Tese - FGV - Do Gatilho Ao Lotes - Marcos Thimoteo Dominguez

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE


HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

DO GATILHO AO LOTE: AS DISPUTAS PELO ESPAÇO URBANO DO JARDIM


CATARINA - SÃO GONÇALO, RJ

APRESENTADA POR

MARCOS THIMOTEO DOMINGUEZ

PROFESSORA ORIENTADORA: MARIANA CAVALCANTI ROCHA DOS SANTOS

Rio de Janeiro, Agosto de 2018


FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

DO GATILHO AO LOTE: AS DISPUTAS PELO ESPAÇO URBANO DO JARDIM


CATARINA - SÃO GONÇALO, RJ

MARCOS THIMOTEO DOMINGUEZ

Rio de Janeiro, Agosto de 2018

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

PROFESSORA ORIENTADORA: MARIANA CAVALCANTI ROCHA DOS SANTOS


MARCOS THIMOTEO DOMINGUEZ

DO GATILHO AO LOTE: AS DISPUTAS PELO ESPAÇO URBANO DO JARDIM


CATARINA - SÃO GONÇALO, RJ

Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História


Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de
Doutor em História,
Política e Bens Culturais.

Rio de Janeiro, Agosto de 2018.

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5
AGRADECIMENTOS

Essa talvez tenha sido a jornada mais difícil pela qual já passei até hoje. Afinal, “fazer”
o doutorado não é uma tarefa apenas sua, mas envolve aqueles que estão mais próximos
a você, pois, no fim, o trabalho se fez solitário muitas vezes. É difícil, são quatro anos
intensos, misturando temporalidades distintas, uma junção de aceleração, lentidão e
espera.

O doutorado é um processo difícil, pois nos obriga a ser humilde, reconhecer


fragilidades e limitações. Entender que ainda nos falta base teórica, conhecimento
empírico, experiência de vida. O conhecimento só se constrói na parceria com o outro.
Jamais sozinho. Nesse turbilhão, então, como não reconhecer o apoio e a paciência de
pessoas queridas que compreenderam os desafios desse meu percurso.

Os mais impactados, sem dúvida, foram minha família, minha esposa e filhos, Hugo,
Jordan e Marquinhos. Ana Claudia, meu amor, obrigado por ter sido companheira, por
ter entendido que eu precisava de tempo, espaço. Desculpe-me pelas palavras ríspidas,
as vezes grosseiras. Sem seu apoio não teria conseguido. Te amo.

Marquinhos, meu filho, espero cumprir a promessa, “depois do doutorado a gente


faz...”. O seu carinho foi essencial. Nessa caminhada pensei muito em você. Como ser
seu amigo e ajudá-lo no que for preciso. Muitas vezes você me procurou, muitas delas
rejeitadas com palavras duras, o famoso “sai daqui, tô trabalhando!”. Farei de tudo para
tentar recuperar esse tempo.

À minha família querida, minha mãe Vera, meu irmão Flavio. Ao lado de meu pai,
Germinal, vocês me ajudaram a enxergar o mundo de forma real, de maneira bastante
concreta, mas sempre com sensibilidade, solidariedade com o outro. Sempre com
respeito, nunca com arrogância. O ponto de partida dessa história devo a vocês.

Aos meus irmãos da vida, camaradas que há tempos compartilhamos alegria, apoio nos
momentos de dificuldade, risadas e discussões. Danilo (compadre), Fernando
(Maninho), João Paulo, Júlio, Rafael e Tarcísio, lá se foram 20 anos! Uma mistura de
times, visões de mundo, humores e pilantragens... Bruno Coutinho, parceiro,
pesquisador e artista. Com Marco Pantoja, sempre juntos “nos projetinhos”. Ao eterno
Claudio Batista, sociólogo do Chapéu Mangueira, meu amigo e mestre.

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Agradeço aos amigos que fiz na profissão: Haidine Duarte, Marcos Santos e André
Regato. O enfretamento da política nua crua, das repartições, dos conflitos internos, não
teria sido possível sem vocês. A relação trabalho e doutorado é uma soma difícil de
lidar, com momentos, às vezes, de desânimo. Mas vocês me apoiaram, incentivaram.
Obrigado.

A Marize Cunha, sempre amiga e disposta a me ouvir. Acreditou na minha capacidade


desde a primeira vez que entrei em um curso de pós-graduação.

A minha orientadora, Mariana Cavalcanti. Devo muito a ela. Jamais deixou de me


retornar, sempre me deixou livre para tomar decisões a respeito da pesquisa, dos
caminhos a seguir. Compreendeu a dificuldade em relacionar família, trabalho, estudos.
Entendeu que o tempo era uma dádiva nesse processo, e me ajudou a atravessar essa
jornada.

Agradeço ao CPDOC/FGV, a oportunidade de ingressar no Doutorado. A área de


História abriu desafios novos na minha vida. O olhar cuidadoso sobre o tempo. Com o
apoio da CAPES, permitiu que eu pudesse produzir mais, circular, conhecer pessoas,
acessar conteúdos e conhecimento. Aos colegas da Revista Mosaico, uma experiência
nova no mundo acadêmico. Comprometimento no dia a dia e produção com rigor, mas
sempre aberto ao diferente, à heterogeneidade dos estudos e à interdisciplinaridade.

Por fim, o mais importante dos agradecimentos, pois a pesquisa se deu num lugar
específico. Desde 2008 circulo pelas ruas do Jardim Catarina. Nesses dez anos, observei
muita coisa mudar e fiz amigos. Presenciei a conquista do filho e a felicidade da família
ao vê-lo chegando à faculdade. Senti pela perda da mãe e o sofrimento e o cuidado da
filha e netos. Engoli o choro e tentei oferecer apoio em diversos momentos de crise, de
morte, de desemprego, problemas financeiros, perda da casa. Troquei muitas ideias.

Devo muito ao Jardim Catarina, a Rose, a Marcia e a Rose Monnerat. A dedicação delas
à pesquisa me abriu portas na vida e no trabalho. Arrumei empregos e viajei pelo Brasil
e pelo mundo falando de minhas pesquisas em congressos e seminários, enquanto elas
continuavam na sua luta diária. Isso me angustia, confesso.

Por outro lado, as pessoas com as quais tive contato sempre foram claras comigo.
“Amigos, amigos, negócios à parte”. Eu tinha um papel a cumprir: registrar suas

7
histórias, experiências, ajudá-las a sistematizar elementos do cotidiano. Numa disputa
desigual pela narrativa da vida urbana, pra eles, eu era uma peça importante.

Eu deveria traduzir contextos políticos, participar de reuniões, interpretar documentos


burocráticos e escrever projetos sociais para espaços comunitários, como forma de
buscar apoio econômico. Era uma relação desigual, pois eu era o pesquisador, o cara da
universidade. Porém, com papéis bem definidos. Creio, assim, que chegamos a um
objetivo comum.

Obrigado a todos, ao Jardim Catarina e a São Gonçalo. Obrigado as Três Negras de


Axé.

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RESUMO

A presente tese analisa as disputas por serviços urbanos na Região Metropolitana do Rio
de Janeiro (RMRJ), tendo como recorte temporal de investigação o período entre 1970 e
1990 - momento em que há uma reorganização das políticas de infraestrutura urbana
após a fusão do Estado do Rio de Janeiro. O trabalho se desenrola no Jardim Catarina
(JC), tradicional loteamento localizado nos limites metropolitanos, que se transformou
em bairro do município de São Gonçalo.
O exercício de resgate histórico da ocupação do Jardim Catarina baseou-se nas
informações sobre investimentos públicos em saneamento básico na RMRJ; nos
registros da imprensa relativos ao cotidiano de São Gonçalo; e no trabalho de campo,
envolvendo entrevistas com moradores antigos, lideranças locais, registros de imagens e
consulta a documentos de associações comunitárias e órgãos públicos.
A pesquisa demonstrou que enfrentamentos frontais entre os atores sociais do JC e os
agentes estatais em torno do abastecimento de água raramente eram priorizados como
estratégia de luta cotidiana. A estrutura urbana desigual, onde se concentram capitais e
melhores serviços nas áreas centrais do Rio de Janeiro, não permitia ao morador do
Jardim Catarina despender esforços em direções incertas, fazendo-o buscar acordos
políticos locais como meio para acessar a casa, o trabalho e a água. Da mesma forma, o
Estado, para fazer valer sua legitimidade nesses territórios, também adotava práticas
contraditórias à própria tecnocracia hegemônica do setor de saneamento, por exemplo.
Parecia existir uma convivência até certo ponto estável entre esses atores, o que não
quer dizer que não existiam conflitos, muito menos conformismo por parte de
moradores frente à sua condição de desigualdade na região metropolitana. A questão é
que mesmo num ambiente injusto, o indivíduo conhece seu campo de ação e os limites
impostos pelos diferentes níveis de poder na organização espacial do loteamento e da
cidade. Nesse sentido, ele buscará a cidade possível como meio para garantir melhorias
de vida e legitimidade política.

PALAVRAS-CHAVES: Estudos Urbanos, Periferia, Abastecimento de Água, Região


Metropolitana, Jardim Catarina, São Gonçalo

9
ABSTRACT

The current doctorate thesis analyzes the disputes for urban services in the Metropolitan
Region of Rio de Janeiro. The research has its target between 1970 and 1990 - time of
restructuring of urban policies in the State of Rio de Janeiro. The studies takes place in
Jardim Catarina (JC), a traditional urban allotment located in the metropolitan borders,
which, later, became a neighborhood in the county of São Gonçalo.
The historic rescue of Jardim Catarina's occupation was based on information from state
investments in basic sanitation; records in the press regarding the daily life of São
Gonçalo; and fieldwork, involving interviews with former dwellers, local leaderships,
images and data of institutional documents.
The research led to the possible conclusion that confrontations between the social actors
of the JC and the state agents towards water supply had been avoided as strategy of
daily struggle. The unequal urban structure, in which better services are mostly found in
the heart of Rio de Janeiro, forces the community of Jardim Catarina not to expend
efforts in uncertain directions, giving it no choice but to seek political agreements as a
means of accessing shelter, work and water. Likewise, the State, in order to assert its
legitimacy in these territories, also adopted practices, which seem contradictory to the
hegemonic technocracy itself of the sanitation sector.
There was a stable coexistence between these actors, yet this does not mean that there
were no more conflicts, neither was there conformism on the part of the residents. The
point is: as in an unfair environment, individuals know their field of action and the
limits imposed by the different levels of power in the structure of the city.

KEY-WORDS: Urban Studies, Periphery, Water Supply, Metropolitan Region, Jardim


Catarina, São Gonçalo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .....................................................................................................................16
A estrutura do texto...................................................................................................................... 22

O ponto de partida no Jardim Catarina ........................................................................................ 27

A pesquisa, as fontes e o trabalho de campo ............................................................................... 31

Capítulo 1 - O urbano como apoio para análise das práticas sociais na cidade .......................35
1.1 Jardim Catarina como unidade de análise ............................................................................. 43

1.2 A “invisibilidade” do saneamento na RMRJ ......................................................................... 49

1.3 Políticas de infraestrutura urbanas e seu rebatimento territorial na RMRJ .......................... 53

Capítulo 02 - A Política Fluminense: da Fusão à criação da Cedae ........................................63


2.1 A política de Infraestrutura urbana na metrópole fluminense ............................................... 68

2.2 Água: da descentralização do serviço à CEDAE .................................................................. 74

Capítulo 03 – Casa, Trabalho e Água: as histórias de ocupação do Jardim Catarina ..............83


3.1 Os loteamentos de São Gonçalo, os loteamentos do Jardim Catarina .................................. 90

3.2 O mercado imobiliário do Jardim Catarina ......................................................................... 100

3.3 O loteamento e suas localidades .......................................................................................... 104

3.4 A casa, o trabalho e os Catarinas ......................................................................................... 117

Capítulo 04 - Jardim Catarina, Catarinas: territorialidades e representações ........................128


4.1 O Conjunto da 40 e a retórica da violência no Jardim Catarina .......................................... 129

4.2 Problemas ambientais e urbanos: a localidade do Pica-pau ................................................ 146

Capítulo 05 – O Mapa da Água no Jardim Catarina: uma história de negociação ................157


5.1 Água como fonte de poder político no Jardim Catarina...................................................... 166

5.2 A AMAJAC e a eterna pauta de reivindicações .................................................................. 173

CONCLUSÃO .....................................................................................................................188
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................194
ANEXOS I - TABELAS ......................................................................................................207

11
LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: foto aérea recente do município de São Gonçalo ......................................................48

Imagem 2: ampliação do serviço de abastecimento de água de Niterói e São Gonçalo


(27/06/1952)...............................................................................................................................70

Imagem 3: reportagem alerta para o desabastecimento de Niterói e São Gonçalo ......................71

Imagem 4: imagem aérea do Jardim Catarina em 1975 ..............................................................93

Imagem 5: comércio de Alcântara (1948), cinco anos antes do lançamento do Jardim Catarina 94

Imagem 6: anúncio da loteadora Jardim Catarina S.A ................................................................95

Imagem 7: variedade de anúncios de venda lotes e casas - anos 1960......................................102

Imagem 8: Avenida Albino Imparato (Catarina Velho) - 1953 e 2012 .....................................107

Imagem 9: planta do Conjunto da COHAB-RJ em Jardim Catarina .........................................133

Imagem 10: reportagem de 21/10/1971 sobre a remoção da Favela Maveroy ..........................134

Imagem 11: vista aérea do conjunto habitacional da COHAB-RJ. Imagem de 1975................136

Imagem 12: reportagem dos anos 1970 sobre criminalidade no Jardim Catarina .....................141

Imagem 13: reportagens sobre crimes em Jardim Catarina nos anos 1970 ...............................142

Imagem 14: matéria da imprensa sobre a atuação e prisão do Grupo do Zeca..........................145

Imagem 15: localização do Jardim Catarina atual e a proximidade com os bens naturais da Baía
de Guanabara ...........................................................................................................................149

Imagem 16: casas do Pica-Pau sobre áreas alagáveis ...............................................................151

Imagem 17: localidade do Pica-pau após as chuvas e inundações de 2010 ..............................153

Imagem 18: reportagem sobre o problema do abastecimento de água em São Gonçalo -


10/05/1988 ...............................................................................................................................167

Imagem 19: primeira morte por cólera no estado do Rio de Janeiro - epidemia da década de
1990 .........................................................................................................................................176

Imagem 20: anuncio de obras no início da década de 1990 ......................................................177

Imagem 21: ata do 1º Seminário Urbano do Jardim Catarina, 1988 .........................................183

12
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: São Gonçalo e a RMRJ ...............................................................................................30

Figura 2: São Gonçalo, distritos do município e o Jardim Catarina. ...........................................46

Figura 3: relação renda e infraestrutura por domicílio no Jardim Catarina – 2010 .....................50

Figura 4: O “Mapa da Água” do Jardim Catarina .....................................................................164

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: número de citações “Jardim Catarina" nas seções de O Fluminense...........................33

Tabela 2: nº de Lotes construídos na RMRJ e SG ......................................................................92

Tabela 3: População Economicamente Ativa (acima de 10 anos) que trabalha no município de


residência .................................................................................................................................207

Tabela 4: população de São Gonçalo e Distritos ......................................................................207

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

SG São Gonçalo

JC Jardim Catarina

ERJ Estado do Rio de Janeiro

RMRJ Região Metropolitana do Rio de Janeiro

AMAJAC Associação dos Moradores do Jardim Catarina

CEDAE Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro

COHAB Companhia de Habitação do Estado do Rio de Janeiro

COHAB-GB Companhia de Habitação do Estado da Guanabara

BNH Banco Nacional de Habitação

PDBG Programa de Despoluição da Baía de Guanabara

ONG Organização Não Governamental

CAMPO Centro de Assessoria ao Movimento Popular

CCFP Centro Comunitário de Formação Profissional

ENSP Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz

CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil

FGV Fundação Getúlio Vargas

PEA População Economicamente Ativa

MTE Ministério do Trabalho e Emprego

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Serviço

PLANASA Plano Nacional de Saneamento

PlanRio Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio de Janeiro

ETA Estação de Tratamento de Água

PND Plano Nacional de Desenvolvimento

PTB Partido Trabalhista do Brasil

UDN União Democrática do Brasil

14
SAEN Superintendência de Água e Esgoto de Niterói

DNOS Departamento de Obras de Saneamento

IPA Instituto de Aposentadoria e Pensão

SURSAN Superintendência de Urbanização e Saneamento

CEDAG Companhia de Água da Guanabara

ESAG Empresa de Saneamento da Guanabara

SANERJ Companhia de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro


Fundação Centro de Pesquisas, Estatísticas e Formação de Servidores Públicos
CEPERJ
do Estado do Rio de Janeiro
RMSP Região Metropolitana de São Paulo

CEHAB-RJ Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro

CHISAM Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana

CRAS Centro de Referência da Assistência Social

SNIS Sistema Nacional de Informação em Saneamento

TSE Tribunal Superior Eleitoral

PMDB Partido do Movimento Democrático do Brasil

SERLA Superintendência Estadual de Rios e Lagoas

DER-RJ Departamento Estadual de Estradas de Rodagem do Rio de Janeiro

CEPEL Centro Estudos e Pesquisa da Leopoldina

15
INTRODUÇÃO

Esta é uma tese sobre cidade. A cidade feita a partir do espaço e do tempo cotidiano.
Uma recuperação histórica da ocupação do Jardim Catarina, loteamento que virou bairro
do município de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A análise está
focada na produção da cidade como espaço urbano construído pelas práticas sociais
daqueles que nela vivem, se organizam, traçam estratégias e desenham acordos
políticos. A cidade, ao se tornar o lugar essencial da vida para a maioria da população
do Brasil, tornou-se o espaço de disputa por recursos, materializados em serviços e
capitais urbanos.

A organização espacial do Jardim Catarina (JC) sintetiza e reflete as inúmeras


contradições inerentes à urbanização do Estado do Rio de Janeiro. Local onde a
produção do espaço se deu de forma desigual, dentro do movimento histórico de
fragmentação territorial e de adensamento urbano da Região Metropolitana do Rio de
Janeiro (RMRJ). No entanto, ao mesmo tempo, o loteamento se mostrou essencial para
a reprodução da vida em meio a um ambiente de restrições e de concentração de
recursos econômicos nas áreas centrais da metrópole.

A tese tem como objetivo demonstrar que as disputas por serviços urbanos,
principalmente aqueles em torno do abastecimento de água no Jardim Catarina,
ocorreram por meio de estratégias distintas acionadas por moradores e instituições
locais, que ao entenderem as mudanças históricas de conjuntura política na RMRJ,
buscaram combinar diferentes formas de regulação do uso do espaço urbano do
loteamento, garantido para si o máximo de contrapartidas da cidade. Enfrentamentos
frontais entre os atores sociais e os agentes estatais raramente eram priorizados como
forma de luta cotidiana. Compreendendo o quadro desigual e hierarquizado no qual
estavam inseridos, os moradores percorreram vias marginais para acessar a casa, o
trabalho e os serviços de água no Jardim Catarina.

O recorte temporal da investigação centra-se principalmente entre as décadas de 1970 e


1990, momento em que há uma reorganização das políticas urbanas no Estado do Rio de
Janeiro e o surgimento de novos atores sociais na cena política da região metropolitana.
Os relatos e as fontes históricas selecionadas para a reconstrução histórica do Jardim
Catarina levaram a um cenário onde trabalhadores, comerciantes, corretores de imóveis,

16
loteadoras, políticos, empresas privadas e agentes públicos passaram a negociar
diariamente sua permanência nos territórios da cidade e as formas de acesso aos
serviços urbanos.

Nesse ponto, o caso do abastecimento de água é emblemático. A centralidade do tema


se deu, pois não tem como desvencilhar a água de outros elementos materiais essenciais
à reprodução da vida, como a casa e o trabalho. Principalmente em lugares como o
Jardim Catarina, que tem sua história ocupação pautada pela eterna busca por serviços
urbanos, como motor de mobilização e reprodução socioespacial. A infraestrutura
urbana não é trada aqui exclusivamente pelo campo das políticas de Estado, mas como
recurso necessário à organização social no loteamento, fator de mediação envolvendo os
mais diversos atores e agentes públicos e privados.

Analisando o “início” da história do Jardim Catarina, a venda/compra de um lote era


apenas um dos primeiros passos para aqueles que desejavam se fixar em São Gonçalo.
Porém, não bastava a compra do terreno, era preciso dinheiro para levantar a casa. Não
bastava construir a casa, era preciso encontrar meios de trabalho para garantir recursos
mínimos para manter o financiamento junto à loteadora e o pagamento do material de
construção. Apenas o trabalho não resolvia, pois era preciso mobilidade e trânsito no
loteamento, onde indivíduo pudesse percorrer suas diferentes localidades1 (LEEDS;
LEEDS, 1978) em busca de apoio social ou uma melhor opção de moradia e
investimento familiar. Na cidade, por sua vez, não basta a casa, o trabalho, é preciso ter
acesso a serviços, entre eles, a água.

Nessa conjuntura, surgem trajetórias como a do Seu Moraes. Um personagem real, que
atravessou os distintos momentos históricos de ocupação do Jardim Catarina e do
próprio município de São Gonçalo. Inicialmente foi corretor de imóveis. Mesmo
trabalhando para a loteadora Jardim Catarina S.A., empresa que adquiriu uma vasta área
de terras nos limites do município, tornou-se dono de lojas de material de construção,
adquiriu terrenos e abriu uma pequena imobiliária na Rua 01.

De seu comércio, saiu grande parte do material utilizado na construção das primeiras
casas do JC. Ajudou a financiar instalações domésticas de água e de esgoto. Influente,
convidou políticos do Estado do Rio de Janeiro a visitar o loteamento. Foi por meio dele

1
O uso do termo localidade será baseado nas definições de Leeds e Leeds (1978), que em contraposição
ao conceito de “comunidade”, o consideravam mais adequado para pensar os lugares urbanos e os
espaços de favelas dentro do movimento dialético com o entorno e com as estruturas macrossociais.

17
que os primeiros candidatos a prefeitos, deputados e vereadores visitaram o Jardim
Catarina. Era ele que ouvia as queixas dos moradores e as anunciava no palanque numa
área descampada na entrada do loteamento.

Alguns moradores afirmaram em entrevista que Seu Moraes, já a frente da associação


de moradores local, incentivava as pessoas a ocuparem partes ainda não loteadas do
Jardim Catarina, geralmente nas faixas marginais de rios e rodovias, sempre como
forma de pressionar o Estado e a atrair políticas públicas para o loteamento: “ele dizia
que as pessoas tinham direito a casa. Que a prefeitura tinha que dar. Tem muito lugar
aqui que as pessoas construíram a casa com ajuda dele”2.

As demandas por melhorias nas condições de vida local centravam-se em infraestrutura


urbana e equipamentos sociais (como escolas e postos de saúde), motivando Seu
Moraes, em conjunto com outras lideranças, a construir uma agenda de reivindicações
em torno da Associação de Moradores do Jardim Catarina, AMAJAC, criada no começo
da década de 1980. Escolhido como o primeiro presidente da associação de moradores,
enveredou na política do município, inclusive, lançando-se candidato na disputa
eleitoral para vereador e posteriormente, a deputado estadual, anos mais tarde.

Nessa história até certo ponto conhecida, em que lideranças nascem das empreitadas
populares nos espaços urbanos, veremos que no Jardim Catarina há um entrelaçamento
entre os temas casa, trabalho e água. No processo de ocupação do loteamento não há
como pensá-los de maneira estanque. Trata-se de um movimento contínuo de
reformulação de estratégias acionadas pelos moradores e demais atores que buscam
legitimar suas ações em São Gonçalo e na RMRJ. Cada componente desse exigia
acionar no cotidiano um conjunto de práticas e relações sociais, que para ser posto em
funcionamento precisava estar apoiado sobre uma base territorial cuja regulação urbana
era oferecida pela “solução” loteamento.

Uma casa sem água não é uma casa de fato. É por isso que moradores, lideranças e a
membros da associação de moradores vão ter como bandeira de luta central o tema da
água. Algumas iniciativas entraram em contradição com a organização das políticas de
saneamento e infraestrutura do Estado, estas calcadas numa visão de ordenamento e
planificação urbana. Diante da escassez e do controle sobre a distribuição da água, o

2
Moradora Suzane, Agente de Saúde, 65 anos.

18
morador adotará práticas baseadas na experiência local, e menos nas diretrizes gerais do
ordenamento estatal ou numa ideia sempre confusa de direito e cidadania.

O loteamento nasce em 1953, tendo como marco inaugural o lançamento do


empreendimento imobiliário pela loteadora Jardim Catarina S.A. Antes da chegada do
sistema estatal de saneamento no Jardim Catarina, o problema de acesso à água era
resolvido entre os próprios moradores, em negociação com loteadora, corretores,
comerciantes e políticos locais. Mesmo em momentos de conflito, dificilmente os
problemas superavam a esfera da política local, onde soluções cotidianas eram
rapidamente acionadas.

A compra de um lote por parte do morador sem o mesmo ter conhecimento sobre sua
localidade ou condição fundiária era algo até certo ponto comum. Muitas pessoas
investiam seus rendimentos para aquisição de uma propriedade no Jardim Catarina
como uma espécie de poupança familiar futura. A decisão de ir ou não morar no
loteamento nem sempre era imediata e, ao mesmo tempo, partia de condições e decisões
diversas por parte do indivíduo. A chegada em São Gonçalo era envolvida por
surpresas: lotes de baixo d’água, posicionados distantes da “pista” (rodovia), sem
nenhum tipo de infraestrutura ou até mesmo demarcados fora do prometido. No entanto,
todas essas situações eram resolvidas localmente, sem grandes intermediários, fator que
interessava a todos os envolvidos nesse negócio chamado loteamento.

O primeiro investimento público em saneamento na região em que se localiza o JC só


ocorreu após a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, em 1974, e com a
criação de Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (CEDAE) que
fundiu uma estrutura estatal até então fracionada, formada por um conjunto de
departamentos estaduais. Mesmo assim, a primeira rede exclusiva de água para o
loteamento só foi implementada nos anos 1990, com a chegada de novos agentes
internacionais, interessados em investir na urbanização e no saneamento dos municípios
metropolitanos.

Para atender o Jardim Catarina, a CEDAE utilizou-se de instalações improvisadas nas


adutoras gerais que levavam água ao centro de São Gonçalo e Niterói. Por ser de baixa
qualidade e vazão, essa cobertura era realizada parcialmente, por meio do serviço de
manobra, que alternava os dias e as localidades que seriam atendidas dentro do
loteamento. É nesse contexto que cresce o comércio dos caminhões tanques, os “pipas

19
d’água”, que passaram a ser controlados por grupos políticos do município e articulados
com agentes públicos da própria CEDAE.

A pesquisa irá mostrar que, quanto mais o Estado investia recursos públicos na
infraestrutura urbana de SG e da RMRJ, mais avançava a fragmentação territorial dentro
do loteamento, onde localidades específicas passaram a contar com melhores serviços
urbanos em detrimento de outras. A produção do espaço permanecia em constante
movimento, porém cada vez mais contraditória.

Conflitos entre localidades e instituições do Jardim Catarina se acirraram. Alguns


grupos comunitários, após a abertura política dos anos 1980, se organizaram em torno
das associações de moradores de forma a construir pautas sistematizadas de
reivindicações. Outros ficaram de fora. No contexto político nacional e estadual de
redemocratização, era preciso remodelar a noção de direito social institucionalizado
pela Constituição de 1988 às lutas do dia a dia. É assim que o saneamento básico
passava a ganhar importância na agenda pública, tendo nas obras de infraestrutura a
principal resposta por parte do Estado.

Nesse processo, o Jardim Catarina continua se dividindo internamente, transformando-


se em inúmeros “Catarinas”, termo local para se referir às divisões internas que se
multiplicaram ao longo do tempo. Enquanto áreas ganhavam redes de água e
pavimentação de ruas, outras sofriam com enchentes, pobreza e epidemias. Casos
particulares como o Conjunto da 40, construído pela Companhia de Habitação do
Estado do RJ (COHAB-RJ), e da favela do Pica-pau são exemplos de localidades que se
formaram dentro de lógicas e ordenamentos distintos das demais partes do loteamento.

Essa distinção socioespacial entre grupos e territoriais será revertida em estratégia por
parte dos próprios moradores como meio de garantir, num cenário de escassez de água,
acesso aos serviços e aos investimentos públicos. A entrada de investimentos e obras de
saneamento, principalmente, por intermédio de agentes públicos acabava interferindo na
correlação de forças locais, com a constituição de forte controle territorial sobre
recursos básicos, principalmente a água.

A estrutura estatal do setor de saneamento do estado, após a fusão, manteve a


centralidade do corpo técnico e dirigente da Guanabara nos processos decisórios da
CEDAE. Contudo tal fato não reduziu o atendimento contumaz aos interesses dos
grupos políticos ligados às prefeituras dos municípios do entorno da capital,

20
característico do antigo estado do Rio de Janeiro. Formou-se, assim, dentro do setor,
uma organização fragmentada em diretorias regionais que respondiam às demandas dos
municípios da periferia3, enquanto a empresa mantinha o alto investimento nos bairros
da zona sul e centro do Rio de Janeiro e de Niterói.

Hoje, o Jardim Catarina é o bairro com o maior número de habitantes de São Gonçalo e
o problema de saneamento continua sendo um dos temas centrais na vida dos seus
moradores. A pauta “água” permanece cada vez mais presente na política local. As
abordagens desenvolvidas nesse trabalho sobre as disputas em torno dos serviços de
saneamento se justificam, pois estas se mostraram determinantes para a organização
socioespacial de grupos sociais e lugares na Região Metropolitana do Rio de Janeiro
(RMRJ).

A partir de certo momento da história, muito do que se produziu em termos de impactos


sociais sobre a organização urbana e a população passará a responder mais a essas
dinâmicas internas ou regionais da política de saneamento do que decisões tomadas
numa estrutura estatal centralizada de poder. Principalmente após a reestruturação da
máquina pública do setor de infraestrutura no Estado do RJ dos anos 1970 e a condição
desigual na distribuição de serviços na RMRJ, os próprios agentes públicos, tiveram que
fazer uso de mecanismos contraditórios ao próprio ordenamento tecnocrático para
garantir sua hegemonia nos municípios metropolitanos.

Mesmo que a prática do loteamento tenha sido uma das principais ferramentas para a
urbanização de cidades, transformando da noite para o dia vastas zonas rurais em meio
urbano, ele costumava ser pensado dentro do contexto mais amplo do desenvolvimento
urbano brasileiro, amparado por teorias econômicas, em que a necessidade de geração
de capitais para a industrialização pós década de 1930, encontrava na incorporação de
terras a saída para a acumulação de capital necessário à transformação da economia
nacional (BONDUKI, 1994; MARICATO, 1982; OLIVEIRA, 1982).

Os debates ao longo do século XX sobre o urbano brasileiro voltaram-se mais para as


relações entre as políticas urbanas de Estado e seus impactos sobre a organização das
cidades e regiões metropolitanas do Brasil. Temas como habitação, infraestrutura
urbana e saneamento tomaram a dianteira das análises urbanísticas sobre cidades

3
Termo periferia é utilizado apenas para fazer referência aos municípios que orbitavam ao redor da
cidade do Rio de Janeiro e, que antes da fusão, faziam parte do antigo estado do Rio de Janeiro.

21
(SINGER, 1975). As ações do Banco Nacional de Habitação (BNH), as grandes obras
viárias realizadas nos anos de governo militar, as remoções de favelas do Rio de Janeiro
nas décadas de 1960 e 1970 e os processos de espoliação urbana e dilapidação da mão
de obra do novo trabalhador urbano de São Paulo, como meio de garantir níveis
elevados de acumulação de capital (KOWARICK, 2000), pautaram as discussões sobre
o urbano brasileiro.

Nesse sentido, a retomada das discussões em torno da formação de loteamentos nos


municípios metropolitanos do Rio de Janeiro visa, então, reposicionar o tema nos
estudos urbanos sobre nossas cidades. Se nas últimas décadas o olhar sociológico ficou
centrado na polarização entre favelas e bairros cariocas, ajudando a compreender as
contradições inerentes do processo de produção e constituição da cidade carioca
capitalista, parece necessário ampliar o foco sobre suas margens, onde a dinâmica
urbana jamais deixou de se complexificar. No caso Baixada Fluminense, alguns estudos
avançaram para além dos limites do Rio, tratando do “problema Baixada”, sobretudo, a
partir das representações sociais da violência, do saneamento e da pobreza (ALVES,
2003).

No Estado do Rio de Janeiro há particularidades que precisam ser iluminadas, desde o


processo (político) de constituição da região metropolitana, que arbitrariamente uniu por
meio de uma fusão autoritária mundos diferentes, até a atual configuração de suas
cidades. O olhar voltado para o plano nacional que tanto direcionou a política
fluminense e a aproximação interpretativa duradoura sobre o espaço carioca encobriram
as especificidades dessa metrópole. É preciso retomá-las.

A estrutura do texto

A tese está organizada em cinco capítulos. O capítulo 01 situa espacialmente e


economicamente o Jardim Catarina no município de São Gonçalo e na RMRJ. Essa
seção irá delimitar o saneamento como um tema importante para compreender a
dinâmica urbana da RMRJ, particularmente do JC. Da mesma forma, demonstrará a
importância econômica e política do loteamento para o município de São Gonçalo,
assumindo o posto de terceiro polo de serviços da cidade e um lugar central para
compreender o conjunto político e social da metrópole fluminense.

22
A relação entre a renda e o saneamento no Jardim Catarina é um importante indicador
para demonstrar que há uma série de fatores constituintes da ocupação e da
desigualdade dentro do loteamento que dificilmente seria notada apenas por dados
quantitativos e oriundos de fontes secundárias. Há uma invisibilidade do tema água,
diante de uma noção que costuma colocar a renda como fator essencial para analisar
pobreza e desigualdade. O que parece produzir, de fato, espaços desiguais no JC são a
questão do acesso ao serviço de abastecimento de água e da organização fundiária do
loteamento.

Além disso, o capítulo retoma e descreve algumas políticas e programas de saneamento


realizados não apenas no Brasil, mas especificamente na RMRJ que foram fundamentais
na organização socioespacial de SG e do JC. Partindo do papel do BNH na regulação do
setor saneamento no país, chega-se às intervenções da CEDAE em São Gonçalo, com
destaque para o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) que começou
a ser pensado nos anos 1980, mas se torna realidade no início dos 1990. O PDBG
merece destaque, pois trouxe com ele um rearranjo de forças no campo político do
saneamento com um claro rebatimento territorial nos municípios metropolitanos.

O capítulo 02 detalha o processo de estruturação do setor de saneamento estatal


fluminense, partindo de sua constituição histórica, tendo como pontos centrais de
argumentação a política e os conflitos os grupos de poder da Guanabara e o antigo
Estado do Rio de Janeiro. Há particularidades da política fluminense, com ênfase para o
processo da fusão do estado do Rio de Janeiro, em 1974, que por meio de uma ação
autoritária do governo militar uniu dois territórios altamente heterogêneos em termos
econômicos e de forte divergência política.

Nessa seção são descritas as mudanças no setor público de infraestrutura, tendo como
evento chave a criação da CEDAE, em 1975. A companhia que desde então assumiu
grande parte das decisões sobre os investimentos em saneamento na RMRJ. Será por
meio de obras e de programas de abastecimento de água que o Jardim Catarina receberá
seu primeiro sistema de saneamento, alterando o arranjo local de poder em torno dos
serviços urbanos.

Apoiando-se nos trabalhos de Eduardo Marques (1998; 2000) sobre as contratações e os


investimentos da CEDAE na RMRJ, entre 1975 e 1996, verificou-se que a empresa
assumiu como estratégia, logo nos primeiros anos, ampliar a cobertura de saneamento a

23
uma periferia até então desassistida. Contudo, para tal, a companhia teve que manter o
atendimento às bases políticas locais, tradicionais do período pré-fusão. Por meio dessa
estratégia a CEDAE conseguiu manter o alto padrão de investimento e da qualidade do
serviço na zona sul do Rio e no centro de Niterói, apoiando-se na nova lógica tarifária
de financiamento, mas garantindo, ao mesmo tempo, sua presença política nos
municípios da metrópole, como São Gonçalo.

A terceira parte da tese recupera o processo de formação do espaço de Jardim Catarina,


desde o lançamento como empreendimento fundiário nos anos 1950. A posição
marginal de São Gonçalo no contexto político e econômico da região metropolitana,
cujas dinâmicas internas eram capitaneadas por Rio de Janeiro e por Niterói, não
permitiu outra forma de ocupação diante de concentração de capitais urbanos nesses
municípios, a não ser via loteamento.

Da mesma maneira, a ocupação espacial via loteamento na RMRJ seguiu direções


distintas. Os exemplos comparativos entre Jardim Catarina e Itaipu, em Niterói, dois
empreendimentos imobiliários lançados simultaneamente, trazem radicais diferenças na
visão estratégica que os investidores do mercado imobiliário e o próprio Estado
depositavam sobre esses lugares. Jardim Catarina participou do processo de formação
do espaço metropolitano como fornecedor de terra para a incorporação do capital
fundiário, enquanto Itaipu estava incorporada a um projeto mais amplo de poder do
antigo estado do Rio de Janeiro, que queria transformar o balneário numa região
valorizada e de classe média metropolitana. Em Itaipu, o Estado utilizou-se da
planificação e dos projetos urbanísticos. Em JC, flexibilizou leis de uso do solo,
facilitando sua incorporação ao perímetro urbano de São Gonçalo.

O capítulo 03 centra-se ainda na organização do mercado imobiliário do Jardim


Catarina e de São Gonçalo, partindo do peso das relações entre moradores, loteadoras e
comerciantes locais na dinamização da economia urbana interna. Aos poucos, soluções
para os problemas da moradia e do saneamento eram acionadas por meio desses
arranjos políticos locais. No final dos anos 1960, com o adensamento populacional do
loteamento, começam a surgir as primeiras divisões internas na organização espacial do
JC.

O crescimento da ocupação, os mutirões e a lógica de urbanização estabelecida pelo


mercado imobiliário local e pelas regulações particulares de uso do solo, além da casa,

24
produziu possibilidades de trabalho dentro do loteamento, principalmente na área de
construção civil (pintor, pedreiro, mecânico, eletricista, ladrilheiro, entre outras). O
trabalho tido como informal muitas vezes era considerado a melhor opção por parte do
morador do Jardim Catarina, principalmente em caso de profissões com baixa oferta,
mas com muita procura em São Gonçalo. Relatos de moradores que encontravam meios
de subsistência no próprio Jardim Catarina e adjacências foram comuns ao longo da
pesquisa.

A casa, o trabalho e a água tornaram-se componentes essenciais da vida em um


loteamento com 174 ruas e 25 mil lotes, onde o “espaço do vivido”, aquilo que Lefebvre
chamou de espaços ligados “ao lado clandestino e subterrâneo da vida social” (2006,
p.59), produziu códigos e formas próprias de organização socioespacial. A história da
ocupação do Jardim Catarina será também a história dessas representações construídas
pelos indivíduos em relação à vida na cidade.

O quarto capítulo aprofundou o foco da análise sobre os territórios, identificando


relações e os conflitos (internos) existentes entre localidades do JC e o município de
São Gonçalo. Dois casos particulares foram detalhados: as favelas do Conjunto da 40 e
do Pica-pau. “Favelas” porque serão atreladas a elas definições por parte dos moradores
de outras localidades ou do restante do município cujos efeitos parecem ter sido
determinantes para o acesso desigual aos programas de infraestrutura urbana,
principalmente aqueles relativos ao serviço de abastecimento de água da CEDAE.

Tanto por meio da teoria sociológica como pela narrativa dos moradores e de lideranças
locais foram identificadas representações sociais que forjaram territorialidades e
distinções espaciais que passaram a ditar as relações políticas e as estratégias dos
moradores no seu processo interno de diferenciação em relação ao outro.

No plano supralocal, a partir da década de 1970, a imprensa de São Gonçalo começava


a registrar eventos diários relacionados à violência e aos problemas de infraestrutura de
saneamento no Jardim Catarina. Desenhava-se naquele momento um cenário em que as
políticas urbanas no município de SG iriam se deparar com um loteamento heterogêneo,
o que obrigaria aos agentes públicos a realizarem ajustes permanentes nas suas ações
sobre esses novos territórios retratados nos jornais.

O quinto e último capítulo dá formato final ao quadro político do JC a partir do desenho


de uma espécie do “mapa da água” historicamente formado dentro do loteamento. A

25
ideia de mapa é traduzir um campo de poder formado em torno da água, como uma
registro espacial gerado pelo emaranhado de linhas oficiais e os gatilhos feitos na rede
oficial da CEDAE, incorporando também a organização socioeconômica das
localidades, delimitando territorialmente o espaço de disputas entre os atores sociais e
as instituições supralocais em torno da água no Jardim Catarina.

A distribuição desigual das redes e tubulações reflete não apenas as obras e intervenções
públicas, mas os acordos entre agentes e políticos locais e lideranças comunitárias e
moradores. Essas forças se estenderam de forma desigual por todo o JC, seja integrando
partes do loteamento ou segregando outras.

A organização de uma pauta permanente de luta pela água ajudou a grupos locais a
manter o embate político aquecido e a desenhar uma agenda pública do saneamento na
RMRJ, mesmo que esta se mantivesse dominada pelo Estado e pelos demais agentes de
mercado. Essa pauta de reivindicações fortalece o enfrentamento cotidiano e o trânsito
do morador e seus representantes dentro de instituições supralocais e estatais. O setor
saneamento, além de conter forte teor econômico, transformou-se num campo altamente
disputado na sociedade fluminense.

Na parte final e conclusiva da tese apresenta-se o Jardim Catarina como a cidade


possível. Ou seja, a cidade construída por aqueles que nela vivem, se relacionam,
traçam estratégias de sobrevivência e de distinção entre si. Nesses espaços, tanto o
Estado como os moradores precisam lançar mão de práticas que entram em contradição
com a racionalidade dominante do planejamento urbano. O gatilho na rede de água, por
exemplo, não se tornou uma ação exclusiva dos atores e instituições locais, a própria
CEDAE, para garantir sua hegemonia sobre a distribuição de água teve que acionar
mecanismos de controle marginais sobre os serviços.

A cidade desigual é compreendida por todos. Pessoas e instituições sabem como se


posicionar nesse quadro complexo da política na metrópole, diante de uma realidade de
escassez de recursos e estruturada sob um espaço urbano hierarquizado. O
enfrentamento frontal é a opção menos acionada, o que não quer dizer que haja um
conformismo na ação dos moradores do Jardim Catarina. O que há de fato é um
permanente jogo de equilíbrio, onde cada lado avalia suas jogadas e busca garantir o
mínimo de contrapartida por parte da cidade.

26
O ponto de partida no Jardim Catarina

A primeira ida ao Jardim Catarina ocorreu quando trabalhava na ONG Centro de


Assessoria ao Movimento Popular – CAMPO, em 2007. Sediada na capital do estado do
Rio de Janeiro, a organização tinha como principal atividade assessorar grupos
comunitários por intermédio de Centros Comunitários de Formação Profissional –
CCFPs, distribuídos pela Região Metropolitana do Rio de Janeiro - RMRJ.

Esses espaços foram construídos para oferecer cursos de formação profissional


destinados aos moradores das comunidades atendidas, como incentivo para a geração de
renda e o que a instituição definia como “aumento da taxa de empregabilidade da
população local”. Ao todo, existiam 13 CCFPs, localizados nos municípios do Rio de
Janeiro, Duque de Caxias e São Gonçalo. Somente neste último havia 07 centros de
formação, espalhados nos bairros do Salgueiro, das Palmeiras, de Itaoca, no bairro de
Jardim Catarina e, ainda, nos bairros do Jóquei e de Santa Isabel.

Na concepção do CAMPO, esses centros comunitários deveriam servir de suporte


político e técnico para fomentar o “desenvolvimento comunitário” organizado a partir
do debate sobre cidadania, trabalho e cultura. O conceito de desenvolvimento embutido
nas ações mencionadas acima estava amparado na ideia de que a ação promovida nos
centros resultaria de uma articulação comunitária, e com isso mais fortalecida para o
alcance de oportunidades de emprego na RMRJ. Estava presente uma concepção que
interpretava o trabalho como meio de acesso aos direitos sociais pelos indivíduos e,
consequentemente, de garantia de autonomia e participação social na vida em
sociedade.

No entanto, a assessoria deparava-se com questões que saltavam diariamente das


atividades dos CCFPs. Primeiro, a diversidade dos problemas que emergiam na relação
diária entre a ONG, a equipe local do CCFP e o trabalho do CCFP com os moradores
dos bairros atendidos. Evidenciavam-se inúmeros atravessamentos sobre a temática
“Trabalho e Renda”. Outro ponto referia-se às dificuldades que os projetos sociais
desenvolvidos pela ONG enfrentavam frente às instituições mais amplas da cidade.
Sendo exemplificadas pelo mercado formal de trabalho e o restrito acesso ao emprego; e
por conflitos envolvendo a população, grupos locais de poder e as instituições do
Estado. A noção de trabalho por parte da instituição entrava em choque com as
atividades e as regulações do mundo de trabalho no Jardim Catarina e de São Gonçalo.

27
O nosso diagnóstico pautava-se sobre São Gonçalo como domicílio dormitório, e
Jardim Catarina como o lugar da informalidade.

Durante a presente pesquisa contei com o apoio da equipe do CCFP de Jardim Catarina
para a realização do trabalho de campo e seleção de entrevistados. O grupo era formado
por mulheres, que dividiam as tarefas e as atividades do centro comunitário. Eram
agentes de saúde, que alternavam o tempo com o Posto de Saúde da Família (PSF),
professoras do curso normal formadas numa escola estadual dentro do próprio
loteamento e uma voluntária que residia próxima ao espaço.

As atividades do CCFP do Jardim Catarina levaram a um ambiente de circulação de


demandas locais e de discussões relativos ao cotidiano do loteamento. Problemas
familiares, violência, desemprego, saneamento básico, dificuldade de pagamento dos
aluguéis e saúde de jovens e idosos acabaram se tornando temas diários, que
ultrapassavam os limites das oficinas e cursos profissionalizantes oferecidos pela ONG.
Os anseios das famílias encontraram nos centros e nos profissionais que ali atuavam um
canal de interlocução.

Porém, enquanto falávamos de autonomia, cidadania, direito à cidade, libertação,


transformação social, os moradores tratavam de temas como preconceito, violência,
água, esgoto, escola e saúde. Pelas falas e conversas informais fui percebendo que
alguns desses temas perpassavam pelos demais. A ideia de que os problemas sociais
eram generalizáveis e que estavam relacionados a todos os moradores das áreas urbanas,
que a princípio, desejavam as mesmas coisas, não encontrava eco nos pequenos debates
realizados nas salas do CCFP de Jardim Catarina.

Tal experiência evidenciou uma dificuldade de compreensão por parte da instituição na


qual trabalhava a respeito não apenas do cotidiano dos moradores da periferia, mas
sobre o processo histórico de formação desses lugares. O espaço popular precisaria
então ser interpretado a partir do reconhecimento desses fragmentos de vida, que
mesmo deslocados da visão hegemônica de urbanismo e do trabalho assistencial,
possuem canais de conexão com a cidade, servindo como força motriz à organização
espacial do bairro.

A minha dificuldade em perceber a diversidade de elementos que estruturavam a vida


cotidiana, o reconhecimento acerca das relações mais normativas entre os grupos
populares e as instituições do Estado e o dilema dos profissionais e jovens das

28
comunidades nas quais trabalhei tornaram-se os pilares para o desenho do meu projeto
de pesquisa. Tanto que em 2009, diante dessas constatações e questionamentos,
ingressei no mestrado acadêmico da Escola Nacional de Saúde Pública – Ensp/Fiocruz.
Essa escolha se deu, pois a área da Saúde Pública se apresentou para mim como um
campo que permitia abarcar diversas linhas teóricas de pensamento, promovendo um
diálogo mais abrangente entre saúde, território e ambiente e entendendo o espaço
urbano como campo de luta e resultado de processos históricos distintos.

