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Literatura e Sociedade

Revista do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

Dossiê Romance de Formação:
caminhos e descaminhos do herói (II)

02/2018
DTTLC/FFLCH/USP 28
LITERATURA E SOCIEDADE
Universidade de São Paulo
Reitor Vahan Agopyan
Vice-Reitor Antonio Carlos Hernandes

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Diretora Maria Arminda do Nascimento Arruda
Vice-Diretor Paulo Martins

Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada


Chefe Marcos Piason Natali
Vice-chefe Betina Bischof

Literatura e Sociedade/ Departamento de Teoria Literária e


Literatura Comparada/ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas/ Universidade de São Paulo. – n. 1 (1996) – . – São Paulo:
USP/ FFLCH/ DTLLC, 1996 – Semestral

Descrição baseada em: n. 28 (2018.2)


ISSN 1413-2982

1. Literatura e sociedade. 2. Teoria literária. 3. Literatura comparada.


I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.
CDD (21. ed.) 801.3

Capa e Diagramação: Aryanna Oliveira


É proibida a reprodução da imagem para qualquer outro fim.
Fontes: Futura, ITC Berkeley, Book Antiqua.

Realização:
LITERATURA E SOCIEDADE

Universidade de São Paulo


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Número 28. São Paulo. 2018.2. ISSN 1413-2982
CONSELHO CIENTÍFICO
Adélia Bezerra de Meneses (UNICAMP)
Antonio Candido (USP) CONSELHO EDITORIAL DTTLC/USP
Aurora Fornoni Bernardini (USP) Ana Paula Sá e Souza Pacheco
Beatriz Sarlo (UBA/Argentina) Andrea Saad Hossne
Benedito Nunes – (UFPA) Anderson Gonçalves da Silva
Boris Schnaiderman - (USP) Ariovaldo José Vidal
Davi Arrigucci Jr. (USP) Betina Bischof
Fredric Jameson (Duke University) Cleusa Rios Pìnheiro Passos
Ismail Xavier (USP) Edu Teruki Otsuka
Jacques Leenhardt (EHESS/França) Eduardo Vieira Martins
John Gledson (Universidade de Liverpool/EUA) Fabio de Souza Andrade
Ligia Chiappini Moraes Leite (USP) Jorge de Almeida
Marlyse Meyer - (CBEAL/USP) Marcelo Pen Parreira
Roberto Schwarz (UNICAMP) Marcos Piason Natali
Teresa de Jesus Pires Vara (USP) Marcus Vinicius Mazzari
Walnice Nogueira Galvão (USP) Marta Kawano
Roberto Zular
Samuel Titan Jr.
Sandra Nitrini
COMISSÃO EDITORIAL
Viviana Bosi
Anderson Gonçalves da Silva (USP)
Edu Teruki Otsuka (USP)
Marcus Vinicius Mazzari (USP)
Samuel Titan Júnior (USP) COMISSÃO TÉCNICA
Ben Hur Euzébio
Maria Ângela Aiello Bressan Schmidt
Maria Netta Vancin
ESTAGIÁRIA Rosely de Fátima Silva
Aryanna Oliveira

LITERATURA E SOCIEDADE. NÚMERO 28. 2

Organização: Marcus Vinicius Mazzari

Composição e diagramação: Aryanna dos Santos Oliveira


Edição e revisão: Marcus Vinicius Mazzari
Revisão espanhol: Aryanna dos Santos Oliveira
Revisão inglês: Beatriz Rodrigues Ramos e Mariana Silva Bijotti
EDITORIAL

Com este conjunto de ensaios a Revista Literatura e Sociedade dá


continuidade ao dossiê do número anterior, dedicado a manifestações, em
diversas literaturas, do chamado “Romance de Formação” (Bildungsroman),
gênero historicamente associado ao nome de Goethe e a seu romance Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister (1795/96). Desta vez, porém, não é Wilhelm
Meister que abre a coletânea, mas sim o primeiro grande herói romanesco da
literatura ocidental, abordado (assim como seu escudeiro) justamente sob o
aspecto da aprendizagem – e, portanto, também da formação – no ensaio
“Cervantes: dom Quixote e Sancho Pança – fragmentos de uma aprendizagem
deleitosa”.
Na verdade, a aproximação que o presente dossiê estabelece entre essas
duas obras exponenciais da Literatura Mundial (contribuições magnas da
Espanha e da Alemanha ao romance europeu) nada tem de arbitrário, pois já
os primeiros leitores dos Anos de aprendizado, como Friedrich Schlegel ou o
filósofo Schelling, associaram-no sob diferentes aspectos ao romance de
Cervantes. Um dos traços desse parentesco reside na perspectiva narrativa
subjacente às duas obras: como o narrador cervantino, também o de Goethe
assume onisciência em terceira pessoa e se imiscui frequentemente na história
com comentários irônicos que relativizam o rumo pretensamente
“teleológico” e bem-sucedido da formação do protagonista. E vale lembrar
que também Georg Lukács, do ponto de vista histórico-filosófico de sua Teoria
do romance, vislumbrou afinidades entre as aventuras que povoam as
trajetórias de Wilhelm Meister e Dom Quixote ao caracterizar o romance
goethiano de educação (Erziehungsroman, termo que trai o apreço do filósofo
húngaro pela Estética de Hegel) enquanto síntese entre os tipos narrativos
“idealismo abstrato” (representado exponencialmente pelo Quixote) e
“romantismo da desilusão”, cujo posterior paradigma seria A educação
sentimental de Flaubert, romance igualmente contemplado neste dossiê.
Ao conjunto de ensaios aqui reunidos subjaz novamente, conforme
explicitado (e fundamentado) no Editorial do número anterior, uma
concepção lato sensu de Bildungsroman, o que fará desfilar perante o leitor –
além do cavaleiro espanhol e seu fiel escudeiro, o próprio Meister, cujo
percurso é analisado por Patricia Maas à luz das vivências de Goethe na Itália,
assim como Frédéric Moreau e seu amigo Deslauriers – uma vasta gama de
personagens provenientes de várias literaturas e associadas de múltiplas
maneiras à dimensão da aprendizagem, educação, do aperfeiçoamento
humano – da formação, enfim. O leitor verá assim, lado a lado, a vertente
paródica (E. T. A. Hoffmann) e a idealização romântica (Novalis); verá
trajetórias marcadas pela desilusão ou mesmo “derrocada” (subtítulo de uma
das obras), como no mencionado romance de Flaubert, também em Extinção,
de Thomas Bernhard, ou ainda no fragmento de S. Bernardo discutido a partir
de uma experiência da “derrelição” (e, portanto, de uma aprendizagem
fracassada); mas o leitor encontrará igualmente histórias em que o herói acaba
por alcançar uma reconciliação, por frágil que seja, entre a “poesia do coração”
e a “prosa adversa das relações sociais” (Hegel), como o adolescente Arkádi
Makárovitch Dolgorúki de Dostoiévski, o pequeno Pip de Dickens (num
romance que, para Sandra G. Vasconcelos, pode ser visto como “versão
dickensiana das Ilusões Perdidas”, de Balzac), ou ainda o menino Ernesto dos
Rios profundos (J. M. Arguedas), dividido entre o mundo do homem branco de
ascendência espanhola e a cultura quéchua.
Desse modo, também a presente seleção de ensaios coloca à prova, de
maneira concreta e plástica, a vitalidade de que o tipo narrativo consolidado
por Goethe no final do século XVIII (mas preparado e amadurecido por obras
anteriores) continua a gozar nas mais diversas literaturas. Tendo irradiado
sua influência constitutiva sobre o desenvolvimento do romance ocidental, o
Wilhelm Meister avulta – como também se pode afirmar do Dom Quixote e de
algumas outras obras contempladas nos dois dossiês que enfocam o
Bildungsroman – enquanto extraordinária contribuição à “Literatura Mundial”
(Weltliteratur), para citar mais uma vez o conceito criado pelo próprio Goethe
em seus anos de velhice.
Finalizando a edição, na seção Ensaios, três ensaios de grande
importância para os estudos literários atuais. Em “No exílio entre o desejo e
o sonho: sobre a “poética utópica” de Moacyr Félix”, que rastreia, com
argumentos claros e significativos, a contribuição de quem foi considerado
poeta e militante político engajado nas lutas sociais, o artigo alcança o
“desamparo” na poética. Em seguida, “Entre o oriente e o ocidente: a
problemática do duplo no romance Les Désorientés, de Amin Maalouf”, em
que Sheila Katiane Staudt realiza uma competente análise sobre os rastros do
duplo na travessia do narrador-personagem do romance publicado
recentemente pelo autor. Por fim, em “Do ‘sonho americano’ ao ‘sonho
europeu’: o romance de emigração Estive em Lisboa e lembrei de você (2009),
de Luiz Ruffato “, a professora e escritora Verena Dolle, tomando por base o
conceito de ideoscape do antropólogo indiano Arjun Appadurai, faz uma
análise do romance de Ruffato, destacando a maneira pela qual os reflexos do
colonialismo lusitano, de décadas e de séculos passados, determinam os
destinos de imigrantes africanos e brasileiros na Lisboa do século XXI.

Marcus Vinicius Mazzari, organizador deste dossiê.


SUMÁRIO
Dossiê:

Editorial • 05

Cervantes: dom Quixote e Sancho Pança –


fragmentos de uma aprendizagem deleitosa • 10

Goethe, o Meister: a experiência artística como narrativa da falha • 27

Poesia recupera Amor • 44

E. T. A. Hoffmann e a formação parodística • 54

Formação de duas jovens esposas • 66

Philip Pirrip as grandes e as perdidas ilusões • 83

Um adolescente à procura de seu eu • 102

“Para governar a França, é preciso mão de ferro”:


As ideias feitas no romance de Flaubert • 123

O último cigarro, o primeiro lápis: a vida como rascunho em


A consciência de zeno, de Italo Svevo • 139

A Montanha Mágica: formação e fortuna de Hans Castorp • 163


O capítulo 19 de São Bernardo: fusão, transfusão, confusão • 183

Grande Sertão: Veredas, a formação pelo amor • 194

A “aristocracia do pé no chão” e o herói popular em


Belém do Grão-Pará de Dalcídio Jurandir • 213

Aspectos elementares da insurreição indígena: notas em torno a


Os rios profundos, de José María Arguedas • 231

Aspectos diluídos do Bildungsroman em


Extinção – Uma derrocada, de Thomas Bernhard • 246

Ensaios

264 • No exílio entre o desejo e o sonho:


sobre a “poética utópica” de Moacyr Félix

284 • Entre o Oriente e o Ocidente: a problemática do duplo no


romance Les Désorientés, de Amin Maalouf

298 • Do ‘sonho americano’ ao ‘sonho europeu’: o romance de


emigração Estive em Lisboa e lembrei de você (2009), de Luiz Ruffato
DOSSIÊ:
Romance de Formação: caminhos e descaminhos do herói - II
CERVANTES: DOM QUIXOTE E SANCHO
PANÇA – FRAGMENTOS DE UMA
APRENDIZAGEM DELEITOSA
Maria Augusta da Costa Vieira

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O presente trabalho tem a preocupação de destacar nas Cervantes;
andanças de dom Quixote e Sancho Pança um processo Dom Quixote;
implícito de formação educacional presente nas relações entre séculos XVI e XVII;
o cavaleiro e seu escudeiro, em outros termos, um intelectual e poética.
um analfabeto. Antes disso, cabe retomar a possível formação
que teve Cervantes na Espanha do século XVI, assim como
destacar alguns dos princípios de composição poética vigentes
no período.

RESÚMEN PALABRAS-CLAVE:
El presente trabajo tiene la preocupación de destacar en las andanzas Cervantes;
de don Quijote y Sancho Panza un proceso implícito de formación Don Quijote;
educativa presente en las relaciones entre el caballero y su escudero, siglos XVI y XVII;
en otros términos, entre un intelectual y un analfabeto. Antes, sin poética.
embargo, serán considerados los posibles procesos de formación que
tuvo Cervantes en la España del XVI y algunos de los principios de
composición poética propios del periodo.
hacerse poeta, según dicen, es
enfermedad incurable y pegadiza

DQ, I, 6

“H ay escritores, hay críticos y hay escritores-críticos.


Cervantes fue uno de estos últimos.” Assim Riley inicia um de seus
derradeiros artigos sobre a obra de Miguel de Cervantes, publicado em
1998, junto com uma série de estudos críticos de outros autores que
antecedem uma edição do Quixote.1 Por meio desta afirmação, o
cervantista britânico explicita de forma enfática o pensamento nuclear de
sua obra crítica dedicada a Cervantes, isto é, o de que o processo de
invenção de dom Miguel brota de uma intensa conexão entre capacidade
imaginativa e reflexão crítica.
Como diz Riley, o próprio Quixote pode ser entendido como um
texto de crítica literária em um sentido muito particular, o que não
significa que exista na obra cervantina uma ordenação clara acerca de sua
poética. Na realidade, os princípios adotados encontram-se dispersos e
explicitam-se por meio da voz de personagens, pelos comentários do
narrador, pela arquitetura desafiadora da narrativa, enfim, por uma série
de estratégias poéticas e retóricas harmonicamente integradas. Ou seja,
por meio da leitura da obra o leitor usufrui, não apenas do que se narra,
mas também de como se narra.
Nesta breve exposição, pretende-se apresentar alguns aspectos
relacionados com a formação do herói e para isso iniciamos com algumas
ideias acerca de como teria sido a formação intelectual de Cervantes
combinada com alguns detalhes acerca de sua biografia e com alguns dos
princípios poéticos vigentes na época, norteadores de sua narrativa. Com
a preocupação de focalizar especialmente o Quixote, será privilegiada a
relação que se estabelece entre o cavaleiro e seu escudeiro que pode ser
entendida como um exercício de louvor à amizade, algo tão valorizado
em toda a obra cervantina.

Retrato do artista

1 “Teoría literaria” em CERVANTES, Miguel de, Don Quijote, dir. Francisco Rico, Barcelona,
Instituto Cervantes/ Ed. Crítica, 1998, pp. CXXIX. Todas as citações da obra partem dessa
edição.
Embora a obra de Miguel de Cervantes tenha cruzado terras e
mares em seus quatro séculos de existência, o retrato do autor do Quixote
traz lacunas que não permitem visualizar com detalhes sua história de
vida. Ao contrário do que ocorre com alguns escritores do mesmo
período, Cervantes praticamente não deixou vestígios que dessem
margem a conclusões sobre sua biografia. Além de narrativas em prosa,
de poesias e de obras dramáticas não deixou escritos que dessem ao
menos alguns rumos precisos acerca de suas orientações poéticas como o
fez, por exemplo, Lope de Vega, quando escreve El arte nuevo de hacer
comedias (1609) – uma sistematização dos princípios de composição e de
representação cênica por ele adotados desde as últimas décadas do século
XVI. Tampouco deixou registros de cartas ou polêmicas travadas com
poetas contemporâneos como ocorreu com Luis de Góngora, que
manteve substanciosa correspondência com alguns de seus detratores.
Cervantes não abriu espaço para esse tipo de especulação, apesar de
alguns biógrafos ansiosos por conclusões precipitadas ensaiarem
cruzamentos, às vezes fantasiosos, entre vida e produção artística. O que
o autor do Quixote nos deixou, no entanto, é decisivo: uma obra que narra
histórias nunca antes imaginadas, repletas de indagações e controvérsias
sobre o modo de ser do que hoje – em um sentido amplo – entendemos
por literatura.
Não se sabe ao certo se Cervantes chegou a ter estudos regulares
em seus anos de formação: há a suposição de ter tido algum contato com
o colégio dos jesuítas em Sevilha e muito provavelmente frequentou, por
volta dos vinte anos, o “Estudio Público de Humanidades de la Villa de
Madrid”, onde os alunos recebiam a preparação necessária para o
ingresso na Universidade de Alcalá. Nessa ocasião, teria sido aluno de
Juan López de Hoyos, um religioso antijesuíta de orientação erasmista
que, em determinado momento, o apresenta como sendo seu “caro y
amado discípulo”. Embora não seja possível detalhar sua formação
escolar, o que transparece em sua obra é a ideia de ter sido um grande
leitor, provavelmente similar ao narrador do Quixote que afirma sobre si
mesmo ser “aficionado a ler, aunque sean los papeles rotos de las calles”
(DQ, I, 9)2. Simultaneamente, parece ter sido muito atraído pela arte da
escritura, como menciona uma de suas personagens – a sobrinha do
cavaleiro – acerca daqueles que escrevem: “hacerse poeta, según dicen, es
enfermedad incurable y pegadiza” (DQ, I, 6)3.

2 “[...] sou aficionado a ler até pedaços de papéis pelas ruas”. As citações em português relativas
ao Quixote partem seguinte edição: Miguel de Cervantes, D. Quixote, trad. Sergio Molina, São
Paulo, Editora 34, 2002, vol. I, IX, p. 133.
3 “[...] fazer-se poeta, que, segundo dizem, é doença incurável e contragiosa.” (DQ, I, 6, p. 103)
É certo que a biografia de Cervantes traz uma série de hiatos. Nem
sequer seu retrato mais difundido poderia ser considerado autêntico.
Retrato em que se estampa um rosto iluminado, linhas alongadas e olhar
profundo, nariz fino, levemente adunco, boca pequena encoberta em
parte por um espesso bigode que se confunde com a barba, ambos
arrematados por um protuberante rufo. Na verdade, a autoria desse
retrato foi atribuída a Juan de Jáuregui, pintor e poeta sevilhano,
provavelmente amigo de Cervantes, porém, ao que parece, o suposto
quadro teria desaparecido, restando apenas uma cópia, hoje conservada
na Real Academia Espanhola, em Madri. Assim, o retrato do autor do
Quixote impresso em muitas páginas de sua obra paira no horizonte das
incertezas, tanto no que diz respeito à autenticidade do retratista quanto
às verdadeiras feições do retratado.
Para surpresa de seus leitores, o próprio Cervantes – ou aquele que
assume a primeira pessoa no prólogo às Novelas exemplares – constrói o
seu próprio retrato. Após anunciar sua falta de entusiasmo para redigir a
presente prefação devido aos problemas que enfrentou com a publicação
do prólogo relativo à primeira parte do Quixote, lamenta-se da falta que
lhe faz um amigo capaz de gravar na primeira página do livro a sua
figura. O autor imagina um amigo hipotético que se encarregaria de fazer
constar um texto descritivo a seu respeito, isto é, uma mescla de retrato e
biografia, de modo que desse a conhecer aquele que, como diz, propagou
tantas invenções na “praça do mundo”. Ao lado de vários fatos que
compõem sua biografia como as obras que publicou, a batalha
memorável em que atuou e a marca indelével que daí decorreu, isto é, a
mão esquerda privada dos movimentos, surge a descrição em tom
burlesco de suas próprias feições que permitem ao leitor delinear seus
traços fisionômicos.
Como supostamente este não seria um texto de sua autoria,
justifica-se o uso das aspas, apesar da constante autoironia e do tom
aparentemente distanciado e irreverente em meio a um discurso pseudo
laudatório.

Este que veis aquí, de rostro aguileño, de cabello castaño, frente lisa y
desembarazada, de alegres ojos y de nariz corva, aunque bien
proporcionada; las barbas de plata, que no ha veinte años que fueron de
oro, los bigotes grandes, la boca pequeña, los dientes ni menudos ni
crecidos, porque no tiene sino seis, y ésos mal acondicionados y peor
puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros; el cuerpo
entre dos extremos, ni grande, ni pequeño, la color viva, antes blanca que
morena, algo cargado de espaldas, y no muy ligero de pies; este, digo, que
es el rostro del autor de La Galatea y de Don Quijote de la Mancha, y del que
hizo el Viaje del Parnaso, a imitación del de César Caporal perusino, y otras
obras que andan por ahí descarriadas y quizá sin el nombre de su dueño,
llámase comúnmente Miguel de Cervantes Saavedra. Fue soldado muchos
años, y cinco y medio cautivo, donde aprendió a tener paciencia en las
adversidades. Perdió en la batalla naval de Lepanto la mano izquierda de
un arcabuzazo, herida que aunque que parece fea, él la tiene por hermosa,
por haberla cobrado en la más alta ocasión que vieron los pasados siglos, ni
esperan ver los venideros, militando debajo de las vencedoras banderas del
hijo del rayo de la guerra, Carlo Quinto, de felice memoria. (NE, pp. 16-17)4

É importante ter em conta que nos tempos de Cervantes os textos


não eram criados a partir de critérios baseados na subjetividade ou na
espontaneidade do autor. Ao contrário, a escrita era algo regrado que se
originava de convenções presentes em tratados de poética e de retórica e
também em textos que circulavam, cada vez mais, graças às facilidades
criadas por meio da impressão de livros. A partir dessas convenções, o
autor deveria ajustar sua capacidade inventiva. No caso específico da
descrição de pessoa, havia um repertório de atributos que deveriam ser
respeitados, fossem eles destinados ao elogio ou à vituperação. 5
A descrição das feições cervantinas citada no prólogo às Novelas é
conduzida na direção do engrandecimento, seja por meio de elogios ao
homem das armas, que atuou bravamente na memorável batalha de
Lepanto, seja pela exaltação ao homem das letras, por ter escrito La
Galatea, o Don Quijote e Viaje del Parnaso. A reunião dessas duas
atividades, isto é, as armas e as letras correspondia à idealização de uma
vida plena, tendo em conta a concepção humanista da existência. No
entanto, o autorretrato parece desmerecer o próprio autor ao compor uma
figura, no mínimo, duvidosa.
Além das virtudes evidenciadas por ter aprendido a encontrar
“paciência diante das adversidades” e da menção a alguns de seus traços

4 As citações relativas à edição espanhola procedem de: Novelas Ejemplares, Ed. de Jorge García
López, Barcelona, Editorial Crítica, 2001; a tradução ao português procede de: Novelas
exemplares, trad. de Ernani Ssó, São Paulo, Cosac Naif, 2015, p. 33: “Este que vedes aqui, de rosto
aquilino, de cabelo castanho, testa lisa e desembaraçada, de olhos alegres e nariz curvo, embora
bem-proporcionado; as barbas de prata, que não faz vinte anos eram de ouro, os bigodes
grandes, a boca pequena, os dentes nem miúdos nem numerosos, porque tem apenas seis, e
estes em más condições e piores disposições, porque não se encaixam uns com os outros; o
corpo entre dois extremos, nem grande nem pequeno, de cor viva, mais branca que morena; as
costas meio castigadas e não muito ligeiro de pés – este, digo, é o rosto do autor de A Galateia e
de Dom Quixote de la Mancha, e do que escreveu a Viagem do Parnaso, à imitação da de César
Caporal Perusino, e de outras obras que andam extraviadas por aí, talvez sem o nome de seu
dono. Chama-se comumente Miguel de Cervantes Saavedra. Foi soldado muitos anos e escravo
cinco e meio, quando aprendeu a ter paciência nas adversidades. Na batalha naval de Lepanto
perdeu a mão esquerda com um tiro de arcabuz, ferida que, mesmo que pareça feia, ele
considera bela, por tê-la conseguido na mais memorável e alta ocasião que os séculos passados
viram, nem esperam ver os futuros, militando sob as bandeiras vitoriosas do filho do raio da
guerra, Carlos V, de feliz memória.”
5 Retórica a Herenio, Introd., trad. y notas de Salvador Núñez, Madrid, Gredos, 1997, Libro III,

pp. 171-190; de Elena Artaza, Ars narrandi en el siglo XVI español. Teoría y práctica, Bilbao,
Universidad de Deusto, 1989, pp. 186-203.
físicos que ressaltam sua jovialidade e inteligência como “olhos alegres”,
“testa lisa e desembaraçada”, há referências que ficam a meio caminho
entre o encômio e o vitupério, sobretudo quando se refere ao “nariz
adunco” – possível indicação de sua origem judaica, algo nada
recomendável em tempos de Contrarreforma – atenuada pela
qualificação “bem proporcionado”; aos “dentes mal postos” e “pior
dispostos”; às “costas encurvadas” e à sua disposição física já limitada
como se evidencia por meio da menção aos “pés não muito ligeiros”.
Enfim, trata-se de um retrato que se sustenta por meio da
inteligência, da juventude, da dedicação às armas e às letras e, ao mesmo
tempo, carrega o peso da velhice e da decadência física, deixando ao
leitor o esboço de uma imagem cômica produzida pela incongruência de
seus próprios traços. Afinal, como bem lembra Cervantes em tom jocoso,
ainda no prólogo das Novelas Ejemplares, “pensar que dicen verdad los
tales elogios es disparate, por no tener punto preciso ni determinado las
alabanzas ni los vitupérios” (NE, op. cit., p.17).6 Além do mais, o artifício
usado nesse fragmento do prólogo ultrapassa a figuração e aponta para
um procedimento que se reitera em outros prólogos cervantinos quando
o autor utiliza a primeira pessoa. Longe de servir como base documental
para traçar eventualmente algumas linhas mestras de sua biografia ou de
seu pensamento, a composição desses textos é bem mais complexa e não
permite conclusões apressadas. A presença desse suposto “amigo”
introduzido no prólogo das Novelas Exemplares, quem se encarregaria de
traduzir em palavras sua imagem esculpida, é um recurso recorrente que
aparece nos prólogos cervantinos quando, dirigindo-se ao leitor e usando
a primeira pessoa num registro supostamente referencial, Cervantes
acaba multiplicando as vozes, desdobrando-se em um “ele” que emite
opiniões a seu próprio respeito. Como diz Jean Canavaggio, em seus
prólogos Cervantes apresenta-se em constante mise en scène de si mesmo,
num movimento em que se revela e se oculta simultaneamente,
dificultando a configuração precisa do retrato do escritor.7 Sendo assim,
os traços esfumados do autorretrato é o resultado de um procedimento
que tem muito a ver com sua poética e, provavelmente, muito pouco com
o seu semblante na vida real.
Muitas vezes seus biógrafos trataram de sublinhar nuances de sua
história de vida privilegiando a figura do “gênio” submetido à
precariedade das condições materiais, como se houvesse uma relação
direta e proporcional entre a estreiteza material e a propalada genialidade
do autor. Certamente, a vida de Cervantes parece não ter sido fácil, como

6 […] é um disparate pensar que tais elogios dizem piamente a verdade, já que nem as
louvações nem os vitupérios têm exatidão nem fundamento.” (NE, p. 34)
7 Jean Canavaggio, Cervantes: entre vida y creación, Alcalá de Henares, Centro de Estudios

Cervantinos, 2000.
é condição própria dos humanos, no entanto, seria no mínimo temerário
chegar a conclusões que dizem mais dos anseios ou da imaginação do
biógrafo do que do próprio biografado, ou que estabelecem uma rede de
causalidades entre vida e obra, confundindo o autor com sua personagem
quixotesca, por exemplo, com a perspectiva de adivinhar, interpretar ou
justificar quais teriam sido os movimentos mais subjetivos presentes na
composição de determinados episódios.
Apesar das lacunas biográficas, talvez seja o caso de destacar uma
das feições do artista que deixa marca indelével em sua obra: os laços de
extrema simpatia que estabelece com seu leitor, convertendo sua escritura
em momentos primorosos de reflexão e entretenimento. No prólogo às
Novelas Exemplares, como quem trata de situar o lugar que ocupa a leitura
em meio à variedade do dia a dia, diz: “[…] no siempre se está en los
templos; no siempre se ocupan los oratorios; no siempre se asiste a los
negocios, por calificados que sean. Horas hay de recreación donde el
afligido espíritu descanse.” (NE, p. 18.) 8

“Escribo como hablo”

Não é raro encontrar um leitor que, após empreender a leitura do


Quixote, fique surpreso ao constatar a capacidade comunicativa do texto
cervantino, apesar dos quatro séculos que nos separam. Esta suposta
facilidade de leitura não deve ser entendida, no entanto, como o resultado
de um exercício que prima pela espontaneidade na escritura, como se a
obra fosse fruto de uma escritura desatada. Na realidade, essa aparente
naturalidade é fruto de um conjunto de artifícios que supõe um trabalho
criterioso de composição.
No século XVI ibérico os escritores, de um modo geral, passaram
a adotar um preceito que consistia em fazer com que os textos escritos
reproduzissem a língua falada. Além do propósito de dignificá-la e de
elevar o castelhano ao patamar de uma língua culta, havia também a
ideia de conceder à língua escrita uma maior naturalidade, precisão,
clareza e simplicidade. É preciso ter em conta que, na época, a língua
castelhana tratava de conquistar um estatuto próprio e ainda era bem
recente e pouco difundida a publicação de sua primeira gramática
escrita por Antonio de Nebrija e publicada em 1492. Alguns autores se
empenhavam em escrever seus textos nesta língua, e não em latim,
como ocorria na maior parte das vezes, e nesse caso a buscada
naturalidade se associava também ao uso da língua castelhana como
sendo “natural”. Ou seja, o “escribo como hablo” se associava não

8“[...] nem sempre se está nos templos; nem sempre se ocupam os oratórios; nem sempre se lida
com negócios, por mais importantes que sejam. Há horas de recreação, para que o espírito aflito
descanse.” (NE, p. 34)
apenas à naturalidade na escrita, mas também à utilização da língua
romance, isto é, o castelhano.
Este preceito circulou no universo social do século XVI e aparece
como um dos temas de discussão em uma obra que teve grande
circulação na sociedade de corte intitulada O Cortesão (1528), de autoria
de Baldassare Castiglione, um italiano que frequentou tanto o mundo
cortesão italiano como também a corte espanhola. Um dos tópicos
defendidos na obra diz respeito à ideia de que o texto escrito deveria
corresponder à fala, criando assim o consenso em torno da ideia de que
“escrever é um modo de falar”, o que corresponde, em outros termos,
ao preceito do “escribo como hablo”. 9
Poucos anos após a publicação de O Cortesão, isto é, entre 1535 e
1536, Juan de Valdés redige uma verdadeira apologia à língua
castelhana nos moldes do diálogo humanista sob o título Diálogo de la
lengua, que será conhecido em forma de manuscrito apenas na segunda
metade do século XVI. Nessa obra estão presentes, não apenas a defesa
da língua vernácula frente ao latim, como também a importância da
naturalidade quanto ao estilo, em detrimento de toda e qualquer
afetação considerada como uma prática criticada e rejeitada por alguns
pensadores. Como aparece no Diccionario de Autoridades, a afetação
correspondia a um vício e surgia quando havia um cuidado exagerado
que se traduzia em obras, palavras ou adornos.
No entanto, é preciso ter em conta que, ao invés do que
aparentemente poderia parecer, a naturalidade no estilo não
correspondia à noção de um discurso espontâneo que brotava
livremente. Ao contrário, supunha ponderação, cálculo, enfim, uma
criteriosa operação racional que previa a recorrência a variados
artifícios que, por sua vez, resultava numa aparência de naturalidade.
O conceito do “escribo como hablo” correspondia ao preceito da
perspicuitas da retórica clássica, retomado por Juan Luis Vives em sua
Arte retórica e definido como “uma descrição muito evidente que atrai
aquele que ouve como se a coisa estivesse presente”. 10 Desse modo, a
clareza (ou a perspicuidade) era considerada como uma das virtudes
da elocução, enquanto que a obscuridade e a afetação não passavam de
um vício.
Quando Cervantes publica a primeira parte do Quixote, em 1605,
esta tendência já começava a ceder espaço para uma orientação
divergente que tratava de alargar a distância entre res e verba, entre as
palavras e as coisas com a perspectiva de se chegar a uma forma

9 Ver de Baldassare CASTIGLIONE, El Cortesano, Trad. Juan Boscán, Ed. de M. Pozzi, Madrid,
Cátedra, 1994, Libro I, p.152.
10 Juan Luis VIVES, El arte retórica, Introducción de Emilio Hidalgo-Serna, traducción y notas de

Ana Isabel Camacho, Barcelona, Anthropos, 1998, p. 223.


poética que privilegiasse a capacidade engenhosa de penetrar nos
assuntos da forma mais distante e inesperada, tratando de extrair das
coisas, por meio das palavras, suas propriedades mais ocultas.
Cervantes, que publica toda sua obra nas duas primeiras décadas
do século XVII, com exceção de La Galatea, foi um dos últimos
representantes da orientação que tinha em mente o princípio do
“escribo como hablo”, tão própria do século XVI. Tendo em mãos este
dado, é instigante ler o Quixote, uma obra que tem como eixo de
sustentação o longo diálogo entre o cavaleiro e seu escudeiro, entre o
letrado e o analfabeto, observando as inúmeras situações narradas e as
ponderações feitas pelas personagens acerca da língua falada e da
língua escrita. Além disso, Cervantes não apenas optou por uma escrita
pautada pela “naturalidade” como também soube ridicularizar como
Erasmo, em Elogio da loucura (1509), a afetação no estilo e o pedantismo
como modo de produzir a aparência de erudição.
Por outro lado, o conjunto de seus possíveis leitores foi também
uma constante preocupação em sua obra, em especial, na composição do
Quixote em que tudo se inicia pela leitura e pela construção de uma
personagem que, mais do que nada, é vítima de suas próprias leituras.

Alguns princípios poéticos

É muito provável que Cervantes tenha tido contato, não apenas


com algumas poéticas vigentes na Itália, sobretudo nos cinco anos em que
viveu em Nápoles, mas também com preceptivas espanholas e, entre elas,
a Philosophía Antigua Poética de López Pinciano, publicada em 1596, que
retoma essencialmente as ideias da Poética de Aristóteles e da Arte Poética
de Horácio.11 Além do mais, a leitura dos clássicos gregos e latinos fazia
parte do repertório dos letrados, assim como a leitura dos textos
contemporâneos, o que se observa na obra cervantina por meio de um
diálogo intenso que se estabelece com variadas formas discursivas, orais e
escritas.
O Quixote, sem dúvida, é a obra onde esses “diálogos” ocorrem de
modo mais marcante por meio de situações nas quais são retomadas
várias das formas em uso como as chamadas novelas sentimental,
mourisca, pastoril, picaresca, os contos breves, os provérbios, o
romanceiro, o diálogo humanista, enfim, um amplo conjunto de textos
que circulavam sob a forma escrita e, em alguns casos, também sob a
forma oral. Mas além de se criar situações narrativas nas quais estas
formas textuais são parodiadas ou simplesmente retomadas, as próprias
personagens muitas vezes dialogam sobre a arte poética e sobre obras em
11Alonso LÓPEZ PINCIANO, Philosophía antigua poética, Ed. de Alfredo Carballo Picazo,
Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1973.
geral, fazendo com que em várias ocasiões alguns dos princípios de
composição poética apareçam como objeto de discussão em meio à
matéria narrativa. Afinal, e de modo muito particular, o Quixote pode ser
considerado como uma obra que versa sobre o que hoje designamos
“literatura” num sentido amplo, envolvendo a invenção e disposição da
fábula, o diálogo com variados gêneros, os processos de enunciação e o
complexo da recepção.
A obra de Cervantes – e de modo muito especial o Quixote –
apresenta várias reflexões em meio à narração acerca dos princípios de
composição adotados como se o narrador dialogasse implícita e
explicitamente com personagens, com o suposto autor, com o tradutor,
com os próprios leitores e consigo mesmo sobre os rumos a seguir e
sobre a composição de episódios já narrados fazendo com que o leitor
seja convidado a refletir, não apenas sobre o que se narra, mas também
sobre o modo de narrar. Como menciona no prólogo às Novelas
exemplares, Cervantes projetava sua obra de ficção como um jogo, que
nos dias de hoje corresponderia a uma mesa de bilhar, na qual os
jogadores fossem o autor e o leitor. Como diz,

Mi intento ha sido poner en la plaza de nuestra república una mesa de


trucos, donde cada uno pueda llegar a entretenerse, sin daño de barras,
digo, sin daño del alma ni del cuerpo, porque los ejercicios honestos y
agradables antes aprovechan que dañan.” (NE, Prólogo, p. 18) 12

Assim, é plenamente possível ler a obra cervantina e, em especial,


as andanças de dom Quixote e Sancho, como um amplo debate que incide
fundamentalmente sobre os variados usos da linguagem, sobre o conceito
de imitação e de verossimilhança que supunham, entre outras coisas, o
que hoje poderíamos entender como sendo um diálogo entre verdade
poética e verdade histórica.
A verossimilhança era considerada como elemento
imprescindível na elaboração da fábula e esta, por sua vez, deveria ser
entendida como uma imitação. Caso não o fosse seria considerada
inverossímil, correndo o risco de ser classificada como um disparate,
equiparado às fábulas milesias, isto é, aos relatos breves e fictícios
produzidos na região de Mileto, na Grécia antiga, que tinham a
preocupação primordial de deleitar. Nesses relatos poderiam intervir
tanto pessoas quanto animais, seres animados quanto inanimados
sujeitos a acontecimentos mágicos ou sobrenaturais. Na época, as
fábulas milesias eram equiparadas aos livros de cavalaria, muitas vezes
12“Minha intenção foi colocar na praça de nossa república uma mesa de bilhar, onde cada
um pode se divertir, sem prejuízo dos sapeadores; digo, sem prejuízo da alma nem do
corpo, porque os exercícios honestos e agradáveis são mais proveitosos que prejudiciais.”
(NE, p. 34)
julgados inverossímeis, o que gerava críticas radicais ao gênero como
aparece com frequência no Quixote por meio de debates “literários”
travados entre personagens. Da mesma forma, renomados moralistas
censuravam estas obras por considerá-las mal escritas por não
respeitarem os critérios da verossimilhança e por incitarem ao ócio e ao
puro deleite.
A verossimilhança na composição da fábula era, portanto, uma
condição fundamental e, como dizia López Pinciano, em sua Philosophía
antigua poética (1596) uma fábula inverossímil seria como uma ação que
não imita coisa alguma. No entanto, se por um lado a fábula deveria ser
semelhante à verdade, fingindo de forma plausível, por outro, deveria
também provocar a admiração (admiratio) no sentido de surpreender e
impressionar o leitor ao apresentar acontecimentos novos e raros, algo
não visto e jamais ouvido, de modo a propiciar o deleite. Nesse caso, o
poeta deveria harmonizar em sua fábula duas orientações aparentemente
contrárias, isto é, compor uma fábula que fosse verossímil e que ao
mesmo tempo provocasse a admiração. Assim, nos tempos de
Cervantes, a composição da fábula exigia uma complexidade capaz de
articular estes dois princípios simultaneamente, despertando no leitor
um grande estímulo por algo excepcional sem sair, no entanto, dos
parâmetros da verossimilhança. Ao ler o Quixote, o leitor poderá
comprovar as inúmeras vezes em que o narrador, o suposto autor árabe –
Cide Hamete Benengeli – e mesmo as personagens se referem à
“verdade” do que se narra e também à “admiração” que determinada
ação, acontecimento ou fala poderia despertar.
Não apenas a verossimilhança e a admiração eram fundamentais
na fábula. O deleite e o ensinamento também eram requisitos
imprescindíveis. Segundo a Arte poética de Horácio, também retomada
por Pinciano, o deleite por si só seria prejudicial uma vez que não
possibilitaria o ensinamento e conduziria o leitor ao espaço da pura
fantasia, alheio a seu próprio mundo como ocorria nas fábulas milesias
ou nas novelas de cavalaria que transitavam por terras distantes e
imaginárias, povoadas por elementos maravilhosos. Em um mundo em
que os vícios representavam constante ameaça para as virtudes era
fundamental que o princípio do utile dulce estivesse presente na
composição da fábula, isto é, que o deleite viesse sempre acompanhado
de algum ensinamento.
Assim, verossimilhança e admiração, deleite e ensinamento eram
alguns dos componentes fundamentais da fábula – para utilizar a
terminologia de Pinciano – que, embora parecessem combinações
contraditórias caberia ao autor encontrar o ponto de equilíbrio entre elas,
construindo, por meio de artifícios da linguagem, narrativas que fossem
verossímeis, admiráveis, deleitáveis e edificantes.
O Quixote, assim como outras obras cervantinas, encena o jogo das
regras de composição em uso e, por mais “admiráveis” que sejam as
aventuras do cavaleiro, o texto se atém aos parâmetros da
verossimilhança por meio da criação de variados artifícios, entre eles, as
frequentes intervenções de Sancho Pança questionando a autenticidade
das aventuras de seu amo.

Dom Quixote e Sancho Pança

As duas personagens – provavelmente as mais cativantes que a


literatura já produziu – são construídas por meio de um amplo diálogo
que acompanha toda a obra, em meio a várias aventuras. A convivência
entre ambos supõe intercâmbio de ideias apesar das frequentes
divergências, o que não impossibilita uma profunda admiração mútua
entreamada por reiteradas críticas recíprocas. Desde o momento em que
Sancho passa a fazer parte das andanças de dom Quixote, é
surpreendente ver o diálogo que vai sendo construído entre eles, sendo o
escudeiro um rústico lavrador e analfabeto ao lado de um cavaleiro
letrado que parece não ter feito outra coisa na vida a não ser ler livros e
refletir sobre eles. De certo modo, seria possível entender a obra como
sendo a narração da história de uma grande amizade entre o cavaleiro e
seu escudeiro, ponderada por vários ângulos segundo as vicissitudes de
cada um. Uma história que de um modo geral encontra nas loucuras do
cavaleiro as situações mais admiráveis e nas ponderações de Sancho, as
mais verossímeis; em ambos, momentos de grande deleite e, ao mesmo
tempo, de grande ensinamento.
Na realidade, Sancho não teve a oportunidade de acompanhar os
primeiros passos de dom Quixote quando este sai pela primeira vez de
sua aldeia, levando armas e vestimenta similar às dos cavaleiros andantes
e quando é armado cavaleiro por um suposto castelão ficando, portanto,
autorizado a fazer uso das armas sempre em defesa dos princípios da
cavalaria. Ao não presenciar esta cena de velado escárnio que se dá em
uma hospedagem – e não em um castelo – com a atuação de um
estalajadeiro de viés pícaro – e não de um castelão – Sancho não poderia
supor em que condições seu amo se fez cavaleiro andante. Quando passa
a integrar a narração, já no capítulo VII da primeira parte, ele tem em
mente o governo de uma suposta “ínsula” que seu amo lhe prometera
para o dia em que tivesse conquistado fama e reconhecimento. Sendo
assim, Sancho não tem ideia das loucuras do cavaleiro e somente aos
poucos vai tratando de conhecer seu modo de funcionamento.
O respeito e a admiração que ele tem em relação a dom Quixote lhe
dificulta, inicialmente, se contrapor às suas loucuras, embora sinta a
responsabilidade de adverti-lo quanto a seus equívocos: moinhos não são
gigantes, carneiros não são exércitos, estalagens não são castelos.
Somente no capítulo XX da primeira parte, Sancho se dá conta de que é
impossível convencê-lo e contrapor-se a ele por meio de seus próprios
argumentos e, sendo assim, encontra outro modo para poder, ele
também, dirigir a ação segundo seus interesses. Sancho descobre que
pode enganar seu amo, quando assim lhe convém, e se mostra
plenamente eficiente em sua estratégia. A partir de então, ganha outro
estatuto e fica mais senhor de sua ação, chegando, inclusive, a indagar
dom Quixote sobre o modo como os escudeiros costumavam receber seus
salários, se por empreita ou por jornada; pergunta esta que causa certa
perturbação no cavaleiro ao se dar conta de que sua autoridade deveria se
alicerçar em bases mais firmes.
As consequências desse crescimento de Sancho são fundamentais
para o desenvolvimento da narrativa, tanto da primeira quanto da
segunda parte da obra, sobretudo no que diz respeito às relações
estruturais que envolvem a sem par Dulcineia. Com a interferência e
manipulação progressiva de Sancho no que diz respeito a vários temas e
alguns encaminhamentos da ação que ele acaba determinando, a
Dulcineia merece atenção especial pois ela própria, graças à intervenção
do escudeiro, escapa das mãos do cavaleiro que já não tem poderes para
interferir em seu destino. O que desencadeia de modo decisivo este
empoderamento de Sancho – para utilizar um termo tão recorrente nos
dias de hoje – ocorre no capítulo X da segunda parte, quando Sancho
inventa o encantamento da dama etérea em uma rústica lavradora. Os
personagens leitores da primeira parte da obra, que interveem na
segunda parte, mais precisamente, o bacharel Sansão Carrasco e os
duques, aproveitarão ao máximo o encantamento de Dulcineia idealizado
por Sancho para a produção de momentos desafiadores para o cavaleiro,
repletos de burlas, de admiração e comicidade.
Enfim, como bem adverte o autor no prólogo da primeira parte da
obra, tão importante é o cavaleiro quanto seu escudeiro e, dirigindo-se ao
leitor, conclui a prefação afirmando:

[…] quiero que me agradezcas el conocimiento que tendrás del famoso


Sancho Panza, su escudero, en quien, a mi parecer, te doy cifradas todas las
gracias escuderiles que en la caterva de los libros vanos de caballerías están
esparcidas.” (DQ, 1, Prólogo) 13

Na realidade, desde o início dessa convivência dom Quixote


considera Sancho como seu companheiro, com quem, ao longo de suas

13 “[...] quero que me agradeças o conhecimento que terás do famoso Sancho Pança, seu
escudeiro, em quem, no meu entender, te dou cifradas todas as graças escudeiras que na caterva
dos vãos livros de cavalaria estão dispersas.” (Cervantes, D. Quixote, trad. Sergio Molina, São
Paulo, Editora 34, 2002, p. 36.)
andanças, vai construindo uma grande amizade. Além de instruir seu
escudeiro sobre os passos, a ação e os princípios da cavalaria andante,
dom Quixote evidencia uma preocupação educativa em relação a Sancho
no que diz respeito a seu modo de agir, de pensar e sobretudo no que se
refere a seu modo de falar. São inúmeras as vezes em que o repreende
pelo uso desenfreado de provérbios quando os mesmos não coincidem
com o tema em questão, ou quando, ao narrar um conto breve, Sancho se
estende em digressões e ditados populares, perdendo o fio da narrativa.
Enfim, o cavaleiro, além de lutar pela restituição dos princípios da
cavalaria e do restabelecimento de uma outra ordem no mundo, se
empenha com o rigor devido na formação de seu escudeiro.
Essa missão de dom Quixote fica evidente em inúmeros momentos
da obra, no entanto, no capítulo XII da segunda parte, o diálogo entre eles
se torna especialmente cômico, embora evidencie os progressos do
escudeiro. Nesse momento, Sancho diz ter aprendido muito com seu amo
e acaba produzindo metáforas versáteis ao estabelecer diversas ordens de
analogia. Na véspera eles haviam tido um grande desentendimento com
um grupo itinerante de atores e dom Quixote, que se dizia um admirador
da arte dramática, lamenta o ocorrido. Começa a tecer comentários sobre
a representação teatral, a cenografia e a ilusão de verdade que uma cena é
capaz de produzir, como se estivesse introduzindo seu escudeiro na arte
especular da representação, evidenciando os benefícios que a “comédia”
traz para a república, “poniéndonos um espejo a cada passo delante,
donde se veen al vivo las acciones de la vida humana” (DQ, 2, XII).14 E a
propósito, diz a Sancho:

[…] ninguna comparación hay que más al vivo nos represente lo que somos
y lo que habemos de ser como la comedia y los comediantes; si no, dime:
¿no has visto tú representar alguna comedia adonde se introducen reyes,
emperadores y pontífices, caballeros, damas y otros diversos personajes?
Uno hace el rufián, otro el embustero, este el mercader, aquel el soldado,
otro el simple discreto, otro el enamorado simple; y acabada la comedia y
desnudándose de los vestidos della, quedan todos los recitantes iguales.
(DQ, 2, XII)15

Sancho simplesmente retruca afirmando já ter visto representações


de comédias, mas dom Quixote deseja ir mais adiante em sua reflexão e

14 “[...] pondo-nos um espelho defronte a cada passo, onde se veem ao vivo as ações da vida
humana” (DQ 2, XII, p. 162).
15 “[...] nenhuma comparação há que mais ao vivo nos represente o que somos e o que havemos

de ser como a comédia e os comediantes. Se não diz-me: já não viste representar alguma
comédia onde se veem reis, imperadores e pontífices, cavaleiros, damas e outros vários
personagens? Um faz de rufião, outro de embusteiro, este de mercador, aquele de soldado,
outro de simples discreto, outro de enamorado simples. E acabada a comédia e despindo-se dos
vestidos dela, ficam todos os atores iguais. (DQ 2, XII, 2002, p. 162)
se arrisca a estabelecer uma analogia entre a arte da representação e a
própria vida, que ao chegar ao seu fim ou ao se deparar com a morte, se
desfaz de suas fantasias e é conduzida para a sepultura igualando todos
os mortais. A essas alturas, julgando-se senhor da situação, Sancho
arrisca-se a avaliar a originalidade da comparação que seu amo acaba de
fazer e lança mão de outra analogia que equipara a representação
dramática e a vida humana ao jogo de xadrez:

—Brava comparación —dijo Sancho—, aunque no tan nueva, que yo no la


haya oído muchas y diversas veces, como aquella del juego del ajedrez, que
mientras dura el juego cada pieza tiene su particular oficio, y en
acabándose el juego todas se mezclan, juntan y barajan, y dan con ellas en
una bolsa, que es como dar con la vida en la sepultura. (DQ 2, XII)16

A essas alturas, dom Quixote se surpreende com o progresso do


escudeiro que evidencia um refinamento em sua capacidade intelectual
capaz de se expressar por meio de novas comparações. É o mestre que
não pode deixar de apreciar os avanços de seu discípulo: “– Cada día,
Sancho [...] te vas haciendo menos simple y más discreto” (DQ 2, XII ).17
Cabe destacar que a “discrição” era considerada uma das qualidades
mais desejáveis na época, algo que evidenciava uma habilidade especial
para o discernimento nas mais variadas situações presentes na vida
social.18 Ao considerar os progressos de Sancho rumo à discrição, o
cavaleiro lhe faz um grande elogio. O mais interessante é que o escudeiro
se entusiasma com a avaliação de seu amo e lança mão de nova
comparação – agora voltada para a relação entre eles dois – de modo que
o diálogo elevado até então estabelecido entre ambos resvala para o
baixo, produzindo uma analogia cômica e uma quebra burlesca:

– Sí, que algo se me ha de pegar de la discreción de vuestra merced —


respondió Sancho—, que las tierras que de suyo son estériles y secas,
estercolándolas y cultivándolas vienen a dar buenos frutos. Quiero decir
que la conversación de vuestra merced ha sido el estiércol que sobre la
estéril tierra de mi seco ingenio ha caído; la cultivación, el tiempo que ha
que le sirvo y comunico; y con esto espero de dar frutos de mí que sean de
bendición, tales que no desdigan ni deslicen de los senderos de la buena

16 “– Brava comparação – disse Sancho – se bem não tão nova que eu não a tenha ouvido muitas
e diversas vezes, como aquela do jogo de xadrez, que enquanto dura o jogo cada peça tem seu
particular ofício, e em se acabando o jogo todas se misturam, juntam e baralham, e dão com elas
num saco, que é como dar com a vida na sepultura.” (DQ, 2, XII, 2007, p. 162.)
17 “– A cada dia, Sancho – disse D. Quixote –, te vais fazendo menos simples e mais discreto.”

(DQ, 2, XII, 2007, p. 162.)


18 Sobre o conceito de “discrição” na obra de Cervantes, ver, de minha autoria, A narrativa

engenhosa de Miguel de Cervantes (São Paulo, Edusp/Fapesp, 2012).


crianza que vuesa merced ha hecho en el agostado entendimiento mío. (DQ
2, XII)19

Dom Quixote, equiparado agora ao esterco que adubou a mente


engenhosa de Sancho, nada mais tem a dizer a não ser achar graça nas
palavras do escudeiro:

Rióse don Quijote de las afectadas razones de Sancho, y parecióle ser


verdad lo que decía de su emienda, porque de cuando en cuando hablaba
de manera que le admiraba […].20 (DQ 2, XII)

Todo esse diálogo ocorre após o encantamento de Dulcineia


inventado por Sancho dois capítulos atrás – um artifício para livrar-se de
uma mentira dita a seu amo, ainda na primeira parte, quando afirmou ter
entregue a carta do cavaleiro a sua dama. Mentira sobre mentira, assim
seguirá Sancho até que mais adiante, em pleno palácio dos duques, terá
que pagar caro por todas as sucessivas trapaças até então realizadas.
Apesar disso, Sancho a cada momento se mostra mais preparado para
enfrentar as agruras da vida de escudeiro de um cavaleiro andante muito
singular.
São vários os momentos em que a convivência entre ambos os
protagonistas oferece especial interesse em consonância com uma
organização narrativa que se ajusta aos princípios estabelecidos pela
poética vigente. E, para concluir, vale retomar as palavras de Sancho
quando, no capítulo XXXIII da segunda parte, em conversa reservada
com a duquesa e suas damas e tendo já recebido a oferta do governo de
uma “ínsula”, ela põe em risco suas pretensões de governador por
considerá-lo louco, uma vez que ele segue piamente a outro louco. Neste
momento, Sancho explicita da forma mais humana e discreta sua
fidelidade a dom Quixote, por mais que esta atitude virtuosa possa
inviabilizar o seu tão pretendido governo:

[…] no puedo más, seguirle tengo; somos de un mismo lugar, he comido su


pan, quiérole bien, es agradecido, diome sus pollinos, y, sobre todo, yo soy
fiel, y, así, es imposible que nos pueda apartar otro suceso que el de la pala
y azadón. Y si vuestra altanería no quisiere que se me dé el prometido

19 “– Ora, um pouco da discrição de vossa mercê me houvera de pegar – respondeu Sancho –,


pois as terras que por si são estéreis e secas, estercando-as e cultivando-as vêm a dar bons
frutos. Quero dizer que a conversação de vossa mercê tem sido o esterco que sobre a estéril
terra do meu seco engenho tem caído; a cultivação, o tempo que faz que lhe sirvo e comunico; e
com isto espero dar de mim frutos que sejam de benção, tais que não desdigam nem deslizem
das sendas da boa criação que vossa mercê tem feito no sáfaro entendimento meu.” (DQ, 2, XII,
2007, p. 162-4)
20 “Riu-se D. Quixote das afetadas razões de Sancho, mas pareceu-lhe ser verdade o que dizia da

sua emenda, pois de quando em quando falava de maneira que o admirava [...].” (DQ, 2, XII,
2007, p. 162-4)
gobierno, de menos me hizo Dios, y podría ser que el no dármele
redundase en pro de mi conciencia, que, maguera tonto, se me entiende
aquel refrán de «por su mal le nacieron alas a la hormiga», y aun podría ser
que se fuese más aína Sancho escudero al cielo que no Sancho gobernador.
(DQ, II, XXXIII)21

Maria Augusta da Costa Vieira ´é Professora Titular de Literatura Espanhola do Depto de


Letras Modernas (FFLCH-USP) e pesquisadora do CNPq. Em 2013 recebeu o “Prêmio Jabuti”
pela publicação de A narrativa engenhosa de Miguel de Cervantes: estudos cervantinos e recepção do
Quixote no Brasil (Edusp/Fapesp). Foi membro da diretoria da Asociación de Cervantistas e
atualmente é membro da diretoria da Asociación Internacional de Hispanistas e membro
correspondente da Real Academia Española.

21 “[...] não posso outra coisa, tenho que seguir com ele: somos do mesmo lugar, comi do seu
pão, lhe quero bem, é agradecido, me deu os seus jericos, e por cima de tudo eu sou fiel, e por
isso é impossível que nos possa separar outra coisa que não seja a pá da terra. E se vossa
altanaria não quiser que se me dê o prometido governo, de menos me fez Deus, e pode ser que
o não receber redunde em prol de minha consciência, pois apesar de tolo bem entendo aquele
ditado que diz “por seu mal nasceram asas à formiga”, e até pode ser que mais asinha chegue
ao céu o Sancho escudeiro que o Sancho governador. (DQ, 2, XXXIII, 2007, 411)
GOETHE, O MEISTER: A EXPERIÊNCIA
ARTÍSTICA COMO NARRATIVA DA FALHA
Wilma Patricia Maas

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Este artigo pretende traçar um paralelo entre a Goethe;
formação de Goethe na Itália como aspirante à artista Os anos de aprendizado de
plástico e a formação estética do protagonista Wilhelm Meister;
Wilhelm Meister. Ambas a trajetórias se dão, em formação estética.
última instância, sob o signo da falha e da renúncia.

ABSTRACT KEYWORDS
This article intends to draw an analogy between Goethe’s Goethe;
path in Italy as an aspiring painter and the aesthetic Wilhelm Meister
development of Wilhelm Meister’s main character. Both Apprenticeship Years;
are here understood as being performed under the sign of Aesthetic Development.
failing and resignation.
F riedrich Schlegel, em sua exemplar resenha de anos de aprendizado
de Wilhelm Meister, afirma que o romance é o gênero literário capaz de
conter em si todos os outros, a prosa e a poesia, a crítica e o ensaio. Para
Schlegel, o romance de Goethe é um indicador de caminhos, um marco da
modernidade, “um romance romântico por excelência”, apontando assim
para a carga semântica que o termo assumira então.
O Meister de Goethe, consolidado pela história literária como o
paradigma do “romance de formação”, concentra, de fato, diferentes tipos
de discurso, tanto na forma, que por vezes se aproxima do ensaístico e
“avança devagar”, como diria Goethe sobre o gênero épico, quanto no
conteúdo dos diversos temas que o narrador (e o protagonista em sua
trajetória) percorrem.
O encontro com a esfera da arte é um dos mais significativos, pois,
além de permitir ao leitor a familiarização com muitas das questões
estéticas da época, permite que se acompanhe a trajetória do protagonista,
o jovem ingênuo que o próprio Goethe chamara uma vez de “pobre diabo”.
A formação estética de Wilhelm Meister dá-se de maneira
semelhante ao percurso do próprio Goethe, que dez anos antes fugira para
a Itália para realizar seu desejo de se tornar pintor. Sob esse aspecto, o
texto de Viagem à Itália pode ser lido como a narração da experiência da
falha. Tischbein, depois Hackert, Kniep e Reiffenstein revezam-se como
companheiros de jornada e mestres de desenho e pintura; dentre as muitas
promessas que Goethe fizera aos amigos que deixou em Weimar, estava a
de levar consigo esboços do próprio punho 1. No entanto, a partir da
segunda temporada romana, são frequentes no texto as alusões a um
progressivo afastamento, em direção ao reconhecimento final da falta de
talento. Em 21 de dezembro de 1787, Goethe escreve de Roma a Charlotte
von Stein:

O fato de eu me entregar ao desenho e estudar arte, em vez de se mostrar


como obstáculo à minha prática poética, é-lhe favorável. É preciso escrever
pouco e desenhar muito. Quero comunicar-te meu conceito de artes
plásticas. Ainda que não seja independente, é promissor, pois é verdadeiro e

1Durante a temporada italiana, Goethe produziu cerca de 900 desenhos. Uma pequena parte
dessa coleção pode ser vista em:
http://www.goethezeitportal.de/wissen/projektepool/goethe-italien/rom/rom-in-alten-
ansichten/goethe-zeichnungen.html
indica sempre o caminho adiante. A razão e a influência dos grandes mestres
é inacreditável. Se, quando cheguei à Itália, senti-me renascer, agora posso dizer
que se inicia meu verdadeiro processo de educação. Até agora só te enviei
tentativas levianas e sem consequências. Desta vez mando por meio de
Thurneisen um pacote que te deixará feliz. As melhores coisas são de outros
artistas2.

Goethe chegara a Roma em 1º de novembro de 1786. Nas cartas que


escreve ao Duque Karl August, a Charlotte von Stein e a Herder, que
serviram de base para o texto publicado em Viagem à Itália, diz Goethe ter
sido tomado, nos últimos anos, por uma “espécie de doença”, da qual só
poderia ser curado pela visão e pela presença. “Agora posso confessá-lo:
nos últimos tempos, mal podia olhar para um livro em latim, mal podia
ver o desenho de uma região italiana. O desejo de conhecer esta terra
estava mais do que maduro3.”
Assim como Wihelm Meister, que pensa encontrar na dedicação ao
teatro o caminho para a “formação universal”, Goethe verá na experiência
italiana o meio para expandir sua formação artística em direção às artes
plásticas. Ao longo dos vários meses que passa ali, a pintura, a modelagem
de partes anatômicas do corpo humano em gesso, a pintura sobre gemas e
vidro, as frequentes visitas às diferentes coleções artísticas privadas e aos
grandes museus comporão seu repertório de aprendizado, o exercício da
contemplação em presença. Em agosto de 1787, Goethe fala da “esperança
de poder produzir algo”:

Sofri realmente um processo de renovação e aprendizado. Sinto que a soma


de minhas forças se concentra, e tenho a esperança de conseguir ainda
produzir algo. Tenho refletido seriamente sobre a pintura de paisagem e
arquitetura, tenho também me arriscado eu próprio em alguma coisa, de
modo que agora quero ver até onde isso pode me levar.4

Cerca de um mês depois, pensando já nos tesouros que levará de


volta à Alemanha, Goethe dirá: “Entre tanta coisa boa que trarei comigo
[...] quando voltar, estará, acima de tudo um coração feliz, capaz de
desfrutar a ventura do amor e da amizade que me dedicam. Nunca mais
terei de empreender algo que esteja além de minhas habilidades, algo frente ao qual
me debato apenas, sem conseguir criar nada5.
A afirmação, de caráter dúbio, pois é difícil decidir se Goethe fala em
relação ao passado, quando se debatia “sem conseguir criar nada” ou se
mantém a asserção para o futuro, para a ocasião da volta à Alemanha,

2 GOETHE, J. W. v. Viagem à Itália. Trad. de Wilma Patricia Maas. São Paulo: Editora UNESP, 2017
(grifo meu).
3 GOETHE, 2017, p. 147
4 GOETHE, 2017, p. 487, grifo meu.
5 GOETHE, 2017, p. 439, grifo meu.
quando estará então desobrigado de fazê-lo, remete a um adendo,
acrescentado ao mês setembro de 1787:

Espíritos ambiciosos e cheios de energia não se contentam com o prazer, eles


exigem conhecimento. Este os leva à atividade independente, e, se essa
também é bem-sucedida, sentem por fim que não são capazes de julgar nada
que também não sejam capazes de produzir. O homem não tem, entretanto,
noção disso, e daí resultam aspirações errôneas, que se tornam tão mais
angustiantes quanto mais a intenção seja honesta e clara. Por esse tempo,
começaram a surgir em meu espírito dúvidas e suposições [...]. Pois logo tive
que reconhecer que o desejo e a intenção de minha estada aqui dificilmente poderiam
ser realizados6.

Por fim, é preciso lembrar que, poucas páginas adiante, nos adendos
do mês de outubro do mesmo ano, Goethe prometerá notícias sobre si,
demandadas pelos amigos, dizendo que tivera “oportunidade de refletir
muito sobre mim e sobre os outros, sobre o mundo e a história”, e que
“tudo estará por fim compreendido e finalizado no Wilhem [Meister]”.
Em abril de 1788 Goethe deixará a Itália em um estado melancólico-
elegíaco, do qual dará notícia nas últimas páginas de Viagem à Itália
servindo-se dos Tristia de Ovídio, que, “assim como eu, teve de deixar
Roma em uma noite de luar”. Precedida de “alguns dias num estado de
perplexidade”, essa disposição de ânimo é despertada tanto pela certeza
de que a Itália, mesmo em uma segunda viagem realizada poucos anos
depois, jamais será a mesma “que deixei imerso em dor 7”.
Mas se o próprio texto do autor reconhece a falha quanto ao desejo
de se tornar ele mesmo pintor e desenhista, onde residiria então seus
renascimento e formação do olhar, como ele próprio já afirmara?

“Da Alemanha, a disforme, para a Itália, a rica em formas”

A experiência italiana, que se estende de agosto de 1786 a abril de


1788, começou em Verona, passando por Veneza, Ferrara, Roma, Nápoles,
a Sicília e novamente Roma. Em cada uma dessas cidades, assim como nos
pequenos povoados nos quais Goethe passou por vezes não mais do que
algumas horas, a busca foi sempre a de se confrontar imediatamente com
o solo, o relevo e a arquitetura do lugar. Em Verona, Goethe toma contato,
pela primeira vez, com um monumento significativo da Antiguidade, o
Anfiteatro. Suas primeiras observações levam logo a perceber que as
grandes massas arquitetônicas, nunca antes avistadas, causam-lhe o
impacto da desmedida: “Assim que entrei, melhor dizendo, quando de

6 GOETHE, 2017, p. 487, grifo meu.


7 MA, edição de Munique, v.3.2, p.85.
cima dei a volta ao edifício, pareceu-me estar vendo algo enorme e ao
mesmo tempo não estar vendo nada8.”
Também em Pádua se repete a mesma impressão. Ao visitar a sala
de audiências do Conselho Municipal, chamado de Augmentativum Salone,
Goethe dirá que se trata de um espaço de tamanho descomunal, “também
impossível de ser reproduzido na memória, mesmo a mais recente”. Com
cerca de 300 pés de comprimento, 100 pés de largura e 100 pés de altura,
produz uma sensação singular. Goethe nunca vira tamanho espaço
recoberto por uma abóbada. “É um espaço infinito e ao mesmo tempo
contido e circundado por algo9.”
Alguns meses mais tarde, já em Roma, em 2 de fevereiro de 1787,
Goethe será finalmente capaz de articular a visão das grandes massas
arquitetônicas à paisagem natural, como se pode depreender da seguinte
passagem:

Não se tem ideia da beleza de um passeio por Roma à luz do luar até que se
tenha feito a experiência. Tudo o que é particular e único é engolido pelas
grandes massas de luz e sombra, e apenas as imagens mais gerais se
apresentam ao olho. O Coliseu oferece uma vista particularmente bela. [...]
As colossais paredes sobressaíam-se, escuras; nós nos encontrávamos nas grades
e observávamos o fenômeno da lua alta e clara. A fumaça adensava-se,
atravessando as paredes, aberturas e buracos, enquanto a lua a iluminava,
assim como à névoa. A visão foi preciosa. É assim que se deveria ver o Panteão,
o Capitólio e outras grandes ruas e praças. Assim, o sol e a lua, do mesmo modo
que o espírito humano, tem aqui uma ocupação muito diferente daquela que
têm em outros lugares, aqui, onde à sua vista oferecem-se massas colossais e ainda
assim bem formadas10.

No texto acima, Goethe consegue associar no mesmo parágrafo os


adjetivos ‘colossal’ e ‘belo’, pela primeira vez. Colossal, que muitas vezes
traduz ungeheuer, monstruoso, tem aqui esse último sentido atenuado,
operando assim aquela aproximação que, do sublime inapreensível,
permite que se chegue ao belo.
A percepção das formas é o que guia Goethe. Nos primeiros dias em
Veneza, Goethe confessa saber-se “atrasado nesses conhecimentos”,
referindo-se aos conhecimentos arquitetônicos11. “Mas haverei de
progredir, pois agora ao menos conheço o caminho. Palladio abriu-o para
mim, assim como o caminho para toda arte e para a vida.”12 Goethe refere-
se sempre a seu conhecimento anterior dos objetos da Antiguidade, assim
como à sua experiência com a arquitetura e estatuária nórdica,

8 Goethe, 2017, p. 55
9 Goethe, 2017, p. 79
10 Goethe 2017, p. 197, grifo meu.
11 Goethe, 2017, p. 107, grifo meu.
12 Goethe, 2017, p. 106.
comparando-os ao que vê agora na Itália. Um episódio é particularmente
significativo, pois faz lembrar a antiga admiração pelo estilo gótico,
expresso no ensaio “Sobre a arquitetura alemã”. Ao admirar um fragmento
do entablamento do templo de Antonino e Faustina, exposto na Casa
Farsetti em Roma, Goethe dirá que

a presença proeminente dessa magnífica forma arquitetônica me faz


recordar o capitel do Pantheon em Mannheim. Decerto são diferentes de
nossos pobres santos encurvados e dispostos uns sobre os outros em cima
das mísulas ao gosto da decoração gótica, de nossas colunas em forma de
cachimbos, de nossas torrezinhas pontudas e nossas flores de ferro. De tudo
isso estou livre para sempre, Deus seja louvado! 13

Ora, a declaração não deixa pairar dúvidas sobre o que pensa agora o
“cimério” a respeito da arquitetura e decoração góticas, admiradas no
ensaio de 1772. Ao longo do texto de Viagem à Itália, Goethe manterá essa
perspectiva, responsável por legar à crítica a ideia da transformação de
Goethe em um “clássico” também nas artes plásticas. A capacidade de
encontrar o belo nas formas desmedidamente grandes, colossais mesmo,
como a anfiteatro de Verona, assim como a reorientação do antigo pendor
para o gótico nórdico em direção à arquitetura clássica e renascentista são
índices mais do que suficientes para que se possa efetivamente reconhecer
uma “crise mais feliz” (Schiller) em Goethe. Poucos anos mais tarde, a
trajetória de Wilhem Meister ilustrará, não sem ironia, um percurso
paralelo, que não teve bom termo. Goethe saberá, mais uma vez,
transformar sua experiência pessoal em um relato teleologicamente
organizado, uma espécie de testemunho de um processo de cultivo do
gosto em direção à arquitetura clássica e renascentista.
Mais complexo, no entanto, será o relato de sua própria formação
como pintor. Já desde a infância na casa paterna em Frankfurt Goethe teve
contato com a arte, seja por meio dos quadros encomendados pelo pai aos
pintores domésticos, seja por meio das gravuras que o pai trouxera da
Itália. A presença do Conde Thoranc, oficial que fora hospedado na casa
de Frankfurt durante a ocupação francesa, foi favorável à familiarização de
Goethe, ainda criança, com os processos de elaboração dos quadros, pois
Thoranc contratou alguns pintores da cidade para produzir telas que
levaria depois consigo. Um dos projetos do Conde despertam no menino a
noção de harmonia de formas, ainda que de maneira inversa. O Conde
contrata diferentes artistas para compor uma tela única:

Diante disso, [o Conde] teve então uma nova ideia, que acabaria resultando
em uma operação um tanto esdrúxula. Pois como um pintor era mais hábil
com as figuras em primeiro plano, outras de segundo plano e à distância, e

13 Goethe, 2017a, p. 107, grifo meu.


um terceiro com as árvores e um quarto com as flores, o conde se perguntava
se não seria possível unir todos esses talentos numa mesma tela, e, assim,
produzir obras perfeitas. [...] Como o resultado final fosse sempre
imprevisível, as telas simplesmente não agradavam quando prontas.14”

Goethe tem, assim, a oportunidade de vivenciar uma espécie de work in


progress, no qual não deixa mesmo de prestar sua própria contribuição.
Ainda que o resultado final tenha sido pífio e imperfeito, é justamente essa
noção que possibilitará ao Goethe adulto julgar um quadro a partir da
noção de conjunto, como fará muitas vezes na Itália. Um dos testemunhos
mais eloquentes dessa capacidade de ver o todo, ao mesmo tempo em que
mantém a atenção ao detalhe é o relato que Goethe faz de sua visita à igreja
vizinha de San Vicenzo e San Anastasio, uma construção do século VII,
restaurada no século XIII, na qual se encontram afrescos provavelmente
executados pelo pintor Marco Antonio Raimondi, segundo diferentes
desenhos de Rafael.

O interior da igreja é pouco decorado e quase negligenciado, utilizado


apenas em raros dias de missa, quando então é limpo e arejado. Seu
ornamento mais nobre consiste na pintura de Cristo e seus apóstolos,
reproduzidos em sequência nos pilares da nave, em tamanho natural, a
partir de um desenho de Rafael. Esse espírito extraordinário, que em outras
ocasiões representou esses homens santos reunidos e trajados de maneira
uniforme, caracterizou-os de modo particular aqui, onde cada um aparece
como um objeto único, não como se estivessem seguindo o Senhor.
Representou cada um deles, depois da Ascensão, tendo de enfrentar e sofrer
seu próprio destino, individualmente. [...]. Rafael fez um uso sutil de tudo
que nos chegou pela tradição e pelas Escrituras a respeito do caráter, posição
social, ocupação, vida e morte de cada um dos apóstolos, criando assim uma
série de figuras que, sem se parecerem umas com as outras, possuem uma relação
intrínseca. Vamos comentá-las uma a uma, de modo a chamar a atenção de
nosso leitor para essa interessante coleção.15

A longa descrição dos apóstolos com seus atributos, que em geral


apontam para o instrumento com que foram martirizados, assim como os
gestos, que Goethe interpreta de acordo com a função de cada um deles na
história do cristianismo, é ao mesmo tempo singular e geral, detendo-se
nos traços particulares de cada figura e simultâneamente salientando
elementos comuns, como as dobras das vestes, o comprimento dos cabelos
e a postura. Goethe chega mesmo a salientar um expediente visível apenas
aos olhos treinados do observador de arte, o momento em que a figura
representada (Jesus Cristo) ergue as vestes, “formando belas dobras sobre
o corpo, [que] não se manteriam um momento sequer nessa posição, mas

14 Goethe, J.W.v. De minha vida. Poesia e verdade. Trad. de Maurício Cardozo dos Santos. São
Paulo: Editora da UNESP, 2017, p. 140.
15 Goethe, 2017, pp. 491-492, grifo meu.
cairiam imediatamente. Talvez Rafael tenha suposto que a figura houvesse
puxado para cima e segurado as vestes com a mão direita e que, naquele
momento preciso, ergueria o braço para abençoar e as deixava cair. Seria
um belo exemplo do belo expediente artístico de sugerir a ação imediatamente
anterior pelo seu efeito ainda perceptível nas dobras do tecido.”16 O ensaio,
reproduzido no texto de Viagem à Itália, foi publicado também no Deutscher
Merkur, em 1789.
Um outro ponto a ser destacado é o desenvolvimento da relação
entre arte e artesanato, assim como entre arte e técnica. Em Frascati, Goethe
frequentou a oficina do Conselheiro Reiffenstein, junto a outros artistas e
artesãos. “Estou muito feliz aqui, desenhamos, pintamos, colorimos e
colamos de manhã à noite. Arte e artesanato são produzidos ex professo”17.
Ali, Goethe aprenderá a técnica da encáustica18, assim com a produção de
cópias de gemas ou moedas em pasta de vidro. Chega mesmo a relatar todo
o processo de fabricação, que “resultava sempre no surgimento de uma
pequena obra de arte, que alegrava o artesão que a fizera com as próprias
mãos19”.
No entanto, Goethe continua perseguindo aquilo que considera seu
“verdadeiro impulso”, que consiste em “aperfeiçoar ao máximo a mão e o
olho por meio da reprodução da natureza e dos objetos artísticos” O texto
da viagem italiana é permeado com declarações que expressam o desejo do
narrador de se apropriar, por meio da reprodução, da imensa coleção de
imagens que vê e começa a compreender: “Ardo em desejo de me
apropriar disso tudo e percebo que meu gosto se refina na mesma medida
que minha alma compreende mais os objetos. Se em vez de tanta conversa,
pudesse ao menos enviar algo bom! [...] Só espero agora que chegue
também o tempo da perfeição20.”
Sabe-se, no entanto, que o tempo da perfeição nunca chegou para
Goethe como artista plástico. Nos anos seguintes, já em Weimar, não
deixará o interesse pelas artes plásticas, chegando a promover concursos
de pintura e desenho dos quais participarão nomes como Philipp Runge e
Caspar David Friedrich. É também por meio de Runge que Goethe fará a
transição do interesse da forma para a cor, passo que antecederá a redação
da Doutrina das cores. De aspirante a aprendiz de pintor a apoiador das
artes e juiz dos jovens artistas românticos, do entusiasmo pela imitação das
formas clássicas a um pensamento especulativo, essa é a trajetória que se
pode depreender do período da viagem italiana até cerca de 1806, data da

16 Idem, ibidem.
17 Goethe, 2017, p. 440.
18 Técnica de pintura conhecida já desde a Antiguidade, na qual as cores são misturadas à cera e

então aquecidas. É ainda especialmente empregada na restauração de obras na Itália.


19 Goethe, 2017, p. 448.
20 Goethe, 2017, p. 440.
correspondência ente Goethe e Runge. Do projeto falhado de se tornar ele
mesmo um artista das formas, Goethe construirá seu projeto da
investigação da física das cores, perfazendo assim uma espécie de
aprendizado pelo erro, processo pelo qual também passará Wilhem
Meister.

A formação estética de Wilhem Meister

O estado de melancolia e perplexidade com que Goethe deixa Roma


abater-se-á sobre o neófito Wilhelm Meister nas últimas páginas do
romance de Goethe. Instado a se decidir sobre acompanhar o grupo na
imigração para a América, deixando assim a terra natal, e, mais do que isso,
seus projetos frustrados e inconclusos de formação universal e dedicação
ao teatro, Wilhelm Meister, ao contrário de Goethe, deixará de ser
protagonista de sua própria trajetória na narrativa que se segue, Os anos de
peregrinação de Wilhelm Meister. Ali, o personagem se torna uma espécie de
factótum, um elemento de ligação entre os diferentes episódios, ainda que
se possa dizer qual seja seu paradeiro; da formação universal almejada
n’Os anos de aprendizado, Meister se decidirá pela formação especializada,
tornando-se cirurgião. Meister deixa de almejar a Bildung inicial, passando
então a contentar-se com a Ausbildung, a especialização. A sentença de
legitimação desse processo de transformação da formação universal na
especialização e na técnica será proferida pela personagem Jarno, a mesma
que, em Os anos de aprendizado, apresentara a Wilhelm as obras de
Shakespeare. A escolha de Jarno para essa função é bastante significativa,
uma vez que tal leitura provocara grande abalo na sensível e instável
personalidade do jovem Meister, que passara então a se acreditar
definitivamente destinado ao teatro e à formação de um público capaz de
apreciá-lo.
Logo se percebe que os caminhos de Meister são antes sendas
tortuosas que levam ao erro do que estradas firmes e seguras que levam
diretamente a seus objetivos. Pode-se mesmo dizer que o romance de
Goethe faz uso de uma espécie de “pedagogia inversa”, que permite ao
neófito que “sorva de taças repletas de seu erro”21 esgotando-as.
Acompanhamos aqui especialmente os momentos em que, no
romance de Goethe, Meister confronta-se com sua educação estética, tanto
nas artes cênicas quanto nas artes plásticas.

21GOETHE, J.W.v. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Trad. de Nicolino Simone Neto. São
Paulo: Editora Ensaio, 1994, p. 480.
O teatro como possível instância de formação

No romance de Goethe, a atividade teatral está intimamente


associada ao projeto de aquisição de uma formação geral, universal.22 Em
busca de se tornar uma “pessoa pública”, Wilhem Meister verá no teatro o
único palco sobre o qual o burguês pode ser e atuar, em vez de apenas
conformar-se com “a consciência do limite que lhe está traçado”23. É no
teatro que encontrará, pela primeira vez, a possibilidade de “suster-se
como o nobre se sustém”. A possibilidade da assim chamada “formação
universal”, aquela capaz de desenvolver no homem seus talentos inatos até
atingir o grau de perfeição, está vedada a Wilhelm Meister por conta de
sua origem. A atividade teatral deverá substituir a esfera do “grande
mundo”. É sobre o palco que o jovem Meister acredita poder alcançar o
burilamento de suas capacidades, de seus afetos, de sua aparência, pois
“sobre os palcos, o homem culto aparece tão bem pessoalmente em seu
brilho quanto nas classes superiores”.24
A par disso, é preciso lembrar aqui que, à época da redação do
Meister, a obra de Shakespeare ainda era pouco popular na Alemanha,
embora Wieland já tivesse começado suas traduções em 1762. Mais ou
menos à mesma época, Lessing vira-se obrigado a defender, na
Dramaturgia de Hamburgo, a obra shakespeariana frente às obras do
neoclassicismo francês, que então ganhavam a simpatia de um público
ainda incipiente.
Algo semelhante se dá na narrativa de Goethe. A primeira menção a
Shakespeare é feita durante uma apresentação teatral que deveria
apresentar uma peça francesa. Na ocasião, Wilhelm chega a louvar Racine
e Corneille. Jarno sugere a leitura de Shakespeare e se encarrega de enviar
os livros a Wilhelm. Estes causam grande impacto, como sugere o seguinte
parágrafo: “Nesse estado de ânimo recebeu os livros prometidos e, em
pouco tempo, como se pode presumir, arrebatou-o a torrente daquele
grande gênio, conduzindo-o a um mar sem fim, no qual rapidamente se
esqueceu de tudo e se perdeu”25.

22 O conceito de formação universal foi claramente definido por Wilhelm von Humboldt em Ideen
zu einem Versuch die Gränzen der Wirksamkeit des Staaten zu bestimmen [Ideias para uma tentativa
de demarcação dos limites de atuação do estado], em 1792: O verdadeiro objetivo do homem é a
formação mais elevada e mais adequada de suas faculdades em um todo. A liberdade é condição
imprescindível para essa formação. (HUMBOLDT,W.v., apud VIERHAUS,R. (Org.)
Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. s.l.,
Klett-Cotta, 1984, p. 521).
23 GOETHE, 1994, p. 291.
24 Idem, ibidem.
25 Goethe, 1994, p. 175.
Aprofundando-se cada vez mais na leitura de Shakespeare, Meister
decide encenar Hamlet com sua companhia de atores ambulantes. Ao
ingressar, em meio às suas peregrinações, na companhia teatral de Serlo,
Meister impõe como condição a encenação de Hamlet “por inteiro e sem
cortes”. Depois de longa discussão entre ambos, que toma boa parte do
Livro V, chega-se ao consenso: Meister identifica duas vertentes na
composição da obra: “a primeira, refere-se às grandes e íntimas relações
das personagens e dos acontecimentos, aos poderosos efeitos derivados
dos caracteres e atos dos protagonistas, sendo alguns destes excelentes, e
irretocável a sequência em que se apresentam”. Tais elementos, segundo o
protagonista de Goethe e diretor amador de teatro, são aqueles que “não
podem ser alterados por nenhuma espécie de adaptação […] e que […] têm
levado quase todas as pessoas ao teatro alemão”. Mas Wilhelm Meister
distingue ainda uma outra vertente na composição do texto de
Shakespeare: trata-se das “relações exteriores das personagens, pelas quais
elas são levadas de um lugar a outro ou ligadas dessa ou daquela maneira
por acontecimentos fortuitos”. Depois de enumerar algumas dezenas
dessas circunstâncias, como as agitações na Noruega, a guerra com o jovem
Fortimbrás, assim como o regresso de Horácio a Wittenberg e o desejo de
Hamlet de partir para lá, Meister acrescenta que “todas estas são
circunstancias e eventos que poderiam dar amplitude a um romance, mas
que prejudicam extremamente a unidade desta peça em que sobretudo o
herói não tem um plano, e que são muito defeituosos”. É assim que Meister
chega a delinear uma espécie de “encenação corretiva” do texto de
Shakespeare, na qual “o expectador não tem que imaginar nada mais; todo
o resto ele vê, todo o resto se passa sem que sua imaginação tenha de correr
o mundo inteiro”.26

26 Cabe lembrar aqui que 24 anos antes, no “Discurso para o dia de Shakespeare”, Goethe
defendera exatamente o contrário, no que diz respeito às regras de unidade de ação e lugar: A
comparação entre as peças de Shakespeare e própria produção literária (à época, ainda menos do
que incipiente), já está presente no Discurso para o dia de Shakespeare, que um Goethe ainda
muito jovem dá a público em 1771. Ali, em perfeita coerência com a perspectiva de Lessing sobre
a necessidade de se criar um “teatro alemão” mais adequado ao exercício da imaginação e livre
da artificialidade do teatro francês, Goethe confessa que “a unidade de ação” lhe parece
“amedrontadora” e que “as unidades de ação e tempo [são] pesadas algemas de nossa
imaginação”, reconhecendo a “injustiça praticada pelos senhores das regras” capazes de “aleijar
tantos espíritos livres”. É ainda no Discurso para o dia de Shakespeare que se encontra famosa
exortação: “Franceses! O que quereis com toda essa roupagem grega, ela vos assenta muito
grande e muito pesada”. Certo de que “o gosto degenerado” de sua época não é capaz de afastar
a névoa que recobre a visão dos contemporâneos, o jovem Goethe, sabendo-se homem de seu
tempo, inclui-se entre eles: “Muitas vezes envergonho-me diante de Shakespeare, pois pode
ocorrer que, à primeira vista, eu pense que eu mesmo teria feito de maneira diferente. Logo,
porém, reconheço que sou um pobre pecador, que a natureza, em Shakespeare, é sábia, e que
meus caracteres são meras bolhas de sabão, movidos por caprichos romanescos”.
A adaptação sofrida pelo texto de Shakespeare dentro da narrativa
de Goethe aponta para a descendência hamletiana do próprio herói de
Goethe, que assim como o príncipe dinamarquês, “não tem um plano”. As
circunstâncias da vida de Meister, assim como as personagens que
encontra ao longo de sua trajetória, são unidas por “fios tênues e frouxos”,
a ponto de o narrador goethiano empreender grande esforço, no capítulo
final de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, para atar todos eles.
A estreia de Hamlet é bem-sucedida, transcorrendo sem incidentes.
Estes, no entanto, acontecem já no dia seguinte, como um prenúncio. Um
incêndio ameaça a sobrevivência da trupe teatral e destrói seus
alojamentos. Ainda assim, os ensaios de Hamlet continuam. A trupe encena
ainda Emilia Galotti, a peça de Lessing que, como se sabe, é a leitura de
outra personagem de Goethe, antecedendo a tragédia final do Werther. O
papel destinado a Wilhelm, nessa nova encenação, é o do príncipe tirano.
Wilhelm é tomado por dúvidas quanto ao papel, mas é ajudado por Serlo,
que assumira oposto de diretor:

Wilhelm sentia-se agora quase desesperado com seu papel, mas Serlo veio
de novo em sua ajuda, transmitindo-lhe as mais sutis observações sobre os
detalhes e preparando-o de tal maneira que, no decorrer da apresentação, a
menos aos olhos do público, parecia um príncipe verdadeiramente refinado27.

É preciso lembrar aqui que a personagem Serlo, o diretor da companhia à


qual Wilhelm associou-se, está, a essa altura da narrativa, empenhado em
transformar a trupe em um negócio rentável, sem o conhecimento de
Wilhelm. Em comum acordo com Melina, outro membro do grupo,
conspira contra o primeiro, a fim de transformar a trupe em um teatro de
ópera. Melina chega mesmo a zombar, “sem muita sutileza, dos ideais
pedantes de Wilhelm, de sua arrogante pretensão de educar o público, ao invés de
se deixar educar por ele”. 28
Melina recupera aqui um mote frequente na narrativa, a ideia do
“mestre aprendiz”. Meister se deixa levar a cada uma dessas instâncias de
aprendizagem, sem que efetivamente chegue a tirar maior proveito delas
do que a “educação pelo erro”; sua maestria consiste antes em adquirir
consciência de que nada sabe, que se encontra em pleno processo de
aprendizado.
A experiência teatral termina de modo trágico. Aurelie, amiga de
Wilhelm e irmã de Serlo, que fazia o papel de Orsina na peça de Lessing,
(e que representara Ofélia para o Hamlet de Meister), atua desta vez de um
modo patológico e exagerado: “Na representação, abriu todas as eclusas
de sua dor pessoal e o interpretou de um modo tal que nenhum poeta teria

27 Goethe, 1994, p. 344, grifo meu.


28 Goethe, 1994, p. 343.
podido imaginar no primeiro fogo da inspiração. Os aplausos desmedidos
recompensaram seu doloroso desempenho; mas terminada a
representação, ao irem buscá-la, encontram-na semi-desfalecida numa
poltrona”.29
A atriz, que encontrara em Orsina, como ela também uma amante
rejeitada, uma forma de expressar sua melancolia e abandono, morre
poucos dias depois, devido a uma pneumonia. É preciso salientar aqui dois
equívocos que podem ser deduzidos dos comentários do narrador, assim
como do comportamento das personagens. O primeiro reside no fato da
escolha de Wilhelm Meister para representar o papel do Príncipe, em
Emilia Galotti. Meister, cuja ingenuidade e pouca experiência de vida
caíram à perfeição para o personagem Hamlet, pouco tinha de malícia,
orgulho e autoridade para representar o Príncipe. Isso fica claro no
comentário do narrador reproduzido acima, evidenciado ainda pelo fato
de Wilhelm ter sido instruído para o papel por Serlo, que, a essa altura, não
queria o sucesso nem da peça encenada nem do ator; a par disso, a
representação emocionada e patológica de Aurelie, que faz do palco o
lugar de exposição da própria dor por ter sido abandonada pelo amante é
um exemplo evidente, entre vários outros presentes na narrativa de
Goethe, da confusão e mal estar que “uma engenhosa, animada e bem
intencionada obra poética”30 pode provocar. A sentença final é dada por
um dos “formadores” de Wilhelm, Jarno, que por fim se revela um dos
membros da Sociedade da Torre, instância que acompanhara,
secretamente, a trajetória do protagonista. Já no penúltimo livro que
compõe a narrativa, dirá Jarno: “Ademais [...]penso que o senhor deve
abandonar de vez o teatro, para o qual não possui nenhum talento”31.
Ainda no que diz respeito à experiência teatral, é preciso lembrar que
Aurelie, que incorpora ao mesmo tempo a Ofélia de Shakespeare e a Orsina
de Lessing, encontrará, em seus últimos dias de vida, um alívio para sua
“natureza violenta e obstinada”. Wihelm, de posse do manuscrito da
narrativa que toma todo o livro VI e que ficou conhecida com “Confissões
de uma Bela Alma”, lê o conteúdo daquele para a amiga, que “serenou
prontamente”. Trata-se da narrativa da canonisa, personagem inspirada
por Susanne von Klettenberg. Ali se narra a trajetória afetiva e religiosa de
uma jovem que se afasta progressivamente das relações mundanas em
direção ao isolamento, ao mesmo tempo em que se afasta também de uma
fruição estética primitiva e sentimental em direção a um gosto “clássico”,
sustentado pela capacidade de contemplar a arte para além do conteúdo
das imagens e do apelo fácil dos ícones religiosos, como era comum ao
pietismo de então.

29 Goethe, 1994, p. 343.


30 Goethe, 1994, p. 120.
31 Goethe, 1994, p. 458.
O livro VI, narrativa que aparentemente é deslocada da estrutura do
romance, introduz assim, ainda que indiretamente, um tópico importante,
a contribuição de Schiller para o romance de Goethe. Como se sabe, Schiller
teve acesso aos manuscritos, que Goethe lhe enviava para comentários,
antes de enviar finalmente ao editor. A correspondência trocada entre
ambos dá conta dessa colaboração, que nem sempre ocorreu sem
controvérsias, tendo sido a causa mesmo de um estremecimento na relação
entre os dois autores.

O filho doente do Rei e a educação estética de Schiller

No Livro I de Os anos aprendizado de Wilhelm Meister dá-se um diálogo


entre Meister e um desconhecido, que depois se dá a conhecer como o
homem que intermediou a venda da coleção de arte do velho Meister, avô
do protagonista. O forasteiro descreve a coleção como dotada de “quadros
magníficos, dos melhores mestres; ao se examinar sua coleção de desenhos,
mal se podia crer nos próprios olhos; entre seus mármores havia alguns
fragmentos inestimáveis [...]” 32. Lembra-se então de que Meister possuía
um quadro favorito, do qual o jovem, então com dez anos, “não queria se
desfazer de modo algum”. Wilhelm, que ainda tem na memória a
lembrança viva do quadro, reponde: “É verdade! Representava a história
do filho enfermo do rei, consumido de amor pela noiva de seu pai.” À
observação do desconhecido de que não se tratava propriamente da
melhor pintura, era mal composta e num estilo amaneirado, Meister
responderá: “- Não entendia e ainda não entendo dessas coisas; o que me
agrada num quadro é o tema, não a arte”. 33 Tal declaração é dada logo às
primeiras páginas do romance. O quadro voltará à cena no penúltimo livro,
mais de quatrocentas páginas adiante, por ocasião da leitura da “carta de
aprendizado”, o documento lido a Meister por um dos emissários da
Sociedade da Torre, justamente o homem que atuara na venda da coleção
de arte do velho Meister: “Não me reconhece? Não gostaria de saber, entre
outras coisas, onde se encontra atualmente a coleção de obras de arte de
seu avô? [...] Onde poderá languescer agora o enfermo filho do rei?”34.
Algumas páginas adiante, ao reencontrar a obra, Wilhelm o considera
ainda “mais encantador e tocante”.35
O que isso quer dizer? Ao adentrar por fim o convívio das pessoas
que, segunda a lógica da narrativa, teriam sido secretamente seus
mentores, os enviados da Sociedade da Torre, e que têm então a posse da
coleção do avô, seria de se esperar que Meister recuasse na sua apreciação

32Goethe, 1994, p. 62.


33Goethe, 1994, p. 63.
34Goethe, 1994, p. 480.
35Goethe, 1994, p. 508.
temática e emocional, uma vez que a própria associação de homens sábios
já havia declarado “o fim de seus anos de aprendizado”36, sob o qual se
entende também o aprendizado estético.
Na carta enviada a Goethe em 9 de julho de 1796, Schiller vai referir-
se exatamente a esse episódio:

Tenho ainda algo a lembrar sobre o comportamento de Wilhelm na sala do


passado, quando ele entra nela pela primeira vez com Natalie. Para mim,
ainda há muito do antigo Wilhelm, que, na casa do avô prefere ficar com o filho doente
do rei, e o qual o desconhecido encontra num caminho tão equivocado. Também aqui
ele permanece quase que exclusivamente no conteúdo das obras de arte, na minha
opinião, poetiza demais com isso. Não seria aqui o momento de mostrar o
começo de uma crise mais feliz nele, de apresentá-lo não como um conhecedor –
pois isto é impossível – mas como um observador mais objetivo? 37

A concepção de Schiller, que estava sendo então desenvolvida nas


Cartas sobre a educação estética, sustenta um tipo de fruição que privilegia,
antes de tudo, a forma em uma obra de arte. Na carta de número 22 Schiller
afirma que “numa obra de arte verdadeiramente bela, a forma é tudo; é
somente pela forma que se age sobre o homem como um todo, ao passo
que o conteúdo visa apenas a forças particulares. O conteúdo, por sublime
e amplo que seja, age sobre o espírito sempre como limitação, e somente
da forma se pode esperar a verdadeira liberdade estética”.38
No romance de Goethe, esse posicionamento acaba sendo deslocado.
Não será Meister, o mestre-aprendiz, que logrará configurar o “estado
estético” schilleriano, o que acabaria por legitimar o fim de seus anos de
aprendizado. Como já se delineou acima, a concepção de Schiller pode ser
recuperada em pelo menos dois momentos. Um deles é a narrativa da Bela
Alma, no livro VI. Ali, a canonisa afirma preferir, ao fim de sua trajetória
de isolamento e afastamento dos objetos simbólicos que estimulam a fé,
“os cantos latinos eclesiásticos” aos “cânticos piedosos, com os quais as
boas almas, frequentemente com a voz roufenha, creem louvar a Deus”.
Os primeiros, sem pretender “a assim chamada edificação, elevavam-me
de modo mais espiritual e me faziam feliz”. Também no que diz respeito
às artes plásticas a Bela Alma reconhecerá o valor moral de uma arte que
não se entrega à fantasia:

[...] antes descobriremos que aquele cujo espírito anseia por uma [formação]
moral tem todas as razões para educar ao mesmo tempo sua mais fina
sensibilidade, a fim de não correr o risco de despencar do alto de sua moral,
entregando-se às tentações de uma fantasia desregrada e chegando ao caso

36 Goethe, 1994, . 483.


37SCHILLER, F. Sobre a educação estética. Trad. de Roberto Schwarz. Introdução e notas de Anatol
Rosenfeld. São Paulo: Herder, 1963, p. 87, grifo meu.
38 Schiller, 1963, p. 105.
de degradar sua natureza mais nobre mediante o prazer em brincadeiras
insípidas, quando não em algo ainda pior.39

A personagem Natalie, associada à Bela Alma por afinidades de


parentesco, dará voz, por sua vez, a uma concepção sobre a música que
tanto coincide com a defesa do canto gregoriano quanto se junta ao
imperativo dado pelos homens sábios da Sociedade da Torre:

O teatro nos perverte totalmente; a música nele só serve por assim dizer aos
olhos, ela acompanha os movimentos, não as emoções. Nos oratórios e nos
concertos perturba-nos sempre a figura do músico; a verdadeira música é somente
para o ouvido; uma bela voz é o que se pode pensar de mais universal, e se
o limitado indivíduo que a produz se põe diante de nossos olhos, destrói o
puro efeito dessa [universalidade] ... aquele que para mim canta deve ser
invisível; sua figura não deve seduzir-me nem extraviar-me. 40

Todas as passagens acima levam a pensar que as concepções de Schiller


sobre a possibilidade de conformação moral do caráter, por meio da
liberdade de determinação gerada pelo estado estético, estão presentes no
romance de Goethe, mas não configuradas em seu protagonista. A crítica
da década de oitenta do século passado levantou várias hipóteses sobre a
possibilidade de que a narrativa de Goethe não trate exatamente da
formação de Wilhelm Meister, mas sim de outra ou de outras personagens.
De fato, os últimos momentos de Meister no livro VIII alternam-se entre o
desespero e a indecisão. “[...] Abalado, transtornado pelas paixões mais
violentas”41, Meister despede-se da narrativa sem ter adquirido sua
independência pessoal, sem saber o valor das experiências que angariou e
sem uma confirmação das decisões que pesam sobre seu destino, como o
casamento, a emigração para a América ou qualquer outra decisão pessoal.
Desse modo, a ausência de um evento que marcasse por fim o
reconhecimento de sua formação estética não chega a surpreender. As
palavras finais sobre o gosto e a apreciação da arte cabem ao Marquês,
personagem italiano, e ao Abade, sábio venerando da Sociedade da Torre.
Ao comentário do primeiro, que lamenta a ausência de fundamento e de
boa execução nas artes, além do mau gosto do público em geral, o Abade
responderá:

Sim, e assim se formam reciprocamente o amador e o artista; o amador busca


apenas um prazer geral e indeterminado; a obra de arte deve agradá-lo
pouco mais ou menos como uma obra da natureza, e os homens creem que
os órgãos com que se desfruta uma obra de arte formaram-se por si mesmos,
como a língua e o palato, que se julga uma obra de arte como se julga uma

39 Goethe, 1994, p. 399.


40 Goethe, 1994, p. 528, grifo meu.
41 Goethe, 1994, p. 582.
comida. [...] Quão difícil é o que parece tão natural: contemplar em si e por si
mesma uma bela estátua, um excelente quadro, escutar o canto pelo canto, admirar
o ator no ator, encantar-se com um edifício por sua própria harmonia [...].42

O trecho acima parece ecoar o texto das Cartas sobre a educação estética,
segundo as quais “numa obra de arte verdadeiramente bela, o conteúdo
nada pode fazer, a forma é tudo”.43
O próprio Wilhelm Meister, protagonista da narrativa, passa ao
largo, portanto, do aprofundamento de sua educação estética. Vê, mas não
consegue ultrapassar o limite de sua subjetividade, sua fruição artística é
interessada, contingente. A experiência com as artes plásticas deu em falha,
assim como a experiência teatral.

Wilma Patricia Maas é professora de língua e literatura alemã na UNESP de Araraquara. É


autora de O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura e traduziu recentemente
Viagem à Itália, de Goethe.

42 Goethe, 1994, p. 554-555.


43 Schiller, 1963, p. 22.
POESIA RECUPERA AMOR1
Maria Aparecida Barbosa

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
A fim de compartilhar o fórum de reflexões literárias concernentes ao Bildungsroman;
Bildungsroman, o artigo que apresento resulta da minha pesquisa sobre Heinrich von
a literatura de Novalis, a partir da compreensão dos contextos e Ofterdingen;
debates poéticos que concernem à composição de Heinrich von Novalis;
Ofterdingen, romance que permaneceu inconcluso e passível de Flor Azul;
interpretações dos manuscritos e da crítica dos prototextos, após a Romantismo;
morte do escritor. A essa incompletude circunstancial soma-se a do Poesia.
caráter específico do gênero textual romance composto de abstrações
de valores morais, religiosos e de personificações dos elementos do
mundo orgânico e inorgânico, o que pressupõe a ocorrência de uma
alegoria literária. Considerando a complexidade do texto, este estudo
desencadeia a leitura crítica com os primeiros comentários
identificadores resultantes da leitura atentiva, visando a tradução, a
descrição, a análise e a interpretação de um fenômeno poético mais
amplo, o Romantismo.

ABSTRACT KEYWORDS:
In order to take part in the forum of literary reflections concerning the Bildungsroman;
Bildungsroman, the paper I present results from my research studies on the Heinrich von
literature of Novalis, from the understanding of the contexts and poetic Ofterdingen;
debates about the composition of Heinrich von Ofterdingen, novel which Novalis;
remains unfinished and passible for the interpretation of the manuscripts and Blue Flower;
of the criticism of the prototexts, after the death of the writer. Besides of this Romanticism;
circumstantial incompleteness, it adds to it the specific character of the Poetry.
novel’s textual genre, composed of abstractions of moral and religious values
and personifications of the elements of the organic and inorganic world,
which presupposes the occurrence of a literary allegory. Considering the
complexity of Novalis literary text, this study triggers the critical reading
with its first identifying comments that resulted from close reading, aiming
at the translation, description, analysis and interpretation of a broader poetic
phenomenon: Romanticism..

1Esta é uma versão work in progress do estudo iniciado com a “Apresentação” ao livro
NOVALIS. A Flor Azul. Tradução Maria Aparecida Barbosa, ilustrações de Rodrigo de Haro,
prefácio Claudio Willer. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2018.
Imagem
Imagem — nem alegoria
— nem símbolo de um estranho
— símbolo de si mesmo.

