreram durante o século 19. Ao contrario de Béji,
Ortiz faz sua reflexão quase um século após a descolonização
do Brasil. Sua própria abordagem da globalização foi moldada
tanto por uma história local quanto por uma língua colonial
(o português) diferente das de Béji.
Mas Ortiz tem outro aspecto em comum com minha argu
mentação. Ele critica os limites da noçào de sistema mundial,
particularmente no que diz respeito à noçào de “cultura”. Ortiz
([1994] 1997: 23-98) tem razào ao observar que a noçào de
“geocultura”, posteriormente introduzida por Wallerstein
(1991a), restringe-se à geocultura do sistema. Isto é, deixa de
lado outras manifestações ou dimensões culturais. O próprio
Wallerstein concordará com a avaliação de Ortiz de que esse
é precisamente o sentido que Wallerstein atribui à geocul
tura: a geocultura do sistema mundial moderno e não a cultura
do mundo. Mas, de qualquer modo, o debate de Ortiz com
Wallerstein a partir do Brasil e em português (traduzido para
o espanhol) é mais um processo de construção de sua
própria argumentação do que um diálogo com Wallerstein.
Seu argumento resulta na necessidade de distinguir entre
“globalizaçào” e “mundialização”.
Daí Ortiz parte para diferenciar, de um lado, a globali
zaçào econômica e tecnológica da mundialização cultural e,
de outro, para distinguir entre o sentido restrito de geocultura,
segundo Wallerstein, e uma diversidade mundial que, embora
incrustada no moderno sistema mundial, o ultrapassa. A
indicação desses níveis diferentes permite a Ortiz, enquanto
reflete sobre o capitalismo na China e no Japão, separar o
nível da globalização (econômica e tecnológica) do nível de
mundialização. O legado intelectual confuciano ofereceu, por
exem plo, um modelo para a adaptação da cultura local à
economia global, modelo diferente da formação de trabalha
dores na Inglaterra após a Revolução Industrial. Nesse aspecto,
as sociedades européias “tradicionais” estavam menos prepa
radas para o advento do capitalismo que as sociedades
“tradicionais” da China ou do Japão. Essa comparação possi
bilita a Ortiz remapear o conceito de modernidade e aplicá-lo
à multiplicação da modernidade, da forma ilustrada pelo deslo
camento do capitalismo para o leste da Ásia. Esse lance no
72
argumento de Ortiz é crucial, pois representa a visào de um
intelectual do “Terceiro Mundo”, sensível e atento às fraturas
da geocultura do sistema mundial colonial/moderno, quando
entra em conflito com as diversas geoculturas do mundo. Essa
é a força de Ortiz. Sua fraqueza é a cegueira à diferença colo
nial. As críticas de Ortiz à noçào de geocultura proposta por
Wallerstein articulam-se a partir da perspectiva da própria
modernidade, nào da colonialidade. Mas a colonialidade entra
em seu argumento. Como em Wallerstein, a modernidade é o
centro e a colonialidade é relegada à periferia da história do
capitalismo. Ortiz preocupa-se mais com as mudanças no
estilo de vida causadas pelo que denomina “modernidade
mundial”. Sua “modernidade mundial” (Ortiz, [1994] 1997:
99-144), muito semelhante à “cultura mundial” de Béji, nào
é uma modernidade européia ou do Atlântico Norte, mas,
simplesmente, mundial.
Ao contrário das concepções de Béji e Glissant, a moder
nidade mundial de Ortiz carece da memória das diferenças e
forças coloniais, ainda hoje atuantes nas mídias, da colonia
lidade do poder. Ortiz concentra sua atenção em exemplos
como aeroportos ou shopping centers à volta do mundo e,
dessa posição estratégica, tenta desmantelar a oposição fácil
entre homogeneidade global e heterogeneidade local (bem
como outras oposiçòes frequentes). O argumento — e algumas
vezes a celebraçào de uma “modernidade mundial” — contraria
na verdade a defesa das culturas e valores nacionais. O fato
de que Ortiz nào focaliza a diferença colonial leva-o a retirar
seus exemplos “mundiais” principalmente dos Estados Unidos,
do Japào e da Europa. A Argentina e o Brasil podem entrar
no quadro, mas como termo de comparação, nào como o local
da colonialidade do poder. Por esse motivo, a África, a Ásia e
o Caribe estào em grande parte ausentes de seus exemplos e
estatísticas. Pela mesma razào, quando Ortiz considera o
capitalismo, seus principais exemplos sào a China e o Japào,
mas nào a Argéria, a Indochina, a índia ou mesmo o Caribe.
Finalmente, e com o objetivo de situar os diferentes argu
mentos, gostaria de acrescentar que a preocupaçào de Ortiz
com a epistemologia situa-se em seu desvio da análise do
sistema mundial. Sua contribuição é marcante no que se refere
às limitações das ciências sociais quando transpostas de seu
local de “origem ” para o mundo colonial. Mas Ortiz nào
73
reflete criticamente sobre essa questão (ver meus Capítulos
IV e VI), como fazem outros sociólogos (Quijano, 1998; Lancler,
1998b). Na produção latino-americana intelectual e acadê
mica, essa é uma diferença significativa entre intelectuais
aprisionados na rede dos legados europeus (como o próprio
Ortiz) e intelectuais como Quijano, Dussel e Rivera Cusicanqui,
para os quais a colonialidade é o ponto de partida de sua
produção intelectual.
Nessa perspectiva, voltemos ã questão da modernidade.
Se, como querem Quijano e Dussel, a modernidade não é um
fenôm eno europeu, então o colonialism o moderno tem
diferentes ritmos e energia, dependendo de sua localização
espacial e histórica dentro do sistema mundial colonial/
moderno. Os projetos globais concebidos e implementados,
primeiro a partir da história local da Europa e depois, no
século 20, a partir do Atlântico Norte, foram cruciais para a
construção das modernidades coloniais em diferentes loca
lidades e temporal idades do sistema mundial colonial/moderno.
Este livro não é uma nova história do sistema mundial colonial/
moderno, mas uma série de reflexões sobre a questão do
saber no horizonte colonial da modernidade. Meu principal
objetivo é salientar um ponto epistemológico mais do que
relatar novamente a história.
V III
74
fizeram parte do sistema desde seus primórdios; o mundo
islâmico, pelo contrário, foi eliminado desde o próprio início
do sistema, enquanto a índia passou a fazer parte do quadro
no fim do século 18. A China e o Japão, por sua vez, nunca
foram colonizados da forma que ocorreu com as Américas e a
índia, e sua própria existência e tardia incorporação ao quadro
nào apenas tornam esse quadro mais complexo como também
criam novas possibilidades de pensar a partir de e sobre as
fronteiras externas do sistema. A visita do Presidente Clinton
à China, em 1998, foi uma amostra prévia de tais possibilidades.
O Capítulo I é dedicado a detalhar os conceitos e cenários
básicos introduzidos até este ponto. Os três capítulos da
Segunda Parte giram em torno da proporção entre configu
rações geopolíticas e produção de conhecimento. O Capítulo
III inicia um diálogo com a teorizaçâo pós-colonial, introdu
zindo no quadro “ocidentalismo” e “pós-ocidentalismo”, sendo
o pós-ocidentalismo utilizado como conceito local dominante
no imaginário do sistema mundial colonial/moderno, do qual
dependem o pós-colonialismo e o pós-orientalismo. O Capí
tulo IV traz a discussão geral do Capítulo II até as Américas e
seu lugar no sistema mundial colonial/moderno, articulado
com conflitos imperiais interligados, suas relações com os
ameríndios, a escravidão africana e seu legado. Busca remapear
as Américas dentro do sistema mundial colonial/moderno, não
reproduzi-lo no imaginário nacional, seja em Bolívar ou na
versão inicial da Doutrina Monroe. O Capítulo IV transpõe
a discussão anterior para o plano epistemológico e, com base
nos estudos subalternos, explora as tensões entre as histórias
locais e os projetos globais em nível epistemológico. Enquanto
na Primeira Parte o argumento é sublinhado pela relação
entre configurações geopolíticas, o saber e a colonialidade
do poder, a Segunda Parte concentra-se na língua, no saber e
na literatura (como sede interdisciplinar de produção de saber).
No Capítulo V focalizo a crise das línguas e literaturas nacionais
em um mundo transnacional. O Capítulo VI estende o mesmo
argumento até o domínio da epistemologia e discute a cumpli
cidade entre as línguas hegemônicas do sistema mundial colonial/
moderno e as ciências sociais. Os dois capítulos ressaltam
constantemente a dialética entre os saberes subalternos e o
pensamento liminar. No Capítulo VII, refaço o quadro mais
amplo em que se situam os temas discutidos nos Capítulos V
75
D^ ^ w 4
e VI. Nele discuto o papel da “civilização” e da “missão civili-
zadora” no sistema mundial colonial/moderno. Considero o
pensamento liminar na interseção do “bárbaro” e do “civili
zado”, à medida que a perspectiva subalterna incorpora e
repensa a dupla articulação de saber “bárbaro” e “civilizado”.
Em resumo, esta é uma reflexão prolongada que se iniciou
com o reconhecimento de uma crítica da modernidade a partir
da própria modernidade (i.e., a pós-modernidade, a descons-
trução, a análise do sistema mundial) e, sobretudo, de seus
limites. E por isso que parto e me desvio da análise do sistema
mundial (bem como da pós-modernidade e da desconstrução).
A variabilidade interna da differe/a/nce não pode transcender
a diferença colonial, onde a desconstrução tem de ser absor
vida e transformada pela descolonização. Em outras palavras,
somente se pode transcender a diferença colonial da perspec
tiva da subalternidade, da descolonização e, portanto, de um
novo terreno epistemológico que o pensamento liminar está
descortinando (ver o final do Capítulo I, onde exploro essa
idéia através da obra de Khatibi e Derrida). O pensamento
liminar só pode existir na perspectiva subalterna, nunca na
territorial, isto é, de dentro da modernidade. Na perspectiva
territorial, o pensamento liminar torna-se uma máquina de
apropriação das cliffere/a/nces e da diferença colonial, torna-se
um mero objeto de estudo mais que um potencial epistêmico.
O pensamento liminar, na perspectiva da subalternidade, é
uma máquina para a descolonização intelectual, e, portanto,
para a descolonização política e econômica.
76
À PROCURA DE UMA OUIRA LÓGICA
e VI. Nele discuto o papel da “civilização” e da “missão civili-
zadora” no sistema mundial colonial/moderno. Considero o
pensamento liminar na interseção do “bárbaro” e do “civili
zado”, à medida que a perspectiva subalterna incorpora e
repensa a dupla articulação de saber “bárbaro” e “civilizado”.
Em resumo, esta é uma reflexão prolongada que se iniciou
com o reconhecimento de uma crítica da modernidade a partir
da própria modernidade (i.e., a pós-modernidade, a descons-
trução, a análise do sistema mundial) e, sobretudo, de seus
limites. E por isso que parto e me desvio da análise do sistema
mundial (bem como da pós-modernidade e da desconstrução).
A variabilidade interna da differe/a/nce não pode transcender
a diferença colonial, onde a desconstrução tem de ser absor
vida e transformada pela descolonização. Em outras palavras,
somente se pode transcender a diferença colonial da perspec
tiva da subalternidade, da descolonização e, portanto, de um
novo terreno epistemológico que o pensamento liminar está
descortinando (ver o final do Capítulo I, onde exploro essa
idéia através da obra de Khatibi e Derrida). O pensamento
liminar só pode existir na perspectiva subalterna, nunca na
territorial, isto é, de dentro da modernidade. Na perspectiva
territorial, o pensamento liminar torna-se uma máquina de
apropriação das cliffere/a/nces e da diferença colonial, torna-se
um mero objeto de estudo mais que um potencial epistêmico.
O pensamento liminar, na perspectiva da subalternidade, é
uma máquina para a descolonização intelectual, e, portanto,
para a descolonização política e econômica.
76
À PROCURA DE UMA OUIRA LÓGICA
C A P Í T U L O
PENSAMENTO LIMINAR
E DIFERENÇA COLONIAL
80
México. Para Garcia Canclini, o colonialismo associa-se ao
período colonial, aproximadamente do início do século 16
até o início do século 19- A partir daí, o que temos é o início
da modernidade, o processo de construção de nações depois
que diversos países obtiveram independência da Espanha ou
autonomia em relaçào a Portugal. Assim, de forma linear, o
colonialismo estruturou o passado da América Latina. Uma
vez mais, visto nessa perspectiva, o “período colonial” é
percebido como anterior à “modernidade”, nào como sua face
oculta. Encontrei uma visào diferente articulada por intelectuais
andinos (a socióloga Silvia Rivera Cusicanqui, na Bolívia; o
sociólogo Anibal Quijano, no Peru), bem como pelo filósofo
argentino Enrique Dussel. Basicamente, para Rivera Cusicanqui,
a história da Bolívia poderia ser dividida em três períodos: o
período colonial, até aproximadamente o meio do século 19;
o período da República, até 1952; e o período da modernização
(que coincide com a política norte-americana de progresso e
modernização na América Latina), até o presente. Entretanto,
Rivera Cusicanqui (1992) não concebe esses períodos como
sucessivos, mas simultâneos; todos eles coexistem hoje em
contradições diacrônicas, e o que coexiste é a remora colonial
da história boliviana, as diferentes articulações entre forças
colonizadoras e vítimas colonizadas. Quijano (1992; 1997) fala,
em vez disso, da colonialidacle do poder. E Dussel ([19921
1995) escreve sobre uma modernidade planetária e européia
cujo início coincide com a “descoberta” da América, sendo
uma conseqüência dela e do estabelecimento do circuito
comercial e financeiro do Atlântico.
81
“índias Occidentales”. O Ocidente, o Oeste, nào era mais a
cristandade européia (em oposição aos cristãos do rito oriental
situados em Jerusalém e ao seu redor), mas a Espanha (e por
extensão o resto da Europa) e as novas possessões coloniais.
O “ocidentalismo” era a figura geopolítica que constelava o
imaginário do sistema mundial colonial/moderno. Como tal,
era também a condição da emergência do orientalismo: não
pode haver um Oriente, como “outro”, sem o Ocidente como
“o mesmo”. Por essa mesma razão, as Américas, ao contrário da
Ásia e da África, nào são diferentes da Europa mas sua extensão.
Esse tema durou até a segunda metade do século 19, quando
a “América” (Anglo-América) já havia realmente “crescido” e
começou a assumir a liderança da ordem mundial. Pode-se
dizer que a Espanha foi o começo da modernidade na Europa
e da colonialidade fora da Europa. Essa visão continua sendo
hoje a visão canônica: há livros sobre o colonialismo e sobre
a modernidade, mas eles não interagem — suas genealogias
são diferentes. A razão para essa divisão é ou a convicção
(contestada por Quijano e Dussel) de que a modernidade é
apenas uma questão européia e a colonialidade algo que
ocorre fora da Europa (desde que a Irlanda não seja conside
rada parte da Europa) ou a idéia de que a colonialidade se
refere à perspectiva do país colonizador. A Argélia, por exemplo,
raramente será incluída como parte da história nacional
francesa, apesar do fato de que uma história da Argélia, como
nação, não pode ignorar a França.
Neste capítulo, exploro respostas teóricas e idéias sobre o
moderno sistema mundial. Faço um esforço para conectar e
traçar uma genealogia do pensamento a partir das histórias
locais que absorveram projetos globais. Em primeiro lugar,
examino o conceito de Anibal Quijano de “colonialidade do
poder” e a “transmodernidade” de Enrique Dussel como
respostas a projetos globais emanados de histórias e legados
coloniais na América Latina. A segunda parte é dedicada à
“dupla crítica” e a “une pensée autre” (um outro pensamento)
de Abdelkebir Khatibi como resposta dada pelas histórias e
legados coloniais do Maghreb. Também examino a noção de
Edouard Glissant de “Créolisation” proposta para explicar a
experiência colonial do Caribe no horizonte da modernidade
e como um novo princípio epistemológico. Essas perspectivas,
da América Espanhola, do Maghreb e do Caribe, contribuem
82
hoje para repensar, criticamente, os limites do moderno
sistema mundial — a necessidade de concebê-lo como um
sistema mundial colonial/moderno e de contar as histórias
nào apenas a partir do interior do mundo “moderno”, mas
também a partir de suas fronteiras. Estas nào sào apenas con-
tra-histórias ou histórias diferentes; sào histórias esquecidas
que trazem para o primeiro plano, ao mesmo tempo, uma
nova dimensão epistemológica: uma epistemologia da, e a
partir da, margem do sistema mundial colonial/moderno, ou,
se quiserem, uma epistemologia da diferença colonial que é
paralela à epistemologia do mesmo.
Concluo o capítulo discutindo duas críticas indiretas ao
tipo de argumento que proponho. Uma delas, relatada indi
retamente, é do sociólogo marxista de origem árabe-muçul-
mana Aziz Al-Azmeh, cujo apego a princípios disciplinares
lhe tornaria d ifícil com preender ou aceitar p o siçõ es e
propostas como as de Quijano, Dussel, Khatibi e Glissant.
Al-Azmeh não dialoga pessoalmente com nenhum dos pensa
dores que discuti. Estou interessado, no entanto, na rejeição
de Al-Azmeh à possibilidade de compreensão intercultural
que restabelece o princípio monotópico da epistemologia
moderna e, portanto, lança dúvida sobre as perspectivas
transdisciplinares semelhantes às introduzidas por Glissant
ou Dussel. A segunda crítica é a de Jacques Derrida ao conceito
de bilingualismo proposto por Khatibi e, conseqüentemente,
de dupla crítica. Encerrando o capítulo, eu o abro a uma nova
dimensão de pensamento a partir da fronteira do sistema mundial
colonial/moderno trazendo à discussão a “dupla consciência”
de Du Bois e a “nova consciência mestiza” de Gloria Anzaldúa,
baseadas na experiência das áreas fronteiriças.
O aspecto “oculto” do sistema mundial “moderno” foi
recentemente trazido à luz pelo sociólogo peruano Anibal
Quijano e por Enrique Dussel, filósofo argentino da libertação.
Quijano introduziu o conceito de colonialidade, enquanto
Enrique Dussel concebeu a idéia diferente mas complementar
de transmodernidade. O que esses dois conceitos têm em
comum, no entanto, é o sentimento de que o sistema mundial
moderno ou modernidade está sendo pensado do “outro
extremo”, ou seja, a partir da idéia de “modemidades coloniais”.
Quijano insiste no fato de que, na América Latina, o “período
colonial” nào deveria ser confundido com “colonialidade", e
83
de que a construção de nações que a seguiu no decorrer do
século 19 na maioria dos países latino-americanos (com as
exceções de Cuba e Porto Rico) nào pode ser compreendida
sem se pensar na colonialidade do poder. E assim é, preci
samente, porque modernidade e colonialidade são os dois lados
do sistema mundial moderno, embora na versào de Wallerstein
essa duplicidade nào fosse claramente articulada. Foi apenas
recentemente, quando Quijano e Wallerstein assinaram em
conjunto um artigo (“Americanity as a Concept, or the Américas
in the Modern World-System”, 1992), que a colonialidade fez
sua apariçào e trouxe à luz a articulação da modernidade/
colonialidade e, nela, a relevância das Américas, e do século 16.
84
coroa (apoiada pela Igreja) a respeito das liberdades que os
conquistadores estavam tomando com os ameríndios e sua tutela.
Em que sentido a colonialidade do poder ajuda a compre
ender a atual reconfiguraçào da economia e do imaginário
mundial, na história do controle espanhol sobre as índias
Ocidentais e a emergência da América Latina como um grupo
de países cujos denominadores comuns são os legados coloniais
espanhol e português? No seu artigo de 1997, Quijano apre
senta o seguinte argumento: “Colonialidade do poder” e
“dependência histórico-estrutural” são duas expressões-chave
inter-relacionadas, que percorrem a história local e particular
da América Latina, não tanto como uma entidade existente onde
eventos “ocorreram” e “ocorrem”, mas como uma série de
eventos particulares cuja localização na colonialidade do
poder e na dependência histórico-estrutural fez da América
Latina o que ela foi no passado e é hoje, do período colonial
no Peru a Fujimori, como a articulação paradigmática do
neoliberalismo. A colonialidade do poder sublinha a orga
nização geoeconômica do planeta, a qual articula o sistema
mundial colonial/moderno e gerencia a diferença colonial.
Essa distinção permite a Quijano ligar o capitalismo, através
da colonialidade, ao trabalho e à raça (e não apenas à classe),
bem como ao conhecimento:
85
Uma nota sobre a “teoria da dependência” e sua marca no
imaginário do sistema mundial colonial/moderno faz-se aqui
necessária por duas razões. Uma é o fato de que a teoria da
dependência foi uma das respostas da América Latina a uma
ordem mundial cambiante que na Ásia e na África tomou a
forma de “descolonização”. Nas Américas, entretanto, a inde
pendência dos poderes coloniais (Espanha e Inglaterra) foi
obtida muito antes, no que pode ser chamado a primeira onda
de descolonização (revoluções dos EUA e Haiti; indepen
dência da América Hispânica). A outra razão é que, por um
lado, a teoria da dependência “precedeu” em alguns anos a
metáfora de Wallerstein do sistema mundial moderno como
um relato feito do ponto de vista da modernidade. Por outro
lado, foi “seguida” — na América Latina — por uma série de
reflexões (na filosofia e nas ciências sociais) na perspectiva
da colonialidade. Quijano e Dussel têm ambos uma dívida
com o impacto da teoria da dependência em sua crítica ao
“desenvolvimento” como o novo formato assumido pelos
projetos globais, uma vez que, com o crescente processo de
descolonização, a “missão civilizadora” estava chegando ao fim.
Embora a teoria da dependência tenha sido atacada de diversas
frentes (Cardoso, 1977), é importante não perder de vista o
fato de que, na perspectiva da América Latina, a teoria colocou
na agenda, clara e incisivamente, problemas implicados na
idéia de “desenvolver” países do Terceiro Mundo. O impacto
da teoria da dependência sobre a filosofia latino-americana
foi também apreciável. O filósofo peruano A. Salazar Bondy
viu na teoria da dependência uma provocação epistemoló-
gica e um m odelo para pôr fim a uma longa tradição “imita-
tiva” e de dependência da América Latina em relação à filosofia
européia (Salazar Bondy, 1969). Foi um momento crucial
de autodescoberta, de compreensão da filosofia na América
Latina e no Terceiro Mundo como parte de um sistema global
de dominação. Sob este aspecto, a teoria da dependência foi
para a filosofia na América Latina o que Bantu Philosopby
(1945) do Padre Placide Tempel foi para a autodescoberta
da filosofia africana (Mudimbe, 1998; Eze, 1997a: 10-14;
Serequeberhan, 1994).
Nas páginas precedentes espero ter sugerido que, visto
do exterior, o sistema mundial moderno parece diferente,
86
como mostra Quijano, seguindo José Carlos Mariátegui.* a o
mesmo tempo, destacando histórias locais particulares cons
truídas ao redor da densidade de “índias Occidentales” e
“América Latina” (construções que poderíam ser explicadas
através da colonialidade do poder e como uma dependência
histórico-estrutural), espero haver sugerido, como se tornará
claro à medida que avança minha argumentação, que o ociden-
talismo foi uma rearticulaçào planetária durante o século 16
que continuou como o imaginário dominante do sistema
mundial colonial/moderno e da modernidade/colonialidade.
“índias Occidentales” e “América Latina” tornaram-se peças
cruciais naquela redistribuiçào e, de fato, tornaram possível
o orientalismo. No entanto, e de forma bastante paradoxal, a
emergência do orientalismo (na análise de Said; ver Said, 1978)
coincidiu com o segundo estágio da modernidade como uma
transformação interimperial do capitalismo e do sistema mundial
colonial/m oderno, com a Inglaterra e a França se expan
dindo na direção da Ásia e da África. Esse é também o
momento em que “modernidade” e “modernização” começaram
a fazer diferença numa América Latina emergente, composta de
diversas nações que haviam acabado de obter a independência
da Espanha e de Portugal. Alguns anos depois que os Estados
Unidos da América do Norte conquistaram sua independência
da Inglaterra, houve a Revolução Francesa, seguindo-se a
Revolução Haitiana. No entanto, nesse momento de transição
do sistema mundial moderno, a independência dos EUA e a
Revolução Francesa tornaram-se os padrões de modernidade
e modernização e estabeleceram os padrões econômicos,
políticos e epistemológicos. Assim, estava claro que a “América
Latina” não era o Oriente mas o “extremo Ocidente”, e seus
próprios intelectuais, como Domingo Faustino Sarmiento, da
Argentina, se auto-intitularam líderes de uma missão civiliza-
dora em seu próprio país, abrindo assim as portas para uma
longa história de colonialismo intelectual interno, que começou
a desmoronar em 1898, quando o sistema chega a um ponto
87
de inflexão. Os Estados Unidos entram no cenário planetário
como o novo poder imperial, e, na América Latina, fez sua
apariçào uma tradição de “intelectuais periféricos”, contestando
o imperialismo e a missão civilizadora (José Marti em Cuba,
no fim do século 19; Juan Carlos Mariátegui no Peru nos anos
20 — ver Capítulo III). A emergência da “missão civilizadora”,
que desloca a “missão cristã” do colonialismo inicial resume
essa mudança no sistema mundial moderno e estabelece a
primeira articulação de fronteiras internas: as fronteiras entre
dois impérios em decadência (Espanha e Portugal), a ascensão
do Império Britânico e do colonialismo francês e a consoli
dação da Alemanha como uma terceira nação poderosa na
Europa Ocidental. Os padrões de conhecimento e sua expor
tação foram estabelecidos principalmente nesses três países
e nessas três línguas (ver Capítulo VII).
Enquanto Quijano começou sua produção intelectual no
final dos anos 60, na sociologia, Enrique Dussel começou a
escrever nessa mesma época, mas no campo da filosofia.
Oriundos de suas respectivas disciplinas e trajetórias e traba
lhando independentemente um do outro, chegaram depois de
1990 a conclusões e perspectivas similares, como é freqüen-
temente o caso na América Latina, onde as genealogias são
sempre rompidas por uma nova onda de idéias e de produção
intelectual vinda do centro do sistema mundial (em alemão,
francês e inglês). Em 1992, Quijano publicou “Colonialidad y
modernidad-racionalidad” (Quijano, 1992), e Dussel apresentou
“Eurocentrism and Modernity” (Dussel, [19931 1995). Nesse
artigo, Dussel insiste em que o que é hoje a América Latina foi
a primeira periferia da Europa moderna e em que o conceito
de modernidade criado após o Iluminismo obscurecia o papel
da periferia ibérica da própria Europa, e particularmente da
Espanha, em sua formação (Dussel, [19931 1995: 67). Esse
obscurecimento foi tal que até Wallerstein, que afirma clara
mente que o sistema mundial moderno começou a ser articu
lado em 1500 ao desenvolver novas áreas econômicas (minas
e plantações), não enxerga a contribuição espanhola para o
imaginário episteniológico do sistema mundial moderno:
88
e começou a perder sua aceitaçào ampla com a revolução
mundial de 1968. A economia mundial capitalista vem operando
desde o longo século 16. Funcionou por três séculos, entretanto,
sem nenhuma geocultura firmemente estabelecida. Ou seja, do
século 16 ao século 18, nenhum conjunto único de valores e regras
básicas, ativa mente endossado pela maioria dos membros e passi
vamente aceito pela maioria das pessoas comuns, prevaleceu no
interior da economia mundial capitalista. A Revolução Francesa,
lato senso, mudou isto. Ela estabeleceu dois novos princípios:
(1) a normalidade das mudanças políticas, e (2) a soberania dos
povos... O ponto essencial a destacar sobre esses dois princípios
é que eram, em si e por si mesmos, totalmente revolucionários
em suas implicações para o sistema mundial... É nesse sentido que
argumentei, em outro lugar, que a Revolução Francesa repre
sentou a primeira das revoluções anti-sistêmicas da economia
mundial capitalista, em pequena parte um sucesso e, em boa
parte, um fracasso (Wallerstein, 1995b: 1.163, grifos nossos).
89
pretendo juntar-me a Aijaz Ahmad (1992) e engajar-me numa
crítica devastadora a Saicl porque o livro nào faz exatamente
o que eu desejo que faça. No entanto, nào tenho a intenção
de reproduzir o enorme silêncio que o livro de Said impõe:
sem ocidentalismo nào há orientalismo, e “as maiores, mais
ricas e mais antigas colônias” nào sào o “Oriente”, mas o
“Ocidente”: as índias Ocidentais e depois as Américas. O
“orientalismo” é o imaginário cultural hegemônico do sistema
mundial moderno na segunda modernidade, quándo a imagem
do “coração da Europa” (Inglaterra, França, Alemanha) subs
titui aquela da “Europa Cristã” do século 15 a meados do
século 17 (Itália, Espanha, Portugal). Foi a partir das índias
Ocidentais que o grande fluxo de riquezas, em ouro e prata,
chegou à Espanha e ao resto da Europa. Um exemplo é
suficiente para sustentar o argumento: entre 1531 e 1660
no mínimo 155.000 quilos de ouro e 16.985.000 quilos de
prata entraram legalmente na Espanha; a quantidade ilegal,
evidentemente, nào pode ser calculada (Céspedes dei Castillo,
1985: 133). Essas quantidades transformaram as relações eco
nômicas entre a Espanha e o resto da Europa e também o
comércio com o Extremo Oriente. Céspedes dei Castillo observa:
90
no início desse período guerras religiosas devastadoras
assolaram a área. O monopólio comercial de Castela começou
a ruir, e com ele o poder e prestígio de Sevilha como um
centro comercial do novo circuito comercial Atlântico. No
decorrer do século 17, a Holanda emergiu como um novo
poder hegemônico (Arrigui, 1994). Amsterdam, que no século
17 ocupava a periferia do novo circuito comercial e estava
sob o controle da Espanha, substituiu Sevilha como o centro
comercial mundial (Wallerstein, 1980: 36-73). Enquanto, até
esse período, para os britânicos, franceses e holandeses o
Atlântico era o principal foco de atenção, juntamente com a
pirataria que controlava suas águas, no século 17 europeus
sob liderança holandesa começaram a se estabelecer nas índias
Orientais. O interesse do período para minha argumentação,
que expando no Capítulo VII, é que a economia mercantil
colonial destacava-se de certa forma da ideologia cristã hege
mônica ainda dominante com seus conflitos entre católicos e
puritanos. Era, em outras palavras, uma economia mercantil
colonial, que, cento e cinquenta anos mais tarde, se associaria
à secularização e à missão civilizadora.
É verdade, como afirma Said, que o Oriente se tornou uma
das imagens recorrentes do outro europeu após o século 18.
O Ocidente, no entanto, nunca foi o outro para a Europa,
mas a diferença dentro do mesmo: as índias Ocidentais (como
se pode ver no próprio nome) e mais tarde a América (em
Buffon, Hegel etc.) era o Extremo Ocidente, nào sua alteridade.
A América, ao contrário da Ásia e da África, incluía-se como
parte da extensão da Europa e não como sua diferença. Eis
porque, uma vez mais, sem ocidentalismo nào há orientalismo.
O ocidentalismo foi uma construção transatlântica precisa
mente no sentido em que as Américas foram concebidas como
a expansão da Europa, a terra ocupada pelos descendentes
de Jafé, cujo nome traz inscrito seu próprio destino: “fôlego ”,
“crescim ento”, e, com o tal, eles reinarão sobre Sem (locali
zado na Ásia) e Cam (“forte nào em sabedoria mas em deter
minação”, localizado na África) (Hay, 1937: 12). Durante o
século 16, quando a América foi concebida como tal nào pela
coroa espanhola mas por intelectuais do Norte (Itália e França -
Mignolo, 1982; 1995a, Capítulo VI), ficava implícito que a
América nào era nem a terra de Sem (o Oriente) nem a terra
de Cam (a África), mas a extensão da terra de Jafé. Não havia
91
nenhuma outra razào senào a distribuição geopolítica do
planeta implementada pelo mapa T/O cristão para perceber
o planeta como sendo dividido em quatro continentes; e o
único lugar para a “América” no mapa T/O cristão era o
domínio de Jafé, isto é, o Oeste (Ocidente). O ocidentalismo,
em outras palavras, é o imaginário geopolítico dominante do
sistema mundial colonial/moderno, ao qual o orientalismo
foi anexado em sua primeira transformação radical, quando
o centro do sistema se deslocou da Península Ibérica para o
Mar do Norte, entre a Holanda e a Grã-Bretanha.
Quijano e Dussel, bem como o “antropologiano” brasileiro
Darcy Ribeiro (1968; [19691 1978), tiveram dificuldade em
encontrar uma localização “para além do eurocentrismo”
(Dussel, 1998a) ou “para além do ocidentalism o”, como
Coronil (1996) recolocou recentemente a questão. Uma das
principais preocupações desses acadêmicos é com o conhe
cimento: o ocidentalismo — como afirmei — como o imaginário
dominante do sistema mundial moderno foi uma máquina
poderosa para subalternizar o conhecimento (dos primeiros
missionários da Renascença aos filósofos do Iluminismo)
estabelecendo, ao mesmo tempo, um padrão epistemológico
planetário. Quijano aborda esta questão explicitamente em
seu artigo “Colonialidad y modernidad-racionalidad” (Quijano,
1992), e Dussel o faz no seu “Eurocentrism and Modernity”
([19931 1995), bem como em seu livro The Undersidc o f
M odernity (1996a). Em Dussel, o argumento básico se desen
volve da seguinte forma:
92
de Kant mantém toda a sua força, mas não necessariamente
com as mesmas palavras. Nào há dúvida de que Quijano, Dussel
e eu estamos reagindo, nào apenas contra a força de um imagi
nário histórico, mas também contra a atualidade desse imagi
nário hoje. Quijano tem uma perspectiva semelhante sobre a
subalternizaçào do conhecimento quando escreve: “Ao mesmo
tempo em que se afirmava a dominação colonial, erigia-se
um complexo cultural denominado racionalidade e estabele
cia-se como o paradigma universal do conhecimento e das
relações hierárquicas entre a ‘humanidade racional’ (Europa)
e o resto do mundo” (1992: 440). Como sociólogo, Quijano
se atribui a tarefa de analisar as crises epistemológicas, que
ele localiza no princípio epistemológico de separar o sujeito
que conhece do objeto que é conhecido. Ele se ocupa desse
paradigma que enfatiza o caráter individual do sujeito cognos-
citivo, suprimindo assim a dimensão intersubjetiva na produção
de conhecimento. Quijano associa a relação epistemológica
entre um sujeito e um objeto e a relação econômica entre um
sujeito e sua propriedade privada. Mas o que realmente
importa na análise de Quijano sobre a subalternizaçào do
conhecimento nào é tanto a cumplicidade com a moderna ideo
logia econômica (propriedade privada no mercantilismo da
Renascença ou no capitalismo do Iluminismo) quanto o fato
de que, uma vez postulada uma correlação entre sujeito e
objeto, tornou-se im pensável aceitar a idéia de que seria
possível um sujeito conhecedor para além do sujeito do conhe
cimento postulado pelo próprio conceito de racionalidade
erigido pela epistemologia moderna (Quijano, 1992: 442). Essa é
a razão que possibilitou o orientalismo, bem como os estudos
de área após a Segunda Guerra Mundial (ver Capítulos II e VII).
93
retórica e ética) eram as disciplinas dominantes (Cassirer,
Kristeller e Randall, 1948; Kristeller, 1965). Em geral, Aristó
teles nào era uma figura importante devido à sua ênfase na
lógica e na ciência (como para o aristotélico italiano Pietro
Pomponazzi [1462-1525], o conceito renascentista de ciência
estava longe da idéia que seria posteriormente introduzida por
Galileu e, filosoficamente, por Descartes). Foi o trabalho
pioneiro de Aristóteles na retórica e na história natural que
v
chamou a atenção dos letrados da Renascença. Foi, por
assim dizer, uma conceituaçào humanística da ciência e da
filosofia baseada na lógica, ao invés da observação e experi
mentação. Ademais, a percepção do mundo árabe nesse tempo
nào era uma percepção que poderiamos chamar de “orien-
talisnio” e nem mesmo a percepção do “outro”, mas a per
cepção de um inimigo cujo conhecimento tinha o mesmo funda
mento: o pensamento grego. Numa carta de 17 de novembro de
1370, Petrarca manifesta para Giovanni de Dondi, seu médico e
amigo, um juízo forte contra os árabes:
Antes de concluir esta carta, imploro que evite que esses árabes
me aconselhem sobre minha condição pessoal. Deixe que per
maneçam no exílio... Sei que os gregos foram outrora os mais
inteligentes e eloquentes dos homens. Muitos excelentes filó
sofos e poetas; oradores de destaque e matemáticos vieram da
Grécia. Aquela parte do mundo produziu príncipes da medicina.
Você sabe que tipo de médicos são os árabes. Eu sei que tipo
de poetas são. ... As mentes dos homens se inclinam a diferentes
cursos de ação; mas, como você costumava dizer, todo homem
irradia sua própria disposição mental particular. Em suma: não
me deixarei persuadir de que qualquer coisa boa possa vir da
Arábia (Cassirer et al., 1948: 142).
94
para a configuração, no século 18, do objeto de estudo que
traz à luz o que Said chamou de orientalismo.
O orientalismo, em outras palavras, foi uma rearticulação
particular do imaginário do sistema mundial colonial/moderno
em sua segunda fase, quando o ocidentalismo, estruturado e
implementado no imaginário dos impérios espanhol e português,
começou a se esvanecer. Mas dizer que estava se esvanecendo
não significa que tenha desaparecido. O ocidentalismo perdeu
seu poder hegem ônico com o um tipo de imaginário. No
entanto, conforme o dito de Petrarca, o valor atribuído ao
conhecimento árabe, em uma perspectiva cristã, tornou-se uma
referência para julgar e subalternizar formas de conhecimento
que não podem ser justificadas dentro da configuração
epistem ológica greco-rom ana e cristã. Nesse aspecto, a
chamada descoberta do Novo Mundo foi um momento fun
dador: enquanto o Studia humanitatis estava produzindo e
estabelecendo a regra do conhecimento, principalmente na
teologia, na ética e na educação numa Europa Ocidental cristã
emergente, a emergência de um “novo mundo” forçou a rear
ticulação do princípio de conhecimento no campo da ética e
no aspecto “científico” (isto é, aristotélico) da Renascença.
No domínio da ética, chamo a atenção para uma das
observações básicas de Dussel:
95
moderno é que, na declaração dos “direitos do homem e do
cidadão” o conceito de homem e de cidadão universalizou
um tema regional e apagou a questão colonial. Foi precisa
mente nesta interseção, e devido ao apagamento do conflito
colonial, que a Revolução Haitiana, realizada como uma imple
mentação dos direitos do homem e do cidadão, foi im pen
sável, como Trouillot argumentou com eloqüência (Trouillot,
1995). E foi impensável, proponho eu — e sugeriria que
Quijano e Dussel, em uma perspectiva diferente, têm argu
mentado no mesmo sentido — porque o século 18 redefiniu
o imaginário do sistema mundial colonial/moderno de uma
maneira compatível com o novo poder imperial (Holanda,
Grã-Bretanha, França). Foi autoconcebido como um novo
começo que apagou — para a geração futura — a importância
crucial da Renascença e da Reforma. D ’Alembert expressou
seu ponto de vista de forma muito clara no início de seu
“Élements de philosophie” (1759):
96
reescrita da história colonial c, ao mesmo tempo — e por
razões históricas muito compreensíveis — situar os limites
do colonialismo na colonização da índia pelos britânicos,
perto do final do século 18. Eis porque, uma vez mais, as
reflexões de Kant sobre o Iluminismo são tão importantes
para o líder do grupo, Ranajit Guha (Guha, 1988). Minha
primeira intenção aqui, ao pegar carona em minha própria
análise da teoria do sistema mundial, é precisamente trazer
de volta à praia memórias levadas pelas ondas e que são tão
“fundamentais” no imaginário global de hoje. Minha segunda
intenção é usar o sistema mundial colonial/moderno para
situar a emergência do “pensamento liminar” a partir da dife
rença colonial como uma revolução equivalente â descrita
por D ’Alembert, mas ocorrendo simultaneamente em diversos
lugares, reagindo a uma impressionante diversidade de
histórias locais e invertendo a tendência pós-Iluminismo de
referir todos os tipos de conhecimento ao “século da filosofia
por excelência” convincentemente descrito por D ’Alembert.
Minhas observações sobre Quijano e Dussel poderíam ser
complementadas por um volume significativo de trabalho
realizado no campo da filosofia africana nas últimas três
décadas, principalmente por uma nova geração de filósofos
que se atribuíram a tarefa de ler as figuras principais do
pensamento ocidental (Kant, Hegel, Marx, Heidegger, Foucault)
do ponto de vista da colonialidade. Eze (1997b) e Serequeberhan
(1997), por exemplo, oferecem uma leitura reveladora do
que está “por detrás” do “Que é o Iluminismo?” de Kant, bem
como de sua teoria da razão pura e prática e do sublime. Eze
mostra um duplo movimento nas reflexões teóricas de Kant: de
um lado, a organização espacial das pessoas pela cor de sua
pele e sua localização planetária nos quatro continentes, que
Kant desenvolveu em suas conferências sobre Anthropology
frorn a Pragmatxc Point o fV iew (proferidas entre 1756 e 1797);
e, de outro lado, as teorias de Newton sobre o mundo natural
aplicadas â história e à moralidade. Kant pôde classificar e
descrever quatro raças: branca (europeus), amarela (asiáticos),
negra (africanos) e vermelha (índios americanos). Nos índios
am ericanos, negros e hindus (entre os quais incluía os
persas, chineses e turcos) também encontrou o potencial para
a razão, paixão e sensibilidade que encontrava nos brancos
europeus (incidentalmente, é notório que quando Kant fala dos
97
americanos fala da América do Norte, já que a América do Sul
inevitavelmente fica fora do quadro). Sercqueberhan, por sua vez,
descobre o mesmo preconceito em “What is Enlightenment?”
de Kant e em “Idea of a Universal History from a Cosmopolitan
Point o f V iew ”, ambas publicadas em 1784. A tarefa atri
buída pelos filósofos africanos à filosofia de seu continente
é complementada pela nova tarefa que os filósofos do conti
nente atribuem à sua filosofia no diálogo com africanos (i.e.,
Bernasconi, 1997), mostrando, na perspectiva da filosofia
africana os limites da desconstruçào de Derrida.
Enquanto essa distribuição geopolítica das tarefas inte
lectuais e projetos disciplinares pode parecer suspeita, ela não
pode ser evitada, precisamente em razão da constituição do
imaginário do sistema mundial colonial/moderno. “Filosofia”
precisa ser apropriada como uma palavra e uma atividade a
partir da África ou da América Latina (Salazar Bondy, 1966;
1969) para interrogar a Europa e a filosofia européia como a
história local na qual esses projetos globais foram concebidos
e impostos pela força ou pela sedução. Mas há ainda um outro
nível no qual a filosofia africana precisa reorganizar sua tarefa
além da releitura das figuras-chave dos filósofos ocidentais
em sua cegueira para a diferença colonial e a colonialidade
do poder. Essa tarefa é mediar entre as práticas filosóficas no
interior das histórias coloniais modernas (por exemplo, a
prática da filosofia na África, América Latina e América do
Norte, como veremos no Capítulo II) e formas “tradicionais”
de pensamento — isto é, formas de pensamento coexistentes
com a definição institucional de filosofia mas não consideradas
como tal, na perspectiva institucional que define a filosofia.
“Tradição” não significa aqui algo “anterior” à modernidade,
mas a persistência da memória. A este respeito, não há
diferença entre as “tradições” africanas e européias. Tanto a
África como a Europa as têm, e ambas têm “modernidades” e
“co lo n ialid ad es” , embora em diferentes configurações.
Enquanto a primeira preocupação pode ser concebida como
descolonização intelectual, a segunda conduz ao “pensamento
liminar”, como argumentaram claramente Wiredu (1997: 303-
312), Eze (1997c) e Makang (1997).
Na próxima seção exploro tanto a descolonização como
uma forma de desconstruçào como o pensamento liminar nos
trabalhos do filósofo, ensaísta e romancista marroquino
98
Abdelkebir Khatibi e do escritor e pensador da Martinica,
Edouard Glissant.
AS H IST Ó R IA S LO C A IS D O
PEN SAM EN TO LIM INAR
99
(até nos países desenvolvidos), minando o poder do Estado
de produzir e “exportar” projetos globais. Na medida em que
os projetos globais não se situam mais em um território
(por exem plo, os do colonialismo britânico), as histórias
locais sâo afetadas de forma correspondente. A esse respeito,
países que tinham possessões coloniais até os anos 60 (como
a Grã-Bretanha e a França) estão ficando sujeitos à transfor
mação de suas próprias histórias locais em relação â sua
localização anterior na colonialidade do poder. Esse cenário
também se aplica aos EUA de hoje. A posição dos EUA na
ordem mundial é radicalmente diferente da posição que, por
exemplo, a Espanha ocupava no século 16 ou a Inglaterra no
século 19, devido principalmente ao poder das corporações
transnacionais e suas conseqüências: a expansão da economia
capitalista para aquelas regiões do planeta que foram iden
tificadas, a partir das histórias locais onde o capitalismo
emergiu, como “Orientais” e, portanto, com pouca probabili
dade de se tornarem capitalistas. Esse era, precisamente, todo
o argumento manifestado através do imaginário “orientalista”.
O capitalismo era associado à imaginação “ocidental”, não â
“oriental”. Mas é claro que se ligava a uma certa dimensão do
ocidentalism o: um ocidentalism o localizado na Europa
Ocidental (França, Inglaterra e Alemanha) e nos EUA, mas
não no sudoeste da Europa (Itália, Espanha, Portugal) e seu
legado na América Latina.
Precisei do mapa geopolítico precedente para assinalar as
fronteiras exteriores e interiores do sistema mundial moderno,
com o objetivo de localizar em ambos a emergência do
pensamento liminar. Agora posso considerar algumas das
idéias centrais de Abdelkebir Khatibi (Khatibi, 1983 [19831,
1990), filósofo marroquino, junto com as do escritor e ensaísta
caribenho, Edouard Glissant (Glissant, [1981] 1989; [1990] 1997).
As principais razões para a escolha de Khatibi em relação ao meu
argumento prévio são várias. Em primeiro lugar, os argu
mentos de Khatibi trazem para o primeiro plano a história
primitiva do sistema mundial moderno e o conflito entre os
cristãos e mouros no século 16 na ideologia da Renascença,
a que Khatibi se refere como “ocidentalismo”. Em segundo
lugar, ele rearticula esse conflito com o segundo momento,
pós-Iluminista, do sistema mundial moderno: a colonização
francesa do Maghreb. Em terceiro lugar, Khatibi tem uma
100
perspectiva crítica sobre o “orientalismo” independente da
de Said: seu artigo “Uorientalisme désorienté" foi original
mente publicado em 1974. Em quarto lugar, o ensaio de
Khatibi sobre a “La decolononisation de la sociologie”, escrito
em 1981, avança importantes perspectivas sobre a descoloni
zação do conhecimento que foram mais recentemente trazidas a
uma audiência mais ampla, (embora não necessariamente com
a mesma força crítica) pelo relatório da Fundação Gulbenkian,
Open lhe Social Sciences (Wallerstein et al., 1996). Falarei mais
sobre esses assuntos, um de cada vez. Finalmente, embora
Khatibi pegue carona na desconstruçào de Derrida e na
arqueologia de Foucault, porque não tem a mesma preo
cupação em opor os dois, ele, por outro lado, se afasta
claramente de ambos. Khatibi procede da mesma forma com
Nietzsche e Heidegger, abraçando até certo ponto a proposta
deles: o ponto em que uma crítica interna da modernidade
mostra-se cega às perspectivas críticas a partir da língua, do
conhecimento e da memória árabes e do mundo islâmico. É
precisamente aqui que o pensamento liminar emerge com sua
força plena e total. Edouard Glissant, por sua vez, fornecerá
uma perspectiva comparatista e em muitos níveis: a experiência
afro-caribenha do colonialism o francês, com a memória
reprimida da colonização espanhola inicial; e a memória da
escravidão africana contrastada com a densidade árabe-
islâmica do Maghreb.
UM O U T R O PENSAMENTO
O ideal geral da descolonização do conhecimento, em
Khatibi, apóia-se em dois de seus conceitos cruciais: a “double
critique” e “une pensée autre” (um outro pensamento).
Durante a exploração desses conceitos, definirei minha própria
conceitualização do pensamento liminar (gnose liminar ou
epistemologia liminar). Ao fazê-lo, não estou tentando en
contrar o conceito único e correto que capte “a coisa”, o
(matricial) significante vazio que abrigará toda a diversidade
de particulares. Isso contradiría minha própria concepção de
pensamento liminar, mudando o contexto, mas não os
termos, da conversação (como aprendi com “Global Flows,
Open Cultures” — monografia apresentada por Trouillot na
Universidade de Stanford em maio de 1998). Estaria caindo
101
^ 0* >k.
numa visão moderna e universal do conhecimento e da epis-
temologia, onde os conceitos não estão ligados ãs histórias
locais mas a projetos globais, e os projetos globais são sempre
controlados por certos tipos de histórias locais. Minha concepção
de pensamento liminar não emerge de uma genealogia concei
tuai universal, que pode remontar a Platão (ou Aristóteles,
dentro da mesma linha), ou estar ligada a algum filósofo ilu-
minista do século 18 e de volta a algum pensador influente
do presente (que certamente estará ligado a uma genealogia
nacional e escreverá em francês, alemão ou inglês). Emerge
das histórias locais dos legados espanhóis na América. Mais
especificamente, minha conceitualização emerge do conflito
imperial entre a Espanha e os EUA, no século 19, que gerou
a fronteira física entre o México e os EUA, mas também as
fronteiras metafóricas encenadas nas histórias de Cuba/EUA,
Porto Rico/EUA, que basicamente definem a configuração de
latino-americanos/as ou hispânicos neste país. No entanto, a
Espanha é também o elo perdido entre a “dupla crítica” de
Khatibi, seu “outro pensamento” e minha própria gnose
marginal. A expulsão inicial dos mouros da Península Ibérica,
onde viveram por muitos séculos, e através do Mediterrâneo
(Harvey, 1990) harmonizava-se com a necessidade de encontrar
um lugar para os ameríndios na ordem planetária e cristã da
existência, e com a exportação de escravos africanos para
desempenhar as tarefas que os ameríndios — como vassalos
do rei — não podiam legalmente assumir.
Na história local de Khatibi, o Ocidente (VOcciclent) é
definido em oposição ao “notre patrimoine” (Vlslam). No
entanto, ele rapidamente descarta a dicotomia necessária para
montar o cenário para “um outro pensamento” (“une pensée
autre”) pois, curiosamente, um outro pensamento é uma
maneira de pensar sem o outro. Já que o conflito entre a
Europa e o mundo árabe data de muitos séculos, Khatibi
argumenta, esse conflito torna-se uma máquina de desen
tendimento mútuo (1983: 15) — daí a necessidade da dupla
crítica aos fundamentalismos ocidental e islâmico. Nessa inter
seção uma dupla crítica torna-se um pensamento liminar, já
que criticar a ambos, ao fundamentalismo ocidental e ao islâ
mico, implica em pensar a partir de ambas as tradições, e, ao
mesmo tempo, de nenhuma delas. Esse pensamento liminar
e essa dupla crítica são as condições necessárias para “um
102
outro pensamento”, um pensamento que nào é mais concebível
na dialética de Hegel, mas localizado na fronteira da colo-
nialidade do poder no sistema mundial moderno. Por quê?
Porque a dialética de Hegel pressupõe uma concepção linear
do desenvolvimento histórico, enquanto “um outro pensa
mento" se baseia nas confrontações espaciais entre diferentes
conceitos de história. Ou, devo dizer, “um outro pensamento"
é possível quando sào levadas em consideração diferentes
histórias locais e suas particulares relações de poder. Nesse
caso, o filósofo árabe Ibn Khaldun torna-se canônico em sua
diferença em relação aos filósofos alemães. O progresso e a
progressão lineares não cabem no escopo de uma dupla crítica,
e uma síntese dialética não é mais recomendável uma vez
que se torne disponível “um outro pensamento”. O potencial
ep istem ológico do pensam ento lim inar, de “ um outro
pensamento”, tem a possibilidade de superar a limitação do
pensamento territorial (isto é, a epistemologia monotópica
da modernidade), cuja vitória foi possibilitada por seu poder
de subalternizar o conhecimento localizado fora dos parâmetros
das concepções modernas de razão e racionalidade. Uma dupla
crítica libera conhecimentos que foram subalternizados, e a
liberação desses conhecim entos possibilita “um outro
pensamento”. No caso de Khatibi, estamos na interseção do
francês e do árabe, na interseção dos conhecimentos ocidental
e árabe, mas não numa síntese feliz que vá nos levar à repro
dução natural da epistemologia ocidental.
A segunda oposição que Khatibi tenta desfazer (depois da
oposição entre o Ocidente cristão e o Oriente islâmico) e, eu
diria, o próprio fundamento de sua necessidade de uma
dupla crítica é a situação pós-colonial no Maghreb. “O que
fizem os”, pergunta Khatibi, refletindo sobre a atitude dos
intelectuais do Maghreb no processo de descolonização,
“a não ser reproduzir uma versão bastante simplista do
pensamento de Marx, de um lado, e a teologia ideológica
do nacionalismo árabe, de outro?” (1983: 16). Escapar dessas dico-
tomias pressupõe uma dupla crítica e a busca de “um outro
pensamento” que ultrapasse certas limitações do pensamento
marxista, que mantém uma geopolítica do conhecimento de
acordo com o sujeito cognoscitivo no Primeiro Mundo (o
Ocidente) e o sujeito conhecido no dogmatismo e no nacionalismo
árabe: “Um outro pensamento é formulado como resposta às
103
grandes questões e temas que hoje sacodem o mundo, as
questões que emergem dos lugares onde a planetarizaçào da
ciência, da técnica e das estratégias está sendo divulgada”
(13). O que emerge dessa formulação é que “um outro pensa
mento” não mais se situa em qualquer das duas alternativas
nas quais o orientalismo — e estudos de área posteriores —
organizou a distribuição do trabalho acadêmico do século 18
á Guerra Fria. Um “outro pensamento” implica a redistribuição
da geopolítica do conhecimento da forma como foi orga
nizada tanto pelo ocidentalismo (enquanto imaginário domi
nante e autodefiniçào do sistema mundial moderno) como
pelo orientalismo (um exemplo particular em que se localizava
a diferença do mesmo), juntamente com estudos de área e o
triunfo das ciências sociais na geopolítica do conhecimento.
Também envolve um esforço para escapar ao domínio da
metafísica ocidental e de seu equivalente, o campo teológico
do pensamento islâmico. Um “outro pensamento” situa-se em
todos esses, e em nenhum deles, em sua fronteira (como
Gloria Anzaldúa coloca a questão).
O potencial de “um outro pensamento” é epistemológico e
também ético: epistemológico porque é construído sobre uma
crítica às limitações de duas tradições metafísicas — a cristã/
ocidental secular e a islâmica. Dois momentos históricos são
aqui relevantes: primeiro, o século 16 e a rearticulaçâo do
conflito entre a cristandade e o Islã, através do princípio da
“pureza de sangue” (ver a Introdução); segundo, o século 18
e a secularizaçào da filosofia e do conhecimento, a formação do
capitalismo e a ascensão do colonialismo francês. Assim, uma
descrição conseqüente de “um outro pensamento” é a seguinte:
uma maneira de pensar que não é inspirada em suas próprias
limitações e não pretende dominar e humilhar; uma maneira
de pensar que é universalmente marginal, fragmentária e
aberta; e, como tal, uma maneira de pensar que, por ser
universalmente marginal e fragmentária, não é etnocida
(Khatibi, 1983: 19). Aqui reside o potencial ético de um outro
pensamento. Dussel, independentemente de Khatibi, caracte
rizou a razão moderna e instrumental por seu pendor genocida.
Ele tenta revelar isso em seu conceito do “mito da moderni
dade": “A modernidade inclui um conceito ‘racional’ de emanci
pação que afirmamos e presumimos. Mas, ao mesmo tempo,
desenvolve um mito irracional, uma justificativa para a
104
violência genocida. Os pós-modernistas criticam a razfio
moderna como uma razão do terror; nós criticamos a razão
moderna por causa do mito irracional que ela esconde.” (Dussel,
[19931 1995: 67). É interessante que Khatibi e Dussel não apenas
coincidem em sua crítica da modernidade, sem se conhecerem
um ao outro, mas ambos definem seu trabalho em relação ã
modernidade e aos filósofos europeus (Nietzsche, Heidegger,
Foucault, Derrida, no caso de Khatibi; Apel, Marx, Habermas
e Levinas no de Dussel). As conseqüências da colonialiclade
do poder e da subalternização do conhecimento podem ser
vistas em ação através da diferença colonial, alimentando as
reflexões éticas e epistêmicas de Khatibi e Dussel. E essa é
a situação de que trata “um outro pensamento”, ao mesmo tempo
em que abre uma nova perspectiva para uma ordem geopolí
tica de produção de conhecimento.
A dupla crítica de Khatibi a dois tipos de “metafísica” (oci
dental e islâmica) tem um lócus geoistórico de enunciação
chamado “Maghreb”. Mas que quer ele dizer com essa reivin
dicação de uma localização e de um verdadeiro ser ( tel q u ’il
est) para o Maghreb? O Maghreb, longe de ser construído como
um lugar ontológico, semelhante à idéia da nação, é, ao
contrário, pensado como o lugar de algo que estudarei como
uma irredutível diferença episteniológica. Quero indicar uma
localização geoistórica, construída como uma passagem, ao
invés de uma fundação (por exemplo, a nação). Situado entre
o Oriente, o Ocidente e a África, o Maghreb é por si mesmo
uma travessia do global. Por outro lado, para pensar o
Maghreb como a diferença que não pode ser narrada, e não
como uma “área” a ser estudada, necessitamos de um tipo de
pensamento além das ciências sociais e da filosofia positivista,
um tipo de pensamento que se mova ao longo da diversidade
do próprio processo histórico. Esse tipo de pensamento
deveria primeiro estar atento a ouvir o Maghreb em sua
pluralidade (lingüística, cultural e política); e, em segundo
lugar, deveria estar atento à “exterioridade do Maghreb”. Essa
é uma exterioridade que deverá ser descentralizada de suas
determinações dominantes, de tal modo que possibilite refletir
para além da ontologização de uma área a ser estudada e
caminhar para uma reflexão sobre a historicidade das dife
renças. Nesse sentido, uma dupla crítica é a crítica dos
discursos imperiais (a exterioridade a partir da qual se
105
construiu o Maghreb enquanto área), bem como dos discursos
que afirmam a identidade e as diferenças articuladas nos e
pelos discursos imperiais (Khatibi, 1983: 39).
Neste ponto, a dupla crítica é uma estratégia crucial para a
construção de macronarrativas na perspectiva da colonialidade.
Como tais, essas macronarrativas nào estão predestinadas a
enunciar a verdade que os discursos coloniais nào contaram.
Esse passo já está implicado na dupla crítica. Na perspectiva
da colonialidade, as macronarrativas sào precisamente os
lugares nos quais “um outro pensam ento” poderia ser
implementado, nào para dizer a verdade em oposiçào às
mentiras, mas para pensar de outra maneira, caminhar para
“uma outra lógica” — em suma, para mudar os termos, e nào
apenas o contexto da conversação. Essas narrativas propiciam
pensar a colonialidade, e nào apenas a modernidade, de
forma livre. As implicações epistemológicas dessas possibili
dades sào enormes. Exploro aqui algumas delas, especifica
mente aquelas que permitem a Khatibi posicionar-se em relação
às ciências sociais (por exemplo, sua exigência de descoloni
zação da sociologia) e aquelas que lhe permitem distanciar-se
de seus próprios aliados (por exemplo, a crítica interna da
metafísica ocidental, representada por Nietzsche, Heidegger,
Derrida ou Foucault).
Quanto à sociologia, Khatibi sublinha o fato de que a
descolonização socioistórica (com todas as suas dificuldades)
não produziu uma forma crítica de pensar. Nào resultou, como
diz Khatibi, numa descolonização que teria sido, ao mesmo
tempo, uma desconstruçào. Ao exercitar a descolonização
junto com a desconstruçào, sublinhando que essa é uma
perspectiva do Terceiro Mundo (1983: 47), Khatibi realmente
faz uma jogada de significação ilimitada. Por um lado, distingue
uma crítica da modernidade na perspectiva da própria
modernidade; por outro lado, empreende uma crítica da
modernidade na perspectiva da colonialidade. Assim, assi
nala sua aliança com Foucault e Derrida, ao mesmo tempo
em que deles se distancia. Quanto à sociologia, entretanto, a
posição de Khatibi é unilateral: “Ainda temos muito o que
pensar sobre a solidariedade estrutural que liga o imperialismo
em todas as suas dimensões (política, cultural, militar) à
expansão das chamadas ‘ciências sociais’” (1983: 48). As
106
implicações para a dupla crítica sào as seguintes: (1) uma
desconstruçào descolonizadora (por exemplo, na perspectiva
do Terceiro Mundo) do logocentrismo e etnocentrismo oci
dentais exportados para todo o planeta, que irá complementar
uma desconstruçào pós-moderna à maneira de Derrida, ou
sob a forma da arqueologia de Foucault ou da genealogia
de Nietzsche; e (2) uma crítica, na mesma perspectiva (por
exem plo, uma desconstruçào descolonizadora a partir do
Terceiro Mundo) dos saberes e discursos produzidos pelas
diversas sociedades do mundo árabe. Uma desconstruçào
descolonizadora poderia talvez ser melhor compreendida a
partir do posicionamento de Khatibi em relação à crítica do
cristianismo feita por Nietzsche. Ao mesmo tempo que
encontra em Nietzsche um aliado para sua crítica ao cristia
nismo (do interior da própria história de Nietzsche, eu
acrescentaria), Khatibi percebe que necessita afastar-se dele.
Enquanto situa Nietzsche na tremenda luta que o pensador
alemão travou com o cristianismo, ele também se situa como
um pensador árabe/islâmico contra o cristianismo, uma posição
que nào pode ser incluída sob a presumível localização
universal da crítica de Nietzsche: “Somos também muçulmanos
por tradição; esse fato muda a posição estratégica de nossa
crítica” (1983: 21).
O conhecimento, na argumentação de Khatibi, entrincheira-se
na linguagem, e, portanto, a tradução adquire notável impor
tância tanto para a dupla crítica quanto para “um outro pensa
mento”. O afastamento de Khatibi de Derrida e Foucault ocorre,
precisamente, quando a língua e a traduçào sào trazidas para
o terreno do conhecimento e da epistcmologia, para o terreno
da colonialidade e da dupla crítica, distanciando-se da traduçào
lingüística no interior da mesma metafísica dominadora, que
ignora o que está envolvido na traduçào do conhecimento
(no caso, do grego para o árabe, do árabe para o espanhol
ou do francês para o árabe). A traduçào permite a Khatibi
explorar sua idéia de um outro pensamento como um “pensar
em línguas”. Khatibi explora a descontinuidade do conheci
mento na língua árabe desde Ibn Khaldum (século 15), (Khatibi,
1983: 63-111) e daí parte para a interseção na língua francesa
(no campo do conhecimento), na qual o cânone e a tradição
(da Grécia a Roma e à França) silenciaram a produção de
107
■ r*
108
A D E SC O L O N IZ A Ç Ã O EPISTÊMICA
E A DIFERENÇA CO LO N IA L
Perguntaram-me em duas ocasiões por que nào menciono
o nomadismo (à la Deleuze e Guattari) quando abordo este
assunto. Como a compreendí, a pergunta pressupunha que
eu nào atentava para a soluçào conceituai universal ou, pelo
menos, mais “convincente" para o problema, ou seja, quem
formulou a pergunta presumia que Deleuze já havia fornecido
a chave para o que eu propunha. Faço uma pausa para abordar
a questão. Além do mais, ela é importante para a compreensão
das diferenças entre a desconstruçào e a descolonização inte
lectual, conforme articuladas por Khatibi. Winifred Woodhull
(1993) descreve diferentes tipos de exílio na Grà-Bretanha
e na França, particularmente a partir dos anos 70, isto é, a
partir dos anos da descolonização das colônias francesas e
britânicas e também da emergência da corporação transna-
cional. Ele associa migrantes a nômades, enquanto Deleuze
e Guattari fazem uma distinção clara entre ambos. Aceitemos
inicialmente a concepção mais simples de nômade e digamos
que os expatriados, imigrantes e refugiados sào nômades com
diferentes “histórias locais”, alguns emigrando de situações
de violência interna aos sistemas mundiais e outras situações
anteriormente livres dessa violência e que agora se tornam
parte conflituosa dela (por exem plo, o problema da cida
dania de um cidadão do Maghreb na França, dos mexicanos
nos EUA ou dos imigrantes do sul da Ásia na Grà-Bretanha).
E aproveitemos a distinção e exemplificação oferecidas por
Woodhull a respeito dos diferentes tipos de exílio na França
nos últimos trinta e poucos anos:
109
culturais ou intelectuais. O exílio significa algo diferente em
cada caso, e figura de modos muito diferentes na obra desses
indivíduos e grupos (Woodhull, 1993: 89, grifos nossos).
110
universal de onde falar sobre o cristianismo: uma coisa é descons-
truir a metafísica ocidental enquanto a habitamos, e outra
muito diferente trabalhar com a descolonização como forma de
desconstruçào (ver também Outlaw, 1997), a partir da exterio-
ridade histórica da metafísica ocidental; ou seja, a partir dos
lugares que a metafísica ocidental transformou em “sociedades
silenciadas” ou “saberes silenciados” (por exemplo, saberes
subalternos; Bernasconi, 1997: 186-187). Uma coisa é criticar
a cumplicidade entre o conhecimento e o Estado, enquanto
se habita uma naçào-estado em particular (nesse caso, a França),
e outra é criticar a cumplicidade entre o conhecimento e o
Estado a partir da exterioridade histórica de uma idéia universal
de Estado, forjada na experiência de uma história local: a
experiência moderna, européia, do Estado. O mesmo racio
cínio poderia ser feito — como podemos ver — se trocarmos
o cristianismo pela linguagem. Assim, a nomadologia é uma
afirmaçào universal a partir de uma história local, enquanto um
outro pensamento é uma afirmaçào universal a partir de duas
histórias locais, entrelaçadas pela colonial idade do poder:
eis porque uma das primeiras articulações da dupla crítica e de
“um outro pensamento” em Khatibi é uma análise do marxismo
francês e do nacionalismo árabe pós-colonial. “Um outro
pensamento” nào pode ser reduzido à nomadologia ou vice-
versa. Ambos estào enraizados em histórias locais: a noma
dologia é uma história universal contada a partir de um local
determinado; “um outro pensamento” é uma história universal
do sistema mundial colonial/moderno que implica a com ple
mentaridade da modernidade e da colonialidade, do colonia
lismo moderno (desde 1500 e seus conflitos internos) e das
modernidades coloniais, em seus diversos ritmos, temporali-
dades, com nações e religiões entrando em conflito em dife
rentes períodos e diferentes ordens mundiais.
Mas penso que a diferença mais marcante entre a noma
dologia e “um outro pensamento” assemelha-se à diferença
entre “um outro pensamento” e a desconstruçào juntamente
com a importância que Khatibi atribui ao “pensar em línguas”,
“cette parole tierce” (essa terceira palavra). Esse movimento
é, ao mesmo tempo, um esforço para desvincular da tirania
da razào ocidental suas ciências e tecnologias articuladas em
línguas ocidentais (do latim ao francês, alemão e inglês) e
uma crítica do fundamentalismo islâmico articulado em árabe.
n i
Diferentemente da desconstrução de Derrida, a versão
descolonizadora de Khatibi atua entre o francês e o árabe;
isto é, “um outro pensamento” é pensar em línguas, entre
duas línguas e suas relações históricas no sistema mundial
moderno e a colonialidade do poder. Inevitavelmente, a
tradução é invocada mais uma vez. Mas a tradução também
recebe uma função particular na estrutura do pensamento e
na produção de conhecimento. Como tal, há um risco do qual
Khatibi tem consciência, e ele tenta responder explicitamente
a esse risco. E o risco na estrutura do conhecimento e, na
colonialidade do poder, de traduzir do francês para o árabe
como uma importação de conhecimento e do árabe para o
francês como exportação de uma mercadoria “oriental” exótica.
A esse perigo real, Khatibi responde como se segue:
112
logo após três grandes vitórias cristãs contra o Islã: Córdoba
foi reconquistada em 1236; Valência, em 1238, e Sevilha em
1248. Alfonso deu um passo decisivo ao cercar-se de sábios,
judeus e muçulmanos, que traduziam do árabe e do hebraico
para o espanhol, e, através do árabe e do hebraico, o conhe
cimento grego foi renovado. Mas o século 13 foi também crucial
sob outros aspectos relacionados às traduções. Falando meta
foricamente, mas de fato com graves conseqüências, o século
13 foi o momento em que a filosofia de Ibn Sina (Avicena)
começou a ceder lugar à de Ibn Rushcl (Averróis). Se ambos
eram tributários de Aristóteles, foi a física aristotélica avançada
por Averróis, ao invés da metafísica explorada por Avicena,
que seria rearticulada mais tarde, no século 16, como método
e como forma de conhecimento objetivo utilizada por Galileu
e Descartes (Sardar, 1987: 102; Durand, 1969: 45-93). Nessa
trajetória da tradução, de pensar em línguas, tornou-se hege
mônica uma forma de conhecimento em cumplicidade e comple
mentaridade com a história econômica do sistema mundial
colonial/moderno, desde o mercantilismo baseado na escra
vidão, acoplado a uma missão cristã, até sua consolidação
com a Revolução Industrial, e o capitalismo, acoplado à sua
missão civilizadora e ao desenvolvimento (Étienne, 1987).
O segundo aspecto da tradução para os intelectuais árabes
ocorrería dentro do sistema mundial colonial/moderno, quando
se inverteu a situação original. Primeiro, no decorrer do
século 19, a “mission civilisatrice” no Maghreb exigiu a
tradução de textos em francês para o árabe. O objetivo não
era reforçar a língua árabe e o domínio islâmico num período
de expansão mas, ao contrário, reforçar a expansão dos
novos imperialismos locais e epistêmicos do sistema mundial
moderno. Em outras palavras, enquanto o primeiro momento
da tradução ocorreu antes da hegemonia européia, o segundo
se deu durante a hegemonia européia e norte-atlântica. Mas
o importante para nossa argumentação é que o segundo
momento da tradução coincidiu com a reestruturação do
conhecimento nos séculos 18 e 19, junto com a emergência
das ciências sociais no 19 e sua ascensão a uma posição de
proeminência após 1945. A tradução relacionava-se geralmente,
aP °s 1945, com a ascenção das ciências sociais acoplada a
estudos de área nos EUA. O apelo de Khatibi pela descoloni-
zaçào da sociologia, em 1980, implica esse momento de
tradução epistêmica e intervém no monolingüísmo das ciências
sociais. Khatibi oferece a alternativa de “um outro pensamento”,
um pensar em línguas que enfrenta as ciências sociais, no
qual a língua é o instrumento neutro de uma epistemologia
objetiva e triunfante com um espelho do mundo social.
MONDIALITÉ, CRIOULIZAÇÂO
E A D IFER EN Ç A C O LO N IA L
A diferença entre as duas posições é óbvia: enquanto
o monolingüísmo das ciências sociais implica a pureza da
linguagem e a transparência do sujeito conhecedor, descre
vendo e explicando um objeto conhecível, um outro pensa
mento é, pelo contrário, a opacidade através da língua, como
propõe Glissant, ([1990] 1997: 114) numa argumentação dife
rente mas paralela: “A língua não tem (outra) missão” a não
ser aquela que lhe é atribuída pelo Estado e pela crença
metafísica na transparência da linguagem científica, isto é,
sua presumida capacidade de espelhar a realidade dos mundos
“social” e “natural”. O mundo espiritual, de acordo com essa
visão, torna-se marginal em sua diferença irreconciliável com
a objetividade reivindicada pelo trabalho científico. O fim do
sonho da nação sobre a unidade da língua e a pureza cultural
correspondente questiona, por um lado, as confiantes ativi
dades do conhecimento disciplinar ocidental vazado nas línguas
hegemônicas da segunda modernidade; e, por outro, como
insinua o pensar em línguas de Khatibi, revela o anacro
nismo dessa crença.
Introduzí Glissant nesta discussão por duas razões: uma é
que ele habita a língua francesa, mesmo divergindo de Khatibi
no sentido em que a alteridade entre o crioulo e o francês
não é a mesma que entre o árabe e o francês (ver Capítulo
V); em segundo lugar, Glissant, que também pensa a partir
da experiência da colonialidade do poder, chega a conclusões
semelhantes às de Khatibi:
114
existem hoje diversas línguas francesas, e as línguas nos permitem
conceber sua unidade de uma nova maneira, na qual o francês já
não pode ser monolíngüe. Se a língua é dada por antecipação,
se pretende ter uma missão, perde a oportunidade da aventura
e não pega no mundo real (Glissant, [1990] 1997: 119).
115
linha reta e uma curva, a curva e sua tangente, e constitui a
curvatura original do movimento do átom o”, disseram Deleuze
e Guattari, (1987, 1996: 361), na esteira de M ichel Serres. O
clinâm en permite construir um m odelo do devir e da hetero-
geneidad e, opostos ao “estável, o eterno, o idêntico, o cons
tante” (1987, 1996: 361). A mesma perspectiva permite definir
“línguas m enores” e “literaturas m enores” . “M aior” e “m enor”
qualificam dois usos diferentes da língua, na literatura e na
ciência: o alem ão de Praga, por exem p lo, “funcionou com o
uma língua potencialm ente menor em relação ao alem ão de
V iena ou Berlim ” (D eleu ze, Guattari, [1987] 1996: 104). Essa
form u lação p o de parecer, à prim eira vista, “a p lic á v e l” ao
crioulo francês ou ao inglês ou espanhol chicano. Mas um tal
m ovim ento ocultaria a diferença irredutível. Glissant e Khatibi
chegam , de fato, à m esma visão, mas não a partir de uma
história local do conhecim ento, construída sob a perspectiva
da m odernidade, com o é o caso de D eleuze e Guattari, e sim a
partir de histórias locais do conhecimento construídas também
na perspectiva da colonialidade. É a colonialidade do poder
e do conhecim ento da forma com o é articulada em línguas
que leva Khatibi e Glissant a uma crítica da epistem ologia
ocidental e à articulação da diferença irredutível com seus
outros nom es, pensadores europeus que exercem uma crítica
monotópica da epistemologia moderna. Nesse contexto, a versão
de Glissant da “crioulização do m u ndo” m ove-se nas linhas
do “um outro pensam ento” de Khatibi: ambos são co m ple
mentares e irredutíveis a uma “ciência nôm ade” ou “m enor” :
116
Am bas as perspectivas (D eleuze e Guattari na França, por
um lado, Khatibi e Glissant entre o M aghreb e a França e o
Caribe e a França, por outro) são com plem entares mas —
quero insistir — irredutíveis uma à outra devido à diferença
colonial. Suas histórias locais, com o se pode imaginar, entre
laçam -se através da colonialidade, pelas tensões internas da
co lo n ia lid a d e do p oder (a França e a E sp anh a, tanto no
M editerrâneo com o no Atlântico), mas são irredutíveis a uma
história universal nôm ade, com o a proposta por D eleu ze e
Guattari, ou ao universalism o desconstrutivo que reivindica
a lei da língua e apaga a colonialidade do poder entrinchei
rada na linguagem e na epistem ologia (Derrida, 1996). É essa
diferença (colonial) com plem entar e irredutível que gostaria
de explorar na próxim a seção e de tomar com o arcabouço
para todo o livro.
117
Permanece o fato de que a retórica do culturalismo, a retórica da
identidade que vê a diferença com o antítese, só pode subsistir
naturalmente no contexto do revivalism o... Existe uma espécie
de irredentismo cultural em ação, o qual pretende estar recu
perando assuntos obscurecidos pela falsidade da história real,
a história da modernidade, do Iluminismo e do mundo. Temas
com o identidade, indeterm inação, subjetividade e autentici
dade, freqüentemente afirmados por antigos marxistas com um
espírito de revanchism e, acertando contas com uma consciência
filosófica de outros tempos. É, finalmente, esse mesmo revayi-
cbism e que alguns intelectuais do Terceiro Mundo reivindicam
com o uma espécie de salvador, uma continuação do nacio
nalism o por outros m eios... O que normalmente permanece
ausente nessa celebração de inocência primai é o fato de que
seu modo de expressão e articulação é tão fortemente parte da
modernidade (Al-Azmeh, 1993: 28).
