Animais Como Metáfora

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Animais como Metáfora

John Berger
(Tradução: Ricardo Maciel dos Anjos)

Durante o século XIX na Europa ocidental e na América do Norte, iniciou-se um


processo que se completa na atualidade, graças ao capitalismo corporativo do século
XX, no qual todas as relações outrora existentes entre a humanidade e a natureza foram
rompidas. Antes dessa ruptura, os animais constituíam o primeiro círculo do que estava
em torno do homem. Talvez isso já sugira uma enorme distância. Eles estavam com a
humanidade no centro do mundo. Tal centralidade era, obviamente, econômica e
produtiva. Não obstante as mudanças nos meios produtivos e nas organizações sociais,
o homem ainda dependia de animais para comida e vestuário, como ferramenta de
trabalho e como meio de transporte.
Porém, supor que os animais surgiram no imaginário humano em forma de
carne, couro ou chifres é o mesmo que projetar uma mentalidade oitocentista sobre os
milênios passados. Animais entraram no imaginário humano primeiramente como
mensageiros e promessas. Por exemplo, a domesticação do gado não começou como
uma simples atividade de obtenção de carne e leite. O gado tinha funções mágicas, às
vezes oraculares e às vezes sacrificiais. A escolha de uma determinada espécie como
mágica, domesticável e comestível era originalmente determinada por hábitos,
proximidade e “convite” do animal em questão.

O bom touro branco é minha mãe


E nós somos gente de minha irmã,
O povo de Nyriau Bul...
Amigo, grande touro de chifres que se espalham,
que sempre ressoa em meio ao rebanho,
Touro do filho de Bul Maloa

(The Neuer, a description of the modes of livelihood and political institutions os a Nilotic people, por
Evans-Pritchard)

Animais são paridos, são conscientes e são mortais. Nestas coisas eles se
assemelham à humanidade. Na sua anatomia superficial – não tanto na sua anatomia
profunda – nos seus hábitos, no seu tempo e nas suas capacidades físicas eles diferem
dos homens. Eles são simultaneamente próximos e distantes.
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“Sabemos o que os animais fazem e do que castores, ursos, salmões e outras


criaturas necessitam, pois outrora com eles nossos homens eram casados, e de suas
esposas animais adquiriram este conhecimento.” (Índios havaianos citados por Lévi-
Strauss em O pensamento selvagem.)
Os olhos de um animal que observam um homem são desconfiados e atentos. O
mesmo animal pode muito bem dirigir o mesmo olhar a outras espécies. Ele não tem um
olhar especial para o homem. Nenhuma espécie, salvo o homem, reconhece o olhar
desse animal como familiar. Outros animais são reféns do olhar. O homem toma
consciência de que está retribuindo o olhar.
O animal examina cuidadosamente o homem através do abismo de sua não-
compreensão. E é por isso que o homem pode surpreender o animal. O animal, contudo
– ainda que domesticado – também consegue surpreender o homem. O homem também
examina com uma parecido, mas não idêntico, abismo da não-compreensão. E é assim
com tudo o que ele examina. Ele sempre carrega olhares de ignorância e medo. Então,
quando ele é visto pelo animal, ele é visto da mesma forma como o seu entorno é visto
por ele. Seu reconhecimento desse fato é o que torna o olhar do animal familiar. Eis
que um poder é creditado ao animal, comparável ao poder humano, mas nunca
coincidindo com ele. O animal tem segredos que, ao contrário dos segredos de cavernas,
montanhas e mares, são dirigidos especificamente aos homens.
Essa relação pode se tornar clara ao se comparar o olhar de um animal com o
olhar de outro homem. Entre dois homens o abismo da não-compreensão é, em
princípio, coberto pela linguagem. Mesmo se o encontro for hostil e palavras não sejam
proferidas (ou mesmo se os dois falarem línguas diferentes), a existência da linguagem
permite que pelo menos um deles, se não ambos mutuamente, seja reconhecido pelo
outro. É a presença da linguagem que permite ao homem reconhecer o outro, assim
como a si mesmo. (Na confirmação feita pela linguagem, podem-se confirmar também
ignorância e medo. Enquanto nos animais o medo é uma resposta a um indício de
perigo, no homem ele é endêmico.)
Animal algum confirma o homem, positiva ou negativamente. O animal pode ser
morto e comido para que sua energia seja adicionada à que o caçador já detém. O
animal pode ser domesticado para que ele possa ser útil e trabalhar para o camponês.
Mas é a sua falta de linguagem, o seu silêncio, que garante a sua distância, a sua
distinção, a sua exclusão, de e para o homem.
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É somente devido a essa distinção, contudo, que a vida de um animal, nunca a


