Tomar A Vida Nas Próprias Maos PDF
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Agradecimentos
Este livro é dedicado a meus mestres Rudolf Steiner, Ita Wegman, Norbert Glas e
Bernard Lievegoed; e também a Helmut J. Ten Siethoff, que há 24 anos deu a mim
e a meu marido Daniel as bases para o trabalho biográfico, tendo permitido
desenvolvermos nossa própria metodologia, aplicada no Brasil desde 1976.
Agradeço especialmente aos participantes dos cursos biográficos que fizeram
contribuições fundamentais para este livro poder acontecer.
Com o início da Artemísia, em 1983 [v. pág. 189], este trabalho adquiriu uma
dimensão nova e aprofundada, permitindo que os participantes se hospedassem no
próprio local do curso acompanhados por um atendimento médico, dietético e
revitalizante.
Agradeço, portanto, a todos os colaboradores que passaram pela Artemísia dando
suas valiosas contribuições.
Um agradecimento especial ao meu primeiro marido Pedro Schmidt e a nossos
quatro filhos —Aglaia, Solway, Thomas e Tiago —, cada qual tendo contribuído
para uma parte do meu próprio desenvolvimento; e finalmente ao meu segundo
marido, Daniel Burkhard. com o qual pude desenvolver este trabalho durante
muitos anos a partir de uma metodologia inédita.
Na elaboração do livro participaram Luigia Nardone, Mercedes Gamba
(principalmente na revisão preliminar do português) e Katia Maria Bortoluzzi, com
todo o trabalho de digitação e organização do texto. Os desenhos são do livro de
título correspondente em alemão, elaborados por Michael Seltz.
Agradeço ao meu destino e à vida pela oportunidade de poder dedicar-me a este
trabalho maravilhoso com o que de mais precioso há no ser humano: sua biografia.
G. B.
Em cada um vive uma imagem daquele que deve vir a ser. Enquanto ele não a
realiza, não alcança a sua paz.
Friedrich Rückert
Sumário
Nota preliminar
Prefácio à edição alemã
Prefácio à edição brasileira
Introdução
Capítulo I: Visão geral da biografia
Biografia 1
Biografia 2
Capítulo II: As fases de 0 a 21 anos: a preparação para a vida
O primeiro setênio
O segundo setênio
O terceiro setênio
Capítulo III: As fases de 21 a 42 anos: etapas do desenvolvimento anímico.
Tornar-se homem.
Tornar-se mulher
Biografia 3
A fase dos 21 aos 28 anos
Aos 28 anos: a crise dos talentos
A fase dos 28 aos 35 anos
A fase dos 35 aos 42 anos
Espelhamento anímico-psicológico: retomadas
Capítulo IV: As fases de 42 a 63 anos: a realização de vida
A fase dos 42 aos 49 anos
Biografia 4
A fase dos 49 aos 56 anos
Biografia 5
A fase dos 56 aos 63 anos .
Capítulo V: Biografia sob forma de conto de fadas
Capítulo VI: Espelhamentos e transformações na biografia.
Metodologia prática
Capítulo VII: Ritmos na biografia
Capítulo VIII: A motivação de vida. A missão de vida
Capítulo IX: Como trabalhar o presente: metas e objetivos para o futuro
Capítulo X: O que é o trabalho biográfico e a Artemísia
Capítulo XI: Autobiografia
Epílogo
Indicações bibliográficas da edição brasileira
Nota preliminar
Das Leben in die Hand nehmen (Tomar a vida nas mãos), título de meu livro
original publicado na Alemanha em 1992, pela editora Freies Geistesleben, está
hoje em sua sétima edição. Já foi traduzido para várias línguas: inglês, francês,
holandês, espanhol e polonês. Para a língua portuguesa, este livro foi reescrito,
ampliado e adaptado. Portanto, não se trata aqui de uma tradução, e sim de uma
recriação.
Eu gostaria, porém, de reproduzir a seguir o prefácio da edição alemã, escrito pela
Dra. Michaela Góckler, médica antroposófica responsável pela Seção Médica do
Goetheanum.1
O trabalho biográfico é hoje muito atual. Têm surgido muitos livros sobre este
tema, e os cursos e palestras sobre o assunto são muito procurados, pois tal trabalho
não é só para pessoas em seu dia-a-dia ou em épocas de crise, mas também para a
compreensão de seu próprio destino, mesmo em se tratando de pessoas doentes.
O trabalho biográfico é uma ajuda para todos os que querem aprofundar seu auto-
conhecimento e, ao mesmo tempo, desenvolver interesse e compreensão por outras
pessoas e suas situações de vida.
A autora escreveu seu livro a partir de seu trabalho na prática, cujo pano-de-fundo é
sua experiência médica. Ela fala a partir da antropologia antroposófica, elaborada
individualmente e apontando para as leis do desenvolvimento biográfico. Faz
questão de ressaltar os lados luminosos e sombrios em cada biografia, trazendo-os à
consciência de maneira a permitir às pessoas integrá-los em sua própria biografia e
reconhecer nela o valor desses acontecimentos. Para isso, parte de relatos e
exemplos sempre extraídos de situações concretas da vida, levando o leitor a sentir-
se estimulado a pensar para frente e a explorar sua própria biografia como material
de trabalho.
Na segunda parte indica-se uma metodologia para o trabalho com a própria
biografia, permitindo um início nesse sentido.
Gudrun Burkhard é fundadora da medicina antroposófica no Brasil e da Clínica
Tobias, em São Paulo, que se tornou centro de medicina antroposófica no País. Nos
últimos anos, ela tem-se dedicado à prevenção do câncer, à dietética e,
principalmente, ao trabalho biográfico, para o qual fundou a Artemísia — local de
revitalização, auto-desenvolvimento e prevenção de doenças.2 Desde então, tem
ampliado também sua atividade em cursos e workshops na Europa, em especial na
1
Sede da Sociedade Antroposófica Universal e da Escola Superior Livre de Ciência Espiritual, em Dornach, Suíça. (N.E.)
2
V. capítulo X, pág. 189. Em Poemas, pensamentos [coletânea de vários autores] (2. ed. São Paulo: Antroposófica, 1998).
Suíça, Alemanha, Espanha, Portugal, Inglaterra, Suécia e Chile, para onde é sempre
convidada.
Sempre foi intenção de Gudrun Burkhard ligar seu trabalho do Brasil às metas
espirituais da Seção Médica do Goetheanum e cultivá-los.
Que seus pontos de vista sobre o trabalho biográfico possam juntar-se de maneira
construtiva às publicações sobre o tema na língua alemã.
Michaela Glöckler
Seção Médica do Goetheanum
Dornach (Suíça), agosto de 1992
Querido leitor:
Pergunta
Tem paciência
com tudo não resolvido em teu coração
e
tenta amar as perguntas em ti
como se fossem
quartos trancados ou livros escritos em idioma estranho.
Introdução
Têm surgido cada vez mais biografias publicadas. Na Alemanha, por exemplo, uma
única editora, a Ro-ro-ro, tem mais de quinhentas publicações; a Herder mais outro
tanto.
São publicações de pessoas famosas e, interessante, mais de homens do que de
mulheres. Todos esses trabalhos são comprados e lidos. Por quê? Será que a
identificação com alguns elementos da biografia dessas pessoas desperta a
curiosidade em saber como o autor conseguiu dar soluções aos seus problemas,
buscando-se assim, diretamente, soluções para os problemas próprios?
Contudo, para encontrarmos soluções para nós mesmos teremos de conhecer nossa
própria biografia, ou seja, nosso caminho terreno do nascimento até a morte.
Nem sempre o interesse pelas biografias foi tão grande. Se olharmos as obras de
arte antigas — do antigo Egito, da antiga Babilônia, da antiga Grécia —,
perceberemos que elas não levam assinaturas. Não se conhece sua autoria. Mesmo
os cânticos aos heróis dos povos celtas não cantam um herói em especial, e sim
feitos daquele povo. O que valia, tanto no povo egípcio como no povo hebreu, era a
linhagem de sangue.
Somente na época grega mais moderna é que começaram a destacar-se
individualmente filósofos, escritores, poetas. Com a vinda do Cristo à Terra, o
processo de individuação, ou seja, o destaque da individualidade, começou a ser
cada vez mais consciente. Com isso também vieram as leis de desenvolvimento do
ser humano. Embora estas já fossem conhecidas bem antes, foi só na Grécia que
este poema de Sólon (mais ou menos 640-553 a.C.) foi escrito:
Quando, no sétimo ano de vida, o menino se desfaz do primeiro ciclo dentário, ele
é ainda bem imaturo, mal tem o domínio da fala.
Se, no entanto, Deus o aperfeiçoar por mais sete anos, já aparecerão sinais de que
agora a juventude está amadurecendo.
Brota-lhe a barba no terceiro setênio, e a pele a desabrochar acentua seu matiz;
seu corpo estica-se cheio de força.
Porém a força do homem desenvolve-se ao máximo somente agora, no quarto
setênio. O homem realiza façanhas.
No quinto setênio o homem procura casar-se, para que no futuro cresça uma
geração próspera.
Depois, no sexto, a atitude moral do homem amadurece e se fortalece; futuramente,
ele não quererá mais ocupar-se com obra fútil.
Por catorze anos, no sétimo e no oitavo setênios, prosperam sua fala e seu espírito
com abundância e força.
No nono também ainda floresce alguma coisa, mas da altura da coragem varonil
emana dele a sabedoria e a palavra.
Se Deus, porém, completar o fim do décimo setênio, a morte lhe ocorrerá num
tempo bem propício.
Para o grego, ao contrário do egípcio (para este, quanto mais velho se tornava o
indivíduo, mais valor se lhe atribuía), havia uma idade ideal do ser humano. No
caso, até o décimo setênio, ou seja, setenta anos. Embora hoje a expectativa de vida
aumente cada vez mais, cosmicamente os 72 anos de um indivíduo são o ponto em
que, no movimento de precessão solar, a estrela de nascimento fica a descoberto em
relação ao Sol, pois este se desloca em um grau desde o momento do nascimento. É
como se chamasse o indivíduo de volta para o Cosmo (conforme uma citação de
Rudolf Steiner). A expectativa de vida aumentada torna necessário que o ser
humano lide mais conscientemente consigo mesmo, em fases anteriores da vida,
para poder desfrutar de uma velhice harmônica e sadia.
Como vimos no poema de Sólon, a vida se transforma ao longo dos anos, e os
setênios (ciclos de sete anos) marcam passagens importantes ao longo desse
percurso. Rudolf Steiner retomou a questão dos setênios elaborando sua dinâmica
em muitas palestras pedagógicas e gerais. Com o processo de individuação cada
vez maior, qual é a situação do homem moderno hoje?
O ser humano perde, cada vez mais, sua relação com a família, com seu povo. Ser
patriota virou uma blasfêmia. Morar na casa dos pais, como adulto, só mesmo por
uma necessidade financeira. A família, mais na Europa do que no Brasil, está em
último plano.
O ser humano perdeu a relação com a natureza e com os seres pertencentes a ela.
Da natureza quer-se tirar o máximo de lucro, explorando-a, destruindo-a. Raros são
os que cuidam dela. Aos poucos ela não nos fornecerá nem mais alimentos básicos,
dos quais necessitamos para sobreviver, nem tampouco o petróleo para nossas
potentes máquinas — nossos automóveis.
O ser humano perdeu a relação com o mundo espiritual — até com seu próprio guia
(o anjo), e muito mais: com toda a concepção do Cosmo e das forças criadoras. A
religião tornou-se, muitas vezes, uma casca vazia, sem conteúdo, não dando o
alimento espiritual buscado — cada qual tem de encontrá-la em si mesmo.
Perdeu-se a relação mais íntima com as outras pessoas, tanto no aspecto de trabalho
quanto no afetivo e pessoal. Às relações se tornaram cada vez mais superficiais,
formais — e o ser humano se sente incompreendido e solitário.
Tudo isso leva a uma solidão cada vez maior, a uma incompreensão em relação ao
próximo e ao próprio ser. Tenta-se, muitas vezes, sair dessa situação por meio do
alcoolismo, das drogas, dos vídeos, da tevê, da Internet. Passa-se a usar uma forma
de comunicação fictícia com outras pessoas, sem estabelecer uma verdadeira
relação com elas.
Esta é a situação da nossa época, em que cada um tem de assumir cada vez mais a
si próprio, ser ele mesmo. Isto tem seu aspecto positivo, mas por outro lado pode
fazer brotar um egoísmo ferrenho, capaz de levar à destruição.
Rudolf Steiner fala, numa palestra proferida em 12.12.1918, das forças anti-sociais
da nossa época. Como nós as superamos? Despertando o interesse verdadeiro pelos
outros! Ele dá dois exercícios básicos, ambos empregados no trabalho. Um trata da
retrospectiva dos acontecimentos da vida, e o outro da retrospectiva de todas as
pessoas que encontramos na vida e que exerceram alguma influência sobre nós.
Quando encontramos uma pessoa que há muito tempo não vemos, ocorre um fato
interessante. Primeiro tentamos lembrar-nos de seu nome, de onde a conhecemos,
há quantos anos isto ocorreu, e começamos a contar o que aconteceu em nossas
vidas desde aquele último encontro. Contamos um pedaço de nossas biografias, e
com isso a lembrança vai aparecendo, cada vez mais nítida, diante de nós. Se
fizermos este levantamento da história da vida de maneira sistemática, estaremos
então fazendo um trabalho biográfico.
Esse trabalho poderá ser feito tanto individualmente quanto com um terapeuta ou
em grupo, como é feito na Artemísia (Centro de Desenvolvimento Humano),
conforme a necessidade individual e do momento. A metodologia será descrita na
segunda parte deste livro.
Na biografia humana existem leis gerais de desenvolvimento para cada fase da
vida, e durante o trabalho biográfico cada um identifica, em sua vida, elementos
semelhantes aos de outras pessoas da mesma idade ou fase, mesmo aqueles tão
peculiares e que têm a ver com o destino de cada um. Saber discernir o que é pró-
prio da idade e o que é só seu, bem individual, assim como o que é repetitivo, é
importante para o auto-conhecimento.
Os acontecimentos individuais muitas vezes têm de ser trabalhados, digeridos. Nos
acontecimentos comuns ou gerais, temos situações passageiras, iguais às de muitas
pessoas das quais sabemos que, passando aquela fase da vida, melhoram por si. Isto
nos consola e nos faz sentir participantes de uma mesma época ou de uma geração.
Muitas pessoas passam por psicanálise, na qual fases difíceis são minuciosamente
enfocadas ou trabalhadas; porém se esquecem das fases boas, ou do lado bom de
cada fase difícil. A visão global de toda a biografia permite, por sua vez, ter uma
visão total, e não só dos lados de sombra. Por meio dela percebe-se quantos lados
bons e de luz também se teve na vida. Conseguindo resgatar esses lados bons,
elaborando e integrando também as sombras dos acontecimentos negativos, torna-
se possível começar a perceber a vida como uma grande paisagem. Luz e sombra
em conjunto formam as cores. A vida torna-se uma paisagem multicolorida ao in-
vés de permanecer cinza e rotineira, como muitas vezes acontece nos dias de hoje.
Podemos usar outra imagem para tornar esta visão um pouco mais clara: é como se
no dia-a-dia tocássemos um instrumento musical. A cada época temos tons
diferentes, e no final da vida tudo se compôs como partes de uma grande sinfonia.
É claro que esta sinfonia nos parecerá inacabada, mas após termos uma visão clara
da vida perceberemos que a sinfonia já está escrita, que é muito bela e que
aprendemos a amá-la.
Somente amando a si mesmo e ao seu destino você será capaz de amar os outros, e
por conseqüência os outros também o amarão e respeitarão. Muitas pessoas dizem:
"Não quero me lembrar das coisas negativas, elas já se foram!" Porém se não forem
digeridas, mais tarde elas voltarão à tona e poderão trazer distúrbios até mesmo
psicossomáticos.
A intenção do trabalho biográfico não é a pessoa se prender ao passado, mas
entendê-lo e integrá-lo para poder viver o presente, livre do passado, e nortear
melhor o futuro — à medida que ela amadurece se torna cada vez mais livre. Para
isso, no entanto, é preciso ter elaborado, integrado e aceito o próprio passado. Caso
contrário, o passado algema e amarra.
Capítulo I
Visão geral da biografia
Antes de entrarmos nos detalhes de cada setênio — pois é com base neles que
iremos dividir a biografia —, primeiramente gostaríamos de trazer uma visão
biográfica geral mediante algumas imagens, e depois entraremos na parte
conceitual.
Muitas vezes falamos das fases da vida como se fossem as estações do ano. Assim,
a primavera seria toda aquela fase na qual nós nos encorpamos, crescemos e
amadurecemos fisicamente, até por volta dos 21 anos. O verão, quando as plantas
se expandem e atingem o máximo de sua vitalidade e tamanho, corresponderia à
fase expansiva da vida, dos 21 aos 42 anos, aproximadamente. Já o outono, quando
as cores se modificam (há países onde as folhas se colorem para depois cair), a
natureza se torna especialmente colorida e os frutos amadurecem, seria aquela fase
de nossa vida em que observamos também um leve declínio de nossas forças, por
volta dos 42 aos 63 anos de idade. Em seguida entraríamos no inverno, quando, nos
países de estações marcadas, a maior parte das plantas perde a força, as sementes
caem no chão e lá ficam, à espera de uma nova primavera. Permanecem os
'esqueletos' das árvores, ou, poderíamos dizer, sua essência, pois muitas vezes é por
meio da forma das árvores desfolhadas que conseguimos identificá- las e as
reconhecemos até mais facilmente do que com plena copa folhada. Esta fase se
situaria após os 63 anos.
Podemos tomar uma outra imagem, usando uma única planta que possua um ciclo
de um ano. Na primeira fase (que corresponde à primavera), quando a semente é
colocada na terra, ela precisa de bastante cuidado para germinar. Precisa de terra
fértil, água, luz, calor, espaço adequado etc., semelhantemente às primeiras fases da
vida humana, quando a criança necessita de inúmeros cuidados para seu
desenvolvimento físico e seu crescimento (até os 21 anos).
Logo vem o estado em que a semente lança as raízes na terra e ergue seu caule para
a luz, quando se vão formando folha por folha, galho por galho. Seria, novamente,
aquela fase que corresponde ao verão da vida, na qual a planta se expande, torna-se
visível ao mundo. Eqüivale à fase dos 21 aos 42 anos, denominada fase do
desenvolvimento anímico ou psíquico. Nessa época a alma desabrocha, abre-se para
o mundo todo, faz trocas com o ambiente externo, para no final, com o
amadurecimento psíquico — semelhante às flores que começam a formar-se na
planta —, abrir-se ao sol. Nossa alma, esta grande flor aberta ao sol e à luz, agora
se mostra em sua riqueza de cores, exala perfumes, toca-nos profundamente, atrai-
nos — e então vêm insetos, borboletas, abelhas, aves, colibris para buscar seu
néctar e, assim, fecundar a flor.
A flor é fecundada de fora, de cima, do Cosmo, e deste modo entramos na terceira
grande fase. Aqui começa a frutificação. Esta fase necessita de calor e luz para que
os frutos amadureçam, formem a substância adocicada e se tornem saborosos. Se
chover e fizer frio, teremos frutas azedas. Dos 42 anos em diante, nossa
frutificação, no decurso da vida, tem de vir de uma outra direção, isto é, do lado
cósmico, espiritual. Denominamos esta fase como fase do desenvolvimento
espiritual da vida. Aqui importam as qualidades sutis, tais como calor e luz, e não
mais água e terra, como nas primeiras fases da vida. Por outro lado, é muito
individual o que ocorre com cada um para frutificar. Há muitas formas de se buscar
a espiritualidade e encontrar o 'guia', o anjo, ou o 'Eu Superior', que é de natureza
espiritual.
Finalmente, a planta que frutificou começa a murchar; suas folhas caem, as
sementes são colhidas, caem na terra, para mais tarde germinar. Novamente
falamos daquela fase dos 63 anos em diante, em que a essência do ser humano
aparece — fase à qual dedicamos o livro Livres na terceira idade!3
FIGURA 2
3
Ed. brasileira em trad. de Karin Stasch (São Paulo: Antroposófica, 2000).
nos sábios. O bezerro, quando nasce, já sai andando e sabe onde encontrar seu
alimento. O ser humano, porém, leva catorze anos até poder iniciar a capacidade
reprodutora e 21 anos para tornar-se adulto e 'de maior idade', ou seja, totalmente
responsável por seus atos.
Por que essa diferença?
Ao olharmos o ser humano, precisamos levar em conta suas três instâncias,
conhecidas desde épocas bíblicas: a físico-biológica, que denominamos corpo vivo,
a anímica (ou alma) e a espiritual — ou seja: corpo, alma e espírito.
A parte físico-biológica engloba não só a corpórea visível, mas também a
fisiológica, isto é, a vida e a função dos órgãos que emancipam as substâncias
físicas do nosso corpo das leis físico-químicas, dando-lhe forças vitais. Na
Antroposofia, fala-se em 'corpo físico' e em 'corpo vital' (ou etérico). Nas plantas,
este corpo vital faz com que elas cresçam na direção oposta à gravidade; são forças
centrífugas que atuam através da periferia, do Cosmo. No homem elas formam um
corpo individualizado — nosso corpo vital.
A distinção entre alma e espírito não é fácil, mas o seguinte poema de Goethe nos
ajudará:
A alma humana ou psique (da palavra grega psyché, mais abrangente do que a
palavra portuguesa 'psique') engloba não só a atividade pensante do ser humano,
mas também a parte do sentimento e a parte do agir no mundo. Rudolf Steiner fala
em pensar, sentir e querer. No organismo humano, estas atividades possuem seus
órgãos ou instrumentos físicos correspondentes. No organismo neuro-sensorial,
com sede na cabeça, reside o pensar; o sentir reside no organismo rítmico, ou seja,
no coração e nos pulmões portanto, no tórax; e o querer reside no sistema
metabólico-locomotor (incluindo toda a parte metabólica, os órgãos reprodutores e
os órgãos volitivos) — portanto, onde existe ação existe inconsciência, como nos
órgãos metabólicos e nos membros, com seus músculos.
A parte espiritual do ser humano é aquela relacionada ao seu eu. O eu é a expressão
de sua individualidade, que é única, e expressa-se mediante o que chamamos de
destino. No mundo não existem dois seres humanos iguais, mesmo que se trate de
irmãos gêmeos. Cada um possui uma individualidade e um destino diferentes.
Como reconhecemos uma pessoa? Por seu modo de andar, pelos gestos, pela
fisionomia, pela maneira de falar (sem vê-la, reconhecemo-la pela voz). A polícia,
por exemplo, reconhece-a pela digital única, pelo código genético, DNA, etc.; mas
também a biografia dessa individualidade, desde o nascimento até a morte, é
absolutamente única. Para mim, que já ouvi mais de mil biografias, sempre é
maravilhoso, com certeza, escutar o desenrolar da biografia ao longo dos anos; e
todas são únicas, fascinantes.
Como se inter-relacionam o espírito, a alma e o corpo ao longo da vida?
A individualidade, de natureza espiritual (Goethe denomina-a a 'eterna enteléquia'),
vem do Cosmo e, gradativamente, a partir da concepção, vai se encarnando no
corpo biológico, atingindo, aos 21 anos, sua plena encarnação — a permeação e o
entrosamento total do corpo, tendo trabalhado intensamente na estruturação do
mesmo e amadurecido as três organizações ao longo dos três primeiros setênios
(sistemas neuro-sensorial, rítmico e metabólico-locomotor). A individualidade
permanece profundamente ligada à parte somática também em toda a fase dos 21
aos 42 anos, para depois, gradativamente, desprender-se dos três sistemas — o que
acontecerá em sentido inverso ao da encarnação, ou seja, primeiro do metabólico-
locomotor, depois do rítmico e por fim do neuro- sensorial, voltando
gradativamente às suas origens cósmicas. Podemos também denominar este
processo como encarnatório e excarnatório.
O desenvolvimento do corpo biológico se dá em sentido ascendente desde o
momento da fecundação, quando começa a multiplicação celular e a diferenciação
orgânica até a total maturação dos órgãos, por volta dos 21 anos de idade. Aí se
inicia uma fase em que parece não haver biologicamente mais modificações,
embora haja uma constante renovação de substâncias. Anabolismo e catabolismo,
regeneração e desgaste parecem estar em equilíbrio, e a pessoa nem percebe seu
envelhecimento. Em determinado momento, porém, o desgaste sobrepuja a
regeneração e o envelhecimento biológico se torna cada vez mais visível, o que
ocorre principalmente a partir dos 42 anos. Então a curva biológica começa rapi-
damente seu declínio até o momento da morte.
Será que nesta fase há apenas perdas? Não. A medida que o desgaste biológico
ocorre, a consciência, graças ao elemento espiritual individual, tem a possibilidade
de se ampliar (o que não ocorre no animal). Assim, entra-se na fase que é
denominada 'fase do crescimento espiritual' ou 'fase da sabedoria'. A ampliação da
consciência ocorre graças ao desgaste das forças vitais, que são metamorfoseadas.
Vejamos agora o que acontece com a curva anímica. Também ela é ascendente, e, à
medida que os três sistemas amadurecem, também a alma vai desabrochando em
suas qualidades do pensar, sentir e querer (ou agir).
Aos 21 anos, o eu, agora não mais engajado na maturação dos órgãos, fica livre
para a atividade mais consciente. A alma é portadora não só de sentimentos nobres,
mas também de cobiças, paixões e de seu lado mais instintivo-animal. Por
intermédio do eu, ela é trabalhada, purificada, enobrecida. Este trabalho se processa
em três grandes etapas, dando origem ao que Rudolf Steiner denomina 'alma da
sensação', 'alma racional e da índole' e 'alma da consciência'.
Como veremos nos próximos capítulos, o desenvolvimento da alma racional e da
índole e, mais ainda, da alma da consciência, só é possível por meio de um trabalho
do eu. Este empenho do eu para o enobrecimento cada vez maior da alma é o que
chamamos de crescimento interior, amadurecimento psicológico ou anímico. Ele
não se faz por si só, e sim pelo trabalho consciente do eu. Daí em diante entende-se
que, aos 42 anos, quando o maior declínio biológico começa a se fazer sentir,
existem três possibilidades para a curva do desenvolvimento anímico ou
psicológico, conforme a figura 3: a primeira é a de acompanhar esse declínio (c); a
segunda, de tentar manter o rendimento máximo dos anos anteriores (6) até que o
organismo não mais agüente e advenha o stress ou crise cardíaca, ou uma outra
crise mais grave que obrigue a uma parada forçada; a terceira possibilidade é a de
acompanhar, no desenvolvimento anímico, a ascensão da curva espiritual (a) e
deixar frutificar a parte mais espiritual da vida ampliando, cada vez mais, a cons-
ciência à medida que o envelhecimento ocorre.
Se observarmos a biografia no sentido acima, poderemos compará-la a um dia: —
Pela manhã, chegamos desse desconhecido mundo da noite. Durante a noite, nosso
elemento anímico-espi- ritual está mergulhado no Cosmo, nas origens; nós nos
encarnamos pela manhã, levando algum tempo até estarmos totalmente presentes
em nosso corpo inteiro. Para isso alguns precisam de um bom café ou de um
cigarro; outros, de uma ducha fria ou uma caminhada. Aos poucos vamos chegando
ao nosso corpo, e isto corresponde àquela fase da vida em que rendemos o máximo,
para depois, no final do dia, quando já nos sentimos cansados, irmo-nos 'desligando'
até que nos desprendamos completamente e penetremos novamente no mundo do
qual temos pouca consciência — o da noite. Assim, podemos também falar do
'amanhecer' e do 'entardecer' da vida.
Na fase em que estamos entrando para a vida, a educação e o ambiente precisam
contribuir para que o corpo se fortifique e se desenvolva sadiamente. É preciso que
gradativamente 'ponhamos os pés no chão'. O corpo saudável é a condição para que,
mais tarde, tenhamos uma vida anímica e espiritualmente harmônica.
Na segunda metade da vida, especialmente após os 42 anos, será a maior
consciência espiritual que contribuirá para a harmonia do todo, mesmo que o corpo
já esteja afetado por doenças ou mazelas da idade. Um equilíbrio anímico e
espiritual é premissa para o bem-estar físico. Na fase do meio, do desenvolvimento
anímico ou psicológico, a maneira como nos relacionamos com os outros e a nossa
relação com o mundo externo é fundamental para o bem-estar e a harmonia. Assim,
existe a possibilidade de um desabrochar contínuo, físico, anímico e espiritual, e até
o final da vida podemos aprender de nossas vivências e experiências, mesmo que
sejam dolorosas.
Para dar início à apresentação das biografias, trago primeiramente a de uma pessoa
mais idosa, para observarmos melhor 'o caminho de vida', percebendo como ele se
estende tal qual um panorama à nossa frente.
Biografia 1
Nasci em Portugal, numa pequena aldeia perto de Coimbra. Lá havia muito verde,
muitas árvores, e não muito longe havia montanhas. Era um recanto bonito e calmo.
Eu sou a terceira e tenho dois irmãos mais velhos: um três anos mais velho e o
outro catorze meses.
Minha primeira lembrança está por volta do meu segundo aniversário, quando
nasceu a minha irmãzinha. Eu escutei gritos da minha mãe, que provavelmente
estava em trabalho de parto. Meus irmãos estavam fora de casa e eu me senti muito
sozinha. Subi numa cadeira para olhar pela janela e veras montanhas e os cavalos.
Aí vi no céu a Mãe Maria, com um vestido vermelho e um manto azul. Eu me
assustei muito e fugi. (Quando, aos 68 anos, voltei àquela casa, vi exatamente
aquela cadeira e aquela janela, e senti um arrepio. Con segui visualizar a imagem
daquela época.)
Após três anos, nasceu mais uma irmã.
Quando eu tinha três anos, meu pai perdeu todos os seus bens. Nós mudamos para a
casa dos meus avós em Aveiro. Meu pai resolveu emigrar para Salvador, na Bahia.
Na época eu tinha quatro anos.
Logo em seguida, minha mãe — que estava novamente grávida —, meus quatro
irmãos e eu viemos também para a Bahia. Ali, em uma semana minhas irmãs
morreram de uma disenteria bacilar por terem tomado água contaminada. Uma
semana depois, nasceu minha outra irmãzinha, da qual mamãe estava grávida.
Como ela estava cercada de todos os cuidados, para compensar a perda das outras
duas filhas, eu ficava com bastante ciúmes.
Quando eu tinha cinco anos, a família toda se mudou para o Rio de Janeiro, e lá
tudo era difícil. Como minha mãe vivia adoentada, resolveu voltar para Aveiro com
os quatro filhos, para a casa de meus avós. Meu pai permaneceu no Brasil,
trabalhando em representações comerciais. Algum tempo depois ele se mudou para
São Paulo.
Aveiro é uma cidade muito bonita e limpa, com muitas flores. E atravessada pelo
braço de um rio, o que para nós cinco era uma grande atração. Passavam muitos
barcos e navios enfeitados com desenhos. Era uma vida muito colorida.
Meus irmãos freqüentavam o ginásio e eu fazia o curso primário num colégio de
freiras. Após quatro anos entrei para uma outra escola de freiras, na qual aprendi
um bom português e trabalhos manuais. Com onze anos adoeci. Tive paratifo.
Meu pai, nesse ínterim, havia fundado uma fábrica de cerâmica. Mais tarde
comprou uma fábrica de filtros que limpavam e esterilizavam água. [É interessante
como uma experiência negativa do destino — a perda das duas filhas por causa de
água poluída — reverteu-se numa atividade profissional nova e positiva.]
Em Aveiro minha vida era um tanto triste, pois minha mãe desviava toda a sua
atenção para minha irmã e eu me sentia deixada para trás. Hoje entendo que essa
irmã foi a salvação de minha mãe, que havia perdido as outras duas filhas.
Depois de seis anos voltamos para o Brasil, mas desta vez diretamente para São
Paulo. Na época eu tinha quase doze anos, e meu pai já possuía então a fábrica de
filtros. Aos doze eu tive minha primeira menstruação. Fui para um colégio de
freiras, o 'São José', para repetir a quarta série. Dessa época escolar não guardei
boas lembranças. Sentia-me rejeitada, estranha e posta de lado. Meu sotaque
português era motivo de caçoada das colegas. Na aula de História, a professora
sempre falava mal dos portugueses. Eu ficava muito aborrecida e recriminava meu
pai por ter-me tirado de Portugal. Secretamente, fazia planos para voltar para lá.
Nessa fase eu me voltei muito para dentro de mim, tornando-me tímida e fechada.
Com catorze anos comecei um curso de secretariado. Queria tornar-me secretária.
Minha mãe trabalhava numa casa comercial. Quando eu estava com dezesseis anos,
ela fundou uma loja para os filtros d'água, onde eu comecei a trabalhar todas as
tardes. De manhã estudava inglês e piano. Pouco tempo depois já me tornei
responsável pelo caixa, pela contabilidade e pelo secretariado da loja. Nessa época
eu me sentia útil e muito feliz, dedicando-me totalmente ao trabalho. Tinha também
minha independência financeira.
Mais ou menos aos dezoito anos, fiz com meus pais e irmãos uma longa e bonita
viagem para Portugal. Era uma grande alegria rever os parentes e os lugares de
minha infância. Ao voltar, retomei meu trabalho e meus estudos. Recebia meu
salário, tinha uma sensação de independência, podendo comprar o que quisesse
(geralmente artigos importados). Sentia-me feliz e importante. Ao mesmo tempo,
percebia um grande vazio em minha vida, que me tornava tristonha. Em algum
lugar me sentia superficial, vazia e inútil. Eu gostava de ajudar e ter a sensação de
que alguém precisava de mim. De vez em quando viajava com meu pai para o Rio
de Janeiro, onde tínhamos uma filial. A vida familiar continuava. Meus irmãos se
casaram e já nasceram os primeiros sobrinhos.
Só aos 25 anos encontrei o homem que mais tarde se tornou meu marido, dando um
novo sentido à minha vida. Não fiquei apaixonada, mas sentia uma grande simpatia
e admiração por ele. Aos poucos se desenvolveu um amor profundo, consolidado e
bonito. Contudo, casei-me somente aos 28 anos.
Justamente no dia de meu casamento, meu pai estava viajando e teve um derrame.
Nesse ano ele viajou mais uma vez para Portugal e morreu quando eu tinha 29 anos,
na casa de meus avós, em Aveiro, onde foi enterrado.
Minha vida decorria entre trabalho e lar. Eu admirava a inteligência de meu marido,
seu caráter, sua maneira de trabalhar, sua moral. Ele era muito bondoso, mas
também muito ciumento.
Aos 31 anos e meio eu tive uma infecção intestinal, com mais de 40oC de febre.
Então tive o mesmo sonho que tivera durante minhas doenças infantis (sarampo e
paratifo): — Sonhei que subia e subia, e chegava no céu. Lá um velho de barba
(São Pedro) veio ao meu encontro e me abriu as portas celestes. Tudo era
maravilhoso; tons de música, flores brancas. Também Santo Antônio vinha ao meu
encontro. Foi inesquecível e tão belo! De repente, alguém me disse que eu ainda
não poderia ficar ali, que precisava voltar. Gritei e despenquei rapidamente, cada
vez mais depressa, caindo no arame farpado e ficando toda ensangüentada (desde
os seis anos de idade este sonho acontecia, sempre com os mesmos detalhes).
Acordei. A partir daí, a cada vez que acordava eu ficava apavorada e com medo.
Passei, depois da doença, algumas semanas na casa de minha mãe até me recuperar.
No mesmo ano, estando eu com 32 anos, meu marido teve uma espécie de
polineurite e precisou submeter-se a uma punção da medula. Demorou até que se
fizesse o diagnóstico certo. Três anos depois, ele — ainda sem diagnóstico —
começou a freqüentar seções espíritas e a experimentar de tudo. Os médicos
pensavam que ele estivesse com reumatismo infeccioso, mas todos os exames
resultavam negativos. Nessta ocasião veio ao Brasil o Dr. Alexandre Leroi (médico
antroposófico, português, da Ita Wegman Klinik em Arlesheim, Suíça) para dar
palestras e suspeitou que se tratasse de esclerose múltipla, o que foi confirmado.