118
e social é inconcebível, a não ser muito marginalm ente” (1993:
33, grifos nossos). D e acordo com A l-A zm eh, essa situação
deveu-se à “aculturação universal” através dos sistemas educa
tivo e legal, a formas globais de com unicação. Esse repertório
tornou-se “nativo não apenas para seus lugares de origem
mas também m undialm ente” (1993: 34), já que não existe mais
lo c a liz a çã o g e o p o lítica para os p rincípios universais que
govern am o conhecim ento nas ciências sociais (volto a esse
assunto ao discutir Wallerstein et al. 1996, em capítulos subse-
qüentes). A essa globalidade da epistem ologia, que já não é
o cid en ta l, A l-A zm e h o p õ e o “discurso da a u te n ticid a d e ” ,
caracterizad o por seu regionalism o, por se voltar para um
passado re-trabalhado, em direção a um primitivismo e um
nativism o d elib erad o s (ver tam bém G e rh o lm , 1994). Esse
primitivismo tem dois componentes, segundo o autor. Um deles
é simbólico e específico de cada grupo (por exemplo, as canções
dos nacionalistas sérvios), ao passo que o outro é universal
enquanto m ódulos de pensam ento político e social, com o o
“culturalism o organísm ico” . Mas, de acordo com o autor,
119
atenção para o que, para ele, é uma cum plicidade objetiva
“entre o pós-m odernism o libertário e o terceiro-m undism o
0tiers-mondisme ) no O cidente, que, no sul, conduz ao retro
cesso e, no norte, à liderança arcaica da população sulista” .
Com o saída para essa infeliz cum plicidade, Al-Azm eh propõe
“com preender outras culturas” da mesma forma com o co m
preendem os a loucura, o inconsciente, a antigüidade ou os
objetos etnográficos — isto é, sem confiná-los ao exotism o e
adotando-os com o parceiros de “diálogo” (1993: 36). Para isso,
sugere que
120
N ão estou aqui argum entando “contra” A l-A zm eh, já que
realmente endosso sua crítica à retórica culturalista. Na verdade,
estou trazendo à discu ssão o e xem p lo de intelectuais do
T erceiro M undo que abraçam as ciências sociais e reagem
contra formas de retórica culturalista (a seu ver) perigosas,
contra a autenticidade cultural e o tiers-mondisme. Ao mesmo
tem po, tal posição poderia ficar cega a alternativas com o as
oferecidas por Khatibi e Glissant. D e fato, tenho ouvido cien
tistas sociais simpatizantes da posição de Glissant, embora deixem
claro que era um “poeta e escritor”. Não vejo Al-Azm eh com o
parte do m esm o grupo que, digam os, Fukuyam a ou Samuel
H u n tin gton . Mas considero sua p osição de defender uma
universalidade das ciências sociais, “uma autenticidade do
pensam ento social”, tão arriscada quanto a “autenticidade da
retórica culturalista” . O que parece aqui estar em jogo são as
diferenças irredutíveis, bem com o a com plem entariedade que
antes assinalei, entre as posições de Deleuze e Guattari, de um
lado, e as de Khatibi e Glissant, de outro. Uma form ulação de
Glissant mostra, indiretamente, é claro, os limites do apelo
feito por Al-Azm eh em favor de uma compreensão transcultural
“autêntica” com o condição prévia para o diálogo intercultural:
121
co existir e co n v ergir, urdin do tecid o s. Para e n te n d ê -la s
realm ente, deve-se focalizar a textura da urdidura e não a
natureza de seu com ponente (Glissant, [19901 1997: 190).
122
língua flexível, capaz de “falar em línguas” (parleren langues )
e de produzir co n h ecim en to na interseção das línguas e
p ensam entos que se inscrevem em sua própria m em ória
árabe. Dessa perspectiva, “um outro pensam ento” torna-se
uma máquina de tradução que é, ao mesmo tempo, uma forma
de pensar em línguas, uma forma de globalidade (na expressão
de G lissant) que opera traduzindo códigos e sistemas de
signos, circulando no, sobre e sob o mundo. Ora, essa situação
bilíngüe, pensada por Khatibi na relação entre o árabe e o
francês, será válida para qualquer outra situação bilíngüe do
planeta, onde o falar em línguas é, ao m esmo tem po, uma
forma de conquistar poder e de descolonização do co n h eci
m ento (1983: 59-60).
D errid a tom a um a rota d iferente dessa. Eu diria, em
prim eiro lugar, que a diferença irredutível entre ambas as
posições é uma diferença entre uma genealogia judaico-franco-
m agrebina (Derrida, 1996: 133) e uma genealogia ociden tal,
que é ao m esm o tem po islâm ico-árabe-m agrebina (Khatibi,
1983: 11-39). Derrida tem dificuldade em falar a respeito do
“co lo n ia lism o ” e em usar esse termo.
123
co lo n ial/m o d ern o . Sua argum entação sobre o monolingua-
lisme de 1'autre não enxerga o m undo co lo n ia l. Sua argu
m entação sobre o monolingualisme de 1’autre não enxerga
a diferença colonial que fundamenta toda a obra de Khatibi.
Pode-se dizer que Khatibi e Derrida não estão do m esm o
lado da diferença colonial.
É claro que Derrida não está cego para la guerre coloniale
moderne, mas insiste que o que se m anifesta nela e o que ela
revela é “a estrutura colonial de toda cultura” (1996: 69).
C o n se q u e n te m en te,
124
questão não é escolher entre um ou outro, mas com preender
a diferença irredutível entre am bos e o potencial epistem oló-
g ico da gnose (epistem ologia) liminar no “outro pensam ento”
de Khatibi. Derrida (ou, na mesma linha, Deleuze, ou Guattari)
perm anece “sob custódia” da tendência universal do conceito
m oderno de razão — uma perspectiva qu e o pensam ento
lim inar está m u d an d o à m edida q u e cam inh a para uma
“fragm entação com o projeto universal” (Hinkelam m ert, 1996:
238), ao invés da reprodução de “universais abstratos” (por
exem plo, a Língua é a Lei, ou a m áquina de guerra é exterior
ao aparato estatal).
OBSERVAÇÕES FINAIS
126
(1983: 47-48) critica M arx por sua cegueira em relação ao
colon ialism o e por sugerir que a colonização (e a industriali
zação) da índia foi o passo necessário em direção à revolução
proletária internacional, não está negando a poderosa análise
da lógica da econom ia capitalista. A o mesm o tem po, o reco
nhecim ento da contribuição de Marx e sua validade atual não
deveriam obscurecer o fato de que, m esm o se Marx pudesse
ser dissociado de H egel e, de certa maneira, do cerne da meta
física ocidental (Khatibi, 1983: 53), ele estaria ainda apoiado na
crença em um conhecimento total “m apeando o mundo numa
dialética inexorável”, “sob custódia” da tirania dos abstratos
universais da racionalidade m oderna. D aí a necessidade de
“um outro pensamento” que “não é nem marxista no sentido
estrito do termo, nem anti-marxista no sentido que lhe daria
a direita, mas nos limites dessas possibilidades” (Khatibi, 1983:
54). É coerente com a em ergência planetária do pensam ento
liminar que o Subcom andante Marcos tenha feito a mesma
afirm ação quinze anos depois, em espanhol, numa situação
que não é nem a das plantações de escravos nem a do inte
lectual do Maghreb refletindo sobre a história do colonialismo
e seus desdobram entos. “O zapatism o”, afirmou o Subcom an
dante M arcos, “é e não é m arxista-leninista. O zapatism o não
é pensam ento indígena fundamentalista ou milenarista; e tam
p o uco é resistência indígena. É uma mistura de tudo isso,
que se cristaliza no E ZLN ” (1997a: 338-339).
Q u a n d o Fanon m enciona que seu paciente “sofre de um
co m p lexo de inferioridade” , ou quando cita um participante
do X X V Congresso de Estudantes Católicos protestando contra
o envio de tropas senegalesas quando, por outro lado, se
sabia por outras fontes que um dos torturadores no quartel-
general da polícia era senegalês, e se sabia também o que o
arq u étip o dos sen egaleses p odia representar para certos
grup os nativos de Madagascar, Fanon conclui que “as desco
bertas de Freud não nos são úteis aqu i” ([1952] 1967: 104).
Certam ente Fanon não está negando a contribuição de Freud,
mas apenas dem arcando seu limite para além dos distúrbios
p sicológicos, de uma certa classe social de um setor específico
da Europa O cidental no final do século 19 numa sociedade
de tipo cristão e vitoriano. É inegável que esse tipo de estru
tura social e de distúrbio p sicológico poderia manifestar-se
em outra parte do planeta, particularmente para onde se tenha
127
transplantado a sociedade européia sem muita interferência
da p opulação “nativa” . O fato de que a im potência de um
argelino diante do estupro de sua esposa por um soldado
francês não pode ser facilmente resolvida com as ferramentas
fornecidas pela psicanálise é bastante óbvio: o inconsciente
hum ano da forma descrita por Freud baseia-se num tipo espe
cífico de homem e de mulher, num tipo específico de sociedade,
numa estrutura lingüística particular (alem ão, línguas indo-
européias) comprovadamente de difícil tradução para o árabe,
na tensão entre o árabe e o francês (Fanon, [1961] 1963: 249-310).
Uma vez mais, não são as contribuições de Freud que estão
sendo questionadas, mas os limites de sua utilidade evidenciados
pela revelação da diferença colonial. Abundam as situações
sem elhantes. Paul G ilroy, (1993: 159-160) relata a história
contada por C. L. R. Jam es em sua casa na França. Wright
mostra a Jam es os numerosos volumes da obra de Kierkegaard
em sua estante e diz: “O lh e, N ello, você está vendo estes
livros aqui?... Tudo o que ele escreve nesses livros eu já sabia
antes de p o ssu í-lo s.” Jam es conclui: “O que (D ick) estava me
dizendo era que ele era um negro nos Estados Unidos e isto
lhe dava um insight sobre o que são hoje as opiniões universais
e a atitude da personalidade m oderna ” (Gilroy, 1993: 159).
No m esm o espírito, G loria Anzaldúa dirá: “Eu já sabia disso
antes de Freud” (Anzaldúa, 1987: 33), não porque a contri
buição de Freud seja inválida, mas porque tomá-la com o uma
forma hegem ônica de conhecim ento reproduzida a sujeição
epistêmica que a colonialidade do poder encenou na formação
do sistema m undial colonial/m oderno.
Para ser b reve, en contrei em todos esses e x em p lo s o
sentido de que o pensamento liminar se estrutura numa dupla
consciência, uma dupla crítica atuando no imaginário do sistema
m undial colonial/m oderno e da m odernidade/colonialidade.
Com o tal, estabelece alianças com a crítica interna, a crítica
m onotópica da modernidade na perspectiva da própria moder
nidade (por ex em p lo , K ierkegaard, N ietzsche, H eidegger,
M arx, Freud, Derrida), ao mesmo tem po em que marca a dife
rença irredutível do pensamento liminar com o crítica a partir da
diferença colonial. Se, com o argumenta o sociólogo peruano
Anibal Q u ijan o , a colonialidade geopolítica do poder e suas
conseqüências, dependências histórico-estruturais, implicam a
“hegem onia eurocêntrica com o perspectiva epistem ológica”
128
(1997: 117), a “dupla crítica”, “um outro pensam ento”, a “criou-
lização epistem ológica”, a “dupla consciência” e a “nova cons
ciência mestiza”, todas são articulações teóricas do pensamento
liminar, rom pendo com a “hegem onia eurocêntrica enquanto
perspectiva epistem ológica” . A forma que esse rom pim ento
está tom ando é a diferença irredutível estabelecida entre a
crítica m onotópica à m odernidade na perspectiva da própria
m odernidade, ainda “sob custódia” do m onotópico dos uni
versais abstratos (por exem p lo, uma crítica ao imaginário do
sistema m undial m oderno a partir de seu interior) e a crítica
dupla e pluritópica à m odernidade na perspectiva da colonia
lidade (por e xem p lo , uma crítica ao im aginário epistêm ico
do sistem a m undial m oderno a partir de seu exterior). É
precisamente essa perspectiva que, em última análise, poderia
ser articulada no contexto da colonialidade do poder entra-
nhada (mas invisível) no imaginário epistemológico do sistema
m undial m oderno.
A colonialidade do poder deve ser distinguida do período
colon ial, que se estende na América Latina do início do século
16 ao início do século 19, quando o Brasil e a maioria dos
países de fala espanhola conquistaram a independência da
Espanha e de Portugal e começaram a constituir-se com o novos
estados-nações. O colonialism o, com o observa Q u ijano , não
se extinguiu com a independência porque a colonialidade do
p o der e do saber m udou de m ãos, por assim dizer, su bor
din o u -se à nova e em ergente hegem onia epistem ológica: não
mais a Renascença mas o Ilum inism o (com o se verá no C a p í
tulo II). A em ergência do pensam ento liminar é, outra vez,
um rom pim ento com a razão instrumental pós-Ilum inism o,
cuja m anifestação atual é palpável no que Pierre Bourdieu
(1998a) chama “a essência do neoliberalism o” e descreve com o
um program a para a destruição de possíveis iniciativas co le
tivas que possam ser consideradas uma obstrução à lógica
do m ercado puro, naquilo que Franz Hinkelam m ert define
com o “a racionalidade do mercado por si só” (1996), e no que
o Subcom andante Marcos rotula de “a quarta guerra m undial”
(1997b). O pensam ento liminar também se está separando
das conseqüências da razão instrumental pós-Ilum inism o —
a auspiciosa, vantajosa e útil nomadologia da desconstrução, o
legado marxista e a crítica pós-m oderna da m odernidade. O
pensam ento liminar traz para o primeiro plano a irredutível
129
d ife re n ça e p iste m o ló g ic a entre a p ersp ectiva a partir da
diferença co lo n ial e as formas de conhecim ento que, sendo
críticas da m odernidade, da colonialidade e do capitalism o,
perm anecem ainda “dentro” do território, “sob custódia” dos
“universais abstratos”.
P A R T E
134
em ergem da periferia supõem uma estrutura espaço-tem poral
episódica-geopolítica” (G rosfogu el, 1997a: 535). Mas não é
só isso. A diferença co lo n ia l revela outras dim ensões do
com plexo espaço/tempo para além da epistemologia ocidental,
com o notou V ine D eloria. Sua observação poderia encontrar
eco fácil em todas as com unidades ameríndias na Am érica do
Sul — um a das principais diferenças entre o cristianism o e
as religiões ameríndias é aquela entre “tempo e espaço, entre
tem po e lugares, entre uma história relembrada e um lugar
sagrado” (1999: 118).
Tam bém quero distinguir entre “p ós-colonialidade”, de um
lado, e “pós-ocidentalism o”, “p ós-colonialism o” e “pós-orien-
talism o” , ou seus correspondentes “além ”, de outro lado. O
que essas expressões têm em com um é a diferença colonial
em todas as suas historicidades espaciais no m undo colonial/
m oderno. Falando em pós-colonialidade refiro-me geralmente
a todas as diversas m odalidades de discurso crítico sobre o
im aginário do sistema m undial colonial/m oderno e da c o lo
nialidade do poder. A pós-m odernidade, com o já m encionei,
não se separou da pós-colonialidade; em vez disso, sua relação
deslocou-se ligeiramente, já que mudaram as formas de co lo
nialismo. Por outro lado, com cada um dos diferentes “-ism os”,
refiro-me à particularidade dos discursos críticos no interior
de histórias locais específicas. Por exemplo, o pós-ocidentalismo
está entranhado na história local das Américas (Retamar, [1974]
1995; Gruzinski, 1988; D ussel, [19931 1995; Coronil, 1996); o
pós-colonialism o tem sido usado por críticos culturais imersos
nas histórias locais da Com unidade Britânica e do colonialismo
britânico (Barker, Hulme e Iversen, 1994; Adam e T iffin, 1990;
C h am bers e Curti, 1996); e ao falar em p ós-orientalism o
refiro-me à crítica do poder em e a partir de histórias locais
do que é atualm ente o “Oriente M édio ” (Said, 1978; B eh d ad ,
1994; Low e, 1991). N o entanto, não estou postulando a pós-
colonialidade com o um significante vazio, capaz de conter e
acom odar os restantes. A pós-colonialidade está entranhada
em cada história local e, mais que um significante vazio, é
uma ligação entre todas elas. É o conectivo, em outras palavras,
que pode inserir a diversidade das histórias locais num projeto
u n iv e rsa l, d e s lo c a n d o o u n iversalism o abstrato de U M A
história local, onde se criou e im aginou o sistema mundial
135
colonial/m oderno (exploro essa idéia mais a fundo no final
do C ap ítu lo IV). Em sum a, a diversalidade2 emerge com o
um projeto universal que apresentarei mais detalhadam ente
no Capítulo V II.
Penso que uma das principais contribuições do diálogo
acadêm ico em torno da pós-colonialidade e seu equivalente,
além da crítica do eurocentrism o e do ociden talism o, foi
recolocar a proporção entre as localizações geoistóricas e a
produção de conhecim ento. O imaginário do sistema mundial
colonial/m oderno situou a produção de conhecim ento na
Europa. As versões iniciais do ocidentalism o, com o desco
brimento do Novo Mundo, e a versão posterior do orientalismo,
com a ascen são da França e G rã-B re ta n h a à h e g e m o n ia
m u n d ia l, tornaram as epistem ologias não-ocidentais algo a
ser estudado e descrito, mas sem as situar no m esm o nível
que a herança greco-rom ana. No próprio ato de descrever o
conhecim ento e os costum es am eríndios ou orientais, eles
foram d e sta cad o s da grand e tradição g reco -ro m an a que
forneceu as bases da epistem ologia e hermenêutica modernas.
Im aginou-se a “m odernidade” com o o lar da epistem ologia. O
papel central que as ciências sociais passaram a desem penhar
após a Segunda Guerra M undial foi paralelo à configuração
dos estudos de área e estendeu a geopolítica da produção de
conhecim entos ao Atlântico Norte. Paradoxalm ente, o que foi
no século 16 um objeto colonial de descrição (as Am éricas)
tornou-se no século 20 uma localização geoistórica central
para a produção de conhecim entos. Esse ciclo é o fundam ento
histórico da maior parte dos diálogos sob o rótulo de pós-
m o d ern id ad e, co m o discu to mais a fun d o neste cap ítu lo .
A ssim , a pós-m odernidade é tanto um discurso crítico sobre
a p resun ção do im aginário da “m odernid ade” quanto uma
caracterização do presente histórico em que é possível tal
discurso. Em contraste, a pós-colonialidade (e seus equiva
lentes) é tanto um discurso crítico que traz para o primeiro
plano o lado co lo n ial do “sistema m undial m o d ern o ” e a
colon ialidad e do poder embutida na própria m odernidade,
quanto um discurso que altera a proporção entre locais geois-
tóricos (ou histórias locais) e a produção de conhecim entos.
136
O reorden am en to da g e o p o lítica do co n h e cim e n to m ani
festa-se em duas direções diferentes mas com plem entares:
1. a crítica da subalternização na perspectiva dos saberes
subalternos (por exem p lo, D ussel, 1996b); e
2. a em ergência do pensam ento liminar (conform e foi des
crito no capítulo anterior) com o uma nova modalidade episte-
m ológica na interseção da tradição ocidental e a diversidade
de categorias suprimidas sob o ocidentalismo (como afirmação
da tradição greco-rom ana enquanto o lócus de enunciação
nos séculos 16 e 17), o orientalismo (com o objetificação do
lócus do enunciado enquanto “alteridade”) e estudos de área
(com o objetificação do “Terceiro M u ndo” enquanto produtor
de culturas, mas não de saber).
Essas duas direções estabelecem o principal arcabouço histórico
de m inha argum entação ao longo do livro, com o já discuti no
Capítulo I.
137
exem plo, com o substituto para “literatura da Com m onw ealth”,
em alguns casos, e com o representante da “literatura do
T erceiro M un do”, em outros). Assim , a pós-colonialidade ou
o pós-colonial tornam-se problem áticos quando aplicados a
práticas culturais dos séculos 19 ou 20 na Am érica Latina.
O ocidentalismo, e não o colonialismo, foi a principal preo
cupação, primeiro, da coroa espanhola e dos letrados durante
os séculos 16 e 17, e, segundo, do Estado e dos intelectuais
durante o período da construção de nações, que definiu o
próprio mesmo da América Latina em sua diferença em relação
à Europa e ao O cidente. Diversam ente da Ásia e da África, a
Am érica tornou-se a “filha” e “herdeira” da Europa durante o
século 18. Por isso, o pós-ocidentalism o dá uma m elhor idéia
do discurso crítico da Am érica Latina sobre o colonialism o.
A em polgante expressão de Jo sé Marti, “Nuestra Am érica”,
resumiu o debate entre os intelectuais latino-am ericanos do
século 19, no m om ento em que o Ilum inism o europeu, que
inspirou tanto os revolucionários da independência quanto
os subseqüentes construtores de nações, estava sendo subs
tituído pelo m edo de um novo colonialism o do Norte durante
a segunda m etade do século 19. O s três legados coloniais,
espanhol/português, franco/britânico e o dos Estados Unidos,
foram claram ente descritos, uns trinta anos depois de Jo sé
Marti em Cuba, por Jo sé Carlos Mariátegui no Peru, que via
no sistema escolar peruano uma “herencia colonial” espanhola,
e a “influencia francesa y norteamericana”, embora a distinção
de M ariátegui entre “herança” e “influência” (o passado e o
presente) seja baseada no historicismo linear da m odernidade
que oculta, mesmo agora, no final do século 20, a coexistência
sincrônica de duas heranças coloniais diferentes. A Revolução
Cubana trouxe uma nova perspectiva à história da Am érica
Latina e inspirou Fernández Retamar em Cuba (seguindo os
passos de Marti e Mariátegui) a escrever sua peça canônica,
“Nuestra Am érica y O ccid e n te ” na qual introduziu a palavra-
chave pós-ocidentalism o (Fernández Retamar, [1974] 1995;
M ign olo, 1996a, 1996b).
Eu sugeriria que, apesar das dificuldades que implicam os
termos pós-colonial — e o menos familiar pós-ocidentalismo —
não deveriamos esquecer que ambos os discursos contribuem
para uma m udança na produção teórica e intelectual, que
descrevi com o “gnose lim inar”, ligada à “subalternidade” e à
138
“razão subalterna” . N ão é tanto a co n d ição histórica pós-
colonial que deve reter nossa atenção, mas os loci pós-coloniais
de en unciação com o form ação discursiva em ergente e com o
forma de articulação da racionalidade subalterna. Neste capítulo,
proponho que a transformação mais fundam ental do espaço
intelectual no final do século 20 está ocorrendo devido à
configuração do pensam ento crítico subalterno, tanto com o
prática de op osição na esfera pública quanto uma transfor
m ação teórica e epistem ológica na academ ia (Prakash, 1994).
Nesse c o n te x to , julgo em polgante a d e scriç ã o das teorias
p ó s-c o lo n ia is feita por Ella Shohat, à qual acrescentarei o
pós-ocidentalism o com o sede de enunciação e as “razões
subalternas” com o variações:
139
e para além dos legados coloniais; a partir e para além das
divisões de gênero e prescrições sexuais; e a partir e para além
dos conflitos raciais. Assim , a gnose liminar é um anseio de
ultrapassar a subalternidade e um elemento para a construção
de formas subalternas de pensar. Dessa maneira, o “p ó s” em
p ós-colonial é significativam ente diferente de outros “p ó s”
em críticas culturais contemporâneas. Sugerirei posteriormente
que há duas formas fundam entais de criticar a m odernidade:
uma a partir das histórias e legados coloniais (pós-colonia-
lism o, pós-ocidentalism o e pós-orientalism o) e a outra, pós-
m oderna, a partir dos limites das narrativas hegem ônicas da
história ocidental.
C om ecei com referências às preocupações de Shohat e
M cClintock com a “pós-colonialidade” em razão de suas publi
cações no m undo an glófon o. Mas esses temas vão além dos
interesses acadêmicos e políticos norte-americanos. Nos Andes,
as forças atuais dos legados coloniais têm sido uma suposição
constante e um ponto de partida para compreender a violência
oculta e aberta na área (Rivera Cusicanqui, 1993). Assim , o
termo “colonialism o interno” (em vez de “pós-além -ocidenta-
lism o”) pode ser preferível a esses termos mais em m oda no
meio acadêm ico norte-americano (ver Capítulo IV para maiores
detalhes). Farei uma pausa para explicar em que sentido
com preen d o a p ós-colonialidade. Primeiro, estou lim itando
m inha com preensão de “colonialism o” à constituição geop o -
lítica e geoistórica da m odernidade da Europa O cidental (na
c o n ce p ç ã o de H e g e l) em sua dupla face: a co n fig u ra çã o
econôm ica e política do m undo moderno bem com o o espaço
intelectual (da filosofia à religião, da história antiga às ciências
sociais m odernas) que justificam tal configuração. A razão
subalterna abre o contramoderno com o um espaço de contro
vérsia desde o próprio início da expansão ocidental (por
ex em p lo , a Nueva crônica y buen gobierno de Waman Puma
de Ayala, terminada ao redor de 1615), possibilitando contestar
o espaço intelectual da m odernidade e a inscrição de uma
ordem m undial onde se inscreviam, com o entidades naturais,
o O cid e n te e o O rie n te, o m esm o e o outro, o civ iliza d o e
o bárbaro (ver Capítulo V II). D esde mais ou m enos 1500, o
processo de consolidação da Europa Ocidental com o entidade
geocultural (Morin, 1987; Fontana, 1994) coincidiu com as
viagens transatlânticas e a expansão dos impérios espanhol
140
e português. A Itália, a Espanha (ou Castela) e Portugal foram,
durante o século 16 e a primeira metade do século 17, o “coração
da Europa”, para tomar emprestada uma expressão que Hegel
veio a usar para a Inglaterra, França e a Alem anha próxim o ao
início do século 19. Limito minha com preensão das situações/
c o n d iç õ e s p ó s-c o lo n ia is a q u a lq u e r c o n fig u ra ç ã o sociois-
tórica em ergindo de povos que obtiveram a independência ou
em an cip ação dos poderes coloniais e imperiais ocidentais
(com o a Europa até 1945 ou os EUA a partir do início do século
20). A qui, con dição pós-colonial é sinônim o de neocolonial,
o p rocesso de se construir a nação após a indep end ência
colonial. O neocolonialismo é o contexto político e econôm ico
no qual se encenou o “colonialism o interno” (Stavenhagen,
1990) . Em lugar disso, a razão subalterna precede e coexiste
com as situações/condições pós-coloniais/neocoloniais.
Um a das primeiras dificuldades que encontram os nesse
m apa de legados coloniais e teorização subalterna é que os
Estados U n idos não são facilm ente aceitos com o um país
p ó s-co lo n ial/n eo co lo n ial e, conseqüen tem ente, com o uma
realidade q u e se p o d eria e x p lica r por m eio das teorias
p ó s -c o lo n ia is (Shohat, 1992; M cC lin to ck , 1992: 86-87). A
dificu ldade surge não apenas devido às diferenças entre os
legados coloniais nos Estados Unidos e, digam os, na Jam aica,
mas tam bém porque a pós-colonialidade (tanto em termos de
situação ou condição com o de produção discursiva e teórica)
tende a ser associada sobretudo aos países e experiências do
Terceiro M undo. Às vezes parece que “pós-colonial” veio subs
tituir “T erceiro M u n d o ” d esde o fim da G u erra Fria. Em
outras ocasiões, o “pós-colonial” é igualado à descolonização
dos países sob o controle do Império Britânico. Parece ser
fato que, em bora os Estados Unidos não tenham o m esmo
tipo de legados coloniais que o Peru ou a Indonésia, são,
não obstante, uma conseqüência do colonialism o europeu e
não apenas mais um país europeu em si m esm o. D evido à
liderança am ericana na continuidade da expansão ocidental,
os crítico s p ó s-m o d e rn o s, m ais que os p ó s -c o lo n ia is , se
associariam m ais facilm ente à história dos E U A . Pode-se
dizer que a história co lonial dos EU A explica teorias pós-
m odernas com o as formuladas por Fredric Jam eson (Jam eson,
1991) , onde o espaço de contestação vem das heranças do
ca p ita lism o e não dos le g a d o s do c o lo n ia lis m o . N esse
141
contexto, poder-se-ia facilm ente reler a já clássica discussão
entre Jam eson e Ahm ad (Jam eson, 1986, 1987; Ahm ad, 1987).
Com o notou Dirlik, a teorização p ós-colonial nos EUA
encontrou seu lugar na academia entre intelectuais emigrados
do Terceiro M undo (John, 1996). Mas é claro que a teoria
pós-colonial não é uma invenção de intelectuais do Terceiro
M undo m igrando para os EUA e não deveria ser limitada a
esse encrave. Por outro lado, não há nada errado no fato de
que intelectuais migrantes do Terceiro M undo se sentiram à
vontade no espaço da pós-colonialidade. Aquilo para que os
intelectuais e acadêm icos do Terceiro M undo nos Estados
Unidos (e eu sou um deles) contribuíram foi o marketing da
pós-colonialidade entre uma série de teorias disponíveis e
um espectro de possibilidades “pós”. Por outro lado, os estudos
afro -am erican o s nos Estados U n id o s, cuja em erg ê n cia é
paralela às teorias pós-modernas e pós-coloniais, enraízam-se
profundam ente na diáspora africana, e, conseqüentem ente,
na história do colonialism o e da escravidão (Eze, 1997a;
1997b). Dirlik tem razão se interpretamos seu dito com o a
“m arketização” da teoria pós-colonial no interior do m undo
acadêm ico am ericano. Seu argum ento perde credibilidade
quando consideramos, por exem plo, Stuart Hall e Paul Gilroy
na Inglaterra, ou avançam os além do meio acadêm ico norte-
am ericano e levam os a sério o dito de Ruth Frankenberg de
que, nos Estados U nidos, a questão não é o pós-colonial
(com o o é, por exem plo, para a Inglaterra e a índia), mas os
direitos civis (Frankenberg e M ani, 1993). Nesse sentido, o
conceito de direitos civis não foi usado para reivindicar uma
identidade e, similarmente, os direitos civis nos Estados Unidos
terão mais sem elhanças com as situações pós-ditadura no
Cone Sul: nenhum deles é o lócus de form ação de subjetivi
dade e identidade, embora ambos sejam extremamente úteis
para se com preender o panorama político nos Estados Unidos
e no Cone Sul, contem porâneo com o m ovim ento de d escolo
nização na Ásia, África e Caribe. Mais uma vez, o resultado
final é a razão subaltern a na distrib u ição g e o p o lític a do
c o n h e cim e n to que p oderia ser e x p lica d a p elas heranças
c o lo n ia is e as histórias críticas lo ca is, isto é, a p resença
co n stan te da co lo n ia lid a d e do p o d er no m u ndo co lo n ia l/
m o d e rn o , hoje co n vertida em co lo n ia lid a d e g lo b a l.
142
A razão subalterna, ou com o queiram cham á-la, nutre e é
nutrida por uma prática teórica estimulada por m ovim entos
de descolonização após a Segunda Guerra Mundial, que em
seu início tinha pouco a ver com empreendimentos acadêmicos
(Césaire, Amilcar Cabral, Fanon) e tinha em seu centro a questão
da raça. Se o pensamento marxista pode ser descrito com o
tendo a classe em seu cerne, a teoria pós-colonial pode ser
descrita com o tendo-o na raça. Dois dos três maiores genocídios
da m odernidade (a diáspora ameríndia e africana no início
do período m oderno; o H olocausto fechando a m odernidade
européia e a crise da m issão civilizadora) estão, em meu
entendim ento, na raiz das histórias coloniais e imperiais —
o que sign ifica dizer, na raiz da própria constitu ição da
m odernidade. A razão subalterna é aquilo que surge com o
resposta à n ecessid ad e de repensar e reco n ceitu alizar as
histórias narradas e a conceitualização apresentada para dividir
o m undo entre regiões e povos cristãos e pagãos, civilizados
e bárbaros, m odernos e pré-m odernos e desenvolvid os e
su b desen volvidos, todos eles projetos globais m apeando a
diferença colon ial.
Entretanto, se for necessário mais um exem plo da história
intelectual norte-americana para conceber a pós-m odernidade
com o com plem entar à razão subalterna, pode-se levar a sério
o argum ento de Cornei West (1989) sobre a aversão norte-
am ericana à filosofia com o uma genealogia do pragm atism o.
Através da leitu ra de E m e rso n , P ie r c e , R o y c e , D e w e y ,
D u B o is, Jam es e Rorty (entre outros), West sugere con vin
centem ente que a aversão norte-americana à filosofia é preci
sam ente o resultado de um filosofar fora de lugar — ou seja,
de se praticar uma reflexão filosófica cujos fundam entos não
se embasavam nas necessidades de colonizadores dissidentes,
que invadiram uma região para fazer dela o seu lar, mas nas
de países c o lo n ia is . A ssim , qu an d o West afirm a que “o
pragm atism o [plrofético emerge num m om ento particular na
história da c iv iliz a çã o n o rte-atlân tica — o m o m en to da
p ó s -m o d e r n id a d e ” — e le e s p e c ific a ad em ais qu e “a pós-
m odernidade pode ser com preendida à luz de três processos
históricos fundam entais”:
1. O fim da era européia (1492-1945) que dizim ou a auto
confiança da Europa e provocou a autocrítica. D e acordo com
West, “esse descentramento monumental da Europa produziu
143
reflexões intelectuais exem plares, com o a desm istificação da
hegem onia cultural européia, a destruição das tradições meta
físicas ocidentais e a desconstrução dos sistemas filosóficos
norte-atlânticos” . Note-se aqui o paralelo entre a cronologia
de Cornei West e o esquema do sistema mundial m oderno.
2. A emergência dos Estados Unidos com o potência mundial
militar e econôm ica, oferecendo diretivas na arena política e na
produção cultural.
3. O “prim eiro estágio da d e sco lo n iza çã o do T erceiro
M u n d o ” levado a cabo pela independência política na Ásia e
na África (West, 1993: 9-11).
Note-se ainda que os três processos históricos fundamentais
apontados por West para a com preensão da pós-m oderni-
dade poderiam tam bém ser invocados para a com preensão
da p ó s-co lo n ialid ad e. Jo g a n d o com as palavras, poderiam os
dizer que a pós-m odernidade é o discurso da contram oder-
nidade em ergindo dos centros m etropolitanos e co lô nias
com o as que deram origem aos Estados Unidos e à Austrália
(settler colonies), enquanto a pós-colonialidade é o discurso
da co n tra-m od ern idade em ergindo das co lô n ias de deep-
se ttle rsi por exem plo, a Argélia, a índia, o Q uênia, a Jam aica,
a In do n ésia, a B olívia, a G u atem ala), onde a co lo n ialid ad e
do poder persistiu com uma brutalidade particular.3 Note-se,
tam bém , que se levarm os em conta a desco lo n ização após
1945 (o que essencialm ente relaciona a d esco lo n ização com
o Im pério Britânico e as colônias alem ãs e francesas), então
a Am érica Latina do sécu lo 19 (por exem p lo , a Am érica lusa
e hispânica) não seria considerada com o um processo inicial
de d esco lo n ização e seu status com o um conjunto de países
do Terceiro M undo não seria facilm ente aceito. Essa é outra
razão pela qual a questão pós-colonial na Am érica Latina só
recentem en te co m eço u a ser discutida em círcu los a c a d ê
m icos nos Estados U nidos e é ainda em grande parte ig n o
rada nos países latino-am ericanos, enquanto a m odernidade
e a p ós-m odernidade já dispõem de am pla bibliografia na
América Latina, particularmente nos países com grande p o p u
lação de ascen dên cia européia (por e xem p lo , o Brasil e o
144
r
145
mesma forma que as teorias pós-modernas foram e estão sendo
m ercantilizadas) da teorização pós-colonial, que são críticas
incluídas na razão subalterna e na gnose liminar: um processo
de pensam ento que os que vivem sob a dom inação colonial
precisam em preender para negociar suas vidas e sua condição
subalterna. A teorização pós-colonial pode ter “entrado” no
m ercado acadêm ico com a chegada aos Estados Unidos de
intelectuais do Terceiro Mundo, mas certamente não “com eçou”
então. A teorização pós-colonial, enquanto ação específica
da razão subalterna, coexiste com o próprio colonialism o com o
uma caminhada e um esforço contínuos em direção à autonomia
e à lib e rta çã o em tod as as esferas da v id a , da e c o n o m ia
à relig iã o , da lín gu a à e d u ca çã o , das m em órias à ordem
espacial. Não se restringe à academ ia, e muito m enos à aca
dem ia norte-americana!
146
m argen de o ccid ente” . Pode-se deduzir que as colônias do
tipo das que constituíram o Peru e a Algéria em situações
n eo co lo n iais na Am érica Latina têm algum as sem elhanças
com a transform ação da Rússia na U nião Soviética, embora
quase um século tenha passado entre a descolonização da
Am érica Latina e a Revolução Russa. Uma sem elhança óbvia
apontada por Zea origina-se da m odernidade marginal da
Espanha e da Rússia durante os séculos 18 e 19. H á, entre
tanto, enorm es diferenças, resultantes, em primeiro lugar, da
época diferente na qual ocorreu cada processo histórico. Em
segundo lugar, devido ao fato de que, na América Latina a
d esco lo n ização ocorreu em antigas colônias espanholas e
portuguesas, algumas interagindo com culturas indígenas (por
exem p lo , os Andes [Bolívia, Peru, Equador, Colôm bia], a
M esoam érica [M éxico, Guatem ala]) e outras lidando com a
escravidão com o m igrações forçadas, enquanto a Revolução
Russa ocorreu no próprio coração do império. Tanto a Espanha
com o a Rússia tinham uma relação sem elhante com o “euro-
centrism o” , e Zea dedica um capítulo de seu livro mais recente
(Zea, 1988) a essas relações. Ele as situa na fundação e nas
co n seq ü ên cias finais das co n ceitu açõ es cartesianas e hege-
lianas da “razão”, bem com o no hegelianism o invertido de
Marx e Engels com o utopia socialista concretizando-se não
na E u ro p a, mas em suas fronteiras. Por razões que lo g o
descreverei, as heranças históricas e suas im plem entações
revolucionárias na U nião Soviética não se ligam , entretanto,
às heranças coloniais e ao pensam ento pós-colonial.
Nos mesmos anos em que Zea estava escrevendo seu América
en la historia, Edmundo 0 ’Gorman ([1958] 1961; Mignolo, 1993b)
desm on tava q u in hen tos anos de constru ção do discurso
c o lo n ia l e de m anipulação da crença de que a Am érica foi
descoberta quando, com o 0 ’Gorm an demonstra claram ente,
não havia, em primeiro lugar, uma Am érica para ser desco
berta, e, para aqueles que já viviam nas terras onde Colom bo
chegou sem saber onde estava, não havia absolutam ente nada
para descobrir. Certamente, nem Zea nem 0 ’Gorm an prestaram
muita atenção à contribuição dada por povos de descendência
am eríndia ao constante processo de descolonização. Entre
tanto, há um ditado com um hoje em dia entre os movimentos
sociais indígenas, nas Américas e no Caribe, que diz*. “Colom bo
não nos descobriu.” Enquanto dois conceitos-chave para Zea e
147
0 ’Gorm an em sua teorização pós-colonial foram o “ocidenta-
lism o” e o “eurocentrism o”, o acadêm ico m exicano-am ericano
Jo r g e K lo r de A lv a e xam in o u criticam ente o s ig n ific a d o
do termo “co lo n ia lism o ” e de sua ap licação equ ivocad a à
Am érica Latina:
Klor de Alva form ulou essa tese, com o ele próprio deixa
claro, com base em suas investigações sobre a construção
das identidades de latinos vivendo nos EUA e m exicanos-
am ericanos contem porâneos. Adem ais, embora não exponha
seu argumento de forma tão clara, sua concepção das “Américas”
e xclu i o Caribe (inglês, francês, espanhol) que, se co n sid e
rado, mudaria radicalmente o panorama do colonial e do pós-
colon ial, já que o Caribe francês e o inglês não são o mesm o
tipo de colônias que o Caribe espanhol. Basicam ente, a idéia
das “Américas” de Klor de Alva é puramente hispânica e anglo-
americana. Não obstante, seu esforço para destacar a invasão
espanhola/portuguesa da invasão britânica/francesa/holan-
desa das Am éricas e do Caribe parece-m e um jogo sem ântico
148
transparente, sim ilar ao argum ento que os nacio n alistas
espanhóis usaram para absolver a Espanha das brutalidades
da conquista ou para enfatizar a missão civilizadora (isto é,
cristã) da coroa e das ordens missionárias. Mas, mesm o que
o termo “colon ização” seja mal aplicado à América Latina, não
devem os esquecer que estamos falando da expansão européia
e ocidental (“eurocentrism o” e “ocidentalism o” nos termos de
Zea e 0 ’Gorm an), e nem perder de vista os conflitos coloniais
internos, principalm ente entre a Espanha, a Inglaterra e a
Holanda ao final do século 17, quando Sevilha já não era o
centro do com ércio global e Amsterdam tomou seu lugar. A
m udança de mãos no poder colonial deve ser lembrada se
quisermos compreender as transformações e, ao mesmo tempo,
as continuidades desde o início do período colonial/moderno
(Espanha, Portugal, Renascença) até o período colonial/moderno
(Holanda, Inglaterra, França, Ilum inism o).
M esm o se “co lo n ia lism o ” apenas denota e descreve as
e x p e riê n cias c o lo n ia is após o sécu lo 18 (os estágio s do
capitalism o mercantil e a Revolução Industrial, de acordo com
D arcy Ribeiro [1968]) — caso em que seria incorreto chamar
de c o lo n ia lis m o a e x p a n sã o e sp a n h o la e p o rtu gu esa na
d ireçã o do Atlântico e do Pacífico, principalm ente durante o
século 16 e a primeira metade do século 17 — , Klor de Alva
ainda estaria parcialm ente certo: a “Am érica Latina” não foi
configurada com o tal som ente sob as bandeiras espanhola e
portuguesa, mas também em conjunção com o Império francês
no século 19. Embora sim patize com o esforço de Klor de
Alva para evitar o c o lo n ia lis m o a c a d ê m ic o , re -situ a n d o
espanhóis e portugueses numa conceitualização que emergiu
principalmente das experiências de descolonização do domínio
britânico e francês, sinto-me pouco à vontade com seu argu
mento porque se parece com um discurso implícito e oficialista
da Espanha pós-im perial, no qual o termo “v ice-realeza” é
usado para evitar as im plicações políticas (e negativas, na
perspectiva espanhola) do termo “colonialism o” .
Para ecoar as preocupações de Klor de Alva em evitar o
colonialism o acadêm ico (preocupação que encontrei também
em diversos países latino-am ericanos, onde fiz conferências
sobre os temas da colonialidade e pós-colonialidade, e aos
quais farei referências ao lon go deste livro), situando as
histórias colonial e cultural latino-am ericana no vocabulário
149
da crítica inglesa e da Com unidade Britânica, seria necessário
regionalizar as heranças coloniais e a teorização pós-colonial,
evitando a armadilha da epistem ologia da m odernidade na
qual línguas coloniais (com o o inglês, francês ou alem ão),
em cum plicidade com os discursos teóricos e acadêm icos,
produzem o efeito do saber universal pelo sim ples fato de
que o co n h e cim e n to p ro d u zid o nas lín gu as das últim as
p otências coloniais tem na prática o direito de ser exportável
para todos os cantos do planeta. A mercantilização e a exporta-
bilidade do conhecimento são talvez a razão do desconforto de
Klor de Alva em usar os termos colonialism o e pós-colonia-
lism o na e sobre a Am érica Latina.
O que realm ente perm anece com o exem p los paradigm á
ticos de crítica subalterna/colonial na América Latina situa-se
no Caribe (parte dele pertencente à Comunidade Britânica), na
Mesoam érica e nos Andes. Zea e 0 ’Gorm an, embora vivessem
no M éxico , desvincularam -se desses locais epistem ológicos.
A contribuição do Caribe à teorização pós-colonial já é bem
conhecida, basicam ente porque boa parte dos escritos está
em inglês ou francês (por exem plo, G eorge Lam m ing, Aim ée
Césaire, Frantz Fanon, Edouard Glissant, Raphael Confiant),
as línguas dominantes do período colonial/moderno. A contri
buição do C arib e e sp a n h o l é m enos conhecida (F ern án d ez
Retam ar, Jo sé Luis G o n zález), já que o espanhol com o língua
dom inante do período colonial/m oderno inicial perdeu sua
posição de prestígio com o “língua do pensam ento” após a
queda da Espanha e a ascensão da Inglaterra e da França
(M ignolo, 1995a; 1995b). D eve-se lembrar no entanto que,
enquanto as heranças coloniais no Caribe estão entrinchei
radas na diáspora africana, na M esoam érica (principalm ente
M éxico e G uatem ala) e nos Andes seu perfil é obtido a partir
da longa interação entre densas populações ameríndias e as
instituições e colônias espanholas.
No final dos anos 60, dois sociólogos m exicanos, Pablo
G o n zá lez Casanova e Rodolfo Stavenhagen, propuseram o
conceito de “colonialism o interno” para descrever a relação
entre o Estado e a população ameríndia após a independência
do M éxico , em 1821, da Espanha. Com o se poderia esperar, o
conceito foi criticado por uma sociologia de orientação cien
tífica, com o se as necessidades às quais G o n zález Casanova
(1965) e Stavenhagen (1965) estavam respondendo fossem
150
apenas de natureza disciplinar! O vigor do conceito deve ser
situado no m apeam ento da configuração social da construção
de nações nas ex-colônias espanholas, e não em saber se
preenche ou não os requisitos de um sistema disciplinar de
controle e p unição. Entretanto, com o o conceito foi criticado
na perspectiva disciplinar hegem ônica, ele desapareceu de
cena, e p oucos se lembrarão dele com o uma m anifestação
pioneira da teorização pós-colonial na Am érica Latina. Mais
precisam ente, “colonialism o interno”, conceito introduzido por
so ció lo g o s do Terceiro M undo para explicar as realidades
sociais de seu país e região, carrega a marca da diferença
colon ial, a razão subalterna.
Certam ente, não se deve negar a necessidade de maior
elucidação do “colonialism o interno” . Por exem p lo, quando
o conceito é usado no contexto da história dos EU A , as dife
renças entre as heranças coloniais do Norte e do Sul (conforme
indiquei anteriormente) não podem ser ignoradas. D e fato,
quem ocupa as posições subalternas entre as com unidades
nacionais dos EUA: os nativos am ericanos, os asiático-ameri-
canos, os m exicanos-am ericanos? E na Argentina, as com uni
dades italianas estão nas mesmas posições subalternas que
as com unidades ameríndias? Seja com o for, o “colonialism o
interno”, da forma com o foi utilizado por G o n zález Casanova
e Stavenhagen no M éxico e, mais recentem ente, por Silvia
Rivera C u sica n q u i (1984; 1993) nos A n d es, é claram ente
aplicado ao beco sem saída do Estado nacional após a inde
pendência; por um lado, aplicar a política colonial às co m u
nidades in dígen as, e, por outro, estabelecer alianças com
poderes co lo n iais m etropolitanos. Na M esoam érica e nos
Andes do século 19, a questão principal foi romper os laços
com o colonialism o espanhol e construir uma nação com o
apoio da Inglaterra e da França, talvez o principal perfil do
n eo co lo n ialism o nas ex-co lô n ias espanholas e portuguesas.
Sobretudo, o “colonialismo interno” é relevante para o trabalho
de Rivera Cusicanqui (bem como para o de outros intelectuais
bolivianos, com o Xavier A lbó [1994]), para a com preensão de
um a so cie d a d e na qual mais de 30% da p o p u la çã o é de
ascendência ameríndia, fala aimará ou quíchua e mantém uma
o rgan ização socio eco n ô m ica herdada das tradições inca e
aimará, que coexistiram com pessoas e instituições ocidentais
durante quinhentos anos. O conceito de “colonialismo interno”
151
tam bém ajuda a estabelecer um equilíbrio entre classe e etni-
cidade. Na co n cep ção de Rivera Cusicanqui, uma explicação
para a crise nas ciências sociais andinas e seu fracasso em
com preender movim entos sociais com o o “Sendero Lum inoso”
deveu-se principalm ente à sua cegueira em relação à etni-
cid a d e , às heranças co lo n ia is e ao “co lo n ia lism o in tern o ”
(Rivera C usicanqui, 1992).
152
*
153
com o uma categoria marxista, embora incorporado à história
colonial da exploração ameríndia e do tráfico de escravos
africanos. O pós-ocidentalism o poderia ter sido vinculado ao
“c o lo n ia lis m o in te rn o ” e à “teoria da d e p e n d ê n c ia ” . N o
entanto, o isolam ento im posto pela distribuição geoistórica
c o lo n ia l, co m p le m e n ta d o p ela d istrib u içã o cie n tífica do
co n hecim en to situado nos centros m etropolitanos, fez das
histórias e conhecim entos locais um incidente curioso e às
vezes folclórico no m apa mais am plo dos projetos globais.
Aqui há dois temas aqui que precisam ser deslindados.
Um é a distinção entre situações neocoloniais e o outro entre
os discursos neocoloniais e a crítica pós-ocidental/colonial.
M inha primeira tendência seria definir “situações e discursos
neo co lo n iais” com o uma configuração oriunda da libertação
das regras c o lo n ia is e das d iferen tes etapas do p erío d o
m oderno, com o a independência da Am érica anglo-saxônica
e hispânica no final do século 18 e início do século 19, respec
tivamente, bem com o a descolonização da Indonésia e as
R evoluções Argelina ou Cubana — isto é, situações n e o co lo
niais e discursos dos tipos (a), (b) e (c). Isso pode ser dem a
siado esquem ático para certos paladares, mas ajuda a dirimir
um p o uco da confusão e das am bigüidades da expressão.
Em contraste, a crítica pós-ocidental/colonial com o teori-
zação subalterna emerge principalmente no período posterior
à descolonização após a Segunda Guerra M undial e corre no
m esm o sentido que novas formas de neocolonialism o e dita
dura. Além do m ais, foi a consciência crítica a respeito do
colonialism o e neocolonialism o que criou condições para a
teorização subalterna. O ra, se a subalternidade (com preen
dida com o construção teórica e crítica cultural) em erge de
diferentes tipos de legados coloniais e neocoloniais, então o
p ó s-o cid en talism o /co lo n ialism o e o p ó s-m od ernism o são
m ovim entos antim odernos respondendo a diferentes tipos de
legados coloniais e aos Estados neocoloniais que têm em
com um o processo de expansão ocidental identificado com o
m o d e rn id a d e / co lo n ialid a d e / o cid e n ta lism o . Por e x e m p lo ,
após 1947, tanto a Inglaterra com o a índia são pós-coloniais.
No entanto, poderiam os dizer que a Inglaterra é pós-moderna
no final do século 20, enquanto não é claro que possam os
dizer o m esm o da índia.
154
A esta altura o leitor poderia objetar dizendo que a pós-
m odernidade não é um fenôm eno particularmente anglo-am e
ricano ou m esm o europeu, mas também das m odernidades
periféricas. Usando lógica sem elhante, pode-se argumentar
que a m esm a o bservação poderia ser feita sobre o pós-
ociden talism o/colonialism o, dizendo que essa não é apenas
uma questão da m odernidade e dos países colonizados entre
1492 e 1945, mas uma questão global ou transnacional. A
m odernidade é ao mesm o tem po a consolidação do império
e das nações-im périos da Europa, um discurso construindo a
idéia de ocidentalism o, a subjugação de povos e culturas e
tam bém os contradiscursos e movimentos sociais que resistem
ao expansionism o euro-am ericano. Assim , se a m odernidade
consiste tanto na consolidação da história européia (projeto
global) quanto nas vozes críticas silenciadas das colônias
periféricas (histórias locais), o pós-m odernism o e o pós-oci-
dentalism o/colonialism o são processos alternativos de o p o
sição à m o d e rn id a d e por parte de d ifere n te s h e ra n ças
coloniais e em diferentes situações nacionais ou neocoloniais:
1) heranças de ou no centro de impérios coloniais (por exemplo,
Lyotard); 2) heranças coloniais em colônias com o as que
deram origem aos EU A e à Austrália ( settler-colonies ) (por
exem plo, Jam eson nos EUA); 3) heranças coloniais em terri
tórios que hoje constituem certos países da América hispânica, a
A rg é lia , a ín d ia ( deep-settler colonies , representadas por
exem p lo, por Said, Rivera Cusicanqui, Spivak, Glissant, Albó,
Bhabha, Q uijano). Em outras palavras, a pós-m odernidade e o
pós-ocidentalismo/colonialismo são tanto parte da razão subal
terna quanto uma crítica am pliada da subalternidade.
Afirm o que a teorização do p ós-ocidentalism o/colonia-
lism o permite um descentram ento das práticas teóricas em
termos da política dos locais geoistóricos (M ignolo, 1995b;
ver também Capítulos II e IV), e a distinção entre os discursos
e teorias pós-coloniais e pós-ocidentais se torna difícil de
rastrear. As culturas acadêm icas tornam-se parte de um dom í
nio político dos discursos acoplado a saberes orientados no
sentido da em ancipação/liberação. Assim , teria sido difícil
conceber Fanon com o um teórico pós-ocidental/colonial no
final dos anos 50. Seu discurso, atraente e sedutor com o era
(e ainda é), apagou o arcabouço conceituai que, naquele
m om ento, definia os termos do discurso teórico na academ ia.
155
N aquele m om ento, a teoria nas hum anidades era concebida
principalm ente em termos de m odelos lingüísticos, e nas
ciências sociais, em termos do m odelo jurídico geral. Fanon
tornou-se um teórico pós-ocidental/colonial depois que a
academ ia con ceitu alizou um novo tipo de prática teórica,
inventou um nom e novo para distingui-la de outras e situou-a
num cam po de batalha acadêm ico específico.
A “teoria” (entre aspas) torna-se necessária para distinguir
entre um co n ceito herdado de teoria (das ciências sociais,
da lingüística e semiótica e às vezes da transposição de teorias
das ciências naturais para as ciências sociais e humanas) e
um tipo de prática auto-reflexiva e crítica na academ ia. Há
duas interpretações para o uso do termo teoria que eu gostaria
de assinalar, com parando a “teoria crítica” com a teorização
pós-ocidental/colonial e a em ergência da razão subalterna.
Primeiro, Craig Calhoun descreveu o uso da teoria crítica pelos
filósofos da Escola de Frankfurt com o um deslocam ento do
co n ceito ca n ô n ico de teoria na filo so fia, ad ap tan d o -o às
ciências sociais:
156
Horkheim er e Adorno da experiência dos judeus à luz dos
ideais do Ilu m inism o [1947] 1995: 168-208). A leitura de
C a lh o u n sobre a conexão entre a etnia do teórico e a cons
trução da teoria crítica é a seguinte:
157
a localização é não apenas geográfica, mas histórica, política
e epistem ológica (1978: 107-114). Em outras palavras, contri
buíram para mostrar os limites da civilização e a ascensão da
teorização “bárbara” (judaica, marginal, pós-colonial, feminina,
afro-européia ou am ericana, ameríndia, hom ossexual etc.).
Mary Jo h n (1996) oferece uma segunda interpretação para
o uso do termo teoria. Ela estuda a inscrição da posição do
sujeito ao “fazer teoria” na França nos anos 60, e tam bém a
transform ação radical de se fazer teoria a partir do final da
década de 70. Essa transformação radical deriva principal
mente da co n sciên cia de que a teoria está onde se pode
encontrá-la. Não existe local geográfico ou epistem ológico
que detenha os direitos de propriedade sobre práticas teóricas,
mas apenas o “local filo só fico ”, nos termos de K usch (ver
C apítulo III) — ou seja, o ponto de partida e a rota que
o rie n ta n o sso p en sa m e n to com a alterid ad e in terv in d o
constantem ente, sugerindo, ou sim ultaneam ente m ostrando
o im pensável (Kusch, 1978: 109). Jo h n procura a inscrição da
subjetividade na interseção do fem inism o com a pós-colonia-
lidade, em qualquer forma pela qual essa interseção possa
se manifestar. A consciência e a inscrição do fem inism o e da
p ó s-c o lo n ia lid a d e no c o n ce ito de Jo h n de “fazer te o ria ”
equivalem à consciência que Calhoun tem do judaísmo na “teoria
crítica” da Escola de Frankfurt. Mais ainda: é também uma
co n sciên cia de que o próprio conceito de teoria, ligado à
razão m oderna, não pode ser aceito, repetido e aplicado às
p reocupações feministas e aos temas pós-coloniais. Se Jo h n
não acredita na dicotom ia entre vincular as teorias ao seu
contexto ou origem ou tomá-las em seu escopo universal e
fazê-las viajar para iluminar outros contextos, então o próprio
co n ceito de teoria form ulado por C alh ou n é questionado
(John , 1996). O que estou argum entando neste capítulo e no
resto do livro é que deveriam os desvincular o conceito de
teoria de sua versão epistem ológica m oderna (exp lican d o
ou fazendo sentido a partir de fatos ou dados isolados), ou
de sua versão pós-m oderna, a desconstrução de redes co n
ceituais reificadas. Segundo entendo, um dos objetivos da
teorização pós-ocidental/colonial é reinscrever na história da
hum anidade o que foi reprimido pela razão m oderna, em sua
versão de missão civilizadora ou em sua versão de pensa
mento teórico negado aos não-civilizados (Gilroy, 1993). Com o
158
tal, uma das versões da teorização que antevejo e defendo é
a de pensar a partir da fronteira e sob a perspectiva da
subalternidade. Nesse caso, a partir da fronteira do conceito
m oderno de teoria e daquelas formas anônim as de pensa
m ento silenciadas pelo m oderno conceito de teoria: pensar
teoricam ente é dom e com petência de seres hum anos, não
apenas de seres hum anos que vivam em um certo período,
em certos locais geográficos do planeta e falem um pequeno
núm ero de línguas específicas. Se a pós-colonialidade não
co n segu e rom per com a epistem ologia m oderna, torna-se
apenas outra versão dela, com um tema diferente. Seria, em
outras palavras, uma teoria sobre um assunto novo, mas não
a constituição de um novo sujeito epistem ológico que pensa
a partir das e sobre as fronteiras.
A razão subalterna e o pensam ento liminar vão além do
ocidental/colonial e unem -se à inversão da dialética senhor/
escravo, feita por Frederick D ouglass e analisada por Paul
G ilroy (1993: 38-64). As relações alegóricas entre senhor e
escravo que representam a autoconsciência independente e
dep en d en te em relação à co n sciê n cia e ao co n h e cim e n to
poderiam , segundo H egel, ser pensadas dentro de uma epis
tem ologia incorpórea que assume o lócus de enunciação do
senhor com o o universal. A alegoria de H egel baseia-se em
um conceito de razão cartesiano e incorpóreo. Com o tal, a
razão poderia ser descrita e conceitualizada independente
m ente de gênero e das relações entre os sexos, das relações
sociais, das crenças nacionais ou religiosas ou dos p recon
ceitos étnicos. Entretanto, o silêncio im plícito no incorpóreo
(tanto individual com o social) é, ao m esm o tem po, a tomada
de uma posição universal de poder em relação à qual as relações
entre os sexos, as hierarquias sociais, as crenças nacionais
ou religiosas e os preconceitos étnicos são categorias subal
ternas. As especulações alegóricas de Hegel sobre as relações
senhor/escravo devem ser constantem ente confrontadas com
a reflexão corporificada da consciência e da autoconsciência
narrada e teorizada por Douglass:
159
que restava em meu olhar apagou-se; a noite escura da escra
vidão se fechou sobre mim; e eis um homem transformado
num animal (citado por Gilroy, 1993: 6 l).
160
de alguém cujas heranças coloniais estão entranhadas em
sua p róp ria história e se n sib ilid a d e , co m o a escrav id ão
para D o u g la ss. Parte da confu são e am bigüidade do termo
“teoria” deve-se hoje, creio eu, às várias possibilidades de
e n v o lv im e n to com a crítica p ó s -c o lo n ia l. Estou tam bém
con ven cido de que o preconceito contrário é a crença com um
de que pessoas que são de algum lugar no coração do império
têm a com petência necessária para teorizar, não importa o
quê , sim plesm ente porque se pensa que teorizar é a prática
universal da razão m oderna. Esse p reconceito apóia-se na
distribuição ideológica do conhecim ento nas ciências sociais
e h u m a n as, p aralelam en te à d istrib u ição g e o p o lític a do
planeta entre Prim eiro, Segu ndo e Terceiro M undos. O u , em
outras p alavras, en qu an to a razão m oderna, baseada no
legado da R enascença e do Ilum inism o, e não nas heranças
co lo n iais, responde pela fund ação das ciências hum anas e
sociais durante o século 19, a razão subalterna revela uma
m u d a n ça de terreno em rela çã o à p ró p ria fu n d a ç ã o da
razão m oderna com o prática cognitiva, política e teórica.
Nesse sentido, a razão subalterna é tanto pós-m oderna quanto
p ó s-c o lo n ia l.
161
situando-a, com o o Segundo M undo, nas margens da m oder
nidade ocidental. A tese de Pletsch é simples: a ansiedade
ocidental causada pela emergência das nações socialistas e,
sobretudo, da União Soviética, precipitou a divisão do m undo
em três grandes categorias: países tecnológica e econom ica
mente desenvolvidos e democraticamente organizados; países
tecnológica e econom icam ente desenvolvidos governados pela
ideologia; e países tecnológica e econom icam ente su bd esen
volvidos. O fundam ento desse tipo de distribuição não p ode
ser necessariamente associado às propriedades dos objetos
classificados, mas sim ao lugar da enu nciação que cria a
distribuição: a enunciação localiza-se no Primeiro e não no
Segundo ou Terceiro M undo. Com o a classificação partiu de
países dem ocraticam ente desenvolvidos e capitalistas, ela
naturalm ente se tornou uma decisão do Primeiro M undo e
critério para classificações subseqüentes. Nesse contexto,
m inha primeira suposição é que a crítica pós-colonial luta
para deslocar do Primeiro para o Terceiro M undo o lócus da
enunciação teórica, reivindicando a legitim idade da “locali
zação filosófica”.4
Minha suposição pode ser melhor entendida se seguirmos
Pletsch um p ouco mais. A força de seu argumento reside no
fato de que a redistribuição acadêm ica do trabalho científico
não é paralela à recolocação política e econôm ica dos mundos
culturais. O u , com o explica Pletsch:
162
mais diferenciadas que as reunidas sob o guarda-chuva dos
três mundos (Pletsch, 1981: 575).
163
Citei longamente Pletsch porque ele se refere a uma subs
tancial redistribuição — descrita por M ichel Foucault (1966;
1969) — da ordem das coisas e das ciências humanas no século
19. Pletsch também ajuda a esclarecer o local das práticas
teóricas pós-coloniais e pós-m odernas no final do século 20,
após o fim da Guerra Fria e o colapso da ordem planetária
refletida na divisão entre os três m undos. Pode-se deduzir
que uma característica substancial do p ó s-co lo n ial com o
legítim o loci de enunciação teórica, articulada em heranças
coloniais específicas, é a em ergência de vozes e ações do
Terceiro Mundo, revertendo a im agem retrógada produzida e
sustentada por uma longa herança colonial até a redistribuição
do trabalho científico. Se, conforme a distribuição da produção
científica e cultural em Primeiro, Segundo e Terceiro M undos,
algu ém vem de um país e co n ô m ica e te cn o lo g icam e n te
subdesenvolvido, essa pessoa é vista também com o p ouco
brilhante. Seguindo então a ló g ica da c o lo n ia lid a d e do
p oder, essa pessoa é incapaz de produzir qualquer tipo de
pensamento teórico significativo, pois a teoria se define pelos
padrões do Primeiro M undo. D e acordo com essa ló gica,
produzem -se teoria e ciências em países do Primeiro M undo,
onde não há obstáculos ideológicos ao pensamento científico
e teórico. Assim, a ideologia da m issão civilizado ra ainda
estava atuando na distribuição do trabalho científico entre
os três mundos.
Minha segunda pressuposição é que o lócus das teorias
pós-m odernas (tais com o articuladas por Ja m e so n [1991])
localiza-se no Primeiro M undo, embora em oposição à co n fi
guração epistemológica das ciências sociais analisada por
Pletsch. A não ser que se creia, pós-m odernam ente, que as
teorias vivem em um não-lugar! Poder-se-ia argumentar que a
razão pós-moderna combina práticas teóricas e form ação aca
dêm ica do Primeiro Mundo com fundam entos ideológicos do
Segundo (não em termos de política estatal, mas em termos
de suas bases marxistas-leninistas). M as, com o tal, mantém
sua diferença em relação à razão pós-colonial na qual a ali
ança se dá entre a produção cultural do Terceiro M undo e a
im aginação teórica do Primeiro: poderosa aliança, na qual a
restituição das “qualidades secundárias” na produção teórica
desloca e desafia a pureza da razão moderna, concebida com o
uma operação lógica sem a interferência da sensibilidade e
164
da localização. A devolução da sensibilidade e da localização
à teorização pós-colonial confere poder àqueles que foram
elim inados ou m arginalizados da produção do saber e do
entendim ento.
Não há referência à literatura no artigo de Pletsch. Deve-se
lembrar, no entanto, o enorm e im pacto da produção literária
dos países do Terceiro M undo (por exem plo, Garcia M árquez,
Assia Djebar, Salman Rushdie, Naguib Mahfouz, Michelle Cliff).
O fato de que esse im pacto ocorreu no dom ínio literário (isto
é, no dom ínio da produção “cultural” e não nas ciências
sociais) reforça o esquem a da distribuição do conhecim ento
construído por Pletsch. Tam bém explica por que o realismo
m ágico se tornou a marca da produção de alta cultura do
T erceiro M undo. Entretanto, quando “narrativas literárias”
são tam bém consideradas teorias em si m esmas, a distinção
entre a lo ca liz a çã o da p ro d u ção teórica e cultural com eça
a desm oronar.
R epensem os mais uma vez a distinção entre provir cie,
estar em e ser de (G ilroy , 1990-1991). Se os discursos pós-
coloniais (incluindo a literatura e as teorias) associam -se a
p essoas (provindas) de países com heranças co lo n ia is, é
precisam ente devido ao deslocam ento do lócus da produção
intelectual do Primeiro para o Terceiro M undo. Entretanto,
enquanto a criação literária pode ser facilm ente atribuída à
produção cultural do Terceiro M undo, a teoria é mais difícil
de justificar porque — de acordo com a distribuição científica
do trabalho analisada por Pletsch — o lócus da produção
teórica é o Primeiro, não o Terceiro M undo. M inha terceira
suposição é que as práticas teóricas pós-coloniais não estão
apenas m udando nossas visões dos processos coloniais; mas,
ao estabelecer ligações epistem ológicas entre locais geois-
tóricos e produção teórica, estão também desafiando as próprias
bases do conceito ocidental de conhecimento e compreensão.
Ao insistir nas ligações entre o lugar da teorização {ser de, vir de
e estarem :) e o lócus de enunciação, estou insistindo em que os
loci de enunciação não são dados, mas encenados. Não estou
supondo que só pessoas originárias de tal ou qual lugar poderíam
fazer X . Permitam-me insistir em que não estou vazando o argu
mento em tennos detemiinistas, mas no campo aberto das possibi
lidades lógicas, das circunstâncias históricas e das sensibilidades
165
individuais. Estou sugerindo que aqueles para quem as heranças
coloniais são reais (ou seja, aqueles a quem elas prejudicam)
são mais in clin ados (ló g ica , histórica e em ocionalm ente)
que outros a teorizar o passado em termos da co lonialidad e.
Tam bém sugiro que a teorização pós-colonial relocaliza as fron
teiras entre o conhecimento, o conhecido e o sujeito conhecedor
(razão pela qual enfatizei as cumplicidades das teorias pós-colo-
niais com as “minorias”). Mesmo se percebo a localização do
sujeito conhecedor na economia social do conhecimento e da
com preensão com o a principal contribuição da teorização
pós-colonial, também acredito que a descrição ou explicação
do conhecido é a maior contribuição das teorias pós-modernas.
166
I
167
A p ó s um a an álise detalh ad a da co n stru ção feita por
Kant e H egel da idéia de Ilum inism o na história européia,
D u sse l resum e os elem en to s que co n stitu em o m ito da
m odernidade:
168
G récia e que diferentes inícios da história estão, ao m esm o
tempo ancorados em loci de enunciação diferentes. Esse axioma
sim ples, em m inha proposta, é um axiom a fundam ental para
e da razão pós-subalterna. Finalmente, o projeto de Bhabha de
renomear o pós-m oderno a partir da posição do pós-colonial
tam bém en co n tra seu n ich o na razão p ó s-su b altern a co m o
ló cu s diferencial de enunciação.
D ussel redesenha o mapa da m odernidade, incluindo em
sua geografia a expansão dos impérios espanhol e português,
após 1500, e revisa a narrativa do Ilum inism o, introduzindo
o fantasm a das histórias coloniais. Bhabha, enquanto isso,
trabalha no sentido de articular os agentes enunciativos. A
su gestão program ática de D u ssel de que a circu lação da
modernidade reside hoje, não necessariamente em um processo
que vá transcender a m odernidade a partir do seu interior
(por exem p lo, a pós-m odernidade), mas num processo de
transm odernidade, parece confluir com as preocupações de
B habha. Leiam os Dussel primeiro:
169
m ín im a ” , 6 p ro p o sto por Charles T aylor, num esfo rço de
trazer para o prim eiro p lan o a atuação hu m ana, e não a
representação:
170
perform ática e deformadora, que não revaloriza simplesmente
o debate de uma tradição cultural ou transpõe valores de uma
forma ‘intercultural’.” (Idem)
O conceito de Bhabha de uma “defasagem temporal” reforça
sua ênfase na ação mais do que na representação. Numa nota
de rodapé reveladora, na conclusão de The Location o f Culture
(nota 16), Bhabha lembra ao leitor que o termo “defasagem
tem poral” foi introduzido e utilizado em capítulos anteriores
(VIII e IX) e que ele vê esse conceito com o uma expressão que
capta a “ruptura” do discurso colonial. A defasagem temporal
torna-se, então, uma nova forma de discurso colonial (da colo-
nialidade do poder e da desvalorização do “outro”) e um novo
lócus para a teorização pós-colonial que se opõe à coloniali-
dade do poder. A teorização pós-colonial pressupõe tanto a
divisão do sujeito colonial (de estudo) com o a da teorização
p ós-colonial (o lócus de enunciação). Um a disputa epistem o-
lógica se m e lh a n te fo i e n fa tiza d a por N orm a A la rc ó n no
contexto dos estudos sobre a mulher, o gênero e a etnicidade
em especial, quando afirma: “O sujeito (e objeto) do co n h eci
m ento é agora uma mulher, mas a visão herdada da consciência
não foi de m odo algum questionada. Com o resultado, alguns
sujeitos de consciência feministas anglo-am ericanos tendem
a tornar-se uma paródia do sujeito de consciência m asculino,
revelan do assim sua base liberal e tn o cên trica .” (A larcón ,
1990: 357). A controvérsia epistem ológica na pós-coloniali-
dade é que o sujeito fraturado do discurso colonial reflete o
sujeito fraturado da teorização pós-colonial; de m odo sem e
lhante, as m ulheres com o sujeitos da com preensão espelham
as m ulheres com o sujeitos a serem com preendidos. D evido a
este fato, já está sendo elaborada uma m udança epistem oló
gica importante, segundo a qual a enunciação enquanto ence
nação assum e p re ce d ê n cia sobre a e n ce n a ç ã o e n q u an to
representação. No entanto, a localização da teorização pós-
colonial req u er um a a rtic u la ç ã o te m p o ra l. A d e fa sa g e m
te m p o ra l é o relevante conceito de Bhabha para explorar a
epistem ologia descentrada da razão p ós-colonial. O conceito
emerge da interseção de duas estruturas teóricas não explícitas
e distintas. Um a provém do aparato formal de enunciação
(teorizado por Benveniste no início dos anos 60) do conceito de
Bakhtin de hibridização e dialogism o e, com um viés colonial,
de Gayatri Spivak, que fez a influente pergunta: “O subalterno
171
pode falar?” O outro arcabouço teórico reflete a análise feita
por Fab ian (1983) da recusa da co n te m p o ra n eid a d e no
discurso colonial. Q u an do a negação da cotem poraneidade
se expressa não em termos de com paração de culturas ou
estágios de civilização baseados numa idéia pressuposta de
progresso, mas aplica-se ao lócus de enunciação, a defasagem
temporal permite uma negação da com tem poraneidade enun-
ciativa e, portanto, uma negação violenta da liberdade, da
razão e da qualificação para a intervenção política e cultural. É
através de conceitos com o “a negação da negação da contem
poraneidade” (Mignolo, 1995a: 249-258, 329-330) e da defasagem
temporal enunciativa que a restituição da força intelectual,
em anada das heranças coloniais, poderia ser im plantada e a
distribuição do trabalho intelectual realocada.
A discussão da noção de esquecim ento colonial proposta
por Foucault, desenvolvida ao final do capítulo de Bhabha
sobre o pós-m oderno e o pós-colonial, destaca um argumento
com plexo que ele desenvolve em todo o livro: “Existe uma
certa posição na razão ocidental que foi constituída em sua
história e fornece uma base para a relação que ela pode ter
com todas as outras sociedades, até mesmo com a sociedade
na qual historicamente surgiu.” (citado por Bhabha, 1994: 195).
A interpretação dada por Bhabha à afirm ação de Foucault
assinala o fato de que “ao repudiar o m om ento colonial com o
presente enunciativo na condição histórica e epistem ológica
da modernidade ocidental”, Foucault fecha a possibilidade de
interpretar a razão ocidental no conflituoso diálogo entre o
O cidente e as colônias. Mais ainda, segundo Bhabha, Foucault
“repudia precisam ente o texto colonial com o o alicerce para
a relação que a razão ocidental pode ter, ‘até mesm o com a
sociedade na qual historicamente surgiu’” (Bhabha, 1994: 196).
O presente enunciativo, em outras palavras, é o presente do
tem po ocidental e seu lócus de enunciação. O s loci coloniais
de enunciação foram dissolvidos ou absorvidos pelo discurso
colonial, incluindo a produção e distribuição de conhecimento,
por carecerem de contemporaneidade: colônias como o Terceiro
Mundo produziam cultura, enquanto os centros metropolitanos
produziam discursos intelectuais, interpretando a produção
cultural colonial e se reinscrevendo com o o único lócus de
enunciação. Bhabha contribui para relocalizar — finalm ente
— o diálogo entre a m odernidade e a pós-m odernidade, de
172
um lado, e entre colonialism o e o discurso e a teorização
críticos pós-coloniais, de outro:
173
crença de Berman na “unidade íntima do ser m oderno e do
am biente m oderno” (Gilroy, 1993: 46). Bhabha e G ilro y se
unem a Dussel em sua crítica à construção da m odernidade
no pensam ento pós-m oderno. O que diferencia sua teorização
pós-colonial são suas heranças coloniais: espanhola e latino-
am ericana para D ussel; a diáspora africana e os im périos
francês, alem ão e britânico para G ilro y , e o im pério britâ
nico e a co lo n ização da índia para Bhabha.
Santiago Castro-G óm ez (1996) expressou sérias objeções
à m inha com paração de Dussel e Bhabha com o críticos da
colonialidade do poder a partir de diferentes histórias locais.
A meu ver, as objeções de Castro-Góm ez se baseiam em um
m al-entendido a respeito daquilo que tomo com o “pós-colo-
n ia lid a d e ” , em parte devido à m aneira com o d esen vo lvo
o argum ento em artigos publicados em espanhol (M ignolo,
1996a; 1996b; 1997a; 1997c), e em parte devido a sua própria
co n ce p ção “progressista” da teorização p ó s-co lo n ial. Para
Castro-G óm ez os nom es de Edward Said, Gayatri Spivak e
H om i B habha são os estágios p aradigm áticos das teorias
pós-coloniais, e toda teorização assim classificada deve ser
avaliada na perspectiva de seu “último estágio”. O u seja, Castro-
G ó m ez tem uma co n cep ção linear, progressista e modernista
da p ro d u ção de co n h e cim e n to . M inha co m p aração entre
B h abha e Dussel foi feita precisam ente para contradizer essa
perspectiva e para acentuar a relação entre locais geoistóricos
e a produção de conhecim ento. Não desconheço o fato de
que B habha e Spivak são “mais c o n h e cid o s” e “mais p o p u
lares”. Mas essa é precisam ente a d iferença que deveria
ser questionada em relação à colonialidade do poder e do
conhecim ento. Não pretendo de forma algum a subestimar as
contribuições feitas por Spivak e Bhabha. Meu propósito é
afastar-m e do im a g in á rio do sistem a m u n d ia l c o lo n ia l/
m oderno a respeito da p rodução e a con ceitu alização do
conhecim ento, que, no caso de Castro-G óm ez, com prom ete
sua própria solidariedade com a pós-colonialidade.