Novalis, Fragmente2

O romance de Novalis3 acerca da formação de Heinrich foi a


primeira reverberação romântica do Bildungsroman (“romance de
formação”) Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795) de Goethe, e
sua importância se deve à crítica implícita nas escolhas do protagonista.
Ao contrário da busca pela formação intelectual e espiritual de Wilhelm
Meister, que no final escolhe caminhos convencionais, os escritores
românticos sugerem conduções distintas para seus protagonistas.
Heinrich é um desses personagens anti-heróis; ele sai à procura da Poesia.
Essa diferença fundamental rompe com a tradição e funda um paradigma
na literatura: o Romantismo.
Novalis se ocupava intensamente com a literatura de Goethe, com
admiração o defendia de seus contemporâneos críticos:

Quão desejável não é ser contemporâneo de um homem verdadeiramente


grande! A maioria dos alemães cultivados de agora não é dessa opinião. Ela
é refinada o suficiente, para renegar tudo o que é grande, e segue o sistema
do aplainamento. Se apenas o sistema copernicano não estivesse tão firme,
ser-lhes-ia muito cômodo fazer do Sol e dos astros fogos-fátuos novamente,
e da Terra o universo. Por isso Goethe, que é agora o verdadeiro delegado
do espírito poético sobre a Terra, é tratado tão comumente quanto possível
e olhado com desdém, quando não satisfaz as expectativas do passatempo
costumeiro, e por um instante os põe em embaraço consigo mesmos. [...]4

2 NOVALIS. Fragmente 1. Ernst Kamnitzer, 1929, Kapitel 22.


3 Novalis, pseudônimo de Georg Philipp Friedrich Freiherr von Hardenberg (1772-1801),
constituiu juntamente com os Irmãos Friedrich e August von Schlegel, Dorothea Schlegel,
Friedrich Schleiermacher e outros o grupo de intelectuais que publicou textos em forma de
“fragmentos” na revista Athenaeum, na cidade de Jena.
4 NOVALIS. Pólen. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 1988, p. 98.
Dedicando-se concomitantemente aos estudos de Filosofia,
Astronomia e Física, Novalis publicou em 1798 duas coletâneas de
“Fragmente” Blüthenstaub (Pólen) e Glauben und Liebe oder Der König und
die Königin [Fé e amor ou o rei e a rainha], além de deixar em manuscritos
uma grande quantidade de fragmentos e estudos que não considerava
prontos para publicação. Por todas essas anotações fica patente a
constante reflexão sobre o escritor Goethe e sua obra.
Algumas informações biográficas importam no contexto das suas
realizações filosófico-poéticos no grupo de Jena. Absolveu o curso de
Direito, sempre mantendo especial interesse pela Filosofia de Fichte e de
Schelling. Após a perda da noiva Sophie von Kühn, de 15 anos de idade,
e semanas mais tarde do amado irmão Erasmus, Friedrich von
Hardenberg encontrava-se triste e abatido. Os pais o encorajam a retomar
o plano que acalentava de formar-se seguindo uma tradição familiar em
Ciências Naturais na Academia de Minas de Freiberg na Saxônia, uma
instituição de renomada reputação no ramo da mineralogia5. Todos essas
experiências e conhecimentos, incluindo a perda dos entes amados,
coincidem no período entre dezembro de 1797 a dezembro de 1800 na
vida do poeta e assessor de minas de bronze em Leipzig, mais tarde das
salinas de Weissenfels. Enquanto escrevia o romance, trabalhava na
mineralogia no Harz e reencontrava o amor na pessoa de Julie von
Charpentier. Os elementos biográficos interagem subliminarmente nos
episódios estilizados na poesia do romance, de maneira que se pode
interpretar o herói como porta-voz de uma elaboração anímica. O poeta
Novalis morre bem jovem, aos 28 anos de idade, em março de 1801.
Quando Novalis pondera acerca das especialidades e qualidades
da personalidade de Goethe, que ele enaltece como físico e como poeta,
suas observações se revestem de um significado sutil de identificação dos
próprios e próximos caminhos a trilhar. Devido ao difícil acesso do texto
em português (creio que seja inédito), aponho abaixo o longo Estudo n.
99, que testemunha a ambivalência e a intensidade dessa relação que
conjugava admiração e crítica:

99. Goethe é um poeta bem prático. Ele é em suas obras - o que o homem
inglês é em suas mercadorias - extremamente simples, elegante, confortável
e estável. Ele fez na literatura alemã o que Wedgwood fez no mundo
artístico inglês - como os ingleses, ele tem um gosto naturalmente nobre e
econômico, adquirido através do intelecto. Ambos os atributos se toleram

5 TIECK, Ludwig. “NOVALIS – Biographische Notiz”. Meyer’s Grossenbibliohek der deutschen


Classiker, sem data fls. 55-60. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=ZFllAAAAcAAJ&pg=PA38&dq=ludwig+tieck+noval
is+biographie&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0ahUKEwjc6enj7qvbAhWLk5AKHdBfAqsQ6AEINjAC#v=onepage&q=ludwig
%20tieck%20novalis%20biographie&f=true> (acessado em 29/05/2018).
bem e possuem uma afinidade próxima, no sentido químico. Nos estudos
científicos ficou evidente que sua inclinação é antes terminar
completamente algo insignificante - conferir-lhe o mais elevado polimento
e facilidade de expressão a começar um mundo novo e fazer alguma coisa
sobre o que de antemão se saberia que não seria possível realizá-la
integralmente, que provavelmente permaneceria deselegante e que jamais
se atingiria com ela um alto nível de qualidade. Nesse campo ele também
escolhe um objetivo romântico ou então bem recôndito. Suas observações
da luz, da metamorfose das plantas e dos insetos são confirmações e ao
mesmo tempo as provas convincentes, de que o perfeito ensaio didático
igualmente pertence ao domínio do artista. Ademais se poderia em certo
sentido afirmar que Goethe com certeza é o primeiro físico de seu tempo - e
que de fato ele marca época na história da ciência. Não se pode questionar
a abrangência dos conhecimentos do cientista, por mais que as descobertas
devam ainda determinar sua importância. Isso é uma questão de se
contemplar a natureza, como um artista contempla a antiguidade, - uma
vez que a natureza é algo diferente de uma antiguidade viva. Natureza e
visão da natureza surgem instantaneamente, como antiguidade e o
conhecimento da antiguidade; pois ledo engano é crer que a antiguidade
exista. Somente agora a antiguidade começa a surgir. Ela cresce sob o olhar
e a alma do artista. Os restos dos tempos antigos não passam de estímulos
específicos para a configuração da antiguidade. Não é com as mãos que se
faz a antiguidade. O espírito a produz por meio dos olhos - e a pedra
esculpida é mero corpo que adquire significado a partir da antiguidade e
dela toma a aparência. O cientista Goethe está para outros cientistas, assim
como o poeta está para os demais poetas. Em termos de relevância,
diversidade e profundidade ele pode ser cá e lá superado, mas em termos
de arte criativa, quem aspiraria a ele igualar-se? Nele tudo é ação, assim
como em outros tudo se limita a tendência. Ele efetivamente faz algo, ao
passo que outros somente tornam algo possível - ou necessário. Necessários
e possíveis criadores somos todos nós - mas reais, poucos. O filósofo
escolástico talvez designasse isso ativo empirismo. Queremos nos contentar
em contemplar o talento artístico de Goethe e lançar um olhar ao seu
entendimento. Nele se pode conhecer o dom da abstração sob nova luz. Ele
abstrai com rara exatidão, mas nunca sem ao mesmo tempo construir o
objeto correspondente à abstração. Isso é nada mais que filosofia aplicada -
e assim o encontramos, enfim, para nosso assombro como sendo um
filósofo prático que aplica seu conhecimento como todo verdadeiro artista
desde sempre foi. Mesmo o filósofo puro será prático, embora o filósofo
aplicado não precise engajar-se na pura filosofia - já que isso é uma arte per
se. O Meister de Goethe. O acento da arte genuína é unicamente o
entendimento. Que constrói de acordo com um conceito particular.
Fantasia, chiste e crítica são somente postulados. Assim o Wilhelm Meister é
inteiramente um produto artístico - um trabalho do entendimento. Sob essa
perspectiva se veem vários trabalhos medíocres na galeria de arte - por
outro lado a maioria dos trabalhos literários considerados excelentes são
excluídos. Os italianos e espanhóis mostram mais frequentemente talento
para a arte que nós - os ingleses ainda o têm menos e quanto a isso se nos
assemelham, que também possuímos talentos artísticos bastante raros - não
obstante entre todas as nações sejamos os melhores e mais ricamente
providos com essas habilidades - que o entendimento emprega em suas
obras. O excesso em qualidades requisitadas para a arte certamente torna
os poucos artistas entre nós tão únicos - tão marcantes e podemos estar
certos de que as obras mais esplêndidas serão realizadas, pois nenhuma
nação pode nos superar em enérgica universalidade. Se eu compreendo
corretamente os mais recentes admiradores da literatura da antiguidade
com suas exigências no sentido de imitarmos os escritores clássicos, eles
não têm outro propósito senão nos cultivar como artistas - despertar o
talento artístico em nós. Nenhuma nação moderna possuiu a compreensão
da arte em tão alto grau como os antigos. Tudo para eles é trabalho de arte -
mas talvez não seja demais assumir que eles somente para nós o são, ou
poderiam vir a sê-lo. Na literatura clássica é como na antiga; ela não nos é
dada - não é presente - deve ser, isso sim, produzida por nós agora.
Somente através do estudo diligente e inspirado dos antigos surge uma
literatura clássica para nós - que os próprios antigos não tiveram. Os
antigos precisariam se dedicar a uma tarefa recíproca - pois o mero artista é
uma pessoa unilateral restrita. A rigor Goethe é inferior aos antigos - mas
ele os suplanta em teor - mérito, todavia, que não é unicamente seu. Seu
Meister se aproxima muitíssimo deles - quão simplesmente romance ele é,
sem adjetivo - e quanto isso significa nos dias de hoje!

Goethe será e precisa ser superado - mas apenas como os antigos podem
ser superados, em teor e energia, em diversidade e profundidade - não de
fato como artista - ou quem sabe, em bem pouco, pois sua correção e rigor
podem ser mais exemplares do que parece.6

Os questionamentos de Novalis concernentes ao romance Os Anos


de Aprendizado de Wilhelm Meister partiam de sua conscientização de que
uma nova época se anunciava após a Revolução Francesa, com o
Romantismo, e ela não se coadunava com os fundamentos de
aprendizado de Wilhelm Meister, na medida em que o romance propõe o
entendimento como instância verdadeira, nem com a visão de mundo
descrito e explicado segundo leis da natureza e segundo a sensatez. A
educação familiar cristã, a consagração ao misticismo e à espiritualidade
fundamentavam as contraposições.
Em correspondência ao escritor e editor Ludwig Tieck, Novalis
discorre a respeito da natureza de suas hesitações quanto ao livro:

Embora tenha aprendido tanto e continue a aprender com Meister, tanto


mais odioso é no fundo todo o livro. Tenho toda uma resenha na cabeça. É
um Cândido contra a poesia, um romance enobrecido. Não se sabe quem
leva a pior: a poesia ou a nobreza, aquela porque ele se considera da
nobreza, essa porque ele a considera poesia. Com palha e pincel o jardim

6NOVALIS. SCHULZ, Gerhard (editor). Novalis Werke. München: C. H. Beck, 1981. fls. 409-412.
As próximas traduções do alemão ao português são de minha autoria.
da poesia é imitado. (...) E vejo nitidamente a grande arte com que a poesia
é por si mesma destruída no Meister.7

O sentido do projeto ambicioso que conciliasse suas intuições e


sonhos pessoais com composição poética ele apresenta numa
correspondência à amiga Caroline von Schlegel:

O meu romance ficará pronto neste verão, provavelmente em Teplitz ou


em Karlsbad. Mas quando digo pronto eu me refiro ao primeiro volume;
uma vez que desejo transformar minha vida inteira num romance, o que
deve constituir em si toda uma biblioteca, quem sabe os anos de
aprendizado de uma nação. A expressão anos de aprendizado é, todavia,
infeliz ao expressar um sentido determinado. No meu caso não deve
significar nada além de anos de transição (Übergangsjahre) do infinito ao
finito. Com isso pretendo, outrossim, satisfazer minha inquietude histórica
e filosófica. Uma viagem ao sul e ao norte como preparativo a um
empreendimento dessa natureza será ademais imprescindível.8

Novalis completou a primeira parte de Heinrich von Ofterdingen,


“Erwartung”9 [Expectativa], mas deixou incompleta em forma de
fragmento a segunda, “Erfüllung” [Consumação]. Após a morte
prematura de Novalis, Tieck publicou em 1802 o romance, juntando
anotações e informações esparsas, inclusive decorrentes de conversas que
os dois amigos teriam mantido. Com isso, todavia, impõe de maneira
arbitrária cerceamentos ao caráter de inacabamento da obra que estaria,
no formato das ramificações abertas dos prototextos, provocadoramente
desafiando complementações e interpretações. Após a consecução desse
romance com considerações acerca da Poesia, Novalis planejava escrever
seis romances adicionais, nos quais abordaria a Física, a vida burguesa, a
Política, a História e o Amor.
Embora haja uma alusão explícita ao trovador homônimo,
Ofterdingen, do medievo alemão, e recupere lendas hagiográficas como a
da Santa Elizabeth de Thüringen, o primeiro romance do projeto de
Novalis não permanece vinculado a figuras históricas, nem mesmo à sua
própria pessoa apesar das coincidências, nem ao espaço diegético,

7 Carta de Novalis a Ludwig Tieck em Jena, 23.02.1800. In: Samuel, Richard (editor). Novalis.
Werke, Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs. München, Wien, 1978, 3 volumes. Volume
1, fls. 731-33.
8 Carta de 27.2.1799, de Novalis a Caroline Schlegel. HARDENBERG, Friedrich von (genannt

Novalis). Eine Nachlese aus den Quellen des Familienarchivs. Gotha: Friedrich Andreas Berthes,
1873. p. 192. E-book gratuito disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=9XVfAAAAcAAJ&pg=PA192&dq=ich+habe+Lust+m
ein+ganzes+Leben+an+einen+Roman+zu+wenden&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwiAysfwv5
nbAhVDD5AKHbb3BVcQ6AEIPDAD#v=onepage&q&f=false> (acessado em 21/05/2018).
9 O músico austríaco Arnold Schönberg escreveu, em 1909, o monodrama atonal chamado

“Erwartung”, uma das obras-primas da música expressionista germânica.


tampouco à temporalidade medieval; ao invés disso, enseja uma
amplitude poética em vários sentidos.
O personagem Heinrich pressente um mundo original, repleto de
fantasia e lenda. Toma conhecimento da Flor Azul, símbolo da verdadeira
Poesia, e num sonho, chega a vê-la:

O céu era de um azul escuro, absolutamente puro. Mas o que o atraía de


modo irresistível era uma flor esbelta e de azul translúcido, à margem da
fonte, que o tocava com as folhas largas e brilhantes. Em torno dela havia
uma infinidade de flores de todas as cores, e o mais agradável dos
perfumes enchia os ares. Ele não via nada senão a Flor Azul, e observava
sua indescritível delicadeza. Quando enfim quis se aproximar, ela de
repente começou a mover-se e a transformar-se; as folhas se tornaram mais
brilhantes e se cerravam junto à haste que se alongava; a Flor se inclinou
em sua direção e as pétalas configuraram uma larga gola azul, em que
pairava um rosto suave. Seu doce espanto crescia com a estranha
metamorfose, quando subitamente [...]10

Heinrich desperta e as conversas com os pais estimulam mais ainda


a profunda sensação de que a visão não fora mero sonho; mais ainda se
instaura nessa literatura a ambiguidade entre a fantasia poética e a
intuição pessoal quando o pai se recorda de uma imagem semelhante
entrevista na juventude.
A aventura do jovem protagonista Heinrich, que consiste numa
viagem “diegética” que empreende com a mãe de Eisenach a Augsburg,
corresponde na acepção espiritual ao caminho de autoconhecimento do
mundo poético interior. Dos negociantes, companheiros de viagem, ele
ouve histórias míticas sobre Arión e Atlântida. A partir do seu contato
com cavaleiros cruzados a caminho do Oriente — onde pretendiam
disseminar o catolicismo —, e com a mulher árabe Zulima. A figura do
mineiro11 devotava ao ofício um amor que se sobrepunha a auspícios

10 NOVALIS. Heinrich von Ofterdingen – ein nachgelassener Roman von Novalis – Zwei Teile. In:
Novalis – Gesammelte Werke. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2008. pp. 199-356.
11 Nessa personagem muitos estudiosos veem uma homenagem de Novalis ao seu mestre nas

disciplinas de mineralogia em Freiberg, Abraham Gottlob Werner, geólogo que foi o principal
defensor do netunismo na controvérsia contra os plutonistas (Basaltstreit), dentro da questão
mais abrangente: da formação geológica terrestre.

Na controvérsia acerca do basalto disputavam “netunistas”, ou geognósticos, e


plutonistas chamados também “vulcanistas”, pela correta teoria da formação do
mundo. Teriam sido a terra e suas rochas, especialmente o basalto, formados do
mar, como formações geológicas sedimentares, ou do fogo (lava, erupções
vulcânicas, magma)? O ponto alto da controvérsia científica acerca do basalto
sucedeu a partir de 1780.
Goethe não se posicionou nitidamente por uma das duas posições, mas se
inclinava por convicção espontânea (apesar de sua ciência) pelo lado dos
netunistas, com seu modelo evolucionista regular e ordem mais compreensível do
que a imaginação revolucionária segundo a qual do caos de uma erupção
materiais. Essa figura personifica a vida meditativa e religiosa, cristã, sua
poesia é a arte do canto laboral que o acompanha na faina diária pelos
garimpos, o que ilustram as seguintes estrofes:

Fecundas histórias
De tempos passados
Contam a jazida
Em perene alegria.

Sagrados alentos
Sopram-lhe ao rosto.
E as noites dos veios
Luzem eternas.12

Essa consciência de sabedoria e harmonia legada pelas lendas e


pelos mitos sobre as coisas e os fenômenos remete a uma Idade do
Ouro13. Pelas narrativas é dado ao jovem conhecer o que é de fato digno
de ser lembrado na poesia: sem a tudo literalmente se apegar, nem com
deliberados sonhos a ordem própria confundir14; e a justificativa para a
pesquisa histórica: os descendentes sábios procuram os traços sagrados
de vidas passadas, de indivíduos dos mais insignificantes, uma vez que
sua vida se projeta na vida daqueles15. Um misterioso anacoreta permitiu
que folheasse livros imemoriais de Poesia e de História, sem títulos.
Pareceram-lhe estranhamente familiares, e olhando mais atentamente, descobriu-
se a si mesmo bem reconhecível entre as figuras. Surpreendeu-se e teve a
impressão de estar sonhando [...]16.
Ao longo da primeira parte, o romance Heinrich von Ofterdingen
pontua prenúncios e oráculos do percurso de autoconhecimento do
personagem. A mensagem de Klingsohr no Capítulo 8 fortalece a
sugestão de que o mundo sublime está mais perto de nós do que
supomos. Nós o vislumbramos intimamente imbricado com a natureza.
Como nós comumente pensamos à maneira da tradição científica e
coercitiva do raciocínio, é fundamental acompanhar a reflexão dos
escritos de Novalis tendo em mente que aqui a Poesia seria a solução

vulcânica uma configuração teria sido possível: do basalto e doutras formações


rochosas, - eventualmente até mesmo da terra inteira...

“Goethe und der Basaltstreit. Sitzung der Humboldt-Gesellschaft am 13.06.1995 von Helge
Martens”. Disponível em:
<http://www.humboldtgesellschaft.de/inhalt.php?name=goethe#F>
(acessado em dia 24/06/2018).
12 NOVALIS 2008, p. 260.
13 NOVALIS 1988, p. 90. “Onde há crianças, ali é uma idade de ouro”. (F 97, Pólen).
14 NOVALIS 2008, p. 271
15 NOVALIS 2008, p. 272.
16 NOVALIS 2008, p. 279.
incondicional para a humanidade inteira se afinar com o mundo sublime.
O ápice do romance está na narrativa que perfaz o Capítulo 9 e encerra a
primeira parte do livro.
A Flor Azul é a história que o personagem-poeta Klingsohr conta
ao jovem Heinrich e, embora esteja dentro do romance, é a síntese de uma
utopia plena, o que lhe outorga autonomia poética. Com essa narrativa o
poeta instituiu a busca da flor azul como um ideal simbólico da poesia
romântica, e por isso ela é celebrada e considerada a obra poética
inaugural da narrativa romântica de expressão alemã.
Eis o princípio da poética de Novalis: a enigmática história trata da
Fábula/Poesia, configurada como uma menina chamada a reconquistar
Eros/Amor para a humanidade. Pelas anotações legadas, é possível
conceber três dimensões na narrativa: primeiramente a dimensão dos
deuses antigos urdindo destinos. O Velho Herói, deus da guerra Marte e
também elemento magnético ferro, é quem lança na Terra a espada
magnetizada para cumprir a magia do destino; o Rei Artur é a estrela
mais potente entre todas da constelação. O reino está gelado, inerte. Mas:
“incontáveis metamorfoses e prodigiosas magnificências do reino terreno
sua presença há de revelar”, diz o início do poema Hinos à noite17. Freya,
cujo nome designa liberdade e simboliza igualmente a Paz, está
subjugada por sortilégios. Fênix é a bela ave que comprova a eterna
possibilidade de renovação. Sofia, inclusive etimologicamente, é a
sabedoria divina, sacerdotisa vestal que guarda a chama do altar e possui
o cálice contendo a água milagrosa que faculta o discernimento entre o
genuíno e o falso.
A dimensão terrena mostra Amor acalentado no berço, Razão,
Fantasia, Memória, Coração, num antropomorfismo que permite às
personagens humanas que interajam entre si. A espada imantada há de
indicar a Amor os caminhos para a consumação da união com Freya, o
que acalentará e trará vida. Mas é Sofia que tem o conhecimento, a
Fantasia que inventa os modos. A ama Fantasia Ginnistan nutre Amor e
Poesia. Poesia se deixa inspirar por Amor.
Ao Reino das Parcas com a luz negra, o Escriba, embora humano,
tem acesso. Com Alegria, Fantasia, Generosidade e senso de Humor,
Fábula (Poesia), irmã de leite de Amor, foi incumbida de decifrar os
quebra-cabeças da Esfinge, triunfar sobre a Vida e a Morte e abrandar
Amor, tendo em vista o vínculo com Freya. A Lua (Rei Lunar, porque é
masculino em língua alemã) é a presença noturna que propicia encontros
românticos, sonhos, devaneios, se alegra com a chegada da filha Fantasia.
A força de uma corrente imantada reúne finalmente Amor e Freya.

17 NOVALIS 2008, p. 103.


Graças à superação dos obstáculos, mérito de Poesia, o Mundo
finalmente se livra do Caos e renasce sem antinomias, pois se estabelece a
aliança entre o mundo orgânico e o mundo inorgânico, perpassando os
elementos da natureza e revitalizando a humanidade em suprema
Harmonia.
Como pensar o projeto de Novalis a não ser como alegoria literária,
incessantemente somando um e mais um componente inédito a um
tablado cada vez mais intrincado de figuras e remissões? A narrativa
mescla mistérios e personagens pagãos e cristãos na busca de um
magnetismo universal, haja vista as alusões ao Anjo Bom e à celebração
eucarística, ao reino medieval de Artur, às transmutações místicas e
científicas da alquimia, às figuras mitológicas greco-romanas, um modo
operacional que põe abaixo as oposições lineares entre Antiguidade,
Medievo, Cristandade.
Considerando as experiências históricas da Psicanálise, do
Surrealismo e das vanguardas poéticas o texto que se oferece ao leitor do
século XXI, naturalmente se difere bastante daquele que o próprio
Novalis escreveu, mas mantém o hermetismo dos mistérios místicos e os
enigmas alegóricos. Sobretudo, o projeto é uma aposta na Poesia.

Maria Aparecida Barbosa é professora associada do Departamento de Língua e Literatura


Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina. Tradutora de literatura de expressão
alemã. Mestrado e doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação do
Prof. Dr. Sérgio Luiz Rodrigues de Medeiros. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Literatura Comparada, atua principalmente no âmbito da linguagem poética em prosa e poesia,
na Literatura Comparada, nas Literaturas Estrangeiras Modernas. Membro do Programa de
Pós-Graduação em Literatura da UFSC com o projeto de pesquisa: Circuito de formas e
sentidos. Contato: [email protected]
E. T. A. HOFFMANN
E A FORMAÇÃO PARODÍSTICA

Rafael Rocca dos Santos

Marcus Vinicius Mazzari

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
As relações literárias entre E. T. A. Hoffmann e seu tempo Bildungsroman;
estendem-se por diversas épocas e passam por diversos autores e Formação;
temas. Entre eles, o romance de formação, tão caro à literatura do Hoffmann;
final dos séculos XVIII e seguintes, foi abordado de uma maneira Murr;
inusitada por esse autor do romantismo tardio alemão. Este Paródia.
ensaio busca traçar, em primeiro lugar, as relações literárias entre
o autor do romance de formação por excelência, Johann Wolfgang
von Goethe (o primeiro Wilhelm Meister), e E. T. A. Hoffmann, seu
contemporâneo. Em um segundo momento, buscar-se-á
demonstrar como Hoffmann incorporou a ideia do romance de
formação, porém acrescentando a ela um elevado conteúdo
irônico e cômico, parodiando o conceito de formação (Bildung),
no romance Reflexões do Gato Murr.

ABSTRACT KEYWORDS:
The literary relations between E. T. A. Hoffmann and his time extend Bildungsroman;
through several times and several authors and subjects. Among them, Formation;
the Bildungsroman (novel of education, formation), with a marked Hoffmann;
relevance in the end of the 18th and the 19th Century onwards, was Murr;
approached in a peculiar way by this author of the late German Parody.
Romanticism. This essay seeks firstly to outline the literary relationships
between the author of the Bildungsroman par excellence, Johann
Wolfgang von Goethe (the first Wilhelm Meister), and E. T. A.
Hoffmann, his contemporary. Afterwards, it will be addressed how
Hoffmann incorporated the idea of the Bildungsroman, but also added
to his work a high ironic and comic content, making the concept of
‘education’ (Bildung) a parody in The Life and Opinions of the Tomcat
Murr.
I ntrodução

E. T. A. Hoffmann experimentou, em meio à literatura de sua época,


um relativo sucesso após sua primeira publicação em livro, Peças de fantasia
à maneira de Callot (1814/1815). Parte desse sucesso se deu pela maneira
pela qual Hoffmann tratou dos temas de seu tempo, desde as invasões
napoleônicas em seus textos e ensaios até sua produção pictográfica e a
música, que gozava à época de um grande prestígio como forma de
expressão primeira do “espírito artístico”. Ligado a temas populares e
elevados, mesclados de uma maneira sutil, Hoffmann bebeu de incontáveis
fontes para o desenvolvimento de suas narrativas. Assim, temos o
“romance da individualidade artística” (Künstlerroman), como no ciclo
Kleisleriana; o romance “noturno”, ou que explora o lado oculto, secreto e
misterioso da natureza humana, embebido nas teorias nascentes da
psicologia, tais como a de G. H. Schubert (Visões sobre o lado noturno das
ciências naturais, de 1808), precursor de Freud; Märchen, ou contos
maravilhosos lato sensu, como Meister Floh ou o substrato de O vaso de ouro;
o romance de mistério e assassinato, prefigurador do moderno romance
policial, como A senhorita de Scuderi, assim como partes de Os elixires do
diabo; e o romance cíclico, emoldurado, que compõe o quadro de Os irmãos
Serapião cuja estrutura remonta ao Decamerão.
Pode-se perceber que a atividade literária de Hoffmann é
multifacetada, incorporando escritos teóricos, elucubrações e discussões
filosóficas candentes em sua época, aspectos do fantástico e do
maravilhoso, e até mesmo uma dimensão já realista, como em A janela de
esquina de meu primo, última obra publicada, a qual contém o germe do
romance citadino que tanto influenciou escritores posteriores, por exemplo
Baudelaire. Em meio a tão diversas produções, aquele considerado o maior
autor alemão, Johann Wolfgang von Goethe, também se vê presente nas
obras de Hoffmann, podendo-se afirmar, inclusive, ser uma expressiva
fonte para alguns de seus textos mais importantes.
Podemos, por exemplo, enxergar aspectos do Fausto em As aventuras
da noite de São Silvestre, na cena de assinatura de um pacto com o diabo; ou
de Os sofrimentos do jovem Werther em algumas passagens ainda
impregnadas do que se chamou na história da literatura alemã de
“sentimentalismo” (Empfindsamkeit), próprio do período pré-romântico
Sturm und Drang (“Tempestade e Ímpeto”), como em Sofrimentos peculiares
de um diretor de teatro. Uma dessas fontes goethianas, especialmente para os
romances de Hoffmann, foi a obra Os anos de aprendizagem de Wilhelm
Meister, “cânone mínimo” do romance de formação, tipicamente alemão,
que surge como base e substrato para a obra Reflexões do gato Murr.
O presente ensaio pretende realizar uma incursão por essa obra de
E. T. A. Hoffmann, identificando traços e especificidades do romance de
formação tendo como fonte o romance goethiano, e analisar como
Hoffmann utilizou o conceito de “formação” de forma a tecer uma crítica
à sociedade burguesa de sua época. Antes, porém, a fim de melhor
compreender como a obra de Goethe está presente na de Hoffmann, a
primeira parte deste ensaio versará sobre as relações literárias entre ambos
os autores. Entender essas relações permitirá uma melhor visão do
romance de formação em Hoffmann e a maneira pela qual ele modulou
literariamente seus princípios básicos a fim de conferir um tom irônico e
cômico a um conceito de elevada envergadura em Goethe.

As relações literárias entre Hoffman e Goethe

Uma análise preliminar dos escritos privados de Hoffmann, ou seja,


sua troca de cartas e seu diário, permite entrever uma leitura atenta das
obras de Goethe publicadas até o momento de sua morte em 1822. A
própria data de falecimento do autor, antes de Goethe (1832), já nos
permite eliminar algumas fontes de influência direta, tais como Os anos de
peregrinação de Wilhelm Meister (1821, e 1829 em segunda versão), da
segunda parte do Fausto (1832), da versão posterior da Novela (1828) e de
uma parte de sua produção lírica. Não há indicação de que Hoffmann e
Goethe tenham trocado cartas.
Goethe é mencionado vinte e duas vezes na correspondência
hoffmanniana e cinco vezes em registros de diário. Nessas ocasiões,
Hoffmann faz referência a trabalhos utilizando a obra de Goethe como
referência; são alusões por vezes cômicas ou utilizando as obras goethianas
como subtexto para a montagem de operetas e peças musicais. Por
exemplo, Hoffmann pede a Jean Paul Richter, em agosto de 1801, notícias
de comentários de Goethe acerca da musicalização da peça Scherz, List und
Rache, transformada em uma pequena opereta1.
As principais obras mencionadas por Hoffmann em suas cartas são
Götz von Berlichingen, Fausto, Os sofrimentos do jovem Werther, Os anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister e Poesia e verdade. Percebe-se, por essa breve

1O texto da carta de Jean Paul a Goethe é o seguinte: “O muito honrado senhor [Goethe] recebe
aqui a opereta ‘List, Scherz und Rache’ [sic] que me foi entregue por um músico em Berlin
[Hoffmann] para levar ao Senhor com o pedido de Sua leniência a fim de [obter] Seu julgamento
e uma amostra através de encenação” (SCHNAPP, Friedrich. E. T. A. Hoffmanns Briefwechsel. Vol
1. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 157, para notícia da carta de Hoffmann
a Jean Paul, e SCHNAPP, Friedrich (org.). E. T. A. Hoffmann in Aufzeichnungen seiner Freunde und
Bekannten. Munique: Winkler-Verlag, 1974, p. 739, para a carta de Jean Paul a Goethe). Não se tem
notícia, no entanto, de que Goethe tenha tecido comentários sobre a composição.
listagem das obras e pelas menções feitas nas cartas, que a obra de Goethe
sempre esteve presente nas considerações de Hoffmann ao escrever seus
próprios textos, e tais leituras podem ser inferidas pela presença de alusões
e intertextualidades em seus próprios escritos. Em especial, destaca-se a
presença de várias tragédias e Singspiele de Goethe, obras do gosto especial
de Hoffmann devido à sua atividade de compositor em diversos teatros e
casas de óperas na Alemanha e na Polônia.
Porém, não se podem entrever facilmente, a julgar pelas entradas em
seu diário, considerações ou análises extensas, ou até mesmo
manifestações explícitas, sobre a estrutura dos romances goethianos,
especialmente no que toca ao tema deste ensaio, acerca do romance de
formação como gênero ou Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Sabe-
se, por duas referências, que Hoffmann havia lido e estudado o romance
(essas referências são menções nas cartas de 6 de março de 1806 e 23 de
dezembro de 1808) e que as reflexões resultantes dessa leitura estão
presentes em seu romance Reflexões do Gato Murr, quando analisado em sua
estrutura. Porque Hoffmann não escreveu ensaios ou textos de crítica
literária, a não ser breves considerações no âmbito de seus próprios textos
ficcionais, considerações mais significativas, no entanto, não podem ser
encontradas.
A relação inversa, ou seja, manifestações de Goethe sobre os textos
de Hoffmann, igualmente não é muito prolixa. As principais indicações do
contato de Goethe com a obra de Hoffmann se dão também por menções
em cartas, entradas de seu diário e por meio de duas resenhas a textos de
crítica literária que abordam obras alemãs pela mão de autores ingleses
(notadamente suas duas resenhas sobre textos de Thomas Carlyle e de
Walter Scott).
Devido a suas próprias concepções literárias e inclinações
poetológicas, não se pode afirmar que Goethe tivesse um pendão para
textos que versam sobre o maravilhoso, o fantástico e demais variantes. É
possível citar, por exemplo, uma conversa com Friedrich von Müller,
datada de 1823, em que Goethe afirma:

À tarde na casa de Goethe para encontrar Cotta, que ceou em sua residência...
Ottilie fez-se presentear com o espólio do velho Senhor Hoffmann em meio
às mais graciosas bizarrices.
“Quem não tem espírito não acredita em espíritos, e assim também não
acredita nas propriedades espirituais dos escritores”, disse Goethe em
relação à reimpressão2.

Não se pode averiguar com precisão se Goethe estava falando de si


mesmo ao pronunciar essa sentença, tendo em vista que sua

2 SCHNAPP, Friedrich. Op. cit., 1974, p. 743.


espiritualidade ainda é tema de debate entre os estudiosos. No entanto,
pode-se perceber, em sua própria obra, um distanciamento do tipo de
escrita que Hoffmann e outros (tais como Tieck) praticavam
contemporaneamente a Goethe.
Goethe mencionou Hoffmann explicitamente em uma carta para o
duque Carl August von Sachsen-Weimar, que lhe havia enviado um
exemplar de Meister Floh (Mestre Pulga) de Hoffmann. Após tê-lo lido3,
Goethe responde ao duque no dia seguinte com as seguintes palavras, que
merecem ser reproduzidas aqui em sua totalidade:

Sua Alteza Real


me propiciou bastante divertimento por meio da benevolente comunicação
do livro que vai remetido, de modo muito agradecido; foi a primeira coisa
que li de Hoffmann, e não é de se negar que a maneira maravilhosa como ele
associa o local mais conhecido e circunstâncias usuais, até mesmo comuns,
com incidentes improváveis, impossíveis, tem um certo encanto do qual não
se pode escapar.
O fato de que o livrinho obteve uma notoriedade provisória e suspeita foi
muito proveitoso ao editor; só irá decepcionar muito aqueles leitores que
esperavam algo de insidioso ali. O autor é prudente demais para atrofiar
uma certa carreira mediana de escritor, pela qual tem tanto sucesso, por meio
de algum descuido.

Percebe-se que, ao menos no que tange à obra Meister Floh, Goethe


tivera uma boa impressão do texto de Hoffmann. Igualmente, ele
recomenda a seu secretário particular nos últimos anos de sua vida, Johann
Peter Eckermann, inteirar-se de tudo o que estava sendo produzido na
Alemanha a fim de que ele obtivesse uma cultura geral sólida: “[...] Você
deve recuar e observar o que os Schlegel pretendiam e realizaram, e então
o senhor deve ler todos os autores mais novos, Franz Horn, Hoffmann,
Claure, assim por diante [...]” (conversa de 3 de dezembro de 1824).
Ainda que Hoffmann não tenha conhecido Goethe pessoalmente4,
nem ao menos trocado correspondência direta com ele, vê-se que os dois
autores haviam lido, embora em proporções diversas, as obras um do
outro. Ainda que não se possa afirmar haver algum aspecto da obra de
Hoffmann em Goethe, tendo em vista seu distanciamento da literatura
considerada fantástica produzida à época, o contrário pode ser afirmado.

3 Lê-se na entrada no diário de Goethe de 11 de abril de 1822, um dia, portanto, depois do


recebimento da carta e do exemplar do livro de Hoffmann: “Meister Floh de Hoffmann”, o que
indica uma possível leitura.
4 O filho de Goethe, August von Goethe, e sua esposa conheceram Hoffmann em Berlin, no dia

22 de maio de 1819. Esse encontro foi relatado pelo filho ao pai em carta escrita no mesmo dia:
“Sábado, 22 de maio... Ao meio-dia estivemos na casa de Nicoloviussen com Rauch e o escritor
Hoffmann e surgiram histórias particularmente engraçadas de Werner, o qual ambos conheciam
bem [...]” (SCHNAPP, Friedrich. Op. cit., 1974, p. 741).
Hoffmann utilizou diversos conceitos presentes nas obras de Goethe em
sua própria produção; um deles em especial, que será abordado aqui, é o
romance de formação.

O romance de formação em Hoffman

– Meu bom irmão Murr, sorte sua eu tomar a iniciativa de visitá-lo na


clausura. Você corre o maior dos perigos que um gato jovem e valente
dotado de espírito nos miolos e vigor nos membros pode correr, ou seja, o
perigo de virar vilão, um abominável filisteu.
Você alega que as ciências o absorvem sobremaneira, não lhe restando tempo
útil para estar com outros gatos. Desculpe, irmão, isso não é verdade! Seu
aspecto definitivamente não é de um estudioso, de um rato de biblioteca,
mas, ao contrário, você está gordo e ensebado. Creia, essa vida desgraçada e
confortável que você leva o deixa preguiçoso e lerdo. Você vai se sentir bem
diferente se tiver de compartilhar nossa luta para obter uns parcos restos de
peixe ou caçar passarinho. [...]
Confessei com franqueza ao amigo Muzius que não entendia patavina da
expressão filisteu, não sabia seu significado. [...] (HOFFMANN, 2013, pp.
242-243)

... dizer o seguinte. Um gato filisteu, por sedento que esteja, começa a lamber
o prato de leite pelas bordas para não lambuzar o bigode e a barba, mantendo
a etiqueta, pois o decoro é mais importante que a sede. Se você visita o gato
filisteu, ele vai lhe oferecer toda a sorte de coisas que possui, jurando
amizade, mas mal você se despede e ele, às escondidas, come depressa e
sozinho todas as delícias que ofertara.
O gato filisteu sabe achar, graças a seu tato seguro e infalível, o melhor lugar
possível para se estirar confortável e agradavelmente. Vangloria-se de suas
qualidades, esmiúça e rende graças a Deus por não ter nada do que se
queixar, pois é bem dotado de virtudes. Expõe, com grande loquacidade,
como galgou tão boa posição e tudo que fará para melhorá-la. Mas, se você
quiser falar de si, de sua sorte menos favorável, então o gato filisteu cerra os
olhos e as orelhas e finge estar dormindo, ou ronca.
O gato filisteu lambe com zelo o pelo para ficar lustroso e sedoso, e não
atravessa, nem quando está caçando ratos, uma poça de água sem sacudir as
patas a cada passo, com a finalidade de conservar a imagem de impecável e
elegante, independentemente do contratempo, ainda que isso lhe custe a
presa.
O gato filisteu foge e evita o menor perigo, e se você estiver em um e pedir
ajuda, entre sagradas afirmações de apoio amigável, ele vai lamentar que,
justo naquele instante, suas obrigações não permitem socorrê-lo. Em geral,
tudo aquilo que o gato filisteu diz ou faz depende de mil considerações. Ele
será, por exemplo, polido e educado ante o pequeno poodle que lhe mordeu
a cauda dolorosamente, para não se enfrentar com um membro da corte, cuja
proteção logrou conquistar, e aproveita-se da noite ardilosa para lhe unhar
o olho. No dia seguinte, lamenta de coração com o querido amigo
cachorrinho, e deplora a maldade dos pérfidos inimigos. Aliás, essas cautelas
se assemelham a uma armadilha capciosa, dando ao gato filisteu a chance de
sempre escapulir no momento em que você imagina tê-lo flagrado. O gato
filisteu permanece, de preferência, sob a estufa do seu lar, onde se sente
protegido, pois o telhado lhe provoca vertigem.
Eis, portanto, meu caro amigo Murr, o caráter do gato filisteu, e esse é seu
caso [...]5

O personagem central das reflexões de vida no romance de


Hoffmann é o gato Murr, um felino que se vê como grande cultor da alta
cultura letrada e artística, como sói acontecer com a grande aristocracia
ainda reinante na Alemanha no momento da composição do romance
(1819-1821). O principal propósito na escrita da narrativa é apresentar aos
destinatários da obra autobiográfica, igualmente gatos, os verdadeiros
passos para que se tornem indivíduos com espíritos mais elevados e
ganhem proeminência em meio ao mundo de cães, que povoam o romance,
e humanos, que existem, em sua concepção, apenas para garantir a
tranquila subsistência necessária para a elevação espiritual dos felinos. O
tom cômico que está presente em toda a narrativa cria uma ambientação
irônica que levará a questionar toda a apresentação da formação do gato,
ainda mais se comparada ao relato das peripécias do compositor Johann
Kreisler, cuja narrativa está entremeada ao texto, mas que não será
abordada neste ensaio.
Os trechos acima transcritos são parte do terceiro capítulo da
segunda parte do romance, conforme disposta pelo “editor” da obra.
Intitulado “Die Lehrmonate”, “os meses de aprendizado”, o capítulo, que
contém uma evidente referência aos “Lehrjahre” (“anos de aprendizado”)
de Goethe, é central para a compreender as concepções de formação que
estão sendo apresentadas e discutidas por um amigo do protagonista.
Durante todo o seu relato, Murr está preocupado com a elevação
espiritual que se dá através da arte e do acúmulo do aprendizado
intelectual tendo por finalidade “a formação para o mundo” (a expressão
utilizada é “Bildung für die Welt”). Para tanto, segundo ele, desde os
primórdios da infância, tendo toda a infraestrutura para tanto – casa,
comida, afeto –, entrega-se ao ofício que os demais animais consideram ser
próprio apenas aos seres humanos: primeiramente a caligrafia, que é
dominada precocemente como um trampolim para o mundo da cultura
letrada, e em seguida o acesso à biblioteca de seu dono e às conversas que
este tem com seus amigos, representantes ou não do mundo cultural
apreciado por Murr. O aprendizado é, no entanto, puramente livresco,
tendo em vista que o felino se entrega apenas às atividades que estão
dentro de sua, digamos assim, “zona de conforto”.
Uma analogia pode ser feita com duas personagens do Fausto de
Goethe: a partir do texto de Murr, pode-se lembrar a diferença entre Fausto

5HOFFMANN, E. T. A. Reflexões do gato Murr. Trad. Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Estação
Liberdade, 2013, pp. 242-243 para o primeiro trecho, e pp. 258-259 para o segundo trecho.
e Wagner: enquanto o primeiro é convidado a realizar experiências para
ter uma melhor compreensão do que é o mundo em seus diversos matizes,
o segundo entrega-se ao estudo cientificista, que abrange apenas os livros
presentes nas bibliotecas e os domínios do saber já estabelecidos pelas
convenções intelectuais da tradição. Murr ocupa, poder-se-ia dizer, nessa
analogia aproximada, a posição de Wagner no tocante ao acesso ao
conhecimento.
Os frutos dessa analogia podem ser aprofundados no episódio em
que Murr abandona pela primeira vez o conforto de sua moradia e parte
para conhecer, acompanhado de um cachorro e depois por outros gatos, o
“grande mundo”, aquele que está fora de seu pensamento. Imediatamente,
Murr descobre que esse mundo é repulsivo, muito diferente das descrições
de viagens que lera e do mundo intelectual do qual ele julga ser membro.
Um profundo choque é impresso na mente de Murr, que chega a sofrer
fisicamente devido à sua falta de conhecimento mundano, que é o trunfo
dos gatos de rua. A alegada “esperteza” e “habilidade” dos gatos é pouco
desenvolvida em Murr, ainda que ele tenha anteriormente se julgado
“formado para o mundo”.
Essa “formação para o mundo” da qual ele fala é precisamente um
dos pontos centrais do romance goethiano. Uma formação que se
propusesse a ultrapassar, ou entender e delimitar, a rígida diferenciação
de classes sociais – a burguesia e a nobreza – pelo acúmulo de experiências
e de conhecimentos práticos e teóricos sobre o funcionamento das coisas é
um dos aspectos aspirados por Wilhelm Meister expostos na sua conhecida
carta ao cunhado Werner6. Comparativamente, pode-se dizer que o gato
Murr, nesse aspecto, propõe-se a eliminar as barreiras existentes entre o
gato formado e intelectualizado e o mundo imaginário ao seu redor,
superando até mesmo a espécie humana, tendo em vista que um dos seus
prefácios é dirigido exatamente a este último público. Nesse sentido, a
formação pretendida pelo gato é a formação que a burguesia nutria pelo
conhecimento universal, pelo que vai além das imposições de nascimento,
segundo um mundo ligado à razão preconizado pelo então recente
Iluminismo. O fim pretendido dessa formação é uma “harmonia e [a]o
conhecimento de si e do mundo”, segundo formulação de Wilma Patricia
Maas7. Wilhelm Meister aprenderá as limitações para sua formação, e o
gato Murr, aparentemente, ainda que a vida lhe ofereça resistência,
permanecerá entranhado no universo das ideias: ele não chegará a
compreender quais são os limites que lhe são impostos pelo mundo real.

6 Citada em MAZZARI, Marcus Vinicius. Metamorfoses de Wilhelm Meister: O verde Henrique na


tradição do Bildungsroman. In Labirintos da aprendizagem. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 109.
7 MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura. São Paulo:

Unesp, 2000, p. 27.


A tal “formação para o mundo” de Murr possui, portanto, falhas. A
obtenção dos conhecimentos necessários para enfrentar o mundo tal como
ele se apresenta na realidade é permeado por leituras sem um nexo tão
nítido entre elas, sem uma compreensão sistematizada de qualquer
assunto. Em comparação com o romance goethiano, em que uma sociedade
secreta discretamente observa e conduz o protagonista, mesmo em suas
falhas, a uma direção já estabelecida desde o início, as experiências de Murr
e suas leituras são apresentadas, por vezes, como obra do acaso traduzida
por encontros, descobertas de livros e de teorias das artes, entre outros, que
não têm por trás um direcionamento claro ou consciente. A formação
conforme Murr a busca é, dessa maneira, parcialmente aleatória, não
firmando, ao contrário do que afirma o narrador, uma sólida base. Lendo
a atitude de Murr a partir de uma análise da literatura feita por Franco
Moretti no ensaio O burguês, a formação do felino parece ser aquela do
acúmulo de conhecimentos envolvidos numa aura de erudição, ou seja,
conhecimentos pseudointelectuais, que não possuem valor verdadeiro
para uma compreensão clara das verdadeiras “concepções de vida” (título
do romance no original, Lebensansichten) através das quais o narrador
entende o mundo.
É precisamente sobre essa (grande) falha na formação de Murr que
seu amigo, o gato Muzius, fala no trecho transcrito acima, central para a
discussão relativa às concepções de formação do protagonista do romance.
Muzius identifica no Murr em formação as características da pequena
burguesia nascente tanto na Alemanha como em outros países. A
identidade de tal classe social é identificada ali com o filisteu8, palavra que
tomou sentido, no século XIX, de um indivíduo que leva uma vida
pequena, sem grandes aventuras ou sustos, voltada ao utilitarismo sob
uma perspectiva individualista. Hoffmann utiliza esse termo em diversas
obras atribuindo um tom irônico e cômico a fim de criticar a posição do
indivíduo que não persegue aspirações maiores do que ser útil, ter conforto
(palavras-chave identificadas por Franco Moretti no ensaio citado
anteriormente9), e, por consequência, estabilidade.

8 Rüdiger Safranski, em sua obra de divulgação do Romantismo, apresenta, às páginas 182 e 183,
uma descrição daquilo que diversos autores românticos, entre eles Hoffmann, Schleiermacher e
Novalis, entendiam por “filisteu”. Muitas das características ali elencadas estão presentes na
descrição de Muzius: “filisteu é todo aquele que se dedica completamente à utilidade”, “o
‘filisteu’ se torna o símbolo do homem normal por excelência”, “conservar uma distância segura
é decisivo para o filisteu”, “seres sem transcendência”, “permanecer previsíveis”, “evitam
conhecer-se mais profundamente”, “o filisteu não sabe o que é”, entre outros (SAFRANSKI,
Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. Trad. Rita Rios. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2010,
pp. 182 e 183).
9 Aproximando-se da metodologia utilizada por Raymond Williams, Franco Moretti, no ensaio O

burguês entre a história e a literatura (São Paulo: Três Estrelas, 2014), utiliza palavras-chave para
identificar tendências e traçar condensações teóricas sobre o assunto sendo tratado. Para o
burguês, que encontra grande similaridade com o “filisteu” alemão, Moretti identifica as
O fato de Murr não conhecer o termo que se aplica a ele indica o
grande afastamento que tem do mundo e o pouco conhecimento que tem
de si mesmo. Para ele, a “ciência” ocupa a posição central de seus
aprendizados, não tendo importância primária a experiência de vida como
forma de obter o conhecimento prático do mundo real. De maneira
didática, Muzius explica alguns dos traços que compõem o caráter do gato
que está se tornando um filisteu graças ao seu afastamento do mundo ao
redor. Em resumo, o gato filisteu é acomodado, preso ao conforto,
prepotente, individualista, narcisista, preocupado com a opinião alheia
como forma de medida de status social, covarde e hipócrita, conforme se
depreende das características mencionadas no excerto. Muzius vê em Murr
essas características em maior ou menor grau, e indica-lhe, mediante os
vocábulos que emprega para descrever sua vida (“clausura” e
“desgraçada”), que aquele era precisamente “seu caso”.
O que Muzius identifica em Murr é, por assim dizer, o oposto da
aspiração à “formação universal” preconizada por Wilhelm Meister no
romance de Goethe. A importância da experiência de vida, da ação, é
ressaltada nas viagens e nos caminhos pelos quais o protagonista
goethiano passa, ainda que orientado sub-repticiamente pela Sociedade da
Torre. Murr, por outro lado, descobrirá somente ao final do romance que
os demais indivíduos da sociedade são também capazes de transmitir
conhecimentos e que destes se pode extrair uma aprendizagem (no caso,
mediante a orientação dada por uma famosa cachorra), ainda que
mantenha até o fim o ideal de formação intelectual, tentando não sucumbir
às pressões sociais e abandonar seu ideal de educação.*
Manuel Bandeira, no poema “Pensão familiar”, publicado em
Libertinagem, descreve uma cena pacata em uma casa tipicamente burguesa
(ou filisteia) e exemplifica a típica vida dessa classe por meio da imagem
de gatos que estão confortáveis (“espapaçados ao sol”) em meio à preguiça
e à falta de atividade própria a esse tipo de vida. Bandeira fecha o poema
com o seguinte verso: “– É a única criatura fina na pensãozinha burguesa”,
referindo-se ao gato. Evidentemente, a adjetivação da imagem do gato
como fino, ou seja, que segue uma etiqueta e age com “bons modos”, é uma
caricatura do próprio burguês, personificado nas atitudes do animal. O
animal, humanizado e tornado o personagem principal em uma obra na
qual, de outra forma, predominariam humanos, oferece um outro ponto de
vista para o todo, ou seja, aquele de atitudes animais reconhecíveis nos
próprios seres humanos. Em Hoffmann, esse ponto de vista alterado
incrementa a comicidade pretendida na obra, intensificando a sátira ao
nascente mundo burguês.

seguintes palavras-chave: “útil”, “eficiência”, “conforto”, “sério”, “influência”, “earnest”


(traduzido como “franco”) e “roba” (palavra que ocorre no romance Os Malavoglia de Giovanni
Verga, significando largamente “bens” e “propriedades”.
O romance de Hoffmann já anuncia seu teor parodístico logo de
início ao colocar em cena, como protagonista, não um humano filisteu, mas
um gato que se torna um. O gato é a imagem da classe social referida e
também o elemento de substituição que compõe o traço de paródia que o
romancista desenvolve. Tomando como antecessoras as narrativas
biográficas, tais como as Confissões de Rousseau (autor mencionado seis
vezes por Murr), obras iluministas assim como a de Sterne, das quais
podem ser encontradas alusões na história de Murr, vê-se que Hoffmann
pretende utilizar obras literárias contemporâneas consideradas marcos do
pensamento a fim de expor o uso que delas foi feito por parte da sociedade,
notadamente a burguesa, e criticar tal uso por meio da transposição cômica
de um narrador humano para um narrador animal, utilizando o gato como
o símbolo dessa apropriação e, derradeiramente, similar a outros casos,
como símbolo do burguês, do filisteu.
O pensamento de Murr de que pode se distanciar do mundo
“profano” e “selvagem” dos felinos normais, crendo estar se elevando
acima do “normal” dos gatos por meio da aquisição de um conhecimento
letrado, habilidade própria dos humanos, apresenta-se invertido: o que
ocorre com Murr é precisamente a falsa “formação para o mundo”,
adentrando a zona “abominável” (nas palavras de Muzius) do filisteísmo,
que é repulsiva até mesmo para os animais.
A descrição da formação do gato pode ser considerada, portanto,
como uma paródia da formação conforme disposta na obra-mestra Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister. Não parece, no entanto, que Hoffmann
tenha proposto ridicularizar o sentido de formação (Bildung) per se, ou até
mesmo o próprio romance de formação goethiano enquanto gênero,
entrando em contraposição radical com as ideias de Goethe acerca do
processo de construção de um indivíduo; parece, mais, expor e satirizar
uma formação que era identificada como corrente na sociedade alemã,
porém que era falsa, que levava fatalmente a uma maior acomodação do
indivíduo em sua zona de conforto (literal e metafórica).

Considerações finais

A obra Reflexões do gato Murr é rica em temas e motivos que podem


ser explorados dos mais diversos ângulos. Estão incluídas nela concepções
sobre arte, escrita literária e música que o próprio autor praticava em suas
obras. O leitor atento pode perceber diversas intertextualidades presentes
nos diálogos de Murr, e também na narrativa do compositor Kreisler
(personagem que não foi abordado neste ensaio), com obras
contemporâneas, resultando na criação intratextual de profícuas
discussões sobre concepções de mundo e de vida.
Procurou-se descrever e analisar um desses aspectos presentes no
romance de Hoffmann: o uso que o autor fez do romance de formação, cujo
paradigma e protótipo havia sido recém-publicado na Alemanha, o qual
iria influenciar profundamente concepções de educação, suscitando
também uma série de reflexões sobre o incipiente romance realista que se
desenvolveria na Alemanha nas décadas subsequentes.
O gato Murr, ao descrever suas concepções de vida, personifica uma
crítica feita por Hoffmann ao filisteísmo crescente na sociedade alemã da
época por meio do relato de uma formação precipuamente
intelectualizada, sem rumos definidos e sem uma sistematização que lhe
desse uma base de sustentação sólida. Ao pôr um gato em cena, ao invés
de explicitamente um burguês, Hoffmann intensifica o caráter satírico e
cômico, além de profundamente irônico, de sua trajetória e da falsa
“formação para o mundo”. Com a expressiva intertextualidade entre os
“meses de aprendizado” de Murr e os “anos de aprendizado” de Wilhelm
Meister, Hoffmann cria uma relação parodística com o romance de Goethe,
afirmando sua importância teórica para a literatura e concepções
educacionais da época, porém criticando o modo como o conceito de
“formação” estava sendo utilizado socialmente para a exaltação dos
valores mesquinhos da nascente burguesia alemã.

Rafael Rocca dos Santos é pós-doutorando junto ao departamento de Teoria Literária e


Literatura Comparada da FFLCH/USP. Desenvolve atualmente uma pesquisa sobre as
manifestações do “duplo” (Doppelgänger) na obra de E. T. A. Hoffmann. É tradutor de inglês e
alemão.

Marcus Vinicius Mazzari é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na


Universidade de São Paulo. Traduziu para o português textos de Adelbert von Chamisso, Bertolt
Brecht, Gottfried Keller, Heinrich Heine, Karl Marx, Walter Benjamin, Jeremias Gotthelf e outros.
Entre suas publicações estão Romance de formação em perspectiva histórica (Ateliê, 1999), Labirintos
da aprendizagem (Editora 34, 2010). Elaborou comentários, notas, apresentações e posfácios para o
Fausto de Goethe, em tradução de Jenny Klabin Segall (Editora 34: Primeira Parte, 6ª ed. revista e
ampliada, 2016; Segunda Parte, 5ª ed. 2017).
FORMAÇÃO DE DUAS JOVENS ESPOSAS

Gloria Carneiro do Amaral

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O ensaio enfoca o processo de construção do romance Mémoires de deux jeunes
Mémoires de deux jeunes mariées, de Honoré de Balzac. Especial mariées;
atenção é dispensada à correspondência de duas jovens Balzac;
aristocratas francesas da época da Restauração, Louise de Formação Feminina;
Chaulieu e Renée de Maucombe, que trocam ideias sobre suas Correspondência;
respectivas vidas afetivas e casamentos, depois de anos de Instituição do
convivência num convento de carmelitas, na qualidade de Casamento.
alunas internas. O objetivo principal do romancista consiste
numa discussão sobre o casamento, tal como visto na época, e
sobre duas perspectivas de amor – o afeto conjugal e a paixão
– em suas relações com aquela instituição.

ABSTRACT KEYWORDS
This essay focuses on the building process of the novel Mémoires de Mémoires de deux jeunes
deux jeunes mariées, by Honoré de Balzac. A special attention is mariées;
given to the correspondence between two young aristocratic, French Balzac;
women of the Restauration period, Louise de Chaulieu and Renée de Female formation;
Maucombe, who exchange views about both of their respective Correspondence;
affective lives and marriages after years of living together in a Wedding institution.
convent of Carmelitas, as intern students. The main goal of the
writer consists on a discussion about wedding, as it was perceived at
that time, and about two perspectives on love – conjugal affection
and passion – and its relationships concerning the institution.
O romance de Honoré de Balzac, Mémoires de deux jeunes mariées,
saiu em folhetim, no jornal La Presse, entre 26/11/1841 e 15/01/1842,
seguindo-se a publicação em livro em março de 1842, com dedicatória a
George Sand e um prefácio do escritor que não figurava no folhetim. No
conjunto da Comédia Humana, insere-se nas Cenas da vida privada. Podemos
de imediato lembrar um “importante critério distintivo”, segundo Marcus
Mazzari1, estabelecido por Wilhelm Diltehy, um dos primeiros a delinear
teoricamente o Bildungsroman, para inserir um romance na categoria de
formação: “Esses romances de formação expressam assim o
individualismo de uma cultura restrita à esfera da vida privada” (apud
MAZZARI, 2010, p.101)
Como aponta Paulo Rónai2, achando um pouco injusto, não se trata
de um romance muito estudado. Alain (1868-1951), grande apreciador do
romancista, afirma que “ce chef-d’oeuvre vaut par la perfection du détail”3
e fecha seu artigo, que gira em torno da personagem Louise de Chaulieu,
de forma ainda mais elogiosa: “On ne peut guère citer de roman mieux fait
que celui-là, et qui, dans un bavardage si riche, compte des silences plus
émouvants, de ces silences où l’on entend venir le malheur”4. André Gide
considera-o “um livro confuso e pastoso”, mas que, ao mesmo tempo,
apresenta “lineamentos de uma obra-prima”5. A Georg Brandes6, crítico
dinamarquês, parece chocante a oposição de sensualidade e de ascetismo
apresentada no romance. De qualquer forma, não se trata de uma obra
muito visitada: de 2000 a 2017, há só dois artigos consagrados ao romance
na revista de publicação anual, Année Balzacienne.
Em carta a Madame Hanska (26/10/1834), o romancista classifica a
narrativa de “composição deliciosa”, destinada a revelar “os últimos
lineamentos do coração humano”.
O romance começa a ser mencionado nessa correspondência por
volta de 1834, o que nos permite calcular uma elaboração de cerca de sete

1 In: MAZZARI, Marcus Vinicius. Labirintos da aprendizagem: pacto fáustico, romance de


formação e outros temas de literatura comparada. São Paulo: Editora 34, 2010.
2 Ver: RONAI, Paulo. Introdução. In: BALZAC, Honoré de. A comédia humana: estudos de

costumes: cenas da vida privada. São Paulo: Globo, 2012. pp. 267-272.
3 “Esta obra-prima vale pela perfeição do detalhe”, (ALAIN, 1999, p.82. In: ALAIN. Louise de

Chaulieu. In: Balzac. Paris: Gallimard, 1999, pp.82-85).


4 “Não se pode conceber romance melhor elaborado do que este, e que, meio a uma loquacidade

tão rica, apresenta os silêncios muito comoventes, silêncios em que se ouve aproximar o
infortúnio”. (ALAIN, 1999, p.85)
5 apud RÓNAI, 2012, p.27.
6 Georg Brandes (1842-1927) crítico dinamarquês e acadêmico, influente na literatura

escandinava.
anos. Esta lenta elaboração revela, em seu caminho, mudanças de
perspectiva que podemos observar já a partir de três títulos sucessivos que
indicavam uma só personagem - Mémoires d’une jeune femme, Mémoires
d’une jeune mariée, Mémoires d’une jeune fille - até chegar ao título definitivo,
Mémoires de deux jeunes mariées.
O romance narra a trajetória de duas jovens, Louise de Chaulieu e
Renée de Maucombe, que estiveram juntas durante vários anos num
convento das carmelitas. Ficaram grandes amigas, “des soeurs d’élection”,
para usar um termo que aparece mais de uma vez no romance, e trocavam
as mais íntimas confidências sobre a vida, suas aspirações e seus
sentimentos. Inicia-se quando as duas jovens saem do convento, passam a
viver separadas, o que as leva a encetar uma correspondência para
continuar o relacionamento e a troca de idéias.
As duas jovens se preparam para a vida em sociedade o que significa
encaminhar-se para o casamento. Estamos assim diante de um tema caro a
Balzac e podemos inclusive lembrar uma afirmativa de Otto Maria
Carpeaux, que atribui a essa perspectiva a função de um divisor de águas
na trajetória da forma romanesca:

Os romances antes de Balzac terminam com o casamento; os romances de


Balzac começam com o casamento que lança os fundamentos de uma nova
firma. (Carpeaux, 1963, p.2119) 7

Acrescentemos que ambas as personagens iniciam suas trajetórias


sem o grande trunfo do casamento no período de 1823-35, no qual se passa
o romance: o dote.
Na primeira carta de Louise, já a vemos às voltas com a situação
financeira da família, da qual toma conhecimento de forma curiosa, através
do velho mordomo que, ao ver seu espanto diante das salas
desguarnecidas do espaço ocupado pela avó, lhe diz que, para restaurá-las,
espera-se a lei que devolverá aos emigrados suas antigas fortunas. A avó
deixara-lhe considerável herança; mas sua saída do convento veio alterar
os planos familiares. Numa conversa de recepção, digamos assim, o pai
participa-lhe que essa herança será destinada a estabelecer seu segundo
irmão e que ela ficará com uma quantia para se sustentar por um ano.
Situação colocada imediatamente após sua chegada, com todas as cifras
explicitadas, em bom estilo balzaquiano.
Não muito diferente é a situação de Renée que também fica sem dote
por causa do irmão caçula. Seu único trunfo é pertencer a uma família
nobre, o que lhe abre as portas para casar-se com um vizinho de posses.

7In: CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro,
1963. vol. V
Analisa a situação com bastante lucidez, fazendo-se porta-voz da opinião
de Balzac sobre a questão:

Voilà comment les familles nobles de la Provence éludent l’infâme Code civil
du sieur de Buanaparte, qui fera mettre au couvent autant de filles nobles
qu’il en fait marier. La noblesse française est d’après le peu que j’ai entendu
dire à ce sujet, très divisée sur ces graves matières8. (p.64)9

Assim, devidamente espoliadas, iniciam as duas jovens seus passos


na sociedade e a narrativa, gradativamente, centraliza-se na oposição entre
o casamento e a paixão, a qual inviabilizaria uma união nos moldes
propostos pela sociedade. Com esta tese a ser analisada, percebe-se porque
o romance que, nos seus primórdios, estruturava-se em torno de uma só
personagem, introduz uma segunda para criar a dinâmica de dois pontos
de vista acintosamente conflitantes. A realização de Louise de Chaulieu
projeta-se numa busca incessante pelo amor paixão e Renée de Maucombe,
após a saída do convento, mergulha instantaneamente num casamento de
conveniência articulado pela família e baseado num pacato e comedido
afeto conjugal. Sob pontos de vistas opostos, as duas protagonistas
empreendem um aprendizado de inserção na sociedade, o que nos coloca
diante de um romance de formação, de enunciação feminina.
Atentemos para dois princípios que Marcus Mazzari aponta como
“fundamentais” no romance de formação - a “poesia do coração” e a “prosa
adversa das relações sociais”:

Se, de fato, é procedente considerar Os anos de aprendizado como


paradigma do “romance de formação”, então seria forçoso esperar de
qualquer outro exemplar do gênero – e não só da literatura alemã – a
ocorrência, mesmo que apenas em estado latente, desses dois princípios
fundamentais. (Mazzari, 2010, p.109)

No romance de Balzac, acredito que podemos considerar não um


“estado latente”, mas um desdobramento da “poesia do coração” e das
relações sociais através da busca existencial de cada uma das duas
heroínas.

8 “Eis como as famílias nobres da Provença sofismam o Código Civil do Sr. De Bonaparte, o qual
fará com que metam no convento tantas moças nobres quantas ele fez casarem. A nobreza
francesa, segundo o pouco que ouvi a respeito do assunto, está muito dividida sobre tão grave
matéria.” (BALZAC, 2012, p.303)
9 Todas as citações em francês são da edição do romance da Editora Gallimard: BALZAC, Honoré

de. Mémoires de deux jeunes mariées. Paris: Gallimard, 1969. E as em português da tradução da
Editora Globo: BALZAC, Honoré de. “Memórias de duas jovens esposas”. In: A comédia humana:
estudos de costumes: cenas da vida privada. São Paulo: Globo, 2012.
Aliás, num ensaio sobre O verde Henrique, de Gottfried Keller, Georg
Lukács amplia o conceito de romance de formação, com uma menção
direta ao romancista francês:

Considerado de maneira mais ampla e abstrata, quase todo romance burguês


moderno e significativo contém a história de uma educação. Uma vez que os
choques entre indivíduo e sociedade, uma vez que a vitória final desta (pelo
menos exteriormente) constituem o conteúdo do autêntico romance, então o
indivíduo tem de ser conduzido sempre à compreensão da realidade social.
[...] As obras de Balzac e Stendhal são romances de educação nesse sentido
mais amplo e geral.10

Vimos como a observação sobre “os choques entre indivíduo e


sociedade” aplica-se à trajetória das duas jovens esposas e qual a saída que
se apresenta às duas protagonistas.
A forma epistolar, exceção na Comédia Humana, é bastante adequada,
pois propicia a confidência e permite descortinar, sem véus, com
convincente naturalidade, o foro íntimo das personagens. Disto tinha
consciência Balzac que declara no Avant-Propos da Comédia Humana: “A
chaque oeuvre sa forme”. No prefácio da primeira edição, define o gênero
epistolar como “ce mode si vrai de la pensée”, frequente no século XVIII,
nos diz ele, mas agora “inusité”. Jean Rousset, mais tarde, considera-o
“peut-être le dernier des véritables romans par lettres.”11(Rousset, 1979,
p.101). Seguindo uma constante do gênero, Balzac confessa ter interferido
só na organização e na escolha das cartas, mas “son travail ne va pas au-
delà de celui du metteur en scène”12 (Balzac, 1969, p.326). Quem está
habituado à arte dramática sabe bem a que ponto pode ir a interferência de
um metteur en scène sobre o texto... Podemos evocar o paradigmático
romance epistolar de Laclos, Ligações perigosas em que o Redator também
diz, no seu prefácio, ter conservado apenas as cartas necessárias para a
compreensão dos acontecimentos e para a composição das personagens.
A estrutura do romance parece indicar a concentração na oposição
entre as duas posições. Estendendo-se pelo período de treze anos –no início
Louise tem 17 anos e ao término está com 30 anos – a narrativa está
dividida em duas partes de dimensões diferentes: a primeira com 47 cartas
e a segunda, com 10 cartas. Diferentemente de Ligações perigosas em que há
vários correspondentes, neste conjunto de 57 cartas os correspondentes são
escassos. Louise escreve uma carta a Felipe, seu primeiro marido, que lhe
responde também uma só vez; não se trata, portanto, de uma

10 MAZZARI, Marcus V. Labirintos da aprendizagem – Pacto fáustico, romance de formação e outros


temas de literatura comparada. São Paulo, 2010, p. 148.
11 “talvez o último dos verdadeiros romances epistolares”, In: ROUSSET, Jean. Les mémoires de

deux jeunes mariées. In: Forme et signification. Paris: José Corti, 1979.
12 “seu trabalho não vai além do de um metteur em scène” (tradução minha)
correspondência amorosa. Ele escreve uma vez ao seu irmão Don Fernand,
recebendo uma resposta curta. Muito formalmente, o marido de Renée
envia uma rápida missiva para participar o nascimento do primeiro filho
do casal, alegando que um faire-part soaria frio para participar um
acontecimento de tal monta. Marie Gaston, segundo marido de Louise,
escreve a Daniel d’Arthez, escritor seu amigo e velho conhecido do leitor
de Ilusões perdidas, para convidá-lo, de forma muito discreta, para ser seu
padrinho; duas cartas com uma finalidade prática e pontual, embora em
torno de dois acontecimentos capitais na narrativa. Na última carta, Renée
conta ao seu marido os últimos dias de Louise e sua morte. Trata-se,
portanto, essencialmente da correspondência entre as duas amigas, nas
quais Renée aparece apenas três vezes nomeada com seu nome de solteira,
Renée de Maucombe, sendo a partir daí, significativamente, Madame de
l’Estorade, aquela que assumiu de forma definitiva e completa a condição
de mulher casada. Na primeira parte, Louise escreve 26 cartas contra 16 de
Renée; na segunda, empate de quatro a quatro.
A epistológrafa mais prolixa é certamente Louise: trinta cartas
contra vinte de Renée. E se a vida da segunda é, num certo sentido, sair de
um convento para entrar noutro, a da primeira segue vias bem mais
movimentadas, pedindo mais espaço e elaboração no delineamento de sua
formação. A carta inicial é longa, expressiva, reveladora de suas inclinações
e aspirações, anunciando a vida intensa que escolheu. Louise classifica
enfaticamente sua saída do convento de “minha libertação”. Lança-se
imediata e intensamente na conquista de “ce monde fort désiré”13 (p.36),
empreitada que classifica como “minha metamorfose”.
Há que se ressaltar a liberdade e autonomia concedidas à
personagem pelo seu entorno familiar. Louise passará a ocupar os
apartamentos da avó, sua ligação familiar mais forte e a quem acredita
dever a formação de seu temperamento. Era a avó a princesa de
Vaurémont, personalidade marcante, de pensamento independente, que
antes de sua partida para o convento lhe dissera: “tu seras independante et
même libre de marier qui tu voudras”14 (p.42); o que certamente repercute
nas atitudes da jovem ao longo da vida. A mãe faz a mesma observação,
deixando-a livre, mas também sozinha para se lançar no mundo. O pai
indica claramente que não vai interferir na sua vida. É do mesmo teor a
relação que se estabelece entre ela e sua governante inglesa Miss Griffith,
em quem percebe poder mandar; comando consciente e claramente
explicitado: “J’ai vu sur le champ que je gouvernerais ma gouvernante”15
(p.50). De passagem, podemos observar o mesmo critério de comando nas
relações de Aurélia Camargo com seu tutor, tio Lemos, num romance

13 “nesse mundo tão desejado” (tradução minha)


14 “serás independente e livre para casar com quem quiseres” (p.284).
15 “Vi imediatamente que governaria minha governante” (p.291).
brasileiro que também não deixa de ter seu lado de romance de formação,
cujo autor é confessadamente leitor de Balzac, em que a protagonista se
conduz de forma muito independente para a época, estabelecendo
inclusive um preço para um marido do seu agrado.
Louise dedica-se então ao que classifica “occupations sérieuses”16
(p.49), sem que se consiga avaliar se o termo é usado com ironia, pois o que
se segue são encontros com o luveiro, a modista, o chapeleiro, etc. O pai
apresta-se em colaborar, fornecendo os objetos indispensáveis para uma
jeune fille e que merecem pelo menos um rápido olhar: nécessaire, leque,
ombrelle, livro de rezas. Promete também aulas de equitação. Embora haja
referência a teatros e a conhecimentos literários, a transformação
concentra-se na aparência física e no que poderíamos chamar de
futilidades: “Philippe [mordomo da avó e agora dela] a couru toute la
journée chez les différents marchands et ouvriers qui vont être chargés de
ma métamorphose”.17 (p.48, grifo meu)
E, naturalmente, o début será em musseline branca, com guirlanda
de rosas brancas, o que segundo ela, pode lhe conferir um “ar de madona”,
ao qual aliará uma expressão meio tonta, com o que ela, espertamente,
pretende conquistar as mulheres. Já circulando pelo mundo, continua a
observar os procedimentos femininos:

J’ai mesuré d’un coup d’oeil le vaste champ des dissimulations femelles.18
(p.61)

Embora palidamente e sem nenhuma perversidade, esse tipo de


auto-análise tem precedentes na história literária francesa, na figura da
Marquise de Merteuil, que, após a viuvez, se recolhe para se preparar para
enfrentar o mundo, agora dona de seu destino, sem abrigar-se nem num
convento nem na casa materna, conforme esperavam as regras sociais;
elaboração também de uma formação para enfrentar o mundo,
conquistando simultaneamente total independência de ação que conduz à
satisfação plena dos seus desejos.
Após toda essa preparação, uma parte da formação de Louise, a da
aparência e conduta no mundo social está realizada. A consciência que a
personagem tem da própria metamorfose é tão lúcida que vale citá-la:

Ma chérie, me voici prête à entrer dans le monde.19 (p.53, III)

16 “nessas sérias ocupações” (p.290).


17 “Filipe andou o dia inteiro a correr à casa dos vários fornecedores e obreiros que vão ser
encarregados da minha metamorfose” (p.289-90).
18 “Num relance medi o vasto campo das dissimulações femninas” (p.301).
19 “minha querida, eis-me pronta para entrar na sociedade” (p.294).
O que o narrador de O Ateneu ouve de seu pai na abertura do
romance é aqui declaração bastante consciente da própria personagem,
evidenciando sua lucidez, que lhe mostra também que não é só a aparência
física que merece atenção na preparação para debutar no mundo. A
reflexão integra a formação e a jovem, muito observadora, repara que
ninguém na casa, nem o pai, nem a mãe, nem o irmão têm como ela,
dezesseis horas para se dedicar à reflexão. Mas isto não conduz
forçosamente ao bom comportamento social.
Retomo e amplio a afirmativa solene e decidida da nossa debutante
na língua original porque me parece que a tradução de Vidal de Oliveira,
muito boa no seu conjunto, fez aqui duas pequenas modificações que, para
a perspectiva do romance de formação merecem ser retomadas do francês:
“Ma chérie, me voici prête à entrer dans le monde; aussi ai-je taché d’être
bien folle avant de me composer pour lui.Ce matin après beaucoup
d’essais, je me suis vue bien et dûment corseté, chaussée, serrée, coiffée,
habillée, parée.”20 (p.53)
“Monde” amplia o espaço no qual se lança Louise e, de fato, sua
trajetória não se enquadra exclusivamente no âmbito da sociedade
aristocrática para a qual ela se preparou com todas as adequações da moda;
e, note-se, esta preparação condiz bem com “me composer pour lui”, “me
compor para ele” e a sucessão “espartilhada, calçada, apertada, penteada,
vestida, enfeitada” (p.294) indica mais uma composição de fachada do que
com um ajustamento de comportamento social.
Mergulhando na vida social, lança-se Louise no que poderemos
chamar de etapa seguinte de sua formação feminina: a busca de um amor,
já descrito, impregnado de idealização e delirantes aspirações. De certa
forma, sua tia do convento das carmelitas entrevira seu destino no primeiro
esboço do retrato da jovem, com pinceladas premonitórias:

Dieu t’a marquée au front du sang des élus, tu as l’orgueil qui mène également au
ciel et à l’enfer, mais tu as trop de noblesse pour descendre! Je te connais mieux
que tu ne te connais toi-même: la passion ne sera pas chez toi ce qu’elle est chez les
femmes ordinaires. 21 (p.36)

Chocada com a escolha de caráter essencialmente prático da amiga,


que se lança de imediato num casamento, Louise dá asas aos seus delírios
na sua resposta:

20 “Minha querida, eis-me pronta para entrar na sociedade; por isso tratei de ser bem aloucada
antes de me ajustar a ela. Hoje de manhã, após muitos ensaios, vi-me bem e devidamente
espartilhada, calçada, apertada, penteada, vestida, enfeitada.”(p.294).
21 “Deus marcou-te na fronte com o sinal dos eleitos; tens o orgulho que tanto leva ao céu como

ao inferno, mas tens demasiada nobreza para descer! Conheço-te melhor do que tu a ti mesma: a
paixão em ti não será o que é nas mulheres comuns.” (p.278).
A votre place, j’aimerais mieux aller me promener aux îles d’Hyères en
caïque, jusqu’à ce qu’un corsaire algérien m’enlevât et me vendît au grand
seigneur; je deviendrais sultane22 (p.75)

Suas sugestões são inverossímeis, desprovidas de realidade. Há


ainda que se notar o toque de orientalismo que impregna os sonhos de
Louise, como atestado final de fantasias, inseridas no romantismo da
época.
Não é, pois, de se estranhar que Louise não se interesse por nenhum
dos moços casadouros com que cruza socialmente, achando todos os
olhares muitos “pálidos”. E eis que, de repente, um “intruso” interpõe-se
na correspondência das duas moças. Se não é oriental, vem de terras de
Espanha, tem sangue mouro, passado de guerras e aventuras, aspira a um
doce amor com que não lhe agraciou o destino. O destino reúne as duas
almas românticas:

Nous avons pour maître un pauvre refugié forcé de se cacher à cause de sa


participation à la révolution que le duc d’Angoulême est allé vaincre; succès
au quel nous avons dû de belles fêtes. Quoique libéral et sans doute
bourgeois, cet homme m’a intéressée: je me suis imaginé qu’il était
condamné à mort. 23 (p.82)

O pai confirma –sorrindo- a impressão da filha, quatro cartas depois,


atribuindo ao “pobre mestre” seu atual título de nobreza: barão de
Macumer. O “condenado à morte” é uma espécie de emblema, cujo rastro
pode ser seguido na literatura romântica francesa, antes e depois do
romance de Balzac. Em Le rouge et le noir (1830), Mathilde de la Mole,
sufocada de tédio no meio aristocrático que freqüentava, fica fascinada
pelo conde de Altamira que fora condenado à morte em seu país: parece-
lhe ser a única coisa que distingue um homem, pois é a única coisa que não
pode ser comprada. E, pouco depois, em 1845, encontramos a rainha
Margot, no romance homônimo de Alexandre Dumas, indo buscar a
cabeça decapitada de seu amante, La Mole, para colocá-la num saco
perfumado e bordado de pérolas.

***

Enquanto uma se aparata para entrar na vida mundana e social,


descrevendo sua “metamorfose” em uma longa carta, que começa em

22 “Em teu lugar, eu preferiria ir passear pelas ilhas de Hyères num caíque, até que um corsário
argelino me raptasse e me vendesse ao grão-turco; tornar-me-ia sultana.” (p.314)
23 “Temos como professor de espanhol um pobre refugiado forçado a esconder-se por causa da

sua participação na revolução que o duque de Angoulême foi vencer, sucesso ao qual devemos
belas festas. Embora liberal e, sem dúvida, burguês, esse homem me interessou: imaginei que ele
fora condenado à morte.” (Carta VIII) p.320
setembro e termina em 15 de dezembro, o que acontece com sua
correspondente?
A sua primeira carta é a quinta, a única em que assina o nome de
solteira, Renée de Maucombe. Depois da descrição detalhada do début de
Louise, Renée explana sua trajetória numa só missiva, em que expressa
claramente um desejo de segurança.
Renée não teve sua iniciação no mundo social parisiense e segue
uma direção de formação bastante diferente da amiga; sua formação se faz
no lar, na criação dos filhos, aprendendo a administrar com economia a
casa e a organizar o patrimônio.
Depois de acompanhar os relacionamentos de Louise e a descrição
de seus dois maridos, não se pode deixar de lado a descrição do marido de
Renée, Louis de l’Estorade que, feito prisioneiro nas guerras napoleônicas,
volta para a França a pé, através da Rússia, Polônia e Alemanha:

L’exilé, ma chère mignonne, est comme une grille, bien maigre! Il est pâle, il
a souffert, il est taciturne. A trente-sept ans [Renée tem 17 anos], il a l’air d’en
avoir cinquante. L’ébène de ses ex-beaux cheveux de jeune homme est
mélangé de blanc comme l’aile d’une alouette. Ses beaux yeux bleus sont
caves; il est un peu sourd, ce qui le fait ressembler au chevalier de la Triste
Figure;24 (p.65)

Uma descrição que se insere na vasta galeria de retratos cruelmente


realistas de Balzac, ao lado de Gobseck, père Séchard, ou mesmo de
Madame Vauquer. O adjetivo “beaux” – positivo – é empregado duas
vezes, mas imediatamente demolido pela descrição que se segue e relegado
ao passado: “ex-beaux”.
Digamos que a descrição da candidata não é empolgada, é antes de
uma implacável lucidez, irônica, radicalmente oposta aos enlevos das
noivinhas românticas. O que motiva então a interlocutora da exaltada
Louise?
Continuemos a citação interrompida num ponto e vírgula para
entender a opção da jovem esposa, que engata numa mesma frase a
descrição do marido e as condições materiais do casamento:

; néanmoins, j’ai consenti gracieusement à devenir madame de l’Estorade, et


à me laisser doter de deux cent cinquante mille livres, mais à la condition
expresse d’être maîtresse d’arranger la bastide et d’y faire un parc.25 (p.65)

24 “O exilado, querida mimosa, é como a grade, bem magro! É pálido, sofreu, é taciturno. Aos
trinta e sete anos, parece ter cinqüenta. O ébano dos seus ex-bonitos cabelos de rapaz está
mesclado de branco como a asa de uma cotovia. Seus belos olhos azuis são encovados; é um
pouco surdo, o que o faz parecer-se com o cavaleiro da Triste Figura;” (p.304)
25 “; não obstante consenti graciosamente em me tornar sra. de l’Estorade, em me deixar dotar

com duzentos e cinqüenta mil libras, mas com a condição expressa de reformar o bastião e de
Uma boa renda e as rédeas da propriedade são suas condições, o que
ela deixa bem claro para o futuro sogro. Em toda a Comédia humana, não há
praticamente personagem que não tenha sua renda declarada, com maior
precisão do que junto ao fisco. A personagem que opta pelo casamento de
conveniência não o faz tão ingenuamente quanto seria de se supor,
considerando-se sua saída recente do convento. Arlette Michel26, crítica
que estuda especialmente o tema do casamento em Balzac, pergunta-se por
qual educação estão preparadas essas duas jovens, lançadas na vida aos 17
anos, quase todos passados num convento. Cabe a pergunta formulada por
ela, mas parece-me interessante colocá-la de outra perspectiva: como esta
personagem diretamente saída de um convento consegue se posicionar
com uma visão tão arguta da sociedade francesa da Restauração, com
conhecimento inclusive sobre o Código civil de Napoleão? A lucidez e o
senso prático de Renée sobrepõem-se ao perfil de moça que saiu do
convento, carreando ideias que entenderemos melhor se as atribuirmos ao
autor.
Sua formação dar-se-á quanto à sua conduta de mulher casada que
orienta o marido na vida política e diplomática, ditada em grande parte
pelas ambições de projeção social que tem em relação à sua família. Como
se pode ver, uma personagem muito balzaquiana.
Já assinando Madame de l’Estorade (Carta IX), afirma que “Ma vie
est determinée. La certitude d’aller dans un chemin tracé convient
également à mon esprit et à mon caractère.”27 (p.85)
E também as razões que a levam ao casamento não coincidem com
as de Louise: “J’ai mieux aimer être mariée à M. de L’Estorade que de
retourner au couvent. Voilà qui est clair.”28 (p.103), dirá mais tarde.
Confessando-se resignada, declara que vai tirar o melhor partido possível
da situação. E a descrição do seu casamento, bastante objetiva e pouco
sentimental é, sobretudo, uma declaração prática e objetiva de posses, a
gosto de muitas personagens balzaquianas: empregados satisfeitos,
cavalos ingleses, coupé, tílburi, um sogro que, para agradá-la, deixou de
lado a avareza e passou a se vestir segundo os costumes contemporâneos.
Tudo já estava previsto e sem expectativas de mudanças: “Je sais déjà par
avance l’histoire de ma vie”29 (p.67). Muito similar à forma como Louise se
refere à vida de uma carmelita: “Cette vie monotone où chaque heure

fazer um parque. Exigi formalmente de meu pai que me concedesse um filete de água, que poderá
vir de Maucombe até aqui.” (p.304)
26 Ver: MICHEL, Arlette. Introduction. In: Mémoires de deux jeunes mariées. Paris: Garnier-

Flammarion, 1979, pp.19-47.


27 “Minha vida está agora determinada. A certeza de seguir por um caminho traçado convém

igualmente ao meu espírito e ao meu caráter” (p.324)


28 “Preferi desposar Luís de l’Estorade a voltar para o convento. Isso é claro.” (p.341)
29 “Já sei de antemão a história da minha vida” (p.305)
amène un devoir, une prière, un travail, si exactement les mêmes, qu’en
tous lieux on peut dire ce que fait une carmélite à telle ou telle heure du
jour ou de la nuit”30 (p.34). Na descrição que faz do seu casamento para a
amiga emprega sempre o futuro na antevisão do que será sua vida,
ratificando mais tarde essa visão ao defini-la “comme une grande route par
un jour sans soleil”31 (p.140).
Renée deixa de lado, aparentemente com segurança e tranqüilidade,
as fantasias:

Adieu donc pour moi du moins, les romans et les situations bizarres dont
nous nous faisons les heroïnes.32 (p.67)

E as fantasias são, desde essa época, apoiadas em leituras que entram


sorrateiras nos conventos; perspectiva que se solidificará com a formação
romântica de Emma Bovary, devorando romances que a solteirona de
família aristocrática falida levava nos bolsos e passava para as moças;
romances que “n’étaient qu’amours, amants, amantes, dames persecutées
s’évanouissant”33 etc, etc, citando só o começo da sequência de delírios
românticos que povoavam a imaginação de Emma.
Mais uma vez a clarividência de Renée, que assimila outros modelos,
se faz presente e ela compara as leituras das duas: Louise lê Corinne e ela,
Bonald.
Corinne, de Madame de Staël, é um romance tido como “cosmopolita
e europeu”; acrescentemos um romance romântico, cuja heroína é uma
poeta que abre o debate sobre a condição feminina, reflete, como crítica,
sobre as diversas artes, protagoniza uma relação amorosa e está deslocada
socialmente. É identificada com frequência à própria autora; e serve, em
parte, de modelo a Louise.
Visconde Louis de Bonald, autor apreciado por Balzac, é um
pensador católico, contra-revolucionário e anti-iluminista. Exilado na
Alemanha, escreve livros de combate ao ideário da Revolução Francesa,
visando em especial Rousseau e Montesquieu.
A distância entre as leituras é bastante significativa. Acrescentemos
que enquanto o pai de Louise a equipou com todos os itens necessários
para compor a aparência de uma jovem da aristocracia, o pai de Renée a
fez ler Bonald que, segundo a moça, é um escritor sério, de convicções

30 “Aquela vida monótona em que cada hora traz um dever, uma prece, um trabalho, tão
exatamente os mesmos, que em toda parte se pode dizer o que uma carmelita faz a tal ou qual
hora do dia ou da noite” (p.276)
31 “como uma estrada real num dia sem sol” (p.373). Há uma incorreção na tradução que diz: “de

sol”
32 “Adeus, pois, pelo menos para mim, aos romances e às situações estranhas de que no

imaginávamos as heroínas.” (p.305)


33 “eram só amores, amantes, damas perseguidas desmaiando” (tradução minha)
profundas, herdeiro de Bossuet. Tiveram uma mesma formação no
convento, mas as famílias dirigiram-nas de forma diferente, uma inserida
na aristocracia parisiense, outra na província. O que, em parte, explica as
trajetórias e aspirações diferenciadas.
Mas essas certezas e a segurança material não impedem que Renée
faça suas reflexões isolada, ao pé de um rochedo do parque, propiciando
controladas reflexões, como uma dona-de-casa clariciana, que afasta,
prudentemente, aberturas para uma epifania. Fantasias, ela as viverá
através da amiga, atribuindo-lhe o papel romanesco na sua vida. Este tom
fraternalmente conciliatório e resignado, delegando à amiga uma parte de
sua existência, deixa, em vários outros momentos, escapar suspiros de
frustrações.
Praticamente no centro do romance, após acompanharmos todos os
movimentos amorosos de Louise, o cotidiano doméstico de Renée
avoluma-se, ocupa toda a carta XXXI, manifestando-se de forma
transparente: “me vi metamorfoseada em mãe feliz” (p.418)
A carta relata o fim da gravidez de Renée, do parto ao aleitamento,
detalhadamente, com seus aspectos fisiológicos e a ternura que a mãe sente
crescer pelo filho, de forma surpreendente; mais surpreendente se
pensarmos que a maternidade é retratada por um homem e solteirão... As
opiniões divergem sobre este aspecto do romance. Mais de um crítico
considerou de mau gosto o realismo excessivamente cru desse relato.
Outros apreciam, como Jean Rousset, que, no seu curto texto sobre o
romance, classifica essas páginas como “extraordinários momentos líricos”
(Rousset, 1979, p.102). É preciso considerar que Renée apresenta a
maternidade como talvez o único momento de conjunção entre as leis da
Natureza e as da Sociedade para a mulher, o que nos remete às idéias
expostas no Avant-Propos da Comédia Humana e a preocupações de Balzac.
George Sand, a quem o livro é dedicado, faz uma observação
conclusiva a respeito da pintura do sentimento materno:

[...] il faut, mon cher, que vous ayez, suivant les idées de Leroux, un souvenir
d’existence antérieure où vous auriez été femme et mère.34 (Balzac, 1969,
p.330)

Uma incursão biográfica talvez ajude a entender um pouco como o


solteirão Balzac conseguiu traçar um retrato da maternidade tão intenso e
fiel. A explicação seria –até certo ponto - a longa convivência com a amiga
Zulma Carraud, ela mesma, como a Renée do romance, casada com um
homem bem mais velho, traumatizado pela vivência das guerras
napoleônicas, durante as quais fora feito prisioneiro.

34“[...] é preciso, meu caro, que você tenha, segundo as ideias de Leroux, uma lembrança de vidas
passadas em que você teria sido mulher e mãe.” (tradução minha)
A mesma George Sand acrescenta outro comentário para o qual
devemos atentar, considerando-se o amplo espectro dos temas e assuntos
da Comédia Humana:

Après tout vous savez tant de choses que personne ne sait.35

Na carta LI, na segunda parte do romance, após o casamento de


Louise com Marie Gaston e um silêncio de dois anos da amiga, Renée faz
um balanço da sua vida e seus planos para o futuro dos filhos, que ela
chama de “sages calculs” (p.262) e que revelam o viés sociológico do
romance balzaquiano. O mais velho destina-se à política e terá a maior
parte da herança; o caçula deverá se encaminhar para a marinha e fará um
casamento rico, igualando-se então sua fortuna à do irmão. Os filhos são
louvados com qualidades inegualáveis e tout va bien au meilleur des mondes...
No entanto, a mãe exultante precisa ressaltar que os filhos a cumulam de
alegrias como se soubessem os sacrifícios que ela fêz por eles e que isto
supera a perda de todos os amores que poderia ter tido. Cabe perguntar:
estará ela tão convicta de sua opção para ter que proclamá-la de forma tão
reiterada? A quem tenta convencer?
A diferença entre as duas, explicitada de passagem nas primeiras
cartas por Renée, toma um formato mais consistente após a vivência de dez
anos:

De nous deux, je suis un peu la Raison comme tu es l’Imagination; je suis le


grave Devoir comme tu es le fol Amour. Ce contraste d’esprit n’existait que
pour nous deux, le sort s’est plu à le continuer dans nos destinées.36 (p.206)

***

A partir do casamento de conveniência de Renée e do envolvimento


de Louise com Felipe de Henares, que desemboca num casamento
passional em ambiente bastante parisiense e mundano, a correspondência
entre as duas agora jovens esposas, completando suas respectivas
formações na sociedade e no mundo, passa a girar em torno das duas
escolhas diferentes, diametralmente opostas e de incessantes cobranças
mútuas, que, numa certa medida, questionam as respectivas escolhas.
O confronto se delineia de forma bastante evidente a partir da carta
IX, quando Renée começa a fazer uma avaliação do seu recente casamento
e a levantar uma das questões fundamentais discutidas no romance: a

35“No fim das contas, o senhor sabe tantas coisas que ninguém sabe” (tradução minha)
36“Das duas eu sou um pouco a Razão, como tu és a Imaginação; eu sou o grave Dever, como tu
és o louco Amor. Esse contraste de espírito não existia senão para nós duas, à sorte aprouve
continuá-lo nos nossos destinos.” (p.432).
opção entre casamento e paixão, maternidade e amor: “la loi naturelle et le
code sont ennemis”37 (p.129)
Há momentos em que o confronto das duas posições é explicitado:

Entre nous deux qui a tort, qui a raison? Peut-être avons nous également tort
et raison toutes deux, et peut-être la société nous vend-elle fort cher nos
dentelles, nos titres, nos enfants! 38 (p.131)

Mesmo no auge da alegria, que é difícil avaliar até que ponto é real
ou aparente, Renée deixa escapar gritos de protesto contra a necessidade
de silenciar o “instinto das coisas sublimes” (carta IX). Não consegue
deixar de lado a comparação com a vida da amiga e a ostentar as vantagens
da sua vida em relação à de Louise; e esta, por sua vez, vangloria-se
incessantemente de sua intensa vida amorosa.
A argumentação de Renée reveste-se ainda de um caráter filosófico:

Si l’amour est la vie du monde, pourquoi d’austères philosophes le suppriment-ils


dans le mariage? Pourquoi la Société prend-elle pour loi suprême de sacrifier la
Femme à la Famille en créant ainsi nécessairement une lutte sourde au sein du
mariage? 39 (p.138)

Ao que a amiga retruca, contrapondo-se frontalmente, que ela vive


com muito amor e pouca filosofia, ao contrário de Renée e que prefere os
tumultos do coração a uma vida medida e calculada.
As cartas estão recheadas de expressões do gênero “meu anjo”,
“minha querida”, “minha bela corça”, “querida mimosa” e outras mais.
Mas, defendendo posições tão opostas, meio a cobranças incisivas e críticas
mútuas e acerbas, o leitor se pergunta sobre a ambiguidade das relações
entre os dois “anjos”, que deixa aflorar uma concorrência acirrada. Não é
de se estranhar, pois, que num determinado momento haja uma explosão
de agressividade. E isto se dá na carta XXXV, durante a visita que Louise
faz para conhecer o filho de Renée, único momento do romance em que as
duas se encontram pessoalmente. A visitante parte bruscamente, sem se
despedir e explica por carta, “carta odiosa”, segundo Renée, a razão da
partida: ciúmes do marido e da amiga. Como em outros momentos, uma
desequilibra-se e a outra mantém o controle de suas emoções.
A partir desse momento a narrativa toma um ritmo diferente e
acelera-se, quase impaciente: o marido de Louise morre, ela se casa outra

37 “A lei natural e o código são dois inimigos” (p.363)


38 “Das duas, quem tem razão, quem está errada? É bem possível que ambas estejamos em erro e
tenhamos razão, e possivelmente a sociedade nos vende muito caro os nossos enfeites, os nossos
títulos, nossos filhos!” (p.365)
39 “Se o amor é a vida do mundo, por que motivos filósofos austeros o suprimem do casamento?

Por que a sociedade torna por lei suprema sacrificar a mulher à família, criando por essa forma,
necessariamente, uma luta surda no seio do casamento?” (Carta XX). (p.371)
vez; Renée tem mais dois filhos, seu marido ascende na política. O segundo
marido de Louise é poeta e mais moço do que ela. Consumida de ciúmes,
numa outra atitude tresloucada, ela apanha frio à noite, acaba doente e
morre. Por que o ritmo agora desabrido? A questão fundamental já fora
satisfatoriamente colocada: o embate entre a natureza e o código social, o
amor e o casamento. A narrativa parte dessas duas formações diferentes
que permitem ao romancista discutir as questões que o interessavam.
A paixão desenfreada de Louise insere-se na formação
acentuadamente romântica do primeiro Balzac e estabelece um contraste
com as preocupações biológicas, fisiológicas que produzem quase
completo recalque do sonho e do emocional.
Marcus Mazzari, (2010) em seu estudo sobre as várias definições do
romance de formação, mostra que Morgenstern leva em consideração a
temática do romance e também “sua função social”.
Se o romance de formação deve, numa certa medida, repercutir na
“formação do leitor”, qual a posição de Balzac diante dessas duas
trajetórias tão diferentes?
No desenlace, a partidária do amor paixão sucumbe depois de dois
amores que, por razões diferentes, desembocam na morte e a partidária do
casamento alcança seus objetivos de estruturação social da família. Parece
ser esta a opção que retumba vitoriosa.
A primeira carta é de Louise, a última é de Renée, como a confirmar
a vitória da sua opção. Qual o sentido oculto do grito pungente do final do
romance em que face à amiga morta, desesperada, pede para ver os filhos,
como se fossem uma tábua de salvação?
As declarações de Balzac paralelas ao romance não parecem
endossar a opção vitoriosa de Renée. Em carta de março de 1835 a Madame
Hanska, quando a obra ainda projetava-se em torno de uma única
personagem, pronuncia-se com ironia:

J’ai à faire les Mémoires d’une jeune mariée, un ouvrage en filigrane qui sera
une merveille pour ces petites femmes que les ailes de Séraphita trouveront
incompréhensives.40 (BALZAC, 1969, p.318)

George Sand comove-se com as atitudes da mãe, o que não a impede


de fechar uma carta sobre o romance de forma diferente:

40“Vou escrever as Memórias de uma jovem esposa, um trabalho em filigrana que será uma
maravilha para as mulherzinhas que acharam incompreensíveis as asas de Sérafita.” (tradução
minha)
J’admire celle qui procrée, mais j’adore [sic] celle qui meurt d’amour. Voilà
tout ce que vous avez prouvé et c’est plus que vous n’avez voulu.41 (Balzac,
1969, p.330)

A posição de Balzac em relação à questão que se propõe a discutir é


bastante ambígua. No romance, a trajetória de Louise é marcada pelo
fracasso, conferindo vitória às posições e previsões de Renée. Por outro
lado, o autor dedica-o a George Sand, cuja existência, digamos, pouco tem
a ver com a trajetória racional de Renée. Ao receber a homenagem, a
escritora, em carta provavelmente de fevereiro de 1842, expressou sua
opinião.
Sem tardar, Balzac respondeu, em frase antológica sobre as duas
personagens:

Soyez tranquille, nous sommes du même avis, j’aimerais mieux être tué par
Louise que de vivre longtemps avec Renée42. (Balzac, p. 321)

Observação que pode deixar o leitor contrafeito e em dúvida sobre


qual formação endossada pelo escritor: os arroubos do coração ou a estrada
aplainada das convenções sociais? Ou, nos termos colocados pelo romance:
deve-se seguir a natureza ou o código social? Na filosofia de Renée
encontramos brechas que questionam sua própria opção que aparece como
vitoriosa em seus propósitos.
Mesmo sendo Balzac um defensor do casamento, tal posição não
impede que seja também seduzido pela paixão, ficando difícil conciliar as
opções antagônicas de suas duas personagens. Esta posição ambivalente –
ou por isso mesmo – confere especial relevo a essas duas formações que,
desembocando em destinos opostos, recolocam questões que continuam
atuais. E o que nosso escritor propõe talvez não seja uma escolha
categórica, mas uma reflexão sobre o casamento burguês e a paixão.

Gloria Carneiro do Amaral é graduada em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de


São Paulo (1970); mestre em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo
(1976); doutora em Letras (Língua e Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo (1989);
Livre-docente em Letras pela Universidade de São Paulo (2006). Professora livre-docente
aposentada da Universidade de São Paulo, atualmente é professora do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem experiência na área de
Letras, com ênfase em Literaturas Estrangeiras Modernas e Literatura Comparada. É
pesquisadora principalmente nas seguintes áreas: literatura comparada, literatura brasileira e
francesa.

41 “Admiro a que procria, mas adoro a que morre de amor. Eis o que o senhor provou e é mais do
que o que o senhor tinha querido.” (tradução minha)
42 “Fique tranqüila, somos da mesma opinião, eu preferiria ser morto por Louise do que viver

muito tempo com Renée” (tradução minha)


PHILIP PIRRIP:
AS GRANDES E AS PERDIDAS ILUSÕES
Sandra Guardini Vasconcelos1

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Este artigo explora a aclimatação do paradigma do Bildungsroman inglês;
Bildungsroman no âmbito da tradição literária inglesa, Charles Dickens;
discutindo suas ressonâncias no romance Grandes esperanças Grandes esperanças;
de Charles Dickens. Argumenta-se que as decisivas romance e sociedade.
mudanças decorrentes dos processos de industrialização e
urbanização, assim como a ascensão das classes médias,
imprimem traços específicos à narrativa da trajetória do
herói, a qual encarna as contradições de seu tempo.

ABSTRACT KEYWORDS :
This article explores the acclimatisation of the paradigm of the English Bildungsroman;
Bildungsroman in the English literary tradition, discussing its Charles Dickens;
resonances in the novel Great Expectations by Charles Dickens. It Great Expectations;
argues that the decisive changes resulting from the process of Novel and society.
industrialisation and urbanisation, as well as the rise of the middle
classes, imprints specific features in the narrative of the hero’s
trajectory, which embodies the contradictions of its own time.