Durante quinze anos meu marido sofreu dessa doença, e com ela surgiu a tarefa que
eu tanto desejei para mim: a de cuidar de alguém e ser útil.
No meu 36° ano de vida viajamos à Suíça para ficar algum tempo na Ita Wegman
Klinik. Encontramos lã pessoas importantes e começamos com o estudo da
Antroposofia.
Aos meus 37 anos passamos, ainda, alguns meses na casa de meus avós, em Aveiro,
e só depois retornamos ao Brasil. Meu marido já necessitava de cadeira de rodas.
Em São Paulo ele continuou com o tratamento antroposófico, agora também com
massagens e eurritmia curativa, Seu estado era variável — ora melhor, ora pior.
Enquanto eu cuidava dele, sentia que havia passado por profundas modificações.
Entre nós se estabeleceu um amor espiritual tão profundo que nunca terminaria. De
manhã eu cuidava de meu marido e ã tarde trabalhava. Nesses quinze anos, ele foi o
instrumento de minha purificação, de minha elevação e crescimento espiritual. Eu
não me sentia mais inútil, infeliz ou vazia. Interiormente estava em harmonia, e a
forte relação com meu marido ultrapassou a morte, protegendo-me e guiando-me
até hoje.
Aos meus 43 anos minha mãe viera morar conosco. Um ano mais tarde, meu
marido e eu estivemos juntos numa fazenda de parentes. Meu marido passou mal e
não mais abandonávamos a casa.
Um ano mais tarde, meu sobrinho de dezenove anos morreu num acidente de
automóvel. Meu marido e eu fomos padrinhos de casamento de outro sobrinho (um
outro deles substituiu meu marido no altar).
Eu estava com 47 anos quando minha mãe começou a ter perturbações cardíacas.
Além disso, minha empregada, que já estava há anos conosco e que já havia tratado
meu marido em sua infância, ficou com flebite, tendo de ser operada das varizes.
Acabei, então, tendo de cuidar de três doentes.
A paralisia de meu marido progredia e ele acabou falecendo quando eu estava com
48 anos. Ficamos juntos por vinte e dois anos, e ele era meu melhor amigo.
Após a morte de meu marido, atirei-me no trabalho. Montei várias filiais que
somaram quatro grandes lojas, as quais eu tinha de administrar. Porém a partir dos
56 anos comecei a delegar as lojas e, finalmente, aprendi a dar mais autonomia aos
outros. Eu adoro o contato com clientes. À noite eu ia para casa, onde morava
sozinha.
Eu me sentia um tanto preguiçosa e bem estabelecida. Não queria sentir-me inútil
— queria achar uma tarefa. Havia nove anos que trabalhava sem férias. Gostaria
ainda de viajar para a Suíça e Portugal, o que, aliás, só aconteceu aos 66 anos —
quando, depois de trinta anos, resolvi visitar na Suíça a clínica de Arlesheim,
aproveitando para visitar o Goetheanum, com a famosa escultura de Cristo em
madeira (o representante do ser humano, segundo Rudolf Steiner).4 Aliás, desde o
primeiro contato na Suíça eu estudava Antroposofia e, juntamente com meu
4
Sobre o Goetheanum, v. nota na p. 13. O 'Representante da humanidade' é uma escultura entalhada em madeira pelo próprio Rudolf
Steiner, retratando a atitude crística moderadora entre dois poderes espirituais opostos — Lúcifer e Árimã, ou seja, a extrema
alienação do mundo e o extremo materialismo. (N.E.)
marido, freqüentava a Comunidade de Cristãos.5 Na volta, passei em Portugal e
pernoitei na casa da minha infância.
Voltando ao Brasil, decidi vendera última loja. Afinal, eu trabalhara
ininterruptamente de 1960 a 1988 — portanto, 28 anos. A loja foi entregue a um
dos sobrinhos, que acabou montando uma loja em São José dos Campos, a qual,
porém, fechou depois de um ano.
Em São Paulo vendi minha casa, que havia sido assaltada duas vezes, e fui viver
num apartamento. No final do ano eu já estava com 68 anos e passei a sofrer de
pressão alta.
Nos anos anteriores, depois de fechar a loja, eu respondia financeiramente por um
cego, o que me deixava bem feliz. As dificuldades financeiras dos anos entre 1990
e 1992 se tornaram cada vez maiores, e eu vivia retirada no apartamento. Nos fins-
de-semana, muitas vezes eu passeava com minha irmã numa fazenda do interior.
Aos 74 anos, a autora da autobiografia resolveu mudar-se para o interior, onde vive
com sua irmã, também viúva. A falta de contato com a Antroposofia e com a
Comunidade de Cristãos tornaram-na bastante depressiva.
Biografia 2
Eu fui a sétima dentre doze irmãos. Meu pai era índio e minha mãe portuguesa.
Meu pai era comerciante.
Eu vivia com minha avó numa oca pequena, atrás da casa principal da família.
Minha avó e eu íamos diariamente à mata colher ervas, frutas comestíveis e folhas
de tabaco; ela conversava em língua indígena com meu pai.
Eu tinha de trançar os fios para a vovó poder fazer suas tecelagens. Quando as
folhas do fumo estavam maduras, eram colhidas e secadas. Eu tinha de mudá-las, e
minha avó fazia cordões escuros, negros. O fumo era usado para a cura, mas
também para o cachimbo da minha avó. Ela era uma curandeira, e muitos a
procuravam para a cura e para buscar conselhos. Todos recebiam uma reza.
Assim, cedo eu conheci as ervas usadas para a cura e as rezas para cada mal.
A 'vó' me havia escolhido dentre todos os irmãos para ser sua sucessora, apesar de
eu não ser sua netinha preferida. Ela amava minha irmã branquinha, que gozava do
privilégio de ficar em seu colo; porém só eu tinha acesso à casa da 'vó'. A 'vó' e a
'mãe' não se davam — a mãe tinha vergonha da 'vó' e a 'vó' chamava a 'mãe' de
'branca de merda'.
Toda noite eu olhava pelas frestas da oca para assistir ao ritual vespertino dos
índios, reunidos para suas cantorias. Ninguém podia participar. Por isso o resto da
família ficava escondido dentro de casa.
Quando eu estava com oito anos, meu irmão mais velho, de 22 anos, tentou três
vezes estuprar-me. A partir daí tive pesadelos; o 'pai' interferiu, trancando o quarto
do irmão, mesmo sem saber bem por quê.
Aos seis anos eu aprendi a ler e a escrever por mim mesma; meu pai me ensinou a
escrever cartas e outras coisas.
Aos meus nove anos minha avó voltou da mata, disse que estava muito cansada e se
deitou na rede. Mandou chamar seu filho e lhe disse que ia morrer. Ele não aceitou
o sacramento indígena da morte e colocou seu caixão na casa principal. Depois de
ela estar enterrada, aconteceu o inesperado: meu pai incendiou a oca onde vovó e
eu morávamos, só restando um monte de cinzas. Então veio a pergunta: o que seria
de mim agora?
Após esse episódio, minha família começou a empobrecer; meu pai comprou
roupas novas e passeava na rua com outras mulheres. Eu era responsável pela
alimentação da família, pois era quem conhecia os frutos e as raízes na mata.
Meu pai se metia em política. O governo mudou e ele foi perseguido. Agora, sem
minha avó, eu tinha de acompanhar meu pai; numa pequena sacola tecida por ela,
levava o revólver dele. Quando eu tinha onze anos meu pai me deu de presente um
pequeno revólver enfeitado com madrepérola, e eu me exercitava com ele para
atingir o alvo.
Nessa época minha família tinha uma criação de galinhas, que eu usava como alvo;
isto aborrecia minha mãe, que em vez de vender as galinhas tinha de cozinhá-las.
Mas eu ajudava muito em casa e vendia também muitas galinhas. Eu era muito
prestativa. Comecei a ensinar os camponeses da redondeza a ler e a escrever. Ao
entrar para a escola, pulei os três primeiros anos e, apesar disso, era sempre a
melhor aluna. Não tinha amizades.
Insisti e pedi ao meu pai para poder ir ao ginásio que ficava a uma hora de
distância, na cidade vizinha, de ônibus. Tive de fazer uma prova difícil e fui
aprovada. Era a primeira mulher na família a poder estudar.
Também no ginásio eu era a melhor aluna. Mantinha-me financeiramente
trabalhando na lanchonete da escola e dando aulas particulares para a criançada.
Continuava ensinando os camponeses a ler e a escrever.
Nessa época, a mãe e os filhos aderiram ao protestantismo. Meu pai os agredia por
causa disso.
Eu saí de casa por desentendimentos e passei a morar no centro estudantil.
Um dia, alguns adultos me observaram e começaram a trazer-me livros secretos.
Eram livros políticos socialistas. Eu admirava tais idéias; passei a falar na rádio e
fundei um jornal. Assim, tornei-me conhecida; até que o regime militar começou a
me observar, querendo me eliminar.
Eu fugi e me escondi. A polícia fechou a rádio e o jornal, e meu pai, inocentemente,
revelou meu esconderijo, pois queria que eu abandonasse o comunismo. Eu fui
presa, ficando por um ano no cativeiro, entre os dezessete e os dezoito anos. Sofri
bastante, fui estuprada por policiais, sentindo ódio, mas nunca me corrompi; era
justa, clara, e jurei não falar sobre meus companheiros, sofrendo por inteiro as tor-
turas. Daí fui levada para uma cela. Nesse ambiente de prisão consolei muitas
mulheres e ensinei presos a ler e a escrever. Era bastante solicitada por eles.
Depois de libertada, fui fazer um trabalho nos campos de cana do Rio, junto com
um padre holandês, e depois fui para Brasília, com operários de construção. Em
Brasília entrei para a Universidade, na área de Ciências Biológicas. Junto com o
padre, trabalhei no instituto de ensino. Nessa época tive os primeiros namorados.
Gostava de dois, mas não me ligava a nenhum, pois sabia que não iria ficar muito
tempo. Levava uma vida dupla: a Universidade era uma coisa, a política outra.
Porém comecei a desinteressar-me do PC.
Nessa época começou a ser planejado o movimento de guerrilhas. Foi construída
uma estrada que adentrava o Paraguai; à beira dessa estrada havia muitas fazendas
que abrigavam os guerrilheiros. Nesse planejamento eu trabalhei intensamente, até
que novamente fui parar na prisão, por dois anos. Mais torturas. Bem mais
violentas. Eu jurei manter-me em silêncio, o que consegui cumprir. Todo o meu
corpo se cobriu de fendas, que sangravam. Muitas vezes tive febre e violenta dor
nas juntas. Um dia tive um sangramento muito forte, e senti-me à beira da morte.
Fui hospitalizada, ficando internada por seis meses, sem esclarecimento de
diagnóstico. De lá consegui fugir com a ajuda dos companheiros. Numa fazenda
consegui ajuda médica, sendo feito o diagnóstico: era lúpus, e, após eu tomar
cortisona, em duas semanas todas as feridas cicatrizaram. Eu estava exatamente
com 21 anos.
Consegui fugir e passar por vários países da América do Sul; num deles consegui
terminar os estudos, formando-me em Sociologia. Foi num deles também, aos 25
anos, que conheci meu primeiro marido. Éramos colegas na política e no trabalho.
Ele trouxe para o casamento um filho. Eu gostava da vida familiar e aprendi a
conviver com a doçura que aparecia de tempos em tempos.
A situação nos países sul-americanos ficava cada vez mais difícil para os exilados
políticos, que então, com a ajuda da ONU, foram para a Europa, onde também
passaram por vários países.
Aos 28 anos nasceu meu primeiro filho com meu marido. Passei bem na gravidez
(eu a escondera, pois em duas vezes anteriores fora aconselhada, por ordem médica,
a evitá-la devido à doença). Nasceu um filho sadio e forte; três meses depois, tive
uma crise bastante forte. Na ocasião morava em Portugal, e fiz um tratamento na
França. Eu dava aulas, trabalhava numa editora e minha vida transcorria
normalmente.
A saudade do Brasil, porém, era grande. Ainda nesse ano me mostraram um filme
em que, chorando, eu me despedia de minhas crianças, que vinham para o Brasil. O
filme me estava sendo exibido com certa intenção; porém eu não deixei que isso
acontecesse. Foi a primeira vez que me revoltei e me recusei a ver o filme. Senti
que eu era eu mesma, e não mais uma figura do grupo de exilados. No mesmo ano
saía a lei em que os exilados poderiam voltar ao Brasil; assim, voltamos, e a minha
família veio me receber.
Meu marido teve dificuldade em readaptar-se no País; não conseguia emprego, e eu
é que conseguia o dinheiro, dando aulas. Ele se tornou diferente: era desejado pelas
mulheres, por ser um exilado político, e começou a sair com elas. Um dia, chegou
com uma mulher de saltos altos, querendo que convivêssemos os três, na mesma
casa.
Isso eu não suportei. Saí de casa com os dois filhos, profundamente deprimida e
magoada. Não entendia como, depois de tudo o que nós vivêramos juntos, ele podia
pegar a primeira mulher que aparecera. Enfim, a separação aconteceu aos trinta
anos. Demorou dois anos para eu me reequilibrar.
Comecei a me recuperar: o trabalho me satisfazia; comecei a trabalhar com
cinematografia e com propaganda, e ainda fazia doces (que uma amiga minha
vendia). Assim eu me sustentava, bem como aos dois filhos.
Aos quase 35 anos me apaixonei, mas era um amor irrealizável. Engravidei, mas
perdi a criança aos três meses. Nessa época, meu ex-marido buscou as duas
crianças. Eu entrei na maior crise; estava só, sem as crianças, e sentia um vazio
crescente dentro de mim.
Já me havia afastado da política; aos poucos, sentia dentro de mim uma pequena
semente que começava a germinar, aos 37 anos. Eu procurava o lado espiritual que
minha avó havia plantado dentro de mim. Meus filhos voltaram para casa e eu
sentia uma vida nova.
Aos 38 anos, conheci um novo parceiro. Nós éramos duas almas e um só coração;
completávamo-nos mutuamente.
Aos 39 anos comecei o estudo da Antroposofia, sendo que pouco antes iniciara um
tratamento antroposófico. Foi justamente aos 39 anos que tive novamente febre
alta. Era a primeira vez que eu ia à Artemísia. Sentada em minha cama, tinha o
sentimento de que devia pedir algo a Deus. Senti-me permeada de calor e luz, e
assim tive coragem de pedir a Ele para sarar, para poder educar meus filhos. A
partir desse momento, tive a impressão de que iria tornar-me mais sadia. E foi o que
aconteceu.
Fiz três cursos biográficos e, mais tarde, decidi fazer a Formação Biográfica, para
entrar na parte terapêutica, já que trabalhava uma vez por semana como voluntária
num hospital de câncer.
Minha vida profissional transcorreu muito bem nestes últimos anos. Até tive um
estúdio próprio de produção. Meus filhos foram crescendo e eu fiz questão que
morassem fora de casa quando adultos, pois senti necessidade de reorganizar minha
casa.
Meu relacionamento amoroso, que começou aos 38 anos, durou até os 44. Comecei
a sentir-me muito tolhida em minha liberdade. Liberdade, ritmo, organização eram
importantes para mim. A separação não foi fácil, mas certa.
Tenho uma amizade com alguém que vive nos EUA. Ele tem uma mulher paralítica
e nós, juntos, fizemos trabalhos no Chile. Esta amizade é satisfatória para mim.
No ambiente de filmagem, existem muitas pessoas que tomam drogas ou álcool. Eu
tenho de negociar com eles. Muitas vezes, estando sentada à mesa com eles,
observo certos 'seres' que fazem caretas e que parecem sugá-los; por meio de
oração, consigo afastá-los deles. Ao adormecer, tento entregar-me conscientemente
ao mundo espiritual; ali vejo muitas coisas de épocas passadas da Terra, do bem e
do mal.
Aos poucos, com os vários cursos biográficos, fui descobrindo minha missão: sinto
que cada vez mais devo resgatar os conhecimentos e a origem de minha avó. A
lembrança das ervas medicinais, das orações, das massagens me vem cada vez mais
à lembrança.
Quero direcionar-me cada vez mais para a cura e unir o antigo ao novo.
Algumas vivências espirituais:
Quando estive presa pela segunda vez, perdi muito sangue (que escorria ralo
abaixo); pensei: "Minha vida está-se esvaindo ralo abaixo; eu poderia me entregar à
morte. "Aí, repentinamente, despertou uma grande força em mim. Consegui
airastar-me até a parede da cela, encostar-me e ver meu corpo. Peguei um pano
molhado para estancar o sangue. Calor e luz me permeavam, e eu percebi que uma
mão invisível se estendia para mim. Encostada na parede, pude dormir até o dia
seguinte, quando então fui levada ao hospital. Hoje sei que foi a força de Cristo e a
mão de Cristo que me ergueram.
Uma outra vivência espiritual foi a que tive durante uma crise de lúpus:
Durante a internação, tive sete pneumonias. Estava sentada na cama, só, quando se
aproximou de mim uma figura toda luminosa; era um anjo, que me dizia: "A você a
vida foi doada até que cumpra sua missão aqui na Terra."
Esta grande fase é marcada por três setênios: o primeiro vai até a maturidade
escolar, que ocorre por volta dos sete anos; o segundo vai até a puberdade, por volta
dos catorze anos; o terceiro vai até a maioridade, aos 21 anos.
Esses períodos são marcados por grandes modificações biológicas e fisiológicas.
Tais modificações são visíveis e nítidas para os pais. A própria criança pode
acompanhar seu crescimento, motivo de seu orgulho. Lembro-me de que em casa,
numa das portas, a cada meio ano meu pai marcava com o lápis o quanto eu havia
crescido, e para nós dois era uma satisfação poder observar.
Já nas fases seguintes, de 21 a 42 anos e de 42 até 63, esse crescimento é interior,
portanto não mais palpável. Por isso essa primeira fase da vida é também
denominada 'fase do crescimento físico'.
Vejamos agora o que acontece de setênio em setênio.
O primeiro setênio
A fase desde nascimento até os sete anos
O segundo setênio
A fase dos sete aos catorze anos
Duas graças
há no respirar:
inspirar o are dele se livrar.
Inspirar constrange,
expirar liberta.
Tão lindo é feito da vida uma mescla.
Agradece a Deus quando ele te aperta,
e agradece de novo quando te liberta.
Goethe
6
V. nota na p. 32.
Também a religiosidade ajuda a desenvolver os sentimentos. Isto pode ser
conseguido por meio de leitura de histórias, de contos de fadas ou do estímulo à
leitura de histórias bíblicas, lendas e biografias de homens santos, bem como do
cultivo da religiosidade em si e do amor pela própria natureza e por toda a Criação
Divina.
Há relatos de muitas biografias passadas em escolas de freiras, padres ou outro tipo
de sacerdócio nos quais se percebe prevalecer o autoritarismo de normas rígidas, e
não o amor e o sentimento de veneração neste setênio; em tal caso se alcança o
contrário do desejado, e o sentimento então se fecha.
Vejamos certas normas de comportamento implantadas nessa fase: "Menino não
chora — tem de ser valente", "Menina não deve lutar com meninos nem subir em
árvores", "Falar sobre sexo é pecado". Estas normas ficam tão profundamente
arraigadas na pessoa que muitos homens se tornam incapazes de chorar ou de
mostrar seus sentimentos, o que muitas vezes impede uma relação mais profunda
com a parceira ou com os filhos. Há mulheres que, separadas dos maridos, têm
filhos para criar e, por sua vez, não aprenderam a lutar e a vencer os obstáculos,
ficando totalmente perdidas diante de sua nova realidade
Quando recebe normas rígidas demais, a criança fica como que sufocada, É como
inspirar constantemente sem expirar. Isto poderá torná-la uma pessoa tímida ou
introvertida. Por outro lado, quando não há nenhuma autoridade que imponha
limites, é como se constantemente ela expirasse sem conseguir inspirar. Como
conseqüência, tornar-se-á um adulto extrovertido demais, sempre voltado para fora,
invadindo os limites do outro.
Nessa época da vida, é necessário construir um equilíbrio sadio entre esses dois
extremos. Deve haver espaço para a interioridade e espaço para sair de si mesmo e
ir para o mundo. Quem aprendeu, nessa época, a inspirar e expirar sadiamente terá
uma boa base para a convivência social mais tarde, na vida. Terá aprendido a estar
consigo mesmo e a estar com o outro nos momentos adequados.
Além do mais, neste setênio a relação 'eu e você' e 'você e eu' vai-se estabelecendo.
Criam-se os primeiros laços de amizade. Amar e lutar fazem parte dessa época,
bem como chorar e dar grandes gargalhadas. Agora o senso de justiça é muito
acurado. Do mesmo modo como luta e se revolta muito perante as injustiças
cometidas contra os outros, o jovem é extremamente sensível às injustiças
cometidas contra ele próprio. Certas expressões como "Você tem duas mãos
esquerdas" ou, como me dizia um professor, "Quem é burro permanece burro, não
adianta remédio nem compressa fria" ficam impregnadas, e mais tarde, na vida,
custará à pessoa um bom preço descobrir que não é tão burra assim. Nestes casos,
freqüentemente a criança começa a sentir-se cada vez mais incapaz, e seus
potenciais não desabrocham.
Além dos conceitos e normas que se condicionam, também os costumes vão-se
formando. Costumes são atos condicionados. Por exemplo, escovar os dentes após
as refeições, comer verduras, beijar e abraçar ao acordar ou deitar-se, e assim por
diante. Os costumes vão-se inscrevendo em nosso corpo etérico ou vital, que é
também o corpo da nossa memória. Tudo o que acontece na vida fica como que
inscrito em nosso corpo vital e pode, com esforço da memória, ser novamente aí
buscado. Muita coisa, porém, fica no inconsciente, podendo aflorar ou não à
consciência.
Nosso corpo vital é responsável por nossa saúde. Ele regenera, ajuda a sanear as
doenças, dá a sensação de força e bem-estar! Uma vida rítmica nesta fase dá boa
vitalidade para o resto da vida. O sistema rítmico também é aquele que equilibra as
forças excedentes da cabeça — que são forças da consciência e do desgaste com as
forças metabólicas, regeneradoras do sistema metabólico, as quais em excesso
também podem levar a desequilíbrios.
Assim, podemos falar desta fase como sendo a fase mais saudável da vida. E,
realmente, são poucas as doenças que nela aparecem, a não ser que a criança esteja
estressada pelo excesso de aulas e tenha pouco tempo para esporte e lazer, ou ainda
para brincar. Brincadeiras e jogos coletivos são muito importantes nessa época.
Do mesmo modo como na fase anterior (de zero a sete anos), podemos distinguir,
nesta fase de sete a catorze anos, três fases menores: dos sete aos nove anos,
quando ainda permanecem muitos elementos da fase anterior e se continua
aprendendo por imitação; a fase do meio, dos nove aos doze anos; e a fase dos doze
aos catorze anos, já na pré-puberdade.
Aos nove anos, geralmente a criança passa por um 'acordar do eu' no plano do
sentimento: ou, expressando melhor, o sentimento torna-se mais individual. E a
época em que a criança fica ensimesmada, começando a perceber diferenças de
tratamento dado a ela pelos pais em relação ao tratamento que as amigas recebem
em casa; ela percebe que o pai ou o irmão chuta o gato pela porta, enquanto ela,
toda carinhosa, cuida de seu gatinho. Coisas deste tipo passam a chamar muito sua
atenção.
Nessa época, muitas vezes o menino tem o primeiro amor platônico por aquela
menininha de tranças loiras ou a menina por aquele garoto que todo dia passa de
bicicleta na frente de sua casa, mas com o qual ela nem ousa falar.
A fase dos nove aos doze anos é a de maior religiosidade. A criança adora ser anjo
de procissão ou coroinha de missa. Ela aprecia os rituais. Já aos doze anos é
acometida por novo impulso de crescimento rumo à adolescência.
A menina passa pela menarca (primeira menstruação) e se assusta com a forma de
seu corpo; ou então põe enchimento no sutiã para parecer mais encorpada.
O menino se confronta com a mudança da voz e, geralmente, tem sua primeira
ejaculação.
Um novo impulso da individualidade faz sonhar mais concre- tamente com a
profissão que mais tarde se quer abraçar. Para alguns, porém, o assunto fica por
mais algum tempo 'encubado'; outros já manifestam a vocação profissional
claramente, e em outros ainda isso só irá manifestar-se por volta dos dezoito anos.
A criança está, agora e cada vez mais, apta para encarar a física, a química e a
biologia de maneira mais científica.
Podemos comparar os doze anos com aquele momento em que o Menino Jesus é
levado ao templo e começa a falar com sabedoria, despertando a admiração de
todos os fariseus ao seu redor. E a época, entre doze e catorze anos, em que alguns
entram para o mundo das drogas, levados pelos mais velhos, ou já necessitam
trabalhar para o sustento da família (embora ainda tenham bem menos de 18 anos).
Ao olharmos retrospectivamente para a nossa vida nessa fase, vale a pena resgatar
as mudanças que ocorreram entre aos nove e os doze anos.
Dos doze aos catorze anos, é muito importante que a criança tenha uma pessoa mais
velha com quem se abrir ou conversar, inclusive sobre coisas mais íntimas. Muitas
vezes ela não tem liberdade com os próprios pais, e sim com amigos ou amigas
mais velhos. Até mesmo pessoas mal-informadas acabam 'esclarecendo' sobre
questões sexuais, que mereceriam muito diálogo e atenção.
Em tempos antigos, o ritmo era conhecido como doador de força. Hoje muitas
pessoas adultas reclamam da falta de ritmo durante o dia, semana, mês ou ano.
Reclama-se de um cansaço crônico e, cada vez mais, de perturbações do ritmo
cardíaco, do ritmo digestivo, de asma, de insônia, etc. Será que estas perturbações
não teriam sua origem no segundo setênio? Tente olhar para trás e verifique como
foi o seu.
Este segundo setênio é fundamental para o desenvolvimento psíquico posterior,
principalmente entre 21 e 42 anos, quando dependemos intensamente dos
relacionamentos sociais.
Na Biografia 1 podemos ver como aos onze anos houve uma mudança radical para
a menina, de Portugal para o Brasil. Devido ao sotaque português, foi-lhe difícil
adaptar-se ao seu novo ambiente escolar, e a rejeição das colegas se transformou
numa forte introversão. Ela não conseguiu vencer os desafios que vinham do mun-
do exterior naquele momento de sua vida.
Na Biografia 2, o evento mais marcante deste setênio ocorreu justamente aos nove
anos, com a morte da avó e, por conseqüência, com o incêndio da oca (casinha de
palha) em que elas moravam juntas e que se transformou num montão de cinzas
frias. A pergunta da menina foi: "O que vai ser de mim?" Mais tarde este episódio,
num espelhamento biográfico, manifesta-se sob forma de depressão, e quando
identificado desperta um sentimento de libertação, tal qual o da fênix que se ergue
das cinzas.
Assim como no primeiro setênio do ser humano se define a constituição física, no
segundo setênio se define o temperamento. De acordo com a composição do corpo
etérico e a predominância das forças etéricas do fogo, do ar, da água ou da terra,
surge no indivíduo o temperamento (colérico, sangüíneo, fleumático ou
melancólico). Na época escolar, a influência do professor e do ensino sobre o
temperamento do aluno é decisivo no sentido de uma harmonização de
unilateralidades decorrentes do temperamento. (Vide literatura específica indicada
no final do livro.) Resumidamente, existem quatro temperamentos básicos, de
acordo com os quatro elementos: fogo, ar, água e terra. Também os gregos já os
conheciam, e denominaram o temperamento mais fogoso como 'colérico' (cholé, em
grego, significa 'bile que flui rapidamente'); o temperamento aéreo como
'sangüíneo' — em que a leveza do ar predomina, sendo tudo leve, saltitante, alegre,
e que é, por natureza, o temperamento típico da infância (quando sadia); como
'fleumático' o temperamento em que predomina o elemento aquoso — fluindo tudo
devagar, viscosamente, e predominando o metabolismo; e finalmente como
'melancólico' o mais terreno — em que a bile flui devagar (melagcholía, em grego,
significa 'bile preta') e o peso da terra se faz sentir, bem como a dor e o sofrimento
da vida, principalmente no adulto.
Nas escolas Waldorf, os temperamentos das crianças merecem especial atenção. O
professor e o médico que conhecem os temperamentos podem, neste setênio em que
o jovem se lhes manifesta mais nitidamente, influenciá-lo e ajudá-lo a corrigir-se
em seus aspectos negativos, estimulando os positivos. Modificar o temperamento,
porém, não é possível, sendo preciso aceitá-lo e conviver com seus lados bons e
ruins durante a vida toda.
Faz parte de nosso autoconhecimento saber qual temperamento possuímos. Porém
todos nós temos os quatro temperamentos, com predominância de um deles.
Quero finalizar este capítulo com o verso que Rudolf Steiner deu para as classes das
escolas Waldorf após a quinta série, mostrando esse grande despertar da alma
infantil para o mundo.
Eu contemplo o mundo
onde o sol reluz;
onde estrelas brilham,
onde as pedras dormem,
onde as plantas vivem e vivendo crescem;
onde os bichos sentem e sentindo vivem;
onde já o homem, tendo em si a alma, abrigou o espírito.
Eu contemplo a alma que reside em mim.
O Divino Espírito age dentro dela,
assim como atua sobre a luz do sol.
Ele paira fora na amplidão do espaço
e nas profundezas da alma também.
A ti eu suplico,
Ó Divino Espírito,
que bênçãos e forças
para o aprender,
para o trabalhar,
cresçam dentro de mim.
Rudolf Steiner
O terceiro setênio
A fase dos catorze aos 21 anos
7
[São Paulo: Antroposófica, 1999.]
A adolescência é como um terceiro nascimento. É quando o corpo astral ou corpo
das emoções, como o designa R. Steiner, "passará pelo processo de individuação".
Se ainda no segundo setênio o jovem tinha uma dependência emocional e afetiva
muito grande do pai, da mãe, da família, agora esses laços se tornam mais frouxos.
Ele foi jogado no mundo, na sociedade — muitas vezes ainda de forma mais
protegida quando vai ao colégio e logo em seguida à universidade, porém muitos já
vão para uma escola técnica profissionalizante, ou mesmo já iniciam sua vida de
trabalho, estando totalmente expostos ao ambiente.
Com o nascimento do corpo astral8 ou das emoções, que fornece o substrato para
nossa alma, advém uma visão bem pura de um ideal humano a ser alcançado.
Talvez nunca mais em nossa vida essa imagem ideal seja tão clara, tão pura como é
na adolescência.
Por outro lado, nosso corpo astral é também portador da consciência, de nossas
emoções, instintos, paixões, desejos, cobiças, curiosidades — todos os elementos
que despertam intensamente na adolescência.
Nesta época forma-se uma tensão muito grande entre o ideal a ser alcançado e os
instintos, cobiças, desejos, que cobram suas necessidades. E o jovem está sempre
em conflito; quer realizar a imagem ideal, de um lado, mas é puxado para o outro.
Por exemplo, a curiosidade de fumar cigarro, ou mesmo maconha, é grande; mas
existe a ponderação: "Se eu começar a fumar, depois vou ter de fazer um enorme
esforço para largar de novo; então é melhor nem começar!" Surge a percepção de
que as regras externas têm de ser substituídas, por meio da auto-educação, por
regras que ele mesmo se impõe.
Essa busca do ideal leva-o a projetar uma imagem do que gostaria de vir a ser;
muitas vezes ele faz imagens de pessoas que lhe parecem ser aquele ideal. Figuras
da política, da História, mais freqüentemente ídolos do esporte, da música ou do
cinema servem a este fim.
O jovem passa facilmente, nesta fase, de uma ideologia para outra, aderindo aos
mais diversos 'ismos'. Mas o que é que, no fundo, ele está procurando? É a si
mesmo! "Quem sou eu? De onde venho? Qual é a minha tarefa neste mundo?" —
perguntas inconscientes, formuladas para os universos ideológico, religioso, profis-
sional e sexual.
Não é fácil ao jovem encontrar-se. A distinção do que é realmente dele e o que é
resultado da influência dos pais precisa ser feita. Por exemplo, "Será que eu quero
ser mesmo engenheiro" — ou médico etc. — "ou esta foi uma idéia que veio dos
meus pais?". Talvez seja um desejo que o pai não conseguiu realizar e quer ver
realizado no filho. Ou "Fui educado como católico; será que esta é a minha
religião?" Talvez ele participe com todo o entusiasmo no movimento de jovens da
igreja, mas de repente se dá conta de que "não é nada disso".
8
Como o próprio nome — astral — diz, este tem a ver com os astros; e, de fato, as forças que nele atuam são forças interiorizadas
das sete potências planetárias: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno.
Novamente podemos distinguir três fases: a dos catorze aos dezesseis anos, quando
todos os desajustes corporais de crescimento exigem muita energia e paciência para
sua adaptação, e nem sempre o desenvolvimento anímico consegue acompanhar o
desenvolvimento físico; na segunda fase, dos dezesseis aos dezoito ou dezoito anos
e meio mais precisamente, que é a fase mais 'religiosa', o jovem procura 'religar-se'
a algo, sendo esta a busca do Paraíso perdido; e na fase dos dezoito, dezoito anos e
meio até os 21 anos, ele amadurece internamente para escolher a profissão, o que
acontece mais precisamente aos dezoito, dezoito anos e meio.
Aqui no Brasil esta escolha é feita, muitas vezes, bem antes desse período, por
causa das especializações do ensino — por exemplo, para as ciências ou para as
letras; acontece que o jovem toma uma decisão forçada, faz cursinho, até passa no
vestibular e, de repente, se dá conta de não ser isso o que queria. Se houvesse uma
oportunidade de o jovem estagiar em diversas profissões, para depois fazer a
escolha, ele não estaria perdendo tempo, como pode parecer, mas ganhando tempo
para ter qualidade de vida e satisfação interna maiores. Porém os adultos são
apressados, angustiados, querem sempre colher frutos ainda imaturos,
principalmente em relação a seus filhos.
Aos dezoito anos e meio o adolescente passa pelo que, astronômica e
astrologicamente, se denomina nodo lunar. Trata-se de uma situação da relação
Lua-Sol semelhante à do nascimento. Podemos dizer, novamente, que as portas do
Paraíso se abrem um pouco e que se pode vislumbrar a missão terrena. Ocorrem,
muitas vezes, percepções sutis e fugazes que podem passar desapercebidas; porém
muitas vezes as circunstâncias externas da vida nos fazem olhar retrospectivamente
para essa fase, e aí vamos descobrir ter sido justamente nesta época que decidimos
fazer vestibular para determinada área, ou entramos para a faculdade, ou sofremos
um acidente, etc.
Esses dezoito anos e meio são como que uma despedida do passado, da
adolescência, antes de entrarmos para a vida adulta. Muitos até expressam isso
dizendo não quererem assumir a responsabilidade do adulto; querem manter-se
adolescentes, o que com certeza vai gerar uma crise. Outras vezes vem um sinal de
fora — um acidente, uma perda, etc., para que aconteça essa conscientização maior.
Outros, ao contrário, percebem mais conscientemente a nova fase que está
chegando, as perspectivas para o futuro, e, com alegria e bem-estar, vão em frente.
Para mim, a época do nodo lunar, quando entrei na faculdade de Medicina, foi
gratificante. Eu me identifiquei com a ciência: anatomia, histologia, bioquímica,
etc.
Na Biografia 1, este momento é a viagem para Portugal e a retomada dos locais da
infância. Na Biografia 2, é a luta pela causa, pelo ideal que, mesmo após um ano de
prisão, desperta mais intensamente.
Na fase da adolescência, a dinâmica que surge é de dentro para fora.
O sentimento do jovem é o seguinte: "Eu estou aqui, com toda a minha
potencialidade, e quero modificar o mundo." O ensimesmar-se traz a sensação de
solidão, de não ser compreendido, mas é claro que este é um estado que não se
agüenta por muito tempo. Quer-se o contato com o mundo, com os outros. A forma
de contatar é dando flechadas. Lançam-se críticas contra tudo e contra todos. Quer-
se fazer reformas dentro de casa, modificar a alimentação da família, a religião, a
sociedade, etc.
