1562 PB
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Dossiê Romance de Formação:
caminhos e descaminhos do herói (II)
02/2018
DTTLC/FFLCH/USP 28
LITERATURA E SOCIEDADE
Universidade de São Paulo
Reitor Vahan Agopyan
Vice-Reitor Antonio Carlos Hernandes
Realização:
LITERATURA E SOCIEDADE
Editorial • 05
Ensaios
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O presente trabalho tem a preocupação de destacar nas Cervantes;
andanças de dom Quixote e Sancho Pança um processo Dom Quixote;
implícito de formação educacional presente nas relações entre séculos XVI e XVII;
o cavaleiro e seu escudeiro, em outros termos, um intelectual e poética.
um analfabeto. Antes disso, cabe retomar a possível formação
que teve Cervantes na Espanha do século XVI, assim como
destacar alguns dos princípios de composição poética vigentes
no período.
RESÚMEN PALABRAS-CLAVE:
El presente trabajo tiene la preocupación de destacar en las andanzas Cervantes;
de don Quijote y Sancho Panza un proceso implícito de formación Don Quijote;
educativa presente en las relaciones entre el caballero y su escudero, siglos XVI y XVII;
en otros términos, entre un intelectual y un analfabeto. Antes, sin poética.
embargo, serán considerados los posibles procesos de formación que
tuvo Cervantes en la España del XVI y algunos de los principios de
composición poética propios del periodo.
hacerse poeta, según dicen, es
enfermedad incurable y pegadiza
DQ, I, 6
Retrato do artista
1 “Teoría literaria” em CERVANTES, Miguel de, Don Quijote, dir. Francisco Rico, Barcelona,
Instituto Cervantes/ Ed. Crítica, 1998, pp. CXXIX. Todas as citações da obra partem dessa
edição.
Embora a obra de Miguel de Cervantes tenha cruzado terras e
mares em seus quatro séculos de existência, o retrato do autor do Quixote
traz lacunas que não permitem visualizar com detalhes sua história de
vida. Ao contrário do que ocorre com alguns escritores do mesmo
período, Cervantes praticamente não deixou vestígios que dessem
margem a conclusões sobre sua biografia. Além de narrativas em prosa,
de poesias e de obras dramáticas não deixou escritos que dessem ao
menos alguns rumos precisos acerca de suas orientações poéticas como o
fez, por exemplo, Lope de Vega, quando escreve El arte nuevo de hacer
comedias (1609) – uma sistematização dos princípios de composição e de
representação cênica por ele adotados desde as últimas décadas do século
XVI. Tampouco deixou registros de cartas ou polêmicas travadas com
poetas contemporâneos como ocorreu com Luis de Góngora, que
manteve substanciosa correspondência com alguns de seus detratores.
Cervantes não abriu espaço para esse tipo de especulação, apesar de
alguns biógrafos ansiosos por conclusões precipitadas ensaiarem
cruzamentos, às vezes fantasiosos, entre vida e produção artística. O que
o autor do Quixote nos deixou, no entanto, é decisivo: uma obra que narra
histórias nunca antes imaginadas, repletas de indagações e controvérsias
sobre o modo de ser do que hoje – em um sentido amplo – entendemos
por literatura.
Não se sabe ao certo se Cervantes chegou a ter estudos regulares
em seus anos de formação: há a suposição de ter tido algum contato com
o colégio dos jesuítas em Sevilha e muito provavelmente frequentou, por
volta dos vinte anos, o “Estudio Público de Humanidades de la Villa de
Madrid”, onde os alunos recebiam a preparação necessária para o
ingresso na Universidade de Alcalá. Nessa ocasião, teria sido aluno de
Juan López de Hoyos, um religioso antijesuíta de orientação erasmista
que, em determinado momento, o apresenta como sendo seu “caro y
amado discípulo”. Embora não seja possível detalhar sua formação
escolar, o que transparece em sua obra é a ideia de ter sido um grande
leitor, provavelmente similar ao narrador do Quixote que afirma sobre si
mesmo ser “aficionado a ler, aunque sean los papeles rotos de las calles”
(DQ, I, 9)2. Simultaneamente, parece ter sido muito atraído pela arte da
escritura, como menciona uma de suas personagens – a sobrinha do
cavaleiro – acerca daqueles que escrevem: “hacerse poeta, según dicen, es
enfermedad incurable y pegadiza” (DQ, I, 6)3.
2 “[...] sou aficionado a ler até pedaços de papéis pelas ruas”. As citações em português relativas
ao Quixote partem seguinte edição: Miguel de Cervantes, D. Quixote, trad. Sergio Molina, São
Paulo, Editora 34, 2002, vol. I, IX, p. 133.
3 “[...] fazer-se poeta, que, segundo dizem, é doença incurável e contragiosa.” (DQ, I, 6, p. 103)
É certo que a biografia de Cervantes traz uma série de hiatos. Nem
sequer seu retrato mais difundido poderia ser considerado autêntico.
Retrato em que se estampa um rosto iluminado, linhas alongadas e olhar
profundo, nariz fino, levemente adunco, boca pequena encoberta em
parte por um espesso bigode que se confunde com a barba, ambos
arrematados por um protuberante rufo. Na verdade, a autoria desse
retrato foi atribuída a Juan de Jáuregui, pintor e poeta sevilhano,
provavelmente amigo de Cervantes, porém, ao que parece, o suposto
quadro teria desaparecido, restando apenas uma cópia, hoje conservada
na Real Academia Espanhola, em Madri. Assim, o retrato do autor do
Quixote impresso em muitas páginas de sua obra paira no horizonte das
incertezas, tanto no que diz respeito à autenticidade do retratista quanto
às verdadeiras feições do retratado.
Para surpresa de seus leitores, o próprio Cervantes – ou aquele que
assume a primeira pessoa no prólogo às Novelas exemplares – constrói o
seu próprio retrato. Após anunciar sua falta de entusiasmo para redigir a
presente prefação devido aos problemas que enfrentou com a publicação
do prólogo relativo à primeira parte do Quixote, lamenta-se da falta que
lhe faz um amigo capaz de gravar na primeira página do livro a sua
figura. O autor imagina um amigo hipotético que se encarregaria de fazer
constar um texto descritivo a seu respeito, isto é, uma mescla de retrato e
biografia, de modo que desse a conhecer aquele que, como diz, propagou
tantas invenções na “praça do mundo”. Ao lado de vários fatos que
compõem sua biografia como as obras que publicou, a batalha
memorável em que atuou e a marca indelével que daí decorreu, isto é, a
mão esquerda privada dos movimentos, surge a descrição em tom
burlesco de suas próprias feições que permitem ao leitor delinear seus
traços fisionômicos.
Como supostamente este não seria um texto de sua autoria,
justifica-se o uso das aspas, apesar da constante autoironia e do tom
aparentemente distanciado e irreverente em meio a um discurso pseudo
laudatório.
Este que veis aquí, de rostro aguileño, de cabello castaño, frente lisa y
desembarazada, de alegres ojos y de nariz corva, aunque bien
proporcionada; las barbas de plata, que no ha veinte años que fueron de
oro, los bigotes grandes, la boca pequeña, los dientes ni menudos ni
crecidos, porque no tiene sino seis, y ésos mal acondicionados y peor
puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros; el cuerpo
entre dos extremos, ni grande, ni pequeño, la color viva, antes blanca que
morena, algo cargado de espaldas, y no muy ligero de pies; este, digo, que
es el rostro del autor de La Galatea y de Don Quijote de la Mancha, y del que
hizo el Viaje del Parnaso, a imitación del de César Caporal perusino, y otras
obras que andan por ahí descarriadas y quizá sin el nombre de su dueño,
llámase comúnmente Miguel de Cervantes Saavedra. Fue soldado muchos
años, y cinco y medio cautivo, donde aprendió a tener paciencia en las
adversidades. Perdió en la batalla naval de Lepanto la mano izquierda de
un arcabuzazo, herida que aunque que parece fea, él la tiene por hermosa,
por haberla cobrado en la más alta ocasión que vieron los pasados siglos, ni
esperan ver los venideros, militando debajo de las vencedoras banderas del
hijo del rayo de la guerra, Carlo Quinto, de felice memoria. (NE, pp. 16-17)4
4 As citações relativas à edição espanhola procedem de: Novelas Ejemplares, Ed. de Jorge García
López, Barcelona, Editorial Crítica, 2001; a tradução ao português procede de: Novelas
exemplares, trad. de Ernani Ssó, São Paulo, Cosac Naif, 2015, p. 33: “Este que vedes aqui, de rosto
aquilino, de cabelo castanho, testa lisa e desembaraçada, de olhos alegres e nariz curvo, embora
bem-proporcionado; as barbas de prata, que não faz vinte anos eram de ouro, os bigodes
grandes, a boca pequena, os dentes nem miúdos nem numerosos, porque tem apenas seis, e
estes em más condições e piores disposições, porque não se encaixam uns com os outros; o
corpo entre dois extremos, nem grande nem pequeno, de cor viva, mais branca que morena; as
costas meio castigadas e não muito ligeiro de pés – este, digo, é o rosto do autor de A Galateia e
de Dom Quixote de la Mancha, e do que escreveu a Viagem do Parnaso, à imitação da de César
Caporal Perusino, e de outras obras que andam extraviadas por aí, talvez sem o nome de seu
dono. Chama-se comumente Miguel de Cervantes Saavedra. Foi soldado muitos anos e escravo
cinco e meio, quando aprendeu a ter paciência nas adversidades. Na batalha naval de Lepanto
perdeu a mão esquerda com um tiro de arcabuz, ferida que, mesmo que pareça feia, ele
considera bela, por tê-la conseguido na mais memorável e alta ocasião que os séculos passados
viram, nem esperam ver os futuros, militando sob as bandeiras vitoriosas do filho do raio da
guerra, Carlos V, de feliz memória.”
5 Retórica a Herenio, Introd., trad. y notas de Salvador Núñez, Madrid, Gredos, 1997, Libro III,
pp. 171-190; de Elena Artaza, Ars narrandi en el siglo XVI español. Teoría y práctica, Bilbao,
Universidad de Deusto, 1989, pp. 186-203.
físicos que ressaltam sua jovialidade e inteligência como “olhos alegres”,
“testa lisa e desembaraçada”, há referências que ficam a meio caminho
entre o encômio e o vitupério, sobretudo quando se refere ao “nariz
adunco” – possível indicação de sua origem judaica, algo nada
recomendável em tempos de Contrarreforma – atenuada pela
qualificação “bem proporcionado”; aos “dentes mal postos” e “pior
dispostos”; às “costas encurvadas” e à sua disposição física já limitada
como se evidencia por meio da menção aos “pés não muito ligeiros”.
Enfim, trata-se de um retrato que se sustenta por meio da
inteligência, da juventude, da dedicação às armas e às letras e, ao mesmo
tempo, carrega o peso da velhice e da decadência física, deixando ao
leitor o esboço de uma imagem cômica produzida pela incongruência de
seus próprios traços. Afinal, como bem lembra Cervantes em tom jocoso,
ainda no prólogo das Novelas Ejemplares, “pensar que dicen verdad los
tales elogios es disparate, por no tener punto preciso ni determinado las
alabanzas ni los vitupérios” (NE, op. cit., p.17).6 Além do mais, o artifício
usado nesse fragmento do prólogo ultrapassa a figuração e aponta para
um procedimento que se reitera em outros prólogos cervantinos quando
o autor utiliza a primeira pessoa. Longe de servir como base documental
para traçar eventualmente algumas linhas mestras de sua biografia ou de
seu pensamento, a composição desses textos é bem mais complexa e não
permite conclusões apressadas. A presença desse suposto “amigo”
introduzido no prólogo das Novelas Exemplares, quem se encarregaria de
traduzir em palavras sua imagem esculpida, é um recurso recorrente que
aparece nos prólogos cervantinos quando, dirigindo-se ao leitor e usando
a primeira pessoa num registro supostamente referencial, Cervantes
acaba multiplicando as vozes, desdobrando-se em um “ele” que emite
opiniões a seu próprio respeito. Como diz Jean Canavaggio, em seus
prólogos Cervantes apresenta-se em constante mise en scène de si mesmo,
num movimento em que se revela e se oculta simultaneamente,
dificultando a configuração precisa do retrato do escritor.7 Sendo assim,
os traços esfumados do autorretrato é o resultado de um procedimento
que tem muito a ver com sua poética e, provavelmente, muito pouco com
o seu semblante na vida real.
Muitas vezes seus biógrafos trataram de sublinhar nuances de sua
história de vida privilegiando a figura do “gênio” submetido à
precariedade das condições materiais, como se houvesse uma relação
direta e proporcional entre a estreiteza material e a propalada genialidade
do autor. Certamente, a vida de Cervantes parece não ter sido fácil, como
6 […] é um disparate pensar que tais elogios dizem piamente a verdade, já que nem as
louvações nem os vitupérios têm exatidão nem fundamento.” (NE, p. 34)
7 Jean Canavaggio, Cervantes: entre vida y creación, Alcalá de Henares, Centro de Estudios
Cervantinos, 2000.
é condição própria dos humanos, no entanto, seria no mínimo temerário
chegar a conclusões que dizem mais dos anseios ou da imaginação do
biógrafo do que do próprio biografado, ou que estabelecem uma rede de
causalidades entre vida e obra, confundindo o autor com sua personagem
quixotesca, por exemplo, com a perspectiva de adivinhar, interpretar ou
justificar quais teriam sido os movimentos mais subjetivos presentes na
composição de determinados episódios.
Apesar das lacunas biográficas, talvez seja o caso de destacar uma
das feições do artista que deixa marca indelével em sua obra: os laços de
extrema simpatia que estabelece com seu leitor, convertendo sua escritura
em momentos primorosos de reflexão e entretenimento. No prólogo às
Novelas Exemplares, como quem trata de situar o lugar que ocupa a leitura
em meio à variedade do dia a dia, diz: “[…] no siempre se está en los
templos; no siempre se ocupan los oratorios; no siempre se asiste a los
negocios, por calificados que sean. Horas hay de recreación donde el
afligido espíritu descanse.” (NE, p. 18.) 8
8“[...] nem sempre se está nos templos; nem sempre se ocupam os oratórios; nem sempre se lida
com negócios, por mais importantes que sejam. Há horas de recreação, para que o espírito aflito
descanse.” (NE, p. 34)
apenas à naturalidade na escrita, mas também à utilização da língua
romance, isto é, o castelhano.
Este preceito circulou no universo social do século XVI e aparece
como um dos temas de discussão em uma obra que teve grande
circulação na sociedade de corte intitulada O Cortesão (1528), de autoria
de Baldassare Castiglione, um italiano que frequentou tanto o mundo
cortesão italiano como também a corte espanhola. Um dos tópicos
defendidos na obra diz respeito à ideia de que o texto escrito deveria
corresponder à fala, criando assim o consenso em torno da ideia de que
“escrever é um modo de falar”, o que corresponde, em outros termos,
ao preceito do “escribo como hablo”. 9
Poucos anos após a publicação de O Cortesão, isto é, entre 1535 e
1536, Juan de Valdés redige uma verdadeira apologia à língua
castelhana nos moldes do diálogo humanista sob o título Diálogo de la
lengua, que será conhecido em forma de manuscrito apenas na segunda
metade do século XVI. Nessa obra estão presentes, não apenas a defesa
da língua vernácula frente ao latim, como também a importância da
naturalidade quanto ao estilo, em detrimento de toda e qualquer
afetação considerada como uma prática criticada e rejeitada por alguns
pensadores. Como aparece no Diccionario de Autoridades, a afetação
correspondia a um vício e surgia quando havia um cuidado exagerado
que se traduzia em obras, palavras ou adornos.
No entanto, é preciso ter em conta que, ao invés do que
aparentemente poderia parecer, a naturalidade no estilo não
correspondia à noção de um discurso espontâneo que brotava
livremente. Ao contrário, supunha ponderação, cálculo, enfim, uma
criteriosa operação racional que previa a recorrência a variados
artifícios que, por sua vez, resultava numa aparência de naturalidade.
O conceito do “escribo como hablo” correspondia ao preceito da
perspicuitas da retórica clássica, retomado por Juan Luis Vives em sua
Arte retórica e definido como “uma descrição muito evidente que atrai
aquele que ouve como se a coisa estivesse presente”. 10 Desse modo, a
clareza (ou a perspicuidade) era considerada como uma das virtudes
da elocução, enquanto que a obscuridade e a afetação não passavam de
um vício.
Quando Cervantes publica a primeira parte do Quixote, em 1605,
esta tendência já começava a ceder espaço para uma orientação
divergente que tratava de alargar a distância entre res e verba, entre as
palavras e as coisas com a perspectiva de se chegar a uma forma
9 Ver de Baldassare CASTIGLIONE, El Cortesano, Trad. Juan Boscán, Ed. de M. Pozzi, Madrid,
Cátedra, 1994, Libro I, p.152.
10 Juan Luis VIVES, El arte retórica, Introducción de Emilio Hidalgo-Serna, traducción y notas de
13 “[...] quero que me agradeças o conhecimento que terás do famoso Sancho Pança, seu
escudeiro, em quem, no meu entender, te dou cifradas todas as graças escudeiras que na caterva
dos vãos livros de cavalaria estão dispersas.” (Cervantes, D. Quixote, trad. Sergio Molina, São
Paulo, Editora 34, 2002, p. 36.)
andanças, vai construindo uma grande amizade. Além de instruir seu
escudeiro sobre os passos, a ação e os princípios da cavalaria andante,
dom Quixote evidencia uma preocupação educativa em relação a Sancho
no que diz respeito a seu modo de agir, de pensar e sobretudo no que se
refere a seu modo de falar. São inúmeras as vezes em que o repreende
pelo uso desenfreado de provérbios quando os mesmos não coincidem
com o tema em questão, ou quando, ao narrar um conto breve, Sancho se
estende em digressões e ditados populares, perdendo o fio da narrativa.
Enfim, o cavaleiro, além de lutar pela restituição dos princípios da
cavalaria e do restabelecimento de uma outra ordem no mundo, se
empenha com o rigor devido na formação de seu escudeiro.
Essa missão de dom Quixote fica evidente em inúmeros momentos
da obra, no entanto, no capítulo XII da segunda parte, o diálogo entre eles
se torna especialmente cômico, embora evidencie os progressos do
escudeiro. Nesse momento, Sancho diz ter aprendido muito com seu amo
e acaba produzindo metáforas versáteis ao estabelecer diversas ordens de
analogia. Na véspera eles haviam tido um grande desentendimento com
um grupo itinerante de atores e dom Quixote, que se dizia um admirador
da arte dramática, lamenta o ocorrido. Começa a tecer comentários sobre
a representação teatral, a cenografia e a ilusão de verdade que uma cena é
capaz de produzir, como se estivesse introduzindo seu escudeiro na arte
especular da representação, evidenciando os benefícios que a “comédia”
traz para a república, “poniéndonos um espejo a cada passo delante,
donde se veen al vivo las acciones de la vida humana” (DQ, 2, XII).14 E a
propósito, diz a Sancho:
[…] ninguna comparación hay que más al vivo nos represente lo que somos
y lo que habemos de ser como la comedia y los comediantes; si no, dime:
¿no has visto tú representar alguna comedia adonde se introducen reyes,
emperadores y pontífices, caballeros, damas y otros diversos personajes?
Uno hace el rufián, otro el embustero, este el mercader, aquel el soldado,
otro el simple discreto, otro el enamorado simple; y acabada la comedia y
desnudándose de los vestidos della, quedan todos los recitantes iguales.
(DQ, 2, XII)15
14 “[...] pondo-nos um espelho defronte a cada passo, onde se veem ao vivo as ações da vida
humana” (DQ 2, XII, p. 162).
15 “[...] nenhuma comparação há que mais ao vivo nos represente o que somos e o que havemos
de ser como a comédia e os comediantes. Se não diz-me: já não viste representar alguma
comédia onde se veem reis, imperadores e pontífices, cavaleiros, damas e outros vários
personagens? Um faz de rufião, outro de embusteiro, este de mercador, aquele de soldado,
outro de simples discreto, outro de enamorado simples. E acabada a comédia e despindo-se dos
vestidos dela, ficam todos os atores iguais. (DQ 2, XII, 2002, p. 162)
se arrisca a estabelecer uma analogia entre a arte da representação e a
própria vida, que ao chegar ao seu fim ou ao se deparar com a morte, se
desfaz de suas fantasias e é conduzida para a sepultura igualando todos
os mortais. A essas alturas, julgando-se senhor da situação, Sancho
arrisca-se a avaliar a originalidade da comparação que seu amo acaba de
fazer e lança mão de outra analogia que equipara a representação
dramática e a vida humana ao jogo de xadrez:
16 “– Brava comparação – disse Sancho – se bem não tão nova que eu não a tenha ouvido muitas
e diversas vezes, como aquela do jogo de xadrez, que enquanto dura o jogo cada peça tem seu
particular ofício, e em se acabando o jogo todas se misturam, juntam e baralham, e dão com elas
num saco, que é como dar com a vida na sepultura.” (DQ, 2, XII, 2007, p. 162.)
17 “– A cada dia, Sancho – disse D. Quixote –, te vais fazendo menos simples e mais discreto.”
sua emenda, pois de quando em quando falava de maneira que o admirava [...].” (DQ, 2, XII,
2007, p. 162-4)
gobierno, de menos me hizo Dios, y podría ser que el no dármele
redundase en pro de mi conciencia, que, maguera tonto, se me entiende
aquel refrán de «por su mal le nacieron alas a la hormiga», y aun podría ser
que se fuese más aína Sancho escudero al cielo que no Sancho gobernador.
(DQ, II, XXXIII)21
21 “[...] não posso outra coisa, tenho que seguir com ele: somos do mesmo lugar, comi do seu
pão, lhe quero bem, é agradecido, me deu os seus jericos, e por cima de tudo eu sou fiel, e por
isso é impossível que nos possa separar outra coisa que não seja a pá da terra. E se vossa
altanaria não quiser que se me dê o prometido governo, de menos me fez Deus, e pode ser que
o não receber redunde em prol de minha consciência, pois apesar de tolo bem entendo aquele
ditado que diz “por seu mal nasceram asas à formiga”, e até pode ser que mais asinha chegue
ao céu o Sancho escudeiro que o Sancho governador. (DQ, 2, XXXIII, 2007, 411)
GOETHE, O MEISTER: A EXPERIÊNCIA
ARTÍSTICA COMO NARRATIVA DA FALHA
Wilma Patricia Maas
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Este artigo pretende traçar um paralelo entre a Goethe;
formação de Goethe na Itália como aspirante à artista Os anos de aprendizado de
plástico e a formação estética do protagonista Wilhelm Meister;
Wilhelm Meister. Ambas a trajetórias se dão, em formação estética.
última instância, sob o signo da falha e da renúncia.
ABSTRACT KEYWORDS
This article intends to draw an analogy between Goethe’s Goethe;
path in Italy as an aspiring painter and the aesthetic Wilhelm Meister
development of Wilhelm Meister’s main character. Both Apprenticeship Years;
are here understood as being performed under the sign of Aesthetic Development.
failing and resignation.
F riedrich Schlegel, em sua exemplar resenha de anos de aprendizado
de Wilhelm Meister, afirma que o romance é o gênero literário capaz de
conter em si todos os outros, a prosa e a poesia, a crítica e o ensaio. Para
Schlegel, o romance de Goethe é um indicador de caminhos, um marco da
modernidade, “um romance romântico por excelência”, apontando assim
para a carga semântica que o termo assumira então.
O Meister de Goethe, consolidado pela história literária como o
paradigma do “romance de formação”, concentra, de fato, diferentes tipos
de discurso, tanto na forma, que por vezes se aproxima do ensaístico e
“avança devagar”, como diria Goethe sobre o gênero épico, quanto no
conteúdo dos diversos temas que o narrador (e o protagonista em sua
trajetória) percorrem.
O encontro com a esfera da arte é um dos mais significativos, pois,
além de permitir ao leitor a familiarização com muitas das questões
estéticas da época, permite que se acompanhe a trajetória do protagonista,
o jovem ingênuo que o próprio Goethe chamara uma vez de “pobre diabo”.
A formação estética de Wilhelm Meister dá-se de maneira
semelhante ao percurso do próprio Goethe, que dez anos antes fugira para
a Itália para realizar seu desejo de se tornar pintor. Sob esse aspecto, o
texto de Viagem à Itália pode ser lido como a narração da experiência da
falha. Tischbein, depois Hackert, Kniep e Reiffenstein revezam-se como
companheiros de jornada e mestres de desenho e pintura; dentre as muitas
promessas que Goethe fizera aos amigos que deixou em Weimar, estava a
de levar consigo esboços do próprio punho 1. No entanto, a partir da
segunda temporada romana, são frequentes no texto as alusões a um
progressivo afastamento, em direção ao reconhecimento final da falta de
talento. Em 21 de dezembro de 1787, Goethe escreve de Roma a Charlotte
von Stein:
1Durante a temporada italiana, Goethe produziu cerca de 900 desenhos. Uma pequena parte
dessa coleção pode ser vista em:
http://www.goethezeitportal.de/wissen/projektepool/goethe-italien/rom/rom-in-alten-
ansichten/goethe-zeichnungen.html
indica sempre o caminho adiante. A razão e a influência dos grandes mestres
é inacreditável. Se, quando cheguei à Itália, senti-me renascer, agora posso dizer
que se inicia meu verdadeiro processo de educação. Até agora só te enviei
tentativas levianas e sem consequências. Desta vez mando por meio de
Thurneisen um pacote que te deixará feliz. As melhores coisas são de outros
artistas2.
2 GOETHE, J. W. v. Viagem à Itália. Trad. de Wilma Patricia Maas. São Paulo: Editora UNESP, 2017
(grifo meu).
3 GOETHE, 2017, p. 147
4 GOETHE, 2017, p. 487, grifo meu.
5 GOETHE, 2017, p. 439, grifo meu.
quando estará então desobrigado de fazê-lo, remete a um adendo,
acrescentado ao mês setembro de 1787:
Por fim, é preciso lembrar que, poucas páginas adiante, nos adendos
do mês de outubro do mesmo ano, Goethe prometerá notícias sobre si,
demandadas pelos amigos, dizendo que tivera “oportunidade de refletir
muito sobre mim e sobre os outros, sobre o mundo e a história”, e que
“tudo estará por fim compreendido e finalizado no Wilhem [Meister]”.
Em abril de 1788 Goethe deixará a Itália em um estado melancólico-
elegíaco, do qual dará notícia nas últimas páginas de Viagem à Itália
servindo-se dos Tristia de Ovídio, que, “assim como eu, teve de deixar
Roma em uma noite de luar”. Precedida de “alguns dias num estado de
perplexidade”, essa disposição de ânimo é despertada tanto pela certeza
de que a Itália, mesmo em uma segunda viagem realizada poucos anos
depois, jamais será a mesma “que deixei imerso em dor 7”.
Mas se o próprio texto do autor reconhece a falha quanto ao desejo
de se tornar ele mesmo pintor e desenhista, onde residiria então seus
renascimento e formação do olhar, como ele próprio já afirmara?
Não se tem ideia da beleza de um passeio por Roma à luz do luar até que se
tenha feito a experiência. Tudo o que é particular e único é engolido pelas
grandes massas de luz e sombra, e apenas as imagens mais gerais se
apresentam ao olho. O Coliseu oferece uma vista particularmente bela. [...]
As colossais paredes sobressaíam-se, escuras; nós nos encontrávamos nas grades
e observávamos o fenômeno da lua alta e clara. A fumaça adensava-se,
atravessando as paredes, aberturas e buracos, enquanto a lua a iluminava,
assim como à névoa. A visão foi preciosa. É assim que se deveria ver o Panteão,
o Capitólio e outras grandes ruas e praças. Assim, o sol e a lua, do mesmo modo
que o espírito humano, tem aqui uma ocupação muito diferente daquela que
têm em outros lugares, aqui, onde à sua vista oferecem-se massas colossais e ainda
assim bem formadas10.
8 Goethe, 2017, p. 55
9 Goethe, 2017, p. 79
10 Goethe 2017, p. 197, grifo meu.
11 Goethe, 2017, p. 107, grifo meu.
12 Goethe, 2017, p. 106.
comparando-os ao que vê agora na Itália. Um episódio é particularmente
significativo, pois faz lembrar a antiga admiração pelo estilo gótico,
expresso no ensaio “Sobre a arquitetura alemã”. Ao admirar um fragmento
do entablamento do templo de Antonino e Faustina, exposto na Casa
Farsetti em Roma, Goethe dirá que
Ora, a declaração não deixa pairar dúvidas sobre o que pensa agora o
“cimério” a respeito da arquitetura e decoração góticas, admiradas no
ensaio de 1772. Ao longo do texto de Viagem à Itália, Goethe manterá essa
perspectiva, responsável por legar à crítica a ideia da transformação de
Goethe em um “clássico” também nas artes plásticas. A capacidade de
encontrar o belo nas formas desmedidamente grandes, colossais mesmo,
como a anfiteatro de Verona, assim como a reorientação do antigo pendor
para o gótico nórdico em direção à arquitetura clássica e renascentista são
índices mais do que suficientes para que se possa efetivamente reconhecer
uma “crise mais feliz” (Schiller) em Goethe. Poucos anos mais tarde, a
trajetória de Wilhem Meister ilustrará, não sem ironia, um percurso
paralelo, que não teve bom termo. Goethe saberá, mais uma vez,
transformar sua experiência pessoal em um relato teleologicamente
organizado, uma espécie de testemunho de um processo de cultivo do
gosto em direção à arquitetura clássica e renascentista.
Mais complexo, no entanto, será o relato de sua própria formação
como pintor. Já desde a infância na casa paterna em Frankfurt Goethe teve
contato com a arte, seja por meio dos quadros encomendados pelo pai aos
pintores domésticos, seja por meio das gravuras que o pai trouxera da
Itália. A presença do Conde Thoranc, oficial que fora hospedado na casa
de Frankfurt durante a ocupação francesa, foi favorável à familiarização de
Goethe, ainda criança, com os processos de elaboração dos quadros, pois
Thoranc contratou alguns pintores da cidade para produzir telas que
levaria depois consigo. Um dos projetos do Conde despertam no menino a
noção de harmonia de formas, ainda que de maneira inversa. O Conde
contrata diferentes artistas para compor uma tela única:
Diante disso, [o Conde] teve então uma nova ideia, que acabaria resultando
em uma operação um tanto esdrúxula. Pois como um pintor era mais hábil
com as figuras em primeiro plano, outras de segundo plano e à distância, e
14 Goethe, J.W.v. De minha vida. Poesia e verdade. Trad. de Maurício Cardozo dos Santos. São
Paulo: Editora da UNESP, 2017, p. 140.
15 Goethe, 2017, pp. 491-492, grifo meu.
cairiam imediatamente. Talvez Rafael tenha suposto que a figura houvesse
puxado para cima e segurado as vestes com a mão direita e que, naquele
momento preciso, ergueria o braço para abençoar e as deixava cair. Seria
um belo exemplo do belo expediente artístico de sugerir a ação imediatamente
anterior pelo seu efeito ainda perceptível nas dobras do tecido.”16 O ensaio,
reproduzido no texto de Viagem à Itália, foi publicado também no Deutscher
Merkur, em 1789.
Um outro ponto a ser destacado é o desenvolvimento da relação
entre arte e artesanato, assim como entre arte e técnica. Em Frascati, Goethe
frequentou a oficina do Conselheiro Reiffenstein, junto a outros artistas e
artesãos. “Estou muito feliz aqui, desenhamos, pintamos, colorimos e
colamos de manhã à noite. Arte e artesanato são produzidos ex professo”17.
Ali, Goethe aprenderá a técnica da encáustica18, assim com a produção de
cópias de gemas ou moedas em pasta de vidro. Chega mesmo a relatar todo
o processo de fabricação, que “resultava sempre no surgimento de uma
pequena obra de arte, que alegrava o artesão que a fizera com as próprias
mãos19”.
No entanto, Goethe continua perseguindo aquilo que considera seu
“verdadeiro impulso”, que consiste em “aperfeiçoar ao máximo a mão e o
olho por meio da reprodução da natureza e dos objetos artísticos” O texto
da viagem italiana é permeado com declarações que expressam o desejo do
narrador de se apropriar, por meio da reprodução, da imensa coleção de
imagens que vê e começa a compreender: “Ardo em desejo de me
apropriar disso tudo e percebo que meu gosto se refina na mesma medida
que minha alma compreende mais os objetos. Se em vez de tanta conversa,
pudesse ao menos enviar algo bom! [...] Só espero agora que chegue
também o tempo da perfeição20.”
Sabe-se, no entanto, que o tempo da perfeição nunca chegou para
Goethe como artista plástico. Nos anos seguintes, já em Weimar, não
deixará o interesse pelas artes plásticas, chegando a promover concursos
de pintura e desenho dos quais participarão nomes como Philipp Runge e
Caspar David Friedrich. É também por meio de Runge que Goethe fará a
transição do interesse da forma para a cor, passo que antecederá a redação
da Doutrina das cores. De aspirante a aprendiz de pintor a apoiador das
artes e juiz dos jovens artistas românticos, do entusiasmo pela imitação das
formas clássicas a um pensamento especulativo, essa é a trajetória que se
pode depreender do período da viagem italiana até cerca de 1806, data da
16 Idem, ibidem.
17 Goethe, 2017, p. 440.
18 Técnica de pintura conhecida já desde a Antiguidade, na qual as cores são misturadas à cera e
21GOETHE, J.W.v. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Trad. de Nicolino Simone Neto. São
Paulo: Editora Ensaio, 1994, p. 480.
O teatro como possível instância de formação
22 O conceito de formação universal foi claramente definido por Wilhelm von Humboldt em Ideen
zu einem Versuch die Gränzen der Wirksamkeit des Staaten zu bestimmen [Ideias para uma tentativa
de demarcação dos limites de atuação do estado], em 1792: O verdadeiro objetivo do homem é a
formação mais elevada e mais adequada de suas faculdades em um todo. A liberdade é condição
imprescindível para essa formação. (HUMBOLDT,W.v., apud VIERHAUS,R. (Org.)
Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. s.l.,
Klett-Cotta, 1984, p. 521).
23 GOETHE, 1994, p. 291.
24 Idem, ibidem.
25 Goethe, 1994, p. 175.
Aprofundando-se cada vez mais na leitura de Shakespeare, Meister
decide encenar Hamlet com sua companhia de atores ambulantes. Ao
ingressar, em meio às suas peregrinações, na companhia teatral de Serlo,
Meister impõe como condição a encenação de Hamlet “por inteiro e sem
cortes”. Depois de longa discussão entre ambos, que toma boa parte do
Livro V, chega-se ao consenso: Meister identifica duas vertentes na
composição da obra: “a primeira, refere-se às grandes e íntimas relações
das personagens e dos acontecimentos, aos poderosos efeitos derivados
dos caracteres e atos dos protagonistas, sendo alguns destes excelentes, e
irretocável a sequência em que se apresentam”. Tais elementos, segundo o
protagonista de Goethe e diretor amador de teatro, são aqueles que “não
podem ser alterados por nenhuma espécie de adaptação […] e que […] têm
levado quase todas as pessoas ao teatro alemão”. Mas Wilhelm Meister
distingue ainda uma outra vertente na composição do texto de
Shakespeare: trata-se das “relações exteriores das personagens, pelas quais
elas são levadas de um lugar a outro ou ligadas dessa ou daquela maneira
por acontecimentos fortuitos”. Depois de enumerar algumas dezenas
dessas circunstâncias, como as agitações na Noruega, a guerra com o jovem
Fortimbrás, assim como o regresso de Horácio a Wittenberg e o desejo de
Hamlet de partir para lá, Meister acrescenta que “todas estas são
circunstancias e eventos que poderiam dar amplitude a um romance, mas
que prejudicam extremamente a unidade desta peça em que sobretudo o
herói não tem um plano, e que são muito defeituosos”. É assim que Meister
chega a delinear uma espécie de “encenação corretiva” do texto de
Shakespeare, na qual “o expectador não tem que imaginar nada mais; todo
o resto ele vê, todo o resto se passa sem que sua imaginação tenha de correr
o mundo inteiro”.26
26 Cabe lembrar aqui que 24 anos antes, no “Discurso para o dia de Shakespeare”, Goethe
defendera exatamente o contrário, no que diz respeito às regras de unidade de ação e lugar: A
comparação entre as peças de Shakespeare e própria produção literária (à época, ainda menos do
que incipiente), já está presente no Discurso para o dia de Shakespeare, que um Goethe ainda
muito jovem dá a público em 1771. Ali, em perfeita coerência com a perspectiva de Lessing sobre
a necessidade de se criar um “teatro alemão” mais adequado ao exercício da imaginação e livre
da artificialidade do teatro francês, Goethe confessa que “a unidade de ação” lhe parece
“amedrontadora” e que “as unidades de ação e tempo [são] pesadas algemas de nossa
imaginação”, reconhecendo a “injustiça praticada pelos senhores das regras” capazes de “aleijar
tantos espíritos livres”. É ainda no Discurso para o dia de Shakespeare que se encontra famosa
exortação: “Franceses! O que quereis com toda essa roupagem grega, ela vos assenta muito
grande e muito pesada”. Certo de que “o gosto degenerado” de sua época não é capaz de afastar
a névoa que recobre a visão dos contemporâneos, o jovem Goethe, sabendo-se homem de seu
tempo, inclui-se entre eles: “Muitas vezes envergonho-me diante de Shakespeare, pois pode
ocorrer que, à primeira vista, eu pense que eu mesmo teria feito de maneira diferente. Logo,
porém, reconheço que sou um pobre pecador, que a natureza, em Shakespeare, é sábia, e que
meus caracteres são meras bolhas de sabão, movidos por caprichos romanescos”.
A adaptação sofrida pelo texto de Shakespeare dentro da narrativa
de Goethe aponta para a descendência hamletiana do próprio herói de
Goethe, que assim como o príncipe dinamarquês, “não tem um plano”. As
circunstâncias da vida de Meister, assim como as personagens que
encontra ao longo de sua trajetória, são unidas por “fios tênues e frouxos”,
a ponto de o narrador goethiano empreender grande esforço, no capítulo
final de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, para atar todos eles.
A estreia de Hamlet é bem-sucedida, transcorrendo sem incidentes.
Estes, no entanto, acontecem já no dia seguinte, como um prenúncio. Um
incêndio ameaça a sobrevivência da trupe teatral e destrói seus
alojamentos. Ainda assim, os ensaios de Hamlet continuam. A trupe encena
ainda Emilia Galotti, a peça de Lessing que, como se sabe, é a leitura de
outra personagem de Goethe, antecedendo a tragédia final do Werther. O
papel destinado a Wilhelm, nessa nova encenação, é o do príncipe tirano.
Wilhelm é tomado por dúvidas quanto ao papel, mas é ajudado por Serlo,
que assumira oposto de diretor:
Wilhelm sentia-se agora quase desesperado com seu papel, mas Serlo veio
de novo em sua ajuda, transmitindo-lhe as mais sutis observações sobre os
detalhes e preparando-o de tal maneira que, no decorrer da apresentação, a
menos aos olhos do público, parecia um príncipe verdadeiramente refinado27.
[...] antes descobriremos que aquele cujo espírito anseia por uma [formação]
moral tem todas as razões para educar ao mesmo tempo sua mais fina
sensibilidade, a fim de não correr o risco de despencar do alto de sua moral,
entregando-se às tentações de uma fantasia desregrada e chegando ao caso
O teatro nos perverte totalmente; a música nele só serve por assim dizer aos
olhos, ela acompanha os movimentos, não as emoções. Nos oratórios e nos
concertos perturba-nos sempre a figura do músico; a verdadeira música é somente
para o ouvido; uma bela voz é o que se pode pensar de mais universal, e se
o limitado indivíduo que a produz se põe diante de nossos olhos, destrói o
puro efeito dessa [universalidade] ... aquele que para mim canta deve ser
invisível; sua figura não deve seduzir-me nem extraviar-me. 40
O trecho acima parece ecoar o texto das Cartas sobre a educação estética,
segundo as quais “numa obra de arte verdadeiramente bela, o conteúdo
nada pode fazer, a forma é tudo”.43
O próprio Wilhelm Meister, protagonista da narrativa, passa ao
largo, portanto, do aprofundamento de sua educação estética. Vê, mas não
consegue ultrapassar o limite de sua subjetividade, sua fruição artística é
interessada, contingente. A experiência com as artes plásticas deu em falha,
assim como a experiência teatral.
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
A fim de compartilhar o fórum de reflexões literárias concernentes ao Bildungsroman;
Bildungsroman, o artigo que apresento resulta da minha pesquisa sobre Heinrich von
a literatura de Novalis, a partir da compreensão dos contextos e Ofterdingen;
debates poéticos que concernem à composição de Heinrich von Novalis;
Ofterdingen, romance que permaneceu inconcluso e passível de Flor Azul;
interpretações dos manuscritos e da crítica dos prototextos, após a Romantismo;
morte do escritor. A essa incompletude circunstancial soma-se a do Poesia.
caráter específico do gênero textual romance composto de abstrações
de valores morais, religiosos e de personificações dos elementos do
mundo orgânico e inorgânico, o que pressupõe a ocorrência de uma
alegoria literária. Considerando a complexidade do texto, este estudo
desencadeia a leitura crítica com os primeiros comentários
identificadores resultantes da leitura atentiva, visando a tradução, a
descrição, a análise e a interpretação de um fenômeno poético mais
amplo, o Romantismo.
ABSTRACT KEYWORDS:
In order to take part in the forum of literary reflections concerning the Bildungsroman;
Bildungsroman, the paper I present results from my research studies on the Heinrich von
literature of Novalis, from the understanding of the contexts and poetic Ofterdingen;
debates about the composition of Heinrich von Ofterdingen, novel which Novalis;
remains unfinished and passible for the interpretation of the manuscripts and Blue Flower;
of the criticism of the prototexts, after the death of the writer. Besides of this Romanticism;
circumstantial incompleteness, it adds to it the specific character of the Poetry.
novel’s textual genre, composed of abstractions of moral and religious values
and personifications of the elements of the organic and inorganic world,
which presupposes the occurrence of a literary allegory. Considering the
complexity of Novalis literary text, this study triggers the critical reading
with its first identifying comments that resulted from close reading, aiming
at the translation, description, analysis and interpretation of a broader poetic
phenomenon: Romanticism..
1Esta é uma versão work in progress do estudo iniciado com a “Apresentação” ao livro
NOVALIS. A Flor Azul. Tradução Maria Aparecida Barbosa, ilustrações de Rodrigo de Haro,
prefácio Claudio Willer. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2018.
Imagem
Imagem — nem alegoria
— nem símbolo de um estranho
— símbolo de si mesmo.
Novalis, Fragmente2
99. Goethe é um poeta bem prático. Ele é em suas obras - o que o homem
inglês é em suas mercadorias - extremamente simples, elegante, confortável
e estável. Ele fez na literatura alemã o que Wedgwood fez no mundo
artístico inglês - como os ingleses, ele tem um gosto naturalmente nobre e
econômico, adquirido através do intelecto. Ambos os atributos se toleram
Goethe será e precisa ser superado - mas apenas como os antigos podem
ser superados, em teor e energia, em diversidade e profundidade - não de
fato como artista - ou quem sabe, em bem pouco, pois sua correção e rigor
podem ser mais exemplares do que parece.6
6NOVALIS. SCHULZ, Gerhard (editor). Novalis Werke. München: C. H. Beck, 1981. fls. 409-412.
As próximas traduções do alemão ao português são de minha autoria.
da poesia é imitado. (...) E vejo nitidamente a grande arte com que a poesia
é por si mesma destruída no Meister.7
7 Carta de Novalis a Ludwig Tieck em Jena, 23.02.1800. In: Samuel, Richard (editor). Novalis.
Werke, Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs. München, Wien, 1978, 3 volumes. Volume
1, fls. 731-33.
8 Carta de 27.2.1799, de Novalis a Caroline Schlegel. HARDENBERG, Friedrich von (genannt
Novalis). Eine Nachlese aus den Quellen des Familienarchivs. Gotha: Friedrich Andreas Berthes,
1873. p. 192. E-book gratuito disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=9XVfAAAAcAAJ&pg=PA192&dq=ich+habe+Lust+m
ein+ganzes+Leben+an+einen+Roman+zu+wenden&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwiAysfwv5
nbAhVDD5AKHbb3BVcQ6AEIPDAD#v=onepage&q&f=false> (acessado em 21/05/2018).
9 O músico austríaco Arnold Schönberg escreveu, em 1909, o monodrama atonal chamado
10 NOVALIS. Heinrich von Ofterdingen – ein nachgelassener Roman von Novalis – Zwei Teile. In:
Novalis – Gesammelte Werke. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2008. pp. 199-356.
11 Nessa personagem muitos estudiosos veem uma homenagem de Novalis ao seu mestre nas
disciplinas de mineralogia em Freiberg, Abraham Gottlob Werner, geólogo que foi o principal
defensor do netunismo na controvérsia contra os plutonistas (Basaltstreit), dentro da questão
mais abrangente: da formação geológica terrestre.
Fecundas histórias
De tempos passados
Contam a jazida
Em perene alegria.
Sagrados alentos
Sopram-lhe ao rosto.
E as noites dos veios
Luzem eternas.12
“Goethe und der Basaltstreit. Sitzung der Humboldt-Gesellschaft am 13.06.1995 von Helge
Martens”. Disponível em:
<http://www.humboldtgesellschaft.de/inhalt.php?name=goethe#F>
(acessado em dia 24/06/2018).
12 NOVALIS 2008, p. 260.
13 NOVALIS 1988, p. 90. “Onde há crianças, ali é uma idade de ouro”. (F 97, Pólen).
14 NOVALIS 2008, p. 271
15 NOVALIS 2008, p. 272.
16 NOVALIS 2008, p. 279.
incondicional para a humanidade inteira se afinar com o mundo sublime.
O ápice do romance está na narrativa que perfaz o Capítulo 9 e encerra a
primeira parte do livro.
A Flor Azul é a história que o personagem-poeta Klingsohr conta
ao jovem Heinrich e, embora esteja dentro do romance, é a síntese de uma
utopia plena, o que lhe outorga autonomia poética. Com essa narrativa o
poeta instituiu a busca da flor azul como um ideal simbólico da poesia
romântica, e por isso ela é celebrada e considerada a obra poética
inaugural da narrativa romântica de expressão alemã.