Nesse primeiro momento, a proposta era mapear as inúmeras práticas dos moradores do
Jardim Catarina no enfrentamento de seus problemas de saúde e ambiente e, ao mesmo
tempo, de que forma as mesmas se relacionavam com a organização espacial do bairro.
A ideia foi construída justamente por conta dos impasses na interpretação que o trabalho
de assessoria enfrentou diante da realidade heterogênea do bairro. O trabalho e a saúde
como direitos apresentavam-se de forma difusa quando incorporados aos projetos da
ONG, em muitos casos, incapazes de identificar os “pequenos” elementos do dia a dia
que estavam atrelados a contextos mais complexos, cujas interações resultavam das
reciprocidades entre as estruturas da cidade com as dinâmicas socioespaciais do lugar.

O mapeamento das práticas contribuiu para identificar conexões entre o local e a cidade
e expor os já citados desencontros entre tempos e compreensões a respeito dos
elementos do dia a dia no Jardim Catarina. Os mutirões de resgate de pessoas após as
constantes enchentes no bairro exigiam responsabilidades bem definidas entre os
moradores; o trabalho dos agentes comunitários de saúde, que transitavam entre o
código de ética do serviço público e a experiência vida no bairro contava com o vínculo
de confiança com o vizinho; a ocupação de terrenos e seu posterior desmembramento
era o caminho para a reprodução social da família e fonte alternativa de renda.

Essas práticas locais, na verdade, estavam interligadas às diversas dimensões do que


representa viver em áreas urbanas. Os gatilhos ou “gatos” na rede de geral água, mais
do que uma forma de sobrevivência ou ilegalidade, representam o resultado de conflitos
e negociações envolvendo instituições do Estado, agentes econômicos e grupos locais
organizados, e cujo controle e acesso aos recursos exigem perspicácia e cuidados por
parte dos moradores. Era preciso olhar para as escalas.

A condição e a oferta precária dos serviços de saneamento básico em partes do Jardim


Catarina geraram distinção entre a própria população, contudo, também fizeram valer os

29
inúmeros investimentos de políticas urbanas de infraestrutura por parte da prefeitura,
governos estadual e federal. Assim, o estudo sobre as práticas dos moradores permitiu
descortinar algumas pistas sobre a formação do espaço urbano da periferia e sua relação
com a cidade e com a Região Metropolitana.

As intervenções do Estado nas últimas décadas no Jardim Catarina, a situação


permanente de ruptura dessas políticas e a forma como se organizavam os moradores e
as instituições locais garantiram um cenário diversificado em termos espaciais, contudo
ainda pouco conhecido e compreendido. Na atual pesquisa, o loteamento passou a ser
tratado como um conjunto de loteamentos heterogêneos, cuja formação se constitui
como um resultado do movimento dialético entre forças sociais locais e as práticas
institucionais supralocais. Esses espaços corresponderiam à contrapartida da cidade, a
qual, como Lefebvre demonstrou, se produz como um caleidoscópio de lugares,
interações cruzadas entre o território e a cidade (2000; 2001).

Figura 1: São Gonçalo e a RMRJ

Fonte: produção própria a partir de base cartográfica da Fundação CEPERJ

30
A pesquisa, as fontes e o trabalho de campo

A análise histórica percorreu principalmente o período entre 1970 e 1990, definido


como o recorte temporal da pesquisa. A escolha se deu porque esta época trouxe uma
série de transformações na organização espacial e urbana do Jardim Catarina, saindo de
uma área cheia de vazios para um acelerado adensamento urbano, e da RMRJ, que
passou a receber inúmeros investimentos em infraestrutura urbana, como obras de
grandes vias, de saneamento e sofrendo com a intensificação dos fluxos intermunicipais
de pessoas. Além disso, tratam-se das décadas em que o setor público de saneamento se
consolida definitivamente no Estado do Rio de Janeiro, com uma forte centralidade na
máquina estatal da CEDAE. Ao mesmo tempo, no âmbito local, modelava-se o campo
de forças em torno dos serviços de saneamento, tornando-se pauta permanente da
política local e essencial para a vida dos moradores.

A escolha da CEDAE para o enfoque sobre as políticas urbanas justifica-se porque a


empresa estatal foi criado justamente no contexto da fusão dos estados da Guanabara e
do antigo estado do Rio de Janeiro. Ela representa uma espécie de síntese das relações
políticas e de poder que envolviam os grupos políticos dos dois estados. A ação da
estatal no Jardim Catarina e na RMRJ pode ser identificada por meio dos investimentos
realizados durante os anos 1970 e 1990, entre eles licitações e contratos de obras
públicas, trabalho minucioso e já disponibilizado por Eduardo Marques (1998).

No campo territorial, as estratégias e ações da CEDAE foram mapeadas por intermédio


de entrevistas com moradores e lideranças comunitárias, documentos oficiais,
depoimentos em reportagens de jornais e sítios eletrônicos da empresa e demais órgãos
públicos. Informações sobre obras, acordos, relações de conflitos entre Estado e
sociedade, dados estatísticos e cartográficos foram disponibilizados e organizados de
maneira a localizar no tempo e no espaço as intervenções públicas em saneamento e
abastecimento de água tanto no JC como em São Gonçalo.

O trabalho de campo foi realizado entre 2014 e 2016. A ideia era identificar pessoas e
instituições locais que pudessem ajudar na recuperação histórica da ocupação do Jardim
Catarina. Entre os personagens que se destacaram na pesquisa, o enfoque recaiu sobre
agentes públicos ligados ao setor de saneamento, que podem ser tanto funcionários

31
públicos quanto políticos, tais como vereadores, deputados e candidatos; e também
sobre os moradores, mais especificamente a respeito de personagens que passaram a
atuar diretamente nas políticas de infraestrutura dentro do JC. Entre eles: presidentes e
ex-presidentes da associação de moradores, comerciantes e grupos de poder local que
passaram a se envolver com o tema a partir de reivindicações e mobilizações locais.

Esses, logicamente, não são os únicos atores que atuam na política do Jardim Catarina,
muito menos no setor público de saneamento. Porém, os critérios de seleção
envolveram aqueles indivíduos com maior capacidade de transitar entre o local e o
supralocal, ou seja, entre o JC e a RMRJ. Essa mobilidade e esse deslocamento são
essencialmente para a manutenção de relações políticas com institucionalidades e
agencias públicas.

Os atores são organizados em dois grupos: moradores antigos, que auxiliaram na


compreensão da história do processo de ocupação do loteamento, das práticas locais e
estratégias dos trabalhadores na luta pela fixação no loteamento; e outro grupo formado
por agentes públicos e privados, moradores ou não, que passaram a ocupar uma posição
política no loteamento e no município de São Gonçalo, permitindo um lugar
privilegiado de negociação. A identidade dos entrevistados foi preservada. Nomes de
pessoas, instituições e localidades foram alterados, evitando assim expor os
participantes da pesquisa. Sabendo que o acesso aos serviços urbanos se tornam forte
alvo de disputas, principalmente em relação à água, foi necessário seguir por vias
intermediárias de produção de dados e informações sobre o saneamento no Jardim
Catarina.

O processo de construção da pesquisa, especialmente a partir do trabalho de campo,


enfrentou algumas importantes limitações, a principal delas foi esbarrar com a barreira
existente entre a realidade e as situações limites enfrentadas cotidianamente pelos
moradores das margens da cidade e o interesse do pesquisador em alcançar o conteúdo
mais profundo do quadro social e politico dos territórios urbanos pesquisados. O tema
da água, por exemplo, não é algo corriqueiro ou visto apenas pela ótica da escassez. Na
tese em questão, as relações construídas historicamente em direção ao acesso à água
estão cheias de operações e mecanismos de coerção e controle. Grupos econômicos e
políticos, com forte presença no dia a dia de Jardim Catarina, passaram a exercer seu
poder sobre este recurso.

32
Algumas localidades sofrem mais com o desabastecimento do que outras. Estratégias
foram sendo elaboradas ao longo do tempo. Parcerias e acordos políticos foram sendo
costurados em detrimentos de territórios e grupos sociais que tiveram seu acesso a
infraestrutura urbana bloqueado. É preciso cautela.

Em outra direção, como uma das metas da pesquisa é recuperar as informações a


respeito da ocupação do Jardim Catarina, desde seu lançamento como empreendimento
imobiliário na RMRJ, buscou-se nos anúncios da seção de classificados dos jornais que
cobriam o dia a dia de São Gonçalo, dados históricos sobre o processo de
comercialização de lotes, compras de casa e dinâmica do mercado imobiliário e
fundiário local. O principal periódico da região de pesquisa é o jornal O Fluminense,
criado ainda no século XIX, que mantém sua publicação até os dias atuais.

Uma excelente fonte de consulta pode ser encontrada na base de dados da hemeroteca
da Biblioteca Nacional. A partir do acervo digital e utilizando ferramentas de filtro e
busca, foi possível encontrar 12.894 citações do nome “Jardim Catarina” no total das
edições publicadas no jornal. O primeiro aparecimento foi no ano de lançamento do
loteamento, em 1953. A seguir foram organizados por décadas os números de citações
sobre o JC.

Tabela 1: número de citações “Jardim Catarina" nas seções de O Fluminense

Período Nº ocorrências % Seção


Classificados
1950-1959 196 100%
1960-1969 591 100%
1970-1979 2403 94%
1980-1989 2870 90%
1990-1999 2403 87%
2000-2009 3203 79%
Fonte: base de dados da Hemeroteca da Biblioteca Nacional4.

Observa-se na tabela que nas duas primeiras décadas, além de poucas citações, o nome
Jardim Catarina vinculava-se mais às oportunidades criadas pelo mercado imobiliário
local, apresentadas na seção de classificados. Desde sua fundação, o loteamento parece
4
Elaborado a partir da base de dados da Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Disponível em:
digital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

33
ter mantido essa função de fornecer moradia e possibilidades de negócios na compra de
terrenos e na venda ou a aluguel de casas.

A partir da década de 1970, nota-se uma explosão no número de citações, saltando de


591, em 1969, para 2.403, dez anos depois. Consultando os conteúdos das reportagens
percebe-se um deslocamento das representações que a imprensa fazia a respeito do
Jardim Catarina. Chama a atenção os temas da violência e do saneamento. Reforçados
ao longo do trabalho de campo e das entrevistas como assuntos centrais que
atravessavam o cotidiano.

A ação de grupos de extermínios, que chegava com os anos 1980, caminhava lado a
lado com as promessas de novas obras e intervenções para o abastecimento de água,
após crises sanitárias. Problemas ambientais como inundações e alagamentos começam
a ser retratados nas capas e nas matérias do jornal. Abria-se um espaço para a fala de
políticos e de lideranças locais, que exigiam melhores condições de vida e mais
investimentos públicos para o JC.

Essas dimensões da vida representadas pelos jornais muitas vezes entravam em


confronto com os relatos e as experiências dos entrevistados. Os dados oficiais de
abastecimento de água publicados no O Fluminense eram questionados, fazendo com
que a associação de moradores do Jardim Catarina percebesse a necessidade de
construir uma narrativa própria sobre o problema da água. Por outro lado, os próprios
moradores e lideranças locais, assim como os agentes públicos e privados, utilizavam-se
dos discursos da precariedade do loteamento e da presença de “favelas” como estratégia
para atrair mais investimentos públicos. Ao chegar ao Jardim Catarina, contudo, esses
recursos viravam alvo de disputas internas.

34
Capítulo 1 - O urbano como apoio para análise das práticas sociais na
cidade

Manuel Castells (1983), ao tratar do urbano na América do Sul, o descreveu como um


espaço onde as forças produtivas necessitavam que o Estado, ente planificador,
garantisse bens e serviços urbanos básicos ao consumo coletivo como forma de
reprodução do trabalhador na cidade. Os serviços públicos seriam entendidos por
Castells como um recurso que funcionaria como uma espécie de “salário indireto” pago
ao trabalhador, o que levaria à redução dos custos de produção dos capitalistas. As
questões urbanas passavam a ser definidas a partir do consumo coletivo, “ou ao que os
marxistas chamam de organização dos meios coletivos de reprodução da força de
trabalho”5.

O Estado ao ofertar esses serviços, tais como infraestrutura de saneamento, de habitação


e de transporte público, desoneraria os setores capitalistas nos seus custos de produção,
garantindo ao modelo latino-americano a geração acelerada e acumulação de capitais. A
cidade, nesse sentido, seria percebida pela via do consumo, reduzindo de certa forma o
papel do espaço como elemento essencial de produção. Na realidade urbana formulada
por Castells haveria um conflito permanente entre trabalhadores e Estado, desviando o
foco, por exemplo, das lutas entre classes sociais.

Já Francisco de Oliveira, ao reformular as teorias sobre o urbano no contexto do


desenvolvimento econômico brasileiro, buscava indicar as particularidades do nosso
modelo capitalista, afirmando que a cidade seria o lugar de “manutenção, ampliação e
combinação do padrão ‘primitivo’ com novas relações de produção” (2003, p.46).
Diferente de Castells, buscou demonstrar que os custos de produção (ex: serviços e
infraestrutura urbana) não eram oferecidos integralmente pelo Estado, levando à
dilapidação da força de trabalho e das condições de vida do novo trabalhador urbano.

Para o autor, esta incapacidade do Estado em gerar serviços levava à necessidade do


crescimento urbano se horizontalizar, mantendo-se os baixos custos de produção do
espaço urbano, sustentado por uma abundância de mão de obra nas metrópoles do país.
Assim, fenômenos como a autoconstrução foram tratados como atividades que no fundo
acabavam colaborando com o avanço da urbanização dentro dos moldes do capitalismo

5
Ibid., p. 483;

35
brasileiro. A partir daí o debate percorreu até a década de 1980 focado em grande
medida sobre os problemas urbanos como resultado do modelo econômico e social
adotado no país. Prevaleciam as discussões sobre as mazelas brasileiras, a pobreza
urbana e o (não) crescimento econômico do país.

Ao invés de atrasado e marginal, o capitalismo brasileiro tinha na espoliação da classe


trabalhadora, que se acumulava nas periferias dos grandes centros do país, seu ponto
central de funcionamento (KOWARICK, 2000). Os loteamentos da periferia das
cidades, por sua vez, representavam o lócus da precariedade como condição de vida da
população, cujos recursos além de escassos eram providos pelo Estado, que assumia
nesse processo o papel de mediador entre classes sociais numa sociedade desigual.

No caso de São Paulo, as bases produtivas do capital fundiário oriundo da produção de


loteamentos e incorporação de terras era ponto de pauta das pesquisas sobre os
problemas urbanos (CAMARGO et. al., 1976). No entanto, geralmente a cidade
continuava a ser analisada como a unidade espacial da reprodução da força de trabalho e
do consumo, com destaque às discussões sobre habitação, saneamento e financiamento
público da moradia (BOLAFFI, 1976; MARICATO, 1982).

O Estado cada vez mais se tornava o ator demandado a encontrar saídas para a questão
da moradia urbana e do saneamento. Como reflexo as análises centravam-se mais no
aspecto físico das periferias paulistas - espraiamento urbano, déficit de infraestrutura
etc.; na relação com os centros de negócio e de emprego – pendularidade, oferta de
serviços, trabalho, ensino; e por meio da descrição das condições materiais do
trabalhador – precarização da força de trabalho devido aos baixos salários e à jornada de
trabalho prolongada.

As inúmeras abordagens sobre a desigualdade e segregação social ora eram pautadas


pelas características socioeconômicas da população e grupos sociais, tais como sexo,
renda, escolaridade entre outras (BICHIR, 2009); ora apoiadas na centralidade da ação
estatal na realização de políticas e oferta de serviços, destacando a motivação e os
interesses de agentes estatais em expandir os serviços para as periferias e favelas
(MARQUES, 1998; 2000; MARQUES; BICHIR, 2001); ou ainda, recordando o papel e
a importância da redemocratização brasileira no início dos anos 1980, com o
ressurgimento dos movimentos sociais e sua mobilização direcionada ao acesso e à luta
por bens e serviços de consumo coletivo (SADER, 1988; GOHN, 2008).

36
Por sua vez, a questão fundiária e a dimensão da posse da terra nas áreas urbanas das
metrópoles brasileiras também foram vistas como fortes determinantes para a efetivação
ou não de infraestrutura nesses lugares. A ideia de “invisibilidade” dessas áreas no
âmbito das políticas públicas, por conta das barreiras sociais e institucionais geradas a
partir de uma ideia de segregação territorial, a princípio, bloqueariam a chegada de
serviços e outros bens para o consumo e o atendimento das necessidades básicas da
população.

No Jardim Catarina a história parece ter caminhado por trilhas diferentes. O ponto
central da pesquisa é entender quais caminhos foram percorridos e como o avanço no
tempo fez do loteamento um importante lugar da cidade. Se há segregação, há também
pontes entre as muitas localidades, contatos diários, fronteiras e conflitos. Se há
problemas de infraestrutura, não significava que não haja serviços sendo oferecidos no
interior do bairro e controlados por instituições e agentes públicos. Se há pobreza e falta
de saneamento básico, ela segue num gradiente, cuja distribuição espacial no Jardim
Catarina e em São Gonçalo é fruto de formas de organização da própria população, da
estrutura de oferta dos serviços e das práticas sociais e relações construídas pelos atores
urbanos, o que levou a um quadro de distinção social e espacial entre territórios e
grupos.

Nos anos 1970, o setor estatal de infraestrutura urbana direcionou importantes


investimentos, principalmente em saneamento básico aos municípios da RMRJ,
expandindo a cobertura para áreas até então não incorporadas ao atendimento por parte
dos serviços de abastecimento de água, principalmente. Tanto a partir de levantamento
bibliográfico, como pelas informações adquiridas durante o trabalho de campo foram
confirmadas as ocorrências de intervenções públicas no Jardim Catarina ainda no
começo da década de 1970.

Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1988) alertava para as dificuldades na elaboração de
estudos sobre periferia e cidades. Depositando um olhar crítico sobre o urbanismo dos
arquitetos e dos planejadores. Os experts em cidade tendiam a separar elementos do
cotidiano urbano que a prática social e o “senso comum” juntam por meio de uma
estrutura em que os valores de uso e de troca do espaço urbano são atravessados por
valores simbólicos e bens materiais. Uma inversão da abordagem dicotômica que opõe
valor de uso x valor de troca, retirando do morador da periferia a capacidade de

37
entender as possibilidades de negociação entre essas duas dimensões, apoiados pela
experiência e valores construídos historicamente.

O Lugar onde está cada pessoa no mundo é percebido como o lugar da


vida e é o símbolo daquele de vida que a situa em relação a outras
possibilidades. É por isso mesmo que os diferentes autores concordam
quanto à essência social do espaço. Ele é classificatório, o que quer
dizer que, nessa equação, não há binômios puros, invenção da
perversa vocação dualista ocidental, no dizer de Leeds e Dumont. Há
polinômios, composições múltiplas de todos os elementos em todos os
sentidos (p. 45).

Carlos Nelson expõe essas interseções e sobreposições. Esses conjuntos não são
exatamente equilibrados, pendendo, a cada contexto e conjuntura política, para um lado
ou para o outro. “Pela crença nesse esquema de valores, a multidão dos pobres tem
conseguido se manter viva. Melhor ainda, tem sustentado a própria dignidade e esta
virtude que, no fim das contas, é o combustível da história – a esperança” (1988, p. 46).

A dimensão espacial tornou-se componente central para a compreensão das


transformações urbanas e da política na cidade. Dentre os autores que buscaram
entender e descrever o fenômeno urbano, Henri Lefebvre (2000) levou a diante sua
teoria que interpretava o espaço urbano como produto social, elemento chave para o
movimento da história e da produção da cidade.

O “espaço do vivido”, aquilo que Lefebvre chamou de espaços ligados “ao lado
clandestino e subterrâneo da vida social” (2006, p.59), produz seus próprios códigos e
formas de organização espacial e urbana. A coexistência entre agentes econômicos, as
instituições do Estado e os moradores dos loteamentos urbanos está assegurada pela
prática social (e espacial), ou seja, pela busca de todos em legitimar sua presença na
cidade. Integrados, mesmo que em posições hierarquicamente desiguais.

Por ser um produto social o espaço é produzido e, de acordo com o autor, diretamente
ligado à realidade social e aos desdobramentos históricos. “O espaço não existe em si
mesmo”. Tanto o espaço como o tempo deveriam ser compreendidos como elementos
inerentes à prática social. “Lefebvre os vê como produtos sociais, consequentemente

38
eles são ambos (espaço e tempo), resultado e pré-condição da produção da sociedade”
(SCHMID, 2012, p. 91).

Não haveria para Lefebvre uma relação direta e imediata entre modo produção e seu
espaço. Existiriam desencontros: “ideologias se intercalam, ilusões se interpõem (2000,
p.9)”.

Se há ciência do espaço, não pode haver aí contradições do espaço. Se


há dualidades (propriedades duais) constitutivas do próprio espaço
social, não pode haver aí contradição do espaço: dualidade não é
conflito, ao contrário. Se é verdade que o espaço é o lugar ou o
conjunto dos lugares da coerência, se é exato que há uma realidade
mental, não pode haver aí contradição do espaço. De Heráclito a
Hegel e Marx, o pensamento dialético se liga ao tempo; as
contradições dizem (exprimem) as forças e as relações de forças que
se enfrentam/se defrontam numa história (na história em geral)
(p.398).

As contradições são compreendidas a partir de um “pensamento dialético”, que para


Lefebvre significava reconhecer uma “realidade social marcada por contradições e que
somente pode ser entendida por meio da compreensão dessas contradições” (p.92).

A contradição tende à sua solução, ainda que a solução não negue


simplesmente a velha contradição, mas também simultaneamente a
preserve e a conduza a um nível mais elevado. Portanto, a solução
carrega nela o germe de uma nova contradição. Esta compreensão da
dialética é caracterizada por uma interpretação dinâmica e
profundamente histórica do desenvolvimento e da história. Lefebvre
destaca: “Movimento é, por conseguinte transcendência”
(LEFEBVRE, 1968, p. 36).

A formação do espaço do Jardim Catarina, mesmo significando um entre tantos outros


segmentos do processo histórico de urbanização do Estado do Rio de Janeiro, atende

39
por um conjunto específico do processo histórico da formação urbana da cidade
(MARTINS, 1996, p.16). Ou seja, as relações políticas que envolvem as disputas por
serviços públicos urbanos abarcam tanto elementos e condicionantes de ordem local,
baseados em grande parte na experiência histórica de quem vive no lugar; como
atendem são sensíveis às mudanças de conjunturas econômicas e políticas no
movimento de formação do espaço urbano.

O estudo empírico, neste caso, auxilia a identificar as mediações entre essas


composições e escalas da realidade. “Significa que as forças produtivas, as relações
sociais, as superestruturas (políticas, culturais) não avançam igualmente,
simultaneamente, no mesmo ritmo histórico” (MARTINS, 1996, p.17). As contradições
serão “respondidas” por meio de temporalidades e espacialidades distintas. É preciso
entender que a entrada de um novo ator em cena, ou a intervenção de uma obra pública,
mesmo que represente uma mudança na organização espacial e social de um lugar,
enfrentarão elementos históricos já presentes, que tentarão fazer valer da sua
territorialidade para existir e permanecer.

Um exemplo claro disso são as relações estabelecidas entre moradores e corretores


imobiliários, que mesmo após a chegada da ação estatal no loteamento, permaneceram
fundamentais para o reestabelecimento do mercado imobiliário local como importante
agente de organização socioespacial das famílias no loteamento. Se antes das
intervenções urbanas o JC possuía um padrão de ocupação e de estabelecimento de
trabalhadores, se não heterogêneo, pouco desigual; após as primeiras obras, há uma
canalização dos recursos e investimentos para áreas específicas dentro do loteamento,
que além de favorecer e atender aos parâmetros estabelecidos pelo corpo tecnocrata do
setor de saneamento público, também privilegiava grupos locais e os moradores das
localidades mais antigas.

Em poucos anos, ocorreu uma rápida caracterização e distinção territorial no JC que, ao


lado do crescimento populacional, contribuiu para o avanço da desigualdade dentro do
loteamento e por pressão por mais serviços, principalmente de saneamento. Esse quadro
modelou um cenário político onde cada participante tentaria atrair para si parte das
melhorias promovidas pelas intervenções. Olhando para esse cotidiano é possível
interpretar que a cidade vai se consolidando como “obra”, resultado das práxis humanas.

40
[...] desigualdade de ritmos do desenvolvimento histórico
decorre do desencontro que na práxis faz do homem produtor de
sua própria história e, ao mesmo tempo, o divorcia dela, não o
torna senhor do que faz. Sua obra ganha vida própria, torna-se
objeto e objetivação que subjuga em renovada sujeição o seu
sujeito (apud MARTINS, 1996, p.19).

A questão chave é que para fazer “funcionar”, a cidade seria também o ambiente da
divisão social do trabalho, que mais do que a divisão técnica do trabalho, exigiria
distinção social imposta entre indivíduos e lugares. Essa divisão seria uma fonte
aprisionadora do sujeito, inibidora da capacidade criadora. O que os marxistas vão dizer
é que essa condição levará a uma forte concorrência, e que por sua vez, impulsionará
uma ampla quantidade de conflitos entre indivíduos, grupos e classes (LEFEBVRE,
2001). A transição social e econômica necessária à produção industrial e à consolidação
do capitalismo brasileiro não compreendeu apenas a superação da população das
cidades sobre a do campo, mas o entrelaçamento de inúmeros fatores políticos,
econômicos, sociais e espaciais que transformaram os territórios em definitivo,
constituindo-se na base da sociedade urbana nacional.

Nesse contexto histórico e social de formação do espaço urbano, Lefebvre ressaltava a


existência de três dimensões da interação entre a sociedade e cidade. Primeiramente ele
identifica a prática espacial, ou seja, a dimensão material da atividade humana, aquilo
que marca e se torna territorialidade. Há aí um conjunto de atividades, todas simultâneas
e sobrepostas que modelam o urbano. Essa dimensão resultaria da articulação histórica e
das relações de troca entre os mais variados atores no cotidiano.

Uma segunda dimensão é tratada como as representações do espaço, aquilo que se


refere à linguagem adotada pelo conhecimento político e científico, que mesmo
possuindo diferenças entre si, deverão comportar algum aspecto que possa ser
reconhecido por todos. Ou seja, são os planos urbanísticos e os programas habitacionais,
por exemplo. Modelagens produzidas por arquitetos, pelo planejador público e por
cientistas. É a representação dominante da sociedade ligada à ordem que ela impõe. Nas
políticas de infraestrutura urbana essa dimensão é clara: as vias de ligação, as obras de

41
saneamento e os planos diretores vão representar a leitura elitista da cidade (VILLAÇA,
2005).

A terceira dimensão nasce dos Espaços de Representação. Trata-se da dimensão


simbólica do espaço, estruturados por significações mais complexas, atreladas ao
“subterrâneo” da vida social. É o espaço do vivido, construído por meio de imagens
daqueles que o utiliza. Muitas vezes permanecem submetidos às representações
dominantes do espaço, porém, a partir da imaginação (capacidade de abstração) e da
prática social é possível para os indivíduos criar estratégias e estabelecer meios de
apropriação espacial (LEFEBVRE, 2000; 2006).

Deixa de ser apenas uma relação entre sujeito e objeto, uma relação dicotômica, que na
visão de Lefebvre estaria sempre suscetível às formas de dominação. A “desordem”
produzida nas periferias metropolitanas situa-se dentro do próprio processo de produção
e da formação do espaço urbano. Processos esses que vão se constituindo e se
reestruturando dentro da sociedade capitalista de forma a gerar fragmentações
territoriais e desigualdades sociais. Contudo, se desde os tempos da Inglaterra industrial
do século XIX, observada por Engels (1975), as bases econômicas da acumulação
mudaram, então, a produção e a desigualdade no espaço urbano são algo inerente ao
movimento histórico de construção da própria cidade. O que interessa mostrar é que o
acesso (direito) à cidade é conflitual por definição (LEFEBVRE, 1969).

Conhecer melhor o que de fato está se desenvolvendo no Jardim Catarina permite


conhecer melhor a própria sociedade. Há uma teoria “subterrânea do espaço” que é
preciso ser decifrada sociologicamente. Os silêncios dos usos do espaço se materializam
por meio das relações em torno dos serviços urbanos, da busca pela casa ou da
negociação entre agentes públicos e moradores. O espaço urbano do Jardim Catarina é o
mediador das práticas. Nesse sentido, a descrição do processo de ocupação e
transformação do JC se constitui também um método para entender como ocorreram e
se produziram as contradições históricas nos espaços da cidade e, logicamente, sua
produção.

A ideia de propriedade como capital pautada pelas normas urbanísticas possui um


caráter abstrato, que se concretiza no cenário urbano de maneira difusa, envolvendo
diferentes regulações e códigos. A ocupação do Jardim Catarina se fez pela
sobreposição dessas regulações e ordenamentos, todas concretas e regidas pela relação,

42
negociação e pela experiência histórica do morador e demais atores sociais. O espaço
resulta da prática, porém dentro de um quadro de poder estabelecido pelas forças sociais
que ali se confrontam em busca de recursos, territórios e legitimação.

1.1 Jardim Catarina como unidade de análise

Antes de tudo, é preciso situar o Jardim Catarina (JC) e o município de São Gonçalo
(SG) no cenário urbano da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). A ideia é
trazer algumas características gerais do JC, porém, apontamento para alguns
questionamentos sobre sua organização espacial, urbana e sua condição social dentro do
município de SG. A dimensão ampla e horizontalizada do loteamento; a situação do
abastecimento de água e a dinâmica econômica interna são componentes de um modo
de vida que geram efeitos para além do local, contribuindo para a conformação da
própria cidade.

A história do JC se insere no contexto de transformação da metrópole do Rio de Janeiro


no século XX. Alguns autores dedicaram-se a entender o comportamento urbano e
regional fluminense, destacando elementos ambientais característicos e os fluxos
comerciais e de pessoas que foram delimitando os primeiros pontos de aglomeração
urbana para além dos limites da cidade carioca (GEIGER, 1954; BERNARDES, 1961;
SOARES, 1962; 1990). O ritmo de urbanização da RMRJ começava a se acelerar a
partir dos anos 1940 (ABREU, 1987). Por outro lado, o ambiente ainda rural nas
margens e a crise econômica (agrícola) enfrentada pelos municípios ao redor da Baía de
Guanabara traziam à agenda pública um desafio a ser enfrentado.

Abreu foi um dos primeiros estudiosos do Rio de Janeiro a associar o resultado da


organização espacial da região metropolitana às práticas políticas e aos conflitos
existentes entre a elite política da capital, antigos produtores rurais e posseiros que
tentavam se manter nas bordas da cidade. Com o advento inevitável da urbanização no
espaço metropolitano, surgiram as primeiras questões relativas à distribuição dos
serviços urbanos de infraestrutura, à formação de um mercado de trabalho e ao
problema da moradia. Para os grupos dominantes da capital, a solução para esse quadro
socioeconômico novo era concentrar recursos escassos nos bairros ocupados pelas
camadas médias e altas da sociedade fluminense, deixando a periferia sob uma restrita
oferta de serviços públicos.

43
A RMRJ, já no meado do século XX, apresentava dessa forma uma organização
concêntrica, com um centro de comando, uma classe trabalhadora industrial em
evolução e uma faixa de fronteira no entorno que funcionava basicamente como reserva
de terra e de mão de obra. Justamente neste ponto, na regulação estatal sobre o uso do
solo, que houve um incentivo à produção em larga escala de loteamentos nos
municípios metropolitanos. A ideia era fazer da incorporação maciça de terras um
movimento de inversão das áreas rurais em urbanas, tendo na comercialização de lotes o
motor para a geração de capital fundiário. Municípios como São Gonçalo assumiram
papel central nesse processo de produção de capital.

A partir dessa lógica, pequenos centros urbanos foram se espalhando pela região,
geralmente acumulados ao longo das ferrovias inicialmente criadas para o transporte de
mercadorias em direção ao Rio de Janeiro, consolidando a cidade como importante
porto exportador e entreposto dos produtos agrícolas (oriundos da região do Médio
Paraíba) e minerais (vindos de Minas Gerais) (SOARES, 1990).

Seriam as estradas de ferro, através dos estabelecimentos das


chamadas linhas suburbanas, os agentes primordiais da expansão da
cidade em direção ao recôncavo da Guanabara6. Paradas e estações se
multiplicaram, rapidamente, ao longo das quatro linhas ferroviárias
que partiam da cidade: a linha-tronco e a linha auxiliar da Estrada de
Ferro Central do Brasil, a Leopoldina e a Estrada de Ferro Rio D’Ouro
(p. 59).

Até os anos de 1950, São Gonçalo era um desses centros e estava na rota de comércio
estruturado pelas linhas férreas. Desde a virada do século XIX para as primeiras décadas
do século XX representava uma das principais regiões de produção agrícola fluminense,
com um papel importante no comércio de exportações em âmbito nacional. A rede
ferroviária da Estrada de Ferro Leopoldina no leste da Guanabara partia de Niterói,
passando pelas estações Porto da Madama e Alcântara, em São Gonçalo, interligando a

6
O recôncavo da Guanabara é o vale de planícies e baixadas formadas pela Região da Baixada
Fluminense e São Gonçalo entre a Baía de Guanabara e as montanhas.

44
região na direção norte do estado7. Contudo, após o declínio e decadência da atividade
rural no país a partir de 1930, as fazendas do município acabaram sendo destinadas ao
mercado urbano de terras.

A forma utilizada para incorporar essa vasta área plana que se tornou disponível e que
se localizava no entorno da Baía de Guanabara foi a prática do loteamento. Mesmo que
as características ambientais do terreno (alagado e sem saneamento) da antiga área rural
de São Gonçalo (e da Baixada Fluminense) tenha sido um fator de inibição da ocupação
imediata, a elevada quantidade de unidades fundiárias à disposição dos capitais da
metrópole atraíram investidores interessados em parcelara e comercializar essas terras.

Num primeiro momento era preciso reverter a função da terra, transformando-a em


ativo urbano. Para garantir condição mínima para a geração de capitais necessários à
acumulação e à industrialização promovida pelo Estado brasileiro, a prefeitura do
município promulgou uma nova legislação na década de 1940, decretando o município
como território totalmente urbano (BRAGA, 1998), abrindo espaço para o parcelamento
de terras e construção de novos loteamentos.

Em 1944, a prefeitura de São Gonçalo revisou a divisão político-institucional do


município, criando dois distritos a partir da antiga zona rural: Ipiíba e Monjolos. Com
muitas áreas vazias e de baixa densidade demográfica nesse período, esses distritos
eram tratados como região de futura expansão urbana da cidade. Novas estações de
trens foram criadas, especificamente Alcântara e Guaxindiba, na fronteira entre o centro
do município e os novos distritos. A RJ-104, rodovia estadual que conecta ainda hoje
São Gonçalo à região norte do Estado também foi modernizada e integrada à estação
das barcas de Niterói e ao terminal rodoviário de Alcântara.

Com o passar dos anos, os novos distritos foram vivenciando a elevação das taxas de
crescimento demográfico, levando ao rápido adensamento e expansão da mancha
urbana de São Gonçalo. O reflexo desse fenômeno é medido logo no primeiro censo do
IBGE a disponibilizar dados populacionais por distritos municipais. São Gonçalo
possuía, nos anos 1970, aproximadamente 430 mil habitantes8. Esses números saltaram
para 615 mil moradores na década seguinte, um crescimento absoluto de 42%. No caso
do distrito de Monjolos, onde seria criado o loteamento Jardim Catarina, em 1970,

7
http://www.historiadesaogoncalo.pro.br/
8
IBGE, Censo Demográfico de 1970.

45
residiam 46 mil habitantes, passando para 96 mil moradores dez anos depois, um
crescimento acumulado de 105%. O censo 2010 registrou 223 mil moradores no distrito
de Monjolos e 73 mil habitantes em Jardim Catarina. Hoje, São Gonçalo possui uma
população superior a um milhão de habitantes9 e a segunda maior do estado.

Figura 2: São Gonçalo, distritos do município e o Jardim Catarina.

Fonte: produção própria a partir da base cartográfica da Fundação CEPERJ

Desde sua criação, o distrito de Monjolos vem sendo responsável pelas maiores taxas de
incremento demográfico de São Gonçalo. Em anos recentes, entre 2000 a 2010, o
crescimento da população do distrito chegou a de 2,35% ao ano, média superior ao
município (1,15%) e da RMRJ (1%)10, inclusive. As dinâmicas demográficas
metropolitanas trazem ainda as mudanças históricas no fluxo populacional entre os
municípios da RMRJ e o deslocamento concentrado em direção à capital Rio de Janeiro.

No caso de São Gonçalo, o censo de 2010 demonstrou que o município possuía o


segundo maior movimento pendular do Brasil (São Gonçalo em direção a Niterói/Rio

9
De acordo com a estimativa 2017, residem no município 1.049.826 habitantes.
10
Tabelas com dados no Anexo I.

46
de Janeiro), com aproximadamente 200 mil pessoas deslocando-se diariamente, ficando
atrás apenas do eixo Guarulhos/São Paulo11. Por outro, a cidade tinha uma proporção
considerável de população economicamente ativa (PEA) 12 que encontrava
oportunidades de emprego no próprio município13 (LAGO, 2009; 2010). Os que
trabalhavam fora do local de residência representavam 34% da PEA, apenas o nono
maior percentual da região, ficando atrás de Duque de Caxias e a frente de Nova Iguaçu
(Anexo I).

Essa configuração supõe que o mercado de trabalho de São Gonçalo passou a absorver
uma parte expressiva de mão de obra do município. Já o trabalho tido como formal, o
setor de serviços respondeu por 65% dos vínculos empregatícios. Não há dados para
trabalho informal por município no Estado do Rio de Janeiro, contudo, sabe-se que, em
2010, das pessoas ocupadas na cidade, com idade acima de 18 anos, 40% possuíam
somente o ensino fundamental incompleto14.

Nessa relação formal/informal, o mercado de trabalho em Jardim Catarina traz alguns


elementos interessantes para pensar a proporção e o peso do loteamento na economia da
cidade. Os números de emprego registrados no Ministério do Trabalho (MTE), em
2014, demonstraram que o JC se transformou no terceiro polo de serviços de São
Gonçalo, perdendo apenas para as duas centralidades econômicas do municípios, o
centro e o bairro de Alcântara, tanto em termos de quantidade de estabelecimentos
regularizados, como em relação aos vínculos formais de emprego.

Considerando apenas informações presentes no cadastro do MTE15, o Jardim Catarina


contava, aproximadamente, com mil estabelecimentos empresariais, sendo 80% de
pequenas e microempresas registradas no setor de serviços. Ao todo foram
contabilizados 13.500 vínculos formais de emprego. Outro ponto que chama a atenção
tem a ver com o valor do salário. Em 2014, a média salarial dos empregos formais no
loteamento superou, por exemplo, o bairro de Alcântara, considerado principal centro
comercial de São Gonçalo, R$ 1.497,00 contra R$1.400,00, respectivamente.

11
IBGE. Arranjos populacionais e concentrações urbanas no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2 ed., 2016.
12
Pessoas que estão ou trabalhando ou à procura de trabalho no mês da consulta.
13 Aproximadamente 500 mil pessoas de acordo com o Censo 2010
14
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/sao-goncalo/panorama
15
Vínculos Formais é uma classificação do Cadastro Nacional de Atividades Econômicas – CNAE
publicado na RAIS/MTE. Para identificar as empresas no Jardim Catarina as informações foram
sistematizadas a partir da base de microdados da RAIS, partindo do CNPJ e dos endereços dos
estabelecimentos.

47
Imagem 1: foto aérea recente do município de São Gonçalo

Fonte: Foto Matheus Graciano

Atualmente, o Jardim Catarina é o bairro mais populoso do município de São


Gonçalo16. Nesse sentido, as dimensões do loteamento e a sua organização espacial se
confundem com a própria formação do espaço urbano de São Gonçalo. Trata-se de uma
cidade plana, extensa, de vias estreitas e com um comércio popular aquecido. Além
disso, como as taxas apontam, o bairro é o responsável não apenas em manter o ritmo
de crescimento demográfico, mas se tornou fundamental na estrutura econômico-
produtiva tanto do município como da RMRJ.

Logicamente, a história irá demonstrar que essa organização urbana gerou implicações
às condições de vida da população. A principal delas reflete os impactos e os
desdobramentos dos serviços urbanos sobre seus territórios. O perfil urbano espraiado, a
característica ambiental e topográfica plana e abaixo do nível do mar e a ocupação
baseada na autoconstrução pressionam o sistema de infraestrutura e de saneamento
básico por mais investimentos, aumento de cobertura e políticas permanentes de acesso
da população ao abastecimento de água e à rede de esgoto, principalmente.

16
O Jardim Catarina aparece oficialmente como bairro de São Gonçalo no Plano Diretor da Cidade de
1996.

48
Entre os municípios metropolitanos, São Gonçalo é apenas o décimo em termos de
cobertura da rede de água e de sistema de coleta de esgoto. O município possuía, em
2010, 79% dos domicílios ligados à rede e apenas 68% com serviço de coleta de
esgotamento sanitário. Além disso, a pesquisa demonstrará que, pelo menos no Jardim
Catarina, “estar ligado à rede de água” não significa que o morador recebe efetivamente
ou parcialmente o serviço. A desigualdade na distribuição do sistema na RMRJ é
fortemente territorializada. Analisando o percurso traçado pelo Jardim Catarina, o
conjunto casa-trabalho-água se apresentará como elemento central constituinte da vida
urbana.

1.2 A “invisibilidade” do saneamento na RMRJ

Para quem caminha pela primeira vez pelas ruas do Jardim Catarina surge a imagem de
um bairro popular, com muitas pessoas circulando, trânsito intenso, lojas abertas e
esquinas cheias. Numa mesma quadra é possível notar diferentes tipos de construção:
casebres sem acabamento ao lado de casas com dois, até três pavimentos bem
estruturados e com calçamento alinhado. Da mesma forma, há vias pavimentadas, com
boa cobertura de saneamento, enquanto na rua ao lado, faltam asfaltamento, calçadas e
canaletas.

Nas entrevistas realizadas ao longo do trabalho de campo, identificaram-se trajetórias de


moradores que investiram em um negócio próprio no comércio local, outros adquiriram
propriedade, subdividiram seus lotes e entraram no mercado de aluguéis; há também
histórias de políticos que atuaram como agentes econômicos e passaram controlar a
oferta de alguns serviços básicos dentro do loteamento, como acesso à água. Essas
dimensões do cotidiano serão a base para a compreensão dos fenômenos urbanos que
em curso transformaram a estrutura urbana de SG e do JC.

A análise do comportamento de indicadores socioeconômicos 17 aponta para diferenças


existentes na relação entre a renda e a cobertura da rede de água por domicílios,
observados dentro do Jardim Catarina. Na figura abaixo nota-se que, internamente, há
certa homogeneidade na média de renda entre os setores censitários do loteamento,

17
Indicadores construídos a partir dos dados censitários por domicílios e organizados espacialmente por
setores censitários. As informações são por amostra, conforme metodologia do IBGE para censos
demográficos.

49
distinguindo-se apenas quando comparado às áreas centrais de São Gonçalo, com
destaque para o bairro vizinho de Alcântara. Em JC a maioria dos domicílios tinha, de
acordo como IBGE, renda média entre dois a três salários mínimos (R$1020,00 a
R$1530,00, em 2010), com poucos setores com médias acima de três salários mínimos.

Figura 3: relação renda e infraestrutura por domicílio no Jardim Catarina – 2010

Fonte: elaborado a partir do Censo Demográfico do IBGE, 2010.

No caso da cobertura da rede de água já é possível perceber diferenças internas em


termos de acesso ao serviço de saneamento. Existe uma distribuição desigual do
atendimento, onde os setores censitários localizados na divisa com o bairro de Alcântara
possuem boa cobertura, podendo chegar inclusive a 100% dos domicílios cobertos
(ligados à rede geral de água). Enquanto isso, nas áreas mais ao norte do Jardim
Catarina (em direção a BR-101), a cobertura dificilmente alcança 50% de domicílios
ligados à rede geral de água.

As causas que levaram a essa organização espacial e desigual do serviço de


abastecimento de água resultam de um conjunto de relações postas em andamento pelos
mais variados atores sociais em seus movimentos de disputa por espaço na cidade. As
dimensões alcançadas pelo mercado de trabalho dentro e fora do JC, por exemplo,
parecem ter contribuído para aproximar a condição de renda entre trabalhadores. Há
uma desigualdade do ponto de vista da análise puramente socioeconômico apoiada na
renda que pode mascarar essa condição social em relação ao saneamento e às outras
formas de produção desigual do espaço urbano.

50
A vida cotidiana, então, congrega não apenas os passos do morador e a presença ou não
de algum tipo de atividade econômica local ou a presença de serviços públicos, como
saneamento ou transporte. Mas funciona como o espaço de mediação entre as ações das
instituições supralocais (e seus agentes) e as práticas sociais (e experiência) dos grupos
locais e moradores. A política na cidade estrutura-se sobre esses encontros. As próprias
políticas urbanas, com destaque para a urbanização de loteamentos e favelas, refletem as
contradições dessa relação entre escalas (espaços) e tempos.

No Rio de Janeiro, por exemplo, os debates e as políticas voltadas para as favelas


cariocas transitaram entre a necessidade de sua eliminação, vistos como lugares da anti-
cidade, e a incorporação (oficial) das favelas à área urbana, dentro do processo
conhecido como “consolidação de favelas” (CAVALCANTI, 2013).

Nas favelas do Rio de Janeiro, a vida cotidiana sedimentou, durante as


últimas três décadas, lógicas de informalidade capazes de desafiar
quaisquer fronteiras teóricas entre o legal e o ilegal, o legítimo e o
ilegítimo, justamente porque constitui uma lógica de organização que
governa o próprio processo de transformação urbana ao conectar
“diferentes espaços e economias entre si”, como sugere Ananya Roy
(p.194).

Essas lógicas de organização do urbano resultam da própria relação dialética entre as


práticas sociais e as formas de regulação do espaço, que dificilmente distingue o que é
formal de informal, legal de ilegal (TELLES, HIRATA, 2007). Essa visão difere
daquilo que Camargo e Cardoso (1973) chamaram de cultura urbana, que tinha como
base a relação direta com o consumo de massa e à estratificação social. Essa visão sobre
a cidade (e seus serviços), como objeto de consumo do trabalhador, direcionava o foco
da análise mais sobre o indivíduo e menos sobre a produção do espaço como processo
histórico. Afinal, o Estado e suas instituições deveriam ser sempre vistos como
provedores das demandas sociais daqueles indivíduos que se tornaram consumidores da
“cidade” (ARANTES, 2009).

Nesse sentido, o debate sobre o problema urbano acaba girando em volta de uma
perspectiva estatal/institucional, onde a ideia de mais investimentos e políticas sociais

51
torna-se a peça chave para compreensão das dinâmicas urbanas, e menos a respeito das
territorialidades, relações políticas e contradições urbanas. Numa disputa desigual entre
classes ricas e pobres, o Estado passaria a deliberar a respeito da distribuição dos
serviços urbanos e do excedente de capital em favor das classes médias 18, “que
constituem a base ideológica de sustentação do regime e da modernização
conservadora” (ARANTES, 2009, P.118).

Lucio Kowarick, contudo, ao instituir o conceito de “espoliação urbana” (1979) amplia


o olhar acentuando a condição de “inviabilidade das formas de consumo coletivo na
periferia do capitalismo, comparativamente às políticas públicas dos Estados de bem-
estar social”19. Com isso o espaço da cidade passa a ser visto além da sua atribuição de
ofertar serviços básicos à reprodução da força de trabalho, mas neste caso, espoliando as
classes trabalhadoras nas periferias urbanas, ou seja, uma inversão do papel da cidade
instituto de consumo.