1
Professora Titular de Literatura Inglesa e Comparada (DLM). Contato: [email protected]
I. Introdução

Em 10 de junho de 1870, ao render um tributo a Charles Dickens,


cuja morte ocorrera no dia anterior, o jornal The Times resumia em editorial
a relação que a nação havia estabelecido com um de seus mais importantes
romancistas:

Foi repentinamente arrebatado de nós aquele que jovens e velhos, onde quer
que a língua inglesa seja falada, se acostumaram a considerar como um
amigo pessoal. Charles Dickens não vive mais. A perda de tal homem é um
acontecimento que faz as expressões comuns de pesar parecerem frias e
convencionais. Ela será sentida por milhões como nada menos que um luto
pessoal.2

Desaparecia, assim, o escritor que havia penetrado todos os estratos


sociais e cuja obra havia feito a Inglaterra rir e chorar, e havia exposto a
bondade e a força das pessoas simples, mas também a miséria e a ganância
de uma sociedade em transformação. Desde a década de 1840, quando
surgiu na cena literária e passou a traduzir as conquistas, dilemas e
contradições de um país às voltas com mudanças substanciais em sua
organização econômica e social, Charles Dickens (1812-70) personificou na
sua própria trajetória a crença na mobilidade social e no sucesso pelo
esforço pessoal que a ideologia burguesa vendeu como um sonho viável a
todos os indivíduos de talento. Espécie de porta-voz das esperanças e
desilusões de seu tempo, ele havia se tornado uma instituição e da extensão
de sua fama dá testemunho um de seus pares, George Gissing, o
romancista responsável por um dos primeiros estudos críticos sobre o
autor de Oliver Twist:

Suponho que, por pelo menos vinte e cinco anos de sua vida, não houve um
lar de língua inglesa no mundo [...] no qual seu nome não fosse tão familiar
quanto o de qualquer conhecido e no qual uma alusão às personagens
criadas por ele deixasse de ser compreendida.3

2 “One whom young and old, wherever the English language is spoken, have been accustomed
to regard as a personal friend is suddenly taken away from among us. Charles Dickens is no
more. The loss of such a man is an event which makes ordinary expressions of regret seem cold
and conventional. It will be felt by millions as nothing less than a personal bereavement.” The
Times, Friday, June 10, 1870. Quando não indicado de outro modo, todas as traduções são minhas.
3 “I suppose that for at least five-and-twenty years of his life, there was not an English-speaking

household in the world […] where his name was not as familiar as that of any personal
Dickens iniciou sua carreira literária com Sketches by “Boz” (1836)
mas foi The Pickwick Papers, publicado em dezenove fascículos entre março
de 1836 e outubro de 1837, que não só o tornou popular, mas também lhe
valeu o reconhecimento como escritor. Graças à produção seriada, que lhe
permitia acompanhar a reação do público leitor e, se necessário, introduzir
modificações no enredo ou no desenvolvimento das personagens, essas
primeiras obras já traziam as marcas que fariam sua fama: a comicidade e
a idiossincrasia de suas criaturas, humor, melodrama, certo viés satírico e
crítica social. Por trás do otimismo e do enaltecimento da inocência que
parecem sobressair em sua produção, desenha-se um sombrio cenário
vitoriano, no qual se entreveem as carências, as aflições e as iniquidades
que caracterizaram sua época.
Charles Dickens fez parte de uma nova geração de romancistas que
surgiu no final da década de 18404 e iria responder, cada um à sua maneira,
a uma série de transformações que já vinham ocorrendo na Inglaterra
desde o final do século XVIII e geraram um “novo tipo de consciência”,
decorrente de um sentimento generalizado de crise. Na esteira da
Revolução Industrial, o processo de industrialização e a crescente
urbanização, resultado da migração das zonas rurais para o meio urbano e
do consequente crescimento das cidades,5 introduziram mudanças
substanciais no modo de vida inglês. Se, por um lado, inúmeras
instituições de uma cultura urbana foram criadas naqueles anos, como
music-halls, parques públicos, jornais, museus e bibliotecas, por outro lado
laços comunitários se romperam e a cultura tradicional do povo inglês se
desintegrou, dando lugar a uma nova realidade e a um novo tipo de
experiência. Em uma sociedade estratificada e hierárquica, eclodiu ainda
uma luta pela democracia, que reivindicava direitos civis e políticos para
as “classes médias”, ao mesmo tempo que um movimento operário
conhecido por Cartismo [Chartism] clamava por uma reforma parlamentar
que incluísse o sufrágio universal masculino; o voto secreto em cédula;
eleições anuais; a igualdade de direitos eleitorais; a eleição de

acquaintance, and where an allusion to characters of his creating could fail to be understood.” In:
George Gissing. Charles Dickens. A Critical Study. New York: Dodd, Mead and Company, 1898,
p. 305.
4 As observações e comentários a seguir reproduzem os argumentos de Raymond Williams, na

Introdução a The English Novel from Dickens to Lawrence (London: The Hogarth Press, 1987). Dessa
geração, fizeram parte as irmãs Brontë, William M. Thackeray, Elizabeth Gaskell, entre alguns
outros.
5 A Inglaterra assistiu, ao longo dos séculos XVIII e XIX, à expansão das cidades industriais ao

norte, a um significativo aumento populacional (de cinco milhões de habitantes em 1700 para
quase nove milhões, por volta de 1800), e a um crescimento expressivo de Londres, que contava
com quase um milhão de habitantes no início do século XIX e havia se tornado a capital mundial
em população e riqueza.
representantes da classe operária no parlamento; a remuneração para os
parlamentares.
Longe de alterar apenas as formas externas do cotidiano, essas
grandes mudanças sociais e históricas modificaram também sentimentos e
experiências interiores, que o romance irá explorar ao figurar as crises de
seu próprio presente. Emergia, assim, uma nova “estrutura de
sentimento”, nos termos de Raymond Williams, da qual alguns romances
publicados entre 1847 e 1848 foram altamente representativos. Segundo o
crítico, aqueles dois anos testemunharam não apenas o surgimento
daquela geração de romancistas que, graças à consciência das mudanças
na sociedade inglesa, irá buscar caminhos originais, desafiantes e
inovadores, mas também a transformação do romance na “principal forma
da literatura inglesa”. Compelidos pela necessidade de compreender as
alterações em seus modos de vida, esses romances se voltarão para a
sondagem da substância e do sentido de comunidade e da consciência
histórica das crises de seu presente imediato. No contexto da transição de
uma sociedade predominantemente rural para uma sociedade
predominantemente urbana, as relações entre experiência e comunidade
tornaram-se cada vez menos transparentes e mais complexas, assim como
as supostas verdades “universais” foram se mostrando cada vez mais
particulares. Para aquela geração, as pressões e os distúrbios não
constituíram uma fôrma, que gerou uma forma, mas foram muitas vezes
vividos como uma crise da experiência, sugerindo-lhes novas direções
para o romance, o qual irá se defrontar com um problema de ponto de vista
e de uma nova consciência histórica e incorporar uma percepção da
sociedade não somente como “a portadora mas como a criadora ativa, a
destruidora ativa, dos valores das pessoas e das relações”.6
Apesar do preconceito e do desprestígio que ainda rondavam o
romance, como gênero literário e obra de arte, sua constante consolidação
ao longo do século XIX fará dessa forma literária tão aberta o instrumento
ideal para responder aos fatos de seu tempo e para lidar com esses novos
sentimentos e dinâmicas, ao figurar de modo cada vez mais patente a
história da vida contemporânea. A vida em sociedade apresentava um
nível de complexidade, desarmonia, anonimato, de diversidade de valores
que se opunha ao sentimento de comunidade que presidia, pelo menos
teoricamente, o cotidiano dos habitantes da zona rural. O “colapso” de
uma cultura tradicional ainda ligada à comunidade rural – modelo da
Inglaterra pelo menos até o século XVIII – foi acompanhado do surgimento
de uma “cultura comercial”, ligada à vida urbana, com a manutenção de
uma “cultura da minoria”, de traços mais aristocráticos. Dickens vai trilhar

6 Raymond Williams, The English Novel, p. 26.


o caminho do meio, entre esses dois impulsos, aproveitando-se tanto dessa
cultura de extração mais erudita quanto dessa cultura dita comercial.
A Inglaterra, de modo geral, e particularmente Londres haviam se
tornado um foco de contrastes e de contradições: de um lado, a
extraordinária acumulação de riqueza e excepcional progresso, graças aos
frutos da Revolução Industrial, e, de outro, a pobreza assustadora,
contraste que Dickens fará visível no conjunto de sua obra. Atento à
existência desse fosso, o historiador e ensaísta britânico Thomas Carlyle,
de quem Dickens foi interlocutor e amigo, havia exposto o que denominou
de “o problema da condição da Inglaterra” em dois de seus livros, Chartism
(1840) e Past and Present (1843),7 dando ao Conservador Benjamin Disraeli
o argumento para descrever um país dividido em “duas nações”:

Duas nações, entre as quais não há relação ou solidariedade; que são tão
ignorantes dos hábitos, pensamentos e sentimentos uma da outra como se
morassem em zonas diferentes ou fossem habitantes de planetas diferentes;
que têm uma criação diferente, se alimentam de comida diferente, se
orientam por regras diferentes de boas maneiras e não são governadas pelas
mesmas leis. “Você fala de —” disse Egremont, hesitante. “OS RICOS E OS
POBRES”.8

A expressão – “duas nações” – passava a se referir às gritantes


disparidades entre ricos e trabalhadores pobres, as quais se traduziam,
para esses últimos, em condições de vida extremamente indignas e
degradantes, fartamente registradas em fotos, relatos e testemunhos. Essa
é a “estrutura de sentimento” que dará como fruto uma obra como a de
Dickens, um escritor imerso na cultura urbana de seu tempo que,
tematizando de forma sutil as rupturas em relação ao senso de
comunidade, será o primeiro grande romancista da Inglaterra urbana.
Dickens foi fundamental no processo de renovação do gênero ao beber das
fontes da “cultura popular” e incorporá-la, fazendo dela um uso criativo,
por exemplo, em The Pickwick Papers (1837), que traz à cena o mundo do
jornalismo, ou em Hard Times (1854), que tem como um dos núcleos o
mundo do circo, ou melhor, um grupo de personagens que são
trabalhadores circenses. Não é de se surpreender, portanto, que Londres
tenha se tornado tão central em sua produção, como pano de fundo, como
personagem e como fio que atravessa a existência de sua numerosa galeria

7 Thomas Carlyle. Chartism. London: James Fraser, 1840; Past and Present. London: Chapman and
Hall, 1843.
8 “Two nations; between whom there is no intercourse and no sympathy; who are as ignorant of

each other’s habits, thoughts, and feelings, as if they were dwellers in different zones, or
inhabitants of different planets; who are formed by a different breeding, are fed by a different
food, are ordered by different manners, and are not governed by the same laws. “You speak of
—” said Egremont, hesitantly. “THE RICH AND THE POOR.” In: Benjamin Disraeli. Sybil, or The
Two Nations [1845]. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 66.
de criaturas. A cidade é a nova realidade que o romancista introduz como
cenário e matéria e que demanda, para sua apreensão, dada a diversidade
do objeto e do ambiente físico, um novo tipo de observação e método, que
a revela ao mesmo tempo como fato social e paisagem humana.
Como repórter parlamentar e atento observador da vida londrina, a
qual relatou em vinhetas reunidas em Sketches by Boz (1836), Dickens teve
contato direto com os problemas da metrópole, graças ao hábito de
percorrer suas ruas e perambular tanto pelas regiões mais abastadas
quanto as mais miseráveis. Em sua longa carreira de escritor – além de
autor de contos e quinze romances (sendo o último inacabado), foi
fundador e editor de duas revistas semanais (Household Words e All the Year
Round) –, atuou como um comentarista social, criticando os males e as
injustiças da sociedade vitoriana, e como defensor de reformas nos
sistemas legal e educacional, e nas condições de moradia dos pobres, entre
outras.
Esses temas, sobretudo os maus-tratos de crianças, a injusta
estrutura de classes e a crueldade do Governo e da Lei, atravessam a trama
de Grandes esperanças [Great Expectations, 1861],9 um romance da última fase
de Dickens, no qual o enredo paradigmático do Bildungsroman – que
acompanha os anos de formação do protagonista desde a infância até a
maturidade, isto é, o caminho da inocência à experiência, com suas lutas,
crises e iluminações – ganha tons mais sombrios, na medida em que essa é
uma narrativa não de realização e de triunfo, como David Copperfield (1850),
mas de perda e vazio. Certa jovialidade, alegria e otimismo que
transpareciam na obra de juventude dão lugar à desilusão e ao sentimento
de que as promessas de mobilidade social em uma economia capitalista
não iriam necessariamente se cumprir. O jogo produzido pelo duplo
sentido de “expectations”, termo usado hoje para se referir a “uma forte
crença de que algo irá acontecer” [expectativa] mas que remete também ao
significado arcaico de “perspectivas de herança”,10 acaba por lançar uma
luz irônica sobre a trajetória do herói do romance que, em seu processo de
amadurecimento, verá suas apostas malograrem e suas “grandes
esperanças” se provarem “grandes ilusões”. À medida que Pip se dá conta
de que terá de conformar seus sonhos, expectativas e esperanças às
possibilidades (limitadas) que a vida lhe oferece, essa é a versão
dickensiana das Ilusões Perdidas.

9 Charles Dickens. Grandes esperanças. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2012. [Great Expectations. New York: W.W. Norton & Company, 1999.]
Publicado em fascículos no periódico All the Year Round entre dezembro de 1860 e agosto de 1861
e em livro em 1861. As citações do romance serão indicadas por GE, seguido do número da página
da edição brasileira.
10 Expectation: 1. a strong belief that something will happen or be the case; 2. one’s prospects of

inheritance (archaic). Cf. Oxford English Dictionary.


II. Grandes esperanças

Como argumentam alguns estudiosos, o enredo de Grandes


esperanças se organiza nas três fases de desenvolvimento do herói –
infância, juventude e maturidade – que costumam estruturar o
Bildungsroman inglês. Sondagem de um homem de meia-idade a respeito
dos seus anos de formação, o romance urde uma complexa trama entre o
ponto de vista do adulto e o do menino que, com cerca de sete anos, abre a
narrativa e começa a contar sua história, na tentativa de decifrar sua origem
e definir sua identidade. O pequeno órfão, criado “com a mão” pela irmã
cruel e pelo afetuoso cunhado, o ferreiro Joe Gargery, surge em cena no
cemitério, onde busca visualizar, nas lápides, o retrato de sua família:

[...] Minhas primeiras impressões vívidas e abrangentes da identidade das


coisas, creio eu que as vivenciei numa memorável tarde fria e úmida, já perto
do anoitecer. Nessa ocasião descobri com certeza que aquele lugar lúgubre,
coberto de urtigas, era o campo-santo; e que Philip Pirrip, paroquiano de lá,
e também Georgiana, esposa do acima, estavam mortos e enterrados; e que
Alexandre, Bartholomew, Abraham, Tobias e Roger, filhos pequenos dos
dois, também estavam mortos e enterrados; e que o descampado escuro e
plano que se estendia além do campo-santo, pontuado por diques e outeiros
e porteiras, com algumas cabeças de gado esparsas a pastar, era o charco; e
que a linha plana e cor de chumbo mais além era o rio; e que aquele pasto
selvagem e longínquo de onde vinha o vento era o mar; e que o serzinho
estremecendo de medo de tudo isso, e começando a chorar, era Pip. (GE,
p.34)

A oscilação do foco narrativo, evidente na alternância entre a


perspectiva e linguagem infantil e o ponto de vista do adulto, entrelaça
esses dois planos, em que a inocência e a descoberta do mundo pela criança
são revividas pelo Pip maduro, cuja capacidade de decodificação e
interpretação dos fatos é fruto da distância e da experiência, que lhe
permitirá esse jogo entre passado e presente: “Desde aquele tempo, já
muito distante agora, com frequência me ocorre o pensamento de que
poucas pessoas sabem quantos segredos guardam as crianças sob o
impacto do terror.”(GE, p. 48) Assim, pequenos detalhes, comentários ou
avaliações se intrometem no fio do texto e indicam a intervenção dessa
outra voz que marca o hiato entre os dois tempos. O parêntese em “[c]omo
jamais vi meu pai nem minha mãe, e nunca vi retrato deles (pois que
viveram muito antes do tempo das fotografias),” é indício claro de que o
menino nasceu bem antes da invenção de Daguerre e da primeira
impressão fotográfica em papel, realizada por Fox Talbot em 1839, fatos
que só o adulto Pip poderia ter testemunhado. É ao experiente Pip que soa
“estranha” a imagem formada pelo menino, a partir do formato das letras
na pedra, de que o pai “teria sido um homem quadrado, robusto, moreno,
com cabelos negros crespos”.11 Certo tom de comicidade tinge o fraseado,
característico do modo de expressão infantil, não apenas quando se refere
à mãe como “também Georgiana Esposa do Acima”, repetindo ipsis litteris
a inscrição na lápide, mas quando, no charco junto ao rio, um “homem
assustador” o ameaça e o vira de cabeça para baixo enquanto lhe esvazia
os bolsos. Do ponto de vista do menino,

Quando a igreja se endireitou – pois ele [o homem] foi tão repentino e forte
que a fez virar de ponta-cabeça diante de mim, e vi o campanário debaixo de
meus pés – quando a igreja se endireitou, como eu dizia, dei por mim
sentado numa lápide alta, tremendo, enquanto ele devorava o pão com
avidez. (GE, p.35)

Não escapa ao leitor o contraste entre o olhar inocente da criança,


sua condição de orfandade e o mundo da violência e do crime que se
materializa diante dele na figura do condenado, em busca de comida e de
uma lima para libertar-se das correntes que o agrilhoavam. Nesse
descampado, em um dia invernal, o acaso propicia a Pip um encontro que
se tornará decisivo em sua vida com o homem por quem comete seu
primeiro delito, ao ter de furtar de casa o que o condenado exige e passar
depois a ser consumido pelo sentimento de culpa. Em polvorosa com a
notícia da perseguição policial a dois criminosos em fuga, que acabam
sendo recapturados, a família de Pip se reúne com amigos, vizinhos e
parentes para a festa de Natal, durante a qual o assunto vem à tona,
aprofundando a noção de falta por parte do menino. A atmosfera fria,
lúgubre e sinistra do cemitério dá lugar, nessa segunda cena, ao espaço da
casa e da forja, onde o calor do fogo queimando na lareira e a imagem
paternal de Joe Gargery encarnam o lugar de refúgio para Pip. No entanto,
sob esse abrigo potencialmente acolhedor a sra. Joe exercita sua tirania,
cólera e aspereza, acentuando o peso de consciência de Pip, que se debate
entre o medo dos castigos da irmã e o terror das ameaças do “homem com
ferro na perna”. Essas primeiras experiências tocam, dessa maneira, em
questões de identidade, de maus tratos e punição, e incluem um confronto
com a lei e o crime cujo alcance a pouca idade do menino o impede de
compreender. Da perspectiva da construção da narrativa, enquanto elas
deixam marcas no processo de formação da personagem, também definem
os rumos da trama que começa a se desenhar nesses capítulos iniciais.
Ainda na primeira fase, outro evento crucial, com consequências
indeléveis na vida de Pip, será o encontro com Estella, a protegida da rica
sra. Havisham, proprietária da misteriosa Casa Satis. Convidado a ser o

11 Grandes esperanças, p. 33 (ambos os trechos).


companheiro de brincadeiras da arrogante e insensível menina, que zomba
dele e o trata com desdém – “um trabalhadorzinho boçal e desajeitado” –,
Pip, entretanto, fica fascinado por ela e passará a encher-se de fantasias e a
almejar a ascensão social, renegando, por fim, sua origem humilde e a condição
de aprendiz de ferreiro. Quando recebe o comunicado inesperado de que é o
beneficiário de uma fortuna, por parte de um benfeitor anônimo, Pip pode enfim
começar a realizar seu sonho de se tornar um cavalheiro [gentleman] para
poder um dia casar-se com Estella.
O final da primeira parte, que encerra o período da infância do
protagonista e narra sua partida para a cidade grande, é memorável, graças
à capacidade de Dickens de produzir suspense e expectativa. Se, por um
lado, esse é o momento da difícil despedida – “cheguei a pensar, com uma
dor no coração, se não devia saltar quando parássemos para trocar os
cavalos e voltar a pé, para passar mais uma noite em casa e me despedir
melhor no dia seguinte” (GE, p. 234) –, o agora rapazinho deixa para trás a
aldeia, Joe e a amiga Biddy, e segue em frente convicto de que “[...] todas
as névoas haviam se dissipado solenemente, e o mundo se abria para
mim.” (GE, p. 234)
A técnica bifocal, que possibilita a oscilação do ponto de vista e
sinaliza a coexistência dos dois planos temporais, se mantém ainda na
segunda fase,12 voltada para a juventude do herói no seu processo de
descoberta e de aprendizagem de uma nova vida, com seus desafios e
desenganos. Ainda que sua primeira percepção da metrópole não seja nada
favorável – “embora me assustasse a imensidão de Londres, creio que teria
me ocorrido uma impressão vaga de que a cidade era feia, torta, estreita e
suja.” (GE, p. 238), é ali que Pip julga que suas “grandes esperanças” irão
se realizar. Acreditando que a rica sra. Havisham é sua fada-madrinha, um
Pip já adolescente vai experimentar uma vida de ócio e despreocupação,
certo de que está destinado a ser um cavalheiro, se casar com Estella e
ocupar um lugar de destaque na sociedade. Sob a responsabilidade do seu
guardião, o advogado Jaggers, Pip inicia seu aprendizado, tendo como
tutor Matthew Pockett, que o informa que ele não receberá um treinamento
professional, mas, ao contrário, será educado para desfrutar da companhia
de jovens prósperos. É no contato com os inúmeros membros da família
Pockett, os alunos, e o meio jurídico em torno de Jaggers que Pip vai
aprender as regras do convívio social e diversificar seu círculo de
amizades. Toda essa etapa da jornada de Pip, com a relativa ampliação do
seu universo e contato com a pluralidade da vida na metrópole e com uma
sociedade de classes, poderia, potencialmente, ter-lhe proporcionado a
oportunidade de moldar o caráter, de amadurecer, mas, ofuscado pela

12No início da segunda fase, o narrador acentua mais uma vez a distância que o separa o passado
e o momento da escrita: “Nós, britânicos, naquela época tínhamos certeza de que constituía
traição duvidar que tudo que havia de nosso era sempre o melhor: [...]” (GE, p.238).
ambição de tornar-se um cavalheiro, ele apenas mergulha mais fundo no
esnobismo e na conduta egoísta e perdulária que o leva a contrair dívidas
cada vez maiores. Emblemático, nesse período, é seu absoluto
esquecimento e afastamento do cunhado Joe, seu grande companheiro e
amigo durante a infância, cuja visita certa feita lhe causa apenas um
profundo desconforto.
De longa história na tradição inglesa, o conceito de gentility13 esteve
vinculado ao nascimento nobre, à distinção social e à riqueza, assim como
aos valores de uma elite que gozava de status e dos privilégios do ócio.
Embora essencialmente social, tratava-se de uma categoria que envolvia
ainda noções como civilidade, refinamento das maneiras e elevação moral.
Durante a Era Vitoriana, período de acomodação social e política entre a
aristocracia e as classes médias, a redefinição do conceito tornou-se objeto
de debate, em meio às incertezas entre os vitorianos a respeito do
significado de gentlemanliness em uma sociedade mais aberta, na qual a
mobilidade e o enriquecimento passaram a possibilitar a muitos aspirar a
esse status. Ideais de respeitabilidade, a centralidade da ideia de
cavalheiro, a necessidade de autodefinição desses setores médios, a relação
entre gentility e virtude, o senso de responsabilidade inerente à condição
de cavalheiro serão todos temas que, de diferentes perspectivas,
romancistas como William M. Thackeray, Anthony Trollope e Dickens irão
abordar.14
Como Grandes esperanças deixa evidente, para Dickens essa é uma
questão problemática pela tensão inerente entre status herdado e status
adquirido e por sua relação com o dinheiro, problema dramatizado na
trajetória do protagonista do romance. Do mesmo modo que para os
aristocratas, a fortuna não chega às mãos de Pip por mérito ou esforço
próprio; a crença de que ela é suficiente para superar a origem humilde e
conceder-lhe o desejo de ser cavalheiro o levará a operar uma cisão entre a
superioridade social e a moral que a condição de gentility implica. A
ascensão de Pip se dà às custas de pequenas traições e atos de deslealdade
e, ironicamente, torna-se possível porque “suas grandes esperanças, se um
dia forem realizadas, descobre-se que existem por causa de uma realidade
sórdida, oculta. O real não é a gentility da vida de Pip, mas os navios-prisão
e o assassinato e os ratos e a deterioração dos armazéns do romance”.15 Por

13 Termos como gentility e gentlemanliness serão mantidos no original pela dificuldade de


correspondente apropriado em português. No caso de gentleman, adoto a tradução utilizada na
edição brasileira do romance.
14 Para uma discussão aprofundada desse assunto, ver Robin Gilmour. The Idea of the Gentleman

in the Victorian Novel. London: George Allen & Unwin, 1981.


15 Lionel Trilling. Manners, Morals, and the Novel. The Liberal Imagination. New York: New York

Review Books, 2008, p. 211 [great expectations which, if ever they are realized, are found to exist
by reason of a sordid, hidden reality. The real thing is not the gentility of Pip’s life but the hulks
and the muder and the rats and decay in the cellarage of the novel.]
outro lado, no empenho dele por aperfeiçoamento pessoal, desde as lições
de Biddy e as aulas na escolinha da aldeia, apreende-se a determinação de
superar as carências decorrentes de suas circunstâncias. Emaranhado no
mito do self-made man, tão caro a uma sociedade na qual a consciência de
classe só se acentua, sobrevive mais esse resquício do mundo aristocrático
– uma ambivalência que Pip encarna, em sua busca por um sinal de
distinção, e que Dickens expõe ao proporcionar ao herói o bônus do cultivo
pessoal sem seu ônus.
A segunda fase da trajetória do herói se centra sobretudo no seu
processo de aprendizagem, com a expansão de seus horizontes
geográficos, sociais e humanos. Com Matthew e Herbert Pocket, ele
começa a obter a educação considerada adequada a um cavalheiro.
Contudo, sem objetivos intelectuais, culturais ou espirituais, passa a viver
uma vida fútil e sem rumo, parecendo julgar que, para ser um cavalheiro,
bastam sinais exteriores, como roupas de boa qualidade, boas maneiras e
o sotaque dos bem-nascidos. Nesse período, aprende também a esbanjar e,
com a maioridade e o poder de decisão sobre o uso do dinheiro, acaba por
contrair dívidas. G. Robert Stange pondera que Pip “ascende socialmente,
porém, como age por cálculo e não por caridade instintiva, seus valores
morais deterioram à medida que seu traquejo social melhora”.16
O que pareceria ser um caminho largo e desimpedido para a
realização de suas aspirações, no entanto, experimenta uma inflexão
quando a verdade da origem de sua fortuna vem à tona. Em uma
tempestuosa noite londrina, seu destino muda dramaticamente com a
volta do condenado que o menino Pip havia encontrado no charco e a
revelação de que Abel Magwitch, e não a sra. Havisham, é o real
responsável pelas “esperanças” do protagonista. Recém chegado da
Austrália, para onde havia sido enviado com a exigência de nunca mais
retornar à Inglaterra, sob pena de morte, Magwitch desafia a lei e confronta
o perigo para procurar seu protegido e dar-se a conhecer como seu
verdadeiro benfeitor:

[...] fiz um cavalheiro de ti! Fui eu que fez isso! Eu jurei naquele tempo que
se algum dia eu ganhasse um guinéu, que fosse, esse guinéu havia de ser teu.
Jurei adespois, que se algum dia eu fizesse especulação e enricasse, tu havias
de enricar também. Vivi uma vida dura, pra que tu vivesses na moleza; me
matei de trabalhar pra tu não precisar trabalhar. [...]

Olha aqui, Pip. Eu sou teu segundo pai. Tu é meu filho – és mais pra mim
que qualquer filho. Eu guardei dinheiro só pra que pudesse gastar. [...] Eu te

16G. Robert Stange. Expectations Well Lost: Dickens’s Fable for his Time. In: Kettle, Arnold (ed.).
The Nineteenth-Century Novel. Critical Essays and Documents. London: Heinemann, 1976, p. 127.
[He rises in society, but since he acts through calculation rather than through instinctive charity,
his moral values deteriorate as his social graces improve.]
vi muitas vez, que nem que te vi naquele charco, no meio da neblina. ‘Que
Deus me mate mortinho!’, eu dizia todas as vez – e saía da cabana pra dizer
isso a céu aberto –, ‘se, adespois que eu ganhar minha liberdade e ganhar
dinheiro, eu não fizer daquele menino um cavalheiro!’ E foi o que eu fiz. [...]
(GE, p. 439)

À primeira vista, o ato de Magwitch soa apenas como um gesto de


generosidade e retribuição, que contrasta com o confesso horror de Pip,
mas logo se verá que sua ação não foi desinteressada, pois a ela se mistura
sua visão do menino como um objeto adquirido:

Eu dizia pros meus botão: ‘Se eu não sou um cavalheiro, e se ainda não tenho
estudo, eu sou o dono de um. Vosmicês todos têm gado e terra; qual de
vosmicês tem um cavalheiro bem criado em Londres?’. (GE, p. 441)

Mais uma vez, ele tomou-me pelas duas mãos e encarou-me com um ar de
quem admira sua propriedade: [...] (GE, p. 4570)

No seu contentamento de ver Pip transformado em cavalheiro,


Magwitch não percebe a repugnância e o choque que sua presença provoca
no rapaz. A reaparição do “forçado” tem um efeito devastador sobre Pip.
Aturdido, apavorado, ele reage com vergonha da rudeza de Magwitch e
vê caírem por terra todas as suas fantasias a respeito da sra. Havisham e
das intenções dela em relação a ele. Assalta-o ainda um profundo
sentimento de culpa e dor por ter abandonado Joe por causa do forçado:

Só faltava mesmo isto: o desgraçado, depois de me desgraçar com suas


cadeias de ouro e prata por tantos anos, arriscara a própria vida para me ver,
e era eu que a protegia agora! Se ele me inspirasse amor e não horror; se ele
me inspirasse muita admiração e afeição, em vez de uma repugnância
fortíssima, não teria sido pior do que era. (GE, pp. 442-43)

O que se segue, a partir desse comentário, é uma espécie de resumo


em nove parágrafos de toda a ação do romance no que diz respeito ao
percurso de Pip até ali. A segunda fase se fecha nesse momento climático,
com um Pip consciente “do [seu] comportamento desprezível”,
atormentado pelo medo, que o faz recordar e reviver o episódio longínquo
da infância, e pelos erros. As velas e a lareira apagadas no aposento, o
vento, a chuva e “a escuridão negra e espessa” que circundam Pip quando
ele acorda no outro dia apenas reforçam a atmosfera de ameaça e o estado
interno do protagonista, assim como a dramaticidade da cena.
Abre-se a terceira fase com a nova complicação na trama, que exige
de Pip providências para encobrir o regresso de Magwitch (agora sob o
nome de Provis) e precauções para evitar sua prisão. Em meio às medidas
práticas – “o dinheiro compra peruca pra disfarçar, e polvilho pra pôr no
cabelo, e óculos, e roupa preta – culote, essas coisa” (GE, p. 456) – e à
procura de uma pensão, manifesta-se o tumulto interior do protagonista,
cujo relato refere preocupações, sobressaltos, desalento, angústia,
transtornos. Ciente do risco que corre, ao abrigar um forçado e vir a ser
responsável por sua morte, Pip, com a ajuda do amigo Herbert, passa a
traçar um plano para tirar Magwitch da Inglaterra. A confissão do
condenado sobre sua origem, seu passado e suas relações com a sra.
Havisham e Estella, a conversa de Pip com a proprietária da Casa Satis, na
qual novas revelações vêm à tona, o ataque de Orlick contra Pip, a tentativa
de fuga de Magwitch, que termina com sua prisão – tudo vai operando
uma transformação em Pip. O movimento que o levara do charco para a
Casa Satis e depois para Londres se constitui em uma jornada de contato
com o sofrimento e de confronto com dilemas morais e éticos, com a
“nódoa de prisão e crime” o envolvendo desde seu primeiro encontro com
o fugitivo, o furto da lima e da comida, a morte da sra. Joe com a arma que
forneceu a Orlick, o desprezo por Joe e pela ferraria. Essas experiências e
descobertas têm consequências para Pip, cujo choque e horror
gradativamente dão lugar ao processo de reconsideração das certezas que
haviam norteado sua vida e o levam a tomar consciência de que os valores
que havia abraçado não fariam dele um cavalheiro. Movido pelo remorso,
o protagonista toma para si o cuidado de Magwitch na prisão, onde o
foragido irá acabar morrendo, certo de que o rapaz veio a aceitá-lo mais
agora do que em sua fase de prosperidade:

Pois agora a repugnância que ele [Magwitch] me inspirava havia


desaparecido por completo, e naquela criatura perseguida, ferida e
acorrentada que tomava minha mão na sua eu via apenas um homem que
pretendera ser meu benfeitor, e que fora afetuoso, grato e generoso para
comigo com muita constância durante anos. Eu via nele apenas um homem
que fora muito melhor do que eu fora para com Joe. (GE, p. 606)

A terceira parte é a da expiação da culpa, em que Pip vai lentamente


aprendendo a conviver com Magwitch, a acolhê-lo e ajudá-lo, em que ele
retoma os princípios de humanidade e irmandade dentro dos quais fora
criado para que, de certa maneira, possa se reencontrar com Joe e também
reparar seus erros por ter menosprezado a figura desse homem simples e
rústico, mas de grande coração. A resolução de todos os nós e conflitos e o
processo de reparação principiam com o reconhecimento da humanidade
de Magwitch e com a recusa por Pip do dinheiro de seu benfeitor e de
qualquer auxílio da sra. Havisham. Ameaçado de encarceramento ele
próprio em razão de suas dívidas, Pip adoece e é, por sua vez, cuidado por
Joe, que acabará por quitar-lhe os débitos. O processo de reparação
culmina com a doença, em que a febre, o delírio, o sofrimento físico – com
essa sugestão de morte simbólica – vão possibilitar a elevação dessa
personagem para um outro patamar do qual ele sairá mais experiente, mais
preparado para enfrentar as vicissitudes, e menos envolto pela fantasia de
ascensão social e riqueza que nutrira durante parte da sua infância e,
sobretudo, durante a adolescência e primeiros anos de maturidade.
A narrativa se encaminha para o final com a morte da sra. Havisham,
o casamento de Joe e Biddy, a morte do marido de Estella e a partida de
Pip para o Cairo, onde ele irá trabalhar na firma de Herbert. No seu
retorno, anos depois, em visita a Joe e Biddy, ele conhece o filho deles, o
pequeno Pip. Na repetição do apelido, na verdade um palíndromo, fica
sugerida certa circularidade – isto é, um movimento circular do enredo –,
no sentido de que, no desfecho do romance, ao fim dessa longa trajetória,
quando Pip já se tornou um homem de meia-idade e já perdeu suas ilusões,
surge essa nova personagem, o filho do cunhado que é também chamado
de Pip. Insinua-se, assim, uma espécie de continuidade que se concretizará
quando Pip, já velho, partir dessa vida e ela for continuada por esse outro
Pip, criado em um ambiente de carinho, amor, compreensão e cuidados,
portanto sob outras circunstâncias, com outra história de vida.
Na terceira fase, os sonhos e as esperanças todos vão caindo por terra
e Pip precisa, portanto, encontrar formas de viver naquele mundo, ganhar
sua própria sobrevivência e se transformar em um homem. Nessa
trajetória, ele vai vivendo esse processo de aprendizado, essa confrontação,
esse embate com os limites postos pela vida de um lado, pela sociedade do
outro, e pelos próprios valores que vão sofrendo transformações. O
romance termina com o reencontro de Pip e Estella, o qual deixa em aberto
a possibilidade da realização amorosa, pondo em cena as duas
personagens que, mais maduras e experientes, e redimidas pelo
sofrimento, podem almejar um futuro comum, sugerido pela metáfora que
fecha a narrativa – “as névoas vespertinas se dissipavam agora, e naquela
extensão de luz tranquila que elas me revelavam, não vi nenhuma sombra
de um adeus a Estella.” (GE, p. 655). Essa promessa de felicidade é uma
concessão de Dickens à recomendação de seus amigos Wilkie Collins e
Edward Bulwer-Lytton,17 que o convenceram a reescrever a versão
original, bastante melancólica e sombria, segundo a qual Pip e Estella se
reencontram apenas brevemente, sem nenhuma chance de futuro e de vida
conjunta para os dois. Pessimista, esse desfecho sugeria que nenhuma das
aspirações de Pip iria se realizar: nem a ascensão social, nem o amor –
absolutamente nada. Desde a publicação do romance, a crítica se dividiu
quanto aos méritos dos dois finais e o próprio Dickens considerava que a
17 Em carta a seu biógrafo, John Forster, datada de 1º. de julho de 1861, Dickens escreveu, sobre a
mudança: “Incluí um pequeno trecho tão agradável quanto possível e não tenho nenhuma dúvida
de que a história ficará mais aceitável devido à alteração”. No original: “I have put in as pretty a
little piece of writing as I could, and I have no doubt the story will be more acceptable through
the alteration”. [John Forster, The Life of Charles Dickens. London: Chapman & Hall, v. II, 1904, p.
361].
mudança fora para melhor. John Forster, seu biógrafo, alinhou-se com os
partidários da primeira versão, que, segundo ele, “parece ser mais
consistente com o curso, assim como o desenvolvimento, do relato”,18
razão pela qual ela acabou sendo preservada. Argumentos em defesa do
segundo final perdem igualmente a força diante de uma apreciação como
a de George Bernard Shaw, o qual julgava que o romance: “É um livro sério
demais para ser trivialmente feliz. Seu início é infeliz; seu meio é infeliz; e
o final feliz convencional é um ultraje”.19

III. Um romance de formação

Escrito por um narrador de meia-idade, decorridos os


acontecimentos que marcaram sua existência, o relato de Philip Pirrip é um
instrumento de autoanálise e reflexão. Seu empenho em retraçar os
caminhos percorridos desde a infância, em examinar seu passado, é, ainda,
um exercício de interrogação de sua identidade, de se situação no mundo.
Órfão, criado sob o signo da punição e da falta de amor, o protagonista se
indaga quem é e interpreta sua origem a partir das inscrições nas lápides,
como se ali estivessem encarnadas a paternidade e a família, que mal
conheceu. Essa é apenas uma das faces das identidades fraturadas que Pip
se esforçará por unificar à medida que reconstrói sua trajetória. No retrato
de sua meninice, estão refletidas algumas das questões que ocuparam
Dickens não apenas na obra ficcional, mas também na atuação como
jornalista, preocupado com os problemas prementes de sua época, como o
sistema educacional, saúde, saneamento, entre tantos. A consciência da
pobreza, da precariedade de condições de vida e trabalho das classes
baixas gerou no escritor o reconhecimento de que era preciso reformar a
sociedade. O clamor por reformas, que marcou sua intervenção no debate
público, foi também um fio subjacente na ficção, que não se furtará a expor
os impasses e as inequidades de seu próprio tempo sob forma narrativa.
Em seu exame retrospectivo, Pip traz à tona uma série de situações
e experiências que tocam diretamente no nervo de uma sociedade desigual,
na qual começa a ficar evidente que a promessa das duas revoluções – a
Francesa e a Industrial – de abertura das carreiras ao talento,20 não iria se
cumprir para todos. A crise de 1848, que na Inglaterra assumiu a forma da
luta pela democratização encetada a partir da década de 1830 (“a agitação
cartista”, nas palavras de Hobsbawm), apenas revelou que a construção do
mundo burguês se dava às custas da exclusão de camadas significativas da
18 John Forster, p. 361.
19 George Bernard Shaw. Introduction to Great Expectations. In: Bloom, Harold (ed.). Charles
Dickens. New York: Chelsea House, 2006, p. 68. No original: “[The novel] is too serious a book to
be a trivially happy one. Its beginning is unhappy; its middle is unhappy; and the conventional
happy ending is an outrage on it”.
20 Ver Eric Hobsbawm. A era das revoluções. Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
população. No romance, uma visão pessimista põe em xeque o aparato
ideológico que vendia a ideia de que empenho e esforço seriam suficientes
para a realização das aspirações e alimentava, de certa forma, a
engrenagem da sociedade capitalista. Por meio de Pip, Dickens mostra os
limites concretos impostos pelas forças históricas e expõe as contradições
de seu tempo, ao fazer seu protagonista participar de três esferas diversas:
o meio humilde e carente da infância, o ambiente de ociosidade e fausto da
juventude, e a vida industriosa e sóbria da maturidade – “Trabalho muito
para ter o suficiente, de modo que... Sim, vivo bem.” (GE, p. 654)
A pobreza de Pip, sua orfandade, as condições materiais de vida na
zona rural, a falta de oportunidades são fatores que determinam as chances
precárias para um menino cheio de potencial em uma situação de poucos
meios. Emblema do destino das crianças pobres, Pip é salvo por uma
solução mágica, porém, e embarca em uma trajetória marcada por falsos
valores. Por meio dela, Dickens traça um contraste entre o conceito
tradicional de cavalheiro como aquele privilegiado por riqueza, status e
tempo livre e o de cavalheiro como aquele dotado de integridade moral,
contribuindo, dessa maneira, para um dos debates centrais desse tempo de
mudanças. Nas relações entre as várias personagens, embora não
sublinhados, se dão a ver os antagonismos de classe, enquanto a força
destrutiva das instituições transparece na representação do sistema penal
no romance.
O aprendizado de Pip será longo e crivado de sofrimento e sua
história, revista da perspectiva da distância temporal, possibilitará o
enfrentamento da verdade e a reflexão tanto sobre os acontecimentos que
marcaram sua vida como sobre questões de maior abrangência, como na
cena do julgamento do fugitivo, na qual ele testemunha a desumanidade
dos ritos e processos legais:

Naquela época, era habitual (como fiquei sabendo a partir da terrível


vivência daquelas sessões) dedicar o último dia da sessão à leitura das
sentenças, e causar grande efeito terminando com a sentença de morte. Não
fosse a imagem indelével que ficou gravada na minha memória, eu mal
conseguiria acreditar, no momento em que escrevo estas palavras, que vi
trinta e dois homens e mulheres levados diante do juiz para receber tal
sentença juntos. (GE, pp. 619-620)

Os ataques de Dickens aos males da sociedade do seu tempo não


constituem um programa político; ao contrário, eles nascem de uma visão
humanista que aposta na possibilidade de regeneração, de perdão, na
vontade e bondade inerente aos homens. Alvo de críticas pelo ar
caricatural e pela falta de profundidade na caracterização psicológica de
muitas de suas personagens, pelo recurso ao melodrama, pela
representação das personagens femininas como seres frágeis e
unidimensionais, o romance de Dickens deu voz às crises que marcaram
sua época, encarnando-as em seus diversos protagonistas, expostos cada
um deles a um difícil aprendizado em sua caminhada rumo à maturidade.
Apesar da relutância por parte de alguns estudiosos em aceitar que
o paradigma do Bildungsroman tenha cruzado fronteiras linguísticas e
culturais, esse é um conceito que foi apropriado pela crítica de língua
inglesa para discutir uma série de romances que se centram sobre o
processo de aprendizagem ou de formação de seus protagonistas e sobre
sua socialização; termos como novel of education, novel of apprenticeship ou
coming-of-age novel tornaram-se correntes para designar o subgênero que
tem em seu núcleo uma narrativa que encena a jornada da personagem do
estado de inocência para o de experiência e em que o choque entre a poesia
do coração e a prosa do mundo encontra alguma forma de reconciliação.
Nele, se inscreveriam romances como Tom Jones, de Henry Fielding, Jane
Eyre de Charlotte Brontë, David Copperfield e Grandes esperanças de Dickens,
com a ressalva de que, embora mantenha alguma semelhança com seu
correlato alemão, a forma assumiu alguns traços específicos, ao se
aclimatar na Inglaterra.
Sem pôr em cheque o destino final do protagonista no romance de
formação, que prevê sua adequação ao mundo, o diferencial no caso inglês
parece residir na relação intrínseca que se estabelece entre as expectativas
do herói e o sistema de classes. Para Franco Moretti, de modo geral, o
Bildungroman inglês é antes um romance de preservação que de iniciação,
na medida em que confere à “infância dos heróis, se não sempre ao seu
nascimento, [...] uma proeminência emblemática e duradoura”, em uma
cultura que se caracteriza pela estabilidade e conformidade.21 Para ele, os
dois principais modelos, Tom Jones e David Copperfield, e a variante
feminina, Jane Eyre, confirmam o padrão narrativo do status herdado em
uma sociedade em que os valores aristocráticos ainda têm força e são
moeda corrente. Nos três, cuja estrutura narrativa mantém nexos evidentes
com o conto de fadas, atribuem-se contornos aristocráticos ao tema
burguês da mobilidade social, com a revelação da verdadeira origem de
seus protagonistas ao final. Para além do direito de herança – não apenas
propriedade ou pecúnia – é do direito à identidade que se trata, direitos
ambos cuja restauração é “um ato de justiça”.
Pip retém uma concepção de cavalheiro calcada na classe social, no
prestígio e no dinheiro. Mesmo que a possibilidade de mobilidade social
invalide a teoria do status herdado, ele deseja ambos. Suas expectativas
estão intrinsecamente ligadas a essa fantasia e o advogado parece reforçá-
la quando comunica ao menino o que o destino lhe reserva:

21Franco Moretti. The Way of the World. The Bildungsroman in European Culture. Trans. Albert
Sbragia. London: Verso, 2000, p. 182. [the heroes’ childhood, if not always their birth, is granted
an emblematic and lasting prominence.]
Fui instruído a comunicar-lhe”, disse o sr. Jaggers, apontando o dedo para
mim, de lado, “que ele vai herdar uma bela propriedade. Ademais, o atual
dono da propriedade em questão deseja que ele seja imediatamente retirado
de suas atuais circunstâncias e deste lugar, e passe a ser criado como um
cavalheiro – em suma, como um jovem com grandes esperanças. (GE, p. 206)

Porém, segundo Moretti, Grandes esperanças funciona como um


contra-modelo, uma vez que “[...] quando Pip descobre-se com uma
fortuna sem qualquer mérito moral próprio, a única solução é tirá-la dele,
até o último centavo, por meio do sortilégio legal de praxe”.22 O acesso ao
dinheiro e a vida ociosa na metrópole não lhe abrem o caminho do
aprendizado, mas, ao contrário, transformam-no em um esnobe, até sua
descoberta, após a doença, de que suas “esperanças” ruíram. Pip atinge a
maturidade graças à perda de suas ilusões e à compreensão de que os
verdadeiros valores se encontram na amizade e na lealdade. O romance foi
descrito, na verdade, como um conto de fadas virado do avesso, pois ele
subverte o enredo da identidade oculta, aquele em que o herói descobre
que sua origem biológica está em uma classe social mais alta.23 Ainda que,
como no Bildungsroman, a jornada da juventude à maturidade tenha como
desfecho a aceitação adulta da condição humana, neste caso

É verdade que Pip ascende através das divisões de classe, mas igualá-lo [...]
a jovens como Julien Sorel, que sobem pela garra e talento, dá uma ideia
errada. A palavra “esperanças” é explícita e apropriada; no círculo de
cavalheiros em que Pip foi posto aguarda-se e aceita-se o destino. Dinheiro
é o que conta, mas ganhar dinheiro é vulgar; em primeiro lugar, um jovem
distinto deve possuir riqueza, ou obtê-la passivamente. Esta é a principal
razão para as fábulas recorrentes na ficção setecentista e oitocentista de
identidades descobertas e testamentos ocultos – recebe-se a herança, mas na
verdade se a possuía durante todo o tempo.24

Ainda que implique perdas, a acomodação de Pip ao seu destino


sugere que não há mais lugar para certas ilusões na ordem social vitoriana
22 Franco Moretti, p. 187. [when Pip finds himself with a fortune without any particular moral
merit, the only solution is to take it away from him, down to the last penny, via the usual legal
witchcraft.]
23 Goldie Morgentaler. “Meditating on the Low: A Darwinian Reading of Great Expectations.”

Studies in English Literature, 1500-1900, v. 38, n. 4, Nineteenth-Century, pp. 707-721.


24 Ross H. Dabney. Love and Property in the Novels of Dickens. Berkeley and Los Angeles: University

of California Press, 1967, p. 137-138. [“It is true that Pip rises through class lines, but to equate
him … with young men like Julien Sorel, who drive upward on nerve and talent is quite
misleading. The word ‘expectations’ is explicit and appropriate; in the circle of gentility where
Pip has been placed one waits for one’s destiny and accepts it. Money is what counts, but making
money is vulgar; a genteel young man must have wealth to begin with or acquire it passively.
This is one reason for the recurrent fables in eighteenth- and nineteenth-century fiction of
discovered identities and suppressed wills – one gets the inheritance, but actually one had it all
along.”]
e representa a síntese possível entre o mundo e o processo de formação do
indivíduo. As convenções do conto de fadas são minadas pelo recurso ao
esvaziamento, à negação, o que injeta no romance uma boa dose de
realismo. Se Pip confunde o papel da sra. Havisham com o de fada-
madrinha, ao leitor não escapa que se trata de uma figura decadente que,
por causa de desilusões na sua vida pessoal e amorosa, congelou o tempo,
metaforizado no seu vestido de noiva em farrapos, nos relógios da casa
paralisados. A fortuna de Pip, longe de ser resultado de um passe de
mágica, ou de um direito de nascença, tangencia o mundo do crime e se
torna uma ameaça e um risco, ao levar seu beneficiário a um passo do
abismo. Diferentemente de Tom Jones, David Copperfield ou mesmo Jane
Eyre, portanto, que, superados os reveses, são restituídos a seu lugar de
direito na ordem social, Pip, desfeitas as quimeras, liberta-se das
presunções aristocráticas e aceita o que a sociedade pode lhe oferecer.
Torna-se um homem médio, um representante de uma classe média, em
uma sociedade móvel e cheia de fissuras e contradições.

Sandra Guardini Vasconcelos é professora titular de Literatura Inglesa e Comparada na


Universidade de São Paulo. Nos últimos anos, desenvolve pesquisa sobre as relações entre o
romance inglês dos séculos XVIII e XIX e o romance brasileiro do século XIX. Além de traduções
e da organização de vários livros, tem artigos e capítulos de livros publicados no Brasil e no
exterior e é autora de Puras Misturas. Estórias em Guimarães Rosa (Hucitec/FAPESP, 1997), Dez
Lições sobre o Romance Inglês do Século XVIII (Boitempo, 2002) e A Formação do Romance Inglês:
Ensaios Teóricos (Hucitec/FAPESP, 2007) – Prêmio Jabuti de Teoria/Crítica Literária de 2008.
Desde 2006, é curadora do Arquivo João Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros
(USP).
UM ADOLESCENTE
À PROCURA DE SEU EU

Paulo Bezerra

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O adolescente, de Doistoiévski, estrutura-se sobre a ideia de Formação;
formação e educação, o que é incomum na vasta obra do Dostoiéviski;
escritor. Neste artigo é analisada a trajetória de formação do O adolescente.
personagem que dá título ao romance em suas relações
familiares, afetivas e sociais.

ABSTRACT KEYWORDS:
The adolescent, by Dostoevsky, is structured on the idea of formation Formation;
and education, which is unusual within the writer’s vast work. In Dostoevsky;
this article, the trajectory of formation of the character that entitles The adolescente.
the novel is analyzed concerning its familiar, affective and social
relationships.
N a década de 1860, período em que escreveu Crime e castigo e O
idiota, Dostoiévski acalentou um projeto de romance centrado em um
herói capaz de encarnar simultaneamente características da personagem
de romance e da personagem da tradição hagiográfica. Entre 1869 e 1870
chegou até a conceber o título para esse romance: A hagiografia de um
grande pecador (Jitiô vielíkovo griéchnika). Tratava-se de algo deveras
singular: a imagem do herói fugia à costumeira objetividade, ao dado
meramente biográfico e psicológico, concentrava-se na superfície de sua
consciência. A ênfase da intenção recaía sobre a imagem ética da
personagem, cuja individualidade se revelaria na busca de sua essência
humana e na conquista de uma posição na vida. O dado hagiográfico era
de cunho ontológico, razão pela qual a narrativa deveria partir da tenra
infância do herói, representando cada fase da vida com suas devidas
peculiaridades: amabilidade e veracidade dos sentimentos na infância;
sensualidade, presunção, inexperiência e orgulho na adolescência; beleza
dos sentimentos, vaidade e falta de confiança em si mesmo na fase
juvenil; e ecletismo dos sentimentos, autoestima, descobrimento de seu
valor e dos seus objetivos, franqueza e amplitude de ideias na mocidade.
Em suma, muitos dos ingredientes do romance de formação da tradição
do Bildungsroman alemão. Dostoiévski não realizou esse projeto, mas
aproveitou algumas de suas ideias em seus romances, mas foi em O
adolescente que ele as tomou como modo de estruturação da narrativa, que
representou uma guinada na forma do seu romance. Por seu sentido e
sua configuração, a adolescência é uma questão de geração, e Dostoiévski
a incluiu em seu projeto de construção de O adolescente.

A ideia de geração

A ideia de mudança, crescimento e formação já está contida na


estrutura semântica do substantivo adolescente (podróstok no original) e
em sua relação com a ideia de geração. Na obra de Dostoiévski, a
onomástica e os títulos são todos intencionais e fazem parte de sua
estratégia de composição, de sua poética. Podróstok é um substantivo dos
mais comuns na língua russa, mas sua semântica aponta para uma
associação imediata com a ideia de crescimento, de formação. Ele deriva
do verbo podrastat (подрастать), que significa crescer ou ir crescendo, e
deste verbo forma-se o particípio presente podrastáyuschii, isto é, crescente
ou em crescimento. Este particípio, agregado ao substantivo pokolénie, isto
é, geração, forma a expressão podrastáyuschee pokolénie (подрастающее
поколение), que é o equivalente russo de nova geração, mas que,
literalmente, significa geração em crescimento, em formação. Já o próprio
substantivo podróstok é formado pela agregação da preposição pod (isto é,
sob, debaixo de, que traduz, entre outras coisas, a condição de algo ou
alguém que foi colocado debaixo de algo ou está sob o efeito de algum
processo) com o substantivo rost, que significa crescimento,
fortalecimento, desenvolvimento e aperfeiçoamento, isto é, engloba,
sozinho, todas as etapas do processo de formação. Completa-se o termo
com o acréscimo do sufixo ok, formador de substantivo. A fusão da
preposição pod com o substantivo rost implica uma ideia de movimento:
Dostoiévski põe seu herói pod rost (isto é, em crescimento, em
movimento, em formação), e nesse crescimento-formação ele percorre
toda a narrativa. Um fato bem sintomático: há em russo uns vinte
sinônimos de podróstok, como os mais aproximados maloliétok,
nessoverchenoliétnii e pareniók, mas Dostoiévski preferiu justamente
podróstok por ser este mais consentâneo com a sua ideia do romance e o
clima em que sua narrativa se desenvolve.
Ao ler O adolescente, um leitor atento da obra de Dostoiévski logo
percebe que esse romance difere de todos os outros pela forma de sua
construção, pois se estrutura sobre a ideia de educação e formação, coisa
até então ausente na vasta obra de Dostoiévski, cujas personagens já
entram prontas na cena romanesca. Além disso, é o único romance do
autor narrado coerentemente em primeira pessoa (Humilhados e ofendidos
também o é, mas sem a consistência composicional de romance que se
verifica em O adolescente), e esse procedimento construtivo permite a
Dostoiévski afastar-se o máximo da narração, delegando a Arkádi
Makárovitch Dolgorúki, nome do adolescente que dá título ao romance, a
tarefa de “escrever minha autobiografia”1. Essa técnica composicional dá
mais objetividade e verossimilhança à narrativa, uma vez que Arkádi
narra em primeira pessoa, isto é, “de dentro”, do mais recôndito de sua
própria experiência, as múltiplas peripécias vividas em seu processo de
crescimento, dando um tom pessoal aos lances da narrativa, escolhendo a
seu bel prazer os acontecimentos que ora revive com pesar e
ressentimento, ora procura analisar. Assim, como narrador principiante,
empreende um registro meio atabalhoado de suas primeiras experiências
no colégio e no pós-colégio, e o faz a partir de Petersburgo, para onde o
pai biológico, Andriêi Pietróvitch Viersílov, o convida por carta para
assumir um emprego privado como secretário do velho príncipe Sokólski.

Narrador entre dois tempos

1 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O adolescente. São Paulo: Editora 34, 2015, p. 9


Tomando Petersburgo como espaço da narrativa, Arkádi produz
um cronotopo sumamente condensado, concentrando no tempo da
enunciação apenas alguns meses de sua vida, parcos, porém cruciais, mas
tudo em interação umbilical com os fatos essenciais ocorridos nos
dezenove anos de sua vida moscovita de interno e colegial. Como os
acontecimentos narrados são alimentados por uma única fonte – a
cosmovisão subjetiva do narrador –, o tom da narração é
predominantemente subjetivo, pessoal, o narrador seleciona para narrar
aqueles acontecimentos que marcaram a sua vida de interno e colegial: as
humilhações sofridas por parte da direção do colégio e dos colegas “filhos
de condes e senadores”2 por ele não ser um igual; a visita da mãe, seu
constrangimento com o traje simples que ela vestia e a trouxinha de
guloseimas que lhe trouxera; sua tentativa de escondê-la por vergonha
dos colegas e da direção do colégio e a posterior confissão envergonhada
de amor à mãe a sós no quarto. Na distância dos vinte anos, o narrador,
implacável consigo mesmo como um verdadeiro narrador
dostoievskiano, descreve aquele seu comportamento com uma censura
velada. Contudo, a sensação mais forte que ficou daqueles idos foi a do
menino ressentido, que aos dez anos vê o pai pela primeira vez e só o
reencontra aos vinte já em Petersburgo. Seus diálogos com Viersílov
trazem a marca daquele ressentimento, a mágoa de pertencer a uma
família casual, razão por que esboça inconscientemente um ajuste de
contas com o pai real, é grosseiro e agressivo e até mesmo desajustado em
seus diálogos com ele, e tão desajustado que frequentemente passa da
animosidade agressiva a um embevecimento pueril com o pai. A
grosseria também se manifesta nos diálogos com sua fada madrinha,
Tatiana Pávlovna, sua real mantenedora e maior responsável por sua
educação e formação do início ao fim do romance e também pelo projeto
de levá-lo à universidade ao término do romance. Sua agressividade se
estende inclusive à mãe, a quem ama de verdade, mas censura por seu
servilismo perante Viersílov. Tudo isso gera momentos de instabilidade
na narração de Arkádi, que, como narrador principiante, registra
acontecimentos pregressos com a impaciência, as vacilações discursivas,
as imprecisões e lacunas de pensamento e de linguagem que costumam
caracterizar o discurso de um adolescente, especialmente do nosso
narrador, que procura exorcizar os fantasmas que povoam o seu passado
e carrega em sua alma ressentimentos e animosidade até contra si mesmo.
Apesar de seus vinte anos, Arkádi ainda acasala em seu ser rompantes
daquele adolescente ressentido, inquieto, e assim a narrativa se
desenvolve num movimento pendular entre o hoje e o ontem. Desse

2 Idem, ibidem, p.350.


modo, com a sofreguidão de quem guarda algo entalado e precisa
desabafar, ele abre sua narrativa: “Sem conseguir me conter, dei início à
história dos meus primeiros passos pela vida”3. Portanto, da casa dos
seus vinte anos ele experimenta, registra e atualiza as sensações do
menino que vê o pai pela primeira vez aos dez, fica extasiado, mas não
sabe que tipo de sentimento o pai nutre por ele, sabe apenas que é um
filho bastardo, um “simplesmente Dolgorúki”4, e essa dubiedade de sua
filiação deságua na condição de menino revoltado e carente de uma
imagem sólida do pai em sua formação, contagiando o narrador, que,
numa inconsciente tentativa de ajustes de contas com Viersílov, constrói
uma imagem deste profundamente ambígua. Viersílov é, de fato, uma
figura profundamente ambígua, e ele mesmo diz a Arkádi que é capaz de
experimentar ao mesmo tempo dois sentimentos diametralmente opostos.
Essas incertezas em relação ao pai formam na alma do adolescente um
conjunto de desencontros que marcam a sua personalidade, provocando
em sua formação um movimento pendular entre polos morais opostos,
num desdobramento, numa “dualidade” que ele qualifica como “uma
das causas centrais de muitas de minhas imprudências cometidas no ano,
de muitas torpezas, até de muitas baixezas e, subentende-se, de minhas
tolices”5. O crítico Nikolai Tchirkóv, autor de um notável estudo sobre
Dostoiévski, define esses vaivéns do comportamento de Arkádi como
uma “antinomia entre o social e o antissocial”6 presente na alma do
adolescente, e é ela que leva Arkádi aos vinte anos a oscilar entre atos
humanitários e nobres, como a tentativa de amparar a menininha
Arínotchka, a pura cafajestice e o envolvimento com vigaristas como
Stebielkóv e Lambert, além de outras derrapagens morais igualmente
graves.
Assim, o narrador nos oferece um processo lento, gradual e
ziguezagueante de definição de sua autoconsciência aos vinte anos de
idade, às turras com a vida e à procura de seu próprio espaço. Tudo isso
transcorre sob um leitmotiv: a procura do pai como elemento essencial do
processo de seu amadurecimento e consolidação de sua personalidade.
Tudo isso se conclui em Petersburgo, onde Arkádi passa finalmente a
conviver com sua família, ou seja, com a mãe, que havia visto apenas
umas três vezes em sua vida, com Viersílov, que vira uma única vez, e
com a irmã Liza, que só agora conhece, e também com uma variegada
gama de tipos sociais e concepções ético-filosóficas por vezes

3 Idem, ibidem, p. 9.
4 Idem, ibidem, p. 11.
5 Idem, ibidem, p. 22,
6 TCHIRKÓV, Nikolai Maksímovitch. O estilo de Dostoiévski (O stile Dostoevskovo). Moscou: Ed.

Naúka, 1966, p. 207.


diametralmente opostas. Nesse caldo de culturas ele vai se tateando como
persona, e para tanto os constantes diálogos que travará com Viersílov
(bem como as duras reprimendas de Tatiana Pávlovna) serão
fundamentais, mas ainda não definitivos para o encontro com seu
próprio eu.

Em contiguidade com a atualidade em formação

Segundo Mikhail Bakhtin, o romance é o único gênero nascido em


plena luz do dia histórico, é um gênero em formação, e só um gênero em
formação é capaz de dar conta de uma realidade em formação. Em 1861 a
servidão feudal é abolida na Rússia, criando-se, assim, as bases reais para
a constituição de uma sociedade efetivamente capitalista. Dostoiévski
escreve O adolescente em 1876, quando o novo sistema completava
oficialmente quinze anos, ou seja, entrava em sua adolescência, era um
sistema econômico em formação. Assim, um narrador adolescente em
formação fala de um sistema adolescente em formação. O ano de 1876 é
um período de aceleração do desenvolvimento do jovem capitalismo
russo. Portanto, a época da escrita do romance coincide com a escalada
ampla e profunda do poder do dinheiro em todas as esferas da vida
econômica, social e cultural da Rússia, o que arrasta, num desvario
incontido, todos os segmentos sociais de alto a baixo: nobres, plebeus,
gente honrada e gente desclassificada, todos metidos no mesmo balaio e
movidos pela sede de dinheiro, do ganho a qualquer custo, das apostas
de grandes somas em casas de jogo, da agiotagem em larga escala à
especulação em todas as suas formas. Esse clima de caos e desordem
atinge particularmente a nobreza, que, apesar de ainda manter o controle
do Estado, sua decadência moral transparece com nitidez em
representantes de linhagens mais antigas e tradicionais como a dos
príncipes Sokólski. Serguiêi, o mais jovem representante desse clã, com
quem Arkádi mantém uma relação de amizade, mete-se em companhias
de vigaristas de toda espécie, frequenta o carteado e várias casas de jogo,
é preso por falsificação de promissórias e outros crimes e termina louco.
É nesse clima de instabilidade geral, desordem e caos que
Dostoiévski cria seu herói adolescente com a incumbência de narrar sua
própria história, assim como a de sua família. Como é frequente em
Dostoiévski, a história de Arkádi Dolgorúki tem afinidade com as
narrativas folclórica e romanesca: a história do enjeitado, com a diferença
de que Arkádi goza da proteção de Tatiana Pávlovna, uma espécie de
parente rica e sua fada madrinha, que custeia suas despesas pessoais e
sua manutenção no colégio; ele é filho biológico do nobre e senhor de
terras Andriêi Pietróvitch Viersílov, mas filho legal de Makar Ivánovitch
(também aparece como Ivánov) Dolgorúki e Sófia Andrêievna, servos de
Viersílov e legalmente casados. Se em 1876 Arkádi está com vinte anos,
então nasceu em 1856, ainda durante o regime de servidão, no qual
vigorava o direito irrestrito do bárin (isto é, senhor de terras e de servos)
sobre as almas, como eram chamados os servos na Rússia durante esse
regime. No leito de morte, o pai de Sófia Andrêievna, que na ocasião
estava com dezoito anos, pediu a Makar, então com cinquenta, que
cuidasse de sua filha e a desposasse. E assim foi feito. Pouco tempo
depois, Viersílov, viúvo e com vinte e cinco anos de idade, chega à sua
fazenda, lá conhece Sófia Andrêievna já casada oficialmente com o
jardineiro servo Makar Ivánov Dolgorúki, os dois se apaixonam,
encontram-se às escondidas, mas o caso acaba vindo à tona. Então,
mesmo apaixonado por Sófia Andrêievna, mãe de Arkádi, Viersílov usa
do direito de senhor. Chama Makar ao seu escritório e, numa conversa
reservada e tensa (na qual chorou no ombro de Makar, segundo contou a
Arkádi), decide-se que Sófia ficará com ele, Viersílov. Na condição de
servo, não resta a Makar senão aceitar o fato como natural. Ele deixa a
fazenda de Viersílov e torna-se um peregrino, um errante. E por ele
considerar natural o arranjo de Viersílov com Sófia Andrêievna, dá-se um
fato bastante peculiar: de onde quer que esteja em suas errâncias pela
Rússia ou Viersílov e Sófia se encontrem, seja na Rússia, seja no
estrangeiro, Makar sempre se comunica por carta com “a nossa mui
amável e respeitada esposa Sófia Andrêieva” e “os nossos amáveis
filhinhos”7 e, em anos intercalados, passa religiosamente uma semana em
casa, isto é, na casa de Sófia Andrêievna. A princípio Viersílov chega a ter
medo de Makar, como ele mesmo confessa, mas depois se habitua e passa
até a conversar com ele. Mas antes de partir, Makar arranca de Viersílov
a promessa de desposar Sófia quando for possível.

A família casual

Viersílov, nobre de linhagem antiga, esbanjou três heranças, está


falido, tem um casal de filhos de seu primeiro casamento com a nobre
Fanariótova, os filhos não moram com ele, como é de praxe, mas com
seus familiares; assim ele agiu a vida inteira com todos os seus filhos,
legítimos e ilegítimos. Tampouco lhes devota afeto ou preocupação
relevante. Vive, mas em residências diferentes, com a ex-serva Sófia
Andrêievna, com quem tem igualmente um casal de filhos – Arkádi e
Liza –, mas ao mesmo tempo é apaixonado pela nobre e rica Catierina
Nikoláievna Akhmákova, com quem alimenta a intenção de casar-se.
Assim, Viersílov integra o rol daquilo que na Rússia ficou conhecido
como família casual ou família por acaso, ou seja, uma família constituída

7 F. Dostoiévski, O adolescente, op. cit., p. 20.


por nobres de linhagem com representantes de camadas socialmente
inferiores, inclusive de servos. Às vezes esses nobres têm mais de uma
família, como acontece com Viersílov, e vez por outra juntam duas e até
três famílias constituídas com servas e as mantêm em suas aldeias, longe
das famílias legalmente constituídas. Viersílov difere deles, pois sempre
viveu em torno de Sófia Andrêievna, ainda que morando em casas
diferentes. Dostoiévski vê nessas uniões casuais um fenômeno de massa
que alimenta a desordem e o caos e caracteriza o desequilíbrio social e
moral de uma nobreza decadente. Superar a condição de filho de família
casual é um desafio a ser vencido no processo de amadurecimento do
adolescente Arkádi.
Viersílov vive com Sófia Andrêievna, tem um casal de filhos com
ela, mas é apaixonado por Catierina Nikoláievna Akhmákova, filha do
velho príncipe Sokólski, pela qual Arkádi também se apaixonou na
primeira vez em que a viu em casa de seu pai. Catierina vive na busca
angustiante de um documento que a compromete seriamente perante o
pai. Aproveitando-se da convalescença do velho após uma grave crise de
saúde no exterior, seguida de uma súbita propensão a esbanjar dinheiro a
torto e a direito, ela escreve ao advogado Andrónikov, consultando-o
quanto à possibilidade de interditar juridicamente o pai. O velho
recupera-se, Andrónikov morre subitamente, deixando a carta em mãos
desconhecidas. Catierina teme que esse documento chegue ao
conhecimento do pai, que poderá deserdá-la. Daí a sua angústia, sua
procura desesperada pelo documento. Ela imagina que está com
Viersílov, mas está com Arkádi, que o recebera de Mária Ivánovna,
senhora que o acolhera em Moscou logo após sua saída do colégio.
Arkádi costurara o documento no bolso lateral interno do seu casaco e
anda sempre com ele muito bem guardado.
Assim, pai e filho são apaixonados pela mesma mulher, e o
desfecho desse problema terá grande importância na relação de Arkádi
com Viersílov, bem como na consolidação de seu amadurecimento, pois
esta está ligada também à consolidação da união de sua mãe com
Viersílov e, por conseguinte, de sua família.
Portanto, fruto da paixão do jovem senhor Viersílov por sua serva
Sófia Andrêievna, Arkádi é entregue desde pequeno aos cuidados de
estranhos para o conforto de Viersílov, e passa a viver como um excluído
“quase logo depois do meu nascimento”8 e chegando aos vinte anos
praticamente “sem ter visto minha mãe, salvo nuns dois ou três acasos
passageiros”9,, assim como vira Viersílov uma única vez quando tinha
dez anos, o que não fora culpa da mãe mas da arrogância de Viersílov

8 Idem, ibidem, p. 20.


9 Idem, ibidem, p. 21.
com as outras pessoas, razão pela qual “esse homem continua sendo
até hoje um completo enigma para mim” 10, e da decifração desse
enigma depende a consolidação da personalidade de Arkádi. Arkádi
é educado inicialmente no internato do senhor Touchard, um francês
filho de sapateiro, mas que, desde tempos imemoriais, trabalhava em
Moscou como professor de francês e inclusive detinha títulos. Era um
homem profundamente inculto, que conseguira se afirmar na Rússia. O
internato é um microinferno, onde o menino é constantemente
ridicularizado e humilhado por sua condição de filho bastardo, que, na
falta do apoio e da imagem masculina do pai, sente-se, como o Sérgio de
O ateneu do nosso Raul Pompeia, “possuído de certa necessidade... de
amparo”11. Por isso, chega até a servir passivamente de criado ao dono da
instituição, que o humilha de várias maneiras, mais de uma vez lhe bate
no rosto e o transforma em lacaio, assim como o faz seu colega Lambert,
que também o maltratava e teria papel de destaque em seu
amadurecimento pelos péssimos exemplos que lhe dá. Toda essa
experiência vivida no internato terá grande importância psicológica para
a sua formação, pois a condição de bastardo deixa marcas profundas em
sua psique e o faz sentir seu amor-próprio constantemente ferido.
A essa susceptibilidade ferida acrescenta-se algo bastante bizarro:
Arkádi Makárovitch Dolgorúki é filho bastardo, mas tem o sobrenome do
príncipe Yúri Dolgorúki, oriundo de uma das mais antigas dinastias da
Rússia, que reinou no principado de Súzdal-Rostóv entre 1125 e 1157, foi
cognominado Dolgorúki, isto é, o de braços longos, por sua política de
expansão territorial que o levou a fundar Moscou em 1147, conquistar
Kíev em 1149, tornar-se grão-príncipe e ali reinar primeiro de 1149 a 1151
e depois de 1155 a 1157, ano de sua morte. Assim, Arkádi Makárovitch
traz em sua imagem a combinação ambígua de filho do servo Makar
Dolgorúki, mas com sobrenome de um príncipe da mais alta linhagem e
dinastia. Sempre que é apresentado a alguém e menciona seu sobrenome
Dolgorúki, ouve a pergunta: – Príncipe Dolgorúki? – a qual responde:
Não: simplesmente Dolgorúki. Esse “simplesmente Dolgorúki” é fonte de
sua permanente sensação de humilhado e irritação, acentua sua carência
de identidade e o faz mergulhar em seu mythos da procura – para usar um
conceito de Northrop Frye – da procura de si mesmo e do pai Andriêi
Pietróvitch Viersílov, sobrenome de que ele precisa como marca de sua
identidade social e para poder dar satisfação a si mesmo e àqueles que lhe
jogam na cara que ele não é um Viersílov. Por outro lado, há por traz
dessa bizarrice outro aspecto profundamente aviltante para Arkádi, pois
lhe tira a condição de pertencer de fato a uma família: tem sobrenome de

10 Idem, ibidem, p. 10.


11 POMPEIA, Raul. O ateneu. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 9ª edição, 1993, p. 54.
príncipe, mas é filho ilegítimo do nobre Viersílov, de quem não pode usar
o sobrenome por ser filho legal de um ex-servo. Logo, não tem identidade
social, é filho de uma “família casual”12, o que o mantém num clima de
profunda humilhação, que é reiterada como uma cantiga monótona e
agourenta sempre que ele tem de pronunciar o “simplesmente Dolgorúki”.
Daí ele afirmar ser raro alguém ter “sentido tanta raiva de seu
sobrenome como eu senti em toda a minha vida”13. Isto acentua de
forma até angustiante a falta que Viersílov fizera na formação da
personalidade e do caráter de Arkádi. “Em cada sonho que eu tinha
desde criança havia a presença dele; girava em torno dele, acabava
reduzido a ele”14. Mas Viersílov era pura ausência em sua vida, e essa
ausência acabou sendo responsável pela ambiguidade que se instalou na
alma do menino: “Não sei se o odiava ou se o amava, mas ele preenchia
todo o meu futuro, todos os meus cálculos para a vida – e isto aconteceu
por si só, acompanhou o meu crescimento”15.
A busca da superação dessas ambiguidades (“Não sei se o odiava
ou se o amava”) é parte da luta de Arkádi pelo preenchimento de sua
maior lacuna, e o que se vê ao longo do romance é o adolescente na busca
angustiante e conflituosa de um pai (“deem-me o Viersílov todo, deem-
me meu pai... eis o que eu exigia”16), mas de um pai real, diferente
daquele que ele vira e sentira em sua solitária infância; de um pai que o
orientasse, um pai mais presente na vida dele e da família. Daí a
necessidade de sua luta por Viersílov como luta por si mesmo, por
superar suas próprias ambiguidades, e essa luta terá de dar-se numa
interação dialógica capaz de resolver uma questão que Bakhtin coloca
como um axioma: “Eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar
eu mesmo sem o outro; devo encontrar a mim mesmo no outro,
encontrar o outro em mim”17. A certa altura da narrativa, Arkádi diz que
precisava do próprio Viersílov por toda a sua vida, do homem inteiro, do
pai, e que esse pensamento já penetrara em seu sangue, já era parte da
luta para preencher as lacunas de sua formação.
Em Petersburgo, pai e filho vão estabelecendo pouco a pouco uma
relação dialógica ampla e profunda. Viersílov é culto e tolerante, sabe
ouvir Arkádi e respeitá-lo como indivíduo, e aos poucos os diálogos vão
sendo enriquecedores para Arkádi e para o próprio Viersílov, e assim os
dois vão se conhecendo melhor e interagindo. Viersílov, apesar de
economicamente falido, recusa o ganho de uma causa milionária nos
12 F. Dostoiévski, O adolescente, op. cit., p. 589.
13 Idem, ibidem, p. 11.
14 Idem, ibidem, p. 23.
15 Idem, ibidem, p. 23.
16 Idem, ibidem, p. 129.
17 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de

Janeiro: Ed. Forense Universitária, 4ª edição revista e ampliada, 2008, p. 342.


tribunais depois de descobrir que a parte vencida merecia mais a vitória
do que ele. Isto fascina Arkádi, que, se já o admirava, passa a admirá-lo
cada vez mais, a amá-lo com fervor e a ver-se correspondido em seu
amor. Porém, como ele é o narrador de sua própria história, o tempo da
enunciação do agora cruza-se em seu registro com o tempo das
lembranças da pré-adolescência, alimentado pelas sensações redivivas do
enjeitado, e a imagem ambígua que desde então ele carregava do pai
torna a aflorar, devolvendo-o àquele clima de ressentimento que fora
responsável por sua tendência ao isolamento e a um individualismo
exacerbado que constantemente o levava a querer recolher-se à sua
“carapaça”18. Assim, o Arkádi de dez anos continua vivíssimo no Arkádi
de vinte, que se arrasta nesse movimento pendular até o fim do romance.

Desde meus tempos de estudo nas classes inferiores do colégio, assim que
algum colega me ultrapassava em ciências, em respostas penetrantes ou em
força física, imediatamente eu deixava de falar e andar com ele. Não que o
detestasse ou desejasse seu fracasso; simplesmente me afastava porque esse
é o meu caráter.19

E então se recolhia à sua “carapaça” no “mais intenso estado


contemplativo”20. Nessa solidão contemplativa, e mesmo a despeito das
humilhações que sofrera no internato e no colégio, fantasiava uma espécie
de superioridade, pois desde as suas primeiras fantasias, isto é, desde a
infância, não podia imaginar-se “senão em primeiro plano, sempre e em
todas as circunstâncias da vida”21. Mas como chegar a esse primeiro
plano e vencer tão corrosivo ressentimento e tamanha solidão? Só
descobrindo uma ideia salvadora que o livrasse da necessidade de laços
afetivos com familiares ou com outras pessoas, e ele chegou a essa ideia,
que chama de “ideia-refúgio”. Vejamos os preâmbulos dessa ideia e em
que ela consiste.

(...) resolvi em Moscou desistir de todos eles (isto é, de seus familiares –


P.B) e me recolher definitivamente à minha ideia. É assim mesmo que
escrevo: ‘recolher-me à minha ideia’, porque esta expressão pode significar
quase todo o meu pensamento principal – aquilo para que vivo neste
mundo. (...) Na solidão de minha vida longa e sonhadora em Moscou, ela
se formou em mim ainda no sexto ano do colegial e desde então não me
abandonou talvez por um único instante. Absorveu toda a minha vida.
Antes dela eu já vivia sonhando, desde minha infância tenho vivido num
reino fantasioso de certa tonalidade; mas com o surgimento dessa ideia
central e absorvente meus sonhos ganharam consistência e desaguaram de

18 F. Dostoiévski, O adolescente, op. cit., p. 22.


19 Idem, ibidem, p. 95.
20 Idem, ibidem, p. 95.
21 Idem, ibidem, p. 96.
vez numa forma determinada (...) Tendo concluído o colegial, tive a
imediata intenção de romper radicalmente não só com todos os meus, mas,
se fosse preciso, até com o mundo inteiro, apesar de estar apenas na casa
dos vinte anos.22

Portanto, navegando num mar desprovido de afeto e amizade


verdadeira, ele chega ao seu porto: “minha ideia é meu refúgio”23. Mas
que ideia?

A ideia e seu sentido

O cerne de minha ideia, o cerne de sua força residia em que o dinheiro é o


único caminho que conduz até uma nulidade ao primeiro plano. Talvez eu
não seja sequer uma nulidade, mas sei, por exemplo, pelo que vejo no
espelho, que minha aparência me prejudica porque tenho um rosto
ordinário24. Mas se eu fosse rico como Rothschild, quem se preocuparia
com o meu rosto e quantos milhares de mulheres não voariam para mim
com sua beleza, bastando apenas que eu assobiasse? Estou até convencido
de que elas mesmas acabariam me achando belo, e com toda sinceridade. É
possível que eu até seja inteligente. Se eu fosse um poço de sabedoria, logo
encontrariam na sociedade alguém que fosse um poço e meio, e eu estaria
perdido. Mas, se eu fosse Rothschild, esse sabichão, poço e meio de
sabedoria, significaria alguma coisa a meu lado? Ora, aí nem sequer o
deixariam abrir a boca! Sou talvez espirituoso; mas vamos que a meu lado
eu tivesse Talleyrand25, Piron26 – então estaria eclipsado: mas fosse eu um
pouquinho Rothschild, o que seria feito de Piron e talvez até de Talleyrand?
O dinheiro, evidentemente, é um poderio despótico, mas ao mesmo tempo
é a suprema igualdade e nisto reside sua força principal. O dinheiro nivela
todas as desigualdades!27

De início o dinheiro se apresenta a Arkádi como uma forma de


compensação do sentimento de inutilidade que ele experimenta ao
considerar-se “uma nulidade”. Por outro lado, o dinheiro também se
apresenta como uma espécie de forra pela condição de filho bastardo e
excluído do seio da família, já que fora deixado à guarda de estranhos
pouco tempo depois de seu nascimento e mais tarde confinado no
internato de Touchard, onde fora forçado a conviver em condição de
inferioridade com filhos de príncipes e senadores e Viersílov, seu pai
biológico, nunca o visitara e a mãe o fizera uma única vez. Se o dinheiro

22 Idem, ibidem, p. 21.


23 Idem, ibidem, p. 62.
24 É recorrente neste romance o emprego do termo ordinárnost (russificação do termo latino

ordinarium), com o qual Dostoiévski enfatiza o medíocre, o habitual, o comum, o desprovido de


originalidade. Em sua tradução, optamos ora por mediocridade, ora por medíocre (N. do T.).
25 Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1868), famoso diplomata francês (N. do T.).
26 Alexis Piron (1689-1773), poeta, autor de comédias e óperas cômicas (N. do T.).
27 F. Dostoiévski, O adolescente, op. cit., p. 96.
tudo resolve, qualidades essenciais como talento, habilidades para o
trabalho e até a beleza são coisas secundárias perante esse poder maior.
Por conseguinte, Arkádi expõe uma filosofia do dinheiro como
símbolo do poder total, como o elixir mágico capaz de operar o milagre
de conduzir “até uma nulidade” ao topo da hierarquia social, estética e
inclusive intelectual, pois um zé-ninguém pode chegar ao “primeiro
plano”, o feio converter-se em belo, o ignorante virar proeminência
intelectual a ponto de eclipsar um Talleyrand e um Piron, em suma,
graças ao alcance ilimitado do “poder despótico” do dinheiro chega-se
àquela condição aventada por Karl Marx, segundo a qual quem domina
economicamente uma sociedade domina política e ideologicamente e
constrói de si a imagem que melhor lhe aprouver, nivelando a seu bel
prazer todas as desigualdades. Para tanto basta ser um Rothschild,
símbolo maior do capitalista e da extrema autoafirmação de Arkádi.
Ademais, essa filosofia do dinheiro é a filosofia da época, o espírito da
época, e ele interioriza o espírito de seu tempo, o próprio tempo e o ritmo
frenético de sua sociedade, acalentando uma ideia: tornar-se um
Rotschield. Com este fim, resolve economizar meticulosamente cada
copeque que sobra do dinheiro que lhe enviam em nome de Viersílov e
por muito tempo matuta sobre a melhor maneira de aplicar suas
economias. Não quer apenas estar pari passu com o sistema econômico de
seu tempo e acompanhar seu ritmo de desenvolvimento: quer, sobretudo,
superá-lo, e procura fazê-lo apoiado numa filosofia do dinheiro, capaz de
reverter valores e hábitos socioculturais, neutralizando as diferenças
entre castas. O vigarista Lambert traduz à perfeição essa filosofia e esse
espírito ao aconselhar Arkádi a dar o golpe do baú e, assim, mudar ao
mesmo tempo de condição social e linhagem nobiliárquica.

(...) e quanto ao fato de não teres nome, hoje em dia não se precisa de
nada disso: é só meteres a mão na bolada que vais crescer, crescer, e
dentro de dez anos serás tamanho milionário que deixarás toda a
Rússia em polvorosa; então, para que precisarias de nome? Na Áustria
pode-se comprar um título de barão.28

Desse modo, estarão superadas todas as desigualdades.


Assim, Arkádi expõe a filosofia de seu tempo, do dinheiro e de seu
poder, do universo ilimitado que ele descortina perante os homens. Ser
um James Rotschild, o superbanqueiro a quem até o czar da Rússia e o
papa de Roma deviam dinheiro, não significava ser apenas um
capitalista, mas o maior capitalista: significava ser um déspota das
finanças, alguém capaz de ultrapassar todos os limites humanos e
geográficos, não reconhecer a superioridade de ninguém, destruir todas

28 Idem, ibidem, p. 468.


as barreiras e anular todos os méritos e hierarquias que distinguem e
separam os homens em seu cotidiano, nivelando tudo por baixo, porque
“O dinheiro (...) é um poderio despótico, mas ao mesmo tempo é a
suprema igualdade e nisto reside sua força principal. O dinheiro nivela
todas as desigualdades!”29
Arkádi não queria o poder sobre a canalha trêmula como
Raskólnikov, não queria o simples poder – vlast como sinônimo de
governo –, queria o poderio, isto é, mogúchestvo, palavra que significa ao
mesmo tempo poder enorme e influência e libera o indivíduo para fazer o
que lhe der na telha. Inclusive não precisar de ninguém, “recolher-se”
tranquilamente “à sua carapaça”, sem precisar prestar contas a ninguém,
como afirma reiteradamente, pois em toda a vida tivera “sede de poderio,
de poderio e isolamento”30, porque essa é a via para atingir algo superior:
“a consciência solitária e tranquila da força! Eis a mais plena definição de
liberdade! (...) Sim, a consciência solitária da força é fascinante e bela.
Tenho a força, e estou tranquilo. Os raios estão nas mãos de Júpiter, logo,
ele está tranquilo”31.
Portanto, o dinheiro não só libera o indivíduo de eventuais
compromissos de sociabilidade e afetividade ao lhe dar a “consciência
solitária da força” e o direito a recolher-se “à sua carapaça”; o dinheiro
leva seu detentor a superar a ordem social e humana e projetar-se à
ordem cósmica na condição de um novo Júpiter; o detentor do dinheiro é
o novo deus da sociedade em formação, e vive sua ataraxia no meio de
notas e moedas-raios. Como em Dostoiévski o presente sempre olha para
o futuro e o particular vive continuamente na fronteira do universal,
quatro décadas depois da publicação de O adolescente os raios do novo
Júpiter caíram sobre a terra europeia, espalhando as chamas que
redundaram no grande incêndio da primeira guerra mundial. Sinal do
novo mundo em formação.
A consciência do poder infinito do dinheiro está clara. Agora o
próprio narrador descreve sua experiência de “acumulação primitiva”
para chegar a ser um novo Rothschild. Note-se que Arkádi expõe essas
ideias mesmo depois de iniciados os seus diálogos com Viersílov.

Acumulação primitiva e educação do investidor

Arkádi enumera uma série de qualidades essenciais para a


formação do futuro capitalista e sua técnica para lucrar, baseada nos
pilares obstinação e continuidade; a obstinação de acumular, ainda que
centavos, acaba dando imensos resultados (aqui o tempo nada significa)

29 Idem, ibidem, p. 96.


30 Idem, ibidem, p. 95.
31 Idem, ibidem, p. 97.
desde que aliada à forma mais simples, porém contínua de lucrar: seu
sucesso é matematicamente assegurado. É preciso querer e ser capaz até
de mendigar, caso não haja nenhum outro jeito de lucrar; uma vez
mendigando, é mister ser obstinado e não esbanjar os primeiros centavos
recebidos com um pedaço de pão a mais para si mesmo ou sua família;
passar a pão e água, e não comer mais de duas libras e meia de pão preto
por dia; resistir a gastar com comida, ainda que prejudicando um pouco o
estômago; saber querer o bastante para atingir o objetivo. “É nisto, repito,
que consiste toda a ‘minha ideia’ – o resto são ninharias”32.
É preciso economizar, e uma forma adequada é viver na rua e, em
caso de necessidade, dormir nos abrigos noturnos, onde, além da
pousada, ainda fornecem um pedaço de pão e um copo de chá.
Depois de juntar uma boa soma, seguir duas regras principais: a
primeira é não arriscar com nada; a segunda, lucrar forçosamente
por dia qualquer quantia acima do mínimo gasto com a
manutenção para que a acumulação não seja interrompida por um
só dia. Uma vez conseguida uma boa acumulação, saber lucrar: no
lucro está a independência, a paz de espírito, a clareza do objetivo.
Assim ele consegue acumular cem rublos como capital inicial de
giro. Para multiplicá-lo, vira açambarcador de rua, especulador com
ações, e de negócio em negócio vai construindo sua formação como
jovem investidor. Insiste que para chegar a esse ponto é preciso ter
caráter e agir forçosamente sozinho.
Ora, o problema da formação não é apenas de discurso, mas
também e sobretudo de prática, de ação. Arkádi narra sua primeira
experiência no mundo dos negócios. Vai a um leilão, arremata por dois
rublos e cinco copeques um velho álbum de família, coisa imprestável em
termos de investimento e condenada a encalhar. Mas aparece um
comprador, que lamenta ter se atrasado, pergunta a Arkádi por quanto
ele comprara o álbum e este lhe responde: “Dois rublos e cinco
copeques”33. Começa uma negociação entre os dois. Para o interessado, o
álbum tinha valor afetivo, para Arkádi, era apenas mercadoria. Arkádi
estabelece o preço de dez rublos para o álbum, o interessado reclama do
lucro exorbitante que o vendedor almeja, mas acaba comprando o álbum,
sem, no entanto, deixar criticar Arkádi.

– Convenhamos que isso é desonesto! Dois rublos e dez, hein?


– Por que desonesto? É o mercado.
– Que mercado há nisso? – (Estava zangado.)
– Onde há procura, há mercado; se o senhor não procurasse, eu não o

32 Idem, ibidem, p. 88.


33 Idem, ibidem, p. 53.
teria vendido nem por quarenta copeques. 34

É uma confissão sórdida de Arkádi, mas ele apenas cumpre as leis


do negócio capitalista: tudo formal, frio, segundo as normas do mercado,
sem nenhuma participação na afetividade do outro. É o primeiro teste do
adolescente em seu processo de experimentação como especulador de
leilões. O diálogo entre os dois ilustra à perfeição o espírito da época que
Arkádi incorpora à sua personalidade, o qual Bakhtin atribui ao
comportamento do herói no romance de formação: “O tempo se
interioriza no homem, passa a integrar a sua própria imagem,
modificando substancialmente o significado de todos os movimentos do
seu destino e da sua vida”35.
A dinâmica desse tempo interiorizado em Arkádi o levará ao
experimento de outras formas de obtenção de lucro e acumulação mais
consentâneas com o sentido de sua ideia inicial de tornar-se um
Rothschild. Isto corresponde integralmente ao espírito do etos burguês
que norteia seu projeto, como ele mesmo reconhece mais tarde:

(...) naquela época eu já estava depravado; já me era difícil abrir mão de


uma refeição de sete pratos num restaurante, de Matviêi, da loja inglesa, da
opinião do meu perfumista, bem, de tudo isso. Já então eu tinha consciência
disso mas dava de ombros; hoje, porém, coro ao descrevê-lo.36

Assim, na segunda parte do livro ele desiste de seu projeto inicial


de lenta “acumulação primitiva” e, num frenesi incontido, entra de corpo
e alma no universo da jogatina, passa por várias casas de jogo e acaba
fazendo sua opção pela roleta de um indivíduo de sobrenome
Ziérschikov, um capitão de cavalaria reformado. Em suma, Arkádi faz
sua descida ao inferno da jogatina num autêntico rito de passagem no
qual é um neófito, ganha muito dinheiro na roleta, porém, como
desconhece o perfil moral e psicológico dos frequentadores desse recinto,
sofre o seu sparagmós, quando “heroísmo e ação eficaz... estão
predestinados à derrota” : é roubado, denuncia o ladrão, mas é ele que
37

acaba sendo acusado de roubo, sofre um grande vexame público, é


humilhado, revistado, chamado publicamente de ladrão e expulso. Em
seu despedaçamento, revela aqueles aspectos sombrios de sua
personalidade ainda inacabada, gritando para os presentes: “Vou
denunciar todo mundo, a roleta é proibida pela polícia! (...) pois fiquem
vocês todos sabendo que adivinharam – não sou apenas um ladrão, sou

34 Idem, ibidem, p. 53.


35 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed.
Martins Fontes, 2003, p.221-222.
36 F. Dostoiévski, O adolescente, op. cit., p. 299.
37 Frye, N. Op. cit., p. 190.
também um delator!”38. Nesse despedaçamento, vem à tona a antinomia
do social e do antissocial referida por Tchirkóv: passam-lhe pela cabeça a
ideia do crime (“o crime me rondava naquela noite e só por acaso não se
consumou”39), da baixeza da delação – “tornar-me (...) um verdadeiro
delator, e enquanto isso ir me preparando devagarzinho e um dia mandar
tudo de repente para o espaço, destruir tudo, todos, culpados e inocentes"
– e a ideia de suicídio: “então me matar”40.
Sai perambulando pela rua, encontra um depósito de lenha, ocorre-
lhe a ideia de provocar um incêndio (“mandar tudo para o espaço”), sobe
em seu muro com o intuito de provocar um incêndio, cai, fica horas a fio
adormecido sobre a neve e assim é encontrado por Lambert, que o leva
para a sua casa. Lá ele passa a noite delirando e, no delírio, diz coisas
disparatadas, dá a entender que esconde um documento capaz de
comprometer alguém, e Lambert, com seu faro canino para negócios
escusos, pressente aí uma oportunidade para chantagem e começa a
assediar sorrateiramente Arkádi. Alphonsine, companheira de Lambert,
retira a carta do bolso interno do casaco de Arkádi e a substitui por uma
folha de papel de carta em branco. Trata-se da famosa carta a que já me
referi. Lambert se aproveita do documento para chantagear Catierina e
envolve Arkádi na trama, que só não se concretiza graças à intervenção
de Viersílov.

Os “dois pais” e o amadurecimento de Arkádi

O vexame sofrido em público na roleta de Ziérschikov, as muitas


horas passadas na neve e seus desdobramentos em casa de Lambert
produzem um efeito profundo em Arkádi, que cai doente, passa nove
dias acamado em estado inconsciente, numa espécie de morte ritual, da
qual sai “renascido, mas não emendado”41. Então encontra seu “pai
legal”, Makar Ivánovitch, com quem entabula um diálogo que o levará ao
conhecimento de uma nova “sabedoria”, que completará a contribuição
recebida dos diálogos até então travados com Viersílov e será conclusiva
para o aperfeiçoamento da sua personalidade. Vejamos primeiro o
resultado desses diálogos.
Arkádi, que começa sua história com uma relação ambígua de
envolvimento e desconfiança com a nobreza russa (seu amigo Kraft
considera o russo um povo inferior) e acalentando seu projeto
individualista burguês de tornar-se um Rothschild, recebe de Viersílov
uma importante contribuição para superar esse individualismo por meio

38 F. Dostoiévski, O adolescente, op. cit., p. 348.


39 Idem, ibidem, p. 348.
40 Idem, ibidem, p. 349.
41 Idem, ibidem, p. 367.
de pelo menos duas considerações teóricas. 1. Uma utopia da nobreza
como categoria superior dos homens. Apesar de decadente em termos
econômicos e sociais, ela poderia continuar sendo uma casta superior
enquanto preservadora da honra, da luz, da ciência e de uma ideia
suprema, formando assim a “categoria superior dos homens (...) [e
uma] reunião exclusiva dos melhores” 42, único meio de preservar-se.
2 A Idade de Ouro como era da igualdade, da fraternidade e da plena
felicidade. Para Viersílov a Idade de Ouro é a era do “amor de toda a
humanidade”43, encarna a “ideia russa superior”, “um tipo de
sofrimento universal por todos” 44, ideia, aliás, muito cara ao próprio
Dostoiévski. No futuro haveria uma Idade de Ouro sem Deus nem
religião, na qual as pessoas, livres da pressão das antigas formas
sociais e religiosas de vida, só contariam com suas próprias forças e
representariam tudo umas para as outras. A ideia da imortalidade e
do amor por um Deus salvador seria substituída e canalizada para
toda a natureza, o mundo e as pessoas, que então passariam a amar a
terra e a vida conforme tomassem consciência de sua transitoriedade e
de sua finitude. Sua nova relação com a natureza seria a fonte de
novos conhecimentos e de novas formas de amar o próximo, algo
como um amor universal entre os homens. Na nova organização
social, as pessoas “trabalhariam umas para as outras, e cada uma
entregaria a todas tudo o que era seu e só com isso seria feliz”45; a
família, tema tão caro a Arkádi, se basearia numa fraternidade
coletiva.
Na terceira parte do livro Makar Ivánovitch, a quem, segundo
Arkádi, sua mãe respeitava “não menos que a um deus”46, reaparece
já ancião, um típico andarilho russo, que, numa espécie de mito do
eterno retorno, volta para morrer no seio da “família”. Homem do
povo (prostolyudín), Makar é uma espécie de homem natural à lá
Dostoiévski, um símbolo vivo de amor à vida e da alegria de viver,
que encara sua finitude física com a absoluta naturalidade de quem,
consciente de ter vivido bem a vida, acredita em sua continuidade
através do amor que há de nutrir por ela além-túmulo, pois acha que
“haverá amor até depois da morte”47. É aquele tipo que “se entrega
voluntariamente por todos”, entrega inclusive “seu próprio eu”,
como escreve Dostoiévski em “Socialismo e Cristianismo”, e por essa
razão pode proclamar sem artificialismo: “Para os velhos, os

42 Idem, ibidem, p. 234.


43 Idem, ibidem, p. 489.
44 Idem, ibidem, p. 490.
45 Idem, ibidem, p. 493.
46 Idem, ibidem, p. 18.
47 Idem, ibidem, p. 380.
túmulos, para os moços, a vida” 48.
Makar tem uma sabedoria profunda, não tirada dos livros mas
vivenciada na experiência prática e voltada para a vida, diferente
daquelas pessoas que, como ele diz, “estudam desde que o mundo é
mundo”, mas não se sabe “o que aprenderam de bom para tornar o
mundo a morada mais maravilhosa e alegre e repleta de toda sorte
de alegria”49; uma concepção de amor verdadeiro pelas pessoas e
pela natureza que Arkádi nunca vira no meio social em que
circulava; uma afetividade que este só sentira em sua mãe, e ainda
assim de forma muito tímida. De toda essa cosmovisão de Makar
decorre um ideal de beleza que o próprio Arkádi procurava entre as
pessoas com quem convivia em seu meio social, mas só encontrou
nesse velho representante do povo, que funde em sua personalidade
uma profunda sabedoria popular com uma simplicidade quase
infantil.
Depois das longas conversas com Viersílov, o diálogo com
Makar Ivánovitch era o elemento que faltava a Arkádi para superar
certas mazelas de sua formação, o individualismo burguês, a
superação da fantasia com Rothschild e as futilidades daí
decorrentes. Num dos diálogos com Makar, o velho repete Mateus a
seu modo e lhe sugere um antídoto contra todos esses sonhos
burgueses: distribuir tudo o que tem e tornar-se servo de todos os
homens, pois assim ele se tornaria muito mais rico, alcançaria uma
felicidade que não se traduziria em roupas caras nem no orgulho
causado pela inveja dos outros, mas no amor multiplicado ao
infinito, que atingiria o mundo inteiro. O fim de tudo isso seria uma
comunidade de iguais, uma fraternidade universal. Em resumo, o
velho apenas explica com exemplos práticos o que Viersílov tentara
explicar de forma abstrata com a utopia da nobreza e a Idade de
Ouro. Arkádi fica extasiado, diz que não gosta dos seus familiares e
quer abandoná-los (como já prometera em diversos momentos da
narrativa) porque eles não conhecem a beleza que ele, Arkádi,
buscara de forma vaga em toda a sua vida, e declara ao velho que “o
esperava talvez há muito tempo” 50, está contente com ele e quer
segui-lo seja lá para onde ele for. O toque de amor que o velho
irradia ajuda-lhe a refinar e aprimorar a alma ainda em processo de
amadurecimento, porém falta algo que distingue essencialmente
Makar de todas as pessoas com quem Arkádi já convivera e traduz
aquilo que ele procurou por toda a vida e não encontrou em
Viersílov e em mais ninguém do seu entorno nobre. Numa conversa

48 Idem, ibidem, p. 374.


49 Idem, ibidem, p. 394.
50 Idem, ibidem, p. 380.
geral no leito de morte de Makar, na qual o médico qualifica o velho
como um “errante no bom sentido”51, Arkádi assegura:

errantes somos antes nós dois e todos os que aqui estão, e não esse
velho, com quem nós dois ainda temos o que aprender, porque ele tem
algo de sólido (grifo meu – P. B.) na vida, ao passo que nós,
independentemente de quantos somos, não temos nada de sólido na
vida.52

Resumindo, Makar tem a solidez que falta a todo o entorno de


Arkádi, a todos os outros oriundos de uma nobreza que Dostoiévski
apresenta numa crise profunda e que, por isso, não pode oferecer a
Arkádi o ponto de equilíbrio de que ele necessita para consolidar seu
aperfeiçoamento, sua formação. Ademais, a identificação de Arkádi
com Makar simboliza uma questão essencial no pensamento de
Dostoiévski: o restabelecimento da ligação do intelectual com o povo
que, segundo o romancista, fora rompida depois das reformas de
Pedro, o Grande.
Assim, Arkádi termina o romance amadurecido, amando e
sendo amado por Viersílov e mantendo uma relação afetiva
equilibrada e mais objetiva com ele (sepultei Viersílov e o arranquei
de meu coração”53), a mãe e a irmã Liza, numa promissora relação
afetiva com Catierina Akhmákova e acalentando com Tatiana
Pávlovna seu projeto de ingresso na universidade – porto final de
sua viagem de formação, livre da fantasia burguesa de tornar-se um
Rothschild e vendo superada sua condição de filho de uma família
casual, pois Viersílov, depois de todos os contratempos que
marcaram sua trajetória na narrativa, termina vivendo com Sófia
Andrêievna como uma família aparentemente normal e o romance
tem um final feliz, bem similar ao final que Marcus Mazzari ressalta
em seu estudo de Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister.
Durante muito tempo O adolescente permaneceu à margem de
uma definição como gênero ou modalidade de romance. Nikolai
Tchirkóv foi o primeiro estudioso de Dostoiévski a situá-lo na
tradição do romance europeu de educação. Hoje é lugar comum na
fortuna crítica de Dostoiévski na Rússia considerar O adolescente
como romance de educação. Para mim, educação e formação são
formas paralelas ou sinonímicas de tratamento de um mesmo tema.
Há, entre O adolescente de Dostoiévski e Os anos de aprendizagem
de Wilhelm Meister de Goethe, grandes afinidades estéticas e

51 Idem, ibidem, p. 392.


52 Idem, ibidem, p. 392.
53 Idem, ibidem, p. 399.
filosóficas, e uma delas é o fato de os dois serem profundamente
dialógicos, mas isto é tema para outra reflexão.

Paulo Bezerra é professor livre-docente pela FFLCH-USP, atuou como professor de teoria da
literatura na UERJ, de língua e literatura russa na USP e de literatura brasileira e teoria da
literatura na UFF. Já traduziu dezenas de obras diretamente do russo para o português,
incluindo títulos de diversos escritores, como Dostoiévski, Gógol e Púshkin, e do teórico
Mikhail Bakhtin, entre outros autores.
“PARA GOVERNAR A FRANÇA, É PRE-
CISO MÃO DE FERRO”: AS IDEIAS FEITAS
NO ROMANCE DE FLAUBERT

Alexandre Bebiano

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Neste artigo procuramos comentar alguns dos mais importan- A Educação
tes recursos formais empregados por Gustave Flaubert n’A Edu- Sentimental;
cação Sentimental: uso de herói negativo, de um enredo frouxo, Ideias feitas;
do indireto livre e, especialmente, da ideia feita. Um dos objeti- Romance de
vos do artigo é discutir a distância que separa A Educação Senti- aprendizagem;
mental, que narra a história de um jovem na capital francesa, dos Romantismo;
romances escritos por seus antecessores românticos. Desilusão.