Eis o princípio da poética de Novalis: a enigmática história trata da
Fábula/Poesia, configurada como uma menina chamada a reconquistar
Eros/Amor para a humanidade. Pelas anotações legadas, é possível
conceber três dimensões na narrativa: primeiramente a dimensão dos
deuses antigos urdindo destinos. O Velho Herói, deus da guerra Marte e
também elemento magnético ferro, é quem lança na Terra a espada
magnetizada para cumprir a magia do destino; o Rei Artur é a estrela
mais potente entre todas da constelação. O reino está gelado, inerte. Mas:
“incontáveis metamorfoses e prodigiosas magnificências do reino terreno
sua presença há de revelar”, diz o início do poema Hinos à noite17. Freya,
cujo nome designa liberdade e simboliza igualmente a Paz, está
subjugada por sortilégios. Fênix é a bela ave que comprova a eterna
possibilidade de renovação. Sofia, inclusive etimologicamente, é a
sabedoria divina, sacerdotisa vestal que guarda a chama do altar e possui
o cálice contendo a água milagrosa que faculta o discernimento entre o
genuíno e o falso.
A dimensão terrena mostra Amor acalentado no berço, Razão,
Fantasia, Memória, Coração, num antropomorfismo que permite às
personagens humanas que interajam entre si. A espada imantada há de
indicar a Amor os caminhos para a consumação da união com Freya, o
que acalentará e trará vida. Mas é Sofia que tem o conhecimento, a
Fantasia que inventa os modos. A ama Fantasia Ginnistan nutre Amor e
Poesia. Poesia se deixa inspirar por Amor.
Ao Reino das Parcas com a luz negra, o Escriba, embora humano,
tem acesso. Com Alegria, Fantasia, Generosidade e senso de Humor,
Fábula (Poesia), irmã de leite de Amor, foi incumbida de decifrar os
quebra-cabeças da Esfinge, triunfar sobre a Vida e a Morte e abrandar
Amor, tendo em vista o vínculo com Freya. A Lua (Rei Lunar, porque é
masculino em língua alemã) é a presença noturna que propicia encontros
românticos, sonhos, devaneios, se alegra com a chegada da filha Fantasia.
A força de uma corrente imantada reúne finalmente Amor e Freya.
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
As relações literárias entre E. T. A. Hoffmann e seu tempo Bildungsroman;
estendem-se por diversas épocas e passam por diversos autores e Formação;
temas. Entre eles, o romance de formação, tão caro à literatura do Hoffmann;
final dos séculos XVIII e seguintes, foi abordado de uma maneira Murr;
inusitada por esse autor do romantismo tardio alemão. Este Paródia.
ensaio busca traçar, em primeiro lugar, as relações literárias entre
o autor do romance de formação por excelência, Johann Wolfgang
von Goethe (o primeiro Wilhelm Meister), e E. T. A. Hoffmann, seu
contemporâneo. Em um segundo momento, buscar-se-á
demonstrar como Hoffmann incorporou a ideia do romance de
formação, porém acrescentando a ela um elevado conteúdo
irônico e cômico, parodiando o conceito de formação (Bildung),
no romance Reflexões do Gato Murr.
ABSTRACT KEYWORDS:
The literary relations between E. T. A. Hoffmann and his time extend Bildungsroman;
through several times and several authors and subjects. Among them, Formation;
the Bildungsroman (novel of education, formation), with a marked Hoffmann;
relevance in the end of the 18th and the 19th Century onwards, was Murr;
approached in a peculiar way by this author of the late German Parody.
Romanticism. This essay seeks firstly to outline the literary relationships
between the author of the Bildungsroman par excellence, Johann
Wolfgang von Goethe (the first Wilhelm Meister), and E. T. A.
Hoffmann, his contemporary. Afterwards, it will be addressed how
Hoffmann incorporated the idea of the Bildungsroman, but also added
to his work a high ironic and comic content, making the concept of
‘education’ (Bildung) a parody in The Life and Opinions of the Tomcat
Murr.
I ntrodução
1O texto da carta de Jean Paul a Goethe é o seguinte: “O muito honrado senhor [Goethe] recebe
aqui a opereta ‘List, Scherz und Rache’ [sic] que me foi entregue por um músico em Berlin
[Hoffmann] para levar ao Senhor com o pedido de Sua leniência a fim de [obter] Seu julgamento
e uma amostra através de encenação” (SCHNAPP, Friedrich. E. T. A. Hoffmanns Briefwechsel. Vol
1. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, p. 157, para notícia da carta de Hoffmann
a Jean Paul, e SCHNAPP, Friedrich (org.). E. T. A. Hoffmann in Aufzeichnungen seiner Freunde und
Bekannten. Munique: Winkler-Verlag, 1974, p. 739, para a carta de Jean Paul a Goethe). Não se tem
notícia, no entanto, de que Goethe tenha tecido comentários sobre a composição.
listagem das obras e pelas menções feitas nas cartas, que a obra de Goethe
sempre esteve presente nas considerações de Hoffmann ao escrever seus
próprios textos, e tais leituras podem ser inferidas pela presença de alusões
e intertextualidades em seus próprios escritos. Em especial, destaca-se a
presença de várias tragédias e Singspiele de Goethe, obras do gosto especial
de Hoffmann devido à sua atividade de compositor em diversos teatros e
casas de óperas na Alemanha e na Polônia.
Porém, não se podem entrever facilmente, a julgar pelas entradas em
seu diário, considerações ou análises extensas, ou até mesmo
manifestações explícitas, sobre a estrutura dos romances goethianos,
especialmente no que toca ao tema deste ensaio, acerca do romance de
formação como gênero ou Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Sabe-
se, por duas referências, que Hoffmann havia lido e estudado o romance
(essas referências são menções nas cartas de 6 de março de 1806 e 23 de
dezembro de 1808) e que as reflexões resultantes dessa leitura estão
presentes em seu romance Reflexões do Gato Murr, quando analisado em sua
estrutura. Porque Hoffmann não escreveu ensaios ou textos de crítica
literária, a não ser breves considerações no âmbito de seus próprios textos
ficcionais, considerações mais significativas, no entanto, não podem ser
encontradas.
A relação inversa, ou seja, manifestações de Goethe sobre os textos
de Hoffmann, igualmente não é muito prolixa. As principais indicações do
contato de Goethe com a obra de Hoffmann se dão também por menções
em cartas, entradas de seu diário e por meio de duas resenhas a textos de
crítica literária que abordam obras alemãs pela mão de autores ingleses
(notadamente suas duas resenhas sobre textos de Thomas Carlyle e de
Walter Scott).
Devido a suas próprias concepções literárias e inclinações
poetológicas, não se pode afirmar que Goethe tivesse um pendão para
textos que versam sobre o maravilhoso, o fantástico e demais variantes. É
possível citar, por exemplo, uma conversa com Friedrich von Müller,
datada de 1823, em que Goethe afirma:
À tarde na casa de Goethe para encontrar Cotta, que ceou em sua residência...
Ottilie fez-se presentear com o espólio do velho Senhor Hoffmann em meio
às mais graciosas bizarrices.
“Quem não tem espírito não acredita em espíritos, e assim também não
acredita nas propriedades espirituais dos escritores”, disse Goethe em
relação à reimpressão2.
22 de maio de 1819. Esse encontro foi relatado pelo filho ao pai em carta escrita no mesmo dia:
“Sábado, 22 de maio... Ao meio-dia estivemos na casa de Nicoloviussen com Rauch e o escritor
Hoffmann e surgiram histórias particularmente engraçadas de Werner, o qual ambos conheciam
bem [...]” (SCHNAPP, Friedrich. Op. cit., 1974, p. 741).
Hoffmann utilizou diversos conceitos presentes nas obras de Goethe em
sua própria produção; um deles em especial, que será abordado aqui, é o
romance de formação.
... dizer o seguinte. Um gato filisteu, por sedento que esteja, começa a lamber
o prato de leite pelas bordas para não lambuzar o bigode e a barba, mantendo
a etiqueta, pois o decoro é mais importante que a sede. Se você visita o gato
filisteu, ele vai lhe oferecer toda a sorte de coisas que possui, jurando
amizade, mas mal você se despede e ele, às escondidas, come depressa e
sozinho todas as delícias que ofertara.
O gato filisteu sabe achar, graças a seu tato seguro e infalível, o melhor lugar
possível para se estirar confortável e agradavelmente. Vangloria-se de suas
qualidades, esmiúça e rende graças a Deus por não ter nada do que se
queixar, pois é bem dotado de virtudes. Expõe, com grande loquacidade,
como galgou tão boa posição e tudo que fará para melhorá-la. Mas, se você
quiser falar de si, de sua sorte menos favorável, então o gato filisteu cerra os
olhos e as orelhas e finge estar dormindo, ou ronca.
O gato filisteu lambe com zelo o pelo para ficar lustroso e sedoso, e não
atravessa, nem quando está caçando ratos, uma poça de água sem sacudir as
patas a cada passo, com a finalidade de conservar a imagem de impecável e
elegante, independentemente do contratempo, ainda que isso lhe custe a
presa.
O gato filisteu foge e evita o menor perigo, e se você estiver em um e pedir
ajuda, entre sagradas afirmações de apoio amigável, ele vai lamentar que,
justo naquele instante, suas obrigações não permitem socorrê-lo. Em geral,
tudo aquilo que o gato filisteu diz ou faz depende de mil considerações. Ele
será, por exemplo, polido e educado ante o pequeno poodle que lhe mordeu
a cauda dolorosamente, para não se enfrentar com um membro da corte, cuja
proteção logrou conquistar, e aproveita-se da noite ardilosa para lhe unhar
o olho. No dia seguinte, lamenta de coração com o querido amigo
cachorrinho, e deplora a maldade dos pérfidos inimigos. Aliás, essas cautelas
se assemelham a uma armadilha capciosa, dando ao gato filisteu a chance de
sempre escapulir no momento em que você imagina tê-lo flagrado. O gato
filisteu permanece, de preferência, sob a estufa do seu lar, onde se sente
protegido, pois o telhado lhe provoca vertigem.
Eis, portanto, meu caro amigo Murr, o caráter do gato filisteu, e esse é seu
caso [...]5
5HOFFMANN, E. T. A. Reflexões do gato Murr. Trad. Maria Aparecida Barbosa. São Paulo: Estação
Liberdade, 2013, pp. 242-243 para o primeiro trecho, e pp. 258-259 para o segundo trecho.
e Wagner: enquanto o primeiro é convidado a realizar experiências para
ter uma melhor compreensão do que é o mundo em seus diversos matizes,
o segundo entrega-se ao estudo cientificista, que abrange apenas os livros
presentes nas bibliotecas e os domínios do saber já estabelecidos pelas
convenções intelectuais da tradição. Murr ocupa, poder-se-ia dizer, nessa
analogia aproximada, a posição de Wagner no tocante ao acesso ao
conhecimento.
Os frutos dessa analogia podem ser aprofundados no episódio em
que Murr abandona pela primeira vez o conforto de sua moradia e parte
para conhecer, acompanhado de um cachorro e depois por outros gatos, o
“grande mundo”, aquele que está fora de seu pensamento. Imediatamente,
Murr descobre que esse mundo é repulsivo, muito diferente das descrições
de viagens que lera e do mundo intelectual do qual ele julga ser membro.
Um profundo choque é impresso na mente de Murr, que chega a sofrer
fisicamente devido à sua falta de conhecimento mundano, que é o trunfo
dos gatos de rua. A alegada “esperteza” e “habilidade” dos gatos é pouco
desenvolvida em Murr, ainda que ele tenha anteriormente se julgado
“formado para o mundo”.
Essa “formação para o mundo” da qual ele fala é precisamente um
dos pontos centrais do romance goethiano. Uma formação que se
propusesse a ultrapassar, ou entender e delimitar, a rígida diferenciação
de classes sociais – a burguesia e a nobreza – pelo acúmulo de experiências
e de conhecimentos práticos e teóricos sobre o funcionamento das coisas é
um dos aspectos aspirados por Wilhelm Meister expostos na sua conhecida
carta ao cunhado Werner6. Comparativamente, pode-se dizer que o gato
Murr, nesse aspecto, propõe-se a eliminar as barreiras existentes entre o
gato formado e intelectualizado e o mundo imaginário ao seu redor,
superando até mesmo a espécie humana, tendo em vista que um dos seus
prefácios é dirigido exatamente a este último público. Nesse sentido, a
formação pretendida pelo gato é a formação que a burguesia nutria pelo
conhecimento universal, pelo que vai além das imposições de nascimento,
segundo um mundo ligado à razão preconizado pelo então recente
Iluminismo. O fim pretendido dessa formação é uma “harmonia e [a]o
conhecimento de si e do mundo”, segundo formulação de Wilma Patricia
Maas7. Wilhelm Meister aprenderá as limitações para sua formação, e o
gato Murr, aparentemente, ainda que a vida lhe ofereça resistência,
permanecerá entranhado no universo das ideias: ele não chegará a
compreender quais são os limites que lhe são impostos pelo mundo real.
8 Rüdiger Safranski, em sua obra de divulgação do Romantismo, apresenta, às páginas 182 e 183,
uma descrição daquilo que diversos autores românticos, entre eles Hoffmann, Schleiermacher e
Novalis, entendiam por “filisteu”. Muitas das características ali elencadas estão presentes na
descrição de Muzius: “filisteu é todo aquele que se dedica completamente à utilidade”, “o
‘filisteu’ se torna o símbolo do homem normal por excelência”, “conservar uma distância segura
é decisivo para o filisteu”, “seres sem transcendência”, “permanecer previsíveis”, “evitam
conhecer-se mais profundamente”, “o filisteu não sabe o que é”, entre outros (SAFRANSKI,
Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. Trad. Rita Rios. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2010,
pp. 182 e 183).
9 Aproximando-se da metodologia utilizada por Raymond Williams, Franco Moretti, no ensaio O
burguês entre a história e a literatura (São Paulo: Três Estrelas, 2014), utiliza palavras-chave para
identificar tendências e traçar condensações teóricas sobre o assunto sendo tratado. Para o
burguês, que encontra grande similaridade com o “filisteu” alemão, Moretti identifica as
O fato de Murr não conhecer o termo que se aplica a ele indica o
grande afastamento que tem do mundo e o pouco conhecimento que tem
de si mesmo. Para ele, a “ciência” ocupa a posição central de seus
aprendizados, não tendo importância primária a experiência de vida como
forma de obter o conhecimento prático do mundo real. De maneira
didática, Muzius explica alguns dos traços que compõem o caráter do gato
que está se tornando um filisteu graças ao seu afastamento do mundo ao
redor. Em resumo, o gato filisteu é acomodado, preso ao conforto,
prepotente, individualista, narcisista, preocupado com a opinião alheia
como forma de medida de status social, covarde e hipócrita, conforme se
depreende das características mencionadas no excerto. Muzius vê em Murr
essas características em maior ou menor grau, e indica-lhe, mediante os
vocábulos que emprega para descrever sua vida (“clausura” e
“desgraçada”), que aquele era precisamente “seu caso”.
O que Muzius identifica em Murr é, por assim dizer, o oposto da
aspiração à “formação universal” preconizada por Wilhelm Meister no
romance de Goethe. A importância da experiência de vida, da ação, é
ressaltada nas viagens e nos caminhos pelos quais o protagonista
goethiano passa, ainda que orientado sub-repticiamente pela Sociedade da
Torre. Murr, por outro lado, descobrirá somente ao final do romance que
os demais indivíduos da sociedade são também capazes de transmitir
conhecimentos e que destes se pode extrair uma aprendizagem (no caso,
mediante a orientação dada por uma famosa cachorra), ainda que
mantenha até o fim o ideal de formação intelectual, tentando não sucumbir
às pressões sociais e abandonar seu ideal de educação.*
Manuel Bandeira, no poema “Pensão familiar”, publicado em
Libertinagem, descreve uma cena pacata em uma casa tipicamente burguesa
(ou filisteia) e exemplifica a típica vida dessa classe por meio da imagem
de gatos que estão confortáveis (“espapaçados ao sol”) em meio à preguiça
e à falta de atividade própria a esse tipo de vida. Bandeira fecha o poema
com o seguinte verso: “– É a única criatura fina na pensãozinha burguesa”,
referindo-se ao gato. Evidentemente, a adjetivação da imagem do gato
como fino, ou seja, que segue uma etiqueta e age com “bons modos”, é uma
caricatura do próprio burguês, personificado nas atitudes do animal. O
animal, humanizado e tornado o personagem principal em uma obra na
qual, de outra forma, predominariam humanos, oferece um outro ponto de
vista para o todo, ou seja, aquele de atitudes animais reconhecíveis nos
próprios seres humanos. Em Hoffmann, esse ponto de vista alterado
incrementa a comicidade pretendida na obra, intensificando a sátira ao
nascente mundo burguês.
Considerações finais
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O ensaio enfoca o processo de construção do romance Mémoires de deux jeunes
Mémoires de deux jeunes mariées, de Honoré de Balzac. Especial mariées;
atenção é dispensada à correspondência de duas jovens Balzac;
aristocratas francesas da época da Restauração, Louise de Formação Feminina;
Chaulieu e Renée de Maucombe, que trocam ideias sobre suas Correspondência;
respectivas vidas afetivas e casamentos, depois de anos de Instituição do
convivência num convento de carmelitas, na qualidade de Casamento.
alunas internas. O objetivo principal do romancista consiste
numa discussão sobre o casamento, tal como visto na época, e
sobre duas perspectivas de amor – o afeto conjugal e a paixão
– em suas relações com aquela instituição.
ABSTRACT KEYWORDS
This essay focuses on the building process of the novel Mémoires de Mémoires de deux jeunes
deux jeunes mariées, by Honoré de Balzac. A special attention is mariées;
given to the correspondence between two young aristocratic, French Balzac;
women of the Restauration period, Louise de Chaulieu and Renée de Female formation;
Maucombe, who exchange views about both of their respective Correspondence;
affective lives and marriages after years of living together in a Wedding institution.
convent of Carmelitas, as intern students. The main goal of the
writer consists on a discussion about wedding, as it was perceived at
that time, and about two perspectives on love – conjugal affection
and passion – and its relationships concerning the institution.
O romance de Honoré de Balzac, Mémoires de deux jeunes mariées,
saiu em folhetim, no jornal La Presse, entre 26/11/1841 e 15/01/1842,
seguindo-se a publicação em livro em março de 1842, com dedicatória a
George Sand e um prefácio do escritor que não figurava no folhetim. No
conjunto da Comédia Humana, insere-se nas Cenas da vida privada. Podemos
de imediato lembrar um “importante critério distintivo”, segundo Marcus
Mazzari1, estabelecido por Wilhelm Diltehy, um dos primeiros a delinear
teoricamente o Bildungsroman, para inserir um romance na categoria de
formação: “Esses romances de formação expressam assim o
individualismo de uma cultura restrita à esfera da vida privada” (apud
MAZZARI, 2010, p.101)
Como aponta Paulo Rónai2, achando um pouco injusto, não se trata
de um romance muito estudado. Alain (1868-1951), grande apreciador do
romancista, afirma que “ce chef-d’oeuvre vaut par la perfection du détail”3
e fecha seu artigo, que gira em torno da personagem Louise de Chaulieu,
de forma ainda mais elogiosa: “On ne peut guère citer de roman mieux fait
que celui-là, et qui, dans un bavardage si riche, compte des silences plus
émouvants, de ces silences où l’on entend venir le malheur”4. André Gide
considera-o “um livro confuso e pastoso”, mas que, ao mesmo tempo,
apresenta “lineamentos de uma obra-prima”5. A Georg Brandes6, crítico
dinamarquês, parece chocante a oposição de sensualidade e de ascetismo
apresentada no romance. De qualquer forma, não se trata de uma obra
muito visitada: de 2000 a 2017, há só dois artigos consagrados ao romance
na revista de publicação anual, Année Balzacienne.
Em carta a Madame Hanska (26/10/1834), o romancista classifica a
narrativa de “composição deliciosa”, destinada a revelar “os últimos
lineamentos do coração humano”.
O romance começa a ser mencionado nessa correspondência por
volta de 1834, o que nos permite calcular uma elaboração de cerca de sete
costumes: cenas da vida privada. São Paulo: Globo, 2012. pp. 267-272.
3 “Esta obra-prima vale pela perfeição do detalhe”, (ALAIN, 1999, p.82. In: ALAIN. Louise de
tão rica, apresenta os silêncios muito comoventes, silêncios em que se ouve aproximar o
infortúnio”. (ALAIN, 1999, p.85)
5 apud RÓNAI, 2012, p.27.
6 Georg Brandes (1842-1927) crítico dinamarquês e acadêmico, influente na literatura
escandinava.
anos. Esta lenta elaboração revela, em seu caminho, mudanças de
perspectiva que podemos observar já a partir de três títulos sucessivos que
indicavam uma só personagem - Mémoires d’une jeune femme, Mémoires
d’une jeune mariée, Mémoires d’une jeune fille - até chegar ao título definitivo,
Mémoires de deux jeunes mariées.
O romance narra a trajetória de duas jovens, Louise de Chaulieu e
Renée de Maucombe, que estiveram juntas durante vários anos num
convento das carmelitas. Ficaram grandes amigas, “des soeurs d’élection”,
para usar um termo que aparece mais de uma vez no romance, e trocavam
as mais íntimas confidências sobre a vida, suas aspirações e seus
sentimentos. Inicia-se quando as duas jovens saem do convento, passam a
viver separadas, o que as leva a encetar uma correspondência para
continuar o relacionamento e a troca de idéias.
As duas jovens se preparam para a vida em sociedade o que significa
encaminhar-se para o casamento. Estamos assim diante de um tema caro a
Balzac e podemos inclusive lembrar uma afirmativa de Otto Maria
Carpeaux, que atribui a essa perspectiva a função de um divisor de águas
na trajetória da forma romanesca:
7In: CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro,
1963. vol. V
Analisa a situação com bastante lucidez, fazendo-se porta-voz da opinião
de Balzac sobre a questão:
Voilà comment les familles nobles de la Provence éludent l’infâme Code civil
du sieur de Buanaparte, qui fera mettre au couvent autant de filles nobles
qu’il en fait marier. La noblesse française est d’après le peu que j’ai entendu
dire à ce sujet, très divisée sur ces graves matières8. (p.64)9
8 “Eis como as famílias nobres da Provença sofismam o Código Civil do Sr. De Bonaparte, o qual
fará com que metam no convento tantas moças nobres quantas ele fez casarem. A nobreza
francesa, segundo o pouco que ouvi a respeito do assunto, está muito dividida sobre tão grave
matéria.” (BALZAC, 2012, p.303)
9 Todas as citações em francês são da edição do romance da Editora Gallimard: BALZAC, Honoré
de. Mémoires de deux jeunes mariées. Paris: Gallimard, 1969. E as em português da tradução da
Editora Globo: BALZAC, Honoré de. “Memórias de duas jovens esposas”. In: A comédia humana:
estudos de costumes: cenas da vida privada. São Paulo: Globo, 2012.
Aliás, num ensaio sobre O verde Henrique, de Gottfried Keller, Georg
Lukács amplia o conceito de romance de formação, com uma menção
direta ao romancista francês:
deux jeunes mariées. In: Forme et signification. Paris: José Corti, 1979.
12 “seu trabalho não vai além do de um metteur em scène” (tradução minha)
correspondência amorosa. Ele escreve uma vez ao seu irmão Don Fernand,
recebendo uma resposta curta. Muito formalmente, o marido de Renée
envia uma rápida missiva para participar o nascimento do primeiro filho
do casal, alegando que um faire-part soaria frio para participar um
acontecimento de tal monta. Marie Gaston, segundo marido de Louise,
escreve a Daniel d’Arthez, escritor seu amigo e velho conhecido do leitor
de Ilusões perdidas, para convidá-lo, de forma muito discreta, para ser seu
padrinho; duas cartas com uma finalidade prática e pontual, embora em
torno de dois acontecimentos capitais na narrativa. Na última carta, Renée
conta ao seu marido os últimos dias de Louise e sua morte. Trata-se,
portanto, essencialmente da correspondência entre as duas amigas, nas
quais Renée aparece apenas três vezes nomeada com seu nome de solteira,
Renée de Maucombe, sendo a partir daí, significativamente, Madame de
l’Estorade, aquela que assumiu de forma definitiva e completa a condição
de mulher casada. Na primeira parte, Louise escreve 26 cartas contra 16 de
Renée; na segunda, empate de quatro a quatro.
A epistológrafa mais prolixa é certamente Louise: trinta cartas
contra vinte de Renée. E se a vida da segunda é, num certo sentido, sair de
um convento para entrar noutro, a da primeira segue vias bem mais
movimentadas, pedindo mais espaço e elaboração no delineamento de sua
formação. A carta inicial é longa, expressiva, reveladora de suas inclinações
e aspirações, anunciando a vida intensa que escolheu. Louise classifica
enfaticamente sua saída do convento de “minha libertação”. Lança-se
imediata e intensamente na conquista de “ce monde fort désiré”13 (p.36),
empreitada que classifica como “minha metamorfose”.
Há que se ressaltar a liberdade e autonomia concedidas à
personagem pelo seu entorno familiar. Louise passará a ocupar os
apartamentos da avó, sua ligação familiar mais forte e a quem acredita
dever a formação de seu temperamento. Era a avó a princesa de
Vaurémont, personalidade marcante, de pensamento independente, que
antes de sua partida para o convento lhe dissera: “tu seras independante et
même libre de marier qui tu voudras”14 (p.42); o que certamente repercute
nas atitudes da jovem ao longo da vida. A mãe faz a mesma observação,
deixando-a livre, mas também sozinha para se lançar no mundo. O pai
indica claramente que não vai interferir na sua vida. É do mesmo teor a
relação que se estabelece entre ela e sua governante inglesa Miss Griffith,
em quem percebe poder mandar; comando consciente e claramente
explicitado: “J’ai vu sur le champ que je gouvernerais ma gouvernante”15
(p.50). De passagem, podemos observar o mesmo critério de comando nas
relações de Aurélia Camargo com seu tutor, tio Lemos, num romance
J’ai mesuré d’un coup d’oeil le vaste champ des dissimulations femelles.18
(p.61)
Dieu t’a marquée au front du sang des élus, tu as l’orgueil qui mène également au
ciel et à l’enfer, mais tu as trop de noblesse pour descendre! Je te connais mieux
que tu ne te connais toi-même: la passion ne sera pas chez toi ce qu’elle est chez les
femmes ordinaires. 21 (p.36)
20 “Minha querida, eis-me pronta para entrar na sociedade; por isso tratei de ser bem aloucada
antes de me ajustar a ela. Hoje de manhã, após muitos ensaios, vi-me bem e devidamente
espartilhada, calçada, apertada, penteada, vestida, enfeitada.”(p.294).
21 “Deus marcou-te na fronte com o sinal dos eleitos; tens o orgulho que tanto leva ao céu como
ao inferno, mas tens demasiada nobreza para descer! Conheço-te melhor do que tu a ti mesma: a
paixão em ti não será o que é nas mulheres comuns.” (p.278).
A votre place, j’aimerais mieux aller me promener aux îles d’Hyères en
caïque, jusqu’à ce qu’un corsaire algérien m’enlevât et me vendît au grand
seigneur; je deviendrais sultane22 (p.75)
***
22 “Em teu lugar, eu preferiria ir passear pelas ilhas de Hyères num caíque, até que um corsário
argelino me raptasse e me vendesse ao grão-turco; tornar-me-ia sultana.” (p.314)
23 “Temos como professor de espanhol um pobre refugiado forçado a esconder-se por causa da
sua participação na revolução que o duque de Angoulême foi vencer, sucesso ao qual devemos
belas festas. Embora liberal e, sem dúvida, burguês, esse homem me interessou: imaginei que ele
fora condenado à morte.” (Carta VIII) p.320
setembro e termina em 15 de dezembro, o que acontece com sua
correspondente?
A sua primeira carta é a quinta, a única em que assina o nome de
solteira, Renée de Maucombe. Depois da descrição detalhada do début de
Louise, Renée explana sua trajetória numa só missiva, em que expressa
claramente um desejo de segurança.
Renée não teve sua iniciação no mundo social parisiense e segue
uma direção de formação bastante diferente da amiga; sua formação se faz
no lar, na criação dos filhos, aprendendo a administrar com economia a
casa e a organizar o patrimônio.
Depois de acompanhar os relacionamentos de Louise e a descrição
de seus dois maridos, não se pode deixar de lado a descrição do marido de
Renée, Louis de l’Estorade que, feito prisioneiro nas guerras napoleônicas,
volta para a França a pé, através da Rússia, Polônia e Alemanha:
L’exilé, ma chère mignonne, est comme une grille, bien maigre! Il est pâle, il
a souffert, il est taciturne. A trente-sept ans [Renée tem 17 anos], il a l’air d’en
avoir cinquante. L’ébène de ses ex-beaux cheveux de jeune homme est
mélangé de blanc comme l’aile d’une alouette. Ses beaux yeux bleus sont
caves; il est un peu sourd, ce qui le fait ressembler au chevalier de la Triste
Figure;24 (p.65)
24 “O exilado, querida mimosa, é como a grade, bem magro! É pálido, sofreu, é taciturno. Aos
trinta e sete anos, parece ter cinqüenta. O ébano dos seus ex-bonitos cabelos de rapaz está
mesclado de branco como a asa de uma cotovia. Seus belos olhos azuis são encovados; é um
pouco surdo, o que o faz parecer-se com o cavaleiro da Triste Figura;” (p.304)
25 “; não obstante consenti graciosamente em me tornar sra. de l’Estorade, em me deixar dotar
com duzentos e cinqüenta mil libras, mas com a condição expressa de reformar o bastião e de
Uma boa renda e as rédeas da propriedade são suas condições, o que
ela deixa bem claro para o futuro sogro. Em toda a Comédia humana, não há
praticamente personagem que não tenha sua renda declarada, com maior
precisão do que junto ao fisco. A personagem que opta pelo casamento de
conveniência não o faz tão ingenuamente quanto seria de se supor,
considerando-se sua saída recente do convento. Arlette Michel26, crítica
que estuda especialmente o tema do casamento em Balzac, pergunta-se por
qual educação estão preparadas essas duas jovens, lançadas na vida aos 17
anos, quase todos passados num convento. Cabe a pergunta formulada por
ela, mas parece-me interessante colocá-la de outra perspectiva: como esta
personagem diretamente saída de um convento consegue se posicionar
com uma visão tão arguta da sociedade francesa da Restauração, com
conhecimento inclusive sobre o Código civil de Napoleão? A lucidez e o
senso prático de Renée sobrepõem-se ao perfil de moça que saiu do
convento, carreando ideias que entenderemos melhor se as atribuirmos ao
autor.
Sua formação dar-se-á quanto à sua conduta de mulher casada que
orienta o marido na vida política e diplomática, ditada em grande parte
pelas ambições de projeção social que tem em relação à sua família. Como
se pode ver, uma personagem muito balzaquiana.
Já assinando Madame de l’Estorade (Carta IX), afirma que “Ma vie
est determinée. La certitude d’aller dans un chemin tracé convient
également à mon esprit et à mon caractère.”27 (p.85)
E também as razões que a levam ao casamento não coincidem com
as de Louise: “J’ai mieux aimer être mariée à M. de L’Estorade que de
retourner au couvent. Voilà qui est clair.”28 (p.103), dirá mais tarde.
Confessando-se resignada, declara que vai tirar o melhor partido possível
da situação. E a descrição do seu casamento, bastante objetiva e pouco
sentimental é, sobretudo, uma declaração prática e objetiva de posses, a
gosto de muitas personagens balzaquianas: empregados satisfeitos,
cavalos ingleses, coupé, tílburi, um sogro que, para agradá-la, deixou de
lado a avareza e passou a se vestir segundo os costumes contemporâneos.
Tudo já estava previsto e sem expectativas de mudanças: “Je sais déjà par
avance l’histoire de ma vie”29 (p.67). Muito similar à forma como Louise se
refere à vida de uma carmelita: “Cette vie monotone où chaque heure
fazer um parque. Exigi formalmente de meu pai que me concedesse um filete de água, que poderá
vir de Maucombe até aqui.” (p.304)
26 Ver: MICHEL, Arlette. Introduction. In: Mémoires de deux jeunes mariées. Paris: Garnier-
Adieu donc pour moi du moins, les romans et les situations bizarres dont
nous nous faisons les heroïnes.32 (p.67)
30 “Aquela vida monótona em que cada hora traz um dever, uma prece, um trabalho, tão
exatamente os mesmos, que em toda parte se pode dizer o que uma carmelita faz a tal ou qual
hora do dia ou da noite” (p.276)
31 “como uma estrada real num dia sem sol” (p.373). Há uma incorreção na tradução que diz: “de
sol”
32 “Adeus, pois, pelo menos para mim, aos romances e às situações estranhas de que no
[...] il faut, mon cher, que vous ayez, suivant les idées de Leroux, un souvenir
d’existence antérieure où vous auriez été femme et mère.34 (Balzac, 1969,
p.330)
34“[...] é preciso, meu caro, que você tenha, segundo as ideias de Leroux, uma lembrança de vidas
passadas em que você teria sido mulher e mãe.” (tradução minha)
A mesma George Sand acrescenta outro comentário para o qual
devemos atentar, considerando-se o amplo espectro dos temas e assuntos
da Comédia Humana:
***
35“No fim das contas, o senhor sabe tantas coisas que ninguém sabe” (tradução minha)
36“Das duas eu sou um pouco a Razão, como tu és a Imaginação; eu sou o grave Dever, como tu
és o louco Amor. Esse contraste de espírito não existia senão para nós duas, à sorte aprouve
continuá-lo nos nossos destinos.” (p.432).
opção entre casamento e paixão, maternidade e amor: “la loi naturelle et le
code sont ennemis”37 (p.129)
Há momentos em que o confronto das duas posições é explicitado:
Entre nous deux qui a tort, qui a raison? Peut-être avons nous également tort
et raison toutes deux, et peut-être la société nous vend-elle fort cher nos
dentelles, nos titres, nos enfants! 38 (p.131)
Mesmo no auge da alegria, que é difícil avaliar até que ponto é real
ou aparente, Renée deixa escapar gritos de protesto contra a necessidade
de silenciar o “instinto das coisas sublimes” (carta IX). Não consegue
deixar de lado a comparação com a vida da amiga e a ostentar as vantagens
da sua vida em relação à de Louise; e esta, por sua vez, vangloria-se
incessantemente de sua intensa vida amorosa.
A argumentação de Renée reveste-se ainda de um caráter filosófico:
Por que a sociedade torna por lei suprema sacrificar a mulher à família, criando por essa forma,
necessariamente, uma luta surda no seio do casamento?” (Carta XX). (p.371)
vez; Renée tem mais dois filhos, seu marido ascende na política. O segundo
marido de Louise é poeta e mais moço do que ela. Consumida de ciúmes,
numa outra atitude tresloucada, ela apanha frio à noite, acaba doente e
morre. Por que o ritmo agora desabrido? A questão fundamental já fora
satisfatoriamente colocada: o embate entre a natureza e o código social, o
amor e o casamento. A narrativa parte dessas duas formações diferentes
que permitem ao romancista discutir as questões que o interessavam.
A paixão desenfreada de Louise insere-se na formação
acentuadamente romântica do primeiro Balzac e estabelece um contraste
com as preocupações biológicas, fisiológicas que produzem quase
completo recalque do sonho e do emocional.
Marcus Mazzari, (2010) em seu estudo sobre as várias definições do
romance de formação, mostra que Morgenstern leva em consideração a
temática do romance e também “sua função social”.
Se o romance de formação deve, numa certa medida, repercutir na
“formação do leitor”, qual a posição de Balzac diante dessas duas
trajetórias tão diferentes?
No desenlace, a partidária do amor paixão sucumbe depois de dois
amores que, por razões diferentes, desembocam na morte e a partidária do
casamento alcança seus objetivos de estruturação social da família. Parece
ser esta a opção que retumba vitoriosa.
A primeira carta é de Louise, a última é de Renée, como a confirmar
a vitória da sua opção. Qual o sentido oculto do grito pungente do final do
romance em que face à amiga morta, desesperada, pede para ver os filhos,
como se fossem uma tábua de salvação?
As declarações de Balzac paralelas ao romance não parecem
endossar a opção vitoriosa de Renée. Em carta de março de 1835 a Madame
Hanska, quando a obra ainda projetava-se em torno de uma única
personagem, pronuncia-se com ironia:
J’ai à faire les Mémoires d’une jeune mariée, un ouvrage en filigrane qui sera
une merveille pour ces petites femmes que les ailes de Séraphita trouveront
incompréhensives.40 (BALZAC, 1969, p.318)
40“Vou escrever as Memórias de uma jovem esposa, um trabalho em filigrana que será uma
maravilha para as mulherzinhas que acharam incompreensíveis as asas de Sérafita.” (tradução
minha)
J’admire celle qui procrée, mais j’adore [sic] celle qui meurt d’amour. Voilà
tout ce que vous avez prouvé et c’est plus que vous n’avez voulu.41 (Balzac,
1969, p.330)
Soyez tranquille, nous sommes du même avis, j’aimerais mieux être tué par
Louise que de vivre longtemps avec Renée42. (Balzac, p. 321)
41 “Admiro a que procria, mas adoro a que morre de amor. Eis o que o senhor provou e é mais do
que o que o senhor tinha querido.” (tradução minha)
42 “Fique tranqüila, somos da mesma opinião, eu preferiria ser morto por Louise do que viver
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Este artigo explora a aclimatação do paradigma do Bildungsroman inglês;
Bildungsroman no âmbito da tradição literária inglesa, Charles Dickens;
discutindo suas ressonâncias no romance Grandes esperanças Grandes esperanças;
de Charles Dickens. Argumenta-se que as decisivas romance e sociedade.
mudanças decorrentes dos processos de industrialização e
urbanização, assim como a ascensão das classes médias,
imprimem traços específicos à narrativa da trajetória do
herói, a qual encarna as contradições de seu tempo.
ABSTRACT KEYWORDS :
This article explores the acclimatisation of the paradigm of the English Bildungsroman;
Bildungsroman in the English literary tradition, discussing its Charles Dickens;
resonances in the novel Great Expectations by Charles Dickens. It Great Expectations;
argues that the decisive changes resulting from the process of Novel and society.
industrialisation and urbanisation, as well as the rise of the middle
classes, imprints specific features in the narrative of the hero’s
trajectory, which embodies the contradictions of its own time.
1
Professora Titular de Literatura Inglesa e Comparada (DLM). Contato: [email protected]
I. Introdução
Foi repentinamente arrebatado de nós aquele que jovens e velhos, onde quer
que a língua inglesa seja falada, se acostumaram a considerar como um
amigo pessoal. Charles Dickens não vive mais. A perda de tal homem é um
acontecimento que faz as expressões comuns de pesar parecerem frias e
convencionais. Ela será sentida por milhões como nada menos que um luto
pessoal.2
Suponho que, por pelo menos vinte e cinco anos de sua vida, não houve um
lar de língua inglesa no mundo [...] no qual seu nome não fosse tão familiar
quanto o de qualquer conhecido e no qual uma alusão às personagens
criadas por ele deixasse de ser compreendida.3
2 “One whom young and old, wherever the English language is spoken, have been accustomed
to regard as a personal friend is suddenly taken away from among us. Charles Dickens is no
more. The loss of such a man is an event which makes ordinary expressions of regret seem cold
and conventional. It will be felt by millions as nothing less than a personal bereavement.” The
Times, Friday, June 10, 1870. Quando não indicado de outro modo, todas as traduções são minhas.
3 “I suppose that for at least five-and-twenty years of his life, there was not an English-speaking
household in the world […] where his name was not as familiar as that of any personal
Dickens iniciou sua carreira literária com Sketches by “Boz” (1836)
mas foi The Pickwick Papers, publicado em dezenove fascículos entre março
de 1836 e outubro de 1837, que não só o tornou popular, mas também lhe
valeu o reconhecimento como escritor. Graças à produção seriada, que lhe
permitia acompanhar a reação do público leitor e, se necessário, introduzir
modificações no enredo ou no desenvolvimento das personagens, essas
primeiras obras já traziam as marcas que fariam sua fama: a comicidade e
a idiossincrasia de suas criaturas, humor, melodrama, certo viés satírico e
crítica social. Por trás do otimismo e do enaltecimento da inocência que
parecem sobressair em sua produção, desenha-se um sombrio cenário
vitoriano, no qual se entreveem as carências, as aflições e as iniquidades
que caracterizaram sua época.
Charles Dickens fez parte de uma nova geração de romancistas que
surgiu no final da década de 18404 e iria responder, cada um à sua maneira,
a uma série de transformações que já vinham ocorrendo na Inglaterra
desde o final do século XVIII e geraram um “novo tipo de consciência”,
decorrente de um sentimento generalizado de crise. Na esteira da
Revolução Industrial, o processo de industrialização e a crescente
urbanização, resultado da migração das zonas rurais para o meio urbano e
do consequente crescimento das cidades,5 introduziram mudanças
substanciais no modo de vida inglês. Se, por um lado, inúmeras
instituições de uma cultura urbana foram criadas naqueles anos, como
music-halls, parques públicos, jornais, museus e bibliotecas, por outro lado
laços comunitários se romperam e a cultura tradicional do povo inglês se
desintegrou, dando lugar a uma nova realidade e a um novo tipo de
experiência. Em uma sociedade estratificada e hierárquica, eclodiu ainda
uma luta pela democracia, que reivindicava direitos civis e políticos para
as “classes médias”, ao mesmo tempo que um movimento operário
conhecido por Cartismo [Chartism] clamava por uma reforma parlamentar
que incluísse o sufrágio universal masculino; o voto secreto em cédula;
eleições anuais; a igualdade de direitos eleitorais; a eleição de
acquaintance, and where an allusion to characters of his creating could fail to be understood.” In:
George Gissing. Charles Dickens. A Critical Study. New York: Dodd, Mead and Company, 1898,
p. 305.
4 As observações e comentários a seguir reproduzem os argumentos de Raymond Williams, na
Introdução a The English Novel from Dickens to Lawrence (London: The Hogarth Press, 1987). Dessa
geração, fizeram parte as irmãs Brontë, William M. Thackeray, Elizabeth Gaskell, entre alguns
outros.
5 A Inglaterra assistiu, ao longo dos séculos XVIII e XIX, à expansão das cidades industriais ao
norte, a um significativo aumento populacional (de cinco milhões de habitantes em 1700 para
quase nove milhões, por volta de 1800), e a um crescimento expressivo de Londres, que contava
com quase um milhão de habitantes no início do século XIX e havia se tornado a capital mundial
em população e riqueza.
representantes da classe operária no parlamento; a remuneração para os
parlamentares.
Longe de alterar apenas as formas externas do cotidiano, essas
grandes mudanças sociais e históricas modificaram também sentimentos e
experiências interiores, que o romance irá explorar ao figurar as crises de
seu próprio presente. Emergia, assim, uma nova “estrutura de
sentimento”, nos termos de Raymond Williams, da qual alguns romances
publicados entre 1847 e 1848 foram altamente representativos. Segundo o
crítico, aqueles dois anos testemunharam não apenas o surgimento
daquela geração de romancistas que, graças à consciência das mudanças
na sociedade inglesa, irá buscar caminhos originais, desafiantes e
inovadores, mas também a transformação do romance na “principal forma
da literatura inglesa”. Compelidos pela necessidade de compreender as
alterações em seus modos de vida, esses romances se voltarão para a
sondagem da substância e do sentido de comunidade e da consciência
histórica das crises de seu presente imediato. No contexto da transição de
uma sociedade predominantemente rural para uma sociedade
predominantemente urbana, as relações entre experiência e comunidade
tornaram-se cada vez menos transparentes e mais complexas, assim como
as supostas verdades “universais” foram se mostrando cada vez mais
particulares. Para aquela geração, as pressões e os distúrbios não
constituíram uma fôrma, que gerou uma forma, mas foram muitas vezes
vividos como uma crise da experiência, sugerindo-lhes novas direções
para o romance, o qual irá se defrontar com um problema de ponto de vista
e de uma nova consciência histórica e incorporar uma percepção da
sociedade não somente como “a portadora mas como a criadora ativa, a
destruidora ativa, dos valores das pessoas e das relações”.6
Apesar do preconceito e do desprestígio que ainda rondavam o
romance, como gênero literário e obra de arte, sua constante consolidação
ao longo do século XIX fará dessa forma literária tão aberta o instrumento
ideal para responder aos fatos de seu tempo e para lidar com esses novos
sentimentos e dinâmicas, ao figurar de modo cada vez mais patente a
história da vida contemporânea. A vida em sociedade apresentava um
nível de complexidade, desarmonia, anonimato, de diversidade de valores
que se opunha ao sentimento de comunidade que presidia, pelo menos
teoricamente, o cotidiano dos habitantes da zona rural. O “colapso” de
uma cultura tradicional ainda ligada à comunidade rural – modelo da
Inglaterra pelo menos até o século XVIII – foi acompanhado do surgimento
de uma “cultura comercial”, ligada à vida urbana, com a manutenção de
uma “cultura da minoria”, de traços mais aristocráticos. Dickens vai trilhar
Duas nações, entre as quais não há relação ou solidariedade; que são tão
ignorantes dos hábitos, pensamentos e sentimentos uma da outra como se
morassem em zonas diferentes ou fossem habitantes de planetas diferentes;
que têm uma criação diferente, se alimentam de comida diferente, se
orientam por regras diferentes de boas maneiras e não são governadas pelas
mesmas leis. “Você fala de —” disse Egremont, hesitante. “OS RICOS E OS
POBRES”.8
7 Thomas Carlyle. Chartism. London: James Fraser, 1840; Past and Present. London: Chapman and
Hall, 1843.