Há, entretanto, um ponto na argumentação de Castro-Góm ez
que merece cuidadosa atenção. Para ele, Said, Spivak e Bhabha
apresentam uma argum entação p ós-colonial, enquanto a de
Dussel deve ser vista com o contram oderna. Castro-G óm ez
parte da crítica de Michel Foucault à ordem do conhecim ento e
enfatiza o fato de que a epistéme moderna parte da presunção
174
de que o conhecim ento não pode ser concebido com o uma
representação das propriedades do objeto. O conhecim ento
também depende das condições formais situadas na estrutura
cognitiva de um sujeito transcendental, o sujeito cognoscitivo.
Castro-G óm ez aproveita a descoberta de Foucault sobre o
paradoxo da epistem ologia m oderna, de acordo com o qual
o sujeito conhecedor é parte da produção do conhecim ento,
mas, com o sujeito transcendental, não pode ser representado
da mesma maneira que o é o objeto de conhecim ento. Com o
se sabe, Foucault explica a em ergência das ciências sociais
com base nesse paradoxo. Castro-Góm ez conclui frisando que
o conhecim ento, segundo a conceitualização da epistemologia
m oderna (e por interioridade “m oderna” quero indicar o exer
cício da colonialidade do poder ao traçar a diferença colonial),
se baseou na projeção, em um sujeito cognoscitivo trans
cen d en tal, de um sujeito em pírico ocidental europ eu, que é
bran co , m ascu lin o , h eterossexu al e pertencente à classe
m édia (1996: 154-155). Ele destaca ainda que a ilusão de
observar e capturar um a totalidade só é p ossível com a
c o n d içã o de se estar cego para a observação de seu próprio
lócus de observação. Assim , a epistem ologia m oderna, que
co n se g u iu subalternizar outras form as de co n h e cim e n to ,
construiu-se presumindo uma perspectiva universal de obser
vação e um lócus privilegiado de enunciação (155).
C om o pode im aginar o leitor que seguiu minha argum en
tação até aqui, não posso deixar de endossar a apresentação
feita por Castro-Góm ez de um aspecto crucial da epistemologia
m oderna, através da análise de Foucault. Na m edida em que
ele liga visivelmente Foucault a Umberto Maturana e Francisco
Varela na última frase do parágrafo anterior, concordo com
C astro-G óm ez, já que Maturana e Varela têm guiado minha
reflexão teórica desde os anos 70 (Mignolo, 1978; 1991, 1995a).
A crítica de Castro-Gómez à filosofia latino-americana apóia-se
no paradoxo da epistem ologia moderna. Ele observa que uma
lim itação das ciências humanas e da filosofia moderna foi
sua incapacidade de revelar que a universalidade de seus
discursos estava, na verdade, profundam ente ancorada na
particularidade sociocultural dos observadores com o sujeitos
cognoscitivos (1996: 155). Tenho a impressão, mais uma vez,
de que a argum entação que apresento neste livro e que já
frisei em publicações anteriores, algumas das quais comentadas
175
por Castro-G óm ez em seu artigo, é algo desse tipo. Q u al é,
pois, a questão, e onde está a diferença? Sigam os um p ouco
mais a argum entação de Castro-Góm ez, já que ele apresenta
o caso dos intelectuais na América Latina pós-independência,
que constituirão um dos principais fios de minha argumentação
no Capítulo III.
Se a epistem ologia m oderna narcotizou seu próprio lócus
de enunciação e, a partir de histórias locais particulares e
ocultas, projetou com o projetos globais uma idéia do co n h e
cim ento, o que ocorre quando projetos epistemológicos globais
entram em outras histórias, coloniais e locais? Castro-Góm ez
toma o exem plo de D om ingo F. Sarmiento e Ju an B. Alberdi
— pensadores, ensaístas e políticos de grande influência na
Argentina do século 19 e na Am érica H ispânica em geral.
Castro-Góm ez assinala corretamente que Sarmiento e Alberdi
estabeleceram um lócus de enunciação diferencial (M ignolo,
1995a: 316-337) a partir da periferia, mas no interior da episte
mologia da m odernidade. Eu disse “corretamente” porque essa
é precisamente a razão pela qual a independência na América
Latina coincidiu com o colonialism o interno. Castro-Góm ez
propõe descrever posições como as estabelecidas por Sarmiento
e Alberdi enquanto “observações de segundo grau” no sentido
de que abrem a possibilidade de diversos loci de observação e
enunciação, embora permaneçam fiéis à filosofia do Iluminismo
que tentam emular. No entanto, as limitações de Sarmiento e
Alberdi são as mesmas da epistem ologia moderna: a cegueira
ou a incapacidade de observar-se observando a si m esmos
(Castro-Góm ez, 1996: 156; M ignolo, 1991: 357-395; 1995a: 1-28).
Para tornar isso possível, Castro-Góm ez postula, necessitamos
de um “terceiro grau de observação”, isto é, “uma observação
da ordem do conhecim ento a partir da qual as observações
européias observam a si próprias — uma possibilidade que
requererá uma ruptura epistemológica com essa mesma ordem ”
(1997: 156), isto é, com a ordem da epistem ologia m oderna.
Esse é, realmente, o argumento crucial de Castro-Góm ez. É aqui
que ele localiza a razão pós-colonial e o pensam ento pós-
colon ial. A diferença reside no fato de que atribuo uma posição
pós-colonial aos filósofos argentinos Kusch e Dussel e a um
filósofo m exicano da História, Zea, posição que Castro-Góm ez
vê com o observações contra-coloniais e de segundo grau, ao
invés de obsevações p ós-coloniais, de terceiro grau.
176
O argumento permanece válido para uma parte da discussão
neste capítulo e no seguinte. Há uma diferença, entretanto,
entre Sarmiento e Alberdi, de um lado, e K usch, Dussel e
Zea, de outro. Enquanto os primeiros tomavam a Europa com o
m odelo para o futuro da Am érica Latina, os últimos a viam
com o um obstáculo. Se ambos são loci diferentes de enunciação,
Sarmiento e Alberdi o propuseram com o continuação local de
um projeto universal. K usch, Dussel e Zea, ao invés, propu
seram um lócus de enunciação diferencial com o afirm ação de
diferença, embora tenham perm anecido no interior dos funda
mentos epistem ológicos cujo conteúdo criticavam . Assim , a
pós-colonialidade com o discurso crítico sobre o imaginário do
sistema mundial m oderno/colonial poderia ser com preendida
em dois níveis, com o especifiquei no início do capítulo: uma
crítica aos saberes subalternos (observação de segundo grau);
e a razão p ó s-co lo n ial com o pensam ento m arginal (obser
vação de terceiro grau). K usch, Dussel e Zea contribuíram
claram ente para a primeira, mas Sarmiento e Alberdi, não.
Um a questão perm anece, no entanto: em bora se possa
encontrar na Am érica Latina uma articulação epistem ológica
mais próxima ao que Castro-Gómez denomina observação de ter
ceiro grau (como em Fanon ou Glissant), na América Hispânica
esse estágio não foi claramente arquitetado dos anos 60 aos 90.
Por quê? Por que a sugestão de Castro-Góm ez de identificar o
pensam ento pós-colonial e a razão pós-colonial com a obser
vação de terceiro grau pode ser encontrada na filosofia inglesa
e francesa, mas não na filosofia latino-americana? Será que a
filosofia latino-am ericana, que é escrita em espanhol e dentro
de heranças intelectuais espanholas, continua a escorregar
para a m argem da m odernidade desde a segunda metade do
século 19? Será que a justificada observação teórica de Castro-
G ó m e z ignora um aspecto da história do sistema mundial
colonial/m oderno no qual a língua e o conhecim ento mantêm,
até o presente, uma articulação da colonialidade do poder e
do conhecim ento ainda entrincheirada na epistem ologia da
m odernidade? Volto a essas questões nos Capítulos V, VI e VII.
Até este ponto, minhas observações enfocaram principal
mente a língua, a etnicidade e a geopolítica do conhecim ento.
N ão abordei a questão do gênero na colonialidade do poder
e do conhecim ento. Encerro este capítulo trazendo o gênero
para o primeiro plano, e retorno a ele nos Capítulos V e V I.
177
O GÊNERO E A COLONIALIDADE DO PODER
178
ainda uma alternativa à conturbada cronologia do nacionalismo
no subcontinente indiano. Enquanto o conceito de nação for
interpretado como um presente do colonizador à sua ex-colônia,
a inimaginável comunidade produzida pelo encontro colonial
jamais poderá ser suficientemente lida (Suleri, 1992a: 3).
179
1
ordem, através da qual uma tentativa de reconhecer a margi
nalidade leva a uma duplicação oposta da intransponível distância
entre a margem e o centro. A tensa ambivalência da cum plici
dade colonial, no entanto, exige uma leitura mais nuançada de
com o um gênero igualmente ambivalente atua nas tropologias
tanto das narrativas coloniais quanto das pós-coloniais (Suleri,
1992a: 15).
180
C A P í T U L O III
COMPREENSÃO HUMANA E
INTERESSES LOCAIS
O OCIDENTALISMO E O ARGUMENTO
|LATINO-)AM ERICANO
180
C A P í T U L O III
COMPREENSÃO HUMANA E
INTERESSES LOCAIS
O OCIDENTALISMO E O ARGUMENTO
|LATINO-)AM ERICANO
184
Anahuac no norte e Abya-Yala no centro foram rebatizados
com o “índias O ccid en tales” . Uma das razões para esse nom e
foi a con vicção de Colom bo de que alcançara as índias e a
hipótese posterior de Vespúcio de que as terras alcançadas
por C o lo m b o constituíam um N ovo M undo. Com o se sabe,
foi o hom em de letras alem ão e cosm ógrafo Martin W aldsee-
müller, pertencente ao Gim nasio Vosgense (nom e dado a um
círculo de humanistas na cidade de Saint D ie, Lorena), que
sugeriu o nom e “A m érica” em honra a Am erigo V espucci.
Entretanto, o interessante é que Waldseemüller sugeriu mudar
o gênero gramatical do nome Am érico para o fem inino A m é
rica para com binar com Ásia e África. Dessa forma poderia
acom odar um “quarto” continente no quadro da época, que
era, basicamente, um quadro cristão. No século 15, entre todas
as cosm ologias conhecidas (islâm ica, chinesa, asteca, inca),
a cosm ologia cristã era a única que concebia o mundo dividido
em três continentes (Ásia, África e Europa) e que designava
para cada um dos continentes um filho de Noé (Jafé, Shem,
Ham ) (H ay, 1957). A coroa espanhola não podia chamar as
índias Ocidentais de “Am érica” porque não estava interessada
em identidade continental, mas na administração das possessões
coloniais, e as possessões coloniais eram tanto “índias O c c i
dentales” (hoje as Américas e o Caribe) quanto “índias Orien-
tales” (as ilhas do Pacífico tendo as Filipinas com o centro).
É bastante interessante que o nome “Am érica” tenha se
tornado a identificação territorial, não para a coroa espanhola
ou para os esp anhóis das índias O cid en tais, mas para a
p o p u lação crioula e os intelectuais nascidos na “Am érica”,
de ascendência espanhola e líderes da independência durante
o século 19. A população crioula e seus intelectuais foram
também os que iniciaram um processo de autodefinição com o
“am ericanos”, com suas possíveis variantes (hispano-, indo- ou
latino-), com o verem os. A importância do discurso de identi
dade geocultural reside no fato de que preencheu um espaço
que se rom peu 'n o processo da conquista e da colonização.
C om o argum entei alhures (M ignolo, 1995d, 1996d), a co n
quista e a co lo n iza çã o geraram form as de “falar fora do
lu ga r” : rom peu-se a relação que a população indígena sentia
com o lugar do qual falava e que tinha sido articulada durante
séculos (co sm o lo gia, m em órias, relações sociais, trabalho
etc.). Sua fala tornou-se “fora de lugar” em suas com unidades
185
porque os indígenas sabiam que elem entos estrangeiros
haviam sido introduzidos em seu espaço. Para os espanhóis,
a fala era igualmente “fora de lugar”, no sentido de que eram
alheias e estranhas ao co n h e cim e n to , à co sm o lo g ia , aos
p ovos e memórias que estavam descrevendo, quando des
creviam as popu lações am eríndias. Por outro lad o , suas
próprias memórias na nova terra tam bém eram “n o v as” e
totalmente diferentes das memórias que Castela e os historia
dores castelhanos estavam in vocan d o para construir sua
territorialidade (isto é, o processo de construir um lugar
form ado por fronteiras geográficas e memórias com uns). A
em ergência da população “crio u la” e de seus intelectuais
preencheu o espaço vazio, construindo uma nova territoria
lidade que, com os anos, veio a chamar-se “América Latina”:
uma territorialidade cujos contornos geográficos são, mais
ou m enos, os da América do Sul continental. Suas memórias
com uns baseiam-se na co lo n ização esp anhola das índias
O cid e n ta is, o que levou à in clu sã o de Porto R ico , São
D om ingos e Cuba, países com a mesma língua, com o a A m é
rica Espanhola continental. Por outro lado, e numa relação
invertida, o Brasil fica incluído na Am érica Latina não por
causa da língua (como no caso das ilhas), mas por pertencer
ao continente!
O resultado final é que a imagem atual da América (Latina)
foi mapeada sobre os legados coloniais da primeira m oderni
dade (isto é, o período m oderno inicial dos historiadores
dos “Anais”) que é sobretudo o do século 16, quando se
estabeleceu o circuito com ercial Atlântico. Essa é a fundação
econôm ica do sistema m undial m oderno, que se tornou um
com ponente esquecido e silenciado depois que a história
da segunda modernidade (aproxim adam ente de m eados do
século 17 até a Primeira Guerra M undial) entrelaçou-se com
a historiografia nacional dom inada pela Inglaterra, França e
Alem anha. Assim, por exem plo, enquanto qualquer história
da “América Latina” com eça em 1492, a “Q uestão In dígen a” e
o com eço da escravidão africana (que forçou uma importante
reconversão do próprio conceito de escravidão, pois antes disso
se costum ava identificar a escravidão com a Á frica), a h is
tória “anglo-americana” com eça em 1600 (Slotkin, 1973, 1985;
Stephanson, 1995). Essa data (1600) não é, entretanto, a data
“inicial” para os intelectuais indígenas norte-am ericanos, para
186
os quais 1492 é ainda relevante (por exem p lo, o “mapa de
quinhentos an os” de Marmon Silko, A lm anac o f the Dead,
1991; ver m inha Introdução). A razão é simples: os índios
norte-am ericanos não estão presos à história nacional da
A m érica britânica, para a qual o “c o m e ç o ” é a é p o ca da
chegada dos puritanos. D e qualquer forma, o que é crucial
lembrar para a form ação e a transformação geopolítica das
“Am éricas” são as diferenças entre 1600 e 1776 na história da
Am érica britânica, por um lado, e a colonização britânica das
ilhas caribenhas, por outro. O ano de 1655 é uma data signi
ficativa na história do Caribe, quando a Inglaterra conquistou
a Jam aica e destruiu o projeto espanhol de controlar todo o
Caribe. D aí por diante, até o Tratado de Utrecht em 1713,
quando o decadente colonialism o espanhol conseguiu co n
servar Porto Rico, Cuba e Santo D om ingo (a parte oriental de
H ispaniola — a parte ocidental, Saint D om inique, estava sob
controle francês) a história colonial do Caribe é a história
das novas potências emergentes (Holanda, Inglaterra e França)
assum indo o poder e se estabelecendo na econom ia de p lan
tação. Mas o ano de 1655 tam bém assinala uma diferença
im portante em relação à Am érica continen tal do norte: a
Inglaterra nunca tomou posse do continente da mesma forma
que fez com a Jam aica ou os espanhóis com o Caribe, a M eso-
am érica e os A ndes. Essa diferença estabeleceria um paralelo
mais próxim o entre a Inglaterra e a França, no Caribe, do
ponto de vista da colonização. E essa diferença estaria também
no cerne do entendim ento que situa os afro-am ericanos no
Caribe e sua relação com Londres, e os afro-am ericanos nos
Estados U nidos continental.
Pode-se perguntar por que insisti tanto nas datas. Já
m encionei, na Introdução, que o m odelo ou metáfora “sistema
m undial m oderno” baseia-se muito em datas. Wallerstein, por
exem p lo, declara:
187
“Ocidente” (ou a “Europa”) “entrara em ascensão” e que exercia,
esp ecialm en te depois de 1815, efetivo dom ínio p olítico e
econôm ico sobre o resto do mundo, pelo menos até que esse
domínio começou a recuar no século 20 (Wallerstein, 1992: 56-62).
M O D E R N ID A D E , C O L O N IA L ID A D E E A M É R IC A (LATIN A)
188
crioula, mas uma necessidade no cruzam ento dos conflitos
im p eriais. H á diversos estu do s sobre qu em a p resen to u
primeiro a idéia e o nom e de Am érica Latina (Ardao, 1980;
1993; Rojas M ix, 1992). Embora esses estudos focalizem sobre
tudo os discursos intelectuais da ép o ca (e sigo o m esm o
esq u em a neste capítulo), fica também claro em suas análises
(e, espero, na m inha), e é também historicamente sabido, que
o nom e e as con figu rações geop olíticas do im aginário do
su b co n tin en te não foram in ven çõ es de esclarecid o s inte
lectuais latino-americanos em busca de sua identidade. Foram
tam bém produto de uma nova configu ração de um cam po
imperial de forças: Espanha e Portugal em decadência; França
e Inglaterra em seu período imperial hegemônico; e os Estados
U n id o s, com um a clara perspectiva de seu “destino m an i
fe sto ” e projeto de futuro poder imperial. A identidade “latino-
am ericana” , com o qualquer outra identidade geop o lítica e
étnica, resultou de um duplo discurso: o discurso da alocação
do estado im perial de identidade filtrado até a sociedade
civil, e o discurso de reco lo cação produzido a partir dos
setores da sociedade civil (isto é, intelectuais, m ovim entos
sociais) que discordavam do primeiro. Dentro das forças dom i
nantes do sistema m undial m oderno do século 19, a identi
dade “latino-americana” era pós-colonial. No contexto histórico
que descrevi na seção anterior, os Estados Unidos também
partilhavam de uma m entalidade “p ó s-in d ep en d ên cia” . As
nações pós-coloniais depois de 1950, ao contrário das nações
da pós-independência no início do século 19, definiam -se nos
horizontes conflituosos da descolonização e do marxism o
(Béji, 1982; Chatterjee, 1986; 1993), ao passo que as nações da
pós-independência se articulavam dentro da ideologia liberal
do sistema m undial m oderno. A “desco lo n ização ” com o hori
zonte final ainda não existia no século 19- O horizonte era a
nação. O u , m elhor ainda, a “res-pública”.
Se as diferenças entre a independência dos Estados Unidos
da Inglaterra e a'-dos países latino-am ericanos da Espanha e
de Portugal são claras em diversos asp ecto s, dever-se-ia
enfatizar que os Estados Unidos constituíram-se com o nação
independente separando-se de um império em ascensão (o
britânico), enquanto os países latino-am ericanos co n q u is
taram suas in d e p en d ên cia s de dois im périos d ecaden tes
(Espanha e Portugal). Entre 1820 e 1830, ocorreram dois
189
acontecim entos sintomáticos, no norte e no sul do continente
am ericano. Enquanto diversos países da América H ispânica
obtiveram a independência entre 1810 e 1821, os Estados
Unidos negociaram a posse da Louisiana com o governo francês
entre 1812 e 1819. A Flórida foi anexada aos estados da U nião.
Tudo isso ocorreu enquanto Bolívar na América do Sul (e mais
tarde na América “Latina”) planejava um congresso no Panamá
(em 1826) para elaborar a unidade legal da Confederação
Americana (e Bolívar na verdade pensava a América do extremo
sul ao extrem o norte). E, sem dúvida, Bolívar tinha a visão
correta da nova ordem m undial quando resolveu realizar o
congresso no Panam á. Previa a abertura de um canal, ou de
uma série de canais, que ligaria o Atlântico ao Pacífico e se
tornaria, com o tem po, centro do planeta. Bolívar pensava
em termos de controle dos oceanos, e não, certam ente, na
rodovia da inform ação. Prosseguia im aginando que, se o
m undo precisasse de uma cidade com o capital, essa seria
Panam á, devido à sua posição estratégica, ligando a Europa à
América e à Ásia, e trazendo “a uma região tão feliz os tributos
das quatro partes do g lo b o ” (Azpurúa y Blanco, [1875-1878]).
O Congresso do Panam á foi, de fato, uma idéia nova: um
congresso de nações novas era algo sem precedentes desde a
ascensão dos estados-nações, como mostrou Benedict Anderson,
([1983] 1991). A pós-independência deveria então ser enten
dida com o reconfigurações (econôm icas, políticas, epistem o-
lógicas) da colonialidade do poder, e a em ergência de novos
projetos em tensão conflituosa com o projeto global.
Na verdade, se Bolívar foi original ao imaginar uma co n fe
deração am ericana e ao fazer um congresso am ericano no
Panam á, não foi tão original ao enxergar o Canal do Panam á
com o ponto estratégico no futuro da ordem global m undial.
O ano de 1823 tem um significado estratégico particular na
perspectiva dos Estados U nidos, quando a convergência da
D o u trin a M o n ro e co m a id e o lo g ia do D estin o M an ifesto
inspirou a idéia de um pan-am ericanism o (ver meus co m en
tários subseqüentes sobre Du Bois e o pan-africanism o). Uma
A m érica unida tam bém foi co n tem p lad a, mas sob a h e g e
m onia dos Estados Unidos. A diferença entre a idéia de Bolívar
no sul e a proclam ação da Doutrina M onroe no norte foi que,
enquanto a última era proclam ada por vários estados que
tinham recentem ente conquistado sua independência de um
190
império dominante (o britânico), Bolívar previa uma “América”
que não seria uma única república, mas um conjunto de repú
blicas hispano-am ericanas independentes que p o uco antes
haviam conquistado sua independência de um império em deca
dência. Na perspectiva de Bolívar, dada sua admiração pelo Reino
U n ido, um projeto imperial não constava de seu horizonte.
Não havia projeto equivalente à Doutrina M onroe ou à idéia
pan-am ericana a ela associada. A razão pela qual os Estados
Unidos emergiram com a idéia de um “destino m anifesto” e as
repúblicas hispano-americanas com a idéia de uma unidade mais
“defensiva” do que “ofensiva” podería ser explicada em relação
às potências imperiais das quais a independência fora conquis
tada. Na perspectiva histórica atual, é claro que entre 1820 e
1830 os futuros caminhos históricos das duas Américas, a britâ
nica e a latina, estavam sendo decididos. Antes disso, aproxima
damente de 1500 a 1800, as diferenças entre as duas Américas
eram as diferenças ditadas entre os impérios espanhol e britâ
nico no sistema m undial colonial/m oderno. Língua e raça,
com o verem os, foram dois com ponentes cruciais para a articu
lação do im aginário do sistema m undial colonial/m oderno.
A diferença que as duas tinham em com um , entretanto, foi
a forma pela qual, no início do século 19, a “A m érica” foi
apropriada por intelectuais dos estados em ergentes com o
diferente da Europa, embora ainda pertencente ao O cidente.
Com o observaram Quijano e Wallerstein (1992), as “Am éricas”,
ao contrário da Ásia e da África, foram constituídas com o
parte do sistema m undial colonial/m oderno. O s velhos terri
tórios co lon iais esp anh óis, conceitu alizad os com o “índias
Occidentales”, e o quarto continente imaginado como “América”
dentro da divisão cristã do planeta em três continentes antes
de 1500 (divisão que dom inou o im aginário geop olítico do
m undo colonial/m oderno até o fim do século 18) com eçaram
a mudar, devido à em ergência de uma nova com unidade de
intelectuais (os intelectuais do N ovo M undo), para os quais
a “Am érica” e seú futuro se tornariam autônom os em relação
à Europa. Em outras palavras, a independência política foi
acom p an h ada por uma indep end ência sim bólica na im agi
nação geopolítica. O presidente Thomas Jefferson escreveu em
1808 que os interesses com uns entre os Estados Unidos inde
pendentes e os m ovim entos sociais emergentes nas colônias
espanholas exigiam a exclusão da influência européia “deste
191
hem isfério” (W hitaker, 1954: 28). “Este hem isfério” vai logo
transformar-se no “hem isfério ocidental”. Isto é, “ociden tal”
mas ao mesmo tempo independente da “Europa”. As histórias
locais (nesse caso, a ascensão das histórias nacionais) vieram
junto com a articulação planejadora de projetos globais. Em
1811, Jefferson foi extrem amente claro quanto à necessidade
de uma dupla articulação de histórias globais, com projetos
globais substituindo uma ordem m undial superada:
192
entre as novas nações emergentes e não entre um novo império
em ergente (o dos Estados Unidos) e outro decadente (o es
panhol), com o foi, por exem p lo, o caso de Porto Rico e Cuba
em 1898. D o ponto de vista de hoje, 1848 foi decisivo para a
configuração do im aginário das duas Am éricas e da “Latini-
d ad ” nos Estados Unidos (a em ergência de uma consciência
chicana dentro do contexto maior de latino-americanos/as nos
Estados Unidos) e, portanto, para a reconfiguração da Am érica
anglo-saxônica e da Am érica Latina (Oboler, 1997: 31-54). Em
1857 o senador Buchanan reafirmou a Doutrina Monroe dentro
do novo espírito do D estino M anifesto nutrido por todas as
anexações anteriores. No que diz respeito ao Istmo do Panamá
com o divisória subcontinental, uma idéia já concebida por
López de Velasco (cosm ógrafo de Filipe II) por volta de 1570,
Buchanan afirmou que era destino da raça saxônica estender-se
por todo o continente norte-americano, com o Istmo marcando
a fronteira ao sul. Ele previa uma migração maciça para o sul
e, portanto, que a Am érica Central teria em p ouco tem po uma
significativa p opu lação anglo-am ericana e que tal p opulação
m odelaria o futuro dos povos indígenas, termo com o qual
não se referia aos am eríndios, mas sim à p opu lação crioula
(isto é, descendente dos espanhóis) na Nicarágua (Torres Caice-
do, 1869, citado por Ardao, 1980: 197).
Em 1898, as intenções evidentem ente boas da Doutrina
M onroe para com a Am érica Latina desapareceram quando
os Estados Unidos ultrapassaram a expansão continental e
com eçaram a se conceber com o futura potência im perial. O
Istmo do Panam á, visto por Bolívar com o local geopolítico
crucial, tornou-se também crucial para os Estados Unidos numa
nova ordem m undial na qual as potências im periais eu ro
péias se expandiam por todo o globo. Cuba e Porto Rico eram
ilhas estratégicas, do ponto de vista militar, para o controle
do Caribe, e os Estados Unidos aproveitaram os m ovim entos
tardios de independência em relação à Espanha em ambas as
ilhas (Rodriguez-Berulf, 1988). D o ponto de vista de minha
argum entação, 1898 e 1848 redesenharam a separação entre
a Am érica anglo-saxônica e a Am érica Latina. Embora a parte
da p o p u la ç ã o hoje rotulada de “h isp â n ica ” ou latina nos
Estados U n idos pudesse originar-se de qualquer lugar na
Am érica Latina ou na Espanha, o fato é que basicam ente as
relações im periais entre os Estados U nidos, M éxico, Porto
193
Rico e Cuba estão todas no cerne histórico de um conflito
étnico, independente do lugar de origem dos chamados “hispâ
nicos” ou “latino/as” . Em outras palavras, no horizonte c o lo
nial da m odernidade, 1848 e 1898 são m om entos cruciais que
turvaram a clara divisão entre a América Latina e a América
anglo-saxôn ica, divisão que (conceitualm ente) mantinha os
povos em territórios específicos, atribuindo-lhes um conjunto
do propriedades culturais fixas (Rom ero, H ondagneu-Sotelo
e Ortiz, 1997. B onilla, M eléndez, M orales e Angeles Torres,
1998).
194
África estavam no m eio da Guerra Fria (Fanon, [1964] 1988:
108-110), que era seu esquem a geral de referência. Portanto,
durante a Guerra Fria (mais de um século depois da desco lo
nização, no início do século 19, e cerca de cinqüenta anos
após o fim do dom ínio espanhol na Am érica e a transferência
de Cuba e Porto Rico, em 1898) o que pensavam os intelectuais
latino-am ericanos sobre uma nova forma de colonialism o,
geralm ente identificada com o “im perialism o”?
Para responder a essa pergunta voltarei primeiro ao filósofo
e ensaísta chileno dissidente Francisco Bilbao (1823-1865),
nascido nos anos conturbados da guerra pela independência
na América Hispânica. A descolonização no início do século 19
não poderia ter sido em preendida visando a um projeto de
Estado n acio n al, já que os estados-nações com o os c o n h e
cem os hoje não existiam . Q u an d o Benedict Anderson ([1983]
1991: 67) fala sobre os “m ovim entos de liberação nacionais
nas Am éricas” entre 1820 e 1920, deveriamos ter em mente as
m udanças ocorridas entre essas duas datas: “Antes de 1884 a
palavra nación significava sim plesm ente <o conjunto dos
habitantes de uma província, um estado ou reino> e também
<um estrangeiro>.” (H obsbaw m , 1990: 15). Lendo a “Carta de
Ja m a ic a ” de Bolívar, de 1815 (cruzam ento significativo de
locais imperiais) vê-se que a “nação ” era concebida com o o
conjunto de “am ericanos m eridionales” (sul-am ericanos) sob
o dom ínio espanhol e não com o estados-nações individuais.
N enhum intelectual revolucionário dos Estados Unidos no
fim do século 18 ou na Am érica Latina no início do século 19
poderia ter redigido o que Frantz Fanon escreveu sobre as
ciladas da consciência nacional ou sobre a cultura nacional
(Fanon, 1961): am bas estavam no futuro, para serem co n s
truídas e disponibilizadas. Conforme a descrição de Hobsbawn,
é apenas no fim do século 19 que ocorre uma autoconceitua-
lização do estado-nação (H obsbaw n, 1990). Por esse m otivo,
a idéia de Bolívar de uma U nião Am ericana assum e, até a
primeira metade do século 19, o lugar de consciência nacional.
A república “crioula” , em contraste com a alternativa de uma
m onarquia “crio u la ” , o cu pava o discurso dos intelectuais
am ericanos da época. Há uma segunda razão, apontada por
Klor de Alva, pela qual a independência nas Américas não foi
com o a descolonização na Ásia e na África na ordem geop o -
lítica m undial da Guerra Fria: o fato de que a Am érica, com o
195
ficou implícito na seção anterior, foi construída como extensão
da Europa e do ocidentalismo, e não como seu antônimo.
Jefferson não hesitou em situar o local da América no hemis
fério ocidental.
Mas voltemos a Bilbao (1823-1865). Um ano antes de morrer
ele publicou Evangelio americano, um ensaio fascinante no
qual explorava as diferenças entre a América e a Europa, entre
a revolução dos estados da Nova Inglaterra e as colônias espa
nholas, a ascensão dos Estados Unidos, a colonização espa
nhola e as dificuldades de manter o espírito revolucionário
de independência na construção das novas repúblicas. Na
língua da época, Bilbao falou contundentemente sobre raça
para caracterizar grupos diferentes. Falou, especialmente, da
raça negra, da raça indígena, da raça crioula (referindo-se
aos nascidos na América de ascendência hispânica). Assim,
falou também sobre os francos na Gália e os normandos na
Inglaterra, os astecas no México e os incas no Peru. Com base
nessas caracterizações observou algo peculiar às Américas:
P o d e r -s e -ia d iz e r q u e to d o s o s e x e m p lo s h is tó r ic o s d e c o n
q u is ta s e in v a s õ e s ra c ia is s ã o u n ifo r m e s e m s e u s re s u lta d o s
fin a is . A raça in v a so ra e triu n fan te a p ro p ria v a -s e d a terra e a
d iv id ia e o s d e s c e n d e n te s d e ssa raça c o n s titu ía m -s e s o b e ra n o s
d essa te rra ... H á n e sse fe n ô m e n o , p o d e r-se -ia d izer, u m a id en ti
fic a ç ã o entre o co n q u istad o r e a terra co n q u ista d a . Na co n q u ista
e s p a n h o la , p a rticu la r m e n te , a c o n te c e u q u e a raça d o m in a n te
g o v e r n o u , a d m in istro u , e x p lo r o u , m as n ã o c o m o se essas c o isa s
196
fo s s e m su a s o u p e rte n ce s s e m a seu p ró p rio p a ís, m as — p e lo
■ c o n trá rio — c o m o a lg o q u e n ã o lh e p e rte n cia e q u e p o d e ria
p e rd e r a q u a lq u e r m o m e n to ... P o rtan to , a A m érica n ã o fo i c o n
sid erad a c o m o u m a a d iç ã o territorial m as c o m o e x p lo r a ç ã o ...
H a v ia u m a p r o fu n d a d ife r e n ç a en tre o s e s p a n h ó is d e n a s c i
m e n to e o s n a s c id o s a m e ric a n o s , m e s m o q u a n d o o s ú ltim o s
d e s c e n d ia m d o s p rim e iro s . A situ a ç ã o é co m p leta m en te d ife
ren te n a ín d ia com os filh o s d a p o p u la ç ã o b ritâ n ica . São ingleses,
n ã o a siá tico s.
197
como Nietzsche ou Sorel, nem sempre aceitos por intelectuais
que se consideram marxistas. Quijano explica a atualidade de
Mariátegui em parte pelas tensões estabelecidas numa história
local na qual ele estava vivendo, experimentando e obser
vando a sociedade capitalista que era muito diferente da socie
dade particular na qual Marx baseou seu trabalho e análise.
O colonialismo e o racismo não foram elementos cruciais da
análise do capitalismo feita por Marx. Também, como demons
trou o intelectual marxista José Aricó (1988), Marx não com
preendeu o projeto de Bolívar, projeto que hoje continua
exemplar, tanto nas histórias oficiais como nas histórias
alternativas latino-americanas. Na esteira da explicação de
Quijano, eu sugeriría que a atualidade de Mariátegui hoje
deve-se ao fato de que seu pensamento passou das histórias
locais aos projetos globais (como o marxismo) e não o
contrário. Ao fazê-lo, ele encontrou (como Fanon em Peau
noir, masque blancs, 1952) os limites do marxismo no domínio
do colonialismo e do racismo. Todas essas tensões põem
Mariátegui em conflito, tanto com os peruanos nacionalistas
quanto com os marxistas internacionais. Haya de la Torre,
um intelectual e político peruano, acusou Mariátegui de euro-
centrismo por ele ter introduzido o marxismo e a noção de
classe social na história nacional do Peru, enquanto os mar
xistas europeus o suspeitavam de misticismo pela atenção
que dava à questão indígena e pelo fato de que tentou apre
sentar o marxismo para a população indígena como um mito.
Mariátegui deu o primeiro passo para um diálogo que o Subco-
mandante Marcos (e outros intelectuais urbanos) interpretaram
como tradução: o “zapatismo” como tal emergiu no momento
em que a cosmologia marxista se transforma em tradução da
cosmologia indígena, e a cosmologia indígena é transformada
em tradução de categorias marxistas (Mignolo, no prelo).
Em outras palavras, como intelectual vindo da margem do
sistema mundial colonial moderno, Mariátegui trabalhou com
projetos globais marxistas ao mesmo tempo que encontrou
seus limites na história local. A tensão fecunda e persuasiva
que Quijano depois percebeu poderia ser remodelada em
termos do potencial epistemológico do pensamento liminar,
vivido por Mariátegui como tensão, e teorizado pelo Subco-
mandante Marcos e o movimento “zapatista” (Mignolo, 1998;
ver também minhas observações finais sobre a tradução neste
198
capítulo). Foi dessa mesma fronteira entre as cosmologias oci
dental e ameríndia que emergiu o trabalho de Mariátegui.
Como Fanon, Mariátegui foi um pensador da fronteira; Bilbao
foi um pensador das margens. Essa é uma das diferenças
cruciais entre o pensamento pós-colonial nos séculos 19 e
20. A produção intelectual anterior se susteve no conflito entre
histórias locais do colonialismo e racismo e o novo caminho
aberto pela independência dos Estados Unidos e pela Revo
lução Francesa. Bilbao no Chile e, depois, o intelectual revolu
cionário cubano José Marti (1853-1895) viu um duplo perigo: a
expansão dos Estados Unidos em direção ao sul, a intervenção
da França no México e a presença constante da Inglaterra
na economia sul-americana. Os interesses de Marti pela
questão indígena, que era mais uma preocupação com a
história da civilização antiga, tinham mais a ver com a defi
nição de “Nossa América” do que com um movimento em
direção a um diálogo com a população indígena. Certamente,
para Marti, em Cuba a questão indígena não era tão premente
quanto para Mariátegui no Peru. Mas, acima de tudo, os tempos
eram diferentes. Bilbao preocupava-se com a construção da
república; Marti com a luta pela independência de Cuba da
Espanha. Mariátegui, nos anos 20, um século depois da inde
pendência da maioria dos países sul-americanos e alguns anos
depois da Revolução Russa, estava em posição de refletir
criticamente tanto sobre a história do colonialismo espanhol
como sobre a história da construção da nação no Peru (bem
como em outros países da América Hispânica no século 19).
Entretanto, sua sensibilidade para com a questão indígena
foi o primeiro movimento que conheço em direção à emer
gência do pensamento liminar na história local dos Andes e
da construção da América Latina, dessa vez entre os legados
coloniais e os projetos nacionais locais.
Nesse sentido, Mariátegui falava especificamente de uma
América “Indo-Espanhola”. Isto é, não se preocupava com o
Brasil ou com o Caribe não hispânico, ainda que o colonia
lismo espanhol deixasse traços nas ilhas, que se transfor
maram, no século 17, em possessões britânicas, holandesas ou
francesas. Mariátegui, como costuma acontecer com qualquer
trabalho de conteúdo ou implicações geopolíticas, refletia sobre
o mundo a partir da experiência ardente dos legados coloniais
espanhóis no Peru e nos Andes:
199
A s n a ç õ e s da A m é ric a H is p â n ic a c a m in h a m io d a s na m esm a
d ireção . A solidariedade de seu d estino histórico n ão é um a ilusão
criada pela literatura pró-am ericana. Essas n açõ es têm um a relação
fra te rn a n ã o a p e n a s e m s u a s te o ria s , m as ta m b é m e m s u a s
h is t ó r ia s . P r o c e d e m d a m e s m a m a tr iz c o m u m : a co n q u ista
e s p a n h o la , d e s tru in d o cu ltu ra s in d íg e n a s e fo r m a ç õ e s s o c ia is
au tó cto n e s, im p ôs um padrão h o m o g ê n e o n o asp ecto étn ico , p o lí
tico e m oral da A m érica H isp ân ica (M ariátegui, [19241 1991: 360).
200
cu ltu ra s h is p â n ic a s o u la tin o -a m e r ic a n a s ... a in d a n ã o a tin g iu o
p o n to d e a c o m o d a ç ã o e s o lid a r ie d a d e c o m o s o lo s o b r e o
q u a l a c o lo n iz a ç ã o d a A m é ric a o s d e p o sito u .]
El tra b a jo d e la n u e v a g e n e r a c ió n ib e r o -a m e r ic a n a p u e d e y
d e b e a r tic u la r s e y s o lid a r iz a r s e c o n e l tra b a jo d e la n u e v a
g e n e r a c ió n y a n q u i. A m b a s g e n e r a c io n e s c o in c id e n . Las d ife -
re n cia n el id io m a y la raza; p ero las c o m u n ic a y las m a n co m u n a
la m ism a e m o c ió n h istó ric a . La A m é ric a d e W a ld o F ra n k es
201
ta m b ié n , c o m o n u e stra A m é r ic a , a d v e r s a r ia d e i I m p é r io d e
P ie r p o n t M o rg a n y d e i P e tró le o .
E n c a m b io , la m ism a e m o c ió n h istó rica q u e n o s a c e rca a esta
A m é ric a re v o lu c io n a ria n o s se p a ra d e la E s p a n a re a c cio n a ria
d e lo s B o r b o n e s y d e P rim o d e R iv e ra . Q u e p u e d e e n s e n a rn o s
la E s p a n a d e V á s q u e z d e M e lla y d e M a u r a ...? N a d a ; n i s iq u ie ra
e l m é to d o d e u n g ra n E sta d o in d u stria lista y c a p ita lis ta . La c iv i-
liz a c ió n d e la p o tên cia n o tien e sed e en M adrid n i en B arcelo n a;
la tie n e e n N u e v a Y o r k , L o n d re s , e n B erlin (M a riá te g u i, [19241
1991: 369-370).
202
de área durante a Guerra Fria conseguiram transformar o
Terceiro Mundo em objeto de estudo ao mesmo tempo que
exportar as ciências sociais como instrumento para uma
compreensão neutra e objetiva da realidade social. O pensa
mento crítico entrincheirou-se, em dissidência com as ciências
sociais. Depois, os problemas se colocaram em termos de
“dependência”, “colonialismo interno” e “libertação”. Portanto,
na próxima seção exploro a contribuição de Rodolfo Kusch
como esforço para pensar das margens de categorias ocidentais
e ameríndias e a contrapelo das ciências sociais durante os
anos da Guerra Fria.
O PENSAMENTO LIMINAR
E A TRANSFORMAÇÃO DO CONHECIMENTO
(O U , C O M O BENEFICIAR-SE DE CATEGORIAS
AMERÍNDIAS DE PENSAMENTO E DE EXPERIÊNCIAS
AFRO-CARIBENHAS SEM CONVERTÊ-LAS EM
EXÓTICOS OBJETOS DE ESTUDO)
203
([1986] 1971: 301). Contudo, Habermas escreveu esse capítulo
(apêndice de seu livro) para refutar a trajetória do dito de
Schelling sobre a autojustificação positivista das ciências natu
rais e sociais bem com o das hum anidades. Tom ando, por um
lado, a divisão do trabalho e conhecimento científico, segundo
a qual as disciplinas acadêm icas se organizaram a partir do
século 19, e celebrando a necessidade de desligar o co n h e ci
m ento de interesses “im ediatos” (com o uma física nacional
fascista ou uma genética soviética), H aberm as desenvolve
uma argum entação brilhante para demonstrar que, em última
análise, não há e não pode haver conhecim ento sem inte
resses. M enciona, e subseqüentem ente esquece, a crítica feita
por M ax H orkheim er do conceito de teoria que prom oveu o
próprio conceito de “teoria crítica” na Escola de Frankfurt
(Horkheim er [1950] 1972) — a reflexão de Husserl sobre a
crise das ciências européias, coincidentem ente publicada no
mesmo ano que o ensaio de Horkheimer (Husserl, [1950] 1970).
A dúvida de Husserl não era sobre a crise das ciências, mas
sobre “sua crise enquanto ciências” (Haberm as, [1968] 1971:
302). Mais especificam ente, Husserl preocupava-se, segundo
Haberm as, com a “cultura científica” (ou com “culturas do
conhecim ento acad êm ico” , conform e discuti no Capítulo VI e
V II). Interpretando Husserl, Haberm as afirma:
2 04
africana” . Husserl referia-se a uma com unidade de interesses
d efin id o s p ela história, lín g u a, tradição e au toconstru ção
da próp ria id éia de c iê n cia e co n h e c im e n to , q u e , co m o
Schelling e Haberm as (entre outros) m apearam , “co m eço u ”
na G récia. Mas evidentem ente o mesmo “co m eço ” não pode
ser invocado para uma m entalidade “latino-am ericana”, “afri
cana” ou “asiática”. O u pelo menos uma invocação semelhante
(algum as vezes feita na filosofia latino-am ericana) não é tão
transparente com o poderia ser a de Husserl: a Grécia relacio
na-se indiretamente com as memórias e o passado da América
Latina, cujo “c o m e ço ” tem de ser situado na violência da
co lo n ia lid a d e. O interesse hum ano deve ser definido neste
horizonte conflituoso do entendim ento: a colonialidade do
poder e a diferença colonial das m odernidades coloniais.
Essa é um a parte da história que se perde na argu m en
tação de Haberm as. A outra é a forma pela qual Haberm as
demonstra que o conhecim ento sem interesses é uma impossi
bilidade. A autodescrição das ciências naturais com o co n h e
cim en to o b jetivo d eslig ad o de interesse hum ano foi uma
autodescrição positivista, que favoreceu a razão instrumental
e o uso do conhecim ento para a m anipulação social — não a
criatividade, a busca intelectual e a “em ancip ação” hum ana.
Haberm as usa uma palavra posterior ao Ilum inism o. Acres
centem os “libertação” humana, com o preferem Enrique Dussel
e outros pensadores do Terceiro M undo. H á, contudo, duas
teses na argum entação de Haberm as que são úteis para asso
ciar conhecim ento, interesse e em ancipação/libertação. Uma
tese sustenta que “ no p od er da auto-reflexão (e Haberm as
está aqui pensando nas disciplinas acadêm icas, nas ciências
naturais e sociais tanto quanto nas hum anidades) o conhe
cim ento e os interesses são um a só co isa ” ([ 1968] 1971: 314).
A outra tese afirma que “ a unidade do conhecim ento e do
interesse se ínanifesta num a dialética que assum e os traços
históricos do diálogo suprimido e reconstrói o que fo i suprimido ”
([1968] 1971: 315). Am bas as teses associam conhecim ento e
e m an cip ação . Mas em ancip ação de quê? D o autoritarism o,
evidentem ente, num a m archa incansável “da evo lu ção da
hum anidade para a autonom ia e a responsibilidade”, que “nós
todos” aprendemos do Iluminismo: “Só em uma sociedade eman
cipada, na qual se tenham realizado a autonom ia e a resp o n
sab ilid ad e de seus m em bros, a co m u n ica çã o teria evoluído
205
para o diálogo não-autoritário e universalmente praticado, do
qual sempre im plicitam ente derivam-se tanto nosso m odelo
de identidade do ego reciprocamente constituído quanto nossa
idéia do verdadeiro co n sen so .” ([1968] 1971: 314, 315).
Nesse ponto de sua análise, Haberm as perdeu de vista
seu início: a incorporação crítica da noção de Horkheim er
sobre a teoria e sua ligação entre a teoria crítica e a opressão,
com o ocorreu com os judeus na Alem anha 450 anos depois
de sua expulsão da Espanha, no “com eço” do sistema mundial
colonial/moderno e das diferenças coloniais. Habermas também
esqueceu de levar adiante a idéia de Husserl relativa à possi
bilidade de a “mente européia” formar uma com unidade, uma
cultura cien tífica, que será ligada a um “m odo de vida refle
tido e esclarecido” . A formação das culturas do conhecim ento
acadêm ico e da atividade intelectual, associada a “um m odo
de vida esclarecido” que ultrapasse a “mente européia”, teve
uma história com plicada em toda a configuração do sistema
m undial colonial/m oderno. D e fato, o que tal cultura cien tí
fica (de sua formação na Renascença até o Iluminismo) poderia
ser, se o im aginário epistem ológico hegem ônico do sistema
m undial m oderno, especialm ente sua autoridade e credibili
dade científica, mostrava-se tão poderoso que levou Fernando
Ortiz a enfatizar repetidam ente que seu estudo sobre a escra
vidão era o b jetivo e d esap aixon ad o? O rtiz fez essa o b ser
va çã o logo após sua volta a Cuba, regressando de estudos
avançados no exterior. Contudo, a força das histórias locais
que o pensador habita (no caso de M ariátegui, Ortiz, Du Bois)
e a distância do m odelo científico adotado term inam , nos
pensadores criativos, por definir uma com unidade de co n h e
cim ento q u e, no caso que estou an alisan d o , poderia ser
descrita com o “con hecim ento e interesse em histórias c o lo
niais locais”.
Neste livro, minha argum entação segue na última direção:
a distinção entre histórias locais e o projeto global possibilita
com preender o projeto de Schelling (e de Haberm as) numa
história local na qual a universalidade do interesse de ambos
era considerada evidente e constituiu a base de projetos globais.
A própria estrutura do sistema mundial moderno caminha junto
com um im aginário cam biante, que tem com o objetivo o u ni
versal (lógica e historicamente): há uma discussão bastante
antiga na filosofia cristã sobre os problem as dos “universais”
206
(B euchot, 1981) que se tornou a fundam entação epistem oló-
gica do projeto prático de cristianizar o m undo. Essa cum pli
cidade p ossibilitou , prim eiro, co nceber o cristianism o e o
conhecim ento dentro da filosofia cristã, com o projeto global,
e, segundo, com a secularização do m undo, associar o conhe
cim ento à Razão e à Teoria (em vez de Deus) e assim apoiar
um novo projeto global, a missão civilizadora. A exportação
dos projetos epistem ológicos globais preencheu o espaço
do co n h ecim en to , quando a m issão civilizadora tornou-se
central no dom ínio da educação (G on zalbo Aizpurú, 1990;
V isw anathan, 1989; O so rio Rom ero, 1990). D entro das his
tórias locais do m ercantilism o colonial (séculos 16 e 17) e do
capitalism o colonial (fim do século 18 ao 20), na América
Latina, Ásia, e África, as ligações explícitas entre co n h eci
m ento e interesses são mais difíceis de esconder: os elos entre
o conhecim ento e os interesses são m otivados pela necessi
dade de libertação, de d esco lo n ização , em vez de em anci
p ação . Isto é, o conhecim ento é associado à libertação e à
descolonização da perspectiva subalterna, como aconteceu com
a em ancip açã o durante o século 19 na Europa. Em uma
perspectiva subalterna, não pode haver conhecim ento disso
ciado de interesse, pois toda perspectiva subalterna é “crítica”
no sentido que Horkheim er e Khatibi atribuíam à palavra. Ao
question ar a visão de e m a n cip ação que associa c o n h e c i
m ento e interesse, conform e a argum entação de Haberm as,
não estou q u estionando a validade de seu argum ento na
história local que ele com bate. Para mim a questão é que seu
argum ento im plícita e involuntariam ente desqualifica outras
possibilidades de associar conhecimento e interesse a partir de
uma posição subalterna para a qual a discussão de Habermas
é apenas tangencialm ente relevante.
Num artigo antigo, Angel Rama (1926-1983), o crítico lite
rário e cultural uruguaio que estendeu ao cam po literário a
noção de “transculturação” de Ortiz, traçou uma anatomia da
contribuição literária e cultural da América Latina, com o região
do Terceiro M undo. Esse artigo foi escrito para um encontro,
em G en eb ra, cujo objetivo era exam inar a história cultural
latino-am ericana em relação ao Terceiro M undo e à história
universal. A análise de Rama é utilíssima para resumir minha
argum entação até este ponto, bem com o para mapear a que
segue (Rodolfo Kusch, Ortiz e o conceito de “transculturação”,
207
a noção de “consciência d u p la” de Du Bois, a “créolité” de
Glissant e outros e a “nova consciência mestiza” de Anzaldúa.
O primeiro ponto interessante é que o Terceiro M undo
neste caso é uma referência geopolítica, não mais definida
p elo s perigos im periais evidentes na guerra dos Estados
Unidos com o M éxico em 1847 e no Tratado de G u adalup e-
H id algo de 1848, bem com o na invasão francesa do M éxico
em 1861, que teve muito a ver com a adaptação do nome
“América Latina” (Ardao, 1980, 1993; Rojas M ix, 1992). Am bos
os eventos atraíram o interesse de Francisco Bilbao na segunda
m etade do século 19. Sublinhando duas datas, 1810, o ideal
de Bolívar, e 1910, a R evolução M exicana, Rama enfatizou a
identificação intelectual crioula hispano-americana de particu
laridades latino-americanas. Reconheceu, com o no trabalho de
Mariátegui, a pluralidade da cultura latino-americana, aspecto
que Bilbao teria achado difícil reconhecer. Bilbao descreveu
as Américas com o uma configuração única na história da huma
nidade. Numa prosa celebratória e enfática, Bilbao declarou que
nem no Antigo Oriente nem na Europa poder-se-ia encontrar
uma expansão igualmente vasta de terra “dominada por apenas
duas raças, com duas línguas, duas religiões e uma estrutura
p olítica” (Bilbao, [1862] 1988: 273). Essa visão apocalíptica
armou o palco para uma longa tradição, que chega até Angel
Ram a, segundo a qual a “Am érica Latina” é definida pela
expansão da ideologia da independência, sobretudo por uma
m entalidade crioula. É precisam ente esse im aginário que
A ngel Rama reproduziu em 1965 quando afirmou:
208
alcançar e ultrapassar as culturas européias “crioulizadas”. Estas
últimas tinham ocupado a América e se mantinham solidamente
apoiadas nela. Em vez disso, as culturas africanas e indígenas
estão fadadas a desaparecer, e só podem sobreviver inserindo
elementos próprios de cada cultura nessa cultura euro-ameri-
cana, ocidental e atlântica, ou qualquer nome que se lhe queira
dar: tal é o caso da poesia em Cuba, de Marti a G uillén, da
cultura africana, e da cultura indígena no Peru, e do romance
indígena com sua variedade de formas e níveis.]
R E F L E T IN D O A PARTIR D A S R U ÍN A S
D E C A T E G O R IA S A M E R ÍN D IA S
Para m elhor apreender as im plicações do dito de Rama,
seria útil com eçar com um paralelo entre o indigenism o e o
209
indianismo. Define-se o “indigenismo” como um conjunto de
práticas culturais e políticas de intelectuais crioulos, bem como
de organizações nào-ameríndias (tais como organizações nào-
governamentais, ou ONGs) em defesa e aliança com os ame
ríndios (ou ameríndios “indígenas”)- O indigenismo abrange
um amplo espectro de convicções políticas, desde políticas
estatais de integração até intelectuais oposicionistas que enxer
garam nas comunidades ameríndias o futuro da revolução
social. “Indianismo”, por sua vez, define-se como a crença de
que “lo indio” (difícil de traduzir com o pronome “lo”) carac
teriza-se por sua configuração pré-colombiana. Essa crença
poderia ser partilhada tanto por ameríndios como por nào-
ameríndios. O indianismo, quando assumido pelos povos
ameríndios em sua longa história de rebeliões contra o colo
nialismo externo e interno, tem sido percebido como uma
recuperação simbólica do passado com vistas a um futuro
melhor. Eu gostaria de antecipar um argumento que usarei
depois e sugerir que o “zapatismo”, no México, definiu um
espaço que transcende tanto o indigenismo quanto o india
nismo. Esse espaço novo, que alhures chamei de “revolução
teórica zapatista” (Mignolo, 1997d; Mignolo e Schiwy, 2001)
assinala uma realização e também o nascimento do pensa
mento liminar: um espaço novo saído de uma dupla tradução,
a tradução do marxismo para a cosmologia ameríndia e da
ameríndia para a cosm ologia marxista, envolvendo no
processo intelectuais tanto ameríndios quanto crioulos urbanos.
Evidentemente, Rama não teve a oportunidade de testemunhar
esse terceiro momento, crucial em sua genealogia, marcado
pelo início da independência em 1810 e pela Revolução
Mexicana em 1910. Nos anos 90, o fracasso da Revolução
Mexicana encontra sua continuação nos “zapatistas”, que
também introduziram um novo discurso e deram novo sentido
à “indianidade”. Mas é certamente o que está sendo articulado,
embora em uma perspectiva diferente, pelos intelectuais
crioulos que sabem examinar os limites do indigenismo e do
indianismo nas encruzilhadas da globalização (Mires, 1991;
Varesse, 1997) e a emergência de intelectuais ameríndios
(Rappaport, (1990] 1998; Varesse, 1996b).
Eu argumentaria que a obra de Rodolfo Kusch, desde e após
América profunda (1963), é não apenas uma contribuição
para uma reconfiguração da indianidade no trabalho comum de
210
intelectuais ameríndios e crioulos, mas também uma contri
buição para uma nova paisagem epistemológica da qual as
categorias ameríndias têm sido excluídas ou tomadas como
objetos de estudo, não como “energia” para a reflexão. Kusch
possibilita partir da presunção de que o nome “filosofia” pode
ser de origem grega (e nesse sentido marca um “princípio”),
mas o “pensamento” não se origina em nenhuma cultura
particular: não há princípio para o “pensar”, embora haja prin
cípios para os nomes que o “pensar” tem assumido na história
dos seres humanos (para tentativas semelhantes, ver Dussel
[1992] 1995 e Mignolo, 1995a, 1995b). Além do mais, deve
riamos ter em mente que, por razões históricas relacionadas
com a educação, não existe ainda em regiões da América
Latina, com uma densa população ameríndia, uma produção
cultural significativa e pública de impacto transnacional (com
exceção de Rigoberta Menchú na Guatemala) de intelectuais
de ascendência ameríndia (com exceção de pessoas como Fausto
Reinaga, Roberto Choque e Fernando Untoja na Bolívia;
ou Demetrio Cujti Cuxil na Guatemala), como ocorre nos Estados
Unidos, onde militantes intelectuais atuantes na literatura e
na arte vêm tendo uma longa trajetória e uma presença visível
(Deloria, 1999; Coltelli, 1990). Nesse sentido, a obra mais
recente de Kusch tem uma dimensão mais significativa.
Mas, antes de considerarmos a obra de Kusch, deixem-me
esboçar o contexto no qual se moldaram seus pensamentos,
bem como a forma como minhas descrições de suas idéias
estão sendo articuladas. Essa cautela é necessária porque
Kusch foi uma figura política controvertida nos círculos argen
tinos e ainda o é na história da filosofia latino-americana.
Sem dúvida, isso se deve em parte à sua proximidade de Martin
Heidegger (de quem Kusch foi mais um crítico do que um
adepto cego). O pensamento de Kusch beirava uma atitude
pró-nazista que, ela própria, pode-se deduzir, remonta no
mínimo ao início do século 19- As idéias de J. G. Herder sobre
o “nacional” e o “popular” foram traduzidas em termos não
apenas políticos, mas também metafísicos e ideológicos, conver
tendo-o em um ideólogo romântico dos nazistas. A herança
romântica encarnada no jovem Kusch e sua celebração do
“barbarismo” (um livro escrito pouco antes da queda de Juan
Domingo Perón [Kusch, 19531) teve sua continuação imediata
em América profunda, onde Kusch articula suas idéias no
211
contexto da civilização aimará e dos legados coloniais. Arturo
A. Roig, filósofo argentino de esquerda que — como Kusch,
embora por razões diferentes — foi vítima do governo militar
que assumiu o poder em 1976 (Kusch foi demitido da univer
sidade naquele mesmo ano e morreu em 1979; Roig retornou
à universidade depois de 1984, após a volta da democracia
na Argentina), criticou asperamente a filosofia de Kusch como
uma redução da identidade (latino-) americana à metafísica
da “terra”, à inércia da flora que, de acordo com Roig, Kusch
comparava à passividade do feminino e complementava a
celebração do camponês analfabeto, percebido como raiz e
autenticidade da América (Latina). É desse ponto de vista,
segundo Roig, que Kusch abriu caminho para a leitura de
Heidegger “à l'américaine” sem abandonar a estrutura que
conduz a uma ideologia fascista (Roig, 1993: 82-84). Estou
convencido de que a leitura de Kusch por Roig, se não comple
tamente errônea, baseia-se em mal-entendidos. Nas próximas
páginas exploro o potencial epistemológico da filosofia de
Kusch, oferecendo uma nova leitura de sua obra, além de
Am érica profunda, que é onde seus críticos parecem ter
interrompido a leitura.
Quando Kusch começou a escrever, os antropólogos ainda
não haviam reconhecido as implicações da cena da escrita ou
da complexa relação cúmplice entre o antropólogo e seu
informante ou entre o antropólogo e seu público. Nem reco
nheciam as fraturas criadas pelo fato de que a narrativa do
informante dirige-se ao antropólogo e não aos membros de
sua comunidade. Contudo, quando os antropólogos finalmente
tomaram consciência das questões éticas e políticas envolvidas
na prática da antropologia (isto é, de “escrever a cultura”), o
contexto no qual se moldaram suas reflexões foi basicamente
o do antropólogo norte-americano fazendo trabalho de campo
na Ásia, na África ou na América Latina — isto é, contextos
nos quais a cultura do informante era estranha à do antropó
logo. Kusch, entretanto, encontrava-se numa situação total
mente diferente. Os povos e comunidades com os quais entrou
en contato, tanto historicamente como naquela época, eram
simultaneamente “eles” e “nós” em relação a ele próprio. Os
povos e culturas andinos que tentava compreender eram
estranhos ao seu background argentino urbano, de classe
média, entretanto “eles” também eram “nós”: latino-americanos.
212
E o “mesmo” de Kusch era também seu “outro”, no sentido de
que ele crescera entre os fragmentos da tradição européia na
periferia colonial. (Se os povos andinos se considerariam
americanos e contavam Kusch como um deles é outro problema.)
A questão aqui é que Kusch se achava em solo movediço,
sem base mesma, e toda sua vida intelectual a partir dali se
direcionou para compreender a “América” como um lócus de
enunciação, que ele concebia como uma conflituosa política
de diferença. Ele se via como membro da classe média e como
um filósofo às margens do Ocidente, ao passo que conside
rava os povos andinos como cruciais para a cultura americana,
embora deslocados pelas forças econômicas e políticas
marginalizantes da cultura ocidental. Para Kusch, “o Ocidente”
significava a Europa de Hegel e os Estados Unidos. Assim,
sua obra (até América profunda) é marcada pela constante
tensão de identificar um lócus “americano” de enunciação.
Em seu primeiro volume de ensaios, La seducción de Ia
barbarie. Análisis herético de un continente mestizo (1953),
Kusch buscou o que era desde a origem, especificamente
americano na paisagem, uma paisagem que tinha sido consi
derada, em uma perspectiva “civilizada”, um deserto ou sede
da anticivilização (ver o capítulo 8). Ao postular essa paisa
gem como “sedutora”, Kusch sugere algo semelhante ao que
Roberto Fernández Retamar, falando não de um lócus
andino, mas caribenho, mais tarde chamaria de “sedução”
de Caliban:
213
com as tradições muito mais antigas de um poderoso e vasto
Império Inca. Foi aí que Kusch com preendeu que sua
concepção da natureza em La seducción de la barbarie era
inadequada para a apreensão da “América” pela qual lutava.
Precisava compreender os povos indígenas (isto é, seus
descendentes) não apenas a paisagem. Mais objetivamente,
precisava compreender como esses povos compreendiam a
natureza e se relacionavam com ela. Kusch abordou essa nova
tarefa que se atribuiu da perspectiva tanto de um filósofo
(ocidental) quanto de um argentino de classe média de
ascendência alemã, compreendendo que, se o pensamento
se associa ao lugar, então a migração deve originar uma
configuração diferente, pois cria um terreno sem base a partir
do qual se vai pensar e falar — uma intuição que Kusch elabo
raria mais tarde como “lugar da filosofia” (1978).
América profunda se inicia com a descrição de Kusch
caminhando pelas ruas de Cuzco, outrora centro do Império
Inca e, mais tarde, lugar importante para a administração
espanhola do Peru colonial. Desde a independência (isto é,
do início do século 19) Cuzco se tornara uma cidade peruana
importante, com um passado complexo e conflituoso. A sensi
bilidade de Kusch como homem nascido e criado num país
basicamente povoado por descendentes dos colonizadores
espanhóis ou por imigrantes europeus do século 19 reflete-se
em sua observação sobre a sujeira e o cheiro intolerável que
identifica como o fedor da América. Ele vê em si mesmo e em
sua classe o asseio associado à idéia de progresso e civilização
— assim, os dois lados da América:
P o r u m la d o , a A m é r ic a , c o m su a s c a m a d a s p r o fu n d a s , su as
ra íze s m e s s iâ n ic a s e su a ira d iv in a na c a m a d a da s u p e r fíc ie , e ,
p o r o u tr o , o s c id a d ã o s p ro g re ssista s, o c id e n ta liz a d o s . A m b o s
s â o c o m o o s d o is ex tre m o s d e um a an tiga e x p e r iê n c ia h u m a n a .
U m está a s s o c ia d o a o fe d o r e traz c o n s ig o o m e d o d a e x te rm i-
n a ç ã o , e o o u tr o , p e lo c o n trá rio , triu n fa n te e lim p o , a p o n ta
p ara u m triu n fo ilim ita d o , e m b o ra im p o s s ív e l.
214
d o q u e é h u m a n o n estas terras ( K u s c h , 1963: 17; tra d u çã o d e
M ig n o lo ) .
215
percebido como substituição de, e não uma alternativa para,
um mundo de organismos (no qual seres não humanos
construíram a natureza), e a “posse de objetos” começa a ser
percebida como preferível à “participação e interação com
organismos”. A coexistência — segundo o argumento de Kusch
— da noção de “estar aqui” com a de “ser alguém” corres
ponde à sua concepção inicial da coexistência do imundo
com o limpo.
No fim de seu livro, Kusch volta à sua experiência pessoal
em Cuzco para descrever a peculiaridade de estar na América,
de uma existência que funde tanto as formas européias de
atuação fora da Europa quanto os padrões cognitivos amerín
dios, por muito que tenham sido desmantelados por povos e
instituições européias, no remoto Ocidente (ou, como na deno
minação preferida pelos espanhóis, nas “índias Occidentales”).
(Ver Figura 2). Essa tensão leva Kusch a explorar a “sabedoria
da América”, noção baseada em sua história de uma “fagoci-
tose cultural” como um processo de mão dupla: enquanto a
civilização ocidental era transformada nas margens pelas
tradições ameríndias, essas mesmas tradições geradoras de
transformações foram e continuam sendo relegadas a um
segundo (ou terceiro) plano pela promoção hegemônica do
“processo civilizador” durante o período colonial e do “pro
gresso e modernização” durante o período pós-colonial
(Gyekye, 1997, para a África; Gargand Poinkh, 1995, para a
índia). Mais recentemente, o intelectual pós-colonial tem
podido escolher entre promover a civilizaçào/progresso/
modernização ou resistir a eles e lidar com as complexidades
de um terreno sem fundação. Ambas as opções envolvem
confronto com os complexos problemas da ocidentalização:
a saber, as descontiriuidades das tradições européias e
ameríndias clássicas (inventadas). A fagocitose de Kusch
está próxima da “transculturação” de Ortiz ([1940] 1995), do
“entre-lugar” de Santiago (1978) e de minha própria noção de
“pensamento liminar”.
Na formulação de Kusch, as construções imaginárias e os
loci de enunciação funcionam num contexto espaço-temporal
específico: os Andes, conforme foram construídos a partir de
e dentro de uma formação discursiva às margens do Ocidente
e sobre o terreno sem fundação de famílias imigrantes.
Esse foco permite a Kusch evacuar o espaço tradicionalmente
216
ocupado por séculos de colonização intelectual. Em vez de
preenchê-lo com suas próprias representações discursivas
antropológicas do outro, ele abandona esse espaço. Embora
Kusch não tenha vivido para encontrar uma elaboração seme
lhante em outros escritores e pesquisadores (morreu em 1979),
os nomes e textos de Domitila Barrios de Chungara e José Maria
Arguedas, nos Andes, e Rigoberta Menchú, na Mesoamérica,
podem ser acrescentados ao projeto geral contemplado por
Kusch. Seus discursos, como o de Kusch, não representam
nem o outro nem a comunidade do falante; são intervenções
culturais que fazem valer sua exigência de novos lugares dos
quais falar (isto é, histórias locais e reivindicações críticas de
sua especificidade). Agindo dessa maneira, contribuem para
reforçar uma consciência dupla, uma gnose liminar, devol
vendo ao subalterno um potencial epistemológico que lhe
foi tomado: conhecer tanto a razão do senhor quanto a razão
do escravo, enquanto o senhor conhece apenas sua própria
razão e a não-razão do escravo. Mais do que representações
de outros desempenhos, Kusch, Menchú e os demais serão
considerados como desempenhos que solicitam a participação
de membros de uma comunidade já existente, bem como dos
que queiram tornar-se membros de uma comunidade ampliada,
composta de novos loci de enunciação.
Minha interpretação desses discursos e de como deveríam
ser teorizados parte de modelos (ou exemplos, se quiserem) nos
quais Kusch baseou suas teorias. O mais familiar é a distinção
entre as montanhas e o litoral, no Peru, uma divisão geográ
fica que também atua sociológica, histórica e filosoficamente
como um jogo de fronteiras. Nas montanhas, prevalece o prin
cípio de “estar aí” da filosofia de vida ameríndia. No litoral,
“ser alguém” é a força propulsora da classe média peruana,
que vive e pratica o estilo de vida e as crenças às margens do
mundo ocidental (especialmente na Costa do Pacífico, no Peru).
Entre as montanhas e a costa jaz o espaço da migração para
as cidades. Kusch articula essa distinção da seguinte forma:
O p r o fu n d o s e n s o d e o p o s iç ã o en tre litoral e m o n ta n h a , n o
P e ru , é u m a c o n ju g a ç ã o d e d o is ritm os d e v id a q u e e n c a rn a m
d u a s d a s e x p e r iê n c ia s d a e s p é c ie , c a d a u m a d a s q u a is lu ta
s ile n c io s a m e n te p o r p re v a le c e r. M a s, p o rq u e a luta é d e s ig u a l
e m te rm o s d o s m e io s u tiliz a d o s e d a fo rça d e c a d a la d o , a luta
217
in d íg e n a tem se e n q u ista d o d en tro d a o u tra. É n essa p ersp ectiv a
q u e te m o s p a íse s c o m o a B o lív ia e o P e ru , o u z o n a s c o m o o
n o rte d a A r g e n tin a , o n d e , s o b a c u ltu ra d in â m ic a , o a n tig o
estrato respira c o m o u m c isto , c o m seu h á lito c o m u m e c o le tiv o .
É u m su b stra to q u e p e rm a n e c e ig n o r a d o e é re g istra d o a p e n a s
n o â m b ito d o fo lc lo r e o u da e tn o g r a fia , m as q u e o fe r e c e sua
re s is tê n cia s ile n c io s a e c o m e d id a até q u e o b té m ê x ito , n ã o m ais
n o a to d ire to d e atrito o u d e c o n ta to en tre c u ltu ra s , m as nas
q u a lid a d e s d e fr a q u e za e na fic ç ã o d e ser (id e n tific a d o ) , c o m o
seu a n ta g o n ista , q u e q u e r residir n o litoral d a A m é r ic a ... In d u b i
ta v e lm e n te , a c u ltu ra in d íg e n a c o n stitu i u m a e n te lé q u ia p e rfe i-
ta m e n te estru tu rad a — c o m o d iria S p e n g le r — e m in te n s id a d e
m u ito m aio r q u e a d e su a a n ta g o n ista . E a s o lid e z d essa cu ltu ra,
su a c o e s ã o e p e rs is tê n cia , b a s e ia -s e n o q u e c o s tu m a v a d e n o
m in a r-se se r (lo c a liz a d o ) , q u e n â o tem u m a re fe rê n c ia tran s
c e n d e n te a u m m u n d o d e e s s ê n c ia s e q u e e x is te n o p la n o d a
m era e x is tê n c ia d e n tro d o re in o d a e s p é c ie , q u e d e s e n r o la su a
g r a n d e h istó ria fir m e m e n te c o m p r o m e tid a c o m se u “ a q u i e
a g o r a ” o u , c o m o já a firm a m o s , n a q u e la m a rg e m o n d e term ina
o h u m a n o e c o m e ç a a d iv in a fúria d o s e le m e n to s . E n isso resid e
a d e fin iç ã o d a c u ltu ra d a m o n ta n h a o u d e esta r (lo c a liz a d o )
e m o p o s iç ã o a se u a n ta g o n is ta , a cu ltu ra d o lito ra l, o u , m e lh o r
a in d a , a d o s im p le s esta r ( id e n tific a d o ) , c o m o s im p le s m e n te
s e r a lg u é m ( K u s c h , 1963: 166-168).
218
se r (id e n tific a d o ) p e lo esta r (lo c a liz a d o ) , a c im a d e tu d o , d e se r
a lg u ém fa g o c ita d o p o r u m estar a q u i ( K u s c h , 1963: 171).
219
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220
A reversão operada por Douglass na metanarrativa de Hegel
cria ao mesmo tempo um potencial epistêmico para o escravo
(ou subalterno); enquanto o escravo conhece tanto a razão
do senhor quando a do escravo, o senhor conhece apenas
sua própria razão e a não-razâo do escravo (poderiamos aqui
substituir senhor-escravo por civilização-barbarismo). “Fagoci-
tose" é precisamente aquele momento no qual a razão do senhor
é absorvida pelo escravo, e, como no “Pontificial Mundo” de
Guaman Poma (ver minha Introdução), a razão subalterna
pratica a fagocitose em relação à outra razão. Esse potencial,
e essa força intelectual, é privilégio e força intelectual de todos
os tipos de gnose liminar, de Douglass a Kusch, de Anzaldúa
a Khatibi, de Ortiz a Hall. Da mesma forma, encontramo-la
nas margens vivenciadas por afro-americanos, ameríndios,
árabes, judeus, chicanos e outros. Não estou, evidentemente,
advogando um tipo apartheid de privilégio epistemológico.
Estou sugerindo que a gnose liminar, em suas diferentes
manifestações, é o futuro epistemológico e o localismo plane
tário crítico, equivalente ao “privilégio” epistemológico de que
a epistemologia do segundo modernismo europeu usufruía e
ainda usufrui.
A dialética senhor-escravo de Hegel é o passado: a episte
mologia do presente é a gnose liminar. Essa epistemologia,
em sua própria expansão vitoriosa, criou a condição de proli
feração da gnose liminar, novas sensibilidades e novos campos
de ação. A (re)construção imaginária da idéia de “comuni
dade” efetuada por Kusch ultrapassa a celebração do “estar
aqui”, porque ele a vê não apenas como um traço distintivo
das intervenções ameríndias, mas, pelo contrário, como a
forma pela qual os ameríndios praticavam uma filosofia de
vida e filosofavam uma prática de vida que privilegia as inte
rações com “organismos vivos” (isto é, a natureza) e não com
“objetos construídos” (isto é, a transformação da natureza em
produto comercializável). A lição que Kusch extrapola de
Santa Cruz Pachacuti, pensador ameríndio do fim do século
16 e início do 17, é a coexistência da ordem e do caos, em
contraste com as formas ocidentais de pensamento, onde o
impulso principal é controlar o caos e impor a ordem (Figura
10). A idéia de comunidade é afim a esse princípio geral, com
a vida individual lutando por “ser alguém”, regulada de forma
a adaptá-la a uma comunidade que tem de acomodar os objetos
221
construídos da modernidade. Assim, se “estar aqui” é o desafio
que a América (enquanto fagocitose cultural crescente com
relações assimétricas de valor) lança, de suas próprias margens,
à civilização ocidental, esse desafio faz também parte de
um processo mais amplo, no qual as forças do “estar aqui”
combatem a hegemonia do “ser alguém”, que Kusch vê não
apenas nos fragmentos da Renascença e do lluminismo
europeu, mas também nos fragmentos do marxismo e da
psicanálise. Em resumo, a noção de fagocitose cultural
(enquanto luta para “estar aqui”) de um ego consciente toma-se
tanto uma palavra-chave crucial (um tipo de gnose liminar)
quanto o trampolim para uma política de transformação
cultural e social, que ele desenvolve sobretudo em seus dois
últimos livros (Kusch, 1976, 1978). A questão não é celebrar
glórias passadas, mas sim como trazê-las para um presente
planetário.
A maior parte das leituras de Kusch (Roig, 1993; Castro-
Gómez, 1996) detém-se aqui, em 1963, com América profunda.
Os quinze anos seguintes são geralmente deixados de lado.
Mas voltemos primeiro a um estágio anterior, de transição,
nas reflexões de Kusch sobre as culturas indígenas e popu
lares. Seu livro de 1970, Elpensamiento indígena y popular
en América, vai além das especulações filosóficas de América
profunda e desloca-se para a articulação de uma etnofilosofia
fundada no combate à modernidade e na busca de uma polí
tica de transformação cultural. A narrativa de sua experiência
pessoal de caminhar pelas ruas da cidade de Cuzco, no Peru,
que abre América profunda, encontra paralelo em El pensa
miento, em uma entrevista realizada por Kusch e seus assis
tentes com um homem e seu filho no interior da Bolívia. A
conversa gira em torno da necessidade de uma bomba elétrica
para água, sugerida pelos etnógrafos como meio de melhorar
a produtividade, mas que provoca a silenciosa oposição do
pai e a oposição, expressada de modo mais evasivo, do filho.
A conversa torna-se o exemplo paradigmático oferecido por
Kusch em seus livros posteriores como argumento contra o
“progresso” e a “modernidade enquanto tecnologia (ocidental)”.
Em El pensamiento, entretanto, Kusch usa a entrevista para
peguntar o que significa praticar uma filosofia de vida na
América, constrastando, por assim dizer, suas próprias reflexões
filosóficas com os efeitos práticos da silenciosa oposição
222
manifestada pelo pai ameríndio contra a bomba elétrica. Como
se deveria interpretar esse silêncio e essa oposição? O que
significa, no contexto de “pensar na América” ou de “pensar
a partir da América” (o que, evidentemente, diverge radical
mente de perguntar se há “uma forma americana de pensar”,
“um pensamento latino-americano” ou, pior ainda, o que
poderia ser ou parecer “uma forma americana de pensar”)?