ABSTRACT KEYWORDS:
In this article we sought to comment on some of the most important Sentimental Educa-
formal resources used in Gustave Flaubert’s Sentimental Education: tion;
the use of a negative hero, a weak plot, free indirect speech and, Pre-conceived ideas;
especially, the pre-conceived idea. One of the aims of this article is to Apprenticeship novel;
discuss the distance that separates the Sentimental Education, which Romanticism;
narrates a story of a young man in the French capital, from other Disillusion.
novels written by his romantic predecessors.
1. Introdução

Flaubert é um daqueles escritores que têm uma consciência aguda


do fazer literário. Em sua correspondência, essa lucidez é posta à prova.
Sem constrangimentos, ele critica aí seus contemporâneos e livremente
estabelece seu projeto artístico. Assim, quando lê os Miseráveis, o romance
social de Victor Hugo, Flaubert escreve a uma amiga de seu círculo literário,
a amante de Louis Bouilhet:

Não encontro nesse livro nem verdade nem grandeza. Quanto ao estilo, ele
me parece intencionalmente incorreto e baixo. É uma maneira de bajular o
popular. (…) Há explicações enormes sobre coisas fora do assunto, e nada
sobre aquelas indispensáveis ao assunto. Mas, em compensação, sermões
para dizer que o sufrágio universal é uma coisa muito bonita, que a instrução
às massas é necessária; isso é repetido à saciedade. Decididamente o livro,
malgrado os belos trechos, e eles são raros, é infantil. (…) ele [Hugo] resume
a corrente, o conjunto das ideias banais de sua época — e com uma tal
persistência que esquece a sua obra, e a sua arte. Eis aí minha opinião (…).
Guardo-a para mim, bem entendido. Tudo o que pega uma pena deve ter
muito reconhecimento a Hugo para se permitir uma crítica. Mas acredito,
pelo que vejo, que os deuses envelhecem. Que descuido com a beleza!1

Os juízos são severos: “o estilo é incorreto e baixo”, “uma maneira


de bajular o popular”, “o livro é infantil”. Mas essa crítica tem a vantagem
de sublinhar o desacordo que se abriu entre duas gerações: a romântica e a
realista. Hugo, um dos maiores representantes daquela, seria “um deus
que envelheceu”, porque escreve uma obra distante do belo e da verdade,
falsificando ou idealizando mesmo a realidade2. É assim que Hugo esquece

1 « Je ne trouve pas dans ce livre ni vérité ni grandeur. Quant au style, il me semble


intentionnellement incorret et bas. C'est une façon de flatter le populaire. (…) Des explications
enormes données sur des choses en dehors du sujet et rien sur les choses qui sont indispensables
au sujet. Mais en revanche des sermons, pour dire que le suffrage universel est une bien jolie
chose, qu’il faut de l'instruction aux masses; cela est répété à satiété. Décidément ce livre, malgré
de beaux morceaux, et ils sont rares, est enfantin. (…) il [Hugo] résume le courant, l'ensemble des
idées banales de son époque, et avec une telle persistance qu’il en oublie son œuvre et son art.
Voilà mon opinion ; je la garde pour moi, bien entendu. Tout ce qui touche une plume doit avoir
trop de reconnaissance à Hugo pour se permettre une critique ; mais je trouve, extérieurement,
que les dieux vieillissent. » Carta à Edma Roger des Genetttes de 1862 (FLAUBERT,
Correspondance, choix e présentation de Bernard Masson, France : Gallimard, 1999 [collection
“folio classique”], p. 418-9).
2 É o que diz Flaubert nesta mesma carta: “A observação é uma qualidade secundária em

literatura, mas não é permitido pintar de maneira tão falsa a sociedade quando se é
a intenção artística e passa a resumir agora o conjunto das ideias feitas de
sua época. Mas o escritor acrescenta: “era um tema muito belo”.
Alguns anos depois, Flaubert, ele próprio, decide escrever um
romance histórico sobre um jovem vivendo em Paris. E podemos então nos
perguntar: como fará o escritor para, no momento em que escreve seu
romance parisience, afastar-se dos equívocos que teria cometido o autor
dos Miseráveis? Para compor seu romance sobre a história francesa, com
suas lutas e reviravoltas políticas, como fará Flaubert para criticar as ideias
banais de seu tempo? Enfim, que outro tipo de romance o escritor poderia
inventar para abordar esse “tema muito belo”, o romance de um jovem que
vive as barricadas e as revoltas na capital francesa? Estão aí expressas as
dúvidas que afligem Flaubert enquanto escreve a Educação sentimental:
“Que forma é preciso usar para exprimir às vezes sua opinião sobre as
coisas do mundo, sem risco de ser tomado, mais tarde, por um imbecil?”3.
Nesse artigo vamos descrever alguns dos recursos formais que foram
usados pelo escritor (herói negativo, enredo frouxo, estilo indireto livre e,
especialmente, a ironia com a ideia feita), para distanciar seu romance
daqueles escritos por seus antecessores românticos.

2. História de um rapaz

Conforme lembra seu subtítulo, A educação sentimental é a história de


um rapaz. Ela começa em Paris, no dia 15 de setembro de 1840, quando
Frédéric Moreau, um jovem de dezoito anos, embarca de regresso a
Nogent-sur-Seine, sua cidade de origem. Tinha viajado ao Havre, a pedido
de sua mãe; fora visitar um tio, de quem a senhora Moreau esperava uma
herança para o filho. Daqui a dois meses, Frédéric retornará à capital para
seguir o curso de Direito. Ele quer se tornar uma pessoa pública – um
artista, quem sabe, um ministro de Estado, como sonha sua mãe. Mal tinha
começado seus estudos e o jovem já “achava que a felicidade merecida pela
excelência de sua alma custava a chegar”4. A história termina no inverno
de 1869, quando lemos o balanço de sua vida: ele permaneceu um
celibatário, não pintou quadros nem escreveu poemas ou livros de história
como um dia na juventude se propôs, tampouco foi deputado ou ministro
de Estado, como queria sua mãe. Agora, “leva a vida como um pequeno

contemporâneo de Balzac ou de Dickens.” (FLAUBERT, Correspondance, ed. dit., p. 419, tradução


nossa).
3 « Quelle forme faut-il prendre pour exprimer parfois son opinion sur les choses de ce monde,

sans risquer de passer, plus tard, pour un imbécile ? ». Carta a George Sand de 18.12.1867
(Correspondance, ed. cit, p. 523, tradução nossa)
4 A Educação sentimental, tradução e notas de Rosa Freire d'Aguiar, São Paulo, Cia. das Letras,

Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, p. 32; L’Éducation sentimentale, texte établi et annoté
par A. Thibaudet et R. Dumesnil, Paris: Gallimard [Pléiade], 1952, p. 34. Todas as citações do
romance se referem a essas edições.
burguês”5, e “suportava a ociosidade de sua inteligência e a inércia de seu
coração”.6
Essas são a situação inicial e final da história. Mas quais seriam os
elementos capazes de desenvolver esse enredo? Elementos que
poderíamos chamar de motivos dinâmicos, pois caberia a eles aprofundar
a situação inicial e desenvolver um conflito, cujo desenlace deve conduzir
à situação final. A bem dizer, a Educação conhece dois motivos
fundamentais. O primeiro é a busca do amor e surge logo na viagem que
traz o protagonista de Paris. Como se a personagem fosse uma “aparição”7,
Frédéric reconhece na senhora Arnoux seus ideais de encanto e de poesia
românticos: “Imaginava-a de origem andaluza, talvez nascida nas Antilhas;
teria trazido das ilhas aquela negra?”8. A senhora Arnoux é mãe de uma
pequena criança chamada Marthe e esposa do proprietário de um
estabelecimento híbrido em Montmartre, loja de quadros e jornal artístico:
a Arte industrial. O segundo motivo seria o sucesso e o reconhecimento
públicos. Ele aparece na noite em que a personagem chega à sua cidade.
Entre as pontes que descortinam Nogent para os viajantes, os amigos de
colégio soltam suas fantasias e projetam o assalto a Paris. Deslauriers
lembra a trajetória de Rastignac na Comédia Humana e aconselha Frédéric a
visitar a casa de um rico capitalista parisiense, cujas portas lhe seriam
abertas por uma carta de recomendação do senhor Roque, o administrador
dos negócios do senhor Dambreuse na região. O amigo mais velho
conclama o outro a conquistar a alta sociedade: “Você triunfará, tenho
certeza!”, depois de convencê-lo da conveniência de manter relações com
o banqueiro (“Um homem que possui milhões, calcula!” 9 ) e indicar os
recursos para alcançar o sucesso: “Dê um jeito de lhe agradar, e à mulher
dele também. Torne-se amante dela”10.
Estão aí os dois eixos ao redor dos quais gravita a vida de Frédéric:
a busca do amor e do reconhecimento público. Contudo, tal como é de se
esperar, não é raro a personagem de um campo transitar pelo outro. É o
caso da senhora Arnoux, que encarna o ideal amoroso para o jovem. Ela
vai se ligar forçosamente ao poder social graças aos negócios do marido,
de que Frédéric busca participar a fim de ficar mais próximo de seu objeto
de amor. Nesse sentido, a procura da amante se comunica de maneira
indireta com a do poder, e os dois eixos podem perder seus limites e se
confundir. Alcançar o sucesso no amor seria também alcançar o sucesso na
sociedade? É no que acredita Frédéric, sem no entanto explicar como isso

5 A Educação, p. 532; L’Éducation, p. 453.


6 A Educação, p. 526; L'Éducation, p. 449.
7 A Educação, p. 35; L'Éducation, p. 36.
8 A Educação, p. 36; L'Éducation, p. 37.
9 A Educação, p. 50; L'´Éducation, p. 49.
10 A Educação, p. 50; L’Éducation, p. 49.
seria possível. Assim, quando Deslauriers diz que ele deve se tornar o
amante da senhora Dambreuse, o protagonista se incomoda de início com
o conselho, mas termina por aceitá-lo sorrindo, “esquecendo a senhora
Arnoux, ou incluindo-a na previsão feita sobre a outra”11. Afinal, o que
importa à personagem é o sucesso, pela busca do amor ou do
reconhecimento social, uma vez que, por estranhos vasos comunicantes, os
dois motivos – é o que acredita Frédéric – o levariam à mesma posição,
como se cada um deles o ajudasse a atingir o outro. A verdade é que as
duas causas, uma ligada diretamente à política e a outra ao
sentimentalismo, vão mesmo embaralhar a vida do protagonista.

3. Um enredo que avança entre entusiasmo e melancolia

Seguindo de perto as ações de Frédéric, um tipo de herói negativo


que vai se mostrar muitas vezes fraco para realizar suas ambições, a
narrativa pode com frequência aproximar-se do esgotamento. É o que
vemos quando o protagonista chega a Paris. Ele visita a loja de Jacques
Arnoux e a casa do banqueiro Dambreuse, mas, para sua frustração, não
consegue ser admitido em nenhum dos círculos. Na incerteza do que fazer,
tenta se absorver no curso de Direito, mas aí reencontrava “o cheiro
poeirento das salas de aula, uma cadeira de forma parecida, o mesmo
tédio”12. Na ociosidade que passa a viver, frequenta espetáculos e bailes, e
escreve uma carta de amor à Marie Arnoux, mas a rasga, “pelo medo do
fracasso”13; escreve também um romance, Sylvio, le fils du pêcheur, que não
consegue terminar, devido ao excesso de confissões autobiográficas (“O
herói era ele mesmo; a heroína, a senhora Arnoux” 14); envia cartões aos
Dambreuse, não recebendo nenhuma resposta; pede a Deslauriers que
venha visitá-lo, mas em vão; finalmente, aluga um piano e passa a compor
valsas românticas. A frase, que encerra o capítulo, oferece uma boa amostra
não somente do estado da personagem, mas também da intriga: “ele tinha
perdido a esperança de receber um convite dos Dambreuse; a sua grande
paixão pela senhora Arnoux começava se extinguir” 15 . Enfim, pode-se
dizer que o romance (e estamos ainda em suas primeiras páginas) não tem
medo de suspender qualquer tipo de tensão dramática, quando os seus
dois elementos dinâmicos, a busca do amor e do poder pelo protagonista,
se mostram insuficientes para realizar o avanço da intriga.
Mas a história do protagonista avança, como é de se esperar. Em
meio a uma manifestação no Panthéon contra o governo de Luís Felipe,

11 A Educação, p. 50; L’Éducation, p. 49.


12 A Educação, p. 55; L'Éducation, p. 53.
13 A Educação, p. 56; L'Éducation, p. 54.
14 A Educação, p. 58; L'Éducation, p. 56.
15 A Educação, p. 60; L’Éducation, p. 58.
Frédéric conhece Hussonet, um jornalista que confecciona anúncios para a
Arte industrial. O herói conhece a partir daí todo o círculo de pessoas que
frequenta a loja e será convidado, finalmente, para as reuniões nos Arnoux.
Sua grande paixão renasce, e decide escolher sua vocação (“Ele perguntou
a si mesmo, seriamente, se seria um grande pintor ou um grande poeta”):
“e se decidiu pela pintura”, porque o ofício lhe garantiria a convivência
com Marie Arnoux16. Em agosto de 1843, é aprovado em seu último exame
e conclui seu curso de Direito. Nesse momento, ele se encontra
casualmente com os Dambreuse e recebe, enfim, um convite. O narrador
assim descreve o estado da personagem: “Nunca Paris lhe parecera tão
bonita”, pois “ele só avistava, no futuro, uma interminável série de anos
plenos todos de amor”17. De volta a Nogent, contudo, Frédéric recebe a
notícia de que sua mãe conhece uma situação financeira precária: não lhe
restava assim mais do que 3 mil libras de rendimento, porque sua família
estava arruinada. A narrativa sofre uma violenta mudança em seu ritmo,
seguindo de perto o abatimento do herói na província: “ele levantava-se
muito tarde, e ficava a olhar da janela as atrelagens das empresas de
transportes que passavam”, porque, “considerando-se um homem morto,
não fazia mais nada, absolutamente” 18 . Frédéric só recuperará o ânimo
quando receber a notícia de que seu tio havia falecido e que, sendo o seu
único herdeiro, passa a fruir de 27 mil libras de rendimento anuais. No dia
12 de dezembro de 1845, recebe a carta que o informa da herança. Em 15
de dezembro, está de volta a Paris, com ganas de se tornar um ministro:
“pretendia-se lançar na diplomacia, que seus estudos e instintos o levavam
a isso. Primeiro entraria para o Conselho de Estado” 19. Começa agora a
segunda parte da Educação sentimental, começam agora as maiores
aventuras amorosas e políticas de um Frédéric rentista, contemporâneo da
Revolução de 48, das experiências sociais da Segunda República e do golpe
de Estado que estabelecerá o Império de Napoleão III. Ele frequenta agora
não apenas os Arnoux, mas também o círculo dos Dambreuse, o que vai
levá-lo a lançar sua candidatura como deputado. Se Louise Roque viaja a
Paris para vê-lo e o encontra tentando seduzir a senhora Arnoux, ele vai se
tornar, por fim, o amante de uma lorette, a Marechala, mas também da
senhora Dambreuse.

4 “As três faces de Deus estão em Paris”

16 A Educação, p. 89; L’Éducation, p. 82.


17 A Educação, p. 135; L’Éducation, p. 120.
18 A Educação, p. 140; L'Éducation, p. 124.
19 A Educação, p. 147; L'Éducation, p. 130.
Mas voltemos à primeira parte, para os fins de nossa leitura,
interessada no uso que Flaubert faz das ideias feitas de sua época. O sexto
capítulo descreve as reações de Frédéric à notícia, que lhe foi comunicada
diretamente por sua mãe em Nogent, da piora financeira da família:

Arruinado, espoliado, perdido!


Ele continuava no banco, como atordoado por uma comoção. Amaldiçoava
a sorte, gostaria de bater em alguém; e para reforçar seu desespero, sentia
pesar sobre si uma espécie de ultraje, uma desonra; — pois Frédéric
imaginara que sua fortuna paterna se elevaria um dia a quinze mil libras de
rendimento, fizera os Arnoux saber disso, indiretamente. Portanto, ia passar
por um fanfarrão, um pilantra, um desonesto qualquer, que se introduziu na
casa deles com a esperança de algum proveito! E ela, a senhora Arnoux,
como ia revê-la agora?
Isso, aliás, era completamente impossível, tendo somente três mil francos de
renda! Teria que continuar morando num quarto andar, ter como doméstico
o porteiro, e apresentar-se com pobres luvas pretas azuladas na ponta, um
chapéu engordurado, a mesma sobrecasaca durante um ano! Não! Não!
Jamais! No entanto, sem ela a existência era intolerável. Muitos que não
tinham fortuna viviam bem, Deslauriers entre outros; — e achou-se covarde
por dar tamanha importância a coisas medíocres. A miséria, talvez, lhe
centuplicaria suas faculdades. Exaltou-se, pensando nos grandes homens
que trabalham nas águas-furtadas. Uma alma como a da sra. Arnoux deveria
se comover com esse espetáculo, e ela se enterneceria. Assim, essa catástrofe
era, afinal, uma felicidade; como esses terremotos que deixam à mostra
tesouros, ela lhe revelara as secretas opulências e sua natureza. Mas só existia
no mundo um único lugar para valorizá-las: Paris! Pois, de acordo com suas
ideias, a arte, a ciência e o amor (as três faces de Deus, como diria Pellerin)
dependiam exclusivamente da capital.
À noite, declarou à mãe que voltaria para lá.20

O trecho reproduz os sentimentos da personagem no momento em


que descobre sua situação econômica. Frédéric não tem muita clareza do
que lhe aconteceu. Ele se imagina “perdido”, o que não é bem o caso, pode-
se dizer, pois vai continuar a receber seus rendimentos. A verdade é que
não chegarão às cifras que aguardava – e que havia sugerido aos Arnoux.
Daí nasce o sentimento de desonra: prometeu que enriqueceria, mas agora
teria direito apenas a “luvas desbotadas, um chapéu ensebado e a uma só
sobrecasaca o ano todo”, o que fazer? Na sequência, vai se considerar um
covarde por dar valor a essas coisas insignificantes e, pensando “nos
grandes homens que trabalham em mansardas”, conclui que a miséria
dobrará suas forças, mas que apenas em Paris iriam reconhecer seu esforço
(“a arte, a ciência e o amor dependiam exclusivamente da capital”!). Assim,
anuncia à mãe que voltaria para lá. A gama de sentimentos é confusa; ela
acompanha os pensamentos de Frédéric, que vão desde a ideia de que

20 A Educação, p. 138-9; L'Éducation, p. 122-3.


estaria arruinado financeiramente às afirmações românticas de que a
pobreza fortalece o caráter. Por isso, as associações terminam com o projeto
de retornar a Paris. Afinal, o que temos? Para Frédéric, a diminuição da
renda é de início sua perda. Um momento depois, sua vitória. Como
compreender essas reviravoltas? Claro, a sequência só mostra coerência
como expressão de um jovem à procura de compensações simbólicas,
porque suas esperanças de fortuna se frustraram. Frédéric quer formar um
todo com sua vida, quer determiná-la. Mas, como esse esforço desanda,
sua fala adquire o aspecto de construções fantasiosas. Esses sonhos não
deixam, contudo, de tocar num aspecto sério: o entrave que a condição
econômica representa na Educação. O rapaz imagina que, se hoje é pobre,
poderá com esforço ser rico amanhã... Mas, no mundo que a Educação
configura, nada parece mais equivocado. Se Frédéric vai receber no
máximo três mil libras de rendimento, “seria melhor”21, como diz sua mãe,
que aceitasse o trabalho no cartório de província, pois não se pode mais
fazer muita coisa por suas aspirações a artista, deputado, embaixador ou
ministro de Estado. Na Educação, a situação de pobreza não empresta um
contexto amargo à vida; não fornece um contexto melancólico que se pode
reformar na própria vida, como sugerem as ideias românticas de Frédéric22.
Ela é muito mais do que uma condição material23, pois determina mesmo
um rebaixamento do futuro garantido à personagem.

5. “Você triunfará!”, tenho certeza

Esse duro fechamento de horizontes será ressaltado pela visão


idealizada que Frédéric têm da alta sociedade. É que a ideia de uma
sociedade aberta está em absoluto contraste com o que vemos na Educação.
Ora, quando oferece conselhos a Frédéric para vencer, Deslauriers faz
referência explícita a Balzac. Para os dois, os arrivistas balzaquianos são os
exemplos que devem ser seguidos:

21 A Educação, p. 139; L'Éducation, p. 123.


22 Sob esse aspecto, a sociedade fechada representada pela Educação parece anunciar um estado
que ficará mais marcado nas sociedades do século 20: “Neste país [nos Estados Unidos], não há
mais nenhuma diferença entre o ser humano e o destino econômico. Todo o mundo é o que
representa sua fortuna, sua renda, sua posição, suas chances. Na consciência, a máscara
econômica coincide perfeitamente com o fundo do caráter. Cada um vale o que ganha, cada um
ganha o que vale. […] Assim, os indivíduos julgam a si mesmos segundo o valor de mercado que
têm e aprendem o que são com base no que lhes acontece na economia capitalista. […] I am a
failure, diz o norte-americano. - And that is that.” (ADORNO, “Deux mondes”, in: _______. La
dialectique de la raison. Paris: Gallimard, 1974, p. 220, tradução nossa).
23 A imagem idealizada que Hugo oferece da pobreza é uma das principais críticas que Flaubert

dirige ao autor dos Miseráveis: “Onde será que existem prostitutas como Fantine, forçados como
Valjean e políticos como os imbecis A, B, C? Não, ninguém os vê sofrer, uma só vez, no fundo da
alma. São manequins; tipinhos feitos de açúcar, a começar pelo monsenhor Bienvenu. Por raiva
socialista Hugo caluniou a igreja, assim como caluniou a miséria”. (Carta a Edma Roger des
Genettes, p. 418; tradução nossa, p. 206)
— Mas se estou lhe dizendo coisas clássicas! Lembra-se de Rastignac na
Comédia Humana! Você triunfará, tenho certeza!24

Eugène de Rastignac é o personagem principal d’O pai Goriot, um


romance onde a morte do personagem-título contrasta com o ingresso do
jovem na alta sociedade parisiense25, com a formação de Rastignac para o
arrivismo. Para sua aprendizagem, seria decisiva a sorte do velho Goriot.
Pensando nele quase ao final da narrativa, o estudante se pergunta: “As
belas almas não podem permanecer muito nesse mundo. Como os grandes
sentimentos se aliariam, com efeito, a uma sociedade mesquinha, pequena,
superficial?” (p. 270; trad, p. 213). É que, se o pai Goriot é por um lado um
frio negociante, ele representa por outro a figura do grande pai, que dedica
toda a sua vida e mesmo toda a sua fortuna aos filhos. O desenlace do
romance reserva, contudo, um triste destino para a personagem: a morte
num quarto miserável da pensão burguesa, sem o apoio daqueles a quem
amou. Na hora do fim, o velho oferece ao estudante a última lição: “O
dinheiro dá tudo, até filhas” (p. 273; trad, p. 215). Com esse enredo
dramático, o romance questionava os ideais de amor e de justiça do
romantismo. O desencanto com esses ideais é experimentado por
Rastignac, cuja vontade era, em princípio, “como acontece às almas
grandes, dever tudo a seu próprio mérito” (p. 75; trad, p. 36). A
aprendizagem da frieza e do cálculo que o estudante faz em Paris26, sua
transformação numa personagem inescrupulosa, traz a desilusão para o
cerne da narrativa: pela perspectiva do jovem, vemos os ideais de amor e
de justiça social sendo atropelados pelo “carro da civilização”, para falar
como o autor da Comédia Humana.27

24 A Educação, p. 50; L'´Éducation, p. 49.


25 BALZAC, O pai Goriot, Cenas da vida privada, Estudos de costumes, A comédia humana, tradução de
Gomes da Silveira, 2ª ed., Rio de Janeiro, Globo, 1954; Le pére Goriot, Scènes de la vie privée, Études
de moeurs, La Comédie humaine, France, Gallimard, 1976, v. III. Citado desde agora citado entre
parêntesis.
26 Eis um dos conselhos da viscondessa de Beauseant a seu jovem primo: “Quanto mais friamente

você calcular, mais longe irá. Fira e será temido. Considere os homens e as mulheres apenas como
cavalos de posta que você abandonará estafados em cada estação de muda e assim atingirá o auge
de suas ambições” (p. 116; trad, p. 73)
27 um fruto saboroso que imediatamente devoram. O carro da civilização, semelhante ao ídolo de

Jaggernat, retardado apenas por um coração mais fácil de triturar que os outros e que lhe calça a
roda, rapidamente o despedaça e continua sua marcha gloriosa. Assim fareis vós, que, com este
livro em vossas mãos alvas, mergulhais numa poltrona macia pensando: ‘Talvez isto me divirta’.
Após terdes lido os secretos infortúnios do pai Goriot, jantareis com apetite, levando vossa
insensibilidade à conta do autor, tachando-o de exagero, acusando-o de poesia. Ah! Sabei-o: este
drama não é ficção nem romance. All is true: ele é tão verídico que qualquer um pode reconhecer
em si mesmo e, talvez em seu próprio coração, os elementos que o compõem” (p. 16; trad, p. 7).
Para uma análise desse trecho e do papel do dinheiro no romance de Balzac, é possível conferir o
ensaio de Roberto Schwarz: “Dinheiro, memória, beleza (O pai Goriot)”, em A sereia e o desconfiado,
2ª ed., São Paulo, Paz e Terra, 1981, p. 167-188.
Deslauriers, de seu lado, não tem medo de repetir os clichês que
garantem o sucesso dos arrivistas balzaquianos: “ele acreditava nas
cortesãs aconselhando os diplomatas, nos ricos casamentos obtidos por
intrigas, no gênio dos condenados às galés, nas docilidades do acaso sob a
mão dos fortes”28. Mas, a julgar pelo enredo da Educação, cujos eventos são
incapazes de armar uma forte unidade dramática, nada seria mais distante
da ascensão social do que “as leis matemáticas” que consagram os
arrivistas balzaquianos. Essa visão idealizada acentua, por contraste, o
horizonte fechado do romance de Flaubert. Aqui o destino das
personagens parece estabelecido de antemão: assim, o romântico Frédéric
não vai realizar seus ideais de amor nem o ambicioso Deslauriers se tornará
uma figura política. Desmanchando a imagem da sociedade aberta como
uma ilusão romântica, traindo-a como uma ideia feita, a Educação pretende,
antes de tudo, denunciar os aspectos ingênuos e, por vezes, estúpidos que
se escondem por detrás dessas convicções: “Mas o escrevente [Deslauriers]
tinha teorias. Bastava, para obter as coisas, desejá-las intensamente”29.
Pode-se dizer que o narrador de Flaubert não está mais interessado
em contar de maneira dramática a perda das ilusões românticas, tal como fazia
o narrador balzaquiano. Como essa experiência havia se tornado uma
experiência comum e mesmo uma ideia feita 30 , Flaubert cuida antes de
assimilá-la à própria estrutura do romance, trazendo esse rebaixamento de
horizontes para o próprio estilo, como um sentimento ou atmosfera a que
o leitor estaria habituado. Com isso, o desencanto romântico fica
incorporado aos recursos literários da Educação. Trata-se de uma
substância implícita ao estilo e ao enredo, dando inclusive suporte ao
indireto livre e às imagens do romance. Daí decorre também o herói fraco
ou negativo, incapaz de tomar uma decisão enérgica e definidora, bem
como o romance que arma de maneira propositada um enredo frouxo, um
girar em falso de agitação e melancolia, onde o tempo não enquadra mais
nenhum confronto dramático. Enfim, todos esses recursos (herói negativo,
intriga fraca, largo uso do indireto livre, emprego irônico das ideias feitas,
para citar os mais importantes) reconheciam que a perda das ilusões tinha

28 “Nunca tendo visto a alta sociedade a não ser em meio à febre de suas invejas, Deslauriers a
imaginava como uma criação artificial, funcionando em virtude de leis matemáticas. Um jantar
em alguma casa, o encontro com um homem bem colocado, o sorriso de uma mulher bonita,
podiam, por uma série de ações que se deduziam uma das outras, ter resultados gigantescos.
Certos salões parisienses eram como essas máquinas que pegam a matéria em estado bruto e a
devolvem com um valor cem vezes maior. Ele acreditava nas cortesãs aconselhando os
diplomatas, nos ricos casamentos obtidos por intrigas, no gênio dos condenados às galés, nas
docilidades do acaso sob a mão dos fortes. Enfim, considerava tão útil frequentar os Dambreuse,
e falou tão bem, que Frédéric já não sabia mais que decisão tomar” (A Educação, p. 124; L'Éducation,
p. 111).
29 A Educação, p. 120; L'Éducation, p. 107.
30 “ILUSÕES: Afetar ter tido muitas, lamentar havê-las perdido”. (FLAUBERT, Dictionnaire des

idées reçues, Œuvres, France, Gallimard, 1952, vol. II, p. 1013, tradução nossa)
se tornado uma experiência comum, que vivemos da maneira mais
cotidiana possível. Uma situação de rebaixamento que o leitor deveria
também vivenciar no momento em que lê a Educação.31

6. “É preciso escrever mais friamente”

A voz narrativa inventada por Flaubert tem uma feição bem


particular. Tudo ocorre como se essa voz, situada na terceira pessoa, tivesse
uma posição neutra e distanciada do que ela narra. No entanto, ela não se
afasta da linguagem dos burgueses cujo dia-a-dia nos descreve; disso
dependem os deslizamentos contínuos do discurso indireto livre. Nesse
sentido, é de observar que o indireto livre não é exatamente uma terceira
forma de discurso, oposta ao estilo direto e indireto. O maior atestado da
presença e da força desse discurso é a indiferenciação que, com frequência,
o narrador consegue guardar entre sua voz e a das personagens. Enfim, a
voz narrativa da Educação se apoia numa espécie de extensão do discurso
indireto, cuja faculdade, em vez de ser intercalada, é permanente. Disso
decorrem os contínuos deslizamentos entre a voz do narrador e as falas das
personagens, bem como a impressão de homogeneidade. A generalização do
indireto livre funciona como um nivelamento. Esse estilo indireto gera
caráter de recorrência, ar regular às expressões marcantes, monotonia na
composição. Ele é um dos recursos que garantem o funcionamento dessa
“esteira rolante” que é a Educação, para repetir Proust, com seu “desenrolar
contínuo, monótono, morno, indefinido”.32

31 Nessa linha, o autor de “Narrar ou descrever?” salienta o aspecto fechado dos romances de
Flaubert: “Mesmo quando aparentemente descrevem um processo, como nos romances de
desilusão, a vitória final da inumanidade capitalista está estabelecida por antecipação”. (LUKÁCS,
“Narrar ou descrever?”, in: ______. Ensaios sobre literatura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1965, p. 83). Para uma crítica do juízos estéticos de Lukács, ver: ADORNO, “Une réconciliation
extorquée”, in: _________. Notes sur la littérature, traduzido do alemão por Sibylle Muller, Paris,
Flammarion, 1973, p. 171-200.
32 PROUST, “À propos du ‘style’ de Flaubert”. In: ______. Contre Sainte-Beuve. Paris: Gallimard,

1971, p. 587, tradução nossa. De acordo com Proust, apenas um aspecto formal do romance
flaubertiano seria irregular: “talvez não exista em toda a obra de Flaubert sequer uma única bela
metáfora”, pois, em que pese o largo uso do indireto livre, as imagens do narrador “são
geralmente tão fracas que chegam a se elevar muito pouco acima daquelas que os seus
personagens mais insignificantes poderiam encontrar” (p. 586). Cabe notar que o emprego das
imagens fracas, assim como do estilo indireto livre, não são despropositados no estilo de Flaubert.
O próprio ensaio de Proust acrescenta que o imperfeito eterno da Educação não se compõe apenas
do passado imperfeito, mas também dos sentimentos e das reflexões das personagens.
Assimilados pelo indireto livre, esses discursos se confundem com a própria paisagem que o
narrador descreve (na Educação, como diz Proust, “as coisas têm tanto de vida quanto os homens”,
p. 589). Nesse sentido, tal como reconhece Proust, o imperfeito eterno “serve para conjugar não
só as palavras, mas toda a vida das pessoas” (p. 590)
Contra as ideias feitas, essa voz narrativa mobiliza um verdadeiro
princípio de deslocamento. 33 Tendo consciência do papel que
desempenham em nossa sociedade, o narrador suspende o uso corrente
que fazemos delas.34 Por meio da ironia, sua voz procura deslocar a todo
momento o significado das falas tomadas de ideias feitas. Tal deslocamento,
uma manifestação de divergência entre a composição e as falas reportadas,
produz um horizonte singular dentro do romance. A intermediação irônica
faz com que as falas adquiram um sentido novo, às custas do que fica dito,
como se elas se situassem num plano inferior ao da composição e tivessem
de ceder o passo a esse fundo, que vai por fim desdizê-las ou restituí-las de
um novo significado. Pode-se dizer que existe aqui uma noção pragmática
ou performativa da linguagem. O narrador parece advertir o leitor (e,
muitas vezes, a ironia de Flaubert, para indicar a estupidez que se esconde
por detrás de uma ideia feita, será uma simples piscadela) de que, para
saber o significado de uma fala, não basta apenas avaliá-la em abstrato ou
por si mesma. Seria preciso antes examiná-la à luz do contexto em que é
verbalizada, no interior das condições em que é produzida.35

33 Para o tema, é possível conferir o que Flaubert tinha como o propósito de seu Dicionário de ideias
feitas: “Seria a glorificação histórica de tudo o que se aprova. Demonstraria nele que as maiorias
estiveram sempre certas, as minorias sempre erradas. Imolaria os grandes homens a todos os
imbecis, os mártires a seus carrascos, e tudo isso num estilo carregado ao extremo, cheio de
explosões. Assim, para a literatura, definiria, o que seria fácil, que somente o medíocre é legítimo,
por estar ao nível de todos, e que é preciso amaldiçoar toda espécie de originalidade como
perigosa, estúpida, etc. Essa apologia da canalhice humana em todos os seus aspectos, irônica e
ululante de uma ponta a outra, cheia de citações, de provas (que provariam o contrário) e de
textos medonhos (o que seria fácil), teria como fim acabar, de uma vez por todas, com as
excentricidades, quaisquer que sejam. Voltaria com isso à ideia democrática moderna de
igualdade, à afirmação de Fourier de que os grandes homens se tornarão inúteis; é com tal
finalidade, diria eu, que este livro foi escrito. Iriam encontrar nele, em ordem alfabética, todos os
temas possíveis, tudo aquilo que se deve dizer em sociedade para ser um homem decente e amável. […]
Mas seria preciso que, no livro todo, não houvesse uma só palavra de minha autoria, e que uma
vez lido ninguém ousasse mais falar, com medo de dizer naturalmente uma das frases que nele
se encontram” (carta a Louise Colet de 16.12.1852, Correspondance, ed. cit., p. 213, tradução nossa,
grifos do autor).
34 Tal como pede Flaubert: “É preciso escrever mais friamente. Desconfiemos dessa espécie de

esquentamento, que chamamos de inspiração, onde entra com frequência mais emoção nervosa
do que força muscular. […] Conheço bem esses bailes mascarados da imaginação, donde se volta
com a morte no coração, esgotado, tendo visto apenas farsas e vomitado besteiras. Tudo deve se
fazer a frio, calmamente” (carta a Louise Colet de 27.2.1853, em Correspondance, ed. Jean Bruneau,
Paris, Gallimard, 1980, v. 2, p. 252, tradução nossa, grifos do autor)
35 “Entre os pressupostos do novo dispositivo literário está a falência de ideias ou intenções consideradas

em abstrato. Flaubert desenvolvera uma arte minuciosíssima do enredo, especializada na


revelação da mentira ideológica” (SCHWARZ, Um mestre na periferia do capitalismo, São Paulo,
Duas cidades, 1990, p. 170, grifos do próprio autor). A bem dizer, essa noção situacional da
linguagem segue uma das premissas elementares do materialismo: “E, assim como na vida
privada distinguimos o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, é
preciso mais ainda nas lutas históricas distinguir as pretensões dos partidos e sua fraseologia de
sua formação e de seus interesses verdadeiros, o que imaginam ser do que são na realidade”
(MARX, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães,
6ª ed., São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 52).
7. As ideias feitas

No limite, há a ideia-feita. Traço que serve para descrever as “ideias


reinantes” na Segunda República. 36 Assim, a “questão dos haras” pode
caracterizar o que se torna o debate político depois das lutas de junho.
Neste momento, a senhora Dambreuse é uma viúva interessada em casar-
se com Frédéric e conversa com o protagonista:

Frédéric devia agora pensar em se lançar. Ela até lhe deu admiráveis
conselhos sobre a sua candidatura.
O primeiro ponto era saber duas ou três frases de economia política. Era
preciso escolher uma especialidade, como os haras, por exemplo […].37

Os “admiráveis conselhos” para a candidatura, indo a par das “duas


ou três frases de economia política” e da “questão dos haras” 38, indicam o
gesto irônico, cujo aspecto sério é a desqualificação, não apenas do debate
parlamentar, mas da própria esfera pública. A raiva que manifestam os
proprietários durante a República também é descrita: “e se exaltavam os
campos, pois o iletrado tinha naturalmente mais bom senso do que os
outros!” 39 . A frase pode soar como um traço leve das conversas, mas o
trecho continua assim:

Os ódios pululavam: ódio contra os professores primários e contra os


comerciantes de vinho, contra as aulas de filosofia, contra os cursos de
história, contra os romances, os coletes vermelhos, as barbas compridas,
contra qualquer independência, qualquer manifestação individual, pois era
preciso “reconstituir o princípio de autoridade”, para que esta se exercesse
em nome de qualquer pessoa, que viesse de qualquer lugar, contanto que
fosse a Força, a Autoridade!40

O trecho oferece o tom dos discursos que vão legitimar o golpe de


Estado e o fim da República, fazendo eco à ideia feita que então se difundia:
“Para governar a França, é preciso mão de ferro” 41 . O rancor contra os
socialistas fica por conta do industrial Fumichon, “cuja cabeça rodopiava
de raiva ao ouvir a palavra ‘propriedade’”: “A propriedade é um direito
escrito na natureza! As crianças têm apego a seus brinquedos; todos os
povos são da minha opinião, todos os animais; até o leão, se pudesse falar,

36 A Educação, p. 492; L'Éducation, p. 420.


37 A Educação, p. 486; L'Éducation, p. 415..
38 “HARAS: a questão dos — belo tema de discussão parlamentar” (Le dictionnaire des idées reçues,

ed. cit., p. 1012, tradução nossa).


39 A Educacação, p. 492; L'Éducation, p. 420. (Ver o verbete “CAMPO: As pessoas do campo são

melhores do que as da cidade”, em: FLAUBERT, Dictionnaire des idées reçues, Œuvres, France,
Gallimard, 1952, vol. II, p. 1009, tradução nossa).
40 A Educacação, p. 492; L'Éducation, p. 420.
41 Dictionnaire des idées reçues, Œuvres, France, Gallimard, 1952, vol. II, p. 1002, tradução nossa.
se declararia proprietário!”.42 A declaração resume a estupidez ideológica
que grassa nos debates da Segunda República: a afirmação seria do político
Adolphe Thiers, que Flaubert, sem citar a fonte, transcreve para a voz da
personagem.
Outra ideia feita pode expor o tratamento a que o narrador submete
seu protagonista. Quando as revoltas de junho começam, Frédéric decide
partir com Rosanette a Fontainebleau, para visitar o palácio renascentista,
os jardins e parques, a floresta (“a natureza eterna” 43 , tal como diz a
personagem). A narrativa passa a descrever então as aventuras dos
amorosos: a atmosfera de sossego no hotel, as visitas ao patrimônio
cultural, o prazer dos passeios pela natureza, o bom apetite no campo
(“Serviram-lhes uma galinha com os quatro membros estendidos” 44), as
brincadeiras entre os amantes (“Divertiam-se com tudo; mostravam um ao
outro, com curiosidade, teias de aranha”45), as trocas de carinhos (“Uma
necessidade o impelia a dizer-lhe ternuras”46). O narrador resume assim o
idílio: “Tudo isso aumentava o prazer, a ilusão. Quase acreditavam estar
no meio de uma viagem, na Itália, em lua-de-mel”. 47A comparação com a
lua-de-mel na Itália deveria indicar o estado de felicidade das personagens,
mas parece trair antes (“quase acreditavam”...) o que há de falso nessa
união amorosa. As análises de Dolf Oehler, que estamos acompanhando
aqui, chamam pelo nome o denominador comum desses prazeres: kitsch48.
Mas o autor acrescenta que isso seria mais do que inautenticidade. Na
verdade, a fantasia seria desmentida pelos constantes inconvenientes que
surgem aqui e ali: as vulgaridades da cocote (“A gente não se comportou
direitinho! A gente foi pra caminha com a mulher dele” 49), a timidez e a
falta de tato de Frédéric (“pois, em meio às confidências mais íntimas,
sempre há restrições”) 50 , as manifestações de luta em Paris. Assim, o
encantamento termina quando o protagonista, lendo um jornal, vê que o
nome de Dussardier, um de seus amigos, consta de uma lista de feridos.
Nesse momento, ele decide “voltar imediatamente”51 e avalia o que foi sua
escapada turística: “Tanta indiferença às desgraças da pátria tinha algo
mesquinho e burguês” 52 . No parecer de Oehler, o episódio adquire sua

42 A Educação, p. 440-1; L’éducation, p. 376, citado por OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos
infernos, São Paulo, Cia das Letras, 1999, p. 329.
43 A Educação, p. 419; L’éducation, p. 359.
44 A Educação, p. 418; L’éducation, p. 358.
45 A Educação, p. 418; L’éducation, p. 357.
46 A Educação, p. 419; L’éducation, p. 358.
47 A Educação, p. 418; L’éducation, p. 358. (Dictionnaire des idées reçues, ed. cit. p. 1014, “Itália: deve

ser vista logo depois do casamento. Causa decepções, não é tão bela quanto se diz”.)
48 O velho mundo desce aos infernos, ed. cit., p. 328.
49 A Educação, p. 422; L’éducation, p. 362.
50 A Educação, p. 423; L’éducation, p. 362.
51 A Educação, p. 424; L’éducation, p. 363.
52 A Educação, p. 424; L’éducation, p. 363.
efetiva dimensão à luz desses sinais irônicos. Uma das artes do narrador
seria justamente deixar suas personagens se enredarem até o pescoço nos
fios de suas mentiras, para que, assim enredados e quase se enforcando,
exponham sua culpa e tolice, tal como Frédéric avaliando sua lua-de-mel:
“seu amor lhe pesou como um crime”53. Seria desnecessário dizer que o
narrador emprega os mais variados procedimentos, não apenas as ideias
feitas, para lançar suas piscadelas irônicas ao leitor. Não seria demais
lembrar que o acaso, para falar como Oehler, tem método em sua
composição – e que, justamente quando as Jornadas de Junho explodem,
Frédéric decide realizar sua utopia amorosa na “natureza eterna”.

7. “A falta de linha reta”

Nesse artigo procuramos chamar a atenção para alguns dos mais


importantes recursos formais (herói negativo, enredo frouxo, indireto livre
e, em especial, a ironia com as ideias feitas) de que Flaubert se serviu para
realizar seu romance parisiense. Graças a esses procedimentos, Flaubert
não somente distancia seu romance do Romantismo. Por meio da
personagem imbuída de sonhos, o Romantismo é questionado em suas
bases. Se Flaubert concentra sua narrativa na vida inquieta levada por
Frédéric Moreau, é porque a personagem seria emblemática de um
movimento frustrado. Tal como diz o protagonista, ele errou pela “falta de
linha reta”54, não exercendo nenhuma atividade profissional, não fazendo
carreira em nada. Dominado por idealizações, ele não consegue tampouco
realizar seu ideal de amor e, no momento mesmo em que encontra a
mulher de seus sonhos pela última vez, no fim do romance, em torno de
1867, decide rejeitar um caso amoroso, com medo de macular seu ideal e
arrepender-se (“que embaraço isso seria!”55). Ele se porta, antes, como um
rentista que desperdiça a fortuna herdada em todo tipo de moda burguesa
de sua época: ambições artísticas, negócios malsucedidos, custoso
vestuário, mobiliário luxuoso, cocotes, passeios, viagens etc. Nesse sentido,
Frédéric, à semelhança de Emma Bovary, seria mais uma vítima das
promessas do mundo moderno. Tal como a personagem feminina, ele
“padece da ilusão, difundida pelo novo mundo erótico do consumo, de
que se pode permitir tudo, de que se pode tomar posse de tudo ao mesmo
tempo”56. Seu fracasso só pode adquirir, assim, um traço de pureza à luz
das grosserias, infâmias e iniquidades que faz questão de denunciar nos
outros (“A podridão daqueles velhos o exasperava; e, entusiasmado com a
bravura que, por vezes, agarra os mais tímidos, atacou os financistas, os

53 A Educação, p. 424; L’éducation, p. 363.


54 A Educação, p. 533; L’Éducation, p. 455.
55 A Educação, p. 530; L’Éducation, p. 452.
56 O velho mundo desce aos infernos, ed. cit., p. 338-9.
deputados, o Governo, o rei, tomou a defesa dos árabes”57), mas às quais
ele próprio se submete no momento em que cava sua carreira nessa
sociedade. Enfim, se Frédéric mostra algumas vezes um ponto de vista
forte para criticar as ideias feitas de sua época, por outras ele pode se
mostrar muito frágil para criticar suas idealizações, assim como sua
própria atuação nessa ordem. É como se, fracassando em tudo, ele pudesse
atenuar sua participação na estupidez geral — da qual, no entanto, é
preciso reconhecer, ele participa no final das contas. Eis aí o arremate
sombrio de suas peripécias.

Alexandre Bebiano de Almeida é, desde 2010, professor de literatura francesa na Universidade de São Paulo.
Nesta universidade, formou-se em História e obteve o diploma de mestre e doutor em Teoria Literária e
Literatura Comparada. Com o apoio da Fapesp, realizou três estágios de pós-doutoramento na École Normale
Supérieure, de Paris. Em sua dissertação de mestrado, estudou a Educação sentimental, de Gustave Flaubert.
Desde sua tese de doutoramento, dedica-se à leitura do romance proustiano. Atualmente, orienta e
desenvolve pesquisas na área de estudos literários franceses e comparados.

57 A Educação, p. 313; L'Éducation, p. 271.


O ÚLTIMO CIGARRO, O PRIMEIRO LÁPIS:
A VIDA COMO RASCUNHO EM
A CONSCIÊNCIA DE ZENO,
DE ITALO SVEVO

Fábio de Souza Andrade

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Em sua obra prima, A consciência de Zeno, a autobiografia A consciência de Zeno;
ficcional de um velho, Italo Svevo estabelece uma ligação Italo Svevo;
íntima entre a velhice como retirada da vita activa, Ficção e autobiografia;
recolhimento à inutilidade, e as possibilidades de reinvenção Künstlerroman;
do mundo abertas pela literatura, convertendo desistência em Romance moderno.
resistência. Estamos no âmbito de um romance moderno de
deformação, em que a escrita se prova capaz de insuflar
mobilidade, um sopro erótico e irônico, ainda que discreto, aos
impasses do mundo desencantado.

ABSTRACT KEYWORDS:
In his masterpiece, Confessions of Zeno, a fictional autobiography of Confessions of Zeno;
an old man, Italo Svevo sustains a close connection between the Italo Svevo;
idleness of late years and literary possibilities of reinventing the Fiction and autobiography;
world of practical constrictions, changing retirement into a resistant Künstlerroman;
strategy. A modern deformation novel is at stake here, a book in Modern novel.
which writing proves capable of providing movement, an erotic and
ironic, though timid, renovating breath in a stuck reality.
1. Preâmbulo

A propósito do protagonista de A Consciência de Zeno (1923), o


triestino Italo Svevo, um dos inventores do moderno romance italiano,
afirmava que "o destino de todos os homens é o de enganar a si mesmos
sobre a natureza das próprias preferências para atenuar a dor dos
desenganos que a vida traz". No confronto entre os propósitos heroicos e
a realidade pouco enaltecedora, o sabor negativo desse juízo, fazendo
coro a Freud e Schopenhauer, norteou não apenas o personagem, mas
também seu autor, o fino observador e ironista de sua classe, Ettore
Schmitz (1861-1928), nome civil de Svevo, em sua dupla vocação de
negociante abastado e artista, esquadrinhador das existências burguesas
de seu tempo1.
A história de Trieste, como a de Svevo, confunde-se com um
pendor comercial e certa má consciência daí derivada. Filho de um judeu
austríaco de língua alemã e mãe italiana, o autor de Uma Vida (1892) e
Senilidade (1898) cresceu no então principal porto do Império Austro-
Húngaro, cujas raízes culturais estavam, porém, na civilização italiana,
berço da língua franca em que eslavos, vienenses e itálicos se entendiam e
desentendiam. A confusão babélica atraiu à cidade James Joyce, que lá
teve seus filhos e sobreviveu das aulas de inglês, enquanto se dedicava ao
Ulisses. Os dois, Svevo e Joyce, evoluíram da relação entre professor e
aluno (o negociante afiava o inglês nas aulas em que traduzia os contos
de juventude do irlandês) para a de amigos próximos; a confirmação
crítica do autor de Dubliners, depois endossada pela admiração de
Eugenio Montale, Benjamin Crémieux e Valéry Larbaud, por ele
intermediada, foi decisiva para que Svevo reatasse com a literatura,
depois da recepção fria aos romances e contos de juventude, e um hiato
de mais de 20 anos, ocupados pelos negócios em sociedade com o sogro,

1Para além da conferência no ciclo consagrado ao romance de formação na Biblioteca Municipal


Mário de Andrade que está em sua base, e lhe confere certo tom de oralidade (com suas
redundâncias e hesitações, devidamente gravadas em vídeo, cuja localização, aliás, agradeço a
Aryanna Oliveira) que decidi preservar, este artigo retoma, parcialmente e sob novo aspecto,
abordagens anteriores do mesmo tema, em textos produzidos, e falas proferidas, em
circunstâncias diversas, caso, por exemplo, de artigo publicado no mais! (Folha de S. Paulo,
05/02/2002) e de aulas em curso de extensão no Centro Universitário Maria Antônia (USP), em
2010, por exemplo.
pai de Lívia, também sua prima que, aliás, inspirou os cabelos loiros e
longos de Anna Lívia em Finnegans Wake2.
O resultado foi a obra-prima na qual, sob a forma de um relato
autobiográfico, escrito por encomenda de um analista, somos
apresentados ao esforço de compreensão e relativo apaziguamento dos
conflitos íntimos de Zeno Cosini, respeitável, abastado e provecto
cidadão triestino. Em meio a uma rotina desoladoramente previsível,
protegida pela fortuna, pontuada e dividida pela recapitulação de crises
espaçadas, mais ou menos cotidianas (uma internação para cura de um
vício trivial; a morte do pai; a corte à esposa; como conciliar mulher e
amante; a rivalidade com o cunhado), assistimos às contorções morais de
uma natureza sensível, mas não a ponto de sacrificar o conforto às
exigências da consciência em foco, que se enrodilha ao redor de uma
única e prosaica obsessão, suma de todos os outros projetos de
aprimoramento: deixar de fumar.
Da linhagem moderna dos anti-heróis, Zeno encarna como poucos
os hábitos (ou tiques?) de sua classe. A vida, desde o casamento com a
única de quatro herdeiras-irmãs que não lhe despertara interesse até a
relação culpada com a desnecessidade de trabalhar, é a história das
soluções possíveis, da conciliação - um pouco forçada, um pouco
comodista - com um mundo em que o prazer e a fantasia não têm mínima
chance contra a fatura cobrada pela realidade. Procurar resistir ao
destino, traduzido sob a forma de comportamentos que, de tão
esperados, se convertem em compulsões, é alimentar quimeras. Das
intenções aos gestos, Zeno constata as pernas curtas das grandes
resoluções: a pusilanimidade é seu traço distintivo; sua tormenta e sua
diversão estão em racionalizar e relativizar o fracasso, sofrer a decepção
(no melhor dos mundos, rindo de si mesmo) e seguir vivendo uma vida
comicamente inviável. Tudo isto, às portas do colapso sombrio que a
cronologia da narrativa, encerrando-se à eclosão da Grande Guerra, em
1914, anuncia.
Nos três maiores romances de Svevo, o precário equilíbrio entre
artista e burguês, entre disposição prática e sensibilidade estetizante, é o
foco constante, conferindo um ar de família a seus narradores-narrados: o
já mencionado Zeno; Alfonso, o bancário com veleidades literárias,
protagonista de seu primeiro romance, escrito sob impacto das leituras de
Zola e Flaubert, Uma Vida, que, incapaz de administrar os baques do
mundo, se suicida; e Emílio, de Senilidade, precocemente abúlico aos 30
anos, condenado a uma vida afetiva de migalhas, disfarçando seu desejo

2Vale conferir o depoimento de Svevo sobre este encontro e sua relação com Joyce, registrado
no ensaio “Uma visão de Ulisses”. In: Joyce e o romance moderno: Michel Butor – Italo Svevo –
Umberto Eco (série L’ARC). Editora Documentos, s/data.
por uma costureirinha em filantropia ou amor romântico, recriados
literariamente3.
As marcas de um estilo ainda muito preso a esquemas de filiação
naturalista (destrinchando destinos exemplares, moldados por uma força
opressiva do meio), mesmo que refinados por um senso de nuances
muito desenvolvido, inibem, em parte, na estreia, a ironia de matriz
sterniana que vigora, plena, no romance final. O salto dado por A
Consciência de Zeno está na forma renovada que confere ao realismo, a
começar pela escavação exemplar do narrador em primeira pessoa, entre
lapsos e atos falhos, que levou a crítica a aproximá-lo de Proust e
Pirandello, lembrando o parentesco da psicopatologia do cotidiano que
ali se esboça com o projeto freudiano. A sombra das leituras do médico
vienense na obra de Svevo, bem como a presença da psicanálise em sua
vida não podem, de fato, ser ignoradas; as alfinetadas que o autor desfere
nos analistas e seu empenho na denegação só fazem confirmá-la.
Não faltam os que, escorados na semelhança entre a biografia de
Ettore Schmitz e as experiências atribuídas a suas criaturas, postulem
leituras edipianas clássicas das neuroses que habitam seus personagens.
Para estes, a correspondência do autor, o Diário para a Noiva (registros
publicados postumamente, mantidos num caderno que a futura esposa,
Lívia, lhe ofereceu na ocasião do noivado) e outros papéis autobiográficos
são documentos preciosos. Aos demais, o romance mais do que se basta,
mostrando como todos engordamos diariamente o sempre aposentado
"envelope dos bons propósitos" e sentimos "o caráter efêmero e
inconsistente da nossa vontade e dos nossos desejos" como uma espécie
muito peculiar de doença, a vida como a conhecemos e Svevo nos
apresenta. Como esta dinâmica confere um aspecto precursor e
inventivamente ligado à matéria narrativa e à renovação técnica da prosa
de ficção modernas, e mesmo modernistas, é o que procuro examinar no
próximo passo deste artigo.

2. Zeno e Svevo, dois (?) percursos formativos

Falar em A consciência de Zeno no contexto do romance de formação


implica, se não licença poética, ao menos um alargamento do conceito
estrito do gênero, já que esta "confissão literária", "autobiografia mas não
de mim mesmo" é antes um romance de deformação, de avaliação tardia,
racionalização e reinvenção permanente, e permanentemente insatisfeita,
da vida através da escrita. Narrativa que surge como uma dobradiça

3Uma vida. Trad. de Aurora F. Bernardini e Homero F. Andrade. São Paulo: Nova Alexandria,
1993; Senilidade. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Cf. Romanzi e
“continuazioni” (ed. crítica, aparato genético e notas de Nunzia Palimieri e Fabio Vittorini).
Milão: Mondadori, 2004 [Romanzi].
pivotante, entre o século 19 e o século 20, a Consciência é um livro clássico
na forma e enganosamente simples que se deixa ler em camadas muito
variadas, derivadas seja da percepção precoce (e decisiva) nele conferida
à linguagem enquanto véu e veículo de investigação do real, seja de sua
estrutura narrativa singular, jogando com múltiplas molduras, gêneros e
vozes narrativas incrustadas no romance. Ponto alto da produção
sveviana, desdobrado em posteriores novelas que prolongam as
agudezas e fecundas contradições de seu material narrativo, o drama
cômico de Zeno Cosini se destaca na investigação dos desencontros
modernos entre o sujeito e o mundo, tratados, aqui, em chave quase
farsesca, vizinha das pequenas tragédias4.
Comecemos do começo, a forma talvez menos engenhosa mas,
possivelmente, a mais produtiva de se começar.

Rever a minha infância? Já lá se vão mais de dez lustros, mas minha vista
cansada talvez pudesse ver a luz que dela ainda dimana, não fosse a
interposição de obstáculos de toda espécie, verdadeiras montanhas: todos
esses anos e algumas horas de minha vida.
O doutor recomendou-me que não me obstinasse em perscrutar longe
demais. Os fatos recentes são igualmente preciosos, sobretudo as imagens
e os sonhos da noite anterior. Mas é preciso estabelecer uma certa ordem
para poder começar ab ovo. Mal deixei o consultório do médico, que
deverá se ausentar de Trieste por algum tempo, corri a comprar um
compêndio de psicanálise e li-o no intuito de facilitar-me a tarefa. Não o
achei difícil de entender, embora bastante enfadonho. Depois do almoço,
comodamente esparramado numa poltrona de braços, eis-me de lápis e
papel na mão. Tenho a fronte completamente descontraída, pois eliminei
da mente todo e qualquer esforço. Meu pensamento parece dissociado de
mim. Chego a vê-lo. Ergue-se, torna a baixar... e esta é sua única
atividade. Para recordar-lhe que é meu pensamento e que tem por
obrigação manifestar-se, empunho o lápis. Eis que minha fronte se
enruga ao pensar nas palavras que são compostas de tantas letras. O
presente imperioso ressurge e ofusca o passado.5

4 A impressão de que, em A consciência de Zeno, Svevo tocou o centro nervoso de seu problema
artístico (a recriação ficcional da realidade como potência e resistência ao mundo torto) se
reforça pelas múltiplas voltas ao personagem, retomado em estágios posteriores da sua
elaboração fabuladora da existência, mais ou menos tal qual ou ligeiramente disfarçado. Cf. Un
contratto, Le confessioni del vegliardo e Il mio ozio, por exemplo. In: Romanzi, op. cit. Sobre a força
cômica de Svevo, cf. Wood, J. “Italo Svevo’s unreliable comedy”. In: The irresponsible self. Nova
York: Picador, 2004 [ebook: Abril 2011]
5 A consciência de Zeno. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 9. Vedere la

mia infanzia? Più di dieci lustri me ne separano e i miei occhi presbiti forse potrebbero arrivarci
se la luce che ancora ne reverbera non fosse tagliata da ostacoli d’ogni genere, vere alte
montagne: i miei anni e qualche mia ora.//Il dottore mi raccomandò di non ostinarmi a
guardare tanto lontano. Anche le cose recenti sono preziose per essi e sopra tutto le
Já nas primeiras linhas, salta aos olhos a confusão temporal de
alguém que, passados dez lustros de vida, entrado nos 50 anos
(exatamente a idade de Svevo quando escreve Consciência), se volta
para uma racionalização do próprio percurso, separação de joio e trigo,
organização e compreensão dos impasses e obstáculos que o constituem
e, nesse processo, se enfrenta consigo mesmo. A divisão interior do
protagonista, ajuste de contas entre mundo prático e abismos interiores,
entre a memória e o lápis, constitui o movimento contínuo do romance,
sempre abordado a partir de um plano temporal que abrevia a distância
entre os fatos passados e o instante presente de sua reatualização. O
narrador se percebe e se constitui a partir das possibilidades e das
angústias inauguradas por este presente da enunciação, no encontro e
desencontro com as muitas outras versões de si mesmo que as
lembranças e a imaginação lhe propõem. O leitor segue na permanente
companhia desta cisão, ora distinguindo, ora confundindo Zeno,
protagonista dos acontecimentos, e Zeno, deles analista. Um hermeneuta
evidentemente interessado e suspeito, observador participante cuja
tendência natural é organizá-los de forma a se reconhecer no retrato mais
favorável possível de si mesmo.
Notável ainda tratar-se de um romance em que a primeira pessoa
assume o primeiro plano, artifício muito comum nas narrativas da origem
do romance, mas distante de ser a norma na evolução posterior do
gênero. Quem acompanha a evolução do gênero, encontra em Stendhal,
Balzac e Flaubert a predominância progressiva de um modelo de
narrador impassível, tudo considerando do ponto de vista exterior,
garantidor de certa serenidade épica, distância regulamentar entre a
matéria narrada e aquele que a organiza, profundamente determinante
na arquitetura do romance novecentista.
No século 20, a narrativa torna a ganhar uma dose considerável de
instabilidade e emocionalização da matéria narrada em grande parte
localizável na (se não atribuível a) volta do narrador em primeira pessoa,
forma espontânea de narrar. Um ricorso que, depois do estágio

immaginazioni e i sogni della notte prima. Ma un po’d’ordine pur dovrebb’esserci e per poter
cominciare ab ovo, appena abbandonato il dottore che di questi giorni e per lungo tempo lascia
Trieste, solo per facilitargli il compito, comperai e lessi un trattato di psico-analisi. Non è
difficile d’intenderlo, ma molto noioso.//Dopo pranzato, sdraiato comodamente su una
poltrona Club, ho la matita e un pezzo di carta in mano. La mia fronte è spianata perché dalla
mia mente eliminai ogni sforzo. Il mio pensiero mi appare isolato da me. Io lo vedo. S’alza,
s’abbassa...ma è la sua sola attività. Per ricordargli ch’esso è il pensiero e che sarebbe suo
compito di manifestarsi, afferro la matita. Ecco che la mia fronte si corruga perché ogni parola è
composta di tante lettere e il presente imperioso risorge ed offusca il passato. La Coscienza di
Zeno. In: Romanzi, op. cit, p. 626.
intermediário de distanciamento garantido pelo narrador onisciente
neutro novecentista, ressignifica o “eu” narrador em novos termos, nada
clássicos. Prismatizados por este novo ponto de vista, subjetivo, os fatos
narrados assumem uma dimensão expressionista, subordinados a uma
consciência única, propensa à divisão e redivisão infinita, coisa que em
livro que se proclama autobiografia, ainda que tão particular dentro desta
categoria, parece ser decisivo.
Do romance de formação, encontramos na Consciência, portanto, o
enfrentamento contínuo do conflito entre propósitos heroicos e uma
realidade pouco enaltecedora. Na companhia de Freud e Schopenhauer, o
sabor negativo deste embate em Svevo se reflete na natureza cindida por
trás do romance, antecipada na disputa entre prenome e nome tanto no
seu pseudônimo de escriba, quanto em seu registro civil, ambos
remetendo a sua dividida origem ítalo-germânica (Italo Svevo, Ettore
Schmitz), e reduplicada na própria situação de Trieste, também ela
repartida entre as vocações de porto estratégico, lugar de trocas
econômicas, e cadinho cultural por excelência.
Claro está que Svevo não é primeiro, nem único nessa tradição,
outros grandes autores também se nutrem deste trânsito e choque
formador de identidades culturais; cabe, contudo, registrar o quanto ela
está profundamente inscrita em seu destino pessoal e sua biografia. Em
termos pessoais, lutavam em Svevo as exigência do artista e do
negociante abastado, do esquadrinhador de existências burguesas e do
protagonista deste tipo de existência. O chamamento comercial, no seu
caso desenvolvido numa carreira de muito sucesso, sempre resultou em
certa má consciência que pede para ser tematizada, o que nos remete de
imediato à questão central e cara a uma modalidade particular dos
romances de formação, o Künstlerroman, o romance de formação do
artista, certamente a mais adequada à caracterização da Consciência.
Se arriscássemos um paralelo entre Zeno e Tonio Kroeger, de
Thomas Mann, por exemplo, encontraríamos neste último o tipo burguês
a quem a arte impede a identificação plena com a rotina e o cotidiano
absorventes, submetido a um canto de sereia que o arrasta, sem descanso,
para longe dos hábitos convencionais de classe, enquanto Ettore
Schmitz/Italo Svevo, por sua vez, cumpriria uma trajetória simétrica e
oposta à sua: aqui, estamos às voltas com um artista a quem a vida
burguesa o tempo todo ameaçou calar, mas cuja voz hesitante acabou por
prevalecer, ao termo do percurso6.

6 Cláudio Magris, soberbo ensaísta e ficcionista de não menos interesse, como podem atestar,
por exemplo, a coletânea Alfabetos: ensaios de literatura (Curitiba. Ed. da UFPR, 2012) ou seu
romance de viagem, Danúbio (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), é também tributário
desta experiência mediadora entre as culturas da Europa Central e a civilização mediterrânea
que, em Trieste, tanto se facilita. Sua leitura pessoal da obra de Svevo, muito sugestiva e
E do que se constrói a singularidade da Consciência, este livro tardio
e admirável? Se Oswald de Andrade escreve a sua autobiografia sob as
ordens de mamãe, o protagonista de Svevo o faz sob as ordens do doutor,
um psicanalista que procura e despreza, autor do prefácio-moldura que
antecede seu relato, elaborado como tentativa dos conflitos íntimos que
nele se manifestam somaticamente. Trata-se, portanto, da narrativa de
um respeitável, abastado e, nas linhas de superfície, bem sucedido
cidadão triestino, mas também de um insatisfeito, um doente imaginário.
Em meio a uma rotina muito previsível, de hábitos sedimentados, sem
grandes choques ou abalos, o narrador nos conduzirá, com o método de
que é capaz, afetado por lapsos ou associações fortuitas, por uma
trajetória fragmentária, pontuada por crises espaçadas, todas mais ou
menos cotidianas e administráveis, mas que assumem para ele dimensões
inabordáveis, entre as quais a mais decisiva é a suscitada por uma
internação para a cura do hábito do cigarro.
O romance resultante, aliás, é todo ele tecido em torno desta
obsessão, a de se livrar do fumo, lugar de concentração das muitas
ansiedades e insatisfações do Zeno. A ele, e ao esforço autobiográfico que
precipita, se liga em constelação e arranjo associativo relativamente
arbitrário um número restrito de episódios díspares, mas muito
reveladores do caráter de Zeno que em mosaico o rascunham. Ao mesmo
tempo, além do papel decisivo de temas herdados do século 19, como o
adultério ou os desafios de conciliar a esposa e a amante, tem importância
estruturadora no livro a relação do protagonista com um duplo seu, o
cunhado, Guido Spahler, rival na corte às filhas do comerciante de que se
fará sogro. Spahler faz as vezes do espelho distorcido em que Zeno evita,
a todo custo, se reconhecer e, involuntariamente, acaba se prestando à
formulação inconsciente, não admitida, de uma avaliação nada simpática,
mordaz, de si mesmo.
Pelas mãos deste narrador pouco confiável, o leitor acompanha de
muito perto, sismograficamente, os dilemas morais e as torsões de
linguagem que os incidentes pouco edificantes de que participa
provocam em sua natureza, sensível e cismada. Força decisiva no gênero
como um todo, e neste romance em particular, a autoanálise introspectiva
- compreendidas suas duas fases, primeiro, a autoinspeção, em seguida, o
autodesprezo a que convida - é força dominante no romance e, embora
suscite no herói um desconforto íntimo não negligenciável, incômodo e
persistente, jamais alcança mudá-lo substancialmente. Projetos de
aprimoramento, boas intenções, nobres propósitos acabam fatalmente

largamente acompanhada aqui, muito deve a esta herança comum. Cf. Magris, La “coscienza di
Zeno” di Italo Svevo. In: La coscienza di Svevo. Roma, Ministero per i Beni e le Attività Culturali,
Direzione Generale per i Beni Librari e gli Istituti Culturali/ De Luca Editori d’Arte, 2002.
aposentados antes da hora, mantendo a personagem em estado de
contínua e indefinida inquietude.
A trajetória que o romance esboça, portanto, é a das soluções
possíveis, como no romance de formação paradigmático, trajetória de
uma conciliação entre forçada e acanhada, comodista. No protagonista, a
pouca resistência ao conformismo anunciado com força de inelutável
tende a se manifestar em comportamentos pouco meditados que acabam
se materializando nas compulsões, tentativas infrutíferas e
descontroladas de sustentar o insustentável.
Zeno é supérfluo, sem qualidades, timorato, um insatisfeito de si
disfarçado em seu avesso, e vice-versa. Sob um registro cômico,
enganosamente ligeiro e ridículo que acompanha seu mal estar na
civilização, o romance encaminha um diagnóstico duro e preciso do
mundo burguês, sem se abster de algum teor profético, quase
apocalíptico, sublinhado na cena alegórica que o encerra: a do
protagonista, envelhecido, apanhado de surpresa, durante passeio ocioso
pelo campo, pelo deslocamento de tropas invasoras, inaugurando o
massacre por vir da Grande Guerra de 1914.
O que muda radicalmente este quadro mal parado é a centralidade
da literatura na caracterização desta consciência, dobra autorreflexiva que
faz de Zeno um narrador-narrado, personagem para o qual não há real
sem sua contraparte inventada, nem confissão sem ficção. Nele, a escrita
representa uma negação do princípio da realidade vitorioso, espécie de
tímida e vicária rebelião possível, reversão dos limites em vantagens. No
caminho de reexame da acidentalidade da vida, soma de momentos
esparsos e desconexos, na tentativa de compreensão da origem dos
males, na busca pela caixa de Pandora, a fabulação literária insinua a
estreita margem de ultrapassagem da mera constatação das pernas curtas
das boas intenções, ao que se resumiria a recomposição retrospectiva de
Zeno, fosse-lhe cassada a esfera potencial aberta pela palavra. É ela sua
última trincheira, último reduto de resistência, câmara de tortura, mas
também porta de salvação.
Os bons propósitos aparecem, e se desvanecem, muitas vezes
marcados por este enfrentamento entre o papel e a caneta. Zeno Coisini é
um homem que anota tudo, suas resoluções demandam o registro escrito
para que não se percam no dia-a-dia, papéis colecionados e
ocasionalmente reencontrados. São eles próprios que se encarregam de
suscitar os remordimentos, testemunhas de sua incapacidade de mantê-
las e se encarregando da denúncia da sua pusilanimidade, um dos traços
marcados desta personagem. Trata-se de registros que crescem pela casa,
Zeno literalmente habita este cemitério de votos descumpridos. Vai
escrevendo pelas paredes a longa canção dos últimos cigarros, a ponto de
ter de apagar a procissão de fiascos pintando novamente a parede do
quarto, coberta por estas intenções não realizadas. A tormenta e a divisão
de Svevo está em, ao revisitar este percurso, racionalizar e relativizar
estes fracassos, sofrer a decepção, no melhor dos mundos, rindo de si
próprio, numa vida que se pode classificar como “comicamente inviável”.
Assim, é também da ordem da técnica narrativa, protomodernista,
o salto de qualidade que Svevo logra em Consciência: uma primeira
pessoa enunciativa renovada pelas vivências hipotéticas, que transforma
a inépcia em vantagem estratégica e permite à “longa sucessão de
cadáveres” (Beckett dixit), às várias versões do eu durante uma vida, uma
convivência conflitiva e renovadora num tempo perturbado, o da escrita.
Antecipa o topos modernista de um eu fragmentário, que se divide em
muitos, condomínio de vozes dissonantes, sempre em disputa. E as raízes
deste salto deixam-se rastrear na história pregressa do escritor.

3. De Uma vida à Consciência: um narrador em formação

Em Svevo, o mundo habitado e ressignificado pela escrita não é


novidade, nem exclusividade de Consciência. Os dois romances que
precedem sua obra-prima também tratam deste equilíbrio precário entre
artista e burguês, disposição prática e sensibilidade estetizante. Há,
portanto, um ar de família entre seus três principais protagonistas
romanescos: Zeno é descendente remoto do literato Alfonso Nitti, de Uma
vida, típico herói do romance do século 19, moço da província engolido
pela cidade, e do melancólico Emílio, de Senilidade, que persegue na
fantasia e na compensação simbólica dos livros algo além do mundo
cinzento do cotidiano.
Nos primeiros ensaios do romancista, predominam ainda as
marcas de esquemas construtivos e estilo muito presos à régua
naturalista, movidos pelo empenho em destrinchar destinos exemplares
moldados a ferro e fogo pelo meio opressivo. O narrador de Uma vida,
por exemplo, se pauta pelo mandamento da impessoalidade, recusando o
que brota diretamente da sensibilidade e evitando a todo custo a
expressão franca e direta. Esta vontade de isenção revoga sua
prerrogativa de intervir, comentar ou fazer juízos morais, subordinando-
o a um ordenamento da fábula muito regrado. Sua dificuldade é o desafio
flaubertiano de saber bem o que não dizer, antes de saber o que dizer.
Desta perspectiva, são evidentes as afinidades com A educação
sentimental, economizados o pano de fundo ideológico em que se move
Fréderic Moreau, o descritivismo pontual e preciso, a filigrana que dá
conta dos objetos, dos ambientes, das personagens. A dívida do ponto de
vista da composição da trajetória do protagonista, contudo, é profunda:
um jovem provinciano que se acerca da cidade e que se movimenta por
entre poucos cenários, todos marcados por natureza social muito variada,
cujo vínculo é estabelecido pela sua própria mobilidade, nos
deslocamentos da casa dos burgueses abastados para os vilarejos do
campo, passando pelo ambiente burocrático e desinteressante do banco.
São espaços independentes em seu funcionamento que apenas ações e
desejos do herói articulam entre si.
Como n’ A educação sentimental, a dificuldade do narrador (e do
escritor) é a de lidar com um personagem desfibrado, excessivamente
amorfo, incapaz de carregar sozinho a história e manter o interesse do
público, desprovido de gestos decisivos ou grandes resoluções. De
alguma forma, um continuador da linhagem dos humilhados e
ofendidos, heróis do romance russo do 19 que oscilam entre a bravata
desafiadora e a anulação completa ante a prosa do mundo. De Flaubert,
portanto, neste livro de estreia, Svevo herda a propensão a refrear os
comentários editoriais, o gosto pela cronologia sem saltos e uma história
que se conta a partir do momento que se inicia sem pré-história direta das
personagens, sem retrospectos, pré-história recuperada apenas de modo
disseminado e fragmentário ao longo do romance.
Uma vida transcorre no ano que separa duas cartas (a que comunica
à mãe de Alfonso Nitti de seu suicídio e aquela em que ele mesmo narra a
ela suas primeiras impressões da cidade), demarcando um intervalo
muito preciso, em flagrante contraste com esquema temporal e
arquitetura estrutural da Consciência, muito mais complexos. Nestes
termos, do aproveitamento de uma convenção já muito trabalhada,
lidamos com um romance de rendimento estético mais acanhado, muito
previsível. O leitor sabe que Alfonso Nitti se encaminha para um desastre
e o interesse que lhe resta é o de acompanhar o modo pelo qual ele
ganhará corpo7.
Mas já aqui, nos primórdios do romancista, o tema que confere
singularidade à obra de Svevo, o caráter peculiar que a experiência
assume quando revista pela literatura, já demonstra sua centralidade, a
exemplo do que se passa na evolução da obra de outro narrador em que
ficção e confissão se entrelaçam8. Ainda como (limitada) compensação
simbólica ao descolorido do mundo, o território da escrita já aparece em
Vida ligado à corte de Alfonso Nitti à filha do patrão, Annetta. Quando
decidem escrever um romance a quatro mãos, suas diferenças essenciais
saltam à vista: enquanto o protagonista, no figurino flaubertiano, agarra-
se a uma espécie de romance familiar dos neuróticos, preso à superfície

7 Para as afinidades de projeto entre o primeiro Svevo e o Flaubert da Educação sentimental, Cf.
Lavagetto, M. “Il romanzo oltre la fine del mondo”. In: Romanzi, op.cit.
8 Em contexto brasileiro, a tematização da literatura como reduto da experiência autêntica

possível, ausente no mundo, marca presença na trajetória do conjunto dos narradores de


Graciliano Ramos, desde aqueles mais presos ao modelo naturalista, como o de Caetés, até os
finais, memorialistas. Cf. Antonio Candido, Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São
Paulo: Editora 34, 1992.
cinzenta da própria vida e refém de uma imaginação sem asas, Annetta,
moça caprichosa, mas feliz em sua pele, de quem um abismo de classe o
separa, decididamente prefere enredos movimentados e francamente
fantasiosos. O contraste de perspectivas tão díspares justapostas já
carrega in nuce os termos que compõem o tema da vida passada a limpo,
reequacionada pela escrita, tão fundamental no Svevo tardio.

- Era uma vez um jovenzinho, que chega a uma aldeia e que tinha umas
ideias bem estranhas sobre os hábitos da cidade. Achando-os bem
diferentes dos que tinha imaginado, ficou amargurado. Depois vamos por
um amor, também. Já esteve apaixonado?
- Eu...- e unicamente de medo bateu mais forte seu coração. Quase lhe
fizera uma declaração! [...]
- Precisaremos de caneta e tinteiro... mas prefiro confiar na memória, para
as primeiras ideias. Depois colocaremos o preto no branco. Como é então
que escreveria o romance?
- Seria preciso refletir bastante.
- Como assim? Vamos contar sua vida – e até aqui ainda estava
perfeitamente na primeira ideia. – Naturalmente, em lugar de funcionário
será rico e nobre, ou melhor, apenas nobre. Deixemos a riqueza para o fim.
Com um único toque a primeira ideia fora completamente abandonada9.

O romance seguinte, Senilidade, Svevo escreve aos 37 anos. Como


Alfonso Nitti, seu novo protagonista é outro inepto, mal entrado na casa
dos trinta e já envelhecido, apático e abúlico. Emilio Brentani é também
ele escritor, agora não um pequeno bancário com pretensões literárias,
mas um burguês intelectualizado que divide genuínas ambições estéticas
com um amigo escultor - percurso que guarda, aliás, alguma afinidade
com a trajetória biográfica do próprio Svevo. Brentani se mete em um
caso amoroso que busca disfarçar em respeitável filantropia, como o
próprio Zeno, posteriormente fará. Aproxima-se de Angiolina, uma
costureira órfã, e disfarça seu interesse por ela na tarefa digna da
educação de uma moça pobre, benemerência típica que se espera de gente
de sua condição.

9 Uma vida. Trad. de Aurora F. Bernardini e Homero F. Andrade. São Paulo: Nova Alexandria,
1993, p.119-20. - C’era una volta un giovinetto che venne da un villaggio in una città e il quale
s’era fatto delle idee ben starne sui costumi della città. Trovandoli in fatti differenti de quanto
aveva ideato si rammaricò. Poi ci metteremo un amore. Ella è stato talvolta innamorato?// -
Io…- e unicamente per la paura gli batté più forte il cuore.// Aveva avuto l’intenzione di fare
una dichiarazone. […] – Ci occorrerebbe penna e calamaio…ma preferisco affidarmi per le
prime idee alla memoria. Metteremo poi il nero sul bianco. Come farebbe dunque lei a svolgere
questo romanzo?// - Bisognerebbe riflettere a lungo. // - Ci vuole tanto? Racconteremo la sua
vita, - e qui si trovava ancora perfettamente nella prima idea. – Naturalmente invece impiegato
la faremo ricco e nobile, anzi soltanto nobile. La ricchezza serbiamo per la chiuza del
romanzo.// Con un solo balzo leggero la prima idea era stata abbandonata del tutto. Romanzi,
p.134-5
Faz dela o objeto de seu empenho pedagógico, travestindo o
galanteio em projeto de reconstrução humana, moral, pessoal e social e,
malogrando na conquista, a converte em obsessão literária. Quando se
mete a escrever, para desvendar o que não vislumbra no calor da ação,
Emilio/autor descobre que dizer a verdade não tem tanta importância
assim na escrita: a verdade é menos crível do que os sonhos que, teimosa
e inconscientemente, se recusa a transcrever para o papel; insatisfeito com
a receita de narrativa que tinha abraçado, a naturalista, abandona a
literatura por inércia, pela incapacidade de fazer nascer um novo modo
de criar esperança e reconstruí-la de maneira literária. Um estágio além
de Alfonso, o narrador falido que aqui encontramos já tenta fazer da
escrita um ato de reparação, de ressarcimento das injustiças que alega ter
recebido do mundo, mas ainda não logra o salto que, valendo-se das
vidas literárias paralelas, converte a inépcia em vantagem, as limitações
em possibilidades, a desistência em resistência.
Os propósitos inconfessáveis que Brentani alimenta em relação a
ela, e vice-versa, a difícil e melindrada intimidade entre ambos levam a
um jogo de fingimento de lado a lado, cuja dialética é reveladora da
dinâmica de revelação e encobrimento que anima a literatura em si. O
romance faz do protagonista a única consciência refletora através do qual
temos acesso, sempre oblíquo, à figura da moça; as agruras que
experimenta empenhado em alcançar uma imagem confiável e recortada,
um retrato fixo e apaziguador de Angiolina, objeto renitente de seus
desejos, se revela inteiramente, portanto, apenas a quem o lê.
Por mais econômico e parcimonioso que seja, o narrador arma uma
espécie de cruel máquina retórica que, do ponto de vista do leitor, resulta
na oportunidade única que a ele, leitor, se oferece de entrever aquilo que
o protagonista teria pavor de constatar: o esfarrapado das traquitanas de
respeitabilidade que a amante cria para encobrir sua falsa inocência, o
postiço de seu interesse no benfeitor, seus inúmeros interesses amorosos.
Pelo tratamento que confere ao ciúme, retrospectivo inclusive,
Senilidade está atravessado de ponta a ponta pela consideração da
verdade e da mentira, da impostura e da simulação, tema que repercute
diretamente tanto sobre a representação do sujeito moderno, quanto
sobre a noção de literatura que a sustenta. No romance, a mentira aparece
diversa no protagonista e em sua amante; para ela, a mentira é uma
espécie de segunda natureza exercida com absoluta liberdade com a
intenção de agradar ou de ocultar – Angiolina mente com integridade,
com o corpo, antes de mentir com as palavras, mente sem divisão
interior, por omissão para se fazer valorizar, e segura de que suas
mentiras são tão bem arquitetadas que lógica alguma será capaz de
revelar a presença da vontade de iludir em suas palavras.
Mente, de resto, contando com a cumplicidade do destinatário, pois
Emílio é alguém que quer fazer enganar pelas palavras doces que profere.
O narrador, por sua vez, mente literariamente, com certa má consciência,
vítima da dobra interior daquele que não pode evitar observar-se de fora,
capaz, ainda que de maneira fugaz e dolorosa, a alto custo, de notar o
quanto lhe convém ser enganado, deliberadamente ignorando detalhes
da arquitetura mentirosa de sua amante. Emilio, portanto, mente de
maneira elaborada e interessada para si mesmo, mas ainda aquém do
passo decisivo da troca da fabulação aprisionadora e torturante por uma
fantasia literária como marco de liberdade. Este laboratório ficcional
menos melancólico, animado pela permanente reconfiguração dos
acontecimentos passados em novas realidades, vidas paralelas em que a
impotência se converte em seu avesso, denúncia, deverá esperar por
Zeno.
Tanto Uma vida como Senilidade se não preparam teleologicamente,
encaminham, antecipando temas e procedimentos, o romance que os
supera em complexidade, interesse e realização. Para este salto em
Consciência contribui significativamente o frescor da estrutura narrativa
deste último, mais contrapontística e nuançada. Três intervenções
textuais bastante diversas entre si, seja na extensão, seja nos modelos
literários que evocam, criam um jogo entre múltiplos gêneros discursivos
interno ao livro, instabilizando a autoridade relativa de cada um em si e
comunicando parte desta instabilidade essencial à própria arquitetura
geral.
Antes de mais nada, temos um brevíssimo prefácio, paratexto
dentro do texto, reminiscência das convenções dos primeiros romances e
tributário da ideia do manuscrito encontrado que um editor (capaz de
afiançar sua verdade, ou denunciar sua falsidade) toma a si introduzir.
Este suposto depoimento do psicanalista define a natureza das memórias
que o leitor tem em mãos, escritas, segundo ele, a pedidos, por um
paciente recalcitrante e resistente ao processo da cura.
Segue-se a parte mais longa e central do livro, a autobiografia do
protagonista propriamente, outra vez precedida por um preâmbulo,
desta vez do interessado direto, nova versão para a origem e dinâmica do
relato, descrito agora como um esforço pessoal e sincero de compreender
o enfrentamento contínuo entre lembranças e linguagem, passado e
presente, a consciência e a página em branco que responde por sua
identidade.
Por fim, uma seção final, composta por três entradas em um diário,
encimadas por datas precisas, nas quais o herói empreende um balanço
final, pelo menos até segunda ordem, ex post e tempos depois, tanto da
aventura psicanalítica, como da relação pessoal com seu analista e
desafeto, colocando uma pedra sobre as hipóteses edipianas levantadas
para explicar suas dores, imaginárias ou não, e registrando,
inadvertidamente, sua aproximação máxima da tragédia contemporânea,
ao ser apanhado, a um só tempo, pela irrupção da guerra e pelo ponto
final do romance.
O tema da fabulação que se impõe sobre o real, já presente no
preâmbulo, ressurge nas suas tentativas de se mostrar desejável aos olhos
das demais personagens e do leitor de suas lembranças. No episódio da
corte às irmãs entre as quais se conta sua futura esposa, por exemplo, os
esforços de maquiar e melhorar sua autobiografia representam parte
significativa da conversação, Zeno reformando os dados de sua existência
anterior de forma a apresentá-los mais extravagantes, mais coloridos.
Confessa que era um procedimento ao qual já havia recorrido várias
vezes, tentar impressionar as beldades com episódios deslocados do
banal de sua vida, caracterizando-se, aos olhos do leitor (que certamente
intuirá que o processo pode estar se renovando no ato da escrita da
autobiografia) como um narrador mentiroso, na linhagem do Barão de
Münchausen ou de Luciano de Samóstata, da História Verdadeira. E
registra: aquelas eram mentiras tão sedutoras que, quando depois tenta
contar à mulher que lhes impingira versões retocadas da verdade,
invenções suas, esta, enfadada, se recusa terminantemente a lhe dar
crédito. A conclusão a que chega é de que a verdade não reside na vida,
mas habita sua reescrita, convencendo-se aos poucos da superioridade de
uma verdade de recusa e de afirmação, inventada, ainda que negativa,
impossibilidade verossímil.
A corte evolui para seu casamento justamente com aquela das
filhas, a estrábica, que lhe parecera a menos interessante das quatro.
Importante notar que tudo isto alcança o leitor por intermédio da parte
interessada que é Zeno, que desde logo se prova um narrador dos menos
confiáveis, de cujos exageros e interesses aprendemos rapidamente a
desconfiar, mas um tipo particular de narrador não confiável, porque tem
a boa fé de discutir os limites da impostura e da verdade. Que, portanto,
silencia, omite e reconstrói as histórias segundo um misto de boa e má fé
que lhe é singular.
A Consciência, então, se tece a partir deste acúmulo de lapsos
ressignificados, de atos falhos organizados em rede, vedando ao leitor a
manutenção de qualquer ilusão referencial, mantendo-o sempre
suspeitoso de que Zeno esteja mentindo, sem nada oferecer em
substituição à versão do protagonista, sem outra válvula de escape
narrativo que não a autobiográfica10. Enquanto personagem, Zeno é fruto

10 Disguidi, malintesi e atti mancati scandiscono il destino di Svevo, della sua fama e della sua
riflessione critica; d’altra parte egli è il grandissimo scrittore che ha fatto del malinteso e
dell’atto mancato un cifra per capire con straordinaria profondità l’esistenza dell’uomo, la vita e
la storia. La coscienza di Zeno è un romanzo intessuto di questa stratificazione in cui il disguido
das consequências paradoxais desta forma, a autobiografia, que ele
próprio modaliza, quando qualifica seu texto como “uma autobiografia,
mas não a minha” ou lembra, em seu corpo, que “uma confissão escrita é
sempre mentirosa”11. Da confissão, expressão literária de um processo
religioso de expiação cujos modelos canônicos são Santo Agostinho e
Rousseau, Svevo conserva, sob aspecto secularizado, apenas a
perseguição sem fim de uma miragem: uma consciência inocente
impossível, sempre adiada. Reverter esta inquietude a seu favor é o que
seu narrador tardio buscará.

4. Batendo em retirada: o recuo estratégico do narrador

Desde os primeiros livros de Svevo, vemo-nos às voltas com um


cansaço vital e existencial, sintoma, indício e cristalização, singular e
concreta, da cultura europeia e da inteligência burguesa àquela altura,
vividas no plano imediato dos sentimentos, das pulsões, do amor e do
ciúme no cotidiano. A grande virada da Consciência em sua trajetória está
em marcar o estágio em que seu autor deixa de se sentir uma vítima deste
contexto que inibe as possibilidades, as ambições de mudança de mundo,
e mais um agente de dissolução desta ordem burguesa, agente infiltrado
na medida em que participa de todas as ações. Como já dito, são
contradições profundamente inscritas em sua biografia12.
A partir de Zeno, a inércia dos seus narradores-narrados, a doença
de seu cotidiano, a inação tornam-se uma espécie de remédio em si, são
apropriadas e se transformam numa forma de resistência que se recusa a
compartilhar ou participar deste mundo de ruínas. São as armas de que
se dispõem na batalha por uma vida outra, mais autêntica que não seja
esta dos hábitos, espécie de surdina da existência, como diz Beckett,
“coleira que ata o cão a seu próprio vômito”, impedimentos a que se viva

gioca un ruolo principale; un romanzo di tanti piani, ognuno dei quali sembra contenere un
diverso messaggio, come la vita, diversa e contraddittoria in ogni sua espressione. Svevo è il
poeta dell’ambiguità inestricabile nascosta nei gesti quotidiani anche più inappariscenti e vivrà,
del resto, la sua stessa esistenza, perfino il successo tardivo, come un malinteso. In: Magris, C.
La “coscienza di Zeno” di Italo Svevo, op. cit., p.15.
11 A importância para Svevo da vida repartida e multiplicada na experiência efetiva e cotidiana

do plurilinguismo – o dialeto triestino no dia-a-dia, o alemão da formação acadêmica e das


transações comerciais, o francês da correspondência com a mulher, o italiano da criação literária
– como reveladora da natureza proposional da verdade, da linguagem enquanto formadora do
mundo, não pode ser menosprezada e ganha estatuto de tema em seus romances,
particularmente na Consciência.
12 Seu pai fora um próspero comerciante de vidros, morto precocemente, o que o forçou a

assumir os negócios da família mais cedo. É no enterro do pai, aliás, que conhece a futura
mulher, uma prima de segundo grau; depois do casamento, foi levado a assumir também as
fábricas de verniz naval de propriedade da família da esposa, próxima dos círculos fascistas do
poder, destoando de sua simpatia pelos ideais socialistas.
uma certa uma integridade individual, hábitos que assumem o aspecto
enganoso de amor per se à existência13.
Este é um escritor dominado pela paixão da análise que passa a
fazer parte de uma tradição literária que transforma a literatura numa
espécie de “glossário do declínio contemporâneo” (Magris), um manual
desta participação nas trevas que é a existência moderna, e que assume
que a representação da vida possível na arte de nossos tempos está
fadada à incompletude, à obscuridade, à parcialidade individual. Quando
o psicanalista descarta o esforço compreensivo que resultou no romance,
descrevendo-o como uma série de mentiras, torna-se ele, uma caricatura
de hermeneuta, míope às próprias virtudes do esforço de racionalização
que gerou. Zeno afirma “lembro de tudo, mas não entendo nada” e sua
narrativa-ação se dá totalmente neste intervalo, entre o que se recorda e o
como o interpreta. A cada momento, o jogo é sobre a interpretação de um
gesto, de uma palavra, de uma lembrança, que refuta se subsumir a um
sistema racionalmente administrado: é da ordem daquilo que escapa à
razão o que interessa ao narrador, por extensão, ao leitor, a
(in)capacidade (rebelde) de se submeter a um sistema.
Em “Argo e seu dono”, um cão narrador empenha-se na construção
de um conjunto de categorias epistemológicas abrangentes, capazes de
apreender o mundo a partir dos cheiros: “Existem três cheiros neste
mundo: O cheiro do dono, o cheiro dos outros homens, o cheiro de Titi, o
cheiro de diversas raças de animais (lebres que às vezes, mas raramente,
são grandes e com chifres, e pássaros e gatos) e enfim o cheiro das
coisas14.” A classificação, tão atraente e desconcertante quanto a do verso
de Altazór, poema do chileno Vicente Huidobro (“Los cuatro puntos
cardinales son tres: el sur y el norte”), desenha um sistema de
ordenamento que se desarticula à medida que vai se construindo. A
impossibilidade de nomear as coisas de maneira estável deriva da ideia
de que o próprio sujeito é uma soma de fragmentos, reunião precária de
eus em disputa, sempre prestes a serem silenciados e de novo
convocados, tornando a reivindicar a controle sobre o todo.
A vontade de ordem que subsiste à ideia do romance de formação,
a vontade do compromisso administrável que da travessia do sujeito
problemático pela vida extrai uma lição, por mais melancólica que seja, e
confere um caráter inteligível a esta travessia que tudo teve de acidental e
administrada pelo acaso, se espelha na forma deste romance que é a de

13Cf. Samuel Beckett, Proust. Trad. Artur Nestróvski. São Paulo, Cosac Naify, 2003.
14 “Argo e seu dono”. In: Italo Svevo, Argo e seu dono. Trad. de Liliana Laganà. São Paulo:
Berlendis e Vertecchia, p.30. Esistono tre odori a questo mondo: L’odore del padrone, l’odore
degli altri uomini, l’odore di Titì, l’odore di diverse razze do bestie (lepri che sono talvolta ma
raramente cornute e grandi, e uccelli e gatti) e infine l’odore delle cose. In: Italo Svevo, Racconti e
scritti autobiofrafici (ed. crítica, aparato genético e notas de Clotilde Bertoni). Milão, Mondadori,
2004, p.100-1.
um pensamento fragmentário e conflitivo, em busca de uma unidade
impossível e incapaz de resolver as contradições da vida. A consciência
que escreve não ordena, nem hierarquiza as experiências, antes confunde
e altera as ordens que existiam antes deste esforço. Portanto, a
autobiografia não resulta em uma vida, mas na possibilidade de múltiplas
vidas, nem resulta em coisa acabada, mas em abertura permanente. Que
no âmbito da obra Svevo jamais abandone Zeno, retomado repetidas
vezes em narrativas posteriores - mesmo personagem, impasse e
compulsões que exibe ao cabo da Consciência - só confirma sua tipicidade
moderna de sua condição.
Até o fim de seus dias, Svevo acalentou o projeto de um quarto
romance com Zeno em foco, lamentando seu estado de acabamento
provisório, o da edição de Consciência, agora rigidez morta da escrita
fossilizada, reclamando para si outras possibilidades. Para Svevo, a
velhice encarna um crepúsculo do sujeito paradoxalmente promissor.
Como muitos dos autores modernos, escolheu os ineptos, os fracos, os
velhos, os acídicos, encarnações do indivíduo por excelência para ele,
sobrevivente graças a esta estratégia de retirada para os microespaços
privados, onde a escrita permite driblar o jogo de limitações práticas da
vida e a descoberta do novo onde aparentemente novo não há. Há uma
insistência grande ao longo da Consciência em qualificar a vida como uma
doença da matéria, como ela também aparece, por exemplo, em A
montanha mágica de Thomas Mann; a velhice se apresenta, então, como a
máscara mais veraz desta vida entendida como doença, processo
entrópico de evolução para a perda, segundo uma ótica cinzenta de um
intelectual que observa também um processo de declínio da civilização e
não se permite ilusões.
Em uma incursão dramática, transposição aos palcos deste
universo da obra final, A regeneração (La rigenerazione), Svevo lida com um
duplo fáustico de Zeno, em idade ainda mais avançada: à meia-noite, a
esposa dormindo, o velho aventa a possibilidade de um pacto que lhe
concedesse algo faltante, uma dimensão essencial que não sabe definir.
Descarta de pronto a juventude que, recuperada, lhe tiraria justamente a
força de ser débil, poder que deriva da impotência, de não estar
envolvido nas engrenagens sociais e ganhar a liberdade de fazer o que
quiser. O desfecho traz um Mefistófeles desorientado, tentando encontrar
o que de sedutor oferecer a este homem que já tem a força da fraqueza.
Quem são, pois, os velhos de Svevo? São protagonistas como o
Molloy, de Samuel Beckett, ineptos que escrevinham diariamente como
uma medida de higiene. Para eles, a velhice é uma libertação de um
presente espinhoso propiciando um salto em um outro presente, o de um
tempo indeterminado em que todos os tempos se encontram, presente da
autografia, da enunciação, da linguagem. O regime temporal da ficção
tardia sveviana, Consciência em particular, é um regime complexo. Ainda
que seu livro se deixe ler como um romance tradicional, em que as etapas
da vida de um homem ganham corpo (formação, morte do pai, os
negócios, o casamento e a velhice), o movimento fabulatório deixa claro
que o personagem não se traduz naquilo que viveu, mas sim no que
escreve, ambiguidade que lhe confere interesse particular.
Inventar pela palavra passa a ser território da criação, deixa de ser
uma mentira para alçar-se a modo de refazer os dados da experiência. Em
seu discurso de autoanálise, Zeno emite sinais constantes e dispersos
nesta direção; afirma, por exemplo, que quando ocasionalmente lhe
acontece de dizer a verdade, o faz plantando sinais ambíguos e
contraditórios em relação ao que afirma (“diz a verdade, mas com um
sorriso de quem quer fazer crer que está mentindo”) e são estes indícios
que guardam o que de mais interessante existe a ser colhido no livro. Ou,
no mesmo sentido, declara que a ele não importa a verdade, mas ao
mesmo tempo se dá ao trabalho de desfazer o engano daqueles que
acreditam na sua versão, chegando a desmentir-se em alguns momentos.
Ou ainda confessa que altera levemente suas histórias, mas apenas o
bastante para torná-las mais expressivas. Verdade e seu contrário
habitam, como deus, nos detalhes e é com eles que Svevo lida muitíssimo,
os detalhes expressivos que podem conferir verossimilhança para uma
mentira. Em que ponto o mentiroso deve estancar sua fantasia
fabulatória? Onde começa a se trair, até onde sua versão ainda se
sustenta?
Zeno se apresenta como um homem mentiroso e, diferentemente
do mentiroso ingênuo, concede sua falsidade ao se analisar; contudo,
mesmo caída a máscara, exposta esta natureza dissimulada, segue sendo
incapaz de renunciar ao hábito de defender, com unhas e dentes e fadado
ao fracasso, a veracidade das mentiras de pernas curtas, mas
elaboradíssimas na linguagem, que inventa. E nestes termos é um homem
moderno, o homem cindido e fragmentado, um representante da
pluralidade do eu e da ironia moderna, portador da capacidade de
observar-se de fora, ruína de qualquer possibilidade da espontaneidade
ingênua, presente e ausente a um só tempo. Tudo isto sob um estilo que
se apresenta como clássico, na verdade, ambíguo e dificílimo em
decorrência deste esquema temporal e da torsão que Svevo aplica ao
narrador não confiável do romance, como se houvesse um romance
dentro do outro, vários romances. Há uma técnica experimental ali que
dissolve as convenções narrativas do romance, dissolve-o enquanto uma
história de vida, fórmula que aqui não mais se sustenta depois de nos
darmos conta do quanto está enredado o protagonista no cadinho da
escrita.
A retirada do personagem para o tempo da escrita e da velhice não
visa a aposentadoria precoce, a tranquilidade, a imobilidade, mas seu
avesso. Trata-se do portal para uma mobilidade irrequieta que escapa às
pressões sufocantes do real. Apenas a partir dela, o narrador passa a
exercer uma margem de liberdade, ocupado com um exercício de
conversão de uma realidade baça, cinzenta, sem virtualidade, em algo
novo que preserve alguma chama de pulsões de vida, eróticas e irônicas,
inclusive. Este é o presente que o protagonista de Svevo valoriza e é a ele
que quer estar associado. A novela “O meu ócio”, que traz em primeiro
plano novamente Zeno, se abre em um elogio a este presente compósito e
móvel:
Já o presente, não se pode burlá-lo nem no calendário, nem no relógio, que
se olham apenas para estabelecer a própria relação com o passado ou para
nos encaminhar para uma aparência de consciência rumo ao futuro. Eu, as
coisas e as pessoas que nos cercam somos o verdadeiro presente.
Meu presente se compõe de vários tempos. O primeiro, longuíssimo
presente, o abandono dos negócios, dura oito anos, uma inércia comovente;
vem em seguida acontecimentos importantíssimos que o fracionam. O
matrimônio de minha filha, por exemplo, um acontecimento do passado
que se insere num outro longo presente interrompido, ou talvez renovado,
ou melhor, corrigido pela morte de seu marido. O nascimento de meu
netinho Umberto, também longínquo, porque o presente real em relação a
Umberto é o afeto que sinto por ele agora, na sua conquista, de que ele
nada sabe, e acredita ser-lhe de direito por nascimento. Ou será que
acredita em alguma outra coisa, de modo geral, aquela minúscula alma?
Meu presente em relação a ele é exatamente seu passo pequeno e seguro,
interrompido por medos angustiantes, logo curados pela companhia dos
brinquedos, quando não consegue conquistar a assistência da mãe, ou a
minha, o avô. Meu presente também é Augusta como ela é agora,
coitadinha, com seus bichos, cães, gatos e pássaros, e sua eterna
indisposição da qual não quer se curar com a mínima energia. Faz aquele
pouco que lhe prescreve o dr. Hauling e não quer ouvir nem a mim que
com força descomunal consegui vencer a mesma tendência, a
descompensação do coração, nem a Carlo, nosso sobrinho, o filho de
Guido, que voltou há pouco da universidade e conhece, portanto, os mais
modernos medicamentos.
Claro, grande parte do meu presente provém da farmácia15.

15 “O meu ócio”. In: Argo e seu dono. Trad. de Liliana Laganà. São Paulo: Berlendis e Vertecchia,
2001, p.82-3. Già il presente non si può andar a cercare né sul calendario né sull’orologio che si
guardano solo per stabilire la propria relazione al passato o per avviarci con una parvenza di
coscienza al futuro. Io e le cose e le persone che mi circondano siamo il vero presente.// Il mio
presente si compone di varii tempi anch’esso. Ecco un primo lunghissimo presente:
l’abbandono degli affari. Dura da otto anni. Un’inerzia commovente. Poi ci sono avvenimenti
importantissimi che lo frazionano: Il matrimonio di mia figlia p.e., un avvenimento ben passato
che s’inserisce nell’altro lungo presente, interrotto – o forse rinnovato o, meglio, corretto – dalla
morte del marito. La nascita del mio nipotino Umberto anch’essa lontana perché il presente
vero in rapporto ad Umberto è l’affetto che oramai gli porto, una sua conquista di cui egli non
sa neppure e che crede spettargli per nascita. O crede qualche cosa in genere quel minuscolo
Esta multiplicidade de planos do concreto interessa, mas ganha
verdadeiro relevo apenas o tempo da escrita, único, distinto de todos os
outros possíveis, porque maleável e continuamente novo e responsável
por manter acesa a tensão vital que o mundo cotidiano impede e a velhice
possibilita, tornando o homem disponível para rigorosamente tudo.
Trata-se do tempo análogo ao da aventura erótica do velho, esta segunda
adolescência que também aparece, por exemplo, na obra tardia de
Drummond ou Yeats, do desejo em tempos de madureza. Convicto de
que é da natureza da morte reclamar tudo que é estéril, acabar com o
tempo de quem não mais procria, o personagem sai em busca de uma
moça em semelhança insuspeita com os contos de lograr a Indesejada da
tradição popular brasileira, transposto a uma perspectiva muito
darwiniana e schopenhaueriana, no espírito do tempo.
Velhice e escrita são, então, não agentes de conformismo, mas de
corrosão anárquica de toda organização pré-definida da existência, são os
lugares em que se possibilita algum protesto tímido e negativo que
culmina não no momento de alguma realização que se cristalize e
engesse, mas na possibilidade de manter uma tensão produtiva aberta.
Do ponto de vista da economia psicológica, os heróis de Svevo não têm
medo de não serem amados, mas de não mais conseguirem amar. A
ameaça é a felicidade numa espécie de acomodação morna do cotidiano.
O que interessa é notar como estes agentes, indecisos entre a mulher e a
amante, entre a saúde e a doença, o fumo e a desintoxicação, a moral e a
transgressão, o imaginado e o existente, recusam-se à perda que
representa uma escolha feita, adiando-a sine die. O potencial da fantasia
em aberto leva-os a eleger este espaço de indecisão como estratégia de
resistência contra o achatamento das possibilidades vitais que o universo,
racionalizado e reificado, impõe. Cultivam o sentido da possibilidade
justamente onde se parece renunciar a ele: na acídia, no ócio, no instinto
protelatório (o último cigarro, reiteradas vezes, o último encontro com a
amante). A escrita é um projeto que contém uma dimensão infinita, a da
eterna revisão da própria vida, o que faz da Consciência uma
autobiografia sui generis, porque ironicamente em suspenso, sem epílogo,
sem a chave de ouro ou lata que confere inteligibilidade ao indivíduo,

animo? Il suo, il mio presente in rapporto a lui, è proprio il suo piccolo passo sicuro interrotto
da paure dolorose che sono però curate dalla compagnia di pupattoli quando non sa
conquistarsi l’assistenza della mamma o la mia, del nonno. Il mio presente è anche Augusta
com’è ora – poverina!- con le sue bestie cani, gatti e uccelli e la sua indisposizione eterna di cui
non vuole curarsi con l’energia voluta. Fa quel poco che le prescrive il dottor Raulli e non vuole
ascoltare né me – che con forza sovrumana seppi vincere la stessa tendenza, la
decompensazione del cuore – né Carlo, nostro nipote (il figlio di Guido) ritornato da poco
dall’Università e che perciò conosce i medicinali più moderni.// Certo, gran parte del mio
presente, proviene dalla farmacia. Romanzi e “continuazioni” (ed. crítica, aparato genético e
notoas de Nunzia Palimieri e Fabio Vittorini). Milão, Mondadori, 2004, p.1197.
transformando-o numa unidade que não mais se esboroa na sucessão
desconexa de experiências.