Contudo, quando se busca compreender as distinções espaciais e socioeconômicas


dentro de loteamentos urbanos percebe-se que a produção de desigualdade interna no
Jardim Catarina, por exemplo, acentua-se justamente quando o Estado passou ofertar
alguns serviços de infraestrutura, ainda no final da década de 1970. Certas localidades
do loteamento passaram a receber continuamente obras e serviços de saneamento,
enquanto outras permaneciam sem abastecimento de água e pavimentação de ruas.
Mesmo em áreas tidas como pobres, no contexto metropolitano, há uma produção de
contradições que vai permanentemente gerando processos de centralização ou
periferização espacial, o que seria uma forma desigual de integração territorial desses
lugares ao cenário mais amplo da cidade (SINGER, 1973; 1975).

A chegada de serviços urbanos de saneamento no Jardim Catarina, na década de 1970,


induziu de fato a valorização de algumas localidades em detrimentos de outra. Nos
demais municípios da RMRJ, inclusive aqueles considerados periferias consolidadas
(ABREU, 1987), padrões de valorização imobiliária e o surgimento de um mercado
imobiliário dinâmico também se tornaram realidade.

Parte da teoria elaborada nos anos 1970 e 1980 (MARICATO, 1982; BANDUKI,
ROLNIK, 1982) já destacava que o valor econômico da propriedade urbana, ou da área

18
Ibid., p.53.
19
Ibid., p.119.

52
a construída, passaria a ser composto por elementos relacionados à localização do
imóvel no conjunto da cidade e à proximidade com áreas bem estruturas em termos de
infraestrutura e serviços urbanos. Com isso, a propriedade privada internalizaria custos
do entorno, transformando o imóvel num bem de alto valor dentro de um mercado
imobiliário hierarquizado.

A elevada concentração de serviços e capitais no centro da metrópole encontraria


limites dentro da própria produção do espaço urbano, pois a valorização de áreas em
detrimentos de outras causaria um forte desequilíbrio, afetando o processo produtivo, ao
ponto que o Estado e os demais agentes econômicos teriam que adotar medidas dentro
de planejamento urbano e por meio da “gestão territorial” para recuperar a retomada do
crescimento e da acumulação (VAINER, 2009).

Perdendo a velocidade na medida em que as deseconomias sociais


aumentam a ponto de anular os ganhos privados. Daí que, diante da
tendência a uma queda da renda, o planejamento volta a ser necessário
como instrumento capaz de evitar a inviabilização completa da cidade
e de seu sistema de valorização patrimonial (ARANTES, 2009,
p.125).

Contudo, para fazer valer seu poder e sua legitimidade, as agências públicas tiveram que
fugir dos padrões tradicionais de políticas urbanas voltadas aos trabalhadores, tais como
os programas habitacionais do Banco Nacional de Habitação (BNH) e as Companhias
de Habitações Estaduais (COHABs). A partir da fusão do Estado do Rio de Janeiro
(1974) e, principalmente, da criação da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio
de Janeiro (CEDAE), em 1975, há uma reconfiguração das forças políticas tanto a nível
estadual como na escala do território do Jardim Catarina.

1.3 Políticas de infraestrutura urbanas e seu rebatimento territorial na


RMRJ

A atuação e a importância do BNH para as políticas habitacionais no país já foram


amplamente estudadas por autores das áreas do urbanismo, da economia urbana, do

53
planejamento público (BOLAFFI, 1976; 1985; MARQUES, 1998; 1999). Contudo,
autores como Bolaffi traçaram abordagens mais amplas sobre o tema, incorporando à
política estatal uma “lógica de produção”.

A Política Nacional de Habitação desenvolvida pelo governo federal na década de 1970


delegará ao mercado imobiliário privado parte das decisões sobre o andamento da
política habitacional do país, principalmente sobre a localização de onde investir e o
quanto investir. Logicamente os piores lugares seriam destinados à população mais
pobre, o que para Bolaffi (1977) teria como consequência a consolidação de uma
“cadeia de negociatas inescrupulosas, de privatização de ganhos e socialização de
perdas”20.

O que poderia ser interpretado como um risco ao desenvolvimento urbano capitalista


brasileiro, com o direcionamento equivocado dos gastos públicos e financiamento para
pessoas que teriam dificuldade em pagar pelo crédito imobiliário, seria na verdade o
cerne da concentração e acumulação de renda. De acordo com Bolaffi e outros
autores21, esse padrão se tornaria estrutural e base da dinâmica urbana.

Seguia-se no país um padrão arquitetônico e uma locacional que não voltados a atender
as necessidades da classe trabalhadora urbana, “as habitações oferecidas pelos
programas governamentais saíram caras, apresentavam pouca flexibilidade de uso e
foram mal localizadas no espaço urbano” (VALLADARES, 1985, p.37). Sem falar que,
até 1984, as políticas habitacionais eram praticamente centralizadas a nível federal, cuja
visão planificadora se reproduzia independente de região ou estado.

No Rio de Janeiro o “problema” favela continuava a se reproduzir na cidade diante da


fragilidade das políticas habitacionais. A solução encontrada para a desigualdade social
ilustrada na paisagem carioca foi a atuação conjunta entre o Estado e os agentes do
mercado imobiliário que, a partir da década de 1960, iniciaram a implementação dos
programas de remoção dessas áreas pobres do centro e da zona sul do Rio de Janeiro
(VALLADARES, 1979; 2005). A grande maioria dos removidos foi levada a conjuntos
habitacionais construídos nos limites do município, na maioria espaços sem
infraestrutura ao redor, distantes do emprego e alijados de projetos urbanísticos
dedicados à cidade.

20
Ibid., p.50
21
MARICATO, 1982; BONDUKI, ROLNIK, 1982.

54
No âmbito geral da RMRJ, esse tipo de ação governamental, geradora de centralização
dos bens e serviços nas partes centrais da cidade, levou a um quadro segregacionista,
distinguindo o núcleo urbano – com presença de atividades econômicas de alto valor
agregado e bairros de classe média e alta -, os subúrbios operários da zona norte carioca,
com acesso a parte das infraestruturas urbanas, como rede ferroviária e de saneamento
básico; e os loteamentos localizados nos municípios da periferia metropolitana, sem
infraestrutura de pavimentação, saneamento, transporte, vivendo sob condições
instáveis de renda e seguridade social (ABREU, 1987).

O que poderia parecer uma contradição, com um Estado que apertava a regulação de
uso do solo nos centros urbanos e cedia nas periferias para a construção de loteamentos,
para Gabriel Bolaffi (1985) servia mais como um mecanismo voltado para a
acumulação e concentração de renda em setores econômicos específicos. Fazendo dos
loteamentos, por exemplo, não apenas uma alternativa de moradia para quem estava à
margem das políticas habitacionais, mas garantir um fluxo de rentismo fundiário como
forma para promover expansão urbana desigual e concentradora.

A partir do golpe militar de 1964 há uma reformulação também das políticas de


saneamento no país com a reestruturação do financiamento público para obras e
programas de urbanização. São deste mesmo ano a criação do Banco Nacional da
Habitação e a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)
(BONDUKI, 1994). Com o passar dos anos o BNH aumenta sua parcela de
investimento na área de saneamento e desenvolvimento urbano, passando de 4% das
aplicações em 1969 para 30%, em 1980 (MARICATO, 1987). Essa movimentação foi
reflexo da transferência da gestão do FGTS para o banco, que passou a ser importante
fonte de recursos para o financiamento da urbanização no Brasil. Além disso, em 1971,
é lançado o Plano Nacional de Saneamento - PLANASA como a primeira política do
setor a estabelecer metas, critérios para financiamentos e diretrizes em escala nacional.

Contudo, mesmo com essa centralização da política habitacional e de infraestrutura no


governo federal, grade parte da execução de obras e programas ficou a cargos das
estruturas estaduais, por meio de um modelo de contrapartidas, em que a União
repassava parte dos recursos e as companhias estaduais deveriam arcar com o restante.
A implementação da cobrança de tarifas destinava-se a garantir esta capitalização final e

55
era um instrumento central numa gestão cujo formato deveria seguir padrões
empresariais e muitas vezes determinados pelos critérios do BNH.

Essa nova política tarifária defendida pelo banco federal, atrelada à visão tecnocrática
das empresas estaduais, a exemplo da CEDAE, gerou um efeito segregador em relação
às camadas populares das regiões metropolitanas, “visto que na maior parte dos casos
essas populações não apresentam demanda solvável para os serviços” (MARQUES,
1999, P.55). No entanto, Marques, reforçando a ideia de que a execução da política
estadual não seguiu integralmente as determinações federais, demonstrou que a
prestação de serviços na RMRJ foi direcionada em grande parte pelos interesses dos
grupos envolvidos na direção da agência estatal, que buscavam se consolidar na
estrutura de poder no “novo” estado da federação, após a fusão.

O uso político da máquina pública se fez valer na esfera estadual, onde a disseminação
de investimentos pela metrópole fluminense atendia tanto os interesses políticos do
governo, como garantia a expansão da malha de serviços para fins econômicos e
ampliação da arrecadação tarifária da CEDAE. Como resultado, durante os anos de
1975 e 1986 a cobertura de saneamento teve um crescimento expressivo até mesmo na
periferia do Rio de Janeiro. Contudo,

Na sua maior parte foram construídos sistemas caros e incompletos


(...), reduzindo o impacto da política. A operação, por fim, sempre foi
discriminatória com relação aos bairros mais pobres, pela maior
pressão dos grupos sociais mais ricos, mas principalmente pela
compreensão hierárquica da sociedade que têm os engenheiros. Para
eles, quando há escassez de água, as áreas mais valorizadas e
habitadas pela população de maior renda recebem primeiro, e o que
restar é redistribuído para o restante da cidade22

Parte da prestação de serviços para São Gonçalo e, principalmente, para o Jardim


Catarina ficou condicionada a esse balanceamento da rede de água. A água se
transformou num tema complexo, alvo de disputas por parte de grupos políticos locais
que passaram a disputar o controle sobre sua distribuição. Além disso, com o recuo dos

22
Ibid., p.56.

56
investimentos federais, aumentava ainda mais a autonomia das empresas estaduais na
definição sobre as políticas urbanas de saneamento.

Marques (1998; 2000) busca nas análises sobre redes sociais uma possibilidade de se
construir estudos descritivos sobre as políticas urbanas sem ter que impor a priori um
sistema estruturalista à realidade social e aos atores. A ideia é focar nos padrões de
relação entre indivíduos e grupos ligados à máquina estatal. Para o autor, o uso do
conceito de redes contribui para que se chegue a um detalhamento dessas relações e a
posição de cada agente no campo político do setor público de infraestrutura e
saneamento.

Focado na organização estatal, os trabalhos de Marques não comportam o conjunto de


disputas em torno dos serviços de saneamento no âmbito do território, mesmo após
traçar algumas relações entre os investimentos da CEDAE e o atendimento às demandas
de grupos políticos dos municípios da RMRJ. Contudo, a principal contribuição do
autor vem da identificação das “permeabilidades” na máquina pública que funcionariam
como mecanismos de acesso por parte de empresas e profissionais do setor de
saneamento e obras públicas aos contratos públicos para prestações de serviços no
Estado do Rio de Janeiro.

Debatendo com algumas teorias desenvolvidas sobre o Estado brasileiro, o autor


enfatiza que diferente da noção de “Burguesia de Estado” cunhada por Fernando
Henrique Cardoso – quando as classes dominantes se aproximavam das burocracias
estatais formando estruturas na forma de “anéis burocráticos”23 para alinhamento de
interesses (CARDOSO, 1970) -, a permeabilidade garantiria um espaço de poder para a
atuação das categorias profissionais definirem a forma e localização dos investimentos e
políticas públicas.

Além da CEDAE, o novo governo estadual cria a Fundação de Desenvolvimento


Metropolitano – FUNDREM, em 1975, que seria o órgão técnico encarregado de
realizar estudos e planos para o desenvolvimento regional da RMRJ. Tanto é que no
âmbito do I Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio de Janeiro
(PlanRio - 1976-1979), foi estabelecido uma série de metas voltadas à urbanização

23
“Mecanismos que atravessam as grandes burocracias, a pública e a privada, constituindo-se numa
espécie de teia que vincula as diferentes facções e permite aos setores da burocracia pública e estatal
ligarem-se aos grupos de interesses das empresas privadas (da burocracia privada que responde pelos
interesses dos grandes conglomerados) e vice-versa. ” (FRIZZARINI, 2003)

57
planejada dos municípios metropolitanos, tendo como um dos focos centrais a
ampliação da cobertura de saneamento (SANTOS et. al., 2014).

É justamente nesse primeiro estágio de funcionamento da Fundrem


(1975 a 1979) que há uma elevada produção de planos diretores
municipais, todos alinhados às determinações do PlanRio e ao esforço
técnico de assessoria às prefeituras e ao ordenamento do solo urbano
da metrópole. São desse período planos diretores de cidades
importantes da RM do Rio de Janeiro, como Duque de Caxias e Nova
Iguaçu (p. 323).

A FUNDREM contava com recursos federais e por conta dessa condição econômica
conseguia centralizar alguns investimentos em saneamento da RMRJ. Entre eles estava
previsto uma parceria junto a CEDAE para a efetivação do Plano Diretor de
Abastecimento de Água da RMRJ e o Plano de Resíduos Sólidos, que seriam
executados pela estatal. Assim, há o lançamento das primeiras obras de ampliação da
vazão de água na região metropolitana destinadas aos municípios do entorno da capital.

Em Jardim Catarina, essa seleção de obras na década de 1970 reduziu-se à ampliação da


Estação de Tratamento de Água Imunana-Laranjal (ETA), sistema que ainda atende os
municípios de São Gonçalo e Niterói. A ETA está localizada justamente dentro do
loteamento, no entanto, as primeiras intervenções por parte da CEDAE não levaram
nenhuma rede de abastecimento própria para o loteamento. O objetivo primeiro da
companhia era ampliar o atendimento ao lado leste da Baía de Guanabara,
principalmente Niterói, que antes da fusão ficava a cargo dos antigos órgãos do setor de
saneamento do Estado do Rio de Janeiro.

A primeira rede de água voltada especificamente para o loteamento só foi instalada no


âmbito do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), que gestado no
segundo governo Brizola, foi de fato posto em andamento na gestão Marcelo Alencar no
governo do estado (1995-1999). Num contexto diferente dos anos 1970, quando o
estado estava sob o comando de um governo centralizador e tecnicista - indicado pelo
governo militar -, nos anos 1990, o governo estadual, por meio da CEDAE, consegue
captar recursos internacionais por meio de empréstimos junto às agências

58
internacionais, como o BID, e no caso específico do PDBG, do Bando de
Desenvolvimento Japonês.

Essa mudança na gestão do saneamento na RMRJ terá reflexos sobre o abastecimento


de água e sua distribuição no Jardim Catarina. Veremos a seguir, no capítulo sobre a
política fluminense e seus desdobramentos sobre as ações e infraestrutura na RMRJ, que
havia uma centralização nas decisões em relação às políticas de saneamento sob o
comando da CEDAE, que mesmo sem ter como garantir efetivamente a cobertura nos
loteamentos criados nos municípios da Baixada Fluminense ou em São Gonçalo,
encontrou caminhos para atender minimamente a população e o acesso ao serviço de
água.

Um dos caminhos encontrados pela empresa foi a instalação de um sistema secundário


de abastecimento em algumas partes de São Gonçalo e principalmente no distrito de
Monjolos. Afinal, as principais adutoras de água eram voltadas para o centro de São
Gonçalo e Niterói. O Jardim Catarina era atendido por linhas alternativas de baixa
vazão. Além disso, a própria CEDAE passou a abastecer caminhões pipas como
alternativa aos moradores, que passaram a pagar pela água oriunda dos pipeiros. Todos
esses elementos serão descritos mais adiante. Contudo, interessa ressaltar que a partir
desse momento, abria-se um cenário amplo de relações envolvendo a empresa, seus
agentes e os moradores e grupos locais.

Alguns autores (COELHO, 2004; DAS; POOLE, 2008) já identificaram que nos lugares
onde o Estado e os seus agentes assumem papéis distintos daquele definido pela norma
legal, geralmente vão utilizar-se de arranjos políticos locais para se legitimarem como
entes hegemônicos. A tentativa de domínio sobre o território e sobre os capitais que ali
circulam, obrigam o poder público a exercer diferentes mecanismos de controle sobre os
serviços e sobre o espaço. Na maioria dos casos, na negociação com atores locais, os
agentes estatais executam os serviços de saneamento fazendo-se valer do discurso da
precariedade das condições de vida dos moradores nas periferias urbanas. Veena Das e
Deborah Poole fazem uma boa descrição da imagem do Estado nas “margens do
Estado”:

El punto no es mostrar que el Estado tiene un carácter fetichizado,


sino más bien revelar que las concepciones de soberanía pueden

59
desplazar las posiciones relativas del centro y la periferia: los
márgenes se mueven, entonces, tanto en el interior como fuera del
estado. Por supuesto, este movimiento es lo que hace a los márgenes
tan centrales para entender el estado. (p. 44).

A leitura desse deslocamento das margens sugerido pelas autoras exige um


deslocamento do próprio foco de análise sobre a cidade. Durante muito tempo, os
problemas urbanos, tais como a violência, o desemprego e o saneamento básico foram
abordados como o resultado direto do modelo de desenvolvimento econômico adotado
no país. Autores como Lucio Kowarick (1989) traçaram um contexto em que o
crescimento das periferias urbanas vinha carregado de processos de espoliação urbana à
classe trabalhadora, tradados como:

Somatória de extorsões que se opera pela inexistência ou precariedade


de serviços de consumo coletivo, que juntamente ao acesso à terra e à
moradia, apresentam-se como socialmente necessários, no âmbito das
cidades, para a reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda mais a
dilapidação decorrente da exploração do trabalho, ou a falta dele
(p.22).

Para autor, o capitalismo brasileiro se apoiou sobre um aparato tecnológico com


inúmeras modalidades de extração de mais-valia, produzindo a partir da década de 1980
uma crise generalizada somada à queda do emprego nos principais centros do país.
Nessa lógica, os movimentos sociais passariam a exigir do Estado ações básicas como
garantia de subsistência das classes trabalhadoras.

Assim, qualquer grupo pode estabelecer como pauta de reivindicação


um problema urbano (...). Se o adversário geralmente é o Estado, as
políticas públicas irão buscar, na ótica dominante, fazer com que as
obra pública apareça como uma realização do Estado, que, se assim o
conseguir, realizará a maior tarefa de cooptação, diluindo e
canalizando os conflitos das massas urbanas, que permanecem numa

60
ilusão de participação de uma cidadania constantemente prometida e
escamoteada (p.54).

Além da naturalização das desigualdades sociais, onde o Estado é o agente provedor, o


autor reconhece que “não há uma ligação linear entre a precariedade das condições de
existência e os embates levados adiante pelos contingentes por elas afetados (p.69)”.
Acreditava ainda que a potência dos conflitos urbanos não surgiria de uma variada
quantidade de lutas isoladas, mas de forças que se aglutinam, “contrariando a ideia que
os movimentos apresentam agendas em comum, se opondo ao Estado ou outro ator
(p.73)”.

Parece que a complexidade da questão é ainda maior. De acordo com alguns


entrevistados nessa pesquisa, a própria CEDAE criou suas ligações alternativas à rede
geral de água. Com isso, mercados paralelos de fornecimento e distribuição de água
foram sendo criados e, alguns casos, controlados por indivíduos ou grupos que atuam
nos territórios do loteamento. Além disso, a relação entre reivindicações por água x
lutas sociais, no caso do Jardim Catarina, parece não se explicar pela teoria da formação
de movimentos sociais urbanos. As pautas transitavam mais entre os acordos entre
moradores, associações locais, comerciantes e agentes estatais do que como bandeira de
luta política.

A relação entre a história de ocupação da RMRJ e o cotidiano das relações políticas no


Jardim Catarina seguiram uma linha interpretativa diferente. Se no cenário amplo da
política fluminense, havia uma disputa entre grupos pelos recursos do setor saneamento,
que a partir de 1975 tornaram-se volumosos e permanentes, no âmbito territorial, os
diversos atores traçavam estratégias para permanecerem na cidade e obterem algum
retorno, seja ele capital político ou o simples acesso à água como bem urbano essencial
à reprodução social da população.

Como consequência desse processo, alguns agentes públicos e de mercado buscaram


exercer forte controle sobre a distribuição da água, gerando uma desigualdade na oferta
dos serviços dentro de São Gonçalo. No Jardim Catarina, as partes mais antigas de
ocupação e com algum tipo de representação política, como associação de moradores,
contavam com uma maior concentração de redes oficiais de água e esgoto em
detrimento de localidades cuja ocupação aconteceu em períodos recentes, em áreas

61
marginais e vulneráveis aos problemas de violência urbana ou desastres ambientais,
como inundações, alagamentos, poluição.

A ação do setor público de saneamento, principalmente a partir da década de 1970, com


ênfase nas operações da CEDAE, baseava-se numa política de saneamento cuja lógica
pautava-se no aumento do número de consumidores para fins de tarifação e arrecadação.
À empresa interessava a expandir o serviço por toda a região metropolitana, levando à
ampliação da cobertura do abastecimento de água. Porém, diante da incapacidade de
garantir o acesso efetivo de toda a população ao sistema, a estatal passou a adotar
estratégias particulares, como a comercialização de carros pipas nos loteamentos sem
infraestrutura.

Quando o Estado entra oficialmente com as primeiras redes de abastecimento de água,


há uma reorganização espacial e política entre as localidades, os grupos comunitários e
as lideranças no Jardim Catarina. Alguns personagens vão ganhando espaço nesse
contexto político. A construção de uma estação de tratamento no JC para atender a ala
lesta da Baía de Guanabara, ao invés de solucionar a falta ou interrupção do serviço no
loteamento, contribuiu ainda mais para que os agentes econômicos passassem a
controlar o mercado de água dentro de São Gonçalo. Além disso, políticos do município
também se apresentaram, tentando encontrar soluções para o problema da infraestrutura
e consolidar suas bases eleitorais.

As obras da CEDAE e a ampliação da rede de água chocavam-se com a estrutura legal e


fundiária do loteamento, que em muitos casos era utilizada como justificativa legal e
técnica para inviabilizar a implementação de infraestrutura. Com o crescimento
demográfico e o rápido adensamento do urbano do loteamento a partir dos anos 1970,
não cabia outro caminho ao morador não ser lançar mão de novas estratégias, instalando
gatilhos à rede geral para “puxar” água, criando associações de moradores e
organizando pautas de reivindicações para negociação junto ao Estado.

62
Capítulo 02 - A Política Fluminense: da Fusão à criação da Cedae

A forma como se organizaram as políticas de infraestrutura urbana na RMRJ guardam


forte relação com a urbanização da área metropolitana do Rio de Janeiro e com o
contexto da política fluminense, particularmente nos anos que precederam e seguiram a
fusão do Estado do Rio de Janeiro, em 1974. No caso específico do saneamento básico,
os serviços de abastecimento de água, principalmente, moldaram um campo político que
passou a servir de mediação entre as estruturas de poder a nível estadual e federal e os
grupos de poder local dos municípios metropolitanos.

A polarização entre o antigo Estado do Rio de Janeiro e a Guanabara (atual cidade


carioca), do ponto de vista político, e a posição de Distrito Federal do Rio de Janeiro,
que perdurou durante décadas, foram determinantes para moldar o formato da nova
máquina pública estadual. Existia um quadro político imbricado, onde a União, mesmo
após a ida da capital para Brasília buscava controlar as forças oposicionistas cariocas;
da mesma forma que o interior do estado tentava polarizar com a cidade carioca na área
política e econômica (BERNARDES, 1964).

Durante os anos 1940 e 1940, Getúlio Vargas buscou, no seu projeto de urbanizar e
industrializar o país, garantir bases políticas no Estado do Rio de Janeiro, destinando
importantes investimentos federais às diversas regiões fluminenses e não apenas para a
cidade do Rio de Janeiro. A instalação da Companhia Siderúrgica Nacional (Volta
Redonda, 1941), a Fábrica Nacional de Motores (Duque de Caxias, 1942), a Companhia
Nacional de Álcalis (Cabo Frio, 1944) e a Companhia Vidreira do Brasil (COVIBRA) e
Cimentos Portland (ambas em São Gonçalo, 1942) são exemplos de empreendimentos
que visavam desenvolver a economia fluminense e fortalecer as bases políticas do
governo federal no estado (OLIVEIRA, 2008).

Discutia-se naquele contexto o papel do Rio de Janeiro como capital e as implicações


em mantê-lo ou não como centro político do país. Desde a primeira república, na
verdade, diversos grupos políticos, inclusive da Guanabara, desejavam ou se desfazer
das amarras do governo central ou ampliar os canais de controle sobre os recursos
federais por meio de candidaturas ao congresso nacional (FREIRE, 2003). No caso da
Guanabara, lideranças locais compreendiam que mesmo com a perda do papel de

63
capital, a cidade deveria se transformar em um ente autônomo, Cidade-Estado. Uma
proposta já prevista na Constituição de 1891 e defendida pelos políticos cariocas.

Por sua vez, ao tentar inibir o caráter perigoso das oposições localistas, a União tentava
a todo instante limitar os poderes dos partidos cariocas. A Constituição de 1946,
mantendo a visão do Rio como uma capital provisória, descreveu o governo local como
“uma entidade político-administrativa não autônoma, sob a tutela tanto da presidência
da República (responsável pela nomeação e demissão do prefeito), quanto do Senado
Federal” (FREIRE, 2003, p.4).

Mesmo no período de redemocratização, entre 1946 e 1956, a cidade do Rio de Janeiro


continuou sob o poder e influência do governo federal. Porém, a ideia de que governo
local “deveria possuir não apenas um formato como os demais municípios brasileiros,
como também atribuições próprias dos órgãos locais que não poderiam ser derrogadas
pelo poder tutelar central”, permaneceu previsto em lei, no entanto, sem claras
definições legais.

Após a mudança da capital24, em 1960, o Estado da Guanabara é criado com poder e


autonomia de Cidade-Estado. Uma máquina pública própria é estabelecida com o
aproveitamento de boa parte do capital econômico e político adquirido durante a função
de Distrito Federal. O primeiro político a vencer as eleições para o cargo de governador
foi Carlos Lacerda, importante personagem da política carioca e do país, que na época
exercia forte oposição ao então governo federal de Juscelino Kubitschek.

Mesmo com a perda do status de capital, a Guanabara conseguiu manter importante


base de apoio político por parte de lideranças locais, que defendiam a manutenção
centralidade da cidade carioca no cenário nacional. Para alguns autores, o fato de deixar
de ser a capital do Brasil não retirava do Rio uma posição de capitalidade (MOTTA,
2001a), ou seja, permanecendo como referência cultural e política:

O lugar da política e da cultura, como núcleo da sociabilidade


intelectual e da produção simbólica, representando, cada uma a sua

24
Em 1960, o Distrito Federal foi definitivamente transferido do Rio de Janeiro para Brasília. Este fato já
previsto em constituições anteriores, que tratavam da retirada do status de capital da cidade carioca.
Porém, mesmo com a saída da capital, o Rio de Janeiro foi elevando ao posto de Cidade-Estado
(BRASILEIRO, 1979).

64
maneira, o papel de foco da civilização, núcleo da modernidade, teatro
do poder e lugar de memória (MOTTA, p.24).

Para Motta, a organização político-institucional de uma capital ajudava a criar hábitos e


rotinas regulares e repetitivas de modo que a maioria das ações tanto por parte da
população como do governo local “não requereriam muita reflexão, contribuindo para
que nesta região não venha a ocorrer a percepção, de forma imediata, da quebra da
dinâmica institucional a partir de um fator “exógeno”25. Isso significava dizer que no
caso da Guanabara, a estabilidade política e econômica de algumas instituições públicas
permitiu o funcionamento da máquina estatal de forma a manter algumas características
importantes ao longo do tempo.

No contexto nacional e sob o governo militar, após um período de crescimento


econômico, entre 1968 a 1973, conhecido como “Milagre Econômico”, o governo
Geisel, diante da crise do petróleo de 1973, tenta retomar o crescimento do país
lançando uma série de programas de desenvolvimento que foram sintetizados no II
Plano Nacional de Desenvolvimento (IIPND). Numa tentativa de aumentar a produção
nacional, a União passa a incentivar por meio de subsídios e renúncia fiscal a
diversificação do parque industrial tendo nas regiões metropolitanas territórios chaves
para essa retomada, a partir da consolidação do projeto federal “Brasil Grande”
(OSÓRIO; VERSIANI, 2013).

Para dar conta desse novo projeto, defendia-se a integração política e econômica do Rio
de Janeiro. O discurso oficial da época retomava o debate sobre a fusão dos estados de
maneira a criar uma única região metropolitana capaz de fazer frente com a metrópole
de São Paulo. Acreditava-se que o desenvolvimento nacional ganharia em termos de
crescimento, pois estaria apoiado em polos econômicos dinâmicos e complementares
(OSÓRIO, 2004). O II PND defendia que a industrialização seria alavancada pela
diversidade econômica e pelos mercados formados nas regiões metropolitanas do país.

No âmbito estadual e regional, importantes setores, tanto da Guanabara como do antigo


estado do Rio de Janeiro, se apresentaram favoráveis ao processo da fusão (MOTTA,

25
Ibid., p.191.

65
2001b)26, o que contesta a ideia de que ambos os lados eram contrários à proposta
federal. Por outro lado, políticos fluminenses, capitaneados pelo grupo de Amaral
Peixoto e Roberto da Silveira e por parlamentares de Niterói e de São Gonçalo,
acreditavam que a fusão geraria ainda mais desequilíbrio econômico e de poder em
favor da ala carioca no cenário político brasileiro27.

Antes da fusão, de fato, existiam duas capitais na região metropolitana fluminense: Rio
de Janeiro e Niterói. A primeira se colocava como centro econômico e político, a
segunda tentava se desprender da posição de província de um estado até pouco tempo
rural. Com a ascensão do PTB28 no estado do Rio e a eleição de Roberto Silveira para o
governo do (antigo) Rio de Janeiro, em 1958, com forte base política e eleitoral em
Niterói e São Gonçalo, Niterói foi ganhando centralidade política-institucional. Na
Guanabara, inicialmente com Carlos Lacerda e ao final com Chagas Freitas, a indústria
prevaleceu como motor de desenvolvimento e urbanização. Acreditava-se que o seu
crescimento, assim como o que ocorreu em São Paulo, levaria o entorno, ou seja, sua
periferia, a ingressar num ciclo produtivo em cadeia, capaz de impulsionar o estado a
disputar os mercados em território nacional.

Com a tomada de poder pelos militares, em 1964, e o apoio de alguns setores


empresariais e de partidos políticos com forte representação na Guanabara, acabou se
construindo um quadro favorável para efetivar o projeto da fusão. De acordo com
Motta, desenhava-se um contexto capaz de superar as barreiras criadas pelos interesses
e disputas entre os grupos políticos do Rio de Janeiro, fortalecendo os argumentos em
defesa da junção dos estados:

[...] o esvaziamento da economia carioca; a intenção, calcada na


geopolítica, de formar um estado forte no centro-sul para
contrabalançar com São Paulo e Minas Gerais (...). Por um lado,
porque os mecanismos autoritários à disposição do regime militar
facilitavam a composição política necessária à aprovação de matéria

26
A Federação das Indústrias do Estado da Guanabara (FIEGA) manifestou-se oficialmente a favor da
fusão. Acreditava que a constituição do complexo industrial fluminense impulsionaria a economia
fluminense de modo a competir com a indústria de São Paulo.
27
Nos anos 1960, o PIB da Guanabara possuía um tamanho duas vezes maior que o valor produzido pelo
Estado do Rio de Janeiro
28
Partido Trabalhista do Brasil

66
tão “tormentosa” (...). A rapidez do andamento do processo da fusão
parece ser um bom indicativo dessas condições favoráveis da
conjuntura: Geisel tomou posse em 15 de março e, logo no mês
seguinte, divulgou sua decisão de fazer a fusão, cujo projeto, enviado
ao Congresso em junho, foi aprovado no primeiro dia do mês
seguinte.29

Após a fusão duas lógicas políticas prevaleceram no Rio de Janeiro (MOTTA, 2001b).
A primeira direcionada ao plano federal, cujo foco dos grupos políticos mirava,
principalmente da cidade carioca, a representação do estado no congresso nacional.
Neste caso prevalecia os resquícios do antigo Distrito Federal e governo da Guanabara,
de onde se olhava mais para o país e com disputas políticas direcionadas a um contexto
mais abrangente. Muitos políticos originários de outras partes do Brasil, inclusive,
permanecerem no Rio de Janeiro após a saída do Distrito Federal, reorganizando as
bases políticas cariocas.

A outra lógica, a da política local, seria determinada em boa parte pela ausência de
eleições para cargos majoritários. O Estado Rio de Janeiro durante o período militar não
pode escolher diretamente seu representante, este era nomeado pelo governo federal.
Com isso, as disputas voltavam-se mais para os cargos públicos do que ao redor do
debate político estadual. Nomes como Leonel Brizola, João Gourlart e Carlos Lacerda
dominavam a agenda pública e mantinham o enfrentamento pela cadeira presidencial,
na dimensão local a política se fazia de forma fragmentária.

Mauro Osório (2013) afirma que a partir dos anos 1960 o Estado do Rio de Janeiro
entra num “processo de erosão de sua importância e dinamismo econômico social”
(p.192). Para o autor, essa questão, inclusive, demorou a ser compreendida e a ser tema
de debate mais amplo pelas forças políticas fluminenses e sociedade carioca:

A forma como se organizou a institucionalidade local da cidade do


Rio de Janeiro – ao lado de sua história de capitalidade – influiu para
que o debate e o jogo político local perdessem força na região,

29
Ibid., p. 05.

67
contribuindo assim para a conformação de um particular quadro de
carência no tocante à reflexão local 30.

Com o golpe de 1964, ocorre uma série de processos de cassação de políticos. Após a
cassação dos partidos de esquerda, políticos como Calos Lacerda, que integravam a
UDN31 carioca e que inicialmente haviam apoiado a ascensão dos militares, ao romper
com a União também acabaram cassados, fato que promoveu uma forte desarticulação
da política carioca. Nos municípios fluminenses, os políticos se viram forçados a atuar
mais em direção às bases locais do que visar disputas a nível estadual e nacional. O caso
de Chagas Freitas é um bom exemplo. Ao ser nomeado governador adota a lógica da
clientela direcionando a administração para o atendimento pulverizado às demandas da
população por meio de políticas urbanas pontuais na RMRJ. Dessa forma ampliava o
apoio ao seu nome por parte de grupos políticos de fora da cidade do Rio de Janeiro.

Nesse caso, se existia uma centralização das decisões em torno da União e o


enfraquecimento das disputas eleitorais em nível estadual, já que os governadores eram
nomeados pelos militares, o redirecionamento das atenções, tanto pelo governo do
estado como pelo federal acabou levando à expansão de alguns serviços para o interior
do Rio de Janeiro e para os municípios metropolitanos, a exemplo de São Gonçalo. Via
máquina estatal, os investimentos federais passaram a atender algumas das solicitações
de políticos locais, sendo as ações em infraestrutura urbana o eixo central dessa
articulação entre município, estado e União.

2.1 A política de Infraestrutura urbana na metrópole fluminense

Na história do saneamento urbano no Brasil poucos foram os períodos em que se pode


contar com algum tipo de regulação ou marco legal amplo e que pudessem lidar com as
mudanças em curso nos espaços urbanos das cidades durante o século XX. As ações
estatais nesse setor seguiam mais um cronograma de obras públicas e projetos de
governo do que a uma visão de Estado a respeito do planejamento urbano das cidades
brasileiras. A política de ocasião era revertida em programas destinados a atender os
interesses dos grupos políticos que alternavam no poder.

30
Ibid., p. 194.
31
União Democrática Nacional.

68
Entre os componentes do saneamento, o tema do abastecimento de água havia assumido
importância na agenda política também do antigo estado do Rio de Janeiro. Ernani
Amaral Peixoto, que era casado com a Alzira Vargas, filha de Getúlio Vargas, e que já
havia sido governador-interventor do Estado do Rio de Janeiro, ao ser eleito em 1950
novamente para o governo fluminense, realizou ao longo do mandato (1951 a 1954)
uma série de programas e projetos urbanísticos que visavam modernizar o interior do
estado, com destaque para Niterói (FERREIRA, 1997; CPDOC, 2017). Uma das
intervenções mais importantes de saneamento básico na Região Metropolitana do Rio
de Janeiro foi a instalação de um reservatório de água na antiga fazenda Laranjal, em
São Gonçalo, local onde está localizado Jardim Catarina32.

Em 1955, o governo Amaral Peixoto construiu uma adutora de água para abastecer a
região leste da Baía de Guanabara, como uma das ações principais do projeto de
modernização de capital Niterói, principalmente (SILVA; CORRÊA; SANTOS, 2016).
A estrutura transportava a água que vinha do município de Cachoeiras de Macacu até
uma elevatória que ficava localizada justamente no terreno que deu origem ao
loteamento JC. A área plana e a posição abaixo do nível do mar do loteamento
permitiam que, por gravidade, a água do Rio Guapiaçu chegasse até São Gonçalo e
depois fosse bombeada até o centro de Niterói.

Nesse período histórico, as áreas de planejamento urbano e a sede da política


institucional e administrativa estavam centralizadas em Niterói. É dessa época as
inaugurações na cidade da rede de ônibus elétrico, da imprensa oficial do antigo estado
e de diversas obras de saneamento, com destaque para o sistema de esgoto das lagoas de
Piratininga e Itaipu. No caso do reservatório do Laranjal, no Jardim Catarina, a
Superintendência de Água e Esgoto de Niterói (SAEN) inicia a primeira ampliação do
sistema, ainda, na década de 1950.

Em 1952, é possível ler no anuncio do jornal O Fluminense um comunicado a respeito


do início das obras do sistema e o aumento da vazão e capacidade de atendimento do
reservatório do Laranjal. A reportagem destacava que a canalização do Rio Guapiaçu
levaria uma maior vazão de água ao reservatório, superando o sistema de abastecimento

Por meio da construção de adutora partindo do Rio Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, seguindo pelo
canal do Imunana até a antiga Fazenda Laranja. O sistema intitulado Imanana-Laranjal, desde os anos
1950, tornou-se o principal equipamento público responsável pelo abastecimento de água de Niterói e São
Gonçalo.

69
anterior, menor e improvisado, originário da serra de Teresópolis e que chegava a
Niterói e a São Gonçalo pelo município de Itaboraí.

Imagem 2: ampliação do serviço de abastecimento de água de Niterói e São Gonçalo (27/06/1952)

Fonte: O Fluminense

Historicamente, a região leste da Baía de Guanabara sempre sofreu com o


desabastecimento, mesmo após o funcionamento do sistema Imunana-Laranjal. Com o
crescimento demográfico e a expansão urbana no eixo Niterói-São Gonçalo, o problema
parecia se intensificar. Tal fato cada vez mais exigia do Estado a necessidade de
maiores investimentos em infraestrutura. Contudo, desde 1930, a política institucional
do setor de saneamento público do antigo estado do Rio de Janeiro era em grande parte
tocada por órgãos federais. Tanto que, entre 1930 e 1940, acaba sendo criado o
Departamento de Obras de Saneamento – DNOS do Ministério da Aviação e Obras
(MARQUES, 1999), que passou a responder pela organização da ação estatal no campo
do saneamento das cidades brasileiras.

Somente com a criação da SAEN, o governo estadual passou a administrar o sistema


Imunana-Laranjal, que construiu no governo Amaral Peixoto a Estação de Tratamento
de Água (ETA) do Imunana-Laranjal dentro do loteamento Jardim Catarina. A ETA
passou então a responder por 80% de todo o abastecimento da região leste
metropolitano, tornando-se um equipamento público fundamental para o processo de
ocupação das áreas urbanas naquela faixa territorial do estado.

Para entender a dimensão e a importância política do saneamento em Niterói e São


Gonçalo, em 1963, o Jornal do Brasil (08/02/1963) alertava para a interdição da adutora
70
do Imunana, em Cachoeiras de Macacu, por conta de uma queda de ponte sobre o rio
Guapiaçu. O acidente provocado pelas chuvas levou ao bloqueio do fluxo de água em
direção a ETA Laranjal. A SAEN teve inclusive que autorizar e financiar a contratação
de carros pipas particulares para ajudar na distribuição da água e atender a demanda por
água da população.

Imagem 3: reportagem alerta para o desabastecimento de Niterói e São Gonçalo

Fonte: Jornal do Brasil, 1963.

Diante da crise instalada, o governador na época, Badger Silveira, que foi irmão de
Roberto da Silveira, ex-governador e político tradicional fluminense, teve que apelar à
população para que a mesma não adotasse medidas precipitadas diante do
desabastecimento. Acusava, ainda, proprietários de caminhões tanques (pipas) da região
por comercializar a água que vinha sendo fornecida gratuitamente pelo Estado e que
deveria ser distribuída à população. Esse episódio ilustra como a questão do saneamento
mostrava-se delicada, justamente num período em que a região metropolitana passava
por um forte dinamismo urbano e crescimento populacional.

No lado oposto da Baía de Guanabara, o movimento era parecido. A Baixada


Fluminense começava a receber um elevado contingente populacional, entre
trabalhadores urbanos e comerciantes. (ALVES, 2003). Devido às características
ambientais, com muitas áreas alagadas, as partes altas da Baixada foram as primeiras a
serem ocupadas, especificamente no local onde hoje é centro do município de Nova
Iguaçu.

71
Inicialmente formada por uma região produtora agrícola, a história da Baixada começa a
mudar a partir das primeiras intervenções de infraestrutura urbana, principalmente com
a chegada da ferrovia, ainda no século XIX, em 1854. Em 1886, a linha férrea já
alcançava o atual município de Duque de Caxias33. Por conta dos constantes
alagamentos, foi criada na década de 1930 a Comissão de Saneamento da Baixada, que
mais tarde se transforma na Diretoria de Saneamento da Baixada. Como resultado, em
1941, 30% da região já havia sido drenado, sendo a diretoria de saneamento
transformada em Departamento de Obras de Saneamento do Distrito Federal
(MARQUES, 1998).

Na cidade do Rio de Janeiro, os bairros de classe média da zona sul já contavam com
saneamento desde 1922. Em 1935, sistemas de água e de esgoto chegavam ao bairro da
Lagoa e no Grajaú, zona norte da cidade, a partir de 1937. Realidade totalmente distinta
dos primeiros núcleos urbanos da Baixada Fluminense. A título de ilustração, na década
de 1930, moravam em Nilópolis e em São João de Meriti aproximadamente 62 mil
habitantes, acima dos 50 mil de Ipanema e Leblon, contudo, esses municípios só foram
receber sua primeira rede de esgoto em 1987, mais de 50 anos depois dos bairros
cariocas (ABREU, 1987).

Em relação ao Subúrbio do Rio, o mesmo passa a receber investimentos ainda na


década de 1940, com a construção da primeira estação de esgoto da Penha, em 1941. No
caso, ao redor da estação foram construídos conjuntos habitacionais dos antigos
institutos de previdência, os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), que na época
eram comercializados para uma classe média urbana incipiente. Os percentuais de
investimentos realizados em água e esgoto, seja na Zona Sul, no centro ou no subúrbio,
inclusive, apresentavam nessas primeiras décadas valores bastante aproximados
(MARQUES, 1988).

Depois de muitas mudanças na estrutura organizacional do setor de saneamento no


Distrito federal, em 1956, o então prefeito nomeado da capital, Francisco Negrão de
Lima, lança o Plano de Realizações e cria no ano seguinte a Superintendência de
Urbanização e Saneamento da Cidade – SURSAN, solicitando à câmara federal crédito
para a execução do Plano, além de centralizar os serviços e instituições do setor de
obras públicas sob a SURSAN. A reforma tributária de outubro de 1966 e a criação do

33
Município desmembrado de Nova Iguaçu em 1931.

72
FGTS em novembro do mesmo ano permitiram a criação do fundo nacional de
financiamento do saneamento para a realização de programas federais na área de
habitação e infraestrutura.

Quando o Banco Nacional de Habitação (BNH) assume o controle dos recursos do


fundo urbano e do FGTS, as políticas de saneamento dentro do banco passam de 4% do
total de recursos investidos, em 1969, para 30% em 198034. Entre 1969 a 1974, 94,5%
dos recursos do BNH foram oriundos do FGTS (ALMEIDA; CHAUTARD, 1976). Em
1971, o Plano Nacional do Saneamento – PLANASA representava a primeira política
com previsões de ações, metas e instrumentos para o saneamento urbano no país. Com o
PLANASA há a conjugação dos sistemas criados anteriormente, mudando o setor
definitivamente.

Na administração Carlos Lacerda, em 1960, o Estado da Guanabara também altera seu


sistema tributário, realizando a implementação da cobrança de tarifas pelo serviço de
saneamento, divergindo, por exemplo, das atividades praticadas pelos órgãos ligados ao
setor do antigo estado do Rio de Janeiro, cuja atuação era pulverizada e dependente de
financiamento federal. Com isso, as instituições públicas que atuavam no abastecimento
de água e na coleta de esgoto da cidade do Rio de Janeiro entraram num processo de
capitalização e de geração de receita própria, obtendo assim ganho de autonomia
econômica e política.

Ademais, a partir desse momento o Estado da Guanabara passa a tomar empréstimos


internacionais para o financiamento de grandes obras públicas de infraestrutura urbana.
Com orçamento e um quadro tecnocrático próprio, adotou-se na cidade uma gestão
empresarial, mais aberta ao mercado do setor de engenharia e urbanismo e com força
para tomar decisões sobre oferta e distribuição dos serviços e investimentos. Por conta
disso, em 1965, os serviços de água da Guanabara são retirados da SURSAN com a
criação das empresas públicas Companhia Estadual de Águas da Guanabara – CEDAG
e Empresa de Saneamento da Guanabara – ESAG (esgoto).

34
Ibid., p. 54.

73
2.2 Água: da descentralização do serviço à CEDAE

Nos anos que antecederam a fusão dos estados, os serviços de saneamento do antigo
estado do Rio de Janeiro eram exercidos por um conjunto de superintendências e
diretorias, que constantemente passavam por reformulações, alternâncias de poder e
extinções. A contratação do corpo técnico costumava ser processo celetista, com alta
rotatividade no quadro, diferente da estrutura gerencial e tecnocrática do setor de
saneamento da Guanabara. Diante da falta de estabilidade, consequentemente, a gestão
dos serviços era influenciada por negociações políticas entre líderes fluminenses dos
diferentes municípios. “O governador utilizava os sistemas como instrumento de
barganha política, mas por outro lado tinha acesso às demandas locais, sendo submetido
à pressão de prefeitos e vereadores”35.

Em 1971, após a nomeação pelo governo federal de Raimundo Padilha para governador
do Estado do Rio de Janeiro, é criada a Companhia de Saneamento do Estado do Rio de
Janeiro (SANERJ) como uma tentativa de centralizar os diversos setores de
infraestrutura estadual, porém, mesmo após a criação da companhia, o órgão manteve-se
sob forte influência política.