Esse é o momento em que a preocupação de Kusch com a
ideologia da modernização e do desenvolvimento, que na
época invadiam a América Latina e criaram condições para a
emergência da “teoria da dependência” e do “colonialismo
interno”, rompe com sua preocupação inicial e abre novas
perspectivas para a compreensão da subalternidade episte-
mológica, contribuindo, sem usar essa expressão, para a
descolonização do conhecimento. Assim, podemos explicar
a importância de Kusch para os militantes e intelectuais
envolvidos com a produção agricultural nos Andes (Grillo,
1993), suas afinidades com o que falam sobre a “descoloni
zação da mente” (Thiong’o, 1981) e com os que estão traba
lhando sobre as estratégias da modernidade na construção do
conhecimento e da epistemologia dominante (Apffel-Marglin e
Marglin, 1990).
El pensamiento indígena y popular en América inicia-se
com o questionamento da prática da filosofia na América e
da lógica das práticas discursivas deslocadas. A suspeita de
que as práticas filosóficas possam não ser ao mesmo tempo
articuladas em termos universais e evidenciadas em termos
locais (isto é, numa dada dimensão histórica, sociológica ou
pessoal), plantada em América profunda e florescente en El
pensamiento, desabrocha em Esbozo de una antropologia
americana (1978). Kusch argumenta que a filosofia não é algo
que se pudesse praticar na Grécia ou na Alemanha e depois
exportar para diferentes partes do globo, incluindo áreas como
a Ásia, África ou América, onde também seria praticada. O
dasein ( “estar ali”) de Heidegger, por exemplo, não era um
termo técnico, mas um lugar-comum do alemão popular. Ao
analisar etimologicamente o projeto de Heidegger, Kusch o
associa com a decadência da classe média alemã durante o
século 20. Assim, de acordo com esse argumento, as circuns
tâncias nas quais o “ser” estava em decadência assemelhavam-se
àquelas em que surgiu o “sentimento" burguês como reação
223
à crise do indivíduo e como tentativa de resolvê-la. Supondo
que o projeto filosófico de Heidegger se baseava numa crise
social que era especialmente “sentida” na Alemanha (e talvez
em outras partes da Europa), Kusch conclui que as práticas
filosóficas e os projetos americanos seriam necessariamente
diferentes, pois a situação histórica, os problemas sociológicos
e as configurações da sensibilidade humana na América não
eram os mesmos que os da Alemanha (ou Europa) de onde
Heidegger refletia (cf. Cornei West sobre a aversão “americana”
ã filosofia no Capítulo I deste livro). Heidegger — eu diria
hoje — pode ser útil para a reflexão sobre a situação pós-
colonial da Europa, depois da perda de suas colônias. Só
com dificuldade, entretanto, ele pode orientar a reflexão sobre
situações pós-coloniais na África, na Ásia ou na América
(incluindo o Caribe) da perspectiva daqueles que “habitam”
a história colonial da África.
Kusch trata mais explicitamente dessa questão na introdução
à terceira edição de Elpensam iento (1977). Se, como argu
menta, a filosofia da forma que era praticada na Grécia ou na
Alemanha não poderia ser exportada para outras partes do
mundo e lá praticada, então a questão dos “universais” deveria
ser examinada de um ângulo diferente. Para Kusch, é na
autoconsciência de certos organismos vivos (que, em certo
ponto da história do Ocidente, se autoconceberam como “seres
humanos”) que o princípio da racionalidade mínima (ao qual,
naturalmente, ele não dá esse nome, embora esteja implícito
no que ele chama de “pensamento popular”) encontra seu
fundamento e desafia a conversão das diferenças em valores. O
princípio da racionalidade mínima, de acordo com Kusch, é
o que permitiu aos “universais” serem simultaneamente conce
bidos e repetidamente constituídos em diferentes regiões,
assegurando o poder político dos universais disfarçados como
“neutros”. Isto é, tudò o que era considerado universal era
concebido como tal apenas da perspectiva privilegiada de uma
região (autoprivilegiada), a cristandade, razão secular do
Iluminismo europeu.
O desenvolvimento dessas idéias por Kusch implica uma
ruptura com o dasein de Heidegger, ou, nos termos de Kusch,
com “as circunstâncias nas quais se situa o dasein”, o lugar,
em outras palavras, do morar, do pensar e do dizer. Ao criar
um paralelo entre as condições que Heidegger tinha para
224
refletir e seu próprio lugar de reflexão, Kusch interpreta a
reação de Heidegger à crise de uma classe média alemã em
processo de decadência. (Antecipando e combatendo uma
provável reação apaixonada entre os adeptos de Heidegger
contra Kusch ou contra minha própria simplificação neste
livro, exorto a todos nós a lembrar que Kusch estava preocu
pado com teorizar o lugar do pensar e do dizer, não com o
pensamento e a obra de Heidegger em si.) O foco explícito
de Kusch na classe média argentina reflete o foco implícito
de Heidegger na alemã (foco mais evidenciado pelo Heidegger
et le nazism e, de Victor Farias [ver Farias, 1987; Lacoue-
Labarthe, 1990]). O ponto crucial da leitura do dasein de
Heidegger feita por Kusch é que ele provincializou um aparato
conceituai visivelmente universal e personalizou categorias
de pensamento aparentemente desencarnadas, flutuando livre
mente no reino metafísico das idéias.
Being and Time (1927) de Heidegger é, no entender de
Kusch, um tremendo esforço para repensar séculos de filosofia
ocidental, na perspectiva dos sentimentos gerados pelo “estar
lá”, isto é, o lugar de origem de Heidegger (incluindo sua
classe social, grupo étnico, educação etc.) e o lugar onde ele
estava então (como filósofo na Alemanha entre as guerras,
observando a ascensão dos regimes totalitários da Europa, e
usando o vocabulário e as expressões da região da Floresta
Negra). De modo semelhante, a noção de fagocitose criada
por Kusch emergiu de sua própria consciência de locais
passados e presentes: como filósofo, de ascendência germâ
nica, membro da classe média argentina, em diálogo constante
com intelectuais andinos tanto da universidade quanto das
comunidades indígenas (isto é, yatiris), bem como com os
povos andinos. Essas circunstâncias claramente informaram
os prefácios de Kusch à primeira (1970) e terceira (1977)
edições de Elpensamiento. No prefácio de 1977, suas alusões
a acontecimentos como os movimentos sociais que sacudiram
Córdoba em maio de 1968, o assassinato do líder da Confede
ração Geral de Trabalhadores em julho seguinte e a volta
de Juan Domingo Perón à Casa Rosada, em 1973, ligam a
terceira edição à primeira, onde Kusch lançara os alicerces
de sua teoria de fagocitose cultural. A busca do “pensamento
indígena”, diz Kusch, reflete não um desejo de o ver escavado
cientificamente, mas “a necessidade de resgatar um estilo de
225
B S C S H / UFRtíg
pensamento” nativo na antiga América (os Andes e a Mesoa-
mérica) e ainda praticado em zonas rurais, bem como na peri
feria de algumas comunidades urbanas (por exemplo, na
Bolívia e nos arredores de Buenos Aires, para onde haviam
emigrado milhares de pessoas oriundas da Bolívia e do norte
da Argentina, atraídas pela modernização industrial da cidade).
Em outras palavras, Kusch sente a necessidade de reins-
crever no presente o pensamento antigo/tradicional andino,
como uma intervenção cultural e política e como contribuição
para a transformação social da Argentina. Encontrar essas
raízes (ou essas ruínas) seria equivalente à identificação do
dasein de Heidegger como meio de articular as tensões na
Alemanha popular — não no vocabulário técnico da filosofia,
mas no “lugar de residir” lingüístico — também equivalente à
escavação feita por Heidegger nas raízes de palavras gregas e
latinas com o objetivo de elaborar seu próprio pensamento.
E assim ocorreu com Kusch, com uma exceção: porque buscou
suas raízes no aimará e quíchua popular, o que para ele estava
em jogo não era a dialética entre o “alto” e o “baixo” (alemão),
mas sim o espaço entre as “principais línguas” colonizadoras e
as “principais” línguas dos povos colonizados.
Em El pensamiento (1970), Kusch compara o clasein de
Heidegger com o termo aimará cancana, que poderia ser
traduzido como “ser como essência em processo", e com
utcatha (ou utatha), que significa “estar”, no sentido de “estar
aqui”, ou, talvez melhor, “estar em casa” (utha, casa). Essas
palavras do aimará lembram o dito de Hegel (1955, 1: 152):
“A filosofia é o estar em casa com o eu, como na condição
caseira do grego; é o homem estar em casa em sua mente, em
casa consigo mesmo.” Elas também refletem a correlação de
Heidegger entre “morada” e “pensamento”. Como podemos
explicar essas semelhanças se não por algo parecido com o
que Charles Taylor denominou “racionalidades mínimas”, de um
lado, e algo parecido com o que Foucault chamou de “poder
e saber”, do outro? Não obstante, Kusch vê enormes dife
renças entre as descrições metafóricas de Hegel/Heidegger
em termos de “estar em casa” ou “morada” e conceitos seme
lhantes em aimará — diferenças que Kusch atribui ao “poder e
saber”: a construção do conhecimento pelas instituições capi
talistas em condições coloniais, dois lados da mesma moeda.
Ele relaciona as similaridades, entretanto, com a fundação
226
da racionalidade mínima: a autoconsciência de seres auto-
conscientes que conseguem ao mesmo tempo compreencler-se
e descrever-se no processo de compreender tanto o céu como
uma abóbada e sua própria capacidade de conceber o céu
como abóbada (Figura 4; ver também o Capítulo VI). Além do
mais, utcatha relaciona-se com utcana, que significa “assento
de uma cadeira”, mas também “mãe” no sentido de “ventre de
onde sai a semente da mulher”. Assim o sentido de utcatha,
“estar aqui”, tem os sentidos complementares de assento (de
cadeira) ou abrigo (numa casa), e de germinação (num útero);
daí o saber e a compreensão se relacionarem com lugar e
com o corpo (não com a mente). Dasein e utcatha tornam-se,
na argumentação de Kusch, pontos de referência para dois
“estilos de pensamento” que ele consegue compreender
trabalhando a partir dos fragmentos da civilização européia
(na Argentina e nos Andes) e das ruínas das civilizações
andinas (as línguas quíchua e aimará).
Se “América” enquanto construção imaginária é a principal
preocupação de Kusch em América profunda, em Elpensamiento
seu foco muda para o lócus da enunciaçâo e a questão das
práticas filosóficas às margens da civilização ocidental. O
risco que Kusch assumiu (e o preço que pagou com a margi-
nalizaçào de sua própria obra) foi praticar a filosofia sobre e
nas margens da filosofia enquanto disciplina, encenando assim
seu deslocamento para o exterior do mundo colonial/moderno.
Kusch também teve de confrontar um problema diferente, a
saber, como ultrapassar filosoficamente o legado da filosofia
grega, tal como construída e praticada desde a Renascença
européia até a filosofia continental contemporânea, e como
reconhecer o pensamento filosófico “além” desse esquema
tradicional.
Como poderia reconhecer, para nela colocar sua fé, a
contrapartida do yatiri anônimo (pelo menos na história
reconhecida da filosofia ocidental)? Como poderia estender
o princípio da racionalidade mínima até o ponto onde o
sucesso intelectual e a influência passam a integrar uma
estrutura econômica e social que está fora do controle e da
dominação social, mesmo quando o intelectual vitorioso e
influente pode não ser diretamente responsável pela estrutura
de dominação?
227
Em outras palavras, como Kusch havería de legitimar a
“cosmologia” andina enquanto filosofia, não apenas como
matéria de estudo, mas também (como a história da própria
filosofia) enquanto tradição a partir da qual exercer o pensa
mento — semelhante ao que ocorre na filosofia ocidental,
que é objeto de estudo e ao mesmo tempo potencial epistê-
mico? Deveria, afinal, a “filosofia” na América ser construída
como disciplina e desenvolvida a partir dos fragmentos da
institucionalização européia, mas não incluir ruínas das antigas
civilizações andinas e mesoamericanas? Ao trazer o legado
filosófico ameríndio para atuar no contexto da cultura popular
da América Latina, Kusch contribui para a construção histó
rica da América (isto é, para a reinscriçào no presente daquilo
que foi suprimido) abrindo simultaneamente um lócus de
enunciação: uma redistribuiçâo e embasamento das cate
gorias de pensamento que foram alocadas pelo colonialismo
nos terrenos movediços da gnose liminar. Em outras palavras,
Kusch contribui para o deslocamento de uma imagem unifi
cada da América, seja como extensão da Europa ou como seu
antônimo e a transforma em lócus de enunciação, enfati
zando a sobrevivência marginai dos fragmentos europeus e
das ruínas ameríndias. Hoje em dia, esse tipo de desloca
mento inscreve-se nas bandeiras dos que desejam “redefinir”
os estudos de área!
Essa dupla marginalidade do intelectual latino-americano é
uma das duas lições fundamentais que podemos aprender de
Kusch; a segunda lição é como transformar perdas em ganhos
e tirar proveito de nossa dupla marginalidade, tornando-a um
lugar de onde pensar e falar, um lugar onde a vida depende
de uma contínua fagocitose cultural sobre uma gnose liminar
que, constantemente, burla a pura razão da modernidade.
Além desse lugar de dupla marginalidade, as vozes de mútuos
“outros” (da Europa ou dos Andes) podem ser ouvidas como
outras vozes (européias e andinas; Kusch, Heidegger e o
yatiri boliviano).
O que está, pois, em causa na contribuição de Kusch?
Primeiro, e além das dicotomias questionáveis que poderíam
ser hoje reformuladas, vem o fato de que o “princípio” do
“pensamento” não pode ser situado na Grécia e que, portanto,
o que em última análise importa é o “pensamento”, não a
“filosofia”. Segundo, a relação entre saber e interesse pode
228
ser situada naquilo que exige o pensamento, e o que exige o
pensamento não pode ser separado das necessidades que
o pensamento exige, em grego, aimará, chinês ou arábico.
Terceiro, o “pensamento” dentro da colonialidade epistemo-
lógica do poder só pode ser o pensamento liminar, quer esse
pensamento liminar seja praticado por um ameríndio ou um
crioulo de ascendência germânica. A única alternativa seria a
reprodução do pensamento monotópico e colonizador. Uma
vez mais, os “zapatistas” nos ensinaram que traduzir as cosmo-
logias européias — que, Rama garante, não podem ser aban
donadas na América — para as cosmologias ameríndias e
vice-versa tem um potencial epistemológico semelhante ao
que emerge da produção intelectual afro-americana tanto na
América anglo-saxônica (por exemplo, a “dupla consciência”
de Du Bois) quanto no Caribe (a “créolité” de Glissant). Isso
é apenas para responder ao que Rama vê como alternativa
a uma mentalidade crioula, limitada pela Europa. Voltarei
depois à mentalidade latina, que é mais uma história se
desenrolando nas Américas e transformando a idéia terri
torial crioula e a ideologia da “América Latina”.
TRANSCULTURAÇÃO:
PENSAR SOBRE AS MARGENS E A CRIOULIZAÇÀO
Estamos agora em posição de voltar à observação de Rama
sobre as possibilidades afro-(latino)-americanas de desenvol
vimento autônomo “dentro do continente americano”. Rama
tinha certamente em mente a “América Latina”, do contrário
não teria descartado a América anglo-saxônica e o Caribe.
Vamos pois começar com essa distinção, que equivale à que
introduzí na seção anterior. O poeta e ensaísta haitiano René
Depestre, residente em Cuba, publicou em 1969 um artigo
muito importante sobre o problema da identidade do “Homem
Negro” nas literaturas caribenhas. Embora tenha deixado de
lado a questão de gênero, Depestre, diferentemente de Rama,
afirmou uma forte presença da literatura e da cultura afro-
caribenha, especialmente no século 20. Mas, naturalmente,
Depestre estava pensando no Caribe francês, inglês e espanhol,
enquanto Rama pensava sobretudo nos países continentais
hispano-americanos, mais o Brasil. Depestre sublinhou a
distinção entre “Negritude” e “Negrismo”, enfatizando as
diferenças. “Negrismo”, nas letras caribenhas, vem sendo
229
principalmente um movimento intelectual e literário de homens
brancos em apoio ao componente africano na história cari-
benha. “Negritude”, por outro lado, é uma nova consciência
de sua condição histórica entre os povos negros.
O esclarecimento de Depestre poderia ser complementado,
historicamente, com a argumentação brilhante e persuasiva de
Frantz Fanon a respeito das diferenças entre os habitantes
das índias Ocidentais e os africanos. Mas, primeiro, observem
o interessante jogo de espelhos confrontantes na identificação
geográfica: Depestre fala, em espanhol, sobre as “Antillas”
(Antilhas Francesas) e inclui as ilhas que adotam a língua
francesa, espanhola e inglesa, como sinônimo de “Caribe
Insular” (isto é, excluindo o Caribe Continental, como a
Flórida, o norte do Brasil, o norte da Venezuela, o nordeste
da Colômbia, o litoral da América Central). Num brevíssimo
resumo, refere-se à região insular onde o colonialismo espanhol,
francês, holandês e inglês moldou a configuração geopolítica,
geoistórica e epistemológica. A tradução da análise de Fanon
sobre os caribenhos negros e africanos pode ser lida como
um paradoxo: “Os habitantes das índias Ocidentais e os
africanos.” Chamar um caribenho negro de “Indiano Ocidental”
é sinal de uma confusão generalizada, que também surge no
artigo de Angel Rama que venho usando como guia para a
segunda parte deste capítulo. Rama declarou, sem qualquer
remorso ou contrição, que:
230
com o apoio de um a tradição cultural itào européia que ele assume
radicalm ente: a negra african a . Ele representa o pape! que lhe
f o i imposto p o r europeus brancos: a Negritude. Para o bem ou
para o mal, “negritude” implica um a tradição cultural au tôn om a ].
231
Guerra Mundial. Os martinicanos mudaram de atitude e o
imaginário do orgulho pela negritude substituiu a antiga
rasura do habitante negro das índias Ocidentais que apoiava
o habitante europeu dessas índias. Certamente, como vimos
em Depestre, não parece haver uma “consciência americana”
nos intelectuais caribenhos (particularmente nos caribenhos
negros) da mesma forma que falta “consciência caribenha"
entre os intelectuais latino-americanos (particularmente latino-
americanos crioulos). A divisão original de Bilbao entre “duas
raças e duas línguas” no mesmo continente negou a presença
já forte dos afro-americanos (no Caribe e dos Estados Unidos
continental) e a emergência de intelectuais ameríndios com
uma longa tradição de expressar-se através de levantes sociais,
mais do que através da escrita (voltarei a esse ponto na
conclusão deste capítulo). O que é mais importante, uma nova
consciência parece estar em processo de gestação. Esses fenô
menos da interseção de fragmentos europeus nas Américas, e
o deslocamento da produção cultural e do conhecimento
ameríndio e afro-americano inspiram uma visão do futuro
totalmente oposta à prevista por Rama: em vez de predesti
nado a morrer ou a satisfazer-se com a inserção das ruínas de
afro-americanos e ameríndios nos fragmentos da mentalidade
européia, o pensamento liminar está caminhando em sentido
diferente: em direção a uma nova consciência (epistemoló-
gica) onde a “cultura” (e aqui “cultura” exclui “conhecimento”)
está sendo rearticulada como uma consciência dupla, créolité,
ou, em resumo, como pensamento liminar.
Na América Hispânica, um verdadeiro pensamento liminar
só emerge com a obra de José Maria Arguedas e de Rigoberta
Menchú (ver Capítulo V). Digo América Hispânica, uma vez
que, na verdade, o pensamento liminar já existia na América
Colonial, com Guaman Poma, Garcilaso, e Tezozomoc entre
outros. Na América Hispânica, Arguedas, embora ele próprio
crioulo, foi educado e viveu entre as comunidades quíchuas
do Peru. Rigoberta Menchú passou vinte anos de sua vida numa
comunidade maia-quíchua na Guatemala. Arguedas falava
espanhol e quíchua, embora o espanhol fosse sua primeira
língua. Rigoberta Menchú também falava espanhol, mas sua
primeira língua é maia-quíchua e aprendeu espanhol já com
mais de vinte anos (1984). O antropólogo cubano Fernando
Ortiz (1881-1969) foi um antropólogo crioulo e cubano que
232
acreditava seriamente nos princípios da ciência social, embora
sua veia criativa lhe permitisse misturar literatura e ciências
sociais de forma muito fecunda e sedutora (por exemplo, seu
Cuban Counterpoint: Tobacco and Sugar, ([1940] 1995). Em
certo sentido, seu conceito de transculturação foi e é um passo
importante para o pensamento liminar, embora as margens que
Ortiz apagou existam no objeto de estudo, não no sujeito que
estuda. Embora, na verdade, produzisse uma transculturação
do discurso antropológico, juntando antropologia e literatura,
e assim produzindo conhecimento antropológico num local
geográfico que se esperava ser o local do conhecimento antro
pológico, mas não do sujeito que investiga, ele nunca levou a
transculturação a esse nível de auto-reflexão. A transculturação
fica lá — no enunciado e não no lócus da enunciação. A dife
rença fundamental entre a transculturação, por um lado, e a
dupla consciência, a “nova consciência mestiza” e a créolité,
por outro, pode ser observada precisamente no fato de que
as últimas são todas palavras-chave que questionam o local
universal e a pureza epistemológica do sujeito que conhece
(ver Capítulo VII). Deixem-me ampliar essa afirmação (para
uma introdução mais alentada a Cuban Counterpoint, de
Ortiz, ver Coronil, 1995. Ver também, neste livro, p. 39 e 236).
O conceito de transculturação de Ortiz contribuiu farta
mente para transformar o discurso sobre raça em discurso
sobre cultura. Mariátegui (1894-1930) já tinha dado um passo
importante, no Peru, para ligar a questão etno-racial à eco
nomia, como veremos mais adiante. É bem sabido que o termo
transculturação foi sugerido como uma alternativa preferível
à noção de Bronislaw Malinowski de aculturação, usada pelo
antropólogo polonês, educado e atuando na Inglaterra, para
explicar mudanças culturais resultantes de “contato cultural”
(Malinowski, 1943). Enquanto aculturação apontava para
mudanças culturais numa única direção, o corretivo transcul
turação visava chamar a atenção para os processos complexos
e multidirecionais da transformação cultural. Embora tanto
Malinowski quanto Ortiz tivessem certamente consciência da
relação entre transculturação e colonialismo nenhum dos dois
a formulou como um processo no imaginário do sistema mundial
moderno e da modernidade/colonialidade, como estou tentando
neste livro. Malinowski participava do esforço contemporâneo
para elevar a antropologia a um nível científico e apagar os
233
elos políticos entre a antropologia e o colonialismo no século
19. Ortiz preocupava-se tanto com a história cubana e caribenha
quanto com a antropologia. Malinowski assumiu uma postura
epistemológica mais próxima da recomendação de Schiller
e do endosso de Habermas. Ortiz, por outro lado, era um
antropólogo do Terceiro Mundo, que, mesmo acreditando no
valor científico da antropologia, conservava uma relação
visceral com Cuba e o Caribe, mais forte do que suas relações
intelectuais com as normas disciplinares e a formação acadê
mica (Ortiz estudou na França). Contudo, Ortiz não pensava
na antropologia — e talvez não pudesse fazê-lo — em termos
de posições dominantes e subalternas no campo do saber, da
diferença entre fazer antropologia a partir de nações impe
riais (como a Inglaterra nos anos 30 do século 20) e a partir de
países colonizados (como Cuba no mesmo período, embora,
naturalmente, não pela Inglaterra). Em vez disso, Coronil deu
esse passo e sugeriu que “o que hoje se chama ‘antropologia
cultural' pode mais adequadamente ser designado como
‘antropologia transcultural’” (Coronil, 1995, xlii).
Em outras palavras, a “antropologia transcultural” introduz
a transculturação no lócus da enunciação, o pensamento
liminar nas práticas disciplinares, uma dupla consciência (por
assim dizer), no próprio coração da disciplina. Isto é, a
expressão “ciências humanas transculturais” significa intro
duzir o pensamento liminar nas formações disciplinares em
vez de ter apenas “transculturação” como um conceito descri
tivo do objeto de estudo. E isso é precisamente o que penso
que Kusch nos ensinou a fazer. Mais do que produzir um
estudo das categorias aimará de pensamento, Kusch empe
nhou-se num processo de reflexão a partir dessas categorias,
entrelaçando-as com categorias filosóficas que existem “desde a
época do nascimento da filosofia na Grécia”, como Habermas
gostaria de dizer. Mas ouçamos o próprio Ortiz, antes de
prosseguir na comparação com Kusch:
S o u d e o p in iã o q u e a p a la v r a tr a n s c u lt u r a ç ã o r e p r e s e n ta
m e lh o r a s d ife re n te s fa se s d o p ro c e ss o d e tra n siçã o d e u m a
cu ltu ra p ara o u tra , p o rq u e isso n ã o im p lic a a p e n a s e m a d q u irir
o u tra c u ltu r a , q u e é o q u e a p a la v ra a c u lt u r a ç ã o r e a lm e n te
im p lic a , m as o p r o c e s s o e n v o lv e ta m b é m n e c e s s a r ia m e n te a
p e r d a o u o d e s e n r a iz a m e n t o d e u m a c u ltu r a a n te r io r , q u e
p o d e ria se r d e fin id a c o m o d e s c u ltu r a ç â o . A lé m d is s o im p lic a a
234
id é ia d a c o n s e q ü e n te c r ia ç ã o d e n o v o s fe n ô m e n o s c u ltu ra is,
q u e se poderia ch am ar d e neocu ltu ração. N o fim , c o m o sustentam
o s s e g u id o r e s d a e sco la d e M a lin o w sk i, o resu ltad o d a u n iã o d e
cu ltu ra s a sse m e lh a -se a o p ro ce sso rep ro d u tiv o entre in d iv íd u o s:
o s d e s c e n d e n te s se m p re têm a lg o d o s d o is g e n ito r e s , m as s ã o
s e m p re d ife re n te s d e c a d a u m d e le s ...
235
da modernidade vista sob a perspectiva da colonialidade.
Permitam-me repetir uma citação da página 41:
O fu m o c h e g o u a o m u n d o cristã o ju n to c o m a re v o lu ç ã o d a
R e n a sce n ça e da R efo rm a , q u a n d o a Id a d e M é d ia ruía e a é p o c a
m o d e rn a , c o m se u ra c io n a lis m o , c o m e ç a v a . P o d e r-s e -ia d iz e r
q u e a ra zã o , fam inta e apática p o r efe ito da teo log ia n e c e s sita v a ,
para reviver e lib e rla r-se , da a ju d a d e a lg u m e stim u la n te in ó c u o
q u e n ã o a em b ria gasse d e en tu siasm o e d e p o is a estu ltificasse
c o m ilusões e bestialidade, c o m o a co n tece co m as v elh a s b ebidas
a lc o ó lic a s q u e le v a m à e m b r ia g u e s . Para is s o , para a ju d a r a
ra zã o e n fe rm a , o fu m o v e io da A m é ric a . E c o m e le o c h o c o la te .
E da A b iss ín ia e d a A rá b ia , m ais o u m e n o s à m e sm a é p o c a ,
v e io o c a fé . E o c h á fe z su a en tra d a d o E x tre m o O r ie n te .
O a p a r e c im e n to c o in c id e n te d e s se s q u a tro p ro d u to s e x ó tic o s
n o V e lh o M u n d o , to d o s e le s e s tim u la n te s d o s s e n tid o s b e m
c o m o d o e s p ír ito , n ã o d e ix a d e ter se u in te re sse . É c o m o se
tiv e s s e m s id o e n v ia d o s à E u r o p a q u a n d o “ c h e g o u a h o r a ” ,
q u a n d o a q u e le c o n tin e n te estava p ro n to para salv ar d a e x tin ç ã o
a e s p iritu a lid a d e d a ra zã o e u m a v e z m ais d ar a o s s e n tid o s o
q u e lh e s era d e v id o . A E u ro p a já n ã o c o n s e g u ia s a tisfa z e r se u s
s e n tid o s c o m e s p e c ia ria s o u a ç ú c a r, q u e , a lé m d e s e re m raros,
e p o r c a u s a d e seu a lto p r e ç o , p riv ilé g io d e p o u c o s , e x c ita v a m
se m in spirar, fo r ta le c ia m sem e le v a r o e s p írito . V in h o s e lico re s
ta m b é m n ã o b a sta v a m , p o is , a p e s a r d e a lim e n ta re m o u s a d ia s e
s o n h o s , fr e q u e n te m e n te traziam d e g r a d a ç ã o e p e r tu r b a ç ã o e
n u n c a p o n d e r a ç ã o o u ju lg a m e n to a p u r a d o . O utras especiarias
e néctares fa z ia m -se necessários p a ra estim ular os sentidos e a
mente. E o dem ônio os fo rn eceu , enviando-os p a ra os torneios
m entais q ue iniciaram a era m oderna na Europa: o fu m o das
Antilhas, o chocolate do México, o café da África, e o chá da China.
A nicotina, a teobrom ina, a cafeína e a teína — esses quatro
alcalóides fo ra m postos a serviço da h u m a n id a d e p ara tornar a
razão m ais alerta ( O r tiz , [1940] 1995: 206-207, g rifo s n o s s o s).
236
A s u p o s iç ã o d e q u e o p ro b le m a d o ín d io se ja u m a q u e s tã o
é tn ic a é a lim e n ta d a p e lo m a is v e lh o c o n ju n to d e e m b u s te s
in c lu íd o n as id é ia s im p e ria lista s. A n o ç ã o d e raças in fe rio re s
aju d ou o O cid e n te bran co n o p rocessso d e con quista e e x p a n são .
C re r q u e a e m a n c ip a ç ã o d o ín d io v á e m e rg ir d e u m a m istura
ra cia l ativa é u m a id é ia in g ê n u a e a n ti-s o cia l q u e só p o d e ser
su ste n ta d a p o r u m s im p ló rio im p o rta d o r d e ca rn e iro s m e rin o s
(M a riá te g u i, U 924] 1991: 23; m in h a tra d u çã o ).
OBSERVAÇÕES FINAIS
237
escondem. Constituem também a fundação de um sistema de
valores geopolíticos, de configurações raciais e de estruturas
hierárquicas de significado e saber. Pensar a “América Latina”
de outro modo, em sua heterogeneidade e não em sua homo
geneidade, nas histórias locais dos cambiantes projetos globais
não é questionar uma forma particular de identificação (por
exemplo, a da “América Latina”), mas todas as formas de iden
tificação no sistema mundial colonial/moderno. Essas são
precisamente as formas de identificação que contribuem para
a reprodução do imaginário do sistema mundial colonial/
moderno e para a colonialidade de poder e conhecimento
implícita na articulação geopolítica do mundo.
No próximo capítulo, exploro questões semelhantes, mas
focalizo a estrutura do conhecimento em relação à ordem
geopolítica mundial. Quais são as relações, em outras palavras,
entre os locais geográficos e a produção do conhecimento?
Essa será a questão dominante no próximo capítulo. É por
isso que desmontei a imagem de América Latina imposta pelo
imaginário imperial, assumida, como se fosse deles, por certos
intelectuais da América Latina.
238
C A P Í T U L O IV
2 38
OS ESTUDOS SUBALTERNOS SÃO
PÓS-MODERNOS OU PÓS-COLONIAIS?
AS POLÍTICAS E SENSIBILIDADES DOS LUGARES GEOISTÓRICOS
Os cinco volumes de Estudos Subalternos representam uma
formidável realização em produção histórica. Constituem um
convite a repensar a relação entre a história e a antropologia em
uma perspectiva que desloca a posição central do antropólogo ou
historiador europeu como sujeito do discurso e a sociedade indígena
como seu objeto. Isso não significa uma rejeição das categorias
ocidentais, mas sinaliza o início de uma nova e autônoma relação
com elas. Como Gayatri Spivak vem freqüentemente observando,
negar que escrevemos como povos cuja consciência foi formada
como sujeitos coloniais é negar a nossa história. Contudo, a
consciência de nós mesmos como sujeitos coloniais é ela mesma
alterada por nossa própria experiência epelas relações que
estabelecemos com nossas tradições intelectuais
(Das, 1989: 310, grifos nossos).
2 40
franceses, estudos culturais britânicos ou a teoria crítica da
Escola de Frankfurt e ainda hoje mantêm essa posição. Assim ,
há algo além do fato de que as teorias viajam ou são transcul
turadas e que há pessoas nos lugares onde as teorias são
recebidas que suspeitam dessas viagens. As perguntas serão,
portanto, quem as espera ou convida? Q ual função ou papel
representou a teoria X no lugar onde ap areceu , e qual a
fun ção ou papel que tal teoria representou no lugar para onde
viajou ou foi exportada? O problem a é, em resumo: Q u al a
relação entre o local geoistórico e a produção do saber? Q uais
são as histórias locais desses agentes e teorias? E a pergunta
está sendo feita aqui, no contexto geoistórico da modernidade/
colonialidade, ou na sede da epistemologia no sistema mundial
m oderno, o que dá na mesma. Mas a questão arma o palco,
também, para uma resposta dada em uma perspectiva liminar.
Assim sendo, a resposta poderia ser que as teorias realmente
viajam e são tran scu ltu rad as. T ornam -se o b je to s. M as o
“pensam ento” viaja? O “pensam ento” liminar (não a teoria) é
a questão; “p en sar” em um a perspectiva lim inar torna-se,
então, a questão central — quer as teorias viajem quer não.
(Sobre “teorias itinerantes”, ver Coronil, 1995: xxxvi ff., e sua
elaboração de acordo com Said, 1983: 223-224, e Clifford,
1989: 177-188.)
As teorias certamente viajam , e em todas as direções, da
esquerda, da direita e do centro. Com o são relatadas quando
viajam pela diferença colonial? Estão apenas sendo repetidas
num novo cenário ou nesse novo cenário esbarram em seus
limites? Este livro responde sim à segunda pergunta, pois o
ponto de chegada é contam inado pela diferença colonial.
Tenho argum entado, e continuarei a fazê-lo, que é a partir da
diferença colonial que as epistem ologias estão em ergindo.
D esenvolvi esse argum ento no fim do Capítulo I, fazendo
K hatibi dialogar com D errida. A crescento aqui um novo
exem plo, La crise des intellectuels arabes, de Larui (1974). Larui
hospedou diversas teorias itinerantes, que atravessaram o
M editerrâneo. Algum as eram liberais e viajavam pelo tem po,
partindo do Ilum inism o europeu. Outras eram marxistas e
viajavam a partir do passado e do presente. E outras não
estavam viajando — eram teorias que haviam ficado em casa
e que estavam enraizadas, não em um território geográfico
específico, mas na língua árabe. As teorias itinerantes viajavam
241
do norte para o sul. As línguas de que se vestiam para viajar
eram as línguas coloniais, principalm ente francês e alem ão.
Q u ando isso acontece, há várias possibilidades. Uma é forçar
a adaptação da teoria que chega, da direita ou da esquerda,
e propor civilização, m odernização e desenvolvim ento ou
propor resistência, revolução e transformação social radical.
Outra possibilidade, provocada pelo mal-estar das teorias que
se deixaram ficar em casa enraizadas na língua árabe, é fechar
as portas e os olhos e propor uma defesa da habitação que
enfrente o “p erigo ” trazido pelos viajantes. Outra ainda é
pensar, criticam ente, na interseção da habitação e dos novos
viajantes, da direita e da esquerda, e exam inar criticamente a
todas. Isto é, pensar a partir das margens implica produzir uma
epistem ologia qu e, nas palavras de um dos entusiasm ados
com entadores de Larui (1974), (Djait [1980] 1990: 195-205),
nem reproduz os lim ites do m arxism o além da diferença
co lo n ial, nem reproduz os limites da defesa árabe da tradição,
uma tradição criada, precisam ente, pela diferença colonial. A
alternativa é uma dupla crítica, tanto dos viajantes quanto
dos residentes: de viajantes e residentes em posições h ege
m ônicas na perspectiva de viajantes e residentes em posições
subalternas. Tais são, basicam ente, as condições históricas
do p ensam ento lim inar ou das ep istem o lo gias lim inares,
em ergindo de uma perspectiva crítica sobre a colonialidade
do poder e a diferença colonial.
VIAGEM AO SUBSOLO
242
Dussel intitulava-se “Para una funclamentación filosófica de
la liberación latino-americana” e foi proferida na Universidade
de Salvador, uma universidade católica de Buenos Aires. A
outra contribuição foi do filósofo argentino D aniel G uillot
sobre a evolução do pensam ento de Em m anuel Levinas. O
livro foi publicado em 1975 por Editorial B O N U M , uma obs
cura editora de B u e n o s A ires. Em 1994, S ig lo V ein tiu n o
Editores, uma das duas editoras em língua espanhola mais
importantes do m undo, com filiais na Espanha, Buenos Aires,
C olôm bia e outros lugares, publicou Debate en torno a la
ética dei discurso de Apel. Diálogo filosófico Norte-Sur desde
Am érica Latina. Enrique Dussel organizou o livro e contri
buiu com um artigo fundam ental sobre “La razón dei otro: la
‘interpelación’ como acto-de-habla”. Essa editora tinha também
uma franca inclinação esquerdista. Os temas e preocupações eram
os mesmos que encontramos na conferência de 1971, publicada
em 1975, embora houvesse algumas alterações importantes.
Em 1971, com eçando com Levinas, e a partir dele, Dussel
considerava que a totalidade era com posta do “m esm o” e do
“outro”. D ussel denom inava essa totalidade (formada pelo
“m esm o” e pelo “outro”) de “o M esm o”. Logo veremos por
quê. D o lado de fora da totalidade ficava o domínio do “outro”.
A diferença em espanhol exprimia-se através do contraste entre
“ /o otro”, que é a categoria com plem entar de “o m esm o” e el
otro relegado ao dom ínio exterior ao sistema. Sinto-me hoje
tentado a traduzir essa visão com o subalternidades “interiores”
e “exteriores” . Social e ontologicam ente, a exterioridade é o
dom ínio dos estrangeiros sem teto, desem pregados, ilegais,
excluídos da edu cação, da econom ia e das leis que regulam
o sistema. M etafisicam ente, “o outro” é — na perspectiva da
totalidade e do “m esm o” — o im pensável que D ussel nos
incita a pensar. “A filosofia na América Latina, e esta é uma
primeira conclu são, deveria com eçar por fazer uma crítica da
Totalidade enquanto totalidade.” (1975: 21). Essa co ncep ção
é útil no sentido em que a diferença entre subalternidades
interiores e exteriores estrutura-se em termos legais e eco n ô
m icos. Assim, trata-se na verdade de uma diferença de classe.
Entretanto, a diferença não é justificada em termos de classe,
mas em termos de etnia, gênero, sexualidade e, algumas vezes,
nacionalidade (isto é, se acontece que a nacionalidade em
questão seja “contra” os ideais dem ocráticos e nacionalistas
243
ocidentais. Ninguém é excluído porque ele ou ela é pobre.
Empobrece porque foi excluído. Por outro lado, essa diferença
nos permite com preender que gênero e diferenças étnicas e
sexuais poderíam ser absorvidos pelo sistema e situados na
esfera da subalternidade interior. Isso é visível hoje nos Estados
Unidos na medida em que afro-am ericanos, m ulheres, hispâ
nicos e hom ossexuais (embora com diferenças sensíveis entre
esses grupos) vão send o aceitos dentro do sistem a co m o
lo otro, com plem ento da totalidade controlada pelo “m esm o”.
Fora o fato de que, para desenvolver seu argumento, Dussel
usou algum as metáforas discutíveis, baseadas na estrutura
da fam ília cristã, ele também enfatizou dim ensões históricas
muito importantes:
244
passo que todas as outras unidades geopolíticas podem fazê-lo,
em bora essa linha de argum entação não seja convincente.
Dessa argum entação, eu gostaria de conservar o confronto
de Dussel com o m arxismo no sistema mundial m oderno e
tam bém na Am érica Latina.
245
“vontade de poder”, com a qual Dussel contrasta a “vontade
dom inada” . C o n clu in d o , diz:
2 46
mais nada, a visão de Dussel sobre o m arxismo com o algo
entranhado no pensamento moderno {elpensar moderno) e não
estranho a ele foi há pouco retomada por outros (Im m anuel
Wallerstein recentem ente o fez em suas discussões sobre a
geocultura do sistema mundial m oderno [1991a: 84-971). Mas
não é só isso, nem é esse talvez o aspecto mais interessante
da p o siçã o de D u ssel. D e m aior interesse para a argu m en
tação deste capítulo é o fato de que coincide com as posições
defendidas pelo intelectual e militante aimará Fausto Reinaga.
Com que base Dussel defende seu argumento? Minha intuição
é que ele tem a ver com sua visão da geopolítica do cristia
nism o. Explico-m e.
Em primeiro lugar, ele oferece um argumento proclam ando
uma “filosofia da libertação” com o uma proposta da e para a
Am érica Latina. Essa form ulação simplista pode hoje não ter
tantos defensores com o possivelm ente teve nos anos 70.
C o n tu d o , acredito que o argum ento m erece ser revisitado
precisam ente no contexto da geopolítica do cristianismo, vista
por D u ss e l, e de m eu p ró p rio p en sam en to sobre a articu
laçã o entre as histórias locais, da(s) diferença(s) colonial(is)
e projetos globais. Im agino que os esquerdistas concordariam
que os projetos globais im plem entados por W ashington ou,
em anos anteriores, por Moscou, foram na verdade novas formas
de co lo n ialid ad e do poder e, da perspectiva das histórias
locais, não deveríam ser toleradas. Mais adiante neste capí
tulo verem os um a posição próxim a dessa form ulação defen
dida por N elly Richard, no Chile. Por outro lado, existe um
argum ento q u e , em outro nível, atua num sentido diverso:
a situação é diferente quando os projetos globais partem da
vanguarda intelectual ocidental e não de Estados “estrangeiros”.
Na introdução a este livro e na introdução a este capítulo já
dei um exem p lo, invocando as reações à im portação/expor-
tação de estudos culturais e da fala pós-colonial. D e uma
perspectiva cosm opolitana (e, evidentem ente, da perspectiva
dos projetos globais), os argumentos contra a exportação/
im portação de estudos culturais ou das discussões pós-colo-
niais para a Am érica Latina correm o risco de essencialism o,
d e fe n d e n d o lo ca lism o , autenticid ade etc. Na perspectiva
reg io n a l, a situação parecería diferente: uma forma de co lo
nização por um Estado “estrangeiro” ou por um projeto inte
lectual cosm opolitano “estrangeiro”.
247
Mas não é precisam ente isso que Dussel tinha em mente
quando propôs a filosofia da libertação com o um projeto da
história local, a partir da m em ória dessa história. D ussel
com parou o projeto de Herbert Marcuse nos Estados Unidos
com a filosofia da libertação na Am érica Latina. Observou
que as necessidades de uma sociedade próspera e o m odelo
para satisfazê-las seriam diferentes das necessidades de uma
sociedade empobrecida e do modelo para preenchê-las. Também
insistiu sobre as diferenças entre a filosofia da libertação na
Europa ou nos Estados Unidos e na América Latina, as classes
trabalhadoras no “centro” e na “periferia”, o salário-hora de
um alem ão pobre e o de um boliviano pobre ([19731 1976:
164-170). Em uma perspectiva geopolítica planetária, Dussel
identificou os Estados U nidos, a Europa e a União Soviética
com o as três únicas regiões desenvolvidas e industrializadas
em 1971. A América Latina, o M undo Islâm ico, a África Negra,
o Sudeste Asiático, a índia e a China foram consideradas áreas
subdesenvolvidas. H oje as coisas estão m udadas e, no C a p í
tulo V II, discuto a nova ordem mundial proposta por Sam uel
H untington (1996). Contudo, a particularidade da Am érica
Latina nessa ordem geopolítica continua a existir. A América
Latina, segundo Dussel, é a única unidade geopolítica pós-cristã
entre os países su b d e se n v o lv id o s. C o n se q ü e n te m en te, o
futuro da Am érica Latina não pode ser projetado sem levar
seriam ente em consideração a herança de um “cristianismo
co lo n ia l” (1973: 143). Essa é uma das razões — que Dussel
explora muito detalhadam ente — pela qual o marxismo não
se adapta à Am érica Latina. A outra é a herança ameríndia.
Embora Dussel não tenha explorado a história da cultura am e
ríndia com a mesma m inúcia com que explorou a história do
cristianismo da ép o ca, a escravidão ameríndia e negra são
sempre mencionadas com o el otro ou com o o subalterno exte
rior no processo da colonização. No volum e 2 de Cam inos cie
la liberación latinoamericana Dussel descreve, num parágrafo,
o arcabouço histórico geral de sua investigação teórica:
248
existiam na Europa, instalou-se a inflação galopante. Dentro
de um século muitos empobreciam porque dez peças de prata
passaram a valer apenas uma. O s árabes, sem perder coisa
alguma naquele século, empobreceram porque a quantidade
de ouro e prata que chegava à bacia do Mediterrâneo era tal
que seu valor caiu extremamente. Sua decadência tornou-se
evidente na batalha de Lepanto, que marcou o início do desa
parecimento dos turcos, não porque fossem menos valentes,
mas porque a inflação os estava aniquilando. Para comprar
um navio de guerra ou pagar um exército tinham que gastar o
dobro ou mais. Mas os turcos já não tinham ouro ou prata, ao
passo que os espanhóis, e, aos poucos, os genoveses e vene-
zianos, conseguiam pagar em moeda sonante. Conquistaram o
Atlântico que se tornou então o novo centro. No Atlântico Norte
estão a Rússia, os Estados Unidos, devendo acrescentar-se
também a Europa, o Japão e o Canadá. Esse é o centro e tudo
o mais é periferia (Dussel, [19731 1976: 8).
249
leitura, de um espaço que não tinha sido e não poderia ter
sido pensado em uma perspectiva ocidental. Reinaga preenche
o “im pensável” da história ameríndia com a realidade utópica
de uma sociedade construída sobre o m odelo da sociedade
am eríndia. Para D u ssel, o “im p en sável” torna-se o outro
exterior (el otro) mais que lo otro interior ao sistema. Então,
na perspectiva do sistema mundial colonial/m oderno e de
seu próprio im agin ário, m esm o qu an d o esse im aginário
constitui uma crítica à dominação (caso de Marx e do marxismo
na A m érica Latina, discu tido tanto por D ussel co m o por
Reinaga), a subalternidade radical é o espaço do “impensável”.
Encerro esta seção evocando as perspectivas marxistas na
Am érica Latina e confrontando-as com a diferença colonial,
questão que não integrava a perspectiva marxista até recen
tem ente, quando intelectuais com o Rivera Cusicanqui e, antes
dela, Anibal Q uijano, Rodolfo Stavenhagen e Pablo G onzález
Casanova levantaram a questão em termos de colonialism o
interno e da colonialidade do poder. A diferença colonial não
foi ainda percebida por intelectuais marxistas críticos com o
Jo s é Aricó e Ju a n Carlos Portantiero em suas análises de Marx
e Gram sci na América Latina. Dessa vez, o ponto de vista é
incorporado pelos próprios marxistas respondendo a críticas
a Marx com o pensador eurocêntrico, debate que, com igual
facilidade, poderia ser localizado nos anos 70, quando Dussel
e Reinaga estavam desenvolvendo os argum entos que acabo
de resumir. Nesse terreno, Jo sé Aricó foi um pensador-chave.
Seu livro M arx e a Am érica Latina (1980), com plem entado
por seu livro sobre Antonio Gramsci (1988) e pelo livro de Juan
Carlos Portantiero sobre Gram sci (1977) são textos cruciais
sobre o assunto. Esses três livros são, na verdade, parte do
cânone e do pensam ento esquerdista dom inante entre 1970 e
1990, não apenas na Argentina, mas na Am érica Latina, um
período que inclui o exílio e a volta dos intelectuais argentinos.
Carlos Franco, na introdução ao livro de Aricó sobre Marx
(1980: 9) descreve o âm ago do problem a co m o “el desen-
cuentro de Am érica Latina y el m arxism o”. Esse problem a já
viera à tona com Ju a n Carlos M ariátequi q u an d o tentou
acom od ar, dentro do marxism o, a questão ameríndia, com o
já expliquei no Capítulo III (ver também Q u ijano, 1981). O
rigor analítico e a cuidadosa reflexão de Aricó levam -no a
perguntar o que significa ser marxista na Am érica Latina. Sua
2 50
pergunta sobre a relação entre locais geopolíticos e a produção
do conhecimento é, realmente, uma questão sobre a interseção
de histórias locais e projetos globais. O cuidadoso exam e
feito por Aricó do texto de Marx sobre as Am éricas, a índia e
a Irlanda justifica os limites denunciados por Dussel e Reinaga,
mas ao mesmo tempo conserva as contribuições fundamentais
de Marx em sua análise da lógica do capitalism o. As mesmas
preocupações seriam, mais tarde, verbalizadas por sociológos
e antropólogos andinos com o Rivera Cusicanqui e Xavier Albó
(que com entarei posteriorm ente), sublinhando as tensões
entre classe e etnicidade nos Andes.
Aricó na realidade forneceu dois argumentos incisivos e
análises esclarecedoras para explicar a discrepância entre a
Am érica Latina e o m arxismo, nas quais se aproxim a da dife
rença colonial. Em primeiro lugar, entendeu o problema dessa
discrepância, que estava sendo discutida em nível político,
com o uma questão teórica. Em segundo lugar, Aricó identifica
nos escritos de Marx a “origem ” da discrepância e, conse-
qüen tem ente, sugere que o problem a p ode não estar no
m arxism o (ou em qualquer de suas versões), mas na própria
escrita de Marx. Resumo o segundo ponto, que é mais estrita
mente relacionado com minha discussão nesta altura e neste
capítu lo. A “o rigem ” da discrepância, se interpreto Aricó
corretam ente, localiza-se na tensão não resolvida no pensa
m ento de Marx entre categorias analíticas e geopolíticas. Aricó
trata aqui desta questão fundamental: por que Marx perm a
neceu cego em relação à América Latina? Por que não só não
entendeu a postura de Bolívar e celebrou a expansão dos
Estados Unidos em direção à América Latina, mas também
não concedeu às Américas em geral (e à Am érica Latina em
particular) a mesma atenção que dedicou à África e à Ásia?
Por que as coisas se passaram assim, quando, na Europa, as
discussões sobre a natureza da América, provocadas por Buffon
e 1’Abbé Reinald no século 18 e por Hum boldt no início do
século 19, foram tão salientes? Poder-se-ia iniciar uma resposta
pelo papel secundário que H egel atribuiu às Américas em
suas lições sobre a história universal: um futuro promissor,
mas ausente do passado e do presente. Mas sobretudo, sugere
Aricó, a Am érica Latina era im pensável no horizonte colonial
da m odernidade. No século 18, a parte latina e fortemente
am eríndia das Américas era claramente concebida não com o
251
el otro (ou o outro radical com o Dussel observou), mas com o
as “m argens” do m esm o. Aricó (1980) chamará essa posição
marginal de “exterioridade”.
2 52
nascente de modernidade o fato de que os impérios espanhóis
e portugueses criaram as condições para a própria emergência
do Ilum inism o europeu. A outra foi contem porânea de Marx
e envolvia a atenção concentrada recebida pela Ásia e pela
África em razão da ascensão da Inglaterra com o uma das prin
cipais nações do m undo colonial/m oderno. Se no século 18
a Am érica foi considerada com o filha e herdeira da Europa,
esse futuro promissor só se fez visível na “A n g lo ”-Am érica.
C om o conseqüência de seu passado colonial nas mãos de
um im pério em decadência, a Am érica “Latina” sofreu uma
segunda subalternização no imaginário do m undo colonial/
m oderno. Pode-se então dizer que mesmo sendo Marx, então
com o agora, fonte e fundam ento da crítica interna ao capita
lism o, foi para ele muito difícil, senão im possível, perceber a
d iferen ça co lo n ia l e, portanto, a co lo n ia lid a d e do poder.
A questão é se, com o pré-condição de sua “inteligibilidade”,
a d ifere n ça c o lo n ia l e x ig e a e x p e riê n cia c o lo n ia l em vez
de descrições e explicações socioistóricas do colonialism o.
Suspeito que esse seja o caso e, se for, é também a condição
para a diversidade epistem ológica com o projeto universal,
ou para a “diversalidade”, com o diz Glissant. (Voltarei ao
ponto nos Capítulos VI e VII.) Creio que os estudos subalternos
latino-americanos terão, em algum momento, de lidar com essas
questões, tanto em termos do marxismo com o da Am érica
Latina, em relação à área de estudos latino-am ericanos e à
geop o lítica do poder, com o sugeri na seção anterior. Nas
páginas que se seguem , discuto alguns problemas específicos
da política do saber e da geopolítica da colonialidade do
poder. O leitor particularmente interessado nos estudos subal
ternos sobre a Am érica Latina deveria comparar a genealogia
das reflexões teóricas e políticas na América Latina com a
genealogia do G rupo de Estudos Subalternos Latino-Am eri
canos na Anglo-Am érica (Beverley, 1996).
A A D A P T A Ç Ã O E H O S P E D A G E M D E T E O R IA S
IT IN E R A N T E S N O / D O T E R C E IR O M U N D O
As teorias itinerantes vindas do sul têm a diferença colonial
inscrita em sua bagagem , com o já vimos no caso de Darcy
Ribeiro. D esde o início dos anos 90 o G ru p o de Estudos
Subalternos do Sul da Ásia tem causado um impacto signifi
cativo entre os Latino-Americanistas dos Estados Unidos e os
253
r
intelectuais e cientistas sociais da América Latina. Organizarei
os seguintes comentários sobre três experiências diferentes e
inter-relacionadas. Primeiro, a constituição do Grupo de Estudos
Subalternos Latino-Americanos, a publicação de “Founding
Statement” (Beverley, O viedo e Aronna, [19931 1995; para a
história da constituição do grupo, ver Beverley, 1996), e o
volum e especial de Dispositio/n 46; segundo, um influente
artigo da historiadora e latino-americanista Florencia M allon
(1994) e seu livro sobre cam poneses e a nação no M éxico e
no Peru do século 19 (1995); e, terceiro, uma introdução aos
estudos subalternos publicada na Bolívia e organizada pela
socióloga Silvia Rivera Cusicanqui e pela historiadora Rossana
Barragán (1997). Esse volume contém traduções de uma dúzia
de artigos nucleares da autoria de m em bros do G ru p o de
Estudos Subalternos do Sul da Ásia, além de uma introdução
feita pelos organizadores.
Esses três casos revelam uma rede de conexões e hierar
quias na proporção entre a produção do saber e os locais
geoistóricos. Insisto que, quando digo local geoistórico, não
estou falando apenas de um lugar geográfico específico, mas
de um lugar geográfico com uma história local particular: La
Paz, ou Bolívia, não é W isconsin ou Pittsburgh. Em La Paz, o
esp anh ol, o aimará e o quíchua tornam -se indispensáveis
para a com preensão tanto das histórias coloniais com o das
nacionais, ou a colonialidade do poder na história colonial e
nacional da Bolívia. Rivera Cusicanqui e Barragán traduziram
do inglês para o espanhol artigos de membros do G ru po de
Estudos Subalternos da Ásia do Sul, e o Grupo de Estudos
Subalternos Latino-Am ericanos e M allon p u blicaram seus
trabalhos em inglês. Para o Grupo de Estudos Subalternos da
Ásia do Sul o inglês é como o espanhol para Rivera Cusicanqui
e Barragán, conform e demonstra o paralelo entre a “índia
Britânica” e a “América Espanhola”. Contudo, não antevejo
uma tradução para o inglês dos trabalhos dos intelectuais
bolivianos. Por que não? Evidentemente, o espanhol e o inglês
i não têm hoje a mesma influência e poder no domínio do conhe
cimento (para uma discussão mais detalhada desse tema, ver
Capítulos V e VI). Se na verdade as teorias viajam e sofrem
transculturação, é primeiro necessário especificar, historica
m ente, de onde partem e para onde vão, com o viajam , com o
i chegam à transculturação, bem com o a linguagem na qual as
254
teorias itinerantes são fabricadas, acondicionadas e transcul-
turadas. A colonialidade do poder e a diferença colonial são
os “desconfortos” inevitáveis da viagem .
Para com eçar, o G ru p o de Estudos Subalternos Latino-
Am ericanos consiste principalm ente de críticos literários e
culturais, embora inclua um historiador, um antropólogo e
um cientista político. D e qualquer forma, a historiografia com
form ação disciplinar nunca foi uma questão crucial na “adap
tação” dos Estudos Subalternos do Sul da Ásia para os Latino-
Am ericanos. A se julgar por Beverley e pela introdução de
O v ie d o e Aronna ([19931 1995) a um volum e dedicado ao
pós-m odernism o na Am érica Latina, a questão na América
Latina foi na verdade o pós-modernismo e não o nacionalismo
p ós-colon ial, com o no caso da índia. E se considerarm os a
narrativa pessoal de Beverley sobre o nascim ento do grupo,
a principal questão disciplinar situava-se entre os estudos
culturais e os subalternos. Para Beverley (1996), a institucio
nalização dos Estudos Culturais nos Estados Unidos levou-o
a inclinar-se para os estudos subalternos, onde encontrou
uma ligação mais satisfatória entre a pesquisa acadêm ica e a
política do conhecim ento. Entretanto, o interesse de Florencia
M allon volta-se para a historiografia enquanto discip lina.
Sente-se aí mais à vontade com o historiadora, pois o G rupo
de Estudos Subalternos do Sul da Ásia não apenas consiste
sobretudo de historiadores com o também inclui um grupo de
historiadores unidos pela preocupação de escrever a história
da índia em uma perspectiva pós-colonial e subalterna. Tam
bém com o historiadora, M allon (1994) vê com desconfiança
o fato de que um grupo de latino-americanistas nos Estados
U nidos, com form ação principalm ente em crítica literária e
cultural, está se apropriando da contribuição do G ru po do
Sul da Ásia. O que o G rupo Latino-Am ericano e M allon têm
em com um foi terem visto o G rupo do Sul da Ásia com o uma
re v e la ç ã o . Para o G ru p o L a tin o -A m e rica n o , a rev e la çã o
resolveu o problem a apresentado pela crise da esquerda após
1989 e também ofereceu uma nova perspectiva para examinar
o significado das três principais revoluções latino-americanas
do século 20 (Castro em Cuba, os Sandinistas na Nicarágua,
e a R evolução M exicana no início do século 20). Para M allon,
a revelação ofereceu, em vez disso, um novo ponto de partida
para a historiografia da Am érica Latina nos Estados U nidos.
255
A coleção organizada por Rivera Cusicanqui e Barragán
traz para o primeiro plano uma dim ensão totalmente nova.
Para Rivera C u sican qu i e Barragán, o G ru p o de Estudos
Subalternos do Sul da Ásia foi mais do que uma “revelação” e
uma solução para um beco sem saída. Revelou, na verdade, a
íntima relação entre as preocupações do grupo e as suas pró
prias, o grande número de interesses com uns entre o que
estava escrevendo e pensando desde 1982 e o que os estudiosos
b o liv ia n o s estavam fa z e n d o , m ais ou m enos ao m esm o
tem po, sem conhecim ento mútuo entre os dois grupos. Essa
foi uma “revelação” posterior aos fatos. Suspeito que, nesse
caso, as teorias itinerantes poderíam ter viajado em duas
direções. Contudo, o inglês tem prioridade no m ercado e,
nas agências turísticas, acesso a viagem mais rápida e de
primeira classe. Foi um encontro feliz que produziu a p u bli
cação de Rivera Cusicanqui e de Barragán e foi possibilitado
pelo fato de que, vários anos antes da publicação, as duas
organizadoras tinham estado em contato com o G rupo de
Estudos Subalternos do Sul da Ásia e participado de uma
o ficin a na ín d ia , ao m esm o tem po em que esp e cia lista s
in d ian o s (entre os quais Amin) visitaram a Bolívia. Assim
com o as teorias, os estudiosos e intelectuais também viajam .
E relacionam -se de m odo diferente com os temas à m ão. Não
estou sugerindo que seja “ruim” ser um pesquisador indiano
ou latino-am ericano nos Estados U nidos, ou que seja “ruim”
ser um pesquisador do Terceiro M undo, inventando teoria
pós-colonial nos Estados Unidos, ou que seja “bom ” perm a
necer na índia ou na Bolívia e escrever em hindi ou espanhol
ou aimará. Só estou dizendo que a produção do conhecim ento
é inseparável das sensibilidades do local geoistórico e que
os locais históricos, no m undo co lo n ial/m o d ern o , foram
m oldados pela colonialidade do poder. A pesquisa, as teorias
itinerantes, os acad êm ico s sedentários e os errantes, no
Primeiro ou no Terceiro M undo, não podem evitar as marcas
inscritas em seus corpos pela colonialidade do poder que,
em última análise, orientam sua reflexão. É a colonialidade
do poder que exige “reflexão” no e sobre o sistema mundial
colonial/m oderno. E, nesse sentido, a “reflexão” não viaja,
mas atua na interseção de memórias e informação, de decisões
passadas, acontecim entos atuais e esperanças utópicas.
256
A tradução organizada por Rivera Cusicanqui e Barragán
intitulada “Postcolonial D eb ates” levou a contribuição do
G ru p o de Estudos Subalternos do Sul da Ásia numa direção
diferente da anunciada por Beverley, O vied o e Aronna ([ 19931
1995) em sua introdução: “Há algo na própria idéia de um
pós-m odernism o latino-am ericano que faz pensar naquela
con dição de dependência colonial ou neocolonial, na qual
os bens que se tornaram batidos ou fora de m oda na metró
pole são, com o as maravilhas dos ciganos de Cem anos de
solidão , exportados para a periferia , onde gozam de uma
sobrevid a lu cra tiv a .” (1995: 1, grifos nossos). Apesar da
form u lação cau telo sa, o fato é q u e, para B everley, uma
contribuição do G ru po de Estudos Subalternos Latino-Am e
ricanos foi introduzir a dim ensão pós-m oderna nos estudos
subalternos. No entender de Rivera Cusicanqui e Barragán,
entretanto, a questão pós-colonial continua sendo crucial para
os estudos subalternos. Daí o título de meu capítulo. Assim, meu
argum ento aqui é uma continuação da discussão sobre o pós-
m oderno e sobre o p ó s-co lo n ial, introduzida no Capítulo I
e, ao m esm o tem po, um prolongam ento da discussão sobre
a história intelectual da América Latina, esquem atizada no
C apítu lo II. Resum indo, o debate pós-m oderno na Am érica
Latina predom inou nos países da costa do Atlântico (tendo
a B ah ia, no Brasil, com o e x ce ç ã o ), com baixa presença
dem ográfica de população ameríndia e afro-americana. Em vez
disso, a questão pós-colonial está centrada em países com
um a densa p o p u lação am eríndia (B olívia, Peru, Equador,
G uatem ala, M éxico) bem com o no Caribe inglês e francês
(Lanim ing, G lissan t).
Passemos agora aos argumentos de Florencia M allon. Com o
pesquisadora latino-am ericana nos Estados U nidos, M allon
endossou entusiasticam ente o “m odelo” dos Estudos Subal
ternos do Sul da Ásia.
Logo no início de sua contribuição para um número espe
cial da A m erican Historical Review, M allon declara que “nós
latino-am ericanistas, muitas vezes eurocêntricos nos em prés
timos que tomamos a outras tradições históricas e teóricas,
neste caso tom am os co m o m o d elo uma escola nascida e
criada em outra parte do cham ado Terceiro M undo. O que
está h aven do?” (1994: 1493). Em cautelosa nota no pé de
página, M allon alerta o leitor para o fato de que não é essa a
257
primeira vez que ocorre um diálogo “de-sul-a-sul”. Cita diversos
exem plos para indicar que, no cam po específico dos “estudos
cam poneses” e da “diáspora africana”, tem havido diálogo
entre os pesquisadores que estudam a América Latina e os
que estudam o sul da Ásia e a África. Mas onde estavam esses
pesquisadores, no sul ou no norte? M allon termina a nota
observando que, apesar desses exem plos, “o mais importante
continua sendo que, com o cam po de estudo, a história latino-
am ericana vem tendendo a se relacionar mais prontamente
com tradições históricas e teóricas baseadas na Europa. Nesse
sentido, evidentemente, assemelha-se bastante a outros campos
históricos, incluindo os baseados na Europa ou nos Estados
U nidos, na verdade muito menos fam iliarizados com a dife
rença ‘sul-norte’ do que os pesquisadores que trabalham com
as áreas do cham ado Terceiro M undo” (1994: 1492).
O que está realmente em jogo na afirmação de Mallon refe
rente ao diálogo “do sul com o sul” e do “sul com o norte”
entre os pesquisadores que trabalham no e sobre o “cham ado
Terceiro M u ndo ”? Há aqui duas questões muito intrigantes.
(1) Por que M allon silencia sobre o diálogo entre os pesqui
sadores “norte-am ericanos”, para os quais a América Latina
constitui um cam po de estudo, e os pesquisadores e intelec
tuais “sul-americanos”, para os quais a América Latina constitui
não apenas um cam po de estudo mas um lugar de luta histó
rica e política? (2) Será que M allon está presum indo que a
Am érica Latina é apenas um lugar a ser estudado e não um
local de reflexão teórica e, desse m odo, está reformulando, no
vocabulário dos estudos subalternos, a ideologia dos estudos
de área? (M ignolo, 1993a).
Há outra questão difícil a tratar: as crescentes tensões entre
um m undo transnacional, interligado e em expansão, co exis
tindo com a destrutividade de sensibilidades e ideologias
nacionais e étnicas. Por um lado é, pois, aconselhável buscar
alianças transnacionais e construir co m u n id ad es interna
cion ais que transcendam as deficiências do nacionalism o. Por
outro lado, a ação em nível transnacional poderia redundar
numa exigência abstrata de justiça, que não leva em conside
ração interesses e necessidades regionais (uma celebração
de teorias itinerantes e uma reprodução da subalternização
do conhecim ento). Essas são, em resum o, as duas posições
descritas por Arjun Appadurai (1996) e Partha Chatterjee
2 58
(1997). Mas sào também as duas posições assumidas im edia
tamente pelos “zapatistas”: o transnacionalismo com o forma de
fortalecim ento para o confronto com o Estado, e o naciona
lismo com o m odo de oposição ã globalização (Subcomandante
M arcos, 1997b). Embora o local não seja necessariam ente o
nacional, as tensões entre o nacional e o transnacional, no nível
geoistórico, parecem espelhar as exigências entre o episte-
m ológico e o em ocional no nível subjetivo na/da consciência
subalterna (Sarkar, 1989; Bhadra, 1989). Nesse ponto, faz-se
necessária uma correção de M ax Weber. Segundo Weber, para
se explicarem ações sociais, o indivíduo tinha de ser levado
em consideração, pois, conform e sua co n cep ção , o indivíduo
só era im pulsionado por ações racionais. O s estudos subal
ternos introduziram o nível de ações afetivas como um tipo
diferente de racionalidade. Assim, o dilema nacional/transna
cional poderia ser form ulado num paradigma diferente, mas
precisa ser rearticulado com o uma das distinções epistem o-
lógicas feitas pela razão moderna entre a racionalidade e a
sensibilidade (Das, 1989: 317; Q uijano, 1992).
M inha discussão sobre a política e as sensibilidades de
locais geoculturais leva em consideração as urgências do
nacional e do transnacional bem com o as tensões entre a
“racionalidade da razão” e a “racionalidade de emoções e sensi
bilidades”. Minha principal tese aqui é que, se os estudos
subalternos nas/das Américas pudessem m odelar seu próprio
espaço e sobreviver, teriam, prim eiro, de descarrilar a suhal-
ternização de culturas de conhecim ento acadêm ico efetivada
pelo orientalismo, e, em segundo lugar, os estudos (de área)
latino-americanos. Relevantes para o argumento que se segue
são duas observações importantes feitas por Das (1989): que
“subalterno” não constitui uma categoria, mas sim uma pers
pectiva. E que a perspectiva subalterna não está em penhada
em compreender tais e tais organizações ou ações sociais per se,
mas em entender suas relações “contratuais” em obediência a
regras coloniais e “as formas de dom inação próprias das estru
turas da m odernidade” (1989: 313). Assim colocada, a atual
versão dos estudos subalternos da América Latina está dentro
do arcabouço delineado por Darcy Ribeiro (ver a epígrafe a
este capítulo), com sua visão da colonização com o uma subal-
ternização de povos e culturas. Já que uma das principais preo
cupações dos estudos subalternos enquanto perspectiva é
259
contrapor-se à m odernidade e demonstrar a idéia de que a
m odernidade é um fenôm eno europeu, o pós-m oderno e o
pós-colonial estão realmente associados a essa presunção.
Em vez disso, concebe-se com o um fenôm eno planetário,
“além do eurocentrism o”, uma perspectiva “transmoderna” do
tipo proposto por Dussel ([19931 1995). “Dessa perspectiva — a
“adoção” dos estudos subalternos do sul da Ásia pelos estudos
latino-am ericanos — duas questões apresentam -se com o
cruciais: as diferenças entre a história colonial indiana (durante
o colonialism o britânico) e a história colonial das Américas
(Latina/Anglo-América e o Caribe) incluindo sucessivas heranças
coloniais e imperiais; e as diferenças entre a índia, um pa ís
com 800 m ilhões de habitantes, e a América Latina, um grupo
não definido de países e um subcontinente com cerca de 450
m ilhões de habitantes (ver Capítulo II).
D E N T R O D A S T E O R IA S D O T E R C E IR O M U N D O
Gyan Prakash (organizador do número especial da American
Historical Review dedicado aos estudos subalternos) intitulou
sua introdução “Escrevendo as Histórias Pós-Orientalistas do
Terceiro M undo: Perspectivas de uma Historiografia Indiana”
(1990). Nesse artigo, Prakash estendeu a historiografia indiana
ao “Terceiro M u ndo” e com parou os historiadores da índia
(com o Romila Thapar, Bernard Cohn e Nicholas Dirks) com o
grupo de estudos subalternos. E concluiu:
2 60
da índia praticada pelos historiadores subalternistas uma iden
tificação com a posição do sujeito subordinado, que se torna
aguda ao formular “perspectivas críticas terceiro-m undistas”
e ao reform ular as categorias geoistóricas fundadas e im ple
m entadas pela indologia e pelos estudos de área:
261
“formas” de conhecimento, e nào outras, são relegadas à posição
de objeto (“conhecim ento” primitivo, bárbaro, oriental). Em
segundo lugar, implica analisar a crença de que o pensamento
teórico é desvinculado de locais lingiiísticos e geoistóricos
(ver Capítulo V). Ademais, a ênfase nos loci de enunciação e no
local das teorias constantemente revela que o fundamento das
teorias não é um sujeito universal situado na história local
do Ocidente, mas que a produção teórica e a autodefinição das
teorias localiza-se em línguas específicas e histórias locais. É
o local (isto é, as histórias locais) que exige a reflexão, não o
fundam ento universal da mente “hum ana” traduzida com o um
conceito local de razão transformado em um dos conceitos
cruciais do im aginário do m undo colonial/m oderno.
Com o todos sabem os, M ichel Foucault (1969) m apeou a
arqueologia das “ciências hum anas” na civilização ocidental.
Mais recentemente, Immanuel Wallerstein acrescentou algumas
observações, associando a em ergência das ciências sociais
co m a e x p a n sã o c o lo n ia l no sistem a m u ndial m o d ern o .
Wallerstein diverge da premissa (sustentada por muitos) de
que há verdades universais sobre o com portam ento hum ano
válidas para todos os tempos e lugares. Prossegue fazendo
uma advertência sobre essa idéia, revelando as cum plicidades
entre o conhecim ento e o poder colonial:
Isso leva à segunda brecha. O fato é que os cinco países não eram
o mundo inteiro e havia uma vaga consciência na com unidade
2 62
acadêm ica de que havia um mundo além dos cinco países. Em
nossa opinião, o que fizeram foi simplesmente convidar duas
outras disciplinas a estudar o resto do mundo. A primeira e a mais
óbvia é a antropologia, que foi inventada para estudar o mundo
primitivo. Esse m undo, na prática, foi definido de forma muito
simples: com o as colônias dos cinco países... Esses mundos
foram considerados imutáveis e atemporais (Wallerstein, 1996: 3).
263
apoiava os interesses norte-americanos na América Latina,
esse cam po de estudos, depois da Revolução Cubana, passou
a abrigar pesquisadores esquerdistas, com o registram o artigo
e o Founding Statement, de M allon.
Ora, a política de local nos mostra que não há macroteoria
universal para todas as coisas im agináveis relacionadas com
ela, isto é, que a totalidade teórica não tem uma correlação
o n to ló g ica , ou que teorias sobre classe não dão conta de
problem as étnicos (ou vice-versa), que a psicanálise pode
não funcionar para uma sociedade de castas em Calcutá, pois
foi criada para lidar com o problem a de uma sociedade de
classes na Europa, na virada do século (Nandy, 1995: 81-144). Ao
m esm o tem po, as do local geoistórico demonstram a proemi-
nência em ocional (étnica, nacional, cosm opolitana, sexual,
de classe) da agência humana ao construir teorias, pelo menos
nas ciências hum anas e nas hum anidades. As sensibilidades
não são essenciais e não estão inscritas no nascim ento dos
in d iv íd u o s, mas form am -se e transform am -se, criam -se e
perdem -se, na fam ília, na escola (para os que têm acesso a
ela) no decorrer da vida. Com o revelam os acontecim entos
posteriores à divisão da índia, da Irlanda e da ex-Iugoslávia,
as sensibilidades dos locais geoistóricos relacionam -se com
um sentido de territorialidade (que nunca se perde — e não
deve ser confundido com a “identidade nacional” — tanto no
exílio quanto em uma sensibilidade cosm opolitana) e inclui
a língua, o alim ento, os odores, a paisagem , o clima e todos
esses signos básicos que ligam o corpo a um ou diversos
lugares (ver Capítulo VI). A transformação, pelas ideologias
nacionalistas, dessas experiências em forma de coerção e
vio lê n cia , não deve obscurecer o fato da inscrição mútua do
corpo e dos locais geoistóricos. O cosmopolitanismo e o exílio,
permitam-me repetir, não são uma advertência à sensibilidade
do lo ca l h istó rico ; são co n fig u ra ç õ e s particu lares d ele:
constituem um alerta para a sensibilidade do local “nacional”
(enquanto um a m anifestação particular dos locais g e o cu l-
turais). O fato de que vivem os cada vez mais em condição de
e x ílio , num a c o sm ó p o le cre sce n te , não sig n ifica qu e se
tenham perdido as sensibilidades. Mais uma vez, as sensibi
lidades dos locais geoistóricos não são traços essenciais das
identidades nacionais: as identidades nacionais são apenas
um tipo histórico de sensibilidade.
264
D O A R Q U IV O L A T IN O -A M E R IC A N O
Entre os historiadores e críticos modernos da historiografia,
o colom biano Germ án Colm enares é, talvez, um dos pensa
dores mais lúcidos dos limites da historiografia na América
Latina. O s escritos de Colm enares, publicados mais de século
e m eio após a descolonização da Colôm bia (aproximadamente
entre 1968 e 1997), foram apanhados entre os limites da histo
riografia tradicional na América Latina e as novas perspectivas
que estavam sendo abertas, na França, pela Escola dos Anais,
e na Inglaterra, pela Nova Esquerda (E. P. T hom pson). Mais
tarde (perto de 1980), Colm enares (1987) incorporou a seu
trabalho as reflexões de H ayden White sobre as narrativas
histórico-geográficas. Mas perm aneceu fiel à crítica histórica
da historiografia do século 19. Presumo que os limites das
reflexões de Colm enares se devam ã pesada tradição imposta
pelo im aginário nacional. Durante o mesmo período (entre
1964 e 1990), surgiram novas perspectivas de intelectuais que
viviam num entrelugar, paradoxalm ente, invertido — isto é,
p esq u isad o res norte-am ericanos trabalhando na Am érica
Latina e não o contrário, com o ocorre hoje.
Richard Morse foi uma dessas figuras controvertidas dos
Estudos Latino-Am ericanos nos anos 60 e 70 e seus escritos
continuaram influentes até os anos 90. Sua crítica pungente
contra o latino-am ericanism o é talvez uma das razões de sua
atual situação marginal nos círculos de pesquisadores latino-
am ericanos que trabalham na América do Norte. Morse insere-se
nesse quadro porque, entre outras razões, é historiador e,
devo acrescentar, um historiador trilíngüe e tricultural. Não
apenas estudou histórias e culturas latino-am ericanas, mas
tam bém dedicou muito tem po a “refletir” sobre e da Am érica
Latina, junto a intelectuais latino-am ericanos, do Brasil ao
M é x ico .2 Morse é um exem plo paradigmático das presunções
subjacentes aos estudos de área (latino-am ericanos) e sua
continuação, os estudos subalternos latino-am ericanos.
