Como Pensam As Imagens PDF
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Como Pensam As Imagens PDF
SAMAIN, E. (Org.).
Como pensam as imagens.
Campinas: Editora da Unicamp, 2012
Resumo: As imagens podem pensar, de maneira independente, como se fossem sujeitos? Para apre-
sentar e discutir essa ideia, Etienne Samain reuniu textos próprios e de mais nove autores.
Inspirados pelos conceitos de Aby Warburg, Gregory Bateson e Didi-Huberman, os artigos
tratam de uma teoria da imagem e sua operação metodológica e analítica, especialmente
em relação à fotografia. Os textos estão organizados em três partes e se complementam,
dialogam e até mesmo se opõem, formando um panorama rico e consistente de outra pro-
posta epistemológica da comunicação.
Abstract: Images that think, that dream, that feel. A bold proposal? – Are images independently
sentient, like individuals? To present and discuss this idea, Etienne Samain put together a
collection of his own texts and those of nine other authors. Inspired by the concepts of Aby
Warburg, Gregory Bateson and Didi-Huberman, these articles discuss an image theory and
its methodological and analytical operation, particularly with regard to photography. Organi-
zed in three parts, the texts complement, dialogue and even differ from each other, creating
a rich and consistent panorama of a another epistemological proposal of communication.
Recebo o livro organizado por Etienne Samain e me encanta a capa ilustrada por
uma borboleta. O título é instigante, mas a fotografia suga primeiro a atenção. Vejo olhos
de coruja nas asas do inseto e, talvez, a cabeça de uma serpente na extremidade dessas
asas. Sensação de beleza e perigo.
Abro o livro. Abandono as explorações do imaginário e envolvo-me com o aspecto
racional. Dizer que as imagens pensam – ao contrário de dizer que nos fazem pensar
– sugere um caráter de autonomia, de independência, de livre-arbítrio. É como se as
imagens tivessem vida própria, como se fossem sujeitos, e não produtos. Seria isso que o
organizador quis dizer? Ou trata-se de uma prosopopeia, de um recurso estilístico para
nos lembrar a importância das imagens em nossa cultura?
Já nos agradecimentos e na apresentação, Samain revela a inspiração teórica dos
textos incluídos no livro: Gregory Bateson, “que concebe a comunicação humana tanto
como um fato cultural quanto como uma orquestração ritual, sensível e sensorial, sempre
inserida num contexto”, e Aby Warburg, que “exuma e reaviva, nas obras de arte e outros
grandes movimentos da história, as ‘formas [fórmulas] de patético’, presentes em todas
as culturas humanas” (p. 14).
É da articulação e da empatia entre as ideias desses “dois gigantes” que surge, para
Samain, a questão de como pensam as imagens. O teólogo, antropólogo, fotógrafo e
professor da pós-graduação em multimeios da Unicamp, belga radicado no Brasil, pro-
põe que as imagens nos fazem pensar porque, ao se associarem, tornam-se portadoras
de pensamento, constituem-se em formas que pensam. Ver as imagens dessa maneira
seria, assim, uma forma de “reavaliar [...] a epistemologia da comunicação, ameaçada
na dubitável matriz logocêntrica de nosso Ocidente” (p. 17).
Os onze capítulos do livro estão divididos em três partes: Pensar por imagens traz
textos que exploram a questão epistemológica central, com base nas propostas de Bateson,
Warburg e Didi-Huberman; Quando ardem as imagens agrupa artigos que falam sobre
imagens consumidas, reavivadas por um sopro – da memória, da articulação com a fala,
da associação com outras imagens. São trabalhos em que é possível perceber a operação
da epistemologia das imagens pensantes sobre objetos como fotografias de família e
artísticas; a terceira parte mostra a Cumplicidade das imagens. Nesse último conjunto,
os textos propõem “percursos críticos entre ‘modo de ver’ e ‘modo de pensar’, o que as
matrizes comunicacionais buscam nos oferecer na atualidade” (p. 16). Um caderno em
papel cuchê, no final do livro, traz reproduções coloridas das imagens impressas em preto
e branco que ilustram os artigos.
