3.A Organização Eclesiástica Entre A Antiguidade Tardia e A Alta Idade Média
3.A Organização Eclesiástica Entre A Antiguidade Tardia e A Alta Idade Média
3.A Organização Eclesiástica Entre A Antiguidade Tardia e A Alta Idade Média
1. A geografia eclesiástica
Diocleciano procedeu entre 284 e 288 a uma profunda reorganização do Império
romano, alterando profundamente a organização que vinha do tempo de Augusto:
− Augusto em 27 a.C. tinha dividido a Península Ibérica em três províncias:
Bética, Tarraconense e Lusitânia.
− Diocleciano dividiu a Península em cinco províncias: Bética, Cartaginense,
Galécia, Lusitânia e Tarraconense. A Lusitânia e a Galécia incluíam grande
parte do posterior território português.
As divisões administrativas internas em civitates continuaram a exprimir uma
realidade não só administrativa, mas também geográfica, económica e mesmo religiosa.
As fronteiras das províncias e das civitates coincidiam com os acidentes naturais (rios,
montanhas) ou com o traçado das vias romanas:
− Da reforma de Diocleciano ao fim da dominação romana, as províncias do
Império mantiveram-se praticamente inalteráveis, constituindo a base da
organização eclesiástica. Nelas foram criadas as primeiras sés episcopais.
− Durante o domínio visigótico, foi reconstruída ao nível eclesiástico a divisão
administrativa romana.
A Carta sinodal de Cipriano de Cartago de ±254 (Epístola 67), a propósito dos
bispos Marcial de Mérida e de Basílides de Leão-Astorga, que tinham renegado o
cristianismo mediante falsas declarações de sacrifício aos deuses (lapsi), fornece-nos o
primeiro testemunho de organização eclesiástica: às sés de Mérida e de Leão-Astorga,
junta-se uma referência a Saragoça e a outras sés sem referir o nome. Nesta época a
província eclesiástica ainda não seria uma realidade instituída, mas constituía já um
referencial para a resolução das questões locais. A Carta faz-lhe alusão quando refere que
nas eleições episcopais deviam intervir os bispos da província na qual se realizavam.
1
Este esquema sintetiza sobretudo Ana Maria C.M. JORGE, Organização Eclesiástica do Espaço. Do Império
Romano ao Reino Asturiano-Leonês, in HRP, I, 137-142; Ana Maria C.M. JORGE - Hermínia VASCONCELOS VILAR,
As Instituições e o Elemento Humano, in HRP, I, 203-212.220-221. Tem também em conta: A. JESUS DA COSTA,
Martinho de Dume (São), in EV: Edição Século XXI, XIX, 77-79; A. JESUS DA COSTA, Frutuoso (São), in EV: Edição
Século XXI, XII, 1072-1075; José MATTOSO, Rosendo (São), in EV: Edição Século XXI, XXV, 77-79.
2
paroquial, ainda sem delimitações precisas. Foi estudado sobretudo por Pierre David, de
quem emanam as seguintes conclusões interpretativas2:
− As paróquias surgiram da iniciativa episcopal na periferia das cidades, que
constituíam o centro da diocese, e desenvolviam-se como novos lugares de
culto providos de um clero próprio e dum batistério no âmbito do quadro
administrativo diocesano.
− Estas paróquias foram certamente criadas à medida das necessidades dos fiéis
não só nos pagi e nos vici (lugares sem jurisdição territorial), mas também nos
castella (lugares fortificados). Distinguem-se das fundadas na villae ou nos
fundi, na maioria dos casos, por iniciativa dos proprietários e escapando ao
controlo direto do bispo.
− Para além destas Igrejas, existiram ainda as basílicas e oratórios construídos
para a veneração das relíquias dos santos.
José Mattoso, por seu lado, admite que as villae pudessem ter servido de quadro à
fundação de igrejas rurais, mas é possível pensar também que muitas paróquias
pudessem ter surgido a partir de igrejas monásticas, e mesmo de igrejas fundadas por
agrupamentos de camponeses, sem nenhum precedente anterior3. A rede paroquial, tal
como a conhecemos na época medieval, só começou, todavia, com a introdução do
direito canónico romano no séc. XI. Foi a partir desta época que se fixaram
progressivamente os limites paroquiais.
Após a invasão muçulmana de 711, a administração diocesana foi-se
progressivamente desagregando e o predomínio do regime das igrejas próprias ou
privadas foi sujeitando o clero à influência dos poderes senhoriais. Nos séculos IX e X, a
memória do quadro eclesiástico do tempo dos suevos e dos visigodos tornou-se vaga. O
programa repovoador monarquia asturiano-leonesa incluiu, todavia, como pontos
fundamentais, a restauração vida diocesana e o seu controlo pela autoridade régia,
enquanto se assistiu à ereção de novas dioceses.
2. A hierarquia eclesiástica
As referências ao episcopado peninsular aconteceram a propósito da celebração
de algum concílio dentro ou fora da Península, de troca de correspondência, duma
crónica ou de uma obra teológica, litúrgica ou pastoral. Na maior parte dos casos não é,
todavia, possível determinar as datas de nomeação ou reconstituir as carreiras episcopais.