8 “Two nations; between whom there is no intercourse and no sympathy; who are as ignorant of
each other’s habits, thoughts, and feelings, as if they were dwellers in different zones, or
inhabitants of different planets; who are formed by a different breeding, are fed by a different
food, are ordered by different manners, and are not governed by the same laws. “You speak of
—” said Egremont, hesitantly. “THE RICH AND THE POOR.” In: Benjamin Disraeli. Sybil, or The
Two Nations [1845]. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 66.
de criaturas. A cidade é a nova realidade que o romancista introduz como
cenário e matéria e que demanda, para sua apreensão, dada a diversidade
do objeto e do ambiente físico, um novo tipo de observação e método, que
a revela ao mesmo tempo como fato social e paisagem humana.
Como repórter parlamentar e atento observador da vida londrina, a
qual relatou em vinhetas reunidas em Sketches by Boz (1836), Dickens teve
contato direto com os problemas da metrópole, graças ao hábito de
percorrer suas ruas e perambular tanto pelas regiões mais abastadas
quanto as mais miseráveis. Em sua longa carreira de escritor – além de
autor de contos e quinze romances (sendo o último inacabado), foi
fundador e editor de duas revistas semanais (Household Words e All the Year
Round) –, atuou como um comentarista social, criticando os males e as
injustiças da sociedade vitoriana, e como defensor de reformas nos
sistemas legal e educacional, e nas condições de moradia dos pobres, entre
outras.
Esses temas, sobretudo os maus-tratos de crianças, a injusta
estrutura de classes e a crueldade do Governo e da Lei, atravessam a trama
de Grandes esperanças [Great Expectations, 1861],9 um romance da última fase
de Dickens, no qual o enredo paradigmático do Bildungsroman – que
acompanha os anos de formação do protagonista desde a infância até a
maturidade, isto é, o caminho da inocência à experiência, com suas lutas,
crises e iluminações – ganha tons mais sombrios, na medida em que essa é
uma narrativa não de realização e de triunfo, como David Copperfield (1850),
mas de perda e vazio. Certa jovialidade, alegria e otimismo que
transpareciam na obra de juventude dão lugar à desilusão e ao sentimento
de que as promessas de mobilidade social em uma economia capitalista
não iriam necessariamente se cumprir. O jogo produzido pelo duplo
sentido de “expectations”, termo usado hoje para se referir a “uma forte
crença de que algo irá acontecer” [expectativa] mas que remete também ao
significado arcaico de “perspectivas de herança”,10 acaba por lançar uma
luz irônica sobre a trajetória do herói do romance que, em seu processo de
amadurecimento, verá suas apostas malograrem e suas “grandes
esperanças” se provarem “grandes ilusões”. À medida que Pip se dá conta
de que terá de conformar seus sonhos, expectativas e esperanças às
possibilidades (limitadas) que a vida lhe oferece, essa é a versão
dickensiana das Ilusões Perdidas.
9 Charles Dickens. Grandes esperanças. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2012. [Great Expectations. New York: W.W. Norton & Company, 1999.]
Publicado em fascículos no periódico All the Year Round entre dezembro de 1860 e agosto de 1861
e em livro em 1861. As citações do romance serão indicadas por GE, seguido do número da página
da edição brasileira.
10 Expectation: 1. a strong belief that something will happen or be the case; 2. one’s prospects of
Quando a igreja se endireitou – pois ele [o homem] foi tão repentino e forte
que a fez virar de ponta-cabeça diante de mim, e vi o campanário debaixo de
meus pés – quando a igreja se endireitou, como eu dizia, dei por mim
sentado numa lápide alta, tremendo, enquanto ele devorava o pão com
avidez. (GE, p.35)
12No início da segunda fase, o narrador acentua mais uma vez a distância que o separa o passado
e o momento da escrita: “Nós, britânicos, naquela época tínhamos certeza de que constituía
traição duvidar que tudo que havia de nosso era sempre o melhor: [...]” (GE, p.238).
ambição de tornar-se um cavalheiro, ele apenas mergulha mais fundo no
esnobismo e na conduta egoísta e perdulária que o leva a contrair dívidas
cada vez maiores. Emblemático, nesse período, é seu absoluto
esquecimento e afastamento do cunhado Joe, seu grande companheiro e
amigo durante a infância, cuja visita certa feita lhe causa apenas um
profundo desconforto.
De longa história na tradição inglesa, o conceito de gentility13 esteve
vinculado ao nascimento nobre, à distinção social e à riqueza, assim como
aos valores de uma elite que gozava de status e dos privilégios do ócio.
Embora essencialmente social, tratava-se de uma categoria que envolvia
ainda noções como civilidade, refinamento das maneiras e elevação moral.
Durante a Era Vitoriana, período de acomodação social e política entre a
aristocracia e as classes médias, a redefinição do conceito tornou-se objeto
de debate, em meio às incertezas entre os vitorianos a respeito do
significado de gentlemanliness em uma sociedade mais aberta, na qual a
mobilidade e o enriquecimento passaram a possibilitar a muitos aspirar a
esse status. Ideais de respeitabilidade, a centralidade da ideia de
cavalheiro, a necessidade de autodefinição desses setores médios, a relação
entre gentility e virtude, o senso de responsabilidade inerente à condição
de cavalheiro serão todos temas que, de diferentes perspectivas,
romancistas como William M. Thackeray, Anthony Trollope e Dickens irão
abordar.14
Como Grandes esperanças deixa evidente, para Dickens essa é uma
questão problemática pela tensão inerente entre status herdado e status
adquirido e por sua relação com o dinheiro, problema dramatizado na
trajetória do protagonista do romance. Do mesmo modo que para os
aristocratas, a fortuna não chega às mãos de Pip por mérito ou esforço
próprio; a crença de que ela é suficiente para superar a origem humilde e
conceder-lhe o desejo de ser cavalheiro o levará a operar uma cisão entre a
superioridade social e a moral que a condição de gentility implica. A
ascensão de Pip se dà às custas de pequenas traições e atos de deslealdade
e, ironicamente, torna-se possível porque “suas grandes esperanças, se um
dia forem realizadas, descobre-se que existem por causa de uma realidade
sórdida, oculta. O real não é a gentility da vida de Pip, mas os navios-prisão
e o assassinato e os ratos e a deterioração dos armazéns do romance”.15 Por
Review Books, 2008, p. 211 [great expectations which, if ever they are realized, are found to exist
by reason of a sordid, hidden reality. The real thing is not the gentility of Pip’s life but the hulks
and the muder and the rats and decay in the cellarage of the novel.]
outro lado, no empenho dele por aperfeiçoamento pessoal, desde as lições
de Biddy e as aulas na escolinha da aldeia, apreende-se a determinação de
superar as carências decorrentes de suas circunstâncias. Emaranhado no
mito do self-made man, tão caro a uma sociedade na qual a consciência de
classe só se acentua, sobrevive mais esse resquício do mundo aristocrático
– uma ambivalência que Pip encarna, em sua busca por um sinal de
distinção, e que Dickens expõe ao proporcionar ao herói o bônus do cultivo
pessoal sem seu ônus.
A segunda fase da trajetória do herói se centra sobretudo no seu
processo de aprendizagem, com a expansão de seus horizontes
geográficos, sociais e humanos. Com Matthew e Herbert Pocket, ele
começa a obter a educação considerada adequada a um cavalheiro.
Contudo, sem objetivos intelectuais, culturais ou espirituais, passa a viver
uma vida fútil e sem rumo, parecendo julgar que, para ser um cavalheiro,
bastam sinais exteriores, como roupas de boa qualidade, boas maneiras e
o sotaque dos bem-nascidos. Nesse período, aprende também a esbanjar e,
com a maioridade e o poder de decisão sobre o uso do dinheiro, acaba por
contrair dívidas. G. Robert Stange pondera que Pip “ascende socialmente,
porém, como age por cálculo e não por caridade instintiva, seus valores
morais deterioram à medida que seu traquejo social melhora”.16
O que pareceria ser um caminho largo e desimpedido para a
realização de suas aspirações, no entanto, experimenta uma inflexão
quando a verdade da origem de sua fortuna vem à tona. Em uma
tempestuosa noite londrina, seu destino muda dramaticamente com a
volta do condenado que o menino Pip havia encontrado no charco e a
revelação de que Abel Magwitch, e não a sra. Havisham, é o real
responsável pelas “esperanças” do protagonista. Recém chegado da
Austrália, para onde havia sido enviado com a exigência de nunca mais
retornar à Inglaterra, sob pena de morte, Magwitch desafia a lei e confronta
o perigo para procurar seu protegido e dar-se a conhecer como seu
verdadeiro benfeitor:
[...] fiz um cavalheiro de ti! Fui eu que fez isso! Eu jurei naquele tempo que
se algum dia eu ganhasse um guinéu, que fosse, esse guinéu havia de ser teu.
Jurei adespois, que se algum dia eu fizesse especulação e enricasse, tu havias
de enricar também. Vivi uma vida dura, pra que tu vivesses na moleza; me
matei de trabalhar pra tu não precisar trabalhar. [...]
Olha aqui, Pip. Eu sou teu segundo pai. Tu é meu filho – és mais pra mim
que qualquer filho. Eu guardei dinheiro só pra que pudesse gastar. [...] Eu te
16G. Robert Stange. Expectations Well Lost: Dickens’s Fable for his Time. In: Kettle, Arnold (ed.).
The Nineteenth-Century Novel. Critical Essays and Documents. London: Heinemann, 1976, p. 127.
[He rises in society, but since he acts through calculation rather than through instinctive charity,
his moral values deteriorate as his social graces improve.]
vi muitas vez, que nem que te vi naquele charco, no meio da neblina. ‘Que
Deus me mate mortinho!’, eu dizia todas as vez – e saía da cabana pra dizer
isso a céu aberto –, ‘se, adespois que eu ganhar minha liberdade e ganhar
dinheiro, eu não fizer daquele menino um cavalheiro!’ E foi o que eu fiz. [...]
(GE, p. 439)
Eu dizia pros meus botão: ‘Se eu não sou um cavalheiro, e se ainda não tenho
estudo, eu sou o dono de um. Vosmicês todos têm gado e terra; qual de
vosmicês tem um cavalheiro bem criado em Londres?’. (GE, p. 441)
Mais uma vez, ele tomou-me pelas duas mãos e encarou-me com um ar de
quem admira sua propriedade: [...] (GE, p. 4570)
21Franco Moretti. The Way of the World. The Bildungsroman in European Culture. Trans. Albert
Sbragia. London: Verso, 2000, p. 182. [the heroes’ childhood, if not always their birth, is granted
an emblematic and lasting prominence.]
Fui instruído a comunicar-lhe”, disse o sr. Jaggers, apontando o dedo para
mim, de lado, “que ele vai herdar uma bela propriedade. Ademais, o atual
dono da propriedade em questão deseja que ele seja imediatamente retirado
de suas atuais circunstâncias e deste lugar, e passe a ser criado como um
cavalheiro – em suma, como um jovem com grandes esperanças. (GE, p. 206)
É verdade que Pip ascende através das divisões de classe, mas igualá-lo [...]
a jovens como Julien Sorel, que sobem pela garra e talento, dá uma ideia
errada. A palavra “esperanças” é explícita e apropriada; no círculo de
cavalheiros em que Pip foi posto aguarda-se e aceita-se o destino. Dinheiro
é o que conta, mas ganhar dinheiro é vulgar; em primeiro lugar, um jovem
distinto deve possuir riqueza, ou obtê-la passivamente. Esta é a principal
razão para as fábulas recorrentes na ficção setecentista e oitocentista de
identidades descobertas e testamentos ocultos – recebe-se a herança, mas na
verdade se a possuía durante todo o tempo.24
of California Press, 1967, p. 137-138. [“It is true that Pip rises through class lines, but to equate
him … with young men like Julien Sorel, who drive upward on nerve and talent is quite
misleading. The word ‘expectations’ is explicit and appropriate; in the circle of gentility where
Pip has been placed one waits for one’s destiny and accepts it. Money is what counts, but making
money is vulgar; a genteel young man must have wealth to begin with or acquire it passively.
This is one reason for the recurrent fables in eighteenth- and nineteenth-century fiction of
discovered identities and suppressed wills – one gets the inheritance, but actually one had it all
along.”]
e representa a síntese possível entre o mundo e o processo de formação do
indivíduo. As convenções do conto de fadas são minadas pelo recurso ao
esvaziamento, à negação, o que injeta no romance uma boa dose de
realismo. Se Pip confunde o papel da sra. Havisham com o de fada-
madrinha, ao leitor não escapa que se trata de uma figura decadente que,
por causa de desilusões na sua vida pessoal e amorosa, congelou o tempo,
metaforizado no seu vestido de noiva em farrapos, nos relógios da casa
paralisados. A fortuna de Pip, longe de ser resultado de um passe de
mágica, ou de um direito de nascença, tangencia o mundo do crime e se
torna uma ameaça e um risco, ao levar seu beneficiário a um passo do
abismo. Diferentemente de Tom Jones, David Copperfield ou mesmo Jane
Eyre, portanto, que, superados os reveses, são restituídos a seu lugar de
direito na ordem social, Pip, desfeitas as quimeras, liberta-se das
presunções aristocráticas e aceita o que a sociedade pode lhe oferecer.
Torna-se um homem médio, um representante de uma classe média, em
uma sociedade móvel e cheia de fissuras e contradições.
Paulo Bezerra
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O adolescente, de Doistoiévski, estrutura-se sobre a ideia de Formação;
formação e educação, o que é incomum na vasta obra do Dostoiéviski;
escritor. Neste artigo é analisada a trajetória de formação do O adolescente.
personagem que dá título ao romance em suas relações
familiares, afetivas e sociais.
ABSTRACT KEYWORDS:
The adolescent, by Dostoevsky, is structured on the idea of formation Formation;
and education, which is unusual within the writer’s vast work. In Dostoevsky;
this article, the trajectory of formation of the character that entitles The adolescente.
the novel is analyzed concerning its familiar, affective and social
relationships.
N a década de 1860, período em que escreveu Crime e castigo e O
idiota, Dostoiévski acalentou um projeto de romance centrado em um
herói capaz de encarnar simultaneamente características da personagem
de romance e da personagem da tradição hagiográfica. Entre 1869 e 1870
chegou até a conceber o título para esse romance: A hagiografia de um
grande pecador (Jitiô vielíkovo griéchnika). Tratava-se de algo deveras
singular: a imagem do herói fugia à costumeira objetividade, ao dado
meramente biográfico e psicológico, concentrava-se na superfície de sua
consciência. A ênfase da intenção recaía sobre a imagem ética da
personagem, cuja individualidade se revelaria na busca de sua essência
humana e na conquista de uma posição na vida. O dado hagiográfico era
de cunho ontológico, razão pela qual a narrativa deveria partir da tenra
infância do herói, representando cada fase da vida com suas devidas
peculiaridades: amabilidade e veracidade dos sentimentos na infância;
sensualidade, presunção, inexperiência e orgulho na adolescência; beleza
dos sentimentos, vaidade e falta de confiança em si mesmo na fase
juvenil; e ecletismo dos sentimentos, autoestima, descobrimento de seu
valor e dos seus objetivos, franqueza e amplitude de ideias na mocidade.
Em suma, muitos dos ingredientes do romance de formação da tradição
do Bildungsroman alemão. Dostoiévski não realizou esse projeto, mas
aproveitou algumas de suas ideias em seus romances, mas foi em O
adolescente que ele as tomou como modo de estruturação da narrativa, que
representou uma guinada na forma do seu romance. Por seu sentido e
sua configuração, a adolescência é uma questão de geração, e Dostoiévski
a incluiu em seu projeto de construção de O adolescente.
A ideia de geração
3 Idem, ibidem, p. 9.
4 Idem, ibidem, p. 11.
5 Idem, ibidem, p. 22,
6 TCHIRKÓV, Nikolai Maksímovitch. O estilo de Dostoiévski (O stile Dostoevskovo). Moscou: Ed.
A família casual
Desde meus tempos de estudo nas classes inferiores do colégio, assim que
algum colega me ultrapassava em ciências, em respostas penetrantes ou em
força física, imediatamente eu deixava de falar e andar com ele. Não que o
detestasse ou desejasse seu fracasso; simplesmente me afastava porque esse
é o meu caráter.19
(...) e quanto ao fato de não teres nome, hoje em dia não se precisa de
nada disso: é só meteres a mão na bolada que vais crescer, crescer, e
dentro de dez anos serás tamanho milionário que deixarás toda a
Rússia em polvorosa; então, para que precisarias de nome? Na Áustria
pode-se comprar um título de barão.28
errantes somos antes nós dois e todos os que aqui estão, e não esse
velho, com quem nós dois ainda temos o que aprender, porque ele tem
algo de sólido (grifo meu – P. B.) na vida, ao passo que nós,
independentemente de quantos somos, não temos nada de sólido na
vida.52
Paulo Bezerra é professor livre-docente pela FFLCH-USP, atuou como professor de teoria da
literatura na UERJ, de língua e literatura russa na USP e de literatura brasileira e teoria da
literatura na UFF. Já traduziu dezenas de obras diretamente do russo para o português,
incluindo títulos de diversos escritores, como Dostoiévski, Gógol e Púshkin, e do teórico
Mikhail Bakhtin, entre outros autores.
“PARA GOVERNAR A FRANÇA, É PRE-
CISO MÃO DE FERRO”: AS IDEIAS FEITAS
NO ROMANCE DE FLAUBERT
Alexandre Bebiano
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Neste artigo procuramos comentar alguns dos mais importan- A Educação
tes recursos formais empregados por Gustave Flaubert n’A Edu- Sentimental;
cação Sentimental: uso de herói negativo, de um enredo frouxo, Ideias feitas;
do indireto livre e, especialmente, da ideia feita. Um dos objeti- Romance de
vos do artigo é discutir a distância que separa A Educação Senti- aprendizagem;
mental, que narra a história de um jovem na capital francesa, dos Romantismo;
romances escritos por seus antecessores românticos. Desilusão.
ABSTRACT KEYWORDS:
In this article we sought to comment on some of the most important Sentimental Educa-
formal resources used in Gustave Flaubert’s Sentimental Education: tion;
the use of a negative hero, a weak plot, free indirect speech and, Pre-conceived ideas;
especially, the pre-conceived idea. One of the aims of this article is to Apprenticeship novel;
discuss the distance that separates the Sentimental Education, which Romanticism;
narrates a story of a young man in the French capital, from other Disillusion.
novels written by his romantic predecessors.
1. Introdução
Não encontro nesse livro nem verdade nem grandeza. Quanto ao estilo, ele
me parece intencionalmente incorreto e baixo. É uma maneira de bajular o
popular. (…) Há explicações enormes sobre coisas fora do assunto, e nada
sobre aquelas indispensáveis ao assunto. Mas, em compensação, sermões
para dizer que o sufrágio universal é uma coisa muito bonita, que a instrução
às massas é necessária; isso é repetido à saciedade. Decididamente o livro,
malgrado os belos trechos, e eles são raros, é infantil. (…) ele [Hugo] resume
a corrente, o conjunto das ideias banais de sua época — e com uma tal
persistência que esquece a sua obra, e a sua arte. Eis aí minha opinião (…).
Guardo-a para mim, bem entendido. Tudo o que pega uma pena deve ter
muito reconhecimento a Hugo para se permitir uma crítica. Mas acredito,
pelo que vejo, que os deuses envelhecem. Que descuido com a beleza!1
literatura, mas não é permitido pintar de maneira tão falsa a sociedade quando se é
a intenção artística e passa a resumir agora o conjunto das ideias feitas de
sua época. Mas o escritor acrescenta: “era um tema muito belo”.
Alguns anos depois, Flaubert, ele próprio, decide escrever um
romance histórico sobre um jovem vivendo em Paris. E podemos então nos
perguntar: como fará o escritor para, no momento em que escreve seu
romance parisience, afastar-se dos equívocos que teria cometido o autor
dos Miseráveis? Para compor seu romance sobre a história francesa, com
suas lutas e reviravoltas políticas, como fará Flaubert para criticar as ideias
banais de seu tempo? Enfim, que outro tipo de romance o escritor poderia
inventar para abordar esse “tema muito belo”, o romance de um jovem que
vive as barricadas e as revoltas na capital francesa? Estão aí expressas as
dúvidas que afligem Flaubert enquanto escreve a Educação sentimental:
“Que forma é preciso usar para exprimir às vezes sua opinião sobre as
coisas do mundo, sem risco de ser tomado, mais tarde, por um imbecil?”3.
Nesse artigo vamos descrever alguns dos recursos formais que foram
usados pelo escritor (herói negativo, enredo frouxo, estilo indireto livre e,
especialmente, a ironia com a ideia feita), para distanciar seu romance
daqueles escritos por seus antecessores românticos.
2. História de um rapaz
sans risquer de passer, plus tard, pour un imbécile ? ». Carta a George Sand de 18.12.1867
(Correspondance, ed. cit, p. 523, tradução nossa)
4 A Educação sentimental, tradução e notas de Rosa Freire d'Aguiar, São Paulo, Cia. das Letras,
Penguin Classics Companhia das Letras, 2017, p. 32; L’Éducation sentimentale, texte établi et annoté
par A. Thibaudet et R. Dumesnil, Paris: Gallimard [Pléiade], 1952, p. 34. Todas as citações do
romance se referem a essas edições.
burguês”5, e “suportava a ociosidade de sua inteligência e a inércia de seu
coração”.6
Essas são a situação inicial e final da história. Mas quais seriam os
elementos capazes de desenvolver esse enredo? Elementos que
poderíamos chamar de motivos dinâmicos, pois caberia a eles aprofundar
a situação inicial e desenvolver um conflito, cujo desenlace deve conduzir
à situação final. A bem dizer, a Educação conhece dois motivos
fundamentais. O primeiro é a busca do amor e surge logo na viagem que
traz o protagonista de Paris. Como se a personagem fosse uma “aparição”7,
Frédéric reconhece na senhora Arnoux seus ideais de encanto e de poesia
românticos: “Imaginava-a de origem andaluza, talvez nascida nas Antilhas;
teria trazido das ilhas aquela negra?”8. A senhora Arnoux é mãe de uma
pequena criança chamada Marthe e esposa do proprietário de um
estabelecimento híbrido em Montmartre, loja de quadros e jornal artístico:
a Arte industrial. O segundo motivo seria o sucesso e o reconhecimento
públicos. Ele aparece na noite em que a personagem chega à sua cidade.
Entre as pontes que descortinam Nogent para os viajantes, os amigos de
colégio soltam suas fantasias e projetam o assalto a Paris. Deslauriers
lembra a trajetória de Rastignac na Comédia Humana e aconselha Frédéric a
visitar a casa de um rico capitalista parisiense, cujas portas lhe seriam
abertas por uma carta de recomendação do senhor Roque, o administrador
dos negócios do senhor Dambreuse na região. O amigo mais velho
conclama o outro a conquistar a alta sociedade: “Você triunfará, tenho
certeza!”, depois de convencê-lo da conveniência de manter relações com
o banqueiro (“Um homem que possui milhões, calcula!” 9 ) e indicar os
recursos para alcançar o sucesso: “Dê um jeito de lhe agradar, e à mulher
dele também. Torne-se amante dela”10.
Estão aí os dois eixos ao redor dos quais gravita a vida de Frédéric:
a busca do amor e do reconhecimento público. Contudo, tal como é de se
esperar, não é raro a personagem de um campo transitar pelo outro. É o
caso da senhora Arnoux, que encarna o ideal amoroso para o jovem. Ela
vai se ligar forçosamente ao poder social graças aos negócios do marido,
de que Frédéric busca participar a fim de ficar mais próximo de seu objeto
de amor. Nesse sentido, a procura da amante se comunica de maneira
indireta com a do poder, e os dois eixos podem perder seus limites e se
confundir. Alcançar o sucesso no amor seria também alcançar o sucesso na
sociedade? É no que acredita Frédéric, sem no entanto explicar como isso
dirige ao autor dos Miseráveis: “Onde será que existem prostitutas como Fantine, forçados como
Valjean e políticos como os imbecis A, B, C? Não, ninguém os vê sofrer, uma só vez, no fundo da
alma. São manequins; tipinhos feitos de açúcar, a começar pelo monsenhor Bienvenu. Por raiva
socialista Hugo caluniou a igreja, assim como caluniou a miséria”. (Carta a Edma Roger des
Genettes, p. 418; tradução nossa, p. 206)
— Mas se estou lhe dizendo coisas clássicas! Lembra-se de Rastignac na
Comédia Humana! Você triunfará, tenho certeza!24
você calcular, mais longe irá. Fira e será temido. Considere os homens e as mulheres apenas como
cavalos de posta que você abandonará estafados em cada estação de muda e assim atingirá o auge
de suas ambições” (p. 116; trad, p. 73)
27 um fruto saboroso que imediatamente devoram. O carro da civilização, semelhante ao ídolo de
Jaggernat, retardado apenas por um coração mais fácil de triturar que os outros e que lhe calça a
roda, rapidamente o despedaça e continua sua marcha gloriosa. Assim fareis vós, que, com este
livro em vossas mãos alvas, mergulhais numa poltrona macia pensando: ‘Talvez isto me divirta’.
Após terdes lido os secretos infortúnios do pai Goriot, jantareis com apetite, levando vossa
insensibilidade à conta do autor, tachando-o de exagero, acusando-o de poesia. Ah! Sabei-o: este
drama não é ficção nem romance. All is true: ele é tão verídico que qualquer um pode reconhecer
em si mesmo e, talvez em seu próprio coração, os elementos que o compõem” (p. 16; trad, p. 7).
Para uma análise desse trecho e do papel do dinheiro no romance de Balzac, é possível conferir o
ensaio de Roberto Schwarz: “Dinheiro, memória, beleza (O pai Goriot)”, em A sereia e o desconfiado,
2ª ed., São Paulo, Paz e Terra, 1981, p. 167-188.
Deslauriers, de seu lado, não tem medo de repetir os clichês que
garantem o sucesso dos arrivistas balzaquianos: “ele acreditava nas
cortesãs aconselhando os diplomatas, nos ricos casamentos obtidos por
intrigas, no gênio dos condenados às galés, nas docilidades do acaso sob a
mão dos fortes”28. Mas, a julgar pelo enredo da Educação, cujos eventos são
incapazes de armar uma forte unidade dramática, nada seria mais distante
da ascensão social do que “as leis matemáticas” que consagram os
arrivistas balzaquianos. Essa visão idealizada acentua, por contraste, o
horizonte fechado do romance de Flaubert. Aqui o destino das
personagens parece estabelecido de antemão: assim, o romântico Frédéric
não vai realizar seus ideais de amor nem o ambicioso Deslauriers se tornará
uma figura política. Desmanchando a imagem da sociedade aberta como
uma ilusão romântica, traindo-a como uma ideia feita, a Educação pretende,
antes de tudo, denunciar os aspectos ingênuos e, por vezes, estúpidos que
se escondem por detrás dessas convicções: “Mas o escrevente [Deslauriers]
tinha teorias. Bastava, para obter as coisas, desejá-las intensamente”29.
Pode-se dizer que o narrador de Flaubert não está mais interessado
em contar de maneira dramática a perda das ilusões românticas, tal como fazia
o narrador balzaquiano. Como essa experiência havia se tornado uma
experiência comum e mesmo uma ideia feita 30 , Flaubert cuida antes de
assimilá-la à própria estrutura do romance, trazendo esse rebaixamento de
horizontes para o próprio estilo, como um sentimento ou atmosfera a que
o leitor estaria habituado. Com isso, o desencanto romântico fica
incorporado aos recursos literários da Educação. Trata-se de uma
substância implícita ao estilo e ao enredo, dando inclusive suporte ao
indireto livre e às imagens do romance. Daí decorre também o herói fraco
ou negativo, incapaz de tomar uma decisão enérgica e definidora, bem
como o romance que arma de maneira propositada um enredo frouxo, um
girar em falso de agitação e melancolia, onde o tempo não enquadra mais
nenhum confronto dramático. Enfim, todos esses recursos (herói negativo,
intriga fraca, largo uso do indireto livre, emprego irônico das ideias feitas,
para citar os mais importantes) reconheciam que a perda das ilusões tinha
28 “Nunca tendo visto a alta sociedade a não ser em meio à febre de suas invejas, Deslauriers a
imaginava como uma criação artificial, funcionando em virtude de leis matemáticas. Um jantar
em alguma casa, o encontro com um homem bem colocado, o sorriso de uma mulher bonita,
podiam, por uma série de ações que se deduziam uma das outras, ter resultados gigantescos.
Certos salões parisienses eram como essas máquinas que pegam a matéria em estado bruto e a
devolvem com um valor cem vezes maior. Ele acreditava nas cortesãs aconselhando os
diplomatas, nos ricos casamentos obtidos por intrigas, no gênio dos condenados às galés, nas
docilidades do acaso sob a mão dos fortes. Enfim, considerava tão útil frequentar os Dambreuse,
e falou tão bem, que Frédéric já não sabia mais que decisão tomar” (A Educação, p. 124; L'Éducation,
p. 111).
29 A Educação, p. 120; L'Éducation, p. 107.
30 “ILUSÕES: Afetar ter tido muitas, lamentar havê-las perdido”. (FLAUBERT, Dictionnaire des
idées reçues, Œuvres, France, Gallimard, 1952, vol. II, p. 1013, tradução nossa)
se tornado uma experiência comum, que vivemos da maneira mais
cotidiana possível. Uma situação de rebaixamento que o leitor deveria
também vivenciar no momento em que lê a Educação.31
31 Nessa linha, o autor de “Narrar ou descrever?” salienta o aspecto fechado dos romances de
Flaubert: “Mesmo quando aparentemente descrevem um processo, como nos romances de
desilusão, a vitória final da inumanidade capitalista está estabelecida por antecipação”. (LUKÁCS,
“Narrar ou descrever?”, in: ______. Ensaios sobre literatura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1965, p. 83). Para uma crítica do juízos estéticos de Lukács, ver: ADORNO, “Une réconciliation
extorquée”, in: _________. Notes sur la littérature, traduzido do alemão por Sibylle Muller, Paris,
Flammarion, 1973, p. 171-200.
32 PROUST, “À propos du ‘style’ de Flaubert”. In: ______. Contre Sainte-Beuve. Paris: Gallimard,
1971, p. 587, tradução nossa. De acordo com Proust, apenas um aspecto formal do romance
flaubertiano seria irregular: “talvez não exista em toda a obra de Flaubert sequer uma única bela
metáfora”, pois, em que pese o largo uso do indireto livre, as imagens do narrador “são
geralmente tão fracas que chegam a se elevar muito pouco acima daquelas que os seus
personagens mais insignificantes poderiam encontrar” (p. 586). Cabe notar que o emprego das
imagens fracas, assim como do estilo indireto livre, não são despropositados no estilo de Flaubert.
O próprio ensaio de Proust acrescenta que o imperfeito eterno da Educação não se compõe apenas
do passado imperfeito, mas também dos sentimentos e das reflexões das personagens.
Assimilados pelo indireto livre, esses discursos se confundem com a própria paisagem que o
narrador descreve (na Educação, como diz Proust, “as coisas têm tanto de vida quanto os homens”,
p. 589). Nesse sentido, tal como reconhece Proust, o imperfeito eterno “serve para conjugar não
só as palavras, mas toda a vida das pessoas” (p. 590)
Contra as ideias feitas, essa voz narrativa mobiliza um verdadeiro
princípio de deslocamento. 33 Tendo consciência do papel que
desempenham em nossa sociedade, o narrador suspende o uso corrente
que fazemos delas.34 Por meio da ironia, sua voz procura deslocar a todo
momento o significado das falas tomadas de ideias feitas. Tal deslocamento,
uma manifestação de divergência entre a composição e as falas reportadas,
produz um horizonte singular dentro do romance. A intermediação irônica
faz com que as falas adquiram um sentido novo, às custas do que fica dito,
como se elas se situassem num plano inferior ao da composição e tivessem
de ceder o passo a esse fundo, que vai por fim desdizê-las ou restituí-las de
um novo significado. Pode-se dizer que existe aqui uma noção pragmática
ou performativa da linguagem. O narrador parece advertir o leitor (e,
muitas vezes, a ironia de Flaubert, para indicar a estupidez que se esconde
por detrás de uma ideia feita, será uma simples piscadela) de que, para
saber o significado de uma fala, não basta apenas avaliá-la em abstrato ou
por si mesma. Seria preciso antes examiná-la à luz do contexto em que é
verbalizada, no interior das condições em que é produzida.35
33 Para o tema, é possível conferir o que Flaubert tinha como o propósito de seu Dicionário de ideias
feitas: “Seria a glorificação histórica de tudo o que se aprova. Demonstraria nele que as maiorias
estiveram sempre certas, as minorias sempre erradas. Imolaria os grandes homens a todos os
imbecis, os mártires a seus carrascos, e tudo isso num estilo carregado ao extremo, cheio de
explosões. Assim, para a literatura, definiria, o que seria fácil, que somente o medíocre é legítimo,
por estar ao nível de todos, e que é preciso amaldiçoar toda espécie de originalidade como
perigosa, estúpida, etc. Essa apologia da canalhice humana em todos os seus aspectos, irônica e
ululante de uma ponta a outra, cheia de citações, de provas (que provariam o contrário) e de
textos medonhos (o que seria fácil), teria como fim acabar, de uma vez por todas, com as
excentricidades, quaisquer que sejam. Voltaria com isso à ideia democrática moderna de
igualdade, à afirmação de Fourier de que os grandes homens se tornarão inúteis; é com tal
finalidade, diria eu, que este livro foi escrito. Iriam encontrar nele, em ordem alfabética, todos os
temas possíveis, tudo aquilo que se deve dizer em sociedade para ser um homem decente e amável. […]
Mas seria preciso que, no livro todo, não houvesse uma só palavra de minha autoria, e que uma
vez lido ninguém ousasse mais falar, com medo de dizer naturalmente uma das frases que nele
se encontram” (carta a Louise Colet de 16.12.1852, Correspondance, ed. cit., p. 213, tradução nossa,
grifos do autor).
34 Tal como pede Flaubert: “É preciso escrever mais friamente. Desconfiemos dessa espécie de
esquentamento, que chamamos de inspiração, onde entra com frequência mais emoção nervosa
do que força muscular. […] Conheço bem esses bailes mascarados da imaginação, donde se volta
com a morte no coração, esgotado, tendo visto apenas farsas e vomitado besteiras. Tudo deve se
fazer a frio, calmamente” (carta a Louise Colet de 27.2.1853, em Correspondance, ed. Jean Bruneau,
Paris, Gallimard, 1980, v. 2, p. 252, tradução nossa, grifos do autor)
35 “Entre os pressupostos do novo dispositivo literário está a falência de ideias ou intenções consideradas
Frédéric devia agora pensar em se lançar. Ela até lhe deu admiráveis
conselhos sobre a sua candidatura.
O primeiro ponto era saber duas ou três frases de economia política. Era
preciso escolher uma especialidade, como os haras, por exemplo […].37
melhores do que as da cidade”, em: FLAUBERT, Dictionnaire des idées reçues, Œuvres, France,
Gallimard, 1952, vol. II, p. 1009, tradução nossa).
40 A Educacação, p. 492; L'Éducation, p. 420.
41 Dictionnaire des idées reçues, Œuvres, France, Gallimard, 1952, vol. II, p. 1002, tradução nossa.
se declararia proprietário!”.42 A declaração resume a estupidez ideológica
que grassa nos debates da Segunda República: a afirmação seria do político
Adolphe Thiers, que Flaubert, sem citar a fonte, transcreve para a voz da
personagem.
Outra ideia feita pode expor o tratamento a que o narrador submete
seu protagonista. Quando as revoltas de junho começam, Frédéric decide
partir com Rosanette a Fontainebleau, para visitar o palácio renascentista,
os jardins e parques, a floresta (“a natureza eterna” 43 , tal como diz a
personagem). A narrativa passa a descrever então as aventuras dos
amorosos: a atmosfera de sossego no hotel, as visitas ao patrimônio
cultural, o prazer dos passeios pela natureza, o bom apetite no campo
(“Serviram-lhes uma galinha com os quatro membros estendidos” 44), as
brincadeiras entre os amantes (“Divertiam-se com tudo; mostravam um ao
outro, com curiosidade, teias de aranha”45), as trocas de carinhos (“Uma
necessidade o impelia a dizer-lhe ternuras”46). O narrador resume assim o
idílio: “Tudo isso aumentava o prazer, a ilusão. Quase acreditavam estar
no meio de uma viagem, na Itália, em lua-de-mel”. 47A comparação com a
lua-de-mel na Itália deveria indicar o estado de felicidade das personagens,
mas parece trair antes (“quase acreditavam”...) o que há de falso nessa
união amorosa. As análises de Dolf Oehler, que estamos acompanhando
aqui, chamam pelo nome o denominador comum desses prazeres: kitsch48.
Mas o autor acrescenta que isso seria mais do que inautenticidade. Na
verdade, a fantasia seria desmentida pelos constantes inconvenientes que
surgem aqui e ali: as vulgaridades da cocote (“A gente não se comportou
direitinho! A gente foi pra caminha com a mulher dele” 49), a timidez e a
falta de tato de Frédéric (“pois, em meio às confidências mais íntimas,
sempre há restrições”) 50 , as manifestações de luta em Paris. Assim, o
encantamento termina quando o protagonista, lendo um jornal, vê que o
nome de Dussardier, um de seus amigos, consta de uma lista de feridos.
Nesse momento, ele decide “voltar imediatamente”51 e avalia o que foi sua
escapada turística: “Tanta indiferença às desgraças da pátria tinha algo
mesquinho e burguês” 52 . No parecer de Oehler, o episódio adquire sua
42 A Educação, p. 440-1; L’éducation, p. 376, citado por OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos
infernos, São Paulo, Cia das Letras, 1999, p. 329.
43 A Educação, p. 419; L’éducation, p. 359.
44 A Educação, p. 418; L’éducation, p. 358.
45 A Educação, p. 418; L’éducation, p. 357.
46 A Educação, p. 419; L’éducation, p. 358.
47 A Educação, p. 418; L’éducation, p. 358. (Dictionnaire des idées reçues, ed. cit. p. 1014, “Itália: deve
ser vista logo depois do casamento. Causa decepções, não é tão bela quanto se diz”.)
48 O velho mundo desce aos infernos, ed. cit., p. 328.
49 A Educação, p. 422; L’éducation, p. 362.
50 A Educação, p. 423; L’éducation, p. 362.
51 A Educação, p. 424; L’éducation, p. 363.
52 A Educação, p. 424; L’éducation, p. 363.
efetiva dimensão à luz desses sinais irônicos. Uma das artes do narrador
seria justamente deixar suas personagens se enredarem até o pescoço nos
fios de suas mentiras, para que, assim enredados e quase se enforcando,
exponham sua culpa e tolice, tal como Frédéric avaliando sua lua-de-mel:
“seu amor lhe pesou como um crime”53. Seria desnecessário dizer que o
narrador emprega os mais variados procedimentos, não apenas as ideias
feitas, para lançar suas piscadelas irônicas ao leitor. Não seria demais
lembrar que o acaso, para falar como Oehler, tem método em sua
composição – e que, justamente quando as Jornadas de Junho explodem,
Frédéric decide realizar sua utopia amorosa na “natureza eterna”.
Alexandre Bebiano de Almeida é, desde 2010, professor de literatura francesa na Universidade de São Paulo.
Nesta universidade, formou-se em História e obteve o diploma de mestre e doutor em Teoria Literária e
Literatura Comparada. Com o apoio da Fapesp, realizou três estágios de pós-doutoramento na École Normale
Supérieure, de Paris. Em sua dissertação de mestrado, estudou a Educação sentimental, de Gustave Flaubert.
Desde sua tese de doutoramento, dedica-se à leitura do romance proustiano. Atualmente, orienta e
desenvolve pesquisas na área de estudos literários franceses e comparados.
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Em sua obra prima, A consciência de Zeno, a autobiografia A consciência de Zeno;
ficcional de um velho, Italo Svevo estabelece uma ligação Italo Svevo;
íntima entre a velhice como retirada da vita activa, Ficção e autobiografia;
recolhimento à inutilidade, e as possibilidades de reinvenção Künstlerroman;
do mundo abertas pela literatura, convertendo desistência em Romance moderno.
resistência. Estamos no âmbito de um romance moderno de
deformação, em que a escrita se prova capaz de insuflar
mobilidade, um sopro erótico e irônico, ainda que discreto, aos
impasses do mundo desencantado.
ABSTRACT KEYWORDS:
In his masterpiece, Confessions of Zeno, a fictional autobiography of Confessions of Zeno;
an old man, Italo Svevo sustains a close connection between the Italo Svevo;
idleness of late years and literary possibilities of reinventing the Fiction and autobiography;
world of practical constrictions, changing retirement into a resistant Künstlerroman;
strategy. A modern deformation novel is at stake here, a book in Modern novel.
which writing proves capable of providing movement, an erotic and
ironic, though timid, renovating breath in a stuck reality.
1. Preâmbulo
2Vale conferir o depoimento de Svevo sobre este encontro e sua relação com Joyce, registrado
no ensaio “Uma visão de Ulisses”. In: Joyce e o romance moderno: Michel Butor – Italo Svevo –
Umberto Eco (série L’ARC). Editora Documentos, s/data.
por uma costureirinha em filantropia ou amor romântico, recriados
literariamente3.
As marcas de um estilo ainda muito preso a esquemas de filiação
naturalista (destrinchando destinos exemplares, moldados por uma força
opressiva do meio), mesmo que refinados por um senso de nuances
muito desenvolvido, inibem, em parte, na estreia, a ironia de matriz
sterniana que vigora, plena, no romance final. O salto dado por A
Consciência de Zeno está na forma renovada que confere ao realismo, a
começar pela escavação exemplar do narrador em primeira pessoa, entre
lapsos e atos falhos, que levou a crítica a aproximá-lo de Proust e
Pirandello, lembrando o parentesco da psicopatologia do cotidiano que
ali se esboça com o projeto freudiano. A sombra das leituras do médico
vienense na obra de Svevo, bem como a presença da psicanálise em sua
vida não podem, de fato, ser ignoradas; as alfinetadas que o autor desfere
nos analistas e seu empenho na denegação só fazem confirmá-la.
Não faltam os que, escorados na semelhança entre a biografia de
Ettore Schmitz e as experiências atribuídas a suas criaturas, postulem
leituras edipianas clássicas das neuroses que habitam seus personagens.
Para estes, a correspondência do autor, o Diário para a Noiva (registros
publicados postumamente, mantidos num caderno que a futura esposa,
Lívia, lhe ofereceu na ocasião do noivado) e outros papéis autobiográficos
são documentos preciosos. Aos demais, o romance mais do que se basta,
mostrando como todos engordamos diariamente o sempre aposentado
"envelope dos bons propósitos" e sentimos "o caráter efêmero e
inconsistente da nossa vontade e dos nossos desejos" como uma espécie
muito peculiar de doença, a vida como a conhecemos e Svevo nos
apresenta. Como esta dinâmica confere um aspecto precursor e
inventivamente ligado à matéria narrativa e à renovação técnica da prosa
de ficção modernas, e mesmo modernistas, é o que procuro examinar no
próximo passo deste artigo.
3Uma vida. Trad. de Aurora F. Bernardini e Homero F. Andrade. São Paulo: Nova Alexandria,
1993; Senilidade. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Cf. Romanzi e
“continuazioni” (ed. crítica, aparato genético e notas de Nunzia Palimieri e Fabio Vittorini).
Milão: Mondadori, 2004 [Romanzi].
pivotante, entre o século 19 e o século 20, a Consciência é um livro clássico
na forma e enganosamente simples que se deixa ler em camadas muito
variadas, derivadas seja da percepção precoce (e decisiva) nele conferida
à linguagem enquanto véu e veículo de investigação do real, seja de sua
estrutura narrativa singular, jogando com múltiplas molduras, gêneros e
vozes narrativas incrustadas no romance. Ponto alto da produção
sveviana, desdobrado em posteriores novelas que prolongam as
agudezas e fecundas contradições de seu material narrativo, o drama
cômico de Zeno Cosini se destaca na investigação dos desencontros
modernos entre o sujeito e o mundo, tratados, aqui, em chave quase
farsesca, vizinha das pequenas tragédias4.
Comecemos do começo, a forma talvez menos engenhosa mas,
possivelmente, a mais produtiva de se começar.
Rever a minha infância? Já lá se vão mais de dez lustros, mas minha vista
cansada talvez pudesse ver a luz que dela ainda dimana, não fosse a
interposição de obstáculos de toda espécie, verdadeiras montanhas: todos
esses anos e algumas horas de minha vida.
O doutor recomendou-me que não me obstinasse em perscrutar longe
demais. Os fatos recentes são igualmente preciosos, sobretudo as imagens
e os sonhos da noite anterior. Mas é preciso estabelecer uma certa ordem
para poder começar ab ovo. Mal deixei o consultório do médico, que
deverá se ausentar de Trieste por algum tempo, corri a comprar um
compêndio de psicanálise e li-o no intuito de facilitar-me a tarefa. Não o
achei difícil de entender, embora bastante enfadonho. Depois do almoço,
comodamente esparramado numa poltrona de braços, eis-me de lápis e
papel na mão. Tenho a fronte completamente descontraída, pois eliminei
da mente todo e qualquer esforço. Meu pensamento parece dissociado de
mim. Chego a vê-lo. Ergue-se, torna a baixar... e esta é sua única
atividade. Para recordar-lhe que é meu pensamento e que tem por
obrigação manifestar-se, empunho o lápis. Eis que minha fronte se
enruga ao pensar nas palavras que são compostas de tantas letras. O
presente imperioso ressurge e ofusca o passado.5
4 A impressão de que, em A consciência de Zeno, Svevo tocou o centro nervoso de seu problema
artístico (a recriação ficcional da realidade como potência e resistência ao mundo torto) se
reforça pelas múltiplas voltas ao personagem, retomado em estágios posteriores da sua
elaboração fabuladora da existência, mais ou menos tal qual ou ligeiramente disfarçado. Cf. Un
contratto, Le confessioni del vegliardo e Il mio ozio, por exemplo. In: Romanzi, op. cit. Sobre a força
cômica de Svevo, cf. Wood, J. “Italo Svevo’s unreliable comedy”. In: The irresponsible self. Nova
York: Picador, 2004 [ebook: Abril 2011]
5 A consciência de Zeno. Trad. de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 9. Vedere la
mia infanzia? Più di dieci lustri me ne separano e i miei occhi presbiti forse potrebbero arrivarci
se la luce che ancora ne reverbera non fosse tagliata da ostacoli d’ogni genere, vere alte
montagne: i miei anni e qualche mia ora.//Il dottore mi raccomandò di non ostinarmi a
guardare tanto lontano. Anche le cose recenti sono preziose per essi e sopra tutto le
Já nas primeiras linhas, salta aos olhos a confusão temporal de
alguém que, passados dez lustros de vida, entrado nos 50 anos
(exatamente a idade de Svevo quando escreve Consciência), se volta
para uma racionalização do próprio percurso, separação de joio e trigo,
organização e compreensão dos impasses e obstáculos que o constituem
e, nesse processo, se enfrenta consigo mesmo. A divisão interior do
protagonista, ajuste de contas entre mundo prático e abismos interiores,
entre a memória e o lápis, constitui o movimento contínuo do romance,
sempre abordado a partir de um plano temporal que abrevia a distância
entre os fatos passados e o instante presente de sua reatualização. O
narrador se percebe e se constitui a partir das possibilidades e das
angústias inauguradas por este presente da enunciação, no encontro e
desencontro com as muitas outras versões de si mesmo que as
lembranças e a imaginação lhe propõem. O leitor segue na permanente
companhia desta cisão, ora distinguindo, ora confundindo Zeno,
protagonista dos acontecimentos, e Zeno, deles analista. Um hermeneuta
evidentemente interessado e suspeito, observador participante cuja
tendência natural é organizá-los de forma a se reconhecer no retrato mais
favorável possível de si mesmo.
