Tese - FGV - Do Gatilho Ao Lotes - Marcos Thimoteo Dominguez
Tese - FGV - Do Gatilho Ao Lotes - Marcos Thimoteo Dominguez
Tese - FGV - Do Gatilho Ao Lotes - Marcos Thimoteo Dominguez
APRESENTADA POR
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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
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5
AGRADECIMENTOS
Essa talvez tenha sido a jornada mais difícil pela qual já passei até hoje. Afinal, “fazer”
o doutorado não é uma tarefa apenas sua, mas envolve aqueles que estão mais próximos
a você, pois, no fim, o trabalho se fez solitário muitas vezes. É difícil, são quatro anos
intensos, misturando temporalidades distintas, uma junção de aceleração, lentidão e
espera.
Os mais impactados, sem dúvida, foram minha família, minha esposa e filhos, Hugo,
Jordan e Marquinhos. Ana Claudia, meu amor, obrigado por ter sido companheira, por
ter entendido que eu precisava de tempo, espaço. Desculpe-me pelas palavras ríspidas,
as vezes grosseiras. Sem seu apoio não teria conseguido. Te amo.
À minha família querida, minha mãe Vera, meu irmão Flavio. Ao lado de meu pai,
Germinal, vocês me ajudaram a enxergar o mundo de forma real, de maneira bastante
concreta, mas sempre com sensibilidade, solidariedade com o outro. Sempre com
respeito, nunca com arrogância. O ponto de partida dessa história devo a vocês.
Aos meus irmãos da vida, camaradas que há tempos compartilhamos alegria, apoio nos
momentos de dificuldade, risadas e discussões. Danilo (compadre), Fernando
(Maninho), João Paulo, Júlio, Rafael e Tarcísio, lá se foram 20 anos! Uma mistura de
times, visões de mundo, humores e pilantragens... Bruno Coutinho, parceiro,
pesquisador e artista. Com Marco Pantoja, sempre juntos “nos projetinhos”. Ao eterno
Claudio Batista, sociólogo do Chapéu Mangueira, meu amigo e mestre.
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Agradeço aos amigos que fiz na profissão: Haidine Duarte, Marcos Santos e André
Regato. O enfretamento da política nua crua, das repartições, dos conflitos internos, não
teria sido possível sem vocês. A relação trabalho e doutorado é uma soma difícil de
lidar, com momentos, às vezes, de desânimo. Mas vocês me apoiaram, incentivaram.
Obrigado.
Por fim, o mais importante dos agradecimentos, pois a pesquisa se deu num lugar
específico. Desde 2008 circulo pelas ruas do Jardim Catarina. Nesses dez anos, observei
muita coisa mudar e fiz amigos. Presenciei a conquista do filho e a felicidade da família
ao vê-lo chegando à faculdade. Senti pela perda da mãe e o sofrimento e o cuidado da
filha e netos. Engoli o choro e tentei oferecer apoio em diversos momentos de crise, de
morte, de desemprego, problemas financeiros, perda da casa. Troquei muitas ideias.
Devo muito ao Jardim Catarina, a Rose, a Marcia e a Rose Monnerat. A dedicação delas
à pesquisa me abriu portas na vida e no trabalho. Arrumei empregos e viajei pelo Brasil
e pelo mundo falando de minhas pesquisas em congressos e seminários, enquanto elas
continuavam na sua luta diária. Isso me angustia, confesso.
Por outro lado, as pessoas com as quais tive contato sempre foram claras comigo.
“Amigos, amigos, negócios à parte”. Eu tinha um papel a cumprir: registrar suas
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histórias, experiências, ajudá-las a sistematizar elementos do cotidiano. Numa disputa
desigual pela narrativa da vida urbana, pra eles, eu era uma peça importante.
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RESUMO
A presente tese analisa as disputas por serviços urbanos na Região Metropolitana do Rio
de Janeiro (RMRJ), tendo como recorte temporal de investigação o período entre 1970 e
1990 - momento em que há uma reorganização das políticas de infraestrutura urbana
após a fusão do Estado do Rio de Janeiro. O trabalho se desenrola no Jardim Catarina
(JC), tradicional loteamento localizado nos limites metropolitanos, que se transformou
em bairro do município de São Gonçalo.
O exercício de resgate histórico da ocupação do Jardim Catarina baseou-se nas
informações sobre investimentos públicos em saneamento básico na RMRJ; nos
registros da imprensa relativos ao cotidiano de São Gonçalo; e no trabalho de campo,
envolvendo entrevistas com moradores antigos, lideranças locais, registros de imagens e
consulta a documentos de associações comunitárias e órgãos públicos.
A pesquisa demonstrou que enfrentamentos frontais entre os atores sociais do JC e os
agentes estatais em torno do abastecimento de água raramente eram priorizados como
estratégia de luta cotidiana. A estrutura urbana desigual, onde se concentram capitais e
melhores serviços nas áreas centrais do Rio de Janeiro, não permitia ao morador do
Jardim Catarina despender esforços em direções incertas, fazendo-o buscar acordos
políticos locais como meio para acessar a casa, o trabalho e a água. Da mesma forma, o
Estado, para fazer valer sua legitimidade nesses territórios, também adotava práticas
contraditórias à própria tecnocracia hegemônica do setor de saneamento, por exemplo.
Parecia existir uma convivência até certo ponto estável entre esses atores, o que não
quer dizer que não existiam conflitos, muito menos conformismo por parte de
moradores frente à sua condição de desigualdade na região metropolitana. A questão é
que mesmo num ambiente injusto, o indivíduo conhece seu campo de ação e os limites
impostos pelos diferentes níveis de poder na organização espacial do loteamento e da
cidade. Nesse sentido, ele buscará a cidade possível como meio para garantir melhorias
de vida e legitimidade política.
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ABSTRACT
The current doctorate thesis analyzes the disputes for urban services in the Metropolitan
Region of Rio de Janeiro. The research has its target between 1970 and 1990 - time of
restructuring of urban policies in the State of Rio de Janeiro. The studies takes place in
Jardim Catarina (JC), a traditional urban allotment located in the metropolitan borders,
which, later, became a neighborhood in the county of São Gonçalo.
The historic rescue of Jardim Catarina's occupation was based on information from state
investments in basic sanitation; records in the press regarding the daily life of São
Gonçalo; and fieldwork, involving interviews with former dwellers, local leaderships,
images and data of institutional documents.
The research led to the possible conclusion that confrontations between the social actors
of the JC and the state agents towards water supply had been avoided as strategy of
daily struggle. The unequal urban structure, in which better services are mostly found in
the heart of Rio de Janeiro, forces the community of Jardim Catarina not to expend
efforts in uncertain directions, giving it no choice but to seek political agreements as a
means of accessing shelter, work and water. Likewise, the State, in order to assert its
legitimacy in these territories, also adopted practices, which seem contradictory to the
hegemonic technocracy itself of the sanitation sector.
There was a stable coexistence between these actors, yet this does not mean that there
were no more conflicts, neither was there conformism on the part of the residents. The
point is: as in an unfair environment, individuals know their field of action and the
limits imposed by the different levels of power in the structure of the city.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................16
A estrutura do texto...................................................................................................................... 22
Capítulo 1 - O urbano como apoio para análise das práticas sociais na cidade .......................35
1.1 Jardim Catarina como unidade de análise ............................................................................. 43
CONCLUSÃO .....................................................................................................................188
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................194
ANEXOS I - TABELAS ......................................................................................................207
11
LISTA DE IMAGENS
Imagem 5: comércio de Alcântara (1948), cinco anos antes do lançamento do Jardim Catarina 94
Imagem 12: reportagem dos anos 1970 sobre criminalidade no Jardim Catarina .....................141
Imagem 13: reportagens sobre crimes em Jardim Catarina nos anos 1970 ...............................142
Imagem 15: localização do Jardim Catarina atual e a proximidade com os bens naturais da Baía
de Guanabara ...........................................................................................................................149
Imagem 19: primeira morte por cólera no estado do Rio de Janeiro - epidemia da década de
1990 .........................................................................................................................................176
12
LISTA DE FIGURAS
Figura 3: relação renda e infraestrutura por domicílio no Jardim Catarina – 2010 .....................50
LISTA DE TABELAS
13
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
SG São Gonçalo
JC Jardim Catarina
14
SAEN Superintendência de Água e Esgoto de Niterói
15
INTRODUÇÃO
Esta é uma tese sobre cidade. A cidade feita a partir do espaço e do tempo cotidiano.
Uma recuperação histórica da ocupação do Jardim Catarina, loteamento que virou bairro
do município de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A análise está
focada na produção da cidade como espaço urbano construído pelas práticas sociais
daqueles que nela vivem, se organizam, traçam estratégias e desenham acordos
políticos. A cidade, ao se tornar o lugar essencial da vida para a maioria da população
do Brasil, tornou-se o espaço de disputa por recursos, materializados em serviços e
capitais urbanos.
A tese tem como objetivo demonstrar que as disputas por serviços urbanos,
principalmente aqueles em torno do abastecimento de água no Jardim Catarina,
ocorreram por meio de estratégias distintas acionadas por moradores e instituições
locais, que ao entenderem as mudanças históricas de conjuntura política na RMRJ,
buscaram combinar diferentes formas de regulação do uso do espaço urbano do
loteamento, garantido para si o máximo de contrapartidas da cidade. Enfrentamentos
frontais entre os atores sociais e os agentes estatais raramente eram priorizados como
forma de luta cotidiana. Compreendendo o quadro desigual e hierarquizado no qual
estavam inseridos, os moradores percorreram vias marginais para acessar a casa, o
trabalho e os serviços de água no Jardim Catarina.
16
loteadoras, políticos, empresas privadas e agentes públicos passaram a negociar
diariamente sua permanência nos territórios da cidade e as formas de acesso aos
serviços urbanos.
Nessa conjuntura, surgem trajetórias como a do Seu Moraes. Um personagem real, que
atravessou os distintos momentos históricos de ocupação do Jardim Catarina e do
próprio município de São Gonçalo. Inicialmente foi corretor de imóveis. Mesmo
trabalhando para a loteadora Jardim Catarina S.A., empresa que adquiriu uma vasta área
de terras nos limites do município, tornou-se dono de lojas de material de construção,
adquiriu terrenos e abriu uma pequena imobiliária na Rua 01.
De seu comércio, saiu grande parte do material utilizado na construção das primeiras
casas do JC. Ajudou a financiar instalações domésticas de água e de esgoto. Influente,
convidou políticos do Estado do Rio de Janeiro a visitar o loteamento. Foi por meio dele
1
O uso do termo localidade será baseado nas definições de Leeds e Leeds (1978), que em contraposição
ao conceito de “comunidade”, o consideravam mais adequado para pensar os lugares urbanos e os
espaços de favelas dentro do movimento dialético com o entorno e com as estruturas macrossociais.
17
que os primeiros candidatos a prefeitos, deputados e vereadores visitaram o Jardim
Catarina. Era ele que ouvia as queixas dos moradores e as anunciava no palanque numa
área descampada na entrada do loteamento.
Nessa história até certo ponto conhecida, em que lideranças nascem das empreitadas
populares nos espaços urbanos, veremos que no Jardim Catarina há um entrelaçamento
entre os temas casa, trabalho e água. No processo de ocupação do loteamento não há
como pensá-los de maneira estanque. Trata-se de um movimento contínuo de
reformulação de estratégias acionadas pelos moradores e demais atores que buscam
legitimar suas ações em São Gonçalo e na RMRJ. Cada componente desse exigia
acionar no cotidiano um conjunto de práticas e relações sociais, que para ser posto em
funcionamento precisava estar apoiado sobre uma base territorial cuja regulação urbana
era oferecida pela “solução” loteamento.
Uma casa sem água não é uma casa de fato. É por isso que moradores, lideranças e a
membros da associação de moradores vão ter como bandeira de luta central o tema da
água. Algumas iniciativas entraram em contradição com a organização das políticas de
saneamento e infraestrutura do Estado, estas calcadas numa visão de ordenamento e
planificação urbana. Diante da escassez e do controle sobre a distribuição da água, o
2
Moradora Suzane, Agente de Saúde, 65 anos.
18
morador adotará práticas baseadas na experiência local, e menos nas diretrizes gerais do
ordenamento estatal ou numa ideia sempre confusa de direito e cidadania.
A compra de um lote por parte do morador sem o mesmo ter conhecimento sobre sua
localidade ou condição fundiária era algo até certo ponto comum. Muitas pessoas
investiam seus rendimentos para aquisição de uma propriedade no Jardim Catarina
como uma espécie de poupança familiar futura. A decisão de ir ou não morar no
loteamento nem sempre era imediata e, ao mesmo tempo, partia de condições e decisões
diversas por parte do indivíduo. A chegada em São Gonçalo era envolvida por
surpresas: lotes de baixo d’água, posicionados distantes da “pista” (rodovia), sem
nenhum tipo de infraestrutura ou até mesmo demarcados fora do prometido. No entanto,
todas essas situações eram resolvidas localmente, sem grandes intermediários, fator que
interessava a todos os envolvidos nesse negócio chamado loteamento.
19
d’água”, que passaram a ser controlados por grupos políticos do município e articulados
com agentes públicos da própria CEDAE.
A pesquisa irá mostrar que, quanto mais o Estado investia recursos públicos na
infraestrutura urbana de SG e da RMRJ, mais avançava a fragmentação territorial dentro
do loteamento, onde localidades específicas passaram a contar com melhores serviços
urbanos em detrimento de outras. A produção do espaço permanecia em constante
movimento, porém cada vez mais contraditória.
Essa distinção socioespacial entre grupos e territoriais será revertida em estratégia por
parte dos próprios moradores como meio de garantir, num cenário de escassez de água,
acesso aos serviços e aos investimentos públicos. A entrada de investimentos e obras de
saneamento, principalmente, por intermédio de agentes públicos acabava interferindo na
correlação de forças locais, com a constituição de forte controle territorial sobre
recursos básicos, principalmente a água.
20
característico do antigo estado do Rio de Janeiro. Formou-se, assim, dentro do setor,
uma organização fragmentada em diretorias regionais que respondiam às demandas dos
municípios da periferia3, enquanto a empresa mantinha o alto investimento nos bairros
da zona sul e centro do Rio de Janeiro e de Niterói.
Hoje, o Jardim Catarina é o bairro com o maior número de habitantes de São Gonçalo e
o problema de saneamento continua sendo um dos temas centrais na vida dos seus
moradores. A pauta “água” permanece cada vez mais presente na política local. As
abordagens desenvolvidas nesse trabalho sobre as disputas em torno dos serviços de
saneamento se justificam, pois estas se mostraram determinantes para a organização
socioespacial de grupos sociais e lugares na Região Metropolitana do Rio de Janeiro
(RMRJ).
Mesmo que a prática do loteamento tenha sido uma das principais ferramentas para a
urbanização de cidades, transformando da noite para o dia vastas zonas rurais em meio
urbano, ele costumava ser pensado dentro do contexto mais amplo do desenvolvimento
urbano brasileiro, amparado por teorias econômicas, em que a necessidade de geração
de capitais para a industrialização pós década de 1930, encontrava na incorporação de
terras a saída para a acumulação de capital necessário à transformação da economia
nacional (BONDUKI, 1994; MARICATO, 1982; OLIVEIRA, 1982).
3
Termo periferia é utilizado apenas para fazer referência aos municípios que orbitavam ao redor da
cidade do Rio de Janeiro e, que antes da fusão, faziam parte do antigo estado do Rio de Janeiro.
21
(SINGER, 1975). As ações do Banco Nacional de Habitação (BNH), as grandes obras
viárias realizadas nos anos de governo militar, as remoções de favelas do Rio de Janeiro
nas décadas de 1960 e 1970 e os processos de espoliação urbana e dilapidação da mão
de obra do novo trabalhador urbano de São Paulo, como meio de garantir níveis
elevados de acumulação de capital (KOWARICK, 2000), pautaram as discussões sobre
o urbano brasileiro.
A estrutura do texto
22
A relação entre a renda e o saneamento no Jardim Catarina é um importante indicador
para demonstrar que há uma série de fatores constituintes da ocupação e da
desigualdade dentro do loteamento que dificilmente seria notada apenas por dados
quantitativos e oriundos de fontes secundárias. Há uma invisibilidade do tema água,
diante de uma noção que costuma colocar a renda como fator essencial para analisar
pobreza e desigualdade. O que parece produzir, de fato, espaços desiguais no JC são a
questão do acesso ao serviço de abastecimento de água e da organização fundiária do
loteamento.
Nessa seção são descritas as mudanças no setor público de infraestrutura, tendo como
evento chave a criação da CEDAE, em 1975. A companhia que desde então assumiu
grande parte das decisões sobre os investimentos em saneamento na RMRJ. Será por
meio de obras e de programas de abastecimento de água que o Jardim Catarina receberá
seu primeiro sistema de saneamento, alterando o arranjo local de poder em torno dos
serviços urbanos.
23
uma periferia até então desassistida. Contudo, para tal, a companhia teve que manter o
atendimento às bases políticas locais, tradicionais do período pré-fusão. Por meio dessa
estratégia a CEDAE conseguiu manter o alto padrão de investimento e da qualidade do
serviço na zona sul do Rio e no centro de Niterói, apoiando-se na nova lógica tarifária
de financiamento, mas garantindo, ao mesmo tempo, sua presença política nos
municípios da metrópole, como São Gonçalo.
24
produziu possibilidades de trabalho dentro do loteamento, principalmente na área de
construção civil (pintor, pedreiro, mecânico, eletricista, ladrilheiro, entre outras). O
trabalho tido como informal muitas vezes era considerado a melhor opção por parte do
morador do Jardim Catarina, principalmente em caso de profissões com baixa oferta,
mas com muita procura em São Gonçalo. Relatos de moradores que encontravam meios
de subsistência no próprio Jardim Catarina e adjacências foram comuns ao longo da
pesquisa.
Tanto por meio da teoria sociológica como pela narrativa dos moradores e de lideranças
locais foram identificadas representações sociais que forjaram territorialidades e
distinções espaciais que passaram a ditar as relações políticas e as estratégias dos
moradores no seu processo interno de diferenciação em relação ao outro.
25
ideia de mapa é traduzir um campo de poder formado em torno da água, como uma
registro espacial gerado pelo emaranhado de linhas oficiais e os gatilhos feitos na rede
oficial da CEDAE, incorporando também a organização socioeconômica das
localidades, delimitando territorialmente o espaço de disputas entre os atores sociais e
as instituições supralocais em torno da água no Jardim Catarina.
A distribuição desigual das redes e tubulações reflete não apenas as obras e intervenções
públicas, mas os acordos entre agentes e políticos locais e lideranças comunitárias e
moradores. Essas forças se estenderam de forma desigual por todo o JC, seja integrando
partes do loteamento ou segregando outras.
A organização de uma pauta permanente de luta pela água ajudou a grupos locais a
manter o embate político aquecido e a desenhar uma agenda pública do saneamento na
RMRJ, mesmo que esta se mantivesse dominada pelo Estado e pelos demais agentes de
mercado. Essa pauta de reivindicações fortalece o enfrentamento cotidiano e o trânsito
do morador e seus representantes dentro de instituições supralocais e estatais. O setor
saneamento, além de conter forte teor econômico, transformou-se num campo altamente
disputado na sociedade fluminense.
26
O ponto de partida no Jardim Catarina
27
O nosso diagnóstico pautava-se sobre São Gonçalo como domicílio dormitório, e
Jardim Catarina como o lugar da informalidade.
Durante a presente pesquisa contei com o apoio da equipe do CCFP de Jardim Catarina
para a realização do trabalho de campo e seleção de entrevistados. O grupo era formado
por mulheres, que dividiam as tarefas e as atividades do centro comunitário. Eram
agentes de saúde, que alternavam o tempo com o Posto de Saúde da Família (PSF),
professoras do curso normal formadas numa escola estadual dentro do próprio
loteamento e uma voluntária que residia próxima ao espaço.
28
comunidades nas quais trabalhei tornaram-se os pilares para o desenho do meu projeto
de pesquisa. Tanto que em 2009, diante dessas constatações e questionamentos,
ingressei no mestrado acadêmico da Escola Nacional de Saúde Pública – Ensp/Fiocruz.
Essa escolha se deu, pois a área da Saúde Pública se apresentou para mim como um
campo que permitia abarcar diversas linhas teóricas de pensamento, promovendo um
diálogo mais abrangente entre saúde, território e ambiente e entendendo o espaço
urbano como campo de luta e resultado de processos históricos distintos.
Nesse primeiro momento, a proposta era mapear as inúmeras práticas dos moradores do
Jardim Catarina no enfrentamento de seus problemas de saúde e ambiente e, ao mesmo
tempo, de que forma as mesmas se relacionavam com a organização espacial do bairro.
A ideia foi construída justamente por conta dos impasses na interpretação que o trabalho
de assessoria enfrentou diante da realidade heterogênea do bairro. O trabalho e a saúde
como direitos apresentavam-se de forma difusa quando incorporados aos projetos da
ONG, em muitos casos, incapazes de identificar os “pequenos” elementos do dia a dia
que estavam atrelados a contextos mais complexos, cujas interações resultavam das
reciprocidades entre as estruturas da cidade com as dinâmicas socioespaciais do lugar.
O mapeamento das práticas contribuiu para identificar conexões entre o local e a cidade
e expor os já citados desencontros entre tempos e compreensões a respeito dos
elementos do dia a dia no Jardim Catarina. Os mutirões de resgate de pessoas após as
constantes enchentes no bairro exigiam responsabilidades bem definidas entre os
moradores; o trabalho dos agentes comunitários de saúde, que transitavam entre o
código de ética do serviço público e a experiência vida no bairro contava com o vínculo
de confiança com o vizinho; a ocupação de terrenos e seu posterior desmembramento
era o caminho para a reprodução social da família e fonte alternativa de renda.
29
inúmeros investimentos de políticas urbanas de infraestrutura por parte da prefeitura,
governos estadual e federal. Assim, o estudo sobre as práticas dos moradores permitiu
descortinar algumas pistas sobre a formação do espaço urbano da periferia e sua relação
com a cidade e com a Região Metropolitana.
30
A pesquisa, as fontes e o trabalho de campo
O trabalho de campo foi realizado entre 2014 e 2016. A ideia era identificar pessoas e
instituições locais que pudessem ajudar na recuperação histórica da ocupação do Jardim
Catarina. Entre os personagens que se destacaram na pesquisa, o enfoque recaiu sobre
agentes públicos ligados ao setor de saneamento, que podem ser tanto funcionários
31
públicos quanto políticos, tais como vereadores, deputados e candidatos; e também
sobre os moradores, mais especificamente a respeito de personagens que passaram a
atuar diretamente nas políticas de infraestrutura dentro do JC. Entre eles: presidentes e
ex-presidentes da associação de moradores, comerciantes e grupos de poder local que
passaram a se envolver com o tema a partir de reivindicações e mobilizações locais.
Esses, logicamente, não são os únicos atores que atuam na política do Jardim Catarina,
muito menos no setor público de saneamento. Porém, os critérios de seleção
envolveram aqueles indivíduos com maior capacidade de transitar entre o local e o
supralocal, ou seja, entre o JC e a RMRJ. Essa mobilidade e esse deslocamento são
essencialmente para a manutenção de relações políticas com institucionalidades e
agencias públicas.
32
Algumas localidades sofrem mais com o desabastecimento do que outras. Estratégias
foram sendo elaboradas ao longo do tempo. Parcerias e acordos políticos foram sendo
costurados em detrimentos de territórios e grupos sociais que tiveram seu acesso a
infraestrutura urbana bloqueado. É preciso cautela.