A carta 67 de Cipriano de Cartago, escrita em 254, a propósito dos bispos de Leão-
Astorga e de Mérida, é o testemunho mais antigo relativamente à hierarquia e disciplina
eclesiástica na Hispânia:
− O bispo africano, dirigindo-se ao diácono Cornélio da Igreja de Mérida,
permite-nos deduzir que a comunidade estaria já organizada hierarquicamente
e que os diáconos teriam um peso importante.
2
Cf. Pierre DAVID, Études Historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe Siècles (= Les Belles Lettres),
Lisboa – Paris : Portugália Editora, 1947; Pierre DAVID, La Metropole Ecclésiastique de Galice du VIIe au XIe
Siècles, in Revista Portuguesa de História 4 (1949) 211-251.
3
Cf. José MATTOSO, História de Portugal, dir. José Mattoso, I: Antes de Portugal, s.l.: Círculo de Leitores,
1992, 470.
4
sua vida no plano local (ex. Masona, bispo de Mérida no séc. VI, construiu um hospital
junto à basílica de Santa Eulália) e organizaram a caridade cristã, distribuindo alimentos
aos pobres ou fazendo pequenos empréstimos, como aconteceu com o já referido
Masona de Mérida.
Ao nível religioso, deve destacar-se o caráter missionário de muitas viagens
realizadas pelos bispos. Apesar da obrigação de residência prevista nos concílios,
afastavam-se frequentemente da sua sede, pondo-se a caminho para participarem em
concílios (às vezes fazia-se representar por um presbítero ou abade), realizarem a visita
canónica à diocese, procederem à consagração de igrejas, bem como para irem em
peregrinação.
São conhecidas as relações estreitas entre os bispos e os mosteiros existentes na
Península. Elas sobressaíam na hora de escolher os delegados episcopais ou no próprio
recrutamento dos bispos no meio monástico, como atestam, por exemplo, as escolhas de
Martinho e Frutuoso de Dume, Leandro de Sevilha, Eutrópio de Valência ou Renovato de
Mérida.
Nos períodos suevo e visigótico, podemos sublinhar também, ao nível da ação dos
prelados, a construção permanente da identidade católica face à dissidência, como revela
o próprio confronto com o arianismo e o priscilianismo.
O estudo do episcopado nos séculos seguintes à invasão muçulmana oferece
sérias dificuldades devido às lacunas documentais inerentes sobretudo às vicissitudes da
reconquista cristã. São também escassas as informações relativas à ação episcopal e à
própria sucessão que só pode ser fixada, nos séculos VIII e IX, com base em catálogos
episcopais muito posteriores. Durante esta época alguns bispos devem ter permanecido
nas suas sedes, mas outros fixaram-se mais a norte, como aconteceu com os de Braga e
Dume e, provavelmente, também com os de Coimbra e Lamego. As comunidades
moçárabes devem ter conservado a legislação visigótica relativa à nomeação dos bispos,
apesar de terem sido também uma realidade as intromissões do poder muçulmano.
Estas referências à hierarquia, centradas sobretudo no episcopado, carecem de
complemento quando ao restante clero. No estado atual das investigações, contudo, não
é fácil de esboçar.
3. O monaquismo
A história conservou alguns testemunhos de vida monástica na Hispânia durante a
Antiguidade Tardia:
− Uma das notícias mais antigas relativas à experiência monástica peninsular
aparece-nos nos cânones 12 e 27 do concílio de Elvira, onde se fala das virgens
consagradas a Deus.
− Esta referência foi depois confirmada por outros testemunhos, como o I
concílio de Saragoça (380) e o I de Toledo (400), onde há referências a monges
e a virgens consagradas a Deus.
− Ficaram também alguns nomes: Bacharius, monge originário da Galécia, autor
do De Lapso, por volta de 380; Egéria, também originária da Galécia, que fez
por volta de 381-384, uma viagem a Terra Santa, dirigindo o texto do seu
Itinerarium a um mosteiro de monjas, provavelmente da sua região de origem.
Daqui se infere que o monaquismo se difundia na Hispânia do Baixo-império, se
bem que de forma espontânea e pouco organizada. Aliás, a terminologia era inicialmente
6
pouco precisa, podendo o termo monachus ser usado para os cenobitas, eremitas e
ascetas.
4
Arnaldo M. DO ESPÍRITO SANTO, A Receção de Cassiano e das Vitae Patrum. Um Estudo Literário de Braga no
Século VI, Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa
1993.
7
5
Paula BARATA DIAS, O Lugar da Regula Monastica Communis no Monaquismo Hispânico, in Humanitas 52
(2000) 236
8
6
A nobreza medieval portuguesa dividia-se, consoante a riqueza e as funções, em ricos-homens, infanções
(mais tarde fidalgos) e cavaleiros.
7
Hoje Valencia de Don Juan, na província de Leão.
10
(doado por Maurício Burdino) e Vimieiro (entregue a Cluny por D. Teresa em 1127), a
maioria dos restantes mosteiros portucalenses não se filiaram diretamente em nenhum
dos grandes mosteiros cluniacenses, não participando, pelo menos inicialmente, de todas
as prerrogativas que caraterizavam a ordem. Muitos mosteiros ficaram assim sujeitos à
autoridade diocesana, favorecendo os prelados a difusão da reforma beneditina, por não
verem nela um risco de diminuição das suas próprias prerrogativas.