No entanto, um ano após a fusão do Estado do Rio de Janeiro, em 1975, o governador


Faria Lima, também nomeado pelo governo federal, publica o decreto Nº 39/1975 que
une as empresas de saneamento da Guanabara (CEDAG e ESAG) e do Rio de Janeiro
(SANERJ), criando assim a Companhia Estadual de Água e Esgoto – CEDAE. Ao
findar esse processo administrativo a máquina estatal da Guanabara, ao que parece, sai
fortalecida e assume o comando da nova instituição, tendo como presidente um antigo
diretor da CEDAG. Para Marques não se estava diante de uma fusão efetiva, mas da
incorporação das estruturas fragmentadas do setor de infraestrutura e saneamento
fluminense pelo aparato burocrático, jurídico e técnico da Guanabara. O autor destaca
ainda que:

O grupo que detinha mais poder durante o governo Faria Lima, tendo
realizado a fusão e mantido o poder da secretaria de obras (e que mais
tarde seria hegemônico na nova empresa), era originário das CEDAG.
Além disso, a CEDAG aparentemente apresentava melhor situação

35
MARQUES, 1998, p.60.

74
financeira e era reconhecida na comunidade como a mais capaz,
técnica e organizacionalmente. Como produto desta fusão, surgiu a
CEDAE.36

Tal fato levou ao enfraquecimento dos grupos políticos pertencentes ao antigo estado
fluminense dentro da máquina pública estadual, fazendo prevalecer na CEDAE a lógica
do corpo técnico e gestor da Guanabara. Ou seja, internamente, o campo político do
setor de infraestrutura ficou extremamente heterogêneo, centro de disputas políticas e de
diferentes concepções sobre as políticas de saneamento e decisões tomadas para a
RMRJ.

A consequência desse processo foi a constituição de um cenário político a partir da


“interpenetração das três redes (ESAG, CEDAG e SANERJ) ao longo dos anos, com o
lançamento de vínculos institucionais, de amizade e de negócios” 37. Na CEDAE, essas
redes se misturariam por meio de parcerias pontuais e conflitos frequentes. Através de
vínculos pessoais, essas redes abarcariam uma comunidade externa formada por
empresas de engenharia e de obras públicas, que seria fundamental, a partir de 1975
para a definição e gestão das políticas de saneamento na região metropolitana.

Com uma diretoria formada em grande parte por servidores de dentro do setor de
saneamento, prevalecia na CEDAE uma visão tecnocrata e hierarquizada a respeito da
política urbana para RMRJ38. No final da década de 1970 e início dos anos 1980 a área
metropolitana começou a ser alvo de inúmeros investimentos por parte da companhia,
recebendo recursos e obras até então raras na região. Parece que a estatal entendeu ser
necessário incorporar uma vasta periferia ao sistema de saneamento estadual, antes
altamente concentrado no antigo estado da Guanabara.

Esse movimento aparentava ser uma estratégia de ação dupla por parte do corpo técnico
e gestor da estatal: primeiro expandia-se o serviço, abarcando uma grande área e
incorporando-a à cidade, visto como novos mercados consumidores; segundo, com essa
ampliação, e pela adoção do sistema de tarifas, a empresa ganharia maior capacidade de
arrecadação e autonomia financeira. A questão tarifária é importante, pois no âmbito da
política urbana ela irá estabelecer a relação entre “arrecadação para financiamento”
36
Ibid., p.61.
37
Ibid., p.62.
38
Ibid.;

75
como uma chave balizar para as tomadas de decisões em torno da aplicação de recursos
e intervenções sobre os lugares da cidade.

Automaticamente, uma consequência desta lógica do “pagar-consumir-pagar” seria a


priorização dos melhores serviços e cobertura nas áreas centrais e mais valorizadas da
região metropolitana (Rio e Niterói). O que não impedia, na visão de Eduardo Marques,
após analisar os investimentos da empresa durante 1975 e 1996, fazer algumas ressalvas
em relação a direção e a política da empresa em relação às demais áreas da metrópole:

Neste caso, a distribuição de investimentos da Cedae no espaço da


RMRJ demonstrou que as áreas habitadas por população de renda
média ou alta receberam mais recursos que os espaços de periferia, ao
todo do período (1975-1996). Contudo, os espaços periféricos
receberam mais investimentos do que é usualmente reconhecido. As
periferias começaram a receber investimentos nos anos 70. Entre 1975
e 1984, essas áreas receberam mais investimentos que zonas ricas
(2000, p. 283).

A estrutura burocrática interna do setor de saneamento contava com o maior poder e


liderança da antiga CEDAG, cujo perfil empresarial daria ainda mais força ao
estabelecimento da lógica tarifária. A CEDAE, entre 1975 e 1996, financiou uma boa
parte dos investimentos na RMRJ com capital próprio, tendo como base a política de
tarifação e de empréstimos. Principalmente, após a crise econômica de 1973, quando o
governo federal se viu com dificuldades para manter o padrão centralizador de
financiamento das políticas urbanas característicos da década de 1960.

Diante da incapacidade do regime militar de dar conta das pressões e das novas
demandas por investimentos nas regiões metropolitanas, além do crescimento do poder
político e econômico do novo setor de saneamento do Estado do Rio de Janeiro, os
acordos locais entre grupos políticos e a ampliação da cobertura fizeram com que a
empresa estadual saísse da lógica do modelo nacional e assumisse a gestão quase que
definitiva do saneamento. Ao final dos anos 1970, os valores e recursos econômicos
aplicados pelos governos federal e estadual, somando gastos com habitação e

76
saneamento, já eram semelhantes. Na entrada da década de 1980, os recursos estaduais
ultrapassam os federais (MARQUES, 1998; MARQUES; BICHIR, 2001).

Por conta disso, a CEDAE, mesmo quando esbarrava nas exigências técnicas exigidas
por parte dos órgãos federais, fez valer sua autonomia e avançar com os serviços para a
região metropolitana. O que se passou a discutir é a relação entre a presença de
cobertura e qualidade da mesma. Em muitos casos o serviço chegava incompleto e com
baixa qualidade de atendimento. Ou então, como antes da fusão lugares como Jardim
Catarina não contavam com nenhum tipo de serviço de saneamento, a incorporação de
novas áreas à cobertura da infraestrutura urbana acabava entrando em conflito com o
novo modelo de cobrança e arrecadação, produzindo investimentos descontinuados.

De acordo com alguns relatos de entrevistados nessa pesquisa, até a década de 1960,
como a ocupação do loteamento ainda era de baixa densidade populacional, soluções
diárias eram tratadas diretamente com loteadoras, corretores e comerciantes locais que
auxiliavam a financiar pequenos serviços para tratar do problema da água. Esse formato
começa a mudar e a se tornar problemático quando, a partir de 1970, avança o
adensamento populacional do Jardim Catarina. As intervenções de integração viária
promovidas pelo governo militar na RMRJ, como a construção da ponte Rio-Niterói,
em 1975, as remoções de favelas na cidade do Rio de Janeiro e a instalação dos sistemas
de drenagem na Baixada Fluminense foram determinantes para um deslocamento de
pessoas em direção aos loteamentos da periferia.

Foi dentro desse contexto que a água começa a chegar no Jardim Catarina por via das
redes oficiais da CEDAE. Sem linhas diretas, uma pequena ramificação na adutora que
levava água a Niterói foi instalada no loteamento sob um sistema de manobra39. O
atendimento era parcial e o consumidor precisava interligar a casa à rede secundária. Os
gastos para esse tipo de instalação deveriam ser realizados pelo morador, ficando a
CEDAE responsável apenas por implementar a construção da rede auxiliar nas ruas e
quadras do loteamento. Como resultado, muitas casas, mesmo situadas nas vias por
onde passavam a rede de água, não foram integradas ao sistema, permanecendo sem
abastecimento.

39
Manobra é o termo utilizado para descrever o atendimento alternado do sistema. A companhia realizava
o abastecimento parcial e apenas em dias específicos.

77
Esse cenário inicial, no pós-1975, indica que o avanço dos investimentos em
saneamento na periferia da RMRJ não necessariamente era garantia de cobertura
efetiva. Enquanto a nível regional o setor público estadual de saneamento se
consolidava política e economicamente, no Jardim Catarina, ao final dos anos 1970 e
começo 1980, a chegada de novos moradores, a perda de importância das loteadoras nas
regulações fundiárias, o surgimento de um mercado de aluguéis e aumento do comércio
local desenharam um complexo ambiente político.

Em relação ao problema do saneamento dentro do loteamento, a poluição urbana e o


assoreamento dos rios, a urbanização e adensamento do loteamento e a chegada da
CEDAE fez da água um bem fundamental e disputado por diversos agentes, que
desejavam controlar seu acesso e distribuição. O governo federal, por sua vez, cada vez
mais se limitava a regulamentar o setor a nível nacional, abrindo mão do seu papel de
executar de planos e programas de saneamento, ficando a cargo das estruturas estaduais
mediarem junto aos territórios metropolitanos as demandas por serviços urbanos e
atendimento às bases políticas das mais variadas.

Com a autonomia da máquina pública do estado, muitas obras e projetos foram


executados por um corpo técnico próprio, sem a necessidade de grandes licitações e
concorrências. O controle era cada vez mais restrito aos grupos que estavam à frente da
CEDAE. O material utilizado nas intervenções menores e pontuais, por exemplo, ficava
a cargo das diretorias regionais, normalmente controladas ou influenciadas por grupos
políticos de municípios. Essa organização teve um duplo efeito: se o conjunto dos
investimentos em saneamento no Estado não guardava uma relação direta com os anos
eleitorais nas prefeituras, demonstrando a autonomia da CEDAE na execução de sua
política; os pequenos projetos e a inauguração de obras de saneamento nos municípios
caminhavam lado com os interesses políticos locais, principalmente nos períodos de
campanha eleitorais (MARQUES, 1996; 1998).

A principal influência eleitoral no volume da política diz respeito ao


controle dos cronogramas e à execução de inaugurações eleitorais,
assim como a realização de programas específicos de grande

78
visibilidade, vários deles já previstos com outras ênfases e
roupagens.40

Essa característica política e regionalizada da CEDAE ganhava a cada ano mais


importância com o afastamento das imposições federais. Com o processo de abertura
política e eleitoral no início da década de 1980, esses elementos ficaram ainda mais
visíveis. As pressões locais ganharam espaço no cenário estadual e passaram a pautar
em boa parte a política de infraestrutura urbana e de saneamento na RMRJ. Assim, de
certa forma, o caráter provisório de algumas intervenções acabou tornando-se uma
prática recorrente, virando uma estratégia de controle local da estatal sobre o serviço. A
manutenção de pequenas ramificações da rede e seu mau funcionamento fazia com que
gestores públicos passassem a atuar cotidianamente na solução de problemas de
abastecimentos, esgoto e pavimentação.

No Jardim Catarina, há histórias de personagens que ficaram conhecidos justamente por


exercerem esse tipo de controle sobre as pequenas intervenções. Como a rede no
loteamento era pequena e secundária, esses agentes tinham uma maior margem de
manipulação sobre o serviço. O fornecimento de água era constantemente interrompido
e reaberto, sempre num contexto de negociação e de jogo de interesse que muitas vezes
se tornavam eleitoreiros.

Com isso, a lógica da política de saneamento do estado passou a funcionar sempre por
meio de um movimento entre dois níveis: na esfera estadual, existia uma forte
autonomia do corpo dirigente e técnico da CEDAE nas decisões de como e onde
investir grandes montantes de recursos públicos. Uma amostra é justamente o
crescimento dos investimentos na periferia antes mesmo da década de 1980, ainda no
período militar.

E na esfera municipal, onde a política era realizada em pequenos serviços e ações


pontuais, com exceção da cidade do Rio de Janeiro, prioridade do antigo grupo da
CEDAG. Essa escala era influenciada pelos poderes locais, que mediavam a atuação do
Estado e da máquina estatal nas localidades e nos territórios metropolitanos, fazendo
dessas negociações em relação a água componentes centrais para a organização da
política do cotidiano desses municípios.

40
Ibid., p.82.

79
Esse ponto é importante, pois mostra que as estruturas estatais, por exemplo, eram
altamente permeáveis, capazes de atender a interesses de diferentes atores, muitas vezes
posicionados fora do círculo de poder da cúpula de governo. Esse perfil organizacional
da CEDAE, baseado na visão dos profissionais do setor de obras e de saneamento, mas
com departamentos regionais atuando marginalmente, gerou uma configuração
particular na forma de agir da empresa em relação aos loteamentos e às periferias
urbanas.

Num cenário de abertura política, o retorno das eleições para governador, somados aos
efeitos da inflação e do encolhimento do orçamento federal, a CEDAE passa a
centralizar praticamente todos os investimentos na região metropolitana, mantendo o
monopólio sobre as operações de saneamento. A partir do governo Moreira Franco, a
política tarifária da empresa consolida-se de vez como importante vetor de
“alavancagem” de recursos. Há um protagonismo da companhia no âmbito da política
urbana estadual. Tal fato chama a atenção das agências internacionais, que atraídas pela
capitalização da empresa, passam a oferecer linhas de crédito para realização de grandes
obras.

Gráfico 1: Investimento médio Cedae na RMRJ - Governos pós-fusão

Investimento médio/ano (mil USS)


180000
160000
140000
120000
100000
80000
60000
40000
20000
0
Faria Lima Chagas Brizola Moreira Brizola 2 Marcelo
Freitas Franco Alencar

Fonte: produzido a partir de MARQUES, 1998.

80
Com o financiamento externo o governo do Estado poderia investir na periferia sem
impactar na qualidade do serviço e o atendimento priorirário das áreas ricas do Rio de
Janeiro e de Niterói, praticamente com 100% de cobetura de água e esgoto no final dos
anos 1980. Essa capitalização permitia à empresa manter sua política de arrecadação
com a “venda” de água para os bairros da zona sul do Rio e centro de Niterói e, ao
mesmo tempo, intensificar sua ação nos municípios metropolitanos.

No segundo governo Leonel Brizola, em 1991, como já mencionado, iniciaram-se as


tratativas para um empréstimo junto ao BID e ao governo Japonês para o Programa de
Despouluição da Baía de Gunabara (PDBG). O PDBG começa a ser exceutado no final
do mandato de Brizola, porém a maior parte dos recursos são aplicados no governo
seguinte de Marcelo Alencar. Em São Gonçalo, a prefeitura, que seria responsável pela
implementação de algumas das ações previstas para o município, rebatiza o programa
como “Viva São Gonçalo”, executado na gestão do prefeito Ezequiel Matos. O gráfico
acima deixa claro a mudança no nível de investimento no setor de infraestrutura quando
há a entrada de empréstimos internacionais no começo da dácada de 1990.

De acordo com Abreu (1987) e Marques (1998; 1999; 2000), após a criação da CEDAE
a “periferia metropolitana”41 representou 45% do total de investimentos realizados em
infraestrutura de saneamento por parte da estatal, entre os anos 1975 a 1996. As áreas
centrais e de classe média e alta42, por sua vez, representaram 55% dos recursos
aplicados. As obras e intervenções em Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São Gonçalo,
só não superaram individualmente os valores destinados à construção da Barra da
Tijuca, no período mencionado.

Baseado nesses dados sobre investimentos em saneamento realizados por parte da


CEDAE fica evidente que a estatal decidiu, de fato, direcionar recursos para a RMRJ,
independente de pressões políticas externas, como processos eleitorais e mudanças no
poder executivo do estado. Da mesma forma, a ação estatal não diminui a influência
política das elites locais dos municípios, mesmo durante o governo militar e após a
fusão do Estado do Rio de Janeiro.

41
Ambos os autores consideram, para efeito de agregação de dados estatísticos, a “periferia
metropolitana” sendo a soma dos municípios localizados no entorno da capital Rio de Janeiro (com
exceção de Niterói), mais a região da Zone Oeste Carioca;
42
Nesse caso, soma-se o centro e zona sul da cidade do Rio de Janeiro; Barra da Tijuca e Niterói.

81
Na verdade, a chegada em São Gonçalo de programas de saneamento seguiu em grande
medida a organização política já estabelecida no município, envolvendo agentes estatais
e grupos locais, moradores, departamentos regionais da CEDAE e o fracionado
atendimento de água no Jardim Catarina. Essa configuração levou à concentração de
serviços em localidades específicas dentro do próprio loteamento, priorizando quadras e
ruas com algum tipo de infraestrutura urbana já instalada e as áreas valorizadas em
termos de mercado imobiliário local (SANTOS, 1985; DOMINGUEZ, 2011).

Essas distinções internas tem um porquê histórico que precisa ser descrito. A
complexidade da RMRJ, que de certa forma tem uma de suas expressões na organização
da CEDAE e nas políticas de saneamento, será confrontada pelas práticas de regulação
do abastecimento de água no Jardim Catarina e pela própria formação espacial do
loteamento. Como consequência a estatal terá que reformular suas ações e o modelo se
serviço quando de fato entra com sua máquina estatal dentro do JC.

82
Capítulo 03 – Casa, Trabalho e Água: as histórias de ocupação do
Jardim Catarina

A presença de extensas áreas de topografia plana ou suave, propícias à


atividade e à instalação humana, a inexistência de relevos impedindo
as comunicações terrestres entre o núcleo inicial e principal da
metrópole e seu recôncavo são alguns dos elementos que
possibilitaram a expansão da cidade em direção à baixada da
Guanabara (SOARES, 1990, p.42).

A discussão anterior apresentou as interfaces e os impactos políticos (e urbanos) na


relação entre a mudança na conjuntura de poder fluminense, particularmente após a
fusão entre a Guanabara e o antigo estado do Rio de Janeiro, e a reformulação da
máquina pública estadual do setor de saneamento. No presente capítulo, o objetivo é
demonstrar que o avanço dos serviços de saneamento sobre a região metropolitana
confunde-se com a história de ocupação dos loteamentos urbanos criados no meado do
século XX e que, no caso do Jardim Catarina, tornaram-se os lugares fundamentais para
compreender o jogo política na cidade.

O fenômeno loteamento promoveu um encontro entre as estruturas de poder do Estado -


intermediado por agentes públicos e distribuídas por órgãos regionais - e os territórios
dos municípios metropolitanos que se encontravam disponíveis para atender ao impulso
do novo projeto nacional de industrialização, que necessitava de terras para a
urbanização das cidades e receber a população que se aglomerava nos grandes centros,
vistos a partir de 1940.

No caso da Baixada Fluminense, um dos fatores que facilitaria essa ocupação de zonas
marginais ao Rio de Janeiro seriam justamente as obras de drenagem de áreas alagáveis,
características do ambiente da região, que foram efetuadas inicialmente para atender os
interesses comerciais da cidade do Rio de Janeiro, já que a Baixada funcionava como
um entreposto de mercadorias e de distribuição de produtos para o Distrito Federal
(ABREU, 1987; MARQUES, 1998; ALVES, 2003). Posteriormente, a demanda por
abastecimento de água da capital e a necessidade em atender aos anseios da expansão de

83
sua área urbana, como também a instalação de distritos industriais, exigiu do Estado
intervir diversas vezes na tentativa de sanear os municípios do entorno do Rio que
historicamente sofriam com a presença de pântanos, epidemias e área sob o efeito de
marés.

Talvez, por isso, algumas ações de infraestrutura tenham chegado décadas antes na
Baixada Fluminense em comparação à região do distrito de Monjolos, em São Gonçalo.
Tal fato, contudo, não evitou que o Jardim Catarina, antes mesmo da chegada dos
programas de saneamento realizados pela CEDAE, já se apresentasse como um lugar de
organização espacial interna heterogênea, inclusive com a presença de alguns serviços
urbanos que atendiam partes específicas do loteamento, tais como iluminação elétrica,
linhas de ônibus e equipamentos de educação. O próprio parcelamento de terra realizado
em diferentes etapas por parte das loteadoras promoveu uma dinâmica urbana interna
distinta e fracionada.

Na década de 1950, por exemplo, a loteadora Jardim Catarina S.A. previa criar um
mercado imobiliário voltado para uma classe média urbana emergente no Rio de
Janeiro. Posteriormente, já nos anos 1970, o segundo parcelamento de terras, executado
por outra empresa, se orientou para o atendimento da demanda por moradia popular que
se intensificava na RMRJ. Somente esses dois processos já seriam capazes de trazer
características de construção distintas ao JC, como de fato aconteceu: algumas ruas
contavam com pavimentação em detrimento de outras; as quadras e lotes passaram a
possuir dimensões desiguais; as casas bem elaboradas dos primeiros compradores
tiveram que conviver ao lado de moradias mais simples, ocupados por população de
perfil socioeconômico distinto.

No caso da primeira incorporação de terras, durante a década de 1940 e 1950, havia um


estímulo por conta da legislação de uso do solo urbano que não estabelecia mecanismos
claros de controle ou obrigações em termos de infraestrutura e definição de limites na
extensão das áreas a serem parceladas. O Estado abria espaço para atuação de empresas
e investidores que atuavam como incorporadoras e loteadoras, que passaram a agir
como importantes agentes de mercado na elaboração de um novo padrão de organização
urbana (ABREU, 1994; MARQUES, 1998).

Com isso, a transição do modelo agroexportador brasileiro para o urbano-industrial


durante a primeira metade do século XX teve como reflexo a autorização de milhares de

84
loteamentos nas regiões metropolitanas do país por parte de prefeituras e governos
estaduais, prática iniciada ainda no governo Vargas e vista como necessária para
garantir uma rápida reestruturação fundiária nas grandes cidades. Além disso, era
preciso manter os baixos custos dessa urbanização e fazer da incorporação de terras um
meio gerador de capitais fundiários de forma a alimentar o sistema capitalista que
ansiava por processos de acumulação para a produção industrial-urbana (OLIVEIRA,
1998; 2003).

As necessidades de moradia de uma população que crescia


rapidamente, assim como a extraordinária desvalorização da moeda,
levando a população da metrópole à prática generalizada de aplicar
suas pequenas economias na compra de lotes nessa área, aliadas às
facilidades proporcionadas pela rede de estradas (e ferrovias) da
região foram fatores do enorme êxito desse tipo de empreendimento e
da extraordinária valorização das terras da baixada (SOARES, 1990,
p. 57)

A renda da terra passava a ser extraída pela relação vantajosa entre os rasos custos de
produção geridos pelas loteadoras e o valor oriundo da comercialização de lotes em
larga escala. O processo de acumulação era acelerado. A intensificação dos fluxos
migratórios para os grandes centros e a formação de uma reserva de mão de obra nas
metrópoles fizeram com que os capitalistas - que até as primeiras décadas do século XX
arcavam por conta própria os gastos com moradia e outros serviços básicos ao
trabalhador fabril, a exemplo do que foram as vilas operárias na cidade do Rio de
Janeiro (BURGOS, 2006) – deixassem de bancar todos os custos de produção e
reprodução da força de trabalho.

Para testar o grau de fragilidade da regulação estatal sobre o uso do solo urbano, até os
anos 1930 a legislação que regia esse segmento provinha da Lei de Terras, promulgada
em de 1850. Durante as primeiras décadas do século XX, praticamente apenas as
cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro haviam criado regulamentação própria, porém
focada mais na urbanização das áreas centrais, tais como planos de arruamento, padrões
urbanísticos, procedimentos administrativos e como ofertar serviços de infraestrutura.

85
Em 1937, a publicação do Decreto Federal Nº 58/1937, que tratava mais dos aspectos
formais da planta dos loteamentos e de glebas, definia os ritos jurídicos do
empreendimento, a necessidade de reconhecimento em cartório e as garantias básicas
para o financiamento de lotes e glebas, deixando de lado as tratativas a respeito dos
controles e obrigações urbanísticas por parte das prefeituras ou das empresas loteadoras.

O mais provável é que o governo não tivesse interesse em tomar


medidas para evitar a precariedade dos loteamentos porque isto
significaria a elevação do custo do lote, da moradia auto empreendida
e, portanto, da reprodução da força de trabalho [...]. A omissão no
combate aos loteamentos precários viabilizava a criação, com
reduzido investimento privado (BONDUKI, 2007, p.304).

Nabil Bonduki ao descrever as primeiras propostas de assentamentos urbanos em São


ressaltava a intencionalidade do Estado em promover a produção de capital fundiário.
Contudo, mesmo com a legislação de 1937, há um retrocesso legal em termos de
autorização de novos parcelamentos. A nova lei federal permitiu a possibilidade de
registro de transações de compra e venda de lotes sem a necessidade de anuência das
prefeituras municipais.

Dessa maneira, a inversão rural-urbano, entre 1930 a 1970, avançou a taxas elevadas
tanto em termos de número de lotes lançados como em relação ao crescimento
demográfico das áreas periféricas dos aglomerados urbano. No mesmo período, há um
boom nas taxas de natalidade, correndo em paralelo às quedas acentuadas das taxas de
mortalidade na área urbana. Nesse cenário, o percentual de urbanização na região
sudeste do país passou de 47,5%, entre 1940/50, para 60%, entre 1950/60 (LEONELLI,
2010), assumindo duas características na organização espacial das cidades:

Por um lado, concentra grandes contingente populacionais em um


número reduzido de regiões metropolitanas e grandes cidades ([...];
por outro, alimenta o crescimento da população urbana de um grande
número de cidades de diferentes tamanhos que se integram num

86
complexo padrão de divisão territorial do trabalho social tanto entre
campo e a cidade como entre cidades (BONDUKI, 1994, p.213).

Somente em 1967, após uma nova mudança na legislação federal 43, que se estabelecem
alguns critérios basilares para desmembramento de terras, sendo repassado às
prefeituras algum poder sobre a autorização ou não de empreendimentos imobiliários,
especificamente na avaliação sobre localização do loteamento. Contudo, será somente
com a Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que de fato o Estado irá dispor de um
arcabouço legal para tratar do desmembramento e do parcelamento do solo urbano no
país.

De acordo com esta nova legislação os novos loteamentos deveriam respeitar tamanhos
pré-estabelecidos de glebas e lotes. As ruas teriam que conter dimensões padronizadas e
o acesso deveria ser interligado por vias públicas. Todo o procedimento de aprovação
deveria contar com o crivo municipal. A loteadora para ter a autorização de
comercialização de lotes precisava, além da apresentação de planta do loteamento, com
a previsão de áreas para instalação de equipamentos públicos, desenhar as previsões da
infraestrutura de saneamento (artigos 4º e 6º da lei).

Contudo, ao final dos anos 1970 já não havia muito que parcelar em termos de área
disponível na RMRJ. O número de loteamentos lançados já havia alcançado ao seu
ápice, entrando em movimento de queda. As décadas de maior dinamismo na repartição
de terras foram justamente os anos 1940, 1950 e 1960, período anterior à lei de uso do
solo 6.766/79. Isso significa que grande parte dos empreendimentos construídos não
precisou garantir nenhuma infraestrutura prévia de saneamento, de transporte e de
iluminação para aprovação e posterior comercialização.

Na área de saneamento, as primeiras especificações técnicas a nível nacional só


surgiram com a criação do BNH, porém essas diretrizes só cabiam para os
empreendimentos financiados pelo banco ou nos investimentos federais em programas
de habitação nos estados e municípios. No Jardim Catarina a ordem era distinta.
Historicamente, boa parte do território de São Gonçalo foi ocupada por loteamentos sem
que tivesse ocorrido qualquer tipo de restrição por parte da legislação de uso do solo. A
única medida adotada pela prefeitura na verdade ajudou a incentivar ainda mais o

43
Decreto-Lei 271/1967.

87
parcelamento de terras. Em 1944 o município revê sua divisão político-institucional e
cria o distrito de Monjolos a partir do desmembramento da antiga zona rural da cidade,
incorporando-a ao perímetro urbano, ofertando-a ao parcelamento e à comercialização
de lotes (BRAGA, 1998).

O fenômeno do loteamento na Região Metropolitana do Rio de Janeiro foi observado de


perto por Carlos Nelson Ferreira dos Santos que passou a estudar a formação de
loteamentos na periferia metropolitana, entre eles o próprio Jardim Catarina (SANTOS,
1979). Para Santos, o loteamento teria se tornado um instrumento necessário ao novo
modelo de desenvolvimento urbano no Brasil. A escala da área a ser parcelada precisava
possuir grandes proporções, fazendo valer o fator quantitativo como algo essencial à
geração de lucros por parte das loteadoras.

Essa necessidade de geração de capital fez da região da Baixada Fluminense e de São


Gonçalo lugares ideais por conta das características físicas desses municípios com suas
superfícies horizontais. Para o autor, a legislação e a ação estatal garantiram o
funcionamento de um sistema “autônomo” de urbanização que ganhava força nas
periferias das metrópoles brasileiras.

O sistema autônomo não é independente do sistema capitalista maior


que também configura o sistema oficial [...] pelo contrário, supõe-se
que ele lhe seja necessário e complementar, sobrevivendo à custa de
grande facilidade que apresenta em fazer e desfazer contratos
informais e em solucionar problemas por relações face a face,
compreensíveis e manipuláveis pelos pobres. Assim, a antiburocracia
lhes daria a chance de terem algum poder lhes forneceria o espaço
para exercerem uma espécie de estratégia anti-hegemônica. Aliás, isso
também acontece dentro dos sistemas oficiais, só que de forma mais
enfraquecida e menos eficiente para a solução de conflitos individuais
e coletivos do quotidiano (p.32).

Na prática, os loteamentos representaram uma solução eficaz para todos aqueles


envolvidos na produção do espaço urbano. Para Santos, entre os atores essenciais para

88
garantir esse processo destacavam-se44: o Estado (e suas instituições cujo poder tem
rebatimento territorial); o capital (representado por empresas grandes ou pequenas ou
mesmo por indivíduos); e o morador (indivíduo-usuário ou grupos representativos de
diversas ordens).

O morar na periferia obedece a uma séria de articulações de diversos


atores e de seus processos que viabilizariam a produção,
comercialização, o acesso e o consumo da moradia em qualquer das
instâncias representativas (econômicas, jurídica, financeira, política,
sociocultural, tecnológica etc.), através da solução loteamentos. Nesse
sentido, a produção e o consumo seriam vistos como indissociáveis e
como aspectos complementares de um conjunto regido por alianças,
conflitos e acomodações correspondentes 45.

Os loteamentos urbanos, se por um lado não contaram com financiamento público para
a construção de moradia e urbanização de ruas e quadras, por outro, o comércio de lotes
não precisou lidar com uma máquina estatal impessoal e burocratizada, o que favoreceu
ainda mais sua ocupação e venda. Numa relação face a face ente vendedor e comprador
diversas soluções puderam ser acionadas, diferente das políticas urbanas,
principalmente a partir dos anos 1960, quando as linhas de crédito e programas
habitacionais eram centralizadas por agencias públicas e bancos. As ações e políticas do
BNH seriam um bom exemplo dessa feição estatal mais rígida:

Onde as razões de cada indivíduo são achatadas pelas imposições dos


regulamentos, pelos juros que crescem de maneira incontrolável e pela
impopular correção monetária. Um lote, ao contrário, é pago em
prestações baixas e fixas, permitindo o controle e previsão do
orçamento doméstico46.

44
Santos (1980), Bonduki e Rolnik (1982), Maricato (1982) e Bolaffi (1985) elaboraram diversos estudos
sobre a formação do capitalismo urbano industrial brasileiro e os impactos desse processo na cidade e na
organização espacial de mercados e políticas urbanas.
45
Ibid., p. 29.
46
Ibid.

89
A solução do loteamento necessariamente passava por negociações diárias envolvendo o
Estado, agentes econômicos (de mercado) e os moradores. Os territórios seriam assim o
ambiente de mediação entre a política urbana e os acontecimentos do cotidiano. O
caráter “livre” do loteamento permitiria uma maior capacidade desses espaços em se
reproduzir no contexto geral da cidade. A sensação que passa é que a urbanização de
São Gonçalo, devido à sua posição marginal no conjunto da RMRJ, só pode ser
concretizada graças à organização do espaço urbano do município por meio das práticas
de loteamento. O contexto das disputas políticas na região metropolitana, capitaneadas
por Niterói e Rio de Janeiro, não permitiria outra forma de ocupação diante de
concentração de capitais urbanos nesses municípios.

3.1 Os loteamentos de São Gonçalo, os loteamentos do Jardim Catarina

Em São Gonçalo, os loteamentos foram se formando ao longo da Rodovia Amaral


Peixoto (RJ-104), estrada que interliga o centro de Niterói à região Norte do estado.
Carlos Nelson F. dos Santos (1985), na sua pesquisa sobre a formação de periferias
urbanas nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, ao visitar a região onde se
localiza o Jardim Catarina, desenhou um cenário de transformação que estava a sua
frente:

Laranjais, canaviais, pastos, passam a ser “jardins”. Reminiscências


espúrias, evocações poéticas às avessas das garden-cities de Howard,
sem água, sem esgoto, sem luz, sem transporte, sem escola. Mal e mal
eram abertas ruas e piqueteados lotes. Isto quando não se tratava de
áreas subaquáticas ou situadas em pirambeiras inacessíveis,
identificáveis e comercializáveis apenas em planta (p.25).

A passagem formula uma sobreposição de tempos e espacialidades, uma zona de


transição com indicativos de produção de um espaço desigual. Para o autor, diferente da
presença marcante das favelas na paisagem da cidade do Rio de Janeiro, o surgimento
de loteamentos se caracterizava pela “invisibilidade”. Tais empreendimentos eram
criados sob a névoa da ação dos técnicos urbanistas e do Estado. Jardim Catarina seguiu

90
nessa direção, onde muitos lotes passaram a ser vendidos antes de serem ao menos
aterrados, aplanados ou acessíveis por vias abertas.

A explosão dos loteamentos se dá longe do núcleo do Rio. Longe das


áreas postas sob controle, portanto. No território do antigo Distrito
Federal, as irregularidades acontecem em regiões “vagas”, ocupadas
por fazendas, onde não deveria haver muita gente prestando atenção
ao que ocorria. Em São João de Meriti, Nova Iguaçu, Duque de
Caxias e São Gonçalo contam outras distâncias, além das físicas.
Tratava-se de outro Estado e, em particular, de outras Prefeituras. 47

Contudo, essa invisibilidade apontada por Santos não era sinônimo de segregação ou
exclusão de sua população, necessariamente. As mudanças na lei federal durante as
primeiras décadas do século XX foram amplas e genéricas e o direcionamento do
capital fundiário para as margens da cidade do Rio de Janeiro são indicadores de um
movimento que demonstra que o processo de urbanização da região metropolitana não
foi algo simplesmente espontâneo. O que ocorria era que as prefeituras, incapazes (ou
sem o interesse) de lidar e gerir (legalmente e tecnicamente) a expansão urbana
acelerada atuavam de forma a mais restrita possível. Em geral, restando facilitar a
inversão de áreas rurais, garantindo a oferta e o alto volume de terras para o capital
incorporador.

Os loteamentos se alastraram, em muitos casos, sem que as Prefeituras


soubessem onde e como estavam acontecendo. Um simulacro de
projeto de urbanização desenhado em cima de um levantamento
topográfico dos mais sumários bastava para “legalizá-los” (SANTOS,
1985, p.26).

Após a legislação de 1944, São Gonçalo tornou-se uma cidade totalmente urbana, sem
nenhum distrito ou zona destinado ao meio rural (BRAGA, 1998). Os três distritos
anteriores (dois urbanos e um rural) deram lugar a cinco novas unidades territoriais:
47
Ibid. p. 26.

91
Distrito Centro (São Gonçalo), Sete Pontes, Neves, Ipiíba e Monjolos. De acordo com
Maurício de Abreu, o número de loteamentos aprovados em São Gonçalo na década de
1930 contabilizou apenas três empreendimentos, com um total de 933 lotes demarcados.
Dez anos depois essa conta chegou a 140 loteamentos, totalizando mais 38.617 lotes.

Os dados censitários apresentados anteriormente confirmaram que o distrito de


Monjolos foi a unidade municipal que obteve o maior incremento populacional desde
sua criação. Entre 1970 e 1980, São Gonçalo obteve um crescimento demográfico de
3,6% ao ano, dados considerados de alto dinamismo. Monjolos, por sua vez, no mesmo
período, alcançou uma extraordinária taxa anual de 7,5% de crescimento ao ano, acima
da média municipal.

A explosão de novos parcelamentos e loteamentos na área metropolitana do Rio de


Janeiro acumulou, entre 1950 a 1979, aproximadamente 1,5 milhões de lotes, sendo 195
mil somente em São Gonçalo (10% do total). Na década de 1950, o município lançou
cerca de 135 mil lotes, ou seja, a grande maioria dos lotes que se tornariam disponíveis
para o mercado de terra da região. A partir de 1960 a produção de lotes inicia um
movimento de queda, com um recuo de 16% no final da década. Em São Gonçalo, entre
1960 e 1969, o processo é levemente retomado, porém de forma tímida, com um total
22,5 mil lotes disponibilizados, uma variação positiva de 0,5% em relação à década
anterior. Mesmo assim, apresentando percentuais acima do restante da região
metropolitana que seguia reduzindo a produção de lotes e loteamentos (-1%).

Tabela 2: nº de Lotes construídos na RMRJ e SG

Lotes Área (ha)


ANO SG RMRJ SG RMRJ Lotes% Área%
1940 14060 192408 2893,45 24380,47 7,31 11,87
1950 135753 788152 6681,9 49997,51 17,22 13,36
1960 22433 277439 1540,34 21590,65 8,09 7,13
1970 23543 231984 2141,33 19714,45 10,15 10,86
Total 195789 1489983 13257,02 115683,1 10,15 11,46
Fonte: CARDOSO, et. al., 2007

O distrito de Monjolos, por ter uma topografia plana, com quadras em formatos
retangulares, de boa dimensão e padronizados, garantiu durante quase quarenta anos a

92
oferta de lotes, até mesmo nos momentos de retração econômica do mercado imobiliário
na RMRJ. Essa configuração espacial permitiu ao Jardim Catarina assumir rapidamente
dimensões amplas, acima dos limites impostas pela legislação que seria criada apenas
nos anos 1970.

Imagem 4: imagem aérea do Jardim Catarina em 1975

Fonte: acervo Fundação CEPERJ48

As características do loteamento permitiram a divisão e ocupação dos lotes sem a


necessidade de altos investimentos em terraplanagem e obras de infraestrutura, seja por
parte das loteadoras, seja por parte do Estado. A impressão que dá é que um grande
campo foi aberto bem ao lado de Alcântara - que na época já se configurava como
importante centro comercial de São Gonçalo e contava com terminais de ônibus e linhas
que partiam e chegavam de outras partes do estado - e nas margens da rodovia RJ-104.

48
Centro Estadual de Pesquisas, Estatísticas e Formação de Servidores Públicos do Estado do Rio de
Janeiro;

93
Imagem 5: comércio de Alcântara (1948), cinco anos antes do lançamento do Jardim Catarina

Fonte: Acervo Associação de Moradores do Jardim Catarina - AMAJAC

O lançamento oficial do Jardim Catarina ocorre em 1953. O jornal O Fluminense49, em


sua edição de 30 de julho de 1953, publica no caderno de classificados a chamada de
abertura do loteamento. Os anúncios destacavam a oportunidade de negócio para quem
desejava investir no mercado imobiliário de São Gonçalo, pois a empresa/loteadora, que
se chamava “Jardim Catarina S.A.”, estava oferecendo lotes a bom preço e facilidades
de financiando, sem necessidade de efetuar qualquer aporte financeiro de entrada e com
parcelas pré-fixadas.

Os primeiros lotes eram vendidos por Cr$15.000 (quinze mil cruzeiros) da época, ou
R$2.200 (dois mil e duzentos reais) em valores atualizados 50. O financiamento era feito
diretamente com a loteadora, com pagamentos mensais em torno de Cr$250 (duzentos e
cinquenta cruzeiros, ou R$37,5). Para atrair um número maior de compradores, a
empresa costumava fretar ônibus com saídas programadas do centro do Rio de Janeiro e
de Niterói. A chamada no jornal tentava demonstrar o quão fácil era adquirir uma
propriedade no Jardim Catarina. Venha marcar seu lote, dizia a o anúncio.

49
Fundado em 1878, em Niterói, O Fluminense é o terceiro periódico mais antigo do país.
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/.
50
Conversão aproximada. Disponível em: https://www.fee.rs.gov.br/servicos/atualizacao-valores/.

94
O Jardim Catarina era representado como um futuro bairro urbano, localizado dentro do
conjunto da metrópole fluminense. Ao lado de Alcântara e na margem de uma rodovia
de integração regional, estava próximo à capital Niterói (do antigo estado), e a poucos
minutos das barcas que levavam à Praça XV, centro do Rio de Janeiro. Com menos de
Cr$9 cruzeiros por dia, torne-se proprietário. O investidor ou o futuro morador parecia
ter a sua frente uma oportunidade para aplicar seus recursos e poupança.

Imagem 6: anúncio da loteadora Jardim Catarina S.A

Fonte: O Fluminense

O Fluminense, criado no final do século XIX, cobria os acontecimentos diários da vida


no estado do Rio de Janeiro, mas com ênfase na região leste da Baía da Guanabara e no
interior do estado. Na seção dos classificados, a Jardim Catarina S.A tentava distinguir
o novo loteamento das formas tradicionais de moradia popular que prevaleciam na
maioria dos centros urbanos do país, tais como cortiços e loteamentos clandestinos. A
narrativa descrevia a possibilidade de compra em lugar alternativo à vida agitada da
cidade, cujos lotes continham tamanhos acima do padrão comum em áreas de periferia,
suficiente para a formação de jardins e áreas de lazer privadas. Essa estratégia alinhava-
se a uma tentativa de fazer do Jardim Catarina uma “periferia de amenidades”
(CORRÊA, 1986).

Na lógica dos loteamentos, parte das terras adquiridas por investidores fundiários
muitas vezes aguardavam o momento certo para pôr em prática a comercialização dos

95
lotes. Se há possibilidade para criar um espaço residencial destinado à classe média, por
exemplo, tentava-se buscar a valorização prévia do entorno, de forma a atrair um
mercado consumidor com um maior poder de compra. Nesse caso, há um lobby e
pressão política para a aplicação de investimentos públicos no empreendimento,
buscando com isso promover sua valorização no mercado imobiliário e um retorno de
lucro maior por cada unidade comercializada.

O Estado capitalista, permeado de interesses fundiários e imobiliários


- sobretudo na esfera municipal e estadual - investe maciçamente na
infraestrutura da periferia em pauta: sua ação e espacialmente
desigual, a favor da periferia aprazível e em detrimento da periferia do
"povão". A implantação de ruas, luz, gás encanado, rede de esgoto,
sistema viário incluindo, se necessário for, tuneis e autoestradas com
viadutos, valoriza deste modo a propriedade fundiária (CORRÊA,
1986, p. 74).

Roberto Lobato Corrêa, comparando o processo de formação de periferias no Brasil e


nos EUA, lembra que o padrão dos subúrbios americanos traz uma concentração de
classes médias e altas fora dos núcleos centrais, que passaram a ser visto como lugares
de aglomeração de população pobre. Em decorrência dessa nova configuração espacial
os serviços e investimentos públicos (revitalização de espaços urbanos, construção de
grandes avenidas, farto crédito imobiliário e segurança pública) são canalizados para
esses subúrbios em paralelo à decadência e ao esvaziamento econômico dos bairros do
centro da cidade.

Para Corrêa, algumas tentativas de reprodução do padrão americano foram


experimentadas, mas o que de fato prevaleceu no país foi um movimento de dilatação
urbana das cidades com feições radicalmente distintas. O bairro de Alphaville, que fica
na cidade de Santana de Parnaíba, município da Região Metropolitana de São Paulo
(RMSP), também seguiu algumas características distintas. Diferente dos EUA, o centro
de São Paulo não deixou de ser ocupado por classes médias e altas paulistanas, ao
contrário, as classes populares foram distribuídas nos limites da capital (Zona Leste e

96
Sul) ou nos municípios do entorno, como no ABC paulista, Diadema, Guarulhos entre
outros.

No caso de Alphaville, o mesmo tratava-se de uma espécie de bairro condomínio, com


segurança e serviços privados, destinado unicamente às classes ricas paulistanas (e não
à classe média). Por meio de um consórcio envolvendo empresas do ramo imobiliário e
da construção civil, foi adquirido uma boa porção de terra na região de Barueri 51, em
1973, para a implementação dos primeiros empreendimentos empresariais e residenciais
na região. As empresas envolvidas nesse projeto tinham como justificativa para angariar
investimentos públicos e privados na periferia da capital a importância de
descentralização econômica da RMSP, defendendo o desenvolvimento econômico de
todo o conjunto metropolitano (PESCATORI, 2017).

Em meio a denúncias e conflitos com posseiros das antigas terras de Barueri, o


consórcio obteve o apoio do governo estadual e federal na legalização dos
empreendimentos, o que gerou uma rápida valorização do local e a consequente atração
de novas empresas e ricos paulistanos para os condomínios horizontais que foram sendo
construídos ao lado de prédios financeiros e do business center.

O projeto do Alphaville visava organizar a RMSP com serviços e áreas segregadas em


termos de lazer e moradia. As campanhas publicitárias enalteciam a beleza e o conforto
das casas e bairros fechados. A proposta era criar exclusividade, uma cidade só para
aqueles que podiam pagar e entrar, impulsionando ainda mais o capital imobiliário
(CARLOS, 2003), num radical contraste com os processos de formação do espaço
urbano da Grande São Paulo.

A loteadora Jardim Catarina S.A. foi criada também por investidores imobiliários da
cidade do Rio de Janeiro que costumavam investir no mercado de construção e de
incorporação também destinado à classe média da cidade carioca52. O projeto visava
criar uma área residencial voltada às famílias que desejavam viver num ambiente
próximo aos subúrbios americanos, com áreas verdes, casas com jardins e de certa
forma isolado da confusão e do ritmo mais acelerado da capital carioca.

51
As Construtoras Albuquerque e Takaoka Ltda. criaram uma sociedade em 1951, adquirindo as terras da
Fazenda Tamboré, em Barueri (RMSP). Com o auxílio e capitalização pelo BNH, a empresa teve fôlego
financeiro para não apenas compras terras, como executar a construção das obras.
52
Um dos sócios da Jardim Catarina S.A. foi proprietário da Servenco, empresa do ramo imobiliário que
em 1983 se especializou na construção de shoppings, entre eles o Rio Designer Center, no Leblon.

97
As propagandas da época destacavam as grandes obras viárias e de conexão urbana.
Afirmavam, inclusive, a existência de um espetacular projeto do túnel submerso na Baía
de Guanabara, interligando Niterói e Rio de Janeiro, que além de ser considerado viável,
estaria previsto no planejamento governamental. Por estar localizada numa antiga zona
rural, a loteadora apresentava uma oportunidade de integrar o modo de vida urbano, em
construção, ao ambiente calmo e aprazível do campo.

Em paralelo esse projeto, na vizinha Niterói, a região de Itaipu, ao redor da lagoa de


Piratininga, também teve suas terras parceladas, com lotes oferecidos a custos
semelhantes ao Jardim Catarina. Nos anos 1950, início dos 1960, em ambos os lugares
um lote, com dimensões parecidas, era vendido por um preço aproximado de Cr$15.000
(quinze mil cruzeiros). Nesse período, Niterói, na época capital fluminense, estava
vivendo um momento de efervescência política, em que grupos políticos do município
tentavam rivalizar com a cidade do Rio de Janeiro.

Além de já contar com uma boa oferta de serviços urbanos, hospitais e universidades,
havia o desejo explícito do então governador (interventor federal) Amaral Peixoto de
transformar o município numa capital, com a presença de uma máquina estatal
estruturada e centralizada. Tanto que em 1940, via decreto federal53, o plano de
urbanização e modernização de Niterói foi apresentado pelo governo tendo como base
importantes obras e intervenções urbanas.

Previa-se o aterro da faixa litorânea, principalmente as praias de Icaraí e de São


Francisco; a construção de um novo centro comercial na região do porto e das barcas; e
a incorporação ao centro urbano áreas marginais por meio de programas de saneamento
básico, abertura de novas vias, urbanização de antigos distritos rurais (LEME, 1999). O
zoneamento urbano do plano apontava quais localidades deveriam ser incorporadas à
cidade e receber um conjunto de políticas urbanas.