265
Em 1964, ano em que a Associação de Estudos Latino-
Am ericanos estava no início, Morse criticava fortemente os
latino-am ericanistas dos Estados U nidos. Ele apontava uma
falta de perspectiva crítica entre os latino-americanistas sobre
as diferenças entre as duas Am éricas. Observava que muitos
de seus silêncios transformavam os estudos latino-americanos
em uma invenção norte-americana, que situava a América Latina
com o um campo de estudos, mas não com o um lugar onde se
produziam teorias e idéias. Essa diferença pode ser mais
claram ente articulada se considerarm os a literatura e a filo
sofia na Am érica Latina e as com pararm os com as ciências
sociais e os estudos latino-americanos nos Estados U nidos.
Enquanto as ciências sociais nos Estados Unidos e nas uni
versidades européias são sobres. Am érica Latina (i.e ., com o
cam po de estudo), a literatura e a filosofia na Am érica Latina
não são sobre a Am érica Latina mas, arrisco-m e a dizer, a
p a rtir da Am érica Latina. Essa reflexão a partir cia literatura e
da filosofia encontra-se profundam ente arraigada nas línguas
espanhola e portuguesa, bem com o nas heranças coloniais.
Há um “privilégio” e uma “necessidade” forçada pela diferença
co lonial. Morse criticou os latino-americanistas da Am érica
do Norte por carecerem de uma consciência das diferenças
coloniais fundam entais entre as duas Américas:
2 66
indianos. O problem a geral persiste, contudo. Afirm o, sim,
que as diferenças entre as duas Am éricas, apontadas por
Morse, são muito importantes para a reflexão sobre o local
das áreas a serem estudadas e para as culturas de pesquisa a
partir das quais estudá-las ; são também importantes para a
reflexão sobre o loccd da agência e o lócus de enunciação a
partir dos quais se produzem as construções imaginárias (isto
é, o resultado dos estudos acadêm icos ou as reflexões inte
lectuais; ver Capítulo II); ou para a reflexão sobre as implicações
e conseqüências de ser de e estar em (Gilroy, 1990-1991) nos
investim entos acadêm icos, epistem ológicos e políticos das
agências de conhecim ento.
Outro aspecto importante da observação de Morse que
deveria ser explorado são as diferenças de linguajam ento
(mais que de línguas) entre as duas Américas,3 pois se refletem
nas culturas de conhecim ento acadêm ico. Primeiro, com o já
m encionei, o espanhol e o português tornaram-se línguas
subalternas na reco n fig u ração co lo n ia l da m o dern id ade.
Segu n d o , os estudos subalternos indianos foram redigidos
na língua do Im pério Britânico. O que se deveria explorar,
então, é a língua e o linguajam ento dos estudos subalternos
na/da índia e os estudos subalternos nos/dos Estados Unidos
ou na/da Am érica Latina. A observação de Morse deveria ser
transportada para o domínio da língua e do linguajamento (ver
Capítulo VI) para localizar a diferença entre as duas Américas:
o inglês co m o lín gu a h e g e m ô n ica e o lin g u ajam en to da
p esq u isa , e o espanhol e o português (poderiam os incluir o
francês da Martinica ou o inglês da Jam aica) com o línguas e
linguajam entos subalternos (ver Capítulo VII) de culturas a
serem estudadas (ver Capítulo IV).
Morse percebeu essa necessidade e contribuiu significati
vam ente para construir genealogias intelectuais em espanhol
e português e tem trabalhado para o restabelecim ento da
produção intelectual nessas línguas, relegadas a uma posição
subalterna pela produção de conhecim ento em francês, inglês
267
ou alem ão: as línguas da m odernidade, dos colonialism os
m odernos e das culturas de pesquisa (Wallerstein, 1996). Nào
é por acaso (como já observei) que a configuração das ciências
hum anas e o estudo da civilização floresceu no século 19,
enquanto os estudos de área assumiram seu lugar depois da
Segunda Guerra M undial, quando os Estados Unidos suplan
taram a hegem onia da Europa moderna (Inglaterra, Alem anha,
França) e privilegiaram os estudos do Terceiro M u ndo. A
distribuição do m undo em três áreas hierarquizadas após a
Segunda Guerra Mundial é contem porânea da fundação da
Associação de Estudos Latino-Am ericanos.
A atual discussão sobre estudos subalternos (Beverley et
a l., M allon) e a pós-colonialidade (Seed, Prakash) contribui,
entretanto, para manter viva uma dim ensão teórica e episte-
m ológica a que Morse aludia com o uma deficiência nos estu
dos latino-am ericanos. Essa dim ensão possibilitaria, talvez,
uma perspectiva m etateórica, unindo os latino-americanistas
nos Estados Unidos (fascinados pelos estudos subalternos
indianos) e contribuições teóricas anteriores, de pesquisa
dores e intelectuais da América Latina, profundam ente preo
cupados com a situação de seus países, do continen te e
com a exploração das com unidades subalternas. Evito uma
discussão detalhada dessas contribuições, e, em bora m en
cioná-las rapidamente possa ser problemático, assumo o risco:
a reconsideração, efetivada por Darcy Ribeiro, do processo
civilizador e das estratégias coloniais para situar línguas, cu l
turas e povos em posições subalternas (ver Capítulo VII); a
teoria da dependência de Prebisch, Cardoso, Faleto e outros
com o resposta teórica da Am érica Latina ao aum ento das
corporações transnacionais e à globalização dos anos 70; o
colonialismo interno, introduzido por González Casanova (1968)
e Stavenhagen (1965; 1990) no M éxico nos anos 70 (e ainda
vivo em Albó e Barríos [19931 na Bolívia) (também Apel, 1996:
172-176; Dussel, 1996b: 217-219; Rivera Cusicanqui, 1993) para
explicar os m ovim entos sociais am eríndios em ergindo na
co n flu ên cia de conflitos étnicos e de classe. Esse é outro
exem plo da tendência colonizadora dos estudos subalternos, tanto
na versão da “declaração de fund ação” (founding statemenf)
com o no artigo de M allon, no qual — além do mais — a
presença de Gram sci, já forte na Am érica Latina, foi flagran
temente ignorada (Aricó, 1988).
268
G Ê N E R O , F O R M A Ç Õ E S D IS C IP L IN A R E S ,
P O S IÇ Õ E S SU B A L T E R N A S
Em erge neste ponto uma questão interessante: o fato de
que a genealogia intelectual do pensam ento teórico na/da
América Latina pode parecer masculina (ver também Capítulo
II). É uma questão de gênero que im pede Seed e M allon de
estabelecer alianças, por exem plo, com os pensadores latino-
am ericanos que Morse incorpora a seu discurso? A resposta
pode ser afirmativa se pensarmos nos exem plos particulares
e xp lo ra d o s por M orse, mas seria difícil sustentar que só
hom ens estão refletindo sobre/de um local geoistórico na
Am érica Latina (ver Capítulos I e II), conforme demonstram a
militante e socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui e a
crítica literária chilena Nelly Richard, que se situa com o “uma
latino-am ericana” (Richard, 1995: 219).
Com ecem os com Nelly Richard, pesquisadora chilena de
origem francesa, cujo trabalho foi incluído no volum e orga
nizado por Beverley, O vied o e Aronna (1995). Richard, em
um artigo bastante conhecido, form ulado dentro de um arca
bou ço teórico pós-m oderno, tratou indiretamente da questão
das “culturas subalternas” (1995). Ribeiro (1968) tratou de um
problem a sem elhante, embora vazado no vocabulário antro
p o ló gico e evolucionário da época. C ontudo, a questão das
áreas culturais subalternas resultantes de diversas camadas
de colonização, a hegem onia de um tempo histórico unilinear
identificado com a Europa com o o ápice da civilização, a neces
sidade de introduzir diversos ritmos históricos pela negação
á negação da contem poraneidade, e assim por diante — tudo
isso já foi discutido por Ribeiro. Entretanto, resta um espaço
vazio entre Richard e Ribeiro, espaço produzido pela própria
hegem onia que ambos estão tentando com bater e ocupado
pela chegada de diversos viajantes denom inados estrutura-
lism o, sem iótica, desconstrução etc.
Richard desenvolve seu argumento combinando a teorização
pós-m oderna com a situação latino-am ericana: a m arginali
dade latino-am ericana e a defesa pós-m oderna das margens,
a crise da autoridade e a metanarrativa da crise, a teoria do
descentramento e a função central dessa teoria com o símbolo
de prestígio cultural e a retórica e a política da diferença.
Richard trata de uma questão que, no seu entender “estruturou
269
o com portam ento da periferia latino-am ericana confrontada
com o paradigma universalizante do centro: a dependência e
a imitação como inflexões colonializadas, mas também paródia
e reciclagem com o estratégias descolonizadoras” (1995: 219).
O sentido de “periférico” é análogo ao sentido de “subalterno”,
se concebermos que o termo se refere a “culturas” e línguas e
não apenas a classes sociais e com unidades — isto é, tudo
que se situa num espaço relacionai será co lo ca d o “numa
posição inferior”.
Em artigo intitulado “Pós-modernismo na periferia”, Richard
assinala a necessidade de opor-se ao processo de subalter-
nização:
2 70
das línguas ameríndias e das culturas étnicas vem constituindo
um problem a contínuo na América Latina desde os anos 70,
por que essa herança está sendo esquecida e reformulada no
discurso dos estudos subalternos indianos? Acreditando em um
discurso novo e libertador, estamos enfrentando novas formas
de co lo n ialism o acadêm ico? Finalm ente, os estudos subal
ternos indianos são relevantes para intelectuais que moram
e refletem na/da América Latina, ou representam uma neces
sidade particular dos latino-americanistas dos Estados Unidos?
271
introduzo aqui com o um aspecto novo daqueles que já foram
focalizados por am bos. As seguintes perguntas poderíam ser
dirigidas aos estudos subalternos nas/das Américas:
2 72
(APEP), v isan d o obter co n tribu içõ es de pesqu isadores e
cientistas sociais para a construção da dem ocracia e da paz
nos Andes. O primeiro capítulo (de cerca de 140 páginas) do
volum e organizado por Albó foi escrito por Ri vera Cusicanqui
e intitulou-se “As raízes: colonizadores e co lo n izado s”. Com o
os dois v o lu m e s foram p u b lica d o s em 1993, p o d er-se-ia
su por que o título reflete uma falta de consciência ou a igno
rância do fato de que em outros círculos a dicotom ia colo-
n izador/colonizado é suspeita ou superada; ou poder-se-ia
indagar por que os estudos subalternos indianos não são
usados com o bandeira para resolver os problemas de pesqui
sadores progressistas na Bolívia, após o fim da Guerra Fria.
Poderiamos ficar decepcionados quando Rivera Cusicanqui
introduz na prim eira página o co n ceito de “co lo n ialism o
interno”, ignorando a miríade de conceitos “pós”, produzidos
nos dez últimos anos ou mais. Não se menciona “subalterno”,
“pós-modernismo” ou “pós-colonialism o” em um estudo que
focaliza, consistentemente, a maneira como os movimentos ame
ríndios da Bolívia se constroem e realizam, não apenas com o
classes sociais (isto é, cam poneses), mas com o com unidades
etnopolíticas. É por isso que “colonialism o interno” talvez
seja m ais apropriado para a reflexão de Rivera, pois “c o lo
nialism o interno” tem uma forte ênfase étnica que “subalterno”
coloca em “classes sociais”, com o A lbó observa:
273
textos de estudos de Guha ou dos subalternos indianos. Na
verdade são muito semelhantes: textos poderosos e perturba
dores, im pulsionados pela vontade de transformações sociais,
pela associação entre conhecim ento acadêm ico e uma política
radical, que também agem, embora indiretamente, no sentido
de transformações disciplinares acadêm icas.
Há uma tese central no argumento de Rivera Cusicanqui:
274
progressivos, mas temporalidades coexistentes que produzem
e exp licam a violência estrutural na Bolívia. Mas por que
“Pachacuti” e não sim plesmente “Los horizontes históricos dei
colonialism o interno”? Porque o conceito aimará “Pachacuti”
(literalm ente, teoria dei vnelco, m etaforicam ente, “teoria da
catástrofe”) é form ulado com o uma categoria de pensam ento
que coexiste e interage com o conceito ocidental de “revo
lu çã o ” . Não tratamos aqui (nem Rivera nem eu) de defender
tradicionalm ente uma noção de tradição (ver a epígrafe de
Rivera no início deste artigo). Não tenho a intenção de afirmar
o sentido e os valores reais e autênticos, quer da noção
aimará de “P ach acu ti”, quer do conceito marxista de “revo
lu çã o ”. Tomaria emprestada a noção de Anthony Giddens de
“ordens sociais pós-tradicionais” para articular o que a fusão
de “Pachacuti” e “revolução” pode significar nos Andes. Para
G id d en s, uma “ordem social pós-tradicional” não é uma na
qual a tradição desaparece — longe disso. É aquela na qual
as tradições mudam seu status. As tradições têm de explicar-se
a si próprias, abrir-se à interrogação ou discurso (Giddens
1994: 5). Uma conceitualização de transformação social, acum-
pliciada com m ovim entos sociais e com o que A lbó (1994)
den om in a, em outro artigo, “as ousadas alianças entre os
aimarás e os neoliberais na Bolívia”, explica a com posição
atual da liderança estatal boliviana até 1997: um vice-presi
dente, Victor H u go Cárdenas, de ascendência aimará, com
uma longa experiência de participação em movimentos sociais
populares am eríndios.
Mas, para os estudos subalternos andinos, o que fica é
“Sendas y senderos de la ciência social A nd ina”, de Rivera
(1992), com o afirm ação fundacional não muito conhecida,
baseada na tensão entre as heranças coloniais e as culturas
do conhecim ento acadêm ico. A interpretação dada por Rivera
Cusicanqui à crise nas ciências sociais dos Andes, em 1992,
apóia-se em dez anos de pesquisa e publicação. Primeiro,
sua pesquisa focaliza os movimentos camponeses na Colômbia
(1984), onde a análise é feita em termos do “cam pesinado”
com o classe social. Em 1984, contudo, com a publicação de
Oprim idospero no vencidos (1984), emerge uma distinção entre
“cam ponês -aim ará” ou “cam ponês- qutchua” , por um lado, e
“cam pon ês”, do outro. Enquanto os dois primeiros indicam
fortem ente as te n sõ e s entre rela çõ e s de cla sse e etn ia,
275
trazendo ao primeiro plano as heranças espanholas coloniais
entrelaçadas com a expansão colonial posterior e a força
crescente do sistema capitalista, a segunda indica configurações
sociais com m enos fricções étnicas. Assim , a partir desse
m om ento, a ênfase de Rivera Cu sicanqu i no co m p le xo de
relações de etnia e classe perm ite-lhe criticar as ciên cias
sociais andinas por sua cegueira diante das questões étnicas
e das heranças coloniais em sua interpretação e com preensão
dos problem as sociais, culturais e históricos andinos. Não é
por acaso que, no Programa de Intercâm bio de Pesquisas
sobre a História do Desenvolvim ento Sul-Sul, Rivera Cu si
canqui foi convidada a integrar o com itê do Programa de
Intercâm bio Sul-Sul. O que esse reconhecim ento significa,
segu nd o Rivera Cu sican qu i, é “que os grupos de estudos
subalternos na índia estão fazendo algo sem elhante ao que
vim os fazendo nos Andes, pelo m enos desde os anos 70”,
quando um punhado de historiadores argentinos (ver Tandeter,
1976) começou a examinar a história econômica de Potosi — a
idéia de “feudalism o” ou “capitalism o” — para com preender
o que possa significar, na América Latina e no período colonial.
Em vez de tomar emprestado um m odelo relativo à Europa
ou ao Terceiro M undo para com preender a sociedade andina,
o movimento caminhou na direção oposta: examinar primeiro,
não o m odelo, mas o problem a. O u , melhor, criar a com pre
ensão do dom ínio colonial a partir de sua experiência viva, de
m odo a com bater as experiências vivas dos centros coloniais
metropolitanos sobre os quais se geraram as teorias da e x p e
riência do “feudalism o” e do “capitalism o”.
A SUBALTERNIDADE E A DIFERENÇA
COLONIAL: ENTRE O PÓS-COLONIAL
E O PÓS-MODERNO
2 76
M allon (1994) inseriu pós-colonial no subtítulo de seu livro
sobre a história do cam pesinato m exicano. Em terceiro lugar,
os estudos subalternos na índia associam-se mais aos estudos
pós-coloniais do que ao paradigma pós-m oderno, com o evi
dencia o artigo de Prakash (1994). Finalm ente, enquanto Albó
e Rivera Cusicanqui, na Bolívia, parecem estar trabalhando
dentro de um paradigma conceituai mais sem elhante ao pós-
co lon ial, Richard, no Chile, associa claram ente suas reflexões
com o pós-m od erno (em bora seu discurso e co e , às vezes,
frases escritas no fim dos anos 50 e início dos anos 60, por
Césaire e Fanon). O que está em jogo nessas questões?
M inha cautelosa resposta é que na Am érica Latina (com o
em certas áreas da Ásia e da África) o pós-m oderno e o pós-
colonial ocidental são duas faces da mesma m oeda, situando
construções imaginárias e loci de enunciação em diferentes
aspectos da m odernidade, da colonização e da ordem mundial
im perial. Por exem p lo, intelectuais do século 19 do Cone Sul
abraçaram politicam ente a missão civilizadora, (Sarmiento,
B ello, capítulo 8), enquanto a tecnologia moderna (as fron
teiras, a ferrovia) estava sendo exportada para o Cone Sul e fazia
parte da em ergência de novos colonialism os (Grã-Bretanha,
França) e do desaparecimento dos velhos (Espanha, Portugal).
Em vez disso, para intelectuais dos Andes, M éxico e Guatemala,
os legados do sécu lo 16 prom overam a noção de “co lo n ia
lism o interno” e os paradigmas pós-coloniais eram mais apro
priados que os pós-m odernos. Nos Andes e na Mesoam érica
(M éxico e Guatem ala), o colonialism o inicial coexistiu com o
princípio do moderno inicial (em seus primórdios), o moderno
com o co lo n ial, o pós-m oderno com o pós-colonial. Assim,
devem os aqui lembrar que a introdução do “pós-ocidentalismo”
(Fernández Retamar [1974] 1995) nesse contexto é apenas um
reflexo local do colonialism o na América Latina.
O pós-ocidentalismo poderia ajudar a ultrapassar a dicotomia
pós-m oderno/pós-colonial, o que parece uma reinscrição da
dicotomia clássica entre os fragmentos das instituições marginais
européias e as ruínas das antigas civilizações mesoamericanas e
andinas. Talvez devéssemos pensar mais em termos de globali
zação e de processos civilizadores dos quais o planeta inteiro
está participando. Deveriamos refletir sobre a diversificação das
temporalidades criadas por um movimento crescente de negar a
negação de contemporaneidade, que foi uma das estratégias mais
277
eficazes da modernidade para justificar a colonialidade, diversi
ficar nossos investimentos intelectuais e evitar macromodelos. A
modernidade não pode ser entendida sem a colonialidade; a
colonialidade não pode ser entendida sem a modernidade. Se,
com o Ribeiro (1968) nos ensinou, a última etapa do processo
civilizador (isto é, os períodos iniciais m oderno e colonial)
consistiu em uma “subalternização maciça de culturas” que se
tornaram — com o puro efeito das práticas discursivas da moder
nidade — o n ã o -O cid en te, então os “estudos subalternos”
podem ter como um de seus horizontes a rearticulação da noção
de processos civilizadores. Esses não seriam mais concebidos
com o a subalternização das culturas, mas como um processo
plurilógico e pluritópico que contribui para um planeta no qual
as sem elhanças-na-diferença poderíam substituir a idéia de
semelhanças-e-diferenças, manipuladas pelos discursos coloniais
e imperiais. Enquanto a noção de semelhanças-e-diferenças cons
titui o arcabouço conceituai dentro do qual se construiu a
própria idéia da civilização ocidental (relegando as diferenças
aos bárbaros, selvagens, canibais, primitivos, subdesenvolvidos
etc.), a idéia de semelhanças-na-diferença evoca a recolocação
de línguas, povos e culturas cujas diferenças são examinadas,
não numa direção única (a da noção restrita dos processos
civilizadores com o a marcha triunfal da modernidade), mas em
todas as direções e tem poralidades regionais possíveis. O
processo civilizador é a marcha triunfal da espécie humana, entre
diversos processos civilizadores, e não apenas a difusão global
das civilizações européia/ocidental sob a bandeira do progresso,
da civilidade e do desenvolvimento.
Nesse contexto, os estudos subalternos nas/das Am éricas
tornam-se uma reflexão sobre a construção da subalternidade
desde os estágios iniciais da globalização, sobre as diversas
tem p o ralid ad es das A m éricas, d e v id o á diversid ad e das
civilizações ameríndias e sobre o colonialism o europeu. Tendo
os Estados Unidos assum ido uma posição de liderança na
expansão ocidental e as missões civilizadoras anteriores sido
reformuladas em termos de desenvolvim ento e m odernização,
a Am érica do Sul e o Caribe não só foram recolocados em
diferentes tem poralidades, mas tornaram-se também “cam pos
de estudo”, enquanto a América do Sul tornava-se a sede de
um a linha de pesquisa identificada com o “Estudos Latino-
Am ericanos”. Mas agora, em um m undo onde os processos
2 78
civilizadores m ovem -se em todas as direções possíveis, os
Estudos Subalternos poderíam contribuir para descolonizar
a pesquisa, refletindo criticamente sobre sua própria produção
e rep ro d u çã o do c o n h e cim e n to e evitan d o a rein scrição
das estratégias de s u b a lte rn iz a çã o . Nas “o rd en s sociais
p ó s-tra d icio n ais” , a defesa tradicional de tradições deve
ser constantemente contestada em todos os níveis, incluindo
as culturas do conhecim ento acadêm ico e a defesa local da
disciplinaridade, mesmo dentro de novos paradigmas. Tradições
recém -criadas constituem as necessidades dos tem pos. O pós-
moderno e o pós-colonial devem ser superados e descartados
com o conceitos pertencentes ao legado dos discursos coloniais
e im periais (O cid en te-O rie n te ; Prim eiro-Terceiro M undo;
desenvolvido-subdesenvolvido etc.): “as culturas acadêm icas
pós-tradicionais” deveríam integrar um processo de transfor
m ação social e de e p iste m o lo g ia s trad icio n ais (so bretu do
no q u e diz resp eito ã política e ã ética das áreas de estudo
latino-am ericanas) e a contenciosa discussão sobre a legiti
m idade do pós-m oderno e do pós-colonial. As ciências sociais
e a filosofia ocidental estão alcançando os limites da diferença
colonial — assunto a ser desenvolvido na próxima seção.
A DIFERENÇA COLONIAL
NO DILEMA DE CHAKRABARTY
279
Toda a questão do conhecim ento disciplinar, interdisci-
plinar e talvez transdiciplinar está em jogo na observação de
Chakrabarty de que, enquanto os estudos subaternos (na índia
e sobre a índia) permanecerem dentro do domínio da história
(enquanto disciplina), eles serão subalternos, não apenas por
causa de seu interesse pela subalternidade, mas porque sua
própria prática disciplinar, enquanto prática, é subalterna.
Um exem plo dado para explicar melhor a subalternidade da
historiografia “indiana” é o seguinte:
280
no processo” (21). Essa igualização foi particularmente forte na
Am érica Latina do século 19, com intelectuais pós-coloniais
com o D om in go F. Sarmiento, na Argentina. Para Sarmiento,
com o para m uitos outros (e com razão), o futuro aceitaria a
liderança da Europa. Q ue Sarmiento na Argentina foi contem
porâneo de Bilbao no Chile, que se opunha ao imperialismo
francês e norte-am ericano, é uma correspondência que se
pode observar nos movimentos descolonizadores após o fim da
Segunda Guerra Mundial, aos quais Chakrabarty faz referência.
O argumento de Chakrabarty constrói-se a partir da própria
idéia de que a modernidade se funda nas narrativas de transição.
Com o em Garcia Canclini, o moderno pressupõe aqui o tradi
cional, que se tornou a exterioridade necessária sobre a qual
o interior da m odernidade está sendo definido. Chakrabarty
enfatiza fortemente as narrativas sobre “nação” e “cidadania”
com o locais onde se pode realizar o projeto de “provincializar
a Europa” . Ele focaliza narrativas que “celebram o advento
do Estado m oderno e a idéia da cidadania” e ao mesmo tempo
as m inim iza. Chakrabarty afirma que
281
A política do desespero exigirá dessa história que ela desnude
para seus leitores as razões pelas quais essa situação é necessa
riamente inescapável. Essa é uma história que tentará o impos
sível: contem plar sua própria morte buscando aquilo que resiste e
escapa ao m elhor esforço hum ano de traduzir sistemas culturais
e outras construções semióticas, de tal fo rm a que o m undo possa
novam ente ser im aginado como radicalm ente heterogêneo. Isso,
com o disse, é impossível dentro dos protocolos de conheci
mento da história acadêm ica, pois a globalidade da academia
não é independente da globalidade criada pela Europa moderna
(Chakrabarty, 1992a: 23; 1992b, grifos nossos).
2 82
o Sistem a Total baseado num a seqü ência discrim inatória
(grandes civilizações, grandes estados, grandes religiões) indis
pensável a tais projetos” (Glissant, [1981] 1989: 76). E conclui:
283
Coronil aproxim a-se, talvez, mais de Chakrabarty do que
ele próprio acredita. Mas nào é só. No mesmo ano em que
Chakrabarty publicou seu artigo sobre a história, Enrique
D u sse l p u b lico u um artigo in titu lad o “E u rocentrism and
M odernity” ([1993] 1995), que discuti no Capítulo II e que se
inicia com a seguinte afirmação:
284
incluir as condições geradoras da própria intervenção. Com o
crítica da reificação, o contrafetichismo de Ortiz questiona tanto
as interpretações conservadoras que reduzem a história às ações
de forças externas, como as concepções humanistas e liberais que
atribuem a intervenção histórica exclusivamente a pessoas... A
transculturação vitaliza assim categorias reificadas, trazendo à luz
intercâmbios ocultos entre os povos e liberando histórias enter
radas dentro de identidades fixas (Coronil, 1995: xxix-xxx).
285
que levou ao dilem a de Chakrabarty bem com o ã reação de
Coronil em relação a ele. A transculturação , em outras palavras,
poderia ser concebida com o um tipo especial de pensam ento
liminar, e o pensamento liminar, dentro de minha argumentação,
é a necessidade básica da epistem ologia subalterna e da
reflexão que ultrapasse as dicotom ias produzidas pelo “oci-
dentalismo” com o o imaginário dom inante no sistema mundial
colonial/moderno. Esse imaginário exagerou as realizações da
“m odernidade” (por razões que ficam claras nos argum entos
de D ussel, Chakrabarty, Q u ijano e Coronil) e m inim izou seu
lado som brio, a “co lo n ialid ad e”. A retirada da colonialidade
dos subterrâneos do im aginário da m odernidade (e da pós-
m o d e rn id a d e co m o sua crítica), feita por Q u ija n o , é na
verdade uma contribuição importante para provincializar a
E u ro p a , c o n te m p la n d o a tra n sd iscip lin a rid a d e (isto é, a
antropologia transcultural) e a transm odernidade.
A articulação entre “colonialidade e m odernidade/racio
nalidade” proposta por Q u ijano proporciona uma descrição
e uma explicação daquilo que, para Chakrabarty, é o ponto
de partida de seu argum ento: a sede hegem ônica da episte
m ologia m oderna na Europa (o O cidente, ou o M undo Atlân
tico) com o o porto de onde partiram as teorias itinerantes, as
formações disciplinares e os procedimentos para subalternizar
o conhecim ento, que foram constitutivos dessa hegem onia: a
transformação de outras formas de saber em objetos de estudo.
Alguns exem plos desse procedim ento incluem “a observação
e d escrição da g n o sio lo g ia am eríndia pelos m issionários
espanhóis no século 16 com o afirm ação do ocidentalism o; o
orientalism o, nos séculos 18 e 19, quando o ocidentalism o já
estava estabelecido; e estudos de área, no século 20, que
contribuíram para a consolidação das ciências sociais. Por
e xem p lo, uma das recom endações para o futuro das ciências
sociais, apresentadas pelo relatório da Gulbenkian Commission
sobre a reestruturação das ciências sociais, parte do reco
nhecim ento de três antinom ias, na sua própria base, que
devem ser superadas:
2 86
Uma terceira antinomia, entre o m undo bárbaro e o civilizado,
tem hoje poucos defensores, mas continua na prática habitando
as m entalidades de muitos pesquisadores (Wa 1lerste in et a l., 1996:
95, grifos nossos).
287
Esse esquem a, incidentalm ente, emergiu paralelam ente à
racionalidade econôm ica que hoje cham am os de capitalism o
e com as três principais línguas do conhecim ento m oderno:
inglês, francês e alem ão. As teorias itinerantes, em outras
palavras, têm de passar pela tradução. A necessidade de
tradução já está enraizada numa estrutura de poder que não
apenas se relaciona com a “gram ática” de uma certa língua,
mas tam bém com sua história e seu lugar no sistema m undial
colonial/m oderno. Por que o espanhol e o português, por
exem p lo, não são línguas poderosas nas modernas culturas
do co n h e cim e n to acadêm ico? Por que a pesquisa m oderna
é traduzida, em geral, do inglês para o arábico, mas não o
contrário? Essas são perguntas simples, freqüentemente esque
cidas, que têm a ver com o dilem a de Chakrabarty e a d is
tinção de Coronil entre o cânone e as teorias. O s cânones,
na literatura ou nas discip linas de co n h e cim e n to , p ro p o r
cion am os pontos de referência, as fundações e a forma de
controle nos estudos literários bem com o em outras disciplinas,
nas ciências hum anas com o nas naturais (M ignolo, 1989b).
E, nesse sentido, Coronil tem razão quando diz que cânones,
e não teorias, são atributos imperiais (1995, xlii). Entretanto,
teorias podem ser canonizadas e, nessa condição, tornam-se
veícu lo s do vírus im perial. Até o ponto em que as teorias
têm de ser expressas em certas línguas, o vírus é inevitável.
Talvez uma “prática disciplinar transcultural” e um projeto de
“provincializar a Europa” consistida em empurrar o vírus até
o ponto extrem o se as teorias, canônicas ou não, se expres
sassem em línguas coloniais, o “pensam ento transcultural”
(isto é, o pensam ento liminar) tornaria possível interferir
nessas teorias, m ediá-las, por m eio de categorias de pensa
m entos suprimidas nas línguas eliminadas: daí, a importância
da contribuição de Kusch e o fato inegável de que a revolução
teórica dos “zapatistas” (M ignolo, 1997d; M ignolo e Sciw y,
2001) em erge da intervenção de categorias am eríndias de
pensam ento (Tojolabal, Tzotzil etc.) em categorias marxistas,
traduzidas do alem ão para o espanhol.
Mas voltem os à descrição de Q uijano e à explicação da
razão pela qual a Europa foi equacionada com a m odernidade
e com a “sed e” do conhecim ento e das teorias. Vam os insistir
primeiro que, para Q u ijano, a “colonialidad e” não pertence
tanto aos períodos históricos ou a formas particulares de
2 88
dom inação (colonialism o espanhol ou inglês; ou form ação
tardia de capital, identificada no princípio do século 20 com o
im perialism o, tanto na forma do imperialismo britânico com o
nas formas posteriores, norte-americanas ou soviéticas) quanto
ao que ele cham a de “im agin ário ” do lado repressivo da
m odernidade. Com o Chakrabarty, Q uijano tem o cuidado de
observar que não se trata de negar o lado mais favorável da
m odernidade, em sua m anifestação européia ou planetária,
mas de não esquecer seu lado mais som brio. Por exem plo,
em relação ao conceito de “totalidade” Q uijano observa:
289
que deterá o controle e garantirá uma posição de poder para
aqueles que com ela se alinharem. Se Quijano propõe manter
o conceito de totalidade com o totalidade heterogênea e não
homogênea, seria também necessário imaginar essa totalidade
heterogênea com várias cabeças, não apenas uma. Uma cabeça
governando uma totalidade heterogênea está contida na idéia
de um significante vazio, que manteria todos os problem as
hoje apresentados pelo m ulticulturalism o. Um a totalidade
que é ao mesmo tempo heterogênea e tem múltiplas cabeças
exige o pensamento liminar com o uma epistem ologia orien
tadora e uma série de metáforas que substituam a im agem
hegemônica do corpo humano, descrevendo a totalidade social
e postulando a cabeça com o o centro de controle. Q u ijan o
analisa essa imagem tanto em relação à estrutura do estado-
nação quanto à colonialidade do poder: a linha imaginária
que divide o planeta entre pagãos e cristãos, bárbaros e civili
zados, nações desenvolvidas e subdesenvolvidas.
A análise de Quijano a respeito de com o, sendo européia,
constitui-se a idéia da modernidade, e com o a idéia da moder
nidade como fenômeno europeu ligou-se à epistem ologia e à
colonialidade do poder é, na verdade, muito útil. Seu ponto
de referência é a atual crise epistemológica fundada na relação
estrutural entre um sujeito que conhece e um objeto a ser
conhecido (por exem plo, ver também Rorty, 1982, para uma
crítica semelhante vinda de uma perspectiva diferente e com
um projeto diferente). Essa antinomia deveria ser citada com o
a quarta e talvez a única que proporciona a base para a outra,
na análise de Wallerstein et a l., que com entei anteriormente.
Mas, seja como for, há dois pontos nevrálgicos na análise de
Quijano que fornecem uma nova saída para críticas existentes
e bem conhecidas ao mesmo problem a.
A primeira questão envolve a correlação do sujeito que
conhece/objeto conhecido, que, ao emergir, constituiu uma
jogada epistemológica em ancipadora para escapar ã crença e
à autoridade de Deus na teologia cristã. Foi também uma libe
ração do indivíduo da hierarquia social e das rígidas estruturas
religiosas da Europa “pré”-m oderna. Contudo, essa liberação
caminhou junto com a formação de relações econôm icas, com
a consolidação da vida urbana e com uma classe econôm ica
associada com o “burgo”. A instalação do sujeito conhecedor
com o autoridade final elim inava toda a p o ssib ilid ad e de
290
conceber o saber com o uma empresa intersubjetiva, e, assim, o
objeto tornou-se não apenas diferente, mas exterior ao sujeito.
O objeto foi tam bém definido por sua propriedade: exteriori-
dade e propriedades intrínsecas diferenciam o objeto do sujeito
que conhece. Isso é bem sabido e é também atribuído a Descartes,
cuja filosofia estabeleceu as bases para esse alicerce episte-
m ológico e o conceito de razão, no qual o sujeito que conhece
alicerça seu saber. Contudo, os paradigm as da racionalidade
e dos seres humanos com o racionais já estavam estabelecidos
nos séculos 16 e 17, por missionários com o Bartolom é de las
Casas (dom inicano), Jo sé da Acosta (jesuíta), em suas inves
tigações sobre a história e a natureza do ameríndio, bem com o
para os teólogos da Escola de Salam anca (dom inicanos na
maioria) ao discutirem os “direitos dos p ovos” e se os índios
podiam ser escravizados (cf. Pagden, 1982: 142-197).
O ra, de acordo com a segunda questão, a em ergência de
um sujeito que conhece é correlativa, com o Q u ijano enfatiza,
com a em ergência da idéia da propriedade privada, que tam
bém é a correlação entre um indivíduo e algo diferente, o
objeto cham ado “propriedade”: “O mesmo esquem a mental
subjaz a am bas as idéias, o conhecim ento e a propriedade, e
ambas coincidem com a em ergência da socieddacle m oderna”
(1992: 442). Mas, o que não foi suficientem ente ressaltado é
que, na ascensão do indivíduo com o sujeito econôm ico e
epistem ológico, o processo não só foi articulado com o “em an
cip a çã o ” de restrições dentro do próprio O cidente, autodefi-
nido co m o eu rop eu e cristão, mas tam bém d esq u alifico u
todas as outras formas de sociedade e de pessoas. Isso ocorreu
exatamente durante o período no qual a idéia de uma Europa
cristã e ocidental estava sendo articulada em sua diferença
em relação a p ag ã o s, infiéis e bárbaros fora da Europa e/
ou na m argem do O cidente (com o os am eríndios nas índias
O cidentais); ou nos outros dois continentes, Ásia e África
(terras de Ham e Shem ). Q uijano declara:
291
a própria idéia da Europa está em processo de se constituir em
relação ao resto do mundo que está sendo colonizado. A própria
idéia de “Europa” e “O cid en te” já é um reconhecim ento de
identidade e, portanto, da diferença com outras experiências
culturais (Quijano, 1992: 442).
OBSERVAÇÕES FINAIS
2 92
latino-am ericana Florencia M allon e pelo G rupo de Estudos
Subalternos Latino-Am ericanos e foram formuladas questões
a respeito da correlação entre local geoistórico e produção
de conhecim ento. Uma de minhas preocupações foi a forma
com o teorias itinerantes “atravessam” a diferença colonial. A
esse respeito, é im portante lembrar as diferenças entre o
projeto original do G rupo de Estudos Subalternos do Sul da
Ásia, form ulado em termos de investigar “o fracasso histórico
da nação em assumir o que é seu” e esclarecer que “é o estudo
desse fracasso que constitui a problem ática central da histo
riografia da índia co lo n ial” (G u h a, 1988: 43). Embora se possa
dizer que essa é a problem ática que ocupa a adaptação de
M allon (1994) e do G ru po Latino-Am ericano, em ambos os
casos desconsidera-se o fato de que a América Latina não é
um país, com o a índia depois de seu desm em bram ento, e
que m uitos países da América Latina (sobretudo os países de
co lo n ização espanhola nos dois casos [Mallon e o G ru p o
Latino-Americano]) conquistaram sua independência no início
do século 19 e não em 1947, data muito próxima de todos os
membros do G ru po de Estudos Subalternos do Sul da Ásia.
Em segundo lugar, nos últimos trinta anos, aproximadamente,
exam inei diversas contribuições críticas na América Latina e
nos Estados U nidos sem elhantes às do G ru p o de Estudos
Subalternos do Sul da Ásia (como está claro na recente tradução
em espanhol, publicada na Bolívia, e organizada por Rivera
Cusicanqui e Barragán). Essas contribuições foram ignoradas
por M allon, e, embora incluídas na antologia de Beverley,
O v ied o e Aronna, Postmodernism in Latiu Am erica (1995),
não foram reconhecidas em sua historicidade. Ainda menos
reconhecidas foram as dimensões coloniais na história latino-
am ericana (Rivera C usicanqui, 1992) e a colonialidade do
poder introduzida por Q uijano. A persistência da coloniali
dade do poder que causou o dilem a de Chakrabarty está
sendo reproduzida nos Estudos Subalternos Latino-Americanos.
A reflexão a partir do “m étodo” de um “m odelo” prevalece
sobre a reflexão a partir do “problem a”.
O próxim o capítulo com eça onde este termina: a co lo n ia
lidade do poder e do conhecim ento em relação aos valores
nacionais e às línguas nacionais e coloniais com o fundamento
e garantia do co n h ecim en to , bases para a m odernidade/
racionalidade (Q u ijan o ) e a fu n d ação das ciên cias sociais
293
(W allerstein et a l.) . P ro sseg u in d o com o argu m ento deste
capítulo, exploro as possibilidades abertas pela crise da língua
nacional com o alternativas complementares à “provincializaçào
da Europa” (Chakrabarty), ao “conhecim ento transcultural e
transdisciplinar” (Dussel e Coronil) e à “descolonização do
conhecim ento” (Q uijano). No Capítulo V focalizo as línguas
e literaturas, no Capítulo V I, as línguas e epistem ologias.
294
p A R T E
294
p A R T E
m OUTRA LÍNGUA"
MAPAS DA LIN GU ÍSTICA , GEOGRAFIAS
LITERÁRIAS, PAISAGENS CULTURAIS
1 A parte do título que está entre aspas vem de A n Other Tnngue: Nation
and Ethnicity in tbe Linguistic Borderlands, de Alfred Arteaga (1994). O
leitor pode já ter notado o paralelo com “um outro pensamento”, que
explorei no Capítulo I.
mas a repetição do mesmo não era (e não é) o meu objetivo.
Estava tentando pensar a colonialidade e as Américas e afastar-me
dos resquícios da ideologia do século 19, expressados por
Francisco Bilbao, sobre as “duas línguas e duas raças”, conforme
discuti no Capítulo III. A ideologia nacionalista sobre língua e
literatura é tão difundida que mesmo críticos literários e culturais
progressistas podem não enxergá-la. Pois, como foi possível,
num congresso (e no melhor dos ambientes possíveis) sobre
literaturas hispânicas e literaturas e culturas latino-americanas, ter
com o principais exemplos de minha discussão Frantz Fanon, da
Martinica; Michelle Cliff, da Jamaica; Gloria Anzaldúa, chicana dos
Estados Unidos, e José Maria Arguedas, do Peru? Já que não aceitei
a recomendação do parecerista (porque levaria minha argumentação
para um terreno contrário a ela), recusei o convite de publicar
minha fala no congresso, como paper nos anais. Logo após esse
acontecimento, solicitaram-me uma contribuição para um número
especial de Modem Language Quarterly (Mignolo, 1996d) dedicado
a “regionalismo na América Latina”. Achei que minha fala sobre
“mapas lingüísticos e geografias literárias” seria apropriada. Dessa
vez o parecerista só pediu que eu passasse Arguedas para o
início do artigo, pois na versão original era exatamente o último
exem plo. Aceitei a sugestão e o artigo foi publicado (1996d),
embora eu sentisse que, por trás do pedido, estava o incons
ciente “espanhol”, e não tudo o que Arguedas fizera para recu
perar o quíchua após séculos de repressão “espanhola” (ameri
cana). Essa anedota é um bom exemplo de como a colonialidade
do poder atua dentro de nós, ocultando a diferença colonial e
ressaltando os valores das línguas nacionais e uma concepção
nacional da América Latina subcontinental. Este capítulo pretende
mergulhar na colonialidade do poder e focalizar a diferença
colonial em ação na língua, na literatura e na contribuição delas
para um domínio da cultura tangencial às indústrias culturais.
Enquanto decorria o processo que acabei de delinear, li a
interessante co leção de Alfred Arteaga intitulada A n Other
Tongue: Nation a n d Ethnicity in the Linguistic Borderlands
(1994), e, mais recentem ente, o rom ance de Rosário Ferré em
inglês, The H ouse in the Lagoon (1995), Next Year in Cuba: A
C u b a n o ’s Coming-of-Age in America, de Gustavo Pérez-Firmat
e as memórias de Ariel Dorfm an, também em inglês, H eading
South, Looking North: A Bilingual Jou rn ey (1998). Essas leituras
permitiram ampliar minha argum entação. Mas qual é minha
argum entação? No Capítulo III, desenvolvi-a parcialm ente,
2 98
indicando com o nasceram as im agens das duas Américas e a
sobreposição da A nglo-A m érica e da Am érica Latina. Basi
cam ente, à independência da Espanha e da Inglaterra, que
foi um caso especial de descolonização, seguiu-se o processo
de construção da nação numa nova ordem imperial. Um a das
armas poderosas para a construção de com unidades im agi
nadas hom ogêneas foi a crença numa língua nacional, ligada
a uma literatura nacional, que contribuísse, no dom ínio da
língua, para a cultura nacional. Adem ais, a cum plicidade entre
língua, literatura, cultura e nação relacionava-se também com
a ordem geopolítica e as fronteiras geográficas. Língua e lite
ratura faziam parte de uma ideologia de Estado, apoiada por
seus intelectuais orgânicos (Poblete, 1997). Essa ideologia
foi o alicerce de departamentos de línguas e literaturas, nacionais
ou estrangeiras, em países ao redor do m undo. Meu argu
mento é, então, que a história, especialmente nos últimos vinte
anos, está transform ando as configurações geopolíticas de
n ações, da form a co m o foram construídas, sobretudo no
decorrer do século 19. Naquela época, ocorreu a interseção
de nações que eram im périos (a Inglaterra) ou dom ínios
poderosos (a França), por um lado, e, por outro, nações em
luta contra o velho colonialism o (Espanha, Portugal) e em
negociação com novas nações (Inglaterra, Espanha, Portugal).
Em vez de presumir a unidade de uma literatura e cultura
hispano-am ericana baseada na língua espanhola, volto-m e
para as Am éricas, incluindo o Caribe, dentro da história do
sistema m undial colonial/m oderno e dos horizontes coloniais
da m odernidade. Assim , este capítulo pressupõe um ponto
de partida que já m encionei no Capítulo II, mas que repito
aqui para conveniência dos leitores:
299
um mundo transnacional, contra o cenário de ideologias nacio
nais que associam língua, literatura, cultura e território para a
constituição de um todo hom ogêneo. Presumo que os modelos
teóricos para o estudo das línguas tenham sido construídos em
cum plicidade com a expansão colonial. O s m odelos lingüís-
ticos e filosóficos do século 20, sobretudo os popularizados
nos anos 60 e 70, são pouco úteis para tratar a dim ensão
transnacional do plurilinguajamento, pois, no discurso acadê
m ico, aparecem com o um sujeito de fala universal. O plurilin
guajam ento capta melhor uma situação definida na perspectiva
das ideologias nacionais, na op osição entre “línguas estran
geiras” e educação bilíngüe (especialm ente nos países do Ter
ceiro M undo). Curiosam ente, o sujeito falante foi m odelado
a partir das experiências e da idéia de línguas nacionais que
eram, ao m esm o tem po, línguas imperiais. Meu argum ento
im plica as heranças dos períodos inicial m oderno e colonial
(m odernidade e colonialidade) e une forças com a luta pela
descolonização e desm odernização do conhecim ento, junta
m ente com os discursos da esfera pública que emergiram na
teorização pós-moderna e pós-colonial após a Segunda Guerra
M undial. Nessa genealogia, a m odernidade e a colonialidade
pressupõem a coexistência do Estado moderno e dos domínios
imperiais de forma ainda não articulada no início do período
m oderno, sob os impérios espanhol e português. É precisa
m ente ao comparar as práticas lingüísticas e a política pública
do período inicial m oderno (séculos 16 e 17)-com a fase atual
da colonialidade global, que testem unham os um redirecio-
nam ento significativo quanto à forma pela qual as línguas
são conceitualizadas em relação ao controle colonial e ás ideo
logias nacionais, por um lado, e ao conhecimento e à razão, por
outro. Essas são na verdade as duas faces da mesma m oeda.
O que testem unham os, agora, com o ilustram os argum entos
que se seguem , é uma recolocação de linguagens e culturas
possibilitada pelo próprio processo da interconexão global.
Vale notar, paralelam ente ao que acabo de escrever, que o
processo colonial inicial projetado para “modernizar”, cristia-
nizar e civilizar o m undo, transformou-se no último quartel
do século 20 em um processo que objetivava “m ercadizar” o
m undo, e não mais civilizá-lo ou cristianizá-lo. Nesse dom ínio
global, a colonialidade continua a ser uma silenciosa e anônima
força motriz de m odernização e de mercado. Paradoxalm ente,
300
a ênfase no consum ism o, nas mercadorias e nos crescentes
centros m ercadológicos atua em direção contrária ao controle
im posto p elos prim eiros program as religiosos e civis. Em
prim eiro lugar, línguas não ocidentais com o o qu ích u a, e
línguas ocidentais minoritárias com o o catalão estão reerner-
gindo da repressão a que foram submetidas durante o período
nacionalista, na América Latina com o na Europa. Em segundo
lugar, línguas ocidentais com o espanhol, francês e inglês estão
sendo fragmentadas por práticas emergentes nas ex-colônias.
Finalm ente, os processos resultantes da hierarquia interna
dentro da expansão ocidental e a partir da reclassificação do
espanhol co m o língua de segunda classe (pois foi co n sid e
rado inadequado para a linguagem filosófica e científica) vêem
suas intervenções estimuladas pelos movimentos migratórios
originários de áreas colonizadas pelos impérios espanhol e
britânico e pelas configurações nacionais contem porâneas e
posteriores ao século 19. Se uma palavra se faz necessária
para identificar o lócus desses fenôm enos e processos, essa
palavra é “transculturação” (ver minha Introdução). A trans-
culturação inclui a ênfase em fronteiras, m igrações, plurilin-
guajam ento e m ulticulturação e a crescente necessidade de
con ceitu alizar as línguas, os processos de escrita e leitura,
e literaturas transnacionais e transimperiais. O pensam ento
liminar nos ajudará a pensar as línguas de outro m odo (ver
também a Introdução e o Capítulo VI). A transculturação, em
outras p alavras, contam ina o local da e n u n cia çã o , e não
apenas com o fenôm eno social que permite a celebração do
“im puro” no m undo social, em uma perspectiva “pura” vazada
numa língua nacional e em uma epistem ologia “científica”.
As transformações sócio-históricas também exigem m odifi
cações disciplinares. O s desafios à pesquisa lingüística e lite
rária representados pelos processos lingüísticos transnacionais
e transimperiais são epistemológica e pedagogicam ente graves,
pois influenciam a própria concep ção das hum anidades com o
sede da pesquisa e do ensino. Isso ocorre especialmente quando
as reavaliações são contem pladas na perspectiva de nações
com línguas coloniais e não na perspectiva da m odernidade
européia. Tais desafios m odificam a crença com um de que os
estudos lingüísticos e literários tratam somente de textos e
autores literários, da form ação e transform ação de cânones,
e de ju lg a m en to s estético s e interp retações textu ais. O s
301
processos transnacionais de linguajam ento exigem teorias e
filosofias de produção sim bólica hum ana, baseadas em cate
gorias e processos lingüísticos, transnacionais e transimperiais,
em uma nova filologia alicerçada no pensam ento liminar, que
poderia substituir e deslocar “a” tradição clássica, segundo a
qual a filologia e a filosofia se abrigavam nas línguas clássicas
(grego, latim) e modernas/coloniais (inglês, francês, alemão). O
embaçamento das fronteiras nacionais exige também repensar,
senão dem olir, as fronteiras disciplinares. Nos últimos dez
anos, vem ocorrendo um intercâmbio substancial entre teóricos
da literatura, críticos e cientistas sociais, especialm ente nos
cam pos da antropologia e da história. O s estudos transim
periais, transcoloniais, transnacionais e culturais poderíam
servir co m o um novo esp aço inter- e transdisciplinar de
reflexão. Nesse espaço, poder-se-iam redefinir os estudos lite
rários e discutir as questões resultantes da expansão ocidental
e das interconexões globais desde o fim do século 15. Com o
prefixo trans- quero, pois, indicar algo além das línguas e
literaturas nacionais e dos estudos com paratistas que pres
su põ em as línguas e as literaturas. A literalidade (palavra
ausente e cúm plice entre línguas e literaturas) e o linguaja
m ento (conceito difícil de captar na filosofia de linguagem
o cid e n ta l, denotativa) estão sen d o transportados para o
primeiro plano desse discurso transdisciplinar.
O PROBLEMA:
“PARA QUE SERVEM AS LÍNGUAS NACIONAIS
NUM MUNDO TRANSNACIONAL?
3 02
um código uniforme tem geralm ente sido considerado uma
questão de com odidade administrativa para governar um país
ou império. Contudo, ideologizar uma língua é algo diferente;
e se a língua pode ser usada por um grupo dominante como
símbolo da nacionalidade, os grupos dominados podem, eviden
temente, exercer a mesma lógica e fazer exigências políticas
baseadas em sua identidade. Então, se é possível d izer que a
idéia da língua n a cion a l e sua im posição política atuam como
fo rç a coesiva, a recíproca é também verdadeira. Com o qualquer
m arcador cultural, a língua pode ser um a fo rç a desagregadora
e é claro que a ideologia da língua nacion a l tem gerado lutas
dentro das com u n id a d es e, em certo sentido, criado m inorias
em m uitos países que se estabeleceram como estados nos tempos
m odernos í Coulm as, 1988: 11, grifos nossos).
303
diversalidade global, da qual o universalism o faz parte com o
entidade cultural particular e distinta; e a com preensão da
diversidade além das ideologias das línguas nacionais/im pe-
riais. Com entarei primeiro casos particulares (Arguedas, C liff,
Becker, Anzaldúa) antes de voltar ao linguajamento e à diver-
sidade/diversalidade.
304
O antropólogo e crítico cultural Nestor Garcia Canclini
([19891 1995) descreve a hibridez da fronteira, mas sem se
envolver com o pensam ento liminar. A hibridez de Tijuana é
transmitida num discurso que não é híbrido ele próprio, que
mantém a homogeneidade da língua e das regras estabelecidas
em culturas acadêm icas. Na próxima seção tento sugerir uma
outra visão de literatura, exam inando-a da perspectiva do
co n hecim en to teórico que ela gera. M inha discussão visa
criar, através do p ensam ento lim inar (isto é, pensam ento
situado entre as ciências humanas e a literatura) um arca
b ouço no qual a prática literária não seja concebida com o
objeto de estudo (estético, lingiiístico ou s o c io ló g ic o ), mas
co m o p ro d u çã o de conhecim ento teórico; não com o “repre
sentação” de algo, sociedade ou idéias, mas com o reflexão à
sua própria moda sobre problemas de interesse hum ano e
histórico. Isso, naturalmente, inclui o aspecto da língua —
não necessariamente em termos de gramática ou fonética, mas
em termos da política da língua. Isso tem a ver com a forma
pela qual as práticas literárias, no sistema m undial colonial/
m oderno, vêm sendo associadas de diversos m odos com a
colonialidade do poder, tanto em sua versão colonial quanto
na nacional. A língua também envolve o problema da formação
do cân on e, a forma com o os valores nacionais e ocidentais
vêm sendo entrelaçados para produzir os mapas lingüísticos,
as geografias históricas e as paisagens culturais do sistema
m undial colonial/m oderno, dentro de sua lógica interna (por
exem p lo, conflitos imperiais) bem com o em suas fronteiras
externas (por exem p lo , conflitos com “outras” culturas; a
diferença colonial).
A D E S V IN C U L A Ç Ã O ENTRE L IN G U A JA M E N T O
E L ITER A TU R A N A C IO N A L
305
palavra quíchua que pertence a um registro sofisticado do
quíchua e que há também palavras tomadas ao dialeto huanca-
conchucos. Apesar desses poucos obstáculos, Arguedas afirma
que o livro de poem as é acessível à p opulação de falantes do
qu ích u a no m apa lingüístico de Runasim i, do Distrito de
H uancavelica a Puno, no Peru, até toda a região quíchua na
B o lív ia . A cred ita, adem ais, que o livro que escreveu em
quíchua poderia ser perfeitamente com preendido no Equador.
Arguedas m enciona também que o H aylli-Taki foi origi
nalm ente escrito no quíchua que ele fala, sua língua nativa,
chanca. D epois de escrever o livro de poem as, traduziu-o para
o castelhano. Na introdução observa que um “im pulso inelu-
d ib le” o forçou a escrever os poem as em quíchua:
306
idiom a en el que sepuede escribir tan bella y com movedoram ente
como en cualq uiera de las otras lenguas p erfeccio n a d a s p o r
siglos de tradición literaria. El quechua es tam bién un idiom a
m ilenario (grifos nossos).
Minha mãe morreu quando eu tinha dois anos e meio. Meu pai
casou outra vez — com uma mulher que tinha três filhos... [e]
que era proprietária de metade da cidade. Tinha muitos empre
gados indígenas, bem como o tradicional desprezo e ignorância
do que era um índio, e porque me desprezava e odiava tanto
quanto a (seus) índios, resolveu que eu viveria com eles na
cozinha, e lá comeria e dormiría (Arguedas, 1962: 247, traduzido
e citado por Sandoval, 1998: xxii).
307
que viviam e moravam na Espanha, bem com o em um Novo
M undo construído sobre as ruínas de Runasimi.
Há outras experiências que complementam as de Arguedas
e prefiguram a questão da língua e do colonialism o, área em
que colidem mapas lingüísticos, geografias literárias e paisagens
culturais e na qual transform ações sociais e culturais se
reforçam m utuam ente. Com parem os agora os Andes com o
Caribe e com a fronteira M éxico-EUA, trazendo para a discussão
uma jamaicana, Michelle Cliff (1995) e uma escritora mexicana-
am ericana, Gloria Anzaldúa (1987).
C liff, que sublinha as diferenças entre o inglês m etropoli
tano e o inglês colonial das índias O cidentais, preocupa-se
mais com as dim ensões políticas e culturais da língua do que
com assuntos de sotaque e léxico. Gostaria de lembrar o leitor
das p rin cip ais varied ad es de lín g u as crio u las do C aribe:
o crioulo de léxico francês falado na Guiana Francesa, na
Martinica, em G uadalup e e no Haiti; “papiam entu”, a língua
crioula de léxico castelhano e português, falada no Caribe
holandês; e o crioulo inglês, falado em Barbados, Jam aica,
T rinidad, T o b ago e outros lugares (Citarella, 1989). C liff
m enciona essa última variedade em seu texto.
Filha de um a fam ília próspera, C liff fez cursos de pós-
graduação no Instituto Warburg de Londres. Sua dissertação
sobre jogos na Renascença Italiana levou-a a Siena, Florença
e U rbino, viagem que terminou com sua participação no
movim ento feminista e com o resgate da identidade que apren
dera a desprezar.
Deixarei que C liff fale por si mesm a, nesta longa citação
de The Lanei o f Look Behincl:
3 08
e a política da ilha, os afro-saxões. Criança entre eles, na
verdade parte deles, uma deles, recebi a mensagem do anglocen-
trismo, da supremacia branca, e a internalizei. Com o escritora,
com o ser humano, tive de aceitar essa realidade e lidar com
seu efeito sobre mim, além de descobrir o que ficou perdido
para mim de meu lado mais escuro, e o que pode estar oculto,
a ser dragado do fundo da memória e do sonho. E que lá está
para ser rocegado. À medida que minha escrita mergulhava mais
fundo nessa parte de mim, comecei a sonhar e a divagar...
309
espanhóis e nos A ndes em contato com as “línguas am erín
dias”; o inglês na Inglaterra e no C aribe, em contato com
as línguas crioulas). Elas revelam os aspectos coloniais das
paisagens lingüísticas, literárias e culturais. O próprio conceito
de literatura pressupõe a língua oficial de uma nação/império
e a transmissão da literalidade cultural nela embutida. Portanto,
não basta reconhecer os elos entre a em ergência da literatura
com parada com o cam po de estudos e a cum plicidade da lite
ratura com a expansão imperial e a construção da nação, além
de todas as com plexidades envolvidas no processo. É neces
sário manter o horizonte colonial e a diferença de poder
entre, por exem p lo, a construção da nação (com o no caso da
Argentina) e a construção da nação com o Império (com o no
caso da Inglaterra). Nem é adequado denunciar a pretendida
universalidade de um observador europeu que não reconheça
a regionalidade de outras literaturas (Said, 1993). É o próprio
conceito de literatura, com o as conceitualizações filosóficas
e políticas da língua, que deveria ser deslocado da idéia de
objetos (isto é, gramática da língua, obras literárias e história
natural) para a idéia de linguajam ento com o prática cultural
e luta p elo poder. A expansão colonial e as heranças c o lo
niais, no sistema mundial moderno e na dupla face da moder-
nidade/colonialidacle, criaram condições para se inventar um
discurso sobre línguas que situa o linguajamento das potências
coloniais acima de outras práticas lingüísticas e culturais.
Continuem os a explorar a questão do linguajam ento e do
colonialismo passando a Borderlancis(Fronteiras), de Anzaldúa.
Ler Borderlands é ler sim ultaneam ente três línguas e três lite
raturas, o que é tam bém uma nova forma de linguajam ento.
Seria útil ter em m ente a articulação da idéia de linguaja
mento feita por Alton Becker, a partir de sua experiência com o
inglês e o burmês:
3 10
fica lento e difícil. Um novo código não é tão d ifíc il de aprender.
Uma nova fo rm a de estar no m undo é que é (Becker, 1991: 227,
grifos nossos).
311
Com palavras torno-me pedra, pássaro, ponte de serpentes que
arrastam
ao rés do solo tudo o que sou, tudo o que um dia serei.
Os que olham (lêem)
Os que estào sempre contando (ou narrando o que lêem).
Os que ruidosamente viram as páginas dos códices
a tinta negra e a vermelha (a sabedoria),
e o que está pintado,
Esses são os que nos levam e conduzem
nos mostram o caminho (Anzaldúa, 1987).]
312
também o exílio com o um local. Pode-se ter ou nào uma “língua
materna”, com o argumenta Derrida (ver Capítulo I), mas não
se pode evitar “nascer” em uma ou mais línguas, tê-las inscritas
em seu corp o, com o argumentarei no próxim o capítulo. As
ideologias nacionais conseguiram naturalizar uma língu a,
defendendo sua pureza, associando-a a um território, e cons
truindo sensibilidades m onotópicas que apoiaram conclusões
que influíram sobre a lingüística enquanto ciência e sobre uma
longa tradição ocidental de filosofia da linguagem (Aarsleff,
1982). Venho sustentando que o estágio atual da globalização
questiona diariamente — através da expansão do capital, de
novos circuitos financeiros, do tecnoglobalismo e de migrações
m aciças — ideais e princípios nacionais sobre a pureza da
linguagem , a hom ogeneidade da literatura e o caráter distinto
das culturas nacionais.
A revista Temas (10 [1977]), p u b lica çã o cu ban a sobre
cultura, ideologia e sociedade, dedicou parte significativa de um
número recente ã questão da produção cultural em espanhol
e em inglês. Am brosio Fornet, cuja integridade intelectual
tenho em alta conta e cuja obra crítica admiro, coloca-se numa
posição difícil ao tentar encontrar critérios para decidir o que
deve ser considerado literatura cubana após 1959, quando
uma produção significativa passa a ser escrita em inglês ou
espanhol e algum as vezes nos dois idiom as (Aparicio, 1996,
1997). Um dos pontos da discussão é o acoplam ento incons
ciente de língua e território, do espanhol e da “cu ban id ad e” .
O m esm o problem a que, no século 19, estimulou os intelec
tuais do Sul e do Norte a conceber as duas Américas em termos
de duas línguas. Não questionaram o fato de que esse laço entre
língua e território e esse conflito entre o inglês e o espanhol
tinham-se estabelecido antes da independência, nos conflitos
entre a Inglaterra e a Espanha. A derrota da “Armada Invencible”,
em 1588, foi um ponto significativo para a reordenação do
sistema m undial m oderno e das form as pelas quais se asso
ciaram lín gu as, culturas subcontinentais e nações. Inclu ído
no problem a língua/literatura discutido por Fornet, há mais
do que a presença de Cuba nos Estados U nidos, com o há
mais do que a questão entre o M éxico e os Estados Unidos
quando se chega ao m esm o problem a entre chicanos/as nos
Estados U nidos. Há os conflitos imperiais entre a Espanha e
a Inglaterra desde o século 17, e os entre a Espanha e os
313
Estados Unidos articulados de formas diferentes em 1848 (com
o M éxico) e 1898 (com Cuba e Porto Rico). A primeira fissura do
sistema mundial colonial/m oderno foi causada pelos conflitos
entre a Espanha e a Inglaterra, quando o cam po de forças e o
conteú do de seu imaginário com eçou a mudar. A segunda
desenvolveu-se em torno de uma rearticulação poderosa e
complexa do sistema mundial colonial/moderno. Esses conflitos
imperiais envolveram um império em decadência e outro em
ascensão. Mas envolviam também, sobretudo, um país de fala
inglesa formado após sua independência em fins do século 18,
e dois países de fala espanhola, que, em fins do século 19, ainda
estavam lutando por uma independência que outros países de
fala inglesa já haviam conquistado quase um século antes.
Foi, em outras palavras, um deslocamento substancial no campo
de forças para o Hemisfério Ocidental, noção que acom panhou
a conquista da independência pelas Américas e a luta por seu
lugar no im aginário da ordem m undial colonial/m oderna.
G o staria de insistir sobre a p re o cu p a ção de A m brosio
Fornet com a “cu ban id ad e” de certo tipo de literatura escrita
em inglês nos Estados Unidos. Com o ele próprio reconhece,
a questão é nacional, e uma questão nacional na perspectiva
de uma nação sitiada desde 1959. Fornet sustenta que não é
o lugar de nascim ento de escritores que lhes dá uma determ i
nada “nacionalid ade”, mas sim a língua habitada por eles que
lhes confere um lugar próprio. A questão principal continua
sendo o local do escritor dentro de um dado grupo de pessoas
que se identificam com uma língua nacional. Mas, basicamente,
toda a questão tratada por Fornet deve-se ao fato de que ele
m antém os elos entre língua, território, literatura e cultura
(nacional). Em outras palavras, Fornet está tratando do pro
blem a do cânone, o cânone das literaturas nacionais. Contudo,
em bora esses problem as pudessem ter sido rapidam ente
resolvidos há cinqüenta anos, dentro dos critérios não proble
máticos da língua nacional e da história hom ogênea da nação,
depois de 1970 as transformações sociais e históricas revelaram
os limites de tais critérios.
Mas voltemos à principal linha de argumentação de Fornet.
Em primeiro lugar, ele presume o princípio de m onolinguaja-
m ento e sustenta que os escritores bilíngües têm, na verdade,
uma “esco lha” entre línguas e a possibilidade de resolver qual
das duas se adapta m elhor às suas necessidades (1997: 5).
3 14
Contudo, insiste Fornet, ao passo que esse cenário é teorica
mente viável, na prática o escritor nem sempre pode se valer
das possibilidades de uma língua sem sacrificar a outra. Ele
tem razão ao salientar que o bilingualismo nunca é simétrico,
mas erra ao presumir que o binlinguajamento tem de ser simé
trico. Na assimetria entre as línguas, não se trata de saber se
alguém sabe uma m elhor do que outra, mas sim uma questão
de poder dentro das estruturas diacrônicas internas do sistema
m undial m oderno e de suas fronteiras históricas externas (a
diferença colonial). Tratei dessa questão no primeiro capítulo,
quando discuti a posição de Khatibi vis-ã-vis o árabe e o francês,
contra o fundo histórico do início do período moderno, quando
o árabe foi deslocado para a margem exterior de um novo
circuito comercial emergente (que hoje chamamos de moderno
sistema mundial) associado com o espanhol, o latim e o cristia
nismo. No caso de Arguedas, é óbvia a assimetria entre o
espanhol e o quíchua, com o é óbvio e necessário lembrar que
foi a colonialidade do poder e do conhecim ento no sistema
m undial m oderno que criou essa situação. O ra, a questão
não é manter a pureza de ambas as línguas e com isso sua
assimetria: aceitar que o quíchua, por exem plo, é melhor para
a poesia e o espanhol para a narrativa, mas que, quando se
trata de teoria e produção de saber, o espanhol está para o
inglês, o francês ou o alem ão, assim com o o quíchua para o
espanhol. A questão é com o “contaminar” a ambos, o espanhol
e o quíchua (e, no caso de latino-am erican(os)as, o espanhol
e o inglês) injetar o quíchua no espanhol e o espanhol no
inglês, conforme o caso. O bilinguajamento, em outras palavras,
não é precisamente o bilingualism o, em que ambas as línguas
são conservadas em sua pureza, mas ao mesmo tempo em sua
assimetria. O bilinguajam ento, com o em Arguedas, A nzaldúa,
C liff, e no “crioulism o” (com o veremos depois), ou o bilin
guajam ento dos “zapatistas” que escrevem em espanhol, inse
rindo estruturas e conceitos das línguas am eríndias, não é
uma questão gramatical mas política, até o ponto em que o
fo co do próprio bilinguagism o é corrigir a assimetria das
línguas e denunciar a colonialidade do poder e do saber.
Esp ero estar d e ix a n d o claro que não estou tentando
discu tir com Fornet, nem pretendo intervir no debate focali
zado por seu artigo. Considerei tanto o debate com o o artigo
de Fornet crucialm ente significativos e minha intenção, aqui,
315
é exam inar a questão da perspectiva da colo n ialid ad e do
poder e não de pertencer a uma nação — considerar essas
questões na história conflituosa do sistema mundial moderno
(no construir e reconstruir de suas margens externas e inter
nas) e a possibilidade de transcender e deslocar os valores
associados à pureza da língua e os problem as subseqüentes
que tal presunção im plica. Citarei novam ente Fornet para a
melhor compreensão dos termos em que o problema está sendo
co lo cad o , e o quanto esses termos têm a ver com os limites
da ideologia nacional para explicar uma estratégia social e
histórica, visando a configurações transnacionais. Não se trata,
novam ente, de estar contra ou a favor da nação; trata-se de
considerar criticamente que os valores nacionais depositados
nas línguas e literaturas já não correspondem á experiência
transnacional de uma parte significativa da popu lação. Nem
correspondem à experiência translingüística em países com o
a Bolívia, onde o m odelo importante não é a m igração atual,
mas a colonização no século 16 , que arma o cenário conflituoso
entre a língua e o território:
316
a questão da língua situa-se no terreno onde está em jogo o
poder cultural. Mas quem está lutando por poder cultural? Os
próprios cubanos, segundo Fornet, pois “os que escrevem
em inglês são excluídos e marginalizados das antologias e
dos estudos sobre a cultura cubana no exílio”. Contudo, Fornet
insiste na “nacionalidade com o categoria literária” e no papel
do Estado de proteger os autores nacionais. Acrescenta que,
em princípio, “um autor nacional é, simplesmente, o que nasceu
no país ou aquele que se naturalizou e portanto tem o direito
de ser reconhecido e prom ovido pelo sistema” (1997: 9). Em
outras palavras, sendo a “nacionalidade” reconhecida com o
categoria, todos os tipos de artifícios têm de ser inventados
com o objetivo de decidir quem incluir e quem excluir. Por
esse m otivo, prefiro o conceito geral de “histórias locais”.
Dentro dessa conceitualização, a “nação” é uma versão parti
cular da história local. É, com certeza, historicamente p ode
rosa pois foi implantada no imaginário do sistema mundial
colonial/m oderno e exportada além de suas fronteiras, de tal
forma que ficou difícil imaginar uma organização social além
da nação. Gostaria agora de continuar a discussão com um
exem plo de Porto Rico e outro do Chile. Esses dois exem plos
nos ajudarão a situar a questão da língua, da literatura e da
nação em um nível diverso, e também a comparar histórias
locais particulares (com o Cuba, Porto Rico e Chile) nas quais
essas relações assumem uma configuração diferente.
Pensem os agora em novos desenvolvim entos que vêm
ocorrendo no dom ínio da literatura, criados por membros da
p opulação crioula nos países de língua espanhola, que estão
m u dan d o a im agem da “divisória co n tin en ta l” e, co n se-
qüentem ente, as geografias literárias. Entendo por “crio u la”
a p o p u lação de ascendência européia e de afiliação cultural
ou, se quiserem , os “nativos” criados pela colonização, que
conquistaram a independência e assumiram o poder depois
dela. Rosário Ferré, escritora muito conhecida, membro de
uma fam ília rica e politicam ente influente em Porto Rico,
escreveu seus dois últimos romances (The House in the Lagoon,
1995; Eccentric Neighborboods, 1998) em Porto Rico, mas em
inglês. Vam os ler dois parágrafos do primeiro romance:
317
e longínqua, em extrema necessidade de obras públicas. A ilha
fora colônia da Espanha durante quatrocentos anos e, como
sempre comentavam os jornais de William Randolph Hearst,
afundava na pobreza. A situação justificava plenamente que
os Estados Unidos assumissem a ilha depois da guerra hispano-
americana. Noventa por cento da população era analfabeta e a
bilharzíase e a ancilostomíase espalhavam-se por toda parte.
Havia uma lista de projetos a serem empreendidos pelo governo
federal para melhorar a sorte da população (Ferre, 1995: 42).
318
escolher literatura escrita em espanhol, mesmo se essa litera
tura for escrita nos Estados Unidos, pois já temos casos assim
entre os que receberam o prêmio Casa das Américas (de Cuba)
na categoria do conto? Um , caso de uma cubana residente em
M iam i, Lourdes Tom ás Fernández de Castro (1998) recebeu o
prêm io na categoria do ensaio artístico e literário; o outro é
o escritor chicano Rolando Hinojosa.
A situação de Ferré é diferente, tanto da de Dorfman quanto
da de Pérez-Firmat, pois ela escreve em inglês em Porto Rico, ao
passo que D orfm an e Pérez-Firmat escrevem em inglês nos
Estados Unidos. A configuração geopolítica da história dos três
países é tam bém diferente. O Chile, por exem plo, não está
ligado historicamente aos Estados Unidos, como Porto Rico e Cuba
desde 1898. Contudo, todos estão escrevendo “memórias espa
nholas” em “língua inglesa” e ao fazê-lo rompem os elos naturais
entre língua e território. O s três, além do mais, são, nesse
aspecto, diferentes do/a escritor/a chicano/a cujas lembranças
são tanto em espanhol quanto em inglês e para quem a questão
de pertencer a um país é, se não igualmente definida, pelo
menos mais complicada. Em sua introdução aos ensaios coligidos
em A n Other Tongue: Ncition a n d Ethnicity in tbe Linguistic
Borderlands (1994), Alfred Arteaga, justificando sua opinião
sobre a relação entre língua, subjetividade e nação, observa:
319
N ão faz m uito tem po, ouvi um colega do C o n e Sul refu
tando argumentos semelhantes aos de Arteaga. Declarou taxa-
tivamente que as questões dos latino-am ericanos e chicanos
eram um problema dos Estados Unidos e não “nosso”. O “nosso”
referia-se a seu conceito de “Nossa Am érica”, que, para ele, é
a Am érica de fala espanhola e (talvez inclu indo o Brasil)
portuguesa. Novamente estava vinculando língua e territoria
lidade. Pois é verdade que a questão latino-am ericana pode
não ser um problem a particular do Uruguai, da Argentina ou
do Chile com o nações específicas, mas isso não significa que
não seja um problem a “espanhol ou latino-am ericano”. A
questão latino-americana envolve tanto a língua espanhola e a
“latinidade” quanto um conflito geopolítico e imperial que foi
articulado no século 19 na encruzilhada da Am érica do Sul e
dos interesses imperiais espanhóis, franceses e norte-am eri
canos. O paradigna nacional prevalece tanto para Fornet
quanto para meu colega do Cone Sul, mas, enquanto para
Fornet a presença de cubanos/as/latinos(as) nos Estados Unidos
constitui um problem a, para o meu colega uruguaio, isso não
acontece talvez devido ao fato de que não existe m igração
m aciça do Uruguai para os Estados Unidos.
Venho sustentando que os fortes elos entre língua, litera
tura e território, concebidos com o uma configuração neutra
no sécu lo 19, estão sendo constantem ente desatados por
transformações sociais e também por práticas culturais. Decisões
recentes contra a educação bilíngüe no estado da Califórnia
falam por si mesmas. Manter os elos entre língua, literatura,
cultura e território im plica em reproduzir alocações imperiais
de configurações culturais e, no caso da “América Latina”, é
algo que perm anece fechado e associado com uma forma de
identificação que coincide com a organização imposta pela
ordem imperial mundial. Encontram-se problemas semelhantes
na Bolívia e no Peru, no que diz respeito ao aim ará/quíchua
e ao espanhol, em vez de ao espanhol e ao inglês. O pensa
m ento liminar no horizonte colonial da modernidade podería
contribuir para a com preensão das heranças coloniais encra
vadas nos atuais conflitos culturais cotidianos e para o trata
mento dessa questão. O nd e agir? Na educação, na m ídia, em
todos os espaços possíveis onde e quando a “cultura” se trans
forma em uma questão de poder, dom inação e liberação. O
fato, por exem p lo, de que nos Estados Unidos a “educação
3 20
bilíngue” im plica o espanhol e o inglês e não, por exem plo,
inglês/francês ou inglês/alem ão é também um fato carregado
da história do conflito imperial e do im aginário repressor da
modernidade/colonialidade no domínio da língua, da “cultura”
e do saber. Mas levem os adiante o argumento e exam inem os
a “créolité” nesse contexto.
O L IN G U A JA M E N T O ALÉM D O S E S T A D O S -N A Ç Ò E S
O cenário que acabei de esboçar encaixa-se em um quadro
mais am plo, que introduzí na primeira parte deste capítulo.
Situa-se no lugar de encontro das heranças coloniais com os
atuais processos globalizantes. O processo crescente de inte
gração econôm ica e tecnológica global e algumas de suas
conseqtiências (como as migrações maciças) estão nos forçando
a repensar as relações entre as línguas (nacionais) e os terri
tórios. A reaiticulação do status das nações, como resultado do
fluxo global de integração econômica, está formando um mundo
de linguajam ento interligado e de identidades cam biantes. À
medida que as pessoas se tornam poliglotas seu sentido de
história, nacionalidade e raça fica tão em aranhado quanto
seu linguajam ento. Zonas intermediárias, diáspora e relações
pós-coloniais são fenôm enos diários da vida contem porânea,
que forçam o linguajam ento a transcender a nação onde a
língua estava presa à ideologia da pureza e da unidade.
A maneira com o a migração modifica o linguajamento rela-
ciona-se com sua direção geopolítica. Enquanto no século 19 as
migrações partiam da Europa para a África, a Ásia, e as Américas,
no fim do século 20 tomaram a direção contrária. Assim , os
movimentos migratórios estão desarticulando a idéia do lingua
jamento nacional e, indiretamente, das literalidades e litera
turas nacionais, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.