Uma excelente fonte de consulta pode ser encontrada na base de dados da hemeroteca
da Biblioteca Nacional. A partir do acervo digital e utilizando ferramentas de filtro e
busca, foi possível encontrar 12.894 citações do nome “Jardim Catarina” no total das
edições publicadas no jornal. O primeiro aparecimento foi no ano de lançamento do
loteamento, em 1953. A seguir foram organizados por décadas os números de citações
sobre o JC.
Observa-se na tabela que nas duas primeiras décadas, além de poucas citações, o nome
Jardim Catarina vinculava-se mais às oportunidades criadas pelo mercado imobiliário
local, apresentadas na seção de classificados. Desde sua fundação, o loteamento parece
4
Elaborado a partir da base de dados da Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Disponível em:
digital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
33
ter mantido essa função de fornecer moradia e possibilidades de negócios na compra de
terrenos e na venda ou a aluguel de casas.
A ação de grupos de extermínios, que chegava com os anos 1980, caminhava lado a
lado com as promessas de novas obras e intervenções para o abastecimento de água,
após crises sanitárias. Problemas ambientais como inundações e alagamentos começam
a ser retratados nas capas e nas matérias do jornal. Abria-se um espaço para a fala de
políticos e de lideranças locais, que exigiam melhores condições de vida e mais
investimentos públicos para o JC.
34
Capítulo 1 - O urbano como apoio para análise das práticas sociais na
cidade
5
Ibid., p. 483;
35
brasileiro. A partir daí o debate percorreu até a década de 1980 focado em grande
medida sobre os problemas urbanos como resultado do modelo econômico e social
adotado no país. Prevaleciam as discussões sobre as mazelas brasileiras, a pobreza
urbana e o (não) crescimento econômico do país.
O Estado cada vez mais se tornava o ator demandado a encontrar saídas para a questão
da moradia urbana e do saneamento. Como reflexo as análises centravam-se mais no
aspecto físico das periferias paulistas - espraiamento urbano, déficit de infraestrutura
etc.; na relação com os centros de negócio e de emprego – pendularidade, oferta de
serviços, trabalho, ensino; e por meio da descrição das condições materiais do
trabalhador – precarização da força de trabalho devido aos baixos salários e à jornada de
trabalho prolongada.
36
Por sua vez, a questão fundiária e a dimensão da posse da terra nas áreas urbanas das
metrópoles brasileiras também foram vistas como fortes determinantes para a efetivação
ou não de infraestrutura nesses lugares. A ideia de “invisibilidade” dessas áreas no
âmbito das políticas públicas, por conta das barreiras sociais e institucionais geradas a
partir de uma ideia de segregação territorial, a princípio, bloqueariam a chegada de
serviços e outros bens para o consumo e o atendimento das necessidades básicas da
população.
No Jardim Catarina a história parece ter caminhado por trilhas diferentes. O ponto
central da pesquisa é entender quais caminhos foram percorridos e como o avanço no
tempo fez do loteamento um importante lugar da cidade. Se há segregação, há também
pontes entre as muitas localidades, contatos diários, fronteiras e conflitos. Se há
problemas de infraestrutura, não significava que não haja serviços sendo oferecidos no
interior do bairro e controlados por instituições e agentes públicos. Se há pobreza e falta
de saneamento básico, ela segue num gradiente, cuja distribuição espacial no Jardim
Catarina e em São Gonçalo é fruto de formas de organização da própria população, da
estrutura de oferta dos serviços e das práticas sociais e relações construídas pelos atores
urbanos, o que levou a um quadro de distinção social e espacial entre territórios e
grupos.
Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1988) alertava para as dificuldades na elaboração de
estudos sobre periferia e cidades. Depositando um olhar crítico sobre o urbanismo dos
arquitetos e dos planejadores. Os experts em cidade tendiam a separar elementos do
cotidiano urbano que a prática social e o “senso comum” juntam por meio de uma
estrutura em que os valores de uso e de troca do espaço urbano são atravessados por
valores simbólicos e bens materiais. Uma inversão da abordagem dicotômica que opõe
valor de uso x valor de troca, retirando do morador da periferia a capacidade de
37
entender as possibilidades de negociação entre essas duas dimensões, apoiados pela
experiência e valores construídos historicamente.
Carlos Nelson expõe essas interseções e sobreposições. Esses conjuntos não são
exatamente equilibrados, pendendo, a cada contexto e conjuntura política, para um lado
ou para o outro. “Pela crença nesse esquema de valores, a multidão dos pobres tem
conseguido se manter viva. Melhor ainda, tem sustentado a própria dignidade e esta
virtude que, no fim das contas, é o combustível da história – a esperança” (1988, p. 46).
O “espaço do vivido”, aquilo que Lefebvre chamou de espaços ligados “ao lado
clandestino e subterrâneo da vida social” (2006, p.59), produz seus próprios códigos e
formas de organização espacial e urbana. A coexistência entre agentes econômicos, as
instituições do Estado e os moradores dos loteamentos urbanos está assegurada pela
prática social (e espacial), ou seja, pela busca de todos em legitimar sua presença na
cidade. Integrados, mesmo que em posições hierarquicamente desiguais.
Por ser um produto social o espaço é produzido e, de acordo com o autor, diretamente
ligado à realidade social e aos desdobramentos históricos. “O espaço não existe em si
mesmo”. Tanto o espaço como o tempo deveriam ser compreendidos como elementos
inerentes à prática social. “Lefebvre os vê como produtos sociais, consequentemente
38
eles são ambos (espaço e tempo), resultado e pré-condição da produção da sociedade”
(SCHMID, 2012, p. 91).
Não haveria para Lefebvre uma relação direta e imediata entre modo produção e seu
espaço. Existiriam desencontros: “ideologias se intercalam, ilusões se interpõem (2000,
p.9)”.
39
por um conjunto específico do processo histórico da formação urbana da cidade
(MARTINS, 1996, p.16). Ou seja, as relações políticas que envolvem as disputas por
serviços públicos urbanos abarcam tanto elementos e condicionantes de ordem local,
baseados em grande parte na experiência histórica de quem vive no lugar; como
atendem são sensíveis às mudanças de conjunturas econômicas e políticas no
movimento de formação do espaço urbano.
40
[...] desigualdade de ritmos do desenvolvimento histórico
decorre do desencontro que na práxis faz do homem produtor de
sua própria história e, ao mesmo tempo, o divorcia dela, não o
torna senhor do que faz. Sua obra ganha vida própria, torna-se
objeto e objetivação que subjuga em renovada sujeição o seu
sujeito (apud MARTINS, 1996, p.19).
A questão chave é que para fazer “funcionar”, a cidade seria também o ambiente da
divisão social do trabalho, que mais do que a divisão técnica do trabalho, exigiria
distinção social imposta entre indivíduos e lugares. Essa divisão seria uma fonte
aprisionadora do sujeito, inibidora da capacidade criadora. O que os marxistas vão dizer
é que essa condição levará a uma forte concorrência, e que por sua vez, impulsionará
uma ampla quantidade de conflitos entre indivíduos, grupos e classes (LEFEBVRE,
2001). A transição social e econômica necessária à produção industrial e à consolidação
do capitalismo brasileiro não compreendeu apenas a superação da população das
cidades sobre a do campo, mas o entrelaçamento de inúmeros fatores políticos,
econômicos, sociais e espaciais que transformaram os territórios em definitivo,
constituindo-se na base da sociedade urbana nacional.
41
saneamento e os planos diretores vão representar a leitura elitista da cidade (VILLAÇA,
2005).
Deixa de ser apenas uma relação entre sujeito e objeto, uma relação dicotômica, que na
visão de Lefebvre estaria sempre suscetível às formas de dominação. A “desordem”
produzida nas periferias metropolitanas situa-se dentro do próprio processo de produção
e da formação do espaço urbano. Processos esses que vão se constituindo e se
reestruturando dentro da sociedade capitalista de forma a gerar fragmentações
territoriais e desigualdades sociais. Contudo, se desde os tempos da Inglaterra industrial
do século XIX, observada por Engels (1975), as bases econômicas da acumulação
mudaram, então, a produção e a desigualdade no espaço urbano são algo inerente ao
movimento histórico de construção da própria cidade. O que interessa mostrar é que o
acesso (direito) à cidade é conflitual por definição (LEFEBVRE, 1969).
42
negociação e pela experiência histórica do morador e demais atores sociais. O espaço
resulta da prática, porém dentro de um quadro de poder estabelecido pelas forças sociais
que ali se confrontam em busca de recursos, territórios e legitimação.
Antes de tudo, é preciso situar o Jardim Catarina (JC) e o município de São Gonçalo
(SG) no cenário urbano da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). A ideia é
trazer algumas características gerais do JC, porém, apontamento para alguns
questionamentos sobre sua organização espacial, urbana e sua condição social dentro do
município de SG. A dimensão ampla e horizontalizada do loteamento; a situação do
abastecimento de água e a dinâmica econômica interna são componentes de um modo
de vida que geram efeitos para além do local, contribuindo para a conformação da
própria cidade.
43
A RMRJ, já no meado do século XX, apresentava dessa forma uma organização
concêntrica, com um centro de comando, uma classe trabalhadora industrial em
evolução e uma faixa de fronteira no entorno que funcionava basicamente como reserva
de terra e de mão de obra. Justamente neste ponto, na regulação estatal sobre o uso do
solo, que houve um incentivo à produção em larga escala de loteamentos nos
municípios metropolitanos. A ideia era fazer da incorporação maciça de terras um
movimento de inversão das áreas rurais em urbanas, tendo na comercialização de lotes o
motor para a geração de capital fundiário. Municípios como São Gonçalo assumiram
papel central nesse processo de produção de capital.
A partir dessa lógica, pequenos centros urbanos foram se espalhando pela região,
geralmente acumulados ao longo das ferrovias inicialmente criadas para o transporte de
mercadorias em direção ao Rio de Janeiro, consolidando a cidade como importante
porto exportador e entreposto dos produtos agrícolas (oriundos da região do Médio
Paraíba) e minerais (vindos de Minas Gerais) (SOARES, 1990).
Até os anos de 1950, São Gonçalo era um desses centros e estava na rota de comércio
estruturado pelas linhas férreas. Desde a virada do século XIX para as primeiras décadas
do século XX representava uma das principais regiões de produção agrícola fluminense,
com um papel importante no comércio de exportações em âmbito nacional. A rede
ferroviária da Estrada de Ferro Leopoldina no leste da Guanabara partia de Niterói,
passando pelas estações Porto da Madama e Alcântara, em São Gonçalo, interligando a
6
O recôncavo da Guanabara é o vale de planícies e baixadas formadas pela Região da Baixada
Fluminense e São Gonçalo entre a Baía de Guanabara e as montanhas.
44
região na direção norte do estado7. Contudo, após o declínio e decadência da atividade
rural no país a partir de 1930, as fazendas do município acabaram sendo destinadas ao
mercado urbano de terras.
A forma utilizada para incorporar essa vasta área plana que se tornou disponível e que
se localizava no entorno da Baía de Guanabara foi a prática do loteamento. Mesmo que
as características ambientais do terreno (alagado e sem saneamento) da antiga área rural
de São Gonçalo (e da Baixada Fluminense) tenha sido um fator de inibição da ocupação
imediata, a elevada quantidade de unidades fundiárias à disposição dos capitais da
metrópole atraíram investidores interessados em parcelara e comercializar essas terras.
Com o passar dos anos, os novos distritos foram vivenciando a elevação das taxas de
crescimento demográfico, levando ao rápido adensamento e expansão da mancha
urbana de São Gonçalo. O reflexo desse fenômeno é medido logo no primeiro censo do
IBGE a disponibilizar dados populacionais por distritos municipais. São Gonçalo
possuía, nos anos 1970, aproximadamente 430 mil habitantes8. Esses números saltaram
para 615 mil moradores na década seguinte, um crescimento absoluto de 42%. No caso
do distrito de Monjolos, onde seria criado o loteamento Jardim Catarina, em 1970,
7
http://www.historiadesaogoncalo.pro.br/
8
IBGE, Censo Demográfico de 1970.
45
residiam 46 mil habitantes, passando para 96 mil moradores dez anos depois, um
crescimento acumulado de 105%. O censo 2010 registrou 223 mil moradores no distrito
de Monjolos e 73 mil habitantes em Jardim Catarina. Hoje, São Gonçalo possui uma
população superior a um milhão de habitantes9 e a segunda maior do estado.
Desde sua criação, o distrito de Monjolos vem sendo responsável pelas maiores taxas de
incremento demográfico de São Gonçalo. Em anos recentes, entre 2000 a 2010, o
crescimento da população do distrito chegou a de 2,35% ao ano, média superior ao
município (1,15%) e da RMRJ (1%)10, inclusive. As dinâmicas demográficas
metropolitanas trazem ainda as mudanças históricas no fluxo populacional entre os
municípios da RMRJ e o deslocamento concentrado em direção à capital Rio de Janeiro.
9
De acordo com a estimativa 2017, residem no município 1.049.826 habitantes.
10
Tabelas com dados no Anexo I.
46
de Janeiro), com aproximadamente 200 mil pessoas deslocando-se diariamente, ficando
atrás apenas do eixo Guarulhos/São Paulo11. Por outro, a cidade tinha uma proporção
considerável de população economicamente ativa (PEA) 12 que encontrava
oportunidades de emprego no próprio município13 (LAGO, 2009; 2010). Os que
trabalhavam fora do local de residência representavam 34% da PEA, apenas o nono
maior percentual da região, ficando atrás de Duque de Caxias e a frente de Nova Iguaçu
(Anexo I).
Essa configuração supõe que o mercado de trabalho de São Gonçalo passou a absorver
uma parte expressiva de mão de obra do município. Já o trabalho tido como formal, o
setor de serviços respondeu por 65% dos vínculos empregatícios. Não há dados para
trabalho informal por município no Estado do Rio de Janeiro, contudo, sabe-se que, em
2010, das pessoas ocupadas na cidade, com idade acima de 18 anos, 40% possuíam
somente o ensino fundamental incompleto14.
11
IBGE. Arranjos populacionais e concentrações urbanas no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2 ed., 2016.
12
Pessoas que estão ou trabalhando ou à procura de trabalho no mês da consulta.
13 Aproximadamente 500 mil pessoas de acordo com o Censo 2010
14
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/sao-goncalo/panorama
15
Vínculos Formais é uma classificação do Cadastro Nacional de Atividades Econômicas – CNAE
publicado na RAIS/MTE. Para identificar as empresas no Jardim Catarina as informações foram
sistematizadas a partir da base de microdados da RAIS, partindo do CNPJ e dos endereços dos
estabelecimentos.
47
Imagem 1: foto aérea recente do município de São Gonçalo
Logicamente, a história irá demonstrar que essa organização urbana gerou implicações
às condições de vida da população. A principal delas reflete os impactos e os
desdobramentos dos serviços urbanos sobre seus territórios. O perfil urbano espraiado, a
característica ambiental e topográfica plana e abaixo do nível do mar e a ocupação
baseada na autoconstrução pressionam o sistema de infraestrutura e de saneamento
básico por mais investimentos, aumento de cobertura e políticas permanentes de acesso
da população ao abastecimento de água e à rede de esgoto, principalmente.
16
O Jardim Catarina aparece oficialmente como bairro de São Gonçalo no Plano Diretor da Cidade de
1996.
48
Entre os municípios metropolitanos, São Gonçalo é apenas o décimo em termos de
cobertura da rede de água e de sistema de coleta de esgoto. O município possuía, em
2010, 79% dos domicílios ligados à rede e apenas 68% com serviço de coleta de
esgotamento sanitário. Além disso, a pesquisa demonstrará que, pelo menos no Jardim
Catarina, “estar ligado à rede de água” não significa que o morador recebe efetivamente
ou parcialmente o serviço. A desigualdade na distribuição do sistema na RMRJ é
fortemente territorializada. Analisando o percurso traçado pelo Jardim Catarina, o
conjunto casa-trabalho-água se apresentará como elemento central constituinte da vida
urbana.
Para quem caminha pela primeira vez pelas ruas do Jardim Catarina surge a imagem de
um bairro popular, com muitas pessoas circulando, trânsito intenso, lojas abertas e
esquinas cheias. Numa mesma quadra é possível notar diferentes tipos de construção:
casebres sem acabamento ao lado de casas com dois, até três pavimentos bem
estruturados e com calçamento alinhado. Da mesma forma, há vias pavimentadas, com
boa cobertura de saneamento, enquanto na rua ao lado, faltam asfaltamento, calçadas e
canaletas.
17
Indicadores construídos a partir dos dados censitários por domicílios e organizados espacialmente por
setores censitários. As informações são por amostra, conforme metodologia do IBGE para censos
demográficos.
49
distinguindo-se apenas quando comparado às áreas centrais de São Gonçalo, com
destaque para o bairro vizinho de Alcântara. Em JC a maioria dos domicílios tinha, de
acordo como IBGE, renda média entre dois a três salários mínimos (R$1020,00 a
R$1530,00, em 2010), com poucos setores com médias acima de três salários mínimos.
50
A vida cotidiana, então, congrega não apenas os passos do morador e a presença ou não
de algum tipo de atividade econômica local ou a presença de serviços públicos, como
saneamento ou transporte. Mas funciona como o espaço de mediação entre as ações das
instituições supralocais (e seus agentes) e as práticas sociais (e experiência) dos grupos
locais e moradores. A política na cidade estrutura-se sobre esses encontros. As próprias
políticas urbanas, com destaque para a urbanização de loteamentos e favelas, refletem as
contradições dessa relação entre escalas (espaços) e tempos.
Nesse sentido, o debate sobre o problema urbano acaba girando em volta de uma
perspectiva estatal/institucional, onde a ideia de mais investimentos e políticas sociais
51
torna-se a peça chave para compreensão das dinâmicas urbanas, e menos a respeito das
territorialidades, relações políticas e contradições urbanas. Numa disputa desigual entre
classes ricas e pobres, o Estado passaria a deliberar a respeito da distribuição dos
serviços urbanos e do excedente de capital em favor das classes médias 18, “que
constituem a base ideológica de sustentação do regime e da modernização
conservadora” (ARANTES, 2009, P.118).
Parte da teoria elaborada nos anos 1970 e 1980 (MARICATO, 1982; BANDUKI,
ROLNIK, 1982) já destacava que o valor econômico da propriedade urbana, ou da área
18
Ibid., p.53.
19
Ibid., p.119.
52
a construída, passaria a ser composto por elementos relacionados à localização do
imóvel no conjunto da cidade e à proximidade com áreas bem estruturas em termos de
infraestrutura e serviços urbanos. Com isso, a propriedade privada internalizaria custos
do entorno, transformando o imóvel num bem de alto valor dentro de um mercado
imobiliário hierarquizado.
Contudo, para fazer valer seu poder e sua legitimidade, as agências públicas tiveram que
fugir dos padrões tradicionais de políticas urbanas voltadas aos trabalhadores, tais como
os programas habitacionais do Banco Nacional de Habitação (BNH) e as Companhias
de Habitações Estaduais (COHABs). A partir da fusão do Estado do Rio de Janeiro
(1974) e, principalmente, da criação da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio
de Janeiro (CEDAE), em 1975, há uma reconfiguração das forças políticas tanto a nível
estadual como na escala do território do Jardim Catarina.
53
planejamento público (BOLAFFI, 1976; 1985; MARQUES, 1998; 1999). Contudo,
autores como Bolaffi traçaram abordagens mais amplas sobre o tema, incorporando à
política estatal uma “lógica de produção”.
Seguia-se no país um padrão arquitetônico e uma locacional que não voltados a atender
as necessidades da classe trabalhadora urbana, “as habitações oferecidas pelos
programas governamentais saíram caras, apresentavam pouca flexibilidade de uso e
foram mal localizadas no espaço urbano” (VALLADARES, 1985, p.37). Sem falar que,
até 1984, as políticas habitacionais eram praticamente centralizadas a nível federal, cuja
visão planificadora se reproduzia independente de região ou estado.
20
Ibid., p.50
21
MARICATO, 1982; BONDUKI, ROLNIK, 1982.
54
No âmbito geral da RMRJ, esse tipo de ação governamental, geradora de centralização
dos bens e serviços nas partes centrais da cidade, levou a um quadro segregacionista,
distinguindo o núcleo urbano – com presença de atividades econômicas de alto valor
agregado e bairros de classe média e alta -, os subúrbios operários da zona norte carioca,
com acesso a parte das infraestruturas urbanas, como rede ferroviária e de saneamento
básico; e os loteamentos localizados nos municípios da periferia metropolitana, sem
infraestrutura de pavimentação, saneamento, transporte, vivendo sob condições
instáveis de renda e seguridade social (ABREU, 1987).
O que poderia parecer uma contradição, com um Estado que apertava a regulação de
uso do solo nos centros urbanos e cedia nas periferias para a construção de loteamentos,
para Gabriel Bolaffi (1985) servia mais como um mecanismo voltado para a
acumulação e concentração de renda em setores econômicos específicos. Fazendo dos
loteamentos, por exemplo, não apenas uma alternativa de moradia para quem estava à
margem das políticas habitacionais, mas garantir um fluxo de rentismo fundiário como
forma para promover expansão urbana desigual e concentradora.
55
era um instrumento central numa gestão cujo formato deveria seguir padrões
empresariais e muitas vezes determinados pelos critérios do BNH.
Essa nova política tarifária defendida pelo banco federal, atrelada à visão tecnocrática
das empresas estaduais, a exemplo da CEDAE, gerou um efeito segregador em relação
às camadas populares das regiões metropolitanas, “visto que na maior parte dos casos
essas populações não apresentam demanda solvável para os serviços” (MARQUES,
1999, P.55). No entanto, Marques, reforçando a ideia de que a execução da política
estadual não seguiu integralmente as determinações federais, demonstrou que a
prestação de serviços na RMRJ foi direcionada em grande parte pelos interesses dos
grupos envolvidos na direção da agência estatal, que buscavam se consolidar na
estrutura de poder no “novo” estado da federação, após a fusão.
O uso político da máquina pública se fez valer na esfera estadual, onde a disseminação
de investimentos pela metrópole fluminense atendia tanto os interesses políticos do
governo, como garantia a expansão da malha de serviços para fins econômicos e
ampliação da arrecadação tarifária da CEDAE. Como resultado, durante os anos de
1975 e 1986 a cobertura de saneamento teve um crescimento expressivo até mesmo na
periferia do Rio de Janeiro. Contudo,
22
Ibid., p.56.
56
investimentos federais, aumentava ainda mais a autonomia das empresas estaduais na
definição sobre as políticas urbanas de saneamento.
Marques (1998; 2000) busca nas análises sobre redes sociais uma possibilidade de se
construir estudos descritivos sobre as políticas urbanas sem ter que impor a priori um
sistema estruturalista à realidade social e aos atores. A ideia é focar nos padrões de
relação entre indivíduos e grupos ligados à máquina estatal. Para o autor, o uso do
conceito de redes contribui para que se chegue a um detalhamento dessas relações e a
posição de cada agente no campo político do setor público de infraestrutura e
saneamento.
23
“Mecanismos que atravessam as grandes burocracias, a pública e a privada, constituindo-se numa
espécie de teia que vincula as diferentes facções e permite aos setores da burocracia pública e estatal
ligarem-se aos grupos de interesses das empresas privadas (da burocracia privada que responde pelos
interesses dos grandes conglomerados) e vice-versa. ” (FRIZZARINI, 2003)
57
planejada dos municípios metropolitanos, tendo como um dos focos centrais a
ampliação da cobertura de saneamento (SANTOS et. al., 2014).