Além de organizar o livro, Etienne Samain assina dois de seus artigos, ambos na
primeira parte. Em “As imagens não são bolas de sinuca. Como pensam as imagens”,
213 BAGGIO, A. T. Imagens que pensam, que sonham, que sentem. Uma proposta ousada? Galaxia. (São Paulo, Online),
n. 25, p. 211-216, jun. 2013.
o autor enxerga as imagens como coisas vivas. É nesse texto que Samain defende a ideia
de imagens pensantes, a partir de três argumentos: de que toda imagem nos oferece algo
para pensar, seja ligado ao real, seja ligado ao imaginário; de que as imagens são porta-
doras de pensamentos porque veiculam pensamentos de quem as produziu e incorporam
pensamentos daqueles que as observaram (conceito aprofundado e bem exemplificado
por Jorge Coli, em outro texto integrante da primeira parte), configurando-se como um
lugar de memória coletiva; e de que as imagens são formas que pensam, dialogam e se
comunicam, independentemente de nós.
Já em “Aby Warburg. Mnemosyne. Constelação de culturas e ampulheta de memó-
rias”, Etienne Samain apresenta o historiador, o contexto em que viveu e também sua
obra: o atlas de imagens Mnemosyne, “uma ‘história de arte sem palavras’ ou, ainda, uma
‘história de fantasmas para pessoas adultas’” (p. 52).
Mnemosyne consiste em um conjunto de 79 painéis de fundo preto sobre os quais
Warburg distribuiu aproximadamente novecentas imagens – fotografias em p&b, em sua
maior parte, retiradas de um arquivo de mais 25 mil exemplares. O trabalho começou
em 1924 e foi interrompido com a sua morte, em 1929. Warburg organizava as imagens
nos painéis de forma que pudessem dialogar com as demais e todas entre si. É a partir
da constituição desses painéis que emergem dois importantes conceitos: Pathosformeln
(forma ou fórmula do patético) e Nachleben (o “após-viver” ou “supervivência”). De
maneira bastante superficial: as formas do patético se referem às emoções profundas
do ser humano, como o medo, o terror, a paixão, a sedução, a felicidade, enquanto as
supervivências são as imagens do patético humano. Imagens que “se pensam e dialogam
no tempo”, mas não em uma linearidade histórica; elas “abrem e desdobram a história,
a descobrem ou a encobrem, a reencontram e a ressuscitam, a fazem viver e existir” (p.
58). Esses conceitos ficam mais claros a partir do relato das experiências de Warburg
no território dos índios Hopi, no Novo México (EUA), no final do século XIX. Warburg
observou o ritual no qual os índios comparavam a serpente a um raio. O fundamento
do ritual está em que, ao domar a perigosa serpente – algo que os índios podem fazer –,
seria possível controlar o raio – incontrolável. Para esses índios, o raio que corta o céu é
a serpente que foge: ambos são o perigo, o terror, e assumem a mesma forma de zigue-
zague quando em movimento.
O alerta para a ousadia de sua proposta, que Samain expõe na apresentação do livro,
é retomado quando o autor exercita suas próprias referências a outras imagens de “formas
do patético”: as placas de trânsito que anunciam um trecho sinuoso e perigoso da estrada,
o sinal telegráfico de perigo SOS – duas serpentes prontas a dar o bote ladeando outra
serpente, enrolada –, a serpente de Esculápio, que simboliza a medicina e a farmácia, as
serpentes de Laocoon, a serpente do Éden.
Quando cheguei a esse ponto do livro, lembrei da sensação que tive ao pensar ter
visto uma cabeça de serpente nas asas da borboleta que ilustra a capa. Será que, então,
214 BAGGIO, A. T. Imagens que pensam, que sonham, que sentem. Uma proposta ousada? Galaxia. (São Paulo, Online),
n. 25, p. 211-216, jun. 2013.
eu mesma não estaria entendendo as imagens a partir do que pretendia Warburg? Por
uma lógica do sensível, do sensorial e do imaginário, em adição (e sem se opor) à lógica
da razão?