Quando projetamos essa atitude de crítica para a vida de adulto, mais tarde sabemos
que uma pessoa muito crítica em relação aos outros poderá estar passando por uma
fase de isolamento e de solidão. A crítica não é a forma mais sadia de comunicação,
mas para o adolescente talvez seja a única.
Um professor Waldorf dizia que, nessa época da adolescência, a criança como que
leva uma placa no peito dizendo: "Fechado para reforma", ou "Deixe-me em paz!".
As meninas são mais 'coquetes', gostam de aparecer, de chamar a atenção, de
provocar os professores, enquanto os meninos são mais tímidos e muitas vezes têm
vergonha.
A vergonha é algo natural desta idade. A adolescência é o momento era que "eu,
como personalidade, me torno mais visível para o mundo, e disso é que tenho
vergonha. Não há ninguém que me faça tocar um solo de violino ou flauta em
público, ao passo que no grupo, na orquestra, tenho como apoio os outros membros,
e não haverá problema. A busca de um grupo onde sou aceito me dá reforço naquilo
que ainda não tenho coragem de enfrentar sozinho".
Se no primeiro setênio podemos usar a frase "O mundo é bom" e no segundo
setênio "O mundo é belo", para o terceiro setênio teríamos "O mundo é verdadeiro".
E esta busca pelo verdadeiro no mundo que o jovem almeja. Ele precisa encontrar
veracidade, autenticidade nos adultos que o cercam. Um professor de jovens que
não seja autêntico, que fale da boca para fora, não será aceito. Tampouco os pais
conseguem, por exemplo, simular uma 'relação perfeita' perante o jovem; em pouco
tempo ele saberá da verdade e que foi enganado. O adulto que admite seus erros e
fraquezas é mais aceito do que aquele que simula perfeição.
Nesta fase a ciência é apontada como única verdade, porém sabemos que a
estatística também pode ser usada para demonstrar coisas incorretas. Portanto, usar
a ciência como totalmente verdadeira é ter como base uma falsa verdade. Mas onde
estaria a verdadeira ciência? Além da realidade física, científica, existe uma
realidade anímica e uma realidade espiritual. A matemática é a realidade espiritual
mais pura. Esta verdade o jovem também tem de conhecer. Neste setênio se lança o
fundamento para uma vida espiritual que virá mais tarde, por meio do que é
verdadeiro.
O princípio educativo neste setênio não é mais a imitação (do primeiro setênio) —
embora muitos jovens tentem imitar os colegas ou seus ídolos — nem a autoridade
(do segundo setênio), e sim a liberdade.
Ao falar de liberdade, podemos falar de uma liberdade interna e de uma liberdade
externa. A liberdade externa é aquela mediante a qual conseguimos, à medida que
vamos amadurecendo, fazer cada vez mais coisas no mundo externo e, ao mesmo
tempo, assumir a responsabilidade por tais atos.
A liberdade interior é algo mais sutil. É o respeito pela personalidade do outro.
Implica a conscientização, no adulto, de que agora ele tem uma individualidade
diante de si, tal qual ele próprio. Assim como exigimos respeito por nós,
precisamos respeitar o jovem. Rudolf Steiner, na escola Waldorf, fazia questão de
chamar os alunos por Sie, isto é, 'o senhor' ou 'a senhora', em respeito a essa
individualidade.
A liberdade acontece em três níveis. O primeiro é o do espaço físico: o jovem
necessita ter seu próprio espaço — seu próprio quarto, ou pelo menos sua própria
cama —, seu canto privativo, onde ele tenha o direito de pendurar os posters que
desejar. Quando se necessitar desalojar alguém na casa para acomodar visitas, ou a
irmã que se desquitou, não é o quarto dele que deverá ser buscado.
O espaço anímico é igualmente importante. Por exemplo, seus telefonemas não
devem ser interceptados, as cartas não devem ser abertas, seu diário, se por acaso
ele o esqueceu na escrivaninha, não pode ser lido, e assim por diante.
O espaço espiritual se refere, agora, mais ao aspecto profissional: "Será que eu sou
apoiado em minhas intenções de vida?". Isto se refere, também e especialmente, à
parte profissional. Por exemplo, o jovem quer tornar-se apicultor, mas a família
quer que ele se prepare para assumir a fábrica do pai, com a qual ele não tem
afinidade alguma.
Já comentamos que esta questão profissional deve tornar-se mais visível a partir dos
dezoito anos e meio. Nesse período já amadureceu o 'eu social', como o denomina o
professor Lievegoed, referindo-se ao modo como 'eu' atuo no mundo. Contudo,
para muitos jovens hoje a escolha profissional é difícil. Às vezes eles passam por
várias experiências de trabalho até encontrar seu ambiente, ou trocam
freqüentemente de faculdade. É preciso ter paciência.
Na fase dos dezoito anos e meio aos 21 anos, temos como que uma maturação final
do nosso cérebro (aliás, esta fase se iniciou aos catorze anos). As células nervosas
são sensíveis ao álcool, às drogas e aos tóxicos. Por isso, trata-se de uma fase em
que pessoas sensíveis podem ter prejuízos para o resto da vida, e o cérebro,
instrumento do eu, não permite o desabrochar da personalidade em sua total
plenitude. Essa é, então, uma época em que doenças psiquiátricas podem tornar-se
manifestas, sendo também propícia às seitas que praticam 'lavagem cerebral' nos
jovens a fim de angariá- los para seus propósitos. Também é a época em que na
maioria dos países está instituído o alistamento militar. Por outro lado, no aspecto
do trabalho muitos jovens já estão como aprendizes ou estagiários no âmbito de
uma proposta profissional; e ainda é importante que tenham lazer, e não só trabalho
e estudo, para seu desabrochar anímico. Para um trabalho com jovens, é preciso
atentar especialmente a isto.
Tipos Planetários
Para uma orientação profissional ou educativa, vale a pena olharmos para os tipos
planetários (oriundos das sete potências planetárias) que aparecem na adolescência,
superpondo-se ao temperamento, que já vimos anteriormente.
O tipo saturnino
O tipo jupiteriano
O tipo marciano
Ele é a expressão da força acumulada que se dirige para o exterior e para o futuro.
Aqui na Terra, tenta transformar seus ideais em realidades práticas, tendo portanto
todas as características de um iniciador — de um pioneiro. Marte é o símbolo da
força masculina (mas também há mulheres do tipo Marte), bem típica do tipo
colérico. A vontade domina o sentimento e o pensamento. Ele tem de sentir-se livre
e desimpedido, ou a confrontação com ele termina em briga.
No pensar, o tipo é bem acordado e presente. Tem pensamentos práticos e
direcionados à matéria ('acerta na mosca' com seus comentários). Sua memória é
fraca, esquecendo o passado. Ele é bom e convincente no discurso, na palavra.
No sentimento ele é entusiasmado, apaixonado e caloroso. Não tolera ser posto de
lado ou não ser percebido. Muitas vezes, porém, esconde seus sentimentos atrás de
um escudo.
Na ação, é do tipo pioneiro, ativo, realizando suas metas. É difícil desligar-se de seu
trabalho. Sua força ele a coloca no esporte, no trabalho. Precisa sentir-se livre para
o movimento. Sente segurança e independência. Não tolera críticas. O excesso de
forças de Marte podem levá-lo à agressividade descontrolada, principalmente se
ingere bebida alcoólica. É importante que seu interlocutor consiga manter a calma.
É pessoa de coragem.
Como exemplos históricos temos Napoleão e Beethoven.
Todas as atividades práticas lhe são preferidas; ele gosta de vencer desafios e abre
frentes para algo poder acontecer. O tipo marciano tem de aprender a superar a si
mesmo e a dirigir suas forças para o âmbito certo. É importante que execute
trabalhos onde possa usar sua força física.
O tipo venusiano
O tipo mercurial
É pequeno, ágil, flexível. Está com todos e com ninguém; é um mediador entre o
mundo externo e interno, entre o céu e a terra. Vive no presente.
No pensar, tem uma faculdade de combinação muito grande. Por exemplo, de
muitos sintomas deduz um diagnóstico. Podemos falar de um pensar associativo;
ele percebe logo onde há escassez e vai buscar onde há excesso. É como o tipo
sangüíneo: tem dificuldade em concentrar-se e pula de um assunto para outro.
Ele é ávido de saber e curioso. É inteligente e tem boa memória, inclusive dos
detalhes. Fala bastante, tem presença de espírito.
Em seu sentimento é aberto, tem bom relacionamento com todos, mas certa
dificuldade em relacionar-se mais profundamente com alguém. É como o
marinheiro, que em cada porto tem uma amante. É menos ativo, mas reage ao
mundo externo. Geralmente é alegre e tem bom humor.
Na ação ele é rápido, flexível, ajeitado e se adapta facilmente às circunstâncias.
Gosta de ser útil, improvisa e inventa. Por sua capacidade associativa, será um bom
comerciante, guia turístico, mas também médico ou mediador de negócios ou de
conflito entre pessoas. Põe as coisas em movimento e traz inovações; não deixa as
coisas estagnar.
Ele precisa aprender a fazer escolhas entre as muitas coisas que aprecia fazer e
ligar-se mais profundamente a uma delas, e igualmente no relacionamento. Deve
aprender a escutar e, por meio de perguntas, interessar-se mais profundamente pelo
outro.
Como exemplos do tipo mercurial temos Morzart e Albert Schweizer.
O tipo lunar
O tipo solar
De 0 a 7 anos
De 7 a 14 anos:
XII — Quando entrou na puberdade, como você lidou com as mudanças corpóreas?
De 14 a 21 anos:
VII — Ocorreu algo especial na fase do primeiro nodo lunar, por volta dos dezoito
anos e meio?
VIII — Que responsabilidades você teve de assumir na época?
IX — Precisou trabalhar ou pôde investir em sua formação profissional?
Capítulo III
As fases de 21 a 42 anos: etapas do desenvolvimento anímico.
'Tornar-se homem. Tornar-se mulher'
Dos 21 aos 42 anos, muitas coisas do passado são retomadas e elaboradas. Aos 21
anos o ser humano atinge a 'maioridade'. Isto significa capacidade plena para
assumir a responsabilidade por si mesmo. O corpo físico não exige mais forças para
seu crescimento e maturação dos órgãos, e esta força do eu fica, em parte, liberada
para atuar numa atividade da consciência. Muitos jovens, nesta época, partem com
a mochila nas costas para conhecer o mundo. Essa é uma imagem que se realiza
tanto literal quanto animicamente. A mochila contém muitas coisas recebidas
durante a infância e a adolescência, e um dos importantes trabalhos desta fase é
tirá-la das costas, dar uma parada e olhar o que está dentro dela.
É a hora de usar os muitos instrumentos de que se dispõe para a atividade
profissional. Porém a pergunta que surge é: quais deles são realmente necessários e
quais devem ser jogados fora? Alguns precisam ser afiados e outros apenas fazem
volume e pesam. Muitas vezes se percebe a necessidade de fazer cursos paralelos,
de complementação profissional, porque o estudo universitário foi muito abstrato e
dele pouco pode ser aproveitado. No entanto, excesso de conhecimento pode
sobrecarregá-lo.
Nessa mochila encontramos pedras brutas, algumas preciosas, outras semipreciosas.
Olhando-se as pedras de fora, elas parecem comuns, acinzentadas, cor de ocre,
marrons. Partidas ao meio revelam as 'drusas', uma beleza de formação de cristais
brilhantes, refletindo a luz. Cada uma delas pode ser lapidada e, então, refletir ainda
mais luz.
A vida, nessa época dos 21 aos 42 anos, é como uma pedra bruta que precisa ser
lapidada e, quanto mais é lapidada pelos relacionamentos com outras pessoas, mais
sua luz espiritual brilha (e vai brilhar ainda mais após os 42 anos), podendo tornar-
se visível.
Outra coisa encontrada na mochila é um lanche ou uma mesada que, até aqui, os
pais colocaram nela. Agora, tendo-os comido ou gasto, o jovem precisa repô-los,
sozinho. Hoje, é fundamental que tanto o homem quanto a mulher aprendam a
ganhar o próprio sustento por si mesmos.
O que mais é encontrado na mochila? Enfiando-se a mão novamente, aparece algo
pegajoso, gosmento. Rapidamente puxa-se a mão, mas é necessário ter coragem
para olhar mais de perto. É aquela coisa pegajosa que nos atrapalha, constituída das
normas que aprendemos na infância, principalmente no segundo setênio, como
"Menino não chora, menina não sobe em árvores". Há também os apelidos que,
maldosamente, sublinhavam nossas fragilida- des — como, por exemplo, quando
éramos desastrados e diziam que tínhamos 'duas mãos esquerdas', ou quando nossa
sensibilidade incomodava e éramos chamadas de 'chorona e dondoca', ou ainda,
quando nossa impetuosidade nos rendeu o título de 'ovelha negra'. Essas
classificações nos foram impetradas, mas nossa essência nada tem a ver com elas; é
preciso lavá-las, deixá-las para trás e sermos nós mesms.
Colocando a mão ainda mais fundo na mochila, uma coisa gruda como piche!
Mesmo esfregando, não sai. O que seria? Poderia ser, por exemplo, um sotaque
português de quem nasceu em Portugal e reside no Brasil; ter 1,50 m e não crescer
mais do que isso; ter aqueles pais que desagradam mas que, no fundo, foram uma
escolha própria; ter um temperamento colérico e de vez em quando estourar. Ou,
como signo, ser duplamente gêmeo e, com isso, muito inquieto e superficial.
Não é possível modificar todas essas coisas. Elas fazem parte da personalidade, e o
ser humano tem de integrá-las em si e não lutar contra elas, pois isso só lhe custaria,
além das próprias forças, um grande descontentamento e uma constante insatisfação
interior.
Com certeza pode-se encontrar muitas outras coisas dentro da mochila! Cada um
tem de buscar as suas. A imagem da mochila pode também ser substituída pela
imagem do baú. Veja a pequena história a seguir:
A chave de ouro
No inverno, quando havia uma espessa camada de neve sobre a Terra, um pobre
menino teve de sair para buscar madeira em seu trenó. Quando ele recolheu a
madeira e a carregou, estava tão frio que ele queria acender um fogo para se aque-
cer, antes de ir para casa. Ele afastou a neve da terra e, chegando ao chão,
encontrou uma pequena chave de ouro. Então pensou: "Onde há uma chave deve
haver uma fechadura!" Cavou a terra, e eis que encontrou um bauzinho de ferro.
"Ah, se Deus quiser, a chave vai-se encaixar. Deve haver preciosidades nesse baú."
Procurou, procurou mas não encontrou a fechadura. Finalmente encontrou uma, e
era tão pequena que ele mal a percebia. Experimentou, e veja: a chave se encaixou.
Ele a virou, mas para sabermos que coisas maravilhosas encontrou dentro do
bauzinho vamos ter de esperar que ele abra totalmente a sua tampa!
Num curso biográfico, é importante que cada um aprenda a abrir seu bauzinho, ou
que tenha a coragem de abrir sua mochila! E — que surpresa — quantas
preciosidades que nem esperávamos encontrar nós encontramos!
Biografia 3
Ela era a filha do meio, entre uma irmã mais velha e um irmão menor; uma menina
que, com quatro anos, saiu de seu ambiente familiar ressentindo-se da falta dos
parentes, mas continuou levando uma vida de criança normal, cheia de brincadeiras
da época. Descreve a si mesma no primeiro grau como desatenta e preguiçosa,
provavelmente de temperamento mais fleumático. Depois passa a ser uma das
melhores alunas, namora cedo, mas sente a perda da liberdade e desfaz o namoro
aos dezoito anos.
Poderíamos dizer que tudo transcorre dentro dos padrões até os dezoito anos,
quando ela sofre um grande golpe do destino, perdendo o pai e a irmã mais velha,
que era secretária dele — isso justamente às vésperas de seu exame vestibular para
Psicologia, o qual ela conseguiu fazer e ser aprovada. Deve ter sido um esforço
enorme, porém ela não exteriorizou seus sentimentos de dor. Cerca de um ano e
pouco após, começa a perder a voz, constatando-se um câncer de laringe. Passa
pelos mais diversos tratamentos, cirurgias e altas dosagens de rádio e cobalto como
terapia. Apesar disso, consegue continuar o curso de Psicologia, mas aos 22 anos
tem recidivas do tumor. Por sorte encontra um companheiro compreensivo, que lhe
dá muito apoio.
Faz o estágio. Porém, ao se formar (com 24 anos), constata que não consegue
emprego. Começa uma desmotivação forte pela vida, mas de repente ela descobre
que tem de ajudar a si mesma, e não ser ajudada por um terapeuta de fora.
Reconhece seu orgulho, seus limites, sua situação. A doença passa a ser um grande
aprendizado de vida e desencadeia um processo de modificação interior. Ela chega
a se expressar com muita sensibilidade por meio da pintura.
O próprio tumor e a fragilidade dos tecidos, devido ao excesso de radioterapia,
provocam a ruptura de vasos sangüíneos importantes, o que a leva à morte por
hemorragia às vésperas de completar 26 anos de idade.
Esta biografia também mostra uma profunda relação entre os setênios dos catorze
aos 21anos e dos 21 aos 28 anos.
9 A educação prática do pensamento; edição brasileira em trad. de Octavio Inglez de Sousa (4. ed. São Paulo: Antroposófica, 1999);
O conhecimento dos mundos superiores, ed. bras. em trad. de Erika Reimann (4. ed. São Paulo: Antroposófica, 1996).
Em cada biografia, até os 42 anos podemos fazer um esquema de espelhamento em
torno dos 21 anos e encontrar relações importantes (v. Metodologia do trabalho
biográfico, em nota na pág. 106).
Já por volta dos 27 anos, começam a fazer-se sentir mudanças interiores e
questionamentos, relacionados com a crise dos 28 anos, a crise dos talentos, que
descreveremos nas próximas páginas.
A primeira carta foi escrita aos 22 anos. Plena consciência de não viver os papéis e
as personas, mas de ser autêntico.
Após estar formado em Medicina e ter um ano de especialização, ainda em Minas
Gerais, ele tomou coragem para vir para São Paulo, trabalhando inicialmente como
estagiário e depois como médico da Clínica Tobias. A cidade de São Paulo o
fascinou, com todas as oportunidades culturais que oferecia. Mas o passo, a visão
de mundo, tinha de ampliar-se.
Assim, aos 28 anos ele decide ir para a Europa; conhece a Inglaterra, Alemanha,
Portugal, etc. Na Inglaterra, faz o curso de Pedagogia Social no então Centre for
Social Development, trabalha numa clínica em Park Atwood e depois visita
Portugal, em férias, para depois trabalhar com plantas medicinais na Weleda
(laboratório farmacêutico antroposófico) de onde, aos 29 anos (sete anos mais
tarde), escreve a segunda carta:
Eu, que estava com medo de vir para a Alemanha, estou tendo aqui um dos
melhores tempos de Europa. O trabalho no jardim tem sido bastante interessante, e
eu tenho tido a oportunidade de conhecer diversas plantas medicinais. O pessoal
daqui é muito gentil e muito amigável. Algumas vezes podem ser um pouco
ríspidos, mas pelo menos põem para fora o que estão pensando e a gente logo sabe
em que terreno está pisando. Tem sido muito bom ouvir o alemão, e isto está me
estimulando a tomar o impulso e realmente aprender a língua.
Vou ficar aqui até o dia 31.7, indo de volta para o Brasil no dia 6.8 da Holanda.
Nesse meio tempo quero conhecer Dornach.
Sinto que agora, mais e mais, estou-me voltando na direção do Brasil. Não sei ainda
o que fazer, e Juiz de Fora não me fala tão alto como quando eu deixei o Brasil.
Penso que preciso voltar, olhar, conversar e sentir para onde o destino me chama.
Neste ponto estou tranqüilo, porque sempre alguma coisa acontece, e eu só quero
colocar os pés no caminho certo.
Estou contente com o curso da Inglaterra; penso que foi a coisa certa, no momento
certo, embora eu tenha passado por momentos muito difíceis e muitas vezes tenha
tido o ímpeto de ir embora. Mas sempre alguma coisa acontecia para impedir.
A experiência das estações do ano é muito profunda, e chega mesmo a ser um
choque ver o sol ter seu percurso bem próximo do horizonte. Durante o inverno, é
quase enlouquecedor. Depois tudo parece uma eterna manhã, e em torno das 16:30h
tudo está escuro.
Ver a neve é uma beleza indescritível, mas eu não conseguia mais reconhecer o
planeta em que estava.
E agora este calor intenso — 22 horas é ainda dia, e dá vontade de mudar todos os
hábitos e ritmos de sono e alimentação. Acho que foi tudo maravilhoso, pois em
certo sentido é uma oportunidade para ver o mundo sob um novo ângulo, e não
apenas sob aquele que eu conhecido, somente no Brasil. Depois, conhecem-se
pessoas diferentes, fazem-se novas amizades e contatos pelo mundo, e a gente
adquire um novo senso de irmandade. A gente chega mesmo a ver quão unilaterais
somos, e que precisamos uns das qualidades dos outros, para formarmos o todo.
Creio que é mesmo tempo de quebrarmos as fronteiras internas.
Espero que todos estejam bem, e mando-lhes recomendações. Gostaria de conversar
pessoalmente com a Doutora quando voltar, mas isto a gente combina depois,
quando eu estiver de volta.
Bom trabalho para a Doutora, para todos os amigos, e aquele abraço brasileiro.
Para quem tem oportunidade, essa ampliação de visão de mundo é importante nessa
fase. Infelizmente, hoje e cada vez mais, essa 'ampliação' da visão de mundo é
virtual, não mais feita in loco, mas na cadeira, em frente à tevê ou ao computador.
Com isso se perde a força da coragem e da iniciativa, tão evidente no exemplo
acima.
experiências profissionais?
III — Tive um bom chefe?
VIII — Consegui uma boa relação com o mundo, com a organização de trabalho,
com a família e comigo mesmo?
IX — Quais as minhas habilidades técnicas?
Aos 28 anos:
A crise dos talentos
Na Bíblia é descrita uma parábola, a dos Talentos, que nos ajuda a olhar este
momento da vida. Vou reproduzi-la com minhas palavras:
Um senhor tinha três servos, aos quais deu dez talentos (moedas de prata); dez para
cada um. O primeiro esbanjou o dinheiro; o segundo enterrou o dinheiro, e o
terceiro o aplicou. Apôs um ano, os três voltaram ao senhor: o primeiro, de mãos
vazias; o segundo desenterrou o dinheiro e voltou com a mesma quantia; e o
terceiro, que aplicou o dinheiro, voltou com uma quantia bem maior.
Há pessoas que são altamente dotadas, inteligentes, brilhantes, ótimos alunos dos
21 aos 28 anos. Depois, como que se apagam — como muitos músicos e poetas que
compunham ou faziam poesias com brilhantismo até os 28 anos e, após esta idade,
abandonaram essa arte completamente. Por exemplo: eu tinha uma cliente que era
cantora; tinha uma voz linda. Ela casou-se. Gostava de cantar em casa, e a cada vez
que o marido a escutava zombava dela, até que um dia ela resolveu nunca mais
cantar. Estava por volta de seus 28 anos.
Essa senhora, fazendo biográfico na Artemísia, lembrou-se de todas as passagens
da vida e, subitamente, cantou no banheiro. Foi apenas uma vez, e, apesar de todos
os pedidos dos participantes do curso, nunca mais abriu a boca.
Tudo aquilo que 'ganhamos' e trazemos em genialidade tem, após os 28 anos, de ser
reconquistado como que de dentro, e a partir daí isto exige bastante assiduidade.
Perguntaram a Einstein o que é ser um gênio. Ele respondeu: "E noventa por cento
de transpiração (ou seja, conquistado com suor) e somente dez por cento de
inspiração." Isso vale principalmente para depois dos 28 anos, porque antes muita
coisa é inspiração que, no entanto, pode transformar-se em genialidade que cedo se
esgota, por não ser trabalhada.
Essa é também uma época de dúvidas. Muitos se tornam ateus nessa fase. É o caso
de um amigo que, ao ser perguntado por um colega se acreditava em Deus,
respondeu: "Se eu encontrasse Cristo na rua, cuspiria na cara dele." Tão deformada
estava sua imagem de Deus, de Cristo, por famílias pouco religiosas com as quais
convivia em sua infância, que ele não queria saber de nada. Só acreditava na
matéria, na Engenharia que havia estudado. O colega disse: "Você é um pobre
coitado." Uma outra colega de trabalho que escutou a conversa dos dois deu-lhe,
depois de alguns dias, o livro A Ciência Oculta, de Rudolf Steiner. Em poucos dias
ele leu esse livro e pouco depois se tornou astroposofista. As respostas vinham ao
encontro de suas perguntas interiores, que ele tinha esquecido. Nessa época, é bom
quando temos questionamentos: "Será que o que estou fazendo é o adequado?"
Aliás, aos 37 anos ele mudou de profissão, tornando-se consultor de empresas — já
naquela época, numa linha holística, com visão global sobre o desenvolvimento da
empresa, mas principalmente dos indivíduos dentro dela.
Uma participante do curso biográfico me escreve: Eu leio de tempos em tempos as
anotações dos meus cursos biográficos e encontro em minha vida suas
confirmações. Em dezembro vou fazer 28 anos, e percebo que até aqui as coisas
aconteceram sozinhas. Agora, justamente ao contrário, minha pergunta seria:
sabendo de tudo isso, como eu posso agir, reagir, frente a esta situação?
A resposta começaria por perceber que agora ela está consciente frente às situações.
Pergunta como deve agir e, no fundo, já está agindo e reagindo, já a caminho do
novo momento. Uma crise, uma depressão é superada pela ação, mesmo que seja
com passos bem pequenos.
Nessa época surge a dúvida: será que estou no caminho? Qual o caminho a
escolher?
Veja o poema de uma jovem, de 28 anos, que vivia só e tinha uma pequena filha.
Será que vai continuar vivendo no Brasil, ou vai aproveitar uma chance para ir para
a Europa?
Algumas vezes a crise dos talentos se prolonga nesta fase adentro. Na idade de 28
anos, o indivíduo tem de assumir responsabilidades. Os 28 anos são um verdadeiro
ponto de mutação. Pode-se dizer que com 28 anos vamos conquistando uma
liberdade interior cada vez maior; as heranças do passado ficam para trás e, ao
mesmo tempo, o senso de responsabilidade aumenta nesta fase (28 a 35 anos).
Estamos no meio da vida. Se considerarmos cada fase da vida como um dos braços
de um candelabro de nove velas, quatro ficaram para trás e quatro virão pela frente,
como vimos no capítulo introdutório. Isto significa também que, neste setênio,
estamos mais profundamente encarnados em nosso corpo; é como se a vida, até
aqui, fosse uma grande inspiração, e daqui por diante entrasse em expiração. Antes
era um grande preparo para poder ser; agora, começar a atuar.
Esta fase, Rudolf Steiner a chama de alma do intelecto (ou racional) e da índole (ou
sentimento). Chama a atenção, nesta denominação, a duplicidade: razão e coração;
é justamente a fase onde esses dois elementos têm de ser integrados.
O homem, que por natureza é mais razão, precisa desenvolver sua parte de
sentimentos; a mulher, que por natureza é mais coração, tem de desenvolver seu
lado racional. No livro Homem-mulher: a integração como caminho de
desenvolvimento™, denomino as duas forças, conforme C. G. Jung, como animus e
anima.
A mulher, portanto, terá de desenvolver seu animus (seu lado masculino), e o
homem, sua anima (seu lado feminino). Com isso acontecerá o processo de
individuação da alma, e cada um se tornará mais inteiro. No relacionamento
também se criará uma nova situação de verdadeiro companheirismo, e não de
dependência, como vimos na fase anterior, onde um completava o outro.
Em termos de dinâmica, temos novamente uma fase respiratória, de troca. A
situação interna tem de ser regulada de acordo com o mundo, com a situação
externa. O jovem respira, relaciona- se com o mundo e, ao mesmo tempo, dá de si
ao mundo.
A pergunta não é mais "como eu vivencio o mundo?", mas "como o mundo está
organizado?", e, neste contexto, "como eu organizo a mim mesmo?". O que
significa isso, na prática?
Vamos tomar como exemplo um jovem que tenha uma profissão escolhida por um
grande ideal — que poderia ser na área da reforma ecológica, ou da reforma do
ensino, ou então de novos modelos de arquitetura — e que queira realizar esse
ideal. Porém, como não encontra um contexto onde possa pô-lo em prática, vai
mudando e mudando de emprego sem encontrar lugar para efetivar suas idéias. Ele
terá de aprender a olhar como é cada organização, onde poderia introduzir pequenas
modificações e ir, aos poucos, conquistando seu espaço; isso o ser humano terá de
ir aprendendo. Quando, de cara, alguém quer modificar uma organização, é claro
que não vai dar certo. Mas quando a organização é suficientemente flexível, a
pessoa pode ir, aos poucos, modificando as coisas.
Por outro lado, quando a pessoa está num emprego e a organização é tão rígida que
não permite seu crescimento nem que ela implante qualquer modificação, está na
hora de sair, pois se permanecer na organização seus ideais e seu entusiasmo pelo
trabalho irão esfriando.
Nesta fase da vida, em termos profissionais a estabilidade já é bem maior do que na
fase anterior. É importante fixar-se num local, mesmo que não seja o ideal, mas ir
ganhando experiência de trabalho, mesmo que se trate de outra área, e não
exatamente daquela escolhida. Se na fase anterior a pessoa precisava de
treinamento nas tarefas para ganhar habilidades técnicas, nesta fase, por estar
vivenciando a questão da organização, naturalmente ela tem condições de
desempenhar a função de gerente técnico ou supervisor técnico. Suas habilidades
organizacionais já lhe permitem isto.
Nesta inter-relação com o ambiente, como no segundo setênio, é preciso ver se o
ambiente de trabalho ou da família não a está sufocando. Ou, ao contrário, se por
suas imposições ela não está sufocando seus subalternos ou seus familiares.
Como a força física nessa época atinge o auge, há o perigo de contar com esta força
para alimentar o sentimento de ser o 'todo-poderoso' e não deixar muito espaço para
os outros. O desafio é desenvolver tolerância e interesse pelos outros, e não apenas
por si mesmo e por suas próprias preferências.
O aprendiz da fase anterior se transformou, agora, em mestre. Aqui a
competitividade é muito intensa, a ambição de 'ser alguém' é muito grande e, de
certo modo, até sadia, mas precisa ser conquistada com respeito e tolerância em
relação aos outros, que talvez não sejam considerados por ele tão 'bons' como ele
considera a si mesmo.
Essa competitividade também pode projetar-se sobre o casal, principalmente
quando a mulher trabalha. Em vez de desenvolver-se um verdadeiro
companheirismo de troca, acaba ocorrendo uma competição a dois. Neste caso, o
homem não estaria desenvolvendo sua parte de sentimento, seu lado feminino; e a
mulher estaria exacerbando seu animus, ou seu lado masculino.
Nesta fase da vida — que pode ser chamada também de fase organizacional — a
capacidade de planejar, organizar e gerenciar é muito grande. É a época em que
geralmente se fazem planos profissionais, de carreira, e de toda a vida futura. É a
época em que se quer conquistar cada vez mais status e obter uma posição na vida.
E quando se assumem, além do trabalho, outras atividades ou 'posições' por meio
das quais se possa aparecer no mundo.
Se a mulher tem filhos nessa época e o casal está na fase de formação da família, no
caso de ela estar totalmente voltada para o lar o casal corre o risco de os dois se
afastarem; daí a importância do diálogo e de criar espaços comuns onde ambos
possam estar juntos.
Nossa biografia reflete a história da humanidade, em termos de desenvolvimento da
consciência.10 Esta fase de idade corresponde, pois, à época cultural greco-romana,
na qual se assume cada vez mais a individualidade, e o clã, a família, a linhagem de
sangue, a hereditariedade e o povo passam a ser menos importantes.
A arte grega da escultura é a expressão da chegada do aspecto anímico-espiritual ao
corpo. O grego consegue manusear a pedra dando-lhe alma e vida. O teatro grego
expressa sentimentos e os desperta em seus espectadores. A filosofia grega
10 V. o capítulo 'O desenvolvimento da consciência humana ao longo da História e a nossa biografia', em meu livro Metodologia do
trabalho biográfico (em preparo).
desenvolve conceitos filosóficos, arte (sentimento, índole) e filosofia (parte racional
da alma).
Nessa mesma época ocorre a vinda do Ser Solar, o Cristo, que após o batismo do
Jordão atua durante três anos, o que coincide justamente com a fase dos 30 aos 33
anos. Um paralelo é encontrado na biografia humana, em que entre os 30 e os 33
anos geralmente ocorre a busca por algo de espiritual na vida, após uma fase às
vezes bem materialista e cheia de dúvidas. Este encontro pode dar-se por
intermédio de uma pessoa importante ou de um livro que chegue às mãos da
pessoa, ou de uma palestra, reatando-a e religando-a ao espiritual. É como se o eu
estivesse sendo reforçado pelo impulso crístico; o passado tem de morrer
definitivamente para, com força nova, poder ressurgir.
Morte e ressurreição podem ser vivências da alma nessa época. É também a força
crística que permite desenvolver tolerância e amor pelo outro numa fase em que,
por natureza, a pessoa é extremamente egoísta, a ponto de poder tornar-se um
déspota ou um pequeno Napoleão (que, aos 35 anos, prestes ser coroado tirou a
coroa da mão do Papa e coroou a si mesmo!).
Cabe aqui dizer que, em nossa metodologia de trabalho, além de o participante
escrever os acontecimentos de sua biografia ele também se expressa por meio de
pintura. Temos o caso de uma moça norueguesa que teve uma infância feliz e viveu
até os 21 anos na Noruega. Lá ela conheceu seu futuro marido, que é brasileiro, e
decidiu vir para o Brasil e casar-se. Foi difícil para ela adaptar-se à fazenda (o
marido era agricultor), no interior de São Paulo; ela sempre comparava o local com
a Noruega. Aqui o verão era quente, o sol brilhava forte demais, e durante longo
tempo. Faltavam-lhe os pinheiros e a neve. Ela tinha dificuldades com o idioma. Ao
longo dos anos, teve três crianças robustas. O marido era seu protetor e vivia para a
família. Ela tinha medo de lutar e fazer novas amizades ou viver mais ativamente
para a comunidade. Esta situação durou até os 32 anos. O desenho expressava essa
vivência. Com 35 anos a mulher começou a retomar sua profissão de professora e a
dar aulas na pequena escola da comunidade agrícola. Apesar de não sentir-se
totalmente aclimatada, assumiu esse trabalho e visualizou novas possibilidades.
Vejamos alguns exemplos: a situação da figura 9.
FIGURA 9
Ela descreveu o desenho da seguinte forma: Estou numa gruta e estou levando um
escudo, com o qual me defendo. O escudo é tão grande que não vejo luz lá fora.
Finalmente decido sair da gruta, tomara espada de luz nas mãos e lutar. Quando eu
consegui dar esse pequeno passo, estava com 32 anos.
O outro desenho (fig.10) é o de um jovem de 30 anos:
a FIGURA 10
Estou-me sentindo numa gruta, não estou percebendo que estou entrando cada vez
mais na gruta e olhando para a parede do fundo. Não percebi que a luz está vindo
de trás. De repente eu tive um encontro, um diálogo, e percebi que eu só tenho de
virar as costas. Aí eu vi a luz fora da gruta diante de mim. Mas eu ainda tinha de
atravessar um brejo(a) e afundei até os joelhos (b). Hoje, interiormente ainda estou
na gruta (c), mas estou bem mais próximo à saída, e estou vendo a luz. A idéia da
morte me é familiar. Eu sonhei, aos doze anos, que iria morrer aos 32. Agora, por
meio do curso biográfico, eu aprendo a conhecer uma dimensão muito mais ampla
do ser humano e de toda a humanidade, e também como morte e vida estão
interligados. Antes eu não via, na vida, motivação ou sentido.
Tanto o poema quanto o desenho são expressões da alma aprisionada, que não
consegue soltar-se. Os anos da infância e da juventude ainda 'grudam'; ela está no
brejo, na lama. Enxerga a luz, mas esta ainda está longe. Os dons da juventude
terminaram, as forças vitais diminuíram e é preciso transpor o limiar! Encontramos
forças para isso? Encontramos por nós mesmos o caminho? Ou a fé, uma força
espiritual maior, nos dará força? Ou talvez precisemos de uma mão amiga?