A FUNDREM contava com recursos federais e por conta dessa condição econômica
conseguia centralizar alguns investimentos em saneamento da RMRJ. Entre eles estava
previsto uma parceria junto a CEDAE para a efetivação do Plano Diretor de
Abastecimento de Água da RMRJ e o Plano de Resíduos Sólidos, que seriam
executados pela estatal. Assim, há o lançamento das primeiras obras de ampliação da
vazão de água na região metropolitana destinadas aos municípios do entorno da capital.
58
internacionais, como o BID, e no caso específico do PDBG, do Bando de
Desenvolvimento Japonês.
Alguns autores (COELHO, 2004; DAS; POOLE, 2008) já identificaram que nos lugares
onde o Estado e os seus agentes assumem papéis distintos daquele definido pela norma
legal, geralmente vão utilizar-se de arranjos políticos locais para se legitimarem como
entes hegemônicos. A tentativa de domínio sobre o território e sobre os capitais que ali
circulam, obrigam o poder público a exercer diferentes mecanismos de controle sobre os
serviços e sobre o espaço. Na maioria dos casos, na negociação com atores locais, os
agentes estatais executam os serviços de saneamento fazendo-se valer do discurso da
precariedade das condições de vida dos moradores nas periferias urbanas. Veena Das e
Deborah Poole fazem uma boa descrição da imagem do Estado nas “margens do
Estado”:
59
desplazar las posiciones relativas del centro y la periferia: los
márgenes se mueven, entonces, tanto en el interior como fuera del
estado. Por supuesto, este movimiento es lo que hace a los márgenes
tan centrales para entender el estado. (p. 44).
60
ilusão de participação de uma cidadania constantemente prometida e
escamoteada (p.54).
61
marginais e vulneráveis aos problemas de violência urbana ou desastres ambientais,
como inundações, alagamentos, poluição.
62
Capítulo 02 - A Política Fluminense: da Fusão à criação da Cedae
Durante os anos 1940 e 1940, Getúlio Vargas buscou, no seu projeto de urbanizar e
industrializar o país, garantir bases políticas no Estado do Rio de Janeiro, destinando
importantes investimentos federais às diversas regiões fluminenses e não apenas para a
cidade do Rio de Janeiro. A instalação da Companhia Siderúrgica Nacional (Volta
Redonda, 1941), a Fábrica Nacional de Motores (Duque de Caxias, 1942), a Companhia
Nacional de Álcalis (Cabo Frio, 1944) e a Companhia Vidreira do Brasil (COVIBRA) e
Cimentos Portland (ambas em São Gonçalo, 1942) são exemplos de empreendimentos
que visavam desenvolver a economia fluminense e fortalecer as bases políticas do
governo federal no estado (OLIVEIRA, 2008).
63
capital, a cidade deveria se transformar em um ente autônomo, Cidade-Estado. Uma
proposta já prevista na Constituição de 1891 e defendida pelos políticos cariocas.
Por sua vez, ao tentar inibir o caráter perigoso das oposições localistas, a União tentava
a todo instante limitar os poderes dos partidos cariocas. A Constituição de 1946,
mantendo a visão do Rio como uma capital provisória, descreveu o governo local como
“uma entidade político-administrativa não autônoma, sob a tutela tanto da presidência
da República (responsável pela nomeação e demissão do prefeito), quanto do Senado
Federal” (FREIRE, 2003, p.4).
24
Em 1960, o Distrito Federal foi definitivamente transferido do Rio de Janeiro para Brasília. Este fato já
previsto em constituições anteriores, que tratavam da retirada do status de capital da cidade carioca.
Porém, mesmo com a saída da capital, o Rio de Janeiro foi elevando ao posto de Cidade-Estado
(BRASILEIRO, 1979).
64
maneira, o papel de foco da civilização, núcleo da modernidade, teatro
do poder e lugar de memória (MOTTA, p.24).
Para dar conta desse novo projeto, defendia-se a integração política e econômica do Rio
de Janeiro. O discurso oficial da época retomava o debate sobre a fusão dos estados de
maneira a criar uma única região metropolitana capaz de fazer frente com a metrópole
de São Paulo. Acreditava-se que o desenvolvimento nacional ganharia em termos de
crescimento, pois estaria apoiado em polos econômicos dinâmicos e complementares
(OSÓRIO, 2004). O II PND defendia que a industrialização seria alavancada pela
diversidade econômica e pelos mercados formados nas regiões metropolitanas do país.
25
Ibid., p.191.
65
2001b)26, o que contesta a ideia de que ambos os lados eram contrários à proposta
federal. Por outro lado, políticos fluminenses, capitaneados pelo grupo de Amaral
Peixoto e Roberto da Silveira e por parlamentares de Niterói e de São Gonçalo,
acreditavam que a fusão geraria ainda mais desequilíbrio econômico e de poder em
favor da ala carioca no cenário político brasileiro27.
Antes da fusão, de fato, existiam duas capitais na região metropolitana fluminense: Rio
de Janeiro e Niterói. A primeira se colocava como centro econômico e político, a
segunda tentava se desprender da posição de província de um estado até pouco tempo
rural. Com a ascensão do PTB28 no estado do Rio e a eleição de Roberto Silveira para o
governo do (antigo) Rio de Janeiro, em 1958, com forte base política e eleitoral em
Niterói e São Gonçalo, Niterói foi ganhando centralidade política-institucional. Na
Guanabara, inicialmente com Carlos Lacerda e ao final com Chagas Freitas, a indústria
prevaleceu como motor de desenvolvimento e urbanização. Acreditava-se que o seu
crescimento, assim como o que ocorreu em São Paulo, levaria o entorno, ou seja, sua
periferia, a ingressar num ciclo produtivo em cadeia, capaz de impulsionar o estado a
disputar os mercados em território nacional.
26
A Federação das Indústrias do Estado da Guanabara (FIEGA) manifestou-se oficialmente a favor da
fusão. Acreditava que a constituição do complexo industrial fluminense impulsionaria a economia
fluminense de modo a competir com a indústria de São Paulo.
27
Nos anos 1960, o PIB da Guanabara possuía um tamanho duas vezes maior que o valor produzido pelo
Estado do Rio de Janeiro
28
Partido Trabalhista do Brasil
66
tão “tormentosa” (...). A rapidez do andamento do processo da fusão
parece ser um bom indicativo dessas condições favoráveis da
conjuntura: Geisel tomou posse em 15 de março e, logo no mês
seguinte, divulgou sua decisão de fazer a fusão, cujo projeto, enviado
ao Congresso em junho, foi aprovado no primeiro dia do mês
seguinte.29
Após a fusão duas lógicas políticas prevaleceram no Rio de Janeiro (MOTTA, 2001b).
A primeira direcionada ao plano federal, cujo foco dos grupos políticos mirava,
principalmente da cidade carioca, a representação do estado no congresso nacional.
Neste caso prevalecia os resquícios do antigo Distrito Federal e governo da Guanabara,
de onde se olhava mais para o país e com disputas políticas direcionadas a um contexto
mais abrangente. Muitos políticos originários de outras partes do Brasil, inclusive,
permanecerem no Rio de Janeiro após a saída do Distrito Federal, reorganizando as
bases políticas cariocas.
A outra lógica, a da política local, seria determinada em boa parte pela ausência de
eleições para cargos majoritários. O Estado Rio de Janeiro durante o período militar não
pode escolher diretamente seu representante, este era nomeado pelo governo federal.
Com isso, as disputas voltavam-se mais para os cargos públicos do que ao redor do
debate político estadual. Nomes como Leonel Brizola, João Gourlart e Carlos Lacerda
dominavam a agenda pública e mantinham o enfrentamento pela cadeira presidencial,
na dimensão local a política se fazia de forma fragmentária.
Mauro Osório (2013) afirma que a partir dos anos 1960 o Estado do Rio de Janeiro
entra num “processo de erosão de sua importância e dinamismo econômico social”
(p.192). Para o autor, essa questão, inclusive, demorou a ser compreendida e a ser tema
de debate mais amplo pelas forças políticas fluminenses e sociedade carioca:
29
Ibid., p. 05.
67
contribuindo assim para a conformação de um particular quadro de
carência no tocante à reflexão local 30.
Com o golpe de 1964, ocorre uma série de processos de cassação de políticos. Após a
cassação dos partidos de esquerda, políticos como Calos Lacerda, que integravam a
UDN31 carioca e que inicialmente haviam apoiado a ascensão dos militares, ao romper
com a União também acabaram cassados, fato que promoveu uma forte desarticulação
da política carioca. Nos municípios fluminenses, os políticos se viram forçados a atuar
mais em direção às bases locais do que visar disputas a nível estadual e nacional. O caso
de Chagas Freitas é um bom exemplo. Ao ser nomeado governador adota a lógica da
clientela direcionando a administração para o atendimento pulverizado às demandas da
população por meio de políticas urbanas pontuais na RMRJ. Dessa forma ampliava o
apoio ao seu nome por parte de grupos políticos de fora da cidade do Rio de Janeiro.
30
Ibid., p. 194.
31
União Democrática Nacional.
68
Entre os componentes do saneamento, o tema do abastecimento de água havia assumido
importância na agenda política também do antigo estado do Rio de Janeiro. Ernani
Amaral Peixoto, que era casado com a Alzira Vargas, filha de Getúlio Vargas, e que já
havia sido governador-interventor do Estado do Rio de Janeiro, ao ser eleito em 1950
novamente para o governo fluminense, realizou ao longo do mandato (1951 a 1954)
uma série de programas e projetos urbanísticos que visavam modernizar o interior do
estado, com destaque para Niterói (FERREIRA, 1997; CPDOC, 2017). Uma das
intervenções mais importantes de saneamento básico na Região Metropolitana do Rio
de Janeiro foi a instalação de um reservatório de água na antiga fazenda Laranjal, em
São Gonçalo, local onde está localizado Jardim Catarina32.
Em 1955, o governo Amaral Peixoto construiu uma adutora de água para abastecer a
região leste da Baía de Guanabara, como uma das ações principais do projeto de
modernização de capital Niterói, principalmente (SILVA; CORRÊA; SANTOS, 2016).
A estrutura transportava a água que vinha do município de Cachoeiras de Macacu até
uma elevatória que ficava localizada justamente no terreno que deu origem ao
loteamento JC. A área plana e a posição abaixo do nível do mar do loteamento
permitiam que, por gravidade, a água do Rio Guapiaçu chegasse até São Gonçalo e
depois fosse bombeada até o centro de Niterói.
Por meio da construção de adutora partindo do Rio Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, seguindo pelo
canal do Imunana até a antiga Fazenda Laranja. O sistema intitulado Imanana-Laranjal, desde os anos
1950, tornou-se o principal equipamento público responsável pelo abastecimento de água de Niterói e São
Gonçalo.
69
anterior, menor e improvisado, originário da serra de Teresópolis e que chegava a
Niterói e a São Gonçalo pelo município de Itaboraí.
Fonte: O Fluminense
Diante da crise instalada, o governador na época, Badger Silveira, que foi irmão de
Roberto da Silveira, ex-governador e político tradicional fluminense, teve que apelar à
população para que a mesma não adotasse medidas precipitadas diante do
desabastecimento. Acusava, ainda, proprietários de caminhões tanques (pipas) da região
por comercializar a água que vinha sendo fornecida gratuitamente pelo Estado e que
deveria ser distribuída à população. Esse episódio ilustra como a questão do saneamento
mostrava-se delicada, justamente num período em que a região metropolitana passava
por um forte dinamismo urbano e crescimento populacional.
71
Inicialmente formada por uma região produtora agrícola, a história da Baixada começa a
mudar a partir das primeiras intervenções de infraestrutura urbana, principalmente com
a chegada da ferrovia, ainda no século XIX, em 1854. Em 1886, a linha férrea já
alcançava o atual município de Duque de Caxias33. Por conta dos constantes
alagamentos, foi criada na década de 1930 a Comissão de Saneamento da Baixada, que
mais tarde se transforma na Diretoria de Saneamento da Baixada. Como resultado, em
1941, 30% da região já havia sido drenado, sendo a diretoria de saneamento
transformada em Departamento de Obras de Saneamento do Distrito Federal
(MARQUES, 1998).
Na cidade do Rio de Janeiro, os bairros de classe média da zona sul já contavam com
saneamento desde 1922. Em 1935, sistemas de água e de esgoto chegavam ao bairro da
Lagoa e no Grajaú, zona norte da cidade, a partir de 1937. Realidade totalmente distinta
dos primeiros núcleos urbanos da Baixada Fluminense. A título de ilustração, na década
de 1930, moravam em Nilópolis e em São João de Meriti aproximadamente 62 mil
habitantes, acima dos 50 mil de Ipanema e Leblon, contudo, esses municípios só foram
receber sua primeira rede de esgoto em 1987, mais de 50 anos depois dos bairros
cariocas (ABREU, 1987).
33
Município desmembrado de Nova Iguaçu em 1931.
72
FGTS em novembro do mesmo ano permitiram a criação do fundo nacional de
financiamento do saneamento para a realização de programas federais na área de
habitação e infraestrutura.
34
Ibid., p. 54.
73
2.2 Água: da descentralização do serviço à CEDAE
Nos anos que antecederam a fusão dos estados, os serviços de saneamento do antigo
estado do Rio de Janeiro eram exercidos por um conjunto de superintendências e
diretorias, que constantemente passavam por reformulações, alternâncias de poder e
extinções. A contratação do corpo técnico costumava ser processo celetista, com alta
rotatividade no quadro, diferente da estrutura gerencial e tecnocrática do setor de
saneamento da Guanabara. Diante da falta de estabilidade, consequentemente, a gestão
dos serviços era influenciada por negociações políticas entre líderes fluminenses dos
diferentes municípios. “O governador utilizava os sistemas como instrumento de
barganha política, mas por outro lado tinha acesso às demandas locais, sendo submetido
à pressão de prefeitos e vereadores”35.
Em 1971, após a nomeação pelo governo federal de Raimundo Padilha para governador
do Estado do Rio de Janeiro, é criada a Companhia de Saneamento do Estado do Rio de
Janeiro (SANERJ) como uma tentativa de centralizar os diversos setores de
infraestrutura estadual, porém, mesmo após a criação da companhia, o órgão manteve-se
sob forte influência política.
O grupo que detinha mais poder durante o governo Faria Lima, tendo
realizado a fusão e mantido o poder da secretaria de obras (e que mais
tarde seria hegemônico na nova empresa), era originário das CEDAG.
Além disso, a CEDAG aparentemente apresentava melhor situação
35
MARQUES, 1998, p.60.
74
financeira e era reconhecida na comunidade como a mais capaz,
técnica e organizacionalmente. Como produto desta fusão, surgiu a
CEDAE.36
Tal fato levou ao enfraquecimento dos grupos políticos pertencentes ao antigo estado
fluminense dentro da máquina pública estadual, fazendo prevalecer na CEDAE a lógica
do corpo técnico e gestor da Guanabara. Ou seja, internamente, o campo político do
setor de infraestrutura ficou extremamente heterogêneo, centro de disputas políticas e de
diferentes concepções sobre as políticas de saneamento e decisões tomadas para a
RMRJ.
Com uma diretoria formada em grande parte por servidores de dentro do setor de
saneamento, prevalecia na CEDAE uma visão tecnocrata e hierarquizada a respeito da
política urbana para RMRJ38. No final da década de 1970 e início dos anos 1980 a área
metropolitana começou a ser alvo de inúmeros investimentos por parte da companhia,
recebendo recursos e obras até então raras na região. Parece que a estatal entendeu ser
necessário incorporar uma vasta periferia ao sistema de saneamento estadual, antes
altamente concentrado no antigo estado da Guanabara.
Esse movimento aparentava ser uma estratégia de ação dupla por parte do corpo técnico
e gestor da estatal: primeiro expandia-se o serviço, abarcando uma grande área e
incorporando-a à cidade, visto como novos mercados consumidores; segundo, com essa
ampliação, e pela adoção do sistema de tarifas, a empresa ganharia maior capacidade de
arrecadação e autonomia financeira. A questão tarifária é importante, pois no âmbito da
política urbana ela irá estabelecer a relação entre “arrecadação para financiamento”
36
Ibid., p.61.
37
Ibid., p.62.
38
Ibid.;
75
como uma chave balizar para as tomadas de decisões em torno da aplicação de recursos
e intervenções sobre os lugares da cidade.
Diante da incapacidade do regime militar de dar conta das pressões e das novas
demandas por investimentos nas regiões metropolitanas, além do crescimento do poder
político e econômico do novo setor de saneamento do Estado do Rio de Janeiro, os
acordos locais entre grupos políticos e a ampliação da cobertura fizeram com que a
empresa estadual saísse da lógica do modelo nacional e assumisse a gestão quase que
definitiva do saneamento. Ao final dos anos 1970, os valores e recursos econômicos
aplicados pelos governos federal e estadual, somando gastos com habitação e
76
saneamento, já eram semelhantes. Na entrada da década de 1980, os recursos estaduais
ultrapassam os federais (MARQUES, 1998; MARQUES; BICHIR, 2001).
Por conta disso, a CEDAE, mesmo quando esbarrava nas exigências técnicas exigidas
por parte dos órgãos federais, fez valer sua autonomia e avançar com os serviços para a
região metropolitana. O que se passou a discutir é a relação entre a presença de
cobertura e qualidade da mesma. Em muitos casos o serviço chegava incompleto e com
baixa qualidade de atendimento. Ou então, como antes da fusão lugares como Jardim
Catarina não contavam com nenhum tipo de serviço de saneamento, a incorporação de
novas áreas à cobertura da infraestrutura urbana acabava entrando em conflito com o
novo modelo de cobrança e arrecadação, produzindo investimentos descontinuados.
De acordo com alguns relatos de entrevistados nessa pesquisa, até a década de 1960,
como a ocupação do loteamento ainda era de baixa densidade populacional, soluções
diárias eram tratadas diretamente com loteadoras, corretores e comerciantes locais que
auxiliavam a financiar pequenos serviços para tratar do problema da água. Esse formato
começa a mudar e a se tornar problemático quando, a partir de 1970, avança o
adensamento populacional do Jardim Catarina. As intervenções de integração viária
promovidas pelo governo militar na RMRJ, como a construção da ponte Rio-Niterói,
em 1975, as remoções de favelas na cidade do Rio de Janeiro e a instalação dos sistemas
de drenagem na Baixada Fluminense foram determinantes para um deslocamento de
pessoas em direção aos loteamentos da periferia.
Foi dentro desse contexto que a água começa a chegar no Jardim Catarina por via das
redes oficiais da CEDAE. Sem linhas diretas, uma pequena ramificação na adutora que
levava água a Niterói foi instalada no loteamento sob um sistema de manobra39. O
atendimento era parcial e o consumidor precisava interligar a casa à rede secundária. Os
gastos para esse tipo de instalação deveriam ser realizados pelo morador, ficando a
CEDAE responsável apenas por implementar a construção da rede auxiliar nas ruas e
quadras do loteamento. Como resultado, muitas casas, mesmo situadas nas vias por
onde passavam a rede de água, não foram integradas ao sistema, permanecendo sem
abastecimento.
39
Manobra é o termo utilizado para descrever o atendimento alternado do sistema. A companhia realizava
o abastecimento parcial e apenas em dias específicos.
77
Esse cenário inicial, no pós-1975, indica que o avanço dos investimentos em
saneamento na periferia da RMRJ não necessariamente era garantia de cobertura
efetiva. Enquanto a nível regional o setor público estadual de saneamento se
consolidava política e economicamente, no Jardim Catarina, ao final dos anos 1970 e
começo 1980, a chegada de novos moradores, a perda de importância das loteadoras nas
regulações fundiárias, o surgimento de um mercado de aluguéis e aumento do comércio
local desenharam um complexo ambiente político.
78
visibilidade, vários deles já previstos com outras ênfases e
roupagens.40
Com isso, a lógica da política de saneamento do estado passou a funcionar sempre por
meio de um movimento entre dois níveis: na esfera estadual, existia uma forte
autonomia do corpo dirigente e técnico da CEDAE nas decisões de como e onde
investir grandes montantes de recursos públicos. Uma amostra é justamente o
crescimento dos investimentos na periferia antes mesmo da década de 1980, ainda no
período militar.
40
Ibid., p.82.
79
Esse ponto é importante, pois mostra que as estruturas estatais, por exemplo, eram
altamente permeáveis, capazes de atender a interesses de diferentes atores, muitas vezes
posicionados fora do círculo de poder da cúpula de governo. Esse perfil organizacional
da CEDAE, baseado na visão dos profissionais do setor de obras e de saneamento, mas
com departamentos regionais atuando marginalmente, gerou uma configuração
particular na forma de agir da empresa em relação aos loteamentos e às periferias
urbanas.
Num cenário de abertura política, o retorno das eleições para governador, somados aos
efeitos da inflação e do encolhimento do orçamento federal, a CEDAE passa a
centralizar praticamente todos os investimentos na região metropolitana, mantendo o
monopólio sobre as operações de saneamento. A partir do governo Moreira Franco, a
política tarifária da empresa consolida-se de vez como importante vetor de
“alavancagem” de recursos. Há um protagonismo da companhia no âmbito da política
urbana estadual. Tal fato chama a atenção das agências internacionais, que atraídas pela
capitalização da empresa, passam a oferecer linhas de crédito para realização de grandes
obras.
80
Com o financiamento externo o governo do Estado poderia investir na periferia sem
impactar na qualidade do serviço e o atendimento priorirário das áreas ricas do Rio de
Janeiro e de Niterói, praticamente com 100% de cobetura de água e esgoto no final dos
anos 1980. Essa capitalização permitia à empresa manter sua política de arrecadação
com a “venda” de água para os bairros da zona sul do Rio e centro de Niterói e, ao
mesmo tempo, intensificar sua ação nos municípios metropolitanos.
De acordo com Abreu (1987) e Marques (1998; 1999; 2000), após a criação da CEDAE
a “periferia metropolitana”41 representou 45% do total de investimentos realizados em
infraestrutura de saneamento por parte da estatal, entre os anos 1975 a 1996. As áreas
centrais e de classe média e alta42, por sua vez, representaram 55% dos recursos
aplicados. As obras e intervenções em Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São Gonçalo,
só não superaram individualmente os valores destinados à construção da Barra da
Tijuca, no período mencionado.
41
Ambos os autores consideram, para efeito de agregação de dados estatísticos, a “periferia
metropolitana” sendo a soma dos municípios localizados no entorno da capital Rio de Janeiro (com
exceção de Niterói), mais a região da Zone Oeste Carioca;
42
Nesse caso, soma-se o centro e zona sul da cidade do Rio de Janeiro; Barra da Tijuca e Niterói.
81
Na verdade, a chegada em São Gonçalo de programas de saneamento seguiu em grande
medida a organização política já estabelecida no município, envolvendo agentes estatais
e grupos locais, moradores, departamentos regionais da CEDAE e o fracionado
atendimento de água no Jardim Catarina. Essa configuração levou à concentração de
serviços em localidades específicas dentro do próprio loteamento, priorizando quadras e
ruas com algum tipo de infraestrutura urbana já instalada e as áreas valorizadas em
termos de mercado imobiliário local (SANTOS, 1985; DOMINGUEZ, 2011).
Essas distinções internas tem um porquê histórico que precisa ser descrito. A
complexidade da RMRJ, que de certa forma tem uma de suas expressões na organização
da CEDAE e nas políticas de saneamento, será confrontada pelas práticas de regulação
do abastecimento de água no Jardim Catarina e pela própria formação espacial do
loteamento. Como consequência a estatal terá que reformular suas ações e o modelo se
serviço quando de fato entra com sua máquina estatal dentro do JC.
