RODRIGUES, Nelson Bolachas

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Nelson Rodrigues

AS BOLACHAS
Em recente confissão, dizia eu que o milioná-
rio brasileiro é pobre de mesa. Tem dinheiro para
banquetes suntuários. Se quisesse, comeria 25 lei-
tões no café. E ainda teria quinhentos frascos de
geleia para lhes passar por cima. O diabo é que,
psicologicamente, o nosso milionário continua po-
bre. E, nessa alma de pobre, está todo o patético,
todo o sublime do rico brasileiro. Seu automóvel
tem cascata artificial com filhote de jacaré. Sua es-
posa gasta mais do que 25 amantes. Sua amante
gasta mais do que 25 esposas. Conheço um milio-
nário que amou uma jovem senhora. Disseram: —
“Gosta do marido!”. Teve um riso torpe: — “Eu
compro”. Achava que tudo se compra e tudo se
vende.
Começou a conquista. Ligava e a outra batia-
lhe com o telefone. Mandou-lhe rosas. Na frente
do mensageiro, a moça sapateou em cima das flo-
res como uma espanhola. Na sua obstinação faná-
tica, dizia o milionário: — “Há de ter seu preço!

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Todas têm um preço!”. E, um dia, mandou-lhe um
colar de pérolas, legítimas, dessas que, segundo
ele, subornam uma rainha. Esperou 24 horas, 48.
E, como não houve devolução, pôs a boca no
mundo: — “Comprei, comprei!”. Os amigos, os
conhecidos e parentes já admitiam: — “Vendeu-
se!”.
Até que, quatro ou cinco dias depois, os dois
se cruzam numa recepção grã-finíssima. O milio-
nário tem um choque delicioso: — ela estava com
o colar, usava o colar, com um divino impudor.
“Cínica”, eis o que pensava o milionário. E, súbito,
ela o vê. Pede licença a uma outra senhora, com
quem conversava, e vem ao encontro do conquis-
tador. Tudo aconteceu numa progressão fulmi-
nante. Parou diante do milionário; com um gesto
leve e ágil, tirou o colar (ele não estava enten-
dendo nada). Em seguida, segurando o colar como
a um relho, deu-lhe em pleno rosto a primeira lam-
bada. O salão parou; os convidados tinham uma

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cara idiota. Sim, uma cara idiota como se todos ali
fossem figuras de museu de cera. As pérolas ex-
plodiam em cada face do milionário. Não houve
uma palavra entre os dois. Só houve a surra de
pérolas. E o pior foi depois. Aquelas casacas e
aqueles decotes agachados e apanhando, voraz-
mente, as pérolas espalhadas. Bem.
Contei o episódio e não sei por que o fiz (re-
almente). Ou por outra: — já sei por que contei
uma surra tão cara. É que esse brasileiro rico pos-
suía uma alma de pobre, e repito: — tinha velhas
fomes enterradas na alma. Por vingança de pobre,
de pau-de-arara, queria tudo comprar e tudo cor-
romper.
Falei do milionário brasileiro. Mas há um ou-
tro patrício ainda mais fascinante. Refiro-me
àquele que não é, mas será rico algum dia. Por
exemplo: — o meu amigo Asdrúbal. Espírito admi-
rável, ensaísta de uma lucidez apavorante. Eis o
que eu queria dizer: — Asdrúbal conheceu a fome,

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a boa, a santa fome. E, no entanto, trazia um mili-
onário em seu ventre. Hoje é homem de televisão,
empresário, tem automóvel etc. etc.
Percebi que o Asdrúbal ia ser milionário
quando, certa vez, sem um tostão, comprou uma
ilha. Sim, uma ilha do Pará, meio paradisíaca, com
jacarés por toda a parte. Não há mais carambolas.
Pois a ilha do Asdrúbal tem carambolas. E ele a
comprou sem um níquel. Só um milionário nato
podia ter um gesto assim, dionisíaco.
Mas não me importa muito o atual Asdrúbal,
bem-sucedido, de larga e cálida euforia. Não. O
melhor Asdrúbal é o da fome. Ele poderia dizer:
— “Eu já fui o Raskolnikov!”. Não matou as velhas.
Tem uma estrutura doce demais para isso. Mas
roubava livros. Morava, então, com o Carlinhos de
Oliveira e o Ferreira Gullar, numa água-furtada, e
havia, lá, uma claraboia, como nos romances de
Paulo de Kock. Eis o que fazia o nosso Raskolni-
kov: — roubava livros. Entrava numa livraria e,

