Animais Como Metáfora
Animais Como Metáfora
Animais Como Metáfora
John Berger
(Tradução: Ricardo Maciel dos Anjos)
(The Neuer, a description of the modes of livelihood and political institutions os a Nilotic people, por
Evans-Pritchard)
Animais são paridos, são conscientes e são mortais. Nestas coisas eles se
assemelham à humanidade. Na sua anatomia superficial – não tanto na sua anatomia
profunda – nos seus hábitos, no seu tempo e nas suas capacidades físicas eles diferem
dos homens. Eles são simultaneamente próximos e distantes.
2
não é irracional supor que a primeira metáfora foi animal. Rousseau, no seu Ensaio
sobre as Origens da Linguagem, afirmou que a própria língua começou com metáforas:
“Enquanto as emoções foram os primeiros motivos que levaram o homem a falar, suas
primeiras palavras foram metáforas. A linguagem figurada foi a primeira a nascer, e
significados foram os últimos a serem descobertos.”
Se a primeira metáfora foi animal, é porque a relação básica entre o homem e o
animal era metafórica. Dentro dessa relação, o que os dois termos – homem e animal –
tinham em comum também revelou o que os tornava diferentes. E vice-versa.
Em seu livro sobre totemismo, Lévi-Strauss comenta acerca da lógica de
Rousseau: “É porque o homem se sentiu originalmente idêntico aos seus similares
(dentre os quais, segundo Rousseau, devemos incluir animais), que ele adquiriu a
capacidade de distinguir a si próprio da mesma maneira que ele distingue esses outros –
ao usar, por exemplo, a diversidade de espécies como suporte conceitual para
diferenciação social.”
Aceitar a explicação de Rousseau sobre as origens da linguagem é, claramente,
pedir que sejam feitas certas perguntas (qual foi a organização social mínima necessária
para o surgimento da linguagem?). Contudo, nenhuma busca da origem pode ser
inteiramente satisfatória. A intercessão dos animais nessa busca era tão comum
precisamente por eles permanecerem ambíguos.
Todas as teorias da origem absoluta são apenas maneiras de definir melhor o que
veio depois. Os que discordam de Rousseau contestam o ponto de vista de um homem,
não um fato histórico. O que estamos tentando definir, já que a experiência está perdida
quase que por inteiro, é o uso universal de signos animais para mapear a experiência do
mundo. Os animais foram vistos em oito dos doze signos do zodíaco. Entre os gregos, a
representação de cada uma das doze horas do dia era um animal. (A primeira, um gato;
a última, um crocodilo.) Os hindus enxergavam a Terra sendo carregada nas costas de
um elefante, este por sua vez apoiado sobre uma tartaruga. Para os Nuer do sul do
Sudão (ver Man and Beast de Roy Williams), “todas as criaturas, incluindo o homem,
viviam juntos em harmonia num único campo. A discórdia começou quando a Raposa
persuadiu o Manguço a jogar uma clava no rosto do Elefante. Iniciou-se uma briga e os
animais se separaram; cada um seguiu seu próprio caminho e eles começaram a viver
como hoje, matando um ao outro. O Estômago, que vivia inicialmente uma vida
independente nos arbustos, entrou no homem de forma que agora ele sempre tem fome.
5
Para a maior parte dos leitores modernos “educados”, essa passagem, creio,
parecerá nobre, porém demasiadamente antropomórfica. Gentileza, raiva, sagacidade,
argumentariam eles, não são qualidades morais que podem ser atribuídas a animais. E
os comportamentistas concordariam com esta objeção.
Até o séc. XIX, porém, o antropomorfismo era integral à relação entre homens e
animais e era uma expressão da sua proximidade. O antropomorfismo era o resíduo do
uso contínuo da metáfora animal. Nos dois últimos séculos, os animais desapareceram
gradativamente. Hoje nós vivemos sem eles. E nesta nova solidão, o antropomorfismo
deixa-nos duplamente desconfortáveis.
*
7
John Berger nasceu em Londres em 1926. É escritor, ensaísta, roteirista e crítico de arte,
tendo publicado dezenas de livros, peças de teatro e roteiros de filmes.
Entre seus romances, destaca-se o G., vencedor do Booker Prize em 1972.
Ricardo Maciel dos Anjos é escritor, tradutor e aluno da Faculdade de Letras da UFMG.
Autor do romance Saga de um mundo despedaçado (no prelo).