82
Capítulo 03 – Casa, Trabalho e Água: as histórias de ocupação do
Jardim Catarina
No caso da Baixada Fluminense, um dos fatores que facilitaria essa ocupação de zonas
marginais ao Rio de Janeiro seriam justamente as obras de drenagem de áreas alagáveis,
características do ambiente da região, que foram efetuadas inicialmente para atender os
interesses comerciais da cidade do Rio de Janeiro, já que a Baixada funcionava como
um entreposto de mercadorias e de distribuição de produtos para o Distrito Federal
(ABREU, 1987; MARQUES, 1998; ALVES, 2003). Posteriormente, a demanda por
abastecimento de água da capital e a necessidade em atender aos anseios da expansão de
83
sua área urbana, como também a instalação de distritos industriais, exigiu do Estado
intervir diversas vezes na tentativa de sanear os municípios do entorno do Rio que
historicamente sofriam com a presença de pântanos, epidemias e área sob o efeito de
marés.
Talvez, por isso, algumas ações de infraestrutura tenham chegado décadas antes na
Baixada Fluminense em comparação à região do distrito de Monjolos, em São Gonçalo.
Tal fato, contudo, não evitou que o Jardim Catarina, antes mesmo da chegada dos
programas de saneamento realizados pela CEDAE, já se apresentasse como um lugar de
organização espacial interna heterogênea, inclusive com a presença de alguns serviços
urbanos que atendiam partes específicas do loteamento, tais como iluminação elétrica,
linhas de ônibus e equipamentos de educação. O próprio parcelamento de terra realizado
em diferentes etapas por parte das loteadoras promoveu uma dinâmica urbana interna
distinta e fracionada.
Na década de 1950, por exemplo, a loteadora Jardim Catarina S.A. previa criar um
mercado imobiliário voltado para uma classe média urbana emergente no Rio de
Janeiro. Posteriormente, já nos anos 1970, o segundo parcelamento de terras, executado
por outra empresa, se orientou para o atendimento da demanda por moradia popular que
se intensificava na RMRJ. Somente esses dois processos já seriam capazes de trazer
características de construção distintas ao JC, como de fato aconteceu: algumas ruas
contavam com pavimentação em detrimento de outras; as quadras e lotes passaram a
possuir dimensões desiguais; as casas bem elaboradas dos primeiros compradores
tiveram que conviver ao lado de moradias mais simples, ocupados por população de
perfil socioeconômico distinto.
84
loteamentos nas regiões metropolitanas do país por parte de prefeituras e governos
estaduais, prática iniciada ainda no governo Vargas e vista como necessária para
garantir uma rápida reestruturação fundiária nas grandes cidades. Além disso, era
preciso manter os baixos custos dessa urbanização e fazer da incorporação de terras um
meio gerador de capitais fundiários de forma a alimentar o sistema capitalista que
ansiava por processos de acumulação para a produção industrial-urbana (OLIVEIRA,
1998; 2003).
A renda da terra passava a ser extraída pela relação vantajosa entre os rasos custos de
produção geridos pelas loteadoras e o valor oriundo da comercialização de lotes em
larga escala. O processo de acumulação era acelerado. A intensificação dos fluxos
migratórios para os grandes centros e a formação de uma reserva de mão de obra nas
metrópoles fizeram com que os capitalistas - que até as primeiras décadas do século XX
arcavam por conta própria os gastos com moradia e outros serviços básicos ao
trabalhador fabril, a exemplo do que foram as vilas operárias na cidade do Rio de
Janeiro (BURGOS, 2006) – deixassem de bancar todos os custos de produção e
reprodução da força de trabalho.
Para testar o grau de fragilidade da regulação estatal sobre o uso do solo urbano, até os
anos 1930 a legislação que regia esse segmento provinha da Lei de Terras, promulgada
em de 1850. Durante as primeiras décadas do século XX, praticamente apenas as
cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro haviam criado regulamentação própria, porém
focada mais na urbanização das áreas centrais, tais como planos de arruamento, padrões
urbanísticos, procedimentos administrativos e como ofertar serviços de infraestrutura.
85
Em 1937, a publicação do Decreto Federal Nº 58/1937, que tratava mais dos aspectos
formais da planta dos loteamentos e de glebas, definia os ritos jurídicos do
empreendimento, a necessidade de reconhecimento em cartório e as garantias básicas
para o financiamento de lotes e glebas, deixando de lado as tratativas a respeito dos
controles e obrigações urbanísticas por parte das prefeituras ou das empresas loteadoras.
Dessa maneira, a inversão rural-urbano, entre 1930 a 1970, avançou a taxas elevadas
tanto em termos de número de lotes lançados como em relação ao crescimento
demográfico das áreas periféricas dos aglomerados urbano. No mesmo período, há um
boom nas taxas de natalidade, correndo em paralelo às quedas acentuadas das taxas de
mortalidade na área urbana. Nesse cenário, o percentual de urbanização na região
sudeste do país passou de 47,5%, entre 1940/50, para 60%, entre 1950/60 (LEONELLI,
2010), assumindo duas características na organização espacial das cidades:
86
complexo padrão de divisão territorial do trabalho social tanto entre
campo e a cidade como entre cidades (BONDUKI, 1994, p.213).
Somente em 1967, após uma nova mudança na legislação federal 43, que se estabelecem
alguns critérios basilares para desmembramento de terras, sendo repassado às
prefeituras algum poder sobre a autorização ou não de empreendimentos imobiliários,
especificamente na avaliação sobre localização do loteamento. Contudo, será somente
com a Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que de fato o Estado irá dispor de um
arcabouço legal para tratar do desmembramento e do parcelamento do solo urbano no
país.
De acordo com esta nova legislação os novos loteamentos deveriam respeitar tamanhos
pré-estabelecidos de glebas e lotes. As ruas teriam que conter dimensões padronizadas e
o acesso deveria ser interligado por vias públicas. Todo o procedimento de aprovação
deveria contar com o crivo municipal. A loteadora para ter a autorização de
comercialização de lotes precisava, além da apresentação de planta do loteamento, com
a previsão de áreas para instalação de equipamentos públicos, desenhar as previsões da
infraestrutura de saneamento (artigos 4º e 6º da lei).
Contudo, ao final dos anos 1970 já não havia muito que parcelar em termos de área
disponível na RMRJ. O número de loteamentos lançados já havia alcançado ao seu
ápice, entrando em movimento de queda. As décadas de maior dinamismo na repartição
de terras foram justamente os anos 1940, 1950 e 1960, período anterior à lei de uso do
solo 6.766/79. Isso significa que grande parte dos empreendimentos construídos não
precisou garantir nenhuma infraestrutura prévia de saneamento, de transporte e de
iluminação para aprovação e posterior comercialização.
43
Decreto-Lei 271/1967.
87
parcelamento de terras. Em 1944 o município revê sua divisão político-institucional e
cria o distrito de Monjolos a partir do desmembramento da antiga zona rural da cidade,
incorporando-a ao perímetro urbano, ofertando-a ao parcelamento e à comercialização
de lotes (BRAGA, 1998).
88
garantir esse processo destacavam-se44: o Estado (e suas instituições cujo poder tem
rebatimento territorial); o capital (representado por empresas grandes ou pequenas ou
mesmo por indivíduos); e o morador (indivíduo-usuário ou grupos representativos de
diversas ordens).
Os loteamentos urbanos, se por um lado não contaram com financiamento público para
a construção de moradia e urbanização de ruas e quadras, por outro, o comércio de lotes
não precisou lidar com uma máquina estatal impessoal e burocratizada, o que favoreceu
ainda mais sua ocupação e venda. Numa relação face a face ente vendedor e comprador
diversas soluções puderam ser acionadas, diferente das políticas urbanas,
principalmente a partir dos anos 1960, quando as linhas de crédito e programas
habitacionais eram centralizadas por agencias públicas e bancos. As ações e políticas do
BNH seriam um bom exemplo dessa feição estatal mais rígida:
44
Santos (1980), Bonduki e Rolnik (1982), Maricato (1982) e Bolaffi (1985) elaboraram diversos estudos
sobre a formação do capitalismo urbano industrial brasileiro e os impactos desse processo na cidade e na
organização espacial de mercados e políticas urbanas.
45
Ibid., p. 29.
46
Ibid.
89
A solução do loteamento necessariamente passava por negociações diárias envolvendo o
Estado, agentes econômicos (de mercado) e os moradores. Os territórios seriam assim o
ambiente de mediação entre a política urbana e os acontecimentos do cotidiano. O
caráter “livre” do loteamento permitiria uma maior capacidade desses espaços em se
reproduzir no contexto geral da cidade. A sensação que passa é que a urbanização de
São Gonçalo, devido à sua posição marginal no conjunto da RMRJ, só pode ser
concretizada graças à organização do espaço urbano do município por meio das práticas
de loteamento. O contexto das disputas políticas na região metropolitana, capitaneadas
por Niterói e Rio de Janeiro, não permitiria outra forma de ocupação diante de
concentração de capitais urbanos nesses municípios.
90
nessa direção, onde muitos lotes passaram a ser vendidos antes de serem ao menos
aterrados, aplanados ou acessíveis por vias abertas.
Contudo, essa invisibilidade apontada por Santos não era sinônimo de segregação ou
exclusão de sua população, necessariamente. As mudanças na lei federal durante as
primeiras décadas do século XX foram amplas e genéricas e o direcionamento do
capital fundiário para as margens da cidade do Rio de Janeiro são indicadores de um
movimento que demonstra que o processo de urbanização da região metropolitana não
foi algo simplesmente espontâneo. O que ocorria era que as prefeituras, incapazes (ou
sem o interesse) de lidar e gerir (legalmente e tecnicamente) a expansão urbana
acelerada atuavam de forma a mais restrita possível. Em geral, restando facilitar a
inversão de áreas rurais, garantindo a oferta e o alto volume de terras para o capital
incorporador.
Após a legislação de 1944, São Gonçalo tornou-se uma cidade totalmente urbana, sem
nenhum distrito ou zona destinado ao meio rural (BRAGA, 1998). Os três distritos
anteriores (dois urbanos e um rural) deram lugar a cinco novas unidades territoriais:
47
Ibid. p. 26.
91
Distrito Centro (São Gonçalo), Sete Pontes, Neves, Ipiíba e Monjolos. De acordo com
Maurício de Abreu, o número de loteamentos aprovados em São Gonçalo na década de
1930 contabilizou apenas três empreendimentos, com um total de 933 lotes demarcados.
Dez anos depois essa conta chegou a 140 loteamentos, totalizando mais 38.617 lotes.
O distrito de Monjolos, por ter uma topografia plana, com quadras em formatos
retangulares, de boa dimensão e padronizados, garantiu durante quase quarenta anos a
92
oferta de lotes, até mesmo nos momentos de retração econômica do mercado imobiliário
na RMRJ. Essa configuração espacial permitiu ao Jardim Catarina assumir rapidamente
dimensões amplas, acima dos limites impostas pela legislação que seria criada apenas
nos anos 1970.
48
Centro Estadual de Pesquisas, Estatísticas e Formação de Servidores Públicos do Estado do Rio de
Janeiro;
93
Imagem 5: comércio de Alcântara (1948), cinco anos antes do lançamento do Jardim Catarina
Os primeiros lotes eram vendidos por Cr$15.000 (quinze mil cruzeiros) da época, ou
R$2.200 (dois mil e duzentos reais) em valores atualizados 50. O financiamento era feito
diretamente com a loteadora, com pagamentos mensais em torno de Cr$250 (duzentos e
cinquenta cruzeiros, ou R$37,5). Para atrair um número maior de compradores, a
empresa costumava fretar ônibus com saídas programadas do centro do Rio de Janeiro e
de Niterói. A chamada no jornal tentava demonstrar o quão fácil era adquirir uma
propriedade no Jardim Catarina. Venha marcar seu lote, dizia a o anúncio.
49
Fundado em 1878, em Niterói, O Fluminense é o terceiro periódico mais antigo do país.
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/.
50
Conversão aproximada. Disponível em: https://www.fee.rs.gov.br/servicos/atualizacao-valores/.
94
O Jardim Catarina era representado como um futuro bairro urbano, localizado dentro do
conjunto da metrópole fluminense. Ao lado de Alcântara e na margem de uma rodovia
de integração regional, estava próximo à capital Niterói (do antigo estado), e a poucos
minutos das barcas que levavam à Praça XV, centro do Rio de Janeiro. Com menos de
Cr$9 cruzeiros por dia, torne-se proprietário. O investidor ou o futuro morador parecia
ter a sua frente uma oportunidade para aplicar seus recursos e poupança.
Fonte: O Fluminense
Na lógica dos loteamentos, parte das terras adquiridas por investidores fundiários
muitas vezes aguardavam o momento certo para pôr em prática a comercialização dos
95
lotes. Se há possibilidade para criar um espaço residencial destinado à classe média, por
exemplo, tentava-se buscar a valorização prévia do entorno, de forma a atrair um
mercado consumidor com um maior poder de compra. Nesse caso, há um lobby e
pressão política para a aplicação de investimentos públicos no empreendimento,
buscando com isso promover sua valorização no mercado imobiliário e um retorno de
lucro maior por cada unidade comercializada.
96
Sul) ou nos municípios do entorno, como no ABC paulista, Diadema, Guarulhos entre
outros.
A loteadora Jardim Catarina S.A. foi criada também por investidores imobiliários da
cidade do Rio de Janeiro que costumavam investir no mercado de construção e de
incorporação também destinado à classe média da cidade carioca52. O projeto visava
criar uma área residencial voltada às famílias que desejavam viver num ambiente
próximo aos subúrbios americanos, com áreas verdes, casas com jardins e de certa
forma isolado da confusão e do ritmo mais acelerado da capital carioca.
51
As Construtoras Albuquerque e Takaoka Ltda. criaram uma sociedade em 1951, adquirindo as terras da
Fazenda Tamboré, em Barueri (RMSP). Com o auxílio e capitalização pelo BNH, a empresa teve fôlego
financeiro para não apenas compras terras, como executar a construção das obras.
52
Um dos sócios da Jardim Catarina S.A. foi proprietário da Servenco, empresa do ramo imobiliário que
em 1983 se especializou na construção de shoppings, entre eles o Rio Designer Center, no Leblon.
97
As propagandas da época destacavam as grandes obras viárias e de conexão urbana.
Afirmavam, inclusive, a existência de um espetacular projeto do túnel submerso na Baía
de Guanabara, interligando Niterói e Rio de Janeiro, que além de ser considerado viável,
estaria previsto no planejamento governamental. Por estar localizada numa antiga zona
rural, a loteadora apresentava uma oportunidade de integrar o modo de vida urbano, em
construção, ao ambiente calmo e aprazível do campo.
Além de já contar com uma boa oferta de serviços urbanos, hospitais e universidades,
havia o desejo explícito do então governador (interventor federal) Amaral Peixoto de
transformar o município numa capital, com a presença de uma máquina estatal
estruturada e centralizada. Tanto que em 1940, via decreto federal53, o plano de
urbanização e modernização de Niterói foi apresentado pelo governo tendo como base
importantes obras e intervenções urbanas.
53
Decreto-lei federal nº2441 de 23 de julho de 1940.
98
Cidade Balneária de Itaipu que abarcava justamente o entorno da lagoa de Piratininga e
a praia de Itaipu.
Esse caso é importante para a argumentação, pois, retrata diferenças entre os interesses
dos agentes envolvidos na execução dos empreendimentos imobiliários e urbanos na
região metropolitana do Rio de Janeiro. Como consequência Itaipu recebeu inúmeras
obras de urbanização antes mesmo da década de 1950. O Departamento Nacional de
Obras e Saneamento (DNOS), ainda durante o governo de Amaral Peixoto, iniciou a
construção do sistema de saneamento da região oceânica, incluindo um canal amplo,
como mecanismo para evitar inundações e os efeitos de marés, fenômenos
característicos de localidades baixas, planas e alagáveis da região.
Além disso, importantes rodovias de integração foram construídas. Por ser uma região
litorânea e com a presença de lagoas, praias e áreas verdes, logo despertou o interesse
do mercado imobiliário de classe média (LEME, 1999). Itaipu não se transformou numa
Alphaville, mas sua construção contava com apoio estatal e o desejo de expandir a área
urbana de Niterói, porém, por meio de uma ocupação destinada à classe média. As obras
públicas permitiram uma rápida valorização o que levou à atração de novos
investimentos imobiliários. Os atributos de Niterói, conectado ao Rio de Janeiro pelas
barcas e com a presença de máquina administrativa, também favoreceu a chegada de
empresas e novos capitais interessados em investir na cidade.
Não contando com os mesmos investimentos no entorno, o Jardim Catarina, nos seus
primeiros anos de lançamento, teve uma baixa procura. A diferença em termos de
valorização entre Jardim Catarina e a Cidade Balneário de Itaipu passou a ser cada vez
mais distante. O valor de um lote ou de uma casa tende a incorporar os atributos e
potenciais do seu entorno (serviços, comércio e infraestrutura). Até hoje, por exemplo, o
Jardim Catarina sofre com enchentes e inundações e déficit na cobertura de saneamento,
problemas estes que ao menos começaram a ser enfrentados na região de
Itaipu/Piratininga há décadas.
99
por conversão, R$70 mil reais54. Consequentemente, os lugares foram sendo ocupados
por classes sociais distintas e passaram a formar uma estrutura desigual na hierarquia
urbana da RMRJ.
Sem a inserção do loteamento num projeto mais amplo, como foi o caso de Itaipu em
Niterói, dificilmente as loteadoras ou outros agentes assumiriam os custos com a
urbanização e oferta de infraestrutura capaz de elevar, por exemplo, o Jardim Catarina a
níveis mais elevados no quadro geral do mercado imobiliário metropolitano. No caso da
prefeitura de São Gonçalo, como a mesma não participava de quase nenhuma decisão
sobre os rumos e a aprovação do loteamento (pelo menos antes da década de 1970), nem
mesmo o registro de propriedade do morador era garantido. A documentação cartorial
geralmente fazia referência às fazendas e às glebas originais, pois nem a prefeitura, nem
a loteadora haviam iniciado o processo de regularização fundiário do JC.
Esse passivo “fundiário” indica que em algum momento a loteadora sai de cena mesmo
antes da regularização dos lotes. Da mesma forma, esse quadro traz evidências de que o
interesse por parte dos agentes na época em relação ao JC foi de fato sua capacidade de
gerar capital fundiário por meio da incorporação de terras a baixo custo via solução
loteamento. A partir desse ponto de vista, assim como Itaipu, o loteamento do Jardim
Catarina parece ter cumprido o seu papel no contexto urbano da metrópole fluminense.
54
O Fluminense;
55
http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoNome/ConsultaNome.do. Foram identificados 220 processos
de usucapião abertos contra a Jardim Catarina S.A somente na Comarca de Alcântara.
100
da participação da Jardim Catarina S.A. na negociação dos lotes. Novamente, ao
consultar a seção de classificados do O Fluminense, é possível notar ao longo das
últimas décadas, o aumento do número de ofertas no jornal de pequenos anunciantes,
rapidamente superando os anúncios disponibilizados pela loteadora e corretores
representantes.
O mercado local parecia ter se tornado uma boa oportunidade de negócios também para
as pequenas imobiliárias e para aqueles que desejam adquirir alguma parcela de terra no
loteamento. Com a venda dos primeiros lotes na proximidade com Alcântara, nas
margens da RJ-104, inicia-se uma valorização e um reajuste dos preços daqueles lotes
melhor posicionados. Já era possível, no final dos anos 1960, encontrar terrenos
servidos com oferta de energia elétrica e atendidos por linhas de ônibus. Alguns lotes
eram declarados como pertencentes a Alcântara56 por parte dos corretores, neste caso
sendo vendidos a valores bem acima da média dos demais.
56
Mesmo sendo um bairro vizinho, Alcântara pertencia ao distrito centro, nos limites com a área rural de
São Gonçalo, antes da revisão da divisão político-institucional promovida em 1944.
101
Imagem 7: variedade de anúncios de venda lotes e casas - anos 1960
Fonte: O Fluminense
Após uma primeira etapa de comercialização de lotes, a Jardim Catarina S.A decide
repassar uma parte da sua propriedade a outra empresa do ramo, a Solar Organização
Loteamento e Administração LTDA57. Esta loteadora realiza um novo parcelamento,
promovendo algumas mudanças no formato de lotes e quadras e divisões territoriais. Na
entrada dos anos 1970, inicia-se a venda de nova remessa de lotes, fazendo com que o
município de São Gonçalo assuma de vez a liderança na RMRJ em número de lotes
postos à venda RMRJ.
57
Não foi possível identificar tanto por entrevistas como por dados secundários disponíveis nos bancos de
dados do Poder Judiciário ou da Junta Comercial do Estado, se a Solar guardava alguma relação de
sociedade ou de transferência de capital com a Jardim Catarina S.A.
102
em que o autor descreve a existência de dois “sub-mercados” populares distintos: o
primeiro seria o mercado de loteamentos, este organizado por meio de uma estrutura de
oligopólio na afirmação dos preços, no caso gerido por imobiliárias e incorporadoras.
A disponibilização de uma quantidade excessiva de terras por parte das loteadoras era o
fator determinante da oferta e do ajuste de preços e valores, geralmente empurrando-os
para baixo; no caso das áreas com favelas consolidadas, o volume limitado e restrito em
termos territoriais, a localização central e o patamar de preços escalonados das
transações imobiliárias confirmariam a presença de mercado regulador de acesso à área
urbana, com tendência à elevação dos custos, ao menos nas favelas em áreas centrais.
No entanto, no caso dos loteamentos, o proprietário de terra, muitas vezes sem recursos
financeiros suficientes para investir, entrava no negócio apenas com a gleba, vendendo-
as às loteadoras que passavam a assumir os custos de parcelamento e de regularização.
A empresa Jardim Catarina S.A. comprou as terras que pertenciam aos herdeiros da
Fazenda Laranja e tendo que arcar também com os gastos de projeto, escrituras em
cartório e inscrição do empreendimento na prefeitura.
É verdade que nos primeiros anos após o lançamento a empresa conseguiu manter certo
controle sobre a definição dos preços (Cr$ 15mil) e o padrão dimensional dos lotes. No
entanto, como se viu anteriormente, em pouco tempo surgem novos negócios, alterando
preços, dimensões espaciais e iniciando uma nova regulação de mercado, mais flexível e
fora do controle oligopolizado da loteadora.
103
lotes e casas estavam sob uma negociação minimamente formalizada por meio de
registros e documentos de compra e de venda entre loteadora e compradores, ainda nos
anos 1970 esse quadro começava a mudar. Muitos dos primeiros proprietários passaram
a diante seu lote ou parte dele. O morador repartia a área em porções menores,
construindo casas de um cômodo em cada um deles para vender ou alugar. Nesse caso,
já não havia qualquer tipo de documentação, nem de compra e venda ou registro
cartorial.
Marcos Alvito (2001), ao estudar as favelas que constituíram o que ficou conhecido
como “Complexo do Acari”, no Rio de Janeiro, descreveu em detalhes o processo de
diferenciação territorial e cultural entre suas localidades. Esses microcosmos foram
sendo formados por meios de relacionamentos constituídos ou por laços de parentesco e
vizinhança ou por relações de conflitos que envolviam interesses ou grupos divergentes:
migrantes oriundos de uma região específica do país; áreas com presença de grupos
ligados ao tráfico de drogas; a presença de religiões de diferentes credos; a própria luta
por moradia nos centros urbanos, entre outras.