A atual taxa de mortalidade na faixa etária entre 28 e 35 anos é alta, e justifica-se
por doenças graves como câncer, AIDS e as cardíacas, assim como por acidentes
mortais e também pela alta taxa de suicídios. Por isso, podemos falar de uma
travessia de limiar; do encontro com uma nova força ou o sucumbir por questões de
destino, ou por falta de novas perspectivas e motivações para a vida.
Há aqueles que, com a força renovada, estão em ascensão na vida. Para estes, as
forças de ressurreição são mais sentidas na alma do que as de morte. Para isso,
porém, é necessário não se perder totalmente nas exigências externas da vida. Já
usamos o termo 'biografia externa' para caracterizar tudo aquilo que vem de fora, de
encontro à vida, cuja influência pode 'apagar' o eu como personalidade, ou mesmo
exigir desafios maiores do que o próprio poder de vencer.
Por outro lado, existe a 'biografia interna', os impulsos interiores que necessitam de
espaço interior para que floresçam e possam ser conhecidos, ouvidos; e para que, ao
aprender a ouvir a voz interna, a pessoa conheça melhor a si mesma, tente alcançar
esse equilíbrio tão sutil entre a biografia externa e interna.
As normas recebidas no segundo setênio têm de ser revistas. Qual delas o ser
humano gostaria de manter por achar que é condizente com seus valores, quais
foram impostas e agora o estão encarcerando (sufocando)? Há que se fazer esta
escolha, com consciência.
Existe um conto de fadas dos irmãos Grimm, chamado 'O Sapo Rei' ('O Príncipe-Rã
ou Henrique de Ferro'), no qual a princesa perde sua bola de ouro, pois caiu num
poço, e um sapo vai apanhá-la. Ele devolve a bola para a princesa sob a condição de
poder viver a seu lado. A princesa, para garantir sua bola de ouro, promete ao sapo
o que este lhe pede, mas não cumpre tal promessa. Na noite seguinte, à hora do
jantar, o sapo bate na porta do castelo querendo jantar com ela. A princesa fecha a
porta em sua cara e volta à mesa. Porém o rei, seu pai, diz: "O que você prometeu
você tem de cumprir." A princesa obedece às ordens do pai e, terminado o jantar, o
sapo também quer ir dormir com ela, como também lhe fora prometido. A princesa,
morrendo de nojo, tem de levá-lo no colo para o quarto. Ao querer subir na cama,
porém, a princesa fica com tanta raiva que joga o sapo contra a parede, e nesse
momento o sapo se transforma em príncipe.
A princesa consegue romper com as normas do pai e, nesse momento, seu
verdadeiro eu, sob forma de príncipe, pode aparecer.
A história ainda continua: os dois se casam e uma carruagem guiada por Henrique,
fiel criado do príncipe, busca os noivos. No caminho, por três vezes se escuta um
estalo, e o príncipe pensa que a carruagem se esteja quebrando. Henrique, porém,
responde-lhe: "Não é a carruagem, senhor, mas uma fita de aço me que foi colocada
no peito, em torno do coração, que se arrebentou."
A fita tripla de aço é, também, uma imagem das normas colocadas em torno do
nosso coração e pulmões, no tórax, área do sentimento, durante o segundo setênio,
e que têm que ser rompidas nesta fase da vida.
Nesta fase dos 28 aos 35 anos, ajuda muito trabalhar o equilíbrio das três forças
anímicas — pensar, sentir e querer. Rudolf Steiner, em seu livro O conhecimento
dos mundos superiores11, apresenta no capítulo 'Alguns efeitos da iniciação' um
exercício composto de seis etapas em que se exercita primeiro a concentração, em
segundo lugar o equilíbrio do sentimento, em terceiro o controle das ações, em
quarto o exercício da positividade, em quinto a superação do preconceito e, em
sexto lugar, o equilíbrio entre todos os cinco aspectos citados.
A atividade artística (pintura, música, dança, teatro) é de grande ajuda ao homem e
também à mulher (especialmente àquela educada academicamente), para a
recuperação dos sentimentos.
Quando a mulher está muito exaurida por ter tido vários partos, é-lhe benéfico
vitalizar-se por meio de massagens, banhos terapêuticos ou mesmo medicamentos,
pois caso contrário o processo de individuação se tornará difícil e ela continuará na
total dependência do esposo. Para o homem que se exauriu no estudo e, ao mesmo
tempo, vem trabalhando intensamente, também esta revitalização é importante para
ele poder integrar seu lado feminino, criativo, e com isso consolidar seu processo
de individuação.
11
Cit. (v. nota na p. 93).
IV — Sentia-me valorizado(a)? Em que sentia minha valorização?
V — Quais os encontros que tive, marcantes, entre os 30 e os 33 anos de idade?
Aos 35 anos começa um certo declínio físico. Quem depende da força física para o
trabalho, como os esportistas, por exemplo, vai perceber que seu auge já passou e
que está na hora de transformar sua atividade. Por outro lado, quem tem um
trabalho mais intelectual e sedentário não vai perceber esta modificação de forma
tão acentuada.
Porém, é graças às forças de desgaste que atuam sobre o organismo que pode surgir
uma consciência maior. Já vimos nos capítulos introdutórios que vitalidade e
consciência são dois pólos opostos; se, por um lado, diminui a vitalidade, por outro
lado este processo gera uma disposição fisiológica que permitirá a ampliação da
consciência. Por isso esta fase da vida é denominada por R. Steiner como fase da
alma da consciência.
Em termos de dinâmica, esta é novamente uma fase de maior interiorização, em
alguns aspectos, semelhante à fase dos 14 aos 21 anos, especialmente no sentido de
o ser humano ter chegado ao âmago de sua própria alma. Assim, aparecem
novamente sentimentos de solidão e de isolamento, tendo-se muitas vezes a
impressão de não ser compreendido(a). Isto causa, também, uma atitude crítica no
que se refere ao ambiente e aos outros. Enxergam-se com bastante clareza os
defeitos dos outros, e então a tarefa de autodesenvolvimento é aprender a conhecer
cada vez mais os próprios defeitos e limites.
A grande tarefa de desenvolvimento desta época é a de transformar a capacidade de
crítica externa em autocrítica. Novamente surgem as perguntas: "Quem sou eu, de
fato? Quais são minhas potencialidades? Quais são meus valores? Quais são meus
limites?" A pessoa desta fase já percebe claramente que não é onipotente, capaz de
tudo, como pensava ser na fase dos 21 aos 28 anos. Reconhecer os próprios limites
cria a possibilidade de ser tolerante consigo mesma e de aceitar o outro. É
fundamental conquistar a verdadeira aceitação de si mesma, com os limites e os
potenciais. Para isto, aliás, é necessário o autoconhecimento, do qual decorrerá a
aceitação dos outros, com seus limites e potenciais.
Depois de passar por todo este processo, o indivíduo está pronto para, na vida
profissional, assumir funções onde vá liderar e gerenciar pessoas. Só agora ele é
capaz de reconhecer que em cada colaborador existe um ser, uma individualidade,
com características, limites e qualidades próprias, as quais, além de respeitar, ele
será agora capaz de aproveitar e desenvolver.
Nesta fase, o ser humano aproxima-se mais da essência das coisas. É possível que,
ao abrir a janela e ver um lindo amanhecer com o sol despontando atrás da
montanha, ele possa sentir-lhe revelada a essência do divino. A mãe, ao lavar as
fraldas do bebê (embora já quase não haja mais tal oportunidade, devido às fraldas
descartáveis), olha para o amarelo das fezes infantis e, de repente, vislumbra o sol e
a essência de sua maternidade, especialmente se em torno desta faixa etária teve um
filho 'temporão'.
R. Assagioli denomina estas experiências como peak experiences, isto é,
experiências máximas, que acontecem em raros e especiais momentos da vida —
sendo que esta fase é distintamente propícia para isto ocorrer. Também em
encontros com pessoas, ou mesmo com o próprio parceiro, há momentos em que se
pode vislumbrar a essência do outro, o sentido mais profundo de os dois estarem
juntos. Pode-se descobrir o 'pequeno príncipe' no outro, o qual estava oculto atrás
dos vários papéis ou personas.
Erich Fromm fala 'do ter e do ser'. Mais forte do que no impulso de ser, talvez, até
então a pessoa tenha investido muito mais no impulso de ter — ter um emprego,
uma posição, uma família, uma casa, uma firma, etc. — e, subitamente, pode
começar a questionar-se sobre o que sobrará de si mesma. "O que eu sou
realmente?" Esta é a pergunta típica desta fase.
Para algumas pessoas, esta pergunta pode ser tão ameaçadora que elas passam por
cima de tais sensações ou até mesmo de vivências internas, que poderão aparecer
depois, no fundo da alma, como medos inconscientes. Elas passam a trabalhar cada
vez mais, ou começam a beber, ou a usar drogas como a cocaína "para incrementar
as energias da juventude"; depois, porém, caem num vazio cada vez maior,
podendo até mesmo instalar-se uma depressão. É imprescindível aprender a olhar
para si mesmo e a encarar-se de frente, até mesmo diante do espelho, onde é
inevitável ver as primeiras rugas e cabelos brancos. Também nesta época, o casa-
mento e o trabalho podem cair na rotina e gerar vazio e depressão.
"O que tudo isso exige de mim, para que eu me modifique e me transforme?" Cada
um terá de encontrar sua resposta. C. G. Jung diz que o anjo da morte se faz sentir
do Além, do Limiar, como que alertando e acordando o indivíduo: "Olhe, já passou
a metade da vida; o que você vai fazer, daqui para a frente?" A sensação de morte
ou a impressão de que "eu não vou viver muito mais tempo" é bem própria dessa
idade. Mais tarde desaparece, novamente.
Quando uma cliente me disse "Não sei o que está acontecendo comigo, tenho medo
de atravessar a rua" e eu constatei que ela estava com 38 anos, vi tratar-se de uma
crise passageira, chamada 'crise da autenticidade', esperada neste momento da vida.
Gai Sheely (autora de Passagens) denomina-a 'fase da desmistificação dos meus
sonhos'. Isto porque é a época em que a pessoa tem de ser autêntica em relação a si
mesma e não deve mais viver em função dos papéis; não deve fazer as coisas
porque o pai, ou o marido, ou o gerente acha necessário, mas deve fazê-las por ela
própria achar necessário. No casamento, isto está presente quando o parceiro é
convidado a ir ao teatro e aceita o convite por prazer, e não porque isto é esperado
dele.
Sente-se, nesta época, uma necessidade maior de liberdade. É, novamente,
importante que sejam respeitados os três espaços de liberdade de cada ser, tal qual
acontecia na adolescência. Ter uma belíssima casa, mas não ter nela um canto que
seja só seu, onde você tenha privacidade, não basta. A necessidade de privacidade é
grande. O cônjuge e os filhos exigem presença constante, mas não se pode dar nada
a eles caso não haja a possibilidade de cultivar o próprio íntimo. E para isso é
preciso ter um espaço exclusivo, só seu. Um escritório, uma oficina, um ateliê —
cada um tem de achar sua maneira de refazer-se do trabalho e da família.
O segundo espaço importante é o da liberdade psicológica. Poder ter os próprios
amigos, independentemente de eles serem amigos comuns ao cônjuge ou à família.
Viajar sozinho, sem que o outro se sinta ofendido.
O terceiro aspecto diz respeito à liberdade espiritual. O que significa isto? Nesta
fase, há muitas mudanças de profissão porque as pessoas estão sentindo uma
necessidade maior de viver, externamente, de maneira mais coerente com o que
sentem ou acreditam internamente. Por exemplo, um homem atingiu um alto cargo
como executivo de uma grande empresa e o padrão de vida da família é bastante
elevado; mas em dado momento ele percebe que o que está fazendo não o satisfaz:
quer, finalmente, realizar aquele sonho de juventude — ser fazendeiro. Será que a
família lhe dará apoio? Será que todos se conformarão em viver num padrão de
vida mais baixo? Outro exemplo é o da mulher que abandonou a faculdade porque
se casou e dedicou-se à família e aos filhos, que a ocupavam integralmente. Agora
eles já não necessitam mais tanto dela, e ela gostaria de retomar a faculdade. Será
que os familiares lhe darão o suficiente apoio?
Justamente aos 37 anos (duas vezes 18 anos e meio) ocorre o segundo nodo lunar.
Novamente acontece uma maior abertura, e o ser humano fica mais próximo do
Cosmo e de si mesmo. "Minha missão de vida começa a aparecer claramente, e eu
quero empenhar os meus próximos anos em realizá-la!" Isto exige o árduo trabalho
de colocar claramente as intenções perante os outros, pois a tendência geral é de
acomodação às situações e conquistas já garantidas, negando-se a novos desafios.
Porém eles são necessários para que se chegue à própria autenticidade, ao próprio
cerne. R. Steiner aponta para o fato de só a partir dos 35 anos o indivíduo se tornar
realmente útil para a sociedade. Até então ele recebeu muito dos outros e do
mundo; agora, todo esse aprendizado vai-se transformando e ele se torna capaz de
dá-lo. É uma época em que, cada vez mais, a biografia externa tem de juntar-se à
interna. Para exemplificar, temos o seguinte depoimento:
E agora chego ao que queria contar, pois lendo sobre o segundo nodo lunar, aos 37
anos, entendi coisas que estão acontecendo comigo nesta idade.
Tive, pela primeira vez na minha vida, a nítida sensação de morte em mim: senti,
num momento e de repente, que agora poderia morrer, sem que sentisse pena por
alguma coisa ou pessoa que deixasse para trás. Foi como se tivesse chegado ao
fundo do poço e nada mais importasse. Enão havia razão alguma para tal
sentimento. Gosto da vida e sou muito positiva, sempre consigo entusiasmar-me
com algo; vejo beleza, razão para tudo existir, mas tinha chegado 'ao nada'. E
demorou um tempo para voltar ã realidade.
Outra vivência foi a que tive num sono, vendo nitidamente quão fino, transparente e
perto está o limiar para a loucura. Vi que era dar um passo nessa direção e perderia
a autoconsciência, sendo levada portiques nevosos, ações sem nexo, sem centro
algum. E agora que vi isso, percebo que ficar dentro de si, ter a consciência do
próprio eu, é um trabalho constante. A descentralização está muito, muito perto.
E pela primeira vez me conscientizei plenamente do meu temperamento sangüíneo;
e, apesar de todos os seus lados bons, que eu sei que existem, comecei a encarar os
lados de fraqueza, sofrendo com a luta contra estes lados negativos. Não há mais
escapatória; a auto-educação tornou-se urgente, tornou-se real necessidade.
Dei-me conta também de que a profissão que muitas pessoas querem ver em mim, e
que de certa forma eu também queria preencher, não é o meu caminho (a
pedagogia). Quero assumir meu lado artístico e aprofundá-lo, mesmo que até há
pouco tempo eu não acreditasse nesse artista dentro de mim. Vi que meu caminho
será [encontrado] agora, na descoberta profunda destes temas, e que terei de
percorrê-lo sozinha, procurando, é lógico, ajuda de mestres, mas o exercício, o
estudo dependerá somente de mim. Quando houver frutos bons e maduros poderei
dá-los ao mundo, mas necessitarei do trabalho constante do dia-a-dia, para que estas
plantas cresçam. E o sangüíneo terá de aquietar-se, aprofundar-se, mesmo que
queira procurar outras coisas mais fáceis.
Pouco antes dos 37 anos e um terço, estou descobrindo coisas novas após chegar no
ponto mais fundo de encarnação (geralmente em torno dos 35 anos, mas no meu
caso aos 37).
Foi um grande alívio saber que essas vivências profundas e novas fazem mesmo
parte dessa etapa da nossa vida!
Depois de ler o capítulo sobre o setênio dos 35 aos 42 anos, fiquei com mais
coragem de 'tomar a vida em minhas mãos' e deixar de confundir-me com vivências
que não compreendia.
paredes. Colocar fundamentos exige esforço, pois as paredes que erguemos têm de
ser sólidas e não podem desabar diante das intempéries. É como, num templo,
erguer as colunas, arejadas e sempre em contato com o mundo externo.
• Na fase dos 35 aos 42 anos, o teto tem de ser colocado na casa. O teto exige uma
estrutura firme, porém feita de cima para baixo. Nesta fase, também a visão tem de
vir de um ponto de vista superior, já mais amplo e fecundado pelo elemento
espiritual, essencial. Começa a ficar compreensível a expressão "Não eu, mas o
Cristo em mim", num sentido mais amplo.12 Vemos que a dinâmica dos três
primeiros setênios se repete, nestas fases, no que se refere ao aspecto anímico do
ser humano.
21 28 35 42
Portanto, nessas fases do meio da vida (21 a 42 anos) também vale o que dissemos
em relação os primeiros setênios, posto que cada setênio tem dois primeiros anos
mais relacionados com o setênio anterior; o setênio do meio é mais o coração do
setênio, com características bem próprias, e os dois últimos anos já estão fortemente
voltados para o setênio seguinte.
Por outro lado, todo o setênio que vai dos 35 aos 42 anos representa como que um
trampolim para os próximos setênios que virão após os 42.
12
Frase atribuída ao Apóstolo Paulo. (N. E.)
Como trabalhamos, biograficamente, as fases de 0 a 42 anos? Que leis gerais
vigem?
As divisões dos setênios são marcos importantes na biografia. Gai Sheely, a
jornalista americana, fala de 'passagens'. Muitas vezes constatamos modificações
psicológicas nos setênios do meio (21 a 42 anos), enquanto nos primeiros setênios
(0 a 21 anos) as modificações são de natureza fisiológica.
As modificações desta fase são nitidamente marcadas por acontecimentos ou
mudanças externas, e freqüentemente são acompanhadas de crise.
O que é uma crise? Entre outras definições, é um ponto de transição. A primeira
crise na vida — o nascimento, o parto — é arquetípica, e pode servir-nos de guia
para as demais. O que acontece? O embrião está maduro, tem de sair para o mundo,
e então ocorre sua separação da mãe, acompanhada de dor. Após o corte do cordão
umbilical, temos um ser livre, que não depende mais fisiologicamente da mãe. A
mãe poderá desaparecer ou até morrer, mas a criança se tornará uma
individualidade humana independente.
E o processo se repete.
Esta maturação acontece, do ponto de vista vital, aos sete anos de idade, como
vimos, por meio da separação do corpo vital da mãe; aos catorze anos, com a
separação mais afetiva dos pais; aos 21 anos, assumindo-se a maioridade; aos 28
anos, deixando-se os talentos herdados para trás; aos 35 anos, deixando-se os papéis
e as normas da infância, para tornar-se cada vez mais 'um ser em si mesmo'; aos 42
anos, com a grande crise existencial, para tornar-se verdadeiramente adulto.
Não só nas passagens dos setênios, mas a cada momento da vida uma crise pode
aparecer. Um jovem que esteja muito acomodado com a família sabe, mesmo
inconscientemente, que terá de separar-se — e também que esse processo é
dolorido! Será que conseguirá?
Podemos ver outro exemplo:
Digamos que um homem esteja no auge de sua carreira profissional, domine toda as
situações a ela relacionadas, mas não esteja mais crescendo nem se desenvolvendo.
Sente, em seu inconsciente, que algo tem de mudar; a 'roupa' não lhe serve mais.
Quais são as possibilidades? Acomodar-se e parar seu desenvolvimento, ou romper,
separar (que é acompanhado de dor) para, com uma nova independência, conquistar
uma nova posição? O novo é desconhecido, gera incertezas e, portanto, crises.
Quanto maior é o vislumbre dos passos seguintes e a possibilidade de tatear o
futuro, ver seus prós e contras, ponderar as diversas alternativas, mais seguro será o
passo.
Afetivamente também acontecem crises — o mal-estar por uma dependência
exagerada do outro —; no entanto, dar o passo em direção à separação é, muitas
vezes, a única chance de crescimento.
Portanto, crise é sinônimo de desenvolvimento.
Hermann Hesse expressou isso num belíssimo poema:
Tal qual cada flor fenece
e toda juventude cede à idade,
floresce cada patamar da vida.
Toda sabedoria e toda virtude
também florescem a seu tempo
e não devem durar eternamente.
O coração precisa estar, em cada patamar da vida,
predisposto à despedida e a novo início
para, na coragem e sem pesar,
entregar-se a novas ligações.
E em todo começo reside uma magia
que nos protege e nos ajuda a viver.
Temos de transpor, dispostos, espaço a espaço,
e a nenhum nos apegar como a uma pátria.
O Espírito Universal não nos quer prender e limitar:
quer erguer-nos degrau a degrau, quer nos ampliar.
Mal nos habituamos a um ambiente,
sentindo-o familiar, ameaça o acomodar-nos.
Só quem esteja pronto a partir e viajar
talvez escape do hábito paralisante.
Talvez ainda a hora da morte
nos envie, jovens, a novos espaços;
o apelo da vida a nós jamais há de findar.
Vamos lá, meu coração: despede-te e convalesce.
Hermann Hesse
Há pessoas que, chegando a um curso biográfico, dizem: "Eu nunca passei por
crise." Que ingenuidade! Algo há de errado com elas, pois as crises são importantes
e sadias. Porém ao longo do curso elas vão descobrindo e identificando suas crises.
A natureza nos pode ajudar a compreender uma crise, bem como mostrar certos
comportamentos típicos desse momento. Um caranguejo, quando cresce, tem de
mudar de casca. Para isto tem de dissolver a casca antiga, cujas substâncias, em
parte, serão aproveitadas para a casca nova. Nesse período fica em seu buraco, pois
se sente muito vulnerável. Quando a casca se refaz ele sai do buraco, sem medo.
Em caso de crise mais forte, podemos usar a tática do caranguejo: retirar-nos um
pouco, para depois, já recuperados, podermos voltar, mais fortificados. Às vezes,
precisamos do acompanhamento de um consultor biográfico, de um
aconselhamento que nos ajude a vislumbrar os passos seguintes para podermos,
assim, sair da crise.
Algumas perguntas relativas a este setênio:
I — Acrescentaram-se novos valores à minha vida?
II — Consegui promover transformações em minha vida, em função desses novos
valores?
III — Senti uma modificação essencial, por volta dos 37 anos?
Por volta dos quarenta anos de vida, mais precisamente aos 42 anos, o ser humano
está numa passagem bem mais problemática do que em outras épocas, e por isso
esta é chamada de 'crise existencial'. O professor B. Lievegoed, autor do livro Fases
da vida13, considera que nós nos tornamos verdadeiramente adultos somente aos 42
anos. Para quem é mais jovem, é difícil aceitar esta afirmativa, mas quem já a
vivenciou sabe ser verdadeira.
Qual é o lado positivo desta passagem? A sensação que tenho é a de que estamos
subindo uma montanha e, ao chegarmos em seu topo, aos 42 anos, avistamos a
paisagem de uma forma nova, de um novo ponto de vista. Antes estávamos no
emaranhado dos cipós, das árvores, dos insetos, da floresta; por estarmos
embrenhados no mato, isto é, no meio de muito trabalho, nada enxergávamos. De
repente, do cume da montanha vislumbramos toda a paisagem, temos a visão do
todo: ali existe uma praia, acolá uma bacia amena e suave. Do outro lado um
'costão' rochoso, onde o mar, em seu profundo azul, vem bater. Na praia vem
desaguar um rio; ele passa por uma imensa planície e por isso vai formando
inúmeros meandros. Pela primeira vez entendo por que, navegando de barco, levo
tanto tempo para chegar de um porto a outro (é por causa dos meandros!), enquanto
pela via aérea tudo fica mais perto.
Comparando tudo isso com nossa vida, repentinamente temos a capacidade de
entender mais nossa própria paisagem existencial — entendemos as diversas
correlações! A montagem do gráfico do capítulo anterior nos ajuda neste processo,
assim como podemos pintar os diversos locais por onde estivemos e enumerar as
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Edição brasileira em trad. de Jayme Kahan (5a ed. São Paulo: Antroposófica, 1999).
diversas pessoas que nos foram importantes. Podemos, então, dizer que "atingimos
uma nova visão".
Falemos do lado negativo dessa crise mencionando outra sensação, bastante comum
nesta fase e pela qual também passei: é a de nos encontrarmos dentro de um túnel.
Vislumbramos a luz do outro lado mas sabemos que ela ainda está bastante longe, e
que só de vez em quando encontramos 'respirador' dentro do túnel. Outras pessoas
têm esta vivência na imagem de que estão num poço.
Talvez esta não seja a primeira vez que caímos no poço. Em todas elas houve
alguém que, no momento difícil, nos deu a mão e nos tirou daquela situação. A
diferença é que agora não há mais tais pessoas; somente pelo próprio esforço é que
conseguiremos sair desta crise existencial. Nós mesmos nos damos a mão que nos
tirará da escuridão.
Para entendermos o desafio desta fase, podemos ainda usar outra imagem: a de que
estamos entrando na fase espiritual da vida, dos 42 anos em diante. Muitas vezes
temos a pretensão de achar que isto eqüivale a acender um grande sol, uma grande
luz em nós, mas não será necessário. Uma pequena vela também tem a qualidade de
iluminar uma sala grande e escura. A questão fundamental será, então, cuidar para
que essa vela não se apague.
A crise é existencial porque o ser humano está só, totalmente só, mesmo que esteja
bem casado, tenha ótimos colegas de trabalho e, provavelmente, já tenha alcançado
o status que sempre desejou.
A pergunta que se formula para este momento é: como encontrar um novo patamar
e encarar novas dimensões da vida?
Elevação
Capítulo IV
As fases de 42 a 63 anos: a realização de vida
Aos 37 anos, com o segundo nodo lunar, a existência da missão no ser humano
torna-se cada vez mais consciente. Às vezes ele ainda precisa de uma ajuda para
tornar este impulso interno da biografia uma intenção mais visível para si mesmo.
Outras vezes já está no caminho, porém sem percebê-lo. É freqüente a impressão de
dois afluentes que se juntam num grande rio. Cada vez mais a biografia interna vai
conseguindo realizar-se e vai-se tornando mais visível para o mundo. Agora é a
contribuição para o todo, para a humanidade que está em questão. É hora de 'tocar o
barco com coragem'.
O cerne espiritual, já mais despojado de suas vestimentas externas supérfluas,
aparece e consegue manifestar-se cada vez mais.
Quando dizemos que essa fase é a fase do desenvolvimento espiritual, referimo-nos
a dois elementos: de um lado, o cerne espiritual, o eu, que se torna cada vez mais
visível, e de outro a ligação com os seres espirituais superiores, o Eu Superior ou
guia individual. Isto é possibilitado pelas forças de desgaste mais presentes que, em
troca, dão ampliação cada vez maior à consciência.
Chegamos naquele ponto da vida em que a ampliação da consciência nos faz
ascender e crescer em nosso desenvolvimento ou, então, parar em nosso
crescimento e, com isso, decrescer, acompanhando a curva biológica. A terceira
possibilidade que existe para nós é manter o ritmo máximo dos anos anteriores,
com prejuízo da saúde e da harmonia interior.
III — O que eu deixei para trás em aptidões, potenciais e talentos que agora posso e
quero resgatar?
IV — Em meu trabalho estou preocupado(a) com os sucessores?
VI — Como está meu casamento? Meu relacionamento? A relação com meus filhos?
Biografia 4
Sou o terceiro filho de uma família de holandeses. Somos lavradores. Meus dois
irmãos mais velhos são homens, e depois de mim tenho mais um irmão.
Até os catorze anos eu vivi na Holanda. Quando íamos à escola, eu seguia meus
dois irmãos mais velhos, que se divertiam quando eu ficava para trás, sozinho na
estrada. Nossa família é católica, e todas as noites rezávamos o terço. De maneira
geral, nossa infância era bem harmoniosa. Nossa mãe tinha pouco tempo para nós, e
nós tínhamos de ajudar nosso pai no campo.
Quando eu estava com catorze anos de idade, minha família emigrou para o Brasil,
todos com um enxoval de roupas novas que, após algum tempo, mostrou-se
completamente inadequado aqui, devido ã chuva e ao calor.
Com quinze anos tive hepatite. Não freqüentava a escola. Minhas atividades
consistiam em arar a terra com cavalos, plantar milho, algodão, verduras e
principalmente tomates. Na Holanda só plantávamos flores. Minha família comprou
um trator, mas só meus irmãos mais velhos podiam usar. Anos seguidos
trabalhamos direto, sem férias.
Aos dezessete anos tive uma intoxicação pelo uso de agrotóxicos, a qual me causou
uma lesão renal; por isso permaneci um mês de cama no hospital
Aos dezenove anos usei nosso caminhãozinho para sair e voltei um pouco tarde
para casa. Meu irmão ficou com muita raiva e meu pai o instigou a me bater. Esse
acontecimento foi bastante marcante para mim. Nós, os três irmãos mais velhos,
estávamos em constante competição. Eu nunca me entendi bem com esses meus
dois irmãos acima de mim. Com meu irmão mais moço, ao contrário, eu me
entendia muito bem, mas ele logo saiu de casa para fazer faculdade e assim perdi
meu amigo. Meu pai, por sua vez, protegia os maiores. Ele só escutava o mais
velho. Eu, porém, sempre tive de lutar pela minha posição. Às vésperas do
casamento de meu irmão mais velho, meu pai entrou em nosso quarto (todos nós
dormíamos num mesmo quarto) para se despedir dele. Disse-lhe então que ele era
seu filho preferido. Isto me doeu bastante.
Aos 24 anos, quando me casei, meu segundo irmão já estava casado. Todos nós, os
três mais velhos, porém, continuávamos trabalhando na empresa de nosso pai. Era
uma empresa familiar inserida numa comunidade maior, formada por várias
fazendas de holandeses. A meta de meu pai era conseguir fazer da empresa a maior
e a melhor de todas.
Meu casamento era bom, só que não conseguíamos ter filhos. Assim, aos 28 anos
adotamos um menino e quando eu tinha 30 adotamos uma menina. Aos 31 anos me
apaixonei, sem, porém, ter relacionamento sexual; porém minha esposa ficou muito
enciumada e o casamento 'balançou'. Aos 33 anos resolvemos adotar um terceiro
filho, esperando, com isso, superar as dificuldades do casamento. Todas as três
adoções foram como que escolhidas pelo destino.
Após todas as dificuldades emocionais, adquiri um melanoma (espécie de câncer)
que teve de ser extirpado. Pouco tempo depois, resolvi fazer um tratamento médico
antroposófico.
A empresa foi crescendo, foi-se especializando em flores, principalmente gladíolos
e crisãntemos. Atualmente possui mais de setecentos funcionários. Eu amo as
flores, especialmente.
Com 37 anos tive um carcinoma de pele no tórax, que também foi extirpado.
Já a partir dos 35 anos eu sentia uma liberdade interior cada vez maior. Também
dava mais sentido e valor à vida. Quando fiz quarenta anos, meu pai se retirou da
firma e meu irmão mais velho se tornou o presidente da mesma.
Também me conscientizei de que eu não era um pai tão bom quanto almejava.
Acredito que isto tenha a ver com minha própria relação com meu pai, a qual
sempre foi problemática. Estive pela primeira vez num curso biográfico quando
estava com 41 anos. A relação com minha mulher estava de mal a pior. Eu me
interessava cada vez mais pela Antroposofia — nossa empresa estava recebendo
uma consultoria antroposófica.
Minha mulher teve uma educação católica muito rígida. Ela controlava nossos
filhos intensamente. Eu percebi que tinha de trabalhar mais profundamente minha
biografia, e por meio de uma palestra no curso biográfico, sobre o livro IRMÃOS E
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IRMÃS, de Karl Kónig , entendi melhor minha situação e de meus três irmãos.
Apaixonei-me intensamente mais uma vez aos 42 anos. Pensei até em separação e
em um novo casamento que me abrisse novos horizontes. O ano inteiro me debati
com essa questão de separar-me ou não, mas acabei mantendo-me fiel aos meus
princípios e à minha família. Sei que tenho de modificar as coisas a partir de dentro
e foi isto o que comecei a fazer. Desisti dessa paixão, mas tolerava cada vez menos
a vida familiar tradicional e também a empresa da família, com todos os
envolvimentos decorrentes.
Entre meus 42 e 49 anos, novos pontos de vista, novos valores começaram a
prevalecer. As grandes fazendas de agricultura, pequenos camponeses, inúmeros
colonos, católicos holandeses, todos foram unidos por uma cooperativa, querendo
fundar até uma cidade. Eu me empenhei para que essa fundação pudesse acontecer
— houve um reconhecimento público —, e nessa altura da vida estava com 44
anos. Sentia como se essa luta externa libertasse meu interior.
Aos meus 49 anos, estávamos às vésperas de nossas bodas de prata. A certeza
interior de que eu não queria dar mais este passo, mantendo o casamento, era
grande. A imposição que eu havia feito a mim mesmo de não ver mais a mulher
amada, de tentar desistir desse amor, fora mantido durante esses anos. Mas o
relacionamento com minha esposa não havia melhorado em nada.
Voltei todas as minhas leituras e cursos para a Antroposofia, participando também
de novos cursos biográficos, que reforçaram este interesse.
A educação das crianças era um contínuo ponto de discussão com minha mulher. A
questão que havia em mim era o que me amarrava a esse casamento, e a resposta
14
Edição brasileira em trad. de Mariangela Motta e Susana U. de Souza Aranha (2. ed. São Paulo: Antroposófica, 1995). Nesse livro Karl König
descreve como a relação do primeiro filho é maior com o pai. Ele é um preservador da tradição familiar, um mediador entre o pai e os outros irmãos.
O segundo filho é mais relacionado com a mãe, sendo mais artístico e criativo. 0 terceiro filho é mais ele mesmo, mais relacionado com inovação,
morte e ressurreição. Karl Kónig relaciona estas três forças com o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
era sempre a mesma: em caso de separação, as crianças, que já são adotivas, iriam
mais uma vez ficar sem seus pais. Mas, por outro lado, as crianças eram afetadas
pelas brigas. Tornou-se urgente uma decisão, e assim, aos 48 anos, decidi pela
separação.
Enquanto isto, haviam-se passado sete ou oito anos sem que eu tivesse contato
algum com a mulher amada, e decidi procurá-la. Um novo encontro, muito forte,
leva-me a um relacionamento profundo, e um ano mais tarde caso-me novamente,
agora com ela. Com isto as diferenças entre irmãos se acentuam e isto se reflete
também nos negócios, envolvendo minha ex-mulher, que faz parte na firma. Final-
mente chego à conclusão de que uma separação definitiva da empresa será benéfica
para mim. Desisto da direção de uma das unidades de maior produção de flores,
assim como desisto da sociedade. Após algum tempo, surgiu em mim o desejo de
continuar os estudos, que abandonei aos catorze anos. Eu gostaria de estudar algo
ligado ao desenvolvimento do ser humano, que levasse em conta seu lado espiritual,
e não apenas um estudo técnico. Talvez me torne um aconselhador biográfico ou
consultor empresarial. Foi nesta direção que fiz minhas buscas e descobri que até
agora só fiz o que os outros queriam que eu fizesse, e que estava na hora de
começar a fazer o que eu queria. Meus filhos se tornaram independentes. Tenho até
uma filha casada, e já sou avô. O mais velho vive comigo e o mais novo quer ir
estudar na Holanda.
Nos últimos anos, tenho-me dedicado à complementação de minha formação em
Aconselhamento Biográfico e Consultoria Empresarial, e os próximos passos de
minha atividade nesta área estão sendo delineados. Certamente tudo se realizará em
meu terceiro nodo lunar, aos 55 anos e meio, pelo qual estou quase passando.
Note-se que nesta biografia é possível observar nitidamente, a partir dos 41 anos, a
procura de novos valores e, ao mesmo tempo, a busca cada vez maior pela
liberdade. No caso, o processo acontece de dentro para fora — a busca de uma
liberdade interior que, quando conquistada, resulta na busca de liberdade externa.
Em muitas biografias, o processo ocorre de modo inverso. É mais fácil conquistar
uma liberdade externa para depois conquistar a interior; ou, em alguns casos,
mantêm-se apenas a liberdade externa e a ilusão de ter conquistado a liberdade
integral.