Notável ainda tratar-se de um romance em que a primeira pessoa
assume o primeiro plano, artifício muito comum nas narrativas da origem
do romance, mas distante de ser a norma na evolução posterior do
gênero. Quem acompanha a evolução do gênero, encontra em Stendhal,
Balzac e Flaubert a predominância progressiva de um modelo de
narrador impassível, tudo considerando do ponto de vista exterior,
garantidor de certa serenidade épica, distância regulamentar entre a
matéria narrada e aquele que a organiza, profundamente determinante
na arquitetura do romance novecentista.
No século 20, a narrativa torna a ganhar uma dose considerável de
instabilidade e emocionalização da matéria narrada em grande parte
localizável na (se não atribuível a) volta do narrador em primeira pessoa,
forma espontânea de narrar. Um ricorso que, depois do estágio
immaginazioni e i sogni della notte prima. Ma un po’d’ordine pur dovrebb’esserci e per poter
cominciare ab ovo, appena abbandonato il dottore che di questi giorni e per lungo tempo lascia
Trieste, solo per facilitargli il compito, comperai e lessi un trattato di psico-analisi. Non è
difficile d’intenderlo, ma molto noioso.//Dopo pranzato, sdraiato comodamente su una
poltrona Club, ho la matita e un pezzo di carta in mano. La mia fronte è spianata perché dalla
mia mente eliminai ogni sforzo. Il mio pensiero mi appare isolato da me. Io lo vedo. S’alza,
s’abbassa...ma è la sua sola attività. Per ricordargli ch’esso è il pensiero e che sarebbe suo
compito di manifestarsi, afferro la matita. Ecco che la mia fronte si corruga perché ogni parola è
composta di tante lettere e il presente imperioso risorge ed offusca il passato. La Coscienza di
Zeno. In: Romanzi, op. cit, p. 626.
intermediário de distanciamento garantido pelo narrador onisciente
neutro novecentista, ressignifica o “eu” narrador em novos termos, nada
clássicos. Prismatizados por este novo ponto de vista, subjetivo, os fatos
narrados assumem uma dimensão expressionista, subordinados a uma
consciência única, propensa à divisão e redivisão infinita, coisa que em
livro que se proclama autobiografia, ainda que tão particular dentro desta
categoria, parece ser decisivo.
Do romance de formação, encontramos na Consciência, portanto, o
enfrentamento contínuo do conflito entre propósitos heroicos e uma
realidade pouco enaltecedora. Na companhia de Freud e Schopenhauer, o
sabor negativo deste embate em Svevo se reflete na natureza cindida por
trás do romance, antecipada na disputa entre prenome e nome tanto no
seu pseudônimo de escriba, quanto em seu registro civil, ambos
remetendo a sua dividida origem ítalo-germânica (Italo Svevo, Ettore
Schmitz), e reduplicada na própria situação de Trieste, também ela
repartida entre as vocações de porto estratégico, lugar de trocas
econômicas, e cadinho cultural por excelência.
Claro está que Svevo não é primeiro, nem único nessa tradição,
outros grandes autores também se nutrem deste trânsito e choque
formador de identidades culturais; cabe, contudo, registrar o quanto ela
está profundamente inscrita em seu destino pessoal e sua biografia. Em
termos pessoais, lutavam em Svevo as exigência do artista e do
negociante abastado, do esquadrinhador de existências burguesas e do
protagonista deste tipo de existência. O chamamento comercial, no seu
caso desenvolvido numa carreira de muito sucesso, sempre resultou em
certa má consciência que pede para ser tematizada, o que nos remete de
imediato à questão central e cara a uma modalidade particular dos
romances de formação, o Künstlerroman, o romance de formação do
artista, certamente a mais adequada à caracterização da Consciência.
Se arriscássemos um paralelo entre Zeno e Tonio Kroeger, de
Thomas Mann, por exemplo, encontraríamos neste último o tipo burguês
a quem a arte impede a identificação plena com a rotina e o cotidiano
absorventes, submetido a um canto de sereia que o arrasta, sem descanso,
para longe dos hábitos convencionais de classe, enquanto Ettore
Schmitz/Italo Svevo, por sua vez, cumpriria uma trajetória simétrica e
oposta à sua: aqui, estamos às voltas com um artista a quem a vida
burguesa o tempo todo ameaçou calar, mas cuja voz hesitante acabou por
prevalecer, ao termo do percurso6.
6 Cláudio Magris, soberbo ensaísta e ficcionista de não menos interesse, como podem atestar,
por exemplo, a coletânea Alfabetos: ensaios de literatura (Curitiba. Ed. da UFPR, 2012) ou seu
romance de viagem, Danúbio (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), é também tributário
desta experiência mediadora entre as culturas da Europa Central e a civilização mediterrânea
que, em Trieste, tanto se facilita. Sua leitura pessoal da obra de Svevo, muito sugestiva e
E do que se constrói a singularidade da Consciência, este livro tardio
e admirável? Se Oswald de Andrade escreve a sua autobiografia sob as
ordens de mamãe, o protagonista de Svevo o faz sob as ordens do doutor,
um psicanalista que procura e despreza, autor do prefácio-moldura que
antecede seu relato, elaborado como tentativa dos conflitos íntimos que
nele se manifestam somaticamente. Trata-se, portanto, da narrativa de
um respeitável, abastado e, nas linhas de superfície, bem sucedido
cidadão triestino, mas também de um insatisfeito, um doente imaginário.
Em meio a uma rotina muito previsível, de hábitos sedimentados, sem
grandes choques ou abalos, o narrador nos conduzirá, com o método de
que é capaz, afetado por lapsos ou associações fortuitas, por uma
trajetória fragmentária, pontuada por crises espaçadas, todas mais ou
menos cotidianas e administráveis, mas que assumem para ele dimensões
inabordáveis, entre as quais a mais decisiva é a suscitada por uma
internação para a cura do hábito do cigarro.
O romance resultante, aliás, é todo ele tecido em torno desta
obsessão, a de se livrar do fumo, lugar de concentração das muitas
ansiedades e insatisfações do Zeno. A ele, e ao esforço autobiográfico que
precipita, se liga em constelação e arranjo associativo relativamente
arbitrário um número restrito de episódios díspares, mas muito
reveladores do caráter de Zeno que em mosaico o rascunham. Ao mesmo
tempo, além do papel decisivo de temas herdados do século 19, como o
adultério ou os desafios de conciliar a esposa e a amante, tem importância
estruturadora no livro a relação do protagonista com um duplo seu, o
cunhado, Guido Spahler, rival na corte às filhas do comerciante de que se
fará sogro. Spahler faz as vezes do espelho distorcido em que Zeno evita,
a todo custo, se reconhecer e, involuntariamente, acaba se prestando à
formulação inconsciente, não admitida, de uma avaliação nada simpática,
mordaz, de si mesmo.
Pelas mãos deste narrador pouco confiável, o leitor acompanha de
muito perto, sismograficamente, os dilemas morais e as torsões de
linguagem que os incidentes pouco edificantes de que participa
provocam em sua natureza, sensível e cismada. Força decisiva no gênero
como um todo, e neste romance em particular, a autoanálise introspectiva
- compreendidas suas duas fases, primeiro, a autoinspeção, em seguida, o
autodesprezo a que convida - é força dominante no romance e, embora
suscite no herói um desconforto íntimo não negligenciável, incômodo e
persistente, jamais alcança mudá-lo substancialmente. Projetos de
aprimoramento, boas intenções, nobres propósitos acabam fatalmente
largamente acompanhada aqui, muito deve a esta herança comum. Cf. Magris, La “coscienza di
Zeno” di Italo Svevo. In: La coscienza di Svevo. Roma, Ministero per i Beni e le Attività Culturali,
Direzione Generale per i Beni Librari e gli Istituti Culturali/ De Luca Editori d’Arte, 2002.
aposentados antes da hora, mantendo a personagem em estado de
contínua e indefinida inquietude.
A trajetória que o romance esboça, portanto, é a das soluções
possíveis, como no romance de formação paradigmático, trajetória de
uma conciliação entre forçada e acanhada, comodista. No protagonista, a
pouca resistência ao conformismo anunciado com força de inelutável
tende a se manifestar em comportamentos pouco meditados que acabam
se materializando nas compulsões, tentativas infrutíferas e
descontroladas de sustentar o insustentável.
Zeno é supérfluo, sem qualidades, timorato, um insatisfeito de si
disfarçado em seu avesso, e vice-versa. Sob um registro cômico,
enganosamente ligeiro e ridículo que acompanha seu mal estar na
civilização, o romance encaminha um diagnóstico duro e preciso do
mundo burguês, sem se abster de algum teor profético, quase
apocalíptico, sublinhado na cena alegórica que o encerra: a do
protagonista, envelhecido, apanhado de surpresa, durante passeio ocioso
pelo campo, pelo deslocamento de tropas invasoras, inaugurando o
massacre por vir da Grande Guerra de 1914.
O que muda radicalmente este quadro mal parado é a centralidade
da literatura na caracterização desta consciência, dobra autorreflexiva que
faz de Zeno um narrador-narrado, personagem para o qual não há real
sem sua contraparte inventada, nem confissão sem ficção. Nele, a escrita
representa uma negação do princípio da realidade vitorioso, espécie de
tímida e vicária rebelião possível, reversão dos limites em vantagens. No
caminho de reexame da acidentalidade da vida, soma de momentos
esparsos e desconexos, na tentativa de compreensão da origem dos
males, na busca pela caixa de Pandora, a fabulação literária insinua a
estreita margem de ultrapassagem da mera constatação das pernas curtas
das boas intenções, ao que se resumiria a recomposição retrospectiva de
Zeno, fosse-lhe cassada a esfera potencial aberta pela palavra. É ela sua
última trincheira, último reduto de resistência, câmara de tortura, mas
também porta de salvação.
Os bons propósitos aparecem, e se desvanecem, muitas vezes
marcados por este enfrentamento entre o papel e a caneta. Zeno Coisini é
um homem que anota tudo, suas resoluções demandam o registro escrito
para que não se percam no dia-a-dia, papéis colecionados e
ocasionalmente reencontrados. São eles próprios que se encarregam de
suscitar os remordimentos, testemunhas de sua incapacidade de mantê-
las e se encarregando da denúncia da sua pusilanimidade, um dos traços
marcados desta personagem. Trata-se de registros que crescem pela casa,
Zeno literalmente habita este cemitério de votos descumpridos. Vai
escrevendo pelas paredes a longa canção dos últimos cigarros, a ponto de
ter de apagar a procissão de fiascos pintando novamente a parede do
quarto, coberta por estas intenções não realizadas. A tormenta e a divisão
de Svevo está em, ao revisitar este percurso, racionalizar e relativizar
estes fracassos, sofrer a decepção, no melhor dos mundos, rindo de si
próprio, numa vida que se pode classificar como “comicamente inviável”.
Assim, é também da ordem da técnica narrativa, protomodernista,
o salto de qualidade que Svevo logra em Consciência: uma primeira
pessoa enunciativa renovada pelas vivências hipotéticas, que transforma
a inépcia em vantagem estratégica e permite à “longa sucessão de
cadáveres” (Beckett dixit), às várias versões do eu durante uma vida, uma
convivência conflitiva e renovadora num tempo perturbado, o da escrita.
Antecipa o topos modernista de um eu fragmentário, que se divide em
muitos, condomínio de vozes dissonantes, sempre em disputa. E as raízes
deste salto deixam-se rastrear na história pregressa do escritor.
7 Para as afinidades de projeto entre o primeiro Svevo e o Flaubert da Educação sentimental, Cf.
Lavagetto, M. “Il romanzo oltre la fine del mondo”. In: Romanzi, op.cit.
8 Em contexto brasileiro, a tematização da literatura como reduto da experiência autêntica
- Era uma vez um jovenzinho, que chega a uma aldeia e que tinha umas
ideias bem estranhas sobre os hábitos da cidade. Achando-os bem
diferentes dos que tinha imaginado, ficou amargurado. Depois vamos por
um amor, também. Já esteve apaixonado?
- Eu...- e unicamente de medo bateu mais forte seu coração. Quase lhe
fizera uma declaração! [...]
- Precisaremos de caneta e tinteiro... mas prefiro confiar na memória, para
as primeiras ideias. Depois colocaremos o preto no branco. Como é então
que escreveria o romance?
- Seria preciso refletir bastante.
- Como assim? Vamos contar sua vida – e até aqui ainda estava
perfeitamente na primeira ideia. – Naturalmente, em lugar de funcionário
será rico e nobre, ou melhor, apenas nobre. Deixemos a riqueza para o fim.
Com um único toque a primeira ideia fora completamente abandonada9.
9 Uma vida. Trad. de Aurora F. Bernardini e Homero F. Andrade. São Paulo: Nova Alexandria,
1993, p.119-20. - C’era una volta un giovinetto che venne da un villaggio in una città e il quale
s’era fatto delle idee ben starne sui costumi della città. Trovandoli in fatti differenti de quanto
aveva ideato si rammaricò. Poi ci metteremo un amore. Ella è stato talvolta innamorato?// -
Io…- e unicamente per la paura gli batté più forte il cuore.// Aveva avuto l’intenzione di fare
una dichiarazone. […] – Ci occorrerebbe penna e calamaio…ma preferisco affidarmi per le
prime idee alla memoria. Metteremo poi il nero sul bianco. Come farebbe dunque lei a svolgere
questo romanzo?// - Bisognerebbe riflettere a lungo. // - Ci vuole tanto? Racconteremo la sua
vita, - e qui si trovava ancora perfettamente nella prima idea. – Naturalmente invece impiegato
la faremo ricco e nobile, anzi soltanto nobile. La ricchezza serbiamo per la chiuza del
romanzo.// Con un solo balzo leggero la prima idea era stata abbandonata del tutto. Romanzi,
p.134-5
Faz dela o objeto de seu empenho pedagógico, travestindo o
galanteio em projeto de reconstrução humana, moral, pessoal e social e,
malogrando na conquista, a converte em obsessão literária. Quando se
mete a escrever, para desvendar o que não vislumbra no calor da ação,
Emilio/autor descobre que dizer a verdade não tem tanta importância
assim na escrita: a verdade é menos crível do que os sonhos que, teimosa
e inconscientemente, se recusa a transcrever para o papel; insatisfeito com
a receita de narrativa que tinha abraçado, a naturalista, abandona a
literatura por inércia, pela incapacidade de fazer nascer um novo modo
de criar esperança e reconstruí-la de maneira literária. Um estágio além
de Alfonso, o narrador falido que aqui encontramos já tenta fazer da
escrita um ato de reparação, de ressarcimento das injustiças que alega ter
recebido do mundo, mas ainda não logra o salto que, valendo-se das
vidas literárias paralelas, converte a inépcia em vantagem, as limitações
em possibilidades, a desistência em resistência.
Os propósitos inconfessáveis que Brentani alimenta em relação a
ela, e vice-versa, a difícil e melindrada intimidade entre ambos levam a
um jogo de fingimento de lado a lado, cuja dialética é reveladora da
dinâmica de revelação e encobrimento que anima a literatura em si. O
romance faz do protagonista a única consciência refletora através do qual
temos acesso, sempre oblíquo, à figura da moça; as agruras que
experimenta empenhado em alcançar uma imagem confiável e recortada,
um retrato fixo e apaziguador de Angiolina, objeto renitente de seus
desejos, se revela inteiramente, portanto, apenas a quem o lê.
Por mais econômico e parcimonioso que seja, o narrador arma uma
espécie de cruel máquina retórica que, do ponto de vista do leitor, resulta
na oportunidade única que a ele, leitor, se oferece de entrever aquilo que
o protagonista teria pavor de constatar: o esfarrapado das traquitanas de
respeitabilidade que a amante cria para encobrir sua falsa inocência, o
postiço de seu interesse no benfeitor, seus inúmeros interesses amorosos.
Pelo tratamento que confere ao ciúme, retrospectivo inclusive,
Senilidade está atravessado de ponta a ponta pela consideração da
verdade e da mentira, da impostura e da simulação, tema que repercute
diretamente tanto sobre a representação do sujeito moderno, quanto
sobre a noção de literatura que a sustenta. No romance, a mentira aparece
diversa no protagonista e em sua amante; para ela, a mentira é uma
espécie de segunda natureza exercida com absoluta liberdade com a
intenção de agradar ou de ocultar – Angiolina mente com integridade,
com o corpo, antes de mentir com as palavras, mente sem divisão
interior, por omissão para se fazer valorizar, e segura de que suas
mentiras são tão bem arquitetadas que lógica alguma será capaz de
revelar a presença da vontade de iludir em suas palavras.
Mente, de resto, contando com a cumplicidade do destinatário, pois
Emílio é alguém que quer fazer enganar pelas palavras doces que profere.
O narrador, por sua vez, mente literariamente, com certa má consciência,
vítima da dobra interior daquele que não pode evitar observar-se de fora,
capaz, ainda que de maneira fugaz e dolorosa, a alto custo, de notar o
quanto lhe convém ser enganado, deliberadamente ignorando detalhes
da arquitetura mentirosa de sua amante. Emilio, portanto, mente de
maneira elaborada e interessada para si mesmo, mas ainda aquém do
passo decisivo da troca da fabulação aprisionadora e torturante por uma
fantasia literária como marco de liberdade. Este laboratório ficcional
menos melancólico, animado pela permanente reconfiguração dos
acontecimentos passados em novas realidades, vidas paralelas em que a
impotência se converte em seu avesso, denúncia, deverá esperar por
Zeno.
Tanto Uma vida como Senilidade se não preparam teleologicamente,
encaminham, antecipando temas e procedimentos, o romance que os
supera em complexidade, interesse e realização. Para este salto em
Consciência contribui significativamente o frescor da estrutura narrativa
deste último, mais contrapontística e nuançada. Três intervenções
textuais bastante diversas entre si, seja na extensão, seja nos modelos
literários que evocam, criam um jogo entre múltiplos gêneros discursivos
interno ao livro, instabilizando a autoridade relativa de cada um em si e
comunicando parte desta instabilidade essencial à própria arquitetura
geral.
Antes de mais nada, temos um brevíssimo prefácio, paratexto
dentro do texto, reminiscência das convenções dos primeiros romances e
tributário da ideia do manuscrito encontrado que um editor (capaz de
afiançar sua verdade, ou denunciar sua falsidade) toma a si introduzir.
Este suposto depoimento do psicanalista define a natureza das memórias
que o leitor tem em mãos, escritas, segundo ele, a pedidos, por um
paciente recalcitrante e resistente ao processo da cura.
Segue-se a parte mais longa e central do livro, a autobiografia do
protagonista propriamente, outra vez precedida por um preâmbulo,
desta vez do interessado direto, nova versão para a origem e dinâmica do
relato, descrito agora como um esforço pessoal e sincero de compreender
o enfrentamento contínuo entre lembranças e linguagem, passado e
presente, a consciência e a página em branco que responde por sua
identidade.
Por fim, uma seção final, composta por três entradas em um diário,
encimadas por datas precisas, nas quais o herói empreende um balanço
final, pelo menos até segunda ordem, ex post e tempos depois, tanto da
aventura psicanalítica, como da relação pessoal com seu analista e
desafeto, colocando uma pedra sobre as hipóteses edipianas levantadas
para explicar suas dores, imaginárias ou não, e registrando,
inadvertidamente, sua aproximação máxima da tragédia contemporânea,
ao ser apanhado, a um só tempo, pela irrupção da guerra e pelo ponto
final do romance.
O tema da fabulação que se impõe sobre o real, já presente no
preâmbulo, ressurge nas suas tentativas de se mostrar desejável aos olhos
das demais personagens e do leitor de suas lembranças. No episódio da
corte às irmãs entre as quais se conta sua futura esposa, por exemplo, os
esforços de maquiar e melhorar sua autobiografia representam parte
significativa da conversação, Zeno reformando os dados de sua existência
anterior de forma a apresentá-los mais extravagantes, mais coloridos.
Confessa que era um procedimento ao qual já havia recorrido várias
vezes, tentar impressionar as beldades com episódios deslocados do
banal de sua vida, caracterizando-se, aos olhos do leitor (que certamente
intuirá que o processo pode estar se renovando no ato da escrita da
autobiografia) como um narrador mentiroso, na linhagem do Barão de
Münchausen ou de Luciano de Samóstata, da História Verdadeira. E
registra: aquelas eram mentiras tão sedutoras que, quando depois tenta
contar à mulher que lhes impingira versões retocadas da verdade,
invenções suas, esta, enfadada, se recusa terminantemente a lhe dar
crédito. A conclusão a que chega é de que a verdade não reside na vida,
mas habita sua reescrita, convencendo-se aos poucos da superioridade de
uma verdade de recusa e de afirmação, inventada, ainda que negativa,
impossibilidade verossímil.
A corte evolui para seu casamento justamente com aquela das
filhas, a estrábica, que lhe parecera a menos interessante das quatro.
Importante notar que tudo isto alcança o leitor por intermédio da parte
interessada que é Zeno, que desde logo se prova um narrador dos menos
confiáveis, de cujos exageros e interesses aprendemos rapidamente a
desconfiar, mas um tipo particular de narrador não confiável, porque tem
a boa fé de discutir os limites da impostura e da verdade. Que, portanto,
silencia, omite e reconstrói as histórias segundo um misto de boa e má fé
que lhe é singular.
A Consciência, então, se tece a partir deste acúmulo de lapsos
ressignificados, de atos falhos organizados em rede, vedando ao leitor a
manutenção de qualquer ilusão referencial, mantendo-o sempre
suspeitoso de que Zeno esteja mentindo, sem nada oferecer em
substituição à versão do protagonista, sem outra válvula de escape
narrativo que não a autobiográfica10. Enquanto personagem, Zeno é fruto
10 Disguidi, malintesi e atti mancati scandiscono il destino di Svevo, della sua fama e della sua
riflessione critica; d’altra parte egli è il grandissimo scrittore che ha fatto del malinteso e
dell’atto mancato un cifra per capire con straordinaria profondità l’esistenza dell’uomo, la vita e
la storia. La coscienza di Zeno è un romanzo intessuto di questa stratificazione in cui il disguido
das consequências paradoxais desta forma, a autobiografia, que ele
próprio modaliza, quando qualifica seu texto como “uma autobiografia,
mas não a minha” ou lembra, em seu corpo, que “uma confissão escrita é
sempre mentirosa”11. Da confissão, expressão literária de um processo
religioso de expiação cujos modelos canônicos são Santo Agostinho e
Rousseau, Svevo conserva, sob aspecto secularizado, apenas a
perseguição sem fim de uma miragem: uma consciência inocente
impossível, sempre adiada. Reverter esta inquietude a seu favor é o que
seu narrador tardio buscará.
gioca un ruolo principale; un romanzo di tanti piani, ognuno dei quali sembra contenere un
diverso messaggio, come la vita, diversa e contraddittoria in ogni sua espressione. Svevo è il
poeta dell’ambiguità inestricabile nascosta nei gesti quotidiani anche più inappariscenti e vivrà,
del resto, la sua stessa esistenza, perfino il successo tardivo, come un malinteso. In: Magris, C.
La “coscienza di Zeno” di Italo Svevo, op. cit., p.15.
11 A importância para Svevo da vida repartida e multiplicada na experiência efetiva e cotidiana
assumir os negócios da família mais cedo. É no enterro do pai, aliás, que conhece a futura
mulher, uma prima de segundo grau; depois do casamento, foi levado a assumir também as
fábricas de verniz naval de propriedade da família da esposa, próxima dos círculos fascistas do
poder, destoando de sua simpatia pelos ideais socialistas.
uma certa uma integridade individual, hábitos que assumem o aspecto
enganoso de amor per se à existência13.
Este é um escritor dominado pela paixão da análise que passa a
fazer parte de uma tradição literária que transforma a literatura numa
espécie de “glossário do declínio contemporâneo” (Magris), um manual
desta participação nas trevas que é a existência moderna, e que assume
que a representação da vida possível na arte de nossos tempos está
fadada à incompletude, à obscuridade, à parcialidade individual. Quando
o psicanalista descarta o esforço compreensivo que resultou no romance,
descrevendo-o como uma série de mentiras, torna-se ele, uma caricatura
de hermeneuta, míope às próprias virtudes do esforço de racionalização
que gerou. Zeno afirma “lembro de tudo, mas não entendo nada” e sua
narrativa-ação se dá totalmente neste intervalo, entre o que se recorda e o
como o interpreta. A cada momento, o jogo é sobre a interpretação de um
gesto, de uma palavra, de uma lembrança, que refuta se subsumir a um
sistema racionalmente administrado: é da ordem daquilo que escapa à
razão o que interessa ao narrador, por extensão, ao leitor, a
(in)capacidade (rebelde) de se submeter a um sistema.
Em “Argo e seu dono”, um cão narrador empenha-se na construção
de um conjunto de categorias epistemológicas abrangentes, capazes de
apreender o mundo a partir dos cheiros: “Existem três cheiros neste
mundo: O cheiro do dono, o cheiro dos outros homens, o cheiro de Titi, o
cheiro de diversas raças de animais (lebres que às vezes, mas raramente,
são grandes e com chifres, e pássaros e gatos) e enfim o cheiro das
coisas14.” A classificação, tão atraente e desconcertante quanto a do verso
de Altazór, poema do chileno Vicente Huidobro (“Los cuatro puntos
cardinales son tres: el sur y el norte”), desenha um sistema de
ordenamento que se desarticula à medida que vai se construindo. A
impossibilidade de nomear as coisas de maneira estável deriva da ideia
de que o próprio sujeito é uma soma de fragmentos, reunião precária de
eus em disputa, sempre prestes a serem silenciados e de novo
convocados, tornando a reivindicar a controle sobre o todo.
A vontade de ordem que subsiste à ideia do romance de formação,
a vontade do compromisso administrável que da travessia do sujeito
problemático pela vida extrai uma lição, por mais melancólica que seja, e
confere um caráter inteligível a esta travessia que tudo teve de acidental e
administrada pelo acaso, se espelha na forma deste romance que é a de
13Cf. Samuel Beckett, Proust. Trad. Artur Nestróvski. São Paulo, Cosac Naify, 2003.
14 “Argo e seu dono”. In: Italo Svevo, Argo e seu dono. Trad. de Liliana Laganà. São Paulo:
Berlendis e Vertecchia, p.30. Esistono tre odori a questo mondo: L’odore del padrone, l’odore
degli altri uomini, l’odore di Titì, l’odore di diverse razze do bestie (lepri che sono talvolta ma
raramente cornute e grandi, e uccelli e gatti) e infine l’odore delle cose. In: Italo Svevo, Racconti e
scritti autobiofrafici (ed. crítica, aparato genético e notas de Clotilde Bertoni). Milão, Mondadori,
2004, p.100-1.
um pensamento fragmentário e conflitivo, em busca de uma unidade
impossível e incapaz de resolver as contradições da vida. A consciência
que escreve não ordena, nem hierarquiza as experiências, antes confunde
e altera as ordens que existiam antes deste esforço. Portanto, a
autobiografia não resulta em uma vida, mas na possibilidade de múltiplas
vidas, nem resulta em coisa acabada, mas em abertura permanente. Que
no âmbito da obra Svevo jamais abandone Zeno, retomado repetidas
vezes em narrativas posteriores - mesmo personagem, impasse e
compulsões que exibe ao cabo da Consciência - só confirma sua tipicidade
moderna de sua condição.
Até o fim de seus dias, Svevo acalentou o projeto de um quarto
romance com Zeno em foco, lamentando seu estado de acabamento
provisório, o da edição de Consciência, agora rigidez morta da escrita
fossilizada, reclamando para si outras possibilidades. Para Svevo, a
velhice encarna um crepúsculo do sujeito paradoxalmente promissor.
Como muitos dos autores modernos, escolheu os ineptos, os fracos, os
velhos, os acídicos, encarnações do indivíduo por excelência para ele,
sobrevivente graças a esta estratégia de retirada para os microespaços
privados, onde a escrita permite driblar o jogo de limitações práticas da
vida e a descoberta do novo onde aparentemente novo não há. Há uma
insistência grande ao longo da Consciência em qualificar a vida como uma
doença da matéria, como ela também aparece, por exemplo, em A
montanha mágica de Thomas Mann; a velhice se apresenta, então, como a
máscara mais veraz desta vida entendida como doença, processo
entrópico de evolução para a perda, segundo uma ótica cinzenta de um
intelectual que observa também um processo de declínio da civilização e
não se permite ilusões.
Em uma incursão dramática, transposição aos palcos deste
universo da obra final, A regeneração (La rigenerazione), Svevo lida com um
duplo fáustico de Zeno, em idade ainda mais avançada: à meia-noite, a
esposa dormindo, o velho aventa a possibilidade de um pacto que lhe
concedesse algo faltante, uma dimensão essencial que não sabe definir.
Descarta de pronto a juventude que, recuperada, lhe tiraria justamente a
força de ser débil, poder que deriva da impotência, de não estar
envolvido nas engrenagens sociais e ganhar a liberdade de fazer o que
quiser. O desfecho traz um Mefistófeles desorientado, tentando encontrar
o que de sedutor oferecer a este homem que já tem a força da fraqueza.
Quem são, pois, os velhos de Svevo? São protagonistas como o
Molloy, de Samuel Beckett, ineptos que escrevinham diariamente como
uma medida de higiene. Para eles, a velhice é uma libertação de um
presente espinhoso propiciando um salto em um outro presente, o de um
tempo indeterminado em que todos os tempos se encontram, presente da
autografia, da enunciação, da linguagem. O regime temporal da ficção
tardia sveviana, Consciência em particular, é um regime complexo. Ainda
que seu livro se deixe ler como um romance tradicional, em que as etapas
da vida de um homem ganham corpo (formação, morte do pai, os
negócios, o casamento e a velhice), o movimento fabulatório deixa claro
que o personagem não se traduz naquilo que viveu, mas sim no que
escreve, ambiguidade que lhe confere interesse particular.
Inventar pela palavra passa a ser território da criação, deixa de ser
uma mentira para alçar-se a modo de refazer os dados da experiência. Em
seu discurso de autoanálise, Zeno emite sinais constantes e dispersos
nesta direção; afirma, por exemplo, que quando ocasionalmente lhe
acontece de dizer a verdade, o faz plantando sinais ambíguos e
contraditórios em relação ao que afirma (“diz a verdade, mas com um
sorriso de quem quer fazer crer que está mentindo”) e são estes indícios
que guardam o que de mais interessante existe a ser colhido no livro. Ou,
no mesmo sentido, declara que a ele não importa a verdade, mas ao
mesmo tempo se dá ao trabalho de desfazer o engano daqueles que
acreditam na sua versão, chegando a desmentir-se em alguns momentos.
Ou ainda confessa que altera levemente suas histórias, mas apenas o
bastante para torná-las mais expressivas. Verdade e seu contrário
habitam, como deus, nos detalhes e é com eles que Svevo lida muitíssimo,
os detalhes expressivos que podem conferir verossimilhança para uma
mentira. Em que ponto o mentiroso deve estancar sua fantasia
fabulatória? Onde começa a se trair, até onde sua versão ainda se
sustenta?
Zeno se apresenta como um homem mentiroso e, diferentemente
do mentiroso ingênuo, concede sua falsidade ao se analisar; contudo,
mesmo caída a máscara, exposta esta natureza dissimulada, segue sendo
incapaz de renunciar ao hábito de defender, com unhas e dentes e fadado
ao fracasso, a veracidade das mentiras de pernas curtas, mas
elaboradíssimas na linguagem, que inventa. E nestes termos é um homem
moderno, o homem cindido e fragmentado, um representante da
pluralidade do eu e da ironia moderna, portador da capacidade de
observar-se de fora, ruína de qualquer possibilidade da espontaneidade
ingênua, presente e ausente a um só tempo. Tudo isto sob um estilo que
se apresenta como clássico, na verdade, ambíguo e dificílimo em
decorrência deste esquema temporal e da torsão que Svevo aplica ao
narrador não confiável do romance, como se houvesse um romance
dentro do outro, vários romances. Há uma técnica experimental ali que
dissolve as convenções narrativas do romance, dissolve-o enquanto uma
história de vida, fórmula que aqui não mais se sustenta depois de nos
darmos conta do quanto está enredado o protagonista no cadinho da
escrita.
A retirada do personagem para o tempo da escrita e da velhice não
visa a aposentadoria precoce, a tranquilidade, a imobilidade, mas seu
avesso. Trata-se do portal para uma mobilidade irrequieta que escapa às
pressões sufocantes do real. Apenas a partir dela, o narrador passa a
exercer uma margem de liberdade, ocupado com um exercício de
conversão de uma realidade baça, cinzenta, sem virtualidade, em algo
novo que preserve alguma chama de pulsões de vida, eróticas e irônicas,
inclusive. Este é o presente que o protagonista de Svevo valoriza e é a ele
que quer estar associado. A novela “O meu ócio”, que traz em primeiro
plano novamente Zeno, se abre em um elogio a este presente compósito e
móvel:
Já o presente, não se pode burlá-lo nem no calendário, nem no relógio, que
se olham apenas para estabelecer a própria relação com o passado ou para
nos encaminhar para uma aparência de consciência rumo ao futuro. Eu, as
coisas e as pessoas que nos cercam somos o verdadeiro presente.
Meu presente se compõe de vários tempos. O primeiro, longuíssimo
presente, o abandono dos negócios, dura oito anos, uma inércia comovente;
vem em seguida acontecimentos importantíssimos que o fracionam. O
matrimônio de minha filha, por exemplo, um acontecimento do passado
que se insere num outro longo presente interrompido, ou talvez renovado,
ou melhor, corrigido pela morte de seu marido. O nascimento de meu
netinho Umberto, também longínquo, porque o presente real em relação a
Umberto é o afeto que sinto por ele agora, na sua conquista, de que ele
nada sabe, e acredita ser-lhe de direito por nascimento. Ou será que
acredita em alguma outra coisa, de modo geral, aquela minúscula alma?
Meu presente em relação a ele é exatamente seu passo pequeno e seguro,
interrompido por medos angustiantes, logo curados pela companhia dos
brinquedos, quando não consegue conquistar a assistência da mãe, ou a
minha, o avô. Meu presente também é Augusta como ela é agora,
coitadinha, com seus bichos, cães, gatos e pássaros, e sua eterna
indisposição da qual não quer se curar com a mínima energia. Faz aquele
pouco que lhe prescreve o dr. Hauling e não quer ouvir nem a mim que
com força descomunal consegui vencer a mesma tendência, a
descompensação do coração, nem a Carlo, nosso sobrinho, o filho de
Guido, que voltou há pouco da universidade e conhece, portanto, os mais
modernos medicamentos.
Claro, grande parte do meu presente provém da farmácia15.
15 “O meu ócio”. In: Argo e seu dono. Trad. de Liliana Laganà. São Paulo: Berlendis e Vertecchia,
2001, p.82-3. Già il presente non si può andar a cercare né sul calendario né sull’orologio che si
guardano solo per stabilire la propria relazione al passato o per avviarci con una parvenza di
coscienza al futuro. Io e le cose e le persone che mi circondano siamo il vero presente.// Il mio
presente si compone di varii tempi anch’esso. Ecco un primo lunghissimo presente:
l’abbandono degli affari. Dura da otto anni. Un’inerzia commovente. Poi ci sono avvenimenti
importantissimi che lo frazionano: Il matrimonio di mia figlia p.e., un avvenimento ben passato
che s’inserisce nell’altro lungo presente, interrotto – o forse rinnovato o, meglio, corretto – dalla
morte del marito. La nascita del mio nipotino Umberto anch’essa lontana perché il presente
vero in rapporto ad Umberto è l’affetto che oramai gli porto, una sua conquista di cui egli non
sa neppure e che crede spettargli per nascita. O crede qualche cosa in genere quel minuscolo
Esta multiplicidade de planos do concreto interessa, mas ganha
verdadeiro relevo apenas o tempo da escrita, único, distinto de todos os
outros possíveis, porque maleável e continuamente novo e responsável
por manter acesa a tensão vital que o mundo cotidiano impede e a velhice
possibilita, tornando o homem disponível para rigorosamente tudo.
Trata-se do tempo análogo ao da aventura erótica do velho, esta segunda
adolescência que também aparece, por exemplo, na obra tardia de
Drummond ou Yeats, do desejo em tempos de madureza. Convicto de
que é da natureza da morte reclamar tudo que é estéril, acabar com o
tempo de quem não mais procria, o personagem sai em busca de uma
moça em semelhança insuspeita com os contos de lograr a Indesejada da
tradição popular brasileira, transposto a uma perspectiva muito
darwiniana e schopenhaueriana, no espírito do tempo.
Velhice e escrita são, então, não agentes de conformismo, mas de
corrosão anárquica de toda organização pré-definida da existência, são os
lugares em que se possibilita algum protesto tímido e negativo que
culmina não no momento de alguma realização que se cristalize e
engesse, mas na possibilidade de manter uma tensão produtiva aberta.
Do ponto de vista da economia psicológica, os heróis de Svevo não têm
medo de não serem amados, mas de não mais conseguirem amar. A
ameaça é a felicidade numa espécie de acomodação morna do cotidiano.
O que interessa é notar como estes agentes, indecisos entre a mulher e a
amante, entre a saúde e a doença, o fumo e a desintoxicação, a moral e a
transgressão, o imaginado e o existente, recusam-se à perda que
representa uma escolha feita, adiando-a sine die. O potencial da fantasia
em aberto leva-os a eleger este espaço de indecisão como estratégia de
resistência contra o achatamento das possibilidades vitais que o universo,
racionalizado e reificado, impõe. Cultivam o sentido da possibilidade
justamente onde se parece renunciar a ele: na acídia, no ócio, no instinto
protelatório (o último cigarro, reiteradas vezes, o último encontro com a
amante). A escrita é um projeto que contém uma dimensão infinita, a da
eterna revisão da própria vida, o que faz da Consciência uma
autobiografia sui generis, porque ironicamente em suspenso, sem epílogo,
sem a chave de ouro ou lata que confere inteligibilidade ao indivíduo,
animo? Il suo, il mio presente in rapporto a lui, è proprio il suo piccolo passo sicuro interrotto
da paure dolorose che sono però curate dalla compagnia di pupattoli quando non sa
conquistarsi l’assistenza della mamma o la mia, del nonno. Il mio presente è anche Augusta
com’è ora – poverina!- con le sue bestie cani, gatti e uccelli e la sua indisposizione eterna di cui
non vuole curarsi con l’energia voluta. Fa quel poco che le prescrive il dottor Raulli e non vuole
ascoltare né me – che con forza sovrumana seppi vincere la stessa tendenza, la
decompensazione del cuore – né Carlo, nostro nipote (il figlio di Guido) ritornato da poco
dall’Università e che perciò conosce i medicinali più moderni.// Certo, gran parte del mio
presente, proviene dalla farmacia. Romanzi e “continuazioni” (ed. crítica, aparato genético e
notoas de Nunzia Palimieri e Fabio Vittorini). Milão, Mondadori, 2004, p.1197.
transformando-o numa unidade que não mais se esboroa na sucessão
desconexa de experiências.
16Figura axial na modernidade, Beckett cria seus precursores à maneira de Eliot e Borges,
constitui-se em marco obrigando à releitura e reorganização da história literária, para frente e
para trás de seu aparecimento; a recepção da obra de Svevo, de outra geração e momento,
permanece muito mais ambígua, oscilando entre celebração e silêncio. Cf. Peter Boxall, Since
Beckett: contemporary writing in the wake of modernism.Londres, Continuum, 2012.
revogando a inteireza de qualquer relato; a mescla de farsa e tragédia, o
lugar destacado da impotência e da acídia, as racionalizações malogradas,
e o gosto pelo ponto de vista excêntrico, à margem, que a errância de um
clochard ou o retiro da velhice garantem, tudo isto aproxima a ficção do
burguês triestino e do exilado dublinense numa instabilidade estrutural
comum, construída e cultivada, corda bamba moderna a que Hugh
Kenner faz alusão para definir a família artística beckettiana. Assunto
vasto, que ora mais vale reservar intocado, objeto de artigo futuro, ainda
por ser escrito, ou mesmo indefinidamente adiado, em estratégia
sveviana de lograr a morte.
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O objetivo deste ensaio é refletir sobre o livro A Montanha Sociedade;
Mágica, de Thomas Mann, como romance de formação. Se, Romance de formação;
por um lado, ele se tornou um clássico literário que vai além Thomas Mann;
das fronteiras e do tempo, por outro, em sua concepção, pode Literatura.
ser interpretado no passo a passo de diálogos graças aos
quais as escolhas do autor podem ser apreendidas. No
recorte analítico aqui feito, destacam-se Schopenhauer e
Nietzsche como interlocutores importantes para a construção
e a concepção de formação subjacente ao livro, num
momento crítico da história alemã e europeia.
ABSTRACT KEYWORDS
The aim of this essay is to reflect on the book “The Magic Society;
Mountain”, by Thomas Mann, as a bildungsroman. If, on the one Bildungsroman;
hand, it has become part of a literary canon that goes beyond Thomas Mann;
borders and time, on the other, it can be interpreted in its Literature.
conception on the face of dialogues thanks to which the author's
choices can be apprehended. Schopenhauer and Nietzsche stand out
as important interlocutors for the construction and conception of
formation underlying the book, published at a critical moment of
the German and European histories.
1 A elaboração deste artigo sustenta-se em uma imensa gratidão aos amigos que formaram e
fazem parte do grupo de leitura e discussão chamado Classicando, de São José dos Campos.
Amigos que aceitaram a indicação do romance de Thomas Mann. No decorrer dos encontros,
reinventamos o verbo subir como sinônimo do ato de ler “A montanha mágica”. Aos amigos
Carla, Rodinei, Hilda, Paulo, Giselle, Diva e a meu amor, Helen, muito obrigado pela
companhia durante a caminhada livro acima!
Agora se nos abre, por assim dizer, a montanha
mágica do Olimpo e nos mostra as suas raízes.
O grego conheceu e sentiu os temores e os
horrores do existir: para que lhe fosse possível de
algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e
a vida, a resplendente criação onírica dos deuses
olímpicos.
Friedrich Nietzsche
Thomas Mann e o Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 77; 79.
A evocação da referência mitológica (via filosofia), transfigurada
em material ficcional, produz desconforto, tendo em vista que o leitor fica
diante de um romance cujo ponto de fuga não é propriamente o real5,
refratado pela ironia, pela linguagem, pelo ato criativo. A montanha é
uma imensa invenção estética. E não é a vida de Castorp em sua
totalidade que está em questão. O herói não é acompanhado desde o
nascimento até o túmulo e os sucessos de sua existência não são urdidos
segundo um princípio unívoco de sentido ou propósito. A morte plena de
vida, evocada por Max Weber, referindo-se a Abraão, não seria
experimentada pelo jovem personagem, se nos fosse dada a chance de ler
seu fim. Entretanto, esse romance de educação e instrução é denso o
suficiente para sentirmos que a formação embebe o espírito de Castorp
em um processo civilizatório de grande envergadura. O romance ainda é
mais contundente, em termos da ambição que o enforma, na medida em
que a crise desse mesmo processo civilizatório é outra entre as linhas que
entram no emaranhado estilístico do livro. Um emaranhado no qual os
personagens são mergulhados, do qual são partes constitutivas, deixando
marcas no mais recôndito de seus seres. Formar-se é tomar parte na
história. Narrar é tentar apreendê-la em seus sucessos e infortúnios,
progressos e golpes. É disso que se trata.
O narrador é a força apolínea que dá forma e substância ao
romance e impele o jovem Castorp para longe de sua terra natal,
Alemanha. Torna-se ele um estrangeiro, cuja formação será entrelaçada a
um dos grandes temas das tradições literárias: a viagem. Ao fim da saga,
o eu-lírico devolve o herói ao país de origem, selando, dessa feita, uma
estranha reconciliação com sua terra, já mergulhada na Grande Guerra.
Um regresso enviesado ao lar. Ao fim, trajando o fardamento militar,
Hans Castorp ajusta-se ao habitus militar alemão6, engendrado no
decorrer de um longo processo histórico-social de construção do Estado
nacional. A despeito do aprendizado propiciado nos alpes e da vontade
do personagem, Castorp parece atado a forças que se sobrepõem à sua
vida, lançando-o, de chofre, nas grandes questões do tempo, na
tempestade da história. É possível formar-se no torvelinho de uma crise
sem precedentes? É possível narrar (em) um momento de tal monta? Não
à toa, Soethe se refere ao romance a partir de sua “materialidade
‘orgânica’” e o leitor é desafiado a lê-lo “como quem se depara com um
quadro, um objeto no espaço”7.
A montanha, o itinerário de Castorp e as relações por ele ali
travadas são o espaço ficcional que expressa a envergadura do trabalho
5 ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2003, p. 60.