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como um “virtuose”, um estilista, apanhava três,
quatro volumes. Era quase um número circense.
Ninguém percebia nada. E lá ia o nosso Asdrúbal
vender os livros ao Mário Pedrosa. Este era o
grande freguês. Não só o Mário Pedrosa, eviden-
temente. A freguesia do Asdrúbal era imensa, in-
clusive senhoras e até padres. Eugene O’Neill,
quando se tornou milionário, costumava dizer: —
“Ah, só tenho saudades da fome!”. Sim, saudades
das noites do cais. Suas entranhas se contraíam na
náusea da fome e não havia o que vomitar. A nos-
talgia do Asdrúbal, ou a sua vaidade, é o adoles-
cente e nobilíssimo ladrão literário. Só roubava do
bom, do melhor! Era, repito, um ladrão crítico,
que excluía qualquer subliteratura.
Eis o que eu queria dizer: — quando Asdrúbal
for milionário, a fome estará enterrada, no seu
sangue e na sua alma. O ladrão de livros, de um
gosto tão lúcido, e tão fino, e de uma sensibilidade

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tão erudita, não há de morrer jamais. E é justa-
mente esse passado que faz do Asdrúbal uma na-
tureza tão complexa, irisada, dramática.
Outro que não seria nada se não tivesse para
pisar o grande chão do passado é Plínio Marcos.
Hoje, é uma das figuras mais obsessivas dos nossos
palcos. Por toda a parte, lê-se e ouve-se o seu
nome. É representado, simultaneamente, em três,
quatro teatros. Já foi tudo, como Knut Hamsun.
Raros brasileiros podem entrar numa sala e anun-
ciar, de fronte alta: — “Já fui palhaço”. E, no caso
de Plínio Marcos, com uma agravante dramática:
— era o palhaço sem graça, o palhaço que não fa-
zia rir. Uma vez representou para quinhentas cri-
anças. Fez o diabo. As suas cambalhotas elásticas,
acrobáticas, não arrancavam um sorriso. Quinhen-
tas caras amarradas. Até que o Plínio Marcos ex-
plodiu: — parou no picadeiro e, na sua fúria, dava
arrancos triunfais de cachorro atropelado. Nunca
mais foi palhaço, nunca mais. Mas sua experiência

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culminante não foi de palhaço: — foi de ladrão.
Um dia, ficou de sentinela de um avião, se não
me engano, da Cruzeiro. Estava lá, na sua função,
armadíssimo, disposto a fuzilar o primeiro sus-
peito. E, súbito, chegam os assaltantes. Era um
bando de rotos, de esfarrapados, crioulos, bran-
cos, e, no meio dos miseráveis, um leproso. Um
súbito e móvel pátio dos milagres. Queriam pilhar
o avião. Eis o dilema do futuro dramaturgo: — ou
fuzilava, ou confraternizava. O avião estava cheio
de bolachas. Plínio Marcos vacilou um minuto,
dois. E, por fim, tomou a liderança dos canalhas.
Invadiram o avião e saquearam as bolachas.
Pouco depois era preso, arrastado à prisão.
Degradaram-no como a um Dreyfus sem Zola.
Uma mão feroz arrancou-lhe os botões, um a um.
Foi toda essa experiência de Dreyfus, todo esse
peso vital que ele pôs na sua nova peça. Ah, é um
texto que dará ao espectador, no fim do espetá-
culo, a vontade de chorar, eternamente, sentado

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no meio-fio.

[O GLOBO, 15/3/1968]

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