5. Narradores ineptos: desdobramentos e descendência

À guisa de coda e possível nova abertura, gostaria de assinalar a


sobrevivência e renovação do narrador sveviano na obra de dois autores,
Samuel Beckett e J. M. Coetzee, em que o tema da velhice e da escrita
como espaços interligados de reinvenção ficcional da vida tem papel de
destaque. Dois autores que se podem qualificar experimentais, no sentido
de aportarem ambos uma contribuição formal muito significativa ao que
o gênero romance tem a dizer sobre esta questão não da formação, mas
da deformação na idade provecta.
J. M. Coetzee, em Diário de um ano ruim, trabalha com registros
simultâneos da escrita, construindo um romance de três faixas narrativas
paralelas que literalmente dividem entre si a página impressa. Na
primeira delas, no topo da página, um escritor em idade avançada, se
ocupa em elaborar um livro sob encomenda de um editor; o que lemos
nesta faixa superior é um conjunto de opiniões fortes, ensaísticas, vazadas
em uma terceira pessoa opinativa, tendendo à primeira, no qual o autor
assume posições polêmicas em relação ao mundo presente, uma narrativa
de uma objetividade demarcada a partir do indivíduo, em suma. Este
escritor carrega o mesmo nome do autor, Coetzee, e com ele compartilha
afinidades biográficas: em idade avançada, goza de consagração e
relativo isolamento, morando na Austrália, longe de seu país natal, a
África do Sul, além de ser autor de livros que o próprio autor biográfico,
Coetzee, assinou. Uma segunda faixa narrativa dá conta deste sopro de
vida tardio, segunda adolescência tomada de expectativas eróticas
inesperadas neste homem velho, narrando seu encontro com uma jovem
da Indonésia que contrata, em princípio, a pretexto da necessidade de
transcrição e digitação dos textos que redige, mas que ocupa o lugar de
um interesse amoroso seu. A forma assumida por esta segunda faixa é a
de um diário da moça sobre o encontro e a aproximação entre ambos,
lançando observações indiretas sobre o homem das opiniões fortes. Nela,
se concentra o registro da primeira pessoa e sua mobilidade contra as
certezas da terceira pessoa da primeira banda. Por fim, uma terceira faixa
narrativa que traz as conversas entre esta moça e seu companheiro,
comentando em foro íntimo esta sua relação com o escritor famoso. Ao
longo do livro, estas três faixas vão progressivamente se interpenetrando
e se confundindo, rompendo com as certezas e produzindo, por um
expediente técnico, de manipulação de pontos de vista da narrativa,
abalos na terceira pessoa impassível, na primeira pessoa confessional, e
criando uma instabilidade inédita para a forma do romance, também no
contexto da liberdade especulativa, de recriação do mundo, propiciada
pela idade avançada, pela velhice.
As questões da verdade, da ficção, da autorrepresentação, da
representação indireta, dos espelhos distorcidos têm a mesma
centralidade que carregam na obra de Svevo, guardando ainda notável
semelhança com o diagnóstico que o autor de Zeno traça da relação entre
a psicopatologia da vida cotidiana e o mundo presente que volta e meia
eclode em sintomas e indícios de impasses mal administrados.
Já falar de autor tão central à modernidade quanto o autor de
Godot, no contexto de uma leitura de Svevo, equivale a propor um curto-
circuito, um embaralhamento matricial entre duas equações muito
naturais e recorrentes, as que levam de Svevo e Joyce, e de Joyce a
Beckett. Trata-se de um caminho nada natural, poucas vezes percorrido,
mas longe de impertinência idiossincrática: são muitas e surpreendentes
as afinidades e pontos de contato que ligam tanto matéria narrada,
quanto procedimentos técnicos de ambos, fazendo-os, a meu ver,
coparticipantes de uma vertente singularmente importante no romance
do século 20, guardadas as proporções relativas das posições que ocupam
na história literária moderna16.
Desde logo, Beckett não parece ter sido leitor de Svevo, nem vice-
versa, até onde se conhece. Portanto, nada de influência direta,
empréstimos e citações mediadas pelo amigo comum. Mas ambos se
inscrevem com destaque numa linhagem que se menciona acima, a de
narradores-narrados, linhagem que não iniciam, mas que os atravessa e
se prolonga, forte, até os dias de hoje, desaguando no destaque
contemporâneo da melhor autoficção. A importância do encurtamento da
distância e da serenidade épicas, que a narrativa em primeira pessoa
(vital a romances como A consciência de Zeno, Molloy ou Malone morre)
traz, conduz a uma relativização dos lugares da verdade e da mentira, da
referencialidade e dos mundos imaginários, da memória e da recriação
imaginosa do real, que é central na pergunta pelo lugar do romance
enquanto gênero onívoro, enciclopédico, híbrido e proteico, gato de sete
agonias, na literatura contemporânea.
A percepção da memória como lugar de desintegração e nova forja
da experiência, da linguagem como obstáculo e veículo do conhecimento
possível de si e do mundo, o jogo com múltiplos planos narrativos
colocando o todo sob o signo do perspectivismo e da incerteza,

16Figura axial na modernidade, Beckett cria seus precursores à maneira de Eliot e Borges,
constitui-se em marco obrigando à releitura e reorganização da história literária, para frente e
para trás de seu aparecimento; a recepção da obra de Svevo, de outra geração e momento,
permanece muito mais ambígua, oscilando entre celebração e silêncio. Cf. Peter Boxall, Since
Beckett: contemporary writing in the wake of modernism.Londres, Continuum, 2012.
revogando a inteireza de qualquer relato; a mescla de farsa e tragédia, o
lugar destacado da impotência e da acídia, as racionalizações malogradas,
e o gosto pelo ponto de vista excêntrico, à margem, que a errância de um
clochard ou o retiro da velhice garantem, tudo isto aproxima a ficção do
burguês triestino e do exilado dublinense numa instabilidade estrutural
comum, construída e cultivada, corda bamba moderna a que Hugh
Kenner faz alusão para definir a família artística beckettiana. Assunto
vasto, que ora mais vale reservar intocado, objeto de artigo futuro, ainda
por ser escrito, ou mesmo indefinidamente adiado, em estratégia
sveviana de lograr a morte.

Fábio de Souza Andrade é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na


Universidade de São Paulo, onde coordena o Grupo de Pesquisa Estudos sobre Samuel Beckett
USP/CNPq. Colunista da Folha de São Paulo entre 2005 e 2009, publicou regularmente artigos
de crítica literária na imprensa paulistana (O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Entrelivros,
Cult). É autor de O engenheiro noturno: a lírica final de Jorge de Lima (Edusp, 1997), Samuel Beckett:
o silêncio possível (Ateliê, 2001), Échos et representations de Samuel Beckett au Portugal et au
Brésil (Firmo&Andrade, Travaux et Documents, Université Paris 8, 2013), entre outros. De
Beckett, traduziu e apresentou Esperando Godot (Companhia das Letras), Fim de Partida, Dias
Felizes, Murphy (Cosac Naify) e Watt (Companhia das Letras, no prelo). Atualmente, trabalha na
tradução do teatro completo de Samuel Beckett.
A MONTANHA MÁGICA: FORMAÇÃO
E FORTUNA DE HANS CASTORP1

Francisco José Ramires

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O objetivo deste ensaio é refletir sobre o livro A Montanha Sociedade;
Mágica, de Thomas Mann, como romance de formação. Se, Romance de formação;
por um lado, ele se tornou um clássico literário que vai além Thomas Mann;
das fronteiras e do tempo, por outro, em sua concepção, pode Literatura.
ser interpretado no passo a passo de diálogos graças aos
quais as escolhas do autor podem ser apreendidas. No
recorte analítico aqui feito, destacam-se Schopenhauer e
Nietzsche como interlocutores importantes para a construção
e a concepção de formação subjacente ao livro, num
momento crítico da história alemã e europeia.

ABSTRACT KEYWORDS
The aim of this essay is to reflect on the book “The Magic Society;
Mountain”, by Thomas Mann, as a bildungsroman. If, on the one Bildungsroman;
hand, it has become part of a literary canon that goes beyond Thomas Mann;
borders and time, on the other, it can be interpreted in its Literature.
conception on the face of dialogues thanks to which the author's
choices can be apprehended. Schopenhauer and Nietzsche stand out
as important interlocutors for the construction and conception of
formation underlying the book, published at a critical moment of
the German and European histories.

1 A elaboração deste artigo sustenta-se em uma imensa gratidão aos amigos que formaram e
fazem parte do grupo de leitura e discussão chamado Classicando, de São José dos Campos.
Amigos que aceitaram a indicação do romance de Thomas Mann. No decorrer dos encontros,
reinventamos o verbo subir como sinônimo do ato de ler “A montanha mágica”. Aos amigos
Carla, Rodinei, Hilda, Paulo, Giselle, Diva e a meu amor, Helen, muito obrigado pela
companhia durante a caminhada livro acima!
Agora se nos abre, por assim dizer, a montanha
mágica do Olimpo e nos mostra as suas raízes.
O grego conheceu e sentiu os temores e os
horrores do existir: para que lhe fosse possível de
algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e
a vida, a resplendente criação onírica dos deuses
olímpicos.

Friedrich Nietzsche

A os olhos de Nietzsche, a "montanha mágica" olímpica permitia


ao grego antigo persistir na vida, a despeito de seus horrores e
contratempos, capazes de vergar a espinha e partir o espírito do mais
forte entre os homens. Um mediador mítico, farol em meio ao mar revolto
da existência. Em Mann, a montanha não é exatamente mediação. É a
travessia do herói, Hans Castorp, mas também uma obra que, desde o
início, o próprio métier literário está em questão, como tema de reflexão
num dado momento da história. A subida de Castorp aos alpes pareceria
uma elevação aos píncaros, num movimento semelhante à comédia de
Dante, do inferno ao firmamento. Entretanto, ironicamente, a ascensão do
personagem nada mais é do que um emaranhar-se mais e mais no
mundo, resplandecente em seu desencantamento. Referindo-se ao
sanatório Berghof, talvez seja apropriado afirmar: "Isso é o teu mundo.
Isso se chama um mundo!"2. E o processo de crescimento e educação se
dá justamente no encontro com o mundo3. Está em jogo a formação e sua
forma romanesca.
Logo na abertura está dada uma das linhas da tessitura da obra de
Thomas Mann: narrar a vida de Hans Castorp e seu estranho
envelhecimento, que não segue exatamente o passo a passo dos anos. Há
um acúmulo de situações e vivências que forjarão seu espírito em um
período relativamente curto. O romance é longo e denso, pleno de
ambivalências que fazem parte de sua arquitetura literária4.

2 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005, p. 69.
3 ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 204.
4 KUSCHEL, Karl-Josef; MANN Frido; SOETHE, Paulo Astor. Terra mátria: a família de

Thomas Mann e o Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 77; 79.
A evocação da referência mitológica (via filosofia), transfigurada
em material ficcional, produz desconforto, tendo em vista que o leitor fica
diante de um romance cujo ponto de fuga não é propriamente o real5,
refratado pela ironia, pela linguagem, pelo ato criativo. A montanha é
uma imensa invenção estética. E não é a vida de Castorp em sua
totalidade que está em questão. O herói não é acompanhado desde o
nascimento até o túmulo e os sucessos de sua existência não são urdidos
segundo um princípio unívoco de sentido ou propósito. A morte plena de
vida, evocada por Max Weber, referindo-se a Abraão, não seria
experimentada pelo jovem personagem, se nos fosse dada a chance de ler
seu fim. Entretanto, esse romance de educação e instrução é denso o
suficiente para sentirmos que a formação embebe o espírito de Castorp
em um processo civilizatório de grande envergadura. O romance ainda é
mais contundente, em termos da ambição que o enforma, na medida em
que a crise desse mesmo processo civilizatório é outra entre as linhas que
entram no emaranhado estilístico do livro. Um emaranhado no qual os
personagens são mergulhados, do qual são partes constitutivas, deixando
marcas no mais recôndito de seus seres. Formar-se é tomar parte na
história. Narrar é tentar apreendê-la em seus sucessos e infortúnios,
progressos e golpes. É disso que se trata.
O narrador é a força apolínea que dá forma e substância ao
romance e impele o jovem Castorp para longe de sua terra natal,
Alemanha. Torna-se ele um estrangeiro, cuja formação será entrelaçada a
um dos grandes temas das tradições literárias: a viagem. Ao fim da saga,
o eu-lírico devolve o herói ao país de origem, selando, dessa feita, uma
estranha reconciliação com sua terra, já mergulhada na Grande Guerra.
Um regresso enviesado ao lar. Ao fim, trajando o fardamento militar,
Hans Castorp ajusta-se ao habitus militar alemão6, engendrado no
decorrer de um longo processo histórico-social de construção do Estado
nacional. A despeito do aprendizado propiciado nos alpes e da vontade
do personagem, Castorp parece atado a forças que se sobrepõem à sua
vida, lançando-o, de chofre, nas grandes questões do tempo, na
tempestade da história. É possível formar-se no torvelinho de uma crise
sem precedentes? É possível narrar (em) um momento de tal monta? Não
à toa, Soethe se refere ao romance a partir de sua “materialidade
‘orgânica’” e o leitor é desafiado a lê-lo “como quem se depara com um
quadro, um objeto no espaço”7.
A montanha, o itinerário de Castorp e as relações por ele ali
travadas são o espaço ficcional que expressa a envergadura do trabalho

5 ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2003, p. 60.
6 ELIAS, Norbert. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro: Zahar, 1997.
7 SOETHE, 2017, p. 835.
imaginativo de Mann, pelo qual a produção da forma constitui um ato
político propriamente dito8. Ato que requer do esteta um olhar que
transite entre realidade e ficção, história e mito, tradição literária e
renovação contemporânea, literatura e filosofia, arte e ciência, com todas
essas linhas de força tomando parte na trama do romance. Esse complexo
trançado torna o Berghof um símile de espaço público onde a apreensão
da realidade requer a coexistência de ângulos diversos, pontos de vista
distintos que não podem ser o mero prolongamento do mundo familiar9.
Para adentrá-lo, é preciso se distanciar do lar. Nesse romance, Mann
parece internalizar o princípio do espaço público na constituição da
forma romanesca, ao mesmo tempo em que a circulação e a leitura de
uma obra assim teriam potencial para estimular o debate público em seu
tempo.
“A Montanha Mágica” (1924) pode ser interpretada como um
romance de formação, cuja estrutura corresponde a uma certa concepção
romanesca típica do gênero. Segundo Lukács10, “O romance é a forma da
aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da
alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras
para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria
essência”. No decorrer da leitura, a jornada de Hans Castorp é oferecida
aos leitores em seu processo de crescimento, mas, sobretudo, no que diz
respeito aos momentos e experiências decisivos que vão entrar na
constituição de seu caráter, construído a partir dos laços que o vinculam
aos seus amigos e familiares, mas também àquilo que significa ser alemão
e europeu às vésperas de um momento crítico de sua história.
Formar-se é tornar-se cidadão. Por um lado, há a individualidade,
mesmo que sem contornos nítidos (como o próprio tempo), mas também
a história, e ambas são partes do mesmo emaranhado estilístico. Biografia
e “longue durée”. Um labirinto que, ao fim, deixa o leitor diante do corte
seco do eu-lírico, que se recusa a perseguir os passos do personagem, já
mergulhado na Grande Guerra. Nesse momento, é o próprio ofício do
escritor que fica sob suspeita, seja porque os fundamentos sociais da
formação perdem os lastros capazes de manter seus possíveis sentidos,
seja porque o próprio autor se cala ante o desafio de narrar os fatos e
efeitos daquele conflito bélico, quiçá antecipando a tese de Alfred Schutz,
em seu texto sobre “Aquele que retorna ao lar”, e de Benjamin, acerca dos
“combatentes que tinham voltado silenciosos do campo de batalha”11.

8 DAYAN-HERZBRUN, Sonia. Thomas Mann: um escritor contra o nazismo.


Trans/Form/Ação, Marília, v. 20, n. 1, p. 71-86, 1997. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
31731997000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 09 ago. 2018.
9 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, p. 67.
10 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 91.
11 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
Paradoxo expresso e discutido por Adorno: um tempo em que não se
podia mais narrar, mas o romance exige a narração 12. Mann exigia isso de
si mesmo.
Narrativa e tempo. No livro, o tempo não é usado apenas como
elemento narrativo estruturador dos sucessos ocorridos na vida do jovem
Castorp. É, sobremaneira, parte indissociável da trama como um todo,
particularmente no que diz respeito aos efeitos psicológicos dele
derivados, aos conhecimentos que nos permitem pensá-lo como objeto e
às condições sociais de existência (individual e coletiva) que lhe servem
como substrato minimamente sólido, suportando interpretações e
explicações. “O tempo, por mais enfraquecida ou aniquilada que esteja a
sensação subjetiva que se tem a seu respeito, possui uma realidade
objetiva, enquanto age, enquanto ‘traz consigo’”13. Não há formação sem
ele, o tempo, figurado no romance como “objeto” esquivo, oscilando
entre algo etéreo e objetivo, mas também ancorado em experiências.
Narrar é dar conteúdo ao tempo14. “A montanha mágica permite lembrar
de que maneira, também entre nós, o tempo e a história são matéria de
negociação: ambíguos em sua compreensão, múltiplos nos desenlaces,
vários enquanto representação”15.
Mas o que é a formação e que soluções Thomas Mann construiu
para representá-la no campo literário? Eis uma citação de Waizbort 16, a
servir como parâmetro para o início da discussão:

Ambas, personalidade e formação estão vinculadas em uma relação de


mútua determinação. A ideia de personalidade supunha uma formação,
assim como a formação depende da personalidade. Personalidade supunha
formação por ser justamente o resultado de um processo formativo, no qual
o indivíduo, ao longo do tempo, adquire um patrimônio interior mais
amplo, mais diferenciado e mais profundo. Por outro lado, a formação, cujo

cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 115.


12 ADORNO, 2003, p. 55.
13 MANN, Thomas. A montanha mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 605. Para uma

análise mais detida acerca do tempo na composição do romance em questão, cf. RODRIGUES,
Menaldo Augusto da Silva. RODRIGUES, Menaldo Augusto da Silva. “A representação do
tempo no romance Der Zauberberg de Thomas Mann”. Dissertação apresentada à FFLCH/USP,
São Paulo: 2008.
14 MANN, 1980, p. 601.
15 SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Questões de fronteira: sobre uma antropologia da história.

Novos estudos - CEBRAP, São Paulo: n. 72, p. 119-135, July 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002005000200007&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 31 mar. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002005000200007.
16 WAIZBORT, Leopoldo. Formação, especialização, diplomação: da universidade à instituição

de ensino superior. Tempo Social, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 45-74, Dec. 2015. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
20702015000200045&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 28 Mar. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/0103-2070201523.
sujeito e suporte é o indivíduo, depende da personalidade ao mobilizar
aquela diferenciação, amplitude e profundidade em uma espécie de
conversação coletiva, em um processo complexo de circularidade e de
determinação mútuas, em que formação e personalidade vão se incitando e
aprofundando uma à outra ao longo do tempo, em um processo sem fim.
Uma modalidade muito importante dessa conversação foi a instituição de
ensino e a universidade, e os círculos de sociabilidade daí advindos
tornaram-se seus mecanismos de reprodução por excelência. A
conversação, ou seja, as formas de comunicação que estão no âmago do
processo formativo, possibilita que o desenvolvimento da personalidade
não se confunda com qualquer espécie de solipsismo ou enclausuramento,
mas se abra para a multiplicidade das formas de existência e pensamento e,
com isso, "se forme".

Waizbort situa a formação como fato típico do século XIX. Ressoa


aqui uma hipótese de Simmel, radicada na “pretensão do indivíduo de
preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às
superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e
da técnica da vida”17. O indivíduo em busca de sua singularidade.
Dayan-Herzbrun cita trecho de uma correspondência em que Mann deixa
registrada a ideia de que “A montanha (...)” é um romance educativo em
que “a experiência da enfermidade e da morte leva um rapaz a conceber a
ideia do homem e do Estado”18.
Pelo cotejamento entre Mann e Waizbort, uma distinção deve ser
realçada: se este destaca a escola e a universidade como instituições e
espaços importantes de sociabilidade no processo de formação de um
indivíduo, Thomas Mann desloca o cerne da formação de Hans Castorp
para fora dos espaços formais de educação. Para aquém, quando, no
capítulo II da obra, a sequência de mortes de seus pais e de seu avô,
segundo o autor, terá grande impacto na vida do personagem,
sedimentando-se como fatos que ficarão encravados em sua psique. Esta,
por sua vez, será ativada de quando em quando em outros momentos do
romance, em forma de reminiscências avivadas e reelaboradas em
retrospectiva. Mas, sobretudo, para além das instituições de ensino, na
medida em que o escritor, não sem grande dose de ironia, situará os
passos decisivos da formação do jovem Castorp em um sanatório, nos
longínquos alpes de Davos-Platz, Suíça. Aí, sim, Mann volta a combinar
com Waizbort, tendo em vista que são precisamente as conversas lá
transcorridas que serão o ato em si da formação, em sua gênese dialógica.

17 SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana. Rio de Janeiro. v. 11, n.
2, p. 577-591, Oct. 2005.
Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
93132005000200010&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 03 abr. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132005000200010.
18 MANN, Thomas, apud. DAYAN-HERZBRUN, 1997.
A formação tem a ver com atos da fala e retomamos aqui a
discussão de Hannah Arendt acerca de como a realidade e sua apreensão
dependem da visão e audição dos indivíduos em público19. Será no
confronto com personagens diversos que Hans Castorp, longe de casa,
pouco a pouco, irá se transformando sob o escrutínio dos leitores. Mas no
jogo de sutilezas empregado por Mann, novamente, há um afastamento
em relação aos elementos constitutivos da formação, ao menos segundo
Waizbort: a "abertura" de Castorp se dá, paradoxalmente, na clausura de
um sanatório, a partir daquilo que Mann chamará de “pedagogia
hermética”. Em um ensaio sobre Goethe, ele retoma a ideia de educação
como passagem do mundo interior para a vida social20. Nos termos de
Arendt, transição da esfera privada para a pública.
De certa forma, o sanatório funciona, no texto, como um
microcosmo (a montanha) deslocado em relação à Europa real (a
planície). Desta, poucas são as informações que chegam, na medida em
que são raros os personagens interessados nos fatos políticos e
econômicos do continente. Essa duplicação é crucial para criar um espaço
ficcional com suas próprias regras quanto à relação entre os personagens,
ao tempo e às transformações corporais e psíquicas de quem vive dentro
da instituição. Trata-se da representação literária propriamente dita,
“status irreal da experiência temporal ficcional21”. Um arranjo pelo qual
Mann também se afasta de um padrão típico dos romances em seu
nascimento. Se “os leitores nos últimos dois séculos têm encontrado no
romance a forma literária que melhor satisfaz seus anseios de uma
estreita correspondência entre a vida e a arte” 22, tais parâmetros
(espaciais e temporais) são quase inexistentes em “A Montanha Mágica”,
que termina por exigir mais de quem o lê, tanto em termos de fôlego
como no que concerne ao repertório necessário à interpretação. Thomas
Mann criou uma obra na qual ficam sob espessa névoa as balizas que
permitiriam ao leitor apreciar o romance a partir de aproximações com o
tempo e os marcos geográficos ali referidos. Talvez o “encantamento”
expresse as incertezas que efetivamente pairavam no ar nos momentos
imediatamente antecessores da guerra.
Hans Castorp faz uma viagem da planície à montanha pouco antes
de concluir sua instrução técnica como engenheiro naval e iniciar um
estágio que lhe permitiria entrar no mundo do trabalho propriamente
dito. Nesse momento, ele tem seus vinte e tantos anos. Aí tem início sua
formação: toda a trama da história parte dos efeitos psíquicos que a

19 ARENDT, 2000, p. 60.


20 MANN, Thomas. Goethe como representante da burguesia: um ensaio. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
21 RICŒUR, Paul. Temp et récit 3. Le temps raconté. Paris: Éditions du Seuil. 1985, p. 230.
22 WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo:

Companhia das Letras, 2010, p. 25.


jornada pode ter sobre os indivíduos. Castorp é levado para longe do
ambiente familiar, onde terá a chance de defrontar diversidades e
adversidades da existência, travando relações com pessoas provenientes
de vários países europeus e de outras partes do mundo. Rompe os
vínculos de proximidade geográfica com a cidade natal e com a família (o
que restou dela após mortes sucessivas) e, assim, individualiza-se. Sem
grandes peias emocionais, tem condições e mais facilidade de partir.
Qual o motivo aparente da viagem? Ir ter com um primo (Joaquim)
internado no Berghof, que, a princípio, após o tratamento, poderia
regressar ao lar em três semanas. Mas não é apenas isso que está em jogo.
A despeito de estar no limiar da conclusão de um curso universitário, o
autor qualifica Castorp como um rapaz “mimado e franzino”. Há um
trecho longo, mas precioso para se entender o momento em que a ida ao
sanatório se dá:

Durante as férias, costumava regressar muito asseado, muito bem vestido,


com um bigodinho ruivo no sonolento rosto de jovem patrício, e
evidentemente a caminho de uma posição respeitável. E as pessoas que se
ocupavam de questões municipais e também eram entendidas em assuntos
de família e de vida social – como é o caso de quase todos, numa cidade
livre e autônoma -, esses seus concidadãos, examinando-o criticamente,
perguntavam-se que papel oficial o jovem Hans Castorp chegaria a
desempenhar no futuro. Havia uma tradição a seu favor; seu nome era
antigo e de boa reputação; e mais cedo ou mais tarde – isto parecia quase
certo – seria preciso contar com a sua pessoa como fator político. Então
teria um lugar na Assembleia ou no Conselho Municipal e influiria na
legislação; no exercício de um cargo honorífico, participaria das
preocupações que acarreta a soberania; pertenceria a alguma repartição
administrativa, à comissão de finanças talvez ou à de obras públicas, e sua
voz não deixaria de ser ouvida e levada em conta. Até seria interessante
saber a que partido se filiaria, mais tarde, esse jovem Castorp. As
aparências podiam enganar, mas ele não tinha, propriamente, a cara duma
pessoa com a qual os democratas podem contar. Era evidente a semelhança
com o avô. Quem sabe se não puxaria a este, tornando-se um travão, um
elemento conservador? Era muito possível, como também era possível o
contrário. Afinal de contas, tratava-se de um engenheiro, futuro construtor
de navios, de um homem da técnica e do tráfego universal. Assim se
ventilava a outra alternativa de Hans Castorp: unir-se aos radicais,
chegando a ser um homem de ação, destrutor profano de edifícios antigos e
belas paisagens, sem raízes no solo pátrio, qual um judeu, e sem laços de
tradição, qual um ianque; talvez preferisse romper desconsideradamente
com aquilo que uma veneranda história nos transmitiu, e arrastar o Estado
para um caminho de audaciosas experiências, em vez de promover o
desenvolvimento circunspecto das condições naturais de vida. Também
isso era admissível. Estaria no seu sangue a convicção de que Suas
Excelências, prudentes e sábias, às quais a dupla sentinela da
Municipalidade apresentava armas, administravam tudo da melhor
maneira possível, ou se inclinaria a apoiar a oposição na Assembleia?
Naqueles olhos azuis sob as sobrancelhas ruivas não se podia ler nenhuma
resposta a essas perguntas que a curiosidade dos seus concidadãos fazia, e
parece provável que nem o próprio Hans Castorp, uma folha em branco,
teria sabido satisfazê-la23.

A viagem à Suíça é um indicador típico da posição social ocupada


por Hans Castorp, símile do que efetivamente ocorria na Alemanha de
então. Uma pista sobre isso pode ser encontrada num texto
memorialístico de Jung, referindo-se aos jovens com quem passou a
conviver ao ingressar num ginásio da Basileia. O efeito da comparação
entre sua própria vida e as daqueles novos companheiros permitiu-lhe
tomar ciência de suas origens familiares. Jung descobria-se pobre, em
termos materiais. E os habitantes que estavam à vontade no “grande
mundo” são muito semelhantes ao jovem Castorp, no que diz respeito a
atributos sociais: fala francês e desfruta de uma herança provinda de seus
pais, que lhe permite o luxo de não ter de se sujeitar ao trabalho para
garantir sua sobrevivência. Isso graças à aplicação financeira da herança e
à sua administração, realizada por um tio-avô. Castorp não é um
proletário, alguém que tem de viver do próprio trabalho. Thomas Mann
não o era. Eis o trecho em questão:

Ingressei no “grande mundo”, naquele mundo de pessoas bem mais


poderosas do que meu pai: moravam em casas amplas e imponentes,
tinham caleches tiradas a cavalos magníficos e falavam alemão e francês
com distinção. Seus filhos, bem-vestidos, refinados, traziam bastante
dinheiro no bolso e eram meus colegas de classe. Cheio de admiração e com
uma inveja secreta e terrível, fiquei sabendo que eles passavam as férias nos
Alpes, nas montanhas nevadas e resplandecentes de Zurique e que já
tinham até mesmo estado à beira-mar, o que era o máximo! Considerava-os
seres de outro mundo, nascidos daquela maravilha inacessível que são as
montanhas rutilantes de neve, daquelas distâncias infinitas do mar, e que a
minha imaginação não podia abarcar24.

À luz da recordação de Jung, a viagem de Hans Castorp obedecia à


rotina das pessoas e famílias abonadas. Não há nada fora dos
comportamentos e trajetórias típicos da época, graças ao status e ao poder
econômico provindos de berço. Óbvio que ele não ruma para os locais
clássicos do turismo na Suíça, ainda que tais viagens e suas “banalidades”
entrem na composição do romance, bem mais adiante. Aqui, há uma
pista, como hipótese interpretativa, da escolha feita por Thomas Mann
para narrar a vida de seu personagem: Hans Castorp vai ao Berghof
porque não parece convicto (ou apto) quanto à exigência de ajustar seus
pensamentos e suas condutas ao rol de possibilidades dadas por sua

23 MANN, 1980, p. 45-6.


24 JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p. 53.
condição, por sua família, numa determinada cidade alemã. Tal
ajustamento não é algo simples. O que está em jogo? Ser capaz de levar
adiante o legado da família, responder às expectativas nascidas no seio de
todos que o circundam, desde pequeno, e às exigências da posição social
ocupada. Se alguém recebe uma herança, é preciso estar pronto para
assumi-la, de corpo e alma. Uma herança é também um fato moral e não
apenas econômico. Uma chamada às exigências da vida adulta.
Mas essa condição social (e seu motivo sociológico) é
potencializada por uma experiência pessoal do escritor: uma viagem a
Davos para visitar a esposa, que esteve internada ali para tratamento de
uma infecção pulmonar. Assim, se o escritor tinha como princípio
formador de suas obras “(...) transformar as questões abstratas em
experiências estéticas para o leitor”25, vivências afetivas assim permitiam-
lhe transfigurar preocupações íntimas em “algo especial a dizer”26.
Esse desafio do ajustamento à existência e o medo da perda de
pessoas queridas é enfrentado por qualquer ser humano,
independentemente da situação na qual calhou ter nascido, na roda-viva
inicial de se estar no mundo. Thomas Mann decidiu construir um
personagem que reluta em assumir uma das possíveis posições abertas a
alguém em sua situação. E esta é marcada por uma bifurcação. Por um
lado, Castorp tem a referência do avô paterno, homem conservador,
“travão” com traços nobiliárquicos, angustiado e avesso às tendências
dos homens que encarnavam as novas forças sociais e técnicas
transformadoras. “Ligara ele [o avô] maior importância às tradições
ancestrais e às instituições antigas do que às arriscadas ampliações do
porto e outros arremedos ímpios de cidades grandes”27. Por outro lado,
era justamente esse o caminho que o neto anunciava percorrer,
semelhante ao de um ianque em plagas germânicas. Todavia, ele titubeia
e posterga a escolha. O herói está em formação, sem se expressar ainda
como a "mais elevada aparição da vontade".28
No seio do clã Castorp, o jovem Hans vai assumindo as feições e a
posição de um burguês, “homem do meio”, situado entre as classes
populares e seu berço aristocrático29. Mas essa ambiguidade sociológica
do burguês, vertida num personagem de ficção, sofre também uma
refração decorrente da maneira como Mann orientava sua atividade como
escritor. Ele desconfiava da adesão e consagração incondicionais à ética
do trabalho30, que torna o ser humano uma espécie de Sísifo. Para Mann,

25 RODRIGUES, 2008, p. 10; 20.


26 ADORNO, 2003, p. 56.
27 MANN, 1980, p. 33.
28 NIETZSCHE, 2005, p. 102.
29 DAYAN-HERZBRUN, 1997.
30 RODRIGUES, 2008, p. 26.
“o artista não é originalmente um ser moral, mas um ser estético, que seu
impulso fundamental é um jogo e não uma virtude, que ele se permite,
com toda ingenuidade, brincar dialeticamente com a colocação das
questões e as antinomias da moral”31. Vale a pena uma dedicação
incondicional ao labor? Mais do que isso: é possível sustentar um sentido
unívoco e ser um fiel bem assentado com placidez nessa religião do
capital?
De que artifícios literários o autor se vale na figuração de tais
incertezas? Mann constrói um contraponto: a solidez das expectativas
sociais, vívidas graças à tradição que Hans Castorp tinha a seu favor,
como sucessor do avô, expressas no burburinho público acerca do “papel
oficial” do jovem, vis-à-vis ao torpor do personagem, sua tibiez. Ainda no
início da obra, Hans Castorp não tem voz própria. É falado pelo narrador
e este apresenta as dúvidas do jovem inscritas em seu próprio corpo. O
bigodinho num rosto sonolento anuncia uma vida adulta, mas sem
grande convicção. E em seus olhos azuis não era possível ler resposta
alguma sobre as indagações feitas no trecho transcrito. O narrador não é
onisciente, mas arrisca-se a dizer que não parece provável que Hans
Castorp formulasse essas respostas. No limite, era “uma folha em
branco”.
Mas o que poderia ser uma folha em branco? Por certo, Hans
Castorp obteve uma interessante instrução acadêmica, que lhe abriria
oportunidades de trabalho, em sintonia com as grandes forças
econômicas e técnicas que eram a ponta de lança do futuro das nações,
dos mercados nacionais e internacionais. Castorp, além da língua
materna (alemão), fala francês. É protestante. Ou seja, não parece ser
exatamente alguém sem qualidade alguma. Em uma linguagem mais
sociológica, ele detém capitais simbólicos interessantes, que, de fato, lhe
permitiriam continuar a saga da família ou mesmo se enveredar pelas
sendas da economia capitalista, como um burguês. Mas ele não o faz.
Falta-lhe algum atributo do espírito, a vitalidade presente no seio de sua
família, porém em estado decadente após a sequência de mortes referida
há pouco, sobretudo da mãe e do avô, os personagens mais vigorosos.
Quem sabe Hans Castorp represente o “enfraquecimento vital” de uma
família burguesa, que está incrustado em outro livro, “Os
Buddenbrooks”, segundo Carpeaux.32 Nas primícias do romance, o leitor
se depara com esse trecho:

Essa contradição na sua atitude perante o trabalho deveria, a bem dizer, ser
resolvida. Talvez assim é que o seu corpo tanto como o seu espírito – em

31MANN, Thomas. Ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 29.


32CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. v. IV. Brasília: Senado Federal, 2008,
p. 2295.
primeiro lugar o espírito e sob a sua influência também o corpo – se teriam
dedicado ao trabalho com maior prazer e intensidade, se Hans Castorp, no
âmago da sua alma, naquelas profundezas que ele mesmo ignorava, tivesse
sido capaz de crer no trabalho como valor absoluto e princípio que se
justificasse a si próprio, e de achar sossego nesse pensamento33.

Castorp não personifica o “espírito do capitalismo”. Norbert Elias,


em seu livro sobre os alemães, afirma que tripulações de navios
mercantes e mercadores eram considerados pessoas de segunda classe, na
Alemanha34. Novamente, é preciso trazer ao argumento outra informação
externa ao romance, indicadora das circunstâncias alemãs de então, das
quais Mann certamente tinha ciência, a ponto de decidir transfigurá-las
em tema literário35. Em palestra proferida já no fim de sua vida, o
sociólogo Max Weber demonstrou sua preocupação com os diletantes que
ingressavam, com relativo sucesso, no campo político, introduzindo
parâmetros diversos daqueles defendidos e encarnados pelos mais
conservadores, defensores de tradições que pudessem orientar as grandes
e pequenas escolhas, com segurança e sobriedade36, como o avô de
Castorp. Dupla ameaça, aliás. De um lado, as grandes forças do mercado,
representadas pelos ianques norte-americanos, capazes de “romper
desconsideradamente com aquilo que uma veneranda história nos
transmitiu”37, cujos interesses econômicos seriam mais e mais decisivos
nas disputas envolvendo a ocupação de cargos do Estado. De outro, os
bolcheviques e os possíveis desdobramentos de sua revolução. E se
assumirmos, com Weber, que o homem político deve ter três qualidades
cruciais (paixão, sentimento de responsabilidade e senso de proporção38),
Hans Castorp, nesse momento, não as tinha.
Mapeamos aqui, a pouco e pouco, a concepção que Thomas Mann
tinha acerca das linhas de força que presidem o que é formar um ser
humano. Para tanto, o cotejamento entre o romance e outro texto do
autor, intitulado “Schopenhauer”39, oferece pistas dignas de nota sobre as
ideias que o autor desenvolvia, ora em forma de ensaios, ora no registro
ficcional. O artigo foi escrito entre 1937 e 193840. Primeiramente, vale a

33 MANN, 1980, p. 44.


34 ELIAS, 1997.
35 Soethe afirma que a família Mann sempre esteve a par dos grandes temas da sociedade
alemã, com grande repercussão pública. Cf. SOETHE, Paulo Astor. “Posfácio a várias mãos”. In:
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 833-4.
36 WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 62; 67.
37 MANN, 1980, p. 46.
38 WEBER, 1999, p. 106.
39 MANN, Thomas. Schopenhauer, Nietzsche, Freud. Madrid: Alianza Editorial, 2008.
40 A data de escrita e publicação do ensaio é posterior à criação de “A montanha mágica”.

Contudo, Rodrigues (2008, p. 13) cita uma carta em que Mann afirma a importância da leitura
de Schopenhauer na concepção e na escrita de seu romance. O ensaio é prova, portanto, da
importância que Mann via nesse filósofo, em suas questões, cujo interesse se estendia ao longo
transcrição do seguinte excerto:

Esta é uma natureza plena cheia de tensões, uma natureza emocional, que
oscila entre contrastes violentos, entre o instinto e o espírito, entre a paixão
e a redenção; em suma, é uma natureza artístico-dinâmica, que não pode se
revelar, a não ser como criação da verdade. E essa criação da verdade é algo
pessoal, algo que convence pela força de seu caráter vivido e sofrido41.

A formação decorre de um tipo de pedagogia enraizada numa


determinada concepção da natureza humana, desdobrando-se na criação
da verdade e não em sua descoberta ou iluminação. Uma verdade pessoal
que, em momento algum, é ponto de chegada de um exercício meramente
abstrato do intelecto. Há distância do método cartesiano, ainda que o
autoconhecimento seja parte fundamental da constituição do ser e de sua
personalidade. Não é abstrato porque Thomas Mann partilha, com
Schopenhauer, o interesse por uma filosofia das emoções e, por
conseguinte, uma filosofia que tem o corpo como lócus do ser. O corpo
existindo no mundo, vivendo e sofrendo, crivado de emoções42. Eis um
dos artifícios usados pelo autor na construção de sua obra como mimesis
do estar no mundo: todas as ideias às quais Hans Castorp será exposto
(que serão aceitas, refletidas, negadas ou reelaboradas) estarão ancoradas
em situações que instigarão emoções corporais. O pensado, o vivido e o
sofrido são elementos decisivos na formação de seu caráter. (Sobre esse
aspecto, o trecho paradigmático é “Neve”, ao menos com mais
intensidade, os impasses espirituais recrudescidos pelo corpo perdido na
tempestade, ambos em retroalimentação.) O próprio sofrimento e a
proximidade das mazelas dos outros personagens que o circundam
expressam a postura de Thomas Mann quanto ao problema em pauta.
Não à toa, em uma passagem do romance, um dos médicos da instituição,
Dr. Behrens, repreende o jovem Castorp com veemência, no momento em
que ele vai inquiri-lo quanto à gravidade da doença do primo:

O senhor sempre quer que tudo seja inofensivo, Castorp. É essa a sua
índole. Às vezes não se mostra avesso ao contato com coisas nada
inofensivas, mas então as trata como se fossem perfeitamente inocentes, e
com isso pensa agradar a Deus e aos homens. O senhor é uma espécie de

do tempo.
41 No original: Ésta es una naturaleza lhena de tensiones, una naturaleza emocional, que oscila

entre contrastes violentos, entre el instinto y el espíritu, entre la pasión y la redención; es, en
suma, una naturaleza artístico-dinámica, que no puede revelarse más que como creación de la
verdad. Y esa creación de la verdad es algo personal, algo que convence por la fuerza de su
carácter vivido y sufrido (MANN, 2008, p. 20).
42 “Os valores morais e culturais (espirituais) expressos por Castorp parecem impor-se nas

impressões que o narrador lhe atribui, mas sua corporeidade (a vida) é que avança para o
primeiro plano, por via estética, sensorial” (SOETHE, 2017, p. 840).
covarde e de hipócrita (...)43

Covarde e hipócrita. Consideramos a hipótese de que Hans foi ao


sanatório para encontrar o primo Joaquim, mas também por suas
inseguranças (ou falta de vontade) quanto a assumir um dos caminhos
que lhe estavam prefigurados em função de sua posição na sociedade. Ele
reluta. Ao fazê-lo, encontra-se aí também um dos elementos de uma
estética manniana e que aparece em sua leitura de Schopenhauer. Uma
leitura de “A Montanha Mágica” pode dar guarida ao argumento de que
a formação não decorre de uma vontade consciente (não só), ao modo de
um projeto concebido em todos os seus detalhes, mas sim em função dos
lances da fortuna que irrompem na existência de cada um, de quando em
quando. “A arte – em relação à vida – é sempre um ‘apesar de tudo’; a
criação de formas é a mais profunda confirmação que se pode pensar da
existência da dissonância”44. Assim, a formação deve contemplar a
abertura do indivíduo à aquisição de novos atributos, materiais e
espirituais, ou à reelaboração dos já adquiridos, ante as exigências da
vida.
Tais reviravoltas são fundamentais. Elas quebram os hábitos
arraigados pela adaptação desenvolvida em resposta à satisfação das
necessidades inerentes à existência. Se estas, por um lado, são uma lei
férrea da vida, por outro, a formação é função das respostas que os seres
humanos devem oferecer quando estão desconcertados, expostos a
situações que desafiam os sentidos, que são estimulados e modelados de
acordo com a lida costumeira. Desse sofrimento, tem-se “uma finalidade
pedagógica: a de conduzir o espírito humano a alturas cada vez maiores”.
E se essa metáfora das alturas for uma leitura de Schopenhauer à luz da
metáfora da montanha? Se a montanha for, em parte, uma transfiguração
literária das teses do filósofo? Tal leitura permitiu a Mann construir,
filosoficamente, os fundamentos que deram forma a seu romance. A
seguir, há o trecho aqui referido:

Este encontra sempre seu prazer e seu sofrimento ao por de ponta-cabeça o


sano entendimento humano; ao inverter a verdade popular; ao fazer com
que a Terra gire em torno do sol, de modo que, para todo sentir normal,
ocorre o contrário; a desconcertar; a arrebatá-los e amargurá-los, propondo-
lhes verdades que se opõem diretamente ao hábito de seus sentidos. Mas
isto tem uma finalidade pedagógica: a de conduzir o espírito humano a
alturas cada vez maiores, de fazê-lo capaz de novas façanhas45.

43 MANN, 1980, p. 588.


44 LUKÁCS, 2000, p. 72.
45 No original: Éste há encontrado siempre su placer y su sofrimiento en poner cabeza abajo el

sano entendimiento humano; en invertir la verdad popular; en hacer que la tierra gire en torno
ao sol, siendo así que, para todo sentir normal, ocurre lo contrario; en desconcertar a los
hombres, en embelesarlos y amargalos, proponiéndoles verdades que se oponen derechamente
Se a formação depende da ruptura de hábitos, se ela não é apenas
um exercício abstrato da razão, mas função do corpo, com suas emoções e
sofrimentos, então deve, obrigatoriamente, enfrentar o tema da morte.
Esta é a leitura que Carpeaux faz também de Mann: sua obra nasce da
relação entre arte, doença e morte46. Ou melhor, não apenas a morte em
si, mas a condição dos seres humanos que estão no limiar entre a
existência e o desaparecimento: os moribundos. No início da história, o
narrador do romance alerta o leitor: as mortes do pai e do avô paterno de
Hans Castorp (e da mãe) ficarão sedimentadas em seu recôndito,
deixando marcas nos sentidos do garoto47. Sendo assim, um novo trecho
da filosofia proposta por Schopenhauer merece ser apresentado:

A morte não é mais que a supressão de um erro, um extravio, pois toda


individuação é um extravio. A morte não é mais que o desaparecimento de
uma ilusória parede divisória que separa o eu, no qual o si se encontra
encerrado, do resto do mundo. Crê-se que, morrendo, esse mundo restante
continuará a existir. E crê-se que o si – pensamento horrível – já não será.
Mas eu lhe digo: este mundo, que é sua representação, já não será; ao
contrário, o si, quer dizer, justo aquele que teme a morte, que não a quer,
porque é a vontade de viver, o si perdurará, viverá, pois a vontade, pela
qual se é, saberá encontrar sempre a porta que leva à vida. A ela pertence,
com efeito, a eternidade plena. E com a vida, que conhece a eternidade
como tempo, e que, na verdade, é presença constante, também restitui a si o
tempo48.

“Toda individuação é um extravio”. A formação depende das


viagens, da perda do caminho, ao menos daquele que se percorre
costumeiramente. A formação é função de um desenraizamento
geográfico e “existencial”. Em outro texto sobre Nietzsche, Mann regressa
à ideia de extravio. “A palavra ‘extraviar-se’, que se converteu em um
juízo moral e designa aquela situação em que, na alta montanha, não é

al hábito de sus sentidos. Pero esto tiene una finalidad pedagógica: la de conducir el espíritu
humano a alturas cada vez mayores, la de hacerlo capaz de nuevas hazañas (MANN, 1980, p.
23).
46 CARPEAUX, 2008, p. 2295.
47 MANN, 1980, p. 36.
48 No original: La muerte no es más que la supresión de un yerro, de un extravio, pues toda

individuación es un extravio. La muerte no es más que la desaparición de una ilusoria pared


divisoria que separa el yo, en el cual tú te encuentras encerrado, del resto del mundo. Tú crees
que, si mueres, ese mundo restante continuará existiendo. Y crees que tú – pensamiento horrible
- ya no serás. Pero yo te digo: este mundo, que es tu representación, no será ya; tú, en cambio, es
decir, justo aquello en ti que teme a la muerte, que no quiere la muerte, porque es la voluntad
de vivir, tú perdurarás, tu vivirás, pues la voluntad, por la que tú eres, sabrá encontrar siempre
la puerta que lleva a la vida. A ella le pertenece, en efecto, la entera eternidad. Y con la vida, que
conoce la eternidad como tiempo, siendo así que en verdad es presencia constante, también se
te devuelve el tiempo (MANN, 2008, p. 46-7).
possível nem seguir adiante nem voltar atrás, e o escalador está
perdido”.49 Quando recebe sua primeira fotografia do tórax, Castorp
aprendeu (e sentiu) que estava destinado a morrer50, um vivente sujeito
às leis da vida, inapelavelmente.
A ida de Castorp à Suíça é um extravio. Na chegada ao Berghof, o
jovem ouve, pela primeira vez, uma tosse “desveladora” do lamaçal
interior de um corpo moribundo. Pela fina brecha entre uma porta e seu
batente, divisa o olhar de alguém aprisionado em um corpo em vias de
morrer. Por aquela fina fresta, tem um vislumbre da dor como
“experiência limítrofe entre a vida (...) e a morte” 51. A fresta é uma
metáfora literária desse limbo. Daí em diante, a morte desempenhará
papel central no desenvolvimento do personagem. Tipos humanos
decisivos cruzarão seus caminhos e com ele travarão conversas,
partilharão vivências e desaparecerão. O convívio com alguns será mais
longevo. Outros, simplesmente surgem na história no exato instante em
que a vida já não lhes insufla o corpo, apagando-se como uma vela, e
deles nos esquecemos. É da vida. No Olimpo de Mann não há deuses.
Castorp sente atração pela morte. De Settembrini, recebe “lições”
sobre como se apegar à vida e não deixar que a morte erga-se como um
poder a obstar as experiências neste mundo. Settembrini personifica o
conatus, instiga o si, em Castorp, sempre a procurar a porta que impele à
vida. Saber que cada um irá morrer, mais dia menos dia, não pode
suscitar covardia, condição daqueles que estão “perdidos para a vida”.52
Há um trecho primoroso, emblema do humanismo iluminista de
Settembrini:

Digo “sim” ao corpo, honro-o e sinto amor por ele, assim como faço em
face da forma, da beleza, da liberdade, da alegria e do gozo, assim como
tomo o partido das coisas mundanas, dos interesses da vida contra a
aversão sentimentalista do mundo; represento o Classicismo contra o
Romantismo. Acho que a minha posição é inequívoca. Mas existe um
poder, um princípio ao qual dedico a minha mais fervorosa aprovação,
meu supremo respeito e amor, e esse poder, esse princípio é o espírito. Por
mais que eu abomine ver como alguns procuram opor ao corpo qualquer
fantasmagoria suspeita que chamam de “alma”, não ignoro o princípio
mau e diabólico; pois o corpo é a natureza, e a natureza – repito que se trata
da sua oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! “O senhor é
humanista!” Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem,
como o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza.
Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito e na razão, e por isso seria

49 No original: La palabra ‘extraviarse’, que se ha convertido en un juicio moral y designa


aquella situación en la que, en la alta montaña, no es possible ni seguir adelante ni volver atrás,
y el escalador está perdido” (MANN, 2008, p. 92).
50 MANN, 1980, p. 246.
51 ARENDT, 2000, p. 60.
52 MANN, 1980, p. 225.
em vão se o senhor me acusasse de obscurantismo cristão...53.

Se Settembrini será um “professor” importante para o jovem, com o


tempo, Castorp vai adquirir a coragem necessária para se contrapor a ele
na medida em que um dos desdobramentos da postura do humanista
será exatamente uma certa frieza (quase uma indiferença, mas não é isso!)
diante dos agonizantes, dos pacientes já condenados, ao menos à luz dos
conhecimentos médicos de então. Nesse sentido, se a formação depende
da força e da coragem para se apegar à vida, sem mistificações (a única
vida que se tem), sem esmorecer ante a morte (alheia ou a própria), ela
também dependerá da misericórdia. Com o auxílio de um destilado que
lhe tira da linha reta da razão, Hans Castorp enfrenta Settembrini pela
primeira vez, reconhece-lhe os méritos e sua importância como mentor e
amigo, mas ele nada pode lhe ofertar no que diz respeito à compaixão
que Castorp deseja sentir e prestar aos moribundos.
Hans Castorp amadurece, transforma-se a olhos vistos. Expressa
questionamentos, reflete acerca de si mesmo e isso é um dos temas do
romance54. Aprende algo de biologia e medicina, desfruta da filosofia
provinda do humanismo de Settembrini, mergulha no catolicismo
inclinado a um marxismo escatológico do jesuíta Naphta. Apaixona-se.
Vê seu primo falecer. Fica diante da forte e magnética personalidade de
Peeperkorn, que o desconcerta por ser, igualmente, um rival face ao amor
sentido por madame Chauchat. E quando tudo leva a crer que está
prestes a regressar à planície (à Alemanha), sem sinal algum de
enfermidade, e iniciar sua carreira como engenheiro naval, eis que
irrompe, de chofre, a Grande Guerra, cindindo o falso “equilíbrio
europeu”55.
Um estrondo! O romance está em vias de ser encerrado e seu autor,
devolvido à efetiva realidade das coisas, fica absorto quanto a como viver
e fazer literatura diante do cataclismo bélico que tragaria países e pessoas.
O que fazer quanto ao legado alemão, como cultura e civilização? O
romance foi escrito ao longo de doze anos, entre 1912 e 1924, com a
Grande Guerra encravada em meio ao processo criativo. Uma imensa
sombra, um livro não menos pujante!

Abafemos a voz para comunicar que de fato estrondeou aquele trovão, de


que todo mundo tem conhecimento, a ensurdecedora detonação da sinistra
mistura de tédio e irritação de há muito acumulados; um trovão histórico –
seja dito com discreta reverência – que abalou os alicerces da terra, e, para
nós, o trovão que fez explodir a montanha mágica e arremessou o nosso
dorminhoco brutalmente diante das portas. Estupefato, o jovem se acha

53 Ibid., p. 279-280.
54 SOETHE, 2017, p. 837.
55 CARPEAUX, 2008, p. 2255.
sentado na relva e esfrega os olhos, como faz quem se omitiu, em que
pesem numerosas admoestações, de ler os jornais56.

Se a intenção de regressar ao lar já estava praticamente consolidada


(não sabemos ao certo), as grandes vagas da existência envolvem o jovem
no turbilhão da história. Um estrondo e o espaço mítico-histórico
solapado! Ao fim, o autor deixa o jovem Castorp, sugerindo que suas
chances de sobrevivência seriam mínimas. Deixa-o por vergonha de
expô-lo em uma situação tão adversa. Abandona-o, quiçá, por não saber
narrar aquele grande golpe da fortuna. A formação é interrompida, como
se de tudo não restasse sentido algum. A não ser aquele que uma pessoa é
capaz de sustentar contra as agruras da existência no mundo. A
montanha mágica, como criação ficcional, explode, com o autor a pensar
acerca do dilema de se fazer literatura num momento tão conturbado da
história humana: o cultivo do romance contra uma nova forma de conflito
bélico que “abria” o século XX, a “era da guerra total”57. Como solucionar
esse impasse? De chofre, o personagem ressurge em meio à crise, no
campo de batalha58. É arrebatado da montanha, que ia se tornando um
novo lar. Um lar estranho.
Já em pleno campo de batalha, Castorp, antes interessado na morte
e cultivando empatia pelos moribundos, pisa a mão de um morto com
indiferença59. O narrador chama a atenção do leitor com o uso de um
vocativo embebido em espanto: "Vejam só (...)". Há aí uma transformação.
Ao vestir a persona do soldado, Castorp sucumbe e se reconcilia com o
habitus alemão, que vê com suspeição a fraqueza e a tendência a se
compadecer, sobretudo dos inimigos. Tal situação não é somente uma
exigência para sobreviver à guerra (algo imprescindível, é claro!), mas um
ethos arraigado na cultura alemã60.
Quem sabe valha, para “A Montanha Mágica”, o argumento de
Lukács61: “é a epopeia do mundo abandonado por deus”. Abrindo mão
de transcendências, o único sentido possível é aquele que se mantém a
muito custo, no limiar da evanescência: criar uma possível travessia do
amor à morte ao amor pela vida62, avançando entre as mais profundas
sombras que impelem o mundo para as profundezas do desespero. Num
mundo desencantado, o Olimpo é imanente ao mundo e também uma
tradição literária com a qual se constrói um diálogo estético e ético.

56 MANN, 1980, p. 793-794.


57 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
58 ROSENFELD, 2013, p. 211.
59 MANN, 1980, p. 800.
60 ELIAS, 1997.
61 LUKÁCS, 2000, p. 89.
62 MANN, 1980, p. 666.
Portanto, sem o ponto de fuga de uma transcendência qualquer, aquela
da Grécia antiga ou a cristã, formar-se é tarefa a ser cultivada no dia a dia,
verdadeira ascese minuciosa que deve ser erguida contra as forças que
ameaçam a individualidade. Outro trecho de Lukács merece ser
transcrito:

O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a


peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho
desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si
heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro
autoconhecimento. Depois da conquista desse autoconhecimento, o ideal
encontrado irradia-se como sentido vital na imanência da vida, mas a
discrepância entre ser e dever-ser não é superada, e tampouco poderá sê-lo
na esfera em que tal se desenrola, a esfera vital do romance; só é possível
alcançar um máximo de aproximação, uma profunda e intensa iluminação
do homem pelo sentido de sua vida63.

A magia da montanha decorre do fato de ela ser desencantada:


ficção. A despeito de toda a jornada, Hans Castorp assume, ao fim do
romance, a máscara do soldado. O fardamento que lhe veste o corpo é um
signo que aponta não somente para a guerra que, repentinamente, lança
todos na roda viva do "destino", mas também o “encerramento” do
processo de formação, numa nação onde, segundo Elias, "modelos
militares de comando e obediência prevaleceram em vários níveis sobre
modelos urbanos de negociação e persuasão". Ecoa aqui o título de outro
romance de formação, “Servidão Humana”, de Maugham, no qual o
personagem principal desiste de seus anseios de viagens pelo mundo
para se ajustar a uma vida como médico, em vias de constituir família. A
formação e sua representação literária estão sujeitos, sempre, aos
constrangimentos de natureza social.
Se o próprio Mann definiu suas obras como “psicologia das formas
de existência irreais e ilusórias” (e Rosenfeld afirma que é o caso dos
residentes do sanatório Berghof64), talvez isso não seja totalmente
verdade para esse espaço ficcional situado nos alpes suíços, as montanhas
sucedendo-se, onduladas, como representação da eternidade, do infinito.
É claro que não é usual alguém ter condições de permanecer tanto tempo
internado, respaldado em uma herança que lhe permitia o luxo de não
trabalhar. Entretanto, a onipresença da morte exigirá dele, Castorp,
reflexões sobre a finitude da existência e seus possíveis sentidos.
Enviesado, o real está ali, em todo o romance. O jovem encontrará e
travará relações com personagens muito diversos. Múltiplos serão os
diálogos, os sentimentos e as ideias, contemporâneas ou originárias de

63 LUKÁCS, 2000, p. 82.


64 ROSENFELD, 2013, p. 203.
momentos históricos outros. A montanha é um microcosmo com uma
temporalidade prenhe de tempos históricos distintos: coexistentes,
sobrepostos, vividos. A montanha talvez já seja uma metáfora da tensão
entre a consciência mítica e a moderna, que seria um dos temas centrais
de suas obras tardias, de acordo com Rosenfeld65. Nessa tessitura entre
Grécia antiga, filosofia e literatura, nesse sanatório em que o tempo
vivido estranhamente se alonga e evanesce, Hans Castorp fica ante várias
perspectivas: catolicismo, protestantismo, humanismo; filosofia e ciências;
razão, emoção e paixão; vida e morte; guerra e paz.
Ao fim, a técnica bélica silencia Castorp e rompe a linha narrativa e
a formação. Golpe do destino que dissipa mito e história, internalizado na
trama romanesca. “A montanha mágica” é um monumento contra um
grande cataclismo, expressão da persistência de seu autor, que não
esmoreceu, mesmo com um conflito de tamanha proporção encravado no
seio do tempo da composição da obra, mais longevo que o embate
militar. “A magia da montanha” é a plasticidade do romance, uma
possível resposta de um literato ao início sombrio do século XX, na
Alemanha.

Francisco Jose Ramires é formado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e
doutor pela mesma universidade. Ministra aulas de sociologia em São José dos Campos/SP, na UNIP.
Contato: [email protected]

65 Ibid., p. 210.
O CAPÍTULO 19 DE SÃO BERNARDO :
FUSÃO, TRANSFUSÃO, CONFUSÃO
Erwin Torralbo Gimenez

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O estudo procura observar, em termos críticos, os traços do Graciliano Ramos;
realismo deformador em São Bernardo, de Graciliano Ramos. São Bernardo;
Centra-se, para tanto, na análise de um fragmento: o capítulo Carpeaux
19. Como núcleo das tensões que caracterizam o romance, tal Realismo deformador;
passagem apanha na forma o movimento dramático entre a Derrelição.
matéria e o sujeito sob uma perspectiva desfi-guradora. Em
seu desenho, o capítulo apreende a síntese de todo o enredo
com três lan-ces: perplexidade na enunciação das vivências;
embaralhamento dos tempos em estado de delírio; volta sem
escape ao escuro presente.

ABSTRACT KEYWORDS
This study seeks to observe, in critical terms, the traces of the Graciliano Ramos;
deforming realism in São Bernardo, by Graciliano Ramos. São Bernardo;
Therefore, this essay centers itself in the analysis of a frag- Carpeaux;
ment: the 19th chapter. As a nucleus of the tensions that cha- Deforming realism;
racterize the novel, this excerpt holds in its form the dramatic Dereliction.
movement between matter and subject by a distorted perspec-
tive. In its progression, the chapter apprehends the synthesis
of the entire plot in three casts: a perplexity in the enuncia-
tion of experiences; a shuffle of time in the states of delirium;
an inescapable return to the dark present.
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.
(...)
Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

(Drummond)

“As cordiais relações com dementes agora


me pareciam significativas: era possível que
houvesse entre nós alguma semelhança.
Um doido lúcido.”

(Graciliano Ramos)

P osto no exato meio de São Bernardo, como uma fenda aberta entre
os movimentos díspares que forjam o romance, o capítulo 19 condensa
passado e presente, melancolia e remorso, num emaranhado, e com isso
atira o narrador às zonas do delírio. Suspende-se a linha reta dos fatos e
emerge outra vez o sujeito da escrita, deslizando assim o discurso na cur-
va das memórias. Se o desconcerto das páginas iniciais se prende à im-
possível alienação da voz narrativa e logo reflui durante a primeira parte
do relato, ora a crise se instala em grau de maior intensidade, à medida
que se fundem os fios de sua desdita. Sem atingir no presente o cerne do
trágico – motivo tanto do drama como do livro –, Paulo Honório já não é
capaz de discernir as esferas do tempo, enfim transfundidas, e resvala
num turvamento fantástico: deformam-se, e não se apagam, as imagens
da atualidade e do pretérito, mergulhado o espírito na confusão entre os
dois.
Esse fragmento notável se articula, na trama da escrita, com as
margens do romance, o princípio e o fim, momentos em que o narrador
encara os problemas da expressão, aqui tão necessária quanto insuficien-
te. Os capítulos 1 e 2 refletem, com sinais invertidos, os planos da tensão
entre o pragmático e o intuitivo: recompor a própria vida pela divisão do
trabalho é empresa inconseqüente, porque há uma demanda interior que
o estilo alheio não pode capturar; tampouco cabe esquecer a demanda, e
ao sujeito resta perseguir solitário o sentido do que viveu. Quando afasta
as letras sob encomenda, Paulo Honório acusa a falta da pessoa no discur-
so e termina envolto por sons e visões pungentes, sobretudo o pio da co-
ruja; em seguida, o eco desse pio arranca a narração, mas esta não ganha
fluidez (“Continuemos. Tenciono contar a minha história. Difícil.”), antes
insinua o avesso das coisas num paradoxo: “digo a mim mesmo que esta
pena é um objeto pesado” – a frase constitui, aliás, o índice de ambigüi-
dade que pouco a pouco vai crescendo no passo do livro. O último capí-
tulo retorna ao presente e modula um balanço arrasador do roteiro revis-
to nas memórias, cuja matéria nem o tempo nem a escrita chega a pene-
trar. Distante dois anos do evento trágico, a morte de Madalena, o narra-
dor há quatro meses procura descascar fatos, entregue à intimidade, porém
o esforço não o conduz ao núcleo de seu drama, apenas o paralisa na
fronteira do patético, esse intervalo de agonia e vazio que se rasga entre a
ação e a consciência: “Tentei debalde canalizar para termo razoável esta
prosa que se derrama como a chuva da serra, e o que me apareceu foi um
grande desgosto. Desgosto e a vaga compreensão de muitas coisas que
sinto.” E ainda no fim estão em choque insolúvel as duas faces de seu ca-
ráter: tenta dominar rígido o rumo das palavras (“canalizar para termo
razoável”), mas a prosa cumpre o regime de uma natureza infensa à obje-
tividade, segundo o belo símile das águas que escorrem na serra. O resul-
tado, embora escasso, indica os efeitos da expressão, pois o falso orgulho
já se muda em desgosto e uma intuição vaga rompe o abafamento, nos
limites do indivíduo. O resto é silêncio.
Não passou despercebido o alto relevo do trecho. Lúcia Miguel Pereira,
ao resenhar São Bernardo em 1934, admira no texto a “estranha beleza, re-
velando no autor uma grande maestria e um raro poder de sugestão”,
graças à atmosfera de crepúsculo na qual soa “uma nota de ternura”. 1
Antonio Candido observa, no arranjo do estilo, o trânsito “da vontade de
construir à vontade de analisar”, que se adensa e obtém coesão com o
monólogo interior, raiz dos sentimentos e da rememoração, cujo signo
mais elevado se encontra no capítulo 19, “mistura de realidade presente e
representação evocativa”.2 João Luiz Lafetá salienta a presença avassala-
dora da subjetividade justo nos instantes em que a escrita adquire realce,
e distingue o teor dúbio do trecho.3

1 Pereira, Lúcia Miguel. “São Bernardo e o mundo seco de Graciliano Ramos”. In: A Leitora e seus
Personagens. Rio de Janeiro: Graphia, 1992.
2 Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999.
3 Lafetá, João Luiz. “O mundo à revelia”. IN: A Dimensão da Noite. São Paulo: Editora 34, 2004.
Além de firmar um vértice no centro do romance, o capítulo 19
grava um ponto de inflexão no ritmo da história, conforme faz guinar o
compasso das lembranças da ventura (ascensão econômica) para o infor-
túnio (revés afetivo). A segunda parte do enredo, rente à figura de Mada-
lena, se afina pelo diapasão instável da memória que novamente turva o
olhar. Em seu desenho, o capítulo apreende uma síntese formal de toda a
narrativa com três passagens: perplexidade na enunciação das vivências;
embaralhamento dos tempos em estado de delírio; volta sem escape ao
escuro presente.
Em simetria com o começo do romance, os parágrafos iniciais apre-
sentam a tensão nascida de perfis incompatíveis, primeiro a professora e
o coronel, e depois o coronel e o seu reverso sensível:

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma
vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa
foi minha, ou antes a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma
agreste.
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa
o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada,
mas sou forçado a escrever.4

Aos olhos do proprietário, a bondade da mulher é excessiva, am-


plamente contrária a seu feitio prático e ambicioso, porém o contrário re-
ponta agora menos simples. Descobrir que Madalena é boníssima não
basta para lhe definir o caráter, e assim a complexidade do outro lança
em dúvida a própria imagem. Há um senso perplexo a tornear a dicção
do narrador; cada palavra traz em si uma nuança, uma suspeita do relati-
vo que a ideia deve frisar. De frase a frase, o mesmo termo surge sob o
matiz oposto: conheci, não conheci; se revelou, nunca se revelou; a culpa, ou
antes a culpa; vida agreste, alma agreste. Os períodos se encadeiam em qua-
tro pares que denotam bem as ondas de um desconcerto, pois a voz já não
se ancora na certeza e portanto precisa modalizar os vocábulos, partidos
em dobras. À medida que lhe fogem os objetos do passado, a narração
emperra, e Paulo Honório tenta ainda abarcá-los num vaivém pendular,
mas isso o leva a intuir os traços da ambigüidade. Na concentração dessas
linhas, remira as peças de sua história e não as concatena, ou melhor, as
peças provocam nele uma nova mirada. Madalena se impõe como enigma
e, morta, lhe comunica uma inquietude à feição de fantasma que a um só
tempo embaraça e estende a perspectiva; o estranhamento diante do ou-
tro suscita a dúvida a respeito de si mesmo, o que faz remorder a culpa,
mas também reconhecer-se alvo de um dolo. O arco da infelicidade se
fecha por todos os lados – o gesto áspero destrói tudo em redor, e não

4 Ramos, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.


sendo nada senão ilusão de potência, se mostra antes corruptor de quem
o move. Acima da alma agreste, está a vida agreste, e abaixo desta os
muitos infelizes, ora carrascos ora vítimas.
Sobrevém então a fala indecisa que outra vez cava uma fresta no
presente, cortando o fio do enredo. A consciência só parece avançar
quando há um declínio da razão: “compreendo que perco o tempo”. Sub-
linhe-se a diferença entre as noções de perder o tempo e perder tempo – esta
se liga ao esperdício de energia, enquanto aquela submerge o juízo no
cronos psicológico. Com isso, aflora à visão o verdadeiro desígnio das pa-
lavras (“o retrato moral de minha mulher”), dramaticamente escapável, o
qual se cruza com o anterior (“contar a minha vida”) para desorientar as
ideias ou sugerir distinto oriente, perdido de saída. Inútil a pergunta por
finalidades; a resposta é nula e plena. Colidem aí o ângulo sóbrio (“Para
nada”) e o ângulo desmedido (“mas sou forçado a escrever”), de maneira
que expansão e limite crispam o ânimo e ditam o andamento do texto:
“Às vezes as ideias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha perma-
nece meio escrita, como estava na véspera.” A impressão da página pela
metade espelha na grafia um tumulto interno, “emoções indefiníveis”,
duelo de forças que aperta os nós do conflito e faz tresandar a inteligên-
cia; o desejo de volta às cenas do pretérito, a fim de corrigir os erros e
ajustar as falas com a mulher, como se pudesse restabelecer o diálogo
suspenso, se traduz novamente em quebra de perspectiva. “Saudade?
Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.” – ne-
nhum tempo lhe oferece repouso, nostalgia e fúria se cancelam, e juntas
viram angústia.
Sabemos o que vai no coração de Paulo Honório, um peso enorme.
E nas rodas de seu monólogo, a atitude lírica se ensombra nos interditos
da memória: “Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas
palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores,
e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir.” Procuro recordar
– não consigo exprimir. Se de um lado se empenha em recordar (repor no
coração) as conversas com Madalena para talvez decifrá-las, de outro re-
siste o alcance falho das palavras, que não se aliviam do peso. Entre as
duas pontas, salta a desarmonia evidente no campo da linguagem, direta
ou alusiva; reconhece agora ter sempre pronunciado um reflexo de exte-
rioridades e se aflige ao buscar alguma coisa oculta nas entrelinhas. O que
antes obstava a concórdia no diálogo se projeta na fala do narrador. Ten-
tando esfumaçar o mundo concreto, apagava as luzes a ver se sentia por
dentro as palavras da mulher na noite, espaço simbólico do inconsciente.
Os sons naturais avultavam no clima difuso (a arenga dos sapos, o gemi-
do do vento, o canto dos grilos), mas os sentidos não esmoreciam de todo
e o coronel ainda chamava o capanga alerta: “– Casimiro!”. Nessa hora,
enquanto escreve, repara o cair da noite e os sinais da natureza, afundan-
do na treva dissolvente, no entanto também aqui há um resto de vigilân-
cia a perceber o tique-taque longínquo do relógio e a suster o ânimo na
meia-luz de crepúsculo. Mesclam-se as esferas do tempo e a voz exclama
rude: “– Madalena!”, para logo depois sussurrar: “– Madalena...”, frente à
aparição comovedora: “Também já não a vejo com os olhos.”
Progressivamente, o discurso se anuvia em torvelinho, embaçando
espectros e coisas na penumbra, arrojando o espírito num abismo de antí-
teses. Delírio. Raivoso e sereno, Paulo Honório discute com a mulher e
pondera a própria desrazão, atordoado por figuras que se duplicam re-
motas e atuais, giram os anos em espiral. De repente, risca a atmosfera
um estrídulo, o pio da coruja. O pensamento quer investigar os níveis da
vertigem: “Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há
dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo.” – são duas inter-
rogações de apelo realista e ambas confluem na frase absurda, o trinado
supra-acústico do mau agouro. Julga escutar o rumor antigo da casa, uma
palestra de seu Ribeiro e d. Glória, em paralelo com os ruídos próximos, a
empregada, o papagaio, o cachorro, os bois; trata-se de uma esquisita ba-
rafunda que engolfa a consciência no limiar da alucinação, entrança as
várias dimensões do vivido e não permite fuga. O exaspero deriva da
amálgama insólita de avessos que nele se cruzam: “Agitam-se em mim
sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e
tenho vontade de chorar.” Imagina finalmente ter vez de persuadir Ma-
dalena a se render à paz do convívio, mas nada dissipa a incomunicabili-
dade e, terrível, desponta do transe o inexorável posto no futuro: “O que
vai acontecer será muito diferente do que esperamos.” Termina o delírio.
A pedido do amigo João Condé, Graciliano redigiu, em 1947, um
testemunho sobre a preparação de São Bernardo, no qual se lê: “Até o capí-
tulo XVIII tudo ocorreu sem transtorno. Um dia de fevereiro, ao entrar
em casa, senti arrepios. À noite, com febre, fiz o capítulo XIX, uma confu-
são que mais tarde, quando me restabeleci, conservei.” Apesar de parecer
improvável que o autor haja escrito sob tal estado, a nota serve para ad-
vertir uma séria inflexão de ritmo no capítulo 19, em que o narrador, este
sim, declina febril. O delírio, ao invés de ferir o realismo do romance, ser-
ve como solução formal ao apanhar o protagonista nos rodeios torturados
de seu drama, à medida que extravasa as bordas da memória e atravessa
a subjetividade. Resulta daí o problema, na intersecção da cegueira que o
raso da lucidez causaria com o entorpecimento que viria da loucura – o
delírio, assim, deforma o realismo estrito para melhor invadir a realidade.
Graciliano comenta ainda, no testemunho, a sua internação após a
febre: “A doença prendeu-me à cama três ou quatro meses. Viagem a Ma-
ceió, exames, diagnósticos equívocos, junta médica, entrada no hospital,
operação, quarenta e tantos dias com um tubo de borracha a atravessar-
me a barriga, delírios úteis na fabricação de um romance e de alguns con-
tos, convalescença morosa.”5 Com efeito, a experiência pessoal de desati-
no, quando da enfermidade, lhe empresta um meio de sondar na técnica
literária, baralhando a psique, os pontos de tensão entre sujeito e objeto,
tempo e espaço, engenhosamente intricados graças à dialética de sua arte
realista. O autor refere a utilidade que extraiu do fenômeno para conceber
o pesadelo em Angústia e alguns contos, como por exemplo “O relógio do
hospital” e “Paulo”, do volume Insônia. No tocante a esses dois textos,
feitos na prisão, explica nas Memórias do Cárcere o contorno das obsessões:
“as pancadas do relógio tomavam forma, ganhavam nitidez e mudavam-
se em bichos; supunha-me dois, um são e outro doente, e desejava que o
cirurgião me dividisse, aproveitasse o lado esquerdo, bom, e enviasse o
direito, corrompido, para o necrotério. Essa parte direita, infeccionada,
era um hóspede sem-vergonha e chamava-se Paulo.”6
Não seria demais supor então, segundo as circunstâncias descritas
(“Paulo” calca-se em sensação íntima, experienciada aliás durante o ar-
ranjo de São Bernardo), que o desdobramento diz respeito à intrusão da
personagem na mente do criador. No conto, o enfermo se agasta sedado
nas nuvens do delírio, navega num todo confuso, mistura de frações pre-
sentes e passadas com o horror de carregar em si um duplo cruel; anseia
que o seccionem e lhe extirpem o lado direito, podre. Paulo é um ente
ameaçador e silencioso, espreita-o há dois meses e sorri amarelo espar-
ramando-se no quarto. Porém, ao final, cessa o sonho de purificar-se in-
teiramente esquerdo e bom, e o doente reconhece a familiaridade estra-
nha: “O que estou dizendo, a gemer, a espojar-me, é falsidade. Paulo
compreende-me. Curva-se, olha-me sem olhos, espalha em roda um sor-
riso repugnante e viscoso que treme no ar.”7 Do mesmo modo que o fa-
zendeiro persiste em alijar da alma as fraquezas, tornadas forças para
vencer o mundo, o autor reversamente espera despejar de si a face malé-
vola8; ambos fracassam, porque têm de deparar com a ambigüidade que
os sustenta. “Paulo compreende-me”: o verbo compreender significa, no
contexto, tanto o entendimento entre os dois quanto a impregnação recí-
proca do criador em Paulo. Com isso, percebe-se que a honestidade do

5 Ramos, Graciliano. “Paulo Honório”. IN: 10 Romancistas Falam de seus Personagens. Rio de Ja-
neiro: Edições Condé, 1947.
6 Ramos, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
7 Ramos, Graciliano. “Paulo”. In: Insônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.
8 Em outro testemunho acerca de suas invenções, Graciliano se refere a Paulo Honório: “É pos-

sível que esse sujeito reflita alguma tendência que no autor existisse para matar alguém, ato que
na realidade não poderia praticar um cidadão criado na ordem, acostumado a ver o pai, homem
sisudo e meio termo, pagar o imposto regularmente.” E considera, no fim, o reflexo oblíquo do
seu caráter sobre as personagens: “Todos os meus tipos foram constituídos por observações
apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possível que
eles não sejam senão pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcio-
nário e a cadela não existam.” (“Alguns tipos sem importância”. IN: Linhas Tortas. São Paulo:
Martins, 1970.)
artista, ao estudar os caracteres, exige avaliar no outro o que lhe é particu-
lar e crítico, sob o viés da angústia que distorce e ilumina os planos da
realidade.
Num episódio do cárcere, quando não pode divisar em seus reces-
sos o que o move a esta ou àquela reação, Graciliano gradua a pesquisa
da própria inconstância ao raio da pluralidade:

Sei lá o que se passava no meu interior? Difícil sermos imparciais em casos


desse gênero; naturalmente propendemos a justificar-nos, e é o exame do
procedimento alheio que às vezes revela as nossas misérias íntimas, nos faz
querer afastar-nos de nós mesmos, desgostosos, nos incita a correção apa-
rente. Na verdade, vigiando-me sem cessar, livrava-me de exibir sentimen-
tos indignos. Afirmaria, porém, que eles não existiam? Tudo lá dentro é
confuso, ambíguo, contraditório, só os atos nos evidenciam, e surpreende-
mo-nos, quando menos esperamos, fazendo coisas e dizendo palavras que
nos horrorizam.9

Otto Maria Carpeaux, a fim de examinar certa tendência estilística


dos anos 30, recupera o conceito de “realismo mágico”, antes apontado
por teóricos europeus. Trata-se de um modo de representar os problemas
para além do registro objetivo da superfície, descendo às funduras por
meio de uma técnica deformadora: “Essa deformação intencional pode
ser seletiva, como no realismo tradicional, ou ideológica, como no realis-
mo socialista. Também poderia ser fantástica ou, como por volta de 1930
se dizia, ‘mágica’”. E dentre os exemplos que observa nessa terceira via,
colhidos nas várias tradições literárias, menciona o brasileiro Graciliano
Ramos com Angústia: “o véu daquela realidade levantou-se e o fundo de-
la ficou magicamente iluminado por uma técnica novelística que emprega
recursos da psicologia do sonho.”10 O primeiro experimento de realismo
deformador (ou mágico) na obra se encontra, a meu ver, no capítulo 19 de
São Bernardo. Efetivamente, Carpeaux estende a impressão, em ensaio cé-
lebre, aos diversos títulos como estilo do autor: “É assim com todos nós
outros, quando entramos no mundo empastado e nevoento, noturno, on-
de os romances de Graciliano Ramos se passam: no sonho. Os hiatos nas
recordações, a carga de acontecimentos insignificantes com fortes afetos
inexplicáveis, eis a própria ‘técnica do sonho’, no dizer de Freud.” A força
diluidora da representação aboliria, assim, os limites de prisma, enervan-
do o tecido ficcional, para atingir o pathos de uma negatividade: “Os ro-
mances de Graciliano Ramos são experimentos para acabar com o sonho
de angústia que é esta vida.”11 O estilo descarnado, rigorosamente essen-
9 Ramos, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
10 Carpeaux, Otto Maria. Tendências Contemporâneas da Literatura. Rio de Janeiro: Tecnoprint,
[s.d.].
11 Carpeaux, Otto Maria. “Visão de Graciliano Ramos”. IN: Ensaios Reunidos. Rio de Janeiro:

Topbooks, 1999.
cial, trai o desejo de eliminar a História na dissolvência do indivíduo12 –
“Não é bom vir o diabo e levar tudo?”, pergunta Paulo Honório, trágico.
Atento à matriz negativa da expressão, Alfredo Bosi considera, em
diferentes momentos, o travo doloroso que da persona do escritor se trans-
fere às suas criaturas. Como Carpeaux, Bosi realça o problemático a ins-
truir a visão e o estilo. Os enredos e tipos perfazem o signo da fratura,
que é social e moral, e moldados pelo pincel da singularidade guardam
em comum “o dissídio entre a consciência do homem e o labirinto de coi-
sas e fatos em que se perdeu.”13 O insulamento grave do autor, refratário
às propostas de seu tempo, se tinge de radicalidade e gera a escuridão.14
Com efeito, analisando os livros de corte biográfico, o crítico esmiúça o
senso de vigília que incide sobre as imagens e os seres, reparte-os em dú-
vida. Nas memórias da cadeia, o empenho compreensivo se recobre de
opacidade, truncado a todo instante, porque o olhar que sonda a si mes-
mo e ao outro não ignora os contrastes, e o mundo se ofusca num borrão:
“A perspectiva dominante é a que vai da interrogação à estranheza e, nos
casos extremos, fecha-se em recusa. Não é um realismo solar, é um rea-
lismo plúmbeo.” O chumbo – em suas acepções de cor, peso e ânimo –
baliza a tonalidade do testemunho. O cinzento também se dissemina, ne-
blinoso, nas páginas da ficção, lacerante nas vozes de narradores cujas
letras não bastam para expurgar o passado ou comunicá-lo ao próximo:
“Um sentimento turvo que nada parece apaziguar, pois não é nem a con-
trição do arrependido, nem o mergulho nas águas tépidas da autocomise-
ração.”15 Em sua leitura de Infância, Bosi medita nas inflexões do autor ao
descrever a paisagem, ora firme no claro do realismo solar, ora inseguro
nas nuvens do realismo vigilante; e ao descrever os entes da família, cerce-
ado pela educação bárbara, erra no labirinto do realismo febril: “A condi-
ção de impotência em face do outro beira o absurdo e estará na raiz da

12 Em ensaio posterior, Carpeaux deduz o sentido ideológico radicado na expressão do “lírico


estranho”: “É esse poder de estilização literária que se encontra com a vontade política de ‘esti-
lizar a sociedade’, eliminando dela as contradições intrínsecas. Desse modo, o ‘libelo contra a
humanidade’ transforma-se em seqüência de acordes, cujo último é o mais intenso dos acordes
musicais, o silêncio.” (“Graciliano e seu intérprete”. IN: Teresa – revista de literatura brasileira, n.
2. São Paulo: USP/Editora 34, 2002. Texto originalmente publicado em O Jornal, Rio de Janeiro,
em 23 de fevereiro de 1947.)
13 Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
14 Em debate sobre a posição de Graciliano no quadro da cultura nacional, Bosi opina: “Agora,

essa visão, tão crítica, não é nem dos modernistas, nem dos regionalistas. Então, eu acho que
fica na nossa cabeça o problema: como se formou? Talvez ainda tenhamos, um dia, de fazer a
biografia espiritual de Graciliano. Como se formou nele uma crítica tão radical, tanto ao projeto
burguês, como ao que nós chamaríamos hoje de populismo, folclorismo, assim por diante... A
rejeição dele é total. Talvez essa escuridão da obra dele venha de que realmente os projetos em
curso não o atraíam.” (“Mesa-redonda” In: Bosi, Alfredo et alii. Graciliano Ramos – Coleção Escri-
tores Brasileiros. São Paulo: Ática, 1987.)
15 Bosi, Alfredo. “A escrita do testemunho em Memórias do Cárcere”. In: Literatura e Resistência.

São Paulo: Cia. das Letras, 2008.


reiterada expressão de perplexidade do narrador que se diz incapaz de
encontrar sentido nas ações alheias e, às vezes, nas próprias.” 16 Essas ca-
tegorias, e o movimento que as enfeixa no corpo de cada obra, valem para
pensar a prosa inteira de Graciliano Ramos.
Tal alcance de arte literária apenas se consuma em virtude de um
tratamento deformador da realidade, esgarçando o perímetro do realismo
obtuso sem deixar de ser autenticamente realista. Dostoievski, no conto
“Krotkaïa”, inserido no Diário de um Escritor, adverte os leitores com res-
peito à sua ideia de relato fantástico: “Classifiquei este conto como fantás-
tico, embora o considere real, no mais alto grau. Mas tem certo aspecto
fantástico, principalmente quanto à forma”; o entrecho do conto, que aliás
em parte semelha o de São Bernardo (trata-se da fala contínua de um pres-
tamista alucinado ante o cadáver da mulher suicida, com quem jamais se
conciliou), não rompe os contornos reais, a forma, esta sim, é insólita, e o
criador russo explica: “Procurei seguir o que me pareceu a ordem psico-
lógica. Essa suposição de um taquígrafo anotando todas as palavras do
desgraçado é que se me afigura o elemento fantástico do conto. A arte
não repele este gênero de procedimento.”17 Entende-se, logo, por que
Dostoievski se definiu, no Diário, como um “realista da alma humana”.
Formalmente, o capítulo 19, e mesmo todo o romance, é fantástico, ou
mágico, dada a verossimilhança do ponto de vista, afinal quem pode nar-
rar o próprio delírio enquanto o vivencia? Ou ainda, seria crível um ho-
mem rude compor livro tão complexo? Entretanto, é esse expediente que
permite ao autor captar a real “ordem psicológica” da personagem, des-
velando o mundo à sua volta: a tragédia de Paulo Honório, repisada nos
círculos da memória, faz ecoar o nosso fracasso. Em termos poéticos, a
lição vem de Aristóteles: “Do ângulo da poesia, um impossível convin-
cente é preferível a um possível que não convença.”18
A última passagem do fragmento assinala o remate do desvario.
Finda-se a atmosfera de crepúsculo; porém não ascende o tino à clarida-
de, inunda-se em treva espessa.

Há um grande silêncio. Estamos em Julho. O nordeste não sopra e os sapos


dormem. Quanto às corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou
com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos.
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.
O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso
ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as

16 Bosi, Alfredo. “Passagens de Infância de Graciliano Ramos”. In: Entre a Literatura e a História.
São Paulo: Editora 34, 2013.
17 Dostoievski. Diário de um Escritor. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s.d.].
18 Aristóteles. “Arte poética”. IN: Aristóteles, Horácio, Longino. A Poética Clássica. São Paulo:

Cultrix, 1981.
pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda
ao relógio, mas não consigo mexer-me.19

A sinfonia caótica que o envolvia – vento, sapos, corujas e grilos –


apaga-se, em verdade não existiu. Existe, agudo, o silêncio de uma noite
de inverno. Agora o juízo reconhece as sombras que se infiltraram no pre-
sente para embaciá-lo, mas nem por isso se descarrega dos tormentos. O
que já não se manifesta no concreto ressoa dramático na consciência, salta
no tempo e atazana perpétuo. Em derrelição, o narrador sente esfuma-
rem-se as antíteses e desliza no vazio irremediável: a natureza e a máqui-
na emudecem, nada sustenta a alma. Paralítico, Paulo Honório não pode
dar corda ao relógio (metaforicamente recobrar a cronologia produtiva), e
tampouco se pode acolher no fluxo espontâneo (deste há tão-só resíduos).
Encarna, no fim, uma tragédia sem catarse. Ao herói, não socorre a morte
ou a remissão; ao leitor, restam as perguntas sem resposta. Tragédia mo-
derna, o romance encena peripécias equívocas, deforma a vida em delírio
– a angústia continua.

Erwin Torralbo Gimenez é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.


Graduado e Doutor em Letras também pela USP, é autor de artigos acadêmicos, como "Gracili-
ano Ramos, uma poética da insignificância" (Revista do Instituto de Estudos Avançados), e or-
ganizou, com Beth Ramos, a edição comemorativa dos 80 anos do romance Caetés.

19 Ramos, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.


GRANDE SERTÃO: VEREDAS,
A FORMAÇÃO PELO AMOR
Débora Domke Ribeiro Lima

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O trabalho propõe ao leitor acompanhar o percurso de Amor;
formação do protagonista de Grande sertão: Veredas Guimarães Rosa;
mediante a experiência do amor. Com o objetivo de analisar Formação;
como esse sentimento promove em Riobaldo o Pacto fáustico.
aprendizado, o estudo descortina, por meio da constatação
do pacto e pela busca do sentido da vida, seu constante
processo de transformação interior.

ABSTRACT KEYWORDS
The work proposes to the reader to follow the course of formation Love;
of the protagonist of Grande sertão: Veredas, by the experience of Guimarães Rosa;
love. With the goal of analyzing how this feeling promotes the Formation;
Faustic pact.
learning process in Riobaldo, the study reveals - through the
discovery of the faustic pact and the search for the meaning of life
-, his constant process of inward transformation.
1. Por que Grande Sertão: Veredas pode ser considerado um
romance de formação?

Uma breve comparação da obra do escritor brasileiro com Doutor


Fausto, de Thomas Mann, pode representar um primeiro passo rumo ao
campo temático da formação. O romance alemão gravita em torno do
pactário Adrian Leverkühn, imerso numa atmosfera carregada de
sugestões demoníacas. Thomas Mann constrói um personagem que firma
o pacto com uma figura demoníaca que, mesmo parecendo residir em
projeções da mente do protagonista, interage fisicamente com Adrian.
Já a figura do ser oculto em Grande Sertão: Veredas é revestida da
imaginação radicada na cultura popular, trata-se de uma figura
essencialmente abstrata, ao contrário da experiência do personagem de
Doutor Fausto, que, a seu modo, vivencia o encontro com o diabo. Dessa
forma, o pacto promove uma aproximação e, ao mesmo tempo, um
distanciamento entre Adrian e Riobaldo. A figuração do demônio, as
características próprias dos dois protagonistas e a forma como o pacto foi
realizado são fatores determinantes da diferença entre ambos.
O confronto entre os dois personagens facilita o entendimento da
coexistência do amor e do pacto em Riobaldo pela via da formação. A
invenção rosiana apresenta ao leitor um narrador permanentemente
inacabado e que, num dado momento da história, acredita ter firmado
um pacto com o diabo. No entanto, ele guarda em si misturas de
sensações, que procura entender e dominar. O mesmo não acontece com
Adrian Leverkühn, que esperava pelo momento no qual pudesse
encontrar o demônio, sem dúvidas ou questionamentos sobre seu
aprendizado.
O demonismo latente é um ingrediente essencial que determina o
“eu” de Leverkühn1. Ele não mantém verdadeiras relações de amizade,
nem pode vivenciar o amor. Em Riobaldo, coexiste a mistura das duas
entidades opostas, o bem e o mal, evidenciada na ânsia por respostas aos
seus questionamentos: “Eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim,
que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique
apartado do bonito e a alegria longe da tristeza […] Como é que posso
com este mundo?”2. Em seguida, ao comentar a natureza do amigo Jõe

1 Essa afirmação suscita a ideia de que o protagonista de Grande Sertão:Veredas, opondo-se ao


caráter imutável de Leverkühn, sofre mudanças interiores, transformando-se por meio de suas
experiências.
2 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, p.237.
Bexiguento, questiona: “por que era que eu também não podia ser assim,
como o Jõe? […] para o Jõe, no sentir da natureza dele, não reinava
mistura nenhuma neste mundo – as coisas eram bem divididas,
separadas”3.
O processo de formação, portanto, é um aspecto que viabiliza a
existência do amor em Riobaldo. As dúvidas que povoam sua mente
possuem estreita ligação com as características de um personagem do
Bildungsroman (romance de formação), gênero que tem como referência
Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Johann Wolfgang von
Goethe, obra com uma construção estética até então inédita no contexto
literário alemão.
O clássico goethiano influenciou escritores posteriores, que, de
certa forma, afinaram o romance de formação de acordo com a realidade
social em que estavam inseridos. Tal fenômeno proporcionou diálogos
entre o Bildungsroman clássico e as novas produções literárias, retratando
a formação humana sob perspectivas diversificadas. Esse conceito é
abordado no livro de Marcus Vinicius Mazzari sobre o romance de estreia
de Günter Grass, O Tambor de Lata. O autor aponta para o fato de que
os sucessivos desvios que o Bildungsroman vem apresentando em relação
ao seu protótipo Os anos de Aprendizado de Wilhelm Meister mostram-se
como reflexos das transformações políticas e econômicas ocorridas nas
estruturas da sociedade em que o herói em formação busca integrar-se. Se
em Goethe a crescente precariedade de tal integração é tratada de forma a
se preservar ainda a integridade humana, em outros autores podemos
observar uma tendência à dissolução caricatural da concepção clássica de
formação4.
O romance de formação, portanto, ganha configurações inéditas à
medida que novos valores impõem novas necessidades. No entanto, o
que interessa para o estudo é esse indivíduo imerso em um contexto
histórico-social no qual vivencia sua formação e tem consciência (ou não)
desse processo. Esse tipo de romance apresenta o mundo concreto com
inúmeros desafios e dificuldades que compõem a formação do
protagonista.
Nessa perspectiva, o processo é mais importante que o final, pois
existe a preocupação em demonstrar o percurso do “herói”, as emoções
vividas, o aprendizado proporcionado pelas experiências. Riobaldo
apresenta ao seu interlocutor suas transformações, deixa exposto, por
meio de seus questionamentos, um ser “aberto”, inacabado.
A comparação com Adrian Leverkühn promove, por meio da
negação, a caracterização de Riobaldo, podendo-se chegar à conclusão de

3Ibidem, p.237.
4MAZZARI, Marcus Vinicius. Romance de formação em perspectiva histórica, - O Tambor de Lata de
Günter Grass. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999, p.85.
que o pacto não determinou a malignidade do personagem rosiano.
Riobaldo também contrasta com Diodorim, que está próximo a ele e o
influencia. O ser inacabado encontra seu contraponto naquele que o
seduz. Como afirma Luiz Roncari, “ao contrário de Riobaldo, sujeito em
formação ou ‘herói problemático’, volúvel, cheio de dúvidas, hesitações,
contradições e conflitos, Diadorim já era, estava pronto e acabado, ‘a
coragem dele nunca piscava’”5.
No primeiro encontro com Diadorim, a travessia aparece de forma
concreta. Esse momento deixa transparecer a travessia da vida, em que
Riobaldo demonstra, mesmo que a contragosto, suas fraquezas. O mesmo
não ocorre com seu companheiro: “‘Você nunca teve medo?’ - foi o que
me veio, de dizer. ‘Costumo não...’”6, respondeu o outro. Ao constatar
que não era igual ao companheiro e que a diferença o atraía e instigava, o
protagonista inicia sua travessia, atravessa a vida provando, errando e
experimentando, em um processo no qual vivencia sofrimento e prazer.
Assim acontece com seu comportamento instintivo, que muitas
vezes é reprimido em prol de uma atitude aceitável socialmente. O amor
pelo próximo ou até mesmo a constatação de que o instinto poderia
destruir a amizade e a gentileza fazem com que Riobaldo reflita sobre
suas ações. Em uma passagem na qual o protagonista conta o abuso a que
submetia mulheres, demonstra a superação de seu instinto sexual:

E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher nenhuma lá,
eles sacolejavam bestidades. [...] Deus me livrou de endurecer nesses
costumes perpétuos [...] Contanto que nunca mais abusei de mulher. Pelas
ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma
recompensa. O que eu queria era ver a satisfação – para aquelas, pelo meu
ser. [...] Mas o senhor releve eu estar glosando assim a seco essas coisas de
se calar no preceito devido. Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que
é sério preciso7.

Na fala de Riobaldo, percebe-se a mudança interior que essa


atitude causou. O amor ao próximo, nessa ação, supera seu instinto,
fazendo com que seu lado mais humano venha à tona8.
Também não é diferente quando o protagonista deixa-se
influenciar pelos ensinamentos de seu mentor Zé Bebelo e do Compadre
meu Quelemém. A forte religiosidade que permeia a sua travessia, tanto

5 RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa: mito e história no universo roseano: o amor e o poder. São Paulo:
UNESP, 2004, p.227.
6 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.122.
7 Ibidem, p.189.
8 É fato que esse “amor ao próximo” não possui uma ausência total de interesse, haja vista a

intenção explícita do personagem em receber algo em troca, já que praticou uma boa ação,
quando diz: “Pelas ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma
recompensa” (ROSA, 2001, p. 189).
com relação a Deus como ao Diabo, é significativamente intensa.

Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me ensinou que todo


desejo a gente realizar alcança – se tiver ânimo para cumprir, sete dias
seguidos, a energia e paciência forte de só fazer o que dá desgosto, nôjo,
gastura e cansaço, e de rejeitar toda qualidade de prazer. Diz ele; eu creio.
[...] E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais altas, e
paga e repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma9.

Além de remeter à cultura popular representada pela simpatia de


cumprir a promessa em sete dias, o trecho acima revela certa dose de
ingenuidade. Quando ele fala: “Diz ele; eu creio”, Riobaldo deixa-se levar
pelo próximo, confiando que seu futuro estará em boas mãos. A crença
do protagonista é forte e verdadeira, tanto em relação a Deus quanto ao
Diabo.

- Você sabe do seu destino, Riobaldo? – ele perguntou. Aí estava ajoelhado


na beira de mim.
- Se nanja, sei não. O demônio sabe...” – eu respondi. Me diga o senhor: por
que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de Deus? Ah, não sei. Não
me lembrei do poder da cruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu.
Como o diabo obedece – vivo no momento10.

A influência que o personagem sofre provém de diferentes lugares,


demonstrando assim a riqueza da cultura popular 11. Dentro dessa
perspectiva, Riobaldo, a partir das experiências e dos ensinamentos
recebidos, apresenta uma trajetória que transmite ao leitor uma “evolução
pessoal”, relacionada não somente com a constatação da mudança
interior, como também com a importância do processo de transformação
em si.
O romance não apresenta ao leitor um final feliz nos moldes
tradicionais; pode-se dizer que há um final reconciliador, uma vez que,
por meio da fala, o eu-narrador consegue elaborar sua história de vida,
revivendo os principais momentos de sua travessia. Isso implica também
a constatação dos medos e das dúvidas vividas e que ainda podem se
fazer presentes. Esse aspecto relaciona-se, portanto, ao fato de ele
perceber seu percurso, demonstrando o aprendizado vivido12.

9 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, p.169.
10Ibidem, p. 212
11Esse aspecto é discutido por Leonardo Arroyo em A Cultura Popular em Grande Sertão: Veredas.
12 É necessário ressaltar que essa visão sobre o final reconciliador, concebida na presente

abordagem, é apenas uma visão dentre muitas outras. Para o estudioso Willi Bolle em
grandesertao.br, a grande questão é a conquista do poder, pois ele passa de jagunço a fazendeiro.
2. Primeiras transformações do amor

Nas reflexões de Benedito Nunes em O amor na obra de Guimarães


Rosa (1964), o amor se faz presente em Grande sertão: Veredas por meio da
vivência de várias formas que oscilam de Nhorinhá a Otacília:
Tenteando de vereda em vereda, de serra em serra, eros em sua perene
atividade, impulsiva e sôfrega, mal se detém numa forma, logo abre as
asas e prepara-se para voar na direção de outra. […] O amor carnal
conserva-se no espiritual. Essas duas manifestações, embora
qualitativamente distintas, e de diferente altura na escalada do impulso
erótico, interpenetram-se, harmonizam-se como as imagens antagônicas
de Otacília e Nhorinhá, alcançando o difícil equilíbrio que resulta na
superação de uma pela outra13.
O percurso do amor abordado por Benedito Nunes partilha da
ideia de formação do indivíduo conforme a concepção goethiana de que
“a matéria nunca existe sem espírito, o espírito nunca existe e não pode
ser efetivo sem matéria, assim a matéria também tem a capacidade de se
elevar, de ascender, assim como o espírito não pode deixar de atrair e de
repelir” 14.
Partindo do pressuposto de que o amor é vivido pelo personagem
por meio de relações que proporcionam estágios de vivência do
sentimento, a experiência do amor de Riobaldo por Diadorim é pautada
pela falta, como definido por Sponville em Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes (1996): “O amor não é completude, mas incompletude. Não
fusão, mas busca. Não perfeição plena, mas pobreza devoradora. Ele cabe
numa dupla definição: o amor é desejo, e o desejo é falta” 15. Otacília e
Nhorinhá representam os dois polos pelos quais Ribaldo oscila e que
estão misturados em Diadorim.
É possível, portanto, estudar a transformação, a metamorfose do
amor, aqui representada pela experiência de Riobaldo e Diadorim,
investigando suas nuances ao longo da narrativa16. A cada passo da
13 NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: Guimarães Rosa. Revisão Ivan
Santos de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1991, p. 147.
14 GOETHE, Johann Wolfgang von. As Afinidades Eletivas. Tradução Erlon José Paschoal,

introdução e notas de Kathrin Holzermayr Rosenfield. São Paulo: Nova Alexandria, 1998, p. 48.
15 SPONVILLE, André Comte. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes,

1999, p.252.
16 É importante atentar para a relação que existe, na obra, entre sua estrutura e a experiência

amorosa. O termo atopia, utilizado por Ettore Finazzi-Agrò, explica essa ligação: “Grande sertão
seria atópico pelo fato de identificar um gênero e o seu discurso no mesmo movimento com que
todos os gêneros do discurso são por ele revogados, postos em questão, assim como também o
sertão rosiano se localiza e se define apenas na perda dos seus limites, na impossibilidade de
qualquer localização, no seu estar ‘em toda parte’” (2001, p. 93). E aprofunda ainda mais o uso
do termo, ao afirmar que “a ‘atopia’ de Grande Sertão poderia ser vista, nesta perspectiva
platônica (e mitológica), também como o efeito deslocante de um Eros (no caso, o amor entre
Riobaldo e Diadorim), não conseguindo, todavia, encontrar a passagem para o ato, para a sua
travessia do protagonista há mudanças interiores significativas que
reverberam na tonalidade do amor que sente.
Ao retomarmos o que já foi considerado sobre o protagonista (a
convivência do bem e do mal, a configuração apresentada pela figura
demoníaca e de seu processo de formação), podemos localizar o foco de
sua transformação na experiência amorosa. É fato que, após comparecer
ao ritual do pacto, o personagem sofre significativas transformações. Seu
companheiro, Diadorim, percebe de imediato:

– [...] você está diferente de toda pessoa, Riobaldo...Você quer dansação e


desordem [...] E o que está desmudando, em você, é o cômpito da alma17.