Por outro lado, a ascensão das com unidades indígenas e sua
participação na esfera pública (tal com o os recentes aconteci
mentos em Chiapas, ou a política governamental cultural boli
viana) complementam os movimentos migratórios em seu desafio
à idéia da língua nacional e da relação unívoca entre língua e
território. A noção de culturas nacionais hom ogêneas e a trans
missão consensual de tradições históricas e literárias, bem como
da transm issão de com unidades étnicas inalteradas, estão
passando por um processo de profunda revisão e redefinição.
321
É necessário refletir seriam ente sobre os processos pelos
quais o linguajam ento e a atribuição de sentido a grupos
supostamente dotados de traços comuns (por exem plo, “cultura
étnica”, “cultura nacional” etc.) estão sendo recolocados e
com o seus mapas lingüísticos, geografias literárias e paisagens
culturais estão sendo redesenhados.
O processo de globalização em curso não é um fenôm eno
novo, embora a forma pela qual está ocorrendo não tenha
precedentes. Em escala maior, a globalização do fim do século
20 (que ocorre sobretudo através de corporações transnacionais,
da mídia e da tecnologia) é a configuração mais recente de um
processo que remonta aos anos 1500, com o início da e x p lo
ração transatlântica e a consolidação da hegemonia ocidental.
Paradoxalm ente, o início dos períodos moderno e colonial
(aproxim adam ente 1500-1700, com a supremacia dos impérios
espanhol e português), bem com o os períodos m oderno e
colonial (aproxim adam ente 1700-1945, com a suprem acia do
im pério britânico e o colonialism o francês e alem ão), foram
aqueles em que ocorreu a consolidação das línguas nacionais,
concom itantem ente com as migrações fomentadas pela exp lo
ração transatlântica e por melhores meios de transporte. Esse
p ro gresso criou as co n d içõ e s necessárias para solapar a
pureza de uma língua unindo uma nação. A construção do
primeiro navio a vapor gigante (entre 1852 e 1857) possibilitou
m igrações transatlânticas até então im pensáveis. M ilhões de
pessoas m igraram da Europa para as Am éricas entre 1860
e 1914, com plicand o o mapa linguístico colonial e fazendo
exigências crescentes às geografias literárias nacionais. Na
Argentina, por exem p lo, os intelectuais se inquietavam no
fim do século 19 e início do 20, quando a comunidade nacional
foi agitad a p ela m aciça m igração italiana. As m igraçõ es
de indivíduos e a internacionalização de capitais durante a
segu nd a m etade do século 19 influenciaram a difusão da
cultura impressa e da educação geral, enfatizada pelos cons
trutores das nações nas duas Am éricas. Assim , em fins do
século 19, os legados ameríndios tornavam-se relíquias de
m useu, mais uma realidade do passado do que uma força
crítica do presente. O nahuatl, entre outras, foi elim inado
por lingua(jam ento) nacional e tornou-se uma língua (isto é,
um objeto) do passado, em vez de uma atividade de linguaja
m ento de m ilhões de pessoas.
322
O s fatores m igratórios introduziram um e le m e n to de
desordem no horizonte, sob outros aspectos tranqüilo, da
homogeneidade lingüística, literária e territorial. A paisagem de
Arguedas apresenta o conflito entre práticas de linguajamento
anteriores às m igrações de colonização espanhola e à intro
dução de novas práticas trazidas pelos m ovim entos co lo n iza
dores migratórios, ao passo que Cliff e Anzaldúa desenham um
mapa diferente: a migração em sentido contrário, dos territórios
coloniais que receberam a denom inação de Terceiro M undo
(depois de 1945) para o Primeiro M undo (os antepassados de
Cliff emigrando para a Europa; os de Anzaldúa, para os Estados
Unidos). Poder-se-ia dizer que Arguedas, por um lado, e Cliff
e Anzaldúa, por outro, são os dois extremos do espectro cujo
início cronológico eu situo por volta de 1500. Arguedas viven-
ciou a herança do conflito lingüístico criado pelas m igrações
dos centros m etropolitanos para os dom ínios coloniais e as
fraturas da língua local introduzidas pelas línguas coloniais.
Para C liff e A nzaldúa, pelo contrário, as práticas de linguaja
mento fendem a língua colonial. Nos textos de C liff, essas
fraturas resultam da transformação das práticas de linguaja
mento de duas comunidades lingüísticas deslocadas: o nahuatl,
deslocado pela expansão espanhola, e o espanhol, deslocado
pela crescente hegem onia das línguas coloniais do período
m oderno (o inglês, o alem ão e o francês).
As observações de A nzaldúa sobre as futuras geografias
das práticas de linguajam ento são relevantes para o meu
argum ento:
323
ou de contradizê-las. Gostaria, entretanto, de expressar algumas
dú vidas baseadas em outras exp e riê n cias. Essas dúvidas
justificam o desejo im plícito exp ressad o por A n zald ú a e
M oraga de descarrilar o processo que am bos profetizam . O
m edo de Anzaldúa, por exem p lo, de que o inglês se torne o
linguajam ento nacional de descendentes de chicanos/as e de
que o francês seja a língua estrangeira da cultura pode nào
parecer, em 1994, o mesmo que parecia em 1987. Tenho duas
razões para expressar essas dúvidas: uma é o número decres
cente de estudantes que estudam francês em nível universi
tário nos últimos anos. A outra é o interesse crescente por la
francophone , com os mapas lingüísticos e literários do francês
em processo de transformação fora da França e a consciência
cada vez maior no discurso social e acadêm ico da relação
entre língua e raça. O linguajam ento francófono tem tanto
em com um com o linguajam ento francês na França quanto o
lin gu ajam en to e sp a n h o l, nos Estados U n id o s, tem com o
linguajam ento castelhano na Espanha: as mesmas línguas
resultam em prioridades de linguajam ento, sentim entos e
saberes bastante diferentes.
As reflexões de Frantz Fanon ([1952] 1967) sobre as heranças
e políticas coloniais do francês fora da França e as cu m plici
dades entre ideologia lingüística e raça são importantes para
esta discussão. A Europa do século 19 inventou o conceito
de raça e esse conceito preencheu o espaço entre a “pureza
de sangu e” do século 17 e a “cor de sua p ele” do século 20.
Conseqüentem ente, pode-se argumentar que o lugar da ideo
logia lingüística no im aginário do sistema mundial colonial
m oderno pode ser facilm ente rastreado até o ponto em que a
Língua foi racializada (ver Capítulos VI e V II). O m étodo para
classificação de espécies animais proporcionou a base para a
h ipó tese de qu e as “raças h u m a n as” se b aseavam num a
herança que transcendia a evolução social (von H um boldt
[1836] 1988). Ao m esm o tem po, a nova ciência da lingüística
encontrou inspiração para classificar as línguas pelo m étodo
das ciências biológicas, associando, da mesma forma, o caráter
supostam ente único dos povos com as características de suas
línguas. O s hiatos entre as línguas indo-européias e semíticas
(hebreu e árabe) foram interpretados com o oposições lingüís-
ticas com im plicações raciais. Essa interpretação é conhecida
324
dos que se instruíram no discurso colonial espanhol, por causa
da avaliação das línguas am eríndias pelos m issionários e
letrados espanhóis. Ernst Renan (1863), por exem p lo, falava
sobre o caráter monstruoso e atrasado das línguas semíticas,
em contraste com a perfeição das línguas européias, de uma
forma que ecoava os antigos missionários e letrados espa
nhóis. H o je a crença em um a hierarquia de in te lig ê n cia
hum ana baseada no linguajam ento-com o-etnia continua viva
e saudável, m esm o nos círculos acadêm icos, em bora nem
sempre se expresse dessa forma.
O primeiro capítulo de Black Skins, White Masks ([1952]
1967), de Fanon, resposta indireta a Renan, intitula-se “O
N egro e a L ín g u a ” . Afirm a Fanon: “A tribu o im p ortância
primordial ao fenôm eno da língua. É por isso que julgo neces
sário com eçar com esse assunto, que nos proporciona um
dos elem entos da com preensão que o negro tem da dimensão
do outro. Pois está implícito que falar é existir absolutamente
para o ou tro.” (17) As especulações de Fanon giram em torno
dos povos negros das Antilhas Francesas em relação à língua
m etropolitana, e, mais, em relação às distinções entre as
línguas faladas pelos povos da Martinica e de G u ad alu p e, no
Caribe, e as das Antilhas e do Senegal, no contexto da diás-
pora africana. A mímica colonial consistia, no primeiro co n
texto, em adquirir status de branco ao falar bem o francês.
No se g u n d o , os naturais da M artinica sentiam que eram
“m elh o res” que os de G u adalup e e os negros das Antilhas, e
“m elhores” do que os do Senegal, devido às formas de sua
relação com a língua francesa. É por isso que, no com eço,
Fanon declara que “o Negro tem duas dim ensões. Uma com
os outros negros, a outra com o B ranco.” Assim , o receio de
Anzaldúa de que nos Estados Unidos a superioridade co n ce
dida ao francês venha a prevalecer sobre a subalternidade
do espanhol pode dar uma reviravolta interessante, se consi
derarmos a força crescente do francês fora da França (isto é,
o cham ado francophone, embora a própria França também
seja um país francófono!), sem elhante ao espanhol fora da
Espanha e ao inglês fora da Inglaterra e dos Estados Unidos.
D e qualquer forma, a aura moderna do francês falado na França
está assum indo uma posição paralela aos mapas lingüísticos,
às geografias literárias e às paisagens culturais.
325
A “CRÉOLITÉ” E O PENSAMENTO LIMINAR
326
adaptado por escravos, ou se foi uma m odificação do francês
pelos próprios escravos, ao negociar sua primeira língua com
o francês. O ponto essencial é que não há equivalente em
espanhol para o crioulo francês ou inglês. Ao contrário dos
casos já vistos até aqui de duas línguas distintas e diferentes
entre si (isto é, espanhol e inglês ou espanhol e aimará), o
“crioulo” no Caribe é tanto a língua matriz quanto a língua a
ela relacionada. Mas, de qualquer forma, o “crioulo” era, até
há p o uco tem po, considerado um dialeto inferior, e não uma
língua (ver o Capítulo VI sobre a relação entre língua, dialeto,
nacionalism o e colonialidade).
O s três autores de Éloge de la créolité/In Praise o f Creoleness
(119891 1993), B ernabé, Cham oiseau e C o n fia n t, estab e le
ceram distinções entre “créolité”, “negritude”, “am ericanité”
e “antillanité”. Essas distinções separam, por um lado, a língua
da etnia, e, por outro, a língua da territorialidade. A primeira
operação (a separação entre língua e etnia) foi principalmente
de expansão colonial; a segunda (a separação entre língua e
território) de criação do Estado. “Créolité”, por um lado, não
é apresentado de forma progressista, com o um novo conceito
que suplante o anterior, mas com o um conceito que os integra
em sua diferença entre si e em sua diferença em relação ao
crioulism o. “Negritude”, introduzida por Aimé Cesaire, foi uma
recuperação da con d ição do negro africano em confronto
com a brancura européia, uma articulação georracial. Para os
autores de Éloge, “americanité” remete a todos os imigrantes,
em todas as Américas, da Argentina à Nova Inglaterra, incluindo
o Caribe.
Essas distinções têm im plicações muito sérias para a dis
cussão geoistórica do Capítulo II. A dim ensão ontológica de
língua, território e raça, bem com o sua correlação natural,
presum ida pelos intelectuais do século 19, dividiam as A m é
ricas entre espanhóis e anglo-saxônicos e deixavam de lado
o Caribe. Países de fala espanhola (São D om ingos, Porto Rico
e Cuba) ligavam-se naturalmente à imagem territorial da América
Espanhola. C ontudo, Barbados ou Jam aica não poderíam ter
sido ligados da mesma forma ao imaginário dos Estados Unidos,
só porque sua língua oficial era o inglês. Por outro lado, e já
que as ideologias dominantes nas Américas do século 19 eram
as construídas por intelectuais dos países que conquistaram
a independência da Inglaterra e da Espanha, o Caribe Francês
327
ficou mais isolado ainda, m esm o sendo, ao m esmo tem po,
“latino”! Um bom exem plo do m esm o tipo é o fato de que a
R evolução Haitiana foi esquecida, pelo m enos até os anos
70. Perm aneceu não apenas isolada da França, mas também
dos ideólogos da independência nos países de fala hispânica
ou anglo -saxô nica. Naturalm ente, o Canadá deveria aqui ser
levado em consideração, especialm ente agora que o Nafta
rearticulou a Am érica do Norte de um m odo que Bilbao ou
Jefferson não poderíam ter previsto. A fundação do imaginário
g e op o lítico do sistema mundial colonial/m oderno e o lugar
das Am éricas dentro dele remonta ao século 16. No século
19, entretanto, com eçou a ser organizado por uma intelligentsia
de origem “am ericana”, expressando-se em inglês e espanhol.
C h eg o u agora a vez do Caribe com a em ergência de uma
intelligentsia negra. Mas não é só isso, porque as vozes dos
intelectuais am eríndios que temos escutado desde os anos
70 estão tam bém co m p lic a n d o o qu adro a p resen tad o e
defen d id o da perspectiva de “crio u lo s” hispano-am ericanos:
a ausência dos am eríndios, geralm ente situados na Costa
do P acífico durante o período dom inado pelo im aginário
A tlântico, deve ser acrescentada à “ausência” do Caribe.
Mas voltem os ao crioulism o e ao Caribe. Dem orarei mais
agora explorando o potencial epistem ológico do crioulism o
com o forma particular de pensam ento liminar, oriundo de uma
história local particular do sistema m undial m oderno, que
atravessa as três fases: do m ercado inicial de escravos no
im pério esp anh ol, até seu prolongam ento no colonialism o
francês e as repercussões da presença dos Estados Unidos
no Caribe no longo século 20 (desde 1898). Eis as distinções
entre “am ericanidade” e “caribidade”:
328
modo que os italianos, que emigraram em massa para a Argentina
durante o século 19, ou os hindus, que substituíram os escravos
negros nas plantações de Trinidad, adaptaram sua cultura
original a novas realidades sem modificá-las totalmente. A ameri
canidade é, portanto, em muitos aspectos, um a cultura migrante,
em esplêndido isolamento (Bernabé et al., [19891 1993: 92-93).
329
cenário socioistórico iniciado com um a m etáfora que tem
um local histórico e geopolítico bastante preciso: o co lo n ia
lismo francês. O m esmo pode ser feito com outras metáforas
de igual tipo, com o margens (da forma pela qual as venho
usando com o ponto de partida), dupla consciência, transcul-
turação. Contu do, é importante distinguir a maneira pela qual
“crioulizaçào” é usada por Hannerz da em pregada pelos inte-
lelectuais negros caribenhos. “Criou lizaçào”, para Hannerz,
assem elha-se a transculturação para Ortiz: é uma descrição
de “genes” e “m emes” na história social, mas não uma mistura
de loci antropológicos de enunciação, a partir dos quais em
outras ocasiões se descrevem crioulizaçào, transculturação
ou hibridez. Ortiz em pregou o termo para descrever a nação.
Cinqiienta anos depois, Hannerz o usa para descrever um
fenôm eno m undial.
Para os intelectuais caribenhos, crioulism o é algo que lhes
acon tece, arraigado em seu próprio ser e em seu próprio
pensam ento. É, em outras palavras, um fenôm eno arraigado
no próprio pensam ento, oculto na história da m odernidade/
colonialidade e não, com certeza, em qualquer tipo de essência
caribenha. É um caso particular de “pensam ento lim inar”,
sem elhante em sua lógica, mas diferente em sua história da
experiência de chicanos/as nas fronteiras geoistóricas. Difere
tam bém da dupla co n sciên cia das heranças escravas nos
Estados Unidos, e mais ainda de “um outro pensamento” postu
lado por Khatibi na interseção do francês e do árabe, com as
antigas lem branças de conflitos entre espanhóis e m ouros.
Em vez disso, o crioulism o descreve um local territorial e
geoistórico. Com o tal, define-se com o o “único processo de
am ericanização de europeus, africanos e asiáticos no arqui
pélago caribenho” (Bernabé et al., [19891 1993: 93). Mais espe
cificam ente, o crioulism o se define com o um m odo de ser
associad o com a econom ia, e, mais especificam ente ainda,
com a econom ia de plantações a partir da experiência do co lo
nialismo francês no Caribe, aplicável a experiências sem e
lhantes em todo o mundo: “europeus e africanos nas pequenas
ilhas do Caribe; europeus, africanos e indianos nas Ilhas
Mascarenhas; europeus e asiáticos em certas áreas das Filipinas
ou no Havaí: árabes e negros africanos em Zanzibar” todas
são experiências históricas criando condições para um m odo
de ser definid o com o “criou lism o”, que não se liga a um
330
território ou a uma língua, mas sim a uma territorialidade
dispersa e interligada: “Geralm ente baseadas numa econom ia
de p lan tações, essas populações são cham adas a inventar
novos projetos cu ltu ra is que perm itam um a relativa coabi-
tação entre eles" (Bernabé et a l., [19891 1993: 92).
O cruzam ento de povos, territórios, nacionalidade, m em ó
rias, religiões, tudo volta à língua com o com ponente básico
do “crioulism o” : nossa riqueza primordial, nossa, dos escri
tores crioulos, é sermos capazes de falar diversas línguas,
“crioulo, francês, inglês, português, espanhol e tc .” (Bernabé
et al., ([19891 1993: 104). Com o “um outro pensam ento” de
Khatibi, o crioulismo é uma forma de pensar em línguas, ultra
passando, naturalm ente, a pureza m onotópica das línguas
nacionais (por exem p lo, “todos os que vêm para este país
têm de falar X , porque X é a língua deste paísi' , afirm ação
corrente em várias partes do m undo hoje em dia, particular
mente nas nações centrais do sistema m undial m oderno).
Evidentem ente, a língua crioula é o que define um m odo de
ser. Entretanto, o programa e projeto do crioulism o não é
apenas reconhecer e celebrar o crioulo com o língua diferente
do francês, mas escrever e pensar em crioulo, apropriando-se
do francês — daí o potencial epistem ológico do pensam ento
liminar enquanto perspectiva subalterna do crioulismo. Pensar
e escrever em crioulo já não im plica conservar o m esm o prin
cípio de pureza e coerência do francês com o língua h egem ô
nica e colonial; embora possa implicar isolam ento por causa
do núm ero lim itado de falantes do crioulo em relação ao
francês. Mas pensar e escrever em crioulo, a partir do crioulo,
incorporando o francês, significa “usar” uma língua veicular
com o o francês, invadindo assim um m odo de ser dom inante
na perspectiva do subalterno. Isto é, em geral, o que o pensa
mento lim inar vem a ser, em uma perspectiva epistem ológica
e em termos de linguajamento na perspectiva da língua subal
terna no m undo colonial/m oderno. Assim , até o ponto em
que o crioulo é um m odo de ser, de pensar e de escrever em
uma língua subalterna, na perspectiva subalterna e usando e
incorporando uma língua hegemônica — tudo isso não apenas
não se limita a uma história local particular, mas assemelha-se
a diversas histórias locais criadas na interseção de projetos
globais, da colonialidade do poder e da expansão do sistema
m undial m oderno. Com o tal, o crioulism o oferece uma visão
331
diferente da “u n ive rsa lid a d e ” e inaugura a dim en são da
“d iv e rsa lid a d e ” com o os próprios autores do Éloge definem
o dom ínio da convivialidade e da hospitalidade.
As pretensões mais im portantes do Éloge são program á-
ticas, pois definem não apenas uma nova estética, mas uma
estética que é também uma epistem ologia. Em primeiro lugar,
a própria base do crioulismo exige uma complexidade de pensa
mento tão com pleta quanto o próprio crioulism o enquanto
fenômeno (“Explorar nosso crioulismo deve ser feito num pensa
mento tão com pleto quanto o próprio crioulism o.” Bernabé
et al., 1993: 90). Há aqui uma diferença significativa e ilustra
tiva, com o já observei no Capítulo III, entre estudar a hibridez
com o um com plexo de fenômenos em uma perspectiva interdis-
ciplinar (por exem plo, dos estudos culturais) — que conserva,
entretanto, o princípio epistem ológico das ciências sociais,
pressupondo a universalidade do observador — e pensá-la
com o uma epistem ologia que ultrapassa sua definição disci
plinar. Para o últim o, o crioulism o é concebido e form ulado
com o “um aniquilam ento da falsa universalidade, do rnono-
lingüism o e da pureza” ([19891 1993: 90). Assim , a possibili
dade e a necessidade de produzir conhecim ento sem manter
p rincípios disciplinares e um m onolingü ism o das línguas
hegemônicas do conhecimento (por exemplo, inglês ou francês)
é o que p rop õe o criou lism o (com o a “nova co n sciê n cia
m estiza” de Anzaldúa). Por essa razão, os autores do Éloge
(na época em que foi escrito) limitaram sua proposta à arte,
mas com a convicção de que com o tem po a ultrapassaria.
Pois, na verdade, com o definir e praticar uma epistem ologia
com plexa que vai além de sua disciplinaridade normativa (“a
necessidade de clarificação baseada em duas ou três leis de
norm alidade fez com que nos julgássem os seres anorm ais”
(Bernabé et a l., [19891 1993: 90)? A arte permite essa anorm a
lidade. “Por isso parece que, no m om ento, o conhecim ento
pleno do crioulism o será reservado para a Arte, para a arte
absolutam ente... Mas é desnecessário dizer que o crioulism o
tende a irrigar todas as nervuras de nossa realidade para,
gradualmente, tornar-se o seu princípio maior.” (Bernabé et al.
[19891 1993: 90).
O crioulism o nos ajuda a am pliar diversos pontos que
andei assinalando anteriormente. Em primeiro lugar, o criou
lismo com o m odo particular de ser em relação a uma dada
332
form ação lingüística (o crioulo) im plica “habitar a língua”,
não apenas “nascer na língua”. Essa afirm ação não contradiz
o a rg u m e n to de D e s n o e s , q u e co m e n te i a n te rio rm en te,
mas tão-som ente sua conceitualização. O que D esnoes diz a
respeito do espanhol evidentem ente abrange mais do que
nascer nessa língua; significa habitá-la. Conseqüentem ente
esse habitar uma língua não se limita ao crioulism o; mas é
da experiência do crioulism o que se forjou a própria noção
de habitar a língua. Essa experiência é muito diferente do
“residir” em H e g e l e H e id e g g er e tam bém da exp eriên cia
no pensam ento aimará. A diferença resulta, por um lado, da
historicidade do ser na história ocidental, e, por outro, da
diversidade das histórias coloniais. A filosofia da linguagem ,
da forma com o é concebida pela tradição ocidental, de Platão
a W ittgenstein, sublinha a relação entre a língua e o m undo,
o significado e a significância e sua lógica interna, a estrutura
gramatical (Taylor, 1985, 1: 213-292). “Nascer numa língua” e
“habitar uma língu a” nunca fizeram parte dessa tradição (com
exceções com o as de Heidegger e Levinas), especialm ente não
a partir do século 17, quando um paradigma de conhecim ento
científico e disciplinar baseava-se na distinção entre qualidades
primárias e secundárias. As qualidades primárias pertenciam
ao objeto, e as secundárias ao sujeito. Isto é, o sujeito é trans
parente e incontam inado pela historicidade e pela história do
corpo (Taylor, 1985: 146). Numa tal epistemologia não há lugar
para a noção de nascer em uma língua e habitá-la com o fonte
de conhecim ento. Essa, sugiro, é a dificuldade que Derrida
encontra em tratar com Khatibi. Enquanto “um outro pensa
m ento” em Khatibi (com o o “crioulism o” para os autores de
Éloge) é uma epistem ologia fundada na “habitação” de uma
língua (crioulo ou arábico) em tensão com uma língua co lo
nial (francês nos dois casos), para Derrida a experiência de
“habitar” uma língua parece estranha. Ele faz seu jogo de
crítico da tradição filosófica ocidental que acabei de mencionar
dentro dessa mesma tradição. Ele habita uma tradição filosó
fica que acha difícil aceitar uma reflexão sobre a língua baseada
no princípio de que é possível “habitar” uma língua na dife
rença e na subalternidade colonial.
Em se g u n d o lugar, o crio u lism o co n vid a a um a volta
ao “dilem a de Chakrabarty” e à questão da história e dos
estudos subalternos. O crioulism o literário toma o lugar da
333
historiografia, já que a historiografia, enquanto prática disci
plinar, não pode atingir a fonte do crioulismo. “Nossa história
(ou mais precisamente nossas histórias)”, declaram os autores
do Éloge, “naufraga na história co lo n ial”. Essa form ulação,
com o diversas outras do Éloge , deve muito a Glissant. Nesse
caso, a dívida é para com a distinção feita por Glissant entre
Literatura e literatura; História e história, estabelecida em seu
“Le discours antillais” ([1981] 1989: 61-77). Com o criadores
de literatura, os autores de Éloge invocam os silêncios da
história oficial. “O que acreditamos ser a história caribenha”,
continuam , “é apenas a história da colonização do C arib e .”
(Bernabé et al., ([1989] 1993: 98). O que está faltando é “a
resistên cia o p a ca dos q u ilo m b o la s aliada à sua d e s o b e
d iê n c ia . O novo heroísmo daqueles que se levantaram contra
o inferno da escravidão, revelando alguns códigos obscuros
de sobrevivência, algum as qualidades indecifráveis de resis
tência, a incom preensível variedade de artifícios, as sínteses
inesperadas de vida” ([1989] 1993: 98). O ra, tal form ulação
seria provavelm ente aprovada com o termo disciplinar pela
historiografia e seus praticantes. Talvez não fosse aceita, entre
tanto, com o form ulação disciplinar do problema. Se for esse o
caso, então Chakrabarty tem razão: a história enquanto disci
plina é a História européia até o ponto em que a história recu
perada pela literatura não tem valor ep istem o ló gico . Mas
prossegue a busca da história colonial pelos autores do Éloge:
3 34
m étodo, e os autores do Éloge , acom panhando Glissant, o
“silên cio” com o destino da viagem :
335
A diversalidade global, enquanto anseio e projeto político,
assem elh a-se ao que o te ó lo g o latin o -am erican o da lib e r
tação Franz Hinkelam m ert (1996: 238) denom inou “fragm en
tação com o projeto universal”. A palavra “fragm entação” tem
uma reverberação pós-m oderna, em bora o argum ento de
Hinkelam m ert e seu horizonte histórico, alicerçado na colo-
nialidade, aproxim e-se de fato mais do crioulism o do que
dos pensadores pós-m odernos. O interesse de Hinkelam m ert
reside na necessidade de uma “nova ló g ica ” que nos libere
do “universal abstrato”, que é a lógica do universalism o, do
purism o, do m onolingüism o. Para Hinkelam m ert, um a outra
lógica não pode ser um outro ou antônim o de universalism o
abstrato (isto é, a lógica do m undo neoliberal ou de um
neo-socialismo utópico), mas uma “lógica do plural” (1996: 238).
Ele co n ceb ia a p lurilógica (a versão de H inkelam m ert da
diversalidade global) com o fragmentação. A “fragm entação/
pluralização com o projeto implica uma resposta universal. A
fragm entação não pode ser fragm entária”, mas plural (1996:
238) e descentrada. Enquanto para os autores de Éloge o
francês com o língua e cultura é o agente da efetivação do
m onism o e do universalism o, para Hinkelam m ert é a lógica
global do capitalism o no fim do século 20. O crioulism o com o
lógica da diversalidade e a fragm entação enquanto projeto
universal da pluralização constituem reações em busca de uma
outra lógica e de um outro pensam ento, que não p ode ser
outro senão o pensam ento liminar na perspectiva do su bal
terno, com o venho tentando argumentar a partir de “um outro
pensam ento”, proposto por Khatibi, da “dupla co n sciê n cia ”
de Du Bois, do crioulismo/diversalidade dos autores de Éloge
(Bernabé, Cham oiseau, Confiant) e de Glissant, bem com o
da “nova consciência mestiza” de Anzaldúa e da “fragmentação/
pluralidade” de Hinkelam m ert. Q u a n d o exam inam os esses
conceitos individualm ente, vem os que cada um em erge com o
um a reação, originada em um lugar subalterno — de h istó
rias locais muito específicas — contra projetos globais enquanto
forma de efetivar a subalternização. E esses conceitos não
nascem da vitim ização, mas todos instauram uma p osição de
“celebração ” (isto é, de louvor ao crioulism o), de um a outra
lógica articulada da perspectiva e da experiência da subalter-
nidade, incorporando em si o saber hegem ônico.
336
OBSERVAÇÕES FINAIS
337
interpretações subalternos que vimos neste capítulo (e, assim,
um a “g ra n d e ” co n trib u ição do “Ilu m in ism o ”). C o n tu d o , é
necessário associar tais afirm ações filo só ficas com a id e o
logia cristã preexistente e a história da colonização do século
16 ao 18. A associação entre pagãos e bárbaros, bárbaros e amerín
dios, e com africanos e escravos, projeta para o primeiro plano
a noção da “missão civilizadora”.
Sem que Kant o soubesse ou planejasse, sua trem enda
recomendação “tenha a coragem de usar seu próprio raciocínio”
(Kant, [17901 1973) tornou-se privilégio dos poucos que se
outorgaram a tarefa humanitária de civilizar os outros povos
e de lhes dizer com o ter a coragem de usar seu próprio racio
cínio. A análise feita por M ichel-Rolph Trouillot da Revolução
Haitiana, com o conseqüência direta da cegueira da m entali
dade iluminista, mostra que não se reconheceu a coragem e a
visão desses haitianos que fizeram a Revolução Haitiana usando
seu próprio raciocínio. Diversam ente da independência nas
Am éricas e da Revolução Francesa, a Revolução Haitiana foi
uma realização de indivíduos cujo status hum ano não foi tão
claram ente reconhecido pelos revolucionários am ericanos e
fra n cese s. O s afro -am erican o s ou am eríndios (co m o no
fracassad o levante de Tupac Amaru, na segunda metade do
século 18 no Peru) não entraram no quadro da idéia ilum i
nista de “hom em ” e “cidadão”. A independência de afro-ameri
canos e am eríndios estava associada à descolonização, ao
passo que a conquista da independência pelos “primeiros ameri
canos” do norte ou dos “crioulos” no sul foi sim plesm ente
isso, a independência de indivíduos em relação a seus ante
passados europeus. A universalidade da razão tornou-se a
justificativa para a diferenciação cultural, que, no caso das
Am éricas, tinha seu fundam ento na antiga configuração de
com unidades am eríndias, afro-americanas e européias.
O eficiente silenciamento da Revolução Haitiana na história
das Américas acabou gerando duas ideologias geopolíticas e
lingüísticas dominantes: a Anglo-Am érica e a América H isp â
nica, atribuindo-se ao Brasil o papel de coadjuvante todas as
vezes que a “latinidade” precisava ser encenada nos conflitos
imperiais que emergiram por volta de 1848. Em outras palavras,
as com unidades ameríndias e afro-americanas perm aneceram
e x clu íd a s do quadro na construção das “D uas A m é rica s”.
A Revolução Haitiana é um m om ento importante dentro da
338
história do sistema m undial colonial/m oderno e da reconfi-
guração da modernidade/colonialidade. A Revolução Haitiana
é tão importante na história do m undo moderno com o a inde
pendência anglo-americana, a Revolução Francesa e a indepen
dência dos países latino-am ericanos. E a Revolução Haitiana
é crucial também para a previsão de um novo cenário de confi
gurações geopolíticas e para a com preensão da função das
línguas nas intervenções políticas e na construção de com u
nidades. “Um a outra língua” é a condição necessária para “um
outro pensam ento” e para a possibilidade de ultrapassar a
defesa das línguas e das ideologias nacionais — ambas vêm
atuando em cum plicidade com as potências e com os conflitos
imperiais (com o o silêncio sobre a Revolução Haitiana mostra
claram ente na construção do im aginário das “Am éricas”).
A em ergência dos latino-am ericanos nos Estados Unidos
co m p lica ainda mais o qu adro, particularm ente nos três
m o m en to s do p o d er n a cio n a l e im perial qu e criaram as
condições de sua emergência: 1848 (fronteira México-Estados
U nidos); 1898 (Guerra Espanha-Estados U nidos, in d ep en
dência tardia de Cuba e Porto Rico) e 1959 (Revolução Cubana).
Se 1848 sinalizou que a fronteira continental era um sonho
na perspectiva dos projetos globais, 1898 e 1959 romperam
tam bém co m a fronteira co n tin en tal e in corp o raram ao
quadro os caribenhos e, com eles, o Caribe Francês e o Caribe
B r itâ n ic o . E m bora as c o n fig u r a ç õ e s territoriais fo ssem
com plem entares às línguas e aos m apas lingüísticos (co lo
niais e nacionais) com o bases das geografias literárias e das
paisagens culturais, neste m om ento a história e xige “uma
outra lín gu a” e “um outro pensam ento” fundado na diferença
colonial e não nos territórios nacionais e imperiais.
No próxim o capítulo continuo uma discussão sem elhante,
mas no nível da língua e da epistem ologia, em vez da língua
e da literatura/cultura.
339
C A P Í T U L O VI
BILINGUAJANDO 0 AMOR
PENSANDO ENTRE LÍNGUAS
Menardo amara (grifos nossos) as histórias que seu avô
contava sobre o velho que bebia cerveja fedorenta e falava
com (grifos no original) os antepassados. Menardo amara
(grifos nossos) as histórias até o sexto ano da escola quando
um dos padres, seu professor, dera uma longa aula (grifos
nossos) sobre os pagãos e as histórias pagãs.
Leslie Marmon Silko, Almanac o f the Dead
341
M éxico), novas formas de conhecim ento que revelam os limites
da epistem ologia ocidental estão em ergindo nas fronteiras da
globalización/m undialización, da m odernidade/colonialidade,
fronteiras habitadas pela diferença co lo n ial. O pensam ento
liminar exige, além de planejam ento econôm ico e organização
social, uma epistem ologia de bilinguajam ento e não de terri
tório, como a que sustentava as antigas religiões e a ciência, sua
versão leiga ocidental. Este capítulo explora essa possibilidade.
ITEM S, órgão do C o n selh o de Pesquisa da Ciência Social,
publicou uma versão abreviada da conferência proferida por
Immanuel Wallerstein na Universidade de Stanford, para com e
morar a p ublicação de Opeu the Social Sciences. Ele observou
que “pelo m enos 95% de todos os pesquisadores e de toda a
produção acadêm ica do período de 1850 a 1914 e, provavel
m ente, m esm o até 1945, origina-se em cin co países: França,
Grã-Bretanha, as A lem anhas, as Itálias e os Estados U nidos.
Há m inúsculas contribuições em outros lugares, mas basica
m ente, não apenas a produção acad êm ica vem desses cinco
países, com o a maior parte da produ ção de todos os p esqu i
sadores é sobre seu próprio país” (W allerstein et a l., 1996).
Em uma p ublicação anterior, W allerstein já havia adiantado
o ponto que acabei de m encionar, em bora tivesse incluído
também as línguas do conhecim ento acadêm ico. Dissera nessa
ocasião, depois de referir-se aos locais geoistóricos das ciências
sociais: “Cinco países, quatro línguas. A geopolítica da época
colocava pelo m enos três dessas línguas — inglês, francês e
alemão — no mesmo plano em termos de prestígio e influência
(isto é, muitos falantes não nativos que tinham aprendido a
língua com o sua principal segunda lín gu a).” (Wallerstein, 1996:
2). Mais adiante, após exam inar as m udanças sofridas pelas
ciências sociais nos últim os 150 anos, Wallerstein observou
que “nesse m eio tem po, entretanto, alterou-se a dem ografia
acadêm ica. O núm ero de pesquisadores falantes do espanhol
aum entou significativam ente, e eles exigiram a rem odelação
de seus estatutos em 1994, tornando o espanhol a terceira
língua oficial da a sso c ia ç ã o .” (1996: 3).
Neste capítulo, tento ligar a política das línguas e culturas que
explorei no anterior à política da língua e do conhecim ento.
A diferença colonial e a co lo n ialidad e do poder situam -se
aqui no âm ago da g n o sio lo g ia , da epistem ologia e da herm e
nêutica, das ciências nom otéticas e ideográficas (W allerstein,
3 42
1991b: 237-256). Quais são as im plicações epistem ológicas do
fato de que “cinco países, quatro línguas” permeiam a produção
acadêm ica, em bora a “geopolítica da época colocasse três
dessas línguas — inglês, francês e alem ão — em pé de igual
dade de prestígio e influência”? Exam ino o quadro mais amplo
das conseqüên cias epistem ológicas da geopolítica da distri
buição lingüística no sistema mundial moderno no Capítulo 7.
Aqui, concentro-m e na exploração dos limites da política do
saber, articulada em torno da língua, e as principais línguas
do m undo m oderno, segundo as observações de Wallerstein.
Conseqüentem ente, meu interesse aqui é pela língua e
pelos signos e memórias inscritas no corpo, mais do que pelos
signos inscritos no papel. Explorei algures (Boone e M ignolo,
1994; M ignolo, 1995a) a questão da escrita e do saber e não
vou aqui repetir o argum ento. Em vez disso, dou prossegui
m ento ao esforço, iniciado no capítulo anterior, de pensar além
da língua. Aprofundo a idéia do linguajam ento, o m om ento
entre fala e escrita antes e depois da língua, possibilitado
pelas línguas. Em vez de língua e conhecim ento, falo agora
do linguajam ento e do conhecer. Espero que essa exploração
me permita convencer o leitor da validade do conhecim ento
fora das “três lín g u as” — conhecim ento que, em cu m p lici
dade com a epistem ologia moderna e o conceito m oderno de
razão, as “três línguas” contribuíram para eliminar. O lingua
jam ento não é aqui usado para detectar situações de bi- ou
plurilinguajam ento. Pelo contrário, o bilinguajam ento revela
a ideologia do m onolinguajam ento (e especialm ente a idéia
das línguas nacionais no im aginário dos Estados m odernos),
isto é, de falar, escrever, pensar dentro de uma única língua
controlada pela gram ática, de m odo sem elhante ao controle
exercido pela constituição sobre o Estado (Volde der Valde,
1997). No fim do século 15, Antonio de Nebrija escreveu a
primeira gram ática da uma das línguas do sistema mundial
m oderno (espanhol) associando claram ente a gram ática á
co lo n ização (M ignolo, 1992b; 1992c; 1996d). Enquanto os
estranhos objetos que atraíram Nebrija lhe possibilitaram
ordenar o caos do linguajam ento cotidiano, Anzaldúa e n co n
trou-se numa situação em que o bilinguajamento cotidiano em
regiões fronteiriças revelou as estruturas desagregadoras que
faziam da língua um objeto não mais controlado e contido dentro
de uma gram ática, mas do linguajam ento (bilinguajam ento)
343
encrustado em seu corpo. Enquanto, logo no início do sistema
m undial m oderno, Nebrija deu com o contribuição a idéia da
capacidade de im aginar a língua com o um objeto estruturado
e um sím bolo nacional, Anzaldúa contribuiu, ao alvorecer do
sistema, com a noção da capacidade de revelar o linguaja-
m ento atrás das línguas e o bilinguajam ento com o condição
fund am ental do p ensam ento lim inar. Em outras palavras,
e n q u a n to o im agin ário do sistem a m u n d ial m o d ern o se
detinha em fronteiras, estruturas e o estad o -n ação co m o
e sp a ço dentro de fronteiras com uma língua nacional, lingua-
jamento e bilinguajam ento, com o condição do pensam ento
liminar a partir da diferença colonial, abre-se para um im agi
nário p ó s-n a c io n a l. C o n se q ü e n te m e n te , no qu adro m ais
a m p lo do sistema m undial m oderno, o pensam ento liminar é
pós-ocidental e é pós-colonial na história da política da língua.
O leitor precisa lembrar que, tal com o a pós-m odernidade é
a transformação da m odernidade, a pós-colonialidade é seu
outro lado, a transformação da colonialidade.
N o prefácio a Borderlands/La frontera: The New Mestiza,
Anzaldúa afirma:
344
é uma dupla articulação de m inha primeira sensibilidade
form ada na Am érica H isp ân ica e a ch egada do inglês na
m inha vida madura. Gostaria de dizer, então, com Hum berto
Maturana e Francisco Varela (1987) e, aceitando o convite de
A nzaldúa, que um número significativo de seres hum anos,
o u , se preferirem , de organism os vivos, atuam dentro da
língua; e acrescentaria que a língua não é um objeto, algo
que os seres hum anos possuem , mas um processo contínuo
que só existe no linguajam ento (Maturana e Varela, 1987:
206-215). Martin Heidegger ([1951] 1977; [1954] 1977) dizia que
a língua é a morada do Ser. Poder-se-ia dizer, em vez disso,
que a língua é a morada do Linguajam ento. O conceito de Ser
está entranhado numa filosofia denotativa de linguagem que
isola a noção de “idéia” com o o resultado do pensam ento de
acordo com a singularização “da essência da pessoa” e do “eu ”.
O lin gu ajam en to , entretanto, situa a interação entre in d i
v íd u o s, entre seres hum anos em vez de idéias preexistentes.
É precisam ente na interseção entre a pessoa, o eu, seres
hum anos, organismos vivos — seja o que for — que o lingua
jamento se situa com o condição da possibilidade de língua.
O dito de Richard Rorty — que, enquanto o conceito filosófico
paradigm ático no século 19 era a idéia, no século 20 é o
“te xto ” (1982: 90-109) — pode ser suplantado (ou no mínimo
desafiado) pelo conceito de “linguajam ento”. A possibilidade
de conceber e desejar pensar além de pensamentos e do lingua
jamento, na verdade além da língua, demonstra a capacidade
recursiva do linguajam ento: o linguajam ento na língua nos
permite descrever-nos interagindo, tanto quanto descrever as
descrições de nossas interações.
As línguas nacionais surgiram em cumplicidade com o Estado
e com instituições que regulavam os usos e os abusos da
língua. A colonialidade do poder e a diferença colonial traba
lharam e continuam trabalhando em todas as partes do planeta
onde a construção da nação (na América Latina do século 19
ou na Ásia e na África de m eados do século) se associou â
diferença colonial. Pergunto-m e com o a idéia de uma língua,
um território, teve tanto êxito que deslocou a diversidade do
plurilinguajam ento (ou, em nível mais perceptível, do pluri-
lingualism o). C o m o foi que a literalidade e as gram áticas
escritas demarcaram as fronteiras entre línguas e controlaram
o fluxo natural do linguajamento, que atuava sem o policiamento
345
das gramáticas escritas e a política natural da língua? Entre
tanto, por volta de 1970, com eçaram a aparecer sinais de que
as línguas nacionais nào eram tào naturais com o se pensava.
Cham aram a atenção para a diversidade da língua em um
determ inado território nacional. Não é de surpreender que
esses sinais viessem do cham ado Terceiro M undo, em uma
época em que os movimentos sociais ocorriam paralelamente
a um repensar da educação bilíngüe dentro do cam po da polí
tica lingüística e a uma erupção de pesquisa sociolingüística
sobre o bilingualism o e línguas subalternas (por exem p lo, o
trabalho de Labov (1972) sobre o “inglês negro”. Foi também
durante os anos 70 que o movim ento dos chicanos com eçou
a se fazer notar na esfera pública norte-am ericana, trazendo
à luz e articulando um processo e uma prática que eu chamaria
de bilinguajam ento (explico mais adiante por que não era
apenas bilíngüe).
Foi ainda nos anos 70 que surgiu a idéia da incapacidade
do Terceiro M undo para expressar ideologias convincentes,
articulando o pluralismo lingüístico com o nacionalism o. Isso
ocorreu enquanto os conflitos entre as línguas imperiais e
indígenas constituíam um obstáculo ao processo de d esco lo
nização. Por outro lado, parecia que as potências coloniais
não estavam preparadas para abandonar a ideologia nacional
das línguas nem a idéia de culturas a elas associadas. A
e xib içã o m aciça, em preendida pelo governo espanhol antes,
durante e depois do ano de 1992, para reivindicar a glória da
“descoberta” da Am érica, ainda está viva em nossa memória.
Ainda hoje a Espanha prossegue com seus esforços de “vender”
a cultura espanhola através de universidades nos EUA, luxo
que não se permite ã Bolívia, por exem p lo. Testem unham os
agora o fluxo de francos franceses para os Estados Unidos e
para a América Latina, para manter viva as heranças da cultura
francesa nas Américas e no m undo, luxo que não é permitido
à M artinica, G uadalup e ou M arrocos. Enquanto isso, o inglês
am ericano torna-se cada vez mais a língua das transações
internacionais e, paradoxalm ente, desafia a unidade lingüís
tica da com unidade européia, onde o inglês americano obscu-
rece a herança do inglês com o a língua do Im pério Britânico.
Não é apenas a gramática da língua que está em jogo, mas a
geopolítica da língua: projetos globais traçam mapas lingüís-
ticos, cartografias literárias e epistem ológicas. Um paradoxo
346
curioso é que, à m edida que o inglês se desassocia mais de
seu território, seu terreno é substituído por uma dim ensão
transnacional. Finalm ente, o inglês torna-se uma língua que
permite identidades e identificações nacionais, transnacionais
e intranacionais. A globalização possibilitou tanto m igrações
m aciças quanto a visibilidade dos m ovim entos sociais locais.
Da mesma form a, possibilitou o ressurgimento de línguas
indígenas elim inadas pela expansão colonial e imperial e pelo
crescim ento de línguas imperiais fraturadas dentro e fora
dos territórios nacionais (ver Capítulo IV). Essa situação nos
co n vid a a perguntar com o foram descritos os elos entre
lín gu as e territórios no século 19 e com o “o linguajam ento
em línguas naturais e imperiais” tornou-se um terreno natural
de conflitos nacionais e imperiais (culturais).
Tal tarefa poderia ser em preendida em diversas frentes.
Eu gostaria de focalizar a própria fundam entação de uma
filosofia da linguagem , que foi também uma explicação da
linguagem , bem com o justificativa para usar a língua com o
ob jeto de d esejo e instrum ento de d o m in ação c o lo n ia l e
n acion al. O cenário anterior bem pode ser exam inado da
perspectiva de grupos situados na extrem idade receptora da
expansão colonial, que perceberam as línguas da perspectiva
da ideologia imperial e presumiram que a língua do império
era/é preferível a suas próprias línguas nativas. O u , no caso
do espanhol ou do inglês nas Am éricas, a versão imperial
poderia ser preferível à local. Esse foi o debate entre Andres
B ello (um ven ezuelan o residente no Chile) e o argentino
D o m in g o F. Sarm iento, na prim eira m etade do sécu lo 19
(R am os, 1989). O uso da língua, com o instrumento de dom i
nação, a constrói com o objeto de desejo, já que a educação e
a literalidade nas colônias baseiam-se no m odelo e na história
do im pério. O paradoxo de que a d esco lo n ização após a
Segunda Guerra M undial cam inhou de mãos dadas com a
construção da nação, quando a construção da nação fazia
parte do próprio projeto da modernidade, pode ser com preen
dido na perspectiva da literalidade e da transmissão às colônias
dos ideais europeus. Se, então, a reconceitualização das línguas
e sua cu m p licid ad e com a nação pode ser perseguida em
várias frentes, eu gostaria de tentar — com o disse — examinar
os alicerces (que não existiam , mas eram postulados com o
tais) de um a filosofia que é tanto uma conceitualização da
347
natureza da língua com o uma conceitualizaçâo das cu m plici
dades entre línguas, impérios e nações. Ao repensar a questão,
tentarei também uma eliminação e uma reconfiguração projetiva.
348
as colônias independentes da Am érica — (ver Ramos, 1989;
Cussen, 1992).
Em 1492 — ano da vitória final do Reino de Castilha contra
os m ouros — quando disse à rainha Isabella da Espanha que
as línguas eram a companheira do império, Nebrija respondeu
à pergunta da rainha sobre o objetivo de uma gramática de
uma língua vernácula. Cerca de trezentos anos depois, quando
os intelectuais rom ânticos europeus reagiram contra a busca
de u n iversais lin g u ístico s (à la Leibnitz) e trouxeram a
discussão de volta à região e ao povo, eles antecipavam uma
filosofia de linguagem associada à política pública e ã cons
trução da nação (Aarsleff, 1982: 146-209). Em fins do século
19, essa filosofia iria criar a forte convicção de que há uma
relação u n ívoca entre línguas e territórios, e que há uma
relação unívoca entre povos que falam uma dada língua e
seu senso de identificação consigo mesmos e com seu território
(H obsbaw n, 1990: 14-45). A idéia de associar línguas e terri
tórios não foi uma nova idéia introduzida pela filosofia do
Ilum inism o. Já tinha sido claramente articulada um século
após Nebrija, quando Jo sé Aldrete, em Castela, escreveu a
primeira história do castelhano em 1601 (M ignolo, 1992b;
1995a: 29-67). Esse foi o apogeu do império castelhano nas
índias O ciden tais, um império que se estendia do Caribe às
Eilipinas e às ilhas do Pacífico. Foi, na verdade, na história
da língua que sua cum plicidade com o território foi explorado
por Aldrete. Em aproxim adam ente cem anos, Castela tinha
estendido seu dom ínio através do Atlântico e do P acífico ,
tinha criado uma gramática para a língua do reino que na
Europa se estendia além da Península Ibérica, e produzira
uma história da língua ligada à geografia, localizada no centro
do reino (M ignolo, 1992b; 1992c).
Para compreender as implicações de Nebrija para as culturas
acadêm icas, é necessário com preender que seu argumento
repousava sobre uma filosofia da linguagem que poderia
resolver o problem a de postular uma língua unificada, capaz
de contrabalançar o efeito das pluralidades de línguas exis
tentes. As raízes do argumento de Nebrija remontam, por um
lado, a Santo Agostinho e à fusão das tradições platônica e
cristã. Por outro lado, remetem à (Valia, 1406-1457) Linguae
latinae elegantiom m libri sex, escrita para salvar a Roma cristã
do analfabetism o lingüístico e cultural (“barbarus”).
349
Na E sp an h a, cerca de quarenta anos após N ebrija ter
com posto sua gram ática, Luis Vives (conhecedor da obra de
Santo A gostinho e responsável pela edição crítica de suas
obras orquestrada por Desiderius Erasmus) estava delineando
la questione cie la lingua em termos do contraste entre a
língua prim ordial, falada por A d ão, e a Torre de Babel com o
o acontecim ento que iniciou a diversidade linguística (Vives,
[1533?] 1964). A firme crença de Santo Agostinho numa língua
original vem das Escrituras e também de seu arcabouço teórico
p latônico. Com o neoplatônico e cristão, na leitura do Livro
Sagrado, Santo Agostinho presumia os princípios m etafísicos
de uma unidade original, a partir da qual se poderia explicar
a pluralidade e m ultiplicidade das coisas. Segu ndo Santo
A gostinho, a língua original e unificada não poderia e não
deveria ser nom eada porque não era necessário distingui-la
de outras línguas hum anas. Poderia ser cham ada de língua
humana ou locução humana (De civitcite Dei 16.11.1). Contudo,
a língua hum ana não bastou para manter felizes os seres
hum anos, livres da transgressão à lei, com o no projeto de
construir um a torre que alcançasse o céu . A d ivisão das
lín g u a s, que m otivou a divisão dos povos e com unidades,
gerou o número de setenta e duas, cada uma identificada por
um nom e especial. Foi nesse ponto que se tornou necessário
encontrar um nom e para distinguir a língua prim eva das
restantes. Santo Agostinho tinha boas razões para acreditar
que a língua original (primeva) fosse o hebraico.
Em bora V ives co n h e ce sse Santo A g o stin h o e estivesse
formulando uma filosofia da linguagem que poderia ser usada,
direta ou indiretam ente, pelos m issionários que colonizavam
línguas nativas, Nebrija estava de certa forma reescrevendo o
programa de Valia, esboçado no prefácio de sua Linguae latinae
elegantiorum libri sex ([1442?] 1952). Valia com preendeu que
reconstruir um império não era um alvo que se alcançasse
por m eio de armas. Em vez disso, ele pretendia realizá-lo
pelo expediente das letras. Valia contrastou o latim usado
por seus antepassados com a expansão do império rom ano.
Ele enfatizou o poder subjacente à língua de atuar sobre as
conquistas geográficas com o força unificadora. Valia previu
a reconquista de seu poder perdido e, conseqüentem ente,
previu o papel central que a Itália estava destinada a repre
sentar no futuro. Certamente, em 1492, era difícil para Nebrija
350
prever muita coisa sobre a futura colonização do Novo Mundo.
Deve entretanto ter visto com clareza que Castela tinha a opor
tunidade de tomar o lugar do Império Rom ano. Se o prefácio
de sua Gram ática castellana foi na verdade uma reescrita do
prefácio de Valia, as condições históricas tinham m udado:
enquanto Valia tentava salvar um império consolidado deca
dente, Nebrija previa a construção de um novo.
Há outras questões que merecem ser com paradas. A luta
de Valia contra os bárbaros, sua crença de que a história da
civilização é a história da língua (antecipando V ico) e a forte
ligação que percebia entre língua e im pério são questões
repetidas por Nebrija. H á, contudo, diferenças significativas.
Nebrija visualizava o centro do im pério em Castela em vez
da Itália e o castelhano com o língua do im pério, em vez do
latim. Segue-se naturalmente que as gramáticas das línguas
am eríndias nativas foram escritas principalm ente em caste
lhano, usando a gramática latina de Nebrija (não a castelhana)
com o m odelo. É também interessante notar que as histórias
do N o vo M u n d o foram escritas principalm ente em caste
lh an o . Dessas diferenças resulta a tensão entre o latim com o
língua da erudição e o castelhano com o a língua da política
e da con versão. Tinha ch egad o a hora de passar da escrita
de gramáticas de línguas nativas à escrita de histórias das
memórias dos nativos.
As primeiras histórias de culturas ameríndias conhecidas
na Europa foram escritas por membros da cultura que intro
duziram a literalidade ocidental para os nativos (M ignolo,
1981; 1982). N o processo, os métodos nativos de registrar o
passado e transmiti-lo às gerações futuras sofreram as conse
quências da literalidade, tanto sob a forma de aprender um
novo m odo de escrita e leitura quanto de receber (talvez sem
saber) narrativas feitas por aqueles que estavam introduzindo
o alfabeto (Scharlau e M ünzel, 1987; M ignolo, 1989a; 1992a;
1992b; B oone e M ignolo, 1994). O s historiógrafos espanhóis
atuaram na crença de que o alfabeto era condição necessária
para a escrita h istoriográfica. R econheceram que os am e
ríndios tinham meios de registrar o passado (por narrativas
orais ou em escrita picto-ideográfica), embora não a aceitassem
com o um equivalente am eríndio da escrita historiográfica.
D epois de terem concluído que os ameríndios não tinham
historiografia, os historiógrafos espanhóis se autodesignaram
351
para escrever e colocar cie forma coerente as narrativas que,
segundo eles, os am eríndios contavam de forma totalmente
incoerente. Q u an d o surge uma situação com o essa, em que o
ato de escrever a história de uma com unidade significa tanto
suprim ir a p ossibilidade de que a com unidade possa ser
ouvida quanto não confiar na voz dos “outros”, testemunhamos
um bom e x em p lo da c o lo n iza çã o dos gêneros (ou tipos)
discursivos. O fato parece assem elhar-se ao da escrita de
gram áticas. Enquanto em um caso as gram áticas tom am o
lugar da im plícita organização nativa das línguas, a escrita
da história toma o lugar da explícita organização nativa da
expressão oral passada e de formas não alfabéticas de escrita.
No primeiro caso, organiza-se um saber implícito. No segundo,
reescreve-se um saber explícito.
Conhecendo-se essa história, é surpreendente ler o pronun
ciamento de Fichte para a nação alem ã (Fichte, [1808] 1922;
Balibar, 1994: 61-84) e ponderar as implicações de sua distinção
entre línguas mortas e vivas. Línguas mortas, para Fichte, não
são as línguas que já não se falavam em seu tem po e sim as
lín g u a s iso la d a s, isto é , com trad ições rom pidas e m istu
radas. O francês, por exem p lo, foi separado de suas raízes
latinas antes de se tornar uma língua independente, e o inglês
tornou-se uma língua mista após a conquista norm anda. Em
contraste, o alemão era a única língua através da qual podia-se
encontrar um elo contínuo com o passado, até os tempos
im em oriais. O alem ão era uma língua viva e só as línguas
vivas poderíam expressar a alma da nação. É tam bém um fato
surpreendente, embora talvez injustificado, que o espanhol não
estivesse entre as preocupações de Fichte. Tendo o espanhol
e o português sido descartados — e com o italiano no fundo
do quadro, com sua gloriosa lem brança da Renascença — a
questão ficou dividida entre o alem ão, o inglês e o francês,
as três línguas da modernidade e da expansão imperial desde
o sécu lo 18, associadas por W allerstein ã em ergência das
ciências sociais. Essas foram as línguas do “coração” da Europa
nas conferências de H egel sobre a história universal, p ro fe
ridas mais ou menos nos mesmos anos em que Fichte se dirigia
à nação alemã para tratar a questão da língua.
A Espanha, nessa época, estava recuando no quadro da
m o d e rn id a d e e u ro p é ia , durante a e m erg ên cia de novas
3 52
nações e novos im périos. O castelhano, com o o português e
o italiano, estava se tornando uma língua subalterna entre
dois conflitos imperiais e a construção de novas hegem onias
lingüísticas e culturais. (Voltarei a esse m om ento histórico,
que identificarei com o o prim eiro rebaixam ento da língua
espanhola na construção da m odernidade européia.)
Q u ase dois séculos depois de Fichte, a articulação de
línguas vivas e mortas foi revertida, e as línguas isoladas
receberam o status de vivas:
353
Faço agora uma breve referência à idéia de texto e tecido,
o capítulo de Anzaldúa sobre a escrita asteca, “Tlilli, Tlapalli: o
cam inho da tinta vermelha e negra” (ver Capítulo V). Benedict
Anderson ([19831 1991), em seu livro clássico, presta grande
e significativa atenção ao papel da imprensa na construção
das com unidades nacionais. Antes do século 19, a imprensa
foi tam bém decisiva para o processo de expansão colonial,
do controle territorial à literalidade e educação. A noção de
“te xto ” ficou cada vez mais limitada à literalidade alfabética
e ao livro, e certos livros contendo narrativas nacionais tor-
naram-se ícones nacionais. Todas as outras formas escritas
foram au tom aticam ente relegadas ao reino do fo lclo re , ã
dim ensão subalterna do conceito de cultura do estado-nação.
Em “Tlilli, Tlapalli: o cam inho da tinta vermelha e negra”,
Anzaldúa traz à tona uma dim ensão de “texto e nação” duas
vezes suprimida: uma vez no início do sistema colonial de
educação, e depois pela convicção dos construtores da nação
de que a nação e a civilidade fundavam -se parcialm ente na
literalidade alfabética. A rearticulação de língua e escrita pelo
estado-nação efetivou uma dupla subalternização da escrita:
prim eiro, ao elevar a escrita alfabética ao cum e da civilidade
e, seg u n d o , ao m anter uma divisão de gênero entre as prá
ticas de escrita. “Hom ens de letras” controlavam a literalidade
dentro do aparato estatal; os “texteis” ficaram nas m ãos de
mulheres e no reino do folclore. Ao resgatar os antigos sistemas
de escrita, o “cam inho da tinta verm elha e negra”, Anzaldúa
renova a conceitualização de escrita e texto e escancara as
portas para repensar as cum plicidades entre textos, nações,
im périos e culturas do saber acadêm ico.
A EPISTEMOLOGIA E AS LÍNGUAS
IMPERIAIS/NACIONAIS
3 54
de exam inar línguas pode ajudar a ver por trás do palco e
conceber o saber além dos limites disciplinares e através dos
gêneros discursivos, associados com as hierarquias lingüísticas
nacionais e imperiais e as estruturas subseqüentes do saber.
Há um esplêndido m om ento em “Thinking about Limits”
(1992), de Pierre Bourdieu, no qual ele se situa numa genea
logia disciplinar/teórica e também linguística. Com o sociólogo
interessado na educação, Bourdieu com preende o paradoxo
im plicado no próprio processo: “Se não som os cultos, não
podem os absolutamente pensar, contudo, se form os cultos
arriscam o-nos a ser dom inados por pensam entos pré-fabri
c a d o s.” É realmente verdade que não podem os pensar se não
formos cultos? É apenas a educação que exige o pensar? O u a
educação é uma m anipulação do pensamento? Para tratar
dessas questões, vamos refletir sobre as línguas e a educação
na e x p a n são co lo n ia l e nas estratégias da construção de
n ações. Concentrem o-nos nas heranças coloniais, nas línguas
nacionais e nas bases disciplinares do sistema educacional que
nos ensina a pensar (isto é, àqueles entre nós que têm acesso
a esse tipo de educação). Vamos também seguir Bourdieu em
seu trajeto de localização autodisciplinar.
Bourdieu confessa que a tradição epistem ológica na qual
com eçou a trabalhar foi para ele “com o o ar que respiramos”,
o que quer dizer que passou despercebida. Ele reconhece
que sua tradição é bastante lo ca l, aliada a um a série de
nom es fran ceses: K o y ré, B a ch e la rd , C a n g h ilh e m , e, um
pouco mais atrás, D uhem . Bourdieu explica também:
355
Ocidental (a Europa de Hegel e Fichte) e que se articula, acon-
diciona, transmite e exporta a ciência.
Mas deixem -m e explorar mais a equação textos-nações-
culturas do saber acadêmico. No esforço de elucidar o arcabouço
teórico de seu próprio pensam ento, Bourdieu honestam ente
estabelece uma com paração (dessa vez) com a tradição filosó
fica alem ã. A com paração é necessária para justificar a possi
bilidade de transferir o pensam ento científico da ciência da
natureza para as ciências humanas. Essa jogada é mais difícil de
aceitar dentro da herança filosófica alemã porque — segundo
Bourdieu — a distinção entre “Erkláren-Verstehen” (explicação-
com preensão) ergue uma muralha entre as ciências naturais
e as hum anas. As heranças francesas, conclui ele,
3 56
línguas im periais e estruturas epistem ológicas de dom inação?
Há um ponto, contudo, em que concordo com Bourdieu, e
que tom o com o premissa teórica: “Se o Estado é tão difícil de
pensar é porque som os os pensadores do Estado, e porque o
Estado está na cabeça dos pensadores. Assim co lo cad a, a
expressão parece flutuar excessivam ente no ar, mas pode-se
sentir, nos textos de D urkheim , o quanto sua reflexão sobre
o Estado deveu-se ao fato de que ele era um funcionário do
Estado.” (Bourdieu, 1992:40) Assim, se o Estado é cúm plice da
produção e da difusão do saber, é possível produzir reflexão
teórica e científica à margem das principais línguas nacionais,
entrincheiradas no interior da expansão colonial desde o século
18? É possível ao Estado refletir a partir da diferença colonial?
Em princípio, não, pois a colonialidade do poder está em bu
tida no Estado e com o tal reproduz a diferença colonial e
reprime as possibilidades de pensar a partir dela.
357
O que essas transformações sociais geraram nào foi uma nova
forma cie ciência ou de pensamento filosófico, mas “literatura”
produzida ou nas ex-colônias ou às m argens dos centros
m etropolitanos que recebem os m aciços m ovim entos m igra
tórios. São óbvias as conseqüências desse duplo movimento
(isto é, [a] exportação do saber e dos padrões de conhecimento
para as ex-colônias; [b] a descolonização e as migrações maciças
das ex-colônias para os centros metropolitanos e industriais):
espera-se que o chamado Terceiro Mundo (externo ou interno
às cham adas nações do Primeiro M undo) produza cultura,
enquanto o Primeiro M undo produza conhecim ento e ciência:
uma distribuição de trabalho científico que contribuiu para
manter a hierarquia das línguas, im plantada pelos colonia-
lism os precedentes (ver Capítulo I).
Essa distribuição do trabalho científico podería ser repensada
a partir da literatura do bilinguajam ento vinda das fronteiras
e dos espaços liminares. Entretanto, para fazê-lo, é necessário
reconceitualizar a literatura e o conhecimento e vê-los a ambos
com o diferentes formas de ação do linguajamento. No contexto
do Estado, seus cidadãos são estimulados a respeitar as regras
que tornam hegem ônico o monolinguajamento (Fishman, 1996:
3-16) e fazem do bilinguajam ento uma interação lingüística
subalterna. Portanto, os fundam entos disciplinares são lega
lizados no reino do monolinguajamento, mas banidos no reino
do bilinguajam ento. Pode-se, então, tomar o bilinguajamento
com o fundam ento teórico e Anzaldúa com o referência intelec
tual para o conhecim ento e a com preensão, de forma sem e
lhante ao apelo de Bourdieu, em sua prática disciplinar e
socio ló gica, para os franceses e os intelectuais franceses? O
bilinguajamento e o pensamento liminar (bem com o “um outro
p ensam ento” de Khatibi e a “dupla co nsciência” de Du Bois)
podem constituir o fundamento de uma epistemologia que evite
alicerces epistem ológicos em línguas nacionais e imperiais?
Para antever essa perspectiva é necessário aceitar que o
linguajam ento, com o o pensam ento, está além da língua e do
p ensam ento: o lin gu ajam ento é o m om ento no qual um a
“língua viva” (com o diz Anzaldúa) se descreve com o um estilo
de vida (“un m odo de vivir”) na interseção de duas (ou mais)
línguas. Nesse ponto, tornam-se evidentes as diferenças entre
o b ilín g ü e e b ilin g ü ism o / b ilin g u aja m en to , entre p o lítica
lingüística e linguajam ento: o bilingüism o não é um estilo de
358
vida, mas uma habilidade. Se o bilinguajam ento nào fosse
estilo de v id a , se não fosse e x iste n cial e p o liticam en te
dramático e, sim, uma habilidade, não poderiamos compreender
Jo sé Maria Arguedas, no Peru, que se matou na tensão do
bilinguajam ento. Nem com preenderiam os Gloria Anzaldúa,
nos E sta d o s U n id o s , cu ja força sed u to ra é a força do
b ilin gu ajam en to com o o viver-entre-línguas e não apenas um
exercício estético bilíngüe. Na verdade, a análise feita por
Frantz Fanon sobre o deslocam ento do francês no Caribe e
na África, profundam ente m ergulhado em tensões raciais, é
uma ilustração exem plar do bilinguajamento dentro da mesma
língua, com o na “epistem ologia criou la” que em erge dos
pensadores caribenhos com entados no capítulo anterior.
Além do mais, a razão pela qual prefiro o bilinguajamento e
o bilinguagism o ao bilingüism o é que estou tentando tratar de
algo que está além do som, da sintaxe e do léxico, e além da neces
sidade de ter duas línguas. Com o testemunha o exem plo de
Fanon, o bilinguajam ento com o estilo de vida é possível nas
fraturas de uma língua hegemônica (nacional ou imperial), supera
o m edo e a vergonha daqueles que não dom inam a língua
principal. “N ós, chicanas que crescem os falando espanhol
mexicano internalizamos a crença de que falamos mau espanhol,
uma língua bastarda”, observa Anzaldúa (1987: 58). E acrescenta:
359
LINGUAJAMENTO, EDUCAÇÃO
E PENSAMENTO CRÍTICO
360
no reino da política lingüística e de projetos educacionais. O
linguajam ento deve ser incluído no quadro e o bilinguaja-
m ento, com o forma de conhecim ento e de vida, em ergindo
do entulho da expansão colonial e nacional, poderia contri
buir para a luta que visa reconverter em locais de celebração
as memórias subalternas e os locais de nostalgia.
O bilinguajamento e o pensamento dialógico, com o práticas
e com o conceitualizações dessas práticas, deveríam também
contribuir para a transform ação das ciências hum anas em
formas de conhecim ento que superem a generosidade hum a
nitária do poder hegem ônico e que reformulem as culturas
acadêm icas pelo reconhecim ento da diversidade do co n h eci
m ento superior ao pensam ento e ao linguajam ento m onoló-
gicos. O pensam ento dialógico de Freire encaixa-se com meu
próprio conceito de bilinguajamento e com “une pensée autre”
(um outro p en sam en to ) de A b d e lk e b ir K h a tib i. K h atib i
situou na interseção da cham ada racionalidade ocidental e
seu exterior essas formas de pensam ento que se presumiam
estar, em algum m om ento, integradas e transform adas em
racionalidade ([19831 1990). Ademais, sua dupla crítica situa-se
na interseção das tradições ocidental e islâmica. Se o pensa
m ento dialógico de Freire envolve a literalidade e cam inha
para a “conscientização” com o forma de libertação, a dupla
crítica de Khatibi busca a descolonização intelectual e acad ê
m ica. É um terceiro lugar, uma terceira palavra, que é também
um desligam ento da razão ocidental e uma crítica de sua adap
tação â sociologie do M aghreb. Segundo Khatibi, esse esforço
é p ossibilitado pela ruptura com as críticas ocidentais da
ciência, tecnologia e metafísica (Nietzsche, Heidegger, Derrida)
e pela reco lo cação em nossa “situação de b ilin gu am en to ”
(57; Khatibi usa o termo bilíngüe, mas suas reflexões ultra
passam o terreno do propriamente bilíngüe). A situação de
bilinguajam ento a que alude Khatibi faz parte de duas formas
de m etafísica, na verdade uma bim etafísica, tanto ocidental
quanto islâm ica. Sua dramática busca tem a instabilidade do
cam inhar por fronteiras, as fronteiras do bilinguajam ento.
Representa a inevitável inscrição das heranças coloniais que
deslocam a desconstrução da metafísica ocidental, de seus
lim ites para um esforço d esco lo n izad o r: a d esco nstru ção
torna-se descolonização no espaço fraturado do bilingüism o
e do bilinguajam ento.
361
Minha própria situação é totalmente diversa da de Khatibi.
As duplas formas de metafísica para alguém nascido e educado
na Argentina (ou na América Latina) têm uma configuração
diversa. O e n tu lh o da razão o c id e n ta l está certam en te
p re sen te, co m o no M aghreb, mas as heranças islâm icas
p e rm a n e ce m e stran h as ã A m é rica L atin a. As h e ra n ç a s
am eríndias não têm um tradição grega que seja com um ao
Islã e ã constituição do O cidente. Nas Am éricas, as situações
culturais e de bilinguajam ento desconhecem a transfiguração,
no m u n d o árabe e no cristianism o o cid e n ta l, da antiga
m áquina de pensar grega.
362
fraturas das línguas do conhecim ento “científico” e “filosófico”
na modernidade ocidental e sua descendência pelo mundo a fora?
A resposta é sim plesm ente sim, embora seja difícil de aceitar,
num m undo onde a epistem ologia hegem ônica dispõe do
convincente poder da tecnologia apoiada por uma ideologia
segu n d o a qual o su cesso é ca lcu la d o em fu n ção da q u a n
tidade de objetos p roduzidos, consum idos, acum ulados e
ven d idos. A dem ais, dadas as cum plicidades entre estado-
nação, línguas e configurações disciplinares, e consum ism o,
as epistem ologias do bilinguajam ento correm o mesmo risco
que outras produções culturais rotuladas de “folclore”, “magia”,
“m isticism o” e sem elhantes. Gostaria de insistir, entretanto,
que o bilinguajam ento em certas circunstâncias e em certas
tradições coloniais poderia abrir cam inho para uma transfor
m ação epistem ológica radical.
A “m ente bicultural” (em minha term inologia, a “mente
bilinguajante”) é a “m ente” inscrita e produzida por condições
coloniais, embora diferentes heranças coloniais gerem “mentes
biculturais” diversas. Conseqüentem ente, o bilinguajamento e
as nações serão m oldados pelo lugar que a nação ocupa em
relação às estruturas coloniais e imperiais. O local está inscrito
no global. Moraga teoriza o dilema entre o local e o global no
que diz respeito aos povos, ao corpo, e à sexualidade: “É histo
ricamente evidente que o corpo feminino foi colonizado, com o
os chicanos. E qualquer movimento para descolonizá-los deve ser
cultural e sexualm ente esp ecífico.” (Moraga, 1993: 149)- A arti
culação do local e do global inscreve-se numa determinada
herança colonial: a colonização espanhola da América (com
acento)2 e as jogadas imperiais dos EUA em direção ao México
e à Am érica Latina. Moraga explora a data em que terminou o
livro (1992), qu in hen tos anos após o reco n h ecid o início
cultural da globalização com o expansão ocidental. Isto é, um
lado da herança colonial construída de Moraga não se situa
entre as heranças do Ilum inism o europeu e da m odernidade
do Atlântico Norte, mas no início do período moderno e co lo
nial e a expansão do império espanhol. Na verdade, para as
feridas de M oraga, a m odernidade e a colonização após o
século 18, se não irrelevantes, são totalmente secundárias:
363
A nação mexicana é uma nação mestiza, concebida em um
duplo estupro: primeiro pelos espanhóis e depois pelo gringo.
Em meados do século 19, a Anglo-América apossou-se de um
terço do território m exicano. Um novo opressor, falante de
inglês, assumiu o controle sobre os espanhóis, mexicanos e
mestizos que habitavam aquelas terras. Não há como negar que
os Estados Unidos roubaram Aztlán do M éxico, mas ele já
tinha sido inicialmente roubado dos índios pelos espanhóis,
cerca de 300 anos antes (Moraga, 1993: 153-134).
3 64
e ela escreve América com acento no e. A segunda data é 1524,
a data seguinte à queda do M éxico-Tenochtitlan e à chegada
dos doze franciscanos solicitados por Cortez a Carlos I da
Espanha e a Carlos V da Europa, que entào encam inharam o
pedido ao papa. A ligaçào aqui é entre Moraga, os chicanos
(em vez dos sociólogos) e o Tlamatinime anônim o (em vez
de B achelard, Koyré, Canghilhem ):
365
sexo e ao gênero. O espanhol e o inglês “recuam ” com o
línguas nacionais, enquanto emerge a língua de uma naçào
cham ada “Aztlán G a y ”. Afinal de contas, ambas são línguas
imperiais, e Aztlán G ay propõe, em última análise, uma arti
culação da nação. É discutível se seria irrelevante ser inglês
ou espanhol, já que, por um lado, ambas são línguas h ege
m ônicas do império e da nação, e, por outro, porque são
inevitáveis, devido à globalização. Se o inglês for a escolha
inevitável porque Aztlán G ay é uma nação subalterna, isso
tem suas vantagens: a p o ssibilid ad e de fraturar a c o n fig u
ração das línguas hegem ônicas. O bilinguajam ento seria aqui
entendido com o o deslocam ento das línguas hegem ônicas e
imperiais (espanhol, inglês) e sua recolocação dentro da pers
pectiva das línguas am eríndias. Para fazê-lo, é necessário
pensar o linguajamento além das línguas: o momento “anterior”
á linguagem (não, evidentem ente, numa história da língua
desde o paleolítico até o presente, mas nas práticas linguísticas
do cotidiano), quando a alienação discursiva daquilo que (na
língua) cham am os de “consciência” ainda não foi articulada
na estrutura discursiva do poder; e o mom ento “posterior” á
língua, quando o linguajam ento (e, nesse caso, o bilinguaja
mento) torna-se um processo de “conscientização” (á la Freire)
com o libertação dos discursos e epistem ologias coloniais e
n acio n ais (o ficia is, h ege m ô n ico s). O s dois m om entos do
lingu ajam ento (“anterior” e “posterior” à língua) permitem a
M oraga reconceitualizar a territorialidade. A idéia de “terra”
contraria o conceito nacional de “território” da forma com o é
m apeado pelo estado-nação. No terreno do linguajam ento
anterior à língua, “terra” inscreve-se no dom ínio prim evo da
interação de pessoas entre si e com o m undo; no dom ínio do
linguajamento posterior à língua, “terra” reinscreve-se no movi
mento da conscientização e da articulação de novas com uni
dades, além das línguas (nacionais). Mas, evidentem ente, essa
perspectiva não será prontamente aceita em instituições ed u
cacio n ais (do Estado à universidade e da universidade à
e d u cação primária e secundária), dom inadas pela crença
numa epistem ologia m onotópica e pura apoiada pelo texto,
seja ele sagrado ou secular.
M oraga parte do fato de que “a luta prim eva para os
p o vo s nativos do globo é a luta pela terra” (1993: 168). Acres
centa: “Cada vez mais as lutas deste planeta não são por
366
‘estad o s-n açõ es’, mas por nações de pessoas, ligadas pelo
espírito, terra, língua, história e san gu e... Os chicanos são
também uma nação de pessoas, colonizados internamente,
dentro das fronteiras do estado-nação dos EUA.” 0993: 168-169).
Em um m undo glo b al, “terra” torna-se a m etáfora para
locais particulares do e sp aço, “lugares” que deveríam ser
reconquistados às desapropriações acarretadas pelas potências
coloniais e nacionais:
367
É esse novo tribalismo uma busca do resgate da autenticidade
que libertará a possibilidade de descolonização (no sentido de
Khatibi)? M oraga sugere que a “‘tribo’, baseada nos modelos
tradicionais dos índios norte-am ericanos, é uma estrutura
so cio eco n ô m ica alternativa consideravelm ente atraente para
aqueles entre nós que reconhecem as fraquezas da estrutura
da fam ília capitalista patriarcal isolada” (1993: 166).