A complexidade da vida no meio urbano não permitiria que apenas uma definição ou
classificação fosse suficiente para traçar todas as relações e códigos reconhecidos entre
grupos e territorialidades em Acari. Numa tentativa de superar esses desafios, Alvito se
apoia na categoria “localidade” trabalhada por Anthony Leeds como estratégia para
mapear a organização política e espacial da favela carioca:
104
O fato de se constituir em “pontos nodais de interação, onde há uma
rede altamente complexa de diversos tipos de relações”. Estas seriam,
sobretudo, laços de parentesco bastante próximo, amizades mais
significativas, parentela e vizinhança. Em suma, como resume Leeds,
as localidades ‘são, na verdade, segmentos altamente organizados da
população total’ (ALVITO, 2001, p.53).
O que Marcos Alvito percebeu é que o “lugar” resultaria de inúmeros processos que se
constituíram como dialética entre as diferentes forças sociais locais e as práticas
institucionais das estruturas supralocais. Neste caso, seria praticamente impossível
chegar a uma classificação final, com uma listagem de todas essas territorialidades,
grupos e relações que formavam o conjunto da sociedade particular de Acari.
105
Seriam estruturas supralocais os partidos políticos, o sistema bancário,
o mercado de preços, os sindicatos, as associações profissionais e,
sobretudo, a mais antiga e importante delas, o Estado, operando
através de uma série de instituições supralocais, como o judiciário,
burocracias administrativas, organismos monetários, partes do sistema
eleitoral etc. Deve-se então buscar compreender as localidades a partir
das suas relações mantidas com esta “ordem mais abrangente”.
(ALVITO, 2006, p. 184)
A própria comercialização de lotes por parte da loteadora Jardim Catarina S.A. originou
essas distinções entre localidades. Nas proximidades do centro comercial de Alcântara,
uma via principal foi aberta dividindo a área loteada em duas grandes porções de terra,
58
Todos os moradores entrevistados na pesquisa utilizaram na maioria das situações e dos diálogos o
termo “Catarina”, ao invés do nome composto “Jardim Catarina”, para se referir ao bairro ou a partes do
loteamento.
59
A definição oficial de Jardim Catariana como bairro do município de São Gonçalo somente irá aparecer
na publicação e aprovação do Plano Diretor Municipal de 1996.
106
gerando um eixo central que se estendeu até a antiga rua 35 (atualmente, Rua Ouro
Fino). As quadras foram sendo desenhadas e repartidas tendo como referência a
margem da rodovia RJ-104, seguindo em direção ao interior do loteamento.
Partindo desse eixo central, atual Av. Dr. Albino Imparato, novas avenidas paralelas
foram sendo abertas e mais quadras surgiram. A segunda grande avenida, Av. Padre
Viera, tornou-se o limitador físico dos lotes que foram vendidos na fase iniciada pela
empresa Jardim Catarina S.A. Como no começo a procura ainda era baixa e dispersa, a
outra porção de terra que pertencia à empresa aguardava a hora certa para ser lançada. A
localidade que se formou nesse primeiro momento de ocupação é reconhecida pelos
moradores como “Catarina Velho”.
No final dos anos 1960, então, a Jardim Catarina S.A. vende a área que ainda não havia
sido posta no mercado à loteadora e imobiliária Solar. Visando ampliar seus lucros e
aproveitando-se do aumento de procura pelo loteamento no começo dos 1970, a
empresa, ao abrir novas quadras, diminuiu as dimensões dos lotes, racionalizando o
espaço e elevando o número de unidades disponíveis para comercialização. O impacto
direto é uma mudança de traçado entre as ruas, que deixaram de seguir o mesmo
alinhamento do loteamento anterior.
107
Esse novo período de parcelamento ficou conhecido como localidade do “Catarina
Novo” pelos moradores. Contando com uma organização espacial diferente e tamanho
de lotes menores, não demorou muito para o Catarina Velho, de melhor localização e
com a presença de alguns serviços, se transformasse na parte mais valorizada do Jardim
Catarina. Quando é perguntado sobre a existência de divisões internas a um morador, a
separação entre Catarina Velho e o Novo é facilmente reconhecida e possível de ser
delimitada territorialmente.
Eu moro aqui desde os oito anos. Sou do Ceará e fui direto pra
Rocinha, morei dois meses lá e vim pra cá. Primeiro é assim, vem pra
Rocinha e depois para o Jardim Catarina. Quando cheguei aqui, fui
morar na Rua 35 do Novo. Passou pro lado de cá é o Catarina Velho,
passou pro lado de lá, é o Novo (...). Minha casa era um barraco de
madeira. Quando chovia o teto caía (...). Só depois de muito trabalhar
eu consegui vir pra cá (Morador Carlos Eugênio, 48 anos).
108
pedir as coisas... Uma vez veio o Lavoura e o Roberto da Silveira 60
(em 1962)... Eu pedi pra ele trazer uma escola. Teve gente que pediu
água, emprego... (Moradora Ana Clara, 62 anos. Destaque do autor)
Na transcrição acima estão presentes uma liderança comunitária (Seu Moraes), políticos
(Joaquim Lavoura e Roberto da Silveira) e os moradores, que recém-chegados,
buscavam por meio de reivindicações atraírem serviços públicos básicos (escola, água e
emprego). Além disso, a fala de Ana Clara resgata parte das condições materiais do
local no seu início. A professora lembra que nos primeiros anos, o Jardim Catarina era
um lugar com poucos moradores:
Aqui não morava muita gente não. Mas eu lembro de alguns. Adélia
foi professora e me alfabetizou. Tinha o seu Geraldo, que era dono de
um armazém, e o marido da dona Rosa, que não lembro o nome, mas
era o corretor.
60
Joaquim Lavoura foi eleito três vezes prefeito de São Gonçalo. O primeiro mandato ocorreu em 1954;
Roberto da Silveira, após ser deputado, chegou ao cargo de Governador do antigo Estado do Rio de
Janeiro em 1959. Até a fusão de 1975, o Estado do Rio de Janeiro não contava com a cidade do Rio de
Janeiro, no caso, antigo Estado da Guanabara.
109
O Catarina era mato, mangue. Não existia ruas e nem ônibus. Aqui
não tinha luz elétrica e nem água. A gente vivia de bico e de plantação
mesmo. Eu pescava nesses rios aí e colhia fruta direto das árvores (...).
De noite você não via nada, era uma casa aqui e outra lá embaixo
(Morador Zezé Castilho, 76 anos).
O morador Zezé Castilho desenha uma paisagem “rural” que ele diz ter encontrado há
50 anos. Antes de ir morar no Jardim Catarina, Zezé vivia em Niterói e trabalhava na
antiga Estrada de Ferro Leopoldina, especificamente no ramal que interligava Niterói ao
Município de Itaboraí. Ele era funcionário da Companhia Brasileira de Trens Urbanos –
CBTU, responsável pela manutenção do trecho que partia da região das Barcas até a
estação de Guaxindiba, bairro vizinho ao Jardim Catarina.
Os próprios moradores relataram que muitos lotes que já possuíam donos demoraram
até serem de fato ocupados ou revendidos. O morador Juca Basílio, militar da reserva,
que até os anos 1960 viveu na cidade do Rio de Janeiro, disse ter adquirido um terreno
61
Censo demográfico do IBGE, 1980.
110
no Jardim Catarina, mas não pretendia viver em São Gonçalo. O fez por conta de uma
carta de crédito que a marinha disponibilizava aos seus membros e financiada por
bancos privados.
A ida para o Jardim Catarina ocorreu anos depois e somente após o morador ter sido
desligado das forças armadas durante o regime militar, por conta do seu histórico de
envolvimento com o movimento sindical dos sargentos da marinha. Após passar um
tempo sem rendimentos regulares, teve que sair do Rio de Janeiro, onde vivia de
aluguel. “Depois que comprei o lote, eu nunca tinha ido conferir... Depois que me
mudei, vi que a terra era toda alagada... Acabei trocando por outro em pior localização,
mas a grana que sobrou serviu para dar entrada na minha casa”.
O Jardim Catarina passou a ser seu novo endereço. Ao ser reincorporado à Marinha, por
meio de uma ação judicial coletiva do sindicato, no final dos anos 1970, e retomar seu
salário regular, seguiu morando em São Gonçalo, adquirindo, inclusive, novos terrenos.
Acabou mudando de casa algumas vezes, comprou lotes conjugados, construiu outras
casas e um galpão na quadra ao lado.
Começa a ficar claro também que no seu início o Jardim Catarina foi sendo ocupado por
trabalhadores de perfis variados, cuja única característica comum foi passar a viver no
mesmo lugar. O nascimento do filho, a perda do emprego, a possibilidade de estender a
jornada de trabalho com bicos e biscates e a abertura de pequenos negócios foram
algumas das histórias que se encontraram. Após a aquisição e demarcação do lote e com
as primeiras melhorias realizadas no entorno, o morador vê possibilidades de ganhos
surgirem. Estando em dia com as parcelas do financiamento, o indivíduo tem a chance
de se capitalizar e a agir no mercado, adquirindo novos lotes, alugando ou revendendo
pequenas frações de terras ou cômodos conjugados.
111
Essa casa aqui era do meu pai. Quando ele morreu eu dividi o lote em
duas partes (...). Nessa parte aqui, moro eu. No fundo mora meu filho
e meu neto (...). Com o tempo passei a lugar a casa do lado, mas o
moço que ficou lá foi embora (...). Aproveitei e transformei em dois
quitinetes. Os dois estão alugados (Moradora Rosiane Moreira, 50
anos).
Há ainda aqueles que afirmaram ter saído do Rio de Janeiro após o processo de remoção
das favelas da capital a partir dos anos 1960. De acordo com os relatos, algumas dessas
pessoas já possuíam lote no Jardim Catarina, mas viviam de aluguel nas favelas e
subúrbios cariocas. Como o surgimento de programas estatais de realocação e expulsão
de favelados, iniciado no governo Carlos Lacerda, ainda na antiga Guanabara, alguns
deles tiveram que abandonar suas casas, seguindo em direção ao Jardim Catarina:
112
A moradora e sua família viviam numa favela da Zona Sul do Rio de Janeiro, onde a
princípio a ocupação teria sido “permitida” pelo Estado como solução alternativa à
ineficácia das políticas públicas habitacionais para as camadas populares. Com o apoio
da associação de moradores local, a família de Roberta teria conseguido resolver
parcialmente o problema da moradia. Ao final dos anos 1960, sem saber determinar a
data com exatidão, Roberta teve que deixar a casa, pois parte da favela onde morava
seria removida. Por sorte, a família já contava com um lote no Jardim Catarina.
Essa ideia de que o Estado permitiria a ocupação de algumas áreas da cidade por
favelas, citada pela moradora, pode estar ligada aos apontamentos de Silva (2005), que
demostrou em seus estudos que os próprios governos costumavam destinar
investimentos imobiliários abandonados por gestões anteriores para a moradia popular;
ou ainda, como resultado de artimanhas de proprietários de fazendas e de fábricas, que
em litígio com a justiça, favoreciam a ocupação de suas terras por classes trabalhadoras
urbanas, pretendendo obter algum tipo lucro ou indenizações.
A história se repete. Muitos moradores compraram lotes sem saber o que encontrariam,
ou devido ao tempo de construção da casa os novos habitantes são obrigados a buscar
soluções imediatas, como ingressar via aluguel (BONDUKI, ROLNIK, 1982). Da
113
mesma forma, ressalta-se a prática da compra de um lote como uma forma de
investimento familiar. A casa construída em lote menos valorizado serviu para dar
entrada em outro, porém melhor posicionado, o que exigia uma renegociação do
financiamento junto à loteadora. Como já contava com alguns atributos (proximidade
com a rodovia e presença de luz), seu custo era mais elevado do que a primeira
propriedade da família de Roberta.
A verdade é que dez anos após o lançamento em 1953, o Jardim Catarina contava com
um mercado imobiliário dinâmico e cuja atuação de diferentes atores já se fazia
presente. Com o aumento da demanda por habitação popular na década de 1970, aqueles
moradores e comerciantes locais que possuíam mais de um imóvel ou lote passaram a
gerar receita complementar por meio da revenda ou do aluguel, a exemplo do militar da
marinha, Juca Basílio. Para aqueles que ainda enfrentavam o financiamento da casa ou
do lote, a maior preocupação era aliar o pagamento das parcelas com os gastos relativos
à construção da casa.
A chegada via aluguel acontecia tanto por conta da necessidade de economizar para a
obra da casa, como para servir de porta de entrada no loteamento, aguardando
oportunidade para nova mudança em uma localidade de melhor localização. O trecho
114
acima oferece indícios de que a chegada pode ocorrer, tanto pelas áreas menos
valorizadas do loteamento (de baixo custo) ou de favor na casa de parentes e vizinhos
(sem custo). A moradora Laura percorreu vários desses caminhos até herdar do padrasto
um lote onde construiu sua casa. Ao ganhar um novo lote, porém pior localizado,
ofereceu ao filho que já se encontrava em idade adulta. O processo de fixação não era
um movimento simples. Pela fala de Laura, trata-se de um ato contínuo no tempo e
geracional.
115
Espaço e tempo estão imbricados em cada evento de mobilidade, de
tal modo que, mais importante do que identificar os pontos de partida
e os pontos de chegada, são esses eventos que precisam ser
interrogados: pontos críticos, pontos de inflexão, de mudança e
também de entrecruzamento com outras histórias – “zonas de
turbulência” em torno das quais ou pelas quais são redefinidas
(deslocamentos, bifurcações) práticas sociais, agenciamentos
cotidianos, destinações coletivas (p.70).
Fazendo uma mediação entre escalas, a autora trata essas trajetórias como elementos
centrais para apreender os campos de força operantes no meio urbano. Elas resultam de
encontros entre as diferentes condicionantes históricas que se materializam no espaço
por meio das práticas dos atores sociais. No tempo e no espaço, os campos se
reorganizam periodicamente de forma a permitir ao ator que nele interfere uma garantia
de permanência na cidade. “Aberturas” para atuação política são encontradas mesmo
numa lógica de produção que tem no modelo concentrador de bens urbanos sua
característica principal62.
A loteadora não era o único agente atuante no mercado imobiliário local. Logo nos
primeiros anos do Jardim Catarina, moradores, comerciantes locais e corretores
perceberem que o mercado de terras, de alta flexibilidade, era uma oportunidade para
negócios. Como continuidade, até os anos 1970, a relação entre moradores antigos e
outros agentes encontravam meios práticos e cotidianos para solucionar problemas
ligados à moradia e ao trabalho.
62
Ibid., p.71
116
trabalho e a capacidade ou não do morador em arcar com os novos custos de
localização.
Nas ruas do loteamento há uma percepção de que os lotes possuem dimensões amplas,
capazes de oferecer ao seu proprietário o conforto. No entanto, ao adentrar pelos muros,
é possível verificar a quantidade e variedade de construções e divisões domiciliares.
Dos lotes que foram visitados durante a pesquisa, todos possuíam mais de uma casa no
seu interior. Uma, duas, três ou até quatro famílias residindo no mesmo lugar.
A construção de novas casas ou sua expansão através de novos cômodos atendem a dois
objetivos centrais: o primeiro garante ao membro da família a possibilidade de residir
num ambiente seguro, amparado pelas relações de parentesco e vizinhança, e contando
com o suporte financeiro e de apoio à construção da casa e cuidado com os filhos
durante os dias e jornadas de trabalho. O segundo objetivo refere-se à inserção da
família no mercado imobiliário local, que tem nas construções e nas subdivisões dos
lotes uma possibilidade de retorno financeiro por meio da venda ou aluguel de casas e
cômodos:
Eu sempre morei com meus pais na Rua 20, no mesmo lote. Depois
que eles morreram a nossa casa ficou para meu irmão mais velho, a
minha irmã construiu a sua do lado dele e eu fui levantar a minha nos
fundos do terreno. Ela é simples, ainda não está pronta. Mas serve pra
mim e meu filho, que moramos sozinhos lá (Moradora Rosimere
Alves, 52 anos).
Com a morte dos pais e o com crescimento dos filhos, o formato original da moradia
perde sentido, fazendo com que uma nova configuração floresça garantindo a segurança
familiar e a integração entre seus parentes. A privacidade e o sentido de propriedade,
mesmo que em parte, é mantido, porém, ganhando contornos coletivos, ligados pelos
laços de parentesco. A escassez de recursos e de espaço muitas vezes gerou moradias
pequenas, sem sala de estar ou banheiro particular, fazendo do quintal (ou que sobrou
117
dele) uma área comum entre habitações, onde os diferentes núcleos familiares passam a
compartilhar espaço e recursos, como bica d’águas, poços artesianos e área de serviços.
Eu sei que é errado, mas não posso deixar o esgoto no meu quintal.
Aqui mora criança, idoso. O jeito é levar pra longe o esgoto (....). Nós
aqui nos unimos e fizemos a instalação das tubulações. As vezes tem
algum vazamento, mas pelo menos o esgoto não fica dentro da nossa
casa (Moradora Rosimere Alves, 52 anos.)
A desigualdade social que tanto marca a produção do espaço das cidades também se fez
presente no Jardim Catarina. Não demorou para que localidades menores, com padrões
de construção de baixa qualidade, começassem a surgir em áreas até então não ocupadas
e que não faziam parte das plantas originais dos empreendimentos aprovados na
prefeitura. Muitos desses lugares eram tidos como incompatível para morar. Margens de
rios e a faixa marginal da linha de trem e da rodovia RJ-104 tornaram-se possibilidades
ainda mais baratas, e totalmente fora da regulação do mercado imobiliário local até
então estabelecido.
118
das parcelas, a imobiliária ou loteadora poderia exigir a quebra de contrato e retomar a
propriedade. Contudo, esse extremo quase nunca ocorria. O fim da relação contratual
não era interessante para nenhuma das partes, pois o processo poderia se tornar algo
custoso e lento.
Uma possibilidade, em caso de atraso, era recorrer à atualização dos valores das
parcelas com uma extensão do prazo total de financiamento; o morador poderia ainda
realizar uma revenda de sua propriedade de forma a adquirir um sobre valor, quitar a
dívida e ingressar num novo financiamento, como no caso de Ana Clara. No caso dos
alugueis, esses eram monopolizados em grande parte pelos próprios moradores que
evitavam se desfazer de suas propriedades justamente por estas estarem atreladas a
outros financiamentos ou por não conter documentação definitiva para transmissão de
posse.
119
A fala descreve o processo de demarcação e de aquisição do lote, e tudo que envolve
sua compra, entre problemas e soluções. Aparece a figura da loteadora, tendo como
mediação o corretor, que muitas vezes morava no próprio loteamento. Além da presença
de demais personagens na negociação, como parentes ou amigos. A sensação é de estar
diante de um processo interminável. Atualmente, Jorge Basto possui algumas
propriedades, entre casas, lotes e estabelecimentos comerciais. O morador ao narrar sua
trajetória indica uma série de relações de caráter face a face, que desburocratizadas,
eram resolvidas no cotidiano e de forma rápida. Até mesmo o problema do erro na
demarcação citado na passagem parece ter sido contornado sem demora, logicamente,
gerando um custo adicional, mas tratável na esfera local.
No caso das localidades marginais dentro do Jardim Catarina, como beira de rios e
ferrovias, a construção da casa, muitas vezes feita com material improvisado, era uma
forma de garantir a rápida fixação da família. O tempo, neste caso, era fator
fundamental. A casa e o lote se transformariam em economias para fazer avançar
projetos particulares e coletivos.
Aqui não tinha tijolo e nem material de construção, nada disso. Até
porque a gente não tinha dinheiro mesmo. Eu pegava na mata as
madeiras para construir nossa casa. Primeiro fui morar na Rua 34, no
Catarina Velho, junto com minhas irmãs. Nossa casa era de madeira e
barro batido. Depois, graças a Deus, consegui construir uma só de
madeira. Eu mesmo que fazia as minhas casas (Morador João Carlos,
68 anos).
Eu já rodei muito por aí. Minha primeira casa era toda de madeira e
barro das próprias terras do Catarina. Eu mesmo que fiz, não tinha
como esperar. Morava eu e meus dois irmãos menores. Não tenho
medo de trabalho não. A vida aqui era tranquila, nem porta a gente
tinha, não havia esta preocupação. Só fui ter uma casa de alvenaria
muitos anos depois, quando eu casei com um moço que era vizinho
meu. Eu pegava carona nos barcos dos pescadores e ia buscar madeira
lá pros lados do Rio Guaxindiba (Moradora Dona Maria, 78 anos).
120
Essas experiências evidenciam que era preciso certa velocidade ao se estabelecer no
Jardim Catarina como garantia para se fazer presente nas disputas pelo espaço e pelo
acesso a serviços urbanos. Sader afirmou que era no ambiente da casa que o trabalhador
se constituía como um ator político, “é o lugar onde o trabalhador realiza seu tempo de
vida” (1988, p.99) e elabora seus projetos. Mesmo este podendo perdurar por anos, até
por décadas. Contudo, a construção da casa na cidade não se resume à garantia de um
teto, simplesmente. Dentro da lógica política e da econômica local, a moradia se
converte em bem, proporcionando capacidade de atuação do morador perante o campo
de disputas políticas no loteamento.
O morador, ao definir seu gosto pelo local, enfatiza a proximidade entre o morar e as
oportunidades de trabalho. A característica da ocupação, que exige que a moradia seja
providenciada e financiada pelo próprio trabalhador, continuamente construída, abre um
mercado de trabalho onde proprietários e inquilinos podem firmar contratos de
prestação de serviços, formais ou não, com profissionais que residem no mesmo
loteamento. A parte elétrica da casa; as obras de acabamento (piso); a instauração de
alicerce dos cômodos; “bater a laje”, ações que geralmente necessitavam da contratação
de serviço pago.
Muitas casas permaneciam inacabadas não apenas porque a família não tinha dinheiro
para comprar material de construção ou tempo para empreitada. Às vezes, a falta de
recursos inviabilizava a contratação de tipos de serviços especializados. O caso da
moradora Maria, que vive no Catarina Novo, ilustra bem esta condição. Seu pai, durante
muitos anos foi o responsável pelas obras na casa. Aumentou o número de cômodos,
levantou os muros e melhorou o acabamento e a pintura. Com a idade e os problemas de
saúde do pai, os serviços mais pesados pararam de ser realizados. Maria recorda que o
quarto do seu filho, após o nascimento, demorou anos para ser ampliado e concluído.
121
Era preciso quebrar a parede para abrir um quarto pro meu filho. A
aterrar o chão do quintal... Eu mesmo ajudava meu pai, mas tinha
coisas que não dava mais pra fazer. Ele tava muito velhinho... Meu
primo me ajudava, mas ele cobrava (Moradora Maria, 45 anos).
Durante cinco anos o cômodo teve que ficar com uma parede improvisada de madeira,
pois a anterior havia sido derrubada para a ampliação. A família aguardava uma folga
no orçamento para que o primo pudesse dar continuidade ao trabalho. Nesse caso
particular o que poderia ser considerado subsistência (autoconstrução), por envolver
membros da família, sugerindo a agregação de mão de obra “não paga”, na verdade
demonstra a presença de atividades econômicas, em microescala, mas que acrescentam
novas relações ao processo de construção da casa e de ocupação do Jardim Catarina.
Além disso, como visto anteriormente, o perfil dos primeiros moradores era de
trabalhadores do mercado tido como formal, ou seja, que possuíam algum tipo de
benefícios e seguridade social. Desde militares a professores, passando por operários da
ferrovia a motorista de ônibus, comerciantes e corretores de imóveis, era em torno do
salário formal que o trabalhador organizava sua vida e as ações junto à família
(MACHADO DA SILVA; LOPES, 1979).