ser confundida com a de um homem, pode ser considerada paralela à deste. É somente
na morte que as duas linhas paralelas se convergem e, após a morte, talvez se cruzem
para se tornar paralelas novamente: daí vem a ampla crença na transmigração das almas.
Com suas vidas paralelas, os animais oferecem ao homem um companheirismo
diferente de qualquer outro oferecido pelo convívio humano. Diferente porque é um
companheirismo oferecido à solidão do homem enquanto espécie. Tal companheirismo
silencioso era sentido de maneira tão intensa e indiscriminada que é freqüente a
convicção de que era sempre o homem que não tinha a capacidade de falar com os
animais – daí vêm histórias e lendas de seres excepcionais, como Orfeu, que podiam
conversar com os animais em sua própria língua.
Quais eram os segredos das semelhanças e dessemelhanças dos animais com os
homens? Os segredos cuja existência foi reconhecida pelo homem no momento em que
seus olhos se cruzaram com os do animal.
De certa forma, a antropologia, no que diz respeito à passagem da natureza à
cultura, é uma resposta para essa pergunta. Mas não há uma resposta geral. Todos os
segredos recaíam sobre o animal como uma intercessão entre o homem e suas origens.
A teoria evolutiva de Darwin, indubitavelmente carregada de marcas da Europa
oitocentista como ela é, pertence, contudo, a uma tradição – quase tão antiga quanto o
próprio homem. Os animais foram intercessores entre o homem e suas origens porque
eles eram, ao mesmo tempo, similares e dissimilares aos humanos.
Os animais vieram de além do horizonte. Eles pertenciam ao lá e ao aqui, assim
como eram mortais e imortais. O sangue de um animal fluía como o humano, mas a sua
espécie era imortal e cada leão era Leão, cada touro era Touro. Isto – talvez o primeiro
dualismo existencial – era refletido no tratamento dirigido aos animais. Eles eram
subjugados e idolatrados, criados e sacrificados. Atualmente os vestígios desse
dualismo permanecem entre as pessoas que mantêm relações estreitas com os animais e
deles dependem. Um camponês se torna amigo de seu porco, e fica feliz em salgar a sua
carne. O que é significativo e difícil para a compreensão de um estranho, morador das
cidades, é o fato de as duas sentenças estarem ligadas por um e, e não por um mas.
O paralelismo de suas vidas similares/dissimilares levou os animais a provocar
algumas das primeiras questões e a também oferecer respostas. O primeiro tema da
pintura foi o animal. Provavelmente a primeira tinta foi o sangue animal. Antes disso,
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não é irracional supor que a primeira metáfora foi animal. Rousseau, no seu Ensaio
sobre as Origens da Linguagem, afirmou que a própria língua começou com metáforas:
“Enquanto as emoções foram os primeiros motivos que levaram o homem a falar, suas
primeiras palavras foram metáforas. A linguagem figurada foi a primeira a nascer, e
significados foram os últimos a serem descobertos.”
Se a primeira metáfora foi animal, é porque a relação básica entre o homem e o
animal era metafórica. Dentro dessa relação, o que os dois termos – homem e animal –
tinham em comum também revelou o que os tornava diferentes. E vice-versa.
Em seu livro sobre totemismo, Lévi-Strauss comenta acerca da lógica de
Rousseau: “É porque o homem se sentiu originalmente idêntico aos seus similares
(dentre os quais, segundo Rousseau, devemos incluir animais), que ele adquiriu a
capacidade de distinguir a si próprio da mesma maneira que ele distingue esses outros –
ao usar, por exemplo, a diversidade de espécies como suporte conceitual para
diferenciação social.”
Aceitar a explicação de Rousseau sobre as origens da linguagem é, claramente,
pedir que sejam feitas certas perguntas (qual foi a organização social mínima necessária
para o surgimento da linguagem?). Contudo, nenhuma busca da origem pode ser
inteiramente satisfatória. A intercessão dos animais nessa busca era tão comum
precisamente por eles permanecerem ambíguos.
Todas as teorias da origem absoluta são apenas maneiras de definir melhor o que
veio depois. Os que discordam de Rousseau contestam o ponto de vista de um homem,
não um fato histórico. O que estamos tentando definir, já que a experiência está perdida
quase que por inteiro, é o uso universal de signos animais para mapear a experiência do
mundo. Os animais foram vistos em oito dos doze signos do zodíaco. Entre os gregos, a
representação de cada uma das doze horas do dia era um animal. (A primeira, um gato;
a última, um crocodilo.) Os hindus enxergavam a Terra sendo carregada nas costas de
um elefante, este por sua vez apoiado sobre uma tartaruga. Para os Nuer do sul do
Sudão (ver Man and Beast de Roy Williams), “todas as criaturas, incluindo o homem,
viviam juntos em harmonia num único campo. A discórdia começou quando a Raposa
persuadiu o Manguço a jogar uma clava no rosto do Elefante. Iniciou-se uma briga e os
animais se separaram; cada um seguiu seu próprio caminho e eles começaram a viver
como hoje, matando um ao outro. O Estômago, que vivia inicialmente uma vida
independente nos arbustos, entrou no homem de forma que agora ele sempre tem fome.
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Os órgãos sexuais, que também viviam separados, juntaram-se aos homens e às