Aos catorze anos ele abandonou os estudos. Aos 49 anos sente a forte vontade de
retomá-los, de voltar a estudar. Dá início a um novo processo de aprendizado, que
se intensifica nos últimos três anos. Nota-se que os catorze anos se espelham
exatamente nos 49 anos de idade.
Esta fase é chamada de 'fase da sabedoria'. Ela permite uma harmonia interna cada
vez maior, desde que se consiga um equilíbrio entre as solicitações da vida externa
e as da vida interna.
A fase dos 42 aos 49 é uma fase de aprendizado; aprender como lidar com esta
busca que é mais espiritual, junto da nova visão. A fase dos 49 aos 56 anos é uma
fase de maior troca, respiratória, entre o mundo e si mesmo. Sabedoria aqui
significa saber encontrar um novo ritmo de vida, adequado ao declínio físico. Se
este ritmo não é encontrado, os órgãos rítimicos — coração e pulmão — se
ressentem. O stress pode levar a pressão alta, angina de peito ou mesmo infarto; ou,
ainda, uma asma da infância pode voltar a aparecer. Esta é a fase que espelha o
setênio entre sete e catorze anos, quando esses órgãos rítmicos amadurecem.
Nesta fase, há o desprendimento das forças vitais no sistema rítmico, o que permite
desenvolver-se uma nova qualidade espiritual: a da 'escuta' ou da 'inspiração'. É o
momento de aprender a escutar mais os outros — quais são as perguntas que
chegam e a quais delas é realmente necessário responder. Quando alguém está em
busca de uma ocupação nova, é importante escutar bem, observar de onde surgem
as perguntas, os convites, e indagar a si mesmo: "Será que eu tenho condições de
atender a essas solicitações, ou elas vão exigir demais de mim?"
Além dessa escuta, voltada para o mundo, é necessário ouvir a voz interna — o que
ela está me dizendo. Por exemplo, talvez ao acordar a pessoa tenha a nítida
sensação de que não deva fazer uma viagem marcada. Ou, tendo um negócio
combinado, tenha a coragem de cancelar o negócio naquele dia, transferindo tal
encontro. Não é mais hora de forçar as coisas. É preciso aprender a obedecer aos
próprios sentimentos, a desenvolver a paciência e ter uma atitude mais
contemplativa perante os acontecimentos da vida. Nesta fase de sabedoria, pode-se
ter a atitude de um rei, de um soberano; dar-se ao luxo de sentar-se ao trono e não
mais dar ordens, como aos 35 anos, mas delegar aos colaboradores mais conhecidos
cada vez mais poderes, sem se envolver com os detalhes das coisas. Nesta fase da
vida, Beethoven, que já era totalmente surdo, ouvia cada vez mais a música interna,
a música das esferas celestiais.
A nova forma de liderança, iniciada no período anterior, cresce e ganha maiores
dimensões. É nesta época que as pessoas se tornam úteis em cargos públicos ou
políticos, desde que tenham a vontade de servir publicamente e não de usar o poder
para interesses próprios. Sim, pois esta é a época mais altruísta da vida, quando os
frutos estão maduros e podem ser colhidos. Já estamos, pois, em pleno outono da
vida.
O professor Lievegoed, em seu livro Fases da vida15, denomina esta fase como 'fase
moral da vida'. Eu gostaria de denominá-la 'a fase ético-moral'. Dissemos que o
desprendimento das forças se dá no pulmão e no coração. O coração é o nosso
órgão da moralidade e da consciência. Um pequeno exemplo, para ilustrar: —
Quando um menino na rua pede uma esmola, você racionalmente não dá, pois ele
poderá usá-la para comprar drogas. Você diz 'não' para ele e continua seu caminho.
Então olha mais uma vez para trás e vê aqueles olhos vivos, suplicantes, e de
repente os olhos de ambos se encontram! Seu coração se aperta, você volta e acaba
dando a esmola. Não dar fará tanto ou mais mal do que dar.
Nesta fase da vida, já não nos preocupamos tanto com nosso destino, mas com o
destino do outro; abrimo-nos mais para a humanidade. O coração desperta, e
começamos a perceber mais todo ser humano à nossa volta. Aqui no Brasil, este
aspecto é sentido na própria pele, mas em realidade é no coração que ele vive, e um
constante mal-estar nos acompanha no inconsciente: a injustiça social.
No exemplo de um participante, podemos observar o cerne deste setênio. Aos vinte
anos, quando se casou, ele era empregado numa firma de adubos químicos e
produtos agrotóxicos. Almejava formar família, ter sua casa e um automóvel. Aos
trinta anos já fizera sua carreira e gerenciava toda uma divisão da empresa. Aos
quarenta, começou a preocupar-se com o bem-estar de seus subalternos. Aos
cinqüenta anos começou a interessar-se por ecologia e ficou assustado com o uso
indiscriminado de agrotóxicos e fertilizantes químicos aqui no Brasil. Aos
cinqüenta e poucos anos começou a sentir-se mal em relação à própria firma, que
vendia estes produtos. Nesse ínterim, já havia comprado uma fazendinha, onde
cultivava as plantas de maneira alternativa, biológica, utilizando adubos de origem
animal. Esta atividade foi-se ampliando, e sua consciência, despertando. Ele foi
escutando a voz de seu coração, sua voz interna, tentando compreender o que ela
estava lhe dizendo. Não se deixou levar pela ambição de enriquecer mais e de ter
mais poder, e acabou dedicando-se totalmente ao ramo da agricultura biológica.
Destaco a importância de que a transição de uma atividade para outra seja feita
gradativamente, como ocorreu neste caso.
15
Cit. (v. nota nap. 124).
15
Cit. (v. nota na p. 23).
R. Steiner, falando sobre o ensino, diz que quem aprendeu a rezar, a ter devoção,
veneração no segundo setênio, agora, nesta fase, é capaz de dar a bênção. Esta
situação pode ser percebida na vida em família, pois nossos filhos estão crescidos,
talvez já tenham até saído de casa, e freqüentemente percebemos que não somos tão
procurados por eles quanto o somos pelos amigos deles ou por outros jovens. Esses,
sim, vêm-nos procurar, pedir-nos conselho. Podemos, nessa época, tornar-nos 'pai
(ou mãe) universal', ter uma casa acolhedora, onde os jovens se sintam à vontade e,
se dermos abertura, com certeza venham pedir-nos conselhos.
Por outro lado, não faz parte da sabedoria darmos respostas a perguntas que ainda
não nos tenham sido feitas, pois para os mais jovens é muito desagradável receber
constantemente ensinamentos e conselhos nos quais eles não estão, nem um pouco,
interessados no momento.
A fase dos 49 aos 56 anos pode ser uma fase bastante harmoniosa. Porém, mais
para o fim desta fase, lá pelos 55, 56 anos, a pessoa se aproxima de uma passagem
de setênio que coincide com um nodo lunar. Este nodo lunar representa uma crise,
no sentido de se começar a aceitar a velhice. É a passagem da idade ativa para a
velhice, e nem todos estão preparados para encarar tal fase de vida, que pode ser
bastante rica. Constatou-se que mais de 60% das grandes obras da humanidade, de
escritores, juristas, políticos, músicos e outros, foram compostas após os sessenta
anos. No entanto, para muitos esta passagem pode ser bastante difícil.
Novamente uma história de vida, um exemplo concreto pode mostrar-nos este fato.
Um homem de 55 anos, hipertenso e obeso, participou de um curso biográfico e de
uma semana de desintoxicação, na Artemísia. Ele trabalhara muitos anos numa
multinacional que possui muitas filiais no Brasil. No início de seus cinqüenta anos,
ele começou a perceber que estava ficando cada vez mais solitário. Devido ã sua
profissão, não se dedicara à família nem aos cinco filhos. Tornara-se um estranho
para ela. Tomou consciência de que a havia abandonado em prol da profissão.
Agora queria recuperá-la. Resolveu construir uma grande mansão no litoral
paulista: uma estrela de cinco pontas, onde cada ponta representava um dos filhos e
um grande salão no meio da casa deveria ser o local de encontro da família. Teve
de passar por uma grande desilusão, pois nenhum membro da família foi para lá. Só
restava usar a casa para festas sociais e da comunidade. Ele saiu da empresa, mas
não conseguiu estabelecer uma transição sadia. Resolveu ir para o Amazonas a fim
de iniciar uma plantação de cacau e outros produtos. Infelizmente não conheço os
detalhes de como seguiu sua história; apenas sei que ele continuou com problemas
de pressão alta e problemas cardíacos, e que a relação com a família não melhorou.
Ainda uma palavra sobre a andropausa, que acontece por volta dos 56 anos. A
queda dos hormônios masculinos seria o correspondente à menopausa (feminina).
No homem, porém, não significa perda da capacidade reprodutora. Por outro lado,
podem surgir tumores ou mesmo câncer de próstata, nesta época. No aspecto
anímico, esta idade é chamada de 'idade do lobo', na qual o perigo é tornar-se cada
vez mais um lobo solitário. Outras vezes, uma luta interna contra a idade pode
parecer uma tempestade em copo d'água, ou então ele pode passar a comportar-se
realmente como um lobo, começando a sair à noite para 'caçar'.
É interessante que o homem começa a ter sonhos sexuais, que estão ligados ao
desprendimento das forças da área sexual. Quando este fato é mal-interpretado, ele
pode achar que deve sair e buscar satisfação sexual fora do matrimônio. Se o casal
tem boa intimidade, ele deve conversar com a mulher sobre este assunto; ela, nesta
fase que é a mais difícil para o homem, pode ajudá-lo na superação. Talvez ele
também possa ajudá-la a superar as dificuldades da menopausa.
III — Quais são os galhos secos de minha árvore, os quais tenho de cortar para que
Biografia 5
Uma participante de cursos biográficos, com a idade de 63 anos, conta que em sua
família ela sempre era considerada 'o patinho feio'. Em sua opinião, suas irmãs
eram privilegiadas. Já aos catorze anos ela começou a trabalhar para ganhar seu
sustento, ainda que morasse com a família. Casou-se, aos 21 anos, com um médico.
Não tinha vontade de estudar, embora seu marido a incentivasse a isso. Em seu
quarto setênio, teve duas crianças. Além de ocupar-se com a família, mantinha uma
loja de discos e fitas por meio da qual contribuía financeiramente para a família.
Quando tinha quarenta anos, seu marido adoeceu de uma psicose maníaco-
depressiva. Pouco tempo depois ela própria teve um câncer de tireóide; estava perto
da morte, mas, depois de um tratamento de radioterapia, aos poucos foi-se recupe-
rando. Aos 42 anos foi estudar Belas Artes, começou a participar de exposições, fez
sucesso e ganhou vários prêmios. Seu marido, porém, não tolerava seu sucesso, e
assim ela teve de desistir desse estudo e trabalho. Mais tarde passou a fabricar
teares e a ensinar as mulheres pobres da fazenda a tecer em tear. Ela fazia os
modelos e as mulheres teciam segundo seus desenhos. Deste modo ela criou, em
alguns lugares do interior de Minas Gerais, pequenas indústrias têxteis. Por
intermédio dela eram feitas as encomendas de tapetes que, quando prontos, ela
buscava para a revenda.
Porém os golpes que ela recebeu do destino foram fortes. Seu filho passou a usar
drogas desde os treze anos de idade. Com vinte anos ele sofreu um grave acidente
de automóvel e, em conseqüência, ficou paralisado por dois anos, completamente
dependente da mãe durante este período. Após esta fase, o filho foi viver com uma
mulher que também fazia uso das drogas; eles tiveram filhos e se casaram. Por três
vezes esse filho viveu crises maníaco-depressivas e tentou suicidar-se. A mãe era a
única que conseguia cuidar dele e tirá-lo da crise. Também a filha se casou com um
usuário de drogas e juntos eles tiveram dois filhos, que muitas vezes foram
deixados aos cuidados da avó.
Assim, constantemente envolvida pelo destino dos familiares, nossa participante
não conseguia manter seu trabalho, que tanto prazer lhe dava. Aos 62 anos teve um
câncer de bexiga, do qual também se recuperou.
Finalmente ela se encontra numa fase da vida em que, junto a seu marido de 67
anos, quer e pode viver seu próprio destino e tomar a vida em suas mãos. Ela põe
toda a sua criatividade nos tapetes. Seu marido passou por mais uma crise maníaco-
depressiva. Na fase crítica, doou seu consultório a uma jovem, não facilitando em
nada a vida de sua mulher.
Nossa participante tem uma enorme coragem de viver. Ela pensa poder viver o
resto da vida em maior harmonia consigo mesma, sendo menos agressiva com os
outros. É da religião evangélica, é muito ligada aos textos da Bíblia e está a
caminho de ampliar sua visão do ponto de vista espiritual
Nesta biografia é possível diferenciar nitidamente o que, de um lado, é
desenvolvimento geral e, de outro, as crises de cada setênio; isto é semelhante em
todo ser humano. Por outro lado, vê- se o que é de caráter individual da biografia.
Em nossa biografia temos de aprender a diferenciar isto.
Os setênios são bem marcados nesta biografia: aos catorze anos, ela começa a
trabalhar; aos 21 anos se casa; entre os 21 e os 28 anos, tem dois filhos. Agora
entram condições bem especiais, como a doença do marido, a psicose maníaco-
depressiva, que atua nela provocando um choque anímico muito grande,
desencadeando um carcinoma de tireóide que a leva ao limiar da morte. Aos 42
anos — portanto, no começo de um novo setênio — vem uma força renovadora,
uma ressurreição. Novos valores surgem e ela decide estudar, mas apesar de obter
sucesso se deixa subjugar novamente. Entre os 42 e os 49 anos consegue usar de
sua criatividade artística e, ao mesmo tempo, aproveitá-la para fazer seu negócio.
Apesar de novos golpes do destino, consegue levar esta atividade para os dois
setênios seguintes, dos 49 aos 56 anos e dos 56 aos 63. Assim, essas três últimas
fases formam uma unidade, que denominamos 'fase espiritual' da vida, durante a
qual ela consegue sua realização pessoal. É como se os botões que surgiram depois
dos 42 anos, apesar das adversidades do ambiente, tivessem desabrochado.
Quando eu entrei nesta fase, pensei: qual será a nova tônica para este setênio? Se
tudo continuasse da mesma forma, com certeza eu entraria num declínio ainda
maior, acompanhando o declínio físico. Aliás, é uma questão que se pode formular
a cada setênio: qual será o novo elemento para ele? Leva-se, porém, pelos menos de
um a dois anos até que se comece a descobrir a tônica do novo setênio. Para mim
foi aos 58 anos (vide autobiografia) que ela se apresentou. No caso, foi iniciar os
cursos de formação biográfica na Europa; levar este impulso que já existia, porém
adormecido. Foi o que sucedeu.
Normalmente esta fase é de mais introspecção. Fisicamente, as forças se retiram
dos órgãos dos sentidos e do cérebro. A visão e a audição se tornam mais fracas; as
pessoas começam a reclamar que a comida não tem mais gosto; as sensações táteis,
o equilíbrio, tudo, enfim, começa a sofrer alterações, e precisa-se ter um cuidado
especial com os órgãos correspondentes para que não se atrofiem rápido demais.
Outro fato é que a memória começa a ficar mais fraca, especialmente se no
primeiro setênio houve uma solicitação intelectual precoce à criança, fazendo-se
com que o cérebro perdesse mais do que o esperado de sua vitalidade: agora esse
desgaste se faz sentir mais intensamente.
Assim como fazemos exercícios físicos para os músculos não atrofiarem, podemos
fazer exercícios mentais, de matemática, de física, de memória, para manter a
capacidade intelectual viva. Decorar músicas e poemas, estudar uma nova filosofia
de vida, ou a própria cosmovisão antroposófica, pode contribuir para uma cons-
ciência mais ampliada.
Esta fase pode ser denominada 'mística', porque podemos compará-la a um eremita
que faz suas vivências espirituais numa gruta. A gruta de cada um é seu próprio
corpo físico, onde as 'janelas que dão para o mundo', os órgãos dos sentidos,
começam a fechar-se. Toda a espiritualidade do eu está mergulhada no corpo, que
então começa a irradiar essa luz espiritual. Se mergulhar em si mesma, a pessoa
poderá tirar daí sua criatividade. 'Minha vida se tornou minha filosofia', dizia uma
participante de curso biográfico de sessenta anos (aliás, autora da Biografia 1).
Essa luz espiritual interior que surge é também amada pelos netos. A afinidade
entre netos e avós é grande, pois as crianças pequenas têm a luz por fora, ou como
uma aura. O espiritual as envolve, não estando ainda totalmente mergulhado no
corpo. Entretanto, nos mais velhos a luz está dentro e irradia para fora. Se o corpo
sucumbiu demasiadamente ao peso terreno, ou está endurecido demais, essa luz
aparecerá menos. E como se o sol estivesse escondido atrás das nuvens, num dia
nublado. Mas o sol está lá, mesmo que não possa ser visto.
Nessa época, a tendência é o corpo ficar mais leve; os ossos estão fisiologicamente
mais porosos, pois perderam o cálcio, que é o elemento que liga à terra, e os
membros se atrofiam. Se a obesidade e as doenças metabólicas não se instalaram,
podem-se observar esses fenômenos.
No aspecto profissional, essa é uma fase em que se pode assumir uma posição de
'eminência parda' e, com tranqüilidade, deixar o trono para outro, posicionando-se
na retaguarda a fim de apoiá-lo. É claro que isto depende um pouco do destino e da
atuação de cada um, pois hoje em dia encontramos muitos políticos, por exemplo,
até com mais de setenta anos, tomando a frente das coisas. Mas será que é a
situação ideal para depois dos sessenta anos de idade?
No Brasil, a aposentadoria freqüentemente se dá nesta faixa etária, enquanto nos
países europeus acontece aos 65 anos. Por ainda existirem forças para o trabalho,
vem a grande questão: ignorar a aposentadoria? Ou, quem sabe, conseguir
finalmente realizar um sonho de juventude ou da fase adulta, ainda não satisfeito?
Ou então fazer de um hobby uma ocupação principal? Talvez abrir uma marcenaria
para fabricar móveis artesanais, ou administrar uma fazendinha, um sítio...
É importante já em anos anteriores nos ocuparmos com um hobby, ou preparar e
planejar aquilo que se vai fazer após a aposentadoria, pois caso contrário o choque
de repentinamente estar aposentado é grande, podendo até provocar depressão ou
desavenças com a família. Mas pode-se ainda fazer algo diferente: um novo apren-
dizado, um novo autodesenvolvimento, em vez de simplesmente continuar com o
que já se sabe fazer. Tudo o que se aprende de novo gera novas forças e mobiliza
potenciais internos ainda não utilizados.
Essa é uma fase bem adequada para fazer uma retrospectiva de vida. "O que
consegui realizar? O que ainda gostaria de desenvolver?" É uma época em que
muita gente faz seu testamento. No aspecto do autodesenvolvimento, é uma fase
para se aprender a ter paciência — paciência consigo mesmo e com os outros. Tam-
bém é propícia para aprender a abnegação, pois agora já se deve saber que o que se
levará para além da morte não são bens materiais; pelo contrário, é tudo o que se
plantar no próprio coração e no coração dos outros; o que se realizou por meio de
atos, aqui na Terra.
Nessa fase, o indivíduo pode tornar-se um 'guru', sabendo, no entanto, que o
verdadeiro 'guru' não é aquele que corre atrás de seus seguidores, mas aquele que
está à disposição dos que vierem — não respondendo às questões que ainda não
foram feitas.
Dentro deste setênio, ainda aos sessenta anos, há algo que merece atenção especial:
dois grandes ciclos de trinta anos, ou três grandes ciclos de vinte anos, se
cumpriram. Este é um fato que merece ser festejado, até porque delineia a
existência de uma nova tarefa: ser avô ou avó. Qual é o avô ou avó que não gostaria
que seu aniversário fosse comemorado? Só que é preciso cuidado para que não se
assumam os netos como se fossem filhos. Eles não o são — são netos, e a
responsabilidade sobre eles é dos pais. Se houver sobrecarga com responsabilidades
em demasia por causa dos netos, aquela liberdade tão almejada para depois dos 63
anos dificilmente poderá acontecer. O mesmo se refere a trabalhos sociais
voluntários.
O relacionamento também poderá exigir uma nova adaptação do casal, pois ambos
os parceiros são atingidos por um processo importante. Na mulher, que possui
hormônios femininos e masculinos, ocorre a queda dos hormônios femininos, e ela,
além de ficar com a voz um pouco mais grossa e passar a ter um pouco mais de
pêlos do que antes, passa a ter, também, uma disposição psicológica em relação ao
mundo que antes não tinha, voltando-se mais para o exterior do que antes. Já o
homem, que também possui hormônios masculinos e femininos, com a diminuição
dos hormônios masculinos pode ficar mais caseiro. Esta 'inversão' pode refletir-se
inclusive nos papéis externos da vida, e o casal precisa, então, encontrar uma nova
forma de ser.
Portanto, todo um novo aprendizado se apresenta. Podemos, inclusive, falar de um
novo viver. Esta fase é, novamente, um grande preparo para as fases seguintes da
vida, como descrevi em Livres na terceira idade!— leis biográficas após os 63 anos.
Um exercício muito bom para se fazer nesta época da vida, especialmente a partir
dos 42 anos (mas que pode ser feito mais cedo, também), é a pessoa pintar uma
árvore que represente seu estado atual e escrever num papel quais os galhos secos
que acha necessário cortar. Numa árvore, só cortando os galhos secos é que os
pequenos brotos, latentes, podem desenvolver-se. Entre os galhos secos pode estar
uma relação de amizade na qual nada mais há para ser mantido, ou ainda o cargo de
secretário de uma sociedade da qual se participou com entusiasmo há mais de vinte
anos, ou a impaciência, ou a mania de dizer 'sim' a todas as solicitações dos outros,
etc.
O exercício continua da seguinte forma: o que esta árvore precisa para poder brotar
novamente? Isto também deve ser elaborado e escrito. Novamente faz-se uma
pintura, representando, agora, como se gostaria que a árvore desabrochasse no
futuro.
Eis um exemplo feito por um participante de 52 anos: ele sentia que toda a árvore
estava apodrecida, e, com o serrote, cortou praticamente tudo, deixando apenas um
pequeno galho.
FIGURA 13
O autor deste pequeno desenho passou por infância e juventude difíceis. Cresceu
sem pai nem mãe e começou a trabalhar em tenra idade. Dos vinte aos trinta anos
levou uma vida boa. Dos trinta aos 36 esteve casado e alcançou muito sucesso
profissional. Com 42 casou-se novamente e somente nesta fase teve dois filhos. En-
tão, com 52 anos, está insatisfeito com seu sucesso profissional e material; porém
enxerga novas perspectivas, e isto dá para ver em sua árvore forte e frondosa do
futuro.
Nestas últimas três fases, encontramos novamente a dinâmica:
Trata-se de uma 'nova visão' (42-49 anos), um 'novo escutar' (49-56 anos) e um
'novo viver'(56-63 anos), ou podemos também falar de 'alma imaginativa', 'alma
inspirativa' e 'alma intuitiva'.
Com a liberação das forças dos respectivos sistemas orgânicos — metabólico-
locomotor, rítmico e neuro-sensorial —, é possível desenvolver na alma novas
forças que significam uma ampliação da consciência, denominadas por Rudolf
Steiner como 'cognição imaginativa', 'cognição inspirativa' e 'cognição intuitiva'.
Aos 42 anos, abrimos-nos cada vez mais ao nosso Eu Superior e, de certa forma,
antecedemos em nosso desenvolvimento pessoal o desenvolvimento que a
humanidade, como um todo, percorrerá nas próximas épocas. Quando toda a
humanidade tiver passado por esse processo de desenvolvimento, as novas forças
anímicas de hoje serão novos órgãos de percepção no futuro.
Estes novos órgãos são também denominados por R. Steiner como 'personalidade
espiritual' (ou manas), 'espírito vital' (ou buddhi) e 'homem-espírito' (ou atma), que
correspondem à transformação do corpo astral, do corpo etérico (ou vital) e do
corpo físico, cujos primeiros elementos podemos desenvolver nas fases dos 42 aos
49 anos, dos 49 aos 56 e dos 56 aos 63 anos.
Podemos, então, representar nossa biografia por meio de um candelabro, onde
temos as correspondências nas diversas fases:
0 7 14 21 Eu 41 49 56 63
Corpo Corpo Corpo Personalid. Espírito Homem-
físico vital astral espiritual vital espírito
há outras a realizar?
III — Como eu lido com meus empecilhos físicos ou doenças (se é que tenho
alguma)?
IV — Como estou cuidando do corpo, da memória, dos órgãos dos sentidos?
questões em aberto?
VI — Como está a questão dos meus bens?
Capítulo V
Biografia sob forma de conto de fadas
não tenho tempo para essas coisas. Das flores, quero apenas o suco produzido em
suas entranhas. Com ele nós, as abelhas, fabricamos mel, que é o sustento de toda a
colméia. — Assim dizendo, penetrou a corola das rosas, colheu seu néctar e se foi.
Dias depois, um sabiá riscou o espaço e veio pousar ao lado da roseira.
— Você é tão encantadora — disse. — Continue sempre assim, cuidando bem de
seus ramos, suas rosas, seu perfume. Enfim, seja plenamente roseira.
— Mas há espinhos, de que eu não gosto. Depois, nem tenho asas, como as
rosas. Cuide bem deles também, que serão úteis na hora necessária. Quanto às
borboletas, não tenha inveja delas; são mensageiras das flores, por isso precisam de
asas. E agradeça pelas raízes. São elas que lhe trazem, das profundezas da terra,
água fresca, quando o sol é escaldante a ponto de queimar florzinhas mais frágeis;
trazem a fortaleza contra as geadas, mantêm você firme, ereta. Este é seu destino:
estar sempre pronta, firme em seu lugar, como uma guardiã, um farol.
— Mas eu queria sair daqui, para conhecer o mundo e ser sábia.
— Sua sabedoria está aqui. O que sabe um passarinho dos segredos profundos da
terra? Você sabe. Suas raízes vão lá no fundo colher a seiva, que seu tronco
transforma em lições de vida: ramos, folhas, espinhos e rosas. Você, sendo
plenamente roseira, é mestra.
Dito isto, o passarinho se foi, deixando a roseira a cismar. Nisto ela ouviu um
grasnar forte, grave, assustador: era o gavião.
— Você vive sonhando, como todas as roseiras! Não leve a sério o que aquele
passarinho disse; ele é um folgado, só pensa em cantar. Nada do que ele disse é
importante. Quem vive de rosas e perfumes?Mais vale a amoreira silvestre, que
mata a fome aos pássaros, ou o arbusto frondoso, que dá sombra na tarde quente.
Beleza, perfume, tudo são vaidades! Épreciso ser útil, minha filha! Lutar muito,
sofrer e até chorar, se for preciso para, um dia, conquistar a paz. Abandone esta
vida, deixe de lado tanta preocupação com a roupagem de suas rosas. Aprenda a
servir.
Naquela noite, a roseira nem dormiu direito. Ficou pensando em tudo o que ouvira.
De manhã concluiu que, realmente, era uma roseira vaidosa e inútil. Resolveu olhar
em torno. Era mesmo egoísta, pois nem havia notado as pequeninas plantas, tão
frágeis, nascendo ã sua volta, lutando com galhos, folhas e flores, desajeitadas que
eram. Resolveu ser mestra. Vezes sem conta ensinou margaridas, violetas e
miosótis a espalhar folhas, formar botões e desabrochar em pétalas. Falou de
perfumes e da forma como espargi-los delicadamente. Contou das ervas daninhas
que sufocam as plantas pequenas e não as deixam respirar. Estava segura de si,
pensando, em seu íntimo, que aquele era seu jardim e ela, a senhora. Queria tudo
correto, em seu tempo e lugar, sem quebra de equilíbrio. Na certeza de que era
sábia e justa, sentia-se feliz.
O gavião, porém, ainda por perto ironizou:
— Que cômodo serviço você arranjou! Aconselhar plantinhas! Enquanto isso, do
alto de sua vaidade, pensa que é rainha! Ser útil, minha filha, é sair de si e dar-se
inteira aos outros. Olhando para você, que vejo eu? A mesma roseira pretensiosa,
vaidosa de suas rosas. Veja ali que belo exemplo de abnegação: aquela ave criou
bem todos os seus filhos. Agora cuida de um chupim, nascido de um ovo
abandonado.
Realmente, ali vinha a mãe tico-tico, seguida por seu filho de criação, uma ave
forte, maior que ela.
— Como vai? — perguntou a roseira.
— Não tenho tempo para pensar nisso, pois tenho muito trabalho. A vida é dura para
quem é responsável, como eu. Ando muito cansada; doem-me os pés de tanto ciscar
a terra, as asas me pesam de vôos continuados, os olhos já não vêem bem de tanto
procurar, das alturas, a fonte mais limpa, o fruto mais doce, a árvore mais sombria.
Tive muitos filhos; todos aprenderam logo a voar, a cavar o sustento; vivem felizes
por esses bosques e florestas. Este meu filho, porém, quanto trabalho me dá!
Incapaz de se sustentar, vive ao meu redor, clamando fome, exigindo ajuda. Veja
minha sina: velha, cansada e ainda trabalhando! — Dito isto, mãe e filho se foram.
O tempo passava e a roseira se sentia cada vez mais infeliz. Sempre que surgia a
primavera, aparecia o gavião, a cobrar serviços: — Como é, ainda vaidosa e inútil?
— Agora, no entanto, tudo estava pior. Parecia que todas as forças da Natureza
conspiravam para nutri-la do melhor. E suas raízes teimavam em estirar-se e
aprofundar-se mais e mais na terra, colhendo nutrientes, conduzindo por seus canais
a seiva até o tronco; este, aparentemente estático, trabalhava tudo em suas
entranhas, alimentando e fortalecendo os galhos. O sol e a brisa traziam do espaço
sua contribuição generosa. A qualquer momento os brotos iriam surgir, explodindo
em botões, desabrochando em rosas. Era a sua perdição! No entanto, por mais que
se esforçasse, ela não conseguia evitar a floração. Notou, então, a seu lado, uma
plantinha nova, tão delicada que as folhinhas pareciam farpas de brinquedo. Foi-se
erguendo de mansinho, se enroscando na estaca do lado, até que alcançou o tronco
da roseira. Ali, a trepadeira encontrou apoio seguro, cresceu rapidamente,
enroscando-se como podia nos seus galhos, lançando ramos novos, alçando-se cada
vez mais para o alto. A princípio, a roseira sentiu-se incomodada. A sensação era
estranha, a plantinha envolvendo-a, cobrindo seus espaços, estreitando-a cada vez
mais.
— Você precisa de carinho e proteção — dizia a trepadeira. —• É muito inocente,
indefesa. Há tanta maldade por aí! De agora em diante vou estar aqui, vigilante.
Não vou permitir que nenhum mal lhe aconteça.
"A Trepadeira tem razão", ela pensava. "O jardim anda cheio de perigos." Numa
primavera — ela se lembrava bem — tentara fugir, inutilmente. Toda vez que
ensaiava um novo ramo, vinha o pardal que lhe devorava o broto, um broto custoso,
tanto tempo trabalhado para nada. Depois, foi a vez dos marimbondos: devoravam
todos os botões, ainda fechados. Agora, ela nada mais temia. Ali estava a
trepadeira, tomando conta de seus galhos, cobrindo-os e protegendo-os contra os
males da terra. É verdade que ela já nem tinha rosas, mas isso não era importante.
Nessa primavera, a trepadeira floriu sem parar, dando florzinhas vermelhas, como
pequenas estrelas; formou uma copa bonita, compacta, que até projetava sombra. A
roseira estava satisfeita consigo mesma. Finalmente, era útil. Graças a ela, a
trepadeira podia florir e encantar. Todos admiravam tanto aquela trepadeira que já
nem se lembravam de que ali existia uma roseira.
Um dia, um pássaro estranho foi pousar num galho do hibisco vermelho. A roseira
mal o viu, toldada que estava pelo emaranhado da trepadeira. O pássaro, porém,
curioso, foi-se aproximando, saltando de galho em galho, até que a descobriu.
Examinou-a, calado, pen- sativo. Depois, perguntou:
— Quando irão desabrocharsuas rosas?Éprimavera, tempo de as roseiras mostrarem
o caminho que me ensinaram para conquistar a paz. É o que faço, cedendo meus
galhos ã trepadeira. Veja como ela sabe se enfeitar! A glória da trepadeira é a
minha vida.
— Importa que você seja plenamente o que é. Olhe em torno — quantas flores,
arbustos, plantas rasteiras; só você, porém, é roseira. Uma roseira que deixou de
bem cumprir a missão que a Natureza lhe confiou. Por isto, este jardim está
incompleto. É preciso restabelecer sua harmonia.
— Que posso fazer? — perguntou ela, num sussurro.
Dito isto, o passarinho voou. E a roseira se pôs a meditar. Seria tão bom se pudesse
florir novamente! Só assim seria feliz. No entanto, faltava-lhe coragem para dizer à
trepadeira que não mais lhe tirasse as forças, que a deixasse viver. Ah, se a
trepadeira compreendesse tudo isso por si mesma, se resolvesse, enfim, mudar-se
dali! O tempo passava e a trepadeira exuberante, segura de si, mais e mais se forta-
lecia, mais ramos estendia em torno dos galhos da roseira, já cansados, sufocados.
Era muito tarde para lutar, a roseira pensava. E foi perdendo, pouco a pouco, a
vontade de viver. Seu gemidos de pena, ninguém os ouvia, tão fracos estavam.
Numa tarde de verão, a tempestade apanhou, em pleno vôo, um bando de
andorinhas migratórias. Na falta de árvore frondosa, elas se abrigaram naquele
arbusto florido. As penas molhadas elas curvavam para secá-las como podiam,
quando ouviram um lamento abafado:
— Que bom se alguém pudesse me ajudar!
— Ela conta com suas próprias forças; há de aprender a usá- las bem.
Então as andorinhas se juntaram num trabalho paciente, cuidadoso, e, ramo por
ramo, libertaram os galhos da roseira. Ela suspirou profundamente e adormeceu,
pois estava muito cansada.
Separada da roseira, a trepadeira reclamava de sua sina, lutando por desenrolar seu
emaranhado de ramos.
— Quer ajuda também? — perguntaram as andorinhas.
— Não! — foi a resposta, pois era uma trepadeira muito orgulhosa de seu poder. E
as andorinhas se foram.
A roseira atravessou, dormindo, todo o outono. E sonhou com uma nova primavera,
de sol, flores, borboletas e pássaros-cantores. E viu, em seu sonho, a trepadeira
subindo por estacas de madeira nobre, estirando seus galhos cobertos de flores de
estrelinhas. Então, já refeita, abriu seus olhos para a vida. Havia no ar sinais de fim
de inverno. Era tempo de se aprontar para a floração.
Este conto foi escrito em novembro de 1984, por uma participante de curso
biográfico. Na oportunidade ela tinha 54 anos. Nascida em Minas Gerais em 1930,
numa família de muitos filhos, trabalhou alguns anos como professora e casou-se,
desistindo da profissão. Dedicou-se totalmente à família (teve três filhos), abriu
mão de si mesma e sacrificou-se por ela. O marido era o chefão da família e tomava
todas as decisões. Em torno dos cinqüenta anos ela teve uma amizade com outro
homem e a manteve em sigilo até bem pouco tempo antes de sua morte. Morreu aos
61 anos de idade de câncer de estômago.
Capítulo VI
Espelhamentos e transformações numa biografia.
Metodologia prática
Como já vimos no Esquema I, com 42 anos ou até mesmo antes desta idade
podemos fazer um esquema que tem como ponto de espelhamento os 21 anos.
Trata-se de tornar visível a transformação dos fenômenos externos acontecidos em
aspectos anímicos do ser humano, o que tem relação com a formação da alma da
sensação, da alma do intelecto e da índole e da alma da consciência.
Podemos também usar uma outra forma de espelhamento, que tem seu ponto de
inversão aos 31 anos e meio, o ponto em que o ser humano está mais
profundamente encarnado em seu corpo físico, e, portanto, em que o ser espiritual
está totalmente submerso no corpo. A capacidade vital dos pulmões atinge o má-
ximo nesta época.