O emprego regular era fundamental para a adoção de estratégias, seja para ter segurança
no financiamento do lote, seja para ter condições de manter um investimento periódico
na construção e manutenção da moradia. No caso do morador que era ferroviário e do
63
Id., 2009.
122
outro que integrava as forças armadas, tal condição de formalidade ofereceu recursos
extras para colocar em prática atividades econômicas complementares, como a
realização de biscates nas horas vagas ou a compra de novos imóveis para alugar.
No caso de o morador não poder contar com essa regularidade e estabilidade, ele
dificilmente tinha como manter os gastos com a habitação que muitas vezes eram
duplicados, pois envolviam simultaneamente o pagamento do aluguel enquanto
aguardava-se a construção da casa ou o término das despesas com obras em paralelo ao
financiamento do lote. Para aqueles que não podiam contar com uma renda fixa, a opção
era morar de favor na casa de parentes enquanto se gerava uma poupança por meio de
biscates e empreitadas ou tentar ocupar áreas fora do loteamento original, que conforme
mencionado anteriormente, localizavam-se nas margens de valas, em pontos alagáveis
ou ao lado da linha do trem.
123
Desenvolveram um projeto que previa a realização de pequenas obras de benfeitorias
nas casas do Jardim Catarina. O critério de seleção para participar do trabalho
resumidamente previa: “família de baixa renda” (termo aplicado pela ONG), viabilidade
técnica da obra; respeito aos limites de valores disponíveis para as todas as intervenções
necessárias; e se a família escolhida tinha capacidade de organizar mutirões por conta
própria. O centro comunitário realizou um cadastramento das famílias interessadas em
participar, sendo selecionados 10 projetos. Os arquitetos contratados pela Ong do Rio
de Janeiro, após uma primeira vistoria para verificar se os critérios previstos para a
seleção estavam corretos, notaram que as demandas exigidas em cada obra não se
enquadravam nos valores disponíveis para cada projeto.
Uma das propostas selecionadas foi o caso do lote que no seu interior viviam pelo
menos quatro famílias. No terreno existia um pequeno sistema de coleta de esgoto
doméstico construído a partir de uma instalação improvisada pelos próprios habitantes.
Como não havia rede de esgoto na rua, o sistema destinava-se simplesmente em coletar
os dejetos e lançá-los para fora do lote. Neste caso específico, a Ong teve que enfrentar
dois problemas para a realização das obras: primeiro não se tratava de uma casa, mas
quatro dentro do mesmo lote. Com isso, a dimensão do serviço demandaria mais
material e revisões técnicos. Além disso, do que valia realizar a obra da ligação
doméstica se não teria como custear e conectá-la à rede geral. E mesmo que existisse tal
possibilidade, seria preciso uma formalização junto à concessionária prestadora de
serviços de saneamento, no caso a CEDAE.
124
pra que a gente faça o trabalho” (Entrevista de ex-membro de associação de moradores
local).
Os moradores entendiam que a ação promovida pela Ong e pelo centro comunitário,
diante das reformulações e limitações do projeto, não resolveria de fato o problema do
esgoto. Muito menos reverteria o quadro geral do problema do saneamento local. No
fim, parecia ser algo que apenas serviria para legitimar o papel dos atores e de suas
relações no jogo político dentro do cenário urbano de São Gonçalo e da RMRJ, sem que
se alcançassem resultados efetivos: a Ong estaria fazendo seu papel de ator externo que
chega para ajudar, trazendo recursos e conhecimento técnico-científico; o centro
comunitário local, por sua vez, realizaria o trabalho de mediação intra e supra local,
servindo de canal para a chegada de novos serviços no Jardim Catarina; e os moradores
disponibilizariam mais horas da sua força de trabalho para a concretização dos projetos,
que mais um vez, eram pensados e decididos numa instância fora do loteamento.
125
A infraestrutura urbana representa esse conjunto de bens coletivos que serão
apropriados pelos inúmeros lotes e quadras do Jardim Catarina (BONDUKI, ROLNIK,
1982). As loteadoras, cientes desse processo, aguardam as obras do Estado e de suas
agências simplesmente utilizando-se da estratégia de iniciar a venda parcial dos lotes e
ocupando-os pouco a pouco. Após essa ocupação parcial já se tem argumentos para
exigir do poder público ou de instituições privadas supralocais sistemas de transporte,
iluminação pública e abastecimento de água.
Da mesma forma, seja no Catarina Velho ou no Novo, o morador entendia que a casa e
o lote vão valer no mercado imobiliário aquilo que a cidade lhe oferece e que pode ser
incorporado ao bem (MARICATO, 2009; 2013). Além disso, ele sabe que a moradia é
cara, pois exige horas de trabalho e cujo custo de construção e manutenção supera o
valor da renda familiar ou do próprio salário mínimo. Nesse caso, as melhorias no
loteamento permitem agregar algum capital à propriedade, dando novo teor às lutas por
serviços urbanos, abastecimento de água, pavimentação de ruas, presença de linhas de
ônibus, entre outros.
126
enfrentamentos e das estratégias políticas dos agentes postas em movimento. Trata-se de
uma síntese das relações de poder que conduzem a atuação de cada ator social.
Espaços tidos como áreas de pobreza; violência; favelados removidos pela política
habitacional do Estado; a visão tecnocrata dos programas de saneamento e os arranjos
políticos locais são elementos que mediam os interesses de grupos políticos, projetos
particulares do indivíduo e as ações estatais na cidade.
64
Informações repassadas pela Associação de Moradores do Jardim Catarina a partir de um levantamento
próprio.
127
Capítulo 04 - Jardim Catarina, Catarinas: territorialidades e
representações
Em um contexto mais amplo, o JC passava a ter sua imagem deslocada das primeiras
propostas anunciadas por parte da empresa loteadora de transformá-lo num bairro
metropolitano. Diferente dessa mensagem, a opinião pública de São Gonçalo começava
a olhá-lo como uma área violenta, território de concentração bandidagem e de pobreza.
Descrevia-se um lugar sem a presença do Estado, deixado à própria sorte, como um
“outro, temido e desvalorizado”66 (ENNE, 2013).
65
Anexo I – Tabela 04;
66
“Tratava-se, de acordo com esse sistema representacional hegemônico, de uma periferia no sentido
territorial e cultural, tanto física quanto simbolicamente um “outro” a ser temido, evitado, desprezado,
ridicularizado, diminuído (ENNE, 2013, p.9).”
128
Um deslocamento na percepção acerca da região, que, de um lugar
ermo, até então agrário e que vinha sendo basicamente ocupado por
sistemas de loteamento para migrantes que trabalhariam na capital,
viria a ser representada na grande imprensa como um lugar marcado
por diversos problemas, destacando-se, principalmente, a questão da
violência e do abandono pelo poder público (p. 8).
Essas representações vão impactar a visão dos planejadores urbanos. Afinal, as obras de
saneamento que foram levadas pela CEDAE eram pensadas a partir de uma estrutura
tecnocrata ancorada por um urbanismo profundamente ideológico, que tendia a ignorar
as inúmeras contradições presentes na cidade (ARANTES et. al., 2000; MARICATO,
2009). Nesse sentido, as “favelas” do Jardim Catarina receberam tratamento
diferenciado por parte dos agentes públicos.
67
Após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, a COHAB foi incorporada à recém-criada
Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro-CEHAB.
129
Aqui no Catarina é tranquilo de se morar. Quem é de fora pensa que
aqui tem muita violência, mas não é bem assim. Ela existe, mas em
partes isoladas. Geralmente na favela do 40. Lá é complicado,
ninguém pode entrar, nem mesmo quem mora no bairro (Moradora
Maria Alice, 45 anos).
Falas como esta foram muito presentes nas entrevistas e atravessaram diversas vezes o
transcurso da pesquisa. Em qualquer menção ao conjunto da Rua 40, havia sempre um
esforço por parte dos interlocutores em criar uma separação entre o Jardim Catarina e o
conjunto habitacional. As estórias contadas sempre se remetiam a casos pouco
detalhados, mas que buscavam enfatizar o caráter violento dessa localidade que todos
pareciam evitar. Este fato alimentou a curiosidade, fazendo o pesquisador insistir nas
perguntas sobre a história do conjunto e sobre as pessoas que ali viviam. E sempre que
se escutava uma reposta, ela vinha acompanhada de uma classificação pejorativa, “lugar
perigoso, violento”, “sujo”, onde morava a bandidagem.
Após muita insistência, um dos entrevistados foi convencido a levar o pesquisador nas
mediações da Rua 40. Se nas caminhadas pelo Jardim Catarina nem sempre era possível
identificar as divisões territoriais entre elas, diante da Rua 40 a fronteira era notória.
“Não olha não, passa direto...Não olha não”. O aviso era claro. O morador que ajudava
como “guia” estava desconfortável, não queria estar ali. Pediu para que a passagem
fosse rápida. Deviam-se evitar confrontações de olhares e qualquer pergunta ou
intromissão. Logicamente, seu desejo foi respeitado.
Num rápido olhar, de relance, os limites eram evidentes. O sentimento presente naquela
experiência se distinguiu de todo as outras visitas durante o trabalho de campo.
Anteriormente, nada havia sido daquele jeito. A estranha sensação entrava em
contradição com um ambiente geral do loteamento. Afinal, mesmo que existissem
conflitos entre suas partes, no fim, essas disputas pareciam se assentar entre as
negociações e arranjos políticos do dia a dia. Na 40 era diferente, como um ponto fora
da curva de uma pesquisa que transcorria sem grandes percalços.
Para entender o que estava à frente, era importante recuperar alguns acontecimentos
históricos. Como se sabe, as décadas de 1960/70 ficaram conhecidas como a “Era das
130
Remoções” (VALLADARES, 1978; BRUM, 2012), devido ao elevado número de
favelas removidas da cidade do Rio de Janeiro. Tema bastante explorado pela sociologia
urbana, representou um dos marcos na política de revitalização das áreas centrais
cariocas mais valorizadas. O setor de obras públicas da época foi instrumentalizado para
atender a essa demanda por reordenamento urbano, capitaneada pelos interesses do
mercado imobiliário, que via nas favelas um fator de desvalorização e risco à
especulação. Com ações diretas e estruturais, entre 1963 a 1975, foram removidas mais
de 200 mil pessoas de favelas cariocas.
Tendo que realizar uma reestruturação interna, em 1962, Lacerda cria a Companhia de
Habitação Popular da Guanabara – COHAB-GB70 como autoridade central na área
habitacional. A companhia, que possuía capital misto, contava com 49% de controle
acionário de empresas do ramo imobiliário ligadas ao grupo político de Lacerda. Com
capacidade de compra de terrenos e de investimento em novos empreendimentos
imobiliários, a COHAB passou a “preferir” remover as favelas localizadas em áreas de
alto valor de mercado e de interesse da especulação imobiliária.
68
Na prática, foi o governo seguinte, Negrão de Lima, que mais removeu moradores de favelas. Porém,
Lacerda ficou conhecido como aquele que estabelece a remoção como uma ação de governo destinada à
reorganização da estrutura urbana da cidade.
69
Em acordo com a USAID (Agência de Desenvolvimento Norte-Americana), o secretário de Serviços
Especiais de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênica - SERFHA, José Artur Rios, acreditava
ser possível arrecadar recursos para a urbanização de favelas na cidade (BRUM, 2012).
70
Com a fusão, a COHAB passou seus ativos a Companhia Estadual de Habitação – CEHAB.
131
internacional. Além da Vila Kennedy, as Vila Esperança, Vila Aliança e a Cidade de
Deus foram alguns dos conjuntos construídos no período Lacerda (BRUM, 2012).
Assim, em 1969, a COHAB construiu um conjunto habitacional com 192 unidades num
terreno dentro do Jardim Catarina. Nesse caso, foram edificadas dois modelos de
habitação: casas não geminadas, construídas em lotes de tamanhos variados, com
medida máxima de 126m2; e casas geminadas em lotes bem menores, alguns com 40m 2
de área. A parte construída variava entre 25 a 30 m 2, apenas. As quadras do conjunto
eram delimitadas pelas Rua dos Marfins e Rua das Esmeraldas, e retidas ao fundo pelo
Rio Guaxindiba, que desagua na Baía de Guanabara.
132
Imagem 9: planta do Conjunto da COHAB-RJ em Jardim Catarina
Casas Geminadas
Fonte: CEHAB-RJ
134
aqui (...). Aqui não tinha nada. Tudo que você está vendo, a gente que
fez (moradora Dona Nena, 69 anos. Destaque do autor) (p. 126).
Na passagem, a moradora fez referência a dois momentos: a saída de Niterói, por meio
de remoção promovida pelo Estado; e a condição de chegada ao Jardim Catarina.
Mesmo reconhecendo a precariedade da moradia na favela, “morava em barraquinhos
quase caindo”, deixa claro o sentimento de perda, gerada por uma ação arbitrária e
violenta, destinada “para limpar a cidade”. Da mesma forma, a afirmação “a gente que
fez” evidenciava que a saída da favela não significou necessariamente uma melhoria na
qualidade de vida dos favelados já que os novos moradores não encontraram os mesmos
serviços públicos (hospitais, empresas, escolas, modais de transporte público, áreas de
lazer etc.) que tinham à disposição no centro de Niterói.
A moradora, que foi morar em uma das casas geminadas, fazia referência direta à
infraestrutura do conjunto e do loteamento como um todo. No caso da favela Maveroy,
o mercado de trabalho era próximo e a estação das barcas que levava ao Rio de Janeiro
estava logo à frente da favela. Além disso, para essas pessoas os loteamentos em São
Gonçalo simbolizavam uma perda em termos de qualidade de vida, tidos como lugares
distantes e fora da cidade. “Diziam que não tinha luz, que era só poeira e barro” 71.
Na imagem aérea registrada em 1975, que faz parte acervo cartográfico da extinta
Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro –
FUNDREM72, é possível notar diferenças entre o padrão de construção das casas do
conjunto em relação ao restante do loteamento. A proposta da COHAB seguia os
mesmos aspectos dos demais empreendimentos construídos pela companhia na cidade
do Rio de Janeiro, pautada por uma ocupação de alta densidade, com casas geminadas e
de dimensões reduzidas.
71
Ibid., p.127;
72
A Fundação foi criado em 1975, após a fusão do Estado do Rio de Janeiro.
135
Imagem 11: vista aérea do conjunto habitacional da COHAB-RJ. Imagem de 1975
Dona Nena relata que logo ao chegar ao Jardim Catarina, algumas pessoas tentaram
criar uma associação de moradores na tentativa de buscar junto ao poder público
melhorias para o conjunto. O projeto original da COHAB previa a instalação de um
ginásio, um posto de saúde e de uma escola pública para atender aos novos ocupantes.
Porém, na época da remoção, essas propostas ainda não passavam de promessas. Como
Dona Nena possuía experiência com trabalhos associativos no período em que vivia na
favela, acreditava este ser um caminho para a canalização de algumas reivindicações
como forma de pressão para fazer sair do papel os serviços prometidos pelo Estado.
Ao ser criada uma associação na Rua 40, Dona Nena assume a vice-presidência, que
pelos demais registros de campo, provavelmente foi a primeira associação de moradores
do Jardim Catarina. A datação é incerta, mas remete ao início dos anos 1970, pouco
tempo depois da chegada das famílias removidas de Niterói. A moradora afirmava que
por meio da instituição o conjunto conquistou alguns dos citados equipamentos sociais.
Na pesquisa de Cordeiro, destacam-se essas iniciativas:
73
Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de
Janeiro (CEPERJ)
136
O trabalho na associação era apoiado pelas assistentes sociais, que
davam orientações, ajudavam a convidar médicos para reuniões. Junto
com a associação vieram as primeiras conquistas da pracinha, do
Posto de Saúde e do prédio para a sede da Associação Comunitária74.
Hoje em dia, o conjunto conta com um posto de saúde e uma escola pública estadual
(E.E. Professora Abigail Cardoso). A moradora destacou inclusive a importância e a
presença de alguns políticos do município de São Gonçalo, que na falta de apoio local
por parte dos vizinhos das outras localidades, intercediam junto à COHAB e ao governo
estadual na tentativa de acelerar alguns projetos e políticas sociais. “A gente sozinho é
nada”, conta a moradora para explicar que as melhorias para o COHAB sempre
contaram com a ajuda de algum político local, para “trazer as coisas aqui para dentro” 75.
Nesse ponto a experiência adquirida na favela parece ter sido essencial para delimitar os
acordos políticos com os grupos de poder do município de São Gonçalo. A relação do
favelado com o poder público sempre foi de desconfiança, principalmente em períodos
de remoção. A favela por natureza já tem uma condição de instabilidade. Após a
remoção e chegada ao conjunto, a organização de uma associação tem a ver com a
tentativa de entrada dos moradores da 40 na política local, mesmo que esta iniciativa
acabasse por legitimar uma série de ações estatais como a própria remoção. Contudo,
tratava-se de um caminho para “as entidades populares disputarem o controle e o
destino de políticas da verba pública” (VALLA, 1998, p.10) e benfeitorias para o
loteamento.
Agora, no caso presente, a chegada de “favelados” não foi algo que marcou somente as
famílias removidas. As pessoas que haviam adquirido lotes por meio da compra ou
financiamento não enxergavam com bons olhos entrada de pessoas que viviam
anteriormente em favelas. O fato dessas pessoas terem sido assentadas pela COHAB
sem, a princípio, terem sido obrigadas a arcarem com os custos da compra do lote e da
construção e da casa, acabou gerando um processo de resistência da parte dos habitantes
mais antigos do loteamento, que viam nos favelados uma ameaça à organização
territorial do JC.
74
Ibid., p. 122.
75
Ibid., p. 124.
137
Uma liderança comunitária do Catarina Velho, que já foi inclusive presidente de outra
associação de moradores do Jardim Catarina, deixa claro essa diferença:
Trata-se de uma descrição cheio de classificações que traduz a tentativa de criar uma
distinção entre moradores e localidades. A ideia de que existia uma condição de
desorganização entre os recém-chegados, expressas por “despreparadas” e “outro tipo
de educação”, na prática poderia ser questionada justamente pela experiência pioneira
de criação da associação de moradores do Conjunto da 40. De qualquer forma,
inaugurava naquele momento uma disputa entre antigos e novos moradores no Jardim
Catarina.
Essa percepção fomentada entre os moradores antigos não se alinhava com a real forma
que a COHAB costumava financiar as unidades habitacionais, mesmo para os casos de
remoção. A maioria das famílias que foram para o Jardim Catarina não recebeu a
moradia de forma gratuita. Historicamente, inclusive, as dificuldades nesse tipo de
financiamento da moradia popular já foram discutidas em estudos sobre habitação no
Brasil (CARLOS, 2003; MARICATO, 2009; LAGO, 2010). As famílias removidas não
ganharam nenhuma casa do Estado, pelo contrário, além de retiradas de suas moradias
138
arbitrariamente e levadas a um ponto “distante” de São Gonçalo tiveram que arcar com
um financiamento burocraticamente estabelecido por parte da companhia habitacional.
Além disso, os favelados carregaram consigo a imagem e o estigma da favela, vistos
pelos moradores do Jardim Catarina como uma ameaça.
A “Favela da 40” resulta da única intervenção realizada pelo poder público na área
habitacional dentro do Jardim Catarina. Mas entre os favelados existia um sentimento
de perda quando da mudança de Niterói para o loteamento. Tratado como fora da
cidade, um lugar de “poeira e lama”. Além disso, os recém-chegados reclamavam de
não ter recebido suporte dos vizinhos nas suas reivindicações em termos de melhorias
para o conjunto. Exigiam do Estado mais compromisso com as promessas que lhes
foram feitas no ato da remoção. Tiveram que buscar articulações fora do loteamento, em
muitos casos com políticos e diretamente no embate com a COHAB, diferentemente dos
“proprietários”, que desenharam soluções nos arranjos de forças locais junto às
loteadoras, imobiliárias, e órgãos públicos.
Essa reflexão a respeito dos conflitos existentes entre antigos e novos moradores
recorda do estudo clássico de Norbert Elias, Os Estabelecidos e os Outsiders (2000).
Neste trabalho o autor descreve as relações de poder e de sociabilidade entre grupos
sociais formados por operários que passaram a conviver na pequena cidade operária de
Winston Parva, em meados do século XX. O autor identifica distinções entre códigos
morais, comportamentos familiares e práticas de convívio no conflito entre moradores.
139
prestígio de seu bairro, com todas as possibilidades de orgulho e
satisfação que lhe estavam ligadas. Nesse sentido, os recém-chegados
foram vividos como uma ameaça pelos antigos moradores (p.166).
Como mencionado anteriormente, esse período coincide com a época em que os jornais
de São Gonçalo começaram a relatar a ocorrência de crimes localizados ou relacionados
ao Jardim Catarina. Pelas matérias de jornais da época, não há menções diretas ao
Conjunto da 40, mas surgia um discurso de segregação entre o loteamento e a cidade. O
JC para São Gonçalo passou a representar um lugar violento. Internamente, essa lógica
também irá se reproduzir sobre a Rua 40, onde as demais partes do bairro passariam a
identificá-la como uma zona de perigoso.
140
Imagem 12: reportagem dos anos 1970 sobre criminalidade no Jardim Catarina
141
Imagem 13: reportagens sobre crimes em Jardim Catarina nos anos 1970
142
de segurança privada, de milícias tenha sido marcante na história da Baixada
Fluminense e de São Gonçalo.
Pela narrativa midiática, tanto a Baixada Fluminense como São Gonçalo precisavam
deixar de serem vistos como lugares “ermos”, desprovidos de ordem, para se
transformar em área urbana integrada à RMRJ. Nesse compasso, o discurso da violência
e do abandono estará entrelaçado simbolicamente como tentativas objetivas de pautar a
vida nesses lugares. Desde então, parece ocorrer uma constante renovação dessas
representações sociais, que de tempos em tempos são reajustadas para atender aos
interesses políticos dos agentes hegemônicos, principalmente.
No Jardim Catarina, a narrativa da violência trouxe efeitos para as relações sociais entre
os atores locais. Ganhou vulto o surgimento de agentes privados de segurança dentro do
loteamento, contratados por comerciantes locais que queriam evitar assaltos e
bandidagem no loteamento. A favela da 40 era o alvo principal. O favelado deveria ser
143
segregado e separado do convívio com as outras localidades, fazendo do controle
territorial algo necessário.
Com o passar dos anos esses grupos privados ampliaram sua atuação, passando a agir
sobre outras dimensões da vida local: controle sobre o mercado de drogas, autorizando
locais específicos para o comércio varejista praticado por pequenos traficantes;
definindo áreas que podiam ser ocupadas para a criação de lotes fora dos padrões
estabelecidos originalmente pelas loteadoras; agindo na segurança de equipamentos
públicos e materiais de construção de obras realizadas pela prefeitura ou pelo governo
do estado nas localidades consideradas menos perigosas e violentas.
O “Bonde” passou a exercer um poder não apenas territorial, mas simbólico sobre o
cotidiano. De acordo com alguns depoimentos, o Bonde teve surgimento na década de
1980 e era integrado por policiais militares do Serviço de Inteligência P2 de São
Gonçalo, o que comprova algumas das citações feitas na pesquisa a respeito da
circulação de carros à paisana nas ruas do loteamento. Oficialmente, esse serviço
policial atendia pelas rondas na cidade e incursões em favelas e áreas tidas como
violentas pela polícia. Além de combater os assaltos a comerciantes locais, passaram a
agir controlando índices de violência e mantendo a venda de drogas apenas em áreas
específicas, como o Conjunto da 40.