O risco de romantizar o tribalismo inscreve-se na própria
estrutura do poder hegem ônico e do conhecimento subalterno,
e Moraga tem consciência disso. O s m odelos tribais “originais”
foram corrom pidos por quinhentos anos de interação com
instituições colonais e nacionais. Não há com o voltar ao
“autêntico”, mas há um esforço utópico de salvar as memórias
ameríndias das salas escuras dos museus nacionais e colocá-las
num espaço social onde novas com unidades possam começar
a ser imaginadas. No romance de Leslie Marmon Silko, o triba
lismo é reinscrito (ver, por exem p lo, parte 6: “O n e World,
Many Tribes”) na dialética entre as memórias territoriais locais
e o m ercado global. As reservas atuais e seus problem as são
conseqüências de um m odelo colonial arquitetado para fragi-
lizar os povos nativos, causando grandes taxas de alcoolism o,
violência dom éstica e assim por diante. Na M esoam érica e
nos A n d es, as línguas am eríndias e o saber foram m antidos
à parte co m o vestígios curiosos de gloriosas civ iliza çõ e s
passadas. A defesa do m odelo tribal é necessária, então, com o
instrumento conceituai, com o modelo de práticas de oposição e
com o novas formas de construir com unidades imaginadas pela
restituição d a q u ilo que foi elim in ad o p elos co lo n ialism o s
e pelos estados-nações:
368
As línguas (espanhol/inglês) foram deslocadas e recolo
cadas na esfera do linguajamento. O linguajamento é o lócus
onde ocorre a “conscientização”, e essa forma particular de
conscientização luta, por um lado, com as tensões entre formas
coloniais e nacionais de opressão da consciência e, por outro,
entre formas tribais de consciência reprimida e subjugada. O
bilinguajamento torna-se, então, um ato de amor e um anseio de
superação do sistema de valores com o forma de dom inação.
Moraga termina seu livro com um apelo em favor do amor
e da transcendência, da nova Am érica “onde a única ‘desco
berta’ a ser feita é a redescoberta de nós mesmos enquanto
membros de uma com unidade global” (174). Entendo que esse
“nós m esm os” restringe-se igualmente ao movimento chicano,
ou, pelo m enos, àquele aspecto do movim ento chicano com
o qual Moraga se identifica, e a todas as com unidades opri
midas do m undo. O apelo é articulado na recolocação da lei
com o língua e do texto (colonial ou nacional) na lei enquanto
linguajam ento (talvez m odelo para o sistema educacional
superveniente ao projeto educacional): “À m edida que inven
tamos novas formas de fazer cultura, fazer tribos, sobreviver
e florescer enquanto membros da com unidade mundial no
próxim o m ilênio, devem os submeter-nos a uma autoridade
‘natural’ mais alta.” (1993: 174).
Há aqui um perigo — ao reivindicar a identidade, cair na
armadilha que associa considerações raciais com resquícios
de ideologia fascista. Para fazer frente a esse perigo haverá uma
tendência entre os intelectuais esquerdistas a passar a consi
derações de classe e associar-se com o socialismo e o marxismo.
O ra, aqui eu ouviria o pensador liberal venezuelano Carlos
Rangel quando sublinha — seguindo o argumento de Hayek
(Hayek, 1944) — o fato de que o fascism o e o socialism o não
são necessariam ente contrários. Baseado na experiência do
estalinismo e da União Soviética e também de uma perspectiva
do Terceiro M undo alheia a H ayek, Rangel observa que
369
golpe do liberalismo burguês moribundo, ele se concebe com o,
e de fato é, uma filosofia política da família socialista ([1982]
1986: 6).
DIFERENÇAS COLONIAIS;
BILINGUAJANDO O AMOR
370
da razão, das estruturas disciplinares e culturas do co n h eci
m ento acadêm ico, cúmplices das línguas nacionais e imperiais.
A distinção feita por Freire entre educação sistemática (sistema
de educação, para Bourdieu) e projetos educacionais mostra-se
útil aqui: os projetos educacionais (e, quero acrescentar, todos
os tipos de projetos educacionais que incluem movim entos
sociais) são projetos contínuos de resistência, e, com o diria
Freire, de conscientização. São paralelos e opostos à educação
sistemática da adm inistração colonial ou dos construtores da
nação onde a violência foi instilada por meio da dom inação
econôm ica, lingüística e religiosa ou cultural. O amor é o
corretivo necessário à violência dos sistemas de controle e
opressão. Bilinguajar o amor é o horizonte utópico final para
a libertação de seres hum anos envolvidos em estruturas de
dom inação e subordinação além de seu controle.
Enquanto o estado-nação prom ove o amor para com as
línguas nacionais, o amor do bilinguajamento nasce das e nas
periferias das língu as nacionais e nas exp eriên cias trans-
n acio n ais. O bilinguajamento é um tipo de amor mais próximo
do previsto por Freire para a pedagogia dos oprimidos do que
do amor às línguas nacionais encorajado pelos estados-nações:
371
restauração das qualidades secundárias (tais com o paixões,
em oções, sentimentos) e da impureza de linguagem que foram
banidas da educação e da epistem ologia desde o primeiro
momento do início da colonização e da racionalidade moderna.
Além desse anseio geral pela em ancipação, o amor ao bilin-
guajam ento é um m ovim ento em direção à descolonização
das línguas, desencadeado, inicialmente, pela expansão co lo
nial e depois pelos construtores da nação e sua instituciona
lização das línguas nacionais. Talvez o que esteja tentando
articular aqui seja o conceito de H eidegger de “desvelo” com o
o todo estrutural da existência, com o as abundantes formas
pelas quais a história se inscreve no corpo pelo nascim ento,
vida, projetos, inclinações — com o preocupação pelos outros
bem com o pela consciência do próprio ser. H á, contudo, uma
diferença essencial entre “o amor ao bilinguajam ento” e a
noção heideggeriana de “desvelo”: a inscrição de sinais no
corpo a que me refiro, o corpo na história e o corpo no qual a
história se inscreveu, são as inscrições das heranças coloniais
e das estruturas imperiais de dominação e subordinação. Existe
uma descontinuidade entre “desvelo” e “amor ao bilinguaja
m ento” (uma tradição clássica, M ignolo, 1992b), uma ruptura
irreparável entre Heidegger, por um lado, e Anzaldúa, Khatibi,
Moraga e meu próprio discurso, por outro. Essa ruptura irre
parável influi sobre a co ncep ção de nação e etnia dentro das
heranças da tradição clássica (por exem p lo, Heidegger), bem
com o dentro das heranças das tradições coloniais e atual subor
dinação imperial (Anzaldúa, Moraga, Khatibi, Freire).4
OBSERVAÇÕES FINAIS
372
conhecim ento, tanto com o reorganização de disciplinas quanto
com o criação de “estudos de área” ligados ao Departam ento
de D e fe sa . As co n seq ü ên cias dessa reorganização para a
p ro d u çã o , transform ação e transm issão do co n h ecim en to
interferiram na distinção já estabelecida entre a hermenêutica
e a epistem ologia, as hum anidades e as ciências, distinção
feita por W ilhelm Dilthey, desde o fim do século 19. Essa
distinção foi reconvertida nas “duas culturas” (Snow , 1959) e
concretizada no dom ínio da literatura e das hum anidades
(filosofia, história da arte), de um lado, e das ciências naturais,
de outro. Contudo, as ciências sociais assumiram um papel
de liderança no período analisado por Lee, relacionando-se
intim am ente com os “estudos de área”. Apesar de a com uni
dade de cientistas sociais estar dividida em seu apoio e crítica
aos estudos de área, o fato é que as humanidades tornaram-se
párias nessa nova distribuição do conhecim ento. Enquanto o
“o cid en ta lism o ” invadia os studia hum anitatis (inclu ind o
homens de letras e missionários), e mais tarde o “orientalismo”
invadia as hum anidades na nova área secular do co n h eci
m ento, “os estudos de área” tornaram-se província das ciências
sociais e as ciências sociais m oldaram-se pela herança do
positivism o do século 19. Lee descreve diversos m omentos
de reação a essa herança (isto é, fenom enologia, existencia-
lism o, vanguarda) no período de 1945 a 1973 e elabora com
mais detalhe três aspectos críticos do segundo período, de
1973 a 1990. O s três aspectos são:
373
ocorreram com as três principais, da segunda e terceira fases
do sistema: inglês, francês e alem ão. Neste capítulo, e mais
geralmente neste livro, tentei priorizar os conflitos epistemoló-
gicos internos (por que, por exem plo, o espanhol, o português
e o italiano estão praticam ente e x clu íd o s) bem co m o os
conflitos epistem ológicos externos (já que o árabe, o aimará
ou o chinês não são epistem icam ente sustentáveis). Embora
tenha focalizado as Américas (latino-americanos e ameríndios,
afro-caribenhos e latino-am ericanos nos EUA), a discussão
de Khatibi sobre “um outro pensam ento” e sua crítica à socio
logia e ao “orientalismo” abriu um espaço de exploração além
de m inha com petência. O processo de descolonização no
período analisado por Lee traz para o primeiro plano a questão
crucial das memórias e saberes suprim idos. As m igrações
m aciças introduzem a questão do plurilinguajam ento num
m undo transnacional e a em ergência de uma ideologia e um
im aginário pós-nacional. O segundo período analisado por
Lee ocasionou a ascensão e queda dos “estudos de área”. E
com isso a pura consciência de que o “Terceiro M undo” não
só produz cultura para ser estudada, mas conhecim ento que
precisa ser “sustentado”. D o contrário, será reproduzida a
colo n ialid ad e do poder e a “crise” do conhecim ento será
resolvida dentro do m esmo núcleo que a produziu. Esses são
exem plos marcantes da cum plicidade entre a estrutura do
co n h e c im e n to e o sistem a m undial m o d ern o. R evelam a
silenciosa cum plicidade entre a estrutura do saber, a cultura
do conhecim ento acadêm ico e as três línguas principais do
sistema mundial m oderno (com o argumentei com o exem plo
de B ourdieu). C o n tu d o , podem os estar testem unhando o
m om ento no qual a expansão do capitalism o para o Leste, o
Sul e o Sudeste da Ásia gerará um imaginário além do sistema
mundial moderno da forma com o o concebíam os até agora.
Assim , o argum ento principal deste capítulo focalizou a
atual desarticulação de uma das principais crenças no im agi
nário do sistema m undial colonial/m oderno: a cum plicidade
entre língua, literatura/cultura e nação. Se essa desarticulação
ocorre por várias razões históricas, incluindo as m igrações
m aciças do antigo Terceiro M undo para os países industriali
zados do Atlântico Norte e do tecnoglobalism o, tem havido
— desde os anos 70 — várias experiências literárias e práticas
que reagem contra essa desarticulação. Ao mesmo tem po, e
3 74
desde os anos 70 (com o argumenta Hall), uma das maiores
revoluções culturais de nossa época foi o nascim ento de
com unidades que clamam pelo direito de participar da criação
da civilização planetária.
As culturas do conhecim ento acadêm ico estão sendo repen
sadas e recolocadas. A diferença colonial não pode ser evitada,
com o mostra claram ente o dilema de Chakrabarty (ver C ap í
tulo IV). Nesse processo, nós (pesquisadores, cientistas sociais
e hum anistas) estamos sendo convidados a buscar m odelos
e genealogias além das línguas coloniais do período moderno
(inglês, francês, alem ão, com o vimos na genealogia lingüística
e epistêmica de Bourdieu) e de suas bases autoritárias (grego
e latim ), em “nossas” inserções locais no sistema global. De
qualquer form a, tais genealogias (á la Bourdieu) em ergem de
todas essas, no que Moraga chama as Américas (com acento no
e), que sentem que os projetos educacionais e as fundações
epistem ológicas deveríam não apenas ser bilíngiies (o que
apenas arranha a superfície do problem a), mas também visar
ao bilinguajam ento (viver e morrer nas tensões de um lingua-
jamento conflituoso, com Arguedas, no Peru). Ultrapassar a
diferença epistem ológica colonial e resolver o dilem a de
Chakrabarty pode exigir, entre outras coisas, associar a pes
quisa e o ensino a projetos específicos que tenham como destino
final a rearticulação de valores além da diferença colonial. Se
a crítica da cultura já não é, ou não é sem pre, eficaz porque
o valor de m ercado transforma a cultura em m ercadoria
(Horkheim er e Adorno, [1947] 1995: 120-167), um dos lugares
para o pensar dentro das humanidades bem pode ser a crítica
dos valores que continuam a reproduzir a colonialidade do
poder — uma crítica paradoxal, que deve assumir seu próprio
status de mercadoria, na tentativa de assegurar sua intervenção
política a partir da diferença colonial (isto é, a partir de uma
posição subalterna). O bilinguajam ento seria então o terreno
m óvel no qual possam situar-se os projetos educacionais e a
descolonização do conhecimento; onde a cumplicidade entre as
línguas coloniais e o conhecim ento possa ser repensada.
O n d e Babel possa não ser tão ruim quanto julgavam os ideó
logos da unificação e da pureza de sangue.
No próximo capítulo voltarei ao caso particular que discuti
aqui, da perspectiva mais ampla da globalização, da co lo n ia
lidade e da recolocação de línguas e saberes.
375
C A P I T U L O VI I
GLOBALIZAÇAO,
PROCESSOS CIVILIZADORES E A
R E C O L O C A Ç Ã O DE LÍNGUAS E SABERES
377
O rtiz e o filó so fo , ensaísta e escritor martinicano Edouard
G lissan t sugeriram essa distinção, independentem ente um do
outro. A distinção é importante em vários níveis. Primeiro,
reinscreve a divisão entre a América Latina e a América Anglo-
Saxô n ica que discuti no Capítulo III. Segu ndo, rearticula a
d iferença colonial em uma nova forma de colonialidade de
poder, que já não se situa em um estado-nação ou grupo de
estados-nações, mas com o colonialidade global transnacional
e transestatal. D entro desse argum ento, faz sentido ver o
neoliberalism o com o uma nova forma de civilização e não
apenas com o forma de organização econôm ica. “G lobalização ”
to rn a -se , assim , a im agem de um novo projeto civilizador.
Finalm ente, a distinção entre “m undialización” e “globalização”
nada mais é que uma nova forma de inscrever a colonialidade
do poder na época da colonialidade global na qual se rearti
cula a diferença colonial. As histórias locais (“m undialización”)
e os projetos g lo b a is (g lo b a liza çã o ) situam as diferenças
coloniais nas interseções de ambas dentro da densa história
e das m em órias do sistema m undial colonial/m oderno. Mas
não é só isso. O s paralelos que estabelecí, na Introdução a
este livro, entre “mundialización/globalização”, segundo a termi
nologia de Ortiz e Glissant, e “cultura/civilização”, nas palavras
de Béji, juntam a cum plicidade entre “civilização ” e “g lo b ali
za çã o ” . A última é a ressem antização da primeira na transição
da hegem onia do Im pério Britânico para a liderança norte-
am ericana e a em ergência da corporação transnacional. Nessa
perspectiva, faz sentido dizer e insistir que o neoliberalism o
não é apenas uma questão econôm ica e financeira, mas um
novo projeto de civilização. Finalm ente, a distinção entre
“m u n d ializació n ” e “glo b alização ” nada mais é do que uma
nova forma na qual se inscreve a colonialidade do poder e se
rearticula a diferença colonial na era da colonialidade global.
As fronteiras entre globalização e “m undialización” de civi
lização e cultura, na conceitualização de Béji (1997), justificam
plenam ente que se desfaça o m apa desenhado durante a
Guerra Fria pelos estudos de área. A descrição feita por
H untington (1996) da reorganização da ordem m undial após
o fim da Guerra Fria proporciona um instrum ento útil para
pensar “civilização ” em torno de novos eixos. Contu do, a
mistura de critérios referentes a nove diferentes civilizações
no m undo posterior aos anos 90 (Figura 9, p. 65) pode ser
378
considerada um utensílio pedagogicam ente útil, mas não com o
uma c la s s ific a ç ã o h isto ric a m e n te séria. As c iv iliz a ç õ e s
islâmica, hindu e budista parecem ser identificadas em função
de fronteiras religiosas; a latino-americana e a africana em
linhas subcontinentais, pois a África a que H untington se
refere é a África abaixo do Saara. Nesse m apa, a África do
Norte não pertence à África, mas ao Islã. A civilização japonesa
é identificada de acordo com critérios de form ação nacional.
O caso chinês é mais complexo, pois envolve critérios históricos,
nacionais e políticos. E finalm ente o O cidente é identificado
pela divisão cosm ográfica do g lo b o , fundida com a distinção
colonial/moderno, Oriente/Ocidente. Mas o Ocidente é, ademais,
identificado com o o mundo cristão, por sua formação histórica,
mas m undo cristão limitado à Europa. Em outras palavras,
Huntington oferece uma rem odelação da Europa com o foi
originalmente delineada no mapa cristão T/0 quando a Europa
era identificada com a Cristandade O cid en tal, a terra d e ja fé .
O prim eiro im pulso para a globalização e a constituição
do sistema mundial colonial/m oderno surgiu sob o ímpeto
do Orbis universalis christianus, que foi consolidado com a
derrota dos m ouros, a expulsão dos judeus e a “descoberta”
da Am érica. O segundo m om ento substituiu a hegem onia da
missão cristã pela missão civilizadora, quando um novo tipo
de m ercantilism o desenvolveu-se em Amsterdã e preparou o
terreno para a em ergência da França e da Inglaterra, com o
novas p o tên cias im periais. Se a m issão civilizad o ra foi a
versão secular da cristã, a versão religiosa não desapareceu,
mas coexistiu com a anterior num papel secundário. D esde o
fim do século 19 até a Segunda Guerra M undial, a missão
civilizadora, em sua versão européia, foi refeita nos Estados
Unidos em sua ascensão como potência mundial e rearticulada
com o Destino Manifesto. Depois da Segunda Guerra Mundial,
o desenvolvim ento e a m odernização tomaram a dianteira e
relegaram a um plano secundário a missão civilizadora. E,
finalm ente, a eficiência e os mercados em expansão assumiram
a dianteira e colocaram o desenvolvim ento e a m odernização
com o con dição necessária para os objetivos finais do capita
lism o tran sn acio n al. M as, repito, m issão cristã e m issão
civilizadora não são idéias do passado, embora possam não
ter a mesma força que tiveram nos séculos 16 e 19, respecti
vam ente. O que estou defendendo aqui é a coexistência dos
3 79
sucessivos projetos globais que integram o imaginário do sistema
m undial colonial/m oderno. A m udança de um para outro
projeto global transform ou a estrutura da c o lo n ia lid a d e do
p o d e r dentro do conflito imperial e da lógica do sistema mundial
m oderno. Sucessivos projetos globais rearticularam o sistema,
reorganizaram a estrutura do poder, redesenharam as fronteiras
internas e traçaram novas fronteiras externas. A Ásia e a África,
por exem p lo, colonizadas pela França e pela Inglaterra no
fim do século 18 e início do 19, estabeleceram uma nova
ordem m undial referente às relações co lo n iais anteriores
entre a França e a Inglaterra, na América do Norte e no Caribe.
Por esse m otivo, a Jam aica não é a índia e a Martinica não é
a Argélia. Finalm ente, novas form as de co lo n ia lism o não
territorial emergiram com a liderança dos Estados U nidos,
juntamente com o colonialism o sem uma nação colonizadora,
ou colonialidade global (que vim os no fim do século 20).
O termo “civilização” surgiu tarde no imaginário do sistema
global colonial/m oderno. No século 16, a palavra não tinha
o m esm o sentido que adquiriu no fim do século 19 (Bull e
Watson, 1984; G o n g , 1984). A missão cristã era postulada com o
conversão do planeta ao cristianism o, enquanto a m issão
civilizadora se entrincheirava no conceito secular de razão,
com os direitos de homens e cidadãos. “Civilização” entendida
com o m issão civilizadora tem, pois, um duplo sentido. Bull e
W atson (1984) inform am que intelectuais e m em bros dos
governos da China e da Pérsia expressaram grande indignação
contra o que consideravam a arrogância européia ao lhes
apresentar os padrões de civilização. Mas, em outras partes
do m undo, com o a América Latina, “civilização” foi o objetivo
id eo ló gico primordial da Argentina após a independência,
posteriorm ente abraçado por toda a Am érica Latina. Em 1845,
D o m in go Faustino Sarmiento publicou um livro influente que
canonizou o grande conflito da história latino-am ericana: o
conflito entre civilização e barbárie. Essa form ulação explica
porque a independência na América do século 19 não foi a
descolonização e porque um projeto com o o defendido por
Sarmiento (presidente da República Argentina de 1872 a 1878)
poderia ser m elhor caracterizado com o colonialism o interno.
Na Colôm bia a situação não foi m enos clara. A missão
civilizadora no processo periférico de construção da nação (a
frase, se não gostarem da metáfora, pode ser reformulada com o:
380
“os processos de construção da nação cujos agentes não tiveram
muita vo z nas d ecisões im periais que, no século 19, distri
buíram o m undo entre si”) chocava-se com os princípios do
laissez-faire e com o local de um país emergente com o a C o
lômbia, no conceito internacional das nações (Rojas de Ferro,
1995: 150-173). Em nações que, se não periféricas, tam bém
não se encontravam no coração da Revolução Industrial, a
m issão civilizadora teve de lidar com a distribuição interna
cional do trabalho, instrumentalizada pelos próprios princípios
da m issão civilizadora. Em outras palavras, para civilizar o
m undo era necessário aceitar primeiro que o mundo precisava
ser civilizad o e qu e, os que proclam avam isso, tinham o
m odelo certo (isto é, o projeto global correto) de civilização.
O ra, países com o a Colôm bia no século 19 não estavam entre
os representados na urdidura dos m odelos civilizad o res.
Pelo contrário, os habitantes da Colôm bia, em seu próprio
país, encarregavam -se de se criticar em nome de uma missão
civilizadora, que era um projeto global vindo de uma história
lo ca l d ife re n te . F loren tin o G o n z á le z , figura de proa nas
reformas liberais, ilustra em seus discursos iniciais (1849)
com o o colonialism o interno atuava em nome da expansão
da m issão civilizadora:
382
substituídas p elos selvagens (ou canibais) que habitavam
o N ovo M undo. O imaginário do sistema mundial m oderno
estava a cam inho. As fronteiras geográficas e as fronteiras da
hum anidade na cosm ologia cristã foram recolocadas, tanto
pela transform ação do co n h ecim en to gerado através das
interações interculturais entre povos até então mutuamente
desconhecidos, quanto pela consciência crescente da expansão
da terra além dos limites conhecidos. Os canibais e selvagens
foram situados num espaço que começou a ser concebido como
um N ovo M undo.
Para o fim do século 19, entretanto, as fronteiras espaciais
tran sfom aram -se em c ro n o ló g ic a s. No in ício do p erío d o
colonial/m oderno (século 16 ) deu-se uma transformação entre
fronteiras hu m anas e g e o g rá fica s; no fim do sé cu lo 19,
selv a g e n s e canibais no espaço converteram -se em exóticos
orientais e prim itivos no tem po. Enquanto o sécu lo 16 foi o
cenário de um caloroso debate sobre os limites da hum ani
dade — tendo Las Casas, Sepúlveda e Vitoria com o princi
pais vozes da controvérsia — , no século 19 a questão não
era mais se prim itivos e orientais eram hum anos, mas sim
até que ponto estavam afastados do atual estágio civilizado
da h u m a n id a d e . A Jo s e p h Fran ço is Lafitau (1681-1746)
(Moeurs des sauvages am éricains comparées a u x mceurs des
premiers temps, 1724) atribui-se o mérito de ser um dos pensa
dores referenciais nesse processo de converter selvagens/
canibais em primitivos/orientais e de recolocá-los numa escala
cronológica contrastante com a distância geográfica. A “negação
da contem poraneidade” (Fabian, 1983; M ignolo, 1995a) foi o
resultado final da recolocação de povos em uma hierarquia
cro n o ló gica que substituiu a distância geográfica. A reco lo
cação de línguas, povos e conhecim entos no tem po em vez
de no esp aço encontrou sua form ulação mais sistemática nas
Palestras sobre a filo so fia da história (H egel, [18221 1955)
que p erm aneceram incontestes até cinqüenta anos atrás,
q uando intelectuais em penhados nos m ovim entos de liber
tação e d esco lo n ização pressionaram seus pressupostos.
De Lafitau a Hegel firmou-se o paradigma temporal, provo
cando um a reviravolta no im aginário do sistema m undial
colonial/m oderno, habilm ente descrita na expressão criada
por Johannes Fabian (1983) “negação da contem poraneidade”.
A recusa da contem poraneidade com o momento decisivo no
383
im aginário do m undo colonial/m oderno assinala a diferença
entre a visão espacial, no início da missão cristianizadora do
Império Espanhol, e as primeiras jogadas imperiais da França
e da Inglaterra no Caribe e no Canadá de hoje. No caso da
França, intelectuais e historiadores com preenderam que a
França perdera a oportunidade de tomar a frente no Novo
M undo e agora tinha de acom panhar a liderança dos espa
nhóis e portugueses, não apenas no Canadá de hoje, mas
também na Flórida, na Louisiana e no Brasil (Lancelot Voisin,
1582). Quanto aos holandeses e ingleses, depois de saquearem
a Espanha por um século ou mais, começaram a estabelecer-se
no Caribe depois de 1620. Wallerstein (1980: 3-9) notara uma
m u d a n ça sig n ifica tiv a na e co n o m ia do sistem a m u n dial
m oderno entre os períodos de 1500 a 1650 e 1600-1750 (a
superposição das datas é intencional). Ele observa que “por
volta de 1600, o n ú cle o da eco n o m ia m undial situava-se
firm em ente no noroeste da Europa, isto é, na H olanda e na
Zelândia; em Londres, nos Hom e Counties e East Anglia; e ao
norte e oeste da França” (1980: 37). Contudo, o conjunto do
imaginário ainda era dominado pelo cristianismo. As fronteiras
externas do sistema não eram percebidas com o o espaço dos
“prim itivos” , mas dos “p agãos” e “infiéis”. “Civilização” ainda
não era uma palavra-chave para situar povos dentro e fora
do sistema. A palavra entrou juntamente com a ascensão do
Estado secular, com a m udança do espírito intelectual intro
duzido pelo Iluminism o. A defesa apaixonada do “progresso”
e a com pulsão a desvalorizar a “tradição” eram típicos desse
espírito. Embora o debate entre “les anciens et les m odernes”
p reced esse o Ilu m in ism o, foi para a m ente filo só fica do
período que “m odernidade” e “tradição” tornaram-se inimigas
m útuas e que a R evolução Francesa se converteu no para
digm a do imaginário do sistema mundial moderno. Em outras
palavras, foi a autodescrição hegem ônica do sistema mundial
que fez do Ilum inism o e da Revolução Francesa o principal
ponto de referência da modernidade. Wallerstein cai na arma
dilha da autodescrição da “m odernidade” (ou do im aginário
autopoiético do sistema mundial moderno, segundo Maturana
e Varela [19841 e Luhmann (1990: 1-20) quando, com o observei
em capítulo anterior, declara que a geocultura do sistema
m u n d ial p assou a existir no sécu lo 18. Cito no vam ente
Wallerstein: “No caso do sistema mundial moderno, parece-me
384
que a geocultura emergiu com a Revolução Francesa e depois
com eçou a perder aceitação mundial com a revolução mundial
de 1968” (1995b: 163).
W allerstein, a m eio cam inho entre a reprodução da auto
descrição do sistema mundial moderno, fingindo ser ao mesmo
tempo seu observador, compara o mito da m odernidade e da
tirania do tem po na im aginação da história m undial, a partir
do interior do sistema m undial m oderno (por exem p lo , a
história universal de H egel). Em vez disso, Alain Touraine vê
na R evolu ção Francesa a co n so lid ação do “O c id e n te ” . Para
ele, o “O c id e n te ”,
385
1. A p oderosa reconversão, no sécu lo 16, do Orbis
uniuersalis ch ristia n u s em um a nova versão da lei
universal, que acom odará os povos do Novo M undo na
com unidade cristã, resultado dos debates internacionais
da Escola de Salam anca.
2. O fato de que, do século 16 ao 18, o cristianismo
continuou a ser o im aginário dom inante do sistema
m undial colonial/m oderno (cristianism o, O cid e n te e
Europa sendo uma e a mesma coisa).
3. O fato de que a secularização associa-se realmente à
Revolução Francesa, mas emergiu independentem ente
dela e seguiu seus cam inhos paralelam ente a ela (G o n g ,
1984).
386
natureza de outras grandes religiões e culturas do mundo; rela
ciona-se, em resumo, com muitas das mesmas influências que
contribuíram para a emergência do padrão de “civilização”.
Essas influências puseram em xeque os elem entos cristãos
inicialmente implícitos na identificação da sociedade interna
cional com o cristianismo e contribuíram para o redireciona-
mento para um padrão baseado na noção de uma “civilização”
moderna mais geral e abstrata.
387
p aíses c o lo n iza d o re s e u ro p eu s. O pad rão da c iv iliz a çã o
era uma idéia local envolta em uma pretensão universal, que
prolongava as aspirações universais do cristianismo, conver-
tendo-o na história local da ciência, igualm ente universal em
sua autopercepção. O progresso foi, então, o aliado da civili
zação para organizar o planeta de forma linear e hierárquica.
O progresso absorveu a missão salvadora espacial (que não
estava implícita na idéia do próprio progresso) dom inante
p elo m enos até m eados do século 18, tanto no m undo cató
lico , com o no protestante. A conceitualização da linguagem
e do conhecim ento dependia da ideologia geral da missão
civilizadora e do m odelo de civilização. O estágio atual de
globalização tem o poder do mercado com o seu objetivo final.
Esse objetivo p ode dispensar os valores atribuídos á civili
zação , pois o objetivo de expandir o mercado não prevê a
conversão dos povos ao cristianismo ou à cidadania. Embora
os objetivos do m ercado não possam ser separados da ideo
logia do desenvolvim ento e da m odernização (Escobar, 1995),
eles são espaciais e não temporais. A questão é aumentar o
número de consum idores em todo o planeta, mais do que
cam inhar em direção a um destino final, estabelecido pelo
modelo de civilização criado numa história local (da Europa) e
projetado com o projeto global. Assim, o mercado está criando
condições para o restabelecim ento do espaço e para facilitar
a tarefa intelectual de negar a negação de contem poraneidade
(Fabian, 1983), arma secreta e natural da missão civilizadora,
e do padrão da civilização durante a segunda fase da m oder-
nidade/colonialidade. A “civilização” está se tornando, com o
Darcy Ribeiro proclam ou resolutam ente, no fim dos anos 60,
um assunto planetário decidido em escala planetária e não
um projeto glo b al a partir de uma história local particular:
a história e o im aginário do sistema mundial m oderno. [O
Fórum Mundial de Porto Alegre, em janeiro de 2001, é um
exem plo paradigm ático desse cenário global.]
388
conhecim ento acadêm ico e de civilização na m odernidade
eu rop éia. A m odernidade, o período de glo b alização que
hoje testemunha uma transformação radical, caracteriza-se e
estrutura-se por uma articulação particular de línguas (inglês,
francês, alem ão, italiano), literaturas dessas línguas (com
sua herança em grego e latim) e culturas do conhecim ento
acadêm ico, sobretudo em inglês, francês e alem ão. O italiano
continua a ser a base dos estudos renascentistas e mantém
sua influência por causa de sua proxim idade com o latim. Em
relação às culturas do conhecim ento acadêm ico Wallerstein
observou que
389
entre certas línguas, a escrita alfabética e os limites da hum a
nidade nào era novidade na Renascença/início do período
m oderno (Curtius, 1929; M ignolo, 1992c). O que era novo
era a proporção planetária e a longa duração na qual essas
cum plicidades com eçaram a se articular.
O mapa lingüístico mostrado na Figura 11 dá uma idéia
m elhor da correlação entre locais geográficos e produção
teórica. Pode-se ver, primeiro, a correlação entre o local geo-
cultural e o geolingüístico da m odernidade (parte branca do
m apa) e os dom ínios geoculturais onde a m odernidade euro
péia não foi importante ou foi recebida (de boa ou má vontade)
co m o elem ento a ser incorporado ou tornar-se objeto de
resistên cia por parte das lín gu as e culturas v ern á cu la s.
Segu ndo, pode-se ver (linhas horizontais) que a maior parte
do planeta (com exceção dos países europeus) com preende
áreas culturais geoistóricas com mais de dez línguas cada uma.
Embora a situação esteja sendo corrigida, perm anece o fato
de que, se os países europeus não foram considerados países
com mais de dez línguas, é porque as línguas imperiais e
nacionais foram as únicas a serem contadas com o tais; as
outras foram contadas com o dialetos. O discurso sobre a
m issão civilizadora era dúplice: um para a construção da
n ação , outro para a expansão colonial.
O mapa mostra também (linhas diagonais) que na maior
parte das áreas do m undo (com exceção dos países europeus)
mais de quarenta por cento da população é analfabeta. Todos
os tipos de conclusões podem ser tiradas dessa estatística.
Um a delas poderia levar, por exem plo, á celebração do baixo
índice de analfabetismo nos países europeus, com o proeza do
desenvolvim ento intelectual natural dos povos que vivem
nessa área específica do planeta, onde se situaram os agentes
e a intervenção da missão civilizadora. Por outro lado, poder-
se-ia associar menor diversidade linguística e os níveis mais
baixos de analfabetism o na Europa ao processo da expansão
colonial global a partir de 1500. Essa data poderia também
ser usada para situar o processo no qual intelectuais, morando
na parte do planeta que com eçou a se autoconstruir com o a
Europa, e como um território onde a civilização humana atingiu
o nível mais elevado, atribuíram um alto valor ã “letra” com o
sinal distintivo do conceito de civilização que a Renascença
e os intelectuais do Ilum inism o forjaram para si próprios:
390
G u izo t, por exem p lo, evidentem ente acreditava, e declarou
exp licitam en te, que a “civiliza çã o ” era um puro fenôm eno
europeu ([1828-1830] 1868).
391
ordem de acordo com o núm ero de falantes é a seguinte:
inglês, espanhol, alem ão, português, francês, italiano. Chinês
é a língua mais falada do planeta, acima do inglês, embora o
inglês goze do poder, acom panhado e apoiado pelo local
geoistórico do capitalism o durante o período do Im pério
Britânico e, no último m eio século, nos Estados U nidos. O
espanhol, embora alijado com o língua importante da m oder
nidade (derrotado pelo francês, alem ão e inglês) tem mais
falantes do que o francês e o alem ão . O russo, segu nd a
língua descartada com o língua importante da m odernidade,
c o n se g u iu , entretanto, um a presença m arginal através da
literatura, e tem mais falantes do que o alem ão. O hindi está
entre o russo e o alem ão. Finalm ente, o japonês, o árabe e o
bengali são línguas cujos números de falantes excede o do
português, do francês e do italiano. Mas não é só isso. A
globalização e a encenação da missão civilizadora através da
intervenção das línguas coloniais possibilitou a essas línguas
serem faladas além de seu lugar de “origem ” . Assim , a disso
ciação entre línguas e territórios, a política dúplice das línguas
(uma para a nação, uma para as colônias) e, finalm ente, as
m igrações m aciças crescentes, possibilitadas pela própria
Revolução Industrial e pelos meios de transporte, revelam os
esplendores e misérias das línguas coloniais: por um lado, a
história de seu alcance planetário; por outro, a história da
im possibilidade de controle pelas respectivas academ ias de
lín gu as n acio n a is. N esse ínterim , as três línguas da alta
m odernidade (inglês, alem ão, francês) continuam sendo as
línguas hegem ônicas do conhecim ento e da literatura mundial
(Bourdieu, 1991: 37-65; M annheim , 1990: 1-112). Certam ente,
línguas bem estabelecidas com o o chinês, o japonês, o árabe
ou o hebraico não foram elim inadas pelas línguas coloniais
m odernas, com o ocorreu com o q u ích u a , o aimará ou o
nathuatl, que sofreram o impacto do latim e do espanhol,
apoiado pela infra-estrutura do que Darcy Ribeiro cham ou
de “im périos mercantis com uma missão salvacionista”, para
distinguir o império espanhol (bem com o o português e o
russo) do “m ercantilism o co lo n ia l-ca p italista ” (H o lan d a e
Inglaterra, século 17) e do “im perialism o industrial” e n ce
nado pela Inglaterra no século 19 e pelos Estados Unidos na
segunda metade do século 20.
392
Línguas e a População Mundial
Chinês A^
Inglês !
Espanhol / 45%
Russo
Hindi t
Alem ão 60%
Jap o n ês
Árabe
Bengali
Português
Francês *
Italiano
D IS T R IB U IÇ Ã O D AS LÍN G U A S N O M U N D O POR
C O N T IN E N T E (ligeiram ente adaptado de Grim es 1978)
393
TABELA 1
Falantes das línguas majoritárias
(Porcentagens da População Mundial)*
3 94
um hom em de negócios coreano e um banqueiro chinês falam
inglês nào estão trazendo para a conversa o peso da civili
zação inglesa/am ericana. Adem ais, há muito mais falantes de
m andarim do que de inglês. Na verdade, o número total de
falantes de línguas faladas na China é quase igual à totalidade
dos falantes das línguas coloniais (ver Tabela 2). Se acres
centarmos o núm ero de falantes de hindi, russo, bengali e
árabe, o número de falantes de línguas não-coloniais ultra
passa em muito o número de falantes das línguas coloniais.
TABELA 2
Falantes das principais línguas chinesas e ocidentais
1958 1992
395
Mas a questão não é tanto o número de falantes quanto o
poder hegem ônico das línguas coloniais no dom ínio do saber,
da produção intelectual e das culturas do conhecimento acadê
mico. No domínio da literatura, por exem plo, pode-se escrever
em inglês e ainda adicionar a densidade das lembranças espa-
nholas/latino-am ericanas, com o os(as) latino-am ericanos(as)
estão fazendo nos EUA. O inglês na índia, após sua divisão,
não transmite a mesma memória que o inglês nacional da
Grã-Bretanha; com o também o inglês falado na Inglaterra pelos
imigrantes do Terceiro M undo não tem o mesmo peso cultural
e ideológico que o inglês padrão. Em outras palavras, o que o
estágio atual da globalização está inconscientem ente instau
rando é o desatamento do laço “natural” entre línguas e nações,
línguas e memórias nacionais, línguas e literatura nacional.
Criam -se assim condições para a recolocação de línguas e a
fratura de culturas — e elas estão sendo instauradas. É difícil
sustentar o próprio conceito de cultura (e civilização, da pers
pectiva de Huntington) com o espaço hom ogêneo para pessoas
com interesses, objetivos, memórias, línguas e crenças com uns.
É verdade, com o Huntington enfatiza, que, depois da d esco
lonização, as línguas “nativas” estão ganhando terreno, pois
associam -se à política do Estado ou a m ovim entos sociais e ã
literatura. As culturas do conhecim ento acadêm ico também
estão sendo recolocadas. Assim , em bora o inglês esteja se
tornando a língua internacional do conhecim ento, não está
levando consigo o peso e o valor conceituai do conhecim ento
acadêm ico ocidental. Sustento, aqui, que algo sem elhante ao
que acontece na literatura está acontecendo nas culturas do
conhecim ento acadêm ico: uma gnosiologia liminar está em er
gindo na interseção da epistemologia ocidental e do saber não
ocidental, sendo caracterizada como “sabedoria” pela primeira.
Finalmente, examinemos a estatística anterior de um ângulo
diferente, focalizando o número de “falantes nativos” e o dos
que aprenderam a língua com o “segunda/terceira língua”. Essa
diferença é im portante, não apenas para qualquer língua
esp ecífica, mas por causa da discussão sobre “só o inglês”. A
diferença pode ser difícil de quantificar, mas não é m enos
visível. O s exem plos incluem o aprendizado de uma língua
“estrangeira” na escola ou outra instituição na terra “natal”; o
aprendizado de uma língua “estrangeira” pelo imigrante no
país no qual a língua “estrangeira” está sendo aprendida; uma
396
com binação dos dois, com o ocorre em “programas de estudo
no exterior”. A diferença é importante, não tanto por causa
dos valores nacionais hoje em butidos em uma língua esp ecí
fica, mas em razão do fato de que a língua é o corpo e a
sensibilidade (com o discuti no capítulo anterior em relação ao
conceito de “linguajam ento”), nacional ou de outra natureza.
Pode-se evidentem ente pensar em cenários diferentes, de
natureza transnacional, em que, desde o princípio, os “falantes
nativos” não estão mais expostos a uma “língua materna”, mas
a uma diversidade de linguajamento sem um cordão umbilical
preso ã mãe ou ã terra natal. Mas mesmo nesse cenário e no
futuro próxim o, ainda será pertinente a questão da língua e da
diferença colonial. Algumas línguas serão hegemônicas, outras,
subalternas. Tam bém outras línguas, hegem ônicas, num co n
texto dado ou numa história local, serão ao mesmo tem po
subalternas em relação a projetos globais e sua implementação.
TABELA 3
Falantes de línguas m undiais (em m ilhões)
Alemão 98 124
Francês 74 126
397
A Tabela 3 fornece estatísticas sobre as línguas do m undo.
Proporcionalm ente, a diferença entre falantes “nativos” e o
núm ero total de falantes é maior para o inglês do que para o
mandarim. O s 150 milhões de falantes “estrangeiros” do inglês
são quase a metade do número de falantes “nativos”. Em vez
disso, para o mandarim, a diferença de 166 m ilhões entre
falantes “nativos” e “estrangeiros” é cerca de um quinto do
primeiro. Outra estatística interessante diz respeito ao russo. O
hiato entre “nativo” e “estrangeiro” é maior do que para o inglês.
Co n tu d o , o número total de falantes é inferior e o russo não
goza da posição hegem ônica do inglês. A terceira observação
interessante que se pode fazer sobre essa tabela é que três das
línguas coloniais/modernas (português, alem ão e francês) têm
um número de falantes significativamente inferior ao das outras
sete línguas da tabela, das quais apenas duas (inglês e esp a
nhol) são línguas coloniais/modernas. Essas estatísticas com ple
mentam o diagrama da Figura 12, no qual as línguas européias
cobrem 1.5 do total de línguas e falantes do m undo, o que,
estatisticam ente, assem elha-se ao 1.5 atribuído ao O riente
M édio. Assim , essas estatísticas evidenciam a diferença c o lo
nial e revelam abertamente a colonialidade do poder na asso
ciação epistem ológica entre línguas específicas e a estrutura
do conhecim ento. O direito das línguas não é apenas um item
a mais pedindo o apagam ento da diferença colonial. O direito
das línguas revela a diferença epistem ológica colonial e a
esm agadora estrutura de conhecim ento criada e reproduzida
pela própria criação e reprodução do sistema mundial colo-
nial/m oderno. Aqui a proproção entre língua e civilização não
se relaciona com o número de “falantes”, mas com o número
de “leitores”. A questão não é apenas o número de falantes
de uma língua dada, mas o índice de alfabetização em uma
língua dada e a proporção entre as línguas de um determinado
país e a língua da m ídia. Quais são as línguas de publicação
e distribuição do conhecim ento?
398
que com pareceram mais de cem organizações não governa
m entais. Um dos p rincipais o bjetivo s da co n fe rê n cia foi
aprovar uma declaração universal dos direitos das línguas,
com a finalidade de com plem entar a resolução relativa aos
direitos hum anos. O objetivo final era a aprovação dessa
declaração pela U nesco (U nesco, 1998). A conferência foi
presidida por Rigoberta M enchíi, a conhecida intelectual e
militante m aia-quiché, da Guatem ala. Proponho a hipótese de
que esse evento tenha resultado de uma transformação radical
daquelas crenças coloniais que, desde as primeiras etapas
da m o d ern id ad e e da g lo b a liz a çã o , associavam as línguas
aos limites da hum anidade (H eath, 1972; Skutnabb-Kangas e
Phillipson, 1995). Próxim o aos anos 70, o poder dos estados
nacionais com eçou a ser erodido pela configuração das alianças
econôm icas transnacionais (foram os anos da O rganização
dos Países Exportadores de Petróleo, da entrada do Ja p ã o no
m ercado m undial, da consolidação das corporações transna
cionais). O enfraquecim ento do Estado foi contrabalançado
pelo fortalecim ento das com unidades que tinham sido repri
midas precisam ente nos anos de construção de nações e de
con solidação dos Estados. A Ásia e a África foram os locais
dos m ovim entos de d esco lo n ização . O s latino-am ericanos
assistiram ao reflorescimento dos movimentos indígenas reivin
dicando seus direitos, suas terras e suas línguas. Rigoberta
M enchú em ergiu desses processos. O que tudo isso significa,
entre outras conseqüências importantes, é a clara e enérgica
articulação de uma política e filosofia linguística que suplanta
a alocação que havia sido atribuída a línguas minoritárias
pela filosofia de linguagem , subjacente ã missão civilizadora e
à política lingüística praticada pelo Estado, tanto dentro da
nação, quanto nas colônias (Bonfil Batalla, 1982; Van Cott, 1994).
Mas deixem -m e agora recuar um passo e retomar a questão
do m odelo de civilização na forma descrita por G o n g . O que
aconteceu ao m odelo de civilização após a Segunda Guerra
Mundial? Na verdade, essa mesma idéia foi questionada antes
daquele m om ento, dentro da própria Europa, e por países
com memórias e realizações mais extensas, com o a China ou a
Pérsia. De fato, Osw ald Spengler ([1926-1928], 1950) já alertava
para a visão entusiástica da civilização européia, indireta
m ente questionada pela Primeira Guerra Mundial. A Segunda
399
Guerra trouxe outra perspectiva quando países da África e
da Ásia, que tinham sofrido o colonialism o europeu, critica
ram a lei internacional associada ao m odelo de civilização e
à fam ília das nações. Na esteira de R. P. Anand (1966), G o n g
observou que “o que era temido incialm ente, com o a rejeição
in toto da lei internacional pelo grupo afro-asiático, acabou
sendo uma rejeição dos aspectos contaminados pelo passado
co lo n ia l” (G o n g , 1984: 90). O s m odelos de civilização e a
m issão civilizadora com eçaram novam ente a ser reco n ver
tidos, dessa vez com um novo líder na ordem m undial. Não
mais a Inglaterra e a França, não mais os ideais da Revolução
Francesa ruindo nas duas guerras sucessivas do sistema m un
dial m oderno, mas os Estados Unidos e um deslocam ento do
eurocentrism o para ideais mais abrangentes da civilização
ocidental. Esses foram reconvertidos em duas direções.
A primeira m udança estabelecia os “direitos h um anos”
com o novos padrões internacionais (dos quais os Estados
U nidos se tornaram cam peões, com o se observa atualmente
com a visita do presidente Clinton à China em 1998) e as
N ações Unidas com o um fórum internacional para evitar a
discrim inação internacional, em vez do controle da chegada
ao m odelo de civilização. Contudo, e uma vez mais, a “D ecla
ração Universal dos Direitos H um anos” foi pronunciada pelo
protagonista de uma história local que apresentava projetos
globais. Poder-se-ia perguntar se a resistência da China a isso
deve-se a uma diferença de perspectiva ou ao fato de que a
China não teve voz em algo que se denom inava “D eclaração
U niversal”. Em outras palavras, pode bem ser que a tradição
da m issão cristã e da missão civilizadora tenha produzido os
padrões adequados à “D eclaração dos Direitos H um anos”,
com valores universais baseados em uma história local. O u
pode bem ser que esse não seja o caso, e que qualquer decla
ração “universal” tenha que ser uma conclusão consensual
baseada em diferentes padrões e heranças de civilizações (Islã,
Ch in a, com unidades indígenas do m undo etc.). Certam ente,
isso poderia ser difícil e “p erigo so ”, de uma perspectiva
gerencial de dem ocracia. Pode bem ser, em outras palavras,
qu e os v elh o s m o d elo s o cid en tais de c iv iliz a çã o p erm a
neçam vivos, embora tacitamente, na “D eclaração Universal
dos Direitos H um anos”.
400
D e acordo com G o n g (1984: 92), o segundo candidato a
sucessor do m odelo de civilização é o “padrão de m oder
nidade”, que se manifesta com máscaras diferentes. A pretensão
da ciência a universalism o foi uma construção im aginária
v ito rio sa, a le g a n d o que a ciên cia não se p rende a um a
cosm ologia e escondendo a possibilidade de se ver a “ciência”
com o uma nova espécie de cosm ologia. As normas e valores
da aldeia g lo b a l estão se tornando universais, ao passo
que padrões globais de qualidade de vida são defendidos e
relacio n ad o s com saúde e ciên cias práticas, e tam bém á
m edida que a cultura urbana é vista com o padrão de cosm o-
politism o.
T endo em mente essa história em transição, gostaria de
voltar ao tema da recolocação de línguas e conhecim ento no
estágio atual da globalização. A em ergência de novos atores
locais com um a agenda internacional é hoje óbvia. Esses
novos atores sociais estão contestando a idéia de que projetos
globais só podem emergir de uma determinada história local
e estão reform ulando as regras do jogo. A desigualdade do
poder, entretanto, é ainda evidente. O s movimentos indígenas
na Am érica Latina evidenciam esse ponto.
Na Am érica Latina, a influência e a internacionalização
crescentes das organizações indígenas vêm tendo um impacto
notável sobre a política lingüística e a educação. Evidentemente,
a ascensão do que com eça a ser cham ado de “nova etnicidade”
(Hall, 1991a, 1991b) não emergiu toda de uma vez. Atrás dessa
evolução havia uma longa tradição de rebeliões, resistências e
adaptações controladas por poderes ou coloniais ou nacio
nais (ou am bos), omitida no ensino das histórias, culturas e
práticas literárias nacionais (Heath, 1972). O espanhol, língua
subalterna na m odernidade e u ro p éia, tornou-se a língua
oficial e h egem ôn ica em áreas com uma densa p o p u lação
ameríndia com o os Andes (Bolívia, Peru, Equador) e a Meso-
américa (M éxico, Guatemala). D o ponto de vista da população
a m erín d ia, as lín gu as foram um elem en to crítico para a
m anutenção de um sentido de continuidade, desde os tempos
coloniais até o período de construção da nação, ch egando ao
fim do século 20. As m udanças observadas nos anos 70, a
em ergência de uma nova consciência ameríndia, foram im pul
sionadas por am eríndios que tinham sido em pregados pelo
401
Estado, com o funcionários de desenvolvim ento com unitário
ou co m o p ro fessores prim ários. Estavam b u sca n d o não
apenas uma nova identidade am eríndia, mas também a opor
tunidade de pressionar os detentores do poder e os gover
nantes para influenciar o futuro da com unidade ameríndia.
Por outro lado, a glo b alização tecnológica contribuiu para
o processo, pois os militantes indígenas e aqueles que os
apoiavam na esfera internacional puderam associar-se através
da rede transnacional de inform ações. Um dos paradoxos da
globalização é que ela permite às com unidades subalternas,
dentro do estado-nação, criar alianças transnacionais além
do Estado, de forma a lutar por seus próprios direitos sociais
e hum anos (Skutnabb-Kangas e Phillipson, 1995). O direito
de ter e usar línguas colocadas num a p osição subalterna,
pelo discurso da missão civilizadora e pela política pública
do Estado, faz parte das reparações exigidas com o direitos
humanos e lingüísticos. Isto é, os laços entre línguas e o limite
da hum anidade estão entrando num processo de desinte
gração, cujas conseqüências ainda não podem os prever. Pa
ralelamente a m ovim entos sociais e à importância atribuída à
questão da língua, ocorreu a em ergência de intelectuais de
ascendência ameríndia para quem a “língua m aterna” era,
n a tu ra lm e n te , um a lín g u a a m erín d ia (aim ará, q u íc h u a ,
m aia, n ah u atl). A em ergên cia de um a nova co m u n id a d e
de in te le c tu a is na p aisa g em cu ltu ral da A m érica Latina
enquadra-se na descrição de “intelectual orgânico” feita por
Gram sci, embora não necessariamente em cum plicidade com
o Estado: “Todo grupo social, surgindo no terreno original
de uma função essencial no m undo de produção econôm ica,
cria, junto co n sig o m esm o, o rgan icam en te, uma ou mais
cam adas de intelectuais que lhe dão hom ogeneidade e uma
co n sciên cia de sua própria função, não apenas no cam po
econôm ico, mas também no social e p o lítico .” (Gramsci [1944]
1992). Por razões históricas, relacionadas à história do próprio
co lo n ia lism o , os intelectuais de a scen d ên cia ameríndia na
América Latina não têm, na esfera pública, a influência que os
intelectuais afro-americanos ou latinos têm nos Estados Unidos.
Uma área em que têm sido ativos e influentes é na educação e
na contestação da ideologia do Estado no que diz respeito à
402
língua e à m em ória1 (Hobsbaw m , 1990). Mais do que a rein
tegração de um passado autêntico, a articulação intelectual da
história e da educação deve ser entendida dentro do processo
de construção da nação e da ordem mundial im perial. Para
encurtar a história, no fim do século 19, quando estava no
auge a institucionalização das línguas nacionais (G o n g , 1984;
Robertson, 1992) e os canibais do início do período colonial
eram transformados nos primitivos da era da expansão co lo
nial, e o m odelo de civilização também era estipulado entre as
principais potências européias, a missão civilizadora e o co n
ceito de “civilid ade” tornaram-se um princípio regulador nos
discursos interestatais, imperiais e neocoloniais das Américas.
Um exem p lo é a noção de “fronteira” no fim do século 19,
nos Estados Unidos e também na Argentina: a “fronteira” era
o marco m óvel (em direção ao Oeste) da marcha da missão
civilizadora, a linha divisória entre a civilização e a barbárie.
Entretanto, a “fronteira” não era apenas g e o g rá fica , mas
tam bém epistem ológica: o local do primitivo e do bárbaro
era a “terra vazia”, do ponto de vista da econom ia, e o “espaço
vazio ” do pensam ento, da teoria e da produção intelectual.
C om o Barrán (1990) afirma persuasivamente:
403
momento, no qual o “bárbaro” se apropria das práticas teóricas
e dos projetos elaborados, absorvendo e anulando o discurso
da m issão civilizadora e suas fundações teóricas. A “fronteira
da civilização” em fins do século 19 tornou-se a “m argem ” do
fim do século 20. Margens (Anzaldúa, 1987), ao contrário de
“fronteiras”, não são mais as linhas onde se encontram e
dividem a civilização e a barbárie, mas o local onde uma nova
consciência, uma gnose liminar, emerge da repressão acarre
tada pela missão civilizadora.
A conceitualização do conhecim ento em termos de “fron
teiras” obedece á mesma lógica da fronteira espacial, onde se
acreditava que a civilização acabasse e com eçasse a barbárie:
um espaço a ser conquistado. Na verdade, com essas pressu
posições, Lynn W hite Jr. publicou em 1956 um influente livro
intitulado Frontiers o f Knowledge in the Study ofM an . As fron
teiras do conhecim ento são os limites a que haviam chegado
as diferentes discip linas, no m om ento em que o livro foi
escrito, e o livro foi escrito com a pressuposição de que o
conhecim ento se limitava às disciplinas. Foi organizado de
acordo com a seguinte divisão: genética, psicologia, antro
p ologia cultural, arqueologia, história, sociologia, geografia,
econom ia, história da ciência, filosofia etc. A conclusão indi
cava as mudanças comuns aos diferentes campos disciplinares.
Um dos denom inadores com uns foi uma m undança quanto
ao conceito de pessoa, e, portanto, o objeto de estudo estava
sendo redefinido; já não era o estudo do hom em , mas de
pessoas, de padrões culturais, de ação e interação entre as
pessoas. Vale a pena lembrar as conclusões de White sobre
as fronteiras móveis do conhecim ento, no próprio início da
Guerra Fria (epistem ológica). A primeira conclusão refere-se
às m udanças no cânone ocidental do conhecim ento. Já não é
sustentável a presunção de que a “civilização ” seja evidente
mente a civilização ocidental e de que a história seja uma
su cessão linear de eventos que com eça algures, em T róia,
e ch ega à Am érica do Norte nos tem pos m odernos. Nesse
esquema, o hom em era o homem euro-am ericano e o resto
eram “nativos”. O “cânone o cid en tal”, observa W hite, foi
substituído por um “cânone universal (ou global)”. Nele, o Peru
e o M éxico (e aí ele inclui desde as antigas civilizações incas
e astecas até os dias de hoje), o Islã, a índia e a China, antigas
e co n te m p o râ n e a s, entre outros, já não são vitrines de
4 04
curiosidades, mas acontecim entos na construção planetária
da civilização.
E entretanto... as coisas têm m udado na ordem do co n h e
cido, não na da produção do conhecim ento. O m undo se
expan diu , a civilização já não é ocidental e sim planetária,
mas a organização e as normas disciplinares continuam dentro
do parâmetro do conhecim ento ocidental, com o discuti no
Capítulo I (cf. o caso da “filosofia” africana ou latino-am eri
cana). Mas com o conceber uma mudança no “cânone ocidental
do conhecimento”? Com o podemos pensar além das disciplinas,
prom over um pensam ento “transdisciplinar” que ultrapasse
o nicho das disciplinas incluídas no livro de White? Open the
Social Sciences , relatório da Fundação G u lb en k ian que men
cion ei diversas vezes neste livro, m enciona “estudos culturais”
com o um desafio e uma possibilidade de transpor fronteiras
disciplinares. A discussão de “tradição”, “consenso” e “dem o
cracia” na filosofia africana (W iredu, 1997; Eze, 1997c), a
recuperação feita por Kusch de uma categoria indígena de
pensam ento que intervenha nos debates filosóficos e episte-
m ológicos dos anos 60 e 70 (no Capítulo III), a discussão de
Rivera Cusicanqui a respeito da dem ocracia “liberal” e “ayllu”
na Bolívia (Rivera-Cusicanqui, 1990), ou a revolução teórica
dos “zapatistas” (M ignolo, 1997d) são casos em que as “fron
teiras” do conhecimento já não dizem respeito ao que é conhe
cido, mas à produção do próprio conhecim ento.
Mas deixem -m e oferecer um exem plo mais concreto do que
tenho em mente. Vocês talvez se lembrem da narrativa relatada
por K usch, em um de seus livros, sobre a bom ba de água e a
atitude do cam ponês aimará, que com entei no Capítulo III.
As im plicações da narrativa de K usch são diversas: a subal-
ternização do conhecimento indígena pelo conhecimento tecno
lógico; o conflito de conhecimento entre o filósofo-antropólogo
e o cam ponês aimará; e, finalm ente, a questão da filosofia
desenvolvim entista (Escobar, 1995) nos anos 60. As situações
em blem áticas descritas por K usch, no fim dos anos 60, ainda
estão sendo seriamente consideradas em projetos e na discussão
sobre o desenvolvim ento sustentável e alternativas ao desen
volvim ento, em vez de desenvolvim entos alternativos. Encai
xa-se aqui o Proyecto Andino de T ecnologias Cam pesinas
(Pratee). Rengifo Vásquez (1991; 1998a; 1998b) defendeu ener
gicam ente a d e sco lo n iza çã o do co n h ecim en to na área do
405
desenvolvim ento rural. Suas reflexões (para as quais, inci-
dentalm ente, K u sch o fe re ce a p o io teó rico ) são p aralelas
às desenvolvidas em diferentes áreas e em diferentes países.
Ram achandra G u h a (1996) tem explorado os resultados da
subalternização do conhecim ento cam ponês na índia durante
o século 19, com o conseqüência da introdução da tecnologia
britânica de irrigação, mais tarde reproduzida nos Estados
Unidos no início do século 20. Gustavo Esteva (1996) explorou
as mesmas preocupações através da história de vida de quatro
cam poneses m exicanos, muito semelhante à situação descrita
por Kusch. O resultado final em todas essas análises e narrativas
é o conflito entre o conhecim ento “indígena” e o “m oderno”.
O conflito, em outras palavras, reside no próprio fato de se
pensar que exista um conhecim ento “indígena” contrastante
com formas “m odernas” de conhecim ento, nesses casos, reali
zadas pela tecnologia — quando, na verdade, a oposição é
estruturada em e por descrições epistem ológicas daquilo que
a tecnologia pode fazer por nós, descrições vazadas dentro
da co n cep ção de m odernização e desenvolvim ento.
Mas deixem-me fazer aqui uma pausa para esclarecer minha
referência a um exem plo controverso com o a Pratee. A Pratee
teve uma recepção insidiosa por parte de respeitados antro
p ó lo g o s e intelectuais peruanos e tam bém o entusiástico
apoio de antropólogos não peruanos, residentes nos Estados
U nidos (Apffel-M arglin, 1996: 1-30). Não é minha intenção
mediar ambas as posições, mas sim salientar aquilo que, do meu
ponto de vista, constitui a contribuição da Pratee, apesar da
crítica convincente feita por Gregory e o excessivo entusiasmo
m anifestado por Apffel-M arglin. Agrada-m e pensar a Pratee
paralelamente ao projeto “Cultura da Transiência” iniciado por
P. K. Garg e I. J. Parikh na índia (Garg e Parikh, 1995: 172-211).
O s projetos globais, cristãos, (neo)liberais, ou (neo)marxistas
foram concebidos e realizados a partir de uma história local
específica, geralmente identificada com o “O cidente” e, neste
livro, com o construção e reconstrução do sistema m undial
colonial/m oderno. Pode-se também falar de diversas histórias
locais — por exem plo, o colonialism o espanhol nas Américas
não foi o m esmo que o colonialism o britânico na índia ou o
colonialism o norte-am ericano em Porto Rico. Contu do, há
alguns fios com uns ligando as abordagens espanhola, britâ
nica e norte-americana no que diz respeito â vida, à sociedade
406
e ao m undo. Ao mesmo tem po, houve nos Andes do século
16 e na índia do século 18 uma história local diferente, com
um ethos diferente. Seria também possível considerar as dife
renças entre os falantes e a cosm ovisâo aimará e quíchua, ou
entre hindi e bengali, bem com o entre os falantes do espa
nhol e do inglês. O ra, os falantes do espanhol e do inglês
tiveram contato com falantes do quíchua e do aim ará, por
um lado, e com os do hindi e do bengali, por outro. Mas os
falantes do aimará e do quíchua nunca tiveram contato com
os povos hindi e bengali. Adem ais, o contato entre falantes
do espanhol e do aimará/quíchua, por um lado, e os do inglês
e do bengali/hindi, por outro, foram contatos definidos pela
colonialidade do poder e pela diferença colonial. E é a dife
rença colonial que define as fronteiras externas do sistema
m undial colonial/m oderno.
Um a “cultura de transiência” é um corretivo necessário
à g lo b a liz a ç ã o do p o n to de vista da “ m u n d ia liz a c ió n ” á
glob alização. Não há muitas escolhas. Um a vez que se reco
nheça que a hom ogeneidade cultural sob os projetos o c i
dentais globais é tão contraproducente quanto a resistência
fundam entalista justificada pela história local, faz-se neces
sária uma cultura de transiência. Mas seria também contra
producente passar a uma transitoriedade que m antenha a
colo n ialid ad e do poder e na qual a transição seja regida
apenas por projetos globais. Faz mais sentido pensar que a
cultura da transitoriedade será regida pelas histórias locais,
pela desubalternização do conhecimento local e por uma desco
lonização epistem ológica com o crítica radical ã presunção de
“benefícios para todos” que rege os projetos globais, tanto
da p erspectiva esquerdista quanto da direitista. É nessa
interseção que não se pode descartar o projeto da Pratee. O
que não se pode descartar é, para com eçar, a recuperação da
filosofia de vida e a conceitualização da sociedade ameríndia
— sem a intenção de realizar uma reconstrução arqueológica
do “original” ou do “autêntico” e sem a intenção acadêm ica e
filológica de produzir conhecim ento para ampliar o m useu,
mas sim com o uma intervenção epistêm ica e política na dife
rença colonial. Sem esse tipo de possibilidade que pode ser
praticada em todo o m undo ou nas fronteiras externas do
sistema m undial colonial/m oderno, a única alternativa que
resta é uma constante releitura dos grandes pensadores do
4 07
O cidente à procura de novos cam inhos para o saber e formas
de conhecim ento não associadas ao nome de uma pessoa, mas
à energia epistêm ica humana e ã força política da diferença
colonial. A Pratee, com todas as suas limitações, abre a possi
bilidade de se pensar a partir das ruínas da cultura ameríndia
e de se inscrever o pensam ento liminar no coração da d ife
rença epistêmica colonial, como fizera Kusch (Mignolo, 1995b).
Arturo Escobar (1997) oferece uma saída sem elhante ã
m inha própria co n cep ção de pensam ento liminar. Primeiro,
Escobar (1995) insiste em procurar alternativas para o desen
volvim ento, em vez de desenvolvim entos alternativos. Em
segundo lugar, distingue três regimes diferentes de “saberes”
para ou sobre a produção da natureza: saber orgânico, cap i
talista e tecnonatural:
408
semelhantes — podem ser fonte de processos que têm de ser
aceitos com o políticos (Escobar, 1997: 203).
409
contribuir, estão integrando e ven cen d o a lógica restritiva
atrás da idéia de “civilização ” e propiciando o que a missão
civilizadora suprimiu: a auto-apropriação de todas as boas
qualidades negadas aos bárbaros. O “pensam ento lim inar”,
com toda a sua co m p lexid ad e (geoistórica, sexual, racial,
nacional, diaspórica, de exílio etc), é uma forma de pensa
mento que em erge co m o reação ás co n d içõ e s de vida co ti
diana criadas pela glo b alização econôm ica e pelas novas
faces da diferença colonial.
LÍNGUAS HEGEMÔNICAS
E O LOCAL DOS SABERES
410
precisamente o que faltou aos povos fora da Europa (como os
astecas ou os incas), ou, se acaso as tinham (com o a Chin a, a
índia, ou o M undo Islâmico) tornaram-se objetos de estudo
(com o na ascensão do “O rientalism o”). Nos quinhentos anos
de expansão ocidental e da criação de faculdades e universi
dades, nas áreas colonizadas após o início do século 16, essa
crença fortaleceu-se tanto que conseguiu fazer com que os
p ovos duvidassem de seu saber, se esse saber não se arti
culasse em línguas e instituições edu cacionais ocidentais.
Q uando os estudos com parativos de civilizações tornaram-se
uma disciplina prestigiada nas instituições de pesquisa euro
péias, fez-se um a distinção entre civilizações que se conver
teram em objetos de estudo e as que tinham culturas de
conhecim ento e o arcabouço mental necessário para sediar o
estudo de outras civilizaçõ es. D ep o is da Segunda Guerra
M undial, embora adaptadas às novas necessidades do terceiro
estágio da globalização, as culturas do conhecim ento acad ê
m ico foram rem odeladas de acordo com essas tradições.
No início do que chamei o terceiro estágio da globalização
(após 1945), a descolonização cam inhou de mãos dadas com a
Guerra Fria e a divisão do mundo em três áreas hierarquizadas
(Prim eiro, Segundo e Terceiro M undo). Essa divisão geoistó-
rica tam bém im plicava uma divisão de trabalho acadêm ico e
científico, com o já observei. Loci de enunciaçâo científica e
erudita foram também estabelecidos, depois que os países
foram classificados em três grupos: (a) tecnologicam ente avan
çados e livres de repressões ideológicas; (b) tecnologicam ente
avançados, mas atravancados com uma elite ideológica, que
im pedia o pensam ento utilitário; e (c) países tradicional,
econôm ica e tecnologicam ente subdesenvolvidos, com uma
m entalidade tradicional que obscurecia a possibilidade do
pensam ento utilitário e científico. O mapa da produção de
co n h ecim en to entre 1850 e 1945, traçado por W allerstein,
localizava a pesquisa na Europa e o resto do m undo com o
cenário de realizações hum anas interessantes para o estudo
e a com preensão, mas antim odernos e congelados no tem po,
ou de culturas onde a m issão civilizadora tinha exatam ente
a m issão de civilizar. O primeiro constituía a província dos
estudos civilizadores (por exem plo, o orientalismo), o segundo
a p ro v ín cia da a n tro p o lo g ia . As culturas d o m in an tes de
conhecim entos coloniais estavam na França, na Inglaterra e
411
na Alem anha. Após 1945, a paisagem anterior foi ligeiramente
m odificada.
Um a vez aceita a nova ordem m u ndial, a distribu ição
do trabalho intelectual foi reorganizada de acordo com ela.
“Cultura”, e não mais “civilização”, foi o termo usado para
situar uma imensa área do planeta dentro do pré-m oderno,
isto é, o Terceiro M undo. Estamos chegando aqui, de um
ângulo diferente, a um ponto crucial deste livro, que tenho
sublinhado continuamente: a genealogia da etnologia com pa
rativa no século 16 (Pagden); o orientalismo nos séculos 18 e
19 (Said); a antropologia nos séculos 19 e 20; até ãs ciências
sociais e os estudos de área após 1950. A gnose liminar emerge
com o um deslocam ento dessa genealogia e com o esforço para
restaurar o local com o configuração geopolítica e epistem o-
lógica da produção do saber. Para com preender o que estou
sugerindo pensem na exportação das ciências sociais para
o Terceiro M undo, exam inada criticam ente pelo Relatório
Gulbenkian (Wallerstein et al., 1996). E pensem novamente no
“dilem a de Chakrabarty”. O que está em jogo nesses casos são
as limitações das ciências sociais e culturas do conhecim ento
a c a d ê m ic o , para p reen ch er as n e ce ssid ad es de histórias
lo ca is que são a meta de projetos globais, sejam econôm icos
ou intelectuais, da direita ou da esquerda. O “dilem a de
Chakrabarty” deixa claro que as culturas do conhecim ento
acadêm ico não podem ser “exportadas” e “adaptadas” a uma
situação nova, sem levar em consideração a diferença colonial
e a subalternização do conhecim ento. O que as culturas do
conhecim ento acadêmico exportam é, sobretudo, um “m étodo”,
pois os problem as de que tratam são problemas específicos
de seu próprio lugar de origem . O que o pensam ento liminar,
a partir da diferença colonial, tem a contribuir é confrontar o
“problem a” enraizado na diferença colonial (o problema local)
com o “m étodo”. Partir do problema e não do método, presumir
a diferen ça co lo n ia l com o g e n ea lo g ia co n ceitu ai e não a
genealogia das ciências sociais (ou culturas do conhecim ento
a cad êm ico em geral) liberta o co n h ecim en to das norm as
disciplinares. Mas, sobretudo, evidencia que a produção do
conhecim ento a partir da diferença colonial tem que lidar com
os “silê n cio s” da história e com a “diferen ça” da coloniali-
dad e, isto é, com a diferença colonial. O pensam ento liminar
em erge, então, historicam ente, no fim da Guerra Fria com o
412
crítica à distribuição científica do planeta. E em erge, lógica e
conceitualm ente, da percepção dos saberes e línguas subal-
ternizados no exercício da colonialidade do poder.
As hum anidades não estiveram ausentes dessa distribuição
de trabalho, embora não ocupassem nela uma posição central.
Para ficar num ú nico exem plo: o estudo de línguas e litera
turas foi m oldado dentro da mesma estrutura epistem ológica.
As lín gu as da literatura foram p rincipalm ente as línguas
coloniais do período m oderno com suas heranças ilustres,
grego e latim. O s estudos literários perm aneceram dentro da
tradição. No período m oderno, a literatura foi cada vez mais
projetada com o “literatura nacional” e, naturalmente, escrita
numa língua nacional. Os estudos literários (em sua fundação
histórico-filológica antes de 1945, bem com o em suas form u
lações estruturalistas e pós-estruturalistas dos anos 70) foca
lizavam a literatura dos cinco países detentores do co n h eci
m ento, m en cio n ad o s por W allerstein. “Outras literaturas”
foram consideradas parte integrante da civilização e não dos
estudos literários. Tenho certeza de que todos notamos que
a Espanha não estava entre os cinco países do conhecim ento
m oderno. E, naturalm ente, o espanhol não contava com o
língua do conhecim ento acadêm ico. Essa brecha imperial do
período m oderno colocou a Espanha e o espanhol em um
lugar am bíguo entre as “civilizações orientais” e a “Europa
m oderna” . Q u an d o se chega á Am érica Latina, a localização
da Espanha entre o mundo árabe do Norte da África e o mundo
europeu da Europa O cidental fica ainda mais com plicada por
causa das relações, no período m oderno, entre o espanhol e
as línguas ameríndias e pelo fato de que, no século 19, as
civilizações andinas e m esoam ericanas não faziam parte dos
estudos europeus sobre civilizações (C o e, 1992). As “civili
za çõ es” estavam no Oriente. A Am érica Latina tornou-se, no
século 19, extensão e substituto da Europa. A Am érica Latina
oferecia, pois, interesse particular para a com preensão da
questão de línguas, literaturas e estudos literários na variável
distribuição do trabalho científico e das práticas culturais, a
partir de 1850. O espanhol, na América Latina, era duas vezes
subalterno: já não era nem mesm o o espanhol da Espanha,
ele próprio m arginalizado na m odernidade européia iniciada
no século 17. Por outro lado, as línguas ameríndias, com suas
ricas e com plexas relações entre o oral e o escrito (Boone e
413
M ignolo, 1994), não faziam parte das reflexões sobre línguas
e literaturas, mas dos estudos pré-colom bianos (versão parti
cular de estudos de civilizações situados dentro da história e
das heranças do colonialism o esp an h ol), do folclore e da
etno-história, ou, mais recentem ente, dos estudos culturais
co lo n ia is (M ig n o lo , 1992a; 1992c; 1992d). Em resum o: as
línguas e os estudos literários mantiveram-se dentro da moldura
epistem ológica da prática cultural e da academ ia da m oder
nidade do Atlântico Norte e da configuração cultural moldada
pela idéia da civilização e da missão civilizadora, juntamente
com o processo da globalização econôm ica.
A posição que venho articulando em todo o livro (bem
com o no anterior; ver M ignolo, 1995a) passa quase natural
mente a uma conceitualização da ordem m undial, próxima ã
descrita por Samuel P. Huntington (1996): “Os agrupamentos mais
importantes de Estados já não eram os três blocos da Guerra
Fria, mas sim as sete ou oito maiores civilizações do m u n d o .”
(H untington, 1996: 21) Podem os, naturalm ente, discutir a
categorização de Huntington e sua lista das chamadas “sete ou
oito” civilizações (ocidental, latino-americana, africana, islâmica,
chinesa, hindu, ortodoxa, budista, japonesa) e até suas loca
lizações territoriais, mas esse não é o ponto que eu gostaria
de desenvolver aqui. O que me interessa mais é o seguinte:
414
seria a rearticulação das ciências sociais e das hum anidades?
As c iê n c ia s s o c ia is, a arte e a literatura co n servariam o
m esm o fo c o e p o sição central que ocuparam no sistem a
m u n dial colonial/m oderno (a Europa O cidental, a Rússia e
os Estados U n id o s), ou serão descentralizadas da m esm a
forma que o capitalismo está sendo descentrado? Quais seriam
as relações e cum plicidades dentro das culturas do co n h eci
m ento acadêm ico e a produção “artística” dentro das seis
m aiores p otên cias que rearticulam a ordem tripartite que
prevaleceu durante a Guerra Fria? O s cientistas sociais e os
teóricos da arte e da literatura manteriam sua fé incorpórea
no status incorpóreo e universal do conhecim ento científico
e acadêm ico, de tal forma que, digam os, as ciências sociais e a
arte na índia do século 21 conservarão e importarão a tradição
clássica ocidental na arte e nas culturas do co nhecim ento
acadêm ico? D evem os acreditar no relatório da G u lbenkian
Foundation, segundo o qual a universalidade das ciências
sociais, em bora atenuada pela contribuição interdisciplinar
dos estudos culturais, será ao m esm o tem po incorporada á
tipicidade de cada uma das “sete ou oito civilizações” de que
fala Huntington? O u manterão uma configuração universal que
transcenda cada “civilização”?
4 15
um resultado recente dos processos civilizadores hum anos
que foram precedidos por potências hegem ônicas anteriores
e que será também transformada e dissolvida num futuro
governado pelo que Ribeiro cham a de “revolução term onu
clear e sociedades futuras”. Terceiro, embora tanto Elias quanto
Ribeiro perm aneçam prisioneiros do arranjo tem poral das
histórias humanas im plantados na m odernidade, a preocu
pação de Ribeiro com a colonização e com a expansão euro
péia lhe pemite abrir as portas para uma conceitualização
esp acial dos processos civilizadores e das histórias locais
dispostas em torno de centros sucessivos e sobreviventes de
hegem onia m undial. Quarto, e finalm ente, o fato de que as
preocupações e o foco geocultural de Ribeiro são as Américas
e não a Europa (caso de Elias) obriga-o a analisar o processo
da civilização européia com o um processo de subalternização
das culturas do m undo: “Nada no m u ndo”, declara Ribeiro,
“ficou imune às forças desencadeadas pela expansão euro
péia. Nela encontram os a base da reorganização da natureza,
cuja flora e fauna foram normalizadas em todo o planeta. Ela
[a expansão colonial européia] é o principal agente do desapa
recimento de milhares de com unidades étnicas, de misturas
raciais e da extensão lingüística e cultural dos povos euro
peus. No processo dessa expansão, as tecnologias modernas
bem com o as formas de organização social e os corpos de
valores culturais relevantes, na e para a Europa, foram disse
m inados e generalizados. O resultado desse processo é o
m undo moderno, unificado pelo comércio e pela com unicação,
ativado pela mesma tecnologia, inspirado por um sistema
básico e com um de valores (Ribeiro e G ó m es, 1996: 41-52).