Esta primeira parte traz ainda um breve artigo em que Sylvain Maresca propõe que
as imagens, especialmente a fotografia, não dizem nada. A princípio, parece que Mares-
ca contradiz o pensar das imagens. No entanto, o autor ressalta que as imagens não são
mudas. Elas não falam porque não querem, são “múticas”: prescindem das legendas, das
explicações e dos significados. Quando são definidas por eles, é como se se apagassem.
Maresca pede que não se encontrem significados tão rapidamente, que não se interpre-
tem as fotografias tão imediatamente. Para ele, o fotógrafo deve procurar ver sem saber,
ver mais de perto, descrever sem logo interpretar e aceitar a heterogeneidade das coisas.
Já falamos antes sobre a ideia de que as imagens trazem não só o pensamento de
quem as produziu, mas também daqueles que as olharam. Jorge Coli diz, em “A obra
ausente”, que as obras de arte se constituem como tal pela percepção de quem as obser-
va, e ainda por sua inserção no “tecido mais amplo” de outras obras, da realidade e da
memória. Problematizando a famosa questão de Walter Benjamin, também fazem parte
da obra as suas reproduções, imitações e paródias. Para Jorge Coli, em alinhamento às
ideias de Warburg, tais associações se dão pela forma.
No último texto da primeira parte, Marie-Anne Lescourret mostra como a tensão entre
apolíneo e dionisíaco, razão e sentimento, inteligível e irracional, própria do pensamento
de Warburg, aparece também nas ciências históricas. Lescourret enxerga nas concepções
das Escolas dos Anais o dionisíaco em tensão com o apolíneo da história positivista. O
reflexo dessa concepção é a rejeição de Warburg à visão da história da arte como uma
sucessão de escolas. No lugar das relações lineares, temporais, geográficas e formais das
escolas, propõe-se uma aproximação sensível e antropológica das obras artísticas.
Dos três trabalhos da segunda parte, dois mostram como pensam (ou sentem?) aquelas
imagens envolvidas por ternura e afeto: as fotografias de família. “Uma antropologia das
‘supervivências’: as fotobiografias”, de Fabiana Bruno, é exemplar, além de outros moti-
vos, por apresentar claramente uma metodologia de pesquisa desse tipo de imagem. Se
no trabalho de Bruno as imagens “sentem”, em “Uma foto familiar: aprisco de emoções
e pensamentos (Anotações delirantes sobre [a]sombrografia)” a fotografia da família de
Eduardo Peñuela Cañizal está entre aquelas que “sonham”. Ao observar a imagem de
seus pais e irmãos, o autor percebe que “o inconsciente ótico se apresenta como artifício
capaz de efetuar a transformação do latente em manifesto” (p. 122).
O terceiro artigo, de Ronaldo Entler, fala sobre as lacunas e os silêncios que com-
põem as imagens. Retomando as concepções de textos anteriores, como os de Semain
e Coli, Entler diz:
215 BAGGIO, A. T. Imagens que pensam, que sonham, que sentem. Uma proposta ousada? Galaxia. (São Paulo, Online),
n. 25, p. 211-216, jun. 2013.
Para concluir
Está claro que fui atraída pelas ideias propostas nos textos desse livro. No entanto,
visto que Samain faz mais de um alerta para a ousadia das suas propostas, talvez esteja
se preparando para os questionamentos daqueles que encaram a apreensão do cogni-
tivo pelo sensível como uma forma de “impressionismo”, desvalorizando e até mesmo
desqualificando as interpretações oriundas desse tipo de abordagem. Se ele estiver certo
e o leitor vier a pensar dessa forma, não será, no entanto, pela falta de consistência,
coerência ou articulação dos onze capítulos que compõem a coletânea. Tratando da
teoria, da metodologia, apresentando sua operação em diferentes objetos ou mostrando
o diálogo com outras linhas de pensamento, os textos oferecem uma abordagem bastante
pertinente para os estudos, por exemplo, das imagens da imprensa e da publicidade. Essa
última, especialmente, se ressente mais de uma certa falta de referências próprias da
epistemologia da comunicação. Não seria esse pensar das imagens outra possibilidade
epistemológica válida?