A principal delas era justamente a região das praias e lagoas de Piratininga/Itaipu. Em


1944 - mesmo ano de alteração da divisão político-territorial de São Gonçalo -, o
governo estadual apresentou como complemento o “Plano de Urbanização das Regiões
Litorâneas de Itaipu e Piratininga", que estimulava e financiava empresas interessadas a
investir nessa nova região. Logo em seguida, em 1945, é aprovado o loteamento da

53
Decreto-lei federal nº2441 de 23 de julho de 1940.

98
Cidade Balneária de Itaipu que abarcava justamente o entorno da lagoa de Piratininga e
a praia de Itaipu.

Esse caso é importante para a argumentação, pois, retrata diferenças entre os interesses
dos agentes envolvidos na execução dos empreendimentos imobiliários e urbanos na
região metropolitana do Rio de Janeiro. Como consequência Itaipu recebeu inúmeras
obras de urbanização antes mesmo da década de 1950. O Departamento Nacional de
Obras e Saneamento (DNOS), ainda durante o governo de Amaral Peixoto, iniciou a
construção do sistema de saneamento da região oceânica, incluindo um canal amplo,
como mecanismo para evitar inundações e os efeitos de marés, fenômenos
característicos de localidades baixas, planas e alagáveis da região.

Além disso, importantes rodovias de integração foram construídas. Por ser uma região
litorânea e com a presença de lagoas, praias e áreas verdes, logo despertou o interesse
do mercado imobiliário de classe média (LEME, 1999). Itaipu não se transformou numa
Alphaville, mas sua construção contava com apoio estatal e o desejo de expandir a área
urbana de Niterói, porém, por meio de uma ocupação destinada à classe média. As obras
públicas permitiram uma rápida valorização o que levou à atração de novos
investimentos imobiliários. Os atributos de Niterói, conectado ao Rio de Janeiro pelas
barcas e com a presença de máquina administrativa, também favoreceu a chegada de
empresas e novos capitais interessados em investir na cidade.

Não contando com os mesmos investimentos no entorno, o Jardim Catarina, nos seus
primeiros anos de lançamento, teve uma baixa procura. A diferença em termos de
valorização entre Jardim Catarina e a Cidade Balneário de Itaipu passou a ser cada vez
mais distante. O valor de um lote ou de uma casa tende a incorporar os atributos e
potenciais do seu entorno (serviços, comércio e infraestrutura). Até hoje, por exemplo, o
Jardim Catarina sofre com enchentes e inundações e déficit na cobertura de saneamento,
problemas estes que ao menos começaram a ser enfrentados na região de
Itaipu/Piratininga há décadas.

A 20 km da região da lagoa de Piratininga o Jardim Catarina seguiu rumo distinto. Em


janeiro de 1980, uma casa em Itaipu/Piratininga, numa propriedade de 220m2, custava
aproximadamente Cr$ 2,3 milhões (dois milhões e trezentos mil cruzeiros), ou R$541
mil reais a valores corrigidos. No Jardim Catarina, na mesma data e num lote de
dimensão aproximada, uma casa era vendida por Cr$300 mil (trezentos mil cruzeiros),

99
por conversão, R$70 mil reais54. Consequentemente, os lugares foram sendo ocupados
por classes sociais distintas e passaram a formar uma estrutura desigual na hierarquia
urbana da RMRJ.

Sem a inserção do loteamento num projeto mais amplo, como foi o caso de Itaipu em
Niterói, dificilmente as loteadoras ou outros agentes assumiriam os custos com a
urbanização e oferta de infraestrutura capaz de elevar, por exemplo, o Jardim Catarina a
níveis mais elevados no quadro geral do mercado imobiliário metropolitano. No caso da
prefeitura de São Gonçalo, como a mesma não participava de quase nenhuma decisão
sobre os rumos e a aprovação do loteamento (pelo menos antes da década de 1970), nem
mesmo o registro de propriedade do morador era garantido. A documentação cartorial
geralmente fazia referência às fazendas e às glebas originais, pois nem a prefeitura, nem
a loteadora haviam iniciado o processo de regularização fundiário do JC.

No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro55 há uma quantidade elevada de processos a


respeito da situação fundiária e legal dos lotes comercializados pela loteadora Jardim
Catarina S.A. Há contabilizados inúmeras petições de usucapião que foram abertos por
moradores contra a empresa, ainda nos anos 1980. Tal fato sugere que mesmo após o
encerramento de suas atividades, a loteadora não conseguiu regularizar o registro
fundiário do loteamento junto ao município.

Esse passivo “fundiário” indica que em algum momento a loteadora sai de cena mesmo
antes da regularização dos lotes. Da mesma forma, esse quadro traz evidências de que o
interesse por parte dos agentes na época em relação ao JC foi de fato sua capacidade de
gerar capital fundiário por meio da incorporação de terras a baixo custo via solução
loteamento. A partir desse ponto de vista, assim como Itaipu, o loteamento do Jardim
Catarina parece ter cumprido o seu papel no contexto urbano da metrópole fluminense.

3.2 O mercado imobiliário do Jardim Catarina

Com a chegada dos primeiros moradores e com a presença de corretores de imóveis


com atuação direta e mesmo autônoma no JC, o mercado imobiliário interno do
loteamento começa a adotar um funcionamento mais dinâmico, com a redução gradativa

54
O Fluminense;
55
http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoNome/ConsultaNome.do. Foram identificados 220 processos
de usucapião abertos contra a Jardim Catarina S.A somente na Comarca de Alcântara.

100
da participação da Jardim Catarina S.A. na negociação dos lotes. Novamente, ao
consultar a seção de classificados do O Fluminense, é possível notar ao longo das
últimas décadas, o aumento do número de ofertas no jornal de pequenos anunciantes,
rapidamente superando os anúncios disponibilizados pela loteadora e corretores
representantes.

O mercado local parecia ter se tornado uma boa oportunidade de negócios também para
as pequenas imobiliárias e para aqueles que desejam adquirir alguma parcela de terra no
loteamento. Com a venda dos primeiros lotes na proximidade com Alcântara, nas
margens da RJ-104, inicia-se uma valorização e um reajuste dos preços daqueles lotes
melhor posicionados. Já era possível, no final dos anos 1960, encontrar terrenos
servidos com oferta de energia elétrica e atendidos por linhas de ônibus. Alguns lotes
eram declarados como pertencentes a Alcântara56 por parte dos corretores, neste caso
sendo vendidos a valores bem acima da média dos demais.

Com o passar dos primeiros anos, proprietários e moradores começaram a revender


lotes com alterações de suas características iniciais, principalmente por meio da
repartição do terreno. Com tamanhos e preços diferentes forjava-se um mercado
“varejista”, já voltado à habitação popular. Novos anúncios traziam variações nos
preços, chegando o lote a custar 50 mil cruzeiros, mais que o dobro dos 15 mil cruzeiros
previamente estabelecidos pela loteadora. Essa margem de lucro deixava de ser
apropriada pela empresa, cuja atuação fixava-se mais na venda e financiamento em
larga escala.

Com isso, parte do capital fundiário, já revertido em capital imobiliário, começava a


ficar retido dentro do próprio loteamento, incentivando a presença de um comércio
interno, que por sua vez, permitia o aumento do número de moradores e a formação de
um mercado de trabalho. Com esse crescente dinamismo, há um aumento da procura
por lotes e casas no Jardim Catarina.

56
Mesmo sendo um bairro vizinho, Alcântara pertencia ao distrito centro, nos limites com a área rural de
São Gonçalo, antes da revisão da divisão político-institucional promovida em 1944.

101
Imagem 7: variedade de anúncios de venda lotes e casas - anos 1960

Fonte: O Fluminense

Após uma primeira etapa de comercialização de lotes, a Jardim Catarina S.A decide
repassar uma parte da sua propriedade a outra empresa do ramo, a Solar Organização
Loteamento e Administração LTDA57. Esta loteadora realiza um novo parcelamento,
promovendo algumas mudanças no formato de lotes e quadras e divisões territoriais. Na
entrada dos anos 1970, inicia-se a venda de nova remessa de lotes, fazendo com que o
município de São Gonçalo assuma de vez a liderança na RMRJ em número de lotes
postos à venda RMRJ.

A Solar, contudo, fazendo-se valer das primeiras ocupações do Jardim Catarina e de


uma pequena valorização de preços no loteamento, pôde colocar no mercado lotes
localizados “no fundo” do Jardim Catarina, com total inexistência de serviços e até
mesmo de difícil acesso. Os lotes passaram a adotar medidas menores, com duas ou três
unidades na mesma área que anteriormente era ocupada por um lote do período da
Jardim Catarina S.A.

Essa relação na formação de mercados de moradia popular no Rio de Janeiro foi


apresentada por Pedro Abramo (2011), porém, a partir de uma visão mais economista,

57
Não foi possível identificar tanto por entrevistas como por dados secundários disponíveis nos bancos de
dados do Poder Judiciário ou da Junta Comercial do Estado, se a Solar guardava alguma relação de
sociedade ou de transferência de capital com a Jardim Catarina S.A.

102
em que o autor descreve a existência de dois “sub-mercados” populares distintos: o
primeiro seria o mercado de loteamentos, este organizado por meio de uma estrutura de
oligopólio na afirmação dos preços, no caso gerido por imobiliárias e incorporadoras.

O segundo sub-mercado, representaria as áreas que ele denominava de “consolidadas”,


formado pelas favelas localizadas nas áreas centrais da capital do Rio de Janeiro e que a
princípio não contavam com uma empresa ou um agente de mercado único para a
definição dos preços de lotes e casas.

Nas favelas do Rio de Janeiro, a estrutura fundiária e o próprio mercado imobiliário


teriam uma característica mais concorrencial, o que, pela visão do autor, levaria a um
maior dinamismo em termos de trocas e transações econômicas entre atores sociais. Já o
lote, por sua vez, seria um produto homogêneo e de padrões pré-determinados, diferindo
apenas em termos de dimensão física, topografia e externalidades de urbanização.

A disponibilização de uma quantidade excessiva de terras por parte das loteadoras era o
fator determinante da oferta e do ajuste de preços e valores, geralmente empurrando-os
para baixo; no caso das áreas com favelas consolidadas, o volume limitado e restrito em
termos territoriais, a localização central e o patamar de preços escalonados das
transações imobiliárias confirmariam a presença de mercado regulador de acesso à área
urbana, com tendência à elevação dos custos, ao menos nas favelas em áreas centrais.

No entanto, no caso dos loteamentos, o proprietário de terra, muitas vezes sem recursos
financeiros suficientes para investir, entrava no negócio apenas com a gleba, vendendo-
as às loteadoras que passavam a assumir os custos de parcelamento e de regularização.
A empresa Jardim Catarina S.A. comprou as terras que pertenciam aos herdeiros da
Fazenda Laranja e tendo que arcar também com os gastos de projeto, escrituras em
cartório e inscrição do empreendimento na prefeitura.

É verdade que nos primeiros anos após o lançamento a empresa conseguiu manter certo
controle sobre a definição dos preços (Cr$ 15mil) e o padrão dimensional dos lotes. No
entanto, como se viu anteriormente, em pouco tempo surgem novos negócios, alterando
preços, dimensões espaciais e iniciando uma nova regulação de mercado, mais flexível e
fora do controle oligopolizado da loteadora.

A necessidade de provisão de moradias e o mercado imobiliário começaram a


transformar a estrutura regulatória dentro do Jardim Catarina. Se antes os primeiros

103
lotes e casas estavam sob uma negociação minimamente formalizada por meio de
registros e documentos de compra e de venda entre loteadora e compradores, ainda nos
anos 1970 esse quadro começava a mudar. Muitos dos primeiros proprietários passaram
a diante seu lote ou parte dele. O morador repartia a área em porções menores,
construindo casas de um cômodo em cada um deles para vender ou alugar. Nesse caso,
já não havia qualquer tipo de documentação, nem de compra e venda ou registro
cartorial.

Com a entrada da Solar no negócio, multiplicaram-se a quantidade de lotes em áreas


sem atendimento em termos de transporte, saneamento e pavimentação. No entanto,
esse novo formato atendeu diretamente o aumento da procura por moradia barata e
popular no município de São Gonçalo que começou a crescer a partir do final da década
de 1960. As partes menos valorizadas do Jardim Catarina, e até então pouco ocupadas,
passaram a ser alvo de procura por aqueles que não possuíam recursos para se
estabelecer na entrada do loteamento ou em ruas com algum tipo de benfeitoria.

3.3 O loteamento e suas localidades

Marcos Alvito (2001), ao estudar as favelas que constituíram o que ficou conhecido
como “Complexo do Acari”, no Rio de Janeiro, descreveu em detalhes o processo de
diferenciação territorial e cultural entre suas localidades. Esses microcosmos foram
sendo formados por meios de relacionamentos constituídos ou por laços de parentesco e
vizinhança ou por relações de conflitos que envolviam interesses ou grupos divergentes:
migrantes oriundos de uma região específica do país; áreas com presença de grupos
ligados ao tráfico de drogas; a presença de religiões de diferentes credos; a própria luta
por moradia nos centros urbanos, entre outras.

A complexidade da vida no meio urbano não permitiria que apenas uma definição ou
classificação fosse suficiente para traçar todas as relações e códigos reconhecidos entre
grupos e territorialidades em Acari. Numa tentativa de superar esses desafios, Alvito se
apoia na categoria “localidade” trabalhada por Anthony Leeds como estratégia para
mapear a organização política e espacial da favela carioca:

104
O fato de se constituir em “pontos nodais de interação, onde há uma
rede altamente complexa de diversos tipos de relações”. Estas seriam,
sobretudo, laços de parentesco bastante próximo, amizades mais
significativas, parentela e vizinhança. Em suma, como resume Leeds,
as localidades ‘são, na verdade, segmentos altamente organizados da
população total’ (ALVITO, 2001, p.53).

Leeds adotou a categoria Localidade de forma a construir uma crítica à noção de


“Comunidade” utilizada principalmente na estruturação do método antropológico de
pesquisa. Para este autor, os antropólogos a partir do uso comunidade tentavam
delimitar a totalidade de uma sociedade específica mapeando seus costumes, sua cultura
e a estrutura social. No caso de grupos urbanos e nos estudos sobre favela no Rio de
Janeiro, Leeds viu com dificuldade uso desse termo, inapropriado para dar conta do
conjunto de redes sociais produzidas internamente nas favelas e articuladas à cidade
com um todo. Na realidade não há no espaço urbano comunidades fechadas, autônomas
em relação ao seu entorno imediato ou até mesmo a estruturas macrossociais (LEEDS,
LEEDS, 1978).

No Jardim Catarina, os “pontos nodais de interação” foram sendo organizados a partir


da negociação e disputa entre moradores na busca pelo acesso à casa, aos serviços
urbanos e na relação direta com instituições “de fora” do loteamento, como órgãos
estatais e agentes de mercado. Ademais, já nos primeiros anos de ocupação observou-se
o surgimento de localidades heterogêneas, visto que não existe uma padronização nem
mesmo na forma de comercialização dos lotes. A própria diminuição do papel das
loteadoras com o passar dos anos é um indicador de que estavam se originando novas
formas de mediação entre o local, o Jardim Catarina, São Gonçalo e a RMRJ.

O que Marcos Alvito percebeu é que o “lugar” resultaria de inúmeros processos que se
constituíram como dialética entre as diferentes forças sociais locais e as práticas
institucionais das estruturas supralocais. Neste caso, seria praticamente impossível
chegar a uma classificação final, com uma listagem de todas essas territorialidades,
grupos e relações que formavam o conjunto da sociedade particular de Acari.

105
Seriam estruturas supralocais os partidos políticos, o sistema bancário,
o mercado de preços, os sindicatos, as associações profissionais e,
sobretudo, a mais antiga e importante delas, o Estado, operando
através de uma série de instituições supralocais, como o judiciário,
burocracias administrativas, organismos monetários, partes do sistema
eleitoral etc. Deve-se então buscar compreender as localidades a partir
das suas relações mantidas com esta “ordem mais abrangente”.
(ALVITO, 2006, p. 184)

As localidades do loteamento funcionariam como “pontos nodais de interação”


baseados em relações locais de parentesco e vizinhança, e fundamentais para organizar
espacialmente os moradores nas margens da cidade. Os “Catarinas”58 passaram a
representar cada parte do loteamento, assumindo diferentes nomeações: Ipuca, Pica-
Pau; Quaxe; Quilombo; Favela da 40; Catarina Velho; Novo; Baixada; Ponto Final;
Favela da Linha... Essas nomenclaturas vêm acompanhadas de representações
relacionadas com as transformações espaciais e políticas dentro do loteamento, sua
urbanização, com experiências e estratégias históricas de seus ocupantes e com a
reprodução social e desigualdade que teve como resultado mais expressivo a segregação
territorial de algumas localidades e populações em seu interior.

O loteamento se transformou numa conjunção de outros loteamentos. A oficialização do


Jardim Catarina como um único bairro59, definida pela prefeitura somente em 1996,
confrontava-se com a presença dos “Catarinas”. Cada localidade dessas responde a uma
organização que estava diretamente relacionada a um padrão habitacional; à presença ou
não de serviços públicos e o seu controle; à condição geral de infraestrutura urbana; ao
período histórico de ocupação; à estrutura familiar do morador e à presença de grupos
organizados que interagiam com agentes estatais e econômicos.

A própria comercialização de lotes por parte da loteadora Jardim Catarina S.A. originou
essas distinções entre localidades. Nas proximidades do centro comercial de Alcântara,
uma via principal foi aberta dividindo a área loteada em duas grandes porções de terra,

58
Todos os moradores entrevistados na pesquisa utilizaram na maioria das situações e dos diálogos o
termo “Catarina”, ao invés do nome composto “Jardim Catarina”, para se referir ao bairro ou a partes do
loteamento.
59
A definição oficial de Jardim Catariana como bairro do município de São Gonçalo somente irá aparecer
na publicação e aprovação do Plano Diretor Municipal de 1996.

106
gerando um eixo central que se estendeu até a antiga rua 35 (atualmente, Rua Ouro
Fino). As quadras foram sendo desenhadas e repartidas tendo como referência a
margem da rodovia RJ-104, seguindo em direção ao interior do loteamento.

Partindo desse eixo central, atual Av. Dr. Albino Imparato, novas avenidas paralelas
foram sendo abertas e mais quadras surgiram. A segunda grande avenida, Av. Padre
Viera, tornou-se o limitador físico dos lotes que foram vendidos na fase iniciada pela
empresa Jardim Catarina S.A. Como no começo a procura ainda era baixa e dispersa, a
outra porção de terra que pertencia à empresa aguardava a hora certa para ser lançada. A
localidade que se formou nesse primeiro momento de ocupação é reconhecida pelos
moradores como “Catarina Velho”.

Imagem 8: Avenida Albino Imparato (Catarina Velho) - 1953 e 2012

Fonte: AMAJAC e registro próprio

No final dos anos 1960, então, a Jardim Catarina S.A. vende a área que ainda não havia
sido posta no mercado à loteadora e imobiliária Solar. Visando ampliar seus lucros e
aproveitando-se do aumento de procura pelo loteamento no começo dos 1970, a
empresa, ao abrir novas quadras, diminuiu as dimensões dos lotes, racionalizando o
espaço e elevando o número de unidades disponíveis para comercialização. O impacto
direto é uma mudança de traçado entre as ruas, que deixaram de seguir o mesmo
alinhamento do loteamento anterior.

107
Esse novo período de parcelamento ficou conhecido como localidade do “Catarina
Novo” pelos moradores. Contando com uma organização espacial diferente e tamanho
de lotes menores, não demorou muito para o Catarina Velho, de melhor localização e
com a presença de alguns serviços, se transformasse na parte mais valorizada do Jardim
Catarina. Quando é perguntado sobre a existência de divisões internas a um morador, a
separação entre Catarina Velho e o Novo é facilmente reconhecida e possível de ser
delimitada territorialmente.

Eu moro aqui desde os oito anos. Sou do Ceará e fui direto pra
Rocinha, morei dois meses lá e vim pra cá. Primeiro é assim, vem pra
Rocinha e depois para o Jardim Catarina. Quando cheguei aqui, fui
morar na Rua 35 do Novo. Passou pro lado de cá é o Catarina Velho,
passou pro lado de lá, é o Novo (...). Minha casa era um barraco de
madeira. Quando chovia o teto caía (...). Só depois de muito trabalhar
eu consegui vir pra cá (Morador Carlos Eugênio, 48 anos).

O caminho percorrido por Carlos reproduz e se relacionada com a divisão entre


Catarinas e está atrelada à mobilidade socioespacial dentro do próprio loteamento, uma
busca por melhores condições materiais de vida e moradia. Com o tempo, os lotes e
casas começaram a ser organizados hierarquicamente no mercado imobiliário interno,
respeitando a lógica de preços atribuída aos atributos do entorno e as características
socioculturais dos moradores. O Catarina Novo, com lotes desvalorizados, garantia o
acesso àqueles que não possuíam renda suficiente para ingressar nas melhores quadras
do Catarina Velho.

No Catarina Velho concentravam-se antigos moradores, muitos empregados formais,


que compraram um lote como um investimento ou poupança fundiária. Alguns desses
entrevistados lembraram da visita constante de políticos e prefeitos no lançamento do
Jardim Catarina, de lideranças antigas e das promessas por projetos de urbanização do
loteamento que o transformaria em bairro de São Gonçalo.

O Seu Moraes, que foi o primeiro presidente de uma associação aqui


no Catarina, costumava já naquela época trazer uns políticos pra gente

108
pedir as coisas... Uma vez veio o Lavoura e o Roberto da Silveira 60
(em 1962)... Eu pedi pra ele trazer uma escola. Teve gente que pediu
água, emprego... (Moradora Ana Clara, 62 anos. Destaque do autor)

A moradora, hoje professora da rede pública de São Gonçalo, chegou ao Jardim


Catarina em 1957, com apenas três anos de idade, quando seu pai, funcionário da
empresa de ônibus Aviação São José, com sede no próprio município, comprou um
terreno na “Rua 2”, na entrada do loteamento. Na ocasião, próximo a sua casa, havia um
descampado com um pequeno palco improvisado que era utilizado para eventos e
comícios envolvendo políticos de São Gonçalo e de Niterói.

Na transcrição acima estão presentes uma liderança comunitária (Seu Moraes), políticos
(Joaquim Lavoura e Roberto da Silveira) e os moradores, que recém-chegados,
buscavam por meio de reivindicações atraírem serviços públicos básicos (escola, água e
emprego). Além disso, a fala de Ana Clara resgata parte das condições materiais do
local no seu início. A professora lembra que nos primeiros anos, o Jardim Catarina era
um lugar com poucos moradores:

Aqui não morava muita gente não. Mas eu lembro de alguns. Adélia
foi professora e me alfabetizou. Tinha o seu Geraldo, que era dono de
um armazém, e o marido da dona Rosa, que não lembro o nome, mas
era o corretor.

A trajetória de algumas dessas pessoas mostra que a ocupação e a escolha em residir no


loteamento provinham de diferentes situações, que nem sempre estavam vinculadas à
falta de dinheiro, por exemplo. Ao avaliar uma série de componentes e variáveis, o
morador trocava a possibilidade de morar ou trabalhar em áreas centrais da RMRJ para
buscar no Jardim Catarina uma condição melhor para colocar em andamento projetos
particulares ou coletivos de vida.

60
Joaquim Lavoura foi eleito três vezes prefeito de São Gonçalo. O primeiro mandato ocorreu em 1954;
Roberto da Silveira, após ser deputado, chegou ao cargo de Governador do antigo Estado do Rio de
Janeiro em 1959. Até a fusão de 1975, o Estado do Rio de Janeiro não contava com a cidade do Rio de
Janeiro, no caso, antigo Estado da Guanabara.

109
O Catarina era mato, mangue. Não existia ruas e nem ônibus. Aqui
não tinha luz elétrica e nem água. A gente vivia de bico e de plantação
mesmo. Eu pescava nesses rios aí e colhia fruta direto das árvores (...).
De noite você não via nada, era uma casa aqui e outra lá embaixo
(Morador Zezé Castilho, 76 anos).

O morador Zezé Castilho desenha uma paisagem “rural” que ele diz ter encontrado há
50 anos. Antes de ir morar no Jardim Catarina, Zezé vivia em Niterói e trabalhava na
antiga Estrada de Ferro Leopoldina, especificamente no ramal que interligava Niterói ao
Município de Itaboraí. Ele era funcionário da Companhia Brasileira de Trens Urbanos –
CBTU, responsável pela manutenção do trecho que partia da região das Barcas até a
estação de Guaxindiba, bairro vizinho ao Jardim Catarina.

Incentivado por um amigo, comprou um terreno no loteamento que estava sendo


construído nas margens da estrada de ferro, cujo traçado é paralelo a RJ-104. O morador
disse que na época não tinha muito interesse em morar no Jardim Catarina, mas acabou
utilizando parte do seu salário de ferroviário para financiar um lote como investimento.
Meses depois acabou se mudando com a mulher quando decidiu ter filhos e uma casa
maior. A proximidade entre a casa e o emprego permitiria, de acordo com o morador,
destinar parte de seu tempo para a realização de biscates como pedreiro, aumentando
assim a renda familiar.

Outro grupo de moradores antigos entrevistados afirmou ter residido anteriormente no


Rio de Janeiro. Num primeiro momento compraram um lote no Jardim Catarina como
um pequeno investimento, uma reserva para uso futuro. Contudo, de acordo com o
Censo de 1980, a maioria dos habitantes não naturais de São Gonçalo e que foram
morar no município na década de 1970 era oriunda da cidade do Rio de Janeiro61, o que
problematiza a ideia de fluxo migratório de outras regiões do país como vetor de
crescimento demográfico do município.

Os próprios moradores relataram que muitos lotes que já possuíam donos demoraram
até serem de fato ocupados ou revendidos. O morador Juca Basílio, militar da reserva,
que até os anos 1960 viveu na cidade do Rio de Janeiro, disse ter adquirido um terreno
61
Censo demográfico do IBGE, 1980.

110
no Jardim Catarina, mas não pretendia viver em São Gonçalo. O fez por conta de uma
carta de crédito que a marinha disponibilizava aos seus membros e financiada por
bancos privados.

Eu morava no Rio. Era marinheiro, e nas horas vagas era vendedor de


produtos mecânicos...Comprei um terreno aqui por causa da
associação de marinheiros. Eles tinham uma carta de crédito e me
ofereceram. Como um amigo meu morava em São Gonçalo, ele falou
pra eu comprar um lote no Catarina (morador Juca Basílio, 70 anos).

A ida para o Jardim Catarina ocorreu anos depois e somente após o morador ter sido
desligado das forças armadas durante o regime militar, por conta do seu histórico de
envolvimento com o movimento sindical dos sargentos da marinha. Após passar um
tempo sem rendimentos regulares, teve que sair do Rio de Janeiro, onde vivia de
aluguel. “Depois que comprei o lote, eu nunca tinha ido conferir... Depois que me
mudei, vi que a terra era toda alagada... Acabei trocando por outro em pior localização,
mas a grana que sobrou serviu para dar entrada na minha casa”.

O Jardim Catarina passou a ser seu novo endereço. Ao ser reincorporado à Marinha, por
meio de uma ação judicial coletiva do sindicato, no final dos anos 1970, e retomar seu
salário regular, seguiu morando em São Gonçalo, adquirindo, inclusive, novos terrenos.
Acabou mudando de casa algumas vezes, comprou lotes conjugados, construiu outras
casas e um galpão na quadra ao lado.

Começa a ficar claro também que no seu início o Jardim Catarina foi sendo ocupado por
trabalhadores de perfis variados, cuja única característica comum foi passar a viver no
mesmo lugar. O nascimento do filho, a perda do emprego, a possibilidade de estender a
jornada de trabalho com bicos e biscates e a abertura de pequenos negócios foram
algumas das histórias que se encontraram. Após a aquisição e demarcação do lote e com
as primeiras melhorias realizadas no entorno, o morador vê possibilidades de ganhos
surgirem. Estando em dia com as parcelas do financiamento, o indivíduo tem a chance
de se capitalizar e a agir no mercado, adquirindo novos lotes, alugando ou revendendo
pequenas frações de terras ou cômodos conjugados.

111
Essa casa aqui era do meu pai. Quando ele morreu eu dividi o lote em
duas partes (...). Nessa parte aqui, moro eu. No fundo mora meu filho
e meu neto (...). Com o tempo passei a lugar a casa do lado, mas o
moço que ficou lá foi embora (...). Aproveitei e transformei em dois
quitinetes. Os dois estão alugados (Moradora Rosiane Moreira, 50
anos).

A passagem esclarece como os moradores passaram a compreender o mercado


imobiliário local como uma estratégia na geração de renda e reprodução social. Por estar
fora das amarras da regulamentação estatal nos moldes do BNH, por exemplo, e por
ocorrer menos fiscalizações e termos legais para a comercialização do loteamento, a
prática de divisão de terrenos como estratégia de reprodução social das famílias se
multiplicou e alterou o cenário local e a organização espacial do Jardim Catarina. Em
políticas como as desenvolvidas pelo BNH ou pelas COHABs, os projetos particulares
de cada indivíduo acabavam sendo comprimidos e igualados aos demais, seja por
imposição da regulamentação, seja pelos juros cobrados, ou ainda pela complicada
correção monetária dos ciclos econômicos desse período.

Há ainda aqueles que afirmaram ter saído do Rio de Janeiro após o processo de remoção
das favelas da capital a partir dos anos 1960. De acordo com os relatos, algumas dessas
pessoas já possuíam lote no Jardim Catarina, mas viviam de aluguel nas favelas e
subúrbios cariocas. Como o surgimento de programas estatais de realocação e expulsão
de favelados, iniciado no governo Carlos Lacerda, ainda na antiga Guanabara, alguns
deles tiveram que abandonar suas casas, seguindo em direção ao Jardim Catarina:

Meu pai comprou um lote no Catarina em 1959. Comprou sem saber a


posição dele... Na época a gente vivia no Cosme Velho, na zona sul do
Rio. A gente foi pra lá depois que o governo tinha prometido uma casa
pro meu pai. Como ele demorou a dar, falaram para associação de
moradores cadastrar a gente. A associação arrumou um terreno pra
gente lá nessa comunidade (Moradora Roberta, 57 anos).

112
A moradora e sua família viviam numa favela da Zona Sul do Rio de Janeiro, onde a
princípio a ocupação teria sido “permitida” pelo Estado como solução alternativa à
ineficácia das políticas públicas habitacionais para as camadas populares. Com o apoio
da associação de moradores local, a família de Roberta teria conseguido resolver
parcialmente o problema da moradia. Ao final dos anos 1960, sem saber determinar a
data com exatidão, Roberta teve que deixar a casa, pois parte da favela onde morava
seria removida. Por sorte, a família já contava com um lote no Jardim Catarina.

Essa ideia de que o Estado permitiria a ocupação de algumas áreas da cidade por
favelas, citada pela moradora, pode estar ligada aos apontamentos de Silva (2005), que
demostrou em seus estudos que os próprios governos costumavam destinar
investimentos imobiliários abandonados por gestões anteriores para a moradia popular;
ou ainda, como resultado de artimanhas de proprietários de fazendas e de fábricas, que
em litígio com a justiça, favoreciam a ocupação de suas terras por classes trabalhadoras
urbanas, pretendendo obter algum tipo lucro ou indenizações.

De qualquer forma, com a crise do sistema de financiamento da habitação no Brasil e


com a mudança nas políticas de favelas, o Jardim Catarina (e São Gonçalo) se tornou
uma boa opção para atender a necessidade do morar na região metropolitana. Ao chegar
ao loteamento, contudo, a família de Roberta se deparou com um lote mal localizado,
distante da “pista” e sem presença de luz. “O único ônibus passava só no outro
loteamento... À noite não dava pra enxergar nada” (Roberta). A solução encontrada foi
começar a pagar aluguel numa casa de um cômodo, ao lado do lote adquirido.

A gente chegou e teve que morar de aluguel. Meu pai chegou a


construir uma casa... Quando ela ficou pronta, ele logo vendeu... Com
o dinheiro, a gente deu entrada numa outra casa, mais perto da pista,
na Rua 20. Ali já dava pra puxar a luz... A gente tinha uma vizinha
que tinha um poço. A gente pegava água na casa dela (Moradora
Roberta)

A história se repete. Muitos moradores compraram lotes sem saber o que encontrariam,
ou devido ao tempo de construção da casa os novos habitantes são obrigados a buscar
soluções imediatas, como ingressar via aluguel (BONDUKI, ROLNIK, 1982). Da

113
mesma forma, ressalta-se a prática da compra de um lote como uma forma de
investimento familiar. A casa construída em lote menos valorizado serviu para dar
entrada em outro, porém melhor posicionado, o que exigia uma renegociação do
financiamento junto à loteadora. Como já contava com alguns atributos (proximidade
com a rodovia e presença de luz), seu custo era mais elevado do que a primeira
propriedade da família de Roberta.

Na maioria dos relatos registrados nessa pesquisa, a necessidade de mudança de


moradia (ou lote) dentro do próprio loteamento parece ter feito parte das trajetórias de
muitos dos moradores. Com poucas exceções, todos os entrevistados, antigos ou novos,
relataram terem vivido em mais de um local dentro do Jardim Catarina. A mobilidade
interna é uma constante, já identificada por outros estudos relativos à habitação popular
(ROSA, 2014; TELLES, 2006).

A verdade é que dez anos após o lançamento em 1953, o Jardim Catarina contava com
um mercado imobiliário dinâmico e cuja atuação de diferentes atores já se fazia
presente. Com o aumento da demanda por habitação popular na década de 1970, aqueles
moradores e comerciantes locais que possuíam mais de um imóvel ou lote passaram a
gerar receita complementar por meio da revenda ou do aluguel, a exemplo do militar da
marinha, Juca Basílio. Para aqueles que ainda enfrentavam o financiamento da casa ou
do lote, a maior preocupação era aliar o pagamento das parcelas com os gastos relativos
à construção da casa.

Cheguei ao Catarina com 20 anos. Antes morava na Freguesia (Rio de


Janeiro). Assim que cheguei, a gente pagava aluguel... Assim,
primeiro vim morar na (Rua) 54, depois me mudei pra casa de uma
vizinha, agora estou na 59 e tenho minha casinha (o padrasto deixou o
terreno quando faleceu). Eu tenho um terreno lá embaixo, mas
ninguém quis ir pra lá. Meu garoto não quis ir pra lá, nem minha irmã
que é herdeira também (Moradora Laura, 52 anos. Destaque do autor).

A chegada via aluguel acontecia tanto por conta da necessidade de economizar para a
obra da casa, como para servir de porta de entrada no loteamento, aguardando
oportunidade para nova mudança em uma localidade de melhor localização. O trecho

114
acima oferece indícios de que a chegada pode ocorrer, tanto pelas áreas menos
valorizadas do loteamento (de baixo custo) ou de favor na casa de parentes e vizinhos
(sem custo). A moradora Laura percorreu vários desses caminhos até herdar do padrasto
um lote onde construiu sua casa. Ao ganhar um novo lote, porém pior localizado,
ofereceu ao filho que já se encontrava em idade adulta. O processo de fixação não era
um movimento simples. Pela fala de Laura, trata-se de um ato contínuo no tempo e
geracional.

O caso da professora Ana Clara, já mencionado, segue características parecidas. Ela


morou em três casas diferentes no bairro. Com seus pais, a primeira residência foi na
Rua 02; após alguns anos, a família vendeu a casa e comprou um novo lote na Rua 17
(menos valorizado no mercado local), que de acordo com a informação da moradora se
situava numa quadra recentemente “aberta”. E por fim, após seu divórcio, quando foi
viver na casa ao lado da mão dentro do loteamento. A primeira residência na Rua 02, no
Catarina Velho, fora vendida por um valor que permitiu à família continuar morando no
loteamento, porém tendo que se mudar para uma casa a custo menor, possibilitando a
reserva de parte do dinheiro da venda como poupança.

Todas essas trajetórias, direta ou indiretamente, guardam relação com as transformações


na organização espacial e na distribuição da infraestrutura urbana no interior do
loteamento. A própria estratégia das loteadoras de vender uma elevada quantidade de
lotes a preços bem abaixo do mercado dependia em grande medida da pouca oferta de
infraestrutura no loteamento, permitindo uma primeira ocupação, que mesmo esparsa e
pouco adensada acabava por ajudar a valorizar o empreendimento como um todo ou
parte dele e a pressionar os governos a intervirem com obras de saneamento,
pavimentação e oferta de transporte. A chegada de algum serviço impacta nos valores
da terra, gerando ainda mais procura e intensificando o processo de mobilidade interna.

Quando a permanência numa localidade com saneamento ou com a presença de linhas


de ônibus não era possível por conta dos valores, o trabalhador e sua família não
encontrava outra solução a não ser migrar para áreas periféricas dentro do próprio
Jardim Catarina. Em relação a esse movimento de mobilidade, Vera Telles (2006)
explica,

115
Espaço e tempo estão imbricados em cada evento de mobilidade, de
tal modo que, mais importante do que identificar os pontos de partida
e os pontos de chegada, são esses eventos que precisam ser
interrogados: pontos críticos, pontos de inflexão, de mudança e
também de entrecruzamento com outras histórias – “zonas de
turbulência” em torno das quais ou pelas quais são redefinidas
(deslocamentos, bifurcações) práticas sociais, agenciamentos
cotidianos, destinações coletivas (p.70).

Fazendo uma mediação entre escalas, a autora trata essas trajetórias como elementos
centrais para apreender os campos de força operantes no meio urbano. Elas resultam de
encontros entre as diferentes condicionantes históricas que se materializam no espaço
por meio das práticas dos atores sociais. No tempo e no espaço, os campos se
reorganizam periodicamente de forma a permitir ao ator que nele interfere uma garantia
de permanência na cidade. “Aberturas” para atuação política são encontradas mesmo
numa lógica de produção que tem no modelo concentrador de bens urbanos sua
característica principal62.

A loteadora não era o único agente atuante no mercado imobiliário local. Logo nos
primeiros anos do Jardim Catarina, moradores, comerciantes locais e corretores
perceberem que o mercado de terras, de alta flexibilidade, era uma oportunidade para
negócios. Como continuidade, até os anos 1970, a relação entre moradores antigos e
outros agentes encontravam meios práticos e cotidianos para solucionar problemas
ligados à moradia e ao trabalho.

Um ambiente de negociação permanente foi se estruturando com certo grau de


estabilidade. Da mesma forma, constatou-se que o processo de produção de lotes e de
urbanização do Jardim Catarina foi gerando um mercado imobiliário hierarquizado, cujo
impacto foi a repartição de quadras, ruas e lotes. Nesse caso, iniciava-se um movimento
de reprodução de desigualdade que levou a um processo de fragmentação territorial do
loteamento, começando a criar distinções sociais internas, tendo como elemento
constituinte importante os diferentes acessos aos serviços urbanos, ao mercado de

62
Ibid., p.71

116
trabalho e a capacidade ou não do morador em arcar com os novos custos de
localização.

3.4 A casa, o trabalho e os Catarinas

Nas ruas do loteamento há uma percepção de que os lotes possuem dimensões amplas,
capazes de oferecer ao seu proprietário o conforto. No entanto, ao adentrar pelos muros,
é possível verificar a quantidade e variedade de construções e divisões domiciliares.
Dos lotes que foram visitados durante a pesquisa, todos possuíam mais de uma casa no
seu interior. Uma, duas, três ou até quatro famílias residindo no mesmo lugar.

A construção de novas casas ou sua expansão através de novos cômodos atendem a dois
objetivos centrais: o primeiro garante ao membro da família a possibilidade de residir
num ambiente seguro, amparado pelas relações de parentesco e vizinhança, e contando
com o suporte financeiro e de apoio à construção da casa e cuidado com os filhos
durante os dias e jornadas de trabalho. O segundo objetivo refere-se à inserção da
família no mercado imobiliário local, que tem nas construções e nas subdivisões dos
lotes uma possibilidade de retorno financeiro por meio da venda ou aluguel de casas e
cômodos:

Eu sempre morei com meus pais na Rua 20, no mesmo lote. Depois
que eles morreram a nossa casa ficou para meu irmão mais velho, a
minha irmã construiu a sua do lado dele e eu fui levantar a minha nos
fundos do terreno. Ela é simples, ainda não está pronta. Mas serve pra
mim e meu filho, que moramos sozinhos lá (Moradora Rosimere
Alves, 52 anos).

Com a morte dos pais e o com crescimento dos filhos, o formato original da moradia
perde sentido, fazendo com que uma nova configuração floresça garantindo a segurança
familiar e a integração entre seus parentes. A privacidade e o sentido de propriedade,
mesmo que em parte, é mantido, porém, ganhando contornos coletivos, ligados pelos
laços de parentesco. A escassez de recursos e de espaço muitas vezes gerou moradias
pequenas, sem sala de estar ou banheiro particular, fazendo do quintal (ou que sobrou

117
dele) uma área comum entre habitações, onde os diferentes núcleos familiares passam a
compartilhar espaço e recursos, como bica d’águas, poços artesianos e área de serviços.

Eu sei que é errado, mas não posso deixar o esgoto no meu quintal.
Aqui mora criança, idoso. O jeito é levar pra longe o esgoto (....). Nós
aqui nos unimos e fizemos a instalação das tubulações. As vezes tem
algum vazamento, mas pelo menos o esgoto não fica dentro da nossa
casa (Moradora Rosimere Alves, 52 anos.)

A falta de gabaritos estabelecidos oferece liberdade a essas reconfigurações. No caso


mencionado acima, a instalação de esgoto além de improvisada, funcionava como uma
alternativa para atender um conjunto de três casas construídas em um mesmo terreno.
Todos contribuíram com os gastos de material e mão-de-obra. São amigos, primos e
irmãos que vieram de outras cidades e só encontraram apoio por meio do ambiente
familiar. Com isso, reduzir a condição do problema da moradia ou do saneamento ao
comportamento “inadequado” da população é limitar a capacidade de análise e
compreensão dos problemas sociais e urbanos.

A desigualdade social que tanto marca a produção do espaço das cidades também se fez
presente no Jardim Catarina. Não demorou para que localidades menores, com padrões
de construção de baixa qualidade, começassem a surgir em áreas até então não ocupadas
e que não faziam parte das plantas originais dos empreendimentos aprovados na
prefeitura. Muitos desses lugares eram tidos como incompatível para morar. Margens de
rios e a faixa marginal da linha de trem e da rodovia RJ-104 tornaram-se possibilidades
ainda mais baratas, e totalmente fora da regulação do mercado imobiliário local até
então estabelecido.

Os próprios mecanismos de financiamento da casa tornaram-se heterogêneos. Havia


aqueles que mantinham o pagamento do lote junto à loteadora e outros que negociavam
diferentes meios de acesso no mercado imobiliário local. No caso da primeira condição,
a loteadora calculava os preços das parcelas a partir de um percentual médio do salário
mínimo. Este valor proporcional passava a ser o valor fixo das prestações, em um
financiamento que geralmente durava entre cinco a dez anos. No contrato de compra e
venda, muitas vezes formalizado, havia a previsão de, em caso de atraso no pagamento

118
das parcelas, a imobiliária ou loteadora poderia exigir a quebra de contrato e retomar a
propriedade. Contudo, esse extremo quase nunca ocorria. O fim da relação contratual
não era interessante para nenhuma das partes, pois o processo poderia se tornar algo
custoso e lento.

Uma possibilidade, em caso de atraso, era recorrer à atualização dos valores das
parcelas com uma extensão do prazo total de financiamento; o morador poderia ainda
realizar uma revenda de sua propriedade de forma a adquirir um sobre valor, quitar a
dívida e ingressar num novo financiamento, como no caso de Ana Clara. No caso dos
alugueis, esses eram monopolizados em grande parte pelos próprios moradores que
evitavam se desfazer de suas propriedades justamente por estas estarem atreladas a
outros financiamentos ou por não conter documentação definitiva para transmissão de
posse.

Na explicação de um dos entrevistados, as possibilidades de renegociação do


financiamento e a busca por soluções diante do imprevisto eram tratadas localmente,
sem a necessidade de elevar o problema a outras instâncias. Essa característica facilitava
o percurso de quem chegava a São Gonçalo e tentava se instalar no município:

Olha, rapaz, dei sorte. Eu sou baiano e fui da marinha. Depois de


cursar o naval, vim para o Rio em 1955. Eu já tinha família que
morava no Engenho de Dentro e depois foi para aquele conjunto em
Água Grande, em Irajá. E aí, tive uma oportunidade de trabalhar com
um amigo da família, vender água sanitária. Olha, andava tanto, sentia
tanta dor, mas precisava, né. Andava aquele Intendente Magalhães até
campo Grande...nessa época, tinha um colega que morava em Niterói
e ele comprou uma casa aqui (no Jardim Catarina). Aí me inspirei
para comprar um lote vizinho dele, mas esse lote já era uma revenda,
aí apareceu o dono, ficou enrolado...comprei outro, e quando pedi a
carta de demarcação para construir, a loteadora demarcou o lote
errado. O meu lote era o 36 e o cara demarcou o 40. Não deu outra,
depois de construir, apareceu uma pessoa dizendo ser dono do terreno.
Aí negociei e acabei comprando outro lote, de novo. Que é esse aqui.
Só que pior, tinha um lago no meio e era alagado (Morador Jorge
Bastos, 68 anos. Destaque do autor).

119
A fala descreve o processo de demarcação e de aquisição do lote, e tudo que envolve
sua compra, entre problemas e soluções. Aparece a figura da loteadora, tendo como
mediação o corretor, que muitas vezes morava no próprio loteamento. Além da presença
de demais personagens na negociação, como parentes ou amigos. A sensação é de estar
diante de um processo interminável. Atualmente, Jorge Basto possui algumas
propriedades, entre casas, lotes e estabelecimentos comerciais. O morador ao narrar sua
trajetória indica uma série de relações de caráter face a face, que desburocratizadas,
eram resolvidas no cotidiano e de forma rápida. Até mesmo o problema do erro na
demarcação citado na passagem parece ter sido contornado sem demora, logicamente,
gerando um custo adicional, mas tratável na esfera local.

No caso das localidades marginais dentro do Jardim Catarina, como beira de rios e
ferrovias, a construção da casa, muitas vezes feita com material improvisado, era uma
forma de garantir a rápida fixação da família. O tempo, neste caso, era fator
fundamental. A casa e o lote se transformariam em economias para fazer avançar
projetos particulares e coletivos.

Aqui não tinha tijolo e nem material de construção, nada disso. Até
porque a gente não tinha dinheiro mesmo. Eu pegava na mata as
madeiras para construir nossa casa. Primeiro fui morar na Rua 34, no
Catarina Velho, junto com minhas irmãs. Nossa casa era de madeira e
barro batido. Depois, graças a Deus, consegui construir uma só de
madeira. Eu mesmo que fazia as minhas casas (Morador João Carlos,
68 anos).

Eu já rodei muito por aí. Minha primeira casa era toda de madeira e
barro das próprias terras do Catarina. Eu mesmo que fiz, não tinha
como esperar. Morava eu e meus dois irmãos menores. Não tenho
medo de trabalho não. A vida aqui era tranquila, nem porta a gente
tinha, não havia esta preocupação. Só fui ter uma casa de alvenaria
muitos anos depois, quando eu casei com um moço que era vizinho
meu. Eu pegava carona nos barcos dos pescadores e ia buscar madeira
lá pros lados do Rio Guaxindiba (Moradora Dona Maria, 78 anos).

120
Essas experiências evidenciam que era preciso certa velocidade ao se estabelecer no
Jardim Catarina como garantia para se fazer presente nas disputas pelo espaço e pelo
acesso a serviços urbanos. Sader afirmou que era no ambiente da casa que o trabalhador
se constituía como um ator político, “é o lugar onde o trabalhador realiza seu tempo de
vida” (1988, p.99) e elabora seus projetos. Mesmo este podendo perdurar por anos, até
por décadas. Contudo, a construção da casa na cidade não se resume à garantia de um
teto, simplesmente. Dentro da lógica política e da econômica local, a moradia se
converte em bem, proporcionando capacidade de atuação do morador perante o campo
de disputas políticas no loteamento.

Gosto muito de morar aqui, mesmo com todos os problemas. Antes eu


vivia de aluguel na Rua 12, mas hoje eu tenho minha própria casa.
Aqui eu posso trabalhar na casa das pessoas fazendo obras. Se tiver
uma porta, janela ou muro pra levantar, eu faço (morador do Francisco
Silva, 39 anos).