A partir daí o ser se desprende gradativamente do corpo, e este processo permitirá
uma ampliação cada vez maior da consciência. Podemos dizer que nós "nos
encarnamos da cabeça aos pés e nos desencarnamos dos pés à cabeça". Ao elaborar
a biografia conforme este esquema, descobrimos muitos fenômenos interessantes
que se repetem, ou que aparecem de forma modificada ou de forma invertida. Por
exemplo, um homem que aos 28 anos resolveu queimar todos os seus livros
esotéricos e espirituais que havia comprado na juventude começa, aos 42 anos, a
comprar novamente livros filosóficos, espirituais, e monta sua biblioteca. Estes são
pontos externos marcantes, mas há também os fenômenos mais sutis, mais
delicados, que também podem ser observados.
Para que se possa montar este esquema, é necessário colocar os dados biográficos
em linha descendente até os 31 anos e meio e, desta idade em diante, em linha
ascendente até os 63 anos, de modo que o nascimento — isto é, o ano zero — e o
63o ano se espelhem, por estarem na mesma linha horizontal.
A Biografia 4 foi montada de tal forma que o eixo do espelhamento se dá aos 31
anos e meio, momento em que estamos mais profundamente encarnados na Terra
— ponto de mutação, de uma grande inspiração para uma grande expiração do ser
espiritual.
Para montar tal esquema, será necessário registrar todos os eventos
(acontecimentos) exatamente na idade em que aconteceram, colocá-los no papel de
forma decrescente até os 31 anos e meio e, daí em diante, de forma crescente até a
idade atual. Os sentimentos correspondentes, numa segunda coluna. Deste modo te-
remos correspondência entre um ano da coluna descendente e um ano da coluna
ascendente, isto é, os 28 anos corresponderão aos 35 anos, os 14 aos 49, os 20 aos
43 anos e assim por diante. Este espelhamento pode ser denominado fisiológico-
espiritual.
Já vimos que o amadurecimento dos vários sistemas orgânicos se fazem da cabeça
para os pés, e agora o desprendimento das forças, o envelhecimento, se dará de
forma contrária, dos pés para a cabeça, e paralelamente irá acontecer a ampliação
da consciência, formando como que novos órgãos de percepção do espiritual.
Assim, por exemplo, a menarca aos catorze anos se refletirá na menopausa aos 49
anos. A época de amadurecimento dos órgãos rítmicos, dos sete aos catorze anos, se
refletirá na fase da' sabedoria, dos 49 aos 56 anos — fase da sabedoria e também de
especiais cuidados com os órgãos rítmicos, coração e pulmão, bem como com sua
relação com o mundo interno e externo. Se esta troca foi conturbada ou se tiver
ocorrido excesso de solicitação externa na fase de sete a catorze anos, então mais
tarde, em torno dos 49 aos 56 anos, poderá reaparecer, por exemplo, uma asma da
infância. Situações de stress, por sua vez, podem levar a perturbações cardíacas ou
mesmo a um infarto. O excesso de solicitação dos sentidos na primeira infância
levará ao desgaste do centro do sistema nervoso, que aparecerá como falta de
memória, na fase dos 56 aos 63 anos.
Isto não quer dizer que as mesmas coisas se irão repetir, mas que poderão
apresentar-se de outra maneira, ou melhor, metamorfoseadas. Em minha biografia,
por exemplo, ocorreu um desastre grave de automóvel aos nove anos de idade.
Quando eu estava com 54 anos, espelho exato dos nove anos, por duas vezes quase
morri afogada, e houve ainda um terceiro acontecimento no mesmo ano — um
acidente de automóvel que poderia ter sido grave.
Devo salientar que não se deve esperar na idade espelhada, como uma
determinação, a repetição de situações difíceis que possam ter ocorrido. Muitas
vezes uma situação difícil pode já ter sido elaborada, e agora talvez já seja a época
de colher os frutos dessa elaboração. Também a tônica geral, ou os valores
implantados em uma época, irão refletir-se mais tarde.
Numa palestra, Rudolf Steiner nos diz que só podemos compreender
profundamente nosso primeiro setênio na idade entre 56 e 63 anos; nosso segundo
setênio, na fase entre 49 e 56 (ou acima dos 49); nosso terceiro setênio, na fase de
42 a 49 anos; e nosso quarto setênio na fase entre 35 e 42 anos. E só a fase dos 28
aos 35 anos nos permite ter vivências e ao mesmo tempo compreensão do próprio
setênio em questão. Trata-se, pois, nesse sentido, de uma idade toda especial —
poderíamos dizer de total presença de espírito (o espiritual totalmente mergulhado
no físico). Essa palestra foi proferida por Steiner durante o ciclo de 6 a 18 de
setembro de 1918, intitulado 'A polaridade entre continuidade e evolução na vida
humana'.16
Sugiro que as pessoas com idade abaixo de 42 anos espelhem sua biografia em
torno dos 21 anos. Às pessoas acima dos 42 anos, recomendo o espelhamento dos
31 anos e meio, que vale a pena. Existem ainda outros espelhamentos que serão
abordados no livro Metodologia do trabalho biográfico.17 O fato de escrevermos os
acontecimentos de nossa biografia nos ajuda a ordenar as idéias, além de ser um
procedimento terapêutico em si. Se houver o hábito de escrever um diário, relê-lo
mais tarde provocará admiração por si mesmo, pois é só à distância que se enxerga
as coisas. Uma boa forma é iniciar fazendo registros no diário, depois escolher os
principais fatos, os principais eventos e ordená-los pela idade na qual ocorreram,
elaborando, deste modo, seu esquema biográfico. Muitas vezes se descobrem coisas
incríveis. Em meu caso, por exemplo, aos 47 anos eu tive um impulso muito forte
de construir uma piscina. De onde vinha este desejo? — pois nas outras casas onde
morei não havia piscina. Olhando minha história de vida, observei que por volta
dos dezesseis anos eu era uma nadadora que treinava intensamente, duas ou até três
vezes por semana (depois tive de parar bruscamente para fazer o cursinho
preparatório para o exame vestibular). Surgia daí esse impulso, como que dando
continuidade!
Registrar também as emoções, elaborando os sentimentos numa coluna ao lado dos
eventos, é importante. "Será que senti alegria quando nasceu meu irmão menor? Ou
será que senti ciúmes? Tomando a coluna dos sentimentos de um lado e a fase
espelhada do outro, há alguma relação? Dando-se cores a esses sentimentos, será
que ambos os lados teriam a mesma cor?" Em todo o trabalho biográfico, partimos
16
Die Polaritàt von Dauer und Entwickelung im Menschenleben, GA184 (2. ed. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1983).
17
Cit. (v. nota na p. 106).
sempre dos fatos, olhamos o acontecimento o mais objetivamente possível, para
depois entrar na área dos sentimentos e perceber quais sentimentos acompanharam
esses fatos. Será que esses sentimentos tiveram seu espaço, ou foram abafados?
Será que está na hora de elaborá-los melhor? Será hora de transformar uma raiva
em perdão? Uma culpa em aceitação?
Com relação aos sentimentos, será de ajuda fazermos pinturas. É parte da
metodologia usada na Artemísia fazer uma pintura sobre cada setênio. Esta pintura
pode ser uma síntese do setênio, ou uma cena do mesmo, ou apenas o uso das cores.
Conforme a habilidade — embora não seja necessário possuir alguma — fazem-se
cores, formas ou cenas, sempre sem preocupação com o resultado e com atenção ao
que se vivência ao pintar. Mais tarde estas pinturas serão olhadas, em pequenos
grupos ou com o terapeuta, não para serem interpretadas, mas para que o autor da
pintura revele o que quis expressar e os sentimentos que afloraram.
Na figura a seguir temos uma representação espontânea dos três primeiros setênios,
feita por uma participante do curso biográfico. As pinturas foram feitas em
aquarela, mas para podermos publicá-las neste livro foram reproduzidas em
nanquim. É interessante usar para o primeiro setênio a imagem de um sol, para o
segundo a imagem de uma planta e para o terceiro a de um animal.
FIGURA 19
Que descobertas posso fazer diante deste processo de escrever e montar o esquema
do espelhamento e pintar minha biografia?
Alguns exemplos:
1. Observando os acontecimentos, um participante do curso biográfico descobriu
que a cada nove anos estava trocando de emprego; sentindo que a coisa estava,
novamente, tornando-se difícil, e como já havia mudado duas vezes de emprego,
sempre de nove em nove anos, questionava-se se era o caso de repetir tal esquema e
sair do emprego, mais uma vez, ou se deveria, realmente, tentar superar esta
dificuldade e permanecer nele. Após algum esforço na tentativa de vencer os
obstáculos, decidiu permanecer no emprego e deste modo foi bem-sucedido em seu
empenho, superando as dificuldades, e sentiu-se muito feliz.
2. "Em meu atual casamento estão-se repetindo dificuldades que já vivi no
casamento anterior. Constatado isto, tento descobrir quais são minhas falhas. Para
isto o grupo biográfico está-me ajudando. Trabalhando minhas dificuldades, talvez
eu possa evitar mais um divórcio, pois no fundo não quero uma nova separação."
3. Uma jovem mulher percebe que está sempre se apaixonando — que os homens a
procuram como a abelha à flor. Ela se pergunta: "Quero modificar esta situação ou
quero que isto continue a se repetir? Se quero modificá-la, que passos que devo
dar?"
4. Outra pessoa percebe que está brigando com suas crianças do mesmo modo como
seu pai ralhava com ela. Lembra-se de como lhe fazia mal esta forma de tratamento,
e o quanto foi prejudicada por isto. "Será que vou continuar repetindo este modelo
de tratamento com meus filhos ou tentarei modificá-lo, buscando novas formas de
educação e de convivência com as crianças?" Esta é sua pergunta.
5. Um homem, fazendo uma retrospectiva de sua vida, descobre que não teve
Procedimento I
Se você quer observar sua biografia, tente escrevê-la, lembran- do-se dos principais
eventos. 0 segundo passo poderá ser ordenar os eventos principais em quatro
colunas. Nas duas de fora, registre os eventos. Nas duas de dentro, tente resgatar os
sentimentos que estavam presentes naquela época. Tente precisar sua idade na oca-
sião. Se você tiver menos de 42 anos, escreva as lembranças de cima para baixo até
alcançar os 21 anos. As lembranças dos 22 anos em diante devem ser escritas de
baixo para cima.
Procedimento II
Se você estiver com mais de 42 anos, escreva suas lembranças de cima para baixo
até alcançar os 31 anos e meio e, a partir daí, comece a escrevê-las de baixo para
cima.
Sugestão de trabalho
O peregrino do Universo
Já falamos sobre o ritmo dos setênios, os quais são conhecidos desde tempos
remotos. Os setênios levam em conta os sete planetas, que dão nome aos dias da
semana (sábado — saturday: Saturno; domingo — sunday: Sol; segunda —
monday: Lua; terça — tuesday: Marte; quarta — wednesday: Mercúrio; quinta —
thursday: — Júpiter; sexta — friday: Vênus).
Estes planetas têm a ver com toda evolução do Cosmo e do homem, assim como
com os setênios. Como citamos em outra publicação, cada setênio está mais
relacionado com uma força planetária específica.18 Num ritmo de seis anos,
encontramos relação com as forças zodiacais, pois a vida média do ser humano, 72
anos, está dividida entre os doze signos zodiacais, cabendo a cada um deles seis
anos, iniciando-se em Áries e finalizando em Peixes. Há pessoas que têm este ritmo
bem marcado.
Um outro ritmo que já mencionei é o ritmo do nodo lunar. Ele se repete a cada
dezoito anos e sete meses. Está associado às linhas do Sol e da Lua, que se cruzam.
O ponto que se forma neste cruzamento passa por todas as constelações zodiacais e
volta ao mesmo ponto do nascimento a cada dezoito anos e sete meses. Nessa época
o ser humano tem uma percepção cósmica maior, uma abertura que pode lembrar-
lhe sua estada no Cosmo quando ele estruturou seu destino terreno.
A natureza e a vida humana são influenciados fortemente pela Lua. Essa força traz
as forças do passado para a realidade atual, para esta vida. A força atua fortemente
no primeiro setênio (quando a hereditariedade, no que se refere à substancialidade
física, atua com vigor) e também até os dezoito anos e sete meses, quando todo o
nosso corpo é estruturado de acordo com nosso carma passado. Como esta força do
nodo lunar atua em nossa alma? Podemos dizer que a cada nodo lunar o homem
deixa seu passado para vivenciar um renascimento, graças à força solar do seu eu,
que o direciona para o futuro.
A passagem pelo nodo lunar pode ser calculada astrologicamente, caindo num dia
exato. Mas, na prática, podemos considerar que o primeiro acontece por volta dos
dezoito anos e sete meses. Muitas vezes percebemos esse fato por sonhos, outras
vezes por modificações internas ou externas. Há pessoas que percebem mais o que
fica para trás, o que, no caso, pode gerar uma crise — por exemplo, num
adolescente que se nega a crescer e amadurecer. Se ele continuar neste estado,
poderá ocorrer um choque advindo de fora (quem sabe um acidente, um grande
impacto emocional) para tirá-lo disso, e então o desenvolvimento poderá acontecer.
Outros, porém, percebem mais claramente suas metas de vida, percebem o 'levantar
do sol', tornando-se uma personalidade mais independente, mais livre, sendo
capazes de, por exemplo, escolher desde então a profissão à qual irão dedicar-se
mais tarde.
18
Vide Gudrun Burkhard, As forças zodiacais: sua atuação na alma humana (2a ed. São Paulo: Antroposófica, 1998).
O segundo nodo lunar ocorre por volta dos 37 anos, e traz uma nova confrontação
com a profissão, com a missão de vida. Após os 35 anos — para alguns, até um
pouco antes, já a partir dos 28 anos —, a missão de vida se faz bem perceptível.
Olhando para trás, observando os eventos de sua vida, a pessoa pode descobrir o
'fio vermelho' ou um rio que corre e que muitas vezes acolhe vários afluentes,
tornando-se, assim, visível. Para este nodo lunar a pergunta é: "Minha profissão é
adequada para eu realizar minha missão de vida? Estou a caminho dessa missão?"
A abertura desse nodo lunar abre uma visão maior para o ser. Se a pessoa não
conseguir encontrar a missão, a meta de seu próprio destino, terá de enfrentar a
crise que surgirá em conseqüência de estar ainda amarrada ao passado.
Vislumbrar a missão de vida fortifica o eu para, no futuro, atuar com força
renovadora. E comum a mudança de profissão nesta época da vida. Mulheres
retomam a faculdade ou a profissão após terem cuidado de seus filhos pequenos.
Em meu caso, por exemplo, aos 37 anos eu tive uma visão da Clínica Tobias, e foi
justamente o momento em que colocamos a pedra fundamental.
O terceiro nodo lunar, em torno dos 55 anos e seis meses, coloca o ser humano
diante de uma nova pergunta: "O que eu realizei nesta vida e o que tenho ainda para
realizar?" Também representa a despedida dessa fase de intensa luta do meio da
vida, surgindo a necessidade de encarar a velhice, pois a terceira idade vem
chegando. "Como é que vou conviver com tudo o que esta nova fase vai-me
trazer?"
Em algumas biografias, a metade deste ciclo do nodo lunar — portanto, cada nove
anos — também pode aparecer como um ritmo marcante. Cada um poderá não
apenas observar os nodos lunares, mas também identificar se existem ciclos de
nove anos em sua biografia. Na Biografia 1, por exemplo, os nodos lunares
coincidem — o primeiro e o segundo — com a ida para Portugal, como se fossem a
retomada de algo, a busca das origens. Ainda nesta biografia, observa-se o terceiro
nodo lunar no momento em que a pessoa foi-se retirando dos negócios da empresa,
preparando-se para a terceira idade.
Outro ritmo que podemos encontrar na biografia é o de doze anos, o qual representa
um ritmo jupiteriano. Júpiter leva doze anos para passar pelas doze constelações
zodiacais. Dependendo de onde se encontra o ponto do nascimento, ele levará doze
anos para chegar lá novamente. Assim, pode-se observar cada período de doze anos
(ou ainda cada seis anos) nos acontecimentos da própria biografia. Por minha
experiência, percebo que tais eventos estão mais ligados aos aspectos profissionais
da vida. Na Biografia 4, por exemplo, este aspecto jupiteriano ligado ã profissão
está bem visível. Aos doze anos, o aprendizado para eletricista; aos dezoito, anos o
pai funda uma firma. Aos 24 anos ele está completamente envolvido na firma do
pai, que tem a intenção de torná-la a melhor de todas no ramo; aos 36 anos surgem
dificuldades nessa firma do pai; aos 42 anos ele conhece a segunda mulher; aos 48
anos separa-se da primeira esposa, que faz parte da firma; aos 54 anos separa-se
oficialmente da firma do pai e termina o curso preparatório para uma nova
profissão (aconselhamento biográfico).
Um outro ritmo nos é dado por Saturno — o de 29 anos e meio. Saturno leva 29
anos e meio para passar por todas as constelações do zodíaco e voltar ao ponto em
que estava no nascimento de uma pessoa. Esse ritmo está mais relacionado ao cerne
espiritual do indivíduo. É o responsável pela memória espiritual do que a
individualidade tem para realizar aqui na Terra, direcionando-a espiritualmente na
vida. Saturno também tem a ver com morte e ressurreição — morte material e
ressurreição espiritual.
Em minha biografia, aos sessenta anos Júpiter e Saturno coincidem: sofro um
acidente gravíssimo de automóvel e depois recebo uma força espiritual muito
grande. Também na Biografia 1 aconteceu, em torno dos trinta anos, seu casamento
e a morte do pai, juntamente com o encontro da tarefa espiritual.
Numa biografia, podemos observar três grandes ritmos saturninos: de 0 aos 30
anos, como que um preparo para a vida; dos trinta aos sessenta anos, a grande fase
da descoberta e da realização espiritual; e dos sessenta em diante, como que um
fecho, significando para muitos um desabrochar espiritual. Assim foi para Goethe,
que viveu até os 84 anos, fase em que completou algumas de suas grandes obras,
entre elas Fausto — justamente neste terceiro ciclo de Saturno.
Um novo ritmo foi introduzido para a humanidade com a vinda de Cristo. É um
ritmo que ocorre a cada 33 anos — portanto, 33 e 66 anos. Refere-se a aspectos
espirituais especialmente ligados a Cristo. Pode-se dividir este ciclo em ciclos
menores, de 11 anos. No céu, isto representa uma maior densificação das manchas
solares, que se condensam e se diluem novamente. Em meu caso, aos 33 anos meu
ciclo está marcado por encontros muito importantes para meu desenvolvimento
espiritual. Depois, aos 66 anos, vivi uma outra experiência, também crística,
conforme relato no último capítulo, em minha autobiografia.
É comum haver ciclos diferentes e específicos em cada biografia, tais como de
cinco em cinco anos, ou de três em três, por exemplo. E uma tarefa individual cada
um descobrir o(s) seu(s).
desfazer?
III — Como devo agir para livrar-me delas?
Outro exercício biográfico que pode ser feito é o de olhar para os relacionamentos
que você teve durante a vida, iniciando pelos pais, avós, irmãos, professores e
assim por diante. Tente olhar para estas pessoas e observe inicialmente os seguintes
aspectos: em quê elas contribuíram positivamente e negativamente em sua vida;
quando foi que você as encontrou e até quando elas o acompanharam.
Num segundo momento, tente criar uma imagem viva de cada uma das pessoas,
fazendo, por exemplo, uma pintura na qual sua vida seja representada por uma
paisagem e estas pessoas façam parte da paisagem sob forma de plantas. Pode ser
que em alguém você perceba alguma característica que um pinheiro possa
representar, ou uma roseira, ou um coqueiro, ou um cacto, uma mangueira frondosa
ou outras plantas, conforme identifique, entre um e outro, características comuns [v.
fig. 20 a seguir].
Em seguida, você pode fazer um cosmograma do universo de seus relacionamentos
atuais e simbolizar cada um de acordo com a qualidade própria do mesmo
(trabalho, afetividade, parentesco, amizade, etc.).
O passo seguinte é, quando você estiver elaborando as metas para o futuro, olhar
esse cosmograma dos relacionamentos e ver quais estão superados e você deseja
eliminar; em quais outros relacionamentos você quer maior aproximação ou maior
afastamento. Poderá verificar de que natureza é a maior parte de seus relaciona-
mentos (se em função do trabalho, do grupo de estudos, da família e assim por
diante), ou se é necessário modificar o relacionamento que você mantém com
alguém.
Se quiser modificar algum relacionamento ou vencer dificuldades, ou se aproximar
mais, observe quais passos são necessários para atingir tais objetivos. Reflita se há
necessidade de dedicar mais tempo a alguém, ou se é necessário modificar alguma
atitude interna com relação a certa pessoa.
Figura 20
Pequenos ritmos
Além dos grandes ritmos, temos os pequenos — do ano, do mês, da semana, do dia.
Ritmo é uma repetição a intervalos regulares, com acentos fortes e fracos,
constituindo um conjunto fluente e homogêneo no tempo. É também sinônimo de
força.
Nosso organismo é rítmico: temos o ritmo do coração, do pulmão, que são os mais
evidentes. Mas há muitos outros ritmos fisiológicos, que nos passam
desapercebidos. Existe todo um estudo de biorritmos no qual não irei deter-me, mas
é conhecido o fato de que quanto mais ritmicamente conseguimos viver, mais força
temos.
No transcorrer do mês, temos cerca de quinze dias mais ativos e quinze dias mais
passivos. Numa semana, se compararmos as características de uma segunda-feira,
que marca o início da semana, com as da quarta-feira, no meio da semana, ou com
as do sábado, no fim da semana, notaremos que são bem diferentes. O planejamento
da semana ajuda a dar estrutura às nossas atividades diárias e nos faz pensar se
respeitamos os fins-de-semana para descansar ou trabalhamos tanto quanto na
semana. Será que ocupo os fins-de-semana com lazer relaxante e revitalizante, ou
serão eles extremamente cansativos? Neste último caso, por que o são? Será
necessário mudar algo neste sentido? E durante o ano, quanto tempo de férias tenho
tido? Para quê estou usando minhas férias?
Para o nosso organismo se recuperar das atividades profissionais do ano, são
necessárias, no mínimo, três semanas seguidas de férias. Será que tenho conseguido
tirar este tempo por ano? Se não, não seria o caso de fazer certos ajustes? As férias
são usadas para fazer coisas prazerosas? Tenho dedicado tempo à família? E para
mim, há momentos exclusivos especiais? Está incluída uma semana de pescaria,
por exemplo?
É muito importante observarmos o ritmo cotidiano percebendo o dia como um todo.
Despertar pela manhã, vindo do mundo da noite, 'do desconhecido', para entrar no
dia desperto, consciente da vigília: cada pessoa necessita de determinado tempo
para encaixar-se bem em seu corpo desperto; algumas precisam de um banho,
outras de um café, ou de ginástica, ou de oração. Um breve planejamento do dia,
visualizando-se o dia por inteiro, ajuda a não desejar executar mais do que de fato é
possível. Geralmente planejamos fazer coisas demais. À noite, ao olharmos
retrospectivamente para o dia que acabou, podemos ver que, das vinte coisas que
planejamos para ele, fizemos apenas dez. Será necessário planejar apenas quinze
tarefas, e talvez constatemos que pudemos realizar doze. Quem sabe no terceiro dia
de planejamento possamos realizar tudo o que determinamos! Em muitas
profissões, é necessário deixar um tempo extra para o inesperado. Só assim se
consegue evitar o stress. Planejar o realizável, o possível, nada mais.
O ritmo das refeições também é de suma importância. Um bom café da manhã, um
almoço moderado, com um breve descanso, ou uma pequena caminhada, ajudará na
digestão para podermos prosseguir o trabalho. Devemos levar em consideração,
também, o momento do dia em que rendemos mais. Há pessoas que rendem mais
pela manhã, outras à tarde e outras, ainda, rendem mais à noite. Descubra quais são
suas horas mais produtivas e aproveite-as para as tarefas mais difíceis. Deixe as
mais fáceis para os períodos em que você estiver mais cansado.
Um dia composto de oito horas de trabalho é o ideal. Isso permite dividi-lo em três
partes: trabalho, sono e lazer (ou estudo, ou família). Se seu horário de trabalho for
de dez a doze horas diárias, questione-se, pergunte-se se isto lhe permite um horário
para si mesmo, para a família. Como estão as prioridades? Você tem tempo para
autodesenvolver-se, para crescer, para estudar? Quanto tempo você tem para o
lazer?
Atualmente as pessoas se desgastam tanto durante o dia, suportam o trânsito por
duas, até mesmo três horas ou mais, e, após um jantar copioso, há quem diga: "Só
tenho forças para sentar-me diante da tevê e tomar uma cervejinha..." No dia
seguinte acorda cansado, sem energia.
É importante fazer uma retrospectiva do dia antes de deitar, à noite; avaliar o que
foi essencial e o que não foi, o que poderia ter sido deixado de lado ou ter sido
delegado a outra pessoa. Também ajuda fazer uma meditação ou uma oração antes
de deitar para dormir, entregando ao sono assuntos não-resolvidos. De manhã, ao
despertar, é comum recebermos respostas ou soluções de problemas de dias
anteriores. A noite, nosso eu, de natureza espiritual, como vimos, entrega-se aos
mundos espirituais (ao seu próprio guia, seu anjo ou seu 'Eu Superior') num diálogo
que para nós é inconsciente, e de onde se pode obter resposta para muitas coisas.
Quando tentamos vivenciar mais conscientemente o adormecer e o despertar, temos
uma ponte para o mundo espiritual, que nos inspira. Deste modo nossas intuições se
tornam cada vez mais verdadeiras.
Um outro aspecto importante com relação aos ritmos é vivenciar as diferentes
épocas do ano. As festas do ano poderão ser marcos importantes de um encontro da
pessoa consigo mesma. Para tanto temos as festas de Natal e Ano Novo —
oportunidade para fazer uma retrospectiva do ano que finda e preparativos para o
ano que logo se iniciará, tentando despertar em nós nossa criança interior, que nos
confere toda a criatividade. Depois vem o verão, época para relaxar; a festa do
carnaval, lembrando-nos da igualdade, do fato de sermos todos irmãos; a Semana
Santa e a Páscoa, festa da ressurreição, da renovação de forças interiores e da
ordenação do nosso destino. Em seguida vem Pentecostes, quando a força do
Espírito flui para nós em palavras e nos faz sentir nossa missão de vida; São João:
fogueira e calor, lanterna e luz a brilhar na escuridão. O início da primavera traz
São Micael19, renovando a natureza e o nosso interior, dando-nos força para
cumprirmos nossas metas. Finados é a lembrança dos queridos que nos
acompanham do mundo espiritual, e novamente chega o Natal, quando o ciclo se
fecha.
Exemplifiquei com datas cristãs, mas outras religiões têm festas semelhantes, com
outros nomes. Porém isto não importa. O importante é sentir este ritmo, que
também o Sol manifesta por meio das estações do ano: primavera, verão, outono e
inverno. Os equinócios e solstícios nos pontos marcantes influenciam de fora a
nossa vida, mas dentro de nós também encontramos ritmos correspondentes.
Como possibilidade de trabalho, você poderá verificar como estão os seus ritmos do
dia, da semana, do mês e do ano.
O caminho
E assim foi que nesta vida eu entrei então, rodeado por realidade e ilusão, ao dia
claro e à escura noite devotado e prestes, na eternidade, a ver-me mergulhado,20
Max Hajek
Capítulo VIII
A motivação de vida. A missão de vida
Capítulo IX
Como trabalhar o presente — metas e objetivos para o futuro
Quando o ser humano chega a determinada idade e quer analisar a qualidade de sua
vida, para não se esquecer de nenhum item pode fazer o seguinte levantamento:
• Situação econômica.
• Bens materiais.
e) Está-se desenvolvendo?
• A condição de saúde:
a) Alimentação.
• Quais galhos secos terão de ser cortados para que novos brotos possam
desenvolver-se?
• O que será preciso cuidar dentro da alma (de seu jardim interno) para obter maior
Perseverança é aprender,
aprender é praticar,
praticar é repetir,
repetir é ganhar experiência,
experiência é crise,
crise é prova,
prova é fortalecimento,
fortalecimento é liberdade,
liberdade é criar do nada,
criar do nada é transformar,
transformar é caminho e fim ao mesmo tempo.
Rudolf Steiner
Capítulo X
O que é o trabalho biográfico e a Artemísia
O trabalho biográfico teve início no Brasil em 1976, com cursos que meu marido
Daniel Burkhard e eu ministrávamos em fins-de-semana prolongados, quatro a seis
vezes por ano.
Desenvolvemos uma metodologia própria que é usada na Artemísia. Ao longo dos
anos, sentimos a necessidade de criar um espaço próprio para que as pessoas
pernoitassem e pudessem, além do processo biográfico, fazer uma dieta adequada,
massagens, banhos, compressas — enfim, revitalizar-se. Quando o destino, a vida é
olhada, percebe-se que há vários pontos estagnados que precisam entrar em
movimento novamente. Com uma dieta adequada, desintoxicando o organismo, os
resíduos e as toxinas acumuladas entram em movimento. O processo orgânico
passa, então, a apoiar o processo anímico da vivência do trabalho biográfico. Aliás,
foi necessário ampliar o período de duração do trabalho biográfico, inicialmente, de
três dias. Na Artemísia, hoje, é de quatro a sete dias. Nesse trabalho, fazemos a
retrospectiva da vida (amplamente descrita no livro) para chegar ao momento
presente e visualizar o futuro. Essa retrospectiva tenta ser objetiva, como se
olhássemos o caminho da vida do topo de uma montanha, para podermos entender
melhor a correlação entre os acontecimentos e apreender o todo. O uso da pintura
da biografia facilita o processo. Alguns pacientes expressam que em anos de
psicanálise não alcançaram os resultados que obtiveram em nossos cursos
biográficos. A psicanálise e algumas linhas psicoterapêuticas enfocam apenas
certos pontos críticos do passado para serem trabalhados. A meta do biográfico é
dar a visão do todo, a tônica de cada setênio, os fenômenos e suas repetições, os
quais exigem especial atenção. Enfim, o fio da vida se desenrola como o fio de um
novelo. Procura-se levar a entender as crises biográficas, como e por que ocorrem,
e, assim, poder direcionar melhor o futuro; despertar no indivíduo uma nova
motivação de vida, alegria de viver, a fim de ele perceber suas potencialidades e
seus lados positivos para fazer melhor uso deles. Se neste processo forem
descobertos pontos extremamente difíceis, não resolvidos no curso biográfico,
pode-se então buscar um aconselhamento biográfico para tentar trabalhar a questão
específica, como prosseguimento do processo.
Movimentos corpóreos, principalmente da eurritmia, ajudam a compreender os
conceitos por meio da linguagem do corpo. Também palestras abordando as leis
que regem os setênios são apresentadas, geralmente, na parte da manhã durante os
cursos, e ajudam a compreender melhor os processos gerais de desenvolvimento.
Após a palestra é feito, individualmente, um levantamento dos acontecimentos
biográficos. Segue-se o almoço e um pequeno descanso, para depois se prosseguir
com uma pintura correspondente aos setênios, assunto que foi anteriormente
elaborado por escrito.
Em seguida faz-se um trabalho de grupo. Cada grupo é composto de três a cinco
pessoas, sendo acompanhado por um coordenador experiente, com o objetivo de
compartilhar os eventos biográficos de cada um e elaborar melhor aquilo que cada
membro queira dividir com o grupo. Estes pequenos grupos têm clima e aconchego
muito especiais, pois é importante que todos se sintam à vontade. Só se relata o que
se desejar relatar, porém quanto mais abertura houver no grupo, tanto melhor será o
resultado para cada um. É por meio do exercício de ouvir o outro que acontecerão
os melhores insights, pois eles despertarão em cada um novas memórias e
sentimentos. O coordenador procura manter o grupo num interesse e admiração
pela biografia do outro, e de modo algum haverá crítica ou interpretação. Cada
participante dispõe de tempo determinado, e o grupo, como um todo, também.
Por meio de perguntas, os participantes do grupo podem interagir. O grupo escuta,
acolhe a biografia e recebe, por sua vez, um presente, pois nossa biografia é o que
temos de mais precioso. Entretanto, quem apresenta sua biografia pode visualizá-la
melhor quando ocorre a participação do grupo. Alguns grupos conseguem uma
qualidade de relacionamento tão especial que é como se a palavra de Cristo se
manifestasse: "Quando dois ou mais se reúnem em meu nome, eu estarei com eles."
Além do trabalho em grupo, existe também o processo biográfico elaborado numa
terapia individual, entre terapeuta e cliente. Em nossa experiência, porém, o grupo
traz mais riqueza, pois nele não apenas uma pessoa ouve, mas várias. Reserva-se
algum tempo para tratar individualmente de pontos especiais, mas há a
possibilidade de trazê-los posteriormente para o grupo.
No penúltimo dia chegamos sempre ao momento presente, para que no último dia
se possam visualizar as metas de curto, médio e longo prazo que cada pessoa
estabeleceu para si.
A faixa etária para participação nos cursos biográficos está entre 21 e 70 anos de
idade, e não há restrições de profissão, religião ou hábitos de vida. Para as pessoas
sadias, atua como higiene preventiva e harmonização da vida; para uma pessoa
doente, será terapêutica. No entanto, para um curso biográfico é necessário que a
pessoa possa responder por si mesma, que esteja de posse de seu próprio eu.
Após algum tempo, que pode ser de anos, pode-se repetir o processo biográfico ou
fazer aprofundamentos mediante diversos temas de autoconhecimento — como
temperamentos, aspectos masculinos e femininos do ser humano, forças zodiacais e
planetárias, a questão do carma, etc. —, ou simplesmente retirar-se alguns dias no
local para descansar e revitalizar-se.
Na Artemísia são dados cursos para executivos, cursos de formação para
coordenadores de cursos biográficos e para consultoria empresarial.
Onde estou?
Quão longe foi a caminhada!
Uma voz me diz: "Olhe para trás! Veja, sinta, escute, sua primeira infância
aconchegada no seio de seu lar, abarcada pelo grande seio da natureza — você
admira a terra, um grande 'A'.
"Já aos sete anos, você se desprende em busca do amor, da devoção a um grande
mestre — na palpitação de seu coração e em sua respiração você vivência a
grande emoção: ora se recolhe, ora se solta e vivência o E da devoção e o E'do
'não'!
"Aos catorze, no vigor do seu corpo, você olha com espanto e, dentro de algo de
força e luz, dá nascimento à sua personalidade, tal qual um raio de luz — um T.
"Você se sente forte e corajosa, capaz até de derrubar a sociedade, de lutar. Luta
então com a espada de fogo — muitos incêndios causa, muitos mortos, porém
inocente, tal qual Parsifal.
"Até que um dia chega a tão esperada maioridade. — Cheguei! —, você grita. —
Onde está meu cavalo? Porém a pergunta, que desde o velho Egito a Esfinge fazia,
repete-se no fluir dos tempos: — Quem é você?
"Então, de mochila nas costas, você sai pelo mundo afora na busca desse eu. —
Quem sou eu?
"Eu e muitos 'tus' no grande caminhar da vida, se encontram, se amam, trabalham
juntos, meditam...
"De seu lanche na mochila você vai saboreando os melhores frutos, as pedras
brutas vai tirando para lapidar, as ferramentas que lá se encontram começa a
usar, muitas já sujas de graxa — é preciso limpar. Os caroços você cospe, vai
jogando, sem sequer olhar. Alguns caem em rocha, outros na areia, outros no mar.
Alguns, porém, na terra úmida começam a brotar.
"Cada vez mais segura, muitas árvores você irá plantar, com a certeza de ter
achado seu eu, pela vida a caminhar. Até que um dia, já um pouco cansada,
debaixo de uma árvore copiosa vem a sentar-se. A árvore tem tantos galhos que
nem o céu dá para enxergar. E novamente surge a pergunta: Quem é você?
"Essa árvore, num lugar um tanto conhecido, deve ser aquele caroço — como
cresceu! Não dá para enxergar mais o sol, nem o céu azul, nem as nuvens, nem as
estrelas de uma noite escura. Espantada, você olha para sua sombra ao luar que
nasce lá longe: —Acaso sou eu?