Como forma de facilitar o percurso de análise, optou-se por uma


linha de investigação que segue a ordem narrada pelo protagonista em
detrimento da cronológica. Só assim poderão ser evidenciados os fatos
mais marcantes da vivência amorosa, que contribuirão para o
entendimento de suas transformações, uma vez que há uma razão
subjetiva para que os fatos sigam a ordem em que foram narrados. Isso é
corroborado pelo próprio Riobaldo, quando afirma que “contar seguido,
alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. [...] Tem horas
antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente
data. O senhor mesmo sabe” 18.
No início da narrativa, Diadorim confessa a Riobaldo:

‘Mas, se você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter
a tristeza mortal...’ Disse. Tinha tornado a por a mão na minha mão, no
começo de falar, e que depois tirou; e espaçou de mim. Mas nunca eu senti
que ele estivesse melhor e perto, pelo quanto da voz, duma voz mesmo
repassada. Coração – isto é, estes pormenores todos. Foi um esclaro. O
amor, já de si, é algum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de
todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e
morria, se bem19.

Nas primeiras páginas do livro, portanto, o leitor depara com uma


espécie de entrega de Riobaldo ao amor incondicional por Diadorim.
Amor este que o faz entrar em uma guerra, assumindo o posto de
jagunço, sem hesitar em sua decisão pela vingança do pai de seu
companheiro.
Essa constatação aponta para o que se poderia chamar de um
processo de formação pelo amor, pois, a partir dele, o protagonista vive

realização, isto é, mais uma vez, ficando numa ‘aporia’ trágica” (2001, p. 171).
17 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 353.
18 Ibidem, p.115.
19 Ibidem, p.56-57.
seu percurso de aprendizagem, experimentado na longa narrativa, e
constrói sua própria travessia. Esse aprendizado apresenta inúmeros
percalços, demonstra a inconstância, a dúvida e as angústias do
protagonista.
O narrador-personagem retrocede no tempo narrado, após declarar
sua entrega à guerra por Diadorim e se recorda de quando ainda servia a
Medeiro Vaz. Em um episódio no qual escolhe Sêsfredo para acompanhá-
lo até o outro lado do rio para verificar a morte de Santos-Reis, o
protagonista, afastado de Diadorim, reflete sobre o que sente de forma
ainda incipiente:

Assim e silva, como em outro tempo, adiante, podia flauteado comparecer


no Buritís Altos, por conta de Otacília – continuação de amor. Quis não.
Suasse saudade de Diadorim? A ponto no dizer, menos. Ou nem não tinha.
Só como o céu e as nuvens lá atrás de uma andorinha que passou. Talvez,
eu acho, também, que foi juvenescendo em mim uma inclinação de
abelhudice: assaz eu queria me estar misturado lá, com os medeiros-vazes,
ver o fim de tudo20 .

O amor por Diadorim é colocado em questão na medida em que se


lembra de Otacília. Porém, chega à conclusão de que gostaria de viver
mesmo como um jagunço. Não tem certeza de nada, está buscando
entender a si próprio, por meio de sucessivos questionamentos e
reflexões.
Os três principais amores experimentados por Riobaldo (Diadorim,
Otacília e Nhorinhá) são diferentes tipos de amor, sendo o que sente por
Diadorim o mais perturbador de todos, devido às complicações impostas
pela realidade. Os outros dois, embora não façam parte do enfoque aqui
privilegiado, merecem atenção porque interferem na relação de Riobaldo
e Diadorim e auxiliam na transformação do sentimento. Benedito Nunes
aponta para o fato de que

a relação entre essas três espécies de amor, diferentes formas ou estágios de


um mesmo impulso erótico, que é primitivo e caótico em Diadorim, sensual
em Nhorinhá e espiritual em Otacília, traduz um escalonamento
semelhante ao da dialética ascencional, transmitida por Diotima a Sócrates
em O Banquete, de Platão: eros, geração na beleza, desejo de imortalidade,
eleva-se, gradualmente, do sensível ao inteligível, do corpo à alma, da
carne ao espírito, num perene esforço de sublimação, que parte do mais
baixo para atingir o mais alto, e que, em sua escalada, não elimina os
estágios inferiores de que se serviu, porque só por intermédio deles pode
atingir o alvo superior para onde se dirige21.

20 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

21NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: Guimarães Rosa. Revisão Ivan
Santos de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1991, p.157.
O aspecto apresentado pelo teórico aponta para um “desejo que se
faz anelo” e promove uma espécie de gradação do amor por meio de sua
transformação, isto é, para atingir a espiritualidade, o autor mineiro
utiliza o corpo, sem, no entanto, excluí-lo quando se atinge o alvo.
Nhorinhá, chamada de “prostitutriz”, embora seja uma figura
carregada de sexualidade, não é tratada por Riobaldo de forma
desrespeitosa: “a mulher-dama apresenta, sempre, um momento de
fascínio e encantamento”22. Ele se lembra da moça sempre com carinho e
de forma pura, pois “a ficção de Guimarães Rosa nos conduz, ainda aqui,
a um universo primitivo, onde a mulher-dama, longe de ser vista como
impura ou depravada, é uma sacerdotisa do amor – a mulher em que, na
realidade, o homem encontra o amor em toda a sua pureza e inocência”23.
Há, portanto uma peculiaridade na experiência do amor no autor
brasileiro que difere do narrado em O Banquete, uma vez que o amor
espiritual é colocado, por Platão, em um plano superior ao carnal. Já em
Grande Sertão: Veredas, “o amor carnal gera o espiritual e nele se
transforma. [...] Tem o encanto secreto e a sedução da heresia, como força
ascendente e descendente, sexo e espírito, que se desenvolve segundo
uma dialética imanente”.
Retomando o momento da enunciação, depois de encontrar, no
caminho de volta, seu amigo estrangeiro Vupes, Riobaldo se refere
novamente ao amor, agora já com outra conotação, pois a saudade de
Diadorim se faz presente:

Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim voltou em mim,


depois de tanto tempo, me custando seiscentos já andava, acoroçoado, de
afogo de chegar, chegar, e perto estar. Cavalo que ama o dono, até respira
do mesmo jeito. Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais
redondada recortada. Viemos pelo Urucúia. Rio meu de amor é o
Urucúia24.

Nesse momento, o protagonista apresenta ao leitor as primeiras


figurações em relação ao amor que guiarão sua vida jagunça. Essa
manifestação do amor, que Riobaldo tenta sublimar, mas que retorna de
forma pungente, aparece na primeira parte da narrativa, na qual relata
sua vida com Medeiro Vaz, a morte desse chefe e a sucessão de Zé
Bebelo.
Nesse segmento narrativo, os dois amigos já convivem e
experimentam a atração, que adquire múltiplas manifestações, de acordo
com suas vivências. Ao retroceder novamente no tempo da narrativa,

22 LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo: Unesp, 2002, p. 110.
23 Ibidem, p. 112.
24 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 89.
Riobaldo pormenoriza o início dessa história amorosa, quando discorre
sobre o primeiro encontro com Diadorim, os dois adolescentes, ocasião
ainda em que fizeram a travessia do rio de Janeiro: “Mas eu olhava esse
menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não
tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas
feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível”25.
Nesse episódio, especialmente durante a travessia, em que confessa
sentir medo, é notória a já mencionada formação pelo amor:

O menino estava molhando as mãos na água vermelha, esteve tempo


pensando. Dando fim, sem me encarar, declarou assim: – “Sou diferente de
todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito
diferente...” E eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor
escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O
sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei –: eu não
sentia nada. Só uma transformação, pesável [grifo nosso]. Muita coisa
importante falta nome26.

O processo de formação que o irá acompanhar é iniciado no


encontro enigmático com Diadorim. O protagonista está entregue ao
companheiro, que se torna o ideal de coragem, um ser acabado,
contrastando com sua insegurança.
Seguindo a linha narrativa, após a travessia do rio de Janeiro,
Riobaldo narra a vida na fazenda de seu tio (pai) Selorico Mendes. É
nesse lugar que encontra Joca Ramiro, Ricardão e Hermógenes com o
bando, numa noite em que precisam de abrigo para dormir. Ao
acompanhá-los até o lugar de descanso, Riobaldo ouve, pela primeira
vez, a canção de Siruiz, que tanto o encanta:

Urubú é vila alta,


mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não?...

Corro os dias nêsses verdes,


meu boi môcho baetão:
burití – água azulada,
carnaúba – sal do chão...

Remanso de rio largo,


viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...27 [grifo nosso]

25 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 119.
26 Ibidem, p. 125, grifo nosso.
27 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 135.
O que interessa para o estudo nessa canção, prenunciadora do
futuro de Riobaldo, são os dois últimos versos, que remetem ao “coração”
e à “guerra”. Como mencionado, o protagonista decide entrar na guerra
jagunça por amor a Diadorim, fato narrado no tempo anterior à
enunciação e que, ao retroceder na ordem dos acontecimentos, é
antecipado pela canção oracular.
Antes de se decidir “por inteiro” a entrar na guerra, vivia incerto
sobre o que deveria fazer, se realmente deveria participar da vida
jagunça. Não sabia se servia a Zé Bebelo ou a Joca Ramiro, vivendo em
constante conflito sobre sua postura ética: “De que lado eu era? Zé Bebelo
ou Joca Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De ninguém eu era. Eu era
de mim. Eu, Riobaldo. Eu não queria querer contar”28.
Momentos adiante na narrativa, quando reflete novamente sobre
sua vida jagunça, fica claro como está perdido e se agarra ao que sente
por Diadorim para atribuir sentido à sua vida e decidir sobre seu destino:

Donde eu tinha vindo para ali, e por que causa, e, sem paga de prêço, me
sujeitava àquilo? Eu ia-me embora. Tinha de ir embora. Estava arriscando
minha vida, estragando minha mocidade. Sem rumo. Só Diadorim. Mas era
por não aguentar o ser: se de repente tivesse que ficar separado dele, pelo
nunca mais29.

Assim, estabelece-se o caráter inexorável do amor: Riobaldo não


consegue se separar de Diadorim, seu senso crítico está comprometido
pelo arrebatamento que o toma. Nesse estágio do amor, o personagem
perde-se de si e não consegue mais se enxergar como um ser único, sua
existência só merece sentido na presença do outro, ser que representa a
ilusão da completude.
O momento da canção, assim como o do primeiro encontro com
Diadorim, é enigmático, pois embora o narrador não tenha consciência da
antecipação dos acontecimentos de sua vida, ele experimenta, por meio
de sensações, sua importância: “O que me agradava era recordar aquela
cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim.
Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha idéia”. A vida jagunça está
intimamente relacionada ao amor, que aparece de forma clara na canção
de Siruiz: o destino do coração de Riobaldo é o de entregar-se na batalha
em nome do que sente30.

28 Ibidem, p. 167.
29 Ibidem, p. 197.
30 “Nesse nome (Siruiz) aparentemente sertanejo ressoa o frêmito da busca do amor perdido,

tema predileto de cantigas e contos da Idade Média. E o leitor brasileiro, embalado na evidência
de que Siruiz é um legítimo jagunço, pode não perceber o sutil jogo de máscaras que mescla,
nesse nome, o popular e o erudito, o familiar e o estranho, o próprio e o outro. Sirroohis
No trecho que resume a vida de Riobaldo, o segmento no qual
estão condensados os principais acontecimentos, em que o narrador
conta, sem divisão em parágrafos, o resumo de sua vida, sintetizando
suas principais reflexões, é um momento importante que revela o que a
canção de Siruiz antecipa: “Diadorim me veio, de meu não-saber e
querer. Diadorim – eu adivinhava. Sonhei mal?”31.
O personagem, um pouco mais à frente da narração, pergunta ao
companheiro Garanço sobre a canção, confessando que “eu queria saber
não era próprio do Siruiz, mas da moça virgem, moça branca,
perguntada, e dos pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar um
igual”32. Esse amor, que toma conta de Riobaldo, ganha dimensões
maiores e ocupa um espaço psicológico significativo, mais do que outros
setores de sua existência.

3. Transformação do amor após o pacto

Depois da morte de Joca Ramiro, Riobaldo deixa a Guararavacã do


Guaicuí e parte para o início da obstinada busca por vingança, junto com
Diadorim. É nesse momento que as reflexões sobre a existência do
demônio e a prenunciação do pacto começam a ecoar: “Eu penso é assim,
na paridade. O demônio na rua... Ah, pacto não houve. Pacto?” [grifo do
autor]33. E já começa a sentir as consequências de sua decisão: “No peso
ruim do meu corpo, eu ia aos poucos perdendo o bom tremor daqueles
versos de Siruiz?”34.
Ligado a esse aspecto da prenunciação, o protagonista passa a
transmitir ao seu interlocutor um lado mais “avesso” de Diadorim: “O
ódio de Diadorim forjava as formas do falso. Ódio a se mexer, em certo e
justo, para ser, era o meu; mas, na dita ocasião, eu daquilo sabia só a
ignorância”35. Riobaldo, de certa forma, toma para si o ódio pela morte de
Joca Ramiro.
O amor, nesse contexto, é adormecido pelo espírito de vingança
que recobre os dois companheiros (embora para Riobaldo haja um espaço
para a reflexão sobre a vingança, o que parece não acontecer com
Diadorim). Quando estava em combate contra os “hermógenes”, na
Fazenda dos Tucanos, concentrou-se somente na guerra, voltando-se para

(pronunciado exatamente como siruiz) significa, em armênio, ‘meu amor’ (quando uma mulher
fala do seu amante-homem) e a fórmula plasmou-se numa canção popular de mesmo nome”
(ROSENFIELD, 2002, p. 199).
31 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.137.
32 Ibidem, p.192.
33 Ibidem, p.328.
34 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 332.
35 Ibidem, p. 379. Dessa passagem Walnice Nogueira Galvão, como sabido, extraiu o título de

seu importante estudo As formas do falso (São Paulo: Perspectiva, 1988).


o horror que ela provoca, compadecendo-se de seus companheiros. O
chefe Zé Bebelo ocupa grande parte de seus pensamentos, pois Riobaldo
não confia plenamente em sua figura, julgando-o capaz de, a qualquer
momento, enveredar pelos caminhos da traição.
Todos esses eventos o afastam, por um período, das reflexões sobre
seus sentimentos amorosos. Somente quando chegam ao sítio de Dodó
Ferreira é que Riobaldo lembra do amor que sente: “Assim foi que, nesse
arraiar de instantes, eu tornei a me exaltar de Diadorim, com esta alegria,
que de amor achei”36. Mas, mesmo assim, o amor não deixa de apresentar
um enfoque negativo: “E tudo neste mundo podia ser beleza, mas
Diadorim escolhia era o ódio. Por isso era que eu gostava dele em paz?
No não: gostava por destino, fosse do antigo do ser, donde vem a conta
dos prazeres e sofrimentos”37.
Os desafios do sertão colocam o protagonista em uma posição
delicada, ele sente medo. O episódio dos catrumanos, na região do
Sucruiú, evidencia sua sensibilidade, e ele se mostra temeroso. “Aqueles
catrumanos pedindo por maldição, como era que eu podia deixar de
pensar neles? Há-de, que se eles tivessem me pegado sozinho, eu apeado
e precisado, decerto me matavam”38.
A insegurança irá se apresentar cada vez mais forte na narrativa,
levando-o pelos caminhos do pacto, chegando ao ponto de suscitar a
busca pelo sentido de sua vida jagunça: “Com Zé Bebelo da minha mão
direita, e Diadorim da minha banda esquerda: mas, eu, o que é que eu
era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia”39.
Na busca pelo seu “eu” dissolvido na insegurança, há um
personagem que, de certa forma, ajuda-o a construir sua identidade por
meio da negação: a figura do Hermógenes, representante da maldade
pura, é o indivíduo que constitui aquilo que tendencialmente não faz
parte de sua formação. É baseado nele que Riobaldo compõe seu conceito
do mal; o que ele sente por seu inimigo é diferente de um rancor comum:
“a ofensa passada se perdoa; mas, como é que a gente pode remitir
inimizade ou agravo que ainda é já por vir e nem se sabe? Isso eu
pressentia. Juro de ser. Ah, eu”40. E mais à frente, Riobaldo confessa que
“o Hermógenes era positivo pactário”41.
O protagonista está, portanto, envolvido na busca de sentido do
seu “eu” e na concretização do pacto, o que o leva a se afastar,
principalmente da figura de Otacília. Não consegue sentir afeto, embora

36 Ibidem, p. 387.
37 Ibidem, p.393.
38 Ibidem, p.405.
39 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.407.
40 Ibidem, p.410.
41 Ibidem, p.424.
se esforce; a pungência do pensamento sobre algo iminente não permite
isso: “Mas em tanto, com as mudanças e peripécias, no afinco de tudo lhe
referir, ditas conforme digo – não toco no nome de Otacília? Nela eu
queria pensar, na ocasião; mas mal que, cada vez, achava mais custoso” 42.
Eis a menção do pacto: “Achado eu estava. A resolução final, que
tomei em consciência. O aquilo”43. Depois da resolução, ele concretiza o
fato nas Veredas-Mortas; porém sem avistar a figura do oculto, somente
vivenciando sensações relacionadas a esse universo pactário (o frio, o
tremor e a própria sensação causada pelo lugar). O ser com quem
virtualmente firma o pacto é fruto de sua consciência: “Ele tinha que vir,
se existisse. Naquela hora, existia”44.
A tradição fáustica do pacto é notada em alguns comentários feitos
pelo narrador: Riobaldo caminha para as Veredas-Mortas, numa noite
“friazinha”45. O frio, a escuridão, a encruzilhada são elementos
pertencentes à tradição que, no romance, integram o cenário no qual o
pactário é um sujeito em formação. Ao contrário do que acontece no
pacto tradicional, “o pacto rosiano coloca como problema o sumiço do
sujeito ou, pelo menos, de todas as categorias que sustentam
tradicionalmente a ideia de um sujeito”46.
O protagonista cogita a existência do diabo – “Ele tinha que vir, se
existisse. Naquela hora, existia”47 – e o chama sem obter resposta. Mesmo
sem a presença física do diabo, o protagonista tem a sensação de uma
transformação: “Meu corpo era que sentia um frio, de si, friôr de dentro e
de fora, no me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão
de uma friagem assim”48.
É com o diabo, fruto de sua imaginação, que Riobaldo acredita ter
selado o pacto, para se tornar capaz de enfrentar o Hermógenes: “Eu
queria ser mais do que eu”49. Ele é tomado pelo medo: “Medo? Bananeira
treme de todo lado”50, porém segue seu propósito, tendo em mente que
“o que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de mim”51. Vai
para o pacto e resvala no nada ou naquele “nonada” que abre o livro.
Ao tomar a decisão de travar o pacto, Riobaldo se preocupa em
deixar Diadorim afastado desse evento: “o que eu gostava tanto de
Diadorim, tinha um escrúpulo – queria que ele permanecesse longe de
42 Ibidem, p. 426.
43 Ibidem, p. 434.
44 Ibidem, p. 436.
45 Ibidem, p. 434.
46 ROSENFIELD, Kathrin H. “O pacto fáustico em Grande Sertão: Veredas”. In: Cienc. Let. N.42

Porto Alegre, 2007, p. 248.


47 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 436.
48 Ibidem, p. 439.
49 Ibidem, p. 437.
50 Ibidem, p.435.
51 Ibidem, p.435.
toda confusão e perigos”52.
Imediatamente após a experiência nas Veredas-Mortas, já há
manifestação de certa alteração de comportamento. A primeira se dá
quando toma consciência de sua necessidade de brigar, instigar a ira dos
outros, como forma de prazer: “Figuro de cientificar ao senhor: o costume
meu nunca tinha sido esse. Agora, era que eu me espiritava só para
arrelias e inconveniências”53.
A mudança de Riobaldo no tocante ao amor também se faz sentir
logo em seguida, quando tece o seguinte comentário sobre Diadorim:

Daí veio que Diadorim mesmo estranhou aqueles meus modos. A entender
me deu, e eu reminiquei, com soltura de palavras: como é que ia tolerar
conselho em contradição? Agravei o branco em preto. Mas Diadorim
perseverou com os olhos tão abertos sem resguardo, eu mesmo um instante
no encantado daquilo – num vem-vem de amor. Amor é assim – o rato que
sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre-leão!54.

O amor que sente por Riobaldo não impede Diadorim de enxergar


as transformações do companheiro, ao contrário, desperta sua
sensibilidade, como se aquele fosse uma extensão de si próprio. Trata-se
de uma característica desse tipo de amor, que promove a transferência de
si no outro, como uma simbiose, causando, inevitavelmente, o sofrimento
e a constante angústia de se sentir incompleto longe do ser amado.
Outro fato que corrobora esse aspecto da vivência do amor é o
próprio pacto, pois, se o ser amado tem aquilo que o outro não possui, é
natural que o amor como falta exija a busca de si no outro e, nesse caso,
impulsione o protagonista a tornar-se igual àquele que ama. O próprio
personagem confessa que Diadorim era o “único homem que a coragem
dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes
eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro”55.
Pouco depois do pacto, Riobaldo se torna chefe do bando até então
liderado por Zé Bebelo, que pela segunda vez deixa o comando. Está
entregue à emoção da novidade de sentir-se no poder, mediante a
segurança proporcionada pelo ser oculto.
Ao se aproximar mais de Diadorim, igualando-se a ele em
coragem, dá mostras de afastar-se de Otacília: “em Otacília, mesmo,
verdadeiro eu quase nem cuidava de sentir, de ter saudade. Otacília
estava sendo uma incerteza – assunto longe começado”56. A partir do
pacto, percebe-se que a ligação entre os dois se torna mais enigmática,

52 Ibidem, p.434.
53 Ibidem, p.443.
54 Ibidem, p.443.
55 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 444.
56 Ibidem, p. 458.
pautada pela linguagem do corpo, principalmente pelos olhos de
Diadorim, que guiam as atitudes de Riobaldo. A simbiose do amor torna-
se mais evidente.
Na fazenda de Seo Ornelas, quando Riobaldo, com o poder de
chefe, fazia a refeição sentado à mesa, desejou a neta de seu anfitrião. A
crise de consciência deflagrada pelo impulso de matar o homem para
poder desfrutar da moça foi um rompante que quase o tomou. Porém, os
olhos de Diadorim intervieram: “os olhos de Diadorim não me
reprovavam – os olhos de Diadorim me pediam muito socôrro. […] E eu
também mercês colhi – da alegria veraz, nos meus olhos de Diadorim”57.
Os olhos de Riobaldo e Diadorim se misturam, formam um único ser.
Não há mais retorno: o amor como falta já estava se configurando em seu
estágio final, ao encontro da morte.
Ao deixar a fazenda de Seo Ornelas, sem cometer qualquer ato de
violência, e chegar à beira do Paracatú, Riobaldo entoa alguns versos de
sua autoria. A primeira estrofe, que mais interessa ao estudo, resume a
ligação entre o pacto e a transformação do amor:

Hei-de às armas, fechei trato


nas Veredas com o Cão.
Hei-de amor em seus destinos
conforme o sim pelo não58

O amor e o pacto estão associados; ele tem consciência da ligação


entre os dois e de sua transformação. A negação do pacto é a forma que
ele encontra para não entrar em um abismo sem volta, que o espreita
sempre diante da dúvida sobre a existência do demônio: “O demo então
era eu mesmo?”59.
Diadorim, sem perguntar, somente por meio de atitudes
apresentadas pelo companheiro, entende o que se passa e procura as vias
religiosas para amparar Riobaldo. O ciúme que antes sentia por Otacília é
deixado de lado e pede a ajuda dela para rezar pelo companheiro.
O ciúme cede porque houve a transformação do amor após o pacto,
como comenta Riobaldo: “o amor dele por mim era de todo quilate: ele
não tartameava mais, de ciúme nem de medo”60. O amor adquire outra
tonalidade, torna-se mais profundo.
É o amor que irá equilibrar a soberba que envolve o agora chefe
Riobaldo Urutú-Branco. Em alguns momentos, ele sente a necessidade de
exercer o poder: “Onde que então, eu varava mundo, em comando, e
ainda não se prezava o meu nome. Eu – o Urutú-Branco! Ser Chefe de
57 Ibidem, p. 474.
58 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 479.
59 Ibidem, p. 487.
60 Ibidem, p. 498.
jagunço era isso”61. O sentimento, no entanto, leva-o para um caminho
mais humano: “Abrandei minha lembrança em Otacília, que sincera me
aguardasse, em sua casa, em seu meigo estar. Agora eu ia indo às avessas
de lá, da Santa Catarina, mas, de arribada, minha intenção de saudade
vinha voltando. Tudo, nesta vida, é muito cantável”62.
E logo se lembra do amor que o acompanha: “por mesmo de minha
vergonha, escondido de mim mesmo eu gostava do cheiro dele, do existir
dele, do morno que a mão dele passava para a minha mão. O senhor vai
ver. Eu era dois, diversos?”63.
Nesse momento, sente-se incapaz de viver o amor; os dois
principais de sua vida, Otacília e Diadorim, estão impossibilitados. Não
se sente merecedor do amor de Otacília, tão puro, destoante de sua vida
pactária, muito menos pode vivenciar o amor de Diadorim, por serem
dois jagunços.
A escolha pelo incerto e doloroso, isto é, guiar-se pelo amor,
mesmo que de forma não concretizada, faz com que Riobaldo enxergue o
mundo pela lente dolorosa do afeto contido. Isso pode ser percebido
claramente quando encontra um leproso e não consegue lidar com sua
presença, pois o que guarda em si não pode existir em um mundo no qual
um ser repugnante habite: “como era que, sabendo de um lázaro assim,
eu ia poder prezar meu amor por Diadorim, por Otacília?”64.
O amor não admite o que é feio, o que causa repulsa e nojo; fato
que remete também à figura do demônio, ser oculto, que, assim como o
leproso, esconde-se longe dos olhos de todos, mas está presente,
misturado no mundo.
Riobaldo, chefe dos jagunços, atravessa o Liso do Sussuarão,
projeto que antes era tido como quase impossível de ser realizado. Após
conseguir tal feito, Diadorim, no auge de seu amor, confessa ao amigo: “–
… Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo
estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...” 65.
No entanto, ele não está afinado com o significado das palavras de
Diadorim. Embora os dois tivessem uma sintonia do corpo (em que o
protagonista se guiava principalmente pelos olhos do companheiro),
havia uma divergência de almas, um afastamento que o colocava longe
da verdade que Diadorim pretendia revelar.
Logo após essa passagem, há o episódio com Triciziano e o
protagonista tem uma horrível alucinação, vendo o jagunço como o
demônio em carne e osso. Seu primeiro impulso, antes mesmo do

61 Ibidem, p. 503.
62 Ibidem, p. 504.
63 Ibidem, p. 505.
64 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 510.
65 Ibidem, p. 526.
pensamento, foi o de matá-lo, o que acaba fazendo: “Vi: ele – o chapéu
que não quebrava bem, o punhal que sobressaía muito na cintura, o
monho, o mudar das caras... Ele era o demo, de mim diante... O
Demo!...”66. Isso acontece porque, assim como a presença do leproso era
inadmissível, a do Demo também o era.
Depois desse momento, Riobaldo já está a caminho da batalha final
contra os Hermógenes, no Paredão. Diadorim, de certa forma, faz com
que ele não se esqueça de Otacília. Logo após voltar de uma noite de
prazeres com prostitutas, ele lhe pergunta: “‘Você já está desistido dela?’
– em fim ele indagou. – ‘Hem? Hem? Dela quem dela? Tu significa essas
velhacas palavras...’ – eu só fiz que respondi, redatado”67. O amor
perturbado de Diadorim, como um paradoxo, consegue resgatar em
Riobaldo o equilíbrio necessário e não o deixa se esquecer do outro amor.
Nesse momento da narrativa, o sentimento que foi se estabelecendo
entre Riobaldo e Diadorim já está em estágio final, isto é, o amor
transforma-se em um bem-querer, torna-se consciente, o protagonista
aceita o que sente e, por fim, o que agora se configura é a sua
inexorabilidade; totalmente aceito, esse amor vai tomar seu rumo
derradeiro.
Nos momentos finais do livro, o herói retoma sua afeição por
Diadorim, transferindo a ele características femininas, sem levantar a
hipótese real dessa existência: “Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele
fino de feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava, referido na
fantasia da ideia”68. Ele estava cego, seus olhos não enxergavam o que
viam, seu olhar estava além do que via. Somente após a morte do ser
amado é que se conscientiza disso, porém está então diante de um fato
consumado.
Esse tipo de amor como falta não poderia terminar de forma
diferente, pois é irrealizável no plano real. A dor é característica
fundamental de sua existência e é traduzida de forma pungente no
momento da revelação póstuma do sexo de Diadorim:

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos


para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha,
recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca.
Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos
que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por
que nome chamar; eu exclamei me doendo: – Meu amor!...69.

A transformação de Riobaldo, guiada pelo percurso de seu amor

66 Ibidem, p. 528.
67 Ibidem, p. 546.
68 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 592.
69 Ibidem, p. 615.
por Diadorim, permitiu-lhe o aprendizado que se converte em monólogo
na tentativa de compreender e elaborar a experiência que ainda o está
transformando. As culpas, o medo, a raiva e tantas outras sensações
compõem sua travessia e o fazem perceber que o que “existe é homem
humano. Travessia”70.

Débora Domke Ribeiro Lima é graduada em Letras pela Universidade Estadual de Londrina
(2003); mestre em Estudos Literários pela mesma instituição (2005); e, doutora em Teoria
Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (2013). Participou do
Mestrado em Interculturalidade, com bolsa Erasmus, promovido pela Universidade de Tallinn,
Estônia (2016). Contato: [email protected]

70 Ibidem, p. 624.
A “ARISTOCRACIA DO PÉ NO CHÃO”
E O HERÓI POPULAR EM BELÉM DO
GRÃO-PARÁ, DE DALCÍDIO JURANDIR
Maíra Oliveira Maia

Edgar Monteiro Chagas Júnior

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Dalcídio Ramos Jurandir, um dos maiores romancistas do modernismo da Cidade;
Amazônia, militante atuante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e “Aristocracia do Pé
idealizador do Ciclo do Extremo Norte, construiu uma perspectiva de História no Chão”;
sobre a cidade de Belém nos anos de 1920 no seu romance premiado Belém do Fausto;
Grão-Pará. Na sua narrativa sobre a cidade em crise econômica após o fausto Decadência;
da borracha, Jurandir apresenta uma outra possibilidade de história a partir Esperança.
da população pobre do interior do Estado, que, ao se rebelar contra o descaso
dos poderes públicos, retoma a tradição do movimento cabano do século
XIX, lutando em armas contra os que a exploravam. Nessa trama de descaso,
opressão e resistência, surge um novo sol na cidade de Belém do Grão-Pará,
através da “aristocracia do pé no chão”, a “gente comum”, da qual descende
o próprio Dalcídio Jurandir e a personagem seu Lício, o herói de um universo
em crise, porém engajada nas lutas do seu tempo.

ABSTRACT KEYWORDS
Dalcídio Ramos Jurandir, one of the greatest modernist novelists in the Amazon, City;
active militant of the Brazilian Communist Party (PCB) and creator of the Far North "Aristocracy of the
Cycle, built a historical perspective on the city of Belém in the 1920s in his award- Foot in the Ground";
winning novel Belém do Grão-Pará. In his narrative about the city in its economic Fausto;
crisis after the rubber pageantry, Jurandir presents another possibility of history Decadence;
coming from the poor population from the countryside of the State, which, in Hope.
rebelling against the neglect of public powers, takes up the tradition of the 19th
century, fighting with weapons against those who exploited them. In this plot of
neglect, oppression and resistance, a new sun appears in the city of Belém do Grão-
Pará, from the "aristocracy of the foot on the ground", the "common people", from
which Dalcídio Jurandir himself and his character Lício both descend - the latter
being the hero of a universe in crisis, however engaged in the struggles of his time.
Foi na solidão da província que o li, mas essa
primeira leitura não me deu toda a significação do
manifesto. Tive que participar de acontecimentos,
respirar o ar do tempo a que me sentia um pouco
alheio, fazer aos poucos um balanço crítico de
minha própria vida e de
A “aristocracia do pé no chão” e o herói popular
em Belém do Grão-Pará de Dalcídio Jurandir.

tudo que pudesse observar e ler, pensar, sonhar e


aceitar a responsabilidade de uma mínima parcela
na luta pela liberdade – para melhor compreender,
nas linhas simples e densas do Manifesto
Comunista, a síntese de idéias [sic], de
experiências sociais e de aspirações que ele
encerra. Foi a própria vida daí em diante que me
deu a compreensão dinâmica do imortal
documento [...]. O Manifesto abriu-me o caminho
da explicação que eu desejava para uma atenta
participação no meu tempo. [...] É claro que a
iluminação que vem do Manifesto pode somente
ser possível aos que o lêem [sic] e estudam,
participando do nosso tempo, aos que vão ao
encontro do povo.

Dalcídio Jurandir.

A experiência ordinária1 de Dalcídio Jurandir, “ao participar de


acontecimentos”, “respirar o ar do tempo2”, ao fazer um balanço crítico de

1 Experiência Ordinária, segundo Raymond Williams, seria a qualidade determinante do termo


cultura, o que definiria a sua função. Esta função da experiência ordinária seria a experiência
pessoal das pessoas comuns que produzem a cultura no seu cotidiano, como o literato Dalcídio
Jurandir, o que torna o estudo das suas obras relevante para o entendimento da organização de
toda uma sociedade, uma vez que a segunda e complementar função dessa cultura ordinária é o
fato de ele compartilhar esta experiência ordinária com os demais membros da sociedade –
cultura comum. Logo, entender a experiência pessoal do literato é fundamental para
compreender a sua percepção sobre a cidade de Belém dos anos 1920. WILLIAMS, Raymond. A
cultura é algo comum. In: WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança. São Paulo: Unesp, 2015.
2 Referência ao texto citado na abertura deste estudo, “Sobre o centenário do Manifesto

Comunista”, artigo de Jurandir encontrado na revista Literatura, Rio de Janeiro, ano 3, n.7,
jan/fev. 1948. A Revista encontra-se disponível no Acervo Literário da Fundação Casa de Rui
Barbosa, nos anos de 1946, 1947 e 1948. O periódico era editado pela Editorial Vitória, que entre
sua própria vida, de tudo o que observava, lia, pensava e sonhava, o fez
aceitar a responsabilidade de lutar pela liberdade, e esta luta foi feita de
várias maneiras: na sua luta diária pela sobrevivência, já que não se vivia
apenas de letras em Belém do Pará – nem na capital da República, o Rio de
Janeiro –; na luta pela humanidade e pela liberdade, sendo em função disso
preso duas vezes, a primeira em 1936, por haver participado dos
movimentos em apoio aos presos da Intentona Comunista que havia
ocorrido em 1935, e a segunda em 1937, devido a sua filiação ao Partido
Comunista e à campanha que empreendeu contra o fascismo.
É esta experiência ordinária que define a literatura para Jurandir e
torna o estudo de seus romances fundamentais para que hoje se possa
compreender a sociedade paraense da primeira metade do século XX, já
que o autor testemunhou este mundo e construiu nos seus romances uma
interpretação política da sua experiência testemunhal. É esta interpretação
que se irá problematizar neste estudo.
Se, como ensinaram Williams e os ingleses ao renovarem o marxismo,
o que valida a função social da cultura ordinária é a experiência pessoal,
experiência esta como algo comum a toda a sociedade, então Jurandir, um
homem do interior da Amazônia, comum, transformou a experiência
ordinária de sua vida cotidiana material em dez romances, conhecidos
como o Ciclo do Extremo Norte: Chove nos Campos de Cachoeira (1941),
Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem
dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Chão de
Lobos (1976), Os habitantes (1976) e Ribanceira (1978). Além dos seus poemas
divulgados postumamente e do romance sobre o extremo sul, Linha do
Parque (1959), sendo que alguns destes romances − como Chove nos Campos
de Cachoeira e Belém do Grão-Pará −, receberam prêmios nacionais
importantes.
Nos romances analisados neste artigo − Belém do Grão-Pará e Passagem
dos Inocentes − percebe-se que a criatividade é algo que o literato
compartilha com a sociedade, com o seu mundo, por isso mesmo, a
proposta de analisar sua obra parte da visão de que o seu modo de vida e
as suas experiências permitem compreender a sua literatura e, desta
maneira, a cidade de Belém dos anos 1920.

1944 e 1964 foi a editora brasileira comunista mais importante, vinculada diretamente ao Partido
Comunista Brasileiro. Esta foi organizada em moldes empresarial, fazendo parte de uma rede de
órgãos de divulgação do partido, que incluía jornais, revistas, editoriais e entidades culturais.
MAUÉS, Flamarion. A Editorial Vitória e a Divulgação das Ideias Comunistas no Brasil (1944-
1964). In: DEAECTO, Marisa Midori; MOLLIER, Jean-Yves (Orgs.). Edição e Revolução: leituras
comunistas no Brasil e na França. Cotia/São Paulo: Ateliê editora; Belo Horizonte, MG: Editora
UFMG, 2013. (pgs. 121-122)
Em Jurandir, a cultura, como modo de vida e produto artístico
(WILLIAMS, 1958)3, está profundamente imbricada, mostrando que o
valor da sua obra de arte está justamente na integração particular da sua
experiência plasmada nos romances. A arte de Dalcídio Jurandir não
poderia existir sem o modo de vida coletivo do qual ele fazia parte, uma
vez que o material do literato e o significado que ele lhe atribui vêm da sua
experiência coletiva.
Se a definição de cultura para Williams baseia-se na interação entre
arte e sociedade, uma arte que não existe desvinculada da experiência
social ordinária, a literatura de Dalcídio Jurandir é propícia para tal
intento, justamente porque apresenta uma versão da história da Amazônia
no início do século XX a partir de “um olhar de dentro” desta história, de
dentro da história da gente pobre do Marajó, visão aprimorada de um
intelectual que fazia malabarismos para sobreviver, e do ser político
engajado nas lutas do seu tempo. Jurandir é, então, o elo entre a arte
modernista e a vida social ordinária em Belém do Pará, uma vez que é um
artista que compartilhou com toda a geração da época a sua observação da
realidade, a sua capacidade de organizar e descrever suas experiências,
assim como de transmiti-las.
O que provavelmente o impulsionava era a consciência que tinha
da importância da sua experiência de vida e do trabalho de transmissão
dessa experiência na arte. Por isso, não se pode separar conteúdo e forma,
uma vez que a criatividade enquanto ordinária mostra a arte como uma
especificidade de um processo geral de descoberta, criação e comunicação,
redefinindo o seu estatuto e encontrando a maneira de ligá-la à vida social
(CEVASCO, 2001)4.
Dalcídio Jurandir deixa claro que a sua perspectiva é de romancista.
Porém, devemos ressaltar que ele utiliza além de sua memória pessoal a
memória histórica da região baseada em pesquisas feitas pessoalmente ou
a partir de amigos e parentes, sobre fatos e pessoas que viveram em Belém
durante a primeira metade do século XX. Essa memória pessoal e a
memória histórica da região amazônica vão dialogar nos romances de
Jurandir, transformando-os em “lugares de memória”.
Segundo Pierre Nora (1993)5, na contemporaneidade não
habitamos mais a nossa memória, logo, temos uma grande necessidade de
lhe consagrar lugares específicos. Porém, esses lugares da memória
pertencem ao domínio não só da memória, mas também da história, o que

3 WILLIAMS, Raymond. A cultura é de todos (Culture is Ordinary) 1958. Tradução Maria Elisa
Cevasco, disponível em: http://pt.scribd.com/doc/68474445/A-Cultura-eOrdinaria1. Acessado
em 20/01/20012. (Sem publicação)
4 CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Wiliams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
5 NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”. In:: Projeto História,

São Paulo, n.10, dez.1993.


faz com que esses lugares da memória contemporâneos postulem outra
história. Os lugares da memória seriam, ao mesmo tempo, materiais,
simbólicos e funcionais, e só poderiam existir se tivessem “vontade da
memória”, condição primeira e que não pode ser abandonada, caso
contrário, todo “objeto digno de lembrança se transformaria em um lugar
de memória”6. Posteriormente, haveria um jogo dialético entre memória e
história, com a interação de ambas, que levaria a uma sobredeterminação
recíproca.
Dessa forma, seguindo o proposto por Nora (1993), uma obra de
arte, como os romances literários de Dalcídio Jurandir, teria a “vontade de
memória”, já que seria um testemunho “voluntariamente produzido para
ser reproduzido como tal”7. Entre a “memória verdadeira” do romancista
(definida por Nora como “afetiva e mágica”) e a “memória alçada pela
história”8, ou seja, a memória histórica da região amazônica (que seria a
representação do passado a partir do discurso crítico segundo o
historiador) haveria um jogo dialético, interativo e recíproco. Deste jogo
surgiria o Ciclo do Extremo Norte como um lugar de memória sobre a
Amazônia, e em especial sobre a cidade de Belém, a Ilha do Marajó e o
Baixo Amazonas paraense.
Com uma pesquisa de caráter transdisciplinar, a historiadora Jacy
Alves de Seixas (2002)9 envolve a literatura de Proust e a filosofia de
Bergson, Bachelard e Nietzche para repensar as relações entre memória e
história, e, mais do que isso, para propor um diálogo que possibilite
informar a história sobre os procedimentos próprios da memória (nem
sempre redutíveis aos métodos historiográficos). Seixas discorda de Nora,
quando este afirma que “se ainda habitássemos a nossa memória não
haveria a necessidade de lhe consagrar lugares específicos”. Tal
discordância surge do fato de o autor desconsiderar um traço fundamental
da memória, a “espacialização do tempo”10, traço este que nos é
fundamental neste estudo, tanto na compreensão da perspectiva política
de Dalcídio Jurandir, como na sua percepção sobre o fausto e a decadência
da cidade de Belém.
A memória exprime-se, materializa-se e atualiza-se a partir dos
“lugares de memória”, como nos romances que compõem o Ciclo do
Extremo Norte. Desta forma, os lugares da memória não representariam,
como afirma Nora, a manifestação de uma memória historicizada, mas sim
a “irrupção afetiva e simbólica da memória em seu diálogo sempre atual

6 Ibid, p. 22
7 Op.Cit., p. 22
8 Op.Cit., p. 9
9 SEIXAS, Jacy Alves. “Os tempos da memória: (des) continuidade e projeção: uma reflexão (in)

atual para a história?”. Proj. História, São Paulo, n. 24, jun. 2002.
10 Op.Cit., p. 44
com a história”11. É porque Dalcídio Jurandir ainda habita a sua memória
no momento em que escreve o Ciclo do Extremo Norte, que os romances
podem ser compreendidos como “lugares de memória”. O fato de essa
memória ser descontínua e fragmentada, como as experiências da
modernidade, não caracteriza uma ausência de memória.
A perspectiva de Seixas vai ao encontro do nosso propósito de análise,
uma vez que a historiadora trabalha a memória no plural, ou seja, não se
ocupando apenas com a “memória voluntária”, mas também com a
“memória involuntária”, afirmando inclusive que ambas existem nos
romances do século XX, como nos de Marcel Proust. E é a partir da obra de
Proust que a pesquisadora envereda por uma discussão sobre memória
voluntária e involuntária. Se o historiador se ocupa apenas com a memória
voluntária, afirma Seixas, o mesmo deixará escapar toda a dimensão
afetiva e descontínua da vida e das ações humanas, e é exatamente essa
dimensão afetiva das ações políticas e literárias de Dalcídio Jurandir que
se busca problematizar neste estudo.
Essa faceta involuntária da memória dialoga com diversos e múltiplos
tempos, reatualizando as experiências passadas. Essas reatualizações
ocorrem em um “instante”, o qual não possui duração maior do que “um
relâmpago”, e é por esse motivo que a materialidade da memória nos
aparece como algo que “irrompe”, um passado que retorna porquê de
alguma forma ainda não passou, continua ativo e atual, sendo então
retomado, recriado, reatualizado12.
Dalcídio Jurandir afirmou, em vários momentos, que buscou
“fragmentos de sua memória” para construir a narrativa do Ciclo do
Extremo Norte, a partir “do menino que foi, com os pés fincados em
Cachoeira do Arari”, e olhando Belém sempre como “casa alheia”,
pintando os seus romances com cores de um testemunho histórico de um
caboclo marajoara13. Sua memória múltipla (voluntária e involuntária) vai
dialogar com diversos tempos e espaços – os anos de 1900 em Cachoeira
do Arari uma pequena cidade isolada entre fazendas e campos alagados
quase no centro da Ilha do Marajó; a Amazônia cabana de meados do
século XIX; a Belém da população pobre da virada do século XIX para o
XX; a Belém da belle époque lemista do fausto e do progresso urbano14; a

11 Ibid., p. 44
12 Op.Cit., p. 49
13 Op.Cit., p. 96-97
14 A cidade de Belém do Pará na virada do século XIX para o século XX sofreu um processo de

remodelamento e higienização com os recursos vindos do comércio da borracha, devido a


necessidade da mesma no mercado internacional. O intendente Antônio José de Lemos é o
político mais lembrado e exaltado pela historiografia que estuda o período, uma vez que levou a
cabo as maiores transformações empreendidas na capital paraense. O “fausto lemista” ou a belle
époque de Belém do Pará reverbera na memória social da região até os dias atuais.
Belém da decadência dos anos de 192015; o tempo da sua vivência de
funcionário público e romancista no interior do Pará e, em seguida, na
capital nos anos de 1930 e 1940 – para reatualizar todas as suas experiências
passadas, que vão irromper recriadas em seus romances do Ciclo, lugares
da memória do extremo Norte do Brasil. Como em Proust, a memória em
Dalcídio Jurandir opera fusão, recuperando a superposição de tempos
múltiplos, justamente porque incorpora o instante e coloca-o na condição
de memória, e isto pode ser visto no emprego do discurso indireto livre e
dos monólogos que marcam as enunciações do romance dalcidiano.
É Marcel Proust que, segundo Seixas (2004), ao fundir instante e
duração, cria esteticamente uma dimensão particular do tempo, que seria
“atemporal”, algo que só emerge porque trama todos os tempos
descontínuos e assimétricos constitutivos de uma duração. Cabanagem,
belle époque de Antônio Lemos, decadência do fausto, é este atemporal
proustiano que irrompe nas tramas do Ciclo do Extremo Norte analisadas
neste estudo, porque tramam todos os tempos descontínuos e assimétricos
constitutivos da duração proposta por Dalcídio Jurandir.
A memória em Dalcídio Jurandir é construtiva. Ela age tecendo fios
entre personagens, lugares, tempos e acontecimentos, tornando uns mais
densos do que os outros. Dalcídio Jurandir, como Proust, reencontra o
vivido ao mesmo tempo no passado e no presente e desta maneira recria a
sua percepção do real, de uma realidade que se forma na memória e que
encontra o seu lugar na sua narrativa. O tempo que ele retoma, seja a
cabanagem, a belle époque ou a decadência, é um tempo que começa de novo
e não se refere apenas ao passado e ao presente, mas também ao futuro e,
especialmente, a uma capacidade otimista do autor de acreditar neste
futuro e em uma humanidade melhor.
A memória atualiza o passado ao introduzi-lo no presente, porém,
esse passado não é único, ele é plural, o que Seixas (2004) chama de “plural
de descontinuidades”. Os lugares da memória acoplam-se formando
mundos à parte e que são passíveis de serem colocados em comunicação
pela memória. Essa memória pode nos levar a lugares diversos – e a
narrativa dos romances de Dalcídio Jurandir sobre Belém é um bom
exemplo disso −, “viajando” pelos vários tempos e por vários lugares, pelas
“cidades” de Belém (Guamá, Covões de São Brás, Nazaré, Umarizal, etc.),
porém esses planos descontínuos e lacunares da memória constroem uma

15 A ideia de decadência de Belém foi sendo gestada pela elite política nos anos de 1910 e 1920,
elite esta que não dispunha mais das altas somas de dinheiro para investir no embelezamento da
cidade; mas também pela imprensa, que, fazendo oposição aos gestores da época, intensificava o
aspecto de ruína da cidade, que já havia sido considerada a Paris n´América, nos tempos faustosos
de Antônio Lemos; e, por fim, por muitos intelectuais que viveram o período Lemos ou que se
relacionavam com estes nas repartições públicas, nas oficinas jornalísticas, na confecção de
revistas como A Semana e Belém Nova, ou nos encontros cotidianos fora do expediente de trabalho.
continuidade, algo que é único. Por isso a autora afirma que a memória
constrói o real muito mais do o que resgata.
Podemos inferir uma possibilidade de construção do real em Dalcídio
Jurandir, a partir de uma passagem do romance Belém do Grão-Pará, na qual
o narrador, ao descrever o Círio de Nazaré (vivido pelas personagens
pobres da trama), apropria-se desta faceta involuntária da memória do
escritor, dialogando com tempos diversos e múltiplos. Trata-se da
passagem em que a personagem “mãe Ciana” vê quando a procissão da
transladação chega à Igreja da Sé, no bairro da Cidade Velha, em Belém,
procissão que ocorre na noite anterior ao Círio de Nazaré, considerada em
prosa e verso como uma das maiores festas religiosas do Brasil. Todos esses
tempos vistos pela personagem mãe Ciana ou que são “sabidos” (memória
histórica da região) pelo narrador se reatualizam neste instante de fé e
devoção, que irrompe exatamente na chegada da imagem da padroeira de
Belém à Igreja da Sé, retornando todo um passado que continua ativo e
atual, reatualizado por Jurandir:

A transladação chegou ao ponto, na Sé, agora escoava-se. A Sé guarda a


imagem. Cobria-se de visões do seu passado, a Cidade Velha. Mãe Ciana via
o tempo velho chegando. Nasciam de novo, prateando sobre o arvorecer
antigo, aqueles igarapés em que índio andou, cabano viu. Ao pé do Castelo,
as idosas gurijubas rabeavam. Desembarcavam pajés do salgado, seus
cachimbos acesos, os maracás, suas rezas. Das velhas barcas de Portugal
pulavam as marujadas. E negros do Mazagão com seus tambores, dentro da
Sé, a modo que estrondavam. Mãe Ciana trazia também seus pretos do
Araquiçaua, os afogados e desaparecidos tirava do fundo e do invisível,
todos eles na Sé, guardando a imagem, falando suas tantas reclamações, seus
ais. E os do Guamá, também não? O sono da Cobra Norato debaixo da Sé, a
Mãe Ciana escutava16.

Então, ao incorporar o “instante” da chegada da procissão na Igreja


da Sé, colocando-o na condição de memória, Jurandir opera fusão,
recuperando a superposição dos múltiplos tempos: tempo em que as ruas
de Belém eram rios, onde os índios andavam em seus barcos; tempo em
que o cabano revolucionário viveu, em que pajés vinham da região do
Salgado para a transladação; em que barcas de Portugal traziam marujas;
em que negros escravos tocavam seus tambores dentro da Sé; tempo em
que muitas “mães Cianas”, miseráveis e invisíveis, levavam suas dores
para suplicar por salvação. Todos esses tempos se superpunham, ao serem
fundidos instante e duração, o instante da transladação e a duração dos
múltiplos tempos de Belém do Grão-Pará, sendo criada assim esteticamente
a dimensão atemporal, que emergiu a partir do momento em que se

16 Ibid., p. 284
tramaram todos os tempos descontínuos e assimétricos e simultaneamente
construiu-se a sua duração.
Ao reencontrar o vivido no tempo passado de índios, cabanos,
marujos, negros escravos, pajés, e no tempo presente dos roceiros do
interior do Pará, da cidade de São Miguel do Guamá, Jurandir recria a sua
percepção do real, de uma realidade que funde vários tempos e lugares e
que se forma em sua memória, encontrando o seu lugar na narrativa. O
tempo da transladação de 1922 é um tempo que começa de novo e que se
refere não apenas ao passado e ao presente, mas também à possibilidade
de um futuro diferente, aberto pela rebelião dos roceiros do Guamá. Desta
forma, o romance Belém do Grão-Pará, e todo o Ciclo do Extremo Norte, é
compreendido neste trabalho, também, como um lugar de memória da
região.
Dalcídio Jurandir, afirma, certas vezes, que seus romances eram
fruto de sua imaginação (ficção), do seu pensamento (ideias relacionadas à
sua leitura do mundo) e de seu sangue (experiência de vida no Marajó, em
Belém e no mundo) (NUNES, 2006, p. 50)17. Tinha o costume de escrever
para familiares e amigos da região para colher informações, como fez com
seu irmão Ritacínio, em janeiro de 1958, pedindo informações sobre
famílias, pessoas e ofícios de Belém e do interior para a construção do
romance Belém do Grão-Pará:

[...] quero sobretudo notas sobre o seu Augusto Aires e das famílias de Ponta
de Pedras e de Cachoeira das quais tenho que tirar algumas personagens em
plena elaboração. As notas recebidas servirão para o preto Sebastião que já
está em Três Casas e aparece nesse terceiro volume. O romance, na Martins,
deve aparecer com algum atraso, agora penso que em março [...] Mandei
uma carta pedindo notas e mais notas, deves receber, por estes dias [...] Estou
ansioso que tenhas recebido ou vais receber carta que te pede várias coisas
ligadas ao romance. Interessa-me do Flaviano [...] aspectos de ruína de
famílias [...] os altos e baixos da camada média do interior, em detalhes
concretos [...] uma coisa me interessa: é o trabalho das pessoas, os alfaiates,
os sapateiros, os carpinteiros – alguns detalhes18.

Segundo Hobsbawm (1998)19, muitos trabalhadores manuais


praticavam atividades intelectuais, como a dramaturgia e a poesia, embora
os sapateiros tivessem sido definidos por muitos historiadores como os
mais radicais. O mesmo autor aponta para o Brasil, afirmando que o
primeiro anarquista de que se tem notícia em nosso país foi um italiano,
sapateiro, que vivia numa cidade provinciana do Rio Grande do Sul. Ele

17 NUNES, Benedito (Org.). Dalcídio Jurandir, romancista da Amazônia: literatura e memória. Local:
SECULT/ FCRB/ IDJ, 2006.
18 Ibid., p. 55. (grifo nosso)
19 HOBSBAWM, Eric. “Sapateiros politizados”. In: HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias:

resistência, rebelião e jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.


também ressalta como primeiro sindicato brasileiro, de inspiração
anarquista, uma Associação de Sapateiros de Curitiba. Em Belém, o maior
nome do Modernismo dos anos de 1920, o mais admirado entre todos eles
pelas gerações posteriores (MENDES, 2006)20, teria sido um aprendiz de
tipógrafo da livraria Moderna: Bruno de Menezes. Foi justamente no
período em que sofria castigos corporais impostos pelo seu chefe que o
operário teve contato com obras de esquerda, de autores como Tolstói,
Gorki, Marx, Engels e autores anarquistas. Sua adesão a esta literatura teria
sido algo imediato (FIGUEIREDO, 2011)21.
Trabalhadores que desenvolvem atividades artesanais são
personagens constantes nos romances de Dalcídio Jurandir, por isso o
nosso grifo na citação da carta a Ritacínio e a referência a Bruno de
Menezes, uma vez que este era declaradamente a maior referência da
literatura paraense em Jurandir. E não apenas isto, Mendes (2006)22 chegou
a afirmar que o grande e “brilhante” continuador da obra de ficção do
Bruno de Menezes foi Dalcídio Jurandir, o qual, assim como Menezes, fez
romance realista, engajado e preocupado com as injustiças sociais.
Desta forma, infere-se que ao buscar conhecer as experiências de vida
e trabalho dos operários pobres da Amazônia e ao retratá-los como
“rebeldes” em seus romances, Jurandir inspirou-se, no caso, em Bruno de
Menezes, ao criar a personagem “seu Lício”, em Belém do Grão-Pará, que,
além de anarquista, operário, rebelde, escrevia em um jornal alternativo no
qual o próprio Bruno de Menezes escreveu de fato, “O Semeador”. Era lá
que seu Lício “pipocava palavras contra a Plutocracia: A ralé, a escória, a
plebe, os que produzem tudo quanto o mais fazem, menos merecem. O que
fazer?” (JURANDIR, 2004)23. Em um de seus muitos cadernos pessoais,
manuscritos, encontramos anotações referentes ao processo de criação do
romance Belém do Grão-Pará, que corrobora a nossa inferência acima:

Iracema – a menina de Soure.


Jornais indicados pelo Bruno.
O Semeador –
Cantavam a internacional.
Ver recortes de Bruno24.

20 MENDES, Francisco Paulo. In: NUNES, Benedito. Francisco Paulo Mendes, O fazedor de poetas.
Belém: Secult, 2006.
21 FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Os vândalos do apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará

dos anos 20. Belém: IAP, 2011.


22 Op.Cit., 178
23 Ibid., p. 397
24 Este caderno manuscrito de Dalcídio Jurandir encontra-se no Acervo de Dalcídio Jurandir, no

Arquivo Museu de Literatura Brasileira, na Fundação Casa de Rui Barbosa, nos Documentos
Pessoais, código DJ Pi 50. No mesmo caderno existem mais referências ao Bruno de Menezes:
“notas sobre Bruno de Menezes, paraense – Bruno não ficou na fronteira em 1914. Pulou a frente
e veio para o futuro como uma vanguarda.
É também nesses cadernos manuscritos que Dalcídio Jurandir fez
várias referências e anotações sobre lavradores falidos que, com fome,
decidiram assaltar o comércio e sítios do interior do Estado do Pará, com
destaque para a cidade de São Miguel do Guamá, como o exemplo
registrado abaixo:

Um bando de lavradores falido pela fome assalta o comércio e os sítios do


Guamá. Colocar este assunto e o assalto do Guamá com a conversa dos
Samicos – levantes de lavradores – 24 de fevereiro de 1921.
X
O preto Juvenal Agapilo – aqui o tio José pode vir do Guamá.
X
Examinar esta agitação no Guamá Vila: Ver O Estado do Pará – de fevereiro
de 1921.
O depoimento dos comerciantes. Só assaltavam casas de comércio.
Empunhavam armas25.

A personagem seu Lício e os roceiros de São Miguel do Guamá,


paulatinamente, tornam-se as personagens centrais de uma trama situada
nos anos de 1920, momento em que o Pará e a capital Belém, viviam uma
grave crise econômica, crise esta que corroborou com a construção de uma
memória positiva em relação ao intendente Antônio Lemos e a uma
sensação de nostalgia de uma Belém de riqueza e esplendor. Segundo o
narrador da trama, Seu Lício – o herói dalcidiano que veio do seio das
classes populares – havia tido uma vida com poucos perigos verdadeiros,
até aquele momento, já que a personagem estava envolvida com a rebelião
dos roceiros e com a fuga de seu líder, Jerônimo, rapaz que havia sido
cercado pelos policiais e separado do seu bando, mas que conseguiu fugir
em um “pau de bubuia, escondendo-se em uma local de bicho, apanha um
barco” (JURANDIR, 2004)26.
Seguindo os rastros apontados pelos manuscritos do literato, fizemos
o levantamento dos jornais da época sobre a rebelião dos roceiros. Segundo
o periódico Folha do Norte, era terrível a situação no interior do Pará, onde
um grupo de “bandoleiros” assaltava os comerciantes e colocava pânico na
população. Eram urgentes a ação do Estado e a “condenação formal da
opinião pública contra esses bandidos que depredam e atacam as
propriedades27”. Ainda conforme o jornal, os “bandidos” em atos

25 Este caderno manuscrito de Dalcídio Jurandir encontra-se no Acervo de Dalcídio Jurandir, no


Arquivo Museu de Literatura Brasileira, na Fundação Casa de Rui Barbosa, nos Documentos
Pessoais, código DJ Pi 50.
26 Ibid., p. 240
27 Os acontecimentos do Guamá. Folha do Norte. Belém, 24 de fevereiro de 1921; Os sucessos do

Guamá. Folha do Norte. Belém, 26 de fevereiro de 1921; Os acontecimentos do Guamá. Folha do


Norte. Belém, 01 de março de 1921; Os acontecimentos do Guamá. Folha do Norte. Belém, 04 de
“selvagens” eram motivados não pela fome, mas pelo espírito de
perversidade. Entende-se que a publicação apenas reproduz a perspectiva
dos comerciantes de São Miguel do Guamá e das demais localidades
atingidas, como Itaituba, Ourém, Capanema, Gurupá, e silencia sobre algo
que recorrentemente estampava nas suas manchetes: a miséria e a fome
que assolavam o interior do Pará.
No periódico O Estado do Pará, as matérias vinculadas aos
“saqueadores” e “bandoleiros”, na coluna diária “Graves Sucessos no
Interior”, afirmavam que eles estavam causando pânico entre os
comerciantes e a população não apenas de São Miguel do Guamá e Irituia,
mas também de Ourém, e a tendência era de que se espalhassem por todo
interior do Estado. Embora o jornal mencionasse a miséria e a fome entre
as causas da rebelião, também condenava os bandoleiros, como assaltantes
perversos que colocavam a população em risco28. Porém, a publicação não
mostrou nenhum depoimento de populares atacados pelo grupo de
“bandoleiros”.
O jornal A Província do Pará, também em uma coluna intitulada
“Anarchia no Interior29”, vai condenar os rebeldes, chamando-os de

março de 1921; Os bandoleiros de Capanema. Folha do Norte. Belém, 07 de março de 1921; Os


sucessos do Guamá. Folha do Norte. Belém, 10 de março de 1921; Os sucessos do Guamá. Folha
do Norte. Belém, 11 de março de 1921; Os sucessos do Guamá. Folha do Norte. Belém, 23 de
março de 1921; Os bandoleiros do Guamá. Folha do Norte. Belém, 25 de março de 1921; Os
sucessos de Gurupá. Os sucessos do Guamá. Folha do Norte. Belém, 30 de março de 1921.
28 Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 22 de fevereiro de 1921; Graves Sucessos

no interior. O Estado do Pará. Belém, 22 de fevereiro de 1922; Graves Sucessos no interior. O


Estado do Pará. Belém, 24 de fevereiro de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará.
Belém, 26 de fevereiro de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 27 de
fevereiro de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 01 de março de 1921;
Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 02 de março de 1921; Graves Sucessos no
interior. O Estado do Pará. Belém, 03 de março de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do
Pará. Belém, 04 de março de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 05 de
março de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 06 de março de 1921; Graves
Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 07 de março de 1921; Graves Sucessos no interior.
O Estado do Pará. Belém, 08 de março de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará.
Belém, 09 de março de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 10 de março
de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 11 de março de 1921; Graves
Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 12 de março de 1921; Graves Sucessos no interior.
O Estado do Pará. Belém, 13 de março de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará.
Belém, 14 de março de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 15 de março
de 1921; Graves Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 16 de março de 1921; Graves
Sucessos no interior. O Estado do Pará. Belém, 17 de março de 1921; Graves Sucessos no interior.
O Estado do Pará. Belém, 18 de março de 1921.
29 Anarchia no Interior. A Província do Pará. Belém, 24 de fevereiro de 1921; Anarchia no Interior.

A Província do Pará. Belém, 26 de fevereiro de 1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará.


Belém, 27 de fevereiro de 1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará. Belém, 02 de março de
1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará. Belém, 03 de março de 1921; Anarchia no Interior.
A Província do Pará. Belém, 04 de março de 1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará.
Belém, 06 de março de 1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará. Belém, 07 de março de
1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará. Belém, 09 de março de 1921; Anarchia no Interior.
“criminosos”, que, “assaltando várias casas comerciais” em bandos
armados, desorganizavam a vida e o comércio no interior. Embora o
periódico afirme que muitos homens se juntavam ao grupo sob ameaça de
morte, sem ter como comprovar tal afirmativa, é uma informação
importante, uma vez que nas matérias dos três jornais é recorrente a fala
de que os bandos cresciam e que mais cidades eram saqueadas pelo interior
do Pará, o que nos parece ter sido um movimento que incomodou bastante
o Estado e os grupos que estavam no poder. Segundo o articulista de A
Província do Pará, “a força da brigada que se acha em São Miguel, 37 praças,
não é suficiente para reprimir o movimento de desordem, visto que o
número de desordeiros aumenta cada vez mais, sendo que muitos se
agrupam ao bando sob ameaça de morte”.
Dalcídio Jurandir, apesar da pesquisa que fez nos periódicos da
região, constrói uma outra perspectiva de narrativa histórica sobre a
rebelião dos roceiros do interior do Estado do Pará. Diferente dos
periódicos, que deu voz apenas ao Estado, à chefatura de política e aos
comerciantes, em seu romance o escritor vai dar voz para as personagens
que se envolveram heroicamente com a rebelião dos roceiros do Guamá,
rebelião esta que se sobrepunha, paulatinamente, na trama, à Belém dos
escombros lemistas, possivelmente porque o romancista percebia a história
como um campo de lutas, de atritos sociais entre classes antagônicas, e
tinha um compromisso com a maioria explorada, compromisso que podia
ser visto em suas obras, uma vez que fazia um romance político, e este
romance seria a sua contribuição para a transformação do mundo, assim
pensava.
Compreendemos também que, ao se referir recorrentemente à
Cabanagem30 – tanto em Belém do Grão-Pará como em Passagem dos Inocentes
–, Dalcídio Jurandir apresenta o presente “decadente” da Belém do Grão-
Pará (nos anos de 1920), iluminado pelo seu passado cabano rebelde, a
partir da rebelião dos roceiros. Era da Cabanagem que os rebeldes do

A Província do Pará. Belém, 11 de março de 1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará.


Belém, 12 de março de 1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará. Belém, 13 de março de
1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará. Belém, 15 de março de 1921; Anarchia no Interior.
A Província do Pará. Belém, 17 de março de 1921; Anarchia no Interior. A Província do Pará.
Belém, 18 de março de 1921.
30 Nos anos em que Dalcídio Jurandir escrevia o romance, o movimento cabano ainda era visto

pela historiografia ora como uma anarquia, uma sedição, a rebelião de uma canalha maltrapilha
que matou os honrados do Pará, no sentido atribuído por Domingos Antônio Raiol; ora em uma
perspectiva mais atual, como a atribuída por Jorge Hurley durante as comemorações dos cem
anos do movimento cabano (1935) no Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), em que a
Cabanagem é vista como a opressão de certas autoridades enviadas ao Pará pela ordem imperial.
Desta perspectiva os líderes cabanos eram ingênuos, não estavam preparados para liderar com a
massa, nem para exercer o poder; já o povo cabano era apenas o reflexo de suas lideranças, sendo
exatamente por isso que ela não deu certo, uma vez que seu mentor, Batista Campos, única
liderança preparada, morreu antes de ser deflagrada a luta.
século XX deveriam tirar os aprendizados e fortalecer no seu presente a sua
rebelião. Dalcídio Jurandir, o “cronista” que astuciosamente denunciava as
mazelas de sua época (BENJAMIN, 2012. p. 10)31, vai arrancar do passado
cabano a esperança do presente da cidade de Belém em ruínas, como uma
“recordação que relampeja como um clarão no momento de um perigo” 32.
Nasce então um novo sol na Belém do Grão-Pará a partir da
humanidade oprimida e faminta do interior do Estado, que tem a
possibilidade de redimir os cabanos, milhares de homens e mulheres
anônimos que haviam sido condenados à obscuridade e ao silêncio,
inclusive pela própria historiografia. Ao trazer a cabanagem para o
presente, o literato fala em nome dos que a História havia calado, no
próprio passado cabano, no “fausto” lemista, nos anos de 1920 (os jornais
que silenciam a perspectiva dos roceiros do interior) e no momento em que
ele escrevia o romance.
No almoço do Círio de 1922, na casa em ruínas dos Alcântara, núcleo
da trama saudosos do fausto do período do intendente Lemos, seu Lício
aparece para “desagregar as coisas”. Convidado a participar do almoço
dos Alcântara, a personagem Seu Lício33, encadernador, revolucionário e
escritor do jornal O Semeador, foi levado a expor sua “Chama libertária”, e
é esta personagem que nos leva à “agregação” do sentido de história dado
ao romance por Dalcídio Jurandir.
Diz-nos o narrador, com certa simpatia, que o jornal O Semeador tinha
pouca tiragem, mas ferozes resultados, “relampejando entre os operários
da Federação dos Trabalhadores” (JURANDIR, 2004)34. Lá a personagem
Seu Lício escrevia as ideais que aprendera com os europeus e “escarrava
na cara dos burgueses”35. Já no almoço, o encadernador reviveu as greves
das quais participara, especialmente a de 1918, quando os trabalhadores
reclamavam do inglês que “explorava a luz e os bondes de Belém” e se
negava a aumentar o salário deles, enquanto a imprensa, leia-se o jornal
Folha do Norte36, posicionava-se ao lado dos empresários estrangeiros e

31 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História”. In: BARRETO, João. Walter Benjamin: o anjo
da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
32 Op.Cit., p. 11
33 Como já mencionado na primeira parte deste estudo, deduzimos que Dalcídio Jurandir se

inspirou no poeta Bruno de Menezes ao criar a personagem Seu Lício, anarquista, operário e
rebelde, como o próprio poeta na sua juventude, e que escrevia no jornal alternativo O Semeador,
espaço em que aquele de fato escreveu. Nos cadernos manuscritos de Dalcídio Jurandir, quando
está criando o romance Belém do Grão-Pará, há referências diretas a Bruno de Menezes, quando
da criação de Seu Lício e das personagens operárias. O caderno manuscrito pode ser encontrado
no Acervo Dalcídio Jurandir, no Arquivo Museu de Literatura Brasileira, na Fundação Casa de
Rui Barbosa, nos Documentos Pessoais, código DJ Pi 50.
34 Ibid., p. 397
35 Op.Cit., p. 397
36 Mais um dos indícios de que Dalcídio Jurandir pesquisava em jornais antigos para construir os

seus romances, uma vez que, como vimos, o Jornal Folha do Norte, durante os anos finais de 1910
e 1920, tinha um posicionamento favorável aos “lauristas” que estavam no poder.
afirmava que a greve era um dos indícios da “desagregação das coisas”
(JURANDIR, 2004)37. A personagem Seu Lício então queixa-se do marasmo
social que Belém vivia em 1922, mas tinha confiança que um dia o povo
iria acordar, pois este povo era descendente da “fidalguia Cabana”.
Dessa forma, inferimos que o sentido de história atribuído por
Dalcídio Jurandir ao mencionar a “desagregação das coisas” na cidade de
Belém é oposto ao de decadência do fausto lemista. A desagregação seria
a revolução social no sentido atribuído por Walter Benjamin (2012). A
Belém do “fausto” vivia nos anos de 1920 a catástrofe, devido à crença num
progresso mecanicista e linear, num tempo homogêneo e vazio, que não
beneficiou a sociedade como um todo e que trouxe como consequência a
ruína do mundo em que se vivia, e essa ruína do mundo no romance era
simbolizada pela família Alcântara e pelo centro da cidade de Belém do
Grão-Pará nos anos de 1920.
Na compreensão de história de Dalcídio Jurandir, era preciso que os
militantes revolucionários, como a personagem Lício e as classes populares
não beneficiadas com o progresso de outrora “escovassem a história a
contrapelo” e fizessem com que a revolução interrompesse a caminhada
para a catástrofe final e total da cidade de Belém – uma vez que a
consequência final do progresso burguês para Benjamin e também para
Jurandir era a catástrofe –, enchendo nos tempos do “agoras” os citadinos
de esperança (BENJAMIN, 2012). A esperança utópica de que a revolução
pudesse ocorrer a qualquer momento, como uma possibilidade aberta pelo
presente histórico, alimenta o romance Belém do Grão-Pará e as classes
populares, a partir da rebelião dos roceiros do interior do Estado, em São
Miguel do Guamá.
Enquanto o mundo da burguesia da borracha estava em ruínas, em
decadência, como simboliza o desabamento da casa na Estrada de Nazaré,
restando o piano na rua, debaixo da mangueira, como um símbolo dos
escombros do fausto lemista (JURANDIR, 2004)38; no interior da Belém do
Grão-Pará, a rebeldia dos roceiros do Guamá “desagregava as coisas” e
enchia de esperança as personagens nos “agoras” de 1922. A caminhada
da cidade de Belém nadava contra a corrente do progresso burguês, logo a
solução para a crise que sofria o Pará há nove anos era a rebelião dos
roceiros, a qual criativamente unia os pontos separados no tempo histórico
da Belém do Grão-Pará, ou seja, do auge da borracha no mercado
internacional em 1880, à decadência do fausto nos anos de 1920 e à
Cabanagem de meados do século XIX, porém abrindo a possibilidade de
algo completamente novo em meados do século XX.

37 Ibid., p. 410
38 Op.Cit., p.524
No romance Passagem dos Inocentes (1963) como que cansada da
situação de omissão dos poderes públicos, de exclusão social e de falência
total, a população pobre da cidade de Belém se reuniu no centro, na praça
da República, ao redor do maior símbolo dos tempos da Belle époque de
Antônio Lemos, para reivindicar uma solução para o caos que se abateu
sobre a cidade devido à paralisação do funcionamento do forno da Usina
da Cremação, responsável pela incineração do lixo da cidade. Com o forno
parado, o lixo se espalhou pelas ruas de Belém, causando uma “moléstia”
nas crianças das classes populares, a qual os médicos não sabiam
diagnosticar.
A manifestação é feita por homens e mulheres trabalhadores, com
faixas que caracterizam muito bem as suas funções, e com a bandeira
encarnada – possivelmente vermelha, em uma alusão aos partidos de
esquerda, comunista e anarquista. Na Belém dos inocentes, os espoliados
fazem tremer a República. Um desses personagens nos era velho
conhecido, como Seu Lício.
Era a personagem Seu Lício, a voz dos operários espoliados:

– O Herodes dessa matança, o Herodes desse decreto, mães, pais, irmãos, o


Herodes? É o capital! O capital!
Alfredo morde o dedo, a unha no peito, a mão nas costas molhadas, quem?
O Capital? Mais mistérios aqui que os de dona Celeste [...].
– Meu compadre forneiro de fundição, conte, conte como expirou o meu
afilhado Ismael. Me convidou para padrinho e fui eu mesmo que tive que
batizar, no último alento, o pagão. Padre, quem disse? Onde ficaram, onde
estão os padres? Abençoando a conferencia, arrastando a batina nos tapetes
do Palácio? Encomendando os anjos na Basílica esta que quanto mais entra
dinheiro aí que a obra nunca se acaba? (1963, p. 207)39.

A personagem Lício era a voz dos operários explorados, a voz do


anarco-comunismo da Belém dos Inocentes, a voz dos literatos e tipógrafos
de O Semeador, a voz das classes populares; ele surge afirmando que o
Herodes da matança das criancinhas indefesas da cidade era “O Capital”.
Ora, enquanto Herodes, o governador da Judéia, na época em que
Jesus Cristo nasceu, mandou matar todos os meninos da Belém com menos
de dois anos de idade, para assim evitar problemas futuros com o
surgimento de um ou do próprio Messias salvador, “O Capital” estava
dizimando as criancinhas da Belém dos inocentes, também com o objetivo
de evitar que futuramente algum desses infelizes decidissem se tornar o
Messias salvador dos espoliados.
Quem era “O capital”, este grande culpado pela miséria e morte das
crianças das classes populares? “O capital” era quem comprava a força de
trabalho dos proletários (no sentido de que a única coisa que tinham era a

39 JURANDIR, Dalcídio. Passagem dos Inocentes. São Paulo: Martins, 1963.


sua prole, ou seja, seus filhos), que havia sido transformada em mercadoria
no momento em que os trabalhadores foram expropriados dos seus meios
de produção por este mesmo “O Capital”.
O problema era que, a personagem Lício sabia muito bem disso, havia
aprendido na sua experiência de luta pela vida que o valor do salário dos
trabalhadores era menor do que o produto do seu trabalho, o que gerava
grandes lucros para “O Capital” a partir da mais-valia, as horas que eram
trabalhadas por estes proletários e não eram pagas, ou seja, a lógica do
capital, a mais-valia, era a exploração da força de trabalho desses
indivíduos, por isso mesmo sua miséria era culpa de “O Capital” (MARX,
2011, p. 212)40. Este que era o Herodes da Belém dos Inocentes, era ele que,
ao explorar os trabalhadores, gerava miséria, fome, os covões, a
insalubridade e as epidemias. Era preciso acabar com “O Capital”.
Na Belém dos inocentes, “O Capital” vinha ceifando a vida dos
companheiros operários em suas lutas, e nessa luta havia apenas
opressores e oprimidos, em constante oposição, vivendo em uma guerra
ininterrupta, ora aberta, ora camuflada, e que só teria fim com uma
transformação revolucionária.
E a revolução entre as classes populares em Belém tinha uma feição,
um tempo e muitas histórias, a história da Cabanagem. Havia chegado a
hora de fazer com “O Capital” “o que os cabanos faziam com os inimigos.
Capavam, dependuravam os grãos dos capados no pescoço das viúvas”41.
Na perspectiva de história construída por Dalcídio Jurandir na trama
dos Inocentes, o Estado que divulgava o progresso e a modernidade,
mesmo em meio à crise econômica dos anos de 1920, perseguia os que não
conseguiam se inserir nos novos tempos, prendia os capoeiras, as
meretrizes, os que eram vistos como vagabundos de toda espécie. O que
este Estado trouxe para esses homens miseráveis, para essas mães
lavadeiras, passadeiras, amassadoras de açaí, tacacazeiras, vendedoras de
cheiro, costureiras, cozinheiras, para os milhares de operários que estavam
nas ruas a suar de sol a sol? O “fausto falso”? A saída para a crise
econômica laurista dos anos de 1920? O que era o progresso na trama
Passagem dos Inocentes? O narrador de Dalcídio Jurandir nos responde: “O
progresso é mosca, e anjo morrendo”42.
Mas era preciso não perder a esperança. Nos anos de 1950, Dalcídio
Jurandir percebia que, na “simplicidade e firmeza43” dessa gente, que vivia
uma “dura existência”, era em que se poderia confiar o “poderoso lastro
do nosso ainda incerto e balouçante barco da liberdade”. Era a “aristocracia

40 MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


41 Ibid., p. 208
42 Ibid., p. 217
43 JURANDIR, Dalcídio. “Conversa na rua escura”. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 20 de

setembro de 1955.
do pé no chão” o “lastro que evitava que o barco virasse”. Esse povo estava
despertando da “escória política” que “saltava as línguas da calúnia e da
mentira”. Agora, com “sede de saber coisas”, com “fome de aprender a
escolher”, esse povo tinha a necessidade de sair do “atoleiro da fome, da
exploração da miséria e da opressão”.
É também sobre essa crença na “aristocracia do pé no chão”, é sobre
essa certeza e esperança que tratam os dois romances analisados neste
estudo, que compreendem a decadência da cidade de Belém a partir da
experiência desta gente descalça, que não vivenciou o famoso fausto
lemista, mas que pagou as contas durante os anos da suposta decadência
do fausto da cidade de Belém. Diante do quadro de miséria, pobreza e
invasão da Amazônia, Dalcídio Jurandir acreditava que os homens como a
personagem seu Lício reagiriam, resistiriam, com “uma vitalidade, uma
solidariedade capaz de reagir a esse desmatamento cultural. Eu tenho
esperança44”. Esperança movia o homem e suas personagens das classes
populares, o sujeito social Dalcídio Jurandir e seus romances, nas lutas do
seu tempo, esperança na sua humanidade descalça.
Dalcídio Jurandir, nas suas histórias sobre a cidade de Belém, deu voz
a personagens como Lício, que buscava “desagregar as coisas”, propor um
novo começo, escrever a história a contrapelo, enchia nos tempos do
“agoras” os citadinos de Belém de esperança, em uma continua
reelaboração multifacetada do passado, do passado Cabano, do passado
da rebelião do roceiro de São Miguel do Guamá, do passado onde as classes
populares tomaram o protagonismo na história e tocaram fogo no projeto
de progresso burguês que a excluía. Era um exemplo para libertar, no
presente, os populares da “condescendência da posteridade”. Ainda é um
exemplo apropriado para o século XXI, onde se faz urgente e necessário
acordar a “aristocracia do pé no chão” que existe dentro dos citadinos de
Belém, descendentes dos “nobres fidalgos cabanos”, necessitados de uma
revolução.

Maíra Oliveira Maia é doutora em História Social da Amazônia. Docente do curso de


Licenciatura Plena em História da Universidade da Amazônia (UNAMA).
Contato [email protected]

Edgar Monteiro Chagas Júnior é doutor em Sociologia e Antropologia. Docente do programa de


Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura (PPGCLC) da Universidade da
Amazônia (UNAMA). [email protected]

44 JURANDIR, Dalcídio. “Um escritor no Purgatório”. Revista Escrita, Ano I, nº 6, 1976.


ASPECTOS ELEMENTARES DA
INSURREIÇÃO INDÍGENA: NOTAS EM
TORNO A OS RIOS PROFUNDOS, DE
JOSÉ MARÍA ARGUEDAS1
Marcos Natali

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
A leitura do romance Os rios profundos, do peruano José María José María
Arguedas, é o ponto de partida para uma reflexão sobre os efeitos de Arguedas;
revoltas populares em relatos de formação, em particular sobre suas Os rios profundos;
noções de futuro e passado. O trabalho examina como essas questões Insurreição;
escatológicas e arqueológicas ganham forma nos movimentos de Formação.
oscilação e quebra que caracterizam as narrações na obra de Arguedas,
esse conjunto de experimentos textuais elaborados em resposta às
fraturas que atravessam a sociedade peruana. Destaca-se ainda como o
problema do destinatário se torna decisivo para Arguedas, condição de
(im)possibilidade da escrita.

ABSTRACT KEYWORDS
The reading of the novel Deep Rivers (Los ríos profundos), by the Peruvian José María
author José María Arguedas, is the starting point for a consideration on the Arguedas;
effects of popular insurgencies on the Bildungsroman, particularly on its Deep Rivers;
notions of future and past. This essay then examines how these questions of Insurgency;
archaeology and eschatology acquire aesthetic shape in the oscillations and Formation.
breaks that characterize narration in Arguedas’s work, which may be seen as a
set of textual experiments that respond to the fractures in Peruvian society.
The paper also highlights the way in which the question of the addressee
becomes crucial for Arguedas, a condition for the (im)possibility of writing.

1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na Biblioteca Mario de Andrade em 2013,
como parte de uma série de conferências sobre o romance de formação organizada por Marcus
Mazzari e Murilo Marcondes de Moura, a quem agradeço mais uma vez aqui. O título que as
notas recebem nesta versão ampliada é uma homenagem ao livro Elementary Aspects of Peasant
Insurgency in Colonial India, do historiador Ranajit Guha.
N a cadeia de significantes associados à palavra formação
aparecem algumas das figurações dadas ao problema da origem e do
destino, desde um termo como conformação (que pode se referir tanto ao
ato de dar forma a algo quanto ao gesto de se submeter a um modelo ou
plano prévio) até uma palavra como deformação (que descreve uma
mudança de forma ou aspecto, uma desfiguração, a deturpação de um
sentido ou forma anterior). Até informação, mais árida e aparentemente
mais distante desse território inicial, inclui a possibilidade de uma
transformação, provocada nesse caso pela aquisição de um novo dado ou
saber. E assim a expressão formação vai nos remetendo rapidamente a
uma série de movimentos arrebatadores, difíceis de delimitar e controlar,
apontando para o passado e o futuro. Afinal, se não é simples determinar
quando e onde teria começado um processo qualquer de formação,
tampouco é fácil assegurar que uma formação já se encerrou, chegando a
seu fim, a começar pelo problema do lugar de enunciação e da
perspectiva necessários para nomear e definir algo como tendo sido,
justamente, um processo formador. Já está previsto na noção de formação
um lugar ou um ponto de vista além da formação.
Perguntas como essas, que são essencialmente arqueológicas e
escatológicas, exigindo uma teoria da teleologia que dê conta da
complexidade de seu funcionamento, insistem em retornar sempre que se
trata de pensar o singular conjunto de textos deixados pelo escritor
peruano José María Arguedas, mesmo agora, quase 50 anos após a sua
morte. A possibilidade mesma do encerramento – de uma obra, de um
povo, de uma cultura, de uma língua, de uma vida – é um espectro que
assombra essa produção, em mais de uma maneira. Nela uma nova
extinção parece estar sempre prestes a ocorrer, a suceder outra que já
teria acontecido e que teria nos deixado, nessa temporalidade além do
fim, incapazes até de perceber o que, afinal, foi perdido. No caso do livro
específico que disparou estas notas – Los ríos profundos, romance de 1958
traduzido ao português como Os rios profundos2 –, uma leitura que
começasse por seu estranho e nebuloso final encontraria o adolescente
Ernesto, aos seus 14 anos, caminhando entre montanhas peruanas sem
que se saiba bem aonde se dirige – e então termina o relato. O desfecho
da história não define os destinos de várias personagens e linhas

2 ARGUEDAS, José María. Los ríos profundos. México: Losada, 1998; Os rios profundos. Trad.
Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
narrativas centrais para o romance, e a leitora deixará o livro
desconhecendo, por exemplo, o paradeiro de Dona Felipa, líder do motim
em que mulheres pobres do povoado de Abancay, sublevadas, se
apoderaram de um depósito ilegal de sal e distribuíram o alimento entre
a população; ignorará inclusive se Dona Felipa sobreviveu. Tampouco
saberá se a febre tifoide de fato acometeu os camponeses indígenas da
região, embora o possível alastramento da doença tenha ocupado dezenas
de páginas perto do final do romance.
Nisso o desenlace elusivo da narrativa retoma uma sugestão
decisiva do romance: o embate entre diferentes segmentos da sociedade
peruana é, fundamentalmente, uma disputa pelo futuro. É o que se
depreende da aparição, em momentos críticos do romance, de falas que
se remetem ao porvir, em discursos proféticos pronunciados por
personagens como Ernesto (o narrador mestiço criado entre índios,
depois deixado no colégio interno de Abancay), Palacios (menino oriundo
de uma comunidade indígena e colega de Ernesto no colégio), e o
porteiro da escola, em fala já próxima das últimas páginas do livro. Essas
profecias estão relacionadas ao destino de Felipa e, consequentemente, ao
da rebelião que reivindicava acesso dos camponeses ao sal que estava
sendo distribuído apenas ao gado da região. A chichera (vendedora de
chicha, bebida fermentada feita de milho) Felipa escapa do povoado de
Abancay pouco antes da chegada do exército peruano, cujas tropas
haviam sido enviadas para reprimir a insurgência. Como não é
encontrada, tem início, quase que imediatamente, o rumor de que um dia
voltará ao povoado, dessa vez acompanhada de uma legião de índios
amazônicos, revivendo antiga espera andina pelo regresso de Atahualpa.
A esperança pelo retorno, que ecoa longa tradição de rumores
semelhantes, fora motivo de censura explícita do sacerdote local em
sermão após a retomada da cidade pelo exército:

O populacho está levantando um fantasma para atemorizar os cristãos. (...)


E essa é uma farsa ridícula. Os colonos de todas as fazendas têm a alma
inocente, são melhores cristãos do que nós; e os chunchos [índios
amazônicos] são selvagens que nunca passarão os limites da selva. E se, por
obra do demônio, eles vierem, a flecha não poderá com os canhões. É
preciso recordar Cajamarca...!3

Na referência a Cajamarca, rememora-se o massacre de 1532, episódio


sangrento da conquista dos incas pelos espanhóis, em enunciação do
desejo de que todo conflito futuro seja apenas a repetição dos conflitos
passados, tendo portanto um desfecho idêntico: a derrota indígena. Em
contraste, narrações do porvir como a de Ernesto, que tem o rio como

3 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos, op.cit., p.215.


testemunha, afirmam enfaticamente a sobrevivência de Felipa, chegando
a fazer dela a destinatária de sua fala: “Você é como o rio, senhora”, diz
Ernesto, para então defini-la como potência futura: “Ninguém vai
alcançá-la. Jajayllas! E você voltará. Verei seu rosto, que é poderoso como
o sol do meio-dia. Vamos queimar, incendiar!”4
Para quem especula, seja com tremor, seja com temor, a respeito do
regresso, será preciso antever a reação que se terá diante da volta. Como
responder ao porvir? Para Ernesto, a aparição do rosto de Felipa, com sua
força solar, seria a ocasião para a invenção de uma nova coletividade, da
qual ele fará parte, como revela na pessoa pronominal utilizada no
presságio: “Vamos queimar, incendiar!” Já em outros trechos do romance,
o próprio futuro parece se tornar um falante, como no huayno quéchua
cantado pelo mestre Oblitas na chichería local:

não chore ainda,


ainda estou vivo,
voltarei para você,
eu voltarei.
Quando eu morrer,
quando eu desaparecer
você vestirá luto,
aprenderá a chorar.

Continuando, em seguida:

Ainda estou vivo,


o falcão vai lhe falar de mim,
a estrela dos céus vai lhe falar de mim,
ainda voltarei,
ainda voltarei.5

4 Ibid., p.207.
5 Ibid., p.230-231. Em espanhol e em quéchua, cujos versos aparecem lado a lado na versão
original, lê-se:
amarak wak´aychu, no llores todavía,
k´ausak´rak´mi kani, aún estoy vivo,
kutipamusk´aykin. he de volver a ti,
vueltamusk´aykin. he de volver.
Nok´a wanuptiyña, Cuando yo me muera,
nok´a ripuptiyña cuando yo desaparezca
lutuyta apaspa, te vestirás de luto,
wak´ayta yachanki. aprenderás a llorar.
(...) (...)
Kausarak´ mi kani, Aún estoy vivo,
alconchas nisunki, el halcón te hablará de mí,
luceros nisunki, la estrella de los cielos te hablará de mí,
kutimusk´rak´mi, he de regressar todavía,
vueltamusak´rak´mi. todavía he de volver.
Muito poderia ser dito sobre a intricada temporalidade desse ainda que se
repete ao longo dos versos, em apelo para que se adie ao menos um
pouco o pranto, como se não fosse certo que já tivesse chegado a hora do
começo do luto. Projetando o choro ao futuro, o advérbio busca estender
o presente. (Construções semelhantes aparecerão em diversas obras de
Arguedas, como num poema que declara que Tupac Amaru não está
morto. É também a inscrição que Arguedas pede que seja gravada, em
quéchua, em seu túmulo: ainda estou vivo.)
Nesse quadro, onde a possibilidade de um porvir radicalmente
diferente demanda dos sujeitos um posicionamento político no presente,
será importante, para a formação particular de Ernesto, perceber, com
tristeza e desengano, como Antero, até então dos colegas mais próximos a
ele no internato, se coloca diante da perspectiva da volta dos indígenas
insurgentes. Antero havia contado que quando criança chorara vendo os
índios da fazenda de seu pai sendo castigados e lembrara de ter
compartilhado com a mãe sua compaixão pelos índios que o pai mandava
açoitar, dizendo, durante essa rememoração, que “Quando a gente é
criança e ouve, assim, choro de gente grande, em tumulto, como uma
noite sem saída o coração sufoca; sufoca, fica apertado para sempre.”6
Para Ernesto, a expectativa era que o sofrimento de Antero ao ver os
índios maltratados, quando criança, iria levá-lo, na adolescência, à
solidariedade com os sublevados. E, no entanto, ante a possibilidade da
volta de Dona Felipa, com o risco de os índios das fazendas decidirem se
aliar a ela, a resposta de Antero é uma ameaça violenta, provocando o
desconcerto de Ernesto:

- Irmão, se os índios se rebelassem, eu iria matando um por um, fácil –


disse.
- Não entendo você, Antero! – respondi, espantado. – E por que você disse
que chorava?
- Chorava. Quem não choraria? Mas é preciso dominar bem os índios. Você
não consegue entender porque não é dono.7

Além da consolidação, por Ernesto, de algo como um saber triste, o que


se escuta no diálogo é uma teoria a respeito da formação dos poderosos, o
filho do fazendeiro tendo aprendido a recalcar a compaixão que sentira
na infância, numa pedagogia da crueldade que oferece inclusive um
discurso a justificar a necessidade da violência. Para Ernesto, nessa
vivência do cotidiano do internato, vai se esboçando a imagem de uma
comunidade que tem como elemento constitutivo a exclusão e a

Em ARGUEDAS, Los ríos profundos, op.cit., p.224-225.


6 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos, op.cit., p.198.
7 Ibid., p.199.
discriminação, como se para ele fosse esta, afinal, a principal lição a ser
tirada de sua formação no colégio.
Não é fortuito que as diferenças – entre Ernesto e Antero (mais
tarde, em outro episódio, Antero perguntará: “Escute, Ernesto, o que é
que há? (...) Quem você odeia?”8), mas também entre eles e os demais –
surjam justamente diante da pressão simbólica e prática exercida por uma
rebelião. Ao longo da história peruana, insurreições de diversos tipos e
alcances criariam pressão sobre os referentes locais, isto é, pressão sobre o
modo como era descrita a população indígena do país. 9 Como ocasião em
que se exige reconhecimento e representação, a rebelião indígena é
sempre também um acontecimento discursivo, e no romance isso se
transforma num problema estrutural, colocando em questão o modo
narrativo adotado diante da revolta e levando a uma espécie de
fenomenologia da revolta popular, com a exposição detalhada, atenta e
solidária de diferentes momentos e episódios dentro da insurgência
indígena: sua preparação, suas tensões internas, seus movimentos de
avanço e recuo, as negociações internas e externas. O relato inclui, por
exemplo, a descrição entusiasmada da “imensa alegria” que toma a
população ao perceber o avanço da rebelião, tanto que, ao atravessar o
povoado carregando sacos de sal que pretendiam levar aos colonos da
fazenda, o que cantam é uma música de carnaval.10 Até as mulas, diz o
narrador, mesmo carregadas de sal, trotam com alegria, seguindo o ritmo
da melodia.
As rebeliões indígenas no Peru do começo do século 20 exigirão do
discurso público uma reorganização e a criação de novos conceitos,
levando finalmente a um pensador como José Carlos Mariátegui nos anos
1920.11 Como reflexão sobre a formação – nacional, neste caso – a rebelião
é significativa por expressar o desejo de inserir no marasmo da história
um acontecimento novo, um evento provocado por outro tipo de agência
ou sujeito, contornando inclusive a ideia da transformação como
resultado de um progresso lento e gradual, como seria o pedagógico. A
acusação comum em rebeliões de que os insurgentes estariam a serviço
de alguma figura oculta busca trazer de volta para a pedagogia – e para
as noções de manipulação, controle, etc. – a imagem gerada pela revolta,
como se não fosse possível os revoltosos agirem por conta própria.
A insistência na persistência do conflito e o ceticismo em relação às
soluções harmônicas e sintetizadoras, ambos presentes no romance Os

8 Ibid., p.125.
9 Ver, por exemplo, CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa. Trad. Ilka Valle de Carvalho.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000; e LEGRÁS, Horacio. Literature and subjection. Pittsburgh: U. of
Pittsburgh Press, 2008, sobretudo seu estudo da revolta em Yawar Fiesta (p.204-211).
10 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos, op.cit., p.130-131.
11 Ver sobretudo o estudo de Horacio Legrás, op.cit., p.201 e passim.
rios profundos, ganham importância se lembrarmos que a partir do livro
Yawar fiesta, publicado em 1941, Arguedas passa a ser visto no Peru como
a esperança de unificação da dualidade nacional, uma polarização ainda
mais marcada do que a de outros países hispano-americanos.12 Nas
tradições literárias desses países, incluída a peruana, o romance de
formação tendia a fundir formação individual e nacional, e isso desde
aquele que é frequentemente considerado o primeiro romance hispano-
americano: El Periquillo Sarniento, do mexicano Fernández de Lizardi,
romance publicado por entregas durante a guerra de independência,
onde o nascimento de uma nação nova aparece como desfecho
inevitável.13
No caso específico do Peru, observa Legrás, a fraqueza relativa do
Estado peruano durante longos períodos fez com que suas instituições,
em particular a escola, tivessem alcance limitado, diluindo os esforços de
doutrinamento nacionalista, permitindo a consolidação da polarização
entre litoral e montanha, entre espanhóis e índios, e enfraquecendo a
solução dos modelos hibridistas, necessários para o nacionalismo em
sociedades heterogêneas. Mas quando o Estado se fortalece, ganha alento
o projeto político que concede direitos em troca de sujeição,14 oferta
análoga àquela que Arguedas enxergará na literatura, entendendo o
projeto literário – sobretudo o projeto literário indigenista, mas não só ele
– como um movimento fundamentado na sujeição indígena.
É nessa configuração que a manutenção de resquícios ou
lembranças do conflito cultural e histórico entre espanhóis e índios
aparece em Arguedas como uma esperança, pois só o reconhecimento da
continuação do confronto, mesmo que em forma residual, poderá levar à
constatação de sobrevivências além da derrota.
Diante desse conjunto de problemas, não surpreende que a
tradução se torne questão central na obra de Arguedas, como é o caso
também nesse Os rios profundos. No romance estará presente, em mais de
um trecho e de diferentes maneiras, a tensão linguística, reforçando a
hipótese de que a obra do autor deve ser lida como um longo e
angustiado experimento de procedimentos para lidar com o conflito
linguístico e cultural. Atravessam o romance tentativas de construção de
um lugar de enunciação complexo e móvel no qual o narrador é tanto
mediador, tradutor e antropólogo quanto informante nativo e objeto de
estudo. Em cena próxima do início do romance, por exemplo, frente à
possibilidade de ter que duelar com outro interno do colégio, Ernesto,

12 Ibid., p.204.
13 Ver OLIVER, Felipe. “De la formación del sujeto al sujeto apestado: la novela del aprendizaje
en Hispanoamérica”. Itinerarios: revista de estudios lingüisticos, literarios, históricos y antropológicos,
2011, n.13, p.181.
14 LEGRÁS, Horacio, op.cit.
descobrindo-se incapaz de rezar ao Deus cristão em busca de proteção,
dirige-se à divindade de sua aldeia (K'arwarasu), quando então se sente
encorajado e fortalecido. A transformação do destinatário da
comunicação – de Deus a K'arwarasu – é responsável pela transformação
emocional de Ernesto, embora a estrutura interna do romance mantenha
o contrato inicial, com o narrador, o próprio Ernesto, explicando em
seguida em tom neutro e imparcial, no idioma das ciências sociais, o
funcionamento de sua própria crença:

O K'arwarasu é o Apu, o deus regional de minha aldeia nativa. Tem três


picos nevados que se erguem sobre uma cadeia de montanhas de rocha
negra. Está cercado por vários lagos em que vivem garças de plumagem
rosada. O falcão é o símbolo do K'arwarasu. Os índios dizem que na
Quaresma ele sai como uma ave de fogo, do mais alto cume, e vai à caça de
condores, e que lhes rasga o dorso, fazendo ouvir seus gemidos, e que os
humilha. Voa, brilhando, relampejando sobre as semeaduras, pelas
estâncias de gado, e depois afunda na neve. Os índios invocam o
K'arwarasu apenas nos grandes perigos.15

É esse narrador antropólogo e informante que levará Ángel Rama a


identificar três vozes narrativas no interior do romance: Ernesto
adolescente, com 14 anos, testemunha dos acontecimentos; Ernesto
adulto, recordando o período do colégio interno; e um terceiro narrador,
que com a voz de um antropólogo explica e traduz o sentido das
experiências formadoras.
O romance, escrito ao longo de um período de 15 anos em que
Arguedas trabalhou intensamente como etnógrafo em diferentes
municípios da região andina, é também a exploração daquilo que, diante
dos impasses que atravessavam esse cenário, a literatura poderia oferecer
e representar, como possibilidade de abertura, dados os limites próprios à
antropologia. Além de uma mudança no modo de produção, a literatura
pareceria oferecer a esperança da introdução de outra perspectiva, um
ponto de vista interditado nos textos antropológicos. Veja-se como
“Cusco”, artigo antropológico de 1947, descrevia os muros da cidade
andina com o tom distanciado comum às ciências sociais: “Os
conquistadores cristãos ergueram os arcos e colunas de suas moradias e
templos sobre os muros índios. E desse modo, Cusco se converteu em um
monumento arqueológico e histórico cujo semblante mágico perturba e
comove, pois contém a língua humana de todos os tempos em sua forma
mais perdurável e universal: a arquitetura.”16 É dessa perturbação final, e
de uma língua anterior à conversão da pedra em monumento de um

15ARGUEDAS, José María. Os rios profundos, op.cit., p.110.


16Citado em MILLAY, Amy Nauss. Voices from the Fuente Viva: The Effect of Orality in Twentieth-
Century Spanish American Narrative. Lewisburg: Bucknell University Press, 2005, p.98.
humanismo impreciso, que Arguedas ensaiará se aproximar através da
escrita literária, esboçando um foco narrativo que, em vez de categorizar
e descrever a comoção provocada pelos muros, terá a pedra como seu
destinatário e ouvinte, o que ocorre logo nas primeiras páginas de Los ríos
profundos.
A questão inevitável é em que medida todo informante não é já um
antropólogo, dada sua necessidade de dialogar com os enviados da
cultura dominante, precisando, portanto, conseguir imaginar o que
desejam saber, reconhecendo-os como destinatários. No caso do
protagonista de Los ríos profundos, a situação ganha contornos
particularmente dramáticos: Ernesto não pertence nem a um, nem a outro
universo; órfão de um, como diz, é lançado “por cima do muro” ao outro.
Se no colégio Ernesto é arremessado a outro espaço epistemológico – o da
língua paterna e pública – a outra, anterior, também não era
propriamente uma língua “materna”: órfão de mãe, Ernesto passara a
viver com os índios na fazenda da nova esposa do pai, descrevendo seu
lugar no ayllu em que viveu como o de um “refugiado”.
Desse modo, o lugar de enunciação do narrador estará
constantemente em deslocamento, passando não só de uma língua a
outra – do quéchua ao espanhol, do espanhol ao quéchua – e de um a
outro grau de mistura entre elas, mas mudando também de interlocutor e
objetivo, a “comunicação” deixando de ser o único alvo. Acrescenta-se
assim mais um elemento formal ao impasse geral: a questão não será só
como falar, mas também, quem me ouvirá? – como pergunta Ernesto.
Quem saberá ouvir o que tenho a dizer? A obra de Arguedas está
atravessada por esse dilema, em diversos níveis, desde a forma ao
conteúdo de seus textos, com diferentes soluções propostas para o
problema da tradução, incluindo as seguintes: notas de rodapé; traduções
no corpo do texto, entre parênteses; paráfrases, em espanhol, das
expressões quéchuas; explicações antropológicas em vez de traduções
(como com o zumbayllu); comentários do narrador sobre as dificuldades
da tradução; colunas paralelas na mesma página, justanpondo quéchua e
espanhol; uso da sintaxe de uma língua (o quéchua) em outra (o
espanhol); palavras quéchuas interrompendo a narração em espanhol;
ausência de qualquer tradução ou explicação.
A particularidade de Arguedas, contrastando com a tendência
dominante em escritores hispano-americanos dos anos 1950 e 1960, estará
não apenas na incerteza em relação à possibilidade de uma inclusão bem-
sucedida da formação subalterna em epistemologias gerais (essa dúvida
será compartilhada por alguém como Vargas Llosa, por exemplo, levando
a uma conclusão muito diferente). A singularidade de Arguedas será ter
chegado a duvidar inclusive da desejabilidade dessa inserção, mesmo
dadas as parcas alternativas disponíveis. Assim, além das táticas já
elencadas, haverá também ao longo da obra arguediana numerosos
momentos de silenciamento e ocultamento. Se, afinal, um dos desafios da
obra parece ser dar forma insistentemente à tese de que os indígenas
possuem uma perspectiva própria, não há como seu próprio projeto
criativo não assumir, em situações cruciais, contornos negativos. Se a
possibilidade da existência de uma cosmovisão própria for levada a sério,
o problema da “expressão” ou “representação” dessa visão de mundo
não terá como contornar a questão do modo de sua apresentação, a
cosmovisão sendo inseparável da forma e da língua utilizadas. Quando
se narra essa conjuntura através de um romance, em algum momento se
chegará ao reconhecimento de que o próprio gênero é já um elemento
constitutivo de uma cosmovisão particular, e uma possivelmente hostil à
nativa (de que modo e até que ponto é o que restará determinar).
Nada disso facilita a tradução de romances como Los ríos profundos
ou El zorro de arriba y el zorro de abajo a outras línguas, uma vez que não há
uma única língua a ser transposta.17 A tradução se torna impossível num
sentido concreto, político ao mesmo tempo que linguístico, pois a
materialidade do texto é composta justamente pela resistência à tradução,
a versão precisando então sinalizar na sua textura o fracasso da
empreitada tradutória. Naquilo que se lê nas páginas de Los ríos profundos
há comumente mais de uma camada linguística, como nos trechos em que
é evidente que diálogos que na folha estão em espanhol se referem a
conversas que aconteceram em quéchua. “Seguimos hablando en quechua”,
avisa o narrador, sobre o diálogo com o peregrino Jesús Warank’a
Gabriel, para então reproduzir a conversa da seguinte maneira:

—¿Ese canto es de Paraisancos?