O morador, ao definir seu gosto pelo local, enfatiza a proximidade entre o morar e as
oportunidades de trabalho. A característica da ocupação, que exige que a moradia seja
providenciada e financiada pelo próprio trabalhador, continuamente construída, abre um
mercado de trabalho onde proprietários e inquilinos podem firmar contratos de
prestação de serviços, formais ou não, com profissionais que residem no mesmo
loteamento. A parte elétrica da casa; as obras de acabamento (piso); a instauração de
alicerce dos cômodos; “bater a laje”, ações que geralmente necessitavam da contratação
de serviço pago.

Muitas casas permaneciam inacabadas não apenas porque a família não tinha dinheiro
para comprar material de construção ou tempo para empreitada. Às vezes, a falta de
recursos inviabilizava a contratação de tipos de serviços especializados. O caso da
moradora Maria, que vive no Catarina Novo, ilustra bem esta condição. Seu pai, durante
muitos anos foi o responsável pelas obras na casa. Aumentou o número de cômodos,
levantou os muros e melhorou o acabamento e a pintura. Com a idade e os problemas de
saúde do pai, os serviços mais pesados pararam de ser realizados. Maria recorda que o
quarto do seu filho, após o nascimento, demorou anos para ser ampliado e concluído.

121
Era preciso quebrar a parede para abrir um quarto pro meu filho. A
aterrar o chão do quintal... Eu mesmo ajudava meu pai, mas tinha
coisas que não dava mais pra fazer. Ele tava muito velhinho... Meu
primo me ajudava, mas ele cobrava (Moradora Maria, 45 anos).

Durante cinco anos o cômodo teve que ficar com uma parede improvisada de madeira,
pois a anterior havia sido derrubada para a ampliação. A família aguardava uma folga
no orçamento para que o primo pudesse dar continuidade ao trabalho. Nesse caso
particular o que poderia ser considerado subsistência (autoconstrução), por envolver
membros da família, sugerindo a agregação de mão de obra “não paga”, na verdade
demonstra a presença de atividades econômicas, em microescala, mas que acrescentam
novas relações ao processo de construção da casa e de ocupação do Jardim Catarina.

Estudos anteriores já demostraram que a autoconstrução e a prática do mutirão


contavam com a participação de trabalhadores contratados e remunerados, que atuavam
em ações pontuais e especializadas (MARICATO, 1982). Por conta do estreitamento
dos estudos sobre a habitação no país, que acabavam dominados por abordagens ligadas
ao consumo (déficit, carência, formas de ocupação do domicílio) e à política
habitacional praticada pelo Estado63, é fundamental essa visão relativa à produção
habitacional e ao trabalho para a identificação dos reais interesses e das práticas dos
atores envolvidos na formação dos loteamentos urbanos.

Além disso, como visto anteriormente, o perfil dos primeiros moradores era de
trabalhadores do mercado tido como formal, ou seja, que possuíam algum tipo de
benefícios e seguridade social. Desde militares a professores, passando por operários da
ferrovia a motorista de ônibus, comerciantes e corretores de imóveis, era em torno do
salário formal que o trabalhador organizava sua vida e as ações junto à família
(MACHADO DA SILVA; LOPES, 1979).

O emprego regular era fundamental para a adoção de estratégias, seja para ter segurança
no financiamento do lote, seja para ter condições de manter um investimento periódico
na construção e manutenção da moradia. No caso do morador que era ferroviário e do

63
Id., 2009.

122
outro que integrava as forças armadas, tal condição de formalidade ofereceu recursos
extras para colocar em prática atividades econômicas complementares, como a
realização de biscates nas horas vagas ou a compra de novos imóveis para alugar.

Para Machado da Silva, em seus estudos sobre o mercado de trabalho em áreas


populares, tanto o sistema formal como o informal de trabalho eram “altamente
institucionalizados, de modo que a dicotomia formal/informal indica apenas a
explicitação ou não das alternativas de comportamento sob a forma de normas jurídicas”
(1971, p. 13). A mão de obra dentro do Jardim Catarina, pelo menos na área de
construção civil dependia diretamente da dinâmica econômica e imobiliária interna.

Da mesma forma, resultante da relação direta entre o capital e o trabalho, o salário


regular e formal muitas vezes não era garantidor “por si só, da reprodução da força de
trabalho”. Para ter como manter a subsistência familiar e, ainda por cima, avançar em
seus projetos, o trabalhador precisava articular outros meios de geração de renda,
geralmente em ocupações e atividades com frequência inconstante e de remuneração
não regular.

No caso de o morador não poder contar com essa regularidade e estabilidade, ele
dificilmente tinha como manter os gastos com a habitação que muitas vezes eram
duplicados, pois envolviam simultaneamente o pagamento do aluguel enquanto
aguardava-se a construção da casa ou o término das despesas com obras em paralelo ao
financiamento do lote. Para aqueles que não podiam contar com uma renda fixa, a opção
era morar de favor na casa de parentes enquanto se gerava uma poupança por meio de
biscates e empreitadas ou tentar ocupar áreas fora do loteamento original, que conforme
mencionado anteriormente, localizavam-se nas margens de valas, em pontos alagáveis
ou ao lado da linha do trem.

A relação contraditória e complementar entre formal e informal vai ganhando novos


contornos. Um episódio trazido por um entrevistado que fez parte da associação de
moradores local conjuga bem alguns desses elementos relacionados ao trabalho, à
moradia e às condições saneamento no cotidiano do Jardim Catarina. No início da
década de 1990, um centro comunitário do Catarina Velho conseguiu captar junto a uma
ONG da cidade do Rio de Janeiro que atuava no setor de habitação, recursos da Caixa
Econômica Federal para a compra de material de construção e para a realização de
mutirões.

123
Desenvolveram um projeto que previa a realização de pequenas obras de benfeitorias
nas casas do Jardim Catarina. O critério de seleção para participar do trabalho
resumidamente previa: “família de baixa renda” (termo aplicado pela ONG), viabilidade
técnica da obra; respeito aos limites de valores disponíveis para as todas as intervenções
necessárias; e se a família escolhida tinha capacidade de organizar mutirões por conta
própria. O centro comunitário realizou um cadastramento das famílias interessadas em
participar, sendo selecionados 10 projetos. Os arquitetos contratados pela Ong do Rio
de Janeiro, após uma primeira vistoria para verificar se os critérios previstos para a
seleção estavam corretos, notaram que as demandas exigidas em cada obra não se
enquadravam nos valores disponíveis para cada projeto.

Uma das propostas selecionadas foi o caso do lote que no seu interior viviam pelo
menos quatro famílias. No terreno existia um pequeno sistema de coleta de esgoto
doméstico construído a partir de uma instalação improvisada pelos próprios habitantes.
Como não havia rede de esgoto na rua, o sistema destinava-se simplesmente em coletar
os dejetos e lançá-los para fora do lote. Neste caso específico, a Ong teve que enfrentar
dois problemas para a realização das obras: primeiro não se tratava de uma casa, mas
quatro dentro do mesmo lote. Com isso, a dimensão do serviço demandaria mais
material e revisões técnicos. Além disso, do que valia realizar a obra da ligação
doméstica se não teria como custear e conectá-la à rede geral. E mesmo que existisse tal
possibilidade, seria preciso uma formalização junto à concessionária prestadora de
serviços de saneamento, no caso a CEDAE.

O segundo problema tratava-se da necessidade de mobilização para o mutirão proposto.


Algumas das famílias se recusaram a trabalhar voluntariamente na obra da “rede
doméstica” de esgoto. A alegação dos moradores para a não realização do mutirão era
de ordem técnica e econômica. Se não fosse realizada a ligação junta à rede geral (que
exigia mais recursos e acertos burocráticos), por que teriam o trabalho de mutirão para
criar um sistema de coleta que no fundo teria a mesma utilidade daquele já existente, ou
seja, retirar do terreno o esgoto doméstico.

A outra questão se referia ao papel da Ong. Alguns moradores entenderam que a


instituição deveria pagar pelos serviços. Outros eram profissionais de construção civil e
queriam ter o trabalhado remunerado. A justificativa seguia a lógica do mercado. “Se a
Ong quer mostrar serviço para quem dá dinheiro para ela, então tem que pagar também

124
pra que a gente faça o trabalho” (Entrevista de ex-membro de associação de moradores
local).

Os moradores entendiam que a ação promovida pela Ong e pelo centro comunitário,
diante das reformulações e limitações do projeto, não resolveria de fato o problema do
esgoto. Muito menos reverteria o quadro geral do problema do saneamento local. No
fim, parecia ser algo que apenas serviria para legitimar o papel dos atores e de suas
relações no jogo político dentro do cenário urbano de São Gonçalo e da RMRJ, sem que
se alcançassem resultados efetivos: a Ong estaria fazendo seu papel de ator externo que
chega para ajudar, trazendo recursos e conhecimento técnico-científico; o centro
comunitário local, por sua vez, realizaria o trabalho de mediação intra e supra local,
servindo de canal para a chegada de novos serviços no Jardim Catarina; e os moradores
disponibilizariam mais horas da sua força de trabalho para a concretização dos projetos,
que mais um vez, eram pensados e decididos numa instância fora do loteamento.

De acordo com o entrevistado, a associação de moradores entrou como mediadora do


imbróglio e conseguiu convencer alguns moradores a realizarem a troca de parte das
tubulações, seguindo a orientação dos arquitetos da ONG, que afirmaram que as
existentes possuíam diâmetro inferior ao mínimo exigido, evitando assim, possíveis
vazamentos.

Na descrição do entrevistado, os técnicos tiveram que reformular grande parte dos


projetos. Inicialmente voltado para o esgoto, a Ong aceitou o pedido de uma das
famílias que desejava tinta para a pintura da fachada das casas e de alguns cômodos. Em
troca, aceitariam realizar o mutirão. E, por fim, a associação teve que se comprometer
junto à ONG a buscar novas famílias que aceitassem realizar o trabalho e a participar
dos projetos sociais quando convidadas.

O episódio vem carregado de personagens e instituições. Soma-se ainda o perfil distinto


de cada morador e grupos locais forjando um ambiente particular e altamente
heterogêneo. O tema do saneamento é o pano de fundo dessas relações e a lógica do
projeto da ONG e seus arquitetos é uma expressão ineficaz das tentativas de planificar
esses espaços. Esquece-se que no loteamento a propriedade/casa passa a ter um aspecto
coletivo, fazendo de qualquer demanda por serviços urbanos uma forma de pressão por
intervenções que atendam ou o todo ou parte do loteamento.

125
A infraestrutura urbana representa esse conjunto de bens coletivos que serão
apropriados pelos inúmeros lotes e quadras do Jardim Catarina (BONDUKI, ROLNIK,
1982). As loteadoras, cientes desse processo, aguardam as obras do Estado e de suas
agências simplesmente utilizando-se da estratégia de iniciar a venda parcial dos lotes e
ocupando-os pouco a pouco. Após essa ocupação parcial já se tem argumentos para
exigir do poder público ou de instituições privadas supralocais sistemas de transporte,
iluminação pública e abastecimento de água.

Da mesma forma, seja no Catarina Velho ou no Novo, o morador entendia que a casa e
o lote vão valer no mercado imobiliário aquilo que a cidade lhe oferece e que pode ser
incorporado ao bem (MARICATO, 2009; 2013). Além disso, ele sabe que a moradia é
cara, pois exige horas de trabalho e cujo custo de construção e manutenção supera o
valor da renda familiar ou do próprio salário mínimo. Nesse caso, as melhorias no
loteamento permitem agregar algum capital à propriedade, dando novo teor às lutas por
serviços urbanos, abastecimento de água, pavimentação de ruas, presença de linhas de
ônibus, entre outros.

Todos os processos descritos, desde o lançamento do empreendimento Jardim Catarina,


em 1953, até a chegada da primeira rede de água sobrepõem-se no espaço e ajudam a
moldar novas áreas da cidade. As instituições supralocais, ao chegar no JC vão se
deparar com esse conjunto de contradições e de práticas sociais diversas. A ocupação
histórica, por sua vez, demonstra que os atores assumem distintos papéis no cotidiano.
Internamente, há disputas entre territórios e um conjunto de representações sociais
produzidas como estratégia de distinção entre grupos sociais.

Há um contínuo movimento de fragmentação territorial que resulta do próprio processo


de produção do espaço urbano. A vida política do Jardim Catarina, historicamente,
passa a ser estruturada por essa configuração socioespacial, alimentadas por diferentes
trajetórias, formando territorialidades que se apoiam sobre as representações que cada
localidade assume no cenário urbano de SG e da RMRJ.

Essas representações acabam criando um imaginário que se torna um dos pilares do


modo de vida local. As representações alimentam e são alimentadas por um conjunto de
narrativas que vão se concretizar por meio de mecanismos de controle sobre território e,
logicamente, sobre os serviços urbanos. A consolidação desses lugares na verdade
significa a materialização na cidade das experiências da população frente aos seus

126
enfrentamentos e das estratégias políticas dos agentes postas em movimento. Trata-se de
uma síntese das relações de poder que conduzem a atuação de cada ator social.

A casa, o trabalho e a água tornaram-se componentes essenciais da vida do JC, um


loteamento com 174 ruas e 25 mil lotes64 onde o “espaço do vivido”, aquilo que
Lefebvre chamou de espaços ligados “ao lado clandestino e subterrâneo da vida social”
(2006, p.59), produz seus próprios códigos e formas de organização espacial e urbana.
A coexistência entre agentes econômicos, as instituições do Estado e os moradores dos
loteamentos urbanos está assegurada pela prática social (e espacial), ou seja, pela busca
de todos em legitimar sua presença na cidade. Integrados, mesmo que em posições
hierarquicamente desiguais.

Espaços tidos como áreas de pobreza; violência; favelados removidos pela política
habitacional do Estado; a visão tecnocrata dos programas de saneamento e os arranjos
políticos locais são elementos que mediam os interesses de grupos políticos, projetos
particulares do indivíduo e as ações estatais na cidade.

A história da ocupação do Jardim Catarina também é a história das representações dos


moradores e de São Gonçalo em relação à vida no loteamento. É preciso aproximar esse
foco de abordagem sobre esses lugares, demonstrando como se produz fenômenos de
segregação territorial, de solidariedades e de conflitos. O aumento de desigualdade
social interna e como os moradores e as instituições supralocais passaram a atuar têm
como referência não apenas a política, mas a própria estrutura organizacional dessas
localidades.

64
Informações repassadas pela Associação de Moradores do Jardim Catarina a partir de um levantamento
próprio.

127
Capítulo 04 - Jardim Catarina, Catarinas: territorialidades e
representações

O presente capítulo agrega profundidade à história de ocupação do Jardim Catarina,


direcionando o olhar sobre as relações e os conflitos (internos) existentes entre
localidades do JC e o município de São Gonçalo. Dois casos particulares serão
detalhados: as favelas do Conjunto da 40 e do Pica-pau. “Favelas” porque será atrelada
a elas esse tipo de definição por parte dos moradores e de instituições supralocais do
município cujos efeitos serão determinantes para o acesso desigual aos programas de
infraestrutura urbana, principalmente aqueles relativos ao serviço de abastecimento de
água da CEDAE. Interessa saber quais fatores, estigmas e representações forjaram essas
diferentes territorialidades e quais distinções sociais e espaciais passaram a ditar as
relações políticas e as estratégias dos moradores nesse contexto.

A partir da década de 1970, a imprensa local começava a tratar de outras dimensões do


cotidiano no Jardim Catarina, que até então se resumia aos anúncios da seção de
classificados dos jornais. Após uma busca no sítio digital da hemeroteca da Biblioteca
Nacional, de onde foram selecionadas todas as citações referentes ao nome “Jardim
Catarina”, a partir dos anos 1970, O Fluminense passou a registrar eventos diários
relacionados à violência e aos problemas de saneamento65. Começava-se a desenhar um
cenário em que as políticas urbanas no município de SG iriam se deparar com um
loteamento heterogêneo, o que obrigaria a seus agentes a realização de ajustes
permanentes às ações sobre esses novos territórios retratados nas reportagens e nas
matérias de jornais.

Em um contexto mais amplo, o JC passava a ter sua imagem deslocada das primeiras
propostas anunciadas por parte da empresa loteadora de transformá-lo num bairro
metropolitano. Diferente dessa mensagem, a opinião pública de São Gonçalo começava
a olhá-lo como uma área violenta, território de concentração bandidagem e de pobreza.
Descrevia-se um lugar sem a presença do Estado, deixado à própria sorte, como um
“outro, temido e desvalorizado”66 (ENNE, 2013).

65
Anexo I – Tabela 04;
66
“Tratava-se, de acordo com esse sistema representacional hegemônico, de uma periferia no sentido
territorial e cultural, tanto física quanto simbolicamente um “outro” a ser temido, evitado, desprezado,
ridicularizado, diminuído (ENNE, 2013, p.9).”

128
Um deslocamento na percepção acerca da região, que, de um lugar
ermo, até então agrário e que vinha sendo basicamente ocupado por
sistemas de loteamento para migrantes que trabalhariam na capital,
viria a ser representada na grande imprensa como um lugar marcado
por diversos problemas, destacando-se, principalmente, a questão da
violência e do abandono pelo poder público (p. 8).

Essas representações vão impactar a visão dos planejadores urbanos. Afinal, as obras de
saneamento que foram levadas pela CEDAE eram pensadas a partir de uma estrutura
tecnocrata ancorada por um urbanismo profundamente ideológico, que tendia a ignorar
as inúmeras contradições presentes na cidade (ARANTES et. al., 2000; MARICATO,
2009). Nesse sentido, as “favelas” do Jardim Catarina receberam tratamento
diferenciado por parte dos agentes públicos.

A situação fundiária e a precariedade das condições de vida do morador do Pica-pau e a


segregação e o estigma da violência do Conjunto da 40 passaram a pautar em grande
medida a relação dessas localidades com as ações e agências do Estado e seus próprios
vizinhos. Da mesma forma, os próprios moradores, ao descreverem essas
particularidades dentro loteamento, buscavam encontrar formas de distinção social entre
si. Com o passar do tempo, essas relações serão incorporadas às estratégias de certos
grupos locais (como associação de moradores) para garantir algum retorno em termos
de política de saneamento e serviços de água junto a CEDAE.

4.1 O Conjunto da 40 e a retórica da violência no Jardim Catarina

Na década de 1970, a construção do conjunto habitacional da antiga COHAB67 no


Jardim Catarina adiciona um novo formato ao processo de ocupação do loteamento.
Durante a elaboração da tese esta localidade foi a menos visitada ao longo de todo o
trabalho de campo. As pessoas que participaram da pesquisa e que auxiliaram na
identificação de possíveis entrevistados resistiram em acompanhar o pesquisador até a
Rua dos Marfins, ou Rua 40 do loteamento original, a porta de entrada do conjunto.

67
Após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, a COHAB foi incorporada à recém-criada
Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro-CEHAB.

129
Aqui no Catarina é tranquilo de se morar. Quem é de fora pensa que
aqui tem muita violência, mas não é bem assim. Ela existe, mas em
partes isoladas. Geralmente na favela do 40. Lá é complicado,
ninguém pode entrar, nem mesmo quem mora no bairro (Moradora
Maria Alice, 45 anos).

Falas como esta foram muito presentes nas entrevistas e atravessaram diversas vezes o
transcurso da pesquisa. Em qualquer menção ao conjunto da Rua 40, havia sempre um
esforço por parte dos interlocutores em criar uma separação entre o Jardim Catarina e o
conjunto habitacional. As estórias contadas sempre se remetiam a casos pouco
detalhados, mas que buscavam enfatizar o caráter violento dessa localidade que todos
pareciam evitar. Este fato alimentou a curiosidade, fazendo o pesquisador insistir nas
perguntas sobre a história do conjunto e sobre as pessoas que ali viviam. E sempre que
se escutava uma reposta, ela vinha acompanhada de uma classificação pejorativa, “lugar
perigoso, violento”, “sujo”, onde morava a bandidagem.

Após muita insistência, um dos entrevistados foi convencido a levar o pesquisador nas
mediações da Rua 40. Se nas caminhadas pelo Jardim Catarina nem sempre era possível
identificar as divisões territoriais entre elas, diante da Rua 40 a fronteira era notória.
“Não olha não, passa direto...Não olha não”. O aviso era claro. O morador que ajudava
como “guia” estava desconfortável, não queria estar ali. Pediu para que a passagem
fosse rápida. Deviam-se evitar confrontações de olhares e qualquer pergunta ou
intromissão. Logicamente, seu desejo foi respeitado.

Num rápido olhar, de relance, os limites eram evidentes. O sentimento presente naquela
experiência se distinguiu de todo as outras visitas durante o trabalho de campo.
Anteriormente, nada havia sido daquele jeito. A estranha sensação entrava em
contradição com um ambiente geral do loteamento. Afinal, mesmo que existissem
conflitos entre suas partes, no fim, essas disputas pareciam se assentar entre as
negociações e arranjos políticos do dia a dia. Na 40 era diferente, como um ponto fora
da curva de uma pesquisa que transcorria sem grandes percalços.

Para entender o que estava à frente, era importante recuperar alguns acontecimentos
históricos. Como se sabe, as décadas de 1960/70 ficaram conhecidas como a “Era das

130
Remoções” (VALLADARES, 1978; BRUM, 2012), devido ao elevado número de
favelas removidas da cidade do Rio de Janeiro. Tema bastante explorado pela sociologia
urbana, representou um dos marcos na política de revitalização das áreas centrais
cariocas mais valorizadas. O setor de obras públicas da época foi instrumentalizado para
atender a essa demanda por reordenamento urbano, capitaneada pelos interesses do
mercado imobiliário, que via nas favelas um fator de desvalorização e risco à
especulação. Com ações diretas e estruturais, entre 1963 a 1975, foram removidas mais
de 200 mil pessoas de favelas cariocas.

No antigo Estado da Guanabara, ainda na década de 1960, o governo de Carlos Lacerda


(1960 – 1965), talvez o mais emblemático em termos de intervenções em favelas 68,
alternou práticas distintas ao longo do mandato. Primeiramente, apostando na
urbanização das favelas, firmou alguns acordos internacionais com agências de
financiamento para a promoção de políticas de urbanas69. No entanto, as disputas pelos
recursos econômicos destinados à urbanização por parte dos grupos políticos da base de
Lacerda logo levaram a uma reviravolta neste processo.

Tendo que realizar uma reestruturação interna, em 1962, Lacerda cria a Companhia de
Habitação Popular da Guanabara – COHAB-GB70 como autoridade central na área
habitacional. A companhia, que possuía capital misto, contava com 49% de controle
acionário de empresas do ramo imobiliário ligadas ao grupo político de Lacerda. Com
capacidade de compra de terrenos e de investimento em novos empreendimentos
imobiliários, a COHAB passou a “preferir” remover as favelas localizadas em áreas de
alto valor de mercado e de interesse da especulação imobiliária.

O caso clássico foi a remoção da Favela do Pasmado, situada no valorizado bairro de


Botafogo, onde um grupo de investidores pretendia construir, inclusive, um hotel de alto
padrão de consumo. As famílias do Pasmado foram levadas para o conjunto
habitacional de Vila Kennedy, construído pela COHAB, cujo nome homenageava o
presidente americano responsável pelos repasses der verbas via cooperação

68
Na prática, foi o governo seguinte, Negrão de Lima, que mais removeu moradores de favelas. Porém,
Lacerda ficou conhecido como aquele que estabelece a remoção como uma ação de governo destinada à
reorganização da estrutura urbana da cidade.
69
Em acordo com a USAID (Agência de Desenvolvimento Norte-Americana), o secretário de Serviços
Especiais de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênica - SERFHA, José Artur Rios, acreditava
ser possível arrecadar recursos para a urbanização de favelas na cidade (BRUM, 2012).
70
Com a fusão, a COHAB passou seus ativos a Companhia Estadual de Habitação – CEHAB.

131
internacional. Além da Vila Kennedy, as Vila Esperança, Vila Aliança e a Cidade de
Deus foram alguns dos conjuntos construídos no período Lacerda (BRUM, 2012).

Com a instauração do governo militar, em abril de 1964, as políticas de remoções


tornaram-se uma estratégia cujo discurso era da ordem urbana e do planejamento
territorial. Na Guanabara, já sob a gestão de Negrão de Lima (1965-1971), um programa
de remoção é apresentado e tido como fundamental para dar conta dos problemas
sociais da cidade. Ao lado da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área
Metropolitana – CHISAM, de controle federal, a COHAB organizou uma série de
novos empreendimentos e intervenções.

Com esses novos impulsos, acreditava-se que a “renovação urbana” viria da


“desfavelização” e realocação da população pobre. Em 1967, como o BNH passava a
gerir os recursos do FGTS, amplia-se consideravelmente o capital do banco, que de
acordo com as determinações de governo deveria priorizar a construção de habitações
em larga escala de maneira a absorver o excedente de trabalhadores que não eram
comportados nos mercados imobiliários da Guanabara e de outras capitais.

Ao considerar as favelas como espaços desordenados e que denegriam a imagem e a


qualidade de vida na cidade, a CHISAM tinha como missão a erradicação desses
lugares. Era o órgão que decidia quais favelas deveriam ser removidas e onde seriam
construídos os futuros conjuntos. A princípio, os terrenos para o financiamento dos
conjuntos habitacionais eram públicos e, geralmente, a execução da obra ficava a cargo
do governo do estadual.

Assim, em 1969, a COHAB construiu um conjunto habitacional com 192 unidades num
terreno dentro do Jardim Catarina. Nesse caso, foram edificadas dois modelos de
habitação: casas não geminadas, construídas em lotes de tamanhos variados, com
medida máxima de 126m2; e casas geminadas em lotes bem menores, alguns com 40m 2
de área. A parte construída variava entre 25 a 30 m 2, apenas. As quadras do conjunto
eram delimitadas pelas Rua dos Marfins e Rua das Esmeraldas, e retidas ao fundo pelo
Rio Guaxindiba, que desagua na Baía de Guanabara.

132
Imagem 9: planta do Conjunto da COHAB-RJ em Jardim Catarina

Casas Geminadas

Fonte: CEHAB-RJ

Diferente dos demais lotes comercializados no Jardim Catarina, que na época do


lançamento possuíam dimensões que chegavam a 360 m 2, as casas da COHAB eram
pequenas e levantadas numa área ainda com muitos vazios. Além disso, se o loteamento
como um todo já carecia de serviços básicos, o terreno da COHAB contava com um
nível de precariedade ainda maior, nem mesmo iluminação elétrica continha. As casas
do conjunto estavam distribuídas ao longo de vias sem pavimentação e sem nenhum
atendimento por linhas de ônibus.

Quando se iniciou as obras da Ponte Rio-Niterói, no começo da década de 70, a região


central de Niterói passou a sofrer inúmeras intervenções e obras. A administração
municipal da cidade estava justamente elaborando o seu novo plano diretor e tinha
como objetivo aproveitar o momento de transformação da região metropolitana e
investimentos federais para revitalizar a parte central do município (SILVA, CORREA,
SANTOS, 2016). Assim, em 1971, a Secretaria de Serviços Sociais do Estado do Rio de
Janeiro decide remover do entorno da estação das barcas 433 famílias que moravam na
Favela Maveroy, cujo nome fazia referência à fábrica de refrigeradores italiana que
133
existiu no mesmo lugar durante anos. O fato, aliás, foi registrado pela imprensa da
época.

Imagem 10: reportagem de 21/10/1971 sobre a remoção da Favela Maveroy

Fonte: jornal O Fluminense

A reportagem do O Fluminense cita que os moradores da favela seriam distribuídos e


levados a diferentes bairros e loteamentos da vizinha São Gonçalo. Pelas localizações
citadas, as pessoas não seriam assentadas nem mesmo no centro do município. Muitas
famílias foram direcionadas aos loteamentos no distrito de Monjolos, onde havia espaço
suficiente para a construção de novas moradias. No caso específico de Jardim Catarina,
não há informações detalhadas sobre como foi realizada a aquisição pela COHAB do
terreno em questão. De qualquer jeito, a decisão do governo estadual foi de transferir
algumas famílias para o conjunto. Esse acontecimento foi registrado por Denise
Cordeiro (2008), em sua pesquisa sobre juventude no Jardim Catarina. A autora por
meio de entrevistas com estudantes e com o auxílio das escolas locais conseguiu
entrevistar alguns dos primeiros moradores do conjunto da COHAB.

Eu vou te dizer a verdade (...). Eles tiraram de lá (da favela Maveroy),


a gente morava nos barraquinhos quase caindo, aí tiraram a gente de lá
para limpar a cidade e botaram a gente aqui. Essas oitenta casinhas

134
aqui (...). Aqui não tinha nada. Tudo que você está vendo, a gente que
fez (moradora Dona Nena, 69 anos. Destaque do autor) (p. 126).

Na passagem, a moradora fez referência a dois momentos: a saída de Niterói, por meio
de remoção promovida pelo Estado; e a condição de chegada ao Jardim Catarina.
Mesmo reconhecendo a precariedade da moradia na favela, “morava em barraquinhos
quase caindo”, deixa claro o sentimento de perda, gerada por uma ação arbitrária e
violenta, destinada “para limpar a cidade”. Da mesma forma, a afirmação “a gente que
fez” evidenciava que a saída da favela não significou necessariamente uma melhoria na
qualidade de vida dos favelados já que os novos moradores não encontraram os mesmos
serviços públicos (hospitais, empresas, escolas, modais de transporte público, áreas de
lazer etc.) que tinham à disposição no centro de Niterói.

A moradora, que foi morar em uma das casas geminadas, fazia referência direta à
infraestrutura do conjunto e do loteamento como um todo. No caso da favela Maveroy,
o mercado de trabalho era próximo e a estação das barcas que levava ao Rio de Janeiro
estava logo à frente da favela. Além disso, para essas pessoas os loteamentos em São
Gonçalo simbolizavam uma perda em termos de qualidade de vida, tidos como lugares
distantes e fora da cidade. “Diziam que não tinha luz, que era só poeira e barro” 71.

Na imagem aérea registrada em 1975, que faz parte acervo cartográfico da extinta
Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro –
FUNDREM72, é possível notar diferenças entre o padrão de construção das casas do
conjunto em relação ao restante do loteamento. A proposta da COHAB seguia os
mesmos aspectos dos demais empreendimentos construídos pela companhia na cidade
do Rio de Janeiro, pautada por uma ocupação de alta densidade, com casas geminadas e
de dimensões reduzidas.

71
Ibid., p.127;
72
A Fundação foi criado em 1975, após a fusão do Estado do Rio de Janeiro.

135
Imagem 11: vista aérea do conjunto habitacional da COHAB-RJ. Imagem de 1975

Fonte: Acervo Fundação CEPERJ73

Dona Nena relata que logo ao chegar ao Jardim Catarina, algumas pessoas tentaram
criar uma associação de moradores na tentativa de buscar junto ao poder público
melhorias para o conjunto. O projeto original da COHAB previa a instalação de um
ginásio, um posto de saúde e de uma escola pública para atender aos novos ocupantes.
Porém, na época da remoção, essas propostas ainda não passavam de promessas. Como
Dona Nena possuía experiência com trabalhos associativos no período em que vivia na
favela, acreditava este ser um caminho para a canalização de algumas reivindicações
como forma de pressão para fazer sair do papel os serviços prometidos pelo Estado.

Ao ser criada uma associação na Rua 40, Dona Nena assume a vice-presidência, que
pelos demais registros de campo, provavelmente foi a primeira associação de moradores
do Jardim Catarina. A datação é incerta, mas remete ao início dos anos 1970, pouco
tempo depois da chegada das famílias removidas de Niterói. A moradora afirmava que
por meio da instituição o conjunto conquistou alguns dos citados equipamentos sociais.
Na pesquisa de Cordeiro, destacam-se essas iniciativas:

73
Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de
Janeiro (CEPERJ)

136
O trabalho na associação era apoiado pelas assistentes sociais, que
davam orientações, ajudavam a convidar médicos para reuniões. Junto
com a associação vieram as primeiras conquistas da pracinha, do
Posto de Saúde e do prédio para a sede da Associação Comunitária74.

Hoje em dia, o conjunto conta com um posto de saúde e uma escola pública estadual
(E.E. Professora Abigail Cardoso). A moradora destacou inclusive a importância e a
presença de alguns políticos do município de São Gonçalo, que na falta de apoio local
por parte dos vizinhos das outras localidades, intercediam junto à COHAB e ao governo
estadual na tentativa de acelerar alguns projetos e políticas sociais. “A gente sozinho é
nada”, conta a moradora para explicar que as melhorias para o COHAB sempre
contaram com a ajuda de algum político local, para “trazer as coisas aqui para dentro” 75.

Nesse ponto a experiência adquirida na favela parece ter sido essencial para delimitar os
acordos políticos com os grupos de poder do município de São Gonçalo. A relação do
favelado com o poder público sempre foi de desconfiança, principalmente em períodos
de remoção. A favela por natureza já tem uma condição de instabilidade. Após a
remoção e chegada ao conjunto, a organização de uma associação tem a ver com a
tentativa de entrada dos moradores da 40 na política local, mesmo que esta iniciativa
acabasse por legitimar uma série de ações estatais como a própria remoção. Contudo,
tratava-se de um caminho para “as entidades populares disputarem o controle e o
destino de políticas da verba pública” (VALLA, 1998, p.10) e benfeitorias para o
loteamento.

Agora, no caso presente, a chegada de “favelados” não foi algo que marcou somente as
famílias removidas. As pessoas que haviam adquirido lotes por meio da compra ou
financiamento não enxergavam com bons olhos entrada de pessoas que viviam
anteriormente em favelas. O fato dessas pessoas terem sido assentadas pela COHAB
sem, a princípio, terem sido obrigadas a arcarem com os custos da compra do lote e da
construção e da casa, acabou gerando um processo de resistência da parte dos habitantes
mais antigos do loteamento, que viam nos favelados uma ameaça à organização
territorial do JC.

74
Ibid., p. 122.
75
Ibid., p. 124.

137
Uma liderança comunitária do Catarina Velho, que já foi inclusive presidente de outra
associação de moradores do Jardim Catarina, deixa claro essa diferença:

O Estado fez besteira. Mandou pra cá gente despreparada.


Acostumada com outro tipo de educação. Aqui, todo mundo era
trabalhador, tinha que comprar a casa, ralar na obra... Ninguém
ganhou nada de graça. As pessoas da 40 não tem culpa de nada, mas
moravam em barracos e ganharam casa, posto de saúde, escola...
(Morador Juca Basílio, 68 anos).

Trata-se de uma descrição cheio de classificações que traduz a tentativa de criar uma
distinção entre moradores e localidades. A ideia de que existia uma condição de
desorganização entre os recém-chegados, expressas por “despreparadas” e “outro tipo
de educação”, na prática poderia ser questionada justamente pela experiência pioneira
de criação da associação de moradores do Conjunto da 40. De qualquer forma,
inaugurava naquele momento uma disputa entre antigos e novos moradores no Jardim
Catarina.

Para os antigos, o conjunto representava uma ruptura ao acordo estabelecido entre


moradores e loteadoras, que ao longo dos anos aprenderam a conviver no espaço do
loteamento por meio de negociações de pequenas pautas e por meio das regulações do
mercado imobiliário local. A chegada de favelados confrontava a imagem que se fazia
do trabalhador que teve que se esforçar para financiar o lote, construir a casa e arrumar
trabalho. Para os “locais”, os moradores da favela da Maveroy, ao contrário, haviam
recebido uma casa pronta, sem ter despendido energia e recursos próprios para obter seu
lugar dentro da cidade.

Essa percepção fomentada entre os moradores antigos não se alinhava com a real forma
que a COHAB costumava financiar as unidades habitacionais, mesmo para os casos de
remoção. A maioria das famílias que foram para o Jardim Catarina não recebeu a
moradia de forma gratuita. Historicamente, inclusive, as dificuldades nesse tipo de
financiamento da moradia popular já foram discutidas em estudos sobre habitação no
Brasil (CARLOS, 2003; MARICATO, 2009; LAGO, 2010). As famílias removidas não
ganharam nenhuma casa do Estado, pelo contrário, além de retiradas de suas moradias

138
arbitrariamente e levadas a um ponto “distante” de São Gonçalo tiveram que arcar com
um financiamento burocraticamente estabelecido por parte da companhia habitacional.
Além disso, os favelados carregaram consigo a imagem e o estigma da favela, vistos
pelos moradores do Jardim Catarina como uma ameaça.

A “Favela da 40” resulta da única intervenção realizada pelo poder público na área
habitacional dentro do Jardim Catarina. Mas entre os favelados existia um sentimento
de perda quando da mudança de Niterói para o loteamento. Tratado como fora da
cidade, um lugar de “poeira e lama”. Além disso, os recém-chegados reclamavam de
não ter recebido suporte dos vizinhos nas suas reivindicações em termos de melhorias
para o conjunto. Exigiam do Estado mais compromisso com as promessas que lhes
foram feitas no ato da remoção. Tiveram que buscar articulações fora do loteamento, em
muitos casos com políticos e diretamente no embate com a COHAB, diferentemente dos
“proprietários”, que desenharam soluções nos arranjos de forças locais junto às
loteadoras, imobiliárias, e órgãos públicos.

Essa reflexão a respeito dos conflitos existentes entre antigos e novos moradores
recorda do estudo clássico de Norbert Elias, Os Estabelecidos e os Outsiders (2000).
Neste trabalho o autor descreve as relações de poder e de sociabilidade entre grupos
sociais formados por operários que passaram a conviver na pequena cidade operária de
Winston Parva, em meados do século XX. O autor identifica distinções entre códigos
morais, comportamentos familiares e práticas de convívio no conflito entre moradores.

Após a chegada de novos habitantes, mesmo que a princípio apresentassem atributos


similares aos antigos, os “anciões” buscavam criar alguns fatores de diferenciação.
Particularmente na questão comportamental os recém-chegados foram considerados
como aqueles cujos hábitos e comportamentos rebaixavam o status sociocultural da
cidade.

Os recém-chegados que se fixaram no loteamento foram vistos como


uma ameaça a essa ordem, não porque tivessem qualquer intenção de
perturbá-la, mas porque seu comportamento levava os velhos
residentes a achar que qualquer contato estreito com eles rebaixaria
seu próprio status, que os arrastaria para baixo, para um status inferior
em sua própria estima e na do mundo em geral, e que reduziria o

139
prestígio de seu bairro, com todas as possibilidades de orgulho e
satisfação que lhe estavam ligadas. Nesse sentido, os recém-chegados
foram vividos como uma ameaça pelos antigos moradores (p.166).

A cidade passou a organizar-se espacialmente a partir dessas diferenças. Os bairros, as


vias públicas e os espaços de lazer, incluindo os tradicionais pubs ingleses, passaram a
ser balizados a partir da separação entre antigos e novos habitantes – mesmo que não
houvesse explicitamente esta determinação. Inclusive o estigma criado em torno de
zonas específicas de Winston Parva passou a condicionar o cotidiano e as relações
sociais dentro da cidade.

O núcleo dos residentes antigos atribuía um valor elevado aos


padrões, às normas e ao estilo de vida que eles haviam criado entre si.
Tudo isso tinha uma estreita ligação com seu respeito próprio e com o
respeito que eles julgavam ser-lhes devido pelos outros (p.167).

No Conjunto da 40, a questão da distinção social fixava-se na imagem do “favelado”


como estereótipo negativo e fora dos padrões comportamentais pré-estabelecidos dentro
do JC. Esse atravessamento na organização interna do loteamento alimentou um jogo de
representações sociais que acabou extrapolando a dimensão local, interferindo na
relação do Jardim Catarina com o restante do município de São Gonçalo.

Como mencionado anteriormente, esse período coincide com a época em que os jornais
de São Gonçalo começaram a relatar a ocorrência de crimes localizados ou relacionados
ao Jardim Catarina. Pelas matérias de jornais da época, não há menções diretas ao
Conjunto da 40, mas surgia um discurso de segregação entre o loteamento e a cidade. O
JC para São Gonçalo passou a representar um lugar violento. Internamente, essa lógica
também irá se reproduzir sobre a Rua 40, onde as demais partes do bairro passariam a
identificá-la como uma zona de perigoso.

140
Imagem 12: reportagem dos anos 1970 sobre criminalidade no Jardim Catarina

Fonte: Jornal O Fluminense

Na matéria acima, um grupo de criminosos conhecidos como “Boinas Vermelhas” (por


praticarem delitos utilizando o adereço) passou a ter sua atuação no município de São
Gonçalo vinculada ao Jardim Catarina. O grupo assaltava o comércio e pequenas
empresas tanto no município como no JC. A imprensa, contudo, relacionava a ação
criminosa e a violência a um cenário de abandono público e de carência de serviços
básicos, como saneamento, iluminação e pavimentação de ruas. Não apenas os Boinas,
mas o Jardim Catarina soava como uma ameaça à ordem da cidade. As péssimas
condições de urbanização eram tratadas pelo jornal com elementos que favoreciam a
prática de delitos e a presença de criminosos.

141
Imagem 13: reportagens sobre crimes em Jardim Catarina nos anos 1970

Fonte: jornal O Fluminense

Nas reportagens convivem dois componentes: o primeiro relacionado à falta de atenção


pública sofrida pelas “periferias”, neste caso, refletindo problemas na área de segurança,
o “bairro despoliciado”; na segunda chamada, destaca o surgimento de patrulhas
comunitárias particulares, que visavam enfrentar o aumento local da incidência criminal
com as “próprias mãos”. A aparição de grupos privados armados como reposta à
criminalidade é algo que, inclusive, fez parte da constituição da história de grande parte
dos municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Alguns desses grupos,
inclusive, foram relacionados à organização de grupos de extermínio e de justiceiros.

Nesse interim, o sociólogo José Souza Alves, ao falar da integração da Baixada


Fluminense à área metropolitana do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século
XX, sugeriu que a vida na região foi sendo moldada por relações violentas envolvendo
grupos de políticos locais e as disputas em torno da ocupação urbana da Baixada.
Muitas das estratégias de sobrevivência de antigos posseiros e trabalhadores urbanos
entravam em choque com o poder e o controle territorial exercido por “coronéis” e
políticos da época (ALVES, 2003). Não é à toa que a atuação de grupos de extermínio,

142
de segurança privada, de milícias tenha sido marcante na história da Baixada
Fluminense e de São Gonçalo.

Foi associado a este processo, aquele da transformação da Baixada em


região violenta por excelência. Tanto os crimes, de modo especial os
de extermínio, como as narrativas sobre eles, contribuíram
decisivamente na desmobilização e fragmentação da classe
trabalhadora. Uma classe que elabora diferentes interpretações de suas
experiências e formula práticas heterogêneas e concorrentes entre si
num quadro de segregação crescente e complexificação da realidade
urbana (p. 17).

No caso da Baixada Fluminense o quadro de violência que se instalava serviu para


fortalecer os mecanismos de dominação de grupo locais sobre os trabalhadores rurais e
urbanos que ou resistiam ou migraram para a região, num contexto de forte disputa
durante o processo de incorporação desta região à economia do Rio de Janeiro. José
Alves afirmou que para compreender o que ocorria de fato na Baixada foi preciso
“entrar no jogo das interpretações”, em que a violência em grande parte era fomentada
pela mídia e agências estatais como estratégia de criação de um ambiente de
instabilidade, o que exigiria ações enérgicas por parte do Estado.

Pela narrativa midiática, tanto a Baixada Fluminense como São Gonçalo precisavam
deixar de serem vistos como lugares “ermos”, desprovidos de ordem, para se
transformar em área urbana integrada à RMRJ. Nesse compasso, o discurso da violência
e do abandono estará entrelaçado simbolicamente como tentativas objetivas de pautar a
vida nesses lugares. Desde então, parece ocorrer uma constante renovação dessas
representações sociais, que de tempos em tempos são reajustadas para atender aos
interesses políticos dos agentes hegemônicos, principalmente.

No Jardim Catarina, a narrativa da violência trouxe efeitos para as relações sociais entre
os atores locais. Ganhou vulto o surgimento de agentes privados de segurança dentro do
loteamento, contratados por comerciantes locais que queriam evitar assaltos e
bandidagem no loteamento. A favela da 40 era o alvo principal. O favelado deveria ser

143
segregado e separado do convívio com as outras localidades, fazendo do controle
territorial algo necessário.

Com o passar dos anos esses grupos privados ampliaram sua atuação, passando a agir
sobre outras dimensões da vida local: controle sobre o mercado de drogas, autorizando
locais específicos para o comércio varejista praticado por pequenos traficantes;
definindo áreas que podiam ser ocupadas para a criação de lotes fora dos padrões
estabelecidos originalmente pelas loteadoras; agindo na segurança de equipamentos
públicos e materiais de construção de obras realizadas pela prefeitura ou pelo governo
do estado nas localidades consideradas menos perigosas e violentas.

Aqui tinha o Carro do Bonde. Ninguém sabia se era polícia ou


bandido. Só sei, que quando era pequena, quando tinha algum
problema no Catarina, o bonde aparecia. Se tinha assalto, eles
pegavam o ladrão. Se tinha neguim fumando maconha, eles
avisavam que era pra parar...Quando o carro branco virava a rua,
a criançada saia correndo pra dentro de casa. Nossa mãe sempre
avisava pra entrar (Moradora Maria Clara, 43 anos. Destaque do
autor).

O “Bonde” passou a exercer um poder não apenas territorial, mas simbólico sobre o
cotidiano. De acordo com alguns depoimentos, o Bonde teve surgimento na década de
1980 e era integrado por policiais militares do Serviço de Inteligência P2 de São
Gonçalo, o que comprova algumas das citações feitas na pesquisa a respeito da
circulação de carros à paisana nas ruas do loteamento. Oficialmente, esse serviço
policial atendia pelas rondas na cidade e incursões em favelas e áreas tidas como
violentas pela polícia. Além de combater os assaltos a comerciantes locais, passaram a
agir controlando índices de violência e mantendo a venda de drogas apenas em áreas
específicas, como o Conjunto da 40.

Da mesma forma, a presença de paramilitares e justiceiros passou a ser cotidiana. Cada


vez mais as reportagens cobriam o surgimento de novos grupos e a ocorrência de
homicídios. Em 25/08/91, O Fluminense denunciava a formação de um grupo de

144
moradores, que por vingança a atos de agressão por parte de assaltantes e traficantes,
começou a fazer justiça com as próprias mãos. Em 1991, um desses grupos (“Grupo do
Zeca”) passou a adotar julgamentos internos para decidir sobre a execução ou não de
indivíduos dentro do bairro. Pela matéria, contavam com a cobertura de policiais e dos
próprios moradores. Por fim, a reportagem ressalva que mesmo após a captura e prisão
deste grupo, outros justiceiros já exerciam a prática.

Imagem 14: matéria da imprensa sobre a atuação e prisão do Grupo do Zeca

Fonte: O Fluminense

Contudo, essa imagem de violência generalizada retratada pelos jornais, na realidade era
vista por moradores como localmente territorializada, com graves efeitos sobre a relação
entre localidades do JC e o restante da cidade. O Conjunto da 40 aparece como um
território de conflito, espaço de enfrentamento entre a polícia, os traficantes e os grupos
de extermínio. Diferente das “áreas tranquilas, habitadas por famílias de trabalhadores e
pessoas honestas”.

Na 40 ninguém pode entrar. O tráfico de drogas no Jardim Catarina


começou lá. Aqui era muito tranquilo. Só trabalhador. Começou a ter
roubo, assalto no Catarina quando fizeram esse conjunto aí. Antes não
tinha nada (de violência). Nossa vida era simples, mas não tinha nada
(Morador Roberto, 58 anos. Destaque do autor).