"Desesperadamente, no dia seguinte, ao acordar, começa a podar os galhos: —
Preciso respirar, o sol precisa entrar, preciso enxergar o céu. —A árvore, porém,
se ressente e diz: — Oh, não sabes esperar? Não vês que já apontam as frutinhas?
Logo elas irão amadurecer; já as esperam os passarinhos e outros tantos
animaizinhos, e outros tantos para saciar-se!
"Com o fruto maduro, chega o outono; a natureza e o eu se rejubitam no grande
'O' da doação. Agora muitas folhas cairão, e entre o vão das folhas as estrelas
tornarão a brilhar.
"E, compenetrado e pensativo, você se põe a olhar.
"Seus cabelos se tornam alvos, tal qual a prata de um lago ao luar.
"Dos olhos irradia o sol, não importa você o enxergar. "Entre as estrelas avistadas
por entre os galhos despidos, você irá encontrar algo que de novo a irá abrigar.
"De lá você vem, para lá você volta, e o grande 'U' se lhe revelará.
"Conscientemente, você vê: —Sou assim!"
Capítulo XI
Autobiografia
22
Meditação dada por Rudolf Steiner por ocasiao da nova fundação da Sociedade Antroposófica Universal, em 1923. (N.E.)
23
Dados por R. Steiner em jan. e abr. / 1924 (GA317-3. ed. Dornach, 1987). (N.E.)
24
V. Rudolf Steiner, Fundamentos da agricultura biodinâmica, trad. Gerard Bannwart (2. ed. São Paulo: Antroposófica,
2000). (N.E.)
Eu me empenhava muito pelos clientes, e logo fui convidada a atender pacientes
com câncer em outros estados, e também no Chile. Tinha pouco tempo para leitura
— creio que ainda não havia lido Teosofia, mas praticava regularmente as
meditações para jovens médicos, de onde provavelmente tirava as forças para a
cura. Também seguia conselho de um professor universitário, com o qual tinha um
paciente de câncer em comum: "Examinar sempre o paciente."
Aos meus 27 anos morreu minha madrasta; meu pai ficou sozinho, mas tinha boas
amigas que o ajudavam.
Aos 28 anos tive rubéola, junto com minhas filhas. Era todo um contexto novo
dentro da Antroposofia, e meu organismo lançou mão de uma doença infantil para
ajudar-me a me limpar dos contextos velhos; esta foi, para mim, a 'crise dos
talentos'.
A Escola Higienópolis recebia professores da Europa e outros grupos de jovens.
Nós sentíamos muita alegria por participar de grupos de estudos e por ter uma
atuação intensa na vida escolar. Nessa época tornou-se necessário mudar a escola
do bairro de Higienópolis para uma área bem maior. Adquiriu-se um terreno
maravilhoso, na região sul da cidade; era arborizado e sobre ele havia uma
construção antiga, que logo foi complementada com uma nova, para abrigar o curso
primário, além do salão de eurritmia. Ficava no bairro de Santo Amaro.
Aos 29 anos engravidei do terceiro filho, Thomas, e resolvi descansar um pouco do
trabalho. Senti, olhando retrospectivamente para a vida, que desde cedo eu assumira
responsabilidades maiores do que, na realidade, poderia suportar: por exemplo, a
responsabilidade médica do instituto de meu pai; na Escola Higienópolis era a
diretora oficial, por ser a única que possuía diploma brasileiro; e em casa, além dos
cuidados com a própria casa, era mãe e esposa.
Então nós 'fugimos' das responsabilidades e fizemos uma linda viagem à Itália, com
uma curta passagem pela Suíça, onde acabei fazendo uma substituição de férias de
uma médica assistente do Dr. Leroi. Porém regressamos em meu oitavo mês de
gestação, numa belíssima viagem de navio — aliás, como também já havia sido a
ida para lá. Assim pude dar à luz, livre de trabalho, a um lindo menino,
amamentando-o bem e complementando sua alimentação com suplementos de
farinhas biodinâmicas, trazidas da Europa. Eu curtia essas épocas de vida em que
não estava dividida entre a atividade médica e ser mãe.
Pouco depois meu pai adoeceu de um câncer de tiróide, o que o levou à
perplexidade: "Como eu, que sempre me cuidei por meio de uma alimentação e
uma vida sadias, posso estar com câncer?" Este fato abalou profundamente sua
crença no naturismo. E ainda por cima esqueceram pano de gaze em sua ferida, que
supurou intensamente. Para mim, a única solução que havia era ele ir para a Clínica
Ita Wegman, e, de comum acordo, eu iria para lá logo que houvesse necessidade.
Foi, de fato, o que aconteceu. Duas semanas antes de sua morte, eu pude ir à Suíça
e acompanhá-lo na fase final, embora ele já estivesse numa clínica
otorrinolaringológica em Basiléia, pois estava traqueotomizado. Nos intervalos eu
passeava às margens do rio Reno, e finalmente na Quinta-feira Santa, depois de um
dia de agonia, meu pai faleceu. Logo depois da cremação de seu corpo, voltei para
São Paulo.
De volta, na Escola Higienópolis, faziam-se sentir diferentes opiniões entre o grupo
fundador e os novos professores recém-chegados. Acabei sendo envolvida, pois
estava na posição de diretora e alguns queriam usar-me para alcançar seus
objetivos. Deixei-me envolver, pois era uma época em que eu sentia uma exagerada
auto-confiança — sentia-me bonita, atraente, e muitos se apaixonaram por mim.
Um dia, porém, repentinamente, no pátio da Escola, tive uma luz: "Se as pessoas se
apaixonaram por você, você está irradiando uma força que leva a isto." E a partir do
momento em que percebi minha responsabilidade nisso, melhorei muito nesse
aspecto.
Eu estava com 31 anos quando a Escola recebeu também a visita do Dr. Helmuth
von Kügelgen; para mim essa visita foi muito significativa; tivemos um encontro
bastante profundo, que me ajudou a ver as intrigas que havia nos grupos da Escola.
Fizemos um trabalho médico-pedagógico juntos, em Buenos Aires, onde conheci
Anne Lahusen, que se tornou uma grande amiga.
Minha vida meditativa, da qual eu me ocupava com exercícios colaterais e as
meditações para jovens médicos (dos cursos da Páscoa e do Natal, de Rudolf
Steiner) foi ampliada para uma dimensão mais crística, graças a Helmuth von
Kügelgen, que apresentou a mim e a meu marido outras meditações. A
responsabilidade na vida meditativa cresceu.
As dificuldades na Escola aumentaram e culminaram numa crise em que metade
dos professores, inclusive eu, se retirou.
Nessa época, já tínhamos construído uma casa perto da Escola (em parte, ajudados
pela venda da casa de meu pai na Vila Mariana), e vivíamos ali felizes com as três
crianças. Também havíamos adquirido uma terra virgem na divisa de Minas Gerais
com São Paulo, perto de Campos do Jordão, onde acampávamos e plantávamos
pinheiros.
Com minha saída da Escola, tornou-se mais claro para mim que minha meta era
construir uma clínica, mais tarde. Também meu pai já sonhava com uma clínica,
mas para mim deveria haver uma metamorfose; não seria uma clínica naturista, e
sim uma clínica antroposófica. Nessa época meu sogro vendeu a própria fábrica e
entrou para a fábrica Giroflex, como sócio majoritário.
Meu marido e eu decidimos ir pra a Europa por um tempo mais longo. Ele
freqüentaria o seminário para formação de professores Waldorf e eu estudaria as
complementações da medicina antroposófica: terapia artística, massagem rítmica,
eurritmia curativa. Assim, decidimo-nos, em 1962, a ir por um ano e meio para
Stuttgart, com toda a família. Alugamos um apartamento em Heumaden. As
crianças entraram para o primeiro e o terceiro anos; Aglaia, na classe de Helmuth
von Kügelgen. Thomas, com seus três anos, ficaria comigo em casa. Mobiliamos o
apartamento, compramos um carro e eu seguia para Eckwálden, lugarejo próximo a
Stuttgart, onde trabalhava com eurritmia curativa junto a Else Sittel e terapia
artística e massagem rítmica junto a Margarethe Hauschka. Levava Thomas, que
ficava brincando com um menino da mesma idade na casa dos Geratz, no instituto
de pedagogia curativa.
Após idas e vindas, conseguimos uma moça que queria estudar eurritmia mas
precisava juntar dinheiro. Assim, ela trabalhava para nós e cuidava do Thomas
quando ele não ia comigo.
Em Stuttgart, conheci o velho farmacêutico da Weleda, sr. Spiess, que ainda
recebera instruções de R. Steiner. Com ele aprendi, sistematicamente, os processos
farmacêuticos. Uma vez por semana trabalhava num grupo médico. Tinha
encontros com E. Lehrs e a sra. Róschel-Lehrs, os quais me foram importantes,
assim como as seis aulas da Klasse [v. nota 47, pág. 231], diárias e seguidas, dadas
por Lily Kolisko, a grande pesquisadora antroposófica que tinha de ganhar seu
sustento tricotando e tecendo xales de lã. Um encontro importante que tivemos no
círculo de Arlesheim aconteceu por ocasião das 'treze noites santas'25 na clínica Ita
Wegman: foi o de meu marido com o professor Bernard Lievegoed; meu marido
logo percebeu que seu trabalho não seria com crianças, mas com adultos, na
reestruturação de empresas. Lievegoed dizia que os empresários são reencarnações
dos iniciados da antiga época egípcia, e que as organizações piramidais, com um
pioneiro comandando tudo, teriam de ser modificadas, 'cristianizadas'.
Algumas vezes meu marido viajava para a Holanda, para os cursos de Bernard
Lievegoed no NPI26, e era um vai-e-vem muito enriquecedor. Contudo, embora
tivéssemos gostado de ficar mais tempo na Europa, os chamados do Brasil se
acentuavam: por um lado da Giroflex e, por outro, da Weleda, que não vendia seus
medicamentos sem os médicos que os receitassem.
Antes, porém, de voltar para o Brasil ainda trabalhei por um mês na recém-fundada
Lukas Klinik, pois ainda não havia lá médicos assistentes. Foi ali que conheci a
Dra. Sabine Sattler, que mais tarde veio para a Clínica Tobias.
Nossa volta foi a bordo de um navio cargueiro que saiu de Antuérpia, parou em
Hamburgo, onde assistimos a uma belíssima apresentação da 'Flauta Mágica' [de
Mozart], e então partimos. Era 1964. Como o navio era cargueiro, não tinha muitas
medidas de segurança para os passageiros, e um dia Thomas caiu de um convés
para o outro. Não perdeu a consciência, mas passou a vomitar incessantemente e só
após alguns dias parou de vomitar, tomando água de Vichy, que o comandante pôs
à nossa disposição. Por sorte eu tinha Arnica em gotas e lhe dava várias vezes ao
dia, o que certamente o salvou.
Nessa época, Pedro e eu estivemos bem próximos e juntos. Era uma esfera de luz
espiritual que acompanhava a nós três. Uma professora do jardim-de-infância, a
Anni, também estava conosco.
25
Período meditativo de 25 de dezembro a 6 de janeiro. (N.E.)
26
Instituto de consultoria empresarial situado em Zeist, Holanda. (N.E.)
Em São Paulo constatou-se, por radiografia, que havia uma fratura linear da calota
do crânio de Thomas, o que o obrigou a um repouso maior. Neste episódio, Anni
ajudou bastante, entretendo-o.
O ano de 1964 se constituiu numa época crítica para o Brasil. Voltáramos, a pedido
dos sogros, para que eu reassumisse a medicina e meu marido a Giroflex. Meu
marido, porém, pretendia inaugurar um trabalho pedagógico-social em sua firma,
com educação para menores, de doze a catorze anos, idade em que as crianças ainda
estavam proibidas de trabalhar. Para isso duas professoras com especialização na
Alemanha vieram ao Brasil, e esse trabalho teve alguns anos de sucesso.
De minha parte, iniciei um centro terapêutico com uma massagista, uma eurritmista
curativa e uma secretária, em nossa residência. Havia um espaço livre que havia
sido planejado para ser um apartamento para meu pai. Nossa casa, situada perto da
Escola Higienópolis, tornou-se um centro cultural, com concertos, teatro, peças de
Natal e a comemoração das festas do ano, de que participavam nossos filhos e os
filhos de alguns amigos. Nessa época tentei tocar piano e lira, mas a minha
musicalidade era 'um zero à esquerda'! Sentíamo-nos bastante felizes, pois só então
pudemos morar por mais tempo na casa construída por nós. Éramos uma família
plena; todos estávamos presentes às refeições, inclusive meu marido — pois a
fábrica Giroflex era relativamente perto —, bem como as crianças, que vinham a pé
ou de bicicleta da Escola. Nosso cunhado e sua mulher construíram sua casa perto
de nós. Ela era professora de jardim-de-infância e atraía muito as crianças. Eles
tiveram três filhos, e por muitos anos os primos brincaram juntos.
Para mim o instituto fisioterapêutico de meu pai pesava cada vez mais. Na ida para
a Europa, eu tinha deixado lá um gerente. Agora parecia-me que isso não tinha nada
mais a ver comigo. A idéia de uma clínica foi ficando cada vez mais forte,
especialmente após um episódio em que meu marido encontrou em sua cama um
paciente com quarenta graus de febre e que ficara ali em observação, até que eu
voltasse para casa.
Com 35 anos fui mais uma vez a Buenos Aires, para fazer um trabalho pedagógico-
terapêutico. Nessa época convenci minha amiga Anne Lahusen da necessidade de
uma clínica antroposófica na América do Sul, para a qual ela me fez um
empréstimo. Decidimos definitivamente vender o instituto fisioterapêutico de meu
pai e, com o dinheiro, compramos os três terrenos para a futura Clínica Tobias
(situados entre a Escola Higienópolis e nossa casa).
Logo começaram os projetos, que Pedro elaborou junto com um jovem arquiteto (o
mesmo que construiu nossa casa). Tijolo à vista, amplas janelas de madeira;
inicialmente para oito leitos e dois consultórios, mas já com um amplo salão e palco
para eurritmia, sala de fisioterapia e banhos. Enfim, uma pequena jóia, com tudo o
que se precisava.
Com os planos prontos, conseguimos colocar a pedra fundamental da Clínica —
aos meus 37 anos, justamente em meu segundo nodo lunar. Foi um momento muito
especial, do qual não só os amigos médicos da Europa participaram, mas também
os seres espirituais. Foi uma vivência de plenitude espiritual.
Pouco tempo depois, porém, senti-me envolvida e o meu lado luciférico começou a
florescer novamente. Meus sogros tinham uma casa em Campos do Jordão. Quando
ela não estava disponível, alugávamos outra para passar a temporada. Eu trabalhava
com cerâmica junto a uma ceramista que se havia mudado para lá. Acabei me
envolvendo com gente simples do campo, perto das terras da 'fazenda' que
havíamos comprado, e queria viver a simplicidade. Comecei ensinando-os a fazer
presépios e a festejar o Natal. Na época do Advento, sempre ia buscar os musgos
mais bonitos que encontrava nessa região da Mantiqueira para montar o presépio lá
de casa.
Resolvemos trazer algumas crianças para São Paulo, a fim de fazê-las estudar. Uma
delas foi o Cecílio, aliás a única para quem a iniciativa deu certo. Era um ano mais
jovem do que Thomas, e deveria fazer companhia a este. Ficou em nossa casa dos
cinco aos catorze anos e pôde freqüentar a Escola Waldorf até a nona série, para
depois ir para o curso técnico-agrícola.
Na mesma época engravidei do nosso caçula, Tiago. Quando Tiago nasceu, havia
muita controvérsia em torno de seu nome. Eu tinha uma forte relação com Santiago
de Compostela; quando estava grávida, fui um dia à igreja e o padre recitou todos
os nomes dos apóstolos. Imediatamente bateu o nome 'Tiago'; eu sabia que era um
menino, pois tinha tido um sonho com um potrinho macho nascendo, e achava que
só podia ser aquele nome. Quando Tiago nasceu, tive a imagem de uma alma bem
velha e sábia, e tivemos, ele com apenas alguns meses, uma conversa longa de olho
para olho.
Paralelamente à gestação e à maternidade, que eu curtia bastante, chegava-se à fase
final da construção da Clínica, feita com a ajuda dos operários da Giroflex e todo o
investimento de Pedro. A inauguração ainda foi protelada um pouco, e aconteceu
em junho de 1969. Foram doados à Associação Beneficente Tobias, recém-fundada,
ao mesmo tempo os terrenos, o prédio e toda a estrutura da Clínica, para que esta
não tivesse um caráter de clínica particular. Como eu era a única médica, e era
médica clínica, convidei mais três colegas especialistas a participar da instituição: o
Dr. Wilhelm Kenzler (psiquiatra), o Dr. Thomas Müller-Carioba (cardiologista) e o
Dr. Ader Bertolami (cirurgião). Eu, porém, trabalhava em tempo integral e era
responsável pelos internados, junto com a Sra. Hilda Bennecke, massagista.
Tínhamos uma recepcionista e, mais tarde, a Sra. Ada Jens como terapeuta artística.
Recebemos visitas importantes, como o Professor Bernard Lievegoed e sua esposa;
mais tarde, o Dr. Mees, o Dr. Norbert Glas e esposa; e, a partir de 1975, a visita
regular do Dr. Otto Wolff, com o início dos seminários de Medicina Antroposófica,
realizados para atender ao grande interesse dos estudantes de Medicina por essa
ampliação. Porém nesse período a Clínica já tinha recebido a Dra. Sabine Sattler
(mais tarde Suwelack), como médica e eurritmista, e o Dr. Bernardo Kaliks,
também médico clínico. Dos especialistas só continuava o Dr. Ader Bertolami.
Tínhamos grupos de estudo de plantas medicinais, de medicina antroposófica,
cursos de massagem e de pintura. Com o Dr. Ader, que era rosa-cruz, tínhamos
longas conversas para ver as diferenças entre a Antroposofia e a orientação rosa-
cruz, cada um convicto de seu ponto de vista. Foi na mesma época em que eu
atendia duas vezes por semana na clínica dele, na Cidade Ademar, e ele duas vezes
na Clínica Tobias, à base de troca e com outra categoria de pacientes. Na Clínica
Tobias, sempre estávamos empenhados em atender também os mais necessitados.
Assim, instituímos as consultas populares, a um preço mínimo. Lembro-me de uma
vez em que o Sr. R., dono de uma grande indústria paulista, ofendeu-se porque
atendi um operário que tinha hora marcada antes dele.
Atendemos muitos pacientes de câncer, muitas vezes já moribundos, em fase final,
que diziam: "Doutora, vim para morrer em suas mãos"; e com o tratamento à base
de Viscum álbum, para os cancerosos, quase nunca necessitamos de medicamentos
entorpecentes mais fortes. As famílias eram bem assistidas nos problemas
psicológicos que surgiam em função das doenças graves de seus entes queridos.
Foi uma época difícil; eu tinha que dar conta da Clínica, de Tiago bem pequeno, do
lar, já estando com 40, 41, 42 anos, fase em que o declínio físico já é mais evidente.
Eu tinha a impressão de estar entrando num túnel escuro; sabia que haveria luz do
outro lado, mas sabia também que sua travessia seria longa. Nessa época, Pedro ia
duas vezes por ano à Europa, para continuar seus cursos com o Professor
Lievegoed, e ficava mais ausente de casa.
Ao completar 41 anos — portanto, iniciando os 42 anos de vida —, tive uma crise
resultante de um encontro espiritual mais profundo com o Dr. Ader. Tive um sonho
de iniciação egípcia (todo rosa-cruz mantém algo, até hoje, da iniciação egípcia),
que também me deu a certeza de que esse não era o meu caminho. Desde a gravidez
de Tiago, havia sido difícil manter-me no caminho meditativo espiritual. Assim, a
crise também resultou numa 'retomada de caminho'.
Nessa época construímos nossa casa na fazenda, em Campos do Jordão. Era difícil
acampar com um bebê pequeno, e todos gostavam daquele lugar, que tem uma vista
espetacular para o Vale do Centro. Havia cavalos, carneiros, a vaca dos caseiros, e
passávamos ali todas as férias de verão e principalmente da Páscoa. Os invernos
nós passávamos mais na casa que eu tinha herdado de meu pai, no Guarujá.
Fazíamos o contrário da maioria: inverno no Guarujá e verão em Campos do Jordão
(fazenda). Uma coisa que para mim sempre foi sagrada: as férias, tanto as de
janeiro quanto as de julho (pelo menos três semanas), com as crianças. Era a época
em que não me sentia dividida entre o trabalho e a família. Pedro acompanhava as
férias na medida do possível.
No período de 1970 a 1974, também fizemos algumas viagens interessantes. Em
1970, visitamos a Gruta de Maquiné e descemos o Rio São Francisco até Juazeiro
(ainda não havia represa), acompanhados por Thomas. A viagem que se sobressaiu
foi a de 1972, na qual descemos de barco (com barqueiro) o rio Araguaia, a partir
de Aruanã, acampando em suas margens e visitando algumas aldeias de índios onde
trocávamos nossos plásticos, canivetes, etc. por lindas plumagens. Assistimos a um
casamento, em que o índio passava a noite pescando e a noiva tinha de tecer uma
rede. Foi muito forte esse encontro verdadeiro que tivemos, especialmente com o
noivo. Dessa viagem participaram, além de Thomas, Solwaye Aglaia, em parte.
Havia, no entanto, um outro problema; como no carro em que fomos até Aruanã
levamos também a gasolina para o barco, todos os mantimentos cheiravam e tinham
gosto de gasolina. Era impossível comprar substitutos, pois, quanto mais afastados
os lugarejos, mais escassos e caros os mantimentos. Foi a única vez que passei
fome na vida. Chegando à aldeia dos índios, a família se alimentou de mandioca e
peixe, e eu, como vegetariana, comi omelete de ovos de tartaruga. As tartarugas
eram abundantes, descansavam nas árvores e, quando o barco passava, pulavam na
água. A noite chegamos a ouvir rugidos de onça, e, como havia pegadas delas na
praia, foi a única vez em que o barqueiro, em vez de dormir enterrado na areia
quente, preferiu dormir no barco. Nessa viagem nosso filho foi 'iniciado' pelo
barqueiro, mas falhamos em não conversar com ele a respeito. A viagem deu-me
uma grande satisfação; tive grande identificação com os índios carajás e depois com
os xavantes, no Mato Grosso. Houve uma época em que pensei em viver com eles
pelo período de seis meses a um ano, dando-lhes assistência médica e me privando
de todos os benefícios da cidade e dos privilégios que a vida me havia dado até
então. Sentia-me muito privilegiada, em termos de talento médico, de vida
econômica e familiar. Mas justamente todos esses compromissos, com a profissão e
com a família, é que me impediram de tomar tal decisão.
Depois dos 42 anos, entrei numa fase em que comecei a me interessar mais pelos
problemas sociais da Giroflex. Saí do consultório da Cidade Ademar e passei a dar
atendimento no consultório médico da empresa, duas vezes por semana. Já antes
gostava de organizar as festas de Natal, e agora comecei a ensaiar peças de teatro
com os operários. Antes, as apresentações de teatro feitas lá eram peças de Natal,
mas ensaiadas com meus filhos adolescentes e amigos. Agora, com ajuda de Renate
Keller, vinda da Alemanha, ensaiamos 'Morte e Vida Severina', de João Cabral de
Mello Neto, cuja apresentação foi maravilhosa e cujos cantos me comoveram
profundamente. Cheguei a dizer: "Quando morrer, gostaria que esses operários
cantassem no meu enterro." Eu era fã, também, de Jorge Amado. Então fizemos
uma brincadeira de amigo secreto e meu marido me tirou. Marcava encontros,
escrevia cartas, e no presente secreto havia, afinal, dois livros de Jorge Amado; só
daí percebi que havia sido ele.
O casamento, porém, tinha entrado num processo de distanciamento. Entre nós e na
vida familiar já não havia mais aquele aconchego tão necessário para as crianças.
Como não havia segundo grau na Escola Higienópolis, quando as meninas
terminaram o nono ano27 foram para Stuttgart completar seus estudos na Escola
Waldorf de lá, nas classes que já tinham freqüentado antes, e passaram a morar na
casa de amigos — os Kügelgens e os Weckenmanns. Enquanto isso, Pedro buscava
27
Série adicional ao primeiro grau nas escolas Waldorf. (N.E.)
mais e mais os cursos do NPI, e eu, muito envolvida com a Clínica, fazia anos que
não viajava para a Europa. Acabei por me envolver, outra vez, numa situação que
não mais chamaria de luciférica, mas sim de arimânica. Fazia um esforço enorme
para sair dela, e não conseguia; parecia uma teia de aranha na qual eu estava presa,
e eu tinha a nítida sensação de que 'trabalhos' eram feitos contra mim. Essa situação
foi-se arrastando por pouco mais de dois anos. Eu tinha a certeza de que sairia dela.
Foi nessa ocasião que fizemos uma longa viagem pela costa do Brasil até Fortaleza,
acampando, com Thomas e um amigo, Solway e uma amiga. A relação com Pedro
havia-se tornado bem formal, ou de 'paizão para filha'. Algumas vezes, em nosso
casamento, Pedro dizia: "Ainda vou casar as minhas três filhas" (eu incluída).
Fizemos ainda uma viagem para o sul, no litoral de Santa Catarina. Thomas e um
amigo acampavam, e nós dois (Pedro e eu) dormíamos em nossa 'Veraneio'
Chevrolet, o que eu adorava.
Pedro tinha um pressentimento que só mais tarde me comunicou: que aquela seria
nossa última viagem juntos. Será que alguém iria morrer? Durante alguns anos eu
também tivera um pressentimento: "Ainda vou encontrar alguém." Não que não
sentisse uma forte ligação espiritual com Pedro, pois esta sempre houvera, mas no
aspecto afetivo eu precisava mais de um amante do que de um pai, e sempre ficava
alerta, buscando aqui ou lá quem seria esse alguém que eu sentia que iria encontrar.
Com toda esta situação, Pedro acabou sentindo-se enfraquecido e doente; decidiu
passar novembro e dezembro na Clínica Ita Wegman. Nessa época, nossa filha
Solway estava no Brasil, pois, após ter terminado o 12o ano28, voltou para fazer o
curso de Auxiliar de Enfermagem e trabalhava comigo na Clínica Tobias. Aglaia
estudava, com seu companheiro, Pedagogia Social em Berlim. E a Clínica Tobias,
que passara por um processo de ampliação, com novas salas para parto, pequenas
cirurgias e fisioterapia, consultórios, assim como aumentara seu número de leitos
de 8 para 22, precisava agora de uma consultoria.
O movimento do NPI no Brasil era representado por um grupo de empresários, e
Lex Bos29 vinha trabalhar com eles todo ano, não havendo aqui, porém, um
consultor. Um candidato para fazer a formação de consultores na Holanda fora
indicado e especialmente apoiado por Pedro Schmidt. Como já voltara de sua
formação de dois anos naquele país, poderia dar consultoria à Clínica; era Daniel
Burkhard.
Ele foi, então, convidado a assumir essa tarefa, e já no primeiro dia tivemos uma
discussão a respeito da possibilidade de diminuir o gasto de papel para o flip-chart,
pois eu achava aquilo anti-ecológico. Daniel sentiu-se ofendido, e achava que não
iria fazer a consultoria. No final, ambos queríamos a consultoria, eu como cliente e
ele como consultor. Decidimos ter uma conversa com um mediador, mas não
resultou em nada. Decidimos, nós mesmos, tentar mais uma vez e conseguimos nos
acertar.
28
Equivalente à terceira série do segundo grau. (N.E.)
29
Abreviatura do nome de Alexander Bos, consultor no NPI da Holanda juntamente com Bernard Lievegoed. (N.E.)
Era o dia lo de novembro; Pedro estava na Europa e havia uma apresentação de
'Morte e Vida Severina', à qual Daniel e eu fomos, sozinhos. Eis que aconteceu 'o
encontro'; decidimos, então, ir para o Guarujá e contar-nos, um ao outro, nossas
biografias. Chegamos à conclusão de que uma relação de amantes entre nós seria
impossível. A única maneira de nos relacionarmos seria por meio do casamento,
mas eu ainda estava casada. Daniel havia-se separado da primeira mulher há cerca
de um ano. Ela e seus filhos tinham decidido ir morar na Holanda.
O choque para Pedro foi bastante grande; a comunicação lhe foi feita por telefone,
pois eu achava que seria melhor comunicar-lhe enquanto estivesse na Clínica, e
assim ele decidiu passar o Natal lá na Europa. Foi onde encontrou sua futura
segunda mulher, Roswitha.
Foi o Natal mais desencontrado que passei. Com a filha Solway, os meninos
Thomas, Cecílio e Tiago, e ainda convidamos um amigo, que não apareceu. Nossa
casa tornara-se 'um porto' onde jovens que trabalhavam na Demétria, a fazenda de
agricultura biodinâmica comprada por meu cunhado e doada à Associação Tobias,
pernoitavam quando vinham para São Paulo.
Com o novo relacionamento, minha vida deu uma volta de 180 graus. Meu primeiro
marido era pacífico, mediador e paternal. Também agora manteve essa atitude e
continuou a ser nosso melhor amigo e meu conselheiro. Daniel era bem colérico,
decidido, e muitas vezes me 'encostava na parede' para eu ser coerente. Ele estava-
se empenhando intensamente em levantar o NPI do Brasil com a ajuda de apenas
uma secretária. Já tivéramos um contato dois anos antes, pois eu tratava do sogro
dele como médica, e, nos anos em que fazia seus cursos com Lex Bos (do NPI), ele
até chegou a ser meu cliente.
Quando Pedro voltou, acertamos as coisas. Decidimos que ele ficaria com Tiago e
com Thomas na casa, e que eu sairia. A condição era que eu morasse perto e que
Tiago pudesse me alcançar de bicicleta. Um pouco precipitados, Daniel e eu
procuramos uma casa, achamos logo e nela vivemos por dois anos. Ficava perto da
Clínica e da casa de Pedro com os meninos. Thomas chegou a ter uma oficina de
surfe, com um amigo, na garagem de casa. Decidimos também que encontraríamos
um lugar para Cecílio. O professor Blaich (da Escola Rudolf Steiner) se dispôs a
acolhê-lo. Eu estava então com 45 anos, e Daniel era seis anos mais novo. Interna e
externamente me senti bem livre, novamente numa autenticidade e coerência com o
que vivia. Não precisava mais aparentar uma coisa e ser outra; consegui retomar
meu caminho espiritual. No primeiro ano do novo casamento, líamos diariamente
Antroposofia; tentávamos entender as leis do carma, além de viver muito afetuo-
samente um com o outro; curtíamos a lua-de-mel. Na separação, o que mais me
custou foi deixar os dois filhos. Apesar de morarem perto, eu não estava com eles.
Quando a Clínica completava anos, eu sempre fazia um discurso. Naquele ano de
1976 ela completava sete anos, estava com a ampliação terminada, e eu com meu
novo relacionamento. Porém não me senti em condições de fazer o discurso. Fui
receber uma massagem rítmica e estava, ainda, descansando da massagem quando
tive a sensação de um grande ser abarcando e abraçando a Clínica. Tive a nítida
impressão de que era a Dra. Ita Wegman. Nesse momento surgiram as palavras
adequadas para o discurso.
Foi então que decidi fazer parte do círculo que se ocupa com o destino de Rudolf
Steiner e Ita Wegman, o qual se encontra anualmente na Ita Wegman Klinik, em
Arlesheim, por ocasião da Páscoa. Ainda esperei uns dois anos para as coisas se
assentarem emocionalmente, e então pude dar este passo. Um passo a mais na
direção da parte esotérica da medicina antroposófica.
No mesmo ano de 1976, e por três anos consecutivos, tivemos a visita de Helmuth
ten Siethoff, que ministrou a um grupo, em Campos do Jordão, um primeiro curso
biográfico, seguido de aprofundamento. Já da primeira vez, Helmuth disse: "Juntem
suas forças — você, Daniel, como consultor, e você, Gudrun, como médica.
Comecem a fazer cursos biográficos aqui no Brasil." E foi o que fizemos! No
mesmo ano começamos com quatro cursos de fim-de-semana na Vivenda Tobias,
que havia sido comprada pela Clínica. Fomos sistematizando e elaborando cada vez
melhor as palestras, o trabalho de grupo, a pintura. O trabalho cresceu, necessitando
de um espaço próprio; a sistematização do processo foi elaborada por nós, pois nem
Siethoff nem Lievegoed usavam a metodologia que criamos. Aliás, o professor
Lievegoed nunca conduziu um curso biográfico.
Haviam-se passado quase dois anos quando decidimos comprar um espaço próprio
para a construção de nossa casa. Consegui vender a casa herdada de meu pai, no
Guarujá — aliás, único bem com o qual fiquei após a separação. Daniel conseguiu
desfazer-se de um sítio em São Roque, e com isso compramos, numa linda manhã,
após muito procurar, um terreno em Parelheiros, atraídos pelas grandes árvores que
lá havia. Construímos uma pequena casa de noventa metros quadrados,
desbravamos o mato, depois construímos a piscina com a ajuda de um amigo
arquiteto, sem ainda pensar que esse seria o futuro local para nossos cursos. Só após
algum tempo achamos que tanto os seminários de medicina quanto nossos cursos
necessitavam de um novo local. Juntaram-se a eles os seminários de Lex Bos, de
pedagogia social, que desde 1979 aconteciam na casa de Pedro. Assim, foi
adquirido um terreno em frente ao nosso (em Parelheiros), e logo iniciamos a
construção do Centro Paulus, inaugurado em 1981 como centro de formação antro-
posófica. Uma vez pronto, nossos cursos biográficos foram para lá. Mas como lá se
iniciou um curso permanente de um ano, novamente ficamos sem casa para os
cursos. Então resolvemos ampliar nossa casa, construindo seis apartamentos,
ampliando a cozinha e a sala, para realizarmos os cursos biográficos na propriedade
já então chamado por nós de Artemísia — Deusa grega da vida e da fecundidade.
Com os apartamentos prontos, recebemos as primeiras visitas — a Dra. Rita Leroi e
Gundel Krazer, eurritmista. Nessa ocasião também fundamos a Associação
Brasileira de Medicina Antroposófica (ABMA), da qual fui presidente durante sete
anos.
Nossa vida particular estava muito voltada para o trabalho. Daniel, com os cursos
externos para empresários, viajava muito, e eu tinha o trabalho da Clínica Tobias,
os seminários médicos no Centro Paulus, durante os quais eu hospedava e traduzia
o Dr. Wolff, que vinha ao Brasil todo ano por três semanas, e ainda tinha os cursos
biográficos. Os cursos biográficos já eram acompanhados por semanas de
desintoxicação alimentar, massagens, banhos — enfim, de uma revitalização.
Passamos a internar pacientes com necessidade de descanso na Artemísia, uma vez
que a Clínica Tobias atendia pacientes cada vez mais graves.
Na vida privada, porém, nossas férias continuavam a ser sagradas. Daniel e eu
viajamos para Porto Seguro de carro, pelo litoral, acampando. Iguaçu, Iguape,
Morro Branco, em Fortaleza; e especialmente marcante foi uma viagem em que
acampamos às margens do Rio Vermelho, afluente do Araguaia, onde ficamos dez
dias sozinhos na mata, praticamente sem ver ninguém, remando pelos lagos cheios
de piranhas e pescando no rio. Nessa época eu já estava com cinqüenta anos, em
plena menopausa.
Em setembro de 1979 (49 anos), Daniel e eu fôramos para o Centre for Social
Development, na Inglaterra, a fim de freqüentar um curso de três meses em
pedagogia social e treinamento para trabalhos com grupos. Para nos acostumarmos
com o inglês, fomos um mês antes e adquirimos um automóvel Volvo, velho. Fize-
mos uma belíssima viagem para a Irlanda, atravessamos a Inglaterra e visitamos o
Dr. Glas e a esposa, em Gloucester. Fomos para Stonehange (região dos megálitos)
e em seguida visitamos o Castelo do Rei Artur, na costa de Tintagel. Ele estava
envolvido por um mar claro e azul de final de verão, no qual ainda deu para
tomarmos um banhinho em água gelada. Atravessamos de barca o canal e
chegamos à península de Dingle, na Irlanda.
O Volvo era mesmo espetacular. Abaixando o encosto dos assentos, com dois
pelegos de carneiro lanudo, fazíamos nossa cama e dormíamos celestialmente. Com
um pequeno fogareiro, cozinhávamos até dentro do carro, quando chovia.