144
moradores, que por vingança a atos de agressão por parte de assaltantes e traficantes,
começou a fazer justiça com as próprias mãos. Em 1991, um desses grupos (“Grupo do
Zeca”) passou a adotar julgamentos internos para decidir sobre a execução ou não de
indivíduos dentro do bairro. Pela matéria, contavam com a cobertura de policiais e dos
próprios moradores. Por fim, a reportagem ressalva que mesmo após a captura e prisão
deste grupo, outros justiceiros já exerciam a prática.
Fonte: O Fluminense
Contudo, essa imagem de violência generalizada retratada pelos jornais, na realidade era
vista por moradores como localmente territorializada, com graves efeitos sobre a relação
entre localidades do JC e o restante da cidade. O Conjunto da 40 aparece como um
território de conflito, espaço de enfrentamento entre a polícia, os traficantes e os grupos
de extermínio. Diferente das “áreas tranquilas, habitadas por famílias de trabalhadores e
pessoas honestas”.
145
Essa condição de divisão em conjuntos habitacionais não é particular da Rua 40. A
história do Estado do Rio de Janeiro já demonstrou que as políticas habitacionais
tocadas pela COHAB foram uma junção de fracassos e equívocos. São fatos conhecidos
e profundamente descritos, a exemplo dos conjuntos da Vila Kennedy, Cidade de Deus,
entre outros. Em todos esses conjuntos ocorreram processos parecidos: chegada
repentino sobre vazios urbanos; remoção traumática de famílias de áreas centrais da
cidade; carência de serviços urbanos no entorno dos conjuntos, violência e controle
territorial por grupos de poder e intervenção da política de Estado.
Nessa relação com a Rua 40, interessa realçar que a sua condição dentro do Jardim
Catarina será determinante para a forma como seus moradores terão acesso aos serviços
urbanos e às políticas de saneamento. Como a distribuição do abastecimento de água,
por exemplo, será em grande medida gerida por meio de acordos entre estruturas
internas e externas de poder, dificilmente o conjunto terá algum tipo de
representatividade política nesse “jogo”. Como exemplo, a Associação de Moradores
do Jardim Catarina (AMAJAC), criada somente nos anos 1980, jamais incluiu o
conjunto da 40 na sua agenda e pauta de reivindicações. Até hoje, não há água nas ruas
do conjunto habitacional.
Além da violência, que virou tema nos anos 1980, os jornais de São Gonçalo também
passaram a relatar problemas ambientais e de saneamento, tais como os constantes
146
alagamentos, enchentes e o agravamento das condições de vida da população de
“periferias urbanas”. Como já mencionado, há um problema histórico e ambiental na
região onde se construiu o JC. Na verdade, a região metropolitana teve que enfrentar,
desde o início de sua ocupação, eventos dramáticos em relação a problemas sanitários,
como grave epidemias durante o século XIX e XX. A urbanização acelerada desses
lugares, com destaque para a Baixada Fluminense, só pode de fato ocorrer após obras de
drenagem e aterros de áreas alagáveis (SOARES, 1990).
147
dos lugares serão determinantes pare que mesmo entre as áreas de população pobre, haja
importantes diferenças no acesso a infraestrutura urbana e de saneamento.
Art. 1º - Fica declarada como área non aedificandi uma faixa com
largura de 8,00 (oito metros) ao longo do curso d’água situado entre
as ruas Xingu e interseção com os seguintes logradouros: Ruas
Grajau, Laguna, Padre Vieira, Américo Miranda e Albino Imparato.
76
Os dados foram publicados também no Jornal O São Gonçalo de 14/04/1980.
77
http://www.pmsg.rj.gov.br/urbanismo/plano_diretor/leitura_tecnica/index.htm
148
Ironicamente, na época de publicação do decreto, a região demarcada já se encontrava
ocupada pela localidade conhecida por Pica-pau78. Ela surge após a CEDAE realizar
inúmeras dragagens no Rio Alcântara para a retirada de material arenoso e de esgoto.
Esse material, como não era destinado a nenhuma estação de tratamento de resíduos,
passou a se acumular ao longo da linha d’água transformando-se numa área de aterro
improvisado, justamente no ponto vulnerável a alagamentos e inundações.
Vale lembrar que o parcelamento de terra que deu origem ao Jardim Catarina foi
realizado numa região plana, porém localizada abaixo do nível do mar e bastante
influenciada por uma rede hidrográfica formada por rios, manguezais, lagoas e baías. A
característica ambiental do loteamento o coloca sob a influência de fenômenos naturais,
a exemplo dos movimentos de marés e fluxos hídricos, que neste caso formariam o
sistema da Região Hidrográfica da Baía de Guanabara 79. Na imagem abaixo é possível
identificar as áreas próximas à rede hidrográfica da RMRJ.
Imagem 15: localização do Jardim Catarina atual e a proximidade com os bens naturais da
Baía de Guanabara
78
A localidade também é chamada de Baixada, devido a sua topografia abaixo do nível do mar e por ser
uma área alagável. Devido a presença de muitas árvores e animais, dizia-se que era possível avistar
inúmeras aves e pássaros, entre eles o Pica-pau.
79
www.inea.rj.gov.br/Portal/Agendas/GESTAODEAGUAS/InstrumentosdeGestodeRecHid/PlanodeRecu
rsosHidricos/BaiadeGuanabaraAgendaAzul/index.htm
149
Foram entrevistados na pesquisa moradores do Pica-pau. A maioria relatou que a
dificuldade encontrada por muitas famílias em comprar ou alugar casas nas áreas
centrais do loteamento, onde existiam algum tipo de oferta de serviços e por conta da
proximidade com o comércio de Alcântara, fez com que grande parte dessas pessoas se
dirigissem a ocupar as margens do rio. Eles relembram que ao chegar no JC se
depararam com terrenos alagadiços, com a presença de charcos. Dependendo do horário
ou da estação do ano o Pica-pau costumava ficar parcialmente submerso. Em dias de
chuva, os lotes ficavam de baixo d’água durante horas.
Eu lembro que meu pai levava a gente pra pescar aqui dentro do
Catarina. A gente ia lá no Pica-pau. Tinha até uma colônia de
pescadores aqui. Muita gente tinha barco... As mães sempre avisavam
pras crianças tomarem cuidado com o brejo. Porque era perigoso.
Tinha muita gente que morreu afogado lá (Moradora Dona Maria, 72
anos).
A fala de quem vive no Jardim Catarina há décadas refaz uma época em que a presença
de áreas inundadas fazia parte do cotidiano daqueles que foram morar logo nos seus
primeiros anos de loteamento. Por ficar abaixo do nível do mar e pela convivência
histórica do problema, o morador sabia que a vida nesse lugar passava a ser pautada,
também, pela temporalidade envolvida por esses fenômenos “naturais”. Historicamente,
não apenas o Jardim Catarina, mas grande parte do distrito de Monjolos era suscetível a
inundações. Os impactos das chuvas, porém, foram se agravando à medida que o
município de São Gonçalo foi se urbanizando por intermédio do parcelamento de terras
e posterior loteamentos.
150
ganhar tempo e manter uma poupança que permitisse uma mudança futura para as áreas
com melhor infraestrutura de saneamento.
Como a partir dos anos 1980 o mercado imobiliário do JC já não possuía tantas áreas ou
lotes vazios, comprar ou alugar uma casa nas quadras pavimentadas tornou-se uma
tarefa que exigia recursos econômicos. Atualmente, o Pica-pau cresceu e a maioria das
casas já é de alvenaria. Porém, como a questão do alagamento e das enchentes é algo
não resolvido, a saída para alguns moradores foi começar a construir as habitações sobre
estruturas elevadas em relação ao solo, podendo chegar a mais de um metro acima do
terreno (fotos a seguir).
Assim como o conjunto da Rua 40, que desde o assentamento das famílias removidas de
favelas de outras partes da RMRJ vem enfrentando inúmeras dificuldades de acesso a
serviços urbanos e de integração à cidade, a condição fundiária e os aspectos ambientais
do Pica-pau também se transformaram em obstáculos ao estabelecimento e seu acesso à
políticas de saneamento.
Quando cheguei dava pra nadar e pescar naquele rio (Rio Alcântara).
Mas depois foi chegando gente, foi crescendo, e a Av. Beira Mar
virou o que virou. Calculo que hoje tem uns 300 a 400 famílias ali.
Cada pedacinho ou lote tem umas três famílias dentro. Quando a
família vem do Nordeste, dá um pedacinho pra um e pra outro. Mas eu
151
mesmo não acreditava que iria mudar muito não. Antigamente não
tinha luz e nada. A gente puxava luz da Rua 25. Mas, lembro que os
postes caiam quando aqui enchia. Toda hora acontecia (Morador
Carlos Eugênio, 38 anos).
Essa lógica de ocupação parece seguir uma história parecida, cujo processo é
representado por territórios que surgem e extinguem-se simultaneamente. A percepção
da desigualdade aparece no discurso do próprio morador do Pica-pau, que compreende
sua condição material de vida. O morador tem o conhecimento e encontra até
justificativa para a falta de atendimento e de serviços públicos por conta da situação
fundiária irregular e vê com dificuldade a chegada de ação estatal para beneficiá-lo:
152
Durante o trabalho de campo, ao visitar o Pica-pau acompanhado por uma moradora que
trabalhava no CRAS80 do Catarina Velho (Rua 21, Raposo Botelho), o pesquisador se
deparou com a seguinte cena: após fortes chuvas, as ruas estavam inundadas, casas
alagadas, lixos espalhados pelas vias e algumas áreas vazias, porém cercadas com
arame. Ao observar os terrenos demarcados, foi perguntada à moradora sobre a
condição destes lotes que estavam ocupados pela água, porém à espera de um
comprador. Na resposta, a funcionária do CRAS afirmou que “no Catarina todo lugar
tem dono... Mesmo se você quiser morar aí, tem que pagar (...). E as pessoas pagam,
porque todo mundo sonha com uma casa, então paga”.
A fala deixa claro que mesmo que haja uma condição de precariedade das condições
materiais do Pica-pau não significa que não se reproduzam sobre seu espaço práticas e
relações políticas e econômicas presentes em outras partes do Jardim Catarina e da
própria RMRJ. O que a moradora indica é a presença de meios de regulação de acesso
ao solo urbano que se estruturaram na localidade, formas de controles territoriais em
que o “sonho da casa” é uma representação que no fundo retrata a integração entre o
lote alagado e marginal do Pica-pau e os processos urbanos mais amplos.
80
Centro de Referência da Assistência Social.
153
No campo do abastecimento de água, no entanto, se houve melhora na cobertura da
RMRJ como um todo81, no Pica-pau o quadro é adverso. A qualidade e a desigualdade
na distribuição dos serviços de água vão encontrar na fala dos técnicos da CEDAE
justificativas apoiadas na condição de precariedade das moradias e na irregularidade
fundiária do assentamento. No entanto são justamente esses lugares que recebem sobre
si uma maior carga de impactos ambientais (PORTO, 2007) e que os colocam numa
posição marginal dentro do JC.
81
As referências quantitativas e estatísticas quase todas partem dos dados do Censo Demográfico (2010)
e das informações hoje contidas no Sistema Nacional de Saneamento (SNIS), disponível em:
http://www.snis.gov.br/
82
Programa de Despoluição da Baía de Guanabara.
154
Assim como o Conjunto da 40, o Pica-pau parece condenado a viver nas margens dos
serviços dentro do JC. A confusa rede de abastecimento de água, com descontinuidades
e interrupções, passou a ser um fator preponderante na determinação da condição
material dos moradores. A configuração espacial da rede forma um mapa desigual da
infraestrutura de saneamento. Suas consequências estarão presentes tanto no cenário
físico do lugar, como no campo simbólico.
Falta-se rede de água no Pica-pau, sobra água que vem dos rios, inundações e chuvas. A
abundância aqui é de outra ordem, ela carrega problemas ambientais que interferem no
tempo do cotidiano e na forma de enfrentamento por parte dos moradores.
Contraditoriamente, nesse contexto, o Estado vai reforçar o discurso da precariedade e
da situação irregular da “favela” como justificativa para a não solução do problema de
saneamento. E por outro lado, adotará um tom assistencialista que exigirá mais
investimentos em obras de saneamento e acesso à água para o loteamento como um
todo.
155
distinções espaciais, cada vez mais fortalecidos com a chegada de investimentos
públicos. Como a política no Jardim Catarina é a política da e na cidade, para participar
dela o morador do Pica-pau ou da 40 terá que desenvolver estratégias de articulação
próprias. Não será por meio da AMAJAC ou diretamente pelo atendimento da CEDAE.
Serão acionados novos personagens, agentes públicos e privados cuja atuação marginal
terá um importante papel nesse “jogo de cartas” urbano (SANTOS, 1986).
156
Capítulo 05 – O Mapa da Água no Jardim Catarina: uma história de
negociação
Na (Rua) Itororó tem a rede (de água) que vai até a ilha de Paquetá.
Ali jorra água forte, mas vai ver como ela tá hoje, parece uma colcha
de retalhos. Teve inclusive uma vez que o Seu Moraes (dono de uma
loja de material de construção), que já foi candidato aqui no bairro,
ganhou uns canos de um amigo dele que era deputado estadual. Sabe o
que ele fez? Abriu um buraco e puxou água para toda esta parte aqui
da Rua 35, por conta própria mesmo (...) A Cedae veio aqui depois
para tampar o negócio (...). Eu lembro que na época que colocaram a
tubulação na minha rua, eu tive que pagar para a Cedae puxar água pra
minha casa (Moradora Alzira Santos, 50 anos. Destaque do autor).
A transcrição acima faz referência à instalação de uma adutora d’água pela CEDAE83 na
década de 1970, que mesmo passando por dentro do Jardim Catarina não se destinava a
atender o loteamento, mas outras áreas da RMRJ. Os moradores, por sua vez, sofrendo
com a falta d’água passaram extraí-la dessa nova tubulação, mas por meio do que
alguns deles chamavam de “gatilho”, que na prática seriam ligações clandestinas ao
sistema oficial. Pelo que parece, esse processo contava com a ajuda de políticos e
83
A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) foi criada em 1975 após a
fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, incorporando os órgãos de saneamento de ambos os
entes públicos.
157
comerciantes locais, que além de financiar esta prática, tentavam adquirir capital
política para si na disputa por cargos públicos e mandatos.
84
Fato mencionado na entrevista da moradora Ana Clara.
158
de água. Na entrevista, a moradora, que trabalhava como agente de saúde no Jardim
Catarina, reconhece a alternativa do gatilho como uma prática “paralela” ao acesso
oficial, porém, da mesma forma, parecia reconhecer como legítima da cobrança de
tarifas por parte da CEDAE, caso o serviço fosse efetivamente executado.
Foi 1975, no governo Geisel, a primeira vez que o Estado (via financiamento do BNH)
direcionou recursos federais para a melhoria do sistema de água nos municípios da
região metropolitana do Rio de Janeiro, conforme chamada da matéria do Jornal do
Brasil de 1975: “Geisel presidirá no Rio contratos entre BNH e o Estado para a água”
(05/07/1975). A reportagem dizia que o governo federal havia transferido dinheiro do
FGTS diretamente para a conta da CEDAE, para que esta realizasse, entre outras ações,
a modernização do sistema de Imunana-Laranjal.
159
funcionamento dos departamentos regionais. A CEDAE, ao investir na ampliação do
atendimento nos municípios da RMRJ de forma fragmentada espacialmente parece ter
fortalecido essas estruturas territoriais mesmo sem ter garantido a totalidade da
cobertura de saneamento. Enquanto o corpo tecnocrata da estatal era comandado pelos
funcionários e diretores da antiga companhia da Guanabara (CEDAG), São Gonçalo,
por exemplo, dependia dos arranjos firmados entre os grupos políticos locais e a
estrutura descentralizada da empresa na própria cidade.
Os gatilhos possuíam dois objetivos centrais. O primeiro, mais direto, era conseguir
captar água para o consumo das famílias que residiam no loteamento e que não tinha
acesso à rede geral ou que não podiam arcar com os custos de obra para conectar a casa
à adutora da CEDAE. O outro objetivo aparentava ter um cunho político: o gatilho era
usado como estratégia de alguns moradores e de lideranças locais como meio para
pressionar a estatal e os governos a canalizar mais recursos e serviços de saneamento
para o Jardim Catarina. Ao entrevistar e ouvir as histórias de moradores, lideranças
comunitárias e representantes de instituições locais, parece que a solução para o
problema da água do Jardim Catarina sempre recorreu à produção de gatilhos “oficiais”
e “não oficiais” no sistema geral.
Se você tem a água, que passa na sua rua e você não pode utilizar, é
complicado. E aí os moradores começaram a perfurar, a fazer ligações
clandestinas (...). Reconhecemos isso, e com essas perfurações, o que
aconteceu, a prefeitura se mobilizou a instalar uma rede para o bairro,
160
de 1985 a 1989. Foi feita por etapa, ela começou no loteamento Novo
até a Rua 41, que é a última rede que nós temos para o abastecimento
do Novo. Na parte do Velho foi até a Rua 17. Depois foi até a Rua 22,
no (Colégio Estadual) Trasilbo (João Paulo, membro do centro
comunitário, 45 anos. Destaque do autor).
A divisão entre Catarinas e entre subsistemas de água geraram ainda mais confusão a
respeito da capacidade de atendimento do sistema público de saneamento. Sendo o
serviço insuficiente para levar água a todos os moradores, o próprio Estado teve que
iniciar o movimento de manobra, ou seja, alternando os dias em que a companhia “abre”
as válvulas e irriga as redes secundárias então criadas, permitindo o atendimento parcial
a diferentes localidades. Pela fala do morador João Paulo, que atua na associação de
moradores, o sistema funciona dessa forma até hoje. Ele destaca o fato da presença da
ETA Imunana-Laranjal não ter resolvido o problema da escassez de água e detalha mais
um pouco como é a movimento de manobra no loteamento:
No caso da manobra, a CEDAE libera a água parcialmente e, mesmo assim, apenas para
pontos e dutos específicos. Há uma distribuição desigual entre as localidades. O
Catarina Novo, por sua vez, sofre mais com o desabastecimento em relação ao Velho
porque a vazão de água que chega é menor e obriga o morador a ter que arcar com o
custo de instalação e manutenção de bombas para “puxar” a água da rede geral nos dias
de manobra, além de ter que arcar com caixas d’águas e cisternas com capacidade de
reservar um volume maior para o restante da semana.
162
A CEDAE, como contrapartida, o que fez? Onde está o registro de
retorno das águas ela fechou. Foi lá, um belo dia, abriu e cimentou
tudo. Ou seja, um terço da população do Catarina Novo não tem água.
Só tem água as partes do Velho, onde é asfaltado. No Novo vai até a
Rua Xavante, mesmo assim, na parte de rua que é asfaltada (Morador
João Paulo, 45 anos).
Esse quadro de desigualdade tem uma dimensão político-econômica mais ampla do que
simplesmente a quantificação do serviço pelos investimentos aplicados pelo Estado e
pela cobrança de tarifas por parte da CEDAE. O morador e os comerciantes são
obrigados - além de gastar seus recursos com bombas de pressão, cisternas, ou carros
pipas - a negociar com políticos locais, como Seu Moraes, formas de acesso à água pela
via dos gatilhos ou de apoio político.
163
Figura 4: O “Mapa da Água” do Jardim Catarina
A figura acima sintetiza as redes de água descritas tanto pelas narrativas como aquelas
dispostas pelos dados oficiais da CEDAE86. Na prática, a empresa estatal fornecia
informação apenas sobre a adutora Imunana-Laranjal, carecendo de detalhes a respeito
da localização exata das linhas secundárias. Da mesma forma, o serviço de manobra
também não é sistematizado, ficando a cargo da AMAJAC e dos próprios moradores a
descrição do atendimento. Até mesmo porque, de acordo com as entrevistas, nem
sempre a manobra era executada nos dias prometidos, com localidades sofrendo
frequentemente com semanas de desabastecimento.
85
A imagem aérea utilizada na figura pertence ao arquivo do CEPERJ, e está em escala 1:2000, de 2015;
86
Os dados relativos à rede de abastecimento da CEDAE estão disponíveis para consulta no site do
Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (PSAM).
Disponível em: https://psam.maps.arcgis.com/.
164
gatilhos na linha principal que segue da ETA em direção a Niterói. Na figura é possível
identificar não apenas a ETA, mas a adutora da Rua Itororó, instalada em 1975 e que
levou à criação do primeiro gatilho de água no Jardim Catarina. Há ainda a área de
cobertura criada pela linha secundária no Catarina Velho, instalada nos anos 1980, que
coincidentemente ou não, segue até a rua onde se encontra a associação de moradores.
Na mesma linha notam-se as puxadas para o Colégio Trasilbo Filgueiras, na Rua 22.
Sem ter como definir uma data exata, observa-se a presença de mais três gatilhos,
alguns dos mais reconhecidos localmente: o gatilho da Rua Turquesa, que permitiu
estender a rede até o limite norte do loteamento e os Gatilhos da Rua Marcos da Costa e
da Avenida Paulo VI, que facilitaram o acesso à água nas localidades do Catarina Novo.
Esses dois últimos, se privilegiaram do aumento de cobertura da rede de água
promovido pelo PDBG, em 1996. O programa levou pela primeira vez infraestrutura à
área central do loteamento.
As redes secundárias e os gatilhos, não previstos pelo sistema oficial, são práticas
reconhecidas tanto pela estatal como pelos moradores. O exemplo disso é a instalação
de válvulas, conforme detalhou o membro da AMAJAC. Por meio desses equipamentos
é possível abrir ou cerrar o fluxo de água nas tubulações, definindo os pontos de
irrigação ou simplesmente cortando o abastecimento em períodos de aumento de
escassez.
No caso das localidades do Pica-pau e do Conjunto da 40, elas aparecem fora desse
sistema complexo, numa zona marginal. O mapa confirma que a proximidade com a
ETA é um fator essencial de acesso ao serviço de água. Pois, é a partir dela que se pode
utilizar-se de gatilhos para “puxar” água para ruas e quadras que não contam com o
atendimento da CEDAE.
165
5.1 Água como fonte de poder político no Jardim Catarina
Na verdade, o Catarina não tem uma rede própria, não existe. Pelo
incrível que pareça, a (Estação) Imunana não tem distribuição de água
pra dentro do Catarina, teria que ter, mas não tem. Aí fica os pipeiros
superfaturando, 100 reais uma pipa d’água (...). Cada lugar tem um
preço. De acordo com a distância, existe um valor, ou de acordo com
o dono do caminhão. Tem uns que cobram 80 reais. Tem caminhão de
05 mil litros, de 10 mil litros. É um valor especulativo, não existe
tabela. Vai de acordo com o lugar, cliente, dono do caminhão
(Morador Paulo, 43 anos, centro comunitário. Destaque do autor).
166
Imagem 18: reportagem sobre o problema do abastecimento de água em São Gonçalo -
10/05/1988
Fonte: O Fluminense
E a única base que tem pra abastecer em São Gonçalo (...) é tudo ali.
O cara para ali, abastece (o caminhão) e aí depois vêm eles e cobram
pela pipa d’água. Um lote com uma casa, 04 pessoas, o que é comum,
167
um caminhão de 10 mil litros dura no máximo uns 15 dias. Então isso
pra nós não é valioso. O que nós queremos? A CEDAE alega que os
moradores não pagam, mas os moradores não pagam porque não tem.