145
Essa condição de divisão em conjuntos habitacionais não é particular da Rua 40. A
história do Estado do Rio de Janeiro já demonstrou que as políticas habitacionais
tocadas pela COHAB foram uma junção de fracassos e equívocos. São fatos conhecidos
e profundamente descritos, a exemplo dos conjuntos da Vila Kennedy, Cidade de Deus,
entre outros. Em todos esses conjuntos ocorreram processos parecidos: chegada
repentino sobre vazios urbanos; remoção traumática de famílias de áreas centrais da
cidade; carência de serviços urbanos no entorno dos conjuntos, violência e controle
territorial por grupos de poder e intervenção da política de Estado.

Nessa relação com a Rua 40, interessa realçar que a sua condição dentro do Jardim
Catarina será determinante para a forma como seus moradores terão acesso aos serviços
urbanos e às políticas de saneamento. Como a distribuição do abastecimento de água,
por exemplo, será em grande medida gerida por meio de acordos entre estruturas
internas e externas de poder, dificilmente o conjunto terá algum tipo de
representatividade política nesse “jogo”. Como exemplo, a Associação de Moradores
do Jardim Catarina (AMAJAC), criada somente nos anos 1980, jamais incluiu o
conjunto da 40 na sua agenda e pauta de reivindicações. Até hoje, não há água nas ruas
do conjunto habitacional.

4.2 Problemas ambientais e urbanos: a localidade do Pica-pau

A orla costeira da baía, baixa e mal consolidada, constituída (...), em


parte, por manguezais é o primeiro dos elementos constitutivos da
região de baixada. Essa paisagem (...) penetra para o interior, ao longo
do baixo curso dos diferentes rios que vêm desaguar na baía (...). É ao
longo do curso desses rios que ela mais se desenvolve, penetrando
para interior como uma cunha até a zona dos morros. Tais planícies,
em seu trecho mais próximo à orla da baía, são alcançadas pela ação
da maré que penetra no curso de todos os rios, às vezes por
quilômetros (SOARES, 1990, p. 44)

Além da violência, que virou tema nos anos 1980, os jornais de São Gonçalo também
passaram a relatar problemas ambientais e de saneamento, tais como os constantes
146
alagamentos, enchentes e o agravamento das condições de vida da população de
“periferias urbanas”. Como já mencionado, há um problema histórico e ambiental na
região onde se construiu o JC. Na verdade, a região metropolitana teve que enfrentar,
desde o início de sua ocupação, eventos dramáticos em relação a problemas sanitários,
como grave epidemias durante o século XIX e XX. A urbanização acelerada desses
lugares, com destaque para a Baixada Fluminense, só pode de fato ocorrer após obras de
drenagem e aterros de áreas alagáveis (SOARES, 1990).

Se por um lado a topografia vantajosa e plana do terreno facilitou a ocupação do Jardim


Catarina, por outro depositou sobre a vida local um elemento negativo: o alagamento
quase que permanente de parte das ruas e quadras. Essa característica ambiental dessa
região bastante irrigada trouxe impactos distintos. Há áreas específicas que sofrem mais
com esses fenômenos que outras. O problema fundiário e de regulação do uso do solo
de certas localidades também contribui para inviablizar a ação pública em termos de
infraestrutura de saneamento e de drenagem dessas partes alagáveis do loteamento.

Há estudos sobre a distribuição da infraestrutura urbana e de saneamento na cidade de


São Paulo que mostram como a cobertura de certos serviços, além de desigual, vai
apresentar forte correlação com certas características e perfis socioeconômicos dos
habitantes e de áreas específicas da cidade, como renda, tempo de moradia, relações de
vizinhança e proximidade com as áreas centrais cidade (MARQUES; BICHIR, 2001).

Renata Bichir (2005), ao comparar os dados censitários de São Paulo relativos ao


saneamento de diferentes áreas pobres (“favelas e loteamentos clandestinos”), identifica
uma boa cobertura geral no abastecimento de água, esgoto e transporte, mesmo naquelas
áreas localizadas mais distantes da capital. Contudo, ao refinar a análise utilizando-se de
indicadores como “tempo de presença na vizinhança” e “situação fundiária do
assentamento”, a autora encontra importantes diferenças na distribuição da
infraestrutura entre as regiões da cidade, entre aquelas mais antigas e consolidadas e as
ocupações recentes.

A questão do abastecimento de água, por exemplo, apresentará as piores condições de


atendimento em lugares onde a estrutura fundiária do loteamento era irregular ou
encontrava-se em condição de litígio. Nesses lugares, dificilmente o Estado realizava
obras ou instalação de redes de água e esgoto. A autora mapeia que certos componentes

147
dos lugares serão determinantes pare que mesmo entre as áreas de população pobre, haja
importantes diferenças no acesso a infraestrutura urbana e de saneamento.

Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, dados produzidos pela extinta


FUNDREM76 apontaram que o JC possuía 30 mil imóveis não regularizados na
prefeitura. A Secretaria Municipal de Fazenda de São Gonçalo já havia identificado,
ainda nos anos 1970, 15 mil casas e terrenos não cadastrados. O governo municipal
argumentava que essa situação seria um forte fator de impacto negativo sobre a
arrecadação tributária do município com IPTU e, consequentemente, afetando a
capacidade de investimentos da prefeitura em retornar com infraestrutura para o próprio
loteamento.

Na tentativa de lidar com o problema, o município publicou uma série de normas e


parâmetros legais para nortear o processo de uso do solo e inibir a ocupação de algumas
partes dentro Jardim Catarina. Uma das ações previstas foi a proibição de ocupação da
margem dos rios que serviam para a drenagem e transformados em canais pela CEDAE,
que funcionavam ainda como descarga de resíduos dos tanques de tratamento da ETA
Imunana-Laranjal. Por meio do decreto municipal N° 29, de 05/06/1982, o município
tentava coibir a construção de casas declarando com área non aedificandi uma faixa de
08 metros de distância para cada margem do canal, que partia da Rua Xingu, bem
próximo à estação de tratamento, e que seguia até o Rio Alcântara, na localidade do
Pica-pau.

Art. 1º - Fica declarada como área non aedificandi uma faixa com
largura de 8,00 (oito metros) ao longo do curso d’água situado entre
as ruas Xingu e interseção com os seguintes logradouros: Ruas
Grajau, Laguna, Padre Vieira, Américo Miranda e Albino Imparato.

(...) Art. 3º - A faixa non aedificandi delimita a área que, em momento


oportuno, transformar-se-á em faixa de domínio público, através da
doação à Prefeitura ou do instituto de desapropriação 77.

76
Os dados foram publicados também no Jornal O São Gonçalo de 14/04/1980.
77
http://www.pmsg.rj.gov.br/urbanismo/plano_diretor/leitura_tecnica/index.htm

148
Ironicamente, na época de publicação do decreto, a região demarcada já se encontrava
ocupada pela localidade conhecida por Pica-pau78. Ela surge após a CEDAE realizar
inúmeras dragagens no Rio Alcântara para a retirada de material arenoso e de esgoto.
Esse material, como não era destinado a nenhuma estação de tratamento de resíduos,
passou a se acumular ao longo da linha d’água transformando-se numa área de aterro
improvisado, justamente no ponto vulnerável a alagamentos e inundações.

Vale lembrar que o parcelamento de terra que deu origem ao Jardim Catarina foi
realizado numa região plana, porém localizada abaixo do nível do mar e bastante
influenciada por uma rede hidrográfica formada por rios, manguezais, lagoas e baías. A
característica ambiental do loteamento o coloca sob a influência de fenômenos naturais,
a exemplo dos movimentos de marés e fluxos hídricos, que neste caso formariam o
sistema da Região Hidrográfica da Baía de Guanabara 79. Na imagem abaixo é possível
identificar as áreas próximas à rede hidrográfica da RMRJ.

Imagem 15: localização do Jardim Catarina atual e a proximidade com os bens naturais da
Baía de Guanabara

Fonte: GoogleMaps (Acessado em: 24/02/2018)

78
A localidade também é chamada de Baixada, devido a sua topografia abaixo do nível do mar e por ser
uma área alagável. Devido a presença de muitas árvores e animais, dizia-se que era possível avistar
inúmeras aves e pássaros, entre eles o Pica-pau.
79
www.inea.rj.gov.br/Portal/Agendas/GESTAODEAGUAS/InstrumentosdeGestodeRecHid/PlanodeRecu
rsosHidricos/BaiadeGuanabaraAgendaAzul/index.htm

149
Foram entrevistados na pesquisa moradores do Pica-pau. A maioria relatou que a
dificuldade encontrada por muitas famílias em comprar ou alugar casas nas áreas
centrais do loteamento, onde existiam algum tipo de oferta de serviços e por conta da
proximidade com o comércio de Alcântara, fez com que grande parte dessas pessoas se
dirigissem a ocupar as margens do rio. Eles relembram que ao chegar no JC se
depararam com terrenos alagadiços, com a presença de charcos. Dependendo do horário
ou da estação do ano o Pica-pau costumava ficar parcialmente submerso. Em dias de
chuva, os lotes ficavam de baixo d’água durante horas.

Eu lembro que meu pai levava a gente pra pescar aqui dentro do
Catarina. A gente ia lá no Pica-pau. Tinha até uma colônia de
pescadores aqui. Muita gente tinha barco... As mães sempre avisavam
pras crianças tomarem cuidado com o brejo. Porque era perigoso.
Tinha muita gente que morreu afogado lá (Moradora Dona Maria, 72
anos).

A fala de quem vive no Jardim Catarina há décadas refaz uma época em que a presença
de áreas inundadas fazia parte do cotidiano daqueles que foram morar logo nos seus
primeiros anos de loteamento. Por ficar abaixo do nível do mar e pela convivência
histórica do problema, o morador sabia que a vida nesse lugar passava a ser pautada,
também, pela temporalidade envolvida por esses fenômenos “naturais”. Historicamente,
não apenas o Jardim Catarina, mas grande parte do distrito de Monjolos era suscetível a
inundações. Os impactos das chuvas, porém, foram se agravando à medida que o
município de São Gonçalo foi se urbanizando por intermédio do parcelamento de terras
e posterior loteamentos.

No âmbito da estratégia da população frente à condição ambiental e socioeconômica de


localidades periféricas, a exemplo do Pica-pau, era preciso que os moradores adotassem
o uso de material de baixo custo e de fácil reposição para a construção das casas após
enchentes. A presença constante de alagamentos exigia uma capacidade e uma
velocidade maior de reconstrução da moradia, praticamente inviabilizando o uso de
alvenaria. A prática comum era levantar casas e telhados de madeira na tentativa de

150
ganhar tempo e manter uma poupança que permitisse uma mudança futura para as áreas
com melhor infraestrutura de saneamento.

Como a partir dos anos 1980 o mercado imobiliário do JC já não possuía tantas áreas ou
lotes vazios, comprar ou alugar uma casa nas quadras pavimentadas tornou-se uma
tarefa que exigia recursos econômicos. Atualmente, o Pica-pau cresceu e a maioria das
casas já é de alvenaria. Porém, como a questão do alagamento e das enchentes é algo
não resolvido, a saída para alguns moradores foi começar a construir as habitações sobre
estruturas elevadas em relação ao solo, podendo chegar a mais de um metro acima do
terreno (fotos a seguir).

Imagem 16: casas do Pica-Pau sobre áreas alagáveis

Fonte: registro próprio

Assim como o conjunto da Rua 40, que desde o assentamento das famílias removidas de
favelas de outras partes da RMRJ vem enfrentando inúmeras dificuldades de acesso a
serviços urbanos e de integração à cidade, a condição fundiária e os aspectos ambientais
do Pica-pau também se transformaram em obstáculos ao estabelecimento e seu acesso à
políticas de saneamento.

Quando cheguei dava pra nadar e pescar naquele rio (Rio Alcântara).
Mas depois foi chegando gente, foi crescendo, e a Av. Beira Mar
virou o que virou. Calculo que hoje tem uns 300 a 400 famílias ali.
Cada pedacinho ou lote tem umas três famílias dentro. Quando a
família vem do Nordeste, dá um pedacinho pra um e pra outro. Mas eu

151
mesmo não acreditava que iria mudar muito não. Antigamente não
tinha luz e nada. A gente puxava luz da Rua 25. Mas, lembro que os
postes caiam quando aqui enchia. Toda hora acontecia (Morador
Carlos Eugênio, 38 anos).

Essa lógica de ocupação parece seguir uma história parecida, cujo processo é
representado por territórios que surgem e extinguem-se simultaneamente. A percepção
da desigualdade aparece no discurso do próprio morador do Pica-pau, que compreende
sua condição material de vida. O morador tem o conhecimento e encontra até
justificativa para a falta de atendimento e de serviços públicos por conta da situação
fundiária irregular e vê com dificuldade a chegada de ação estatal para beneficiá-lo:

Aqui é área de baixada, sempre vai encher. E não sei se a Prefeitura


vai fazer alguma coisa. Aqui é margem de rio, área da Marinha. A
prefeitura não pode fazer nada. Às vezes ela vem aqui e draga o rio,
mas joga todo o lodo na frente da nossa casa. Ela não tem nem
caminhão pra tirar o lixo daqui (morador Carlos Eugênio, 38 anos).
Aqui sempre choveu, sempre alagou, mas nunca desse jeito. Antes
dava tempo de tirar os móveis de casa, se proteger. Mas desta vez não
deu não. A água subiu tão rápido que só dava pra salvar as vidas dos
nossos filhos. Antigamente a gente esperava secar, limpava tudo e a
vida continuava. Mas, agora não dá, muitas casas caíram.

A partir de certo momento, a mudança na “velocidade” das águas pegou desprevenida


parte da população, causando prejuízos e perdas em escalas distintas. A percepção da
mudança temporal tem a ver com o crescimento urbano e demográfico tanto do JC
como de São Gonçalo, com aumento o lançamento de esgoto e o assoreamento de rios,
o que impossibilita o funcionamento do sistema de drenagem do município. Além disso,
para a população local essa noção temporal está fortemente atrelada às experiências e às
práticas de enfretamento desses problemas socioambientais (DOMINGUEZ, 2011) e na
forma a contabilizar perdas e avaliar a permanência na localidade.

152
Durante o trabalho de campo, ao visitar o Pica-pau acompanhado por uma moradora que
trabalhava no CRAS80 do Catarina Velho (Rua 21, Raposo Botelho), o pesquisador se
deparou com a seguinte cena: após fortes chuvas, as ruas estavam inundadas, casas
alagadas, lixos espalhados pelas vias e algumas áreas vazias, porém cercadas com
arame. Ao observar os terrenos demarcados, foi perguntada à moradora sobre a
condição destes lotes que estavam ocupados pela água, porém à espera de um
comprador. Na resposta, a funcionária do CRAS afirmou que “no Catarina todo lugar
tem dono... Mesmo se você quiser morar aí, tem que pagar (...). E as pessoas pagam,
porque todo mundo sonha com uma casa, então paga”.

Imagem 17: localidade do Pica-pau após as chuvas e inundações de 2010

Fonte: registro próprio

A fala deixa claro que mesmo que haja uma condição de precariedade das condições
materiais do Pica-pau não significa que não se reproduzam sobre seu espaço práticas e
relações políticas e econômicas presentes em outras partes do Jardim Catarina e da
própria RMRJ. O que a moradora indica é a presença de meios de regulação de acesso
ao solo urbano que se estruturaram na localidade, formas de controles territoriais em
que o “sonho da casa” é uma representação que no fundo retrata a integração entre o
lote alagado e marginal do Pica-pau e os processos urbanos mais amplos.

80
Centro de Referência da Assistência Social.

153
No campo do abastecimento de água, no entanto, se houve melhora na cobertura da
RMRJ como um todo81, no Pica-pau o quadro é adverso. A qualidade e a desigualdade
na distribuição dos serviços de água vão encontrar na fala dos técnicos da CEDAE
justificativas apoiadas na condição de precariedade das moradias e na irregularidade
fundiária do assentamento. No entanto são justamente esses lugares que recebem sobre
si uma maior carga de impactos ambientais (PORTO, 2007) e que os colocam numa
posição marginal dentro do JC.

Mas hoje a questão maior é saneamento básico e água. A água não


chega nem a 30 % de abastecimento. Eu sempre falo: rede de água,
temos muita, mas são mal distribuídas e as que têm não atendem a
comunidade. Deveria haver uma reestruturação do sistema,
diagnosticar as áreas que mais necessitam. Essa discussão acontece
desde quando a associação começou a ser criada, em 1981, através das
comissões de áreas, que tinha lá na (Rua) 21.

O nosso propósito sempre foi lutar pela água e saneamento, pela


qualidade de vida dos moradores. Vejo que o pouco que a gente
conquistou veio da luta de companheiros, vem de longe, aqueles que
lutavam antes e depois da associação (Morador João Paulo, 45 anos).

A primeira grande intervenção em termos de saneamento no Jardim Catarina ocorreu na


execução do programa conhecido como “Viva São Gonçalo”, inaugurado no governo
Marcelo Alencar, na década de 1990, inserido na carteira de projetos do PDBG 82. Após
diversas paralisações, teve seu recomeço no governo Anthony Garotinho, em 2002. O
resultado deste processo foram ruas asfaltadas, porém, somente em partes específicas do
loteamento. Assim como, a pavimentação foi realizada, mas sem medidas eficazes de
escoamento das águas das chuvas. “Essas obras do Viva São Gonçalo que você está
falando não chegou aqui não. É mais lá pra cima. Aqui na Baixada não tem nada.
Ninguém faz nada. (Carlos Eugênio. Morador do Pica-Pau)”.

81
As referências quantitativas e estatísticas quase todas partem dos dados do Censo Demográfico (2010)
e das informações hoje contidas no Sistema Nacional de Saneamento (SNIS), disponível em:
http://www.snis.gov.br/
82
Programa de Despoluição da Baía de Guanabara.

154
Assim como o Conjunto da 40, o Pica-pau parece condenado a viver nas margens dos
serviços dentro do JC. A confusa rede de abastecimento de água, com descontinuidades
e interrupções, passou a ser um fator preponderante na determinação da condição
material dos moradores. A configuração espacial da rede forma um mapa desigual da
infraestrutura de saneamento. Suas consequências estarão presentes tanto no cenário
físico do lugar, como no campo simbólico.

No programa de despoluição da Baía de Guanabara começaram a


fazer as ramificações da rede principal de água, colocaram na Av.
Paulo VI, na Marcos da Costa, na Cardeal Álvaro da Silva, depois na
Av. Padre Vieira e só. Na Av. Albino Imparato, uma boa parte não
tem registro de água. Na Rua Itabacuri a rede oficial vai até a Rua 41
do loteamento novo, que é atendida pela antiga tubulação que
abastecia o Conjunto da Marinha (bairro vizinho) (Membro da
AMAJAC. Destaque do autor).

A interpretação da fala do membro da AMAJAC dá a sensação de que o Estado, em


dificuldade de garantir a cobertura efetiva do abastecimento, passou a fazer uso ele
mesmo de ramificações e instalações alternativas no próprio sistema oficial, conforme
sinalizado na transcrição anterior, reproduzindo práticas que entram em desacordo ao
próprio modelo que defende como dominante.

Falta-se rede de água no Pica-pau, sobra água que vem dos rios, inundações e chuvas. A
abundância aqui é de outra ordem, ela carrega problemas ambientais que interferem no
tempo do cotidiano e na forma de enfrentamento por parte dos moradores.
Contraditoriamente, nesse contexto, o Estado vai reforçar o discurso da precariedade e
da situação irregular da “favela” como justificativa para a não solução do problema de
saneamento. E por outro lado, adotará um tom assistencialista que exigirá mais
investimentos em obras de saneamento e acesso à água para o loteamento como um
todo.

A partir de certo momento, as “mazelas urbanas” do Pica-pau e do Conjunto da 40


servirão de base narrativa para mobilizar uma série de recursos e atores sociais numa
escala supralocal, porém que continuará alimentando os arranjos políticos locais e as

155
distinções espaciais, cada vez mais fortalecidos com a chegada de investimentos
públicos. Como a política no Jardim Catarina é a política da e na cidade, para participar
dela o morador do Pica-pau ou da 40 terá que desenvolver estratégias de articulação
próprias. Não será por meio da AMAJAC ou diretamente pelo atendimento da CEDAE.
Serão acionados novos personagens, agentes públicos e privados cuja atuação marginal
terá um importante papel nesse “jogo de cartas” urbano (SANTOS, 1986).

156
Capítulo 05 – O Mapa da Água no Jardim Catarina: uma história de
negociação

Na (Rua) Itororó tem a rede (de água) que vai até a ilha de Paquetá.
Ali jorra água forte, mas vai ver como ela tá hoje, parece uma colcha
de retalhos. Teve inclusive uma vez que o Seu Moraes (dono de uma
loja de material de construção), que já foi candidato aqui no bairro,
ganhou uns canos de um amigo dele que era deputado estadual. Sabe o
que ele fez? Abriu um buraco e puxou água para toda esta parte aqui
da Rua 35, por conta própria mesmo (...) A Cedae veio aqui depois
para tampar o negócio (...). Eu lembro que na época que colocaram a
tubulação na minha rua, eu tive que pagar para a Cedae puxar água pra
minha casa (Moradora Alzira Santos, 50 anos. Destaque do autor).

A realidade do abastecimento de água no Jardim Catarina resultará de um conjunto de


intervenções estatais e de práticas locais sobrepostas, desenhando no espaço do
loteamento uma espécie de mapa da distribuição da água, com fragmentos visíveis e
outros nem tanto. A ação da tecnocracia estatal, que opera na lógica da ordem e da
planificação, dificilmente terá convergência com as experiências oriundas dos
moradores nos territórios urbanos. O que não quer dizer que não haverá uma imbricação
entre as atividades da CEDAE com o movimento dos atores locais em torno dos
serviços urbanos básicos.

A transcrição acima faz referência à instalação de uma adutora d’água pela CEDAE83 na
década de 1970, que mesmo passando por dentro do Jardim Catarina não se destinava a
atender o loteamento, mas outras áreas da RMRJ. Os moradores, por sua vez, sofrendo
com a falta d’água passaram extraí-la dessa nova tubulação, mas por meio do que
alguns deles chamavam de “gatilho”, que na prática seriam ligações clandestinas ao
sistema oficial. Pelo que parece, esse processo contava com a ajuda de políticos e

83
A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) foi criada em 1975 após a
fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, incorporando os órgãos de saneamento de ambos os
entes públicos.

157
comerciantes locais, que além de financiar esta prática, tentavam adquirir capital
política para si na disputa por cargos públicos e mandatos.

A figura do Seu Moraes, novamente citado na passagem, personagem carismático e que


se tornou uma liderança local, está diretamente atrelada à sua mobilidade e atuação na
política dentro do loteamento. Originalmente trabalhando como corretor de imóveis84 e
dono de lojas de material de construção, quando pode ajudar os moradores a levantar
suas casas no Jardim Catarina e, posteriormente, financiando e incentivando novas
ocupações em áreas até então não demarcadas e na instalação de gatilhos d’água na rede
geral do Estado. Seu Moraes, ele mesmo morador do Catarina Velho, fez do processo de
urbanização do loteamento seu campo político e espaço de negócio.

Lembro uma vez, em uma reunião com a Cedae, o secretário de obra


falou que estava tirado todos os canos clandestinos do bairro. Depois o
Seu Moraes perguntou: “E a Cedae está vindo atrás recolocando e
legalizando as casas?” Ele respondeu que não. “Então não adianta
nada, né”. Porque logo depois o morador vai colocar (o gatilho) de
novo (...). Além disso, muitos moradores estão com uma dívida na
Cedae. O que eles deveriam fazer? A Cedae tinha que legalizar todo
mundo, com instalação e abastecimento adequado, colocar os
hidrômetros e, aí sim, começar a cobrar pela água. Hoje, o morador
não tem água encanada, mas tem uma dívida absurda na empresa.
Muita gente tem hidrômetro, mas não tem água. No (programa) Viva
São Gonçalo (governo Marcelo Alencar) teve ruas que colocaram
tubulação, mas não ligaram as casas, obrigando o morador a quebrar
suas calçadas e a danificar as redes (Moradora Suzane, Agente
Comunitária de Saúde, 65 anos. Destaque do autor).

O serviço incompleto e o padrão de descontinuidade da cobertura de água em São


Gonçalo foram incorporados às falas das pessoas que compreendiam concretamente sua
condição dentro do âmbito geral das políticas urbanas na RMRJ. O sistema de
abastecimento era fracionado e, pelas entrevistas, funcionava irregularmente, gerando
custos (financeiro e social) mesmo para famílias que possuíam a casa ligada à rede geral

84
Fato mencionado na entrevista da moradora Ana Clara.

158
de água. Na entrevista, a moradora, que trabalhava como agente de saúde no Jardim
Catarina, reconhece a alternativa do gatilho como uma prática “paralela” ao acesso
oficial, porém, da mesma forma, parecia reconhecer como legítima da cobrança de
tarifas por parte da CEDAE, caso o serviço fosse efetivamente executado.

Esse quadro se perpetuou no tempo, produzindo uma contradição: o crescimento dos


investimentos públicos em saneamento na Região Metropolitana do Rio de Janeiro
caminhou lado a lado à incessante pressão por mais investimentos e pelo aumento de
demanda por serviços de água. As diversas obras de ampliação da ETA Imunana-
Laranjal, por exemplo, não diminuíram a percepção local relativa à piora ou à pouca
efetividade do serviço. O morador teve a casa ligada na rede, passou a ser cobrado por
ela, porém sem a certeza de que a água de fato sairia por torneiras e entraria nas caixas
d’águas. A própria transformação do que antes servia de reservatório de água do
Laranjal, que passou por reformas e por desenvolvimento tecnológico, transformando-se
em Estação de Tratamento de Água (ETA), não resolveu o problema do abastecimento
no Jardim Catarina.

Foi 1975, no governo Geisel, a primeira vez que o Estado (via financiamento do BNH)
direcionou recursos federais para a melhoria do sistema de água nos municípios da
região metropolitana do Rio de Janeiro, conforme chamada da matéria do Jornal do
Brasil de 1975: “Geisel presidirá no Rio contratos entre BNH e o Estado para a água”
(05/07/1975). A reportagem dizia que o governo federal havia transferido dinheiro do
FGTS diretamente para a conta da CEDAE, para que esta realizasse, entre outras ações,
a modernização do sistema de Imunana-Laranjal.

A tentativa, no entanto, de aumentar a capacidade de vazão da estação foi mais uma


resposta política da época às pressões geradas pelo crescimento urbano e demográfico
da RMRJ, do que resolver de fato a questão. Por outro lado, ao passar adutoras por
“baixo” do Jardim Catarina, abriu caminho para que os moradores, em alguns casos
financiados por comerciantes e políticos como o Seu Moraes, tivessem a oportunidade
de construir gatilhos na rede oficial, garantindo assim, uma pequena contrapartida do
serviço de água, fundamental para a reprodução social dentro do loteamento.

Da mesma forma, a política de infraestrutura urbana do estado no pós-fusão não rompeu


com a organização espacial e política dos sistemas de saneamento nos municípios
metropolitanos, como visto nos capítulos anteriores, pautada em grande medida no

159
funcionamento dos departamentos regionais. A CEDAE, ao investir na ampliação do
atendimento nos municípios da RMRJ de forma fragmentada espacialmente parece ter
fortalecido essas estruturas territoriais mesmo sem ter garantido a totalidade da
cobertura de saneamento. Enquanto o corpo tecnocrata da estatal era comandado pelos
funcionários e diretores da antiga companhia da Guanabara (CEDAG), São Gonçalo,
por exemplo, dependia dos arranjos firmados entre os grupos políticos locais e a
estrutura descentralizada da empresa na própria cidade.

A realização de obras de engenharia e de modernização além de possuir um custo


elevado era apoiada sobre a ideia dos gestores da política de infraestrutura de que devia-
se elevar novos equipamentos e estruturas fixas, a exemplo da construção e ampliação
da ETA Imunana-Laranjal, mas sem alterar a distribuição da rede como um todo, ou
seja, reequilibrar concretamente os serviços na área metropolitana. No caso do Jardim
Catarina, raramente os projetos costumavam prever a instalação de redes próprias para o
loteamento e suas localidades, assim a CEDAE acabava ou sofrendo com os gatilhos ou
a própria estatal, neste caso, organizada pelos seus departamentos regionais, construía
pequenos subsistemas e ramificações improvisadas nas grandes adutoras. Para a
moradora Suzane, “a própria CEDAE criou seus gatilhos na rede”.

Os gatilhos possuíam dois objetivos centrais. O primeiro, mais direto, era conseguir
captar água para o consumo das famílias que residiam no loteamento e que não tinha
acesso à rede geral ou que não podiam arcar com os custos de obra para conectar a casa
à adutora da CEDAE. O outro objetivo aparentava ter um cunho político: o gatilho era
usado como estratégia de alguns moradores e de lideranças locais como meio para
pressionar a estatal e os governos a canalizar mais recursos e serviços de saneamento
para o Jardim Catarina. Ao entrevistar e ouvir as histórias de moradores, lideranças
comunitárias e representantes de instituições locais, parece que a solução para o
problema da água do Jardim Catarina sempre recorreu à produção de gatilhos “oficiais”
e “não oficiais” no sistema geral.

Se você tem a água, que passa na sua rua e você não pode utilizar, é
complicado. E aí os moradores começaram a perfurar, a fazer ligações
clandestinas (...). Reconhecemos isso, e com essas perfurações, o que
aconteceu, a prefeitura se mobilizou a instalar uma rede para o bairro,

160
de 1985 a 1989. Foi feita por etapa, ela começou no loteamento Novo
até a Rua 41, que é a última rede que nós temos para o abastecimento
do Novo. Na parte do Velho foi até a Rua 17. Depois foi até a Rua 22,
no (Colégio Estadual) Trasilbo (João Paulo, membro do centro
comunitário, 45 anos. Destaque do autor).

Evidencia-se uma narrativa da água. Afinal, não há informações sistematizadas a


respeito desses subsistemas e redes secundárias. Na CEDAE, o único dado oficial
relativo ao sistema faz referência à ETA Laranjal e à presença da adutora que transporta
água de São Gonçalo a Niterói. No JC, essa “invisibilidade” da rede contrasta com o
crescente investimento público realizado no município e no sistema Imunana-Laranjal
nas últimas décadas. Da mesma forma, o acesso ao recurso água é uma prerrogativa de
localidades específicas, tornando o Pica-pau e o Conjunto da 40, por exemplo, invisíveis
para a lógica local do sistema de abastecimento.

A divisão entre Catarinas e entre subsistemas de água geraram ainda mais confusão a
respeito da capacidade de atendimento do sistema público de saneamento. Sendo o
serviço insuficiente para levar água a todos os moradores, o próprio Estado teve que
iniciar o movimento de manobra, ou seja, alternando os dias em que a companhia “abre”
as válvulas e irriga as redes secundárias então criadas, permitindo o atendimento parcial
a diferentes localidades. Pela fala do morador João Paulo, que atua na associação de
moradores, o sistema funciona dessa forma até hoje. Ele destaca o fato da presença da
ETA Imunana-Laranjal não ter resolvido o problema da escassez de água e detalha mais
um pouco como é a movimento de manobra no loteamento:

Eles (CEDAE) têm vários registros e válvulas nas tubulações por


dentro do bairro e vão controlando por área. Na Rua 09, Lamartine
Babo, tem um registro que abastece aquela parte alta de lá. Tem na
Rua 36, Mucuri, que controla aquela área do Novo, tem outro na
Itororó, tem na AV. Padre Vieira, que também controla aquela região.
Então, são vários registros entendeu.

Como o Velho é fácil de encharcar, são 12 horas para o Velho e 16


horas pro Novo. Mas hoje não chega a isso. Na parte Nova ela chega
na quinta feira de madrugada, 0h, e às 07 horas da manhã fecha. Ela
161
deve ficar umas 6h de água. Quem tem bomba, cisterna pega. Aí quem
pegou, pegou. No Velho, ela começa a cair à tarde, na quarta-feira até
a noite.

E no Velho fica assim, da (Rua) Ouro Fino pra cá e da (Rua) Nicolau


Tourquet, até a (Rua) 44. A (Rua) Lauro Sodré, que é asfaltada, tem
água. Mesmo assim, uma vez por semana, porque eles abrem uma vez
por semana... Eles fazem manobra de água. A manobra é o seguinte:
No início duravam 48 horas, um dia pro Novo e um dia pro Velho,
mas nem isso não é mais (Morador João Paulo, 45 anos. Destaque do
autor).

A complexidade do sistema é detalhada pelo morador. A narrativa apresenta um


emaranhado de linhas de água, uma sobreposição entre as redes secundárias da CEDAE.
Caminhos e traçados que se perdem entre lotes e quadras do Jardim Catarina. O que fica
claro é que o fato de ter ou não tubulações e dutos passando pela rua não garante que as
casas serão atendidas com o abastecimento de água. Da mesma forma, dependendo da
localidade onde se vive, nem o gatilho torna-se opção. No Pica-pau, ao contrário do
Catarina Velho, as características de solo e de legislação urbanística municipal impedem
que o poder público realize qualquer tipo de obra ou construa qualquer estrutura física
no local, onde vive-se ainda de poços artesianos improvisados.

No caso da manobra, a CEDAE libera a água parcialmente e, mesmo assim, apenas para
pontos e dutos específicos. Há uma distribuição desigual entre as localidades. O
Catarina Novo, por sua vez, sofre mais com o desabastecimento em relação ao Velho
porque a vazão de água que chega é menor e obriga o morador a ter que arcar com o
custo de instalação e manutenção de bombas para “puxar” a água da rede geral nos dias
de manobra, além de ter que arcar com caixas d’águas e cisternas com capacidade de
reservar um volume maior para o restante da semana.

Com a redução da água, os moradores e muitas casas começaram a


perfurar e a utilizar bombas para puxar. Começaram a perfurar a
(tubulação na Rua) Marcos da Costa, e a tubulação da Paulo VI e da
Itororó, e da Rua Turquesa. Porque elas não são ligadas entre si
também. Devido a isso os moradores começaram a furar.

162
A CEDAE, como contrapartida, o que fez? Onde está o registro de
retorno das águas ela fechou. Foi lá, um belo dia, abriu e cimentou
tudo. Ou seja, um terço da população do Catarina Novo não tem água.
Só tem água as partes do Velho, onde é asfaltado. No Novo vai até a
Rua Xavante, mesmo assim, na parte de rua que é asfaltada (Morador
João Paulo, 45 anos).

Pela fala, os moradores acabavam instalando gatilhos em linhas secundárias que a


CEDAE teve que criar para atender parcialmente o loteamento. No caso do Catarina
Velho, a proximidade com a estação garantia algum acesso à água, mesmo que oriunda
das pequenas ramificações da infraestrutura estatal. No caso das demais localidades
dificilmente o precário emaranhado de tubulações de pequena capacidade assegurava a
ampliação do serviço, mesmo sob o exercício de manobra. Quanto mais distante da
ETA, menor a quantidade de água, seja por conta da queda de vazão nos dutos, seja pelo
aumento do número de gatilhos e ramificações.

Esse quadro de desigualdade tem uma dimensão político-econômica mais ampla do que
simplesmente a quantificação do serviço pelos investimentos aplicados pelo Estado e
pela cobrança de tarifas por parte da CEDAE. O morador e os comerciantes são
obrigados - além de gastar seus recursos com bombas de pressão, cisternas, ou carros
pipas - a negociar com políticos locais, como Seu Moraes, formas de acesso à água pela
via dos gatilhos ou de apoio político.

163
Figura 4: O “Mapa da Água” do Jardim Catarina

Fonte: produção própria a partir de narrativas locais e de dados oficiais do Estado85.

A figura acima sintetiza as redes de água descritas tanto pelas narrativas como aquelas
dispostas pelos dados oficiais da CEDAE86. Na prática, a empresa estatal fornecia
informação apenas sobre a adutora Imunana-Laranjal, carecendo de detalhes a respeito
da localização exata das linhas secundárias. Da mesma forma, o serviço de manobra
também não é sistematizado, ficando a cargo da AMAJAC e dos próprios moradores a
descrição do atendimento. Até mesmo porque, de acordo com as entrevistas, nem
sempre a manobra era executada nos dias prometidos, com localidades sofrendo
frequentemente com semanas de desabastecimento.

O sistema de abastecimento é um complexo entre adutoras “visíveis”, reconhecidas


oficialmente pela CEDAE, e um conjunto de subsistemas formado por ramificações e

85
A imagem aérea utilizada na figura pertence ao arquivo do CEPERJ, e está em escala 1:2000, de 2015;
86
Os dados relativos à rede de abastecimento da CEDAE estão disponíveis para consulta no site do
Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (PSAM).
Disponível em: https://psam.maps.arcgis.com/.

164
gatilhos na linha principal que segue da ETA em direção a Niterói. Na figura é possível
identificar não apenas a ETA, mas a adutora da Rua Itororó, instalada em 1975 e que
levou à criação do primeiro gatilho de água no Jardim Catarina. Há ainda a área de
cobertura criada pela linha secundária no Catarina Velho, instalada nos anos 1980, que
coincidentemente ou não, segue até a rua onde se encontra a associação de moradores.
Na mesma linha notam-se as puxadas para o Colégio Trasilbo Filgueiras, na Rua 22.

Sem ter como definir uma data exata, observa-se a presença de mais três gatilhos,
alguns dos mais reconhecidos localmente: o gatilho da Rua Turquesa, que permitiu
estender a rede até o limite norte do loteamento e os Gatilhos da Rua Marcos da Costa e
da Avenida Paulo VI, que facilitaram o acesso à água nas localidades do Catarina Novo.
Esses dois últimos, se privilegiaram do aumento de cobertura da rede de água
promovido pelo PDBG, em 1996. O programa levou pela primeira vez infraestrutura à
área central do loteamento.

As redes secundárias e os gatilhos, não previstos pelo sistema oficial, são práticas
reconhecidas tanto pela estatal como pelos moradores. O exemplo disso é a instalação
de válvulas, conforme detalhou o membro da AMAJAC. Por meio desses equipamentos
é possível abrir ou cerrar o fluxo de água nas tubulações, definindo os pontos de
irrigação ou simplesmente cortando o abastecimento em períodos de aumento de
escassez.

No caso das localidades do Pica-pau e do Conjunto da 40, elas aparecem fora desse
sistema complexo, numa zona marginal. O mapa confirma que a proximidade com a
ETA é um fator essencial de acesso ao serviço de água. Pois, é a partir dela que se pode
utilizar-se de gatilhos para “puxar” água para ruas e quadras que não contam com o
atendimento da CEDAE.

Já no Pica-pau ou na 40 é preciso encontrar outras formas de regulação e de controle


territorial. A presença de organizações do tráfico ou a proximidade do hidrante da Rua
01 com o Pica-pau, onde os pipeiros enchem os caminhões, são alguns dos elementos
adicionais desse cenário controverso.

165
5.1 Água como fonte de poder político no Jardim Catarina

A prática do gatilho, a fragilidade do movimento de manobra e a descontinuidade da


cobertura de saneamento exigiam da CEDAE uma forma particular de fazer política no
Jardim Catarina. A legitimidade estatal no âmbito local dependia da presença, mesmo
que parcial, desses serviços. Não mais sob o discurso da oferta de meios básicos de
consumo para a reprodução da força de trabalho no contexto do capitalismo urbano
brasileiro apenas, mas para fazer valer a própria hegemonia do Estado nos territórios da
cidade. Nesse cenário complexo, a compreensão do problema da água obrigava a
própria estatal atuar de modo distinto da lógica tarifária, por exemplo, que costuma
reger sua atividade em outras áreas da RMRJ.

Na verdade, o Catarina não tem uma rede própria, não existe. Pelo
incrível que pareça, a (Estação) Imunana não tem distribuição de água
pra dentro do Catarina, teria que ter, mas não tem. Aí fica os pipeiros
superfaturando, 100 reais uma pipa d’água (...). Cada lugar tem um
preço. De acordo com a distância, existe um valor, ou de acordo com
o dono do caminhão. Tem uns que cobram 80 reais. Tem caminhão de
05 mil litros, de 10 mil litros. É um valor especulativo, não existe
tabela. Vai de acordo com o lugar, cliente, dono do caminhão
(Morador Paulo, 43 anos, centro comunitário. Destaque do autor).

Após a primeira ampliação da ETA, em 1975, a CEDAE instalou um hidrante na Rua


01, bem na entrada do loteamento Catarina Velho. O local, que era controlado pela
empresa, passou a atender principalmente os caminhões tanques, conhecidos como
carros pipas, pipas d’água ou pipeiros. Oficialmente, a companhia alegava que os
caminhões auxiliavam no atendimento provisório do município de São Gonçalo, nos
bairros que ainda não contavam com abastecimento pleno de água ou em momentos de
interrupção do serviço.

166
Imagem 18: reportagem sobre o problema do abastecimento de água em São Gonçalo -
10/05/1988

Fonte: O Fluminense

A matéria de O Fluminense destaca o desabastecimento enfrentado pelo município de


São Gonçalo no final dos anos 1980 e traz uma crítica a CEDAE por ter realizado
inúmeros investimentos na cidade, porém sem ter alcançado resultados efetivos. Há
menção aos pipeiros, que diante do problema da falta d’água não puderam nem mesmo
abastecer os caminhões no hidrante da Rua 01. Devido à baixa vazão nas adutoras,
conforme cita a notícia, às vezes nem a CEDAE nem os carros pipas conseguiam
garantir o atendimento aos moradores, agravando ainda mais o problema de escassez de
água. De qualquer forma, a partir daí há indícios do surgimento de um grande negócio.

Na verdade, não deveria se cobrar a água. Porque a CEDAE não cobra


pela água distribuída para os pipeiros. Ela disponibiliza o
abastecimento do caminhão. Há muitos anos, perto dos prédios
(Bairro de Alcântara), ela tinha uma distribuição na Adelaide Lima
(Rua 01) que ficava vazando água dia e noite. Aí com a reivindicação
e cobrança dos moradores, colocaram ali uns hidrantes.

E a única base que tem pra abastecer em São Gonçalo (...) é tudo ali.
O cara para ali, abastece (o caminhão) e aí depois vêm eles e cobram
pela pipa d’água. Um lote com uma casa, 04 pessoas, o que é comum,

167
um caminhão de 10 mil litros dura no máximo uns 15 dias. Então isso
pra nós não é valioso. O que nós queremos? A CEDAE alega que os
moradores não pagam, mas os moradores não pagam porque não tem.
Devido a essas obras que ocorreram no interior do bairro, o
abastecimento de água ficou deficiente. Por quê? Para ajudar os
pipeiros? (Morador João Paulo)

A “economia da água” ganha uma nova feição. No começo dos anos 1980 um gerente
da CEDAE, que trabalhava em São Gonçalo, era o responsável em controlar o
atendimento aos carros-pipas. Alguns dos entrevistados afirmaram que o funcionário
público, com o passar do tempo, começou a faciltar a distribuição de água aos pipeiros,
tendo como retorno uma percentual em cima do lucro do comércio de água dos pipeiros.
Ou ainda, que o gerente da estatal criou sua própria frota de caminhões se beneficiando
de sua posição dentro do departamento regional em São Gonçalo; outros afirmaram que,
na verdade, o sujeito buscava apoio político por ter pretenções eleitorais.

De qualquer forma, o certo é que o personagem de fato ganhou espaço político dentro
do Jardim Catarina e do município. Além da água, atuava também em outros segmentos
do setor saneamento. Costumava conseguir junto à prefeitura, por exemplo, tratores e
retroescavadeiras para dragar os rios e as valas que em dias de chuva inundavam o
loteamento. Sempre após grandes enchentes, aparecia na localidade do Pipa-pau
dragando o Rio Alcântara e apoaindo no recolhimento do lixo nas ruas. Com o passar
do tempo foi ficando conhecido. Para alguns, uma pessoa solidária, para outros, um
político que se promovia a partir da desgraça e carência dos moradores.

Na sua primeira candidatura a vereador de São Gonçalo, o “Betinho da Água”87,


adjetivo adquirido no cotidiano político e que logo virou slogan de campanha, passou a
financiar por contra própria construção de cisternas, caixas d’águas e até mesmo poços
artesianos dentro do loteamento. Em alguns momentos chegou a entrar em conflito com
outras lideranças e instituições locais, como a própria associação de moradores do
Jardim Catarina, acusado de atuar de forma assistencialista. Em outros momentos,
atuando como mediador, fazia-se de porta voz da população local junto ao atendimento
da CEDAE em São Gonçalo, onde ele próprio trabalhava e era gestor.

87
Como meio para manter em sigilo a identidade do político, toda a referência no texto a ele utilizará o
nome Betinho da Água como nome.

168
Nesse cenário contraditório, a cada investimento em saneamento por parte da CEDAE,
mais incompleto parecia se transformar o abastecimento de água no Jardim Catarina; e
quanto maior a presença de carros pipas no hidrante da Rua 01, mais forte ficava a
influência e a importância política do Betinho da Água em São Gonçalo. A presença dos
pipeiros passou a ser um indicador de existência de um novo tipo de mercado bastante
alinhado com a organização espacial e com a característica da infraestrutura de
saneamento de São Gonçalo.

Falta água para moradores e sobra para os pipeiros. Não tem água no
Jardim Catarina principalmente nas ruas que ficam próximas a pipa
d’água. Ali nunca falta água, os caminhões fazem filas enormes para
venderem até mesmo pra quem mora ali perto. Isso é um absurdo,
afinal nós pagamos essa água. No natal e ano novo, muitos moradores
tiveram que comprar água, pois a Cedae deixou de abastecer nesses
períodos (Morador João, 63 anos).

O Betinho da Água e os pipeiros passaram a controlar parte do comércio de água não


apenas no Jardim Catarina, mas no distrito de Monjolos, formado quase que
integralmente por loteamentos com condições semelhantes em termos de infraestrutura
urbana. No final dos anos 1980 e início dos 1990, com o crescimento da população,
praticamente se tornou impossível mensurar o tamanho e o peso desse negócio no
município. A influência política dentro na cidade do Betinho da Água fez com que ele
passasse a frequentar palanques de prefeitos e candidatos a deputado. Pelo menos há
três registros de candidaturas suas a vereador no sítio do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE). A propaganda e os slogans destacavam seus feitos e ações nos bairros de São
Gonçalo. Uma das matérias, cujo título é “Água Para Todos”, segue com as seguintes
declarações:

Milhares de pessoas, que sofriam com os problemas da falta d’água


nos bairros do Jardim Catarina Velho, Novo, na comunidade do Pica-
Pau e Ipuca, Engenho Pequeno, Galo Branco, Trindade, Jardim Boa
Esperança, Jardim Veneza, Jardim Nazaré, no Boaçú, bairro Eliane, na

169
comunidade São Sebastião e Novo México, foram beneficiados com a
instalação de bombas d’água e trabalhos voltados para o saneamento e
o fornecimento de água, promovidos pelo Betinho da Água 88.

A grande maioria dos loteamentos e dos bairros citados localiza-se em Monjolos. A


passagem menciona ainda a “instalação de bombas d’águas”. Isso significa na prática
fornecer a uma ou a mais famílias equipamento para puxar a água da rede geral de água
ou até mesmo dos gatilhos na rede da CEDAE. Nesse caso, a atuação do político
reconhecia a condição precária do serviço, porém, encontrando alternativas ao serviço
estatal de como solucionar o problema do abastecimento local. Mais do que parecer uma
ação que confunde o papel de funcionário público e do político interessado no retorno
eleitoral, está-se diante da prática de um agente estatal que transita entre os mais
diversos campos de poder que se cruzam no cenário político do Jardim Catarina e da
cidade.

Em outras propagandas do Betinho da Água, uma declaração relacionada à última


candidatura a vereador de São Gonçalo, em 2008, indica o apoio de políticos
importantes do estado do Rio de Janeiro e do município de Niterói:

O candidato que atua há anos no município promovendo ações de


infraestrutura, visando a qualidade de vida das pessoas, conta para as
eleições de outubro de 2008, com o apoio do Deputado Estadual Paulo
Melo e da candidata à Prefeitura de São Gonçalo, Graça Matos.