Parávamos onde queríamos, na costa, em parte com grandes falésias. Era
impressionante! Rochas escuras, quase negras, e o mar azul; campos verdes, que
serviam de pasto para as ovelhas alvas. Quatro livros sobre a Irlanda, de Gsänger,
nos ajudaram a entender aquela região. Região dos mistérios de Hibérnia, dos
celtas, dos bardos, dos druidas (guerreiros) e, mais tarde, do cristianismo irlandês-
escocês, com os monges que cristianizaram a Europa — como Gallus, Albanus,
Bernardus — e que cultivavam um cristianismo solar, cujo símbolo era a cruz com
o sol em volta — símbolo que nós dois adotamos como colares de casamento. Os
monges viviam em comunidades, não de orientação piramidal e faraônica, como em
Roma, mas onde todos tinham os mesmos direitos e responsabilidades; era um
círculo de doze monges. A imagem de Cristo e os doze apóstolos, formavam uma
comunidade. Fomos descobrindo então megálitos, dolmens, círculos de pedra e
oratórios; capelas dos séculos IV a VIII, e a cada vez que descobríamos algo novo,
como por exemplo o oratório de Gallus, nossas almas vibravam. As descobertas
eram como que uma identificação. Foi nessa ocasião também que, passando um dia
inteiro numa floresta à beira de um rio, sem ver uma única pessoa, Daniel teve uma
visão dos pixies (gnomos). Agathe Glas, durante nossa visita, muito nos contou
sobre esses seres elementais, e nos disse que a Irlanda, terra preservada da
Atlântida, mantém uma natureza menos destruída pelo homem, e que nela as forças
da natureza e os elementais estão bem presentes.
Depois da viagem iniciamos nosso curso no Centre e passamos um Natal no
inverno do Emmental, na Suíça, rodeado de pinheiros e neve. Acendemos as velas
de Natal num pinheiro no meio da floresta. Aí recebemos a visita da filha de
Daniel, Beta, e de meu filho Thomas, que estava numa viagem pela Europa. Por
coincidência, ambos passaram por situações difíceis de destino no ano e meio
seguinte e foi bom termos estado com eles.
De volta ao Brasil, estávamos melhor preparados para o trabalho de grupo, tanto
nos seminários de pedagogia social como nos biográficos e seminários que iriam
acontecer no Centro Paulus, a partir de 1981. No ano de 1983, decidimos ampliar a
Artemísia. Foi colocada a pedra fundamental do salão e construída toda a ala nova,
ocasião em que Daniel e eu doamos todo o nosso terreno, com as construções já
existentes, à Associação Beneficente Tobias — uma área de vinte mil metros
quadrados, em parte coberta pela Mata Atlântica.
O primeiro evento que aconteceu no salão da Artemísia foi o casamento de
Thomas; depois veio a morte dramática de meu genro Günther, marido de Aglaia. E
dramas menores aconteciam a cada curso biográfico; dramas internos, que levavam
à libertação da alma e à fortificação da personalidade de cada participante. A
Artemísia passou a ser um pequeno centro de mistérios, nos moldes modernos,
onde o encontro consigo mesmo e com o outro despertava a própria alma para seu
caminho de evolução.
Na Clínica, já havia ocorrido uma mudança importante. A partir de 1980, Daniel,
que era seu consultor desde 1975, passou a ser seu administrador-geral, deixando
então seu trabalho de consultoria. Paralelamente, a Artemísia foi crescendo.
Tornou-se necessário, a partir de 1983, ano da fundação oficial da Artemísia, que
eu me afastasse cada vez mais da Clínica Tobias para dedicar-me à nova iniciativa.
Ainda acompanhava o conselho da Clínica e dava consultas, até passar a dar as
consultas na própria Artemísia. Assim, retirei-me da Clínica Tobias.
Foram exatamente catorze anos de trabalho intensivo na Clínica Tobias, mas seu
grupo de médicos estava tão fortalecido que me pareceu possível sair sem deixar
uma lacuna. Se esperasse, não teria a força para levantar a nova iniciativa.
No começo, a Artemísia exigia bastante sacrifício de nós dois. Era Daniel quem
fazia todo o transporte de material, de alimentação, de limpeza e de lavanderia, pois
nessa época eu lá permanecia em tempo integral, fazendo de tudo, juntamente com
uma colaboradora que, após dois anos, foi substituída. Em seguida veio também
minha cunhada para fazer a recepção, supervisionar a cozinha, a limpeza, etc. Nessa
época, Daniel e eu ainda não tínhamos nossa casa na Artemísia, pois todo o espaço
era necessário para os cursos e, deste modo, nossos dormitórios mudavam de lá
para cá e de cá para lá, conforme a necessidade, o que desgastou bastante o
casamento. Também Tiago, aos quinze anos, veio morar conosco na Artemísia, e
todas as manhãs, quando Daniel saía para a Clínica, Tiago o acompanhava para ir à
escola. Os dois se deram muito bem, e para mim foi o resgate dos sete anos em que
não vivemos juntos e nos víamos só nos finais de semana. Aliás, após a separação,
não importava quão longe eu estivesse, quando Tiago adoecia sem eu saber eu me
sentia mal e intuía que algo estava errado; geralmente, um telefonema confirmava a
suposição. A fase em que Tiago passou junto com Pedro e Roswitha foi muito
importante para ele no tocante a ritmo de vida, ordem, supervisão das tarefas
escolares; no entanto agora, na puberdade, a educação exigia mais liberdade e auto-
confiança.
Nesta fase, dos meus 49 aos 56 anos, entrei então no círculo dos médicos
antroposóficos 'Rafael', que se reunia após a Páscoa. Daniel e eu fizemos duas
lindas viagens à Grécia, em 1984 e 1986, durante as quais revivemos mistérios
antigos, de Epidaurus (centro médico de Esculápio), Corinto e algumas ilhas
gregas, como Delos, o centro de Apoio, e Santorini, de onde fomos para Creta. Em
Santorini, após visitar a cidade de Thera, que fora destruída pelo vulcão de
Santorini, tive um sonho em que acontecia uma erupção do tal vulcão e Daniel e eu
estávamos num navio afundando, e conscientemente nós nos abraçávamos, felizes
por morrer juntos. Foi um sonho bastante impressionante, e no dia seguinte senti
um profundo amor por Daniel, ao sentarmos no alto do morro, visualizando a baia
de Santorini.
Numa segunda vez viajamos para Atenas, Creta, Rodes, Cos (com o centro de
Hipócrates) e depois visitamos os mistérios de Éfeso, Didima e Millet (na atual
Turquia). Em Éfeso aconteceu algo inesperado; um cavalo estava atado num poste,
no caminho entre o antigo templo de Artemísia, do qual só resta uma coluna, e a
basílica de São João, no morro. Éfeso foi onde São João Evangelista viveu após seu
exílio em Patmos, onde também estivemos. Deixei, então, Daniel passar e disse:
"Passe pela frente, para não tomar um coice." Daniel passou sem dificuldades, mas
quando eu fui passar o cavalo me mordeu na mão esquerda! Achei isto algo
cármico e significativo: templo de Artemísia, estou indo para a Catedral de São
João e sou mordida na mão esquerda; a mão esquerda tem a ver com o passado, a
direita com o futuro.
O ano de 1984 foi crítico. É o ano que se espelha em meu nono ano de vida, quando
por duas vezes quase morri afogada. O mar ensina a nadar com as ondas, a boiar, a
manter-se na superfície, deixar-se levar pela correnteza e não tentar nadar contra
ela. Isto não deve ser aplicado também para a vida? Foi neste ano também, após a
viagem à Grécia, que entraram ladrões na Artemísia.
Entre 1984 e 1985 foram publicados os quatro volumes de meu livro de
alimentação (Novos caminhos de alimentação)™, quando senti a nítida inspiração
de meu pai. Fiquei semanas sozinha em Campos do Jordão, na fazenda, escrevendo,
experimentando as receitas, fazendo geléias de amora silvestre e, apesar de estar
sozinha, não me sentia realmente só.
No terceiro nodo lunar, aos 56 anos, não houve muitas modificações externas, mas
eu sentia nitidamente que para o novo setênio algo deveria modificar-se, talvez o
próprio trabalho. Se nada mudasse, eu sentia que iria entrar em declínio. Acho que
Daniel, embora mais jovem, também sentia isso, pois então, aos meus 57 anos, ele
resolveu comprar um barco. Foi também quando nossa nova casa na Artemísia
ficou pronta. Primeiro mudou-se Daniel, e depois Tiago e eu também fomos para lá.
Com o barco, iniciamos nossas viagens ao Pantanal. A primeira ainda tateando, mas
no segundo ano descemos sozinhos e fomos acampando nas margens do Rio
Aquidauana, até o Passo da Lontra.
Minha filha Solway e seu companheiro acompanharam nosso barco de alumínio
com um barco inflável, que acabou rasgando num toco. Por isso eles tiveram de
voltar e descer de carro até o Passo da Lontra, e nós seguimos sozinhos. Foi
maravilhoso. Mas foi também uma aventura, pois no caminho havia poucas
fazendas e o resto era mata densa, com todos os bichos possíveis.
No ano de 1988, com a vinda de Coen e Djobs van Houten, Daniel se convenceu de
que deveria sair da Associação Tobias e voltar à consultoria, o que foi efetivado
com a compra de uma casa, onde hoje se encontra a Adigo. Em 1989 ele reiniciava
o trabalho de consultoria e, por sorte, pouco tempo depois encontrou um sócio e um
grande projeto de trabalho para uma firma com um total de mais de mil
funcionários, à qual ele deu consultoria por vários anos. Os executivos dessa firma
faziam regularmente cursos na Artemísia, pelo menos uma vez por mês, o que
permitiu fazer nela a terceira ampliação, com mais seis apartamentos.
Já no ano de 1988 dei, na Lukas Klinik, o primeiro curso biográfico para pacientes
de câncer, seguido de outro, em 1989, além de um curso para médicos, terapeutas,
pedagogos sociais, etc., apresentando-lhes o curso biográfico — naquela época, em
nome da Seção Médica do Goetheanum. A partir daí começaram os convites para
dar cursos biográficos na Espanha, em Portugal e na Alemanha, principalmente;
mas também na Inglaterra, na Suécia e, na Suíça, a continuidade de
aprofundamentos. Foi quando eu descobri a tônica nova daquele setênio, e assim
ficava algumas semanas na Europa, duas vezes por ano. Nesse período consegui
doações para construir a ala terapêutica da Artemísia, com suas salas de banho e de
massagem.
Convocamos todas as pessoas que trabalhavam com biografia no mundo e fizemos
um primeiro encontro, em 1990, na Seção Médica do Goetheanum, com a presença
do Professor Lievegoed e da Dra. Michaela Glöckler.
Em 1993 sentimos a necessidade de fundar a Associação Internacional de Trabalho
Biográfico, que então se tornou responsável pela formação biográfica. Hoje ela dá
cobertura à formação biográfica na Inglaterra, na Suíça, no Brasil e na Alemanha.
Em 1988 Tiago entrara na faculdade, e com isso sua residência na Artemísia se
tornara cada vez mais difícil; nesse ano também compramos uma casa antiquíssima
em Ilhabela, que passou a ser um novo ponto de férias.
Em 1989, na Artemísia, iniciamos os cursos para executivos, juntamente com a
Adigo; na Europa, após algumas semanas de curso, eu tirava férias de uma a duas
semanas, vindo a conhecer então Paris, Portugal, indo de Lisboa a Santiago de
Compostela, viagem que fiz com Djobs van Houten; conheci também Stupach e o
morro de Odilia, com a Sra. Marbach.
Neste mesmo ano, em fins de julho, saímos para nossa terceira viagem ao Pantanal,
num dia de extremo mau tempo. Após atravessarmos com a caminhonete D20
zonas inundadas, chegamos, depois da Rodovia Castelo Branco, a uma via perto de
Ourinhos. Lá tivemos um feio acidente com o carro que trazia o barco a reboque.
Capotamos várias vezes; eu fui lançada fora do carro e, já deitada no chão, percebi
que tinha fraturado a coluna dorsal. A ambulância demorava e eu tremia, sentia frio.
Daniel, que estava guiando, saiu ileso. No hospital de Ourinhos fiz radiografias e a
sutura do músculo da perna, cortada pelo vidro da janela do carro. Dois dias depois,
fui transportada de avião para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, pois
visualmente havia fratura de três vértebras dorsais. Tudo me parecia conhecido,
pois eu relembrava o atropelamento que sofri aos nove anos. No Hospital Einstein,
sob o tratamento do Dr. Pistelli, foi-me prescrito repouso, e após alguns dias pude ir
para a própria Clínica Tobias. A chegada lá foi muito comovente, e fui
maravilhosamente tratada. Só que se incomodavam com o grande número de visitas
que tive. Começou um processo muito importante de aprendizado, pois deitada eu
dependia dos outros para me alimentar. Aos poucos fui conseguindo erguer a
cabeça, segurar a própria colher e beber. Vivenciei então, na prática, a importância
da meta. Aqui, a meta era conseguir sentar-me e alimentar-me sozinha. Isto dá a
motivação para a ação e o esforço em atingir o objetivo. No trabalho biográfico é
importante definirmos metas de vida, pois sem meta não há motivação. Este foi o
grande aprendizado.
Nesse período de internação, tive vivências espirituais importantes. Sentia que no
teto do meu quarto havia dois seres que me espreitavam com atenção. Eram dois
ex-pacientes meus, que haviam praticado suicídio; um conscientemente, e o outro
de modo mais circunstancial. Eles estavam ali, provavelmente observando a
reconstituição dos meus ossos, do meu corpo físico, pois para o suicida, que
destruiu o próprio corpo físico, é difícil, numa próxima vida, estruturar a força
espiritual para esse corpo. Eles estavam ali para aprender.
Uma outra vivência espiritual que tive foi a visão de dois cavaleiros, um jogado ao
chão e o outro em seu cavalo branco, e eu tinha a certeza de que eram Daniel e eu,
numa outra encarnação. Eu não soube dizer quem estava no chão nem quem estava
no cavalo, mas estar no chão, quebrada, era uma situação familiar para mim,
embora essa familiaridade pudesse referir-se ao meu primeiro acidente. Minha
recuperação total foi na Pousada do Rio Quente, em Goiás, onde fiquei duas
semanas sozinha, e, no final do ano, em Ilhabela.
Sinto que foi importante esse acidente, que acontece num ritmo jupiteriano (5 x 12)
e no ritmo saturnino (2 x 29,5 anos), tendo sido, assim, uma inspiração espiritual
que me tornou mais apta a desenvolver todo o trabalho biográfico na Europa, de
forma mais espiritual. A partir daí, senti que tinha a missão de introduzir esse
trabalho intensamente no meio antroposófico e não-antroposófico europeu, o que
fui conseguindo nos sete anos seguintes (1990-1997).
Em 1990 morre minha nora Cristina, e em meados do ano vou ao seminário sobre a
morte ministrado por E. Kübler-Ross, na Califórnia. Levo comigo um paciente, que
se tornou um bom amigo por algum tempo e do qual aprendi que é necessário
respeitar o desejo da morte nas pessoas. Assim como existe o desejo de viver, para
outros existe o desejo de morrer, e, como médica, tenho de respeitar a ambos — o
que não é fácil, pois o médico tem a intenção de fazer o paciente viver e amar a
vida. Aliás, mais tarde este amigo conseguiu transformar-se. Passou a amar a vida,
pois casou-se e teve filhos. Na passagem de 1990 para 1991, Daniel e eu íamos para
o Egito e Israel, mas com a guerra ocorrendo lá resolvemos fazer uma viagem de
inverno pela Europa, visitando Berlim, Praga, Viena, Paris e lugares da Holanda, o
que foi terrível sob vários aspectos, humanos e meteorológicos — embora na
Holanda tenhamos tido a oportunidade de fazer uma última visita ao Professor
Lievegoed.
Em 1991, uma editora alemã me pediu para escrever um livro sobre biografia, o
qual se intitulou Das Leben in die Hand nehmen ('Tomar a vida nas próprias mãos',
como o presente livro), publicado em 1992 e que é best-seller até hoje, estando em
sua sétima edição. É o ano em que Thomas se muda para Florianópolis e casa-se
com Sílvia. Durante a estada na Europa, faço visitas aos Pirineus e ao Vale dos
Castelos Cátaros. Faço uma campanha de ajuda financeira para a Artemísia poder
construir a segunda ampliação, conforme mencionado anteriormente.
Apesar da Europa, os cursos na Artemísia continuaram intensos, com a participação
de vários colaboradores. Cheguei a dar 32 cursos de uma semana durante o ano.
No ano de 1992 tive um convite, por parte de um cliente, para ir à Fazenda Rio
Negro, no Pantanal. A partir daí, a cada mês de julho ou agosto visitávamos com os
mais diversos parentes e amigos a Fazenda Rio Negro, que se tornou um lugar de
descanso e descobertas para nós. Descobertas, sim, porque a cada ida descobrimos
novos animais da fauna pantaneira, e em dois anos seguidos chegamos a ver onça
pintada.
Essas viagens, além da época de Natal e de Ano Novo e um pouco de janeiro, em
que ficávamos em Ilhabela, eram quase os únicos pontos de encontro entre Daniel e
eu. O resto do tempo era dedicado a um trabalho intenso. Nesse ano, numa semana
de folga de um curso na Alemanha, uma colega e eu visitamos o Marrocos.
No fim daquele ano completei meus 63 anos. E agora, como a vida iria continuar?
Começou com um declínio maior de forças, porém mantendo ainda o mesmo ritmo.
Em 1993, 1994, Daniel se queixava cada vez mais de minhas longas ausências.
Em abril de 1993, durante a solenidade pela morte do Professor Lievegoed, na
Artemísia, um psicólogo brasileiro perguntou-me enfaticamente por que eu não
dava formação para profissionais, aqui no Brasil.
Na noite seguinte tive um sonho, que me deu a certeza de que deveria também
iniciar um grupo de complementação profissional por meio da biografia, aqui no
Brasil, e no mesmo ano, em dezembro de 1993, começou o primeiro grupo de
formação, com trinta participantes.
Esse ano foi bastante intenso na Europa. Minha intenção era ir só na primavera,
mas acabei indo, por uma convocação de Michaela Glóckler, também no outono
para um congresso médico.
Nesse ano, com Thomas e Sílvia, sua segunda esposa, fiz uma viagem pelo norte da
França (Morro St. Michel, Carnac e norte da Espanha e Portugal), visitando grutas e
megálitos. Em julho, com todos os outros filhos, fomos para a Chapada dos
Guimarães, o Pantanal e a Fazenda Rio Negro. Thomas se identificava mais com os
desenhos pré-históricos das grutas e eu com os megálitos.
Com Daniel, fiz a primeira viagem a Florianópolis, ficando no Hotel da Praia Mole.
No ano seguinte (1994, aos 64 anos) foi fundada a Associação Mundial de Trabalho
Biográfico, de cuja diretoria participei como vice-presidente e depois como
presidente. Foi também um ano em que fiquei 'alarmada' comigo mesma, pois,
tendo sido cancelado um curso na Alemanha, decidi acompanhar minha filha
Solway, seu companheiro e Tiago a Creta. Lá chegando, após o vôo Berlim-Creta,
escolhemos um hotel na costa do mar do Líbano. No dia seguinte, bem ensolarado,
fomos à praia. O mar devia estar com uma temperatura de 14oC. Entrando na água
por uma segunda vez, perdi completamente a memória, por uns trinta minutos, mas
sem perder a consciência. Em minha cabeça passava um filme interior, com peças
antigas gregas e ruínas de templos. Aos poucos o filme foi desaparecendo, e eu fui
enxergando a realidade novamente; andei para o hotel, onde meus filhos, muito
assustados, me colocaram na cama, massagearam-me e a memória foi voltando. A
partir daí, tenho de me prevenir contra as quedas de pressão que os vôos curtos
provocam, os quais, somados à reação capilar da água gelada, deixam a cabeça sem
sangue. Essa foi outra experiência biográfica importante. Como a memória é o fio
condutor do nosso eu, perdendo a memória parece que perdemos também o eu. As
imagens do filme interno foram agradáveis, mas assim como apareceram, sumiram;
eu não consegui retê-las.
Nesse ano tive uma vivência forte com Daniel, quando vimos a primeira onça no
Pantanal, às margens do Rio Negro. No outono desse ano, eu tinha planejado duas
grandes palestras públicas, em continuação às de dois anos antes, que haviam sido
um sucesso; mas, em vez de dar as palestras, tivera de internar-me na Lukas Klinik,
por uma bronquite e quase pneumonia. Realmente, eu já não podia mais trabalhar
em cursos sucessivos, um atrás do outro, aproveitando o fim-de-semana para viajar
de lá para cá durante seis a oito semanas seguidas, como fazia até então. As forças
estavam diminuindo. Na passagem do ano novo para 1995, tivemos uma vivência
maravilhosa, ao dar a volta de barco pela Ilhabela. Avistamos centenas de
golfinhos, que pareciam reunir-se para a grande festa do final de ano.
Em janeiro, Solway veio festejar seus quarenta anos em Ilhabela — era um grande
acontecimento familiar. Ao me despedir para os cursos da Europa em fevereiro,
parti com bastante dificuldade, pois não tinha um bom sentimento;
inconscientemente, não queria ir, e até meu genro, que me levou ao aeroporto, me
estranhou. Eu ia iniciar o primeiro grupo contínuo de formação biográfica na Suíça,
com duração de duas semanas. Mal estava no meio da segunda semana, recebi um
telefonema do Brasil informando que Daniel estava na U.T.I. de um hospital, pois
sofrera um infarto. Meus amigos foram atrás de uma passagem e, apesar de um
segundo telefonema dizendo-me que não se tratava de infarto, resolvi que tinha de
voltar o mais rápido possível para o Brasil. Meu genro me pegou novamente no
aeroporto e fomos diretamente para o Hospital Albert Einstein. Daniel já havia
saído da U.T.I.; estava ainda em observação, e uma amiga sua tratara da internação,
convênio médico, etc. Só a partir daquele momento eu pude assumir a situação.
Descemos para um quarto térreo, quase porão. Nos primeiros dois dias eu estava
meio fora de mim, eufórica, apreciando o reencontro; no entanto, após a mudança
para o porão caí em mim e tive uma forte depressão. Acordando, porém, às quatro
horas da madrugada do dia seguinte, ainda em depressão, de repente senti uma
força erguer-se dentro de mim, um impulso para o perdão de tudo com que nos
havíamos machucado, mutuamente, nestes últimos anos. Depois, identifiquei esta
força de soerguimento como uma força crística, que me havia sido concedida.
Daniel precisava de tempo para recuperar a saúde, e eu para recuperar-me do estado
de choque com tudo o que tinha acontecido. Resolvemos, então, que eu iria para a
Europa continuar os seminários já programados, e foi o que fiz. Quando voltei, já
em abril, fomos para Ilhabela. Daniel estava em estado lastimável, devido à forte
medicação alopática indicada por um cardiologista pouco experiente. Em Ilhabela
conseguimos diminuir a medicação e olhamos em retrospectiva para nossas vidas e
para o nosso casamento. Eu tinha programado ir em julho aos Estados Unidos, para
dar um curso em Spring Valley e daí fazer uma viagem de motorhome com todos
os filhos e netos. Só Aglaia e seu marido Amauri não foram, pois Aglaia se viu
surpreendida por uma gravidez aos 42 anos. Fomos em dois motorhomes, iniciando
a viagem em Los Angeles, indo para o Grand Canyon, Mesa Verde e o Yellowstone
Park. Foi uma viagem maravilhosa; ao ver o Grand Canyon e os geysers do
Yellowstone Park, veio-me a imagem: "Aqui Deus-Pai construiu seu próprio
templo." Voltei mais cedo que os outros, para não deixar Daniel tanto tempo só. No
aeroporto de Atlanta, pareceu-me estar na cidade do futuro, no sentido do
Anticristo, pela mecanização de tudo e pela ausência do ser humano. Mas, de resto,
gostei de tudo e especialmente da vontade de ajudar que os americanos, em férias,
têm.
O equilíbrio em nosso matrimônio só se restabeleceu com a viagem, em setembro,
quando Daniel e eu fomos para Fernando de Noronha, Recife e Praia do Forte. Três
semanas de curtição. Depois, mais um outono com cursos na Europa (outubro e
novembro). Era novamente um ano especial — em dezembro eu completei 66 anos.
Em meados de 1996 recebemos a visita de Beta, filha de Daniel. Passamos uma
semana juntos e depois fomos a Florianópolis, para a casa de Thomas, que estava
fora. Ficamos encantados novamente com Florianópolis, e resolvemos comprar um
terreno — e, quem diria, eu, aos 65, e Daniel, aos 59 anos, recuperando-se de sua
angina, resolvemos sair de São Paulo para mudar de vida. Em setembro do mesmo
ano iniciamos a construção da casa, que foi fácil e rápida, pois um engenheiro,
amigo de Thomas, foi muito eficiente. Nesse ano, 1996, e no ano seguinte, 1997, eu
ainda tive compromissos duas vezes no ano, de cinco semanas cada, na Europa. Em
1996, além dos nossos cursos, Daniel e eu ainda fizemos uma viagem, durante a
qual ficamos três semanas num motorhome na Suíça e na Alemanha, visitando sua
mãe, que há muitos anos ele não via. Minha impressão de que ela só estava
esperando revê-lo para depois morrer se confirmou, pois algumas semanas depois
ela faleceu (quando estávamos lá, ela foi hospitalizada).
Em 1997 me submeti a uma cirurgia do menisco na perna direita (há dois anos
vinha-me perturbando; eu o machucara numa vala de composto orgânico, à noite,
quando ia apagar o fogo na mata vizinha à Artemísia). Em seguida, no mês de abril,
nos mudamos para Florianópolis. Esse primeiro ano lá nos pareceu estarmos
casados de novo, 'brincando de casinha', pois decidimos não ter empregada na casa
nova; só uma faxineira, uma vez por semana. Ótima decisão — Maria, a máquina
de lavar louça, e Teresa, a máquina de lavar roupa, são excelentes, e nunca
reclamam nem querem aumento de salário.
Nesse ano nos surpreendeu a morte súbita do ex-colega de trabalho de Daniel,
Herwig Haetinger, na qual fui intensamente envolvida.
Para mim, o ano 1997 foi um ano de despedidas na Europa. O primeiro grupo
contínuo da Suíça se formou. Deu-se a formação de um colegiado de professores,
que continuou a formação e que está caminhando bem. O auge da estada na Europa
foi a finalização do trabalho de grupo, que durou sete anos, na Clínica Lahenstein,
com o curso dos sete planetas e a ida para Weimar com o grupo. Finalmente, a
despedida de minha amiga Brigitte Schönemann (uma amiga que conheci na
primeira turma do curso biográfico da Suíça e que se manteve fiel por todos esses
anos), que organizou uma festinha para mim.
Em Florianópolis, uma pequena viagem nos leva ao encontro das baleias, na praia
do Rosa. Para mim, as vivências que tenho com a natureza são sempre muito fortes
e especiais.
Em 1998, finalmente se realizou a promessa que eu havia feito a Daniel de não
mais ir para Europa dar cursos. Aproveitei o ano para rever o livro Às forças
zodiacais e sua atuação na alma humana e reeditá-lo. Acabei os livros Homem-
mulher: a integração como caminho de desenvolvimento e, em alemão, o de
aprofundamento intitulado Das Leben geht weiter (A vida continua), que foi
publicado nesse ano.30
E, como grande surpresa, fomos de férias para a Europa e assistimos aos 'Dramas
de Mistérios' [de Rudolf Steiner], em Dornach, e fizemos uma viagem de
motorhome para a Noruega — um grande encontro com a natureza e o povo
nórdico.
À medida que Daniel recuperava sua saúde, seu desejo de comprar um barco maior
aumentava (após um ano de sua internação, conseguimos um de vinte quilos,
inflável). Encontramos um lugar para guardar o barco de alumínio, compramos um
novo motor, mas era complicado sair para o mar. Então nos foi oferecido um
terreno, em frente ao mar, e acabamos comprando-o e logo construindo um
apartamento sobre uma garagem de barco, com vista direta para o mar, e as águas,
na maré enchente, batendo no muro. Loucuras...
Às vezes parecemos dois adolescentes. Pois não é que Daniel comprou um barco
maior? Seu sonho é dar a volta na ilha. O meu, ficar olhando o pôr-do-sol e ver as
gaivotas e biguás voando de encontro ao sol poente — o mesmo vôo que, um dia,
fará a alma quando se livrar do corpo. É como um preparo para o entardecer da vida
e a passagem para o Cosmo, azul durante o dia, estrelado à noite.
Vários grupos de formação biográfica já estão formados — aliás, no terceiro esteve
meu filho Tiago. Um quarto e um quinto estão acontecendo — levando o impulso
biográfico para todo o Brasil e até para a Argentina e para o Chile.
Para o mundo, esta foi minha missão dos últimos 25 anos.
30
Pela editora Freies Geistesleben, Stuttgart. (N.E.)
Aos 21 anos ocorreu minha primeira identificação com a Antroposofia, ao vivenciar
que "o espírito ordena a matéria" por meio do processo que permitiu a imagem da
cristalização, já citada.
Com a decisão de estudar Medicina Antroposófica e com a ida à Suíça, a prática de
eurritmia me foi fundamental. Sempre que possível, eu a praticava com Else Sittel.
Aos 32, 33 anos houve um aprofundamento, e alguns exercícios de eurritmia
passaram a acom- panhar-me no dia-a-dia até hoje. Sempre que posso, pratico de 15
a 30 minutos pela manhã; consigo, com isso, maior equilíbrio interno.
Quanto ao caminho meditativo, já mencionei que como primeira sugestão recebi de
meu chefe médico e amigo, Dr. Alex Leroi, o livro sobre a 'Pedra Fundamental'.
Essa meditação bastante ampla me parecia inatingível por sua extensão. Mas logo
depois, ao ter contato com os textos das palestras para jovens médicos, o curso de
Natal e Páscoa, comecei a fazer as meditações aí contidas ligando-me à parte
esotérica da medicina.31 Outro conselho dado pelo Dr. Leroi foi: leia os livros
básicos (A Ciência Oculta, Teosofia, A filosofia da liberdade e O conhecimento dos
mundos superiores). Depois, tudo o que R. Steiner transmitiu sob forma de palestras
após o Congresso de Natal em 1924, incluindo-se os seis volumes das
'Considerações sobre as relações cármicas'.32
Bem, A Ciência Oculta eu estudei fazendo desenhos e pinturas sobre a evolução. O
livro O conhecimento dos mundos superiores tornou-se meu livro de cabeceira
desde então. Teosofia eA filosofia da liberdade, eu não os domino até hoje.
Para mim, o caminho foi sempre pela meditação. Realmente, eu não tinha tempo
para fazer leituras. Participava, sim, de grupos de estudos semanais, em que
também os 'Quatro dramas de mistérios' foram fundamentais para mim.33 Era um
grupo que se reunia com o velho dirigente do Ramo, Sr. Rüger e sua esposa, o casal
Lanz e R. Seliger — hoje, todos já falecidos.
Ao fazer contato com a Klasse", tive um grande presente: seis aulas (de repetição)
diariamente, lidas por Lily Kolisko, em Stuttgart. Foi maravilhoso! Demorou algum
tempo, porém, até que Pedro e eu conseguíssemos uma leitora de Klasse para o
Brasil, por volta de 1965, 1966. Quem veio foi Johanna Krauel, recomendada por
nós.
Os seis exercícios colaterais, os oito passos para o desenvolvimento da lótus do
coração e da lótus da laringe, assim como as Doze Virtudes de cada mês do ano,
sempre me davam uma base para as meditações.
Com 31 anos e meio, além das meditações médicas, uma outra meditação voltada à
comunidade, ao Cristo e a Micael passou a fazer parte da minha vida. É feita três
vezes ao dia. Descobri que a 'Pedra Fundamental' tem sete ritmos, um para cada dia
31
V. nota 32 na p. 202.
32
Esoterische Betrachtungen karmischer Zusammenhãnge [6 vols.], GA 235-240 (Dornach: Rudolf Steiner Verlag, várias datas).
(N.E.)
33
Rudolf Steiner, Vier mysterien Dramen, GA 14 (5. ed. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1998).Vide tb. a edição brasileira do
primeiro drama: O Portal da Iniciação, trad. Matthias Murbach e Ruth Salles (São Paulo: Antroposófica, 1996. (N.E.)
da semana, e o conjunto constrói um templo espiritual dentro de nós, com o qual
nos preparamos para receber Cristo.
Com o início do trabalho biográfico e com meu segundo casamento, a 'Pedra
Fundamental' começou a entrar cada vez mais em minha vida. Abriu a percepção
para o Cristo no etérico e para velar pela proteção de forças para o futuro da
humanidade.
A meditação, desse momento em diante, além de individual, da Klasse,
profissional, passou a ter a conotação de algo para humanidade, capaz de formar
uma corrente entre todos os seres que a praticam em todo o mundo. Aliás, era esta a
intenção de R. Steiner quando a deu para a Sociedade Antroposófica, na época do
Congresso de Natal de 1923-24 — portanto, contribuir para a paz, para empreender
a cura, para o Cristo em suas manifestações, a lei do carma e a espiritualidade aqui
na Terra.
Na época em que eu atuava na Clínica Tobias, tornou-se importante um trabalho
espiritual feito nas doze noites santas (de 25 de dezembro a 6 de janeiro) e durante
os sete dias da semana da Páscoa. O primeiro trabalho nos conecta com as doze
forças zodiacais e nos prepara para o ano vindouro, e o segundo com as sete forças
planetárias, isso de um forma moderna, crística, ordenando o nosso destino.
Também a cerimônia pelos falecidos, na semana subseqüente à sua morte,
juntamente com os familiares, levou-me a muitas vivências espirituais e à
participação dos mortos na comunidade familiar e na Clínica.
Naquela época, o culto da Comunidade de Cristãos era também realizado a cada
quarta-feira na Clínica Tobias, e contribuiu para a essência espiritual de ambas.
A meditação da Pedra Fundamental contém em si toda a Antroposofia, e aponta
para o passado, presente e futuro da evolução. Contém em si as leis biográficas do
ser humano como indivíduo e da história de toda a humanidade.
Uma vivência relativa à 'Pedra Fundamental': num dia da Páscoa, quando eu tinha
por volta de 46 ou 47 anos, Daniel e eu estávamos em nossa fazenda, em Campos
do Jordão (bairro Centro), e líamos a meditação da 'Pedra Fundamental' como um
todo. Nós nos havíamos atrasado com a leitura, talvez quase esquecido. De repente,
senti que um grupo de seres espirituais estava acima de nós, esperando pela leitura
da meditação. Compreendi claramente o que R. Steiner quer dizer ao afirmar que,
desde a vinda do Cristo, o ser humano tem sido responsável pela evolução e
também pelo desenvolvimento das hierarquias espirituais. Só você indo ao encontro
delas é que elas podem frutificar seus pensamentos, sentimentos e ações. Também o
próprio meditar é um ato totalmente livre: você pode realizá-lo ou não!
Na vida meditativa nós falhamos, erramos, esquecemos, e sempre temos de
começar novamente, assim como cada dia, ainda hoje, é um novo começo. É
preciso perseverança e confiança no fato de que o mundo espiritual está sempre
presente.
Quando olho para minha biografia, vejo que o mundo espiritual sempre esteve
presente nela, especialmente em situações de seminários, palestras, nas quais eu
sempre me senti conduzida e inspirada. Aliás, nesses momentos as pessoas
presentes foram para mim um fio condutor. Sempre precisei de contato com o
público. Numa das oportunidades em que falei na Basiléia, no Bernolium (com
capacidade para acolher até mil pessoas e onde R. Steiner também proferiu
palestras), proferi duas palestras públicas bem- sucedidas, pois consegui entrar em
contato com os ouvintes numa espécie de 'diálogo'. E não falava de coisas abstratas,
mas de vivências. Meu grande desafio é tentar trazer ao público uma linguagem
espiritual inteligível, onde o uso de imagens e correlações ajude na compreensão do
todo.
Gudrun Krökel Burkhard
Epílogo