6 ELIAS, Norbert. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro: Zahar, 1997.
7 SOETHE, 2017, p. 835.
imaginativo de Mann, pelo qual a produção da forma constitui um ato
político propriamente dito8. Ato que requer do esteta um olhar que
transite entre realidade e ficção, história e mito, tradição literária e
renovação contemporânea, literatura e filosofia, arte e ciência, com todas
essas linhas de força tomando parte na trama do romance. Esse complexo
trançado torna o Berghof um símile de espaço público onde a apreensão
da realidade requer a coexistência de ângulos diversos, pontos de vista
distintos que não podem ser o mero prolongamento do mundo familiar9.
Para adentrá-lo, é preciso se distanciar do lar. Nesse romance, Mann
parece internalizar o princípio do espaço público na constituição da
forma romanesca, ao mesmo tempo em que a circulação e a leitura de
uma obra assim teriam potencial para estimular o debate público em seu
tempo.
“A Montanha Mágica” (1924) pode ser interpretada como um
romance de formação, cuja estrutura corresponde a uma certa concepção
romanesca típica do gênero. Segundo Lukács10, “O romance é a forma da
aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da
alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras
para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria
essência”. No decorrer da leitura, a jornada de Hans Castorp é oferecida
aos leitores em seu processo de crescimento, mas, sobretudo, no que diz
respeito aos momentos e experiências decisivos que vão entrar na
constituição de seu caráter, construído a partir dos laços que o vinculam
aos seus amigos e familiares, mas também àquilo que significa ser alemão
e europeu às vésperas de um momento crítico de sua história.
Formar-se é tornar-se cidadão. Por um lado, há a individualidade,
mesmo que sem contornos nítidos (como o próprio tempo), mas também
a história, e ambas são partes do mesmo emaranhado estilístico. Biografia
e “longue durée”. Um labirinto que, ao fim, deixa o leitor diante do corte
seco do eu-lírico, que se recusa a perseguir os passos do personagem, já
mergulhado na Grande Guerra. Nesse momento, é o próprio ofício do
escritor que fica sob suspeita, seja porque os fundamentos sociais da
formação perdem os lastros capazes de manter seus possíveis sentidos,
seja porque o próprio autor se cala ante o desafio de narrar os fatos e
efeitos daquele conflito bélico, quiçá antecipando a tese de Alfred Schutz,
em seu texto sobre “Aquele que retorna ao lar”, e de Benjamin, acerca dos
“combatentes que tinham voltado silenciosos do campo de batalha”11.
análise mais detida acerca do tempo na composição do romance em questão, cf. RODRIGUES,
Menaldo Augusto da Silva. RODRIGUES, Menaldo Augusto da Silva. “A representação do
tempo no romance Der Zauberberg de Thomas Mann”. Dissertação apresentada à FFLCH/USP,
São Paulo: 2008.
14 MANN, 1980, p. 601.
15 SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Questões de fronteira: sobre uma antropologia da história.
Novos estudos - CEBRAP, São Paulo: n. 72, p. 119-135, July 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002005000200007&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 31 mar. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002005000200007.
16 WAIZBORT, Leopoldo. Formação, especialização, diplomação: da universidade à instituição
de ensino superior. Tempo Social, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 45-74, Dec. 2015. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
20702015000200045&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 28 Mar. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/0103-2070201523.
sujeito e suporte é o indivíduo, depende da personalidade ao mobilizar
aquela diferenciação, amplitude e profundidade em uma espécie de
conversação coletiva, em um processo complexo de circularidade e de
determinação mútuas, em que formação e personalidade vão se incitando e
aprofundando uma à outra ao longo do tempo, em um processo sem fim.
Uma modalidade muito importante dessa conversação foi a instituição de
ensino e a universidade, e os círculos de sociabilidade daí advindos
tornaram-se seus mecanismos de reprodução por excelência. A
conversação, ou seja, as formas de comunicação que estão no âmago do
processo formativo, possibilita que o desenvolvimento da personalidade
não se confunda com qualquer espécie de solipsismo ou enclausuramento,
mas se abra para a multiplicidade das formas de existência e pensamento e,
com isso, "se forme".
17 SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana. Rio de Janeiro. v. 11, n.
2, p. 577-591, Oct. 2005.
Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
93132005000200010&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 03 abr. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132005000200010.
18 MANN, Thomas, apud. DAYAN-HERZBRUN, 1997.
A formação tem a ver com atos da fala e retomamos aqui a
discussão de Hannah Arendt acerca de como a realidade e sua apreensão
dependem da visão e audição dos indivíduos em público19. Será no
confronto com personagens diversos que Hans Castorp, longe de casa,
pouco a pouco, irá se transformando sob o escrutínio dos leitores. Mas no
jogo de sutilezas empregado por Mann, novamente, há um afastamento
em relação aos elementos constitutivos da formação, ao menos segundo
Waizbort: a "abertura" de Castorp se dá, paradoxalmente, na clausura de
um sanatório, a partir daquilo que Mann chamará de “pedagogia
hermética”. Em um ensaio sobre Goethe, ele retoma a ideia de educação
como passagem do mundo interior para a vida social20. Nos termos de
Arendt, transição da esfera privada para a pública.
De certa forma, o sanatório funciona, no texto, como um
microcosmo (a montanha) deslocado em relação à Europa real (a
planície). Desta, poucas são as informações que chegam, na medida em
que são raros os personagens interessados nos fatos políticos e
econômicos do continente. Essa duplicação é crucial para criar um espaço
ficcional com suas próprias regras quanto à relação entre os personagens,
ao tempo e às transformações corporais e psíquicas de quem vive dentro
da instituição. Trata-se da representação literária propriamente dita,
“status irreal da experiência temporal ficcional21”. Um arranjo pelo qual
Mann também se afasta de um padrão típico dos romances em seu
nascimento. Se “os leitores nos últimos dois séculos têm encontrado no
romance a forma literária que melhor satisfaz seus anseios de uma
estreita correspondência entre a vida e a arte” 22, tais parâmetros
(espaciais e temporais) são quase inexistentes em “A Montanha Mágica”,
que termina por exigir mais de quem o lê, tanto em termos de fôlego
como no que concerne ao repertório necessário à interpretação. Thomas
Mann criou uma obra na qual ficam sob espessa névoa as balizas que
permitiriam ao leitor apreciar o romance a partir de aproximações com o
tempo e os marcos geográficos ali referidos. Talvez o “encantamento”
expresse as incertezas que efetivamente pairavam no ar nos momentos
imediatamente antecessores da guerra.
Hans Castorp faz uma viagem da planície à montanha pouco antes
de concluir sua instrução técnica como engenheiro naval e iniciar um
estágio que lhe permitiria entrar no mundo do trabalho propriamente
dito. Nesse momento, ele tem seus vinte e tantos anos. Aí tem início sua
formação: toda a trama da história parte dos efeitos psíquicos que a
Essa contradição na sua atitude perante o trabalho deveria, a bem dizer, ser
resolvida. Talvez assim é que o seu corpo tanto como o seu espírito – em
Contudo, Rodrigues (2008, p. 13) cita uma carta em que Mann afirma a importância da leitura
de Schopenhauer na concepção e na escrita de seu romance. O ensaio é prova, portanto, da
importância que Mann via nesse filósofo, em suas questões, cujo interesse se estendia ao longo
transcrição do seguinte excerto:
Esta é uma natureza plena cheia de tensões, uma natureza emocional, que
oscila entre contrastes violentos, entre o instinto e o espírito, entre a paixão
e a redenção; em suma, é uma natureza artístico-dinâmica, que não pode se
revelar, a não ser como criação da verdade. E essa criação da verdade é algo
pessoal, algo que convence pela força de seu caráter vivido e sofrido41.
O senhor sempre quer que tudo seja inofensivo, Castorp. É essa a sua
índole. Às vezes não se mostra avesso ao contato com coisas nada
inofensivas, mas então as trata como se fossem perfeitamente inocentes, e
com isso pensa agradar a Deus e aos homens. O senhor é uma espécie de
do tempo.
41 No original: Ésta es una naturaleza lhena de tensiones, una naturaleza emocional, que oscila
entre contrastes violentos, entre el instinto y el espíritu, entre la pasión y la redención; es, en
suma, una naturaleza artístico-dinámica, que no puede revelarse más que como creación de la
verdad. Y esa creación de la verdad es algo personal, algo que convence por la fuerza de su
carácter vivido y sufrido (MANN, 2008, p. 20).
42 “Os valores morais e culturais (espirituais) expressos por Castorp parecem impor-se nas
impressões que o narrador lhe atribui, mas sua corporeidade (a vida) é que avança para o
primeiro plano, por via estética, sensorial” (SOETHE, 2017, p. 840).
covarde e de hipócrita (...)43
sano entendimiento humano; en invertir la verdad popular; en hacer que la tierra gire en torno
ao sol, siendo así que, para todo sentir normal, ocurre lo contrario; en desconcertar a los
hombres, en embelesarlos y amargalos, proponiéndoles verdades que se oponen derechamente
Se a formação depende da ruptura de hábitos, se ela não é apenas
um exercício abstrato da razão, mas função do corpo, com suas emoções e
sofrimentos, então deve, obrigatoriamente, enfrentar o tema da morte.
Esta é a leitura que Carpeaux faz também de Mann: sua obra nasce da
relação entre arte, doença e morte46. Ou melhor, não apenas a morte em
si, mas a condição dos seres humanos que estão no limiar entre a
existência e o desaparecimento: os moribundos. No início da história, o
narrador do romance alerta o leitor: as mortes do pai e do avô paterno de
Hans Castorp (e da mãe) ficarão sedimentadas em seu recôndito,
deixando marcas nos sentidos do garoto47. Sendo assim, um novo trecho
da filosofia proposta por Schopenhauer merece ser apresentado:
al hábito de sus sentidos. Pero esto tiene una finalidad pedagógica: la de conducir el espíritu
humano a alturas cada vez mayores, la de hacerlo capaz de nuevas hazañas (MANN, 1980, p.
23).
46 CARPEAUX, 2008, p. 2295.
47 MANN, 1980, p. 36.
48 No original: La muerte no es más que la supresión de un yerro, de un extravio, pues toda
Digo “sim” ao corpo, honro-o e sinto amor por ele, assim como faço em
face da forma, da beleza, da liberdade, da alegria e do gozo, assim como
tomo o partido das coisas mundanas, dos interesses da vida contra a
aversão sentimentalista do mundo; represento o Classicismo contra o
Romantismo. Acho que a minha posição é inequívoca. Mas existe um
poder, um princípio ao qual dedico a minha mais fervorosa aprovação,
meu supremo respeito e amor, e esse poder, esse princípio é o espírito. Por
mais que eu abomine ver como alguns procuram opor ao corpo qualquer
fantasmagoria suspeita que chamam de “alma”, não ignoro o princípio
mau e diabólico; pois o corpo é a natureza, e a natureza – repito que se trata
da sua oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! “O senhor é
humanista!” Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem,
como o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza.
Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito e na razão, e por isso seria
53 Ibid., p. 279-280.
54 SOETHE, 2017, p. 837.
55 CARPEAUX, 2008, p. 2255.
sentado na relva e esfrega os olhos, como faz quem se omitiu, em que
pesem numerosas admoestações, de ler os jornais56.
Francisco Jose Ramires é formado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e
doutor pela mesma universidade. Ministra aulas de sociologia em São José dos Campos/SP, na UNIP.
Contato: [email protected]
65 Ibid., p. 210.
O CAPÍTULO 19 DE SÃO BERNARDO :
FUSÃO, TRANSFUSÃO, CONFUSÃO
Erwin Torralbo Gimenez
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O estudo procura observar, em termos críticos, os traços do Graciliano Ramos;
realismo deformador em São Bernardo, de Graciliano Ramos. São Bernardo;
Centra-se, para tanto, na análise de um fragmento: o capítulo Carpeaux
19. Como núcleo das tensões que caracterizam o romance, tal Realismo deformador;
passagem apanha na forma o movimento dramático entre a Derrelição.
matéria e o sujeito sob uma perspectiva desfi-guradora. Em
seu desenho, o capítulo apreende a síntese de todo o enredo
com três lan-ces: perplexidade na enunciação das vivências;
embaralhamento dos tempos em estado de delírio; volta sem
escape ao escuro presente.
ABSTRACT KEYWORDS
This study seeks to observe, in critical terms, the traces of the Graciliano Ramos;
deforming realism in São Bernardo, by Graciliano Ramos. São Bernardo;
Therefore, this essay centers itself in the analysis of a frag- Carpeaux;
ment: the 19th chapter. As a nucleus of the tensions that cha- Deforming realism;
racterize the novel, this excerpt holds in its form the dramatic Dereliction.
movement between matter and subject by a distorted perspec-
tive. In its progression, the chapter apprehends the synthesis
of the entire plot in three casts: a perplexity in the enuncia-
tion of experiences; a shuffle of time in the states of delirium;
an inescapable return to the dark present.
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.
(...)
Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:
(Drummond)
(Graciliano Ramos)
P osto no exato meio de São Bernardo, como uma fenda aberta entre
os movimentos díspares que forjam o romance, o capítulo 19 condensa
passado e presente, melancolia e remorso, num emaranhado, e com isso
atira o narrador às zonas do delírio. Suspende-se a linha reta dos fatos e
emerge outra vez o sujeito da escrita, deslizando assim o discurso na cur-
va das memórias. Se o desconcerto das páginas iniciais se prende à im-
possível alienação da voz narrativa e logo reflui durante a primeira parte
do relato, ora a crise se instala em grau de maior intensidade, à medida
que se fundem os fios de sua desdita. Sem atingir no presente o cerne do
trágico – motivo tanto do drama como do livro –, Paulo Honório já não é
capaz de discernir as esferas do tempo, enfim transfundidas, e resvala
num turvamento fantástico: deformam-se, e não se apagam, as imagens
da atualidade e do pretérito, mergulhado o espírito na confusão entre os
dois.
Esse fragmento notável se articula, na trama da escrita, com as
margens do romance, o princípio e o fim, momentos em que o narrador
encara os problemas da expressão, aqui tão necessária quanto insuficien-
te. Os capítulos 1 e 2 refletem, com sinais invertidos, os planos da tensão
entre o pragmático e o intuitivo: recompor a própria vida pela divisão do
trabalho é empresa inconseqüente, porque há uma demanda interior que
o estilo alheio não pode capturar; tampouco cabe esquecer a demanda, e
ao sujeito resta perseguir solitário o sentido do que viveu. Quando afasta
as letras sob encomenda, Paulo Honório acusa a falta da pessoa no discur-
so e termina envolto por sons e visões pungentes, sobretudo o pio da co-
ruja; em seguida, o eco desse pio arranca a narração, mas esta não ganha
fluidez (“Continuemos. Tenciono contar a minha história. Difícil.”), antes
insinua o avesso das coisas num paradoxo: “digo a mim mesmo que esta
pena é um objeto pesado” – a frase constitui, aliás, o índice de ambigüi-
dade que pouco a pouco vai crescendo no passo do livro. O último capí-
tulo retorna ao presente e modula um balanço arrasador do roteiro revis-
to nas memórias, cuja matéria nem o tempo nem a escrita chega a pene-
trar. Distante dois anos do evento trágico, a morte de Madalena, o narra-
dor há quatro meses procura descascar fatos, entregue à intimidade, porém
o esforço não o conduz ao núcleo de seu drama, apenas o paralisa na
fronteira do patético, esse intervalo de agonia e vazio que se rasga entre a
ação e a consciência: “Tentei debalde canalizar para termo razoável esta
prosa que se derrama como a chuva da serra, e o que me apareceu foi um
grande desgosto. Desgosto e a vaga compreensão de muitas coisas que
sinto.” E ainda no fim estão em choque insolúvel as duas faces de seu ca-
ráter: tenta dominar rígido o rumo das palavras (“canalizar para termo
razoável”), mas a prosa cumpre o regime de uma natureza infensa à obje-
tividade, segundo o belo símile das águas que escorrem na serra. O resul-
tado, embora escasso, indica os efeitos da expressão, pois o falso orgulho
já se muda em desgosto e uma intuição vaga rompe o abafamento, nos
limites do indivíduo. O resto é silêncio.
Não passou despercebido o alto relevo do trecho. Lúcia Miguel Pereira,
ao resenhar São Bernardo em 1934, admira no texto a “estranha beleza, re-
velando no autor uma grande maestria e um raro poder de sugestão”,
graças à atmosfera de crepúsculo na qual soa “uma nota de ternura”. 1
Antonio Candido observa, no arranjo do estilo, o trânsito “da vontade de
construir à vontade de analisar”, que se adensa e obtém coesão com o
monólogo interior, raiz dos sentimentos e da rememoração, cujo signo
mais elevado se encontra no capítulo 19, “mistura de realidade presente e
representação evocativa”.2 João Luiz Lafetá salienta a presença avassala-
dora da subjetividade justo nos instantes em que a escrita adquire realce,
e distingue o teor dúbio do trecho.3
1 Pereira, Lúcia Miguel. “São Bernardo e o mundo seco de Graciliano Ramos”. In: A Leitora e seus
Personagens. Rio de Janeiro: Graphia, 1992.
2 Candido, Antonio. Ficção e Confissão. São Paulo: Editora 34, 1999.
3 Lafetá, João Luiz. “O mundo à revelia”. IN: A Dimensão da Noite. São Paulo: Editora 34, 2004.
Além de firmar um vértice no centro do romance, o capítulo 19
grava um ponto de inflexão no ritmo da história, conforme faz guinar o
compasso das lembranças da ventura (ascensão econômica) para o infor-
túnio (revés afetivo). A segunda parte do enredo, rente à figura de Mada-
lena, se afina pelo diapasão instável da memória que novamente turva o
olhar. Em seu desenho, o capítulo apreende uma síntese formal de toda a
narrativa com três passagens: perplexidade na enunciação das vivências;
embaralhamento dos tempos em estado de delírio; volta sem escape ao
escuro presente.
Em simetria com o começo do romance, os parágrafos iniciais apre-
sentam a tensão nascida de perfis incompatíveis, primeiro a professora e
o coronel, e depois o coronel e o seu reverso sensível:
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma
vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa
foi minha, ou antes a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma
agreste.
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa
o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada,
mas sou forçado a escrever.4
5 Ramos, Graciliano. “Paulo Honório”. IN: 10 Romancistas Falam de seus Personagens. Rio de Ja-
neiro: Edições Condé, 1947.
6 Ramos, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.
7 Ramos, Graciliano. “Paulo”. In: Insônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.
8 Em outro testemunho acerca de suas invenções, Graciliano se refere a Paulo Honório: “É pos-
sível que esse sujeito reflita alguma tendência que no autor existisse para matar alguém, ato que
na realidade não poderia praticar um cidadão criado na ordem, acostumado a ver o pai, homem
sisudo e meio termo, pagar o imposto regularmente.” E considera, no fim, o reflexo oblíquo do
seu caráter sobre as personagens: “Todos os meus tipos foram constituídos por observações
apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possível que
eles não sejam senão pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcio-
nário e a cadela não existam.” (“Alguns tipos sem importância”. IN: Linhas Tortas. São Paulo:
Martins, 1970.)
artista, ao estudar os caracteres, exige avaliar no outro o que lhe é particu-
lar e crítico, sob o viés da angústia que distorce e ilumina os planos da
realidade.
Num episódio do cárcere, quando não pode divisar em seus reces-
sos o que o move a esta ou àquela reação, Graciliano gradua a pesquisa
da própria inconstância ao raio da pluralidade:
Topbooks, 1999.
cial, trai o desejo de eliminar a História na dissolvência do indivíduo12 –
“Não é bom vir o diabo e levar tudo?”, pergunta Paulo Honório, trágico.
Atento à matriz negativa da expressão, Alfredo Bosi considera, em
diferentes momentos, o travo doloroso que da persona do escritor se trans-
fere às suas criaturas. Como Carpeaux, Bosi realça o problemático a ins-
truir a visão e o estilo. Os enredos e tipos perfazem o signo da fratura,
que é social e moral, e moldados pelo pincel da singularidade guardam
em comum “o dissídio entre a consciência do homem e o labirinto de coi-
sas e fatos em que se perdeu.”13 O insulamento grave do autor, refratário
às propostas de seu tempo, se tinge de radicalidade e gera a escuridão.14
Com efeito, analisando os livros de corte biográfico, o crítico esmiúça o
senso de vigília que incide sobre as imagens e os seres, reparte-os em dú-
vida. Nas memórias da cadeia, o empenho compreensivo se recobre de
opacidade, truncado a todo instante, porque o olhar que sonda a si mes-
mo e ao outro não ignora os contrastes, e o mundo se ofusca num borrão:
“A perspectiva dominante é a que vai da interrogação à estranheza e, nos
casos extremos, fecha-se em recusa. Não é um realismo solar, é um rea-
lismo plúmbeo.” O chumbo – em suas acepções de cor, peso e ânimo –
baliza a tonalidade do testemunho. O cinzento também se dissemina, ne-
blinoso, nas páginas da ficção, lacerante nas vozes de narradores cujas
letras não bastam para expurgar o passado ou comunicá-lo ao próximo:
“Um sentimento turvo que nada parece apaziguar, pois não é nem a con-
trição do arrependido, nem o mergulho nas águas tépidas da autocomise-
ração.”15 Em sua leitura de Infância, Bosi medita nas inflexões do autor ao
descrever a paisagem, ora firme no claro do realismo solar, ora inseguro
nas nuvens do realismo vigilante; e ao descrever os entes da família, cerce-
ado pela educação bárbara, erra no labirinto do realismo febril: “A condi-
ção de impotência em face do outro beira o absurdo e estará na raiz da
essa visão, tão crítica, não é nem dos modernistas, nem dos regionalistas. Então, eu acho que
fica na nossa cabeça o problema: como se formou? Talvez ainda tenhamos, um dia, de fazer a
biografia espiritual de Graciliano. Como se formou nele uma crítica tão radical, tanto ao projeto
burguês, como ao que nós chamaríamos hoje de populismo, folclorismo, assim por diante... A
rejeição dele é total. Talvez essa escuridão da obra dele venha de que realmente os projetos em
curso não o atraíam.” (“Mesa-redonda” In: Bosi, Alfredo et alii. Graciliano Ramos – Coleção Escri-
tores Brasileiros. São Paulo: Ática, 1987.)
15 Bosi, Alfredo. “A escrita do testemunho em Memórias do Cárcere”. In: Literatura e Resistência.
16 Bosi, Alfredo. “Passagens de Infância de Graciliano Ramos”. In: Entre a Literatura e a História.
São Paulo: Editora 34, 2013.
17 Dostoievski. Diário de um Escritor. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s.d.].
18 Aristóteles. “Arte poética”. IN: Aristóteles, Horácio, Longino. A Poética Clássica. São Paulo:
Cultrix, 1981.
pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda
ao relógio, mas não consigo mexer-me.19
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O trabalho propõe ao leitor acompanhar o percurso de Amor;
formação do protagonista de Grande sertão: Veredas Guimarães Rosa;
mediante a experiência do amor. Com o objetivo de analisar Formação;
como esse sentimento promove em Riobaldo o Pacto fáustico.
aprendizado, o estudo descortina, por meio da constatação
do pacto e pela busca do sentido da vida, seu constante
processo de transformação interior.
ABSTRACT KEYWORDS
The work proposes to the reader to follow the course of formation Love;
of the protagonist of Grande sertão: Veredas, by the experience of Guimarães Rosa;
love. With the goal of analyzing how this feeling promotes the Formation;
Faustic pact.
learning process in Riobaldo, the study reveals - through the
discovery of the faustic pact and the search for the meaning of life
-, his constant process of inward transformation.
1. Por que Grande Sertão: Veredas pode ser considerado um
romance de formação?
3Ibidem, p.237.
4MAZZARI, Marcus Vinicius. Romance de formação em perspectiva histórica, - O Tambor de Lata de
Günter Grass. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999, p.85.
que o pacto não determinou a malignidade do personagem rosiano.
Riobaldo também contrasta com Diodorim, que está próximo a ele e o
influencia. O ser inacabado encontra seu contraponto naquele que o
seduz. Como afirma Luiz Roncari, “ao contrário de Riobaldo, sujeito em
formação ou ‘herói problemático’, volúvel, cheio de dúvidas, hesitações,
contradições e conflitos, Diadorim já era, estava pronto e acabado, ‘a
coragem dele nunca piscava’”5.
No primeiro encontro com Diadorim, a travessia aparece de forma
concreta. Esse momento deixa transparecer a travessia da vida, em que
Riobaldo demonstra, mesmo que a contragosto, suas fraquezas. O mesmo
não ocorre com seu companheiro: “‘Você nunca teve medo?’ - foi o que
me veio, de dizer. ‘Costumo não...’”6, respondeu o outro. Ao constatar
que não era igual ao companheiro e que a diferença o atraía e instigava, o
protagonista inicia sua travessia, atravessa a vida provando, errando e
experimentando, em um processo no qual vivencia sofrimento e prazer.
Assim acontece com seu comportamento instintivo, que muitas
vezes é reprimido em prol de uma atitude aceitável socialmente. O amor
pelo próximo ou até mesmo a constatação de que o instinto poderia
destruir a amizade e a gentileza fazem com que Riobaldo reflita sobre
suas ações. Em uma passagem na qual o protagonista conta o abuso a que
submetia mulheres, demonstra a superação de seu instinto sexual:
E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher nenhuma lá,
eles sacolejavam bestidades. [...] Deus me livrou de endurecer nesses
costumes perpétuos [...] Contanto que nunca mais abusei de mulher. Pelas
ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma
recompensa. O que eu queria era ver a satisfação – para aquelas, pelo meu
ser. [...] Mas o senhor releve eu estar glosando assim a seco essas coisas de
se calar no preceito devido. Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que
é sério preciso7.
5 RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa: mito e história no universo roseano: o amor e o poder. São Paulo:
UNESP, 2004, p.227.
6 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.122.
7 Ibidem, p.189.
8 É fato que esse “amor ao próximo” não possui uma ausência total de interesse, haja vista a
intenção explícita do personagem em receber algo em troca, já que praticou uma boa ação,
quando diz: “Pelas ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma
recompensa” (ROSA, 2001, p. 189).
com relação a Deus como ao Diabo, é significativamente intensa.
9 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, p.169.
10Ibidem, p. 212
11Esse aspecto é discutido por Leonardo Arroyo em A Cultura Popular em Grande Sertão: Veredas.
12 É necessário ressaltar que essa visão sobre o final reconciliador, concebida na presente
abordagem, é apenas uma visão dentre muitas outras. Para o estudioso Willi Bolle em
grandesertao.br, a grande questão é a conquista do poder, pois ele passa de jagunço a fazendeiro.
2. Primeiras transformações do amor
introdução e notas de Kathrin Holzermayr Rosenfield. São Paulo: Nova Alexandria, 1998, p. 48.
15 SPONVILLE, André Comte. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes,
1999, p.252.
16 É importante atentar para a relação que existe, na obra, entre sua estrutura e a experiência
amorosa. O termo atopia, utilizado por Ettore Finazzi-Agrò, explica essa ligação: “Grande sertão
seria atópico pelo fato de identificar um gênero e o seu discurso no mesmo movimento com que
todos os gêneros do discurso são por ele revogados, postos em questão, assim como também o
sertão rosiano se localiza e se define apenas na perda dos seus limites, na impossibilidade de
qualquer localização, no seu estar ‘em toda parte’” (2001, p. 93). E aprofunda ainda mais o uso
do termo, ao afirmar que “a ‘atopia’ de Grande Sertão poderia ser vista, nesta perspectiva
platônica (e mitológica), também como o efeito deslocante de um Eros (no caso, o amor entre
Riobaldo e Diadorim), não conseguindo, todavia, encontrar a passagem para o ato, para a sua
travessia do protagonista há mudanças interiores significativas que
reverberam na tonalidade do amor que sente.
Ao retomarmos o que já foi considerado sobre o protagonista (a
convivência do bem e do mal, a configuração apresentada pela figura
demoníaca e de seu processo de formação), podemos localizar o foco de
sua transformação na experiência amorosa. É fato que, após comparecer
ao ritual do pacto, o personagem sofre significativas transformações. Seu
companheiro, Diadorim, percebe de imediato:
‘Mas, se você algum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter
a tristeza mortal...’ Disse. Tinha tornado a por a mão na minha mão, no
começo de falar, e que depois tirou; e espaçou de mim. Mas nunca eu senti
que ele estivesse melhor e perto, pelo quanto da voz, duma voz mesmo
repassada. Coração – isto é, estes pormenores todos. Foi um esclaro. O
amor, já de si, é algum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de
todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e
morria, se bem19.
realização, isto é, mais uma vez, ficando numa ‘aporia’ trágica” (2001, p. 171).
17 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 353.
18 Ibidem, p.115.
19 Ibidem, p.56-57.
seu percurso de aprendizagem, experimentado na longa narrativa, e
constrói sua própria travessia. Esse aprendizado apresenta inúmeros
percalços, demonstra a inconstância, a dúvida e as angústias do
protagonista.
O narrador-personagem retrocede no tempo narrado, após declarar
sua entrega à guerra por Diadorim e se recorda de quando ainda servia a
Medeiro Vaz. Em um episódio no qual escolhe Sêsfredo para acompanhá-
lo até o outro lado do rio para verificar a morte de Santos-Reis, o
protagonista, afastado de Diadorim, reflete sobre o que sente de forma
ainda incipiente:
20 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
21NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: Guimarães Rosa. Revisão Ivan
Santos de Almeida. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1991, p.157.
O aspecto apresentado pelo teórico aponta para um “desejo que se
faz anelo” e promove uma espécie de gradação do amor por meio de sua
transformação, isto é, para atingir a espiritualidade, o autor mineiro
utiliza o corpo, sem, no entanto, excluí-lo quando se atinge o alvo.
Nhorinhá, chamada de “prostitutriz”, embora seja uma figura
carregada de sexualidade, não é tratada por Riobaldo de forma
desrespeitosa: “a mulher-dama apresenta, sempre, um momento de
fascínio e encantamento”22. Ele se lembra da moça sempre com carinho e
de forma pura, pois “a ficção de Guimarães Rosa nos conduz, ainda aqui,
a um universo primitivo, onde a mulher-dama, longe de ser vista como
impura ou depravada, é uma sacerdotisa do amor – a mulher em que, na
realidade, o homem encontra o amor em toda a sua pureza e inocência”23.
Há, portanto uma peculiaridade na experiência do amor no autor
brasileiro que difere do narrado em O Banquete, uma vez que o amor
espiritual é colocado, por Platão, em um plano superior ao carnal. Já em
Grande Sertão: Veredas, “o amor carnal gera o espiritual e nele se
transforma. [...] Tem o encanto secreto e a sedução da heresia, como força
ascendente e descendente, sexo e espírito, que se desenvolve segundo
uma dialética imanente”.
Retomando o momento da enunciação, depois de encontrar, no
caminho de volta, seu amigo estrangeiro Vupes, Riobaldo se refere
novamente ao amor, agora já com outra conotação, pois a saudade de
Diadorim se faz presente:
22 LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo: Unesp, 2002, p. 110.
23 Ibidem, p. 112.
24 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 89.
Riobaldo pormenoriza o início dessa história amorosa, quando discorre
sobre o primeiro encontro com Diadorim, os dois adolescentes, ocasião
ainda em que fizeram a travessia do rio de Janeiro: “Mas eu olhava esse
menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não
tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas
feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível”25.
Nesse episódio, especialmente durante a travessia, em que confessa
sentir medo, é notória a já mencionada formação pelo amor:
25 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 119.
26 Ibidem, p. 125, grifo nosso.
27 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 135.
O que interessa para o estudo nessa canção, prenunciadora do
futuro de Riobaldo, são os dois últimos versos, que remetem ao “coração”
e à “guerra”. Como mencionado, o protagonista decide entrar na guerra
jagunça por amor a Diadorim, fato narrado no tempo anterior à
enunciação e que, ao retroceder na ordem dos acontecimentos, é
antecipado pela canção oracular.
Antes de se decidir “por inteiro” a entrar na guerra, vivia incerto
sobre o que deveria fazer, se realmente deveria participar da vida
jagunça. Não sabia se servia a Zé Bebelo ou a Joca Ramiro, vivendo em
constante conflito sobre sua postura ética: “De que lado eu era? Zé Bebelo
ou Joca Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De ninguém eu era. Eu era
de mim. Eu, Riobaldo. Eu não queria querer contar”28.
Momentos adiante na narrativa, quando reflete novamente sobre
sua vida jagunça, fica claro como está perdido e se agarra ao que sente
por Diadorim para atribuir sentido à sua vida e decidir sobre seu destino:
Donde eu tinha vindo para ali, e por que causa, e, sem paga de prêço, me
sujeitava àquilo? Eu ia-me embora. Tinha de ir embora. Estava arriscando
minha vida, estragando minha mocidade. Sem rumo. Só Diadorim. Mas era
por não aguentar o ser: se de repente tivesse que ficar separado dele, pelo
nunca mais29.
28 Ibidem, p. 167.
29 Ibidem, p. 197.
30 “Nesse nome (Siruiz) aparentemente sertanejo ressoa o frêmito da busca do amor perdido,
tema predileto de cantigas e contos da Idade Média. E o leitor brasileiro, embalado na evidência
de que Siruiz é um legítimo jagunço, pode não perceber o sutil jogo de máscaras que mescla,
nesse nome, o popular e o erudito, o familiar e o estranho, o próprio e o outro. Sirroohis
No trecho que resume a vida de Riobaldo, o segmento no qual
estão condensados os principais acontecimentos, em que o narrador
conta, sem divisão em parágrafos, o resumo de sua vida, sintetizando
suas principais reflexões, é um momento importante que revela o que a
canção de Siruiz antecipa: “Diadorim me veio, de meu não-saber e
querer. Diadorim – eu adivinhava. Sonhei mal?”31.
O personagem, um pouco mais à frente da narração, pergunta ao
companheiro Garanço sobre a canção, confessando que “eu queria saber
não era próprio do Siruiz, mas da moça virgem, moça branca,
perguntada, e dos pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar um
igual”32. Esse amor, que toma conta de Riobaldo, ganha dimensões
maiores e ocupa um espaço psicológico significativo, mais do que outros
setores de sua existência.
(pronunciado exatamente como siruiz) significa, em armênio, ‘meu amor’ (quando uma mulher
fala do seu amante-homem) e a fórmula plasmou-se numa canção popular de mesmo nome”
(ROSENFIELD, 2002, p. 199).
31 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.137.
32 Ibidem, p.192.
33 Ibidem, p.328.
34 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 332.
35 Ibidem, p. 379. Dessa passagem Walnice Nogueira Galvão, como sabido, extraiu o título de
36 Ibidem, p. 387.
37 Ibidem, p.393.
38 Ibidem, p.405.
39 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.407.
40 Ibidem, p.410.
41 Ibidem, p.424.
se esforce; a pungência do pensamento sobre algo iminente não permite
isso: “Mas em tanto, com as mudanças e peripécias, no afinco de tudo lhe
referir, ditas conforme digo – não toco no nome de Otacília? Nela eu
queria pensar, na ocasião; mas mal que, cada vez, achava mais custoso” 42.
Eis a menção do pacto: “Achado eu estava. A resolução final, que
tomei em consciência. O aquilo”43. Depois da resolução, ele concretiza o
fato nas Veredas-Mortas; porém sem avistar a figura do oculto, somente
vivenciando sensações relacionadas a esse universo pactário (o frio, o
tremor e a própria sensação causada pelo lugar). O ser com quem
virtualmente firma o pacto é fruto de sua consciência: “Ele tinha que vir,
se existisse. Naquela hora, existia”44.
A tradição fáustica do pacto é notada em alguns comentários feitos
pelo narrador: Riobaldo caminha para as Veredas-Mortas, numa noite
“friazinha”45. O frio, a escuridão, a encruzilhada são elementos
pertencentes à tradição que, no romance, integram o cenário no qual o
pactário é um sujeito em formação. Ao contrário do que acontece no
pacto tradicional, “o pacto rosiano coloca como problema o sumiço do
sujeito ou, pelo menos, de todas as categorias que sustentam
tradicionalmente a ideia de um sujeito”46.
O protagonista cogita a existência do diabo – “Ele tinha que vir, se
existisse. Naquela hora, existia”47 – e o chama sem obter resposta. Mesmo
sem a presença física do diabo, o protagonista tem a sensação de uma
transformação: “Meu corpo era que sentia um frio, de si, friôr de dentro e
de fora, no me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão
de uma friagem assim”48.
É com o diabo, fruto de sua imaginação, que Riobaldo acredita ter
selado o pacto, para se tornar capaz de enfrentar o Hermógenes: “Eu
queria ser mais do que eu”49. Ele é tomado pelo medo: “Medo? Bananeira
treme de todo lado”50, porém segue seu propósito, tendo em mente que
“o que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de mim”51. Vai
para o pacto e resvala no nada ou naquele “nonada” que abre o livro.
Ao tomar a decisão de travar o pacto, Riobaldo se preocupa em
deixar Diadorim afastado desse evento: “o que eu gostava tanto de
Diadorim, tinha um escrúpulo – queria que ele permanecesse longe de
42 Ibidem, p. 426.
43 Ibidem, p. 434.
44 Ibidem, p. 436.
45 Ibidem, p. 434.
46 ROSENFIELD, Kathrin H. “O pacto fáustico em Grande Sertão: Veredas”. In: Cienc. Let. N.42
Daí veio que Diadorim mesmo estranhou aqueles meus modos. A entender
me deu, e eu reminiquei, com soltura de palavras: como é que ia tolerar
conselho em contradição? Agravei o branco em preto. Mas Diadorim
perseverou com os olhos tão abertos sem resguardo, eu mesmo um instante
no encantado daquilo – num vem-vem de amor. Amor é assim – o rato que
sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre-leão!54.
52 Ibidem, p.434.
53 Ibidem, p.443.
54 Ibidem, p.443.
55 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 444.
56 Ibidem, p. 458.
pautada pela linguagem do corpo, principalmente pelos olhos de
Diadorim, que guiam as atitudes de Riobaldo. A simbiose do amor torna-
se mais evidente.
Na fazenda de Seo Ornelas, quando Riobaldo, com o poder de
chefe, fazia a refeição sentado à mesa, desejou a neta de seu anfitrião. A
crise de consciência deflagrada pelo impulso de matar o homem para
poder desfrutar da moça foi um rompante que quase o tomou. Porém, os
olhos de Diadorim intervieram: “os olhos de Diadorim não me
reprovavam – os olhos de Diadorim me pediam muito socôrro. […] E eu
também mercês colhi – da alegria veraz, nos meus olhos de Diadorim”57.
Os olhos de Riobaldo e Diadorim se misturam, formam um único ser.
Não há mais retorno: o amor como falta já estava se configurando em seu
estágio final, ao encontro da morte.
Ao deixar a fazenda de Seo Ornelas, sem cometer qualquer ato de
violência, e chegar à beira do Paracatú, Riobaldo entoa alguns versos de
sua autoria. A primeira estrofe, que mais interessa ao estudo, resume a
ligação entre o pacto e a transformação do amor:
61 Ibidem, p. 503.
62 Ibidem, p. 504.
63 Ibidem, p. 505.
64 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 510.
65 Ibidem, p. 526.
pensamento, foi o de matá-lo, o que acaba fazendo: “Vi: ele – o chapéu
que não quebrava bem, o punhal que sobressaía muito na cintura, o
monho, o mudar das caras... Ele era o demo, de mim diante... O
Demo!...”66. Isso acontece porque, assim como a presença do leproso era
inadmissível, a do Demo também o era.
Depois desse momento, Riobaldo já está a caminho da batalha final
contra os Hermógenes, no Paredão. Diadorim, de certa forma, faz com
que ele não se esqueça de Otacília. Logo após voltar de uma noite de
prazeres com prostitutas, ele lhe pergunta: “‘Você já está desistido dela?’
– em fim ele indagou. – ‘Hem? Hem? Dela quem dela? Tu significa essas
velhacas palavras...’ – eu só fiz que respondi, redatado”67. O amor
perturbado de Diadorim, como um paradoxo, consegue resgatar em
Riobaldo o equilíbrio necessário e não o deixa se esquecer do outro amor.
Nesse momento da narrativa, o sentimento que foi se estabelecendo
entre Riobaldo e Diadorim já está em estágio final, isto é, o amor
transforma-se em um bem-querer, torna-se consciente, o protagonista
aceita o que sente e, por fim, o que agora se configura é a sua
inexorabilidade; totalmente aceito, esse amor vai tomar seu rumo
derradeiro.
Nos momentos finais do livro, o herói retoma sua afeição por
Diadorim, transferindo a ele características femininas, sem levantar a
hipótese real dessa existência: “Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele
fino de feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava, referido na
fantasia da ideia”68. Ele estava cego, seus olhos não enxergavam o que
viam, seu olhar estava além do que via. Somente após a morte do ser
amado é que se conscientiza disso, porém está então diante de um fato
consumado.
Esse tipo de amor como falta não poderia terminar de forma
diferente, pois é irrealizável no plano real. A dor é característica
fundamental de sua existência e é traduzida de forma pungente no
momento da revelação póstuma do sexo de Diadorim:
66 Ibidem, p. 528.
67 Ibidem, p. 546.
68 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 592.
69 Ibidem, p. 615.
por Diadorim, permitiu-lhe o aprendizado que se converte em monólogo
na tentativa de compreender e elaborar a experiência que ainda o está
transformando. As culpas, o medo, a raiva e tantas outras sensações
compõem sua travessia e o fazem perceber que o que “existe é homem
humano. Travessia”70.
Débora Domke Ribeiro Lima é graduada em Letras pela Universidade Estadual de Londrina
(2003); mestre em Estudos Literários pela mesma instituição (2005); e, doutora em Teoria
Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (2013). Participou do
Mestrado em Interculturalidade, com bolsa Erasmus, promovido pela Universidade de Tallinn,
Estônia (2016). Contato: [email protected]
70 Ibidem, p. 624.
A “ARISTOCRACIA DO PÉ NO CHÃO”
E O HERÓI POPULAR EM BELÉM DO
GRÃO-PARÁ, DE DALCÍDIO JURANDIR
Maíra Oliveira Maia
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Dalcídio Ramos Jurandir, um dos maiores romancistas do modernismo da Cidade;
Amazônia, militante atuante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e “Aristocracia do Pé
idealizador do Ciclo do Extremo Norte, construiu uma perspectiva de História no Chão”;
sobre a cidade de Belém nos anos de 1920 no seu romance premiado Belém do Fausto;
Grão-Pará. Na sua narrativa sobre a cidade em crise econômica após o fausto Decadência;
da borracha, Jurandir apresenta uma outra possibilidade de história a partir Esperança.
da população pobre do interior do Estado, que, ao se rebelar contra o descaso
dos poderes públicos, retoma a tradição do movimento cabano do século
XIX, lutando em armas contra os que a exploravam. Nessa trama de descaso,
opressão e resistência, surge um novo sol na cidade de Belém do Grão-Pará,
através da “aristocracia do pé no chão”, a “gente comum”, da qual descende
o próprio Dalcídio Jurandir e a personagem seu Lício, o herói de um universo
em crise, porém engajada nas lutas do seu tempo.
ABSTRACT KEYWORDS
Dalcídio Ramos Jurandir, one of the greatest modernist novelists in the Amazon, City;
active militant of the Brazilian Communist Party (PCB) and creator of the Far North "Aristocracy of the
Cycle, built a historical perspective on the city of Belém in the 1920s in his award- Foot in the Ground";
winning novel Belém do Grão-Pará. In his narrative about the city in its economic Fausto;
crisis after the rubber pageantry, Jurandir presents another possibility of history Decadence;
coming from the poor population from the countryside of the State, which, in Hope.
rebelling against the neglect of public powers, takes up the tradition of the 19th
century, fighting with weapons against those who exploited them. In this plot of
neglect, oppression and resistance, a new sun appears in the city of Belém do Grão-
Pará, from the "aristocracy of the foot on the ground", the "common people", from
which Dalcídio Jurandir himself and his character Lício both descend - the latter
being the hero of a universe in crisis, however engaged in the struggles of his time.
Foi na solidão da província que o li, mas essa
primeira leitura não me deu toda a significação do
manifesto. Tive que participar de acontecimentos,
respirar o ar do tempo a que me sentia um pouco
alheio, fazer aos poucos um balanço crítico de
minha própria vida e de
A “aristocracia do pé no chão” e o herói popular
em Belém do Grão-Pará de Dalcídio Jurandir.
Dalcídio Jurandir.
Comunista”, artigo de Jurandir encontrado na revista Literatura, Rio de Janeiro, ano 3, n.7,
jan/fev. 1948. A Revista encontra-se disponível no Acervo Literário da Fundação Casa de Rui
Barbosa, nos anos de 1946, 1947 e 1948. O periódico era editado pela Editorial Vitória, que entre
sua própria vida, de tudo o que observava, lia, pensava e sonhava, o fez
aceitar a responsabilidade de lutar pela liberdade, e esta luta foi feita de
várias maneiras: na sua luta diária pela sobrevivência, já que não se vivia
apenas de letras em Belém do Pará – nem na capital da República, o Rio de
Janeiro –; na luta pela humanidade e pela liberdade, sendo em função disso
preso duas vezes, a primeira em 1936, por haver participado dos
movimentos em apoio aos presos da Intentona Comunista que havia
ocorrido em 1935, e a segunda em 1937, devido a sua filiação ao Partido
Comunista e à campanha que empreendeu contra o fascismo.
É esta experiência ordinária que define a literatura para Jurandir e
torna o estudo de seus romances fundamentais para que hoje se possa
compreender a sociedade paraense da primeira metade do século XX, já
que o autor testemunhou este mundo e construiu nos seus romances uma
interpretação política da sua experiência testemunhal. É esta interpretação
que se irá problematizar neste estudo.
Se, como ensinaram Williams e os ingleses ao renovarem o marxismo,
o que valida a função social da cultura ordinária é a experiência pessoal,
experiência esta como algo comum a toda a sociedade, então Jurandir, um
homem do interior da Amazônia, comum, transformou a experiência
ordinária de sua vida cotidiana material em dez romances, conhecidos
como o Ciclo do Extremo Norte: Chove nos Campos de Cachoeira (1941),
Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem
dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Chão de
Lobos (1976), Os habitantes (1976) e Ribanceira (1978). Além dos seus poemas
divulgados postumamente e do romance sobre o extremo sul, Linha do
Parque (1959), sendo que alguns destes romances − como Chove nos Campos
de Cachoeira e Belém do Grão-Pará −, receberam prêmios nacionais
importantes.