mulheres, fazendo com que eles se desejem constantemente. O Elefante ensinou ao
homem como fazer farinha do milho, de forma que a sua fome só seria satisfeita com
trabalho incessante. O rato ensinou ao homem como procriar e à mulher como parir. E o
Cão trouxe o fogo ao homem.”
Os exemplos são incontáveis. Em todo lugar os animais ofereceram explicações
ou, mais precisamente, emprestaram seu nome ou caráter a uma qualidade que, como
todas as qualidades, era, em sua essência, misteriosa. O que distinguiu o homem dos
animais foi a capacidade humana de pensamento simbólico, a capacidade que se
mostrou inseparável do desenvolvimento da linguagem, no qual palavras não eram
meramente signos, mas significantes de algo além de si mesmas. Ainda assim os
primeiros signos eram representações de animais. O que distinguiu os homens dos
animais nasceu da sua relação com eles.
A Ilíada é um dos mais antigos textos disponíveis, e nela o uso da metáfora
ainda revela a proximidade entre homem e animal, a proximidade da qual a própria
metáfora surgiu. Homero descreve a morte de um soldado no campo de batalha e, em
seguida, a morte de um cavalo. Ambas as mortes são igualmente transparentes aos olhos
de Homero, não havendo mais refração num caso do que no outro. “Enquanto isso,
Idomeneu golpeou Erymas na boca com seu bronze cruel. A ponta metálica da lança
atravessou a parte inferior de seu crânio, abaixo do cérebro e estraçalhou os ossos
brancos. Seus dentes foram quebrados; seus dois olhos encheram-se de sangue; e sangue
esguichou de suas narinas e de sua boca aberta. A nuvem escura da Morte pairava sobre
ele.” Este foi o homem. Três páginas adiante, é o cavalo que cai: “Sarpedônio, atacando
novamente com sua brilhante lança, errou Pátroclo mas acertou seu cavalo, Pédaso, no
lado direito. O cavalo gemeu nas garras da Morte, e então caiu na poeira e, com um
grande suspiro, abandonou sua vida.” Este foi o animal.
O livro 17 da Ilíada começa com Menelau de pé sobre o corpo de Pátroclo para
impedir que os Troianos o despissem. Aqui Homero usa animais como referências
metafóricas para transmitir, com ironia ou admiração, as qualidades excessivas ou
superlativas de diferentes momentos. Sem o exemplo dos animais, tais momentos
permaneceriam indescritíveis. “Menelau ficou ao lado de seu corpo como uma
amedrontada vaca mantendo guarda sobre o primeiro bezerro trazido por ela ao
mundo.” Um troiano o ameaça e, ironicamente, Menelau grita a Zeus: “Você já viu
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tamanha arrogância? Nós conhecemos a coragem da pantera e do leão e do feroz javali