Essa, num brevíssimo resumo, é a visão de Ribeiro a respeito
do que Elias cham ou de “processo civilizador”.
O ra, o que é relevante nessa com paração para entender a
“teorização bárbara” com o uma gnose liminar e com o uma
epistem ologia que emerge das condições criadas pela última
e talvez mais radical etapa da globalização é a possibilidade
(para alguém com o Ribeiro) de teorizar da margem (margem
no sentido de limiar e lim inalidade, com o dois lados ligados
por uma ponte, com o um local geográfico e epistem ológico):
de ter não apenas uma formação em “teorização civilizada”, mas
também a experiência de alguém que habita e vivência, tendo
inclusive form ação em “teorização civilizada”, precisamente
416
em com unidades que foram subalternizadas e colocadas á
m argem p elo próprio co n ceito e e xp an são da civiliza çã o
européia. Assim , um antropologador é alguém que se formou
com o antropólogo, sendo, ao mesmo tempo, parte do “outro”.
O co n h ecim en to com um de que Ribeiro é um “teórico do
Terceiro M u n d o ”, im plícito em M eggers (1991) em sua intro
dução à primeira edição de O processo civilizatório, foi clara
m ente destacado por Sonntag no prefácio à edição alemã:
OBSERVAÇÕES FINAIS
417
o (Primeiro/Terceiro) planeta inteiro. Este capítulo identifica
algum as das instâncias — m ovim entos sociais e direito das
línguas, em ergência de novas sedes de pensam ento entre as
disciplinas e entre as línguas, por exem plo, a auto-recuperaçào
do barbarismo com o um lócus teórico e uma força progres
sista que oferece corretivos valiosos para os abusos da razão,
da ciência e da disciplinaridade pós-ilum inista — nas quais a
negação à negação da contem poraneidade se concretiza pela
restauração e implem entação de forças, sensibilidades e racio
nalidades duradouras, reprimidas pela ideologia unilateral
da “m issão/processo civilizadora”, e sua cum plicidade com a
su b altern ização do co n h ecim en to e da p ro du ção cultural
em todo o planeta. Remapear a nova ordem mundial implica
rem apear as culturas do conhecim ento acadêm ico e os loci
acadêm icos de enunciação em função dos quais se m apeou o
m undo. A crise dos “estudos de área” é a crise de velhas fron
teiras, entre nações ou entre civilizações. É também a crise
da distinção entre saberes hegem ônicos (centrados em disci
plinas) e subalternos (centrados em áreas), como se os saberes
centrados em disciplinas fossem geograficam ente desincor-
porados. O pensamento liminar permite remapear culturas do
conhecim ento acadêm ico em termos de “saber disciplinar cen
trado em áreas”, unindo e apagando as fronteiras entre saber
sobre e saber a partir de. A gnose liminar ajudará a imaginar
um m undo sem fronteiras rígidas (de nações ou civilizações)
ou um m undo no qual as civilizações terão de defender sua
u n id ad e e sua pureza-, esse conhecim ento, em última análise,
não com eçou com os gregos, mas sim plesm ente com a vida.
Em última análise, o pensam ento liminar situa-se na inter
seção das histórias locais encenando projetos globais e as
histórias locais que com eles lidam. É por isso que o pensa
m ento liminar só pode constituir-se em uma perspectiva subal
terna, já que a encenação de projetos globais é im pulsionada
pelo desejo de hom ogeneidade e pela necessidade implícita
de hegem onia. O marxismo proporcionava uma alternativa
para a força hegem ônica e a ideologia do liberalism o. Mas
era também um projeto global — alternativo e oposicionista,
mas ainda assim um projeto global. O pensam ento liminar
acena com uma espécie diferente de hegem onia, uma h e ge
m onia m últipla, com o em um novo m edievalism o (Tanaka,
1997) no qual um m undo de centros m últiplos não seria
418
dom inado por qualquer deles. Em outras palavras, a diversi
dade com o projeto universal permite imaginar alternativas
para o universalism o. O “O cidente e o resto” (The “West and
the rest”), na frase de Huntington, proporciona o m odelo a
ser vencido à m edida que o “resto” transforma-se em locais
onde o p ensam ento liminar em erge em sua diversidade,
onde a “m undialización” cria novas histórias locais refazendo
e readaptando os projetos globais ocidentais (cristianismo,
desenvolvimento liberal e neoliberal, modernização e mercado,
ascen d ên cia m arxista-socialista da classe trabalhadora) e
onde se transformam histórias locais (européias) das quais
emergiram tais projetos g lo b a is. A glo b alização /“m undiali-
za ció n ” está reencenando velhas histórias locais, projetando-as
em direção a um futuro no qual o pensam ento liminar será
importante para a criação do que Glissant (1998) cham a “La
diversalité de la m ondialisation” interagindo com a “hom o
geneidade da glo b alização ”.
A queda do com unism o e a crise do marxismo podem ser
uma forma de compreender o “fim da história”, não no sentido
em que Francis Fukuyama o entende (1994), mas com o o “fim ”
do sistem a m undial colonial/m oderno da forma com o foi
reco n v ertid o no sé cu lo 19. A qu eda do co m u n ism o não
im plica a vitória do (neo)liberalism o, mas o sintoma da crise
dos princípios filosóficos e epistem ológicos que subtendiam
a am bos, o liberalism o e o m arxismo, com o os dois lados da
mesma m oeda. Nesse sentido, a crise é do sistema mundial
colonial/m oderno e não de um de seus aspectos. Leonard
W oolf pôde dizer, em 1928, que entre 1800 e 1900 “a Europa
passou por uma revolução tanto interna com o externa” e que
“essa trem enda m udança na constituição interna da Europa e
no tecido da civilização foi acom panhada... por uma mudança
igualm ente importante em relação à Europa face ao resto do
m u n do” (W oolf, 1928: 7-8). Samir Am in, no fim do século 20,
diria em vez disso que
4 19
do bloco oriental abandonaram sua tradição de relativa autarquia;
até mesmo um sistema cultural integrado, trazido pela extraor
dinária in tensificação das co m u n ica çõ e s, que resultou na
chegada de uma das mais avançadas formas de tecnonologia
ocidental até a aldeia mais remota do planeta (Amin, 1996: 10;
1995a; 1995b; Gonzalez Casanova, 1996: 10).
420
o o
420
o o
422
em Fox Keller e D onna Haraway, por um lado, e em Vandana
Shiva, por outro. C om o observa o próprio W allerstein, “a
crítica de V andana Shiva concentra-se m enos em m étodos
cien tíficos propriam ente ditos do que nas im p licações p o lí
ticas que se derivam da p osição da ciência na hierarquia
cultural. Ela fala com o m ulher do sul, e assim sua crítica
retruca à de A b d el-M alek” (1998a: 42). Isto é, Abdel-M alek e
Vandana Shiva estão criticando a epistem ologia, nas ciências
sociais e naturais, a partir da diferença epistêm ica colonial e
da experiência dos saberes subalternos. D eixem -m e com ple
mentar os exem plos de Wallerstein, que ele não leva às últimas
conseqüências, com um dos meus: a crítica de Paula Moya na
perspectiva feminista pós-m oderna (e, mais especificam ente,
da ap ro p riação feita por D o n n a H araw ay do discurso de
chicanas), em uma perspectiva chicana:
Moya com plem enta sua própria observação com outra feita
por Linda A lco ff (Alcoff, 1995), em que ela observa que “a
influência ascendente do pós-modernismo teve um claro efeito
debilitante sobre o projeto de reconhecer a força das mulheres
com o produtoras de conhecim ento, inspirando uma rajada
de ataques críticos sobre relatos não problem atizados de
experiências e sobre a política da identidade”. E M oya acres
centa a essa observação que “esses ataques críticos serviram,
de acordo com o saber teórico convencional, para deslegiti-
mar todos os relatos de experiências e para minar todas as
formas de política de identidade — problem atizadas ou não”
(M oya, 1997: 127). Estou alinhando esses exem plos com os
de Vandana Shiva e Abdel-M alek até o ponto em que são
4 23
gerados a partir da diferença colonial. Por outro lado, a crítica
pós-moderna da modernidade, bem com o a análise do sistema
m undial, é gerada a partir das margens internas do sistema
— isto é, ambas oferecem uma crítica eurocêntrica do euro-
centrism o. A diferença epistêm ica colonial situa-se alhures,
nào na interiorid ade da m o d ern id ad e d efin id a por seus
conflitos imperiais e autocriticada a partir de uma perspectiva
p ó s-m o d ern a. Pelo contrário, a diferença co lo n ial ep istê
m ica emerge na exterioridade do mundo colonial/moderno e
naquela forma especial de exterioridade que inclui chicanos/as
e latino-am ericanos/as nos EU A , com o conseqü ên cia dos
conflitos nacionais entre o M éxico e os Estados U nidos, em
1848, e dos conflitos imperiais entre os Estados Unidos e a
Espanha, em 1898. Contudo, o que é importante ressaltar aqui
é que os desafios feministas à epistemologia moderna ocorrem
da seguinte form a: enquanto as fem inistas pós-m odernas
mostram os limites da “epistem ologia m asculina” (Harding,
1998), as mulheres de cor e o fem inism o do Terceiro M undo
(M ohanty, Russo e Torres 1991; Haraway, 1997) mostram os
limites também da “epistemolgia branca”, das quais os críticos
pós-modernos feministas continuam prisioneiros, com o sugere
a crítica de Moya a Haraway (Moya, 1997). Na percepção de
W allerstein, os dois desafios às ciências sociais aqui m encio
nados não chegam a com preender a diferença c o lo n ia l. Ele
p e rce b e a crítica de gên ero feita à epistem ologia, não seu
co m p o n en te racial. No caso de A b d el-M a le k , W allerstein
p erceb e uma noção diferente de tem po além dos limites do
sistem a m undial, mas não vê que a elabo ração das d ife
renças na conceitualização do tem po por Abdel-M alek está,
na verdade, entranhada na diferença epistêm ica colonial. É a
diferença epistêmica colonial que exige o pensamento liminar.
424
diferentes de valores — a racionalidade científica, por um lado,
e a racionalidade de comportamento coletivo, por outro. Essa
polaridade imposta pela evolução histórica só poderia causar
alguma tensão, que foi sentida em boa parte do pensamento
europeu. É muito importante, particularmente no presente, que
alcancem os uma harmonia melhor entre as diferentes nacio
nalidades envolvidas nas ciências, na democracia e na civilização.
426
Stalin em nome do socialismo; foi constantemente mencionada
p elo s presidentes Ronald Reagan e G e o rg e Bush co m o o
imponderável espírito que mantém viva a civilização ocidental.
A cegueira não é um traço que possa ser atribuído aos
que vivem e que fazem histórias locais, gerando e praticando
projetos glo bais com o m odelos universais. T alvez um dos
traços mais marcantes do fim do século 18 tenha sido o fato
de q u e a E u ro p a p ro jetava um id éia de vida e so c ie d a d e
a partir de histórias locais hegem ônicas. A confluência da
R evolução Industrial na Inglaterra com a revolução social na
França, unida à poderosa contribuição filosófica de Kant,
H e g e l e M arx, tornou-se um m o delo desejável para outros
e esse m odelo foi abraçado e julgado digno de ser imitado
por histórias locais que se tornaram subalternas, incluindo
estados-nações (com o nas Am éricas), Estados imperiais em
decadência (com o a Espanha), nações periféricas do m undo
colonial m oderno (com o a região do Atlântico Norte) e países
que aderiram aos padrões de civilização no fim do século 19
(com o a China e o Ja p ão ). A Espanha é um caso interessante
para o meu argum ento. Gostaria de citar a descrição feita por
Leopoldo Zea da situação da Espanha, na virada do século
18, vis-à-vis a ordem global e o conflito interior e as margens
do m undo colonial/m oderno:
4 27
Entretanto, não é só isso, com o demonstraram Philip Silver
(1998: 3-41) em sua análise do romantismo espanhol e a reação
dos intelectuais à invasão da Espanha no início do século 19.
O s espanhóis caíram num beco sem saída: visavam a uma
modernização da Espanha seguindo (e imitando) o m odelo
(francês e espanhol) do norte, mas evidentemente não podiam
endossar a invasão de Napoleão. A decisão de imitar a França
e elevar a Espanha ao m esmo nível dela foi decisão deles,
não de Napoleão. Assim, apanhados entre uma invasão estran
geira e as forças teocráticas do passado da Espanha, os inte
lectuais espanhóis do início do século 19 enfrentaram um
dilema diferente do dos intelectuais pós-coloniais da América
Espanhola no m esm o período.
Esteban Echeverría, ideólogo da Argentina após a inde
pendência, abraçou a “democracia” como era definida na França.
Não gastou muito tempo refletindo sobre a diferença colonial
e sobre com o ela m odelou as histórias da França, na Europa,
e da Argentina, na Am érica Espanhola, nem deu atenção aos
duzentos anos de conflitos imperiais do Atlântico Norte que
precederam a R evolução Francesa. Q uanto a mim, nascido e
educado na Am érica Latina, preocupam -m e as pressuposições
ideológicas das observações de Prigogine, nas quais mais uma
vez se reproduz a diferença colonial, obscurece-se o aspecto
colonial da m odernidade e não se toma conhecim ento da
contribuição de outras histórias locais do planeta. O s asiáticos,
africanos e (latino)-am ericanos não devem se sentir m enos
orgulhosos do que Prigogine por ter atingido este ponto na
história do universo, da vida na terra. Contudo, o im aginário
do m undo colonial/m oderno é tal que as observações de
Prigogine brotam de um a crença “natural” e de um desenvol
vim ento “natural” da história. O cosm opolitism o não pode se
realizar insistindo num orgulho continental forjado pela his
tória do sistema m undial colonial/m oderno. O nativismo ou
o regionalismo do centro é tão pernicioso quanto um nativismo
ou regionalism o da periferia. O pensam ento liminar, com o
projeto intelectual e político, chama a atenção para o fato de
que as realizações localizadas na Europa (e não na África, na
Ásia ou na Am érica [Latina] são uma conseqüência histórica
da form ação e transformação do m undo colonial/m oderno.
Não repetirei aqui o que atravessou o Atlântico de leste a
oeste enquanto a crença geral era que a civilização marchava
428
de oeste para leste. Nem mencionarei, mais uma vez, o tráfico
de escravos que paradoxalm ente seguiu a mesma direção
geográfica que a difusão da civilização, de leste para oeste.
O p o te n cia l e p is te m o ló g ic o do p en sam en to lim inar é
co n trib u ir para o apelo de Dussel para que se transcenda o
eurocentrism o, reconhecendo as realizações e revelando as
condições da geopolítica do conhecimento no mundo colonial/
m oderno — reconhecendo e revelando a colonialidade do
poder entranhada na geop o lítica do conhecim ento. Com o
alguém educado e residente na América (Latina) durante a
m etade da vida e recolocado na Am érica (anglo-saxônica)
depois de três anos de intervalo na França, orgulho-m e (repe
tindo Prigogine) da Revolução Haitiana. O rgulho-m e porque
mostrou os limites da dem ocracia liberal alguns anos após
sua própria prom ulgação e foi baseada localm ente nas e x p e
riências de uma “nova” ordem européia na qual a França, a
Inglaterra, a H o la n d a e a A lem an h a estavam d e s lo c a n d o e
substituindo ordens imperiais anteriores. Mais recentemente,
quase duzentos anos após a Revolução Haitiana e seu fracasso
“natural” (Trouillot, 1995), os “zapatistas” estão novam ente
mostrando os limites da democracia em sua definição regional
do século 18, reform ulando-a com base nos quinhentos anos
de histórias locais específicas das Américas (M ignolo, 1997d).
Eles retiraram a “dem ocracia” do dom ínio dos projetos globais
e a reconverteram ás necessidades da história local de Chiapas,
o n d e in teragem sabedo ria in d íg e n a e o cid en ta l — o n d e
se considera a diferença colonial e se exerce o pensam ento
liminar. “O governo do povo, pelo povo, para o povo” coloca-se
hoje ao lado de outra frase: “Governar, ao m esmo tem po que
o b e d e c e r .” (D u sse l, 1995; M ig n o lo , 1997d). Se a palavra
“dem ocracia” é o ponto de encontro entre Pinochet, os “zapa
tistas” e Prigonine, não deveriam os perder tem po tentando
defini-la, descrevendo seu sentido universal (e talvez trans
cendental). Em vez disso, dever-se-ia pensar em colocar todos
os povos e comunidades que se dizem democráticas no domínio
de interação onde a organização social resultará das decisões
e com preensões de todos eles. O gerenciam ento da d e m o
cracia pelos detentores do poder e o direito à intepretação da
palavra não resolverá o problem a das sociedades unidas pela
persuasiva linguagem e pela sedução das armas. Exigem -se
n ovos m odos de pensar q u e, transcendendo a d iferença
429
colonial, possam ser construídos às margens das cosm ologias
rivais, cuja articulação atual deve-se, em não pequena parte,
à colonialidade do poder inserida na construção do m undo
colonial/m oderno.
III
430
lado, e ameríndias e de escravos africanos por outro). Primeiro,
“criou lo” foi usado para referir-se a “nativo” (na Am érica do
Sul e no Caribe) de ascendência européia e africana. Se os
“nativos” m encionados im plicavam “métissage/m estizaje” é
outro problema. A Revolução Mexicana, em 1910, por exem plo,
adotou “m estizaje” com o a ideologia nacional atuando com o
um oxim oro significativo: foi a mistura que se tornou emblema
e im agem de uma nação hom ogênea, uma nação hom ogênea
de povo m isturado, a pureza do impuro, por assim dizer. Ora,
“crio u lo ” de ascendência européia podería ser legalm ente
registrado pela certidão de nascim ento. A questão do sangue
era, naturalm ente, mais difícil de medir quando “crioulo” se
associava a mestizo (mistura de europeu com ameríndio) ou
“m u lato ” (m istura de europeu com africano). C o n tu d o , a
proporção do sangue e a pigm entação da pele per se não era
e ainda hoje não é o problema real. A questão é que no ima
ginário do m undo colonial/m oderno emergiu um discurso no
qual “crioulo” foi definido em relação à ascendência, ao sangue
e à pigm entação da pele. O resultado foi que um grupo de
pessoas c o m e ç o u a sentir-se “am e rican a s” (em q u alq u er
região), a identificar-se e a reivindicar seu direito à autonomia,
livre do gerenciam ento e da governança européia. No Caribe,
a palavra “criou lo” em francês e inglês referia-se à língua de
uma form a que não se sustentava em e sp an h o l. E tendo
“créolité”, referente ã língua, com eçado a estender-se ao reino
da cultura e do conhecim ento, o termo assumiu a definição
anterior de créolité/m étissage baseada em co n fig u raçõ es
b iológicas. A publicação de Éloge de la créolité (Bernabé et
a l., [19891 1993) que com entei no Cap ítu lo V, fo i, nesse
aspecto, crucial por duas razões:
431
2 - Foi uma identificação que poderia ser assum ida por
pessoas de ascen dência européia, mas não africana. Éloge
de la créolité agora permite que “crio u lo ” e “créolité” sejam
reivindicados pela população de ascendência africana nascida
na Am érica.
432
IV
433
ocidentais. G arg enfrenta esses conflitos com três op ções
possíveis: duas são perniciosas. A terceira envolve alguma
esperança. A primeira opção, que produziu o crescim ento
econôm ico e uma ressurreição do nacionalism o indiano, foi
estabelecida em 1830 pelo Rajá Ram M ohan Roy. Mas também
abriu as portas para a corrupção e a alienação, a violência e
problem as de lei e ordem e “toda uma gama de práticas não
éticas nas transações cotidianas que atuam descontroladamente”
(Garg, 1986: 9). A insistência nessa opção resultará, segundo
G arg, na ascen são de regim es m ilitares ditatoriais ou na
ascensão do fundamentalismo, que também poderia conduzir
a regimes ditatoriais. A segunda opção é continuar operando
conforme o ethos do Ocidente e acreditar que a tecnologia resol
verá todos os problem as. Garg op õe a essa alternativa os
amplos efeitos de qualquer “teoria tomada de empréstimo” ao
O cid e n te ou de q u alqu er outro lugar sem pensar nas c o n
d içõ es nas quais o empréstimo seja im plem entado. A terceira
o p ção é a cultura da transiência e sua dinâm ica.
4 34
intelectual espanhol que residiu muito tempo na Colôm bia
após 1963, pratica os estudos culturais em uma forte perspec
tiva de hegem onia/subalternidade, devido a uma leitura de
Gram sci e Benjam in fundada na história latino-am ericana e
em debates atuais. M artín-Barbero, com o G arg, preocupa-se
intensam ente com a produção de conhecim ento e sua im ple
m entação numa política pública. Barbero, como Garg, enxerga
1
0 dilema da identidade cultural: ao mesmo tempo potencial de
fortalecimento e de legitimização do conservadorismo. Barbero,
com o Garg, resgata o potencial transformacional da formação
da identidade e não um esforço suplem entar para conservar
um ideal mítico de essência nacional ou de pureza indígena.
Diferentem ente de G arg, Martín-Barbero pensa na e a partir
da Am érica Latina, onde o ethos “crioulo” predom inou sobre
o am eríndio e am bos tiveram de sobreviver ao projeto de
lidar com a m odernidade, convivendo explícita ou im plicita
mente com a diferença colonial e a colonialidade do poder
(Martín-Barbero, [1986] 1997; 1993; 1998).
Assim , a em ergência de conceitos com o crítica dupla e um
outro pensam ento, transculturação e crioulização, consciência
dupla e nova consciência mestiça não são estranhos ã cultura
da transiência (Garg e Parikh, 1995). Conseqüentem ente, vejo
a d e s c o lo n iz a ç ã o e n ca ix a d a no p en sam en to lim inar e a
epistem ologia de transitoriedade com o diferentes formas de
transcender a diferença colonial. Diversam ente, vejo a des-
construção com o uma crítica de e a partir da epistem ologia
m oderna, mais p reocupada com as construções ocidentais
hegem ônicas do que com a diferença colonial. D eixem -m e
ser mais específico.
Primeiro, no que diz respeito à desconstrução/descoloni-
zação, não se trata de silêncio, mas também de silêncios no
nível básico de construir “fatos”. O segundo nível está além
do arquivo e da tradução de fatos para o im aginário público.
Postdam e Sans Sou ci, por e xem p lo , por diversas razões,
d ificilm en te serão c o n sid e ra d o s ig u a is . O p rim eiro diz
resp eito ã Alem anha e ã Europa do século 17; os escravos
negros e um crioulo revolucionário do Haiti não estavam no
mesmo nível que o Império Prussiano na estrutura da colonia
lidade do p o d er (ver T ro u illo t, 1995). A ssim , a d e sco n s-
trução dentro da metafísica ocidental precisa ser descolonizada
dos silê n c io s da história. A d e s c o lo n iz a ç ã o p recisa ser
435
desconstruída na perspectiva da colonialidade do poder. A
lógica da conversação precisa mudar, não apenas os termos.
Segu ndo, é necessário enfatizar o silêncio da história ao
dilem a de Chakrabarty e, até certo ponto, seus diferentes
níveis de significado. Se a história é um conjunto instrumental
eu ro p eu no que diz respeito ao co n te ú d o da co n versação ,
a m em ória deve tornar-se uma prática de reparação que
m ergulhe nos silêncios do passado, transcendendo a disci-
plinaridade da história enraizada na diferença colonial e na
colonialidade do poder. De Hegel a Hayden White certamente
encontram os uma constante transformação da história com o
d iscip lin a o cid en ta l, mas não sua d e sco lo n iza ç ã o , co m o
propôs Edouard Glissant (ver Capítulos I e V). Desconstruir
a “história” do interior da “historiografia” e do “logocentrismo
o cid en tal” é sem dúvida uma tarefa necessária. Mas a d esco
lonização da história é tam bém um a tarefa n ecessária e
d istin ta, que não se pode reduzir ou associar à primeira. Na
descolonização, uma jogada transdisciplinar é acom panhada,
diferentemente da desconstrução, de uma perspectiva a partir
das margens exteriores do m undo colonial/m oderno onde a
diferença colonial foi definida e mantida (ver a seção final deste
capítulo) — daí a necessidade de transcender as disciplinas,
além da interdisciplina, até o conhecim ento com o empresa
transdisciplinar. Tendo a disciplinaridade nas ciências sociais
e nas hum anidades sido reconfigurada no século 19, em uma
nova ordem nacional e colonial emergente (Wallerstein et ah,
1996), a descolonização não pode propor ao Terceiro M undo
uma adaptação do saber disciplinar (por exem p lo, a historio
grafia subalterna). Em vez disso, é o m ovim ento em direção
às práticas transdisciplinares (Dussel, [19931 1995; 1996a: 49-64)
e a h istoricid ad e dos sujeitos co n h e ce d o re s das m argens
(Fanon, Khatibi, Anzaldúa) que coloca a descolonização com o
um pensam ento liminar em com plem entaridade paralela à
desconstrução, em pregando as disciplinas com o formas de
“desenvolvim ento” (intelectual) e “m odernização” (sociocul-
tural). T enho d efend id o o pensam ento lim inar com o uma
articulação dessa dupla operação do ponto de vista da dife
rença colonial — a perspectiva silenciada no im aginário do
sistem a m undial colonial/m od erno. Vale notar, aqu i, que
Henri Lefebvre ([1974] 1991: 411-412), bem com o Soja (1996:
26-53), também usaram o conceito de transdisciplinaridade.
436
A diferença entre Dussel e Lefebvre é a seguinte: enquanto
Lefebvre usou a transdisciplinaridade estritamente com o trans
cendência da interdisciplinaridade (que pressupõe as disci
plinas), Dussel usou-a para alcançar as margens externas do
m undo colonial/m oderno, onde a diferença colonial eliminou
todas as espécies de conhecim ento que poriam em risco a
fundação epistem ológica da m odernidade. A transdisciplina-
ridade de Dussel im plica uma geopolítica do conhecim ento
que o próprio Lefebvre reconheceu com o fora de sua esfera.
Ele o m encionou diversas vezes em sua soberba análise de
The Production o f Space (Lefebvre, [1974] 1991), quando se
referiu à conceitualização mesoamericana e andina do espaço,
mas não teve condição de pensar a diferença colonial. Nessa
linha de raciocínio, a análise das três faces de Sans Souci
feita por Trouillot é uma ousada articulação de a con teci
m entos que não correspondem à rígida gramática cronológica
e nacional da historiografia ocidental. Sans Souci, em Postdam,
dificilmente se relaciona cronológica e nacionalmente com Sans
Souci, no Haiti. Trouillot (1995) mostra sua relação através
da colonialidade do poder e do conhecim ento e oferece um
bom exem p lo das promessas do pensam ento liminar com o
descolon ização da cultura acadêm ica.
Se tom armos com o ponto de referência uma definição de
desconstrução oferecida por Derrida nos primeiros momentos
de sua influente obra, a desconstrução se concebe não com o
ciência ou disciplina, mas com o posição crítica vis-ã-vis o
conhecim ento científico e disciplinar:
437
articula numa “double séance”, uma ciência dupla (que já nào
é ciência) ou um duplo registro:
438
A dupla consciência, dupla crítica, uma outra língua, um
outro p en sam en to , a nova co n sciên cia m estiça, a criouli-
za çã o , a transculturação e a cultura da transiência tornam-se
categorias necessárias para elim inar a subalternização do
conhecim ento e para procurar formas de pensam ento além
das categorias do pensam ento ocidental, da metafísica à filo
sofia e à ciên cia. Nos últim os vinte anos, os projetos de
Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha têm sido cruciais
para uma crítica à subalternização do conhecim ento. Said
mostrou, através de Michel Foucault, a construção do Oriente
com o uma form ação discursiva. Bhabha descreveu, através
de Lacan, a hibridez e o terceiro espaço do discurso colonial.
Spivak levou a desconstrução do discurso colonial até Derrida.
Con tu do, além dessas genealogias conceituais, onde o pós-
colonial em erge sobre os ombros de teorias pós-m odernas
(ou pós-estruturalistas), houve tam bém , em ergindo de m odo
paralelo, manifestações semelhantes de pensamento liminar, que
explorei neste livro, ligadas a lugares específicos, resultantes
de e produzidas por histórias coloniais/modernas locais. Neste
livro, m inha própria conceitualização seguiu a jogada de Said,
Bhabha e Spivak, mas baseia-se na obra de Wallerstein, soció
logo a n g lo -a m e rica n o , não em filó so fo s ou p sicanalistas
franceses. Mas também divergi de Wallerstein, introduzindo a
diferença colonial e a colonialidade do poder e assim associei
meu trabalho com o de Anibal Q uijano no Peru e Enrique
Dussel na Argentina e no M éxico, ambos atuantes desde o
fim dos anos 60 e início dos anos 70 — mais ou m enos os
m esm os anos em que Wallerstein, Foucault, Derrida e Lacan
estavam causando seu impacto intelectual. Um a das razões
nada triviais de minha decisão de seguir Wallerstein e daí
passar a Q u ijano e Dussel foi minha necessidade de refletir a
partir do lado sombrio da Renascença, ir além do Iluminism o,
que é a referência e o ponto de partida da teorização pós-
estruturalista e da pós-colonial em seu início. Para minhas
reflexões, precisei do século 16 e da Renascença, da em er
gência das Américas no horizonte colonial da m odernidade,
uma história local a partir da qual crescemos, Quijano, Dussel,
Anzaldúa e eu próprio (entre muitos outros, naturalmente).
O que eu precisava defender era uma forma de pensar nas e
a partir das m argens dos projetos g lo b a is im p lem en tad o s
e d a q u e le s que estão send o desejados; os lim ites entre
4 39
transform ar projetos globais recebidos em projetos locais;
os limites entre saberes subalternos e saberes hegem ônicos,
rearticulados da perspectiva dos subalternos.
O n d e se situa então o pensam ento liminar, em termos
disciplinares? Na filosofia, porque invoquei a gnosiologia?
Na epistem ologia e na hermenêutica? Na sociologia, porque
a situei nas margens externas do m undo colonial/m oderno?
Na história, porque meu argumento se construiu historica
mente e na perspectiva da colonialidade? Na antropologia,
porque lidei com questões que têm sido província da antro
pologia, que é a disciplina que mais se aproxima da diferença
colonial? Nos estudos culturais, p orque não se inclu i em
n e n h u m a dessas d iscip lin a s? Eu diria qu e a d im e n sã o
transdisciplinar do pensamento liminar é crítica cultural no
sentido preciso em que Stuart Hall define estudos culturais,
com o transdisciplinares e transnacionais:
440
herdeira da Europa, constituindo, pois, seu futuro. Por outro
lado, com o filha e herdeira, ocupou uma posição subalterna
na geopolítica do conhecim ento e na colonialidade do poder:
as Am éricas, do ponto de vista dos intelectuais europeus e
até após a Segunda Gerra M undial, foi o m esmo subalterno.
Há certamente outra história paralela aqui, que é a recolocação
das Am éricas (a Hispânica e a Anglo-Am érica) depois de 1848
e 1898. Mas esse processo parecia ter sido abandonado (talvez
com e x ce çã o de T ocqueville) pela intelligentsia européia.
Adem ais a situação foi com plicada pelo fato de que na rearti-
culação da geopolítica do poder colonial, os ameríndios e
afro-americanos, com toda sua diversidade nas Américas, foram
deixados fora do quadro de um ocidentalism o atualizado.
No século 15, a civilização ocidental não era ainda (não
poderia ter sido) concebida com o uma entidade cultural.
Naquele m om ento, o cristianismo localizava-se geoistorica-
mente numa Europa ainda vagam ente definida (Tawantinsuyu
ou A nahuac estavam ainda vagam ente definidos ã época),
terra dos cristãos ocidentais (em certo sentido, terra de Jafé).
Por outro lado, era precisam ente o im aginário do m undo
colonial/moderno que começava a construir a idéia da civili
zação ocidental sem a qual não haveria (não poderia ter
havido) um sistem a m u n d ia l colonial/m oderno. Assim , o
imaginário do m undo colonial/moderno foi o local do alicerce
da própria idéia da civilização ocidental. D efino o ocidenta
lismo, então, como a versão ocidental da civilização ocidental
(sua própria autodescrição) entranhada no im aginário do
m undo colonial/moderno. A idéia da civilização ocidental,
da m etafísica ocidental, do logocentrism o ocidental etc. é
con seq ü ên cia e necessidade do m undo colonial/m oderno
com o foi articulada no imaginário crescente da civilização
ocidental. É realmente interessante notar que D e la grammci-
tologie de Derrida (1967) deixou em branco o m om ento no
qual a própria idéia da civilização ocidental e da metafísica
ocidental tornou-se semente do sobranceiro imaginário do
sistema m undial colonial/m oderno.
D e la grammatologie (1967) inclui três enxertos: um da
Antigüidade e da escrita do povo (Vécriture dupeup/e[ EP]), o
segundo de Rousseau, e o terceiro de H egel. Nada de inter
m ediário existe nesse diagram a da história u niversal da
G ré cia antiga à França e â Alem anha moderna — nada no
441
intervalo e nada de lado, no espaço de configurações geois-
tóricas paralelas, do Oriente ao noroeste do Mediterrâneo. D o
O c e n o Índico ao Pacífico; do M editerrâneo ao Atlântico, no
século 16. Não estou sugerindo que esse arcabouço deveria ser
co rrigid o em nom e da verdade da história u niversal. Estou
apenas dizendo que, para Derrida, Rousseau e H egel são as
referências dos tem pos “m odernos”, enquanto para Q u ijan o ,
Dussel, Marmon Silko e para mim mesmo, a história universal
tem uma referência diferente: os quinhentos anos resumidos
no mapa histórico de Marmon Silko (ver minha Introdução).
Essa é uma das histórias silenciadas, paralelas e interligadas,
que foram descartadas pela cegueira da diferença colonial.
E há certamente mais, muito mais. Da perspectiva da China
e do Jap ão , há outras histórias e variegadas perspectivas sobre
a diferença colonial. Mas a diferença colonial lá está, esco n
dendo quase todo o tem po a interação da China e do Ja p ã o
com o m undo colonial/m oderno (o do Atlântico Norte). Há
tam bém a história do Islã e dos Países Árabes depois do
sécu lo 16, articulando uma zona de violentos conflitos. E,
evidentem ente, não existe apenas a “história” de que falo aqui.
Estou falando sobre os “saberes” ocultos sob a reprodução
da civilização ocidental e a m etafísica ocidental. Todas essas
histórias são tangenciais ã metafísica ocidental e a m etafísica
ociden tal lhes é tangencial. A co lo n ialidad e do poder e a
diferença colonial são o que as une de formas problem áticas
e conflitu osas. D izer que elas são exteriores ã m etafísica
ocidental só faria sentido a partir da hegem onia da metafísica
ocidental, que é onde se esconde a colonialidade do poder.
Não faz sentido na perspectiva das histórias locais para as
quais a metafísica ocidental não é uma totalidade, mas um
projeto g lo b a l. É precisam ente o nascim ento de um a c o n s
ciên cia histórica e crítica, tanto do cam po global da metafísica
ociden tal com o instrum ento de co lo n ização (da religião â
razão) quanto dos saberes por ela subalternizados, que traz
ao primeiro plano as consciências das margens e do pensa
mento liminar. Não há nada fora da totalidade, evidentemente,
mas a totalidade é sempre projetada a partir de uma determ i
nada história local. Portanto, nada existe fora da totalidade
de uma dada história local, a não ser outras histórias locais,
talvez produzindo totalidades alternativas ou uma alternativa
para a to talid ad e. Um a co sm o lo g ia n ã o -o n to ló g ica , co m o
442
ilustram as cosm ologias ameríndias do século 16 ao fim do
século 20, é uma alternativa à cosmologia ontológica ocidental
enquanto fundam ento da totalidade (seja ela a fé cristã ou a
razão secular). O aspecto interessante disso tudo é que esse
im aginário, uma parte da história do próprio sistema mundial
co lon ial/m od erno, tenha justificado decisões eco n ô m icas,
projetos e im plem entações de políticas públicas, guerras e
outras formas de controle, exploração e manipulação dos povos.
VI
443
debates originais, por um lado, e depois considerar as novas
perspectivas sobre o o cid en talism o , a d e sco lo n iza çã o , o
estruturalismo e o pós-estruturalism o, por outro. Podem os
com parar, não para reverter o curso da história e jogar o
primeiro contra o segundo, mas sim para ouvir novam ente
aquelas vozes e preocupações soterradas sob “nobres” projetos
intelectuais globais que estavam desconstruindo o ocidenta
lismo a partir de seu interior e do centro da produção do
conhecim ento, em um a das três línguas mais importantes da
m odernidade (o francês, no caso). A produção de co n h eci
mento subalterno à margem do m undo colonial m oderno
associava-se a línguas subalternas, línguas antes coloniais
(esp an h o l, p ortuguês) ou às que em ergiram da diferença
colonial (francês crioulo, francês da Martinica, ou inglês de
Barbados). No caso da Am érica Latina continental, e, mais
particularmente, da América Espanhola, as margens estavam
ocupadas pela “inteligência criolla” (intelligentsia crioula — no
sentido descrito antes) e pelos intelectuais ameríndios, menos
visíveis devido à ação do colonialism o interno. D epois das
comunidades ameríndias, os integrantes da intelligentsia crioula
sofreram as conseqüências de um forte colonialism o interno
im plantado por eles próprios (a intelligentsia crioula) ao cons
truírem o estado-nação associado aos novos colonialism os
em ergentes no século 19. Minha discussão das explorações
críticas de R odolfo K usch a respeito do legado conceituai
aimará é um caso particular dessas tensões dentro da própria
margem. Minha discussão do conceito caribenho de “créolité”
no Capítulo VI evidenciou uma tensão sem elhante entre uma
intelectualidade caribenha negra em ascensão depois dos
anos 50 (Lamming, Césaire, Fanon), embora entranhada em
diferentes histórias locais, m oldadas pelo forte contingente
de escravos africanos no “n o v o ” con tin en te. O resultado
interessante da com paração é mostrar uma situação reversa
no Caribe vis-à-vis a Am érica Latina continental.
Três exem p los desdobrarão um am plo espectro dos pro
blem as e debates entre 1950 e 1970, relacionados com o conhe
cimento e a colonialidade do poder que venho discutindo
neste livro e que podem ajudar a delinear políticas culturais
associadas a futuros projetos de ensino e pesquisa. O m ito o
caso do historiador e filósofo m exicano Edm undo 0 ’G orm an,
que discuti alhures (M ignolo, 1992a; 1993b) e concentro-m e
4 44
em três exem plos da Argentina, país a que não dediquei grande
atenção. É crença com um pensar que na Argentina a colonia-
lidade não é tão importante com o a modernidade por causa
da baixa porcentagem de população ameríndia e da porcen
tagem ainda m enor de negros am ericanos. Essa espécie de
visão é estrábica — expressão usada em hom enagem ã do
conhecido romancista e crítico literário Vinas, “los dos ojos
dei rom anticism o” (Vinas, 1982). Vinas analisou a ideologia
da pós-independência na Argentina (mais ou menos de 1810
a 1850) e afirmou que os poetas românticos e os intelectuais
argentinos tinham um olho voltado para a Europa e o outro
para (aquilo que eles acreditavam ser) o autêntico espírito
do país e da Am érica. Essa dicotom ia fundacional gerou um
dos livros clássicos da história intelectual da Am érica Latina,
F a c u n d o : C iv iliz a tio n a n d B arbarism ([18451 1998), de
D om ingo Faustino Sarmiento, que se tornou presidente da
Argentina no período 1872-1878, com o já m encionei no C ap í
tulo V II. Civilization a n d Barbarism resumia e projetava para
o futuro a visão que os crioulos latino-am ericanos tinham de
si próprios, seu país e o subcontinente. Essa visão foi rearti-
culada no fim do século 19 e início do 20 por Euclides da
Cunha (G o n zález Echeverría, 1990. Ver também Capítulo III
deste livro), ensaísta brasileiro conhecedor da geografia e
dos debates da época, estimulados pela crescente influência
da ideologia da “missão civilizadora”.
Na Argentina, os debates intelectuais entre 1860 (ano da
“O rganização N acional”) e 1950 focalizaram a construção do
estado-nação. No centro da discussão estavam o presente e o
futuro da econom ia argentina na interseção de dois imperia-
lismos rivais (a Inglaterra e os Estados Unidos); a produção e
exportação da carne na nova ordem global; a extensão das
fronteiras ocidentais e suas im plicações para satisfazer as
exigências imperiais. Finalm ente, a questão mais importante
relacionada com a anterior dizia respeito aos grandes contin
gentes de imigrantes europeus que geraram uma transformação
demográfica radical do país, entre 1 8 7 5 e l9 l4 , enredada com a
construção de uma Argentina “m oderna” em consonância com
os modelos imperiais da modernidade e da civilização. O popu-
lismo tornou-se a ideologia estatal universal no país de 1930
a 1960 (Martín-Barbero, [1986] 1997, parte 3) e criou condições
para os regimes militares de 1975 a 1982. D epois de 1950,
445
entretanto, a questào do O cidente e da América emergiu e
com plem entou a energia dedicada à história e à identidade
argentinas. Problemas dessa importância foram considerados,
à ép o ca, uma fuga às verdadeiras questões que os argentinos
tinham de enfrentar para resolver seu futuro. Em retrospecto,
poder-se-ia especular que o princípio da Guerra Fria estava
estim ulando uma reconsideração de questões maiores sobre
o ocidentalismo e o local das Américas dentro dele. Bernardo
Canal Feijóo (historiador e sociólogo que até aquele ponto
só tinha escrito sobre a história argentina) publicou entào o que
é hoje um livro surpreendente embora esquecido: Confines de
occidente. Notas para una sociologia de la cultura am ericana
(1954), no qual, com am ericana, ele queria dizer hispano-
americana. Nos “confines” do Ocidente o que encontramos no
argumento de Canal Feijóo é a tensão histórica, após a conquista,
entre espanhóis, crioulos hispano-americanos, e ameríndios. A
distinção entre sere estar {que Kusch explorará mais tarde) foi
introduzida por Canal Feijóo nesse livro, talvez com um viés
que Kusch não pôde ou não quis explorar. Para Canal Feijóo
ser (estar em existência) é o que caracteriza uma cultura dada
e a condição cultural de uma pessoa. Estar é transitório. Assim,
sua visão dos latino-am ericanos era que estan onde no son.
Traduzida para o inglês, que só tem um verbo correspondente
aos dois, ser e estar, a frase acaba dando uma espécie de
sentido sem sentido: “They are where they are no t.”
O diagnóstico de Canal Feijóo é, evidentemente, um diagnós
tico dos anos 50, uma rearticulação da identificação latino-
am ericana com o reação às novas exigências da m odernização
e do desenvolvim ento, depois da Segunda Guerra M undial.
A Europa, mais do que os Estados U nidos, era o ponto de
referência. A Espanha, vista do meio do século 20, era com pa
rada com a França e a Inglaterra, o arquétipo “espanhol” com
o “francês” e o “inglês”. Apesar das suspeitas que argumentos
baseados em arquétipos possam hoje despertar, no caso de
Canal Feijóo o arquétipo era sintoma de um problema maior: os
conflitos imperiais, as margens internas e externas do m undo
co lo n ia l/ m o d e rn o . C an al Feijóo p erceb ia nos “h o m e n s ”
in g le ses ou franceses, enquanto arquétipos, uma a u to co n
fiança que não encontrava paralelo nos arquétipos espanhóis
e latino-americanos. Percebia, na verdade, uma questào maior
que não se pode explicar por diferenças nacionais e sim por
446
co n flito s im periais e pelas m argens internas cio sistem a
m undial colonial/m oderno: pelas longas lembranças de cada
história local que estava sendo rearticulada no sistema. Canal
Feijóo observava que a Espanha é menos “helenística” do que
a França e a Inglaterra no horizonte das nações modernas já
consolidadas, e que as interações da Espanha católica com o
m undo islâm ico e as com unidades judaicas davam a seu povo
uma abertura para misturas com ameríndios e afro-americanos
nas A m éricas. Assim argum entando ele está, na verdade,
falan d o de histórias locais, de longas memórias e apontando
para diferenças da Espanha com a Inglaterra e a França na
rearticu lação do sistem a m u ndial c o lo n ia l/ m o d ern o . Na
verdade Feijóo está discutindo a rearticulação no sistema
m undial colonial/m oderno, ao qual certamente não dá esse
nome, pela ascensão de novas potências coloniais. Finalmente,
Canal Feijóo, insistindo que a “descoberta” da América foi
um encontro do Ocidente com o Oriente, repetia uma hipótese
levantada no século 16 pelo jesuíta espanhol Jo sé de Acost
(11590] 1962), recentem ente relatada por Enrique D ussel
(1998a) da perspectiva de um sistema mundial que data de
5000 anos (Frank e G ill, 1993). Recuar no tem po, antes da
form ação do sistema mundial colonial/m oderno, permitiu a
Dussel corrigir o imaginário colonial dos povos ameríndios e
da história que foi estabelecida pelos missionários espanhóis
e hom ens de letras no século 16. Canal Feijóo trouxe para o
primeiro plano a história do Pacífico, antes da “descoberta” e
das migrações através do Estreito de Behring, que constituíram
a atual popu lação ameríndia e de índios norte-americanos,
do Labrador à Patagônia.
A afirm ação de Canal Feijóo, que usava a expressão “nós
am ericanos”, foi na verdade uma voz marginal e fraturada
dos intelectuais crioulos na Am érica Espanhola. Era sem e
lhante, em bora vin da do sul há quarenta a n o s, à atual
a firm ação de Richard Rorty (1998) invocando um “nós ameri
can os”, que é uma imagem especular invertida em relação ã
de Canal Feijóo. A diferença é que a última é mais alta que a
primeira. E não estou com parando, evidentem ente, a inteli
gên cia in d ivid u al das duas p essoas. Refiro-m e à lín g u a,
co n hecim ento , e à colonialidade do poder entranhada no
im aginário do m undo m oderno e à maneira com o a diferença
colonial é realçada ou em baçada em cada um dos casos.
447
O s intelectuais crioulos hispano-am ericanos lutaram para
definir seu lugar no entrelugar do que alhures cham ei de
“falar fora do lugar” (M ignolo, 1995d). Durante o século 16,
os discursos ameríndios e espanhóis estavam ambos fora do
lugar. O s primeiros porque tinham de articular sua fala em
frente de pessoas que os haviam subjugado e rom pido sua
organização social. Por outro lado, os discursos dos espa
nhóis no N o v o M u n d o estavam fora de lu gar por duas
razõ es. Q u an d o escreviam a história am eríndia escreviam
sobre um passado a que não pertenciam e escreviam também
num lugar para o qual sua própria história local era uma
história remota contada em outro lugar, do outro lado do
Atlântico. A intelligentsia crioula encontrou seu lugar entre
os dois, falando fora de lugar em relações com plexas e assi
métricas de conhecim ento e com preensão mútuos. As falas
dos ameríndios e o espanhol dos europeus ficaram fora de
lugar por razões diferentes. Os legados espanhóis lhes deram
sua base, mas ela tornou-se o poder opressor do qual queriam
libertar-se. A intelligentsia crioula teve de definir-se na inter
seção das vozes am eríndias, que lhes eram estranhas, e as
vozes espanholas, que se tornaram sua identidade na dife
rença. Conseqüentem ente, a intelligentsia crioula com eçou a
se m o d elar im itando e seg u in d o os m o d elo s das novas
potências em ergentes, a Inglaterra e a França.
Canal Feijóo saiu-se com uma fórmula esclarecedora para
captar esse deslocam ento, jogando com a diferença entre ser
e estar na língua espanhola: os (latino)-am ericanos “ no són
donde ellos están”. O argumento de Canal Feijóo, em 1954,
oscilava entre uma perspectiva essencialista sobre o ser ameri
cano e uma perspectiva histórica da construção das Américas,
nas encruzilhadas dos conflitos im periais, e de memórias
anteriormente apagadas (as imigrações da Ásia, form ando a
p opu lação am eríndia). Nessa tensão, a descrição feita por
Canal Feijóo dos latino-americanos como não sendo capazes de
ser onde estão foi pronunciada com uma conotação negativa.
H oje, é possível ler o argumento histórico de Canal Feijóo e
esquecer o essencialista, transformando assim a nostalgia em
celebração, “não ser capaz de ser onde se está” torna-se a
con dição fundam ental do pensam ento liminar. Adem ais, o
deslocam ento que se considera é um deslocam ento da dife
rença colonial tal com o foi experim entado pela intelligentsia
448
branca/m estiça (isto é, nào pela ameríndia nem pela afro-
americana). Estar nessa posição em 1954, quando Canal Feijóo
publicou o livro, tinha com o uma de suas conseqüências um
sentido de inferioridade porque ingleses e franceses eram
“hom ens arquetípicos” certamente, eram capazes de ser onde
estavam. Por assim dizer, a diferença colonial estava em suas
costas, invisível para sua experiência. Na perspectiva de 1999
as coisas m udaram . Não poder ser onde se está é a promessa
de um potencial epistemológico e de um transnacionalism o
cosm opolitano que poderia superar os lim ites e cond ições
violentas geradas p o r poder sempre estar no lugar onde se deve
estar. Sou onde penso.
VII
449
Mas esse foi também o período da emergência de uma nova
espécie de intelectual, o intelectual pós-colonial à la Frantz
Fanon. Assim , o aparecim ento do intelectual pós-colonial na
segunda metade do século 20 é considerado diferente de seu
correspondente no início do século 19, à la Esteban Echeverría
ou D o m in go Faustino Sarm iento, na Argentina, e Thom as
Je ffe rso n , nos Estados Unidos. Entre eles, e também na segunda
metade do século 20, as ciências sociais chegaram à Am érica
Latina quando a revolução e a descolonização chegavam à
índia, à Argélia e ã Indochina. As margens ou os confins do
O cid en te, na expressão de Canal Feijóo — mas ainda assim
Ocidente — tinham um ritmo diferente em suas histórias locais.
O s legados do intelectual crioulo da América do início do
século 19 tiveram de adaptar-se para corresponder ãs preocu
pações do Terceiro M undo, que a Am érica Latina vivenciava
depois da Revolução Cubana. Com a Revolução Cu bana, o
cenário mudou em três diferentes e significativas direções. Por
um lado, uma nova forma de colonialismo, sem posse territorial,
semelhante ao dos Estados Unidos quanto à lógica, mas contrária
quanto ao conteúdo, invadiu a história da América Latina. Por
outro lado, forçou a se repensar a Rússia e a União Soviética
na construção do sistema mundial colonial/moderno. Finalmente,
possibilitou enxergar os limites na Am érica Latina tanto do
imperialism o cristão e liberal quanto do imperialismo socia
lista da União Soviética. E os limites revelaram a diferença
colonial, que permanecera invisível e despercebida tanto dos
(neo)liberais quanto dos (neo)m arxistas. Não houve uma
adaptação fácil, digam os, entre os intelectuais marxistas que
apoiavam a Revolução Cubana e uma posição com o a de Frantz
Fanon. Flavia, evidentem ente, um forte sentimento de solida
riedade, mas uma diferença quase invisível, embora muito
importante, entre os dois: a classe com o a preocupação básica
dos primeiros (liberais e marxistas); a raça e a diferença co lo
nial enraizada no m undo colonial/m oderno (e reem ergindo,
com o no conflito francês/cristão e Argélia/m uçulm ano). Mas,
sobretudo, uma rearticulação da “negritude”, baseada na expe
riência de Fanon na Martinica, não longe de Cuba, mas longe
dos intelectuais marxistas cubanos para os quais o co m p o
nente afro-cubano não havia ainda sido claramente processado,
constituind o, sim , algo ininteligível. Mais uma vez confron-
tam o-nos aqui com a cegueira para com a diferença colonial.
450
Na Argentina, Frantz Fanon teve grande influência entre um
grupo de intelectuais que estava explicitam ente teorizando a
descolon ização entre 1966 e 1975, aproxim adam ente. Fanon
contribuiu para dividir o movimento da nova esquerda argen
tina e latino-americana. O claro aparecimento desse movimento
poderia ser associado à criação de Past a n d Present, p u b li
cado por um grupo de jovens intelectuais (José Aricó, Oscar
dei Barco, Hector Smuchgler) do Partido Com unista. A revista
foi publicada em Córdoba, não em Buenos Aires, e o primeiro
núm ero saiu em 1963. H ouve, contudo, uma distinção clara
entre a nova esquerda fanonista e a marxista. A última preocu
pava-se com a revolução e as classes sociais. A primeira, com
a descolonização e o racismo. Contudo, na própria Argentina,
a nova esquerda marxista teve mais peso nos anos da “Guerra
Suja” (1976-1982) e acabou no exílio (José Aricó, O scar dei
Barco e Ju an Carlos Portantiero, três das maiores figuras inte
lectuais da nova esquerda estavam no M éxico durante esses
anos). A nova esquerda fanonista não teve força para se igualar
ao marxismo e é difícil achar artigos e discussões sobre Fanon,
depois de 1976. As conclusões parecem ser evidentes e serão
depois exploradas com mais detalhes: a ditatura assumiu o
lugar da descolonização e im plantou um feroz colonialism o
interno, introduzindo algum as m udanças fundam entais em
relação à situação colonial interna descrita por Pablo González
Casanova (1965) e Rodolfo Stavenhagen (1965): “o inim igo”
mudou de rosto e a repressão tornou-se mais violenta. O inimigo
já não era mais classificado por raça (negros, judeus, am erín
dios), mas por ideologia (comunistas), revelando assim a nova
face da civilização ocid en tal. Essa figura de linguagem foi
freqüentemente pronunciada durante a “Guerra Suja”, aliada ao
apoio que a “junta” militar argentina recebeu de W ashington.
Rumo paradoxal dos acontecim entos, realmente. O socialismo
e o com unism o, claramente parte da ideologia ocidental e parte
da m etafísica ocidental, foram construídos pela hegem onia
ocidental liberal e neoliberal com o projetos antiocidentais.
Nessa jogada paradoxal, na qual a diferença colonial foi mais
uma vez apagada, as lutas étnicas, de gênero e de geração se
uniram e hom ogeneizaram sob a rubrica classificatória ideo
lógica de “com unism o”. Q u an d o alguém se tornava suspeito
de ser com unista (ou qualquer uma das versões argentinas)
era perseguido, preso, assassinado ou forçado a exilar-se.
451
A questão pós-colonial na Am érica Latina será recolocada
em termos de pós-ocidentalism o e do período pós-ditatorial.
Esse é um dos paralelos e diferenças signifcativos entre a
descolonização na África, na Ásia e na América Latina. A desco
lonização na Argentina e no Cone Sul não adotou o m odelo
do Estado nacional ocidental com o seu ponto de chegada.
C om o mostrei no Capítulo III, o período de construção da
nação na América Latina não ocorreu depois da consolidação
do estado-nação na Europa, mas foi constitutivo do projeto
da m odernidade. A questão não é se os estados-nações foram
m obilizad os mais ced o na Am érica que na Europa (com o
sustentou Benedict Anderson, [19831 1991), nias o fato de que
a construção do estado-nação nas Américas foi constitutivo
com o projeto da m odernidade. A descolonização, durante a
Guerra Fria, im plicava a construção da nação com o ponto de
chegada (Fanon, 1961; [1964] 1988), com todos os fracassos
que estão sendo reconhecidos hoje (Béji, 1982; M am dani,
1996). A descolonização no início do século 19 não teve o
m esm o significado para a construção da nação pois o estado-
nação não era algo já constituído na Europa, mas algo que
estava sendo feito tanto na Europa com o na Am érica Latina.
O enorm e hiato foi, contudo, a diferença colonial da qual,
mais um a vez, Anderson ([19831 1991) se esqueceu.
VIII
452
apóiam -se num princípio altam ente questionável: que seja
realmente possível afirmar o que realmente existe e o que não
existe. O que seriamente acredito que “existe” é alguém afir
m ando que “existe” algo. O fato inegável é a própria asserção,
não importando se o conteúdo da asserção corresponda ãquilo
que a asserção afirma. Creio, conseqüentem ente, que o copo
na verdade tanto está m eio cheio quanto m eio vazio.
Contudo, há outra advertência em relação ã asserção de que
“não existe algo com o fora e dentro”. O que a proposição
afirma é que deveriamos eliminar dicotomias de nosso vocabu
lário. E nesse princípio eu realmente creio, pois o discurso
colonial foi uma das estratégias mais poderosas no imaginário
do sistema mundial colonial/moderno, produzindo dicotomias
que afirmam que não existe “fora” e “dentro” no mundo exterior.
A ch o ótim o elim inar dicotom ias que justificavam a vontade
de poder colonial. Historicam ente, esse é o fato. A ch o ótimo
afirmar q u e, no m undo exterior não há dentro e fora, ou pelo
menos tentar fazê-lo. O que é mais difícil é esquecer ou eliminar
as dicotomias históricas que o discurso e a epistemologia colo
nial im puseram ao m undo, inventando diferenças coloniais.
Interesso-me mais pelo argumento histórico que pelo lógico.
Se falarem em margens internas e externas (por exem p lo, em
exterioridade) no sistema mundial colonial/moderno, de alguma
forma estarão pressupondo que na verdade existe um lado
de fora e um lado de dentro. Se afirmarem, adem ais, que o
“O cid e n te ” é a metáfora dom inante do im aginário colonial/
m oderno, estarão de certa forma afirm ando que o “O cid e n te ”
define o interior, pressupondo também que há um exterior,
seja ele o que for. Naturalmente, pode-se dizer que a “totali
d ad e” é a soma do interior e do exterior do sistema e, portanto,
que não há lado de fora da totalidade. Tudo bem, mas é histo
ricamente perigoso e irrelevante. Historicamente, e no mundo
colonial/m oderno, as margens foram colocadas pela colonia-
lidade do poder em oposição à diferença colonial.
Historicam ente, e no quadro do sistema mundial colonial/
m oderno, ou ço hoje afirm ações equivalentes à lógica m etafí
sica, “não há lado de fora e de dentro”. A co n tece que tal
afirm ação é feita por colegas que claramente estão se co lo
cando de “dentro” e, ao fazê-lo, esquecendo o “lado de fora”.
O u v i, por outro lado, colegas (mais claram ente, colegas em
453
algum canto do Terceiro M undo) que realmente crêem nas
distinções dentro/fora. O ra, poder-se-ia explicar esse fato
dizen d o que é uma pena, mas eles estào teoricam ente atra
sados, subdesenvolvidos, pois não sabem ainda que a última
descoberta das hum anidades nos centros de pesquisa metro
politanos é que, na verdade, não existe tal coisa: dentro e
fora. Seria bom ter tal explicação, se ela não contrariasse os
fatos. Colegas do Terceiro Mundo que afirmam veementemente
a distinção entre dentro e fora (que aparece com o centro e
periferia, ou centro e margem, ou Primeiro e Terceiro M undo)
são os mais sofisticados e “d e sen v o lvid o s” teoricam ente.
Tam bém conheço colegas do Terceiro M undo que sem dúvida
afirmarão enfaticam ente que não há dentro e fora. Pode ser
que sejam teoricamente menos sofisticados e mais colonizados
intelectualmente, repetindo proposições dominantes originárias
de uma intelligentsia acadêmica de vanguarda, e respondendo
a histórias locais no “interior” do mundo colonial/moclerno.
Dentro e fora, centro e periferia são metáforas dúplices
que dizem mais sobre os loci da enunciação do que sobre a
ontologia do m undo. Há e não há dentro e fora, centro e
periferia. O que realmente existe é a fala de agentes que afir
mam ou negam essas oposições dentro da colonialidade do
poder, da subalternização do conhecim ento e da diferença
co lonial. O último horizonte do pensam ento liminar não está
atuando apenas em direção a uma crítica de categorias c o lo
niais; está atuando também no sentido de reverter a subal
ternização dos saberes e a colonialidade do poder. Tam bém
indica uma nova maneira de pensar na qual as dicotom ias
podem ser substituídas pela com plem entaridade de termos
obviam ente contraditórios. O pensam ento liminar poderia
abrir as portas para uma outra língua, um outro pensam ento,
uma outra lógica, superando a longa história do m undo colo-
nial/m oderno, a colonialidade do poder, a subalternização
dos saberes e a diferença colonial.
4 54
B B L O G R A F I A
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descolonização - 71-72, 76, 86, discurso colonial - 24-25, 38,106,
106, 143-144, 154, l6 l, 176, 189, 147, 161, 171-172, 279, 325, 438,
194, 207, 252, 329, 337,341,346, 440, 435
357, 372, 374-375, 380, 383, 396, diversalidade - 332, 370
399, 435, 443-444, 450; na Ásia e
diversalidade global - 304, 335-
na África - 195, 197, 452; e a
337
desconstrução - 76, 98, 124, 361,
409, 433, 435, 439; do conheci Doutrina Monroe - 75, 193, 190
mento - 101, 123, 223, 294, 405; dupla consciência - 83, 129, 184,
na América Latina - 147, 182, 452; 208, 217, 229, 232-234, 330, 336,
e a construção da nação - 67, 72, 358, 435, 439
271, 299, 421, 452 dupla crítica - 82-83, 101-102,
desconstrução - 66, 67, 76, 106, 105-107, 117, 120, 122, 125, 128,
109, 111, 124, 361, 422, 439 439
desenvolvimento - 86, 133, 134,
168, 224, 278, 281, 373, 377, 379, E
388, 405, 408 emancipação - 28, 205, 207, 219
de Sepúlveda, Juan - 55, 84, 383
Espanha - 34, 40, 43, 55, 62-63,
destino manifesto - 190, 193, 379 80-82, 86-91, 99-100, 102, 146,
diferença colonial - 23, 29, 35, 40, 148, 313
44, 51-52, 71, 73, 76, 80, 89, 123, estado-nação - 40, 190, 195, 290,
135, 182-183, 237, 240-241, 247, 344, 354, 363, 366-367, 371, 378,
250-253, 271, 326, 337, 342, 375, 402, 421, 427, 444-445, 452. Ver
382, 397, 408, 420, 424, 428, 433, também colonialismo interno
435-440, 442, 449-454; e o pen
Estados Unidos - 34, 73, 87, 100,
samento liminar - 26, 39, 67, 97,
141, 182-183, 189-190, 244, 248,
134, 425, 429, 435; e a coloniali
353, 379, 380, 387, 400, 415; e
dade do poder - 28, 37,45,46,66,
México - 59, 60, 102, 110, 193,
71, 98, 205, 242, 298, 345, 357,
313
370, 378, 398, 407, 430, 432, 435
estudos culturais - 43, 240, 440
diferença epistêmica colonial - 28,
67, 340, 408, 423-424, 425 epistemologia - 24, 32-34, 48, 52,
diferença irredutível - 115, 117, 73, 75, 93, 117, 119, 135, 169,
241-242, 286, 290, 292, 332, 337,
121-123, 126, 129
339, 340-342, 355, 363, 372, 422,
direitos de homens e do cidadão -
431, 453; e hermenêutica - 26, 30,
56, 84, 95, 380
36, 42, 373; e o conhecimento -
direitos humanos - 400, 402, 410, 102, 107, 223, 344; moderna - 27,
432 47, 83, 136, 158, 175-176, 244-
direitos dos povos - 54-56, 67, 79, 245, 286-287, 422, 424, 433, 435;
84, 95, 291 ocidental - 28, 30, 341-342, 396
499
epistemologia crioula - 359 filosofia da linguagem - 333, 347,
epistemologia liminar - 52, 66, 349, 357, 399
101, 242, 370, 409 filosofia da libertação - 247-248
epistemologia territorial - 52, 335, filosofia latino-americana - 177,
342 204, 211
Escola de Frankfurt - 156-157, 204, França - 46, 49, 87, 89, 99, 109,
425 123, 379-380, 400
Escola de Salamanca - 55, 79, 84, fronteira - 42, 55, 83, 217, 330,
95, 291 343, 358, 403-404
escravos africanos - 50, 56, 63, 75,
102, 154, 186, 209, 248, 444 G
escravos ameríndios - 50, 63, 248 gênero - 159, 171, 178-180, 185,
estudos de área - 30, 35, 93, 104, 243, 269, 326, 354, 366; e pensa
113, 136, 137, 139, 202-203, 260, mento liminar - 348-354, 362-370;
268, 286, 303, 373, 374, 378, 412, e pós-colonialidade - 177, 180; e
418 ; sobre a América Latina - 259- estudos subalternos - 255-259,
260, 265-268 268-277
estudos latino-americanos - 263, geocultura - 49, 72, 73, 88; do sis
265- 266, 268, 278 tema mundial moderno - 72, 377,
estudos pós-coloniais - 25, 66, 384
240, 276 geopolítica do conhecimento - 66,
Estudos Subalternos - 66, 75, 255- 103-104, 204, 429, 437, 441
257, 267-268, 276, 279, 293, 333; globalização - 36, 46-47, 72, 210,
nas/das Américas - 259, 272, 278; 259, 268, 278, 292, 303, 313, 322,
na/cla índia - 267, 271-272, 274, 340, 347, 363, 375-377, 385, 389,
280; na/cla América Latina - 253, 392, 396, 399, 401, 410-411; e
266- 267, 271; nos/dos Estados teorização bárbara - 415,417; eco
Unidos - 217 nômica - 410,414; e mundialização
etnicidade - 38, 326, 372, 414 - 70, 115, 340, 342, 376-379, 407,
Eurocentrismo - 41, 66, 148-149, 419
198, 235, 400, 422 gnose - 30, 31, 33, 34, 35, 37
gnose liminar - 34, 35-37, 43, 48,
F 101-102, 110, 138-139, 146, 217,
fagocitose - 216, 219, 222; cultu 221-222, 228, 404, 412, 416-420
ral - 219, 222, 225, 228, 409 gnosiologia - 31, 32, 33, 35, 412
feminismo - 158, 179, 424 gnosiologia liminar - 33, 35, 37,
filosofia africana - 32, 86, 97-98, 48, 396
204, 405 grandes relatos - 122
5 00
Gueira Fria -194,164,202-203,244, indianidade - 210
273, 378, 411-412, 414, 446, 452 índias Ocidentais - 80, 82, 85, 87,
Grupo de Estudos Subalternos do 90-91, 133, 153, 181, 185, 191
Sul da Ásia - 43, 96, 253-257, 293 indigenismo - 210, 219
Grupo de Estudos Subalternos La índios norte-americanos - 29, 187,
tino-Americanos - 253-255, 257, 194; religiões de - 30, 110
265, 283, 293
Inglaterra - 34, 40, 49, 86, 89,149,
253, 314, 380, 400
H
Islã - 29, 46, 63, 94,104,112,117,
heranças coloniais - 43, 150, l6 l, 442
166, 172, 287, 310, 320, 335, 361,
363; e a teorização pós-colonial -
J
174, 178; e as culturas do conhe
cimento acadêmico - 275, 371 Japão - 59, 64, 73, 75, 188, 387,
hermenêutica - 25, 30, 32, 36, 42, 442
49, 311, 342, 373 judeus - 46, 56, 79, 113, 156, 379
hermenêutica pluritópica - 37, 40,
42 L
história colonial - 37, 40, 43, 66, latino-americanos/as - 102, 148,
140, 187 194, 315, 316, 320, 323, 339, 344,
histórias locais - 46, 48, 69, 74, 87, 348, 374, 396, 403
102, 111, 125, 134, 183, 188, 206- legados coloniais - 26, 140, 183,
207, 241, 248, 289, 297, 317, 388, 186, 199, 240
406-407, 416, 419, 421, 426, 438,
língua - 75, 111, 114-117, 191,
444, 447, 454; e projetos globais
267, 298-300, 305, 307, 309-310,
-52, 67,75,82,99, 102, 108, 115,
315-318, 326-327, 333, 339, 343-
154-155, 176, 192, 198, 206, 217,
344, 348, 350-360, 364-367, 369,
238, 247, 252, 292, 331, 336, 340-
371-372, 374, 389, 396-397, 402,
341, 376-377, 418, 442
421; e conhecimento - 107, 333,
História Universal - 41, 46, 47, 207, 342, 389, 396, 398, 401, 447; e
385, 441 literatura - 300, 302, 337; e terri
tório - 312, 313, 320-321
I linguajamento - 309-310, 312,
Iluminismo - 31, 43, 88, 97, 205- 321-325, 337, 343-345, 347, 353-
206, 222, 241, 253, 338, 349, 363, 354, 358-361, 365-366, 375, 397
384, 386, 425-426, 439 literatura - 75, 282, 304, 310, 314,
índia - 73, 75, 97, 99, 127, 178, 335, 373, 421; e língua - 298-300,
248, 256, 262 302, 313, 317, 320, 337, 339, 374,
indianismo - 210 389, 396, 413, 421
501
locais geoculturais - 259, 265 347, 352, 363, 384, 389-390, 399,
locais geoistóricos - 182, 241, 254, 401, 424, 428, 437, 452; horizonte
256, 264, 312, 425-426 colonial da - 194, 237, 251, 299,
320, 426, 439; e colonialidade -
lócus da enunciação - 25, 36, 139,
48, 59, 69, 80-81, 106, 111, 181,
159, 164, 165, 167, 170, 172-173,
236, 245, 278, 288-289, 300, 360,
176, 215, 217, 227, 262, 330, 418,
445; e o Iluminismo - 43, 88, 384;
454; e construções imaginárias -
européia - 26, 81, 263, 389, 391,
215-216, 277; e transculturação -
401; modernidade/colonialidade -
233-234, 301
66, 79, 233, 235, 310, 321, 339,
341, 388, 421; mito da - 104, 168,
M 385; segunda - 31, 42, 87-90, 94-
macronarrativas - 47, 106 95, 114, 186; ocidental - 162, 232-
233; mundo - 73-74
mapa cristão T/O - 50, 92, 379
modernidades coloniais - 33, 35-
Maghreb - 80, 82, 101, 103, 105,
36, 47, 74, 80, 111, 205
108, 113, 122, 124-125, 361
modernização - 81, 87, 188, 216,
Marx, Karl - 43, 96-97, 103, 126-
218, 223, 242, 300, 373, 379, 385,
127, 198, 245, 251-253, 427
388, 406, 419
marxismo-64, 111, 153, 189, 197,
mouros - 37, 46, 55, 79, 100, 102,
209, 222, 245-246, 248, 250-251,
125, 330, 349, 379
370, 418-419, 451
“mundialización” - 340-341, 377,
mercado global - 368, 388
407, 419
Mesoamérica - 147, 150, 187, 215,
226, 228, 263, 277, 368, 401, 413
N
“mestizaje” - 38, 40,137,183, 235,
431 nação - 40, 105, 281, 302, 316-
317, 337, 354, 365, 372, 374, 392,
“mestizos” - 36, 46, 305, 326, 382
400
México - 59-60, 102, 208
negação da contemporaneidade -
missão civilizadora - 46, 88, 91, 383-385, 418
113, 158, 164, 277, 338, 341,377,
neocolonialismo -141, 154
379, 380, 385-388, 390, 392, 399,
403-404, 411, 414, 418, 445; e neoliberalismo - 30, 47, 49, 357,
projetos globais - 86, 207, 381 369, 376, 419
negritude - 219, 229, 231, 327
modernidade - 45, 47, 65-66, 68-
69, 72, 74, 76, 87, 98, 104-105, Nietzsche - 101,106-107, 198, 245
128-130, 134, 136, 140, 143, 155, nomadismo - 109-110, 115
166-170, 172-174, 178, 180, 186, nova consciência “mestiza” - 83,
222-223, 228, 259-260, 267-268, 125, 129, 208, 233, 332, 336, 363,
277, 280-282, 286, 290, 292, 337, 435, 439
5 02
o Portugal - 43, 81, 87, 89
503
razão subalterna - 139, 142-143, 388, 428, 431, 435, 441, 453; e o
146, 151, 155-156, 161, 221 ocidentalismo - 45, 48-50, 75, 95,
razão pós-colonial - 69, 133,168- 286,426; e raça - 36,191,324; fron
169, 171, 176-177 teiras internas do-421,446,447,453
Renascença - 31, 39, 96, 206, 222, sistema mundial moderno - 42,
426, 439-440 54, 64, 66-67, 82-84, 86-88, 95-
96, 99-100, 104, 113, 115, 153,
Revolução Haitiana - 40, 87, 96,
187-189, 194, 206, 235, 241, 299,
182, 184, 188, 328, 338-339, 429
310, 315, 326, 331, 343-344, 373,
Revolução Francesa - 49, 56, 80, 376-377, 384, 400; e a
87, 89, 197, 199, 337-338, 384, colonialidade do poder - 103, 136,
385, 400, 428 244, 256, 305; geocultura do - 49,
Revolução Mexicana - 208, 210, 72, 377, 384; imaginário do - 177,
431 194, 286, 317, 383
Rússia - 63-64,146-147, 387, 450. subalternidade - 46, 69, 76, 138,
Ver também União Soviética 140, 154, l60, 250, 278
subalternização do conhecimento
S - 24, 35-36, 40, 46, 93, 105, 137,
saber - 33, 47, 74-75, 101, 165, 258, 283-286, 341, 418, 439, 454
177, 203-207, 321, 332, 354, 357, Subcomandante Marcos - 125,
362, 374, 383, 404-405, 425, 431, 128-129, 198
444, 447; e epistemologia - 223,
343-344, 373; e língua - 107, 342, T
388, 394-396, 399, 401, 447
teoria crítica - 43, 156-157, 204
saberes subalternos - 23, 44, 45,
teoria da dependência - 86, 154,
75, 137, 337, 423, 433, 440
223
semiose colonial - 37-41
teorias pós-coloniais - 145, 161,
sistema mundial colonial/moder 167, 178-180, 256
no - 24, 29, 35, 46, 59, 62-64, 69,
teorização bárbara - 157,415, 4l6,
74-76, 83, 87, 97, 111, 113, 124,
417
133, 152, 174, 182-183, 188, 231,
238, 253, 289, 314, 376-379, 398, teorização pós-colonial -146, 148,
406, 415, 419, 426, 440, 447, 453; 150,151,156,164,165,166,167,
fronteiras externas do - 33, 407, 171, 173, 174, 180, 300, 439
409, 422, 454; formação do -181; Terceiro Mundo - 35, 45, 73, 86,
imaginário geopolítico - 92, 191, 99, 161, 162, 163, 203, 205, 207,
328; imaginário do - 23, 48, 53, 244, 256, 257, 260, 26l, 280, 281,
56,67,79,87,89,95-96,98,125,128, 283, 287, 303, 323, 346, 353, 358,
133, 136, 174, 183-184, 188, 231- 412, 417, 436, 450; e estudos de
233, 238, 262, 314, 380, 383-386, área - 202-203, 373, 374,
504
totalidade - 243, 245, 420, 442,
443
trabalho científico - 204; distribui
ção de - 164, 303, 357, 358, 410,
412, 413
tradução - 23, 27, 107, 112-114,
282, 285, 288
transculturação - 37-40, 183, 207,
216, 233-236, 254, 283-286, 301,
330, 435, 439
transmodernidade - 82,83, 134,
169, 285-286, 289
U
um outro pensamento - 42, 82,
101-112, 114-116, 120-125, 127,
129, 330, 331,333, 336, 339, 358,
374, 454
União Soviética - 64, 244, 248,
369, 377, 450. Ver tambcm Rússia
Z
“zapatismo” - 127, 188, 198, 210
“zapatistas” - 50, 126, 183, 184,
198, 210, 229, 259, 315, 429
:
505
H U M A N I T A S
DIRETORA DA CO LE ÇÃ O
H eloísa Starling
9. O TRABALHO D A CITAÇÃO
Antoine Compagnon
46. NIETZSCHE, das força s cósm icas aos valores hum anos
Scarlett Marton
47. A FORÇA DA LETRA, estilo escrita representação
Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão (Org.)
ÜFRGS 06316270
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detalha tópicos cruciais como a
colonialidade do poder entra-
nhada no imaginário moderno;
a relação entre configurações
geopolíticas e produção de
conhecimento; o colonialismo
global exercido pelas corpo
rações transnacionais. Destaca
ainda a necessidade de macro-
n a rra tiv a s c o n s tru íd a s da
perspectiva da colonialidade; o
pensamento liminar, "máquina
de descolonização intelectual";
o feminismo terceiro-mundista
e sua denúncia da “ epistemo-
logia branca” ; a cumplicidade
entre as línguas hegemônicas
e as ciências sociais; e língua
e literatura como sede inter-
disciplinar de produção de saber.