Nos romances analisados neste artigo − Belém do Grão-Pará e Passagem
dos Inocentes − percebe-se que a criatividade é algo que o literato
compartilha com a sociedade, com o seu mundo, por isso mesmo, a
proposta de analisar sua obra parte da visão de que o seu modo de vida e
as suas experiências permitem compreender a sua literatura e, desta
maneira, a cidade de Belém dos anos 1920.
1944 e 1964 foi a editora brasileira comunista mais importante, vinculada diretamente ao Partido
Comunista Brasileiro. Esta foi organizada em moldes empresarial, fazendo parte de uma rede de
órgãos de divulgação do partido, que incluía jornais, revistas, editoriais e entidades culturais.
MAUÉS, Flamarion. A Editorial Vitória e a Divulgação das Ideias Comunistas no Brasil (1944-
1964). In: DEAECTO, Marisa Midori; MOLLIER, Jean-Yves (Orgs.). Edição e Revolução: leituras
comunistas no Brasil e na França. Cotia/São Paulo: Ateliê editora; Belo Horizonte, MG: Editora
UFMG, 2013. (pgs. 121-122)
Em Jurandir, a cultura, como modo de vida e produto artístico
(WILLIAMS, 1958)3, está profundamente imbricada, mostrando que o
valor da sua obra de arte está justamente na integração particular da sua
experiência plasmada nos romances. A arte de Dalcídio Jurandir não
poderia existir sem o modo de vida coletivo do qual ele fazia parte, uma
vez que o material do literato e o significado que ele lhe atribui vêm da sua
experiência coletiva.
Se a definição de cultura para Williams baseia-se na interação entre
arte e sociedade, uma arte que não existe desvinculada da experiência
social ordinária, a literatura de Dalcídio Jurandir é propícia para tal
intento, justamente porque apresenta uma versão da história da Amazônia
no início do século XX a partir de “um olhar de dentro” desta história, de
dentro da história da gente pobre do Marajó, visão aprimorada de um
intelectual que fazia malabarismos para sobreviver, e do ser político
engajado nas lutas do seu tempo. Jurandir é, então, o elo entre a arte
modernista e a vida social ordinária em Belém do Pará, uma vez que é um
artista que compartilhou com toda a geração da época a sua observação da
realidade, a sua capacidade de organizar e descrever suas experiências,
assim como de transmiti-las.
O que provavelmente o impulsionava era a consciência que tinha
da importância da sua experiência de vida e do trabalho de transmissão
dessa experiência na arte. Por isso, não se pode separar conteúdo e forma,
uma vez que a criatividade enquanto ordinária mostra a arte como uma
especificidade de um processo geral de descoberta, criação e comunicação,
redefinindo o seu estatuto e encontrando a maneira de ligá-la à vida social
(CEVASCO, 2001)4.
Dalcídio Jurandir deixa claro que a sua perspectiva é de romancista.
Porém, devemos ressaltar que ele utiliza além de sua memória pessoal a
memória histórica da região baseada em pesquisas feitas pessoalmente ou
a partir de amigos e parentes, sobre fatos e pessoas que viveram em Belém
durante a primeira metade do século XX. Essa memória pessoal e a
memória histórica da região amazônica vão dialogar nos romances de
Jurandir, transformando-os em “lugares de memória”.
Segundo Pierre Nora (1993)5, na contemporaneidade não
habitamos mais a nossa memória, logo, temos uma grande necessidade de
lhe consagrar lugares específicos. Porém, esses lugares da memória
pertencem ao domínio não só da memória, mas também da história, o que
3 WILLIAMS, Raymond. A cultura é de todos (Culture is Ordinary) 1958. Tradução Maria Elisa
Cevasco, disponível em: http://pt.scribd.com/doc/68474445/A-Cultura-eOrdinaria1. Acessado
em 20/01/20012. (Sem publicação)
4 CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Wiliams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
5 NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”. In:: Projeto História,
6 Ibid, p. 22
7 Op.Cit., p. 22
8 Op.Cit., p. 9
9 SEIXAS, Jacy Alves. “Os tempos da memória: (des) continuidade e projeção: uma reflexão (in)
atual para a história?”. Proj. História, São Paulo, n. 24, jun. 2002.
10 Op.Cit., p. 44
com a história”11. É porque Dalcídio Jurandir ainda habita a sua memória
no momento em que escreve o Ciclo do Extremo Norte, que os romances
podem ser compreendidos como “lugares de memória”. O fato de essa
memória ser descontínua e fragmentada, como as experiências da
modernidade, não caracteriza uma ausência de memória.
A perspectiva de Seixas vai ao encontro do nosso propósito de análise,
uma vez que a historiadora trabalha a memória no plural, ou seja, não se
ocupando apenas com a “memória voluntária”, mas também com a
“memória involuntária”, afirmando inclusive que ambas existem nos
romances do século XX, como nos de Marcel Proust. E é a partir da obra de
Proust que a pesquisadora envereda por uma discussão sobre memória
voluntária e involuntária. Se o historiador se ocupa apenas com a memória
voluntária, afirma Seixas, o mesmo deixará escapar toda a dimensão
afetiva e descontínua da vida e das ações humanas, e é exatamente essa
dimensão afetiva das ações políticas e literárias de Dalcídio Jurandir que
se busca problematizar neste estudo.
Essa faceta involuntária da memória dialoga com diversos e múltiplos
tempos, reatualizando as experiências passadas. Essas reatualizações
ocorrem em um “instante”, o qual não possui duração maior do que “um
relâmpago”, e é por esse motivo que a materialidade da memória nos
aparece como algo que “irrompe”, um passado que retorna porquê de
alguma forma ainda não passou, continua ativo e atual, sendo então
retomado, recriado, reatualizado12.
Dalcídio Jurandir afirmou, em vários momentos, que buscou
“fragmentos de sua memória” para construir a narrativa do Ciclo do
Extremo Norte, a partir “do menino que foi, com os pés fincados em
Cachoeira do Arari”, e olhando Belém sempre como “casa alheia”,
pintando os seus romances com cores de um testemunho histórico de um
caboclo marajoara13. Sua memória múltipla (voluntária e involuntária) vai
dialogar com diversos tempos e espaços – os anos de 1900 em Cachoeira
do Arari uma pequena cidade isolada entre fazendas e campos alagados
quase no centro da Ilha do Marajó; a Amazônia cabana de meados do
século XIX; a Belém da população pobre da virada do século XIX para o
XX; a Belém da belle époque lemista do fausto e do progresso urbano14; a
11 Ibid., p. 44
12 Op.Cit., p. 49
13 Op.Cit., p. 96-97
14 A cidade de Belém do Pará na virada do século XIX para o século XX sofreu um processo de
15 A ideia de decadência de Belém foi sendo gestada pela elite política nos anos de 1910 e 1920,
elite esta que não dispunha mais das altas somas de dinheiro para investir no embelezamento da
cidade; mas também pela imprensa, que, fazendo oposição aos gestores da época, intensificava o
aspecto de ruína da cidade, que já havia sido considerada a Paris n´América, nos tempos faustosos
de Antônio Lemos; e, por fim, por muitos intelectuais que viveram o período Lemos ou que se
relacionavam com estes nas repartições públicas, nas oficinas jornalísticas, na confecção de
revistas como A Semana e Belém Nova, ou nos encontros cotidianos fora do expediente de trabalho.
continuidade, algo que é único. Por isso a autora afirma que a memória
constrói o real muito mais do o que resgata.
Podemos inferir uma possibilidade de construção do real em Dalcídio
Jurandir, a partir de uma passagem do romance Belém do Grão-Pará, na qual
o narrador, ao descrever o Círio de Nazaré (vivido pelas personagens
pobres da trama), apropria-se desta faceta involuntária da memória do
escritor, dialogando com tempos diversos e múltiplos. Trata-se da
passagem em que a personagem “mãe Ciana” vê quando a procissão da
transladação chega à Igreja da Sé, no bairro da Cidade Velha, em Belém,
procissão que ocorre na noite anterior ao Círio de Nazaré, considerada em
prosa e verso como uma das maiores festas religiosas do Brasil. Todos esses
tempos vistos pela personagem mãe Ciana ou que são “sabidos” (memória
histórica da região) pelo narrador se reatualizam neste instante de fé e
devoção, que irrompe exatamente na chegada da imagem da padroeira de
Belém à Igreja da Sé, retornando todo um passado que continua ativo e
atual, reatualizado por Jurandir:
16 Ibid., p. 284
tramaram todos os tempos descontínuos e assimétricos e simultaneamente
construiu-se a sua duração.
Ao reencontrar o vivido no tempo passado de índios, cabanos,
marujos, negros escravos, pajés, e no tempo presente dos roceiros do
interior do Pará, da cidade de São Miguel do Guamá, Jurandir recria a sua
percepção do real, de uma realidade que funde vários tempos e lugares e
que se forma em sua memória, encontrando o seu lugar na narrativa. O
tempo da transladação de 1922 é um tempo que começa de novo e que se
refere não apenas ao passado e ao presente, mas também à possibilidade
de um futuro diferente, aberto pela rebelião dos roceiros do Guamá. Desta
forma, o romance Belém do Grão-Pará, e todo o Ciclo do Extremo Norte, é
compreendido neste trabalho, também, como um lugar de memória da
região.
Dalcídio Jurandir, afirma, certas vezes, que seus romances eram
fruto de sua imaginação (ficção), do seu pensamento (ideias relacionadas à
sua leitura do mundo) e de seu sangue (experiência de vida no Marajó, em
Belém e no mundo) (NUNES, 2006, p. 50)17. Tinha o costume de escrever
para familiares e amigos da região para colher informações, como fez com
seu irmão Ritacínio, em janeiro de 1958, pedindo informações sobre
famílias, pessoas e ofícios de Belém e do interior para a construção do
romance Belém do Grão-Pará:
[...] quero sobretudo notas sobre o seu Augusto Aires e das famílias de Ponta
de Pedras e de Cachoeira das quais tenho que tirar algumas personagens em
plena elaboração. As notas recebidas servirão para o preto Sebastião que já
está em Três Casas e aparece nesse terceiro volume. O romance, na Martins,
deve aparecer com algum atraso, agora penso que em março [...] Mandei
uma carta pedindo notas e mais notas, deves receber, por estes dias [...] Estou
ansioso que tenhas recebido ou vais receber carta que te pede várias coisas
ligadas ao romance. Interessa-me do Flaviano [...] aspectos de ruína de
famílias [...] os altos e baixos da camada média do interior, em detalhes
concretos [...] uma coisa me interessa: é o trabalho das pessoas, os alfaiates,
os sapateiros, os carpinteiros – alguns detalhes18.
17 NUNES, Benedito (Org.). Dalcídio Jurandir, romancista da Amazônia: literatura e memória. Local:
SECULT/ FCRB/ IDJ, 2006.
18 Ibid., p. 55. (grifo nosso)
19 HOBSBAWM, Eric. “Sapateiros politizados”. In: HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias:
20 MENDES, Francisco Paulo. In: NUNES, Benedito. Francisco Paulo Mendes, O fazedor de poetas.
Belém: Secult, 2006.
21 FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Os vândalos do apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará
Arquivo Museu de Literatura Brasileira, na Fundação Casa de Rui Barbosa, nos Documentos
Pessoais, código DJ Pi 50. No mesmo caderno existem mais referências ao Bruno de Menezes:
“notas sobre Bruno de Menezes, paraense – Bruno não ficou na fronteira em 1914. Pulou a frente
e veio para o futuro como uma vanguarda.
É também nesses cadernos manuscritos que Dalcídio Jurandir fez
várias referências e anotações sobre lavradores falidos que, com fome,
decidiram assaltar o comércio e sítios do interior do Estado do Pará, com
destaque para a cidade de São Miguel do Guamá, como o exemplo
registrado abaixo:
pela historiografia ora como uma anarquia, uma sedição, a rebelião de uma canalha maltrapilha
que matou os honrados do Pará, no sentido atribuído por Domingos Antônio Raiol; ora em uma
perspectiva mais atual, como a atribuída por Jorge Hurley durante as comemorações dos cem
anos do movimento cabano (1935) no Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), em que a
Cabanagem é vista como a opressão de certas autoridades enviadas ao Pará pela ordem imperial.
Desta perspectiva os líderes cabanos eram ingênuos, não estavam preparados para liderar com a
massa, nem para exercer o poder; já o povo cabano era apenas o reflexo de suas lideranças, sendo
exatamente por isso que ela não deu certo, uma vez que seu mentor, Batista Campos, única
liderança preparada, morreu antes de ser deflagrada a luta.
século XX deveriam tirar os aprendizados e fortalecer no seu presente a sua
rebelião. Dalcídio Jurandir, o “cronista” que astuciosamente denunciava as
mazelas de sua época (BENJAMIN, 2012. p. 10)31, vai arrancar do passado
cabano a esperança do presente da cidade de Belém em ruínas, como uma
“recordação que relampeja como um clarão no momento de um perigo” 32.
Nasce então um novo sol na Belém do Grão-Pará a partir da
humanidade oprimida e faminta do interior do Estado, que tem a
possibilidade de redimir os cabanos, milhares de homens e mulheres
anônimos que haviam sido condenados à obscuridade e ao silêncio,
inclusive pela própria historiografia. Ao trazer a cabanagem para o
presente, o literato fala em nome dos que a História havia calado, no
próprio passado cabano, no “fausto” lemista, nos anos de 1920 (os jornais
que silenciam a perspectiva dos roceiros do interior) e no momento em que
ele escrevia o romance.
No almoço do Círio de 1922, na casa em ruínas dos Alcântara, núcleo
da trama saudosos do fausto do período do intendente Lemos, seu Lício
aparece para “desagregar as coisas”. Convidado a participar do almoço
dos Alcântara, a personagem Seu Lício33, encadernador, revolucionário e
escritor do jornal O Semeador, foi levado a expor sua “Chama libertária”, e
é esta personagem que nos leva à “agregação” do sentido de história dado
ao romance por Dalcídio Jurandir.
Diz-nos o narrador, com certa simpatia, que o jornal O Semeador tinha
pouca tiragem, mas ferozes resultados, “relampejando entre os operários
da Federação dos Trabalhadores” (JURANDIR, 2004)34. Lá a personagem
Seu Lício escrevia as ideais que aprendera com os europeus e “escarrava
na cara dos burgueses”35. Já no almoço, o encadernador reviveu as greves
das quais participara, especialmente a de 1918, quando os trabalhadores
reclamavam do inglês que “explorava a luz e os bondes de Belém” e se
negava a aumentar o salário deles, enquanto a imprensa, leia-se o jornal
Folha do Norte36, posicionava-se ao lado dos empresários estrangeiros e
31 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História”. In: BARRETO, João. Walter Benjamin: o anjo
da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
32 Op.Cit., p. 11
33 Como já mencionado na primeira parte deste estudo, deduzimos que Dalcídio Jurandir se
inspirou no poeta Bruno de Menezes ao criar a personagem Seu Lício, anarquista, operário e
rebelde, como o próprio poeta na sua juventude, e que escrevia no jornal alternativo O Semeador,
espaço em que aquele de fato escreveu. Nos cadernos manuscritos de Dalcídio Jurandir, quando
está criando o romance Belém do Grão-Pará, há referências diretas a Bruno de Menezes, quando
da criação de Seu Lício e das personagens operárias. O caderno manuscrito pode ser encontrado
no Acervo Dalcídio Jurandir, no Arquivo Museu de Literatura Brasileira, na Fundação Casa de
Rui Barbosa, nos Documentos Pessoais, código DJ Pi 50.
34 Ibid., p. 397
35 Op.Cit., p. 397
36 Mais um dos indícios de que Dalcídio Jurandir pesquisava em jornais antigos para construir os
seus romances, uma vez que, como vimos, o Jornal Folha do Norte, durante os anos finais de 1910
e 1920, tinha um posicionamento favorável aos “lauristas” que estavam no poder.
afirmava que a greve era um dos indícios da “desagregação das coisas”
(JURANDIR, 2004)37. A personagem Seu Lício então queixa-se do marasmo
social que Belém vivia em 1922, mas tinha confiança que um dia o povo
iria acordar, pois este povo era descendente da “fidalguia Cabana”.
Dessa forma, inferimos que o sentido de história atribuído por
Dalcídio Jurandir ao mencionar a “desagregação das coisas” na cidade de
Belém é oposto ao de decadência do fausto lemista. A desagregação seria
a revolução social no sentido atribuído por Walter Benjamin (2012). A
Belém do “fausto” vivia nos anos de 1920 a catástrofe, devido à crença num
progresso mecanicista e linear, num tempo homogêneo e vazio, que não
beneficiou a sociedade como um todo e que trouxe como consequência a
ruína do mundo em que se vivia, e essa ruína do mundo no romance era
simbolizada pela família Alcântara e pelo centro da cidade de Belém do
Grão-Pará nos anos de 1920.
Na compreensão de história de Dalcídio Jurandir, era preciso que os
militantes revolucionários, como a personagem Lício e as classes populares
não beneficiadas com o progresso de outrora “escovassem a história a
contrapelo” e fizessem com que a revolução interrompesse a caminhada
para a catástrofe final e total da cidade de Belém – uma vez que a
consequência final do progresso burguês para Benjamin e também para
Jurandir era a catástrofe –, enchendo nos tempos do “agoras” os citadinos
de esperança (BENJAMIN, 2012). A esperança utópica de que a revolução
pudesse ocorrer a qualquer momento, como uma possibilidade aberta pelo
presente histórico, alimenta o romance Belém do Grão-Pará e as classes
populares, a partir da rebelião dos roceiros do interior do Estado, em São
Miguel do Guamá.
Enquanto o mundo da burguesia da borracha estava em ruínas, em
decadência, como simboliza o desabamento da casa na Estrada de Nazaré,
restando o piano na rua, debaixo da mangueira, como um símbolo dos
escombros do fausto lemista (JURANDIR, 2004)38; no interior da Belém do
Grão-Pará, a rebeldia dos roceiros do Guamá “desagregava as coisas” e
enchia de esperança as personagens nos “agoras” de 1922. A caminhada
da cidade de Belém nadava contra a corrente do progresso burguês, logo a
solução para a crise que sofria o Pará há nove anos era a rebelião dos
roceiros, a qual criativamente unia os pontos separados no tempo histórico
da Belém do Grão-Pará, ou seja, do auge da borracha no mercado
internacional em 1880, à decadência do fausto nos anos de 1920 e à
Cabanagem de meados do século XIX, porém abrindo a possibilidade de
algo completamente novo em meados do século XX.
37 Ibid., p. 410
38 Op.Cit., p.524
No romance Passagem dos Inocentes (1963) como que cansada da
situação de omissão dos poderes públicos, de exclusão social e de falência
total, a população pobre da cidade de Belém se reuniu no centro, na praça
da República, ao redor do maior símbolo dos tempos da Belle époque de
Antônio Lemos, para reivindicar uma solução para o caos que se abateu
sobre a cidade devido à paralisação do funcionamento do forno da Usina
da Cremação, responsável pela incineração do lixo da cidade. Com o forno
parado, o lixo se espalhou pelas ruas de Belém, causando uma “moléstia”
nas crianças das classes populares, a qual os médicos não sabiam
diagnosticar.
A manifestação é feita por homens e mulheres trabalhadores, com
faixas que caracterizam muito bem as suas funções, e com a bandeira
encarnada – possivelmente vermelha, em uma alusão aos partidos de
esquerda, comunista e anarquista. Na Belém dos inocentes, os espoliados
fazem tremer a República. Um desses personagens nos era velho
conhecido, como Seu Lício.
Era a personagem Seu Lício, a voz dos operários espoliados:
setembro de 1955.
do pé no chão” o “lastro que evitava que o barco virasse”. Esse povo estava
despertando da “escória política” que “saltava as línguas da calúnia e da
mentira”. Agora, com “sede de saber coisas”, com “fome de aprender a
escolher”, esse povo tinha a necessidade de sair do “atoleiro da fome, da
exploração da miséria e da opressão”.
É também sobre essa crença na “aristocracia do pé no chão”, é sobre
essa certeza e esperança que tratam os dois romances analisados neste
estudo, que compreendem a decadência da cidade de Belém a partir da
experiência desta gente descalça, que não vivenciou o famoso fausto
lemista, mas que pagou as contas durante os anos da suposta decadência
do fausto da cidade de Belém. Diante do quadro de miséria, pobreza e
invasão da Amazônia, Dalcídio Jurandir acreditava que os homens como a
personagem seu Lício reagiriam, resistiriam, com “uma vitalidade, uma
solidariedade capaz de reagir a esse desmatamento cultural. Eu tenho
esperança44”. Esperança movia o homem e suas personagens das classes
populares, o sujeito social Dalcídio Jurandir e seus romances, nas lutas do
seu tempo, esperança na sua humanidade descalça.
Dalcídio Jurandir, nas suas histórias sobre a cidade de Belém, deu voz
a personagens como Lício, que buscava “desagregar as coisas”, propor um
novo começo, escrever a história a contrapelo, enchia nos tempos do
“agoras” os citadinos de Belém de esperança, em uma continua
reelaboração multifacetada do passado, do passado Cabano, do passado
da rebelião do roceiro de São Miguel do Guamá, do passado onde as classes
populares tomaram o protagonismo na história e tocaram fogo no projeto
de progresso burguês que a excluía. Era um exemplo para libertar, no
presente, os populares da “condescendência da posteridade”. Ainda é um
exemplo apropriado para o século XXI, onde se faz urgente e necessário
acordar a “aristocracia do pé no chão” que existe dentro dos citadinos de
Belém, descendentes dos “nobres fidalgos cabanos”, necessitados de uma
revolução.
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
A leitura do romance Os rios profundos, do peruano José María José María
Arguedas, é o ponto de partida para uma reflexão sobre os efeitos de Arguedas;
revoltas populares em relatos de formação, em particular sobre suas Os rios profundos;
noções de futuro e passado. O trabalho examina como essas questões Insurreição;
escatológicas e arqueológicas ganham forma nos movimentos de Formação.
oscilação e quebra que caracterizam as narrações na obra de Arguedas,
esse conjunto de experimentos textuais elaborados em resposta às
fraturas que atravessam a sociedade peruana. Destaca-se ainda como o
problema do destinatário se torna decisivo para Arguedas, condição de
(im)possibilidade da escrita.
ABSTRACT KEYWORDS
The reading of the novel Deep Rivers (Los ríos profundos), by the Peruvian José María
author José María Arguedas, is the starting point for a consideration on the Arguedas;
effects of popular insurgencies on the Bildungsroman, particularly on its Deep Rivers;
notions of future and past. This essay then examines how these questions of Insurgency;
archaeology and eschatology acquire aesthetic shape in the oscillations and Formation.
breaks that characterize narration in Arguedas’s work, which may be seen as a
set of textual experiments that respond to the fractures in Peruvian society.
The paper also highlights the way in which the question of the addressee
becomes crucial for Arguedas, a condition for the (im)possibility of writing.
1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na Biblioteca Mario de Andrade em 2013,
como parte de uma série de conferências sobre o romance de formação organizada por Marcus
Mazzari e Murilo Marcondes de Moura, a quem agradeço mais uma vez aqui. O título que as
notas recebem nesta versão ampliada é uma homenagem ao livro Elementary Aspects of Peasant
Insurgency in Colonial India, do historiador Ranajit Guha.
N a cadeia de significantes associados à palavra formação
aparecem algumas das figurações dadas ao problema da origem e do
destino, desde um termo como conformação (que pode se referir tanto ao
ato de dar forma a algo quanto ao gesto de se submeter a um modelo ou
plano prévio) até uma palavra como deformação (que descreve uma
mudança de forma ou aspecto, uma desfiguração, a deturpação de um
sentido ou forma anterior). Até informação, mais árida e aparentemente
mais distante desse território inicial, inclui a possibilidade de uma
transformação, provocada nesse caso pela aquisição de um novo dado ou
saber. E assim a expressão formação vai nos remetendo rapidamente a
uma série de movimentos arrebatadores, difíceis de delimitar e controlar,
apontando para o passado e o futuro. Afinal, se não é simples determinar
quando e onde teria começado um processo qualquer de formação,
tampouco é fácil assegurar que uma formação já se encerrou, chegando a
seu fim, a começar pelo problema do lugar de enunciação e da
perspectiva necessários para nomear e definir algo como tendo sido,
justamente, um processo formador. Já está previsto na noção de formação
um lugar ou um ponto de vista além da formação.
Perguntas como essas, que são essencialmente arqueológicas e
escatológicas, exigindo uma teoria da teleologia que dê conta da
complexidade de seu funcionamento, insistem em retornar sempre que se
trata de pensar o singular conjunto de textos deixados pelo escritor
peruano José María Arguedas, mesmo agora, quase 50 anos após a sua
morte. A possibilidade mesma do encerramento – de uma obra, de um
povo, de uma cultura, de uma língua, de uma vida – é um espectro que
assombra essa produção, em mais de uma maneira. Nela uma nova
extinção parece estar sempre prestes a ocorrer, a suceder outra que já
teria acontecido e que teria nos deixado, nessa temporalidade além do
fim, incapazes até de perceber o que, afinal, foi perdido. No caso do livro
específico que disparou estas notas – Los ríos profundos, romance de 1958
traduzido ao português como Os rios profundos2 –, uma leitura que
começasse por seu estranho e nebuloso final encontraria o adolescente
Ernesto, aos seus 14 anos, caminhando entre montanhas peruanas sem
que se saiba bem aonde se dirige – e então termina o relato. O desfecho
da história não define os destinos de várias personagens e linhas
2 ARGUEDAS, José María. Los ríos profundos. México: Losada, 1998; Os rios profundos. Trad.
Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
narrativas centrais para o romance, e a leitora deixará o livro
desconhecendo, por exemplo, o paradeiro de Dona Felipa, líder do motim
em que mulheres pobres do povoado de Abancay, sublevadas, se
apoderaram de um depósito ilegal de sal e distribuíram o alimento entre
a população; ignorará inclusive se Dona Felipa sobreviveu. Tampouco
saberá se a febre tifoide de fato acometeu os camponeses indígenas da
região, embora o possível alastramento da doença tenha ocupado dezenas
de páginas perto do final do romance.
Nisso o desenlace elusivo da narrativa retoma uma sugestão
decisiva do romance: o embate entre diferentes segmentos da sociedade
peruana é, fundamentalmente, uma disputa pelo futuro. É o que se
depreende da aparição, em momentos críticos do romance, de falas que
se remetem ao porvir, em discursos proféticos pronunciados por
personagens como Ernesto (o narrador mestiço criado entre índios,
depois deixado no colégio interno de Abancay), Palacios (menino oriundo
de uma comunidade indígena e colega de Ernesto no colégio), e o
porteiro da escola, em fala já próxima das últimas páginas do livro. Essas
profecias estão relacionadas ao destino de Felipa e, consequentemente, ao
da rebelião que reivindicava acesso dos camponeses ao sal que estava
sendo distribuído apenas ao gado da região. A chichera (vendedora de
chicha, bebida fermentada feita de milho) Felipa escapa do povoado de
Abancay pouco antes da chegada do exército peruano, cujas tropas
haviam sido enviadas para reprimir a insurgência. Como não é
encontrada, tem início, quase que imediatamente, o rumor de que um dia
voltará ao povoado, dessa vez acompanhada de uma legião de índios
amazônicos, revivendo antiga espera andina pelo regresso de Atahualpa.
A esperança pelo retorno, que ecoa longa tradição de rumores
semelhantes, fora motivo de censura explícita do sacerdote local em
sermão após a retomada da cidade pelo exército:
Continuando, em seguida:
4 Ibid., p.207.
5 Ibid., p.230-231. Em espanhol e em quéchua, cujos versos aparecem lado a lado na versão
original, lê-se:
amarak wak´aychu, no llores todavía,
k´ausak´rak´mi kani, aún estoy vivo,
kutipamusk´aykin. he de volver a ti,
vueltamusk´aykin. he de volver.
Nok´a wanuptiyña, Cuando yo me muera,
nok´a ripuptiyña cuando yo desaparezca
lutuyta apaspa, te vestirás de luto,
wak´ayta yachanki. aprenderás a llorar.
(...) (...)
Kausarak´ mi kani, Aún estoy vivo,
alconchas nisunki, el halcón te hablará de mí,
luceros nisunki, la estrella de los cielos te hablará de mí,
kutimusk´rak´mi, he de regressar todavía,
vueltamusak´rak´mi. todavía he de volver.
Muito poderia ser dito sobre a intricada temporalidade desse ainda que se
repete ao longo dos versos, em apelo para que se adie ao menos um
pouco o pranto, como se não fosse certo que já tivesse chegado a hora do
começo do luto. Projetando o choro ao futuro, o advérbio busca estender
o presente. (Construções semelhantes aparecerão em diversas obras de
Arguedas, como num poema que declara que Tupac Amaru não está
morto. É também a inscrição que Arguedas pede que seja gravada, em
quéchua, em seu túmulo: ainda estou vivo.)
Nesse quadro, onde a possibilidade de um porvir radicalmente
diferente demanda dos sujeitos um posicionamento político no presente,
será importante, para a formação particular de Ernesto, perceber, com
tristeza e desengano, como Antero, até então dos colegas mais próximos a
ele no internato, se coloca diante da perspectiva da volta dos indígenas
insurgentes. Antero havia contado que quando criança chorara vendo os
índios da fazenda de seu pai sendo castigados e lembrara de ter
compartilhado com a mãe sua compaixão pelos índios que o pai mandava
açoitar, dizendo, durante essa rememoração, que “Quando a gente é
criança e ouve, assim, choro de gente grande, em tumulto, como uma
noite sem saída o coração sufoca; sufoca, fica apertado para sempre.”6
Para Ernesto, a expectativa era que o sofrimento de Antero ao ver os
índios maltratados, quando criança, iria levá-lo, na adolescência, à
solidariedade com os sublevados. E, no entanto, ante a possibilidade da
volta de Dona Felipa, com o risco de os índios das fazendas decidirem se
aliar a ela, a resposta de Antero é uma ameaça violenta, provocando o
desconcerto de Ernesto:
8 Ibid., p.125.
9 Ver, por exemplo, CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa. Trad. Ilka Valle de Carvalho.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000; e LEGRÁS, Horacio. Literature and subjection. Pittsburgh: U. of
Pittsburgh Press, 2008, sobretudo seu estudo da revolta em Yawar Fiesta (p.204-211).
10 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos, op.cit., p.130-131.
11 Ver sobretudo o estudo de Horacio Legrás, op.cit., p.201 e passim.
rios profundos, ganham importância se lembrarmos que a partir do livro
Yawar fiesta, publicado em 1941, Arguedas passa a ser visto no Peru como
a esperança de unificação da dualidade nacional, uma polarização ainda
mais marcada do que a de outros países hispano-americanos.12 Nas
tradições literárias desses países, incluída a peruana, o romance de
formação tendia a fundir formação individual e nacional, e isso desde
aquele que é frequentemente considerado o primeiro romance hispano-
americano: El Periquillo Sarniento, do mexicano Fernández de Lizardi,
romance publicado por entregas durante a guerra de independência,
onde o nascimento de uma nação nova aparece como desfecho
inevitável.13
No caso específico do Peru, observa Legrás, a fraqueza relativa do
Estado peruano durante longos períodos fez com que suas instituições,
em particular a escola, tivessem alcance limitado, diluindo os esforços de
doutrinamento nacionalista, permitindo a consolidação da polarização
entre litoral e montanha, entre espanhóis e índios, e enfraquecendo a
solução dos modelos hibridistas, necessários para o nacionalismo em
sociedades heterogêneas. Mas quando o Estado se fortalece, ganha alento
o projeto político que concede direitos em troca de sujeição,14 oferta
análoga àquela que Arguedas enxergará na literatura, entendendo o
projeto literário – sobretudo o projeto literário indigenista, mas não só ele
– como um movimento fundamentado na sujeição indígena.
É nessa configuração que a manutenção de resquícios ou
lembranças do conflito cultural e histórico entre espanhóis e índios
aparece em Arguedas como uma esperança, pois só o reconhecimento da
continuação do confronto, mesmo que em forma residual, poderá levar à
constatação de sobrevivências além da derrota.
Diante desse conjunto de problemas, não surpreende que a
tradução se torne questão central na obra de Arguedas, como é o caso
também nesse Os rios profundos. No romance estará presente, em mais de
um trecho e de diferentes maneiras, a tensão linguística, reforçando a
hipótese de que a obra do autor deve ser lida como um longo e
angustiado experimento de procedimentos para lidar com o conflito
linguístico e cultural. Atravessam o romance tentativas de construção de
um lugar de enunciação complexo e móvel no qual o narrador é tanto
mediador, tradutor e antropólogo quanto informante nativo e objeto de
estudo. Em cena próxima do início do romance, por exemplo, frente à
possibilidade de ter que duelar com outro interno do colégio, Ernesto,
12 Ibid., p.204.
13 Ver OLIVER, Felipe. “De la formación del sujeto al sujeto apestado: la novela del aprendizaje
en Hispanoamérica”. Itinerarios: revista de estudios lingüisticos, literarios, históricos y antropológicos,
2011, n.13, p.181.
14 LEGRÁS, Horacio, op.cit.
descobrindo-se incapaz de rezar ao Deus cristão em busca de proteção,
dirige-se à divindade de sua aldeia (K'arwarasu), quando então se sente
encorajado e fortalecido. A transformação do destinatário da
comunicação – de Deus a K'arwarasu – é responsável pela transformação
emocional de Ernesto, embora a estrutura interna do romance mantenha
o contrato inicial, com o narrador, o próprio Ernesto, explicando em
seguida em tom neutro e imparcial, no idioma das ciências sociais, o
funcionamento de sua própria crença:
17 Ver a tradução de Rômulo Monte Alto para El zorro de arriba y el zorro de abajo em
ARGUEDAS, José María. A raposa de cima e a raposa de baixo. Trad. R. Monte Alto. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2016.
18 ARGUEDAS, José María. Los ríos profundos, op.cit., p.228.
vivo de um lugar para outro.”19 Já na tradução mais recente, de Josely
Vianna Batista, busca-se a reprodução da construção híbrida: “De meu
irmão seu canto é, forte.” E “Eu peregrino; andando vivo.”20
Em outro trecho, após um colega lhe pedir que escreva uma carta a
Salvina, uma menina da cidade de Abancay, Ernesto se pergunta: “Como
começaria a carta?”21 Pensando nas meninas da aldeia, complementa:
“Que distância existia entre seu mundo e o meu?” 22 Inicialmente se
mantém confiante na possibilidade da travessia: “Eu sabia, apesar de
tudo, que podia atravessar essa distância, como uma seta, como um
carvão aceso que sobe. A carta que devia escrever para a adorada do
Markask’a chegaria às portas desse mundo.” E então, “como quem entra
num combate” começa a redigir a carta, até que
19 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos. Trad. Gloria Rodriguez. São Paulo: Paz e Terra,
1977.
20 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos. Trad. Josely Vianna Batista, op.cit.
21 Ibid., p.99.
22 Ibid., p.101.
23 Ibid., p.102.
24 Ibid.
Escrever! Escrever para elas era inútil, imprestável. “Ande, vá esperá-las
nos caminhos, e cante! E se fosse possível, se eu pudesse começar isso?” E
escrevi: “Uyariy chay k’atik’niki siwar k’entita...”25
1. o episódio começa com uma carta, a ser escrita por Ernesto, a pedido de
Antero, para Salvina; Ernesto começa a escrevê-la em espanhol,
buscando uma linguagem que julga adequada ao cortejo adolescente;
2. a redação é repentinamente interrompida, após uma cisão na voz do
autor da carta, que começa a escutar indagações que vêm de um outro
dentro de si – “Aonde você vai, aonde você vai? Por que não continua?
O que o assusta, quem cortou seu voo?” – perguntas que desatam a
capacidade de escuta do narrador (escuta de si): “Depois dessas
perguntas, voltei a me escutar ardentemente”;
3. são imaginadas destinatárias alternativas para a carta (moças indígenas
andinas);
4. a mudança no endereçamento por sua vez leva à aproximação entre
carta e canção, escrita e canto: “minha carta poderia ser como um canto
que vai pelos céus e chega a seu destino” – com a fusão anunciando o
cumprimento de um destino;
5. a fantasia então esbarra num limite empírico – a incapacidade de leitura
das moças – que ameaça desfazer a confluência entre carta e canto;
6. volta então a segunda voz de Ernesto, nesse diálogo interno,
estimulando-o a cantar mesmo assim, à espera de suas destinatárias:
“Ande, vá esperá-las nos caminhos, e cante!”; a continuidade da escrita
só é possível se o escritor imagina estar cantando, em exercício que no
entanto é matizado ao começar com uma formulação condicional: “E se
fosse possível, se eu pudesse começar isso?”;
7. aquilo que Ernesto parece finalmente escrever, e que no romance
aparece entre aspas, está em quéchua (“Uyariy chay k’atik’niki siwar
k’entita...”), mas esse texto também será interrompido, com a volta do
espanhol, numa versão para os versos em quéchua;
25Ibid. Para uma discussão do conflito linguístico no romance, ver Ligia Karina Martins de
Andrade, Nas margens da palavra – o silêncio: uma estratégia de controle e organização do conflito em
Arguedas. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004.
8. todo o processo será obstruído definitivamente pelo choro de Ernesto,
que faz com que se interrompa a criação, que já é difícil dizer se é
escrita ou canto: “Não foi um choro de sofrimento nem de desespero.
Saí da sala ereto, com um orgulho seguro; como quando cruzava a nado
os rios de janeiro carregados da água mais pesada e turbulenta.
Caminhei por alguns instantes no pátio empedrado.”26
26 Ibid., p.103.
27 Ver, a respeito, MOREIRAS, Alberto. “O fim do realismo mágico: O significante apaixonado
de José María Arguedas”. A exaustão da diferença. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia
Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p.221-248.
28 ARGUEDAS, José María. Os rios profundos. Trad. J. V. Batista, op.cit., p.128.
direção de Chalhuanca, será que ele chega aos ouvidos de meu pai?”
Antero responde:
Chega, irmão! Para ele não existe distância. (...) Você primeiro fala com um
de seus olhos, diz qual é sua missão, dá seu rumo, e depois, quando ele
estiver cantando, sopra devagar na direção que quiser; e continua a lhe dar
sua missão. E o zumbayllu vai cantar no ouvido de quem o espera.
Experimente, agora!29
29 Ibid., p.160-161.
a realidade da conquista espanhola e da dominação criolla; tampouco há a
afirmação da instauração de uma nova ou contra-hegemonia, que tenha
superado a colonial. Aparentemente modesta, embora com consequências
significativas, a tarefa apresentada parece ser aquela formulada por
Arguedas de diversas maneiras em outros textos: continuar a disputar a
forma e o sentido da derrota.
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O objetivo deste artigo é destacar algumas características do Thomas Bernhard;
conceito de Bildungsroman presentes na obra Extinção – Uma Bildungsroman;
derrocada (1986), de Thomas Bernhard. O termo Bildungsroman Goethe;
surge associado à obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Historiografia;
(1795-1796), de Goethe. No entanto, uma vez que os pressupostos Literatura alemã.
históricos presentes no paradigma goethiano se alteraram, os
elementos do Bildungsroman encontram-se diluídos nas obras que
apresentam traços desse gênero. O romance Extinção possui
semelhanças com o programa narrativo do Bildungsroman, contudo
elas estão presentes de maneira diluída.
ABSTRACT KEYWORDS
The aim of this paper is to highlight a few characteristics on the concept Thomas Bernhard;
of Bildungsroman in Thomas Bernhard’s Extinction (1986). The term Bildungsroman;
Bildungsroman becomes well known when associated with Goethe’s Goethe;
Historiography;
Wilhelm Meister’s Apprenticeship Years (1795-1796). Nonetheless, since
German literature.
the historical presuppositions present within the Goethian paradigm have
changed, the Bildungsroman elements may be found diluted in works
which present traits of this genre. The novel Extinction holds similarities
with the narrative progressions of the Bildungsroman; however, they are
present in a diluted way.
O conceito de Bildungsroman: da origem do termo ao
estabelecimento do gênero
1MORGENSTERN apud MAAS, 2000, p. 46. In: MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o
Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
protagonista em interação com o mundo externo. Na Alemanha do século
XVIII, o Roman era considerado uma narrativa de cunho inferior, pois
geralmente representava uma história de amor. Nessa época, a forma
narrativa exemplar ainda era a epopeia apreciada por sua grandiosidade
temática e métrica clássica. Enquanto na Inglaterra e na França o romance
já se estabelecera desde o século XVII, na Alemanha, o reconhecimento do
gênero se dá no final do século XVIII com a publicação de Os sofrimentos do
jovem Werther (1774), de Goethe. Dessa forma, o surgimento do romance
burguês é visto pela historiografia literária – do século XVII ao XX – a partir
do embate direto com a epopeia antiga. Devido ao fato de o romance
estabelecer-se tardiamente na Alemanha como gênero “digno”, a discussão
proposta por Morgenstern colabora também para a consolidação do
romance como gênero.
Tratando ainda do texto da conferência de Morgenstern, cabe dizer
que nele já é mencionado o segundo romance da trilogia2 de Goethe, Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796), que se tornará o
paradigma do gênero Bildungsroman:
2 A trilogia de Goethe sobre o personagem Wilhelm Meister é composta pelas seguintes obras: A
missão teatral de Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters theatralische Sendung) (1777-1785), Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters Lehrjahre) (1795-1796) e Os anos de peregrinação de
Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters Wandejahre) (1829, segunda versão). Uma vez que o segundo
volume da trilogia contribuiu para a fundação do gênero literário Bildungsroman, é apenas a ele
que nos reportamos neste artigo.
3 MORGENSTERN apud MAAS, 2000, p. 47. In: MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o
4 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 237.
5 O embate delineado no romance de Goethe entre as possibilidades limitadas de aperfeiçoamento
do burguês em relação ao aristocrata pode ser conferido na carta de Meister a Werner: “[...]
instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção,
desde a infância. [...] Fosse eu um nobre e bem depressa estaria suprimida nossa desavença; mas,
como nada mais sou do que um burguês, devo seguir um caminho próprio, e espero que venhas
a me compreender. [...] na Alemanha só a um nobre é possível uma certa formação geral, e pessoal
[...] Se, na vida corrente, o nobre não conhece limites [...] pode portanto apresentar-se onde quer
que seja com uma consciência tranquila diante dos seus iguais, pode seguir adiante, para onde
quer que seja, ao passo que ao burguês nada se ajusta melhor que o puro e plácido sentimento do
limite que lhe está traçado” (GOETHE, Johann Wolfgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister. Tradução de Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 284-285).
das duas classes é a mais coerente. Essa justaposição é notada no
reencontro entre os amigos de infância Wilhelm Meister e Werner, na
última parte do livro. Enquanto Werner casara-se com a irmã de Meister,
unindo assim a fortuna das duas famílias, e dedicara-se à administração
dos negócios do pai, o percurso empreendido por Meister destoa
completamente deste. Abandonando a casa paterna, Meister transitara por
outras esferas, engajando-se, primeiramente, no meio teatral como forma
de estreitar laços com a aristocracia. Ao deixar que o cunhado administre
seu patrimônio, Meister apresenta-se como o indivíduo que não habita
nem um dos estilos de vida pelos quais circulou: não se tornou aristocrata
e nem mesmo se especializou para assumir o papel de burguês. Logo, ele
não se enquadra nesses modelos e, ao mesmo tempo, transita entre eles.
Embora a trajetória de Wilhelm Meister tenha contribuído para o
estabelecimento do programa narrativo do Bildungsroman, ela evoca uma
representação datada e espacializada de um modo de vida burguês.
Jürgen Jacobs (1989) redefine o Bildungsroman como uma narrativa
que deveria englobar “obras em cujo centro esteja a história de vida de um
protagonista jovem, história essa que conduz, por meio de uma sucessão
de enganos e decepções, a um equilíbrio com o mundo”6. Partindo dessa
concepção, Jacobs acrescenta ainda outras características que o conceito
passaria a abranger, como o fato de que o protagonista deva “ter uma
consciência mais ou menos explícita de que ele próprio percorre não uma
sequência mais ou menos aleatória de aventuras, mas sim um processo de
autodescobrimento e de orientação no mundo”7. Soma-se a isso outras
experiências pelas quais o protagonista deve passar como a partida da casa
paterna, a influência de mentores e instituições educacionais, o contato
com a arte, o envolvimento com alguma atividade profissional, o
intercâmbio na vida pública e política etc.
A partir da proposição de Morgenstern, Wilhelm Meister passou a
vigorar como a obra exemplar do Bildungsroman. Diante disso, os romances
eram sempre comparados esteticamente partindo da genealogia que a
crítica pontuara na obra de Goethe. Logo, dentro e fora da Alemanha, as
obras eram consideradas Bildungsromane levando-se em conta o grau de
aproximação com o Meister. Contudo, a noção teleológica que pautara a
ideia de desenvolvimento individual não se sustenta mais a partir da
realidade histórica do século XX, marcada pelo desenvolvimento da
psicanálise e pelos traumas ocasionados por duas guerras mundiais. Surge,
com isso, uma noção de sujeito fragmentado que não condiz mais com o
projeto de identidade una e harmônica defendido pelo romance burguês.
6 JACOBS apud MAAS, 2000, p. 62. In: MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o Bildungsroman
na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
7 JACOBS apud MAAS, 2000, p. 62. In: MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o Bildungsroman
8 BERNHARD, Thomas. Extinção – Uma derrocada. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 213. Devido ao grande número de citações a essa obra,
passaremos a referenciá-la apenas pelo sobrenome do autor, seguido do número da página.
9 BERNHARD, p. 212.
parodística, pois os pressupostos históricos que inicialmente embasaram o
gênero estão ausentes. Ambientado no final do século XX, o romance
Extinção apresenta uma subjetividade fragmentada, cujo discurso
reverbera sobre si mesmo. O fato histórico presente nessa obra é
recuperado porque teve uma ligação direta com a família do narrador.