selvagem, a mais espirituosa e auto-confiante fera de todas, mas tudo isso, ao que
parece, é nada perante as proezas destes filhos de Panto...!” Menelau mata então o
troiano que o ameaçou, e ninguém mais ousa se aproximar dele. “Ele era como o leão da
montanha que crê em sua própria força e salta sobre a mais formosa bezerra em um
rebanho que pasta. Ele quebra o seu pescoço com suas poderosas presas e, então, parte-a
em pedaços e devora seu sangue e suas entranhas, enquanto à sua volta os pastores e
seus cães causam um estardalhaço, mas mantendo-se à distância – eles o temem e nada
os faria se aproximar.”
Séculos mais tarde, Aristóteles, na sua História dos Animais, o primeiro grande
estudo científico sobre o assunto, sistematiza a relação comparativa entre o homem e o
animal:
Na grande maioria dos animais há traços de qualidades físicas e de atitudes,
que são marcadamente diferentes no caso de seres humanos. Assim como foram
apontadas semelhanças entre seus órgãos físicos, também em um número de animais
observam-se gentileza e hostilidade, temperança ou raiva, coragem ou timidez, medo
ou confiança, bom humor ou recato pensativo e, no que tange à inteligência, algo
parecido com sagacidade. Algumas das qualidades do homem, comparadas com as
qualidades correspondentes dos animais, diferem-se de maneira apenas quantitativa: o
que quer dizer que o homem tem mais ou menos de determinada qualidade, e que o
animal tem mais ou menos de outra; outras qualidades no homem são representadas
por qualidades análogas, porém não idênticas; por exemplo, assim como no homem se
encontram conhecimento, sabedoria e sagacidade, há em certos animais algum outro
potencial natural parecido com estes. A verdade desta afirmativa será apreendida de
maneira mais clara se for levada em consideração a infância: pois nas crianças
observam-se traços e sementes do que um dia serão hábitos psicológicos firmes, ainda
que psicologicamente uma criança seja, ainda que por um curto tempo, muito pouco
diferente de um animal...

Para a maior parte dos leitores modernos “educados”, essa passagem, creio,
parecerá nobre, porém demasiadamente antropomórfica. Gentileza, raiva, sagacidade,
argumentariam eles, não são qualidades morais que podem ser atribuídas a animais. E
os comportamentistas concordariam com esta objeção.
Até o séc. XIX, porém, o antropomorfismo era integral à relação entre homens e
animais e era uma expressão da sua proximidade. O antropomorfismo era o resíduo do
uso contínuo da metáfora animal. Nos dois últimos séculos, os animais desapareceram
gradativamente. Hoje nós vivemos sem eles. E nesta nova solidão, o antropomorfismo
deixa-nos duplamente desconfortáveis.
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John Berger nasceu em Londres em 1926. É escritor, ensaísta, roteirista e crítico de arte,
tendo publicado dezenas de livros, peças de teatro e roteiros de filmes.
Entre seus romances, destaca-se o G., vencedor do Booker Prize em 1972.

Ricardo Maciel dos Anjos é escritor, tradutor e aluno da Faculdade de Letras da UFMG.
Autor do romance Saga de um mundo despedaçado (no prelo).

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