O deputado Paulo Melo é, hoje, um importante nome do PMDB89 - partido que governa
o estado do Rio de Janeiro desde 1998 –, inclusive presidiu a Assembleia Legislativa do
Rio de Janeiro (ALERJ) nos anos 2000. A base eleitoral de apoio de Paulo Melo está
fora da capital carioca, com maior foco na região metropolitana e em alguns municípios
do interior do estado. Já a candidata Graça Matos, além de ter sido deputada estadual

88
Matéria retirada do site oficial do político na internet, que mesmo tendo disputado sua última eleição
em 2012, ainda se mantém no ar;
89
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).

170
por dois mandatos por São Gonçalo, é casada com Edson Ezequiel Matos, prefeito do
município por duas gestões (1989/1992 e 2000/2004).

Os próximos passos, ainda no quesito infraestrutura, estão voltados


agora para uma parceria com o Governo do Estado a fim de garantir a
normalização do abastecimento de água nos bairros e a retomada das
obras do Projeto Viva São Gonçalo.

O Projeto Viva São Gonçalo, criado nos anos 1990 durante o governador Marcelo
Alencar, previa uma reestruturação das redes de água e esgoto em toda RMRJ e
integrava umas das linhas de ação do PDBG, executado pelo Estado e que contava com
o financiamento internacional do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do
Governo Japonês. Muitas ações do programa foram realizadas em São Gonçalo, porém,
outras mais estruturantes não saíram do papel. O candidato prometeu retomá-las.

Em 2006, as obras de dragagem no Rio Alcântara, que corta a Baixada


do Jardim Catarina (Pica-pau), ficaram por conta do candidato O
Betinho da Água. Atendendo aos pedidos de moradores do entorno,
que constantemente sofriam com as cheias dos dias de chuva, além
dos demais transtornos como o matagal e o mau cheiro, o candidato
mobilizou uma equipe de mais de dez homens e maquinários para dar
início às atividades no local com o apoio do deputado Paulo Melo e da
SERLA90 (antiga superintendência da administração responsável
pela dragagem de rios e lagoas) (Destaques do autor).

O Pica-pau tornou-se peça chave no discurso e na atuação do político por sua


característica ambiental e ocupação justamente sobre áreas historicamente alagáveis,
submetidas ao movimento de marés das bacias hidrográficas da região. Além disso, os
rios e valas assoreados que cortam a localidade potencializa o risco de ocorrência de
eventos dramáticos como inundações e alagamentos de ruas e casas. A dragagem
oferecida pelo candidato na prática é apenas um paliativo numa região onde não há
90
Superintendência Estadual de Rios e Lagoas – SERLA.

171
esgotamento sanitário, porém, é uma das únicas medidas aparentemente possíveis de
serem realizadas frente às impossibilidades de maiores obras de saneamento.

Parece que a relação entre o Jardim Catarina, o município e o Estado transita


permanentemente por uma zona cinzenta. O prefeito Ezequiel, em seu primeiro mandato
assume como bandeira de governo enfrentar o problema do saneamento em São
Gonçalo. Ao mesmo tempo foi apoiado na campanha pelo Betinho da Água, que por sua
vez, mesmo sendo funcionário da CEDAE, atuava no comércio de carros pipas no
município como ganho político e realizava ações assistencialistas nas margens das
políticas de saneamento.

Essas contradições ganham concretude e clareza quando se observa os processos


urbanos além da lógica do planejamento estatal e de suas políticas de planificação e,
também, quando se afasta a ideia de que a espacialização de grupos e das desigualdades
sociais na cidade responde exclusivamente às racionalidades do mercado e da
especulação imobiliária. No caso do Jardim Catarina, tanto o Betinho da Água como o
Seu Moraes são personagens reais e tornaram-se figuras chaves para o movimento não
apenas de ocupação do loteamento, mas de formação do próprio espaço urbano de São
Gonçalo.

Essa condição espacial e política que submete recursos e serviços urbanos sob o
controle territorial de grupos e agentes econômicos modela um ambiente onde é
impossível traçar linhas divisórias do que poderia ser considerado como formal ou
informal, por exemplo. A política nesse caso é o espaço da prática social, cuja dimensão
ganha objetividade nos territórios e os atores buscam se posicionar na cidade por meio
de relações e acordos cotidianos.

A política no Jardim Catarina resulta desse conjunto de práticas e atividades, todas


simultâneas e sobrepostas, que articulam as experiências históricas dos moradores e as
transformações urbanas geradas pelo processo de produção do espaço e pelas relações
de troca e de disputas no conjunto da reprodução capitalista urbana. Como já afirmara
Carlos Nelson dos Santos em sua análise sobre a lógica capitalista de produção de
loteamentos nas regiões metropolitanas e suas implicações sobre a sociedade como um
todo:

172
O sistema capitalista afinal é abrangente e dominante e se reproduz
em todas as instâncias. Negar que os pobres sejam capazes de
entendê-lo e manipulá-lo à sua maneira e de que tome seus modelos e
virem a mesa a seu favor até onde podem é que seria reacionário
(1980, p. 38).

A fala de Carlos Nelson interessa porque desconstrói dois pontos cruciais nas
interpretações, até mesmo sociológicas sobre os problemas urbanos e de infraestrutura.
Primeiro, as análises são em geral centradas na ação (presença ou omissão) do Estado
em territórios de favelas e loteamentos nas periferias. Na verdade, o Estado de certa
forma sempre se fez presente, ou flexionando a legislação de uso do solo como
incentivo ao parcelamento de terras para incorporação do mercado urbano, ou,
contraditoriamente, ofertando de um lado um serviço parcial de saneamento e, a partir
de seus agentes, fornecendo alternativas que a princípio entram em choque com as
regulações e normativas oficiais regidas por técnica e recursos públicos.

No Jardim Catarina parece ter ocorrido de tudo um pouco. Espaços de atuação política
foram criados e recriados cotidianamente em compasso com mudanças de conjunturas
mais amplas. Moradores e lideranças locais parecem compreender esses processos. E
somente a análise sobre a ação desses atores aqui mencionados e as relações
estabelecidas no cotidiano permite lançar luz sobre esse conjunto de contradições
urbanas que são produzidas no âmbito das negociações por serviços urbanos essenciais
à reprodução social do morador da cidade.

5.2 A AMAJAC e a eterna pauta de reivindicações

De acordo com Valla apud Moisés (1998) o termo “políticas públicas” se refere à
participação do Estado na organização da infraestrutura urbana necessária à
concentração de atividades produtivas nas metrópoles brasileiras. A partir dessa noção,
surgem algumas das contradições, tais como a necessidade de intervenção estatal como
meio para garantir a produção capitalista e, ao mesmo tempo, ter que atender a demanda
por serviços de infraestrutura e de saneamento à população. Para Victor Valla “a pouca
capacidade ou interesse do capital de investir naquilo que julgava oferecer pouco lucro

173
imediato”91 gerou um "Estado como provedor de toda a população (...) e assim, [capaz
de] resolver a problemática urbana, que parecia crescer sempre mais" (MOISÉS, 1985,
p18).

De fato, desde 1930, o Estado se tornou o principal, praticamente o único, financiador


das políticas de infraestrutura urbana no país. Todavia, essas políticas seguiram ao
longo da história direções e metas diferentes. Como Marques bem demonstrou até os
anos 1970 o governo federal foi único agente a investir na urbanização e na oferta de
serviços urbanos nas grandes cidades. Nos estados, a União garantia inclusive o
financiamento de políticas urbanas locais, com a forte centralização nos projetos e
fundos do BNH.

A partir dos meados da década de 1970, o governo fluminense, porém, ganha


notoriedade na oferta do setor de saneamento com a criação da CEDAE, com a
reformulação da estrutura administrativa e com a ampliação dos investimentos e
cobertura de atendimento (MARQUES, 1998). O Rio de Janeiro adota uma nova
política tarifária, capaz de capitalizar a máquina pública e investir em mais serviços pela
RMRJ. Todavia, em São Gonçalo, o padrão de intervenção pública em saneamento se
caracterizou pela,

presença de outra linha de ação, com a construção de inúmeros


sistemas locais de menor porte. Esses sistemas estavam por vezes até
mesmo desconectados dos grandes sistemas, e em geral apresentavam
um funcionamento pior que os implantados no restante da cidade 92.

É o poder posicional, ou seja, a localização do indivíduo na rede formada por empresas


da área de engenharia e pelo corpo técnico e dirigente da CEDAE que justificaria a
maior parte de contratações para ofertas de serviços por parte da estatal. As relações
entre agentes do Estado e indivíduos do setor privado construídas ao longo dos anos
tornaram-se as peças centrais para compreender, por exemplo, as vitórias das empresas
nas licitações e editais para obras públicas no estado entre 1970 e 1990. “A questão do
poder posicional, quando considerado em uma rede que incluiu tantos elementos de

91
Ibid., p. 8;
92
Ibid., p.111;

174
dentro do Estado, quanto do setor privado, remete à questão da permeabilidade do
Estado93”.

Marques vai afirmar que na prática são as posições de cada indivíduo ou empresa no
campo político do saneamento que determinavam as decisões em torno das intervenções
e obras contratadas para a região metropolitana. Nesse caso, a noção de isonomia
presente no arcabouço legal de contratação pública aparece mais como “uma ficção do
mundo jurídico”. Se o Estado é o provedor, então essa providência chega aos territórios
pelas mãos de atores e agentes econômicos específicos, capazes de acionar estruturas
relacionais formadas no interior do ambiente político estatal e de mercado como no
âmbito territorial, por intermédio das negociações junto a moradores e grupos locais de
poder.

Se a nível estatal há um setor altamente permeável e influenciado por relações pessoais


envolvendo pessoas e empresas ligadas ao mundo das engenharias e das obras públicas,
nos territórios da cidade essa constituição em rede ganha ainda mais fluidez na
espacialização dos serviços de água e na presença de fatores de controle territorial sobre
eles. O aumento da presença da CEDAE no cotidiano do Jardim Catarina se fez por
intermédio de figuras e práticas heterogêneas: Seu Moraes e os gatilhos; o Betinho da
Água e a política local em São Gonçalo; as ligações secundárias e precárias da CEDAE
e os pipeiros.

O saneamento em geral, e a água em particular, aproximou diferentes atores e


instituições que buscavam garantir o máximo de retorno possível, seja social, através do
próprio consumo; seja financeiro, a exemplo dos pipeiros e da própria CEDAE; seja
político, por meio da atuação diária de lideranças comunitárias, agentes públicos e
grupos políticos. Os momentos de crise, inclusive, pareceram aproximar ainda mais
esses diferentes personagens do que criar cisões e conflitos políticos.

No final dos anos 1980 há um agravamento da escassez de água em São Gonçalo. O


desabastecimento se tornou estrutural no município, particularmente nos bairros do
distrito de Monjolos e nas mediações da ETA Imunana-Laranjal. A localidade do Pica-
pau, nas margens do Rio Alcântara, ganhava a nomeclatura “favela” nas matérias de
jornal da época, onde destacavam a condição de pobreza e de radical falta de
esgotamento e água tratada. De fato, o Pica-pau, além de sofrer com inundações e

93
Ibid., p. 207.

175
enchentes a cada chuva forte, não contava com nenhum tipo de serviço de saneamento
por estar localizado numa área de aterro precário, solo arenoso e ter a ocupação proibida
pelos órgãos urbanos de fiscalização muncipal.

Imagem 19: primeira morte por cólera no estado do Rio de Janeiro - epidemia da década de
1990

Fonte: Jornal do Brasil (10/03/1993)

A conjunção desses fatores levou ao registro da primeira morte por cólera no estado do
Rio de Janeiro no ano de 1993. Isso um ano após ser anunciado uma série de obras e
investimentos que seriam levados pelo governo estadual ao município de São Gonçalo.
No O Fluminense, de outrubro de 1992, a matéria afirmava que o “ O maior loteamento
da América Latina” receberia obras de infraestrutura oriundas de um empréstimo do
Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID no valor de dois trilhoes de cruzeiros
(aproxidamente R$1,7 bilhões de reais).

Inaugura-se no cenário político da cidade a chegada de agências internacionais e de


novos agentes nacionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e as
grandes empreiteiras de construção civil, até então pouco atuando em obras de
urbanização. O Plano de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), financiado pelo
BID, resultava de uma nova visão estratégica do Estado diante do problema de
saneamento na RMRJ. Com o empréstimo, a CEDAE teria como manter com recursos
próprios a qualidade do serviço e a boa cobertura de água e esgoto nas áreas centrais do
Rio de Janeiro, sem precisar comprometer sua capitalização direcionando investimentos

176
para a periferia metropolitana, que naquele momento vivia um quadro de crise hídrica e
sanitária.

O apelo social e o bom negócio representando pelo sistema de abastecimento de água


atraíram as agencias internacionais para esse novo cenário político. Parte dos embates
entre moradores e instituições locais alcançou outra escala, agora junto a empresas
executoras de obras contratadas. A questão do saneamento se torna tão forte na agenda
pública do estado que em 1994, o governador Marcelo Alencar, ainda em campanha,
anunciava como proposta de governo o “Plano 20 anos em 4”, onde previa-se uma série
de intervenções urbanas em toda a região metropolitana do Rio de Janeiro. O Jardim
Catarina registra o fato destacando a importância e centralidade do saneamento no
debate público estadual.

Imagem 20: anuncio de obras no início da década de 1990

Fonte: Jornal do Brasil (27/09/1994)

No entanto, as obras voltavam-se sobre as áreas tidas já como consolidadas dentro do


Jardim Catarina. Após a vitoria no pleito, o governo Marcelo Alencar realizou mais uma
ampliação da ETA Imunana-Laranjal, a quarta desde sua inauguração, com a
implantação de alguns quilometros de redes de água e esgoto no Jardim Catarina.

177
Aproximadamente 100 milhões de reais foram investidos no equipamento da CEDAE e
na pavimentação de algumas ruas. Mesmo que o discurso da carência e da violência,
atrelados ao Pica-pau e ao Conjunto da 40 tenha sido parte do argumento para justificar
novos investimentos em infraestrutura no JC, essas localidades jamais receberam
qualquer tipo de melhorias, reforçando a desigualdade entre áreas atendidas e áreas não
atendidas dentro do próprio loteamento.

Mariana Cavalcanti, em seus estudos sobre políticas de infraestrutura urbana nas favelas
do Rio de Janeiro, identificou a paradoxal relação que alimenta as políticas urbanas
voltadas para os espaços de favelas onde a associação entre violência e estigma, que
“acabam por criar as condições para a melhoria material e também para o
reconhecimento político de seus moradores”, por outro lado reproduzem e reforçam os
mesmos estereótipos que diz combater. “(...) Sustentam as relações de poder que
reforçam a ideia de alteridade cultural perante a cidade dita ‘formal’” (2013, p. 194).

O processo de consolidação das favelas é experimentado como a


acomodação sempre precária de relações de poder e lógicas territoriais
muitas vezes contraditórias, produtoras de formas de exercício de
soberania específicas sobre certos lugares do espaço urbano (p.194).

Pode-se afirmar que a ETA Imunana-Laranjal e a rede de abastecimento do JC


sintetizam esse conjunto de contradições vinculadas à produção do espaço no
loteamento e à dinâmica urbana e política da RMRJ. Assim como em outras partes da
cidade, as desigualdades também se reproduzem territorialmente no Jardim Catarina,
principalmente na distribuição do abastecimento de água.

Se o Catarina Velho ganhou pavimentação de ruas e melhorias na rede geral de água, o


Pica-pau continuou sofrendo com a falta d’água, com epidemias e alagamentos após as
chuvas. Membros da AMAJAC disseram em entrevista que o PDBG representou muitos
ganhos para o “bairro”, porém, sem ter realizado a totalidade do que estava previsto nos
projetos e sem cobrir todas os Catarinas.

A própria AMAJAC, que passou a ter como bandeira de luta o saneamento básico, teve
que adotar estratégias distintas daquelas aplicadas inicialmente por seus fundadores, a

178
exemplo do Seu Moraes, que financiava gatilhos na rede de água como prática de
acesso a serviços básicos e incentivando a ocupação de áreas marginais como meio de
pressão sobre o Estado. Para os integrantes da associação era preciso requalificar o
discurso e as formas de reivindicação. Entendiam que os problemas continuavam os
mesmos, mas que era preciso alcançar novos espaços de luta, desenvolver projetos e
tentar debatê-los com agentes do setor público de saneamento.

Nesse contexto, surge o nome de outra importante liderança do Jardim Catarina, Seu
João. Também fundador da AMAJAC, ele recordava em entrevista que o trabalho
comunitário no loteamento só começou a ser de fato organizado na época do primeiro
governo Leonel Brizola (entre 1983 a 1987). Afirmou que, em conversa com outras
lideranças, entenderam ser necessário estruturar uma agenda política única para todo o
loteamento. Algo que pudesse ser sistematizado e que fosse levado sempre às mesas de
negociação com o Estado. “Era preciso uma pauta de reivindicação”, afirmou ele.

É preciso lembrar que os anos 1980 trazem a abertura política e o ressurgimento dos
movimentos sociais urbanos após anos de regime militar. Curiosamente, parte dos
estudos sociológicos (GONH, 2004; 2008) atribuíram à mobilização desses movimentos
o início das melhorias nas condições de vida da população e reivindicações por serviços
de saneamento nas zonas urbanas e metropolitanas.

Na Baixada Fluminense, por exemplo, há inúmeros casos de criação de frentes


populares e movimentos sociais que se organizaram em torno da política de saneamento
e pelo direito de acesso ao serviço. Logo nos primeiros anos da década, diversas
associações políticas se unificaram na luta pela água na Baixada, sendo o MAB 94, em
Nova Iguaçu, e o MUB95, em Duque de Caxias, exemplos representativos.

Contudo, se levados em conta os contratos de obras e o total de investimentos realizados


em saneamento na RMRJ, entre 1975 e 1982, ou seja, anos que precederam a
redemocratização do país, a periferia metropolitana do Rio de Janeiro teria recebido
mais recursos em infraestrutura do que as áreas ricas da capital (MARQUES, 2000). E,
justamente entre 1982 e 1986, tempos de efervescência política e de ressurgimento do
sistema pluripartidário, há uma inversão, ou seja, a CEDAE redireciona seus

94
Federação de Associações de Bairro;
95
Federação Municipal de Associações de Moradores.

179
investimentos às áreas centrais do Rio de Janeiro e, principalmente, à expansão da zona
oeste carioca com o Projeto Barra da Tijuca96.

O que se quer dizer é que, na esfera estadual parte da RMRJ já havia sido incorporada
ao sistema de saneamento público como estratégia da própria CEDAE, antes mesmo da
democratização, e que no âmbito local, os departamentos regionais por intermédio de
seus agentes atuavam junto aos atores locais na intermediação das demandas por água.

Além disso, vale lembrar que a conjuntura de crise nacional do setor de infraestrutura
urbana, que inclusive culminou na extinção do BNH, em 1986, fez com que as
companhias estaduais passassem a focar na própria política tarifária, o que logicamente
acabou levando à priorização de áreas e de projetos, cuja valorização mercadológica dos
bairros centrais permitiria maiores possibilidades de arrecadação e geração de capitais
por parte das empresas estatais.

Seu João sabia disso. E sabia também que na virada dos anos 1980 para os 1990, com a
chegada de novos agentes nacionais e internacionais, era preciso realizar uma
reorganização das reivindicações localmente. Durante sua entrevista, retirou de uma
pasta um antigo documento da AMAJAC que trazia uma ata que sintetizava as
discussões do 1º Seminário Urbano do Jardim Catarina, realizado pela associação de
moradores em 30 de outubro de 1988, no mesmo mês da promulgação da Constituição
Federal de 1988.

A liderança enfatizou que este foi um importante ato político em São Gonçalo. O
primeiro com aquelas características no loteamento. “A constituição trouxe direitos
fundamentais e falava que todo o poder emana do povo (...), precisávamos mostrar que
sabíamos disso”. Participaram do seminário pesquisadores de universidades públicas,
associações de bairros da região, representantes de órgãos públicos, concessionárias,
ongs, entre outros.

Lendo o documento há uma variedade de experiências. Há o pequeno agricultor


remanescente, que tentava sobreviver diante da expansão dos perímetros urbanos do
município; há a professora que pedia por melhores condições de trabalho na única
escola do Catarina Novo; há os especialistas e acadêmicos que acreditavam que o
Jardim Catarina precisava de um plano urbanístico próprio devido suas dimensões

96
MARQUES, 1998.

180
geográficas e demográficas; há o Seu Moraes e o Seu João que conheciam o campo de
disputa política em São Gonçalo como poucos, mas perceberam que era preciso alterar
as estratégias da luta cotidiana, adaptando-se ao novo cenário que se apresentava a
frente.

Lendo os relatos registrados no documento nota-se um condensado de pontos que


praticamente se resumem a busca por acesso aos serviços urbanos. Na ata estão
presentes alertas para os impactos gerados pelas chuvas e inundações, a eterna
dificuldade pela falta d’água e a total falta de redes de esgoto. As localidades “mais
carentes e desassistidas” davam dramaticidade final ao documento, servindo de base
discursiva para a necessidade de priorização da pauta apresentada. De acordo com Seu
João, a listagem de pautas foi entregue em mãos a vários secretários de governo do
Estado e da prefeitura:

1 - Construção da escola na área denominada Ipuca, em área que o


Prefeito comprometeu-se com a comunidade que desapropriaria (...);

13 - Concessão de linha de ônibus circular no bairro indo a Niterói-


São Francisco, com a finalidade de amenizar o sofrimento da classe
trabalhadora que mora no Jardim Catarina e nos bairros
circunvizinhos, que tem que pagar pelo menos duas passagens para
chegar ao trabalho quando não pode pagar nenhuma (...);

23 – Uma galeria central para drenagem das águas pluviais, esgoto e


também eliminar valas negras;

24 – Uma galeria alternativa para drenagem de água pluviais e esgoto


da área onde converge as águas vindo do alto do Laranjal, que por
falta de acesso, invadem residências com danos materiais e pessoais;
agravado perla galeria que a CEDAE mandou construir sob protesto
da comunidade através de duas comissões na gestão de Chagas Freitas
(...);

34 – CEHAB – Saneamento das habitações comunitárias na beira-mar


(Pica-pau), no conjunto da CEHAB e estudos para solucionar o
problema grave... (Ata AMAJAC, 30/08/1988).

181
Alguns desses itens acima envolvem mais do que serviços em saneamento, como a
construção de escola e implantação de linhas de ônibus. Mas grande parte das 47
reivindicações está direcionada ao setor público de infraestrutura e, mais do que isso,
entre as instituições públicas citadas nominalmente na ata como interlocutoras estão os
nomes da CEDAE (saneamento), da COHAB (habitação) e do Departamento de
Estradas e Rodagens do Rio de Janeiro – DER-RJ (transportes e rodovias).

Seu João destaca que a estrutura administrativa do Estado era confusa e contava com
uma variedade de órgãos e instituições. Por isso, foi preciso criar esse formato de
atuação “mais técnico”, como ele mesmo diz. Da mesma forma, a política envolvia um
conjunto de instituições que nem sempre estavam alinhadas, tais como a prefeitura, o
governo estadual e a União.

Uma vez eu fui na secretaria de obras da prefeitura e o engenheiro me


disse que no Catarina, dos 25 mil lotes só 23 mil são ocupados e tem
muitos terrenos baldios. Só que a gente faz uma estimativa, né (...). Só
que em cada lote tem muitas famílias, né. Então é só contar, 23 mil
lotes por no mínimo 2 famílias (...). É muita gente. É uma cidade
dentro de outra. Isso o engenheiro não sabe contar (Seu João, morador
do Catarina Velho).

As dimensões ganham outras proporcionalidades quando tratadas pela ótica local.


Muitas vezes elas se perdem nas burocracias estatais e não são levadas em conta nas
intervenções e obras de infraestrutura. Seu João lembra ainda que mesmo em obras da
CEDAE, as informações e os cadastros das famílias e dos domicílios eram realizados
geralmente pelos municípios, o que levava a um desconhecimento por parte da estatal
sobre a demanda real sobre a qual deveria agir. “Eles nem sabiam que temos 150 ruas”.
Por isso crê na importância de uma pauta permanente de reivindicações para demarcar
bem as prioridades e os pontos de convergência entre os atores locais.

182
Imagem 21: ata do 1º Seminário Urbano do Jardim Catarina, 1988

Fonte: AMAJAC

A ata representava um instrumento de memória dentro do campo de negociações


políticas, que num ambiente de fortes disputas por recursos urbanos tornava-se um
instrumento chave, reforçado cotidianamente pelas ações da associação e dos demais
grupos locais. Seu João lembra, ainda, que outra estratégia posta em movimento pela a
AMAJAC foi a realização de eventos e reuniões locais em paralelo ao cronograma de
obras previstas para o JC. Dessa forma, mantinha-se uma espécie de acompanhamento
da execução dos programas de governo e permanente contato com as empresas
executoras dos projetos.

Casos similares de monitoramento popular relativo às políticas de saneamento já foram


estudados no Rio de Janeiro. A experiência do CEPEL97, na região da Leopoldina
carioca, com o apoio técnico dos pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública,
especialmente do Departamento de Endemias Samuel Pessoa, visou mapear o “processo
de mobilização popular ocorrida na região, a partir da emergência da epidemia de
dengue que atingiu o município e a região entre os anos de 1986 e 1991” (OLIVEIRA;
VALLA, 2001, p.78).

97
Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina.

183
Abria-se naquele momento um canal de diálogo entre a visão técnica de profissionais da
área de saúde e a experiência dos moradores de favelas, principalmente, diante da falta
de água e do aumento do número de casos de dengue. A análise dos problemas de saúde
vinculava-se às condições de vida da população, porém considerando eventos
particulares (ex: epidemia de dengue) como fenômenos dinâmicos, pensados
historicamente a partir das lutas dos habitantes da cidade. Ao considerar as experiências
de vida, os pesquisadores do CEPEL não buscavam considerar apenas as formas de
apropriação por parte dos moradores de favela da realidade de onde viviam, mas as
possibilidades de ação sobre ela98.

Apesar de inseridos em determinadas condições de vida que


conformam seu campo de ação, os moradores das comunidades
pobres não respondem reativamente a elas, mas atravessados por sua
experiência, que implica uma determinada forma de apropriação da
realidade e as possibilidades de ação sobre ela (CUNHA, 2000).

As experiências se situam no movimento de produção do espaço urbano, espaço esse


atado à realidade social. O espaço produzido (LEFEBVRE, 2000) que resulta das
experiências como mediações concretas entre grupos sociais e as instituições que
percorrer as diferentes escalas territoriais no processo produtivo da sociedade. Aquilo
que Thompson (1987) afirmava estar atrelado não apenas ao campo da cultura, mas
também como constituintes da história social.

Seu João lembra que a criação do Fórum Permanente do Jardim Catarina, em 1990, uma
espécie de câmara territorial permanente de discussão, envolvia associações de
moradores de outros bairros, movimentos sociais e grupos comunitários que buscavam
caminhar mais próximo das políticas estatais. A partir do cronograma de obras do
Estado para o JC, seria possível rever e traçar estratégias permanentemente para garantir
algum tipo de contrapartida para as localidades do Jardim Catarina, mesmo que pontuais
e limitadas.

98
Ibid., p.80.

184
Esse Fórum surgiu através do programa de infraestrutura que previa a
execução de obras de saneamento no bairro. Tinha drenagem dos
valões do Jardim Catarina, valão do Precioso e o valão da CEDAE,
bem como a pavimentação de ruas do bairro. [...] A previsão era de
seis meses de obra e eles diziam que iam beneficiar 2.000 famílias
(Seu João, morador do Catarina Velho).

A ação da AMAJAC passava a caminhar lado a lado com os programas de saneamento


executados pela CEDAE em São Gonçalo, numa dinâmica entre demanda/atendimento.
Se escolas, postos de saúde, comércio, iluminação pública, pontos de ônibus e
pavimentação de ruas do bairro resultam de demandas atendidas, não se pode dizer que
estas cobrem todas as localidades do JC. O reconhecimento dos limites da ação
posiciona os grupos locais na cena política de São Gonçalo, que entendem que não há
como garantir serviços públicos para todo o loteamento e para todos os moradores. Há
um cálculo a ser feito. A fala do presidente da AMAJAC deixa isso claro quando ele
ressalta que a associação não tem como atender aos problemas de todas as localidades
do Jardim Catarina. Após a chuva de 2010, que alagou diversos pontos do loteamento,
entre elas o Pica-pau, a liderança comunitária destaca que:

Todo o Pica-pau e Ipuca ficou debaixo d’água. Ninguém apareceu pra


ajudar. A gente da AMAJAC até ligou para os bombeiros, mas eles
disseram não ter gente (...). A cena era forte, as pessoas perderam
tudo. Se não fosse pela solidariedade dos moradores, não sei como
teria sido (...). Falta a eles uma associação. A gente tenta ajudar, mas
eles deveriam ter alguém pra reivindicar por eles. Não dá pra gente
atender todo mundo (Jonas, liderança comunitária da AMAJAC).

Há uma representação do discurso da precariedade do JC, como um loteamento único,


que está presente na pauta histórica do seminário de 1988 da AMAJAC, mas que em
momentos de conflito e escassez de recursos a própria associação e suas lideranças
buscam na distinção entre lugares e grupos sociais meios para garantir investimentos e

185
serviços de saneamento. Não há recursos para todos. E os moradores, lideranças e
instituições locais sabem disso.

Além disso, a legalidade ou outras práticas estatais são apropriadas mediante regulações
locais que emanam da necessidade da população em se reproduzir na cidade. Nas
“margens” (DAS; POOLE, 2008) o desafio é identificar as diferentes concepções das
normas e condutas existentes nesses territórios. Para compreendê-las é preciso seguir
um sentido analítico inverso, ou seja, não apenas pautar-se nas estruturas do Estado, sua
máquina, sua burocracia para definir o que ocorre nos territórios urbanos, mas construir
um ponto de vista a partir dos lugares, dos atores que ali transitam que percorrem
diferentes escalas e atravessam a separação entre imposições legais e extralegais. Essas
discussões evidenciam os canais que percorrem os territórios e as relações políticas
entre os mais diversos atores do campo social, onde o Estado passa a ser representado
por agentes que possuem a capacidade de transitar por estes canais.

Esta última forma de entender a la vida nuda como excepción nos


conduce a un sentido de margen que empleamos aquí, no tanto como
sitio que queda por fuera del estado, sino más bien como ríos que
fluyen al interior y a través de su cuerpo (DAS; POOLE, 2008, p. 29).

Esse quadro complexo não se reduz à lógica de confronto entre classes sociais ou uma
eterna luta entre os loteamentos e a cidade. Na verdade, está-se diante de contradições
não resolvidas, de necessidades não atendidas por completo, mas que encontram saída
por meio da prática social e espacial. “No vivido, a práxis é contraditória” (MARTINS,
1966, p.122). Lefebvre já observara que nem mesmo no estado de dominação não há
reprodução de relações sociais sem certa produção de novas relações.

No Jardim Catarina a história parece seguir nessa condição, que mesmo diante de
formas de controle, os atores operam e se movimentam no espaço urbano da cidade por
meio de um entrelaçado de práticas como soluções aos problemas cotidianos. Sem esse
campo político construído sobre arranjos locais é provável que muitos moradores não
tivessem tido acesso à casa, à terra e ao abastecimento de água. O mapa da água
formado pelas adutoras principais que seguem para o centro de Niterói; as redes
secundárias e marginais que buscam o Catarina Velho; e os gatilhos, que atendem as

186
localidades sem nenhuma infraestrutura, são algumas das facetas espaciais da política
urbana na RMRJ.

A distribuição desigual das redes e tubulações materializa não apenas as obras e


intervenções públicas, mas as disputas e os acordos entre agentes e políticos locais e
lideranças comunitárias e moradores. O campo de força se estende de forma desigual
por todo o JC, seja integrando partes do loteamento ou segregando outras.

A mudança na forma de atuar da AMAJAC via política institucional, não significa que
ela não entenda o jogo de poder da cidade ou que esteja apenas buscando novos
parceiros para suas lutas diárias. A organização de uma pauta permanente ajuda a
manter o embate político aquecido e a desenhar a agenda pública, mesmo que esta seja
dominada pelo Estado e os agentes de mercado. A pauta de reivindicações fortalece o
movimento de luta cotidiana e o trânsito dentro de instituições supralocais e estatais. O
setor saneamento, além de conter forte teor econômico, transformou-se num campo
altamente disputado, envolvendo Estado, agentes de mercado e sociedade.

187
CONCLUSÃO

É imprescindível que o vivido, o concebido, o percebido sejam


reunidos, de modo que o “sujeito”, o membro de determinado grupo
social, possa passar de um ao outro sem aí se perder.

(Henri Lefebvre. A Produção do Espaço)

O Jardim Catarina é o lugar da cidade. Cidade, pois seus elementos constituintes se


reproduzem justamente na integração aos processos e aos fluxos urbanos mais amplos e
que abarcam as demais áreas da metrópole do Rio de Janeiro. Da mesma forma é cidade
graças aos seus ordenamentos e regulações territoriais próprias, que permitem a
expansão do meio urbano no Estado do Rio de Janeiro, ganhando em complexidade,
mantendo seu modo de vida diante de processos desiguais de distribuição de bens e
serviços básicos à reprodução social.

Não se está diante de um ambiente de igualdade, cujo direito à cidade emana de todos
os lugares e gritados por todos os cantos pelos mais diversos atores sociais. Não é disso
que se tratou esse trabalho. Trata-se de uma vida crua, real, que fez seus moradores
buscar ao longo das mudanças de conjunturas políticas e econômicas, rever e refazer
relações e estratégias de sobrevivência em São Gonçalo.

A presente tese demonstrou que historicamente se formou um campo político e de


poder, controle e disputas em torno dos serviços urbanos na Região Metropolitana do
Rio de Janeiro, com destaque para a água, como componente essencial para a
reprodução da vida urbana. Foi preciso descortinar certas engrenagens para uma melhor
compreensão da organização urbana do Jardim Catarina.

O acesso ao abastecimento de água na Região Metropolitana é injusto. O morador do


Jardim Catarina ao ver a estação de tratamento de água a sua frente sabe disso. O JC é
parte do todo, o todo está no JC... E muito mais do que isso. Sem a chegada da CEDAE,
o crescimento e o adensamento do(s) loteamento(s) seriam impensáveis. Sem as redes
de precárias e secundárias não seriam possíveis a instalação dos gatilhos e o acesso a
um bem tão precioso como a água. Sem o carro pipa e as dragas levadas pelo o agente

188
público o Betinho da Água, a vida no Pica-pau seria inviável devido à urbanização
acelerada, à poluição de rios e ao quadro sanitário vulnerável por estar inserido em áreas
inundáveis.

No caso da Favela da 40, a (des)regulação da política habitacional da CEHAB, que


influenciou na transformação do conjunto em uma das localidades mais violentas de
São Gonçalo, gerou uma relação de segregação espacial dentro do Jardim Catarina. Essa
distinção socioespacial, por sua vez, fez com que a AMAJAC se consolidasse como a
única associação de moradores no loteamento justamente porque ganhou
representatividade e força política em localidades específicas, e por não representar a
todos.

A história do Jardim Catarina (e de outros lugares) é a história da cidade possível. Há


um conjunto de práticas sociais e formas de regulação da vida local que refutam a ideia
de desordem urbana, como se o Jardim Catarina estivesse apartado. A dinâmica espacial
e a política garantem o acesso do morador, mesmo que precário e controlado, a uma
série de serviços.

A estrutura urbana desigual da RMRJ, onde se concentram capitais e melhores serviços


nas áreas centrais, com uma clara hegemonia do centro do Rio de Janeiro e dos bairros
da Zona Sul carioca, parece não permitir ao morador do Jardim Catarina despender
esforços em direções duvidosas e incertas. Há outras formas de ganho pessoal e coletivo
mais factíveis do que tentar reverter lógicas dominantes. Nesse campo político as
margens estão sempre se deslocando. As disputas por serviços urbanos e por espaço
surgiram dentro de um movimento histórico que mostrou que na cidade, tais fenômenos
devem ser relativizados e compreendidos a partir das contradições que os cercam e os
produzem.

O próprio processo de construção de loteamentos nas periferias metropolitanas foi


tratado quase que exclusivamente pela lógica do capital na literatura especializada99, ou
seja, como resultado da monopolização dos grandes agentes como o Estado e as
empresas loteadoras sobre a apropriação das terras das antigas zonas rurais e sua
incorporação ao perímetro urbano para fins de geração de capital. É verdade. Contudo, a
tese demonstrou que na ocupação do Jardim Catarina ocorreu participações silenciosa
de pequenos agentes como corretores, comerciantes e os próprios moradores, que a

99
KOWARICK, 1979; BOLAFFI, 1985; BONDUKI, 1994.

189
partir de suas relações e práticas diárias contribuíram para a constituição de um mercado
imobiliário dinâmico nos limites da cidade do Rio de Janeiro e fundamental para
flexibilizar ainda mais as possibilidades de acesso ao solo urbano e à moradia.

As políticas urbanas dos projetistas e dos engenheiros entram assim num movimento de
contradição com o “mapa da água” real do Jardim Catarina. Um mapa produzido por
aqueles que vivem na cidade. Por esse caminho, a presente tese buscou recuperar a
dimensão histórica da política no Estado do Rio de Janeiro, retomando suas
particularidades e movendo o olhar para além dos limites das áreas centrais do Rio de
Janeiro.

A descrição de algumas localidades dentro do loteamento demostrou que há processos


de produção de desigualdade e de periferização nas margens da RMRJ (LAGO, 2003;
2009), que mesmo resultando da própria lógica de produção do espaço, vão responder
também às formas de organização local. Nessa construção de Catarinas as trajetórias de
certos personagens ganharam força ao personificar esse conjunto de relações de poder
que sintetizam alguns os processos que levaram à ocupação do loteamento.

A própria AMAJAC, diante da mudança de contexto político na RMRJ e na crescente


complexidade da organização espacial interna e na constituição de localidades distintas
teve que alternar estratégias de acesso aos investimentos públicos em saneamento e
adotar novas narrativas diante da necessidade de novos acordos políticos junto às
instituições supralocais.

Antes da chegada da CEDAE, os moradores, num ambiente de baixa densidade urbana


do loteamento, buscavam junto aos comerciantes e às próprias loteadoras soluções
imediatas para os problemas de falta d’água e soluções de acesso à moradia. Após a
criação da CEDAE, em 1975, os mesmos moradores em conjunto com lideranças locais
passaram a pressionar a estatal por meio de gatilhos na rede de água oficial, obrigando
ao Estado ampliar seu serviço de abastecimento para o loteamento.

As melhorias na infraestrutura da RMRJ (ampliação da cobertura de saneamento,


construção da Ponte Rio-Niterói, entre outras), o crescimento demográfico de SG e o
adensamento dos loteamentos do distrito de Monjolos exigiram que os grupos locais do
criassem mecanismos para assegurar que o serviço de água atendesse pelo menos
algumas localidades.

190
Com o surgimento de novos atores na cena política da RMRJ na virada da década de
1980 para 1990, como agencias internacionais, grandes empresas de construção civil e
ONGs, todas interessadas no tema do saneamento e na urbanização de cidades, as
lideranças e instituições do Jardim Catarina tiveram que readaptar o discurso político e
construir uma agenda do saneamento própria para o loteamento. Com a Constituição de
1988 e o ressurgimento dos movimentos sociais as lideranças da AMAJAC adotaram a
narrativa do saneamento como direito, porém, conscientes de que essa dimensão não
seria garantida efetivamente para o Jardim Catarina e teria que ser disputada
internamente.

Nas falas de Seu João e dos membros da associação de moradores há um entendimento


que para se obter alguma contrapartida de programas e de investimentos públicos, como
o PDBG, por exemplo, era preciso selecionar projetos específicos de abastecimento de
água, cientes das limitações, controles e interrupções de obras e serviços. Eles entendem
que a política urbana jamais será plena numa estrutura hierarquizada de cidade, que no
caso do Jardim Catarina será mediada pelas relações políticas e pela organização
territorial do loteamento.

Diante desse quadro, governos estadual e municipal vão alimentar uma lógica de
política baseada na manutenção de um cronograma de obras públicas quase que
permanente em São Gonçalo. Há um campo político que passou a gerir as relações
políticas e as disputas entre atores locais e instituições supralocais, todos em busca de
uma posição e seu reconhecimento na metrópole.

Após o saneamento ter se tornado um ponto central para vida urbana e tratado como
demanda básica a ser atendida pelo poder público, o Estado vai buscar manter um nível
de investimento permanente em São Gonçalo. Contudo, necessitando em manter sua
hegemonia e legitimidade no âmbito local, o setor público de saneamento delegará parte
do seu controle sobre os serviços de água a agentes marginais, a exemplo do Betinho da
Água.

As localidades com maior presença de população pobre tornaram-se aquelas justamente


menos atendidas pelo sistema geral de abastecimento, tendo que contar com os serviços
prestados pelos agentes do mercado de água local. Da mesma forma, as localidades com
uma maior representatividade política, melhor renda e de ocupação mais antiga,
posicionadas na entrada do loteamento e próximo aos equipamentos públicos de

191
saneamento, como a ETA Imunana-Laranjal, e ao bairro de Alcântara acabaram se
beneficiados com uma maior oferta e qualidade do sistema de abastecimento de água.

Essas abordagens inevitavelmente levarão à problematização das noções como:


“cidades dormitórios”; periferia e espaços violentos; mercados ilegais, entre outras.
Essas representações produzidas geralmente por instituições supralocais, como agências
internacionais, imprensa, órgãos públicos e o mercado, só poderão ser compreendidas
de fato se forem observados nos diferentes níveis de negociação, construídos pelas
relações entre os moradores, os agentes econômicos e o Estado.

Como observou Lefebvre, as dimensões urbanas são condicionadas às práticas sociais,


que por sua vez, modelam o espaço a partir das relações construídas pelos atores. Essas
práticas estarão em constante diálogo com os diferentes contextos históricos. Se as
análises focassem somente sobre o conflito entre periferias e áreas centrais da cidade,
dificilmente se conseguiria perceber a totalidade do fenômeno urbano. Lugares como o
Jardim Catarina oferecem continuidade às análises sobre as regiões metropolitanas.

Parece existir uma convivência até certo ponto estável no cotidiano do JC entre todos
esses mecanismos de regulação, personagens e lugares, o que não quer dizer que não
haja conflitos, muito menos conformismo entre os moradores. A questão é que mesmo
diante de um ambiente desigual e injusto, se consolidou ao longo do tempo um
ambiente político onde todos conhecem e sabem seu papel e seu limite de atuação nessa
estrutura de poder. Se surge algum evento inesperado, dificilmente ocorrerão rupturas
nos acordos políticos localmente firmados entre indivíduos, agentes públicos e privados
e instituições supralocais.

No capitalismo urbano brasileiro, Chico de Oliveira afirmou que a sociedade


transformou a percepção de classe em pobreza, e não na tentativa de aumentar o poder
de classe. Mesmo com a chegada de serviços na periferia e aumento do consumo nas
favelas, essas seriam benefícios apenas de consumo, fazendo do pobre apenas um
consumidor. Para o autor, a pobreza não é uma herança do passado, mas a forma pela
qual o capitalismo brasileiro se desenvolveu. Então vai ter sempre um Estado para
atender os pobres e periferias urbanas, fazendo do morador da cidade pessoas que
pensam, se movimentam e se reproduzem “nos termos da hegemonia (1982; 2003)”.

A princípio a ampliação dos serviços de saneamento no município de São Gonçalo


seguiu a visão hierarquizada dos dirigentes e técnicos da CEDAE, promovendo

192
instalações precárias de baixa qualidade e um sistema de manobra de água que atendia
apenas parcialmente o Jardim Catarina. O fato de não haver revolta popular diante desse
quadro desigual, até mesmo após a ocorrência de eventos radicais como o surgimento de
epidemias e o agravamento de problemas socioambientais causados por enchentes, pode
significar que num sistema de dominação, há um consenso entre os atores que
estabelece uma espécie de limite à ação de cada parte.

No entanto, essa noção de existência de certa estabilidade nas relações políticas e


cotidianas no JC não deve ser compreendida como um conformismo por parte dos
atores locais ou uma falta de iniciativa diante da má qualidade ou inexistência dos
serviços urbanos. Na verdade, deve ser entendida como “uma avaliação (conjuntural e
material) rigorosa dos limites da sua melhoria” (VALLA, 1996, p. 180) e das
possibilidades de ação (CUNHA, 2010).

Conforme nos mostrou Lefebvre (2000), a cidade é dependente também, e não menos
essencialmente, de relações imediatas, no cotidiano, das relações diretas entre pessoas e
grupos da sociedade (famílias, corpos organizados, profissões e corporações etc.). O
espaço urbano tem como papel mediar diferentes ordens e tempos históricos,
aproximando o campo da política urbana e os níveis mais elevados das estruturas de
poder da sociedade (para Lefebvre, ordem distante: Estado, igreja, mercado) do
ambiente de relação dos indivíduos, pautado nas estruturas de rede e apoio social e nas
formas locais de organização espacial (ordem próxima).

Assim se produz a cidade. Pesquisas sobre a vida de lugares como o Jardim Catarina
abrem um novo diálogo sobre estudos urbanos. Permite escapar das ideologias e das
abstrações explicativas centradas no Estado e no Capital, ou como afirmaria Lefebvre,
localizadas numa ordem distante (2006), aquela que se projeta sobre o espaço na
tentativa de dominá-lo. Contudo, essas projeções vão encontrar no Jardim Catarina o
cotidiano, espaço de mediações, a cidade como obra, que supera a noção que a trata
como objeto exclusivo de troca numa sociedade capitalista e desigual.

Os Catarinas, o Jardim Catarina, o distrito de Monjolos, o município de São Gonçalo e a


Região Metropolitana inscrevem-se no processo histórico do Estado do Rio de Janeiro,
movimentando-se entre conjunturas e interações entre escalas, permanentemente
situadas territorialmente sob condições materiais do seu tempo. É a cidade possível.

193
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206
ANEXOS I - TABELAS

Tabela 3: População Economicamente Ativa (acima de 10 anos) que trabalha no município de


residência

Município PEA trabalha PEA do % PEA outra Pop. Total % Pop.


outra cidade município cidade

Belford Roxo 101000 213611 47,28 469332 21,52


Cachoeiras de Macacu 3055 26780 11,41 54273 5,63
Duque de Caxias 112835 403018 28,00 855048 13,20
Guapimirim 6403 25266 25,34 51483 12,44
Itaboraí 36978 107392 34,43 218008 16,96
Itaguaí 9650 51953 18,57 109091 8,85
Japeri 19375 38773 49,97 95492 20,29
Magé 31377 103056 30,45 227322 13,80
Maricá 16778 61529 27,27 127461 13,16
Mesquita 42862 79548 53,88 168376 25,46
Nilópolis 34412 73300 46,95 157425 21,86
Niterói 69017 251402 27,45 487562 14,16
Nova Iguaçu 126855 365063 34,75 796257 15,93
Paracambi 4048 19645 20,61 47124 8,59
Queimados 28433 61402 46,31 137962 20,61
Rio Bonito 3382 26571 12,73 55551 6,09
Rio de Janeiro 71960 3152146 2,28 6320446 1,14
São Gonçalo 171597 497683 34,48 999728 17,16

São João de Meriti 97259 219250 44,36 458673 21,20


Seropédica 10354 37182 27,85 78186 13,24
Tanguá 4888 13903 35,16 30732 15,91
Fonte: Censo Demográfico do IBGE, 2010.

Tabela 4: população de São Gonçalo e Distritos

Município/Distritos 2000 2010 Taxa


São Gonçalo 891 119 999 728 1,157
Ipiíba 159 812 194 718 1,995
Monjolo 176 716 223 058 2,356
Neves 156 751 161 721 0,313
Centro 320 754 337 273 0,503
Sete Pontes 77 086 82 958 0,737
Fonte: Censos Censitários do IBGE, 2000 e 2010.

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