—No. De Lucanamarca es. Un mozo, volviendo de la costa, lo ha cantado. Él lo ha
hecho, con música del pueblo. Lo oí, aquí, desde la calle y he entrado. Yo, pues, soy
cantor.18

Aqui, como em outros trechos – “Pero de mi hermano su canto es, fuerte.”,


“Yo peregrino; andando vivo.” – a estrutura frasal se afasta daquilo que é
usual em espanhol, com os verbos colocados ao final das orações, como é
comum em quéchua. Na primeira tradução do romance ao português,
feita em 1977 por Gloria Rodriguez, temos as seguintes versões, nas quais
a simultaneidade espanhol-quéchua que caracteriza a versão anterior
desaparece: “O canto de meu irmão é forte...”, lê-se, ou “Sou andarilho;

17 Ver a tradução de Rômulo Monte Alto para El zorro de arriba y el zorro de abajo em
ARGUEDAS, José María. A raposa de cima e a raposa de baixo. Trad. R. Monte Alto. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2016.
18 ARGUEDAS, José María. Los ríos profundos, op.cit., p.228.
vivo de um lugar para outro.”19 Já na tradução mais recente, de Josely
Vianna Batista, busca-se a reprodução da construção híbrida: “De meu
irmão seu canto é, forte.” E “Eu peregrino; andando vivo.”20
Em outro trecho, após um colega lhe pedir que escreva uma carta a
Salvina, uma menina da cidade de Abancay, Ernesto se pergunta: “Como
começaria a carta?”21 Pensando nas meninas da aldeia, complementa:
“Que distância existia entre seu mundo e o meu?” 22 Inicialmente se
mantém confiante na possibilidade da travessia: “Eu sabia, apesar de
tudo, que podia atravessar essa distância, como uma seta, como um
carvão aceso que sobe. A carta que devia escrever para a adorada do
Markask’a chegaria às portas desse mundo.” E então, “como quem entra
num combate” começa a redigir a carta, até que

um repentino descontentamento, uma espécie de aguda vergonha, fez-me


interromper a redação da carta. Apoiei meus braços e a cabeça sobre a capa
do caderno; com o rosto escondido parei para escutar esse novo
sentimento. “Aonde você vai, aonde você vai? Por que não continua? O que
o assusta, quem cortou seu voo?”23

Diante do impedimento, o adolescente então imagina, como destinatárias


da carta, meninas indígenas de seu povoado, perguntando-se: “E se elas
soubessem ler? Se eu pudesse escrever para elas?”
A pergunta – quais seriam os efeitos de serem outras as leitoras? –
está presente em muitos textos de Arguedas, marcando o
desenvolvimento das diversas táticas tradutórias empregadas nas obras.
Como seria diferente sua obra se fossem outros seus leitores implícitos,
no Peru dos anos 1950 e 1960, se fossem outras as condições materiais?
No romance, as destinatárias imaginadas que destravam a escrita são

Justina ou Jacinta, Malicacha ou Felisa; que não tinham madeixas nem


franja, nem usavam tule sobre os olhos. E sim tranças negras, flores
silvestres na fita do chapéu... “Se eu pudesse escrever para elas, meu amor
brotaria como um rio cristalino; minha carta poderia ser como um canto
que vai pelos céus e chega a seu destino.”24
A recepção e a leitura determinam as condições de possibilidade da obra.
Entretanto, o exercício de imaginação não será suficiente, exigindo ainda
mais um salto:

19 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos. Trad. Gloria Rodriguez. São Paulo: Paz e Terra,
1977.
20 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos. Trad. Josely Vianna Batista, op.cit.
21 Ibid., p.99.
22 Ibid., p.101.
23 Ibid., p.102.
24 Ibid.
Escrever! Escrever para elas era inútil, imprestável. “Ande, vá esperá-las
nos caminhos, e cante! E se fosse possível, se eu pudesse começar isso?” E
escrevi: “Uyariy chay k’atik’niki siwar k’entita...”25

O devaneio de Ernesto leva-o a ultrapassar inclusive os limites da


escrita, imaginando a transformação de sua carta em canção. Conceber a
mudança do leitor empírico é portanto suficiente para levá-lo a passar do
espanhol ao quéchua e a escrever uma nova carta, em forma de canto, que
o romance irá reproduzir apenas parcialmente, primeiro em quéchua,
depois em espanhol. A própria canção em quéchua cuja letra é
reproduzida no romance de modo fragmentário é, também no nível
temático, sobre a tentativa de envio de uma mensagem, nesse caso levada
por um beija-flor: “escucha” – pede o enunciador à sua ouvinte – escute o
que diz o beija-flor; em seguida dirigirá sua preocupação ao pássaro, que
ele imagina já cansado após a longa viagem.
Revisemos todas as operações que ocorrem no trecho:

1. o episódio começa com uma carta, a ser escrita por Ernesto, a pedido de
Antero, para Salvina; Ernesto começa a escrevê-la em espanhol,
buscando uma linguagem que julga adequada ao cortejo adolescente;
2. a redação é repentinamente interrompida, após uma cisão na voz do
autor da carta, que começa a escutar indagações que vêm de um outro
dentro de si – “Aonde você vai, aonde você vai? Por que não continua?
O que o assusta, quem cortou seu voo?” – perguntas que desatam a
capacidade de escuta do narrador (escuta de si): “Depois dessas
perguntas, voltei a me escutar ardentemente”;
3. são imaginadas destinatárias alternativas para a carta (moças indígenas
andinas);
4. a mudança no endereçamento por sua vez leva à aproximação entre
carta e canção, escrita e canto: “minha carta poderia ser como um canto
que vai pelos céus e chega a seu destino” – com a fusão anunciando o
cumprimento de um destino;
5. a fantasia então esbarra num limite empírico – a incapacidade de leitura
das moças – que ameaça desfazer a confluência entre carta e canto;
6. volta então a segunda voz de Ernesto, nesse diálogo interno,
estimulando-o a cantar mesmo assim, à espera de suas destinatárias:
“Ande, vá esperá-las nos caminhos, e cante!”; a continuidade da escrita
só é possível se o escritor imagina estar cantando, em exercício que no
entanto é matizado ao começar com uma formulação condicional: “E se
fosse possível, se eu pudesse começar isso?”;
7. aquilo que Ernesto parece finalmente escrever, e que no romance
aparece entre aspas, está em quéchua (“Uyariy chay k’atik’niki siwar
k’entita...”), mas esse texto também será interrompido, com a volta do
espanhol, numa versão para os versos em quéchua;

25Ibid. Para uma discussão do conflito linguístico no romance, ver Ligia Karina Martins de
Andrade, Nas margens da palavra – o silêncio: uma estratégia de controle e organização do conflito em
Arguedas. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004.
8. todo o processo será obstruído definitivamente pelo choro de Ernesto,
que faz com que se interrompa a criação, que já é difícil dizer se é
escrita ou canto: “Não foi um choro de sofrimento nem de desespero.
Saí da sala ereto, com um orgulho seguro; como quando cruzava a nado
os rios de janeiro carregados da água mais pesada e turbulenta.
Caminhei por alguns instantes no pátio empedrado.”26

Mas também esse estado de atordoamento altivo será quebrado em


seguida, desta vez pelo badalar do sino do colégio, que convoca os
internos para o refeitório. O que terá lugar lá é outra cena de leitura,
igualmente carregada de tensão, desta vez em espetáculo público e sem
tanto espaço para desvios. Ernesto é chamado para ler em voz alta, diante
de todos, El manual de urbanidad y buenas costumbres, um conjunto de
normas de boas maneiras escrito em 1853 por Manuel Antonio Carreño,
conhecido popularmente como Manual de Carreño.
A necessidade de cada uma dessas passagens – de um idioma a
outro, entre gêneros e situações de enunciação distintas – e o destaque
dado a cada um desses giros, que lembram a turbulência das revoltas que
também cortam o romance sugerem que estamos distantes da simples
recuperação de uma cultura através de sua inserção em uma forma
alheia, como por vezes pareceu crer a fortuna crítica de Arguedas. A
própria obrigatoriedade dos procedimentos de tradução, operados em
alguma medida a contragosto, sublinha os limites impostos pelas
condições materiais da sociedade, algo que Arguedas reconhecia e
lamentava, dizendo poder apenas sonhar com um público de leitores
quéchua-falantes, grupo restrito no Peru do período.
Nesse romance em que o problema do destinatário (e do destino) e
a preocupação com o rumo das falas são uma obsessão, para começar a
escrever como se deseja não é suficiente a decisão individual, sendo
necessário passar do escrever sobre ao escrever para – e finalmente ao falar
com.27 O modelo parece ser próximo da assembleia indígena, à qual o
romance dedica muitas páginas, e onde em meio ao aparente caos é
possível que um pensamento chegue, como se diz, “a seu destino”. No
motim camponês que ocupa boa parte da narrativa a partir daí, a líder
comunitária, ao falar, se detém por um momento, junto com a multidão,
esperando que as palavras sigam seu caminho, “como se fosse preciso
guardar um instante de silêncio para que as palavras da chichera
chegassem a seu destino”.28 Em outro exemplo notável, o do pião
zumbayllu, Ernesto pergunta: “Se eu o fizer dançar, e soprar seu canto na

26 Ibid., p.103.
27 Ver, a respeito, MOREIRAS, Alberto. “O fim do realismo mágico: O significante apaixonado
de José María Arguedas”. A exaustão da diferença. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia
Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p.221-248.
28 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos. Trad. J. V. Batista, op.cit., p.128.
direção de Chalhuanca, será que ele chega aos ouvidos de meu pai?”
Antero responde:

Chega, irmão! Para ele não existe distância. (...) Você primeiro fala com um
de seus olhos, diz qual é sua missão, dá seu rumo, e depois, quando ele
estiver cantando, sopra devagar na direção que quiser; e continua a lhe dar
sua missão. E o zumbayllu vai cantar no ouvido de quem o espera.
Experimente, agora!29

Mais tarde, já menos confiante, Ernesto desconfiará que o zumbayllu que


estivera escondido em seu bolso durante uma missa teria perdido seus
poderes ao ser inadvertidamente abençoado pelo padre. As
possiblidades, portanto, quando existem, são precárias e inconstantes,
todo potencial sendo vulnerável a forças contrárias de diversos tipos.
Por essas e outras, Os rios profundos chegou a ser lido pela crítica
como Bildungsroman fracassado, em aproximação que poderia ser
produtiva desde que se considerasse que a definição de sucesso, nesse
caso, não é simples. A pergunta, mais uma vez, seria: como e onde se
encerra um romance de formação? Onde acaba o desenvolvimento,
passando-se a outra coisa? Nos modelos de integração comuns no
romance de formação hispano-americano de meados do século XX, o
ponto de chegada seria a unidade, a síntese, a convivência harmônica
entre as partes. Entretanto, se é possível dizer que com o ingresso de
Ernesto no colégio interno o que parecia se delinear era de fato a
formação de uma identidade híbrida, sintética e mestiça, não é nada claro
que o reconhecimento dos limites desse projeto, que é parte crucial do
programa nacionalista latino-americano, não seja bem-vindo, ao menos
desde a perspectiva que este ensaio tentou imaginar.
Assim, se na incitação à lembrança dos episódios de Cajamarca
exprime-se o desejo de evitar que ocorra um novo acontecimento,
buscando-se a repetição de uma conquista pensada como livre de
diferença ou resto, nesses anseios indígenas recuperados por Arguedas
busca-se conservar para a conquista o caráter de acontecimento ainda
inconcluso, um processo parcialmente em aberto. Em outras palavras, o
que se propõe é a hipótese de que a formação do Peru é um roteiro
inacabado, podendo portanto ainda ser alterado. Para Arguedas, a
questão em aberto para o mundo quéchua é a própria possibilidade de
sobreviver, e não o triunfo, que no confronto continuado com a cultura
dominante não parece mais estar disponível. Nesses termos, diante da
pergunta sobre a colonização ter chegado ao fim, a resposta desejada
seria negativa, havendo alguma esperança no reconhecimento de que ela
ainda está em curso. Em disputa está então não exatamente o desfecho ou

29 Ibid., p.160-161.
a realidade da conquista espanhola e da dominação criolla; tampouco há a
afirmação da instauração de uma nova ou contra-hegemonia, que tenha
superado a colonial. Aparentemente modesta, embora com consequências
significativas, a tarefa apresentada parece ser aquela formulada por
Arguedas de diversas maneiras em outros textos: continuar a disputar a
forma e o sentido da derrota.

Marcos Natali possui Mestrado e Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade de


Chicago e Pós-Doutorado em Literatura Hispano-Americana pela USP. É professor livre-
docente de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP e pesquisador do CNPq, com
projeto sobre a narrativa breve de Roberto Bolaño. Foi professor visitante na UNAM (México) e
na UAM (Azcapotzalco-México). Publicou o livro A política da nostalgia: Um estudo das
formas do passado e textos sobre Roberto Bolaño, Juan Rulfo, Tununa Mercado, José María
Arguedas, Mario Bellatin, o conceito de fetichismo, o racismo na obra de Monteiro Lobato, e a
noção de sacrifício em Jacques Derrida.
ASPECTOS DILUÍDOS DO
BILDUNGSROMAN EM EXTINÇÃO –
UMA DERROCADA, DE THOMAS BERNHARD

José Lucas Zaffani dos Santos

Wilma Patricia Maas

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O objetivo deste artigo é destacar algumas características do Thomas Bernhard;
conceito de Bildungsroman presentes na obra Extinção – Uma Bildungsroman;
derrocada (1986), de Thomas Bernhard. O termo Bildungsroman Goethe;
surge associado à obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Historiografia;
(1795-1796), de Goethe. No entanto, uma vez que os pressupostos Literatura alemã.
históricos presentes no paradigma goethiano se alteraram, os
elementos do Bildungsroman encontram-se diluídos nas obras que
apresentam traços desse gênero. O romance Extinção possui
semelhanças com o programa narrativo do Bildungsroman, contudo
elas estão presentes de maneira diluída.

ABSTRACT KEYWORDS
The aim of this paper is to highlight a few characteristics on the concept Thomas Bernhard;
of Bildungsroman in Thomas Bernhard’s Extinction (1986). The term Bildungsroman;
Bildungsroman becomes well known when associated with Goethe’s Goethe;
Historiography;
Wilhelm Meister’s Apprenticeship Years (1795-1796). Nonetheless, since
German literature.
the historical presuppositions present within the Goethian paradigm have
changed, the Bildungsroman elements may be found diluted in works
which present traits of this genre. The novel Extinction holds similarities
with the narrative progressions of the Bildungsroman; however, they are
present in a diluted way.
O conceito de Bildungsroman: da origem do termo ao
estabelecimento do gênero

De acordo com a historiografia literária, o termo Bildungsroman


(romance de formação) foi mencionado pela primeira vez em 1810, pelo
professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern durante uma conferência
na Universidade de Dorpat. O termo surge atrelado a uma visão histórica
e ideológica consoante à Alemanha do final do século XVIII, em que
imperavam o desejo do indivíduo burguês em ampliar sua formação e a
constituição de uma identidade nacional alemã.
No texto da conferência de Morgenstern, encontra-se a definição
inaugural do conceito de Bildungsroman que será responsável por
estabelecer uma concepção tradicional do paradigma desse gênero
literário:

[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo


devido a seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista
em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de
perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a formação
do leitor através dessa representação, de uma maneira mais ampla do que
qualquer outro tipo de romance.1

Morgenstern apresenta essa definição de Bildungsroman levando em


consideração sua discussão teórica acerca das características que opõem a
epopeia antiga ao romance burguês. Segundo o professor, a epopeia antiga
caracterizava-se pela presença de um protagonista que mobilizava sua
ação a fim de provocar significativas modificações no mundo, ao passo que
o romance prefere mostrar a ação dos homens e do ambiente sobre o
protagonista, almejando assim representar seu processo de formação
interior. Desse modo, Morgenstern assevera que o objetivo da epopeia é
apresentar os efeitos dos atos do herói sobre os homens, enquanto o
romance privilegia fatos e acontecimentos que reverberam na interioridade
do protagonista.
É importante frisar que a definição de Bildungsroman remete à
própria origem do romance burguês, o que leva a uma conexão entre esses
dois espaços literários. As origens do termo roman remontam ao latim
vulgar e correspondiam a uma narrativa longa, em que se tinha o

1MORGENSTERN apud MAAS, 2000, p. 46. In: MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o
Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
protagonista em interação com o mundo externo. Na Alemanha do século
XVIII, o Roman era considerado uma narrativa de cunho inferior, pois
geralmente representava uma história de amor. Nessa época, a forma
narrativa exemplar ainda era a epopeia apreciada por sua grandiosidade
temática e métrica clássica. Enquanto na Inglaterra e na França o romance
já se estabelecera desde o século XVII, na Alemanha, o reconhecimento do
gênero se dá no final do século XVIII com a publicação de Os sofrimentos do
jovem Werther (1774), de Goethe. Dessa forma, o surgimento do romance
burguês é visto pela historiografia literária – do século XVII ao XX – a partir
do embate direto com a epopeia antiga. Devido ao fato de o romance
estabelecer-se tardiamente na Alemanha como gênero “digno”, a discussão
proposta por Morgenstern colabora também para a consolidação do
romance como gênero.
Tratando ainda do texto da conferência de Morgenstern, cabe dizer
que nele já é mencionado o segundo romance da trilogia2 de Goethe, Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796), que se tornará o
paradigma do gênero Bildungsroman:

Como obra de tendência mais geral e mais abrangente da bela formação do


homem, sobressai-se, com seu brilho suave, Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister, de Goethe, obra duplamente significativa para nós alemães, pois
aqui o poeta oferece, no protagonista e nas cenas e paisagens, vida alemã,
maneira de pensar alemã, assim como costumes de nossa época.3

Obras como As confissões (1791), a autobiografia intelectual de Jean-


Jacques Rousseau e, sobretudo, Emílio ou da educação (1762), em que a
presença da figura masculina do preceptor ou mentor surge como recurso
indispensável à formação pessoal e intelectual do jovem, encontram-se na
arqueologia da concepção da ideia de um romance formador. Esses livros
influenciaram a tradição filosófica alemã pautada no conceito de Bildung,
o qual remete à ideia de “formação” e “cultivo” e se encontra presente em
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796), de Goethe, obra
arquetípica desse tipo de romance na Alemanha, onde o gênero continuou
seu desenvolvimento no século XIX. Esse novo gênero diferencia-se dos
outros tipos de romance por apresentar “a imagem do homem em devir”,
e não uma personalidade estática que vagueia pelo mundo. No programa
do Bildungsroman, as mudanças pelas quais o indivíduo passa são a tônica

2 A trilogia de Goethe sobre o personagem Wilhelm Meister é composta pelas seguintes obras: A
missão teatral de Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters theatralische Sendung) (1777-1785), Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters Lehrjahre) (1795-1796) e Os anos de peregrinação de
Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters Wandejahre) (1829, segunda versão). Uma vez que o segundo
volume da trilogia contribuiu para a fundação do gênero literário Bildungsroman, é apenas a ele
que nos reportamos neste artigo.
3 MORGENSTERN apud MAAS, 2000, p. 47. In: MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o

Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.


do enredo e “o tempo se introduz no interior do homem, impregna-lhe
toda a imagem, modificando a importância substancial de seu destino e de
sua vida”4.
A obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister constituiu-se como
paradigma do Bildungsroman ao apresentar a trajetória do homônimo
protagonista a qual se torna um exemplo para os filhos da então burguesia
alemã que ansiava por sua representação estética como forma de
reconhecimento político. De maneira sucinta, o romance apresenta o
percurso individual do jovem de origem burguesa Wilhelm Meister. A
vida desse personagem é marcada por diferentes episódios aparentemente
sem conexão. Somente ao final do livro, leitor e protagonista descobrem
que esses episódios, compreendidos durante a narrativa como simples
acasos, eram, na verdade, obra da Sociedade da Torre, uma associação de
homens sábios e esclarecidos, cujo objetivo é ajudar os jovens a alcançar os
almejados desenvolvimento e formação. Atuando como uma instância
superior e invisível, a Sociedade da Torre operava por meio de emissários
encarregados de influenciar Meister em suas decisões.
Filho de um comerciante, o destino de Meister seria dar
continuidade aos negócios da família. Contudo, ao optar pela busca por
autodesenvolvimento e formação, Meister esbarra na problemática
inerente à sua condição social e econômica. Consciente dos limites
impostos à classe a qual pertence, Meister passa a considerar uma forma
de ascender à aristocracia devido às possibilidades de que essa classe
dispunha5. Desse modo, o teatro surge para o protagonista como uma
primeira tentativa de alcançar seus objetivos. A vocação teatral de Meister,
manifestada já no início do livro, garante-lhe o posto de diretor de uma
trupe mambembe, sendo esse o motivo de seu ingresso pela primeira vez
em um palácio da nobreza. Destaca-se, nesse período da vida de Meister,
a atuação do mentor Jarno, um enviado da Sociedade da Torre e o
responsável por apresentar ao protagonista os textos de Shakespeare.
O romance de Goethe apresenta as nuances entre o modo de vida
burguês e o aristocrático sem oferecer, portanto, um veredito sobre qual

4 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 237.
5 O embate delineado no romance de Goethe entre as possibilidades limitadas de aperfeiçoamento

do burguês em relação ao aristocrata pode ser conferido na carta de Meister a Werner: “[...]
instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção,
desde a infância. [...] Fosse eu um nobre e bem depressa estaria suprimida nossa desavença; mas,
como nada mais sou do que um burguês, devo seguir um caminho próprio, e espero que venhas
a me compreender. [...] na Alemanha só a um nobre é possível uma certa formação geral, e pessoal
[...] Se, na vida corrente, o nobre não conhece limites [...] pode portanto apresentar-se onde quer
que seja com uma consciência tranquila diante dos seus iguais, pode seguir adiante, para onde
quer que seja, ao passo que ao burguês nada se ajusta melhor que o puro e plácido sentimento do
limite que lhe está traçado” (GOETHE, Johann Wolfgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister. Tradução de Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 284-285).
das duas classes é a mais coerente. Essa justaposição é notada no
reencontro entre os amigos de infância Wilhelm Meister e Werner, na
última parte do livro. Enquanto Werner casara-se com a irmã de Meister,
unindo assim a fortuna das duas famílias, e dedicara-se à administração
dos negócios do pai, o percurso empreendido por Meister destoa
completamente deste. Abandonando a casa paterna, Meister transitara por
outras esferas, engajando-se, primeiramente, no meio teatral como forma
de estreitar laços com a aristocracia. Ao deixar que o cunhado administre
seu patrimônio, Meister apresenta-se como o indivíduo que não habita
nem um dos estilos de vida pelos quais circulou: não se tornou aristocrata
e nem mesmo se especializou para assumir o papel de burguês. Logo, ele
não se enquadra nesses modelos e, ao mesmo tempo, transita entre eles.
Embora a trajetória de Wilhelm Meister tenha contribuído para o
estabelecimento do programa narrativo do Bildungsroman, ela evoca uma
representação datada e espacializada de um modo de vida burguês.
Jürgen Jacobs (1989) redefine o Bildungsroman como uma narrativa
que deveria englobar “obras em cujo centro esteja a história de vida de um
protagonista jovem, história essa que conduz, por meio de uma sucessão
de enganos e decepções, a um equilíbrio com o mundo”6. Partindo dessa
concepção, Jacobs acrescenta ainda outras características que o conceito
passaria a abranger, como o fato de que o protagonista deva “ter uma
consciência mais ou menos explícita de que ele próprio percorre não uma
sequência mais ou menos aleatória de aventuras, mas sim um processo de
autodescobrimento e de orientação no mundo”7. Soma-se a isso outras
experiências pelas quais o protagonista deve passar como a partida da casa
paterna, a influência de mentores e instituições educacionais, o contato
com a arte, o envolvimento com alguma atividade profissional, o
intercâmbio na vida pública e política etc.
A partir da proposição de Morgenstern, Wilhelm Meister passou a
vigorar como a obra exemplar do Bildungsroman. Diante disso, os romances
eram sempre comparados esteticamente partindo da genealogia que a
crítica pontuara na obra de Goethe. Logo, dentro e fora da Alemanha, as
obras eram consideradas Bildungsromane levando-se em conta o grau de
aproximação com o Meister. Contudo, a noção teleológica que pautara a
ideia de desenvolvimento individual não se sustenta mais a partir da
realidade histórica do século XX, marcada pelo desenvolvimento da
psicanálise e pelos traumas ocasionados por duas guerras mundiais. Surge,
com isso, uma noção de sujeito fragmentado que não condiz mais com o
projeto de identidade una e harmônica defendido pelo romance burguês.

6 JACOBS apud MAAS, 2000, p. 62. In: MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o Bildungsroman
na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
7 JACOBS apud MAAS, 2000, p. 62. In: MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o Bildungsroman

na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.


Os romancistas do século XX empregavam, portanto, modos de narrar que
pudessem dar conta dessa nova maneira de enxergar a individualidade.
Técnicas narrativas experimentais como o fluxo de consciência e o modelo
não-linear de narrar contrapunham-se ao paradigma goethiano
contribuindo, assim, para o que seria o inevitável fim da era Bildungsroman.
Levando em conta que o conceito de Bildungsroman surgiu atrelado
à obra de Goethe, esse fato ganhou certa complexidade para a crítica
literária do século XX, pois, devido à sua enorme circulação, o termo se
tornara superexposto e evoluíra para um recurso teórico-interpretativo
cuja finalidade era classificar romances que apresentavam uma história de
desenvolvimento individual. Por outro lado, Maas (2000) reconhece uma
“tradição consciente” em autores contemporâneos que dialogam tanto com
a obra paradigmática Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister quanto com
a autobiografia Poesia e verdade, de Goethe.
Como romances que dão continuidade à tradição do Bildungsroman,
Maas (2000) destaca Confissões do impostor Felix Krull (1954), de Thomas
Mann, e O tambor (1959), de Günter Grass. Nesses dois romances, os
autores transgridem o conceito inaugural de Bildungsroman, mas o
retomam por meio de paródia ou de alusão temática direta. Com isso, Maas
(2000) afirma que a ideia de formação associada ao Meister está presente
em Felix Krull e O tambor de maneira diluída, uma vez que tais obras
carregam consigo a problemática histórica da Europa do século XX.
A enciclopédia Literatur-Brockhaus, edição de 1988, reconhece Franz
Kakfa, Max Frisch, Thomas Bernhard, Peter Handke e Botho Strauss como
autores do século XX que teriam se ocupado com a tradição do
Bildungsroman. Evidentemente, cada um desses escritores ocupou-se de
forma bem particular do conceito associado a Goethe, o que contribui para
as discussões acerca dos limites impostos ao gênero por Morgenstern.

Traços do Bildungsroman na obra Extinção –


Uma derrocada, de Thomas Bernhard

Nosso intuito é identificar alguns pressupostos do Bildungsroman


diluídos no romance Extinção – Uma derrocada (1986), do austríaco Thomas
Bernhard. Devido à modificação das condições históricas que embasaram
o surgimento desse gênero, figuram no subtexto de Extinção uma referência
parodística à obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Ao
aproximarmos Bernhard do modelo goethiano, o fazemos pela via da
paródia, ou seja, o discurso do Bildungsroman aparece em Bernhard de
modo subvertido, pois apresenta um sujeito descentrado, constituído após
eventos traumáticos de sua época como a Segunda Guerra, e que não busca
uma integração com a sociedade. O objetivo de Franz-Josef Murau,
narrador-protagonista de Extinção, é apenas trazer, via memória, fatos que
contribuíram para que ele se tornasse o indivíduo que é no presente da
narrativa. Logo, as características desse personagem não são condizentes
com a ideia de desenvolvimento teleológico que habita no conceito clássico
de Bildungsroman. No entanto, frente à ampliação do programa desse
gênero defendida pela crítica contemporânea, pode-se dizer que o romance
Extinção apresenta-se como uma possibilidade de sobrevivência e
atualização do Bildungsroman.
Uma primeira observação a ser feita entre as obras de Goethe e
Bernhard é que, enquanto Meister almejava tornar-se aristocrata a fim de
poder cultivar sua formação individual, em Extinção, Franz-Josef Murau
apresenta-se como um burguês intelectual herdeiro da aristocracia
austríaca. Portanto, o ponto de vista de Murau é reflexo de sua própria
classe social na qual ele se encontra bem adaptado e da qual ele não deseja
se desvincular.
As condições que marcam o nascimento do narrador de Extinção
dialogam consciente e parodicamente com a tradição goethiana, não
apenas no Wilhelm Meister, mas também na autobiografia do autor. Goethe,
em Poesia e verdade, narra detalhadamente o dia de seu nascimento,
descrevendo, inclusive, como a conjunção dos astros influenciou esse
momento. No entanto, seu parto fora difícil e, inicialmente, o feto é dado
como morto. No romance de Bernhard, Murau relata que sempre ouviu
sua mãe dizer que ele era filho de uma gravidez indesejada. Durante anos
ela se recusara a ter filhos, até que fora obrigada pelo marido a dar-lhe um
herdeiro. Após o nascimento do primogênito Johannes, a mãe de Murau
jurou que não queria mais ter filhos. Ao saber que estava grávida
novamente, ela consultou um clínico “na intenção de se livrar de mim por
seu intermédio, mas o clínico se recusou a tanto, por ser arriscado à vida
de minha mãe. O chamado aborto ainda não era tão fácil”8.
Enquanto Goethe descreve o quão favoráveis estavam os astros no
dia de seu nascimento, Murau caracteriza-se como uma criança indesejada,
produto de um aborto que não pôde ser realizado. Sua mãe conformara-se
apenas com o primeiro filho, referindo-se a Murau como o intratável, o
demoníaco, o funesto: “eu era somente o herdeiro substituto, gerado por
assim dizer em caso de necessidade extrema”9. Desse modo, o relato de
Murau só se inicia a partir do momento em que ele enfim assume o lugar
de Johannes, ou seja, para relatar seu processo de formação, o narrador
precisa assumir uma função que não lhe era legítima.
Podemos dizer que o romance de Bernhard ilustra uma
possibilidade de sobrevivência do Bildungsroman por meio de uma alusão

8 BERNHARD, Thomas. Extinção – Uma derrocada. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 213. Devido ao grande número de citações a essa obra,
passaremos a referenciá-la apenas pelo sobrenome do autor, seguido do número da página.
9 BERNHARD, p. 212.
parodística, pois os pressupostos históricos que inicialmente embasaram o
gênero estão ausentes. Ambientado no final do século XX, o romance
Extinção apresenta uma subjetividade fragmentada, cujo discurso
reverbera sobre si mesmo. O fato histórico presente nessa obra é
recuperado porque teve uma ligação direta com a família do narrador.
Como o próprio título do romance de Bernhard sinaliza, o propósito
teleológico de Murau é extinguir o passado, uma vez que seus anos de
aprendizado foram traumáticos. O projeto autobiográfico desse narrador
não estampa seu nome. Este é revelado sucintamente em meio ao seu
discurso esquizofrênico, dominado por idas e vindas e associações
completamente subjetivas.

As relações entre Murau e o mundo histórico

Na maioria dos romances de Bernhard, a ambientação não permite


uma fácil identificação com o mundo da segunda metade do século XX.
Olhando detidamente, percebe-se, por exemplo, que o meio de
comunicação é quase sempre carta ou telegrama. Não há menção a
aparelhos telefônicos. Os personagens transitam de um lugar a outro e,
quando se deslocam em grandes distâncias, utilizam o trem, símbolo da
industrialização e modernidade do século XIX.
Meios de transporte como avião ou carro praticamente inexistem e,
“nas poucas vezes em que veículos motorizados são mencionados, eles são
frequentemente agentes de destruição”10. Em Extinção, Murau é informado
por telegrama que os pais e irmão mais velho faleceram em decorrência de
um acidente de carro. Esses aspectos evidenciam uma predileção dos
narradores bernhardianos por um modo de vida passado, embora a
problemática por eles vivida esteja em perfeita sintonia com sua época.
Tendo trocado o provincianismo de Wolfsegg para viver em Roma,
este espaço urbano é pouco desenhado no relato de Murau. O estilo de vida
desse personagem remete ao flâneur, outra imagem característica do final
do século XIX. Quando passeia pelas ruas da cidade italiana, Murau está
sempre na companhia de seu aluno particular Gambetti. As conversas
entre eles, as quais se resumem a longos monólogos empreendidos por
Murau, desconsideram o mundo exterior e se fecham nos temas abordados
pelo narrador. A experiência de Murau com a cidade “se mostra
definitivamente ultrapassada em comparação com aquela mais extrema de
anarquia urbana nos romances de Kafka, Döblin, Kubin, e outros” 11. Em
Extinção, Roma figura como um mero cenário, pois é de onde Murau

10 LONG, Jonathan James. Assincronias: Relações de classe na ficção de Bernhard. In: KONZETT,
Matthias (ed.). O artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e
introdução de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 261-288, p. 262.
11 LONG, 2014, p. 262.
analisa seus traumas referentes à Áustria e, mais especificamente, a
Wolfsegg.
Esses anacronismos denotam certa nostalgia do narrador pela
Áustria imperial, período que, evidentemente, ele não vivenciou, mas que
se mantém, em certa medida, na estrutura de sua família. A Monarquia dos
Habsburgos dominou a Áustria por aproximadamente seiscentos anos,
chegando ao fim em 1916, com a morte do imperador Francisco José I, cujo
reinado de sessenta e oito anos simbolizou a fase áurea da dinastia,
conhecida por ser aristocrata, multicultural e poliglota. Murau, inclusive,
carrega esse passado em seu nome, certamente uma homenagem ao
imperador Franz Josef I. A família de Murau, latifundiária e herdeira de
uma grande fortuna, conserva o mesmo padrão de vida de seus
antepassados contemporâneos ao Império. Entretanto, ela se ocupa
exclusivamente de suas finanças, desprezando a vida do espírito, do
pensamento humanístico, aspectos valorizados durante o Império dos
Habsburgos. Esse fato é ressaltado, quando Murau lembra que os antigos
habitantes de Wolfsegg construíram ali cinco bibliotecas, pois

eles tinham uma necessidade natural pelo espírito e pelo pensamento [...]
estavam convencidos de que é o ápice da existência humana levar uma vida
no pensamento, uma vida no espírito, [...] não no cotidiano e na estupidez
cotidiana, como os meus [familiares].12

Essas bibliotecas encontravam-se sempre fechadas e, Murau, o único


a frequentá-las, era tolhido pela mãe, que o incentivava a se ocupar dos
assuntos da propriedade que um dia viria a administrar. Em seu relato, o
narrador reforça que desde criança sempre cultivara um apreço pela
Bildung, por uma formação para além dos muros da escola. No período
escolar, enquanto seu irmão Johannes era querido pelos professores,
sobretudo, pela disciplina, Murau era o aluno provocador, que se rebelava
diante do que lhe era ensinado. Na visão de Murau, o papel da escola era
apenas direcionar a criança para o diploma. Depois de formados, os
indivíduos não se interessavam mais em ampliar seus conhecimentos, pois
“as pessoas não se empenham por independência e autonomia em geral,
por seu próprio e natural desenvolvimento, mas apenas por esses diplomas
e títulos”13. Desobedecendo a ordem da mãe, Murau se infiltrava nas
bibliotecas da propriedade e, aos poucos, ia formando seu repertório de
leitura. Concluídos os estudos, o narrador optou por viver na Itália, onde
poderia tranquilamente continuar seu desenvolvimento individual.
O embate mundo prático de Wolfsegg e desenvolvimento intelectual
colocou-se como um primeiro entrave entre Murau e a família. Embora

12 BERNHARD, p. 194.
13 BERNHARD, p. 60.
rejeitasse os assuntos referentes à administração de Wolfsegg, Murau
mantinha-se em Roma com o dinheiro que os pais lhe enviavam. Entregue
ao ócio contemplativo na cidade latina, Gambetti era o único aluno
particular do narrador, que cobrava caro da família do jovem para ensiná-
lo língua e literatura alemãs. Apesar de odiar suas origens, Murau as
utilizava no exercício do magistério, seja no conteúdo pedagógico, seja nos
assuntos referentes a sua família os quais frequentemente eram inseridos
nas aulas. A aversão que o narrador carrega da Áustria presentifica-se ao
longo da narrativa por meio de inúmeras críticas que Murau tece à família
– um microcosmo do Estado. Outro assunto tematizado por Murau deve-
se ao fato de sua família ter apoiado o nazismo. Como ela sempre visava
tirar proveito de qualquer situação política, ao final da guerra, a família se
aproximou também dos norte-americanos, embora escondesse os nazistas
na propriedade.
A trajetória de Murau, entretanto, apresenta algumas ambiguidades
inerentes à complexidade de um indivíduo de sua classe e de seu tempo.
Ao fugir da Áustria por conta do envolvimento de sua família com o
nazismo, Murau escolhe viver na Itália, um país que guarda a mesma
mácula histórica. Nesse sentido, não é por acaso que Murau se afeiçoa por
Gambetti, seu aluno italiano, cuja idade e intelecto assemelham-se a de seu
mestre. Ambos descendem de famílias ricas e são produtos de uma
sociedade anteriormente totalitária.
Outro aspecto ambíguo em Murau encontra-se ao final do livro,
quando ele, aparentemente, se suicida, após doar Wolfsegg à Comunidade
Israelita de Viena. Em um primeiro momento, essa atitude figura como
uma forma de reparar o mal causado por sua família e, em segundo lugar,
como o modo de se livrar de uma herança indesejada. Seu suicídio pode
ser visto como uma atitude máxima de repúdio a tudo aquilo que remetia
à família e à sua própria identidade pessoal. No entanto, como destaca
Lorenz (2014), “o suicídio de Murau parece uma reencenação da solução
encontrada por aqueles nazistas que se mataram perante da derrota, Hitler,
Goering e Goebbels”14. Assim como estes, Murau foge de qualquer
responsabilidade, doando os bens herdados de sua família para aqueles
que ela lesou.
O significado do suicídio de Murau evidencia uma incapacidade
desse sujeito em buscar uma conciliação entre o passado dos familiares e a
reparação histórica de seus atos. A decisão pela morte soa contraditória ao
percurso de Murau que, mesmo fora de um regime totalitário, buscara
anteriormente uma aliança germânico-italiana com Gambetti, ou seja,
embora os criticasse, o narrador empreendia o mesmo modelo seguido

14LORENZ, Dagmar. O outsider estabelecido: Thomas Bernhard. In: KONZETT, Matthias (ed.). O
artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e introdução de Ruth
Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 75-99, p. 89.
pelos familiares. A atitude de Murau frente ao fato histórico assemelha-se
à do nobre Lothario, no Meister, de Goethe, feitas naturalmente as devidas
ressalvas quanto ao contexto histórico de cada romance. Membro da
Sociedade da Torre, Lothario deseja realizar uma reforma agrária em suas
próprias terras, saldando voluntariamente seus privilégios feudais.
Embora essa atitude sugira uma conciliação entre os interesses
aristocráticos, burgueses e plebeus, ela visa impedir que, na Alemanha, se
dessem os mesmos acontecimentos radicais ocorridos na França após a
Revolução. De acordo com Lukács, “em Goethe, não se trata da fé nos
métodos plebeus da Revolução Francesa; estes ele recusou categórica e
incompreensivamente. Mas isso não significa, para ele, uma rejeição dos
conteúdos sociais e humanos da revolução burguesa”15.
Em Extinção, embora o narrador retome fatos históricos, enfatizando
a Segunda Guerra e seus desdobramentos, sua obsessão gira em torno dos
complexos referentes a sua relação familiar e com o fato de ter se tornado
herdeiro de Wolfsegg. Paralelamente, o relato do protagonista foca o seu
desenvolvimento intelectual. Para tanto, Murau rememora o tempo da
infância a fim de destacar que desde cedo já possuía predisposição para o
cultivo do espírito. Seu percurso aproxima-se de algumas premissas
incutidas ao programa do Bildungsroman, mas também se distancia,
completamente, na medida em que esse personagem não deseja atingir um
grau de perfectibilidade, nem se reconciliar com a sociedade. O foco de
Murau reside em estetizar sua vida particular, destacando que, graças ao
incentivo do tio Georg, ele pôde abandonar Wolfsegg e aprofundar-se no
desenvolvimento de suas qualidades intelectuais.

A atuação de mentores em dois tempos


Primeiro tempo: Georg e Murau

Desde criança Murau foi muito influenciado pelo tio Georg, irmão
mais velho de seu pai e personagem que, no relato do narrador, possui
lugar de destaque. Havia claramente para Murau dois mundos em
Wolfsegg, “o de meus pais, que sempre achei desinteressante [...] e o do
meu tio Georg, que parecia consistir só de aventuras formidáveis, no qual
nunca era possível entediar-se”16. A principal diferença entre esses
mundos consistia no fato de que, enquanto os pais de Murau conduziam
suas vidas seguindo os preceitos burgueses da acumulação de capital, o tio
Georg caracterizava-se por ser um espírito livre, empenhado em ampliar

15 LUKÁCS, Georg. Posfácio. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister. Tradução de Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 581-601, p.
594. Conforme nota do tradutor, o texto do Posfácio, de autoria de Georg Lukács, foi publicado
em 1936 e se encontra em Werke, vol. 7: Deutsche Literatur, “Goethe und seine Zeit”,
Neuwied/Berlim, Hermann Luchterhand, 1964.
16 BERNHARD, p. 35-36.
seus horizontes. Chamava à atenção de Murau a preocupação do tio em
desenvolver suas potencialidades, enquanto seus pais, desde cedo,
desistiram de aprimorar suas existências:

[...] é uma coisa óbvia ampliar os conhecimentos e formar e reforçar o caráter


enquanto se está vivo. Pois quem pára de ampliar seus conhecimentos e
reforçar seu caráter, e portanto de trabalhar sobre si mesmo para tirar de si
o máximo possível, parou de viver, e todos eles [familiares] já haviam parado
de viver com cerca de vinte anos, dali em diante não fizeram mais que
vegetar, devo dizer, naturalmente até se fartarem.17

O que Murau deixa claro, em seu relato, é que sua trajetória se


definiu a partir da rejeição ao modelo de vida que seus pais queriam lhe
impor, ou seja, que o narrador junto ao irmão assumisse futuramente a
administração dos bens da família. Agora adulto Murau reforça a imagem
de que desde criança fora um espírito contestador, influenciado,
sobretudo, pelo tio Georg, em quem se espelhara para se diferenciar dos
genitores: “Penso várias vezes que tenho muito de meu tio Georg, mais,
em todo caso, do que de meu pai”18. Georg cumpre o papel de mentor de
Murau, transmitindo-lhe o amor pelo conhecimento como forma de
desenvolver o caráter e se destacar de seu meio. É Georg, portanto, quem
desperta no narrador a busca pelo aprimoramento individual por meio da
intelectualidade, o que contribui para Murau criar sua própria identidade
e renegar as imposições da família.
Como o narrador ressalta, a decisão de abandonar Wolfsegg foi
inspirada pelo tio Georg, que realizara o mesmo percurso, quando, após
tomar sua parte na herança, mudara-se para a Riviera Francesa, onde
dedicava seu tempo à literatura, ao mar e às rosas. Tio Georg figura como
um modelo a ser seguido, sendo também lembrado como o responsável
pelo “patrimônio intelectual” que o narrador construiu. É o tio quem
despertara Murau para o fato de que “além de Wolfsegg e fora da Áustria
existia algo a mais, algo ainda mais grandioso” e que “só os imbecis
acreditam que o mundo termina onde eles próprios terminem”19. Ouvindo
os conselhos de Georg, para se tornar autônomo, Murau deveria, em
primeiro lugar, libertar-se da influência da família e buscar outro lugar
para se desenvolver, distante do pensamento católico e nacional-socialista
que vigorava em Wolfsegg:

Tem de ignorar as ideias e opiniões dos seus [...] e sair de Wolfsegg contra a
vontade deles, não seguir o conselho deles, que só têm por objeto te
acorrentar a Wolfsegg pelo resto da vida, [...] tem de fazer exatamente o

17 BERNHARD, p.58.
18 BERNHARD, p. 24-25.
19 BERNHARD, p. 26-27.
contrário do que te aconselham [...], pois as ideias deles são opostas às suas,
e portanto contrárias a de seu desenvolvimento. [...] Você está em condições
de se tornar autônomo deles, de se tornar independente, dissera meu tio
Georg.20

Seguindo as orientações do tio, o narrador deixou Wolfsegg para


estudar em Londres, fazendo seus pais crerem que ele retornaria depois de
formado. Murau não menciona ter concluído a faculdade, mas sim ter
iniciado uma busca por um lugar ideal para viver. Após um período
malsucedido em Lisboa, Georg orienta novamente o sobrinho e lhe
recomenda morar em Roma, onde Murau então se estabelece e encontra a
renovação de sua existência e guinada espiritual. Morando na Piazza
Minerva, centro da metrópole romana, o narrador dedica a maior parte de
seu tempo à literatura, saindo de casa apenas para dar aulas a Gambetti
pelas ruas de Roma.

Segundo tempo: Murau e Gambetti

Ao longo da narrativa, quando Murau não está refletindo sobre suas


memórias, é com Gambetti que ele afirma ter conversado. Embora o
narrador sempre se remeta a essas conversas, elas nunca são narradas no
presente, criando, assim, um tempo indefinido dentro da estrutura
narrativa. Gambetti, portanto, é um narratário ausente, cuja presença se faz
necessária para a condução do relato do narrador. Focando nos diálogos
com Gambetti por meio dos quais se estabelece uma relação de tutoria,
Murau desvia a atenção do leitor para o fato de estar, na verdade,
executando seu projeto autobiográfico. É perceptível, na relação com
Gambetti, que Murau atua como um mentor para o italiano, repetindo,
dessa maneira, uma relação parecida com a que vivenciara com o tio
Georg:

[...] finjo instruí-lo [Gambetti] na literatura alemã, [...] mas na verdade o


aparto de seus pais e das ideias deles com absoluta coerência, pensei, [...]
agora faço portanto com Gambetti aquilo que há muito fiz comigo ao me
afastar de Wolfsegg, [...] desempenho o papel do tio Georg, pensei, [...]
expulso Gambetti do mundo de seus pais tal como meu tio Georg me
expulsou de Wolfsegg.21
Segundo o narrador, Gambetti se interessava mais por suas teorias
de como recriar um mundo melhor do que pelos livros que ele lhe indicara:
“A cabeça de Gambetti já absorveu muito de minha cabeça, pensei, em
breve haverá mais de minha cabeça na cabeça de Gambetti que da dele” 22.
As ideias que Murau apresenta a Gambetti não são bem vistas pelos pais

20 BERNHARD, p.103.
21 BERNHARD, p. 154.
22 BERNHARD, p. 154-155.
do jovem, os quais, embora conservem uma relação amistosa com o
narrador, veem nele o “deseducador de seu único filho”, que se mostra
cada vez mais inclinado a se tornar um filósofo revolucionário, destoando
completamente do propósito burguês da família. Contudo, uma vez que o
leitor não tem acesso à voz de Gambetti, essas impressões são comunicadas
apenas pelo narrador, o que gera certa desconfiança quanto à existência do
jovem. Devido ao caráter misantropo do narrador, a figura de Gambetti
ganha contornos de mero recurso estilístico, podendo ser visto como um
produto da criação literária de Murau.
A única reação de Gambetti que o narrador deixa transparecer no
texto refere-se ao riso que o italiano não consegue esconder diante de
alguns comentários de seu mestre, a quem Gambetti apelidara de sonhador
matutino: “Gambetti soltara uma gargalhada e chamara-me de imenso
exagerado, definira-me como um pessimista”23. Essa reação pode revelar
certa descrença de Gambetti em seu mentor, contribuindo, inclusive, para
que o relato seja lido sob o signo do exagero. Ao registrar a risada incontida
de Gambetti, o narrador estaria sinalizando para o fato de que seu relato,
além de extremamente subjetivo, não deve ser levado tão a sério. Ou que
sua visão acerca dos acontecimentos que narra faz sentido somente a ele,
cabendo a Gambetti, e implicitamente ao leitor, apenas o riso como
resposta.
Apesar de Murau desempenhar o papel de mentor de Gambetti, a
relação entre eles não pressupõe uma integração, uma vez que ela silencia
o aluno e concede voz apenas ao mestre. Desse modo, segundo Long
(2001), o romance poderia ser lido como uma paródia do Bildungsroman,
pois, “embora o narrador tente incansavelmente convencer Gambetti, ele
não deixa de propagar, monótona e maniacamente, o seu próprio
desabafo”24. Mais ainda, o sucesso no método de convencimento de Murau
pelo tio Georg não é sentido na relação entre Gambetti e o narrador.
Enquanto Murau vangloria-se da instrução que recebeu do tio, a orientação
que o narrador endereça a Gambetti é dissimulada, pois os encontros com
Gambetti servem de pretexto para Murau regurgitar seu passado.

O corretor de literatura

Uma maneira de o narrador reafirmar as bases de seu processo de


formação individual ocorre por meio de citações a inúmeras obras
literárias que ele apresenta ao longo da narrativa. Nessas passagens,
Murau ora ratifica o valor de autores consagrados, ora problematiza esse
cânone. O conteúdo das aulas que Murau oferece a Gambetti parte,

23BERNHARD, p. 92.
24KORTE apud LONG, 2001, p. 175, tradução nossa. In: LONG, Jonathan James. The novels of
Thomas Bernhard: form and its function. New York: Camden House, 2001.
exclusivamente, do gosto estético particular do narrador, ou seja, ele se
utiliza de um repertório formado desde a infância, sendo que, a muitas
dessas obras ele teve acesso por intermédio do tio Georg.
Já no início do romance, Murau se lembra de uma lista que entregara
a Gambetti contendo os nomes dos livros que seriam abordados nas
próximas aulas. São eles: Siebenkäs, de Jean Paul, O processo, de Kafka,
Amras25, de Thomas Bernhard, A portuguesa, de Musil, Esch ou A anarquia,
de Broch, As afinidades eletivas, de Goethe e O mundo como vontade e
representação, de Schopenhauer. Embora o narrador faça referência a obras
de outros autores, convém ressaltar que, “em Extinção, a intertextualidade
não é motivada tematicamente por meio de assuntos como anarquia, crítica
social ou uma diferenciação entre norte e sul” 26, podendo ser interpretada
como uma mera citação do repertório literário do protagonista. Theisen
(2006) lembra ainda que Extinção não “invoca estilisticamente estes
intertextos de modo principal, ainda que tais técnicas literárias, como a
digressão permanente ou a referência do autor a seus próprios textos
dentro do texto literário, exploradas por exemplo por Jean Paul em
Siebenkäs, reapareçam na narrativa”27.
Por outro lado, Görner (2014) destaca que essas referências também
criam “a impressão de que os protagonistas de Bernhard só recorrem aos
grandes artistas para dar voz de autoridade ao seu discurso” 28. Conforme
dito anteriormente, no início do romance, o narrador serve-se de autores
clássicos tanto para marcar seu processo de intelectualidade, quanto para
orientar a formação de Gambetti. Contudo, na segunda parte do livro, o
discurso do narrador se altera e o que se nota é uma tentativa de
desconstrução dos mestres literários outrora reverenciados. A estratégia
desconstrutiva de Murau apóia-se, sobretudo, na repetição, uma vez que,
ao repetir diversas vezes um argumento, o narrador tenciona o
esvaziamento daquilo que é repetido.
Em uma longa passagem, Murau trata do legado de Goethe para a
literatura alemã, afirmando que a poesia e a filosofia goethianas são a
maior charlatanice dos alemães. Para o narrador, o surgimento de Goethe
contribuiu para a criação de uma identidade alemã e serviu também como
um remédio para os alemães: “o flautista de Hamelin da filosofia [...]

25 Curioso é que, entre os livros indicados pelo narrador, aparece o romance Amras (1964), do
próprio Thomas Bernhard, o que leva o leitor a pensar que, dentro do universo de Extinção, Amras
já se encontra canonizado, pois figura ao lado de obras clássicas.
26 HOELL apud THEISEN, 2006, p. 561, tradução nossa. In: THEISEN, Bianca. The Art of Erasing

Art. Thomas Bernhard. MLN, Maryland, v. 121, n. 3, p. 551-562, Apr. 2006. (German Issue).
27 THEISEN, Bianca. The Art of Erasing Art. Thomas Bernhard. MLN, Maryland, v. 121, n. 3, p.

551-562, Apr. 2006. (German Issue), p. 561, tradução nossa.


28 GÖRNER, Rüdiger. O trinco quebrado: A noção de Weltbezug de Thomas Bernhard. In:

KONZETT, Matthias (ed.). O artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da


tradução e introdução de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 145-164, p. 158.
Goethe no fundo nada mais é que o curandeiro dos alemães [...] o primeiro
homeopata alemão do espírito”29. Murau vê em Goethe um autor
superestimado, a quem os futuros escritores tiveram que reverenciar e de
quem eles nunca mais conseguiram se desvencilhar. Goethe fora imposto
aos alemães como exemplo a ser seguido e, mesmo o narrador tendo
nascido na Áustria, o fato de os dois países possuírem a mesma língua em
comum, significou também o assujeitamento da literatura austríaca ao
paradigma goethiano. Uma vez que Murau se define como “corretor de
literatura”, ele abre espaço, em seu relato, para reavaliar a supremacia
concedida a Goethe e a sua obra:

Nada do que fez Goethe atingiu o vértice, disse, em tudo não ultrapassou a
mediocridade. Ele não é o maior dos líricos, não é o maior dos prosadores,
disse a Gambetti, e suas peças teatrais, comparadas por exemplo às peças de
Shakespeare, são como um mirrado bassê dos arrabaldes de Frankfurt diante
de um imponente cão pastor suíço. Fausto, [...] que megalomania! [...] Goethe
é o coveiro do espírito alemão [...]. Se o comparamos por exemplo a Voltaire,
Descartes, Pascal, [...] a Kant, e naturalmente também a Shakespeare, Goethe
é assombrosamente pequeno. [...] Hölderlin é o grande lírico, [...] Musil é o
grande prosador e Kleist o grande dramaturgo, não Goethe, três vezes não.30

Embora o extenso trecho acima exemplifique a antipatia que o


narrador sente pela figura de Goethe, ele não justifica sua opinião. A fala
de Murau é, antes, baseada em critérios estritamente subjetivos, os quais
ele não abre para discussão. Essa espécie de manifesto contra Goethe foi
proferida para Gambetti, cuja função no romance é apenas ouvir seu
mestre. Desse modo, Murau apresenta-se como um mentor despreocupado
em saber a opinião de seu aluno e que se utiliza de comentários genéricos
acerca de escritores dos quais ele afirma possuir vasto conhecimento.
Enquanto Georg transmitia a Murau não somente um conhecimento
intelectual, mas também meios de ele se apartar da família, Murau tem a
oferecer a Gambetti apenas uma fala verborrágica sobre questões que
dizem respeito a seu gosto particular. Ademais, Murau simplesmente elege
seus autores prediletos os quais, pelo teor de sua fala, teriam sido
ofuscados por Goethe. Desse modo, Murau anula qualquer possibilidade
de diálogo e interação com Gambetti.
Subjaz à crítica a Goethe o êxito de tio Georg na formação pessoal de
Murau. Tendo sido um exímio leitor, certamente Georg lera os clássicos,
inclusive as obras de Goethe, dentre as quais o Meister em que pode ter se
inspirado para fomentar o desenvolvimento individual em seu sobrinho.
Uma vez que Murau não se adaptava ao meio em que vivia, os
ensinamentos de seu tio eram uma espécie de alento. Aliados à

29 BERNHARD, p. 422.
30 BERNHARD, p. 422-423.
predisposição de Murau para se desenvolver, os direcionamentos de
Georg contribuíram para a formação da individualidade de Murau.
Entretanto, como Gambetti se encontra bem adaptado a seu meio, a
tentativa do narrador em instruí-lo é fracassada, pois o italiano o paga em
troca de aulas particulares e não manifesta nenhum desejo de uma
mudança pessoal mais concreta. Dessa maneira, em seus monólogos,
Murau conversa consigo mesmo, desconsiderando a atenção e a presença
de Gambetti, cuja existência ecoa como mera virtualidade no relato do
narrador.

José Lucas Zaffani dos Santos é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos


Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP –
Araraquara/SP, Brasil. Bolsista CAPES. Contato: [email protected]

Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas é Professora Livre-Docente em Literatura Alemã do


Departamento de Letras Modernas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
– UNESP – Araraquara/SP, Brasil. Contato: [email protected]
ENSAIOS
NO EXÍLIO ENTRE O DESEJO E O SONHO:
SOBRE A “POÉTICA UTÓPICA”
DE MOACYR FÉLIX
Diogo César Nunes

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O presente texto propõe uma leitura da obra de Moacyr Félix Utopia;
partindo da indicação de que sua “poética utópica” trava Moacyr Félix;
interlocução com a Teoria Crítica da Sociedade e com a Poética utópica;
Filosofia de Ernst Bloch. Busca explorar na figura do “exílio” a Exílio;
possibilidade de uma leitura da subjetividade e da realidade que Desamparo.
põe em “crise” tanto a imagem do futuro (sonho utópico) quanto
a de si. Em aproximação à psicanálise, sugere que sua poética
“utópica” pode ser lida como uma poética do “desamparo”, que,
ao duvidar tanto da imagem quanto da possibilidade de dizer a
“palavra exata”, dá acesso à “verdade impossível” do desejo.

ABSTRACT KEYWORDS
This paper proposes a reading of Moacyr Félix´s poems starting from Utopia;
the warning that his "utopian poetics" is in interlocution with the Moacyr Félix;
Critical Theory of the Society and with the Philosophy of Ernst Bloch. Utopian poetics;
It seeks to explore, by the "exile", the possibility of a reading of Exile;
subjectivity and of reality that puts in "crisis" both the image of the Helplessness.
future (utopian dream) and of itself. Finally, in an approach to
psychoanalysis, the article suggests that its "utopian" poetics can be
read as a "helpless" poetic, which, by doubting both the image and the
possibility of saying "exact word", gives access to "truth impossible"
of desire.
Pela recusa intransigente da aparência de
reconciliação, a arte mantém a utopia no seio do
irreconciliável.1

O presente artigo tem como objetivo promover uma leitura da


obra poética de Moacyr Félix tomando como referência o tema da utopia,
e, em específico, o que seria a “crise” da representação de uma imagem
idealizada de futuro. Buscaremos apresentar algumas premissas que se
refiram tanto ao aporte teórico desta leitura quanto à análise do seu
objeto, na intenção de oferecer embasamento, também, às hipóteses
centrais do trabalho, quais sejam, a de que o utópico prescinde de uma
projeção otimista do futuro e a de que a poesia de Félix pode ser lida
como uma “poética utópica” que busca, mas não encontra, “amparo”
nem em inspirações em um passado pré-capitalista nem em imagens que
fixem, ou orientem, aspirações em relação ao porvir. Assim, serão
acionados poemas de Félix, publicados em distintas obras (dos anos 1950
até a década de 1990), que permitam entrever suas interlocuções com a
Filosofia da Esperança de Ernst Bloch e com a Teoria Crítica de T. W.
Adorno. Por fim, será posto em questão se a recusa a um “amparo
imaginário” não seria uma forma de fazer falar o desejo, hipótese que
confrontaria a tese da poesia de Félix como pertencente ao “romantismo
revolucionário”, noção que abarcaria a heterogeneidade da dita “arte
engajada” brasileira dos anos 1950 e 60.
Como afirmou Henrique Estrada Rodrigues, embora a noção de
“poética utópica” seja polissêmica, ela demanda uma especificidade
própria, compreendida, pelo autor, a partir de três “critérios de
avaliação”: “o conhecimento de sua historicidade, a análise de seus textos
constitutivos e o reconhecimento de diferentes modalidades de
elaboração e interpretação do imaginário utópico”2. Em relação à obra de
Moacyr Félix, cremos acessar tais critérios, ao menos inicialmente, através
da indicação de Luiz Carlos Lima, quando afirmou que a “poética
utópica” de Félix “torna-se o espelho de uma unidade dialética entre
verdade e utopia, que traduz uma tensão permanente na busca da
verdade não-reconciliada num mundo reconciliado com a não-verdade

1ADORNO, T. W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 58.


2RODRIGUES, Henrique Estrada. A Utopia no Tempo, o Tempo na Utopia. Texto apresentado no
Fórum de Teoria e História da Historiografia, UFRRJ, ago. 2015, p. 4.
da vida mutilada”3. Neste mesmo texto, publicado à ocasião do
falecimento de Félix, em 2005, Carlos Lima disse que tal “poética da
utopia tem como base conceitual a obra de Ernst Bloch, Walter Benjamin
e Theodor Adorno”. É possível que, na primeira frase citada no texto, a
noção de “vida mutilada” faça referência ao termo beschädigten Leben –
traduzido recentemente por Gabriel Cohn como “vida danificada” –, que
aparece no subtítulo da obra Minima Moralia, de Theodor W. Adorno4. O
esclarecimento desta “base conceitual” nos orienta a leitura que
intentamos promover da poesia de Félix, de modo que a afirmativa de
que sua “poética utópica” lide com o problema da “verdade não-
reconciliada num mundo reconciliado com a não-verdade” nos sugira sua
intenção de se inserir no cerne de uma discussão, que remonta à
apropriação hegeliana por parte da Teoria Crítica, acerca da reconciliação
(entre homem e natureza, entre realidade e verdade, entre a efetividade e
a universalidade do conceito), e que tem como objeto privilegiado o
estatuto da obra de arte na modernidade. Para a Teoria Crítica, de um
modo geral, a Utopia sinaliza à possibilidade da reconciliação – ou à
liberdade como possibilidade.
Em Ernst Bloch, o sonho utópico diz respeito à possibilidade de
superação, no futuro, do presente. A utopia parece querer “enxergar bem
longe”, disse Bloch, “mas, no fundo, apenas para atravessar a escuridão
[...] do instante que acabou de ser vivido, em que todo devir [Seiende] está
à deriva e oculto de si mesmo”5. O que Pierre Furter, em livro dedicado à
filosofia blochiana, chamou de “dialética da Esperança”, segue o curso,
ou o processo, guiado pelo sonho utópico (ou diurno): desde a carência,
abrindo a realidade a “possibilidades”, até um possível-real6. A carência é
sinal da presença do desejo – “desejo que nunca adormece”7 – a revelar,
no presente, a sua precariedade, ou seja, naquilo “que é”, o que “não-é”.
Assim, o sonho fala, antes de mais nada, do presente, mas de um presente
em que insiste o desejo, sinal daquilo que, em latência, “não é”, “não foi”
ou “não veio-a-ser”. Ao oferecer uma imagem ao desejo, o sonho utópico
faz do estado presente um estado de carência e, ao mesmo tempo, eleva
aquela latência à condição de potência: o que falta passa a apontar ao
futuro, ao que “ainda-não veio-a-ser”.
Se a imagem do futuro aponta ao por-vir, o faz “desde” o presente,
que passa a ser, a um tempo, precário e “saturado de agoras”8. Assim, a

3 LIMA, Carlos. Poesia e Utopia em Moacyr Félix. Letras & Letras, v. 21, n. 2, 2005, p. 10.
4 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.
5 BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. UERJ; Contraponto, 2005, p. 23.
6 FURTER, Pierre. Dialética da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p. 80.
7 BLOCH, Ernst. op. cit., p. 79.
8 Tomamos tal expressão de Benjamin, que, na 14ª das teses Sobre o conceito de história, afirmou

que “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas
um tempo saturado de ‘agoras’" (BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras
realidade se des-totaliza, por assim dizer, se revelando como inacabada,
pendente. Para Bloch, é exatamente pelas brechas da realidade presente
que o sonho se infiltra9, oferecendo ao presente o futuro enquanto
possibilidade – o tempo histórico, em suma, como aberto à práxis. O
sonho utópico, ou diurno, investe, deste modo, a realidade de
temporalidades: atualiza sonhos já sonhados – e, tomando referência na
formulação de Kojève, “desejos desejados”10 – a partir da sua situação
histórica atual, desdobrando o tempo presente em “possíveis-reais”. No
poema No perguntar de um agora, Félix teria formulado tal questão, todavia
enfatizando o caráter dialético e negativo do desejo em relação ao
existente (ao que é): “O poema novo é tão velho como a revolta que
fecunda / o som futuro da humanidade no ventre antigo / do desejo que
nega o que é e movimenta a antítese / da rua, da lei, do medo e do
costume”11.
Se a imagem da Utopia seria, em Bloch, aquela da reconciliação12, em
Félix, de acordo com Carlos Lima, a “unidade dialética entre verdade e
utopia” está situada exatamente na suspensão – ou, na crise da
possibilidade – da reconciliação, assumindo um caráter essencialmente
negativo. Ainda que tivesse recorrido a Bloch, em distintas ocasiões, para
embasar sua compreensão de utopia13, talvez tenha sido Adorno seu

Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 229). Em Bloch, a afirmativa de que a realidade “é a
mediação vastamente ramificada entre o presente, o passado pendente e sobretudo o futuro
possível” (BLOCH, Ernst. op. cit., p. 194).
9 “Pois o sonho não para se se infiltrar nas lacunas” (BLOCH, Ernst. op. cit., p. 37). Novamente

aproximando Bloch e Benjamin, vale lembrar a passagem, ora citada através de Rouanet, que
diz: “nossa existência diurna é um país cheio de lugares ocultos em que desaguam os sonhos”
(Benjamin apud ROUANET, Sérgio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Cia. das Letras,
1987, p. 118).
10 Para Alexandre Kojève, a noção de “desejo”, conforme na Fenomenologia do Espírito, é central

para a formulação hegeliana de homem (ao menos a do “primeiro Hegel”) que não é somente
consciência, mas possibilidade de consciência de si (o que desnaturaliza a condição humana;
desloca-a do registro meramente biológico): “A realidade humana, diferente da realidade
animal, só se cria pela ação que satisfaz tais desejos: a história humana é a história dos desejos
desejados” (KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002,
p. 13).
11 FÉLIX, Moacyr. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 109.
12 Acerca da relação entre a Utopia concreta e a imagem do mundo reconciliado, conferir, por

exemplo, a passagem que diz que “[...] o lugar da efetivação” do utópico “situa-se unicamente
no front do processo histórico e tem diante de si, num primeiro momento, preponderantemente
a possibilidade real indireta. Esta, como um correlato real-objetivo, fica sendo o que
corresponde à antecipação exata, à utopia concreta. Ela o é no mesmo sentido em que o
concretamente utópico constitui um real-objetivo grau de realidade no front do mundo
acontecendo: como ainda-não-ser da ‘naturalização do ser humano, humanização da natureza’.
Correspondentemente, o reino da liberdade assim caracterizado não assume a forma do
retorno, mas do êxodo – ainda que para a terra sempre almejada, prometida pelo processo”
(BLOCH, Ernst. op. cit., p. 202-203).
13 Cf. FÉLIX, Moacyr. O Pensar e o Sentir na Obra de Moacyr Félix. Rio de Janeiro: Fundação

Biblioteca Nacional; Bertrand Brasil, 2002.


principal interlocutor. Em Adorno, o estatuto de verdade é conferido
tanto à liberdade (ou à “emancipação”) quanto ao desacordo entre
realidade e pensamento, ou seja, justamente como o que escapa às
formulações lógicas e à realidade objetiva/empírica, ora, como
contraponto à instrumentalização do mundo guiada pela racionalidade
esclarecida. Conforme nos diz Enio Muller, em Adorno a verdade da
utopia reside na não verdade da realidade, e, assim, verdade e utopia se
aludem e se sustentam no escape ao evidente e à realidade empírica,
resistindo à reificação. Neste sentido, “o que é ansiado reveste-se de
imagens e conceitos, sem deixar de se mostrar resiliente a toda
nominação ou imageação. Sua existência é, ao mesmo tempo, sinal de
presença e de ausência”14.
A reconciliação jaz como verdade na medida em que resiste à
captura por um conceito, uma imagem ou uma formulação; em outros
termos, na medida em que é capaz de apontar (ainda que através de um
conceito, de uma imagem ou de uma formulação) para-além da realidade
evidente: para o que falta e/ou o que excede “nos” próprios dispositivos
que a tornam presente como possibilidade15. É possível acessar tal
questão em Canto para as transformações do homem – livro escrito nas
semanas seguintes ao Golpe de 1964, em que confronta a pergunta, feita
por seu filho, “o que é liberdade?” –, na medida em que Félix ensaia
várias respostas à interrogação sobre a liberdade, mas sempre a
mantendo como enigma. Estaria ali, na negativa à definição conceitual, a
possibilidade mesma da liberdade. Há um “mistério maior” no homem,
escreveu em 1964, que faz dele “a espessa liberdade [...] de ser / a pátria
sem fim do ato livre / que arranca a vida e o tempo e as coisas / do
espelho imóvel dos conceitos”16.
Pode-se afirmar que o tema da liberdade se impõe em toda a obra
poética de Moacyr Félix, viabilizado, todavia, através de outras noções-
enigmas – talvez caiba dizer imagens-enigmas, ou, na expressão do
próprio Félix17, “irrespondíveis esfinges” – como “vida”, “morte”,
“rosto”, “voz”, “tempo”, “sonho”. Contudo, se há um “mote” central no
conjunto da sua produção seria a reflexão permanente e insistente sobre a
própria poesia; em outros termos, sustentamos que seja a poesia, o fazer
poético e a condição do poeta no mundo moderno, os “objetos”
privilegiados do seu trabalho. Elevada à condição de premissa, tal
suspeita faz atravessarem política e estética (ou política, filosofia e

14 MUELLER, Enio. Filosofia à sombra de Auschwitz. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2009, p. 186-187.
15 Cf. NUNES, Diogo C. O sujeito que resta. Revista Nós – Cultura, Estética e Linguagens, Goiânia,
v. 1, n. 2, 2016.
16 FÉLIX, Moacyr. Canto para as transformações do homem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1964, p. 75-76.
17 Id. O Pensar e o Sentir na Obra de Moacyr Félix. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional;

Bertrand Brasil, 2002, p. 82-83.


poética), pondo-nos diante daquela que talvez seja a questão basilar não
somente da poesia moderna, mas da arte moderna, como um todo,
concentrada no par “crise” e “crítica” da representação18. Em um poema
decididamente “político” como Invenção de Crença e Descrença, em que Félix
insiste na exigência de “destruir o mundo”, as “auroras” estão asiladas e
escondidas “no mais obscuro canto das palavras”, de modo que, após
sofrer a “terrível dor de essências [...] à beira de tudo o que não foi mas
devia ter sido”, ele conclui com os seguintes versos: “Ah, construir o
mundo // o mundo em que o homem possa / ser o seu poema, a sua
libertação / maior”19.
A correlação entre “poema” e “libertação maior” seria mais que uma
metáfora, mas indício de que o vínculo entre poesia e utopia se dê não em
uma relação entre forma e conteúdo, mas, ao contrário, no processo mesmo
de deslocamentos que ambas instituem em relação ao existente, uma vez
que “a atividade do poema é colocar em dificuldade o signo”20. Ao pôr o
signo em dificuldade, ou em crise, o poema suspende o significado como
“alguma outra coisa”, nunca garantido, sempre perdido, ou deslocado, na
“cadeia significante”: o lugar da verdade é um “lugar-outro”, nunca já-
dado tampouco “em-si”, que insiste no próprio presente, no próprio
significante e na sua materialidade (no seu “mais obscuro canto”, como
escreveu Félix). Assim, seu acesso é sempre parcial e inclinado ao
equívoco, permitido unicamente por uma brecha aberta pelo desencaixe
estrutural que relaciona enunciado e enunciação; dada a ler como uma
“imagem vaga-lume”, que relampeja num instante para depois se perder

18 Para Nelson Brissac Peixoto, a crise da representação na arte está ligada diretamente à
compreensão da modernidade como crise: “[...] justamente quando se começa a tomar as
mercadorias por elas próprias, a arte moderna passa a tomar as obras por si mesmas, as formas
e cores como forças; plano, fundo, suporte e materiais subvertidos num espaço recriado. A crise
da representação atinge então também a arte” (PEIXOTO, Nelson Brissac. A Sedução da Barbárie.
São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 11-12). Na Teoria da vanguarda, Peter Bürger aponta à tendência
formalista da ate moderna já desde a segunda metade do século XIX: “O lado conteudístico da
obra de arte, sua ‘mensagem’, cada vez se retrai frente ao formal, que se cristaliza como sendo o
estético em sentido mais estrito” (BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify,
2012, p. 48). O “formalismo” da arte moderna não seria uma celebração da forma pela forma,
mas a tematização da distância entre arte e realidade, de modo que o objeto “de” arte passe a
ser objeto privilegiado “da” arte (GREENBERG, Clement. A Necessidade do Formalismo. In:
CORTIM, C.; FERREIRA, G. (Orgs.). Clement Greenberg e o Debate Crítico. Rio de Janeiro: Zahar,
2001, p. 127). Neste sentido, a “realidade” não seria somente nem condição exterior à técnica
formal (de uma perspectiva sociológica) nem a coisa representada, mas presente no próprio
“conteúdo” formal da obra, na medida em que “sedimentada” nos seus procedimentos formais
e técnicos. Na Teoria Estética: “[...] os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às
obras de arte como os problemas imanentes de sua forma” (ADORNO, Theodor W. Teoria
Estética. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 16).
19 FÉLIX, Moacyr. Um Poeta na Cidade e no Tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966,

p. 34.
20 SOUSA, Edson Luiz André de; LIMA, Manoel Ricardo de. O nome que falta. Psicologia &

Sociedade, v. 21, edição especial, 51-56, 2009, p. 51.


irremediavelmente21. Para Sousa e Lima, poesia e utopia se encontram no
escape à “captura por uma imagem como um furo na imagem”, subtraindo
“do sujeito a sensação de que finalmente encontrou a palavra justa, o lugar
ideal”22. Em Morro dentro deste..., o poeta morre “dentro deste papel em
branco”, pois

Deus não sabe o que é o telefone.


E assim não ouço a palavra exata
para destruir neste exato momento
este mundo injusto e com ele todos
os filhos da puta que o transformaram em templos
em cujo interior dançam ainda
como se fossem, como se fossem
os donos de todas as músicas
e do silêncio em que se ausenta
a oração no enterro dos suicidas.
É, Deus não sabe o que é o telefone.
E por isso eu morro, como se fosse uma cidade
dentro deste papel em branco23.

Impossibilitada a reconciliação, escapa ao poeta “a palavra exata”.


Ele jaz na imensidão vazia do papel em branco, o mesmo que o espera e o
guarda como se fosse uma prisão, pois “o papel em branco então serve /
como serve ao prisioneiro / a parede branca do cárcere” 24. O poeta está,
em relação ao papel em branco, na condição de exilado: na busca
incessante da palavra “justa”, da imagem “ideal”, que reconciliem
potência e ato, vida e realidade, “exilado entre palavras que nunca foram
proferidas”25.
A figura do “exílio” é recorrente nos poemas de Félix. Decerto, o
exilado ocupa lugar central na história cultural latino-americana do
século XX, uma vez que tantos militantes, artistas e intelectuais tiveram
de encontrar destino na saída do seu país natal para poderem se manter
vivos, ou sobrevivos. Ainda que Félix não tenha tido que deixar o país
durante o Regime Militar (ou civil-militar), tal gesto de “identificação”
pode representar, no mínimo, algo como uma empatia por tal condição.
Teríamos, assim, por um lado, marcada a diferença entre “sujeito
vivente” e “sujeito lírico”, este que se anuncia como exilado, e, por outro,

21 Nos remetemos, aqui, à noção benjaminiana de “imagem dialética” (BENJAMIN, Walter.


Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2007, p. 515) e, sobretudo, ao tratamento dado a ela por Didi-Huberman, em específico em
Sobrevivência dos vaga-lumes (DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo
Horizonte: UFMG, 2011.).
22 SOUSA, E. L. A.; LIMA, M. R., op. cit., p. 55.
23 FÉLIX, Moacyr. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 59.
24 Id., Ibid., p. 31.
25 Id., Ibid., p. 32.
o ânimo político e estético da poética de Félix: dar voz à expectativa e à
frustração, à promessa da liberdade e às violências institucionais através
dos “vencidos” – ou, em outros termos, dar voz (ou letras) ao sofrimento
produzido pela condição trágica que a promessa da liberdade encena,
algo misteriosamente, ao atravessar as vidas dos indivíduos
contemporâneos. Como escreveu Adorno, em Minima Moralia, “cabe unir-
se ao sofrimento das pessoas: o menor passo na direção das suas alegrias
segue no rumo de enrijecer o sofrimento”26. Na Teoria Estética, podemos
ler: “mais vale desejar que um dia melhor a arte desapareça que esquecer
o sofrimento, que é a sua expressão [...]. Esse sofrimento é o conteúdo
humano que a servidão falsifica em positividade”27.
Em Canção do Exílio Aqui, de 1977, o poeta buscou “inventariar” seus
exílios – exilado no sofrimento do outro, nas promessas que não se
cumpriram, na “geração interrompida” da qual fez parte 28, até o exílio em
si mesmo, ou o des-encontro do “si mesmo” como exílio. Na capa do
livro, assinada por Dounê Spinola, vê-se uma figura humana, de face
interditada, que com uma mão abre a blusa no peito (revelando uma
estrada que se perde no horizonte) e com outra mão aponta, com o
indicador em riste, o horizonte. Seguindo a indicação do dedo na
imagem, e atentando ao título do livro – Canção do exílio “aqui” –, seria
possível conjecturar que “exílio” não seria a representação de um estar
“fora”, mas um indefinido instaurado na subjetividade do poeta, como
caminho ainda-não-percorrido, como condição permanente da ausência
de lugar. O “aqui” do exílio seria o horizonte a despontar e a desaparecer
na interioridade – o que a estrada ao interior revela não é uma verdade
substancial em-si, mas, ao contrário, o ponto-de-fuga que insinua a
promessa de um ponto-de-chegada não claro e não definido,
insistentemente em aberto. A linha do horizonte é como uma Utopia: lá
está orientando o caminho, mas se afasta tanto mais quanto se anda em
sua direção. Nos versos que compõem o livro, Félix é exilado na pedra,
no ar, no bar; nos suicídios de Benjamin e de Vargas; exilado nos deuses,
nas prostitutas e na gritaria das crianças; exilado nos outros, no Outro, no
telefone que não toca, em cartas não enviadas, em nuvens que o
dicionário desconhece. Suas estrofes finais:

26 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 22.


27 Id. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 291.
28 O subtítulo do livro é “ou Alguns elementos para o inventário de uma geração nesta cidade

do Rio de Janeiro”. Na primeira parte da obra, Félix faz um “inventário” daquela que Beatriz
Vieira (A Palavra Perplexa. São Paulo: Hucitec, 2011) chamou de “geração interrompida” – sendo
“exilado” nos presos políticos, nos perseguidos, desaparecidos e assassinados da sua geração –,
mas o livro realiza também “inventário” de um Brasil interrompido, digamos, exilado numa
expectativa, ou num projeto de país, que àquela altura já lhe parecia uma promessa não
cumprida.
Exilado no exílio de todos os exílios
que em mim não findam mais
e são eternos.

porque neles morrerei e para sempre


no meu tempo morto eles serão
– imutáveis –
os exílios que sempre foram
dentro de mim, quando eu vivia

como a flor que ao ser regada pela sombra


lembra
as exigências de sol sobre seu caule
– e em direção da aurora se prolonga29.

Em um poema de juventude, escrito em 1951, chamado Exílio, lemos:

O mundo não era o rosto de minha amada,


nem o olhar de minha mãe.
E aquele fim de noite, preso na árvore do amanhã,
tão pouco trazia o meu primeiro dia30.

O mundo é um lugar estranho – ou, mais que estranho, um


desabrigo. No tempo, contudo, é o mundo, como fruto na árvore do
amanhã, como um fim de noite que ainda não promete um novo dia. O
próprio mundo é, assim, um lugar de exílio: nele o poeta busca, mas não
encontra casa – nem o rosto da amada, nem o olhar da mãe.
Desamparado é o poeta, experimentando estar num tempo que é de
espera, um tempo de penumbra, indigência e desabrigo, como disse
Heidegger, ao definir a modernidade como “uma noite do mundo”31.
Mas se o “mundo” é um “lugar” a revelar no “exílio” a “topicidade”
do poeta, cumpre sublinhar que ele se liga ao tempo e ao espaço, mas não
se confunde com eles. O “lugar” [topos], nos diz Agamben, é “algo mais
originário que o espaço”32. Como propõe o filósofo italiano, “a exploração
topológica está constantemente orientada sob a luz da utopia”, pois, na
medida em que qualitativamente diferente do espaço e do tempo, dá
acesso ao “irreal” através do qual “será possível apropriarmo-nos da
realidade”33. Se a “topicidade” do poeta é um mundo em que se lhe
afigura o desamparo34, o tempo e o espaço, ou seja, as orientações

29 FÉLIX, Moacyr. Canção do Exílio Aqui. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 113.
30 FÉLIX, Moacyr. Invenção de Crença e Descrença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.
49.
31 HEIDEGGER, Martin. Caminos de Bosque. Madrid: Alianza Editorial, 2005, p. 199.
32 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 15.
33 Id., Ibid.
34 Desamparo (Hilflosigkeit, em Freud) é uma noção algo polissêmica, tanto em relação aos seus

usos por Freud quanto às apropriações que aqueles deram origem. Aqui, pensaremos o
epistêmicas básicas do sujeito, estão como que suspensos, em um “ainda”
reticente.
O poeta está – exilado – em “uma noite do mundo”, à espera do
anúncio do “primeiro dia”. Observe-se que o poeta não diz “trazia de
volta o meu primeiro dia”. O primeiro dia, que remeteria à origem, é
porvir (preso na árvore do amanhã), mas o tempo está, também aí, como
num exílio, sem cidadania garantida, numa condição de “ainda-não”. O
“primeiro dia” de Félix parece fazer eco, assim, à noção de “origem”
[Ursprung] como em Benjamin, que “não está situada num passado
cronológico”35, mas “se localiza no fluxo do vir-a-ser”36. Em outro
sentido, talvez complementar, o “primeiro dia”, como início da vida,
parece permanecer latente, em potência, encontrando asilo “no interior
do tempo como os frutos / no interior das árvores”, conforme lemos no
poema Os Mortos:

No século XX, no mundo


ocidental e cristão, oriental e socialista
enquanto no céu e na terra
a guerra era fria como a pele dos mortos
os vivos estavam asilados
irmanadamente
no interior do tempo como os frutos
no interior das árvores

ou cantavam nas prisões


a necessária esperança37

Em Os Mortos, a esperança aparece não a guiar o homem em


direção ao futuro, mas como resposta, necessária, à prisão. O papel em
branco, o mundo e o século se afiguram como prisões e como exílio. Uma
noite do mundo, um mundo de penúria – em que falta “o desocultamento
da essência da dor, da morte e do amor”, como disse Heidegger –, em que
“é perdido o fundamento”38. Daí que esta noite do mundo é um abismo39.

“desamparo” tanto como um “afeto”, seguindo a leitura de Vladimir Safatle (O Circuito dos
Afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016), quanto sinônimo de “mal-estar” e de “Real”, conforme
Christian Dunker (Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2014). Tal aproximação –
ou tal “plasticidade” do termo – é chancelada por ambos autores em suas elaborações. Para uma
revisão dos modos como a noção é trabalhada ao longo do pensamento freudiano, ver FORTES,
Isabel; SANTOS, Nathália. Desamparo e alteridade: a dupla face do outro. Psicologia USP, v. 22,
n. 4, 2011.
35 AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? Chapecó: Argos, 2009, p. 69.
36 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 68.
37 FÉLIX, Moacyr. Um Poeta na Cidade e no Tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.

24.
38 HEIDEGGER, op. cit., p. 204.
39 Id., Ibid., p. 199-200.
Abismo que, como nos disse Wislawa Szymborska, no poema Autonomia,
“não nos divide / nos circunda”40.
Abismo, penumbra, penúria, carência, estranhamento, desabrigo,
desamparo. Um exílio no mundo, ou um mundo que é exílio, é o “lugar”
do poeta. Ele não tem pátria – ou, se tem, não a tem. A terra natal, aquela
que promete reencontro do indivíduo consigo mesmo, é sempre
suspensa, um outro-lugar, de geografia imprecisa. Lhe resta, como pista,
fragmentos de memórias e expectativas. Mas essas pistas, esses vestígios,
não apontam a um caminho; antes, incitam uma vaga e discreta
esperança que o poeta não recusa, mas aceita como sinal de “algo que
falta”. Não é fugindo do abismo, lutando contra o desamparo, mas
fazendo-o falar através de si mesmo que se poderá, como disse Vladimir
Safatle, “produzir um gesto de forte potencial libertador”41.
Habitante de um mundo que é um lugar-outro, o poeta é,
dialeticamente, habitado por uma “ausência” insistentemente presente,
por uma pergunta esquecida. Na versão de 1978, o poema Exílio continua:
“Fiquei eu, e a presença / de uma pergunta – uma só! – velada / como as
memórias de um mar / no vazio das conchas. // E essa pergunta – meu
Deus! – eu já esqueci”42. Se o poeta está à presença de uma ausência, que
ressoa, interrogativa, como marés no vazio das conchas, não chegando a
forjar-se como pergunta, é porque o que poderia ser comum, ou familiar,
a outrem, ao poeta é inquietante e estranho [Unheimlich]. Daí a intimidade
entre o poeta e o utopista afiançada pelo “exílio” como lugar-outro: esse
“lugar poético” não está deslocado geograficamente, mas
topologicamente – como incitando e permitindo uma condição existencial
e/ou uma disposição afetiva. “O inquietante seria sempre algo em que
nos achamos desarvorados, por assim dizer”43. Mas essa “disposição
afetiva” porta, como todo afeto, uma ambiguidade, nos adverte Freud –
ela é estranhamente familiar. Signo de uma “realidade ontológica”, como
disse Paul-Laurent Assoun, que, “exibindo ‘alguma coisa’, mostra seu
segredo, produzindo o invisível no visível [...]. Dando a ver o oculto,
manifestando o não manifestável, ela sela a aliança do mistério
(Geheimnis) e do revelado (Offenbare)”44. Trata-se, pois, de uma “refração
subjetiva”, como diz o autor, no sujeito e na realidade.
O Exílio de Félix nos reporta, assim, a dois movimentos
complementares. Primeiro, àquela condição, descrita por Adorno, de

40 SZYMBORSKA, Wislawa. Um amor feliz. São Paulo: Cia. das Letras, 2016, p. 143-145.
41 SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 18.
42 FÉLIX, Moacyr. Invenção de Crença e Descrença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.

49.
43 FREUD, Sigmund. O Inquietante. In: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”),

Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p. 332.
44 Paul-Laurent Assoun Apud BRANCO, Guilherme Castelo. O Olhar e o Amor. Rio de Janeiro:

Nau, 1995, p. 15-16.


“não estar em casa na própria casa”45, que representaria tanto o “lugar”
do intelectual, como aquele que encontrada morada na fronteira, como
um náufrago ou como um exilado46, quanto a recusa à individuação e à
interioridade burguesas, que “embalsama[m] em vida”47. Segundo, mas
de modo complementar, à condição do artista e às condições da criação.
Como escreveu Edson Luiz de Sousa, a respeito de A história mais bela do
mundo, de Rudyard Kipling:

“Na casa da minha mãe não tem lugar para escrever”. Bela passagem que
mostra o quanto Charlie [protagonista do conto de Kipling] precisava de
um “fora de casa” como lugar de produção. Buscava se afastar desse
excesso de familiar. Neste trânsito buscaria uma condição de alteridade e
do exílio como condição de possibilidade da obra. Aqui, neste contexto, o
familiar é uma espécie de burocratização do amanhã, já que é território do
mesmo, de reiteração de circuitos repetitivos48.

Para Sousa, todo ato criativo é um ato utópico. E o utópico se


apresenta e institui na recusa à resignação diante de um futuro que se
insinua como “burocratizado”, ou seja, como “mesmidade” e repetição. A
recusa ao familiar (ou, então, a ênfase no estranho que habita o familiar)
seria um modo de criar aberturas na realidade entendida como prisão,
num gesto de negação que acaba por negar, também, a elaboração de
uma imagem de transcendência que pudesse representar o Novo, o lugar-
outro no futuro. Converge, assim, à afirmativa, marcadamente adorniana,
de Fredric Jameson ao dizer que “a utopia é, de alguma forma, negativa, e
é tanto mais autêntica quanto menos pudermos imaginá-la” (JAMESON,
2006, p. 274).
Se Heidegger havia respondido a pergunta de Hölderlin, em Pão e
Vinho, “para quê poetas em tempos de penumbra?”, dizendo que ao
poeta cabe expressar “poeticamente a essência da poesia” 49, Félix, que fez
de tal interrogação epígrafe do seu livro de 195950 parece respondê-la
afirmando seu “ofício maior”: “Negar, este é o meu ofício maior / negar o
que existe, negá-lo sempre. / Ah, a magia de cada crepúsculo / dentro do

45 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 35.


46 “Damos como certa a pátria e a língua, elas se tornam natureza, e seus pressupostos
subjacentes retrocedem para o dogma e a ortodoxia. [...] O exilado sabe que, num mundo
secular, as pátrias são sempre provisórias. Fronteiras e barreiras, que nos fecham na segurança
de um território familiar, também podem se tornar prisões e são, com frequência, defendidas
para além da razão ou da necessidade. O exilado atravessa fronteiras, rompe barreiras do
pensamento e da experiência” (SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São
Paulo: Cia. das Letras, 2003, p. 58).
47 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 35.
48 SOUSA, Edson Luiz André de. A burocratização do amanhã. Revista Porto Alegre, v. 14, n. 24,

maio de 2008, p. 43-44.


49 HEIDEGGER, op. cit., p. 201-202.
50 FÉLIX, Moacyr. O Pão e o Vinho. Rio de Janeiro: Antunes & Cia., 1959.
olho em que reside / teimosa, a luz inexistente de uma aurora!” 51. O
poeta como utopista afirma seu não-lugar em relação ao existente, como
se a “essência da poesia” fosse o negativo dialético da realidade histórica,
o “não-ente”, nos termos de Adorno52, e tal posição a condição para a
Esperança – uma luz inexistente, todavia teimosa, que sinaliza a aurora.
Pois, se em Bloch a “aurora” sinaliza ao porvir que está, a todo instante,
irrompendo no presente, guiada pela Esperança e pela “intuição objetiva
do que-ainda-não-veio-a-ser como de algo que ainda-não-se-tornou-bom”
53, em Félix é preciso “destruir este mundo em que as auroras / se asilam

/ e nos condenam”54. Na penumbra, num “lugar” que é “sem


fundamento”, a “função da utopia” seria menos a de imaginar um futuro
que transcenda a precariedade do presente, mas a de “denunciar”, por
assim dizer, “nossa completa incapacidade de imaginar tal futuro, ou
seja, nossa prisão em um presente não-utópico sem historicidade nem
futuro”55.
Façamos uma breve retomada do que elaboramos até aqui. A partir
de Ernst Bloch, o utópico é compreendido como um impulso – ou desejo
– que, manifesto primeiramente no sonho diurno, se direciona a “um
outro lugar”. Este “lugar-outro” (u-topos) é, para Bloch, o futuro. O
desejo (que, como falta, sinaliza a presença da carência), a
elaboração/projeção imagética que opera o sonho diurno e a passagem
do sonho à Utopia concreta, através da mediação da “materialidade da
imagem onírica” com a realidade objetiva, constituem o movimento da
dialética da Esperança. A partir da Utopia concreta, a transformação do
mundo pela práxis revolucionária: destruir o mundo em que vigora a
carência e construir um mundo em que as demandas humanas (para
Bloch, genuinamente inclinadas ao bem) possam ser reconhecidas e
realizadas. A poética utópica de Félix se situa, assim entendemos, entre o
primeiro e o segundo movimentos da dialética da Esperança, conforme
desenhada por Pierre Furter56: entre a presença da carência, ou seja, do
desejo, e a projeção imagética do sonho utópico num “possível-real”.
Pressupondo que o sonho (a imagem do desejo) tenha relação direta com
o que chamamos de estado de carência, ele se faz presente, mas frustrada
está sua representatividade, ou sua “aparição”, enquanto imagem capaz
de orientar, no horizonte possível do tempo histórico, a reconciliação. Sua

51 Id. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 65.


52 ADORNO, T. W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 208.
53 BLOCH, Ernst. op. cit., p. 144.
54 FÉLIX, Moacyr. Um Poeta na Cidade e no Tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.

33.
55 JAMESON, Fredric. Espaço e Imagem. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 274.
56 FURTER, Pierre. op. cit.
utopia está, assim, como que em “exílio” – à espera, tencionando, ou
dialetizando, no “limite”57, a própria Esperança.
A poética utópica do exílio entre o desejo e o sonho não subtrai da
imagem do futuro sua potencial capacidade política e contestatória, mas
instaura uma crise na possibilidade mesma de dizê-la: uma poética
voltada ao “ser que ainda não fomos e que em sonho nos reinventa” 58, e
que insiste na negatividade do “ainda não”. Trata-se, assim, de uma
utopia que não supera o desamparo, mas que o aprofunda, como se
somente através de uma intimidade indizível com ele fosse possível
produzir afetos efetivamente subversivos, como nos orienta Safatle 59;
como se somente através de uma apropriação da sua mais íntima
impropriedade, como nos termos de Agamben60, o sujeito pudesse
aparecer como um rastro informe, ou como “a sombra de um sonho de
poeta”. Vejamos o poema Auto-retrato, em sua versão de 1992:

Certa vez, num aventura


estranha, fugi
dos estreitos horários
em que me estorcia
para uma ampliação sem fim.
Quando voltei,
e senti, de novo, ferindo-me
o peso dos grilhões,
então não mais sabia quem eu era.
E nunca mais soube quem eu sou.
Talvez a sombra triste de um
sonho de poeta.
Talvez a misteriosa alma
de uma estrela
a guarda ainda no profundo
cerne a ilógica saudade
de um passado astral61.

Estreitos horários ferem como grilhões pesados. Ferem, aprisionam


e, com efeito, impedem saber “quem eu sou”. Somente na fuga da hora,
ou seja, na liberdade dos grilhões, na “ampliação sem fim”, é possível

57 Na Ciência da Lógica, a noção de “limite” se refere ao “meio”, ou ao cerne, da contradição


dialética. “Algo é, portanto, como ser aí imediato, o limite frente a outro algo, mas ele tem o
limite nele mesmo e é algo através da mediação do limite, que é igualmente seu não ser. O
limite é a mediação através da qual algo e outro tanto são quanto não são” (HEGEL, G. W. F.
Ciência da Lógica. 1. A doutrina do Ser. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. São Francisco,
2016, p. 131).
58 FÉLIX, Moacyr. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 51.
59 SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
60 AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
61 FÉLIX, Moacyr. O Pensar e o Sentir na Obra de Moacyr Félix. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca

Nacional; Bertrand Brasil, 2002, p. 79.


encontrar-se. Todavia, de volta à hora, o que resta é a sombra triste,
melancólica e nostálgica de um passado incerto. Na versão de 1993, há
uma alteração no poema: é “do estreito túmulo” que foge o poeta 62. Como
escravo que pena ao peso dos grilhões, desencontrado de si mesmo, o
poeta não vê a “estreiteza” da realidade senão como lugar que abriga a
morte. Escravo do tempo, portanto, lhe resta de liberdade – ou de vida –
uma ilógica saudade.
É significativo que o poema em questão se intitule Auto-retrato. O
poeta não é capaz de representar sua própria face senão através da
angústia da luta pelo auto reconhecimento, brevemente sinalizada,
fragilmente permitida, por uma fagulha de saudade que é “ilógica”. No
cerne da tentativa de re-conhecer a si mesmo está instaurado o conflito
entre a consciência da dissolução da experiência provocada pela vida
moderna e o esforço da elaboração de uma negação desta crise, na
representação de uma plenitude em que os grilhões da vida hodierna são
ausentes.
O estranhamento de si mesmo pode ser lido como uma crise no
“familiar”, mas também como uma crítica ao “si mesmo”. Ao escapar ao
retrato de si, o poeta estaria pondo em cena a urgência da elaboração de
formas de reconhecimento “antipredicativas”63, ou seja, em que a
individualidade não se portasse como proprietária de si mesma, mas
como imagem opaca, no limite irrealizável, diante de uma “ampliação
sem fim” acessada unicamente através do significante “estranho” (“uma
estranha aventura”, nos diz Félix). Se considerarmos que a “pedra de
toque” do liberalismo é a “evidente” (sic.) posse que o indivíduo tem de
si mesmo, como quis Locke, ao dizer que “cada homem tem uma
propriedade particular em sua própria pessoa”64, então uma crítica
radical ao capitalismo haveria de visar esse dado evidente. “[...] então não
mais sabia quem eu era. / E nunca mais soube quem eu sou”: perdido
está não tanto o “si mesmo”, mas a certeza deste “si mesmo”.
Se o máximo que Félix nos oferece daquela “aventura” a uma
“ampliação sem fim” é que ela é “estranha”, talvez seja por conta do seu
caráter inominável, e, por extensão, “inimageável”. Encontramos, aqui, a
característica “essencial” do desejo, qual seja, ser justamente desprovido
de qualquer “essência” predicável – sem nome próprio e
“fundamentalmente inadequado a toda figuração”65. O caráter negativo
do desejo se acha com o “ofício maior” do poeta, que é “um agente de

62 FÉLIX, Moacyr. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p. 153.
63 SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
64 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 38.
65 SAFATLE, Vladimir. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 51.
negação”66, instituindo o desafio de encontrar palavras – que evoquem ou
criem imagens – sem que o próprio desejo se confunda com as fantasias
(ou imagens) que tentam lhe emprestar uma forma ou uma cena.
Sustentar o desejo significaria sustentar sua negatividade, de modo que
apresentar um “autorretrato” implicaria empreender o desafio de
“reconhecer a si mesmo naquilo que não se conforma à imagem”67.
Tanto a imagem do futuro quanto a imagem de si respondem ao
desamparo de modo a oferecer um suporte imaginário, um “amparo”, ou
mesmo um “anteparo”, à insistente força “descentradora” e disruptiva do
desejo. Com efeito, o mesmo pode ser dito em relação ao passado,
sobretudo a um passado idealizado. No Auto-retrato, o passado
igualmente não tem forma nem nome: remanesce dele uma saudade
“ilógica”, “astral”, “misteriosa”. Um passado, portanto, que não passou, e
assombra melancolicamente o presente na tentativa de fixar uma
identidade – melancolicamente posto que a perda da certeza do si mesmo
é perda da capacidade de dizer exatamente “o que não é” e/ou o que foi
perdido68. Em vez de elaborar uma nova imagem ou de escapar ao
confronto com a incerteza, o poeta insiste na primeira pessoa – mas uma
primeira pessoa que se diz “desapropriada” dos seus predicados, ou,
então, apropriando-se da sua impropriedade.
A leitura oferecida por Marcelo Ridenti69 do “romantismo
revolucionário” – tomado como “fio condutor” (sic.) para compreensão
das produções culturais e artísticas da “esquerda” brasileira, em
específico as que tomaram corpo a partir do final da década de 1950 –
pode assinalar, na poesia de Moacyr Félix, um movimento de crítica (ou
de autocrítica) da modernidade (ou do capitalismo)70. Vejamos os traços

66 FÉLIX, Moacyr. O Pensar e o Sentir na Obra de Moacyr Félix. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional; Bertrand Brasil, 2002, p. 85.
67 SAFATLE, Vladimir. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 41.
68 Como diz Judith Butler, ao retomar Luto e Melancolia e O Eu e o Isso, “Freud observa que, no

luto, o objeto é ‘declarado’ perdido ou morto, mas segue-se que, na melancolia, nenhuma
declaração é possível. Como perda anterior à fala e à declaração, ela é a condição limitante de
sua possibilidade: um recuo ou retração da fala que torna a fala possível. Neste sentido, a
melancolia torna o luto possível [...]”. (BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017, p. 178). De acordo com Butler, a melancolia sinaliza a perda da capacidade de
identificar o que se perdeu em um “objeto” identificado como “perdido” – se todo objeto de
identificação é suporte especular do Eu, o que se perde, naquilo que se perde, é algo do próprio
Eu que “desconhece” seu caráter essencialmente alienado. Ela sinaliza, assim, a um resto
“inelutável” sendo, ao mesmo tempo, condição para o luto.
69 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. São Paulo; Rio de Janeiro: Record, 2000.
70 Embora Ridenti não trate especificamente da poesia de Moacyr Félix, cumpre observar a nota

escrita por Michel Löwy que figura na contracapa do livro: “O que será que canta nas músicas
de Caetano Veloso e Chico Buarque, murmura nos poemas de Ferreira Gullar e Moacyr Félix,
grita nos dramas do Teatro de Arena e no Oficina, dança nos filmes de Cacá Diegues e Glauber
Rocha, manda chumbo com Carlos Marighella e o capitão Lamarca, pinta quadros numa cela do
presídio Tiradentes, morre na contramão atrapalhando o trânsito? A resposta para a charada
do “romantismo revolucionário”: uma inadequação da “alma” (como
uma potência da vida) à realidade; a defesa da subjetividade como
“forma de resistência à reificação” – uma “revolta da subjetividade e da
afetividade reprimidas, canalizadas e deformadas”; a presença de um
ideal, um “paraíso perdido” que corresponda à “plenitude do todo –
humano e natural”; o vínculo da crítica (ou da autocrítica) à “experiência
de uma perda”, o “senso agudo da alienação, frequentemente vivido
como exílio”71. Em suma, o “romantismo revolucionário” parece
denunciar a alienação (ou a perda) da singularidade individual, buscando
num passado idealizado orientações imagéticas para a projeção de um
futuro – “modernizador”, diz Ridenti72 – de reconciliação (sobretudo, de
reconciliação entre as potências subjetivas e a realidade).
A crença na subjetividade como individualidade autônoma é
moderna, e, neste sentido, uma imagem utópica de reconciliação entre
individualidade e realidade (ou a imagem utópica de uma realidade que
permita à individualidade realizar-se como autônoma, não-alienada)
pode ser chamada de “modernizadora”. Todavia, os termos seriam
contrários se a crítica à modernidade (ou ao capitalismo) não a acusasse
de “realidade alienante”, mas, ao contrário, como responsável pela
instituição mesma da expectativa de realização de uma individualidade
“plena”, “autêntica” e “autônoma”. Estaríamos, assim, diante de uma
crítica ou “dialética” ou “trágica” da modernidade, como aquela que, a
partir de Hegel e de Freud, nos oferece Adorno, e não exatamente
“romântica”. Nesta crítica, a modernidade não instituiria uma realidade
que privaria o sujeito de si mesmo, mas uma realidade dependente da
promessa (ou da ilusão, enfim, ideológica) da realização daquela
concepção de sujeito, animada por uma espécie de imperativo a dizer que
o sujeito deveria ter propriedade sobre si mesmo (ou sobre a “sua”
individualidade).
É certo que a figura do “homem do povo”, eleita por Ridenti (2000)
como aquela que materializa o “passado ideal perdido” para a arte de
esquerda brasileira, aparece em poemas de Félix, em específico aqueles
escritos durante sua inserção no CPC da UNE, no início dos anos 1960. O
poema Eu vi talvez nos ofereça o melhor exemplo desta marca na poesia
de Félix. Nele, o poeta apresenta “o povo” como ingênuo e portador de
“uma força que não se sabe força”73. A marca desta “historicidade” na sua
“poética utópica” é, pois, uma marca institucional. Não se pretende,

está neste livro: o romantismo revolucionário” (LÖWY, Michael. Contracapa. In: RIDENTI,
Marcelo. op. cit.).
71 LÖWY, Michael; SAYRÉ, Robert. Revolta e Melancolia. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 41-47-49-

43.
72 RIDENTI, Marcelo. op. cit., p. 25.
73 FÉLIX, Moacyr. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 36.
assim, refutar a tese de Ridenti, mas oferecer, todavia, uma dúvida sobre
a possibilidade de o termo “romantismo revolucionário” abarcar, como
um todo, a obra poética de Félix. Que tal marca “institucional” esteja
presente em seu espólio poético, parece-nos que constitua algo como um
traço secundário nas suas inquietações e elaborações. Nem do futuro nem
do passado provêm imagens que sustentem uma crítica ao presente:
aquilo que fala do que “não foi” é intimamente “estranho”. O seu “exílio”
não sinaliza propriamente a uma privação imposta por dispositivos
coercitivos, mas oferece nome à sua condição de poeta e utopista: ex-
cêntrico em relação a si mesmo e à realidade objetiva.
A subjetividade alienada é tratada de modo manifesto em poemas
em que Félix se confronta com espelhos. Via de regra, é um vazio
angustiante o que os espelhos lhe devolvem. Em O Texto, “no chão da
história o rosto que não tenho, o rosto / que me negam e no qual, no
entanto, sou e não poderei deixar de ser / a ausência que corrói as
imagens do nosso mundo em todos os espelhos”74. Se, por um lado,
alguém lhe nega o rosto próprio – e, aqui, poderíamos vislumbrar uma
crítica “romântica” à alienação – por outro, “sou e não poderei deixar de
ser” a opacidade deste mesmo rosto, esta “ausência” com a qual não se
pode identificar e, ao mesmo tempo, deixar de identificar. Talvez essa
ausência fale menos da individualidade moderna que da subjetividade do
poeta (ou, mais especificamente, do poeta lírico após Baudelaire): aquele
que, de acordo com Agamben, tenta fazer do vazio da experiência – ou,
mais propriamente, o “inexperienciável” – uma possibilidade de
experiência75. Ou, de modo complementar, como aquele que faz da
afirmação de si uma experiência de “despersonificação”: um Eu que se
diz e desaparece ao mesmo instante76. Em O Poeta, Félix nos diz que “O
poeta se perdia em palavras. / O poeta se perdia nele próprio / sem que
espelho algum lhe trouxesse / o que dele assim ex-fato se perdia”77. Ora,
o poeta se lança na alienação de si, se lança ao desamparo, sem qualquer
compensação ou expectativa de, assim, lhe serem restituídos seus
predicados e sua certeza de si. “Em suas molduras douradas os espelhos
/ mais uma vez /ofereceram seus túmulos sem fundo // Túmulo,
túmulo é a lei que rói / entre meus ossos verdades impossíveis”78.
“Mais uma vez”, diz o poeta – há algo que “insiste”, que se repete e
irrompe na imagem desconfigurando a identificação. De “impossível”
elaboração talvez seja o próprio desamparo, enquanto condição –

74 Id., Ibid., p. 130.


75 AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
76 BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. São Paulo: Ed. Rocco, 2010.
77 FÉLIX, Moacyr. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 30.
78 Id. Canção do Exílio Aqui. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 83.
estrutural e resistente à nomeação – de “estar não”79, sinalizada pela
presença de uma ausência ou pela presença da “morte” como “o
impensável”. Todavia, sendo o “túmulo” a “lei” que presentifica o
“impossível” na tentativa de reconhecimento da própria imagem (ou da
imagem de si como propriedade), talvez a morte nos fale sobre o vazio de
significado que jaz além (ou aquém) de qualquer palavra. A “lei”
corresponde ao símbolo, ou à linguagem, como nos diz Lacan em seus
primeiros anos de ensino: a palavra (o símbolo, a linguagem) é a morte da
coisa80, instaurando o homem num mundo de ausência/presença, de
ser/não-ser, “além” da imagem unificadora e identitária do Eu. Em
Quinteto de outono:

No fundo do prato havia um rosto


que eu nunca pude decifrar.
Além de mim, no entanto, ele era o meu rosto, o rosto
em que nem sequer me encontrei
como quem cumpre, de fato, a sua própria lei81.