Devido a essas obras que ocorreram no interior do bairro, o
abastecimento de água ficou deficiente. Por quê? Para ajudar os
pipeiros? (Morador João Paulo)
A “economia da água” ganha uma nova feição. No começo dos anos 1980 um gerente
da CEDAE, que trabalhava em São Gonçalo, era o responsável em controlar o
atendimento aos carros-pipas. Alguns dos entrevistados afirmaram que o funcionário
público, com o passar do tempo, começou a faciltar a distribuição de água aos pipeiros,
tendo como retorno uma percentual em cima do lucro do comércio de água dos pipeiros.
Ou ainda, que o gerente da estatal criou sua própria frota de caminhões se beneficiando
de sua posição dentro do departamento regional em São Gonçalo; outros afirmaram que,
na verdade, o sujeito buscava apoio político por ter pretenções eleitorais.
De qualquer forma, o certo é que o personagem de fato ganhou espaço político dentro
do Jardim Catarina e do município. Além da água, atuava também em outros segmentos
do setor saneamento. Costumava conseguir junto à prefeitura, por exemplo, tratores e
retroescavadeiras para dragar os rios e as valas que em dias de chuva inundavam o
loteamento. Sempre após grandes enchentes, aparecia na localidade do Pipa-pau
dragando o Rio Alcântara e apoaindo no recolhimento do lixo nas ruas. Com o passar
do tempo foi ficando conhecido. Para alguns, uma pessoa solidária, para outros, um
político que se promovia a partir da desgraça e carência dos moradores.
87
Como meio para manter em sigilo a identidade do político, toda a referência no texto a ele utilizará o
nome Betinho da Água como nome.
168
Nesse cenário contraditório, a cada investimento em saneamento por parte da CEDAE,
mais incompleto parecia se transformar o abastecimento de água no Jardim Catarina; e
quanto maior a presença de carros pipas no hidrante da Rua 01, mais forte ficava a
influência e a importância política do Betinho da Água em São Gonçalo. A presença dos
pipeiros passou a ser um indicador de existência de um novo tipo de mercado bastante
alinhado com a organização espacial e com a característica da infraestrutura de
saneamento de São Gonçalo.
Falta água para moradores e sobra para os pipeiros. Não tem água no
Jardim Catarina principalmente nas ruas que ficam próximas a pipa
d’água. Ali nunca falta água, os caminhões fazem filas enormes para
venderem até mesmo pra quem mora ali perto. Isso é um absurdo,
afinal nós pagamos essa água. No natal e ano novo, muitos moradores
tiveram que comprar água, pois a Cedae deixou de abastecer nesses
períodos (Morador João, 63 anos).
169
comunidade São Sebastião e Novo México, foram beneficiados com a
instalação de bombas d’água e trabalhos voltados para o saneamento e
o fornecimento de água, promovidos pelo Betinho da Água 88.
O deputado Paulo Melo é, hoje, um importante nome do PMDB89 - partido que governa
o estado do Rio de Janeiro desde 1998 –, inclusive presidiu a Assembleia Legislativa do
Rio de Janeiro (ALERJ) nos anos 2000. A base eleitoral de apoio de Paulo Melo está
fora da capital carioca, com maior foco na região metropolitana e em alguns municípios
do interior do estado. Já a candidata Graça Matos, além de ter sido deputada estadual
88
Matéria retirada do site oficial do político na internet, que mesmo tendo disputado sua última eleição
em 2012, ainda se mantém no ar;
89
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).
170
por dois mandatos por São Gonçalo, é casada com Edson Ezequiel Matos, prefeito do
município por duas gestões (1989/1992 e 2000/2004).
O Projeto Viva São Gonçalo, criado nos anos 1990 durante o governador Marcelo
Alencar, previa uma reestruturação das redes de água e esgoto em toda RMRJ e
integrava umas das linhas de ação do PDBG, executado pelo Estado e que contava com
o financiamento internacional do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do
Governo Japonês. Muitas ações do programa foram realizadas em São Gonçalo, porém,
outras mais estruturantes não saíram do papel. O candidato prometeu retomá-las.
171
esgotamento sanitário, porém, é uma das únicas medidas aparentemente possíveis de
serem realizadas frente às impossibilidades de maiores obras de saneamento.
Essa condição espacial e política que submete recursos e serviços urbanos sob o
controle territorial de grupos e agentes econômicos modela um ambiente onde é
impossível traçar linhas divisórias do que poderia ser considerado como formal ou
informal, por exemplo. A política nesse caso é o espaço da prática social, cuja dimensão
ganha objetividade nos territórios e os atores buscam se posicionar na cidade por meio
de relações e acordos cotidianos.
172
O sistema capitalista afinal é abrangente e dominante e se reproduz
em todas as instâncias. Negar que os pobres sejam capazes de
entendê-lo e manipulá-lo à sua maneira e de que tome seus modelos e
virem a mesa a seu favor até onde podem é que seria reacionário
(1980, p. 38).
A fala de Carlos Nelson interessa porque desconstrói dois pontos cruciais nas
interpretações, até mesmo sociológicas sobre os problemas urbanos e de infraestrutura.
Primeiro, as análises são em geral centradas na ação (presença ou omissão) do Estado
em territórios de favelas e loteamentos nas periferias. Na verdade, o Estado de certa
forma sempre se fez presente, ou flexionando a legislação de uso do solo como
incentivo ao parcelamento de terras para incorporação do mercado urbano, ou,
contraditoriamente, ofertando de um lado um serviço parcial de saneamento e, a partir
de seus agentes, fornecendo alternativas que a princípio entram em choque com as
regulações e normativas oficiais regidas por técnica e recursos públicos.
No Jardim Catarina parece ter ocorrido de tudo um pouco. Espaços de atuação política
foram criados e recriados cotidianamente em compasso com mudanças de conjunturas
mais amplas. Moradores e lideranças locais parecem compreender esses processos. E
somente a análise sobre a ação desses atores aqui mencionados e as relações
estabelecidas no cotidiano permite lançar luz sobre esse conjunto de contradições
urbanas que são produzidas no âmbito das negociações por serviços urbanos essenciais
à reprodução social do morador da cidade.
De acordo com Valla apud Moisés (1998) o termo “políticas públicas” se refere à
participação do Estado na organização da infraestrutura urbana necessária à
concentração de atividades produtivas nas metrópoles brasileiras. A partir dessa noção,
surgem algumas das contradições, tais como a necessidade de intervenção estatal como
meio para garantir a produção capitalista e, ao mesmo tempo, ter que atender a demanda
por serviços de infraestrutura e de saneamento à população. Para Victor Valla “a pouca
capacidade ou interesse do capital de investir naquilo que julgava oferecer pouco lucro
173
imediato”91 gerou um "Estado como provedor de toda a população (...) e assim, [capaz
de] resolver a problemática urbana, que parecia crescer sempre mais" (MOISÉS, 1985,
p18).
91
Ibid., p. 8;
92
Ibid., p.111;
174
dentro do Estado, quanto do setor privado, remete à questão da permeabilidade do
Estado93”.
Marques vai afirmar que na prática são as posições de cada indivíduo ou empresa no
campo político do saneamento que determinavam as decisões em torno das intervenções
e obras contratadas para a região metropolitana. Nesse caso, a noção de isonomia
presente no arcabouço legal de contratação pública aparece mais como “uma ficção do
mundo jurídico”. Se o Estado é o provedor, então essa providência chega aos territórios
pelas mãos de atores e agentes econômicos específicos, capazes de acionar estruturas
relacionais formadas no interior do ambiente político estatal e de mercado como no
âmbito territorial, por intermédio das negociações junto a moradores e grupos locais de
poder.
93
Ibid., p. 207.
175
enchentes a cada chuva forte, não contava com nenhum tipo de serviço de saneamento
por estar localizado numa área de aterro precário, solo arenoso e ter a ocupação proibida
pelos órgãos urbanos de fiscalização muncipal.
Imagem 19: primeira morte por cólera no estado do Rio de Janeiro - epidemia da década de
1990
A conjunção desses fatores levou ao registro da primeira morte por cólera no estado do
Rio de Janeiro no ano de 1993. Isso um ano após ser anunciado uma série de obras e
investimentos que seriam levados pelo governo estadual ao município de São Gonçalo.
No O Fluminense, de outrubro de 1992, a matéria afirmava que o “ O maior loteamento
da América Latina” receberia obras de infraestrutura oriundas de um empréstimo do
Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID no valor de dois trilhoes de cruzeiros
(aproxidamente R$1,7 bilhões de reais).
176
para a periferia metropolitana, que naquele momento vivia um quadro de crise hídrica e
sanitária.
177
Aproximadamente 100 milhões de reais foram investidos no equipamento da CEDAE e
na pavimentação de algumas ruas. Mesmo que o discurso da carência e da violência,
atrelados ao Pica-pau e ao Conjunto da 40 tenha sido parte do argumento para justificar
novos investimentos em infraestrutura no JC, essas localidades jamais receberam
qualquer tipo de melhorias, reforçando a desigualdade entre áreas atendidas e áreas não
atendidas dentro do próprio loteamento.
Mariana Cavalcanti, em seus estudos sobre políticas de infraestrutura urbana nas favelas
do Rio de Janeiro, identificou a paradoxal relação que alimenta as políticas urbanas
voltadas para os espaços de favelas onde a associação entre violência e estigma, que
“acabam por criar as condições para a melhoria material e também para o
reconhecimento político de seus moradores”, por outro lado reproduzem e reforçam os
mesmos estereótipos que diz combater. “(...) Sustentam as relações de poder que
reforçam a ideia de alteridade cultural perante a cidade dita ‘formal’” (2013, p. 194).
A própria AMAJAC, que passou a ter como bandeira de luta o saneamento básico, teve
que adotar estratégias distintas daquelas aplicadas inicialmente por seus fundadores, a
178
exemplo do Seu Moraes, que financiava gatilhos na rede de água como prática de
acesso a serviços básicos e incentivando a ocupação de áreas marginais como meio de
pressão sobre o Estado. Para os integrantes da associação era preciso requalificar o
discurso e as formas de reivindicação. Entendiam que os problemas continuavam os
mesmos, mas que era preciso alcançar novos espaços de luta, desenvolver projetos e
tentar debatê-los com agentes do setor público de saneamento.
Nesse contexto, surge o nome de outra importante liderança do Jardim Catarina, Seu
João. Também fundador da AMAJAC, ele recordava em entrevista que o trabalho
comunitário no loteamento só começou a ser de fato organizado na época do primeiro
governo Leonel Brizola (entre 1983 a 1987). Afirmou que, em conversa com outras
lideranças, entenderam ser necessário estruturar uma agenda política única para todo o
loteamento. Algo que pudesse ser sistematizado e que fosse levado sempre às mesas de
negociação com o Estado. “Era preciso uma pauta de reivindicação”, afirmou ele.
É preciso lembrar que os anos 1980 trazem a abertura política e o ressurgimento dos
movimentos sociais urbanos após anos de regime militar. Curiosamente, parte dos
estudos sociológicos (GONH, 2004; 2008) atribuíram à mobilização desses movimentos
o início das melhorias nas condições de vida da população e reivindicações por serviços
de saneamento nas zonas urbanas e metropolitanas.
94
Federação de Associações de Bairro;
95
Federação Municipal de Associações de Moradores.
179
investimentos às áreas centrais do Rio de Janeiro e, principalmente, à expansão da zona
oeste carioca com o Projeto Barra da Tijuca96.
O que se quer dizer é que, na esfera estadual parte da RMRJ já havia sido incorporada
ao sistema de saneamento público como estratégia da própria CEDAE, antes mesmo da
democratização, e que no âmbito local, os departamentos regionais por intermédio de
seus agentes atuavam junto aos atores locais na intermediação das demandas por água.
Além disso, vale lembrar que a conjuntura de crise nacional do setor de infraestrutura
urbana, que inclusive culminou na extinção do BNH, em 1986, fez com que as
companhias estaduais passassem a focar na própria política tarifária, o que logicamente
acabou levando à priorização de áreas e de projetos, cuja valorização mercadológica dos
bairros centrais permitiria maiores possibilidades de arrecadação e geração de capitais
por parte das empresas estatais.
Seu João sabia disso. E sabia também que na virada dos anos 1980 para os 1990, com a
chegada de novos agentes nacionais e internacionais, era preciso realizar uma
reorganização das reivindicações localmente. Durante sua entrevista, retirou de uma
pasta um antigo documento da AMAJAC que trazia uma ata que sintetizava as
discussões do 1º Seminário Urbano do Jardim Catarina, realizado pela associação de
moradores em 30 de outubro de 1988, no mesmo mês da promulgação da Constituição
Federal de 1988.
A liderança enfatizou que este foi um importante ato político em São Gonçalo. O
primeiro com aquelas características no loteamento. “A constituição trouxe direitos
fundamentais e falava que todo o poder emana do povo (...), precisávamos mostrar que
sabíamos disso”. Participaram do seminário pesquisadores de universidades públicas,
associações de bairros da região, representantes de órgãos públicos, concessionárias,
ongs, entre outros.
96
MARQUES, 1998.
180
geográficas e demográficas; há o Seu Moraes e o Seu João que conheciam o campo de
disputa política em São Gonçalo como poucos, mas perceberam que era preciso alterar
as estratégias da luta cotidiana, adaptando-se ao novo cenário que se apresentava a
frente.
181
Alguns desses itens acima envolvem mais do que serviços em saneamento, como a
construção de escola e implantação de linhas de ônibus. Mas grande parte das 47
reivindicações está direcionada ao setor público de infraestrutura e, mais do que isso,
entre as instituições públicas citadas nominalmente na ata como interlocutoras estão os
nomes da CEDAE (saneamento), da COHAB (habitação) e do Departamento de
Estradas e Rodagens do Rio de Janeiro – DER-RJ (transportes e rodovias).
Seu João destaca que a estrutura administrativa do Estado era confusa e contava com
uma variedade de órgãos e instituições. Por isso, foi preciso criar esse formato de
atuação “mais técnico”, como ele mesmo diz. Da mesma forma, a política envolvia um
conjunto de instituições que nem sempre estavam alinhadas, tais como a prefeitura, o
governo estadual e a União.
182
Imagem 21: ata do 1º Seminário Urbano do Jardim Catarina, 1988
Fonte: AMAJAC
97
Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina.
183
Abria-se naquele momento um canal de diálogo entre a visão técnica de profissionais da
área de saúde e a experiência dos moradores de favelas, principalmente, diante da falta
de água e do aumento do número de casos de dengue. A análise dos problemas de saúde
vinculava-se às condições de vida da população, porém considerando eventos
particulares (ex: epidemia de dengue) como fenômenos dinâmicos, pensados
historicamente a partir das lutas dos habitantes da cidade. Ao considerar as experiências
de vida, os pesquisadores do CEPEL não buscavam considerar apenas as formas de
apropriação por parte dos moradores de favela da realidade de onde viviam, mas as
possibilidades de ação sobre ela98.
Seu João lembra que a criação do Fórum Permanente do Jardim Catarina, em 1990, uma
espécie de câmara territorial permanente de discussão, envolvia associações de
moradores de outros bairros, movimentos sociais e grupos comunitários que buscavam
caminhar mais próximo das políticas estatais. A partir do cronograma de obras do
Estado para o JC, seria possível rever e traçar estratégias permanentemente para garantir
algum tipo de contrapartida para as localidades do Jardim Catarina, mesmo que pontuais
e limitadas.
98
Ibid., p.80.
184
Esse Fórum surgiu através do programa de infraestrutura que previa a
execução de obras de saneamento no bairro. Tinha drenagem dos
valões do Jardim Catarina, valão do Precioso e o valão da CEDAE,
bem como a pavimentação de ruas do bairro. [...] A previsão era de
seis meses de obra e eles diziam que iam beneficiar 2.000 famílias
(Seu João, morador do Catarina Velho).
185
serviços de saneamento. Não há recursos para todos. E os moradores, lideranças e
instituições locais sabem disso.
Além disso, a legalidade ou outras práticas estatais são apropriadas mediante regulações
locais que emanam da necessidade da população em se reproduzir na cidade. Nas
“margens” (DAS; POOLE, 2008) o desafio é identificar as diferentes concepções das
normas e condutas existentes nesses territórios. Para compreendê-las é preciso seguir
um sentido analítico inverso, ou seja, não apenas pautar-se nas estruturas do Estado, sua
máquina, sua burocracia para definir o que ocorre nos territórios urbanos, mas construir
um ponto de vista a partir dos lugares, dos atores que ali transitam que percorrem
diferentes escalas e atravessam a separação entre imposições legais e extralegais. Essas
discussões evidenciam os canais que percorrem os territórios e as relações políticas
entre os mais diversos atores do campo social, onde o Estado passa a ser representado
por agentes que possuem a capacidade de transitar por estes canais.
Esse quadro complexo não se reduz à lógica de confronto entre classes sociais ou uma
eterna luta entre os loteamentos e a cidade. Na verdade, está-se diante de contradições
não resolvidas, de necessidades não atendidas por completo, mas que encontram saída
por meio da prática social e espacial. “No vivido, a práxis é contraditória” (MARTINS,
1966, p.122). Lefebvre já observara que nem mesmo no estado de dominação não há
reprodução de relações sociais sem certa produção de novas relações.
No Jardim Catarina a história parece seguir nessa condição, que mesmo diante de
formas de controle, os atores operam e se movimentam no espaço urbano da cidade por
meio de um entrelaçado de práticas como soluções aos problemas cotidianos. Sem esse
campo político construído sobre arranjos locais é provável que muitos moradores não
tivessem tido acesso à casa, à terra e ao abastecimento de água. O mapa da água
formado pelas adutoras principais que seguem para o centro de Niterói; as redes
secundárias e marginais que buscam o Catarina Velho; e os gatilhos, que atendem as
186
localidades sem nenhuma infraestrutura, são algumas das facetas espaciais da política
urbana na RMRJ.
A mudança na forma de atuar da AMAJAC via política institucional, não significa que
ela não entenda o jogo de poder da cidade ou que esteja apenas buscando novos
parceiros para suas lutas diárias. A organização de uma pauta permanente ajuda a
manter o embate político aquecido e a desenhar a agenda pública, mesmo que esta seja
dominada pelo Estado e os agentes de mercado. A pauta de reivindicações fortalece o
movimento de luta cotidiana e o trânsito dentro de instituições supralocais e estatais. O
setor saneamento, além de conter forte teor econômico, transformou-se num campo
altamente disputado, envolvendo Estado, agentes de mercado e sociedade.
187
CONCLUSÃO
Não se está diante de um ambiente de igualdade, cujo direito à cidade emana de todos
os lugares e gritados por todos os cantos pelos mais diversos atores sociais. Não é disso
que se tratou esse trabalho. Trata-se de uma vida crua, real, que fez seus moradores
buscar ao longo das mudanças de conjunturas políticas e econômicas, rever e refazer
relações e estratégias de sobrevivência em São Gonçalo.
188
público o Betinho da Água, a vida no Pica-pau seria inviável devido à urbanização
acelerada, à poluição de rios e ao quadro sanitário vulnerável por estar inserido em áreas
inundáveis.
99
KOWARICK, 1979; BOLAFFI, 1985; BONDUKI, 1994.
189
partir de suas relações e práticas diárias contribuíram para a constituição de um mercado
imobiliário dinâmico nos limites da cidade do Rio de Janeiro e fundamental para
flexibilizar ainda mais as possibilidades de acesso ao solo urbano e à moradia.
As políticas urbanas dos projetistas e dos engenheiros entram assim num movimento de
contradição com o “mapa da água” real do Jardim Catarina. Um mapa produzido por
aqueles que vivem na cidade. Por esse caminho, a presente tese buscou recuperar a
dimensão histórica da política no Estado do Rio de Janeiro, retomando suas
particularidades e movendo o olhar para além dos limites das áreas centrais do Rio de
Janeiro.
190
Com o surgimento de novos atores na cena política da RMRJ na virada da década de
1980 para 1990, como agencias internacionais, grandes empresas de construção civil e
ONGs, todas interessadas no tema do saneamento e na urbanização de cidades, as
lideranças e instituições do Jardim Catarina tiveram que readaptar o discurso político e
construir uma agenda do saneamento própria para o loteamento. Com a Constituição de
1988 e o ressurgimento dos movimentos sociais as lideranças da AMAJAC adotaram a
narrativa do saneamento como direito, porém, conscientes de que essa dimensão não
seria garantida efetivamente para o Jardim Catarina e teria que ser disputada
internamente.
Diante desse quadro, governos estadual e municipal vão alimentar uma lógica de
política baseada na manutenção de um cronograma de obras públicas quase que
permanente em São Gonçalo. Há um campo político que passou a gerir as relações
políticas e as disputas entre atores locais e instituições supralocais, todos em busca de
uma posição e seu reconhecimento na metrópole.
Após o saneamento ter se tornado um ponto central para vida urbana e tratado como
demanda básica a ser atendida pelo poder público, o Estado vai buscar manter um nível
de investimento permanente em São Gonçalo. Contudo, necessitando em manter sua
hegemonia e legitimidade no âmbito local, o setor público de saneamento delegará parte
do seu controle sobre os serviços de água a agentes marginais, a exemplo do Betinho da
Água.
191
saneamento, como a ETA Imunana-Laranjal, e ao bairro de Alcântara acabaram se
beneficiados com uma maior oferta e qualidade do sistema de abastecimento de água.
Parece existir uma convivência até certo ponto estável no cotidiano do JC entre todos
esses mecanismos de regulação, personagens e lugares, o que não quer dizer que não
haja conflitos, muito menos conformismo entre os moradores. A questão é que mesmo
diante de um ambiente desigual e injusto, se consolidou ao longo do tempo um
ambiente político onde todos conhecem e sabem seu papel e seu limite de atuação nessa
estrutura de poder. Se surge algum evento inesperado, dificilmente ocorrerão rupturas
nos acordos políticos localmente firmados entre indivíduos, agentes públicos e privados
e instituições supralocais.
192
instalações precárias de baixa qualidade e um sistema de manobra de água que atendia
apenas parcialmente o Jardim Catarina. O fato de não haver revolta popular diante desse
quadro desigual, até mesmo após a ocorrência de eventos radicais como o surgimento de
epidemias e o agravamento de problemas socioambientais causados por enchentes, pode
significar que num sistema de dominação, há um consenso entre os atores que
estabelece uma espécie de limite à ação de cada parte.
Conforme nos mostrou Lefebvre (2000), a cidade é dependente também, e não menos
essencialmente, de relações imediatas, no cotidiano, das relações diretas entre pessoas e
grupos da sociedade (famílias, corpos organizados, profissões e corporações etc.). O
espaço urbano tem como papel mediar diferentes ordens e tempos históricos,
aproximando o campo da política urbana e os níveis mais elevados das estruturas de
poder da sociedade (para Lefebvre, ordem distante: Estado, igreja, mercado) do
ambiente de relação dos indivíduos, pautado nas estruturas de rede e apoio social e nas
formas locais de organização espacial (ordem próxima).
Assim se produz a cidade. Pesquisas sobre a vida de lugares como o Jardim Catarina
abrem um novo diálogo sobre estudos urbanos. Permite escapar das ideologias e das
abstrações explicativas centradas no Estado e no Capital, ou como afirmaria Lefebvre,
localizadas numa ordem distante (2006), aquela que se projeta sobre o espaço na
tentativa de dominá-lo. Contudo, essas projeções vão encontrar no Jardim Catarina o
cotidiano, espaço de mediações, a cidade como obra, que supera a noção que a trata
como objeto exclusivo de troca numa sociedade capitalista e desigual.
193
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ANEXOS I - TABELAS
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