Como o próprio título do romance de Bernhard sinaliza, o propósito
teleológico de Murau é extinguir o passado, uma vez que seus anos de
aprendizado foram traumáticos. O projeto autobiográfico desse narrador
não estampa seu nome. Este é revelado sucintamente em meio ao seu
discurso esquizofrênico, dominado por idas e vindas e associações
completamente subjetivas.
10 LONG, Jonathan James. Assincronias: Relações de classe na ficção de Bernhard. In: KONZETT,
Matthias (ed.). O artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e
introdução de Ruth Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 261-288, p. 262.
11 LONG, 2014, p. 262.
analisa seus traumas referentes à Áustria e, mais especificamente, a
Wolfsegg.
Esses anacronismos denotam certa nostalgia do narrador pela
Áustria imperial, período que, evidentemente, ele não vivenciou, mas que
se mantém, em certa medida, na estrutura de sua família. A Monarquia dos
Habsburgos dominou a Áustria por aproximadamente seiscentos anos,
chegando ao fim em 1916, com a morte do imperador Francisco José I, cujo
reinado de sessenta e oito anos simbolizou a fase áurea da dinastia,
conhecida por ser aristocrata, multicultural e poliglota. Murau, inclusive,
carrega esse passado em seu nome, certamente uma homenagem ao
imperador Franz Josef I. A família de Murau, latifundiária e herdeira de
uma grande fortuna, conserva o mesmo padrão de vida de seus
antepassados contemporâneos ao Império. Entretanto, ela se ocupa
exclusivamente de suas finanças, desprezando a vida do espírito, do
pensamento humanístico, aspectos valorizados durante o Império dos
Habsburgos. Esse fato é ressaltado, quando Murau lembra que os antigos
habitantes de Wolfsegg construíram ali cinco bibliotecas, pois
eles tinham uma necessidade natural pelo espírito e pelo pensamento [...]
estavam convencidos de que é o ápice da existência humana levar uma vida
no pensamento, uma vida no espírito, [...] não no cotidiano e na estupidez
cotidiana, como os meus [familiares].12
12 BERNHARD, p. 194.
13 BERNHARD, p. 60.
rejeitasse os assuntos referentes à administração de Wolfsegg, Murau
mantinha-se em Roma com o dinheiro que os pais lhe enviavam. Entregue
ao ócio contemplativo na cidade latina, Gambetti era o único aluno
particular do narrador, que cobrava caro da família do jovem para ensiná-
lo língua e literatura alemãs. Apesar de odiar suas origens, Murau as
utilizava no exercício do magistério, seja no conteúdo pedagógico, seja nos
assuntos referentes a sua família os quais frequentemente eram inseridos
nas aulas. A aversão que o narrador carrega da Áustria presentifica-se ao
longo da narrativa por meio de inúmeras críticas que Murau tece à família
– um microcosmo do Estado. Outro assunto tematizado por Murau deve-
se ao fato de sua família ter apoiado o nazismo. Como ela sempre visava
tirar proveito de qualquer situação política, ao final da guerra, a família se
aproximou também dos norte-americanos, embora escondesse os nazistas
na propriedade.
A trajetória de Murau, entretanto, apresenta algumas ambiguidades
inerentes à complexidade de um indivíduo de sua classe e de seu tempo.
Ao fugir da Áustria por conta do envolvimento de sua família com o
nazismo, Murau escolhe viver na Itália, um país que guarda a mesma
mácula histórica. Nesse sentido, não é por acaso que Murau se afeiçoa por
Gambetti, seu aluno italiano, cuja idade e intelecto assemelham-se a de seu
mestre. Ambos descendem de famílias ricas e são produtos de uma
sociedade anteriormente totalitária.
Outro aspecto ambíguo em Murau encontra-se ao final do livro,
quando ele, aparentemente, se suicida, após doar Wolfsegg à Comunidade
Israelita de Viena. Em um primeiro momento, essa atitude figura como
uma forma de reparar o mal causado por sua família e, em segundo lugar,
como o modo de se livrar de uma herança indesejada. Seu suicídio pode
ser visto como uma atitude máxima de repúdio a tudo aquilo que remetia
à família e à sua própria identidade pessoal. No entanto, como destaca
Lorenz (2014), “o suicídio de Murau parece uma reencenação da solução
encontrada por aqueles nazistas que se mataram perante da derrota, Hitler,
Goering e Goebbels”14. Assim como estes, Murau foge de qualquer
responsabilidade, doando os bens herdados de sua família para aqueles
que ela lesou.
O significado do suicídio de Murau evidencia uma incapacidade
desse sujeito em buscar uma conciliação entre o passado dos familiares e a
reparação histórica de seus atos. A decisão pela morte soa contraditória ao
percurso de Murau que, mesmo fora de um regime totalitário, buscara
anteriormente uma aliança germânico-italiana com Gambetti, ou seja,
embora os criticasse, o narrador empreendia o mesmo modelo seguido
14LORENZ, Dagmar. O outsider estabelecido: Thomas Bernhard. In: KONZETT, Matthias (ed.). O
artista do exagero: a literatura de Thomas Bernhard. Organização da tradução e introdução de Ruth
Bohunovsky. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. p. 75-99, p. 89.
pelos familiares. A atitude de Murau frente ao fato histórico assemelha-se
à do nobre Lothario, no Meister, de Goethe, feitas naturalmente as devidas
ressalvas quanto ao contexto histórico de cada romance. Membro da
Sociedade da Torre, Lothario deseja realizar uma reforma agrária em suas
próprias terras, saldando voluntariamente seus privilégios feudais.
Embora essa atitude sugira uma conciliação entre os interesses
aristocráticos, burgueses e plebeus, ela visa impedir que, na Alemanha, se
dessem os mesmos acontecimentos radicais ocorridos na França após a
Revolução. De acordo com Lukács, “em Goethe, não se trata da fé nos
métodos plebeus da Revolução Francesa; estes ele recusou categórica e
incompreensivamente. Mas isso não significa, para ele, uma rejeição dos
conteúdos sociais e humanos da revolução burguesa”15.
Em Extinção, embora o narrador retome fatos históricos, enfatizando
a Segunda Guerra e seus desdobramentos, sua obsessão gira em torno dos
complexos referentes a sua relação familiar e com o fato de ter se tornado
herdeiro de Wolfsegg. Paralelamente, o relato do protagonista foca o seu
desenvolvimento intelectual. Para tanto, Murau rememora o tempo da
infância a fim de destacar que desde cedo já possuía predisposição para o
cultivo do espírito. Seu percurso aproxima-se de algumas premissas
incutidas ao programa do Bildungsroman, mas também se distancia,
completamente, na medida em que esse personagem não deseja atingir um
grau de perfectibilidade, nem se reconciliar com a sociedade. O foco de
Murau reside em estetizar sua vida particular, destacando que, graças ao
incentivo do tio Georg, ele pôde abandonar Wolfsegg e aprofundar-se no
desenvolvimento de suas qualidades intelectuais.
Desde criança Murau foi muito influenciado pelo tio Georg, irmão
mais velho de seu pai e personagem que, no relato do narrador, possui
lugar de destaque. Havia claramente para Murau dois mundos em
Wolfsegg, “o de meus pais, que sempre achei desinteressante [...] e o do
meu tio Georg, que parecia consistir só de aventuras formidáveis, no qual
nunca era possível entediar-se”16. A principal diferença entre esses
mundos consistia no fato de que, enquanto os pais de Murau conduziam
suas vidas seguindo os preceitos burgueses da acumulação de capital, o tio
Georg caracterizava-se por ser um espírito livre, empenhado em ampliar
15 LUKÁCS, Georg. Posfácio. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister. Tradução de Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 581-601, p.
594. Conforme nota do tradutor, o texto do Posfácio, de autoria de Georg Lukács, foi publicado
em 1936 e se encontra em Werke, vol. 7: Deutsche Literatur, “Goethe und seine Zeit”,
Neuwied/Berlim, Hermann Luchterhand, 1964.
16 BERNHARD, p. 35-36.
seus horizontes. Chamava à atenção de Murau a preocupação do tio em
desenvolver suas potencialidades, enquanto seus pais, desde cedo,
desistiram de aprimorar suas existências:
Tem de ignorar as ideias e opiniões dos seus [...] e sair de Wolfsegg contra a
vontade deles, não seguir o conselho deles, que só têm por objeto te
acorrentar a Wolfsegg pelo resto da vida, [...] tem de fazer exatamente o
17 BERNHARD, p.58.
18 BERNHARD, p. 24-25.
19 BERNHARD, p. 26-27.
contrário do que te aconselham [...], pois as ideias deles são opostas às suas,
e portanto contrárias a de seu desenvolvimento. [...] Você está em condições
de se tornar autônomo deles, de se tornar independente, dissera meu tio
Georg.20
20 BERNHARD, p.103.
21 BERNHARD, p. 154.
22 BERNHARD, p. 154-155.
do jovem, os quais, embora conservem uma relação amistosa com o
narrador, veem nele o “deseducador de seu único filho”, que se mostra
cada vez mais inclinado a se tornar um filósofo revolucionário, destoando
completamente do propósito burguês da família. Contudo, uma vez que o
leitor não tem acesso à voz de Gambetti, essas impressões são comunicadas
apenas pelo narrador, o que gera certa desconfiança quanto à existência do
jovem. Devido ao caráter misantropo do narrador, a figura de Gambetti
ganha contornos de mero recurso estilístico, podendo ser visto como um
produto da criação literária de Murau.
A única reação de Gambetti que o narrador deixa transparecer no
texto refere-se ao riso que o italiano não consegue esconder diante de
alguns comentários de seu mestre, a quem Gambetti apelidara de sonhador
matutino: “Gambetti soltara uma gargalhada e chamara-me de imenso
exagerado, definira-me como um pessimista”23. Essa reação pode revelar
certa descrença de Gambetti em seu mentor, contribuindo, inclusive, para
que o relato seja lido sob o signo do exagero. Ao registrar a risada incontida
de Gambetti, o narrador estaria sinalizando para o fato de que seu relato,
além de extremamente subjetivo, não deve ser levado tão a sério. Ou que
sua visão acerca dos acontecimentos que narra faz sentido somente a ele,
cabendo a Gambetti, e implicitamente ao leitor, apenas o riso como
resposta.
Apesar de Murau desempenhar o papel de mentor de Gambetti, a
relação entre eles não pressupõe uma integração, uma vez que ela silencia
o aluno e concede voz apenas ao mestre. Desse modo, segundo Long
(2001), o romance poderia ser lido como uma paródia do Bildungsroman,
pois, “embora o narrador tente incansavelmente convencer Gambetti, ele
não deixa de propagar, monótona e maniacamente, o seu próprio
desabafo”24. Mais ainda, o sucesso no método de convencimento de Murau
pelo tio Georg não é sentido na relação entre Gambetti e o narrador.
Enquanto Murau vangloria-se da instrução que recebeu do tio, a orientação
que o narrador endereça a Gambetti é dissimulada, pois os encontros com
Gambetti servem de pretexto para Murau regurgitar seu passado.
O corretor de literatura
23BERNHARD, p. 92.
24KORTE apud LONG, 2001, p. 175, tradução nossa. In: LONG, Jonathan James. The novels of
Thomas Bernhard: form and its function. New York: Camden House, 2001.
exclusivamente, do gosto estético particular do narrador, ou seja, ele se
utiliza de um repertório formado desde a infância, sendo que, a muitas
dessas obras ele teve acesso por intermédio do tio Georg.
Já no início do romance, Murau se lembra de uma lista que entregara
a Gambetti contendo os nomes dos livros que seriam abordados nas
próximas aulas. São eles: Siebenkäs, de Jean Paul, O processo, de Kafka,
Amras25, de Thomas Bernhard, A portuguesa, de Musil, Esch ou A anarquia,
de Broch, As afinidades eletivas, de Goethe e O mundo como vontade e
representação, de Schopenhauer. Embora o narrador faça referência a obras
de outros autores, convém ressaltar que, “em Extinção, a intertextualidade
não é motivada tematicamente por meio de assuntos como anarquia, crítica
social ou uma diferenciação entre norte e sul” 26, podendo ser interpretada
como uma mera citação do repertório literário do protagonista. Theisen
(2006) lembra ainda que Extinção não “invoca estilisticamente estes
intertextos de modo principal, ainda que tais técnicas literárias, como a
digressão permanente ou a referência do autor a seus próprios textos
dentro do texto literário, exploradas por exemplo por Jean Paul em
Siebenkäs, reapareçam na narrativa”27.
Por outro lado, Görner (2014) destaca que essas referências também
criam “a impressão de que os protagonistas de Bernhard só recorrem aos
grandes artistas para dar voz de autoridade ao seu discurso” 28. Conforme
dito anteriormente, no início do romance, o narrador serve-se de autores
clássicos tanto para marcar seu processo de intelectualidade, quanto para
orientar a formação de Gambetti. Contudo, na segunda parte do livro, o
discurso do narrador se altera e o que se nota é uma tentativa de
desconstrução dos mestres literários outrora reverenciados. A estratégia
desconstrutiva de Murau apóia-se, sobretudo, na repetição, uma vez que,
ao repetir diversas vezes um argumento, o narrador tenciona o
esvaziamento daquilo que é repetido.
Em uma longa passagem, Murau trata do legado de Goethe para a
literatura alemã, afirmando que a poesia e a filosofia goethianas são a
maior charlatanice dos alemães. Para o narrador, o surgimento de Goethe
contribuiu para a criação de uma identidade alemã e serviu também como
um remédio para os alemães: “o flautista de Hamelin da filosofia [...]
25 Curioso é que, entre os livros indicados pelo narrador, aparece o romance Amras (1964), do
próprio Thomas Bernhard, o que leva o leitor a pensar que, dentro do universo de Extinção, Amras
já se encontra canonizado, pois figura ao lado de obras clássicas.
26 HOELL apud THEISEN, 2006, p. 561, tradução nossa. In: THEISEN, Bianca. The Art of Erasing
Art. Thomas Bernhard. MLN, Maryland, v. 121, n. 3, p. 551-562, Apr. 2006. (German Issue).
27 THEISEN, Bianca. The Art of Erasing Art. Thomas Bernhard. MLN, Maryland, v. 121, n. 3, p.
Nada do que fez Goethe atingiu o vértice, disse, em tudo não ultrapassou a
mediocridade. Ele não é o maior dos líricos, não é o maior dos prosadores,
disse a Gambetti, e suas peças teatrais, comparadas por exemplo às peças de
Shakespeare, são como um mirrado bassê dos arrabaldes de Frankfurt diante
de um imponente cão pastor suíço. Fausto, [...] que megalomania! [...] Goethe
é o coveiro do espírito alemão [...]. Se o comparamos por exemplo a Voltaire,
Descartes, Pascal, [...] a Kant, e naturalmente também a Shakespeare, Goethe
é assombrosamente pequeno. [...] Hölderlin é o grande lírico, [...] Musil é o
grande prosador e Kleist o grande dramaturgo, não Goethe, três vezes não.30
29 BERNHARD, p. 422.
30 BERNHARD, p. 422-423.
predisposição de Murau para se desenvolver, os direcionamentos de
Georg contribuíram para a formação da individualidade de Murau.
Entretanto, como Gambetti se encontra bem adaptado a seu meio, a
tentativa do narrador em instruí-lo é fracassada, pois o italiano o paga em
troca de aulas particulares e não manifesta nenhum desejo de uma
mudança pessoal mais concreta. Dessa maneira, em seus monólogos,
Murau conversa consigo mesmo, desconsiderando a atenção e a presença
de Gambetti, cuja existência ecoa como mera virtualidade no relato do
narrador.
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
O presente texto propõe uma leitura da obra de Moacyr Félix Utopia;
partindo da indicação de que sua “poética utópica” trava Moacyr Félix;
interlocução com a Teoria Crítica da Sociedade e com a Poética utópica;
Filosofia de Ernst Bloch. Busca explorar na figura do “exílio” a Exílio;
possibilidade de uma leitura da subjetividade e da realidade que Desamparo.
põe em “crise” tanto a imagem do futuro (sonho utópico) quanto
a de si. Em aproximação à psicanálise, sugere que sua poética
“utópica” pode ser lida como uma poética do “desamparo”, que,
ao duvidar tanto da imagem quanto da possibilidade de dizer a
“palavra exata”, dá acesso à “verdade impossível” do desejo.
ABSTRACT KEYWORDS
This paper proposes a reading of Moacyr Félix´s poems starting from Utopia;
the warning that his "utopian poetics" is in interlocution with the Moacyr Félix;
Critical Theory of the Society and with the Philosophy of Ernst Bloch. Utopian poetics;
It seeks to explore, by the "exile", the possibility of a reading of Exile;
subjectivity and of reality that puts in "crisis" both the image of the Helplessness.
future (utopian dream) and of itself. Finally, in an approach to
psychoanalysis, the article suggests that its "utopian" poetics can be
read as a "helpless" poetic, which, by doubting both the image and the
possibility of saying "exact word", gives access to "truth impossible"
of desire.
Pela recusa intransigente da aparência de
reconciliação, a arte mantém a utopia no seio do
irreconciliável.1
3 LIMA, Carlos. Poesia e Utopia em Moacyr Félix. Letras & Letras, v. 21, n. 2, 2005, p. 10.
4 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.
5 BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. UERJ; Contraponto, 2005, p. 23.
6 FURTER, Pierre. Dialética da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p. 80.
7 BLOCH, Ernst. op. cit., p. 79.
8 Tomamos tal expressão de Benjamin, que, na 14ª das teses Sobre o conceito de história, afirmou
que “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas
um tempo saturado de ‘agoras’" (BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras
realidade se des-totaliza, por assim dizer, se revelando como inacabada,
pendente. Para Bloch, é exatamente pelas brechas da realidade presente
que o sonho se infiltra9, oferecendo ao presente o futuro enquanto
possibilidade – o tempo histórico, em suma, como aberto à práxis. O
sonho utópico, ou diurno, investe, deste modo, a realidade de
temporalidades: atualiza sonhos já sonhados – e, tomando referência na
formulação de Kojève, “desejos desejados”10 – a partir da sua situação
histórica atual, desdobrando o tempo presente em “possíveis-reais”. No
poema No perguntar de um agora, Félix teria formulado tal questão, todavia
enfatizando o caráter dialético e negativo do desejo em relação ao
existente (ao que é): “O poema novo é tão velho como a revolta que
fecunda / o som futuro da humanidade no ventre antigo / do desejo que
nega o que é e movimenta a antítese / da rua, da lei, do medo e do
costume”11.
Se a imagem da Utopia seria, em Bloch, aquela da reconciliação12, em
Félix, de acordo com Carlos Lima, a “unidade dialética entre verdade e
utopia” está situada exatamente na suspensão – ou, na crise da
possibilidade – da reconciliação, assumindo um caráter essencialmente
negativo. Ainda que tivesse recorrido a Bloch, em distintas ocasiões, para
embasar sua compreensão de utopia13, talvez tenha sido Adorno seu
Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 229). Em Bloch, a afirmativa de que a realidade “é a
mediação vastamente ramificada entre o presente, o passado pendente e sobretudo o futuro
possível” (BLOCH, Ernst. op. cit., p. 194).
9 “Pois o sonho não para se se infiltrar nas lacunas” (BLOCH, Ernst. op. cit., p. 37). Novamente
aproximando Bloch e Benjamin, vale lembrar a passagem, ora citada através de Rouanet, que
diz: “nossa existência diurna é um país cheio de lugares ocultos em que desaguam os sonhos”
(Benjamin apud ROUANET, Sérgio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Cia. das Letras,
1987, p. 118).
10 Para Alexandre Kojève, a noção de “desejo”, conforme na Fenomenologia do Espírito, é central
para a formulação hegeliana de homem (ao menos a do “primeiro Hegel”) que não é somente
consciência, mas possibilidade de consciência de si (o que desnaturaliza a condição humana;
desloca-a do registro meramente biológico): “A realidade humana, diferente da realidade
animal, só se cria pela ação que satisfaz tais desejos: a história humana é a história dos desejos
desejados” (KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002,
p. 13).
11 FÉLIX, Moacyr. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 109.
12 Acerca da relação entre a Utopia concreta e a imagem do mundo reconciliado, conferir, por
exemplo, a passagem que diz que “[...] o lugar da efetivação” do utópico “situa-se unicamente
no front do processo histórico e tem diante de si, num primeiro momento, preponderantemente
a possibilidade real indireta. Esta, como um correlato real-objetivo, fica sendo o que
corresponde à antecipação exata, à utopia concreta. Ela o é no mesmo sentido em que o
concretamente utópico constitui um real-objetivo grau de realidade no front do mundo
acontecendo: como ainda-não-ser da ‘naturalização do ser humano, humanização da natureza’.
Correspondentemente, o reino da liberdade assim caracterizado não assume a forma do
retorno, mas do êxodo – ainda que para a terra sempre almejada, prometida pelo processo”
(BLOCH, Ernst. op. cit., p. 202-203).
13 Cf. FÉLIX, Moacyr. O Pensar e o Sentir na Obra de Moacyr Félix. Rio de Janeiro: Fundação
14 MUELLER, Enio. Filosofia à sombra de Auschwitz. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2009, p. 186-187.
15 Cf. NUNES, Diogo C. O sujeito que resta. Revista Nós – Cultura, Estética e Linguagens, Goiânia,
v. 1, n. 2, 2016.
16 FÉLIX, Moacyr. Canto para as transformações do homem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964, p. 75-76.
17 Id. O Pensar e o Sentir na Obra de Moacyr Félix. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional;
18 Para Nelson Brissac Peixoto, a crise da representação na arte está ligada diretamente à
compreensão da modernidade como crise: “[...] justamente quando se começa a tomar as
mercadorias por elas próprias, a arte moderna passa a tomar as obras por si mesmas, as formas
e cores como forças; plano, fundo, suporte e materiais subvertidos num espaço recriado. A crise
da representação atinge então também a arte” (PEIXOTO, Nelson Brissac. A Sedução da Barbárie.
São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 11-12). Na Teoria da vanguarda, Peter Bürger aponta à tendência
formalista da ate moderna já desde a segunda metade do século XIX: “O lado conteudístico da
obra de arte, sua ‘mensagem’, cada vez se retrai frente ao formal, que se cristaliza como sendo o
estético em sentido mais estrito” (BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify,
2012, p. 48). O “formalismo” da arte moderna não seria uma celebração da forma pela forma,
mas a tematização da distância entre arte e realidade, de modo que o objeto “de” arte passe a
ser objeto privilegiado “da” arte (GREENBERG, Clement. A Necessidade do Formalismo. In:
CORTIM, C.; FERREIRA, G. (Orgs.). Clement Greenberg e o Debate Crítico. Rio de Janeiro: Zahar,
2001, p. 127). Neste sentido, a “realidade” não seria somente nem condição exterior à técnica
formal (de uma perspectiva sociológica) nem a coisa representada, mas presente no próprio
“conteúdo” formal da obra, na medida em que “sedimentada” nos seus procedimentos formais
e técnicos. Na Teoria Estética: “[...] os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às
obras de arte como os problemas imanentes de sua forma” (ADORNO, Theodor W. Teoria
Estética. Lisboa: Edições 70, 1982, p. 16).
19 FÉLIX, Moacyr. Um Poeta na Cidade e no Tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966,
p. 34.
20 SOUSA, Edson Luiz André de; LIMA, Manoel Ricardo de. O nome que falta. Psicologia &
do Rio de Janeiro”. Na primeira parte da obra, Félix faz um “inventário” daquela que Beatriz
Vieira (A Palavra Perplexa. São Paulo: Hucitec, 2011) chamou de “geração interrompida” – sendo
“exilado” nos presos políticos, nos perseguidos, desaparecidos e assassinados da sua geração –,
mas o livro realiza também “inventário” de um Brasil interrompido, digamos, exilado numa
expectativa, ou num projeto de país, que àquela altura já lhe parecia uma promessa não
cumprida.
Exilado no exílio de todos os exílios
que em mim não findam mais
e são eternos.
29 FÉLIX, Moacyr. Canção do Exílio Aqui. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 113.
30 FÉLIX, Moacyr. Invenção de Crença e Descrença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.
49.
31 HEIDEGGER, Martin. Caminos de Bosque. Madrid: Alianza Editorial, 2005, p. 199.
32 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 15.
33 Id., Ibid.
34 Desamparo (Hilflosigkeit, em Freud) é uma noção algo polissêmica, tanto em relação aos seus
usos por Freud quanto às apropriações que aqueles deram origem. Aqui, pensaremos o
epistêmicas básicas do sujeito, estão como que suspensos, em um “ainda”
reticente.
O poeta está – exilado – em “uma noite do mundo”, à espera do
anúncio do “primeiro dia”. Observe-se que o poeta não diz “trazia de
volta o meu primeiro dia”. O primeiro dia, que remeteria à origem, é
porvir (preso na árvore do amanhã), mas o tempo está, também aí, como
num exílio, sem cidadania garantida, numa condição de “ainda-não”. O
“primeiro dia” de Félix parece fazer eco, assim, à noção de “origem”
[Ursprung] como em Benjamin, que “não está situada num passado
cronológico”35, mas “se localiza no fluxo do vir-a-ser”36. Em outro
sentido, talvez complementar, o “primeiro dia”, como início da vida,
parece permanecer latente, em potência, encontrando asilo “no interior
do tempo como os frutos / no interior das árvores”, conforme lemos no
poema Os Mortos:
“desamparo” tanto como um “afeto”, seguindo a leitura de Vladimir Safatle (O Circuito dos
Afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016), quanto sinônimo de “mal-estar” e de “Real”, conforme
Christian Dunker (Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2014). Tal aproximação –
ou tal “plasticidade” do termo – é chancelada por ambos autores em suas elaborações. Para uma
revisão dos modos como a noção é trabalhada ao longo do pensamento freudiano, ver FORTES,
Isabel; SANTOS, Nathália. Desamparo e alteridade: a dupla face do outro. Psicologia USP, v. 22,
n. 4, 2011.
35 AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? Chapecó: Argos, 2009, p. 69.
36 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 68.
37 FÉLIX, Moacyr. Um Poeta na Cidade e no Tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.
24.
38 HEIDEGGER, op. cit., p. 204.
39 Id., Ibid., p. 199-200.
Abismo que, como nos disse Wislawa Szymborska, no poema Autonomia,
“não nos divide / nos circunda”40.
Abismo, penumbra, penúria, carência, estranhamento, desabrigo,
desamparo. Um exílio no mundo, ou um mundo que é exílio, é o “lugar”
do poeta. Ele não tem pátria – ou, se tem, não a tem. A terra natal, aquela
que promete reencontro do indivíduo consigo mesmo, é sempre
suspensa, um outro-lugar, de geografia imprecisa. Lhe resta, como pista,
fragmentos de memórias e expectativas. Mas essas pistas, esses vestígios,
não apontam a um caminho; antes, incitam uma vaga e discreta
esperança que o poeta não recusa, mas aceita como sinal de “algo que
falta”. Não é fugindo do abismo, lutando contra o desamparo, mas
fazendo-o falar através de si mesmo que se poderá, como disse Vladimir
Safatle, “produzir um gesto de forte potencial libertador”41.
Habitante de um mundo que é um lugar-outro, o poeta é,
dialeticamente, habitado por uma “ausência” insistentemente presente,
por uma pergunta esquecida. Na versão de 1978, o poema Exílio continua:
“Fiquei eu, e a presença / de uma pergunta – uma só! – velada / como as
memórias de um mar / no vazio das conchas. // E essa pergunta – meu
Deus! – eu já esqueci”42. Se o poeta está à presença de uma ausência, que
ressoa, interrogativa, como marés no vazio das conchas, não chegando a
forjar-se como pergunta, é porque o que poderia ser comum, ou familiar,
a outrem, ao poeta é inquietante e estranho [Unheimlich]. Daí a intimidade
entre o poeta e o utopista afiançada pelo “exílio” como lugar-outro: esse
“lugar poético” não está deslocado geograficamente, mas
topologicamente – como incitando e permitindo uma condição existencial
e/ou uma disposição afetiva. “O inquietante seria sempre algo em que
nos achamos desarvorados, por assim dizer”43. Mas essa “disposição
afetiva” porta, como todo afeto, uma ambiguidade, nos adverte Freud –
ela é estranhamente familiar. Signo de uma “realidade ontológica”, como
disse Paul-Laurent Assoun, que, “exibindo ‘alguma coisa’, mostra seu
segredo, produzindo o invisível no visível [...]. Dando a ver o oculto,
manifestando o não manifestável, ela sela a aliança do mistério
(Geheimnis) e do revelado (Offenbare)”44. Trata-se, pois, de uma “refração
subjetiva”, como diz o autor, no sujeito e na realidade.
O Exílio de Félix nos reporta, assim, a dois movimentos
complementares. Primeiro, àquela condição, descrita por Adorno, de
40 SZYMBORSKA, Wislawa. Um amor feliz. São Paulo: Cia. das Letras, 2016, p. 143-145.
41 SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 18.
42 FÉLIX, Moacyr. Invenção de Crença e Descrença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.
49.
43 FREUD, Sigmund. O Inquietante. In: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”),
Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p. 332.
44 Paul-Laurent Assoun Apud BRANCO, Guilherme Castelo. O Olhar e o Amor. Rio de Janeiro:
“Na casa da minha mãe não tem lugar para escrever”. Bela passagem que
mostra o quanto Charlie [protagonista do conto de Kipling] precisava de
um “fora de casa” como lugar de produção. Buscava se afastar desse
excesso de familiar. Neste trânsito buscaria uma condição de alteridade e
do exílio como condição de possibilidade da obra. Aqui, neste contexto, o
familiar é uma espécie de burocratização do amanhã, já que é território do
mesmo, de reiteração de circuitos repetitivos48.
33.
55 JAMESON, Fredric. Espaço e Imagem. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 274.
56 FURTER, Pierre. op. cit.
utopia está, assim, como que em “exílio” – à espera, tencionando, ou
dialetizando, no “limite”57, a própria Esperança.
A poética utópica do exílio entre o desejo e o sonho não subtrai da
imagem do futuro sua potencial capacidade política e contestatória, mas
instaura uma crise na possibilidade mesma de dizê-la: uma poética
voltada ao “ser que ainda não fomos e que em sonho nos reinventa” 58, e
que insiste na negatividade do “ainda não”. Trata-se, assim, de uma
utopia que não supera o desamparo, mas que o aprofunda, como se
somente através de uma intimidade indizível com ele fosse possível
produzir afetos efetivamente subversivos, como nos orienta Safatle 59;
como se somente através de uma apropriação da sua mais íntima
impropriedade, como nos termos de Agamben60, o sujeito pudesse
aparecer como um rastro informe, ou como “a sombra de um sonho de
poeta”. Vejamos o poema Auto-retrato, em sua versão de 1992:
62 FÉLIX, Moacyr. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p. 153.
63 SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
64 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 38.
65 SAFATLE, Vladimir. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 51.
negação”66, instituindo o desafio de encontrar palavras – que evoquem ou
criem imagens – sem que o próprio desejo se confunda com as fantasias
(ou imagens) que tentam lhe emprestar uma forma ou uma cena.
Sustentar o desejo significaria sustentar sua negatividade, de modo que
apresentar um “autorretrato” implicaria empreender o desafio de
“reconhecer a si mesmo naquilo que não se conforma à imagem”67.
Tanto a imagem do futuro quanto a imagem de si respondem ao
desamparo de modo a oferecer um suporte imaginário, um “amparo”, ou
mesmo um “anteparo”, à insistente força “descentradora” e disruptiva do
desejo. Com efeito, o mesmo pode ser dito em relação ao passado,
sobretudo a um passado idealizado. No Auto-retrato, o passado
igualmente não tem forma nem nome: remanesce dele uma saudade
“ilógica”, “astral”, “misteriosa”. Um passado, portanto, que não passou, e
assombra melancolicamente o presente na tentativa de fixar uma
identidade – melancolicamente posto que a perda da certeza do si mesmo
é perda da capacidade de dizer exatamente “o que não é” e/ou o que foi
perdido68. Em vez de elaborar uma nova imagem ou de escapar ao
confronto com a incerteza, o poeta insiste na primeira pessoa – mas uma
primeira pessoa que se diz “desapropriada” dos seus predicados, ou,
então, apropriando-se da sua impropriedade.
A leitura oferecida por Marcelo Ridenti69 do “romantismo
revolucionário” – tomado como “fio condutor” (sic.) para compreensão
das produções culturais e artísticas da “esquerda” brasileira, em
específico as que tomaram corpo a partir do final da década de 1950 –
pode assinalar, na poesia de Moacyr Félix, um movimento de crítica (ou
de autocrítica) da modernidade (ou do capitalismo)70. Vejamos os traços
66 FÉLIX, Moacyr. O Pensar e o Sentir na Obra de Moacyr Félix. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional; Bertrand Brasil, 2002, p. 85.
67 SAFATLE, Vladimir. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 41.
68 Como diz Judith Butler, ao retomar Luto e Melancolia e O Eu e o Isso, “Freud observa que, no
luto, o objeto é ‘declarado’ perdido ou morto, mas segue-se que, na melancolia, nenhuma
declaração é possível. Como perda anterior à fala e à declaração, ela é a condição limitante de
sua possibilidade: um recuo ou retração da fala que torna a fala possível. Neste sentido, a
melancolia torna o luto possível [...]”. (BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder. Belo Horizonte:
Autêntica, 2017, p. 178). De acordo com Butler, a melancolia sinaliza a perda da capacidade de
identificar o que se perdeu em um “objeto” identificado como “perdido” – se todo objeto de
identificação é suporte especular do Eu, o que se perde, naquilo que se perde, é algo do próprio
Eu que “desconhece” seu caráter essencialmente alienado. Ela sinaliza, assim, a um resto
“inelutável” sendo, ao mesmo tempo, condição para o luto.
69 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. São Paulo; Rio de Janeiro: Record, 2000.
70 Embora Ridenti não trate especificamente da poesia de Moacyr Félix, cumpre observar a nota
escrita por Michel Löwy que figura na contracapa do livro: “O que será que canta nas músicas
de Caetano Veloso e Chico Buarque, murmura nos poemas de Ferreira Gullar e Moacyr Félix,
grita nos dramas do Teatro de Arena e no Oficina, dança nos filmes de Cacá Diegues e Glauber
Rocha, manda chumbo com Carlos Marighella e o capitão Lamarca, pinta quadros numa cela do
presídio Tiradentes, morre na contramão atrapalhando o trânsito? A resposta para a charada
do “romantismo revolucionário”: uma inadequação da “alma” (como
uma potência da vida) à realidade; a defesa da subjetividade como
“forma de resistência à reificação” – uma “revolta da subjetividade e da
afetividade reprimidas, canalizadas e deformadas”; a presença de um
ideal, um “paraíso perdido” que corresponda à “plenitude do todo –
humano e natural”; o vínculo da crítica (ou da autocrítica) à “experiência
de uma perda”, o “senso agudo da alienação, frequentemente vivido
como exílio”71. Em suma, o “romantismo revolucionário” parece
denunciar a alienação (ou a perda) da singularidade individual, buscando
num passado idealizado orientações imagéticas para a projeção de um
futuro – “modernizador”, diz Ridenti72 – de reconciliação (sobretudo, de
reconciliação entre as potências subjetivas e a realidade).
A crença na subjetividade como individualidade autônoma é
moderna, e, neste sentido, uma imagem utópica de reconciliação entre
individualidade e realidade (ou a imagem utópica de uma realidade que
permita à individualidade realizar-se como autônoma, não-alienada)
pode ser chamada de “modernizadora”. Todavia, os termos seriam
contrários se a crítica à modernidade (ou ao capitalismo) não a acusasse
de “realidade alienante”, mas, ao contrário, como responsável pela
instituição mesma da expectativa de realização de uma individualidade
“plena”, “autêntica” e “autônoma”. Estaríamos, assim, diante de uma
crítica ou “dialética” ou “trágica” da modernidade, como aquela que, a
partir de Hegel e de Freud, nos oferece Adorno, e não exatamente
“romântica”. Nesta crítica, a modernidade não instituiria uma realidade
que privaria o sujeito de si mesmo, mas uma realidade dependente da
promessa (ou da ilusão, enfim, ideológica) da realização daquela
concepção de sujeito, animada por uma espécie de imperativo a dizer que
o sujeito deveria ter propriedade sobre si mesmo (ou sobre a “sua”
individualidade).
É certo que a figura do “homem do povo”, eleita por Ridenti (2000)
como aquela que materializa o “passado ideal perdido” para a arte de
esquerda brasileira, aparece em poemas de Félix, em específico aqueles
escritos durante sua inserção no CPC da UNE, no início dos anos 1960. O
poema Eu vi talvez nos ofereça o melhor exemplo desta marca na poesia
de Félix. Nele, o poeta apresenta “o povo” como ingênuo e portador de
“uma força que não se sabe força”73. A marca desta “historicidade” na sua
“poética utópica” é, pois, uma marca institucional. Não se pretende,
está neste livro: o romantismo revolucionário” (LÖWY, Michael. Contracapa. In: RIDENTI,
Marcelo. op. cit.).
71 LÖWY, Michael; SAYRÉ, Robert. Revolta e Melancolia. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 41-47-49-
43.
72 RIDENTI, Marcelo. op. cit., p. 25.
73 FÉLIX, Moacyr. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 36.
assim, refutar a tese de Ridenti, mas oferecer, todavia, uma dúvida sobre
a possibilidade de o termo “romantismo revolucionário” abarcar, como
um todo, a obra poética de Félix. Que tal marca “institucional” esteja
presente em seu espólio poético, parece-nos que constitua algo como um
traço secundário nas suas inquietações e elaborações. Nem do futuro nem
do passado provêm imagens que sustentem uma crítica ao presente:
aquilo que fala do que “não foi” é intimamente “estranho”. O seu “exílio”
não sinaliza propriamente a uma privação imposta por dispositivos
coercitivos, mas oferece nome à sua condição de poeta e utopista: ex-
cêntrico em relação a si mesmo e à realidade objetiva.
A subjetividade alienada é tratada de modo manifesto em poemas
em que Félix se confronta com espelhos. Via de regra, é um vazio
angustiante o que os espelhos lhe devolvem. Em O Texto, “no chão da
história o rosto que não tenho, o rosto / que me negam e no qual, no
entanto, sou e não poderei deixar de ser / a ausência que corrói as
imagens do nosso mundo em todos os espelhos”74. Se, por um lado,
alguém lhe nega o rosto próprio – e, aqui, poderíamos vislumbrar uma
crítica “romântica” à alienação – por outro, “sou e não poderei deixar de
ser” a opacidade deste mesmo rosto, esta “ausência” com a qual não se
pode identificar e, ao mesmo tempo, deixar de identificar. Talvez essa
ausência fale menos da individualidade moderna que da subjetividade do
poeta (ou, mais especificamente, do poeta lírico após Baudelaire): aquele
que, de acordo com Agamben, tenta fazer do vazio da experiência – ou,
mais propriamente, o “inexperienciável” – uma possibilidade de
experiência75. Ou, de modo complementar, como aquele que faz da
afirmação de si uma experiência de “despersonificação”: um Eu que se
diz e desaparece ao mesmo instante76. Em O Poeta, Félix nos diz que “O
poeta se perdia em palavras. / O poeta se perdia nele próprio / sem que
espelho algum lhe trouxesse / o que dele assim ex-fato se perdia”77. Ora,
o poeta se lança na alienação de si, se lança ao desamparo, sem qualquer
compensação ou expectativa de, assim, lhe serem restituídos seus
predicados e sua certeza de si. “Em suas molduras douradas os espelhos
/ mais uma vez /ofereceram seus túmulos sem fundo // Túmulo,
túmulo é a lei que rói / entre meus ossos verdades impossíveis”78.
“Mais uma vez”, diz o poeta – há algo que “insiste”, que se repete e
irrompe na imagem desconfigurando a identificação. De “impossível”
elaboração talvez seja o próprio desamparo, enquanto condição –
Recebido em 30-03-2018
Aprovado em 13-08-2018
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Comparado a um Ulisses moderno, nosso herói Adam sofre os percalços de Duplo;
ser estrangeiro e exilado na capital francesa, além de regressar à sua terra natal Desorientação;
– Líbano – e confrontar-se com os fantasmas do passado. O romance Les Exílio;
désorientés, do escritor francês Amin Maalouf, publicado em 2012, apresenta, Romance francês
desde o seu título, a falta de orientação, a necessidade de um norte por parte contemporâneo.
das personagens. A escrita dupla do texto vai ao encontro das personagens
que orbitam nosso protagonista, por vezes, reflexos invertidos de si mesmas.
Buscar os rastros do duplo na trajetória de nosso narrador-personagem Adam
é o que pretendemos nesse trabalho, bem como entender os diversos
(re)encontros vividos por ele ao longo da travessia. Autoconhecimento,
aprendizagem, alteridade são apenas algumas das experiências por que passa
nosso herói que migra do Oriente ao Ocidente (e vice-versa) tentando, quiçá,
encontrar a si mesmo.
ABSTRACT KEYWORDS
Compared to a modern Ulysses, our hero Adam suffers the difficulties of being a Double;
foreigner and exile in the French capital, as well as returning to his homeland - Desorientation;
Lebanon - and confronting the ghosts of the past. The novel Les désorientés, by the Exílio;
French writer Amin Maalouf, published in 2012, presents from its title the lack of Contemporary French
orientation, the need for a north by the characters. The double writing of the text novel.
dialogues with the characters’ personalities that orbit our protagonist character,
sometimes inverted reflexes of themselves. Finding the traces of the double in the
trajectory of our narrator-character Adam is what we intend in this work, as well as
understand the various (re) encounters he lived along the crossing. Self-knowledge,
learning, alterity are just some of the experiences suffered by our hero who migrates
from East to West (and vice versa) trying, perhaps, to find himself.
1 Artigo escrito com o fomento do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Sul - IFRS Campus Canoas.
2 Professora em regime de dedicação exclusiva no IFRS Campus Canoas e pós-doutora pela
1. Alfa e ômega
5 Texto original: “Tout ce qui est soumis au contact de la force est avili, quel que soit le contact. Frapper
ou être frappé, c’est une seule et même souillure.” (MAALOUF, 2014, p.09)
6 Todas as traduções realizadas neste artigo foram feitas pela autora, uma vez que o texto
dépositaire de leurs tristesses accumulées, de leurs désillusions ainsi que de leurs honte” (MAALOUF,
2014, p.11).
8 Texto original : “[...] tous les fils d’Adam et d’Ève sont des enfants perdus.” (MAALOUF, 2014,
p.12)
acúmulo de sofrimentos colecionados ao longo do caminho. Seu nome é
origem, mas a vontade de terminar/pôr fim a toda essa descendência
maldita move a personagem de volta ao seu país natal, o suposto paraíso
perdido, em busca de respostas. A personagem, por sua vez, guarda em si
mesma uma divisão interior que vai marcar sua trajetória e suas escolhas
também ambivalentes.
Buscar a orientação no Oriente é apenas uma das estratégias da
personagem em sua desorientação interior. A saúde frágil do amigo
Mourad faz com que Adam vá ao encontro daquele que fora um dos
melhores companheiros de sua juventude. Ao chegar e encontrar o amigo
morto, Adam começa a escrever suas memórias a partir de
correspondências antigas e atuais com os companheiros de outrora, bem
como através de lembranças das conversações do passado que possam
esclarecer suas indagações. O esperado encontro com o amigo moribundo
poderia, quiçá, esclarecer-lhe muitas dúvidas acerca das suas escolhas
pessoais e as origens de seu enriquecimento ao apoiar a milícia que se
apoderou do país e que iniciara a guerra.
A proximidade de Adam com o personagem bíblico está posta.
Reflexos de um mesmo espelho, a personagem toma a palavra desde o
início da narrativa, ordenando os fatos de sua vida com vistas a recuperar
o paraíso perdido da juventude ao tentar organizar um reencontro com os
velhos amigos na terra natal.
Adam foi o terceiro a afastar-se do grupo de amigos após o início da
guerra. Naïm e Bilal foram os seus predecessores. Naïm partira para o
Brasil com toda a família e Bilal morreu em um tiroteio após ter se
alistado na milícia, fato este jamais imaginado pelo grupo. Adam parte
para Paris com o apoio dos avós, Ramez e Ramzi vão para Londres,
Albert vai para os Estados Unidos. Todavia, o casal Mourad e Tania e a
amiga Sémiramis são os únicos que permanecem no país em guerra.
Mourad ao apoiar as milícias, ganha o posto de Ministro enriquecendo
rapidamente após o cargo. As dúvidas acerca de seu enriquecimento
ilícito são as causas do distanciamento entre Adam e Mourad. A posição
de Adam sobre as diferenças entre os ricos e pobres é também um entre-
lugar: “Eu sempre tive aversão tanto pelos ricos quanto pelos pobres.
Minha pátria social é entre os dois. Nem os proprietários, nem os
requerentes.”9. E a sua duplicidade não cessa...
O seu retorno ao país natal reforça ainda mais seu ser dividido, sem
pátria, sem nacionalidade, sem rastro, quase um fantasma, como ele
mesmo afirma: “Ninguém. Ninguém fala comigo, ninguém me escuta.
Ninguém me reconhece. Eu vim ao encontro de um fantasma de amigo, e
9 Texto original: “J’ai toujours eu de l’aversion à la fois pour les riches et pour les pauvres. Ma patrie
sociale, c’est l’entre-deux. Ni les possédants, ni les revendicateurs.” (MAALOUF, 2014, p.175).
eu já sou um fantasma eu mesmo”10. A falta de ser reconhecido ou
recebido por algum conterrâneo assusta Adam por alguns instantes,
contudo, dentro do táxi, ele desfruta da nova sensação de estar incógnito
na própria terra em que nascera: “encontrar-me só, anônimo e como um
clandestino”11. Estar ali e ao mesmo tempo não estar é o sentimento por
que passa a personagem exilada em Paris por causa da guerra e que
retorna para ver seu amigo moribundo, confrontando-se com recordações
da juventude em tempos de paz.