A “lei”, ora, a linguagem, que faz do “mundo” um horizonte de


“sentido”, cinde o sujeito, na medida em que ela aponta também ao
“além” do Eu (nos primeiros Seminários de Lacan, a “morte”, mas
também o desejo). Cumprindo a “lei”, o sujeito não pode identificar-se
com seu rosto senão mantendo com ele uma relação de desconhecimento,
ora, não sem resíduos – presentes/ausentes – que escapam à imagem. O
“além” é presente na imagem como “furo” – por onde insiste o desejo.
Em seu seminário dedicado à “angústia”, Lacan 82 atenta ao
“engodo” que é o objeto imagético e visual do desejo, afirmando sua
“verdade” unicamente no afeto: na angústia. Para dar conta da “verdade
impossível” do desejo cumpriria duvidar da imagem e apostar na
angústia como “verdade” – verdade que não cabe na imagem e que
escapa ao significado. Em busca da “verdade” que não seja a da imagem
de um mundo “reconciliado com a não-verdade da vida mutilada”, o
poeta está habitado pela angústia e exilado em palavras nunca ditas,
impossíveis, num mundo que não é nem o rosto da amada, nem o olhar
da mãe, preso que está na “árvore” do tempo.
Uma utopia comprometida com o desejo e atenta não somente à
precariedade da realidade presente, mas também à da subjetividade,
reconheceria o sempre insuficiente esforço da imageação (de si e do
porvir) e da nomeação. Tal utopia seria, pois, uma “crítica” da realidade a
levar adiante o sentido etimológico do termo: crítica como fratura,

79 DUNKER, Christian, op. cit.


80 LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 1. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 229.
81 FÉLIX, Moacyr. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p. 27.
82 LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 10. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
quebra, descontinuidade. Uma “crítica” da realidade a pô-la em “crise”
seria aquela a “construir perspectivas em que o mundo” apareceria
“alheado, com suas fissuras e fendas à mostra”83. Ao mesmo tempo, uma
“crítica” da subjetividade como “crise” da linguagem enquanto “jogo
aberto onde não há assimilação do sujeito ao mundo” 84. Neste “jogo”, a
poesia está comprometida como que em um desafio que é, ao mesmo
tempo, sua oportunidade: presentificar o desejo sem sugerir sua
“realização”. Pois o desejo, diz Lacan, no Seminário 2, “é desejo de nada
que possa ser nomeado”. Todavia, ele prossegue, se o desejo não está “já
dado”, se é efeito da entrada do sujeito no universo simbólico, “ao
nomeá-lo [nomear o desejo], o sujeito cria, faz surgir uma nova presença
no mundo”85. Na sua insuficiência de dizer o desejo, que não pode
prescindir da própria linguagem, ela é “aberta à fecundidade, que é a
esperança do sujeito em seu porvir”86.

Recebido em 30-03-2018
Aprovado em 13-08-2018

83 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 245.


84 BRANCO, Guilherme Castelo. op. cit., p. 43.
85 LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 302-309.
86 BRANCO, Guilherme Castelo. op. cit., p. 43.
ENTRE O ORIENTE E O OCIDENTE:
A PROBLEMÁTICA DO DUPLO NO
ROMANCE LES DÉSORIENTÉS,
DE AMIN MAALOUF1
Sheila Katiane Staudt2

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Comparado a um Ulisses moderno, nosso herói Adam sofre os percalços de Duplo;
ser estrangeiro e exilado na capital francesa, além de regressar à sua terra natal Desorientação;
– Líbano – e confrontar-se com os fantasmas do passado. O romance Les Exílio;
désorientés, do escritor francês Amin Maalouf, publicado em 2012, apresenta, Romance francês
desde o seu título, a falta de orientação, a necessidade de um norte por parte contemporâneo.
das personagens. A escrita dupla do texto vai ao encontro das personagens
que orbitam nosso protagonista, por vezes, reflexos invertidos de si mesmas.
Buscar os rastros do duplo na trajetória de nosso narrador-personagem Adam
é o que pretendemos nesse trabalho, bem como entender os diversos
(re)encontros vividos por ele ao longo da travessia. Autoconhecimento,
aprendizagem, alteridade são apenas algumas das experiências por que passa
nosso herói que migra do Oriente ao Ocidente (e vice-versa) tentando, quiçá,
encontrar a si mesmo.
ABSTRACT KEYWORDS
Compared to a modern Ulysses, our hero Adam suffers the difficulties of being a Double;
foreigner and exile in the French capital, as well as returning to his homeland - Desorientation;
Lebanon - and confronting the ghosts of the past. The novel Les désorientés, by the Exílio;
French writer Amin Maalouf, published in 2012, presents from its title the lack of Contemporary French
orientation, the need for a north by the characters. The double writing of the text novel.
dialogues with the characters’ personalities that orbit our protagonist character,
sometimes inverted reflexes of themselves. Finding the traces of the double in the
trajectory of our narrator-character Adam is what we intend in this work, as well as
understand the various (re) encounters he lived along the crossing. Self-knowledge,
learning, alterity are just some of the experiences suffered by our hero who migrates
from East to West (and vice versa) trying, perhaps, to find himself.

1 Artigo escrito com o fomento do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Sul - IFRS Campus Canoas.
2 Professora em regime de dedicação exclusiva no IFRS Campus Canoas e pós-doutora pela

Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 (2017-2018).


C onsiderações iniciais

O romance Les désorientés3, de Amin Maalouf, publicado em 2012,


transita pelo universo autoficcional, uma vez que o próprio autor afirma
mesclar suas rememorações da juventude à história narrada. Tecida com
esmero, a narrativa serve de espelho para inúmeras outras histórias de
imigrantes desenraizados, à deriva, dispersados pelo mundo em busca de
uma reconciliação, mesmo que tardia, com suas origens e consigo mesmo.
A faceta dupla do texto faz com que tudo e todos estejam em um
entre-lugar no espaço-tempo, em um nem lá nem cá, como se um gap
servisse de um meio-caminho entre a terra natal e o local em que vivem
exilados, entre o passado e o presente, entre o bem e o mal, etc. Adam,
personagem, protagonista e um dos narradores da trama, tenta entender
sua relação de atração e repulsa com a terra em que nascera, com as
amizades rompidas, com os antigos costumes, enfim com o seu passado
deixado para trás em virtude das consecutivas guerras que assolaram o
Líbano, seu país de origem.
Nossa leitura busca acercar-se dos signos do duplo espraiados ao
longo do texto os quais dialogam sobremaneira com a vida da
personagem-protagonista que tenta, por meio da escrita, (re)escrever sua
própria história com vistas a entender a si mesmo nesse processo.

1. Alfa e ômega

A temática do duplo4 é recorrente na literatura e apresenta-se, com


frequência, através da busca permanente do ser humano por
compreender a si próprio. O título e a epígrafe do romance de Amin
Maalouf já exibem rastros do duplo que serão multiplicados e expandidos
ao longo do texto. No título Les désorientés, pode-se ver, a um só tempo, as
palavras “desorientados” e “orientados” com a retirada ou não do prefixo
apenas. Esse jogo de palavras, que possui em sua raiz o vocábulo
“Oriente”, sinaliza para o deslocamento, para a errância, para a perda do
rumo em busca de uma orientação.

3MAALOUF, Amin. Les désorientés. Paris: Éditions Grasset, 2014.


4Otto Hank apresenta em seu estudo Don Juan et Le Double (1932) os textos de Hoffmann como
sendo os primeiros a apresentarem a temática do duplo na literatura. Para Hank (1973, p.11),
“Hoffmann est le poète classique du Double, qui est un des thèmes favoris de la poésie
romantique”. IN: HANK, Otto. Don Juan et Le double. Petite Bibliothèque Payot, Paris; 1973. 189
p.
A epígrafe, por sua vez, traz a frase da filósofa Simone Weil (1909-
1943), a qual enveredara para o campo místico, e corrobora a ideia dos
reveses advindos dessas travessias um tanto quanto turbulentas desde a
origem: “Tudo aquilo que é submetido ao contato da força é degradado,
qualquer que seja o contato. Atacar ou ser atacado é a mesma e única
corrupção”5 (tradução nossa6). Aquele que intenta (re)descobrir-se sofre a
partir do (re)conhecimento de um “eu” que, na verdade, já é “outro”,
ainda que o mesmo: reflexos de um mesmo espelho.
A narrativa é aberta com uma espécie de prólogo em primeira
pessoa contado pela personagem-protagonista Adam em seu diário ao
apresentar as origens do seu nome, alcunha esta portadora de todo o
fardo pesado do mundo, segundo a tradição cristã. Ao tecer a genealogia
da palavra, ele afirma que não será “o primeiro de uma linhagem”, mas o
último dos seus, “o depositário de todas as tristezas acumuladas, das suas
desilusões bem como das suas vergonhas”7. Essa assertiva, posta desde o
início do romance, remete-nos de imediato ao texto bíblico que também
começa com a história do primeiro homem na Terra, do qual todos nós
derivamos, homens e mulheres descendentes de Adão.
O desejo manifesto de afastamento do protagonista para com o
personagem bíblico é fato. Adam não quer ser o primeiro de uma
linhagem, mas sim o último exemplar de uma leva de pessoas que,
perdidas no mundo, guardam dentro de si amarguras, traumas e
cicatrizes da travessia. Para ele, “todos os filhos de Adão e Eva são
crianças perdidas”8, sendo assim ele é apenas mais um dos errantes
dispersos pelo planeta, nascidos com a culpa do pecado original,
marcados desde a origem e condenados à expulsão do paraíso.
Abortado pelo próprio país submerso em guerra, Adam aproxima-se
do mito bíblico e se afasta, em muitos momentos, ao retornar ao locus de
origem que nada se assemelha ao paraíso de sua infância e juventude nos
tempos de pré-guerra. Deixar o locus amoenus para adentrar o locus
horriendus é apenas uma das peripécias por que passa Adam em sua
jornada de orientação que vai do Ocidente ao Oriente (e vice-versa),
buscando (re)encontrar-se nesse percurso.
Deixar de ser alfa, para ser ômega parece ser a opção de Adam. O
fim ao invés do início pode significar um peso ainda maior devido ao

5 Texto original: “Tout ce qui est soumis au contact de la force est avili, quel que soit le contact. Frapper
ou être frappé, c’est une seule et même souillure.” (MAALOUF, 2014, p.09)
6 Todas as traduções realizadas neste artigo foram feitas pela autora, uma vez que o texto

original está em francês.


7 Texto original: “Je ne serai pas le premier d’une lignée, je serai le dernier, le tout dernier des miens, le

dépositaire de leurs tristesses accumulées, de leurs désillusions ainsi que de leurs honte” (MAALOUF,
2014, p.11).
8 Texto original : “[...] tous les fils d’Adam et d’Ève sont des enfants perdus.” (MAALOUF, 2014,

p.12)
acúmulo de sofrimentos colecionados ao longo do caminho. Seu nome é
origem, mas a vontade de terminar/pôr fim a toda essa descendência
maldita move a personagem de volta ao seu país natal, o suposto paraíso
perdido, em busca de respostas. A personagem, por sua vez, guarda em si
mesma uma divisão interior que vai marcar sua trajetória e suas escolhas
também ambivalentes.
Buscar a orientação no Oriente é apenas uma das estratégias da
personagem em sua desorientação interior. A saúde frágil do amigo
Mourad faz com que Adam vá ao encontro daquele que fora um dos
melhores companheiros de sua juventude. Ao chegar e encontrar o amigo
morto, Adam começa a escrever suas memórias a partir de
correspondências antigas e atuais com os companheiros de outrora, bem
como através de lembranças das conversações do passado que possam
esclarecer suas indagações. O esperado encontro com o amigo moribundo
poderia, quiçá, esclarecer-lhe muitas dúvidas acerca das suas escolhas
pessoais e as origens de seu enriquecimento ao apoiar a milícia que se
apoderou do país e que iniciara a guerra.
A proximidade de Adam com o personagem bíblico está posta.
Reflexos de um mesmo espelho, a personagem toma a palavra desde o
início da narrativa, ordenando os fatos de sua vida com vistas a recuperar
o paraíso perdido da juventude ao tentar organizar um reencontro com os
velhos amigos na terra natal.
Adam foi o terceiro a afastar-se do grupo de amigos após o início da
guerra. Naïm e Bilal foram os seus predecessores. Naïm partira para o
Brasil com toda a família e Bilal morreu em um tiroteio após ter se
alistado na milícia, fato este jamais imaginado pelo grupo. Adam parte
para Paris com o apoio dos avós, Ramez e Ramzi vão para Londres,
Albert vai para os Estados Unidos. Todavia, o casal Mourad e Tania e a
amiga Sémiramis são os únicos que permanecem no país em guerra.
Mourad ao apoiar as milícias, ganha o posto de Ministro enriquecendo
rapidamente após o cargo. As dúvidas acerca de seu enriquecimento
ilícito são as causas do distanciamento entre Adam e Mourad. A posição
de Adam sobre as diferenças entre os ricos e pobres é também um entre-
lugar: “Eu sempre tive aversão tanto pelos ricos quanto pelos pobres.
Minha pátria social é entre os dois. Nem os proprietários, nem os
requerentes.”9. E a sua duplicidade não cessa...
O seu retorno ao país natal reforça ainda mais seu ser dividido, sem
pátria, sem nacionalidade, sem rastro, quase um fantasma, como ele
mesmo afirma: “Ninguém. Ninguém fala comigo, ninguém me escuta.
Ninguém me reconhece. Eu vim ao encontro de um fantasma de amigo, e

9 Texto original: “J’ai toujours eu de l’aversion à la fois pour les riches et pour les pauvres. Ma patrie
sociale, c’est l’entre-deux. Ni les possédants, ni les revendicateurs.” (MAALOUF, 2014, p.175).
eu já sou um fantasma eu mesmo”10. A falta de ser reconhecido ou
recebido por algum conterrâneo assusta Adam por alguns instantes,
contudo, dentro do táxi, ele desfruta da nova sensação de estar incógnito
na própria terra em que nascera: “encontrar-me só, anônimo e como um
clandestino”11. Estar ali e ao mesmo tempo não estar é o sentimento por
que passa a personagem exilada em Paris por causa da guerra e que
retorna para ver seu amigo moribundo, confrontando-se com recordações
da juventude em tempos de paz.
Ao atentar para a história dos grandes líderes de Roma e
Constantinopla, Adam sempre se intrigou com o fato de que o primeiro e
o último imperador dessas cidades se chamavam, respectivamente,
Romulus e Constantin:

Eu sempre me ative ao fato de que em Roma, o último imperador se


chamava Romulus, como o primeiro fundador da cidade; e que em
Constantinopla, o último imperador se chamava Constantin – lá também,
como o fundador. Deste fato, meu nome de Adão me inspirou
constantemente mais inquietude que confiança.12.

O fardo que carrega em seu próprio nome sempre foi motivo de


elucubrações por parte de Adam. Um nome incomum em seu país,
recebido por seus pais, mortos tragicamente em um acidente aéreo, traz
uma insígnia dupla que, reinterpretada em suas palavras: “eu carrego em
meu nome a humanidade nascente, mas eu pertenço a uma humanidade
que se extingue... Eu sou o predisposto às extinções...”13. A coincidência
encontrada em seu objeto de estudo acadêmico, propriamente dito – a
História dos povos e civilizações – reforça o receio da personagem acerca
do seu nome, já que a História tende a se repetir, de forma um tanto
quanto cíclica, trazendo consigo uma gama de caminhos já prescritos,
sem possibilitar a criação de uma saída completamente inédita. Até
mesmo um provérbio árabe sobre a repetição dos acontecimentos ao
longo do tempo é citado por Adam em uma carta a Naïm, na sua língua
materna: “Ma sar chi, ma sar metlo”, o qual é traduzido pelo professor a
seus alunos: “Tudo aquilo que acontece se assemelha necessariamente a

10 Texto original: “Personne. Personne ne me parle, personne ne m’attend. Personne ne me recconnaît.


Je suis venu à la rencontre d’um fantôme d’ami, et je suis déjà um fantôme moi-même.” (MAALOUF,
2014, p.22).
11 Texto original: “me retrouver seul, anonyme, et comme clandestin.” (MAALOUF, 2014, p.23)
12 Texto original: “J’ai toujours été frappé par le fait qu’à Rome, le dernier empereur s’appelait Romulus,

comme le fondateur de la ville ; et qu’á Constantinople, le dernier empereur s’appelait Constantin – là


encore, comme le fondateur. De ce fait, mon prénom d’Adam m’a constamment inspiré plus d’inquiétude
que de fierté.” (MAALOUF, Amin. Les désorientés. Éditions Grasset, Paris, p.484-485)
13 Texto original: “Je porte dans mon prénom l´humanité naissante, mais j’appartiens à une humanité

que s’éteint... Je suis le préposé aux extinctions...” (MAALOUF, 2014, p.525)


alguma coisa que já aconteceu”14. Apesar de Adam refutar essa ideia
vigorosamente, o pavor de acontecer consigo a mesma (ou pior) tragédia
do seu ancestral acompanha a personagem em sua trajetória
A ambiguidade presente nesta assertiva faz com que Adam seja o
representante de uma raça que, ao mesmo tempo, vive e morre, ou seja,
uma vez que exilados/arrancados de suas pátrias, suas identidades são
apagadas dia após dia, em um trabalho contínuo rumo à extinção. Vida e
morte, partida e chegada, começo e fim imbricados como duas faces da
mesma moeda, retratos de um drama que ecoa no universo
contemporâneo: espaço-tempo marcado pelo desenraizamento humano,
por ex-patriados, pelos refugiados de guerra, seres em trânsito tão
distantes de sua terra natal quanto de si mesmos.

2. Jogo de espelhos

Além da divisão interior da personagem-protagonista, o texto de


Amin Maalouf se desdobra em dois através das diferentes vozes
narrativas: a primeira, do narrador em terceira pessoa e, a segunda, pela
voz de Adam em seu diário, além de se refletir em inúmeras outras
através de uma espécie de colagem feita a partir das correspondências
trocadas entre Adam e seus amigos da juventude. O texto por assim
dizer, assemelha-se à narrativa bíblica que é tecida a diversas mãos,
expondo diferentes narradores e pontos de vista singulares sobre os
mesmos assuntos: a guerra na terra natal, a vida no exílio, a morte do
amigo Mourad, etc.
As convergências e o intertexto com os livros sagrados reforçam a
duplicidade e o espelhamento intrínseco que o constitui. A Bíblia é
transmitida e construída por meio da oralidade, uma vez que a partir da
força da palavra, propriamente dita, tudo se cria pelo poder de Deus15. Os
fatos bíblicos são (d)escritos por aqueles que testemunharam os eventos
ou ouviram do próprio filho de Deus: Jesus. O Corão 16, ao contrário, é
concebido através da escrita, pois Moisés recebe as ordens diretamente da
voz de Deus e as transcreve de imediato no livro sagrado muçulmano.
Quando voltamos ao texto de Maalouf, uma mistura de estilos encontra-
se em sua narrativa. A necessidade de escrita por parte de Adam, para
compreender a si mesmo e o mundo ao seu redor, remete ao texto

14 Texto original: “Tout ce qui se passe ressemble forcément à quelque chose qui s’est déjà passé”
(MAALOUF, 2014, p.294)
15 Ver Bíblia Sagrada, versículo 3, capítulo 1 do livro Gênesis, Antigo Testamento: “E disse

Deus: Haja luz, e houve luz”. BÍBLIA online.


Disponível em: < https://www.bibliaonline.com.br/>. Acesso em: fev. 2018.
16 LE SAINT CORAN (Traduction en français Intégrale et Notes de MUHAMMAD

HAMIDULLAH professeur à l’Université d’Istanbul avec la Collaboration de M. Léturmy)


10ème edition Revisée et Completée, 1981-1401.
sagrado para os muçulmanos. No entanto, quando lemos integralmente
as cartas dos amigos e os diálogos entre as personagens nos deparamos
com a polifonia própria do texto bíblico cristão.
A personagem mesma, em muitos momentos da narrativa, assevera
ter necessidade de ouvir bem mais que falar. Talvez a profissão de
historiador o tenha moldado assim, buscando a autenticidade a partir dos
fatos e relatos do outro. Em se tratando de religião, Adam afirma ter tido
sempre uma atitude confusa e ambivalente sobre o assunto. Ao saber que
um de seus amigos enclausurara-se em um monastério, ele tenta
reaproximar-se do antigo companheiro, renomeado de frei Basílio. Ao
passar uma noite naquele lugar, ele reafirma sua natureza ambígua: “eu
estou entre a crença e a descrença como estou entre minhas duas pátrias,
precisando de uma, precisando da outra, sem pertencer a nenhuma”17. O
sentimento de não-pertença e de desenraizamento são próprias da
personagem que, dividida, não consegue tomar posição em diversas
questões, a exemplo da religiosidade, assunto um tanto quanto delicado
em seu país natal.
A busca por um possível paraíso no Ocidente, transportado de certo
modo à capital francesa, reforça ainda mais as marcas duplas da
personagem que não consegue sequer pronunciar o nome do país em que
nasceu. De acordo com Marshall Berman, “ser moderno é viver uma vida
de paradoxo e contradições”18. Nosso protagonista Adam carrega em si as
insígnias desta modernidade de que nos fala Berman e encontra-se
dividido entre: duas línguas – o árabe e o francês –; duas cidades – Paris e
Amman –; dois países – França e Líbano; duas mulheres – Dolorès e
Sémiramis –; a oralidade e a escrita; a escrita de sua biografia pessoal e a
biografia de Átila; Ocidente e Oriente; presente e passado; enfim, marcas
profundas da ruptura, da bifurcação, consequências do exílio forçado, as
quais caracterizam a própria trajetória personagem tornando-a sinuosa,
por vezes leve e, outras vezes, pesada demais.
Por vezes, signos sagrados aos dois textos são transportados ao seio
da narrativa reiterando ainda mais a ambivalência do romance. A
imagem do paraíso é talvez a mais recorrente. A noite de amor entre
Adam e sua amiga Sémiramis está repleta de símbolos paradisíacos. Ao
descrever a pequena casa onde mora, anexa aos fundos do hotel que leva
seu nome, Sémiramis é comparada à Eva por Adam que a imagina
sozinha em sua varanda onde ela toma “banhos de sol, no verão, coberta

17 Texto original: “Je suis entre la croyance et l’incroyance comme je suis entre mes deux patries,
caressant l’une, caressant l’autre, sans appartenir à aucune.” (MAALOUF, 2014, p.394)
18 BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras,

1986. p.12
com uma folha de parreira”19, escondida em seu pequeno paraíso
privativo entre muitas árvores. Aqui a imagem da Eva bíblica, vestida
apenas com uma folha de videira, é transportada à da amiga que na
adolescência foi sua primeira paixão. Sémiramis fora então a primeira
Eva deste ‘Adão’. Na sequência, há de fato o ato amoroso entre os amigos
e nele mais indícios do pecado original descrito na Bíblia cometido agora
pelos amantes ao se descobrirem mutuamente, em um ritual simétrico de
carícias mútuas, como se desenhassem um “relevé topographique”20 de
seus corpos. A cena em espelho repetida de forma idêntica entre ambos
redimensiona-se para uma (re)descoberta do seu próprio país após anos
de ausência. Sémiramis resiste e permanece na terra mesmo com o
acirramento da guerra, podendo ser vista como um símbolo mítico do
que resta do paraíso deixado para trás, o qual passa a ser (re)lido por
Adam.
A pena por devorarem o fruto da “árvore do conhecimento” é a
expulsão do casal bíblico do paraíso, carregando consigo toda a culpa
pelo ato pecaminoso de desobediência a Deus. No texto de Maalouf,
Adam, apesar de não ser casado, tem um relacionamento estável em
Paris, o que sinalizaria uma traição. Contudo, para tentar acalmá-lo de
qualquer culpa, Sémiramis diz que ela já havia pedido permissão à
Dolorès – companheira de Adam – em uma ligação feita no dia anterior à
antiga amiga, a qual concordara com a cedência do companheiro apenas
se o mesmo fosse devolvido a ela depois. O contrato verbal entre as duas
mulheres faz com que Adam sinta-se um tanto quanto “objeto” para ser
“pego e devolvido” por ambas. Tal atitude entre Sémiramis e Dolorès
aproxima-se dos contratos pré-estabelecidos na tradição muçulmana
acerca da poligamia, na qual sabe-se antecipadamente o início e o término
da relação matrimonial, bem como todos os direitos e deveres das partes
envolvidas no acordo nupcial.
Outra imagem é a da mulher, descendente de Eva, que, de acordo
com a Bílbia, deve sofrer para diminuir seu pecado. Sémiramis é quase
interrogada no encontro com os amigos sobre sua opção por não ter
casado, e também não ter tido filhos, fatos que vão de encontro à
concepção bíblica da função feminina na terra. Ela responde que é feliz
sozinha, sem ter um “homem às costas” e toda noite ela tem uma taça de
champagne, fato que remete ao paraíso descrito no livro sagrado
muçulmano – Corão –, com bebidas alcoólicas e muita sombra em meio às
árvores. A perda sofrida no início dos conflitos em solo libanês é um dos
traumas que carrega consigo: o namorado Bilal foi morto pelas milícias
que ocuparam o país.

19 Texto original: “bains de soleil, en été, couverte d’une feiulle de vigne.” (MAALOUF, 2014,
p.120)
20 Tradução: “Levantamento topográfico” (MAALOUF, 2014, p.123).
Neste instante, ao pensarmos nas diferenças e semelhanças entre as
mulheres ocidentais e orientais, levando em conta a trajetória da
personagem Sémiramis, não notamos nada de extraordinário: administrar
um negócio próprio, optar por não casar e não ter filhos são ações cada
vez mais comum tanto no mundo ocidental como no oriente.
Ao encontrar o bem-sucedido amigo Ramez, Adam tem
conhecimento de detalhes da história dos companheiros inseparáveis
Ramez e Ramzi. Engenheiros e sócios de uma grande construtora em
Londres, ambos encontraram suas esposas de nome idêntico: Dunia.
Contudo, as duas Dunias tinham em comum apenas o nome, mas índoles
totalmente díspares. Ramez conta que: “a semelhança dos nomes
pareceu-lhe à época como um sinal do Céu, mas era uma praga enviada
pelo Inferno”21. A menção aos opostos céu e inferno, diretamente
relacionada às duas mulheres de temperamentos antagônicos, reitera
sobremaneira a forma de construção dupla da narrativa maaloufiana.
Contudo, ao conversarem sobre o comportamento humano, antes e
depois do casamento, nota-se uma grande explanação, sobre as diferenças
entre a conduta do homem e da mulher, proferida por Ramez:

Assim que elas procuram se encaixar, elas são todas açúcar. Doces,
conciliadoras, agradáveis de conviver – tudo para garantir o pretendente.
Até o dia em que se casam. Então elas liberam sua verdadeira natureza, a
qual elas tinham dissimulado até ali.
[...] eu diria que no caso delas, a transformação não é nem tão brutal nem
tão sistemática quanto no caso dos homens. O homem apaixonado e o
marido são criaturas diferentes, como o cachorro e o lobo. Antes de casado,
nós somos todos um pouco cachorros, e depois nós somos todos um pouco
lobos.22

Desta vez, o texto aborda, em termos dicotômicos, as questões de


gênero. O teatro prévio dissimulado por homens e mulheres com vistas a
alcançarem a estabilidade conjugal parece existir em ambos os lados,
apesar de ser mais evidente a mudança dos comportamentos anterior e
posterior no que diz respeito aos homens, como afirma a personagem.
Além disso, Ramez tem uma concepção negativa do casamento, embora
seja muito feliz com sua esposa Dunia. A seu ver, o casamento é uma

21 Texto original: “La similitude des prénoms lui était apparue à l’époque comme um signe du
Ciel, mais c´était um piège tendu par l’Enfer” (MAALOUF, 2014, p.243)
22 Texto original: “Tant qu’elles cherchent à se caser, elles sont tout sucre. Douces, concillantes,

agréables à vivre – tout pour rassurer le prétendant. Jusqu’à ce que celui-ci les épouse. Alors
seulment eles libèrent leur véritable nature, qu’elles s’étaient efforcées jusque-là de dissimuler.
[...] je dirais que chez elles, la transformation n’est ni aussi brutale ni aussi systématique que
chez les hommes. L’amoureux et le mari sont des créatures diferentes, comme le chien et le
loup. Avant le mariage, nous sommes tous em peu chiens, et après nous sommes tous um peu
loups ;” (MAALOUF, 2014, p.244)
instituição calamitosa e pode ser comparada a uma loteria às cegas, na
qual se descobre somente a posteriori se tiramos o bom ou o mau
número.
Em outro momento da trama, ao rever a casa de sua infância e
reencontrar, inesperadamente, a mesma vizinha habitando a residência
aos fundos da sua, Adam acredita “ter sido readmitido, por um milagre,
ao paraíso antes da queda”23. Presente e passado da personagem
amalgamam-se a passagens mitológicas dos textos sagrados,
aproximando Adam do Adão bíblico. A vista da bela residência de sua
família no passado e o contato com uma pessoa que trazia consigo o
retrato mais fiel de uma época alegre e pura/ingênua de sua vida, antes
da tragédia com seus pais, fazem de Adam um ser quase divino, podendo
transitar livremente pelo tempo-espaço como se possuísse um poder
sobre-humano, minutos após ter contado a história de sua amizade com a
vizinha mais velha próximo ao muro que separava a sua casa da de
Hanum aos amigos Naïm e Sémiramis. O reencontro inusitado após anos
de ausência comove Adam e Hanum. A conversa com a antiga amiga
além do tom rememorativo, também traz uma vez mais a menção ao
paraíso ao explicar brevemente aos três interlocutores a origem de seus
respectivos nomes. Após a apresentação, Hanum dirige-se a Sémiramis e
diz que seu nome é o mais belo de todos os nomes possíveis, enquanto
Naïm significa Paraíso, propriamente dito, e Adam é o nome dado pelo
próprio Criador do Paraíso.
O sentimento de perda de uma relação criada ao acaso com sua
vizinha, logo após a morte dos pais e a perda da casa aos credores, é a
primeira queda deste Adam-menino, que desgarrado pelo mundo
representa todos os anseios, dores e reveses vividos pelos descendentes
da raça do casal que fora expulso do paraíso. Experienciar o céu e o
inferno parece ser a sina desta personagem a qual vivencia mais
amarguras que deleites ao longo de sua história.
O final dessa personagem dupla em sua essência não podia ser mais
ambíguo: Adam, após um acidente de carro, do qual é o único
sobrevivente, fica entre a vida e a morte. O reencontro entre os amigos da
juventude não acontece e ele fica sem respostas para completar seu diário
e entender seu retorno ao país do qual fora abortado no passado. Sua
tragédia pessoal está prescrita desde sua origem: perde os pais em um
acidente de avião, perde a casa em que nascera, perde a amiga e vizinha
Hanum, perde o primeiro amor (Sémiramis), perde os amigos ao exilar-se
em Paris, perde a terra natal, perde a chance do reencontrar os amigos e a
si mesmo em um acidente de carro, que mata um de seus amigos – Ramzi

Texto original: “Adam la contemplait, encore incédule, comme s’il avait été réadmis, par un
23

miracle, au paradis d’avant la chute” (MAALOUF, 2014, p.470)


–, minutos antes de chegar ao hotel de Sémi, enfim a sucessão de perdas
por que passa Adam reflete a perda do paraíso pelo patriarca
mencionada nos textos sagrados e todas as consequências negativas nela
contidas. Ser um fantasma de si mesmo era o fado dessa personagem que
apenas entendera isso ao retornar à sua pátria. Um ser sofredor entre a
vida e a morte fora seu destino desde seu batismo.
Mesmo ao tentar expor seu pensamento de historiador aos amigos
da juventude, Adam traceja duas dicotomias a fim de explicar as
tragédias do passado e do presente, ou dos séculos XX e XXI. Para ele,
“existiu, no século XX, duas calamidades maiores: o comunismo e o anti-
comunismo” e “no século XXI, haverá também duas calamidades
maiores: o islamismo radical, e o anti-islamismo radical”24. Em se
tratando de simplificar cem anos de história, a personagem recorre a uma
atitude bipartida como todo seu pensamento enquanto um ser
interiormente duplo. Dividir em dois grandes antagonistas os problemas
de todo um século traz um tom apocalíptico ao discurso do protagonista,
como comenta Sémiramis após sua fala. Após um período marcado por
concepções políticas adversárias, Adam prevê um século dominado pelo
enfrentamento de questões religiosas opostas, tempo de retrocesso,
segundo ele.

a. Ocidente X Oriente

As questões que dividem o mundo oriental do mundo ocidental são


discutidas entre Adam e os amigos dispersos pelo globo em
correspondências eletrônicas momentos antes da data marcada para o
reencontro entre eles, bem como com Sémiramis em seu hotel. Por vezes,
os diferentes olhares sobre um tema comum são colocados lado a lado na
colagem entre correspondências antigas e atuais causando um
cruzamento de percepções acerca dos problemas causadores da dispersão
do grupo.
A viagem de retorno ao Oriente em que nascera é realizada quase a
contragosto por Adam, uma vez que rever o amigo Mourad, após anos de
rompimento, seria deparar-se com uma verdade impossível de suportar.
A estranha origem do enriquecimento do grande amigo é um tema quase
tabu entre todos, contudo, Adam conta, ao amigo que partiu ao Brasil –
Naïm –, detalhadamente, tudo o que soubera acerca da vida de Mourad
ao permanecer no país apesar da guerra: “a ascensão política de nosso
amigo foi consequência direta de uma falta grave que ele cometeu. [...]
esse dinheiro era sujo. Que ele provinha, na melhor das hipóteses, de

24 Texto original: “il y avait eu, au vingtième siècle, deux calamités majeures : le communisme et
l’anticommunisme. Et au vingt et unième, il y aura aussi deux calamités majeures : l’islamisme
radical et, l’anti-islamisme radical” (MAALOUF, 2014, p.509)
subornos, de comissões ilegítimas.”25. Ao final da carta, Adam ainda
relativiza a saída deles da terra natal: manterem as mãos limpas!
Ao reencontrar a viúva de Mourad – Tania –, Sémi e Adam escutam
o seu ponto de vista sobre aqueles que partiram e deixaram o país na
época mais difícil:

A questão é saber o que seria feito deste país se todo mundo tivesse
partido, como você. Nós teríamos todos as mãos limpas, mas a Paris, a
Montréal, a Estocolmo ou a São Francisco. Estes que permaneceram
sujaram as mãos para preservar-lhes um país, para que vocês pudessem
voltar um dia, ou ao menos o visitar de tempos em tempos.26

O silêncio é a única resposta de Adam naquele momento de dor à


amiga Tania, em um sinal de respeito ao seu luto. O tom agressivo e
direto com que falara a Adam, quase culpando-o por seu exílio, assusta-o
em um primeiro momento, fazendo-o perceber modificações no
comportamento da velha amiga com o passar do tempo. Viver no
Ocidente, segundo Tania, teria sido uma escolha muito mais simples que
optado por ficar em um país submerso em guerra e perigos iminentes, no
qual havia apenas uma escolha possível: aliar-se aos inimigos, aceitando
suas ações maquiavélicas, para não ser exterminado.
Em uma de suas respostas a Naïm, o historiador afirma que o
conflito que os espalhou pelos quatro cantos do planeta foi muito mais
sério que uma querela entre duas tribos rivais:

é este conflito, mais que qualquer outro, que impede o mundo árabe de
melhorar, é ele que impede o Ocidente e o Islã de se reconciliarem, é ele
que joga a humanidade contemporânea para trás, através dos conflitos
identitários, através do fanatismo religioso, através do que chamamos
atualmente de “enfrentamento de civilizações”. [...] é portanto por causa
desse conflito que a humanidade entrou em uma fase de regressão moral,
ao invés de progresso.27

25 Texto original: “L’ascension politique de notre ami fut la conséquence directe de la faute grave qu’il
avait commise. [...] cet argent était sale. Qu’il provenait, dans le meilleur des cas, de pots-de-vin, de
commissions illégitimes” (MAALOUF, 2014, p.184-185)
26 Texto original: “La question est de savoir ce que serait devenu ce pays si tout le monde était

parti, comme toi. Nous aurions tous gardé les mains propres, mais à Paris, à Montréal, à
Stockholm ou à San Francisco. Ceux qui sont restés se sont Sali les mains pour vous préserver
un pays, pour que vous puissiez y revenir un jour, ou tout au moins le visiter de temps en
temps.” (MAALOUF, 2014, p.191-192)
27 Texto original: “C’est ce conflit, plus que tout autre, qui empêche le monde arabe de s’améliorer, c’est

lui qui empêche l’Occident et l’Islam de se réconcilier, c’est lui qui tire l’humanité vers l’arrière, vers les
crispations identitaires, vers le fanatisme religieux, vers ce qu’on appele de nos jours “l’affrontement des
civilisations”. [...] c’est d’abord à cause de ce conflit que l’humanité est entrée dans une phase de
régression morale, plutôt que de progrès.” (MAALOUF, 2014, p.293)
Talvez por estar distante do Oriente essas questões fiquem mais
claras a Adam. O olhar de estrangeiro sobre as questões locais, que
afetam o seu país na contemporaneidade, traz uma análise singular sobre
o difícil diálogo entre o Oriente e o Ocidente, tentando encontrar razões
plausíveis para o retrocesso em detrimento do esperado progresso
humano no presente.
Na sequência, Adam idealiza dois mundos: um real e outro ideal,
refletindo sobre como seria o mundo árabe caso a história tivesse se
passado de maneira diferente, principalmente enfatizando a causa do
povo judeu, referindo-se a Naïm. Contudo, ele reafirma seu relativismo
ao estar do “outro lado”, no lado Ocidental, percebendo o Oriente e seus
problemas de uma outra forma: “mas o traumatismo árabe, desde que
contemplado a partir de outra margem, da margem europeia, minha
margem adotiva, suscita apenas incompreensão e suspeita”28. Diferentes
visões acerca do mesmo tema são possíveis dependendo do local em que
se está falando. Adam, vivendo em Paris, adota a visão “ocidentalizada”
da história afirmando que “o conflito com Israel desconectou os Árabes
da consciência do mundo, ou ao menos da consciência do Ocidente, o que
vem a ser mais ou menos o mesmo”29.
Até mesmo a voz autorizada de um embaixador israelense dos anos
cinquenta e sessenta, trazida pelo professor e historiador Adam sobre a
situação do Estado de Israel, é uma via de mão dupla: “Nossa missão era
delicada, porque tínhamos às vezes que convencer os Árabes que Israel
era invencível, e convencer o Ocidente que Israel estava correndo perigo
de morte”30. A relação turbulenta do Ocidente com o Oriente vem a ser a
relação ambígua de Israel entre os dois mundos, de acordo com a
interpretação de Adam a Naïm. O apoio ocidental aos israelenses trouxe
o inconformismo e o ódio do Oriente ao Ocidente, tragédia que se
perpetua até hoje, em proporções calamitosas.
Não há respostas definitivas na narrativa maaloufiana. Tudo é e não
é, ou ao menos poderia ter sido e não foi. Adam, enquanto historiador,
lança seu olhar de outsider ao mesmo tempo em que se coloca como um
desterrado, um nativo árabe, levantando mais perguntas ao invés de
obter respostas definitivas. Questões micro são elevadas ao macrocosmo
social e podem ser redimensionadas a fim de possibilitar um amplo

28 Texto original: “Mais ce traumatisme arabe, lorsqu’on le contemple à partir de l’autre rive, la rive
européenne, ma rive adoptive, ne suscite que l’incompréhension et la suspicion” (MAALOUF, 2014,
p.295)
29 Texto original: “[...] le conflit avec Israël a déconnecté les Arabes de la conscience du monde, ou tout

au moins de la cosncience de l’Occident, ce qui revient à peu près au même.” (MAALOUF, 2014, p.296)
30 Texto original: “Notre mission était délicate, parce qu’il nous fallait à la fois persuader les Arabes

qu’Israël était invicible, et persuader l’Occident qu’Israël était en danger de mort.” (MAALOUF, 2014,
p.296)
debate entre os mais diversos campos do saber: político, econômico,
cultural, religioso, etc.

Considerações finais

Ao mesmo tempo em que o romance se (re)duplica em sua forma,


nossa leitura se (re)faz em novos caminhos na tentativa de desvendar os
signos do duplo espraiados ao longo da narrativa. Elaborada de forma
magistral, a história transita do Oriente ao Ocidente amplificando as
possibilidades interpretativas ao mesclar culturas, hábitos e visões de
mundo plurais e, muitas vezes, antagônicas.
Signos presentes tanto no livro sagrado muçulmano – Corão – como
na Bíblia, livro sagrado cristão, expandem a leitura do texto de Maalouf
enquanto objeto histórico-literário, propiciando uma análise comparativa
entre ambos, como também dos dois com o romance, o qual mescla o
saber contido em cada narrativa sagrada na voz de um “Adão” tão
sofredor quanto o primeiro...
A impossibilidade de um retorno ao paraíso original encerra o
romance, uma vez que a tragédia derradeira de Adam deixa-o entre a
vida e a morte, sem presenciar o reencontro entre os amigos de outrora,
nem mesmo obter as repostas que tanto o afligira. O fracasso na tentativa
de reconstrução de identidades mutiladas pelo exílio dialoga com a
missão impossível de montar um quebra-cabeça de pedaços humanos
desgastados com a passagem do tempo e deformados pelos locais em que
se dispersaram.
Apagar as marcas do passado não é uma tarefa simples aos exilados.
Contudo, restaurar, reconstruir, refazer o mesmo percurso, após anos de
distanciamento, pode causar mais traumas que benefícios ao indivíduo.
Confrontar-se com suas origens e sofrer o estranhamento oriundo dessa
aproximação tardia gera angústia e dor, e estas são algumas das
sensações pelas quais passa o leitor que não sai ileso após mergulhar
nessa densa e complexa narrativa maaloufiana.

Recebido em 30-05-2018
Aprovado em 02-08-2018
DO ‘SONHO AMERICANO’ AO ‘SONHO
EUROPEU’: O ROMANCE DE EMIGRAÇÃO
ESTIVE EM LISBOA E LEMBREI DE VOCÊ
(2009), DE LUIZ RUFFATO
Verena Dolle (Gießen)

RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Neste artigo abordarei o tema da Europa como destino de emigração Sonho americano;
do Brasil, um “sonho europeu” que é evocado no romance Estive em Sonho europeu;
Lisboa e lembrei-me de você (2009), de Luiz Ruffato. Pretendo Romance de migração;
demonstrar que este romance pode ser visto como parte de uma Distopia;
“paisagem midiática” ou “paisagem ideológica” (mediascape e Luiz Ruffato.
ideoscape, conceitos cunhados pelo teórico global Arjun Appadurai)
que põem em xeque narrativas utópicas anteriores, nas quais a
América (inclusive a América do Sul e o Brasil) surgem como
lugares onde é possível realizar o sonho de um futuro melhor, e se
voltam para a Europa. Ainda assim, o caráter distópico deste sonho
é destacado e apresentado juntamente com a carnavalização das
antigas ambições hegemônicas portuguesas.

ABSTRACT KEYWORDS
In this article, I will focus on Europe as destination of migration from American dream;
Brazil, a “European dream” that is evocated in Brazilian writer’s Luiz European dream;
Ruffato novel Estive em Lisboa e lembrei de você (2009). I will show that Immigration novel;
this novel can be seen as a part of a Brazilian media- and ideoscape (in the Dystopia;
sense of global theoretician Appadurai) that put into question former Luiz Ruffato.
utopian narratives of America (including South America and Brazil) as
places where to realize dreams of a better future and draw on Europe
instead. Nevertheless, its dystopian traits are highlighted and presented
together with the carnivalization of former Portuguese hegemonic claims.
L uiz Ruffato, nascido em 1961, é considerado um dos mais
interessantes e multifacetados escritores brasileiros da atualidade, das
primeiras décadas do século XXI. Com ampla recepção internacional,
começou por ganhar visibilidade no espaço de língua alemã no ano de
2013, quando participou na Feira do Livro de Frankfurt, que teve o Brasil
como país homenageado, e aí proferiu o discurso de abertura 1 ,
controverso e bastante discutido, ou mais tarde, em 2014, quando
publicou um artigo na revista Spiegel, pouco antes do início do
campeonato mundial de futebol.
No contexto desta edição da Feira do Livro de Frankfurt foram várias
as considerações e apreciações feitas sobre a literatura brasileira
contemporânea. 2 Nessas, Ruffato assume um lugar de destaque,
particularmente graças às suas obras de estreia, como o romance Eles eram
muitos cavalos 3 (2001) e Inferno provisório (2005-2011), um conjunto de
romances composto por cinco volumes, que foi louvado pela crítica pelo
seu estilo de escrita inovador.
De acordo com as palavras de Cecilia Almeida Salles na contracapa do
terceiro volume Vista parcial da noite 4(2011 2006), Ruffato traça, em Inferno
provisório, uma “cartografia do proletariado do interior de Minas Gerais”,
descreve a sua evolução desde os anos 1950 até à atualidade e, enquanto
‘cronista’, procura dar visibilidade (literária) a um dos grupos menos
presentes na opinião pública e com menor representação mediática. O
autor encena e ficcionaliza a vida de uma classe operária marginalizada,
com origens de imigração europeia, mais concretamente italiana – algo

1 RUFFATO, Luiz. Discurso de abertura na Feira do Livro de Frankfurt. Disponível em:


http://faustkultur.de/1456-0-Festrede-von-Luiz-Ruffato.html, 2013. Zugriff: 06.03.2016
2 A este propósito, leiam-se as considerações presentes no caderno 121 da revista literária Granta

(2012) sobre os/as vinte autores/as brasileiros/as mais jovens, ou seja, nascidos/as após 1972,
ou no volume publicado por Susanne Klengel et al. intitulado Novas vozes, de entre as quais se
destaca o texto de Friedhelm Frosch (In: KLENGEL, Susanne et al. edd. Novas Vozes. Zur
brasilianischen Literatur im 21. Jahrhundert. Frankfurt am M./Madrid:
Vervuert/Iberoamericana, 2013). É também de salientar que, já em 2007, veio a lume uma
coletânea de ensaios dedicados ao romance urbano de Ruffato sobre a cidade de São Paulo Eles
eram muitos cavalos, que sublinham a importância desta obra no panorama literário brasileiro e a
sua estrondosa receção. (Ver: HARRISON, Márquerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios
sobre o romance Eles eram muitos cavalos de Luiz Ruffato. Vinhedo, SP: Editora Horizonte, 2007.)
3 RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. Rio de Janeiro et al.: Editora Record, 2001.
4 RUFFATO, Luiz. Vista parcial da noite (Inferno provisório, III). Rio de Janeiro et al.: Editora

Record, 2011 [2006].


que aponta para uma certa ligação autobiográfica –, que contrasta
manifestamente com os discursos oficiais dos governos acerca do sucesso
da ‘ordem e progresso’, do desenvolvimento e ascensão social e da vida
sonhada pelos migrantes no Novo Mundo, isto é, num sentido mais lato,
de um ‘sonho americano’ não confinado ao território dos EUA.5 Todas as
personagens do mundo de Ruffato, que originalmente se localizam em
Cataguases na região de Minais Gerais, mas que depois realizam
movimentos de migração típicos do século XX – tais como a deslocação
para as grandes cidades e para as megalópoles do Brasil (visível em Eles
eram muitos cavalos e Inferno provisório) ou migração para além das
fronteiras nacionais (em Estive em Lisboa e lembrei de você) –, lutam à beira
da precariedade por uma existência digna, reconhecimento social e por
uma vida com condições materiais razoáveis, bem como por melhores
oportunidades de progressão na sociedade, se não por si, pelo menos
pelas gerações vindouras. O universo apresentado é um universo restrito,
algo desolador, marcado pela pobreza e violência estrutural, pela
desigualdade étnica e social, pelo consumo de álcool e de drogas, mas
onde ainda assim se constata uma certa solidariedade interpessoal e
união emocional. A trama é narrada de forma “insignificante” (Corrêa
2016, s.p. 6 ) e lacónica, sóbria e sem romantismo social. Uma das

5 Com isto, Ruffato tem em mira aqueles espaços vazios e lacunas no discurso de identidade
brasileiro do século XX, que foram repetidamente observados de forma crítica por diversos
intelectuais, como por exemplo Vilém Flusser, o filósofo checo bastante influente no Brasil. Este
filósofo olha para o Brasil da década de 1950 como um país estratificado, dividido económica e
socialmente em três grupos: um grande número de trabalhadores migrantes seminómadas, que
vivem em busca das colheitas, seguido do operariado das cidades, composto na sua maioria por
imigrantes, e ainda a burguesia, constituída em parte por imigrantes, em parte por
descendentes de imigrantes portugueses. Segundo Flusser, apenas o grupo mencionado por
último é que estava responsável pela tecedura da pátria (cf. FLUSSER, Vilém. “Wohnung
beziehen in der Heimatlosigkeit“, In: ders. Von der Frei-heit des Migranten. Einsprüche gegen
den Nationalismus. Bensheim: Bollmann, 1994, p. 15-30 (cf p. 25)). A obra literária de Ruffato
apresenta-se como seguidora da tradição de João Guimarães Rosa, também ele oriundo de
Minas Gerais e, em certa medida, um exemplo para Ruffato (cf. FROSCH, “Friedrich. . “Eine
Polyphonie mit ungewisser Route“, In: Klengel, Susanne et al. edd. Novas Vozes. Frankfurt am
M./Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 2013, p. 23-53. (cf. p.37)). De acordo com a convincente
interpretação de Bolle, o seu romance de grande importância histórica Grande Sertão: Veredas
(1956) pretende superar, através da situação dialógica da confissão de vida do simples
protagonista do campo em relação aos citadinos instruídos, a perda de comunicação entre a
burguesia e a língua do povo simples (cf. BOLLE, Willi. 2009. “Die luziferische Funktion der
Sprache. Über Vilém Flusser und João Guimaraes Rosa“, In: Klengel, Susanne & Siever, Holger.
edd. Das Dritte Ufer. Vilém Flusser und Brasilien. Würzburg: Königshausen & Neumann, 63-
79). (cf. p.78)). Segundo apurei, as conexões entre Ruffato e Guimarães Rosa, a sua configuração
de língua regional e tonalidade, ainda não foram até ao momento objeto de estudo
aprofundado.
6 CORRÊA, Marina. “Wie ein Vogel in der Falle“ (Rezension von L. Ruffato, Ich war in
Lissabon und dachte an dich), 2016.
Disponível em: http://diepresse.com/home/spectrum/literatur/4925033/print.do ,
Zugriff: 03.03.2016.
particularidades do discurso narrativo das obras de Ruffato prende-se
não só com o facto de as personagens tomarem a palavra com frequência,
bem como com o quase desaparecimento da instância narrativa
(heterodiegética): cabe assim ao leitor ter de lidar com um significativo
grau de (aparente) imediatismo e oralidade (fictícia). Esta última
apresenta-se de facto como particularmente complexa e artificial, uma
vez que é composta por diálogos entrelaçados e porque reproduz, de
forma multifacetada, pensamentos de diversos planos temporais e
personagens.
A estreiteza do mundo e a falta de perspetivas profissionais das
personagens também é visível no espaço (urbano) envolvente – seja ele
Cataguases, São Paulo ou Lisboa, é apresentado a partir do prisma
subjetivo, parcial e restrito de cada uma das personagens, quase sem
intercalações de uma instância narrativa que comente, que perspetive,
que ofereça uma visão panorâmica sobre a ação.7 Assim, o leitor é forçado
a aventurar-se nesta perspetiva ‘de igual para igual’.
Em Inferno provisório, Ruffato desenha uma história de uma imigração
europeia – aliás, predominantemente italiana –, para o Brasil no século
XX8 e debruça-se sobre as promessas que lhe estiveram associadas, assim
como sobre as esperanças de ascensão social e sucesso material. Estas são
alimentadas pela projeção que, desde há séculos e desde o momento da
descoberta da América, consiste em viver uma vida melhor neste mundus
novus, num ambiente mais agradável em termos climatéricos (de acordo
com as descrições dos primeiros cronistas sobre o Brasil) e poder
implementar novas formas de organização social (como propagaram,
desde logo, as ordens cristãs, sobretudo as franciscanas). Esta ideia, para
a qual James Truslow Adams cunhou o termo bastante influente
“American Dream” na sua obra The Epic of America 9 em 1931, existe
desde o século XVIII e foi reforçada pelos atores da independência dos
EUA, tendo sido entretanto utilizada e amplamente difundida. 10 Até

7 Refiro-me aqui às considerações de Andreas Mahler sobre as diversas formas de criação


literária de cidades enquanto “cidades-textuais”, particularmente no que diz respeito à
modelização da constituição discursiva da cidade como visão da cidade limitada e dependente
do sujeito por oposição a um olhar controlador de uma perspetiva panorâmica (MAHLER,
Andreas. “Stadttexte – Textstädte: Formen und Funktionen diskursiver Stadtkonstitution“. In:
ders. ed. Stadt-Bilder: Allegorie, Mimesis, Imagination. Heidelberg: Winter, 1999, 11-36. (cf. p.
21)).
8 Entre 1880 e 1969, o número de imigrantes italianos rondava os 30%, logo a seguir ao dos

portugueses, que perfazia os 31% (Stelzig 2008, 2).


9 ADAMS, James Truslow. The Epic of America. With a new introduction by Howard Schneiderman.

New Brunswick/London: Transaction Publishers, 2012 (1931).


10 Vd. Adams (2012); S. Schnicke (2010, 8s.) faz uma distinção, no que diz respeito às

componentes do “American Dream” que ultrapassam o mero plano material, entre a dimensão
individual, social e religiosa. A forte aposta do Estado brasileiro na imigração, já a partir de
1880, para atrair mão-de-obra para o sector agrário (Stelzig 2008, 2; Lesser 1999; Martínez 2003,
meados do século XX, os movimentos de migração decorrem da Europa
para a América do Norte e do Sul, impulsionados pela esperança não só
de obter rendimentos próprios melhores do que aqueles conseguidos no
país de origem, como também de alcançar liberdade individual e
igualdade ou até mesmo um estado de ‘felicidade’; no caso do Brasil, a
atração consistiu também na utopia de progresso, de modernização e de
‘democracia racial’, da democracia étnica e igualdade de direitos, tal
como foi propagada nos anos 40 por Getúlio Vargas e se estabeleceu
como “ideologia cultural” (Roth 199411, 455).12 Enquanto que em Inferno
provisório Ruffato se debruça sobre o caminho das mulheres e homens que
emigraram para o Brasil, sobre o fracasso e não-concretização das
esperanças neste novo país, em Estive em Lisboa e lembrei de você 13– um
romance breve, de 83 páginas, publicado em 2009 – concentra-se no
movimento inverso: o da migração oriunda dos países vistos como
periféricos (num sentido pós-colonial), como o Brasil, Cabo Verde,
Angola ou Ucrânia, em direção à Europa, mais concretamente para
Portugal, o antigo ‘centro’ do império colonial.14
Esta alteração na direção dos movimentos migratórios – que questiona
o próprio papel tradicional de Portugal enquanto país de partida da

Sales & Salles do Rosário 2002) fez com que a ideia, associada à migração, de realização de
determinados planos individuais, sociais e religiosos se fortalecesse como nunca, consolidando-
se no discurso oficial e na identidade nacional tal como nos EUA – desde a Declaration of
Independence e da Bill of Rights –, e continuando bastante influente, tanto na ficção, nos filmes de
Hollywood (Dolle 2007), como no discurso político (Schnicke 2010, 12f.; Hanson & White 2011,
147). (Sobre o assunto ver mais em: DOLLE, Verena. “Amerika als Ort der Freiheit? Die
Eroberung Mexikos als Erinnerungsort in Captain from Castile (USA, 1947)”, In: Fendler, Ute &
Wehrheim, Monika. edd. Entdeckung, Eroberung, Inszenierung: Filmische Versionen der
Kolonialgeschichte Lateinamerikas und Afrikas. München: Meidenbauer, 2007, p. 27-52. /
SCHNICKE, David. “Introduction“, In: ders. ed. E Pluribus Unum. The American Dream in
Contemporary Hollywood Movies and Barack Obama’s Presidential Campaign. Marburg:
Tectum Verlag, 2010, p. 5-21. / HANSON, Sandra & WHITE, John. edd. The American Dream
in the 21st Century. Philadelphia: Temple UP, 2011).
11 ROTH, Wolfgang. “Kulturelle Identität“, In: Briesemeister, Dietrich et al. edd. Brasilien heute.

Politik – Wirtschaft – Kultur. Frankfurt a.M.: Vervuert, 1994, p. 449-463.


12 O fracasso deste projeto e as grandes desigualdades sociais no país, que contrariam o discurso

de sucesso oficial, são criticados repetidamente pelo próprio Ruffato, por exemplo no discurso
de inauguração da Feira do Livro de Frankfurt, intitulado “A democracia racial é um mito”
[„Rassendemokratie ist ein Mythos“] (Ruffato 2013).
13 RUFFATO, Luiz. Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
14 É indiscutível que termos como ‘centro’ (europeu) e ‘periferia’ (não-europeia) – termos

amplamente discutidos nos estudos pós-coloniais – são simplificadores e que não representam a
variedade das redes de relacionamentos de facto existentes (In: BACHMANN-MEDICK, Doris.
“The Postcolonial Turn“, in: dies.: Cultural Turns: New Orientations in the Study of Culture.
English translation by Adam Blauhut after a completely revised and updated German edition.
Berlin: De Gruyter, 2016, p. 131-173 (131s.)). Justamente em relação a Portugal, verifica-se por
exemplo também o emprego do termo “semiperiferia” (à margem da Europa, virado para o
Atlântico e para o espaço não-europeu) (Fernandes 2015, 163). Estes termos não serão aqui
vistos como fixos, apenas assumem uma função heurística, orientadora.
migração e assim levanta questões sobre a identidade coletiva e o
comportamento em relação ao outro, tal como apresentado no artigo de
Becker (2015)15 –, verifica-se a partir da década de 1980 e experimenta um
novo fluxo – de Portugal para a Europa Central, para Angola ou também
para o Brasil – em virtude da crise económica europeia de 2008 (vd.
Stelzig 2008 16 , 6; Córdoba Alcaraz 2012 17 ; Fernandes 2015 18 , 163-165;
Yepes del Castillo & Herrera 200719; Ayuso 200920 e Cano Linares 201221).
O romance de Ruffato resulta de um trabalho encomendado,
compondo o terceiro volume de um projeto de 2007, intitulado Amores
expressos. 22 Este romance recria ficcionalmente aquilo que designo por
‘European Dream’, ou seja, pela verificação de que não é mais o ‘Mundo
Novo’, mas sim a ‘Velha Europa’ que se apresenta como um lugar
desejado de ‘oportunidades ilimitadas’ e da tão sonhada ascensão da

15 BECKER, Luzia Costa. “Globalização – migração – lusofonia: Novas dimensões na construção


da alteridade”, in: Schmuck, Lydia & Corrêa, Marina. edd. Europa im Spiegel von Migration
und Exil/Europa no contexto de migração e exílio. Projektionen – Imaginationen – Hybride
Identitäten/Projecções – Imaginações – Identitdades híbridas. Berlin: Frank & Timme, 2015, p.
203-235.
16 STELZIG, Sabine. Länderprofil Brasilien. Disponível em: http://focus-
migration.hwwi.de/typo3_upload/groups/3/focus_Migration_Publikationen/Laenderprofile
/LP_15_brasilien.pdf , 2008, Zugriff: 09.03.2016.
17 CÓRDOBA ALCARAZ, Rodolfo. Rutinas y dinámicas migratorias entre los países de América

Latina y el Caribe (ALC), y entre ALC y la Unión Europea. Brüssel: Organización Internacional
para las Migraciones (OIM). Disponíel em: http://publications.iom.int/bookstore/free/Rutas_
Migratorias_Final.pdf, 2012, Zugriff: 27.05.2015.
18 FERNANDES, Cláudia. “A máscara europeia do emigrante português: Política e memoría“,

in: Schmuck, Lydia & Corrêa, Marina. edd. Europa im Spiegel von Migration und Exil/Europa
no contexto de migração e exílio. Projektionen – Imaginationen – Hybride
Identitäten/Projecções – Imaginações – Identitdades híbridas. Berlin: Frank & Timme, 2015,
153-170.
19 YÉPEZ DEL CASTILLO, Isabel & HERRERA, Gioconda. edd. Nuevas migraciones latino-

americanas a Europa. Balances y desafíos. Quito: FLACSO Ecuador (et al.), 2007.
20 AYUSO, Anna. “Migración en el contexto de las relaciones entre la Unión Europea-América

Latina y el Caribe”. Brüssel: European Parliament , ed. 2009. Disponível em:


http://www.europarl.europa.eu/intcoop/eurolat/working_group_migration/meetings/27_28
_01_2010_brussels/dossier/study_migration_es.pdf, Zugriff: 23.10.2014.
21 CANO LINARES, María de los Ángeles. ed. Migraciones internacionales en el espacio

iberoamericano del siglo XXI. Madrid: Dykinson, 2012.


22 Friedrich Frosch (2013, 49s.) refere que este projeto, iniciado por Rodrigo Teixeira –

proprietário da empresa de entretenimento RT Features – e sob a direção do escritor João Paulo


Cuenca tinha como propósito criar uma história de amor, que deveria ambientar-se numa
cidade considerada ‘exótica’ para os escritores. Este projeto deveria ter um ‘forte impacto’,
realizando-se não só com o apoio dos media através de blogs e programas de entrevistas, bem
como com a possibilidade de adaptação cinematográfica. No ano de 2015, o romance de Ruffato
foi adaptado para filme e estreou nas salas de cinema com o mesmo título, sob a direção de José
Barahona. Esta versão cinematográfica retoma o carácter pseudo-documental do romance e
destaca as experiências dos imigrantes em Portugal, que aparecem eles próprios – enquanto
atores amadores ou não-atores – em frente das câmaras. [Estive em Lisboa e lembrei de você.
2015. Regie: José Barahona, Prod.: Refinaria Produções (Brasilien), David & Golias (Portugal),
Mutuca Filmes (Brasilien)].
miséria à fortuna (do Inglês: “from rags-to-riches“) – algo que, como se
observa atualmente, desafia a identidade nacional e europeia.23 Estive em
Lisboa e lembrei de você relaciona-se assim, no plano da América Latina,
com um questionamento atual que tem lugar na ficção sobre as narrativas
nacionais de autorrealização – tais como aquelas que, de forma mais
veemente, os EUA encabeçaram logo desde a Constituição de 1776 com
os direitos inalienáveis “Life, Liberty, Pursuit of Happiness” e igualdade
do indivíduo desde o nascimento, mas que também se repercutiram como
uma motivação para a migração para o Brasil.24
Desta forma, a literatura reage – tal como o cinema, um medium que
esboça mundos alternativos e outras opções para agir – ao facto de a
migração, tanto aquela interna como aquela transnacional,
transfronteiriça, se ter tornado nos séculos XX e XXI, nos tempos da
globalização, um fenómeno crescente que afeta milhões de pessoas.
Questões que se prendem com a integração territorial, regional e étnica –
ou até, em certa medida, confessional –, com a configuração do encontro
entre pessoas de diferentes culturas no país de acolhimento: seja na forma
de assimilação ou enquanto fenómenos multiculturais, interculturais ou
transculturais, todas elas são não só colocadas e tratadas na vida real,
como também se formam permanentemente no plano da imaginação
cultural.
Ainda assim, é de salientar que a literatura não reage somente a um
fenómeno da vida real, mas participa – juntamente com os outros meios
de comunicação (de massa) – na geração de novos destinos e esperanças
de migração, e isto porque as conceções desses novos destinos são de
facto profundamente marcadas pelo cunho mediático, recorrendo a
determinadas ideias e narrativas. Esta situação é designada pelo etnólogo
e antropólogo indiano Arjun Appadurai nas suas pesquisas sobre

23 Este termo ainda não é muito usado na atualidade. Ainda assim, e por causa dos números da
migração das últimas décadas em direção à Europa, julgo que se revela adequado. No que diz
respeito à investigação sobre a América Latina, Villa Martínez (2011, 340) é o único que, com
base nas respetivas estatísticas da migração, se refere a esta mudança do ‘sonho americano’
para um ‘sonho europeu’ com motivações materiais. (Ver mais em: VILLA MARTÍNEZ, Marta
Inés. “Desplazados y refugiados: Entre ser, merecer y ocultar su situación. A propósito de la
migración forzada de colombianos en Colombia, Ecuador y Canadá”, In: Feldman-Bianco, Bela
et al. edd. La construcción social del sujeto migrante en América Latina: Prácticas,
representaciones y categorías. Buenos Aires/Quito: CLACSO/FLACSO, 2011, p. 339-366).
24 O ‘sonho americano’ associado aos EUA é, do ponto de vista latino-americano, e à luz dos

elevados números de emigração, tratado de forma bastante crítica, por exemplo no romance
American Visa (1994), de Juan de Rebacoecheas, o romance boliviano mais bem-sucedido de
todos os tempos; mais recentemente também no romance homónimo American Visa (2013) do
chileno Marcelo Ríos ou ainda nos romances de diversos autores mexicanos (vd. MORA
ORDÓÑEZ, Edith. “Del sueño americano a la utopía desmoronada: cuatro novelas sobre la
inmigración de México a Estados Unidos“, In: Latinoamérica. Revista de Estudios
Latinoamericanos 54, 2012, p. 269-295).
migração no mundo globalizado nos finais do século XX através dos
neologismos ethnoscape, mediascape e ideoscape:

perspectival constructs that depend on the historical, linguistic, and


political situatedness of different kinds of actors: nation-states,
multinationals, diasporic communities, and subnational groupings and
movements, whether religious, political, or economic, etc. (Appadurai,
2012, p.98).25

Um aspeto fundamental na sua análise é o papel da imaginação na vida


social e assim também nas decisões respeitantes à migração – imaginação
essa essencialmente alimentada pelos meios de comunicação de massa
modernos: “a constructed landscape of collective aspirations […]
mediated through the complex prism of modern media”. 26 Estes media
(por exemplo a literatura, o cinema, a televisão, a imprensa, ou outros
“mediascapes“, na terminologia de Appadurai) recorrem a determinadas
ideias e ideologias, que actuam como ideoscape, isto é, “a kind of
underlying master narrative” (Appadurai 1996, 35). Eles transmitem aos
indivíduos repertórios visuais e narrativas, bem como ethnoscapes,
transnacionais, principalmente de foro étnico e baseadas em (ideias de)
grupos e de integração em grupos, que em conjunto contribuem para
gerar novas narrativas e, num mundo algo confuso, criar uma certa
coerência (cf. Appadurai 1996, 33-36).27
É aliás neste contexto de configuração mediática da migração que se
deve situar o romance de Ruffato. A Europa, e mais concretamente
Portugal, já não é aqui modelado como país de partida, mas sim como
país de chegada da migração transatlântica e das esperanças que lhe estão

25 In: APPADURAI, Arjun. “Disjuncture and Difference in the Global Cultural Economy”, in:
Lechner, Frank & Boli, John. edd. The Globalization Reader. Chichester: Wiley & Sons, 2012, p.
94-104.
26 In: APPADURAI, Arjun. Modernity at Large – Cultural Dimensions of Globalization.

Minneapolis (et al.): University of Minnesota Press, 1996, p.31; Bachmann-Medick (2016, 163)
refere que a investigação do papel das relações transculturais nos meios de comunicação e os
seus efeitos continua a ser um objeto de estudo bastante desejado.
27 Vários estudos (realizados por exemplo por Hepp & Bozdag & Suna 2011; Butterwegge &

Hentges 2006, apenas para mencionar alguns) têm considerado nos últimos anos cada vez mais
o papel dos meios de comunicação de massa para as decisões sobre migração e têm-se focado
também na interconexão transnacional, distanciando-se dos fatores de desincentivo e atração
que fazem parte da investigação clássica sobre migração. (Ver mais em: HEPP, Andreas &
BOZDAG, Cigdem & SUNA, Laura. • Mediale Migranten. Mediatisierung und die
kommunikative Vernetzung der Diaspora. Wiesbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2011 /
BUTTERWEGGE, Christoph & HENTGES, Gudrun. edd.Massenmedien, Migration und
Integration. Herausforderungen für Journalismus und politische Bildung. Wiesbaden: Verlag
für Sozialwissenschaften, 2006.).
associadas.28 Ruffato recorre às master narratives dos sonhos de migração
já existentes e participa na sua construção mediática e desenvolvimento.
Em Estive em Lisboa e lembrei de você, as personagens, sobretudo o
protagonista e narrador autodiegético Sampaio, evocam a ideia de
Portugal enquanto lugar desejado e prometedor de sucesso material,
como um ‘sonho americano’ projetado sobre a Europa, que assume assim
a função de ideoscape na aceção de Appadurai. Juntamente com outros
migrantes, homens e mulheres de outros países – como Angola, enquanto
parte do antigo império colonial português, Ucrânia, seus compatriotas e
outros migrantes portugueses entretanto regressados do Brasil –, o
protagonista vê-se confrontado com a realidade de uma dura competição
para obter trabalho e rendimentos numa cidade fria, não só do ponto de
vista climatérico.
O romance é composto por duas partes relativamente idênticas na sua
extensão, cujo título inclui pretensões da vida quotidiana: “Como parei
de fumar” e “Como voltei a fumar” – quase uma expressão da vontade de
“normalidade” numa situação extraordinária (vd. Corrêa 2016, s.p.).
Sérgio de Souza Sampaio é o narrador autodiegético, algo ingénuo, que
narra a um ‘ouvinte’ que não aparece na ação, mas apenas na nota
introdutória do paratexto e tem as iniciais L.R. (e que terá registado todo
o relato, editando-o pontualmente, de acordo com a conceção de ficção
narrativa tópica do testimonio, Ruffato 2009, s.p.) os últimos seis anos e
meio da sua existência: a sua vida em Cataguases, Minas Gerais, o seu
casamento forçado com uma mulher que revela distúrbios mentais, a
perda do seu emprego e a migração para Lisboa; o seu trabalho como
ajudante de mesa num restaurante, que lhe traz esperança em relação a
uma consolidação financeira e a um regresso ao Brasil, o fracasso desta
perspetiva depois do seu despedimento e finalmente a sua imersão na
mundo da ilegalidade daqueles que não têm documentos, depois de se
ter deixado levar pelas promessas de uma sua compatriota, por quem se
apaixonara. O romance termina assim de forma relativamente pessimista,
sem esperanças quanto a um breve regresso ou à possibilidade de
sucesso. Em termos literários, é visível a rejeição em relação a qualquer
espécie de perspetiva otimista ou final feliz, bem diferente daquilo que se
verifica nos romances anteriormente mencionados de Marcelo Ríos ou
Rebacoechea.

28 A propósito da migração ítalo-argentina nos dois sentidos no século XX e a sua modelação


literária, em que a emigração transgeracional de regresso à Europa é normalmente avaliada
como um fracasso e uma derrota, leia-se Cattarulla 2012 e 2013, bem como Wamba Gaviña 2010
(In: WAMBA GAVIÑA, Graciela. “Frankreich, Italien und andere europäische Länder in der
neuesten argentinischen Literatur“, in: Kailuweit, Rolf et al. edd. Migration und Transkription –
Frankreich, Europa, Lateinamerika. Berlin: Berliner Wissenschafts-Verlag, 2010, p.179-190).
Dois temas perpassam a obra e recorrem a determinadas ideoscapes: em
primeiro lugar, o da migração enquanto fracasso, por oposição à ideia do
‘sonho americano’; em segundo, aquele relacionado com as experiências
na sociedade do país de chegada, que é apresentada essencialmente como
sendo hostil, reservada, e que se destaca sobretudo pela diferença
linguística e pela hierarquização, dirigindo-se especificamente a uma
ideia lusófona de uma comunidade cultural e linguística.
Neste contexto, a análise focar-se-á seguidamente em dois aspetos:

1. a configuração da migração no que diz respeito ao conteúdo, no


plano da ação, e o ideoscape que lhe está associado, com base nas
biografias das diferentes personagens;
2. o já mencionado papel da(s) língua(s) enquanto elemento
fundamental de uma identidade cultural e de uma comunidade
supranacional de falantes lusófonos e, assim, de uma integração
bem ou malsucedida na sociedade do país de chegada.

1. Biografias de migração em Estive em Lisboa e lembrei de você

Logo no relato do narrador na primeira pessoa – e que por sua vez remete
para a situação narrativa do já referido romance Grande Sertão: Veredas, de
Guimarães Rosa – entretecem-se, sempre filtradas por ele e de forma
subjetiva, narrativas de outros percursos de vida de homens e mulheres
migrantes. Estas narrativas traçam um panorama multifacetado, focado
nos lados sombrios, de uma migração global, fundamentalmente oriunda
das interconexões do império colonial português e de uma consequente
variedade linguística no Portugal do início do século XXI.
Temporalmente, situam-se depois da introdução do euro e,
tendencialmente, também no contexto da crise económica de 2008, com
uma concorrência mais feroz e uma situação laboral mais problemática:
- a carreira, filtrada pelo narrador autodiegético em cerca de duas
páginas, de Carrilho, um português oriundo de Trás-os-Montes, uma
zona rural e um exemplo clássico de uma região de emigração, que
prosperou no Brasil por meio de trabalho árduo e depois regressou a
Portugal (Ruffato 2009, 47-49; as próximas referências ao texto serão feitas
apenas através da indicação dos números das páginas). Em certa medida,
Carrilho foi a única personagem que concretizou o ‘sonho americano’,
apesar de este não ter durado muito. Enganado por um compatriota e
pelo seu próprio genro, encontra-se agora no país natal que, porém, já
não representa para si a sua pátria, uma vez que não lhe oferece nem um
vínculo nostálgico ao passado nem um futuro (“Sem passado e sem
futuro”, 49); Carrilho sente-se à deriva e vive literalmente à beira da
pobreza, numa situação intermédia, ou seja, numa pensão, sem casa
própria;
- Sheila, a prostituta brasileira por quem o protagonista se apaixona,
e que, tal como ele, sonha com um pronto regresso ao Brasil; que lhe
surripia o passaporte para conseguir algum dinheiro e assim o deixa na
ilegalidade do mundo daqueles que não possuem documentos de
identificação (74-77);
- Baptista Bernardo, o angolano negro, mutilado por uma mina de
guerra, que atua como proxeneta da sua mulher. É a partir deste casal
que se evidenciam as obrigações e objetivos da migração, sobretudo no
momento em que, nas considerações do migrante regressado Carrilho
(considerações essas perspetivadas pelo protagonista), se lê:

seu Carrilho […] contou que o Baptista Bernardo […] quando casou,
pensando no futuro dos filhos, debandaram pra Lisboa, sem dinheiro e sem
emprego, e, pra não morrerem de fome, a mulher prostituía, com o
consentimento do marido, responsabilizando pelo pagamento das despesas
do mês, e, graças a esse expediente, os alfacinhas usabam bibes do Jardim
de Infância Santo Condestável, falavam português corretamente, proibidos
de usar o umbundo em casa, e, verdadeiros cidadãos, iam ter a chance de
ser alguém na vida, cosa que os pais não eram em Portugal e nunca tinham
sido em Angola […] (55).29

Nesta passagem é dado a entender que, pelo menos para a nova geração,
a dos filhos, e num país menos corrupto do que Angola, existe a
possibilidade de através da adaptação (em relação à língua, ao infantário,
ao vestuário) se ascender socialmente no país de acolhimento, trazendo-
os assim para uma posição de ‘verdadeiros cidadãos’. O preço a pagar é o
da prostituição da esposa e mãe, bem como a proibição do uso da língua-
materna africana em casa. Torna-se assim evidente que o bilinguismo,
dependendo da importância social e da projeção global da língua, não é
tido necessariamente como uma riqueza, mas é visto (ou pode ser visto)
como um fator de impedimento à integração na sociedade de
acolhimento. Dito de forma mais neutra: o domínio da língua do país de
acolhimento, sem erros e sem sotaque, facilita a integração; mas isto é
feito à custa da língua materna e da localização identitária. Neste

29Os destaques a negrito estão presentes no texto original e são uma marca característica de
Ruffato para assinalar sobretudo discursos e pensamentos de outras personagens, bem como
diversas situações narrativas e dimensões temporais que ocorrem na reprodução comunicativa
feita por uma personagem. Quanto às diferentes conclusões que se retiram (ou se podem
retirar) destas marcações tipográficas, confronte-se com uma passagem de Eles eram muitos
cavalos, In: CORRÊA, Marina. “Narrative Dynamik in Luiz Ruffatos Eles eram muitos cavalos:
Verdichtung und Fragmentierung im neuen brasilianischen Großstadtroman”, In: Klengel,
Susanne et al. edd. Novas vozes. Zur brasilianischen Literatur im 21. Jahrhundert. Frankfurt am
M./Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 2013, p.165-184 (cf.180-182).
exemplo, não é defendido um modelo transcultural de migração, mas um
de assimilação. 30 Prova disso é o atributo destacado a negrito
“alfacinhas”, uma expressão jocosa utilizada para designar os habitantes
ou as pessoas oriundas de Lisboa – através deste atributo assinala-se
assim, sob o ponto de vista do português Carrilho, a aparentemente já
realizada integração na sociedade de acolhimento.
A este panorama de migrantes oriundos de países lusófonos junta-se
igualmente o ucraniano Anatólio, o concorrente do protagonista no seu
trabalho no restaurante, que é designado por si, de forma negativa e
estereotipada, como um louro de olhos azuis. Aparentemente mais
poliglota do que o protagonista e por isso promovido a uma categoria
superior pelo monolíngue proprietário do restaurante, Anatólio domina
as exigências de uma clientela globalizada de turistas com o seu bem-
sucedido conhecimento de línguas estrangeiras – isto, apesar de a
cozinheira portuguesa desconfiar seriamente das suas competências
linguísticas: “que ele era é um finório, ‘Ele inventa’, não fala nada” (56).31
O protagonista, em si, migrou para Portugal de forma relativamente
espontânea e improvisada, tal como se pode ler na primeira parte do
romance. Esta vaga ideia de ir “Pro estrangeiro” (25) surgiu depois da
perda do seu emprego em Cataguases e de um conhecido seu lhe ter
esboçado a imagem do país como sinónimo de ‘paraíso’ para pessoas à
procura de trabalho, despertando nele a ideia de um certo ‘lugar ideal’
(ideo-scape), associada à realidade das décadas de 1990 e 2000 e a um forte
fluxo migratório para Portugal. 32 Chegado a Portugal, torna-se
rapidamente evidente para o próprio Sérgio, um simplório que faz
lembrar os protagonistas do romance picaresco espanhol, que não há
correspondência entre essa ideia e a realidade económica. Não obstante,

30 A biografia de migração do casal angolano corresponde ao que durante muito tempo na


investigação clássica sobre migração foi visto como uma forma linear de migração – forma essa
concebida de forma demasiado homogénea. Bozdag 2013, 25-27 oferece um olhar sobre modelos
de migração e a sua evolução. (In: BOZDAG, Cigdem . “Migration, Diaspora und Medien“, in:
dies. Aneignung von Diasporawebsites. Eine medienethnografische Untersuchung in der
marokkanischen und türkischen Diaspora. Wiesbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2013, p.
25-68).
31 “[…] Anatólio, um garçom ucraniano louro de olho azul, que entendia o diabo de tudo

quanto é idioma estrangeiro, aparecia alguém grunhindo esquisito, ele cheio de salamaleque, já
laçava o sujeito […] americano, japonês, francês, alemão, italiano, espanhol” (56).
32 “[…] o seu Oliveira [...] apoiou o intento, ‘O caminho é Portugal’, e […] decantou as maravi-

lhas do país pra onde todo mundo estava seguindo, e que, se mais novo, até mesmo ele voltava,
‘O momento é de reconstrução’, dinheiro não é problema, falta mão-de-obra, e os portugueses
andam assoberbados, ‘Escolhendo serviço’, e sobram oportunidades pros brasileiros e pros
pretos […], ‘O lugar certo’ pra quem não tem alergia a trabalho […]” (25f.). Sobre Portugal
enquanto país de imigração nas últimas décadas do século XX, veja-se Fernandes 2015, 162s. A
investigadora refere-se à afluência migratória oriunda dos países lusófonos, mas não fornece
qualquer esclarecimento sobre as razões para os ucranianos considerarem Portugal como um
país de destino atrativo.
aproveita os pequenos progressos que vai fazendo – tal como o trabalho
como ajudante de mesa não-qualificado e não-registado – para fantasiar
com um regresso à sua terra natal no Brasil na condição de homem rico:

Como o salário era bom, retomei os planos de, descontada a pensão pra
Noemi (a sua esposa, doente mental) e pro Pierre (o seu filho, nota da
autora), economizar ao máximo pra ir embora logo, comprar umas casas
em Cataguases, viver de aluguel, fazendo nada o dia inteiro, subindo e
descendo a rua do Comércio, sentar na praça Rui Barbosa pra conversar
fiado, jogar porrinha, ver o mulherio desfilar, o povo, ensardinhado detro
dos ônibus, respeitoso, me cumprimentar, Boa tarde, Serginho, Serginho
não, seu Sérgio, Boa tarde, seu Sérgio, não, não, Doutor Sérgio, Boa tarde,
Doutor Sérgio, quem sabe candidatar a vereador, entrar pro Rotary ou pro
Lions, virar gente importante, frequentar o Clube do Remo, aparercer na
coluna social do Cata-guases, abrir um negócio pro Pierre […], mas em-
antes eu tinha que melhorar meu desempenho. (57)

A discrepância entre a ‘realidade’ descrita neste excerto – que indicia de


forma evidente o ponto de partida da tópica história de sucesso do ‘sonho
americano’ e da consequente passagem da miséria à fortuna – e a
imaginada ascensão social no Brasil, de proprietário a viver das rendas de
várias casas alugadas, que se torna não só numa pessoa de respeito (em
vez de “Serginho” passa a ser “seu Sérgio”), mas também um académico
(“Doutor Sérgio”) e por fim um ator no seio da elite política e social da
terra natal, tem algo de grotesco e de ingénuo. E isto porque o leitor/a
tem, comparativamente com a personagem, mais conhecimentos e mais
experiência de vida, que o levam a considerar estas ideias como fantasias
perfeitamente desenfreadas e inconsistentes. A par disso torna-se claro
que o sonho do protagonista é bastante diferente do ‘sonho americano’,
que tem em vista o regresso e inclusão social no país de origem, implica a
posse de bens materiais e sociais e, além disso, é transgeracional,
direcionando-se para as próximas gerações.
Ainda assim, e para além destes últimos aspetos mencionados, existe
de facto uma componente ‘étnica’ do sonho do sucesso. O protagonista
masculino, que se descreve a si mesmo como um ser mestiço oriundo de
três etnias (“misturado carrego sangue coropó, lusitano e escravo”, 25),
imagina o seu regresso ao Brasil casado com uma alemã alta e branca,
admirado e invejado por todos os homens da sua terra natal. Esta fantasia
tem origem no encontro com uma prostituta alemã, de cabelos ruivos,
corpo lácteo e olhos azuis:

[…] e eu ali, encostado nela, já imaginando nós dois desembarcando,


casados, em Cataguases, o povo em roda se empurrando pra avizinhar da
gente, “Serginho, caralho, onde arrumou esse monumento?” […] (59).
O que estes excertos sobre as fantasias de Sérgio evidenciam, justamente
nesta sua capacidade de hiperbolização, é a dimensão utópica,
imaginativa que, em pleno acordo com a aceção de Appadurai, assinala
as suas decisões de emigrar ou de regressar. Ruffato destaca aqui de
forma ficcional um aspeto que, nos últimos tempos, tem centrado as
atenções na investigação sociológica no que diz respeito à migração
(transgeracional) de retorno, nomeadamente em relação à questão do
estatuto social dos emigrantes – tanto encarados ou como supostos
traidores (à pátria), que abandonam o seu país por razões (materiais)
egoístas, que destroem as estruturas familiares (uma das recriminações
mais ouvidas contra migrantes do sexo feminino) ou como heróis, que
através das remessas enviadas contribuem, entre outros aspetos, para a
construção da terra natal.33 A isto junta-se a questão sobre a partir de
quando é que o retorno será possível, sem que seja encarado pela própria
pessoa que regressa ou pelos que o rodeiam como um fracasso ou um
insucesso (vd. Cattarulla 201234 e 201335; Da Tosca 2011; Bosshard & Gelz
2015)36.
Sérgio imagina a sua inclusão na sociedade e a ascensão social na sua
terra natal do Brasil, enquanto o casal angolano se encontra empenhado
em concretizar essa inclusão e ascensão em Portugal em prol dos seus
filhos. Comum a todos estes projetos é o tema da língua, do
multilinguismo e da ‘assimilação’ linguística, no fundo de elementos que
realçam a pertença a um determinado grupo (imaginado), uma
ethnoscape. De facto, e uma vez que este tema assume no romance um
destaque considerável, vale a pena olhá-lo com particular atenção.

33 Confrontar com os estudos de Schurr & Stolz 2010 sobre a importância de mulheres migrantes
do Equador enquanto suposto perigo para as estruturas sociais da terra natal, dado que elas
abandonam as suas famílias, ou sobre o estatuto dos migrantes mexicanos nos EUA, que
durante bastante tempo eram vistos como ‘traidores’ no seu país de origem (In: RIVERA
SÁNCHEZ, Liliana. “¿Quiénes son los retornados? Apuntes sobre el migrante retornado en el
México contemporáneo”, In: Feldman-Bianco, Bela & Rivera Sánchez, Liliana et al. edd. La
construcción social del sujeto migrante en América Latina: Prác-ticas, representaciones y
categorías. Buenos Aires/Quito: CLACSO/FLACSO, 2011, p. 309-338).
34 CATTARULLA, Camilla. “Migraciones a Argentina: Interdisciplinariedad y
multidisciplinariedad de la crítica literaria en Italia (1975-2010)”, In: González Martínez, Elda
Evangelina & Merino Hernando, María Asunción. edd. De ida, vuelta y doble vuelta: Nuevas
perspectivas sobre emigrantes, inmigrantes y retornados en España y América. Madrid:
Polifemo, 2012, p. 265-292.
35 CATTARULLA, Camilla. “L’Italia in Argentina: un’avventura identitaria tra integrazioni e

conflitti”, in: Mondi Migranti. Rivista di studi e ricerche sulle migrazioni internazionali, 1, 2013,
p. 235-250.
36 BOSSHARD, Marco Thomas & GELZ, Andreas. Return Migration in Romance Cultures.

Freiburg im Breisgau/Berlin: Rombach, edd. 2015.


2. Ethnoscape: língua e exclusão

Ruffato apresenta não só diversas experiências – todas elas quase sempre


fracassadas – de ascensão social enquanto causa de migração, mas encena
também, através das vozes das biografias de migração, a polifonia dos
países lusófonos. Mesmo quando não se refere explicitamente à ideoscape
que lhe está diretamente associada, à ideia política de uma comunidade
(paritária em termos de direitos) destes países (Becker 2015, 205; 227s.) – a
Comunidade dos Países da Língua Portuguesa fundada em 1996 –, esta
polifonia acaba por ser permanentemente evocada: tanto através das
várias origens das personagens, que vão sendo designadas pelo narrador,
como através dos seus discursos, que tornam audível a diversidade da
língua portuguesa no léxico, na ortografia e na oralidade simulada. 37 Isto
é aliás evidente nos diálogos que o protagonista reproduz reiteradamente
de forma filtrada, como por exemplo nesta exposição do português
Carrilho sobre aquilo que soube, através de Bernardo, sobre Angola:
[…] Angola, onde, isso ouvi da boca do Baptista Bernardo, os que
ganharam a guerra, a elite, mandavam os filhos fazer banga em Lisboa
[…] roubando o país como os tugas antes, e o povo, na mesma pobreza,
enfiado nos musseques, nas sanzalas […] (55).
Encontram-se aqui destacadas a negrito expressões típicas oriundas de
África, que evocam uma hibridização, pelo menos no que à dimensão
linguística diz respeito: “tuga”, aférese para “portuga”, uma expressão
brasileira, e em ambos os casos uma designação depreciativa para os
portugueses (Novo Aurélio 1999, lema “tuga” e “portuga”, 2015 e 1613).
Para além desta, também se leem expressões angolanas: “musseque” para
bairro pobre; “sanzala”, uma designação em são-tomense para uma
aldeia tradicional, ou seja, para as habitações e casas dos trabalhadores e
criadagem (id. 1385 e 1813); “fazer banga”, oriunda do tsonga
moçambicano e que significa “festejar, fazer festa” (id. 266).
A par do colorido e regional modo de falar de Cataguases do
protagonista assinala-se neste parágrafo a variedade do Português nas
suas modulações regionais, marcadas desde os (violentos) contactos
culturais do tempo colonial; ou então, utilizando as palavras de Bachtin,
este é um excerto que faz prova da polifonia, da variedade discursiva, da
pluralidade de vozes, com palavras sobrepostas com múltiplos sentidos,
que são usadas e entendidas pela comunidade de falantes.
Apesar disso, a ideia da ‘norma’ hegemónica de um ‘Português
standard’ conduzido por Portugal acaba por ser recorrentemente
tematizada num plano performativo – algo que se assinala desde logo na
história de assimilação da família angolana quando é referido que não

37 Como por exemplo no discurso direto de um cabo-verdiano: “ó brasilêro pa bosê” (53).


seria permitido falar a própria língua materna africana, Umbundu, em
casa, mas que falar Português seria de facto um ponto importante (vd.
supra, cf. 55). Para além disso, e dependendo do grau do seu domínio ou
de adaptação à norma europeia, acentua-se de facto no romance o papel
da língua portuguesa enquanto fator de exclusão e de desvalorização
hierarquizada, ou seja, enquanto fator decisivo para uma integração bem
ou malsucedida. É que apesar de uma certa base cultural comum entre o
Brasil e Portugal, algo relacionado com o futebol, são destacadas no
romance as diferenças entre as pessoas pertencentes aos dois países,
diferenças essas associadas a hierarquizações e depreciações. Tal pode ser
encontrado de forma explícita no que diz respeito à língua brasileira e à
sua matização regional exibida pelo protagonista perante um poeta
português, que lhe é apresentado de forma hiperbólica como “Alma
Ambulante da Vida Cultural Portuguesa” (51). Todavia, isto só leva a um
certo gozo depreciativo do poeta quanto ao sotaque desta língua,
considerada homogeneamente como ‘brasileira’ (cf. 51). 38 Uma
depreciação idêntica encontra-se igualmente na classificação dos
conhecimentos linguísticos do protagonista feita pela colega portuguesa
no restaurante, a cozinheira, que o avalia com um categórico “mau
Português”, só podendo ser batido pelo do ucraniano (56). O poeta e a
cozinheira representam os traços negativos, neocoloniais, reveladores da
maioria das personagens portuguesas do romance em relação aos
imigrantes brasileiros. 39 Idêntica é também a perceção dos brasileiros:
sentem-se pouco valorizados, são tratados de forma depreciativa, sem
nome e sem terra: “[…] Nem nome temos”, somos os brasileiros”, queixa-
se um compatriota do protagonista: “E o que a gente é no Brasil?”, nada
também, somos os outros” (78). Tal é visto por si como um destino
irremediável da classe trabalhadora, que no Brasil não tem qualquer
hipótese de alcançar ascensão social e rendimentos materiais por meios
legais (“[…] o trabalhador […] este morre à-míngua”; 78). A migração é
um resultado quase obrigatório desta falta de oportunidades, algo que
tanto apresenta uma visão bastante crítica da situação no Brasil (id.),

38Uma arrogância dos portugueses enquanto nação, que vive no passado e honra os seus poetas
enquanto ícones nacionais, é evidenciada nesta cena e mais tarde tratada de forma carnavalesca
quando se descobre que o muito aclamado poeta, de acordo com o informador do protagonista,
vive supostamente de autógrafos falsificados de um escritor já falecido (52), chegando mesmo a
receber, na condição de mendigo ligeiramente confuso, uma esmola do protagonista (80).
39Rings (2016, 14s.) refere-se, tal como outros renomados investigadores do pós-colonialismo, à

existência de estruturas e formas de pensamento binárias neocoloniais que perduraram mesmo


após a independência e a descolonização dos territórios. Rings alerta igualmente, porém, para a
necessidade de não simplificar as condições complexas próprias de um mundo globalizado,
limitando a análise apenas a fenómenos ‘neocoloniais’ homogéneos. (In: RINGS, Guido. The
Other in Contemporary Migrant Cinema. Imagining a New Europe? New York/London:
Routledge, 2016).
como também coloca em evidência o porquê de a Europa se poder estar a
desenvolver como plataforma de projeção. O que se torna patente é como
diferentes categorias, tanto ao nível étnico, nacional, linguístico e social,
funcionam como mecanismos de exclusão. Lisboa torna-se o lugar em que
as línguas, ou melhor, as singularidades linguísticas do Português, da
história de violência e usurpação hegemónica e de exclusão se cruzam e
remetem para um plano individual e para um plano político propagado
pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinalando um
espaço vazio. No romance, encontra-se, quando muito, uma comunidade
na solidariedade dos pobres, dos homens migrantes oriundos do espaço
lusófono que vivem à margem da sociedade e que apoiam o protagonista
na sua situação de emergência (58).
A atitude das personagens portuguesas contra a língua “dos”
brasileiros expressa no romance – atitude essa algo cética, jocosa ou até
depreciativa – parece prolongar-se no paratexto, no enquadramento do
texto que se encontra no limiar entre a ficção e o mundo real. Ou de que
outra forma deverá ser interpretada a alteração do título senão como uma
apropriação neocolonial da diferença, como desprezo por uma outra
prática linguística, formada na América, e para as quais foram apenas
decisivas as razões de marketing? Na capa da edição original da editora
brasileira Companhia das Letras, de 2009, consta o título brasileiro na
linguagem corrente “Estive em Lisboa e lembrei de você” (Fig. 1, realce da
autora), sem pronome reflexivo e com a terceira pessoa do singular do
pronome pessoal em destaque, enquanto que na capa da editora
portuguesa Quetzal 40 , de 2010, se destaca no título a forma (mais)
correta(?) com o pronome reflexivo enclítico e mais comum em Portugal
do pronome pessoal da segunda pessoa (Fig.2). Com esta extinção da
‘alteridade’ linguística que aponta para fortes marcas da oralidade
visíveis logo na capa original, o que é certo é que uma determinada
identidade ‘brasileira’ ou melhor, uma identidade regional brasileira, se
torna de facto invisível. 41 Parece então ser evidente – porventura de
forma involuntária – quem assume a liderança no grupo da Lusofonia, no
seio de uma ‘comunidade de países falantes de língua portuguesa’ com
propaganda política e apoio financeiro.

40 RUFFATO, Luiz. Estive em Lisboa e lembrei-me de ti. Lisboa: Quetzal Editores, 2010.
41 Agradeço a Cláudia Nogueira-Brieger o seu comentário sobre este ponto.
Figura 1: disponível em: Figura 2: disponível em:
https://www.companhiadasletras.com.br/ https://quetzal.blogs.sapo.pt/203100.html
detalhe.php?codigo=12862

Resumindo:

O romance expõe os lados sombrios da migração através daqueles


que, por não terem uma formação internacional, não se conseguem
adaptar às exigências de um mercado globalizado, ficando para trás
numa luta competitiva que se adivinha cada vez mais feroz pelos postos
de trabalhos e pelos rendimentos financeiros. A língua é destacada no
romance como um fator decisivo para o acesso, para a ascensão e para o
sucesso no seio de um modelo de migração baseado na assimilação.
Através da língua materna, como também através das línguas
estrangeiras, do dialeto ou do socioleto, assinala-se a pertença a um
grupo (por exemplo ao grupo daqueles que são cosmopolitas, que são
capazes de, também em termos linguísticos, dar resposta aos desafios da
globalização) ou, antes pelo contrário, é indicada precisamente a não-
pertença a qualquer grupo. A língua pode ser utilizada, de igual modo,
como critério para as diferenças, para a (des)valorização e para a
exclusão. Tal sucede no romance através da importância explícita de uma
‘língua standard’ fixada como norma, o Português do centro (europeu),
que se opõe à língua em certa medida caracterizada como ‘inferior’ da
periferia lusófona, língua essa que é ao mesmo tempo encarnada de
forma carnavalesca pela figura do ‘poeta’ português. Não se trata assim
tanto da incompreensão linguística e do não-entendimento, mas sim da
hierarquização, da estandardização e da depreciação do outro por parte
dos indivíduos portugueses num estilo hegemónico, neocolonial. A
ethnoscape frequentemente evocada nos discursos oficiais de Portugal e
controversamente discutida de uma imagined community associada a uma
lusofonia unificadora, propagada como uma união entre iguais e
igualdade de direitos de todos os parceiros tem lugar no romance tanto
no plano das personagens, como no plano paratextual, sendo
permanentemente posta em causa. De igual modo, também a
concretização de um ‘sonho europeu’ vai sendo adiada para um tempo
incerto. 42

Verena Dolle é Professora Catedrática de Literaturas e Culturas Românicas (Espanha, América


Latina e Portugal) na Universidade Justus-Liebig de Giessen desde 2009. Sua especialidade é
literatura colonial hispano-americana e literatura e cultura latino-americanas contemporâneas
(representações da violência; literatura judaica latino-americana, migração e tradução cultural
no mundo globalizado). Dentre suas publicações recentes estão Múltiples identidades.
Literatura judeolatinoamericana de los siglos XX y XXI (Madrid/Frankfurt 2012), La
representación de la Conquista en el teatro latinoamericano de los siglos XX y XXI (Hildesheim,
2014), Poesia do terceiro espaço. Lírica lusófona contemporânea (Frankfurt, 2014, together with
A. BegenatNeuschäfer). No prelo, (com H. Bonito Pereira and A. Begenat-Neuschäfer):
Migrações literárias e artísticas: África – Brasil – Europa (Berlin, 2018).

42 Outras referências de apoio utilizadas pela autora: ANDERSON, Benedict. Imagined


Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. London: Verso, 1983; DA
COSTA TOSCANA, Ana María. “El inmigrante en la literatura argentina”, in: González
Martínez, Elda & Merino Hernando, Asunción. edd. De ida, vuelta y doble vuelta: Nuevas
perspectivas sobre emigrantes, inmigrantes y retornados en España y América. Madrid:
Polifemo, 2012, p. 293-305; DOLLE, Verena. “Amerika als Ort der Freiheit? Die Eroberung
Mexikos als Erinnerungsort in Captain from Castile (USA, 1947)”, In: Fendler, Ute & Wehrheim,
Monika. edd. Entdeckung, Eroberung, Inszenierung: Filmische Versionen der
Kolonialgeschichte Lateinamerikas und Afrikas. München: Meidenbauer, 2007, p.27-52 ;
RUFFATO, Luiz. Mamma, son tanto felice (Inferno provisório, I). Rio de Janeiro et al.: Editora
Record, 2005; RUFFATO, Luiz. O mundo inimigo (Inferno provisório, II). Rio de Janeiro et al.:
Editora Record, 2005; RUFFATO, Luiz. Wir waren immer gewalttätig“, In: Der Spiegel 20,
12.5.2014, 2014, p.77-79.

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