Ao atentar para a história dos grandes líderes de Roma e
Constantinopla, Adam sempre se intrigou com o fato de que o primeiro e
o último imperador dessas cidades se chamavam, respectivamente,
Romulus e Constantin:
2. Jogo de espelhos
14 Texto original: “Tout ce qui se passe ressemble forcément à quelque chose qui s’est déjà passé”
(MAALOUF, 2014, p.294)
15 Ver Bíblia Sagrada, versículo 3, capítulo 1 do livro Gênesis, Antigo Testamento: “E disse
17 Texto original: “Je suis entre la croyance et l’incroyance comme je suis entre mes deux patries,
caressant l’une, caressant l’autre, sans appartenir à aucune.” (MAALOUF, 2014, p.394)
18 BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras,
1986. p.12
com uma folha de parreira”19, escondida em seu pequeno paraíso
privativo entre muitas árvores. Aqui a imagem da Eva bíblica, vestida
apenas com uma folha de videira, é transportada à da amiga que na
adolescência foi sua primeira paixão. Sémiramis fora então a primeira
Eva deste ‘Adão’. Na sequência, há de fato o ato amoroso entre os amigos
e nele mais indícios do pecado original descrito na Bíblia cometido agora
pelos amantes ao se descobrirem mutuamente, em um ritual simétrico de
carícias mútuas, como se desenhassem um “relevé topographique”20 de
seus corpos. A cena em espelho repetida de forma idêntica entre ambos
redimensiona-se para uma (re)descoberta do seu próprio país após anos
de ausência. Sémiramis resiste e permanece na terra mesmo com o
acirramento da guerra, podendo ser vista como um símbolo mítico do
que resta do paraíso deixado para trás, o qual passa a ser (re)lido por
Adam.
A pena por devorarem o fruto da “árvore do conhecimento” é a
expulsão do casal bíblico do paraíso, carregando consigo toda a culpa
pelo ato pecaminoso de desobediência a Deus. No texto de Maalouf,
Adam, apesar de não ser casado, tem um relacionamento estável em
Paris, o que sinalizaria uma traição. Contudo, para tentar acalmá-lo de
qualquer culpa, Sémiramis diz que ela já havia pedido permissão à
Dolorès – companheira de Adam – em uma ligação feita no dia anterior à
antiga amiga, a qual concordara com a cedência do companheiro apenas
se o mesmo fosse devolvido a ela depois. O contrato verbal entre as duas
mulheres faz com que Adam sinta-se um tanto quanto “objeto” para ser
“pego e devolvido” por ambas. Tal atitude entre Sémiramis e Dolorès
aproxima-se dos contratos pré-estabelecidos na tradição muçulmana
acerca da poligamia, na qual sabe-se antecipadamente o início e o término
da relação matrimonial, bem como todos os direitos e deveres das partes
envolvidas no acordo nupcial.
Outra imagem é a da mulher, descendente de Eva, que, de acordo
com a Bílbia, deve sofrer para diminuir seu pecado. Sémiramis é quase
interrogada no encontro com os amigos sobre sua opção por não ter
casado, e também não ter tido filhos, fatos que vão de encontro à
concepção bíblica da função feminina na terra. Ela responde que é feliz
sozinha, sem ter um “homem às costas” e toda noite ela tem uma taça de
champagne, fato que remete ao paraíso descrito no livro sagrado
muçulmano – Corão –, com bebidas alcoólicas e muita sombra em meio às
árvores. A perda sofrida no início dos conflitos em solo libanês é um dos
traumas que carrega consigo: o namorado Bilal foi morto pelas milícias
que ocuparam o país.
19 Texto original: “bains de soleil, en été, couverte d’une feiulle de vigne.” (MAALOUF, 2014,
p.120)
20 Tradução: “Levantamento topográfico” (MAALOUF, 2014, p.123).
Neste instante, ao pensarmos nas diferenças e semelhanças entre as
mulheres ocidentais e orientais, levando em conta a trajetória da
personagem Sémiramis, não notamos nada de extraordinário: administrar
um negócio próprio, optar por não casar e não ter filhos são ações cada
vez mais comum tanto no mundo ocidental como no oriente.
Ao encontrar o bem-sucedido amigo Ramez, Adam tem
conhecimento de detalhes da história dos companheiros inseparáveis
Ramez e Ramzi. Engenheiros e sócios de uma grande construtora em
Londres, ambos encontraram suas esposas de nome idêntico: Dunia.
Contudo, as duas Dunias tinham em comum apenas o nome, mas índoles
totalmente díspares. Ramez conta que: “a semelhança dos nomes
pareceu-lhe à época como um sinal do Céu, mas era uma praga enviada
pelo Inferno”21. A menção aos opostos céu e inferno, diretamente
relacionada às duas mulheres de temperamentos antagônicos, reitera
sobremaneira a forma de construção dupla da narrativa maaloufiana.
Contudo, ao conversarem sobre o comportamento humano, antes e
depois do casamento, nota-se uma grande explanação, sobre as diferenças
entre a conduta do homem e da mulher, proferida por Ramez:
Assim que elas procuram se encaixar, elas são todas açúcar. Doces,
conciliadoras, agradáveis de conviver – tudo para garantir o pretendente.
Até o dia em que se casam. Então elas liberam sua verdadeira natureza, a
qual elas tinham dissimulado até ali.
[...] eu diria que no caso delas, a transformação não é nem tão brutal nem
tão sistemática quanto no caso dos homens. O homem apaixonado e o
marido são criaturas diferentes, como o cachorro e o lobo. Antes de casado,
nós somos todos um pouco cachorros, e depois nós somos todos um pouco
lobos.22
21 Texto original: “La similitude des prénoms lui était apparue à l’époque comme um signe du
Ciel, mais c´était um piège tendu par l’Enfer” (MAALOUF, 2014, p.243)
22 Texto original: “Tant qu’elles cherchent à se caser, elles sont tout sucre. Douces, concillantes,
agréables à vivre – tout pour rassurer le prétendant. Jusqu’à ce que celui-ci les épouse. Alors
seulment eles libèrent leur véritable nature, qu’elles s’étaient efforcées jusque-là de dissimuler.
[...] je dirais que chez elles, la transformation n’est ni aussi brutale ni aussi systématique que
chez les hommes. L’amoureux et le mari sont des créatures diferentes, comme le chien et le
loup. Avant le mariage, nous sommes tous em peu chiens, et après nous sommes tous um peu
loups ;” (MAALOUF, 2014, p.244)
instituição calamitosa e pode ser comparada a uma loteria às cegas, na
qual se descobre somente a posteriori se tiramos o bom ou o mau
número.
Em outro momento da trama, ao rever a casa de sua infância e
reencontrar, inesperadamente, a mesma vizinha habitando a residência
aos fundos da sua, Adam acredita “ter sido readmitido, por um milagre,
ao paraíso antes da queda”23. Presente e passado da personagem
amalgamam-se a passagens mitológicas dos textos sagrados,
aproximando Adam do Adão bíblico. A vista da bela residência de sua
família no passado e o contato com uma pessoa que trazia consigo o
retrato mais fiel de uma época alegre e pura/ingênua de sua vida, antes
da tragédia com seus pais, fazem de Adam um ser quase divino, podendo
transitar livremente pelo tempo-espaço como se possuísse um poder
sobre-humano, minutos após ter contado a história de sua amizade com a
vizinha mais velha próximo ao muro que separava a sua casa da de
Hanum aos amigos Naïm e Sémiramis. O reencontro inusitado após anos
de ausência comove Adam e Hanum. A conversa com a antiga amiga
além do tom rememorativo, também traz uma vez mais a menção ao
paraíso ao explicar brevemente aos três interlocutores a origem de seus
respectivos nomes. Após a apresentação, Hanum dirige-se a Sémiramis e
diz que seu nome é o mais belo de todos os nomes possíveis, enquanto
Naïm significa Paraíso, propriamente dito, e Adam é o nome dado pelo
próprio Criador do Paraíso.
O sentimento de perda de uma relação criada ao acaso com sua
vizinha, logo após a morte dos pais e a perda da casa aos credores, é a
primeira queda deste Adam-menino, que desgarrado pelo mundo
representa todos os anseios, dores e reveses vividos pelos descendentes
da raça do casal que fora expulso do paraíso. Experienciar o céu e o
inferno parece ser a sina desta personagem a qual vivencia mais
amarguras que deleites ao longo de sua história.
O final dessa personagem dupla em sua essência não podia ser mais
ambíguo: Adam, após um acidente de carro, do qual é o único
sobrevivente, fica entre a vida e a morte. O reencontro entre os amigos da
juventude não acontece e ele fica sem respostas para completar seu diário
e entender seu retorno ao país do qual fora abortado no passado. Sua
tragédia pessoal está prescrita desde sua origem: perde os pais em um
acidente de avião, perde a casa em que nascera, perde a amiga e vizinha
Hanum, perde o primeiro amor (Sémiramis), perde os amigos ao exilar-se
em Paris, perde a terra natal, perde a chance do reencontrar os amigos e a
si mesmo em um acidente de carro, que mata um de seus amigos – Ramzi
Texto original: “Adam la contemplait, encore incédule, comme s’il avait été réadmis, par un
23
a. Ocidente X Oriente
24 Texto original: “il y avait eu, au vingtième siècle, deux calamités majeures : le communisme et
l’anticommunisme. Et au vingt et unième, il y aura aussi deux calamités majeures : l’islamisme
radical et, l’anti-islamisme radical” (MAALOUF, 2014, p.509)
subornos, de comissões ilegítimas.”25. Ao final da carta, Adam ainda
relativiza a saída deles da terra natal: manterem as mãos limpas!
Ao reencontrar a viúva de Mourad – Tania –, Sémi e Adam escutam
o seu ponto de vista sobre aqueles que partiram e deixaram o país na
época mais difícil:
A questão é saber o que seria feito deste país se todo mundo tivesse
partido, como você. Nós teríamos todos as mãos limpas, mas a Paris, a
Montréal, a Estocolmo ou a São Francisco. Estes que permaneceram
sujaram as mãos para preservar-lhes um país, para que vocês pudessem
voltar um dia, ou ao menos o visitar de tempos em tempos.26
é este conflito, mais que qualquer outro, que impede o mundo árabe de
melhorar, é ele que impede o Ocidente e o Islã de se reconciliarem, é ele
que joga a humanidade contemporânea para trás, através dos conflitos
identitários, através do fanatismo religioso, através do que chamamos
atualmente de “enfrentamento de civilizações”. [...] é portanto por causa
desse conflito que a humanidade entrou em uma fase de regressão moral,
ao invés de progresso.27
25 Texto original: “L’ascension politique de notre ami fut la conséquence directe de la faute grave qu’il
avait commise. [...] cet argent était sale. Qu’il provenait, dans le meilleur des cas, de pots-de-vin, de
commissions illégitimes” (MAALOUF, 2014, p.184-185)
26 Texto original: “La question est de savoir ce que serait devenu ce pays si tout le monde était
parti, comme toi. Nous aurions tous gardé les mains propres, mais à Paris, à Montréal, à
Stockholm ou à San Francisco. Ceux qui sont restés se sont Sali les mains pour vous préserver
un pays, pour que vous puissiez y revenir un jour, ou tout au moins le visiter de temps en
temps.” (MAALOUF, 2014, p.191-192)
27 Texto original: “C’est ce conflit, plus que tout autre, qui empêche le monde arabe de s’améliorer, c’est
lui qui empêche l’Occident et l’Islam de se réconcilier, c’est lui qui tire l’humanité vers l’arrière, vers les
crispations identitaires, vers le fanatisme religieux, vers ce qu’on appele de nos jours “l’affrontement des
civilisations”. [...] c’est d’abord à cause de ce conflit que l’humanité est entrée dans une phase de
régression morale, plutôt que de progrès.” (MAALOUF, 2014, p.293)
Talvez por estar distante do Oriente essas questões fiquem mais
claras a Adam. O olhar de estrangeiro sobre as questões locais, que
afetam o seu país na contemporaneidade, traz uma análise singular sobre
o difícil diálogo entre o Oriente e o Ocidente, tentando encontrar razões
plausíveis para o retrocesso em detrimento do esperado progresso
humano no presente.
Na sequência, Adam idealiza dois mundos: um real e outro ideal,
refletindo sobre como seria o mundo árabe caso a história tivesse se
passado de maneira diferente, principalmente enfatizando a causa do
povo judeu, referindo-se a Naïm. Contudo, ele reafirma seu relativismo
ao estar do “outro lado”, no lado Ocidental, percebendo o Oriente e seus
problemas de uma outra forma: “mas o traumatismo árabe, desde que
contemplado a partir de outra margem, da margem europeia, minha
margem adotiva, suscita apenas incompreensão e suspeita”28. Diferentes
visões acerca do mesmo tema são possíveis dependendo do local em que
se está falando. Adam, vivendo em Paris, adota a visão “ocidentalizada”
da história afirmando que “o conflito com Israel desconectou os Árabes
da consciência do mundo, ou ao menos da consciência do Ocidente, o que
vem a ser mais ou menos o mesmo”29.
Até mesmo a voz autorizada de um embaixador israelense dos anos
cinquenta e sessenta, trazida pelo professor e historiador Adam sobre a
situação do Estado de Israel, é uma via de mão dupla: “Nossa missão era
delicada, porque tínhamos às vezes que convencer os Árabes que Israel
era invencível, e convencer o Ocidente que Israel estava correndo perigo
de morte”30. A relação turbulenta do Ocidente com o Oriente vem a ser a
relação ambígua de Israel entre os dois mundos, de acordo com a
interpretação de Adam a Naïm. O apoio ocidental aos israelenses trouxe
o inconformismo e o ódio do Oriente ao Ocidente, tragédia que se
perpetua até hoje, em proporções calamitosas.
Não há respostas definitivas na narrativa maaloufiana. Tudo é e não
é, ou ao menos poderia ter sido e não foi. Adam, enquanto historiador,
lança seu olhar de outsider ao mesmo tempo em que se coloca como um
desterrado, um nativo árabe, levantando mais perguntas ao invés de
obter respostas definitivas. Questões micro são elevadas ao macrocosmo
social e podem ser redimensionadas a fim de possibilitar um amplo
28 Texto original: “Mais ce traumatisme arabe, lorsqu’on le contemple à partir de l’autre rive, la rive
européenne, ma rive adoptive, ne suscite que l’incompréhension et la suspicion” (MAALOUF, 2014,
p.295)
29 Texto original: “[...] le conflit avec Israël a déconnecté les Arabes de la conscience du monde, ou tout
au moins de la cosncience de l’Occident, ce qui revient à peu près au même.” (MAALOUF, 2014, p.296)
30 Texto original: “Notre mission était délicate, parce qu’il nous fallait à la fois persuader les Arabes
qu’Israël était invicible, et persuader l’Occident qu’Israël était en danger de mort.” (MAALOUF, 2014,
p.296)
debate entre os mais diversos campos do saber: político, econômico,
cultural, religioso, etc.
Considerações finais
Recebido em 30-05-2018
Aprovado em 02-08-2018
DO ‘SONHO AMERICANO’ AO ‘SONHO
EUROPEU’: O ROMANCE DE EMIGRAÇÃO
ESTIVE EM LISBOA E LEMBREI DE VOCÊ
(2009), DE LUIZ RUFFATO
Verena Dolle (Gießen)
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Neste artigo abordarei o tema da Europa como destino de emigração Sonho americano;
do Brasil, um “sonho europeu” que é evocado no romance Estive em Sonho europeu;
Lisboa e lembrei-me de você (2009), de Luiz Ruffato. Pretendo Romance de migração;
demonstrar que este romance pode ser visto como parte de uma Distopia;
“paisagem midiática” ou “paisagem ideológica” (mediascape e Luiz Ruffato.
ideoscape, conceitos cunhados pelo teórico global Arjun Appadurai)
que põem em xeque narrativas utópicas anteriores, nas quais a
América (inclusive a América do Sul e o Brasil) surgem como
lugares onde é possível realizar o sonho de um futuro melhor, e se
voltam para a Europa. Ainda assim, o caráter distópico deste sonho
é destacado e apresentado juntamente com a carnavalização das
antigas ambições hegemônicas portuguesas.
ABSTRACT KEYWORDS
In this article, I will focus on Europe as destination of migration from American dream;
Brazil, a “European dream” that is evocated in Brazilian writer’s Luiz European dream;
Ruffato novel Estive em Lisboa e lembrei de você (2009). I will show that Immigration novel;
this novel can be seen as a part of a Brazilian media- and ideoscape (in the Dystopia;
sense of global theoretician Appadurai) that put into question former Luiz Ruffato.
utopian narratives of America (including South America and Brazil) as
places where to realize dreams of a better future and draw on Europe
instead. Nevertheless, its dystopian traits are highlighted and presented
together with the carnivalization of former Portuguese hegemonic claims.
L uiz Ruffato, nascido em 1961, é considerado um dos mais
interessantes e multifacetados escritores brasileiros da atualidade, das
primeiras décadas do século XXI. Com ampla recepção internacional,
começou por ganhar visibilidade no espaço de língua alemã no ano de
2013, quando participou na Feira do Livro de Frankfurt, que teve o Brasil
como país homenageado, e aí proferiu o discurso de abertura 1 ,
controverso e bastante discutido, ou mais tarde, em 2014, quando
publicou um artigo na revista Spiegel, pouco antes do início do
campeonato mundial de futebol.
No contexto desta edição da Feira do Livro de Frankfurt foram várias
as considerações e apreciações feitas sobre a literatura brasileira
contemporânea. 2 Nessas, Ruffato assume um lugar de destaque,
particularmente graças às suas obras de estreia, como o romance Eles eram
muitos cavalos 3 (2001) e Inferno provisório (2005-2011), um conjunto de
romances composto por cinco volumes, que foi louvado pela crítica pelo
seu estilo de escrita inovador.
De acordo com as palavras de Cecilia Almeida Salles na contracapa do
terceiro volume Vista parcial da noite 4(2011 2006), Ruffato traça, em Inferno
provisório, uma “cartografia do proletariado do interior de Minas Gerais”,
descreve a sua evolução desde os anos 1950 até à atualidade e, enquanto
‘cronista’, procura dar visibilidade (literária) a um dos grupos menos
presentes na opinião pública e com menor representação mediática. O
autor encena e ficcionaliza a vida de uma classe operária marginalizada,
com origens de imigração europeia, mais concretamente italiana – algo
(2012) sobre os/as vinte autores/as brasileiros/as mais jovens, ou seja, nascidos/as após 1972,
ou no volume publicado por Susanne Klengel et al. intitulado Novas vozes, de entre as quais se
destaca o texto de Friedhelm Frosch (In: KLENGEL, Susanne et al. edd. Novas Vozes. Zur
brasilianischen Literatur im 21. Jahrhundert. Frankfurt am M./Madrid:
Vervuert/Iberoamericana, 2013). É também de salientar que, já em 2007, veio a lume uma
coletânea de ensaios dedicados ao romance urbano de Ruffato sobre a cidade de São Paulo Eles
eram muitos cavalos, que sublinham a importância desta obra no panorama literário brasileiro e a
sua estrondosa receção. (Ver: HARRISON, Márquerite Itamar. Uma cidade em camadas: ensaios
sobre o romance Eles eram muitos cavalos de Luiz Ruffato. Vinhedo, SP: Editora Horizonte, 2007.)
3 RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. Rio de Janeiro et al.: Editora Record, 2001.
4 RUFFATO, Luiz. Vista parcial da noite (Inferno provisório, III). Rio de Janeiro et al.: Editora
5 Com isto, Ruffato tem em mira aqueles espaços vazios e lacunas no discurso de identidade
brasileiro do século XX, que foram repetidamente observados de forma crítica por diversos
intelectuais, como por exemplo Vilém Flusser, o filósofo checo bastante influente no Brasil. Este
filósofo olha para o Brasil da década de 1950 como um país estratificado, dividido económica e
socialmente em três grupos: um grande número de trabalhadores migrantes seminómadas, que
vivem em busca das colheitas, seguido do operariado das cidades, composto na sua maioria por
imigrantes, e ainda a burguesia, constituída em parte por imigrantes, em parte por
descendentes de imigrantes portugueses. Segundo Flusser, apenas o grupo mencionado por
último é que estava responsável pela tecedura da pátria (cf. FLUSSER, Vilém. “Wohnung
beziehen in der Heimatlosigkeit“, In: ders. Von der Frei-heit des Migranten. Einsprüche gegen
den Nationalismus. Bensheim: Bollmann, 1994, p. 15-30 (cf p. 25)). A obra literária de Ruffato
apresenta-se como seguidora da tradição de João Guimarães Rosa, também ele oriundo de
Minas Gerais e, em certa medida, um exemplo para Ruffato (cf. FROSCH, “Friedrich. . “Eine
Polyphonie mit ungewisser Route“, In: Klengel, Susanne et al. edd. Novas Vozes. Frankfurt am
M./Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 2013, p. 23-53. (cf. p.37)). De acordo com a convincente
interpretação de Bolle, o seu romance de grande importância histórica Grande Sertão: Veredas
(1956) pretende superar, através da situação dialógica da confissão de vida do simples
protagonista do campo em relação aos citadinos instruídos, a perda de comunicação entre a
burguesia e a língua do povo simples (cf. BOLLE, Willi. 2009. “Die luziferische Funktion der
Sprache. Über Vilém Flusser und João Guimaraes Rosa“, In: Klengel, Susanne & Siever, Holger.
edd. Das Dritte Ufer. Vilém Flusser und Brasilien. Würzburg: Königshausen & Neumann, 63-
79). (cf. p.78)). Segundo apurei, as conexões entre Ruffato e Guimarães Rosa, a sua configuração
de língua regional e tonalidade, ainda não foram até ao momento objeto de estudo
aprofundado.
6 CORRÊA, Marina. “Wie ein Vogel in der Falle“ (Rezension von L. Ruffato, Ich war in
Lissabon und dachte an dich), 2016.
Disponível em: http://diepresse.com/home/spectrum/literatur/4925033/print.do ,
Zugriff: 03.03.2016.
particularidades do discurso narrativo das obras de Ruffato prende-se
não só com o facto de as personagens tomarem a palavra com frequência,
bem como com o quase desaparecimento da instância narrativa
(heterodiegética): cabe assim ao leitor ter de lidar com um significativo
grau de (aparente) imediatismo e oralidade (fictícia). Esta última
apresenta-se de facto como particularmente complexa e artificial, uma
vez que é composta por diálogos entrelaçados e porque reproduz, de
forma multifacetada, pensamentos de diversos planos temporais e
personagens.
A estreiteza do mundo e a falta de perspetivas profissionais das
personagens também é visível no espaço (urbano) envolvente – seja ele
Cataguases, São Paulo ou Lisboa, é apresentado a partir do prisma
subjetivo, parcial e restrito de cada uma das personagens, quase sem
intercalações de uma instância narrativa que comente, que perspetive,
que ofereça uma visão panorâmica sobre a ação.7 Assim, o leitor é forçado
a aventurar-se nesta perspetiva ‘de igual para igual’.
Em Inferno provisório, Ruffato desenha uma história de uma imigração
europeia – aliás, predominantemente italiana –, para o Brasil no século
XX8 e debruça-se sobre as promessas que lhe estiveram associadas, assim
como sobre as esperanças de ascensão social e sucesso material. Estas são
alimentadas pela projeção que, desde há séculos e desde o momento da
descoberta da América, consiste em viver uma vida melhor neste mundus
novus, num ambiente mais agradável em termos climatéricos (de acordo
com as descrições dos primeiros cronistas sobre o Brasil) e poder
implementar novas formas de organização social (como propagaram,
desde logo, as ordens cristãs, sobretudo as franciscanas). Esta ideia, para
a qual James Truslow Adams cunhou o termo bastante influente
“American Dream” na sua obra The Epic of America 9 em 1931, existe
desde o século XVIII e foi reforçada pelos atores da independência dos
EUA, tendo sido entretanto utilizada e amplamente difundida. 10 Até
componentes do “American Dream” que ultrapassam o mero plano material, entre a dimensão
individual, social e religiosa. A forte aposta do Estado brasileiro na imigração, já a partir de
1880, para atrair mão-de-obra para o sector agrário (Stelzig 2008, 2; Lesser 1999; Martínez 2003,
meados do século XX, os movimentos de migração decorrem da Europa
para a América do Norte e do Sul, impulsionados pela esperança não só
de obter rendimentos próprios melhores do que aqueles conseguidos no
país de origem, como também de alcançar liberdade individual e
igualdade ou até mesmo um estado de ‘felicidade’; no caso do Brasil, a
atração consistiu também na utopia de progresso, de modernização e de
‘democracia racial’, da democracia étnica e igualdade de direitos, tal
como foi propagada nos anos 40 por Getúlio Vargas e se estabeleceu
como “ideologia cultural” (Roth 199411, 455).12 Enquanto que em Inferno
provisório Ruffato se debruça sobre o caminho das mulheres e homens que
emigraram para o Brasil, sobre o fracasso e não-concretização das
esperanças neste novo país, em Estive em Lisboa e lembrei de você 13– um
romance breve, de 83 páginas, publicado em 2009 – concentra-se no
movimento inverso: o da migração oriunda dos países vistos como
periféricos (num sentido pós-colonial), como o Brasil, Cabo Verde,
Angola ou Ucrânia, em direção à Europa, mais concretamente para
Portugal, o antigo ‘centro’ do império colonial.14
Esta alteração na direção dos movimentos migratórios – que questiona
o próprio papel tradicional de Portugal enquanto país de partida da
Sales & Salles do Rosário 2002) fez com que a ideia, associada à migração, de realização de
determinados planos individuais, sociais e religiosos se fortalecesse como nunca, consolidando-
se no discurso oficial e na identidade nacional tal como nos EUA – desde a Declaration of
Independence e da Bill of Rights –, e continuando bastante influente, tanto na ficção, nos filmes de
Hollywood (Dolle 2007), como no discurso político (Schnicke 2010, 12f.; Hanson & White 2011,
147). (Sobre o assunto ver mais em: DOLLE, Verena. “Amerika als Ort der Freiheit? Die
Eroberung Mexikos als Erinnerungsort in Captain from Castile (USA, 1947)”, In: Fendler, Ute &
Wehrheim, Monika. edd. Entdeckung, Eroberung, Inszenierung: Filmische Versionen der
Kolonialgeschichte Lateinamerikas und Afrikas. München: Meidenbauer, 2007, p. 27-52. /
SCHNICKE, David. “Introduction“, In: ders. ed. E Pluribus Unum. The American Dream in
Contemporary Hollywood Movies and Barack Obama’s Presidential Campaign. Marburg:
Tectum Verlag, 2010, p. 5-21. / HANSON, Sandra & WHITE, John. edd. The American Dream
in the 21st Century. Philadelphia: Temple UP, 2011).
11 ROTH, Wolfgang. “Kulturelle Identität“, In: Briesemeister, Dietrich et al. edd. Brasilien heute.
de sucesso oficial, são criticados repetidamente pelo próprio Ruffato, por exemplo no discurso
de inauguração da Feira do Livro de Frankfurt, intitulado “A democracia racial é um mito”
[„Rassendemokratie ist ein Mythos“] (Ruffato 2013).
13 RUFFATO, Luiz. Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
14 É indiscutível que termos como ‘centro’ (europeu) e ‘periferia’ (não-europeia) – termos
amplamente discutidos nos estudos pós-coloniais – são simplificadores e que não representam a
variedade das redes de relacionamentos de facto existentes (In: BACHMANN-MEDICK, Doris.
“The Postcolonial Turn“, in: dies.: Cultural Turns: New Orientations in the Study of Culture.
English translation by Adam Blauhut after a completely revised and updated German edition.
Berlin: De Gruyter, 2016, p. 131-173 (131s.)). Justamente em relação a Portugal, verifica-se por
exemplo também o emprego do termo “semiperiferia” (à margem da Europa, virado para o
Atlântico e para o espaço não-europeu) (Fernandes 2015, 163). Estes termos não serão aqui
vistos como fixos, apenas assumem uma função heurística, orientadora.
migração e assim levanta questões sobre a identidade coletiva e o
comportamento em relação ao outro, tal como apresentado no artigo de
Becker (2015)15 –, verifica-se a partir da década de 1980 e experimenta um
novo fluxo – de Portugal para a Europa Central, para Angola ou também
para o Brasil – em virtude da crise económica europeia de 2008 (vd.
Stelzig 2008 16 , 6; Córdoba Alcaraz 2012 17 ; Fernandes 2015 18 , 163-165;
Yepes del Castillo & Herrera 200719; Ayuso 200920 e Cano Linares 201221).
O romance de Ruffato resulta de um trabalho encomendado,
compondo o terceiro volume de um projeto de 2007, intitulado Amores
expressos. 22 Este romance recria ficcionalmente aquilo que designo por
‘European Dream’, ou seja, pela verificação de que não é mais o ‘Mundo
Novo’, mas sim a ‘Velha Europa’ que se apresenta como um lugar
desejado de ‘oportunidades ilimitadas’ e da tão sonhada ascensão da
Latina y el Caribe (ALC), y entre ALC y la Unión Europea. Brüssel: Organización Internacional
para las Migraciones (OIM). Disponíel em: http://publications.iom.int/bookstore/free/Rutas_
Migratorias_Final.pdf, 2012, Zugriff: 27.05.2015.
18 FERNANDES, Cláudia. “A máscara europeia do emigrante português: Política e memoría“,
in: Schmuck, Lydia & Corrêa, Marina. edd. Europa im Spiegel von Migration und Exil/Europa
no contexto de migração e exílio. Projektionen – Imaginationen – Hybride
Identitäten/Projecções – Imaginações – Identitdades híbridas. Berlin: Frank & Timme, 2015,
153-170.
19 YÉPEZ DEL CASTILLO, Isabel & HERRERA, Gioconda. edd. Nuevas migraciones latino-
americanas a Europa. Balances y desafíos. Quito: FLACSO Ecuador (et al.), 2007.
20 AYUSO, Anna. “Migración en el contexto de las relaciones entre la Unión Europea-América
23 Este termo ainda não é muito usado na atualidade. Ainda assim, e por causa dos números da
migração das últimas décadas em direção à Europa, julgo que se revela adequado. No que diz
respeito à investigação sobre a América Latina, Villa Martínez (2011, 340) é o único que, com
base nas respetivas estatísticas da migração, se refere a esta mudança do ‘sonho americano’
para um ‘sonho europeu’ com motivações materiais. (Ver mais em: VILLA MARTÍNEZ, Marta
Inés. “Desplazados y refugiados: Entre ser, merecer y ocultar su situación. A propósito de la
migración forzada de colombianos en Colombia, Ecuador y Canadá”, In: Feldman-Bianco, Bela
et al. edd. La construcción social del sujeto migrante en América Latina: Prácticas,
representaciones y categorías. Buenos Aires/Quito: CLACSO/FLACSO, 2011, p. 339-366).
24 O ‘sonho americano’ associado aos EUA é, do ponto de vista latino-americano, e à luz dos
elevados números de emigração, tratado de forma bastante crítica, por exemplo no romance
American Visa (1994), de Juan de Rebacoecheas, o romance boliviano mais bem-sucedido de
todos os tempos; mais recentemente também no romance homónimo American Visa (2013) do
chileno Marcelo Ríos ou ainda nos romances de diversos autores mexicanos (vd. MORA
ORDÓÑEZ, Edith. “Del sueño americano a la utopía desmoronada: cuatro novelas sobre la
inmigración de México a Estados Unidos“, In: Latinoamérica. Revista de Estudios
Latinoamericanos 54, 2012, p. 269-295).
migração no mundo globalizado nos finais do século XX através dos
neologismos ethnoscape, mediascape e ideoscape:
25 In: APPADURAI, Arjun. “Disjuncture and Difference in the Global Cultural Economy”, in:
Lechner, Frank & Boli, John. edd. The Globalization Reader. Chichester: Wiley & Sons, 2012, p.
94-104.
26 In: APPADURAI, Arjun. Modernity at Large – Cultural Dimensions of Globalization.
Minneapolis (et al.): University of Minnesota Press, 1996, p.31; Bachmann-Medick (2016, 163)
refere que a investigação do papel das relações transculturais nos meios de comunicação e os
seus efeitos continua a ser um objeto de estudo bastante desejado.
27 Vários estudos (realizados por exemplo por Hepp & Bozdag & Suna 2011; Butterwegge &
Hentges 2006, apenas para mencionar alguns) têm considerado nos últimos anos cada vez mais
o papel dos meios de comunicação de massa para as decisões sobre migração e têm-se focado
também na interconexão transnacional, distanciando-se dos fatores de desincentivo e atração
que fazem parte da investigação clássica sobre migração. (Ver mais em: HEPP, Andreas &
BOZDAG, Cigdem & SUNA, Laura. • Mediale Migranten. Mediatisierung und die
kommunikative Vernetzung der Diaspora. Wiesbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2011 /
BUTTERWEGGE, Christoph & HENTGES, Gudrun. edd.Massenmedien, Migration und
Integration. Herausforderungen für Journalismus und politische Bildung. Wiesbaden: Verlag
für Sozialwissenschaften, 2006.).
associadas.28 Ruffato recorre às master narratives dos sonhos de migração
já existentes e participa na sua construção mediática e desenvolvimento.
Em Estive em Lisboa e lembrei de você, as personagens, sobretudo o
protagonista e narrador autodiegético Sampaio, evocam a ideia de
Portugal enquanto lugar desejado e prometedor de sucesso material,
como um ‘sonho americano’ projetado sobre a Europa, que assume assim
a função de ideoscape na aceção de Appadurai. Juntamente com outros
migrantes, homens e mulheres de outros países – como Angola, enquanto
parte do antigo império colonial português, Ucrânia, seus compatriotas e
outros migrantes portugueses entretanto regressados do Brasil –, o
protagonista vê-se confrontado com a realidade de uma dura competição
para obter trabalho e rendimentos numa cidade fria, não só do ponto de
vista climatérico.
O romance é composto por duas partes relativamente idênticas na sua
extensão, cujo título inclui pretensões da vida quotidiana: “Como parei
de fumar” e “Como voltei a fumar” – quase uma expressão da vontade de
“normalidade” numa situação extraordinária (vd. Corrêa 2016, s.p.).
Sérgio de Souza Sampaio é o narrador autodiegético, algo ingénuo, que
narra a um ‘ouvinte’ que não aparece na ação, mas apenas na nota
introdutória do paratexto e tem as iniciais L.R. (e que terá registado todo
o relato, editando-o pontualmente, de acordo com a conceção de ficção
narrativa tópica do testimonio, Ruffato 2009, s.p.) os últimos seis anos e
meio da sua existência: a sua vida em Cataguases, Minas Gerais, o seu
casamento forçado com uma mulher que revela distúrbios mentais, a
perda do seu emprego e a migração para Lisboa; o seu trabalho como
ajudante de mesa num restaurante, que lhe traz esperança em relação a
uma consolidação financeira e a um regresso ao Brasil, o fracasso desta
perspetiva depois do seu despedimento e finalmente a sua imersão na
mundo da ilegalidade daqueles que não têm documentos, depois de se
ter deixado levar pelas promessas de uma sua compatriota, por quem se
apaixonara. O romance termina assim de forma relativamente pessimista,
sem esperanças quanto a um breve regresso ou à possibilidade de
sucesso. Em termos literários, é visível a rejeição em relação a qualquer
espécie de perspetiva otimista ou final feliz, bem diferente daquilo que se
verifica nos romances anteriormente mencionados de Marcelo Ríos ou
Rebacoechea.
Logo no relato do narrador na primeira pessoa – e que por sua vez remete
para a situação narrativa do já referido romance Grande Sertão: Veredas, de
Guimarães Rosa – entretecem-se, sempre filtradas por ele e de forma
subjetiva, narrativas de outros percursos de vida de homens e mulheres
migrantes. Estas narrativas traçam um panorama multifacetado, focado
nos lados sombrios, de uma migração global, fundamentalmente oriunda
das interconexões do império colonial português e de uma consequente
variedade linguística no Portugal do início do século XXI.
Temporalmente, situam-se depois da introdução do euro e,
tendencialmente, também no contexto da crise económica de 2008, com
uma concorrência mais feroz e uma situação laboral mais problemática:
- a carreira, filtrada pelo narrador autodiegético em cerca de duas
páginas, de Carrilho, um português oriundo de Trás-os-Montes, uma
zona rural e um exemplo clássico de uma região de emigração, que
prosperou no Brasil por meio de trabalho árduo e depois regressou a
Portugal (Ruffato 2009, 47-49; as próximas referências ao texto serão feitas
apenas através da indicação dos números das páginas). Em certa medida,
Carrilho foi a única personagem que concretizou o ‘sonho americano’,
apesar de este não ter durado muito. Enganado por um compatriota e
pelo seu próprio genro, encontra-se agora no país natal que, porém, já
não representa para si a sua pátria, uma vez que não lhe oferece nem um
vínculo nostálgico ao passado nem um futuro (“Sem passado e sem
futuro”, 49); Carrilho sente-se à deriva e vive literalmente à beira da
pobreza, numa situação intermédia, ou seja, numa pensão, sem casa
própria;
- Sheila, a prostituta brasileira por quem o protagonista se apaixona,
e que, tal como ele, sonha com um pronto regresso ao Brasil; que lhe
surripia o passaporte para conseguir algum dinheiro e assim o deixa na
ilegalidade do mundo daqueles que não possuem documentos de
identificação (74-77);
- Baptista Bernardo, o angolano negro, mutilado por uma mina de
guerra, que atua como proxeneta da sua mulher. É a partir deste casal
que se evidenciam as obrigações e objetivos da migração, sobretudo no
momento em que, nas considerações do migrante regressado Carrilho
(considerações essas perspetivadas pelo protagonista), se lê:
seu Carrilho […] contou que o Baptista Bernardo […] quando casou,
pensando no futuro dos filhos, debandaram pra Lisboa, sem dinheiro e sem
emprego, e, pra não morrerem de fome, a mulher prostituía, com o
consentimento do marido, responsabilizando pelo pagamento das despesas
do mês, e, graças a esse expediente, os alfacinhas usabam bibes do Jardim
de Infância Santo Condestável, falavam português corretamente, proibidos
de usar o umbundo em casa, e, verdadeiros cidadãos, iam ter a chance de
ser alguém na vida, cosa que os pais não eram em Portugal e nunca tinham
sido em Angola […] (55).29
Nesta passagem é dado a entender que, pelo menos para a nova geração,
a dos filhos, e num país menos corrupto do que Angola, existe a
possibilidade de através da adaptação (em relação à língua, ao infantário,
ao vestuário) se ascender socialmente no país de acolhimento, trazendo-
os assim para uma posição de ‘verdadeiros cidadãos’. O preço a pagar é o
da prostituição da esposa e mãe, bem como a proibição do uso da língua-
materna africana em casa. Torna-se assim evidente que o bilinguismo,
dependendo da importância social e da projeção global da língua, não é
tido necessariamente como uma riqueza, mas é visto (ou pode ser visto)
como um fator de impedimento à integração na sociedade de
acolhimento. Dito de forma mais neutra: o domínio da língua do país de
acolhimento, sem erros e sem sotaque, facilita a integração; mas isto é
feito à custa da língua materna e da localização identitária. Neste
29Os destaques a negrito estão presentes no texto original e são uma marca característica de
Ruffato para assinalar sobretudo discursos e pensamentos de outras personagens, bem como
diversas situações narrativas e dimensões temporais que ocorrem na reprodução comunicativa
feita por uma personagem. Quanto às diferentes conclusões que se retiram (ou se podem
retirar) destas marcações tipográficas, confronte-se com uma passagem de Eles eram muitos
cavalos, In: CORRÊA, Marina. “Narrative Dynamik in Luiz Ruffatos Eles eram muitos cavalos:
Verdichtung und Fragmentierung im neuen brasilianischen Großstadtroman”, In: Klengel,
Susanne et al. edd. Novas vozes. Zur brasilianischen Literatur im 21. Jahrhundert. Frankfurt am
M./Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 2013, p.165-184 (cf.180-182).
exemplo, não é defendido um modelo transcultural de migração, mas um
de assimilação. 30 Prova disso é o atributo destacado a negrito
“alfacinhas”, uma expressão jocosa utilizada para designar os habitantes
ou as pessoas oriundas de Lisboa – através deste atributo assinala-se
assim, sob o ponto de vista do português Carrilho, a aparentemente já
realizada integração na sociedade de acolhimento.
A este panorama de migrantes oriundos de países lusófonos junta-se
igualmente o ucraniano Anatólio, o concorrente do protagonista no seu
trabalho no restaurante, que é designado por si, de forma negativa e
estereotipada, como um louro de olhos azuis. Aparentemente mais
poliglota do que o protagonista e por isso promovido a uma categoria
superior pelo monolíngue proprietário do restaurante, Anatólio domina
as exigências de uma clientela globalizada de turistas com o seu bem-
sucedido conhecimento de línguas estrangeiras – isto, apesar de a
cozinheira portuguesa desconfiar seriamente das suas competências
linguísticas: “que ele era é um finório, ‘Ele inventa’, não fala nada” (56).31
O protagonista, em si, migrou para Portugal de forma relativamente
espontânea e improvisada, tal como se pode ler na primeira parte do
romance. Esta vaga ideia de ir “Pro estrangeiro” (25) surgiu depois da
perda do seu emprego em Cataguases e de um conhecido seu lhe ter
esboçado a imagem do país como sinónimo de ‘paraíso’ para pessoas à
procura de trabalho, despertando nele a ideia de um certo ‘lugar ideal’
(ideo-scape), associada à realidade das décadas de 1990 e 2000 e a um forte
fluxo migratório para Portugal. 32 Chegado a Portugal, torna-se
rapidamente evidente para o próprio Sérgio, um simplório que faz
lembrar os protagonistas do romance picaresco espanhol, que não há
correspondência entre essa ideia e a realidade económica. Não obstante,
quanto é idioma estrangeiro, aparecia alguém grunhindo esquisito, ele cheio de salamaleque, já
laçava o sujeito […] americano, japonês, francês, alemão, italiano, espanhol” (56).
32 “[…] o seu Oliveira [...] apoiou o intento, ‘O caminho é Portugal’, e […] decantou as maravi-
lhas do país pra onde todo mundo estava seguindo, e que, se mais novo, até mesmo ele voltava,
‘O momento é de reconstrução’, dinheiro não é problema, falta mão-de-obra, e os portugueses
andam assoberbados, ‘Escolhendo serviço’, e sobram oportunidades pros brasileiros e pros
pretos […], ‘O lugar certo’ pra quem não tem alergia a trabalho […]” (25f.). Sobre Portugal
enquanto país de imigração nas últimas décadas do século XX, veja-se Fernandes 2015, 162s. A
investigadora refere-se à afluência migratória oriunda dos países lusófonos, mas não fornece
qualquer esclarecimento sobre as razões para os ucranianos considerarem Portugal como um
país de destino atrativo.
aproveita os pequenos progressos que vai fazendo – tal como o trabalho
como ajudante de mesa não-qualificado e não-registado – para fantasiar
com um regresso à sua terra natal no Brasil na condição de homem rico:
Como o salário era bom, retomei os planos de, descontada a pensão pra
Noemi (a sua esposa, doente mental) e pro Pierre (o seu filho, nota da
autora), economizar ao máximo pra ir embora logo, comprar umas casas
em Cataguases, viver de aluguel, fazendo nada o dia inteiro, subindo e
descendo a rua do Comércio, sentar na praça Rui Barbosa pra conversar
fiado, jogar porrinha, ver o mulherio desfilar, o povo, ensardinhado detro
dos ônibus, respeitoso, me cumprimentar, Boa tarde, Serginho, Serginho
não, seu Sérgio, Boa tarde, seu Sérgio, não, não, Doutor Sérgio, Boa tarde,
Doutor Sérgio, quem sabe candidatar a vereador, entrar pro Rotary ou pro
Lions, virar gente importante, frequentar o Clube do Remo, aparercer na
coluna social do Cata-guases, abrir um negócio pro Pierre […], mas em-
antes eu tinha que melhorar meu desempenho. (57)
33 Confrontar com os estudos de Schurr & Stolz 2010 sobre a importância de mulheres migrantes
do Equador enquanto suposto perigo para as estruturas sociais da terra natal, dado que elas
abandonam as suas famílias, ou sobre o estatuto dos migrantes mexicanos nos EUA, que
durante bastante tempo eram vistos como ‘traidores’ no seu país de origem (In: RIVERA
SÁNCHEZ, Liliana. “¿Quiénes son los retornados? Apuntes sobre el migrante retornado en el
México contemporáneo”, In: Feldman-Bianco, Bela & Rivera Sánchez, Liliana et al. edd. La
construcción social del sujeto migrante en América Latina: Prác-ticas, representaciones y
categorías. Buenos Aires/Quito: CLACSO/FLACSO, 2011, p. 309-338).
34 CATTARULLA, Camilla. “Migraciones a Argentina: Interdisciplinariedad y
multidisciplinariedad de la crítica literaria en Italia (1975-2010)”, In: González Martínez, Elda
Evangelina & Merino Hernando, María Asunción. edd. De ida, vuelta y doble vuelta: Nuevas
perspectivas sobre emigrantes, inmigrantes y retornados en España y América. Madrid:
Polifemo, 2012, p. 265-292.
35 CATTARULLA, Camilla. “L’Italia in Argentina: un’avventura identitaria tra integrazioni e
conflitti”, in: Mondi Migranti. Rivista di studi e ricerche sulle migrazioni internazionali, 1, 2013,
p. 235-250.
36 BOSSHARD, Marco Thomas & GELZ, Andreas. Return Migration in Romance Cultures.
38Uma arrogância dos portugueses enquanto nação, que vive no passado e honra os seus poetas
enquanto ícones nacionais, é evidenciada nesta cena e mais tarde tratada de forma carnavalesca
quando se descobre que o muito aclamado poeta, de acordo com o informador do protagonista,
vive supostamente de autógrafos falsificados de um escritor já falecido (52), chegando mesmo a
receber, na condição de mendigo ligeiramente confuso, uma esmola do protagonista (80).
39Rings (2016, 14s.) refere-se, tal como outros renomados investigadores do pós-colonialismo, à
40 RUFFATO, Luiz. Estive em Lisboa e lembrei-me de ti. Lisboa: Quetzal Editores, 2010.
41 Agradeço a Cláudia Nogueira-Brieger o seu comentário sobre este ponto.
Figura 1: disponível em: Figura 2: disponível em:
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Resumindo: